Saturno Devorando um Filho - Goya

17
Saturno Devorando um Filho Francisco Goya e Lucientes

Transcript of Saturno Devorando um Filho - Goya

Saturno Devorando um FilhoFrancisco Goya e Lucientes

Trabalho feito para a cadeira de História da ArteContemporânea I

por Joana Simão, nº7053, 2ºano Pintura

Sumário

Introdução 1Saturno Devorando um Filho 2

As Pinturas Negras 2Mitologia, Interpretação,

Comparação3

Conclusão 7Bibliografia 8Imagens 9

Introdução

“Prende os demónios e os monstros e prega-os às paredes

da que julga ser a sua última morada.”1

Estamos em 1819, quando Francisco de Goya y Lucientes,

já com 68 anos vividos na Terra, compra uma propriedade nos

arredores de Madrid, na margem do rio Manzanares, que mais

tarde foi apelidada de Quinta del Sordo, a Quinta do Surdo.1

1

Assumindo assim que esta vai ser a última fase da sua vida,

Goya decide deixar as suas ‘últimas palavras’ pintadas nas

paredes da sua casa.

Já na fase final da sua vida, já não responde a

encomendas de terceiros, e finalmente pode entrega-se à

pintura sem preocupações exteriores. “Nenhum público

continuará a interpor-se entre ele e a sua arte. Tentações

de facilidade que o talento e o êxito emprestam, infortúnio

e felicidade, suportou sucessivamente todas as provas

vulgares e ei-lo que defronta a prova das provas:

confronta-se, a sós, com a sua razão de existir, que é

pintar.”1

Mas Goya não estava sozinho. Partilhava a casa com a sua

governanta, Leocadia Weiss, que há quem afirme ser prima

afastada do pintor e/ou amante do mesmo, e com a filha

desta, ainda criança, Rosarito. Estas duas mulheres tiveram

grande influência nesta fase artística de Goya,

essencialmente a pequena Rosarito, a qual travava como se

fosse uma filha. Goya começa assim a decorar a casa à qual

tanto se afeiçoa, e nascem então as 14 obras que mais tarde

são chamadas de Pinturas Negras, à qual Saturno Devorando um

Filho pertence.

Saturno Devorando Um Filho

1 CHABRUN, J. F.- Goya (pag.204)

2

As Pinturas NegrasSaturno Devorando um Filho é uma das 14 pinturas a óleo, que

foram pintadas em 1819, nas paredes do interior da sua

casa, na sua propriedade em Quinta del Sordo.

Apenas em 1874 (até 1878), é

que foram transferidas para

tela. Se tal não tivesse sido

feito, já nada restaria destas

pinturas. Actualmente, estão

expostas no Museu do Prado. A

série foi apenas catalogada em

1828 por Antonio Brugada, pois

Goya não pôs título a nenhuma

das obras. Ao não catalogá-las,

não ter tido interesse em torná-las públicas, não ter

tentado sequer preservá-las, dá-se a entender que estas

pinturas foram pintadas para um público singular - o

próprio autor - o que torna assim as Pinturas Negras algo

muito mais pessoal.

Pouco se sabe sobre a razão de Goya ter dado uma

“decoração” tão sombria à sua nova casa. O mais fácil seria

afirma que era reacção de desespero e tragédia em relacção

à guerra, mas isso é pouco provável. A guerra já fora há 10

anos, e Goya já tinha deixado o seu testemunho sobre o tema

através d’ Os Desastres da Guerra. Poderá ter sido o estado

avançado da sua doença, da surdez total e definitiva, a

falta de fé na vida, ou problemas pessoais... não sabemos,

apenas temos o produto das causas.

3

Fig. 3 Quinta del SordoDisposição das pinturas negras.

