RIBEIRO Renato Janine org Recordar Foucault

125
IC ." " .' . . ' , '. . . f, ••

Transcript of RIBEIRO Renato Janine org Recordar Foucault

, ·IC ." " .' . . '

, '. ~ . .

• • f, ••

"

L~~_~

• Ao Leitor sem Medo - Hobbes escrevendo contra o seu tempo - Renato Janine Ribeiro

• Crime, Violência e Poder - Paulo Sérgio Pinheiro (org.) • Elegia Erótica Romana - Paul Veyne • Escritos Indignados - Paulo Sérgio Pinh~iro • Literatura como Missão - Nicolau Sevcenko • Nietzsche Hoje? - Scarlett Marton (org.) • A Ordem Médica - Jean Clavreul • Passeios ao Léu - Gérard Lebrun • Pornéia - Aline Rousselle • Repressão Sexual - Essa nossa (deslconhecida - Marilena

Chauí • Sade, Meu Próximo - Pierre Klossowski • Terra Sem Mal - O profetismo tupi-guarani - Hé/(me C/astres

Coleção Primeiros Passos

• O que é Poder - Gérard Lebrun

Coleção Tudo é Hist6ria

• A Etiqueta no Antigo Regime - Renato Janine Ribeiro

. ,

, I ~,

Renato Janine Ribeiro (orlo)

I

~ .,

Recordar Foucault Os textos do Colóquio Foucault

0111 °Vi f ~

j 1985

.1 -.J

f

\

Copyright © dos Autores

Capa: João Baptista da Costa Aguiar

Revisão: José W. S. Moraes Lenilda Soares Mârcia Copola

_._-~-----

, iJFR~S/SCrascSH A "'O' ,,' .De- o .-< 1' .. ,.q,./~4V,.,;..,.O I \ ~C.evu . (

'r(';:'~:o,,,.,.:;: Enrp!/)lIoo:

~'~ :!.fr~"\ \.V.i '~~;~A~~ F:cCQi:

,'- :':,ço , 2-0 -0-0

;""\1.: J 6J 41-4 Dal .. :}Joog-DV

.n3'!itutol\;u~! j FCH

-- -----------

l~ lUU Editora Brasiliansa S.A. R. General Jardim, 160 01223 - São Paulo - SP Fone (011) 231-1422

t;'_

J r, r 1 ~: '-.,'

.'~ '7 () I'C'" IV

/)

~ . ' ~ ,- ~' .. J •

Lomce~ ____ ~ ________ _

Apresentação - Renato Janine Ribeiro. . . . . . . . . . . . .. . 7 Transgredir a finitude - GérardLebrun' .. . ; :0_. . • •• • • • 9 O discurso diferente-RenatoJanine Ribeiro . ... ; ... 0 •• - 24· Foucaultleitor de Nietzsche - Scarlett Marton ........ 36 Nas origens da História da Loucura: uma retificação e seus

limites - Pie"e Macherey ..................... 47 A corporeidade outra -José Carlos de Paula Carvalho .. 72 Uma arqueologia inacabada: Foucault e a psicanãlise -

RenatoMezan ... ;'........................... 94 A loucura antes da história -JoãoA. Frayze-Pereira . . .. 126 História e doença: a partitura oculta (A lepra em São

Paulo, 1904-1940) ....,.italoA. Tronca .............. 136 , O Alienista de Machado,de Assis: a loucura e a hipérbole

-Luiz Dantas ... _ ... :' .... _ . : .. ' ... ': ..... '. ' .. '. '. '144 .. A vinha e a rosa: sexualidade e simbolismo em Tristão e

Isolda -Hilário FrancoJr . ..................... 153_ Charles Baudelaire: o discurso em desordem - Nicolau

Sevcenko . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 186 O lugar das instituições na sociedade disciplinar - Salma

TannusMuchail .......... _ ................... 196 Genealogia e política - Antonius Jack Vargas Escobar .. 209 De Eva a Santa, a dessexualização da mulher no Brasil-

L. Margareth Rago ........................... 219 O castigo exemplar dos escravos no Brasil colonial -

SilviaHunoldLara ............................ 229

..J

rf Foucault: levantamento bibliográfico de artigos e perió­

dicos - Márcia C. Sampaio Ferraz, Vera Lúcia Jun­queira, Márcia N. dos Reis Carvalho e Eunice do Vale 239

I

1 ~. ",,". ". " \.. ~; ",I

l 1.~". _ 'i., W : :~f~

ApresentaçãoOL.. _____ _

Michel Foucault faleceu em junho de 1984. Estava em plena produção intelectual, e sua morte foi muito sentida -inclusive no Brasil, onde, das vezes em que esteve, deixou amigos, admiradores e idéias. Em São Paulo, especialmente, lecionou duas vezes no Departamento de Filosofia da USP, uma em 1965, na rua Maria Antônia, outra em 1975, já na Cidade Universitária - interrompendo este segundo curso em protesto contra atos de repressão policial. Também deu con­ferências, acorridas, no Rio de Janeiro.

Para lembrá-lo, O Departamento de Filosofia da USP promoveu um Col6quio sobre a sua obra e os seus temas, de 15 a 20 de abril de 1985, com O apoio da FAPESP e da Bra­siliense Produções Culturais. Este volume publica parte dos trabalhos apresentados ao Col6quio Foucault, que teve a par­ticipação de quarenta pesquisadores, comunicando-se seus interesses, discutindo suas inquietações.

Recordar Foucault, para n6s, não é porém pagar uma dívida da instituição com O visitante: é marcar a nossa proxi­midade de um pensamento que não nos proporcionou apenas conhecimentos, infundiu-nos, também, inquietações - que são a consciência de nossos desconhecimentos. Não é esta uma velha obsessão filos6fica, a de saber-se que não se sabe? De S6crates a Hobbes, a Merleau-Ponty, entre tantos outros, a paixão de conhecer esteve ligada a uma depuração, a um des­prendimento; a douta ignorância, os elogios da curiosidade e dafilosofia marcam uma ascese - que é um processo de vida.

""

'f

i

8 APRESENTAÇÃO

Este moto perpetuo da curiosidade, que consiste em desfazer as figuras que se construiu, desfazê-las com tanto rigor quan­to se pôs em edificá-las, é um dos sentidos fortes, para n6s, do que é pensar. Há, certamente, muitos estilos de pensamento e filosofia; neste proprio livro aparecem vários, distintos; mas a cercania que temos de Foucault está neste amor a um pensa­mento que, como o de Heidegger (O que significa pensar?), jamais se reduziu à mera razão, a um trabalho de obra que nunca restringiu a descoberta em favor da exposição, neste amor, enfim, à descoberta que faz e desfaz. Pudéssemos n6s, antes de passarmos às falas sobre Foucault, fazer nossas as frases dele, perto de morrer, na bela página em que resume o que entendeu por filosofia:

O motivo que me impulsionou [a escrever este livro] foi muito simples. Para alguns, espero, este motivo poderá ser suficiente por ele mesmo. É a curiosidade - em todo caso, a única espé­cie de curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de obstinação: não aquela que procura assimilar o que convém conhecer. mas a que permite separar-se de si mesmo. De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aqui­sição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para se continuar a olhar ou a refle­tir. ( ... ) O "ensaio" - que é necessário entender como expe­riência modificadora de si no jogo da verdade, e não como apropriação simplificadora de outrem para fins de comunica­ção - é o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma "ascese", um exerclcio de si, no pensamento. (O uso dos prazeres, trad. Maria Thereza Albuquerque, Rio de Janeiro, Graal, 1984, p. 13)

Renato Janine Ribeiro Organizador do Colóquio Foucault

Este é o momento de agradecer: à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, pelo auxilio que proporcionou ao Colóquio; a Marilena Chaui, pelo impulso; a Jorge Coli, que se deu ao trabalho de transcrever, pelo telefone internacional, a comunica­ção de Luiz Dantas, para que chegasse a tempo; a Djalma lsidoro de Mello, a Scarlett Marton, aos funcionârios do Departamento de Fi­losofia da USP e a todos os que apoiaram o Col6quio, trazendo-lhe os seus textos e idéias, a sua curiosidade ou a sua atenção.

v

""'oO'.:- •. ~: I

~ . ,.... j ,O'f ~,_,

Transgredir a tinitude Gérard Lebrun*

F oucauit descreve em várias ocasiões, e sob vários enfo­ques, a grande ruptura que ocorre na cultura ocidental ao passar-se do século XVIII para o XIX, quando desaparecem os saberes da "Representação" (Gramática Geral, História Natural, Análise das Riquezas). Durante a "idade da repre­sentação", era óbvio que conhecer consistia em reconstituir o encadeamento das naturezas simples, ou o encaixamento das espécies naturais. Também era óbvio que a ordem das coisas, já por seu princípio, era passível de desdobrar-se num quadro. Conhecer era ver, "no sentido de perceber". E, mercê do bom uso do Método, esse saber não passava, em todos os domínios, da contínua supressão da distância - aliás puramente apa­rente - entre a representação e o ser. Ora, é essa aliança que se rompe quando emergem, desligados da Representação, es· tes objetos novos que são a Vida (para a biologia), a lingua­gem (para a filologia), o trabalho (para a economia política), e se dissolve "o campo homogêneo das representações ordena­das" . 1 Tudo então se modifica, a começar pelo sentido do co­nhecimento-visão: ver será "conservar, da experiência, a maior

(*) Da Universidade de São Paulo. (1) Les mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966, p. 255. (As citações

são traduzidas do francês, diretamente; damos, porém, 'quando possrvel, a pá­gina da tradução disponivel em português - neste caso, As palavras e as coisas, Lisboa, Portugâlia Editora, 1968, pp. 318-319 - N.T.)

rI

I 1

10 TRANSGREDIR A FINITUDE

opacidade corporal" possível, e "penetrá-Ia com um olhar que nunca lhe traz mais que a sua própria claridade". 2 O ser hu­mano, portanto, deixa de ser esse embaixador do Verbo Di­vino que detinha o poder de fazer desdobrar-se a mathésis ou a ordem taxionômica. Submetido "à Vida, à Vontade, à Pala­vra", o ser humano - transformado em homem - agora so­mente poderá praticar o "Conhece-te a ti mesmo" mediante recurso a saberes que não mais dependem de sua clara cons­ciência, e que ameaçam o seu estatuto de Sujeito.

Assim sendo, esses novos saberes encerraram o ser hu­mano numa finitude muito diferente da que fora delineada pela ontoteologia. 3 Relativamente ao saber divino, a finitude clássica designava tudo o que tolhia o acesso do homem à ver­dade. Qual era o meio excelente de reconhecê-Ia? Os erros dos sentidos e da imaginação. Vejo o Sol a duzentos passos, o bastão quebrado dentro d'água, a Lua maior no horizonte do que no zênite: nostrae naturae infirmitas ... Contudo, quando a Vida, a Linguagem e o Trabalho se tomam, na sua própria opacidade, objetos de saber, é uma outra idéia de finitude que se impõe. Para marcar esta nova Finitude, já não é mais pre­ciso meditar na dependência da substância criada relativa­mente ao Criador, ou na fragilidade do "junco pensante" pe­rante um universo que pode esmagá-lo a qualquer momento. Não é mais preciso, sequer, confrontar as condições de meu conhecimento com a Idéia de um "entendimento intuitivo". Estamos postos, agora, diante de um Faktum que escapara ao pensamento clássico: a saber, que o ser humano somente se pode pôr como sujeito e como indivíduo porque já está "apri­sionado" num elemento estranho, investido por algo que lhe é Outro. - Por certo, o classicismo podia falar de "meu lugar limitado no universo, (de) todos os marcos que medem o meu conhecimento e a minha liberdade" - mas não chegava a reconhecer esta alienação constitutiva, inextirpável.

Ê verdade que a Terceira Meditação me recorda que "não sou o autor de meu nascimento e de minha existência". Mas, no âmago desta existência, ainda há enorme lista das

(2) Naissance de la clinique, Paris, PUF, 1963, p. IX. Nascimento da cllnica, Rio de Janeiro, Editora Forense-Universitãria, 19n, p. XII.

13) Naissance de la clinique, p. 200; Les mots et les choses, pp. 3Zl e segs. Nascimento da clinica, p. 228; As palavras e 8S coisas, pp. 411 e segs.

1.~'" ~

\;

.t", .. t;

RECORDAR FOUCAULT 11

coisas de que não sou autor: a língua que falo, a sexualidade que me coube, as relações de produção que me tomam, etc. Ora, nestes temas, o pensamento clássico apenas poderia identificar outras tantas formas de minha posição de inferiori­dade perante o infinito - sinais suplementares de uma situa­ção humilhante, é certo, porém ainda assim invejável na or­dem da Criação. Nada, em todo caso, que indique que algo contesta, ameaça o pensamento no seu próprio interior. Uma tal eventualidade cuida Descartes de descartar desde o início: "Nunca se pode excluir que o homem enlouqueça, porém o pensamento, enquanto exercício da soberania de um sujeito que atende ao dever de perceber o que é verdadeiro, não pode ser insensato". 4 - Será preciso aguardar o homem da epis­teme moderna - ou melhor, "a figura nova" que recebeu "esse velho nome" 5 - para que a Finitude não seja mais pen­sada como um território cujos limites posso traçar, mas sim entrevista como a própria sombra do homem, como uma opa­cidade origmária que nenhum exercício da consciência de si jamais poderá dissipar. Ê desta "experiência" que brota a analítica moderna da Finitude: "(o homem), desde que pensa, desvenda-se a seus próprios olhos apenas sob a forma de um ser que já é - numa espessura necessariamente subjacente, numa irredutível anterioridade - um vivo, um instrumento de produção, um veículo para palavras que a ele preexis­tem". ' Assim nasce o "Cogito moderno", a respeito do qual disse Merieau-Ponty que "ele não define a existência do su­jeito pelo pensamento que tem este de existir, nem converte a certeza do mundo em certeza do pensamento do mundo" .

Um cogito, portanto, que constata a impossibilidade de igualar-se, um dia, o Eu penso ao Eu sou - e que Foucault analisa, pastichando Descartes. - Quando Descartes preten­dia determinar, de maneira apoditica, "qual eu sou eu, eu que eu reconheci ser", ele procedia por exclusões: "Não sou, abso­lutamente, esta reunião de membros ... não sou, absoluta­mente, um ar sutil e penetrante ... não sou, absolutamente, um vento, um sopro ... ". O sujeito moderno certamente tam-

(4) Histoire de /a folie à /,âge classique, Paris, Gallimard, 2~ ed., 1972, p. 58; História da/oucura, São Paulo, Perspectiva, 1978, p. 47.

(5) Lesmotsetleschoses, p. 333; Aspa/avrss8as coisas, p. 419. (6) Lesmotsetleschoses, p. 324; Aspalavraseas coisas, p. 408 .

ri i

, \

12 TRANSGREDIR A FINlTUDE

bém poderia praticar a mesma exclusão indefinida: "Poderei eu dizer que sou esta linguagem que falo ... ? Poderei eu dizer que sou esta vida que sinto no fundo de mim ... ?". 7 Não, não posso. E no entanto, por estranhos que me sejam estes ele­mentos, não resido neles como um piloto em seu navio. "Tanto faz eu dizer que sou, ou que não sou, tudo isto." Por isso, é preciso reformular a questão cartesiana, e perguntar: "Que devo ser eu, eu que penso e que sou o meu pensamento, para eu ser o que eu não penso, para que meu pensamento seja o, que eu não sou?". 8

* * * Contudo, é hora de recordar que Foucault não estã fa­

lando aqui, em seu próprio nome: contenta-se em designar um lugar, em seu mapa arqueológico, à "Finitude moderna" - e, muitas vezes, dã a palavra a Merleau-Ponty, esse incan­sãvel crítico do "pensamento que sobrevoa". Como poderia o pensamento, perguntava Merleau-Ponty, elidir o seu enrai­zamentono corpo, na linguagem, na infância? A menos que vã viver em Sírius, ele terã de reconhecer que "o espírito é o outro lado do corpo", que ,"o mundo sensível é mais velho que o universo do pensamento". Este tema Foucault retoma quan­do vai descrever o "Cogito moderno": "Como pode o homem ser o sujeito de uma linguagem que se formou sem ele, desde milênios, e cujo sistema lhe escapa ... ?". 9 Vale a pena repetir: Foucault fala aqui como arqueólogo, e descreve a forma de Finitude que devia necessariamente corresponder à "era do homem" . Da mesma maneira, mutatis mutandis, que a Feno­menologia do Espírito descrevia "a consciência infeliz" ou "a Aufkliirung" .

Acontece, porém, que o arqueólogo se desfaça de sua neutralidade e emita um juízo - severo - sobre a analítica da finitude. Pois este discurso gira no vazio. O seu combate contra o cientismo e o positivismo jã de nada serve: "A ver­dadeira contestação ao positivismo não estã num retorno ao vivido ... ". O retorno ao vivido fica aprisionado num vaivém

(7) Les mots et Iss choses, p. 335; As palavras e as coisas, p. 422. (S) Los mots et les choses, pp. 335-336; As palavras e as coisas, p. 422. {9l Les mots et les choses, p. 334; As palavras e as coisas, pp. 420-421.

~

\,

'0. 0 ~;

RECORDAR FOUCAULT 13

sem fim, entre a descrição e a fundação. Praticamente não nos reserva surpresas, pois jã estamos previamente assegura­dos de "descobrir no homem o fundamento do conhecimento, a definição de seus limites e, para concluir, a verdade de toda a verdade". 10 Mais ainda: esse discurso nos mantém num novo sono dogmãtico, que só acabarã quando se tiver a cora­gem de reconhecer que o homem não passa do nome de um dispositivo da episteme moderna, e quando se tiver "suspen­dido ... o preconceito antropológico sob todas as suas for­mas", para "tornar a interrogar os limites do pensamento". Nietzsche, acrescenta Foucault, foi quem deu o sinal para isso. - Sartre parece constituir o principal alvo dessa pãgina. Mas Foucault visa, para além dele, toda a analítica da finitude -isto é, a fenomenologia e sua derivação existencialista. Depois de analisar a sua dialética com uma minúcia que o leitor des­prevenido confundirã com simpatia, declara-nos sem mais ce­rimônias que toda essa filosofia é estéril, e que o seu esgota­mento bem poderã marcar, de uma vez por todas, a falência de todo um estilo de pensamento.

Hã, porém, em pelo menos uma outra passagem de As palavras e as coisas, a abertura de um enfoque algo diferente sobre a fenomenologia. A analítica da finitude - é o que diz Foucault - mostra "como o pensamento pode escapar de si mesmo", e às vezes acontece que ela questione o ser do ho­mem, "nessa dimensão' pela qual o pensamento se dírige ao impensado e se articula nele". Incorreríamos, portanto, em equívoco, se levãssemos demasiado a sério o projeto oficial de Husserl. A fenomenologia não é "a retomada de uma velha destinação racional do Ocidente" . 11 Ela também foi uma filo­sofia da "era do homem", de modo que não hã o que estra­nhar se, "apesar de principiar por uma redução ao Cogito, ela sempre foi levada a questões, à questão ontológica". Não hã o que estranhar se a fenomenologia, transgredindo-se a si mes­mo, foi levada a "pensar o impensado", esse Outro absoluto do homem, que o pensamento do século XIX evocou de ma­neira intermitente. - A fenomenologia, por sinal, não é uma exceção. Outras anãlises de Foucault nos dão a entender que a

(10) Les mots et les choses, p. 352; As palavras e as coisas, p. 444. (11) Les motsetles choses, p. 336; As palavras ees coisas, p. 423.

'I

\ \1

\1

ri l"

~:

14 TRANSGREDIR A FINlTUDE

episteme moderna por mais de uma vez esteve a ponto de su­perar a figura de finitude, ainda aconchegante, por ela mesma constituída, e que ela própria nos convida a problematizar a base da qual trabalhava.

* * * Em que consiste exatamente o carãter insatisfatório da

"Finitude Moderna" descrita pelos filósofos? Por que precisa ser suspensa essa estrutura? - Uma passagem de Diferença e Repetição, de Deleuze, pode esclarecer esse aspecto da leitura que Foucault faz do século XIX. Os filósofos, diz Deleuze, e em particular os do século XIX, muitas vezes tentaram am­pliar a imagem do qUe eles (comodamente) chamavam de "negativo", de modo a não mais o reduzirem ao erro por dis­tração, tão caro a Platão (vejo Teeteto, e digo-lhe "Bom-dia, Teeteto"). Mas não foram por essa via tanto' quanto deviam. Se tivessem meditado sobre Flaubert, por exemplo, com­preenderiam que uma noção como a da burrice "é objeto de uma questão transcendental: como é possível a burrice". 12

Como é que o indivíduo é tomado por "uma animalidade dis­tintivamente humana?" Não se ousou enfrentar esse tipo de questões. Mas tais questões tampouco foi possível escamotear por completo. - Ora, não é justamente essa situação ambí­gua que vemos descrita, em algumas pãginas de Foucault? Pãginas que merecem ter a nossa atenção, pois nos previnem contra a tentação de reduzir sua obra a uma alegre e ligeira demolição de saberes ingênuos e farisaicos. Não hã dúvida de que Foucault, do começo ao fim, é esse demolidor. Mas serã ele apenas isso? Tomemos o exemplo de um saber que ele jamais isenta de sua severidade: a psicologia, nascida no sé­culo XIX, da forma como aparece na Hist6ria da loucura. Serã que a psicologia apenas cumpre uma tarefa de oblitera· ção e recalcamento? Não apontarã, mesmo sem o saber, para a idéia de uma outra "finitude" _ que, esta, jã não seria considerada dominãvel?

Um dos momentos decisivos da Hist6ria da loucura é o do apagamento, no final do século XVIII, da noção de Desrazão.

(12) Gilles Deleuze, Différence et répétition, Paris, PUF, 1968, pp. 194-198.

'0'0 ~;

"

1 ~' ." '"' _.L ____ _ •• __ o

RECORDAR FOUCAULT 15

Em poucos anos - os que são marcados pelos nomes de Tuke e Pinel-, o internamento muda de função. Deixa de consti­tuir uma simples medida de proteção social. Desde então, os loucos não serão mais misturados com os debochados, os pró­digos e os blasfemos: de elementos a-sociais, convertem-se em doentes, objeto de observações e cuidados clínicos. Sem dú­vida, o asilo continua sendo um recinto de exclusão, e o louco não é um paciente qualquer. Se voltou a ser nosso irmão, é também uma razão expulsa de si mesma, devolvida à "ino­cência animal", embora conserve - o que é pior - as apa­rências da razão. Pois esses insensatos raciocinam e respeitam o princípio de contradição. Quem se toma por Napoleão nega ser Luís XIV. Aquele que pensa ter um corpo de vidro evita' esbarrar em objetos duros ... A essa razão naturalizada, é pre­ciso dar um estatuto - e foi com este fim que se inventou a psicologia: "O que era doença dependerã, agora, do orgânico; e o que pertencia à desrazão, à transcendência de seu dis­curso, serã nivelado no psicológico". IJ O nascimento da psi­cologia marca portanto, a um só tempo, o abandono da noção de Desrazão (que a partir de então se terá por obscurantista) e o reconhecimento do fato de que a "doença mental" é, porém, alguma coisa que ultrapassa os processos orgânicos - de que o tratamento no asilo não se pode reduzir à ducha fria, ao chicote ou aos sedativos. Ê preciso falar com os doentes, ter a paciência de desemaranhar suas ilusões, tentar devolvê-los à sua essência de "sujeitos responsáveis". Se o psiquiatra não é um médico como os outros, é portanto porque sua tarefa con­siste, na verdade, em exorcizar por novos meios a antiga Des­razão.

Como explicar, então, o inesperado banimento desse con­ceito? Ê nesse ponto que encontramos, pela primeira vez na obra de F oucault, o grande corte que separa a era da Repre­sentação e a era do homem. A Desrazão era um conceito tí­pico da Representação. Do louco ela fazia um homem cegado, apartado da verdade - mais um insensato no sentido bíblico do que um doente. Com a "loucura" medicalizada, tudo serã bem diferente. Nela, o homem não perde mais o acesso à Ver­dade, o contato com o Verbo Divino: estes traços já não per-

(13) Histoire de /a folie, pp. 359-360; História da loucura, p. 337.

rr Ir:

I" ~,

:1

I 1

16 TRANSGREDIR A FINITUDE

tencem, como sabemos, à "finitude moderna". O que lhe su­cede é outra coisa: ele se afasta de sua essência (de ser razoã­vel e de cidadão). Não hã dúvida de que a fronteira entre o alienado e o são de espírito continua nitidamente traçada, mas a divisão jã não se efetua segundo o mesmo critério. É que, agora, "o ser humano não se caracteriza por uma certa rela­ção com a verdade, mas detém como seu bem próprio, a um tempo exposto e escondido, uma verdade".14 E o que mais importa, para o saber do século XIX, é que essa verdade ape­nas esteja ocultada, e que fazê-la reaparecer dependa da arte do terapeuta.

Essa nova percepção que se tem do insensato aparece com toda a clareza no texto da Enciclopédia de Hegel a res­peito da loucura (§ 408). O louco deixou que o "gênio mau" da particularidade triunfasse dentro dele, mas não perdeu a razão. Os loucos continuam sendo sittliche Wesen, essências morais, continuam tendo consciência do Bem e do Mal - e é por isso que o seu lugar é no asilo, não na prisão (nada têm a ver com os perversos, cujo "único delirio é o do vício", como dizia Royer-Collard acerca de Sade). O terapeuta, acrescenta Hegel, pode assim apoiar-se no que hã de "racional" no doente para devolvê-lo a seu besseres Selbst, ao melhor de si mesmo. O louco é um ser reintegrãvel na razão.

Essas pãginas contrastam com as que a Fenomenologia do espírito consagra ao Sobrinho de Rameau (Foucault refere­se a elas). O louco, medicalizado por Pinel, não submete mais o homem racional à prova que o Sobrinho impunha à "cons­ciência honesta" da Aufkliirung. O discurso de desrazão do Sobrinho era a "perversão de todos os conceitos e de todas as realidades" a que se apega a "consciência honesta", era a encenação cruel de suas contradições. Em Hegel, é este o mo­mento em que a dialética se alia com a Desrazão contra o Entendimento. Mas tal momento serã de curta duração. E o elogio de Pinel, na Enciclopédia, mostra o quanto Hegel apre­cia que o asilo moderno tenha transformado a Desrazão numa doença em princípio curãvel - o quanto estã satisfeito de ver neutralizada mais essa figura da "Finitude". - Hegel cons­titui um bom exemplo da maneira como saberes e filosofias

114) Histoire de la fOlie, pp. 548-549; Hist6ria da loucura, p. 522.

~ •• '0'0

:

'.

b

"'~; '.

RECORDAR FOUCAULT 17

tornaram inofensiva a questão da loucura, preferindo relegar ao esquecimento a risada do Sobrinho e o que nele, segundo Foucault, se anunciava: "que o homem é remetido sem cessar da razão à verdade não verdadeira do imediato". - Este é o primeiro aspecto pelo qual a razão esclarecida assume a tutela da loucura.

Mas quem sabe ler entre as linhas pode interpretar de outro modo a "experiência" da loucura tal como foi consti­tuída pelo começo do século XIX. Não serã, a fronteira que separa o louco do são de espírito, mais indecisa do que parece à primeira vista? Podemos até nos perguntar se, nessa epis­teme que postula que "o ser humano deve poder, pelo menos teoricamente, tornar-se transparente por inteiro ao conheci­mento objetivo", não seria a loucura "a primeira figura de objetivação do homem". 15 Desde que os loucos são tidos por seres racionais em potência, o ser racional é considerado como um candidato à loucura. De resto, ele precisa do louco para conhecer melhor, por contraste, a sua essência, e determinar o perfil de sua normalidade. Assim, diz Foucault, libertando o louco de suas cadeias, Pinel "acorrentou ao louco o homem e sua verdade. Desde esse dia, o homem tem acesso a si mesmo enquanto ser verdadeiro; mas este ser verdadeiro somente lhe é dado sob a forma da alienação ... o homem, hoje em dia, só tem verdade pelo enigma do louco que ele é e não é" . 16

Foucault pretenderã apenas debochar, aqui, do objeti­vismo das ciências humanas? É pouco provãvel, pois o objetivo da arqueologia não é diretamente polêmico. O arqueólogo propõe-se remontar até as condições de possibilidade de uma "experiência" (da loucura, da clínica). E o Nascimento da clí­nica precisa: "Este livro não é escrito em favor de uma medi­cina e contra outra, ou contra a medicina, em favor de uma não-medicina. Aqui, como em outros lugares, trata-se de um estudo estrutural que procura decifrar, na espessura do his­tórico, as condições da própria história". 17 - Lendo esta pã­sina de Foucault, parece-nos que a superação da "finitude moderna" estava incluída na própria cultura que a elaborava. - Não diremos que esse tema foi recalcado ou censurado por

115) Histoire dela folie, p. 481; Hist6ria da loucura, pp. 456-457. 116) Histoire dela fo/ie, p'. 548; Hist6ria da loucura, pp. 521-522. (17) Nsissance de la clinique, p. XV; Nascimento da cllnics, p. XVIII.

L. i~. '''li' ,"_.,,~~, ______ _

r ,

\1 •

18 TRANSGREDIR A FINITUDE

tal cultura (assim retomaríamos aos pressupostos da exegese, que faziam horror a Foucault). Antes diremos, para seguir a metodologia do autor, que esse tema constitui uma linha de "regularidade" legivel nessa "formação discursiva". Tome­mos um outro exemplo.

Um dos traços característicos do século XIX é o privilégio epistemológico que se concede ao patológico. "Não foi por acaso.que o século XIX preferiu perguntar à patologia da me­mória, da vontade e da pessoa o que era a verdade da lem­brança, do querer e do indivíduo." 18 Esse tema já aparecia nas aulas de Foucault, entre 1953 e 1955: será por acaso que a psicologia dos testes e a psicologia da criança nascem do es­tudo das crianças anormais? de onde vem a noção de idade mental, se não for da patologia? de onde vem a pedagogia moderna, se não for da intenção de integrar na escola as crian­ças retardadas? - Não, não foi por acaso que o desapareci­mento da Desrazão transformou a função do patológico, dei­xando este de constituir o mero "negativo" da normalidade. O doente mental tomou-se um documento vivo, uma mina de informações. Ele é irredutivelmente o meu Outro, mas é deci­frando este Outro que eu tenho as melhores oportunidades de aprender quem eu sou. Eis o esboço de uma figura de Finitude que não mais se poderá desdobrar sob o olhar de um Sujeito. - Relendo o fim da Hist6ria da loucura, quase ousaríamos dizer que ocorre como que um "progresso epistemológico", do ponto de vista do arque6logo, ao passar-se da era clássica à idade da psiquiatria. Na "loucura" moderna, "o homem não é mais considerado numa espécie de retiro absoluto perante a verdade; ele é a sua verdade e o contrário de sua verdade; ele é ele mesmo e outra coisa que não si mesmo ... " . E o mesmo tom reaparece na página de As palavras e as coisas que retoma e re-sume esse tema: "nossa consciência ... vê surgir o que, perigo-samente, está o mais próximo de nós ... ; a finitude, a partir da qual somos e pensamos e sabemos, aparece subitamente à nos­sa frente - existência a um só tempo real e impossível, pensa­mento que não podemos pensar, objeto para nosso saber, mas que sempre se furta dele" .19 - Contudo, uma coisa é a "expe-

(18) Histoire dela folie, p. 481; História da/aucura, p. 457. (19)- Les mots et les choses, p. 387; As palavras e as coisas, p. 487.

,

\

RECORDAR FOUCAULT 19

riência" que aparece, outra coisa são OS discursos dos psicó­logos, médicos e filósofos que vivem nessa "experiência". Eles preferem representar, a seus olhos e aos nossos, o louco como um ser racional diminuído, quando na verdade o louco, por obra deles, tomou-se aquele cuja presença me faz sentir (ou deveria fazer-me sentir) a minha fragilidade de vemünftiges Wesen, de ser racional. Os saberes esquivaram aquilo mesmo que se anunciava nas suas práticas, nos seus métodos. Ê o que F oucault afirma com toda a clareza no final da Hist6ria da loucura. A psicologia, desde que nasceu, esteve "na encruzi­lhada": ou enfrentar a escura verdade do homem e "terminar filosofando a marteladas", ou então tentar, interminavel­mente, submeter o homem a um "conhecimento verdadeiro", travando ao mesmo tempo uma polêmica, não menos intermi­nável, com as Analíticas da Finitude. Escolheu-se esta última via, a da facilidade. Ajeitando-se de modo a poder. sempre recuperar - quer pelo conhecimento objetivo, quer pelo re­tomo ao vivido - o sentido dos conteúdos da Fínitude, o pen­samento moderno pecou por excesso de timidez .

Já a medicina não teve tais pudores. E talvez seja nestas páginas, que descrevem a irrupção da anatomia patológica no saber médico, que melhor se pode perceber o que Foucault esperava de uma radicalização da Finitude. Desde Bichat, a doença não é mais compreendida como uma "contranatu­reza", como uma desrazão orgânica, como o foi na era clás­sica. Também neste domínio a divisão "ser/não-ser" vê-se posta em xeque. Percebe-se que a degeneração dos órgãos não somente obedece a leis, mas que ela é o avesso do funciona­mento do organismo - que "a morte não se insinua apenas sob a forma do acidente possível; ela forma, com a vida, com os seus movimentos e o seu tempo, a trama única que a um só tempo a constitui e a destrói". '" Essa túnica de Nesso, como poderíamos considerá-la como "negativo"? A doença não é desvio: é também uma análise, epistemologicamente preciosa, dos sistemas de tecidos, de seus diversos graus de resistência e fragilidade. E a própria morte não se reduz a "uma noite em que a vida se apaga": 21 é, antes de mais nada, a melhor fonte

(20) Naissance de la clinique, p. 159; Nascimento da cllnica, p. 180. (21) Naissance de la clinique, p. 146; Nascimento da cllnica, p. 165.

r, ,

20 TRANSGREDIR A FINITUDE

de informações para o médico. "A partir de agora, é do alto da morte que se podem ver e'analisar as dependências orgâ­nicas e as seqüências patológicas". 22 O que foi denominado o "vitalismo" de Bichat consistiu portanto, acima de tudo, no reconhecer "a ligação fundamental entre a vida e a morte". "Foi quando a morte se tornou o a priori concreto da expe­riência médica que a doença pôde desligar-se da contranatu­reza e tomar corpo no corpo vivo dos individuos".23 Foi nessa nova problematização que nasceu o conhecimento objetivo do individuo vivo, assim como, acrescenta Foucault, "da expe­riência da desrazão nasceram todas as psicologias e a própria possibilidade da psicologia". Em muitas regiões os novos sa­beres transferem, sigilosamente, a verdade do ser humano para uma alteridade indissolúvel - que, no limite, dissolve o homem. Eles abrem "uma enorme sombra" que as analiticas da finitude tentam dissipar - porém em vão. "Esta sombra que vem de baixo é como um mar que se tentasse beber." 24

* * * V alia, pois, a pena mostrar como a episteme do século

XIX conseguiu, em tantos pontos, transformar numa Alteri­dade positiva o que até então fora relegado ao "negativo". É verdade que esses saberes, ao mesmo tempo, fundavam a "fi­nitude moderna", na qual residiu a maior parte das filosofias desde a de Kant, e que continua sendo (por quanto tempo ainda?) a nossa morada. Mas a obra de tais saberes é bem mais instrutiva do que o discurso dos filósofos que só muito raramente consegue pôr-nos perante a alteridade que estã no âmago -de nós mesmos. Enquanto a psicopatologia, a medi­cina, a economia politica pelo menos foram capazes de nos deixar entrever essa Alteridade não dominãvel, os filósofos se preocuparam mais foi com nos orientar na finitude, e com nos persuadir de que, nela, ainda permaneciamos bei Hause. 2S Os filósofos, mesmo quando parecem enfrentar grandes riscos, continuam munidos de um fio de Ariadne; as verdades de fato

1221 Naissance de la clinique, p. 145; Nascimento da cllnica, p. 166. 1231 Naissance de la clinique, p. 198; Nascimento da cllnica, p. m. (24) Les mots st /6S choses, p. 224; As palavras e as coisas, p. 280. 1251 Em casa IN. T.I.

1," , ;.. •

- !

• -' .'0'0 ~;, ,.L _

r .. \ "L~

RECORDAR FOUCAULT 21

com que deparam podem, sempre, ser transformadas em ver­dades de razão. É por isso que, dessa finitude moderna, ar­rumada com tanta engenhosidade, era necessário sair. Não para propor outra coisa: simplesmente para viajar com toda-a liberdade. Era preciso cortar as amarras. E é a partir disto que adquire sentido a noção - à primeira vista tão estranha - de "era do homem": positivistas, fenomenólogos, mar­xistas, vocês não sabem que vivem num mesmo e único terri­tório; eu, porém, fui mais adiante. Parece que Foucault deve ter percebido desde cedo a urgência dessa transgressão - que o levou a cortar as pontes com a fenomenologia e, no mesmo gesto, a afastar de si todo o discurso filosófico.

Esta é apenas - não resta dúvida - uma dentre as abor­dagens possíveis da obra de Foucault. Importa, porém, ver a que tipo de colocações ela força o leitor. Em primeiro lugar, deve-se admitir que é vão procurar por uma filosofia de Fou­cault - o que significaria reinseri-Io num tipo de discurso que ele pretendeu, de forma sistemãtica, subverter. Deve-se ad­mitir que não teria nenhum interesse recolocã-Io à força na vizinhança dessas analiticas da Finitude cujo iminente faleci­mento As palavras e as coisas anunciam, nem tampouco for­çã-Io para dentro do recinto, da clausura, da Metafísica - em suma, fazer aqui o mesmo tipo de exegese a que Heidegger submeteu a obra de Nietzsche. - Mas, em segundo lugar, também se deve admitir que seria grave equívoco reduzir a obra de Foucault a uma metodologia da história ou das ciên­cias humanas, e confiná-Ia na arqueologia. A arqueologia foi um dos métodos de que ele se'valeu - o que lhe permitiu ana­lisar "as formas mesmas da problematização", como diz no Uso dos prazeres, ao distingui-Ia do método genealógico. A arqueologia não dã a chave de seu projeto, mas sim a medida de sua desconfiança face aos "discursos sérios", que ele pre­tendia retirar de circuito de uma vez por todas. Não é a ar­queologia que pode explicar, por exemplo, por que a sua in­vestigação terminou por focalizar-se na questão do sujeito -mas sim a velha paixão que o animava contra as analíticas da Finitude. Citando Veyne: "O método de Foucault tem prova­velmente, como ponto de partida, uma reação contra a onda fenomenológica que, na França, se produziu logo após a Li­bertação [em 1944). O problema de Foucault talvez tenha sido o seguinte: como conseguir mais do que pode uma filosofia da

22 TRANSGREDIR A FINITUDE

consciência sem, com isso, cair nas aporias do marxismo?". 26

Essa curiosidade vinha de mais longe: de uma vontade de transgredir, que devemos tomar todo o cuidado para não con­fundir - nem em Foucault nem em Nietzsche - com um furor de destruir.

Convém relermos o diâlogo entre o arqueólogo e o filó­sofo, que fecha a Arqueologia do saber. - Você precisou re­cuar em todas as frentes diante dos vãrios estruturalismos, diz o arqueólogo - e, agora, você lhes propõe um acordo amigá­vel. Reconhece as conquistas deles mas, em troca, pede que reconheçam a seriedade das suas problemáticas - o seu di­reito a indagar sobre a origem, a esboçar uma teleologia da história, a instaurar os seus a priori materiais ... Ora, o ar­queólogo recusa-se a firmar esse acordo com um pensamento que se empenha - diz - em "ocultar a crise na qual já faz muito tempo que estamos e cuja amplidão só vai crescendo", crise em que se joga o destino do sujeito transcendental sob todas as suas formas, o questionamento do ser do homem, "enfim e acima de tudo, a questão do sujeito"." Nessas con­dições, é impossivel um compromisso, um meio-termo. É ne: cessário escolher. Ou ficamos nessa "finitude", que permite a continuação das exegeses, das investigações constitutivas e das dialéticas. Ou então salmos dela, isto é, invertemos o proce­dimento dos filósofos: recusamo-nos a utilizar todos os con­ceitos-chave repetidos pelas analíticas da Finitude (consciên­cia, indivíduo, sujeito) e vamos procurar a verdadeira identi­dade (ou melhor, as verdadeiras identidades) dessas persona­gens por demais familiares - perguntar quais são as modifi­cações teóricas, as práticas, os dispositivos que as produziram sob tal forma, em tal época, em tal área determinada. Já não nos contentaremos, neste caso, com perguntar de maneira vaga: como é que o homem é sujeito na vida? como é sujeito de uma linguagem mais antiga do que ele? O que os filósofos chamam, tão laconicamente, de Sujeito ou "homem" resulta de milhares e milhares de trabalhos que divergem ou se entre­cruzam. São esses trabalhos que precisamos reconstituir -

(26) Paul Veyne, "Foucault révolutionne l'histoire". in Comment on écritl'histoire. Paris, Seuil, 1978, p. 383; trad. bras., in Como se escreve B his­tória. Foucault revoluciona B história, Brasflia, Editora da Universidade de Bra­sPia, 1982, p. 179.

(271 Archéologie du &avoir, Paris, Gallimard, 1969, p. 266.

~J

,

~

,

~. ~-'. ' ~;~':t 4 '. ." t· \

~----,.... ..,

RECORDAR FOUCAULT 23

mediante estudos precisos, exame de arquivos, anâlise de prá­ticas. Perguntando, por exemplo: como, no Ocidente, numa época tal, o homem foi feito sujeito individual? ou se fez su­jeito de uma "sexualidade"? É nisso que vai dar a transgres­são da "finitude" boazinha e sem surpresas, na qual estáva­mos contidos: na possibilidade de irmos escavar, fuçar em toda parte, até mesmo zombando daqueles que nos peçam documentos de identidade - na possibilidade de fazer o Su­jeito, tornado "sujeito", explodir em mil estilhaços.

O objetivo de minhas pesquisas nos últimos vinte anos, escrevia F oucault em 1983, foi o de "produzir uma história dos diferentes modos de subjetivação do ser humano em nossa cultura". E esse estudo das modalidades de transformação "dos seres humanos em sujeitos" dividiu-se em três eixos: 1?) a transformação do sujeito em objeto de saber: "objetiva­ção do sujeito falante sob a forma de Gramática Geral, de filo­logia, de lingüística ... ou ainda, a objetivação do mero fato. de ser vivo, sob a forma de História Natural ou de biologia"; 2?) produção do sujeito individual para fins políticos, sob a égide da divisão normal/patológico (louco/são de espirito, cri­minoso/homem de bem ... ); 3?) "a maneira pela qual um ser humano se transforma em sujeito ... a maneira pela qual o homem aprendeu a se reconhecer como sujeito de uma sexua­lidade". ia E Foucault acrescenta: "Não é portanto o poder, porém o sujeito, que constitui o tema geral de minhas inves­tigações".29 - Eu quis apenas indicar um enfoque possivel, que permitiria tornar essa frase menos desconcertante.

(Tradução de Renato Janine Ribeiro)

(281 Hubert Dreyfus e Paul Rabinow, Michel Foucault. Un parcours phi­losophique au·delà de I'objectivité et de la subjectivité, Paris, Gallimard, 1984, p. 298 (trad. francesa do original americano: Michel FoUC8UIt. Beyond struc­tura/ism and hermeneutics, Chicago, University cf Chicago Press, 1982).

(291 Dreyfus e Rabinow, pp. 296-298.

o discurso diferente Renato Janine Ribeiro*

Nestas notas quero tratar do fascinio que Foucault mos­tra, em sua obra, pelos textos literários. O seu amor às pala­vras não é apenas o positivismo (Veyne) I de quem, nelas, en­contra o elemento mais tangivel para pensar. o que pensaram os homens; é, sobretudo, uma bibliofilia: um amor - bor­giano - às bibliotecas, a seus textos que subvertem datas e enquadramentos. E não é nos textos teóricos que se esgota esse poder dos escritos, nem a vontade foucaultiana de ler.

Assim começa As palavras e as coisas: "Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que sacode, à sua leitura, todas as familiaridades do pensamento - do nosso; do que tem a nossa idade e a nossa geografia -, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que tornam sensata para nós a pululação dos seres, fazendo vacilar e inquietando por longo tempo a nossa prática milenária do Mesmo e do Outro. Este texto cita 'uma certa enciclopédia chinesa' onde vem escrito que 'os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador; b) embalsamados; c) domesticados; d) leitões; e) sereias; f) fabulosos; g) cães em liberdade; h) incluidos na pre­sente classificação; i) que se agitam como loucos; j) inume­ráveis; k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de

(*) Da Universidade de São Paulo e do CNPq. (1) Paul Veyne, Foucault revoluciona a História, Brasilia, 1982.

~ ~. • , ~

',,-1'

'o', " \ .•• L. ~'-L"

RECORDAR FOUCAULT 25

camelo; 1) et coetera; m) que acabam de quebrar a bilha; n) que de longe parecem moscas'. No deslumbramento desta ta­xinomia, o que alcançamos imediatamente, o que, por meio do apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de um outro pensamento é o limite do nosso: a pura impossibilidade de pensar isto". 2

Nenhuma outra obra de Foucault exibe igual fascinação pelo literário/artístico: o prefácio e o livro nascem de Borges, o capo 1 trata de Velázquez, o capo 3 abre-se com D. Quixote. Estamos, talvez, em pleno exotismo: não apenas porque, via Borges, Foucault cita uma fantástica enciclopédia chinesa; mas porque suas três referências vêm do mundo hispânico -dessas Espanhas que, no imaginário francês, representam desde muito tempo uma relação diferente, desmedida, com as paixões. A idade clássica de que Foucault vai tratar em As palavras, abre-se, assim, sob invocações espanholas: interes­sante maneira de recusar a tradicional ruptura classicismo/ barroco, de nomear como idade clássica algo que não é o clas­sicismo do moi hafssable.

No entanto, que são Borges, Velázquez, o Quixote nas análises do Foucault? Se procuramos ver o que, de cada um deles, resta no texto, parece ser pouco: servem a seduzir a atenção, a pontuar o discurso, a ressaltar algo que, adiante, será trabalhado conceitualmente. Exemplar é a conclusão do capo 1, que é fazer o balanço das Meninas de Velázquez (o que explica que muitos leitores de As palavras façam a economia desse capitulo, indo "direto aos conceitos"), como exemplar é, também, a moral que se extrai de Borges. Pensa-se com Borges, com Velázquez; mas o conceito depois explicita, acla­ra o que primeiro se viu sob a forma da figura. Da questão borgiana da impossibilidade de pensar - que Borges igu8J.­mente elabora na sua Busca de Averrois e nos Tradutores das Mil e uma Noites'3- chega-se ao problema fil<,lsófico das epis­temes. Do quadro de Velázquez, vai-se ter à representação clássica. Do Quixote, à crise do mundo quinhentista, à troca de epistemes. Como numa boa coreografia, ou ordenação cê-

(2) As palavras e 8S coisas, Lisboa, 1968, p. 3 (p. 7 do original, Les mots et Iss chosesl, cotejado com o Original francês. . (3) Respectivamente, in AntologIa persona/ (Buenos Aires, 1966) e His-toriir'1dela eternidsdlBuenos Aires, 1969).

'-.,.

. ,-,~j ;í:: r.-~'"

26 o DISCURSO DIFERENTE

nica, cada personagem introduz-se, fala e sai; a sua deixa tem hora marcada, e nesta se esgota. Sabe-se, aliâs, que a análise das Meninas foi acrescentada ao livro depois de concluido. E Foucault não tornarâ, em suas principais obras, a dar igual importância à arte, à literatura.

Talvez, porém, a arte e a literatura estejam presentes em Foucault numa outra dimensão, mais profunda. Talvez inte­resse menos o texto de Borges, do que o riso por ele produ­zido, que "sacode ... as familiaridades do pensamento". Por­que assim escreve Foucault: batendo-se contra o que, no pen­samento, é hâbito. É notório o cuidado que tem com a escrita: suas imagens, ritmos, pontuação. Mas serâ enganoso reduzir seu estilo à bela forma; escrever, para Foucault, certamente obedece a uma estratégia. E, para entendê-la, o melhor talvez seja situarmos alguns textos - capitulos, parâgrafos, frases - de Foucault.

Podemos distinguir, em sua obra, dois tempos - ou mesmo, fora dos tempos, duas posturas: uma consiste na bus­ca das condições de possibilidade, ou de produção, dos textos e leituras. É a que aparece no começo do Nascimento da clí­nica: Foucault cita dois textos de médicos, respectivamente do século XVIII e XIX, para depois ver o que os diferencia; não se trata da passagem da metâfora à denotação - ambos os autores se servem, e com que profusão, de figuras. Porém, como se ordenam umas, e outras, figuras? É essa ordem que a "arqueologia do olhar médico" pretende devassar; interrogar o que subjaz, a rede que funda leituras e textos. A outra pos­tura vê-se em Vigiar e punir. Igualmente Foucault contrasta dois textos - convidando o leitor a imergir-se neles, a fazer ele próprio, antes de qualquer fio condutor, a experiência pri­meira, bruta - talvez até ingênua, no sentido de pouco ar­mada -, dos discursos. Porém, uma vez lidos estes, ele não proporâ mais desvendar os seus fundamentos, OS seus pres­supostos. Serâ - ou fingir-se-â? - mais modesto. "Dentre tantas modificações", diz, "reterei uma": ele próprio grifa o quanto parece arbitrâria sua maneira de recortar a supressão dos suplicios, frente a tantas outras mudanças, talvez de maior monta, no sistema penal e repressivo. "Hoje somos algo le­vados a negligenciâ-la", talvez porque em seu tempo tenha sido tão comentada; "E, de qualquer forma, que importância tem, se a comparamos com ... "; não serâ a desaparição dos

.:;'

"

.;~" • ." .•••. :,I.'~, _____ _ .;,. ... 1_ .....

RECORDAR FOUCAULT 27

suplicios "nada mais que o efeito de remanejamentos mais profundos"? Em outras palavras, não seria o caso de se devas­sar, uma vez mais, a rede da qual dependem os suplicios, e que os produziu? Não; a mira de Foucault mudou: "E no en­tanto um fato subsiste"; pode o sumiço dos suplicios ser mera espuma, de superficie - mas o que conta, no Foucault pós­arqueologia, é justamente o fato. Empirista, Foucault? Possi­velmente; porém, melhor seria dizer, agora, que dispensa as redes - as ordens -, as totalizações e quadros. A modéstia que enverga, minimizando os elementos com que lida, na ver­dade apenas introduzirâ nova estratégia. Que começa por de­sarmar o leitor reticente, ou resistente. Se este quiser reduzir, desde jâ, a supressão do suplicio a efeito da economia, a parte menor numa mudança global das formas penais - Foucault, sem lhe contestar diretamente a análise, reservarâ porém o fato, apresentâ-lo-â como irredutível. Irredutível, essa a deter­minação principal do fato no parâgrafo que estamos comen­tando de FOllcault - essa, a ruptura que então produz com as arqueologias. Mas a que ele visa com a irredutibilidade? É a preparar a construção de um outro tipo de discurso. Um dis­curso cujo traço essencial talvez seja, justamente, o de ser diferente - o de ser inesperado, o de aparecer sob a forma do talvez.

Se o fato assim se exibe como irredutível, é porque a sua riqueza excede as leituras dominantes, exige a formulação de novas hipóteses (as quais poderemos chamar, às vezes, de in­terpretações). Estas, Foucault as precede muitas vezes de um "talvez". Assim, ao tirar a conclusão de sua anâlise das Me­ninas: "Talvez este quadro de Velâzquez figure como que a representação da representação clâssica e a definição do es­paço que ela abre ... " (p. 33). Mas sobretudo em A vontade de saber, possivelmente, sob tantos aspectos, o seu manifesto mais radical- o que mais contestou imagens feitas, especial­mente uma pela qual ele próprio era em parte responsâvel, a idéia de que a sexualidade ocidental moderna se caracteriza­ria basicamente por sofrer repressão. O "talvez" não se opõe, por estranho que pareça, ao "fato": evidentemente, num caso Foucault avança uma hipótese, move-se entre possíveis ou, se quisermos, entre interpretações; no outro, procura ater-se a algo inegâvel, irrecusâvel, irredutível, simples quem sabe como um elemento; ambos têm em comum, porém, a humildade,

r

I

. !

28 o DISCURSO DIFERENTE

a modéstia: nem uma interpretação é excludente de outras, nem o fato é mais do que um fato: a pretensão a globali­zar que caracteriza a interpretação é reduzida por ser, ela, uma dentre tantas, enquanto o estatuto irredutível do fato é contido por sua nudez mesma, carente de inteligibilidade própria. São pouco, poder-se-ia dizer; mas por isso mesmo definem um espaço mínimo, próprio distintamente seu: o es­paço do pouco. Frente a uma história do econômico, pro­por, como tema de reflexão, os corpos e sua sorte: ades­tramentos, suplícios. Nesse fato elementar (os corpos não são mais supliciados) e nesse talvez (pensar a caça miúda da história), Foucault toma gosto e partida. Por isso pode­mos dizer que sua modéstia é, de certa forma, falsa; que visa a delimitar um espaço garantido, resguardando-o de ofen­sivas adversárias; que a modéstia, em vez de ser tomada por seu valor nominal, merece ser decifrada como um protocolo diplomático. Este serve para introduzir um discurso cujo vigor teórico e cuja exposição às criticas estarão, justamente, no fato de ser diferente: de ser inesperado. Pelo menos, é assim que começa Vigiar e punir. Da estratégia do discurso diferente faz parte uma diplomacia.

Essa modéstia finta é também - porém - uma finta, como na esgrima. Se desarma o leitor, se resguarda para Fou­cault um espaço de pensamento, igualmente exige que ele proponha idéias sempre novas. Não basta dizer que Foucault, em tais ocasiões, mudou de idéia quanto a tal ou qual tema; ou distinguir, na sua obra, momentos ou fases; porque, justa­mente, o interessante é que ele pensava por mutação. A mu­dança não é algo que ocorria a seu pensamento, recortando-o em épocas; é o modo pelo qual o seu pensamento, sempre, corria. Em seu discurso, Foucault constrói o inesperado. O "talvez" não é propriamente um sinal de modéstia; é, antes, o distintivo do inédito. Colocar-se de esgueira, de esguelha: a maneira foucaultiana de pensar privilegia constantemente o inesperado. Voltemos às Meninas. O longo texto que ele lhes dedica ergue-se sobre um suspense. Foucault parte do mais visível e evidente: o pintor com a palheta a nos olhar. Vai depois rodeando, rondando o quadro, suas personagens e par­tes, até dar no espelho, que reflete e situa el-rei; por que, porém, tal seqüência - e não alguma outra igualmente possí­vel? Diz Foucault que "a relação da linguagem com a pintura

I. o 1

~

i ~ .~

RECORDAR FOUCAULT 29

é uma relação infinita. Não que a palavra seja imperfeita, nem que, em face do visível, ela acuse um déficit que nos esforça­ríamos em vão por superar. Trata-se de duas coisas irredutí­veis uma à outra ... " (p. 25). Mas é essa irredutibilidade mes­ma de uma a outra que permite que Foucault, escritor e não pintor, enriqueça o seu texto lendo quadros. Não interessa tanto se sua tradução é correta ou não; se o conceito, depois, Se apossa do que primeiro apareceu na figura; porque esta, ainda que adiante se esvaneça, no discurso age como revela­dora.

Lessing 'teorizou, com brilho, essa diferença entre a pin­tura e a literatura, caracterizando a primeira pela simulta­neidade das partes no quadro e a segunda pela sucessão dos momentos - espaço vs. tempo. O que Foucimlt faz é escan­dir, no tempo, o quadro. Mas em que tempo? O do suspense. O de um texto que vai, a cada tempo, exalando novo e impor­tante elemento - sempre, de alguma forma, inesperado. Um ritmo assim se produz, perturbador, sedutor. A pintura lida faz-se, mais e mais, ficção - se nesta damos a primazia ao inesperado, ao inventado.

Como se constrói o inesperado? Para dizê-lo, principie­mos da boutade, do gosto foucaultiano pela frase de efeito ou o repente; veja-se, em As palavras, o seu sarcasmo contra os "humanistas": "Constitui, no entanto, um reconforto, e um profundo apaziguamento o pensar que o homem não passa de um invenção recente, uma figura que não conta dois séculos, uma simples inflexão no nosso saber, e que há de desaparecer logo que este tenha encontrado uma forma nova" (p. 12). A frase que choca ou impressiona tem eficácia - a de ofuscar, a de permitir um novo conhecimento mediante o desalojar a ra­zão, presa das rotinas. Pois o que está suposto, nesse tipo de texto, é que não se vai apenas argumentar pela razão com o adversário ou o leitor. Vai-se recorrer a outro tipo de pensa­mento, um que excede a razão, e que para lidar com o adver­sário bombardeia, se não a este, pelo menos os seus apegos . Ao leitor, busca-se surpreender, fazendo que perca suas rotas usuais mediante lampejos, pontuais, de sedução (como pode­ríamos também pensar que agem certos aforismos de Nietzs-

(4) In Laocoonte.

30 o DISCURSO DIFERENTE

che); conhecer pelo amor, mas por um estranho tipo de amor, o que passa pela sUrPresa.

A respeito da sUrPresa talvez o melhor texto seja este de Brillat-Savarin: "Todo o mérito de uma boa fritura provém da surpresa; é assim que se chama a invasão do liquido fervente, que, no mesmo instante e!ll que se dá a imersão, carboniza ou tosta a superfície externa do cOrPo imergido". 5 O trecho é da "Teoria da Fritura", meditação de gastronomia transcenden­tal na qual Brillat-Savarin elogia esse recurso culinário por­que introduz, nas festas, uma variação picante nos pratos, porque os toma agradáveis à vista e especialmente aos dedos das senhoras, porque, finalmente, conserva o paladar primi­tivo dos alimentos. E a fritura merece realmente uma teoria -que passa pela química dos alimentos e dos cOrPos - porque, agindo mediante extremo choque térmico, supõe um uso mui­to preciso do tempo: o da rapidez. Recorda outra imagem, de mesma época: a da cristalização, que Stendhal usa para expli­car como se dá o enamoramento. "Nas minas de sal de Salz­burgo, joga-se, nas profundezas abandonadas da mina, um galho de árvore desfolhado pelo inverno; retira-se dois ou três meses depois, coberto de cristalizações brilhantes: os menores ramos, os que não são mais grossos que a pata de um abe­lheiro, vêem-se recobertos de uma infinidade de brilhantes, móveis e deslumbrantes; não se pode mais reconhecer o galho primitivo." 6

Nos dois casos transfOrma-se o objeto, ou melhor, sua superfície externa; esta se toma irreconhecível: na cristaliza­ção é a mudança que importa, porque o amor-paixão só conta no apaixonado, e por isso se nutre somente de aparências (me­mórias, que são imaginações). Na fritura, porém, diz-se que a modificação que embeleza o fora não altera significativamente o dentro; este é reconhecível; o que pdderia valer,. igualmente, para a cristalização, e só não serve porque nesta não interessa o objeto que serviu de suporte aos diamantes. Estes últimos, se parecem ser ilusões, são porém a única realidade, porque se engastariam em qualquer apoio. Se há diferença nas transmu­tações, é em primeiro lugar de ênfase (porque na cristalização

(5) La Physiologie du goút ou méditations de gastronomie transcen­dante(I825I, Paris, Flammarion, 1982, p.127.

(61 Stendhal, Del'amour(I8201, cap.lI.

{ ". . ;.; ,

'1 RECORDAR FOUCAULT 31

acentua-se somente a parte externa do objeto), e de tempo, em segundo - contrastando a lentidão do cristalizar com a rapidez da fritura. Assiste-se, nos dois casos, a uma modifica­ção do objeto que, sem alterar seu interior, exalta, magnifica a sua superfície exterior. A "Teoria da Fritura" de Brillat­Savarin é também o Glória da fritura. E a fritura, que con­serva exaltando, é ajóia da culinária, seu momento de brilho.

A sUrPresa dá ao texto parte de sua força. O uso da sur­presa, como recurso de pensamento, supõe que se contesta uma razão que se restringiu a suas familiaridades, isto é, a seus hábitos. Para esse pensamento cansado, a sUrPresa é o melhor remédio ou, se quisermos usar a fórmula foucaultiana tão freqüente, a melhor estratégia. Assim, os talvez de Fou­cault, os seus pequenos/atos menos avalizam uma modéstia, do que pertencem a um saber e um fazer militares. Foucault prolifera referências a estratégias, pensando os discursos. não como reflexos ou reprodução (efeitos, em suma), porém como aparelhos de guerra, estratégias de poder. Se ele as identifica nos discursos alheios, importa que também as assinalemos no seu.

A sUrPresa é um princípio de economia militar - tentar fazer que forças relativamente inferiores se valham de agili· dade para vencer inimigo mais poderoso; fazer que no tempo a rapidez, no espaço a mobilidade, em suma a energia, preva­leçam sobre a massa. Talvez tenha algo em comum com a as­túcia,7 porque depende, muito, de se esconder o intuito até o momento de fulminar. Usar de sUrPresa na guerra é, podemos dizer, introduzir o teatro na arte militar: aumentar, nos en­contros armados, a importância das simulações, dos disfarces e enganos. Contudo, o maior teórico militar do século XIX. conde ·von Clausewitz, não preza a sUrPresa: reconhece que ela está "no fundamento de todos os empreendimentos, pois não se pode conceber, na sua falta, a superioridade em um ponto decisivo"; diz que pertence, portanto, à natureza da guerra que todo chefe militar queira vencer pela sUrPresa; mas sentencia que isso é ilusão. "A sUrPresa faz parte do domínio da tática, pela simples razão de que, nesta, todos os dados de tempo e lugar são mais curtos. Na estratégia, ela será mais

(7) o capítulo de Clausewitz sobre a astúcia segue-se imediatamente ao que trata da surpresa.

32 o DISCURSO DIFERENTE

viável na medida em que as iniciativas a se tomar se aproxi­mem do domínio tático, e mais difícil na medida em que tais meios se elevem ao nível da política." 8 Ou seja: a surpresa serve para ataques pontuais, como a conquista de uma ponte; não, porém, para ganhar uma guerra: se analisamos melhor as vitórias obtidas por surpresa, vemos que se deveram antes ao despreparo, à distração, aos erros do vencido; em dimen­são estratégica, seria mais apropriado afirmar que a surpresa inflige derrotas, do que faz vitórias.

Ora, importa notar que, embora Foucault não tenha che­gado a teorizar a guerra, tanto o seu uso literário da surpresa quanto o papel que atribui à estratégia se opõem aos valores de Clausewitz. Para o general prussiano, a estratégia tem por sujeito o Estado. Ele a define no capo 1 do Livro II de Da Guerra: se "a tática é a teoria relativa ao uso das forças arma­das no combate, a estratégia é a teoria relativa ao uso dos combates a serviço da guerra" (p. 118). Mas Foucault, quan­do propõe uma nova abordagem do poder, em Vigiar e punir, diz que sua "microfísica supõe que o poder ... não seja conce­bido como propriedade, porém como uma estratégia ... que receba como modelo a batalha perpétua mais do que o con­trato que efetua uma cessão, ou do que a conquista que toma um domínio" (p. 31 do original francês). Nesse esboço, que não chega a ser uma conceituação, vemos que convém mais, a Foucault, entender a estratégia segundo a batalha do que se­gundo a guerra; para Clausewitz, porém, a guerra não se pensa pelas batalhas, sequer por uma suposta batalha perpé­tua; sua compreensão depende da política, tendo o Estado por sujeito. O gênio de Frederico, o Grande, esteve justamente em esquivar as batalhas que não poderia ganhar; foi bom general por ser um grande rei. Já a estratégia, tal como a usa Fou­cault, não é mesma de Clausewitz: mais parece ser uma am­pliação do conceito que este tem de tática. E há razão para isso: Foucault não dá, ao político ou aos conflitos, um sujeito (pouco importa se consciente ou não), que poderia ser o Es­tado. Prefere situá-los nas instâncias as mais disseminadas -os "mil poderezinhos" - em que se espalha o social; é por isso que a batalha, o choque pontual, servirá de modelo para

181 Carl von Clausewitz, De la guerre 11832-341, livro 111, capo 9, pp. 207-208 da trad. francesa; Paris, Minuit, 1970.

~ ,

J

~ (:1 "

!1 11

~j 4 .

i'>e

t

! , < l .. 'a-

l.. '

RECORDAR FOUCAULT 33

ele pensar o poder. Da mesma forma, a surpresa, que mais cabe na batalha que na guerra, que para Clausewitz se restrin­ge à tática sem jamais se ampliar à estratégia, poderá marcar o discurso foucaultiano.

Entenderemos melhor a surpresa referindo-nos ao c1ause­witziano Mao Tse-tung. Nos anos 30, tendo que enfrentar exércitos do Kuomintang muito superiores ao seu, formulou uma linha de combate para o Exército Vermelho: estrategica­mente, estamos na proporção de um para cada dez inimigos; não podemos aceitar uma guerra frontal; só travaremos ba­talha quando - na dimensão tática, portanto - formos vá­rios contra um. É claro que isso se enquadra numa estratégia mais ampla, a da guerra revolucionária, Mas, pontualmente, trata-se de fazer um uso intensivo da surpresa - princípio muito mais importante nessa guerra de guerrilhas do que na tradicional. Ora, se este é o sentido tático da surpresa, que papel ela terá no discurso de Foucault? A surpresa é arma da minoria; modo de intervir contra um inimigo superior, num ponto seu que é fraco; modo de inverter, pontualmente, a re­lação de forças, convertendo a inferioridade global em supe­rioridade local. Um discurso minoritário não é o que tema­tiza, ou defende, as minorias - raciais, sexuais, religiosas; é o que se recusa a globalizar, a totalizar o pensamento _ que nega matrizes, como a hegeliana. É essa natureza do discurso foucaultiano, essa sua tenção, que fOIja a sua tensão; são as surpresas, os inesperados, a aparente arbitrariedade dos re­cortes e ênfases, que dão ao discurso o seu suspense. ,

Se voltamos agora a Borges e V elázquez, vemos que am­bos abrem, em As palavras, janelas de imaginário ao pensa­dor. Cavam, no seu roteiro, o inesperado. Liberando-o dos há­bitos de uma razão preguiçosa, que se satisfaz com filiações e totalidades, a literatura e a pintura fazem-no meditar o pouco pensado ou o não-pensável de uma época - temas que serão constantes em Foucault. Mas o importante não é a citação de Borges, nem a análise de Velázquez: é que o próprio Fou­cault arme seu discurso de recursos literários, para pô-lo a serviço do pensar. Da mesma forma que em seus livros, tam­bém nas aulas do College de France ele contava histórias exemplares; estas até tinham um timing exato: como muitos ouvintes gravavam a aula, Foucault aproveitava o momento em que trocavam a fita de lado (aos 4S minutos de fala) para

34 o DISCURSO DIFERENTE

um interlúdio, uma anedota significativa - que é claro, to­dos tentavam também gravar; a própria pausa excitava o dis­curso_ As historietas, imagens e metáforas, o talvez, a sur­presa e o suspense - todos esses elementos literários, em vez de interromperem ou degradarem o discurso, sustentam-no, dão-lhe gume_ Ao contrário de uma tradição filosófica forte, que desconsiderou o literário como forma de conhecimento, Foucault incorporou-o no seu próprio texto, como indutor de pensamento.

Foucault assim segue, mais e mais, a lição de Borges: desconcertar os hábitos de nossa razão para fazer-nos pensar. Em A vontade de saber, por exemplo, afirma: "Afinal de con­tas, somos a única civilização em que certos prepostos rece­bem retribuição para escutar cada qual fazer confidência so­bre seu sexo: como se o desejo de falar e o interesse que disso se espera tivessem ultrapassado amplamente as possibilidades da escuta, alguns chegam até a colocar suas orelhas em loca­ção" (p. 13). Da afirmação de fato, peremptória (somos a única civilização ... ), salta, não para uma explicação, mas para outro registro, hipotético, talvez ficcional: como se. E, se não pensarmos a ficção como mentira, mas como acréscimo ou invenção, tratar-se-á mesmo de ficção - porque a frase vale, antes de mais nada, pelo bene trovato. Foucault não irá argumentar, demonstrar; é verdade que o. faz tantas vezes, e que seu discurso se escora sempre em rigorosa freqüentação dos textos, em sólida informação histórica; mas há ditos, dos mais salientes, que seria inútil e dispensável justificar (como esse), porque captam de imediato a adesão do leitor - ou não. Se a captam é pelo bene trovato, a trouvaille, o achado: pelo engenho. E a que monta o achado? É uma forma de in­venção; não é tanto uma explicação, um simulacro teórico que dê conta dos objetos, que os reduza - é a constituição de um novo discurso, que com os anteriores dialoga, que a eles se agrega, com sua forma nova e distinta. Este discurso dife­rente, que não quer a prova de verdade, tem o seu muito de literário - se pensarmos a literatura, mais uma vez, com Jor­ge Luís Borges. De quem cito, para concluir, Una rosa ama­rilla: "Então aconteceu a revelação. Marino viu a rosa, como Adão pôde vê-Ia no Paraíso, e sentiu que ela estava em sua eternidade e não em suas palavras, e que podemos mencionar ou aludir porém não expressar, e que os altos e soberbos vo-

l. ~

L,-

RECORDAR FOUCAULT 3S

lumes que formavam num ângulo da sala uma penumbra de ouro não eram (como sua vaidade sonhara) um espelho do mundo, mas sim uma coisa mais acrescentada ao mundo". 9

(9) Bhacedor, Buenos Aires, 1965, pp. 31-32.

Foucault leitor de Nietzsche Scarlett Marton*

As referências de Foucault a Nietzsche estão presentes ao longo de sua obra, desde A hist6ria da loucura até os cursos proferidos no CoUege de France em 1976 - sem mencionar artigos e entrevistas. I As marcas que a leitura do filósofo deixou em seu pensamento são, sem dúvida, perceptiveis: de­sinteresse por uma obra sistemática, primado da relação sobre o objeto, papel relevante da interpretação, importância dos procedimentos estratégicos e até mesmo absorção da noção de genealogia. Seu próprio método teria surgido, de acordo com Paul Veyne, da meditação sobre alguns textos de Nietzsche.

