Sobre Antonin Artaud: um ensaio inédito

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1 Sobre Antonin Artaud: um ensaio inédito Claudio Willer Escrevi ao final de 1982, no embalo da preparação de Escritos de Antonin Artaud (L&PM). Cheguei a pensar em agregá-lo ao livro. Desisti por dois motivos: seria muito, e não consegui concluí-lo. Dispersei-me por excesso e não por falta de idéias, de estímulo intelectual. Furor ensaístico. Agora, tento completá-lo, além de fazer algum copidesque. Bibliografia utilizada (ao final) é aquela à qual tive acesso na época, bem pouco com relação ao que dispomos agora. Vasculhei bibliotecas, onde achei Virmaux, Hayman e outros. E, além das edições francesas, da Gallimard, valeu-me, para consultas, a extensa coletânea de Artaud preparada por Susan Sontag que ganhei de Alberto Marsicano. Nela, a carta a Breton que cito. O poema-carta a Pierre Loëb, no ‘Poètes d’aujourd'hui’ da Seghers. Mas a maior parte do que cito do próprio Artaud, já havia traduzido e está em Escritos de Antonin Artaud. Antonin Artaud foi, acima de tudo, um ser expressivo. Toda a sua vida consistiu em um ato de amor pela linguagem e pela expressão. Quando afirma que “toda escrita é porcaria”, quando se volta contra a ditadura da palavra escrita e do texto nos manifestos do Théâtre Alfred Jarry e em O teatro e seu duplo, em um paradoxo aparente ao escrever contra a escrita, na verdade está defendendo e propondo uma linguagem livre, plena, capaz não só de falar do corpo, mas de expressar o corpo – e outros níveis da realidade dos quais, em nossa civilização, estamos alienados e separados. Como bem assinala Derrida, “o trabalho de subversão a que Artaud, desde sempre, submeteu o imperialismo da letra, tinha o sentido negativo de uma revolta enquanto se

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Sobre Antonin Artaud: um ensaio inédito

Claudio Willer

Escrevi ao final de 1982, no embalo da preparaçãode Escritos de Antonin Artaud (L&PM). Cheguei a pensarem agregá-lo ao livro. Desisti por dois motivos:seria muito, e não consegui concluí-lo.Dispersei-me por excesso e não por falta deidéias, de estímulo intelectual. Furorensaístico. Agora, tento completá-lo, além defazer algum copidesque. Bibliografia utilizada(ao final) é aquela à qual tive acesso na época,bem pouco com relação ao que dispomos agora.Vasculhei bibliotecas, onde achei Virmaux, Haymane outros. E, além das edições francesas, daGallimard, valeu-me, para consultas, a extensacoletânea de Artaud preparada por Susan Sontagque ganhei de Alberto Marsicano. Nela, a carta aBreton que cito. O poema-carta a Pierre Loëb, no‘Poètes d’aujourd'hui’ da Seghers. Mas a maiorparte do que cito do próprio Artaud, já haviatraduzido e está em Escritos de Antonin Artaud.

Antonin Artaud foi, acima de tudo, um ser expressivo.

Toda a sua vida consistiu em um ato de amor pela linguagem

e pela expressão. Quando afirma que “toda escrita é

porcaria”, quando se volta contra a ditadura da palavra

escrita e do texto nos manifestos do Théâtre Alfred Jarry e

em O teatro e seu duplo, em um paradoxo aparente ao escrever

contra a escrita, na verdade está defendendo e propondo uma

linguagem livre, plena, capaz não só de falar do corpo, mas

de expressar o corpo – e outros níveis da realidade dos

quais, em nossa civilização, estamos alienados e separados.

Como bem assinala Derrida, “o trabalho de subversão a

que Artaud, desde sempre, submeteu o imperialismo da letra,

tinha o sentido negativo de uma revolta enquanto se

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produzia no meio da literatura como tal.” (em “A palavra

soprada”). Com efeito,

[...] a primeira exigência de um teatro in-orgânico éa emancipação com relação ao texto. Embora sóencontremos o seu rigoroso sistema em Le Théâtre et sonDouble, o protesto contra a letra fora desde sempre apreocupação principal de Artaud. Protesto contra aletra morta que se ausenta para longe do sopro e dacarne. (idem)

Por isso, sua obra completa não consiste apenas na

enorme quantidade de textos editados pela Gallimard. Há

muito mais: seus desenhos (particularmente da última fase,

a partir de Rodez), as encenações teatrais, participações

como ator em filmes e peças de teatro, conferências e

apresentações públicas (é profundamente lamentável que

quase nada disso tenha sido gravado ou filmado),

fotografias (tanto as dele, Artaud, quanto as montagens

surrealistas que fez com Eli Lotar), até mesmo seu

comportamento no dia a dia. Em síntese, sua vida. Qualquer

dúvida sobre a identidade de obra e vida em Artaud é

resolvida com a leitura de testemunhos como o de Anaïs Nin

– por exemplo, a passagem em que encarna publicamente

Heliogábalo.