O pintor que na sua idade madura descrevia nas suas

telas temas leves através de pequenas manchas de diversas

cores levemente sobrepostas, agora já envelhecido, deixa

escorrer cores mortas e secas pelo seu pincel, espalha

tinta incansavelmente pela parede, saturando e massacrando

o traço forte e expressivo das figuras caricaturescas que

cria. “Estas <<pinturas negras>>, como são chamadas, são um

desafio lançado à cor, uma negação do prisma solar, uma

fuga na noite. (...) Do fundo da noite, surgem ao longo da

parede outras visões mais distintas.”2

As pinturas foram executadas em cima de outras já

existentes de paisagens campestres, e isso consegue notar-

se em algumas obras como no Duelo a Bordoadas e Cabeças em uma

Paisagem. “Consegue-se quase imaginá-lo a encobrir as cenas

agradáveis que já estavam nas paredes com tinta preta e

transformando uma paisagem de montanha bucólica numa imagem

escura e de mau presságio.”3

Apesar da reputação sombria e terrível que estas

pinturas ganharam, é de notar que nem todas são frutos do

horror como Saturno Devorando um Filho. Algumas são mais

satíricas e irónicas, como os Dois Velhos. Porém, os temas

variam bastante entre todas estas obras, é difícil até

encontrar alguma conexão entre elas, apesar do estilo

técnico ser comum entre elas; consideradas bastante

modernas para o seu tempo, as Pinturas Negras reflectem já

traços expressionistas, que só se vai difundir no final do

século.

2 VALLENTIN, ANTONINA; Goya – A sua vida e obra (pag.271)3 WEEM, ERIC E. - The Black Paintings – Saturn Devouring his Son (website)

4

Esta série é considerada assim a obra mais negra de toda

a carreira de Francisco Goya., devido à grande carga

emocional que elas carregam e nos transmitem, através dos

seus temas violentos ou da sua técnica altamente expressiva

e forte.

Mitologia, Interpretação, Comparação

“São assim os homens”4, justificou

Goya a uma das raras pessoas que visitou

o pintor na sua Quinta, quando este se

impressionou com a verocidade de Saturno

(fig.4). Pintado numa das esquinas da

sala de jantar, entre janelas, um

temível gigante devora um corpo

ensanguentado e mutilado.

Saturno Devorando Um Filho ilustra um

momento clímax da lenda de Júpiter.

Saturno, equivalente a Cronos na mitologia grega, era o

senhor do Universo, e tinha sido avisado pelo Oráculo que

um dos seus filhos o destronaria. Assim, este decide

devorar todos os seus filhos, mal eles

acabam de nascer, tentando evitar a

profecia. Porém, um deles consegue ser salvo, Júpiter, que

mais tarde cumpre a previsão do Oráculo.

Saturno é representado numa forma grotesca, as

pinceladas fortes e carregadas deixam um contorno pouco

4 RAU, FERNANDO – Goya (pag.46)

5

Fig. 4 Saturno DevorandoUm Filho

definido, não dando assim muita importância à

proporcionalidade e fisionomia. Os olhos esbugalhados do

Deus que devora os seus filhos revelam a crueza do acto,

que por um lado mostra terror e medo, mas também violência

e sangue frio ao cometer este crime. Tons de ocre, o

vermelhão do sangue e da carne viva, marcam o contraste

acentuado entre as figuras e o fundo negro. Não só o acto

de canibalismo em si já é tremendo, como podemos notar que

o filho que Saturno devora tem um corpo de homem adulto,

porém em miniatura, tornando assim a imagem mais violenta e

perturbante. No esboço original (ver fig.5), o filho a ser

devorado estava numa outra posição, a ser devorado pela

perna, e quase conseguíamos ver o seu rosto. Saturno não

aparenta tão louco ou obcecado como no trabalho final, e

conseguimos ver a sua mão agarrando outro corpo, também

este adulto.

Há muitas especulações quanto à

mensagem que Goya escondia por detrás

desta obra, ou a razão que o levou a

pintá-la. A partir do conhecimento que

temos da sua carreira, Goya sempre

teve fascínio pelo surreal, fantasia e

mitologia5. O mais fácil de calcular

seria que esta obra fosse resultado do

5 Tal como se vê nas gravuras d’Os Desastres da Guerra. Algumas destas gravuras têm temas/personagens fantásticos e mitológicos, como por exemplo na fig1.

6

seu interesse pelo sobrenatural, mas isso seria de longe

muito superficial e ingénuo.

Segundo Freud, esta obra é uma provável analogia à

impotência que o artista sentia,

causada pelo seu estado decrépito e

enfraquecido devido à doença e ao estado avançado da idade.

O facto de ter uma provável relação com uma mulher mais

nova6, podia fazê-lo sentir-se fraco e gasto em comparação

à sua vitalidade. Também dum ponto de vista pessoal, há

quem relacione esta pintura com o a relação que Goya tinha

com o seu filho Xavier, o único dos seus 6 filhos que

sobreviveu até à idade adulta. Contudo, não se sabe se o

corpo sendo devorado é feminino ou masculino, mas é mais

provável e parecido com um homem.

