Revista Arqueologia Pública 8, 2013

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número 8 | 2013

EDITORES Aline Carvalho (LAP/NEPAM/UNICAMP) Pedro Paulo A. Funari (LAP/NEPAM/UNICAMP) COMISSÃO EDITORIAL Ana Piñon (Universidad Complutense de Madrid, Espanha) Andrés Zarankin (UFMG) Charles Orser (Illinois State University, EUA) Erika Robrahn-González (Documento Patrimônio Cultural, Arqueologia e Antropologia Ltda) Gilson Rambelli (LAAA / NAR / UFS) Lourdes Dominguez (Oficina del Historiador, Havana, Cuba) Lúcio Menezes Ferreira (UFPel) Nanci Vieira Oliveira (UERJ) CONSELHO EDITORIAL Bernd Fahmel Bayer (Universidad Nacional Autónoma de México, México) Gilson Martins (UFMS) José Luiz de Morais (MAE/USP) Laurent Olivier (Université de Paris, França) Martin Hall (Cape Town University, South Africa) Sian Jones (University of Manchester, Inglaterra) COMISSÃO TÉCNICA Derivaldo Reis de Sousa Franciely da Luz Oliveira Marcos Rogério Pereira ESTÁGIO – REVISÃO TEXTUAL Camila Secolin PROJETO GRÁFICO João Batista Ruela Luiza de Carvalho DIAGRAMAÇÃO João Batista Ruela ISSN 2237-8294

4 EDITORIAL Aline Carvalho

ARTIGOS

7 OS SENTIDOS DA CULTURA MATERIAL NO COTIDIANO E NA MEMÓRIA DAS FAMÍLIAS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CINCO CHAGAS DO MATAPI Clarisse Callegari Jacques

22 ESTUDOS SOBRE O IMAGINÁRIO NA ATMOSFERA DE QUILOMBOS ARQUEOLÓGICOS Cláudio Baptista Carle

41 O PAPEL DA ARQUEOLOGIA NOS CONFLITOS DECORRENTES DE OCUPAÇÕES IRREGULARES NO SAMBAQUI DA PANAQUATIRA – SÃO JOSÉ DE RIBAMAR – MA Arkley Marques Bandeira

61 “TRÁFICO” DE MATERIAL ARQUEOLÓGICO, TURISMO E COMUNIDADES RIBEIRINHAS: EXPERIÊNCIAS DE UMA ARQUEOLOGIA PARTICIPATIVA EM PARINTINS, AMAZONAS Helena Pinto Lima, Bruno Marcos Moraes e Maria Tereza Vieira Parente

78 OFICINA LÍTICA DE POLIMENTO NO NOROESTE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Nanci Vieira de Oliveira

87 ESTUDIO DE IMPACTO ARQUEOLÓGICO EN PUNTA PEREIRA (COLONIA-URUGUAY): METODOLOGÍA APLICADA Y PRINCIPALES RESULTADOS PARA EL CONOCIMIENTO DE LA PREHISTORIA REGIONAL. Irina Capdepont, Laura del Puerto e Hugo Inda

106 A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR: O PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO NAS ORGANIZAÇÕES FORMAIS DO BRASIL Alejandra Saladino, Carlos Alberto Santos Costa e Elizabete de Castro Mendonça

119 A ARQUEOLOGIA HISTÓRICA NO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI Helder Bruno Palheta Ângelo

SUMÁRIO

135 PIXAÇÕES SOB A ÓTICA DA ARQUEOLOGIA URBANA

Rafael de Abreu Souza

ENTREVISTA

157 GABINO LA ROSA CORZO (Arqueólogo e Cientista Histórico - Universidad de La

Habana) Carola Sepúlveda

RESENHA

162 HENDERSON, Hope; BERNAL, Sebastián Fajardo (comp.). Reproducción social y creación de desigualdades – discusiones desde la antropologia y la arqueologia suramericanas. 1ª Ed. Cordoba: Encuentro Grupo Editor, 2012. 232 p. Bruno Sanches Ranzani da Silva

SEÇÃO DE GRADUAÇÃO

ARTIGO 174 GEOGRAFIA E ARQUEOLOGIA: UMA VISÃO DO CONCEITO

DE RUGOSIDADES DE MILTON SANTOS Anderson Sabino e Robson Simões

RESENHA

189 ANTÚNEZ, Carlos Arredondo; HERNÁNDEZ, Odlanyer de Lara; RODRÍGUEZ, Bóris Tápanes. Esclavos y cimarrones en Cuba: arqueologia histórica en la Cueva El Grillete. Buenos Aires: Instituto Superior del Profesorado Dr. Joaquín V. González – Centro de Investigaciones Precolombinas, 2012. 180p.

Vitor Gomes Monteiro

Dezembro de 2013

Caros Colegas,

É com imensa satisfação que apresentamos o oitavo número da Revista de

Arqueologia Pública. Como sempre, esperamos que vocês encontrem no espaço desta Revista

uma plataforma para a elaboração de discussões e reflexões acerca de temas vinculados ao

grande e aberto campo da Arqueologia Pública. Neste número, em especial, reunimos uma

sequência de artigos que transitam por diferentes recortes temporais e espaciais, mas, em

comum, trabalham com leituras sobre a cultura material, e produções de memórias a partir

destas materialidades.É claro que as posições dos autores aqui reunidos são bastante variadas

e não representam, de forma alguma, posturas consonantes sobre as temáticas mencionadas.

Acreditamos, todavia, que possibilitar as divergências, discordâncias, acordos e negociações

– representadas nesses artigos – é um dos pilares de nossa publicação.

Assim, na seção de artigos, os leitores encontrarão produções textuais que se

debruçam sobre temáticas vinculadas às memórias quilombolas, ribeirinhas e suas relação

com a cultura material; reflexões acerca dos diálogos entre memórias, cultura material e

instituições patrimoniais ou museológicas no Brasil; debates acerca da caracterização e

estudos de impacto em sítios pré-coloniais tanto no Brasil como no Uruguai; reflexões acerca

de atividades turísticas e outras formas de ocupação/uso de sítios arqueológicos e, por fim,

algumas leituras acerca da arqueologia urbana no Brasil. Neste número, também publicamos

um artigo produzido por alunos de graduação que lançou-se ao desafio de pensar possíveis

entrelaçamentos entre a arqueologia e a geografia, partindo de conceitos elaborados por

Milton Santos.

Ainda neste contexto de pluralidades, disponibilizamos uma entrevista realizada pela

doutoranda da Faculdade de Educação (FE-UNICAMP) Carola Sepúlveda – especialistas nas

memórias da poetiza chilena Gabriela Mistral – com o arqueólogo cubano Gabino La Rosa

Corzo. De forma bastante delicada, La Rosa Corzo expõe suas memórias acerca de sua

própria formação e traça reflexões sobre o campo da arqueologia tanto em Cuba como no

Brasil. Escolhemos publicar o texto em espanhol; língua na qual entrevistado e entrevistadora

se sentem absolutamente em “casa”.

EDITORIAL

No campo das resenhas, publicamos o texto produzido por Bruno Sanches Ranzani

da Silva acerca da obra organizada pelos pesquisadores Hope Henderson e Sebastián Fajardo

Bernal. O livro resenhado – Reproducción social y creación de desigualdades – discusiones

desde la antropologia y la arqueologia suramericanas (Ed. Cordoba: Encuentro Grupo

Editor, 2012) –traz as reflexões de uma série de autores atuantes no continente americano

sobre os diálogos entre arqueologia e antropologia, e, em especial, sobre temas como agência,

estrutura, poder, produção, reprodução, colonialismo e desigualdade.

Para finalizar esse editorial, gostaríamos de agradecer à todos aqueles que contribuem

quase que cotidianamente para a produção semestral da Revista de Arqueologia Pública:

alunos e pesquisadores vinculados ao Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte

(Lap/Nepam/Unicamp), equipe de informática da Coordenadoria de Centros e Núcleos da

Unicamp (Cocen), pareceristas anônimos de diferentes instituições de pesquisa nacionais e

internacionais, e, claro, aos autores que submetem seus textos a esta Revista. Desejamos uma

excelente leitura e ressaltamos que estamos sempre abertos ao diálogo!

Aline Carvalho

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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OS SENTIDOS DA CULTURA MATERIAL NO COTIDIANO E NA MEMÓRIA DAS FAMÍLIAS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CINCO CHAGAS DO MATAPI

The meanings of material culture in daily activities and memory in the Comunidade

Quilombola de Cinco Chagas do Matapi families

Clarisse Callegari Jacques1 RESUMO Neste artigo, busco discutir a temática da relação da cultura material com a memória e a oralidade a partir de vivências e experiências que tive até agora na comunidade quilombola do Estado do Amapá, chamada Cinco Chagas do Matapi. Destaco o papel da cultura material como mediadora de relações de alteridade, e a participação e o diálogo como aspectos metodológicos importantes da etnografia que contribuem para a prática de uma arqueologia mais reflexiva. Através de vestígios arqueológicos e de atividades atuais da comunidade, é possível estudar os diferentes sentidos da cultura material, entendida como ativa, e capaz de evocar lembranças e imagens de um passado não distante. É com a oralidade que os sentidos da memória, da paisagem e da cultura material se misturam e constituem a história e a identidade da comunidade de Cinco Chagas do Matapi. Palavras-chave: cultura material, memória, quilombolas. ABSTRACT In this article I intend to discuss the theme of the relation between material culture, memory and oral speech through daily experiences I´ve had until now in an african-descendent community in Amapá State (Brasil), called “Cinco Chagas do Matapi”. Material culture plays an important role as a mediator in alterity relations, and participation and dialogue are important ethnographic methodologies that contribute to a more reflexive practice of archaeology. From archaeological remains and recent community activities it is possible to study material culture´s different meanings, as active and capable of evoquing memories and images of a not distant past. It is through oral speech that the senses of memory, landscape and material culture intermixes and constitutes the history of ´Cinco Chagas do Matapi´ community. Key-words: material culture, memory, African-descendants. RESUMEN Este trabajo trata de analizar el tema de la relación de la cultura material de la memoria y la oralidad de las experiencias y vivencias que he tenido hasta ahora en la comunidad de marrón en el estado de Amapá, llamado las Cinco Llagas Matapi. Destacar el papel de la cultura material como mediadora de las relaciones de alteridad, y la participación y el diálogo como los aspectos metodológicos importantes de etnografía que contribuyen a la práctica de la arqueología más reflexiva. A través de actividades arqueológicas y actuales de la comunidad, es posible estudiar los distintos significados de la cultura material, entendida como activa y

1 Doutoranda PPGA/UFPA/CAPES. E-mail: [email protected]

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capaz de evocar recuerdos e imágenes de un pasado no muy lejos. Es con ese sentido de la memoria oral, el paisaje y la cultura material se mezclan y forman la historia y la identidad de la comunidad de las Cinco Llagas Matapi. Palabras Clave: cultura material, memoria, cimarrones

Introdução

A Arqueologia tem se deparado com situações cada vez mais desafiadoras durante

seu trabalho de campo. Nos contextos onde os vestígios materiais estão localizados em áreas

ocupadas atualmente por comunidades, pequenas vilas e fazendas, dizem respeito não só à

vida das pessoas que os produziram e utilizaram no passado, mas possuem significados para

diferentes pessoas que entram em contato hoje com esses vestígios.

No caso da pesquisa que venho desenvolvendo 2 na Comunidade Quilombola de

Cinco Chagas do Matapi, Estado do Amapá, foi encontrada pelos membros desta comunidade

uma botija de cerâmica enterrada no meio de uma plantação de mandioca. O interesse da

comunidade em querer saber mais sobre esta vasilha me instigou a desenvolver uma pesquisa

que levasse em conta a relação destas pessoas com os vestígios arqueológicos neste local.

Assim, até agora foram realizadas várias visitas à comunidade de Cinco Chagas, sendo que

durante uma delas foi escavada esta vasilha a pedido do Instituto do Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional (IPHAN) através de um projeto de resgate emergencial3.

Neste artigo, busco discutir a temática da relação da cultura material com a memória

e a oralidade4. Neste sentido, parto de vivências que tive até agora na comunidade e destaco

que a cultura material teve um papel importante como mediadora de relações de alteridade.

Em um primeiro momento discuto uma abordagem teórica acerca dos estudos sobre cultura

material, e busco apresentar os vestígios materiais como cultura material ativa, ligada às

pessoas e às suas experiências de vida. Em seguida, exploro o potencial da materialidade dos

vestígios arqueológicos enquanto evocadores de memórias e histórias a partir de encontros

com os moradores de Cinco Chagas. Em um último momento, reflito sobre o papel central da

2 Atualmente, venho desenvolvendo pesquisa de doutorado no Programa de Pós Graduação em Antropologia na Universidade Federal do Pará (PPGA/UFPA/CAPES). 3 Uma vez identificada a boca desta vasilha na roça de mandioca, o IPHAN, em visita a comunidade, solicitou a realização de um projeto de resgate arqueológico para evitar que este vestígio seguisse sofrendo com as ações do tempo. Assim, foi desenvolvido pelo IPHAN um projeto de resgate pontual desta vasilha no qual atuei como coordenadora responsável tendo em vista meu interesse de realizar pesquisas na área. Os resultados desta atividade foram apresentados em forma de relatório a este órgão (JACQUES, 2011). 4 As ideias principais deste artigo foram desenvolvidas no trabalho final da disciplina ´Cultura Material´ ministrada pela Profa. Dra. Marcia Bezerra no PPGA/UFPA e apresentadas no I Congresso Pan-Amazônico e VII Encontro da Região Norte de História Oral realizado em Belém em 2011.

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oralidade na pesquisa, que está me direcionando a lembranças, conhecimentos e fazeres

próprios das famílias que vivem nesta comunidade e que, por sua vez, dizem respeito a sua

história e ao seu patrimônio. A história da comunidade, presente na memória e contada

através da oralidade, se manifesta através da cultura material.

Os vestígios materiais e as experiências de vida das pessoas da Comunidade de Cinco Chagas

A Comunidade Quilombola de Cinco Chagas do Matapi pertence ao município de

Santana, Amapá, e está localizada nas margens do Rio Matapi a 19 quilômetros da cidade de

Macapá. Atualmente, a principal atividade das famílias que moram ali é a produção da farinha

e sua venda na feira da cidade de Santana, para onde se deslocam periodicamente de barco. A

atividade de revolver a terra para plantar e colher a mandioca tem feito com que as pessoas

entrem em contato com fragmentos de vasilhas de cerâmica e alguns eventuais instrumentos

de pedra polida diariamente. Foi a descoberta de uma botija inteira que chamou atenção,

fazendo com que as pessoas entrassem em contato com a Prefeitura de Santana e o IPHAN

para preservar esta vasilha e conhecer mais sobre a sua história.

O fato de as pessoas terem interesse neste artefato (na minha visão de arqueóloga)

me fez visitar a região com o técnico do IPHAN em outubro de 2009 e começar a pensar em

um projeto de arqueologia. Enquanto arqueóloga entendi, naquele momento, aquele lugar

como um sítio arqueológico com vestígios materiais de vasilhas cerâmicas indígenas ocupado

atualmente por uma comunidade quilombola que está interessada em conhecer mais sobre

estes artefatos. Os membros de Cinco Chagas, por sua vez, entendem a botija enterrada como

parte da sua história, como uma descoberta que deve ser preservada para que pessoas de

outros lugares possam visitar. Ainda, segundo o relato de alguns moradores, outras

comunidades do Rio Matapi possuem escolas, postos de saúde e igreja, mas não apresentam

uma situação como aquela, de aparecimento de uma botija enterrada no solo. É interessante

pensarmos nesta informação contextualizando o momento em que esta comunidade se

encontra, tendo optado pelo pedido de reconhecimento da Comunidade de Cinco Chagas

como comunidade remanescente de quilombo frente ao Estado.

As comunidades tradicionais, incluindo-se nestas as comunidades quilombolas,

enquanto grupos familiares com percepções do mundo próprias, uso comum de recursos e

apropriação privada de bens de forma consensual (ALMEIDA, 2004), possuem também um

entendimento próprio sobre o seu patrimônio, onde o passado e o presente estão relacionados.

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Neste sentido, o tradicional não se refere somente ao contexto histórico do grupo, mas aos

saberes e fazeres atuais. As comunidades possuem especificidades próprias, a ver com a sua

história, seu autorreconhecimento e as suas atividades quotidianas. Assim, no caso de Cinco

Chagas, além da vasilha enterrada estar associada à história e à identidade das famílias, é um

elemento importante enquanto especificidade ou diferencial de legitimidade desta comunidade.

Estas são duas visões, uma visão minha e a outra um entendimento que tive em um

primeiro momento sobre uma mesma situação, na primeira saída de campo. Com o tempo,

tive a oportunidade de visitá-los outras vezes e me convenci que existem ainda muitas outras

versões, visões e entendimentos desta história, deste lugar e desta botija enterrada. Além disso,

ainda com um olhar de arqueóloga, percebi que alguns dos fragmentos identificados nas roças

visitadas dizem respeito a cacos de vasilhas de grupos quilombola e não só de indígenas,

conforme algumas pessoas da comunidade já haviam me chamado a atenção. A riqueza da

relação da cultura material com as pessoas, as sensações, interpretações, desejos, esperanças,

memórias, fascínio que permeia este contato faz com que, neste projeto, a cultura material

seja estudada como agente, como ativa e não somente um produto de uma atividade humana.

Neste sentido, Miller (1987) destaca que frequentemente os artefatos são associados

à sua função, o que muitas vezes determina o nome pelo qual são chamados. Pensar somente

nesta perspectiva é limitar o entendimento da cultura material; o autor propõe que o crucial é

a relação social do objeto com as pessoas. Pensando esta proposta não só para artefatos, mas

para coisas em geral, pois nós nos cercamos delas (CSIKSENTMIHALYI, 1993:25), é

estudar a forma como as pessoas entendem e se relacionam com o mundo à sua volta

(THOMAS, 1996).

Para Tilley (2008), a cultura material pensada em relação à sua materialidade traz a

tona uma questão ambígua. Por um lado a matéria é propriedade interessante da cultura

material, pois pode proporcionar sensações relacionadas às características como textura, cor e

cheiro, que as palavras não conseguem expressar. Por outro lado, a cultura material representa

relações sociais e simbolismos que fazem parte do mundo das ideias, e não do material. Sendo

assim, o autor propõe o uso do termo objetificação como um conceito que possibilita uma

forma de entendimento das relações entre sujeitos e objetos que não são vistos como

diferentes; ou seja, as ideias, valores e relações sociais são criadas junto com o processo que

faz com que as coisas passem a existir.

A objetificação, assim, é um processo que aproxima as pessoas e as coisas, sendo

estabelecidos vínculos como os de identidade e memória, que fazem do objeto também um

agente. Neste sentido, de entender os objetos enquanto ativos, Gell (1992) ressalta que os

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efeitos que os objetos de arte provocam nas pessoas são o seu poder, uma mágica que liga o

mundo material ao campo das ideias (e sentimentos). Pode-se pensar também em uma

comunicação (GLASSIE, 1999), que está presente tanto na criação como no consumo de um

artefato.

Falar de objetos que ‘encantam’, termo usado por GELL (1992: 222), é tocar também

no que fascina um arqueólogo. Todavia, prender-se somente em um mundo material, já

admirado e analisado pelo pesquisador, é limitar a pesquisa ao sentido da visualidade e ao

mundo das coisas. Esta discussão coloca em cena o conceito de ‘cultura material’, que não é

entendido neste trabalho somente como coisas palpáveis, mas também é visto no sentido do

próprio conceito de objetificação colocado por Tilley (2008), e pode estar representado por

uma paisagem ou uma imagem trazida pela memória de um lugar. É desta forma que

proponho pensar a cultura material relacionada à Comunidade Quilombola de Cinco Chagas

do Matapi.

Como foi relatado acima, o primeiro objeto que caracterizou este local como sítio

arqueológico foi a vasilha inteira, também chamada de “igaçaba” ou “botija”. Associadas à

esta vasilha estão histórias que remetem ao imaginário e ao passado da comunidade. Vários

moradores relataram suas diferentes experiências com esta vasilha. Contaram, por exemplo,

da surpresa dela ter sido encontrada em um determinado ponto, e de ter permanecido neste

mesmo local. Os relatos sobre como ela foi descoberta sempre são associados a uma história

passada de geração para geração, que fala de vasilhas com ouro no seu interior e que

aparecem nos sonhos das pessoas em lugares diferentes, desaparecendo em certas

circunstâncias para reaparecer em outros locais.

Do ponto de vista arqueológico, após uma escavação emergencial feita a pedido do

IPHAN do Amapá (JACQUES, 2011), constatamos que havia outras duas vasilhas de

dimensões menores depositadas junto a esta botija maior, encontrada pela comunidade. O

contexto estratigráfico interpretado a partir da escavação indicou a abertura de uma fossa para

a deposição destes artefatos. Com a informação de que havia um pequeno pratinho com um

pó branco dentro da vasilha maior, e com a descoberta de outros pratos dentro das duas outras

vasilhas associadas à principal, interpretei esta deposição como fazendo parte de um contexto

funerário associado a uma ocupação indígena 5 . Estes relatos dos moradores locais e as

informações da arqueologia contam a história de vida desta vasilha.

5 As características de decoração plástica presentes na superfície das vasilhas cerâmicas escavadas indicam uma semelhança com as características da cerâmica da Fase Mazagão, estudada por Meggers e Evans (1957) e associadas a uma ocupação indígena.

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Ao conviver em Cinco Chagas neste período, percebi que ao longo de toda a área

onde estão as casas, foram encontrados fragmentos de vasilhas cerâmicas que, uma vez vistos

pelas crianças sob a ótica da arqueologia, passaram a encontrá-los ainda mais e a relatar onde

se localizavam. O olhar destas crianças, não tão “treinado” (ou poderia dizer “direcionado” ao

que eu já conhecia em publicações sobre o tema) quanto o meu, me fez perceber outros

fragmentos com características um pouco diferentes das que eu estava acostumada, e que me

remeteram às decorações e formatos das “louças” de cerâmica feitas atualmente pela

Comunidade Quilombola do Maruanum e expostas para venda na Casa do Artesão em

Macapá.

Tive a oportunidade de visitar esta outra comunidade, localizada no Rio Maruanum

(braço do Rio Matapi) em outro momento, o que me remeteu novamente a um olhar científico

arqueológico (com o natural encanto pelos artefatos) preocupado em diferenciar as

características dos fragmentos associados a grupos indígenas pretéritos comparando-os com

os já vistos em coleções e publicações de arqueologia, das características da “louça”

quilombola6. As pessoas de Cinco Chagas com quem conversei sobre o assunto, contam de

uma época em que eram compradas vasilhas no Maruanum para guardar água e torrar café, e

quando questionei sobre o que achavam dessas diferenças de coloração e decoração nos

fragmentos, algumas opinaram que certas vasilhas eram muito antigas, feitas por índios.

Adentrar uma discussão sobre a associação destes fragmentos a uma identidade

quilombola ou indígena não é o objetivo neste momento, visto que é uma questão delicada e

nada simples. O interessante, para esta pesquisa, é perceber como está sendo a relação das

pessoas com estes fragmentos e levar em consideração também que a visão da comunidade (e

a minha também) tem mudado conforme nos encontramos e ainda poderá mudar. Até agora

foi possível constatar que a vasilha inteira é muito importante para essas pessoas, mas não

pode ser entendida como o único patrimônio material. Como eles mesmos chamaram a

atenção desde o início, a produção de farinha é uma atividade que envolve saberes, técnicas e

instrumentos de trabalho também ricos em memória e identidade.

Dentro da abordagem aqui proposta para entender os vestígios arqueológicos

presentes nesta comunidade e a forma como as pessoas se relacionam com eles, a memória

tem um papel importante. É ela que, muitas vezes, reporta as pessoas ao passado, traz à tona

imagens e lembranças, confortos e saudades de momentos que são recriados e reinterpretados

através da narrativa oral.

6 Trabalho nada fácil ao qual este projeto não está dedicado.

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Memórias e histórias na Casa de Farinha

Dentre muitos objetos e objetificações relacionadas à vida diária das famílias de

Cinco Chagas, e pensados enquanto cultura material ativa, gostaria de destacar os

relacionados à atividade de produção de farinha, que dizem respeito desde os cacos de

cerâmica e pés de mandioca até os raspadores de mandioca, forno, farinha e outros objetos

utilitários e da memória. Cada núcleo familiar planta a mandioca nas suas terras, sendo que

pode haver pessoas que vêm de fora e passam um período trabalhando a partir de um acordo

com o proprietário. As áreas plantadas estão tanto junto das casas, que por sua vez se

localizam ao longo da margem do rio Matapi, como também podem estar mais afastadas.

Enquanto em uma parte do terreno são plantadas as mudas, em outra é revolvida a terra e em

uma terceira é feita a colheita de mandioca, de forma que essa seja produzida ao longo de

todo o ano. A partir da lida e da intimidade com a terra através da plantação, um dos

moradores mais antigos da comunidade me indicou as fronteiras das roças onde param de

aparecer fragmentos de cerâmica e de terra mais escura, indicativos para o arqueólogo de

locais antigamente ocupados.

Todas as famílias usam a Casa de Farinha, inclusive ao mesmo tempo, em um

processo contínuo que envolve descascar, deixar de molho, ralar, tirar o tucupi e a goma7,

espremer a massa, torrar a massa e, ao mesmo tempo, deixar sentar a goma e ferver o tucupi.

Enquanto uns estão descascando, outros lidam com outra etapa da produção ao ralar e, ao

mesmo tempo, outra família já está no final do processo de torrar e ferver o tucupi.

A dinâmica da casa de farinha envolve a circulação de corpos e coisas, como se fosse

uma dança onde os corpos se movem sem se tocar, as crianças vêm e vão, ajudando em

alguns processos, as mulheres descascando, lavando a mandioca e fervendo o tucupi, e os

homens descascando, torrando, ralando e carregando as sacas de massa da mandioca ralada

em um processo harmonioso. Para espremer a massa da mandioca, a comunidade construiu

uma prensa de madeira que acelera o processo antes feito com o tipiti8. Cada um possui uma

preferência de instrumento usado para descascar, seja uma faca menor, maior ou um raspador

de metal próprio para isso e argumentam sobre qual é o mais prático e eficiente. As sacas com

7 O tucupi e a goma são resultados do processamento da mandioca brava. Depois de descascada e de ficar de molho, a mandioca é ralada e “lavada” com água. Deste líquido sai o tucupi e a goma, o primeiro é fervido e temperado, e a goma é usada para fazer tapioca. 8 Estrutura cilíndrica feita de trançado de fibra de talo da palmeira do buriti para espremer a massa da mandioca, separando o líquido da massa, que será torrada posteriormente.

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a farinha pronta são amontoadas em um canto, parecendo todas iguais aos meus olhos, mas

pertencem a produções familiares diferentes.

Pensando um pouco nestas sensações e percepções que envolvem esta atividade de

produção, destaco as ideias de Spence (2007), que propõe a percepção multisensorial para

mostrar como os diferentes sentidos influenciam a percepção do tato. Ao dar-se conta da

substância dos objetos, são usados outros sentidos, ou seja, como propõe o autor, nem tudo

que acontece em contato com a superfície da pele tem a ver com o toque. O descascar a

mandioca implica em consistências de pedaços da mandioca ainda com casca indicadas pelo

olhar, mas retiradas com golpes de intensidades diferentes para deixar a raiz livre de

reentrâncias de ramificações. No processo de lavagem, ao mexer a massa ralada com água é

possível sentir concentrações diferentes e definir a quantidade de tucupi que vai estar presente

em cada produção de farinha; pois isso vai mudar o seu gosto. Na torragem, a cor, o deslizar

da pá no forno, a granulometria na farinha – às vezes peneirada para ficar mais fina – e provar

o ponto certo são percepções essenciais.

Enquanto visitante frequente, converso com as pessoas que me explicam o processo e

me deixam a par das suas vidas e ficam, ao mesmo tempo, a par da minha. Ao transitar na

Casa de Farinha, me deparo com áreas mais quentes, onde é fervido o tucupi e torrada a

mandioca, e passo pela fumaça do forno e o vapor da mandioca sendo torrada para chegar

onde a água lava a massa e o suco escorre para recipientes onde a goma vai sentar. São

cheiros diferentes em cada processo, e o aroma do tucupi fervido com alho e alfavaca

predomina na Casa de Farinha, objetificando todo este processo e todos os saberes nele

envolvidos.

Estas impressões e experiências que tive em campo me levam a pensar no potencial

da cultura material enquanto mediadora da relação entre pesquisador e interlocutor. Através

dela, a participação e o diálogo também acontecem. A participação acontece no sentido de

compartilhamento, no qual o trabalho de campo refere-se a um mundo que compartilhamos

com outras pessoas e com outros olhares e sensibilidades, mas com uma mesma convivência

(LIMA e SARRÓ, 2006:20). O diálogo é uma relação de alteridade que compartilha o mesmo

tempo (FABIAN, 2002) e que implica em uma troca de saberes através da cultura material.

Para Carlos R. Brandão (2007) a pesquisa é uma vivência, uma relação interpessoal e de

subjetividade, e o envolvimento pessoal e o contexto da pesquisa são dados que fazem parte

da prática de campo.

A mandioca, em suas diferentes versões, seguindo o gosto de cada um, retoma

diferentes significados e relaciona a história do lugar com a biografia particular de cada

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pessoa, assim como associa os fragmentos cerâmicos ao cotidiano da comunidade.

Retomando as ideias de Gosden (2005), as coisas de origens e históricos diferentes se juntam

para formar um modo de vida com ocorrência e lógica. Na minha ideia inicial, mandioca e

fragmentos de cerâmica nada tinham em comum; com o tempo, se tornaram parte de uma

mesma história.

No meio da cultura material e das histórias, estão as memórias. Estas memórias

dizem respeito tanto ao indivíduo como ao coletivo, referindo-se, respectivamente, como

ressalta Pollak (1992: 2), aos acontecimentos vividos pessoalmente e os vividos pelo grupo ao

qual a pessoa sente pertencer. A primeira não pode ser dissociada da segunda, pois, como

coloca Bosi (2004:54), ao refletir sobre os estudos de Halbwachs, a memória do indivíduo

está relacionada ao da sua família e com outros contextos nos quais está presente um coletivo

como, por exemplo, a Igreja, o trabalho, a escola, que são os grupos de convívio e de

referência do sujeito.

As diferentes formas de fazer farinha, de perceber a cultura material à sua volta nos

remetem a uma história pessoal cheia de detalhes e experiências do indivíduo. Cada um com

uma história de vida, cada um se inserindo nas histórias e nas práticas do grupo a partir das

suas memórias particulares. Ao mesmo tempo, essas memórias são “herdadas”, como sugere

Pollak (1992: 4), e vêm de um contexto compartilhado com outros sujeitos. A ligação entre o

indivíduo e o coletivo é intensa e frequente, e pude perceber isso, principalmente, nos relatos

sobre os diferentes entendimentos sobre a presença da “igaçaba” ou “botija” enterrada na roça

da comunidade. O local onde ela apareceu é importante, mas o que parece ser crucial é a

pessoa que a encontra, para quem a botija apareceu em sonho. A forma como me contaram

que ela apareceu, como ela foi procurada por esta pessoa e os fenômenos associados ao ponto

onde ela se encontrava como ruídos de passos e luzes fortes à noite, variam.

A memória, neste sentido, é entendida como uma construção (POLLAK, 1992; BOSI,

2004) que tem a ver com a percepção das pessoas sobre as histórias contadas, suas

interpretações e experiências com a cultura material. Ulpiano Menezes (1998), em publicação

intitulada “Memória e Cultura Material: Documentos Pessoais no Espaço Público” refere-se

ao papel da cultura material nos processos de rememoração ainda sendo abordado pelos

pesquisadores de forma tímida o que tende a ser ainda uma prática se tomarmos como

importante a influência dos mesmos nas vidas das pessoas. A história do aparecimento da

botija é um exemplo: mostra que as relações das pessoas com a cultura material são múltiplas

e ricas, suscetíveis a novas interpretações e repassadas através da oralidade.

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A Casa de Farinha enquanto cultura material possui suas representações. Seus

materiais construtivos, como o telhado feito manualmente com a sobreposição de galhos com

folhas longas envolvem também saberes específicos. A origem destes materiais de construção

e o destino do produto da Casa de Farinha, bem como a circulação de coisas e pessoas, me

remete à ideia de Gonçalves (2007) de que acompanhar o deslocamento dos materiais é

entender a dinâmica social. Um dos objetivos dessa comunidade é reformar a Casa de Farinha,

considerada “feia” por muitos; precisa ser reformado seu telhado e seu piso, principalmente.

Dentre muitos outros, é patrimônio deste local. Como coloca Gosden (2005), devemos olhar a

genealogia dos objetos e também as práticas que eles encorajam e permitem. Seguindo esta

perspectiva, as pessoas e a cultura material estão entrelaçadas e são entendidas sempre uma

em relação à outra.

Enquanto figura na paisagem, possui destaque como um lugar importante

economicamente falando, um lugar para ser mostrado aos que vêm de fora, um lugar de

reuniões e um lugar de convívio diário. Para Thomas (1996), a existência humana implica em

estar em algum lugar (ideia que o autor desenvolve a partir do pensamento de Heidegger);

este autor discute paisagem, corpo e lugar na arqueologia. A percepção do espaço perpassa a

experiência do corpo, a noção de distância, por exemplo, é orientada no mundo de acordo

com a maneira que as pessoas entendem o corpo e o que faz parte dele varia de sociedade para

sociedade. Falar de espaços e lugares implica também em refletir sobre a visualidade

enquanto cultura material. Não se trata de uma casa de farinha qualquer, é um lugar com

objetos que fazem sentido para aquelas pessoas, que contam sobre a sua história, que suscitam

encontros e estimulam histórias contadas através da oralidade. A prensa foi feita na

comunidade e substitui o tipiti, que somente uma pessoa sabe fazer e que vende, às vezes,

para outras comunidades. O ato de descascar mandioca tem a ver com o de contar histórias;

assim como os momentos de silêncio na casa de farinha direcionam as pessoas aos seus

pensamentos e às suas lembranças pessoais.

Os vestígios arqueológicos, como cultura material ativa, estão relacionados com a

mandioca e objetificam atividades diárias das famílias como o plantio, a colheita e a

convivência na casa de farinha. São diversos tipos de cultura material que criam memórias; os

cacos agora também lembram a arqueóloga “pesquisadora”, que aparece ocasionalmente e

que anda pela área tirando fotos.

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A oralidade remete a paisagens e a memórias criadas

Ao pensar corpo e espaço e a constituição de paisagens, não podemos deixar de

considerar a memória. O corpo enquanto veículo que, estando em um lugar (THOMAS, 1996),

permite ao ser humano sentir, ver e mais tarde lembrar através da construção de uma imagem

na mente de uma situação, de um lugar. Para Pollak (1992) esses “lugares da memória” estão

ligados à lembrança. Esta imagem que vem à mente, criada pela pessoa que viveu uma

experiência, pode ser também entendida como cultura material.

Pensando a visualidade como fator importante para se entender a cultura material,

gostaria de retomar outras experiências que tive em campo e que, refletindo agora, me

instigou a pensar a paisagem e a imagem enquanto cultura material. Como visitei a

comunidade em momentos diferentes do ano, na época da chuva e na época da seca, uma das

pessoas com quem tive maior contato sempre brincou comigo apresentando o terreno como

“limpo” na época da seca, pois a vegetação não cresce tanto, e “sujo” no inverno (época de

chuva), fazendo com que as pessoas andem somente nas trilhas de uma casa para outra. No

inverno, “tudo fica sujo, com mato”, e dá mais trabalho para as pessoas, que têm que “roçar”

na volta das casas com maior frequência. São duas paisagens diferentes, e estas paisagens

estão relacionadas a uma estética e ao próprio corpo que circula neste espaço.

Além disso, nestes momentos diferentes, os objetos que compõe a paisagem variam,

algumas coisas ficam visíveis e outras não, ou umas menos e outras mais. Na época da chuva,

a superfície fica mais encoberta, mais difícil também para visualizar os fragmentos de

cerâmica. Na época em que a vasilha ainda não havia sido escavada, a família proprietária do

terreno ficava mais descansada na época de chuva, pois a área onde a vasilha se encontrava

ficava mais ‘suja’ e, assim, chamava menos atenção e não corria tanto o risco de pessoas

desavisadas irem mexer.

Neste sentido, se pensarmos em patrimônio relacionado à ideia de herança – no

sentido de cuidar, valorizar e transmitir – e construção, pois é um termo criado a partir do

nosso olhar (JORGE, 2000: 125), o termo objetificação é um conceito interessante para se

pensar os vestígios arqueológicos, os objetos ligados ao cotidiano da comunidade e a imagem

de lugares. Estes, ao mesmo tempo, referem-se à história, à memória e à experiência social

dos núcleos familiares que constituem a comunidade. Isso, por sua vez, indica a necessidade

de problematizarmos o conceito de patrimônio arqueológico, que se torna mais amplo e que

inclui as noções próprias da comunidade sobre o que é importante para eles. Neste sentido, a

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arqueologia colabora buscando a construção conjunta do conhecimento e do patrimônio dos

lugares através de práticas de pesquisa participativas.

