Uma questão de cidadania: A doutrina jurídica brasileira sobre a Intervenção Federal, o que ela...

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1 Uma questão de cidadania: A doutrina jurídica brasileira sobre a Intervenção Federal, o que ela diz e não diz 1 A question of citizenship: the Brazilian legal doctrine on the Federal Intervention, what she says and does not Fernanda Duarte PhD - UFF/INCT-InEAC Brasil [email protected] Rafael Mario Iorio Filho - PhD UNESA/Brazil [email protected] Resumo: O trabalho tem como objetivo perceber como os discursos doutrinários acerca da intervenção federal se constroem e como eles se relacionam com o poder na defesa da cidadania brasileira. Esta discussão temática é de todo importante, pois traria em seu campo significativo toda uma problemática de circunstâncias de crise constitucional federativa, e por isso, de relações explícitas entre poder soberano e guarda das cidadanias. Em sua primeira parte, tem o objetivo de contextualizar historicamente o federalismo como fato histórico, tanto nos Estados Unidos da América, quanto no Brasil. Desenvolve, também, um estudo das representações do campo jurídico brasileiro acerca do federalismo e da intervenção federal, ou seja, são apresentados os elementos que constituem a semântica da linguagem, materializada nos discursos dos atores do Direito. Abstract: The study aims to understand how the speeches about federal intervention are constructed and how they relate to the power in the defense of Brazilian citizenship. This discussion topic is all important because it would bring in his significant issue field the federal constitutional crisis situations, and therefore, the explicit relations between sovereign power and custody of citizenship. In its first part, aims to contextualize historically federalism as historical fact, both in the United States of America, and in Brazil. It also develops a study of representations of the Brazilian legal field about federalism and federal intervention, ie, presents the elements that constitute the language semantics, embodied in the speeches of the actors of the law. Palavras-chaves: cidadania; doutrina jurídica; intervenção federal. 1 Trabalho apresentado a reunião do CONPEDI de Belo Horizonte, 2011.

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Uma questão de cidadania: A doutrina jurídica brasileira sobre a Intervenção Federal, o

que ela diz e não diz1

A question of citizenship: the Brazilian legal doctrine on the Federal Intervention,

what she says and does not

Fernanda Duarte – PhD - UFF/INCT-InEAC Brasil

[email protected]

Rafael Mario Iorio Filho - PhD – UNESA/Brazil

[email protected]

Resumo: O trabalho tem como objetivo perceber como os discursos doutrinários acerca

da intervenção federal se constroem e como eles se relacionam com o poder na defesa

da cidadania brasileira. Esta discussão temática é de todo importante, pois traria em seu

campo significativo toda uma problemática de circunstâncias de crise constitucional

federativa, e por isso, de relações explícitas entre poder soberano e guarda das

cidadanias. Em sua primeira parte, tem o objetivo de contextualizar historicamente o

federalismo como fato histórico, tanto nos Estados Unidos da América, quanto no

Brasil. Desenvolve, também, um estudo das representações do campo jurídico brasileiro

acerca do federalismo e da intervenção federal, ou seja, são apresentados os elementos

que constituem a semântica da linguagem, materializada nos discursos dos atores do

Direito.

Abstract: The study aims to understand how the speeches about federal intervention are

constructed and how they relate to the power in the defense of Brazilian citizenship.

This discussion topic is all important because it would bring in his significant issue field

the federal constitutional crisis situations, and therefore, the explicit relations between

sovereign power and custody of citizenship. In its first part, aims to contextualize

historically federalism as historical fact, both in the United States of America, and in

Brazil. It also develops a study of representations of the Brazilian legal field about

federalism and federal intervention, ie, presents the elements that constitute the

language semantics, embodied in the speeches of the actors of the law.

Palavras-chaves: cidadania; doutrina jurídica; intervenção federal.

1 Trabalho apresentado a reunião do CONPEDI de Belo Horizonte, 2011.

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Keywords: citizenship; legal doctrine; federal intervention.

1. Considerações inicias

A ciência do direito, tomada pelo sentido que o campo jurídico2 brasileiro lhe

dá, significa a produção intelectual doutrinária das possíveis interpretações legais e

judiciais dos institutos ou categorias do direito. Assim a doutrina pretende ocupar um

papel de sugerir interpretações pertinentes aos operadores do direito.

Tais sugestões serão utilizadas ou não dependendo do argumento defendido em

juízo e do livre convencimento do juiz (TEIXEIRA MENDES, 2008). A doutrina seria

responsável pela socialização dos integrantes do campo jurídico (advogados,

magistrados, membros do Ministério Público, estudantes e acadêmicos do Curso de

Direito) nos símbolos e nas representações articuladas do sistema de pensamento ou da

atividade discursiva próprias do direito3.

2 Para este trabalho usamos os termos “campo do direito”, “campo jurídico” e “mundo do direito”, no

sentido da concepção de Pierre BOURDIEU (1992:206-207), que toma os campos da vida social como

campos magnéticos onde os agentes se aproximam e se afastam em função de luta política. Num campo

há ainda uma estabilidade semântica, de práticas e de visões de mundo, o que, segundo o autor, “permite

a todos os detentores do mesmo código associar o mesmo sentido às mesmas palavras, aos mesmos

comportamentos e às mesmas obras e, de maneira recíproca, de exprimir a mesma intenção significante

por intermédio das mesmas palavras, dos mesmos comportamentos e das mesmas obras.”

3 Neste sentido é elucidativa a reflexão de TEIXEIRA MENDES (2008:40): “A dogmática jurídica,

também chamada de doutrina, é uma forma de construção do saber própria do campo jurídico que

consiste em reunir e organizar de forma sistemática e racional comentários a respeito da legislação em

vigor e da melhor forma de interpretá-la. A dogmática é um saber que produz as doutrinas jurídicas,

através das quais o direito se reproduz. Tais doutrinas constituem o pensamento de pessoas autorizadas a

trabalhar academicamente determinados assuntos, interpretar os textos legais e emitir pareceres a respeito

da forma mais adequada de interpretá-los e de aplicá-los. O saber jurídico não é científico, é dogmático

(GEERTZ, 1998:249). O saber jurídico construído pela doutrina é considerado pelo campo como

puramente teórico, mas seria mais bem definido, a meu ver, como um saber abstrato e normativo, que tem

a função de ensinar de forma normalizada e formalizada as regras que estão em vigor. Vale esclarecer que

a visão da doutrina não é uma teoria a qual estão subordinadas as práticas judiciárias. A doutrina jurídica

é um discurso autorizado sobre a lei e suas possíveis interpretações e aplicações jurisprudenciais. É um

3

Portanto, a produção doutrinária estabelece o fundo comum de formação do

pensamento jurídico brasileiro, ainda que este pensamento seja marcado por opiniões

antagônicas e muitas vezes paradoxais, uma vez que o nosso sistema jurídico-processual

não leva à formação de consenso4.

Nesse sentido, pode-se falar na hipertrofia do papel da interpretação da lei na

construção da sensibilidade jurídica5 brasileira: temos um sistema que valoriza pouco o

que está escrito na lei. A interpretação literal é vista pelos juristas brasileiros como

simplória e pouco sofisticada, sendo mais valorizadas, porque eruditas, as

interpretações que se fundamentam em aportes doutrinários (também chamados de

“teóricos”) que aparentemente melhor “elucubrariam” sobre os sentidos possíveis a

serem atribuídos às normas.

Neste ponto vale lembrar a afirmação de GEERTZ (1998:249-356): “o saber

jurídico, em qualquer lugar do mundo, e em qualquer época, é apenas parte de uma

forma específica de imaginar a realidade. Essas formas têm de ser confrontadas para que

se obtenha consciência ampla de outras maneiras de sensibilidade jurídica, buscando-se

a relativização de suas manifestações.”

