Trotsky e o "Programa de Transição”

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TROTSKY E O “PROGRAMA DE TRANSIÇÃO” Leon Trotsky redigiu o “Programa de Transição” para a IV Internacional, fundada em 1938, no período das piores derrotas do proletariado internacional em toda sua história (vitória do nazi- fascismo na Itália e na Alemanha, ascensão do stalinismo na URSS, derrota do proletariado francês sob o governo da Frente Popular, perspectiva de derrota do proletariado espanhol na guerra civil da Espanha, etc.). Em 1934, Trotsky colocava em termos claros as conclusões que se derivavam da bancarrota da III Internacional, passada, através do stalinismo, ao campo da ordem burguesa mundial, fato demonstrado por sua capitulação, sem combate, frente ao nazismo: “O proletariado tem necessidade de uma Internacional em todos os tempos e sob todas as circunstâncias. Se não existe agora uma Internacional, é necessário dizê-lo abertamente e passar de imediato a prepará-la”. A proclamação formal da IV Internacional produziu-se nos piores “tempos e circunstâncias”: as das piores derrotas do proletariado mundial em toda a sua história, esmagado pelo nazi-fascismo no Ocidente, atomizado pelo stalinismo no país da primeira revolução vitoriosa; frente ao horizonte certeiro de uma nova carnificina mundial, tornada inevitável após as derrotas do proletariado espanhol e francês, já em curso com a invasão da China pelo Japão (e com o pacto Hitler-Stálin, prognosticado por Trotsky como a conseqüência inevitável dos Acordos de Munique, de 1938, entre o nazi- fascismo e as “democracias” ocidentais). A crise, primeiro, e a bancarrota, depois, da Internacional Comunista, expressão mais elevada da fusão do marxismo revolucionário com a vanguarda operária mundial, foi um produto do retrocesso da revolução provocado pela traição da social-democracia, pela burocratização do primeiro Estado Operário que foi uma conseqüência desse retrocesso, e pela derrota da corrente revolucionária encabeçada por Trotsky. A bancarrota da III Internacional iniciou-se com a traição da revolução chinesa de 1927-28, tomou forma com a claudicação criminosa do PC alemão em 1932-34 e se consolidou com a aliança entre a burocracia soviética e a aristocracia operária européia, e destas com a “sombra” da burguesia, mediante as Frentes Populares e a cristalização do reformismo e “etapismo” dos PCs, operadas na década de 30. Esta política foi responsável pela derrota do proletariado francês em 1936 e da revolução espanhola em 1931-1939. Dessas circunstâncias desfavoráveis, Trotsky tentou tirar a força da nova Internacional, forjando-a não apenas sobre a base da continuidade revolucionária das três Internacionais precedentes, mas também da assimilação a fundo das lições deixadas pelas derrotas. Isto não significa que se tratasse de uma Internacional de doutrinadores: nos seis anos que vão da vitória nazista à proclamação da IV Internacional, as forças agrupadas por Trotsky se empenharam em erguer partidos revolucionários, em especial na Espanha, França e Estados Unidos, teatros dos embates de classe mais importantes da década (a guerra civil espanhola, a Frente Popular francesa e o movimento de sindicalização industrial, CIO, norte-americano). Trotsky esforçava-se em convencer seus partidários de que isto só era possível no quadro de uma Internacional: “A partir do momento em que nos dirigimos a construir partidos independentes, desde 1933, já somos a IV Internacional, embora não sejamos uma direção revolucionária reconhecida. Somos a IV Internacional porque é o movimento com o qual estamos comprometidos e sobre o qual começamos a nos organizar”. Daí que, junto a aqueles esforços, Trotsky tentasse colocar em pé um quadro internacional junto com organizações centristas “de esquerda”, como o SAP, a OSP e o RSP da Holanda e Alemanha, o PSOP francês (a cujo dirigente, Marceau Pivert, Trotsky afirmou que “os bolchevique-leninistas são uma fração da Internacional que se constrói”, uma de cujas tarefas seria “regenerar em um nível histórico mais elevado a democracia revolucionária da vanguarda proletária”); através do “entrismo” em diversos partidos socialdemocratas , para acelerar a diferenciação revolucionária de suas alas de esquerda, etc. Estes esforços por construir a IV, não obstante, fracassarão. As limitações políticas destas organizações revelaram-se insolúveis

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TROTSKY E O “PROGRAMA DE TRANSIÇÃO” Leon Trotsky redigiu o “Programa de Transição” para a IV Internacional, fundada em 1938, no período das piores derrotas do proletariado internacional em toda sua história (vitória do nazi-fascismo na Itália e na Alemanha, ascensão do stalinismo na URSS, derrota do proletariado francês sob o governo da Frente Popular, perspectiva de derrota do proletariado espanhol na guerra civil da Espanha, etc.). Em 1934, Trotsky colocava em termos claros as conclusões que se derivavam da bancarrota da III Internacional, passada, através do stalinismo, ao campo da ordem burguesa mundial, fato demonstrado por sua capitulação, sem combate, frente ao nazismo: “O proletariado tem necessidade de uma Internacional em todos os tempos e sob todas as circunstâncias. Se não existe agora uma Internacional, é necessário dizê-lo abertamente e passar de imediato a prepará-la”. A proclamação formal da IV Internacional produziu-se nos piores “tempos e circunstâncias”: as das piores derrotas do proletariado mundial em toda a sua história, esmagado pelo nazi-fascismo no Ocidente, atomizado pelo stalinismo no país da primeira revolução vitoriosa; frente ao horizonte certeiro de uma nova carnificina mundial, tornada inevitável após as derrotas do proletariado espanhol e francês, já em curso com a invasão da China pelo Japão (e com o pacto Hitler-Stálin, prognosticado por Trotsky como a conseqüência inevitável dos Acordos de Munique, de 1938, entre o nazi-fascismo e as “democracias” ocidentais).

A crise, primeiro, e a bancarrota, depois, da Internacional Comunista, expressão mais elevada da fusão do marxismo revolucionário com a vanguarda operária mundial, foi um produto do retrocesso da revolução provocado pela traição da social-democracia, pela burocratização do primeiro Estado Operário que foi uma conseqüência desse retrocesso, e pela derrota da corrente revolucionária encabeçada por Trotsky. A bancarrota da III Internacional iniciou-se com a traição da revolução chinesa de 1927-28, tomou forma com a claudicação criminosa do PC alemão em 1932-34 e se consolidou com a aliança entre a burocracia soviética e a aristocracia operária européia, e destas com a “sombra” da burguesia, mediante as Frentes Populares e a cristalização do reformismo e “etapismo” dos PCs, operadas na década de 30. Esta política foi responsável pela derrota do proletariado francês em 1936 e da revolução espanhola em 1931-1939.

Dessas circunstâncias desfavoráveis, Trotsky tentou tirar a força da nova Internacional, forjando-a não apenas sobre a base da continuidade revolucionária das três Internacionais precedentes, mas também da assimilação a fundo das lições deixadas pelas derrotas. Isto não significa que se tratasse de uma Internacional de doutrinadores: nos seis anos que vão da vitória nazista à proclamação da IV Internacional, as forças agrupadas por Trotsky se empenharam em erguer partidos revolucionários, em especial na Espanha, França e Estados Unidos, teatros dos embates de classe mais importantes da década (a guerra civil espanhola, a Frente Popular francesa e o movimento de sindicalização industrial, CIO, norte-americano). Trotsky esforçava-se em convencer seus partidários de que isto só era possível no quadro de uma Internacional: “A partir do momento em que nos dirigimos a construir partidos independentes, desde 1933, já somos a IV Internacional, embora não sejamos uma direção revolucionária reconhecida. Somos a IV Internacional porque é o movimento com o qual estamos comprometidos e sobre o qual começamos a nos organizar”.

