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Notas Ultramarinas - roteiro exploratório de um leitor 1 Coimbra de Oliveira, João, 2006, “Notas Ultramarinas - roteiro exploratório de um leitor”, Leituras e Leitores: Um Estudo sobre os Utentes do Arquivo Histórico Ultramarino, IICT, Lisboa. Pormenor toponímico do início da Calçada que vai desembocar no Arquivo Histórico Ultramarino A viagem ultramarina No momento em que me foi proposto participar no projecto, “Leituras e Leitores: Um estudo sobre os utentes do Arquivo Histórico Ultramarino”, coordenado pela investigadora Margarida Lima de Faria, fiquei deveras entusiasmado. Sendo a antropologia marítima a minha área de estudo, com o enfoque das culturas piscatórias, a pesquisa permitiria percepcionar a ligação histórica e cultural que Portugal foi criando com o mar. Contudo, o entusiasmo inicial foi sendo substituído por uma apreensão relativa, justificada com o curto período de tempo disponível para fazer expedições de terreno. A antropologia, enquanto ciência social, tem uma metodologia própria que privilegia o tempo longo da observação. Um estudo aprofundado sobre o Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), no Palácio da Ega, exigiria que o antropólogo estivesse disponível

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Notas Ultramarinas - roteiro exploratório de um leitor 1

Coimbra de Oliveira, João, 2006, “Notas Ultramarinas - roteiro exploratório de um leitor”, Leituras e Leitores: Um Estudo sobre os Utentes do Arquivo Histórico Ultramarino, IICT, Lisboa.

Pormenor toponímico do início da Calçada que vai desembocar no Arquivo Histórico Ultramarino A viagem ultramarina No momento em que me foi proposto participar no projecto, “Leituras e Leitores: Um

estudo sobre os utentes do Arquivo Histórico Ultramarino”, coordenado pela investigadora

Margarida Lima de Faria, fiquei deveras entusiasmado. Sendo a antropologia marítima a minha

área de estudo, com o enfoque das culturas piscatórias, a pesquisa permitiria percepcionar a

ligação histórica e cultural que Portugal foi criando com o mar. Contudo, o entusiasmo inicial foi

sendo substituído por uma apreensão relativa, justificada com o curto período de tempo disponível

para fazer expedições de terreno. A antropologia, enquanto ciência social, tem uma metodologia

própria que privilegia o tempo longo da observação. Um estudo aprofundado sobre o Arquivo

Histórico Ultramarino (AHU), no Palácio da Ega, exigiria que o antropólogo estivesse disponível

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para diversas expedições de estudo no terreno e uma posterior verificação dos mesmos materiais

recolhidos. A imagem de Malcom Lowry, tentando ser um marinheiro entre marinheiros no

romance “Ultramarina” (1986), chegando à doca de limusina e logo ser considerado um intruso,

fez-me sorrir. Passo a explicar, no meu caso a desfasada limusina era o factor tempo.

Perspectiva do início da Calçada da Boa-Hora

Ao entrarmos no caminho da Calçada da Boa-Hora refugiamo-nos do trânsito permanente

de pessoas e de transportes que caracteriza a Rua da Junqueira. Esta subida ladeada pela

extensão do muro de um palácio característico das cidades europeias do sul, encimada no tempo

pela transformação das cavalariças do Palácio da Ega numa tasca basca, projecta a imagem da

transformação de palácios em instituições do Estado. Tal como o Palácio da Ajuda que surge no

horizonte, também o Arquivo resulta de uma reconversão de um palácio em lugar depositário de

referências relacionadas com a história e o património material e simbólico de um país.