Este trabalho cuida da temática da intervenção federal, sob a ótica da doutrina

constitucional, pretendendo descrever quais seriam as representações doutrinárias do

campo jurídico brasileiro acerca da intervenção federal.

discurso normativo, ideal-típico, uma vez que está dizendo como a realidade deve ser e não como a

realidade é. É saber que não se debruça sobre a realidade empírica, com a finalidade de explicá-la ou

compreendê-la, como faz o saber científico. Antes, tem a finalidade de interpretar a lei, recomendando a

melhor forma de aplicação. A doutrina e a legislação estão dirigidas ao mundo do dever-ser: o mundo

empírico está num outro plano e não lhes interessa. Na produção de doutrina jurídica, a observação

empírica está descartada. Por ser um saber normativo e existir com a finalidade de dizer como a realidade

deve ser, não tem base empírica e é comum que os juristas concluam, diante da realidade distinta da

norma, que a realidade está errada, pois ela não deveria ser assim. Um conflito juridicamente traduzido

sofre uma espécie de pasteurização e é adaptado à linguagem jurídica de tal maneira que o campo jurídico

possa decodificá-lo e aplicar a ele as regras jurídicas pertinentes. Evidentemente, as regras jurídicas,

como quaisquer regras definidas socialmente, dizem respeito a um determinado tempo e a um

determinado lugar. No entanto, o campo jurídico tende a tomar as regras jurídicas vigentes num

determinado momento histórico e numa determinada época como regras universais (no sentido cósmico),

absolutas e atemporais”. 4 Sobre a problemática da não-construção de consensos ver AMORIM et al (2005).

5 Sensibilidade jurídica é um conceito construído por Geertz para designar a noção de justiça em uma

cultura. Assim, segundo o autor, toda e qualquer cultura tem uma sensibilidade jurídica que pode ou não

se aproximar da nossa, que não é única nem absoluta. Sensibilidade jurídica é o complexo de operações

utilizado por uma sociedade para relacionar princípios abstratos desse direito (GEERTZ, 1998:249).

4

2. O Federalismo

O federalismo é em um tema relevante tanto ao pesquisador do Direito

Constitucional quanto àquele que se dedica ao estudo da Ciência Política. O Direito

Constitucional, pelo conteúdo material da Constituição, dedica-se ao estudo da

organização e do funcionamento do Estado, promovendo um estudo da anatomia do

Estado. O federalismo, como forma de Estado, liga-se à esta anatomia, pois apresenta a

divisão do território do Estado em diferentes entes federativos autônomos, exercendo

cada qual sua parcela de competência constitucionalmente estabelecida (CAMARGOS e

ANJOS, 2009:81).

Para a Ciência Política, que possui como objeto o poder político, o federalismo

trata da divisão do poder político através da federação. Na visão de Arend LIJPHART

(2003:213):

Neste capítulo, abordo a primeira variável da dimensão federal

unitária (poder dividido): o federalismo e a descentralização versus

governo unitário e centralizado. É adequado conceder esse primeiro

lugar de honra ao federalismo, porque ele pode ser considerado o

método mais típico e drástico da divisão do poder: ele divide o poder

entre níveis inteiros do governo. De fato, como termo da ciência

política, a divisão do poder é normalmente usada como sinônimo de

federalismo.

Desta forma, compreender o federalismo como fenômeno de divisão do poder

é o mesmo que analisá-lo como a divisão do principal objeto de estudo da Ciência

Política.

O federalismo como forma de Estado se apresenta como uma construção do

século XVIII, mais precisamente ligada ao movimento constitucionalista norte-

americano, que sucedeu a revolução da independência americana.

Para tratarmos das origens do federalismo norte-americano é necessário

discorrer sobre um de seus importantes pressupostos: a Constituição norte-americana. O

constitucionalismo norte-americano, cujo legado apresentou ao mundo, através da

Convenção de Filadélfia, a primeira Constituição escrita em 1787, e uma forma de

Estado até então desconhecida, que é federal, remonta ao período de aparecimento do

5

próprio estado americano. A Constituição norte-americana se apresenta como

fundamento de validade do federalismo.

Como nos dizem CAMARGOS e ANJOS (2009:83), cientistas políticos

brasileiros que se dedicam ao estudo do federalismo americano:

Foi da união das treze ex-colônias inglesas, formadas por indivíduos

oriundos da Inglaterra, que se dirigiram para o novo mundo por razões

religiosas, políticas e econômicas, que se criou inicialmente uma

Confederação no momento imediatamente posterior a independência.

Confederação esta que promoveu ajustamentos e uma maior

aproximação entre os Estados confederados, de forma a fazer surgir

uma Federação.

Na Federação cada uma das treze ex-colônias, que se constituíam

anteriormente em Estados confederados, tiveram de abrir mão da

soberania de que eram dotadas para constituir um poder que se

colocava em uma instância superior e que abrangesse a todas elas,

sendo portanto a soberania atribuída a esse poder, surgindo assim o

Estado Federal.

Segundo Alexander HAMILTON (2003:71), um dos autores de “O

Federalista”, obra referência a respeito desta nova forma de organização do Estado, a

autonomia dos estados membros combinada com uma união sólida e indissolúvel entre

eles é a marca distintiva de uma federação, como confirma o texto do próprio autor

transcrito abaixo:

Uma União sólida terá a máxima significação para a paz e para a

liberdade dos estados-membros, como uma barreira contra facções e

insurreições internas. É impossível ler a história das pequenas

repúblicas da Grécia sem um sentimento de horror e pena ante as

agitações a que elas foram continuamente submetidas e a rápida

sucessão de revoluções que as deixavam em estado de constante

oscilação entre os extremos da tirania e anarquia.

É de se notar, no caso da federação dos Estados Unidos da América do Norte,

que houve uma constante preocupação com as questões relacionadas à política externa,

de comércio e segurança dos estados federados reunidos em torno da União. Todavia, a

maior preocupação esteve em torno das crises internas que as ex-colônias, transmutadas

em Estados Confederados, e, posteriormente, em estados federados teriam de enfrentar.

A autonomia é uma prerrogativa de poder de ente político, própria do Estado

federal, que se distingue da soberania do Estado, na medida em que não é poder

6

independente. Entretanto, tem como prerrogativas básicas a auto organização, pela qual

o estado membro pode elaborar sua própria constituição e suas leis; o autogoverno que

dá ao povo do estado membro o direito de escolher seus governantes tanto no plano do

legislativo, como do executivo e do judiciário. E a ainda a auto-administração, que

permite ao estado membro organizar e gerir sua máquina burocrática (DALLARI,

2009). Em razão de peculiaridades de sua história política, o federalismo norte-

americano apresenta grande acentuação na autonomia dos estados federados.

Mais uma vez podemos citar o trecho de CAMARGOS e ANJOS (2009: 84):

Na experiência constitucional norte-americana a democracia é

verdadeiro pressuposto do federalismo. A forma de estruturação do

Estado Federal considera a participação dos cidadãos, seja através do

exercício do direito de escolha de seus representantes pelas eleições,

seja como destinatários das políticas públicas e competências

constitucionais desempenhadas pelo governo federal ou pelos

governos estaduais. Originalmente a soberania dos Estados

Confederados, que criaram a Federação na Convenção de Filadélfia

em 1787, certamente extraíram esta expressão de poder através da

manifestação da vontade de seu povo. Desta forma, tanto o governo

federal como os estaduais apresentam estruturalmente uma relação de

dependência para com o cidadão eleitor, estando bastante evidenciado

que os que governam exercem um mandato político devendo estrita

fidelidade a quem os elegeu.