2

Foucault, porém, adverte: "A história do saber só pode ser feita a partir do que lhe foi contemporâneo e não, é claro, em termos de influência recíproca, mas em termos de condições e

(*) Da Universidade Federal de São Carlos. (1) Dentre eles: a "Resposta ao Circulo de Epistemologia" publicada

nos Cahiers pau! I'Ana/yse, n? 9, verão de 1968; "Conversa sobre a prisão: o livro e seu método", no Magazine Littéraire, n? 101, junho de 1975, e "Ques­tões a Michel F:~ucault sobre a geografia", em Hérodote. n? 1, 1976.

(2) "Foucault révolutionne J'histoire" in Gomment on écrit I'histoíre, Paris, Seuil, 1978, p. 240, nota 11. Veyne refere-se ao parágrafO 11 da Primeira Dissertação de Para a genealogia da moral e aOS aforismos 70 e 604 da edição canônica da Vontade de potência.

< ,

L,

RECORDAR FOUCAULT 37

de a priori constituídos no tempo" 3 - o que se poderia aplicar a seu próprio pensamento. Não se trata aqui, portanto, de analisar de que maneira seu trabalho se teria inspirado nas idéias de Nietzsche nem de indagar em que medida seu pro­jeto teria sido por elas influenciado.

O que pretendemos é investigar que leitura Foucault faz de Nietzsche. Para tanto, contamos examinar dois textos espe­cificos que tratam diretamente do filósofo: "Nietzsche, Marx, Freud", comunicação no Colóquio Nietzsche realizado em Royaumont em 1964, e "Nietzsche, a genealogia, a história", artigo no volume em Hommage à Jean Hyppolite, de 1971. Refazendo o percurso desses textos, esperamos mostrar, num primeiro momento, como algumas idéias de Nietzsche são ilu­minadas pela perspectiva foucaultiana, para depois inquirir se não chegam a opor-lhe certa resistência.

Na comunicação de 64, Foucault aproxima Marx, Nietz­sche e Freud, fazendo ver que no século XIX eles teriam inau­gurado uma nova hermenêutica: em vez de multiplicarem os signos, modificaram sua natureza e criaram outra possibili­dade de interpretá-los. Se na hermenêutica do século XVI os signos se dispunham de modo homogêneo em espaço homo­gêneo, remetendo-se uns aos outros, no século XIX aparecem de modo muito mais diferenciado, segundo a dimensão da profundidade, entendida como exterioridade. Se antes o que dava lugar à interpretação era a semelhança, que enquanto tal só podia ser limitada, agora a interpretação torna-se tarefa infinita. Nessa medida, a filosofia de Nietzsche - que é o que nos interessa - seria "uma espécie de filologia sempre em suspenso, uma filologia sem termo, que se desenrolaria sem­pre mais, uma filologia que nunca estaria fixada de forma absoluta". 4

Essa idéia, aliás, aparece em outros textos. No prefácio ao Nascimento da clínica, Foucault afirma que Nietzsche, fi­lólogo, comprova que à existência da linguagem se vinculam a possibilidade e necessidade de uma critica.5 Em As palavras e as coisas, declara que Nietzsche, filólogo, foi o primeiro a apro-

(3) Les mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966, p. 221. (4) "Nietzsche, Freud, Marx", in Nietzsche, Cahiers de Royaumont -

Philosophie, n? VI, Paris, Minuit, 1967, p. 188. (5) Naissance dela clinique, Paris, PU F, 2~ ed., 1972, prefácio, p. XII.

I,

38 FOUCAULT LEITOR DE NIETZSCHE

ximar a tarefa filosófica de uma reflexão radical sobre a lin­guagem. 6 E, ao tratar da renovação das técnicas de interpre­tação no século XIX, sustenta que a filologia se tornou a forma moderna da crítica e recorre, para ilustrar essa tese, à análise de uma passagem do Crepúsculo dos idolos: "Temo que não nos desvencilharemos de Deus, porque ainda acredi­tamos na gramática ... ". 7 Deus estaria antes num aquém da linguagem do que num além do saber. 8

Em Royaumont, Foucault vê a interpretação como tarefa infinita e liga seu caráter sempre inacabado a dois outros princípios: se ela não pode acabar, é porque não há nada a ser interpretado (todo interpretandum já é um interpretans); e, como ela não acaba, acha-se obrigada a voltar-se sobre si mesma (toda interpretação é levada a interpretar-se). Assim, para Nietzsche, as palavras não passariam de interpretações; estas apareceriam como signos ao buscarem justificar-se, e os signos, ao tentarem recobri-Ias, nada mais seriam do que máscaras. Foucault encararia, desse ponto de vista, a análise etimológica do termo agathos - presente no quarto e quinto parágrafos da Primeira Dissertação de Para a genealogia da moral - onde Nietzsche mostra como esse termo nasce do conceito de "nobre", no sentido de posição social. E provavel­mente leria, ainda nessa perspectiva, a afirmação do segundo parágrafo da mesma Dissertação: "O direito dos senhores, de dar nomes, vai tão longe, que se poderia permitir-se captar a origem da linguagem mesma como exteriorização de potência dos dominantes: eles dizem, 'isto é isto e isto', eles selam cada coisa e acontecimento com um som e, com isso, como que tomam posse dele".

Finalmente, duas conseqüências decorrem do princípio de a interpretação ter de voltar-se sobre si mesma: ela não tem um termo de vencimento como os signos, mas seu tempo é circular; e não se ocupa mais com o significado, mas indaga

(6) Lesmotsetleschoses, p. 316. O) Crepúsculo dos ídolos, a "razão" na filosofia, § 5. Utilizamos a edi­

ção das obras de Nietzsche organizada por G. ColIi e M. Montinari, Berlim, Walter de Gruyter & Co., diferentes datas conforme os volumes. Sempre que possível, recorremos à tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho para o vo­lume Nietzsche _ Obras Incompletas, da coleção "Os Pensadores", São Pau­lo, Abril Cultural, 2~ ed., 1978.

(8l Cf. Lesmotsetleschoses, p. 311.

b i....

RECORDAR FOUCAULT 39

quem interpretou. Em Nietzsche, diz Foucault, "o princípio da interpretação nada mais é do que o intérprete". ' Nessa direção, leria provavelmente o aforismo 45 de Humano, de­masiado humano, no qual o filósofo afirma que bem e mal têm uma dupla pré-histórica: em primeiro lugar, "na alma das raças e castas dominantes" e, em segundo, "na alma dos oprimidos, dos impotentes". Bem e mal não indicariam um significado, mas imporiam interpretações, e lidar com elas importaria perguntar quem as colocou.

Portanto, no entender de Foucault, o caráter inovador do pensamento nietzschiano residiria no fato de ter inaugurado uma nova hermenêutica. Nietzsche não se empenharia em tratar dos significados nem se preocuparia em falar do mun­do, mas se dedicaria a interpretar interpretações. E, ao fazê­lo, partiria sempre da pergunta por quem interpretou. Nessa medida, sua filosofia seria antes de mais nada filologia sem ponto de chegada. Abrindo o espaço filológico-filosófico com a questão: quem fala? ligaria a possibilidade e necessidade de uma crítica com a reflexão radical sobre a linguagem. Por ora, deixemos em suspenso essas colocações e passemos ao exame do texto de 71, para adiante retomá-las.

Em "Nietzsche, a genealogia, a história", Foucault recu­pera, ainda que rapidamente, a questão da interpretação, li­gando-a desta vez à idéia de genealogia. Com isso, é levado a referir-se necessariamente ao que chamamos, em Nietzsche, de teoria das forças. Nesse artigo, a genealogia nietzschiana é entendida como análise da proveniência e história das emer­gências. Proveniência e emergências constituiriam seu objeto. A proveniência (Herkunft) não funda, não aponta para uma continuidade, não é uma categoria da semelhança. Perguntar­se pela proveniência de um indivíduo, de um sentimento ou de uma idéia, não é descobrir suas características genéricas para assimilá-lo a outros, nem mostrar que nele o passado ainda está vivo no presente, muito menos encontrar o que pôde fun­dá-lo; mas sim buscar suas marcas diferenciais, repertoriar desvios e acidentes de percurso, apontar heterogeneidades sob o que se imagina conforme a si mesmo. A emergência (Ents­tehung), por sua vez, não se confunde com o termo final de

. um processo, mas constitui "princípio e lei singular de uma

(9) "Nietzsche, Freud, Marx", p. 191.

40 FOUCAULT LEITOR DE NIETZSCHE

aparição". 10 No indagar sobre a emergência de um órgão ou de um costume, não se trata de explicá-los pelos antecedentes que os teriam tornado possíveis, mas de mostrar o ponto de seu surgimento; não cabe compreendê-los a partir dos fins a que se destinariam, mas detectar um certo estado de forças em que aparecem.

Nessa perspectiva, seria possível considerar, por exem­plo, a genealogia dos conceitos "bem" e "mal". A análise de sua proveniência mostraria que não existem em si, idênticos a si mesmos; ao contrário, comportam marcas diferenciais, tra­duzem acidentes e desvios de percurso, denunciam heteroge­neidades. A história de suas emergências revelaria que, em vez de constituírem termos finais de um processo, surgem em cer­tos estados de forças. Seria possível ainda ler a exigência mesma que Nietzsche se impõe no prefácio a Para a genealo­gia da moral, parágrafo 6: "Precisamos de uma crítica dos valores morais, devemos começar por colocar em questão o valor mesmo desses valores, isto supõe o conhecimento das condições e circunstâncias de seu nascimento, de seu desen­volvimento, de sua modificação (a moral como conseqüência, sintoma, máscara, tartufaria, doença, mal-entendido, mas também como causa, remédio, stimulans, empecilho ou ve­neno), enfim, um conhecimento tal como nunca existiu até o presente e como nem mesmo se desejou".

Segundo Foucault, a emergência diz respeito à entrada em cena de forças. Ao irromperem, lutando umas contra as outras, é sempre uma mesma peça que se apresenta: a que envolve dominantes e dominados. Assim como do domínio de classes por outras classes surge·a idéia de liberdade, e do do­mínio das coisas pelos homens aparece a lógica, do domínio de homens por outros homens vai nascer a diferenciação dos valores. Com esses processos de dominação, estabelecem-se sistemas de regras; contudo, ao contrário do que se poderia supor, eles não visam a suprimir a guerra e instaurar a paz. "A regra", afirma Foucault, "é o prazer calculado do com­bate, é o sangue prometido. Permite relançar sem cessar o jogo da dominação, põe em cena uma violência meticulosa·

(10) "Nietzsche, la gênêalogie. I'histoire", ;n Hommage à Jean Hyppo­lite, Paris, PUF, 1971, p. 154.

" ,

, l L

RECORDAR FOUCAULT 41

mente repetida." 11 Portanto, a existência de regras possibilita a inversão de uma relação de forças, viabiliza que sejam do­minados os que dominam. Ao apossarem· se de sistemas de re­gras estabelecidos, as forças impõem-lhes uma nova direção. Desse ponto de vista, seria possível entender, por exemplo, a tese nietzschiana da transvaloração de todos os valores, trans­valoração que já se verificaria, num primeiro momento, com o advento do cristianismo, Seria ainda possível compreender a afirmação do parágrafo 195 de Para alem de Bem e Mal: "Nessa inversão dos valores (que emprega a palavra 'pobre' como sinônimo de 'santo' e 'amigo') reside a importância do povo judeu: com ele começa a revolta dos escravos na moral" .

De acordo com Foucault, sistemas de regras, como valo­res morais, conceitos metafísicos (inclusive a idéia de liber­dade), procedimentos lógicos e até a própria linguagem, não têm um significado originário, mas são vazios, feitos para se­rem utilizados. Estão à mercê de forças, que deles se apossam, imprimindo-lhes em cada inversão de relação, em cada pro­cesso de dominação, um novo sentido, E assim se acha outra vez cercada a questão da interpretação. "Interpretar", afirma Foucault, "é apoderar-se, violenta ou sub-repticiamente, de um sistema de regras, que não tem em si uma significação es· sencial, e impor-lhe uma direção, curvá-lo a uma vontade nova, fazê·lo entrar num outro jogo e submetê-lo a regras se­cundárias." 12

Nesse ponto, reencontramos o texto de 64. Tanto lá como aqui, em Nietzsche, palavras - e também conceitos, lógica, valores - não indicariam significados, mas imporiam inter· pretações, Em interpretá-Ias, consistiria a tarefa genealógica. Enquanto história das emergências de diferentes interpreta­ções, a genealogia deveria colocar·se a pergunta por quem in­terpreta em cada nova emergência, a pergunta por quem se apodera dos sistemas de regras em cada novo estado de forças.

Ora, a partir dessa colocação, alguns problemas podem ser levantados, Nietzsche insiste, repetidas vezes, que das for­ças só se pode dizer que se efetivam, Na Primeira Dissertação de Para a genealogia da moral, parágrafo 13, declara: "um quantum de força corresponde ao mesmo quantum de im-

(11) Idem, ibidem, p. 157. (12) Idem, ibidem, p. 158.

~

42 FOUCAULT LEITOR DE NIETZSCHE

pulso, vontade, efetivação - ou melhor, nada mais é do que precisamente esse impulso, essa vontade, essa efetivação e só pode parecer de outro modo por causa da sedução da lingua­gem (e dos erros fundamentais da razão nela sedimentados), que compreende - equivocando-se - toda efetivação como condicionada por algo que se efetiva, por um 'sujeito'''. Res­salta-se a impossibilidade de distinguir a força de suas mani­festações. Não tem sentido, portanto, dizer que produz efei­tos; isso equivaleria a apreendê-la como causa de algo que não se confunde com ela. A força - isso sim - efetiva-se, melhor ainda, é um efetivar-se. Tampouco faz sentido dizer que re­pousa sobre algo que lhe permite manifestar-se nem que se desencadeia a partir de algo que a impulsiona. "Não existe nenhum substrato", diz Nietzsche, "não existe nenhum 'ser' sob o fazer, o efetivar-se, o vir-a-ser; 'o autor' é simplesmente acrescentado à ação - a ação é tudo." I3 Associar as idéias de substrato e sujeito à de força, antes de mais nada, torna fla­grante um equívoco: o de não se compreender a força en­quanto efetivar-se.

Ao colocar a questão de quem interpreta, Foucault não estaria pressupondo a existência de algo anterior à própria interpretação? Na pergunta por quem interpretou não ressur­giria insidiosamente a idéia mesma de sujeito? No intérprete, não se acharia ela sub-repticiamente reinserida? Convém lem­brar a frase taxativa de Nietzsche num fragmento póstumo: "Não se deve perguntar 'quem pois interpreta?'''. 14 Contudo, à nossa objeção, seria possível responder que as interpretações surgem do próprio efetivar-se das forças. Exercendo-se, as for­ças se estariam apoderando de sistemas de regras e lhes im­pondo direções. A pergunta pelo intérprete se confundiria en­tão com a pergunta pelas forças que dominam num dado mo­mento.

Outro problema, porém, deve ser resolvido. Resta saber o que são forças, no entender de Foucault. Nos textos que exa­minamos, não se encontra resposta clara a esse propósito. Como vimos, a emergência diz respeito à entrada em cena de forças, que lutam umas contra as outras, apresentando a peça

(13) Para a genealogia da moral, Primeira Dissertação, § 13. 1141 211511. outono de 1885/outono de 1886. I

.. J , .. l~_,~

RECORDAR FOUCAULT 43

que envolve dominantes e dominados. Dos processos de do­minação, nascem a idéia de liberdade, a lógica e a diferencia­ção dos valores; com esses processos, estabelecem-se, pois, sis­temas de regras. Em cada inversão de relação, em cada nova dominação, as forças apoderam-se dos sistemas de regras e lhes imprimem nova direção. Assim emergem interpretações diferentes. "Então", afirma Foucault, "o vir-a-ser da huma­nidade é uma série de interpretações. E a genealogia deve ser a sua história: história das morais, dos ideais, dos conceitos metafísicos, história do conceito de liberdade ou da vida ascé­tica, como emergências de interpretações diferentes. Trata-se de fazê-las aparecer como acontecimentos no teatro dos proce­dimen tos. " 15

Seria, por certo, descabido perguntar se essas forças que impõem novas interpretações - interpretações que consti­tuem o vir-a-ser da humanidade - seriam sociais, culturais ou políticas. Mas importa notar que atuam na esfera humana - e, aparentemente, apenas nela. Contudo, num fragmento póstumo de junho/julho de 1885, Nietzsche afirma - de ma­neira cristalina - que na força reside a relação entre o orgâ­nico e o inorgânico. 16 Nesse momento, ao introduzir sua teo­ria das forças, é a passagem da matéria inerte à vida o que pretende resolver. E num outro póstumo declara: "E sabeis o que é para mim o 'mundo'? Devo mostrá-lo a vós em meu espelho? Este mundo - uma monstruosidade de força, sem início, sem fim, uma firme, brônzea grandeza de força, que não se torna maior, nem menor, que não se consome, mas apenas se transmuda, inalteravelmetne grande em seu todo, uma economia sem despesas e perdas, mas também sem acrés­cimo, ou rendimentos, cercada de 'nada' como de seu limite, nada de evanescente, de desperdiçado, nada de infinitamente extenso, mas como força determinada posta em um determi­nado espaço, e não em um espaço que em alguma parte esti­vesse 'vazio', mas antes como força por toda parte, como jogo de forças e ondas de força, ao mesmo tempo um e múltiplo, aqui acumulando-se e ao mesmo tempo ali minguando, um· mar de forças tempestuando e ondulando em si próprias, eter-

1151 "Nietzsche, la généalogie, I'histoire", p. 156. 1161 361221, junho/julho de 1885.

L

44 FOUCAULT LEITOR DE NlETZSCHE

namente mudando, eternamente recorrentes". 17 No limite, pode-se dizer que, para Nietzsche, as forças estão em toda parte, tudo - inclusive natureza e vida - é constituído por forças agindo e resistindo umas em relação às outras.

Ora, ao desconsiderar o caráter cosmológico da teoria das forças, F oucault não estaria reduzindo sua amplitude e mini­mizando sua importância? Ao afirmar que, com a entrada em cena das forças, é sempre a mesma peça envolvendo domi­nantes e dominados que se desenrola, não as estaria enre­dando nas malhas do antropomorfismo? Ao colocar que se apoderam de sistemas de regras estabelecidos, não lhes estaria atribuindo uma intencionalidade que não comportam? Uma última questão - esta entre parênteses - não seria justa­mente a negligência pelas preocupações cosmológicas de Nietzsche que levaria Foucault a considerá-lo como filósofo do poder? 18 Talvez fosse possível contornar esse problema, susten­tando-se que a questão central do texto de 71 reside nas rela­ções entre a genealogia e a história. Na medida em que se de­dica a mostrar que valores, conceitos, procedimentos lógicos, palavras- todos "humanos, demasiado humanos" - não passam de interpretações, não precisaria apontar que as for­ças se exercem em toda parte, inclusive no mundo inorgânico.

Por outro lado, a tarefa genealógica consistiria, segundo Foucault, em interpretar as interpretações. Ao genealogista, caberia investigar que forças dominam num dado momento, impondo uma nova direção a sistemas de regras estabelecidos. Mas, para levar a cabo sua tarefa, necessita de um critério que lhe permita distinguir essas forças. Moral, metafísica, lógica e linguagem devem ser submetidas a um exame; são interpre­tações a serem interpretadas ou, em termos mais precisamente nietzschianos, avaliações a serem avaliadas. Ora, o critério

1171 38 1121. junho/julho de 1885. (18) Na "Conversa sobre a prisão: o livro e seu método", Foucault afir·

ma: "Nietzsche é aquele que ofereceu como alvo essencial, digamos, ao dis· curso filosófico, a relação de poder; enquanto para Marx era a relação de pro­dução. Nietzsche é o filósofo do poder, mas que chegou a pensar o poder sem se encerrar no interior de uma teoria política". Publicada inicialmente no Maga­zine Littéraire, n? 101, de junho de 1975, essa entrevista, feita por J. J. Bro­chier, foi retomada com o título "Les jeux du pouvoir" no livro organizado por Dominique Grisoni, Politiques de la Philosophie, Paris, Bernard Grasset, 1976, p.173.

·h , h"_

RECORDAR FOUCAULT 4S

que permite avaliar as avaliações e interpretar as interpreta-O ções não deve, por sua vez, prestar-se a interpretações nem a avaliações. E o único critério que se impõe por si mesmo é, no entender de Nietzsche, a vida. "Seria preciso", diz ele, "ter uma posição fora da vida e, por outro lado, conhecê-Ia tão bem quanto um, quanto muitos, quanto todos, que a viveram, para poder em geral tocar o problema do valor da vida: razões bastantes para se compreender que este problema é um pro­blema inacessível a nós. Se falamos de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: a vida mesma nos coage a ins­tituir valores; a vida mesma valora através de nós, quando instituímos valores ... " 19 O procedimento genealógico encon­tra seu critério numa tese cosmológica: a vida concebida como uma pluralidade de forças, agindo e resistindo umas em rela­ção às outras. Em última análise, pode-se dizer que a genea­logia repousa numa cosmologia.

Assim. ao examinar os conceitos "bem" e "mal", não basta apontar que surgem em diferentes estados de forças no caso da moral dos nobres e no da moral dos escravos; ao exa­minar a transvaloração dos valores operada com o advento do cristianismo, não basta mostrar que se deu com a inversão de uma relação de forças. É preciso ainda diagnosticar se essas forças contribuem para a expansão ou para a degenerescência da vida. Sem dúvtda, a filosofia de Nietzsche é filologia na medida em que, em vez de revelar um significado originário escondido nas palavras, conceitos e valores, encara-os como interpretações ou avaliações. Mas abriga também uma cosmo­logia que fornece o critério para interpretá-Ias e avaliá-Ias.

Se, por vezes, o pensamento de Nietzsche parece oferecer resistências à leitura de Foucault, é provável que essa leitura não se dê a conhecer nos textos que tratam diretamente do filósofo. Talvez Foucault encare Nietzsche menos como objeto de análise do que como instrumento; talvez se relacione com ele menos como o comentador com seu interpretandum do que como o pensador com sua caixa de ferramentas. Seus mo­mentos de silêncio em relação ao filósofo podem ser mais reve­ladores do queaqueles em que dele fala. "Hoje"" diz Foucault em 1975, "fico mudo quando se trata de Nietzsche. No tempo

(19) Crepúsculo dos Id%s. moral como contranatureza, § 5.

46 FOUCAULT LEITOR DE NIETISCHE

em que era professor, dei freqüentemente cursos sobre ele, mas não mais o faria hoje. ( ... ) A presença de Nietzsche é cada vez mais importante. Mas me cansa a atenção que lhe é dada para fazer sobre ele os mesmos comentários que se fizeram ou se fariam sobre Hegel ou Mallarmé. Quanto a mim, os autores de que gosto, eu os utilizo. O único sinal de reconhecimento que se pode ter para com um pensamento como o de Nietzs­che, é precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo, ranger. Que os comentadores digam se se é ou não fiel, isto não tem

nenhum interesse." 20

(20) "Les jeux du pouvoir", in Politiques de la Philosophie, pp. 173-174.

.,j t~.~

Nas origens da História da Loucura: uma retificação e seus limites

Pierre Macherey*

A História da loucura é publicada em 1961: trata-se da primeira obra teórica importante de Foucault, e do ponto de partida efetivo de todas as suas investigações posteriores. Em 1962, as Presses Universitaires de France reeditam, sob um novo título (Maladie mentale et psychologie, ou Doença men­tal e psicologia), e numa versão consideravelmente modifi­cada, um livrinho que Foucault havia publicado em 1954, na coleção "Initiation philosophique", dirigida por Jean Lacroix - Maladie mentale et personalité (ou Doença mental e perso­nalidade). Se queremos fazer a arqueologia do pensamento de Foucault, é a este último livro que devemos remontar, para conhecer o estado inicial de suas reflexões sobre a doença mental e a loucura. A comparação das duas versões desse tex­to, a de 54 e a de 62, revela-se rica em ensinamentos: permite medir o caminho que Foucault precisou percorrer antes de in­gressar na via, completamente original, que iria seguir por mais de duas décadas, até a História da sexualidade de 1984; especialmente, mediante essa retificação teórica de um texto primitivo, efetuada à luz das descobertas expostas entremen­tes na História da loucura, tal comparação ressalta os caracte­res específicos da nova problemática, a partir da qual essas jescobertas se tornaram possíveis; finalmente, também per-

(*) Da Universidade de Paris I.

48 NAS ORIGENS DA HISTORIA DA LOUCURA

mite ver dentro de que limites continua contida, no começo dos anos 60, a interpretação que Foucault propõe para as prá­ticas e saberes do homem, que, até o fim de sua obra, consti­tuirão o objeto de seu estudo_

Comecemos considerando a introdução geral do livro -embora ela sofra, em 1962, apenas correções superficiais_ Nela se formula a questão geral à qual remeterão todas as análises futuras: sob que condições se veio a falar de "doença mental", e a enunciar discursos a seu respeito, que assumiram a forma de saberes? Na primeira versão desta obra, Foucault propu­nha-se a confrontar essa representação com "uma reflexão sobre o próprio homem" (p_ 2), fórmula que ele assim rees­creveu: "Uma certa relação, historicamente situada, do ho­mem com o homem louco e com o homem autêntico" (idem)_ Dessa maneira se anunciam duas idéias que se reencontram em todo o restante do livro de 62, e que também delimitam o cam po teórico da História da loucura: primeiro, que só há re­flexão sobre a realidade humana se for historicamente si­tuada, e que é apenas na história que tal reflexão poderá en­contrar bases efetivas; segundo, que a loucura - que, em sua essência, é diferente da doença mental - mantém uma rela­ção fundamental com a verdade_ Teremos que nos interrogar, na seqüência, se essas duas idéias se conciliam, e em que me­dida prefiguram as mudanças posteriores das posições de Fou­cault_ Assinalemos ainda que, no começo de Maladie mentale et personnalité, Foucault assim caracterizava a orientação po­lêmica de sua investigação: "Mostrar de que postulados a me­dicina mental deve libertar-se, para tornar-se rigorosamente científica" (p_ 2), enquanto, em Maladie mentale et psycho­logie, ele a define da maneira seguinte: "Mostrar de que (ele­mentos) prévios a medicina mental deve conscientizar-se, para alcançar um novo rigor" (idem) _ Pois, se a patologia mental acede a formas de rigor historicamente situadas e diversifica­das, que constituem os seus elementos "prévios", tornou-se claro para Foucault, em 62, que a economia de seu discurso não depende de "postulados" teóricos, quer estes possuam va­lor científico, ou não: assim, ela jamais poderá liberar-se por completo desses fatores prévios, para aceder ao estatuto obje­tivo de ciência, mas apenas tomar consciência deles, mediante uma reflexão histórica sobre suas próprias condições de possi­bilidade_

L

RECORDAR FOUCAULT 49

o primeiro capítulo do livro, nas duas versões, retoma e desenvolve esses temas da introdução_ Explica como o con­ceito de doença mental, previamente definido da perspectiva de uma patologia geral ou "metapatologia" comum à medi­cina orgânica e à medicina mental, dela se separou, sob a capa de um estudo propriamente psicológico dos fenômenos da loucura - estudo este que revela os seus caracteres especí­ficos, irredutíveis aos modelos explicativos utilizados no con­texto de uma patologia orgânica_ O texto de Maladie mentale et personnalité reafirma então a necessidade de liberar a no­ção de doença mental dos postulados abusivos que a impedem de aceder a um rigor científico: "A patologia mental deve des­vencilhar-se de todos os postulados abstratos de uma meta­psicologia: a unidade assegurada por esta, entre as diversas formas de doença, é apenas factícia; é o homem real que porta a sua unidade de fato" (p_ 16)_ Essa última fórmula, que faz pensar em Politzer, cuja inspiração está presente em Foucault quando escreve o seu primeiro livro, em 54, é manifestamente ambígua: à essência abstrata da doença, ela contrapõe uma verdade efetiva e concreta do homem, que constitui a imagem daquela no espelho_ Ê por isso que o texto de 62 substitui essa passagem pela seguinte redação: "Quer dizer que ela remete a um fato histórico ao qual já começamos a escapar" (idem); pois o "sujeito" da doença mental não é essa natureza autên­tica ou objetiva, persistindo por trás das interpretações factí­cias que a dissimulam, porém um ser histórico, de quem nada afirma que ele seja o próprio doente; e a unidade deste sujeito depende de condições em perpétua transformação, que ex­cluem toda permanência sua. Ê por isso que dar conta da es­pecificidade da vida mental não é "procurar as formas concre­tas que ela pode tomar na vida concreta de um indivíduo" (p. 17), como dizia o texto da primeira edição, mas, na versão corrigida, "procurar' as formas concretas que a psicologia pôde atribuir-lhe" (idem) - e isto no sentido de uma atribui­ção histórica, que deve ser estudada fora de qualquer referên­cia a um fundamento real, quer este seja dado na existência singular de um indivíduo ou numa essência humana abstrata pensada em geral. Para tanto já não basta "determinar as con­dições que possibilitaram esses diversos aspectos (da patologia mental) e recompor o conjunto do sistema causal que as fun­dou" (Maladie mentale et personnalité, p. 17); é preciso "de-

r ' , I

L

50 NAS ORIGENS DA HISTORIA DA LOUCURA

terminar as condições que possibilitaram esse estranho esta­tuto da loucura, doença mental irredutível a qualquer doen­ça" (Ma/adie menta/e et psych%gie, idem): devolver ao con­ceito de doença mental a sua dimensão histórica e social é ar­rancar o seu objeto do encadeamento mecânico a que o sub­mete sua inserção num sistema causal- é procurar, ao invés, pensá-lo em relação com os seus pressupostos e as suas con­dições, isto é, com os seus elementos "prévios". Assim se compreende por que Foucault, que na primeira versão de seu texto se propunha a reconduzir a doença mental às suas "con­dições reais" (p. 17), toma um caminho diferente na versão corrigida, encarando a "psicopatologia como um fato de civi­lização·' (idem - trata-se das últimas linhas desse capítulo introdutório): não se pretende mais explicar a própria doença, porém referir os discursos e as práticas de que ela trata às condições que os constituem historicamente, fora de qualquer determinação real, que remeteria a uma significação objetiva ou positiva.

A seqüência do livro desenvolve-se em duas partes, das quais a primeira expõe - é o seu título - "as dimensões psicológicas da doença". Ela mostra como as diversas abor­dagens psicológicas da doença mental tenderam a destacá-la, pouco a pouco, de uma representação essencialista ou natura­lista, interpretando-a quer como um fato de evolução (do pon­to de vista jacksoniano, exposto e criticado no capítulo se­gundo, "A doença e a evolução"), quer como um momento na história do indivíduo (do ponto de vista da psicanálise, anali­sado no capítulo terceiro, "A doença mental e a história indi­vidual"), quer ainda como sentido oferecido a uma compreen­são existencial (do ponto de vista fenomenológico, apresen­tado no capítulo quarto, "A doença e a existência"). Na se­gunda versão do livro, o texto dessa "primeira parte é reprodu­zido com alterações insignificantes. Em 62, Foucault conti­nua pensando que a psicologia, ao propor uma descrição da doença mental que não se funda apenas na representação negativa de deficiências, como faz a patologia orgânica, e ao ressaltar a representação de conflitos (entre a existência pas­sada e a existência presente do indivíduo, entre o seu mundo interior e o mundo exterior, etc.), caracterizou a doença men­tal com o que ele agora chama "um novo rigor" (p. 2). Mas logo se chega ao limite dessas interpretações psicológicas, que

:..... .. '\ ,'o

}:.,. _.:, ,:; :,-,' J~ ,~,c, ,.à

-- ~í;.~-·- , -1::-- __

RECORDAR FOUCAULT 51

apresentam o que possui valor apenas descritivo como se fosse uma explicação, como se revelasse o sentido e a origem da doença: elas evidenciam muito bem o que é contraditório na noção de doença mental, porém não são capazes de reinserir essa contradição no sistema estrutural de suas condições, que são "históricas" mais do que propriamente "reais"; isso por­que permanecem atadas ao pressuposto de uma existência hu­mana dada, da qual pretendem expressar as leis. É por isso que, na segunda parte do livro, a questão do sentido e alcance dessa noção de doença mental será transposta para um ter­reno completamente diferente.

Vejamos, nas últimas linhas do capítulo quarto de seu livro, como Foucault articula essa nova investigação com as descrições anteriores: "Mas talvez aqui toquemos num dos )Jaradoxos da doença mental, que obrigam a empreender no­vas formas de análise: se essa subjetividade do insensato é a um só tempo vocação e entrega ao mundo, não será ao próprio mundo que deveremos perguntar qual o segredo dessa subje­tividade enigmática (2." edição: o segredo do seu enigmático estatuto)? Depois de explorarmos as dimensões interiores, 1

não seremos levados, forçosamente, a considerar as suas con­dições exteriores e objetivas? (2." edição: Não há, na doença, todo um núcleo de significações que depende do domínio em que ela apareceu - e, para começar, o simples fato de que nesse domínio ela é circunscrita como doença?)" (p. 69). Esta nova redação das três últimas linhas da primeira parte do livro mostra que a aparente permanência de seu texto oculta, na verdade, um deslocamento de significação: pois a caracteriza­ção da psicologia, em termos que o segundo livro reproduz idênticos, desemboca agora numa nova ordem de problemas. As formulações utilizadas em Ma/adie menta/e et personnalité podiam sugerir a necessidade de ir mais longe que as diversas psicologias no sentido da reconstituição de uma realidade hu­mana, explicada concretamente a partir de suas "condições exteriores e objetivas", mantendo assim a ilusão de que o con­ceito de doença mental remeteria a um conteúdo real, seu úni­co problema estando em oferecer, deste, uma interpretação

(1) No original de Foucault está "exteriores" - o que não passa, cer­tamente, de um erro de impressão.

"""-

52 NAS ORIGENS DA HIST6RIA DA LOUCURA

mistificada. Maladie mentale et psychologie. ao contrário. de­porta a atenção para uma questão nova: a noção de doença só remete a um sentido na medida em que se encontra identifi­cada como tal num determinado contexto histórico, ou no in­terior de um sistema de condições que objetiva o seu con­teúdo; quer dizer, portanto, que essa objetivação não depende de uma prévia objetividade; não se deve interrogá-la sobre o seu fundamento real, porém sobre a sua "constituição histó­rica", e é precisamente isto que vai constituir o assunto da segunda parte do livro, na nova edição de 1962.

Estas considerações permitem-nos propor uma explica­ção para a mudança do título do conjunto da obra. Empe­nhando-se em medir a relação da doença mental com a perso­nalidade, como fez no seu texto de 54, Foucault ingressava numa via explicativa que investigaria as condições da doença mental e de seu conceito do lado da existência pessoal do doente, e da situação geral que determina tal existência. O novo título do livro publicado em 62 indica outra orientação: não se trata mais de estudar a relação que a doença mantém, realmente, com a personalidade '- mas de examinar a sua relação, histórica e discursiva, com uma "psicologia", que delimita o campo epistemológico em cujo interior torna-se pensável o seu conceito, e que remete a um estudo positivo, pelo menos aparentemente. Na perspectiva assim definida, não é mais possível falar em doença mental, em personali­dade. em psicologia, como se estas noções correspondessem a conteúdos objetivos, cujos contornos pudessem ser circunscri­tos e isolados, sem se levar previamente em conta o sistema histórico das condições a partir do qual elas adquirem sentido umas correlativamente às outras.

Esse deslocamento é confirmado pela nova redação das primeiras linhas da segunda parte do livro. Retomando os três capítulos anteriores para precisar-lhes o alcance, Foucault es-

, crevera, em 54: "As análises que precedem determinaram as coordenadas mediante as quais se pode situar o patológico no interior da personalidade" (p. 71); em 62, é esta a sua formu­lação: .. As análises que precedem fixaram as coordenadas me­diante as quais as psicologias podem situar o fato patológico" (idem). Isto quer dizer que não existe - como o primeiro texto podia fazer pensar - fato patológico em si, portanto tampou­co existe relação real de determinação entre a doença mental e

"

i , , ·4fl----,,---

RECORDAR FOUCAULT S3

a personalidade; ao contrário: a própria personalidade do fato psicológico somente pode ser pensada a partir de uma psico­logia que a inscreve em sua perspectiva. A questão essencial é, então, a de saber quais são as relações entre doença mental e psicologia, sem se passar pela referência intermediária a uma "personalidade", cuja estrutura íntima a psicologia pretende­ria enunciar e da qual pretenderia dar uma explicação posi­tiva.

As modificações introduzidas na segunda parte do livro são muito importantes. O assunto nela tratado ressalta, se confrontado com a primeira parte: até aqui, somente foram expostas as formas de manifestação da doença mental, do ponto de vista das diversas psicologias que, a pretexto de a explicarem, não fizeram mais que descrevê-la; agora se trata de proceder ao estudo das condições da doença. No fim do capítulo quinto, Foucault escreve que devemos interrogar a doença mental sobre as suas "reais origens" (p. 89), em vez de nos atermos às "explicações míticas" que surgem imediata­mente da sua simples observação, ou do que se dá, aparente­mente, como tal. Ora, tais origens reais da doença não se en­contram na personalidade do doente, ou nas formas de exis­tência que lhes são impostas; estas últimas são objeto de uma investigação na qual a análise psicológica ainda teria cabi­mento, e até acederia a um rigor científico; mas aquelas coin­cidem com as condições históricas que possibilitam, a um só tempo, o fato patológico e a sua interpretação, sem que entre o primeiro e a segunda possa estabelecer-se relação alguma de precedência ou determinação. Em Maladie mentale et person­nalité, essa investigação está concentrada sob o título "As condições da doença" (p. 71), expressão ambígua porque deixa vislumbrar a possibilidade de uma explicação objetiva da doença, nas medida em que esta corresponde a uin dado real que pode ser reportado, positivamente, a suas condições. Para vencer essa ambigüidade, talvez bastasse escrever o tí­tulo de maneira um pouco diferente: As condições da "doen­ça"; as aspas acrescentadas à palavra doença mostrariam cla­ramente que as condições de que depende o seu objeto deter­minam, ao mesmo tempo e conjuntamente, o fato e a repre­sentação que dele se dá, sem que esses dois aspectos possam ser cindidos, e sem que um possa ser posto face ao outro como sendo o princípio de sua realidade. Na versão modificada de

~ f'

-

54 NAS ORIGENS DA HIST6RIA DA LOUCURA

seu livro, Foucault exprimiu essa idéia dando, a esta segunda parte, o título de "Loucura e cultura".

Comecemos considerando a introdução dessa nova parte. Se as psicologias, escreve Foucault, "mostraram as formas pelas quais aparece a doença, elas não puderam demonstrar as condições por que ela aparece" (p. 71). E o texto assim prossegue: "Certamente, é nelas (= nas formas) que a doença se manifesta, é nelas que se desvendam as suas modalidades, as suas formas de expressão, o seu estilo - mas é em outro lugar que o fato patológico (2." edição: o desvio patológico) tem as suas raízes" (idem). Com efeito, do ponto de vista deste "outro lugar" no qual se encontram as origens reais da doen­ça, quer dizer, do ponto de vista deste sistema em cujo interior ela é inseparável de sua imagem, não se deve mais falar em "fato patológico" - como se este existisse em si mesmo, por realidade própria - mas em "desvio patológico": esta última expressão designa o patológico como afastamento face a uma norma que é ao mesmo tempo norma de existência e norma de avaliação, a partir da qual a doença coincide exatamente com a sua imagem, tal como é construída historicamente, em con­dições que são tanto objetivas quanto subjetivas.

A seqüência desse texto introdutório não sofreu modifi­cações. Precisamos, porém, dedicar-lhe alguma atenção, nem que seja apenas porque, inseridas em um novo contexto, as mesmas análises adquirem sentido e alcance diferentes. Nes­sas páginas, Foucault considera as interpretações "sociológi­cas" ou "culturalistas" da doença mental, que permitem jus­tamente relativizar a noção desta, ao reimergirem-na no sis­tema das representações coletivas. Ora, essas interpretações, que efetivamente apresentam o fato patológico como desvio perante uma norma ("a doença situa-se entre as virtualidades que servem de margem à realidade cultural de um grupo so­cial" - p. 73), sofrem, segundo Foucault - que em 62 man­tém essa sua posição crítica -, do inconveniente de caracteri­zarem-no apenas negativamente: o patológico é então pensado como defeito ou falta face a uma norma. E "isso é certamente perder de vista o que há de positivo e real na doença, tal como ela se apresenta na sociedade" (p. 74). No texto de 54, percor­rido por todas as sortes de reminiscências de uma epistemolo­gia realista, essa frase não surpreende: remete à idéia de que existe um conteúdo específico do fato patológico, escapando

, \ L

RECORDAR FOUCAULT 55

ao ponto de vista global da explicação sociológica. Mas ela es­tranha, no texto de 62, que de modo geral parece despojado de qualquer referência positivista. É que, nesse intervalo, a fórmula mudou de significado: rompendo com "a ilusão cul, tural" (p. 75) da qual procede o sociologismo, ela agora mani­festa o que vincula o fato patológico ao sistema em cujo inte­rior ele é representado, sob a forma de uma relação positiva de determinação. "As análises de nossos psicólogos e sociólogos, que fazem do doente um desviante e procuram a origem do mórbido no anormal, são portanto, antes de mais nada, uma projeção de temas culturais. Na realidade, uma sociedade ex­prime-se positivamente nas doenças mentais que os seus mem­bros manifestam" (p. 75). Na realidade, positivamente: essas palavras não significam mais, porém, que exista uma reali­dade efetiva do patológico, acessível a uma explicação posi­tiva, mas sim que a inserção da doença num contexto cultural e social, longe de implicar uma desrealização e uma denega­ção de seu conceito, é justamente o que constitui a sua reali­dade "positiva" - em condições que, evidentemente, não são mais as de uma natureza, são as de uma história. O limite do sociologismo e do culturalismo está em que eles fornecem, da doença, uma definição que é comum a todas as formas de sociedade e cultura. Será preciso inverter os termos de uma tal análise: a doença não é reconhecida como tal por ser afas­tamento relativamente a uma norma; mas afasta-se de uma norma porque é identificada como forma patológica, em con­dições que ainda resta elucidar, face às quais as normas cole­tivas devem ser pensadas não como causas porém como efei­tos, não como realidades em si - é nisso que reside a ilusão culturalista - mas como fenômenos.

Assim descartada a perspectiva de uma sociologia cultu­ralista, será então necessário responder a duas questões: "Como veio a nossa cultura a atribuir à doença o sentido do desvio, e ao doente o estatuto que o exclui? E como é que -apesar disso - a nossa sociedade se exprime nessas formas mórbidas nas quais se recusa a reconhecer?" (p. 75). Com efeito, se a doença é presa num dispositivo de exclusão, isto não se dá no contexto da cultura ou da sociedade consideradas em geral, mas no de um certo tipo de cultura e de sociedade, que assim lhe designa a forma de sua manifestação. É isso o que Foucault tem em mente, quando escreve que uma socie-

JL

S6 NAS ORIGENS DA HISTÔRIA DA LOUCURA

dade "se exprime positivamente" nas formas patológicas que ela própria isola, ainda que, e talvez porque, ela se recuse a reconhecer-se nelas. Mas essa idéia de expressão, veremos, não significa exatamente a mesma coisa em Maladie mentale et personnalité e em Maladie mentale et psychologie.

Com efeito. no livro de 54, o capítulo quinto intitula-se "O sentido histórico da alienação mental", e no de 62, "A constituição histórica da doença mental". Falar em "sentido histórico" da alienação é mostrar como uma sociedade "se exprime" através das formas mórbidas às quais ela impõe os seus modos de reconhecimento: porém esse "sentido" e essa "expressão" devem entender-se então, não segundo a orien­tação de uma hermenêutica das mentalidades - via que está completamente excluída -, mas na perspectiva materialista de uma explicação da superestrutura pela infra-estrutura, bastante próxima do Marx de A Ideologia Alemã, que define a ideologia como "linguagem da vida social". Essa perspec­tiva, que caracteriza Maladie mentale et personnalité, remete ao pressuposto de uma epistemologia realista, explicando o fato patológico relativamente às condições reais que o deter­minam como "alienação", no quadro de uma sociedade tam­bém alienada; dir-se-á então que esta sociedade projeta sua alienação em modos de comportamento que ela impõe a al­guns de seus membros, assim modelando a sua personalidade. A verdade da alienação reside, pois, nas relações sociais que os homens mantêm entre si na sua existência que, de qualquer forma, quer esteja situada na categoria do normal ou na do patológico, sempre é perturbada pelos conflitos materiais que lhes determinam as formas. Quando, em 1962, Foucault orien­ta sua investigação para o estudo da "constituição histórica da doença mental", ele se afasta dessa concepção de uma aliena­ção original porque coletiva, que daria conta a priori de todas as formas de exclusão social e, por isso mesmo, determinaria quais "as condições da doença": pois a alienação não deve ser pensada como causa, mas como efeito; este depende de uma "constituição histórica" que não se reduz a uma relação real de determinação, a qual pressuporia, na materialidade primi­tiva de seu princípio (a estrutura social), o conteúdo do que se pretende explicar. Se há alienação num certo tipo de socie­dade, não é em virtude de uma essência alienada dele. pre­existente a suas manifestações e apenas se reproduzindo nes-

. , . r. ~~,

RECORDAR FOUCAULT 57

tas últimas: mas a materialidade do fato patológico só é objeto de conscientização e avaliação porque é construída historica­mente, em outras palavras, porque é produto de um processo cuja realidade nada permite divisar de início, posto que ele vai efetuando suas condições mediante um encadeamento de acontecimentos imprevisíveis, numa seqüência que ainda pre­cisamos reconstituir.

No primeiro parágrafo desse capítulo quinto, o texto de 54 propõe uma gênese das formas modernas de alienação par­tindo dessas formas originais que são o energúmeno dos gni­gos, o cativado dos latinos e o demoníaco dos cristãos. "A forma primitiva da alienação certamente se encontra na pos­sessão que, desde a Antigüidade, foi vista como - principal sinal da loucura - a transformação do homem num ou tro que não ele" (p. 76). Seguindo as transformações dessas formas primitivas, deve ser possível mostrar o sentido histórico da alienação, representada em primeiro lugar como irrupção do inumano na existência humana, depois progressivamente in­tegrada no universo dos homens, até o momento em que vai encontrar lugar nesse sistema contraditório, combinando ex­clusão e inclusão" característico da sociedade burguesa, que se impõe na Europa durante os últimos anos do século XVIII. Ora, o livro publicado em 62 renega tal concepção de uma evolução contínua, que leva da possessão à doença mental gra­dualmente tornando mais preciso um conceito de alienação, cujo sentido apenas se desenvolveria progressivamente no cor­rer da história, em vez de se constituir efetivamente nela e através dela. Adotar este último ponto de vista - o de uma constituição histórica - é fazer aparecer, ao contrário de uma evolução contínua, a sucessão de rupturas que, pela acumula­ção de seus efeitos, terminarão produzindo, nas condições es­pecíficas de uma determinada cultura, o conceito moderno de doença mental. Vejamos como se inicia, na sua nova versão, o capítulo quinto: "Foi em data relativamente recente que o Ocidente concedeu, à loucura, um estatuto de doença mental. Já se disse, já se disse demais que o louco fora considerado, até o surgimento de uma medicina positiva, como um pos­sesso" (p. 76). Ora, isto é precisamente o que o próprio Fou­cault afirmara na redação primitiva de seu livro, quando pres­supunha uma espécie de permanência da alienação através da história, que a exporia sob diversas formas. Mas agora a his-

r

J:

58 NA5 ORIGENS DA HISTORIA DA LOUCURA

tória não dá apenas um sentido, ou sentidos, à alienação -ela governa a sua "constituição", no curso de um movimento descontínuo que não está previamente orientado pela referên­cia a uma forma comum de alienação que fixaria, de ante­mão, o ritmo constante de seu percurso. Observemos que logi­camente, com essa mudança de orientação, também deveria desaparecer a alusão a um "Ocidente" igualmente mítico, que remete à mesma ilusão de uma permanência e de um "sen­tido" .

Propor o problema da constituição histórica da doença mental é, portanto, desistir de procurar por trás desta a base objetiva da qual ela seria a manifestação. Foucault escreve, em Maladie mentale et psychologie: "Todas as histórias da psiquiatria, até este dia, quiseram mostrar no louco da Idade Média e da Renascença um doente ignorado, preso no interior da rede fechada de significações religiosas e mágicas. Teria então sido necessário esperar a objetividade de um olhar mé­dico, finalmente científico, para descobrir a deterioração da natureza onde antes somente se decifravam perversões sobre­naturais" (p. 76). A leitura recorrente da história projeta até nas formas primitivas, que lhe atribui, essa verdade final que corresponde apenas, em última análise, ao ponto de vista limi­tado a partir do qual ela age, como se houvesse uma única loucura que primeiro foi ignorada como possessão, para de­pois ser conhecida, e reconhecida, como doença mental. Com efeito, uma epistemologia realista somente afirma a existência substancial do objeto ao qual se aplica um conhecimento para lhe conferir a perenidade de direito de um saber único, que atravessa a história inteira, sem que o seu movimento a modi­fique no fundo: mas essa representação do saber e de seu ob­jeto está presa, por sua vez, a uma conjuntura histórica .- a mesma que dará à luz, no século XIX, o discurso da medicina positiva -, e não pode furtar-se às suas condições; a conti­nuidade que tal representação supõe não possui nenhum fun­damento real, porém depende da singularidade de um ponto de vista e de um momento, precisamente aquele em que a no­ção de doença mental, até então não apenas ignorada mas também impensável porque predominava um outro contexto, aparece dentro de um sistema de práticas e de discursos que lhe confere o seu valor exclusivo de verdade.

'1. '

RECORDAR FOUCAULT 59

Aqui devemos abrir um parêntese: imediatamente depois de denunciar essa ilusão retrospectiva do saber positivo, que anexa ao domínio da doença mental todas as espécies de for­mas anteriores, reunidas sob a noção geral de alienação, Fou­cault fala do "confisco" das diversas experiências de loucura que é efetuado no conceito mesmo de doença (Maladie men­tale et psychologie, p. 78). Ora, esse termo confisco evoca duas coisas ao mesmo tempo: por um lado indica o processo de abstração que reduz figuras históricas originais, incompa­ráveis devido à irredutibilidade das condições de que depen­dem, a uma única representação, o que implica privilegiar indevidamente uma delas para fazê-la o modelo pelo qual to­das as demais devem ser, uniformemente, medidas; mas, por outro lado, também sugere a livre disseminação dessas expe­riências singulares, arbitrariamente contidas dentro dos limi­tes de um discurso mítico que ofusca a sua movente realidade. Pode-se pensar que aqui se esboça um novo realismo, que não mais seria um realismo da ciência, porém um realismo da ex­periência, agora promovida ao estatuto de uma forma origi­nária e verdadeira, atravessando livremente a história, a qual seria apenas o lugar ocasional de sua manifestação: tratar-se­ia, então; de um realismo da loucura, como objeto, não de um saber, mas de uma experiência. Efetivamente, toda a História da loucura, cuja grande sombra se desenha sobre o texto de },'ialadie mentale et psychologie, está obcecada por esse pres­suposto de uma experiência fundamental da loucura, repre­sentada pela trindade algo mística de Nerval, Roussel e Ar­taud - experiência essencial que escaparia aos limites de uma constituição histórica. Essa "procura de fontes ontológicas es­condi das" , para retomar uma expressão de Dreyfus e Rabi­now,2 caracteriza perfeitamente o sistema interpretativo ado­tado por Foucault no começo dos anos 60, no momento em que inicia a sua grande empresa de uma genealogia das for­mas da experiência humana: é precisamente esse pressuposto que ele reporá em questão, de maneira mais ou menos nítida, nos seus trabalhos posteriores.

Vimos de abordar a análise de um conceito que está no centro de todo o pensamento de Foucault: é o de experiência,

(2) Michel Foucault, un parcours philosophique, Paris, trad. francesa, Gallimard. 1984. p. 29.

:,

:i ,

J

60 NAS ORIGENS DA HISTÓRIA DA LOUCURA

que aparece no final do primeiro parágrafo do capítulo quinto, em Maladie mentale et psychologie. Aí ele intervém como alter­nativa para a representação de um fato positivo, que estaria na base da noção de doença mental. Aquilo que, na recor­rência de um saber que eterniza o seu discurso projetando-o sobre o passado, aparece de maneira contínua e permanente como alienação, corresponde na verdade a experiências diver­sificadas e incomparáveis: estas não se engatam umas nas ou­tras a partir de uma essência in diferenciada, da qual elas se­riam as sucessivas expressões .- mas se articulam umas com as outras, e de certa forma se engrenam, no curso desse lento trabalho de constituição histórica que não está predestinado pelo pressuposto de um sentido preestabelecido, porém sem­pre ultrapassa as suas formas atuais, sem depender de normas impostas por uma racionalização preconcebida, já que, ao contrário, vai constantemente engendrando os critérios de sua própria racionalização.

Deste ponto de vista, a principal contribuição do texto de 62 consiste no fato de que se intercala, entre as considerações sobre as figuras antigas da possessão e as que são dedicadas à medicalização do fenômeno da alienação, uma análise (pp. 80-82) da experiência clássica da loucura, retomando de forma muito resumida o essencial das descobertas longamente por­menorizadas em outro texto: na História da loucura. "Na me­tade do século XVII, brusca mudança: o mundo da loucura vai tornar-se o mundo da exclusão." (Maladie mentale et psy­chologie, p. 80) A nova "experiência", nascida dessa muta­ção, ordena-se à volta de uma instituição sem precedentes, cujas funções são da competência da polícia, não da medi­cina: o Hospital Geral. A estrutura de separação que então se instaura remete a uma patologia social que confunde numa mesma categoria, encerrando-os também num só lugar, o lou­co, o pobre, o velho, o licencioso, o revoltado, concentrados todos nessa figura única e monótona do desviante, que a socie­dade expulsa para as suas margens, para não mais precisar reconhecer-se na imagem invertida de si mesma que lhe é en­viada pelo excluído. "Essas casas não têm nenhuma significa­ção médica; ninguém nelas ingressa para ser cuidado; nelas se entra porque não mais se pode ou deve fazer parte da socie­dade. O internamento a que se submete o louco, com tantos

RECORDAR FOUCAULT 61

outros, na época clássica não diz respeito às relações da lou­cura com a doença, mas às relações da sociedade consigo mes­ma, com o que ela reconhece e o que não reconhece na con­duta dos indivíduos." (p. 81) É então que a loucura, ao lado dos outros casos que afeta a mesma sentença de internação, é percebida e vivida como ausência de obra, porque é pensada em função de uma relação essencial com a ociosidade e a pre­guiça, o que permitirá justificar que ela seja cortada do mun­do útil da produção. Quer dizer, o sistema de internamento precede a constituição da loucura enquanto doença mental, servindo de objeto a um saber positivo: a experiência médica da loucura, que surgirá mais tarde, dar-se-á tendo como pres­suposto essa exclusão, cuja estrutura ela transporá do hospital para o asilo, sem modificar as suas duas características funda­mentais: a reclusão do silêncio e a condenação moral. A rela­ção entre a doença mental e a loucura não é, portanto, a que o saber positivo representa, em virtude da ilusão recorrente que o caracteriza: a experiência médica da loucura como doença mental não está, absolutamente, prefigurada no gesto clássico de exclusão; ao contrário: este, que precede aquela no traba­lho histórico de constituí-la, impõe-lhe os seus próprios mo­delos de representação. Quer ainda dizer que, quando a medi­cina substituir a polícia, não será para gradualmente se apro­ximar de uma verdade natural da loucura, porém para pros­seguir, sob outras condições, o movimento de elaboração que culmina em suas formas atuais. De tudo isto se deveria con­cluir, ao que parece, que não existe experiência originária da loucura, apenas uma sucessão descontínua de experiências que nada permitia anteriormente predizer que, em virtude de uma lógica preestabelecida dos fatos, fosse ordenar-se se­gundo um sentido ou outro: da mesma forma Foucault mos­trará, em suas últimas obras, que não há tampouco uma expe­riência intemporal, imemorial, da sexualidade, cujo fundo es­sencial seria revelado ou mascarado por alternâncias de li­cença e de repressão; tudo o que há são dispositivos conjuntu­rais do sujeito desejante, que organizam sucessivamente as suas experiências no correr de uma história que continua aberta, porque não está submetida ao pressuposto de teologia alguma, seja esta racional ou não. Não é seguro, porém, que a História da loucura esteja completamente liberta do peso des­sas origens: ainda voltaremos a este ponto.

62 NAS ORIGENS DA HISTÓRIA DA LOUCURA

Com base nesta análise, e no fato novo que ela avança, a interpretação das formas modernas de internamento, em ins­tituições médicas que se apresentam como a implantação de um saber do homem, interpretação esta já esboçada no texto de 54, assume no de 62 um significado inteiramente distinto_ Com efeito, o que mostra Foucault no seu primeiro livro? Que a libertação dos loucos no final do século XVIII, no momento em que a ideologia burguesa humanista lança descrédito so­bre a instituição do Hospital Geral, devido a seu caráter car­cerário excessivamente manifesto, e decide suprimi-lo, não passa de uma aparência enganosa, pois coincide com as novas práticas da medicina asilar que, afundando um pouco mais a loucura em seu estatuto de alienação, implicam, na verdade, privar o indivíduo de sua humanidade e de sua personali­dade. 3 Encetando em 54 uma investigação sobre as "condi­ções da doença" (era este, como recordamos, o título da se­gunda parte de Maladie mentale et personnalité), Foucault prometia responder à pergunta: "Como veio a nossa cultura a atribuir à doença o sentido do desvio, e ao doente o estatuo que o exclui?" (p. 75). Mas, nesse momento, como falta a Foucault o elo intermediário que tal explicação requer, isto é, a experiência clássica do internamento, ele só pode dar à ques­tão assim formulada uma resposta indicativa, sustentada na interpretação do fenômeno geral da alienação. Esta interpre­tação se apóia na análise das contradições da ideologia bur­guesa que, ao mesmo tempo que reintegra a loucura na hu­manidade, propondo fazer o seu estudo positivo dentro do contexto global das ciências do homem, cujo programa ela então define, também espolia o louco de sua natureza de ho­mem, lançando sobre ele uma "interdição" que o priva dos direitos fundamentais que, na mesma época, estavam sendo anexados à essência humana. "O doente mental, no século XIX, é aquele que perdeu o uso das liberdades que a revolu­ção burguesa lhe conferiu." (Maladie mentale et personnalité, p. 80) Há conflito, então, entre a representação ideal de uma

(3) Mantivemos o termo hospital para o lugar onde se internavam, na era clássica, todos os "desviantes", e aSilo para a concentração, mais mo­derna, dos alienados. Mas esses significados não passam de uma convenção, que adotamos para não nos afastar das traduções habituais - porque os dois termos, em português, se distinguem muito menos que em francês. (N. T.)

; L~

RECORDAR FOUCAULT 63

humanidade abstrata e as práticas reais da sociedade con­creta: essa contradição abre, na sociedade burguesa, um es­paço onde cabe uma alienação, e por isso constitui esta pró­pria sociedade enquanto sociedade alienada. "O destino do doente é fixado, desde então, por mais de um século: ele é alienado. E essa alienação marca todas as suas relações so­ciais, todas as suas experiências, as suas condições de existên­cia todas; não pode mais se reconhecer na sua própria von­tade, porque lhe supõem uma vontade que ele não conhece; nos outros somente encontra estranhos, porque para eles ele próprio é um estranho. A alienação é portanto, para o doente, muito mais que um estatuto jurídico: é uma experiência real; ela necessariamente se inscreve no fato patológico." (idem) Há assim uma experiência da alienação, que não é apenas a do louco enquanto indivíduo, mas pertence a todo o conjunto da sociedade em cujo interior ele é reconhecido como doente. O saber da loucura, tal como se desenvolve no discurso da pa­tologia médica, nada faz então além de exprimir, a posteriori, uma estrutura das relações sociais das quais ele constitui, de certa forma, o reflexo. A doença remete à experiência social, e não natural, da desumanização. Ê por isso que Foucault pode concluir assim a sua análise: "Pode-se supor que, no dia em que o doente não mais sofrer a sorte da alienação, será possí­vel encarar a dialética da doença de uma perspectiva que se conserve humana" (Maladie mentale et personnalité, p. 83). Devolver ao indivíduo a sua personalidade, o que somente se pode fazer no contexto de uma sociedade também ela desalie­nada ("no dia em que"), é o mesmo que suprimir a forma da alienação, para substituí-la pela "dialética da doença".

No texto de 62, porém, essa teoria da alienação social está apagada por completo; em seu lugar, encontra-se uma análise das modalidades pelas quais, no final do século XVIII, o internamento foi, não suprimido, mas convertido, transfor­mado de prática policial em prática médica: foi então que os asilos se viram reservados aos doentes mentais, sobre os quais se rebatem as antigas práticas da reclusão. Essa transforma­ção se efetua na forma mítica de um duplo advento: o do hu­manismo e o da cientificidade positiva. Mas a natureza hu­mana que dessa maneira é revelada não passa de uma essência fictícia: o médico de asilo, ao invés de voltar a uma experiên­cia natural do fato patológico, despojada do preconceito de

,

64 NAS ORIGENS DA HISTÓRIA DA LOUCURA

uma avaliação social, aplica à doença mental o veredicto cole­tivo que a condena; ele é "o agente das sínteses morais" (p. 85). A percepção da loucura enquanto doença faz-se, por­tanto. contra o fundo de um espaço social de exclusão, que assimila a anomalia à falta. Ê nessas condições que se reco­nhece, pela primeira vez, a especificidade da doença mental, por intermédio do discurso da psicologia que então se separa, definitivamente, do da fisiologia orgânica. "No novo mundo asilar, neste mundo da moral que castiga, a loucura tornou-se um fato que diz respeito à essência da alma humana, à sua culpa e liberdade; a partir de agora, ela se inscreve no ele­mento da interioridade; e assim, pela primeira vez no mundo ocidental, a loucura receberá estatuto, estrutura e significação psicológicos. Mas esta psicologização .não passa de conseqüên­cia de uma operação mais surda, situada em nível mais pro­fundo - uma operação que produz a inserção da loucura no sistema dos valores e das repressões morais" (Maladie men­lU/e el psychologie. p. 86). Ê que a constituição desse saber não depende da suposta natureza de seu objeto, porém do sistema global de avaliação em cujo interior este é identificado e, pre­cisamente, reconhecido como objeto: esse sistema, que se ins­taura nos começos do século XIX, define as condições de uma nova experiência da loucura, cujo estilo e postura geral são completamente inéditos face às suas experiências anteriores. T,to inéditos que, conforme já se observou, a alusão ao "mun­do ocidental", e à sua aparente homogeneidade ou permanên­cia. parece com isso perder pertinência.

A última parte do capítulo sobre "A constituição histó­rica da doença mental", no livro de 62, está dedicada a mos­trar como a psicologia foi produzida pela estrutura asilar, no interior da qual a loucura tornou-se doença mental. Relativa­mente à interpretação mais corrente, com efeito, a relação da doença mental com a psicologia deve ser invertida - como acabamos de ver. "O homem somente se tornou uma 'espécie psicologizável' a partir do momento em que sua relação com a loucura autorizou uma psicologia, isto é, a partir do momento em que a sua relação com a loucura foi definida pela dimen­são interior da atribuição moral e da culpa." (Maladie men­tale et psychologie, p. 88). Tal relação, Foucault não afirma mais que seja contraditória, 'apenas que é "ambígua" - por­que ássenta na confusão, historicamente instituída, entre de-

, I

1.:. '

RECORDAR FOUCAULT 6S

terminações que são estranhas uma à outra de início, e cuja coincidência não se deve nem a um fundamento natural nem a uma justificação racional. "Toda a estrutura epistemológica da psicologia contemporânea enraíza-se nesse acontecimento que é quase contemporâneo da Revolução [Francesa), e que se refere à relação do homem consigo mesmo" (idem). O dis­curso da psicologia haure a sua legitimidade de um aconteci­mento que lhe comunica sua necessidade, e do qual ele apenas fornece uma representação artificialmente objetivada, no tipo do homo psychologicus que é também, e inseparavelmente, o paciente 4 do internamento.

Ê portanto a experiência da loucura que permite com­preender a empresa da psicologia, mais do que a própria psi­cologia permitira compreender a loucura. Podemos, porém, perguntar-nos se aqui não se esboça uma nova ficção, uma nova utopia, exatamente simétrica da que aparecia no texto de 54 quando evocava a eventualidade de uma sociedade desa­lienada porque definitivamente expurgada de todas as suas contradições ("no dia em que"): a utopia de um outro saber do homem, saber nu, saber autêntico, saber verdadeiro, saber despsicologizado porque despatologizado, tal como o revelam as grandes noites da tragédia. "Nunca a psicologia poderá di­zer a verdade sobre a loucura, pois é a loucura que detém a verdade da psicologia ... Levada até a sua raiz, a psicologia da loucura não acarretaria a dominação da doença mental e por­tanto a possibilidade de que esta desapareça, mas a destruição da própria psicologia, e a reatualização dessa relação essen­cial, não psicológica porque não moralizável, que é a relação da razão com a desrazão." (p. 89) Essa "relação essencial" do homem consigo mesmo põe em jogo uma outra espécie de ver­dade, que não depende mais de nenhuma espécie de determi­nação positiva: é por isso que essa verdade constitui uma norma de avaliação absoluta. Ê precisamente este o tema reto­mado no capítulo sexto de Maladie mentale et psychologie, que tem por título "A loucura, estrutura global". Eis o seu programa: "Será necessário, um dia, tentar fazer um estudo da loucura como estrutura global - da loucura liberada e

(4) Sujet, no original: termo que em francês tem os sentidos de sujeito (o mais usual na obra de Foucault), mas também o de súdito, em política, e de paciente (de um médico, etc.). (N. T.)

66 NAS ORIGENS DA HIST6RIA DA LOUCURA

desalienada, de certa forma restituída à sua linguagem de ori­gem" (p. 90). Mas esta evocação, cuja linha fulgurante tam­bém atravessa muitas páginas da História da loucura, não se apoiará num novo mito, um mito tão primordial que não pode ser objeto de nenhum exame, de nenhuma avaliação, já que ele próprio não depende de nenhuma "condição"? Mito este que é o da loucura essencial, persistindo em sua natureza ori­ginária, aquém dos sistemas institucionais e discursivos que lhe alteram a verdade primeira, ou a "confiscam", segundo uma expressão que já conientamos. Um tal mito ocupa o lugar que cabia, no texto publicado em 54, ao de uma essência hu­mana desalienada: como se a referência a Nietzsche e a Hei­degger, implícita por todo o texto de Maladie mentale et psy­chologie, substituísse a referência ao jovem Marx, que por sua vez obsedava o texto de Maladie mentale et personnalité. Essa representação de uma relação primitiva do homem consigo mesmo, precedendo todas as suas experiências históricas e re­lativizando-as ao medi-las segundo a sua própria verdade fun­damental, constitui de certa forma o impensado teórico a par­tir do qual Foucault escreve, no começo dos anos 60, a Histó­ria da loucura. Desta maneira se percebe dentro de que limi­tes inscreve-se a retificação a que Foucault submete, em 62, o seu texto de 54: deslocando-se a idéia de uma verdade psico­lógica da doença mental para a de uma verdade ontológica da loucura, não se toca no pressuposto de uma natureza do ho­mem, embora esta venha situar-se mais como evocação poé­tica do que como saber positivo.

Assim se compreende que, no seu livro de 62, Foucault tenha conservado as páginas que serviam de conclusão ao ca­pítulo quinto do de 54 (pp. 84-87), transportando-as apenas para o final desse capítulo sexto que trata de "A loucura, es­trutura global". Por que essa transposição? Porque, reme­tendo para a conclusão essas considerações sobre as condições históricas e sociais do internamento, considerações que por sinal, devido à sua inserção num novo contexto, adquiriam um significado sensivelmente diferente, Foucault podia elimi­nar aquilo que, sob o título "A psicologia do conflito", cons­tituía o conteúdo do capítulo sexto de Maladie mentale et per­sonnalité. A supressão pura e simples desse capítulo é, certa­mente, a razão essencial para ter Foucault refeito tanto a sua obra, por ocasião da reedição: pois está claro que nada, nem

'. ,

-T I !

J .1.

~,

RECORDAR FOUCAULT 67

em seu conteúdo, nem no pormenor de suas formulações, cor­respondia mais à concepção que Foucault desenvolvera das re­lações entre a doença mental e a psicologia, após. seus traba­lhos sobre a história da loucura. Com efeito, este capítulo sexto do livro de 54, escorado em dados e conceitos devidos à psicofisiologia pavloviana, cede lugar, ao lado de uma análise do condicionamento social exposta sob a rubrica geral de "Alienação", a um estudo propriamente psicológico dos com­portamentos reconhecidos, devido justamente a esse condicio­namento, como patológicos: trata-se então de mostrar como as formas coletivas de alienação repercutem nas condutas in­dividuais, para imprimir a umas um caráter de normalidade, enquanto reservam a outras a posição catastrófica de compor­tamentos desviantes, punidos nessa qualidade por um diag­nóstico médico. Isso implica que a doença mental subordina­se a duas espécies de condições: condições gerais, comuns aos comportamentos sãos e aos identificados como patológicos; e condições específicas à personalidade do indivíduo, nível este em que se efetua a censura do normal e do anormal. Uma tal análise requer dois pressupostos. Por um lado, posicionando as investigações da psicologia - melhor dizendo, do que Fou­cault chamava um pouco adiante, em seu livro de 54, "a ver­dadeira psicologia" (p. 110), isto é, uma psicologia finalmente liberta dos pressupostos que lhe impõe a alienação da socie­dade - nas margens da explicação histórico-social, com o fim de mostrar como a contradição geral da sociedade pode ser interiorizada por consciências individuais sob o modo do con­flito, a sua análise conserva-se na perspectiva de um realismo psicológico: ele enraíza na consciência os fenômenos da doen­ça mental, e ainda mais os enraíza na medida em que reduz essa consciência a um conjunto de processos, solidamente psí­quicos e orgânicos, cujo mecanismo, regido por determinis­mos objetivos, assim acede a uma espécie de necessidade ma­terial. Por outro lado, o exame desses processos, fazendo ver que todas as condutas estão submetidas às mesmas leis, a par­tir da relação fundamental da excitação e da inibição, faz que dependam de uma fisiologia geral que é também, pelas mes­mas razões, uma patologia: a doença, submetida aos mesmos princípios de explicação que os comportamentos normais, apresenta-se então como um fenômeno de adaptação, isto é, como o sistema mais ou menos coordenado das respostas aos

"

I I. I:

li.