Um lugar que apareceu durante as conversas com os moradores da comunidade de

Cinco Chagas foi o “lugar dos antigos”, onde a primeira família ocupou a região, em uma área

mais distante das margens do rio Matapi. Tive a oportunidade de visitar este local, onde uma

das moradoras da comunidade me acompanhou com seu filho. Foi difícil identificar a trilha

para chegar lá, segundo ela, apesar de ser muito perto das outras casas. Isso aconteceu porque

o mato já havia tomado conta, o que sempre acontece em época de chuvas. Neste local não há

roça. Aos meus olhos, ao visitar o local, vi uma mata com árvores frutíferas e terreno

disforme, e me perdi facilmente na orientação do espaço.

Conforme caminhávamos no terreno, a moradora da comunidade procurava na

paisagem atual os lugares da sua memória (POLLAK, 1992), sempre acompanhada de seu

filho. Seguindo ela, tentei imaginar como poderia ter sido este lugar, como era a casa, como

era a roça, como era o lugar de torrar farinha... De repente ela chama atenção para uma

bacabeira9, e em um ponto inclinado do terreno encontra na sua lembrança a antiga casa. A

partir deste momento ela segue fazendo a leitura daquela paisagem através de uma volta no

tempo (considerando esta lembrança também como uma construção, como chama a atenção

ROCHA e ECKERT, 2000), às suas memórias e, ao mesmo tempo em que nos conta onde

costumava ficar cada coisa, relata para seu filho como era o seu bisavô, e de como ela

costumava cuidar dele. Identificamos o antigo poço, encontramos alguns restos da antiga

estrutura de madeira da casa e ela chamou a atenção à quantidade de coisas que ainda

deveriam estar aparecendo ali naquele lugar, se o mato não tivesse avançado. Ao mesmo

tempo em que se lembra dos momentos, explica como era a vida naquela época, e se

emociona retomando sentimentos pessoais; o filho, quieto, escuta pacientemente. Já

determinados a voltar para casa, nos deparamos com os restos do antigo forno feito com latas

emendadas, onde era torrado o café e a farinha. Ela pede que eu tire uma foto do filho

segurando este objeto, orgulhosa de mostrar para ele como vivia seu bisavô. Terminamos a

visita colhendo uma jaca madura, que seria apreciada juntamente com as lembranças do lugar.

Miller (1987) coloca que existe uma relação próxima entre a materialidade do objeto

e a materialidade do espaço, sendo que os objetos podem se referir a relações sociais e, neste

caso, também ao passado. Com certeza a imagem que eu via e que ela via eram diferentes, a

dela uma paisagem da memória, e a minha uma tentativa de transformar o que eu estava

9 Palmeira com fruto a partir do qual é tirado vinho e que é muito consumido pelas comunidades ribeirinhas no Amapá e na Amazônia.

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vendo e o que estava sendo narrado em uma cena à minha frente. Conforme caminhávamos

neste espaço, as árvores e os vestígios iam puxando a lembrança de situações do passado, iam

retomando a história da comunidade, iam ressignificando a paisagem. Entendendo a memória

como “espaço de construção de conhecimento” (ECKERT e ROCHA, 2000: 2), é ver o

passado não “(...) necessariamente antagônico ao presente, ao contrário, eles superpõem-se

ritmicamente e, num processo ondulatório, ao ponto da sua consolidação, deixam a

descoberto a matéria de suas lembranças” (ROCHA e ECKERT, 2000: 13).

A partir das experiências que vivi até agora em Cinco Chagas do Matapi, percebi a

possibilidade da história ser contada através de narrativas orais tendo os lugares, os momentos

e os objetos papéis de contextos que desencadeiam a memória. Em especial, uma vez que

pesquiso a relação dos vestígios arqueológicos com as pessoas nesta comunidade, a cultura

material evoca e cria memória, imagens, momentos passados, sentimentos. As coisas que nos

cercam possuem a capacidade de sintetizar uma história através do seu poder de evocar a

memória e instigar a narrativa.

Considerações finais

Uma pesquisa que leve em consideração abordagens metodológicas como a

participação, a dialogia e a problematização sobre a relação de alteridade são perspectivas do

campo da antropologia que podem auxiliar o arqueólogo a desenvolver uma prática de

pesquisa mais reflexiva e ética (SMITH, 2004; SHANKS e HODDER, 1998). Além disso, a

cultura material, enquanto mediadora de relações sociais, apresenta um potencial enorme

enquanto abordagem teórica e metodológica para problematizar a alteridade.

Os vestígios arqueológicos, enquanto parte do patrimônio de Cinco Chagas, estão

relacionados com a sua luta pelo reconhecimento enquanto comunidade quilombola. As

narrativas, através de imagens da memória das famílias, estão vinculadas a um sentimento de

pertencimento e associam as experiências e identidades sociais manifestas a um território

(MARIN e CASTRO, 1999: 76). Imbricadas nas demandas por melhorias sociais e

reconhecimento frente ao Estado estão as relações estabelecidas pelas pessoas com a história

particular das comunidades e com a materialidade.

Os arqueólogos, em suas pesquisas de campo, têm muito a aprender com a oralidade,

que mostra alguns sentidos da cultura material; esta, por sua vez, diz respeito às pessoas hoje,

e não só a um passado distante. Ainda, os artefatos e vestígios, associados a outros objetos e

imagens, remetem a uma identidade própria das pessoas do local, que tem a ver com os seus

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saberes e fazeres, suas casas, suas histórias e suas visões de mundo. Desta forma, não é mais

possível ir a campo e não escutar as pessoas, e não deixar a oralidade nos levar para diferentes

lugares através das imagens e nos mostrar diferentes perspectivas da cultura material.

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Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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ESTUDOS SOBRE O IMAGINÁRIO NA ATMOSFERA DE QUILOMBOS ARQUEOLÓGICOS

Studies on the imaginary in the atmosphere of Quilombo archaeological

Cláudio Baptista Carle1

RESUMO

Estudo sobre os diversos imaginários nas pesquisas de quilombos arqueológicos brasileiros, realizadas no Rio Grande do Sul, nos últimos anos, considerando seus aspectos colaborativos entre ciências e cientistas. Palavras-chave: Arqueologia, quilombos, imaginário ABSTRACT Study of the various figures in the Brazilian archaeological research Quilombo, held in Rio Grande do Sul, in recent years, considering its collaborative aspects of science and scientists. Keywords: Archaeology, quilombos, imaginary RESUMEN Investigación sobre los diversos imaginarios en los estudios arqueológicos en “quilombos” (sitios cimarrones) brasileños, celebradas en Rio Grande do Sul, en los últimos años, teniendo en cuenta sus aspectos de colaboración de la ciencia y de los científicos. Palabras clave: arqueología, Quilombo, imaginario

Introdução

Gitibá Faustino (1991: 102) diz que o Brasil é o segundo país do mundo em

população negra, sendo que o primeiro seria a Nigéria; me pergunto onde isso influi na

arqueologia? A resposta está na imagem (DURAND, 1997) arqueológica sobre vestígios de

afro-americanos. A atmosfera, o imaginário acadêmico, é de colaboração entre pesquisadores

envolvidos na investigação do tema. “O imaginário é determinado pela ideia de fazer parte de

algo” (SILVA, 2012). É sobre imaginário, esta atmosfera ou aura que o texto discorre.

1 LAMINA e PPGA (ICH) – GEPIEM (FAE) – UFPel , Doutor em História- Area de Concentração em Arqueologia (PUCRS). [email protected]

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Segui ideias convergentes que implicam em uma ação colaborativa. Aura

instauradora (DURAND, 1997: 19) da arqueologia sobre afro-americanos é inteira, torna-se

um imperialismo de imagens na ambiência social, “fantasias adversas”, “recalcamento” de

regimes de imagens fixadas em um “momento histórico” (DURAND, 1997: 390). O

imaginário revela as ações e as formas de entender o ser no mundo. A aura, imaginário, é

instauradora das formas de pensar, sentir e agir. Gilbert Durand, no universo simbólico dos

textos, neste caso sobre afro-americanos no sul do Brasil, indica que há uma troca incessante

entre as pulsões subjetivas (biopsíquicas) e as intimações objetivas (cósmico-sócio-culturais)

que se processa no trajeto antropológico. Que há um dinamismo equilibrador entre

pensadores, as grandes imagens tradicionais e as míticas. Mitos que penetram nas orientações

mais profundas (DURAND, 1997: 13) da sociedade científica. Há uma instauração do pensar

sobre os afro-americanos.

Esperava encontrar uma construção colaborativa, imaginada e apresentada nos textos

de forma utópica, mas verifiquei ideias individuais de cunho político sobre os vestígios de

afro-americanos. É uma visão recalcada.

Nenhum lugar é deixado à «Imaginação criadora», ao Imaginário poético. É talvez daí que data a catástrofe que separou o Oriente e o Ocidente em nível do pensamento, o pensamento visionário e o pensamento racional, desde Guillaume d’Auvergne até Descartes, passando por São Tomás de Aquino. O imaginário torna-se aqui no Ocidente cada vez mais recalcado na insignificação ornamental, estética, e, na véspera do século romântico, o divórcio está consumido. (DURAND, 2004: 10)

A visão de recalcamento ocidental (sistema imaginal instalado), expresso nas

ciências humanas, é fixada pela imagem científica redutora (cartesiana) que se desenvolve no

Brasil. Estamos então frente a um recalcamento da ciência ocidental, também na arqueologia

brasileira. Investigo este recalcamento nos estudos sobre quilombos e vestígios de afro-

americanos.

“O imaginário é a marca digital simbólica do indivíduo ou do grupo na matéria do

vivido. Como reservatório, o imaginário é essa impressão digital do ser no mundo” (SILVA,

2012). Sofri, como arqueólogo, este processo de impregnação simbólica. Esta marca

simbólica aparece desde o início do século; percebo-a a partir das discussões travadas com

Klaus Hilbert, Arno Kern e Moacyr Flores. Surge então este texto, no limiar entre o

cartesianismo e os estudos sobre o imaginário. As “práticas de fronteira são marcadas não

somente por relações de 'boa vizinhança', mas também pelo litígio” (GOMES, 2000: 7). O

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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litígio em foco é a possibilidade de compreender a aura que se estabeleceu nos estudos sobre

os afro-americanos no RS.

Na arqueologia brasileira, vemos que a reprodução de velhos modelos, sem uma

discussão teórica maior, ainda é persistente. “Uma ciência atinge sua maturidade quando ela

conhece seus limites” (KERN, 2002: 116). Não há estes limites e os trabalhos são

individualistas, feitos por um cientista que quer se entender múltiplo e que pretende dominar

tudo. Um imaginário de regime diurno e com esquema postural heróico (DURAND, 1997:

115-121), um super-homem das ciências.

Sigfried Laet coloca o problema da arqueologia na origem, na vinculação com outras

disciplinas, perdendo o seu veio condutor, expressando desejos de estudos, na maioria das

vezes, individuais, da História da Arte, das Ciências Naturais e da História propriamente dita,

perdendo sua constituição própria (LAET, 1959: 14-24).

Para Schmitz (1982: 53) a Arqueologia no Brasil procura reconstruir o modo de vida

- a tecnologia, a cultura, a sociedade - de populações passadas ou etapas das atuais populações

para as quais outras documentações são nulas ou ineficientes, não possuindo problemas, nem

teorias exclusivas, partilhando estas com outras ciências. É uma síntese, uma especialização

destacada de outras ciências, mas a arqueologia brasileira, na sua aura (imaginário), se pensa

total. “O imaginário, para mim, é essa aura, é da ordem da aura: uma atmosfera. O espírito

positivista não pode aceitar como vetor de ação algo tão impalpável, apresentado como

atmosfera, admitido como aura” (SILVA, 2012).

O imaginário é uma sensação que é vivida e não uma ordem de coisas mensuráveis

que podem ser quantificadas. Imbuído também por esta sensação, busco entender a atmosfera

do estudo arqueológico sobre áreas com vestígios de afro-americanos.

Atmosfera para compreender os quilombos arqueológicos

Há um reservatório, um motor que agrega imagens, sentimentos, lembranças,

experiências, visões do real que realizam o imaginado, leituras da vida individual e grupal que

sedimentam um modo de ver em objetos, como espaços, objetos móveis, estruturas. Ali estão

registradas as formas de ser, de agir, de sentir e de pensar o futuro ao se estar no mundo. O

imaginário “emana do real, estrutura-se como ideal e retorna ao real como elemento

propulsor” e como forma nas ações humanas que constituem os sítios que ocupa (SILVA,

2012; DURAND, 2004).

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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Estudar sítios arqueológicos históricos tem sido estudar a história dos seus

formadores (LIMA, 1985: 88). Esta é a atmosfera da arqueologia histórica no Brasil. “O

cientista não pode eliminar inteiramente o seu imaginário para atuar em condições absolutas

de objetividade e de neutralidade. A ciência também tem a sua aura. O cientista também se

move numa atmosfera” (SILVA, 2012). A atmosfera da “história do negro” e da “arqueologia

da escravidão” (como se pensa o estudo sobre afro-americanos) marca os estudos. Assim,

entender a atmosfera da história é entender o imaginário que envolve os estudos

arqueológicos até o presente.

O estudo sobre os afro-americanos é marcado pelo “branqueamento”, constituindo

uma atmosfera de segregação racial historiográfica no país (SANTOS, 1991: 81-82),

refletindo nos sentidos comuns (MAFFESOLI, 1994) da população diretamente envolvida e

em seus movimentos organizados. Efeito que marca as posições, os ideologemas, que são a

materialização de valores e de funções ideológicas de um determinado meio social, sendo

psíquico e social; por consequência, ideológico, constituindo a materialidade da “ideologia”

no cotidiano da vida social (DURAND, 1997: 118).

Na historiografia refletida na arqueologia (LIMA, 1985) aparecem estes ideologemas.

Escravos realizavam os assassinatos dos proprietários (MOREIRA, 1995), Luis Gama – filho

de escravo rebelde – afirmava “que o escravo que matava o seu senhor praticava um ato de

legítima defesa” (MOURA, 1987: 80). A confusão ideológica, ideologemas racistas e a

atmosfera científica se conflitam. O Movimento Negro, na região meridional do RS, ao

entender que o cientista trata os escravos como agressivos, inquiriu historiadores que

escreveram sobre isso, a exemplo da obra de Roger da Silva intitulada Muzungas: Consumo e

manuseio de químicas por escravos e libertos no Rio Grande do Sul (1828-1888) (Pelotas:

EDUCAT, 2001) que foi levada à investigação como uma obra racista, por dizer que os afro-

americanos envenenavam seus senhores no período da escravidão. Neste caso, o historiador-

autor é afro-americano e seu texto traz os registros históricos e não promove racismo de forma

alguma. Insurreições e revoltas também aparecem como formas de oposição à escravidão

(SANTOS, 1991: 79; MAESTRI, 1979: 53 e 94; GOMES et al, 1995: 28). Percebe-se

contradição na escrita histórica, aura dos estudos arqueológicos (FUNARI, 1996), em relação

à percepção dos envolvidos.

Mariano Santos – ex-escravo, afirmava que os escravos se suicidavam, apenas

esperando a morte de sede, de fome ou de enfermidade, “o dia que Deus chamava”

(MAESTRI, 1988: 31). A morte, na atmosfera historiográfica, é colocada como perda

mercantil, de força produtiva, que podia assumir proporções endêmicas (MAESTRI, 1979:

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47). A aura econômica amplia a atmosfera das pesquisas. Na urbanização, fugitivos passavam

por livres “de cor”, procuravam a proteção de um liberto ou de um senhor de escravos,

“acoutando-se”, fato punível por lei (MAESTRI, 1979). Sant-Hilaire (apud MAESTRI, 1979:

80-89) notava que os mais valentes soldados de Artigas eram escravos fugitivos. Presos, os

fujões “continuavam causando prejuízos, pois pagos os captores” (desde 1574) as fugas

continuavam, aumentando as despesas com os que permaneciam e com os que eram caçados

(MAESTRI, 1984: 73-74).

A fuga é uma constante. “A maneira mais simples, segura e rápida de um cativo

libertar-se era a fuga” (MAESTRI, 1984: 73). Aferida simplicidade é reveladora de uma

naturalidade na fuga que não expressa o fato. No Jornal O Mensageiro, Farroupilha que

pregava a república e a futura libertação de escravos, nas suas 37 tiragens, em 11 anúncios

condena a fuga de escravos. As fugas podiam posteriormente levar à formação de

“mocambos” e “quilombos” (SANTOS, 1991: 75; GOMES et al, 1995: 33). As Irmandades,

fenômenos urbanos ligados aos “terreiros” e “batuques”, frequentados por escravos, libertos e

livres pobres (MAESTRI, 1984: 54), eram importantes no apoio às fugas (GOMES et al,

1995: 29). A imagem criada por estes estudos é econômica, uma atmosfera econômica para a

escravidão e para a fuga.

As fugas são evidenciadas na historiografia no estudo sobre quilombos. No RS,

surgem diversos pequenos quilombos. Quilombos estes que vão além da definição inicial:

“toda a habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não

tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” (Rei de Portugal ao Conselho

Ultramarino, datada de 2 de dezembro de 1740, apud MOURA, 1987: 16). Formam grupos

armados, com lideranças na fuga e que se perpetuavam. Segmentos pobres ou perseguidos

convergiam aos quilombos.

O texto arqueológico, dos lugares (sítios e paisagem) e dos objetos, cria um sentido,

uma atmosfera, para compreender os quilombolas. Atmosfera não respeita as ideias criadas

pelos próprios grupos a partir de suas realidades para gerar os lugares. A arqueologia segue

este caminho, guiado por seu “trajeto” (DURAND, 1997) enquanto ciência.

A arqueologia de afro-americanos no Brasil está intimamente ligada à História e à

história da ciência, gerando sua atmosfera. Marcando este “trajeto”, Gustaf Oscar Montelius

(1843-1921) cria formas de classificação, para coleções estudadas (TRIGGER, 1992: 150),

elege variações de forma e decoração, que foram usadas na seriação dos difusionistas no

Brasil. Cultura (da Agricultura, um único tipo de cultivo), como organizações humanas

(1780), conceito que indica que uma sociedade obedece a padrões definidos, identificáveis,

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como no plantio, visíveis nos artefatos e nos níveis de estratificação diferente de um sítio.

Olof Rygh (1866) interpreta pontas de flechas e lanças como “cultura y de un pueblo” da

Idade da Pedra (1871), “dos culturas de la Edad de la Piedra y dos pueblos de la Edad de la

Piedra” (MEINANDER apud TRIGGER, 1992: 157).

A cultura aplicada nas ciências sociais e aos artefatos arqueológicos cria separações

culturais por métodos classificatórios e comparativos, nas aproximações e nas diferenças de

produção de bens. Gustaf Kossinna (1858-1931), estudando as “tribus” formadoras da “raça

germânica” de origem “indo-européia”, em detrimento de outras, divide os vestígios

arqueológicos por raças e identifica os povos criativos em contraposição aos povos passivos

(TRIGGER, 1992: 159-160). Kossinna busca comprovar a superioridade racial alemã que na

dispersão sofria diminuição de suas capacidades criativas. Os amadores, na arqueologia

brasileira (cf. André PROUS, 1991), com certeza entraram em contato com os vestígios de

afro-americanos, mas não os reconhecem. No Brasil, quilombos foram classificados como

áreas de cultura européia ou como áreas de povos não evoluídos, primitivos. O

“Branqueamento” criado por arqueólogos amadores se perpetua. A história e a arqueologia,

racistas, mascararam a cultura dos afro-americanos maculando-a (SANTOS, 1991: 141). A

atmosfera criada por Jonh Myres (1911) e Arthur Evans (1869), onde a cultura material dos

conquistados (passivos) era adotada pelos conquistadores (ativos), se perpetua (TRIGGER,

1992: 162). “A sociedade escravista almejava um cativo que se autoconcebesse como

propriedade de outrem ou um negro neutralizado pelo respeito e medo ao amo” (MAESTRI,

1984: 70). A atmosfera onde o afro é inferior, já na arqueologia histórica, o percebe como

escravo, ou seja, na sua condição sócio-econômica imposta e não como ente humano. A

“arqueologia da escravidão” é um exemplo dessa atmosfera.

A atmosfera modelada pelos textos do PRONAPA toma o lugar dos amadores,

fundamentada na ideia de que as culturas tinham um pólo inicial de origem e deste é que se

desenvolviam para o resto do mundo (TRIGGER, 1992: 145). A única área de origem

possível era colocada no Velho Mundo; dispersos desta por migração ou por difusão, criam

blocos ou áreas culturais similares e adjacentes. Franz Boas (1858-1942), baseado em

Fredrich Ratzel (1844-1901), incorpora a difusão à capacidade de invenção local. Invenções

simples, com única origem, gerando a difusão e as alterações regionais, conforme sua

dispersão a partir do centro de origem. A aura de que os africanos vieram pela mão dos

europeus sem cultura própria e alterada pela ação daquela cultura superior (TRIGGER, 1992:

159).

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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Nos Estados Unidos, os estudos etnográficos das cronologias das culturas, de Kidder

(1885-1963), dos métodos taxionômicos de classificação (tipificações são feitas e

ramificações encontradas), alicerçadas por esquemas dendríticos de interpretação, com as

sequências etnográficas, as tipologias e as seriações, formulam, ao final, tradições

arqueológicas e culturas (TRIGGER, 1992: 178-183). No Brasil, a Arqueologia Histórico-

Cultural, do Smithsonian Instituition (Betty Meggers e Cliford Evans), e a arqueologia

amadora brasileira sofrem a influência de um modelo que mescla ideias de Childe (1961) e

Montelius (TRIGGER, 1992: 177). Há uma atmosfera de cientificidade na arqueologia.

Meggers e Evans propõem “horizontalidades” e “verticalidades” de maneira

difusionista de expansão cultural (1958). A metodologia vertical de um sítio, estratigráfica,

classificatória e a seriação do material, intercaladas com as relações comerciais e a datação

absoluta realizavam entre sítios o sentido de fases dentro de tradições, fruto de pequenas

escavações nos sítios. Este modelo determina-se pelos objetos, perdendo a complexidade do

todo.

Objetos de afro-americanos viram fases, a exemplo da fase Monjolo (JACOBUS,

1996), da Tradição Neo-brasileira do PRONAPA (1965-1970). Eurico Miller, em Santo

Antônio da Patrulha (RS), no vale do Rio dos Sinos, investigava níveis estratigráficos como

níveis cronológicos. Vale-se de características diagnósticas típicas para afirmar ocupações,

tais como a cerâmica, a habitação, a iconografia, entre outras. As transformações culturais

derivam de intervenção externas: contatos culturais, comércio e migrações. A informação

contida no artefato dá segurança ao arqueólogo. Há fragilidade científica na orientação

indutiva, examinando os materiais empíricos recolhidos, ordenando-os, classificando-os,

eventualmente comparando-os, realizando generalizações subjetivas (TRIGGER, 1992: 195).

Ford (1938) valora os tipos dentro das culturas, correlaciona às diferenças temporais

e especiais. A técnica de Mortimer Wheeler (1890-1976) é mais usada para o campo na

escavação e no registro tridimensional. David Clarke (1968) cria o tratamento sistemático à

tipologia arqueológica em todos os níveis (TRIGGER, 1992: 192-196). Na mesma época,

vemos Mortimer Wheeler (1961: 27) criticar escavações que não deram importância às

estratigrafias, buscando apenas estruturas arquitetônicas, o que se atmosfera na arqueologia

histórica preocupada em comprovar um pensamento modelar em detrimento do universo

subjetivo dos humanos envolvidos nestes sítios. Estas técnicas tornam-se fundamentais. “Es

acientífico excavar sin plan ni problemas previos a cuya resolución puedan contribuir los

dados, pero si se supiera lo que hay en el suelo antes de la excavación no habría razón para

excavar” (WATSON; LEBLANC; & REDMAN, 1974: 34).

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O Histórico-Culturalismo manteve-se até hoje sem renovação de técnicas nem

implementação completa de seus pressupostos. Nas inúmeras conversas com Klaus Hilbert,

entendi que a análise baseada em fósseis diretores, sistemas classificatórios e seriações geram

uma redução interpretativa. Reduções parciais, evolucionismos, funcionalismos,

estruturalismos e outros criaram a aura arqueológica desta época (final da segunda guerra até

os anos 80, no Brasil). Hilbert diz que a descoberta do C14 rompe com a negação das

antiguidades e dos períodos pré-cerâmicos. Isto justificava uma colocação de José Joaquim

Justiniano Proenza Brochado (informação pessoal, em dezembro de 1992, Curso de

Mestrado) de que Betty Meggers não estudava o lítico e preocupava-se muito mais com a

cerâmica. Hilbert (2006) explica esta imagem por um “tripé” - objeto, tempo e espaço -

identificando fases e tradições, fórmulas fechadas.

A superioridade cultural, a assimilação, o abandono total da cultura, a vantagem de

uma sobre as outras dava aos quilombos os aspectos de organização social, de produção de

bens superados em sua origem africana pela superioridade da cultura européia. Quando

trabalhei pela primeira vez com esta ideia, achava ser uma mera hipótese, mas não, isso é um

pensamento que vigora ainda hoje no meio acadêmico. Escutei de uma antropóloga, que há

anos trabalha com quilombos: “não devemos africanizar os quilombos”; logo depois indicou

sua “origem italiana”. Ela falava da aculturação dos quilombos. “Por mais que deseje, o

cientista não pode eliminar inteiramente o seu imaginário para atuar em condições absolutas

de objetividade e de neutralidade” (SILVA, 2012). A fala desta antropóloga é a atmosfera da

cultura europeia como superior.

Repetidas vezes, vimos na história e seu reflexo na arqueologia o que nos escreve

Joseph Hörmeyer (1986: 78), em 1850, preparando a propaganda para a entrada de alemães:

“certo é que um escravo é castigado também aqui, mas assim como um pai castiga seu filho

renitente”. Cristina Nery e Gilian Lopes (1988: 534-535) refutam a ideia de castigos brandos,

pois nos escravos domésticos (1860-1880), cujas exigências eram menores, a taxa de aleijados

e doentes era grande. A ideia de castigos sugere que existia esta necessidade e, portanto,

explicita a imagem de inferioridade de época e atual, que se mantém entre pesquisadores e

reflete no senso comum.

A escravidão, para alguns, impediu o desenvolvimento de eficientes formas

produtivas, mantendo a sociedade em uma estrutura fechada, pois “sendo o escravo a base

fundamental da estrutura, qualquer mudança estrutural, partindo da cúpula do sistema, previa

o fim da condição de ser escravo como último ato, ou seja, o último recurso” (SANTOS,

1991: 72). Louis Conty (apud MAESTRI, 1984: 66) acredita que a charqueada gaúcha

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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produziu menos que a uruguaia e a argentina, pois usava escravos em vez de assalariados. É

evidente o eurocentrismo na história, refletindo-se na arqueologia.

Ocorre uma renovação na aura, com o marxismo na arqueologia, por ilustrar as lutas

sociais e evidenciar a ação dos campesinos e trabalhadores. As ideias nacionalistas e

evolucionistas agregam-se ao método de Mortimer Wheeler, dando base à arqueologia

marxista na América Latina (TRIGGER, 1992: 170-172). A aura eurocêntrica está mantida.

É visível no universo antropológico de Darcy Ribeiro, no “O Processo Civilizatório”

(1968), cujo prólogo é de Betty J. Meggers (RIBEIRO, 2001: 15), líder do PRONAPA.

Meggers enfatizava que: “o mundo atravessa hoje um estado de sublevação. Guerras,

rebeliões, golpes, guerrilhas, greves e outras manifestações de tensão comparecem

diariamente nos jornais”. Escreve que nos Estados Unidos estavam enfrentando “conflitos dos

guetos negros”, os quais “estão se tornando tão inevitáveis quanto os dias quentes de verão e

agora ameaçam destruir porções apreciáveis de nossas principais cidades”. Indica já esta

sublevação negra como um empecilho ao bom desenvolvimento. “Os conflitos raciais

explodem por todos os lados. As enormes diferenças no acesso às vantagens econômicas e

educativas não apenas criam problemas específicos, como difundem seus efeitos dilacerados

através de toda a ordem social” (RIBEIRO, 2001: 15). Há uma dubiedade neste discurso, pois

ao evocar o fim dos conflitos, explica-os pelo meio em que os afro-americanos vivem. Uma

atmosfera típica das explicações marxistas na antropologia e na arqueologia brasileira.

Publiquei este livro com muito medo. (...) Meu medo devia ter aumentado quando um conhecido intelectual marxista, ledor de importante editora, deu um parecer arrasador sobre O Processo Civilizatório. (...) Mas surgiram vozes de alento (...) Entre eles, a mais competente arqueóloga que conheço: Betty Meggers (Prefácio à quarta edição venezuelana, RIBEIRO, 2001: 23).

A imagem marxista invadiu a historiografia; há exemplo das obras de Fernando

Henrique Cardoso (1962) e Jacob Gorender (1980), tendo como um dos principais seguidores

no RS o historiador Mário Maestri. Basendo-se nesses, considerava o escravo como regulador

social, pois quanto mais longe da condição de escravo um cidadão se encontrava, mais alto

estaria na escala social. Era regulador de propriedade e a propriedade teria valor na cidadania

de época; acredita que estes senhores não podiam imaginar sua vida sem seus escravos, sem

seu trabalho. Identifica, segundo suas pesquisas, inúmeros casos de escravos valerem mais

que uma propriedade, funcionando também como moeda internacional-comercial (MAESTRI,

1984: 25) e como indexador da economia interna (SANTOS, 1991: 71-72).

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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Gilbert Durand (2004: 15) diz que “não nos habituaram a ler (...) através de um

contexto de remitologização”. A atmosfera do “herdeiro glorioso das Luzes” é que guia este

momento da ciência, tanto no positivismo como no materialismo

Pelo menos não são nossas teorias eruditas das ciências sociais do século XIX que procuraram desmitificar nossa quietude progressista! Entretanto... Entretanto Saint Simon, Auguste Comte, principalmente, querem fundar, e fundam (no Rio de Janeiro, esta instituição ainda existe...), uma religião nova com sua liturgia, seu temporal, e mesmo seu santoral! E, no entanto... Sabe-se lá por que Karl Marx deixou crescer uma barba tão bonita, a mais bela barba da história moderna? Simplesmente pela sua admiração por um busto helenístico de Júpiter (o qual ele sempre guardou, em Londres, a forma na ante-sala do seu escritório), ele mesmo se sonhando como sendo o Olimpiano fundador dos novos tempos. Teogonia é o primeiro modelo de um certo progressismo: após a idade dos Titãs, após o reino de Cronos, de repente advém a idade das Luzes olimpianas, a idade da ordem jupiteriana... É exatamente com este Zeus do Olimpo que Karl Marx quis conscientemente, muito conscientemente, parecer... Então, clima estranho este do século XIX, aonde o progressismo vai em direção do avanço tecnológico triunfante até nossa própria época, mas onde os construtores de ideologias totalmente míticas (no sentido bem pejorativo como entendiam os positivismos, quer dizer inverificáveis, utópicas, fantasmáticas...) assombram a ascetização racionalista. (DURAND, 2004: 15)

A mítica higienizante do materialismo onde a mão-de-obra afro-americana ocupou

todas as instâncias da produção no RS, africanos/escravos como uma abstração.

Homogeinização de diferentes grupos linguísticos, que divididos em dialetos e tribos não

formam uma unidade, impedidos de permanecer reunidos (SANTOS, 1991: 75).

Homogeinização como classe ou cultura, uma mítica positivista/materialista. Os escravos do

Brasil meridional foram utilizados no campo, mas em concentração nas charqueadas. Os

escravos eram então estenuados por uma jornada de trabalho de 16 horas diárias, apanhando e

sendo muitas vezes embebedados para continuar seu trabalho, parando pelo esgotamento ou

pela enfermidade (MAESTRI, 1984: 46). A carne salgada barateava o antigo transporte do

gado vivo, a produção intensa, competitiva com as saladeiras argentinas e uruguaias que,

depois de 1825, passaram a usar assalariados (CORSETTI, 1985: 91).

Os sítios de afro-americanos nesta mítica mantêm o “modo de produção” ou um

“modelo de subsistência” no “modo de produção capitalista” implementado, relegando ao

universo materialista a mítica dos quilombos. A atmosfera em que há a modelação marxista,

entendendo o capital industrial como motor da mudança, cria um apelo às relações de poder

mecanicamente. O viajante Nicolau Dreys (apud MAESTRI, 1979: 42) considerou a

charqueada um estabelecimento penitenciário. No espaço urbano, esta “classe” teria melhorias

da vida; e no campo e charqueadas, os escravos estavam mais angustiados (MAESTRI, 1990:

697-698; MAESTRI, 1984: 63).

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Afirma-se que o escravo na cidade se protege entre os seus, os escravos de ganho

conquistam a liberdade pela compra de alforrias (MAESTRI, 1990: 699-701-703-705; ISCM,

1994: 51). A circulação livre, jogos, liberdades, eram punidos severamente (MAESTRI, 1990:

699-700) subverte a imagem de classes diferentes entre os escravos ou mesmo do escravo

como classe (MOREIRA, 1995: 54). Esta é uma mítica atual nos estudos arqueológicos sobre

o negro (CARLE, 2005).

As alforrias geravam inúmeras contradições. Roberto dos Santos, ao catalogar uma

série de inventários, encontrou um fato curioso em que um escravo possuía escravo

(SANTOS, 1991: 112). A pureza ingênua marxista na arqueologia embasada na estratigrafia

(TRIGGER, 1992: 186-195) é contra esta imagem. Esta arqueologia evidencia os sítios

relacionados a assentamentos de afro-americanos, fruto de discussões internas da ciência no

sentido dos limites de seu objeto de estudo em conflito com a história e com a antropologia,

principalmente, mas que suscitou na definição da própria ciência como uma disciplina em

construção (KERN, 2002: 118). A arqueologia é um estudo da cultura material no seu

relacionamento direto com o comportamento humano (KERN, 1996: 7). Ela se ocupa também

do ambiente em que gênio (ou gênero humano) se desenvolveu e no qual o homem ainda vive

(RAHTZ, 1989: 9).

Este mundo pré-determinado por modelos é o mundo da ciência moderna que se

arvora a dar sentido à vida pelos modelos (SILVA, 2012). Wheeler (1961: 78) sugeriu que se

realizassem escavações em área, com sondagens preliminares para a verificação de

estratigrafia. A escavação em área seria possibilitada, para o autor, sem a perda do referencial

da estratigrafia, realizando um quadriculamento que manteria “bermas” laterais (paredes em

quadrículas) para a visualização estratigráfica e bem como a circulação de operários, com

carrinhos e baldes de terra (1961: 80). O método permite uma distinção de diacronia e

sincronia, sendo possível detectar os níveis de alteração dos comportamentos dos sítios e, por

conseguinte, dos indivíduos que ali se estabeleceram durante o processo de formação dos

mesmos. Soluciona problemas nos sítios tais como a composição por uma série de estruturas

arqueológicas e arquitetônicas diferenciais à malha arqueológica; a escavação é feita

conforme as questões levantadas previamente, pois escavar não é fazer arqueologia, a

arqueologia é interpretação. Uma arqueologia hermenêutica. Esta atmosfera atinge os

arqueólogos brasileiros.

Salete Neme (1988: 31-44) faz uma espécie de arqueologia antropológica com base

marxista. O contato visto como “fricção interétnica” ocasionada por duas formas de viver em

atração, onde culturas distintas não se exterminaram, mas permitiram uma transformação

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cultural. Nos assentamentos de afro-americanos teríamos no mínimo duas culturas em contato.

Uma que liga profundamente o indivíduo à natureza, de maneira mais fixa - “sociedades

primitivas” -, e outra de característica mercantilista ligada a um sistema colonial.

Funari (1996) inicia uma nova atmosfera mais ligada à própria ideia dos quilombolas

sobre suas organizações. As estruturas defendiam a população e sua economia. A ideia

econômica ocidental é base permanente desta atmosfera da historiografia e não usufruímos de

muitos textos divergentes na arqueologia.

O universo da praticidade econômica e política na formação dos quilombos invade a

cena de forma mesmo a criar uma atmosfera “primitiva” na constituição dos quilombos, mas

não numa análise simbólica de seus criadores. As armas mais comuns eram arcos, flechas,

lanças e armas de fogo tomadas das expedições punitivas ou compradas (MOURA, 1987: 18-

55). É a atmosfera de uma utopia ocidental. A multiplicação dos quilombos constrói um

espaço social de autonomia política consciente (SANTOS, 1991: 79). As atividades contra os

quilombos eram problemas políticos (MAESTRI, 1979: 72 - 86). O discurso é reproduzido

nos textos arqueológicos (ALLEN, 2006). O trabalho arqueológico é usado para referendar o

discurso (CARVALHO e PORTO, 2007 [2012]).

A Nova Arqueologia desloca a atenção do artefato para os sistemas sócio-culturais

que afirmam tê-los produzido e utilizado (processo cultural). Realiza por indagações sobre

articulações do homem com o meio. Cientificidade é almejada, os métodos hipotético-

dedutivos, a experimentação e a formulação de modelos e leis científicas (MENEZES, 1983),

ou seja, a mítica agora transforma vida em mecânica abstrata.

Já na atmosfera dos arqueólogos antropológicos (HODDER, 1988: 203) há uma

visualização das sociedades conhecidas hoje, com encargos aparentemente antigos, que foram

mantidos por uma (con)tradição interna a própria teoria. Os arqueólogos buscam no material

seus usos e funções, pensando no todo cultural, inferindo a vontade ou não do artesão,

expressa nos traços reconhecidos pelo observador, o qual deveria reconhecer a totalidade dos

componentes para identificar uma ação ou momento do acontecimento histórico.