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Horizonte da Calçada da Boa-Hora, com o Palácio da Ajuda ao fundo, na perpendicular da entrada do Arquivo A investigação etnológica de um arquivo é perfeitamente possível enquanto o encararmos

como unidade de observação controlável pelos métodos de investigação da antropologia. Tendo o

estudo como objectivo principal conhecer os utilizadores do AHU, a estratégia passou por

apresentar a minha experiência pessoal enquanto leitor. Devido à dinâmica própria que tal

investigação imprime e pelas oportunidades únicas concedidas para um amplo conhecimento dos

funcionários, dos investigadores e do acervo do arquivo, esta experiência teve características

especiais que outro leitor só em condições extraordinárias teria. A título de exemplo, o arquivo tem

três espaços que possibilitam a passagem ao visitante (Sala dos Códices, Sala do Brasil e a 1ª

Secção). No meu caso, devido à colaboração cheia de boa vontade do pessoal do AHU foi-me

facultado o pleno acesso aos mais diversos lugares e foram-me concedidas visitas às diversas

secções do arquivo quando o requisitei.

Tentarei que as minhas palavras funcionem como uma “grande angular” das pessoas que

de algum modo estão ligadas a esta instituição, eu incluído. O plano consistiu em lançar diversos

níveis de interpretação deste mesmo texto.

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“O facto de a investigação etnológica comportar as suas imposições que são também os seus

trunfos, e de o etnólogo ter necessidade de circunscrever aproximativamente os limites de um

grupo que vai conhecer e que o vai reconhecer, é uma evidência que não escapa a ninguém que

tenha feito trabalho de terreno. Mas uma evidência que tem vários aspectos. O aspecto do

método, a necessidade de um contacto efectivo com os interlocutores é uma coisa. A

representatividade do grupo escolhido, outra: trata-se de saber o que aqueles com quem falamos

e que vemos nos dizem daqueles com quem não falamos e que não vemos. A actividade do

etnólogo no terreno é desde o início uma actividade de agrimensor do social, de operador de

escalas, de comparatista que trabalha em dimensão reduzida: improvisa um universo significativo,

caso seja necessário explorando, por meio de inquéritos rápidos, universos intermédios, ou

consultando como historiador, os documentos utilizáveis.”(Augé 2005,15)

Entrada principal do Arquivo Histórico Ultramarino – IICT.

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Sala de Leitura

Pormenor da entrada da Sala de Leitura

Pela arquitectura do edifício onde o AHU está instalado a primeira reacção, um pouco

anacrónica, é esperar que alguém nos venha receber, que nos cumprimente, que nos ponha à

vontade. O Palácio do Ega transmite a ideia de um espaço familiar, com uma escala humana, que

contrasta com a dimensão real do Arquivo.

A bifurcação inicial com duas placas indicativas “Sala de Espera” e “Sala de Leitura”

confundem o visitante. A sala de leitura tem implícito um conhecimento prévio do espaço, de uma

introspecção familiar que numa primeira visita ainda não foi conquistada. Subindo a escadaria e

entrando na sala dos microfilmes, dá-se a surpresa de ver, antes mesmo do contacto com os

funcionários do AHU, pessoas atentas defronte de projectores de microfilmes, como se fossem

figurantes não convidados para a experiência neófita do leitor do arquivo. Em seguida entra-se

para a sala de leitura propriamente dita, onde um conjunto central de catorze mesas reunidas é

ocupado por diversos leitores. O silêncio domina. Os documentos são manuseados com um

cuidado atento. Tirando as primeiras notas sobre o que me rodeava (oito investigadores, sete com

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computadores portáteis, etc.) fui a pouco e pouco apercebendo-me do som permanente dos

documentos a serem manuseados, com uma constância que me lembrou o som do mar a bater na

areia da praia. A que ilha de conhecimento tinha eu chegado e que mar de documentos eram

aqueles que constituíam o AHU?

A sala de leitura permite uma ampla margem dedutiva: nós, os leitores, também

escrevemos e recriamos o arquivo que o AHU nos propõe. Também somos personagens

históricas e também temos a idade daqueles documentos: fomos jovens como eles, somos adultos

e envelhecemos. O leitor transforma-se na sombra de uma sombra do que foi o passado

ultramarino. Como se nos apercebêssemos do que somos por aquilo que fomos. O meu objectivo

é mais levantar questões, tanto a outros leitores como à comunidade em geral da qual sou

membro, do que confirmar presunções adquiridas antes do processo de leitura. Não estamos na

presença de um conjunto de divagações como um primeiro olhar poderá sugerir, mas a

classificação de artigo científico será também questionável.