Para trabalharmos com as características da federação, vamos lançar mão de

um instrumento metodológico weberiano (WEBER,1964) que é o tipo ideal. Trata-se da

construção de um modelo que traça uma espécie de caricatura simplificada da realidade

social estudada e que não pretende esgotar as características das experiências históricas

de cada Estado. Segundo WEBER (1964) dada a diversidade das peculiaridades locais,

o tipo ideal é instrumento essencial para não cairmos no relativismo extremado, o que

nos possibilita comparar certos aspectos de um fenômeno social.

A principal característica do Estado federal, como já salientamos, é a

descentralização administrativa e política. O que torna esta forma de organização

bastante sofisticada é que o poder neste tipo de Estado seja dividido em diferentes

7

funções de poder (Legislativo, Executivo e Judiciário), e estas reproduzidas

simetricamente em todos os níveis da federação6.

Outro elemento fundamental que integra a organização federativa é a existência

da manifestação livre e eficiente da vontade dos representantes de cada um dos estados

federados no sentido de criar a união de todos eles, formando assim o Estado federal.

Tal fenômeno é denominado de pacto federativo e ele fica estabelecido na Constituição

federal.

Com relação ao Direito Constitucional brasileiro José Alfredo de Oliveira

BARACHO (1982:54), em obra denominada Teoria Geral do Federalismo assim

afirma:

Tecnicamente, o federalismo é uma divisão constitucional de poderes

entre dois ou mais componentes dessa figura complexa que decorre da

existência de um Estado que possa apresentar formas de distribuição

das tarefas políticas e administrativas.

Em outras palavras, a descentralização do Estado federal gera a necessidade de

repartição de competências a serem exercidas pelo Estado federal e pelos estados

federados. Esta repartição de competências se constitui na grande tarefa do legislador

constituinte de forma a harmonizar o exercício do poder por parte de todos os estados

que integram a federação e o Estado Federal7.

Segundo Raul Machado HORTA (2002:306):

[...] se a tendência ocorrida no federalismo é a de fortalecimento do

poder central da União Federal, tem-se o chamado federalismo

contrípeto ou centrípeto, conforme queiram. Por outro lado, se a

tendência é de fortalecimento dos estados integrantes da federação,

diz-se que o federalismo é centrífugo. Havendo equilíbrio entre estas

duas forças, qual seja, entre o Estado Federal e os estados federados,

diz-se que o federalismo é de cooperação.

6 Lembre-se que no modelo federal norte-americano há apenas dois níveis de poder : o federal e o

estadual. Diversamente do modelo brasileiro em que o Município, por força dos arts. 1 º e 18 da CRFB/88

integra a Federação.

7 Esta divisão na ordem constitucional vigente no Brasil encontra-se insculpida entre os arts. 21 a 25; 30 e

32 da CRFB/88.

8

Por outro lado, o federalismo centrífugo é aquele que fará um caminho

oposto. O federalismo centrífugo se dirige para a periferia do Estado

Federal. Nele não haverá necessariamente maior descentralização,

mas sobretudo uma tendência à descentralização ao longo do tempo.

Exemplo notável é o federalismo brasileiro, que surgiu

originariamente de um Estado Unitário extremamente centralizador e

se direciona ao longo da história republicana brasileira a dar maior

leque de competências aos estados, seguindo no sentido da

descentralização.

É ainda Raul Machado HORTA (2002: 307) quem aponta como principais

características do federalismo e que se constituem como seus princípios, técnicas e

instrumentos operacionais os seguintes elementos:

a) a decisão constituinte criadora do Estado Federal e de suas partes

indissociáveis, a federação ou União, e os estados-membros;”8

b) a repartição de competências entre a federação e os estados-

membros;”9

c) o poder de auto-organização constitucional dos estados-membros,

atribuindo-lhes autonomia constitucional;”10

d) a intervenção federal, instrumento para restabelecer o equilíbrio

federativo, em casos constitucionalmente definidos;”11

8 “Esta primeira característica faz menção à decisão criadora da federação que já mencionamos

anteriormente e que é também denominada pacto federativo. O pacto federativo representa a expressão da

vontade dos representantes dos estados que integram a federação de participar da criação do Estado

Federal. Esta vontade é expressa na Constituição. Aqui é também apresentada a característica de que os

estados federados se constituem em partes indissociáveis, não podendo nenhum deles optar por não fazer

mais parte da federação, posto que ao nela adentrarem abriram mão de significativa parcela de soberania

de que eram dotados, restando-lhes a autonomia”. (HORTA, 2002:307).

9 “A repartição de competências aqui mencionada há de ser expressa no texto constitucional e há de

delimitar as competências legislativas e administrativas do ente federal e dos entes federados. Ao repartir

a competência a Constituição não há de hierarquizar ou subordinar os entes federados ao federal, mas irá

definir o âmbito de atuação de cada um deles. Esta repartição de competências se constitui no cerne da

disciplina constitucional acerca do federalismo. É certo que a competência afeta os órgãos do Poder

Judiciário Federal e do Poder Judiciário dos estados, muito embora não seja apresentada como repartição

de competências relacionadas ao federalismo, é de todo correto afirmar que sua definição é corolário do

federalismo.” (HORTA, 2002:307).

10“Esta capacidade de auto-organização dos estados-membros possui limitações e condicionamentos que

são expressos pelo texto da Constituição Federal. Aqui há um estado dentro do Estado e esta capacidade

de se organizar autonomamente é manifestação do poder constituinte decorrente e as Constituições

Estaduais devem ser elaboradas em conformidade com os princípios e preceitos da Constituição Federal.

Cumpre evidenciar que a soberania é atributo exclusivo do poder federal.” (HORTA, 2002:307).

9

e) a Câmara dos Estados, como órgão do Poder Legislativo Federal,

para permitir a participação do estado-membro na formação da

legislação federal;”12

f) a titularidade dos estados-membros, através de suas Assembléias

Legislativas, em número qualificado, para propor emenda à

Constituição Federal;”13

g) a criação de novo estado ou modificação territorial de estado

existente dependendo da aquiescência da população do estado

afetado;”14

h) a existência do Poder Judiciário Federal de um Supremo Tribunal

Federal ou Corte Suprema, para interpretar e proteger a Constituição

Federal, e dirimir litígios ou conflitos entre a União, os Estados e

outra pessoas jurídicas de direito interno.”15

11 “A regra geral que vigora no federalismo é a de que o ente político mais abrangente irá respeitar a

autonomia do ente político menos abrangente; excepcionalmente e em casos definidos taxativamente na

Constituição Federal, a União Federal intervirá nos estados ou diretamente nos municípios quando estes

infringirem os chamados princípios constitucionais federais sensíveis. A intervenção é um mecanismo de

defesa da própria federação, seja contra interferências externas ao Estado Federal, e principalmente em

razão das intempéries ocorridas nos estados federados. Várias são as maneiras de se desencadear o

processo interventivo, e quando este é desencadeado muitos são os mecanismos e instrumentos

constitucionais para mantê-lo como uma medida estrita, temporária e da mais absoluta excepcionalidade.”

(HORTA, 2002:307).

12 “O federalismo pressupõe um Poder Legislativo bicameral, onde uma das Casas Legislativas é

constituída de representantes do povo e a outra Casa Legislativa será constituída pelos representantes dos

estados federados. Como expressão da absoluta igualdade entre os estados integrantes da federação,

cumpre destacar que o número de representantes por estado é o mesmo para cada um dos estados. Esta

Casa Legislativa autoriza o estado federado a participar das principais decisões legislativas tomadas no

âmbito federal. Muito embora a federação nos apresente dois estados de competências diferenciadas, é

forçoso considerar que o estado federado apresenta estruturas que estão amalgamadas no Estado Federal e

uma delas e de considerável relevo é a Casa Legislativa dos estados que compõem o Poder Legislativo

Federal.” (HORTA, 2002:307).