A Etnoarqueologia, baseada na etnohistória e etnografia, toma assento mítico na

ciência. “A utilização de dados etnográficos na pesquisa arqueológica não é nenhuma

novidade, e sempre houve quem tenha recomendado tal procedimento” (MILLER, 1981: 82-

293). Tom Miller (1981/82) refere que etnoarqueologia se faz com Analogia, em dois níveis:

o primeiro, a “analogia etnográfica”, que seria formalista, e o segundo de uma “abordagem

histórica direta”. A abordagem histórica direta examinaria o “comportamento de grupos

contemporâneos em termos da probabilidade de se poder entender o mesmo comportamento

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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diretamente até os períodos pré-históricos” (MILLER, 1981/82: 294). O projeto de pesquisa

arqueológica sobre a República de Palmares, Pedro A. Funari (Unicamp), Charles Orser Jr.

(Illinois State University) e Michael Rowlands (University College London), estudam a

cultura material do afro-americano, pela arqueologia entendendo a existência de uma cultura

africana em liberdade, nos quilombos (FUNARI, 1996). Este trabalho, por relacionar os

conhecimentos dos afro-americanos diretamente envolvidos, realizou uma amplificação na

atmosfera arqueológica de forma inimaginável até então. Há uma aproximação às

generalizações empíricas testáveis, conduzindo à teoria. Remontável da generalização à teoria,

da teoria à implicação testável, e desta ao teste de proposição. Nos assentamentos negros,

considero esta abordagem válida, no sentido de que este grupo foi documentado no passado.

Tal modelo foi viável mesmo com uma documentação etnohistórica e etnográfica que estava

defasada.

O uso da etnografia pela arqueologia gera alguns problemas. A antropologia tende

hoje a se colocar em outro nível de relação com seu objeto de estudo. “A única etnografia da

qual o antropólogo social tem um conhecimento íntimo é a que deriva de sua própria

experiência de vida” (BRANDÃO, 1982: 13). O arqueólogo, que se vale das descrições

antropológicas e de viajantes, interpreta com cautela estas fontes, no sentido de perceber onde

está uma descrição com menor subjetividade e onde a subjetividade do autor impera (é outra

atmosfera a ser estudada).

A arqueologia “pós-processual” (TRIGGER, 1992: 351) realiza uma leitura da

cultura material através da dicotomia entre materialismo e ideologia, pensando variabilidade

na análise do poder; isto se faz por intermédio da cultura material que margeia os grupos,

servindo também para o controle da análise. Busca também verificar a dicotomia entre

processo e estrutura, onde a permanência pode ser observável através de dados reais, mas não

objetivos. Caracteriza-se por um antagonismo entre subjetividade e objetividade do

observador (arqueólogo) na interpretação de dados. Esta não estaria confinada, então, a um

relativismo.

Cabe dizer que no estudo sobre o imaginário “essencialmente motriz e sedimentação

estratigráfica, como num terreno com vestígios arqueológicos separados por camadas

temporais” há uma consolidação do ente humano simbólico. “O homem é homem por

construir imaginários que o impulsionam no processo infindável de humanização. A

superstição é um exemplo de racionalização imaginária” (SILVA, 2008, [2012]: 05).

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Considerações finais

O imaginário social estrutura-se principalmente por contágio: aceitação do modelo do outro (lógica tribal), disseminação (igualdade na diferença) e imitação (distinção do todo por difusão de uma parte). No imaginário há sempre desvio. No desvio há potencialidade de canonização. O imaginário explica o “eu” (parte) no “outro” (todo). Mostra como se permanece individual no grupo e grupal na cultura. (SILVA, 2012).

As aspirações à universalidade, “não são mensuráveis, embora perceptíveis”, a mítica

agora é o “que cada cultura engendra para si mesma”. A cultura é “um dado objetivo”. A

atmosfera, o imaginário, são formas abstratas de um concreto vivido. “A objetividade da

cultura diluiu-se nas águas pesadas da atmosfera imaginal”. “O espiritual incide” sobre a

cultura material. “O imaginário toma forma material e deforma o espiritual. Dá-lhe carne e

sangue”. (SILVA, 2008 [2012]: 05).

Atmosfera criada pela própria ciência que é reservatório, um motor que agrega

imagens, segue um trajeto criador da atmosfera que se representa nela como um todo.

Podemos verificar que de uma atmosfera básica eurocêntrica e sem valorizar outras

manifestações, avançou-se para um modelamento da arqueologia brasileira, uma arqueologia

científica. Neste processo, o marxismo foi crucial, mas não rompeu com a mítica do progresso.

A mistura destas diversas atmosferas hoje criou uma arqueologia de quilombos esquizóide,

mas uma nova atmosfera está se constituindo nos estudos de sítios de afro-americanos.

Uma série de mitos constitui este Trajeto (DURAND, 1997); cria-se um mundo de

modelos pré-determinados e segue-se ideologemas de superioridade cultural. A base principal

destes mitos e ideologemas é o evolucionismo. A ciência da cultura material é entendida pelos

seus usos e funções na interlocução com o meio. O materialismo histórico (e com isso uma

aura econômica) toma a frente das ideias e chegamos a uma arqueologia modelada, numa

atmosfera de cientificidade eurocêntrica. Os movimentos sociais (assim como a própria

arqueologia social) bebem dos mesmos ideais marxistas e invadem o campo da ciência. As

lutas políticas tomam assento na atmosfera que se poderia pensar em conflito entre

pesquisadores e comunidade, mas que em realidade falam a mesma língua. Espera-se que

futuramente uma nova aura se instale; a que reconhece a existência de uma cultura africana

nos sítios de negros no Brasil. Resposta é compreender a atmosfera dos seus sujeitos – os

negros.

No texto que produzi (CARLE, 2005), trouxe de Rederam (1973), Unidade

Sociológica desenvolvida por Funari (1988) associada à Arqueologia Histórica (ORSER,

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1992), para o meu estudo dos afro-americanos no Delta do Jacuí e Rio dos Sinos; segui ideias

de Ian Hodder (1988: 179-202), estudando o conteúdo étnico. Apresentei minha Tese como

simbólico-religiosa, mas estava no campo do imaginário e não sabia.

Klaus Hilbert poderia então dizer que se não está no registro arqueológico, não está

na arqueologia, pois só trabalhamos com o que podemos ver e interpretar. O que não pode ser

lido hoje não é passível de ser argumentado. E se não podemos argumentar hoje o que não

vemos, não podemos condenar os arqueólogos do passado pela impossibilidade de terem visto.

O aprendizado anterior, com os professores citados, marca o meu trabalho. Hoje,

consolidada a “colaboração” numa relação entre as ciências da Antropologia, Arqueologia,

História (SCHWARTCZ, 2000: 11), conservação e restauro e museologia. O trabalho que

desenvolvemos no LAMINA (Laboratório Multidisciplinar de Investigação Arqueológica),

em conjunto com colegas da museologia (Diego Ribeiro e Pedro Sanches), da Conservação e

Restauro (Jaime Mujica), da Arqueologia (Lúcio Ferreira e Aluísio Gomes Alves), da

Antropologia (Rogério Rosa), entre outros, nos possibilita isso nos estudos de sítios de

negros.

Portanto, nossa civilização ocidental tinha sido muito desmitificante e iconoclasta. O mito era relegado e tolerado como o «um por cento» do pensamento pragmático. Bom, sob nossos olhos, em uma aceleração constante, esta visão do mundo, esta concepção do ser, do real (Wesenschau), está desaparecendo. Não somente mitos eclipsados recobrem os mitos de ontem e fundam o epistema de hoje, mas ainda os sábios na ponta dos saberes da natureza ou do homem tomam consciência da relatividade constitutiva das verdades científicas, e da realidade perene do mito. O mito não é mais um fantasma gratuito que subordinamos ao perceptivo e ao racional. É uma res real, que podemos manipular para o melhor como para o pior. (DURAND, 2004: 20)

Referências bibliográficas ALLEN, Scott J. “As vozes do passado e do presente: arqueologia, política cultural e público na Serra da Barriga”. CLIO – Série Arqueologia. V. 20 (1), (pp. 81-101), 2006. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Diário de campo – antropologia como alegoria. São Paulo: Brasiliense, 1982. CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1962. CARLE, Cláudio B. A organização espacial dos assentamentos de ocupação tradicional de africanos e descendentes no Rio Grande do Sul, nos séculos XVIII e XIX. Tese de doutorado, PUCRS, Porto Alegre, 2005.

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O PAPEL DA ARQUEOLOGIA NOS CONFLITOS DECORRENTES DE OCUPAÇÕES IRREGULARES NO SAMBAQUI DA PANAQUATIRA – SÃO JOSÉ

DE RIBAMAR – MA

The role of Archaeology in dispute arising out of occupations of irregular in Panaquatira Shellmound - São José de Ribamar - MA

Arkley Marques Bandeira1

RESUMO Este artigo discorre sobre a gestão dos conflitos decorrentes da invasão do Loteamento Costa Atlântica, onde se situa o Sambaqui do Panaquatira, município de São José de Ribamar, Ilha de São Luís – MA. Em 2008, a Superintendência do IPHAN no Maranhão foi informada sobre a existência de habitações irregulares sobre o Sambaqui da Panaquatira. No processo de investigação, múltiplos atores participaram da negociação em torno da proteção e preservação deste sítio arqueológico, a exemplo dos proprietários do Loteamento, Prefeitura de São José de Ribamar, Advocacia Geral da União, Ministério Púbico Federal, Justiça Federal, Polícia Federal, além do IPHAN – MA. Os desdobramentos resultaram na preservação do sítio arqueológico e o comprometimento da não reocupação da área do Sambaqui, bem como outros avanços. Palavras-chave: Sambaqui da Panaquatira – Conflito – Posseiros ABSTRACT This article discusses the management of conflicts arising from the invasion of Allotment Atlantic Coast, where lies the Sambaqui da Panaquatira, São José de Ribamar, Island of São Luís - MA. In 2008 the Superintendent of IPHAN Maranhão was informed about the existence of irregular housing on the Sambaqui da Panaquatira. In the research process multiple actors participated in the negotiations around the protection and preservation of this archaeological site, like the owners of Allotment, at São Jos de Ribamar, Attorney General's Office, Federal Ministry Pubic, Federal Court, Federal Police, beyond IPHAN - MA. The developments resulted in the preservation of archaeological and commitment not reoccupation Sambaqui area, as well as other advances. Keywords: Panaquatira Shellmound- Conflict - Squatters RESUMEN En este artículo se analiza la gestión de los conflictos derivados de la invasión de la área del Costa Atlántica, donde se encuentra el Concheiro Panaquatira, en São José de Ribamar, Isla São Luís - MA. En 2008 se informó a la Superintendencia de IPHAN Maranhão sobre la existencia de viviendas irregulares en lo Concheiro Panaquatira. En el proceso de investigación múltiples actores participaron en las negociaciones en torno a la protección y conservación de la zona arqueológica, al igual que los propietarios, Subdivisión de la Ciudad de San José de Ribamar, Procuraduría General de la Nación, Ministerio Público Federal, 1 Doutor em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. Coordenador da Casa da Memória do Ecomuseu do Sítio do Físico, São Luís – MA. Email: [email protected]

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Tribunal Federal, la Policía Federal, así como IPHAN - MA. Los acontecimientos dieron lugar a la preservación del patrimonio arqueológico y el compromiso de no volver a ocupar la zona del Concheiro, así como otros avances. Palabras clave: Concheiro del Panaquatira - Conflicto - Ocupantes

Introdução

A inserção de uma arqueologia concebida como uma forma de ação social e política

no presente (TILLEY, 1998) e o reconhecimento de que esta não está livre de seus laços

sociais e políticos e que os arqueólogos sempre trabalharam pressionados por questões

colocadas pela própria conjuntura e sociedade (UCKO, 1995) desmistificou o conceito de

objetividade ou neutralidade científica para a disciplina.

Este artigo partilha dos pressupostos da Arqueologia Pública quando aborda o papel

da gestão de conflitos em torno da preservação do patrimônio arqueológico, tendo em vista a

crescente expansão urbana da Ilha de São Luís - MA em direção à linha costeira o que

ocasionou a ocupação irregular do Sambaqui da Panaquatira.

O sambaqui da Panaquatira foi identificado em 2006 e registrado no Cadastro

Nacional de Sítios Arqueológicos - CNSA – IPHAN (cadastro MA 00113) por Arkley M.

Bandeira em 2009. O sítio foi intensamente investigado entre os anos de 2010 e 2012, cujos

resultados foram apresentados na Tese de Doutorado deste arqueólogo (BANDEIRA, 2013).

No início da pesquisa, foi percebido o aumento gradativo de ocupações no entorno

do sítio arqueológico. Tais ocupações situavam-se na área do Loteamento Costa Atlântica,

cujas habitações eram rapidamente construídas com materiais perecíveis, a exemplo de

madeira, palha e papelão.

Este fato foi comunicado de imediato a Superintendência do IPHAN do Maranhão,

que realizou a primeira vistoria na área em 2008. Constatado o dano eminente ao sítio

arqueológico, foi proposto um grupo de trabalho para acompanhar a situação e propor

alternativas para proteção e preservação do Sambaqui da Panaquatira.

No decurso de cinco anos de atividades relacionadas a este fato, o patrimônio

arqueológico foi apropriado por diferentes atores na condução do processo de implantação do

Loteamento Costa Atlântica e os desdobramentos advindos das ocupações irregulares. Esta

situação colocou frente a frente os legítimos proprietários, os posseiros e as autoridades.

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Este artigo narra o desencadeamento dos fatos relacionados com a ocupação irregular

do Sambaqui da Panaquatira e os desdobramentos dos conflitos resultantes, tendo como cerne

a integridade do sítio para o usufruto das atuais e futuras gerações.

A arqueologia do Sambaqui da Panaquatira

O Sambaqui da Panaquatira está localizado no povoado de mesmo nome, na praia da

Ponta Verde, no município de São José de Ribamar, baía de São José, na desembocadura do

rio Itapecuru, em área estuarina, caracterizada por um rico ecossistema de mangue. Este

município, juntamente com São Luís, Raposa e Paço do Lumiar compõe a Ilha de São Luís.

O Sambaqui da Panaquatira apresentou em sua zona central a UTM 23M

0606517/9720231 (Longitude O 44° 2' 31'' e Latitude S 2° 31' 51”), com elevação de 34m

acima do nível do mar. A extensão efetiva da área com ocorrência de material arqueológico,

totalizando 349,80 hectares.

Fig.1 e 2: Inserção geográfica do Sambaqui da Panaquatira, com a demarcação da área de interesse.

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Histórico processual do Sambaqui da Panaquatira

Em 22 de setembro de 2008 foi aberto o Processo IPHAN n.º 01494.000464/2008-

30, para vistoriar o Sambaqui da Panaquatira, tendo em vista as denúncias feitas sobre a

existência de habitações irregulares na área do sítio arqueológico, retirada irregular de terra

preta e utilização das conchas para pavimentação de estradas.

A presença de pessoas na área do sítio e seu entorno estava causando impactos

graves ao patrimônio arqueológico, por uma gama de atividades antrópicas: construção de

moradias e colocação de cercas nos terrenos, que causaram impactos aos horizontes

arqueológicos subsuperficiais; extração de terra preta e conchas para jardinagem que

expuseram significativa quantidade de material arqueológico; desmatamentos e queimadas

para plantação de roças que contaminaram o material arqueológico; criação de gado que

pisotearam os vestígios em superfície, bem como a implantação de redes elétricas e estradas

que atraíram posseiros para a região.

A permanência desta situação poderia comprometer a investigação arqueológica que

estava sendo realizada no sítio arqueológico 2 e impactar irreversivelmente o Sambaqui,

inclusive, colocando em risco a integridade dos pesquisadores, que necessitavam diariamente

presenciar os conflitos entre os proprietários e posseiros.

Naquele momento, toda a área do Sambaqui, bem como seu entorno faziam parte do

Loteamento Costa Atlântica, administrado pela Oliveira Empreendimentos Imobiliários, da

Sra. Benedita Conceição Morais e Sr. Paulo Roberto Oliveira, que representavam os

proprietários, Srs. Felíntro Elísio Cutrim e Edmundo Elísio Cutrim.

A vistoria averiguou a procedência das denúncias e constatou os danos causados ao

sítio arqueológico em virtude das ocupações irregulares e a extração de terra preta: “os dados

arqueológicos perdidos pelo processo de separação da terra-preta do material arqueológico

têm prejudicado o avanço de uma pesquisa que tem chamado a atenção da comunidade

científica brasileira” (IT nº 260/2008 DT 3ª SR/IPHAN, 2008: 03).

2 A pesquisa realizada neste sítio é vinculada ao projeto Sambaquis do Maranhão, autorizada pela Portaria IPHAN nº. 16/12, Processo nº 01494.000593/2008-28. Este projeto substituiu o antigo projeto acadêmico Os sambaquis do Bacanga, Panaquatira e Paço do Lumiar na Ilha de São Luís - Maranhão: um estudo acerca da paisagem arqueológica, cultura material, padrão de assentamento e subsistência, vinculado ao Programa de Pós-graduação de Arqueologia, Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. Os resultados das atividades foram incorporados no doutorado deste autor. A portaria de pesquisa foi publicada no D. O. U. n. 245, em 17/12/2008.

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A sugestão do técnico nesta mesma peça foi “o despacho de cópia desta informação

técnica a prefeitura e a câmara dos vereadores de São José de Ribamar, com o objetivo de

ciência do que está acontecendo na área e com uma proposta de busca de uma solução

conjunta...” (IT nº 260/2008 DT 3ª SR/IPHAN, 2008: 04).

Constatado e confirmado o impacto ao sítio arqueológico pelo IPHAN, o passo

seguinte foi conhecer os responsáveis pelas ocupações, tendo em vista a existência de

proprietários e posseiros ocupando lotes no sítio, sem moradores vivendo nas habitações já

construídas.

Esta situação foi dificultada pelo fato do loteamento não ter sido totalmente vendido,

sendo que muitos dos atuais proprietários não tomaram posse dos terrenos e não realizaram o

cercamento de suas áreas, favorecendo a ocupação das mesmas por posseiros.

Na vistoria ficou evidenciada a disputa de terra e o conflito decorrente de interesses

entre os proprietários e posseiros no uso e ocupação dos lotes que estão localizados no

Sambaqui da Panaquatira:

É preciso salientar que a área, uma vez se encontra em disputa, apresenta grandes riscos à preservação do sítio Panaquatira – Itapari devido às tensões em torno do direito ao usufruto dos seus recursos, assim como a continuidade e aceleração das atividades de exploração de terra preta não está descartada (IT nº 07/2009 DT/IPHAN/3ª SR, 2009: 65).

A tentativa de contatar o Sr. Anderson Herbert Soarez, proprietário da área onde se

situa o sítio arqueológico foi frustrada na quarta vistoria realizada pelo IPHAN, no entanto, o

técnico da instituição conseguiu conversar com algumas lideranças dos posseiros. Uma delas

foi a Sra. Joana que confirmou a formação de uma comunidade no local para ocupar a área

(IT nº 08/2009 DT/IPHAN/3ª SR, 2009: 70).

Em 20 de janeiro de 2009 o Gabinete do IPHAN – MA encaminhou o processo ao

Juiz da 1ª Vara da Comarca de São José de Ribamar, o Sr. Marcio Castro Brandão, para que

intercedesse “junto ao proprietário da área em conflito para que a retirada dos invasores e suas

respectivas construções não seja feita com o uso de tratores, uma vez que os mesmos poderão

destruir o sítio arqueológico protegido” (Ofício nº. 19/2009. 3ª SR/IPHAN, 2009: 83).

Aparecem no processo os representantes legais do Loteamento Costa Atlântica, a

Sra. Benedita Conceição Morais e o Sr. Paulo Roberto Oliveira, representantes dos

proprietários, Srs. Felíntro Elísio Cutrim e Edmundo Elísio Cutrim:

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O Sr. Oliveira afirmou a execução da decisão do juiz de expulsão dos invasores da área ocupada na próxima semana, requerendo a participação do IPHAN na determinação de quais áreas não deverão ser atingidas pelas ações dos tratores que derrubarão as estruturas edificadas, assim como a presença do arqueólogo da instituição para acompanhar tudo (IT nº 64/2009 DT/IPHAN/3ª SR, 2009: 85).

Em 27 de fevereiro de 2009 foi realizada reunião de nivelamento com acordo

amigável entre os proprietários do Loteamento Costa Atlântica, IPHAN e este arqueólogo

para a proteção e fiscalização do Sambaqui da Panaquatira, quando da reintegração de posse

dos lotes ocupados irregularmente aos seus devidos donos.

O referido acordo também endossou o entendimento entre os coordenadores do

projeto de pesquisa Sambaquis do Maranhão e os representantes do Loteamento Costa

Atlântica para cessão permanente dos lotes 11, 12, 13 e 14 da quadra 92 para a pesquisa

arqueológica. Em paralelo foi acordada a realização de oficinas de educação patrimonial e

construção de um museu de sítio para expor os vestígios coletados e envolver o público na

preservação do sítio arqueológico com visitas in loco (IT nº 79/2009 DT/IPHAN/3ª SR, 2009:

88).

O entendimento entre as partes legítimas no processo foi firmado em Ofício n. 36,

protocolado no IPHAN em 27 de fevereiro de 2009, no qual o procurador legal dos

proprietários, Sr. Carlos Amorim, reserva os referidos lotes para pesquisa arqueológica, em

área de 1.800m2, confirmando que não haverá danos aos mesmos na reintegração de posse, já

que a área será preservada mesmo com implantação do loteamento.

Neste intervalo o Juiz da 1ª Vara da Comarca de São José de Ribamar, Sr. Juiz

Marcio Castro Brandão, fez valer a execução da reintegração de posse em favor dos Srs.

Felíntro Elísio Cutrim e Edmundo Elísio Cutrim, em face aos esbulhos cometidos por um

grupo de posseiros no Loteamento Costa Atlântica, inclusive na área do Sambaqui do

Bacanga (Justiça Estadual, Processo n.1842/08: 2008: 101).

Em 06 de março de 2009 foi realizada a reintegração de posse executada pelo

Comandante do 6º BDPM, Major Alexandre Francisco dos Santos, 1º Tenente Neivando

Ferreira Leite e pelo Comandante da Operação, Capitão José Maria Padro.

Foi acordado entre as partes que as estruturas que estavam sobre o Sambaqui da

Panaquatira não seriam mexidas na reintegração de posse, tendo em vista o agravamento do

impacto. Neste caso, as edificações seriam mantidas para posterior retirada pelos arqueólogos,

quando da retomada das escavações no sítio.

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A repercussão da reintegração de posse foi sentida na Imprensa, que noticiou o

conflito entre as partes e abordou pela primeira vez a existência do Sambaqui da Panaquatira

na área em litígio:

Um documento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) informou que parte do local é um sítio arqueológico, e por isso deve ser preservado. Funcionários do órgão estiveram no início da manhã na ocupação, a fim de demarcar a área onde antes era um cemitério indígena, para que não fosse atingida por máquinas e tratores (JORNAL PEQUENO, 2009).

Interessante pontuar, que apesar do processo n. 1842/08 não mencionar a proteção do

patrimônio arqueológico, a intensa participação do IPHAN – MA e dos coordenadores do

Projeto Sambaquis do Maranhão nas negociações para proteção do Panaquatira surtiram

efeito e o foco foi deslocado da posse versus propriedade legal para a permissão ou não da

ocupação em área do sítio arqueológico:

O advogado dos ocupantes, Pedro Jarbas, afirmou que recorreu da decisão expedida pelo juiz Márcio Castro Brandão e entrou com um pedido na Justiça Federal, no intuito de tentar provar que não apenas uma parte, mas quase toda a área faz parte do sítio arqueológico, e que, portanto, se não pode ser habitada, também não poderá ser comercializada. "Neste momento a decisão mais correta e sensata a fazer é desocupar a área, afinal, isso foi determinado judicialmente. No entanto, no futuro a história pode ser outra, pois hoje eles desocupam a área, mas em outro momento podem retornar, caso a decisão seja favorável a eles", relatou (JORNAL PEQUENO, 2009).

Fig.3 e 4: Edificações sendo demolidas na reintegração de posse na área do Sambaqui. Fotos: Jornal Pequeno, 2009.

Passados seis meses da reintegração de posse, novas ocupações irregulares foram

observadas na área do Loteamento Costa Atlântica, inclusive, com maior intensidade e

organização. Se as primeiras ocupações eram espontâneas e feitas com materiais perecíveis,

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neste segundo momento as edificações eram de alvenaria e estavam espalhadas por uma área

bem maior.

Com vistas a interromper as novas ocupações, uma segunda reintegração de posse foi

autorizada pela Justiça Estadual, conforme Ofício n. 583/2009, do 6º Batalhão Metropolitano

do Governo do Maranhão, em 14 de outubro de 2009. Para tanto foi agendada uma audiência

prévia entre as partes, inclusive o IPHAN – MA e os coordenadores do Projeto Sambaquis do

Maranhão, para compatibilizar a ação policial e a preservação do Sambaqui da Panaquatira.

O resultado da reintegração de posse ficou exposto na narrativa do técnico do

IPHAN que acompanhou a ação:

A área da invasão não afetou os horizontes arqueológicos do Sambaqui da Panaquatira. A propósito, a estrutura mais próxima do referido sítio arqueológico encontra-se a cerca de 500 metros de perímetro. E nem as atividades de execução da liminar da reintegração de posse provocaram qualquer dano ao patrimônio arqueológico nacional. Na oportunidade foi fixada a placa de identificação do sítio arqueológico em questão, como forma de orientar os ocupantes e transeuntes da área (IT nº 351/2009 DT/IPHAN/3ª SR, 2009: 133).

A incompetência da Justiça Estadual em julgar assuntos referentes o patrimônio

arqueológico brasileiro, já que se trata de bem difuso e coletivo da esfera da União demandou

a entrada do Ministério Público Federal, através da Procuradoria da República, conforme

Ofício nº 406/2010 – ASS/PR/MA, de 12 de maio de 2010:

Tramita nesta Procuradoria da República o Procedimento Administrativo em epígrafe, instaurado com a finalidade de apurar suposta ameaça ao patrimônio ambiental e arqueológico, decorrente de esbulho praticado por uma quadrilha atuante no município de São José de Ribamar, objeto de Ação de Reintegração de Posse n. 1842/2008, que tramita na justiça daquela comarca. Diante do exposto, com vistas à apuração dos fatos em toda a sua extensão, com base no art. 129, VI, da CF/88, e do art. 8º, II, da Lei Complementar n.º 75/93, requisito a Vossa Senhoria nova vistoria in loco, devendo indicar eventuais responsáveis pela possível degradação do patrimônio arqueológico, bem como adotar as medidas inerentes ao exercício do poder de polícia, no prazo de 20 (vinte) dias (MPF, Procedimento Administrativo nº 1.19.000.000245/2010-90: 2010: 150).

A partir deste documento o processo foi transferido para esfera federal, fato que

desagradou os proprietários do terreno, tendo em vista todo o retrabalho de mobilização e

nova tramitação do julgamento. Além disso, os custos processuais e de reintegração de posse

são bem maiores na esfera federal, do que na estadual.

Em atendimento à solicitação do Procurador da República, Sr. Alexandre Soares, o

IPHAN promoveu novas vistorias e avaliações complementares para avaliar o estado atual das

ocupações em relação à integridade do Sambaqui da Panaquatira: “apesar da expansão da

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notória ocupação da área do condomínio Costa Atlântica, essa não ultrapassou a faixa de

500m de distância do referido sambaqui, não caracterizando dano ao patrimônio nacional” (IT

nº 235/2010 CT/ Sup/MA: 2010: 152).

Devido o contexto apresentado o MPF informou ao IPHAN – MA que os autos do

Procedimento Administrativo nº 1.19.000.000245/2010-90, que tratou dos danos ao Sambaqui

da Panaquatira seria enviado à “4ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público

Federal, para fins de arquivamento, sendo facultado a Vossa Senhoria apresentar razões

contrárias à medida, caso entenda necessário, no prazo de 10 (dez) dias” (MPF – Ofício n.

937/2010 – ASS/PR/MA: 2010: 155).

Quando o IPHAN estava prestes a encerrar as atividades no Sambaqui do

Panaquatira, uma nova denúncia foi feita pela Sra. Alice Silveira Ribeiro, proprietária de lotes

no Condomínio Costa Atlântica e representante da recém-fundada Associação dos

Proprietários de Lotes do Loteamento Costa Atlântica – APROLCAI, conforme Certidão do

MPF, de 06 de julho de 2010.

Neste mesmo período, outro fato agravou o conflito existente na área do Sambaqui

do Panaquatira: um cidadão que fazia a vigilância da área para APROLCAI foi torturado e

brutalmente assassinado na casa de apoio dos proprietários, em área próxima ao sítio

arqueológico.

Diante da situação, o IPHAN – MA novamente se manifestou em favor da proteção e

preservação do sítio, ratificando as conclusões observadas na vistoria feita por este

arqueólogo, que apontou edificações de alvenaria na área do Sambaqui da Panaquatira, o

aumento do número de áreas cercadas, além de ações decorrentes dos moradores na área, a

exemplo de queimadas, plantio, extração de terra preta e a presença de animais pastando.

Fig.5 e 6: Casas de alvenaria e permanência da extração de terra preta. Fotos: Arkley Bandeira, 2011.

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

50

Cabe citar que os ocupantes deliberadamente optaram por não ocuparem as áreas

com conchas e cerâmicas para não terem problemas com as autoridades. Provavelmente, os

posseiros foram aconselhados a se manterem sempre em áreas não caracterizadas como sítio

arqueológico, ou seja, sem conchas.

Desdobramentos: avanços e retrocessos

Confirmada a permanência dos danos ao Sambaqui da Panaquatira partiu-se para

proposição de medidas a curto, médio e longo prazo, tendo em vista a proteção, preservação,

pesquisa e socialização deste sítio.

Para tanto, o IPHAN – MA convocou os principais responsáveis pela proteção do

patrimônio arqueológico, bem como os representantes da APROLCAI e este arqueólogo para

uma gestão compartilhada do problema:

Venho pelo presente solicitar as presenças de Vossa Senhoria na sede do IPHAN no dia 05 de janeiro de 2011, às 15 horas, para reunião junto com os representantes da empresa Oliveira Empreendimentos Imobiliários Ltda, Advocacia Geral da União, Procuradoria Federal, Polícia Federal e representantes do IPHAN, com o objetivo de discutir a proteção do sítio arqueológico Sambaqui da Panaquatira (Ofício IPHAN nº. 680/2010 GAB/IPHAN/MA: 2010: 176).

Os desdobramentos da reunião apontaram para uma gestão compartilhada em torno

da proteção, preservação e socialização do Sambaqui da Panaquatira. Neste espaço foi

construída uma agenda, que definiu ações prioritárias para os envolvidos:

IPHAN – MA: gestão de todo o processo e a comunicação entre os parceiros, bem

como o envolvimento da Prefeitura de São José de Ribamar;

Advocacia Geral da União: acompanhamento dos tramites jurídicos no MPF,

representando juridicamente o IPHAN;

Ministério Público Federal: fiscalização das políticas de proteção ao sítio

arqueológico;

Polícia Federal: apoio nas ações de fiscalização e estudos complementares no

Sambaqui;

Prefeitura Municipal de São José de Ribamar: apoio político e administrativo aos

parceiros no estudo e divulgação do sítio;

Projeto Sambaquis do Maranhão: realização de estudos técnicos para delimitação e

avaliação arqueológica do sítio;

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

51

APROLCAI: mobilização dos proprietários em torno da preservação e proteção do

Sambaqui da Panaquatira.

Além disso, foi acordado que as medidas mais urgentes seriam a delimitação do

Sambaqui da Panaquatira para colocação de uma cerca, sinalização, remoção de todas as

habitações irregulares na área do sítio; vigilância constante e ações de socialização do

patrimônio arqueológico.

Um episódio importante na gestão do Sambaqui da Panaquatira e do patrimônio

arqueológico de São José de Ribamar foi a reunião com o Prefeito do município, Sr. Gil

Cutrim, em 14 de janeiro de 2011, que contou com a presença das principiais autoridades

envolvidas e resultou em uma visita ao sítio arqueológico.

Fig.7 e 8: Autoridades na Prefeitura de São José de Ribamar, em reunião do grupo de trabalho e visitação ao Sambaqui da Panaquatira. Fotos: ASSCOM PMSJR, 2011.

Nesta reunião ficou firmada a delimitação da área do Sambaqui da Panaquatira para

colocação de uma cerca e a construção de um museu em São José de Ribamar para socializar

o conhecimento produzido na região e para guarda do acervo arqueológico no próprio

município:

Kátia Bogéa informou que uma das primeiras medidas a serem adotadas será delimitar toda a área do sítio arqueológico. A superintendente do IPHAN disse acreditar que, em função da riqueza história encontrada no local, o governo federal não medirá esforços para financiar a construção do Museu (ASSCOM PMSJR: 2011: 1).

Em 07 de fevereiro de 2011 foi protocolado no IPHAN o relatório com o

Levantamento Topográfico e da delimitação da área para colocação de cerca e o Laudo do

estado de conservação do Sambaqui da Panaquatira, São José de Ribamar – MA, de autoria

do Geógrafo Bernardo Costa Ferreira e do Arqueólogo Arkley Marques Bandeira,

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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respectivamente. Esta ação foi voluntária e contou com o apoio da Prefeitura Municipal de

São José de Ribamar.

Fig. 9, 10 e 11: Atividade de delimitação do Sambaqui da Panaquatira, com a definição da área a ser cercada. Fotos: Arkley Bandeira, 2011.

Sobre o museu a ser construído foi informado que:

A ideia de construir o Museu da Arqueologia em São José de Ribamar nasceu devido ao fato do município abrigar um importante sítio arqueológico, localizado no polo turístico de Panaquatira. O sítio arqueológico Sambaqui de Panaquatira começou a ser estudado na década de 60 pelo arqueólogo paraense Mário Simões. Mas foi através de estudos recentes realizados pelo arqueólogo Arkley Bandeira que foram descobertos vestígios de um povo que habitou o lugar a, pelo menos, seis mil anos Antes de Cristo. Tudo indica que os habitantes formavam uma comunidade organizada de pescadores. A riqueza história deste local é muito vasta. O Museu, além de todo material que ainda está sendo descoberto no Sambaqui Panaquatira, também abrigará peças de outros sítios arqueológicos da Grande Ilha, por exemplo”, explicou Bandeira(ASSCOM PMSJR: 2011: 1).

Em 16 de fevereiro de 2011, a Polícia Federal abriu inquérito policial para apurar

possível crime ambiental no Sítio Arqueológico Panaquatira e solicitou ao IPHAN – MA

informações acerca dos possíveis responsáveis pelos danos ao patrimônio arqueológico

(Ofício n.º 35/2011 GAB/DEPOM/DREX/SR/DPF/MA: 2011: 191).

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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Fig. 12 e 13: Fiscalização da Polícia Federal no Sambaqui da Panaquatira, com cobertura da imprensa. Fotos: Arkley Bandeira, 2011.

Por sua parte, a APROLCAI realizou em 17 de abril de 2011 um mutirão de ações

para preparação da terceira reintegração de posse e ocupação imediata dos lotes pelos seus

proprietários de direito. Na ocasião foi aberto um espaço para o IPHAN e este arqueólogo

realizarem esclarecimentos sobre a importância do Sambaqui da Panaquatira e as

responsabilidades dos moradores legais para com a sua proteção e preservação (Ofício

APROLCAI n.º 5/2011).

Diante dos fatos apresentados o MPF instaurou Inquérito Civil Público a pedido do

IPHAN – MA para apurar os novos riscos ocorrentes ao Sambaqui da Panaquatira, tendo em

vista a permanência das ocupações irregulares na área deste sítio, inclusive com adensamento

populacional e aumento do trânsito de pessoas na área de interesse cultural. Para tanto,

solicitou esclarecimentos acerca da suficiência das medidas de proteção adotadas (Ofício

n.º689/2011 – ASS/MP/MA: 2011: 239).

Em cumprimento ao acordo firmado entre os envolvidos com a gestão do Sambaqui

da Panaquatira, o IPHAN contratou a empresa Ferreira Junior Engenharia Ltda para

realização da cerca do Sambaqui. Em 16 de novembro de 2011 iniciaram-se as obras de

construção da cerca para o perímetro delimitado pela topografia.

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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Fig. 14, 15 e 16: Cerca do Sambaqui da Panaquatira e placa de sinalização do sítio. Fotos: Arkley Bandeira, 2012.

Em 09 de janeiro de 2012, a Procuradoria Federal solicitou o ingresso do IPHAN na

relação processual, como assistente dos autores, tendo em vista a existência do Sambaqui da

Panaquatira. Por se tratar de matéria de interesse federal, já que o patrimônio arqueológico é

tratado na esfera da União e sendo competência do IPHAN zelar pela proteção e preservação

do patrimônio arqueológico, o interesse da Autarquia estaria justificado. A partir deste

momento todo o processo passou a tramitar na esfera federal (PARECER PF/IPHAN/MA n.º

3/2012: 2012: 271).

Para tanto, foram realizadas Notificações Extrajudiciais em 05 de janeiro de 20123,

para os posseiros que possuíam propriedades na área cercada, pois uma nova reintegração de

posse foi solicitada pelos proprietários, desta vez tramitando na 8ª Vara da Justiça Federal do

Maranhão, conforme Processo n.º 18192 – 85.2011.04.01.3700 (Ofício n.º203/2012/8ª

VARA/SECVA/JF/MA: 2012: 285).