A minha presença na sala de leitura, o primeiro contacto consistiu num acumular de ideias

resultante de uma observação participante difusa, enredando-me no papel de leitor. Como

pretendi que este artigo não tivesse nem limites ou cronometrias, ampliei o texto literário como

fragmento do próprio tempo. Procurei a dinamização de uma dialéctica entre o Arquivo e a

Antropologia, tentando uma rememoração da experiência de leitura, uma pista para o usufruto da

investigação no AHU.

Ao pretender ter uma visão alargada da experiência de leitura neste local em concreto, um

conjunto de palavras foi ganhando força intrínseca, durante o período de ampliação do

conhecimento adquirido sobre o AHU: biblioteca; arquivista; livro; documento; viagem; leitor;

tempestade; continuidade; mar; objecto; ultramarino; naufrágio; tempo; revolução; microfilme;

administração; colonial; revolução; passado; futuro. Estes exemplos foram aplicados na

perspectiva de “Palavras de ordem”, enunciada por Jean Baudrillard (2001) de modo a encarar as

palavras como possuidoras de vida própria, como geradoras e regeneradoras de ideias em

construção.

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“Palavras de ordem… A expressão parece-me definir muito bem uma forma quase iniciática de

entrar no interior das coisas, sem todavia se estabelecer um catálogo. As palavras são portadoras

e geradoras de ideias, talvez ainda mais que o contrário. Operadores de charme, operadores

mágicos, não transmitem apenas essas ideias e essas coisas, mas elas próprias se metaforizam e

se metabolizam umas nas outras, segundo uma espécie de evolução em espiral. É assim que se

revelam como transmissoras de ideias.” (Baudrillard 2001, 9)

O Arquivista e o Antropólogo

Pormenor da Sala do Brasil.

José Sintra Martinheira, assessor do AHU, arquivista, licenciado em História na

Universidade Nova, possuindo uma pós-graduação em Ciências Documentais da Universidade

Clássica. Trabalha a documentação do arquivo há 32 anos, em particular a do Conselho

Ultramarino. É nesta condição de profundo conhecedor do AHU, que Sintra Martinheira, “o

arquivista”, surge no trabalho de campo do antropólogo, “o estrangeiro”. Foram os próprios

membros que trabalham no AHU, sobre o qual o meu trabalho incidia, que foram continuamente

referenciando Sintra Martinheira, o que o levaria a questionar-me se tal não acontecera pelo facto

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dos seus colegas terem sentido uma certa similaridade na vontade mútua de conhecimento do

arquivo. Essa similitude, potenciadora de uma certa ambiguidade, que antropólogo também sentiu

em determinados momentos, não o conduziu à ilusão de pretender conhecer a totalidade da

individualidade de Sintra Martinheira, nem de fazer um corte incisivo entre a sua verdade histórica

e a sua verdade autobiográfica.

“Vim para o Arquivo Histórico Ultramarino com 17 anos. Queria comprar um gira-discos. Naquele

tempo quem fazia investigação no arquivo ou era apologista do regime, ou tinha de estar

sossegado. Então toda a gente trabalhava a glória e os feitos dos portugueses a partir do séc.

XVI, XVII. Na actualidade é que as pessoas começam a investigar também a documentação do

séc. XX.” (entrevista a Sintra Martinheira)

O fascínio das ciências sociais no uso de biografias e de auto-biografias decorre da dupla

ilusão de se poder tocar a própria realidade que é retratada nas narrativas e a ideia de poder

atingir na sua totalidade a essência do indivíduo. A própria expressão “história de vida” assenta

em pressupostos falaciosos, em certa medida romanescos, implicando olhar a vida como um todo,

um conjunto coerente e orientado, um caminho bem definido logo à partida. O real está, porém,

bem distante, dessa linearidade, surge aleatório, pleno de descontinuidade.