I'

l

i" 1': 1 I:

68 NAS ORIGENS DA HISTÓRIA DA LOUCURA

estímulos provenientes de um meio externo, no qual, em úl­tima instância, se encontram as causas dos conflitos dos quais ela não passa de uma mànifestação. "Há doença quando o conflito, em vez de trazer uma diferenciação na resposta, pro­voca uma reação difusa de defesa; em outras palavras, quando o indivíduo não pode dominar, no nível de suas reações, as contradições do seu meio, quando a dialética psicológica do indivíduo não pode se reencontrar na dialética de suas con­dições de existência." (Maladie mentale et personnalité, p. 1(2) A alienação é aparência no nível do indivíduo porque é realidade no das condições da existência coletiva: e era preciso nada menos do que uma psicologia materialista e dialética, para confirmar e precisar essa objetivação dos fenômenos pa­tológicos, cujo caráter efetivo assim se vê deslocado do indiví­duo para o seu meio, no qual se encontra o fundamento real deles. "A alienação, com esse novo conteúdo, não é mais uma aberração psicológica - ela é definida por um momento his­tórico: somente ele a possibilita."

Mas, está evidente, Foucault não pode continuar racioci­nando dessa forma depois de escrever a Hist6ria da loucura. Antes de mais nada, porque uma tal explicação objetiva res­titui a uma psicologia a função de dar conta da doença men­tal, ao passo que se evídenciou, entrementes, que ela apenas legitima a posteriori as práticas das quais depende o seu dis­curso. Além disso, e acima de tudo, porque, ao mesmo tempo que refere os fenômenos patológicos ao momento histórico que os possibilita, essa explicação priva-os dos caracteres que, num contexto histórico muito preciso, permitem reconhecê-los como patológicos antes mesmo de serem identificados como "fatos". Tornou-se essencial para Foucault, em 62, evidenciar que o alienado não é apenas um desadaptado, isto é, um re­jeito dos mecanismos de adaptação, dos quais, por sinal, já não se sabe muito bem se dependem de um estudo psicológico ou sociológico. Pois, na verdade, o alienado é coisa totalmente diferente: produto de um regime institucional, em cujo inte­rior há lugar para o doente exatamente porque já não há ne­nhum para o louco. Foucault concluía, em seu primeiro texto, que a anormalidade era efeito da alienação, sendo esta o prin­cípio objetivo a partir do qual a doença pode ser explicada: "Portanto não é porque alguém é doente que é alienado, mas é doente porque alienado" (Maladie mentale et personnalité,

.. '. .. ~ \., .. ;.'

i_~". ~ ;. ." .~

RECORDAR FOUCAULT 69

p. 103). E, mais adiante: "Tentar definir a doença a partir de uma distinção entre o normal e o anormal é inverter os termos do problema; é fazer de uma conseqüência uma condição, com o fim certamente implicito de ocultar que a alienação é a verdadeira condição da doença" (idem, p. 105). Ao contrário, porém, no seu livro de 62 Foucault mostra que o conceito de doença mental só tem sentido contra o fundo desse procedi­mento de exclusão, cujas origens ou razões não se devem pro­curar numa forma qualquer de saber positivo, procedimento este que, antes mesmo de reconhecê-la e descrevê-la como alienação, instala entre a doença e as demais formas da exis­tência humana uma intransponível fronteira, uma separação que já basta para conferir aos fenômenos patológicos a sua realidade de objetos oferecidos ao saber. Ê verdade que, ao mesmo tempo, Foucault está transferindo da alienação para a loucura esse caráter de fato objetivo, do qual a doença mental é, mais que sintoma ou manifestação, substituto - porque, nas condições de uma experiência histórica, ela consegue ofus­car quase por completo a sua natureza primordial. Mas tam­bém, conforme acabamos de dizer, não está mais em questão propor-se, a qualquer nível que seja, uma explicação psico­lógica da doença: pois fica evídente que psicologia alguma jamais conseguirá dar conta do fenômeno cujas condições de surgimento ela precisa, justamente, fazer esquecer.

Entre as duas versões sucessivas da mesma obra, de Ma­ladie mentale et personnalité a Maladie mentale et psycholo­gie, ocorre, pois, uma verdadeira inversão de perspéctiva. Ê essa inversão que nos permite precisar as condições nas quais, rompendo com suas orientações anteriores, Foucault ingres­sou na sua primeira grande construção teórica, a Hist6ria da loucura. Uma inversão, porém, é um movimento que de certa forma conserva, porque também supõe uma permanência. Impondo às suas análises anteriores da doença mental uma retificação decisiva, Foucault tornou possível um trabalho de investigação histórica liberto dos a priori que lhe vinham de um dogma explicativo preestabelecido, e especialmente do pressuposto teleológico de que há um sentido na história: compreende-se que posteriormente, por ter ele próprio expe­rimentado isso e em si mesmo, Foucault tenha desconfiado de tudo o que provinha do "materialismo dialético" como da pró­pria peste. Mas significa isso que ele tenha· conseguido, com

r-"

70 NAS ORIGENS DA HISTÓRIA DA LOUCURA

esse gesto único de ruptura, estabelecer definitivamente a nova base teórica sobre a qual assentar o estudo de uma his­tória devolvida a suas exatas condições e a suas origens autên­ticas? Nada é menos certo. E, para nos convencermos de que essa retificação não tem mais que o valor limitado, e não defi­nitivamente fundador ou instaurador, de um ato discursivo inscrito no movimento de conjunto de um dispositivo de co­nhecimento do qual a Hist6ria da loucura constitui apenas o primeiro passo, basta lermos a conclusão de Maladie mentale et psychologie: pois nessas páginas aparecem de maneira evi­dente o caráter heurístico e também os limites da nova proble­mática que Foucault definiu no começo dos anos 60, e que devia servir de ponto de partida, mas somente de ponto de partida, para suas investigações futuras. Nelas se esboça uma interpretação da história como processo de ocultação da ver­dade, cuja inspiração é evidentemente heideggeriana: se não existe verdade psicológica da loucura - o homo psychologicus não passando de uma tardia invenção da nossa cultura -, é porque a própria loucura, em sua verdade essencial e intem­poral, rasga a história com seus relâmpagos que, embora in­termitentes (Hiilderlin, Nietzsche, Artaud ... ), não deixam de ser os sinais indiscutíveis de sua inalterável permanência. A história da loucura não é, pois, a loucura como história, ou a loucura enquanto depende de urna constituição histórica que a produz sob a forma de suas diversas experiências, mas é essa história que aconteceu à loucura, porque lhe foi feita, história a cujo respeito surge uma suspeita, a de sua inautenticidade, e também surge uma esperança, a de que assim como foi feita igualmente possa ser desfeita, de modo que reapareça - fi­nalmente - aquela verdade primeira da qual ela apenas ma­nifesta a ausência. "Há uma boa razão para que a psicologia jamais possa dominar a loucura, é que a psicologia somente foi possível em nosso mundo uma vez dominada a loucura e excluída esta do drama." (Maladie mentale et psychologie, p. 103) A loucura dominada ou confiscada é, no fundo, a lou­cura desnaturada ao mesmo tempo que socializada. A questão que nasce da leitura das grandes obras posteriores de Fou­cault, da arqueologia do saber que está em As palavras e as coisas até a Hist6ria da sexualidade, consiste em saber se elas conservam essa mesma divisão entre história e verdade, que em última análise, remete a uma distinção abstrata entre a

., -~~.'

RECORLlAR FOUCAULT 71

ordem da natureza e a da cultura, ou se, ao invés disso, elas também não introduzem, por sua vez, novas retificações nesta problemática.

(Tradução de Renato Janine Ribeiro)

·_-.

,I,'

A corporeidade outra José Carlos de Paula Carvalho*

I sto não vai chegar a ser uma conferência ou uma pales­tra, porque há pouco tempo disponivel para o que eu gostaria de transmitir detalhadamente para vocês_ Seguem-se, então, apenas algumas indicações, e quem estiver interessado poderá depois me procurar - na Faculdade de Educação - ou even­tualmente consultar o meu trabalho,' onde desenvolvo, fun­mentalmente em sua última parte, tudo o que será aqui so-mente esbOÇado.

Meu trabalho começou com a orientação de Victor KnolJ, depois se encaminhou para a França, com a orientação de Gilbert Durand, no "Centre de Recherches sur l'lmaginaire". e finalmente se deslocou para cá, com a orientação de Ruy Coelho e Liana Trindade, que atualmente é minha orienta­dora. Partiu, dentre outros pretextos, do seguinte: o problema que me preocupava era fundamentalmente este - no campo da antropologia, Mary Douglas, no livro Pureza e perigo, 2 es­tabelece uma relação muito interessante entre a formação -­tanto psicológica quanto social - da imagem do corpo. no

(') Da Faculdade de Educação da USP. (1) Paula Carvalho, J. C. de, "Energia, símbolo e magia: uma contri­

buição à antropologia do Imaginário" (Tese de Doutoramento em Antropologia Social, FFLCHUSP, 1985), cf. 2~ parte, capo 11, pp. 764-927.

(2) Douglas, M., Pureza e perigo, trad. M. S. Leite e Z. Z. Pinto, São

Paulo, Perspectiva, s. d., cf. caps. 6 a 8.

....... :~' "';

~ " , ~ ----------------

RECORDAR FOUCAULT 73

sentido técnico que lhe é dado por Schilder, em A imagem do corpo: estudo das forças construtivas da psyche, e a imagem da sociedade. Mary Dougias diz que é mais interessante e mais correto, no processo da dinâmica psico-sociológica, falarmos em imagem social do corpo. Por este caminho, a autora desen­volve análises belíssimas, mostrando como podemos ler clara­mente as extremidades e os limites do corpo como sendo as extremidades e os limites que a sociedade impõe e se impõe. Para exemplificar, ela fornece um material que, desde o Levi­tico, estende-se às populações nilóticas. Mostra como tudo o que sai do corpo - aquilo que Bataille chama de excrémen­tiel 3 - as secreções, é considerado perigoso porque todos os orifícios representam a região de um limite, de um limite entre o permitido, que é o que estaria nas visceras, e o proibido, que é o que sai das visceras e "vai fora". É um conceito que reto­marei adiante, que Bataille já havia exposto chamando-o de "heterologia" . 4 Nesse sentido, Mary Douglas mostra todos aqueles rituais de purificação e aqueles rituais que procuram impedir também o contato com todas essas "matérias". De um certo modo, a novidade que há no texto de Mary Douglas é a de um material etnográfico ampliado, porque Reich já

. afirmara algo parecido quando tentou, com Vera Schmidt,S introduzir as reformas educacionais numa linha de revisão freudiana; propunha que os professores da área da pré-escola, na interação com as crianças, "liberassem" a manipulação da oralidade e da analidade, ou seja, "liberassem" o contato com essas matérias impuras. Vocês sabem que tanto Reich quanto Vera Schmidt foram muito perseguidos e que a reforma na União Soviética gorou ... Não há, então, tanta novidade assim em termos de colocação teórica do problema ... Mas a grande vantagem do texto de Mary Douglas é mostrar todo esse ma­terial etnográfico comparado, não se limitando, portanto, à cultura judaico-cristã - que era fundamentalmente aquela que Reich trabalhara - e mostrando que a imagem do pró­prio corpo é a imagem que a sociedade constrói do corpo, de

(3) Bourke, J. G. Les rites scatologiques, trad. D. laporte, prefáCio de S. Fraud, Paris, PUF, 1981.

(4) Bataille, G., "Qossier hétérologie", in Oeuvres complêtes 1/: Écrits posthumes, 1922-1940, Paris, Gallimard, 1970.

(5) Reich, W. e Schmidt, V., Psicanálise e educação, trad. D. lagoeiro e J. Vicente, Lisboa, Ed. J. Bragança, 1975.

~I· 'li

li

I ~ .. ~

74 A CORPOREIDADE OUTRA

modo que, reversivamente - dizem até os detratores de Mary Douglas -, poderíamos ver isso de modo mecanicista, e pode­ríamos ler a sociedade pelo corpo e ler o corpo através da so­ciedade. De qualquer forma, o que fica é uma articulação en­tre sociedade e corporeidade.

Mas o mais interessante é que O problema, que persiste como uma interrogação, é o da imagem, ou seja, como se arti­cula o corpo próprio com a sociedade como um organismo. Ê através de um repertório de imagens - e aí entra algo que Mary Douglas não tematiza especificamente, e que é o imagi­nário -, do imaginário, seja concebido como Castoriadis 6 o concebe, como um magma social de significações das quais serão extraídas apenas algumas, selecionadas por um reper­tório cultural, seja de um imaginário também concebido no sentido tanto de uma "fantasmática", ou seja, de uma ima­gem que, por ser proibida, é denegada e, por ser denegada, se transforma num fantasma - uma fantasmática quase no sen­tido lacaniano -, ou então mesmo de uma "fantástica", 1 que seria a imagem feliz de que Bachelard nos fala. Assim, o ima­ginário seria exatamente o instrumento, o repertório media­dor dessa articulação. No texto de Mary Douglas fica muito claro que não existe um "corpo próprio", próprio no sentido de haver uma autenticidade na relação com o corpo, a não ser com o corpo que a sociedade me construiu e que a sociedade impede. Não obstante, Mary Douglas volta a insistir no pro­blema dos limites porque é a partir daí que vai aparecer o problema da definição dos interditos e das transgressões. E isto é um problema, porque como toda a antropologia funcio­nalista - ainda que "heterodoxa" - está baseada no velho pressuposto "clássico" das "definições correlativas", ou seja, define-se uma coisa pela outra, realmente não se tem saída nem por um lado nem por outro ... Assim, aqui acaba havendo uma definição correlativa entre interdito e transgressão, quer dizer, o instrumento que proíbe é o próprio instrumento que permite a violação e o próprio ato da violação é um ato que

(6) Castoriadis, C., "L'irnaginaire social et I'institution" I in L 'institution imaginaire dela société, Paris. Seuil, 1975 (há trad. bras. Paz e Terra).

(7) Paula Carvalho, J. C. de, "Imaginário e Organização (1): notas de leitura", in Revista de Administração de Empresas, da Fundação Getúlio Var­gas, São Paulo, n? 3/85 (no prelo),

,

RECORDAR FOUCAULT 7S

mantém a interdição. Em outras palavras, violando-se a lei, tem-se a impressão de que se está "contestando" ... na reali­dade se é vítima de uma estratégia que Bourdin 8 chamara de "transgressão em circuito fechado".

Isto vai me levar a um parêntese para um problema muito sério, qual seja, o de todos os movimentos "contraculturais", os movimentos da linha "anti", como os chamo. Teria que haver toda uma releitura dos movimentos contraculturais ou movimentos "anti" - e é o que pretendi numa das partes da­quele trabalho 9 - para propor uma "meta", ou seja, quebrar o circuito da transgressão fechada e da lei. De qualquer for­ma, Mary Douglas tem a vantagem de colocar isso de modo incisivo. Depois, ela escreveu uma série de ensaios coleta dos sob o nome de Símbolos naturais, 10 onde há dois artigos, um que se chama "Os dois corpos" e outro que se chama "A ordem do simbólico controlada"; ali ela vai retomar o pro­blema do que chama "dois corpos", e esboçar uma tenta­tiva de ruptura com o fechamento desse "universo", tanto em direção a uma valorização da corporeidade quanto em direção a uma valorização do imaginário. Mary Douglas vai partir do estudo do culto de possessão feito por Raymond Firth, sobretudo do "transe", mostrando o corpo-estertor por excelência e, dentro dos cultos de possessão, qual seria o momento mais importante em que o corpo, escapando às regras que seriam as da banalidade cotidiana, poderia en­contrar um outro espaço, mas sem ter ainda entrado nele, porque este outro espaço também está sujeito à regulação, à regulação pelos rituais de iniciação. Então, onde haveria este espaço intermediário ou, como Winnicott 11 - que ela não cita - chama, essa "transicionalidade", que me de­fine um "espaço potencial"? Diz ela que R. Firth considera três tipos de transe: a "possessão pelo espírito", a "possessão mediúnica", o "xamanismo" e, diz ela, há um quarto tipo a

(81 Bourdin, A., "Les lieux de I'anomie", in J. Duvignaud (ed.), Socio­logie de/a connaissance, Paris, Payot, 1982.

(9) Paula Carvalho, J. C. de. "Energia ... ", cf. 2~ parte, capo 11,2.5 e 6. (10) Douglas, M., Natura/ symbo/s: exp/orations in cosm%gy, Nova

Iorque, Vintage Books, 1973, cf. caps. 5 e 9 (hã trad. esp. Alianza Editorial). (11) Winnicott, D. W., "Objets transitionnels et phénomênes transitio­

nels", in D. W. Winnicott, Jeu et rea/ité: I'espace potentie/, trad. CI. Monod et J. Pontalis, Paris, Gallimard, 1971.

76 A CORPOREIDADE OUTRA

considerar, por onde se poderia abrir um vetor para o imagi­nãrio e a corporeidade. Na possessão pelo espirito, o transe se reduz praticamente a quase nada. Lembremos que Bastide 12

já havia mostrado, aqui no Brasil, que a possessão e o transe realmenre não são essa "liberação" do corpo, como os antro­pólogos que vinham pesquisar - numa espécie de "ilusão mana", parafraseando Lévi-Strauss, querendo encontrar um corpo de que não dispunham mais na própria cultura - ima­ginavam encontrar nos rituais de possessão. Bastide 13 dizia que ainda não tinha sido feito um estudo dessa gramática dos gestos. E realmente há uma gramática dos gestos 14 por uma razão muito simples: porque a possessão pelo santo de cabeça, ou então pelo capanga, pelo "de costas", acontece dentro de um espaço social definido, que é o terreiro, e acontece mais ainda dentro de rituais de iniciação, que são todo um reper­tório de normas e regras sociais. Então Mary Douglas sugere que na possessão pelo espirito não ocorre intensamente o tran­se; o "transe" seria exatamente esse momento "transicional" em que se deixa um universo de regras, mas em que não se entrou ainda num outro universo de regras, em que se deixa um espaço social, como Winnicott chama (esse espaço social que Winnicott diz ser regido pelo principio de realidade), mas não se entrou ainda num outro espaço social. .. que também é regido pelo principio de realidade como "terreiro", só que esse é regido de modo "lúdico". Por que nisso entra sobretudo lu­dismo? E aqui abro um novo parêntese.

Winnicott diz que é muito difícil num processo de onto­gênese, ou seja, de formação da personalidade, a criança acei­tar o princípio de realidade, comutando o principio do prazer. Ele afirma que a estratégia para isso consiste em preservar uma região "fronteiriça", que seria onde se desenvolveria fun­damentalmente o espaço do jogo; sobre o espaço do jogo se

(12) Bastide, R" "Discipline et spontanêité dans les transes afro-amêri­caines", in Le rêve, la transe et la folie (2~ parte), Paris, Flammarion, 1972.

__ , Le sacré sauvage et autres essais, Paris, Payot, 1975. (13) Bastide, R" "Prolégomenes à I'études des cultes de possession",

in Le rêve ... ". (14) Eibl-Eibesfeldt, 1., "Das nichtverbale Ausdrucksverhalten: die Kõr­

persprache", in Kindlers Enzyklopadie (Der Menschl, Sonderdruck (enviado pelo autor, s. d. I.

Calame-Griaule, G" "Pour une étude des gestes narratifs", in Langages et cultures africaines: essais d'ethnolinguistique, Paris, F. Maspéro, 1977.

I I

1>

RECORDAR FOUCAULT 77

articulariam, posteriomente, as produções imaginárias. Ele cita como importantes a arte, a magia, a religião e o mito. O "espaço potencial" em termos de· ontogênese, ou seja, de for­mação da personalidade básica da criança, ou ainda, de tran­sição do princípio do prazer para o princípio da realidade, está ligado exatamente a esse espaço em potencial, está ligado à formação destas produções imaginárias. A tendência da so­ciedade é posteriormente não liberar, no púbere ou no adoles­cente, ou mesmo no adulto, esse espaço lúdico, de jogo, mas, ao contrário, tentar "eliciar" esse espaço de "lazer" de um modo tal que as potencialidades se transformem em fantas­mas no sentido kleinillno. 15 E, a partir de Winnicott relido, diríamos que a finalidade de toda a terapia seria transformar esta fantasmática em fantástica, ou seja, estas produções ima­ginárias infelizes e perseguidas pelos interditos no momento em que transgridem os interditos, em que ultrapassam o li­miar da consciência permitida, em imagens felizes que pode­riam nutrir imagens de outros mundos.

Nesse sentido, então, é que no transe poderíamos testar a emergência do "espaço potencial", dessa região fronteiriça, dessa região de limites, dessa região de emergência das produ­ções imaginárias. Na possessão pelo espirito isso não acontece. Na possessão mediúnica isso também não acontece porque há, diz Mary Douglas, uma "escola de médiuns", como há até hoje nas federações. Não posso entrar, infelizmente, em maio­res detalhes aqui. Onde começa a acontecer aquela emergên­cia, diz ela, é no xamanismo; aqui o xamã se põe numa rela­ção heróica com o espirito: não é o espirito que desce, é o xamã que sai para enfrentar o espirito. Não se trata, assim, de "incorporar" nem de "exorcizar", mas sim de "adorcizar", ou seja, de domesticar o espirito, tornando-o um súcubo, assi­milando-o. 16 No xamanismo já há uma ação maior, e as téc­nicas corporais do xamanismo estão menos sujeitas à codifi-

(15) Isaaes, S., "Nature et fonctÍon du phantasme", in M. Klein et alii, Développements dela psychanalyse, Paris, PU F, 1966.

(16) Heuseh, L. de, "Pour une approche"structuraliste de la pensée ma­gico-religieuse bantoue" e "Possession et chamanisme", in L. de Heuseh, Pourquoi I'épouser et autres essais, Paris, Gallimard, 1971.

-- , "Introduction à une ritologie générale", in E. Morin/P. Palmarini, L 'Unité de I'homme: 3. pour une anthropologie fondamentale", Paris, Seuil, 1974 (há Irad. bras. EDUSP).

,

k': , ,

"

!I', '

78 A CORPOREIDADE OUTRA

cação. do. que as técnicas do.s culto.s de po.ssessão.. Mas Mary Do.uglas diz que há um quarto. tipo. que R. Firth não. co.nsi­dero.u, e que seria o. caso. em que o. espírito. vem; o. indivíduo. não. está co.nsciente nem inco.nsciente, o. indivíduo. eu o. grupo. não procuram exercer uma ação. so.bre o. espírito., o. indivíduo. se terna um "canal" (no. sentido. da teo.ria da info.rmação.).

. Mary Do.uglas analisa cases muito. significativo.s entre o.s din' kas, o.s bo.squímano.s e o.s antilhano.s; e mestra que neste quar-to. caso. - "o. culto. po.sitivo.do. transe" e a "o.rganização. social zero." - nós po.deremo.s ter certa liberação.. Mas a pergunta ainda persiste em Mary Do.uglas: no. xamanismo. já havia uma relativização. do.s código.s culturais que regulamentam a rela­ção. cem a co.rpo.reidade; se nesse quarto. caso. a regulamen­tação. é ainda mais fro.uxa e, po.rtanto., na expressão dela, a efervescência religio.sa é ainda maio.r, cerne ficaria a imagem social do. co.rpo.-grupo.? Esse é um pro.blema que me apareceu inicialmente.

Assim, já intro.duzi uma parte do. que queria indicar para vocês via antro.po.lo.gia, eu seja, através das o.bras de Mary Do.uglas e de Reger Bastide sobre o.s culto.s "afro.s".

Mas depo.is disso. me lembrei de o.utro. pente de partida, não. semente para to.do.s o.s antro.pólo.go.s, mas para muito.s fi­lóso.fo.s, que é o. velho. Marcel Mauss. Num estudo. tão. famo.so. quanto. inexplo.rado., chamado. "As técnicas do. co.rpo.", 17 ele faz uma afirmação. que, de certa fo.rma, perturba o.s so.ciólo­go.s. Mauss o.bservara, desde o.s trabalhes de Granet e Mas­péro. so.bre as técnicas so.mato.-psíquicas do. tao.ísmo. - cerne Eliade evidenciaria amplamente 18 -, que há estado.s místico.s pro.vocado.s pelo. "saber do co.rpo." que jamais fo.ram estuda­do.s aqui, mas que o. fo.ram cem perfeição., desde muito. tempo., na China e na Índia. Mauss pro.põe que seja feito. um estudo. sócio.-psico.-bio.lógico. da mística, e "penso. que há necessaria­mente meio.s bio.lógico.s de entrar em co.municação. cem Deus" . É interessante no.tar que o.s texto.s que mencio.nam esse trecho. de Mauss não. co.ntinuem na citação., o.nde diz que o.s so.ciólo.­go.s teriam muito. a aprender cem o.s biólo.go.s, que teriam mais

(17) Mauss, M., "Les techniques du corps", in M. Mauss, Sociologie et anthropologie, Paris, PUF, 1968 (hã trad. bras. EDUSP).

(18) Eliade, M., Le yoga: immortalité et liberté, Paris, Payot, 1972, cf. cap.2.

- "..... :, ,.~;: .

4 ;", ~ ,~

.• ~;-

RECORDAR FOUCAULT 79

a falar so.bre isso. do. que o.s so.ciólo.go.s ... Esse texto. me incito.u, de certo. medo., a tentar analisar o. que ele chamo.u de "técni­cas de co.rpo.". Cerne essas técnicas do. co.rpo. pedem traduzir uma "co.rporeidade própria" eu traduzir um co.rpo. Outro. _ cem O maiúsculo., cerne Lacan dizia -, escapando. de certo. medo. à regulação. so.cial do. co.rpo.? Ora, to.do.s sabem que isso. aco.ntece dentro. do.s quadres de uma iniciação.; e, se aco.ntece no.s quadres de uma iniciação., aco.ntece dentro. do.s quadros de uma regulação. so.cial. O mesmo. se pode dizer do levanta­mento. fenomenológico. de Eliade. Não. o.bstante, o. texto. de Mauss abre espaço. para se estudar aspecto.s que ho.je em dia eu tenderia a chamar de "biótico.s" - que significa a "física vital" e a "física social" da corpo.reidade -, para acabar cem a briga entre o.s biólo.go.s e o.s so.ciólogo.s, so.bretudo após o. mal-entendido. da socio.bio.lo.gia. Seria isto. po.ssível?

É aqui que, per uma o.utra linha, entra Fo.ucault. Eu ti­nha o.utro. trabalho. paralelo.; era meu projeto. o.riginal de Doc­torat d'État so.bre Bataille (que li per muito. tempo.). Em Ba­taille temes um centramento. so.bre a idéia de transgressão.; e a co.rpo.reidadeem Bataille apresenta-se de um medo. to.tal­mente éclaté ...

Fo.ucault co.menta Bataille: é o. Préface à la transgression, texto. este difícil, ho.je, de se enco.ntrar. Mas um grupo. francês de pesquisa temática, chamado. "Inco.nsciente e Cultura", co.mpo.sto. per D. Anzieu, R. Kaes e o.utro.s, publico.u uma o.bra que se chama justamente O interdito e a transgressão, 19

co.ntendo. excerto.s - irifelizmente! - daquele trabalho. de Fo.ucault. '" Em Fo.ucault há algo. muito. interessante. Per um lado., na História da sexualidade 21 ele estuda o. "bio.po.der". O bio.po.der seriam exatamente aquelas técnicas de regulação. so.­cial, de no.rmalização. eu, se vocês preferirem, de manipulação. da co.rpo.reidade vísando. fundamentalmente ao. co.nceito. de espécie e ao. co.rpo. dócil. É evídente que isso. aco.ntece na ótica do. Vigiar e punir, eu seja, na ·do. "Pano.ptico.n" eu das técni­cas de co.nfissão..

(19) Foucault, M., "Préface à la transgression" (extraits). in R. Kaes e D. Anzieu (dir.), L 'interditetla transgression, Paris, Dunot, 1983.

(20) Foucault, M., idem, in Critique, n? 195-196, a90.-set. 1963, 75. (21) Foucault, M., Histoire de la sexualité, 1,2 e 3, Paris, Gallimard,

1976·1984.

80 A CORPOREIDADE OUTRA

Interessava-me saber se em Foucault haveria também a tematização de um corpo Outro, que funcionasse como con­traponto ao "biopoder". Para isso, tinha indicações no Prefá­cio sobre Bataille. Mas eu não conseguia juntar as coisas, até que deparei com o livro de Dreyfus e Rabinow, Michel Fou­cault, beyond structuralism and hermeneutics. Eu trabalhava no início da minha tese com a noção de paradigma; mostrei como por trás de toda essa colocação havia um "paradigma", no caso, o "paradigma clássico" (Durand) ou "paradigma simplificador-disjuntor" (Morin). Estava preocupado se ha­veria um paradigma por trás de uma outra visão do corpo ou da corporeidade; e há o caso de Foucault, que situa muito bem tal paradigma (os epistemas "clássicos"). Em Kuhn-Col­lingwood, 22 o paradigma é um conjunto de mecanismos de normalização no campo da ciência, e Foucault descreve um conjunto de mecanismos de normalizações sociais; pode-se aproximar muito claramente a idéia de paradigma, e a idéia de epistemas, sem o "sentido mutacional" ainda ... Fica a questão de um paradigma "outro", dotado de caráter "muta­cional". 23 Encontrei no texto de Dreyfus e Rabinow o seguin­te: "Entretanto fica em suspenso uma questão, se considerar­mos a análise que Foucault faz dos efeitos nocivos da norllla­lização: outros paradigmas, que definissem tipos diferentes de sociedades, poderiam ser vislumbrados? Não encontramos te­matização explicita em Foucault nem, a fortiori, generaliza­ção sobre a função essencial que os paradigmas desempenham como elementos unificadores de práticas dispersas, acentuan­do-as e dando uma orientação às estratégias que aí estão im­plícitas. Seria, entretanto, uma interessante descoberta .. , sa­ber se houve no passado, ou se no futuro poderia haver, ou se ainda há potencialmente paradigmas que enfoquem proble­mas importantes de nossa cultura, sem decidir de antemão, de modo normalizador, sobre as respostas consideradas como adequadas"." Quer dizer que a questão ficava em aberto em

Foucault.

(22) Prado Coelho, E" Os universos da crítica, Edições 70, Lisboa,

1982, cf. capo 11. 1 a 4. (23) Balandier, G" $ens et puissance. Paris, PUF, 1981, cf. 1~ parte,

cap.ll. (24) Dreyfus, H. e Rabinow, P., Michel Foucault, un parcours philoso-

phique, trad. F. Durand-Bogaert, Paris, Gallimard, 1984, p. 284.

L

RECORDAR FOUCAULT 81

Eu retomei, de certo modo, a investigação do Prefácio à transgressão, onde Foucault analisa a "heterologia" em Ba­taille e, em Maurice Blanchot, o que se chama de "principio de contestação". Ambos desembocani naquilo que Foucault chama de "uma filosofia da afirmação não-positiva". E aqui estaria o germe de um paradigma outro. Não posso entrar em detalhes e vou dar só algumas linhas do texto de Foucault, que vai me poupar, aqui, uma ampla exposição. A "heterologia" de Bataille consiste exatamente na valorização do que "está fora". Heterologia significa, em Bataille, a valorização do "fora". O "fora" e o ato de "passar fora" é heterologia como escatologia num duplo sentido: de ir além do fim, de exceder (passar fora, além, ex-) e de escatologia no sentido de "maté­ria excremencial", como acontece no discurso literário e eco­nômico de Bataille; seria, então, um ato do fluxo do excesso, o fluxo do excesso transgressor que se manifesta como êxtase, como heterotexto, como excrémentiel, etc. Em última análise, a heterologia de Bataille capta a noção de transgressão por várias vias, dentre as quais a mais conhecida de todas é o erotismo que, em Bataille, tem um sentido místico muito es­pecial. 25 De qualquer modo, acontece aqui uma valorização do "fora", ou seja, uma valorização do que está para lá do limite. Mas há uns textos de Bataille meio "perigosos", onde ele ameaça cair na tal da "definição correlativa", sobretudo porque nós sabemos que na época em que Bataille escrevia -ele escreveu os primeiros artigos sobre etnologia -, fazia parte do famoso "Collêge de Sociologie", 26 que reunia Leiris, Caillois, Klossowski, dentre outros, ou seja, do início da "so-. ciologia do sagrado", e que estava inspirado pelas noções dur­kheimianas, das separações entre o sagrado e o profano. En­tão, de certo modo, Bataille acaba definindo a transgressão pelo interdito e o interdito pela transgressão. Se nós fizermos

(25) 8ataille, G" L'érotisme, Paris, Minuit, 1957. __ , "L'histoire de I'érotisme", in Oeuvres completes, VIII, Paris, Gal~

limard, 1976. __ , "La part maudite, I. Ia consomation", in Oeuvres completes, VII,

Paris, Gatlimard, 1976. __ , "La part maudite, 111. Ia souveraineté", in Oeuvres completes,

VIII. Paris, Gallimard. 1976. (26) Hollier, O., Le College de Sociologie (1937~1939)T textes presentés,

Paris, Gallimard, 1979.

I , 1!

! ~

82 A CORPOREIDADE OUTRA

um exame dos três discursos de Bataille, poderemos ver que realmente há o perigo desse tipo vicioso e viciado de discurso.

Mas, por outro lado, nós sabemos, sobretudo pela obra literária e pelo que há nos ensaios daquilo que ele chama de "antropologia mítica", 27 que há uma transgressão possível, que há um corpo Outro que emerge, ainda que seja através da violência e do excesso, que portanto contesta a sociedade, por­que ontologicamente tem que ser, porque ontologicamente é assim. E Foucault vai mostrar que em Blanchot encontramos uma formulação mais precisa, naquilo que Blanchot chama de "o princípio da contestação". O princípio da contestação seria o princípio dos limites, ou seja, a contestação nunca pára porque, no momento em que parar, o limite já se torna uma norma. Então, a contestação deve se articular de um modo tal que ela não seja "anti" ou que ela não seja tético-posicional, mas que vá conduzindo de limites em limites para o que Blan­chot chama de "Limite" e que corresponderia, mais ou me­nos, àquilo que nebulosamente Heidegger chama de "a dobra do Ser". Segue-se o texto de Foucauit, que sintetiza isso e que abre, a meu ver, exatamente o que ele chama de uma "filoso­fia da afirmação não-positiva", que está implícita na dialógica da transgressão, mas que foi deformada por todas as correntes que se empenharam em transformar experiências vividas, ou que grupos transformaram em praxeologias revolucionárias. Bataille dissera: "Aquilo que a lei proíbe não é um domínio onde o homem nada teria a fazer. O domínio do interdito é o domínio trágico, ou melhor, é o domínio sagrado. É verdade, a humanidade o exclui, mas para magnificá-lo. O interdito diviniza aquilo a que ele veda o acesso. O interdito subordina esse acesso à expiação, à morte, mas nem por isso deixa a interdição de ser um convite, ao mesmo tempo que um obstá­culo".28 Pela transgressão em Bataille, instaura-se o excesso e o desfrute, o consumo e a morte. Por isso há uma relação de complementaridade entre o interdito e a transgressão: o inter­dito repudia a violência, mas pede à transgressão que a libere. Tais movimentos não são exteriores entre si e, nessa relação, a

(27) Bataille. G., "Dossier de I'oeil pinéal", in Oeuvres completes, 11,

Paris, Gallimard, 1970. (28) Bataille, G., "La littérature et le mal", in Oeuvres completes, IX,

Paris, Gallimard, 1979, p. 190.

i.. ,

RECORDAR FOUCAULT 83

transgressão não prescinde do interdito: Bataille fala numa relação de Aufhebung e Derrida fala em relevement, pois "a trangressão não é a negação do interdito mas, superando-o, completa-o", diz Bataille. Há, pois, uma relação econômica: se o interdito institui o. trabalho, só pode fazê-lo denegando a gratuidade, entretanto, estocando-a como part maudite. A transgressão libera a part maudite (esse excesso e esse fluxo de excesso e violência), sendo, portanto, da ordem do dispên­dio e da dilapidação, da abundância e do consumo desenfrea­do, do luxo e da festa. Apart maudite é a "reserva de violên­cia" incontornável e que explode na a-estruturalidade como práticas transgressivo-transgressoras. Desta "negatividade", que é uma afirmação "não-positiva", Foucault diz que a transgressão é um gesto que concerne o limite; lá, na tenui­dade do traçado fronteiriço, é que se manifesta o relâmpago de sua passagem, mas talvez também a totalidade de sua tra­jetória, a própria origem. O marco que ela cruza bem poderia ser todo o seu espaço. O jogo dos limites e da transgressão parece regido por uma obstinação simples: a transgressão atravessa e incessantemente recomeça a atravessar uma fron­teira que, imediatamente, se fecha num fluxo de pouca me­mória, assim novamente recuando ao horizonte do inabordá­vel. Mas este jogo põe em jogo mais que esses elementos; si­tua-os numa incerteza, em certezas logo invertidas, onde o pensamento se encontra em dificuldades com o querer apreen­dê·las. Ao limite e à transgressão, reciprocamente, se devem a densidade de seu ser: a inexistência de um limite que não pu­desse absolutamente ser franqueado; a reversiva vaidade de uma transgressão que não atravessasse senão um limite de ilu­são ou de sombra. Mas terá o limite uma existência verda­deira, sem o gesto que, gloriosamente, o cruza negando-o? O que seria depois, e o que teria sido antes? E a transgressão não se esgota na totalidade do seu ser no instante em que atra­vessa o limite, não existindo noutro lugar senão nesse ponto de tempo? Ora, esse ponto, essa estranha encruzilhada de seres que, fora dele, não existem, mas, ao contrário, nele comutam­se totalmente naquilo que são, não é também tudo aquilo que, por todos os lados, transborda? Ele opera como que uma glo­rificação daquilo que exclui; o limite abre violentamente sobre o ilimitado, freqüentemente achando-se arrastado pelo con­teúdo que rejeita, assim realizado por meio dessa plenitude

~

" "j;

84 A CORPORElDADE OUTRA

estrangeira que o invadia até o âmago. A transgressão leva o limite até o limite de seu ser; condu-lo ao despertar sobre sua iminente desaparição, a reencontrar-se no que exclui (mais exatamente, talvez, a se reconhecer aí pela primeira vez), a experienciar sua verdade positiva no próprio movimento de sua perda" . 29 E por aí ele continua. O interessante é o texto que se segue, onde Foucault marca que esta transgressão, que inicialmente se definiria correlativamente em relação aos in­terditos, pode, de um certo modo, ir além dos limites, se nós entendermos o princípio de contestação, tal como o entendeu Blanchot, por exemplo, na "Experiência do infinito". Segue­se um pequeno trecho: "Esta filosofia da afirmação não-posi­tiva, istoé, da provação do limite (e, Foucault marca bem, não é o ato de provar um limite, mas o de sermos provados na nossa estrutura experiencial interna pelo limite e, portanto, pelas nossas potencialidades), é a que Blanchot definiu por meio do princípio de contestação. Não se trata aí de uma ne­gação generalizada, mas de uma afirmação que não afirma nada: em plena ruptura de transitividade. A contestação não é o esforço do pensamento por negar existências e valores, é o gesto que reconduz cada um deles aos seus limites e, por aí, ao Limite onde se dá a decisão ontológica: contestar é ir até ao âmago vazio, onde o ser atinge seu limite e onde o limite de­fine o ser. Lá, no limite transgredido, ressoa o sim da contes­tação".3O Este texto de Foucault - de que faço uma exegese de cerca de doze páginas JI - a meu ver seria todo um projeto de pesquisa. E o que isso teria a ver com a corporeidade? Ora, em Batai1le, e aqui vou ficar meio dogmático, nós temos um corpo Outro. Em Blanchot, através da idéia de contestação, há a possibilidade de conter os limites pela transgressão sem sermos vítimas do circuito de uma" definição correlativa" ou de uma "transgressão em circuito fechado", daquilo que os antropólogos identificaram muito bem nas soCiedades tradi­cionais como os "rituais de inversão" e OS "rituais de rebe­lião" . Especificamente Turner e Gluckman 32 estudaram estes

segs .

(29) Foucault, M., Préfaceà/a transgression, pp. 95-96. (301 Foucault, M., idem, p. 97. (311 Paula Carvalho, J. C. de, op. cit., 2~ parte, capo 11,2.4, pp. 871 e

(32) Turner, V" /I processo rituale: struttura e antistruttura, trad. N. Greppi Collu, Brescia, Morcelliana, 1972 (há trad. bras. Ed Vozes).

i

RECORDAR FOUCAULT 85

rituais de inversão e de rebelião, ou seja, nas sociedades tradi­cionais onde há uma necessidade de se manter a ordem - e esta ordem deve ser a ordem de uma mentalidade, ou seja, de uma memória longa - nós precisamos contar com momentos em que seja possível uma explosão manipulada das forças do­minadas. Então são elaborados os rituais de inversão, por exemplo, rituais de inversão de papéis, rituais de inversão dos valores - estes são celebrados em festas - e rituais de rebe­lião, que chegam mesmo a rituais de violência, como a morte dos reis nas sociedades africanas. Acontece que estas reflexões dos antropólogos já tinham sido feitas por Leiris - que junto com Bataille fazia .parte do Collêge de, Sociologie - para a sociedade urbano-industrial; mais recentemente, ele escreveu um artigo muito interessante mostrando como o 1968 francês podia ser um grande ritual de rebelião, sugerindo como todos os movimentos de contestação na linha do "anti", da afirma­ção positiva, poderiam ser vítimas dessas técnicas sociais de controle, ou de manipulação em circuito fechado pelos rituais de rebelião - idéia que, de certa forma, Marialice Foracchi já tinha lançado em seu livro O estudante e as transformações na sociedade brasileira.

Esta corporeidade outra só conseguirá se manifestar se nós conseguirmos descobrir ou liberar, seja a "palavra insti­tuinte", como prefere Guattari, J3 seja o espaço do desejo, ou seja, o espaço do potencial. De qualquer forma, os olhos de­vem se voltar para aqueles fenômenos, para aquilo que um etnólogo chamou de "fenômenos a-estruturais", E sobre esse assunto Duvignaud'" tem um texto muito bonito, "O dom do nada", onde mostra, por exemplo, como na sociedade urbano-

__ , Dramas, fields and metaphors; symbolic action in human socie­ty, Londres, Cornell University Press, 1975.

Gluckman, M., Order and rebel/íon;n tribal Africa, Londres, Cohen and West, 1963,

__ , Politícs, law and ritual in tribal society, Chicago, Aldine Publ. Co" 1965,

1331 Guanari, F., "Ellugar dei significante en la institución", in L. Forte led.) La otra locura: mapa antológico de la psiquiatrfa alternativa, Barcelona, Tusquests,1976.

1341 Duvignaud, J., Le don du rien: essai d'anthropologie de la fête, Paris, Stock, 1977.

I ,

1:

~ I,

86 A CORPOREIDADE OUTRA

industrial há um fluxo de excesso que explode em situações sociais que as pessoas normalmente desconsideram por pre­conceito. A sua análise começa exatamente por um ritual de umbanda em Fortaleza. Depois passa a analisar, por exem­plo, o simbolismo; analisa o fenômeno do riso, o fenômeno da festa; faz uma espécie de elenco de fenômenos sociais abando­nados pelos sociólogos - que estão muito preocupados com a banalidade cotidiana, mas não com uma sociologia da vida cotidiana,3S ou da cotidianidade ... -, mostrando como, nes­tes fenômenos abandonados, nós podemos ter o aparecimento de uma a-estruturalidade. Essa a-estruturalidade permitiria exatamente o aparecimento dos "objetos transicionais", pois que normalmente as pessoas vivem atrás dos "objetos institu­cionais". 36 Estes introduzem a normalização de que Foucault e Kuhn falam, ao passo que nos fenômenos a-estruturais te­ríamos a possibilidade do aparecimento de "objetos transicio­nais". A análise que Duvignaud faz da incorporação em um­banda é belíssima, sobretudo porque eu tive a possibilidade de observar muito, de viver e de experimentar isso. É uma coisa realmente fantástica que escapa um pouco àquele "deslum­bramento" em que fica um Lapassade, por exemplo, quando entra em contato com a macumba e escreve um livro horro­roso, aproximando macumba e contracultura negra, ou Mo­rin que diz "mas não é que realmente existe espirito!". O livro de Duvignaud não tem este caráter ainda de choque sobre quem não sofreu aquilo que Leiris chama de dépaysement. Duvignaud, depois, escreveu um livro ainda mais interessante, porque ele diz que nestes fenômenos a-estruturais nós lidamos com os estados de consciência outros e que só poderemos ter uma apreensão disso por uma via compreensiva, ou seja, por uma via empática, por uma via hermenêutica. Ora, estes es­tados de consciência outros significam que ao lado da reflexi­vidade deve haver um outro estado de consciência, esse regis­tro que Merleau-Ponty e Husserl chamaram de "pré-reflexi-

(35) Maffesoli, M., La conquête du présent: pau! une sociologie de la vie quotidienne, Paris, PUF, 1979. '

__ , L 'ombre de Dionysos: contribution à une sociologie de /'org;e, Paris, Méridiens/ Anthropos, 1982.

__ (org. " "Violence et transgression", Paris, Anthropos, 1979. (36) Guattari, F" Psychana/yse et transversalité: essais d'analyse insti­

tutionnelle, Paris, F. Maspéro, 1974, cf. capo "Le groupe et la personne".

"

RECORDAR FOUCAULT 87

vidade". Nas técnicas orientais, Eliade e Corbin falaram em "transreflexividade" .

Prosseguindo a investigação, Duvignaud escreve um livro muito bonito que se chama A anomia - heresia e subversão. 37

Neste texto ele diz que tais fenômenos não são assim tão flui­dos quanto possam parecer e não dependem tanto do olho do investigador. É claro, isso é muito importante, nós temos que detectar estes fenômenos a-estruturais e estudar, temos que detectar estes momentos transicionais, temos que experienciar isto de um modo vivido para compreender e sentir. Todos os fenômenos se referem via corporeidade, isto é um pressuposto. Mas nós chegamos mesmo a ter o que ele chama de "perso­nalidades anômicas". É um conceito que partiu da investiga­ção sobre a sociOlogia do teatro, os "papéis anômicos" no tea­tro. Duvignaud foi um dos primeiros a investigar a sociologia do teatro na França, para lá levando experiências de bioener­gética do living theatre; ele diz que estas personalidades anô­micas seriam exatamente aquelas cujos papéis são anômicos, ou seja, não há papéis, são aquelas que improvisam e que "vivem deixando se surpreender". É uma frase do dr. Pethô Sandor. Mas, ele diz, nós não precisamos chegar ao movi­mento contemporâneo da contracultura para encontrar isso; e ele vai analisar exatamente as duas grandes explosões: a ex­plosão do surrealismo - não na linha de Breton, mas na de Bataille e Artaud - e o que ele chama de la rêverie anar­chiste, ou seja, o movimento anarquista. Vai mostrar como temos movimentos sociais e portanto uma dinâmica social, e temos personalidades, isto é, uma dinâmica psicossocial. Vai mostrar como o conceito de personalidade anômica permite detectar uma dinâmica psico-sociológica de uma corporeidade outra ou de uma outra vivência do corpo. Não vou me alongar, apenas dizer as três linhas em que tentei encaminhar meu tra­balho, as três linhas dessa corporeidade outra; como seria compreensivel esta corporeidade outra? Porque, é preciso di­zer, há muito preconceito. Enquanto se fala em Lacan, Guat­tari, tudo bem; quando se fala em movimento contracultural, já começa a não ficar muito bem; quando se começa a falar em paradigma mutacional, cujo método talvez seja anárquico,

(37) Duvignaud, J., L 'anomie: hérésie et subversion, Paris, Anthropos, 1973.

t ~---

88 A CORPOREIDADE OUTRA

como Feyerabend ou Morin o pensam, as coisas já começam a entrar em atrito com os objetos institucionais pelos quais nós vivemos. E as coisas se tornam ainda mais complicadas quan­do se envolve uma vivência, no sentido em que Jung define "vivência", que é uma experiência simbólica realmente vivida em profundidade, e sem senões, do sagrado? - não -, do religioso? _ não -, do mágico? - não -, o nome que Jung deu a isso é "numinoso", que é uma expressão que vem do famoso texto de Otto. J8 Numinoso seria a palavra! Mágico­religioso já capta um magma pré-reflexivo que incomoda um pouco mais. Essa idéia de magma e de imaginário também causou fricções. O numinoso captaria um aquém do pré-refle­xivo e um além do transreflexivo. Esta idéia é muito difícil de ser sintetizada. Só posso dar a indicação. É a idéia do "ima· ginal", que foi forjada pelo primeiro tradutor de Heidegger na França, um filósofo que depois se tornou especialista em filo­sofia iraniana, Henri Corbin. Corbin mostrou que o grande dilema que vivemos no Ocidente é que desde o triunfo do aver­roísmo latino, pelo qual nós perdemos Avicena, Ibn'Arabi, nós perdemos a dimensão do Anjo. A idéia de imaginai em árabe seria âlam al'mithal, que Corbin 39 traduziu por mun­dus imaginalis para evitar duas coisas: primeiro, porque o nome "imaginário", tal como nós o entendemos, iria no sen­tido de um mau-imaginário, quer dizer, um imaginário fan­tasioso cujo peso ontológico não seria mais que mera fantasia. Segundo, não seria um imaginário ligado à consciência refle­xiva, mas a outros tipos de consciência. Então formou o termo

(38) atto, R., Le sacré: I'élement non-rationnel dans l'idée du divin et ses rélations avec le rationnel, trad. A. Jundt, Paris, Payot, 1969.

De Martino, E" "Mito, scienze relig'lose et c'lviltà moderna", in E. de Martino, Furare, simbolo, vaIare, Milão, Feltrinelli, 1980.

(39) Corbin, H" "Mundus imaginalis ou I'imaginaire et I'imaginal", in Face de Dieu, face de I'homme: herméneutique et Souffsme, Paris, Flamma-

rion, 1983. __ , "pour une charte de I'lmaginal", in H. Corbin, Corps spi,;tuel et terre céleste: de I'Iran mazdéen à I'Iran shl'ite, Paris, Buchet Chastel, 1979.

Durand, G., "Homo proximi Orientis: science de l'homme et ls1am spi­rituel", in G. Durand, Science de I'homme et tradition: le nouvel esprit anthro­pologique, Paris, Berg International, 1979.

__ , "La reconquête de l'lmaginal", in Cahiers de I'Herne (H. Corbin),

CI. Jambet (éd.l, Paris, Éd. de I'Herne, 1981. Jambet, CI., La logique des Orientaux: Henri Corbin et la science des

formes, Paris, Seu'll, 1983.

• L

RECORDAR FOUCAULT 89

mundus imaginalis, porque vê que desde a partida de Avicena e Ibn' Arabi, ou seja, desde o averroísmo latino, ficamos pre­sos a um dualismo das idéias ou do mundo inteligível e do mundo sensível, e perdemos a noção do meio. Essa dimensão do imaginário, do mundus imaginalis, é o laeus - o local -das experiências proféticas, visionárias, etc. Em árabe, há uma palavra para dizer isso. Quando os árabes falam em mi'râj, nós com a nossa tendência redutiva, entendemos "mi­ragem". Não, mi'rfV significa exatamente o protótipo da expe­riência extático-visionária que o profeta Maomé teve, quer di­zer, nós cruzam'os com mundus imaginalis de repente. Esta ·idéia de mundus imaginalis como mundos intermediários sig­nifica que eles têm um tempo outro, um espaço outro, uma configuração outra, uma corporeidade completamente outra. Se nós, com a nossa mentalidade científica, quiséssemos lem­brar alguma coisa em termos científicos, poderíamos recordar Lupasco,40 que fala dos "antimundos" ou dos "mundos para­lelos". Nas experiências microfísicas de Bohm, 41 isto seria exatamente o que ele chama de implicate arder, ou seja, uma realidade que está aquém das divisões do sujeito-objeto. É o que a "holografia" revela, na neuro-psico-fisiologia de Pri­bram. 42 Em MacLean e Laborit há o triunic brain, com regis­tros que funcionam completamente segundo outras vastas ca­tegorias.

Estes foram alguns dados científicos que eu usei para es­clarecer estes "mundos imaginários" de modo a ficarem mais acessíveis à nossa positividade. Isso seria o numinoso. É a isso que Jung constantemente se refere quando fala do arquétipo como "noumeno" e "sincronicidade"; o arquétipo se refere à uma esfera "psicóide" ou "nomenal". É a isso que Jung se refere quando fala em sincronicidade, este outro registro e este outro ou outros mundos. E haveria técnicas que poderiam de­tectar ou apreender o funcionamento desta corporeidade outra inserida no mundo instituído?

(40) Lupasco, S., Les trois matieres, Paris, Julliard, 1960. (41) Bohm, D., Who/enessandtheimp/icateorder, Londres, Routledge

and K. Paul, 1980. (42) Colloque de Cordoue: "Science et conscience, les deux lectures de

j'Univers", Paris, France Culture-Stock, 1980.

, li,

ti

90 A CORPOREIDADE OUTRA

Uma noção que eu usei, moi corporel imaginaire, nas téc­nicas de Fretigny e Virei, 43 mostra como poderemos ter a exis­tência de um outro corpo. Faz uma distinção entre o esquema do corpo ou a imagem do corpo, a imagem social do corpo, o corpo psíquico e o moi corporel imaginaire, que seria o corpo sutil.

Há as investigações de Tart sobre os estados alterados de consciência. As técnicas do A. S. C. (estados alterados de consciência) 44 foram usadas de modo muito feliz por Lapas­sade. Lapassade 4S tem um livro muito interessante que se chama Ensaio sobre o transe: perspectivas para um materia­lismo histérico. Histérico e não histórico, porque a histeria é valorizada como símbolo da experiência transicional, que é exatamente o protótipo da a-estruturalidade e da neotenia neg-entrópica. Lapassade utilizou, para analisar o transe, que é a presença desta corporeidade outra, as técnicas dos estados alterados de consciência. Só que ele diz que no termo de Tart "alterados" já vai o pressuposto da normalização; assim ele prefere substituí-lo por "consciência éclatée, autre, défon­cée". O importante é que Lapassade liga essas experiências de transe com a tipologia de sociedades, desde a sociedade tradi­cional até a urbano-industrial, e vê o sentido especifico de transe em cada tipo. Diz que a histeria, que seria a forma moderna do transe, acabou no divã ..... A tecnologia de Tart, dos estados alterados de consciência, diz ele, já é uma espécie de indução pelo centro, pela centralidade institucional e insti­tucionalizadora de uma idéia de normalidade ou de padrão, a partir da qual haveria um desvio, e o que ele quer é dar todo o peso ontológico a isso, mostrando que não se trata de uma afirmação positiva antitético-posicional, mas de um total­mente outro, como Otto fala, e como a experiência de Rim­baudjá tinha mostrado.

(43) Frétigny, R. e VireI, A., L 'Imagerie menta/e: introduction à I'oniro­thérapie, Genebra, Éd. du Mont-Blanc. 1968.

(441 Tart, Ch., States of consciousness, Nova Iorque, E. P. Dutton, 1965.

(45) Lapassade, G., Essa; sur la transe: le matérialisme hystérique /., Paris. J. P. Dêlarge. 1976.

(46) Hillman, J., Le mythe de la psychanalyse, trad. Ph. Midriammos, Paris, Imago, 19n.

__ , Re-visioning psychology, Nova Iorque, Harper Colophon Books, 1975.

t

RECORDAR FOUCAULT 91

Por fim, uma segunda experiência: eu tive oportunidade de,r com um grupo conduzir uma série de investigações em terreiros de umbanda, o lugar segundo a perspectiva de Tart, para verificar eSSes "estados". Lá pode-se ver claramente o conflito institucional, não, como se tem tendência a colocar, entre as federações e os terreiros, mas entre a figura do pai­de-santo, que é o iniciador, que dispõe de uma autoridade legal e normalizadora e reguladora e redutiva, e a experiência carismática do filho-de-santo, que tende a viver e a seguir as orientações de seus guias, de frente e de costas. Pode-se ver claramente este conflito institucional no interior do terreiro, e mais, pode-se ver até em termos individuais de polarização, como no estudo muito bonito de Monique Augras, O duplo e a metamorfose. 47 Mostra-se a polaridade entre o santo de ca­beça, que representaria de um certo modo o fluxo em direção à ordem, e o capanga, ou protetor de costas, que seria o Exu. Liana Trindade mostrou Exu como um trickster, transgressor em direção à desordem, e "individualizador" da vivência mí­tica ... Então, se não há esta polarização, podemos ver o con­flito de objeto institucional, de objeto transicional, inclusive ao nível do próprio filho-de-santo. E daí toda a ideologia mon­tada, e a medida em que é ou não consciente.

Mindell e Solie " desenvolvem uma perspectiva interes­sante nesse sentido, que é a primeira formulação junguiana a respeito da experiência simbólica do corpo. E deve-se destacar isto por duas razões: porque se costuma dizer, primeiro, que a teoria de Jung não trata do social e, segundo, que Jung desen­volveu uma postura ascético-mística na expressão do corpo. Ambas as afirmações são falsas, porque, na Dialética do eu e o inconsciente. as duas primeiras partes são postas como pro­gramas de uma psicologia social. O meu inspirador, Gilbert

(47) Augras, M., O duplo e a metamorfose, Petrópolis, Vozes, 1983. (48) Trindade, L. M. S., "Exu: símbolo e função" (Tese de doutora­

mento em Antropologia Social - FFLCHUSP, 1980, no prelo nos Cadernos do CER/FFLCHUSP, 19851.

(49) Mindell, A. , Dreambody: the body's role ;n revealing the Self, S. Sternback (ed.), Santa Mônica, Sigo Press, 1982.

Solié, P" Médécines initiatiques: aux sources des psychothérapies, Pa. ris, Epi, 1976.

-- I Psychanalyseetimaginal, Paris, Imago, 1980. -- I Mythanalysejungienne, Paris, Les Editions ESF, 1981.

111.

!lil .. i!1

-..

92 A CORPOREIDADE OUTRA

Durand,50 escreveu um artigo muito interessante, onde mos­tra exatamente estes aspectos sociais dos arquétipos. E, por outro lado, Jung tem um texto belíssimo na Introdução à es­sência da mitologia, onde fala que os arquétipos se formam ao nível das vísceras, porque, como está na Bíblia, o espírito fala por gemidos. Na tese de doutoramento de Jung, ao estudar os fenômenos mediúnicos, ele já mostrava esta ancoragem bió­tica. Esta corporeidade outra foi trabalhada por Mindell e So­lié, que desenvolvem a idéia do "corpo onírico", fazendo uma investigação belíssima desde as experiências mais institucio­nalizadoras e normalizadoras do Extremo Oriente até as da contracultura, passando pela psiquiatria, pela psicanálise freudiana e pelas "medicinas iniciaticas", mostrando como o corpo onírico ou esta corporeidade outra foi sempre objeto de uma redução visada, tentando-se bloquear, como diz Jung, a experiência simbólica vivida, vivenciada, desta corporeidade outra.

É isso que eu queria indicar para vocês ... E concluir: 1) por que "corporeidade ima(r)ginal"? Porque as "margens", mostrou-o H. Desroches, costumam girar na ótica e na estra­tégia induzidas pela centralidade; devem ser comutadas pela e na vivência do "imaginaI"; 2) por que - e qual - um para­digma "outro"? Por que a imagem social do corpo e a vivência do corpo como imagem socializada - sua teoria, sobretudo - movem-se na esfera do normalizador paradigma "clássico" (ou analítico-simplificador-disjuntor, diz Morin), ao passo que o acesso, em termos de cognição compreensiva, à "corpo-

(501 Durand, G., Les structures anthropologiques de l'imaginaire: intro­duction à I'archétypologiegénérale, Paris, Bordas, 1969.

__ , L 'imagination symbolique, Paris, PU F, 1964 (há trad. argent. Amorrortu),

__ , Science de I'homme et tradition: te "nouvel esprit anthropologi­que", Paris, Berg International, 1979.

_._ , Figures mythiques et visages de I'oeuvre: de la mythocritique à la mythanalyse, Paris, Berg International, 1979.

__ , L'âme tigrée: les pluriels de psyché, Paris, Oenoel/Gonthier, 1980.

__ , La foi du cordonnier, paris, Denoel, 1984. __ , "La cité et les divisions du Royaume: vers uns sociologie des pro­

fondeurs", in ErânosJahrbuch, 45 (Einheit und Verschiedenheit), Leiden, E. J. Brill, 1976.

__ , Mito, símbolo e mitodologia, trad. H. Godinho e V. Jabouille, Lisboa, Editorial Presença, 1982.

.. l'

RECORDAR FOUCAULT 93

reidade ima(r)ginal", contraponto que é ao "biopoder", nos é dado pelo "paradigma hOlográfico", que Durand chama de ratio hermetica e Morin, de "hipercomplexidade".

(Transcrito da gravação por Marina Appenzeller,

COm revisão do autor)

,.Iil

I', li i

II

!I' li

;1'

1, '~<,: li' I',

'r' ,'"

"I

l li.:

,+' ,:!I::I ,,,li,1

'il" 'lll'::~111 '1'~'!,li

"'1" i:!j!i'! i~+: :

!

Uma arqueologia inacabada: Foucault e a psicanálise

Renato Mezan*

Michel Foucaultjamais deixou de nos surpreender. Ao final de cada livro seu, o leitor sentia-se convidado para um encontro mais adiante: implicitamente, na mesma estrada. Desavisado, especulava em qual ponto preciso do trajeto vol­taria a viajar em tão agradâvel companhia; mas sempre se equivocava. Ao passar por uma encruzilhada que julgara, de olho no mapa, secundâria ou mesmo inexistente, lâ estava o sorriso à espreita: inopinadamente, 'Foucault ressurgia por de­trâs de uma ârvore, fruindo marotamente o susto que pregara ao viandante, para tomâ-Io pela mão e sussurrar: venha, agora vamos por aqui. .. Conan Doyle fazia Holmes, por vezes, acordar seu companheiro às três da madrugada, e, jâ pronto, murmurar com uma voz excitada: "Vista-se, Watson, de­pressa! O jOgo jâ começou!". E, ainda estremunhado, o outro saltava da cama para viver mais uma empolgante aventura. Ler Foucault era uma experiência que deixava o leitor ofe­gante: nunca sabíamos o que nos reservava a pâgina seguinte, qual idéia viria cintilar entre as linhas, qual certeza até então invulnerâvel saltaria fora dos gonzos e, girando sobre si pró­pria como certas estantes das bibliotecas que ele tanto amava, deixaria entrever um corredor secreto, uma passagem oculta, uma escadaria insuspeitada. Foi o arquiteto dos subterrâneos;

(*) Da rUC de São Paulo.

~"""." ., 1<;

"'~". " . ~

RECORDAR FOUCAULT 95

perfurou saberes e instituições com o ardor da toupeira critica de que falava Marx, e a melhor homenagem que se lhe pode prestar é escavar seus textos com a mesma pertinâcia e com a mesma paixão com que ele se dedicou a abrir túneis no solo de nossa cultura.

Um destes percursos possíveis pela obra foucaultiana se­guiria o fio vermelho de suas referências à psicanâlise. Nume­rosas, elas pontilham quase todos os seus livros, longas umas, breves outras, severas, irônicas ou respeitosas, marginais por vezes à trama do argumento ou, ao contrârio, no centro de suas preocupações. Ê-me impossível, neste momento, efetuar um tal trabalho; penso, contudo, que ele mostraria não ape­nas que "a sombra da psicanâlise acompanhou Foucault du­unte os trinta anos. de sua produção, mas ainda que um dos eixos em torno dos quais se ordena seu pensamento consiste num confronto e numa interrogação permanentes quanto ao sentido dela e quanto ao lugar que ocupa no pensamento oci­dental. Lugar, aliâs, múltiplo: a cada meandro do percurso de Foucault, ela se aloja em outro espaço, configura-se em outras redes de relações, desenha outros perfis de significação.

Para o psicanalista, esta profusão de posições atribuídas à sua disciplina e à sua prâtica tem a principio efeitos des­concertantes. Ãs incertezas que constituem seu pão cotidiano, à dura e apaixonante tarefa de procurar captar algo de um objeto por definição fugidio - o inconsciente, seu e dos outros - à dúvida erigida em método quanto ao sentido do que es­cuta, do que pensa e do que sente, vem-se somar o questio­namento insistente de Foucault quanto à sua identidade. Identidade problemâtica entre todas, porque o psicanalista não pode deixar de aplicar a si mesmo e à gênese de suas idéias OS mesmos princípios que o guiam na escuta de seus pacientes: ao fazê-lo, puxa constantemente o tapete de sob seus próprios pés, de onde a curiosa sensação de vertigem que muitas vezes se apodera dele. Ora, FoucauIt o questiona -mas não é isto o inquietante, jâ que, questionar-se, ele o faz muitas vezes por dia. O inquietante é o que este questiona­mento venha a cada vez de outro lugar: ora é a consistência epistemológica da psicanâlise que é posta em xeque, ora sua inserção no social, ora a existência mesma dos objetos que es­tuda, ora o sentido e o alcance das teorias que a especificam. Sob o prisma de Foucault, nossa disciplina se refrata em mil

"'T'

II

I! 11

11

~!' !

--

96 UMA ARQUEOLOGIA INACABADA

facetas, e à pergunta - mas, finalmente, o que pensa ele da psicanãlise? - só responde numa não-resposta, resultado mesmo da miríade de respostas. Como tais respostas surgem de formulações que não são as habituais, de teses que costu­mam vir na contramão do esperado, o psicanalista pode, ce­dendo a um impulso defensivo, fechar-se em copas e fazer de conta que não ouviu. Ou, O que dá na mesma, retorquir ao que soa como um ataque com uma pseudo-interpretação, que na realidade desqualifica o direito de Foucault de perguntar o que quiser e do lugar a que seu pensamento o tiver conduzido: o homem não sabe do que está falando ...

Impulso tolo entre todos. Porque Foucault não se limita a interrogar: faz afirmaçaões, elabora hipóteses, aventa idéias. E levá-las a sério pode ser um teste essencial para o psicana­lista, que, provocado a sair de seu silêncio ou de seus esque­mas costumeiros de interpretação, depara-se com um pensa­mento sólido, minucioso e insistente, impossível de ser igno­rado ou, pior, desprezado. Os reptos de Foucault estimulam, seus elogios - como em As palavras e as coisas, quando à psicanálise e à etnologia atribui o papel de frear a redupli­cação representativa e a tarefa de- não deixar o pensamento recair no sono antropológico - seus elogios não são jamais inocentes. E penso que tomá-lo a sério significa ir com ele em busca de algo novo, encarar a angústia do debate com um espírito sutil e poderoso, na esperança de retornar com um resultado positivo. Pensar com Foucault é um exercício indis­pensável, e, que, acredito, o psicanalista pode e deve em­preender, suspendendo o juízo até surgir algo capaz de decidir a partida - num sentido ou em outro.

Dentre as obras de Foucault, a que mais me parece apro­priada para esta finalidade é A vontade de saber. Aqui, nossa disciplina está presente do começo ao fim; o livro se apresenta mesmo como uma "arqueologia da psicanálise". De saída, quero precisar um ponto: em nada me parece exorbitante esta idéia. Por que deveria ela gozar de um privilégio de extrater­ritorialidade? Ela é uma prática, uma (ou várias) teoria e uma instituição (várias) que só existem imersas no socius, sujeita como quaisquer outras às suas determinações, e delimitada em seu espaço de manobra pelas mesmas condições que gover­nam a emergência de saberes, técnicas e organizações no inte­rior deste socius. Portanto, a idéia de integrar ou reintegrar a

1_, ~-~_.. .

RECORDAR FOUCAULT 97

psicanálise numa rede de relações que lhe são simultanea­mente interiores e exteriores nada tem de ilegítimo. O incons­ciente não conhece a temporalidade, mas a disciplina que o toma por objeto sim: e temporalidade quer dizer aqui imersão na história, nos jogos do poder e do saber, na batalha das idéias e no embate das instituições. Saudemos Foucault por relembrar isto aos psicanalistas, de ordinário tão reticentes em reconhecer que são sujeitos históricos e em admitir que sua atividade não se desenrola apenas na "outra cena", mas igual­mente "nesta" cena - a cena do mundo em que vivemos.

Estabelecido este princípio, voltemo-nos para o texto de Foucault. Há um momento, no final do capítulo IV, que a meu ver contém os elementos essenciais da tese apresentada: vamos agora abordá-Ia com o interesse e com o respeito que merece.