3 Assinaram as notificações extrajudiciais a Sra. Zilmar Silva e o Sr. Raimundo Lion Meireles, ambos com edificações na área do Sambaqui da Panaquatira. O Sr. Biné, apontado pelos ocupantes como o responsável pelas invasões também foi notificado, apesar de sua propriedade situar-se na área externa ao perímetro cercado. Ele recusou assinar o documento.

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Fig. 17 e 18: Entrega das notificações extrajudiciais para os posseiros em área do Sambaqui. Fotos: Arkley Bandeira, 2012.

Tendo em vista a solicitação do Sr. Juiz da 8ª Vara para delimitação da área a ser

desocupada é fato que algumas porções do sítio ficaram de fora da cerca, por se tratarem de

porções descontínuas do Sambaqui da Panaquatira.

Esta situação foi notificada ao IPHAN e em 17 de abril de 2012 solicitou a este

arqueólogo um Parecer Especializado, com base nos estudos que vêm sendo realizados no

Sambaqui da Panaquatira, que seja suficiente para proteção deste sítio (Ofício n.º 208/2012

GAB/IPHAN/MA: 2012: 291).

Tendo em vista a ampliação da área a ser protegida no sítio arqueológico para além

do perímetro cercado, uma nova rodada de estudo foi solicitada à Justiça Federal para tratar

dos casos onde o Sambaqui da Panaquatira localiza-se em área dos proprietários legalmente

constituídos e onde o sítio está inacessível pela existência de muros e cercas.

O último documento anexado ao processo foi o Memorando da Procuradoria Federal

do IPHAN, emitido em 04 de setembro de 2012, que tratou da Ação da Reintegração de

Posse, solicitando a manifestação da Autarquia, enquanto os autores do processo se

manifestassem em relação aos documentos solicitados pelo Juiz da 8ª Vara da Justiça Federal

(Memorando n. 113/2012 – Procuradoria Federal/MA/IPHAN: 2012: 306).

Com relação às ações de socialização propostas pelo IPHAN – MA, foi realizado um

grande evento para divulgar ao público local e regional a importância da proteção,

preservação, conhecimento e divulgação do patrimônio arqueológico, em especial o

maranhense. A estratégia foi aliar todos os atores envolvidos com a pesquisa arqueológica na

organização do Seminário Nacional Arqueologia e Sociedade: construindo diálogos e

parcerias para preservação do patrimônio arqueológico do Maranhão.

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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O evento aconteceu entre os dias 17 e 20 de agosto de 2011, no auditório central da

Universidade Federal do Maranhão e reuniu mais de 400 participantes de distintas regiões do

país e do exterior.

Fig.19 e 20: Mesas Redondas para discutir a produção da arqueologia maranhense sobre a ótica interdisciplinar, com ênfase no projeto acadêmico Sambaquis do Maranhão. Foto: IPHAN, 2011.

Além disso, foi organizada no local do evento a Exposição Maranhão Arqueológico,

que contou com mais de 850 visitantes nos três dias de funcionamento.

Fig.21: Exposição Maranhão arqueológico antes da abertura oficial. Foto: IPHAN, 2011.

Fig.22: Visitantes apreciam a Exposição Maranhão. Foto: IPHAN, 2011.

Os desdobramentos do Seminário refletiram-se na divulgação do patrimônio pelo

Departamento de Jornalismo da TV Mirante, afiliada da Rede Globo, que produziu a série de

reportagem Arqueologia: marcas do passado, veiculada entre 16 e 20 de agosto de 2011, nas

duas edições diárias do JM TV, enfocando o patrimônio arqueológico maranhense.

Considerações finais

Este artigo sintetizou com brevidade o histórico processual surgido de denúncias de

destruição e delapidação do Sambaqui da Panaquatira por ocupações irregulares e extração de

terra preta e concha.

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O desenrolar do processo envolveu múltiplos atores, com interesses e anseios

diferenciados, mas que se uniram em torno da preservação deste sítio arqueológico. Ao longo

de mais de cinco anos de processo todos os entes da administração pública brasileira, foram

envolvidos direta ou indiretamente na gestão dos conflitos decorrentes, primeiramente entre

os proprietários e posseiros; e da competência jurídica para julgar o processo: esfera estadual

ou federal.

Além disso, alguns órgãos que inicialmente acompanharam timidamente o desenrolar

dos fatos, em algum momento se fizeram presentes na luta pela proteção e preservação do

Sambaqui da Panaquatira.

Não é exagero afirmar que apesar de parcela significativa do Sambaqui ter sido

afetada por atividades antrópicas, muitos avanços foram alcançados, tendo em vista a ação

coordenada para uma gestão compartilhada para a proteção, preservação, pesquisa e

socialização do bem cultural.

O primeiro avanço foi o envolvimento de distintas esferas do poder no processo do

Sambaqui da Panaquatira, situação que reacendeu o pacto pela gestão compartilhada dos

conflitos na sociedade presente e chamou a atenção para a situação do patrimônio

arqueológico maranhense.

Outro avanço se deu com a mobilização tanto dos proprietários, como dos posseiros,

em torno da preservação e proteção do Sambaqui da Panaquatira. Esta ação relativamente

simples evitou que novas edificações fossem construídas na área do sítio delimitada para

proteção e preservação.

Em relação à produção e socialização do conhecimento, as pesquisas arqueológicas

no Sambaqui do Panaquatira resultaram em duas teses de doutorado já defendidas e uma

terceira em etapa de conclusão4.

No aspecto de divulgação, o Seminário Nacional Arqueologia e Sociedade:

construindo diálogos e parcerias para preservação do patrimônio arqueológico do

Maranhão e toda a programação do evento colocou a Arqueologia Maranhense no mapa da

pesquisa científica do Brasil, apontando as potencialidades e desafios na proteção,

preservação, pesquisa e socialização do patrimônio cultural regional.

4 Ocupações humanas pré-coloniais na Ilha de São Luís – MA: inserção dos sítios arqueológicos na paisagem, cronologia e cultura material cerâmica, de autoria de Arkley Marques Bandeira; e Bacanga, Panaquatira e Paço do Lumiar: estudo das indústrias líticas presentes em sambaquis na Ilha de São Luís, Maranhão, por cadeias operatórias e sistema tecnológico, de autoria de Abrahão Sanderson Nunes F. da Silva, defendidas no PPG – MAE – USP. A tese em finalização é de autoria de Renato Akio Ikeoka, com o título Análise de cerâmicas arqueológicas do Sambaqui do Bacanga e Panaquatira (MA) por EDXRF Portátil, a ser defendida no Laboratório de Física da Universidade Estadual de Londrina.

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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Para não falar apenas dos aspectos positivos, muitas ações se perderam pelo caminho

e necessitam de mais atenção para o seu fortalecimento, é o caso do Museu de Arqueologia de

São José de Ribamar. A permanência da mesma estrutura governativa permitirá que nova

rodada de negociação foque o tema da socialização do patrimônio arqueológico no próprio

município e a responsabilidade da municipalidade em conduzir este processo.

Outro ponto a ser enfrentado é a vigilância da área cercada pela polícia. Apesar das

constantes vistorias feitas pelo IPHAN e os participantes do Projeto Sambaquis do Maranhão

terem constatado que a área cercada permanece íntegra e sem ocupação, que a sinalização e a

cerca não foram depredadas, faz-se necessária ações periódicas de monitoramento da área.

O caso apresentado é um exemplo típico do papel político e social da arqueologia no

enfrentamento das agendas mais atuais da contemporaneidade. O papel da disciplina na

condução do processo e como aliada dos agentes de preservação e proteção do bem

arqueológico se desdobrou em ações até então inexistentes para o Estado do Maranhão.

O comprometimento da arqueologia resultou no fortalecimento dos laços

institucionais em torno do patrimônio cultural, através da ação participativa de distintas vozes.

Os fatos narrados neste artigo não estão encerrados. No fluxo e refluxo das ações

institucionais e civis, muitos avanços estão por vir e a arqueologia tem o seu papel de

fomentadora desses processos, pois como bem lembra Tilley, uma arqueologia apolítica é um

mito acadêmico perigoso. Toda arqueologia é política (TILLEY, 1998).

Referências bibliográficas ASSOCIAÇÃO DOS PROPRIETÁRIOS DO LOTEAMENTO CONSTA ATLÂNTICA - APROLCAI. Ofício APROLCAI n.º 5/2011. BANDEIRA, Arkley Marques. Laudo do estado de conservação do Sambaqui da Panaquatira, São José de Ribamar – MA. São Luís, 2011. ____________. Ocupações humanas pré-coloniais na Ilha de São Luís – MA: inserção dos sítios arqueológicos na paisagem, cronologia e cultura material cerâmica. Tese de Doutorado. 2013. Tese. Programa de Pós-graduação em Arqueologia. Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2013. FERREIRA. Bernardo Costa. Levantamento Topográfico e de delimitação da área do Sambaqui da Panaquatira para colocação de cerca. São Luís, 2011. IPHAN. IT nº 260/2008 DT 3ª SR/IPHAN, 2008: 03. _______. IT nº 05/2009 DT/IPHAN/3ª SR, 2009: 57. _______. IT nº 07/2009 DT/IPHAN/3ª SR, 2009: 65.

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

59

_______. IT nº 08/2009 DT/IPHAN/3ª SR, 2009: 70. _______. Ofício nº. 19/2009. 3ª SR/IPHAN, 2009: 83. _______. IT nº 64/2009 DT/IPHAN/3ª SR, 2009: 85. _______. IT nº 79/2009 DT/IPHAN/3ª SR, 2009: 88. _______. IT nº 96/2009 DT/IPHAN/3ª SR, 2009: 118. _______. IT nº 351/2009 DT/IPHAN/3ª SR, 2009: 133. _______. IT nº 235/2010 CT/ Sup/MA: 2010: 152. _______. Ofício IPHAN nº. 680/2010 GAB/IPHAN/MA: 2010: 176. _______. Ofícios 177 e 178/2011/GAB/IPHAN/MA: 2011: 220. _______. Ofício n.º 208/2012 GAB/IPHAN/MA: 2012: 291. _______. PARECER PF/IPHAN/MA n.º 3/2012: 2012: 271. _______. Memorando n. 113/2012 – Procuradoria Federal/MA/IPHAN: 2012: 306. JORNAL PEQUENO, São Luís, Edição. Online, 2009. JUSTIÇA FEDERAL. Ofício n.º203/2012/8ª VARA/SECVA/JF/MA: 2012: 285. _______. Ofício n.º203/2012/8ª VARA/SECVA/JF/MA: 2012: 289/290). MARANHÃO. Justiça Estadual do Maranhão, Processo n.1842/08: 2008: 101. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Ofício nº 406/2010 – ASS/PR/MA, 2010. ________. Ofício n. 937/2010 – ASS/PR/MA: 2010: 155. ________. Ofício n.º689/2011 – ASS/MP/MA: 2011: 239. POLÍCIA FEDERAL. Ofício n.º 35/2011 GAB/DEPOM/DREX/SR/DPF/MA: 2011: 191. PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ DE RIBAMAR. ASSCOM PMSJR: 2011: 1. SANDERSON, Abrahão Nunes F. da Silva. Bacanga, Panaquatira e Paço do Lumiar: estudo das indústrias líticas presentes em sambaquis na Ilha de São Luís, Maranhão, por cadeias operatórias e sistema tecnológico. Tese. Programa de Pós-graduação em Arqueologia. Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2013. TILLEY, Christopher. “Archaeology as socio-political action in the present” In: Reader in Archaeology post-processual e cognitive approaches. David S. Whitley. New York e London: Routledge, 1998, p. 305-330.

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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UCKO, Peter (ed.).Theory in Archaeology a world perspective. New York e London: TAG Routledge, 1995.

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“TRÁFICO” DE MATERIAL ARQUEOLÓGICO, TURISMO E COMUNIDADES RIBEIRINHAS: EXPERIÊNCIAS DE UMA ARQUEOLOGIA PARTICIPATIVA EM

PARINTINS, AMAZONAS

"Traffic” of Archaeological Materials, Tourism and Riverine Communities: Participatory Archaeology Experiences in Parintins, Amazonas State, Brazil

Helena Pinto Lima1

Bruno Marcos Moraes2 Maria Tereza Vieira Parente3

RESUMO O presente artigo formaliza uma discussão iniciada durante o I SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE GESTÃO DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO PAN-AMAZÔNICO, levado a cabo na cidade de Manaus/AM, novembro de 2007. Nessa importante ocasião foram discutidos e delineados os parâmetros para a gestão do patrimônio arqueológico amazônico. O tema deste artigo foi tratado na mesa “tráfico de material arqueológico”. Apresentaremos um projeto de pesquisa desenvolvido em parceria com a Superintendência Estadual do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) no Amazonas, que se mostrou uma experiência bem sucedida, e que pode ser utilizada para se (re)pensar as dezenas de situações semelhantes que ocorrem no interior da Amazônia e quiçá, em outras localidades do país. Palavras chave: Tráfico de bens arqueológicos, Turismo, Arqueologia Participativa. ABSTRACT This paper formalizes a discussion started during the I INTERNATIONAL SEMINAR ON MANAGEMENT OF ARCHAEOLOGICAL HERITAGE PAN-AMAZON, carried out in the city of Manaus, Amazonas, in November 2007. On this important occasion were discussed and outlined the parameters for the management of the archaeological heritage of the Amazon. The theme of this article was treated on the table "trafficking in archaeological material”. We will present a research project developed in partnership with the State Superintendent of the Institute of Historical and Artistic Heritage (IPHAN) in Amazonas, which proved a successful experiment, which can be used to (re)consider the dozens of similar situations occurring in the Amazon region and perhaps in other parts of the country. Keywords: Trafficking of archaeological, Tourism, Archaeology Participatory.

RESUMEN 1 Museu Paraense Emílio Goeldi Av. Perimetral 1901, Terra Firme Belém/PA. Cep: 66070-530 [email protected] 2 PPG-Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônica/Universidade Federal do Amazonas [email protected] 3 Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (mestrado inconcluso) [email protected]

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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En este trabajo se formaliza una discusión iniciada durante el I Seminario Internacional de Gestión del Patrimonio Arqueológico PAN AMAZÓNICO, llevado a cabo en la ciudad de Manaus /AM, noviembre de 2007. En esta importante ocasión se discutieron y expusieron los parámetros para la gestión del patrimonio arqueológico del Amazonas. El tema de este artículo se trató en la mesa "tráfico de material arqueológico". En este artículo se presenta un proyecto de investigación desarrollado en colaboración con la Superintendencia Estatal del Instituto del Patrimonio Histórico y Artístico Nacional (IPHAN) en Amazonas, que resultó ser una experiencia exitosa, y que puede ser utilizado para (re)pensar en las muchas de situaciones similares que se producen en el Amazonas y tal vez en otras partes del país. Palabras clave: Tráfico de arqueológico, Turismo, Arqueología Participativa.

1. Introdução: o Projeto Baixo Amazonas

Este artigo visa apresentar as ações, resultados e reflexões oriundas das pesquisas

arqueológicas empreendidas entre os anos de 2004 e 2008 no município de Parintins/AM, sob

a égide do Projeto Baixo Amazonas. A região representa um campo reconhecidamente fértil

para estudos arqueológicos ao suscitar questões científicas de relevância para o entendimento

da ocupação humana na Amazônia, bem como para a construção de uma história – e pré-

história – em âmbito local e regional. Além disso, trabalhos educativos desenvolvidos junto

às pesquisas arqueológicas em muito têm contribuído para uma reconfiguração dos debates e

ações a esse respeito.

Sabe-se que vários foram os grupos indígenas que habitaram a região, e o resultado

dessas ocupações é visível através da presença de inúmeros sítios arqueológicos encontrados

por todo o município, a maioria deles localizados na zona rural, sob as comunidades que hoje

os habitam. O próprio nome que leva o município de Parintins se dá em função de um dos

grupos indígenas que ocupou a área, os Parintins ou Parintintins (SANT’ANNA NERY,

1899:229).

Parintins ocupa uma região estratégica em termos de comunicação e recursos.

Observada de uma perspectiva geográfica macro-regional, ali há a confluência de uma série

de rios de importância regional de médio e grande porte, tal como o Trombetas, Nhamundá,

Paraná do Ramos e o Andirá. Trata-se de uma intrincada rede aquática de rios, lagos e furos,

que intercomunicam os corpos d’água mais robustos. Situada à ilha de Tupinambarana, na

margem direita do rio Amazonas, e ocupando um planalto escarpado, a cidade de Parintins é

sede do município mais a leste do atual Estado do Amazonas, fazendo divisa com o estado do

Pará (figura 1). Outra menção importante é a toponímia da ilha, local onde Pedro Teixeira

deparou-se com grupos Tupinambás, em meados do séc. XVII (UGARTE 2010).

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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Fig.1: Mapa de localização do município de Parintins, Amazonas.

Nas últimas décadas, o reconhecimento nacional e internacional da riqueza natural,

cultural e arqueológica do município de Parintins tem levado a um forte crescimento do

turismo na região. No entanto, este rápido e desordenado crescimento, aliado ao considerável

hiato existente entre a legislação brasileira quanto ao patrimônio arqueológico e a sociedade,

levou Parintins a se tornar foco de preocupação com a evasão de peças arqueológicas, o que

tem gerado sérias preocupações quanto a esse patrimônio.

O Projeto Baixo Amazonas surgiu como uma iniciativa conjunta entre IPHAN –

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e PAC – Projeto Amazônia Central

(MAE-USP), tendo inicialmente o objetivo geral de empreender levantamentos arqueológicos

com vistas à localização, georeferenciamento e cadastramento de sítios e coleções

arqueológicas em doze municípios do médio e baixo Amazonas4, no Estado do Amazonas.

Estes trabalhos resultaram em uma avaliação dos sítios arqueológicos e do potencial científico

das áreas visitadas, apontando sugestões e medidas a serem tomadas pelo IPHAN em curto,

4 O trabalho teve um caráter de diagnóstico preliminar nos municípios de Nhamundá, Parintins, Barreirinha, Boa Vista do Ramos, Maués, Urucará, Urucurituba, São Sebastião do Uatumã, Itapiranga, Silves, Itacoatiara e Manaus.

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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médio e longo prazo (LIMA e SILVA, 2005). No município de Parintins foram identificados

cinco sítios arqueológicos, descritos no mesmo texto (idem, p. 26-38).

Em função de frequentes denúncias encaminhadas ao IPHAN que colocavam a

comercialização de peças arqueológicas como maior causa de sua crescente evasão, o PBA

intensificou as ações em Parintins para melhor entender e lidar com essa situação. Para isso,

inicialmente, empreendemos um levantamento arqueológico na área do município e

procuramos fomentar o interesse local acerca da arqueologia e das questões patrimoniais a ela

associadas, dialogando com diversas clivagens da população local (professores, alunos,

trabalhadores rurais, comunidade acadêmica etc). Como continuidade do mesmo Projeto

Baixo Amazonas, as ações arqueológicas em Parintins se concentraram no sítio Santa Rita

(AM-PT-01), que foi intensamente pesquisado entre os anos de 2007 e 2008 através de uma

etapa de delimitação e escavação.

Simultaneamente, foi elaborado e executado um programa de Educação Patrimonial

cujas ações centraram-se na rede de comunidades associada à sede Santa Rita. Seu objetivo

principal foi promover a preservação do patrimônio arqueológico e dos processos

socioculturais de produção da diversidade no presente. Assim, trabalharemos com dois eixos

principais: (a) o das usuais preocupações com a garantia de que as potenciais histórias e

diversidades condensadas nos estratos arqueológicos sejam interpretadas cientificamente e de

que sua divulgação seja efetiva e (b) o dos conhecimentos e práticas locais que embasam

outras teorias e orientam outras posturas frente ao registro arqueológico, utilizando como via

de acesso as relações que os moradores das comunidades estabelecem entre si e com seu

ambiente natural e cultural a partir dos artefatos arqueológicos.

Vale ressaltar que a incorporação da problemática da educação às pesquisas em

arqueologia encontra espaço privilegiado no centro do atual contexto de valorização da

diversidade. Afinal é através dela que diferentes estratégias vêm sendo elaboradas para

reverter os graus de destruição dos sítios arqueológicos e promover a valorização da

diversidade sociocultural, bem como fortalecer laços de cidadania e relações de pertencimento.

É certo que tal movimento vem se desdobrando através de processos que dialogam – e por

vezes se sobrepõem – como por conta de movimentos próprios à disciplina (arqueologia

pública), por insumos promovidos pela legislação (educação patrimonial) ou, até mesmo, por

seu diálogo com outros campos do saber (musealização da arqueologia) e do mercado

(turismo, desenvolvimento local, licenciamento ambiental etc.). Nesse sentido, como

apontado por Carneiro, o tema da “arqueologia pública” no Brasil geralmente mescla distintos

“referenciais teóricos e metodológicos, uma vez que o movimento de aproximação do

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patrimônio arqueológico junto à sociedade iniciou-se no âmbito de outros campos do

conhecimento, como a museologia e a educação patrimonial” (Carneiro, 2008) – quadro que

tem avançado com a publicação de diversos trabalhos acadêmicos5.

Já no que se refere à educação patrimonial, se há algum tempo tratava-se

fundamentalmente de ações realizadas no âmbito dos museus e mais restritas aos sítios e

monumentos do período colonial (SCHAANS, 2007), nos últimos tempos, temos assistido a

um crescimento de experiências educacionais que partem da diversidade de fontes

patrimoniais para estimular públicos a se apropriarem de referências históricas como forma

de valorização de sua herança cultural6.

A esse respeito, como observado por Bruno, é importante destacar “que a legislação

ambiental, em franco desenvolvimento nos últimos anos, contribuiu de forma expressiva para

a valorização da pesquisa arqueológica, impulsionando, inclusive, o desdobramento da

legislação patrimonial, com vistas ao fortalecimento da ação educativa e do tratamento

curatorial dos acervos” (BRUNO, 2005: 239). Em termos mais concretos, é preciso lembrar

que o principal marco legislativo que impulsionou o deslocamento e o crescimento em

questão foi a Portaria nº 230 do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

(IPHAN, 2002) que trata da divulgação do conhecimento científico produzido e da

implementação de atividades de educação patrimonial no contexto de processos de

licenciamento ambiental (CADARELLI, 2007; SCHAAN, 2007; LIMA, 2007; MENESES,

2007; BRUNO, 2005).

2. A Área de Estudo: a Comunidade Santa Rita e a Região da Valéria

A Comunidade de Santa Rita de Cássia está situada na margem direita do rio

Amazonas, na região localmente conhecida como Serra da Valéria, a cerca de 50 km a leste

da sede do município de Parintins. Constitui-se como a maior comunidade da região, que

engloba ainda outras comunidades menores, ou “colônias”, como Samaria, Bete Semes, São

Paulo e Betel (Figura 2). É a única comunidade que permite acesso por via terrestre a partir da

Balsa Vila Amazônia-Parintins, numa estrada com 59km de extensão. Por esta razão, Santa

5 Publicações de artigos na Revista Arqueologia Pública (UNICAMP), Revista do MAE, Revista do Emílio

Goeldi, e as produções acadêmicas de Márcia Bezerra de Almeida, (2003), Tatiana Costa Fernandes (2008) e Carla Gibertoni Carneiro são alguns exemplos de como as produções que dizem respeito às relações entre arqueologia e educação encontram-se em franco crescimento. 6 Os debates acerca da pertinência em desenvolver ações voltadas para o uso do “patrimônio como fonte primária de conhecimento” (Horta et al. 1999), com vistas à preservação dos ‘bens culturais’ foram trazidas para o Brasil da Inglaterra em meados da década de 1980.

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Rita tornou-se um polo local, sendo a maior comunidade e a que concentra bens e serviços

municipais, como é o caso da escola municipal Marcelino Henrique, que aglutina estudantes

de todas as outras comunidades, e do antigo posto de saúde, hoje desativado.

Santa Rita possui setenta e cinco famílias que habitam casas de madeira, em sua

maioria, e alvenaria. Ruas, becos, caminhos e espaços públicos compõem a trafegabilidade no

local, que possui, além da escola de ensino infantil, fundamental e médio tecnológico, água

encanada, energia elétrica, dois postos de atendimento do INCRA, um em saúde e outro para

trabalhos diversos, desativados desde as suas instalações. Tem-se ainda a Sede Social, Igreja,

Campo de Futebol, Cemitério e telefone comunitário (COSTA, 2010: 47).

A Comunidade reúne aspectos sociais, econômicos e culturais peculiares às

ocupações ribeirinhas, como a agricultura familiar tradicional realizada sobre terra preta de

índio (COSTA, 2010: 31). A agricultura é uma importante atividade econômica, seja através

dos subprodutos da mandioca que são comercializados da Feira do Produtor Rural de

Parintins, e também dos chamados quintais produtivos, caracterizados por uma elevada

diversidade de espécies, majoritariamente frutíferas (idem: 53-54). Os moradores dessas

localidades vivem ainda da pesca e caça, bem como de uma atividade pecuarista em

crescimento. A produção de artesanato nos últimos anos tem-se intensificado entre os

moradores, principalmente com intensa atividade turística desenvolvida no local.

A Comunidade Santa Rita de Cássia de Valeria situa-se no topo aplainado de uma

península banhada pelo lago de Valéria, sobre um sítio arqueológico de grandes proporções.

O sítio arqueológico que ali se situa foi inicialmente cadastrado como AM-PT-01 (SIMÕES e

ARAÚJO-COSTA, 1978), e se caracteriza, em primeiro plano, pela matriz de solo formada

pela Terra Preta de Índio – neossolo com alta densidade de material orgânico e outros

elementos que a torna especialmente apropriada ao uso agrícola – resultante da ação humana

no passado. Muito comuns na Amazônia, locais com este tipo de solo foram e são

constantemente preferenciais para habitação e estabelecimento de roçados. Desta forma, as

comunidades ribeirinhas estão, via de regra, assentadas sobre sítios arqueológicos.

Característica igualmente marcante do sítio arqueológico Santa Rita é sua elevada

densidade de cerâmicas. Milhares de fragmentos, bem como muitos vasos inteiros, afloram na

superfície da comunidade após cada chuva, seja nos quintais das casas, seja nas vias públicas.

Assim sendo, a arqueologia está presente de maneira muito marcante no cotidiano dessas

pessoas, que, à sua maneira, sempre deram significação a esses objetos.

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Fig.2: Mapa localizando as comunidades presentes no Lago da Valéria, município de Parintins/AM.

2.1. O Turismo na Região da Valéria

A chamada Serra de Parintins, onde se localiza o lago da Valéria, se situa na fronteira

do estado do Pará e é circundada por uma densa vegetação rica em flora e fauna indicando o

lugar como o portal turístico da localidade. Em razão de seu elevado potencial paisagístico

natural e cultural, Valéria acabou por tornar-se alvo de intensa atividade turística

extremamente predatória e desordenada.

Esse turismo tem dois públicos principais. Por um lado, a própria cidade de Parintins

é referência no âmbito do turismo nacional e internacional. O famoso Festival do Boi de

Parintins atrai milhares de pessoas para o município anualmente, que acabam por chegar às

comunidades interioranas. No entanto, estes locais têm pouca ou nenhuma estrutura para

atender tão intensa demanda.

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Por outro lado, a região de Valéria especificamente é um forte chamariz de outro tipo

de turismo, igualmente predatório. Trata-se dos luxuosos cruzeiros internacionais que em

acordo com instituições locais (como a Secretaria do Turismo) viajam regularmente pelo rio

Amazonas para contemplar seus preciosos – e exóticos a estes olhos – encantos naturais e

culturais. Em muitos casos, eles nem chegam à sede municipal, atendo-se a uma rápida

observação dos modos de vida do caboclo amazônico e seu ambiente.

A intrínseca relação que as comunidades de Valéria desenvolveram com o turismo

internacional é expressa, por exemplo, pela iniciativa local de criação de espaços para difundir

a cultura e os costumes locais, onde encontram-se locais de venda de artesanato e onde são

expostas algumas das peças arqueológicas. Portanto, além do artesanato local, geralmente

feito com madeiras, sementes, penas e outros produtos da floresta, estes turistas também

acabam entrando em contato com as peças arqueológicas. A esse respeito não são raros os

relatos de que turistas os levem como “lembrança de Valéria” ou que os comprem de

comunitários. Segundo relatos de alguns comunitários, essa comercialização de peças ocorreu

pelo menos durante os últimos 35 anos.

Ainda, segundo os mesmos relatos, a primeira vez em que um navio de turistas

estrangeiros aportou em Valéria foi em 1971. A maioria dessas embarcações, presença

frequente na comunidade hoje, é composta de turistas vindos de todo o mundo, especialmente

da Europa e Estados Unidos. Sendo essa região apenas mais um ponto dentro de um itinerário

por vezes extenso, a parada é esperada pela maior parte dos viajantes como uma oportunidade

de observação da natureza, principalmente espécimes de pássaros – bird watching. Munidos

de câmeras com grandes lentes teleobjetivas, eles saem de seu enorme navio em pequenos

barcos de transporte, dirigindo-se à comunidade de São Paulo da Valéria, que fica justamente

na conjunção do rio Amazonas com o lago de Valéria, sendo por isso carinhosamente

apelidada de “a boca da Valéria”.

São Paulo da Valéria, comunidade pequena e que fica dispersa em uma estreita área

entre o aclive de uma grande elevação montanhosa e o lago de Valéria, recebe então centenas

de turistas, e se organiza devidamente para tanto. A recepção dos turistas torna-se um evento

importante também para outras comunidades do entorno, que levam seus artesanatos para

serem vendidos aos visitantes. Os turistas, por sua vez, saem das embarcações para adentrar a

mata em suas observações, tendo a população local como guia, e também para conhecer o

modo de vida daqueles que os recebem.

É, portanto, dessa interação – na qual a diferença linguística se constitui como

principal barreira para a comunicação – entre os turistas e os moradores locais que ocorrem

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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situações de “tráfico” de peças arqueológicas. É importante salientar que, na maioria dos

casos, a iniciativa da venda parte dos moradores, e não da má-intenção dos visitantes. Este

comércio é, na maior parte das vezes, empreendido pelos mais jovens, que desejam

arrebanhar alguns dos dólares deixados navio após navio por esses esporádicos turistas.

Existiram, de fato, excursões à Valéria e outras regiões da Amazônia feitas com o

objetivo claro de comercialização de artefatos arqueológicos, o que nunca foi encarado pelos

habitantes de lá como um problema. Entretanto, este tipo de comércio era feito a partir de um

número reduzido de pessoas, cujo perfil em muito se difere daqueles turistas que aportam na

região em transatlânticos. O ponto a que gostaríamos de chegar é que o que diferencia o

comércio esporádico voltado aos turistas e a venda feita a mercadores de peças arqueológicas

– estes sim os verdadeiros traficantes – é a intencionalidade investida nas duas práticas e o

modo como os agentes da transação se colocam frente à legislação vigente e frente ao

patrimônio cultural em questão. É válido pontuar que estas duas formas de evasão de

materiais arqueológicos dos sítios da região apresentam distinções bastante pronunciadas

quanto ao tipo e quantidade de vestígio comercializado. No caso da venda de “souvenirs” para

turistas, as peças vendidas são geralmente de pequenas dimensões, e o volume de material

vendido é pouco significativo. Já os negociadores de peças possuem interesse em vasos

inteiros, com decoração esteticamente relevante e, de forma geral, um grande número de

peças é comercializado. Obviamente, embora a diferença de volume de material arqueológico

comerciado em cada um desses eventos seja bastante pronunciada, sua frequência é bastante

díspar. Um deles é bastante raro enquanto o outro acontece amiudadamente e de forma

constante: todos os anos, ininterruptamente, aportam navios abarrotados de turistas que,

eventualmente, poderão comprar e levar consigo estas peças, o que acaba tornando esta

prática mais destrutiva do que aquela perpetrada por negociantes de peças.

Tal quadro de evasão das peças impunha a necessidade de ações sistemáticas diretas

junto às comunidades ribeirinhas situadas nos sítios arqueológicos e em sua área de entorno,

especialmente onde tais atividades ocorriam com maior intensidade. Este era o caso do

município de Parintins, com seu reconhecido potencial arqueológico, representado pelos

levantamentos e estudos anteriores (SIMÕES e ARAÚJO-COSTA, 1978; HILBERT e

HILBERT, 1980).

Sugeriu-se, naquela ocasião, uma ação efetiva de Educação Patrimonial, o que

víamos como alternativa para lidar com o êxodo das peças. Assim, a etapa subsequente do

projeto, realizada em 2007, voltou-se para um projeto integrado de pesquisa participativa e

educação patrimonial. Como pesquisa participativa, entende-se como a interação entre

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pesquisador e os grupos envolvidos na pesquisa, fazendo-se necessária uma metodologia que

favoreça a discussão e integração do conhecimento acadêmico e tradicional. Dessa forma,

partiu-se de uma postura não impositiva aos interesses da comunidade, para uma atitude de

diálogo e negociação. Este método visa uma forma de desenvolvimento da pesquisa vinculada

à abertura da pesquisa à participação da população local em todas as etapas do trabalho:

localização de sítios, produção de cartas topográficas, escavação, etc, estimulando assim o

olhar comunitário sobre o patrimônio coletivo, sua cultura material, imaterial e meio ambiente

para uma perspectiva científica.

Fig.3: Coleção arqueológica presente em casa de moradora da Comunidade Santa Rita de Cássia (Valéria, Parintins/AM) (foto: Mauricio de Paiva, 2007).

3. Delineamento Metodológico: a Pesquisa Participativa

Convencionou-se chamar as bases do trabalho desenvolvido em Parintins como

Pesquisa Participativa, ou seja, uma forma de desenvolvimento da pesquisa vinculada à ação

ativa da população que se insere no local a ser estudado através da participação destes em

todas as etapas do trabalho: localização de sítios, produção de cartas topográficas, escavação,

etc. Este método visa estimular o olhar comunitário sobre o patrimônio coletivo, sua cultura

material, imaterial e seu ambiente para uma gestão compartilhada do patrimônio arqueológico.

A ponderação do conhecimento tradicional sobre o conhecimento arqueológico gerado a partir

da pesquisa participativa implica em um íntimo diálogo entre o discurso científico e o

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discurso comunitário na leitura e interpretação do fenômeno arqueológico circunscrito na

história e cotidiano dessas populações.

A inserção das comunidades no trabalho arqueológico em si foi também um dos

resultados positivos da estratégia utilizada. A presença dos comunitários nas etapas de

mapeamento topográfico, delimitação e escavações do sítio arqueológico mudou a visão

interna sobre o trabalho, conferindo uma maior agilidade e trazendo um resultado mais

positivo do que esperávamos. Ficou clara uma demanda pela continuação deste trabalho,

dando uma perspectiva de longo prazo às pesquisas ali desenvolvidas.

3.1. Ações do Projeto

As atividades do projeto visaram não apenas mostrar aos moradores das

comunidades de Valéria a importância histórica e cultural daquele patrimônio, mas também

despertar questões, ligando os objetos à história do lugar e, consequentemente, com seu

modus vivendi. O trabalho de Educação Patrimonial foi pensado como uma forma de levar às

populações locais as questões arqueológicas sob as quais nos debruçamos, inserindo-as em

seu cotidiano de modo que um novo olhar sobre os objetos os guiassem para a preservação de

uma forma não-impositiva e espontânea.

Com efeito, a pesquisa participativa levada a cabo em Santa Rita rendeu frutos.

Durante e após a estadia da equipe na comunidade, foram visíveis algumas mudanças na

perspectiva da população em relação ao material arqueológico com o qual mantém contato

cotidianamente e, também, com a historicidade do próprio lugar onde vivem. Neste sentido,

houve um processo de reflexão acerca da ideia de patrimônio, antes ausente, e a necessidade

de sua preservação e apropriação de forma consciente. Assim, aqueles que comercializavam

as peças passaram a se ver como guardiões das coleções por eles reunidas.

Inicialmente, a chegada de “estranhos” (nós, os arqueólogos) na comunidade gerou

certo distanciamento ou descaso por parte dos moradores. Eram comuns relatos de

pesquisadores que passavam pela região, realizavam suas pesquisas sem ao menos fazer uma

prévia comunicação ao presidente e à comunidade. Estes, tampouco, forneciam explicações

sobre os trabalhos efetuados ou seus resultados. A frequência desta prática acabou por criar

grande “descrença” nas pessoas quanto a projetos científicos. Menos ainda se acreditava que

estes poderiam ser benéficos à comunidade e trazer retornos concretos aos moradores. Cientes

de tal perspectiva e imbuídos pelo desejo de contribuir para uma mudança acerca destes

elementos, realizamos, logo no primeiro dia, uma reunião com moradores da comunidade

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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Santa Rita, a fim de elucidar os objetivos da pesquisa e de nossa estadia. No entanto, poucas

pessoas compareceram, e com interesse diminuto.

Este quadro foi se modificando lentamente ao passo em que a pesquisa se

desenvolvia. Arqueólogos observavam e eram observados o tempo todo. A curiosidade

estimulada pelas ações de educação patrimonial, sempre dentro da comunidade, dentro das

casas, dentro da escola, aliada à nossa estadia prolongada, de fato morando na comunidade,

possibilitaram um processo de conhecimento mútuo. O aprendizado se deu sempre em duas

vias em que, por um lado, nós vivenciávamos o cotidiano, dia e noite, da vida na comunidade

e, por outro lado, trazíamos à tona discussões sobre a riqueza do patrimônio histórico e

cultural daquele local, e a importância de sua preservação. Foram compartilhadas ideias como

o que é e como se faz arqueologia, quais são seus objetos e suas finalidades, em conversas

formais e informais.