As afirmações elucidativas da realidade de Sintra Martinheira elaboradas ao longo dos

diálogos comigo surgiam despidas de carga poético-descritiva. A sua orientação dos conteúdos do

AHU esbatia continuamente no meu olhar denso de associações livres. A breve trecho o olhar

sobre o arquivo foi sendo permeado pelas sugestões e orientações do arquivista.

“O arquivo morto é palavra do antigamente. O arquivo está sempre vivo. Por exemplo o

Conselho Ultramarino tinha documentos que entravam, que eram despachados e arquivados e

aquilo era mantido ali. Mas ao fim de cinco ou seis anos não vale a pena manter esses mesmos

documentos, porque ao longo desse período houve outros documentos que continuaram a entrar.

Então retira-se essa documentação para depois, arquivo intermédio ir para o arquivo permanente.

Mas essa documentação importante deve ter, por um lado no arquivo corrente, quando o

documento é criado deve haver um plano de classificação que classifique os documentos, isto é

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de receitas, isto é de despesas. Depois deve haver uma tabela que diz se esse é de conservação

permanente, ou se é para destruir ao fim de X tempo. Só os de conservação permanente é que

vem parar para o arquivo definitivo, os outros devem ser destruídos. Depende dos serviços, mas

há serviços com séries extremamente longas no tempo, com muito papel. A proporção do que é

destruído depende do tipo de documentação. Mas de um modo geral grande parte da

documentação é muito rotineira e nesse caso grande percentagem é para destruir. Só se guarda

aquela documentação que consegue reproduzir as outras ou então são coisas fundamentais que

nunca são destruídas, todas elas são mantidas.” (entrevista a Sintra Martinheira)

Pormenor da sala de leitura com lombada de volumes de livros.

Ao entrevistar uma pessoa sobre a história de sua vida surge com frequência uma

quantidade significativa de informação que resiste à sua posterior integração na escrita

etnográfica. As histórias do passado do AHU contadas por Sintra Martinheira resistem à

integração por parte de um narrador exterior, permanecendo antes num horizonte situado entre a

experiência do tempo e a conversa informal trocada pelas pessoas. Neste caso deve-se optar por

deixar as recitações do arquivista na primeira pessoa, para ser mais perceptível a elaboração que

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o próprio faz através da palavra, de si e da sua vivência no mundo. Na senda do pensamento

ocidental que privilegia o real como sinónimo de verdade, afastando desta forma o exercício da

imaginação, Sintra Martinheira evidencia-se pela recusa da metáfora (palavra cuja origem em

grego significa tradução) na descrição das suas histórias, formulando assim explicações objectivas

operacionais, plenas de conteúdo e de significação tanto da sua vida como da maneira de encarar

um arquivo histórico.

“Em termos de catalogação o arquivo não está nem estará catalogado na sua totalidade tão cedo.

Por um lado não se tem a dimensão e o corpo técnico, catalogadores, profissionais da área a

trabalhar. Antes havia por volta de dez pessoas e hoje somos só dois ou três. Por outro lado a

documentação, que deveria ter entrado com uma relação, entrou solta e não identificada.”

As dificuldades do processo de negociação da realidade entre o antropólogo e o arquivista

são consequentes do processo de inter-conhecimento, de uma aproximação de horizontes

distintos. Na encruzilhada de duas áreas distintas de investigação científica, as leituras

interpretativas do arquivista, faz com que um neófito no AHU sinta as mesmas dificuldades

expressas por mim. Entre as questões metodológicas e epistemológicas e a inter-subjectividade

do encontro etnográfico, encontra-se inexoravelmente a dificuldade interpretativa e a vontade de

persistir, como se dois livros distintos se cruzassem.

O arquivista Sintra Martinheira segurando o Diário Nº1 do Banco Nacional Ultramarino de 1864.

