Uma dose violenta de qualquer coisa: Geração Beat e desregramento poético

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36 PodLer Revista Literária julho a outubro/2012 Por DANILO AUGUSTO, especial para o PodLer Geracao Beat e desregramento poetico Uma dose violenta de qualquer coisa ~

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36 PodLer Revista Literária julho a outubro/2012

Por DANILO AUGUSTO, especial para o PodLer

Geracao Beat e desregramento poetico

Uma dose violenta de qualquer coisa

~

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A geração beat foi um movimento de extremos, de gê-

nios genuínos, de imaturidade e charlatanismo, de

beleza desregrada e de feiura desmedida, mas antes

de tudo, foi uma geração em seu devido tempo.

“Os jovens rebeldes de hoje não estão perdidos”, assim come-

çava o manifesto que viria consolidar o nome da sua geração.

Em “This is The Beat Generation” (publicado originalmente no New

York Times em 1952) o escritor e poeta John Clellon descreveu

seus companheiros (na maioria também poetas e escritores)

para os quais, ele diz: “a ausência de valores morais e sociais não

é uma revelação, mas um problema que exige solução diária”

pois, segundo a piada de Voltaire, “se Deus não existir, é preciso

inventá-lo”. E a tarefa desta geração será, então, inventá-lo no

dia a dia, todos os dias.

Nesta tarefa de criação, é preciso começar com a antiga fórmula

de Rimbaud: um lento, gradual e total desregramento de todos

os sentidos. O propósito desses artistas, Clellon nos avisa, não é

a mudança de uma realidade supostamente miserável através

de suas virtudes e dons especiais, mas a redenção de si mesmos.

É a fuga da queda, desse abismo insuportável e, se possível,

o acesso àquilo que está além do desregramento de todos os

sentidos, os paraísos artificiais, a comunhão do cosmos com

seus corpos decadentes e angélicos. A geração beat, além de um

movimento artístico, foi um movimento místico.

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JOVENS PROFETASQuando Clellon diz “os jovens de hoje não estão perdidos”,

perdidos é uma referência à Geração Perdida, o grupo de

grandes (enormes) escritores e poetas que precederam os

Beats. São nomes como Hemingway, Eliot, Joyce e Pound que

a atual geração se propõe a contrapor, pois, como Clellon diz,

ao contrário desses escritores, “interessa mais a esses jovens

viver do que saber o por quê”. A literatura antecessora se

deparou com a evidente queda da fé, a desilusão e a noção

de um futuro perdido, resultando em livros com ambições

ontológicas, com a tarefa de fundar um novo modo de ser

no mundo e uma nova literatura, livros “totais”. Mas os beats

não surgem do desespero, eles nascem como resposta a um

tempo de espera. Eles surgem como energia selvagem, com a

pulsão masculina impensada, sem revisores, sem escolástica.

Interessa-lhes a própria redenção, não a da humanidade,

a reinvenção de um deus, de um cosmos acessível por um

espírito expandido, deslocado e experimentado de todos os

prazeres e sentidos. Eles foram os últimos rebeldes-jovens

poetas profetas e loucos-possíveis.

Eram os vagabundos beats fracassados que, na década de 50

e 60, em um EUA dominado pelo macarthismo patrulhante,

pelo superconsumismo e suas demandas insanas, pela caça

às bruxas e por um vigor nunca visto do destino manifesto

(vigor tanto ideológico como militar) que propuseram, ou

antes, compuseram sofridamente, aquele embrião de uma

contracultura (acredite) original. Uma contracultura que

nascia e não era a expressão de uma mídia cultural, dessa

indústria do inconformismo de nossos tempos, era o fruto

do labor e experimentações de artistas individuais, sem a

taxa glorificante da rebeldia, mas como fruto da pena e dos

versos de alguns, de poucos, que resolveram levar a máxima

de Rimbaud para o dia a dia e para a arte. O pano de fundo é

o existencialismo europeu, a escrita “selvagem” de escrito-

res como Jack London e Céline e o legado é algo que criou

pernas próprias, inúmeras. A geração beat foi protótipo de

todo jovem rebelde e imaturo, Marlon Brando e James Dean,

o poeta fracassado, alcoólatra, drogado e ingenuamente di-

vinamente genial. E, por outro lado, foi o germe dessa “super

contracultura” que abalou toda a segunda metade do século

XX, o movimento Hippie, o movimento Punk, a música pop

de Morrison, de Dylan, de Lennon e, ora, os Beatles.

“A geração beat foi protótipo de todo jovem rebelde e imaturo, Marlon

Brando e James Dean, o poeta fracassado, alcoólatra, drogado e

ingenuamente di vinamente genial.” Jack Kerouac, romancista e poeta estadu-nidense, considerado um dos pioneiros da geração beat.

