THE AESTHETIC EFFECT OF A DISSONANCE IN CHARLES BAUDELAIRE AND FERNANDO PESSOA
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O efeito estético da dissonância em Baudelaire e Fernando Pessoa
Gabriela Bento Coelho¹
¹ Graduada em Comunicação Social e Letras, mestranda no departamento de Letras - PUC-GO.
RESUMO
Este artigo propõe uma abordagem sobre a ressonância e adissonância quanto à percepção da realidade existente nospoemas “O Guardador de Rebanhos”, de Fernando Pessoa, e “Ossete velhos”, de Charles Baudelaire. Ambos os poemas sãoanalisados sob o olhar da teoria da recepção proposta porHans Robert Jauss e Wolfgang Iser.
Palavras-chave: Poesia, Recepção, Identificação, Leitor.
ABSTRACT
This paper proposes an approach to resonance and dissonance as theperception of reality existing in the poems "The Keeper of Sheep" andFernando Pessoa "The seven old" Charles Baudelaire. Both poems areanalyzed from the perspective of reception theory, proposed by HansRobert Jauss and Wolfgang Iser.
Keywords: Poetry, reception, Identification, Reader.
No presente artigo será tratada a relação da teoria do
efeito da leitura e a do texto com o leitor, tendo como
objeto de estudo o poema “ O guardador de rebanhos”, de
1
Fernando Pessoa, e “ Os sete velhos”, de Charles
Baudelaire. Sobre a teoria do efeito, Maria Angélica Freire
de Carvalho comenta no artigo O Texto e o seu Potencial
Comunicativo: “ (…) uma interação entre texto e leitor (…)
significa dizer que o texto indica os sentidos que se podem
produzir e, do mesmo modo, estimula atos de apreensão que
originam a sua compreensão.” ( 1999.p.1).
A teoria do efeito foi pensada por Wolfgang Iser, que
questiona o ato individual da leitura e “analisa o os
efeitos da obra literária provocados no leitor, por meio da
leitura”. (COSTA, 2011, P.4). De acordo com Maria Antonieta
Jordão de Oliveira Borba (2007, p.58), a proposta de Iser
“(...) volta-se para o exame das percepções do leitor em
contato com a obra, o que resultou na construção de um
aparato conceitual, do qual participam três paradigmas
basilares: o ‘pólo artístico’, ou estrutura verbal do
discurso da literatura; o ‘pólo estético’, correlato ao
leitor na construção da significação; as ocorrências do
trânsito entre os dois.” (COSTA, 2011, P.8)
Assim, é permitido dizer que o leitor se identifica e
é receptor dos temas contemporâneos a partir do momento que
também os experimenta em sua vida particular, ou à medida
em que os encontra na leitura. “O texto é um dispositivo a
partir do qual o leitor constrói suas representações. A
qualidade estética da obra literária está, portanto, na
‘estrutura de realização’ do texto e na forma como ele se
organiza, pois são as estruturas textuais que propiciam ao
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leitor as experiências reais de leitura”. (CARVALHO, 1991,
p.4)
No contato com a literatura, realizada durante o ato
de ler, é que o leitor se apropria e vivencia o efeito
estético da arte, uma vez que nessa relação há a presença
do conteúdo imagético, advinda do próprio leitor em
associação ao que é transmitido pela obra literária. “Ao
atribuir a noção de “imagem” ao significado, Iser descarta
a existência de uma semântica (...). Sendo “imagética” a
natureza do significado, somente quando o leitor entra em
contato com o texto é que se cria a condição facultativa do
“efeito” de uma experiência estética.” (DE OLIVEIRA , 2007,p.58)
Para Iser, a literatura se concretiza na leitura. Sobre
esse aspecto, Márcia Hávila Mocci da Silva Costa comenta em seu
artigo Estética da Recepção e Teoria do Efeito (p.8):
“Tal acepção provoca ambiguidade: a
literatura tem existência dupla, existe
independentemente da leitura, nos textos e
bibliotecas, e é potencial, pois concretiza-se
através da leitura. Para o teórico, o verdadeiro
objeto literário não é o texto objetivo e nem a
experiência subjetiva, mas a interação entre ambos.
A comunicação entre o texto e o leitor ocorre por
meio do diálogo, pois, “o texto ficcional deve ser
visto principalmente como comunicação, enquanto a
leitura se apresenta em primeiro lugar como uma
relação dialógica.”
Nesse sentido, o efeito da literatura seria a
percepção do leitor, a forma como as imagens do texto são
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“absorvidas” durante o ato de ler. Desse modo, o efeito
estético seria a reação do leitor ao interagir com a obra
de arte, podendo sentir estranhamento ou identificação. “ (…) no que diz respeito à valorização do texto
enquanto estrutura textual e à noção de
‘desfamiliarização’ ou ‘estranhamento’. O
estranhamento ocorre porque a literatura, ao
apresentar os fatos da vida, força a uma
consciência e revisão de expectativas; obra
literária desconfirma nossos hábitos rotineiros de
percepção e com isso nos força a reconhecê-los,
pela primeira vez, como realmente são.” (DEOLIVEIRA , 2007, p.59)
Conforme Maria Angélica, o autor realiza estratégias
textuais que possibilitam o rompimento com as expectativas
do leitor, “uma atualização de natureza perspectivística,
pois, como a totalidade do texto não pode ser realizada em
um só momento, não se pode fechar o sentido do texto.”
