THE AESTHETIC EFFECT OF A DISSONANCE IN CHARLES BAUDELAIRE AND FERNANDO PESSOA

28
O efeito estético da dissonância em Baudelaire e Fernando Pessoa Gabriela Bento Coelho¹ ¹ Graduada em Comunicação Social e Letras, mestranda no departamento de Letras - PUC-GO. RESUMO Este artigo propõe uma abordagem sobre a ressonância e a dissonância quanto à percepção da realidade existente nos poemas “O Guardador de Rebanhos”, de Fernando Pessoa, e “Os sete velhos”, de Charles Baudelaire. Ambos os poemas são analisados sob o olhar da teoria da recepção proposta por Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser. Palavras-chave: Poesia, Recepção, Identificação, Leitor. ABSTRACT This paper proposes an approach to resonance and dissonance as the perception of reality existing in the poems "The Keeper of Sheep" and Fernando Pessoa "The seven old" Charles Baudelaire. Both poems are analyzed from the perspective of reception theory, proposed by Hans Robert Jauss and Wolfgang Iser. Keywords: Poetry, reception, Identification, Reader. No presente artigo será tratada a relação da teoria do efeito da leitura e a do texto com o leitor, tendo como objeto de estudo o poema “ O guardador de rebanhos”, de 1

Transcript of THE AESTHETIC EFFECT OF A DISSONANCE IN CHARLES BAUDELAIRE AND FERNANDO PESSOA

O efeito estético da dissonância em Baudelaire e Fernando Pessoa

Gabriela Bento Coelho¹

¹ Graduada em Comunicação Social e Letras, mestranda no departamento de Letras - PUC-GO.

RESUMO

Este artigo propõe uma abordagem sobre a ressonância e adissonância quanto à percepção da realidade existente nospoemas “O Guardador de Rebanhos”, de Fernando Pessoa, e “Ossete velhos”, de Charles Baudelaire. Ambos os poemas sãoanalisados sob o olhar da teoria da recepção proposta porHans Robert Jauss e Wolfgang Iser.

Palavras-chave: Poesia, Recepção, Identificação, Leitor.

ABSTRACT

This paper proposes an approach to resonance and dissonance as theperception of reality existing in the poems "The Keeper of Sheep" andFernando Pessoa "The seven old" Charles Baudelaire. Both poems areanalyzed from the perspective of reception theory, proposed by HansRobert Jauss and Wolfgang Iser.

Keywords: Poetry, reception, Identification, Reader.

No presente artigo será tratada a relação da teoria do

efeito da leitura e a do texto com o leitor, tendo como

objeto de estudo o poema “ O guardador de rebanhos”, de

1

Fernando Pessoa, e “ Os sete velhos”, de Charles

Baudelaire. Sobre a teoria do efeito, Maria Angélica Freire

de Carvalho comenta no artigo O Texto e o seu Potencial

Comunicativo: “ (…) uma interação entre texto e leitor (…)

significa dizer que o texto indica os sentidos que se podem

produzir e, do mesmo modo, estimula atos de apreensão que

originam a sua compreensão.” ( 1999.p.1).

A teoria do efeito foi pensada por Wolfgang Iser, que

questiona o ato individual da leitura e “analisa o os

efeitos da obra literária provocados no leitor, por meio da

leitura”. (COSTA, 2011, P.4). De acordo com Maria Antonieta

Jordão de Oliveira Borba (2007, p.58), a proposta de Iser

“(...) volta-se para o exame das percepções do leitor em

contato com a obra, o que resultou na construção de um

aparato conceitual, do qual participam três paradigmas

basilares: o ‘pólo artístico’, ou estrutura verbal do

discurso da literatura; o ‘pólo estético’, correlato ao

leitor na construção da significação; as ocorrências do

trânsito entre os dois.” (COSTA, 2011, P.8)

Assim, é permitido dizer que o leitor se identifica e

é receptor dos temas contemporâneos a partir do momento que

também os experimenta em sua vida particular, ou à medida

em que os encontra na leitura. “O texto é um dispositivo a

partir do qual o leitor constrói suas representações. A

qualidade estética da obra literária está, portanto, na

‘estrutura de realização’ do texto e na forma como ele se

organiza, pois são as estruturas textuais que propiciam ao

2

leitor as experiências reais de leitura”. (CARVALHO, 1991,

p.4)

No contato com a literatura, realizada durante o ato

de ler, é que o leitor se apropria e vivencia o efeito

estético da arte, uma vez que nessa relação há a presença

do conteúdo imagético, advinda do próprio leitor em

associação ao que é transmitido pela obra literária. “Ao

atribuir a noção de “imagem” ao significado, Iser descarta

a existência de uma semântica (...). Sendo “imagética” a

natureza do significado, somente quando o leitor entra em

contato com o texto é que se cria a condição facultativa do

“efeito” de uma experiência estética.” (DE OLIVEIRA , 2007,p.58)

Para Iser, a literatura se concretiza na leitura. Sobre

esse aspecto, Márcia Hávila Mocci da Silva Costa comenta em seu

artigo Estética da Recepção e Teoria do Efeito (p.8):

“Tal acepção provoca ambiguidade: a

literatura tem existência dupla, existe

independentemente da leitura, nos textos e

bibliotecas, e é potencial, pois concretiza-se

através da leitura. Para o teórico, o verdadeiro

objeto literário não é o texto objetivo e nem a

experiência subjetiva, mas a interação entre ambos.

A comunicação entre o texto e o leitor ocorre por

meio do diálogo, pois, “o texto ficcional deve ser

visto principalmente como comunicação, enquanto a

leitura se apresenta em primeiro lugar como uma

relação dialógica.”