13 “Qualquer necessária alteração do texto da Constituição Federal deve ser acessível aos estados

federados e normalmente esta possibilidade de propor emendas a Constituição Federal se dá através dos

órgãos legislativos estaduais.” (HORTA, 2002:307).

14 “Esta característica é certamente conseqüência direta da autonomia dos estados federados. Qualquer

mudança substancial na estrutura da federação ou dos estados federados vai depender da aquiescência

direta da população diretamente interessada. Estas formas de consulta popular se constituem resquícios de

democracia direta e normalmente se dão através do plebiscito ou do referendo, conforme o momento em

que sejam realizados.” (HORTA, 2002:307).

15 “Um órgão de cúpula no Poder Judiciário que exerça a jurisdição das questões afetas à Constituição

Federal. Que esta mesma estrutura de poder jurisdicional venha a dirimir conflitos entre a União e

qualquer que seja a parte, entre os estados federados e pessoas de direito público interno. Fica

evidenciada também a preocupação de preservação da Constituição Federal através do controle de

constitucionalidade concentrado em um órgão jurisdicional. Há também a peculiar característica de que a

União ou o Estado Federal não fique sujeito à jurisdição de justiças estaduais.” (HORTA, 2002:307).

10

Finalmente, ainda cabe destacar que as entidades federativas

independentemente do tamanho de sua população, de sua participação no produto

interno bruto do Estado Federal, ou de sua extensão territorial, têm entre si plena

condição de igualdade formal, igualdade esta que é estabelecida pelas normas

constitucionais.

Após termos apresentado, com fins comparativos, as noções gerais do

federalismo como um fato característico da história política e constitucional norte-

americana, importante se torna compreender como esta forma de organização do poder

político se aclimata no processo histórico-político brasileiro.

Em outras palavras, para que possamos entender as representações e

significações existentes acerca da intervenção federal, devemos contextualizar o que

vem a ser federação a brasileira.

3. O federalismo no Brasil

A constituição imperial brasileira estabelecia um Estado unitário, apresentando

como características a forte centralização política e administrativa. É certo que esta

centralização decorrente da forma de Estado unitário em muito auxiliou na construção

da unidade nacional, impedindo assim que o país se desagregasse em razão das

inúmeras revoltas que ocorreram no seio das províncias (CHACON, 1987).

No Brasil, a transição da monarquia para a república e do Estado unitário para

o Estado federal não se constituiu em um processo lento, mas sim relativamente breve.

O fato é que esta grande transformação na vida política nacional foi obra de alguns

poucos intelectuais e militares de alta patente, não tendo havido participação popular na

deflagração deste processo (CAMARGOS e ANJOS, 2009).

Discorrendo sobre o assunto em obra que se tornou referência neste tema, José

Murilo de CARVALHO (1991:68) assim afirma: “Estas observações não estão, no

entanto, distantes da frase de Aristides Lobo, segundo o qual o povo teria assistido

bestializado à proclamação da República, sem entender o que se passava”.

11

É necessário que se evidencie que o grau de alienação do povo no que se refere

ao momento político nacional não era muito diferente da ausência de participação das

lideranças políticas existentes nas províncias no que se refere à adoção do federalismo

como forma de Estado. A república e o federalismo foram um movimento de

intelectuais e militares que residiam na Corte e na província de São Paulo. As demais

províncias não tomaram parte significativa no evento histórico, e se é certo que o pacto

federativo não exige um momento histórico para sua caracterização, no Brasil ele foi

expresso com a elaboração da Constituição Republicana de 1891 (CAMARGOS e

ANJOS, 2009).

Já na Constituição de 1934 muitas das competências administrativas e

legislativas atribuídas aos estados anteriormente foram transferidas para a União.

Entretanto, em 1937, com o advento do golpe dado por Getúlio Vargas, a outorga de

uma nova Constituição e a instituição da ditadura do Estado Novo até 1945, o Brasil

viveu momentos de grande centralização política, quando os estados passaram a não ter

sequer o peso político apresentado nos anos posteriores à 1ª República.

Sob a vigência da Constituição de 1946, o país viveu novo período de

democratização e os estados da Federação passaram a atuar no cenário político nacional

com maior desenvoltura, entretanto, esta Constituição adotou os mesmos moldes de

concentração de competências administrativas e legislativas no rol deferido à União

(CAMARGOS e ANJOS, 2009). Com o advento do golpe militar de 1964, que institui a

ditadura e culminou na Constituição de 1967 e emenda nº 1 de 1969, retornando a um

período de forte centralização e autoritarismo por parte da União federal, havendo aqui

verdadeira submissão dos estados federados à União.

Com a redemocratização do país e a convocação da Assembléia Nacional

Constituinte no ano de 1986, cujo trabalho redundou na Constituição de 1988, o país

retornou ao estado de direito, direito este elaborado e exercido legitimamente. Em que

pesem os reveses políticos enfrentados pelo país em sua história republicana o fato é

que as dimensões territoriais brasileiras, que são de grandes proporções, impõem para

maior eficiência na administração da coisa pública a descentralização tanto política

como administrativa.

12

A Carta Política de 1988 estabeleceu em seu art. 1º “A República Federativa do

Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,

constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:” É de se

perceber que houve grande inovação da Constituição ao estabelecer que o Brasil é uma

federação constituída por estados, municípios e pelo distrito federal, inovação esta que

se dá por alçar o município a um ente autônomo da federação. É de amplo

conhecimento a federação constitui-se tão somente de estados, que juntamente com a

união apresenta o seu aspecto dualista, daí a grande inovação na nova estrutura

apresentada pelo federalismo brasileiro.

O art. 18 da Constituição da República apresenta o município como parte

integrante da organização política administrativa da República Federativa do Brasil ao

lado da União, dos Estados e do Distrito Federal, sendo todos dotados de autonomia.

A federação brasileira adquiri certa peculiaridade ao apresentar três esferas de

governo que seriam a União, os estados e os municípios, mas autores como José Afonso

da Silva questionam se o município foi, de fato, elevado à categoria de ente federativo

(SILVA, 2007: 641):

E os Municípios transformaram-se mesmo em unidades federadas? A

Constituição não o diz. Ao contrário, existem onze ocorrências das

expressões ‘unidade federada e unidade da Federação’ referindo-se

apenas aos Estados e ao Distrito Federal, nunca envolvendo os

Municípios.

A Constituição de 1988, seguindo o exemplo das constituições anteriores,

estabeleceu as hipóteses em que, excepcionalmente, a União poderia vir a intervir nos

estados federados. O instituto da intervenção federal encontra-se nas circunstâncias

enumeradas nos incisos do art. 34 da Carta Política16.

16 “Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: I - manter a

integridade nacional; II - repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra; III - pôr

termo a grave comprometimento da ordem pública; IV - garantir o livre exercício de qualquer dos

Poderes nas unidades da Federação; V - reorganizar as finanças da unidade da Federação que: a)

suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força

maior; b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos

prazos estabelecidos em lei; VI - prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial; VII -

13

Na história do federalismo brasileiro é possível notar que a intervenção,

notadamente por ser medida excepcional, foi utilizada com muita parcimônia,

principalmente no período em que vivemos certa normalidade política e democrática.

Entretanto, na ditadura de Getúlio Vargas, de 1937 a 1945, e durante a ditadura militar

de 1964 a 1984, a intervenção foi utilizada com maior freqüência (CAMARGOS e

ANJOS, 2009).