(idem, p.7)
Então, pode-se afirmar que o texto não caminha em uma
única direção, mas pode incorporar uma plurissignificação
atrelada à sua recepção, sendo, o leitor, um coprodutor da
obra-literária e o responsável pela atualização dos
significados por meio da leitura. Ao ler, o leitor atualiza
a compreensão do texto a partir dos seus horizontes de
expectativas e das perspectivas que se renovam durante a
leitura, num movimento em duas direções “para frente,
através da reformulação das expectativas e para trás,
reinterpretando o que foi dito” (2009, p.7)
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Diante do contexto apresentado sobre o efeito estético
da obra literária é que o estudo proposto analisa a
dissonância na poesia Os sete Velhos, de Charles Baudelaire, e
em O guardador de rebanhos, de Fernando Pessoa.
Para tal análise, primeiro serão abordadas as obras
separadamente para, depois, traçar um comparativo sobre
como a dissonância acontece nos dois poemas, bem como a
identificação do efeito estético no leitor .
Baudelaire e a percepção do real
O livro Flores do Mal, de Charles Baudelaire, publicado em
25 de junho de 1857, foi uma obra polêmica para a época,
sendo considerada imoral devido à sua temática permeada
pela obscuridade, pela paisagem urbana e por uma nova
linguagem. Sobre a obra de Baudelaire, Walter Benjamim
(1989, p.1) comenta em Sobre alguns temas de Baudelaire: “(…) se
propagou, sem cessar, na fama Flores do Mal (…)
transformou-se, no decorrer das décadas, em um clássico, e
foi também um dos mais editados.”.
Flores do mal é considerada, historicamente, uma obra de
ruptura que renova os padrões linguísticos, propondo uma
estética que salienta o período pré-industrial, a paisagem
fabril das cidades e a crítica aos valores burgueses. “Os
poetas formam um partido contra o público burguês (…) a
literatura repete o protesto da Revolução contra a
sociedade vigente, torna-se literatura de oposição ou uma
literatura do “futuro”, afinal uma literatura da
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segregação, com constante orgulho pelo isolamento.”
(FRIEDRICH, p.31).
Sobre esta nova proposta estética, Hugo Friedrich, em
a Estrutura da Lírica moderna, aborda: “A tensão dissonante é um
objetivo das artes modernas em geral.” (1966, p.15). A
renovada percepção provoca a estranheza no leitor e o
sentimento de incompreensão, libertando a poesia do plano
do significado “ (…) são tão imprevisíveis nas suas
significações que até mesmo ao próprio poeta o conhecimento
daquilo do sentido daquilo que compôs é limitado.”
(FRIEDRICH, p.19)
Martha D'Angelo em seu artigo A modernidade pelo olhar deWalter Benjamin (2006, p.1), afirma:
“Na modernidade, quando a significação de cada
coisa passa a ser fixada pelo preço, a poesia de
Baudelaire é fundamental pela apropriação que faz
dos elementos dessa cultura para revelar a dimensão
do inferno instalado em seu interior. A subversão do
sentido das palavras em As flores do mal é, segundo
Benjamin, uma forma de contraposição à reativação
do mito empreendida pelo capitalismo. A
desarticulação das relações espaço temporais,
intrínseca à modernidade, encontra na lírica de
Baudelaire uma forma de resistência. O tom
aparentemente enigmático de suas alegorias está
intimamente ligado à história, e é exatamente por
não transcender a história que sua poesia contém
enigmas e não mistérios.”
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Nesse contexto, Baudelaire passa a observar a
paisagem, as multidões das cidades e a ausência orgânica,
associadas a uma linguagem dura na “possibilidade da poesia
na civilização comercializada e dominada pela técnica.”
(idem, p.35) O autor denomina a sua poesia como o “
(…)propósito de não entregar à embriaguez do coração”
(idem, p.39), ou seja, recusar os sentimentos para criar
pela intelectualidade e lógicas matemáticas “ (…) uma nova
linguagem, de sentido obscuro” (idem, p.39).
A observação de Baudelaire é um flanar pelas ruas de
Paris que, num processo de percepção do real, consegue
transmitir as contradições sociais, o individualismo e as
imagens da urbanidade. “É a experiência hostil, ofuscante,
da época da grande indústria. O olho que se fecha ante essa
experiência, enfrenta uma experiência de tipo complementar,
como se fosse, por assim dizer, sua imitação, espontânea”
(BENJAMIN, 2000, p. 34). Martha D'Angelo complementa: “
Fugindo de uma normatividade marcada pela polarização do
homem e do cidadão, resistindo à divisão esquizofrenizante
do espaço moderno, Baudelaire veste a máscara do flâneur:
ele é ator e espectador ao mesmo tempo (…) ”.
