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Um Visitante do extremo Norte na corte alfrediana: Ohthere e a descrição da Península Fenoscândia Elton O. S. Medeiros Renan Marques Birro Dentro do estudo da Inglaterra anglo-saxônica (seculos V XI), sem sombra de dúvidas, uma das figuras de grande destaque é Alfred o Grande, rei de Wessex (c.871- 899). Sua importância para a história inglesa é vital para compreensão de todo o processo de unificação que resulta no nascimento do reino da Inglaterra, e suas iniciativas nas mais diversas áreas nos proporcionam um volume documental que corresponde à boa parte do material que temos hoje disponível para o estudo do que 1 chamamos de período alfrediano (séculos IX ao XI) . O período alfrediano se caracteriza por três aspectos fundamentais: a) a retomada dos territórios ocupados pelos invasores escandinavos e a consolidação do poder de Wessex sobre toda a Inglaterra, b) a reorganização social anglo-saxônica, especificamente da aristocracia que foi fragmentada durante os anos de ataques vikings e c) a reorganização espiritual cristã do mundo eclesiástico e laico, que também havia passado por um período de crise. Em termos gerais, o período alfrediano inicia com a ascensão do rei Alfred ao trono de Wessex (c. 871) e sua reorganização sócio-política da Inglaterra. Começa assim a primeira fase do período alfrediano: momento marcado pela reconquista e subjugação dos territórios que estavam nas mãos dos escandinavos (a Danelaw), tendo prosseguimento com seu filho Edward o Velho, e seu neto Athelstan. Tal etapa atingiu seu ápice na unificação da Inglaterra e a consolidação do poder político de Wessex sobre todo o reino a partir de 937, com A Batalha de Brunanburg, que deu origem ao famoso poema homônimo. A partir de então inicia a segunda fase do período alfrediano. Com uma política interna fortalecida e centralizada, um exército bem preparado, culminando com o governo do rei Edgar, considerado como um período muito pacífico 2 . Entretanto, seu 1 O termo período alfrediano não chega a ser de todo inédito no campo dos estudos anglo-saxônicos . Alguns estudiosos chegam a utilizá-lo, mas estritamente à produção literária e de forma pouco precisa ou restrita ao governo do rei Alfred. A utilização de tal terminologia aqui tem um caráter muito mais abrangente. Envolvendo não apenas o reinado de Alfred, mas também os desdobramentos decorrentes de sua iniciativa nos governos de seus sucessores. 2 O que se reflete no fato de que a maior parte do “corpo poético” anglo-saxão pertença a esse segundo período (c. 950 e 1025), além de demais fontes em prosa (como as homilias de Ælfric de Eynsham).

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Um Visitante do extremo Norte na corte alfrediana: Ohthere e

a descrição da Península Fenoscândia

Elton O. S. Medeiros

Renan Marques Birro

Dentro do estudo da Inglaterra anglo-saxônica (seculos V – XI), sem sombra de

dúvidas, uma das figuras de grande destaque é Alfred o Grande, rei de Wessex (c.871-

899). Sua importância para a história inglesa é vital para compreensão de todo o processo

de unificação que resulta no nascimento do reino da Inglaterra, e suas iniciativas nas mais

diversas áreas nos proporcionam um volume documental que corresponde à boa parte do

material que temos hoje disponível para o estudo do que 1

chamamos de período alfrediano (séculos IX ao XI) .

O período alfrediano se caracteriza por três aspectos fundamentais: a) a retomada

dos territórios ocupados pelos invasores escandinavos e a consolidação do poder de

Wessex sobre toda a Inglaterra, b) a reorganização social anglo-saxônica,

especificamente da aristocracia que foi fragmentada durante os anos de ataques vikings e

c) a reorganização espiritual cristã do mundo eclesiástico e laico, que também havia

passado por um período de crise.

Em termos gerais, o período alfrediano inicia com a ascensão do rei Alfred ao

trono de Wessex (c. 871) e sua reorganização sócio-política da Inglaterra. Começa

assim a primeira fase do período alfrediano: momento marcado pela reconquista e

subjugação dos territórios que estavam nas mãos dos escandinavos (a Danelaw), tendo

prosseguimento com seu filho Edward o Velho, e seu neto Athelstan. Tal etapa atingiu

seu ápice na unificação da Inglaterra e a consolidação do poder político de Wessex

sobre todo o reino a partir de 937, com A Batalha de Brunanburg, que deu origem ao

famoso poema homônimo.

A partir de então inicia a segunda fase do período alfrediano. Com uma política

interna fortalecida e centralizada, um exército bem preparado, culminando com o

governo do rei Edgar, considerado como um período muito pacífico 2. Entretanto, seu

1 O termo período alfrediano não chega a ser de todo inédito no campo dos estudos anglo-saxônicos .

Alguns estudiosos chegam a utilizá-lo, mas estritamente à produção literária e de forma pouco precisa ou restrita ao governo do rei Alfred. A utilização de tal terminologia aqui tem um caráter muito mais abrangente. Envolvendo não apenas o reinado de Alfred, mas também os desdobramentos decorrentes de sua iniciativa nos governos de seus sucessores. 2 O que se reflete no fato de que a maior parte do “corpo poético” anglo-saxão pertença a esse segundo

período (c. 950 e 1025), além de demais fontes em prosa (como as homilias de Ælfric de Eynsham).

MEDEIROS, Elton O. S. & BIRRO, Renan M. Um Visitante do extremo Norte na corte alfrediana: Ohthere e a descrição da Península Fenoscândia In: NETO, José Maria. Antigas Leituras. Vol.2. Recife: EdUPE, 2015 (preprint). Breve introdução e tradução.

fim é marcado por conflitos que, entre outras razões, surgem devido a rivalidades durante

a reforma beneditina na Inglaterra, o que prejudicou o governo do rei Æthelred II. O

resultado desse amálgama de elementos foi o novo enfraquecimento político, a

fragilidade frente à nova onda invasora escandinava e a coroação do príncipe

dinamarquês Cnut no trono inglês em 1017, o que acarretou no fim doperíodo

alfrediano.