4. Intervenção Federal

A doutrina17 brasileira sobre a intervenção federal a apresenta enfatizando três

elementos.

1) Conceituar a intervenção federal como o último remédio ou ratio para se

manter a integridade nacional e da ordem jurídica constitucional;

2) Narrar um processo de continuidade histórica do instituto desde a primeira

Constituição republicana de 1891, e a sua elaboração por Ruy Barbosa;

3) Apresentar as espécies de intervenção federal: a espontânea e a provocada18;

Curioso é notar que todo este discurso é organizado em perspectiva referencial

ao texto legal constitucional. Em outras palavras, a doutrina, simplesmente, apresenta o

texto constitucional, sem trazer qualquer informação que não seja a discussão da

natureza jurídica do instituto e a reprodução dos artigos da Constituição. Assim, a

assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: a) forma republicana, sistema

representativo e regime democrático; b) direitos da pessoa humana; c) autonomia municipal; d) prestação

de contas da administração pública, direta e indireta. e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante

de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento

do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.”

17 A categoria “doutrina brasileira” é aqui usada a partir das obras de vários doutrinadores que tem

reconhecimento e prestígio no campo jurídico brasileiro e que circulam como bibliografia básica nos

cursos de graduação em Direito. Como exemplo desses doutrinadores podemos citar: BARROSO (1998),

BONAVIDES (2005), FRANCO (1968), LEWANDOWSKI (1994), MORAES (2006), SILVA (2006),

AGRA (2007), CRETELLA JR (1998), HORTA (1995), LENZA (2006), TAVARES (2007) e

ZIMMERMANN (2002).

18 Em relação à lógica taxonômica que estrutura as categorias da doutrina jurídica brasileira, significa

dizer que a organização dos institutos jurídicos apropria-se dos princípios das ciências biológicas dos

séculos XVIII e XIX, que se preocupava em conhecer a natureza dos animais e das plantas, classificando-

os em Reinos, Ordens, Classes, Gêneros e Espécies. Sendo assim no discurso dogmático jurídico temos

como Reino o Sistema Jurídico brasileiro, como Ordem o Direito Constitucional, como Classe a

Federação, como Gênero a Intervenção Federal e como Espécies a Espontânea e a Provocada, o que mais

uma vez remonta o pensamento selvagem em seu discurso totêmico, segundo Claude Levy Strauss, ao

naturalizar o discurso mítico LÉVY-STRAUSS (1976:56-97).

14

perspectiva política do instituto, como também dos exemplos jurisprudências que

servem para ilustrá-lo não é apresentada. Como não mencionar a natureza política de

um instituto que atinge diretamente o poder político de um ente federado? Como não

contextualizar tais decisões histórica e politicamente? Chama atenção tais omissões.

Como já foi mencionado no início deste trabalho a doutrina jurídica brasileira

tem característica marcadamente prescritiva e, por isso, trabalha no plano ideal do

‘dever-ser’. A despeito das experiências autoritárias19, seja da República Velha, seja da

Era Vargas ou da ditadura militar pós-196420, concebe a intervenção federal como um

instituto jurídico-constitucional, conhecido como garantee clauses pelo direito norte-

americano e como execução federal pelo direito germânico (AGRA, 2007:297), de

exceção ao princípio federativo presente em nossa ordem jurídica nacional, desde a

Constituição de 1891. Ignora, porém, que tais institutos são concebidos em contextos

históricos e políticos complemente diferentes da sociedade oligárquica, patriarcal e

pouco democrática na qual nasceu a Constituição brasileira de 1891.

Segundo a doutrina brasileira, já citada, a intervenção federal nada mais é do

que o afastamento temporário da autonomia de um ente federal que tem por objetivo a

preservação da própria federação. Assim sendo, trata-se de instrumento de direito

constitucional de exceção, pois priva o ente federado de sua característica essencial: a

autonomia. Por ser forte medida coercitiva, só pode ser usada estritamente nas situações

determinadas taxativamente pelo constituinte originário, nos arts. 34 a 36 da CRFB/88.

E nos casos em que o pedido de intervenção federal se fundamenta em

descumprimento de ordem judicial, na maior parte das vezes está envolvido grave

desrespeito aos direitos de cidadania, uma vez que tais ordens judiciais, no mais das

vezes protegem direitos do cidadão.

19 De acordo com CAMARGOS E ANJOS (2009:93): “Na história do federalismo brasileiro é possível

notar que a intervenção, notadamente por ser medida excepcional, foi utilizada com muita parcimônia,

principalmente no período em que vivemos certa normalidade política e democrática. Entretanto, na

ditadura de Getúlio Vargas, de 1937 a 1945, e durante a ditadura militar, de 1964 a 1984, a intervenção

foi utilizada com maior freqüência.”

20 Sobre esta experiência histórica autoritária interessante a passagem de AGRA (2007:297): “Na história

dos textos constitucionais brasileiros, o instituto da intervenção sempre respeitou os princípios do Estado

Democrático de Direito. Contudo, o Ato Institucional 5 (AI-5) extrapolou os limites da intervenção,

tornando-a um instrumento de coação do regime militar. Pelo AI-5 foi permitido ao Presidente da

República, alegando interesse nacional, intervir nos Estados-membros e nos Municípios sem respeitar as

barreiras legais firmadas pela Constituição.

15

Nestes casos a intervenção deixa de ser ato discricionário do Presidente da

República, pois fica o tribunal prolator da ordem desobedecida obrigado a comunicar a

desobediência ao Supremo Tribunal Federal, que requisitará a intervenção se julgar

conveniente.

A intervenção federal, vale se repetir, trata de exceção no equilíbrio federativo

da autonomia política dos entes, a partir da ingerência de uma entidade em assuntos

próprios de outra, quando diante de uma das circunstâncias taxativas extremas que

atentam ao pacto federativo e a supremacia constitucional.

Segundo AGRA (2007:297) a intervenção federal é

o remédio típico da forma de Estado federativa, constituindo-se no

instrumento cabível para a sua manutenção, de utilização necessária

todas as vezes que um Estado-Membro ou um Município desrespeitar

os princípios constitucionais federativos ou provocar uma

instabilidade na normalidade jurídica.

Já nas palavras de José Afonso da SILVA (1997:460):

A Intervenção Federal é ato político que consiste na incursão da

entidade interventora nos negócios da entidade que a suporta.

Constitui o ‘puctum dolens’ do Estado Federal, onde se entrecruzam

as tendências unitaristas e as tendências desagregantes.

Humberto Peña de MORAES (2005:229) define que a intervenção federal é:

instituto típico da estrutura do Estado Federal, repousa a intervenção

no afastamento temporário da atuação autônoma da entidade

federativa sobre a qual a mesma se projeta.

A doutrina classifica que a intervenção federal pode se operar em duas

espécies: a intervenção espontânea e a intervenção provocada. A primeira é uma

discricionariedade, juízo de oportunidade e conveniência, do Presidente da República,

ou seja, ato exclusivo da vontade do Chefe do Poder Executivo que deverá obter

posterior aprovação por parte do Congresso Nacional, e que na atualidade

constitucional, está prevista no art. 34, incs. I, II, III e V da CRFB/88.

16

A intervenção federal será provocada, hodiernamente, nos casos descritos no

art. 34, incs. IV, VI e VII por solicitação do Executivo e do Legislativo estaduais, e, por

requisição, por parte dos órgãos do Judiciário21.

Em ambas as espécies deve ser expedido um decreto presidencial interventivo

especificando a abrangência (os Estados-Membros que serão atingidos pela medida); a

amplitude (os poderes que serão cerceados); e o tempo (prazo de duração da medida

especificado). Deve o Presidente, segundo os arts. 90, I e 91 §1º da CRFB/8822 ouvir o

Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional para decretação. “Havendo a

omissão do tempo determinado para a sua realização, a falta de indicação de cláusula

suspensiva, a intervenção deverá ser considerada inconstitucional pelo Poder Judiciário”

(AGRA, 2007:300).