Nem poderia ser de outra forma: Artaud não apenas

jamais aceitou a separação de vida e obra, como também, em

repetidas passagens, observou que aquilo que poderia ser

designado como sua produção artística e literária era um

modo de refazer-se, de reconstruir-se, criar um novo corpo,

desde o “não tenho feito outra coisa senão recuperar-me” de

1927 até o “nada de boca / nada de língua / nada de

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dentes / nada de laringe / nada de esôfago / nada de

estômago / nada de ventre / nada de anus. / Reconstruirei o

homem que sou.” de 1947. Pois “Eu, Antonin Artaud, sou meu

filho, / meu pai, minha mãe / e eu” (Aqui jaz), pois “comigo,

é o absoluto ou nada” (Cartas de Rodez, carta a Henri

Parisot). E para isso, para restaurar “a grande lei do

coração” (idem), é necessária uma nova linguagem, que atue

como negação da linguagem do senso comum e da ordem

estabelecida; uma “retórica” especial:

E a arte consiste em levar essa retórica ao ponto decristalização necessário para formar uma unidade comcertas maneiras de ser, reais, do sentimento e dopensamento. Em uma palavra, o único escritor duradouroserá aquele de fazer com que essa retórica se comportecomo se fosse o próprio pensamento, e não um gesto dopensamento. (texto de 1925)

Fazem parte, portanto, dessa concepção abrangente da

arte as fotografias do próprio Artaud. São impressionantes.

Retratam sua expressividade nos diversos papéis como ator e

também fora do palco e da tela: a bela aparência nas fotos

de juventude, sua transformação em uma espécie de bruxo

desvairado com o passar do tempo, o rosto sofrido e

devastado quando voltou à tona depois dos internamentos.

Artaud fotografado de meio perfil por Man Ray em 1925; de

frente com um olhar apaixonado como o monge de Jeanne d’Arc; o

desvairado pai dos Cenci numa roupagem esquisita,

gesticulando no meio de um cenário mais estranho ainda; o

esquelético moribundo de 1947/48, no jardim ou no quarto em

Ivry. Vale a pena examinar esse material iconográfico;

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folhear, por exemplo, a revista Oblique (nº 10/11) ou o

Artaud and After de Ronald Hayman.

Foi no livro de Hayman que encontrei a foto mais

terrível de Artaud. Não é uma foto do próprio Artaud, mas

de um corredor: uma série de portas corrediças como as de

uma prisão, a parte de cima gradeada e envidraçada para que

todos possam ver o que se passa dentro dos cubículos. Um

corredor com seu assoalho de ladrilhos que vai dar em outro

corredor transversal, com o mesmo assoalho de ladrilhos, a

mesma série de portas gradeadas e envidraçadas na parte de

cima, dando para outros tantos cubículos, cada qual da

largura da sua porta.

A legenda da foto: “Corredor do asilo de Quatre-Mares,

Sotteville-les-Rouens, primeiro dos cinco asilos onde

Artaud foi internado entre 1937 e 1946. Esteve lá de

dezembro de 1937 até abril de 1938.”

O pavoroso mundo simétrico e organizado dos hospícios,

dos hospitais, das prisões, dos conventos e monastérios,

dos colégios e internatos, dos quartéis: invariavelmente a

mesma arquitetura de longos corredores com suas fileiras de

portas e seu chão de indefectíveis ladrilhos cinza, brancos

e pretos. Um mundo organizado, exato, onde cada detalhe e

cada momento da vida de seus ocupantes é administrado,

vigiado e controlado. O mundo no qual Artaud viveu por nove

anos da sua vida. Logo ele, contestador radical desse tipo

de mundo e de vida, empenhado em demonstrar que toda a

nossa civilização era uma extensão do universo carcerário e

hospitalar, uma sociedade de mortos-vivos controlada não só

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por penitenciárias, hospícios, escolas e quartéis, mas pela

ideologia que produz e justifica semelhante sistema.

Consegue-se adivinhar o penetrante cheiro de creolina

invariavelmente usada para lavar esses assoalhos de

ladrilhos e desinfetar as privadas. É possível imaginar a

exasperante regularidade da vida dos internados, a

monotonia da passagem do tempo: hora de acordar, de tomar

café, receber a visita do médico ou enfermeiro, sair do

cubículo para andar, hora de comer, de dormir, para no dia

seguinte começar tudo de novo. A vida com uma multidão de

infelizes igualmente acorrentados à prática do mesmo

ritual, eventualmente protestando, expressando seu

desespero e horror para imediatamente serem trancafiados,

postos em camisa de força, anestesiados ou paralisados por

eletrochoques.

Certamente o mais terrível dos lugares onde Artaud

esteve internado foi o hospício de Sainte-Anne, onde ficou

mais tempo, até 1943. Um hospício de pobres em tempo de

guerra, o país ocupado e seus ocupantes nazistas tendo por

princípio exterminar aqueles considerados loucos

incuráveis, categoria na qual Artaud estava incluído,

confinado no pavilhão dos irrecuperáveis junto com uma

esquelética multidão de famintos. Pois sabe-se que Artaud

passou fome, passou por muitas privações em Sainte-Anne (e

como deviam ser gelados esses corredores e cubículos no

inverno europeu); e por isso saiu de lá com a saúde

definitivamente arruinada. Nas cartas de 1943/44, sua

queixa mais freqüente ainda é de fome, que não lhe traziam

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o suficiente para comer, que queria pão, que os amigos lhe

mandassem alimentos, que não adiantava lhe mandarem

alimentos, pois não os recebia: “Por isso preciso de pão e

peço-lhe que me ache algum pão. – E a coisa que você pode

fazer por mim nessa terra, minha querida Annie, é mandar-me

o mais cedo possível um pouco de pão. – Pois isso é

urgente.” (carta a Anne Manson, 1944) “Vejo que você não se

dá conta do que é a vida de um internado num asilo de

alienados. Dão para o internado sua ração num prato e isso

é tudo. Faz sete anos que, nas minhas refeições, não como

mais que uma sopa e um legume.’ (Carta a Madame Artaud,

1944)

Se alguma vez na vida Artaud esteve realmente louco,

foi durante a estada em Sainte-Anne. Ao sair, esquálido e

aterrorizado, não falava, parecia não entender mais nada.