Nesse sentido, o efeito da literatura seria a

percepção do leitor, a forma como as imagens do texto são

3

“absorvidas” durante o ato de ler. Desse modo, o efeito

estético seria a reação do leitor ao interagir com a obra

de arte, podendo sentir estranhamento ou identificação. “ (…) no que diz respeito à valorização do texto

enquanto estrutura textual e à noção de

‘desfamiliarização’ ou ‘estranhamento’. O

estranhamento ocorre porque a literatura, ao

apresentar os fatos da vida, força a uma

consciência e revisão de expectativas; obra

literária desconfirma nossos hábitos rotineiros de

percepção e com isso nos força a reconhecê-los,

pela primeira vez, como realmente são.” (DEOLIVEIRA , 2007, p.59)

Conforme Maria Angélica, o autor realiza estratégias

textuais que possibilitam o rompimento com as expectativas

do leitor, “uma atualização de natureza perspectivística,

pois, como a totalidade do texto não pode ser realizada em

um só momento, não se pode fechar o sentido do texto.”

(idem, p.7)

Então, pode-se afirmar que o texto não caminha em uma

única direção, mas pode incorporar uma plurissignificação

atrelada à sua recepção, sendo, o leitor, um coprodutor da

obra-literária e o responsável pela atualização dos

significados por meio da leitura. Ao ler, o leitor atualiza

a compreensão do texto a partir dos seus horizontes de

expectativas e das perspectivas que se renovam durante a

leitura, num movimento em duas direções “para frente,

através da reformulação das expectativas e para trás,

reinterpretando o que foi dito” (2009, p.7)

4

Diante do contexto apresentado sobre o efeito estético

da obra literária é que o estudo proposto analisa a

dissonância na poesia Os sete Velhos, de Charles Baudelaire, e

em O guardador de rebanhos, de Fernando Pessoa.

Para tal análise, primeiro serão abordadas as obras

separadamente para, depois, traçar um comparativo sobre

como a dissonância acontece nos dois poemas, bem como a

identificação do efeito estético no leitor .

Baudelaire e a percepção do real

O livro Flores do Mal, de Charles Baudelaire, publicado em

25 de junho de 1857, foi uma obra polêmica para a época,

sendo considerada imoral devido à sua temática permeada

pela obscuridade, pela paisagem urbana e por uma nova

linguagem. Sobre a obra de Baudelaire, Walter Benjamim

(1989, p.1) comenta em Sobre alguns temas de Baudelaire: “(…) se

propagou, sem cessar, na fama Flores do Mal (…)

transformou-se, no decorrer das décadas, em um clássico, e

foi também um dos mais editados.”.

Flores do mal é considerada, historicamente, uma obra de

ruptura que renova os padrões linguísticos, propondo uma

estética que salienta o período pré-industrial, a paisagem

fabril das cidades e a crítica aos valores burgueses. “Os

poetas formam um partido contra o público burguês (…) a

literatura repete o protesto da Revolução contra a

sociedade vigente, torna-se literatura de oposição ou uma

literatura do “futuro”, afinal uma literatura da

5

segregação, com constante orgulho pelo isolamento.”

(FRIEDRICH, p.31).

Sobre esta nova proposta estética, Hugo Friedrich, em

a Estrutura da Lírica moderna, aborda: “A tensão dissonante é um

objetivo das artes modernas em geral.” (1966, p.15). A

renovada percepção provoca a estranheza no leitor e o

sentimento de incompreensão, libertando a poesia do plano

do significado “ (…) são tão imprevisíveis nas suas

significações que até mesmo ao próprio poeta o conhecimento

daquilo do sentido daquilo que compôs é limitado.”

(FRIEDRICH, p.19)

Martha D'Angelo em seu artigo A modernidade pelo olhar deWalter Benjamin (2006, p.1), afirma:

“Na modernidade, quando a significação de cada

coisa passa a ser fixada pelo preço, a poesia de

Baudelaire é fundamental pela apropriação que faz

dos elementos dessa cultura para revelar a dimensão

do inferno instalado em seu interior. A subversão do

sentido das palavras em As flores do mal é, segundo

Benjamin, uma forma de contraposição à reativação

do mito empreendida pelo capitalismo. A

desarticulação das relações espaço temporais,

intrínseca à modernidade, encontra na lírica de

Baudelaire uma forma de resistência. O tom

aparentemente enigmático de suas alegorias está

intimamente ligado à história, e é exatamente por

não transcender a história que sua poesia contém

enigmas e não mistérios.”

6

Nesse contexto, Baudelaire passa a observar a

paisagem, as multidões das cidades e a ausência orgânica,

associadas a uma linguagem dura na “possibilidade da poesia

na civilização comercializada e dominada pela técnica.”

(idem, p.35) O autor denomina a sua poesia como o “

(…)propósito de não entregar à embriaguez do coração”

(idem, p.39), ou seja, recusar os sentimentos para criar

pela intelectualidade e lógicas matemáticas “ (…) uma nova

linguagem, de sentido obscuro” (idem, p.39).

A observação de Baudelaire é um flanar pelas ruas de

Paris que, num processo de percepção do real, consegue

transmitir as contradições sociais, o individualismo e as

imagens da urbanidade. “É a experiência hostil, ofuscante,

da época da grande indústria. O olho que se fecha ante essa

experiência, enfrenta uma experiência de tipo complementar,

como se fosse, por assim dizer, sua imitação, espontânea”

(BENJAMIN, 2000, p. 34). Martha D'Angelo complementa: “

Fugindo de uma normatividade marcada pela polarização do

homem e do cidadão, resistindo à divisão esquizofrenizante

do espaço moderno, Baudelaire veste a máscara do flâneur:

ele é ator e espectador ao mesmo tempo (…) ”.