O decreto deve, ainda, justificar as razões de sua amplitude, abrangência e

tempo. Após a sua redação pelo Presidente da República o decreto será publicado

21 Retratando a discussão quanto ao papel do Presidente da República na intervenção federal informa-nos

AGRA (2007:301-302): “Controvertida é a questão de saber se o Presidente da República tem

obrigatoriedade ou não de decretar a intervenção quando houver pedido. Na questão acerca da

intervenção no governo da Bahia, em 1920, Rui Barbosa afirmava que a intervenção dependeria do poder

discricionário do Presidente, e Epitácio Pessoa defendia a tese de que o pedido vincularia o Chefe do

Executivo, cabendo a ele apenas decretar a intervenção. A tese hoje preponderante é a de que o Presidente

pode ou não decretar a intervenção diante do caso concreto. O pedido não o vinculará, cabendo a ele,

pelas circunstâncias específicas do caso, analisar a conveniência ou não da decretação. Todavia, quando o

objetivo da intervenção for o de prover à execução de lei federal, ordem ou decisão judicial e de assegurar

a observância dos princípios sensíveis, a doutrina predominante se posiciona no sentido de que o pedido

se torna vinculante, obrigatório, porque os motivos são eminentemente de cunho jurídico. Os mesmos

parâmetros valem para a intervenção nos Municípios, nos mesmos casos pertinentes aos Estados-

membros.”

22 “Art. 90. Compete ao Conselho da República pronunciar-se sobre: I - intervenção federal, estado de

defesa e estado de sítio; II - as questões relevantes para a estabilidade das instituições democráticas. § 1º -

O Presidente da República poderá convocar Ministro de Estado para participar da reunião do Conselho,

quando constar da pauta questão relacionada com o respectivo Ministério. § 2º - A lei regulará a

organização e o funcionamento do Conselho da República.

Art. 91. O Conselho de Defesa Nacional é órgão de consulta do Presidente da República nos assuntos

relacionados com a soberania nacional e a defesa do Estado democrático, e dele participam como

membros natos: I - o Vice-Presidente da República; II - o Presidente da Câmara dos Deputados; III - o

Presidente do Senado Federal; IV - o Ministro da Justiça; V - o Ministro de Estado da Defesa; VI - o

Ministro das Relações Exteriores; VII - o Ministro do Planejamento. VIII - os Comandantes da Marinha,

do Exército e da Aeronáutica. § 1º - Compete ao Conselho de Defesa Nacional: I - opinar nas hipóteses de

declaração de guerra e de celebração da paz, nos termos desta Constituição; II - opinar sobre a decretação

do estado de defesa, do estado de sítio e da intervenção federal; III - propor os critérios e condições de

utilização de áreas indispensáveis à segurança do território nacional e opinar sobre seu efetivo uso,

especialmente na faixa de fronteira e nas relacionadas com a preservação e a exploração dos recursos

naturais de qualquer tipo; IV - estudar, propor e acompanhar o desenvolvimento de iniciativas necessárias

a garantir a independência nacional e a defesa do Estado democrático. § 2º - A lei regulará a organização

e o funcionamento do Conselho de Defesa Nacional.”

17

gerando automaticamente os seus efeitos e remetido a apreciação do Congresso

Nacional.

Quanto à função do Poder Legislativo ao controle do ato interventivo não lhe é

permitido emendar o direito expedido, mas tão somente rejeitá-lo ou aprová-lo

integralmente por decreto legislativo.

Não cabe apreciação do Legislativo quando for de acinte aos

princípios sensíveis e para prover a execução de lei federal, ordem ou

decisão judicial – arts. 34, incisos VI e VII. Nesses casos, descabe

apreciação por parte do Legislativo porque os critérios são

essencialmente técnico-jurídicos, ocorrendo o controle jurídico do

processo interventivo. Ele somente se inicia se houver requisição dos

órgãos judiciais ou se houver o provimento da representação do

Procurador-Geral da República.

No caso de descumprimento de lei federal, o pedido partirá do

Supremo Tribunal Federal; nos casos de descumprimento de ordem ou

decisão judicial, os pedidos poderão partir do Tribunal Superior

Eleitoral, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal

Federal; no caso de quebra dos princípios sensíveis, o pedido será

encaminhado pelo STF.

Portanto, nos casos de acinte aos princípios sensíveis e para prover a

execução de lei federal, ordem ou decisão judicial, não há necessidade

de apreciação pelo Poder Legislativo. Entretanto, se o pedido partir do

STF para assegurar o livre exercício das funções do Poder Judiciário

de quaisquer das unidades judiciárias estaduais, segundo o art. 34,

inciso IV, terá de haver aprovação por parte do Poder Legislativo.

(grifos nossos) (AGRA, 2007:299-300).

Três são, então, as conseqüências do ato apreciado pelo Poder Legislativo,

segundo as palavras de LEWANDOWSKI (1994:132):

a)os parlamentares podem aprová-lo, autorizando a continuidade

da intervenção até o atingimento de seus fins; b)podem, de outro

lado, aprová-lo, suspendendo de imediato a medida, situação que

gerará efeitos ex nunc; c)podem, por fim, rejeitá-lo integralmente,

suspendendo a intervenção e declarando ilegais, ex tunc, os atos

de intervenção.

Nas situações que podem ser caracterizadas ou estabelecidas por questões

meramente da seara jurídica, tais sejam, a inexecução de lei federal, ordem ou decisão

judicial (art. 34, IV da CRFB/88), ou o desrespeito aos princípios constitucionais

sensíveis (34, VII da CRFB/88), ficará dispensada a apreciação por parte do Poder

18

Legislativo do decreto presidencial, se for suficiente a expulsão da norma jurídica que

esteja conturbando a supremacia constitucional.

Finalmente, quando as razões que justificaram a intervenção tiverem cessado,

as autoridades afastadas dos entes federativos, não havendo impedimento de nenhuma

ordem, retornarão aos seus cargos.

Quanto a figura do interventor, é interessante observar o trecho de AGRA

(2007:301):

O alcance da intervenção e das prerrogativas do interventor não pode

descurar dos princípios constitucionais impostos pelo ordenamento

jurídico. Não há, como no estado de sítio e no estado de defesa, uma

flexibilização dos direitos fundamentais ou uma excepcionalidade dos

direitos e garantias constitucionais.

O Estado Democrático de Direito é mantido em sua inteireza,

ocorrendo apenas a limitação da autonomia do ente federativo que

sofreu a intervenção. Os limites da intervenção são expostos

preponderantemente pela Constituição Federal e pelo decreto

presidencial que a estabelece.

A intervenção federal, diz ainda a doutrina, possui duas características: a

natureza política e a provisoriedade. Importante ressaltar que a doutrina ao se referir a

natureza política da intervenção federal a reduz a uma questão de discricionariedade,

não discutindo, portanto, as implicações e a contextualização política do ato.