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Uma das características fundamentais das histórias de vida consiste na tomada de

consciência do devir do narrador a partir de uma experiência que se julga decisiva. Segundo

Pierre Bourdieu em “Ilusão Biográfica” (1997), espera-se do narrador que procure ordenar a sua

própria história perante o investigador, tornando-se em certa medida o ideólogo da sua própria

vida, ao procurar conectar certos acontecimentos, de modo a que constituam um todo inteligível.

Do investigador exige-se antes que saiba interpretar essa inteligibilidade, como se tratando afinal

de uma intenção, uma criação de sentidos e não um conhecimento objectivo. Mediante uma

análise cuidada, crítica, sempre mediada com certas reservas, de toda a informação contida nos

relatos do inquirido, é possível revelar uma certa objectividade. Para tal compete ao investigador

não limitar o campo das possíveis acções do indivíduo ao longo da sua vida, não orientar as

respostas a partir de objectivos que logo à partida tem definidos para a sua própria investigação,

deixando o caminho livre para que o inquirido se sinta à vontade para ser o mais sincero possível,

não adoptando estratégias de tornar linear, coerente, a sua narrativa de vida, o que iria atraiçoar o

lado mais incerto, ambíguo, que certamente move todas as vidas.

“Produzir uma história, tratar a vida como uma história, quer dizer como uma narrativa coerente de

uma sequência significante e orientada de acontecimentos, talvez seja sacrificar a uma ilusão

retórica, a uma representação comum de existência, que toda uma tradição literária não parou

nem pára de reforçar.” (Bourdieu 1997, 54)

Quer seja em forma de récita ou de ensaio existe a palavra proferida. Metaforizando em

géneros literários, o conto – arquivista, é uma forma mais fechada sobre si própria do que o

romance – antropólogo. A antropologia confirma, renega, desloca-se, endireita-se, mexe-se. O

arquivista pelo contrário, procura o tempo forte, único, aquele que dinamiza a narrativa. Os dois

têm uma existência própria.

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Jorge Nascimento a seleccionar cartografia digitalizada para proceder a uma impressão.

“Para se conseguir uma boa imagem Jorge Nascimento está uma hora ou mais contabilizando

todo o processo: o leitor viu o documento, pediu aquele documento, tem de ser arrumado. Depois

vem a nota de encomenda. Faz-se o orçamento. O orçamento vai para a secção. Vai-se buscar

novamente o documento. Traz-se para a secção para microfilmar, depois vai para a revelação. É

preciso ver se a imagem está boa. Depois fazer o filme, fazer a cópia, tudo isso demora pelo

menos meia hora de trabalho por imagem.” (entrevista a Sintra Martinheira)

Vozes no Arquivo

A 31 de Março de 1975 foi criado por iniciativa do Estado português o Instituto de Apoio

ao Retorno de Nacionais (IARN), organismo que seria chamado a desempenhar a tarefa ciclópica

do “retorno” de indivíduos ou famílias residentes nas ex-colónias portuguesas. Teve como

objectivo central conceder apoio aos cidadãos, tendo nomeadamente em vista a sua integração

plena em Portugal. A sua criação é compreendida se a integrarmos no contexto mais vasto do

regresso de milhares de portugueses das “províncias ultramarinas”. Regresso decorrente do

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derrube do Estado Novo, da instauração da democracia em Portugal e do início do processo de

descolonização.

O AHU tem desde 1985 o espólio do IARN e 2004 nas suas instalações. Tal material de

arquivo contém elementos fundamentais para relacionar a experiência do IARN com a construção

de Estado Providência em Portugal, nomeadamente, com os passos iniciais da consolidação da

Segurança Social e da dissolução do regime corporativo do Estado Novo. Parte desse espólio é

solicitado em primeiro lugar pelas pessoas que de algum modo estiveram envolvidas no processo

de descolonização. Para ter um olhar pessoal sobre essa parte do arquivo entrevistei Carlos

Alberto, responsável técnico da Cartografia do AHU, pelo facto de ser a pessoa que tem estado de

forma mais permanente ligada a esse material. Contou então diversos episódios exemplares, da

vida de indivíduos que por diversos motivos contactaram o AHU. Saliento que as entrevistas com

o pessoal técnico foram fundamentais para a compreensão da dimensão humana do Arquivo,

como se o passado do país fosse cenário reforçado para a troca de impressões sobre a História,

fazendo ponte entre os registos do tempo longo e os indivíduos que dele fazem parte.