Daí que, junto a aqueles esforços, Trotsky tentasse colocar em pé um quadro internacional junto com organizações centristas “de esquerda”, como o SAP, a OSP e o RSP da Holanda e Alemanha, o PSOP francês (a cujo dirigente, Marceau Pivert, Trotsky afirmou que “os bolchevique-leninistas são uma fração da Internacional que se constrói”, uma de cujas tarefas seria “regenerar em um nível histórico mais elevado a democracia revolucionária da vanguarda proletária”); através do “entrismo” em diversos partidos socialdemocratas , para acelerar a diferenciação revolucionária de suas alas de esquerda, etc. Estes esforços por construir a IV, não obstante, fracassarão. As limitações políticas destas organizações revelaram-se insolúveis

no momento de passar para a estruturação de uma nova Internacional e de assimilar rigorosamente o programa revolucionário. Os próprios núcleos trotskistas revelaram-se imaturos, por sua juventude e por seu isolamento das massas. Quando se fundou a IV Internacional, em 1938, as circunstâncias políticas internacionais eram piores do que nas tentativas precedentes: não se conquistara nenhum aliado importante e o retrocesso do proletariado mundial se acentuou com as derrotas nos países latinos da Europa. Um mês depois da proclamação da IV, fracassou na França a greve geral, evidenciando a derrota operária. A Frente Popular encabeçou a reação política, expulsou o Partido Comunista do governo, e em 1940 entregou o poder ao fascista Pétain, marionete de Hitler.

Nunca na história uma direção operária internacional foi criada em circunstâncias mais desfavoráveis, embora os casos do passado tivessem sido semelhantes: a I Internacional, fundada sob as ditaduras de Luis Napoleão na França e de Bismarck na Alemanha: a II Internacional, na esteira das conseqüências da derrota da Comuna de Paris; ou ainda a III Internacional, com apenas um punhado de revolucionários, ao começo de uma guerra mundial e em meio a uma onda geral de chauvinismo. Trotsky nunca dissimulou estas circunstâncias, muito pelo contrário.

A fundação da IV nessa fase de reação, e de crise em suas próprias fileiras, deveu-se a que se tratava da preparação da vanguarda revolucionária para atravessar a guerra mundial armada de um programa claro, que assimilou teoricamente o significado das mais colossais derrotas; da preparação da classe operária para as revoluções que seriam engendradas pelo novo conflito mundial, e para o novo ciclo de guerras e revoluções que resultariam do fim do retrocesso do proletariado mundial e da decomposição dos Estados capitalistas. Não houve um momento mágico de fundação da IV Internacional, porque esta já estava sendo fundada há anos, e porque sua fundação não declarou concluída a tarefa. Na conferência de fundação houve delegados (dois dos 21 presentes) que propuseram sua postergação, esquecendo que a oportunidade já tinha cinco anos de demora. Diziam que a nova Internacional nascia separada do movimento operário real, o que colocava o perigo de sua degeneração, esquecendo que os perigos sempre existem. A IV Internacional terá o mérito histórico eterno de haver proclamado a vigência da revolução, em momentos nos quais os céticos declaravam aberto um retrocesso histórico definitivo.

O ceticismo que se fazia sentir nas próprias fileiras da IV Internacional que, como vimos, vacilou até proclamar-se. Em Bolchevismo y Stalinismo Trotsky analisou as causas desses problemas: “Épocas reacionárias como a atual não apenas debilitam e desintegram a classe operária isolando-a da vanguarda, como também rebaixam o nível ideológico geral do movimento, fazendo retroceder o pensamento político, até etapas superadas há muito tempo. Nestas condições a tarefa da vanguarda consiste antes de tudo em não se deixar sugestionar pelo refluxo geral: é necessário nadar contra a corrente. Frente aos mentecaptos, tal política aparece como ‘sectária’. Na realidade, não faz mais do que preparar um salto gigantesco para frente impulsionado pela onda ascendente do novo período histórico”.

Os esforços por construir partidos com uma real intervenção na luta de classes obedeciam a esse critério. Não devemos esquecer aquela que a IV Internacional proclamou como sua “seção mais importante”: a soviética. A investigação histórica provou que os trotskistas foram, entre 1928 e 1940, os únicos adversários conseqüentes do stalinismo com apoio popular, que foram esses adversários os que aterrorizaram - mesmo depois de seu extermínio - Stalin e os seus lacaios, que contra eles foi necessário empregar os métodos mais radicais para poder liquidá-los. Esta presença da IV Internacional na URSS não se limitou aos campos de concentração (onde, em 1938, os trotskistas organizaram uma luta de massas contra a repressão burocrática, antes de serem exterminados, como testemunharam Leopold Trepper, em O Grande Jogo, e Aleksandr Solzhenitsyn, n’O Primeiro Círculo), mas também às fábricas, aos kolkhozes e ao próprio exército. Para Trotsky, os bolchevique-leninistas “não conseguiram salvar o regime soviético da degeneração e das dificuldades da ditadura pessoal. Mas o

salvaram de sua completa dissolução, e impediram o caminho da restauração. As reformas progressistas da burocracia foram derivações da luta revolucionária da Oposição de Esquerda. Para nós isto é insuficiente. Mas já é alguma coisa”. Não por casualidade um dos principais empenhos da GPU (polícia política) stalinista foi o assassinato do responsável pelo trabalho soviético na direção da IV Internacional, Leon Sedov (filho de Leon Trotsky), consumado em 1938.

A IV Internacional era, portanto, um fator objetivo da política mundial, que justificou a coincidência entre Hitler e o embaixador francês Coulondre, em 1939 (relatada pelo diário francês Le Temps) de que o pior perigo de uma II Guerra Mundial consistia na possibilidade de que dela emergisse vitorioso “Monsieur Trotsky”. O assassinato de Trotsky pelo stalinismo, em 1940, não foi produto de uma vingança pessoal, nem de um “ajuste de contas” entre facções “comunistas”, mas um fato político de primeira relevância, em que a burocracia atuou por conta da burguesia mundial, que já lhe havia dado sua aprovação antecipada ao declarar legais os “Processos de Moscou”, nos quais Trotsky foi o principal acusado e condenado à morte.

A IV Internacional não foi fundada como uma seita doutrinal destinada a preservar a herança ideológica revolucionária em circunstâncias que tornavam impossível sua utilização. Quando Trotsky insistia em que a IV Internacional nadava contra a corrente, chegando a empregar, para os trotskistas, a expressão “exilados de sua própria classe”, estava sublinhando dificuldades e tarefas políticas objetivas, não uma impossibilidade histórico-metafísica de atuar. O esforço de Trotsky e seus companheiros não deve ser reivindicado apenas por ter preservado a continuidade do programa revolucionário, mas por haver colocado em pé uma organização revolucionária atuante na arena da luta de classes mundial e nos principais países. A assertiva de Trotsky, “o partido é seu programa”, somente é válida com seu reverso, “o programa é o partido”: sem partido revolucionário atuante, o programa revolucionário é uma abstração.

O programa da IV Internacional (o Programa de Transição) partiu da contradição entre as condições objetivas e subjetivas (a crise de direção do proletariado mundial) da revolução. O amadurecimento das primeiras se mede pelo grau de internacionalização das forças produtivas (ao longo de todo o século, o comércio mundial cresceu mais rápido do que a produção, e na Alemanha de hoje, por exemplo, as transações externas de capital superam em cinco vezes os negócios internacionais de mercadorias) e o reforço simultâneo das fronteiras nacionais, contradição que tornava obsoletos, simultaneamente, o Estado capitalista e a utopia stalinista do “socialismo em um só país”. A imaturidade das segundas, pela demora e derrotas da revolução mundial, frente ao imperialismo capitalista e à burocracia.