SILVA NETO (2007:260) explica:

Quando se defende a natureza política do processo de intervenção,

está-se a firmar, por outro prisma, o entendimento de que os critérios

sobre os quais se movimenta a autoridade responsável pela expedição

do decreto são essencialmente políticos. Utiliza-se, portanto, do juízo

da conveniência e oportunidade da medida. Conveniência é signo que

importa na aferição de juízo de valor político acerca da efetiva

necessidade no adotar-se a providência. Oportunidade, por outro lado,

significa examinar o momento político da sua execução. A autoridade

responsável pelo início da intervenção não usa um ou outro, mas os

dois. Entrecruzam-se conveniência e oportunidade para tornar o mais

acertado possível a decisão política atinente à intervenção. Outrossim,

o §4º do art. 36 salienta que ‘cessados os motivos da intervenção, as

autoridades afastadas de seus cargos a estes voltarão, salvo

impedimento legal’. É a característica referente à provisoriedade da

intervenção. Medida excepcionalíssima que vulnera as autonomias

estadual e municipal, o procedimento interventivo deve durar

19

rigorosamente o tempo apto ao retorno da normalidade institucional

da entidade federativa atingida.

É importante ressaltar que a decretação deste instituto jurídico representa um

momento de crise institucional tão sério, que ela configura um limite circunstancial ao

Poder Constituinte Derivado de emendar a Constituição (art. 60, §1º da CRFB/8823).

Esta medida de exceção não estabelece uma hierarquia entre os entes

federativos. Quando a União intervém nos Estados-Membros, o Congresso Nacional

referenda, ou não, através de um Decreto Legislativo (art. 49, IV da CRFB/8824), o

decreto de intervenção (art. 84, X da CRFB/8825) do Presidente da República. Por

simetria ocorre o mesmo na intervenção estadual (art. 35 da CFRB/88) (AGRA, 2007).

A Intervenção Federal diferentemente dos institutos do Estado de Defesa (art.

136 da CRFB/8826) e do Estado de Sítio (arts. 137 a 141 da CRFB/8827) não é uma

23 “Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: I - de um terço, no mínimo, dos

membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II - do Presidente da República; III - de mais

da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas,

pela maioria relativa de seus membros. § 1º - A Constituição não poderá ser emendada na vigência de

intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.”

24 “Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: IV - aprovar o estado de defesa e a

intervenção federal, autorizar o estado de sítio, ou suspender qualquer uma dessas medidas;”

25 “Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: X - decretar e executar a intervenção

federal;”

26 “Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa

Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e

determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional

ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza. § 1º - O decreto que instituir o estado de

defesa determinará o tempo de sua duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos

termos e limites da lei, as medidas coercitivas a vigorarem, dentre as seguintes: I - restrições aos direitos

de: a) reunião, ainda que exercida no seio das associações; b) sigilo de correspondência; c) sigilo de

comunicação telegráfica e telefônica; II - ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na

hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes. § 2º - O tempo de

duração do estado de defesa não será superior a trinta dias, podendo ser prorrogado uma vez, por igual

período, se persistirem as razões que justificaram a sua decretação. § 3º - Na vigência do estado de defesa:

I - a prisão por crime contra o Estado, determinada pelo executor da medida, será por este comunicada

imediatamente ao juiz competente, que a relaxará, se não for legal, facultado ao preso requerer exame de

corpo de delito à autoridade policial; II - a comunicação será acompanhada de declaração, pela

autoridade, do estado físico e mental do detido no momento de sua autuação; III - a prisão ou detenção de

qualquer pessoa não poderá ser superior a dez dias, salvo quando autorizada pelo Poder Judiciário; IV - é

vedada a incomunicabilidade do preso. § 4º - Decretado o estado de defesa ou sua prorrogação, o

Presidente da República, dentro de vinte e quatro horas, submeterá o ato com a respectiva justificação ao

Congresso Nacional, que decidirá por maioria absoluta. § 5º - Se o Congresso Nacional estiver em

recesso, será convocado, extraordinariamente, no prazo de cinco dias. § 6º - O Congresso Nacional

apreciará o decreto dentro de dez dias contados de seu recebimento, devendo continuar funcionando

enquanto vigorar o estado de defesa. § 7º - Rejeitado o decreto, cessa imediatamente o estado de defesa.”

20

excepcionalidade ao Estado Democrático de Direito visto que a Constituição não prevê

para aquele instituto a possibilidade de suspensão de direitos ou garantias fundamentais.

A intervenção será uma restrição a autonomia federativa de um ente (AGRA, 2007).

Ocorre, porém, que nada impede o ordenamento constitucional que sendo

insuficiente a intervenção, passem a ser decretados os Estados de Defesa e de Sítio.

Segundo a doutrina, já citada, as formas de controle da intervenção são de duas

espécies: política e jurídica. A primeira refere-se aquele realizado pelo Poder

Legislativo dos atos interventivos postos a sua apreciação. A segunda, efetuada pelo

Poder Judiciário, ocorre pela verificação do respeito a autonomia federativa e dos

mandamentos constitucionais.

4.1.ADIN Interventiva

27 “Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa

Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de: I -

comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida

tomada durante o estado de defesa; II - declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada

estrangeira. Parágrafo único. O Presidente da República, ao solicitar autorização para decretar o estado de

sítio ou sua prorrogação, relatará os motivos determinantes do pedido, devendo o Congresso Nacional

decidir por maioria absoluta.

Art. 138. O decreto do estado de sítio indicará sua duração, as normas necessárias a sua execução e as

garantias constitucionais que ficarão suspensas, e, depois de publicado, o Presidente da República

designará o executor das medidas específicas e as áreas abrangidas. § 1º - O estado de sítio, no caso do

art. 137, I, não poderá ser decretado por mais de trinta dias, nem prorrogado, de cada vez, por prazo

superior; no do inciso II, poderá ser decretado por todo o tempo que perdurar a guerra ou a agressão

armada estrangeira. § 2º - Solicitada autorização para decretar o estado de sítio durante o recesso

parlamentar, o Presidente do Senado Federal, de imediato, convocará extraordinariamente o Congresso

Nacional para se reunir dentro de cinco dias, a fim de apreciar o ato. § 3º - O Congresso Nacional

permanecerá em funcionamento até o término das medidas coercitivas. Art. 139. Na vigência do estado de

sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes

medidas: I - obrigação de permanência em localidade determinada; II - detenção em edifício não

destinado a acusados ou condenados por crimes comuns; III - restrições relativas à inviolabilidade da

correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa,

radiodifusão e televisão, na forma da lei; IV - suspensão da liberdade de reunião; V - busca e apreensão

em domicílio; VI - intervenção nas empresas de serviços públicos; VII - requisição de bens. Parágrafo

único. Não se inclui nas restrições do inciso III a difusão de pronunciamentos de parlamentares efetuados

em suas Casas Legislativas, desde que liberada pela respectiva Mesa.

Art. 140. A Mesa do Congresso Nacional, ouvidos os líderes partidários, designará Comissão composta

de cinco de seus membros para acompanhar e fiscalizar a execução das medidas referentes ao estado de

defesa e ao estado de sítio.

Art. 141. Cessado o estado de defesa ou o estado de sítio, cessarão também seus efeitos, sem prejuízo da

responsabilidade pelos ilícitos cometidos por seus executores ou agentes. Parágrafo único. Logo que cesse

o estado de defesa ou o estado de sítio, as medidas aplicadas em sua vigência serão relatadas pelo

Presidente da República, em mensagem ao Congresso Nacional, com especificação e justificação das

providências adotadas, com relação nominal dos atingidos e indicação das restrições aplicadas.”

21

A ação direta de inconstitucionalidade interventiva (art. 36, III da CRFB/8828)

é uma modalidade de controle de constitucionalidade concreto e concentrado para um

conflito federativo, proposta no nível federal pelo chefe do Ministério Público Federal,

o Procurador Geral da República, quando um dos Estados-membros desrespeita lei

federal ou um dos princípios constitucionais sensíveis (art. 34, VII da CRFB/8829)

(MENDES, 2008).

Apesar de o texto constitucional falar em “representação”, trata-se de

verdadeira ação. Por isso hoje se chama ação direta interventiva.