Louco de sofrimento, o que nada tem a ver com quadros de

referência psiquiátricos. Esteve efetivamente em risco de

vida e pouco faltou para que nunca tivéssemos a

oportunidade de ler obras como Van Gogh, o suicidado pela sociedade

ou as Cartas de Rodez. Seu amigo, o poeta Robert Desnos,

conseguiu tirá-lo de lá, utilizando expedientes para

atravessar a fronteira entre a França ocupada e a região

“livre’, a República de Vichy, onde fica Rodez. Logo em

seguida, Desnos, um dos maiores poetas franceses do século

20, seria preso pelos nazistas e confinado em Terezienstad,

morrendo de tifo enquanto as tropas americanas ocupavam o

campo de concentração.

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Cabe indagar: o que, precisamente, ele fez para ser

levado a Quatre-Mares, Sainte-Anne e demais etapas do seu

calvário? Afinal, nunca assassinou alguém; não roubou,

nunca bateu em alguém ou cometeu qualquer outra violência

física, não planejou ou executou atentados. Exceto tomar

ópio regularmente, nada que pudesse ser considerado crime,

ilícito penal.

O próprio Artaud dá a resposta:

Quando fui brutalizado, molestado e maltratado detodas as maneiras, não por causa do que eu fazia, poisnunca fiz nada para ninguém, nunca tive um gestoagressivo, nunca levantei a voz em lugar algum, massomente por causa do que suspeitavam que eu pensasse eque nem sequer pensava, pois a Administração e amedicina francesa são demasiado imbecis para sequerfazerem uma idéia verdadeira das idéias que eu possater sobre seja o que for [...] (Carta a Madame Artaud,1944)

Ou seja: o confinamento de Artaud, bem como as demais

restrições que ele sofreu ao longo de sua vida, tem razões

ideológicas. Devem-se, principalmente, a ele haver

encarnado plenamente o papel que atribuía ao artista

verdadeiro. Esse tem

[...] o dever social de dar passagem às angústias dasua época. O artista que não abrigou no fundo do seucoração o coração da sua época, o artista que ignoraser um bode expiatório cuja obrigação é imantar,atrair, fazer cair sobre suas costas as cóleraserrantes da sua época, não é um artista. (das suaspalestras no México)

Sabia muito bem qual seria o resultado desse confronto

ideológico, prevendo-o desde o momento em que se situou em

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um “ponto de vista nitidamente anti-social”, partindo do

princípio de que “todo ato individual é anti-social”.

A justificativa do seu internamento pela loucura não

resiste a uma análise mais atenta. Há um discurso fácil,

que consiste em explicar o comportamento e passagens dos

textos de Artaud através psiquiatria. Vários autores caem

nisso: Ferdière, por exemplo, na tentativa de explicar os

eletrochoques (ao que consta, dezenas de sessões, muito até

pelos padrões psiquiátricos ortodoxos). E outros com

melhores intenções, como Martin Esslin, que acha Artaud um

gênio, mas ao mesmo tempo observa que era louco; que

delirava, era contraditório, supondo uma contradição entre

loucura e genialidade.

Mas essa contradição não existe. A relação de loucura

e criatividade é muito mais de implicação que de

contradição ou antagonismo. Há que escolher entre uma

linguagem ou outra: ou se encaram certos fenômenos sob a

ótica psiquiátrica, ou sob a ótica da criação. Psicologizar

um criador – e escrever sobre a esquizofrenia, a paranóia e

a mania em Hölderlin, Nerval, Lautréamont ou Artaud – é

adotar uma postura reducionista. O contrário é mais

produtivo: por exemplo, o método utilizado por Gilles

Deleuze e Félix Guattari em O Anti-Édipo que consiste em

partir da esquizofrenia para esclarecer o funcionamento da

criação e do desejo. Essa mudança de perspectiva também

confere especial importância aos estudos de Maurice

Blanchot e Michel Foucault que tratam de Artaud.

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Uma grande contribuição de Artaud, por sua vez, foi o

modo como obrigou a essa mudança de perspectiva. A

linguagem da psiquiatria, destinada à compreensão de um

conjunto de fenômenos dentro de uma ótica específica,

mostrou-se impotente para falar de Artaud – e, por

extensão, da criação poética. Qual seria, então, a

linguagem adequada para falar de Artaud? É dessa

interrogação que parte o importante ensaio de Derrida, “A

palavra soprada”, mostrando que tanto o discurso clínico

quanto o discurso crítico se revelam insuficientes, pois

ambos o tratam como “caso”, ou seja, de forma reducionista:

[...] se o comentário clínico e o comentário críticoreivindicam por toda a parte a sua autonomia,pretendem fazer-se reconhecer e respeitar um pelooutro, nem por isso deixam de ser cúmplices – por umaunidade que reenvia, por mediações impensadas, à quehá pouco procurávamos – na mesma abstração, no mesmodesconhecimento e na mesma violência.