Ainda sobre a experiência de Baudelaire, Walter

Benjamim acrescenta (2000, p.35): “Matiére et memoire define o caráter da

experiência na dureé (duração) de tal maneira que o

leitor se sente obrigado a concluir que apenas o

escritor seria o sujeito adequado de tal

experiência. (…) não tem a pretensão de transmitir

um acontecimento, pura e simplesmente; relação

7

experiência. Nela ficam impressas as marcas do

narrador como os vestígios das mãos nos vasos da

argila.”

Sobre Baudelaire flâneur e a memória, Claudia Gonçalves

Ribeiro (2009, p.2266) conclui: “ Portanto, o fascínio pela

observação enquanto forma de vida presente (…) em Charles

Baudelaire poderia ser visto como instrumento capaz de

extrair impressões do passado, pois, em sua essência, a

memória seria a necessidade de narrar o acontecido, sendo

um fenômeno sempre atual: uma ligação entre o passado e o

eterno presente.”

Nesse sentido, Walter Benjamim explica como são as

experiências e memórias em Baudelaire, conforme o parecer

da psicanálise, cujo registro seria “o rompimento de

proteção contra os estímulos” (2000, p. 36).

“Quanto maior é a participação do choque em

cada uma das impressões, tanto mais constante deve

ser a presença do consciente (…) no interesse em

proteger contra os estímulos; quanto maior for o

êxito com que ele operar, tanto menos essas

impressões serão incorporadas à experiência, e

tanto mais corresponderão ao conceito de vivência.

Afinal, talvez seja possível ver o desempenho

característico da resistência ao choque na sua

função de indicar ao acontecimento, às custas da

integridade de seu conteúdo (…) o desempenho máximo

da reflexão, que faria do incidente uma vivência.

Se não houvesse reflexão, o sobressalto agradável

ou ( na maioria das vezes) desagradável produzir-se

–ia, sobressalto que, segundo Freud, sanciona a

8

falha da resistência ao choque, Baudelaire fixou

esta constatação na imagem crua do duelo, em que o

artista, antes de vencido, lança grito do susto.

Este duelo é o próprio processo de criação. Assim,

Baudelaire inseriu a experiência do choque no âmago

de seu trabalho artístico” (BENJAMIM, p. 37)

Baudelaire aparava os choques espirituais ou físicos

de forma resistente e independente, de onde viessem. Tal

concepção foi crucial na sua poesia “trata das

intermitências entre a imagem e a ideia, a palavra e o

objeto” (BENJAMIM, p. 37).

O poeta é testemunha e vítima das angústias e anseios

da vida citadina, registrando as mudanças na paisagem,

captando uma Paris transformada pela modernidade.

“Permanecer incógnito, dissolvido no movimento ondulante

desse viver coletivo, ter suspensa a identidade individual,

substituída pela condição de habitante de um grande

aglomerado urbano, sem dúvida, foi a experiência vivida

pelo poeta francês. Paris trazia, naquele momento, as

condições da vida moderna (la vie parisiense).” (MENESES,

2009, p.65)

No universo baudelariano a poesia representa o estado

fragmentário do homem moderno:

“(…) significa o mundo das metrópoles, sem

plantas com sua fealdade, seu asfalto, sua

iluminação artificial, suas gargantas de pedra,

suas culpas e solidões no bulício dos homens (…)

época de técnica que trabalha com o vapor e a

9

eletricidade e a do progresso (…) atrofia do

espírito(…) É dissonante, faz do negativo, ao mesmo

tempo, algo fascinador. O mísero, o decadente, o

mau, o noturno, o artificial, oferecem matérias

estimulantes que querem ser apreendidas

poeticamente(…) são paisagens inorgânicas do

espírito puro (…) o odor de alcatrão, estão cheias

de alegria e de lamentação e , por sua vez,

contrastam com as amplas curvas vibrantes de seus

versos. Extraídas da banalidade como drogas das

plantas venenosas, tornam-se…antídotos contra o

vício da banalidade… ” (FRIEDRICH, p.43)

Esse universo dissonante e desarmonioso que torna a

poesia de Baudelaire tão magicamente estranha e ressoa como

uma estética da lírica moderna. (FRIEDRICH, p.211) “A

realidade desmembrada ou dilacerada (…) os poetas (…)

exprimem de forma dissonante: (…) o indeterminado por meio

de palavras determinantes, o complicado por meio de frases

simples (…) o espaço ou a ausência (…), o arbitrário quanto

ao conteúdo por meio de formas sensíveis. Estas são as

dissonâncias modernas da linguagem poética.”

Os elementos dissonantes estão presentes na poesia de

Baudelaire, principalmente na sua conexão com a realidade

citadina, fatigada pelo modus operandi da urbanidade, pelo

individualismo e fragmentação do homem. “O fragmentarismo

permaneceu como uma característica da lírica moderna.

Manifesta-se, sobretudo, num processo que tira fragmentos

do mundo real e os reelabora muitas vezes em si mesmos, (…)

10

o mundo aparece atravessado por linhas confusas.”

(FRIEDRICH, p.198).

Deste modo, a dissonância é a forma com que o poeta

afirma a sua percepção subjetiva da realidade, repletas de

elementos fantasmagóricos, absurdos, vazios, angustiosos e

negativos. Uma descrição que causa estranhamento no leitor:

“oferecem desespero, paralisia, voo febril ao irreal,

desejo de morte, mórbidos jogos de excitação.” (FRIEDRICH,

p.40). Para analisar os aspectos dissonantes da poesia

baudelariana foi escolhido o poema Os Sete Velhos que faz

parte do grupo de poemas “Quadros parisienses”.