Em um texto de 1931, Trotsky resumiu cabalmente a questão: “Se o edifício teórico da economia política marxista se apóia inteiramente na concepção do valor como trabalho materializado, a política revolucionária do marxismo se apóia na concepção do partido como vanguarda do proletariado”. Por outro lado, a questão do partido (ou seja, de seu programa) somente podia ser colocada em termos internacionais: “A hora da desaparição dos programas nacionais soou definitivamente em 4 de agosto de 1914 (início da Primeira Guerra Mundial). O partido revolucionário do proletariado não pode se basear em mais que um programa internacional que corresponda ao caráter da época atual, a do máximo desenvolvimento e afundamento do capitalismo. Um programa comunista internacional não é uma soma de programas nacionais ou um amálgama de suas características comuns. Deve tomar diretamente como ponto de partida a análise das condições e tendências da economia mundial e do estado político do mundo como um todo, com suas relações e contradições, ou seja, com a dependência mútua que opõe seus componentes entre si. Na época atual, infinitamente mais do que durante a precedente, apenas se deve e se pode deduzir o sentido em que se dirige o proletariado do ponto de vista nacional, da direção seguida no domínio internacional e não o contrário. Nisto consiste a diferença fundamental que separa, no ponto de partida, o internacionalismo comunista das diversas variantes do socialismo nacional.

Unindo em um sistema de dependências e contradições países e continentes que alcançaram diferentes graus de evolução, aproximando os diversos níveis de seu desenvolvimento e distanciando-os imediatamente após, opondo implacavelmente todos os países entre si, a economia mundial se converteu numa realidade poderosa que domina a dos diversos países e continentes. Este único fato fundamental dá um caráter profundamente realista à idéia do partido comunista mundial”.

Trata-se, hoje, de verificar a vigência das condições objetivas e subjetivas da revolução na atual etapa histórica para, sobre essa base, colocar as tarefas políticas emergentes da luta pela Internacional revolucionária. Em nenhuma outra época da história, a sociedade humana apresentou contrastes tão violentos, contradições tão insuportáveis, como hoje. Não existe campo da ciência ou da técnica no qual os conhecimentos e o poder humanos não se dupliquem a cada dez anos ou menos. Com a astronomia, a biologia molecular, a medicina, a arqueologia, geologia, a eletrônica, a informática, a engenharia de alimentos, a genética, etc., o homem conquista os segredos da natureza para melhor governá-la. A humanidade devorou os frutos da árvore da ciência, convertendo-se em mais poderosa que quaisquer dos deuses que, aterrorizada por seus próprios poderes, ela imaginou no passado e continua a imaginar no presente. Os escravos mecânicos e eletrônicos que o gênio humano criou estão aí, prontos para libertá-lo para sempre da necessidade de ganhar o pão com o suor da fronte: a substituição do trabalho pela livre atividade criadora. As mil fontes da abundância pedem passagem para satisfazer totalmente as necessidades de seis bilhões de seres humanos que habitam a Terra, ou de dez vezes essa quantidade, se fosse necessário.

Entretanto, 4/5 da humanidade, nos países atrasados e, inclusive, nos crescentes bolsões de pobreza dos países avançados, não têm acesso, durante uma vida inteira, ao mínimo vital biológico de 2 mil calorias diárias, e está condenada a uma vida estreita e curta. Epidemias de fome ainda sacodem o “Terceiro Mundo”: no Brasil e na América Latina, doenças controladas há muito tempo pela medicina (cólera, mal de Chagas, leptospirose e até tuberculose) ameaçam provocar catástrofes sociais. Não obstante, nos países avançados, os governos não sabem o que fazer com a superprodução de alimentos que ameaça derrubar os preços e subsidiam a regressão das forças produtivas. Há mais de 50 anos, o criador da cibernética demonstrou que com os meios técnicos de então a linha de montagem poderia ser substituída em menos de 5 anos em toda a grande indústria do planeta, por um sistema automático. O capital financeiro freou desesperadamente esse progresso, que levaria à quebra de todo o capital não amortizado.

Se agora a concorrência no mercado mundial obriga a introduzir a automatização em uma escala crescente, isto não resulta numa redução da jornada de trabalho nem na melhoria das condições de vida dos trabalhadores. Ao contrário, sob o capitalismo, “aperfeiçoamento ininterrupto e cada vez mais rápido do maquinismo, torna a situação do operário cada vez mais precária” (Manifesto Comunista): o capital conhece apenas as necessidades lucrativas. Não existe para satisfazer as necessidades da imensa maioria, mas para engordar os lucros de uma ínfima minoria de grandes capitalistas. A automatização é, por isso, sinônimo de desqualificação, aumento da jornada de trabalho, fadiga insuportável e desemprego: leva a classe operária à decadência profissional e à incultura sem perspectivas.

Sob o domínio do capital financeiro, etapa senil e última do capitalismo, todos os progressos científicos e técnicos se transformam em seu contrário. Os novos recursos energéticos e a utilização intensiva dos antigos não trazem consigo uma melhora do bem-estar, mas produzem catástrofes ecológicas (de petróleo ou de energia atômica). A quase totalidade da pesquisa científica, especialmente nos países avançados, está vinculada à produção armamentista. Em 1985, os gastos militares chegaram a quase um bilhão de dólares, muito mais do que toda a renda da metade mais pobre da população mundial. Esse gasto não se reduz em períodos de recessão, e sua redução relativa depois do fim da “guerra fria” (que lhe servia de pretexto ideológico) foi escassa ridícula (as “guerras contra o terrorismo” são a busca de um novo

pretexto para aumentar esses gastos). Somente com a produção de forças destrutivas a burguesia consegue impedir que as forças produtivas façam romper a camisa de força da propriedade privada dos meios de produção e de troca, e dos Estados Nacionais, que obstaculizam absolutamente o desenvolvimento dessas forças.

Longe de tornar obsoleta a noção de imperialismo, tal como fora definida por Lênin, a época atual acentua ao máximo suas características, assim resumidas por Trotsky: “Ao aproximar economicamente os países e igualar o nível de seu desenvolvimento, o capitalismo opera com seus métodos, anárquicos, que minam continuamente seu próprio trabalho, opondo um país e um ramo da produção a outro, favorecendo o desenvolvimento de certas partes da economia mundial, freando ou paralisando o de outras. Somente a combinação destas duas tendências fundamentais, centrípeta e centrífuga, nivelamento e desigualdade, conseqüências ambas da natureza do capitalismo, explica-nos o vivo entrelaçamento do processo histórico. À causa da universalidade, da mobilidade, da dispersão do capital financeiro, que penetra em todas as partes, o imperialismo acentua ainda mais essas duas tendências. O imperialismo une com muito mais rapidez e profundidade em um só os diversos grupos nacionais e continentais; cria entre eles uma dependência vital das mais íntimas; aproxima seus métodos econômicos, suas formas sociais e seus níveis de evolução. Ao mesmo tempo, persegue esse seu fim por procedimentos tão antagônicos, dando tais saltos, efetuando tais blitzes nos países e regiões atrasados, que ele mesmo perturba a unificação e o nivelamento da economia mundial, com violências e convulsões que as épocas precedentes não conheceram”.