Passei posteriormente à leitura dos dois dossiers do ex - IARN que contém uma série de

documentos, na sua maioria cartas de particulares que requerem “pedidos de prova documental”

para fins de obtenção da nacionalidade portuguesa; descontos para a caixa geral de

aposentações; pedidos de certidões ou guias de desembaraço; e até pedidos de ajuda económica.

As cartas perdidas

“Vinha por este meio pedir-lhe o grande favor para que enviassem uma declaração em como vim

de Angola para Portugal. Eu vim no ano de 75 entre Setembro e Outubro, viemos no navio

japonês - “O Oceânia Independente” que trouxe-nos de África do Sul para cá. Eu vim com a

família Vieira. Agradecia-lhes que me enviassem uma declaração em como o meu nome consta

na lista de passageiros a fim de entregar na embaixada angolana para poder acabar de tratar do

meu bilhete de identidade. Nascida em 25/08/58 em Caluquembe - Angola”

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“Exmo. Senhor Director do Arquivo da Rua da Junqueira

Eu, ex-retornado de Angola, venho por este meio pedir; que se for possível verificar o meu

processo de quando eu fui e vim de Angola, pois segundo consta nos meus documentos, eu

embarquei para Angola no ano de 1970 e regressei a Portugal no verão de 1974. Papéis que

justifiquem a minha estada em Angola; só o boletim de vacinas. Peço o favor que se dignem

passar a respectiva justificação, para efeitos de reforma, mais ainda peço que se houver alguma

coisa que não faça parte dos vossos serviços, que me informem, onde devo ir e com quem devo

contactar. Obrigado pela ajuda dispensada

Subs:

Cova da Piedade”

“Exmo. Sr. Director do Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais.

Retornada das ex-colónias, em 22-08-75, desempregada, 9º ano de escolaridade, deixei de

estudar por motivos económicos e de saúde. Recorri à assistência social da minha zona, onde me

foi atribuído um subsídio de 7.000$00, mês sim, mês não. Como vê a minha situação económica é

difícil. Só agora me dirigi a sua Exa. porque quando vim das ex-colónias contava apenas com 13

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anos e presentemente soube através de retornados existir o IARN, que pensava ter acabado.

Agradecia que o senhor doutor solicitasse para a minha pessoa uma ajuda que fosse benéfica, a

fim de poder, ter uma vida ampla em termos económicos.”

(Os autores estão identificados)

São vozes únicas, individualizadas, que permanecem vivas no Arquivo. Ao ler tais

missivas um desconcerto cresce involuntariamente. A última carta apresentada foi remetida sete

anos após a extinção do IARN em 1981. O Arquivo limitou-se a esclarecer os consistiu apenas

num esclarecimento que o AHU apenas se limitou a receber os arquivos pertencentes ao ex-IARN

por altura do seu encerramento, pelo que não é do âmbito das suas actividades qualquer auxílio

aos regressados das ex-colónias. Não posso deixar de associar “Bartleby”, novela de Herman

Melville sobre o desconcerto criado pelas vozes do arquivo. De salientar que no caso do AHU a

documentação é guardada, permitindo à posteriori a leitura e investigação das diversas situações

criadas num determinado momento histórico, ao passo que no texto literário é o acto de obliterar a

palavra dos homens que prevalece.