A Dissonância em “Os Sete Velhos”

Sobre as observações de Baudelaire a respeito da

paisagem urbana, Claudia Ribeiro Gonçalves (p.37) comenta,

em seu artigo A Memória Através do Olhar do Flâneur:

“Na obra As Flores do Mal de Charles Baudelaire há as

poesias referentes aos Quadros Parisienses, onde o

autor destaca os indivíduos comuns desprezados pela

sociedade, pois a perspectiva baudelariana a

respeito dos marginalizados é perversa, não

acrescentado dignidade alguma a não ser estética

(…)”.

Em Quadros parisienses, as poesias tratam da descrição de

Paris e do cenário decadente da grande metrópole permeada

de negatividade, mistério e absurdo. Sobre o poema Os Sete

Velhos, Marcos Antonio De Menezes (2004, p.102) afirma:

“No poema Os sete velhos, do grupo Quadros

Parisiense, pode-se ler a luta do morador da grande

11

cidade contra sua despersonalização. Aqui, o

cenário é descrito para dar mais cor à cena e

mostrar que só a nova cidade – que nasce do século

XIX – é capaz de provocar no homem o sentimento de

medo, angústia e despertença que invade corpos e

almas. Cidade e multidão aparecem fundidas uma na

imagem da outra.”

Baudelaire descreve a multidão na cidade que “formiga”

com as multidões. “(…) Uma reação estética: a velocidade

com que os transeuntes passam precipitados (…)”. Baudelaire

adentra a multidão “não descreve nem a população e nem a

cidade. (…) Sua multidão é sempre a da cidade grande”.

(BENJAMIM, p. 37). O poeta descreve a cidade com uma

presença fantasmagórica, evocando a feiura do cenário, onde

a névoa é humanizada e “emprestava brancor ” às casas da

paisagem.

Da presença fantasmagórica pode-se identificar a

desumanização. Os elementos como a seiva, o fantasma, a

névoa que empresta o espírito, a viela que vibra, são

elementos que adquirem qualidades e natureza próprias. “A

necessidade atua só no decurso ou na variação das tensões

abstratas. Só uma coisa é inequívoca: a ausência da

humanidade natural” (FRIEDRICH, p.190).

No verso 12 nota-se a presença inicial de uma

criatura, descrita de forma surreal e que evoca os

sentimentos deconcertantes, e que gradativamente, vai

aparecendo no poema. Essa presença cresce nas estrofes

seguintes, dotada de super capacidade e próxima do autor.

12

“Baudelaire fala muitas vezes do sobrenatural e do

mistério. (…) A idealidade vazia, o outro indefinido (…)”.

(FRIEDRICH, p.49)

Cidade formigante, e que ao sonho se aviva,Em que o fantasma ao sol nos agarra o pescoço!O mistério por tudo é seiva que derivaNos estreitos canais do poente colosso.

No entanto, uma manhã em que na rua feiaAs casa, a que a névoa emprestava brancor,Simulavam dois cais de um rio em plena cheia,E em que, decoração como a da alma do ator,

Suja e amarela bruma enchia todo o espaço,Eu ia, os nervos meus com heróicas tensões,E discutindo com meu espírito lasso,Pela viela a vibrar dos graves carroções.

Os sete velhos, v. 1–12.

No verso 13 surge um “De repente um ancião cujas

pobres sacolas” que, a priori assemelha-se a um mendigo

chegando pela rua, mas que se transfigura ao ser descrito

como dotado de “fel nas pupilas brilhantes”, “barba como a

de Judas”, “curvo”, “quebrado e sua espinha dava na

perna”, com um bastão e três patas. Tal imagem é uma

criatura misteriosa que representa “os dois polos de

Baudelaire, tanto o mal satânico quanto a idealidade vazia,

têm o sentido de (...) fuga do mundo banal ( ...) não vai

além da excitação dissonante. ”

De repente um ancião cujas pobres sacolasImitavam a cor de um céu a tempestear,A cujo aspecto só choveriam esmolas,Se não fosse o rancor que ardia em seu olhar,

Surgiu tendo no fel suas pupilas molhadas;Enquanto aguça a neve, a das noites mais rudas,

13

A sua barba imensa, esquia como espadas,Projetava-se assim como a barba de Judas.

Não era curvo mas alquebrado, a sua espinhaDava com sua perna exato ângulo reto,Tanto que seu bastão, que o seu cariz sublinha,Ia-lhe dando o ar, como o passo incorreto,

Os sete velhos, v. 13–23.

A multidão é um aspecto presente na poesia de

Baudelaire. O poeta é o “transeunte que se enfia na

multidão ( ...) o flâneur, que precisa de espaço livre e

não quer perder a privacidade” (BENJAMIM, p. 37). Dessa

forma, o poeta opera como uma figura à parte, excluída da

sociedade e deflagra o que o cerca de forma íntima,

inconsciente e distante dos fatos reais.