Tudo isso foi gerando um crescente aumento de interesse pela arqueologia e pelas

atividades que desenvolvíamos ali. A inserção das comunidades no trabalho arqueológico em

si foi também um dos resultados positivos da estratégia utilizada. A presença dos

comunitários nas etapas de mapeamento topográfico, delimitação e escavações do sítio

arqueológico mudou a visão interna sobre o trabalho, conferindo maior agilidade e trazendo

um resultado mais positivo do que esperávamos. Ficou claro uma demanda pela continuação

deste trabalho, dando uma perspectiva de longo prazo às pesquisas que ali foram

desenvolvidas. Ao final, os membros da equipe éramos nós e mais dezenas de pessoas que

trabalharam ativamente nas mais diferenciadas tarefas concernentes ao trabalho de campo.

Foram realizadas novas etapas de campo entre os anos de 2007 e 2008, quando

outras ações foram executadas. Uma delas foi a participação de alguns membros da equipe na

tradicional feira de ciências promovida anualmente nas escolas da região. O grupo vencedor

da feira de ciências, composto por seis alunos do ensino médio, fez uma apresentação sobre o

patrimônio arqueológico local. Como premiação, os membros do grupo foram convidados

para uma viagem a Manaus, a conhecerem e participarem de atividades no laboratório de

arqueologia. Neste sentido, vimos que era importante que membros da própria comunidade

participassem dos desdobramentos da pesquisa arqueológica, pois, findadas as atividades de

campo, eles mesmos, criariam canais de comunicação acerca de impressões e aprendizados

para o restante da comunidade. Assim, ainda em 2007 foi oferecido um curso a esses

estudantes, acompanhados por uma professora e pela gestora da Escola Municipal Marcelino

Henrique. O mesmo se deu no anexo laboratorial do Museu de Arqueologia e Etnologia da

Universidade de São Paulo (MAE/USP), localizado em Manaus, onde foram executados os

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primeiros passos dos processos curatoriais dos vestígios coletados na comunidade, e algumas

análises cerâmicas com o foco nos mesmos materiais.

Outra ação considerada de extrema importância, e que também surtiu interessantes

resultados foi a realização de uma oficina de produção cerâmica artesanal, com inspiração

arqueológica, aos moradores da comunidade. Além de se configurar como mais uma

possibilidade de atividade econômica de produção de artesanato regional, o aprendizado deste

ofício pode significar a chave para o fim da saída das peças arqueológicas, já que estas

pessoas podem, elas próprias, produzirem réplicas daquele material encontrado sob a

comunidade. Mais do que isso, uma oficina de (re)produção de cerâmica, aliada a um sólido

trabalho de Educação Patrimonial, pode suscitar questões importantíssimas sobre aqueles que

ali viveram antes deles, vinculando a sua história com a do lugar onde vivem.

4. Resultados e discussões

Ao analisar a situação mais de perto, acabamos por concluir que a forma como tal

comércio de artefatos arqueológicos se dava não se enquadrava na definição corrente de

tráfico, qual seja, “comércio ilegal e clandestino; contrabando”7. Pelo contrário, o que víamos

era um total desconhecimento tanto legal quanto da própria ideia de patrimônio por parte dos

supostos “traficantes”. As peças arqueológicas eram oferecidas mais por seu valor estético do

que por seu valor arqueológico.

Por exemplo, através de muitas conversas, percebeu-se que estes objetos não estavam

vinculados a um passado – humano ou paisagístico – da comunidade. Antes, eles são

entendidos enquanto um dado da “natureza”, assim como a terra, o lago, os peixes. Nenhuma

atribuição histórica é (ou era) a eles remetida. Num contexto como este, a ideia de patrimônio

não parece encontrar correspondência nas “caretinhas” cerâmicas ou nas terras pretas.

Portanto, se o tráfico se caracteriza por ser uma atividade de venda em que há a

consciência da ilegalidade da negociação, então a situação em Santa Rita não pode ser

enquadrada como tal. Além disso, acreditamos que muitos dos casos de tráfico de material

arqueológico no interior da Amazônia funcionem da mesma forma, ou seja, uma das partes

desconhece qualquer valor atribuído àqueles objetos que não o estético, e só o negociam

devido a este desconhecimento. Encarar tal prática como ilegal para que se aplicassem as

medidas cabíveis seria, no mínimo, um erro. Além de não se resolver o problema, criar-se-ia

7 Definição extraída dos dicionários da língua portuguesa Aurélio e Delta Larrousse.

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outro grave problema social a se sobrepor ao primeiro. Então, ao contrário, tentamos

compreender as peculiaridades desta interação, o que nos fez perceber que uma postura não

impositiva e de diálogo poderia fazer toda a diferença, ao semear a ideia do valor histórico e

cultural que aqueles objetos possuíam.

Além disso, a situação de êxodo de peças arqueológicas, conforme anteriormente

mencionado, pode ser atribuído não exatamente ao desconhecimento dos preceitos

arqueológicos que dizem respeito a uma história local contada através dos objetos, mas sim à

própria interpretação da população local sobre o material arqueológico – plenamente inserido

em sua vivência cotidiana. A forma pela qual esta situação vinha sendo encarada até então,

enquanto um tráfico de fato (uma transação ilegal de cunho econômico), acabou por motivar

toda uma série de ações que, apesar da impressão legalista inicial, permitiram que práticas

antigas fossem repensadas pela comunidade, que decidiu de forma autônoma abandonar tais

práticas. O que se seguiu foi que as peças foram acrescidas de novos significados e passaram

a ser valorizadas de outro modo nas comunidades, chegando a aparecer em crescentes

coleções organizadas pelos comunitários.

Um segundo fator de transformação do registro arqueológico no local é a própria

situação do sítio arqueológico, que se encontra numa área habitada sofrendo constantes

alterações pelas edificações e pelas atividades cotidianas dos moradores. Tal situação não é

preocupante, a nosso ver. Em verdade, a ocupação atual interfere no registro arqueológico da

mesma forma como outras ocupações que a precederam o fizeram, em uma continuação

inegável da construção deste registro. Assim sendo, não é possível encará-lo enquanto um

corpo imutável.

Em certo sentido, uma das finalidades da pesquisa arqueológica na Amazônia é o

reconhecimento da diversidade cultural do passado. Encarada enquanto estudo do presente, a

arqueologia pode demonstrar preocupação não somente com a preservação do patrimônio

arqueológico, testemunho de uma história ainda parcamente conhecida, mas também com a

própria sócio-diversidade manifestada na atualidade. Ao trazer à tona os resultados das

pesquisas arqueológicas, abrem-se precedentes para repensar os modos de construção dessa

história, bem como para pensar nas contribuições estratégicas que os povos do passado

deixaram e que, por uma série de questões, estamos esquecendo. É importante ressaltar que os

sítios arqueológicos – ainda que um legado do passado – constituem parte do presente.

Grande parte das comunidades ribeirinhas nesta área da Amazônia ocupa antigas

áreas indígenas, de modo que estas populações mantêm um contato direto com os vestígios

materiais produzidos por aqueles que os antecederam naquele local. Mais do que isso, estas

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pessoas possuem uma visão própria sobre estes vestígios, reinterpretando-os à luz de seus

próprios conceitos e de relações com outros grupos. Não obstante, a visão de mundo

impingida por estes moradores aos objetos arqueológicos não necessariamente passa pelas

interpretações científicas já consolidadas, não raro colocando-as como representações

divergentes, revestindo as ações dos cientistas de um caráter decerto mais “verdadeiro” do

que aqueles externados pelas populações locais.

O projeto almejou, fundamentalmente, a partir da participação dos comunitários, uma

construção do conhecimento arqueológico que levasse em consideração não apenas os

critérios científicos, mas também as contribuições do conhecimento local sobre o contexto

sistêmico aos quais aqueles materiais, sempre (re)significados, estão inseridos. Para tanto,

entendemos como necessária, senão essencial, a inserção dos moradores em todos os passos

do trabalho, olhando aqueles “cacos de pote” ou “caretinhas” e se consolidando como agentes

históricos.

Neste sentido, ao contar com o envolvimento da comunidade ao longo de todas as

suas etapas, intenciona-se não somente realizar uma coleta de dados arqueológicos e

estabelecer pretensos vínculos culturais entre as populações pretéritas e presentes, mas

também fazer com que o conhecimento produzido sirva às pessoas que efetivamente

contribuem para que ele exista, agregando à pesquisa diferentes vozes envolvidas no processo

de construção do conhecimento.

Fig.4 e 5: Crianças da Comunidade Santa Rita de Cássia (Valéria, Parintins/AM) mostram suas coleções e artefatos (Fotos: Maurício de Paiva, 2007).

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OFICINA LÍTICA DE POLIMENTO NO NOROESTE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Lithic Polishing Workshop in Northwest of Rio de Janeiro

Nanci Vieira de Oliveira1

RESUMO

No noroeste do Rio de Janeiro, foi identificado um sítio arqueológico do tipo amolador polidor fixo, localizado na Fazenda Santa Inês, município de Miracema. A identificação deste tipo de sítio arqueológico mostra que no Rio de Janeiro, a sua ocorrência não está restrita às praias e ilhas. Assim, este artigo tem como objetivo apresentar e discutir as características deste sítio arqueológico.

Palavras-chave: arqueologia, sítio pré-colonial, polidores ABSTRACT In the northwest of Rio de Janeiro, was identified archaeological site type grinder polisher fixed, located at Fazenda Santa Ines, Miracema municipality. The identification of this type of archaeological site shows that in Rio de Janeiro its occurrence is not restricted to the beaches and islands. Thus, this paper aims to present and discuss the characteristics of this archaeological site. Keywords: archeology, pre-colonial site, polishers RESUMEN En el noroeste de Río de Janeiro, fue identificado sitio arqueológico tipo pulidor amolador fijo en Fazenda Santa Ines, municipio de Miracema. La identificación de este tipo de yacimiento arqueológico muestra que en Río de Janeiro, su ocurrencia no se limita a las playas e islas. Así, el objetivo de este trabajo es presentar y discutir las características de este sitio arqueológico. Palabras clave: arqueología, sitio pre-coloniales, pulidoras

Introdução

A maioria dos sítios arqueológicos registrados no Estado do Rio de Janeiro ocorre no

litoral, com predominância de sambaquis construídos por populações pescadoras, coletoras e

caçadoras. Com menor frequência existem registros de sítios do tipo Amoladores - Polidores

1 Doutora em História - UNICAMP, Professora Adjunta de Antropologia e Coordenadora do Laboratório de Antropologia Biológica, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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Fixos, que correspondem a locais onde são realizadas atividades especificas, ou seja, amolar e

polir seus instrumentos líticos.

Embora a maior parte dos registros tenha ocorrido no litoral, em especial em Santa

Catarina (TIBURTIUS e BIGARELLA, 1953; ROHR, 1977, 1984; AMARAL, 1995) e Rio

de Janeiro (DIAS JUNIOR, 1959; GASPAR e TENÓRIO, 1990; TENÓRIO, 2003;

OLIVEIRA e AYROSA, 1991; KNEIP e OLIVEIRA, 2005), estudos posteriores indicam que

tais sítios ocorrem em vários locais do Brasil (HERBERTS et al. 2006).

Uma das discussões entre arqueólogos é a relação entre os números de polidores –

amoladores fixos, de sambaquis e a presença de artefatos polidos nos diferentes sítios

arqueológicos. Como não há relações entre as marcas de polimento e amolação de artefatos e

identidades étnicas, bem como, os locais de tais práticas específicas geralmente não

apresentam os artefatos produzidos, não se pode afirmar que apenas uma única população

tenha utilizado tal espaço.

A localização deste tipo de sítio ocorre em uma paisagem que reúne as condições

necessárias para a produção de artefatos polidos. Assim, a escolha do suporte advém de suas

características físicas particulares, ou seja, tamanho, forma e dureza da rocha, areia com

determinada qualidade granulométrica e proximidade da água. Através da abrasão da peça a

ser trabalhada contra a superfície da rocha é realizado o polimento, com a utilização de areia

úmida e, se formam aos poucos depressões planas ou ligeiramente côncavas.

Há consenso de que a forma das marcas está relacionada aos objetos fabricados, bem

como ao gestual do fabricante. A maioria dos arqueólogos concorda que as marcas resultam

da prática da confecção de lâminas de machado. Amaral (1995: 81) sugere a possibilidade dos

amoladores e polidores fixos terem sido utilizados também para a confecção de outros

artefatos polidos, entre os quais tembetás de quartzo e zoólitos.

As formas são descritas como canaletas ou frisos, acanaladas em forma de canoa,

circulares e ovais profundas (bacias), circulares e ovais rasas (pratos) e circulares rasas com

protuberância no centro (bacia côncavo-convexa). Os frisos podem ser classificados em dois

tipos, com depressão em V e com depressão em U. Belem (2012) sugere que os frisos em V

seriam utilizados para polir e apontar furadores e agulhas. Os do tipo em U para trabalhar

outros tipos de artefatos como bastonetes, arpões e contas de pedra.

Em um esforço de compreender a produção destas formas de depressão na confecção

de artefatos polidos, alguns arqueólogos têm realizado estudos da formação do registro

arqueológico e análises da cadeia operatória, ou seja, o encadeamento de acontecimentos

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culturais e naturais. Tais estudos têm fornecido algumas informações sobre gestos e desgaste

da superfície do suporte de rocha.

Prous et al. (2002) realizaram as experimentações em um bloco de arenito de forma a

estabelecer relações entre hora trabalhada e desgaste, bem como gesto e forma do desgaste.

Os autores identificaram diferenças entre alisamento e polimento, em que o primeiro resulta

em uma abrasão grosseira das superfícies, com auxílio de areia e, o segundo, pode ser obtido

com auxílio de um abrasivo muito fino e resulta em uma superfície brilhante. As

experimentações apontam à obtenção de alisamento das faces com gestos circulares e, “após

cerca de 30 horas de uso total, tinha-se desenvolvido uma bacia oval de 34 x 24 cm, bem rasa

- com 0,9 cm de profundidade” (p. 199), para a obtenção de um polimento fino foi utilizado

apenas água.

A experimentação de elaboração de machados realizada por Tenório (2003) teve por

objetivo obter uma estimativa do desgaste provocado na rocha suporte na fabricação de uma

lâmina de machado semelhante às encontradas na Ilha Grande (RJ), o gestual do artesão para

determinadas formas (experimentação na areia) e relação entre números de peças produzidas e

profundidade do sulco decorrente da abrasão (suporte em granito). A forma acanalada em

canoa resultaria de movimentos semicirculares com eixo inclinado para polimentos das faces,

formando-se um friso na área central, e o gume na peça trabalhada. A elaboração de 11

lâminas resultou em desgaste de apenas 0,155cm. A partir dos resultados foi estimado que

uma depressão com 2,5 cm seria resultado da elaboração de 177 lâminas de machado.

Localização e descrição

O presente estudo surgiu de uma visita à fazenda durante a XIII Jornada Científica

do Projeto Jovem Talentos para a Ciência do Estado do Rio de Janeiro, realizada no

município de Miracema (RJ), quando foi identificado o local como polidor amolador fixo. A

Fazenda Santa Inês está localizada no distrito de Paraíso do Tobias, no município de

Miracema, no Km 2 da RJ- 186.

A região corresponde a Sub-Bacia Hidrográfica do Rio Pomba, estando o amolador

polidor fixo localizado em superfície rochosa de um córrego denominado Ouro Preto, que

deságua no Ribeirão do Bonito, tributário do rio Pomba (Figura 1). Em termos

geomorfológicos, a região corresponde a unidade de Depressão Interplanáltica do Vale do Rio

Pomba, dominada por colinas, morrotes e morros baixos, com Latossolos e Argissolos

Vermelho-Amarelos (DANTAS et al., 2005).

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Fig.1: Localização do sítio arqueológico

De acordo com os dados do Departamento de Recursos Minerais do Rio de Janeiro

(DRM-RJ), predominam na região de Miracema rochas ortognaisse com composição

semelhante ao granito (gnaisses quartzo-feldspáticos), ocorrendo nas proximidades rochas

paragnaisses e, nos vales onde há rede de drenagem, os sedimentos quaternários representados

por areias, cascalhos e lamas.

O amolador polidor fixo tem como suporte uma superfície de gnaisse em uma

pequena queda d’água no córrego Ouro Preto. Este córrego nasce em um dos morros baixos

do local e se espraia pelo vale que apresenta sedimento arenoso (Figura 2).

Formas dos sulcos

Após a identificação durante uma visita como parte de um evento, foi marcado um

retorno ao local para o georreferenciamento do sítio (UTM 801.897/ 7628.986) e registro dos

seguintes atributos: forma, dimensões (comprimento, largura e profundidade), presença de

frisos ou canaletas. Nesta etapa de campo, também foi realizado levantamento sistemático de

superfície em toda a propriedade e, principalmente, no vale do córrego Ouro Preto, tendo por

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objetivo identificar outros polidores amoladores fixos e possíveis evidências materiais

indicativas de local de habitação.

Fig.2: Vista do polidor amolador fixo

Foram identificadas 23 marcas, sendo 19 (dezenove) circulares/ovais e 4 (quatro)

frisos, apresentando a maioria destas uma abrasão grosseira das superfícies (Figura 3). A

superfície rochosa apresenta irregularidades que foram aproveitadas para a retenção de areia e,

algumas parecem que foram ampliadas pela execução do alisamento das faces da peça

trabalhada (Figura 4). De forma distinta de outros polidores amoladores fixos, algumas destas

marcas não chegaram a desbastar totalmente a superfície e se apresentam irregulares (marca

inicial).

No polidor amolador fixo foram observadas as seguintes formas: circular muito rasa

(2), circular/oval rasa sem friso (7), circular/oval com friso (3), circular/oval com

profundidade (7) e frisos ou canaletas (4).

Em uma das marcas considerada como oval, observamos uma sobreposição de

marcas alongadas rasas decorrentes de gestos longitudinais, que poderia estar relacionado ao

alisamento de faces ou flancos de um artefato de pequena proporção ( Figura 5 ).

A profundidade das marcas apresenta variação de 0,25 a 4 cm, sendo predominante

entre 1 e 3 cm. Ficaram definidas como marcas iniciais as que não alcançaram 1 cm de

profundidade e as rasas as que não ultrapassaram os 2 cm (Figura 6).

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Fig.3: Conjuntos de marcas

Fig.4: Marcas de polimento

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Fig.5: Sobreposição de marcas

Fig.6: Gráfico

De forma a estabelecer relações entre profundidade das marcas e artefatos produzidos,

optamos por utilizar como referência o desgaste obtido na experimentação de Tenório (2003),

já que a rocha utilizada apresentava a mesma dureza do suporte de Miracema. De acordo com

a autora, a elaboração de onze lâminas de machado decorreu em um desgaste de 0,155 cm em

uma base de granito. De acordo com as profundidades das marcas no polidor amolador fixo

em Miracema, teríamos desde marcas decorrentes da elaboração de um único artefato polido

até as resultantes da elaboração de 25 artefatos. A partir da média das profundidades das

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depressões circulares/ovais, teríamos, aproximadamente, 240 artefatos produzidos neste sítio

arqueológico.

Considerações finais

O polidor amolador fixo da fazenda Santa Inês demonstra que no Rio de Janeiro a

ocorrência deste tipo de sítio não está restrita às praia e ilhas. Depressões em forma de canoa,

comum em sítios litorâneos, foram ausentes neste sítio do Noroeste fluminense. As dimensões

das depressões indicam elaboração de artefatos de menores proporções aos produzidos nos

demais sítios estudados no Rio de Janeiro e Santa Catarina.

A identificação deste sítio arqueológico estimulou o interesse da comunidade local, o

que resultou na implantação de um projeto de Educação Patrimonial envolvendo jovens do

Ensino Médio, tendo por objetivo a realização de um levantamento do patrimônio histórico e

arqueológico. Cabe ressaltar que esta região corresponde as áreas proibidas no período

colonial até a segunda metade do século XVIII, também denominada como Sertão dos Puris.

Assim, a continuidade das pesquisas na região deverá fornecer subsídios para a compreensão

das ocupações humanas pré-coloniais no interior do Rio de Janeiro.

O objetivo da Educação Patrimonial é estimular a reflexão junto aos jovens sobre a

valorização do patrimônio no contexto urbano e rural, decorrente de uma política de

valorização relacionada às representações da elite socioeconômica, em contraposição às

culturas relegadas ao esquecimento. Através de palestras e oficinas, os jovens são inseridos na

pesquisa e discussões sobre preservação, patrimônio, história indígena na região, vestígios

arqueológicos, memória e conhecimentos tradicionais. Ao mesmo tempo, são eles os

intermediários entre os pesquisadores e representantes da sociedade local, contribuindo nas

avaliações da preservação do patrimônio histórico da região, nas entrevistas e levantamentos

de locais com características indicativas de potencial arqueológico.

Referências bibliográficas

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ESTUDIO DE IMPACTO ARQUEOLÓGICO EN PUNTA PEREIRA (COLONIA-URUGUAY): METODOLOGÍA APLICADA Y PRINCIPALES RESULTADOS PARA

EL CONOCIMIENTO DE LA PREHISTORIA REGIONAL.

Archaeological impact assessment at Punta Pereira (Colonia County, Uruguay): methodological aspects and main results for regional prehistory knowledge.

Irina Capdepont1

Laura del Puerto e Hugo Inda2 RESUMO Este trabalho apresenta os resultados obtidos no estudo de avaliação e diagnóstico de impacto arqueológico na zona de Punta Pereira (Departamento de Colonia - Uruguai). Numa primeira etapa, as diferentes áreas da zona de Punta Pereira com potencial arqueológico foram identificadas, localizadas, descritas, documentadas, estudadas e valorizadas. Posteriormente, com o objetivo de mitigar o impacto que seria produzido pelas obras planificadas pela Planta de Celulosa y Energia Elétrica, definiu-se o entorno de proteção de cinco espaços com evidências de atividade humana pré-histórica. Nestes espaços se aplicaram medidas corretoras compensatórias, que incluíram a realização de 12 escavações arqueológicas. Estas etapas de trabalho permitiram registrar ocupações humanas durante o Holoceno que eram desconhecidas até o momento. Palavras-chave: Impacto Arqueológico, Ocupações humanas pré-históricas. ABSTRACT Results from archaeological impact appraisal and diagnose studies performed at Punta Pereira (Colonia county, Uruguay) were presented in this contribution. Several areas with archaeological potential were identified, spatially referenced, described and studied. In order to mitigate the impact of the Cellulose Processing and Electric Energy Plant construction five areas with prehistoric human evidences were defined for further research. In those areas corrective compensatory measures were applied, including 12 archaeological diggings. Results from such activities allowed to unveil human occupations during middle to late Holocene that were previously unknown to regional Archaeology. Keywords: Archaeological Impact, Prehistorical human occupations. RESUMEN Este trabajo presenta los resultados obtenidos en el estudio de evaluación y diagnóstico de impacto arqueológico de la zona de Punta Pereira (Departamento de Colonia - Uruguay). En una primera instancia se identificaron, localizaron, describieron, documentaron, estudiaron y valoraron diferentes áreas de la zona con potencial arqueológico. Posteriormente, con el objetivo de mitigar el impacto a producirse por las obras planificadas por la Planta de Celulosa y Energía Eléctrica, se definió el entorno de protección de cinco áreas con

1 Laboratorio de Estudios del Cuaternario (MEC-UNCIEP) [email protected]

2 Centro Universitario Regional Este, Universidad de la República

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evidencias de actividad humana prehistórica. Sobre estas áreas se aplicaron mediadas correctoras compensatorias que incluyeron la realización de 12 excavaciones arqueológicas. Estas instancias de trabajo permitieron registrar ocupaciones humanas durante el Holoceno no conocidas con anterioridad. Palabras clave: Impacto Arqueológico, Ocupaciones humanas prehistóricas

Introducción

El Patrimonio Arqueológico está constituido por todos los restos físicos tangibles de

la acción humana del pasado que contienen información sobre ésta. Es debido a su carácter de

bien de interés público, frágil y no renovable, que la Ley de Impacto Ambiental (Nº 16.466 -

Decreto 435/994) en Uruguay exige la realización de Estudios de Impacto Arqueológico

(EIArq) a fines de diagnosticar, prevenir, corregir y/o mitigar los efectos negativos de

distintos emprendimientos públicos o privados sobre los bienes arqueológicos. En este

contexto, la proyección e implementación de una planta de fabricación de celulosa y

generación de energía eléctrica en Punta Pereira, sobre el litoral oeste de Uruguay (Figura 1),

constituyó el marco para conjugar el estudio de impacto como iniciativa de investigación para

la generación de conocimientos. Dado que el proyecto productivo ya contaba con la

habilitación ambiental para la localización de la planta, el Estudio de Impacto Arqueológico

se desarrolló principalmente con miras a

diagnosticar y mitigar el impacto de las

obras proyectadas. Para ello, en una

primera instancia se realizó la Evaluación

del Impacto con la finalidad de identificar

objetos o elementos patrimoniales y definir

sus entornos de protección antes del

comienzo de las obras. Esta instancia

involucró (sensu AMADO et al., 2002) el

descubrimiento, localización, descripción,

documentación, estudio, valoración y

difusión de los valores culturales allí

presentes. Posteriormente, con el objetivo

de mitigar el impacto a ser producido por la

obra proyectada, se llevaron adelante

Fig.1: Ubicación general y específica del área de estudio (Fuente: CAPDEPONT 2012).

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medidas de corrección compensatorias (documentación, prospección y excavación) y

paliativas (seguimiento de obra y actuaciones puntuales de recuperación parcial). En este

trabajo se presentan los resultados obtenidos de la prospección arqueológica y de las

excavaciones efectuadas en dos de los cinco espacios con evidencias de ocupación humana en

Punta Pereira (M8 y M6).

Actividades de evaluación y diagnóstico

La etapa de Evaluación del Impacto involucró actividades específicas que llevaron a

realizar el Diagnóstico Arqueológico del área a ser afectada. En esta etapa se llevó a cabo:

Identificación de Afecciones requirió la identificación precisa de los agentes (infraestructura

e instalaciones), acciones (actividades concretas que generen impacto), afecciones

(modificaciones del medio físico) y momento del impacto (fase del proyecto donde el impacto

se hará efectivo). Para el caso de estudio se identificaron tanto afecciones preexistentes como

proyectadas, así como los principales agentes, acciones y momento del impacto (Tabla 1).

Al inicio de la investigación, en el predio destinado al emprendimiento se identificó

la existencia de afecciones preexistentes, de diversa magnitud y con disímil impacto

constatado sobre las entidades arqueológicas. Entre ellas se destacan, por su extensión, los

movimientos de suelo producto de las actividades extractivas realizadas por la empresa

inglesa C.H. Walker & Co. que se instaló en la zona entre 1886 y 1887. La empresa extrajo y

exportó arena y conchilla a la ciudad de Buenos Aires, aumentando la extracción hacia 1895.

La explotación de áridos fue continuada por la empresa Roselli Importación S.A, cuyas

actividades extractivas a partir de 1957, debido a la maquinaria empleada y la escala espacial

de la explotación, constituyeron el principal agente de impacto identificado en el área de

Punta Pereira (LEZAMA et al., 2007).

Dentro de las acciones proyectadas por el plan de obra (EsIA EDARIX S.A,

DINAMA Exp 2007/14000/05626) en la Tabla 1 se señalan las de mayor potencial de

afección sobre las entidades arqueológicas. En todos los casos las acciones proyectadas

involucraron movimientos de suelo, con empleo de maquinaria pesada de alto impacto, siendo

las etapas de nivelación del terreno y terraplenado las de mayor impacto potencial (Figura 2).

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Tabla 1. Principales afecciones preexistentes y proyectadas. (Fuente: LEZAMA et al.

2007)

Agentes Acciones Afecciones Momento del

Impacto

Maquinaria:

bulldozers,

retroexcavadoras,

motoniveladoras,

cargadores

frontales, rodillos

vibratorios, patas

de cabra, pisones

vibratorios.

Actividades extractivas

desde fines del siglo XIX.

Movimiento

de suelo

Preexistente

Caminería

Etapa inicial de

acondicionamiento de

terreno

Prospección geofísica

Acondicionamiento de

terreno

Limpieza de vegetación

Nivelación del terreno

Terraplenado

Primera fase

constructiva

Macro y micro drenajes

internos

Regulación de red de

escurrimiento

Caminería

Segunda fase

constructiva Parquización

Instalaciones

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Fig.2: Ubicación de la zona de movimiento de suelo proyectado y referencias topográficas del área de emplazamiento. Los terrenos altos (>7m) corresponden a las zonas de desmonte y los terrenos bajos (<7m) a las de relleno. Base: Relevamiento topográfico y Plan de Obra Grupo ENCE (Fuente: LEZAMA et al., 2007)

Prospección Arqueológica tuvo como objetivos principales identificar y registrar

contextos arqueológicos, efectuando una caracterización primaria que permitiera determinar

la existencia de entidades pasibles de ser sujetas a medidas de mitigación. Considerando la

heterogeneidad espacial de la información arqueológica, los estudios cartográficos y

fotográficos, así como las afecciones producidas, se propuso dividir el área en dos zonas

geomorfológicas (CAPDEPONT, 2008): A.- La Zona Baja incluye los sectores Sur, Sudeste y

Este del predio, comprendiendo la línea de costa, crestas de tormenta, bañados, aluviones y

depósitos arenosos intensamente afectados por la explotación de arena y conchillas. Es de esta

porción del terreno de donde deriva la mayoría de los restos arqueológicos que forman hoy

día parte del acervo de diversas colecciones tanto públicas como privadas. B.- La Zona Alta

comprende el sector noreste del predio, abarcando aquellas fracciones de terreno con cota

superior a los 7 msnm. El límite sudoeste del área se halla delimitado por la línea de la

paleocosta del máximo transgresivo del Holoceno y los depósitos arenosos que la cubren

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parcialmente. En algunos sectores esta paleocosta se ve interrumpida como consecuencia de

las actividades extractivas pretéritas (explotación de arena y conchilla desde fines del siglo

XIX y principios del siglo XX.), que expusieron en varios puntos contextos arqueológicos

relevantes asociados a un paleosuelo areno-limoso interdunar. Dada la riqueza arqueológica

registrada en antecedentes y el carácter no alterado de algunos sectores, se identificaron y

delimitaron áreas con alto potencial de hallazgo de contextos arqueológicos primarios. El

trabajo se centró en el área de ubicación de la Zona Franca (delimitada en la figura 2), donde

se proyectaban las mayores obras de movimiento de suelo (CAPDEPONT, 2008).

Para la realización de la etapa de prospección se ejecutó un plan que abarcó dos

instancias diferenciales. En primer lugar se llevó a cabo una prospección superficial

sistemática pedestre, principalmente en rasgos como escombreras pertenecientes a las

antiguas actividades extractivas, caminería, frente expuesto de la escarpa, costa y demás zonas

donde la erosión, tanto antrópica como natural, incrementa la visibilidad arqueológica. En

forma simultánea, la prospección sistemática se complementó con una prospección dirigida,

apuntando a reconocer estructuras específicas. Con ello se atendió a zonas de mayor

visibilidad (afloramientos, barrancas, cauces, trillos, etc.) o visibilidad puntual. Las tareas de

relevamiento superficial se complementaron con intervenciones arqueológicas puntuales, con

el objetivo de indagar el subsuelo en zonas de baja visibilidad arqueológica y detectar la

existencia de materiales arqueológicos en estratos sub-superficiales. Estas tareas incluyeron la

limpieza de perfiles expuestos, así como la realización de sondeos en una serie de puntos del

paisaje, previamente seleccionados de forma selectiva y/o aleatoria. Para ello fue necesario

establecer, en primer lugar, puntos de interés y potencial arqueológico, tanto en la zona baja

como en la zona alta del predio (CAPDEPONT, 2008; LEZAMA et al., 2008).

Diagnóstico del Impacto, como último paso en la etapa de la Evaluación, es definido

de acuerdo a tres criterios: efecto, magnitud e incidencia (AMADO et al., 2002; CRIADO et

al., 2000). De ello resultó la definición de los tipos de impacto a generarse en el área: Crítico

y Severo. Dado que el desarrollo de la obra genera la desaparición parcial o total de sitios

Arqueológicos, se diagnosticó un impacto crítico que implicó la adopción de medidas

correctoras destinadas a compensar el impacto a través de un rescate arqueológico. Asimismo,

para algunos sectores del área se diagnosticó un impacto severo, permitiendo adoptar medidas

preventivas (control y seguimiento de obra) en fase de ejecución de las obras.

Las medidas correctoras planteadas intentaron: recuperar evidencias de las

actividades humanas desarrolladas en la zona; obtener un mayor conocimiento de la

ocupación humana prehistórica, aportar conocimiento a la arqueología regional y nacional

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mediante la investigación exhaustiva de contextos arqueológicos prehistóricos e históricos a

través de metodologías de investigación científica; y finalmente poner en valor los bienes

patrimoniales. La primera medida, destinada a la generación de nuevos conocimientos en

relación a la ocupación humana de la zona, consistió en la realización de 13 excavaciones de

rescate arqueológico en los puntos con alto potencial arqueológico (N8, N9, M8, M6 y

3Pinos) identificados en la primera fase de estudio (CAPDEPONT, 2008ª, 2008b; DEL

PUERTO, 2008a, 2008b; GASCUE, 2008; LEZAMA et al., 2008).

Resultados del estudio de evaluación

La presencia de sitios arqueológicos prehistóricos e históricos en diferentes unidades

del paisaje, no documentados con anterioridad, ha sido determinada en campo por medio de

técnicas de prospección superficial y sub-superficial. Se llevaron a cabo 229 actuaciones en el

marco de la prospección arqueológica del área (Tabla 2).

Las actuaciones arqueológicas comprendieron:

a.- Observaciones sin intervención: la mayor parte de estas observaciones da cuenta

del registro y relevamiento de distintos movimientos de suelo preexistentes, en los

que no se registró presencia de materiales arqueológicos. Se efectuaron 32

actuaciones correspondientes a esta categoría (Tabla 2).

b.- Recolección superficial: el material hallado en superficie fue registrado (fichas de

registro de prospección, fotografía, georeferenciación, etiquetado) y acondicionado

para su análisis en laboratorio. La mayor parte de estos materiales proviene

decontextos secundarios, asociados a movimientos de suelo vinculados a las

actividades extractivas pretéritas, erosión natural en los frentes expuestos por la

antigua arenera, así como a la construcción y/o acondicionamiento reciente de la

caminería. Cabe destacar las recolecciones superficiales efectuadas en la franja

costera, que permitieron recuperar materiales cerámicos durante eventos de bajante

del nivel del estuario. Fueron recolectados materiales en superficie en 33 locus de la

Zona Alta y 32 en la Zona Baja (Tabla 2).

c.- Limpieza de perfiles: se limpiaron y registraron perfiles en frentes expuestos por

la antigua extracción de áridos, en depósitos de material de descarte de la arenera, en

perforaciones efectuadas por los estudios geológicos previos, en frentes expuestos

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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por caminería y obras civiles y en cursos de agua y canales de drenaje. De los

perfiles asociados a frentes de explotación de arena, 20 involucran la presencia de un

paleosuelo areno-limoso bajo depósitos eólicos de distinta potencia. Al mismo se

asocian materiales arqueológicos desplazados en las laderas expuestas y holladas

donde se realizaron 43 limpiezas de perfiles (Tabla 2).

d.- Sondeos: se realizaron 79 sondeos (Tabla 2), ubicados en todas aquellas unidades

del paisaje en las que resultó factible obtener una buena representación estratigráfica.

Como parte de la prospección dirigida, los sondeos realizados en la Zona Alta fueron

efectuados junto a la línea de la paleocosta, asociándose en la mayoría de los casos a

frentes expuestos por la antigua explotación arenera con un paleosuelo areno-limoso

y material cultural. En lo que refiere a la Zona baja, se priorizaron las áreas

relictuales no afectadas por la antigua explotación arenera (donde la acumulación de

pilas de estéril cubrió depósitos naturales y en parches antiguos de monte) y la costa

Sur, aprovechando una bajante extrema del Río de la Plata.

Tabla 2. Detalle y cuantificación por zona de las actuaciones efectuadas en el

marco de la prospección arqueológica. (Fuente: modificado de LEZAMA et al.

2008)

Actuación Zona

Baja

Zona

Alta

Total de

materiales

Intervenciones

Limpieza de Perfil 13 30 43

Sondeo 14 65 79

Rec. Superficial 32 33 65

Observaciones directas

Afloramientos 0 1 1

Caminería 0 3 3

Calicatas 0 12 12

Escombreras 0 4 4

Estructuras 10 1 11

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Forestaciones 0 1 1

Total 69 150 219

Las intervenciones mencionadas permitieron recuperar material cultural en contexto

primario y secundario (Tabla 3). A partir de la propuesta metodológica desarrollada fue

factible definir y delimitar áreas arqueológicas de interés, que serían impactadas de forma

crítica y severa por la obra. Ello llevó a delimitar entornos de protección (Figura 3) en los que

se realizaron, como medidas correctoras compensatorias, las excavaciones arqueológicas.