O caráter revolucionário do movimento operário não foi uma invenção do marxismo. Ao contrário: a doutrina marxista expressou teoricamente esse caráter, que o precedeu. Já nas décadas de 1830 e 1840, os operários protagonizavam lutas revolucionárias contra o capital, destacando-se a insurreição dos trabalhadores têxteis de Lyon, em 1844. Durante uma das primeiras greves modernas, a dos operários da cidade inglesa de Manchester, em 1832, os trabalhadores de Lyon (França) em seu jornal O Eco das Fábricas, faziam um chamado à solidariedade com seus irmãos de classe do “país inimigo”. A histórica bandeira do internacionalismo proletário (“Proletários do Mundo, Uni-vos”, lançada no Manifesto Comunista de 1848) foi a expressão de uma tendência já existente na classe operária internacional, quando ainda os Estados Nacionais se encontravam em formação e o capitalismo lutava para conquistar o mundo.

O movimento operário apenas poderia triunfar na arena internacional. Daí também se conclui que o socialismo só é realizável no plano internacional. A socialização dos meios de produção significa a abolição das fronteiras nacionais. A idéia de que o socialismo pudesse ser construído apenas em um país é completamente alheia ao marxismo. Nas revoluções de 1848, o proletariado procurou tomar a direção da revolução democrática, transformando-a em revolução proletária. Na medida em que isto não ocorreu, a própria revolução democrática abortou (foram restauradas monarquias e Estados autoritários). Porém, em 1871, a Comuna de Paris foi o teatro da primeira tomada do poder pela classe operária.

Este acontecimento demonstrou que: 1) A classe operária não se poderia limitar a se apropriar da máquina de Estado burocrático existente: deveria destruí-la; 2) O novo poder emergente (a ditadura do proletariado), governo de combate contra o domínio burguês, caracteriza-se pela tendência à dissolução da separação entre Estado e sociedade. Ou seja, pela eliminação radical de todas as formas de opressão social e política (desaparecimento do Estado). A história fez surgir a ditadura proletária como a única via possível de passagem em direção à sociedade socialista.

A vitória da Revolução de Outubro de 1917, primeiro ato da revolução proletária mundial, inaugurou a era histórica da revolução socialista. Ela explodiu em um país no qual se mesclavam características de uma nação imperialista e de um país atrasado, econômica e politicamente. As tarefas da revolução democrático-burguesa (incluída a reforma agrária), motor da revolução, não estavam cumpridas, mas o proletariado já estava altamente

concentrado. Porém, se a Rússia era o elo mais frágil da corrente imperialista, sua revolução não foi uma exceção. Ela foi uma resposta contundente à carnificina da I Guerra Mundial imperialista, evidência do anacronismo histórico das relações de produção capitalistas. Revoluções proletárias (derrotadas) aconteceram também na maioria dos países da Europa Oriental e Ocidental. A vitória russa foi possível pela existência de uma direção revolucionária à altura da tarefa (o bolchevismo), embora essa direção não teria conseguido nada sem o movimento consciente dos trabalhadores, materializado em sua auto-organização em Conselhos Operários (Soviets).

Lênin não estava expressando uma idéia pessoal, e sim a dinâmica objetiva de um movimento, ao afirmar: “Nossa revolução é o prólogo da revolução socialista mundial, um passa em direção dela. O proletariado russo não pode, por suas próprias forças, concluir vitoriosamente a revolução socialista. Mas pode dar à sua revolução uma extensão capaz de criar melhores condições para a revolução socialista e, até certo ponto, iniciá-la. Pode tornar a situação mais favorável para a entrada em cena, nas batalhas decisivas, de seu colaborador principal e mais seguro, o proletariado socialista europeu e norte-americano”. O abandono da perspectiva indicada por Lênin, substituída pela tese stalinista da “construção do socialismo em um único país”, foi o reflexo do retrocesso da revolução e da burocratização do Estado que dela emergiu. Dois fatores foram decisivos: 1) O fracasso da revolução internacional, devido à traição histórica da social-democracia e da inexperiência dos jovens núcleos revolucionários; 2) O esgotamento, desmoralização e até desintegração da classe operária russa, depois de anos de sacrifícios, guerra civil e intervenções estrangeiras.

Em 1917, a classe operária russa contava com 3 milhões de membros: em 1922, com um milhão e 240 mil. Pretender analisar a burocratização da URSS a partir de frases de textos vinte anos anteriores à revolução, passando por cima desse doloroso processo histórico, é dar prova de absoluta idiotice. A burocracia surge onde a luta pela existência individual ocupa um lugar dominante nas energias da sociedade. Sua função é aliviar os conflitos que essa luta origina, tirando privilégios dessa função. A burocracia possui como base de sua autoridade a ausência de artigos de consumo, e a luta de todos contra todos, resultado dessa ausência. É contrário à verdade e a mais leve sombra de inteligência afirmar que a alienação dos trabalhadores e a burocracia são produtos da opção ideológica pela indústria pesada, em lugar da indústria leve e de consumo: a burocratização da URSS e do partido comunista já estavam mais do que consumadas antes que se desse o menor passo em direção da indústria pesada.

Todo Estado Operário tem uma dupla natureza: socialista na medida em que defende a propriedade coletiva dos meios de produção; burguesa na medida em que a distribuição se opera de acordo com normas capitalistas (“a cada qual segundo seu trabalho”). A fisionomia definitiva do Estado define-se pela relação oscilante entre essas duas tendências, socialista e burguesa. O stalinismo expressou a vitória da segunda sobre a primeira, baseada na expropriação política dos trabalhadores em favor de uma burocracia privilegiada, anti-operária e anti-socialista. Dizer que a contra-revolução stalinista estava inscrita no Quê Fazer, os Processos de Moscou na proibição das frações no interior do partido, etc., é ignorar a intervenção estrangeira contra a jovem república soviética, a aliança da social-democracia alemã com o Estado Maior, o próprio sistema capitalista responsável pela Guerra Mundial, pelo atraso da sociedade russa e pela barbárie vitoriosa. É negar a intervenção na História da vontade consciente sob a forma elementar da organização, preconizar a renúncia e a resignação, condenar a luta e até as vitórias parciais. A revolução foi derrotada, mas não destruída. O nazismo e o fascismo fizeram o proletariado internacional pagar caro pela ousadia de ter feito a Revolução de Outubro, mas a propriedade privada não foi restaurada na URSS, o que provou a profundidade da onda revolucionária, inclusive na hora da derrota. O regime anti-operário stalinista e a gestão burocrática da economia foram o alto preço pago pelo proletariado soviético à burocratização, porém a manutenção de boa parte das conquistas

econômicas e sociais da revolução (nacionalização da indústria e da terra, monopólio estatal do comércio exterior, planificação central da economia) teve conseqüências imensas.

Assim, Trotsky pode escrever, em 1936, n’A Revolução Traída: “Os imensos resultados obtidos pela indústria, o início pleno de promessas de um salto na agricultura, o extraordinário crescimento das velhas cidades industriais, a criação de novas, o rápido aumento do número de operários, a elevação do nível cultural e das necessidades, são resultados incontestáveis da Revolução de Outubro, na qual os profetas do Velho Mundo pretenderam ver a tumba da civilização. Já não há necessidade de discutir com os senhores economistas burgueses: o socialismo demonstrou seu direito à vitória, não apenas nas páginas de O Capital, mas numa arena econômica que cobre a sexta parte da superfície do globo, não na linguagem da dialética, mas na do ferro, cimento e eletricidade.