Do verso 24 ao 31, a multidão pode ser identificada

com a repetição da figura “judeu de três patas”. Um

verdadeiro monstro que lança, arreganha e pisa em mortos,

como uma criatura demoníaca. Isso demonstra que Baudelaire

“dá caráter dinâmico ao mal instintivo, transformando-o em

satânico, inflama as imagens de miséria (...). Capacidade

de transformação e desrealização do real”. (FRIEDRICH,

p.53)

Dois são os recursos que se repetem na poética de

Baudelaire e que estão presentes nesse poema, o sonho e a

fantasia, pois nos versos 31 e 32 o poeta afirma que a

presença de duas criaturas, advindas do inferno e antigas,

davam passos em direção a outros mundos. Mundos anímicos e

dualidades entre o real e o imaginário. “O mundo nascido da

14

fantasia criativa e da linguagem autônoma é inimigo do

mundo real (…) linguagem de um mundo criado quase

exclusivamente pela fantasia que passa por cima da

realidade ou a aniquila”. (FRIEDRICH, p.202)

De um mórbido muar, de um judeu de três patas.Metias os membros seus na nevada e no lodo,Como quem está a pisar mortos com as sapatas,Lançando ao universo o arreganho do apôdo.Vinha outro: barba, olhar, costas, bastão, molambos,Eram em tudo iguais, do mesmo inferno oriundos,Centenários os dois, visões barrocas ambos,Iam com passo igual a misteriosos mundos.Os sete velhos, v. 24–31

As figuras demoníacas tomam forma mais definida e

demonstram uma relação com o tempo, “(…) que assume uma

função anormal (…) vem representar uma espécie de quarta

dimensão espacial, quando coisas separadas no tempo são

concentradas num único momento, ao qual corresponde um

único espaço figurado.” Visão onírica que começa como um

mendigo que, depois, se torna uma criatura deformada nesse

trecho tanto o leitor, como o poeta, não sabem do que se

trata. Advém, no mesmo momento, 7 figuras “monstros fatais

que tinham um ar eterno”. Nesse instante de tempo

compactado, o depoimento parece um sonho que desperta

incerteza e dúvida no leitor.

Em outro instante, o poeta parece ironizar a sua visão

absurda e onírica, e antes de olhar para uma suposta 8ª

figura (verso 43), dá as costas ao evento, como se o

rompesse, e movendo-se de encontro à realidade, acorda de

um sonho. Já no verso 44 o poeta esclarece que talvez essa

cena fosse resultado da embriagues, da natureza

15

entorpecida. “o sonho é a capacidade produtiva, não

perceptiva, que (…) é sempre a produção de conteúdos

irreais. Pode ser (…) provocada por meio de estupefacientes

e drogas ou surgir de condições psicopáticas.” (FRIEDRICH,

p.204)

Nos versos 41 e 42 o poeta se descreve como “Frio e

enfermo, febril o espírito turbado” como se abandonado,

sozinho com a sua angústia, como se estivesse “ atrás da

consciência de estar condenado, faz-se sentir o gosto de

‘gozar voluptuosamente’ a condenação” (FRIEDRICH, p.47) .

Por fim, o poeta se lança novamente ao mundo onírico,

mas de forma menos satânica, como se, ao avesso da visão

inicial, tivesse transmutado a consciência e alterado o

estado emocional (versos 49 a 52). “ ... vê no grotesco o

embate da idealidade com o diabólico e o amplia (…)

absurdo. Deduz suas próprias experiências, e as do homem em

geral, dilacerado entre o êxtase e a queda (…) e enaltece o

sonho porque dota o que realmente é impossível (…) o

absurdo torna-se a perspectiva (…) para escapar das

opressões do real.” (FRIEDRICH, p.44)

Tinha eu diante do olhar um enredo poluto,Ou era a humilhação de um acaso perverso?

Sete vezes contei, de minuto em minuto,

A multiplicação e velho tão diverso.

Aquele que se ri dessa minha inquietude,Que não se vê prender de um frêmito fraterno,Pense bem que, apesar desta decrepitude,Estes monstros fatais tinham um ar eterno!

Teria posto o olhar num oitavo avantesma,Sem morrer, a este sósia, irônico e fatal,

16

Fênix tremenda, mãe e filha de si mesma?- Mas as costas voltei ao cortejo infernal.

Bêbado que vê dois, assim exasperado,Voltei, fechei a porta e de susto transido,Frio e enfermo, febril o espírito turbado,Pelo mistério e pelo absurdo malferido!

Minha razão embalde ansiou suster-se à barra;A borrasca anulou meu empeno ao jogar,E minha alma dançava assim como gabarraSem mastros, por monstruoso e por infindo mar.

Os sete velhos, v. 32–52

Para concluir, pode-se dizer que o efeito estético de

Baudelaire habita na sua forma de desvendar o real de forma

negativa, angustiante e mórbida.

“Baudelaire fala ‘do prazer aristocrático de

desagradar’, ‘gosto apaixonado de oposição’ e um

‘produto de ódio’, saúda o fato de que a poesia

provoque um ‘choque nervoso’, vangloria-se de

irritar o leitor e de que este não mais o

compreenda. A consciência poética, outrora uma

fonte infinita de alegrias, tornou-se agora um

arsenal inesgotável de instrumentos de tortura. As

dissonâncias internas da poesia tornaram-se

consequentemente também dissonâncias entre obra e

leitor.” (FRIEDRICH, p.45)

O leitor que realizar a leitura de Baudelaire tem

contato com uma obra hermética que, para ser compreendida,

necessita de informações sobre seus pressupostos, pois a

poesia “ou atrai o leitor ou o afugenta” (FRIEDRICH, p.95).

O leitor de Baudelaire interage com o choque de uma

estética anormal, amorfa e libertária que o convida a

refletir sobre a realidade e os fatos sociais, bem como a

revisitar a sua própria filosofia de vida.