A ação direta interventiva não desencadeia um processo objetivo, ou seja, a

análise da constitucionalidade da lei em tese. Mas sim, provoca a jurisdição para

solucionar um conflito/lide federativo entre a União e os Estados (ou Distrito Federal).

A função do Supremo Tribunal Federal não é a de responder uma consulta (ou

afastar lei em tese), mas de decidir um caso concreto (MENDES, 2008).

É importante observar que a conseqüência do provimento da representação (ou

procedência da ação direta interventiva) não é a nulidade do ato contaminado, pois o

que se quer é a decretação da intervenção federal no Estado.

O legitimado para figurar no pólo ativo é a União Federal representada pelo

Procurador Geral da República. No pólo passivo, o legitimado é o Estado membro ou

Distrito Federal.

Hoje, o procedimento da ação interventiva está regulado pela Lei n. 4337/64. O

Procurador Geral da República – PGR, ao ter conhecimento do ato que viola os

princípios constitucionais sensíveis pode propor a ação direta interventiva. Caso seja

mediante representação do interessado e o PGR entender ser relevante, tem ele o prazo

de 30 dias para ingressar com a ação direta interventiva perante o Supremo Tribunal

Federal.

28 “Art. 36. A decretação da intervenção dependerá: III de provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de

representação do Procurador-Geral da República, na hipótese do art. 34, VII, e no caso de recusa à

execução de lei federal.”

29 “Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: VII - assegurar a

observância dos seguintes princípios constitucionais: a) forma republicana, sistema representativo e

regime democrático; b) direitos da pessoa humana; c) autonomia municipal; d) prestação de contas da

administração pública, direta e indireta. e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos

estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e

nas ações e serviços públicos de saúde.”

22

Proposta a ação, o relator ouve em 30 dias os órgãos que elaboraram ou

praticaram o ato. Após a oitiva dos órgãos, o relator tem 30 dias para apresentar o

relatório, que remeterá a todos os Ministros. O julgamento será feito pelo Pleno,

podendo fazer uso da palavra o Procurador Geral da República e o órgão que emitiu o

ato.

Se a decisão for pela inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal

comunica aos órgãos interessados e requisita ao Presidente da República a decretação da

intervenção federal, estando este obrigado a cumpri-la, sob pena de responder por crime

de responsabilidade com base no art. 12 da Lei 1079/5030.

A Lei 4337/64 expressamente proíbe a concessão de liminar. Tal provimento

é incompatível com a ação interventiva, porque a suspensão liminar do ato impugnado

transformaria em ação direta de inconstitucionalidade, o que é fiscalização abstrata e

não concreta (MENDES, 2008).

Este é, portanto, o escopo doutrinário da intervenção federal no Brasil, ou seja,

instituto jurídico de manutenção da supremacia constitucional diante de desequilíbrios

federativos e desrespeitos aos princípios fundamentais a cidadania.

Esse é, pois, o panorama do que a doutrina constitucional brasileira, e como tal

o campo jurídico brasileiro, representam acerca do federalismo e da intervenção federal.

5.. Federalismo, Intervenção Federal e Cidadania: o que a doutrina não diz

Após termos apresentado o que a doutrina jurídica brasileira expõe acerca do

federalismo e da intervenção federal, propomos uma reflexão sobre os pontos que a

doutrina no Brasil nem sequer toca.

Uma primeira constatação acerca do federalismo deve ser feita: a federação,

através da descentralização dos poderes soberano e administrativo em entidades

geográficas autônomas, torna-se um pressuposto para o regime democrático, pois

possibilitaria a gestão da coisa pública, respeitando-se as peculiaridades, interesses e

particularidades regionais e locais.

30 “Art. 12. São crimes contra o cumprimento das decisões judiciárias: 1 - impedir, por qualquer meio, o

efeito dos atos, mandados ou decisões do Poder Judiciário; 2 - Recusar o cumprimento das decisões do

Poder Judiciário no que depender do exercício das funções do Poder Executivo; 3 - deixar de atender a

requisição de intervenção federal do Supremo Tribunal Federal ou do Tribunal Superior Eleitoral; 4 -

Impedir ou frustrar pagamento determinado por sentença judiciária”.

23

Cidadania, por sua vez, que pode ser traduzida como mínimo jurídico comum a

todos que estão ligados juridicamente a um Estado, consubstancia um conjunto de

direitos e deveres que disciplinam a relação do Estado com seu povo.

O Estado contemporâneo, pós revoluções liberais burguesas, a partir da idéia

de igualdade jurídica universal – todos são iguais perante a lei e na aplicação da lei-,

compromete-se a atribuir a todos aqueles que se vinculam a ele, um mínimo jurídico

comum, composto de um conjunto de direitos e deveres atribuídos a todos em razão do

vínculo político de cada sujeito com este mesmo Estado. Assim, a cidadania, a qual é

inerente a idéia de universalidade e, portanto de igualdade jurídica, é um fenômeno

próprio das sociedades capitalistas contemporâneas, pois é um meio do Estado garantir

a todos aqueles que a ele se vinculam e por isto são titulares de deveres que, em última

análise, financiam este mesmo Estado, um patamar mínimo de igualdade, já que a

sociedade de mercado, pela sua própria lógica, gera desigualdade (MARSHALL, 1967).

Assim, a cidadania pode ser conceituada como o mínimo jurídico, composto de

direitos e deveres, comum a todos os que estão vinculados politicamente a determinado

Estado. Em outras palavras, cidadania é um conjunto de direitos e deveres atribuído a

todos os que estão vinculados a um determinado Estado por um critério de vinculação

política, em razão deste mesmo vínculo, que é a nacionalidade. O mínimo jurídico

comum atribuído a todos os nacionais pela cidadania é composto, segundo

MARSAHALL(1967) por três grupos de direito: os direitos civis são derivados do

direito de liberdade e devem ser garantidos pelos tribunais, os direitos políticos que

deve ser garantido pelo acesso universal às urnas; e os direitos sociais que devem ser

garantidos pelas políticas públicas.

Associarmos, desta forma, uma concepção contemporânea de federação e de

cidadania, pela autonomia nas mãos das regiões, se viabiliza o exercício democrático do

poder, e como tal da cidadania. O federalismo existe, podemos dizer, para a proteção

dos direitos do cidadão, do exercício do poder pelo cidadão.

Partindo-se deste pressuposto, a intervenção federal é meio protetivo ao

equilíbrio federativo, que apesar de suspender a autonomia dos entes federativos, a

suspende, para viabilizar os direitos do cidadão, visto que esta autonomia não está, por

alguma circunstância, sendo capaz de promovê-los.

24

Ocorre que, a doutrina jurídica brasileira quando representa a intervenção

federal, através da categoria ‘medida drástica’ remete este instituto jurídico a uma

memória histórico-política brasileira de momentos autoritários, o que leva a esses

doutrinadores a não interpretá-la como uma categoria própria à defesa da democracia.

Em suas interpretações, se sopesam os valores envolvidos – a não suspensão

das autonomias e a defesa da cidadania - escolhem sempre a manutenção das

autonomias em detrimento dos direitos do cidadão, por considerarem medida menos

grave. Na verdade, a doutrina jurídica brasileira não vislumbra que a intervenção

federal, numa ambiência de estabilidade democrática, é, antes de tudo, o último remédio

de que podem se valer os cidadãos para verem seus direitos respeitados quando

ineficientes as gestões de seus estados membros.

Sendo assim, a doutrina jurídica brasileira não diz que o principal papel da

intervenção federal no Estado Democrático de Direito é proteger o pacto federativo, e

como tal, a constituição federal, no intuito de se ver respeitada a própria razão de

existência do Estado: a Cidadania.

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