“Embora a URSS sucumbisse sob os golpes externos - o que esperamos não suceda - e pelos erros de seus dirigentes, continuaria, como prova para o futuro, o fato indestrutível da que apenas a revolução proletária permitiu a um país atrasado obter em menos de 20 anos resultados sem precedentes na história. Assim se encerra o debate com os reformistas no movimento operário. Podemos comparar sua agitação de ratos à obra titânica de um povo chamado pela revolução à uma nova vida? Se, em 1918, a social-democracia alemã tivesse aproveitado o poder que os operários lhe conferiam para consumar a revolução socialista e não para salvar o capitalismo, não seria difícil conceber, apoiando-nos no exemplo russo, o invencível poder econômico que teria hoje o bloco socialista da Europa central e oriental, e de uma parte considerável da Ásia. Os povos do mudo terão que pagar ainda com novas guerras e revoluções os crimes históricos do reformismo”.

A vigência da revolução nas relações de produção e na consciência das massas foi provada na II Guerra Mundial, quando a URSS esteve a ponto de ser aniquilada pelo nazismo, com o qual Stalin mantinha uma aliança privilegiada até 1941, quando a Alemanha invadiu a URSS. Depois da espetacular derrota inicial, que dizimou o exército soviético, a recomposição da força militar da URSS foi uma façanha econômico-social. Fábricas inteiras foram transferidas para o Leste e foram mobilizados todos os recursos naturais. A ajuda aliada à URSS não cobriu 10% da produção soviética. Tudo isso teria sido impossível se existisse propriedade privada dos meios de produção (nos países capitalistas ocupados pelo nazismo, a burguesia foi quase totalmente colaboracionista). Foi uma vitória histórica da planificação estatal, uma vitória moral dos princípios do socialismo. Vitória mundial, na medida em que a derrota de Hitler na URSS livrou a humanidade da ameaça militar nazista, a maior máquina de guerra da história humana até então.

A vitória da URSS foi relativizada pela sobrevivência do domínio burocrático, que a comprometeu: 1) No plano interno, pela super-exploração dos trabalhadores (racionamento, bloqueio salarial com um aumento do volume monetário de 250%), pelo aumento dos poderes burocráticos e o restabelecimento dos graus no Exército Vermelho, que fortaleceu o corpo de oficiais; 2) No plano mundial, pelos acordos contra-revolucionários com o imperialismo mundial, celebrados em Teerã, Yalta e Postdam. Mas essa vitória e a expropriação do capital na Europa do Leste depois da II Guerra geraram um enorme desenvolvimento das forças produtivas. Certamente deve-se desfazer a identificação entre estatização e socialismo, usada pelo imperialismo para desacreditar a revolução. Foi justamente o stalinismo quem introduziu essa identificação, para justificar o bloqueio da revolução em um só país ou região, e também seus privilégios, baseados na propriedade estatal. De acordo com Trotsky, em sua já citada obra: “A propriedade privada, para tornar-se social, tem que passar inelutavelmente pela estatização. A propriedade estatal converte-se na de todo o povo à medida em que desaparecem os privilégios e distinções sociais e, conseqüentemente, o Estado perde sua razão de ser. Em outras palavras: a propriedade estatal transforma-se em social na medida em que deixa de ser propriedade do Estado. Reciprocamente, quanto mais o Estado soviético se

eleva acima do povo, mais duramente se opõe, como guardião da propriedade, ao povo, e tanto mais claramente atesta contra o caráter social da propriedade estatal”.

Com o final da II Guerra e a ocupação militar do Leste europeu, o poder da burocracia stalinista chegou ao seu zênite. Ela utilizou a luta de classes mundial para cumprir seus compromissos contra-revolucionários com o imperialismo, e ao mesmo tempo pressioná-lo. Mas a própria crise imperialista minou as bases dessa política: a partir de 1947 (Plano Marshall, 30 bilhões de dólares para salvar o capitalismo europeu), a política stalinista começou a entrar em bancarrota. A pressão já não surtia efeitos: somente o enfrentamento revolucionário faria retroceder o imperialismo, mas a burocracia é visceralmente hostil à revolução, que colocaria imediatamente em questão seus privilégios e seu domínio. A crise do stalinismo evidenciou-se com a ruptura Stalin-Tito (1948) e a tomada do poder pelo PC chinês (1949) contra a política de “unidade nacional” preconizada por Stalin, o que também é válido para a Iugoslávia.

O processo da revolução anti-burocrática no campo diretamente dominado pelo stalinismo manifestou-se inicialmente com a rebelião dos operários de Berlim oriental, em 1953, contida com o auxílio das potências ocidentais. A colaboração crescente com o imperialismo não foi episódica e complementou a centralização burocrática do “campo socialista”. A criação do COMECON em 1948 consagrou uma política de saque, pela burocracia russa, dos países da Europa oriental, baseada na ocupação militar, que criaria uma força centrífuga, ao tornar as burocracias impostas pelo Kremlin, na Europa oriental, cada vez mais atraídas pelo mercado capitalista mundial.

O conjunto dessas contradições se deixou sentir na própria URSS, onde o índice de crescimento econômico passou de 8,3% em 1959 para 4,5% em 1963. Pior ainda, “o problema da relação entre os elementos da produção e as diversas partes da economia é a própria essência da economia socialista. O perigo está menos no crescimento mais lento e mais na ausência de correspondência entre as diversas partes da economia” (Trotsky). Em 1959, o setor de bens de produção projetou um crescimento de 8,1% e realizou 12%; em 1963, o setor de bens de consumo projetou 6,3% e realizou apenas 5%. A estagnação crescente da economia e as desproporções cada vez maiores entre seus diversos setores puseram em evidência a crise da gestão burocrática da economia, comprometendo o que restava do planejamento central.

A burocracia procurou uma saída para a crise através do entrelaçamento com o capital estrangeiro. Na URSS, em 1959, os equipamentos importados eram responsáveis por 16% do investimento global; em 1975, por 27%. Entre esses equipamentos, em 1959, 2% vinham do Ocidente; em 1975, 40%! Isto, porém, longe de resolver os problemas da economia soviética, lançou-a pelo caminho da dependência crescente e do endividamento frente às economias capitalistas. Em 1973, a URSS possuía 6,1% dos mercados ocidentais de produtos agrícolas e 5,2% dos manufaturados. Em 1983, essas proporções caíram para 4,5% e 3,2%, respectivamente. A crise capitalista fechava os mercados, aumentava as dívidas (pelas taxas de juros crescentes) e lançava as economias burocráticas ao caos, que teve uma manifestação espetacular na crise polonesa de 1980, que provocou o surgimento do sindicato Solidariedade.

Esse processo econômico foi a base da aproximação política crescente da burocracia ao imperialismo, o que confirmou que aquela era uma camada burguesa no interior do Estado Operário. Em 1975, nos Acordos de Helsinque, a burocracia se comprometeu, com os representantes do imperialismo, em manter o status quo na Europa (o respeito às fronteiras herdadas da II Guerra) e permitir a “livre circulação de mercadorias e capitais”. Globalmente, a implementação de “acordos regionais” materializou a entrega da revolução no Oriente Médio e na América Latina, determinando o isolamento da Revolução Cubana.

Porém, o questionamento da burocracia “vindo de baixo” (a revolução política) também cresceu, com uma resistência constante nas fábricas e grandes levantamentos populares: 1956, Hungria e Polônia; 1968, Tchecoslovaquia; 1970, Polônia; 1980-81, Polônia... Apesar da censura, a URSS não pode permanecer alheia ao processo: a rebelião operária em

Novotcherkass, em 1962, afogada em sangue, só foi conhecida em 1973. Na URSS, um proletariado renovado e altamente qualificado apenas esperava a ocasião para entrar em cena: em 1970, metade dos operários soviéticos tinham menos de 30 anos; em 1982, 85% das pessoas recebiam educação secundária, tendo aumentado 12 vezes em 10 anos o número de estudantes em escolas de nível médio, técnico e profissional (crescimento totalmente contraditório com o estancamento econômico).