Também se pode fazer uma possível interpretação dum

ponto de vista mitológico; Saturno, que na mitologia grega

corresponde a Chronos (ou Cronos), é o senhor do universo e

do tempo. Sendo assim, Cronos era o criador de tudo o que

existe e que pode ser relatado, e assim, a obra pode ser

uma alegoria ao facto de não podermos fugir ao tempo e ao

destino que nos espera.

Porém, as interpretações mais credíveis e populares são

as relacionadas com a política, guerra e com o estado de

Espanha que Goya tanto sofreu e assistiu.

É possível que a obra seja uma metáfora para o Estado, o

‘pai da nação’, que está a devorar os seus filhos, o povo;

Espanha passava por grandes dificuldades devido ao pós

guerra e ao pós invasões francesas, que deixou o país6 Leocadia Weiss, a governanta interna da Quinta del Sordo.

7

Fig. 5 Esboço inicial deSaturno

degradado e na miséria. Também pode ser uma crítica ao rei

da altura, o rei Fernando VII.

Mas como Goya nunca explicou nada acerca desta obra nem

de nenhuma outra das outras 13, qualquer interpretação que

façamos não passa de uma especulação.

As Pinturas Negras não levaram

qualquer acabamento ou verniz, não

tendo qualquer preocupação com a

conservação, como já disse

anteriormente, por isso é possível

afirmar que Goya não tinha qualquer

interesse em partilhar estas suas

criações com o público, e muito menos

que eles as entendessem.

Esta pintura de Goya muitas vezes

foi comparada a uma com o mesmo tema,

mas pintada por Rubens, em 1636 (ver fig.6).

Este mito pintado por Rubens apresenta um carisma muito

mais descritivo e ilustrativo, e apesar da imagem ser

explícita, não é tão crua como a de Goya. O estilo

influencia bastante, enquanto Rubens provavelmente apenas

queria ilustrar o mito, Goya como já sabemos tinha

frustração e raiva carregadas na tinta e no pincel.

Em Rubens, a imagem consegue ser

violenta mas delicada, talvez pela

escolha da paleta e pela forma das pinceladas, mas suaves e

diluídas, enquanto Goya não teve qualquer problema em

8

Fig.6 – Saturno, Rubens(1638)

espalhar e empastar a tinta contra a parede. No entanto,

enquanto que na versão de Goya, Saturno devora um homem

adulto, na versão de Rubens conseguimos ver claramente um

bebé carnudo e palpável, ao qual a vida está a ser

arrancada, atraíndo automaticamente a nossa atenção e pena.

É impossível ignorar o sofrimento na expressão dele,

enquanto que na de Goya, a vítima nem tem cabeça, aparenta

ser apenas um cadáver sem vida, sendo devorado por um

monstro desumano; “É o princípio e o fim de todas as

coisas. Uma pequena vida humana está inerte e suspensa,

exposta aos assaltos das fomes eternas”7. Em Rubens, a

nossa atenção é focada em torno de duas personagens, o bebé

indefeso que é brutalmente consumido, e no homem cruel e

desumano que o devora sem parecer ter qualquer remorso.

Conseguimos ver a maldade na sua expressão, como quem

comete um crime propositado e consciencializado, ao focar

os olhos no bebé que ele próprio está a assassinar. Já na

versão de Goya, o cadáver (talvez por não ter rosto?) não

sobrepõe o protagonismo de Saturno, que nos hipnotiza com

os olhos grandes, brancos e esbugalhados, aterrorizados,

como se lá no fundo soubesse do crime e ultraje que estava

a cometer. Este Saturno parece-nos brutalmente desesperado,

louco, completamente guiado pela obsessão e ferocidade e

instinto.

De acordo com a maior parte dos críticos, a versão de

Rubens é muito mais aterrorizadora que a de Goya. Porém, na

minha opinião como espectadora, a versão de Goya aflige-me7 VALLENTIN, ANTONINA – Goya – A sua vida e a sua obra (pag.272)

9

e impressiona-me muito mais. Talvez seja pelo significado

que tenha por detrás, das possíveis interpretações que

tenha, mas a maneira pela qual foi pintado, a expressão e

horror, perturba-me muito mais do que o belo-terrível de

Rubens.

Conclusão

“Um poder de evocação sem igual revela-se prodigamente

naquele eterno símbolo da crueldade: Saturno devorando os

próprios filhos.”8

Saturno tornou-se assim uma das obras mais aterradoras e

impressionantes de toda a carreira de Francisco Goya, não

só pela técnica e pelo seu grafismo, mas também pela

possível mensagem e significado.