A obra de Artaud volta-se, justamente, contra as bases

filosóficas desses discursos:

Se Artaud resiste totalmente – e, cremo-lo, comoninguém o fizera antes – às exegeses clínicas oucríticas, é porque na sua aventura (e com esta palavradesignamos uma totalidade anterior á separação da vidae da obra) é o próprio protesto contra a própriaexemplificação. O crítico e o médico ficariam aqui semrecursos perante uma existência quer se recusa asignificar, perante uma arte que se quis sem obra,perante uma linguagem que se quis sem rasto. Isto é,sem diferença. [...] Artaud quis destruir umahistória, a da metafísica dualista que inspirava, maisou menos subterraneamente, os ensaios acima evocados:dualidade da alma e do corpo sustentando, em segredo

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sem dúvida, a da palavra e da existência, do texto edo corpo etc.

Há mais alguns argumentos, a meu ver, contra

interpretações de Artaud utilizando conceitos

psiquiátricos. Um deles é a amplidão do que seria a sua

loucura. O discurso clínico vê-se obrigado a recuar, não

diante da sua eventual normalidade, dos momentos de não-

loucura, mas sim do excesso, do caráter pleno dessa

loucura. Estudar Artaud revela quadros clínicos para todos

os gostos: quem procurar, encontrará sintomas e traços de

paranóia, histerismo, disritmia, mania, toxicomania,

neurose, entre outros. A loucura de Artaud, se avaliada

através dos sintomas, é múltipla – parecendo muito menos

coerente que seu pensamento e sua obra, e isso, pela

limitação dos paradigmas utilizados para classificá-la.

Outro argumento para questionar sua caracterização

como louco é o crescimento de seu texto, de Rodez em

diante, quando estaria supostamente mais delirante; mais

“alienado”. No entanto, ganha em qualidade literária: as

Cartas de Rodez, principalmente aquelas para Henri Parisot, e

textos como Van Gogh e a “Carta a Pierre Loeb” são

literariamente superiores ao que escrevera antes; têm mais

ritmo e vigor, como se estivesse mais solto, dominando

plenamente seu meio de expressão.

A explicação do internamento de Artaud pela loucura,

por apresentar um quadro clínico, não se sustenta,

portanto. Podemos utilizar o raciocínio empregado pelo

próprio Artaud a propósito de Van Gogh, quando, ao tratar

dos sintomas como cortar a orelha e queimar a mão, refere-

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se a uma “pura lógica direta”. Tais atos deixam de

pertencer aos anais da psiquiatria por sua “lógica”; por

terem sentido e serem demonstrações de coerência. O mesmo

vale para Artaud: seus aparentes sintomas são operações

semiológicas, dotadas de sentido.

É claro que qualquer sintoma de loucura também é uma

operação sobre a linguagem, utilizando de modo não-

convencional. Delírios, surtos e fantasias sempre têm

sentido, dizem algo que pode ser traduzido. No entanto, no

caso de Artaud – e de outros artistas-loucos – há mais a

ser levado em conta: o sentido se inscreve em um projeto,

formulado com clareza, levado adiante de modo consciente e

proposital. Isso leva Alain Virmaux a falar em

“prolongamento” da sua trajetória:

Essa necessidade de levar cada atitude a seu mais altograu de expressividade, sem medo de ultraje,caracteriza todas as épocas de Artaud e todos osníveis da sua existência. Particularmentedesconcertante para os outros na vida diária, ele secomportava do mesmo modo em cena [...] Os gestos queem Rodez eram atribuídos à sua demência (girar emvolta da sua cadeira, recitar fórmulasincantatórias ...) constituíam apenas o prolongamentode um comportamento arraigado há muito tempo. Não oexibicionismo pueril de um histrião doente pelo palco,como alguns afirmaram, mas deslocação permanente deuma vida desdobrada e que se torna para si mesma seupróprio teatro.

O projeto de Artaud consiste na ampliação do campo da

linguagem – e conseqüentemente do pensamento, da

consciência, do comportamento e das relações sociais –

através de operações de alteração e substituição de signos.

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Isso é destacado por seus principais comentaristas. Por

exemplo, Virmaux: “A palavra situa-se no âmago de todos os

confrontos que dilaceram Artaud. Não existe domínio onde

não apareça: ela alimenta as obsessões, fundamenta as

contradições [...]”

Isso fica mais claro se remontarmos á definição

clássica de signo, como algo que está no lugar de outra

coisa, que substitui algo a que designa. Ou seja: todo

signo da linguagem é uma máscara, mostrando e ao mesmo

tempo encobrindo outra coisa. Artaud quis arrancar as

máscaras, chegar até essa “outra coisa”, produzindo uma

linguagem que não apenas expressasse o pensamento, mas que

fosse pensamento e também corpo. A esse respeito, são

dispensáveis as citações: ao longo de toda a sua obra,

insistiu na insuficiência de uma linguagem puramente

cerebral, intelectual, em favor de uma linguagem mais efetiva

por também ser carne, ou seja, totalidade, concretude – e,

em seus últimos textos, Artaud fala explicitamente em

linguagem concreta. Desde O pesa nervos e com particular ênfase

na cartas de Rodez sobre Jabberwocky, passando pelos

manifestos do Teatro da Crueldade, a procura da outra

linguagem.

Semelhante procura é feita através de duas operações.

São a reiteração do mesmo, atribuindo concretude e peso aos

signos; e a busca do outro, substituindo o signo por algo

que lhe corresponde.