Ainda sobre a experiência de Baudelaire, Walter
Benjamim acrescenta (2000, p.35): “Matiére et memoire define o caráter da
experiência na dureé (duração) de tal maneira que o
leitor se sente obrigado a concluir que apenas o
escritor seria o sujeito adequado de tal
experiência. (…) não tem a pretensão de transmitir
um acontecimento, pura e simplesmente; relação
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experiência. Nela ficam impressas as marcas do
narrador como os vestígios das mãos nos vasos da
argila.”
Sobre Baudelaire flâneur e a memória, Claudia Gonçalves
Ribeiro (2009, p.2266) conclui: “ Portanto, o fascínio pela
observação enquanto forma de vida presente (…) em Charles
Baudelaire poderia ser visto como instrumento capaz de
extrair impressões do passado, pois, em sua essência, a
memória seria a necessidade de narrar o acontecido, sendo
um fenômeno sempre atual: uma ligação entre o passado e o
eterno presente.”
Nesse sentido, Walter Benjamim explica como são as
experiências e memórias em Baudelaire, conforme o parecer
da psicanálise, cujo registro seria “o rompimento de
proteção contra os estímulos” (2000, p. 36).
“Quanto maior é a participação do choque em
cada uma das impressões, tanto mais constante deve
ser a presença do consciente (…) no interesse em
proteger contra os estímulos; quanto maior for o
êxito com que ele operar, tanto menos essas
impressões serão incorporadas à experiência, e
tanto mais corresponderão ao conceito de vivência.
Afinal, talvez seja possível ver o desempenho
característico da resistência ao choque na sua
função de indicar ao acontecimento, às custas da
integridade de seu conteúdo (…) o desempenho máximo
da reflexão, que faria do incidente uma vivência.
Se não houvesse reflexão, o sobressalto agradável
ou ( na maioria das vezes) desagradável produzir-se
–ia, sobressalto que, segundo Freud, sanciona a
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falha da resistência ao choque, Baudelaire fixou
esta constatação na imagem crua do duelo, em que o
artista, antes de vencido, lança grito do susto.
Este duelo é o próprio processo de criação. Assim,
Baudelaire inseriu a experiência do choque no âmago
de seu trabalho artístico” (BENJAMIM, p. 37)
Baudelaire aparava os choques espirituais ou físicos
de forma resistente e independente, de onde viessem. Tal
concepção foi crucial na sua poesia “trata das
intermitências entre a imagem e a ideia, a palavra e o
objeto” (BENJAMIM, p. 37).
O poeta é testemunha e vítima das angústias e anseios
da vida citadina, registrando as mudanças na paisagem,
captando uma Paris transformada pela modernidade.
“Permanecer incógnito, dissolvido no movimento ondulante
desse viver coletivo, ter suspensa a identidade individual,
substituída pela condição de habitante de um grande
aglomerado urbano, sem dúvida, foi a experiência vivida
pelo poeta francês. Paris trazia, naquele momento, as
condições da vida moderna (la vie parisiense).” (MENESES,
2009, p.65)
No universo baudelariano a poesia representa o estado
fragmentário do homem moderno:
“(…) significa o mundo das metrópoles, sem
plantas com sua fealdade, seu asfalto, sua
iluminação artificial, suas gargantas de pedra,
suas culpas e solidões no bulício dos homens (…)
época de técnica que trabalha com o vapor e a
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eletricidade e a do progresso (…) atrofia do
espírito(…) É dissonante, faz do negativo, ao mesmo
tempo, algo fascinador. O mísero, o decadente, o
mau, o noturno, o artificial, oferecem matérias
estimulantes que querem ser apreendidas
poeticamente(…) são paisagens inorgânicas do
espírito puro (…) o odor de alcatrão, estão cheias
de alegria e de lamentação e , por sua vez,
contrastam com as amplas curvas vibrantes de seus
versos. Extraídas da banalidade como drogas das
plantas venenosas, tornam-se…antídotos contra o
vício da banalidade… ” (FRIEDRICH, p.43)
Esse universo dissonante e desarmonioso que torna a
poesia de Baudelaire tão magicamente estranha e ressoa como
uma estética da lírica moderna. (FRIEDRICH, p.211) “A
realidade desmembrada ou dilacerada (…) os poetas (…)
exprimem de forma dissonante: (…) o indeterminado por meio
de palavras determinantes, o complicado por meio de frases
simples (…) o espaço ou a ausência (…), o arbitrário quanto
ao conteúdo por meio de formas sensíveis. Estas são as
dissonâncias modernas da linguagem poética.”
Os elementos dissonantes estão presentes na poesia de
Baudelaire, principalmente na sua conexão com a realidade
citadina, fatigada pelo modus operandi da urbanidade, pelo
individualismo e fragmentação do homem. “O fragmentarismo
permaneceu como uma característica da lírica moderna.
Manifesta-se, sobretudo, num processo que tira fragmentos
do mundo real e os reelabora muitas vezes em si mesmos, (…)
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o mundo aparece atravessado por linhas confusas.”
(FRIEDRICH, p.198).