17

Fernando Pessoa e o “Guardador de Rebanhos”

Fernando Pessoa, poeta português, é uma figura

polêmica dotada de multiplicidades e que deixou uma vasta

obra, repleta de poemas que se tornaram a alma da língua

portuguesa. O escritor criava heterônimos “com vida e

dicção próprias” (MOISÉS,1993, p.13). “(…) o desdobramento

de Pessoa em diversos autores fictícios, que se diferenciam

de simples pseudônimos ao mostrarem, aparentemente, uma

‘personalidade’ literária distinta do Pessoa ortónimo.

Entre os heterônimos contamos Álvaro de Campos, Ricardo

Reis e Alberto Caeiro.” (CARNEIRO, 2011,p.1).

Diante disso, Alberto Caieiro é o foco de estudo nesse

artigo. De acordo com Massau Moisés (1993, p.26), Pessoa

inventava, após a produção escrita, a biografia e a morte

de seus heterônimos. “Alberto Caieiro (…) nasceu em 1889 e morreu

em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a

sua vida no campo. Não teve profissão nem educação

quase alguma (.) não teve mais educação que quase

nenhuma – só instrução primária; morreram-lhe cedo

o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo

de pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha,

tia- avó.” (Moisés, 1993, p.26)

Caieiro é considerado por Fernando Pessoa como o seu

mestre, “porque afirma conseguir submeter o pensar ao

sentir, algo nunca alcançado por Pessoa. Apresenta-se como

estando tranquilo perante as angústias que afligem Pessoa e

os heterónimos. (…) vive sem dor ou desespero, porque

18

sente sem pensar, e sendo assim, evita a angústia

existencial.” (CARNEIRO, 2011,p.1).

O mestre de Pessoa é conhecido como o poeta “natural”

(Moisés, 1993, p.27), estando perante a natureza, sem

pensamentos, sem o movimento cartesiano da vida urbana. Em

Caieiro, encontra-se ainda a pureza e a inocência de um

espirito não corrompido pelos padrões citadinos. Sobre

Alberto Caieiro, Massaud Moisés (1993, p.28) afirma:

“anseia ser poeta e nada mais, poeta ‘puro’ (…) entre ele e

a natureza, ou entre ele e sua naturalidade, se interpõe o

véu da palavra e, por consequência, do pensamento (…)

despojado de pensamento, reduzido à pura existência (…).”

A obra de Alberto Caieiro é composta por três

conjuntos de poemas. O primeiro é o “Guardador de

rebanhos”, composto por 49 poemas não intitulados,

identificados apenas com algarismos romanos. Nesse sentido,

serão analisado alguns dos poemas relativos ao Guardador de

Rebanhos.

Caieiro é o poeta objetivo que busca explicar a sua

relação com o mundo de forma anti-metafísica, cujo “eu do

poeta dialoga com os seus pensamentos/ideias e sensações”

(MOISÉS, 1993, p.30). Para ele basta conhecer, perceber,

ver a natureza sem a razão ou intelectualidade. O saber é

baseado no sentir “mas sentir e exprimi-lo em versos”

(MOISÉS,1993, p.31).“Caeiro procura, similarmente, livrar-se desistemas de verdades vigentes. Considera opensamento como estando impregnado por teorias deconhecimento prévias. Tem de se livrar destasteorias para chegar à pura sensação intuitiva das

19

coisas. Quer livrar-se do “corredor” de modelos darealidade construídos por verdades préestabelecidas, para chegar às ideias diretamente.( CARNEIRO, 2011,p.19)

Como objeto de estudo, foi escolhido o poema VIII do

Guardador de Rebanhos, devido à riqueza de imagens e

paradoxos. Se analisarmos a produção de Caieiro sob o olhar

da fenomenologia, veremos que se identifica com a filosofia

anti-metafisica do heterônimo, pois “O fato de não se

partir de um sistema de verdades como as ciências naturais

não faz da fenomenologia uma doutrina mística. As essências

são reconhecidas pela intuição. O objeto é formado no

pensamento de forma intuitiva, é o dado original de

percepção.” (CARNEIRO, 2011, p.23).

Esse aspecto fenomenológico de como Caieiro percebia e

espontaneamente expunha a poesia. O autor fala de Jesus

Cristo como se esse fosse um menino comum. Identifica-o

como espelho de sua própria mentalidade e existência. Mesmo

com uma personalidade reconhecida como “pura”, do ponto de

vista ocidental, esse poema representa uma quebra de

paradigma com a religiosidade ocidental. “Ao ler os versos de Caeiro, o leitor esbarra numa

poesia que, a um só tempo, lança suspeitas aos

veredictos da razão e ratifica as certezas

cotidianas, as "verdades" fornecidas pelos

sentidos: verdadeira heresia à tradição ocidental.

A obra de Caeiro produz este efeito, como é de se

esperar, não por meio de um exercício ostensivo e

sistemático de reflexão (penso sem pensamentos),

mas através do confronto imediato, num contexto

20

poético, entre o que existe (para os sentidos) e o

que é pensado:” (ALVES, 2008, p.163)

No poema, Jesus está perto do homem, era humano e

dotado também de sentimentos e insatisfações com a

realidade “divina”. “Caeiro sempre fornece uma receita, que

é receita nenhuma, é provocação, é poesia, é ver! As

fórmulas, ele não as guarda, faz questão de esquecê-las e

fica irritado com quem deseja rotular suas porções.”