No primeiro caso, na primeira dessas operações, estão

todas as ocasiões em que Artaud conferiu um estatuto de

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realidade ou concretude a um signo. Anaïs Nin relata que

descobrira, ao longo de sua análise, uma atração profunda e

mal resolvida pelo próprio pai. Na mesma época, Artaud a

acusava de, efetivamente, transar com o pai, cometer

incesto. A fantasia, do incesto tomada como realidade. Na

mesma época, preparando Heliogábalo, o anarquista coroado,

encantava-se com o episódio da Pedra Negra, no qual o

símbolo passava a desempenhar a função que simbolizava. Ao

mesmo tempo, encarnava Heliogábalo, como se vê pelo relato

de Anaïs. Esse, por sua vez, acreditava ser a encanação do

deus Elagabalus. Na mesma categoria da concretização de

símbolos, todas as referências à Cabala, cuja essência

consiste, justamente, na atribuição de um valor fundante à

palavra; e histórias como aquela do bastão mágico irlandês,

encarnação (e não apenas símbolo) da sua obra poética, como

fez questão de sublinhar no prefácio de 1946 à edição da

sua Obra Completa.

No segundo caso, da substituição do signo pelo outro,

chegamos ao próprio cerne da obra de Artaud, àquilo que a

fundamenta: sua noção de duplo alquímico, entendido como

realidade mais profunda em correspondência com algum plano

manifesto ou aparente da linguagem ou da realidade (o que

dá na mesma, pois toda linguagem faz parte, de algum modo,

da realidade, e toda realidade é sígnica, existe como

linguagem, em algum nível). Esse é o fundamento de sua

reflexão sobre O teatro e seu duplo: a idéia de fazer que o

Duplo tome o lugar daquilo que o duplica.

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Um exemplo, sua viagem ao México e a descrição do rito

do peiote entre os Taraumaras. Viu-o como manifestação real

do Teatro da Crueldade, conforme um texto que vai sendo

reescrito, sucessivas vezes. E que se confunde com o teatro

da Crueldade na obra derradeira de Artaud, Para acabar com o

julgamento de deus.

Não se trata de substituição da representação (o

teatro) pela realidade (o ritual), como em Heliogábalo

(onde a realidade histórica se comporta como teatro), porém

de algo mais complexo: a substituição da representação, de

um conjunto de significantes, não pelo que é representado,

mas pela mesma representação, porém em um plano mais

profundo e verdadeiro. Artaud não utilizava uma lingüística

ingênua, acreditando que a cada signo correspondesse um

pedaço de realidade, por ele designado. Tampouco há

idealismo, nenhuma crença metafísica em um plano de

essências, verdades absolutas ou ocultas: “não acredito em

nenhuma noção, ciência ou conhecimento, e especialmente em

nenhuma ciência oculta”. (da carta a André Breton, de 1947)

Os dois planos – o Duplo e o duplicado – podem ter

relação com a noção freudiana do conteúdo manifesto e

latente. Tanto é que, em várias ocasiões, Artaud introduz

em sua argumentação o sonho e o pesadelo, caracterizados,

não como irrealidade, mas como realidade mais densa,

pesada, por isso opressiva e cruel: “Não se trata de

suprimir a palavra articulada, mas de atribuir às palavras

quase a mesma importância que elas possuem nos sonhos.”

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Já que foi mencionado o modelo freudiano de

interpretação de sonhos, cabe mostrar onde o papel do sonho

na obra artausiana difere daquele que lhe é atribuído na

psicanálise. Há uma divergência entre o surrealismo e Freud

que ilustra essa diferença: respondendo a uma carta de

Breton, convidando-o para uma exposição surrealista sobre

os sonhos e o inconsciente, em 1936, Freud observou que seu

interesse pelo sonho era de outra natureza, e não daquela

dos surrealistas, que o tomavam como criação artística e

material para exposições. Para Freud, o sonho interessava

como matéria para interpretações, conteúdo manifesto

remetendo a um conteúdo latente, a uma fantasia. Para os

surrealistas, não: eles não queriam interpretar, buscar

significados, mas operar com o significante.

Esse também é o papel do sonho na obra de Artaud.

Também queria operar ou atuar no plano do significante. O

sonho, bem como todas as demais manifestações do Duplo,

serviria para inquietar, perturbar, questionar a realidade,

a ordem estabelecida. O mesmo para o ritual: nunca foi

tradicionalista e se interessava pelo confronto, pelo

choque de culturas; e não pela restauração de uma cultura

tradicional. O culto solar a Elagabalus o atraiu por sua

capacidade de perturbar a civilização latina e a sociedade

romana, mais que como modelo. A peça A conquista do México é a

tematização do confronto, a épica do processo, e sua viagem

àquele país tinha que ter, necessariamente, uma ida e uma

volta, um duplo movimento: abandonar a cultura européia e

trazer a cultura indígena – ou então, expor publicamente

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sua transformação pessoal após passar por um ritual

iniciático, assim perturbando a sociedade parisiense. Nas

palestras mexicanas, a ênfase também é posta na

contribuição que a raiz indígena poderia trazer, como

cultura próxima da terra, questionando o cerebralismo

europeu. Estava voltado para o processo de transformação, e

não para entidades fixas, modelos e utopias.