Sobre a base da propriedade estatal, a gestão burocrática não impediu um gigantesco desenvolvimento das forças produtivas na URSS e na Europa oriental. Porém, quanto mais estas forças se desenvolvem, menos apta se encontra a burocracia para dirigi-las. Crise da gestão econômica e política da burocracia, pressão crescente do capitalismo mundial em crise, resistência (às vezes revolucionária) dos trabalhadores: eis aí os elementos que originaram a perestroika e provocaram o colapso das burocracias da URSS e da Europa do Leste.

Em 1989, a revolução política anti-burocrática deu um salto qualitativo. Gigantescas mobilizações de massas derrubaram os governos burocráticos na Europa oriental e estremeceram o centro da burocracia stalinista na URSS. O ressurgimento de elementos democratizantes anti-comunistas (inclusive dentro da própria burocracia) foi amplamente noticiado pela imprensa do grande capital que, não obstante, fez silêncio acerca das poderosas tendências do proletariado para a sua reorganização independente, expressa nas greves gerais, na organização de sindicatos e centrais independentes e anti-burocráticas na Hungria, Alemanha Oriental, Tchecoslováquia e na própria URSS (por exemplo, com os Comandos de Greve de Kuzbass).

Depois de 70 anos de pretensa “construção do socialismo”, de regime burocrático, de esmagamento do movimento operário, de repressão e liquidação física de sua vanguarda, de coexistência pacífica com o capitalismo e de colaboração classista em escala mundial, a economia soviética encontrou-se em profundo estancamento. A produtividade do trabalho era várias vezes inferior à dos países capitalistas; setores inteiros da economia estão completamente obsoletos, a quantidade e qualidade dos artigos produzidos não conseguem satisfazer a demanda social e as filas intermináveis se multiplicam. A URSS, apesar de reunir todas as condições naturais, não é capaz de satisfazer suas necessidades de alimentação. Quando a quantidade de trabalho e de produtos devia ceder seu lugar à qualidade, quando a produtividade do trabalho devia crescer, quando novos avanços só teriam sido possíveis através de novos métodos de trabalho e inovações, a burocracia demonstrou ser uma trava absoluta para o desenvolvimento da URSS.

O estancamento da URSS e dos demais Estados Operários permitiu que o imperialismo desenvolvesse uma política de penetração, procurando desagregar a planificação, o monopólio do comércio exterior e a propriedade estatal. A dívida externa foi um instrumento de pressão em favor de políticas ditadas pelo FMI, às quais a burocracia se foi adaptando. Se o domínio burocrático havia impedido uma melhora do nível de vida das massas, um mínimo de subsistência material havia sido preservado, que se deveria ampliar com a liquidação dos privilégios burocráticos, o funcionamento soviético da sociedade e o controle operário. Com Gorbachev, a burocracia elegeu uma política de desintegração da classe operária, de reintrodução do desemprego e baixos salários e de concorrência entre os trabalhadores, em suma, de restauração capitalista através de re-transformação da força de trabalho em mercadoria. Ainda assim, a desagregação burocrática continuou, sob o fogo cruzado da pressão imperialista, da resistência operária e das nacionalidades oprimidas, até provocar o colapso do aparato burocrático em agosto de 1991, quando se deu o falido golpe da sua coluna vertebral, a polícia política (a GPU).

Diante da falta de uma alternativa independente, Yeltsin continuou com a política pró-capitalista, de maneira aberta e declarada, com o apoio do conjunto da burocracia, mediante a provocação constante do caos econômico, a expropriação de todas as conquistas sociais e o ataque selvagem às nacionalidades. A URSS deixou de ser um Estado Operário, e foi dissolvida.

O remanescente da propriedade estatal apenas serviu à acumulação individual dos burocratas restauracionistas. A restauração capitalista não significa que seja necessário que se consume antes a privatização de todas e cada uma das grandes empresas estatais. Bastaria que a economia - ainda comportando uma alta porcentagem de estatização - se integrasse à circulação do capital mundial através do comércio exterior, da dívida pública e a progressiva formação de um mercado. Para isto apontam as medidas que aboliram o monopólio do comércio exterior e das finanças, a planificação estatal, a liberação de preços e a formação de empresas mistas com o capital estrangeiro. A restauração capitalista comporta fatalmente uma pilhagem e uma destruição sem precedentes das forças produtivas estatizadas. A transição do ‘socialismo’ ao capitalismo significa uma enorme regressão social e seu desenvolvimento foi impossível sem uma vitória da contra-revolução no plano político. Com variantes específicas, este quadro se aplica também à China e Cuba. Sustentar a existência de um Estado Operário na China devido à permanência do PC no poder é ignorar que, justamente, a relativa estabilidade da burocracia chinesa permitiu que o processo de restauração capitalista fosse mais longe nesse país que em qualquer outro do ex-”bloco”. Essa estabilidade, por sua vez, explica-se pelo relativo êxito burocrático em esmagar o proletariado, a partir dos massacres de 1989.

O impasse vivido pela revolução cubana vincula-se apenas em parte ao fim da URSS. A vitória revolucionária a poucas milhas do gigante imperialista foi um golpe para a política de “coexistência pacífica” do stalinismo e abriu o ciclo da revolução socialista para a América Latina. Logo depois de que a política de extensão da revolução via foquismo fracassara, o castrismo se adaptou ao stalinismo (apoiou a invasão russa à Tchecoslováquia em 1968 e as ameaças de invasão da Polônia em 1981) passando a uma política democratizante de procura de um acordo com as burguesias do continente: apoio aos governos de Velazco Alvarado, Perón e Allende, que concluíram em derrotas políticas, na década de 70.

Fidel Castro coroou essa evolução formulando sua própria versão da coexistência pacífica: a Nova Ordem Internacional, diferente da revolução socialista, afirmando que a América Latina não se encontrava madura para ela e que as próprias revoluções sociais nada resolvem. Esta política teve influência decisiva no retrocesso da revolução sandinista que, ao não percorrer o caminho do castrismo em 1959-61 (expropriação da burguesia) concluiu devolvendo o poder a “la contra”, sob pretexto de “democracia”.

Ao lado dessa política externa, o reforço do burocratismo interno configura para a revolução cubana, que garantiu aos explorados conquistas sociais inéditas na América Latina, um caminho de derrota, sob a pressão do imperialismo, o que se expressa no esvaziamento progressivo daquelas conquistas. A reivindicação de “pluralismo” em Cuba, feita pela esquerda democratizante latino-americana, situa-se dentro da proposta castrista (“abertura”) e capitula frente à pressão imperialista, pois não questiona a inexistência em Cuba de um poder emanado das organizações dos trabalhadores, reivindicando sua organização democrática e o direito de expressão naquelas para todas as tendências revolucionárias. Isto coloca o problema da revolução política em Cuba e a necessidade de uma política revolucionária independente para a revolução latino-americana: só o poder operário e camponês, sob a estratégia da unidade socialista da América Latina garantirá a eficácia da luta contra a re-colonização de Cuba e pela continuidade do ciclo revolucionário.

Toda a literatura sobre a “democratização” dos países imperialistas vem abaixo ao se estudar sua realidade econômica, política e social. A burguesia viu-se obrigada a uma série de concessões ao movimento operário nos anos imediatamente posteriores a 1945, como preço para sua estabilidade política. O mais notável é que as décadas ulteriores de prosperidade foram acompanhadas por uma necessidade estrutural do Estado burguês de liquidar essas concessões. A única barreira contra isso é a resistência do proletariado. Mais do que nunca, o desenvolvimento “espontâneo” do capitalismo significa retrocesso social e isto quando as

condições materiais da produção permitiriam a passagem para um estágio qualitativamente diferente de satisfação das necessidades humanas.