Tabla 3. Cultura material recuperada según tipo de intervención y contexto de

recuperación. (Fuente: LEZAMA et al. 2008)

Intervención Contexto

Cultura Material Recuperada

Totales Lítico Cerámica Óseo

Materiales

Históricos

Limpieza de Perfil Primario 20 0 0 0

72 Secundario 1 0 0 51

Sondeos Primario 48 0 1 9

62 Secundario 4 0 0 0

Recolección

Superficial Secundario 2978 60 17 46 3101

Totales 3051 60 18 106 3235

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Fig.3: Localización de las principales zonas de concentración de materiales arqueológicos identificadas a partir de la prospección y posteriormente excavadas. Base: Foto Aérea 1:20.000 1981, FAU. (Fuente: LEZAMA et al. 2008).

A partir de las excavaciones realizadas se logró la generación de nuevo conocimiento

sobre ocupaciones humanas del Holoceno y se recuperaron evidencias de actividades

humanas pretéritas en contexto estratigráfico. Ello aportó a un mayor conocimiento de la

arqueología regional y nacional.

Las zonas excavadas corresponden a las áreas denominadas 3 Pinos, M6, M8, N8 y

N9 (Figura 4), cuya ubicación geográfica se explicita en la tabla 4. Doce excavaciones se

localizaron en la escarpa (límite zona alta y baja; cotas 7-12 msnm) vinculada a la línea de

costa durante el máximo transgresivo del Holoceno (N8, N9, M8 y 3 Pinos). La excavación

realizada en M6 se ubicó aproximadamente 500 metros al norte de la escarpa, en un espacio

interdunar en cota 15msnm.

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Fig.4:. Fotoplano con áreas excavadas. Fuente: CAPDEPONT 2008:48)

Tabla 4. Ubicación geográfica de las áreas con entornos de protección a ser excavadas.

Fuente CAPDEPONT 2008:45

ID LATITUDES (S) LONGITUDES (W) SUPERFICIE

m2

3

Pinos

34º 13’ 28,795”-34º 13’ 29,594”

34º 13’ 32,499”-34º 13’ 33,312”

58º 03’ 10,996”-58º 03’

01,602”

58º 03’ 11,311”-58º 03’

01,908”

27.600

M 6 34º 13’ 17,014”-34º 13’ 17,014”

34º 13’ 20,295”-34º 13’ 20,295”

58º 03’ 00,206”-58º 02’

56,351”

58º 03’ 00,206”-58º 02’

56,351”

10.000

M 8 34º 13’ 31,530”-34º 13’ 31,530”

34º 13’ 33,560”-34º 13’ 33,560”

58º 02’ 59,675”-58º 02’

55,837”

58º 02’ 59,675”-58º 02’

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55,837” 6.000

N 8 34º 13’ 34,765”-34º 13’ 34,765”

34º 13’ 35,431”-34º 13’ 35,431”

58º 02’ 48,682”-58º 02’

47,836”

58º 02’ 48,682”-58º 02’

47,836”

400

N 9 34º 13’ 40,153”-34º 13’ 40,153”

34º 13’ 40,689”-34º 13’ 40,689”

58º 02’ 43,579”-58º 02’

43,053”

58º 02’ 43,579”-58º 02’

43,053”

225

La superficie abarcada por el total de las excavaciones alcanzó los 286 m2.

Paralelamente, se realizaron sondeos tendientes a caracterizar sectores de los sitios que no

incluyeron excavaciones, cubriendo un total de 40 m2. La profundidad alcanzada en cada

intervención y la cuantificación de materiales recuperados se observa en la tabla 5.

Tabla 5. Datos generales de las intervenciones realizadas. Fuente:

CAPDEPONT 2008a,b; DEL PUERTO 2008a, b; GASCUE 2008.

Intervención Área

(m2)

Profundidad

(cm)

Total de Materiales

Líticos

M6 Exc.I 15 70 493

M6 S11-16 12 ~100 15

3P Exc.I 25 180 36

3P Exc.II 20 150 1216

3P Exc.III 40 160 1571

3P Exc.IV 24 250 554

3P Exc.V 40 60 4566

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A continuación se presentan los resultados obtenidos de las excavaciones realizadas

en los espacios denominados como M8 y M6.

En M8 se plantearon las siguientes excavaciones: Exc I de 5x7 m, Exc. II de 5 x 4 m

y Exc. III de 5 x 3 m. En las mismas se observó que las unidades estratigráficas superiores

(UE01, UE02 Y UE03) presentaban materiales culturales en contextos secundarios. Ello es

producto de la remoción ocasionada por actividades de extracción de áridos en el pasado

histórico del Punta Pereira. A partir de la UE05, en las excavaciones realizadas comenzó a

recuperarse material lítico en contexto primario. En las UE06 y UE07 se observó la presencia

de materiales líticos, estructuras sedimentarias (manchas) y estructuras de combustión

(fogones). Este tipo de registro se encontró particularmente concentrado en la UE07. El

evento de ocupación humana evidenciado en la UE07, aportó una cronología de 4.240 + 80

años 14C AP (URU0505) (BRACCO 2008) obtenida a partir de material vegetal carbonizado

de una de las estructuras de combustión. En la unidad estratigráfica UE07 se recuperó el 81%

de los materiales arqueológicos (n=21.158) asociados a fogones (Figura 5). El material

cultural evidencia una tecnología lítica de reducción y fractura expeditiva. La misma se habría

basado en la obtención de formas base, para ser seleccionadas como instrumentos

(MAROZZI et al., 2008). En los materiales se encuentran representadas actividades de

manufactura, uso y descarte, observándose en el conjunto una baja diversidad de artefactos y

3P Exc VI 6 460 431

3P Exc VII 4 110 1486

3P S12- 19 24 ~80 251

M8 ExcI 35 240 9695

M8 Exc.II 20 150 94

M8 Exc.III 15 110 10684

M8 018 4 160 682

M8 S15- 17 12 ~80 3

N8 Exc.I 18 260 33

N9 Exc.I 12 190 628

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100

la presencia de marcas de uso en algunos de los mismos. Las materias primas utilizadas en la

manufactura de estos materiales, como cuarzo y granito, se encuentran accesibles en fuentes

primarias y secundarias del entorno inmediato. También se ha observado el uso de materias

primas regionales como la caliza silicificada (MAROZZI et al., 2008; CAPDEPONT, 2012).

Fig.5: Representación del perfil tipo de M8 con total de materiales líticos recuperados. Fuente: DEL PUERTO 2008a: 314.

De acuerdo a los resultados obtenidos, en la unidad del paisaje correspondiente a un

antiguo arco de playa, se desarrollaron intensas actividades de ocupación humana hacia el

Holoceno medio-tardío. Se cuenta con evidencias que llevan a considerar que en este espacio

se realizaron actividades relacionadas a la manufactura y/o mantenimiento de instrumentos

líticos en directa asociación con fogones. Dados los datos manejados, también puede

proponerse que los restos recuperados fueron generados en un campamento base o residencial

(sensu BINFORD, 1980), ubicado próximo a la línea de costa de hace 4000 años.

Las intervenciones realizadas permitieron una amplia caracterización

geoarqueológica de este sector, relevando las secuencias estratigráficas e identificando las

áreas de concentración de vestigios arqueológicos. En este sentido, se destaca el carácter del

paleosuelo arenoso como estrato guía, pero disociado en su expresión vertical de la

concentración de materiales culturales. Los sectores donde el paleosuelo se encuentra presente

y mejor definido son los que cuentan con mayor concentración de materiales, a pesar de que

los mismos se hallan mayormente comprendidos en unidades estratigráficas subyacentes.

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

101

En las intervenciones realizadas en M6 se recuperaron materiales líticos en un

paleosuelo limo-arcilloso de origen aluvial cubierto por depósitos eólicos modernos. El

mismo se encuentra ubicado en una hollada interdunar natural cubierta por vegetación arbórea

nativa. En las excavaciones realizadas se registraron seis unidades estratigráficas que se

corresponden a cinco horizontes de suelo: A0 (UE01), A1 (UE02-03), A2 (UE04), B1 (UE05)

Y B2 (UE06). Las dos primeras unidades estratigráficas resultaron arqueológicamente

estériles, a excepción de una pequeña lasca en cuarzo. En forma similar, de la UE 03 se

recuperó una única lasca en caliza silicificada. En contraste, las tres unidades estratigráficas

inferiores presentaron mayores concentraciones de material arqueológico. Fueron recuperadas

492 piezas líticas y un único fragmento óseo. Como ilustra la figura 6, los materiales se

concentraron por debajo de los depósitos eólicos más recientes (UE01 A 03), en lo que

conforma la matriz de un paleosuelo arcillo-limoso de origen aluvial. Las mayores

concentraciones de materiales se recuperan de la UE05. Si bien no se cuenta con dataciones

radiométricas que contextualicen temporalmente el registro arqueológico abordado, sus

características geoarqueológicas (unidad de paisaje en la que se emplaza, cota, tipo de suelo)

y tecnológicas (predominio de caliza silicificada como materia prima), sugieren que es el

producto de una ocupación humana temporal y espacialmente diferente a las manifestadas en

los restantes contextos arqueológicos intervenidos en Punta Pereira (DEL PUERTO, 2008b).

Fig.6: Distribución vertical de materiales líticos de M6 por profundización y UE. Fuente DEL PUERTO 2008b:26.

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102

Consideraciones finales

En primer lugar, es pertinente destacar que la implementación de medidas de

corrección compensatorias (documentación, prospección y excavación) permitió mitigar el

impacto a generarse en Punta Pereira. Ante la imposibilidad de evitar dicho impacto, dada la

fase avanzada del trámite de habilitación ambiental en la que se requirió el estudio de impacto

arqueológico, se desarrolló una estrategia tendiente a compensar sus efectos con la generación

de información calificada que permitiera un mayor conocimiento del pasado prehistórico e

histórico en la región. En este sentido, el cúmulo de datos generados evidencia que en Punta

Pereira tuvieron lugar ocupaciones humanas prehistóricas en distintas unidades del paisaje.

Una de ellas, con mayor expresión de cultura material en contexto primario al momento del

estudio, se vincula espacialmente a la línea de la paleocosta del máximo transgresivo del

Holoceno. Vinculada a la anterior, en cotas inferiores habría tenido lugar una ocupación más

tardía, cuyos contextos han sufrido el mayor impacto de la antigua explotación minera. En

tercer lugar, se obtuvieron evidencias de contextos primarios en cotas más elevadas, que

podrían corresponder a asentamientos más tempranos.

Dentro de los sitios abordados en la línea de la paleocosta, la secuencia estratigráfica

arqueológica puso en evidencia la existencia de al menos dos momentos de ocupación

prehistórica. El primero tuvo lugar hacia el 4200 años 14C AP., cuando el nivel del mar se

encontraba por encima de su nivel actual, próximo al emplazamiento de los sitios. Las

ocupaciones humanas habrían tenido lugar en dos unidades de paisaje principales. Por un lado,

el sitio 3Pinos se ubica en lo que fue una península rocosa, mientras que los restantes sitios

investigados se localizan en lo que fue un arco de playa al este de la península. La cultura

material recuperada, los rasgos y estructuras registrados, indicarían ocupaciones vinculadas a

campamentos base. Ello también se sustenta con la información regional, obtenida de diversas

investigaciones realizadas en la costa atlántica, que manifiestan una secuencia estratigráfica

en extremo similar (LÓPEZ, 1994, 1995; LÓPEZ et al, 2003-2004).

Depósitos similares a los de la escarpa de Punta Pereira, también subyacen a un

paleosuelo en sitios de Cabo Polonio (LÓPEZ, 1994), sometidos a una batería de fechados

que los coloca entre 4500 y 4100 años 14C AP. Estos potentes depósitos (de aproximadamente

1m) vinculados a una fase árida, parecen haberse depositado en la región durante un período

acotado. En este sentido, existe un patrón de ocupación humana similar en toda la costa

oceánica y estuárica de Uruguay. Este patrón se vincula a estrategias de subsistencia de

explotación de recursos costeros bajo condiciones ambientales más áridas y con un nivel del

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

103

mar por encima del nivel actual. Lo mencionado anteriormente permite proponer la presencia

del paelosuelo como estrato guía para ubicar y contextualizar las ocupaciones del Holoceno

medio-tardío.

En estos mismos sitios, en unidades estratigráficas superiores relacionadas al

desarrollo del mencionado paleosuelo areno-limoso, se registraron evidencias de una

ocupación más tardía con una edad mínima de 265 años 14C AP (BRACCO, 2008). Es de

destacar que un paleosuelo areno limoso fue observado en numerosos puntos de la costa

uruguaya y en la misma cota, lo que permite considerarlo también como estrato guía. Este fue

fechado en Cabo Polonio (sobre carbón cultural) entre ca 700 y 600 años 14C AP. (LÓPEZ,

1994), lo cual permite afinar la fecha obtenida para esta unidad estratigráfica. La menor

concentración de cultura material recuperada en esta unidad evidenciaría una ocupación más

efímera o relictual en el paisaje. En este sentido, la presencia de paleosuelo removilizado con

material cultural en pilas estériles generadas por la antigua actividad minera, indica que el

paleosuelo se desarrollaba hacia la costa, finalizando su desarrollo horizontal a pocos metros

al norte de la escarpa. Esta ocupación más tardía habría tenido lugar con un nivel del mar

similar al actual y podría vincularse a los hallazgos cerámicos recuperados en superficie en la

zona baja. Las intervenciones efectuadas en el sector M6 denotaron la existencia de contextos

arqueológicos posiblemente más antiguos. La ubicación de estos contextos en cotas más altas

(15 msnm), en unidades estratigráficas diferentes y con una tecnología lítica caracterizada por

el predominio del uso de materias primas como la caliza silicificada, respondería a una

ocupación humana más temprana.

La implementación del Estudio de Impacto Arqueológico en Punta Pereira generó

información que enriquece el conocimiento de la prehistoria local y regional, demostrando

que es posible compatibilizar el avance productivo con la protección y puesta en valor del

patrimonio cultural prehistórico.

Referencias bibliográficas AMADO Xuxo, BARREIRO David, CRIADO Felipe y MARTÍNEZ María. Especificaciones para una gestión del Impacto desde la Arqueología del Paisaje. TAPA 26, 2002. BRACCO, Roberto. Informe del laboratorio - Datación 14C. In: Informe Final del Estudio del Impacto Arqueológico y Cultural de la Construcción de la Fabrica de Celulosa y Planta de Energía Eléctrica de Punta Pereira. Tomo III La Prehistoria, Capítulo 21, pp. 369-374. Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación. UR. 2008 BINFORD, Lewis. “Willow Smoke and Dogs Tails: Hunter-gatherer Settlement Systems and

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A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR: O PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO NAS ORGANIZAÇÕES FORMAIS DO BRASIL

Render unto Ceasar the things wich are Ceasar’s: archaeological heritage in formal

organizations of Brazil

Alejandra Saladino1 Carlos Alberto Santos Costa2

Elizabete de Castro Mendonça3 RESUMO Na instituição do patrimônio cultural no Brasil, uma problemática adensa-se em tempos de consolidação da legislação ambiental e de uma agenda política de viés desenvolvimentista. A saber: a preservação e a gestão do patrimônio arqueológico. O objetivo deste artigo é refletir sobre tal aspecto a partir da análise da complexificação da instituição do patrimônio cultural resultante da criação de uma nova organização formal: o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM). Os resultados preliminares deste primeiro esforço reflexivo indicam que, para uma maior eficácia na utilização de instrumentos e práticas de preservação sobre o patrimônio arqueológico, é necessário delimitar seu campo de atuação e estabelecer claramente atribuições e competências, bem como um plano de ação articulado entre as organizações formais de instância federal. Palavras-chave: Patrimônio Cultural; Patrimônio Arqueológico; Organizações Formais; IPHAN; IBRAM ABSTRACT In times of consolidation of enviromental legislation and a political agenda of development bias, ther's a denser problem, namely the preservation and management of archaeological heritage. The objective of this paper is to discuss this aspect from the analysis of the complexity of the cultural heritage of the institution resulting from the creation of a new formal organization: the Brazilian Institute of Museums (IBRAM). Preliminary results indicate, this first effort, the effectiveness of conservation practices and tools on the archaeological heritage, the need to delimit the field of action, establish clear roles and responsibilities and an action plan articulated between the formal organizations of federal level. Keywords: Cultural Heritage, Archaeological Heritage; Formal Organizations; IPHAN; IBRAM RESUMEN 1 Professora-Doutora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e museóloga no Museu da República (MR/Ibram) – [email protected] 2 Professor adjunto da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) – [email protected] 3 Professora-Doutora do Departamento de Estudos e Processos Museológicos (DEPM) e do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio (PPG-PMUS) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) - [email protected]

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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En la institución del patrimonio cultural en Brasil, un problema se agranda en estos tiempos de consolidación de las leyes ambientales y de una agenda política de desarrollo, es decir, la preservación y la gestión del patrimonio arqueológico. El objetivo de este artículo es reflexionar sobre este problema a partir del análisis de la complejización de la institución del patrimonio cultural a causa de la creación de una nueva organización formal: el Instituto Brasileño de Museos (IBRAM). Los resultados preliminares de este primer esfuerzo de reflexión indican que, para una mayor eficacia en la utilización de instrumentos y prácticas de preservación sobre el patrimonio arqueológico, es necesario delimitar su campo de actuación y establecer claramente deberes y facultades y también desarrollar un plan de acción articulado entre las organizaciones formales de ámbito federal. Palabras clave: Patrimonio Cultural; Patrimonio Arqueológico; Organizaciones Formales; IPHAN; IBRAM

Apresentação

No contexto decorrente da consolidação da legislação ambiental, da complexificação

na produção de conhecimento científico que representa a Arqueologia de Contrato na

reestruturação da instituição do patrimônio cultural no Brasil e do aumento quantitativo e

qualitativo da massa crítica no campo da arqueologia brasileira, é possível perceber a tomada

de consciência sobre a problemática da preservação do patrimônio arqueológico. Um

inconteste indício deste panorama encontra-se na programação do XVI Congresso da SAB e

do XVI Congresso Internacional da UISPP, realizados simultaneamente em Florianópolis em

setembro de 2011, que revela um considerável aumento no número de reuniões (mesas-

redondas, simpósios temáticos e fóruns) dedicadas à reflexão sobre aspectos referentes ao

destino do patrimônio arqueológico no país4.

Se nos primórdios da arqueologia brasileira, boa parte dos pesquisadores

compreendia seus estudos como atos preservacionistas per se, hoje passados cinqüenta anos

da homologação da Lei nº 3.924/61, é ponto pacífico a necessidade de se criar instrumentos

de proteção, estratégias e práticas de preservação mais eficientes e eficazes. Enfim, é

premente a elaboração de políticas públicas claras para a preservação do patrimônio

arqueológico. Para tal, faz-se mister que as organizações formais adquiram mecanismos fortes

de desempenho das suas funções de forma adequada, que as tornem aptas à execução da

4 Em um primeiro levantamento, é possível identificar, além do já tradicional “Encontro do IPHAN com arqueólogos” vinte reuniões, entre mesas-redondas, simpósios temáticos e fóruns (ver http://arqueoparque.com/@api/deki/files/22974/=PROGRAMA%25c3%2587%25c3%2583O_GERAL_CONGRESSO_SAB_-_UISPP.pdf). Se partirmos do levantamento elaborado pela arqueóloga Camila Wichers (2010), podemos perceber um aumento de 100% no número de reuniões realizadas no Congresso realizado em 2011.

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fiscalização, conservação e extroversão, sem criar empecilhos para o desenvolvimento da

arqueologia brasileira.

Compreendemos que a preservação e a gestão do patrimônio arqueológico são temas

de grande complexidade, pois se relacionam com um conjunto de aspectos igualmente densos

e em distintos estágios de desenvolvimento. Se a arqueologia brasileira é hoje tema de pauta

da Casa Civil5 e movimenta somas monetárias altíssimas – favorecendo a ampliação do

mercado de trabalho do arqueólogo – a não regulamentação da profissão imprime sobre tal

panorama zonas cinzentas que exigem um comportamento ético por parte do profissional e

maior infra-estrutura para gerenciar tal categoria de patrimônio por parte das organizações

formais, nomeadamente o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e o

Instituto Nacional do Meio Ambiente (IBAMA).

Por tudo isso, propomos neste artigo refletir sobre o estado da arte do patrimônio

arqueológico brasileiro a partir da análise da complexificação da instituição do patrimônio

cultural resultante da criação de uma nova organização formal: o Instituto Brasileiro de

Museus (IBRAM), bem como apontar aspectos incontornáveis para consolidação e

fortalecimento das políticas públicas de preservação. Finalizamos sugerindo alguns caminhos,

no sentido de fomentar o debate acerca das questões por nós apresentadas. Assim,

objetivamos contribuir para a reflexão sobre as potencialidades e complexidades das políticas

públicas do patrimônio cultural.

Antes, faz-se necessário expor claramente os princípios e perspectivas básicos desta

reflexão. Consideramos que a arqueologia de contrato representa uma complexificação na

produção de conhecimento científico decorrente da confluência das demandas político-

econômico-sociais em outro patamar, mais tenso e disputado. Compreendemos ainda a idéia

de instituição do patrimônio à luz do institucionalismo histórico, ou seja, enquanto conjunto

de normas, convenções, disposições legais, organizações formais e distintos segmentos

sociais estruturados na interseção de diferentes campos, como o jurídico-legal, o político, o

econômico e o acadêmico.

Por outro lado, percebemos o aumento quantitativo e qualitativo da massa crítica no

campo da arqueologia, graças à criação de novos cursos de graduação e pós-graduação e do

próprio amadurecimento do campo.

Finalmente, consideramos que a preservação do patrimônio arqueológico envolve

questões relativas aos campos econômico, jurídico-legal, e da gestão e da ética profissional.

5 É tema de pauta da agenda desenvolvimentista.

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O patrimônio arqueológico na instituição do patrimônio cultural: um brevíssimo panorama

Podemos considerar que o discurso do patrimônio cultural no Brasil fundamenta-se

na tentativa de mapear os traços identitários da sociedade brasileira. Esta operação se dá já no

século XIX, com os museus e institutos históricos e geográficos regionais compreendidos

enquanto verdadeiros espaços de legitimação de ideias e valorização de matrizes culturais

(FERNANDES, 2010). Todavia, diversos estudos (FONSECA, 2005; NOGUEIRA, 2005;

CHAGAS, 2006; SALADINO, 2011), consideram o Movimento Modernista e seus

desdobramentos como um processo de delineamento da brasilidade. Vale dizer, que tal

fenômeno caracteriza-se enquanto processo relacional e político, pautado em seleções e

hierarquizações de variáveis culturais.

A variável arqueológica, naquela época considerada o conjunto de traços culturais

dos grupos pré-cabralinos, era tema dos estudos novecentistas e também estava presente no

discurso do patrimônio de Mário de Andrade, formalizado no anteprojeto do Serviço do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). O museólogo Mario Chagas (2006)

lembra da proposta de criação de um Museu de Arqueologia vinculado ao SPHAN, espaço de

pesquisa e preservação do patrimônio arqueológico brasileiro. A proposta foi rechaçada por

importantes agentes do patrimônio da época, dentre os quais Heloisa Alberto Torres, diretora

do Museu Nacional (MN), que propôs uma parceria entre as organizações, com vistas à

otimização de recursos e definição de competências. O antropólogo do MN, Luiz de Castro

Faria, foi indicado pela diretora do museu para a coordenação dos registros de sítios

arqueológicos e demais ações de proteção dessa categoria de bem, além da gestão da dotação

orçamentária destinada às pesquisas arqueológicas (SALADINO, 2010).

Na década de 1960, o museólogo Theodoro Russins assumiu a arqueologia naquela

organização formal. O agente, além de coordenar as ações supracitadas, colaborou na

implantação de museus arqueológicos no país. Todavia, as instituições científicas brasileiras

mantiveram-se colaboradoras da organização formal daquele órgão.

A partir do institucionalismo histórico, podemos perceber que as escolhas feitas no

momento de implantação de uma organização formal são decisivas para a instauração de

padrões institucionais, uma vez que a legitimam. Por isso, somente com grande esforço tais

padrões são substituídos por outros ou se alteram (HALL e TAYLOR, 2003). No caso do

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IPHAN6, identificamos o estabelecimento de parcerias com organizações científicas para o

desenvolvimento de ações sobre o patrimônio arqueológico. É compreensível que tais

convênios sejam implementados, uma vez que o conhecimento arqueológico ultrapassa as

fronteiras e competências de uma organização de proteção do patrimônio. Contudo,

considerando os desenhos institucionais do IPHAN ao longo de sete décadas7 , nos quais

podemos claramente perceber a inexistência de um setor específico para o patrimônio

arqueológico até 19798, podemos concluir que as referidas parcerias contribuíram para a

tardia estruturação do IPHAN em relação ao patrimônio arqueológico (SALADINO, 2010).

Os organogramas da instituição indicam a frágil estrutura dos setores criados para a gestão do

patrimônio arqueológico, além de sua subordinação ao setor responsável pelas ações sobre o

patrimônio edificado, estruturado na consolidação do padrão institucional de valorização do

patrimônio pedra e cal (no plano simbólico, a valorização das representações vinculadas à

matriz luso-católica).

Todavia, fatores exógenos à organização exigiam-lhe maior capacidade de atuação.

O estabelecimento da Arqueologia de Contrato9 e a consolidação da legislação ambiental10

impuseram ao IPHAN a necessidade de uma regulamentação das autorizações de pesquisas

arqueológicas e da obtenção de maior aparato legal e de gestão para dar conta das demandas

cada vez maiores. Como resultados, podemos apontar a elaboração da Portaria nº 07/88, da

Portaria nº 230/02 e da Portaria nº 28/03, evidenciando a ciclotimia que caracteriza a relação

entre organização e arqueólogos, ora pautada no colaboracionismo e compreensão, ora nas

disputas e conflitos – e as numerosas e assistemáticas ações com vistas a definir os estatutos

conceituais e normativos das políticas públicas sobre o patrimônio arqueológico. A título de

ilustração, apontamos como tais ações a promoção de encontros de toda ordem e de reuniões

técnicas e a elaboração de programas e termos de referências. Alguns não alcançaram

ressonância nas representações regionais do IPHAN - pelos mais distintos e variados motivos

- enquanto outros tinham, por sua vez, abrangência apenas regional. Vale dizer que alguns

motivos, à luz do institucionalsmo histórico, relacionam-se à precariedade dos recursos

humanos e financeiros e, em última instância, às primeiras escolhas que determinaram

6 A organização, ao longo de sete décadas, recebeu o estatuto de serviço, diretoria, instituto, secretaria, sub-secretaria e novamente instituto. 7 O SPHAN foi oficializado pela Lei nº 378, de 13 de janeiro de 1937. 8 Ano da contratação do primeiro arqueólogo para o quadro funcional do órgão. 9 Podemos considerar que a Arqueologia de Contrato teve seu marco inicial no salvamento realizado no âmbito da construção da Hidrelétrica de Itaipu e encontra-se em franco desenvolvimento na esteira do Programa de Aceleração do Desenvolvimento (PAC). 10 Cujo marco é a homologação da Resolução CONAMA nº 001/86, que atrelava os trabalhos arqueológicos ao licenciamento ambiental.

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padrões institucionais caracterizados pelo “esquecimento” do patrimônio arqueológico frente

a outras demandas (SALADINO, 2010).

Algumas dessas exigências resultaram na atualização do discurso e reestruturação do

desenho institucional do IPHAN. De concreto, podemos apontar a criação do Departamento

de Patrimônio Imaterial (DPI/IPHAN) e do Departamento de Museus e Centros Culturais

(DEMU/IPHAN), responsáveis pelo sucesso na consolidação e fortalecimento das políticas

públicas do patrimônio de natureza imaterial e dos museus. O patrimônio arqueológico

continuou atrelado à lógica inicial: a subordinação frente às ações sobre o patrimônio

edificado, sob a coordenação do Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização

(DEPAM).

Este novo panorama – fundado na ampliação da categoria patrimônio, na

diversificação dos discursos e no fortalecimento de outros segmentos intra-institucionais –

resulta do rearranjo das forças organizacionais e do estabelecimento de outras assimetrias.

Desta vez, o patrimônio arqueológico parece estabelecido num cenário paradoxal e ambíguo:

ora numa arena de disputa velada, ora no limbo do esquecimento não assumido. É importante

lembrar que a consolidação do DEMU/IPHAN – graças à realização de concurso público em

2005, e ao crescimento de sua dotação orçamentária, bem como da própria Política Nacional

de Museus (PNM) – resultou na identificação de um problema: a preservação do patrimônio

arqueológico musealizado.

Os acervos arqueológicos, em crescimento exponencial na esteira da Arqueologia de

Contrato (BRUNO e ZANETTINI, 2007; COSTA, 2007; SALADINO, 2010; WICHERS,

2010), passaram também a ser assunto do DEMU/IPHAN. No entanto, durante a existência

desse departamento, não foram claramente definidas as bases conceituais nem as

competências de cada organismo do IPHAN sobre tal categoria de bem. Vale mencionar,

porém, a única diretriz à época para as ações do DEMU/IPHAN, resultantes de demandas

externas: o material arqueológico retirado do contexto e depositado nos museus deveria ser

objeto das ações e instrumentos de proteção daquele departamento.

Contudo, faz-se mister apontar a problemática que tal orientação provocou: de

acordo com as portarias de guarda de materiais arqueológicos concedidos pelo próprio

IPHAN, os museus não são as únicas organizações formais responsáveis pela musealização

dos bens culturais, se compreendermos tal ação como a aplicação da cadeia operatória da

museologia (ações e estratégias de salvaguarda, pesquisa e comunicação). Se levarmos em

conta o estudo da arqueóloga e doutora em museologia Camila Moraes Wichers (2010),

veremos que 41% dos endossos institucionais estão associados a laboratórios e centros de

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pesquisas. A pergunta que fica: acervos arqueológicos musealizados em laboratórios ou em

outras instituições de pesquisa, então, não seriam assistidos pela atuação do DEMU/IPHAN?

E outra pergunta, ainda: os sítios arqueológicos passíveis de musealização estariam apenas

sob a responsabilidade e a orientação da Gerência de Patrimônio Arqueológico, vinculada ao

Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização (DEPAM/IPHAN)?

É importante ressaltar que, nesse contexto, e com o intuito de abrir o debate sobre

toda a complexidade relacionada ao patrimônio arqueológico em museus, foram organizadas

as discussões do Grupo de Trabalho Museus e Acervos Arqueológicos e Etnográficos no

âmbito dos Fóruns Nacionais de Museus (FNM). Durante o III FNM – organizado pelo

DEMU/IPHAN em 2008 na cidade de Florianópolis – foi criada a então Rede de Museus e

Acervos Arqueológicos e Etnográficos (FNM, 2010: 95), composta atualmente por cerca de

cento e vinte estudiosos e agentes comprometidos com a proposição de ações em prol da

preservação do patrimônio arqueológico.

Todavia, é importante retroceder ao I FNM, quando o Grupo de Trabalho Museus

Etnográficos e Arqueológicos levou à Plenária Final a moção nº 6 para:

solicitar a criação de um grupo temático de caráter permanente para questões de acervos e museus arqueológicos, contemplando em especial a questão das pesquisas empresariais, considerando a natureza expansionista da criação de coleções arqueológicas que demanda uma dinâmica própria e procedimentos museológicos (FNM, 2004: 62).

Finalmente, no IV FNM, realizado em 2010 em Brasília, foi atendida essa moção, o

que resultou na reestruturação da rede criada em 2008 (FNM, 2008), nomeada, a partir de

então, Rede de Museus e Acervos Arqueológicos (SALADINO et al., 2011).

Voltando ao panorama do IPHAN, vale dizer que a organização ganhou novos

matizes quando da reestruturação do seu desenho institucional, que resultou na extinção do

DEMU/IPHAN, na consequente criação do IBRAM11 e no fortalecimento e organização de

um setor dedicado às problemáticas do patrimônio arqueológico: o Centro Nacional de

Arqueologia (CNA/IPHAN)12. Contudo, o CNA/IPHAN, estruturado em três coordenações –

Coordenação de Normas e Acautelamento, Coordenação de Pesquisa e Licenciamento e

Coordenação de Socialização do Patrimônio Arqueológico – parece ainda não ter se

distanciado dos padrões institucionais do IPHAN de hierarquização e priorização de algumas

categorias de bens em relação às outras.

11 Criado pela Lei nº 11.906 de 20 de janeiro de 2009. 12 Reestruturado através do Decreto nº 6.844 de 7 de maio de 2009.

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Permaneceu também o padrão dos insuficientes recursos humanos e financeiros

destinados à gestão do patrimônio arqueológico frente às demandas acachapantes, se

considerarmos o número de projetos que o setor deve acompanhar (BRUNO e ZANETTINI,

2007; WICHERS, 2010), bem como a elaboração e execução das demais ações de proteção e

socialização do patrimônio arqueológico.

O presente e o futuro: algumas constatações e caminhos possíveis

No Brasil, a arqueologia teve nos museus estratégicas organizações formais para sua

estruturação enquanto disciplina científica (SCHWARCZ, 2004). Por isso é comum ouvir que

a arqueologia já nasceu musealizada. Em outras palavras, desde o início foi aplicada sobre o

patrimônio arqueológico a cadeia operatória da museologia. De forma distinta do que ocorreu

com a Antropologia no século XX – que de certa forma divorciou-se dos museus para ganhar

outros espaços nos departamentos das universidades (DIAS, 2007) – a arqueologia manteve-

se nas organizações museológicas, muitas das quais também vinculadas a essa categoria de

organização.

Por outro lado, conforme mencionado anteriormente, com o fortalecimento do setor

museológico ocorrido na última década, além da consolidação do turismo cultural (com todas

as suas nuances positivas e negativas), ocorreu uma maior conscientização sobre a estreita

relação entre duas áreas do conhecimento, ambas essencialmente interdisciplinares e com

foco de atuação na cultura material: arqueologia e museologia. Percebemos inclusive a

museologia, enquanto ciência social aplicada, como sendo capaz de mudar a condição do

patrimônio arqueológico na estratigrafia do abandono (BRUNO, 2005). Diversos agentes,

boa parte reunidos na REMAAE, passaram a produzir e ampliar a área de interseção entre

arqueologia e museologia. Devemos lembrar ainda o aumento da massa crítica em ambas as

áreas, resultante da criação de novos cursos de arqueologia e museologia em nível de

graduação e pós-graduação13.

Voltando ao patrimônio arqueológico no âmbito das organizações formais, é

importante mencionar que o IBRAM optou por uma lógica de atuação institucional fundada

no conceito de patrimônio museológico, sem evidenciar ou tratar especialmente as demandas

13 Hoje dispomos de formação de graduação em museologia na UNIRIO, UFBA, UNIBAVE, UFRB, UFPEL, UFRGS, UFS, UFOP, UFMG, UNB, UFPE, UFPA, UFG, UFSC e FAECA DOM BOSCO, e pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) na UNIRIO/MAST, na USP e na UFBA. Com relação à formação em arqueologia, dispomos de graduação na UFPEL, UFS, UFPI, FURG, PUC-GO, UFPE, UNIR, UEA e UNIVASF, e pós-graduação stricto sensu (mestrado e/ou doutorado) na UFRJ, USP, UFPA, UFPE, UFPI, PUC-RS e UFS. Um quadro analítico desta situação pode ser visto em Wichers (2010).

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das distintas categorias de bens. Assim, a Coordenação de Patrimônio Museológico do

Departamento de Processos Museais (CPM/DPMUS/IBRAM), atua sobre as coleções

arqueológicas em museus sem a configuração de um setor específico para tal.

Por tudo isso, acreditamos na necessidade de definir claramente diretrizes, protocolos,

atribuições e competências para lograrmos mudar o estado da arte do patrimônio arqueológico

brasileiro. Embora reconheçamos que o patrimônio cultural ultrapassa os limites das ações e

instrumentos do Estado, compreendemos ser fundamental o fortalecimento e o cumprimento

de suas recomendações. Após quatro anos de reestruturação institucional na instância federal,

ainda não foi possível observar articulações concretas entre as organizações formais em prol

da preservação do patrimônio arqueológico.

A divisão do cabido federal da cultura entre o IPHAN e o IBRAM fez com que as

instituições, em seus novos modelos institucionais, tateassem na busca de um equilíbrio no

que concerne aos limites de suas atuações com relação à gestão do patrimônio arqueológico.

Como demonstramos, cabe ao IPHAN na atual conjuntura a tarefa de controlar e fiscalizar os

trabalhos arqueológicos em toda a sua cadeia operatória, da pesquisa à extroversão; não é

demais ressaltar que as etapas que correspondem à socialização deste legado são mal

legisladas e, desta forma, constituem flancos abertos na proteção do patrimônio arqueológico.

É justamente nesta ausência que percebemos a necessidade de uma ação incisiva do IBRAM

para fazer valer as suas atribuições legais, que correspondem especificamente às etapas de

musealização do patrimônio arqueológico.

Na esfera legal, esta divisão constitui limites estanques. Contrariamente, na esfera

lógica e na prática, não existem estes limites, uma vez que as ações são por natureza sempre

continuadas e processuais. Isto ocorre porque na cadeia operatória da formação dos acervos

arqueológicos interessa àqueles que fazem as pesquisas arqueológicas qual destinação será

dada aos acervos, bem como interessa aos que procedem a extroversão destes acervos de que

modo ocorreram as pesquisas: os agentes de ambas as fases são os mesmos. Este mesmo

princípio de interesse e ação mútua deve se aplicar à gestão pública dos acervos arqueológicos.