Deste modo, a dissonância é a forma com que o poeta
afirma a sua percepção subjetiva da realidade, repletas de
elementos fantasmagóricos, absurdos, vazios, angustiosos e
negativos. Uma descrição que causa estranhamento no leitor:
“oferecem desespero, paralisia, voo febril ao irreal,
desejo de morte, mórbidos jogos de excitação.” (FRIEDRICH,
p.40). Para analisar os aspectos dissonantes da poesia
baudelariana foi escolhido o poema Os Sete Velhos que faz
parte do grupo de poemas “Quadros parisienses”.
A Dissonância em “Os Sete Velhos”
Sobre as observações de Baudelaire a respeito da
paisagem urbana, Claudia Ribeiro Gonçalves (p.37) comenta,
em seu artigo A Memória Através do Olhar do Flâneur:
“Na obra As Flores do Mal de Charles Baudelaire há as
poesias referentes aos Quadros Parisienses, onde o
autor destaca os indivíduos comuns desprezados pela
sociedade, pois a perspectiva baudelariana a
respeito dos marginalizados é perversa, não
acrescentado dignidade alguma a não ser estética
(…)”.
Em Quadros parisienses, as poesias tratam da descrição de
Paris e do cenário decadente da grande metrópole permeada
de negatividade, mistério e absurdo. Sobre o poema Os Sete
Velhos, Marcos Antonio De Menezes (2004, p.102) afirma:
“No poema Os sete velhos, do grupo Quadros
Parisiense, pode-se ler a luta do morador da grande
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cidade contra sua despersonalização. Aqui, o
cenário é descrito para dar mais cor à cena e
mostrar que só a nova cidade – que nasce do século
XIX – é capaz de provocar no homem o sentimento de
medo, angústia e despertença que invade corpos e
almas. Cidade e multidão aparecem fundidas uma na
imagem da outra.”
Baudelaire descreve a multidão na cidade que “formiga”
com as multidões. “(…) Uma reação estética: a velocidade
com que os transeuntes passam precipitados (…)”. Baudelaire
adentra a multidão “não descreve nem a população e nem a
cidade. (…) Sua multidão é sempre a da cidade grande”.
(BENJAMIM, p. 37). O poeta descreve a cidade com uma
presença fantasmagórica, evocando a feiura do cenário, onde
a névoa é humanizada e “emprestava brancor ” às casas da
paisagem.
Da presença fantasmagórica pode-se identificar a
desumanização. Os elementos como a seiva, o fantasma, a
névoa que empresta o espírito, a viela que vibra, são
elementos que adquirem qualidades e natureza próprias. “A
necessidade atua só no decurso ou na variação das tensões
abstratas. Só uma coisa é inequívoca: a ausência da
humanidade natural” (FRIEDRICH, p.190).
No verso 12 nota-se a presença inicial de uma
criatura, descrita de forma surreal e que evoca os
sentimentos deconcertantes, e que gradativamente, vai
aparecendo no poema. Essa presença cresce nas estrofes
seguintes, dotada de super capacidade e próxima do autor.
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“Baudelaire fala muitas vezes do sobrenatural e do
mistério. (…) A idealidade vazia, o outro indefinido (…)”.
(FRIEDRICH, p.49)
Cidade formigante, e que ao sonho se aviva,Em que o fantasma ao sol nos agarra o pescoço!O mistério por tudo é seiva que derivaNos estreitos canais do poente colosso.
No entanto, uma manhã em que na rua feiaAs casa, a que a névoa emprestava brancor,Simulavam dois cais de um rio em plena cheia,E em que, decoração como a da alma do ator,
Suja e amarela bruma enchia todo o espaço,Eu ia, os nervos meus com heróicas tensões,E discutindo com meu espírito lasso,Pela viela a vibrar dos graves carroções.
Os sete velhos, v. 1–12.
No verso 13 surge um “De repente um ancião cujas
pobres sacolas” que, a priori assemelha-se a um mendigo
chegando pela rua, mas que se transfigura ao ser descrito
como dotado de “fel nas pupilas brilhantes”, “barba como a
de Judas”, “curvo”, “quebrado e sua espinha dava na
perna”, com um bastão e três patas. Tal imagem é uma
criatura misteriosa que representa “os dois polos de
Baudelaire, tanto o mal satânico quanto a idealidade vazia,
têm o sentido de (...) fuga do mundo banal ( ...) não vai
além da excitação dissonante. ”
De repente um ancião cujas pobres sacolasImitavam a cor de um céu a tempestear,A cujo aspecto só choveriam esmolas,Se não fosse o rancor que ardia em seu olhar,
Surgiu tendo no fel suas pupilas molhadas;Enquanto aguça a neve, a das noites mais rudas,
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A sua barba imensa, esquia como espadas,Projetava-se assim como a barba de Judas.
Não era curvo mas alquebrado, a sua espinhaDava com sua perna exato ângulo reto,Tanto que seu bastão, que o seu cariz sublinha,Ia-lhe dando o ar, como o passo incorreto,
Os sete velhos, v. 13–23.