"A história do dispositivo de sexualidade, assim como se desenvolveu a partir da época clássica, pode valer como ar­queologia da psicanálise. Vimos, efetivamente, que ela de­sempenha vários papéis simultâneos neste dispositivo: é meca­nismo de fixação da sexualidade sobre o sistema de aliança; coloca-se em posição adversa em relação à teoria da degene­rescência; funciona como elemento diferenciador na tecnolo­gia geral do sexo. Em torno dela, a grande exigência de con­fissão, que se formará há tanto tempo, assume um novo sen­tido, o de uma injunção para eliminar o recalque. A tarefa da verdade vincula-se, agora, ao questionamento da interdição. Ora, isto abria a possibilidade de um deslocamento tático con­siderável: reinterpretar todo o dispositivo de sexualidade em termos de repressão generalizada; vincular tal repressão a me­canismos gerais de dominação e de exploração; ligar entre si os processos que permitem liberar-se de ambas. Assim se for­mou, entre as duas guerras mundiais e em torno de Reich, a crítica histórico-política da repressão sexual. O valor desta crítica e seus efeitos na realidade foram consideráveis. Mas a própria possibilidade de seu sucesso estava ligada ao fato de que se desenrolava ainda no dispositivo de sexualidade, e não fora ou contra ele. O fato de tantas coisas terem mudado no comportamento sexual das sociedades ocidentais, sem que se tenha realizado qualquer das premissas ou condições políticas que Reich vinculava a estas mudanças, basta para provar que toda a 'revolução' do sexo, toda esta luta 'anti-repressiva' re-

'i:'

i!1 ' .i:,

1"

L

98 UMA ARQUEOLOGIA INACABADA

presentava, nada mais nada menos - e já era muito impor­tante - do que um deslocamento e uma reversão tática no grande dispositivo da sexualidade. Mas pode-se compreender também por que não se podia exigir que tal crítica fosse a chave para a história deste mesmo dispositivo. Nem que fosse o princípio de um movimento para desmontá-lo." 1

Perdoem-me a longa citação; ela é indispensável. Aqui estão reunidos todos os níveis em que Foucault pensa a psi­canálise, ao menos neste livro, e compreendemos, ao ler cui­dadosamente, que a multiplicidade de perspectivas é essencial à sua abordagem. O texto é construído como uma espiral: no início e no fim, passa pelo mesmo ponto, mas a alturas dife­rentes. Este ponto é a idéia de dispositivo de sexualidade. Ve­remos em um instante o que Foucault entende por esta ex­pressão; de momento, cabe assinalar que ele é a cavilha cen­tral do argumento. Esquematizemos:

1) deste a época clássica, constrói-se algo a que devemos chamar" dispositivo de sexualidade";

2) este dispositivo dá origem à psicanálise e lhe atribui vários papéis simultâneos: idéia importante, porque permite situá-la em referência a eixos múltiplos, cuja heterogeneidade aparente é unific~da pela noção implícita de arché. O dispo­sitivo de sexualidade é a arché da psicanálise, no sentido aris­totélico de causa e de origem: aquilo que lhe atribui matéria, forma, função e finalidade. Matéria: a sexualidade. Forma: a confissão. Função: fixar a sexualidade sobre o sistema de aliança. Finalidade: estabelecer uma tecnologia diferenciada do sexo para uso das elites. Reparem como a multiplicação das perspectivas vai permitir a Foucault uma vantagem estra­tégica importantíssima: achar um lugar para a relativa novi­dade da psicanálise, para sua - já que estamos em compa­nhia de Aristóteles - "diferença específica";

3) devido à emergência da psicanálise, "a grande exigên­cia da confissão, que se formara há tanto tempo, assume um novo sentido: o de uma injunção para eliminar o recalque". A psicanálise pertence, por sua origem no dispositivo de sexuali­dade, ao gênero das técnicas confessionais, mas ao mesmo tempo introduz nestas técnicas um objetivo inédito: agora, a

(1) História da sexualidade, tomo I: A vontade de saber (1976), trad. Guilhon de Albuquerque, Rio de Janeiro, Edições Graal, pp. 122-123.

I

~,

RECORDAR FOUCAULT 99

finalidade da confissão não é mais a absolvição ou a saúde, mas a eliminação do recalque. Questionar a interdição é, assim, alorma da "tarefa da verdade" cOrporificada na psi­canálise: é para isto que o "dispositivo de sexualidade" a constitui;

4) postas estas três idéias - existência de vários níveis do diSPositivo de sexualidade, determinação da psicanálise como um destes níveis, encarregada de desempenhar funções preci­sas no campo das técnicas confessionais, e conseqüente inver­são aparente do sentido de confissão, Foucault vai mudar de plano. A emergência da psicanálise tornará possível o que no começo do livro se chamava a "hipótese repressiva": somos ou fomos reprimidos sexualmente, até que Freud nos libertasse da rainha Vitória. Este ponto é essencial: a pesquisa biblio­gráfica revelara a inanidade da hipótese repressiva, mas fal­tava explicar por que ela pudera surgir. A resposta é dada aqui: ela nada mais é do que uma das possíveis interpretações do dispositivo de sexualidade, gerada pelas engrenagens dele mesmo. Interpretação privilegiada, porque em seu bojo vem a aparente subversão deste dispositivo: não devemos eliminar o recalque? Mas subversão ilusória: a injunção em pauta nada mais é do que uma nova face da exigência de confessar. Ape­sar das aparências, não saímos do Mesmo: é ainda o disposi­tivo de sexualidade que, pretendendo "desarticular-se", na verdade se rearma;

S) contudo, esta nova feição do mesmo induz um "deslo­camento tático considerável": a crítica histórico-política da repressão - em qualquer de suas formas, inclusive a sexual. Reich seria assim o herdeiro do que de suPostamente subver­sivo havia na pSicanálise: generalizando a injunção de elimi­nar o recalque, quis eliminar com ele a dominação e a explo­ração. Novo e contundente fracasso: ignorava que esta contes­tação, por mais ruidosa que fosse, constituía ainda uma figura do mesmo dispOSitivo; e sua crítica permaneceu ineficaz;

6) isto não significa que nada haja mudado no compor­tamento sexual das SOciedades ocidentais: terceiro nível de análise. Houve mudanças, e importantes: mas não por causa da crítica, psicanalítica ou reichiana. Nenhuma das pré-con­dições Postuladas por Reich se verificou; e houve mudanças. O que prova isto? Que o dispositivo de sexualidade é por es­sência multiforme e recuperador: na superfície, parece dissol-

(-

100 UMA AROUEOLOGIA INACABADA

ver-se, mas no âmago se mantém e se reforça no ato mesmo de produzir sua pseudodissolução, De onde a conclusão:

7) a crítica à repressão não pode ser nem a chave teórica para retraçar a história deste dispositivo, nem o instrumento prático para desmantelá-lo. Presa nas malhas daquilo mesmo de que ele pensava se desprender, é um efeito desta monta­gem. Para fazer a arqueologia da psicanálise, é preciso sair do dispositivo e retornar até o momento de sua constituição: dai a referência à época clássica. É preciso sobretudo sair da área em que Freud e Reich, cada qual a seu modo, se tornaram vítimas de uma ilusão de ótica: avaliar o alcance de suas des­cobertas e retirar-lhes os galardões de que foram revestidas é, assim, tarefa urgente e indispensável, se quisermos nos liber­tar da "austera monarquia do sexo", 2 da qual não nos eman­ciparam nem o divã nem a Sex Pol.

Vemos que Foucault afirma, em suma, três idéias bási­cas: primeiramente, que é possível uma arqueologia da psica­nálise, desde que nos destaquemos do preconceito segundo os quais ela é uma inovação absoluta e libertadora; em segundo lugar, que o espaço desta arqueologia e o destino da psicaná­lise como modo de intervenção socialmente determinado são constituídos pelo dispositivo de sexualidade; por fim, que a psicanálise e seus derivados (Reich) são o veículo não da mor­te, mas da reafirmação deste dispositivo, apesar das aparên­cias em contrário: o essencial não mudou, não houve subver­são, apenas deslocamento. Cabe então precisar no que con­siste tal dispositivo, a fim de esclarecer o movimento realizado por Foucault.

É na reformulação da idéia de poder que vamos encon­trar o ponto de partida deste movimento. Desde Surveiller et punir, a noção de disciplina introduz uma nova maneira de praticar a arqueologia: os procedimentos de individuação, isto é, de constituição do indivíduo (e não apenas de sua com­preensão) passam a se caracterizar, nas sociedades modernas, por uma extensão cada vez maior. Ali onde uma certa tradi­ção vê o surgimento de um indivíduo livre das amarras feudais que o determinavam antes de tudo como membro de um esta­mento, Foucault demonstra que a consistência mais densa da

(2) A vontade ... , p. 149.

"."-,,-'

'),.,'.1' ._' .;.-;; \ ... -" ;::.;.;.;.." .....

, -''o, ..... , , 1

RECORDAR FOUCAULT 101

individualidade é correlativa de um processo complexo e mul­tifacetado de objetivação e de assujeitamento, que se especi­fica em técnicas disciplinares das quais vão surgir simultanea_ mente a realidade do indivíduo e o conhecimento que se pode ter a seu respeito. De onde a idéia de que "na verdade, o poder produz: produz o real; produz domínios de objetos e ri­tuais de verdade. O indivíduo e o seu conhecimento Possível resultam desta produção". 3

Duas modificações profundas se desenham aqui na con­cepção do poder, modificações que estão na base do livro so­bre a sexualidade. A primeira é a de que o poder não é algo que se limita a confinar, a reprimir e a constranger: ao con­trário, é um princípio de incitação, de efetuação e de exten­são. À representação do poder herdada do direito, imagem que o configura como lei, regra ou norma, trata-se de opor a concepção de um poder nem juridico nem discursivo, mas proliferador, gerativo, incitante, A segunda mOdificação Con­siste na recusa da soberania como paradigma do poder: para­digma traçado desde a instauração da monarquia absoluta e que comanda as análises políticas do século XVI para cá. O poder não é Um; é "multiplicidade de correlações de forças imanente ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização, jogO que (. .. ) as tranforma, reforça, inverte ( ... ), estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristali­zação institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na for­mulação da lei, nas hegemonias sociais". 4 Teoria capilar do poder, portanto, na qual ele não é atributo de um indivíduo ou de uma classe, que o empregaria para subjugar os demais e impedir que escapem à dominação, mas mUltiplicidade es­sencial, cuja onipresença nas relações mais variadas e locais determina configurações sempre móveis e sempre instáveis, ainda que possam convergir superfiCialmente para um sentido geral. Há solidariedade, assim, entre as duas modificações in­troduzidas por Foucault na concepção do poder: é porque se o imagina como Um que lhe é atribuída a função por excelência da repressão-exclusão, cuja forma exemplar é a lei que proíbe; é porque se deve concebê-lo como multiplicidade de correla-ções de forças que pode ser visto em sua função produtiva: a

(3) Survef7leretpunir, Paris, Gallimard, 1975, p.196. (4) A vontade ... , p. 89.

·i, '-1

II 111

i I

j

L_

102 UMA ARQUEOLOGIA INACABADA

cada movimento do caleidoscópio, vão surgir novas figuras, e, como estas figuras se inscrevem num espaço social, determi­nam-se como procedimentos de controle, técnicas de assujei­tamento, métodos de individuação e de observação. Dai a imagem de uma extensão capilar do poder, ou melhor, das configurações de poder, que vão investir progressivamente territórios que até tal ou qual momento escapavam às suas malhas. Mais do que investir, poder-se-ia dizer: constituir. O poder é um princípio diferenciador e anexador: inventa, induz partilhas e comportamentos, e desta maneira é condição de possibilidade ao mesmo tempo de entidades sociais e de sabe-

res que as tomam por objeto. E como estas entidades são em última análise os corpos

dos seres humanos, o projeto de uma arqueologia do poder é inseparável de uma anatomia política do corpo. Em Surveiller et punir, eram as técnicas disciplinares que formavam o tema principal; mas OS regimes da disciplina ainda eram assimilá­veis a uma concepção negativa do poder, posto que a disci­plina rigidifica, impõe, constrange. Foucault necessitava de um campo onde sua concepção do poder pudesse ser, enfim, libertada da imagem do látego, um campo onde a potência germinadora e diferenciadora do poder emergisse em toda a sua complexidade: é precisamente o que lhe oferece a sexuali­dade. A teoria vigente não a situava como o proibido por ex­celência, como aquilo sobre o que o poder teria exercido sua repressão com a máxima intensidade, até que a psicanálise viesse, enfim, liberá-la do segredo e do silêncio? Ocasião ím­par, pois, para fazer a crítica das representações jurídicas do poder, e simultaneamente para desdobrar algumas das conse­qüências da concepção oposta. Compreende-se, então, a es­'tratégia de A vontade de saber: primeiro, mostrar a falsidade da "hipótese repressiva": não houve manto de silêncio sobre o sexo, mas ao contrário "explosão discursiva" a seu respeito. Segundo, assinalar que esta explosão discursiva própria do século XIX continua a seu modo uma tendência que vem desde a pastoral cristã da carne, com seuS procedimentos calcados sobre a confissão. Terceiro, estabelecer a continuidade sub­terrânea entre esta pastoral e as feições modernas da confis­são, isto é, traçar ao mesmo tempo a história da medicalização do sexo e provar que se tratou de uma mudança de regime -do eclesiástico para o científico - mas não de uma subversão

RECORDAR FOUCAULT 103

essencial. Quarto, uma vez montado este quadro, situar a psi­canálise como um dos efeitos deste movimento, definindo seu lugar e as funções a que foi adstrita, dissipando a miragem segundo a qual teria constituído uma ruptura decisiva frente à seqüência cristianismo-sexologia-psiquiatria.

O que garante, na perspectiva de Foucault, a validade desta seqüência, em cujos parâmetros é justificado falar de um poder ao mesmo tempo múltiplo e gerativo, é a idéia de dispositivo de sexualidade. Sob a forma da confissão e da pe­nitência, sob a forma do interrogatório médico, sob a forma de práticas pedagógicas, psiquiátricas ou jurídicas, ou ainda sob a forma do diálogo psicanalítico, o que assistimos é, no fundo, ao estabelecimento, à expansão e ao afinamento pro­gressivos deste dispositivo, que institui a sexualidade ao mes­mo tempo no corpo dos indivíduos e no quadro dos saberes. Há um processo simultâneo pelo qual o corpo da mulher se histeriza e a medicina passa a se interessar pela histeria, assim como há um processo simultâneo pelo qual certas práticas se­xuais são decretadas perversas e a psiquiatria passa a falar das perversões. O poder implanta comportamentos no mesmo movimento pelo qual os destaca como objetos de conheci­mento; as vias de controle produzem fenômenos a serem con­trolados e tecnologias para controlá-los cada vez mais fina­mente. Foucault dirá: "Não se deve descrever a sexualidade como um ímpeto rebelde, estranha por natureza e indócil por necessidade, a um poder que, por sua vez, esgota-se na ten­tativa de sujeitá-la e muitas vezes fracassa em dominá-la intei­ramente. Ele aparece mais como um ponto de passagem par­ticularmente denso pelas relações de poder: entre homens e mulheres, entre jovens e velhos, entre pais e filhos, entre edu­cadores e alunos, entre padres e leigos, entre administração e população. Nas relações de poder, a sexualidade não é o ele­mento mais rígido, mas um dos dotados de maior instrumen­talidade, utilizável no maior número de manobras e podendo servir às mais variadas estratégias". 5

A sexualidade, assim, não é um fenômeno natural, ine­rente à biologia humana. Ela é um alvo, um ponto de passa­gem, um instrumento, um elemento estratégico: e sua implan-

(5) A vontade ... , p. 98.

':1 '"i 'I

I,

\i ~

\ i,

, 't 'I,.

" 'l'

~il

""'1, 1'/ ,

UMA ARQUEOLOGIA INACABADA 104

tação progressiva nos corpos será correlativa das estratégias às quais foi sendo 'vinculada. Desta plasticidade estratégica da sexualidade, nascerá a imagem protéica do sexo como algo por essência fugidio, inapreensível, cujos efeitos se verificam em toda parte, porque é simultaneamente presença e ausên-cia. A que vincular estes efeitos? O século XIX responderá: a "algo mais do que órgãos, localizações somáticas, funções, sistemas anátomo-fisiológiCos, sensações, prazeres; algo dife­rente e a mais, algo que possui suas propriedades intrínsecas e suas leis próprias: o sexo". O sexo não é, contudo, atributo do corpo, mas o resultado de uma elaboração no nível das idéias, determinada por sua vez pelo jOgo das estratégias do poder/ saber: é um objeto fictício, aparente unidade que fortalece o dispositivo da sexualidade ao abrir-lhe campoS sempre novoS de investimento. Por isto, Foucault não escreve uma história do sexo, mas uma história da sexualidade, que é também uma arqueologia da idéia de sexo e de tudo aquilo que a ela foi

anexado. O que é, então, a sexualidade? Ê o correlato de um dispo-sitivo. Um dispositivo é, por sua vez, uma montagem que fun­ciona em vários níveis, ancorado numa realidade que ele vai recobrir com uma rede de relações que se determinam mutua­mente. Ouçamos Foucault: "Trata-se da própriaproduçâo da sexualidade. Não se deve concebê-la como uma espécie de dado da natureza que o poder é tentado a pôr em xeque, ou como um domínio obscuro que o saber tentaria, pouco a pouco, desvelar". Cada termo aqui é pesadO com cuidado. A sexualidade não é um dado, mas um produto: portanto, não tem essência, tem história. Não está, mais precisamente, do lado da natureza, mas da cultura. Por isto, o poder não é aquilo que a subjuga, e sim aquilo que a constitui; o saber não a descobre, inventa-a. Continuemos: "A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede de superfície em que a estimulação dos corpos, a intensi­ficação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, en­cadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estraté­gias de saber e de poder".' Duas idéias aqui: a realidade sub-

(61 A vontade .. " p. 100.

. , • ,.1'

RECORDAR FOUCAULT 105

terrânea não é o sexo - pensar assim seria convalidar a noção de que o sexo é natureza - mas os corpos, os prazeres, as sensações: esta é a realidade sobre a qual vai se estabelecer o dispositivo de sexualidade. Esta não se encontra, portanto. no fundo de coisa alguma, mas na superfície: é uma teia esten­dida sobre os corpos, os prazeres e as sensações. Em seguida, as estratégias de poder e de saber que passam por estes pontos os tornam densos, os instrumentalizam, precisamente através dos procedimentos que constituem a sexualidade: e estes pro­cedimentos são heteróclitos, mas não por isso aleatórios: ope­ram em várias ordens, porém sempre em congruência com a atividade básica do poder. Este último incita, reforça, esti­mula, intensifica - ao contrário do que se poderia pensar a partir da imagem jurídica do poder e da hipótese da repressão sexual que lhe é correlata, segundo as quais sua função seria proibir, desestimular, constranger, silenciar.

A idéia central desta passagem é a de que as estratégias em questão produzem esta entidade denominada sexualidade fazendo incidir várias linhas de força sobre uma realidade até então submetida a outros vetores: o corpo. Ê a articulação destas linhas de força que engendra simultaneamente o dispo­sitivo e a sexualidade, no lugar de outro dispositivo até então (século XVIII) vigente sobre o corpo: o dispositivo da carne, com determinações próprias, relacionadas ao pecado e à peni­tência. A sexualidade substitui a "carne": esta poderia ser a formulação mais sintética do argumento de Foucault. Obvia­mente, a "carne" tampouco é um "dado de naturezaH

; é o equivalente da sexualidade na época anterior, que deste ponto de vista recua até o Concílio de Latrão (século XIII), e mesmo até os Padres da Igreja (século V). Os volumes seguintes da História da sexualidade mostraram o que a "carne" veio subs­tituir, sempre dentro da idéia do dispositivo: um regime do Corpo em que o essencial era o uso adequado dos prazeres, no contexto de uma "prática de si" e de uma "estilização da exis­tência". Vemos, assim, que a sexualidade é uma figura tran­sitória, uma ruga na superfície do corpo, que, este sim, per­dura através das metamorfoses e dos diagramas em que o en­quadraram as civilizações sucessivas.

O dispositivo de sexualidade vem, segundo Foucault, ar­ticular-se com um outro: o dispositivo de aliança, que regula as formas do matrimônio, do parentesco, da herança. Tem em

-'\1

"',

j

I !

l

106 UMA ARQUEOLOGIA INACABADA

comum com este último o fato de que seu domínio de extensão sejam os parceiros sexuais: mas aí cessa a semelhança entre eles. Uma grande oposição os separa: o que é pertinente para o dispositivo de aliança são as relações entre "parceiros com estatuto definido", enquanto o objeto do dispositivo de sexua· lidade são as "sensações do corpo, a qualidade dos prazeres, a natureza das impressões, por mais tênues ou impercepúveis que sejam". 7 Isto é, o dispositivo de sexualidade não se centra sobre o vínculo entre dois parceiros - vínculo que, legítimo ou ilegítimo, é o objeto do outro dispositivo - mas sobre o vínculo entre o sujeito e si mesmo, entre meu corpo e minha alma, entre as "impressões" e as "sensações". Dai sua natu· reza polimorfa: são vínculos variados e numerosos, cada um deles oferecendo um ângulO peculiar para a preensão pelo dis­positivo. Daí também a natureza autopropagadora deste dis­positivo: ao invés de simplesmente manter a trama das rela­ções, ele vai fazê-las proliferar, inventando novas formas de conjugação do corpo e da psique, penetrando nos corpos "de maneira cada vez mais detalhada" e "controlando as popula­ções de modo cada vez mais global". 8 Daí, por fim, sua pre­dileção pela técnica da introspecção: O exame de si por si é incentivado de modo cada vez mais profundo, as possibilida­des de autopercepção são cada vez mais minuciosas e exten­sas, à medida que o dispositivo vai se ampliando e incidindo sobre facetas cada vez mais extensas da subjetividade.

Mas isso não basta, nem é tão novo assim. O dispositivo de sexualidade não faz mais do que continuar, alargando-o, o dispositivo precedente, a pastoral da carne. E o que funda esta continuidade é o isomorfismo entre a concepção cristã e a concepção moderna do sexo: este é sempre posto como algo que se difunde porque se esconde, cuja causalidade é tanto mais perniciosa quanto mais generalizada, e tanto mais gene­ralizada quanto o sujeito ignora que a porta em si. Por esta razão, a verdade sobre o sexo não pode ser atingida pela in­trospecção: o risco de passar ao largo do essencial é grande demais. A introspecção tem que ser completada e regulari­zada pela confissão, isto é, pelo discurso dirigido a um outro, capaz de avaliar até que ponto o desconhecimento de si por si

(7) A vontade ... , p. 101. (8) A vontade ... , p. 101.

" . ..1· '

RECORDAR FOUCAULT 107

impediu o sujeito de atingir a verdade. Foucault enumera os domínios em que a confissão, originada na Idade Média, foi aos poucos se implantando como a técnica por excelência para produzir a verdade: na religião, na filosofia, na justiça, na pedagogia, na medicina, nas relações familiares e amorosas, no cotidiano e na solenidade: "Confessam-se os crimes, os pe­cados, os pensamentos e os desejos, confessa-se a infância; confessam-se as próprias doenças e misérias; confessa-se em público, em particular, aos pais, aos educadores, ao médico, àqueles a quem se ama". 9 E é pela via real da confissão, com seu postulado implícito segundo o qual o outro detém as cha­ves do sentido daquilo que confessei, que as estratégias de poder e de saber vão investir os corpos de concupiscência (no dispositivo da carne) ou de sexualidade (no esquema moder­no). O que torna o dispositivo de sexualidade, neste sentido, muito mais eficaz que o da carne, é que ele não se limita à prática da confissão, embora a herde do anterior como um instrumento precioso: serão inventados outros instrumentos, outras tecnologias, porém sempre a partir do mesmo princí­pio: o sexo é uma força obscura e terrível, que pode matar, aleijar, enlouquecer, imbecilizar, aqueles que não souberam administrá-lo como se deve, e, assim, não se auto-administra­rem como o querem as estratégias de poder.

É neste quadro, que como se pode ver é de uma comple­xidade considerável, que Foucault situa a psicanálise. A pri­meira frase do texto do qual parti afirma: "A história do dis­positivo de sexualidade, assim como se desenvolveu a partir da época clássica, pode valer como arqueologia da psicanálise". 10

Compreendemos agora por que: para que a psicanálise pu­desse tomar por objeto a sexualidade, era indispensável que ela se tivesse constituído; para que solicitasse e produzisse um discurso sobre a sexualidade, era preciso que a introspecção e a confissão se tivessem entrelaçado intimamente com ela; para que a sexualidade se transformasse no problema por excelên­cia, era necessário que o dispositivo a tivesse entranhado nos corpos e nas almas. Mas a psicanálise, por isto mesmo, não rompe este dispositivo: inscreve-se nele. "Rir-se-á da acusação de pansexualismo, que em certo momento se opôs a Freud e à

(9) A vontade ... , p. 59. (10) Vide nota 1.

,o,

....J

l'li'

I:

108 UMA ARQUEOLOGIA INACABADA

psicanálise. Mas os que parecerão cegos serão, talvez, nem tanto os que formularam, como os que rejeitaram com um simples gesto, como se ela traduzisse somente os temores de uma velha pudicícia. Pois os primeiros, afinal de contas, ape­nas se surpreenderam com um processo que começara havia muito tempo e que não tinham percebido que já os cercava de todos os lados; tinham atribuído exclusivamente ao gênio mau de Freud o que estava preparado há muito tempo, tinham-se enganado de data quanto à instauração, em nossa sociedade, de um dispositivo de sexualidade. Mas os outros erraram quanto à natureza do processo; acreditaram que Freud resti­tuía enfim, ao sexo, por uma reversão súbita, a parte que lhe era devida e que lhe fora contestada por tanto tempo; não viram que o gênio bom de F reud o colocava em um dos pontos decisivos, marcados, desde o século XVIII, pelas estratégias, de saber e de poder; e que, com isso, ele reiançava com admi­rável eficácia, digna dos maiores espirituais e diretores de consciência da época clássica, a injunção secular de conhecer o sexo e colocá-lo em discurso." li Freud, portanto, nem ins­taura o dispositivo de sexualidade nem o destrói: realiza um de seus possíveis. Nesta medida, modifica de certa forma a imagem deste dispositivo; faz com que a configuração anterior apareça como fundamentalmente repressiva; convalida a ver­são de que o século vitoriano fora de fato o inimigo do sexo e que o século freudiano o reabilitaria em seus direitos: não por acaso, à publicação da Traumdeutung (1900) se segue de perto o falecimento da rainha Vitória (1901) ... Nada mais falso. A psicanálise inova, decerto; mas inova dentro' do mesmo es­quema de forças. Há diferença, mas entre espécies, não entre gêneros.

Foucauit considera que a psicanálise desempenhou e de­sempenha, neste contexto, três "papéis": fixar o dispositivo da sexualidade sobre o sistema da aliança, opor-se à teoria da degenerescência, estabelecer uma tecnologia diferencial do sexo. 12 Não são papéis do mesmo tipo, nem cumprem as mes­mas funções. No primeiro, opera-se uma fixação dos dois dis­positivos um sobre o outro, e que acabará por inverter suas posições respectivas, mas fortalecendo sua soldagem: é o efeito

1111 A vontade ... , p. 149. 1121 A vontade ... , p. 123.

1 ' ,

RECORDAR FOUCAULT 109

da invenção do complexo de Bdipo. 13 O segundo vem refutar o conjunto perversão-hereditariedade_degeneração, no qual se apoiavam as tecnologias do sexo próprias do século XIX: tec­nologias que, a pretexto de prevenir a degeneração da classe dominante, propiciaram práticas de eugenia que, pela via das teorias raciais, vêm desembocar na selvageria nazista: é a teo­ria da sexualidade infantil que permite à psicanálise opor-se aos fascismos, 14 O terceiro cumpre uma função de válvula de escape: a prática psicanalítica visa atenuar os rigores da re­pressão, ali onde sua intensidade a tornou patogênica, isto é, nas classes dominantes. Ao lhes permitir articular na dimen­são da palavra o desejo incestuoso, ela se revela como uma "prática terapêutica reservada, que desempenhava em relação a outros procedimentos um papel diferenciador, num disposi­tivo de sexualidade agora generalizado. Os que tinham per­dido o privilégio exclusivo de se preocupar com sua própria sexualidade têm, doravante, o privilégio de experimentar mais do que outros o que a interdita, e possuir o método que per­mite eliminar o recalque", 15 B ao alívio da angústia, assim, que o dispositivo de sexualidade vai destinar a psicanálise.

Como se pode observar, cada um dos "papéis" a localiza num ponto diferente do dispositivo. O terceiro é o que mais comumente se vê a ela associado: por trás da pecha de eli­tismo, Foucauit reconhece que a análise pode diminuir o peso do recalque, ainda que somente o de alguns privilegiados. A segunda função vai ainda na direção da imagem admitida: a psicanálise é oposta aos racismos, porque desvincula o sexo da hereditariedade, isto é, do "sangue": a origem das perturba­ções psíquicas não será mais buscada nas taras dos antepas­sados, mas nos lances do jogo pulsional. Contudo, é o pri­meiro "papel" o essencial, e a ele Foucauit dedica uma bela página de A vontade de saber. Diz então que o dispositivo de sexualidade nasceu apoiando-se no sistema de aliança, no tempo da concepção cristã da "carne". A lei da aliança, na pastoral cristã, impunha à carne uma armação ainda jurídica: e o código do lícito e do ilícito. Ora, o que faz a psicanálise? Inventa o complexo de Êdipo, "A psicanálise, que parecia, em

1131 A vontade .... p. 106, 1141 A Vontade .... p. 113, 1151 A vontade, ... p. 122,

-.l

!ri

110 UMA ARQUEOLOGIA INACABADA

suas modalidades técnicas, colocar a confissão de sexualidade fora da soberania familiar, reencontrava, no próprio seio desta sexualidade, como princípio de sua formação, e chave de sua inteligibilidade, a lei da aliança, os jogos mesclados dos es­ponsais e do parentesco, o incesto. A garantia de que lá, no fundo da sexualidade de cada um, ia-se encontrar a relação pais-filhos permitia, no momento em que tudo parecia indicar o processo inverso, manter a fixação do dispositivo de sexuali­dade sobre o sistema da aliança. Não havia risco de que a se­xualidade aparecesse, por natureza, estranha à lei: ela só se constituía pela lei. Pais, não receeis levar vossos filhos à aná­lise: ela lhes ensinará que, de toda maneira, é a vós que eles amam. Filhos, não vos queixeis demais de não serdes órfãos, e de sempre encontrardes no fundo de vós mesmos vossa Mãe­Objeto ou o signo soberano do Pai; é através deles que tendes acesso ao desejo. ( ... ) Da direção espiritual à psicanálise, os dispositivos de aliança e de sexualidade, girando um em torno do outro, de acordo com um processo que hoje tem mais de três séculos, inverteram suas posições; na pastoral cristã, a lei da aliança codificava esta carne que se estava começando a descobrir e impunha-lhe, antes de mais nada, uma armação ainda jurídica; com a psicanálise, é a sexualidade que dá corpo e vida às regras da aliança, saturando-as de desejo." 16

É por isto, finalmente, que a psicanálise não é mais do que uma "astúcia da Razão": ao confinar a sexualidade nos estreitos limites do Édipo, ela reforça a fixação do dispositivo de sexualidade sobre o da aliança; é mesmo um dos instru­mentos principais, senão o principal, para a consolidação deste último. Isto explica por que a psicanálise acabou por se impor nas sociedades ocidentais: ela é um tigre de papel. Dada sua fit:lalidade estritamente conservadora, ela pode se permitir o alívio da angústia e a critica da degenerescência: são oposições localizadas, que não ameaçam o dispositivo de sexualidade, e muito menos as estratégias de poder/saber que o atravessam e por meio dele estendem o controle sobre corpos e corações. Ao contrário, ao fazer decrescer a severidade das interdições, ela obtém resultados melhores do que se as refor­çasse: o segredo e a dissimulação são essenciais à prática do poder. l7 Pensem, se quiserem, que a psicanálise liberta o sexo

1161 A vontade ... , pp.l06-107. 1171 A vontade ... , p. 83.

,. !

RECORDAR FOUCAULT li!

e do sexo: ela nada mais faz do que acorrentar vocês às ca­deias, agora invisíveis, do dispositivo de sexualidade, refor­çando todos os poderes que dele se servem. É este o centro da tese de Foucault, aquilo que comanda o restante do texto que citei em primeiro lugar. Agora compreendemos por que a psi­canálise precisa apresentar-se como ruptura radical com a re­pressão - sexual ou política, tanto faz - e por que nem ela, nem seu prolongamento reichiano, são capazes de romper o dispOSitivo de sexualidade ou de fornecer a chave de sua inteli­gibilidade: ninguém pode saltar por cima de sua própria som­bra. Freud surgiu num momento e num lugar já demarcados desde o século XVIII, afirma Foucault, e relança a ordem se­cular de confessar o sexo. Na superfície, revolução; na ver­dade, diferença específica - e inessencial.

* * * Até aqui, procurei expor o argumento de Foucault, reali­

zando um percurso análogo ao seu: localizar a psicanálise no livro que se apresenta como a sua arqueologia. Disse atrás que o pensamento de Foucault é sinuoso e sutil; mas não se pode acusá-lo de obscuridade. Creio terem ficado claras as coorde­nadas em que se desenvolve esta arqueologia. São elas: formu­lação de uma teoria capilar do poder; critica da imagem juri­dica e da idéia de lei como forma substancial deste poder; de­monstração de que há muito se fala do sexo no Ocidente; arti­culação destes três movimentos por meio da idéia de confis­são; formulação dos mecanismos e razões de ser do dispositivo de sexualidade, originados de sua tripla fonte - o dispositivo de aliança, a pastoral da carne e a inscrição do sexo em refe­renciais médicos, jurídicos e pedagógicos que vêm substituir <)

registro eclesiástico a partir do século XVIII. Dadas estas con­dições, a psicanálise intervém para atenuar certos excessos da repressão, no mesmo movimento pelo qual repõe o dispositivo que parecia a ponto de erodir: na verdade, ela apenas apara suas arestas mais salientes, contribuindo com isto para torná-lo ainda mais sólido na mesma medida em que o torna mais macio. Ela abre assim novas e amplas avenidas para a atuação do dispositivo de sexualidade, e, é oportuno repetir, das estra­tégias de poder e de saber a cujo serviço ele se encontra.

Cabe agora a pergunta: em que medida Foucault tem ra­zão? Será a psicanálise idêntica ao que ele afirma? Uma saída

11 I

i

ti P ~I !~

'~'

:'1.

, I

I:,~ ;"'1,;

112 UMA ARQUEOLOGIA INACABADA

ingênua, neste ponto, seria a de nos lançarmos à defesa da psicanálise, ao elogio de seuS poderes, ao panegírico de sua solidez teórica e de sua eficácia terapêutica. Foucault sorriria disto, e com razão. Ele não quer denegrir a psicanálise; quer traçar sua arqueologia, e a arqueologia não é jamais polê­mica. Ao situar-se frente a objetos do saber em posição não horizontal, mas vertical, ela pretende encontrar as condições de possibilidade que tornaram possível sua emergência na espessura da História, e não discutir se de fato existem, se as disciplinas que deles falam os abordam corretamente, ou se se equivocaram aqui e ali. De onde a inanidade de uma "refu­tação" de Foucault a partir da eventual verdade da psicaná­lise: é precisamente tal verdade que é posta entre parênteses pela empresa arqueológica. Que dela a imagem do psicana­lista e a consistência da psicanálise não saiam intactas, pouco importa: tanto melhor, se algumas ilusões foram dissipadas ... Não: por este caminho, SÓ se poderá confirmar, ainda que a

contrario, a posição de Foucault. Então, como preceder? O fato é que F oucault só pode ser

questionado em seu próprio terreno. E aqui, mais uma cau­tela: tampouco se deve situar a discussão no campo dos fatos históricos. Esta é a seara do historiador; saber se realmente as coisas se passaram como pretende Foucault. De minha parte, não vejo por que contestá-lo aqui: creio que seu livro demons­tra suficientemente que a "hipótese repressiva" está errada, que de fato o Ocidente fala muito da sexualidade, e assim por diante. Talvez sejam possíveis outras interpretações deste pro­cesso; mas não é sobre isto que o psicanalista é chamado a se pronunciar; mesmo porque, de seu ponto de vista, a abundân­cia discursiva também precisa ser interpretada. Falar muito do próprio silêncio - eis algo com que ele se defronta várias vezes por dia, a cada vez que um obsessivo cruza a porta do consultório. Tampouco nesta área, portanto, cabe questionar

Foucault. Mas cabe questioná-lo, e vigorosamente, quando pre-tende que A vontade de saber constitua uma "arqueologia da psicanálise", ainda que somente a título indicativo, posto que se trata de uma introdução. Introdução a uma História da sexualidade, que deveria traçar o percurso desta entidade do mundo antigo aos dias de hoje, no bojo de um projeto mais amplo: o de pesquisar a origem do sujeito. Ora, cabe pergun­tar _ e agora sim, legitimamente - pelas razões que condu-

, RECORDAR FOUCAULT 113

ziram Foucault a esta escolha. E isto em três dimensões: trata­se, de fato, de uma arqueologia? Trata-se, de fato, de uma arqueologia da psicanálise? E será que a arqueologia da psi­canálise é, de fato, um capítulo da história da sexualidade? É ao estudo destes três problemas que gostaria de dedicar o res­tan te desta conferência.

Com efeito, que estranha arqueologia! O leitor que ti­vesse percorrido a Arqueologia do saber e, talvez, ingenua­mente, esperasse ver aplicada à psicanálise a bateria metodo­lógica ali montada, experimentaria uma formidável decepção. Em A vontade de saber, nada de "formações discursivas", nem um traço das "práticas discursivas", sequer um vestígio do "umbral de epistemologização". Não sorriam: o percurso do livro de 1969, por intrincado que seja, propõe um tipo de análise centrado sobre a diferença e a descontinuidade, como se lê à página 82: "A arqueologia busca definir estes próprios discursos, enquanto práticas que obedecem a regras; ela é uma análise diferencial das modalidades de discurso" .18 Me­diante a crítica das noções de disciplina, de autor e de obra, Foucault isola o nível propriamente arqueológico: o das regras de formação dos enunciados de uma formação discursiva, nos quatro âmbitos em que ela se desdobra: construção dos obje­tos, modalidades da enunciação, produção dos conceitos e es­colha dos temas. 19 Uma vez efetuado este percurso - estou resumindo muito rapidamente - trata-se de passar ao nível em que a formação discursiva se embréia no pré-discursivo, isto é, no campo das instituições: aqui surge o conceito de prática discursiva. O discurso não resulta de uma combina­tória imanente; inscreve-se no social e o social se inscreve nele, como superfície de emergência dos objetos, como lugar de exercicio da função enunciativa por certos sujeitos, como ins­tância de determinação das escolhas temáticas. 2Q Ora, o que permite agrupar enunciados em formações discursivas, e de­terminar para elas seu estatuto de práticas discursivas? É pre­cisamente o jogo das noções de diferença e de descontinui­dade. É um conjunto de transformações simultâneas, em vá­rios níveis (daí a importância da análise diferencial e da noção

(181 L 'archéologie du savoir, Paris, Gallimard, 1969, p. 82. (19) L'archéologie ... , p. 53. (20) L'archéologie ... , pp. 5l;, 70090.

:~I' ,

114 UMA ARQUEOWGIA INACABADA

de embreagem), que permite o surgimento de uma formação ou de uma prática discursiva, resultando no desaparecimento de certos objetos e de certas maneiras de falar destes objetos, e na emergência de outras positividades, com seu cortejo de re­gras de enunciação, de conceptualização, etc. O que a arqueo­logia visa fazer é descrever estes sistemas de transformações, que concernem às quatro esferas dos objetos, dos SUjeitos enunciadores, dos conceitos e das escolhas temáticas. Fou­cault adverte que não se deve fetichizar a descontinuidade, atribuindo-lhe o mesmo papel até então emprestado à conti­nuidade; 21 mas é bem verdade que, trabalhando com a noção de ruptura, opondo-se à história das idéias, e definindo o dis­curso como "fragmento de história, unidade e descontinui­dade na história", 2~ é conduzido a privilegiar a categoria da descontinuidade como modo de sucessão, e a se debruçar so­bre os fatores que poderiam gerar a ilusão da continuidade; precisamente, os postulados antropológicos do autor, do livro e da discip lina.

Este excurso pela Arqueologia do saber não é gratuito: mostra que o trabalho de A vontade de saber não obedece, de forma alguma, aos cânones da arqueologia. E isto não apenas no referente à psicanálise: no próprio dispositivo de sexuali­dade, que é a categoria central construída por Foucault, o pivô do argumento é a idéia da continuidade: continuidade entre o dispositivo da carne e o da sexualidade - fundamen­tada na função comum que ambos desempenham como veí­culos das estratégias de poder e de saber - e continuidade entre as técnicas de confissão presentes num e noutro. "His­toricamente, aliás, foi em torno e a partir do dispositivo de aliança que o de sexualidade se instalou. A prática da peni­tência e, em seguida, do exame de consciência e da direção espiritual foi seu núcleo formador ( ... ); depois, pouco a pouco, com a nova pastoral - e sua aplicação nos seminários, colé­gios e conventos - passou-se de uma problemática da relação para uma problemática da 'carne', isto é, do corpo, da sensa­ção, da natureza do prazer, dos movimentos mais secretos da concupiscência, das formas sutis da deleitação e do consenti­mento. A sexualidade estava brotando, nascendo de uma téc-

(211 L 'arehé%gie .... p. 228. (221 L 'arehé%gie ...• p. 153.

" ,

, RECORDAR FOUCAULT 115

nica de poder que, originariamente, estivera centrada na aliança." 23 Observem o estilo das frases: "a partir", "depois, pouco a pouco", "passou<se" ... Estamos diante de_uma tran­sição imperceptível, não mais frente às bruscas rupturas a que nos habituara a arqueOlogia. Mas o essencial não está aqui: está no agrupamento das etapas. Existe um Ponto de inflexão; só que é localizado entre as práticas da penitência e da direção espiritual, de um lado, e a pastoral da carne, de outro. Mesmo esta inflexão se dá na forma do contínuo: o exame de cons­ciência foi o núcleo formador do disPositivo de sexualidade. O que assistimos, pois, é a um cruzamento de níveis de análise, cruzamento pelo qual, segundo o ponto de vista, o conjunto penitência-exame de consciência-direção espiritual é o núcleo formador do conjunto problemática da carne-dispositivo de sexualidade, enfatizando obviamente a continuidade entre os dois conjuntos, ou ao contrário, verifica-se uma ruptura entre eles, porque o primeiro - penitência-exame de consciência_ direção espiritual - toma por ângulo da incidência o sexo como "suporte de relações" (comércio proibido ou permitido), enquanto o segundo vai fazer surgir O corpo erógeno como objeto de suscitação e de controle. De todas as formas, é es­sencial notar que nas duas vertentes é estabelecida uma conti­güidade entre a pastoral da carne e o dispositivo de sexuali­dade. "A sexualidade estava brotando ... " E o fundamento desta contigüidade é que o ponto de incidência do poder/saber é o corpo.

Nas entrelinhas deste texto, percebemos que o que inte­ressa a Foucaultjá não é mais a análise minuciosa das forma­ções ou práticas discursivas sugeridas na ArqueOlogia do Sa­ber. Neste nível, seria preciso esmiuçar vários níveis ou faixas - a formação dos objetos "carne" e "sexualidade", as regras de enunciação que definem sujeitos competentes para falar destes objetos, o tipo de conceptualização próprio à pastoral e à "ciência sexual", etc. Ora, nada disto é feito aqui: temos, ao contrário, uma formidável condensação, efetuada através do "pouco a pouco", do "passou-se", do "depois" _ condensa_ ção cujo resultado é a inclusão da sexualidade na linhagem da "carne". E não pode ser de outro modo, já que o objetivo de Foucault não é mais o de escrever uma arqueologia _ apesar

(231 A Vontade .... p. 102.

I I:

,11

I: I!

UMA ARQUEOLOGIA INACABADA

da declaração explicita em contrário da página 122 - mas o de retraçar uma genealogia. O verdadeiro objeto de A vontade de saber é a teoria do poder, a crítica da sua concePção jurí­dico-discursiva, e nos damos conta de que o tema da sexuali­dade é o meio pelo qual esta critica pode ser efetuada ao mesmo tempo em que se substantiva a hipótese do poder "ca-

Muito bem. Genealogia da psicanálise, seja, através de

116

pilar" . uma história da sexualidade, concebida como "ponto de pas­sagem particularmente denso pelas relações do poder" e não mais como "ímpeto rebelde ao poder" .24, Esta passagem se faz através da erotização do corpo: o que é pertinente para o dis­positivo de sexualidade - e que o distingue do dispositivo de aliança _ são" as sensações do corpo, a qualidade dos pra­zeres, a natureza das impressões" (p. 101). A sexualidade de que fala Foucault, como se vê, concerne em primeiro lugar e de forma capital ao corpo. As vias de implantação da sexuali­dade, OS "grandes conjuntos estratégicos que desenvolveram dispositivos de saber e de poder sobre o sexo", 2S são todos, sem exceção, procedimentos para impregnar e dominar os corpos: a histerização do corpo da mulher, a pedagogização do sexO infantil, a socialização das condutas de procriação, a psiquiatrizaçãO do prazer perverso foram OS meios através dos quais as estratégias do poder "percorreram e utilizaram o sexo das crianças, das mulheres e dos homens" , e através dos quais as estratégias de saber desenharam as figuras privilegiadas da .. ciência sexual": a mulher histérica, a criança masturbadora, o casal ma1thusiano e o adulto perverso. 26

É neste dispositivo de sexualidade e neste projeto de do-minar o corpo que Foucault vai incluir a psicanálise. Aparen­temente, a operação é justificada. A hipótese repressiva não saúda, na psicanálise, o momento inaugural da libertação do sexo? E, mais sobriamente, não foi a psicanálise que tomou por objeto próprio o estudo da sexualidade? Não foi ela que colocOU no âmago do homem a pulsão sexual? É bem nesta linha que Foucault tematiza o aporte de Freud, como ,fica claro pela alusão ao seu "gênio bom" (p. 149 - texto já ci-

(241 A vontade .. " p. 98. (251 A vontade ... , p. 99.

"'

(261 A vontade .... p. 100. ..... ". ~ ~. ': ~ ...........

oi 7' , '" ~

RECORDAR FOUCAULT 117

tado). Mas cabe perguntar se a sexualidade de que fala Fou­cault é a mesma de que fala a psicanálise: questão embara­çosa, que ele jamais se coloca, e que, no meu entender, não pode colocar. Porque considerar a teoria psicanalítica da se­xualidade pelo que ela é obrigaria Foucault a romper a conti­nuidade, essencial para seu argumento, entre a pastoral da carne e o dispositivo de sexualidade. Ou melhor, a repensar este dispositivo sob o prisma de uma arqueologia que já não deseja praticar.

A inclusão da psicanálise no dispositivo de sexualidade é obtida por Foucault ao preço de uma omissão capital. O leitor familiarizado com a psicanálise não deixará de se admirar de que, emboraA vontade de saber se apresente como (entre ou­tras coisas) uma arqueologia da disciplina freudiana, nela não se mencione uma única vez o termo inconsciente. E, se pas­sada esta surpresa, o leitor se interrogar sobre as razões de tão estranha negligência, perceberá que ela é solidária de uma série de deslizamentos e de reduções, ao cabo das quais - e somente ao cabo das quais - a psicanálise poderá surgir como a forma moderna pela qual se perpetua a confissão da sexuali­dade.

Primeira redução: da prática real e efetiva da psicanâlise à forma vazia do "murmúrio sobre o divã". Tendo abando­nado o projeto arqueológico, Foucault se dispensa de exami­nar a "prática discursiva" da psicanálise no que ela tem de específico: 11 aná1ise é aná1ise do inconsciente e da transferên­cia. Ê por este motivo que se distingue de uma mera sexote­rapia verbal. Mas, objetarão vocês, trabalhar com estas no­ções seria compactuar com aquilo mesmo de que Foucault precisa se desprender, seja na linha arqueológica, seja na pers­pectiva genealógica: a concepção que a psicanálise tem de si mesma. Contudo, conceder-me-ão que é de uma superficiali­dade desconcertante pretender realizar a arqueologia ou a genealogia de algo cuja singularidade é colocada a priori entre parênteses. Foucault poderia, até, demonstrar que as idéias de inconsciente e de transferência resultam do solo da cultura ocidental, que elas são veículo de estratégias de poder, que nada possuem de particularmente original. Talvez não fosse tarefa simples; mas admitamos que pudesse ser cumprida. Neste caso - e somente neste caso - eu concordaria em ver em seu livro uma arqueologia/genealogia da psicaná1ise, ou em considerar que as teses ali expostas concemem ao núcleo

;:;1

11,1.1

'1'

1:1 IJ

I':

li!

I ..t, :

I' , I

I ~, 1,1:,- ", J. 1! ,i-tª 'I I'" I,

ir

118 uMA ARQUEOLOGIA INACABADA

da teoria e da prática psicanalíticas. Entretanto, F oucault não vai por esta via: o que faz da psicanãlise psicanálise, "aquilo sem o que ela não pode ser nem ser concebida", é evacuado sem qualquer explicação, e das condições essenciais que tor­nam possível a análise não resta vestígio algum em seu argu-

mento. Segunda redução: da psicanálise à obra de Freud, e desta obra a uma teoria da sexualidade. Tendo apagado do hori­zonte o que define a psicanãlise como prática, resta-lhe a teo­ria freudiana; é nesta que vai ser operada uma nova epoché, isolando a teoria da sexualidade daquilo a que está umbilical­mente vinculada: o conceito de inconsciente. Por que é neces­sário este segundo golpe de tesoura? Porque, para Foucault, o domínio do dispositivo de sexualidade é o corpo. Ora, a psica­nálise não considera a sexualidade como uma entidade corpo­ral; ela tematiza uma psico-sexualidade, e para isto trabalha com a noção de inconsciente. portanto, para fazê-la entrar no leito de Procusto do dispositivo de sexualidade, no qual cumprirá OS três papéis mencionados atrás, Foucault neces­sita imperiosamente amputá-la de seu conceito basilar (o de inconsciente), a fim de que o "resto" desta operaçãO possa ser incluído na dimensão da sexualidade, tal como a define. É por esta razão que insiste tanto na questão dos prazeres e das sen­sações corporais, submetidas a um esquadrinhamento cada vez mais cerrado, que resulta simultaneamente em sua proli­feração acelerada no real e em sua anexação progressiva às técnicas de controle. O poder produz precisamente aquilo por cujo intermédio irá se afirmar: larvatus prodeo.

Mas, se é à força de amputações sucessivas na concepção psicanalitica da sexualidade que Foucault vai escavar a ar­queologia da psicanálise, O leitor tem ao menoS o direito de indagar se é mesmo da psicanálise que se está falando. Infe­lizmente, não é. A sexualidade, em psicanálise, não se reduz à "qualidade dos prazeres" nem à "natureza das sensações". Em alguns belos estudos reunidos sob o título Vida e morte em psicanálise, 27 Jean Laplanche disseca a problemática da sexualidade em termos que mostram sua infinita complexi­dade, seu caráter traumático para o ser humano, sua inscriçãO

(27) Jean Laplanche, Vie el mor! en psychana/yse, Paris, Flammarion,

1970, em particular os capítulos I e 11.

,

1',

RECORDAR FOUCAULT 119

num conflito psíquico que lhe outorga sentido e a faz objeto de defesas, e que em última instância determina sua preensibi­lidade por uma prática que opera com a linguagem e sua inte­ligibilidade por uma teoria que tematiza esta prática. A sexua­lidade é, em psicanálise, absolutamente incompreensível sem o recurso a idéias como seu apoio sobre a função orgânica, sua emergência como efeito marginal de excitações corporais -aqui vemos do que Foucault poderia ter falado, mesmo na perspectiva de seu "dispositivo" - mas é igualmente incom­preensível sem o recurso a conceitos que se afastam do registro corporal, em particular os de dupla temporalidade (apres­coup), de fantasia inconsciente, de reprimido por excelência, de instrumento e veículo da subjetivação. Despojada destas coordenadas, a sexualidade pode ser o que Foucault bem en­tender, masjá não terá o direito de fazer crer que sua história da sexualidade é uma arqueologia da psicanãlise.

Terceira redução: a que inclui a psicanãlise na linhagem das técnicas de confissão. Aqui o alvo é aquilo que define a fala na teoria e na prática psicanalíticas: a livre-associação. Limitada a uma "injunção para eliminar o recalque", a livre­associação se dilui a ponto de ser desfigurada, e isto pela ra- . zão muito simples de que Foucault aboliu de seu horizonte a idéia de inconsciente. O convite a dizer tudo o que lhe ocorre não tem por objetivo que o paciente confesse seus segredos, tanto mais que, destes segredos, ele nada sabe nem quer sa­ber. A livre· associação não visa a catarse ou a purgação: ela é instrumento para desfazer a coerência das imagens e das re­presentações, para retirar ao sujeito que fala seus pontos de apoio na lógica e na comunicação, a fim de que, ao procurar recompô-los para aparar a angústia, ele venha a desencadear seu trajeto na transferência. E é por este motivo que, à regra da livre-associação, responde do lado do analista a regra simé­trica da atenção flutuante. Longe de querer flagrar a dissimu­lação para fazer surgir um saber culposo, o que estabelecem estas regras constitutivas da prática psicanalítica é a dissolu­ção da atmosfera confessional, cujo fundamento é a fantasia de que o paciente sofre porque é culpado e que o analista, ao descobrir a causa do seu sofrimento, pode absolvê-lo desta culpa. A fantasia da confissão é uma, entre outras, das moda­lidades da resistência; à psicanálise não cabe instaurá-la -ela já vem no bojo dos cenários e configurações transferenciais

I

~. .. "I

I!; 11

120 UMA ARQUEOLOGIA INACABADA

- mas interpretá-la, e com isto, talvez, descobrir sua gênese e seu sentido, como aliás deve ocorrer com as demais manifes­tações da resistência e da transferência. Não existe injunção psicanalitica para eliminar o recalque, e, se existisse. não teria efeito algum: nenhuma sugestão pode desfazer a trama das defesas. Foucault é levado a supor que a análise propõe tal injunção porque ignora deliberadamente o processo psicanali­tico, para deixar à mostra apenas seu envoltório mais super­ficial: o fato de que um fala e o outro escuta, e de vez em quando intervém. A singularidade desta situação, a peculiari­dade desta escuta, a finalidade da interpretação - que con­sistem em tornar dispensável, no limite, a figura empírica do psicanalista - são inteiramente silenciadas.

Vemos, portanto, que bem pouco resta da psicanálise após estas reduções. Não contesto a Foucault o direito de to­mar da psicanálise o que bem entender, ou a legitimidade de uma arqueologia/ genealogia da psicanálise, se ele a considera indispensável para identificar os mecanismos de constituição do sujeito no pensamento ocidental. Se a psicanálise não fosse mais do que a efetuação de um dos possíveis do dispositivo de sexualidade, seria cabível exigir de Foucault que tivesse de­monstrado no que ela se limita a uma variação do Mesmo. Ela, porém, e não sua prima pobre, a "sexoterapia verbal" 28

que cobre de sarcasmos. Mas, precisamente, para realizar tal empreendimento Foucault teria que pensar a sexualidade tal como a psicanálise a define (sem, evidentemente, precisar aderir a esta definição nem muito menos refutá-la: a arqueo­logia não é polêmica). Penso que, se o tivesse feito, não pode­ria manter o postulado de continuidade que subjaz a seu livro. Pois a psicanálise não é confissão nem confissão de sexuali­dade tal como Foucault a entende; ela a situa como conteúdo psíquico inconsciente, e isto faz uma considerável diferença.

. E então? O psicanalista poderia respirar aliviado: tudo não passaria de um formidável equívoco. Mas não caminhe­mos tão depressa. Nada mais estúpido do que regressar às velhas certezas: houve e há repressão sexual, a psicanálise é a grande libertadora do sexo, psicanalisar é ser militante de uma revolução silenciosa, mas que acabará por triunfar ... De

(28) Maurice Dayan, "D'un ci·devant sujet", Nouvelle Revue de Psy­chana/yse, n? 20, p. 99.

. -

1 •

RECORDAR FOUCAULT 121

nada serviria nosso laborioso percurso, se fosse para chegar a semelhantes conclusões. Se o livro de Foucault não realiza a promessa de uma arqueologia da psicanálise, posto que o que nele tem este nome é uma caricatura dela, disto não se segue que seja impossível a sua arqueologia, nem desnecessária a sua história. Mas, antes de entrar neste terreno, gostaria de precisar um ponto: FoucauIt contraiu uma dívida com a psi­canálise. cuja sombra, afirmei, não cessou de acompanhá-lo durante todo o seu trajeto; e, embora não me seja possível mostrar isto com o detalhe desejável, quero assinalar dois pon­tos nos quais me apóio para formular esta idéia.

A noção-chave da Arqueologia do saber é a idéia de em­breagem. Com este termo, Foucault designa um tipo de vín­culo entre o plano dos saberes e o plano das instituições so­ciais, econômicas e políticas que os tornam possíveis. A enor­me vantagem deste conceito, cuja operação nos livros seguin­tes é decisiva (embora o termo tenha desaparecido), consiste em pensar a relação de ordens heterogêneas sem recorrer à imagem do reflexo, à mística da expressão nem à hipótese de uma causalidade linear: os saberes não são efeitos, mas or­dens de discurso que não se reduzem à derivação direta do social. Por exemplo, "a análise arqueológica não quer mostrar como a prática política determinou o sentido e a forma do discurso médico, mas como e a qual título ela faz parte de suas condições de emergência, de inserção e de funciona­mento". 29 Ora, o modelo deste tipo de vínculo é o conceito freudiano da An/ehnung, do apoio das pulsões sexuais sobre o funcionamento orgânico, tal como é descrito nos Três ensaios: chupar o dedo não é reflexo, nem produto, nem conseqüência, nem expressão do ato de mamar, mas de flexão deste ato e momento constitutivo da emergência da sexualidade. É no desvio da função que nasce o sexual - desvio que caracteriza seu nascimento como auto-erótico - e disto surge, no plano da teoria, uma contribuição filosófica original por parte de Freud: um tipo inédito de articulação, que não achata um termo sobre o outro, não os faz ligarem-se como um mais e um menos, nem os apresenta na alternativa clássica da implicação ou da exterioridade. FoucauIt se servirá abundantemente

1291 L 'archéologie .... p. 213.

i

I, I.

I:

'I

,j l

",j

122 UMA ARQUEOLOGIA INACABADA

deste modelo, ao buscar os elos que unem obliquamente or­dens heterogêneas e que cumpre manter em sua heterogenei­dade: saberes e instituições, teorias e técnicas, objetos de co­nhecimento e disciplinas cujo alvo é o controle pela normali­zação. É por aqui que introduz na velha idéia kantiana das condições de possibilidade um viés caracteristico, e que, a meu ver, é claramente definido pela idéia de embreagem. Em A vontade de saber, o termo não aparece, mas o conceito é oni­presente: é por este mecanismo que se articulam o investi­mento dos corpos pela erogeneização e a produção dos "obje­tos" da sexologia, da pedagogia, da jurisprudência e da psi­quiatria do século XIX.

O segundo empréstimo feito por Foucault aos esquemas psicanaliticos é a idéia segundo a qual a sexualidade se im­planta de fora para dentro, e que nela reside um dos momen­tos do processo de subjetivação, isto é, da constituição desta figura moderna que é o sujeito. O modelo aqui é, obviamente, a hipótese da sedução, não mais concebida como momento datado e como cena única, mas como processo difuso e pon­tual, cuja ponta' de lança são os cuidados corporais dispensa­dos pela mãe ao bebê. Foucault, certamente, faz desaparecer o termo "sedução", e coloca no seu lugar as estratégias de poder; com o que amplia consideravelmente, e a meu ver com toda a razão, o escopo deste mecanismo. Ao transformá-lo em veículo privilegiado da atuação do poder, encontra um exce­lente ponto de apoio para criticar a concepção maciça do po­der como uno e como repressor, propondo em lugar disso a idéia da sua capilaridade essencial. Mas aqui, devido às ne­cessidades de sua argumentação - as reduções que enumerei _ corta o laço interno que, em Freud, mantém de pé o con­ceito de sexualidade: para a psicanálise, o que a mãe (ou, tanto faz, o socius através da mãe) instila no corpo e na psique do bebê são fantasias, que irão constituir a realidade psíquica deste bebê, e serão por ele metabolizadas tanto no registro narcísico quanto no registro objetaI. E, se ela tiver êxito nisto, desencadearÍ410 bebê o proce~so de subjetivaçãol socialização que o conduzirá, através do Edipo e do complexo de castra­ção, a escapar da psicose e a se constituir num indivíduo do­tado de espaço psíquico e de ação social. É assim que, para Freud, a sexualidade pode surgir simultaneamente como "perversão da função" (Laplanche) e como "traumatismo in-

o ,

,

l'

RECORDAR FOUCAULT 123

terno-externo", duas faces de um mesmo movimento, pelo qual o sujeito ultrapassa a biologia e se inscreve na cultura. Vê-se bem, agora, por que Foucault precisa deformar a teoria psicanalitica da sexualidade e a prática psicanalitica do acesso à sexualidade: para fazê-la caber num dispositivo de investi­mento e controle do corpo (ainda que este controle proceda pela incitação e pela estimulação), era necessário fazer a eco­nomia da face inconsciente, portanto psíquica, do processo de subjetivação por meio da sexualização. A sexualidade está, na verdade, aquém e além do lugar em que Foucault a situa. Não é apenas correlato de um dispositivo de dominação: é veículo de hominização. Não é apenas segredo a ser confessado: é constitutiva de um espaço psíquico no qual segredos - e ou­tras formações psíquicas também - virão se alojar. E é exata­mente por isto que a pseudo-objeção levantada por Foucault para melhor assentar sua tese - a de que o sexo como "reali­dade" precederia a "sexualidade" - não é convalidada pela psicanálise, e portanto sua refutação em nada a compromete.

Mas, então, para que serve, do ponto de vista da psica­nálise, o percurso de A vontade de saber? Já o disse: para su­gerir a necessidade de uma arqueologia da psicanálise enfim digna deste nome. Mas que não se limite a mostrar que, longe de flutuar num vazio a-histórico, ela é atravessada de ponta a ponta, como teoria, como prática e como instituição, por fato­res de ordem pré e extrapsicanalitica. Porém, não se pode re­duzi-la a esta determinação, que, afinal de contas, vale para qualquer prática, para toda teoria e para não importa qual instituição. Há que levar em conta o que, para além destes traços que a psicanálise compartilha com todas as figuras da realidade social, a torna especifica e singular entre elas. E, igualmente, há que considerar que a determinação não se faz em mão única, do socius para a psicanálise: existe igualmente o efeito de retorno, nos planos prático, teórico e institucional, da psicanálise sobre o socius. Ê uma formação da cultura, mas também crítica desta cultura e das imagens por ela for­jadas acerca de si própria. O que permite à psicanálise ser estas duas coisas ao mesmo tempo? Eis a pergunta que gosta­ria de ter visto respondida por Foucault. Ou, se a idéia de que a psicanálise é também critica da cultura que a fez nascer for apenas uma ilusão, que se tivesse demonstrado no que e por que ela o é. Seja dito mais uma vez: que A vontade de saber

~ ~'

l

124 UMA ARQUEOLOGIA INACABADA

contorne a psicanálise sem jamais abordá-la, que desfigure o conceito psicanalítico de sexualidade para enfiá-lo à força numa seqüência artificial, não significa que a disciplina freu­diana veio de Marte nem que tematize a sexualidade a partir de um relâmpago libertador. Precisar as relações da teoria, da prática e da instituição social que a psicanálise é com a reali­dade igualmente social na qual se enraíza - e sem a qual não haveria psicanalistas, pacientes, teoria do inconsciente e muito menos teoria da sexualidade - não implica nem caricaturá-la nem idealizá-la, como a chave que permite explicar todos os fenômenos humanos e tudo destes fenômenos. Implica, isto sim, questioná-la a fundo, traçar a rede que lhe serve de suo' porte e mostrar como se inscreve, alterando-a, nesta rede, obrigando-a a se rearticular e absorvendo por sua vez os efei­tos desta rearticulação. Só que, para tanto, é preciso no mí­nimo renunciar à idéia de que ela se reduz a uma teoria da sexualidade que gostaria de brincar de revolução, ou a uma versão laicizada do sacramento da penitência.

Pode ser que, em seus últimos livros, Foucault tenha se aproximado mais - ainda uma vez, de modo tangencial - da inspiração psicanalítica, pelo caminho de uma ética a ser construída. Neste campo, a psicanálise não detém monopólio algum. Contudo, é impossível desconhecer o parentesco de sua visada com o que, numa bela entrevista ao Magazine Lit­téraire. Foucault designa como o objetivo de seu trabalho inte­lectual: "se deprénde de soi-même". "Que esta mudança não tome a forma de uma iluminação, nem de uma permeabili­dade a todos os movimentos da conjuntura; gostaria que ela fosse uma elaboração de si pois si, uma modificação lenta e árdua pelo cuidado constante com a verdade. " 30 É certo que, para Foucault, é o trabalho intelectual que deve realizar este desígnio; é certo também que nem sempre a psicanálise está à altura de suas próprias ambições. Contudo, o psicanalista bem poderia subscrever esta frase, e tomá-la como emblema de seu propósito, como imagem adequada para seu esforço de lenta e laboriosa abertura de si a si pelo caminho da abertura de si ao outro, e do outro a si próprio.

(30) Entrevista a François Ewald, "Le souci de la vérité", Magazine Ut· téraire, maio de 1984, p. 22.

i

i

RECORDAR FOUCAULT 125

Foucault reabre questões, seu texto formiga de idéias, seu pensamento destrói certezas e semeia a inquietação. Vale a pena seguir seus passos: talvez descubramos que "a" psicaná­lise não existe, que este é o nome dado a um dispositivo histó­rico multifacetado, que, enraizando-se na cultura, na clínica e na imaginação teorizante, também se refrata e se decompõe, incidindo de múltiplas formas sobre o social e dele recebendo, igualmente de múltiplas formas, as determinações de sua re­flexão. A história da psicanálise, em seu sentido forte, ainda está por fazer. Neste sentido, talvez a arqueologia que Fou­cault não chegou a realizar, mas cuja necessidade permanece imperiosa, possa ser articulada como um escrutínio do pas­sado da psicanálise enquanto teorias - no plural _ enquanto práticas - no plural - e enquanto instituições inventadas por nossa sociedade - sempre no plural. Foucault, quem sabe, apreciaria este projeto; a nós, seus leitores psicanalistas, cabe agarrar nossas pás e começar a escavar.

A loucura antes da história João A. Frayze-Pereira*

A questão que escolhi trazer para discussão emerge da leitura de Histoire de la fotie à l'âge classique. É uma questão que percorre esse texto de uma ponta a outra, podendo ser percebida logo no seu início. No prefácio da 1~ edição (1961), F oucault define o projeto do livro: não se trata de uma história da Psiquiatria, mas de uma "arqueologia do silêncio". Trata­se da recuperação de um processo que tem início no Renas­cimento, quando, livre e audível, a loucura logo é submetida e em pouco tempo emudecida pela era clássica. Porém, esse si· lêncio sobre o qual a Psiquiatria, "monólogo da razão sobre a loucura", veio a se estabelecer posteriormente, não significa destruição, supressão radical, mas, como diz Foucault, "ape­nas uma ocultação" (H. F., p. 39).' Surge, assim, a questão: o que essa ocultação efetivamente oculta? Dirá F oucault no primeiro capítulo do livro - "a experiência trágica e cósmica da loucura viu -se mascarada pelos privilégios exclusivos de uma consciência crítica. É por isso que a experiência clássica, e através dela a experiência moderna da loucura, não pode ser considerada como uma figura total, que finalmente chegaria, por esse caminho, à sua verdade positiva; é uma figura frag­mentária que, de modo abusivo, se apresenta como exaustiva;

(*) Departamento de pS"lcologia Social e do Trabalho IPUSP. (1) Histoire de la folie à lâge classique, Paris, Gatlimard, 2~ ed., 1972.

. . 1:

RECORDAR FOUCAULT 127

é um conjunto desequilibrado por tudo aquilo de que carece, isto é, por tudo aquilo que o oculta. Sob a consciência crítica da loucura e suas formas filosóficas ou científicas, morais ou médicas, uma abafada consciência trágica não deixou de ficar em vigília" (H. F., pp. 39-40). E no último parágrafo do pe­núltimo capítulo - "O nascimento do asilo" - conclui Fou­cault: "Desde o fim do século XVIII, a vida da desrazão só se manifesta na fulguração de obras como as de Holderlin, Ner­vai, Nietzsche ou Artaud - indefinidamente irredutíveis a essas alienações que curam, resistindo com sua força própria a esse gigantesco aprisionamento moral que se está acostu­mado a chamar, sem dúvida por antífrase, de a libertação dos alienados por Pinel e Tuke" (H. F., p. 530). Então, embora não tenha sido a intenção da obra "reconstituir o que podia ser a própria loucura, tal como ela se apresentaria inicial­mente em alguma experiência primitiva, fundamental, se­creta, quase não articulada e que teria sido organizada, em seguida, (. .. ) pelos discursos ... " (A. S., p. 64),', a História da loucura inegavelmente pressupõe a existência dessa experiên­cia fundamental da loucura, como o próprio Foucault admite explicitamente em uma entrevista de 1977: "Quando escrevi a História da loucura ... acredito que, então, supunha uma es­pécie de loucura viva, volúvel e ansiosa que a mecânica do poder tinha conseguido reprimir e reduzir ao silêncio" (V. P. , p. 7).3 Concluindo seu estudo sobre a História da loucura, Roberto Machado dirá: "O que demonstra Foucault é que o saber sobre a loucura não é o itinerário da razão para a ver­dade, ( ... ) mas a progressiva descaracterização e dominação da loucura para sua cada vez maior integração à ordem da razão. Eis o que é a história da loucura: a história da fabri­cação de uma grande mentira" (C. S., p. 95).' Bem, se ao final do processo, temos a loucura desfigurada, como seria ela em seu começo, ou antes dessa desfiguração? Isto é, que espé­cie de loucura fundamental seria essa, suposta por Foucault,

(2) L 'archéologie du savoir, Paris, Gallimard, 1969. (3) "Verdade e poder", em Microfísica do poder, Rio de Janeiro, Graal,

1979. (4) Ciência e saber - a trajetória da arqueologia de Foucault, Rio de

Janeiro, Graal, 1982 .

128 A LOUCURA ANTES DA HISTORJA

"viva, volúvel e ansiosa"? Em que termos poderíamos com­preendê-la? Qual o seu estatuto?