Voltando à primeira fase do período, quando Alfred assume o trono do reino de

Wessex, mais da metade da Inglaterra se encontrava sob ocupação dos invasores

escandinavos. Reinos haviam sido invadidos, casas reais extintas e sua aristocracia

remanescente extremamente fragmentada. Assim, um ponto fundamental seria reunir o

que havia restado dos demais reinos e reestruturar esta sociedade como um único reino

anglo-saxônico e cristão. Para tal tarefa, dentro do pensamento alfrediano, a solução

seria uma nova postura espiritual. A ideia vigente seria de que assim como os bretões

foram punidos por Deus com a chegada dos anglo-saxões (por terem se afastado da

verdadeira fé), agora eles estariam sendo punidos com a chegada dos escandinavos.

Para promover essa reforma espiritual, ocorreu a elaboração de um ideal de

modelo social cristão de inspiração veterotestamentária, assim como um mito de origens

que legitimaria o poder do governante e o destino do reino através de três elementos: a) o

conceito de um populus Israhel: utilizado de modo a fazer com que os anglo-saxões

fossem os herdeiros espirituais dos hebreus do Velho Testamento e a Inglaterra como o

Novo Israel (conceito oriundo de pensadores da Antiguidade tardia e que é introduzido 3

na Inglaterra através de obras como as de Gildas, Beda e Alcuíno de York ); b) a

linhagem sagrada da Casa de Wessex: a elaboração de uma genealogia sagrada da casa

real através de uma suposta herança noaquita, seus reis como descendentes dos antigos

heróis do mundo germânico, dos patriarcas bíblicos e de um suposto e apócrifo quarto

filho de Noé, criando assim uma linhagem singular e uma ligação diferenciada com

Deus4; e c) a busca pela Sabedoria como o único e verdadeiro caminho para a Salvação.

Pode-se dizer que naquele momento de crise, tal exaltação da casa real de

Wessex e a elaboração de um ideal de modelo social que remontasse até os tempos

bíblicos, transformando assim os anglo-saxões no novo povo escolhido, foram tão

essenciais quanto a construção de fortalezas e a organização do exército. E dos três

3 SCHEIL, pp. 101-191.

4 ANLEZARK, pp. 13-46.

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pontos citados, o último seria o que dava sustentação e legitimidade aos dois primeiros.

Para Alfred, a busca pela sabedoria era o caminho para se chegar ao Senhor e à ordem

do mundo, como se pode ver na passagem do capítulo XVI da versão em inglês antigo

da Consolatio Philosophiae5:

Estude a Sabedoria então, e, quando você a tiver compreendido, não a despreze, pois eu lhe digo que por meio dela você poderá atingir sem falhas o poder, sim, mesmo que não o esteja desejando. Você não precisa se preocupar pelo poder nem se esforçar atrás dele, pois se você é apenas sábio e

6 bom ele o seguirá, mesmo que você não o busque.

A Sabedoria seria não só a qualidade suprema para o governante, como também

seria seu dever busca-la. Sendo assim, seus súditos (em especial aqueles ligados

diretamente à administração do reino) também deviam seguir o mesmo exemplo:

Eu estou chocado com esta arrogância de vocês, uma vez que através da autoridade de Deus e da minha própria vocês desfrutaram do posto e da posição de homens sábios, ainda assim vocês negligenciaram o estudoe o uso da sabedoria. Por esta razão, eu ordeno que vocês abandonem imediatamente o poder terreno dos cargos que possuem, ou então se dediquem mais atenciosamente em busca da sabedoria

7.

Alfred não buscava a Sabedoria apenas para si, mas também para seus súditos,

mesmo que isso fosse uma imposição para eles. Este seria outro elemento fundamental

aos olhos do rei: Deus havia lhe incumbido com poder físico e espiritual para que ele

zelasse por seu povo, e era isso que ele deveria cumprir.

No prefácio de sua tradução para o inglês-antigo da Regula Pastoralis de

Gregório Magno, Alfred diz:

Lembrem-se dos castigos que caíram sobre nós neste mundo quand o nós mesmos não partilhamos o aprendizado nem o transmitimos para outros homens. Nós somos cristãos apenas de nome, e pouquíssimos de nós possuem virtudes cristãs.

Entretanto, ele mesmo nos releva o caminho para remediar tal situação:

Parece-me melhor (...) que nós também nos voltemos para a linguagem que nós todos possamos entender certos livros que são os mais imp ortantes a qualquer homem conhecer; e assim que realizarmos isso, assim como com o auxilio de Deus nós possamos facilmente ter a disposição paz o suficiente, para que assim todos os jovens nascidos livres agora na Inglaterra que tenham meios a se dedicar a isso, possam se voltar ao aprendizado (desde que

5 A passagem não existe no texto latino original e demonstra a alteração do d iscurso do texto, atendendo aos objetivos do rei de Wessex.

6 SEDGEFIELD, 1900, p. 35.

7 Vida do Rei Alfred, cap. 106; ver KEYNES & LAPIDGE, p. 110.

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eles não sejam desejados para outros serviços) até o momento em que eles

8 possam ler adequadamente escritos em inglês...

Como Carlos Magno, para iniciar sua empreitada, Alfred teria reunido em sua

corte homens sábios e estudiosos remanescentes dos reinos vizinhos e do continente. Não

se sabe ao certo quando isso se deu, mas supõe-se que no início da década de 880 9, após

a vitória sobre os vikings na Batalha de Edington (c. 878).

Entre as obras traduzidas, além da Regula Pastoralis, estavam a Consolatio

Philosophiae de Boécio, os Soliloquios de Santo Agostinho, a Historia Ecclesiastica

Gentis Anglorum de Beda e Historia Adversum Paganos de Orosius10

. A Regula

Pastoralis forneceu aos bispos as instruções necessárias para levar adiante suas

obrigações e as bênçãos de Deus.