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ANJOS IDIOTASKerouac, o maior ícone dessa geração, foi quem cunhou o

termo. Em uma conversa com Clellon, ele diz: “You know,

this is really a beat generation”, aglutinando as acepções como

“batida”, decaída, e derrotada com “vibrante” e “intensa”, a

batida descompassada ou frenética de um jazz ou de uma

máquina de escrever. E como ele diz, finalmente, um pouco

mais tarde: “...The vision of the world Beat as being to mean beati-

fic”. Ou seja: o beat beatificado, a geração beat como a geração

dos “vagabundos iluminados”.

Dentre estes vagabundos, Allen Ginsberg talvez seja a ex-

pressão máxima alinhada à poesia verdadeira - ao mesmo

tempo desregrada e consciente de si, altamente original e

independente e, ainda, trazendo em seus versos a poesia dos

grandes: Whitman e Blake. Ginsberg é o autor de um dos po-

emas mais profícuos de todo século vinte, Howl (Uivo). Neste

longo poema dedicado ao seu amigo, esquizofrênico e poeta,

Carl Solomon, Ginsberg constrói longos versos encadeados

com um só fôlego, juntando o fraseado do Jazz ao estilo que

Whitman emprega em “Folhas de Relva”. A impressão é

que cada verso encerra um haicai (forma poética de origem

japonesa, normalmente com três versos, sendo que, o último

tende a contrapor a sua imagem às dos primeiros) e o resul-

tado é uma incursão a um estado de subconsciência, de um

semipesadelo pelas ruelas de Harlen e Greenwich Village,

assistindo ao espetáculo dos “anjos caídos”, dos drogados,

alcoólatras e tuberculosos em busca de qualquer aniquilação

ou qualquer transcendência possível. Jovens que, como o seu

amigo Solomon:

“(...) se apresentaram nos degraus de granito do manicômio com ca-

beças raspadas e fala de arlequim sobre suicídio, exigindo lobotomia

imediata,

e que em lugar disso receberam o vazio concreto da insulina me-

trazol choque elétrico hidroterapia psicoterapia terapia ocupacional

pingue-pongue & amnésia.”

São os párias, os rejeitados e auto-rejeitados, que estudam

budismo e astrologia e acreditam no poder iluminador dos

entorpecentes. Que escrevem poemas em um quarto mal-

“(...) Allen Ginsberg talvez seja a expressão máxima alinhada à poesia verdadeira - ao mesmo tempo desregrada e consciente

de si, altamente original e independente e, ainda, trazendo em seus versos a poesia dos grandes:

Whitman e Blake.”

Allen Ginsberg, poeta estadunidense, conhecido pelo seu livro Howl (Uivo), a obra poética mais significativa da geração beat.

William S. Burroughs escritor, pintor e crítico social, uma das figuras mais importantes da geração beat.

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Mas, no final das contas, o que me distancia é a chamativa

inocuidade dos seus versos, os floreios malabarísticos de

toda essa queda idealizada, a transgressão como utopia

e paradigma, pesada e literal como qualquer corrente de

ferro.

CONTRACULTURA POPULARPorém, o que vale ressaltar é que, mesmo com grande

imaturidade em seu interior, com grandes besteiras, na

verdade, a geração beat foi um começo e um meio de

expressões de grande maestria. Eles fizeram muito antes,

e com verdadeira garra, aquilo que não se fazia, jogaram a

literatura na sarjeta (e este é um bom sentido), fizeram dela

maleável, prostituída, fizeram caber nela (novamente) todo

o universo do submundo cultural, das expressões do des-

regramento e isso em um âmbito distante das academias.

Escritores atuais, como Thomas Pynchon e Dom DeLillo.

devem muito (e de forma consciente) a este movimento.

Foi lá que nasceu o movimento da contracultura e, hoje,

praticamente todas as esferas da cultura popular sofrem a

sua influência. Obviamente as coisas mudaram. Essa con-

tracultura herdada é, hoje, um produto como qualquer ou-

tro produto. Certas atitudes que tomamos me soam como

aquela piada que perdeu a hora. Os trejeitos legados pela

geração beat, empregados amplamente por nossa juventu-

de, são uma nota pomposa de rodapé que quer emprestar

credibilidade a um livro vulgar.

Hoje, agentes de todas as revoluções pressupostas, catamos

a literatura chamuscada na borda do pirex do espiritualis-

mo e inconformismo social. Hoje, nós, jovens referenciais,

sentados em hiperlinks bibliográficos, deixamos nosso grão

de protesto em um soluço virtual, um arroto publicado.

Somos um dizer revolucionário, angelical, livre-pensador,

poeta maldito e espírito-elevado. Um boato.

Hippie na sexta, intelectual no sábado, moralista do dia a dia,

escolhemos nossas parcelas de citações a arquivar, nossos

protestos e lirismo em prateleiras de supermercado. Somos

na verdade uma geração conservadora, pouco propensa ao

desregramento, mas que se acostumou ao status concedido

por aquela antiga lei que relaciona juventude e revolução.