* * * Grosso modo, a história da loucura se desenvolve segundo

três grandes momentos: o período do internamento clássico, nos séculos XVII e XVIII, enquadra-se entre um momento de liberdade que inclui o final da Idade Média e o século XVI e o período contemporâneo, quando a psiquiatria, herdeira das práticas de internamento, estará destinada a lidar com os lou­cos que abarrotam os asilos. Desses três momentos, é evidente que o mais longamente tratado é o período central, porém com um grau de precisão histórica que não ocorre no capitulo destinado a examinar a situação da loucura na aurora das so­ciedades modernas. O lugar do louco na vida cotidiana, com relação ao período medieval-renascentista, é delineado, como observara o historiador R. Mandrou, "sem grandes referên­cias a um contexto social específico". E, com efeito, poder­se-ia dizer que o espaço aberto por Foucault no início da His­tória, no capitulo intitulado "Stultifera navis", é um espaço tão indefinido, tão ambíguo, quanto o espaço aquático no qual navega a Nau dos loucos.

O que é essa Nau dos loucos? pode-se dizer, inicialmente, que a Nau dos loucos é o

contrário da Nau de Ulisses. Refiro-me, de passagem, à lei­tura feita por Adorno e Horkheimer 5 do encontro entre Ulis· ses e as sereias. Sendo o canto das sereias uma atração terri­velmente bela, Ulisses, que navega ao seu encontro, pede a todos os tripulantes que tapem os ouvidos com cera, enquanto ele próprio é amarrado ao mastro. O canto das sereias repre­senta a tentação de perder-se nas origens. E "se as sereias sabem de tudo o que se passou - dizem os autores - elas exigem o futuro como preço disso e a promessa do feliz re­torno é o engano pelo qual o passado captura o saudoso" (p. 118). Evocando a possibilidade do prazer, seu canto en­canta mortalmente aquele que o ouve. Mas Ulisses defende-se

(5) Textos escolhidos, Col. "Os Pensadores", vai. XLVIII, São Paulo, Abril, 1975 (a passagem referida encontra-se no texto "O conceito de ilumi-

nismo", pp. 97-124).

! \

." -,I'

RECORDAR FOUCAULT 129

dele porque sabe de seus "poderes de dissolução". E, se se decide a escutá-lo, é porém privado de forças, neutralizando a tentação em puro objeto de contemplação, isto é, sem conse­qüências práticas para ele - "pode apenas acenar com a ca­beça para que o soltem, porém tarde demais: os companhei­ros, que não podem escutar, sabem apenas do perigo do canto, não de sua beleza, e deixam·no atado ao mastro para salvar a ele e a si próprios" (p. 119). Eles não sabem que o pensamento de Ulisses é "inimigo tanto da própria morte como da própria felicidade". Concentrados no trabalho, eles "devem olhar para a frente e deixar de lado o que estiver ao lado" (p. 118).

Outro será o percurso da Nau dos loucos. Tematizando a elaboração simbólica da época, Foucault

apreende essa Nau em diferentes planos: nos ritos populares, na pintura e nos discursos.

A prática de embarcar os loucos em um navio possui um sentido simbólico. Inscreve-se entre os exilios rituais. Se em­l; :>.rcar os loucos é assegurar-se de que partirão para longe e torná-los prisioneiros de sua própria partida, é, ao mesmo tempo, uma purificação e uma passagem para a incerteza da sorte. "É para o outro mundo que parte o louco em sua barca louca; é do outro mundo que ele vem quando desembarca." (H. F., p. 22) A água e a navegação asseguram essa posição altamente simbólica da loucurá. Encerrado no navio de onde não escapa, o louco é entregue à correnteza do rio, aos múl· tiplos caminhos do mar. É o prisioneiro da mais livre das ro­tas. "É o Passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem. E a terra à qual aportará não é conhecida, assim como não se sabe quando desembarca, de que terra vem. Sua única verdade e sua única pátria são essa extensão estéril entre duas terras que não lhe podem pertencer." (H. F., p. 22) Assim, eternamente circulante, o louco e a loucura encon­tram-se em toda parte e em nenhuma. E, por sua ambigüi­dade, ameaçam e surpreendem o mundo. Resumindo, essa questão, afirma Foucault no 6? capítulo de Doença mental e Psicologia: "Depois da grande obsessão da morte, o medo do Apocalipse e as ameaças do outro mundo, o Renascimento experimentou neste mundo um novo perigo: o de uma invasão surda, vinda do interior, e, por assim dizer, de uma fenda se­creta da terra; esta invasão é a do Insano que coloca o Outro

-,

130 A LOUCURA ANTES DA HISTÓRIA

mundo no mesmo nível que este e de modo chão; de tal ma­neira que não se sabe mais se é o nosso mundo que se desdo-bra numa miragem fantástica, se é o outro, ao contrário, que toma posse dele, ou se, finalmente, o segredo de nosso mundo era de já ser, e sem que o soubéssemos, o outro. Esta expe­riência incerta, ambígua, que faz habitar a estranheza no pró-prio seio do familiar, toma em Bosch o estilo do visível: o mundo povoa-se em todos os seus moluscos, em cada uma de suas ervas, de monstros minúsculos, inquietantes e derrisórios que são, ao mesmo tempO, verdade e mentira, ilusão e se­gredo, Mesmo e Outro. O Jardim das Delícias não é a imagem simbólica e composta da loucura, nem a projeção espontânea de uma imaginação em delirio; é a percepção de um mundo suficientemente próximo e distante de si para ser aberto à ab­soluta diferença do Insano. Diante desta ameaça, a cultura do Renascimento experimenta seus valores e OS engaja no com­bate de um modo mais irônico que trágico" (D. M. P., p. 88).6 A partir daí, pode-se começar a perceber uma diferença que Foucault vai estabelecer entre o que chama de "experiência trágica" da loucura e "consciência critica" da loucura. No primeiro caso, a loucura será vinculada às dimensões trágicas do mundo. A loucura é promessa de um saber fascinante -"saber proibido que prediz ao mesmo tempo o reino de Satã e o fim do mundo; a última felicidade e o castigo supremo; o todo poder sobre a terra e a queda infernal" (H. F., p. 32). É principalmente o universo das imagens de Bosch, entre outros pintores, aos quais Foucault se refere pela expressão "espec­tadores terrivelmente terrestres", querendo dizer com isso que são sujeitos situados, encarnados no mundo, "implicados nessa loucura que viam brotar à sua volta" (H. F., p. 36). No segundo caso, o da "consciência critica", a loucura será con­siderada, principalmente, no "universo de discurso" do sábio _ aos olhos de quem, diz Foucault, ela "tornar-se-á objeto, e do pior modo, pois será objeto de seu riso ( ... ). Mesmo que seja mais sábia que toda ciência, terá de inclinar-se diante da sabedoria para quem ela é loucura" (H. F., p. 39). O sujeito desse discurso observa a loucura "a uma distância suficiente para estar fora de perigo" (H. F., p. 36).

(6) Doença mental e Psicologia, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1968.

, L

RECORDAR FOUCAULT 131

Há, então, uma Nau dos loucos cheia de tripulantes in­quietos "que mergulha na noite do mundo, entre paisagens que falam da estranha alquimia dos saberes, das surdas amea­ças da bestialidade e do fim dos tempos" (H. F., p. 38). A paisagem que atravessa é "uma paisagem de delícias, onde tudo se oferece ao desejo, uma espécie de Paraíso renovado, uma vez que nela o homem não mais conhece nem o sofri­mento nem a necessidade" (H. F., p.32). No entanto, essa fe­licidade é falsa: é o Fim Supremo já bem próximo: "As mon­tanhas desmoronam e tornam-se planícies, a terra vomita os mortos, os ossos afloram sobre os túmulos; as estrelas caem, a terra pega fogo, toda forma de vida seca e morre. O fim não tem valor de passagem e de promessa; é o advento de uma noite na qual mergulha a velha razão do mundo" (H. F., p. 32). Numa dimensão vertical, a trágica Nau dos loucos navega num espaço marcado pela Ascensão e pela Queda. Em seus elementos - "fantasmas e ameaças, puras aparências do sonho e destino secreto do mundo" - a loucura encontra "uma força primitiva de revelação: revelação de que o onírico é real, de que a delgada superfície da ilusão se abre sobre uma profundeza irrecusável, e que o brilho instantâneo da imagem deixa o mundo às voltas com figuras inquietantes que se eter­nizam em suas noites ... " (H. F., p. 38).

Ora, essa "linguagem primitiva" (ou "nascente") é tema­tizada por Foucault em um outro texto, bem anterior à Hist6-ria da loucura, destinado a introduzir a obra do psiquiatra suíço Ludwig Binswanger - O sonho e a existência. Trata-se de um estudo que foi publicado junto com o texto de Binswan­ger, traduzido por Foucault, em 1954.'

Esse texto de Foucault não é um prefácio. Como ele mes­mo esclarece logo no início, não é o caminho realizado por Binswanger que ele pretende refazer. Seu propósito é "escre­ver à margem" (p. 14), o que dá a seu texto uma certa auto­nomia com relação ao que foi escrito por Binswanger, cujo

(7) "Introduction" a Binswanger, L., Le rêve et rexistence,' Paris, Des~ clêe de Brouwer, 1954. (Essa "Introduction" é um dos primeiros textos de Foucault, junto com" Maladie mentale et personnalité", também publicado em 1954, anteriores à Histoire de la folie. Trata-se de um texto denso, visitado não somente pelos gregos e filósofos clássicos mas, também, pelos contempo· râneos, descendentes de Husserl - sobretudo Heidegger, em cuja filosofia a Psicologia Existencial de L. Binswanger busca fundamentação.)

l

132 A LOUCURA ANTES DA HISTORIA

tema, segundo Foucault, não é o sonho e a existência, mas a existência ta] como aparece a si mesma e tal como pode ser decifrada no sonho, nesse modo da existência em que a rede de significações é bastante apertada e menos nítidas as formas da presença. Nisso reside para Foucault o interesse maior do livro de Binswanger, isto é, no privilégio atribuído ao onírico para chegar à compreensão das estruturas existenciais e o fato de ta] privilégio envolver toda uma antropologia da imagina­ção. Esses dois aspectos que constituem o impensado do texto de Binswanger irão ocupar a reflexão de Foucault. No en­tanto, não é o meu propósito resumir o texto de F oucault, nem empreender a sua análise rigorosa. Pretendo, apenas, ressal­tar alguns pontos teóricos que, a meu ver, permitem com­preender a suposição de Foucault sobre a "experiência origi­nária da loucura" .

O que é o sonho? O sonho é uma experiência imaginária, e como tal não se

esgota na análise psicológica. É antes em termos de uma teo­ria do conhecimento que ele deve ser pensado, isto é, como uma forma de experiência absolutamente específica.

Baseando-se no que chama de uma "história da reflexão sobre o sonho", diz Foucault que, desde a antiguidade, o ho­mem sabe que no sonho ele realiza o encontro do que ele é e do que será, do que ele fez e do que vai fazer, isto é, descobriu, no sonho, uma vinculação de sua liberdade à necessidade do mundo. O que mudou através dos tempos, segundo Foucault, não é a leitura do destino nos sonhos, nem mesmo os procedi­mentos de decifração, mas, sobretudo, a justificação dessa re­lação do sonho com o mundo, a concepção da maneira como a verdade do mundo pode se antecipar a si mesma e resumir seu futuro em uma imagem embaralhada. O que nos mostra uma "história do sonho" é que "o sonho, ao mesmo tempo, é reve­lador do mundo em sua transcendência e também modulação desse mundo em sua substância, sobre o elemento de sua ma­terialidade". Isto é, "como toda experiência imaginária, o so­nho é um índice antropológico de transcendência; e, nessa transcendência, anuncia ao homem o mundo se fazendo ele mesmo mundo, assumindo, ele próprio, as espécies da luz e do fogo, da água e da obscuridade", por exemplo (p. 58). Muitas seriam as maneiras de justificar o caráter transcen­den te da imaginação onírica: o sonho seria a percepção tene-

• 1

RECORDAR FOUCAULT 133

brosa de coisas que se pressentem em torno de si durante a noite, ou, ao inverso, claridade instantânea de luz, clareza ex­trema da intuição que se completa quando o sonho se realiza. No entanto, um dos temas mais freqüentes na tradição refe­rida por Foucault, até o século XIX, é o tema da manifestação da alma em Sua interioridade pelo sonho. Na origem desse tema, Foucault ressalta o princípio de Heráclito: "O homem acordado vive em um mundo de conhecimento, mas aquele que dorme volta-se para o mundo que lhe é próprio" (p. 62). O sentido imediato da frase é trivial: os caminhos da percep­ção estariam fechados ao sonhador, isolado pela emergência interior de suas imagens. Ora, assim compreendido, diz Fou­cault, o aforismo de Heráclito estaria em contradição com o tema da transcendência da experiência onírica e deixaria de lado toda a riqueza sensorial existente no imaginário do so­nho. O que constitui o mundo do sonhador não é a ausência de conteúdos perceptivos, mas a sua elaboração em um uni­verso isolado. O mundo onírico é um mundo próprio _ não no sentido da oposição subjetiv%bjetivo, mas no sentido em que se constitui sobre o modo originário do mundo que me pertence ao me anunciar a minha própria solidão. "O sonho em sua transcendência e por sua transcendência desvela o mo­vimento originário pelo qual a existência, em sua irredutível solidão, projeta-se para um mundo que se constitui como lu­gar de sua história." (p. 63) Isto é, o sonho desvela, em prin­cípio, essa ambigüidade do mundo que se designa existência. "Rompendo com essa objetividade que fascina a consciência de vigília e restituindo ao sujeito humano sua liberdade radi-cal, o sonho desvela paradoxalmente o movimento da liber­dade para o mundo, o ponto originário a partir do qual a liberdade se faz mundo. A cosmogonia do sonho é a origem da própria existência." (p. 64) Isto é, o sonho é o primeiro mo­mento de uma existência que se recobra no conjunto de seu devir.

Ora, quem é o sujeito do sonho, a primeira pessoa onírica? - indaga Foucault. Não é tanto um personagem que diz "eu", pois no sonho tudo diz "eu". Assim, o sujeito do sonho, diz Foucault, é o próprio sonho, "o sonho inteiro com a totali­dade de seu conteúdo onírico" (p. 85). O sonho é a existência se transfigurando, é o mundo no limiar de sua primeira fulgu­ração quando ainda é existência e não universo da objetivi-

r-

134 A LOUCURA ANTES DA HISTÓRIA

dade. "Sonhar não é um outro modo de fazer a experiência de um outro mundo." (p. 85) É, para aquele que sonha, a ma­neira mais radical de fazer a experiência de seu mundo (mais radical no sentido em que a existência não se anuncia ai como sendo o mundo). É por isso, diz Foucault, que a compreensão do sonho é decisiva para esclarecer as significações fundamen­tais da existência. Quais seriam as mais essenciais dessas sig­nificações?

F oucault analisa, em linguagem fenomenológica, o es­paço onírico, porque as formas da espacialidade desvelam no sonho "o sentido mesmo da existência" (p. 86). E lembra-nos que em seu nível originário, na experiência vivida, o espaço, antes de ser geográfico, apresenta-se como paisagem. E é nela que se desdobra o sonho. É nela que o sonho encontra suas significações afetivas maiores. E Foucault compreende a arti­culação dessa espacialidade originária segundo três modos que definem as dimensões essenciais da existência: as articu­lações do próximo e do distante, do claro e do escuro e do alto-baixo. São dimensões que dão as coordenadas primitivas do sonho e que se configuram concretamente através de for­mas expressivas. Que formas seriam essas?!

N a linha que vai do espaço próximo ao distante vamos encontrar a região em que a existência conhece a aurora das partidas triunfantes, as navegações, as descobertas surpreen­dentes, o exílio que retém em seus fios a obstinação do retorno e a amargura do reencontro das coisas imóveis e envelhecidas. Nessa Odisséia da existência sobre um estofo tecido pelo so­nho e pelo real a expressão épica se revela como estrutura significativa.

Ao contrário, alternância de luz e de obscuridade caberá à expressão lírica. Diz Foucault: "O lirismo é sazonal... é ao mesmo tempo solar e noturno e envolve essencialmente os va­lores crepusculares. Não transpõe as distâncias, são sempre os outros que partem e, se há exílio, ele é sem retorno, pois para ele já se é exilado em sua própria pátria" (p. 97). Os movi­mentos do mundo são, então, captados nos jogos de luz e som­bra, nas pulsações do dia e da noite que na superficie das coisas dizem sua verdade.

E, "enfim - escreve Foucault - é sobre o eixo vertical da existência que se situa o eixo da expressão trágica: o movi­mento trágico é sempre da ordem da ascensão e da queda, e o

i '. 1

-4

I

t !

RECORDAR FOUCAULT 13S

ponto que o marca de modo privilegiado é aquele no qual se realiza o equilíbrio imperceptível da ascensão que se inter­rompe e oscila antes de desabar" (p. 97). Cabe à expressão trágica a manifestação da "transcendência vertical do des­tino" (P. 98). E das três formas expressivas, é a trágica que Foucault compreende como a mais originária, pois ela implica "a temporalidade em seu sentido primitivo" (p. 100).

Ou seja, a dimensão horizontal, articulada entre o pró­ximo e o distante, oferece o tempo segundo uma cronologia da progressão espacial - o tempo se desenvolve entre um ponto de partida e outro de chegada, esgotando-se no próprio per­curso. E quando se renova é sob a forma da repetição, do retorno e de nova partida. Na oposição claro/escuro, o tempo também não é temporalidade autêntica - trata-se de um tem­po rítmico, oscilante, onde a ausência é sempre promessa de retorno e a morte, promessa da ressurreição. Só no plano da dimensão vertical é que se poderá captar a temporalidade da existência. E "na medida em que a expressão trágica se situa sobre essa direção vertical da existência, ela possui", conclui Foucau!t, "um enraizamento ontológico que lhe dá um privi­légio absoluto sobre os outros modos de expressão: esses úl­timos seriam, melhor dizendo, modulações antropológicas" (P. 105).

Se nos voltarmos, agora, para a História da loucura, e nos lembrarmos da velha linguagem trágica do começo, que falava do dilaceramento do mundo, da felicidade e do fim dos tempos, do homem fascinado e devorado pela animalidade, linguagem que será silenciada pelos discursos críticos do ho­mem, talvez possamos compreender o sentido da questão de uma loucura originária. A Nau dos loucos, figura simbólica que abre a História da loucura, carrega consigo um peso onto­lógico: ela designa essa transcendência da existência, no mo­vimento vertical da temporalidade, que se encontra no fundo das experiências imaginárias.

História e doença: a partitura oculta (A lepra em São Paulo, 1904-1940

Ítalo. A. Tronca*

SãO em torno de cem mil doentes de hanseníase hoje, no Estado de São Paulo. A cifra exata não se conhece. Mas, en­tão, qual o sentido da campanha contra a lepra desde os anos 30, que teria praticamente erradicado a endemia no território paulista? Que sorte de interesses, de ãlibis sociais estiveram entrelaçados durante mais de 40 anos no interior dos grandes leprosários e vilas de Hansen, disseminados pelo interior do estado como principais instrumentos da política de isolamento compulsório, hoje considerada contraproducente? Que pade­cimentos, mortes lentas, separações, angústias e solidão expe­rimentaram os prisioneiros desses gulags beneméritos, edifi­cados em nome da humanidade e da ciência? Ou estariam buscando os hansenianos, nos castelos da ciência, a realização da sua utopia? Fugir da sociedade que os escarmentava, da peregrinação esmoleira, para construir, junto com seus com­panheiros de condenação, um mundo fraterno, uma cultura da resistência, de construção de uma nova identidade, que di­luísse o estigma imposto pelos sãos ... E a administração es­quadrinhadora dessas cidades dos morféticos - ciosa da dis­ciplina, da divisão entre pobres e abonados, da separação en­tre pais e filhos, da higiene, da produção? O velado universo da lepra, sua história permanecem no silêncio - uma espécie

(') Do Departamento de História da UNICAMP.

1_~' . . "

RECORDAR FOUCAULT 137

de dimensão proibida, vestibular entre a vida e a morte, onde médicos, enfermeiros, funcionãrios e doentes conviveram du­rante muito tempo, ligados entre si como os dedos às mãos, prisioneiros do Castelo da Ciência.

Seria o caso então de se dizer que, em nossas sociedades, o silêncio reina sobre os doentes e as doenças? Ao contrário. Como dizem duas sociólogas francesas, Claudine Herzlich e Janine Pierret - não acabaríamos nunca talvez de recensear as obras, dos mais diversos gêneros, nas quais, através de uma doença, de um personagem enfermo, alguma coisa essencial está sendo dita. Recentemente, afirmou-se que a doença é uma metáfora: metáfora do social (Susan Sontag, A Doença como Metáfora, 1984).

De fato, os especialistas em ciências sociais que começa­ram, há alguns anos, a explorar esse domínio novo para eles - os corpos e suas doenças -, vêm mostrando que, em todas as sociedades, ordem biológica e ordem social se correspon­demo Em todos os lugares e a cada época é o individuo que é doente, mas ele é doente aos olhos da sua sociedade, em fun­ção dela, e segundo as modalidades que ela fixa. O discurso do doente se elabora, portanto, no interior do próprio discurso das relações do indivíduo com o social. Esta é uma das desco­bertas que devemos a Michel Foucault.

Nessa perspectiva, um de meus objetivos com a pesquisa que estou desenvolvendo sobre a história da lepra em São Paulo no período republicano (1904-1940) é perseguir essa ar­ticulação recíproca - a maneira como os doentes experien­ciam seu estado, o exprimem e o organizam, encaixado no discurso coletivo que esboça a figura do mal biológico e llie confere um sentido.

É evidente, ainda do ponto de vista teórico, que estou procedendo mediante um vaivém entre a história e a sociolo­gia: os sociólogos e antropólogos tomaram consciência, sobre­tudo na Europa, de que o "fato" doença, a saúde e a própria morte não se reduzem à sua concretude "orgânica", "natu­ral", "objetiva" - mas que eles não escapam ao(s) projeto(s), às intenções da sociedade ao pensar-se enquanto futuro. En­fim, mostraram.que a doença é também uma realidade cons­truída, e que o doente é um personagem social.

Contudo, os historiadores, por seu lado, começam a co­locar em evidência a historicidade das relações e das institui-

. '!

138 HISTORIA E DOENÇA: A PARTITURA OCULTA

ções através das quais se estruturou a condição ou o estatuto do doente de hoje. Em última análise, mostram o relativismo das categorias e dos esquemas de referência com os quais nós os pensamos ...

Se, por um lado, a consciência de tal relativismo desvela ao olhar um território inteiramente novo, rico de indagações e descobertas potenciais, por outro, impõe, no nível da opera­cionalidade, um cuidado redobrado, uma sutil afinação do instrumental de campo do pesquisador que assoma uma re­gião ausente, praticamente, da cartografia dos saberes.

No caso particular da lepra, as dificuldades do terreno começam no nível da própria teoria. Da teoria dita cientifica, médica, sobre a doença. Procedendo por comparação: se, no caso das várias pestes que assolaram o Brasil no passado, até o primeiros anos da República, havia uma teoria sobre esses males (febre amarela, varlola, tifo) - tal saber unificava, sin­tetizava a ação assistencial (administrativa), religiosa e mé­dica, sobretudo nos tempos coloniais até princípios do século XIX (Danação da norma, medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil, Graal, 1979). Com o advento da medi­cina social, durante o Império, o objetivo principal deixa de ser a figura do doente para atacar-se as doenças, suas causas sociais e biológicas. O papel do religioso é gradativamente substituido pelo do médico, que politiza progressivamente os procedimentos em nome da proteção à saúde coletiva. Ele será, cada vez mais, o interlocutor privilegiado da adminis­tração, do poder.

Com respeito à lepra, diferentemente, essa teoria, se é que podemos chamá-la assim, não existia. Não existia no sen­tido de que seu conteúdo era simbólico - visava, antes que curar, proporcionar uma assistência piedosa, um minimo de conforto a criaturas já consideradas em trânsito sem retomo para a sepultura. Não é outro o significado, por exemplo, das medidas propostas por Lisboa à autoridade colonial num do­cumento de 1741, Sobre o que se deve praticar com os lázaros ( ... ): remédios frios e úmidos depois de algumas sangrias ~ sem purgativos -, leite, tisana de cevada e centeio, amêndoa feita na mesma água de cevada com raizes de malha chicória, almeirão, lingua de vaca seralhes, banhos de rio doce, e de­pois de umedecidos, poderão os doentes tomar caldo de vibo­ras ou de outras serpentes, usar dos pós viperinos, do sal de

.,

~'? . -' ~~.' :" ~I~: _ .. ~~ ... - _. i . '-.; ... -

RECORDAR FOUCAULT 139

viboras em quantidade determinada por médico assistente, etc. (cf. Danação da norma ... , op. cit., p. 79).

Surpreendentemente, o potencial terapêutico dos ofidios, supostamente esquecidos graças ao avanço da medicina (o ba­cilo de Hansen é isolado nos anos 70 do século passado), con­tinuava presente em 1910, quando um médico especialista mi­neiro especula sobre as possiveis virtudes curativas do veneno de cascavel para a morféia ...

A partir desse exemplo, ampliado para uma história cul­tural das doenças e da medicina, é possivel pensar, na trilha aberta por Foucault, como, em nossa sociedade, as concep­ções "profanas" da doença não são separáveis do desenvolvi­mento da medicina, que, em cada época e ainda mais hoje, contribui para modelá-Ias (cf. Claudine Herzlich e Janine Pierret, Malades d'hier, malades d'aujourd'hui, Payot, 1984). É possivel rastreá-las em sua formulação e lógica próprias, sem preocupar-se com sua "verdade" médica, demonstrando como tais concepções se interpenetram, possuindo-se entre si. O novo está justamente aqui, nesta via de duas mãos que pode operar em ambos os sentidos: -do "profissional" ao "profano" , mas também do "profano" ao "profissional". Isso pode pare­cer verdadeiro apenas em relação ao passado, diante de um saber médico inexistente ou incerto, especialmente no caso da lepra - um exemplo-limite. Mas mesmo hoje, quando ga­nhou a legitimidade de ciência, a medicina inscreve-se no so­cial: o médico é dependente, em seu saber e sua prática, da experiência dos doentes, das representações que eles elaboram de sua moléstia e do discurso coletivo sobre a doença.

A partitura oculta

E esse discurso é naturalmente polifônico. Aos poucos, infiltra-se na mente a suspeita de que esses sons diversificados, freqüentemente dissonantes, assumindo a forma de metáfo­ras, de alegorias, de símbolos, do discurso da ciência - estão todos referidos a uma inefável e oculta partitura. Qual seria ela? Como entender, sem ela, a clave realista, objetiva, de que se vale William Wyler nos anos 1950, em Ben-Hur, ao lavar, curando-as, as feridas do rosto das leprosas com a chuva en-

140 H1STORIA E DOENÇA: A PARTITURA OCULTA

viada pelo Pai (metãfora de suas lãgrimas), no momento em que o Filho expira na cruz?

Ou, numa clave cientifica, a ponderação conformada de Ernesto Bertarelli, diretor do Instituto de Higiene da Univer­sidade de Parma, visitando, na São Paulo de 1910, o Hospital de Guapira:

"O mais grave não é tanto a incurabilidade e as lesões em todos os órgãos do corpo, mas as alterações e a perda dos tra­ços mais nobres do rosto ( ... ). Hã quem objete que não é pos­sível atuar seriamente contra a lepra porque, na realidade, ig­noramos os mecanismos através dos quais a doença se difunde e porque o número de vítimas é sempre escasso, de modo que o medo é sugerido muito mais pelas lembranças do passado e pelas especiais disposições estéticas do espírito, do que pela existência efetiva de perigo ( ... )". (Ernesto Bertarelli, li Bra­si/e Meridionale, ricordi e impressioni, Roma, 1914)

A imagem fundante, moralista, da corrupção biológica, do inimigo invasivo, da deterioração estética retomada em Claudel:

UÉ duro ser um leproso, carregar a pecha. infame, e saber que não vai se curar e que nada hã afazer... Mas que a cada dia ela ganha e penetra e estar sozinho e suportar seu próprio ve­neno e sentir-se corromper vivo". (Paul Claudel, Anúncio feito a Maria, prólogo)

E a transparente clave kardecista assumida na peça tea­tral Bem de Hansen, encenada em 1984 por um grupo espi­rita, baseada no livro A extraordinária vida de Jesus Gonçal­ves, do psicólogo Eduardo Carvalho Monteiro? (A memória de Gonçalves, assim como o espiritualismo, parecem marcar profundamente a comunidade de hansenianos em São Paulo.) Utilizando relatos psicografados de Gonçalves falecido em 1947 no Hospital-Colônia de Pirapitingui, o autor narra uma história de sucessivas reencarnações iniciadas com o rei le­proso Alarico, que, em torno de 410 da nossa era, assolou o Império Romano, passando pelo cardeal Richelieu, também doente, vindo encontrar o poeta e jornalista Jesus Gonçalves

't.~". ,.;. ..

~ I

t

c

(

-'~.' . , . ..1 -,~,~,

RECORDAR FOUCAULT 141

no interior de São Paulo pelos anos 1930 ... Na peça, montada em estilo circense; popular, o sentido repousa numa noção de tempo histórico circular, de um permanente retorno, no inte­rior do qual a doença é imutãvel e inelutãvel - simbolo e instrumento da expiação de culpas imemoriais.

O que teria a ver essa representação espirita com os dis­cursos médico e estético da doença? Nada e tudo. Nada, por­que, no nivel dos significados, do conteúdo, Wyler, o profes­sor Bertarelli, Claudel, a administração colonial portugnesa, antecessora do médico que especula com as víboras, não se re­metem à teoria da reencarnação. Tudo, porque tanto uns como outros estão imersos no interior de uma mesma estru­tura, de um mesmo universo de significantes, cuja partitura é um imaginãrio central que cria, em suas derivações históricas, instituições asilares, imagens estéticas, teorias cientificas -todas tecendo uma rede simbólica que produz e reproduz o fato lepra dotado, não de sentidos idênticos, mas homólogos - mal divino, degradação biológica, destruição estética, pe­rigo interno e permanente a ameaçar o mundo dos sãos ... As mesmas notas, inscritas em claves diferentes, numa partitura detentora do código inefãvel da polifonia.

Resultll então que o ímaginãrio se desvela aí não apenas como "reflexo" da insegnrança diante de um inimigo amea­çador porque mal conhecido ou do medo instintivo da morte (a lepra praticamente desapareceu hoje nos países mais indus­trializados), mas como instituinte histórico da doença.

Castoriadis, referindo-se a Marx, salienta que ele tam­bém sabia que "o Apolo de Delfos era na vida dos gregos uma força tão real quanto qualquer outra". Ou seja, Marx reco­nhecia o papel do imaginãrio "quando enfatizava que a lem­brança das gerações passadas pesa fortemente na consciência dos vivos, indicando ainda essa forma particular do imaginã­rio que é o passado vivido como presente, os fantasmas mais poderosos do que os homens de carne e osso, o morto que se apodera do vivo (. .. )", etc. (Cornelius Castoriadis, A institui­ção imaginária da sociedade, Paz e Terra, 1982).

Mas esse papel do imaginãrio - ressalva - era visto por Marx como um papel limitado, funcional, como elo "não-eco­nômico" na cadeia "econômica". Em outras palavras, o poder das criações imaginãrias do homem - sobrenaturais ou so­ciais - era para ele somente o reflexo de sua importância real

142 HISTÓRIA E DOENÇA: A PARTITURA OCULTA

- O que implica uma concepção de história segundo a qual o imaginário enquanto alienação desapareceria do social com a eliminação da miséria - sua condição necessária e suficiente.

Em relação à lepra, tal imaginário irá encontrar, durante especialmente os anos 20 a 40, um vasto campo de renovação, propiciando um paroxismo no interior do projeto de medica­lização da sociedade. A polltica implementada pelo poder pú­blico em São Paulo( construção de asilos-colônias em moldes inéditos no mundo, ao lado da montagem de um aparato sani­tário-policial que consumiu verbas extraordinárias para a época), ganha uma abrangência em evidente desproporção com o perigo real representado pela doença.

Ernesto BertarelJi observava em 1910 que, no Estado de São Paulo, existiam aproximadamente três mil doentes para cerca de quatro milhões de habitantes. Reconhecia que a cifra não era muito grande, embora fosse grave, e aduzia que a tu­berculose, por exemplo, "matava pelo menos vinte vezes mais do que a lepra". No entanto, ao recomendar providências às autoridades brasileiras, ponderava que o fazia não tanto em função do medo causado pelo fato de, todos os anos, retorna­rem à Itália alguns imigrantes contagiados, mas

"( ... ) pelo desejo de que desapareça uma praga cuja impressão psicológica é sem dúvida muito grave; é a tendência de nosso espírito à harmonia e à beleza, é o terror de uma moléstia que mina os mais nobres traços divinos da face e do corpo".

Não obstante, o saber médico, através de um discurso que vem desde o início do século ganhando autoridade polltica crescente, sugere o quadro de uma sociedade permanente­

. mente leprosa. lnstrumenta-se assim a lepra, ampliada e projetada numa

metáfora que desvia o olhar de uma das parcelas do real: por exemplo, a penúria generalizada em que vivia a maior parte da população paulista. Propondo-se como tarefa "internar todos os doentes existentes no Estado", a polltica sanitária se­quer menciona providências ao alcance da mão, como, entre outras, acabar com as "habitações coletivas" de onde vinha a grande maioria dos infectados.

.' .,>.

1.; . . ~

~

, ,

RECORDAR FOUCAULT 143

Parafraseando Susan Sontag, eu diria que a metáfora da lepra no passado, assim como a do câncer hoje, foi não apenas um veículo das irremediáveis insuficiências da nossa cultura, da incapacidade de construir uma sociedade menos violenta - mas, sobretudo, do nosso temor de encarar a natureza ele­giaca da história ...

o alienista de Machado de Assis: a loucura e a hipérbole

Luiz Dantas*

o doutor Simão Bacamarte, herói de O Alienista, de Machado de Assis, é apresentado ao leitor com toda a soleni­dade que requer o epíteto grandioso de "o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas". O narrador da novela não chama a si a responsabilidade do julgamento, propria­mente, pois invoca velhos documentos, as "crônicas de Ita­guaí", compostas em época longínqua, coisa do último quar­tel do século XVIII. O doutor ilustre, nem bem apresentado, passa a desnortear o leitor. Bacamarte, ao fim de estudos ful­gurantes em Coimbra e Pãdua, recusa as honrarias que el-rei em pessoa lhe concede, as vantagens da metrópole, um des­tino excepcional, para vir exilar-se em Itaguaí, um fim de mundo qualquer, que o doutor chama de "meu universo", num arroubo flagrante de linguagem. E o narrador comenta, com uma fórmula não desprovida de malicia: "entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas". Al­gumas linhas adiante, encontramos o doutor casado com a in­sossa D. Evarista, e às voltas com a dificuldade de remediar a esterilidade da esposa. Bacamarte pacienta, mas enquanto homem de ciência "fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores ãrabes e outros, enviou consultas às univer-

(*) Da Universidade de Toulouse.

t; . •

RECORDAR FOUCAULT 145

sidades italianas e alemãs". A medicação, irrisória e ineficaz, vem novamente assombrar o leitor; D. Evarista serã tratada a carne de porco de Itaguaí.

Admitamos que OS méritos de Bacamarte, exaltados nas duas passagens introdutórias da novela, tenham a sua parte de exagero. Os manuais de retórica lembram-nos que os meios devotos da hipérbole, longe de conduzirem ao engano, tendem à própria verdade, ainda que a preço do aumento excessivo das coisas e de um certo desvio na apresentação do pensamento. Nesse caso, as palavras não devem ser tomadas ao pé da letra, mas na expressão total que resulta do conjunto. Quem é, en­tão, Bacamarte? Alguém um pouco abaixo dos qualificativos ribombantes do inicio das duas historietas, ou alguém um pouco acima dos cataplasmas ou da carne de porco que con­cluem a trajetória em forma de parãbola decrescente? Charla­tão ou gênio? Se a hipérbole leva à verdade, onde obtê-la nessa linha contraditória? Coloquemos a questão. Quanto à resposta, o texto não se pronunciarão

Observemos desde jã que o leitor de O Alienista, à guisa de introdução, é precipitado num mundo verbal perfeitamente escorregadio e que permanecerã tal. Ele faz a experiência de qualidades insuspeitadas da palavra, que adquirem neste texto a ductibilidade, a flexibilidade, a elasticidade da bor­racha. A experiência tem a sua gravidade. No decorrer da no­vela, o doutor Simão Bacamarte criarã um asilo para acolher os loucos de Itaguaí e da regíão, após ter descoberto a espe­cialidade psiquiãtrica. A empresa evoluirã, assumindo carac­terísticas de laboratório humano, onde diferentes formulações da doença mental serão experimentadas. O psiquiatra Baca­marte, investido do poder que a ciência lhe confere, serã quem define e limita as fronteiras da razão e da demência na Casa Verde, o asilo, decretando o confinamento ou a liberdade dos concidadãos. Não hã dúvida de que a intuição machadiana é notãvel ao apresentar o conceito de loucura submetido ao arbitrio do psiquiatra e à deriva das diferentes concepções. Eis por que não é necessãrioinsistir, o O Alienista é evocado aqui, hoje. Mas a novela só toma toda a sua plenitude de sentido quando considerarmos que o ato de nomear a loucura (logo, criã-la), da parte do doutor Bacamarte, é acompanhado no próprio texto de uma reflexão contínua e rica sobre o valor das palavras. Ou melhor, da demonstracão de que a palavra,

146 o AUENISTA DE MACHADO DE ASSIS

como instrumento do conhecimento, é precária, sinuosa, ve­nal, modelâvel. A empresa falhada do psiquiatra Bacamarte faz pensar na de outro herói célebre da obra machadiana, o Bentinho de D. Casmurro, que interroga as aparências do mundo em busca das provas da infidelidade da esposa. O emaranhado no qual se debate Simão Bacamarte é tão temível quanto aquele que Bentinho tenta desembaraçar, as possibili­dades de sucesso tão mínimas para um quanto para outro per­sonagem.

Voltemos às palavras. Antes, coloquemos preliminar­mente um aspecto que diz respeito à estrutura da novela, e que parece manter uma relação sugestiva com o hiperbolismo da linguagem. O mundo das coisas, concretamente, em O Alienista, bem como a maneira de a intriga evoluir, estão sub­metidos a um movimento incessante de crescimento e de con­tração, que não deixa de evocar o fenômeno estilistico descrito hâ pouco, onde dois exageros, um de grandeza, outro de re­dução, alternavam-se, aplicados a um mesmo sujeito. Pense­mos, por exemplo, no prédio que acolhe os doentes mentais de Itaguai, a Casa Verde. Colossal por natureza, hiperbólico, com as "suas cincoenta janelas por lado", e situado na "mais bela rua de Itaguai", o asilo parece insuflado por um vento irresistivel que alarga as suas dimensões. Ao fim de quatro meses de funcionamento e de afluência dos dementes, a Casa Verde, na expressão do narrador, "era uma povoação". Logo a seguir, durante uma conversa que o alienista mantém com o vigário de Itaguai, o padre Lopes, Simão Bacamarte refere-se à instituição que criara nos seguintes termos: "A Casa Verde é agora uma espécie de mundo em que hâ o governo temporal e o governo espiritual", este último sendo também açambar­cado pelo psiquiatra, que o laiciza.

Concomitante ao alargamento da clientela da Casa Ver­de, as finanças também prosperam. Bacamarte oferece à es­posa, num certo momento, o espetâculo dos livros contâbeis, aberto: "eram uma via lâctea de algarismos. Deus! Eram montes de ouro, eram mil cruzados sobre mil cruzados, do­brões sobre dobrões; era a opulência". Mais adiante, quando o psiquiatra propuser pela primeira vez uma nova formulação do conceito de loucura, durante palestra com o confidente e boticârio Crispim Soares, é nos termos seguintes que se ex­pressa: "A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora

1.~· , "

- ".,.>.' - ~:'~"'. ,,--- -:.,~~~ ..

RECORDAR FOUCAULT 147

uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente".

As palavras e as coisas, apenas pronunciadas, apenas criadas, põem-se imediatamente a crescer, sob a ação de fer­mento de efeito imediato, para atingirem (é manifesto nos exemplos de hâ pouco) proporções cósmicas: ilha, continente, via-!âctea. Mas o processo inverso também se opera. A Casa Verde, por exemplo, que termina por trancafiar três quartos da população itaguaiense, serâ esvaziada quando uma nova formulação teórica de Simão Bacamarte tornar proscrita a an­tiga definição, para começar a encher-se ainda uma vez, em­bora em proporções mais modestas, até o esvaziamento final e o internamento do último e solitârio ocupante, o próprio Ba­camarte.

De modo râpido lembremos que as teorias sucessivas de Simão Bacamarte, alargando ou reduzindo os terrenos da ra­zão e da loucura, expõem definições rigoristas do que seria patologia e sanidade em termos mentais. Bacamarte rejeita qualquer sabedoria conciliante na matéria, que acatasse a loucura como parte da razão, aquilo que cada um tem um pouco, ou o grão, tão bem distribuído entre os homens quanto o próprio bom senso: velhos problemas machadianos, na ver­dade. Basta lembrar o conto célebre, "A igreja do diabo", onde a virtude e o vicio, prolongamentos um do outro, resis­tem quando se quiser tornâ-los irreconciliâveis.

Outro momento privilegiado enquanto ilustração dessa estrutura instâvel, elâstica, da novela, em perpétua mobili­dade, acha-se no episódio da "Revolução dos Canjicas". Mo­vimento de descontentamento popular, de início, face ao pe­rigo representado por Simão Bacamarte, a situação evolui para a rebelião efetiva. O terror transforma-se em protesto, os gritos sucedem ao sussurro, as reivindicações degeneram em motim. A população de Itaguaí, de início hesitante, adere em massa ao movimento que conhecerâ todo tipo de reveses ou sucessos. O que se hâ de notar é a sucessão de crescendos e decrescendos dessa orquestração particular de O Alienista, que aproxima o episódio da Rebelião dos Canjicas das vicis­situdes da Casa Verde, subordinada às flutuações teóricas do psiquiatra.

Alguns exemplos a mais do fenômeno. D. Evarista, a es­posa do psiquiatra, durante as cerimônias de inauguração da

148 o ALIENISTA DE MACHADO DE ASSIS

Casa Verde, frui das festividades com um prazer manifesto: "Contentíssima com a glória do marido, vestira-se luxuosa­mente, cobriu-se de jóias, flores e sedas. Ela foi uma verda­deira rainha naqueles dias memorãveis". Até aqui, nada de surpreendente, pois o movimento ascendente segue a lógica do texto. Mas o leitor perderã de vista D. Evarista durante pelo menos um capitulo inteiro, consagrado, aliãs, a narrar o su­cesso da Casa Verde. No capitulo subseqüente, D. Evarista surge transformada: "A ilustre dama, no fim de dous meses, achou-se a mais desgraçada das mulheres; caiu em profunda melancolia, ficou amarela, magra, comia pouco e suspirava a cada canto". Concretamente, D. Evarista, durante esse tempo de eclipse, definhou. Não tardarã, é verdade, a recobrar o viço e a felicidade perdidos.

Um último exemplo do processo de recessão: o caso do pródigo Costa, o primeiro dos "novos" loucos a ser internado por Simão Bacamarte. "Herdara quatrocentos mil cruzados em boas moedas de el-rei D. João V. Tão depressa recolheu a herança, como entrou a dividi-la em empréstimos sem usura, mil cruzados a um, dous mil a outro, trezentos a este, oito­centos àquele, a tal ponto que, no fim de cinco anos, estava sem nada. Se a miséria viesse de chofre, o pasmo de Itaguai seria enorme; mas veio devagar; ele foi passando da opulência à abastança, da abastança à mediania, da mediania à po­breza, da pobreza à miséria, gradualmente."

Universo de mobilidade constante, que escapa sempre a qualquer tentativa de o captarmos num momento de repouso. Nele, as coisas, os seres, na generalidade ou no detalhe, se incham ou se esvaziam pelo poder das palavras. Elas são, também, traiçoeiras. A Casa Verde, ao abrir as portas, deixa entrar, na expressão do narrador, uma "torrente de loucos", que aflui de Itaguaí e das redondezas. É o próprio narrador que afirma pertencerem eles a "toda a familia dos deserdados do espírito" - é patente o grau de parentesco entre os casos descritos. Vejamos quem é o primeiro a dar entrada no asilo: "um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do al­moço, fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano" . Assim, Machado de Assis confere à oratória ou à eloqüência o privi-1égio pouco invejãvel da precedência, para o ingresso no seu

i,; , .. ~

RECORDAR FOUCAULT 149

asilo de alienados reticentes. Primeiro, mas não o único, o fazedor de discursos serã seguido, alguns capítulos depois, pelo não menos eloqüente Martim Brito, que assim saúda D. Evarista durante um banquete: "Deus, disse ele, depois de dar ao universo o homem e a mulher, esse diamante e essa pé­rola da coroa divina, Deus quis vencer a Deus". O elogio é excessivo. No dia seguinte Simão Bacamarte fecharã na Casa Verde o orador.

Os casos de demência verbal se sucedem. "O licenciado Garcia, que não dizia nada, porque imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma só palavra todas as estrelas se despegariam do céu e abrasariam a terra." A mania de gran­deza se manifesta, significativamente, por uma perturbação da linguagem: "O sujeito que, chamando-se João de Deus, dizia agora ser o Deus João, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse". Loucos por amor transformam-se em ima­gens poéticas: "Falcão, rapaz de vinte e cinco anos, supunha­se estrela d' alva, abria os braços e alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de raios, e ficando assim horas esqueci­das a perguntar se o sol jã tinha saido para ele recolher-se".

Sem dúvida, a loucura se exprime, e através de uma lin­guagem. Mas hipérboles, antíteses, metãforas, crença no todo-poder da palavra, fazem parte da expressão de quem? O próprio baralhamento das noções de razão e demência, provo­cado por Simão Bacamarte, que interverte os termos, jã não teria dificultado a distinção entre as expressões de ambas? A derrapagem jã não teria sido instaurada desde as primeiras li­nhas da novela? Qualitativamente, como caracterizar as lin­guagens produzidas pelas diferentes vozes desse texto? Ha­verã, por exemplo, possibilidade de um discurso científico na pessoa do psiquiatra? Eis uma resposta possível: o narrador qualifica Bacamarte, de modo lapidar, de "abotoado de cir­cunspecção até o pescoço". Mas, de raro em raro, é possível vislumbrar algo diferente. Por exemplo, na passagem: "Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particular­mente a brasileira, podia cobrir-se de 'louros imarcescíveis', - expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos sabedores." Os discursos do psiquiatra são tem­perados com "louros imarcescíveis" como os de Martim Brito, ou os do primeiro cliente do asilo, mas isso ... em casa. Por

ISO o ALIENISTA' DE 'MACHADO DE ASSIS

fora, a casaca da gravidadecientifica, retórica também, num certo sentido, enquanto arte de convencer.

A loucura é uma palavra (Simão Bacamarte a nomeia; o verbo precede a coisa como no Gênese); a loucura se exprime pela palavra. A palavra conduz à loucura, como se verá no episódio político de O Alienista.

A comédia política, um dos eixos· mestres da novela, sur­ge desde as primeiras páginas, no momento em que o médico Bacamarte parte a defender o projeto da Casa Verde na Câ­mara dos Vereadores de Itaguaí. E defendeu-o "com tanta eloqüência que a maioria resolveu autorizá-lo ao que pedira". O debate em torno da utilidade ou não do asilo, a resistência da maioria ao projeto, tudo se dissolve sob a ação da eloqüên­cia. O foro itaguaiense é, naturalmente, o lugar de eleição para as exibições de oratória, lugar entre todos sujeito à ins­tabilidade e à mobilidade das opiniões.

O episódio político começa, em verdade, mais adiante. Após o primeiros internamentos autoritários de Simão Baca­marte, que tomarão em breve o caráter de prisão em massa, surgem as primeiras vozes, surdas a princípio: "A Casa Verde é um cárcere privado", dirá um "médico sem clínica", com­pleta o narrador. Protesto interesseiro, é claro, mas linda­mente formulado, o suficiente para que passe de boca em boca. Mas a revolução se fará a partir da barbearia de Porfirio Caetano das Neves. O clima é propicio. A barbearia, além das próprias funções, e do lugar habitual de intercâmbio da indis­crição masculina, torna-se uma espécie de contrapoder, em oposição à vereança de Itaguaí, o poder estabelecido. E a bar­bearia conspira. Eles serão trinta a levarem até a Câmara uma petição pedindo o fechamento da Casa Verde. O debate entre o grupo em torno de Porfirio e os vereadores é vivo, lances de oratório sucedem-se, provocando ora o entusiasmo de um par­tido, ora o de outro. Num momento de desânimo extremo dos revoltosos, Porfírio replica afirmando que "não restituiria a paz a Itaguai, antes de ver por terra a Casa Verde" - "essa Bastilha da Razão Humana". O que faltava ao sucesso do movimento foi encontrado, a palavra de ordem, que começa por arrebanhar uma parte da vereança em torno do barbeiro, e pela qual os revoltosos estão prontos a morrer. Eles eram trinta; quando deixam a Câmara, em direção da "Bastilha", são trezentos. E a ascensão irresistível do barbeiro Porfírio

RECORDAR FOUCAULT 151

(apelidado também de Canjica - daí o nome da revolta) co­meça. Novo debate verbal diante da Casa Verde, entre o psi­quiatra e o chefe do movimento revolucionário. Aparente­mente, Simão Bacamarte sai vencedor da contenda; a circuns­pecção, avara em palavras, lança por terra o verbo incendiário do barbeiro. Mas o incidente providencial acontece: as forças da ordem atacam os revoltosos e, sem explicação, uma parte dos dragões passa para o lado dos Canjicas. Ê a vitória, a disso­lução da Câmara, a consagração do barbeiro, apesar dos onze mortos que lá ficam.

No dia seguinte, o barbeiro faz uma proclamação, en­quanto "protetor da vila em nome de Sua Majestade e do povo". O homem está irreconhecível. Ao discurso inflamado sucede uma prosa empolada e oficial. O barbeiro utiliza até o "vós": "Foi-me confiado o mando supremo até que Sua Ma­jestade se sirva ordenar o que parece melhor ao seu Real ser­viço. Itaguaienses! não vos peço senão que me rodeeis de con­fiança, que me auxilieis em restaurar a paz ... " e vai por aí em diante. Os estilos definem homens diferentes: o Porfírio "pro­tetor da Vila de Itaguaí", do "vós", trai o Portirio de ontem e a Revolta dos Canjicas.

O primeiro gesto do novo governo revolucionário é um compromisso com Simão Bacamarte. A "Bastilha da Razão Humana" permanece de pé e a antiga Câmara dos Vereadores é fulminada pelos decretos dos situacionistas de hoje. A dita­dura de Porfírio durará, exatamente, cinco dias, um tempo de reflexão para Simão Bacamarte, que fechará no hospício o barbeiro e os aclamadores do novo governo. Porfírio cai. Sobe ao poder, no mesmo dia, um outro barbeiro, João Pina, no poder por algumas horas, até a chegada das tropas enviadas do Rio de Janeiro para restaurar a ordem em Itaguaí. Muito mais tarde, ao deixarem a Casa Verde, os dois barbeiros, Por­fírio Caetano das Neves e João Pina, confessarão preferir daí para frente "a glória obscura da navalha e da tesoura, às ca­lamidades brilhantes da espada", numa imagem retórica a mais.

Assim termina a fábula desencantada e desabusada da política. As palavras de ordem sonoras movem os homens, os aproveitadores os manipulam. O grito revolucionário de hoje é a proclamação oficial de amanhã. Os barbeiros sobem e caem, um barbeiro vale o outro. São gêmeos, como o Paulo e o Pe-

152 o AliENISTA DE MACHADO DE ASSIS

dro, um monarquista, outro republicano, em Esaú e Jacó. As palavras arrastando os homens à demência.

* * * As reflexões reunidas aqui não são uma leitura foucaul·

tiana de O Alienista, de Machado de Assis, propriamente. Trata·se, antes de tudo, de um estudo estilístico, embora aquela leitura permaneça como um objetivo virtual. É evi­dente que O Alienista solicita um confronto com a visão fou­caultiana da loucura. Em que medida, aliâs, ele não a pre­nunciaria? Por outro lado, o que significaria, em termos his­tóricos, a aparição de um confinamento terapêutico no asilo, isso por volta dos anos 1780 (a cronologia machadiana é indi­reta), no Brasil? Pareceu-me, entretanto, que essas questões surgiam, por assim dizer, de imediato, por elas mesmas.

Em compensação, O Alienista pareceu-me colocar com insistência um outro problema, e este mais embuçado: o do papel da palavra a um tempo todo-poderosa e precâria, mó­vel, quando solicitamos a ela que sirva de fio de Ariadne atra­vés dos múltiplos obstâculos que obstruem os caminhos até a "verdade". A experiência de Simão Bacamarte termina com o isolamento e a morte, na Casa Verde. O psiquiatra manipula e sofre os efeitos dessa palavra servil e traiçoeira. Prisioneiro da sua própria formulação, incapaz de atingir os seus obje­tivos, encontra a solução para tantos dilemas fechando-se só, no silêncio.

.~-

l " ., '"

r

y

I

r

~.

,', ' '-(,-~~~.,-

2~:ir-"'·

A vinha e a rosa: sexualidade e simbolismo em Tristão e Isolda

Hl7áno Franco Jr. *

A partir do ano mil, com a "revolução feudal", dentre o conjunto de lentas e profundas transformações pelas quais passava o Ocidente cristão, a sexualidade - apesar de suas manifestações continuarem a ser normatizadas e controladas pela Igreja - pôde encontrar novas possibilidades de expres­são. De ·um lado, inovações nas técnicas agrícolas permitiram um recuo da mortalidade feminina' e, assim, uma participa­ção mais significativa da mulher na vida social. Desta forma, o homem foi levado a aceitar um intervalo entre seu desejo e a realização deste, com maior respeito à sexualidade femi­nina: neste intervalo é que se pode colocar, por exemplo, o amor cortesão. De outro lado, a revalorização da cultura clâs­sica (igualmente produto das transformações psicossociais do século XII) com a correspondente descoberta do culto pagão ao corpo humano, agiu também no mesmo sentido.

Contudo, é inegâvel a misoginia daquela sociedade, diri­gida por um clero celibatârío - que a par da trifuncionali­dade social estabelecia também uma fronteira sexual entre vir­gens, continentes e cônjuges·' - e por uma aristocracia laica

(*) Da UNESP. (1) Bullough, V. e C. Campbell, "Female longevity and diet in the

Middle Ages", Speculum, 55, 1980, pp. 317-325. 12) Duby, G., Les trais ordres ou /'imaginaire du féoda/isme, Paris, lialli­

mard, 1978, pp. 309-310.

154 A VINHA E A ROSA

guerreira cuja atividade baseava-se no uso da força física, masculina. De fato, o pensamento eclesiãstico da época feudal prolongava o texto sagrado, segundo o qual "a cabeça da mu­lher é o homem" (1 Cor 11, 3), e o de Santo Agostinho, para quem a esposa deve obedecer ao marido como os filhos aos pais e os servos aos senhores. 3 Pouco depois das primeiras li­terarizações do mito de Tristão e Isolda, na passagem do sé­culo XII para o XIII, o bispo Jacques de Vitry ainda consi­derava que "entre Adão e Deus no paraíso não havia senão uma mulher, mas ela não teve um momento de descanso até conseguir a expulsão do marido do jardim das delicias e a condenação de Cristo no suplicio da cruz".' O cronista fran­ciscano, por sua vez, dentre os cinco tipos de mando que des­graçariam um homem colocava em primeiro lugar o mando das mulheres.'

A realidade social, porém, era outra. As transformações próprias da dinâmica feudal revalorizavam a mulher: uma contraprova disso estava no fato de que, com os primeiros si­nais de crise daquela sociedade, em fins do século XIII, de­senvolveu-se novamente um antifeminismo, que se refletiu claramente na literatura.6 Mas as expressões mais fortes da­quela revalorização estavam no desenvolvimento do culto a Maria e da concepção de amor cortesão. Fenômenos estreita­mente ligados, pouco nos importa aqui saber se o amor trova­doresco possibilitou o amor marianista 7 ou se este é que gerou aquele.~ Interessa, isto sim, notar como em ambos se conju­gavam, de forma aparentemente contraditória, a espirituali­zação e a erotização do amor. De um lado, o lamento do tri,!­vador pelo desprezo de sua amada era, em última anãlise, um louvor à sua castidade, funcionando assim metaforicamente

(31 Santo Agostinho, La ciudad de Diós, 2 vais., ed. S. Santamarta dei Rio e M. Fuertes Lanero, Madri, BAC, 1977, XIX, 14.

(4) Apud Power, E., Les femmes au Moyen Age, Paris, Aubier, 1979, pp.18-20.

(51 Salimbene de Adam, Cronica, ed. O. Holder-Egger, MGH SS 32, 65. (6) Payen, J. C., "La crise du mariage à la fi" du XIII siecle d'apres la

littérature française du temps", Famille et parenté dans I'Occídent médiéval, Roma, École Française de Rome, 1977, pp. 413-426.

(7) Hauser, A., História social da literatura e da arte, trad. port., 2 vols., Silo Paulo, Mestre Jou, 2~ ed., 1972. I, pp. 302-304; Marrou, H. 1., Les trou­badours, Paris, Seuil, 1971, p. 176.

(81 Schlegel, A. W .• Vorlesungen ueber dramatische Kunst, I: 14, apud Hauser, op. cito

1~' . . .;.. .. '0'0

~?

~

I

1

L " -'f ", '~

RECORDAR FOUCAULT 155

como uma identificação dela com a Virgem, caso por exemplo do célebre "amor longínquo" de Jauffré Rude!.' De outro, a lírica cortesã tinha inegãveis doses de sensualidade, ainda que sublimadas, da mesma forma que a própria Virgem aparece erotizada em vãrias passagens de suas relações com os devo­tos. IO

Ora, na verdade, tal concepção era bastante antiga, pois para a mentalidade arcaica o sexo estava na ãrea de atuação do sagrado, e não do profano. Para as cosmogonias daquelas sociedades todas as atividades reproduzem atos ocorridos ab origine, de forma que tudo que não tem um modelo exemplar não possui realidade, e, portanto, repetir gestos paradigmãti­cos leva o indivíduo de volta à época mítica do gesto exem­plar.'! Assim, como para muitas daquelas culturas primitivas o sexo estava na origem do mundo, tal ato tinha uma evidente sacralidade e sua prática t:itualizada estava destinada a pre­servar a própria sociedade através da imitação do gesto pri­mordial. Por isso,se o cristianismo dos primeiros séculos, ne­gando qualquer prãtica que considerasse pagã, combatia o carãter sagrado da sexualidade (que, pelo contrãrio, afastaria o homem de Deus), não conseguiu contudo destruir estruturas mentais muito antigas. Assim, por exemplo, na Idade Média a procissão dos rogantes e a bênção da terra eram vistas como prãticas que deviam incrementar as colheitas, conforme os ar­caicos ritos de fertilidade, fazendo parte das forças produtivas tanto quanto qualquer instrumento agrícola. Neste contexto mental, a relação homem-mulher não era apenas um contrato sexo-social, mas trazia em si uma carga mãgica que a cleri­cálização, com a instituição do sacramento do matrimônio, não conseguiu eliminar."

(9) Lanqand li iom son lone en mai, ed. M. Riquer, Los trovadores, 3 vais., Barcelona, Planeta, 1975, I, 163-166.

(101 Jacques de Voragine, La legende dorée, ed. G. B .• 3 vais., Paris, Rombaldi, 1942, 111, 189; Les neuf joies Nostre Dame. A poem attributed to Rutebeuf, ed. T. F. Mustanoja, Helsinki, Suomalaisen Tiedeakatemian Toimi­tuksia, 1952, v. 127; La deuxieme colJection anglo-normande des mirBcles de /a Sainte Vierge et son originallatín, ed. H. Kjellman, Paris-Uppsala, Champion­Akademiska Bokhandeln, 1922, n~ 14,30,46.

(11) Eliade, M., O mito do eterno retorno, trad. port., Lisboa, Edições 70, 1978, pp. 42-50.

(12) Schmitt, J. C., "Religion populaire et culture folklorique", Anna/es E. S. C., 31. 1976, pp. 945-948; Vauchez, A .• La spiritualité du Moyen Age

'''I I; '!~

I: cC

i ~i ;

11. ri !i II i ! li

I,

156 A VINHA E A ROSA

Desde sua implantação, o cristianismo, preocupado em combater o paganismo oficial, não levou muito em conside­ração os antigos resíduos culturais que a própria civilização romana não absorvera. 13 Daí eles terem podido reaparecer no século XI, paralelamente às grandes manifestações heréticas, como parte de um movimento anticlerical mais amplo. Esta reação folclórica, consoliâada a partir da segunda metade do século XII, tinha uma dupla origem. Sociológica, em função do desejo da pequena e média aristocracia de criar uma cul­tura relativamente independente." De fato, na disputa pela apropriação dos resultados econômicos gerados pelas estrutu­ras feudo-senhoriais, alargava-se o fosso entre a aristocracia clerical e a laica, com esta buscando sua própria identidade através de uma cultura montada com materiais antigos, não clericalizados, folclóricos, em suma. Ademais, estãvamos num momento de afirmação das nascentes nacionalidades, de for­ma que o recurso às temãticas locais funcionava como uma oposição ao universalismo da Igreja. Psicológica, em função de o sucesso do cristianismo não ter eliminado estruturas pré­cristãs: "O fato de uma determinada situação psíquica preva­lecer em determinado período não exclui a existência de es­tados anímicos diversos em outras épocas ( ... e) que um es­tado psíquico anteriormente reprimido volte a manifestar-se quando as idéias mestras da condição supressora começam a perder sua força"."

Apesar disso, claro estã, o substrato folclórico continuou a ser filtrado pela cultura clerical, ainda que de forma menos rígida que anteriormente. Essa relativa autonomia dos moti­vos folclóricos tinha seu terreno privilegiado na chama3il "matéria da Bretanha", proveniente do imaginãrio celta, pois a "matéria de França", ou seja, a das canções de gesta, re-

occidental, Paris, PUF, 1975, p. 18, nos conta que ainda no século XI campo­neses enterravam pedaços de hóstia consagrada para aumentar a fertilidade da terra.

(13) La Goft, J., "Culture clericale at traditions folkloriques dans la civi­lisation mérovingienne", in Pour un Butre Moyen Age, Paris, Gallimard, 1977, pp.m·233.

(14) Kohler, E" "Observations historiques etsociologiques sur le poesie des Troubadours", Cahiers de Cívilisatíon Médiévale, 7, 1964, pp. 27-51.

(15) Jung, C. G" Psicologia da religião ocidental e oriental, trad. port., Petrópolis, Vozes, 1983, § 160. p. 97. .

'.:-1

/,

t

~

~

1,~' . .-~

.---'~:" ~.~. ~; .~: .. \

RECORDAR FOUCAULT 157

fletia muito a clericalização da cavalaria e seu espírito coleti­vista, enquanto a "matéria antiga", adaptação de obras clãs­sicas, hã muito jã sofrera Uma significativa cristianização.

É verdade que mesmo a rica mitologia céltica, com sua atmosféra de encantamento e sensualidade, tinha sido bas­tante transformada no seu cruzamento com a mitologia cristã, como testem unha a literatura do ciclo do rei Artur e seus cavaleiros em busca do Santo Graal. Contudo, a lenda de Tristão e Isolda se manteve menos atingida pelo processo de clericalização: por exemplo, enquanto La queste dei Saint Graal faz nove referências aos sacramentos de maneira geral, 16 às virtudes da confissão, oito às da penitência, 31 à missa e 12 ao sinal da cruz," nada disso aparece nas vãrias versões de Tristão e Isolda. Temos aí apenas a figura de um eremita, estranho personagem que compra ricas roupas para Isolda, negocia com o rei Marcos a volta dela à corte, não impõe ne­nhuma penitência aos amantes. Figura que na realidade lem­bra mais um druida celta que um sacerdote cristão.

Neste quadro de uma literatura de base folclórica mas tratada de acordo com as regras cortesãs (portanto feudal e clerical), é que se coloca a mais notãvel representação da nova sexualidade que surgia no OCidente cristão: Tristão e /solda. Nova por recuperar a sacralidade e portanto a legitimidade, perdendo a aura pecaminosa que lhe atribuíra o cristianismo. De fato, se o discurso oficial não deixara de tratar da sexuali­dade, fazia-o, conscientemente, de maneira bastante ãcida. Ou ainda, inconscientemente, por razões inconfessãveis, pois sob o objetivo explicitado de delatar e punir os "desvios se­xuais" (adultério, incesto, posições "antinaturais", bestiali­dade, sodomia, etc.) aquele discurso exteriorizava as pulsões, funcionando como uma vãlvula de escape masturbatória. Por essa dupla razão, a sexualidade aparecia apenas nos relatos de orgias diabólicas, nas descrições dos hãbitos de marginais como leprosos, hereges e sodomitas, na representação literãria e artística dos camponeses, seres feios, imundos e pervertidos.

Contudo, tal postura não podia deixar de ser influenciada pelas transformações estruturais do século XII, especialmente pela mudança na sensibilidade religiosa, que se tomava cada

(16) La queste deI Saint Graal, ed. A. Pa'uphilet, Paris, Champion, 1980, passim .

r li' I lil

I!I

158 A VINHA E A ROSA

vez mais pesso.al que co.munal, interna que externa, privada que pública. Isso. teve reflexo.s histórico.s inlpo.rtantes, do.is do.s quais no.s interessam diretamente. Primeiro., a vida sexual ia passando. ao.s po.UCo.s para o. âmbito. das pesso.as diretamente envo.lvidas na relação., deixando. de ser co.ntro.lada pela so.cie­dade. A iniciativa da Igreja de, no. século. XIII, pro.clamar a indisso.lubilidade do. casamento. e fo.rmalizar um sacramento. que santificasse determinadas relações, estigmatizando. po.r­tanto. as demais, revela claramente sua preo.cupação em no.r­matizar a sexualidade o.cidental, que lhe escapava ao. co.ntro.le. Segundo., na literatura a pro.dução. épica, que partia de um núcleo. histórico. tratado. de aco.rdo. co.m mo.delo.s sócio.-religio.­so.s co.munais e idealizado.s, co.m heróis impesso.ais que encar­navam valo.res de peso. universal para aquela so.ciedade, ia sendo. superada pela literatura ro.manesca. Isto. é,. po.r uma produção. que, partindo. de um núcleo. mítico., permitia maio.r liberdade na anãlise da interio.ridade do.s perso.nagens, das suas mo.tivações psico.lógicas. Assinl, era natural o. recurso. ao. simbo.lismo. para se desenvo.lverem enredo.s carregado.s de sub­jetividade, o. que co.rrespo.ndia ademais à mesma atmo.sfera mental simbólica da espiritualidade da épo.ca.

De fato., o. ambiente essencialmente religio.so. da psico.lo.' gia co.letiva medieval, de aguçada sensibilidade diante das co.i­sas de carãter sagrado., era expressãvel na sua natureza intrin­seca apenas através de símbo.lo.s. O sentido. literal era co.nsi­derado. po.bre, vulgar, e po.r isso. até mesmo. "indigno. de ser recebido. na Escritura tão. santa e tão. autêntica", co.mo. afir­mo.u São. Bernardo.. 17 O mesmo. aco.ntecia, reco.nhecidamelJje, co.m no.sso. o.bjeto. de estudo.: "To.das as fo.rças impulsivas'''da alma, inclusive a sexualidade, participam da elabo.raçãe do.s pro.duto.s sinlbólico.s". I8 Realmente, a linguagem sinlbólica era a única po.ssível para aquela co.ncepção. de mundo carac­terizada po.r sua integralidade, pela inseparabilidade de suas diferentes esferas, ligadas entre si por' analogias sinlbólicas. Não poderia ser de outra forma, pois cada coisa terrestre pos­suía um mo.delo transcendental, arquetípico: "As coisas visí­veis são. transitórias, as invisíveis, eternas" (2 Cor 4, 18). O

(17) Sermonesin Cantica Canticorum, 63,1, PL 183, col. 1080. (18) Jung, C. G., Aion. Estudos sobre o simbolismp do si-mesmo, trad.

port., Petrópolis, Vozes, 1982, § 147, p. 84.

t; . • ,,;.

''Y

,'. .,1 ~ 'u~_"

RECORDAR FOUCAULT 159

próprio. homem era um símbolo., co.m a palavra que o desig­nava, persona, sendo vista como. derivada de per se una ("uni­do por seus próprios meios"), isto é, criado à imagem da tripla pessoa de Deus." Como não havia entre os diferentes fenô­menos relações causais, po.is tudo se reportava à Divindade, causa incausada, cada coisa possuía um valor em função do lugar que ocupava na hierarquia global. Noutros termos, ha­via uma hierarquia de valores e desta derivava uma hierarquia de símbo.los.

No. entanto, as coisas "não podem simplesmente servir de símbolo., nós não lhe damos um conteúdo sinlbólico, elas são símbolos, e a missão. do sujeito iniciado consiste em descobrir seu verdadeiro significado". 20 Ou seja, na interdependência das partes que compõem o todo, a ligação entre elas se dã por asso.ciação sinlbólica a partir de pro.priedades comuns que as confundem com a essência das coisas. Como são muitas aque­las possibilidades associativas, decorre disso uma polissemia dos símbolos, e é em função dessa capacidade explicativa que hã uma forte presença deles nas men.talidades arcaicas: "A 'consciência sinlbólica medieval não. foi engendrada pelo cris­tianismo"." Ela foi, co.ntudo, desenvolvida pela existência de um rico simbo.lismo no.s mitos e ritos cristãos. Portanto, na produção. literãria da "matéria da Bretanha" puderam facil­mente confluir numa vasta ãrea de intersecção, símbolos cel­tas cristianizados e símbolos cristão.s fo.lclorizados, síntese possibilitada pela ausência de divergências fundamentais en­tre cristianismo e antigas crenças celtas. 22 Aí estã, nos parece, o âmago da questão.: a religiosidade profunda, vivida, inde­pendente de diferenças teológicas, constituía o. quadro mental no qual ressurgiu o mito de Tristão e Isolda, sendo. um falso problema a tentativa de estabelecer se aquele quadro era cató­lico." ou cãtaro.."