(ALVES, 2008, p.172)

Esses aspectos podem ser observados, nos seguintes

trechos:

“Num meio dia de fim de primaveraTive um sonho como uma fotografiaVi Jesus Cristo descer à terra,Veio pela encosta de um monteTornado outra vez menino,A correr e a rolar-se pela ervaE a arrancar flores para as deitar foraE a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu,Era nosso demais para fingirDe segunda pessoa da Trindade.No céu era tudo falso, tudo em desacordoCom flores e árvores e pedras,No céu tinha que estar sempre sérioE de vez em quando de se tornar outra vez homem

Num segundo momento, o autor questiona a paternidade

de Jesus e, num tom infantil, analisa de forma objetiva a

genealogia crística e, ao mesmo tempo, nega qualquer

explicação mística. Dessa forma, Caieiro cria um

distanciamento e certa fantasia em relação aos

acontecimentos bíblicos. “Na fenomenologia pode-se

21

recorrer à fantasia, mas não é no sentido literal do termo,

mas sim sentido de distanciamento do facto individual

empírico. Pretende-se chegar à essência e como tal, a

fenomenologia varia os factos circunstanciais em volta do

objeto, inclusive com a imaginação, independentemente do

facto concreto e individual.” (ALVES, 2008, p.173)

Caiero transcende o real e cria sua própria versão dos

fatos religiosos ao afirmar que Maria é uma mala e ao

questionar a exigência de Jesus amar e ser justo. O autor

propõe uma reflexão crítica a respeito da humanidade dos

personagens bíblicos. “Para muitos, tornou-se então irresistível

aproximar este pensar com o corpo, expresso na

poesia de Caeiro, com aafirmação de Merleau-Ponty

de que la science du monde quim'est donnée avec mon corps

(cito de memória): Na perspectiva fenomenológica,

esta consciência corporal adquirida no contato com

o mundo, "resolve" a dicotomia corpo/espírito em

termos de existência: o corpo é a forma primordial

do conhecimento.” (ALVES, 2008, p.172)

O tom provocativo ainda permanece e propõe uma reflexão sobre os padrões do cristianismo.

“Desse modo, não há mistério algum nas coisas,

cujo conhecimento dá se através do olhar. O homem

se engana, ao querer ver nelas mais do que aquilo

que se apresenta ao olhar. É possível, inclusive,

percebermos aí uma espécie de avesso da teoria das

correspondências de Baudelaire. Enquanto que, para

o poeta simbolista, a Natureza é um templo onde

vivos pilares deixam escapar, às vezes, confusas

palavras.” (DA SILVA, p.8)

Ainda sobre a relação do poema com a religiosidade:

22

“ No poema VIII de O guardador de rebanhos

deparamo-nos com o espanto e a veneração. Na

leitura (…) a dessacralização de vários dogmas e

elementos cristãos (a trindade; a crucificação,

através de símbolos como a cruz e o prego; a

pomba ; as figuras de Maria e de José etc.) nos

causa um total espanto, principalmente, na segunda

estrofe, trecho em que há uma explícita negação de

preestabelecidos. Frases negativas, como E que não

era pai dele; Porque não era do mundo nem era

pomba; E a sua mãe não tinha amado antes de o ter;

Não era mulher: era uma mala. conotam um profundo

niilismo, em que, mais uma vez, as orações

negativas são utilizadas para reforçar sua

afirmação.” (DA SILVA, p.9)

Um velho chamado José, que era carpinteiro,E que não era pai dele;E o outro pai era uma pomba estúpida,A única pomba feia do mundoPorque não era do mundo nem era pomba.E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.”

Não era mulher: era uma malaEm que ele tinha vindo do céu.E queriam que ele, que só nascera da mãe,E nunca tivera pai para amar com respeito,Pregasse a bondade e a justiça!

Nos versos que seguem é interessante o aprofundamento

que o autor promove sobre as estratégias de tornar Jesus

Cristo um ser humano comum, dotado de malícia e de uma

inocência infantil, uma imagem bem diferente daquela em que

ele está crucificado. Alberto Caieiro, nesse sentido,

desmistifica o ser divino e o torna mortal, alegre e dono

de suas próprias escolhas que se interpõem acima de sua

missão divina.

23

Um dia que Deus estava a dormirE o Espírito Santo andava a voar,Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz

E deixou-o pregado na cruz que há no céuE serve de modelo às outras.Depois fugiu para o solE desceu pelo primeiro raio que apanhou.Hoje vive na minha aldeia comigo.É uma criança bonita de riso e natural.Limpa o nariz no braço direito,Chapinha nas poças de água,Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.Atira pedras nos burros,Rouba as frutas dos pomaresE foge a chorar e a gritar dos cães.E, porque sabe que elas não gostamE que toda a gente acha graça,Corre atrás das raparigasQue vão em ranchos pelas estradasCom as bilhas às cabeçasE levanta-lhes as saias.

Nos próximos trechos, vê-se que a poesia de Caieiro “é

marcada pelo paganismo, e não pelo ateísmo; é uma crítica à

visão que o homem tem do divino, não do divino propriamente

dito; tem a intencionalidade de expressar mais

verdadeiramente o divino, se comparada à tradição religiosa

e filosófica, pois o vê de forma simples e natural.” (DA

SILVA, p.10)

A mim ensinou-me tudo.Ensinou-me a olhar para as cousas,Aponta-me todas as cousas que há nas flores.Mostra-me como as pedras são engraçadasQuando a gente as tem na mãoE olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus,Diz que ele é um velho estúpido e doente,

24

Sempre a escarrar no chãoE a dizer indecências.A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia,E o Espírito Santo coça-se com o bicoE empoleira-se nas cadeiras e suja-as.Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.