Desta maneira, não nos parece lógica a criação de distinções - separações estanques

de ações entre agentes institucionais com interesses correlatos - senão buscar a sinergia que há

nas ações de ambos os órgãos. Para ser mais explícitos, estamos falando da necessidade de

uma gestão conjunta do patrimônio arqueológico, na qual a tutela é compartilhada entre o

IPHAN e o IBRAM, no sentido de promoverem ações que auxiliem na proteção do

patrimônio arqueológico pelo Estado, envolvendo as comunidades e, portanto, os interesses

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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sociais. Dentre tantas questões que envolvem a gestão do patrimônio arqueológico, de

maneira precisa entendemos como necessária a condução de algumas ações:

1 - A reunião entre IPHAN, IBRAM, comunidade museológica, comunidade arqueológica e

instituições museais, no sentido de criar patamares de diálogo que sejam, de fato, coerentes

com os diferentes atores envolvidos na gestão pública do patrimônio arqueológico;

2 - Do ponto de vista legal há a necessidade de conceituar o que se entende por “pesquisa

arqueológica”, por “acervo arqueológico” e por “guarda de acervos arqueológicos”,

incluindo-se nestas definições todas as etapas da cadeia operatória da formação dos acervos,

desde o planejamento da pesquisa aos procedimentos de extroversão. No que concerne aos

acervos arqueológicos, cabe dizer que na sua definição deve se incluir toda a documentação

que permita compreender o contexto no qual foram coletados e, sobretudo, manter o fundo

documental;

3 - A revisão dos procedimentos de endosso institucional, com o intuito de dar participação

ativa às instituições museais na tramitação dos processos de guarda de materiais

arqueológicos, já que na proteção legal permanente do patrimônio arqueológico são as

instituições museais parceiras diretas da União;

4 - A revisão das normativas de concessão de pesquisa arqueológica, que incluam claramente

parâmetros de extroversão e uso social público dos materiais sob a guarda institucional

(elaboração de mídias, publicações, exposições, mostras, educação patrimonial, criação de

instituições museais, uso continuado do patrimônio etc.);

5 - Frente à crescente demanda por espaços de guarda de acervos arqueológicos, que

correspondem a gastos continuados de manutenção, há a necessidade da elaboração de

parâmetros de seleção e descarte de acervos arqueológicos durante o processo de formação

dos acervos, pois sua coleta indiscriminada atulha as reservas institucionais;

6 - No sentido de convergir de maneira ágil ações do IPHAN, do IBRAM e dos diferentes

agentes envolvidos na geração dos acervos arqueológicos (instituições museais, arqueólogos,

museólogos etc.), faz-se urgente a criação de uma base de dados nacional de gerenciamento

dos acervos arqueológicos. Se por um lado, este meio permitiria a gestão ágil dos acervos, por

outro, possibilitaria colocar à disposição de toda a sociedade os acervos existentes em

território nacional14.

14 Estas proposições foram amplamente debatidas durante a reunião da REMAAE nos I, II III e IV FNM (Salvador, 2004; Ouro Preto, 2006; Florianópolis, 2008 e Brasília, 2010), durante o Simpósio Temático “REMAAE: desafios para uma política de preservação do patrimônio arqueológico” realizado no XVI Congresso Nacional da SAB (2011) e também nas discussões entre os membros da rede no [email protected].

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Enquanto isso não se concretiza, padrões institucionais viciados são fortalecidos e

mesmo importados. Além disso, os agentes institucionais não se beneficiam da expertise de

seus colegas de outras organizações e acabam agindo sempre de forma a buscar “reinventar a

roda”. A desarticulação e a falta de comunicação entre as organizações formais na instância

federal, responsáveis pela proteção e valorização do patrimônio arqueológico, ficam patentes

em levantamentos feitos por pesquisadores que se debruçam sobre o tema (BRUNO e

ZANETTINI, 2007; WICHERS, 2010), que demonstram a assimetria entre a lista de

instituições fiéis depositárias de material arqueológico, resultante das portarias emitidas pelo

IPHAN, e a lista emitida pelo Cadastro Nacional de Museus do IBRAM15.

Considerações finais

Nas últimas décadas, a instituição do patrimônio cultural no Brasil passou por

importantes mudanças. Em tempos de sedução de memória (Huyssen, 2000) e “neurose do

patrimônio” (Jorge, 2005) urge definir claramente fundamentos teórico-metodológicos e

atribuições e competências de todos os segmentos envolvidos. As organizações formais têm

decididamente um papel fundamental e estratégico nisso tudo16 . A recuperação das suas

memórias institucionais, a definição dos seus papéis e tarefas e a articulação com os demais

segmentos (sociedade civil organizada, comunidade acadêmica, empreendedores etc.) são

incontornáveis, inclusive para que os demais segmentos igualmente assumam seus papéis.

Conforme o § 1º do Art. 216, à sociedade compete colaborar com o poder público promover e

proteger o patrimônio cultural brasileiro. No entanto, cabe ao Estado criar as bases para um

efetivo ativismo. Disto não escapa um real colaboracionismo entre as organizações formais,

pois os problemas do patrimônio arqueológico não são de uma ou de outra organização, mas

de ambas. Afinal, as estratégias do IPHAN sobre o patrimônio arqueológico relacionam-se às

do IBRAM e vice-versa. Acreditamos, que desta forma – com uma sociedade com forte

consciência de cidadania (com indivíduos cientes de seus direitos, desejos e possibilidades) e

com a consolidação da instituição do patrimônio cultural – poderá ser alcançado um patamar

onde as demandas e os interesses político-econômico-sociais coloquem-se de forma mais

equilibrada.

15 Das 568 instituições envolvidas com a gestão de acervos arqueológicos, apontadas nas portarias de pesquisa homologadas pelo IPHAN e no Cadastro Nacional de Museus (CNM), apenas 9% dessas organizações indicadas em ambas as fontes, o que revela a baixa conectividade (WICHERS, 2010:196) entre as mesmas. 16 Cabe lembrar que de acordo com a Constituição Federal Brasileira de 1988 o patrimônio arqueológico é considerado bem da União (COSTA, 2007).

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A ARQUEOLOGIA HISTÓRICA NO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI1

The historical archaeology of paraense Emílio Goeldi museum

Helder Bruno Palheta Ângelo2 RESUMO O texto apresenta um panorama da Arqueologia Histórica desenvolvida pelo Museu Paraense Emílio Goeldi. Campo de pesquisa que despontou na instituição a partir da década de 1980, foi consolidado através de estudos que trouxeram novos olhares sobre a história da Amazônia e vêm contribuindo para a preservação e valorização do patrimônio histórico e cultural da região. Destarte, será discutida a produção científica promovida pelo MPEG, abordando os principais temas de investigação e os resultados obtidos. Palavras-chave: Arqueologia Histórica; Museu Paraense Emílio Goeldi; patrimônio histórico. ABSTRACT The paper presents an overview of the Historical Archeology developed by the Paraense Emilio Goeldi Museum. This field of research that began to emerge in the institution in the 1980’s was consolidated by studies that have brought new perspectives on the history of the Amazon and are contributing to the preservation and appreciation of the historical and cultural heritage of the region. Thus, the scientific production promoted by MPEG will be discussed, addressing the main research topics and results obtained. Keywords: Historical Archaeology; Paraense Emilio Goeldi Museum; historic heritage. RESUMEN Este texto presenta un panorama de la Arqueología Histórica realizada en el Museo Paraense Emilio Goeldi. Esta área de estudios, cuyos inicios en esta institución datan de la década de 1980, se consolida en estudios que aportan nuevas perspectivas sobre la historia de la Amazonía y viene contribuyendo para la conservación y valorización del patrimonio histórico y cultural de la región. Se discute, de esta forma, la producción científica promovida por el MPEG, abordando los principales temas de investigación y los resultados obtenidos. Palabras clave: Arqueología Histórica, Museo Paraense Emilio Goeldi, patrimonio histórico.

1 Este artigo faz parte de uma pesquisa em andamento: “Teorias, correntes e personalidades da arqueologia na Amazônia”, desenvolvida junto à Coordenação de Informação e Documentação (CID) do Museu Paraense Emílio Goeldi e financiada pelo CNPq. Agradeço a revisão do texto feita pela coordenadora Msc. Maria Astrogilda Ribeiro da Silva e o auxílio do arqueólogo Fernando Luiz Tavares Marques, responsável pela indicação de vários textos para a construção do artigo. 2 Graduado em História pela Universidade Federal do Pará e mestre em História Social da Amazônia pela mesma instituição. Atualmente é bolsista na modalidade PCI-DD do Museu Paraense Emílio Goeldi. e-mail: [email protected]; [email protected]

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Introdução

Podemos considerar que a prática da arqueologia em terras amazônicas é

indissociável da trajetória do Museu Paraense Emílio Goeldi.3 Muitas das informações que

hoje possuímos sobre a pré-história da região se devem às pesquisas arqueológicas que foram

promovidas pela instituição desde a segunda metade do século XIX, a partir da fundação da

Sociedade Filomática do Pará (núcleo inicial do Museu Paraense) em 1866, cujos objetivos

eram os estudos das ciências naturais, do ambiente e do homem amazônico (BARRETO,

1992; FERREIRA, 2010; SANJAD, 2010). A partir dessa iniciativa, enquanto se consolidava

como um valoroso espaço da ciência, o Museu ministrava o processo de institucionalização e

desenvolvimento da arqueologia (FERREIRA, 2010).

Nesse contexto, as ações de personalidades como Domingos Soares Ferreira Penna4,

o suíço Emílio Goeldi5 e Aureliano de Pinto Guedes (auxiliar de Goeldi), foram fundamentais

para o reconhecimento do potencial arqueológico da Amazônia. Fazer parte de expedições,

realizar escavações, colher fragmentos relacionados à cultura indígena e formar coleções

arqueológicas e etnográficas também tinham uma função definida. Segundo Nelson Sanjad:

Próximos da história e da etnologia, os debates arqueológicos desse período não podem ser dissociados do empenho de intelectuais e de governantes em prol da construção de uma identidade nacional. O passado pré-colonial e o presente aparecem, nesses debates, como um continuum na gênese da nação brasileira, sendo as várias etnias indígenas (e suas respectivas línguas, saberes, hábitos, mitos e cultura material), reunidas e homogeneizadas pelo conceito de “raça”, identificadas como representantes legítimas da nacionalidade em tempos pretéritos. (SANJAD, 2011: 134)

As abordagens sobre as populações indígenas realizadas pelo Museu Paraense, nesse

período, definiam fronteiras e estavam atreladas ao ideário de nação em voga. Um projeto de

identidade nacional e geopolítico (FERREIRA, 2010).

No decorrer do século XX, os estudos arqueológicos correspondentes à pré-história

da Amazônia continuaram em destaque na instituição. Pode-se considerar, por exemplo, as

3 A denominação “Museu Paraense” foi dada em 1871. Em 1894, mudou para “Museu Paraense de História Natural e Etnografia”. Já em 1900, mudou novamente, desta vez para “Museu Goeldi”. Por fim, em 1931, recebeu a denominação atual. 4 Domingos Soares Ferreira Penna (1818-1888) foi o fundador do Museu Paraense em 1866 e primeiro diretor do instituto, atuando ainda como naturalista-viajante do Museu Nacional entre 1872-1884. Ele efetuou pesquisas arqueológicas na Ilha do Marajó (PA), nos rios Tocantins, Xingu, Amazonas, Maracá (no atual estado do Amapá), além de estudar os sambaquis existentes no litoral paraense (BARRETO, 1992). 5 O zoólogo suíço Emílio Augusto Goeldi (1859-1917), assumiu a direção do Museu entre 1894 e 1907, a convite do governador do Pará, Lauro Sodré, sendo responsável por constituir um plano sistemático de escavações e organizar as coleções arqueológicas e etnográficas da instituição (FERREIRA, 2009).

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pesquisas efetuadas pelos alemães Curt Nimuendaju e Protásio Frikel, os trabalhos

desenvolvidos pelo casal Betty Meggers e Clifford Evans, cujas ideias e métodos de pesquisa

influenciaram arqueólogos como o carioca Mário Ferreira Simões, o qual, a partir da década

de 1960, organizou e estruturou um moderno setor de arqueologia no Museu. Não podemos

esquecer-nos das pesquisas promovidas pela arqueóloga estadunidense Anna Roosevelt que,

entre outras questões, refutaram as teorias de sua compatriota, Betty Meggers6.

Nos últimos anos, na Área de Arqueologia do Museu Emílio Goeldi, embora a

chamada arqueologia pré-histórica ainda tenha destaque na produção científica da instituição,

deve-se ressaltar a firmação das pesquisas de Arqueologia Histórica, iniciadas na década de

1980, incrementadas na década de 1990 e, atualmente, consolidadas com uma série de

projetos de pesquisa, dissertações e teses de doutorado, além de diversos artigos científicos

que propiciaram novos olhares sobre a história da Amazônia (PEREIRA, 2009).

Nesse sentido, o presente texto realiza um balanço sobre a arqueologia histórica

promovida pelo Museu Paraense Emílio Goeldi, assunto que foi brevemente abordado por

autores que escreveram sobre a história das pesquisas arqueológicas na instituição, como

Barreto (1992) e Pereira (2009).

Antes, acreditando que a “Arqueologia só pode ser entendida em seu contexto

histórico e social” (FUNARI, 2005: 1), creio ser necessário, primeiramente, fazer alguns

apontamentos sobre o processo de nascimento da Arqueologia Histórica e as correntes

teóricas que deram embasamento ao seu desenvolvimento, para assim melhor

compreendermos o seu florescimento no Museu.

6 Alicerçados nas ideias de determinismo ecológico e difusão cultural, Betty Meggers e Clifford Evans, em fins da década de 1940, deram início às pesquisas arqueológicas na região da foz do Rio Amazonas, mais especificamente nas ilhas do Marajó, Mexiana e Caviana. Com os resultados obtidos pela análise do material coletado, puderam identificar cinco fases culturais em sequência: Ananatuba, Mangueira, Formiga, Marajoara e Aruã, sendo que a fase Marajoara diferenciava-se das outras por não apresentar um padrão de cultura de “floresta tropical”, sendo detentora de uma estrutura socioeconômica e tecnológica mais desenvolvida, observada a partir da presença de cerâmicas altamente elaboradas e aterros artificiais. Nesse sentido, a fase Marajoara corresponderia a uma cultura intrusa na dita área, uma anomalia, oriunda de um ambiente externo, provavelmente dos Andes. Contudo, com o passar do tempo, essa dita cultura não teria suportado as condições impostas pela floresta tropical, não havendo condições para a manutenção dos seus sistemas social, econômico e político. Como resultado, ela entrou em decadência, passando de uma organização política do tipo “cacicado” para “tribo de floresta tropical”, a partir de uma perspectiva evolucionista então em voga na antropologia dos Estados Unidos. (MEGGERS & EVANS, 1957; BARRETO, 1992; GUAPINDAIA, 2008) A partir da década de 1980, a arqueóloga Anna Roosevelt irá tecer críticas às teorias de Meggers, afirmando que a hipótese desta não se sustenta, pois as terras baixas teriam prioridade cronológica sobre as áreas montanhosas tanto no desenvolvimento de cerâmicas, quanto em ocupações sedentárias. Nesse sentido, em outra perspectiva, defende que as influências provenientes da floresta tropical contribuíram para o desenvolvimento da agricultura e cultura dos Andes. Para Roosevelt, o meio ambiente amazônico, rico em nutrientes, apresentava-se como extremamente favorável ao desenvolvimento humano, havendo a presença de sociedades hierárquicas do tipo “cacicado”, sendo estas autóctones, provenientes diretamente de culturas ceramistas anteriores da Amazônia oriental, sem ligação com a região andina. Nesse sentido, a floresta tropical seria fonte de inovação e difusão de cultura. (ROOSEVELT, 1992; GUAPINDAIA, 2008)

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Trajetória, correntes teóricas e definições: breves considerações.

A arqueologia, mais especificamente a arqueologia responsável pelo estudo da pré-

história, já se desenvolvia e atravessava um processo de institucionalização no Brasil desde a

virada do século XIX para o XX, a partir das pesquisas empreendidas no Museu Botânico do

Amazonas, no Museu Paraense e no Museu Paulista. (FERREIRA, 2010)

Por outro lado, a Arqueologia Histórica é uma modalidade relativamente ainda

jovem. Denominação que surgiu nos Estados Unidos, ela foi consolidada no dito país na

década de 1960, no contexto de florescimento da New Archaeology (ou Arqueologia

Processual) (FUNARI, 2005; JOHNSON, 2000). De modo geral, tal corrente teórica surgiu do

sentimento de insatisfação com a situação da arqueologia até aquele contexto7 e veio com o

intuito de fazer uma mudança na disciplina científica. Era preciso centrar as atenções menos

nos objetos e nas suas descrições. Os arqueólogos que seguiram essa linha buscavam “ser

mais científicos e mais antropológicos” (JOHNSON, 2000: 38). Não à toa, um dos líderes

dessa geração, Lewis Binford, defendia uma visão da arqueologia como antropologia

(BINFORD, 1962). Pretendia-se encontrar regularidades no comportamento humano ou,

melhor explicando, leis transculturais de comportamento (FUNARI, 2005).

Foi nesse momento que um grupo de arqueólogos estadunidenses tentou adaptar as

ideias da New Archaeology para o estudo arqueológico dos períodos históricos (JOHNSON,

2000). De acordo com Binford (1967 apud JOHNSON, 2000: 192), “os especialistas nesse

campo deveriam utilizar os métodos de contestação e avaliação que são habituais entre os

arqueólogos da pré-história”.

Nas décadas de 1980/90, assim como aconteceu em outras ciências sociais, a

arqueologia sofreu a interferência do pós-processualismo. Corrente teórica que surgiu como

uma alternativa à New Archaeology, ela volta suas atenções, entre outras questões, para os

estudos do poder social, da ideologia e de gênero (COSTA, 2010), sendo que os objetos

deveriam ser vistos como elementos ativos, utilizados para reproduzir relações sociais,

atentando para o significado cultural que a cultura material possuía para uma determinada

sociedade (REIS, 2002; SYMANSKI, 2009). Ideia que também interessou os arqueólogos

históricos por dar privilégio ao significado cultural adquirido pela cultura material que

7 Principalmente em relação à arqueologia histórico-cultural que, por influência do evolucionismo cultural que a antecedeu, enquadrava os achados arqueológicos nos modelos deste último, havendo a preocupação dos arqueólogos no estudo da distribuição geográfica dos artefatos e suas relações com os grupos históricos, nas sequências regionais documentadas pelos artefatos e nos atributos técnicos destes e na explicação das mudanças culturais relacionadas a causas externas (REIS, 2002).

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determinada sociedade produziu e utilizou, retomando para a Arqueologia a discussão de

problemas de caráter histórico ligados às propostas da Nova História Francesa8.

No Brasil, as primeiras pesquisas sistemáticas em Arqueologia Histórica surgiram,

embora timidamente, na década de 1960 a partir de investigações promovidas por

profissionais que tinham experiências nas temáticas inerentes à pré-história, principalmente

relacionados ao PRONAPA (Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas) 9, mantido pelo

Smithsonian Institute 10 . Não à toa, esses arqueólogos utilizavam os princípios teóricos e

metodológicos correspondentes à abordagem histórico-cultural (SYMANSKI, 2009).

Sua prática tem sido ampliada no cenário brasileiro a partir da década de 1980,

principalmente após a restauração paulatina das liberdades políticas, com o fim do arbítrio,

com o relaxamento da censura e com a passagem para um regime civil em 1985 (FUNARI

2005). Foi quando a Arqueologia Histórica finalmente cristalizou-se como uma importante

ferramenta para a compreensão do passado brasileiro e foram abertas novas perspectivas com

objetivos de darem voz a minorias étnicas e grupos subalternos, oprimidos, cujas ações não

são explícitas em documentos oficiais; resgatar práticas cotidianas sobre as quais

normalmente não se escreve; recuperar memórias e assim por diante (LIMA, 2003).

Campo científico relativamente jovem, não causaria tanta surpresa a dificuldade

existente ainda hoje em atribuir um conceito fixo à Arqueologia Histórica. De fato, tentar

defini-la não é uma das tarefas mais fáceis, em virtude dos vários debates teórico-

metodológicos pelos quais passou durante sua trajetória.

Algumas definições inerentes à Arqueologia Histórica já foram bastante utilizadas

por estudiosos da área. Arqueologia Histórica é o “estudo dos remanescentes históricos de

qualquer período histórico”, escreveu Robert Shcuyler (apud LIMA, 1993) na década de

1970. Para Orser Jr. (1992: 23) trata-se do “estudo arqueológico dos aspectos materiais, em

termos históricos, culturais e sociais concretos, dos efeitos do mercantilismo e do capitalismo

que foi trazido da Europa em fins do século XV e que continua em ação ainda hoje”.

Perspectiva que é compartilhada também por Hall e Silliman (2006). Não menos usual é a

8 Para uma discussão mais aprofundada sobre a Nova História Francesa, ver BURKE (1997). 9 Realizado entre 1965 e 1970, com a colaboração do IPHAN e CNPq, sendo conveniado ao Smithsonian Institution, tinha por objetivo estabelecer a primeira sequência das culturas indígenas dos estados litorâneos brasileiros desde o Pará até o Rio Grande do Sul, com acento especial nas migrações dos grupos Tupi- Guarani. Teve como mentores o casal Betty Meggers e Clifford Evans. 10 O Smithsonian Institute, com sede em Washington, nos Estados Unidos, vem realizando ações na Amazônia desde o século XIX. Em meados do século XX ele financiou programas de arqueologia no Brasil, patrocinando ainda, por exemplo, as pesquisas realizadas pelo casal Betty Meggers e Clifford Evans, atreladas ao MPEG (BARRETO, 1992).

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definição de Deetz (1997), como sendo “A arqueologia da disseminação da cultura europeia

através do mundo desde o século XV e seu impacto nas populações indígenas”.

Para Funari (1996: 164), “a definição exata de Arqueologia Histórica constitui,

provavelmente, a questão mais controversa na atualidade.” A compreensão dela como o

estudo arqueológico do período posterior à chegada dos europeus no continente americano é

comumente colocada em xeque. Os modelos adotados pelos arqueólogos estadunidenses

partem do pressuposto, talvez válido nos Estados Unidos, de que as relações sociais foram

marcadas pelo domínio do capital. Já no contexto brasileiro, onde predominavam as

sociabilidades muitas vezes distantes desse ideal capitalista e mais próximas do patriarcalismo

escravista, os modelos importados (dos Estados Unidos) nem sempre dão conta da

diversidade social brasileira (FUNARI, 2003).

Por outro lado, ao entender esse campo científico como o estudo da expansão da

cultura européia por todo o mundo, corre-se o risco de dar conta de apenas um lado da moeda,

“pois continuidades milenares podem ser tão ou mais importantes que a europeização do

globo” (FUNARI, 1996: 166). A civilização “capitalista” não foi capaz de reduzir todas as

relações sociais do mundo a relações econômicas (FUNARI, 2007) 11.

Dessa forma, buscando contornar tal problemática, Funari afirma que o objeto de

estudo da Arqueologia Histórica passa a ser justamente a “interação entre dominantes e

dominados, letrados e iletrados, em diferentes contextos culturais e cronológicos.” (FUNARI,

1996: 166). A partir dela, observamos os contatos multiculturais e as contradições das

sociedades pretéritas, as tensões sociais que podem ser interpretadas tanto nos documentos

históricos quanto nos vestígios materiais (COSTA, 2010).

A Arqueologia Histórica em terras brasileiras: balanços bibliográficos

Diante do florescimento das pesquisas em Arqueologia Histórica no Brasil, duas

produções realizaram uma revisão intensa sobre os trabalhos efetivados no país.

O primeiro trabalho diz respeito a um artigo publicado por Tânia Andrade Lima em

1993, intitulado “Arqueologia Histórica no Brasil: balanço bibliográfico (1960-1991)”. A

autora ressalta que no seu início, na década de 1960, os primeiros trabalhos sistemáticos

concentraram-se no eixo sul/nordeste, enquanto que as outras regiões do país, como no norte,

11 A priorização do capitalismo como algo incontrolável, domando as mentes dos grupos subordinados, pode levar a uma subavaliação da resistência e da heterogeneidade ocorrida em diversos contextos históricos (FUNARI, 2007).

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centro-oeste e mesmo o sudeste estavam distante dos debates. Era um momento em que

disciplina sofria com o pequeno número de profissionais em ação e até mesmo com certo

preconceito, recebendo em reuniões científicas um tratamento depreciativo (LIMA, 1993).

No entanto, a partir da década de 1980, surge um novo panorama, com o

fortalecimento da subdisciplina a partir de uma maior coesão entre os especialistas, havendo o

aumento da troca de informações, a formação de grupos de trabalhos e a promoção de novos

encontros. Também é observado o florescimento de trabalhos mais comprometidos com a

teoria, com abordagens processuais, trazendo à tona aspectos políticos, ideológicos e

simbólicos (LIMA, 1993).

Por fim, em seu artigo, a autora faz uma listagem da bibliografia da Arqueologia

Histórica brasileira correspondente ao período 1969-1991. São relacionados oitenta e dois

trabalhos realizados em estados como Pernambuco, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, São

Paulo, Rio Grande do Sul, Bahia, Espírito Santo, Paraná, Goiás, Minas Gerais, além de

artigos que tratam de teoria e método em Arqueologia Histórica. (LIMA, 1993). Contudo,

mesmo diante deste considerável levantamento, não há menção às pesquisas em arqueologia

histórica na Amazônia.

Luís Cláudio Pereira Symanski também buscou realizar um balanço da subdisciplina

no país, enfocando o período posterior à análise feita por Lima (1993). Em seu “Arqueologia

Histórica no Brasil: uma revisão dos últimos vinte anos”, publicado em 2009, Symanski

realiza uma abordagem sobre os caminhos que ela tomou na década de 1990 e início do

século XXI.

Uma das questões discutidas pelo autor diz respeito ao cenário atual da Arqueologia

Histórica no país, caracterizado pela continuidade da abordagem histórico-cultural; aplicação

de métodos e conceitos da arqueologia processual; reprodução da abordagem histórico-

cultural, porém sob o novo rótulo de abordagem contextual; e por abordagens críticas e

simbólicas, explorando uma diversidade de temáticas relacionadas ao processo de expansão

do capitalismo (SYMANSKI, 2009).

Outro ponto trabalhado por Symanski corresponde à intensa bibliografia por ele

levantada. Desse modo, são apresentadas, por exemplo, as pesquisas feitas em estados como

Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Bahia, Pernambuco, Minas Gerais,

Mato Grosso e Alagoas. Porém, apesar desse intenso levantamento, que contempla as regiões

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sul, sudeste, nordeste e centro-oeste, não há, também, referências à Arqueologia Histórica

praticada na Amazônia brasileira. 12

Dessa forma e diante dos exemplos que foram expostos, propõe-se fazer uma

reflexão sobre a prática da Arqueologia Histórica na Amazônia, mais especificamente a

promovida pelo Museu Paraense Emílio Goeldi, destacando o que as pesquisas têm

proporcionado para um maior conhecimento sobre a história da região.

A Arqueologia Histórica no Museu Paraense Emílio Goeldi: objetos e resultados

No Museu Paraense Emílio Goeldi, as primeiras pesquisas relacionadas à

Arqueologia Histórica acompanharam o contexto nacional e datam da década de 1980.

Embora a instituição tenha realizado a primeira experiência nesse campo em 198513,

o primeiro projeto sistemático que apresentou resultados foi promovido por Scott Anderson e

Fernando Marques nas localidades interioranas de Igarapé-Miri e Barcarena14, em 1988 e

1989, respectivamente, quando se fez o levantamento dos antigos engenhos movidos pela

maré na região (BARRETO, 1992). Visando as comunidades locais, tal projeto pretendia

fazer um resgate da tradicional tecnologia de captura da energia de antigos engenhos movidos

à maré, adaptando-a, com o uso de micro-turbinas, como alternativa para o desenvolvimento

rural (ANDERSON, MARQUES & NOGUEIRA, 1993).

De certo modo, as incursões que o Museu Emílio Goeldi promoveu na área de

Arqueologia Histórica se deram tardiamente. Na década de 1980, enquanto outras regiões do

país já possuíam uma trajetória em pesquisas sistemáticas, os trabalhos em Arqueologia

Histórica na instituição eram escassos, havendo prioridades, por parte dos pesquisadores, de

estudos relacionados à tradicional arqueologia pré-histórica.

Tal cenário irá ser alterado na década de 1990, quando há o incremento da

Arqueologia Histórica a partir de projetos de pesquisas, dissertações de mestrado, teses de

doutorado e a publicação de artigos científicos (PEREIRA, 2009).

Manteve-se a atenção destinada ao empreendimento canavieiro na Amazônia. Em

1992 foi publicado no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi os resultados da pesquisa 12 É pertinentes ressaltar que, embora não tivessem como principal objetivo, outros trabalhos realizaram um levantamento sobre a arqueologia histórica no país, como no caso de Costa (2010) e Funari (1997). Nestes, contudo, prevalece ainda a ênfase dada à sua prática em regiões nordeste, sul e sudeste, enquanto que a região amazônica permanece distante de suas análises. 13 No final de 1985, quando Fernando Marques, Vera Guapindaia e Edithe Pereira realizaram um levantamento arqueológico e histórico em uma residência localizada em Soure (PA). 14 Igarapé-Miri e Barcarena estão localizadas na chamada “zona estuarina amazônica”, sendo que a primeira está localizada a cerca de 80km de Belém, enquanto que Barcarena a 22 km da capital paraense.

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promovida por Scott Anderson e Fernando Marques na localidade de Igarapé-Miri, sendo

estudados os vestígios de treze antigos engenhos de cana-de-açúcar movidos à maré, suas

técnicas de instalação e o seu modo de funcionamento. A relação da arqueologia com as

comunidades locais esteve mais uma vez presente, já que muitas das informações obtidas

foram oriundas das informações de moradores da região, concluindo-se que aquela tecnologia

comumente era usada na região e obteve grande êxito (ANDERSON & MARQUES, 1992).

No decorrer dos anos, as possibilidades de investigação floresceram. A contribuição

da disciplina para o entendimento da história amazônica também pode ser verificada na tese

de Fernando Marques, que trouxe à discussão a história da agroindústria canavieira no

estuário amazônico 15 . Mesclando disciplinas como história, arqueologia e arquitetura, os

estudos sobre a cultura material inerente aos engenhos Murutucu, Jaguarari, Uriboca e

Mocajuba promoveram uma análise sobre o ambiente, as características arquitetônicas e o

comércio da região durante os séculos XVIII e XIX. Destaque para uma das especificidades

da produção canavieira relacionada à grande quantidade de rios, furos e igarapés que

viabilizaram a uma série de indivíduos a instalação de engenhos, desde os mais simples, até

aos mais pomposos (MARQUES, 2004) 16.

No Museu Paraense Emílio Goeldi, a importância que o estudo dos engenhos

amazônicos adquiriu viabilizou o surgimento, nos anos 2000, do projeto “Arqueologia e

história de engenhos coloniais no estuário amazônico” 17, dando continuidade às pesquisas

iniciadas na década de 1980 e revelando a diversidade da cultura material presente em tais

empreendimentos. A recorrência de cerâmicas indígenas e neobrasileiras, objetos de vidro e

metal e louças de procedência europeia, por exemplo, permite pensá-los como cenários em

que os contatos entre culturas distintas eram frequentes.

15 A chamada “zona estuarina amazônica” é caracterizada pela confluência da Baía do Guajará com os rios Mojú, Acará e Guamá, com o terreno marcado por regiões de várzea. Estas áreas próximas a rios caracterizam-se pela alta fertilidade do solo, contribuindo para a presença de um sistema agroindustrial que visava o beneficiamento da cana-de-açúcar principalmente através dos engenhos movidos à maré, bastante difundidos na região. Cf.: Anderson (1992) Sobre os engenhos e a história do empreendimento canavieiro na região ver também Marques (2003). 16 Para a efetivação do seu trabalho, o autor não considerou somente uma corrente teórica arqueológica, mas sim, privilegiou pela mescla das abordagens histórico-cultural, processual e pós- processual, já que o estudo perpassou pela investigação das propriedades físicas dos artefatos e estruturas, buscando compreender sua funcionalidade e procedência cultural. Por outro lado, ao analisar a adaptação de tal modelo industrial às especificidades do meio físico regional, buscou-se também a fundamentação na Arqueologia Processual, dando-se ênfase ainda aos grupos sociais que habitaram os engenhos. Por fim, relacionando-se à corrente pós-processual, levou-se em conta a dimensão dos significados simbólicos, seus usos como demarcadores sociais e os aspectos simbólicos das sociedades que os produziram (MARQUES, 2004). Dessa forma, tal produção aproxima-se do crescente pluralismo presente na Arqueologia a partir da década de 1990, com a convivência de diferentes correntes teóricas como uma salutar característica da disciplina na atualidade (FUNARI, 2005). 17 Coordenado pelo arqueólogo Fernando Luiz Tavares Marques.

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O desafio de pensar sobre a Arqueologia Histórica goeldiana não pode estar

desvinculado da chamada Arqueologia de Salvamento, modalidade que foi sendo cada vez

mais requisitada na medida em que cresciam na Amazônia os projetos desenvolvimentistas

(hidrelétricas, exploração mineral, rodovias etc.), principalmente a partir da década de 1970

(BARRETO, 1992; PEREIRA, 2009). Já nos anos 2000, por exemplo, dois dos engenhos

pesquisados por Marques (2004) – Jaguarari e Uriboca – tiveram que receber uma maior

atenção, por estarem condicionados a sofrerem com os impactos da construção da rodovia

Alça Viária18.

A associação das arqueologias históricas e de salvamento também esteve presente

quando da implantação do “Programa de Arqueologia Preventiva na Área de Influência da

Mina de Bauxita Paragominas”19 que visou a proteção de sítios arqueológicos pré-históricos e

históricos, localizados em área de influência de exploração mineral nos municípios de

Abaetetuba, Barcarena e Moju20 (CANTO & LOPES, 2009).

Acompanhando esse panorama, muitas das produções têm enfatizado a relação com

as comunidades estabelecidas próximas às áreas investigadas. Desse modo, esses grupos têm,

através de ações de educação patrimonial, a oportunidade de reconhecerem a importância dos

estudos realizados em igrejas e engenhos datados do período colonial, havendo, por

conseguinte, uma maior preservação dos vestígios materiais e valorização da memória e da

cultura local (MARQUES, 2003; CANTO & LOPES, 2009; PEREIRA, 2009).

Se a arqueologia industrial tem sido de grande importância para a história da

agroindústria canavieira na região, a arqueologia urbana também ganhou a atenção das

pesquisas do Museu Paraense Emílio Goeldi nos últimos anos. Destaque para o centro

histórico de Belém e outros espaços tradicionais que apresentam um valioso acervo

arquitetônico oriundo dos períodos colonial e imperial (MARQUES, 2010).

Pesquisas no perímetro urbano da capital paraense já foram efetuadas no ano de

1989, quando a instituição promoveu uma pesquisa na área da Companhia Docas do Pará.

Coordenada por Klaus Hilbert, objetivava descobrir os vestígios da velha fortaleza de São

Pedro Nolasco21 . Ainda nessa fase de florescimento de estudos, os trabalhos também se

18 A Alça Viária do Pará é um complexo de estradas e pontes inaugurada em 2002 visando a interligação da região metropolitana de Belém com municípios do interior do Estado, fazendo parte do Sistema de Integração do Leste Paraense, promovido pelo Governo do Pará. Vale ressaltar que a tese do arqueólogo Fernando Marques, representa uma produção científica associada à pesquisa de contrato. Cf.: Marques (2004) e Pereira (2009). 19 Coordenado pelo arqueólogo Paulo Roberto do Canto Lopes. 20 Município localizado na região estuarina amazônica, a um a distância de 60 km de Belém. 21 O Forte de São Pedro Nolasco foi erguido a partir de 1665 e situava-se à beira do Rio Guamá, no fundo dos Mosteiros dos Mercedários. Sendo demolido após os conflitos da Cabanagem (1835-1840).

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estendiam para outros estados. Já no ano de 1990, o arqueólogo Marcos Magalhães estudou a

fortaleza de São José de Macapá, no Amapá (BARRETO, 1992).

No correr dos anos, os arqueólogos do Museu trouxeram à tona novas questões para

a história da região.

Investigações foram conduzidas na área onde estava localizada a antiga Igreja de

Nossa Senhora do Rosário dos Homens Brancos, que existiu do século XVII até por volta de

1940, sendo encontrada, além de materiais de origem europeia, uma grande quantidade de

cerâmica relativa à cultura indígena. (GUAPINDAIA, MARQUES &MAGALHÃES, 1996).

Em 1995, foram efetivadas pesquisas no prédio do atual Museu de Arte Sacra, onde

foram encontrados vestígios do antigo Colégio dos Jesuítas, do início do século XVII, e ainda

fragmentos de cerâmica característicos da cultura indígena. De 1997 a 1999, foi realizado um

trabalho arqueológico na área do Cais de Belém, onde se localizou os alicerces do Forte de

São Pedro Nolasco e do primeiro cais de Belém, além de fragmentos de origem européia

associados com peças de cerâmica indígena (MARQUES, 2010).