(19) Gourevitch, A. J., Les catégories de la cLÚture médiévale, Paris, Gallimard, 1983, pp. 299-300.

(20) Bitsilli, P., Elementy srednevekovoj kul'tury, pp. 4-5, apud Gou­revitch, p. 296.

(21) Gourevitch, A., op. cit., p. 298. (22) Markale, J., Le christianisme celtique et ses survivances populai·

res, Paris, Imago, 1983, pp. 129-133. (23) Wechssler, E., Das Kulturproblem des Mínnesangs, Halle, 1909. (24) De Rougemont, O., Damoreo Ocidente, trad. port., Lisboa, Mo­

raes, 2~ ed., 1982.

160 A VINHA E A ROSA

Desta forma, o amor de Tristão e Isolda, que seria cul­poso pelos valores do pensamento cristão oficial, já que adúl­tero, incestuoso e perjuro, foi visto pela espiritualidade laica como natural e divinizado. A reação folclórica e a decorrente laicização da religiosidade e da cultura esvaziavam aqueles conceitos eclesiásticos, resgatando outra interpretação dos fa­tos, mais próxima da realidade mítica. Claro está que era pos­sível uma leitura clerical da lenda, e ela não deixou de estar presente em maior ou menor grau nas diversas versões literá­rias que conhecemos. É por esse ângulo de análise que, por exemplo, J acques Ribard vê a estadia dos amantes na floresta, antítese da vida civilizada, onde falta pão e sal e para onde o casal fora levado depois do filtro amoroso, verdadeiro pecado original, os excluir do paraíso terrestre da corte real. Naquela terra inóspita as roupas de Tristão se esfarrapavam, toma­vam-se sórdidas, reflexo dele próprio, e assim seu pedido de ajuda para consertá-las mostraria seu desejo de purificação. 2S

Nessa linha, poder-se-ia mesmo acrescentar que a falta de pão e sal incomodava por representar a privação dos sacramentos, já que Cristo é o pão da vida (Jó 6, 3:i) cuja ausência compro­metia o bom cristão, que é o sal da terra (Mt:i, 13).

Contudo, uma leitura desse tipo, que privilegia a postura clerical sobre a sexualidade, deixa inexplicada grande .parte do conteúdo do mito e de suas transcrições literárias. Daí pro­pormos uma interpretação mais coerente com a espirituali­dade profunda (e não apenas da elite clerical) do século XII. Ou seja, uma explicação que leve em consideração a emergên­cia de elementos pré-cristãos - vários deles, bem entendidQoc reaproveitados pelo cristianismo - no imaginário da Idade Média Central. Uma leitura, portanto, mais de acordo com o espírito do que com a letra do cristianismo, tal como este era sentido naquele momento de volta às suas origens e de aflora­mento de resíduos folclóricos. Deste ponto de vista, por exem­plo, vemos que, na versão de Béroul,26 o amor de Tristão e

(25) Ribard, J., Le Moyen Age. Littérature er symbo/isme, Paris, Ho­noré Champion, 1984, pp. 95,141-142,147-149,

(26) As versões literárias do mito que utilizamos foram Béroul, Trístan et Yseut, Thomas, Tristan et Yseut, as anônimas La folie Tristan de 8erne e La

t~" .. .---

?

,

• ,~ ..

.,

RECORDAR FOUCAULT 161

Isolda não os afasta de Deus, pelo contrário, já que Ele é Amor e não importam os caminhos para se atingi-lo. Desta forma, negava-se o caráter pecaminoso de uma relação extra­matrimonial, ao se valorizar apenas a intenção, a sinceridade do sentimento, de acordo com a postura menos formalista da época e sobre a qual insiste particularmente Gottfried.27 Ati­tude, aliás, presente na religiosidade popular, que via muitos milagres da Virgem beneficiarem pessoas que haviam pecado mas que lbe tinham uma devoção genuína. 28

Portanto, aquilo que era visto clericalmente como adulté­rio, tinha na verdade sentido oposto. No mito de Artur, a rai­nha Gueniêvre é a Soberania, a Prostituta Sagrada que busca o melhor guerreiro, no caso 'Lancelot,já que o rei pela tradi­ção celta não combate, não é ação mas equilíbrio. 29 Ora, o mesmo se aplica a Isolda, ·de quem Tristão, como principal guerreiro da corte e herdeiro do rei Marcos,3<J devia ser aman­te. Entende-se assim o pouco-caso do rei em comprovar a "traição" da esposa. Um dos poetas que narra a estória insiste mesmo em que "sem dúvida cometeria uma injustiça aquele que reprovasse a Isolda havê-lo enganado. Nem ela nem Tris­tão o enganavam". 31 Ademais, se caracterizado o adultério

folie Tristan de Oxford, todas editadas por Jean Charfes Payen, Paris, GarlJier, 1974, e Gottfried von Strassburg, rristan e Iso/da, ed. Bernd Dietz, Madri, Nacional, 1982. Algumas vezes recorremos ainda às reconstituições tentadas a partir de diversos fragmentos por Joseph Bédier, Le roman de Tristan et Iseut, Paris, Piazza, s. d. (nova ed., Paris, Union Générale d'Éditions, 1981) e Renê Louis, Tristan et Iseut, ,Paris, Librairie Générale Française", 1972, trad. port., Lisboa, Europa·América, 1975, pela Qual citamos.

1271 Gottfried, pp. 39, 42, 129, 246, 257, 32:7, cf. também Béroul, v. 14-17,535,2992-2893.

1281 La deuxieme collection ... , op. cit., n?s 6,8, 11, 12, 13, 14, 16, 20, 21,22,23,25,42,46,47,51,60.

1291 Markale, J., Leroi Arthuret la société ce/tique, Paris, Payot, 1981, p. 206. No Lai de Graelent, todo ano Arthur coloca a rainha nua num banco alto, perguntando se alguém conhecia mulher mais bela, dando·se assim um dos modos do exercício do poder real: Marchello·Nizia, C., ,"Amour courtois, société masculine et figures de pouvoir", Annales E S. C., 36, 1981, p. 980.

(30) Pela filiação matrilinear celta, o sobrinho pelo lado da mãe vinha em primeiro lugar na linha sucessória, antes mesmo Que o filho do sucedido: Markale, J., op. cit., p. 266; Dillon, M. e N. K. Chadwick, Les royaumes cel· tiques, Verviers, Marabout, 1979, p. 158.

1311 Gottfried, p. 335.

162 A VINHA E A ROSA

segundo o prisma da Igreja, isso traria pesadas conseqüências políticas: pelo direito canônico,.a fornicação era um motivo de separação que impossibilitava novo casamento,32 o que dei­xaria Marcos sem o herdeiro natural (Tristão) e sem uma es­posa legítima (Isolda) que pudesse lhe dar sucessor_ Entre o costume celta, que permitiria sem desonra a paz do reino, e as regras clericais que vilipendiariam o rei e lançariam a Cornua­lha na anarquia, Marcos inclinou-se a favor do primeiro.

Da mesma forma, a Igreja via naquela relação um duplo incesto. Um, real, pois, ao se casar com Marcos, Isolda tor­nava-se por adoção tia de Tristão, e este grau de parentesco era dos mais sacralizados: o termo do latim medieval que o designava era thius (donde zio, tío, tio), derivado do grego theios. Isto é, tio/tia possuia conotações divinas, sobretudo pelo lado matemo. Outro incesto, alegórico, mas não menos importante para aquela mentalidade, pois a rainha era vista como mãe simbólica de seus súditos, daí a gravidade da falta de Tristão e Isolda, e a resistência eclesiãstica àquele mito. Isso fica muito claro lembrando-se que Lancelot e Gueniêvre incorreram apenas no segundo desses incestos, e sua lenda pôde desta forma ser mais facilmente clericalizada e aquele personagem tomado um exemplo de cavaleiro cristão. Con­tudo, rotular aquele amor de incestuoso seria vê-lo com os olhos de uma pequena elite eclesiãstica e não com os do pú­blico laico a que se dirigía. Na verdade, a própria Igreja só normatizaria a proibição ao incesto no Concilio de Latrão, em 1215, no momento em que o mito jã tinha recebido suas prin­cipais formulações literãrias. Ademais, em vãrios lugares o incesto continuou a ser prãtica corrente mesmo um século <fe­pois, como na aldeia pirenaica de MontailIou.33 Logo, não se deve estranhar que nas ãreas de forte passado celta - em cuja cultura o incesto era tolerado 34 - a questão fosse encarada de forma não clerical.

Mais ainda, o adultério-incesto não era somente por si mesmo uma forma condenãvel de relação, mas sobretudo por

(32) Duby, G., Le chevalier, la femme et le prêtre, Paris, Hachette, 1981, p. 205.

(33~ Le Roy Ladurie, E., Montaillou, VIl/age occitan, Paris, Gallimard, 1975, p. 265.

1341 Aougement, D., op. cit., p. 118.

1_~··. ..

)

.'. ,

RECORDAR FOUCAULT 163

desmascarar a força, o magnetismo da sexualidade. Ora, esta devia ser sempre escamoteada, como nos revela a etimologia simbólica do casamento: este não elimina o carãter pecami­noso do prazer carnal, mas apenas "deixa oculto o que pode­ria ser vergonhoso. Daí que as assim chamadas núpcias deri­vem da palavra 'nebuloso', conforme nos ensinam nossos an­tepassados".35 Mas Tristào e Isolda revelava o poder da se­xualidade. Jã se observou que em Lancelot, com a subordina­ção do cavaleiro aos valores cortesãos, o sentimento individual se harmoniza com as forças sociais, quer dizer, o amor sagra­do supera o amor profano." A decorrência desse pensamento, não explicitada por Lot-Borodine, mas desenvolvida por Koh­ler, é de que com os amantes da Cornualha teria ocorrido o inverso. Segundo esse autor, baseando-se na versão do anglo­normando Thomas, Tristão aparece como uma critica violen­ta, uma negação do espirito cortesão, como uma. visão pessi­mista do homem, oposta à otimista visão cortesã. Enquanto nesta o amor é um instrumento de perfeição e nobreza moral, em Tristão não hã motivação social, e em vez de superar a alienação entre individuo e sociedade, ela se aprofunda, em vez de reconduzir o herói ao seio da sociedade, faz com que as exigências desta o destruam.37

Esta interpretação deficiente deve-se a uma inadequada consideração da linguagem simbólica e da religiosidade conti­das no mito e nas suas literarizações. É fundamental conside­rar que o público a que Tristào e Isolda se destinava não era menos religioso .por ser laico, mas apenas de uma sensibili­dade diversa da eclesiãstica. Na realidade, como veremos, Tristão e Isolda fundem o amor profano no sagrado, o que só se pode perceber através da anãIise daquela linguagem simbó­lica que nos revela o substrato espiritual comum à mitología céltica e ao cristianismo. De fato, "O simbolismo é a expres­são estética da participação ontológica".38 Assim, por exem­plo, aquilo que à primeira. vista parece ser peIjúrio, era tão-

1351 John de Salisbury, Po/ycraticus, VIII, 11, PL 199, col. 749. (36) Lot-Borodine, M., De I'amour profane à I'amour sacré, Paris, Ni­

zet, 1979, p. 51 .. (37) Kohler, E. , "li sistema sociologico dei romanzo francese medie­

vale", Medioevo Romanzo, 3,1976, pp. 334-335. (38) De Bruyne, E., L 'esthétique du Moyen Age, Louvain, 1947, p. 93,

apudChenu, M. O., La théologie au douzieme siecle, Paris, Vrin, 1976, p. 182.

.,... ........ ' ... IVr, V·- •• ~,~---",.-

~\~I~' ~ .~ .-....... .,,,.., I -\",'1 tAU ..-..... .-~. - "'1 r

164 A VINHA E A ROSA

somente o desrespeito a um formalismo socia!. As falsas ga­rantias de inocência não partiam dos amantes, pois como apaixonados, entregues totalmente ao seu amor, eles estavam literalmente em éktasis, isto é, "fora de si".

Portanto, não eram eles, no sentido da essência de suas almas, que juravam falso. Quando, exemplificando, do episó­dio presente em quase todas as versões e conhecido por jura­mento ambíguo, ou dos disfarces de Tristão como louco, a ação era determinada pela necessidade gerada pelo amor, de maneira que quem agia socialmente, diante da corte, não era ele próprio, cuja essência permanecia intocada. Por isso mes­mo, num desses momentos em que ele está dissimulado em mendigo para poder ver Isolda, não foi reconhecido inicial­mente nem por ela, mas apenas por seu cão," dado impor­tante se lembrarmos que por antiga tradição celta esse animal

A é psicopompo. Noutros termos, como transportador de almas, somente o cão conseguiu ver Tristão em seu âmago. Refor­çando esse ponto de vista, noutra versão literária do mito sig­nificativamente aparece um qão que não precisava comer ou beber, e que era proveniente da ilha de Avalon, o repouso celta dos mortos.4O

Essa idéia da transmutação da pessoa em função de uma vestimenta ou de um sentimento aparecia contemporanea­mente no registro literário de tradicionais contos bretões. Num deles, um homem-lobo só recuperava sua forma humana ao colocar a roupa, que ao ser tirada em determinado local o transformava em anima!." Noutro, por amor a uma mulher muito vigiada pelo marido, o amado se metamorfoseava em ave para alcançá-la no alto da torre em que estava enclau~J­rada." Portanto, Tristão e Isolda, mudados pelo amor, fa­ziam aqueles juramentos sem má intenção, sem culpa no co­ração. Ao se despedir de sua amada, dirigindo-se para o es­trangeiro, o último pedido de Tristão, relembrando o que eles consideravam a essência de sua relação, foi: "Conservai em

(391 La folie de Beme, v. 510-527. (401 Gattfried, pp. 303·304. (41) Marie de France, Bisclavret, v. 63·75, in Les lais, ed. P. Jonin, Pa­

ris, Honoré Champion, 1981 (em francês moderno), e ed. L. A. Cuenca, Madri, Nacional, 1975 (texto bilíngüe francês medieval·espanhol).

(421 Idem, Yonec, v. 109·318.

'-i!';

~ "= "-

RECORDAR FOUCAULT 165

vossa memória quão puro foi nosso amor". 4J Daí Deus, isto é, o próprio Amor, ter inúmeras vezes protegido os amantes." O caso mais célebre é fornecido pela cena do ordálio, na ver­são de Gottfried von Strassburg, em que apesar de um jura­mento de duplo sentido, malicioso, Isolda saiu ilesa ao segu­rar o ferro em brasa, provando. assim sua inocência." Coe­rentemente com essa idéia de que'os amantes não cometiam perjúrio perante Deus, os nobres cortesãos que instigavam o rei contra eles eram chamados de traidores," quando, na ver­dade, pelo costume feudal estavam sendo fiéis ao zelar pelo interesse de seu senhor. No mesmo sentido, o personagem que procurando agradar Marcos vigiava os amantes, dificultando seus encontros, não podia ser senão um "instrumento do de-

'" . ,,47 monlO .

Em suma, a reação folclórica levou as versões literárias a negarem a visão clerical do mito. E a insistirem nos seus as­pectos originais, em primeiro lugar o caráter natural do amor. No conjunto de símbolos que expressam essa idéia, encontra­se inicialmente o famoso filtro amoroso, preparado pela mãe de Isolda para ser dado à filha e ao marido dela no dia do casamento, mas que à noiva e Tristão ingerem ainda a cami­nho do reino de Marcos. Do ponto de vista clerical, esse fato seria uma transgressão ao interdito sobre práticas mágicas para atrair o amor de outra pessoa, falta identificada ao in­cesto, aborto e anticoncepção, puníveis na Alta Idade Média com de 6 a 15 anos de jejum e às vezes proibição perpétua de casar e ter atividade sexual." Do ponto de vista mítico, a aproximação através do filtro os inculpabilizava de qualquer erro, dando ao seu amor um caráter predestinado, divino, de­cidido por forças superiores. É secundário, assim, que em al­gumas versões o filtro tenha sido administrado não intencio-

(431 Gattfried, p. 344. (44) Béraul, v. 352-355, 356, 507, 729, 787, 2735, 4430-4432; lhamas,

v. 6; Gattfried, pp. 250, 283, 264; La falie d'Oxford, v. 805, 947. (45) Gattfried, pp. 298-301. (46) Béraul, v. 18, 36, 100,614, 620, 622, 809, 1630, 2799, 2863, 3000,

3187,3760; lhamas, v. 19. (47) Gattfried, p. 281. (48) Flandrin, J .. L., Un temps paur embrasser, Paris, Seui!, 1983, p.

129.

~-".>

166 A VINHA E A ROSA

nalmente,49 enquanto noutras o foi de forma consciente, jã que a criada de confiança de Isolda percebera sua atração por Tristão.5O

De qualquer forma, o filtro opunha-se ao casamento, re­lação quase sempre sem amor, estabelecida por decisão hu­mana e visando interesses familiares, patrimoniais, feudais ou políticos, como no caso de Marcos e Isolda. Apesar disso, o casamento não excluía na prãtica - diferentemente do pensa­mento eclesiãstico - a satisfação sexual. Assim pensa Tristão ao se atormentar no exílio com a distância da amada, imagi· nando-a nos braços do marido: "Não pode ela ter prazer e vo­luptuosidade sem amor?" .51 Pelo mesmo raciocínio, e so­frendo com aquela dúvida, é que ele resolve se casar, usando "contra o amor o remédio do prazer", o "prazer conjugal" ,52

Contudo, entre os amantes a relação é de outra intensidade e significado, como procura mostrar o mito. O filtro é a força do amor, que pode ser um fim em si mesmo, sem visar necessa· riamente a procriação, como estabeleciam as leis da Igreja. Por isso mesmo, as relações Lancelot-Guenievre e Tristão­Isolda eram estéreis, se bastavam a si mesmas. Enfim, o filtro é expressão do amor, não causa dele. Daí Gottfried não ter limitado sua duração, tomando-o apenas símbolo do poder fatal do amor, capaz de ir além da vontade humana. Béroul, por sua vez, estabeleceu um tempo de eficãcia do filtro, mas insistindo no fato de o sentimento dos amantes não se enfra­quecer depois desse prazo. Na verdade, cessado seu efeito, o amor se tornou "mais forte que nunca". S3

Ê interessante notar que nessa versão o efeito original do filtro acabou três anos depois, na data da festa de São Joã('. Isto é, no dia mais longo do ano no hemisfério norte, quando, portanto, o Sol atinge o ãpice de seu curso, e passa então a declinar. E, de fato, pouco depois os amantes procuraram o eremita Ogrin para os orientar, com Isolda recebendo roupas novas, voltando para o marido, a corte, a vida civilizada -reinserindo-se, por conseguinte, na moral cristã. Ora, isso é

(49) Thomas, v. 2493-2494; Gottfried, p. 234; La folie de Berne, v. 435. 1501 Bêroul. v. 2182·2193; Ed. Louis, pp. 38-42. 151 I Thomas, v. 173-174. 1521 Idem, v. 240, 259-260. (53) Ed. Lou;s, p. 94; ou, ao menos, permanece intacto em Thomas.

v.49-50.

l RECORDAR FOUCAULT 167

bastante expressivo, pois no calendârio religioso celta não ha­via festa do solstício.54 Logo, tal episódio deve ter sido enxer­tado por concessão à postura clerical, Se assim foi, o prazo de três anos não dever ter sido casual, com a conotação divini­zante daquele número servindo para justificar o fim do efeito maléfico da magia do filtro.

Porém, o substrato mítico continuou a ser mais forte, tanto que o poeta renova desde então as referências à força do sentimento, da sensualidade, que atraía os amantes. O cessar da magia apenas revelava a verdade daquele amor, que inde­pendia de artifícios para existir, para se fortalecer constante­mente. Aliãs, ele era bem anterior ao filtro," daí Isolda ainda em sua terra recriminar Tristão por querer entregã-Ia a Mar­cos, com quem ela se recusaria a tomar o filtro, O que faria 'espontaneamente com Tristão. Na verdade ela ingeriu o lí­quido mãgico sabendo que o estava fazendo." Assim, o fim do sortilégio não podia ser o fim do amor, mas apenas de "uma coação mãgica, uma força exterior, invencível e fa­tal".57 A relação entre eles se tomou desde então mais pro­funda e duradoura, por partir de um movimento interno, es­pontâneo, natural.

Essa ligação embriagante, misteriosa, do amor foi selada entre os amantes através da entrega de um anel. Gesto genuí­no, distanciado do hãbito clericalizado e formalizado, que jã perdera boa parte de sua significação profunda, original, daí Isolda ter continuado a usar despreocupadamente, durante o tempo em que viveu com Tristão na floresta, o anel que Mar­cos lhe dera no dia do casamento. 58 Pelo contrãrio, o anel dos amantes resgatava o antiqüíssimo simbolismo do ligar e desli­gar, encontrãvel em vãrias culturas." A idéia aparece entre os hebreus, com Iavé sendo um Deus dos nós;'" os gregos, com Prometeu depois de libertado por Zeus tendo de usar um anel com um pedaço da rocha a que estivera acorrentado, para

163.

(54) Markale, J., Le christianisme celtique, op. cit., pp. 185, 190-191. 1551 Gottfried, pp. 170, 196,206. 1561 Ed. Louis, pp. 32, 40-41. 1571 Idem, p. 94. 1561 Bêroul, v. 2017. 1591 Eliade, M., Images et symboles, Paris, Gallimard, 1979, pp. 120-

1601 Os, 7, 12; Ez, 12, 13; Jó, 19,6.

Ii "I ,I

I II I

I

168 A VINHA E A ROSA

significar sua submissão àquele deus; os romanos, para os quais fascinum (malefício, sortilégio) tinha a mesma raiz de fascia (faixa) e fascis (feixe), daí "fascinio" transmitir a idéia de ligação; os germanos, que numa de suas grandes festas participavam atados em sinal de sujeição às divindades; os cristãos, com Cristo dando ao apóstolo o poder de "tudo que ligares na terra será ligado no céu e tudo que desligares na terra será desligado no céu" (Mt 16, 19).

Entre os celtas, o lais de Yonec fala de um anel que um cavaleiro entregou à sua amante para que o marido dela es­quecesse o ocorrido entre eles; o lais de Guiguemar conta de um nó dado na camisa do herói por sua amada e que só po­deria ser desfeito por quem realmente o amasse." De acordo com essa concepção, é que quando se separaram após os dois anos na floresta de Morois, Isoldá entregou a Tristão um anel cuja pedra, ao ser olhada por ele, lhe revelaria a imagem da rainha.62 Esse mesmo anel tornou-se uma senha para eles, com os mensageiros de Tristão devendo mostrá-lo a Isolda para provar que eram realmente enviados de seu amado. Quando ele voltou do exílio fingindo-se de louco, e ela não o re­conheceu, a indicação definitiva de sua identidade foi o anel. 63

Na noite de seu casamento com a outra Isolda, Tristão ao ver o anel lembrou-se da amada, sentiu a força da ligação e ficou arrependido." De qualquer forma, o que sempre aparece é a concepção de duas pessoas irreversivelmente "atadas".65

Na verdade. ele se casara com Isolda da Bretanha por causa do nome," elemento que no plano simbólico funcional­mente se aproximava do anel, expressava um vínculo. De fato, havia a concepção de que a palavra participa da realidade á'it coisa, daí uma obra contemporânea afirmar que "pelo nome se conhece um homem". 67 Porque "mais aromático que teus perfumes é teu nome" (Ct 1, 3), é que Tristão casou com uma

(61) Marie de France, Yonec. v. 414-419, e Guigemar. v. 558-564. (62) Ed. Louis, pp. 99, 125; para Béroul, v. 2679-2680, Thomas, v. 440-

450, Gottfried, p. 345, e Ed. Bédier, p. 168, mesmo sem a virtude mâgica da pedra, o anel apenas pela sua presença traz a recordação da amada.

(63) La folie de Berne, v. 528-542, e La folie d'Oxford, v. 956. (64) Thomas, v. 440-463, 613-614. (65) Gottfried, pp. 235, 236, 236-239, 243. (66) Thomas, v. 250, 273-264,1057. (67.) Chrétien de Troyes, Le conte du Graal, ed. F. Lecoy. Paris, Honoré L Champion, 1981, v. 560.

t; . ~ ,

-' .,',

'0"-

t RECORDAR FOUCAULT 169

Isolda por amor da outra.68 Mas assim o nome lhe trazia a "lembrança voluptuosa" 69 da rainha e ele se conservava casto com a esposa. Portanto, mantida a força da ligação pelo anel e pelo nome, Tristão, muito saudoso, volta para sua terra e dis­farçado de leproso vai ver Isolda durante uma missa. Ela en­tão, em sinal de reconhecimento e de reafirmação do elo que os unia, entrega-lhe, como se fosse uma esmola para aquele falso mendigo, um anel de ouro. 70

Um dos mais conhecidos episódios, presente em várias li­terarizações da lenda, é o da espada desembainhada colocada entre os corpos de Tristão e Isolda, adormecidos no bosque. Como nesta posição os encontrou Marcos, que enquanto rei encarnava os valores oficiais, cristãos, ele preferiu ver no fato (ou melhor, os clérigos através dele) uma prova da inocência dos amantes. Daí o episódio ter ficado conhecido como da "espada da castidade". No entanto, a colocação da espada separando os dois corpos fora apenas circunstancial, em Bé­roul devido ao extremo cansaço de Tristão depois de horas de dura caçada, em Gottfried ato proposital para iludir Marcos. Não houve, portanto, no gesto nenhuma intenção de casti­dade. Aliás, insiste-se em que aquela foi a única noite, dos dois anos vividos maritalmente na floresta, em que eles não fize­ram amor.71 Na verdade, a espada, mais do que um símbolo da castidade, continuava a ser ali um símbolo fálico, algo que corta, rasga, penetra. O instrumento que desvirginara Isolda tempos atrás. Algo que rompe mas que pode dar vída, fecun­dar, como a espada da alquimia, que opera a separatio ele­mentorum e produz então um novo corpo. Logo, ela não era naquele contexto sinal de afastamento, mas, pelo contrário, simbolizava uma relação próxima, profunda. Por isso Mar­cos, ao encontrá-los, trocou a espada do sobrinho pela sua, marcando desta forma o direito de posse sobre Isolda, que efetivamente pouco depois retornava ao marido. Desfeita en­tão a troca dos companheiros de Isolda, pela lógica do simbo­lismo também devia ser desfeita a troca das espadas. n

(68) Thomas, v. 361-372. (69) Idem, v. 649. (70) Idem, v. 1830. (71) Ed. Louis, p. 87. (72) Idem, pp. 89-103.

170 A VINHA E A ROSA

Instrumento de morte, mas também de vida, a espada é, pois, como um bisturi c~tártico que corta para regenerar: ao decapitar um dos nobres que o indispunha com o rei, que revelava a este seu caso de amor com a rainha, Tristão, com o consentimento divino, extirpava um ma!." Em função disso, completando a tarefa e atingindo seu significado simbólico profundo, ele cortou os cabelos do inimigo, insígnia de poder, de força vital. 74 Logo, ato purificador. Nesse sentido é que a palavra de Deus é a espada do espírito (Ef 6, 17), "viva, eficaz e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes; pe­netra até dividir alma e espírito" (Hb 4, 12). Enfim, disso decorria a concepção medieval de uma proximidade simbólica estrutural entre as duas coisas, o que na língua inglesa foi conservado através dos termos gêmeos word e sword.

Significativamente, estes elementos simbólicos todos (re­velação do sentido do filtro, troca de anéis, espada entre os corpos) tiveram como pano de fundo a floresta de Morois. Ou seja, verdadeira imagem de um bosque sagrado celta, com uma cruz na sua estrada a estabelecer o limite geográfico da cristianização, como se tornara comum na Bretanha rural de fins do século XII. 7s Naquela mata OS enamorados viveram maritalmente, da mesma forma que pela concepção celta a floresta, símbolo feminino, convivia com o Sol, a quem tinha sido dada como esposa pelos druidas. Ora, como veremos, Tristão como hipóstase de Cristo é o próprio Sol, e Isolda, como representação da Virgem, e portanto da Grande Mãe, é a própria natureza. Por isso, aquele era o cenário privilegiado para que os símbolos examinados anteriormente se revelas­sem. Daí a síntese de toda essa simbologia, que expres~a a naturalidade da relação entre Tristão e Isolda, ser a bela ima­gem da aveleira e da madressilva. "Nós dois somos como a madressilva quando se enrola à volta do ramo da aveleira; uma vez a ela ligada e presa, ambas podem durar juntas eter­namente, mas, se as querem separar, a madressilva morre em pouco tempo e o mesmo sucede à aveleira." E Tristão conclui

(73) Béroul, v. 4328-4358. {741 Chevalier, J. e A. Gheerbrant, Dictionnaire des symboles, Par"lst

Robert Laffont, 1982, pp. 184-186. (751 Béroul, v. 1883; Martin. H. e L., "Croix rurales' et sacra~isation de I'espac

e", ArchiVes de Sciences Socia/es des Religions, 43, 1977, p. 38.

, ,-

RECORDAR FOUCAULT 171

com a mais simples e mais tocante definição do amor já dada pela literatura: "Bela amiga, tal é o nosso caso: nem vós sem mim, nem eu sem vós!". 76

O segundo grande conjunto simbólico de Tristào e Iso/da estabelece a divinização do seu amor através da identificação analógica dos personagens com figuras divinas. Ainda que es­tas, na sua forma acabada, fossem fornecidas pelo cristia­nismo, é o caráter arquetípico delas que prevalece. Ou seja, tais figuras, por partirem da herança céltica, satisfaziam o espírito da reação folclórica, e por terem tido seu significado básico presente também no cristianismo satisfaziam o espírito clerical. Esse sincretismo religioso-simbólico teve sua melhor expressão na roseira vermelha plantada no túmulo de Isolda e na videira no de Tristão. 77

De fato, enquanto rosa, Isolda é a representação da Vir­gem. Rosa, pois é o cálice que guardou o sangue de Cristo, por isso o primeiro e verdadeiro Graal, o "vaso da eleição", o "cá­lice do mundo".78 Cristianização, aliás, de uma imagem anti­qüíssima, já que a mulher como fonte, de cujo bojo sai a vida, sempre teve seu corpo comparado a um vaso. Sendo procria­dora, a mulher, e por conseguinte a rosa, era símbolo de rege­neração, daí na Antiguidade ser colocada sobre túmulos, e Hécate, deusa dos Infernos, ser coroada de rosas. 79 Ora, a Virgem era a regeneradora por excelência, pois como instru­mento da encarnação de Deus possibilitou a redenção da hu­manidade. Ademais, ela inúmeras vezes triunfou das forças infernais, salvando almas e conquistando assim a coroa de rosas. Entende-se, pois, que as rosáceas góticas que tinham por centro o Sol representassem exatamente a Virgem com o Cristo no seu interior. Na Rosa do Paraíso que Dante contem­pla e onde se localiza a corte celestial, a figura principal é Maria.'"

(6) Marie de France, Le Chevrefeuille, v. 68~78. (77) Ed. Louis, p. 167. Para Bédier, esta narrativa da morte dos amantes

provém de versões primitivas, enquanto para Payen seria talvez apenas resul­tado de reconstruções (Payen, J. C. (ed.), Tristan et Yseut, op. cit., p. 350), o que de qualquer forma não altera a essência de nossa hipótese.

(78) Evangelio de Bartolomé, 11, 18, 20, Los Evangelios Apócrifos, ed. A. Santos Otere, Madri, BAC, 3!' ed., 1979.

(79) Chevalier e Gheerbrant. op. cit., p. 653. (SO) Divina Commedia, ed. G. Vandelli, Milão, Hoepli, 21 ~ ed., 1979:

Paraíso, XXXI.

,d

172 A VINHA E A ROSA

Ê interessante notar que o símbolo da rosa ligava-se ain­da a outro símbolo vegetal, a oliveira, através de Atená, a deusa de olhos claros nascida em Rodes, a Ilha das Rosas, e a quem aquela árvore estava consagrada. Fato importante, essa deusa, como Maria, nascera de forma singular, pura, imaculada, e apesar de ter sempre permanecido virgem teve um filho de outro deus. 81 Mas, talvez por contraposição, en­quanto Atená vinculava-se à guerra, nas tradições judaico­cristãs a oliveira simbolizava a paz, e foi em razão disso, pro­vavelmente, que uma antiga lenda afirma ter sido a cruz de Cristo feita de oliveira e cedro. Talvez por isso também, aque­la árvore simbolizasse na Idade Média o ouro e o amor." Daí várias vezes Tristão ter-se comunicado às escondidas com sua amada através de gravetos de oliveira, encontrando-se depois com ela próximo àquela árvore. 83 Expressivamente, na versão de Béroul, mais primitiva, a planta daquele episódio é um pinheiro, ligado ao culto da deusa da fertilidade Cibele e de seu filho-amante Ãtis, que morre e ressuscita periodicamente .... Em suma, pelos seus olhos claros como os de Atená e por seu vínculo com a oliveira (ou o pinheiro), Isolda pôde mesmo ser chamada de "deusa", 8S e em função da identidade simbólica Cibele-Atená-Maria, tomar-se igual a elas.

De fato. sua relação com a vegetação reforçava a proxi­midade com a Virgem, cristianização da Grande Mãe, ele­mento central na religiosidade das sociedades agrárias. Nesse sentido, é que a Virgem é a terra da qual por sua pureza sairia o Novo Homem redimindo o antigo, conforme Santo Agosti­nho: "A verdade surgiu da terra porque Cristo nasceu da Vir­gem".'" As raízes desta concepção encontravam-se na mitolo­gia suméria, na qual um dos epítetos de Ninhursag, "a mãe da terra", era Ninsikil-Ia, "a pura senhora", isto é, a virgem.

87

Igualmente mesopotâmico é o título de "rainha do céu" usado

(81) Grimal, P., Diccionario de mitologia griega y romana, trad. esp.,

Barcelona, Paidos, 1982, pp. 59-61. (82) Chevalier e Gheerbrant, op. cit., pp. 653, 555. (83) Gottfried, pp. 279-280. (841 Chevalier e Gheerbrant, op. cit., p. 604. (85) Gottfried, p. 330. (98) Sermones, 189, 11. PL3B, cal. 1006. (871 James, E. O., Os deuses antigos, trad. port., Lisboa, Arcãdia,

1986, p. 82.

RECORDAR FOUCAULT 173

por Ishtar, a mãe-terra do período assírio, em razão de seu esposo ser o deus do céu," título esse que na Idade Média seria um dos nomes mais usados de Maria. Retomando o tema, no século XIII um poema a chama de "terra que dá sustento/ Tu és ( ... ) plátanos, oliva, flores de espinho/ Ci­prestes e palma de vitória (. .. )/ Tu és a força e a fonte/ Que sustentam nossa vida". 89 Ou, segundo a Legenda Aurea, "a terra da qual nasceu Adão era virgem e sem corrupção ( ... ) por isso convinha que o novo Adão viesse da Virgem Maria".90

N a mesma linha, com a cristianização, uma poderosa deusa céltica da fertilidade, dona de grande faculdade cura­tiva, foi substituída por Santa Brígida," cujos milagres esta­vam ligados à reprodução de alimentos e ao verdejamento de madeira já cortada," isto é, às forças da natureza. Foi num local de culto a essa deusa-santa, superficialmente cristiani­zada, que o rei Marcos ergueu uma capela dedicada à Vir­gem," completando, na órbita do mundo celta, a assimilação de Maria com as Grandes-Mães pré-cristãs. Ê ilustrativo tam­bém que no cristianismo a Virgem seja a protetora das prosti­tutas, que tradicionalmente eram as servas-sacerdotisas da Grande Deusa.

Por tudo isso, o culto da Virgem teve terreno favorável entre os celtas, que sempre tinham colocado o principio femi­nino no mesmo plano do masculino, e pode-se mesmo dizer que, nos seus aspectos populares, aquele culto é de origem celta." Ademais, na Bretanha a estatuária representava com freqüência a Virgem, o Filho e Ana, tríade correspondente às Três Matronas gaulesas, coerentemente com as muitas hipós-

(88) Mackenzie, J. L., Dicionário B/blico, trad. port., São Paulo, Pau­linas, 1984, p. 771; Hooke, S. H., Middle Eastern Mythology, Harmondsworth, 1981. pp. 32-49.

(89) Les neufjoies Nostre Dame, op. cit., v. 20, 79-80, 99-100. (90) Lalegendedorée. ed. cit., 111, 250. (91) Powell, T. G., Os celtas, trad. port., Lisboa, Verbo, 1965, p. 122. (92) Legenda aurea, ed. T. Graesse, Osnabrück, Ono Zeller, 1969,

CCIII, ed. G. B., 11, 289-290. (93) Brekilien, Y., La mythologie celtique, Verviers, Marabout, 1981,

pp. 303-304. (94) Markale, J., Le christianisme celtique, op. cit., pp. 231-232.

174 A VINHA E A ROSA

tases celtas da Deusa Mãe. 95 Ora, exilado na Bretanha, Tris­tão recorda-se de Isolda e das coisas ligadas a ela montando a chamada Sala das Imagens,96 uma gruta que decorou com diversas estátuas, com as quais conversava e passava várias horas por dia. A mais importante delas, naturalmente, era a de Isolda, com coroa, cetro e o anel que ela lhe dera, à seme­lhança das imagens dos santos. Mais expressiva ainda era uma pequena cavidade na boca, onde era colocado perfume que se espalhava por todo o ambiente, como se fazia em algu­mas estátuas da, Virgem," lembrando que dela emanam "odores de flores matutinas"."

Também a linguagem utilizada em relação a Isolda re-força essa idéia, seguindo de perto os textos marianistas da época. A rainha da Cornualha, como a rainha dos céus, é um "prodígio deste mundo" .99 Mais ainda, "luminosa e brilhante é tão pura como o ouro da Arábia" , por isso" quem contemple Isolda sentirá purificar-se tanto seu coração como seu espí­rito". Depois, acentuando o para\elo, ela é exemplo de humil­dade, e "a seu lado nenhuma mulher se vê humilhada ou di­minuída em seu valor, como se poderia estar tentado a pen­sar" . N a verdade Isolda, assim como Maria, apaga a mácula de Eva e redime a parte feminina da humanidade, pois "sua beleza embeleza, adorna e cerca a todas as mulheres e a todo seu sexo" ."10 Num expressivo jogo de palavras, Isolda, ao se despedir do amado, o encomenda à rainha dos céus e ele res­ponde: "Eu a bendigo, rainha maravilhosa, e invoco para isso todos os exércitos celestiais" .'01

Como a Virgem e suas correspondentes da mitologia cél­tica, Isolda também se destaca pelo seu poder terapêutico, fazendo verdadeiros milagres ao salvar Tristão dos ferimentos envenenados que recebera na luta contra o gigante irlandês e o dragão. Aliás, ele morre de uma ferida desse tipo, para cuja cura mandara chamar Isolda. O mensageiro recebeu o prazo

(951 Idem. ibidem, pp. 235, 238. (961 Thomas, v. 941-990. {971 Ed. Louis, p. 156; Whitehead, F., "The early Tristan poems". in

Loomis, R. S. (ed.), Arthurian litterature in the Middle Ages, Oxford, Claren-

don, 1979. p. 143. (98) São Leão Magno, Sermo de Annuntiatione, XV, 2, PL 54, colo 510. (991 Gottfried, p. 249. (1001 Idem, p. 178. (1011 Idem, p. 287.

RECORDAR FOUCAULT 17S

de quarenta dias para ir da Bretanha, onde estava Tristão, até a Cornualha, e voltar trazendo a rainha, pois "mais ninguém pode me curar além de Isolda, a loira. Só ela, se o quiser, pode realizar esse milagre" .'02 Prazo significativo, em função do simbolismo do número 40, quase sempre expressando um teste, uma provação. Esses tinham sido os dias do Dilúvio (Gn 7, 4), os anos dos hebreus vagando a caminho da Terra Prometida,'o. os dias de Cristo no deserto.'"' Esse foi igual­mente o número de dias que Tristão no inicio de suas aven­turas passou no mar a caminho da Irlanda buscando alívio para suas dores.'OS Os celtas também acreditavam na eficácia mágica dos grupos de 40 dias para purificação e festas religio­sas."" Mas Tristão não superou aquele teste. Duvidando vá­rias vezes de que o socorro de Isolda chegasse, ele acreditou no ardil ciumento de sua esposa, que lhe dera uma informação falsa fazendo crer que o mensageiro fracassara em sua missão. Por isso Tristão morreu. Morreu de desesperança, mais exa­tamente morreu por falta de fé naquela que "pode realizar esse milagre" .

Por fim, Isolda é também a Virgem por ser a Loira. A concepção dualista que opunha a Luz e as Trevas esteve pre­sente na religiosidade de inúmeras civilizações, e também no cristianismo para o qual "Deus é luz, nele não há trevas" (1 lo 1, Si. Contudo, sempre presente na psicologia coletiva, tal visão ganhou terreno entre a elite clerical ocidental apenas a partir do século IX, graças à tradução latina da obra do pseu­do Dioniso Areopagita. De fato, as idéias deste sobre a hierar­quia celeste permitiam analogias com a sociedade humana, daí terem penetrado definitivamente na teologia e na espiri­tualidade ocidentais na segunda metade do século XII e co­nhecido grande sucesso no XIII com as U niversidades.'07 Por­tanto, no momento das literarizações do mito. Segundo tais idéias, a luz é fonte de toda perfeição, de forma que pela irra­diação da luz os corpos adquirem luz, mais intensa e mais

(1021 Ed. Louis, p. 160. (1031 Ex, 16,35; Nm, 14, 33; Dt, 29, 5. (1041 Mt, 4, 3; Me, 1, 13; Le, 4, 2. (1051 Gottfried, p. 166. (1061 Markale, J., op. cit" pp. 190-191. 11071 Duby, G., Lestrois ordres, op. cit., pp. 141-151; Le Got!, J., La

civilisation de rOccidentmédiéval, Paris, Arthaud, 1967, p. 210.

li

,I

1','1 ,I

I ,i "

I

lii '°'1

II ,li

;j,:!

j:

f I' 'i:

II

176 A VINHA E A ROSA

bela quanto mais próximos à fonte luminosa, Deus. Na lite­ratura, a mais perfeita expressão dessa concepção encontra-se em Dante, que, saindo das trevas do Inferno ao se deparar finalmente com a Divindade, canta-a como "suma luz", "luz que vives de teu próprio ardor" .106 Em suma, "a estética do século XIII se desenvolve num clima particular, o de uma mís­tica da luz" ~09 Assim, talvez se possa entender a insistência com que os poetas chamam Isolda de "a loira". Pela lei básica do simbolismo medieval, cada realidade material expressa de forma imperfeita seu arquétipo espiritual: ela é tão loira e tão bela por estar tão próxima à Divindade.

Na mesma direção, podemos entender a vinha colocada no túmulo de Tristão como elemento simbólico a identificá-lo com Cristo. Na realidade, a associação de deuses e árvores era comum nas mitologias pré-cristãs, como ocorria com Ãtis e o abeto, Osíris e o cedro, Júpiter e a azinheira, Apolo e o lou­reiro."o Mas a videira tinha clara preeminência, sendo iden­tificada na Mesopotâmia com a árvore da vida, dai o sinal sumério designativo de "vida" ter sido originariamente uma folha daquela planta. Assim como a deusa mesopotâmica Si­duri, "a mulher do vinho", a ninfa Calipso da mitologia grega também estava ligada àquela bebida e podia por isso conceder imortalidade.111 Da mesma forma, na tradição judaico-cristã a vinha ocupava papel central, destacando-se das demais ár­vores, que lhe pediam: "Vem tu, e reina sobre nós" (Jz 9, 12). Israel era "a vinha do Senhor Todo-Poderoso" (Is 5, 7). Com Cristo, a associação planta-divindade se transforma em iden­tidade: "Eu sou a verdadeira vide. Eu sou a videira e vós os ramos". (lo 15, 1,5). '"

Ligava-se desta maneira a figura de Cristo à de Dioniso, com o vinho, que era o sangue daquela divindade grega, sendo também o do Filho do Homem. As duas divindades asseme­lhavam-se assim por derramarem o próprio sangue em bene­fício dos homens e pelo decorrente conhecimento dos misté-

(1OS) Divina Commedia, Paraiso, XXXIII, 67, 124. (109) De Bruyne, E., ,Estudios de estática medieval, trad. esp., 3 vais.,

Madri, Gredos, 1958, 111, 15. (110) Cirlot, J. E., Oiccionario de slmbolos, Barcelona, Labor, 4~ ed.,

1981, p. n. (111) Eliade, M., Tratado de história das religiões, Irad. port., Lisboa,

Cosmos, 19n, pp. 344-345. '

T

I

1,' . .-------' --~-~ ...

-'~.' 0,. " 't

RECORDAR FOUCAULT 177

rios da morte. Dai a vinha, antigo símbolo funerário, conti­nuar a sê-lo no cristianismo.112 Assim, o milagre de Caná é semelhante ao ocorrido no templo de Dioniso, com o cálice de Damasco figurando Cristo entronizado entre cachos de uvas, como aquele deus helênico.113 Significativamente, tal milagre ocorreu no contexto de uma festa de casamento, isto é, come­moração propiciatória da fecundidade de um novo casal. Ora, nas tradições de origem semítica, o vinho era símbolo de co­nhecimento e de iniciação, em função da embriaguez que pro­voca,1I4 por isso não poderia faltar naquele momento. Em razão disso, Cristo, mesmo lembrando que "minha hora ain­da não chegou" (Jo 2, 4), ou seja, a de derramar seu san­gue, o vinho do mundo, transformou a água em água da vida, vinho.

Portanto, o arquétipo Cristo, divindade que morre e res­suscita, estava profundamente relacionado com as forças da natureza, da fecundidade. Da mesma maneira que Osíris re­nasce todo ano nos cereais,115 Cristo o faz no pão, pois Ele é o "pão da vida" (Jo 6, 35). Logo, por coerência com a lógica interna do pensamento mítico, também Cristo deveria ser fi­lho-amante da terra, isto é, da Virgem. E a própria videira era um dos elementos dessa relação, já que, segundo Eliade, pri­mitivamente a Deusa Mãe era chamada de "Deusa tronco de videira" ."6 Ademais, há uma estreita ligação, no pensamento místico, entre o leite materno e o vinho.117 Como as demais divindades que morrem e ressuscitam, Cristo associava-se ao Sol pelo simbolismo do ressurgimento, da imortalidade e da luz. Mais ainda, sendo o Solo centro do céu como o coração é o centro do ser, e sendo o coração uma vinha (Ct 1, 6), os dois símbolos fundiam-se em Cristo. Logo, duplo caráter do mor­rer e renascer, fazendo de Cristo uma divindade ctônico-ce­leste, que na mitologia celta aparecia sob a forma de uma

(112) Chevalier e Gheerbrant, op. cit., p. 802. (113) Romano de Sant'anna, A., O canibalismo amoroso, São Paulo,

Brasiliense, 1984, p. 278. (14) Chevaliere Gheerbrant, op. cit., p, 804. (115) Frankfort, H., Reyes y dioses, trad. esp" Madri, Alianza, 1983,

p.207. 11161 Eliade, M., op. cit., p. 344. (117) Durand, G., Las estructuras antropológicas de lo imaginaria, trad.

esp., Madri, Taurus, 1981, p. 248.

178 A VINHA E A ROSA

tríade. Esses deuses eram o filho da aveleira, o filho do arado, o filho do So1.118

Ora, Tristão encarnava aquela tríade e, ergo, o próprio Cristo. Ele mesmo, como vimos, comparava-se a uma verda­deira aveleira, árvore de claro significado simbólico para cel­tas e germanos. De um lado, expressava o desenvolvimento da experiência mística, com a vara feita de sua madeira sendo atributo druídico e instrumento de feiticeiros, que a utiliza­vam para localizar mananciais e minérios no ventre da Mãe Terra. Estava assim ligada à fertilidade e por tal motivo asso­ciada aos ritos nupciais. Por outro lado, enquanto árvore no seu significado mais amplo, a aveleira evocava a verticalidade, a ascensão para o céu. Lembrava também o caráter cíclico da natureza, a morte e a regeneração periódicas. Estabelecendo a ligação entre os três níveis, subterrâneo com as raízes, terres­tre com o tronco, celeste com acopa, vinculava-se com o simbo­lismo da cruz: Orígenes via Cristo, por metonímia, tornado árvore do mundo, enquanto São Boaventura afirmava que "a cruz é uma árvore de perfeição; sacralizada pelo sangue de Cristo, é farta de todos os frutos" .119

Tristão ligava-se ainda ao arado, instrumento de civiliza­ção, pelo episódio da destruição do dragãoi20 Enquanto o simbolismo clerical procurava identificar aquele monstro ao Diabo, as tradições folclóricas atribuíam-lhe um caráter am­bíguo, de forças incontroladas da natureza.l21 Isto é, a vitória sobre ele representava a submissão daquelas forças, portanto um feito civilizacional, coerente inclusive com o significado da videira, planta cultivada pelo homem e que não se desenv91ve bem espontaneamente. Reuniam-se assim as duas vertentes mentais do século XII presentes no mito literarizado. De um lado, na tradição celta o arado participava do simbolismo do começo do mundo, com a relha, lembrando o falo, penetrando a terra, abrindo um sulco análogo ao órgão sexual feminino. De outro, na tradição cristã a madeira e o ferro com os quais

(1181 Powell. T. G., op. cit., p.129. (119) Chevaliere Gheerbrant, op. cit., pp. 536, 230, 48-53, 255. (1201 La folie d'Oxford, v. 414-418; Gottfried. pp. 188-191. (121) Le Goff, J., "Culture ecclesiastique et culture folklorique au

Moyen Age: Saint Mareei de Paris et le dragon", in Pour un autre Moyen Age, Paris, Gallimard, 1977, pp. 251 e segs.

"

RECORDAR FOUCAULT 179

era feito o arado simbolizavam a união das duas naturezas de Cristo.!22

Por fim, Tristão, pela força, pela beleza, pelos cabelos loiros,!" vinculava-se ao Sol. Ao saber de sua morte, Isolda voltava-se para o oriente, local do ressurgimento diário do Sol, dirigindo seus lamentos diretamente ao amado, como que a esperar que ele dali reaparecesse.'" Por isso Marcos, ao en­contrar os amantes dormindo na floresta, cobriu - com uma luva, insígnia de poder, nas versões de Béroul e das Falies, com folhas e flores na de Gottfried - um raio de sol que tocava o rosto de Isolda, iluminando-o e tornando-o mais belo. O maiido se interpunha desta forma entre os apaixonados, cortava a luz que os aproximava, a mesma luz que no pensa­mento cristão unia Cristo e Maria e na concepção celta o Sol e a floresta. Não por acaso, pouco depois daquele episódio ces­sou o efeito do filtro mágico. Em síntese, a tríade divina ave­leira-arado-Sol estava presente simbolicamente tanto na men­talidade céltica quanto na cristã. Por essa razão, ao se iden­tificar com uma, automaticamente a imagem de Tristão se identificava com a outra, tornando possível afirmarmos que ele era uma hipóstase de Cristo.

N a verdade, tal papel se revelara desde O nascimento, com sua mãe Brancaflor sendo aproximada à figura da Vir­gem. De um lado, por seu nome denotar pureza, de outro por se descrevê-la - como era comum em apologias marianistas - como inspiradora de devoção, levando todos a terem "em maior consideração as mulheres" graças àquele "prodígio terreno".!25 A analogia com a descrição que se fazia de Isolda é clara e não deve causar estranheza, pois um dos princípios básicos do simbolismo medieval era o silogismo tipológico. Ou seja, da mesma forma que se via o Antigo Testamento pre­nunciar o Novo, com cada personagem e cada fato deste tendo um modelo naquele, os pais de Tristão, pelas suas persona­lidades e pela sua relação, antecipavam o caso de amor de Tristão e Isolda.

(122) Chevalier e Gheerbrant, op. cit., pp. 166-167. (1231 La folie de Beme, v. 283; Gottfried, pp. 96, 207. 11241 Thomas, v. 3080-3082. 11251 Gottfried, pp. 51-52.

,I

180 A VINHA E A ROSA

Ademais, seguindo o mesmo princípio simbólico, expli­cava-se a adoção do pequeno príncipe órfão, Tristão, por par­te de um marechal do reino, como forma de ocultar a verda­deira identidade do garoto afastando-o dos inimigos de seu pai, numa clara referência ao episódio bíblico de Herodes e do menino Jesus.'" Na sua primeira façanha ocorre outra apro­ximação desse tipo. Ao enfrentar o gigante irlandês Morholt, inimigo da Cornualha que exigia deste reino um tributo em vidas humanas, Tristão cortou-lhe a cabeça, como David fi­zera a Golias. Da mesma forma ainda que o gigante filisteu desprezara seu oponente, jovem, loiro, de boa aparência e bom músico com a lira, o irlandês fizera com o rapaz bretão, que em tudo correspondia à descrição do vencedor de Go­lias.127 Ora, pelo silogismo tipológico Jesus era descendente de David (Rm 1, 3; 2 Tm 2, 8). Por fim, na mesma linha, pouco ao tes de expirar, Tristão invoca o nome de Isolda nos moldes em que Cristo fizera na cruz com o Pai.

No cruzamento daqueles dois eixos simbólicos, encontra­mos a idéia central de nossa hipótese. Isto é, sendo aceitável a demonstração quanto à identificação de Tristão com Cristo e de Isolda com a Virgem, a conclusão se impõe por sua própria lógica: a relação entre eles afigurava-se aos olhos da Idade Média Central como uma hierogamia simbólica. Tal visão foi tornada novamente possível graças às condições psicológicas do século XII ocidental, favoráveis ao reaparecimento daquele fenômeno presente na espiritualidade de longuíssima dura­ção. De fato, em quase todas as cosmovisões pré-cristãs, a hie­rogamia estava nas origens do universo e das próprias divin­dades, devendo ser imitada ritualmente para a preservação -ia humanidade, pois era o gesto primordial, gerador por exce-lência.

No Egito o deus-criador Atum criou de si próprio o casal Sju e Tefnet (ar e umidade), cujos filhos eram Geb e Nut(terra e céu), dos quais nasceram os pares Osíris-Ísis e Set-Nefitis. Ê interessante ver que enquanto aquelas cinco primeiras divin­dades representavam uma cosmologia por descreverem ele­mentos primordiais e sua inter-relação implicar uma história da criação, as quatro últimas estabeleciam uma ponte entre a

(1261 MI. 2,1-4.16; Gottlried, p. 75. (1271 15m, 17, 4-7.51.42.14-23; Gottlried. pp. 142-156.

'.

RECORDAR FOUCAULT 181

natureza e a humanidade.'" Por isso, o filho de Osíris e de sua irmã Ísis era identificado com o rei encarnado, Hórus, que na verdade se tornava rei ao ocupar o trono, isto é, ao relacio­nar-se com Ísis, vista como o trono deificado. O sentido pro­fundo da hierogamia se completava, então, com o fato de o rei morto tornar-se Osíris, e seu filho ao tomar o trono converter­se numa nova manifestação de Hórus. Portanto, Ísis era a mãe-amante de Hórus e a esposa fiel de Osíris,129 daí o hábito ritual de o faraó casar-se com a própria irmã.

Diferentemente, enquanto no Egito era um deus que fa­zia o papel de rei no ato sexual, na Mesopotâmia o rei repre­sentava o papel de deus, usando um epíteto de Tammuz, que significava "Grande Governante do Céu" na sua relação com a Deusa-Mãe, Ishtar.'30 Esse matrimônio sagrado ocorria na festa do Ano Novo, destinada a redespertar a fecundidade da natureza. Desta forma, também naquela civilização o arqué­tipo se repetia. A deusa-criadora Nammu deu à luz Anu (céu) e Ninhursag (terra), que engendraram Enlil, que se unindo à sua mãe formou a vida vegetal e animal. A manutenção dessa vida dava-se através de outra hierogamia, entre a Mãe-Terra e seu filho Tammuz, o jovem rei que morria e ressuscitava para benefício dos homens ao agir sobre o ciclo da vegetação. O mesmo esquema existia na região sírio-palestina e sobreviveu por muito tempo, mesmo depois da introdução do monoteísmo judaico. Igualmente, sua presença é atestada nas culturas da Ásia Menor e da área egeu-cretense.13I Da mesma maneira ainda, na concepção grega os deuses surgiram da hierogamia entre o casal primordial, Gaia (terra) e Urano (céu).132

Enraizadas portanto na mentalidade, na longuíssima du­ração, tais concepções não poderiam deixar de estar presentes no cristianismo desde suas origens. A Virgem, como sabemos, é a terra, o princípio feminino, que foi fecundada pelo poder celeste, masculino, através do Espírito Santo. Assim, Maria é

(1281 Franklort, H., op_ cit., p. 204. (1291 Idem, ibidem, pp. 165,201,205. (1301 Idem, ibidem, p. 317. (1311 James, E. O., op. cit., pp. 92-114. (132) Hesiodo, Teogonia, ed. J. Torrano, São Paulo, Ohno-Kempf,

1981, v. 126 e se9s.

I

182 A VINHA E A ROSA

mãe-esposa de Deus, repetindo o arquétipo hierogâmico pelo qual Deus quer se renovar no mistério das núpcias celestes, corno ocorria no caso egípcio. Para tanto foi escolhida urna virgem, vaso puro para o futuro nascimento de Deus, porém assim ela se afastava da humanidade, cuja característica é o pecado original, ganhando então aspecto divino, ou seja, ha­vendo a identidade entre Mãe e Filho atestada diversas vezes na mitologia."3 Isto é, para gerar um Deus do Deus, ela de­veria ser pura como Ele: "Sendo virgem, desposou contudo um esposo, o Cristo" .134 Nessa direção, já nos séculos III-IV um texto fala de corno Cristo dirigiu-se a um monte (símbolo de ascensão mística), produziu urna mulher tirando-a de seu próprio lado e uniu-se carnalmente a ela. Ao fazê-lo, Ele era concebido corno segundo Adão e ela, alegoricamente, corno a Igreja, sua esposa. Prolongava-se assim urna concepção hiero­gâmica muito antiga, com aquela visão cristã fazendo parte do mito sagrado: "A esposa-filha tornou-se mãe, dando à luz o Pai sob a figura do Filho" .135

Também entre os celtas a renovação da fecundidade, por conseguinte a manutenção do equilíbrio universal, dava-se através de um casamento sagrado, entre o deus Dagda e a deusa Morrigan. lJ6 Assim, é natural que os personagens do mito revelassem o significado essencial da hierogamia, pre­sente tanto na psicologia celta quanto na cristã. No seu triplo aspecto de filho da aveleira, do arado e do Sol, Tristão mani­festava seu papel de esposo da Mãe-Terra, penetrando-a com as raízes da árvore, símbolo fálico por excelência, mordendo­a e rasgando-a com os dentes da charrua, aquecendo-a com seu próprio calor. Noutros termos, era o Cristo-Tristão unin­do-se à Virgem-Isolda. De fato, foi corno enviado de Marcos (Pai) que Tristão (analogicamente aí corno Espírito Santo) tratou do casamento de Isolda (tornada então Mãe) transfor­mando-se ipso facto em Filho, mas antes mesmo da própria concretização formal dessa condição (gerada pelo-:matrimô­nio Marcos-Isolda) fazendo-se Amante dela.

(133) Jung, C. G., Psicologia da religião ocidental, op. cil., §§ 625-628, pp.399-402.

(134) Santo Agostinho, De saneta virginitate, XII, PL 40, col. 401. 11351 Jung, C. G., Aion, op. cit., §§ 314-323, pp.192-198. 11361 Powell, T. G., op. cit., p.120.

"

RECORDAR FOUCAULT 183

Contudo a união definitiva é posterior, quando, aniqui­lado Satanás, Cristo pode enfim realizar as núpcias com sua mulher, a nova Jerusalém, que brilha corno um jaspe precio­síssimo incrustado em ouro puro (Ap 21,2.18), semelhante ao anel que Isolda dera a Tristãoi37 Destarte, simbolicamente os amantes da Cornualha se ligavam corno Deus à sua Cidade Santa. Aliás, quando um cavaleiro amigo de Tristão entrou no quarto em que ele estava com Isolda, o local lhe pareceu "reino celestial" .138 De fato, transformados em sua natureza pelo amor, Tristão e Isolda se identificam definitivamente com seus modelos celestes e irão realizar suas núpcias eternas no céu. É o que Tristão, fingindo-se de louco, ou melhor, negando seu lado humano e social, revela diante de Marcos e de toda sua corte, dizendo que iria viver com Isolda no céu, num palácio "todo de vidro, magnífico e espaçoso. O Sol lá resplandece de todos os lados. Ele flutua no céu, suspenso entre as nuvens, sem nenhum vento sacudi-lo ou agitá-lo. Ele tem um quarto feito de cristal e mármore. O Sol, na alvorada, o iluminará completamente" .139

Desta maneira, compreende-se por que o filtro os fez "se converterem em um só ser unido" ,140 de acordo com a concep­ção contemporânea da unia mystica. Realmente, naquela época, segunda metade do século XII, as experiências místi­cas ocidentais estavam sendo pela primeira vez sistematiza­das, partindo do Cântico dos Cânticos, interpretado corno um diálogo entre Deus, identificado a um amante, e a alma, apre­sentada corno Sua amada. Segundo essa visão, o homem é a imagem do mundo por seu corpo e de Deus por sua alma, mas este elemento divino ficara oculto por causa do pecado origi­nal. Porém, Deus restaurou aquela semelhança através da Encarnação, e assim Maria tornou-se um modelo para o cris­tão. Portanto, a alma-esposa em busca de Deus deve procurar se assemelhar à Virgem e tornar-se mãe para dar nascimento ao espírito divino.14I Fusão total, portanto, entre amante e amada, daí "Isolda minha amada, minha amiga, em vós mi-

11371 La folie de Berne, v. 528-542. 11381 Gottfried, p. 218. 11391 La folie de Berne, v. 166-169; La folie d'Oxford, v. 300-308. 11401 Gottfried, p, 235. 11411 Vauchez, A., op. cit., pp.159-160.

r

:1

184 A VINHA E A ROSA

nha morte, em VÓS minha vida" .142 Por isso, na hora da par­tida de Tristão para o exílio, da separação terrena, Isolda lembra ao amado que tinham formado um só coração e que "assim continuarâ sendo eternamente, e durarâ pelos séculos dos séculos". A união mística é completa, pois, ela acrescenta, "somos um só corpo e uma só vida ( ... ) Tristão e Isolda, vós e eu, ambos somos para a eternidade um só ser, sem diferença alguma" .143

A antecipação dessa união celeste e eterna ocorreu na Gruta do Amor, símbolo fundamental, representando a volta às origens, ao útero da Grande Mãe, mas também um novo início enquanto gruta da Natividade de Cristo. Antecipação, pois, que é uma regressão, ou melhor, uma re-atualização do gesto primordial que se projetava no futuro. A realização da dialética hierogâmica. Um eterno retorno. Essa gruta é des­crita na versão de Gottfried von Strassburg como uma cate­dral gótica nos seus vârios detalhes, tendo no centro, ao invés de um altar, uma cama "talhada em cristal com grande es­plendor e pureza, alta e larga, belamente construída" .144 Por­tanto, no mesmo local em que ocorre o mistério do amor eu­carístico, ocorre o da eucaristia do amor. Com a união espiri­tual e carnal, Tristão e Isolda tornavam-se a hóstia e o Graal, administrando-se mutuamente o verdadeiro sacramento: "Le­vavam consigo, oculto sob suas vestes, o melhor alimento que cabe encontrar no mundo".'45 E esse amor, na vida e depois dela, é que sustenta os homens, por isso "sua vida e sua morte são nosso pão. Assim vive sua vida, assim vive sua morte. As­sim continuam vivendo, ainda que tenham morrido. Sua mor­te é pão para os vivos" .146

Concluamos. Se o incesto é desejo de união com a essên­cia de si próprio, o incesto simbólico entre Tristão-Cristo e Isolda-Virgem é o encontro da essência divina no ser humano e do humano na Divindade, o que correspondia aos anseios e necessidades profundas da espiritualidade do século XII. Logo, a melhor expressão dessa realidade psíquica estâ, como

11421 Gottfried. p. 361. 11431 Idem. pp. 345-346. 11441 Idem, pp. 317-318. 11451 Idem, p. 319. 11461 Idem, p. 44.

'. i ,

RECORDAR FOUCAULT 185

não poderia deixar de ser, sintetizada numa fórmula do pró­prio texto de Tristão e Isolda. Nessa se reflete não apenas a condição amorosa no plano humano, de companheirismo e atração sexual, mas também no celeste, fonte e objeto de amor. Mais que isso, espelha a dialética do amor profano e do amor sagrado. Sacraliza novamente a sexualidade, resgatando sua beleza e pureza. Despindo-a de sua fantasia de lado me­nor da afetividade. "Ne vus sanz mei, ne mei sanz vus."

'!,

Charles Baudelaire: o discurso em desordem*

Nicolau Sevcenko

o que me estimulou a preparar essa comunicação foi a constatação do que me pareceu ser um feliz encontro entre os textos de Charles Baudelaire e de Michel Foucault. Chamou­me a atenção o fato de que parece haver entre ambos quase que uma mesma intuição, um mesmo sentimento a respeito da atração e do risco que nos colocam a criação e a enunciação dos discursos. Os dois autores manifestam um sentido muito claro da volúpia de entregar-se ao fluxo difuso e indetermi­nado da fala. Mas ao mesmo tempo os escritos dos dois auto­res denotam, com uma força contundente, uma terrível des­confiança quanto à cadeia, ao sistema de grilhões que ele re­presenta. Tomemos de imediato alguns exemplos dessa ati­tude ambivalente, oscilante, irresoluta. Primeiramente, uma carta de Baudelaire a seu tutor financeiro, M. Ancelle, de 18

(*) As reflexões sobre Baudelaire aqui apresentadas fazem parte de um pequeno ensaio destinado à Editora Brasil"lense, cujos referenciais analíticos e teóricos são: Pia, P"I Baudelaire, Seuil, 1982; Bersani, L., Baudelaire et Freud, Paris, Seuil, 1981; Richard, J.-P., Poésie etprofondeu', Paris, Seuil, 1976. Os poemas de As flores do mal são da tradução de Jamil Almansur Haddad, pu­blicados em 3~ edição pela Editora Max Limonad em 1981. Os textos em prosa são da tradução de Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira para os Pequenos poemas em prosa, 4~ edição, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980. Usamos igualmente a edição das Oeuvres completes de Charles Baudelaire, da Editions Robert Laffont de 1980. O texto básico de Michel Foucault que utilizamos é EI orden dei discurso, Barcelona, Tusquets Editor, 1983. I

RECORDAR FdUcAULT 187

de fevereiro de 1866, em que ele se queixa da má acolhida de As flores do mal junto à crítica parisiense.

"Devo dizer-vos, a vós que não o percebestes tal como os outros, que neste livro atroz eu coloquei todo meu coração, toda minha ternura, toda minha religião (travestida), toda mi­nha raiva? Ê verdade que eu escreverei ao contrário, que eu jurarei por todos os deuses que é um livro de arte pura, de afetação, de mistificação, eu estarei mentindo como todos os dentistas." (O. C., p. 929, grifos do original)

Em seguida, o suposto diálogo que F oucault estabelece, logo no início de A ordem do discurso, entre o desejo e a ins­tituição.

"O desejo diz: 'Não queria ter que entrar eu mesmo nesta ordem casual do discurso; não queria ter relações com quanto há nele de taxativo e decisivo; queria que me rodeasse como uma transparência tranqüila, profunda, indefinidamente aberta, na qual outros responderiam à minha espera, e da qual brotariam as verdades uma a uma; eu não teria mais do que deixar-me arrastar nele e por ele, como algo abandonado, flutuante e feliz'. E a instituição responde: 'Não há por que ter medo de começar, todos estamos aqui para te mostrar que o discurso está na ordem das leis, que desde há muito se zela pela sua aparição; que se lhe preparou um lugar de honra que no entanto o desarma e que, se consegue algum poder, é de nós e unicamente de nós que o obtém'." (O. D., p. 10)

Eis um desagradável cruzamento que se opera no espaço do discurso, para ambos os autores, entre o calor da volúpia e a frieza do controle. Há aí um perigo a esconjurar, há poten­cialidades caóticas que devem ser barradas para que uma or­dem estável possa se instaurar. Segundo Foucault, a nossa civilização se caracteriza como aquela na qual mais se honra­ram e mais se difundiram as diversas práticas discursivas, es­tabelecendo diferentes sistemas de falas e de intercâmbios de símbolos entre os homens. Por outro lado, e em virtude mesmo dessa proliferação, desenvolveu-se no seu interior um temor surdo, relativo às potencialidades dispersivas latentes nesse impulso inelutável à multiplicação das falas.

Para aplacar essa germinação caótica e ameaçadora, o discurso é instituído como uma consciência abstrata, identifi­cada com a vontade de verdade que assinala nossa cultura desde a crítica socrática, estabelecendo desse modo todo um

,

J: .~

188 o DISCURSO EM DESORDEM

sistema de regras, limites, censuras, proibições e condições restritivas para que possa ser enunciado, aceito e compreen­dido. Tais precauções põem a nu as evidentes vinculações do discurso com o poder e o desejo. Nesses termos, o discurso aparece com a força de uma inquietação.

..... inquietação com respeito a essa existência transitória destinada a desaparecer, porém segundo uma duração que não noS pertence, inquietude ao sentir sob essa atividade, não obstante cotidiana e opaca, poderes e perigos difíceis de ima­ginar, inquietude ao suspeitar a existência de lutas, vitórias, feridas, dominações, servidões, através de tantas palavras nas quais o uso, desde hã tanto tempo, reduziu as asperezas."

(O. D., p.IO Essa efervescência de perigos latentes, insondãveis e im-

previsíveis só pode ser esconjurada portanto através de um rigoroso sistema de controles. E é desses controles que Michel Foucault nos fala nessa conferência denominada A ordem do discurso, pronunciada como aula inaugural do College de France em 2 de dezembro de 1970. Controles que ele aponta, critica e denuncia, porque lhe tolhem o prazer, lhe limitam a expressão e lhe impõem direções e fins que ele sente não ter sido ele próprio quem propôs. E no entanto, motivo de es­panto, faz a conferência com evidente mal-estar e ao mesmo tempo com extraordinãrio brilhantismo. Trata-se de uma con­ferência exemplar, rigidamente adstrita a todas as normas e convenções da fala ritual, as quais Foucault respeita com ad­mirãvel e embaraçante escrúpulo. Assim como Charles Bau­delaire criou As flores do mal premido entre o "Spleen e o Ideal" , como diz o subtítulo do seu livro, ou seja, entre a me­lancolia e a submissão aos imperativos éticos.