O sistema político está abertamente dominado pela burocratização e pelo militarismo. O Estado é efetivamente o comitê executivo da classe burguesa, com os burocrátas operários atuando como meros comparsas. Aqui observamos que o desenvolvimento capitalista se identifica com relações sociais e políticas necessariamente opressivas, que apenas podem ser acentuadas; somente a luta de massas pode arrancar algumas conquistas, permanentemente postas em questão pela reprodução capitalista. O capitalismo não conhece nenhuma forma de “humanização” e os críticos do marxismo confundem o crescimento da produção e a melhora temporária das condições de vida de alguns setores da classe operária dos países imperialistas com uma inversão das leis do movimento de acumulação de capital.

Como na época de Marx, a única força de resistência aos efeitos imediatamente destrutivos dessas leis é a força social e política da classe operária. A diferença é clara: em um período ascendente do capitalismo esses efeitos (por exemplo, as penosas jornadas de trabalho) eram um custo do caráter progressivo da acumulação capitalista e o proletariado podia limitá-los por todo um período histórico. Atualmente, em condições tecnológicas abstrata e qualitativamente muito mais favoráveis, os resultados de um combate puramente sindical, ou seja, pelo valor da força de trabalho, são mais estreitos e a brutalidade das condições de trabalho resulta exclusivamente do caráter reacionário do desenvolvimento capitalista.

O desenvolvimento capitalista metropolitano também se caracteriza por um crescente retrocesso social. Os elevados níveis de desemprego constituem um dado permanente do ciclo, que não é absorvido nos períodos de auge, e que se agrava nas recessões. Mais ainda, uma parte cada vez maior da população é marginalizada no circuito da “prosperidade” e o exemplo evidente são as dezenas de milhões de pobres nos EUA. Estas frações das massas exploradas não ingressarão jamais em relações salariais “normais”; no melhor dos casos terão trabalhos precários, sem qualificação nem estabilidade. Isto passa a ser característico das relações de trabalho. O capital já não transforma em operários assalariados sequer as massas das metrópoles imperialistas. A degradação urbana traduz esse retrocesso e lhe dá sua significação como manifestação de um sistema que apenas pode pôr em evidência suas tendências reacionárias.

O papel dominante do capital financeiro é próprio da fase imperialista do capitalismo. O que caracteriza essas décadas é a extrema exacerbação do parasitismo. A produção material da mais-valia aparece subordinada às necessidades das frações mais especulativas do capital, que regulam a equalização das taxas de lucro em seu benefício. Assim se produz uma super-expansão do crédito e do endividamento, com a explosão dos benefícios fictícios implicados. É possível afirmar que a expansão atual do capital especulativo se produz sobre a base do próprio capital especulativo; as montanhas de dívidas permitem a estruturação de novos instrumentos de apropriação dos lucros. O déficit estatal alimenta permanentemente esta engrenagem. A crise atual do capitalismo, em escala mundial, se projeta como a pior em toda sua história, devido à acumulação de déficits e falências inéditas, tanto no setor privado (hipotecas) como no setor estatal, que agora se manifesta em toda sua força com a perspectiva de falência imediata de vários estados europeus, sem falar no endividamento sem precedentes dos EUA.

Com a passagem cada vez mais abrupta da prosperidade à crise no cenário mundial, testemunhamos um processo que abarca o conjunto dos países e forças sociais que contribuíram para edificar as relações posteriores à II Guerra Mundial. As formas de irrupção da crise já se manifestam em reações operárias e populares em diversos países, como na Grécia. A queda da burocracia stalinista foi uma manifestação do avanço desse movimento, assim como a falta de estabilidade nos regimes burgueses dos países atrasados. A burguesia continuará dispondo de tempo e iniciativa enquanto não haja um princípio de solução em

escala internacional da crise de direção do proletariado, condenando a humanidade ao retrocesso histórico.

As guerras no Iraque e no Afeganistão não são um episódio isolado, mas a manifestação de todas as tendências agressivas, destrutivas e parasitárias próprias do imperialismo. Mais de um bilhão de dólares diários são gastos para reduzir uma nação oprimida a escombros. Porém, não se trata de uma manifestação de ofensiva política do imperialismo. Ao contrário, o controle político e militar do Golfo Pérsico (e de todo o Oriente Médio) é uma necessidade vital para os EUA, devido à crise que atravessam: entre outras coisas, é uma arma vital na luta contra os imperialismos europeu e japonês. Esse controle foi posto em cheque pelos sucessivos levantamentos de massas na região (guerra civil no Líbano, queda do xá do Irã, Intifada palestina).

A crise mundial configura uma categoria histórica referente ao momento em que a decomposição do conjunto do capitalismo adquire a forma de crises políticas e crises revolucionárias, integrando os ex Estados Operários burocratizados, já vinculados à circulação econômica mundial capitalista. O desenvolvimento da crise mundial é o desenvolvimento da crise conjunta do imperialismo e da burocracia. Trotsky assinalou que “o prognóstico político (referente aos Estados Operários) tem um caráter alternativo: ou a burocracia, sendo cada vez mais o agente da burguesia no Estado Operário, derruba as novas formas de propriedade e relança o país ao capitalismo ou a classe operária esmaga a burocracia e abre uma via ao socialismo”(A Revolução Traída).

Para os apologistas do capitalismo, incluída a pseudo-esquerda, haveria nada menos que uma vitória do capitalismo sobre o socialismo. Esta hipótese foi prevista pelos marxistas como conseqüência da superioridade do regime capitalista mundial sobre as nações isoladas onde a revolução triunfou. Superioridade não porque sejam capitalistas - o que significaria a superioridade da anarquia da produção sobre a planificação - mas porque o capitalismo, sistema mundial, representa ainda o conjunto histórico mais avançado da sociedade, enquanto que a revolução triunfou nos países mais atrasados do ponto de vista econômico e cultural. O marxismo foi quem primeiro previu que não apenas era provável como também, em última instância, inevitável que se a revolução não triunfasse na maior parte dos países capitalistas, a pressão capitalista reverteria as vitórias e conquistas revolucionárias, restaurando o capitalismo.

Uma opinião difundida pretende que se tratou de uma vitória capitalista em conseqüência de que o capitalismo, à diferença da economia planificada, foi capaz de revolucionar as forças produtivas, elevando a produtividade do trabalho constantemente, revolução “técnico-científica” que possibilitou a vitória na concorrência contra o “socialismo”. A verdade, ao contrário, é que em seu processo de desintegração, o capitalismo colocou em estado de obsolescência a imensa maioria da economia capitalista; o processo de valorização mundial do capital não pode continuar sem destruir todo o capital excedente que criou e que não encontra lugar no mercado. Durante um longo período, o capitalismo tratou de dissimular essa superprodução através da produção armamentista, sem perceber que se em algum ramo se cria, mais do que em nenhum outro, excesso de capitais, é na produção armamentista, onde o componente de capital fixo, tecnologia e matérias primas, é muito mais intenso em relação à força de trabalho que em qualquer outra indústria. O sucateamento industrial não apenas caracteriza as nações atrasadas e os ex países ‘socialistas’, mas também regiões e ramos inteiros dos países desenvolvidos. A desvalorização de capitais bancários e financeiros ou de indústrias como a siderúrgica, automotora ou setores inteiros da eletrônica e química, supera em envergadura a todo o ‘capital’ dos Estados Operários e este abismo é agora muito maior como conseqüência do gigantesco leilão da propriedade estatal realizado nos últimos anos pela burocracia.