A multidão é um aspecto presente na poesia de
Baudelaire. O poeta é o “transeunte que se enfia na
multidão ( ...) o flâneur, que precisa de espaço livre e
não quer perder a privacidade” (BENJAMIM, p. 37). Dessa
forma, o poeta opera como uma figura à parte, excluída da
sociedade e deflagra o que o cerca de forma íntima,
inconsciente e distante dos fatos reais.
Do verso 24 ao 31, a multidão pode ser identificada
com a repetição da figura “judeu de três patas”. Um
verdadeiro monstro que lança, arreganha e pisa em mortos,
como uma criatura demoníaca. Isso demonstra que Baudelaire
“dá caráter dinâmico ao mal instintivo, transformando-o em
satânico, inflama as imagens de miséria (...). Capacidade
de transformação e desrealização do real”. (FRIEDRICH,
p.53)
Dois são os recursos que se repetem na poética de
Baudelaire e que estão presentes nesse poema, o sonho e a
fantasia, pois nos versos 31 e 32 o poeta afirma que a
presença de duas criaturas, advindas do inferno e antigas,
davam passos em direção a outros mundos. Mundos anímicos e
dualidades entre o real e o imaginário. “O mundo nascido da
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fantasia criativa e da linguagem autônoma é inimigo do
mundo real (…) linguagem de um mundo criado quase
exclusivamente pela fantasia que passa por cima da
realidade ou a aniquila”. (FRIEDRICH, p.202)
De um mórbido muar, de um judeu de três patas.Metias os membros seus na nevada e no lodo,Como quem está a pisar mortos com as sapatas,Lançando ao universo o arreganho do apôdo.Vinha outro: barba, olhar, costas, bastão, molambos,Eram em tudo iguais, do mesmo inferno oriundos,Centenários os dois, visões barrocas ambos,Iam com passo igual a misteriosos mundos.Os sete velhos, v. 24–31
As figuras demoníacas tomam forma mais definida e
demonstram uma relação com o tempo, “(…) que assume uma
função anormal (…) vem representar uma espécie de quarta
dimensão espacial, quando coisas separadas no tempo são
concentradas num único momento, ao qual corresponde um
único espaço figurado.” Visão onírica que começa como um
mendigo que, depois, se torna uma criatura deformada nesse
trecho tanto o leitor, como o poeta, não sabem do que se
trata. Advém, no mesmo momento, 7 figuras “monstros fatais
que tinham um ar eterno”. Nesse instante de tempo
compactado, o depoimento parece um sonho que desperta
incerteza e dúvida no leitor.
Em outro instante, o poeta parece ironizar a sua visão
absurda e onírica, e antes de olhar para uma suposta 8ª
figura (verso 43), dá as costas ao evento, como se o
rompesse, e movendo-se de encontro à realidade, acorda de
um sonho. Já no verso 44 o poeta esclarece que talvez essa
cena fosse resultado da embriagues, da natureza
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entorpecida. “o sonho é a capacidade produtiva, não
perceptiva, que (…) é sempre a produção de conteúdos
irreais. Pode ser (…) provocada por meio de estupefacientes
e drogas ou surgir de condições psicopáticas.” (FRIEDRICH,
p.204)
Nos versos 41 e 42 o poeta se descreve como “Frio e
enfermo, febril o espírito turbado” como se abandonado,
sozinho com a sua angústia, como se estivesse “ atrás da
consciência de estar condenado, faz-se sentir o gosto de
‘gozar voluptuosamente’ a condenação” (FRIEDRICH, p.47) .
Por fim, o poeta se lança novamente ao mundo onírico,
mas de forma menos satânica, como se, ao avesso da visão
inicial, tivesse transmutado a consciência e alterado o
estado emocional (versos 49 a 52). “ ... vê no grotesco o
embate da idealidade com o diabólico e o amplia (…)
absurdo. Deduz suas próprias experiências, e as do homem em
geral, dilacerado entre o êxtase e a queda (…) e enaltece o
sonho porque dota o que realmente é impossível (…) o
absurdo torna-se a perspectiva (…) para escapar das
opressões do real.” (FRIEDRICH, p.44)
Tinha eu diante do olhar um enredo poluto,Ou era a humilhação de um acaso perverso?
Sete vezes contei, de minuto em minuto,
A multiplicação e velho tão diverso.
Aquele que se ri dessa minha inquietude,Que não se vê prender de um frêmito fraterno,Pense bem que, apesar desta decrepitude,Estes monstros fatais tinham um ar eterno!
Teria posto o olhar num oitavo avantesma,Sem morrer, a este sósia, irônico e fatal,
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Fênix tremenda, mãe e filha de si mesma?- Mas as costas voltei ao cortejo infernal.
Bêbado que vê dois, assim exasperado,Voltei, fechei a porta e de susto transido,Frio e enfermo, febril o espírito turbado,Pelo mistério e pelo absurdo malferido!
Minha razão embalde ansiou suster-se à barra;A borrasca anulou meu empeno ao jogar,E minha alma dançava assim como gabarraSem mastros, por monstruoso e por infindo mar.