Os mecanismos de controle do discurso que Michel Fou­cault aponta e dos quais pretende se evadir são basicamente três: os princípios do comentãrio, do autor e da disciplina. O princípio do comentãrio figura uma regra restritiva segundo a qual haveria um grande livro bãsico, ou um grande texto ele­mentar, disperso numa rede definida de livros, que só ele po­deria dar legitimidade à reprodução do discurso, entendido assim como uma eterna reiteração deste. Historicamente, esses textos bãsicos poderiam ser substituídos numa seqüência contínua por alguns de seus comentãrios, que se tornariam dessa forma o novo texto bãsico e assim por diante.

i

RECORDAR FOUCAULT 189

O princípio do autor, por sua vez, seria o nexo decisivo da produção discursiva. Ele pode ser difuso como na ciência, ou individualizado como na literatura. Seu papel é instituir um foco estãvel de coerência, uma origem unívoca para o fluxo da fala, um sentido inconfundível e determinado de unidade. Dentro desse mesmo espírito, o princípio da disciplina no sen­tido das ciências ou do gênero no da literatura, constitui a gama de regras e disposições metodológicas que instauram as condições imprescindíveis e indispensãveis para que um dis­curso possa ser manifestado.

A esses três poderia ainda ser acrescentado o princípio do ritual, que estabelece as exigências, as garantias, as circuns­tâncias, os comportamentos e os sistemas de precedências e tabus que condicionam a produção e enunciação dos discur­sos. Esse é o caso da própria conferência pronunciada por Foucault, em que ele revela uma cuidadosa atenção para com todas as exigências do cerimonial. Atravessando todos esses princípios, estaria a determinação fundamental: a de que todo discurso enunciado se preencha e se formule sempre e apenas como um recurso de produção da verdade. Requisito último que atribui ao discurso uma fisionomia ética nítida, uma res­ponsabilidade produtiva e utilitãria e um vetor finalista.

Inconformado com essas imposições restritivas, o filósofo francês procura explicar esse confronto entre o impulso espon­tâneo à proliferação do discurso e a reação disciplinadora, re­correndo à psicanãlise e às suas reflexões sobre a ação insidio­sa do poder. "O discurso, por mais que aparente ser pouca coisa, as proibições que recaem sobre ele revelam, de ime­diato, sua vinculação com o desejo e o poder. E isto nada tem de estranho: jã que o discurso - a psicanãlise no-lo demons­trou - não é simplesmente o que manifesta (ou encobre) o desejo; é também o que é o objeto do desejo; e jã que - isto a história não cessa de nos ensinar - o discurso não é simples­mente aquilo que traduz as lutas ou OS sistemas de domina­ção, mas aquilo pelo que e por meio do qual se luta, aquele poder de que todos querem se assenhorear". (O. D., p. 12)

Foucault, portanto, compreende o discurso como sendo imediatamente vinculado ao desejo e observa a sua repressão como um ato político de interdito à consumação do desejo, buscando na psicanãlise a justificativa dessa formulação. Creio que se poderia evocar a esse propósito as indicações que

I li

li! 'Ir

-,,, ...

190 o DISCURSO EM DESORDEM

Freud fornece em A interpretação dos sonhos, do desejo como sendo um impulso de natureza fantasmática, ou seja, uma disposição voltada para a produção de imagens. Quando o de­sejo se manifesta, ele produz uma disposição física em direção a um objeto e simultaneamente uma disposição psíquica de evocação de imagens associadas primariamente à satisfação do desejo. As imagens reforçam as sensações físicas e vice-

versa. Assim, é fácil perceber que a simples evocação dessas

imagens já proporciona por si só uma satisfação parcial do desejo, produzindo um estado de enlevo e volúpia que pode ser uma forma de prazer em si mesmo. É isso que permite a associação do desejo com elementos e situações os mais ines­perados. É nisso, por exemplo, que reside em grande parte o prazer de dizer, escrever ou ler poesia. É esse o estímulo eró­tico que muito provavelmente envolve as atividades discursi­vas. E, se uma das raízes do discurso é o desejo, os mecanis­mos voltados para o controle das práticas discursivas fazem parte do complexo aparato cultural destinado ao controle dos instintos. Mas, querendo negar esses mecanismos, o mestre da História da loucura acaba obedecendo a todos eles, como já vimos. o mesmo, aliás, parece ocorrer com Charles Baude-

laire. No caso do poeta, entretanto, há latente na forma mesmo

da composição dos textos um impulso irresistível de transgres­são, que ele próprio denominava de "fúria" ou "espanto", e que rompe parcialmente com o aparato de controle que sub­mete os textos e as falas. É por isso que o livro chocou tanto, causou tanto mal-estar, foi tão perseguido e é até hoje uma fonte provocante de perturbação e mistério. Não me refiro, evidentemente, a pseudo transgressões de ordem temática, como seus famosos poemas sobre o lesbianismo, mas a meca­nismos de escape internos à sua poesia, por onde filtrava a ameaça do caos que ele próprio tanto temia.

A rigor, num primeiro exame, não parece haver nada de novo na poesia de Baudelaire em relação à tradição no interior da qual ele se forma e da qual ele parece ser uma repetição conservadora. Podem-se apontar como evidentes os sinais de respeito aos princípios do referencial, como as dedicatórias, menções e alusões de suas poesias aos mestres inspiradores: Victor Hugo, Théophile Gauthier, Lecomte de Lisle, princi-

I

I

I L

RECORDAR FOUCAULT 191

palmente. Do mesmo modo, suas poesias introdutórias pare­cem ter o objetivo precípuo, como ordena o princípio do au­tor, de definir já de saída a identidade unívoca e coerente do "eu" poético. E, quanto ao gênero, os criticos sempre o en­quadraram dentre os conservadores da forma, identificando-o com as linhagens do classicismo ou do parnasianismo. No que se refere ao simbolismo, para cujos poetas Baudelaire era uma referência decisiva, parece não haver grande dúvida de que os simbolistas foram muito mais baudelairianos do que o autor de As flores do mal foi simbolista.

Ao mesmo tempo e numa análise mais profunda, nos de­paramos com elementos, em sua poesia, que já nada têm a ver com a prática poética tradicional. Isso ocorre particularmente no que se refere à mobilidade do "eu" poético e à errância do desejo, o qual se difunde num fluxo indeterminado que se es­vai sem compromissos de nenhuma espécie, sem objetivo, di­reção ou finalidade, consumando-se no próprio gozo da elocu­ção, no prazer da metamorfose contínua, permanente e im­previsível das imagens. Observando-se por esse viés, torna-se possível acompanhar como o poeta abre fissuras no aparato de controle imposto ao discurso e procura minar insidiosamente essa couraça, ansiando detoná-la por inteiro.

Nesses termos, a critica ao princípio do referencial apa­rece em Baudelaire como um ato de desmascaramento. Isso pode ser vislumbrado com cristalina clareza no seu poema em prosa denominado "Perda da Auréola". Relata o poeta: " ... Ainda há pouco, quando atravessava a toda pressa o bulevar, saltitando na lama, através desse caos movediço onde a morte surge a galope de todos os lados a um só tempo, a minha auréola, num movimento precipitado, escorregou-me da ca­beça e caiu-me no lodo do macadame. Não tive coragem de apanhá-la. Julguei menos desagradável perder minhas insíg­nias do que ter os ossos rebentados. De resto, disse com meus botões, há males que vêm para bem. Agora posso passear in­cógnito, praticar ações vis e entregar-me à crápula como os simples mortais. E aqui estou, igualzinho a você, como está vendo! ( ... )".

Assim, num único gesto, o poeta se despe da condição idealizada e circunscrita no universo espiritual em que a tradi­ção o mantinha e reassume sua condição humana, a materia­lidade do real concreto, cotidiano e brutal das grandes cidades

I

I I

I': I

L,~

192 o DISCURSO EM DESORDEM

e pode se dirigir para os recantos sombrios e clandestinos da metrópole moderna, onde as palavras proibidas são ditas e os desejos obscenos aplacados. Ele se assume assim, na sua con­dição humana e miserável, como o seu próprio referencial. Esse ataque à respeitabilidade mística do discurso, do autor e do gênero reaparece com igual contundência nos famosos ver­sos que concluem o poema "Ao leitor" com o qual ele abre As flores do mal. Referindo-se ao tédio, ele profere esses ver­sos de uma audácia petulante: "Tu o conheces, leitor, esse monstro delicado, / - Leitor hipócrita - meu semelhante - meu irmão". A identificação com o leitor em termos de fraternidade fica ainda mais chocante quando o laço comum que se estabelece entre ele e o poeta é o da hipocrisia, que ambos compartilham na mesma dose. Hipocrisia, bem enten­dido, diante da instituição e da cerimônia literária, denun­ciada aqui como um jOgO de imposturas de que o leitor e o escritor compartilham com a mesma dose de má vontade e ci­nismo.

A própria disciplina do gênero é extravasada nas peque­nas peças em prosa em que o poeta subverte a economia ética das formas estéticas, ao esvaziar o sistema controlador dos significantes por meio de uma libertação indeterminada, im­previsível e desconcertante da significação. Um ato tão per­turbador quanto, por exemplo, o de ajoelhar-se todo para­mentado no confessionário de uma igreja, com as mãos postas e, em voz baixa, ritmada e solene, concentrado e contrito, pronunciar uma receita de bebê assado. Lembremos, por exemplo, a história do "Tiro ao alvo". "Um homem vai ao tiro de pistola acompanhado da sua mulher. Ele coloca uma bo­neca no lugar do alvo e diz à sua mulher: 'Estou imaginando que é você'. Ele fecha os olhos e abate a boneca. Logo após, beijando a mão de sua companheira, ele diz: 'Meu anjo que­rido, não sabes o quanto te agradeço pela minha pontaria'." (O. C., p. 396) Não há nessa história nenhuma finalidade, so­mente o livre fluxo de um impulso de pura crueldade.

A mesma fluidez indeterminada se manifesta nas poesias de As flores do mal, nas quais se opera um movimento duplo e correspondente de mobilidade do "eu" e de errância do de­sejo, onde, junto à diluição da idéia de identidade monolítica do autor, há uma quebra quanto à expectativa de coerência das emoções e um encadeamento descontínuo das metáforas.

'.

!

l 'i

RECORDAR FOUCAULT 193

Tomemos apenas quatro breves exemplos. As três estrofes fi­nais do poema "À que é muito alegre", terminam com esses versos sublimes e dramáticos:

"Assim eu quisera uma tarde Quando a hora das volúpias soa Âs arcas da tua pessoa Subir assim como um covarde E castigar-te a carne louca, E magoar teu seio perdoado E impor a teu flanco espantado Uma ferida larga e oca, E, deslumbramento sereno, Através desses novos lábios, Muito mais belos e mais sábios, Inocuíar-te o meu veneno!". (F. M., p. 160)

A volúpia do poeta aqui funde a violência e o prazer se­xual, ao abrir uma ferida no flanco da amante e transformá­la num sucedâneo ainda mais excitante do sexo da mulher, indo nela depositar a semente da sua perversão, Já no poema "A bênção", logo no início do livro, essa situação está inver­tida. O fluxo da volúpia é identificado na mulher que goza ul­trajando o amante perversamente. O agressor é transformado na vítima, mas, estranhamente, nem por isso a intensidade do prazer diminui.

"Grita a Sua mulher, pelas públicas praças: 'Se eu tão bela lhe sOu e ele me ama em seu carme, Um ídolo eu serei, como o das velhas raças, Como ele eu quererei redóurar-me;

Mas eu me embriagarei de nardo, incenso e mirra, E de genuflexões, de vinhos, de carnagens, A ver se eu posso. num coração que me admira, Usurpar a sorrir. divinas homenagens!

E quando eu me cansar dessas farsas ímpias. Eu nele pousarei forte a mão de mansinho; E com unhas iguais às unhas das harpias, Até seu coração abrirei um caminho.

I'!

;~~j

~-_ ....... -

194 o DISCURSO EM DESORDEM

Como um pássaro novo e que treme e palpita, Arrancar-Ihe-ei do peito o coração aceso Depois, para saciar a besta favorita, Hei de atirá-lo ao chão com todo meu desprezo'.·' (F. M .. p. 87)

Uma transição desconcertante do desejo que confunde a identidade do "eu" poético e torna insondáveis os rumos da consumação do desejo. Situação que fica ainda mais obscura num poema como o "Heautontimorumenos" (verdugo de si mesmo), cujas estrofes finais são:

"Eu sou a ferida e o punhal! Eu sou o rosto e a bofetada! 'A roda e a carne lacerada. Carrasco e vítima afinal.

Vampiro de meu coração, Eu sou destes ahandonados Ao riso eterno condenados E que nunca mais sorrirão!". (F. M .. p. 219)

Por fim, dentre nossos quatro exemplos, o poema "A ser­pente que dança", que inverte uma vez mais a situação do poema" À que é muito alegre". Já não agora com a mudança da origem da disposição cruel do homem para a mulher (como em "A bênção"), mas como um novo e sutilíssimo movimento de metaforização do sexo da mulher, representado aqui rela boca, que ao invés de ser o resultado de uma ferida produzida pela brutalidade perversa do amante. aparece como a imagem terrível por excelência da suprema ameaça figurada pelo sexo com dentes, o terror obsessi.vo da castração, sendo o homem quem vai buscar ali o sêmen fertilizador simbolizado pela sa­liva que umedece os dentes da amada. Eis as quatro estrofes finais:

"F o teu corpo se alonga e pende Tal nave sem mágoa.

Que as margens deixa e após estende Suas vergas na água.

Onda crescida da fusão

" L,

RECORDAR FOUCAULT

De gelos frementes Se a água da tua boca então

Alcança os teus dentes,

Bebo uma taça rubra e cheia Muito amarga e calma,

Um líquido céu que semeia Astros em minha alma!". (F. M., p. 131)

195

Os movimentos do desejo provocam tamanhas e tão com­plexas mudanças de fluxo e situação, que todos os referenciais se perdem num jogo em que as metáforas descontroladas é que se apossam da consciência ea arrastam para direções im­previsíveis como a estranha sintaxe dos sonhos e das fantasias. O signo dominante é o descontrole, e a sucessão das metáforas se consuma como uma latência evocativa de imagens desejan­tes desconexas.

Dessa forma é que aquilo que em Michel Foucault apa­recia como uma intenção, manifesta-se em Baudelaire como uma condição. Enquanto o filósofo apresenta um projeto de subversão, o poeta assinala o próprio ato subversivo: a quebra da unidade, da coerência, da referência, da reverência, da uti­lidade e dos fins éticos. Preso, muito embora, ainda ao dis­curso dominado, ele demonstra ao mesmo tempo toda a sua força e os seus pontos de clivagem, por onde o esforço corro­sivo não só é possivel, mas indispensável. Como se, presos ambos numa gaiola, Foucault apontasse a grade e Baudelaire serrasse as barras.

~

11"1

" ,I I

o lugar das instituições na sociedade disciplinar

Salma Tannus Muchail*

"Que há de espantoso no fato de que a prisão se assemelhe às usinas. às escolas. às casernas, aos hospitais. e de que todos se assemelhem às prisões?"

(M. Foucalt, Sun1eilfer et punir. p. 229).

Algumas considerações preliminares

Buscaremos reconstituir aspectos do pensamento de Foucault no tratamento das assim chamadas "instituições dis­ciplinares". Preliminarmente, convém situar este texr a no contexto mais amplo daquele pensamento.

Sabe-se que. Foucault está voltado para os discursos ou práticas discursivas. A inclusão de análises e descrições de práticas institucionais no interior de um pensamento preocu­pado com os discursos pertence, certamente, à questão das imbricações entre o nível discursivo e o nível extradiscursivo. Ora, esta é uma questão que, particularmente, em relação aos primeiros livros de Foucault, foi (ou é) objeto de polêmica e tema de interesse. Para dar um exemplo, lembremos algumas passagens de um livro sobre Foucault, publicado em 1971, sob o título O homem e o discurso. A arqueologia de Michel

(*) Da PUC de São Paulo.

· .,§

RECORDAR FOUCAULT 197

Foucault. Já a "Apresentação", depois de afirmar que "a obra de Foucault é uma reflexão sobre o discurso", segue caracte­rizando os livros do autor até então publicados conforme eles levem ou não em conta alguma "transitividade" entre o dis­cursivo e o extradiscursivo. A "Entrevista" com Foucault, in­cluída no mesmo volume, retoma constantemente a questão, fazendo ver que nos seus primeiros livros (História da lou­cura, de 1961, e O nascimento da clínica, de 1963) "o discurso é bastante permeável às práticas sociais (extradiscursivas)", ao passo que em As palavras e as coisas (de 1966) "essas prá­ticas desaparecem quase completamente, para renascerem na Arqueologia (de 1969), sob um modo reflexivo, mas redefini­das como práticas pré-discursivas". I Do mesmo modo, o ar­tigo "A gramática do homicídio" identifica fases na trajetória de Foucault, recorrendo ao mesmo critério. 2

Contudo, a questão sofre, a nosso ver, um deslocamento considerável, a partir da publicação dos livros Vigiar e punir (1975) e A vontade de saber (1976), quando, pode-se dizer, a trajetória de seu pensamento é marcada pela passagem da "arqueologia" para a "genealogia". Desde então, quando Foucault busca, explicitamente, atrelar a questão da consti­tuição de saberes a modos de exercícios de poder, a análise se descentraliza do eixo "discursivo/não-discursivo", para apro­ximar-se de um eixo mais complexo a que o autor chama "dis­positivo". O "dispositivo", com efeito, envolve tanto o nível do discurso quanto o do extradiscursivo, ou antes, coloca esta questão em um plano de menor importância. Eis o que ele escreve: "Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo, que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes ele­mentos". E segue mostrando que, com este termo, pretende'

(1) "Entrevista", em O homem e o discurso. Arqueologia de Michel Foucault, org. por S. P. Rouanet, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1971, p,19.

(2) S. P. Rouanet, "A gramática do homicídio", em O homem e o dis­curso, pp. 107 e segs.

j i

i~'

'I~ '~i,

...... _ ....

198 O LUGAR DAS INSTITUiÇÕES NA SOCIEDADE DISCIPLINAR

ainda "demarcar a natureza da relação que pode existir entre estes elementos heterogêneos" ("discursivos ou não"), bem como evidenciar a "função estratégica" do dispositivo, na me­dida em que responde à articulação entre produção de saber e modos de exercício de poder que é dominante em cada mo­mento histórico. 3 De sorte que poderã afirmar: "Mas, em re­lação ao dispositivo, não é muito importante dizer: eis o que é discursivo, eis o que não é" . 4

O que aqui nos ocuparã é a anãlise de instituições enten­didas, pois, como elementos de um "dispositivo" articulador das relações entre produção de saberes e modos de exercício de poder. Não, porém, genericamente. Retomaremos a des­crição de um tipo determinado de instituições: aquelas que, num dado momento histórico, constituem peças na engrena­gem de um tipo determinado de sociedade, que é ainda a nossa, e que Foucault chama de "instituições disciplinares".

A instalação das instituições disciplinares

As conferências que compõem o texto A verdade e as for­mas jurídicas (1974) descrevem uma história da produção de saberes baseada em determinadas prãticas sociais (as prãticas jurídicas oujudiciãrias) que foram capazes de gerar modelos de estabelecimento da verdade. Ao longo deste estudo, Foucault descreve o surgimento e os caracteres do que denomina "socie­dade disciplinar", dedicando-se, na última conferência, a uma abordagem mais centralizada sobre as instituições inseri­das neste tipo de sociedade. Tomaremos este texto' por referên­cia para resumir, brevemente, o que ele nos diz sobre a socie­dade disciplinar e nos deter na questão das suas instituições.

A sociedade disciplinar tem seu surgimento por volta dos fins do século XVIII. Caracterizando-se, principalmente, como um modo de organizar o espaço, de controlar o tempo, de vigiar e registrar continuamente o indivíduo e sua conduta,

(3) Cf. M. Foucault, "Sobre a história da sexualidade", em Microfísica do Poder, trad. R. Machado, Rio de Janeiro, Graal, 1979, p. 244.

141 Idem, p. 247. (5) M. Foucault, A verdade e as formas jurídicas, "Cadernos da PUCI

RJ", série Letras e Artes, 6/74, n? 16, 1984.

1:

RECORDAR FOUCAULT 199

a sociedade disciplinar deu lugar ao nascimento de determi­nados saberes (os das chamadas ciências humanas), onde o modelo prioritãrio de estabelecimento da verdade é o "exa­me"; pelo "exame", instaura-se, igualmente, um modo de po­der onde a sujeição não se faz apenas na forma negativa da repressão, mas sobretudo, ao modo mais sutil do adestra­mento, da produção positiva de comportamentos que definem o "indivíduo" ou o que "deve" dele ele ser segundo o padrão da "normalidade".

Concomitantemente ao surgimento de saberes e ao exer­cício do poder disciplinares, instalam-se também determina­das instituições a eles articuladas. Foucault toma como mo­delo prenunciador destas instituições um projeto de arquite­tura, o Panóptico, elaborado em fins do século XVIII pelo jurista inglês Jeremy Bentham. Retomemos uma das passa­gens onde Foucault descreve este projeto arquitetônico:

"O princípio é: na periferia, uma construção em anel; no centro, uma torre; esta possui grandes janelas que se abrem para a parte interior do anel. A construção periférica é divi­dida em celas, cada uma ocupando toda a largura da cons­trução. Estas celas têm duas janelas: uma abrindo-se para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, dando para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de um lado a outro. Basta então colocar um vigia na torre central e em cada cela trancafiar um louco, um doente, um condenado, um operãrio ou um estudante. Devido ao efeito de contraluz, podem-se perceber da torre, recortando-se na luminosidade, as pequenas silhuetas prisioneiras nas celas da periferia. Em suma, inverte-se o princípio da masmorra; a luz e o olhar de um vigia captam melhor que o escuro que, no fundo, prote­gia".' Uma outra passagem descritiva do projeto conclui com a seguinte observação: "O Panopticon é a utopia de uma so­ciedade e de um tipo de poder que é, no fundo, a sociedade que atualmente conhecemos - utopia que efetivamente se realizou".7 Este tipo de sociedade e de poder é perpassado pelo que Foucault denomina "panoptismo".

(6) Cf. M. Foucault, "O olho do Poder", em Microfísica do Poder, p. 210. Esta descrição praticamente reproduz a que se encontra em Surveiller et punir, Paris, Gallimard, 1975, pp. 201-202.

(7) M. FoucauJt, A verdade eas formas jurídicas, p. 69.

LO

I \

l

," fi!,:

~,

2üO O LUGAR DAS INSTITUIÇÕES NA SOCIEDADE DISCIPLINAR

Na realização do "panoptismo", as primeiras instituições que, por volta do início do século XIX, foram instaladas, ti­nham, segundo Foucault, uma forma "compacta, forte", sendo depois substituídas por instituições de iguais caracterís­ticas, mas de "forma branda, difusa". 8 Elas marcaram o apa­recimento de fábricas, hospitais, escolas, casas de correção, prisões, etc., cujas características de fundo ainda hoje perma­necem. Foucault chama-as ainda de "instituições de seqües­tro", em razão de que a reclusão que elas operam não pre­tende propriamente "excluir" o indivíduo recluso, mas antes, "incluí-lo" num sistema normalizador. Eis uma passagem es­clarecedora: "Na época atual, todas essas instituições - fá­brica, escola, hospital psiquiátrico, hospital, prisão - têm por finalidade não excluir, mas, ao contrário, fixar OS indiví­duos. A fábrica não exclui os itldivíduos; liga-os a um apa­relho de produção. A escola não exclui os indivíduos; mesmo fechando-os, ela os fixa a um aparelho de transmissão do sa­ber. O hospital psiquiátrico não exclui os indivíduos; liga-os a um aparelho de correção, a um aparelho de normalização dos indivíduos. O mesmo acontece com a casa de correção ou com a prisão". 9

Tentaremos, a seguir, descrever, de modo genérico, o que seria o traço mais básico das instituições disciplinares e, a par­tir daí, as funções que lhes cabe cumprir.

Caracteristica básica: do espetáculo à vigilância

Pode-se dizer que o traço característico fundamental da, instituições disciplinares está desenhado no seu modelo de arquitetura, tal como é anunciado no projeto do Panopticon. Recorrendo inclusive a autores contemporâneos ao surgimen­to destas instituições e que desenvolveram estudos a respeito (N. H. Giulius, autor de Lições sobre as prisões, de 1830, e J. B. Trei1lard, autor de Motivos do Código de Instrução Cri­minal, de 1808), Foucault realça a transformação que, na ar-

(81 Idem, p. 90. É ilustrativo ler (no mesmo texto, pp. 86-88), a longa descrição Que Foucault fornece do regulamento de um destes tipos de insti­tuições, que, em sua forma mais "compacta", realmehte existiu na França dos

anos 1840-45. 191 Idem, pp. 91-92,

k

RECORDAR FOUCAULT 201

quitetura das instituições, teve por efeito invertê-las de uma arquitetura de espetáculo a uma arquitetura de vigilância. Re­portando-se a Giulius, faz ver como, na civilização grega an­tiga, por exemplo, a arquitetura atendia à necessidade de pos­sibilitar a exibição de espetáculos ao maior número possível de pessoas (para isto, "a arquitetura dos templos, dos teatros, dos circos");" este tipo de construção respondia a um tipo de sociedade marcado pela participação da comunidade nos mo­mentos de mais unidade na vída pública ("sacrifícios religio­sos, teatro ou discursos políticos").ll Não que este modelo te­nha desaparecido por completo; porém, ·na sociedade mo­derna, organizada na forma estatal, transformam-se as neces­sidades e transforma-se a arquitetura. "Numa sociedade, diz Foucault, onde os elementos principais não são mais a comu­nidade e a vida pública, mas de um lado os indivíduos priva­dos, e de outro o Estado, as relações só podem ser reguladas numa forma exatamente inversa ao espetáculo." 12 Isto é, a arquitetura deverá então assegurar não mais que espetáculos sejam dados ao maior número de pessoas, mas que indivíduos sejam dados como que em espetáculo a um olhar vigilante. E (a partir de Giulius) lembra a metáfora do "olho" com que então se simbolizava o imperador: "O imperador é o olho uni­versal voltado sobre a sociedade em toda a sua extensão. Olho auxiliado por uma série de olhares dispostos em forma de pi­râmide a partir do olho imperial e que vigiam toda a socie­dade" .13

Mediante uma vigilância que é "ao mesmo tempo global e individualizante", onde o "anteparo da escuridão" é subs­tituído por uma "visibilidade isolante", vai-se constituindo então um tipo de poder que se exerce "por transparências", uma dominação que se faz como que por "iluminação". I'

Foucault lembra que, se o projeto de Bentham fora ins­pirado na arquitetura já existente da Escola Militar de Paris (1751), contudo, a designação que lhe deu - "Panopticon"

encerra uma generalização altamente significativa. Com

(10) M. Foucault, Surveilleretpunir, p. 218. (1 H M. Foucault, A verdadeeas formasjurldicas, p. 85. (12) M. Foucault, Surveilleretpunir, p. 218. (13) M. Foucault, A verdadeeas formasjurldicas, p. 86. (14) Cf. expressões usadas pelo autor em "O olho do Poder", em Mi­

croflsica do Poder, pp. 210, 216-217.

I'

..

I" I

'~ , Ii

202 o LUGAR DAS INSTlTUIÇOES NA SOCIEDADE DISCIPLINAR

efeito, o projeto e seu nome não carregam apenas a idéia de uma técnica específica destinada a "resolver um problema es­pecífico, como o da prisão, o da escola ou o dos hospitais", mas sustentam "um princípio de conjunto" 15 capaz de inau­gurar o que viria a ser o desenvolvimento de toda uma nova forma de poder. Assim, não é por acaso que o próprio Ben­tham refere-se à sua invenção como "um ovo de Colombo" e Giulius vê nela "um acontecimento 'na história do espírito humano'" ,16

Entendido assim como "princípio de conjunto", o traço básico do panoptismo articula-se com transformações funda­mentais e gerais na ordem do poder. Basta apontar, por exem­plo, as conseqüências vantajosas que acarreta para os custos políticos e econômicos do poder. Do ponto de vista propria­mente político, possibilita uma crítica ao funcionamento do poder monárquico, que, exercendo-se com violência aparente e garantindo sua continuidade através de punições espetacu­lares para efeitos de exemplo, acaba por se tornar "um poder muito oneroso e com poucos resultados". 17 Economicamente, o controle contínuo é de uma eficácia pouco dispendiosa, efe­tivando-se através da organização de uma cadeia de olhares vigilantes que, finalmente, cada indivíduo "acabará por inte­riorizar a ponto de observar a si mesmo", exercendo a vigi­lância "sobre e contra si mesmo"; portanto, mais que uma técnica particular, é uma "fórmula maravilhosa: um poder contínuo e de custo afinal de contas irrisório". 18

Eis também por que, entendida assim a visibilidade como princípio geral, este sistema basicamente "ótico" 19 desdú­brar-se-á no aperfeiçoamento, na multiplicação e na diversi­ficação de instrumentos de vigilância (até os mais sofisticados) de modo a que as instituições disciplinares cumpram, efetiva­mente, diversificadas funções que respondem à instalação e ao desenvolvimento da sociedade disciplinar.

(15) Idem, p. 217. (16) Idem, pp. 209, 211, 218. Veja-se também: Surveiller et punir, p.

218, e A verdade e as formas jurídicas. p. 85. (17) M. Foucault, "O olho do Poder", em Micro'!sica do Poder, p. 217. (18) Idem, p. 218. Veja-se, a este respeito, Surveiller et punir, pp. 219-

220. (19) Cf. M. Foucault, "O olho do Poder", em Microfísica do Poder,

p.211.

" '. • 1-.

RECORDAR FOUCAULT 203

Funções

Controle do tempo

A vigilância é, nas sociedades modernas, uma maneira de dispor do tempo do indivíduo, de modo sobretudo a atender às necessidades da industrialização. Controlar o tempo é transformar o tempo do trabalho em mercadoria trocada por salário, mas é mais ainda: é transformar todo o tempo dos homens em tempo de trabalho. Controlados são os tempos de festa, de prazer, de ociosidade, de descanso. Foucault mostra que certas técnicas, aparentemente criadas para a proteção do trabalhador, na verdade têm a eficácia de controlar todo o tempo de sua vida. Um exemplo disto é a concessão de au­mentos salariais e de fundos de economia, que, contudo, não podem ser usados pelos trabalhadores "no momento em que desejarem, para fazer greve ou para festejar". 2J)

De maneiras mais abruptas ou mais sutis e com diferen­tes técnicas, pode-se dizer que o controle do tempo é exercido continuamente não só nas fábricas, como nas escolas, nas pri­sões, nos orfanatos, nos hospitais, nas casas de correção, etc., como um dos nós que amarram esta rede de instituições.

Controle dos corpos

Aparentemente, cada uma das instituições disciplinares é destinada a uma função específica: "As fábricas feitas para produzir, os hospitais, psiquiátricos ou não, para curar, as es­colas para ensinar, as prisões para punir".'! De fato, porém, é função de todas disciplinar a existência inteira do indivíduo pela disciplinarização do corpo. Lembremos, com Foucault, a título de exemplo, que, nas fábricas do começo do século XIX, questões como a imoralidade e a devassidão eram assunto de preocupação dos patrões; assim também, nos hospitais, cuja função específica é a cura, a proibição de atividades sexuais

(20) M. Foucault, A verdade e as formas jurídicas, pp. 94-95. Veja-se também, a esse respeito: M. Foucault, "O Poder e a Norma", em Psicanálise, Podere Desejo, org. por C. S. Katz, Rio de Janeiro, 1979, pp. 49-50.

(21) M. Foucault, A verdade eas formas jurídicas, p. 95.

-\

I ,

'\

__ o

204 o LUGAR DAS INSTITUlÇOES NA SOCIEDADE DISCIPLINAR

não se reduz a motivos de higiene e saúde; as disciplinas es­colares, igualmente, excedem a função estrita do ensino_ Fou­cault faz ver que, se no poder monárquico o "corpo do rei" era não uma "metáfora, mas uma realidade politica", já que "sua presença fisica era necessária ao funcionamento da mo­narquia", na sociedade moderna o importante é o "corpo da sociedade", atingido através dos corpos individuais; ele será "protegido" , substituindo-se" a eliminação pelo suplício" por "métodos de assepsia: a criminologia, a eugenia, a exclusão dos 'degenerados'''.'' portanto, não mais o corpo supliciado, mas o corpo controlado como "o que deve ser formado, refor­mado, corrigido, o que deve adquirir aptidões, receber um certo número de qualidades, qualificar-se como corpo capaz de trabalhar"." Assim, a disciplina corporal é minuciosa, desenvolvendo-se de formas diversificadas mas de algum modo semelhantes e intercruzadas tanto na pedagogia escolar como na organização militar, no espaço hospitalar como nas pri­sões, de modo a "cobrir o corpo social por inteiro".24

Foucault indica inclusive que foram as disciplinas corpo­rais (particularmente as militares e escolares) que tornaram possível a elaboração de um "saber fisiológico, orgânico", um "saber sobre o COrpO".15 Mas indicar que o controle dos cor­pos engendra saber já é referir-se ao caráter polimorfo do

poder disciplinar.

Instalação de um poder polimorfo

o tipo de poder instalado por estas instituições é "poli­morfo" e, por isso, "polivalente". 26 Isto é, ele se desdobra em múltiplos caracteres que, esquematicamente, podemos desig­nar de econômicos, politicos, judiciários e epistemológicos.

O caráter econômico do poder disciplinar é evidente, por exemplo, no caso das fábricas; pode também aparecer de for-

(22) M. Foucault, "Poder-corpO", em Microfísica do Poder, p. 145. (23) M. Foucault, A verdade eas formas jurídicas, p. 96. (24) M. Foucault, Surveiller et punir, p. 141. Veja-se, a este respeito,

particularmente todo o capítulO desse livro intitulado "Les corps dociles". (25) M. Foucault, "Poder-corpo", em Microfísica do Pode" pp. 148-

149. (26) M. Foucault, A verdade e as formas jurídicas, p. 96.

1,

RECORDAR FOUCAULT 205

mas menos diretas, como no pagamento feito a hospitais. Mas ao caráter econômico se atrela o político: "As pessoas que di­rigem estas instituições se delegam o direito de dar ordens, de estabelecer regulamentos, de tomar medidas, de expulsar in­divíduos, aceitar outros, etc."." Ambos, o econômico e o po­lítico, se articulam a um caráter judiciário: "nestas institui­ções, não apenas se dão ordens, se tomam decisões, não so­mente se garantem funções como a produção, a aprendiza­gem, etc., mas também se tem o direito de punir e compen­sar, se tem o poder de fazer comparecer diante de instâncias de julgamento"." É claro que o caráter judiciário é mais evi­dente no caso das prisões, onde, depois de julgado por um tri­bunal, o indivíduo continua tendo seu comportamento cons­tantementejulgado pelos guardas, pelo diretor da prisão, etc. Mas também é curioso, a este respeito, o exemplo particular do sistema escolar, quando Foucault faz ver quanto ele é "in­teiramente baseado em uma espécie de poder judiciário". E mostra: "A todo momento se pune e se recompensa, se avalia, se classifica, se diz quem é o melhor, quem é o pior". 29

Poder econômico, poder politico, poder judiciário, o po­der instalado nas instituições disciplinares é também episte­mológico, isto é, produz saberes. E os produz duplamente: quer extraindo saber dos indivíduos, quer elaborando saber sobre os indivíduos." Um exemplo de saber extraído dos indi­víduos ocorre em instituições como fábricas, onde o saber do operário a respeito do seu próprio trabalho, nascido de sua prática, e constantemente submetido à vigilância e ao regis­tro, fornece os elementos para gerar saber acerca da produ­ção. Por sua vez, os saberes sobre o indivíduo nascem das observações, das classificações, das anotações, que se fazem sobre o doente, sobre o criminoso, sobre a criança, etc. Aqui, evidentemente, estamos tocando em uma questão que é nu-

1271 Idem, p. 96. 1281 Idem, p. 97. (29) Idem, p. 97. Veja-se, também, o estudo destes caracteres no capo

intitulado "Le paroptisme", de Surveiller et punir; o artigo "O Poder e a Nor­ma"; e, em Microfísica do Poder, os artigos "Soberania e disciplina" e "O olho do Poder". Neste último (pp. 211-212), o realce da importância de um estudo sobre "a arquitetura institucional" ("da sala de aula ou da organização hospi­talar"), ou a elaboração de uma "história dos espaços" que seria também uma "história dos poderes".

(30) M. Foucault, A verdadeeasformasjurídicas, p. 97.

~

'i

i

'\,

206 O LUGAR DAS INSTITUIÇOES NA SOCIEDADE DISCIPLINAR

clear no pensamento de Foucault, isto é, a das articulações entre poder e saber. Não cabe agora desenvolvê-la. Mas cabe lembrar uma passagem onde Foucault afirma que se, histori­camente, OS soberanos de algum modo sempre se cercaram de pedagogos, se os reis sempre consultaram filósofos, cientistas OU sábios, a novidade da sociedade disciplinar está em que, "a partir do século XIX, o saber enquanto tal, recebe, estatutária e institucionalmente, certo poder". E fornece, entre outros, o seguinte exemplo desta situação: "O modo pelo qual todos os graus do saber são medidos, calculados, autenticados pelo aparelho escolar (e por todos os aparelhoS de formação) ex­prime que, em nossa sociedade, um saber tem direito a exer-

cer um poder" . 31 Em suma e conseqüentemente, as instituições disciplina-

res fazem funcionar um poder que, polimorfo e polivalente, não é essencialmente localizável em um pólo centralizado e personificado, mas é sobretudo difuso, espalhado, minucioso,

capilar.

Algumas últimas considerações

Para concluir, apenas o acréscimo de uma observação. É de se notar que, nas anãlises das instituições disciplinares, muitas são as passagens em que Foucault se detém particu­larmente nas prisões. As conferências sobre A verdade e as formas jurídicas, como já dissemos, tomam por base as práti­cas judiciárias, cuja história, por certo, se vincula mais dire­tamente às prisões. O livro Vigiar e punir (Surveiller et punir), que focaliza explicitamente o estudo de instituições, traz como subtítulo "O nascimento das prisões". É possível que esta tô­nica ou este realce se funde em dois aspectos que, ambigua-

mente, se completam. Por um lado, há uma certa singularidade da prisão. É

nela, diz Foucault, que o "Panopticon" encontra "seu lugar privilegiado de realização", é nela que "a utopia de Bentham pôde, num só lance, tomar uma forma material". 32 Tem,

(31) M. Foucault, "O poder e a Norma", em Psicanálise, Poder e De­

sejo, p. 51. (32) M. Foucault, Surveiller et punir, p. 252.

'. • 1,

RECORDAR FOUCAULT 207

assim, a particularidade de concretizar o "panoptismo" da forma mais palpável. Além disto e talvez por isto, dentre as instituições disciplinares, guarda certas peculiaridades: basta lembrar que, afinal, não faz parte da vida rotineira das pes­soas; atingindo, efetivamente, um número reduzido de indiví­duos tem uma marca "local e marginal". 33 E é assim, con­tudo, com esta marca, que a prisão desperta interesse ou cu­riosidade na maioria das pessoas. Ora, segundo Foucault, isto talvez se explique precisamente porque, dentre as diversas ins­tituições, é ela a única "onde o poder pode se manifestar em estado puro, em suas dimensões mais excessivas e se justificar como poder moral". Ou seja: "O que é fascinante nas prisões é que nelas o poder não se esconde, não se mascara cinica­mente, se mostra como tirania levada aos ínfimos detalhes, e ao mesmo tempo, é puro, é inteiramente 'justificado' ... ".34

Por outro lado, porém, a prisão também aparece como sendo não mais que a forma "concentrada", "exemplar" e "simbólica" de todas as outras instituições. 35 Afinal, todas as outras instituições realizam uma espécie de difusão discreta da prisão."

Assim, ao mesmo tempo que é "diferente" das outras ins­tituições, todas lhe são semelhantes. Por isso, de um lado, ela "inocenta" as demais, já que, afinal, só ela é prisão (e o dis­curso que ela então emite seria: "A melhor prova de que vocês não estão na prisão é que eu existo como instituição particu­lar, separada das outras ... "). Mas, por outro, ela "se ino­centa" de ser prisão, pois, afinal, é apenas a forma mais trans­parente de todas as outras (e o discurso que ela então emite seria: "Eu faço unicamente aquilo que lhes fazem diariamente na fábrica, na escola, etc. "). 37

Esta ambigüidade da prisão explica, para Foucault, "seu incrível sucesso, seu caráter quase evidente, a facilidade com

(33) M. Foucault, "Os intelectuais e o Poder", em: Microfísica do Po­der, p, 72.

1341 Idem, p. 73, (35) Cf. M. Foucault, A verdadeeas formasjurfdicas, p. 99; "O Poder e

a Norma", p. 53. (36) Veja-se, particularmente, a este respeito, Surveiller et punir, pp.

308-310. (37) Cf. M. Foucault, A verdadeeasformasjurídicas, p. 99.

11,

II j!

"1\. , ,

I,

L_

208 O LUGAR DAS INSTITUIÇÕES NA SOCIEDADE DISCIPLINAR

que ela foi aceita ... ", 38 explica sua "extrema solidez".39 E, por certo, poderíamos acrescentar: explica também, como que circular e reciprocamente, a aceitação cotidiana de sua di­luição mais sutil por toda a rede das chamadas instituições

disciplinares.

(381 Idem, p. 100. (39) M. Foucault, Survell/eretpunir, p. 312.

"

"w I:

Genealogia e política Antonius Jack Vargas Escobar

A leitura de Foucault faz senipre aflorar o riso. Seus textos nos divertem, não tanto por conterem frases bem-hu­moradas, mas principalmente - e aqui levando em conside­ração um sentido mais preciso da palavra divertir, que é des­viar, desabituar - porque ele refaz caminhos, repõe ques­tões, inverte-as, abala nosso senso, chegando mesmo a produ­zir non sense, que não é o oposto da ausência de sentido, mas pelo contrário uma operação de doação de sentido.' Podemos falar de seus livros o que Deleuze nos diz dos grandes livros: deles jorra uma alegria indescritível, pois não podemos deixar de rir quando os códigos são embaralhados.

Foucault opera deslocamentos, muda constantemente de posição. Na Arqueologia do saber ele coloca nas palavras de um hipotético crítico os incômodos causados por seus movi­mentos: "Você já arranja a saída que lhe permitirá, em seu próximo livro, ressurgir alhures e .zombar como o faz agora: não, eu não estou onde você me espreita, mas aqui onde eu o observo rindo". Em nossa leitura de Foucault, procuramos preservar o humor e os deslocamentos. Ao invés de sistemati­zar, codificar seu pensamento, procuraremos utilizá-lo como uma caixa de ferramentas, empregar para seus escritos o mes-

(1) Ver Deleuze, G., Lógica do sentido, São Paulo, Perspectiva, 1974, pp. 74 e segs.

r

il' i

210 GENEALOGIA E POLITICA

mo critério que ele diz usar na apreensão de Nietzsche: "O único sinal de reconhecimento que se pode ter para com um pensamento como o de Nietzsche é precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger, gritar".'

Nesta comunicação procuramos escapar a certos procedi-mentos do pensamento político, onde o poder é pensado a par­tir de parâmetros jurídicos, isto é, como um direito do qual se é possuidor _ como se fosse um bem - e que em conseqüên­cia poderia ser transferido ou alienado total ou parcialmente mediante um ato jurídico ou fundador, que seria da ordem da coesão ou do contrato. Procuramos analisá-lo em termos de luta; a dominação é um exercício: são táticas, manobras, téc­nicas que possibilitam a manutenção do poder. Deste modo somos levados a considerar o social como um campo de forças, sendo o poder o efeito produzido por determinadas correla­ções. Algumas pitadas de nominalismo talvez não nos façam mal: "O poder não é uma instituição, não é uma estrutura, não é uma certa potência da qual alguns seriam dotados: é o nome que se empresta a uma situação estratégica complexa em uma sociedade dada" . 3

Isso significa dizer que o poder não tem identidade. Não poderíamos local~ar sua figura em instituições, em ~'apare­lhos", que sujeitariam os cidadãos a um Estado. Ele não é uno, sempre idêntico a si mesmo, mas efeito de uma multi­plicidade de correlações de forças imanentes ao campo em que se exercem, e constitutivas desse campo. Por outro lado, ele não é uma estrutura, isto é, sua forma não é a da lei, da regra, mas a do jogo: através de lutas, afrontamentos, tenho trans­formação, inversão OU reforço das correlações de forças. Fi­nalmente, ele não possui uma matriz única (dominante-domi­nado), a partir da qual surgem ramificações que atravessam todo o tecido social; o que tenho são correlações de forças que encontram umas nas outras apoios, formando sistemas ou ca­deias, ou, ao contrário, formando defasagens, contradições. O poder aparece dessa maneira como o efeito produzido por um campo de relações de forças.

(2) Foucault, M., Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1979,

p.143. l3l Foucault, M., História da sexualidade I - A vontade de saber, Rio

de Janeiro, Graal. 1979, p. 89.

-:;~&~.,-,-

RECORDAR FOUCAULT 211

Tal concepção de poder permitiu operar alguns desloca­mentos que as análises genealógicas vieram mostrar: o estudo minucioso da instituição carcerária ou do dispositivo da se­xualidade evidenciou que o poder não está localizado somente no Estado. Descobrimos através da "micro física do poder", isto é, através da análise pormenorizada de suas formas lo­cais, procedimentos técnicos que realizam um controle deta­lhado dos corpos, atitudes, comportamentos. Essas investiga­ções produziram seus frutos. Freqüentemente nos defronta­mos com livros e artigos de inspiração foucaultiana, que, por exemplo, demonstram o surgimento de tecnologias de poder correlatas ao discurso médico, higiênico, ou então como o dis­positivo escolar molda um certo corpo disciplinado, etc. Ora, a nosso ver não foram estudadas e tiradas as necessárias conseqüências das análises de Foucault, no que se refere ao movimento revolucionário, à política revolucionária, isto é, aquela que se propõe a revirar determinadas correlações de forças.

Se, como dissemos anteriormente, o poder não possui uma matriz única, a partir da qual se disseminaria, por um processo de cancerização, por toda a sociedade, do mesmo modo a resistência não é exterior ao poder: ela é correlacionaI. Existem "resistências, no plural". 4 Não haveria o lugar da grande recusa, foco de toda rebelião, lei revolucionária. Tais resistências não são o espelho da dominação, mas o outro termo das relações de poder. Ora, tal concepção nos conduz a repensar os conceitos através dos quais falamos da revolução. Procuraremos, agora, retomar algumas noções que são cor­rentes no pensamento de esquerda, criticá-las, e talvez levan­tar algumas polêmicas. 5

Ao nos debruçarmos sobre os textos que nos falam do movimento operário, de suas lutas, verificamos que, em sua maioria, eles privilegiam as greves como sendo o momento por excelência das lutas operárias, de sua resistência à domina­ção. A nosso ver, essa ênfase é solidária com uma certa pos-

(4) Foucault, M., História da sexualidade I - A vontade de saber, Rio de Janeiro, Graal, 1979, p. 91.

(5) Agradeço a Antonius Iraeo Escobar, José Carlos Estevão e Ricardo Terra, que discutiram comigo questões aqui colocadas. Sei que eles não con­cordam com o escrito, mas isso não os inocenta.

Ir,.··,· 'I. '

, i

212 GENEALOGIA E PoLlTICA

tura política que encara o processo revolucionário como a luta pela posse do poder de Estado. Em outros termos, para lutar contra o Estado constituído é preciso que o movimento revo· lucionário se atribua o equivalente em termos de forças polí· tico-militares, que ele se constitua como partido, organizado interiormente como um aparelho de Estado - com QS mesmos mecanismos de disciplina, mesmas hierarquias e mesma orga­nização de poderes,' o que tornaria po.ssível unificar, através das lutas (sendo a greve a arma principal), o proletariado., conduzindo.-o à vitória. A luta o.perária parcial, lo.calizada, "trade-unionista", só se tornaria "luta de classes da boa", 7

autêntica, quando existir esse processo de unificação. Citando. Lenin: "A luta de classes dos operários se converte em luta de classes somente quando os representantes avançados da classe operária de um país adquirem consciência de que formam uma classe operária única e empreendem a luta não contra patrões isolados, mas contra to.da a classe capitalista e contra o. go.verno. que apóia essa classe. Só quando o operário se con­sidera membro de toda a classe o.perária, quando vê em sua luta co.tidiana contra um patrão ou funcionário uma luta con­tra toda a burguesia e contra todo. o governo, só então sua luta se transforma em luta de classes". 8

Tal perspectiva utiliza a disciplina capitalista como uma arma organizacional contra a burguesia. O lado organizador da fábrica - "disciplina baseada no trabalho em comum, unificado pelas condições em que se realiza a produção alta-

(6) Nos dizeres de Astrojildo; "As experiências próprias e alheias nos aconselham unidade e concentração de esforços e energias, tendo em vista coordenar, sistematizar, metodizar a propaganda, a organização e a ação do proletariado. Centralização e disciplina não significa~, porém, nem quebra de autonomia, nem renúncia de vontade. Queremos centralização por acordo mú­tuo e entendemos por disciplina a responsabilidade nos compromissos toma­dos. Ninguém é obrigadO a assumir nenhum compromisso, mas compromisso assumido implica obrigação de cumpri-lo. É'a disciplina. Energias dispersas são energias naturaimente precárias; mas energias canalizadas, combinadas, so­madas, por mútuo e comum acordo, são energias potencialmente multiplica­das. É preciso centralização e disciplina porque não queremos dispersão nem irresponsabilidade". (Movimento Comunista, 1(1 ):1-2, janeiro de 1922)

(7) Estamos utilizando a expressão de Astrojildo Pereira encontrada em sociologia ou apologética", in Ensaios históricos e políticos, São Paulo, Alfa-Omega, 1979, p. 165.

(8) Lenin, Nossas tarefas imediatas, apud Escobar, A. 1., "Algumas Questões a respeito de Pulantzas e Pasukanis", mimeo, p. 2.

RECORDAR FOUCAULT 213

mente desenvo.lvida do po.nto de vista técnico.'" - é valori­zado, pois permite a organização proletária, e a constituição do Partido. Ao mesmo tempo é realçado que o próprio. desen­vo.lvimento. da produção capitalista (grande fábrica), ao reunir milhares de operários, possibilita sua união, o desencadear das greves e a luta de classes. 10

Seria preciso repensar a noção de luta de classes, reti­rando-a desse contexto. onde ela aparece so.lidária co.m aquilo. que poderíamos denominar um certo taylorismo revolucioná­rio, deixarmos de pensar a possibilidade de revolução como sendo propiciada pelo processo de unificação e crescente cons­cientização do pro.letariado em sua luta contra a burguesia e o Estado..II

Para que os homens estejam ligados ao aparelho de pro.­dução, é necessária uma série de operações que visem a fixá­los, controlar seu tempo de vida, para que se possa então ex­trair seu tempo de trabalho. Ao mesmo tempo é preciso domi­nar seu corpo, moldá-lo, corrigi-lo, adestrá-lo, para que se torne força de trabalho.. Estas operações não são analíticas,

(9) Lenin, V. I., Um passo em frente; dois passos atrás, Lisboa, Editorial Avante, 1978. Citando o trecho completo: "Precisamente o marxismo, ideolo­gia do proletariado educado pelo capitalismo, ensinou e ensina aos intelectuais inconstantes a diferença entre o lado exploraqor da fábrica (diSciplina baseada no medo de morrer de fome) e o seu lado organizador (diSCiplina baseada no trabalho em comum, unificado pelas condições em que se realiza a prOdução altamente desenvolvida do ponto de vista técnico). A disciplina e a organiza­ção, que ao intelectual burguês tanto custam a adquirir, são facilmente assimi­ladas pelo proletariado, justamente graças a essa 'escola' da fábrica" (pp. 207-2081.

(10) Ver Lenin, "Projeto de programa do Partido Social-Democrata e explicação desse projeto", in Sobre os sindicatos, Livramento, 1979, pp. 19 e segs.

(11) Ver Foucault, Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1979, p. 149, onde encontramos: "( ... ) a tomada do aparelho de Estado _ esta foi uma discussão no interior do próprio marxismo - deve ser considerada como uma simples ocupação com mOdificações eventuais ou deve ~er a ocasião de sua destruição? Você sabe como finalmente se resolyeu este problema: é preciso minar o aparelho, mas não completamente, já que quando a ditadura do prole­tariado se estabelecer, a luta de classes não estará, por conseguinte, termi­nada ... É preciso, portanto, que o aparelho de Estado esteja suficientemente intacto para que possa utilizá-lo contra os inimigos de classe. Chegamos à se­gunda conseqüência: o aparelho de Estado deve ser mantido, pelo menos até um certo ponto, durante a ditadura do proletariado. Finalmente, terceira con­seqüência: para fazer funcionar estes aparelhos de Estado que serão ocupados mas não destruídos, convém apelar para os técnicos e os especialistas. E, para isto, .utiliza-se a antiga classe familiarizada com o aparelho, isto é, a burguesia. Eis, sem dúvida, o Que se passou na URSS".

~ ':

\ lI-,:

:t\

L_

214 GENEALOGIA E POLlTICA

mas sintéticas," isto é, elas não são dedutíveis da estrutura econômica, mas é necessária a ação de um poder político, atuando sobre o indivíduo e a população para que o homem se torne força de trabalho, colocando seu tempo de vida à dispo­sição do capital. Para que seja possível a exploração é neces­sário fixar os homens ao aparelho de produção, fazendo deles agentes de produção, trabalhadores. Não existe mais-valia sem esse poder disciplinador, que não está somente no Es­tado, mas opera localizadamente, parcelarmente. Não é o processo de unificação da classe operária - provocado pelo desenvolvimento das forças produtivas - que possibilitaria o processo revolucionário. Pelo contrário, a luta de classes se desenvolve quando existem fraturas nas classes sociais. Quan­do elas se fragmentam e não estão mais lá onde o poder bur­guês as colocou, mas buscam novos lugares para se exprimir.

A partir daí derivam algumas conseqüências. Aquilo que dinamiza uma classe, o que a torna perigosa, não é seu pro­cessO de unificação, mas, pelo contrário, a produção de cisões internas, formação de grupos e indivíduos que não suportam mais sua situação, que sonham e fazem sonhar as massas, afirmando a capacidade proletária de organizar uma outra ordem social, a partir de suas aptidões e dos valores formados

em seu trabalho e em sua luta." O próprio surgimento da militância operária é um dos

exemplos dessa fratura, que ocorre na classe, e a torna revo­lucionária. Vejamos, como ilustração, um artigo sobre um do­mingo operário, escrito em 1921 em A Vanguarda, por al­guém que se denomina caramuru.

14 Acompanhemos como

ele se coloca frente à massa operária. Há, no texto, um certo desprezo pelos valores que nor-

teiam as relações entre as pessoas durante o período de lazer, porque eles esterilizam, distraem, alienam a massa, fazendo-a não perceber a exploração. "O Braz aos Domingos é uma ver­dadeira exposição dos caracteres dessa mocidade esteril ( ... ) Moços e moças, no largo da Concordia, revelam sem querer as

(12) Ver Foucault, M., A verdade e aS formasjurfdicas, Rio de Janeiro,

pue. 1974. pp. 101-102. (13) Utilizamos algumas frases de Jacques Ranciere, de seu belo artigo "Le bon temps ou la barriêre des pla",sirs", in Les révoltes logiques, n? 7, mas que deslocadas de seu contexto perderam o sentidO original.

1141 A Vanguarda. I 1451:2. de 23.6.1921.

~ , 1>

RECORDAR FOUCAULT 215

suas pobres qualidades: aquelles formando alas cerradas nos contornos dos gramados, basbaques assistindo ao desfile abo­balhado das moças; e estas, prazenteiras, empoadas, pintadas como os fantoches de João Minhoca, regalando-se a dar umas centenas de voltas ao jardim, anciosas por ouvir ditos insonsos por aquelles galanteios baratos e insolentes!" Ao mesmo tem­po, o autor critica os padrões burgueses de beleza reprodu­zidos pelas operárias ("Moças, na preocupação de se exhibi­rem, fazem gestos apanhados nos films de Francisca Bertini, Graça Cunard, Bara, etc. Fazem tremeliques, reviram os olhos, fazem gestos com os braços magriços, requebram-se, tudo. Tudo fazem para parecerem seductoras, galantes - ou outra qualquer coisa") por não corresponderem à realidade por elas vivida: "Muitas dellas conheci. São operarias. Habi­tam os cortiços das ruas Carneiro Leão, Caetano e Claudino Pinto. De madrugada, a passo apressado, cortam as ruas em demanda da fabrica, açoitadas pelos rigores deste inverno. Muitas vezes sem tomar o café. Em casa não ha pão, não ha café. A vizinha não tem assucar para emprestar uma chicara, mamãe doente, papae reumathico em consequência do frio, os manos descalços a crescer malcreados à falta de escola, rachi­ticos e doentios à falta de pão, encolhidos, gelados à falta de roupas" .

Caramuru, como observador, se diferencia da massa pela consciência. Os explorados, por não perceberem sua condi­ção, são considerados subumanos: "No entanto toda essa gente desfibrada, esbulhada, explorada pelos patrões na fa­brica, roubada pelos avidos senhorios nos cortiços sordidos que habitam, está inteiramente despreocupada! Não pensa, não analiza, não vê, não protesta, não se revolta contra as ex­torsões de que é victima! São mulambos de mizeria moral e econômica!". Não conseguem quebrar o cicIo monótono da exploração do capital; findo o domingo voltam novamente à prisão fabril: "Terminou o Domingo, voltam os domingueiros ao ergastulo do trabalho onde sob o azorrague dos patrões soffrem, choram lagrimas de sangue e desfazem-se em bagas de suor, para no próximo domingo encherem-se de pós bara­tos, carmins de ambulante, um fato a prestações e virem a avenida exhibir uma satisfação artificiosa a encobrir a dôr e a miséria. Povera umanitá ... ". Esta "consciência da explora­ção", torna nosso articulista distinto da massa. Seu olhar

...I

'i

l

216 GENEALOGIA E POLlTICA

mostra que ele se deslocou para fora do cotidiano da classe, cuja situação percebe como insuportável.

Deste modo o militante, por oposição ao operário "alie­nado", não tem mais lugar nesta sociedade, pois ela o torna inumano. Afirmar a humanidade é afirmar uma outra socie­dade, revoltar-se contra os valores dominantes e a exploração, deixar ou sonhar em deixar de ser operário, invocar a revolu­ção. Como diz nosso articulista: "Nessas occasiões quizera possuir o poder de penetrar no mais recondito daquellas al­mas insensiveis, e dentro dellas gritar, como o jaguar de mi­nha terra faz tremer o seio verde das florestas: homens! mu­lheres! Ã Revolta!" .

A trajetória de Octávio Brandão é também um exemplo deste deslocamento de que estamos tratando. Nascido em uma. pequena cidade do interior nordestino, filho de um "pequeno­burguês urbano empobrecido, prático de farmácia em Vi­çosa" ," Brandão entrou na "vida pela porta da pobreza. E foi pobre, a vida inteira. O pai não podia comprar leite. O filho precisava de alimentos fortes. No entanto, bebia café ralo. Não teve leite na infância. Comia feijão com farinha de man­dioca e uma carne grosseira, o charque ou ceará. Nenhum le­gume, exceto jerimum. Fruta, apenas banana, quando era possível comprar. Vestia uma roupa ordinária de algodão. Era a pobreza em tudo" (p. 48). Formado pela Escola de Farmá­cia do Recife, a partir de 1915 abre um estabelecimento onde "trabalhava como farmacêutico, prático e enfermeiro, das 7 da manhã às 10 da noite", ao mesmo tempo que se dedica tanto à ciência quanto à literatura. Faz uma excursão pelo in­terior de Alagoas observando sua composição mineralógica, formação geológica, e fósseis. A partir dessa expedição es­creve o livro Canais e lagoas, que é "um poema telúrico. Hino de amor à beleza e à grandeza da terra brasileira e alagoana" (p.92).

Neste período Brandão lê Darwin, Haeckel, Humboldt e Martius, Hartt e Branner, Euclides da Cunha, Ratzel e Karl Ritter, Jean Brunhes e Elisé Reclus, os livros do Rig-Veda, Êsquilo, Sófocles e Eurípedes, Lucrécio e Virgílio, Shakespea-

(15) Brandão, O., Combates e batalhas: memórias, São Paulo, Alfa­Omega, 1978. As próximas citações desse livro não serão feitas em rodapé, mas no próprio texto, indicando-se apenas o número da página.

" L

!

RECORDAR FOUCAULT 217

re e Byron, Goethe, Heine e Nietzsche, Lermontov e Tolstoi. Perseguido em Alagoas, vai para o Rio de Janeiro, onde milita no movimento operário anarquista, para em "15 de outubro de 1922" dar o terceiro passo libertador de sua vida: "tornei­me um combatente do Partido Comunista do Brasil, soldado do povo brasileiro e da sua classe operária" (p. 232). Passa a ler a literatura marxista. Em 1924 escreve Agrarismo e indus­trialismo (p. 295), "a primeira tentativa de interpretação dessa realidade (a brasileira) do ponto de vista de Marx, En­gels e Lenin" (p. 287) e que inspira as teses do 2? Congresso do PCB escritas por Astrojildo.

Nesse texto encontramos:

"Applicando a dialectica marxista à revolta de 1924, veremos o seguinte:

"Affirmação: Bernardes, o grande burguez agrario, a grande propriedade rural.

"Negação: Isidoro, o pequeno burguez, atraz do qual manobra o grande burguez industrial.

"Negação da negação: a revolução proletaria, que affir­mará Bernardes e affirmará Isidoro, que negará Bernardes e negará Isidoro. e que, por isso, fundirá os contrários, produ­zindo o que, há millenios, o grego Heraclito chamava: uma harmonia. ( ... )

( ... ) "Dentro da Harmonia Proletaria desapparecerão as classes e, por conseguinte, a guerra de classes. Dentro do ful­gor da revolução proletaria, Hernardes e Isidoro, isto é, os bur­guezes agrarios e os burguezes itijIustriaes estarão em estado de aufgehobene Momente. Por outras palavras: a revolução proletaria é a Aufhebung de Bernardes e Isidoro, isto é, a ne­gação, a conservação e a elevação do agrarismo e do industria­lismo" .16

A aplicação que Brandão faz da dialética à revolta de 1924 significa menos insuficiência teórica, e mais como é cons­tituída uma relação quase selvagem com a cultura, isto é, uma

(16) Fritz Mayer (pseud. de Brandão, O. l, Agrarismo e industrialismo. Ensaio marxista-Ieninista sobre a revolta de S. Paulo e a guerra de classes no Brasil, Buenos Aires, 1926 (o local de pUblicação visava somente a desp:star a polícia; na verdade, o livro foi impresso no Rio de Janeiro).

1

l "I

I, 11,

II

iL "

De Eva a Santa, a dessexualização da mulher no Brasil *

L. Margareth Rago**

Em 1873, o dr. F. Ferraz de Macedo apresenta na Fa­culdade de Medicina do Rio de Janeiro a tese de doutoramento "Da prostituição", na qual constrói uma história geral da "mais antiga das profissões". A segunda parte de seu trabalho é dedicada à análise da situação da prostituição na cidade do Rio de Janeiro no período. Desta,co o capítulo em que elabora um mapa cIassificatório das prostitutas cariocas, mapa este dividido em dois grandes itens: a prostituição pública e a clan­destina.

A partir deste "mapa c1assificativo", como ele denomi­nava, o saber médico caracterizava as prostitutas catalogadas nos vários itens e subitens desta zoologia das subespécies. As mulheres do I? gênero da 1 ~ classe, por exemplo, as prosti­tutas trabalhadoras, como as floristas, modistas, costureiras, vendedoras de charutos eram definidas como pessoas com traços comuns como o tipo de roupa, a habitação, os costu­mes, "as horas de trânsito, o modo de se renderem, o modo de expressão (voz, estilo, termos, gestos, etc.)".

As do 2? gênero da primeira classe - as prostitutas "ociosas" -, por sua vez, se caracterizariam pelo viver isola-

(*) o presente trabalho resume algumas das colocações desenvolvidas na dissertação de mestrado "Sem fé, sem lei, sem rei. Liberalismo e experiên­cia anarquista na República", UNICAMP, 1984.

(**) Do Departamento de História da UNICAMP.

I

J

11 1., , I I' . )

li , ..

li'

r

220 DE EVA A SANTA, A DESSEXUALlZAÇÁO DA MULHER NO BRASIL

"tuicâo oública"

1? gênero das prostitutas 'trabalhadoras'

1~ classe das difíceis

2? gênero das prostitutas 'ociosas'

2~ classe prostitutas das fáceis

3~ classe das facílimas

prostitutas

destina' ,1..1. -- ....... -.----~-

Em boas condições

1~ classe Mulheres Em baixas condições

floristas, costureiras, vendedoras

de charutos, figurantes

de teatro, etc.

isoladas em casas aristocráticas reunidas em hotéis aristocráticos.

de colégios, de sobrados, de estalagens, bordéis, etc,

inferiores. \ reformadas

ou gastas, dezungus, amancebadas.

viúvas, casadas, divorciadas. solteiras.

livres, libertas, escravas, etc.

(continua)

, ,

I •

I . ~ L

RECORDAR FOUCAULT 221

(continuação)

práticas doutrina lesbiana, antifísicas coito contra a natureza, nas mulheres onanismo.

2~ classe sodomia pederastas ativos, ou passivos, mistos, prostituição onanismo. " 1

masculina

das em casas aristocráticas, compondo-se em grande número por mulheres fornecidas pelos teatros. Já as da 3~ classe, das facílimas, seriam "marafonas que cuidam das paredes dos quartos com quadros e imagens de diversos santos! A sala tem por mobília um sofá, algumas cadeiras, às vezes aparadores enfeitados e uma mesa redonda no centro". As reformadas ou gastas viviam em casas "de mais grosseiro aspecto e mais des­pidas de adornos; a alcova nua, ( ... ) e a cozinha apenas consta de um fogareiro de ferro e algumas panelas. Geralmente as donas destas casas são pretas, pardas livres ou libertas, mas todas gastas na idade e no vicio ( ... )". Entretanto, as mais degradantes das meretrizes em seu mapa classificativo estavam entre as do 3? gênero da 3~ classe: ou seja, as que habitavam zungus, "habitação sombria, verdadeiro antro de paredes ene­grecidas pela fumaça dos fogareiros e nauseabundos cachim­bos dos freqüentadores e habitantes ( ... )".

O trabalho continua descrevendo minuciosamente a per­sonalidade das mulheres "da vida", assinalando seus princi­pais traços físicos, intelectuais e morais, gostos, hábitos, for­mas de lazer, esmiuçando seu cotidiano, descrevendo suas ha­bitações e os tipos de clientes que cada espécie recebia. A prostituição se torna objeto de conhecimento científico.

Alguns anos depois, o delegado de polícia Pádua Fleury esboça o primeiro projeto de regulamentação da prostituição na cidade de São Paulo, considerando-o problema tanto da

(1) Macedo, F. Ferraz de, "Da prostituição", tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1873 .

ill

ri I· \ .' ;>,

1':1

,

, ..

J ;;;;:

'.

222 DE EVA A SANTA, A DESSEXUALlZAÇÃO DA MULHER NO BRASIL

polícia, quanto da municipalidade e da Junta de Higiene, E, em 1896, é decretado o Regulamento Provisório da Polícia de Costumes, de autoria de Cândido Motta, visando a disciplinar as práticas sexuais extraconjugais e a conter a audácia cres­cente das meretrizes_ 2

A construção do rigido estereótipo da prostituta, símbolo do mal, dos pecados e vícios, associada à imagem de Eva, mu­lher sedutora responsável pela queda do homem, cujas práti­cas devem ser rigorosamente controladas a partir da própria domesticação das sexualidades insubmissas, inscreve-se num conjunto de dispositivos estratégicos de moralização da socie­dade brasileira, entre final do século XIX e início do XX_ O contraponto desta figura maculada, por sua vez, reforça a possibilidade de valorização, de promoção e de imposição de um novo modelo de feminilidade: a mulher esposa-dona-de­casa-mãe-de-família, vigilante, ordeira, higiênica, responsá­vel pelos membros da família, porém dessexualizada: a "rai­nha do lar" _ 3

Promover uma nova representação simbólica da mulher, casta e pura, em oposição à imagem sombria, estigmatizada e degenerada da prostituta, constituiu peça fundamental da es­tratégia burguesa de redefinição das relações intrafamiliares, tanto nos meios sociais privilegiados quanto nos mais desfavo­recidos. No contexto de integração do proletariado emergente ao universo dos valores burgueses, a construção de uma nova identidade da mulher constituiu uma brecha pela qual os do­minantes procuraram penetrar no interior da habitação e da própria vida dos pobres e gerir seu cotidiano nos mínimos de­talhes. Num momento histórico em que as mulheres, ricas ou pobres, invadem o cenário social, participando cada vez mais intensamente das solicitações de trabalho e lazer, de uma nova vida urbana, chama a atenção a emergência de todo um dis­curso altamente moralista, que, partindo de vários pontos do social, designa o espaço da vida privada como o campo privi­legiado de atuação da mulher.

(2) Motta, Cândido, "Prostituição, Polícia de Costumes, Lenocínio", relatório apresentado ao Chefe de Polícia de São Paulo, SP, 1897.

{31 Rago, Luzia Margareth, "Sem fé, sem lei, sem rei. Liberalismo e experiência anarquista na República", dissertação de mestrado, UN1CAMP,

1984. capo 11. < j

,J...