“Burroughs, em nossos dias, parece interessar mais por sua figura

de um Raul extremado, do que, verdadeiramente, por seus escritos.”

“Os trejeitos legados pela geração beat, empregados amplamente por nossa juventude, são uma nota pomposa de rodapé que

quer emprestar credibilidade a um livro vulgar.”

trapilho sobre o efeito do ópio, sobre a fumaça do cigarro,

bêbados compulsórios, em um subúrbio esquecido e que,

ao acordar, percebem que o poema escrito não passa de

cinzas, de balbucio, de algo idiota:

“(...) rejeitados

Todavia expondo a alma para conformar-se ao ritmo do pensamen-

to em sua cabeça nua e infinita,

O vagabundo louco e Beat angelical no Tempo, desconhecido mas

mesmo assim deixando aqui o que houver para ser dito no tempo

após a morte.”

Ginsberg é um nome em um tríade da literatura beat que

abriga, ainda, Kerouac, o ídolo maior, o grande beat pop fíl-

mico, autor do popularíssimo ”On The Road” e o junker total,

os beats dos beats do desregramento alucinógeno, William

S. Burroughs.

Possuo um menor conhecimento da escrita desses dois

autores, mas não posso dizer que, pelo que conheço, os

admire como grandes. No caso de Kerouac, pelo menos o

“On The Road”, lido pela primeira vez na adolescência e, já

nesta ocasião, julgado como um“livro para adolescentes”

manteve esta mesma impressão nas diversas releituras

pontuais que realizei até hoje. E talvez, seu apelo estético se

traduza melhor paras as novas gerações na tela do cinema.

Também me cansa ouvir pela enésima vez que alguém

criou algo como a escrita automática (que é o que dizem

de Kerouac) ligando páginas com fita adesiva para não ter

que parar de digitar ou outros artifícios etc e tal. Lendo um

pouco mais se vê que essa roda foi inventada há séculos.

Burroughs, em nossos dias, parece interessar mais por sua

figura de um “Raul extremado”, do que, verdadeiramente,

por seus escritos. Os poemas me parecem banais, com-

postos por uma mente banalmente alucinada em busca

de uma experiência extracorpórea-mística-transcendente.

Talvez alguns simpatizem ao saber da sua fuga para o

Brasil, já na meia-idade, em uma busca frenética pelo yage

(ahayuasca), que, segundo ele mesmo revela, seria sua

“solução total”, a droga que, diferentemente de todas as

outras que já havia experimentado, haveria de liberar sua

consciência sem alimentar seus vícios, concedendo-lhe

acesso ao plano astral; isso tudo em um vegetal.

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A geração beat não fará nosso trabalho - seja qual for este

trabalho, seja qual forem as ferramentas de ócio e plágio

que dispomos - quanto mais quando nos mostramos tão

pouco dispostos a lê-los; ou ler outros. Nosso tempo é

diverso, certamente. Hoje, parece que cada escritor deve se

pressupor seu único leitor.

Foi Ginsberg o último poeta público? Parece que sim. Por

enquanto sim.

O poeta que ele amava, Walt Whitman, cem anos antes de

Ginsberg escrever o primeiro verso do seu uivo, escreveu

algo que deve ter sido um farol para a geração beat, e que,

para nós, talvez apenas soe como um vazio ditado: “melhor

me honra aquele que aprende a superar-me”. •

Geração beat nos cinemasEm cartaz desde 13 de julho, Na Estrada é uma adaptação para o cinema de On The Road, obra-prima do americano Jack Kerouac (1922-1969), escrita no início dos anos 50 e que se tornaria um ícone da Geração beat

Pulsando com os ritmos do jazz, do sexo, das drogas e da busca pelo desconhecido, o filme conta a história de um escritor aspirante de 18 anos chama-do Sal Paradise (Sam Riley), cuja vida é energizada e, finalmente, redefinida pela chegada de Dean Moriarty (Garrett Hedlund), um espírito livre, des-temido, que passou boa parte de sua vida dentro e fora da cadeia. Entre eles, uma paixão: uma garota precoce e libertária de 16 anos chamada Marylou (Kristen Stewart).

Juntos, Sal e Dean atravessam a América em busca de diversão e inspiração.

A adaptação contou com a direção do brasileiro Walter Salles (Central do Brasil, Diários de Motoci-cleta).

Cena do filme Na

Estrada, adaptação

para o cinema do

livro On The Road, um

ícone da Geração

beat.

Foto

: Div

ulg

ação

Danilo Augusto é poeta e escritor da cidade de Salvador/BA.

2010, 248 páginas

Allen Ginsberg

L&PM

UIVO

ON THE ROAD (PÉ NA ESTRADA)Jack Kerouac

L&PM

2011, 380 páginas

DANILO [email protected]