De acordo com a Consolatio Philosophiae, expressa outrora, a busca da

sabedoria é a obrigação de todo aquele que busca o Senhor. A Historia Ecclesiastica

Gentis Anglorum, por sua vez, era um lembrete aos ingleses de sua herança cristã,

enquanto Historia Adversum Paganos possibilitava certo conforto aos cristãos atacados

pelos pagãos escandinavos da mesma forma como sofridos em Roma pelos visigodos.

Alfred encontrou sua própria inspiração nos 50 primeiros Salmos, que também foram

traduzidos ao vernáculo a respeito das lamentações de outro rei-guerreiro enfrentando 11

adversidades frente a um inimigo estrangeiro, o qual é derrotado com o auxílio divino .

Entretanto, tais traduções nã o seriam exatamente “fiéis” aos textos originais, e na verdade essa é uma das principais características dessa produção bibliográfica

alfrediana; como pode ser visto na introdução da versão em inglês antigo da Regula

Pastoralis:

Quando eu lembrei como o ensino do latim havia decaído antes disso por

toda a Inglaterra, (...) entre as muitas e diversas preocupações deste reino, comecei a traduzir para o inglês este livro que em latim é chamado

“Pastoralis” e em inglês “Livro do Pastor”, às vezes palavra por palavra, às vezes sentido por sentido (...)

12.

Um exemplo desse método pode ser encontrado na versão obra de Boécio. Em

sua versão original, Boécio pergunta: “Onde estão agora os ossos do fiel Fabricius?13”;

8 KEYNES & LAPIDGE, p. 125.

9 ABELS, p. 222.

10 KEYNES & LAPIDGE, p. 28-35.

11 KEYNES & LAPIDGE, pp. 31-32, 153, 301-303.

12 PrefácioRegulae Pastoralis, ver KEYNES & LAPIDGE, p. 126.

13 BOÉCIO, Consolatio Philosophiae , II: 7.

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entretanto, na versão do rei Alfred encontramos: “Onde estão agora os ossos do famoso

14” e sábio ourives Weland? .

Inicialmente pode-se crer que esta troca de nomes seria um erro de compreensão, pois em latim Faber e fabrico estavam relacionados à ideia de artesão, ferreiro.

Contudo, o texto continua a falar de Weland: “Eu o chamo de sábio, pois o homem

habilidoso nunca pode perder sua astúcia, e não pode ser mais privado dela do que o sol

possa ser movido de seu lugar”15.Este excerto não existe no original de Boécio.

Porém, em outra fonte clássica, no Factorum ac dictorum memorabilium libri IX de

Valério Máximo (século I d.C.), há uma descrição de Fabricius de forma quase idêntica ao

texto de Alfred. Seria possível que Alfred e seu círculo intelectual não apenas

conhecessem essa outra fonte clássica e soubessem quem era Fabricius, mas 16

também escolhessem deliberadamente utilizar a figura de Weland , o lendário ferreiro

dos mitos germânicos, mais familiar aos anglo-saxões?

Entretanto, traduções eram numa parte dos projetos de Alfred. Outros trabalhos

incluíam obras originais tanto em latim quanto em inglês-antigo como, por exemplo,A

Vida do Rei Alfred de Asser e a Crônica Anglo-Saxônica , quando teve início sua

organização como tal 17

, assim como do códice legislativo do Rei Alfred, o Domboc.

Apesar da obra de Orosius – assim como a versão em inglês antigo da Historia

Ecclesiastica de Beda – atualmente ser reconhecida como não sendo de autoria do

antigo rei de Wessex, ainda assim ela compartilha das mesmas características de

composição dos demais textos alfredianos supracitados. Principalmente quanto às

alterações, adaptações e inclusões de novas passagens ao texto original latino ao vertê-lo

ao inglês antigo. O que nos leva ao relato de Ohthere na corte do rei Alfred.

***

O nome Ohthere é uma adaptação do Nórdico antigo Ottar. Pouco se sabe sobre

este típico navegador de sua época. Certamente ele chamou Alfred de “senhor” por

14 SEDGEFIELD, 1900, p. 48.

15 SEDGEFIELD, 1900, p. 48.

16 ABELS, p. 234-235.

17 ABELS, p. 236.

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esperar a proteção deste numa terra onde não dispunha de parentela ou de outro nobre

18 que pudesse resguardá-lo dos inimigos .

Ele desejou viajar para além de onde os caçadores de baleias iam. Seguindo a

linha da costa e aportando todas as noites, ele viajou seis dias para o Norte, até que a

terra abruptamente seguisse o sentido Leste. Após esperar a mudança do vento, ele

viajou quatro dias até que a terra mudou seu sentido para o Sul. Provavelmente ele

alcançou o rio Varzuga ou o rio Kandalaksha, no extremo Norte da atual Rússia19

.

Mapa 1: A provável rota de Ohthere e de Wulfstan, outro navegador incluído noOrosius em inglês

antigo. Vale ressaltar a longa trajetória do norueguês, o nome e a possível localização dos “povos” encontrados e certos locais nomeados pelo mercador-navegador

20.

Ohthere certamente era dono de uma grande propriedade rural no extremo Norte

da atual Noruega. Ele viveu provavelmente em Tromsø, talvez na ilha de Bjarkøy, onde

o assentamento mais nortenho comparado aos do Sul foi encontrado na Noruega21

.

Porém, tal como uma escavação de uma propriedade do século VII (ou VIII) em

Borg, no arquipélago Lofoten (Noruega) demonstrou, o solo era pobre e o pasto da

18 PAGE, 2002, pp. 45-48.

19 MILS, 2003, p. 483.

20 Fonte: LEBECQ, 2011.

21 ROESDAHL, 1998, Livelihood and Settlement (Kindle edition).

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região ainda não estava sendo usado de maneira intensiva 22

. Assim, a opção era viver

da criação das renas, da caça às baleias e morsas, além do tributo forçado dos lapões

das cercanias.