RECORDAR FOUCAULT 223

Nesse sentido, a partir dos discursos médico-sanitarista, criminológico, dos filantropos, dos positivistas, da Igreja, de setores da burguesia industrial e, em alguns momentos, do próprio movimento operário, elabora-se e difunde-se no país um novo ideal de feminilidade, que define tanto a figura da "rainha do lar" quanto a da mulher pública e que implica a total dessexualização de ambas_

A figura da mãe, associada à Virgem Maria, santificada, pura, ingênua, trabalhadora, preocupada com a saúde dos filhos e do marido, toda sacrifício, é assimilada à estátua de pedra ou mármore, frigida, imaculada, sem corpo e sem sexo. A prostituta, mulher de má vida, extravagante, cheirando a perfumes exóticos e violentos, vestida escandalosamente, egoísta, gulosa e sobretudo preguiçosa, também é dessexuali­zada na medida em que sua atividade deve corresponder ao exercício de uma profissão, isto é, de um trabalho, e, por­tanto, deve ser realizado produtivamente, mas sem prazer. No discurso do poder, prazer e trabalho constituem categorias antitéticas e excludentes.

Ao contrário, a mulher honesta, destinada à carreira ex­clusiva da maternidade, deve ser isenta de desejo, não desfru­tando de qualquer prazer orgástico na relação sexual. Além de confinar-se no estreito espaço da vida doméstica, a mulher esposa-dona-de-casa-mãe-de-família deveria aceitar o enclau­suramento representado por um modelo normativo rigido, au­toritário e dessexualizante. A ciência médica e posteriormente a psiquiatria procurarão mostrar cientificamente, confirman­do as opiniões dos positivistas, que o homem tem um desejo sexual mais acentuado do que ela por sua própria constituição biológica, o que, por sua vez, justifica a procura da prostituta pelo marido que respeita a esposa mas, ao mesmo tempo, deve afirmar sua virilidade.

O retrato da mulher pública construído pelo discurso mé­dico-sanitarista coloca-a num campo oposto ao da mulher ho­nesta, laboriosa e fiel. A prostituta aparece, então, como a negação dos valores dominantes, como pária da sociedade que ameaça subverter a boa ordem de um mundo masculino. Seu objetivo principal, afinal, é a satisfação do prazer, é dar vazão aos seus instintos animalescos, incontroláveis e perversos, ca­racíensticos dos seres "inferiores", ainda não totalmente "ci-

I

" ,

lU! il" I:';

;'i: I'

224 DE EVA A SANTA, A DESSEXUALIZAÇÃO DA MULHER NO BRASIL

vilizados" e que se deixam arrastar facilmente ao jugo das pai­xões, Como a criança ou o selvagem, a mulher pobre que se prostitui necessita dos cuidados dos poderes públicos e da in­terferência dos especialistas na condução de sua vida, Ima­tura, ela é uma pessoa desorientada, que se perdeu na vida e que jamais conseguiria reintegrar-se à sociedade sem ajuda exterior, Conclusão paradoxal, já que não sendo criminosa que deve arrepender-se e voltar à normalidade, a prostituta "numa cidade, numa vila, em qualquer lugar de certo movi­mento' é uma necessidade vital, torna-se uma válvula de se­gurança social, com especialidade, coibindo vícios no ele­mento púbere varonil e mantendo um certo e determinado equilíbrio na ação popular da localidade", segundo o dr, Si­mões da Silva,',

Os sanitaristas brasileiros retomam o perfil da prostituta delineado minuciosamente pelo médico francês Alexandre Pa­rent-Duchâtelet, responsável pela higiene pública e pelos es­gotos da cidade de Paris, Herdeiro da tradição agostiniana, ele identifica a prostituição às imundícies do submundo e re­flete a nova obsessão com os miasmas, germes, lixos, doenças e com a miséria social que apavora as classes dominantes, Sua principal obra, La prostitution à Paris au XIXe siecle, publi­cada pela primeira vez em 1836, tem enorme repercussão en­tre os especialistas das práticas sexuais condenáveis, por mui­tas décadas, tendo sido reeditada várias vezes,

Seguindo seus passos, os médicos sanitaristas brasileiros invadem o submundo da prostituição, classificando as mulhe­res "decaídas", diagnosticando suas doenças, investigando seus hábitos, origem social, costumes, idades, procurando acumular todo um conhecimento sobre a mulher pública e fun­dar o estereótipo da prostituta, a partir do qual ela será si­tuada para fora do campo da moralidade sexual e social, Nos laboratórios de estudo e pesquisa em que vão sendo transfor­mados os bordéis, as "casas alegres", os hospitais e prisões de "perdidas", elaboram-se simultaneamente técnicas de saber e estratégias de poder destinadas a enclausurar e a domesticar as práticas sexuais extraconjugais,

I

RECORDAR FOUCAULT 225

Em nome da higiene pública, da saúde da população, , da preservação da raça, estuda-se e medicaliza-se a sexuali­dade feminina, discute-se o problema da prostituição e esta­belecem-se os padrões de comportamento da mulher casta e da vagabunda, Através de estatísticas realizadas com o apoio da polícia de costumes, esses estudos procuram mostrar que a grande maioria delas provém das classes sociais inferiores, es­pecialmente "das não-casadas das classes proletárias", se­gundo o dr, J, B. Leme, das que exercem ou exerciam as pro­fissões de costureiras, floristas, sempre sorridentes para agra­dar ao freguês, domésticas, operárias e artistas de teatro. 5

O perfil da meretriz, elaborado por Parent-Duchâtelet e retomado pela literatura prostitucional no Brasil, distingue como principal característica de sua personalidade a pregui­ça, isto é, a aversão ao trabalho e a perseguição desenfreada do prazer. A prostituta é aquela que, segundo J. B. Leme, "tem um andar, um sorriso, um olhar, uma atitude que lhe são próprios; é preguiçosa, mentirosa, depravada, extrema­mente simpática ao álcool, despreocupada do futuro, e muitas vezes destituída de senso moral". 6 Antítese da esposa honesta, a mulher da vida tem um "apetite sexual exaltado, ( ... ) inato e incontido, que leva a precocidades, por vezes fantásticas, na prática de perversões ou mesmo do coito". Ela é burra e igno­rante: "Limitadíssimos são os seus recursos intelectuais, ra­ríssimas mulheres poderiam sustentar uma conversação em que seja necessário o manejo do raciocínio ou pequena contri­buição lógica". 7 Leviana, volúvel, inconstante, irregular, ado­ra o movimento, a turbulência e a agitação: "Poucas há que persistem num mesmo domicílio durante o espaço de um ano". Instável física e espiritualmente: "Variáveis de opinião, incapazes de seguir um assunto até ao fim,levianas, exalta­das, irritáveis, e muitas vezes insolentes". Gulosa e incontro­lável, a puta é aquela que adora os excessos: de álcool, de fumo, de sexo.

Suas atividades, quando sozinha, são fúteis e banais: "Entregam-se ( ... ) ao sono, a conversações fúteis ou de um alcance limitado unicamente às virtudes, vícios ou defeitos das

(4) Silva, Simões da, Fiscalização da prostituição em favor da infância, I (5) Leme, J. B., O problema venéreo 1926 p 74 memória apresentada ao 1? Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, ago.- , J (61 Idem, ibidem. . '" se!. 1922, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1924. .. • (7) Macedo, F. Ferraz de, op. cit·., p. 96. j

, j' , )

226DE EVA A SANTA, A DESSEXUALIZAÇAO DA MULHER NO BRASIL

colegas e de seus amantes ou freqüentadores; outras vezes, fumam, jogam, brincam, berram, cantam, dançam e con­cluem paramentando-se".' As aristocráticas acordam tarde e passam o dia enfeitando-se, passeiam de carro ou ficam na janela. Sempre usam nomes falsos; adoram plantas e animais. Mas chegam a ter boas qualidades: "O sentimento de cari­dade não só para as colegas como para o próximo é uma das virtudes mais salientes das prostitutas". Socorrem-se nos mo­mentos de infortúnio, são carinhosas com as pessoas carentes, mas "nunca essa virtude é nelas fixa" . 9

Quanto aos amantes, eles podem ser de vários tipos, des­de o rapaz de família abastada que busca aventuras e quer dar vazão aos seus desejos libidinosos até os "persistentes", "ru­fiões" que são sustentados pelas mulheres e, na verdade, ape­nas lhes fazem companhia para irem ao teatro, aos bares, aos bailes e às compras. Estes costumam bater nas amantes, não amam, só exploram e amontoam-se nos bares, bilhares e cafés.

Também os gigolôs se tornam objeto de preocupação mé­dica e policial no final do século XIX, a partir da constituição do mercado de trabalho livre no Brasil. 1O No final da década de trinta, em conferência realizada na sede da Sociedade Bra­sileira de Criminologia, o delegado Anésio Frota Aguiar dis­tinguirá "três classes de proxenetas": o "judeu", principal­mente o polaco, que "explora o lenocínio como se estivesse à testa de um negócio" e para o qual a mulher é exclusivamente uma mercadoria; o caften do tipo "apache", "em cuja classe predomina o elemento latino" - não mantém comércio, vive e age isoladamente e domina sua vitima pelo terror, usando a "navalha dentada" como principal instrumento de coação; e o caften argentino: "é o tipo do gigolô. Conquista a mulher pelo lado afetivo. Procura o caminho do seu coração. Depois, ex­plora-a" .11

Os criminalistas procurarão demonstrar, através da an­tropologia criminal, que as prostitutas, assim como os crimi-

181 Idem, p. 48. 191 Idem, p. 151. (10) Bresciani, M. Stella, "Liberalismo: ideologia e controle social".

tese de doutoramento, São Paulo, 1976. (11) Aguiar I Anésio Frota, O lenocínio como problema social no Brasil,

Rio de Janeiro, 1940, p. 19.

RECORDAR FOUCAULT 227

nosos e anarql\Ístas, possuem uma configuração do cérebro diferente e alguns sinais orgânicos que as distinguem das mu­lheres normais. Apoiando-se em Cesare Lombroso, para quem as prostitutas se caracterizam pela fraca capacidade craniana e por mandíbulas bem mais pesadas que as mulheres hones­tas, a teoria da prostituição inata e hereditária ganha cada vez maior número de adeptos e informa as práticas de disciplina­rização, de vigilância e controle exercidas pela policia de cos­tumes. Daí toda a tentativa de enclausuramento das práticas amorosas extraconjugais em espaços fechados, isolados e re­gulamentados pelas autoridades públicas. Segundo o projeto regulamentarista, as casas de tolerância e os bordéis deveriam ser registrados na policia e vigiados tanto pelos médicos quan­to pela administração pública. O bordel, nesse sentido, deve realizar o ideal do anticortiço: deve ser o contrário do que representa a casa de prostituição clandestina, refletindo à sua maneira a intimidade conjugal burguesa. Por isso, a policia de costumes proibia nesses estabelecimentos qualquer prática de sexo grupal ou homossexual, muito embora estas interdições nem sempre fossem cumpridas.

Além de confinar as prostitutas dentro de espaços espe­ciais, vigiados e marginalizados, os regulamentaristas, in­fluenciados pela teoria biológica do meio ambiente, defen­diam que os bordéis e casas de tolerância estivessem localiza­dos em bairros separados, longe das igrejas, escolas, interna­tos, casas residenciais, etc. As prostitutas deveriam ter poucas permissões de circulação, de entrada e saída, e ainda deve­riam, fichadas na policia, receber a visita das autoridades sa­nitárias a domicílio várias vezes por semana, tendo em vista "neutralizar a propagação da sífilis, o eterno flagelo da moci­dade, o terrível inimigo da sanidade da raça" (Cândido Mot­ta). Deveriam ser portadoras de uma carteira sanitária de identificação pela qual seriam constrangidas a passar por exa­mes periódicos, a exemplo do que se praticava na França ou Inglaterra. A carteira de identificação conteria seus dados pessorus, idade, nome real, profissão anterior, naturalidade, estado civil, moléstias presentes ou passadas, constituindo-se em importante meio de informação sobre a vida da mulher e, portanto, em instrumento policial de controle. Desde os finais do século XIX, a policia procurava organizar o exercício da prostituição, definindo normas disciplinares de adestramento . ... .i. ., ...... -= ........................ -

228DE EVA A SANTA. A DESSEXUALIZAÇÃO DA MULHER NO BRASIL

das meretrizes, transformadas também elas em trabalhadoras úteis. Estas normas previam toda uma redefinição do espaço interno do bordel: utilização de cortinas e persianas, horários de aparecer najanela, interdição de jogos, bailes, festas baru­lhentas, impedimento de circulação nos lugares públicos com roupas decotadas e indecorosas, recato nos teatros e diverti­mentos públicos, etc. Evidenciavam, deste modo, uma clara intenção de tomar os espaÇos das sexualidades condenáveis absolutamente transparentes ao poder.

* * * No jogo de agenciamento e transformação das relações

intrafamiliares, a mulher, operária ou burguesa, constitui uma figura privilegiada de investimento do poder. Desodori­zar a cidade, eliminar miasmas, germes e lixos passa pela hi­gienização dos papéis sociais, pela desaglomeração dos ban­dos de pobres, pelo enc1ausuramento dos "desviantes", pela disciplinarização da prostituição, segundo um imaginário que progressivamente identifica o perigo biológico, a ameaça de propagação das epidemias à invasão do cenário social pelas massas de pobres, vagabundos, "gatunos e inválidos".

A valorização do papel da mãe e de um novo ideal de feminilidade, difundido pela sociedade burguesa desde mea­dos do século XIX e, nos meios operários, nos inícios do século no Brasil, tem o objetivo de convencer as mulheres de que elas amam naturalmente seus filhos, de que nasceram para pro­criar, de que o amor materno é uma vocação inata, pura e sagrada, e de que seu espaço natural resume-se ao lar. Tudo o mais inscreve-se no campo da anormalidade e recebe o estig­ma da culpabilidade. Entre a Santa Maria e a Eva, a mulher não teve nenhum espaço permitido.

Ora, a construção da "rainha do lar" implicou a total desvalorização pessoal, sexual, profissional e política da mu­lher, em todos os momentos de sua vida. Da mesma forma, a construção de seu contraponto, a figura maculada, profana, corrupta e degradada da puta, associada ao charme da maçã e à sedução de Eva, deveria aparecer como ameaça constante a todas aquelas cujos comportamentos desviassem mesmo que minimamente dos estabelecidos por uma rígida moralidade social.

.. .~'-

o castigo exemplar dos escravos no Brasil colonial

Silvia Hunold Lara

Esta comunicação tem dois objetivos principais. O pri­meiro é apresentar alguns aspectos de uma pesquisa mais am­pla, sobre a relação entre senhores e escravos no Brasil sete­centista, que estão relacionados com temas estudados e anali­sados por Foucault. Em segundo lugar, pretendemos levantar algumas questões referentes ao contato entre este "universo foucaultiano" e certas inquietações que permeiam a tarefa do historiador. Assim sendo, decidimos concentrar nossa expo­sição em tomo da análise de um documento, que serve, então, como ponto de convergência para nossas observações.

Trata-se de uma carta, escrita em 1761 pelo juiz da Al­fândega do Rio de Janeiro a Francisco Xavier de Mello Fur­tado, pedindo instruções para melhor solucionar um proble­ma. Conta ele que "os homens que trabalham nesta Alfân­dega ... são pretos ... totalmente faltos de notícia e ignorantes do crime em que incorrem pelas Leis e disposições do Foral cometendo, como sucede, alguns furtos dentro dela, os quais como sempre são coisas de tênue valor ... ". O pequeno valor destes furtos impedia, segundo o juiz, a aplicação da "última pena da lei" e ele, então, procedendo "conforme o mereci­mento da culpa", prendia os escravos delituosos. Tal prática resultava em danos e prejuízos para os senhores daqueles es­cravos, pela" demora na prisão, falta de seus serviços e mais despesas", apesar de não terem "concorrido com a mais leve circunstância para o delito". Diante deste dilema, pedia o juiz

230 O CASTIGO EXEMPLAR DOS ESCRAVOS NO BRASIL COLONIAL

da Alfândega que o rei determinasse um castigo que bastasse para "punir semelhantes furtos, sendo logo executado na mes­ma Alfândega, tanto que forem achados cúmplices neles, e isto para temor e emenda perante os mais escravos trabalha­dores, e entregues aos mesmos senhores com a pena que a V_ M . " 1 . parecer Justa.. . .

A legislação da época sobre furtos determinava que os furtos de valor inferior a 400 réis fossem punidos com açoites públicos com baraço e pregão ou outra menor pena corporal, segundo a quantidade e qualidade do furto e do ladrão. No caso de ser um escravo a furtar valia inferior a 400 réis, a pena se restringia ao açoite público, com baraço e pregão, sem pos­sibilidade de comutação.' A ser aplicada esta lei, o escravo delituoso deveria ser preso, deslocado para a cadeia à espera da elaboração judicial da culpa, escritura do pregão e execu­ção da pena. E o senhor teria que arcar com as despesas do processo, da carceragem e execução da pena, além de se ver privado do trabalho daquele escravo. A carta analisada parece indicar que o próprio juiz da Alfândega, dado o "tênue valor" dos furtos. prendia ele mesmo o escravo, na própria Alfân­dega. Ainda que as custas e o tempo da punição diminuíssem, ainda assim, o senhor tinha motivos de queíxas ...

Mas não era apenas o "prejuízo e dano" dos senhores que parecia preocupar o juiz da Alfândega. Pedia ele um castigo bastante específico, que punisse os furtos, que fosse pronta­mente executado, dentro da Alfândega, que inspirasse temor e exemplos aos demais escravos e que não interrompesse a exploração senhorial do trabalho escravo. Além disso, esta es­pecificidade trazia implicito o objetivo de ensinar aos "pretos

(1l Cf. "Aviso de 20 de outubro de 1761 remetendo, para se informar, cópia de uma carta do Juiz da Alfândega em que pedia se lhe determinasse o castigo que se devia dar aos pretos que trabalhavam na mesma Alfândega e fossem compreendidos em alguns furtos dentro dela" e " Provisão de 7 de maio de 1763 mandando informar sobre pedir o Juiz da Alfândega do Rio de Janeiro que se determinasse castigo que bastasse para punir alguns furtos de tênue valor que faziam dentro da dita Alfândega os homens pretos que nela traba­Ihavam", Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, Códice 952, vol. 41, fls. 160-162, e vol. 42, fls. 46-48, respectivamente.

(2l Código Philippino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal reco­piladas por mandado d'B Rey D. Philippe I (10031, ed. Candido Mendes de Al­meida, 14~ ed., Rio de Janeiro, Typ. do Instituto Philomathico, 1870. Livro V, Título LX, "Dos furtos e dos que trazem artiffcios para abrir portas", pp. 1207-1208.

, , . ,

RECORDAR FOUCAULT 231

... faltos de notícia-e ignorantes do crime em que incorrem" que surrupiar coisas, ainda que de "tênue valor", é um ato criminoso previsto por lei e, enquanto tal, passível de punição. Ora, tais características ultrapassam de muito o aspecto pura­mente punitivo e repressivo de um castigo para escravos deli­tuosos .

Antes de mais nada, é bom lembrarmos que a preocupa­ção com o castigo dos escravos não foi exclusiva deste juiz da Alfândega. Desde o século XVII encontramos diversos docu­mentos que fazem referência explicita ao assunto. O Título XCV do Livro V das Ordenações Filipinas reconhecia o direito senhorial de prender e encarcerar seu escravo "pelo castigar e emendar de más manhas e costumes".' Os açoites, freqüente­mente empregados na punição de diversos delitos, eram san­cionados tanto pela Lei como pela tradição e pelo costume.' Na segunda metade do século XVII, a Coroa portuguesa expe­diu diversas cartas régias ao governador do Rio de Janeiro lembrando que os senhores podiam castigar seus escravos, mas de forma moderada, condenando os abusos e cruelda­des.5 A moderação e a preservação de preceitos humanitários e cristãos na prática do castigo aparece explicitada em vários outros textos, como os de Jorge Benci, Antoni!, Manoel Ri­beiro Rocha e Azeredo Coutinho: necessário para domar sua rudeza, prevenir rebeldias e disciplinar os escravos, o castigo físico deveria ser justo, corretivo, parcelado e educativo; estes autores recomendavam o uso de açoites (desde que não pas­sassem de 40 por dia), de ferros (correntes e grilhões) e do

(3) Código Phílippino ... , livro V, Título XCV, "Dos que fazem cárcere privado", pp. 1245-1246.

(4) Cf. A. Perdigão Malheiro, A escravidão no Brasil. Ensaio histórico, jurldico, social (18661, Petrópolis, Vozes/lNL, vol.l, p. 41. 1976.

(5) Cf., entre outros: "Carta Régia de 20 de março de 1688 providen­ciando a respeito do excesso com que alguns senhores castigavam sellS escra­vos"; "Carta Régia de 23 de março de 1688 mandando processar sumariamente aqueles senhores que desmoderassem no castigo dos escravos"; "Carta Régia de 23 de fevereiro de 1689 declarando que ficassem sem efeito as ordens reme­tidas em 1688 a respeito da punição dos senhores que castigavam imoderada­mente os escravos, e mandando observar o que as leis dispunham em comum sobre a matéria" e "Carta Régia de 7 de fevereiro de 1698 ordenando que o Governador evitasse, empregando meios eficazes e prudentes, que os senho­res de escravos os castigassem rigorosamente, por ser este procedimento inhu­mano e ofensivo à natureza e às leis", Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, CÓ­dice 952, vol. 4, fls. 168 e 172; vol. 5, f!. 29, e vol. 9, fI. 37, respectivamente.

232 O CASTIGO EXEMPLAR DOS ESCRAVOS NO BRASIL COLONIAL

tronco, condenando qualquer prática de mutilação, suplício ou morte dos escravos.' Até mesmo alguns escravos que che­garam a querelar contra a crueldade de seus senhores admi­tiram este castigo moderado e humano, como "o que se cos­tuma dar a um filhó livre para (sua) educação ... ".'

Moderado, regrado e controlado, o castigo físico dos es­cravos nunca foi realmente questionado no mundo colonial. Objetou-se contra os excessos, abusos e crueldades, mas sem que se chegasse a propor sua abolição. Incontestado, servindo para educar, dominar e organizar o trabalho, o castigo físico impunha-se, então, como necessário ao governo dos senhores sobre seus escravos.

Mas cremos não ser ainda esta "moderação" o que preo­cupava o juiz da Alfândega do Rio de Janeiro. Ele pedia que o castigo dos escravos fosse essencialmente um castigo exem­plar, executado dentro da própria Alfândega. Não um castigo exemplar público, que punisse os furtos dos escravos como qualquer outro furto, executado pelos funcionários da Justiça Real e cuja exemplaridade estivesse dirigida à população (à multidão, à plebe) como um todo. Mas, sim, um castigo que fosse executado por aquele que controla o trabalho, no local de trabalho e cuja exemplaridade estivesse voltada para aque­les escravos que aí trabalhassem, e exclusivamente para eles. Um castigo que punisse e ensinasse o escravo que o sofria que ele não deveria roubar, que notificasse e instruísse todos os escravos da Alfândega sobre o que é roubar e que tal ato era passível de punição, e que prevenisse a repetição de uma ação, transformada em delito, por atentar diretamente contra a ex­ploração do trabalho. Assim, o castigo exemplar dos escravos,

(6) Jorge Benei, Economia cristã dos senhores no governo dos escra­vos (1795), São Paulo, Grijalbo, 19n; André João Antonil, Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas (1711 I, ed. A. Mansuy, Paris, IHEAL, 1968; Manoel Ribeiro Rocha, Ethiope resgatado, empenhado, sustentado, corre­gido, instruído elíbertado, Lisboa, Oficina Patriarcal de Francisco Luis Ameno, 1758, eJ. J. da Cunha Azeredo Coutinho, "Análise sobre a Justiça do Comér­cio do Resgate dos Escravos da Costa da África, novamente revista e acres­centada por seu autor" (1808), in Sergio Buarque de Holanda (org.), Obras econômicas de J. J. da Cunha Azeredo Coutinho, São Paulo, Cia. Ed. Nacio­nal, 1966, pp. 231-307.

(7) Cf. "Autos cíveis de libelo entre partes. Clara, Luiza e sua filha Fran­cisca - Autoras - contra (Amaro Giesteira Passos) - Réu (1799)", Arquivo do Cartório do Segundo Ofício da Cidade de Campos, Rio de Janeiro, maço 96.

~

RECORDAR FOUCAULT 233

exercício de reativação do poder senhorial e produção de um certo trabalhador, submetido a uma exploração particular, era, também, a comunicação exemplar da lei e da dominação.

Uma lei e um poder que deixavam de ser registrados ape­nas com papel e tinta, pelos senhores e para os senhores, para serem inscritos no corpo dos escravos. Para além das marcas corporais que traduziam o ato de poder envolvido na escravi­zação e diziam da qualidade e propriedade do africano tor­nado mercadoria, juntavam-se agora inscrições que sinaliza­vam a transformação do escravizado num trabalhador a ser explorado compulsoriamente.8 Cenas descritas por autores di­ferentes, qualificadas e repudiadas como atrozes, mas tam­bém mencionadas como freqüentes, marcavam outros mo­mentos em que a linguagem da dominação era impressa. As surras iniciais, dadas quando o escravo chegava ao engenho, deixavam cicatrizes que impunham ao escravo que ele se re­conhecesse como tal e assumisse a sua condição de submis­são." As marcas dos castigos para os que se rebelavam funcio­navam como reafirmação do poder senhorial e novas inscri­ções da lei: o escravo que fugia, por exemplo, quando preso recebia um novo carimbo, a letra "F" que lhe era marcada na espádua." Ao longo do século XVIII, o chicote se tomava, cada vez mais, um instrumento de castigo exclusivo para os escravos, o que significa também que os castigos retomavam sempre estes rituais, com o fim pedagógico de reafirmação das regras da dominação senhorial.

Esse texto, impresso no corpo dos escravos, era passível de uma dupla leitura, já que o ato da inscrição era tanto a afirmação senhorial da dominação quanto o aprendizado es­cravo da submissão. Sua leitura constituía-se no ato senhorial

(8) Para uma descrição de época sobre o tráfico de escravos, cf. Luís Antonio de Oliveira Mendes, Memória a respeito dos escravos e tráfico da es­cravatura entre a costa d'África e o Brasil (1793), Porto, Escorpião, 1977.

(9) "Nas fazendas, engenhos e lavras minerais, ainda hoje há homens tão inhumanos que o primeiro procedimento que têm com os escravos e a pri­meira hospedagem que lhe fazem, logo que comprados aparecem na sua pre­sença, é mandá-los açoitar rigorosamente, sem mais causa que a vontade pró­pria de o fazer assim, e disto mesmo se jactam aos mais, como inculcando­lhe, que só eles nasceram para competentemente dominar escravos, e serem deles temidos, e respeitados ... " Manoel Ribeiro Rocha, op. cit., p. 188.

(10) Alvará de 3 de março de 1741, em que se determinou que os ne­gros que se achassem em quilombos se marcassem com fogo em uma espá­dua. Código PhJlippino ... , Livro IV - Aditamentos, pp. 1045-1047.

234 O CASTIGO EXEMPLAR DOS ESCRAVOS NO BRASIL COLONIAL

de identificação do objeto submetido e, pelo escravo, na me­mória inesquecível da sua qualidade de ser dominado. Não apenas os carimbos do traficante e da propriedade senhorial identificavam o escravo. A quantidade de cicatrizes provindas dos açoites, as marcas das peias ou dos troncos identificavam também a sua qualidade, o grau da sua submissão. Muitas cicatrizes de chicote diziam de um escravo insubmisso, fujão ou que precisava ser sempre "corrigido"; cutiladas de faca podiam revelar brigas, etc. Ao mesmo tempo, defeitos físicos, marcas deixadas por antigas doenças, acidentes de trabalho ajudavam a identificar aquele escravo (de um determinado senhor) que tinha fugido, entre tantos Manuéis Angolas, An­tônios Crioulos, Domingos Benguelas, etc.

Lidas pelos escravos, estas marcas corporais eram um obstáculo ao esquecimento de sua condição de escravo. Ao serem impressos de modo exemplar, estes signos atingiam também algo mais profundo do que a pele e o corpo: a marca exemplar imprimia na "alma" escrava o medo da rebelião, a inexorabilidade da dominação senhorial a que estavam sub­metidos."

Esse caráter pedagógico e disciplinador do castigo exem­plar dos escravos na época colonial era um dos aspectos (es­sencial, mas não único) daquilo que Jorge Benci chamou, em 1705, de "economia cristã dos senhores no governo dos escra­vos", ou que Ribeiro Rocha denominou, em 1758, "teologia rural" dos possuidores de escravos." Uma análise mais deta­lhada da "economia" do poder senhorial sobre seus escravos

(11) Darwin, ao visitar o interior do Brasil no início do século XIX, regis­trou uma cena muito significativa a este respeito: "Aconteceu que, certo dia, atravessando um ferry em companhia de um negro que era excessivamente estúpido, a fim de ser compreendido, passei a falar alto e a gesticular. Devo, em algum momento, ter-lhe passadO a mão próximo ao rosto, pois, julgando talvez que eu estivesse irado e fosse batê-lo, deixou penderem os braços, com a fisionomia transfigurada pelo terror, e os olhos semicerrados, na atitude de quem espera uma bofetada da qual não' pretende esquivar-se. Nunca me hei de .esquecer da vergonha, surpresa e repulsa que senti ao ver um homem tão musculoso ter medo até de aparar um golpe, num movimento instintivo". Charles R. Darwin, Viagem de um naturalista ao redor do mundo (1839), trad. Rio de Janeiro, Companhia Brasil Editora, 1937, p. 44-45.

(12) Jorge Benci, op. cit., e Manoel Ribeiro Rocha, op. cit., p. 190. A expressão é igualmente encontrada em Vilhena: "A falta de governo econô­mico dos senhores é a causa primeira donde provêm todos estes males, não s6 aos escravos, como aos mesmos senhores que em breve tempo os ·perdem, consumidos de trabalhe, fome e açoites". Luis dos Santos Vilhena, Recopi-

>.~; . _.- ., ,

RECORDAR FOUCAULT 235

revela que o castigo físico não é o único dispositivo de poder nela incluído. Esta mecânica do poder senhorial não se exer­cia apenas pelo castigo, mas se estendia também para o con­trole da alimentação e do vestuário, da sexualidade, das prá­ticas religiosas, e até mesmo da quantidade do trabalho, reu­nindo amor e violência física, afeto e exploração pessoa!. 13

Como se pode observar, estamos até agora seguindo, grosso modo, uma análise que caminha paralela à análise fou­caultiana do suplício pena!." É bem verdade que Foucault trabalhou com o suplício penal, com o ritual das "mil mortes" que marca e ostenta suas vitimas, transformadas em suporte e arauto da própria condenação; que reconstitui a soberania le­sada (fazendo funcionar a dissimetria entre o súdito que ou­sou violar a lei e o soberano todo-poderoso que faz valer a sua força), que aterroriza (tornando sensível a todos, sobre o corpo do condenado, a presença encolerizada do soberano) e que

\;eativa o poder (ostentando num cerimonial judicial e militar o triunfo da justiça do rei e a glória do poder que pune). Nós, no caso do castigo exemplar dos escravos da Alfândega colo­nial, deixamos o nível do macrocosmo social (da relação entre o soberano e seus súditos) para entrar no microcosmo da re­lação entre senhores e escravos, no interior da Alfândega do Rio de Janeiro, no interior de uma unidade produtiva.

Esse deslocamento nos permite observar, em primeiro lu­gar, um conflito de poderes, entre a Justiça metropolitana (que pretende punir os furtos de uma forma) e os interesses específicos dos senhores de escravos. Também há concepções diferentes a respeito das práticas judiciais e punitivas, do tipo de castigo físico a ser ministrado aos escravos, etc. Uma aná­lise mais detalhada pode revelar diferenças e nuanças na con­cepção de "castigo moderado" nos discursos dos padres sete­centistas, da Coroa e dos próprios senhores.

fação de noticias soteropofitanas e braslficas contidas em XX cartas (1802), Bahia, Imprensa Oficial do Estado, 1921, p. 189.

(13) A análise de todos os aspectos envolvidos no exercício do poder senhorial vai além dos limites desta comunicação. Deixamos para fazê-lo pos­teriormente. Por ora bastam apenas estas indicações e as referências contidas na nota 6.

(14) Cf. Michel Foucault, Vigiar e punir. Nascimento da prisão, trad. Petrópolis, Vozes, 19n, especialmente a primeira parte, pp. 11-65.

236 O CASTIGO EXEMPLAR DOS ESCRAVOS NO BRASIL COLONIAL

Em segundo lugar, esse deslocamento traz a análise dos dispositivos de poder (na linguagem foucaultiana) para a pro­ximidade com uma relação de produção: o castigo exemplar dos escravos não é apenas exercício do poder senhorial, de reafirmação da dominação, mas deve cuidar também da re­produção de uma relação que é uma relação de exploração direta do trabalho. A exemplaridade do castigo não só marca no corpo dos escravos a sua submissão, a sua condição de escravo e reafirma o poder e a lei dos senhores em geral, mas também o poder e a dominação daquele senhor específico sobre aqueles escravos específicos e que ao mesmo tempo disciplina e produz um trabalhador particular, no local de uma produ­ção particular.

Ainda que, especificamente em Vigiar e punir, Foucault retome passagens do trabalho de Rusche e Kirchheimer, afir­mando que o investimento político do corpo está ligado à sua utilização econômica, que o corpo só é útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso,!5 ainda que men· cione "um certo número de amplos processos históricos no interior dos quais" a formação da sociedade disciplinar teve lugar 16 e que na sua análise relacione a prisão com as escolas, quartéis, hospitais e as fábricas; ainda assim, cremos que, em Foucault, a relação entre estes "amplos processos históricos" e a análise da microfisica do poder, posta em jogo pelos apa­relhos e instituições, é problemática. Acontece que a análise foucaultiana se preocupou com pessoas que estavam fora dos circuitos do trabalho produtivo: os loucos, os doentes, os pri­sioneiros, etc., pessoas para as quais o trabalho tinha uma função mais simbólica e de adestramento (ou disciplinar) que uma função produtiva.17 Por outro lado, Foucault chegou a reconhecer trabalhar no interior de um "certo horizonte geral definido e codificado por Marx", ao mesmo tempo que adotou uma série de "precauções metodológicas" e combateu certas leituras do marxismo." Sua contribuição é, sem dúvida al­guma, extremamente importante para nós, historiadores, ao

(15) Michel Foucault, op. cit., pp. 27-28. (16) Idem, p. 191. (17) Michel Foucault, Microfísica do Poder, trad. Rio de Janeiro, Graal,

1979, pp. 223·224. (18) Cf. especialmente Michel Foucault, Microfísica do Poder, pp. 2-7,

142·143, 148, 164 e 182·191.

,

.,

< \

..1. ..

RECORDAR FOUCAULT 237

romper com certas noções de verdade, ao tratar da multipli­cidade de sujeitos, da pulverização, densidade e difusão do poder. Por isso mesmo, esse deslocamento a que nos referi­mos, essa proximidade com a relação de produção mais im­portante na vida colonial que aparece em nosso trabalho, per­mite-nos indagar (para além da análise das estratégias e dos dispositivos de poder senhorial de que o castigo exemplar dos escravos faz parte) a respeito da conexão entre estas estraté­gias e dispositivos e a reprodução da exploração do trabalho, O castigo dos escravos é exemplar também porque o poder senhorial tem uma preocupação com o seu futuro, Não apenas se preocupa em punir um crime cometido no passado, mas prevenir rebeliões, conservar e manter os escravos, enquanto escravos, continuamente, Esta relação com a continuidade, com a reprodução da exploração escravista, efetivada por cada senhor no interior das unidades de produção, é que tem a ver

\ com o conflito mencionado pelo juiz da Alfândega (e não só por ele, mas também por outros textos coloniais") entre os interesses senhoriais e os da Coroa na punição exemplar dos escravos que cometem furtos. A distribuição do poder no mundo colonial, suas diversas estratégias e mecanismos e os conflitos entre as várias instâncias de controle da massa es­crava convergem, ainda que contraditoriamente, para a ma­nutenção da exploração escravista,

Finalmente, uma última observação: o castigo dos escra­vos deve ser entendido também como luta, Não apenas a luta do carrasco contra o condenado, do rei contra o súdito, mas como uma luta entre saberes diferentes, Há um saber escravo que se pretendia aniquilar com o exercício do poder senhorial. Os pretos que trabalhavam na Alfândega podiam ser "faltos de notícia e ignorantes" da lei senhorial, mas sabiam obter coisas para si, tiradas das mercadorias que transportavam dos navios aos armazéns. O texto impresso no corpo dos escravos podia ser lido de forma diferente pelos escravos: podia dizer sobre a qualidade do senhor que o havia imprimido, podia identificar um aliado possível numa fuga, numa rebelião, etc. Este saber, que informava as ações de resistência dos escravos diante do poder senhorial, apresentava também, ao mesmo

(19) Cf., por exemplo, Jorge Benei, op. cit., pp. 166-170.

Ir;

238 O CASTIGO EXEMPLAR DOS ESCRAVOS NO BRASIL COLONIAL

tempo, uma visão diferente da que estamos costumados a ou­vir daquele mundo colonial. Evidentemente, não se trata de um saber autônomo, exterior à própria relação de dominação. Ele se produzia nessa relação. Trata-se daquilo que o próprio Foucault chamou de "saberes dominados", entendendo por isso não só blocos de saber sepultados e mascarados no inte­rior dos conjuntos funcionais, pelos dispositivos de poder, mas também uma série de saberes que foram desqualificados, sub­metidos. 20

No caso dos historiadores da escravidão, a reconstituição deste saber escravo é dificultada pela falta de fontes diretas. Um obstáculo que é superado, no entanto, por uma série de recursos, pelo cruzamento de fontes diversas, por um certo tipo de leitura dos documentos disponíveis, por buscas em muitas direções. A observação do cotidiano colonial, de pe­quenos flagrantes da relação senhor-escravo (ainda que filtra­dos pela pena de um escrivão), depoimentos de escravos fugi­dos (mesmo que no momento de sua captura), ações de rebel­dia e resistência (apesar de reprimidas) permite uma nova abordagem da escravidão e do escravismo.

Mas nem sempre esta falta de fontes explica a ausência da procura do saber dominado: na publicação do dossiê de Pierre Riviêre, Foucault e seus discípulos dispunham direta­mente da fala deste camponês parricida. 21 Por que será que, em suas análises, eles se preocuparam muito mais com o con­flito entre o saber médio e o judiciário do que com a voz de Pierre Riviêre, que falava da sua vida, da vida de sua família, da vida daquela aldeia camponesa da França do século XIX? Esta surdez não seria, rua mesma, um dispositivo de poder?

(20) Michel Foucault, Microfísica do Poder, pp. 169-171. (21) Michel Foucault (org.), Eu, Pierre Riviere, que degolei minha mãe,

minha irmã e meu irmão: um caso de parricfdio do século XIX, trad. Aio de Janeiro, Graal, 197'l'.

" .

,I

Foucault: levantamento bibliográfico de artigos de periódicos

\ Compilado por Márcia C. Sampaio Ferraz. Vera Lúcia Junqueira.

Márcia N. dos Reis Carvalho e Eunides do Vale

1. ARTIGOS DE FOUCAULT

FOUCAULT, M. - La "governamentalità". Aut Aut, Milano. (167/168): 12-29, 1978.

__ Is it really important to think: an interview translated by Thomas Kee­nano Philosophy & Social Criticism, Boston, 9:29-40, 1982.

__ De macht en het eichaam: interview door Lucette Finas. Krisis. Ams­terdam, 1(3):48-56. 1980/81.

__ Precisazioni sul potere: risposta ad alcuni critiei. Aut Aut. Milão, (167/168):3-11,1978.

__ Resposta a uma questão. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, (28):57. 81,1972. Segunda edição.

__ Usage des plaisirs et techniques de soi. Débat, Paris, (27):46-72, 1983. __ Verité et pouvoir: entretien avec M. Fontana. L 'Are, Aix-en-Proven­

ce, (70):16-26,1977. __ What is an author? Partisan Review, New Brunswíck, 42(4):603-14,

1975. __ & CANGUILHEM, G. - Hommage à Jean Hyppolite. Revue de

Métaphysique et de Morale. Paris, 74(2):129-36, 1969. __ & COOPER, D. - Enfermement, psychiatrie, prison. Change, Paris,

(32-33):76-110, 1977. __ & LEVI, B. H. - Power and sex: an interview with Michel Foucault.

Telos. SaintLouis. (32):152-61.1977.

1,:

I: !

240 FOUCAULT: LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO

2. ARTIGOS SOBRE FOUCAULT

ALBURY. W. R. & OWROYD, D. R. - From Renaissance mineral stu­dies to historical geology: in the light of Michel Foucault's. The order of things. The British Journallor the History 01 Science, Londres, 10(36):187-215, 1977.

AMÉRY, J. - Berich über den "Gauchismus". Merkur, Stuttgart, 29(3): 271-9,1975.

__ Michel Foucault Vision des Kerker-Universums. Merkur, Stuttgart, 31(4):389-94, 1977.

ANCHOR, R. - Realism and ideology: the question of order. History and Theory, Middletown, 22(2):107-19,1983.

APOSTOL, A.-G. - Michel Foucault et certaines particularités d'une épis­témologie structuraliste des sciences humaines. Revista de Filozolie, Bucareste, 29(3):250-4, 1982.

ARAC, J. - The function of Foucault at the present time. Humanities in So­ciety, Los Angeles, 3:73-86,1980.

ARAYA, D. - Foucault y el pensamiento francês contemporâneo. Francis­canum, Bogotá, 24(70):104-15,1982.

ARIÉS, P. - A propos de "La volonté de Savoir". In: "La crise dans la tête". L :Are, Aix-en-Provence, (70):27-32,1977.

ARONOWITZ, S. - History as disruption: on Benjamin and Foucault. Hu­manities in Society, Los Angeles, 2: 125-47, 1979.

AVTONOMOVA, N. S. - De l'Archéologie 1"'Archéologie du Savoir" à la "Généalogie du pouvoir". Voprosy Filosofú", Moscou, (2):144-52, 1978.

BANN, S. - Foucault's silence. Poetry Nation Review, Manchester, 6(6): 32-4, 1982.

BAUCH, J. - Reflexionen zur Destruktion der teleologischen Universal­geschichte durch den Strukturalismus und die Kritische Theorie. Archiv für Rechts und Sozialphilosophie, West Gemiany, 65:81-103, 1979.

BAUDRILLARD, J. - Forgetting Foucault. Humanities in Society, Los Angeles, 3:87-111,1980.

BAUMAN, Z. - Industrialism, consumerism and power. Theory. Culture & Society, Cleveland, 1(3):32-43, 1983.

BERNAUER, J. - America's Foucault. Man and World, West Lafayette, 16(4):389-405,1983.

__ Foucault at the Collêge de France I: a course summary. Philosophy & Social Criticism, Boston, 8(2):233-42, 198!.

__ Foucault at the Collêge de France 11: a course summary. Philosophy & Social Criticism, Boston, 8(3):349-59, 198!.

__ Foucault's political analysis. International Philosophical Quarterly, Nova Iorque, 22(1):87-95, 1982.

BERSANI, L. - The subjec! of power. Diacritics, Ilhaca, 7(3):2-21, 1977. BIEMEL, W. - Philosophy and art. Man and World, West Lafayette,

12(3):267-83, 1979. BOLZ, N. W. - Tod des Subjekts: die neuere franzosische Philosophie im

~ RECORDAR FOUCAULT 241

Zeichen Nietzsche. Zeitschrift für Philosophische Forschung, Meise­nheim, 36(3):444-52, 1982.

BOMKEMS, R. & VAN DER SCHAAF, B. - Foucault in Nederland: no­tities. Krisis, Amsterdam, 1(3):36-47,1980/81.

BOUDIER, H. S. - Het motief Van De Blik by J. P. Sartre en M. Fou­cault. Algemeen Nederlands Tijdschrift voor Wijsbegeerte, Nether­lands, 71(4):233-45, 1979.

BOVE, P. - The end of humanismo Michel Foucault and thepower of disciplines. Humanities in Society, Los Angeles, 3:23-40, 1980.

BOZONIS, G. A. - Platonisme et structuralisme. Diotima, Alhinai, (3): 151-6,1975.

BRODEUR, J. P. - McDonell on Foucault's philosophical method: sup­plementary remarks. Canadian Journal of Philosophy, Alberta, 7:555-68,1977.

BROWN, B. & COUSINS, M. - The Iinguistic fault: lhe case of Foucault's archeology. Economy and Society, Boston, 9(3):251-78, 1980.

BROWN, P. L. - Epistemology and method: Allhusser, Foucault, Der-rida. Cultural Hermeneutics, Dordrecht, 3(2):147-63,1975/76.

CACCIARI, M. - "Razionalità" e "Irrazionalità" nella critica deI político I in Deleuze et Foucault. Aut Aut, Milão, (161):119-33, 1977. CANCINO P., C. A. - Analítica deI poder en Michel Foucault. Francis-

canum, Bogota, 20(59):105-27,1978. CAVALLARI, H. M. - Savoir and pouvoir: Michel Foucault's tbeory of

discursive practice. Humanities in Society, Los Angeles, 3:55-72, 1980.

CHUA, B. H. - Genealogy as sociology: an introduction to Michel Fou­cault. Catalyst, Buffalo, 14:1-22, 198!.

CONCHA, J. - Michel Foucault y las ciencias humanas. I & L, Minnea­polis, 3(14):68-84, 1980.

CONNOLLY, W. E. - Discipline, politics and ambiguity. Political Theory, Beverly Hills, li :325-42, 1983.

CORRADI, E. - La negazione della libertà in Michel Foucault. Rivista Rosminiana di Filosofia e di Cultura, Milão, 75(3):287-92, 198!.

__ 11 potere come metafisica in M. Foucault. Cultura e Scuola, Roma, 19(75): 123-32, 1980.

__ 11 prassismo archeologico. Incontri CulturaU, Roma, 10(1):229-34, 1977.

__ La storiografia archeologica di Michel Foucault. Rivista Rosminiana di Filosofia e di Cultura, Milão, 69(4):323-30, 1975.

COTESTA, V. - A proposito deUa "conversazione con Michel Foucault". O Contributo, Roma, 4(3):88-95, 1980.

COTTEN, J. P. - La vérité en proces: à propos de quelques pages de Mi­chel Foucault. La Pensée, Paris, (202):81-95, 1978.

CRANE, J. L. & DASILVA, F. B. - De/structuring the structuralist ac­vity: a critique of selected features of the structuralist problematic. Mid-American Review of Sociology, Lawrence, 7(2):105-27, 1982.

CRESPI, F. - Foucault o i1 rifiuto della deterrninazione. Aut Aut, Milano, (170/171):104-8,1979.

242 FOUCAULT, LEVANTAMENTO BIBLIOGRÃFICO

D'ALESSANDRO, L. - Potere e pena neUa problematica di M. Foucault. Rivista Internazionale di Faosofia dei Diritto, Milão, 53:415-29, 1976.

DELEUZE, G. - Escrivain non: un nouveau cartographe. Critique, Paris, (343):1207·27,1975.

DELOOZ, T. - Michel Foucault et Michel Serres: l'archéologie et le phy· sicien. Philosophie, Toulouse, (9):97·102, 1983.

DEWS, P. - De nouvelle philosophie en Foucault. Krisis, Amsterdam, 2(1):49·57,1981/82.

__ Power and subjectivity in Foucault. New Lefi Review, Londres, (144): 72·95, 1984.

DONNELY, M. - Foucault's genealogy of the Human Sciences. Economy and Society, Boston, 11(4):363·80, 1982.

DOUTRELEPONT, R. - De quelques utilisations récentes des indicateurs sociaux du changement: analyse (00 some receot uses of social chan­ges indicators: an analysis). Revue de "Institut de Sociologie (Solvay), Bruxelas, 1:59·71,1977.

ELA, J. M. -lêsus-Christ, dieu des philosophes? Revue des Sciences Re­ligieuses, Strasburgo, 49(4):269·91,1975.

ELLOS, W. J. - Linguistic transformation as genetic epistemology. Phi­losophy Today, Celina, 26(3):264·71, 1982.

EMAD, P. - Foucault and Biemel on representation: a beginning inquiry. Man and World, West Lafayette, 12(3):284·97, 1979.

EWALD, F. - Anatomie et corps politiques. Critique, Paris, (343):1228-65,1975.

FELMAN, S. - Madoess and philosophy or literatures reason. Yale French Studies, New Haven, (52):206·28, 1975.

FERNANDEZ. A. - La ep'istemología: por o contra la verdad?, Anuário Filos6fico de la Universidad de Navarra, Pamplona, 15(2):185·8, 1982.

FIMIANI, M. - 11 posto deU'esperienz •. Uomo Segno, Milão, 4(1):25-45, 1980.

FINLAY·PELINSKI, M. - Semiotics or history: from content analysis to contextualized discursive praxis. Semiotica, La Haye, 40(3/4):229·66, 1982.

FISCHER, D. J. - Compte·rendu en anglais. Telos, Saint Louis, (48):213· 20, 1981.

FLYNN, B. C. - Michel Foucault and comparative eivilizational study. Philosophy & Social Criticism, Boston, 5(2):145·58, 1978.

__ Michel Foucault and the Husserlian problematic of a transcendental philosophy of history. Philosophy Today, Celina, 22:224·38, 1978.

__ Sexuality, knowledge and power in the thoug)1t of Michel Foucault. Philosophy & Social Criticism, Boston, 8(3):329·48, 1981.

FONTAINE, J. - Foucault et Baudrillard: deux méditations sur le pou· voir. Revue Nouvelle, Bruxelas, 67:79·85, 1978.

FRANCK, R. - Ou est la vérité?, Dialogue, Kingston, 17(2):286·319, 1978.

FRASER, N. - Foucault on modem power: empirical insights and norma· I tive confusions. Praxis Intemational, Oxford, 1(3):272·87, 1981. " _1~

. --E

RECORDAR FOUCAULT 243

FUSINI, N. - 11 fantasma dei concreto. Aut Aut, Milão, (170/171):98·103, 1979.

GENOVESE, R. - L'impensato e li corpo: note su Foucault. Aut Aut, Mi­lão, (170/171):85·97,1979.

GIANNOTTI, J. A. - Histórias sem razão. Encontros com a Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 16:115·34,1979.

GIOV ANNANGELI, D. - La folie du cogito: pour une lecture des médio tations. Cahiers Internationaux du Symbolisme, Mans, (40/41):59-77,1980. _

GORDON, C. - Olher inquisitions. I & C, Highlands, 6:23-46.1979. GRANDE, M. - Topografia e discorso: su l' Archeologia dei Sapere di M.

Foucault. Nuova Corrente, Milão, (66):84·108, 1975. HACKING, I. - Biopower and the avalanche of printed numhers. Huma­

nities in Society, Los Angeles, 5(3/4):279·95, 1982. __ Michel Foucault's immature science. Nous, Bloomington, 13(1):39-

51,1979. HACKMAN, W. R. - The Foucault coofereoce. Telos, Saiot Louis, (51):

191·6, 1982. HANG, S. J. - The logic of social formations: toward a synthesis of AI­

thusser, Foucault, Ofie, and Habermas. Current Perspectives in So­cialTheory, Greenwich, 1:161·92, 1980.

HATTIANGADI, J. N. - Language philosophy. Hacking: Foucault. Dia· logue, Mootréal, 17:513·28, 1978.

HENNING, E. M. - Foucault and Derrida: archeology and deconstruc­tioo. Stanford French Review, Staoford, 5(2):247·64, 1981.

HEWITT, M. - Bio·politics and soeial policy: Foucault's account of wel· fare. Theory, Culture & Society, Cleveland, 2(1):67·84, 1983.

HONEGGER, C. - Michel Foucault und die serielle Geschichte: über die Archãologie des Wissens. Merkur, Stuttgart, 36(5):500·23, 1982.

HUAT·CHUA, B. - Genealogy or sociology: ao iotroductioo to Michel Foucault. Catalyst, Bulfalo, (14):1·22,1981.

HUPPERT, G. - Divinatio et eruditio: remarques sur Foucault. Gids, Amsterdam, (7/8):503·14, 1975.

__ Divinatio et eruditio: thoughts 00 Foucault. History and Theory, Middletown, 13:191·207, 1974.

JJSSELING, S. - Mach!, Taal en Begeerte. Tijdschrift voor Filosofie, Leu· ven, 41 :375·404, 1979.

JARA, J. - El hombre y su düerencia histórica. Revista Venezo/ana de Fi­losofia, Caracas, (9):53·90, 1979.

KEENAN, T. - Michel Foucault: is it really important to think? Philoso' phy & Social Criticism, Boston, 9(1):29-40, 1982.

KLEIN, T. - The problem of abnormality. Proceedings of the South· westem Philosophical Society, Denver, 7-22, 1980.

KRAKOWSKI, J. - Gaston Bachelard et l'histoire épistémologique. Stu' dia Filozofiszne, Varsóvia, (2):76·87, 1981.

KURZWEIL, E. - Michel Foucault and culture. Current Perspectives in Social Theory, Greenwich, 4:143·79, 1983.

KWANT, R. C. - Foucault el les seiences de l'homme. Tijdschrift voor Fi/osofte, Leuven, 37(2):294·326, 1975.

'í I,

II

I

244 FOUCAULT: LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO

LA ROCCA, A. - Michel Foucault. Belfagor, Florença, 33(3):321-34, 1978.

LECOURT. D. - Dissidence ou révolution? Cahiers Libres, Paris, (346): 7-97,1978.

LELAND, D. - On reading and writing the world: Foucault's history 01 thought. Clio, Kenosha, 4(2):225-43, 1975.

LEMERT, C. & GILLAN, G. - The new a1ternative in criticai sociology: Foucault's discursive analysis. Cultural Hermeneutics, Dordrecht, 4(4):309-20,1977.

LENOC!, M. - Maurice Clavel: annuncio di Fede e Rinascita dell'uomo. Rivista di Filosofia Neo-Scolastica, Milão, 71 :112-42,1979.

LÉONARD, J. - L'Historien et le philosophe. A propos de "Surveiller et punir. Naissance de la prison". Anna/es Historiques de la Révo/ution Française, Paris, 49(228):163-81,1977.

LEVY, Z. - The structuralist epistemology of Michel Foucault (in He­brew). Iyyun: a Hebrew Philosophical Quarterly, Jerusalem, 25:39-57,1974.

LEYURAZ, J. P. - Über den strukturalismus. Studia Philosophica, Suíça, 30:167-95,1970/71. •

LOJACONO, E. - Le choix philologique de l'histoire et l'archéologie du savoir. Anna/es de /Institut de Philosophie. Bruxelas, 143-63, 1973.

LOMBARDO, G. P.; CEI, A. & CAVALLO, C. A. - Lo "sguardo" di M. Foucault: epistemologia e ricerca storica in psichiatria. li Contributo, Roma, 4(3):96-114,1980.

LÓPEZ, E. - EI poder disciplinario en Foucault. Revista Mexicana de So­ciología, México, 41(4):1421-1432,1979.

MCDONNEL, D. - On Foucault's philosophical method. Canadian lour­nal of Phi/osophy, Alberta, 7(3):537-53, 1977.

MACEIRAS, F. M. - El formalismo linguístico en la epistemologia ar­queológica de Foucault. Aporia, Madri, 3(10):71-101, 1980/81.

MACHADO, R. - A arqueologia do saber e a constituição das ciências humanas. Discurso, São Paulo, 5:87·118,1974.

MARGOLIN, J. C. - La méthode des Mots et des Choses dans le De Pue­ris Instituendis d'Erasme (1.529) et l'Orbis Sensualium Pictus de Co­menius(1658). Organon, Varsóvia,12/13:69-86,1976/77.

MARTIN, B. - Feminism, Criticism, and Foucault. New German Criti­que, Milwaukee, (27):3-30,1982.

MEYER, P. - La correction paternelle ou rÉtat, domicile de la lamilk. Critique, Paris, 31(343):1266·76,1975.

MILOSEVIC, N. - Michel Foucault et Oswald Spengler. [zraz, Saravejo, 19(11/12):423-45,1975.

MINSON, J. - Strategier for Socialists? Foucault's Conception of Power. Economy and Society, Boston, 9(1):1-43, 1980.

MODERN masters. Social Research, Albany, 49(1):3-264, 1982. MONTEIRO, J. P. - Discurso teórico e discurso retórico. Discurso, São

Paulo, 4;79-93, 1973. OLIVEIRA DIAS, E. - Loucura e Verdade. (Folie et Vérité) Revista Por­

tuguesa de Filosofia, Braga, 38(4):675-84, 1982.

"

J

)

"

RECORDAR FOUCAULT 245

PADEN, R. - Surveillance and torture: Foucault and Orwell on the me­thods of discipline. Social Theory and Practice, Tallahassee, 10(3): 261-271, 1984.

PALMER, J. & PEARCE, F. - Legal Discourse and Slate Power: Fou­cault and the Juridica} Relation. Intemational Joumal of the Socio­logy of Law, Nova Iorque, 11(4):361-83, 1983.

PETERSON, R. T. - Foucault and the Politics 01 Social Reproduction. Humanities in Society, Los Angeles, 5(3-4):231-43, 1982.

PHILIPSON, H. - Comment écrire l'histoire? Michel Foucault révolu­tionne-t-il l'histoire de l'économie politique. Cahiers de Phllosophie, Villeneuve d'Ascq, 13:103·18, 1981.

PHILP, M. - Foucault on power: a problem in radical translation? Poli­tical Theory, Beverly Hills, 11(1):29-51, 1983.

PIERETTI, A. - 11 paradosso di Foucault. Studium, Roma, 74(6):799-808, 1978.

PLUMPE, G. & KAMMLER, C. - Wissen ist Macht. Über die theore­tische Arbeit Michel Foucault. Philosophische Rundschau, Tübingen, 27(3/4):185-218,1980.

POLAND, D. B. - Fables 01 transgression: the readiog 01 politics and the ( politics of reading in Foucauldian discourse. Boundary 2, Birgham­

ton,1O(3):361-81,1982. POMATA, G. - Storia di "police" e storia di vila: note sulla storiografia

Foucaultiana. Aut Aut, Milão, (170/171): 49-66, 1979. POSTER, M. - Foucault and history. Social Research, Albany, 49:116-

42, 1982. __ Foucault's true discourses. Humanities in Society, Los Angeies, 2:

153-166,1979. PRATT, V. - Foucault and the history 01 c1assification theory. Studies

in History and Philosophy of Sciences, Londres, 8(2):163·71, 1977. RABINOW, P. - Ordonnance, discipline, regulation: some reflections on

urbanismo Humanities in Society, Los Angeles, 5(3-4):267-78, 1982. RACEVSKIS, K. - The discourse 01 Michel Foucault: a case 01 an absent

and forgettable subject. Humanities in Society, Los Angeles, 3:41-54, 1980.

RAULET, G. - Structuralism and post-structuralism: an interview witb Michel Foucault. Telos, Saiot Louis, (35):195·211,1983.

RIDDEL, J. N. - Re-doubling the commentary. Contemporary Literature, Madison, 20(2):237-50, 1979.

ROJAS, R. C. - Foucault: una respuesta general al marxismo. Pucara, Cuenca, (3):187-93, 1977.

RORTY, R. - Method, social science, and social hope. Canadian Joumal of Philosophy, Alberta, 11(4):569-88, 1981.

ROSS, S. D. - The limits 01 sexuality. Philosophy & Social Criticism, Bos­ton, 9(3-4):319-36, 1982.

ROTH, M. S. - Foucault's "History of the Present". History and Theory, Middletown, 20(1):32·46, 1981.

RUDIGER, F. - Sexo e repressão na cultura de massa. Boletim INTER­COM, São Paulo, 7(49/50):71-80, 1984.

246 FOUCAULT: LEVANTAMENTO BIBLIOGRÀFlCO

SAID, E. W. - 10e problem 01 textuality: two exemplary positions (Der­rida, Foucault). Criticai Inquiry, Chicago, 4(4):673-714,1978.

SAGNOL, M. - La m.éthode archéologique de Walter Benjamin. Temps Modernes, Paris, 40(444):143-65,1983.

SCHURMANN, R. - Modernity: the last epoch in c10sed history. The In­dependent lournal of Philosophy, Viena, 4:51-9, 1983.

SCOTT, C. E. - History and truth. Man and world, West Lafayette, 15(1): 55-66, 1982.

SEEM, M. D. - Liberation of difference: toward a theory of antiliterature. New Literary History, Charlottesvi1le, 5(1):119-33, 1973.

SEITTER, W. - Ein Denken im Forschem: für Untemehmen einer Analy­tik bei Michel Foucault. Philosophisches lahrbuch, Munique, 87:340-63,1980.

SHlNER, L. - Foucault, phenomenology and the question of arigios. Phi­losophy Today, Celina, 26(4):312-21,1982.

__ Reading Foucault: anti-method and the genealogy of Power-know­ledge. History and Theory, MiddletowD, 21(3):382-98, 1982.

SICHERE, B. - L 'autre histoire: à partir de Michel Foucault. Tel Quel, Paris, 86:71-95, 1980.

SILVERMAN, H. J. - Jean-Paul Sartre versus Michel Foucault on eivili­zational study. Philosophy & Soeial Critieism, Boston, 5(2):159-71, 1978.

SIMON, J. K. - Michel Foucault 00 Attica: ao interview. Telos, Saiot Louis, (19):154-61,1974.

SINI, C. - li problema deIla verità in Foucault. Pensiero, Roma, 19(1-2): 20-45, 1974.

SMART, B. - Foucault, sociology and the problem of human agency. Theory and Soeiety, Amsterdam,ll(2):121-41, 1982.

SPRINKER, M. - Textual politics: Foucault and Derrida. Boundary 2, Birghamton, 8(3):75-98,1980.

__ The use and abuse of Foucault. Humanities in Society, Los AngeIes. 3:1-22,1980.

TAYLOR, C. - Foucault on freedom and truth. Political Theory, Beverly Hi1ls, 12:152-83, 1984.

TAYLOR, L. - Questions of method: an interview with Michel Foucault. I & C, Highlands, 8:3-14, 1981.

TEJERA, V. - The human sciences in Dewey, Foucault and Buchler. The Southern lournal of Philosophy, Memphis,18:221-35,1980.

THOMAS, D. - Sociology and common sense. lnquiry, Oslo, 21 :1-32, 1978.

TODISCÚ, O. - Lo strutturalismo: istanze umanistiche e orientarnenti della filosofia. Sapienza, Napoli, 25:169-209, 1972.

TRIÃS MERCANT, S. - EI ser deI hombre y el ser dellenguage. La Ciu­dad de Di6s, Madri, 190(1):97-113, 1976.

TURNER, B. S. - 10e govemment of the body: medicaI regimens and the rationalization of diet. The British Journal of Sociology, Londres, 33(2):254-69, 1982.

VADÉE, M. - L'épistémologie dans la philosophie occidentale contempo­raine. La Pensée, Paris, (220):85-97, 1981.

, , •

~

,

t

...:....,\

RECORDAR FOUCAULT 247

VALDINOCI, S. - Étude critique: les incertitudes de l'archéologie: arché et archive. Revue de Metaphisique et de Mora/e, 83(1):73-101, 1978.

VAN DE WIELE, J. - L'Histoire chez Michel Foucault. Les sens de I'ar­chéologie. Revue Philosophique de Lauvain, Louvain, 81(52): 601-33, 1983.

VERGUEIRO, L. - Presença foucaultiana. Discurso, São Paulo, 10:95-100, 1979.

VERONESI, P. - I poteri di Foucault. Materiali Filosofiei, Milão, 6(112): 123-41,1980.

VILLANI, A. - La modernité dans la pensêe philosophique !rançaise (lI -Foucault, Deleuze, Derrida). Revue de I'Enseignement Philosophi­que, Gagny, 33(2):27-40,1982/83.

WEILER, A. G. - Structure - systeme - épistémé. Wijsgerig Perspec­tief op Maatschappij en Wetenschap, Amsterdam, 21(3):76-88, 1980/ 81.

WEINERT, F. - Die Arbeit der Geschichte: ein Vergleich der Analysemo­delle von Kuhn und Foucault. Zeitschrift für allgemeine Wissen­schaftstheorie, Wiesbaden, 13(2):336-58, 1982.

WOLFF, F. - Michel Foucault: uma gaia ciência sem nome. Dados, Rio "<Ie Janeiro, 27(2): 121-4, 1984.

WOLTON, D. - Qui veut savoir? Esprit, Paris, (7/8):36-47,1977. ZOILA, A. F. - Michel Foucault, anti-psychiatre? Revue Internationale

de Philosophie, Wetteren, (123):59-74, 1978.

3. OBRAS DE REFERENCIA

BULLETIN SIGNALETIQUE: Philosophie. Paris, Centre de Documenta­tion Seiences Humaines/CNRS, 1976/84,30-38.

BULLETIN SIGNALE:TIQUE: Sociologie-ethnologie. Paris, Centre de Do­cumentation Seiences Humaines/CNRS, 1983,37(2/3).

INDICE DE CIENCIAS SOCIAIS. Rio de Janeiro, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. 1979/84,1-4: 5(1).

PHILOSOPHER'S INDEX. Ohio, Philosophy Documentation Center. 1976/84,10-15; 17: 18(1-3).

REpERTOIRE BIBLIOGRAPHIQUE DE LA PHILOSOPHIE. Louvain­la-Neuve, Institut Supérieur de Philosophie. 1977/83,29-35.

SOCIOLOGICAL ABSTRACTS. San Diogo, Sociological Abstracts Inc., 1973/84,21(1); 23; 24(1); 25-31: 32(1-4).

~

Registro: as atividades do Colóquio

Conferências 1. Salma Tannus Muchail. "O lugar das instituições na sociedade

disciplinar" (15 de abril de 1985) 2. Gérard Lebrun. "Transgredir a finitude" (15 de abril) 3. José Carlos de Paula Carvalho, "Biopoder, transgressão e corporeidade

ima(r}ginal: confronto antropológico e paradigmático" (17 de abril) 4. Pierre Macherey, "Uma retificação e seus limites: nas raízes da História da

Loucura" (17 de abril)

Mesas redondas e comunicações Medicina e Poder 05 de abril) 1. Sérgio Adorno e Myriam de Castro. "A pobreza colonizada: estudo sobre a

assistência social institucionalizada em São Paulo" 2. Myriam Bahia, "Práticas médico-sanitárias na cidade do Rio de Janeiro:

1890/1920" 3. Ítalo Tronca, "História, doença e poder: a lepra em São Paulo

(1904/1940)"

Repressão em Instituições O 6 de abril) 1. Comissão Teotônio Vilela, "Repressão em instituições totais: relato de

experiência" 2. Maria Soares de Camargo, "Vigiar e punir, a reforma penal e a pastoral

carcerária" 3. Cenise Monte Vicente, "Os riscos do olhar: ataque e contra-ataque" 4. Áurea M. Guimarães, "Escola e Violência: relações entre vigilância-

punição e depredação escolar"

Fdoso6as O 6 e 18 de abril) 1. Searlett Marton, "Foueault leitor de Nietzsehe" 2. Antonius Jack Escobar, "Genealogia e política" 3. Jorge Grespan, "Foucault: o historiador e os historiadores" 4. Matthieu Casalis, "Semelhança, diferença e dissolução do sujeito nasPa/a·

vras e as Coisas" 5. Maria Teresa Van Acker, "Palavras e coisas segundo o beneficiado Fran­

cisco Leitão Ferreira"

~

~

t

\

r • . ~

RECORDAR FOUCAULT 249

6. Dylan Downing Rees, "Desenvolvimento como saber - Desenvolvimento como intervenção"

7. Inês Lacerda Araújo, "Foucault e a dissolução da estrutura, do sujeito, da linguagem e da ciência"

Sexualidades O 7 de abril) 1. Norma Abreu Telles, "Uma estética da existência" 2. Edgard de Assis Carvalho, "Sexualidade, relações de gênero e dominação

masculina: Foucault e o projeto antropológico" 3. Margareth Rago, "De Eva a Santa Maria, a dessexualização da mulher no

Brasil" 4. Magaly Marques, "Sexo e domesticação -o feminismo como resistência" 5. Edward MacRae, "O discu!:so de reação dos grupos homossexuais"

História do Brasil II 8 de abril) 1. Silvia Hunold Lara, "O castigo exemplar dos escravos no Brasil colonial" 2. Leila Mezan Algranti, "Vigiar e punir no Rio de Janeiro de D. João" 3. Celeste Zenha, "As práticas da justiça no cotidiano da pobreza" 4. Eliane da Silva Lopes, "O adestramento da trabalhadora (1910/1922)

O diSC!!!!" foueaultlano 08 e 19 de abril) 1. Renato Janine Ribeiro, "0 discurso diferente" 2. Emani Pinheiro Chaves, "Foucault e a psicanálise" 3. Renato Mezan, "Foucault e a psicanálise" 4. Nicolau Sevcenko, "Charles Baudelaire - o discurso em desordem"

Literaturas O 9 de abril) 1. Hilário FrancoJr., "A vinha e a rosa: sexualidade e simbolismo em Tristão

e Isolda" 2. Eliane Robert Moraes, "Sade: uma proposta de leitura" 3. Philippe Willemart. "A paixão pelo documento segundo Flaubert e

Foucault" 4. Diane Marting. "A sexualidade feminina em Clarice Lispector"

Loucuras e doenças (J 9 de abri/) 1. Katia Muricy, "O legado da desrazão - a nonnalizaão médica e o romance

de Machado de Assis" . 2. Luiz Dantas, "A loucura e as palavras - O Alienista de Machado de Assis" 3. João Frayze-Pereira, "A loucura antes da história" 4. Maria Constança Peres Pissarra, "Calvino na Hist6ria da Loucura"

Espaços O 9 e 20 de abril) 1. Maria da Glória Marcondes Gohn, "A influência de Foucault na teoria dos

movimentos urbanos" 2. Antonio Carlos Robert Moraes, "Foucault e a geografia" 3. Maria Stella Bresciani, "Metrópolis: as faces do monstro··urbano"

Repen sar Foueault (20 de abril) . Mesa redonda com participação de Bento Prado Ir., Gérard Li:brun,

losé Arthur Giannotti e Paulo Eduardo Arantes.