“Bartleby fora um funcionário subalterno do Serviço de Refugos Postais, em Washington,

subitamente afastado devido a uma mudança administrativa. Quando penso no tal rumor, mal

consigo exprimir as emoções que me avassalam. Cartas Perdidas. Não soa tal qual a Homens

Perdidos? Imagine-se um indivíduo por natureza e infortúnio propenso a um sombrio desalento,

haverá tarefa mais apta a aumentar-lhe aquele, que o manuseio constante dessas cartas

perdidas, preparando-as para as chamas? É que elas são queimadas, anualmente às carradas.

Por vezes, de entre as folhas dobradas, o pálido funcionário retira um anel - o dedo ao qual se

destinava talvez que apodreça já no túmulo; uma nota de banco enviada rapidamente, por

caridade - aquele a quem ela iria socorrer, já não come nem tem fome; perdão para os que

morreram desesperados, esperança para os que morreram sem a ter, a boa nova para quantos

morreram opressos por fatais calamidades. Recados de vida, estas cartas correm para a morte.

Ah, Bartleby! Ah, a Humanidade!” (Melville 1988,78)

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A apresentação destes “pedidos de prova” documentais é a valorização do fragmento, do

material de arquivo. Estas situações são expostas, pelo carácter problemático das cartas

arquivadas no AHU, não se procurando uma inversão do sentido original através do destaque,

mas antes a sua intensificação, de forma a reanimar e libertar aquilo que nelas está aprisionado.

Um leitor ultramarino

Tudo começa na paixão pelo catálogo, recolher, ordenar, classificar. Marcel Mauss,

etnógrafo francês do séc. XX constatava que a melhor maneira de criar um catálogo de ritos era

através da recolha de uma série de objectos rituais. Tudo se transforma se encararmos o Arquivo,

não como instrumento de diversos catálogos, séries, documentação avulsa, mas como o próprio

catálogo de arquivos múltiplos, que pode ser objecto de uma classificação distinta. A

documentação permite uma recriação distinta dos diversos lugares ultramarinos que o AHU

abrange. É nesta altura que intervém o gesto decisivo: a leitura do documento. Ao longo dos anos

centenas de milhares de documentos foram tratados: perseguidos, encontrados, observados,

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lidos, pormenorizados, armazenados, descritos, classificados, seleccionados, microfilmados.

Deste modo o documento é a instância material por excelência do próprio Arquivo.

Mestrando de história Edgar Teles começou a sua investigação no AHU procurando

documentação referente ao período de 1795 a 1800. Inicialmente o seu objecto de estudo era o

Corso praticado na linha marítima da ex-província ultramarina de Angola. Contudo ao longo da

sua pesquisa foi deparando com um conjunto tão significativo de documentos que decidiu ampliar

a sua investigação a todo o atlântico sul, incluído a documentação do Brasil e durante o período

histórico de todo o séc. XVIII.

“O trabalho de investigação pode ser equiparado a um longa travessia ultramarina. O investigador

deve lutar contra as amarras do senso comum do seu tempo. De forma solitária, acreditando no

seu trabalho, fazer uma viagem exploratória de conhecimento. Por outro lado o corpo técnico do

AHU pode ser encarado como um conjunto de bons marinheiros. Nenhuma viagem é

verdadeiramente feita sem ajuda e a investigação num arquivo implica a eficácia e a boa vontade

das pessoas. No meu caso particular tenho já uma experiência longa enquanto leitor do AHU,

fiquei surpreendido com a quantidade e qualidade de informação disponível útil para a minha

investigação.” (entrevista a Edgar Teles)

Os leitores, a comunidade académica em particular, são os principais actores desta

catalogação à posteriori, onde os documentos são prolongados, inseridos noutro contexto. Através

da investigação das universidades, dos centros de estudos, dos investigadores que frequentam o

Arquivo, os documentos chegam à sociedade. Este prolongamento estende assim o mundo

ultramarino de então à comunidade ultramarina de investigadores que frequenta o AHU. A

documentação do Arquivo presta-se assim à teorização do mundo.