Para Wolf, Ohthere não era um comerciante profissional, pois vivia

principalmente da agricultura e das taxas recolhidas entre os finns. Nas palavras do

autor, “a maioria dos mercadores escandinavos na Era Viking foram fazendeiros-

mercadores”23. Contudo, as escavações supramencionadas no Norte da Noruega

colocam em dúvida se o arranjo era simplificado desta maneira, ao menos no contexto

aqui elencado.

Seja qual for a atividade principal que garantia a sobrevivência do nosso

protagonista, ele era um homem de múltiplas habilidades: fazendeiro, criador de animais,

caçador, pescador, um pequeno senhor local (provavelmente consultado para resolver

querelas), marinheiro, comerciante e comandante da defesa local24

. Tamanha

versatilidade pode ser justificada pelas dificuldades de viver no extremo Norte da

Fenoscândia, o que levava os homens a se adaptarem e adotarem múltiplas fontes de

renda para obter o sustento do lar.

O período era concomitante com a complexa situação política norueguesa e

escandinava como um todo: os nobres eram ambiciosos e insubmissos, pois renitiam as

pretensões de unificação. Por outro lado, alguns reizetes tentavam ampliar suas áreas de

influência ao submeter outros pequenos monarcas, senhores locais ou povos vizinhos,

como os finns25

.

Neste ínterim, os finns faziam uso de “sistemas redistributivos” ao agirem como

caçadores especializados. Eles eram capazes de entregar peles e produtos de caça de alta

qualidade aos chefes locais que, por sua vez, controlavam rotas comerciais cada vez

mais distantes. Deste modo, estes últimos eram capazes de obter bens de fora que

conferiam e mantinham seu status social26

.

Após obter esses recursos, Ohthere precisava vendê-los ou trocá-los. A escolha

dos portos não foi fruto do acaso, mas do conhecimento prévio do que poderia ser

negociado em cada uma dessas praças. Ademais, transitar nesses locais permitia o contato

com outros negociantes, propiciando a troca de informações. 22 MUNCH, 2007, pp. 100-105.

23 WOLF, 2004, p. 25.

24 PAGE, 2002, p. 45.

25 LUND, 2006, p. 213.

26 HANSEN & OLSE, 2013, pp. 54-55.

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Deste modo, as informações alcançadas eram úteis para o contexto intelectual da

corte alfrediana, que passou a contrapor o conhecimento desses homens aos relatos

geográficos dos clássicos, como no caso de Orósio.

***

Paulo Orósio (c.375-418) foi um clérigo, historiador e teólogo da Galícia. Ele

estudou com Agostinho de Hipona e provavelmente nasceu em Bracara Augusta (atual

Braga, Portugal). Ele foi o autor da Historiarum Adversum paganos Libri VII (Sete Livros de História Contra os Pagãos , c.416-417). A versão em inglês antigo desta obra

foi um provável complemento da Historia ecclesiastica gentis Anglorum (c.731) de Beda

(c.672-735) e da Crônica Anglo-Saxônica , que teve provável início durante o governo

de Alfred27

.

Portanto, a versão em inglês antigo da obra de Orósio está mais próxima de uma

adaptação do que de uma tradução direta, pois a incorporação desses e de outros relatos

visavam à complementação e a correção dos conhecimentos geográficos da época, como

a narrativa de Ohthere28

.

Nesses termos, a “tradução ” foi atribuída ao próprio rei Alfred até o século XIX.

Todavia, na centúria passada, alguns eruditos descartaram tal hipótese, mas inseriram a

obra no contexto da corte alfrediana29

. A narrativa em questão foi composta entre 889 e

899, mas não é possível afirmar se ela foi escrita anteriormente e incorporada numa 30

cópia posterior do Orosius em inglês antigo .

Para Lebecq, a inclusão de viagens distantes no Orosius faz parte do desejo de

Alfred de completar as magras informações sobre as terras do Norte e do Leste originária

dos clássicos da Geografia. Seria possível chamar o episódio de Ohthere, assim, como

uma espécie de entrevista, realizada num auditório da corte de Winchester31

.

A maior evidência para tanto foi o uso da expressão He sæde (“ele disse”), que,

longe do procedimento retórico convencional, afigura-se melhor numa asserção após

27 KEYNES, S. & LAPIDGE, M., 1983, pp. 108-120.

28 WAITE, 2000, pp. 38-45.

29 BATELY, 2003, pp. 107-120.

30 MASDALEN, 2010, pp. 3-4.

31 LEBECQ, 1987, pp. 168-169.

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uma questão precisa de outro participante. As hesitações de Ohthere quanto à

geografia do Norte e os aspectos da costa reforçam essa impressão 32

.

Para além das questões geográficas, etnográficas e da enorme produção a respeito,

a narrativa do norueguês ainda tem motivado debates sobre o sistema peculiar de

orientação cardinal na Europa Setentrional, que alterava o Norte 45º no sentido 33

horário, o que configura o atual Nordeste, ou ainda 60º . Também é possível notar as

interpolações territoriais e identitárias, ou até mesmo graus de alteridade em relação aos 34

povos da época .

Da tradução

A tradução aqui disposta seguiu dois manuscritos: 1) o Ms. Lauderdale (L) e o

Ms. Cotton Tiberius B.i (C). O primeiro é de propriedade do Lorde Tollemache, de 35

Helmingham Hall, Suffolk, e foi composto no século X . Graças ao caráter privado do

primeiro documento, o acesso é restrito e poucos pesquisadores puderam manuseálo-nos

últimos dois séculos.

O Ms. Cotton Tiberius B.i, por sua vez, pertence à British Library, o que tornou

seu acesso mais simples e a quantidade de trabalhos a respeito ser considerável. A versão

do Orosius disposta neste foi copiada no século XI. Algumas alterações gramaticais,

emendas textuais e anotações são tanto de meados do século XI quanto da centúria

seguinte. Desta feita, o Orosius ocupou o copista do fol. 3r ao fol. 111. A narrativa sobre

Ohthere, porém, foi transcrita entre os fols. 11r e 13r, na porção poucas páginas após o

início do livro I da obra36

.