Os sete velhos, v. 32–52
Para concluir, pode-se dizer que o efeito estético de
Baudelaire habita na sua forma de desvendar o real de forma
negativa, angustiante e mórbida.
“Baudelaire fala ‘do prazer aristocrático de
desagradar’, ‘gosto apaixonado de oposição’ e um
‘produto de ódio’, saúda o fato de que a poesia
provoque um ‘choque nervoso’, vangloria-se de
irritar o leitor e de que este não mais o
compreenda. A consciência poética, outrora uma
fonte infinita de alegrias, tornou-se agora um
arsenal inesgotável de instrumentos de tortura. As
dissonâncias internas da poesia tornaram-se
consequentemente também dissonâncias entre obra e
leitor.” (FRIEDRICH, p.45)
O leitor que realizar a leitura de Baudelaire tem
contato com uma obra hermética que, para ser compreendida,
necessita de informações sobre seus pressupostos, pois a
poesia “ou atrai o leitor ou o afugenta” (FRIEDRICH, p.95).
O leitor de Baudelaire interage com o choque de uma
estética anormal, amorfa e libertária que o convida a
refletir sobre a realidade e os fatos sociais, bem como a
revisitar a sua própria filosofia de vida.
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Fernando Pessoa e o “Guardador de Rebanhos”
Fernando Pessoa, poeta português, é uma figura
polêmica dotada de multiplicidades e que deixou uma vasta
obra, repleta de poemas que se tornaram a alma da língua
portuguesa. O escritor criava heterônimos “com vida e
dicção próprias” (MOISÉS,1993, p.13). “(…) o desdobramento
de Pessoa em diversos autores fictícios, que se diferenciam
de simples pseudônimos ao mostrarem, aparentemente, uma
‘personalidade’ literária distinta do Pessoa ortónimo.
Entre os heterônimos contamos Álvaro de Campos, Ricardo
Reis e Alberto Caeiro.” (CARNEIRO, 2011,p.1).
Diante disso, Alberto Caieiro é o foco de estudo nesse
artigo. De acordo com Massau Moisés (1993, p.26), Pessoa
inventava, após a produção escrita, a biografia e a morte
de seus heterônimos. “Alberto Caieiro (…) nasceu em 1889 e morreu
em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a
sua vida no campo. Não teve profissão nem educação
quase alguma (.) não teve mais educação que quase
nenhuma – só instrução primária; morreram-lhe cedo
o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo
de pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha,
tia- avó.” (Moisés, 1993, p.26)
Caieiro é considerado por Fernando Pessoa como o seu
mestre, “porque afirma conseguir submeter o pensar ao
sentir, algo nunca alcançado por Pessoa. Apresenta-se como
estando tranquilo perante as angústias que afligem Pessoa e
os heterónimos. (…) vive sem dor ou desespero, porque
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sente sem pensar, e sendo assim, evita a angústia
existencial.” (CARNEIRO, 2011,p.1).
O mestre de Pessoa é conhecido como o poeta “natural”
(Moisés, 1993, p.27), estando perante a natureza, sem
pensamentos, sem o movimento cartesiano da vida urbana. Em
Caieiro, encontra-se ainda a pureza e a inocência de um
espirito não corrompido pelos padrões citadinos. Sobre
Alberto Caieiro, Massaud Moisés (1993, p.28) afirma:
“anseia ser poeta e nada mais, poeta ‘puro’ (…) entre ele e
a natureza, ou entre ele e sua naturalidade, se interpõe o
véu da palavra e, por consequência, do pensamento (…)
despojado de pensamento, reduzido à pura existência (…).”
A obra de Alberto Caieiro é composta por três
conjuntos de poemas. O primeiro é o “Guardador de
rebanhos”, composto por 49 poemas não intitulados,
identificados apenas com algarismos romanos. Nesse sentido,
serão analisado alguns dos poemas relativos ao Guardador de
Rebanhos.
Caieiro é o poeta objetivo que busca explicar a sua
relação com o mundo de forma anti-metafísica, cujo “eu do
poeta dialoga com os seus pensamentos/ideias e sensações”
(MOISÉS, 1993, p.30). Para ele basta conhecer, perceber,
ver a natureza sem a razão ou intelectualidade. O saber é
baseado no sentir “mas sentir e exprimi-lo em versos”
(MOISÉS,1993, p.31).“Caeiro procura, similarmente, livrar-se desistemas de verdades vigentes. Considera opensamento como estando impregnado por teorias deconhecimento prévias. Tem de se livrar destasteorias para chegar à pura sensação intuitiva das
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coisas. Quer livrar-se do “corredor” de modelos darealidade construídos por verdades préestabelecidas, para chegar às ideias diretamente.( CARNEIRO, 2011,p.19)
Como objeto de estudo, foi escolhido o poema VIII do
Guardador de Rebanhos, devido à riqueza de imagens e
paradoxos. Se analisarmos a produção de Caieiro sob o olhar
da fenomenologia, veremos que se identifica com a filosofia
anti-metafisica do heterônimo, pois “O fato de não se
partir de um sistema de verdades como as ciências naturais
não faz da fenomenologia uma doutrina mística. As essências
são reconhecidas pela intuição. O objeto é formado no
pensamento de forma intuitiva, é o dado original de
percepção.” (CARNEIRO, 2011, p.23).