Isso desanima alguns leitores de Artaud, que o acham

pessimista demais, pela ausência de utopias e tempos

pretéritos idealizados. Mas a questão não é essa: trata-se,

antes, de um tipo de ênfase; de atenção ao processo e não a

seu resultado. O pensamento de Artaud é dialético; mas a

sua é uma dialética sem final feliz. Na mesma medida, o

outro, o Duplo, não é sacralizado. Nada a ver, portanto,

com aquelas doutrinas místicas que propõem a recuperação do

oculto e primordial de um modo ascético e regrado. Mitos e

religiões, corpóreas e sexuais, interessavam na medida em

que contrapostas ás religiões do nosso tempo, às

ideologias, á noção de progresso. O tempo cíclico, não-

linear, puro movimento, contraposto a nosso tempo linear e

irreversível, à imposição de um sentido à história, seja em

nome de qual ideologia for, marxismo inclusive.

A proposta de Artaud é “arrebentar o real, desgarrar

os sentidos, desmoralizar ao máximo possível as aparências,

desgarrar as aparências”, e isso, pelo “caminho da perda”

(de suas palestras mexicanas). Portanto, quando se

dialetiza Artaud, é preciso observar de qual dialética se

trata: a da supremacia do movimento e da ruptura, condição

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prévia da sua concepção radical de revolução: “Existe uma

revolução que deve ser feita, desde que o homem não se

pense revolucionário só no plano social, mas que se

acredite, e fundamentalmente, que também o seja no plano

físico, fisiológico, anatômico, funcional, circulatório,

respiratório, dinâmico, atômico e eletrônico.” (da carta a

Breton de 1947)

O fundamento dessa dialética é, portanto, a

negatividade, como bem assinala Sollers:

Creio que na atualidade podemos reconhecer que, comrelação a um anti-hegelianismo que é uma tradiçãofrancesa bem conhecida [...] o que gira ao redor doconceito de negatividade é central. É igualmentesurpreendente que esse conceito de negatividade, tãodifícil de fazer surgir e pensar, tão difícil, ao queparece, de ser pensado inclusive pelos filósofos, éArtaud, e, como veremos, também Bataille, que permitempensá-lo com toda a sua força histórica, teórica,prática e política.

A dialética de Artaud, evidentemente distinta da

filosofia hegeliana da história, é formulada em nome de um

ideal de liberdade absoluta:

Vivemos sob um odioso atavismo fisiológico que faz comque, mesmo em nossos corpos, e a sós, não sejamoslivres, pois uma centena de papai-mamãe já pensaram eviveram por nós antes de nós, e aquilo que poderíamosencontrar de legitimamente nosso num dado momento, aidade dita da razão, a religião, o batismo, ossacramentos, os ritos, a educação, o ensino, amedicina, a ciência, apressam-se em nos arrebatar.

A fascinação de Artaud pelo incesto, presente em toda

a sua obra (Os Cenci, a acusação a Anaïs Nin, a biografia de

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Heliogábalo, o elogio à peça de Ford etc), mostra como ele

ia diretamente ao que importava. Em uma superficial

interpretação psicológica, um problema edipiano mal

resolvido. No entanto, sabemos, a partir de Lévi-Strauss e

Bataille, que o tabu do incesto é o fundamento da ordem

social e a base da estrutura familiar. Seu questionamento é

necessário para expressar “a revolta interior profunda

contra todas as formas do Pai, contra a preponderância

invasora do Pai nos costumes e nas idéias”. Essa negação do

Pai – do superego, do discurso, da palavra como absoluto e

“logos” – significa afirmar que “eu, Antonin Artaud, sou

meu filho, minha mãe e eu”; ou seja, dono da sua pessoa e

do seu discurso, pois “não tenho papai-mamãe / natureza /

espírito / ou deus / satã / ou corpo / ou ser / vida / ou

nada / nada que esteja fora ou dentro / e menos ainda / a

entrada do ser” (Aqui jaz)

A negatividade, a revolta total e a liberdade

absoluta, para serem formuladas e praticadas, requerem uma

determinada linguagem; uma “linguagem sem exterioridade”,

como acertadamente a designa Kristeva. Dela fazem parte os

fonemas não-semantizados e demais transgressões da

gramática e, evidentemente, também da lógica. No dizer da

teórica da Semanálise:

Tocar os tabus da gramática – talvez também daaritmética – é tocar o mandamento surdo a umasexualidade identificatória: a revolução da linguagemé uma travessia da sexualidade e de todas ascoagulações sociais (famílias, seitas etc) aderidas aela.

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Pode-se, então, reexaminar o que foi exposto sobre o

jogo intersemiótico de Artaud, suas trocas de signos. É uma

prática da linguagem sem exterioridade, sem nenhuma

transcendência fora dela. Seu propósito não seria dizer

algo, porém dizer mais, incluindo no campo da linguagem as

glossolalias salmodiadas, os gestos, sons, entonações da

voz, posturas, luzes, ruídos.

As trocas ou substituições de signos já comentadas – a

atribuição de concretude a um signo e a substituição do

duplicado pelo duplo – poderiam corresponder à metonímia e

à metáfora. Tomar a Pedra Negra como equivalente ao deus

Elagabalus ou uma fantasia de incesto pelo incesto seria

trocar o todo por uma das partes: uma metonímia. Afirmar

que as pessoas são conformistas por estarem enfeitiçadas,

assim descrevendo o poder da ideologia, ou dizer que Deus é

um ladrão instalado dentro da pessoa, roubando-lhe a

linguagem, assim descrevendo a alienação, seriam metáforas

ou alegorias.