Uma análise minuciosa, mas atualmente problemática, foi proposta por Joseph

Bosworth em 185937

. Nesta obra monumental, a narrativa de Ohthere recebeu muito

destaque no prefácio. Num esforço hercúleo, Bosworth literalmente descreveu todos os

eruditos que abordaram o Orosius do séc. XV até o seu tempo. O infatigável

32 LEBECQ, 2011, pp. 225-226.

33 KORHAMMER, 1985, pp. 251-269; SHEPPARD, 2014, p. 354.

34 GILLES, 1998, pp. 79-95.

35 ROSS, 1981, pp. 15-23; GILLES, 1998, pp. 85-96.

36 KER, 1957, p. 252.

37 A atribuição do Orosius ao rei Alfred, por exemplo, é uma das falhas do autor (BATELY, 2003, pp. 107-120).

MEDEIROS, Elton O. S.& BIRRO, Renan M. Um Visitante do extremo No rte na corte alfrediana: Ohthere e a descrição da Península Fenoscândia In: NETO, José Maria.Antigas Leituras. Vol.2. Recife: EdUPE, 2015 (preprint). Breve introdução e tradução.

pesquisador inglês lançou mão de muitas citações originais dos trabalhos prévios,

38 fossem elas em inglês, latim ou alemão .

A versão de J. Bosworth é a base de quase todas as traduções modernas desse

excerto, disponível principalmente em língua inglesa, mas também em francês e em

algumas línguas nórdicas. Todavia, esta é a primeira tradução do texto conhecida para a

Língua Portuguesa, o que provavelmente abrirá caminhos para futuros trabalhos sobre as

relações entre a Inglaterra Anglo-Saxônica e seus vizinhos da Península escandinava.

38

BOSWORTH, 1859, pp. iii-lxiv.

MEDEIROS, Elton O. S.& BIRRO, Renan M. Um Visitante do extremo No rte na corte alfrediana: Ohthere e a descrição da Península Fenoscândia In: NETO, José Maria.Antigas Leituras. Vol.2.

Recife: EdUPE, 2015 (preprint). Breve introdução e tradução.

A narrativa de Ohthere39

Ohthere sæde his hlaforde, Ælfrede cyninge, þæt he ealra Norðmonna norþmest bude. He cwæð þæt he bude om þæm lande norþweardum wiþ þa Westsæ 40

. He sæde þeah þæt þæt land sie swiþe lang norþ þonan, ac hit is eal weste, buton on feawun stowum styccemælum wiciað Finnas

41, on huntoðe on wintra & on

sumera on fiscaþe be þære sæ.

He sæde þæt he æt sumum cirre wolde fandian hu longe þæt land norþyhte læge, oþþe hwæðer ænig mon be norðan ðæm westenne bude. þa for he norþryhte be þæm lande; let him ealne weg þæt weste land on ðætt steorbord & þa widsæ on ðæt bæcbord þrie dagas. Þa wæs he swa feor norþ swa þa hwælhuntam firrest faraþ. Þa for he þa giet norþryhte swa feo r swa he meahte on þæm oþrum þrim dagum gesiglan.

Þa beag þæt land þær eastryhte, oþþe seo sæ in on ðæt lond, he nysse hwæðer, buton he wisse ðæt he ðær bad westanwindes & hwon norþan & siglde ða east be lande swa swa he meahte on feower dagum gesiglan. Þa sceolde he ðær bidan ryhtnorþanwindes, for ðæm þæt

Ohthere contou ao seu senhor, o rei Alfred, que ele viveu mais ao Norte que os noruegueses. Ele disse que ele viveu na terra do Norte, na costa do Westsæ

1

[Atlântico]. Ele também disse que a terra ainda se estendia ao Norte muito além daquele ponto, mas ela é completamente erma, exceto em poucos locais onde os Finnas

2 acampam, caçam no inverno e, no

verão, pescam no mar.

Ele contou como certa vez ele desejou saber o quanto a terra se estendia em direção ao Norte, ou se alguém vivia ao Norte da área não habitada. Ele foi para o Norte ao longo da costa, mantendo a terra inabitada a estibordo e o mar aberto a bombordo continuamente por três dias. Então, ele foi tão ao Norte quanto os caçadores de baleia vão. Ele então continuou no sentido Norte tão longe quanto pode por três dias.

Ali a terra inclinava-se para o Leste, ou o mar penetrava a terra – ele não sabia o que acontecia – mas ele lembrava-se que esperou ali por um vento Noroeste, e então viajou para o Leste ao longo da costa tão longe quanto pode em quatro dias. Ali ele teve que esperar por um

39

Tradução e texto baseados nas seguintes edições: Ohthere narrative In: LUND, Niels (ed.). Two voyagers at the court of king Alfred (from the Old English Orosius) . Tradução de Christine E. Fell. York: Willam Session, 1984, p. 18-22; Ohthere's “Northern” Voyage In: __________. The Terfinnas and Beormas of Ohthere. Tradução bilíngue de Alan S. C. ROSS. London: Viking Society for Northern Research, 1981, p. 16-24. A transcrição está baseada no Ms. Lauderdale (L), que apresenta praticamente o mesmo conteúdo do Ms. Cotton Tiberius B.i (C). As diferenças surgem em algumas palavras, como “rei” (cyninge no Ms. L e kyningcge no Ms. C) que não compromete o conteúdo da narrativa. 40

Da Tradução em Inglês antigo da Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum de Beda, livro I, 15: “Slogan fram eastsæ oð westsæ ond him nænig wiðstod ” (“Eles mataram do Mar do Leste [Eastsæ] até o Mar do Oeste [Westsæ] e ninguém resistiu a eles”). Assim, Ohthere e Beda compartilhavam o mesmo referencial, ou o redator do Orosius em Inglês antigoadaptou as palavras do viajante para ser melhor compreendido. O Westsæ pode ser lido também como “Mar do Norte”, ou ainda como “Mar norueguês” (ROSS, Alan S. C.