Para Caieiro não há negação ao divino, mas o reduz a

própria natureza. Isso pode ser considerado um recurso de

crítica, mascarada pela personalidade “pura” do poeta. É essa crítica ao pensar que fundamenta suas

concepções religiosas. (…) Caeiro recusa o pensar

sobre o divino, pois para o poeta — que não admite

a existência de algo não sentido no mundo físico —

caso Deus exista, é a própria Natureza. É por ter

tais convicções que Caeiro resplandece uma

existência tão pacífica, capaz, inclusive, de

causar inveja aos demais heterônimos. Ao contrário

de Álvaro de Campos e Ricardo Reis, por exemplo,

Caeiro desconhece a angústia, o conflito interior,

pois, livre das instabilidades espirituais advindas

de ocorrências felizes ou funestas, está sempre em

paz consigo e com a Natureza. Assim é o espírito do

Mestre Caeiro, o Mestre de todos os heterônimos.”

(DA SILVA, p.10)

Conclusão

Ao analisar os poemas Os Sete Velhos e O Guardador de

Rebanho vê-se que a dissonância e o efeito estético

acontecem de forma distinta.

Em Os Sete Velhos, o efeito é do estranhamento por meio de

uma linguagem mórbida que evoca o mundo anímico e uma

25

transcendência do real por meio de imagens oníricas,

inconscientes. Em Baudelaire, “em seu sistema estético,

estão relacionados grotesco, arabesco e fantasia; esta

última é a capacidade de movimentos abstratos do espirito

livre (…)” (FRIEDRICH, p.57). Em relação aos conteúdos, o

poeta francês trabalhava a “beleza dissonante, o

afastamento do coração do objeto, estados de consciência

anormais, idealidade vazia, desconcretização, sentido de

mistério, gerados nas forças mágicas da linguagem e das

abstrações absolutas.” (FRIEDRICH, p.58) Além disso, a

dissonância está presente na representação urbana, no

espírito boêmio e nas contradições da vida fragmentada em

uma metrópole como Paris.

Já em O Guardador de Rebanhos o estranhamento acontece

pela dissonância com que o autor, Alberto Caieiro, percebe

o mundo ao seu redor de forma pura, longe das influências e

do fragmentarismo citadino. Na poesia de Caieiro não há

espaço para os delírios místicos e nem para percepções

inconscientes. A temática acontece por meio da percepção

“crua” do real e da natureza, despojada de pensamento,

reduzida à simples existência. É por meio da

intelectualização que persegue a simplicidade das coisas

naturais – flores, regatos, árvores, fontes, etc. Seu

programa estético é a descrição do campo, da natureza e a

inspiração árcade.

Ao ler Baudelaire, o leitor experimenta a verdade por

meio da descrição alógica e anímica. A realidade boemia e

26

entorpecida. Ao interagir com Alberto Caieiro, o leitor

penetra no mundo da objetividade em que não há buscas

existenciais e, sim, um ser explicado pela natureza

concreta e anti-metafísica.

Referências Bibliográficas

ALVES, Marcelo. Farmácia A. Caeiro: sobre as possibilidades

de cura de uma doença tipicamente humana. Anuário de

Literatura, v. 5, n. 5, p. 161-174, 2008.

BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal: Edição bilíngüe. Nova Fronteira, 2013.

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo.Trad. José Carlos Martins Barbosa e Hermeson AlvesBaptista.

_______. Walter Benjamin, Sociologia. 2.ed. Trad., introd. e org.Flávio Kothe. São Paulo: Ática.1991.

CARNEIRO, Carlos Miguel Filipe. Alberto Caeiro e a

Fenomenologia. 2011.

COSTA, Márcia Hávila Mocci da Silva. Estética da Recepção e Teoriado Efeito. Disponível em:http://abiliopacheco.files.wordpress.com/2011/11/est_recep_teoria_efeito.pdf. Acesso em: 10 out. 2013.

D'ANGELO, Martha. A modernidade pelo olhar de Walter Benjamin. EstudosAvançados da Universidade de São Paulo, vol.20 no.56, SãoPaulo, Jan./ Apr. 2006. Disponível em:

27

http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142006000100016&script=sci_arttext. Acesso em: 10 out.2013.

DA SILVA, Francisco Eduardo Vieira; DA SILVA, MorganaSoares. A POESIA DE ALBERTO CAEIRO: ASPECTOS FILOSÓFICOS ERELIGIOSOS. Disponível em:http://www.revistaaopedaletra.net/volumes/vol%204.2/Francisco_Eduardo_%26_Morgana_Soares--A_poesia_de_Alberto_Caeiro-aspectos_filosoficos_e_religiosos.pdf

¹DE MENEZES, Marcos Antonio. O poeta Baudelaire e suas máscaras:boêmio, dândi, flâneur. Revista fato&versões / n.1 v.1 / p. 64-81 / 2009 www.catolicaonline.com.br/fatoeversoes ISSN 1983-1293 64 Acesso em: 22 set. 2013.

²DE MENEZES, MARCOS ANTONIO. Um flâneur perdido na metrópole doséculo XIX: História e Literatura em Baudelaire. Diss. UniversidadeFederal do Paraná, 2004.

DE OLIVEIRA BORBA, Maria Antonieta Jordão.Uma estética doperformativo: concepção de literatura pela Teoria do efeito estético. Revista deLetras (2007): 57-73.

GOTLIB, Nádia Battella. Olhos nos olhos (Fernando Pessoa eClarice Lispector). Remate de Males, v. 9, 2012.

RIBEIRO, Claudia Gonçalves. A memória através do olhar do flâneur,Cadernos do CNLF, Vol. XIV Nº 4, t. 3, 2004. Disponível em:http://www.filologia.org.br/xiv_cnlf/tomo_3/2256-2267.pdf.Acesso em: 19 set. 2013.

PESSOA, Fernando. Revisão de Massaud Moisés. O guardador de

rebanhos e outros poemas. Editora Cultrix, 1997.

28