Esse aspecto fenomenológico de como Caieiro percebia e
espontaneamente expunha a poesia. O autor fala de Jesus
Cristo como se esse fosse um menino comum. Identifica-o
como espelho de sua própria mentalidade e existência. Mesmo
com uma personalidade reconhecida como “pura”, do ponto de
vista ocidental, esse poema representa uma quebra de
paradigma com a religiosidade ocidental. “Ao ler os versos de Caeiro, o leitor esbarra numa
poesia que, a um só tempo, lança suspeitas aos
veredictos da razão e ratifica as certezas
cotidianas, as "verdades" fornecidas pelos
sentidos: verdadeira heresia à tradição ocidental.
A obra de Caeiro produz este efeito, como é de se
esperar, não por meio de um exercício ostensivo e
sistemático de reflexão (penso sem pensamentos),
mas através do confronto imediato, num contexto
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poético, entre o que existe (para os sentidos) e o
que é pensado:” (ALVES, 2008, p.163)
No poema, Jesus está perto do homem, era humano e
dotado também de sentimentos e insatisfações com a
realidade “divina”. “Caeiro sempre fornece uma receita, que
é receita nenhuma, é provocação, é poesia, é ver! As
fórmulas, ele não as guarda, faz questão de esquecê-las e
fica irritado com quem deseja rotular suas porções.”
(ALVES, 2008, p.172)
Esses aspectos podem ser observados, nos seguintes
trechos:
“Num meio dia de fim de primaveraTive um sonho como uma fotografiaVi Jesus Cristo descer à terra,Veio pela encosta de um monteTornado outra vez menino,A correr e a rolar-se pela ervaE a arrancar flores para as deitar foraE a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu,Era nosso demais para fingirDe segunda pessoa da Trindade.No céu era tudo falso, tudo em desacordoCom flores e árvores e pedras,No céu tinha que estar sempre sérioE de vez em quando de se tornar outra vez homem
Num segundo momento, o autor questiona a paternidade
de Jesus e, num tom infantil, analisa de forma objetiva a
genealogia crística e, ao mesmo tempo, nega qualquer
explicação mística. Dessa forma, Caieiro cria um
distanciamento e certa fantasia em relação aos
acontecimentos bíblicos. “Na fenomenologia pode-se
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recorrer à fantasia, mas não é no sentido literal do termo,
mas sim sentido de distanciamento do facto individual
empírico. Pretende-se chegar à essência e como tal, a
fenomenologia varia os factos circunstanciais em volta do
objeto, inclusive com a imaginação, independentemente do
facto concreto e individual.” (ALVES, 2008, p.173)
Caiero transcende o real e cria sua própria versão dos
fatos religiosos ao afirmar que Maria é uma mala e ao
questionar a exigência de Jesus amar e ser justo. O autor
propõe uma reflexão crítica a respeito da humanidade dos
personagens bíblicos. “Para muitos, tornou-se então irresistível
aproximar este pensar com o corpo, expresso na
poesia de Caeiro, com aafirmação de Merleau-Ponty
de que la science du monde quim'est donnée avec mon corps
(cito de memória): Na perspectiva fenomenológica,
esta consciência corporal adquirida no contato com
o mundo, "resolve" a dicotomia corpo/espírito em
termos de existência: o corpo é a forma primordial
do conhecimento.” (ALVES, 2008, p.172)
O tom provocativo ainda permanece e propõe uma reflexão sobre os padrões do cristianismo.
“Desse modo, não há mistério algum nas coisas,
cujo conhecimento dá se através do olhar. O homem
se engana, ao querer ver nelas mais do que aquilo
que se apresenta ao olhar. É possível, inclusive,
percebermos aí uma espécie de avesso da teoria das
correspondências de Baudelaire. Enquanto que, para
o poeta simbolista, a Natureza é um templo onde
vivos pilares deixam escapar, às vezes, confusas
palavras.” (DA SILVA, p.8)
Ainda sobre a relação do poema com a religiosidade:
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“ No poema VIII de O guardador de rebanhos
deparamo-nos com o espanto e a veneração. Na
leitura (…) a dessacralização de vários dogmas e
elementos cristãos (a trindade; a crucificação,
através de símbolos como a cruz e o prego; a
pomba ; as figuras de Maria e de José etc.) nos
causa um total espanto, principalmente, na segunda
estrofe, trecho em que há uma explícita negação de
preestabelecidos. Frases negativas, como E que não
era pai dele; Porque não era do mundo nem era
pomba; E a sua mãe não tinha amado antes de o ter;
Não era mulher: era uma mala. conotam um profundo
niilismo, em que, mais uma vez, as orações
negativas são utilizadas para reforçar sua
afirmação.” (DA SILVA, p.9)
Um velho chamado José, que era carpinteiro,E que não era pai dele;E o outro pai era uma pomba estúpida,A única pomba feia do mundoPorque não era do mundo nem era pomba.E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.”