Ohthere's “Northern” Voyage In: __________. The Terfinnas and Beormas of Ohthere. London: Viking Society for Northern Research, 1981, p. 17). 41

Os finns, lapões e sami (ou sámi, ou ainda saami) são povos seminômades com aparência mongólica que pertencem ao grupo lingüístico ugro-fínico. Eles não compartilham os co stumes e tradições dos povos germânicos da Escandinávia e vivem há vários séculos no extremo Norte da Europa Setentrional (DERRY, Thomas Kingston. The History of Scandinavia: Norway, Sweden, Denmark, Finland and Iceland. Minnesota: Minnesota Press, 2000, p. 9).

MEDEIROS, Elton O. S.& BIRRO, Renan M. Um Visitante do extremo No rte na corte alfrediana: Ohthere e a descrição da Península Fenoscândia In: NETO, José Maria.Antigas Leituras. Vol.2.

Recife: EdUPE, 2015 (preprint). Breve introdução e tradução. land beag þær suþryhte, oþþe seo sæ in on ðæt land, he nysse hwælþer.

Þa siglde he þonan suðryhte be lande swa swa he mehte on fif dagum gesiglan. Ða læg þær an micel ea up in on þæt land. Þa cirdon hie up in on ða ea, for þæm hie ne dorston forþ bi þære ea siglan for unfriþe, for þæm ðæt land wæs eall gebun on oþre healfe þære eas.

Ne mette he ær nan gebun land siþþan he from his agnum ham for, ac him wæs ealne weg weste land on þæt steorbord, butan fiscerum & fugelerum & huntum &

þæt wærom eall Finnas 42

, & him wæs a widsæ on ðæt bæcbord.

Þa Beormas 43

hælfdon swiþe wel gebud hira land, ac hie ne dorston þæron cuman. Ac þara Terfinna

44 land wæs eal

weste, buton ðær huntan gewicodon, oþþe fisceras, oþþe fugeleras.

Fela spella him sædon þa Beormas ægþer ge of hirea agnum lande ge of þæm landum þe mb hie utan wæron, ac he nyste hwæt þæs soþes wæs, for þæm he hit self

ne geseah45

. þa Finnas, him þuhte, & þa Beormas spræcon neah an geþeode. Swiþost he for ðider, toeacan þæs landes sceawunge, for þæm horshwælum, for

vento do Norte, pois a terra inclinava-se para o Sul, ou o mar penetrava a terra – ele não sabia dizer o que ocorria.

Assim, dali ele navegou para o Sul ao longo da costa tão longe quanto ele pode em cinco dias. Um grande rio desaguava naquela terra. Ele subiu o rio, não indo além sem permissão, pois a terra na margem mais distante do rio era habitada.

Ele não tinha previamente atravessado nenhuma terra habitada desde que ele deixou sua própria casa, mas ele tinha em todo caminho terra a estibordo, que era inabitada exceto por pescadores, caçadores de aves e caçadores, e todos

eram Finnas3. Ele tinha a bombordo

apenas o mar aberto.

Os Beormas4 tinham extensos

assentamentos na terra, mas ninguém se atrevia a arriscar a sorte ali. Mas a terra dos Terfinnas

5 era totalmente inabitada,

exceto por caçadores que faziam acampamentos, pescadores ou caçadores de aves.

Os Beormas contaram a ele muitas histórias sobre sua própria terra e sobre a terra que os circundava, mas ele não sabia o quanto disso era verdade pois ele não as

tinha visitado6. Ele considerou que os

Finnas e os Beormas falavam a mesma linguagem. A principal razão para ele ir para lá, além da exploração da terra, foi

42 Os finns, deste modo, foram taxados como povos coletores e/ou coletores-caçadores.

43 Diferente dos outros termos citados, beormas é de difícil definição. O nome está geralmente conectado com Perm, na terra dos Bjarmar (Beormas), ou, em nórdico antigo, Bjarmaland. Supõe-se que ele está conectado aos zirianos, aos permianos ou udmurtes (votiaks), i.e., povos dos Urais ou ugro-fínicos, respectivamente (PAGE, Raymond Ian. The viking homelands and their peoples In: __________. Chronicles of the Vikings: Records, Memorials, and Myths. Toronto: Toronto University Press, 2002, pp. 45-48; Cambridge University. Stories and ballads of the far past. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 235).

44 Os Terfinnas foram provavelmente um grupo específico dos lapões. Ross sugeriu, a partir de indícios textuais e da linguística comparada, que eles poderiam ser os antepassados dos lapõe s que hoje vivem na

moderna Península de Kola, Rússia, mas que viviam de forma nômade por todo Norte escandinavo (ROSS, Alan S. C. Ohthere's “Northern” Voyage In: __________. The Terfinnas and Beormas of Ohthere. London: Viking Society for Northern Research, 1981, p. 24-28). 45

Nota-se uma descrença ou ressalva em relação ao depoimento dos finns.

MEDEIROS, Elton O. S.& BIRRO, Renan M. Um Visitante do extremo No rte na corte alfrediana: Ohthere e a descrição da Península Fenoscândia In: NETO, José Maria.Antigas Leituras. Vol.2.

Recife: EdUPE, 2015 (preprint). Breve introdução e tradução. dæm hie habbað swiþe æþele ban on hiora toþum - þa teð hie brohton sume þæm cyninge - & hiora hyd bið swiðe god to sciprapum. Se hwæl bið micle læssa þonne oðre hwalas: ne bið he lengra ðonne syfan elna lang; ac on his agnum lande is se betsta hwælhuntað: þa beoð eahta and feowertiges elna lange, & þa mæstan fiftiges elna lange; þara he sæde þæt he syxa sum ofsloge syxtig on twam dagum.

He wæs swyðe spedig man on þæm æhtum þe heora speda on beoð, þæt is on wildrum

46. He hæfde þagyt, ða he þone

cyningc sohte, tamra deora unbebohtra syx hund. Þa deor hi hatað hranas; þara wæron sys stælhranas, ða beoð swyðe dyre mid Finnum, for ðæm hy foð þa wildan hranas mid

47. He wæs mid þæm

fyrstum mannum48

on þæm lande; næfde he þeah ma ðonne twentig sceapa & twentig swyna, & þæt lytle þæt he erede he erede mid horsan.