Artaud recorre, constantemente, a imagens

ilustrativas: as epidemias de peste, o quadro de Lucas van

der Leyde, o filme dos irmãos Marx, a peça de Ford, em O

teatro e seu duplo. Seus poemas sobre Heloisa e Abelardo e

sobre Paolo Ucello, a peça Os Cenci, as histórias de

conspirações e enfeitiçamentos são, evidentemente, formas

de dizer algo, indo além do modo convencional desse dizer.

No entanto, não é totalmente correto afirmar quem ele se

expressa de forma alegórica e metafórica, como o fazem

alguns de seus estudiosos – Derrida e Virmaux, inclusive.

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Falar em metáforas e metonímias é responder ás questões

apresentadas pro ele de modo demasiado simples, equiparando

sua obra à literatura, que ele dizia abominar, e

atropelando sua própria lingüística, na qual tais

categorias não têm lugar.

As imagens em Artaud são de outra ordem. Quando diz

que está sendo enfeitiçado, não está comparando os modos

como se exerce o poder à bruxaria; não se trata de um

símile ou comparação de bruxaria e alienação. Na verdade,

usa a forma mais correta, ou, na sua terminologia, a

linguagem mais efetiva para dizer isso. Qualquer uma de suas

imagens é sempre aquela, por não ser possível haver outras,

por só assim algo poder ser dito com todo o seu peso; ou

seja, da forma mais cruel. Pode parecer um código muito

rígido, prevendo relações estritas entre os signos – e

assim é, de fato. Tanto que às categorias artausianas de

crueldade e efetividade vem sempre associada a de rigor.

A expressão do Duplo é rigorosa e obedece a regras

determinadas. Daí Artaud não ter simpatia pela escrita

automática e qualquer manifestação na qual interviesse o

acaso. Também por isso, encenações baseadas na improvisação

e na criação espontânea em cena não seriam teatro da

crueldade. Já o paralelo de sua prática com operações de

magia e a liturgia é correto, nesse sentido: havendo um

termo fora do lugar, uma palavra errada, toda a operação

fracassa.

Fica mais clara a razão do desprezo de Artaud pela

literatura: essa corresponderia a um sistema aberto, no

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qual substituições de significantes podem se multiplicar ou

desdobrar, pois sempre são possíveis novas metáforas,

palavras ocupando o lugar de outras (evidentemente, a

restrição não vale para a poesia de qualidade, na qual a

mudança de cada trecho ou vocábulo afeta o todo).

O sistema de Artaud, paradoxalmente, sendo muito

aberto, ao mesmo tempo é fechado, ou assim se pretende.

Quando substitui a fala sobre a peste por sua apresentação,

encenando-a, é porque só essa apresentação é admissível,

único modo de dizer aquilo por uma linguagem mais concreta

e efetiva, através da substituição da duplicação pela

concretude do duplo. O exemplo mais veemente desse

fechamento é dado por seu silêncio na palestra do teatro

Vieux Colombier em 1947. O silêncio, pois a única fala

efetiva naquele momento, observou, seriam as explosões de

bombas e rajadas de metralhadora: a expressão à altura do

que tinha a dizer.

Sabe-se que os dois pólos, metafórico e metonímico,

correspondem às duas operações detectadas por Freud em sua

interpretação dos sonhos, deslocamento e condensação, com

uma função de mediação entre o conteúdo latente e o

manifesto. Trata-se, portanto, de um paralelo ou analogia

da criação literária e da elaboração no sonho. Quando

Artaud, por sua vez, compara o Teatro da Crueldade ao

sonho, ao dizer que sua encenação deveria ser inquietante e

perturbadora como o sonho, apesar de não citar

explicitamente a psicanálise freudiana, antecipa o modelo

de Jacobson dos dois pólos da linguagem, metafórico e

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metonímico. Mas ao contrário: no lugar de um paralelo da

literatura com o sonho, sugere uma expressão muito próxima

ao sonho, substituindo a literatura convencional e,

especialmente, o que criticava como “teatro psicológico”.

No sonho, as imagens são determinadas: obedecem a uma

causação, têm uma lógica própria, pautada pelo mesmo tipo

de rigor que Artaud queria para o Teatro da Crueldade. Ao

mesmo tempo, no sonho as imagens são dinâmicas, cambiantes:

para ele, a dinâmica que a linguagem deveria ter.

Boa parte da bibliografia sobre Artaud é dedicada a

mostrar que foi um criador primordialmente voltado para o

teatro; que sua obra se dirigia para a expressão teatral.

Mas ele contradiz isso, afirmando que o teatro é um modo de

por em ação a poesia, em Heliogábalo e O teatro e seu duplo; e

definindo-se como poeta: “Este é o destino que a França

burguesa reserva a um poeta insurreto” nas Cartas de Rodez,

por exemplo. Trata-se de mais uma contradição aparente,

pois em várias passagens rebela-se contra a palavra

escrita, o predomínio do texto. Afirma que cada palavra é

irrepetível, só pode ser dita uma vez; e sua permanência na

forma escrita é opressiva, imposição autoritária da letra –

mais enfaticamente, em “Acabar com as obras primas” de O

teatro e seu duplo.