8 VALLENTIN, ANTONINA – Goya – a sua vida e a sua obra (pag.271)

10

Mas é impossível falarmos de Saturno sem referir as

restantes Pinturas Negras, com as quais o pintor conviveu

durante anos. E durante anos viveu lado a lado com pais que

devoravam filhos, feiticeiras, homens e mulheres

revoltados, damas misteriosas.“Os seus demónios são-lhe

familiares, como os monstros domesticados o são aos

ilusionistas que o comandam; mas Goya sabe que só a ele o

são e que podem, no entanto, fascinar qualquer pessoa...” 9

Pode-se tomar assim Saturno e todas as outras Pinturas

Negras como uma forma de expulsão que Goya fez dos demónios

que o atormentavam desde sempre, estes mesmos demónios que

se reflectiram nas suas séries Os Caprichos e Os Desastres da

Guerra.

Quanto à sua técnica, facilmente associariamos ao

expressionismo devido à pincelada forte e expressiva, aos

altos contrastes e às cores fortes e berrantes, mas é uma

corrente artística que só se vai difundir umas décadas mais

tarde, tornando assim Goya como uma espécie de

vanguardista. Inicialmente um pintor clássico, o seu

‘expressionismo’ deve-se ao improviso e à despreocupação da

sua última fase, na Quinta do Sordo. ‘Vejo apenas planos

que avançam e planos que recuam, relevos e depressões.. Na

natureza a acor não predomina sobre a forma; dêem-me um

bocado de carvão e far-vos-ei um quadro; pois toda a

pintura está no sacrifício e na intenção”, são as palavras

do próprio Goya acerca da sua arte.10 Separando-se assim

9 CHABRUN, J.F. – Goya (pag.205)10CHABRUN, J.F. – Goya (pag.230)

11

das têndencias romanticas e impressionistas, Goya foi dos

primeiros pintores a defender que a arte devia ser uma

experiência de sensações e uma reflexão do estado de alma.

Saturno nasceu assim como um desabafo, uma libertação e

uma obra prima do pintor espanhol Francisco Goya y

Lucyentes.

Bibliografia

SOTO, VICTORIA (12/2001)Dicionário de Pintura do Século XIX.

Lisboa: Editorial Estampa,

GOMBRICH, E.H (2000) A História da Arte, LTc.

CHABRUN, J.F (1974) Goya, Editorial Verbo

RAU, FERNANDO (1953) Goya, Edição do Autor

VALLENTIN, ANTONINA (ano) Goya – A sua vida e a sua obra

CIVITA, VICTOR (1997) Mestres da Pintura – Goya (1997),

Abril Cultural

Online: Abstracção Colectiva (2012) Francisco Goya |

Biografia e obra. Disponível em:<

http://abstracaocoletiva.com.br/2012/11/01/francisco-goya-biografia/>

Wikipédia, Los Desastres de la Guerra. Disponível em:<:http://pt.wikipedia.org/wiki/

Los_Desastres_de_la_Guerra>

Wikipédia, As Pinturas Negras. Disponível em:<http://pt.wikipedia.org/wiki/Pinturas_negras>

12

Wikipédia, Saturno Devorando um Filho. Disponível em:<http://pt.wikipedia.org/wiki/

Saturno_devorando_a_un_hijo>

G. Fernández, Las Pinturas Negras. Disponível em:<http://www.theartwolf.com/

goya_black_paintings_es.htm>

Eric E. Weems (1997-2006) The Black Paintings – Saturn Devouring his Son. Disponível em:

<http://eeweems.com/goya/saturn.html>

Imagens

13

http://en.wikipedia.org/wiki/File:Francisco_de_Goya,_Saturno_devorando_a_su_hijo_(1819-1823).jpg

Saturno devorando um filho (1819-20)

http://en.wikipedia.org/wiki/File:Quintasordo.svg

Quinta del Sordo, em Madrid

14

http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Self-portrait_at_69_Years_by_Francisco_de_Goya.jpg

Auto-retrato aos 69 anos

http://en.wikipedia.org/wiki/File:Rubens_saturn.jpg

Saturno – Rubens (1636-1638)

15

http://eeweems.com/goya/saturn.html

Esboço para Saturno Devorando um Filho (1819-1820)

16