Ac hyra ar is mæst om þæm galofe þe

ða Finnas him gyldað 49

. þæt gafol bið on deora fellum & on fugela feðerum & hwæles hyde geworht & of seoles.

pelos narvais, porque eles tinham um excelente marfim em suas presas – ele trouxe algumas dessas presas para o rei – e seu couro é muito bom para [usar como] cordames. Esta baleia é muito menor que as outras baleias: ela não é maior do que sete varas de comprimento. O melhor caçador de baleias está em suas próprias terras; ele tem quarenta e oito varas de comprimento, o maior com cinquenta varas de comprimento; destes [caçadores], ele disse que ele, um de seis, matou sessenta [narvais] em dois dias.

Ele é um homem muito rico naquelas possessões que consistem suas riquezas, ou

seja, em renas selvagens7. Ele ainda tinha,

quando veio de encontro ao rei, seiscentas renas domesticadas não vendidas. Esse gamo é chamado de rena. Seis desses eram renas-chamariz. Elas eram muito valiosas entre os Finnas porque eram acostumadas

a capturar a rena selvagem8. Ele estava

entre os primeiros homens9 daquela terra,

mas ele não tinha mais do que vinte bois, vinte ovelhas e vinte porcos, e o pouco que ele lavrava ele lavrava em cavalos.

Sua riqueza, no entanto, está principalmente nos tributos, pois os Finnas pagam a ele

10. Este tributo consiste de

peles, penas, ossos de baleia e

46

A pecuária, na narrativa, desponta como a principal ocupação no Norte do que então era a Noruega. Todavia, como o próprio Ohthere mencionou, outras atividades eram necessárias para prover o sustento dos lares, como a caça, a pesca e o tributo dos lapões. Numa escavação em Borg, no arquipélago Lofoten (Noruega), numa rica propriedade rural do século VII (ou VIII), o solo era pobre para garantir a subsistência a partir do plantio, e o pasto da região ainda não estava sendo usado de maneira intensiva com em outras regiões da Europa da época. Apesar dessas dificuldades, os arqueó logos identificaram objetos de ouro e outros pertences que sugere a riqueza dos antigos moradores (MUNCH, Gerd Stamsö. Borg in Lofoten. A chieftain's farm in north Norway In: BATELY, Janet & ENGLERT, Anton (Eds.). Ohthere's Voyages. Roskilde: Viking Ship Museum in Roskilde, p. 100-105). 47

Esta é uma explicação técnica de como as renas podiam ser capturadas. Caçar com chamarizes é a técnica mais abrangente do uso da rena domesticada no continente Eurasiático. Osamis consideravam a rena-chamariz muito valiosa, e o depoimento demonstra que, ao menos em partes do extremo Norte da Fenoscândia, os sam i já domesticavam renas na segunda metade do século IX (VALTONEN, IrmeliThe. account of Ohthere In: __________. An interpretation of the description of Northernmost Europe in the Old English Orosius. Thesis. Oulu: Departament of English/University of Oulu, 1988, pp. 93-100). 48 Ou seja, ela era um líder de homens com relativo poder aquisitivo e de prestígio.

49 Como é possível notar, Ohthere dispunha de um cargo de confiança como coletor entre os finns e provavelmente estava subordinado a alguém ainda mais poderoso que ele. É possível observar tal contexto em algumas narrativas nórdicas, como a Egils saga.

MEDEIROS, Elton O. S.& BIRRO, Renan M. Um Visitante do extremo No rte na corte alfrediana: Ohthere e a descrição da Península Fenoscândia In: NETO, José Maria.Antigas Leituras. Vol.2.

Recife: EdUPE, 2015 (preprint). Breve introdução e tradução. æghwilc gylt be hys gebyrdum: se byrdesta sceall gyldan fiftyne mearðes fell & fif hranes & an beran fel & tyn ambra feðra & berenne kyrtel oððe yterenne & twegen sciprapas; aegþer sy syxtig elna lang: oþer sy of hwæles hyde geworht,

oþer of sioles 50

.

He sæde ðæt Norðmanna land wære swyþe lang & swyðe smæl. Eal þæt his man aþer oððe ettan oððe erian mæg, þæt lið wið ða sæ; & þæt is þeah on sumum stowum swyðe cludig, & licgað wilde moras wið eastan & wið uppon, emnlange þæm bynum lande

51.

On þæm morum eardiað Finnas: &

þæt byne land is easteweard bradot & symle swa norðor swa smælre; eastewerd hit mæg bion syxtig mila brad oþþe hwene brædre, & middeweard þritig oððe bradre; & norðe weard, he cwæð, þær hit smalost wære, þæt hit mihte beon þreora mila brad to þæm more, & se mor syðþan on sumum stowum swa brad swa man mæg on twam wucum oferferan, & on sumum stowum swa brad swa man mæg on syx dagum oferferan

52.

Ðonne is toemnes þæm lande

suðeweardum, on oðre healfe þæs mores, Sweoland, oþ þæt land norðeweard; & toemnes þæm lande norðeweardum Cwena land. Þa Cwenas hergiað hwilum on ða Norðmen ofer ðone mor, hwilum þa Norðmen on hy, & þær sint swiðe micle meras fersce geond þa moras, & beraþ þa Cwenas hyra scypu ofer land on ða meras & þanon hergiað on ða Norðmen; hy

cordames feitos de pele de baleia e pele de foca. Cada um paga conforme seu status. O mais alto status precisa pagar quinze peles de marta, cinco peles de rena, uma pele de urso e dez medidas de penas, uma camisa de pele de urso ou lontra e dois cordames. Cada um destes deve medir sessenta varas de comprimento, um feito de couro de baleia e a outro feito de foca.

Ele disse que a terra dos noruegueses é muito longa e estreita. Toda terra que pode ser usada para pastoreio ou plantio encontra-se ao longo da costa e algumas vezes em alguns locais muito rochosos. Montanhas selvagens encontram-se no Leste, após e ao

longo da terra cultivada 12

.