Não era mulher: era uma malaEm que ele tinha vindo do céu.E queriam que ele, que só nascera da mãe,E nunca tivera pai para amar com respeito,Pregasse a bondade e a justiça!
Nos versos que seguem é interessante o aprofundamento
que o autor promove sobre as estratégias de tornar Jesus
Cristo um ser humano comum, dotado de malícia e de uma
inocência infantil, uma imagem bem diferente daquela em que
ele está crucificado. Alberto Caieiro, nesse sentido,
desmistifica o ser divino e o torna mortal, alegre e dono
de suas próprias escolhas que se interpõem acima de sua
missão divina.
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Um dia que Deus estava a dormirE o Espírito Santo andava a voar,Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céuE serve de modelo às outras.Depois fugiu para o solE desceu pelo primeiro raio que apanhou.Hoje vive na minha aldeia comigo.É uma criança bonita de riso e natural.Limpa o nariz no braço direito,Chapinha nas poças de água,Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.Atira pedras nos burros,Rouba as frutas dos pomaresE foge a chorar e a gritar dos cães.E, porque sabe que elas não gostamE que toda a gente acha graça,Corre atrás das raparigasQue vão em ranchos pelas estradasCom as bilhas às cabeçasE levanta-lhes as saias.
Nos próximos trechos, vê-se que a poesia de Caieiro “é
marcada pelo paganismo, e não pelo ateísmo; é uma crítica à
visão que o homem tem do divino, não do divino propriamente
dito; tem a intencionalidade de expressar mais
verdadeiramente o divino, se comparada à tradição religiosa
e filosófica, pois o vê de forma simples e natural.” (DA
SILVA, p.10)
A mim ensinou-me tudo.Ensinou-me a olhar para as cousas,Aponta-me todas as cousas que há nas flores.Mostra-me como as pedras são engraçadasQuando a gente as tem na mãoE olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus,Diz que ele é um velho estúpido e doente,
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Sempre a escarrar no chãoE a dizer indecências.A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia,E o Espírito Santo coça-se com o bicoE empoleira-se nas cadeiras e suja-as.Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Para Caieiro não há negação ao divino, mas o reduz a
própria natureza. Isso pode ser considerado um recurso de
crítica, mascarada pela personalidade “pura” do poeta. É essa crítica ao pensar que fundamenta suas
concepções religiosas. (…) Caeiro recusa o pensar
sobre o divino, pois para o poeta — que não admite
a existência de algo não sentido no mundo físico —
caso Deus exista, é a própria Natureza. É por ter
tais convicções que Caeiro resplandece uma
existência tão pacífica, capaz, inclusive, de
causar inveja aos demais heterônimos. Ao contrário
de Álvaro de Campos e Ricardo Reis, por exemplo,
Caeiro desconhece a angústia, o conflito interior,
pois, livre das instabilidades espirituais advindas
de ocorrências felizes ou funestas, está sempre em
paz consigo e com a Natureza. Assim é o espírito do
Mestre Caeiro, o Mestre de todos os heterônimos.”
(DA SILVA, p.10)
Conclusão
Ao analisar os poemas Os Sete Velhos e O Guardador de
Rebanho vê-se que a dissonância e o efeito estético
acontecem de forma distinta.
Em Os Sete Velhos, o efeito é do estranhamento por meio de
uma linguagem mórbida que evoca o mundo anímico e uma
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transcendência do real por meio de imagens oníricas,
inconscientes. Em Baudelaire, “em seu sistema estético,
estão relacionados grotesco, arabesco e fantasia; esta
última é a capacidade de movimentos abstratos do espirito
livre (…)” (FRIEDRICH, p.57). Em relação aos conteúdos, o
poeta francês trabalhava a “beleza dissonante, o
afastamento do coração do objeto, estados de consciência
anormais, idealidade vazia, desconcretização, sentido de
mistério, gerados nas forças mágicas da linguagem e das
abstrações absolutas.” (FRIEDRICH, p.58) Além disso, a
dissonância está presente na representação urbana, no
espírito boêmio e nas contradições da vida fragmentada em
uma metrópole como Paris.
Já em O Guardador de Rebanhos o estranhamento acontece
pela dissonância com que o autor, Alberto Caieiro, percebe
o mundo ao seu redor de forma pura, longe das influências e
do fragmentarismo citadino. Na poesia de Caieiro não há
espaço para os delírios místicos e nem para percepções
inconscientes. A temática acontece por meio da percepção
“crua” do real e da natureza, despojada de pensamento,
reduzida à simples existência. É por meio da
intelectualização que persegue a simplicidade das coisas
naturais – flores, regatos, árvores, fontes, etc. Seu
programa estético é a descrição do campo, da natureza e a
inspiração árcade.
Ao ler Baudelaire, o leitor experimenta a verdade por
meio da descrição alógica e anímica. A realidade boemia e
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entorpecida. Ao interagir com Alberto Caieiro, o leitor
penetra no mundo da objetividade em que não há buscas
existenciais e, sim, um ser explicado pela natureza
concreta e anti-metafísica.
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