É uma prova de coerência o modo como Artaud sempre se

reescreveu, ao longo de toda a sua obra. Quando a Gallimard

decidiu organizar a edição da obra completa, quis refazer

alguns dos textos do Volume 1, a seu ver apócrifos. Já foi

mencionado como reescreveu, sucessivas vezes, o Teatro da

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Crueldade e a viagem ao México, até fundi-los em Para acabar

com o julgamento de deus.

Aspirava a uma linguagem de signos instantâneos, que

se manifestassem para, imediatamente serem substituídos por

outros. Signos efêmeros como as imagens do sonho, que mudam

constantemente, pois o inconsciente desconhece o princípio

da identidade.

Um teatro que se proclama poesia, uma poesia que não

quer ser texto escrito, porém consagração do instante,

embora feita de imagens precisas, efetivas e rigorosas. Que

estranha estética e que insólita teoria literária estão aí?

A obra, para Artaud, seria precisamente o refazer-se:

um texto que fosse um corpo, porém mutante, capaz de criar-

se e fazer seus próprios órgãos, como a árvore do corpo

descrita na Carta a Pierre Loeb, feita de “vontade que decide a

seu respeito a cada instante / pois era isso a árvore

humana que caminha”. O texto da vida, cambiante com “nervos

elétricos, chama de um fósforo permanentemente aceso”. E

incompreensível, pois “toda verdadeira linguagem é

incompreensível” (Aqui jaz), embora perturbador e efetivo.

Algo como o livro perdido, feito de fonemas não-

semantizados, a que se refere em uma das cartas de Rodez a

Henri Parisot.

Artaud como autor de uma obra em processo (lembrando a

boa expressão de Kristeva, “O sujeito em processo”),

mutante, mas ao mesmo tempo em busca de uma linguagem

concreta. Dialeticamente, nos fala de processos e relações,

não de coisas. Apenas como um dos exemplos, sua insistência

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nas fezes e na fecalidade, dominante nos derradeiros

textos: o “me cago no espírito” de Artaud, o momo; o “da

árvore corpo, mas pura quen éramos / fizeram esse alambique

de merda, esse tonel de destilação fecal, / causa da peste

e de todas as doenças” da Carta a Pierre Loëb, o “onde cheira a

merda cheira a ser” em Para acabar com o julgamento de Deus.

Imprecações e blasfêmias, sem dúvida. Ou, como

observou Susan Sontag, retomada do gnosticismo, doutrina

para a qual o mundo era o dejeto de um deus por sua vez

degradado. No entanto, pode-se observar que,

freqüentemente, utilizou a merda e o cagar como símbolos da

transformação. Não se refere apenas às fezes, mas chega a

falar em cagar seu próprio corpo, como meio de transformá-

lo, de ser outra coisa. Não apenas defecar, mas defecar-se,

expulsar-se inteiro de si mesmo. Pode-se lembrar, nessa

altura, a interpretação psicanalítica da história por

Norman Brown, em Life against Death, quando associa a formação

da sociedade capitalista à retenção fecal. Ou toda a

literatura psicanalítica ligando a formação do caráter e do

superego ao controle e retenção das fezes. Artaud queria

justamente o contrário: liberar, expulsar, botar para fora.

Para dizer isso, usou as imagens e termos mais crus e

diretos: os mais efetivos.

Cabe insistir mais ainda no caráter mutante dos

excrementos: resultado de uma transformação, e algo que

logo se transformará; que, de um modo ou de outro, deixará

de ser o que é. Pode-se confrontá-los com outro símbolo

forte em Artaud: o fogo – as chamas, as explosões, o

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fósforo aceso a que se refere em um trecho já citado.

Também mutante; também, e mais ainda, em processo de

permanente transformação.

Em qual disciplina ou campo do conhecimento essas duas

entidades, fogo e fezes, se confrontam e interagem? Na

alquimia – que, para Artaud, tinha valor de paradigma; daí

seu teatro da crueldade ser alquímico. A transformação

alquímica é celebrada no soneto Vogais de Rimbaud. Seria

produtivo projetar esse soneto, como se fosse um quadro de

referências, na obra de Artaud, para chegar a percepções e

interpretações adicionais.

TEXTOS CITADOS; ALGUMA BIBLIOGRAFIA:

ARTAUD, Antonin, Les Tarahumaras, Paris: Idées / Gallimard,1971;ARTAUD, Antonin, Messages Révolutionnaires, Paris: Idées /

Gallimard, 1971;ARTAUD, Antonin, Oeuvres Complètes, Paule Thévenin, org.,

Paris: Gallimard, Tome I, 1956, e subsequentes; CHARBONNIER, Georges, Essai sur Antonin Artaud, Paris: Pierre

Seghers, 1959;DERRIDA, Jacques, A escritura e a diferença, São Paulo:

Perspectiva, 1978;DUROZOI, Gérard, Artaud – L’aliénation et la folie, Paris: Larousse,

1972;ESSLIN, Martin, Artaud, São Paulo: Cultrix – EDUSP, 1978;HAYMAN, Ronald, Artaud and After, Oxford University Press,

1977;SOLLERS, Philippe, org., Artaud, Coloque de Cérisy-la-Salle,

Paris: UGE, 1973;SONTAG, Susan, org., Antonin Artaud – Selected Writings, Nova York:

Strauss, Farrar and Giroux, 1976;VIRMAUX, Alain, Artaud e o teatro, São Paulo: Perspectiva,

1978;

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WILLER, Claudio, organização e tradução, Escritos de AntoninArtaud, Porto Alegre: L&PM, Coleção rebeldes emalditos, 1983.