Nessas montanhas vivem os Finnas. A terra cultivada é mais larga no Sul e, conforme for para o Norte, ela torna-se mais estreita. No Sul ela alcança talvez sessenta milhas de comprimento ou pouco mais; no meio, trinta ou mais; e para o Norte, ele disse, onde ela [a terra] é mais estreita, ela pode ter três milhas através das montanhas. As montanhas além alcançam tal largura que demanda duas semanas para cruzar. Em outras, a largura pode ser

cruzada em seis dias13

.

Para além dos limites montanhosos, a fronteira da Suécia vai da parte sulista da terra até a nortenha, até os limites da terra dos Cwenas no Norte. Algumas vezes os Cwenas pilham os noruegueses através das montanhas, e algumas vezes os noruegueses os pilham de volta. Há muitos lagos de água fresca através desta montanhas, e os Cwenas carregam seus barcos sobre a terra até os lagos onde eles

50 O tipo de gild (ouro, riqueza) pago dispõe apenas o caso dos finns mais ricos. Não sabemos se Ohthere estava se gabando junto ao rei Alfred ou se este perfil de homens era comum o suficiente para ser citado. Nota-se, assim, um indício de estratificação social entre os habitantes ugro-fínicos do extremo norte. Infelizmente dispomos de poucos indícios para precisar tais diferenciações.

51 Trata-se de uma sucinta e preciosa explicação da organização geográfica e das poss ibilidades de plantio no extremo Norte da Noruega daquela época.

52 A sugestão de distância/tempo com tamanha precisão demonstra que o caminh o era bem conhecido por Ohthere, inclusive em várias condições climáticas.

MEDEIROS, Elton O. S.& BIRRO, Renan M. Um Visitante do extremo No rte na corte alfrediana: Ohthere e a descrição da Península Fenoscândia In: NETO, José Maria.Antigas Leituras. Vol.2.

Recife: EdUPE, 2015 (preprint). Breve introdução e tradução. habbað swyðe lytle scypa & swyðe leohte

53.

Ohthere sæde þæt scir hatte Halgoland

þe he on bude. He cwæð þæt nan man ne bude be norðan him. Þonne is an port on suðeweardum þæm lande þone man hæt

Sciringesheal 54

. Þyder he cwæð þæt man ne mihte geseglian on anum monðe, gyf man on niht wicode & ælce dæge hæfde ambyrne wind; & ealle ða hwile he sceal seglian be lande; & on þæt steorbord him bið ærest Iraland, & þonne ða Igland þe synd betux Iralande & þissum lande; þonne is þis land oð he cymð to Scirincgesheale, & ealne weg on þæt bæcbord Norðweg. Wið suðan þone Sciringesheal fylð swyðe mycel sæ up in on ðæt land, seo is bradre þonne ænig man ofer seon mæge, & is Gotland on oðre healfe ongean & siððan Sillende. Seo sæ lið mænig hund mila up in on þæt land: & of Sciringes heale he cwæð þæt he seglode on fif dagan to þæm porte þe mon hæt æt Hæþum, se stent betuh Winedum

& Seaxum & Angle & hyrð in on Dene 55

.

Ða he þiderweard seglode fram Sciringesheale, þa wæs him on þæt bæcbord Denamearc & on þæt steorbord widsæ þry dagas; & þa, twegen dagas ær he to Hæþum come, him wæs on þæt steorbord Gotland & Sillende & iglanda fela - on þæm landum eardodon Engle, ær hi hider on land coman - & hym wæs ða twegen dagas on ðæt bæcbord þa igland þe in Denemearce hyrað.

pilham os noruegueses. Eles têm barcos muito pequenos e leves

14.

Ohthere disse que o distrito onde ele

vivia era chamado Halgoland. Ele disse que ninguém vivia ao Norte dele. Na porção Sul da Noruega há uma cidade mercantil

chamada Sciringes heal15

. Ele disse que um homem pode dificilmente navegar para lá em um mês, assumind que ele acampe durante as noites, e a cada dia tenha um vento favorável. Ele deveria navegar pela costa todo o caminho. Para estibordo está aIraland [Irlanda], e então aquelas ilhas entre a Iraland e esta terra, e então desta terra ele foi para Sciringes heal, e a Noruega está do lado onde fica o porto por todo caminho. Para o Sul de Sciringes heal, um grande mar penetra a terra; ele também é muito amplo para se ver através dele. A Gotland está do outro lado e além desta estáSillende. Este mar flui para terra por muitas centenas de milhas. Ele disse que viajou de Sciringes heal até a cidade mercantil chamada Hæþum [Hedeby] em cinco dias, que está situada entre os Wends, Saxões, Anglos e entre os

Dinamarqueses16

.

Então ele viajou de lá, i.e., Sciringes heal, ele tinha a Dinamarca para aportar e o mar aberto a estibordo por três dias. Então, dois dias antes dele aportar em Hæþum , ele tinha Gotland, Sillende e muitas ilhas a estibordo. Os Anglos viviam nestes distritos antes de virem para esta terra. Do lado do porto ele tinha, por dois dias, aquelas ilhas que pertenciam à Dinamarca.

53 Os pequenos conflitos entre as populações de origem germano-escandinav a e ugro-fínicas eram provavelmente constantes. Talvez os ataques mencionados fossem represálias pelos espólios exigidos com frequência.

54 Sciringesheal era provavelmente Kaupang, um importante porto comercial escandinavo. Essa cidade-porto foi fundada em c.780, e abandonada no início do século X. Para mais informações, ver: SKRE, Dagfin & PILØ, Lars (Orgs. ).Kaupang in Skiringssal. Oslo: Universitetet i Oslo, 2007.

55 Além do notável conhecimento geográfico e das distâncias a serem, Ohthere mencionava quais povos habitavam cada região.

MEDEIROS, Elton O. S.& BIRRO, Renan M. Um Visitante do extremo No rte na corte alfrediana: Ohthere e a descrição da Península Fenoscândia In: NETO, José Maria.Antigas Leituras. Vol.2.

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