Na base da crise mundial encontra-se a crise econômica do capital, uma crise de superprodução que materializada a tendência capitalista à anarquia da produção, à

desvalorização dos capitais e mercadorias e, em última instância, à auto-abolição do capital. O assim chamado “neoliberalismo” não passou de uma miragem ideológica, pois se baseou numa intervenção inédita do Estado, tanto na área econômica (nos mercados financeiros, paridades monetárias, fluxos nacionais e internacionais de capital: o processo capitalista garante-se com meios extra-econômicos, exigindo uma intervenção política externa cotidiana) como na função político-repressiva. A vigência histórica da revolução proletária refere-se à vigência de suas premissas objetivas e subjetivas (crise da sociedade e existência de uma classe revolucionária dentro da mesma). Continua vigente a conclusão tirada por Trotsky: a revolução socialista continua vigente na consciência das massas e na crise capitalista mundial. A vigência das premissas revolucionárias só pode ser medida no âmbito mundial, começando por não identificar uma suposta “decadência da classe operária”, com a decadência da esquerda que falava em seu nome. As mesmas condições de especulação financeira e de endividamento que constituem a principal manifestação da crise capitalista mundial, estiveram na base do colapso do “socialismo real”.

Depois da morte de Trotsky, o programa trotskista recebeu, em suas linhas estratégicas, sua total confirmação: 1) Nos países atrasados, a revolução só foi vitoriosa naqueles em que se operou a passagem da revolução democrática para a socialista, ou seja, para a expropriação do capital (China, Cuba); 2) Contra teóricos de todos os credos e cores, a revolução operária provou também sua vigência objetiva nas metrópoles imperialistas (desde o imediato pós-guerra até a revolução portuguesa, passando pelo Maio francês), isto é, sua vigência mundial; 3) As Frentes Populares provaram ser uma política de derrota, de aborto da revolução e até da vitória fascista: em toda a Europa ocidental do pós-guerra, Portugal 1974-1975, Chile 1970-1973, Nicarágua na década de 80, Indonésia na década de 60, etc.; 4) Na ausência de uma direção revolucionária internacional, dirigente ou inserida nos principais setores do proletariado e dos explorados do mundo todo, os processos revolucionários abortaram ou, quando vitoriosos no plano nacional, não deram início à revolução mundial ou à sua extensão continental, o que os conduziu a um impasse ou degeneração; 5) A burocratização dos Estados Operários conduziu essas sociedades a um completo impasse. A busca de reformas que lhe dessem saída sem tocar nas bases do domínio burocrático abriu passagem para situações que deixam cara a cara as alternativas da revolução e da contra-revolução. Que a vitória póstuma de Trotsky seja, por hora, apenas teórica, não política, não justifica as correntes de esquerda que falam do fracasso do trotskismo, quando elas não podem sequer se vangloriar de vitórias teóricas (ao contrário, só podem contabilizar fracassos espetaculares nesse plano).

A atualidade de Trotsky consiste na constatação de que as linhas básicas do desenvolvimento contemporâneo confirmam as matrizes do programa trotskista. A partir desse reconhecimento se podem determinar as linhas estratégicas de uma corrente revolucionária internacional, que são as do programa da IV Internacional. Nos últimos 60 anos, as premissas históricas do internacionalismo proletário desenvolveram-se como nunca: a incapacidade do capitalismo para superar o antagonismo entre o desenvolvimento internacional das forças produtivas e os Estados Nacionais, a incapacidade da burocracia para construir o “socialismo num país só”, a incapacidade do nacionalismo burguês e pequeno-burguês em levar à prática a autonomia nacional. Somente a revolução proletária pode dar uma saída progressista à crise mundial, em condições em que de todas as tendências políticas que nasceram como conseqüência da crise de direção da classe operária, apenas a IV Internacional manteve sua vigência como programa político, que se transformou no fio ideológico da recomposição do movimento operário internacional.

A vigência da IV Internacional está colocada pela vigência de seu programa. A questão do partido revolucionário coloca-se frente à emergência de situações revolucionárias, que têm um caráter objetivo, isto é, independente da vontade de partidos e classes em pugna. A situação revolucionária é, em última instância, o produto da contradição irreconciliável entre as forças produtivas que se desenvolvem sobre uma base capitalista, e as relações de

produção, contradição chegada a um ponto de amadurecimento. A situação revolucionária é o resultado da incapacidade do capitalismo em se contrapor historicamente à tendência à queda da taxa de lucros.

As correntes políticas nacionalistas, social-democratas, fascistas ou frente-populistas não são outra coisa que tentativas excepcionais de superar as contradições mortais do capitalismo dentro dos marcos deste. São tentativas para evitar a passagem a uma situação revolucionária e à revolução, procurando contrabalançar a tendência histórica ao afundamento capitalista com medidas políticas de exceção. Em lugar de declarar o automatismo da formação de situações revolucionárias, é necessário por em relevo o papel do fator consciente e a delimitação clara com os movimentos políticos que o imperialismo utiliza como recursos últimos de sobrevivência. A questão da situação revolucionária concentra-se na qualidade política do programa revolucionário.

Na atualidade, não apenas a respeito dos países imperialistas e semi-coloniais o ritmo de desenvolvimento revolucionário é desigual. A unidade mundial que constitui o processo da revolução não resulta de um desenvolvimento espontâneo: requer a ação consciente da vanguarda mundialmente organizada. A tendência política do movimento operário a reagrupar-se politicamente sob novos eixos está presente na situação internacional, o que coloca sobre o tapete a questão do partido e da Internacional, o que demonstra a atualidade objetiva da questão da Internacional Operária no quadro da crise mais profunda do capitalismo ao longo de sua história.

O Programa de Transição tem já mais de setenta anos. As suas referências políticas imediatas (fascismo na Alemanha e na Itália, stalinismo na URSS, guerra civil espanhola, retrocesso da revolução chinesa), por isso, estão datadas. Mas o Programa de Transição ultrapassa, em seu método, a análise política imediata e até estratégica. Seu ponto de partida (“Sem vitória da revolução socialista no próximo período histórico, toda a civilização humana está ameaçada de ser conduzida a uma catástrofe. Tudo depende do proletariado, ou seja, antes de mais nada, de sua vanguarda revolucionária. A crise histórica da humanidade reduz-se à crise da direção revolucionária”) está hoje tão vigente, ou mais, do que no tempo em que fora redigido. Assim como seu eixo metodológico central: “A tarefa estratégica do próximo período - período pré-revolucionário de agitação, propaganda e organização - consiste em superar a contradição entre a maturidade das condições objetivas da revolução e a imaturidade do proletariado e de sua vanguarda (confusão e desencorajamento da velha geração, falta de experiência da nova). É necessário ajudar as massas, no processo de suas lutas cotidianas a encontrar a ponte entre suas reivindicações atuais e o programa da revolução socialista. Esta ponte deve consistir em um sistema de reivindicações transitórias que parta das atuais condições e consciência de largas camadas da classe operária e conduza, invariavelmente, a uma só e mesma conclusão: a conquista do poder pelo proletariado”.

O Programa de Transição da IV Internacional constitui, por isso, o único ponto de partida sério para o debate acerca da construção de uma esquerda revolucionária no Brasil (na forma de partido) e de uma autêntica Internacional dos Trabalhadores, que ofereça uma alternativa realmente socialista à crise mundial do capital.

Osvaldo Coggiola