“Quando se deu o 25 de Abril apareceram imediatamente uma série de investigadores ingleses,

alemães, americanos. Investigadores portugueses só começaram a surgir na segunda metade dos

anos 80. O conhecimento no exterior do Arquivo do AHU é bastante limitado. O contacto é mais

assente no passar da palavra dos investigadores entre si. Jovens investigadores da década de

oitenta que dão neste momento aulas é que incitam os seus alunos no presente a visitar o arquivo.

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Desligado das faculdades existe um desequilíbrio acentuado entre a dimensão e importância do

arquivo e o conhecimento exterior.” (entrevista a Jorge Nascimento)

AHU enquanto “lugar antropológico”

Vista do edifício com espelho de água localizado no jardim adjacente ao Palácio Ega. A linguagem técnica de arquivo em vez de ser encarada como obstáculo deve ser

entendida como um discurso que pretende esclarecer a verdadeira dimensão do AHU. Os “lugares

antropológicos”, na perspectiva de Marc Augé (2005), são definidos como identitários, relacionais

e históricos. Esses lugares reúnem um conjunto de possibilidades, de prescrições e de interditos

que se dinamizam no tempo espacial e social.

“Reservaremos o termo “lugar antropológico” a esta construção concreta e simbólica do espaço

que não poderia por si só dar conta das vicissitudes e das contradições da vida social, mas à qual

se referem todos aqueles aos quais ela é atribui uma colocação, por humilde ou modesta que

seja. É, de resto, efectivamente porque toda a antropologia é antropologia da antropologia dos

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outros que o lugar, o lugar antropológico, é simultaneamente princípio de sentido para os que o

habitam e princípio de inteligibilidade para aquele que o observa” (Augé 2005, 46)

O trabalho do antropólogo, pelo prisma da narração de factos e ideias que o mesmo

considera fundamentais na sua investigação no terreno, pode ser encarado como uma dádiva. Um

desejo de partilha da sua visão particular do mundo e da visão dos que estuda, que irá

sedimentar-se na história pessoal de tantos outros que ficam inexoravelmente com um sentimento

misto de gratidão e dívida por saldar. O encontro etnográfico efectiva-se por excelência no uso da

palavra, na ponderação do seu valor, na inestimável comunicação com o outro, uma forma de

respiração mútua que se vivifica por exemplo no virar de uma página de um livro.

Deve-se sempre impreterivelmente assegurar uma postura ética e deontológica firme em

relação àqueles com quem o antropólogo se cruza no trabalho de campo. O antropólogo deve

recusar o princípio segundo o qual os investigadores estão isentos e imunes, tendo em conta a

sua racionalidade objectiva, de formular todo e qualquer juízo de valor, de manifestar qualquer

preferência pessoal e por conseguinte, de não serem responsáveis politicamente e eticamente

pelo seu trabalho etnográfico perante as pessoas que estudam e perante os leitores.

Intentar na construção de um arquivo assumidamente pessoal, que aborde

privilegiadamente o tema da memória e do esquecimento. Assumindo o texto como literatura

experimental de leituras, associam-se uma série de elementos heteróclitos a partir de um conjunto

de experiências de leitura e de entrevistas feitas às pessoas que trabalham no arquivo e às que o

consultam. Permite vislumbrar o arquivo na sua natureza histórica e ideológica. Mas mais do que

o passado propriamente dito, ou o presente do Arquivo, o que interessa é uma conjugação de

diferentes tempos, visando a constituição de um “texto dialéctico”, aferindo o presente com

materiais do passado, com leituras que se destacaram com uma força própria.

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Ezequiel Alves, segurança, procedendo ao fecho do Arquivo Histórico Ultramarino.

Esta análise experimental, em que são rejeitados processos metodológicos clássicos da

antropologia, pretende antes surgir como um texto polissémico, um relato pessoal de um

antropólogo no AHU, exercitando uma reflexão pessoal, dedicada às pessoas que trabalham e

frequentam o arquivo. Uma etnografia que anseia por existir, e como a vida, tenderá a ser

contingente e terá como limite o horizonte dos homens que dela fazem parte.

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