Situação semelhante ocorreu quando da realização de pesquisas durante o

desenvolvimento do Projeto Feliz Lusitânia, quando entre 2001 e 2002 foram feitos estudos

arqueológicos da área do Forte do Presépio (do Castelo) e da Casa das Onze Janelas, no

centro histórico da cidade. Nas prospecções foram coletados materiais correspondentes à

cultura indígena, como cerâmicas não torneadas e artefatos líticos, assim como se verificou a

ocorrência de objetos de consumo produzidos na Europa, como pratos e tigelas de faiança e

faiança fina, porcelanas, vidros, cachimbos, além de fragmentos de metal como moedas,

talheres e itens para uso bélico (MARQUES, 2006).

Em relação ao projeto de restauração do Forte do Castelo, os resultados obtidos

tiveram grande relevância a ponto de as descobertas arqueológicas integrarem o programa

museológico implantado no local, havendo uma exposição relacionada à estratigrafia do solo,

a cultura material indígena e européia coletada, assim como o processo de escavação. A

arqueologia teve direta participação no produto final da intervenção no monumento e na

proposta de leitura histórica que o mesmo possui na atualidade e que é apresentada ao

público. Assim, mais do que um museu militar, o Forte é também um espaço onde são

apresentados um pouco sobre o passado indígena amazônico e os contatos culturais que

ocorreram na região (COSTA, 2007).

De modo geral, nos exemplos de estudos apontados acima, observa-se que, ainda que

direcionadas a darem contas de sítios históricos, as pesquisas no centro histórico belenense

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também apontaram para evidências pré-históricas, as quais não foram desconsideradas pela

arqueologia (COSTA, 2007).

A arqueologia urbana também trouxe à tona uma constatação que até então era

desconhecida acerca dos processos de contato entre europeus e povos nativos na Baixa Bacia

do Amazonas: as primeiras construções de origem européia, estabelecidas no núcleo do que

hoje é conhecido como Cidade Velha, foram assentadas sobre antigas aldeias indígenas, ou

junto a outras que se situavam nas suas proximidades. Um dado que pode ser explicado por

questões estratégicas, envolvendo navegação, defesa e subsistências, mas que também pode

estar atrelado às relações que foram estabelecidas com os grupos ameríndios. A grande

quantidade de cerâmicas de tradição indígena em comparação aos fragmentos de faianças

portuguesas sugere, por exemplo, um comumente consumo da materialidade indígena pelos

colonizadores, indicando, por conseguinte, uma maior aproximação entre as comunidades

(COELHO e MARQUES, 2011).

Esses são alguns exemplos que ressaltam o potencial arqueológico que os quase

quatrocentos anos de história de Belém podem oferecer. Nesse sentido, a arqueologia

histórica age como um elemento singular na construção da memória local, dando destaque

não somente às chamadas arquiteturas dos “dominantes”, mas também resgatando a história

dos povos nativos da Amazônia e de que modo se deu o contato entre eles. Ao produzir

conhecimento sobre o cotidiano de negros, caboclos e indígenas que habitaram a cidade, cujas

trajetórias de vida não aparecem em documentos oficiais, ela torna-se também pública e

engajada (FUNARI, 2005).

Não à toa, tal tipo de abordagem arqueológica possibilitou que no Museu Paraense

Emílio Goeldi fosse criado uma linha de pesquisa voltada para “arqueologia urbana e resgate

da memória da cidade”, que fomentou uma série de projetos de restauração no centro histórico

de Belém (MARQUES, 2011).

Considerações finais

O presente texto teve como objetivo traçar um panorama sobre a prática da

Arqueologia Histórica no Museu Paraense Emílio Goeldi, considerando os principais objetos

de estudo e os resultados que foram obtidos ao longo de quase três décadas de pesquisas em

terras amazônicas. Uma ciência relativamente jovem na instituição, cujo florescimento esteve

em boa parte atrelada à tradicional arqueologia pré-histórica, já que desde o seu início

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usufruiu de técnicas e metodologias de análise presentes na arqueologia goeldiana desde os

tempos de Betty Meggers e Mário Simões22.

Assim, como em boa parte do Brasil, a Arqueologia Histórica promovida no Museu

Paraense Emílio Goeldi está em processo de desenvolvimento e vem contribuindo para que a

instituição também seja reconhecida como um importante centro de investigação da história

amazônica. Engenhos coloniais, igrejas, a cultura material européia e indígena são alguns dos

principais objetos de investigação no Museu Paraense Emílio Goeldi. A preocupação com o

patrimônio histórico e cultural também emerge nos trabalhos realizados, assim como a

educação patrimonial realizada em comunidades onde são efetuadas as pesquisas

arqueológicas.

Contudo, é pertinente ressaltar que o referido campo de pesquisa ainda tem muito a

avançar, precisando se distanciar ainda mais de uma perspectiva meramente descritiva sobre

os sítios, estruturas físicas e artefatos, e aproximar-se ainda mais das relações sociais e

significados simbólicos inerentes a sociedades pretéritas. Além disso, muitas das pesquisas

arqueológicas realizadas nos últimos anos não foram publicadas e encontram-se somente em

forma de relatórios técnicos. Essas são questões para as quais os trabalhos futuros devem

enveredar.

De todo modo, paralelamente ao estudo das sociedades indígenas do período anterior

à colonização, a Arqueologia Histórica vem ganhando espaço no Museu Paraense Emílio

Goeldi. Importância que vem sendo conquistada não somente pelo fato de produzir

conhecimentos sobre o passado amazônico, mas também por não deixar de estar preocupada

com questões atuais inerentes às identidades culturais de várias comunidades.

O que atualmente pode ser observado, portanto, é um processo de construção da

prática científica, sendo que os primeiros passos já foram dados e ainda há muito para se

investigar.

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PIXAÇÕES1 SOB A ÓTICA DA ARQUEOLOGIA URBANA

Grafitti under the perspective of Urban Archaeology

Rafael de Abreu Souza2 RESUMO O texto tem como objetivo apresentar elementos para uma discussão sobre as pixações a partir de leituras da Arqueologia Urbana. Para tal, serão utilizadas pixações outrora pertencentes ao complexo fabril Cianê, situado na cidade de Sorocaba, São Paulo, conjunto edificado no final do século XIX, com utilização, enquanto fábrica têxtil, até os anos de 1970. Argumenta-se que os discursos que reafirmam o abandono do complexo fabril, após sua falência, passando por seu processo de tombamento e atual revitalização e restauro para abarcar um novo shopping no centro da cidade, pautam-se pelas relações de poder e patrimônio demasiado normativas e que segregam, ainda mais, grupos sociais cuja vivência coletiva se expressa a partir de práticas de ressignificação e reconstrução da paisagem urbana. Palavras-chave: Arqueologia Urbana, Pixações, Sorocaba

ABSTRACT The text discuss graffiti under the perspective of Urban Archaeology. For this, it will be used the graffiti founded at the Cianê Factories, buildings from the late 19th Century, which were in use, as a textile factory, until de 1970s in Sorocaba city, São Paulo State. It is claimed that the discourses that reaffirmed the abandonment of this manufacturing complex, after its bankruptcy, considering the preservation process and current revitalization and restoration to embrace a new mall in the city center, are guided by power relations and heritage policies overly prescriptive. That policies segregate social groups whose collective experience is expressed by practices that ressignify and reconstruct urban landscape. Key-word: Urban Archaeology, Grafitti, Sorocaba

RESUMEN El texto tiene como objetivo proporcionar elementos para una discusión sobre los grafitis a partir de la Arqueología Urbana. Para esto, serán utilizados aquellos encontrados en el complejo fabril Cianê, construido en el siglo XIX, en uso, como fábrica de textiles, hasta los años 1970, en la ciudad Sorocaba, Estado de São Paulo. Se afirma que los discursos que dan fuerza a la idea de abandono del complejo, después de su quiebra, pasando por el proceso de

1 Baseio-me no termo êmico, que aparece inclusive nos próprios painéis analisados, remetendo a forma com que os próprios pichadores grafam a palavra, com x e não com ch. Segundo Pereira (2010), “esse modo particular de grafar é apontado por alguns pichadores como uma maneira de diferenciar-se do sentido comum atribuído à norma culta da língua: pichação. ‘Pixar’ seria diferente de ‘pichar’, pois este último termo designaria qualquer intervenção escrita na paisagem urbana, enquanto o primeiro remeteria às práticas desses jovens que deixam inscrições grafadas de forma estilizada no espaço urbano”. 2 Mestre em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. Doutorando em Ambiente e Sociedade pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas. E-mail: [email protected]

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preservación y actual revitalización y restauración para la construcción de un nuevo centro comercial en el centro de la ciudad, son guiados por relaciones de poder y políticas de patrimonio excesivamente prescriptivas, las cuales excluyen grupos sociales cuya experiencia colectiva se expresa por prácticas de reformulación y reconstrucción del paisaje urbano Palabras-llaves: Arqueología Urbana, Grafitti, Sorocaba.

Luzes na cidade: arqueologia urbana no Brasil

A historiadora Maria Stella-Bresciani afirmou uma vez que “as cidades trazem em si

camadas superpostas de resíduos materiais (...) Poucas vezes mantidos em sua integridade,

sobrevivem na forma de fragmentos, resíduos de outros tempos, suportes materiais da

memória, marcas do passado inscritas no presente” (BRESCIANI, 1999: 11).

O desafio de compreender a cidade, com sua paisagem sempre em transformação,

cujo dinamismo caracteriza sua materialidade, a compreensão do registro arqueológico e as

significações e sentidos que ganha para os que dela fazem parte, coloca-se para o arqueólogo

como ordem do dia. O “patrimônio arqueológico” urbano corre grandes riscos frente à

efervescência das transformações físicas pelas quais passam as cidades do complexo

metropolitano expandido 3 , onde, justamente, pouco se aplica a legislação referente a

pesquisas arqueológicas vigente no país, tanto pelo não enquadramento de muitas obras

urbanas como EIA (Estudos de Impacto Ambiental), tanto pela cidade ser, tradicionalmente, o

local onde menos os arqueólogos brasileiros atuam/atuaram, onde tem menos interesse em

atuar ou mesmo refletir sobre [apesar do crescente número de licenciamentos realizados no

âmbito urbano (SOUZA, 2010)].

Como vem apontando a Geografia Urbana, a cidade é

espaço que está em constante estruturação, respondendo e ao mesmo tempo dando sustentação às transformações engendradas pelo fluir das relações sociais, (...) o resultado cumulativo de todas as outras cidades de antes, transformadas, destruídas, reconstruídas, enfim produzidas pelas transformações sociais ocorridas através dos tempos, engendradas pelas relações que promovem estas transformações (SPOSITO, 2000).

Se a materialidade urbana a define enquanto maior expressão da cultura material

humana, como bem colocou Milton Santos (2008), e se o metiê da Arqueologia é a própria

cultura material, o arqueólogo urbano tem a sua frente o infinito a ser pensado.

3 Entende-se o “Complexo Metropolitano Expandido” como o conjunto das regiões metropolitanas próximas a cidade de São Paulo, uma das mais populosas aglomerações urbanas do mundo.

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Fica claro que as noções vigentes de patrimônio e as categorias com as quais

usualmente trabalhamos (“sítio arqueológico”, por exemplo) são demasiado limitadas para

pensar arqueologicamente o fenômeno urbano. A depender do recorte a ser olhado, tudo na

cidade é material, tanto quanto não o é, tendo em vista o peso simbólico que as coisas têm

(INGOLD, 2012), já que na cidade tudo está em constante uso, vivo. Tudo efervesce. Até

aquilo que está em camadas profundas tem papel contemporâneo à cidade, atuando como

suporte semântico e físico ao que acima surgiu, compondo, por exemplo, os longos mantos de

impermeabilização do solo urbano (SOUZA, 2013), construídos por pisos de antigas casas em

profundidade que impedem a percolação da água.

Diferentemente das primeiras perspectivas que lidaram arqueologicamente com o

fenômeno urbano (STASKI, 1999; SALWEN, 1978), atualmente, a Arqueologia tem tecido

diálogos bastante próximos com a Geografia e a Antropologia Urbanas, no sentido de que a

materialidade da paisagem urbana, as relações sociais e um modo de vida urbano não podem

ser segmentados em noções dicotômicas de material vs. Imaterial.

Com os anos 1970-1980, a cidade surgia como locus de análise associado à eclosão

de novos atores políticos (moradores das periferias, mulheres, negros, homossexuais e suas

táticas de sobrevivência, religiões, culturas, festas populares e formas de lazer) (MAGNANI,

2006). Marcadas pelas reflexões da Escola de Chicago, a Sociologia e Antropologia urbanas

professadas em universidades no Rio de Janeiro e em São Paulo, como a USP e a UFRJ,

deram início, a partir dos anos 1940, com maior força nos anos 1970, a reflexões que partiam

de uma visão da cidade como laboratório privilegiado de análise da mudança social

(FRÚGOLI, 2005), ambiente multifacetado com dinâmicas variadas que exigem esforços

constantes de adaptação (NUNES, 2007) e espaço no qual se desenrola e ganha sentido a vida

cotidiana (CARLOS, 2007).

Definia-se, então, um campo em que a Arqueologia passava a lidar com o desafio da

proximidade e do familiar (VELHO, 2003; GRAVES-BROWN, 2011), reconhecendo que o

espaço urbano é meio, condição e produto da ação humana e que seu uso ao longo do tempo

configura a cidade como uma acumulação de tempos diversos e de possibilidades renovadas

de realização da vida (CARLOS, 2007). Nasce uma Arqueologia preocupada com os

ambientes urbanos, com a urbanização (daí a necessidade de sua diacronia), dinâmicas étnicas

e interações entre grupos sociais, interações socioeconômicas, relações de gênero, etc.

(STASKI, 2008). Este corpo ganhou a alcunha de Arqueologia Urbana, campo cuja definição

não é consensual, mas que, de modo geral, considera o estudo das relações entre cultura

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material, cognição em ambiente urbano e comportamento humano (STASKI, 1999;

TOCCHETTO, THIESEN, 2007).

Participar ativamente de sua própria realidade, tecer propostas para transformá-la,

para entendê-la, projetar futuros sustentáveis, é papel político que pode ser assumido pelo

arqueólogo que atua na cidade, cujo engajamento é fruto direto do fazer uma arqueologia do

familiar, uma “auto-arqueologia” (HARRISON, SCHOFIELD, 2009). Afinal, a maioria de

nós nasceu e mora em cidades. Como lembra Lucas (2005), enquanto arqueólogos, pouco

estudamos o contexto com o qual temos mais afinidades: o nosso. Por isso mesmo é que o

século XX, e as cidades, ainda têm representado pequeno expoente meio ao que se produz em

termos de literatura especializada pela Arqueologia Brasileira.

Atuar com Arqueologia nas áreas metropolitanas densamente ocupadas no estado de

São Paulo, não é tarefa simples. Sorocaba, cidade central deste artigo, a cerca de 90 km da

conurbação da grande São Paulo, não é diferente, com seus 600 mil habitantes. Tomar a

cidade sobre a ótica da cultura material tem sido esforço de um grupo pequeno, mas crescente,

de arqueólogos que, pelo menos desde os anos 1970, empenham-se em pensá-la a partir da

expressão material que é a própria cidade. Se, num primeiro momento, perceberam que o

mundo urbano sobrepunha-se a temporalidades antigas, passaram, num segundo, a considerar

a cidade em si a própria materialidade a ser estudada, com suas dinâmicas próprias, para

muito além da relação cota positiva/cota negativa.

A Arqueologia Urbana brasileira, todavia, ainda precisa romper categorias temporais

que a encarceram na ideia de “antigo” (no mais tardar no século XIX). Mas está se

caminhando. O quanto ainda falta para discussões como a dos grafites dos Sex Pistols, banda

inglesa de punk rock formada em 1975, em Londres, na qual faz-se a relação entre a

expressão gráfica de uma das maiores e mais famosas bandas punks, e diferentes conceitos de

preservação e patrimônio, sob ótica da Arqueologia do Passado Contemporâneo (GRAVE-

BROWN, SCHOFIELD, 2011), ainda não sabemos.

No país, os estudos arqueológicos sobre a cidade tem se pautado muito mais no

reconhecimento de que, como produto histórico-social humano, a cidade representa o trabalho

materializado acumulado ao longo do processo histórico de uma série de gerações, contendo e

revelando ações passadas (CARLOS, 2007), do que como tema substancial de reflexão para

além, meramente, de pensar fenômenos que ocorram dentro da esfera urbana (FRÚGOLI,

2005).

Pressuponho ser a cidade lugar no qual diferentes identidades se expressam e

constroem a paisagem urbana. Do mesmo modo, a paisagem urbana constrói as identidades a

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partir da materialidade que as configura. Podemos pensar nas cantinas do bairro do Bexiga, na

cidade de São Paulo, cujas temáticas “italianas” (cores, queijos e carnes dependurados a partir

do teto, as toalhas xadrez, etc.) tem a ver com a história do bairro e com os sentidos dados

aquele espaço ao longo dos anos. As cantinas, suas cores, seus usuários, constroem para o

bairro do Bexiga a ideia da italianidade paulistana, visível pelo transeunte, que recebe e

decodifica a mensagem emanada por formas e cores. Do mesmo modo, aos frequentadores da

porção baixa da rua 13 de Maio, sabe-se que para ali recorrem, à noite, o público dos bares

(dos cafés) e sobre eles sobrepõem-se expressões urbanas como grafites e pixações. Longe da

homogeneização das propostas urbanísticas modernas, a cidade é heterogênea, amálgama de

sedimentos (e sentimentos) temporal e ideologicamente diferentes, como afirma a artista

plástica Andréa Tavares (2010: 2), e a construção de identidades plurais referentes às formas

como a cidade é vivida por seus habitantes deve pautar-se por este olhar. Para exemplificá-lo,

parto das pixações que compunham o interior do complexo fabril Cianê, em Sorocaba,

inaugurado em 1881 (Figura 1).

Fig. 1. Vista da Fábrica a partir da E. F. Sorocabana (MASSARI, 2011)

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O arqueólogo olha ao lado: o mundo nas paredes

O tema das expressões gráficas em suportes fixos ou imóveis não é uma temática

nova para a arqueologia (nem exclusividade do mundo moderno). Diferentes campos e

abordagens estão presentes tanto nos estudos da chamada “arte rupestre” (HORTA, 2004;

VIALOU, 2005; PROUS, 2007), como em contextos da Antiguidade greco-romana

(GARRAFONI, 2002; FUNARI, 2003; FEITOSA, 2005) e, mais recentemente, no âmbito de

uma arqueologia da repressão e da resistência na América Latina no que concerne a

expressões gráficas e inscrições encontradas em campos de concentração e torturas

clandestinos (NAVARRETE, LÓPEZ, 2008).

Pixações e grafites, temas que diferenciarei à diante, são parte inerente das cidades

contemporâneas latino-americanas desde, pelo menos, os anos 1970, quando as culturas

jovens populares da Europa ocuparam espaços da cidade, privilegiando aqueles criados e

protegidos, normativos e proibidos (RAMOS, 2007). Para Sennet (1990), em cidades que não

pertencem a ninguém, como as contemporâneas, as pessoas estão constantemente buscando

deixar um rastro de si mesmas. Concomitantemente, no âmbito tecnológico, a invenção do

aerossol pós Segunda Guerra Mundial (1938-1945) e das tintas sprays propiciaram uma maior

agilidade e maior mobilidade ao pixador e ao traçado (SOUZA, 2007). Por outro lado,

selaram a própria natureza das pixações, inevitavelmente temporárias, seja pelas qualidades

da tinta, por sua remoção, por parte de proprietários dos imóveis, seja pelo vento ou chuva:

em algum momento, cedo ou tarde, elas desaparecerão (BARNES, 2006).

Antes de iniciar as reflexões, cabe diferenciar grafites e pixações, duas formas de

grafismos urbanos (como propõe HORTA, 1997). Define-se a pixação como o ato de escrever

ou rabiscar muros e fachadas, geralmente com tintas spray aerossol, estênceis ou rolos de

tinta, contendo mensagens de difícil compreensão a quem não compartilha dos signos. Difere-

se, do grafite, com cunho mais artístico, apesar de línguas como a inglesa classificarem ambas

as expressões como grafitti. Apesar dos discursos que criminalizam a pixação, em particular

pautados por justificativas de danos ao patrimônio e poluição visual, atualmente é vista

enquanto signo comunicativo integrante à cidade polifônica, parte da linguagem urbana (uma

literatura urbana) que compõe e invade o espaço público arbitrariamente (SPINELLI, 2007).

Filhos de nosso próprio tempo, enquanto arqueólogos poucos questionamos as

“pichações” atuais (e o mundo atual, de forma geral), aceitando as prerrogativas normativas

que caem sobre elas. Talvez por isso mesmo, raros estudos arqueológicos tenham se dedicado

a pensar as expressões gráficas que configuram o dia a dia dos moradores das grandes

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cidades. Na América Latina, seja a partir de metodologias dos estudos de arte rupestre ou

etnoarqueológicos (HORTA, 1997; ENDO, 2009), seja a partir da chamada arqueologia da

repressão (CARVALHO, FUNARI, 2009) ou da paisagem cultural (SILVA, HILBERT, 2008),

ainda são poucas as iniciativas que se debruçaram sobre estes vestígios tipicamente urbanos e

que os pensam a partir da Arqueologia Urbana. Em especial quando a arqueologia acompanha

a preservação e o restauro de algum bem, o discurso arqueológico produzido sobre as

pixações tende a reforçar o discurso do vandalismo, da não valorização por parte de

comunidades locais e da ausência do poder público na manutenção do patrimônio. Isto recorre

com frequência em trabalhos sobre sítios de arte rupestre, ao que se soma a crítica a um fluxo

turístico destruidor.

Pouco se tem feito no sentido de uma arqueologia do sensível (BEZERRA, 2013),

como propõe abordagens mais fenomenológicas, a pensar a interação e as sensações que as

pixações acarretam, a partir do impacto visual, daquele que convive com elas ou por elas

passa na cidade. Da mesma maneira, repetir as visões tradicionais de patrimônio urbano e de

políticas de preservação enquanto ações engessadas que transformam a coisa dinâmica em

objeto inanimado (INGOLD, 2012; GONZALEZ-RUIBAL, 2012; VARINES, 2012), não nos

torna mais críticos ou mais conhecedores do mundo urbano e dos diferentes sujeitos que o

conformam. A pixação sobre o sítio rupestre pode ser pensada como expressão da interação

dos sujeitos (apropriação) com um vestígio, para nós, arqueológico, assim como um ato

permeado por questionamentos de cunho político e social. Isto leva a pensar: afinal, o que é

patrimônio? Esta categoria, hoje, dá conta do patrimônio cultural que conforma a cidade? Ou

ela ainda é demasiado elitista?

Não entrarei na questão, mas vale ressaltar que o caráter invasivo da pixação,

enquanto signo urbano, sua configuração como código secreto articulado por adultos e jovens

que nele se reconhecem, sua existência como afirmação de pertencimento a determinada

região da cidade, a identificação de grupos e a territorialidade, a prática noturna que a

envolve, a não visualização de seu fazer (o que acirra a surpresa e a espontaneidade),

aumentam a sensação de medo do desconhecido relacionado a um código linguístico secreto

que invade o patrimônio privado (SPINELLI, 2007). A ilegalidade do pixador reafirma o

caráter subversivo da prática.

Sem dúvida, pixações e grafites são parte da memória da cidade [de uma memória

material (ZARANKIN, NIRO, 2008)] e da vida social que ali passou e passa, das formas de

resistência cotidiana que são ali engendradas (SCOTT, 2002), mas que são, por vezes,

silenciada pelo esquecimento ou, mesmo, apagamento de tensões e conflitos a partir das

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políticas patrimoniais vigentes. O levantamento e registro arqueológico das pixações

presentes no complexo fabril Cianê, permite problematizar as políticas que auxiliam na

materialização do passado da cidade de Sorocaba como Manchester Paulista, ressaltando o

papel da Arqueologia no estudo de memórias sociais de diversos segmentos. Ao ser

legitimada uma única visão de patrimônio, aquela que fortalece a ideia da monumentalidade

da fábrica como materialidade a ser preservada, exclui-se, automaticamente, outras vozes,

difíceis de precisar, datar e decifrar, mas que também conformam a paisagem urbana, e que

estão no contrafluxo dos planejamentos urbanos (RAMOS, 2007; SPINELLI, 2007).

Suportes e relações entre grafismos: o caso Cianê

Encarar o complexo fabril Cianê a partir da Arqueologia, suas potencialidades sobre

e subsuperfície, sua expressão material monumental no centro urbano de Sorocaba e a própria

trajetória do lugar [e sua paulatina transformação em não-lugar (AUGÉ, 2008) ao longo da

segunda metade do século XX], deixa claro que a Arqueologia pode contribuir com reflexões

em torno dos discursos de “abandono” associados ao conjunto de prédios que ocupa o terreno.

O complexo Cianê é composto por dois conjuntos fabris denominados “Fábrica

Nossa Senhora da Ponte” e “Fábrica Santo Antônio”, ambos erguidos entre o final do século

XIX e a primeira década do século XX, no fulcro da expansão do algodão e da produção têxtil

pelos modos de produção que se solidificavam com os projetos de modernidade da belle

époque paulista (PINTO, 2001; SEVCENKO, 1992). Pertenceram, inicialmente, a um

imigrante português, passando, nos anos 1930, a fazer parte do império Scarpa até sua

primeira falência e compra pela CNE (Companhia Nacional de Estamparia) (MASSARI,

2011). Em 2012, tiveram início obras de readequação arquitetônica do bem para sua

transformação em shopping center, com concomitantes pesquisas e trabalhos de restauração e

arqueologia4. A imagem abaixo ilustra a planta de 1988 com os prédios que compõem o

complexo (VLSECHI, 2000).

4 Os trabalhos de arqueologia estiveram a cargo da empresa de consultoria Zanettini Arqueologia, desde 2012, no âmbito do Programa de Prospecção, Resgate e Monitoramento Arqueológico Shopping Pátio Ciane em andamento.

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Fig. 2. Planta do complexo Cianê em 1988 (VALSECHI, 2000)

Desativada nos anos 1970, com tombamento municipal pelo Decreto-Lei 8561 de

1993, que acirrou o processo de transformação de sentidos rumo a um não-lugar, a fábrica

tornou-se locus de outros grupos sociais, muitos dos quais marginais ao núcleo de poder da

sociedade sorocabana, difíceis e ausentes uma série de equipamentos urbanos, que

reapropriaram e ressignificaram este espaço.

Fig. 3: Vista do complexo a partir da Av. Dr. Afonso Vergueiro, em 2012 (Foto: Paulo Fischer)

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A desocupação e “abandono” da propriedade pela própria Cianê e pelo poder

público, acarretaram novas ocupações e ressignificações do espaço, sendo os grafismos

vestígios materiais deste processo5. Inerente à linguagem urbana, tendo seu epicentro no

centro da cidade, a pixação é parte do ritmo social da vida coletiva na urbs (MAGNANI,

2003; SPINELLI, 2007), e converge para o centro por representar, este, a síntese da

diversidade que a caracteriza (FUNARI, PELEGRINI, 2006). Como signo integrado à cidade

polifônica, caracteriza uma linguagem secreta de domínio, em geral, de jovens adultos,

representada por letras ou assinaturas de caráter monocromático, com spray (preto e branco na

Fábrica Nossa Senhora da Ponte) ou rolo de pintura (outras cores, no prédio da Santo

Antônio).

No que concerne aos suportes, a opção por pixar uma fábrica de 100 anos também

tem a ver com a durabilidade do próprio grafismo. No caso das pixações, a paisagem urbana é

o suporte para a divulgação de ideias, ressignificando os muros e fachadas. O que nos abre

duas chaves: o suporte para durar e o processo de reúso das paredes enquanto suporte.

A durabilidade é um dos itens mais disputados pelos pixadores; a ideia de eternizar

as pixações parece ser bem atraente. Os largos muros da fábrica, construídos no final do

século XIX e começo do XX, transmitem esta sensação: sua própria monumentalidade está

associada a uma construção feita para ficar.

Pensar nos suportes é pensar também no fator tempo, já que a inscrição teria a

mesma durabilidade de seu suporte. O fato de serem feitas em suportes cerâmicos (tijolos) ou

metálicos (portão) passa, então, a caracterizar as inscrições como algo feito para durar: os

suportes dão materialidade aos grafismos, que atravessarão o tempo. As inscrições passam a

ser suportes físicos e suportes semânticos abarcando duas dimensões do grafismo, uma no

tempo social e uma no tempo mineral (VIALOU, 2000). A escolha de um bem tombado, uma

fábrica, é prova clara de uma prática social que pode atribuir novos sentidos ao espaço urbano

(MARTINS, YABUSHITA, 2008).

Investidas de tempo, passam também a ser caracterizadas por sua imobilidade (no

caso de suportes fixos). As características de imobilidade e visibilidade das representações

gráficas como as pixações passam a qualificá-las como simbólicas, testemunhos de escolhas

correspondentes a atividades individuais e/ou coletivas (VIALOU, 2000), motivadas por um 5 Para a coleta e registro das pichações, foram efetuadas fotografias com máquina digital em todo o complexo fabril. Uma vez digitais, as fotos foram trabalhadas no sentido de transformar a fotografia em imagem criada pelo computador, técnica recorrente em estudos de arte rupestre (HORTA, 2004). Devido ao tamanho e a distância das pichações, não utilizei escala.

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universo cultural que, aqui, tem cunho igualmente político e questionador de uma ordem

vigente. O repertório cultural, na medida em que motiva, “fornece os elementos de linguagem

assim como os meios para a expressão, sejam musicais, gráficos, fonéticos, corporais, etc.”

(HORTA, 2004: 45).

Esta imobilidade também tem a ver com o papel da fábrica Cianê na dinâmica do

centro urbano de Sorocabana. Parte integrante desta trama, a fábrica, pós-anos de 1970, já não

mais delimitava o centro, como no século XIX, mas fora fagocitada pela expansão urbana. A

visibilidade dos prédios foi potencializada com a instalação do terminal rodoviário Santo

Antônio no interior do complexo, parte de permuta para pagamento de dívidas da Cianê à

prefeitura municipal na década de 1990.

A distribuição espacial dos grafismos na cidade concentra-se no centro urbano. A

abertura do terminal deu novo impulso a pixação, pois colocou a fábrica no fulcro dos

movimentos de ir e vir, dando grande visibilidade aos prédios, estes também próximos de

grandes avenidas (SPINELLI, 2007), como a avenida Dr. Afonso Vergueiro (resultado de uma

divisão do antigo terreno que conformava o complexo) e demais vias (como a rua Pedro

Hirofumi Nakazoni, antiga rua Fonseca, via interna que separava a Nossa Senhora da Ponta

da vila operária construída pelos Scarpa), percursos obrigatórios para grande parte da

população e que atrai os pixadores. O terminal age, centrífuga e centripetamente, na atração e

distribuição de pessoas a partir de um ponto. Uma vez construído no interior do terreno da

fábrica, a visibilidade de suas paredes enquanto suporte às pixações tornou-se imensa.

Fica claro que a escolha do suporte não é neutra (se é que esta categoria é válida em

algum sentido), já que a própria noção de “escolha” implica parcialidade, uma vez “efetuadas

dentro de um universo de possibilidades culturalmente constituído” (BUENO, 2005: 23). Fica

claro que, para a pixação, o espaço físico do suporte não contém apenas a inscrição, ele é a

própria inscrição (LUIS, 2009). Como se escreve e o resultado final da escrita (enquanto

imagem) vão depender da posição, tamanho e características da superfície do suporte.

Suportes e grafismos devem ser estudados como um só ente.

Para a Fábrica Nossa Senhora da Ponte, as pixações são basicamente externas. Elas

refletem questões de visibilidade (fachadas externas) e/ou ousadia (as partes mais altas das

paredes. Os “pixadores de alturas” são aqueles que sempre estão em busca de marquises,

topos, aumentando o currículo e a reputação) (SOUZA, 2007). Uma vez feitas no tijolo

aparente, estrutural à própria construção, e poroso, sendo, por isso mesmo, difícil de ser

retirado e substituído, as pixações orientam-se pela própria morfologia da fachada, assim

como pelas linhas paralelas que as fiadas argamassadas conformam horizontalmente (quase

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que uma tela pautada). Destoante das cores do suporte, as pixações restringem-se ao branco e

ao preto, predominando o uso do spray no preto e do rolo de tinta no branco. As pixações

sorocabanas inspiram-se claramente na tendência estética paulistana, dos rolos de pintura em

traços retilíneos, angulares e inteligíveis, arestas acentuadas e letras em caixa-alta (SOUZA,

2007).

Nesta fábrica, apenas uma pixação é identificável a olhos não treinados, aquela que

diz “A CIDADE É NOSSA!!!” (figura 4, abaixo), em clara alusão a uma retomada do espaço

e a reapropriação de um patrimônio por grupos sociais segregados econômica e politicamente

pela dinâmica urbana da cidade contemporânea. A cerca de mais de 20m de altura, na fachada

sul do prédio do Arquivo e Subestação, as pixações, bastante visíveis, ocupam a fachada da

pan-óptica torre da caixa d’água. A mensagem aqui é clara, feita para ser compreendida por

todos (alfabetizados) que passam pelo centro e que convivem com o “abandonado” complexo

fabril.

Fig. 4: Pixações no alto da torre do prédio da Subestação

As inscrições a seguir (Figura 5) faziam parte da fachada do prédio do Departamento

de Tecidos e da fachada do Departamento de Fardos, pixadas com tinta látex branca e feitas

com rolo de pintura, voltadas a avenida Dr. Afonso Vergueiro, via expressa paralela à linha

férrea da antiga Sorocabana, com alto fluxo automotor, são grandes e visíveis a grandes

distâncias, tanto por outros pixadores como por qualquer pessoa que por ali transita.

Dialogam diretamente com o formato das águas do telhado do edifício.

Fig. 5: Pixações na fachada do antigo Departamento de Tecidos

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Fig. 6. Vista parcial da fachada do departamento de Tecidos em 2012 (Foto: Paulo Fischer)

O portão de metal voltado à rua Francisco Scarpa, igualmente, contém pixações

(figura 7). Limitadas pela extensão do suporte, metálico, assim como por sua durabilidade

(menor que a das paredes de tijolo maciço) e visibilidade (estão mais próximas do nível dos

transeuntes e são visíveis apenas a pé ou por número limitado de carros), diferente dos

edifícios dos departamentos de Fardo e Tecidos, visíveis por diversas pessoas mesmo de

longe, estas pixações são mais densas, pintadas em branco (para ressaltar a cor do suporte) e

feitas com spray. Essa é a única pixação feita com spray branco, pois o spray predomina como

técnica associada à tinta preta.

Fig. 7: Pixações no portão de metal da Rua Francisco Scarpa

O caso da Fábrica Santo Antônio, parte do complexo Cianê, é bastante diverso, com

seus quase 400m contínuos de pixações. Às poucas pixações na fachada externa opõem-se

milhares nas paredes brancas internas. Construídas em tijolo, as paredes da Fábrica Santo

Antônio eram revestidas de cal, aptas, portanto, a receber uma profusão de cores (uma tela

branca). No caso dos suportes fixos verticais, como as paredes, a questão da orientação e da

percepção visual do espaço gráfico torna-se relevante (OTTE, 1999). Como um suporte com

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orientação natural, quer dizer, sendo fixo, não pode ser girado 360º como um suporte móvel, e

possui cima e baixo. Apesar da não existência de linhas de orientação, os pixadores, em geral,

seguiram a orientação da escrita latina: de cima para baixo, da esquerda para a direita. Quando

o tijolo tornava-se aparente, devido à queda da cal, o pixador adaptava a pintura ao suporte,

utilizando a orientação das linhas paralelas formadas pelas fiadas. As imagens abaixo

exemplificam o caleidoscópio:

Fig. 8: Seção do painel da parede interna da Fábrica Santo Antônio

Fig. 9: Seção da parede interna/painel da Fábrica Santo Antônio

A enorme quantidade de pixações no interior da Fábrica Santo Antônio e o uso de

diversas cores acarretam diversas sobreposições, permitindo reflexões sobre a relação entre os

grafismos, conhecida na linguagem êmica como “rasura” ou “atropelo” (SOUZA, 2007),

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atitudes que poderiam transformar a violência simbólica marcada por noções de

territorialidade e identidade de grupo, em rixa real e inimizade entre grupos. No longo painel

da Fábrica Santo Antônio, há diversas sobreposições.

Nesta fábrica pode-se observar a existência de tags distintos, com estilo de letra mais

arredondada e que lembram formas de divulgação em publicidades (“MULEK”, em laranja e

preto, no canto a esquerda, na seção de painel acima). Também é possível notar a recorrência

de um mesmo grupo a partir da repetição de assinaturas, como RT e, ainda, mensagens de

cunho explicitamente político como “Pixação = Protesto” em clara alusão ao caráter

simbólico marginal e crítico às normas de conduta (HORTA, 1997). Vale lembrar que a

frequência de uma assinatura está ligada a questões de poder e de afirmação do autor ou

grupo, e RT recorre em toda a parede interna da fábrica.

Fig. 10: Seção do painel de pixações da Fábrica Santo Antônio

Apesar de algumas paredes internas da Fábrica Nossa Senhora da Ponte conterem

grafismos feitos com giz de cera, e que expressam recados, declarações de amor, endereços de

e-mail e caminhos para sites de relacionamento, além de outras marcas parietais como marcas

de bola de futebol, em especial no Departamento de Fardos, indicando claramente a

reapropriação do espaço por grupos cuja segregação na cidade também tem a ver com a falta

de espaços gratuitos de sociabilização e lazer, sugerindo variabilidade em termos de técnicas

de produção, suas pixações restringem-se ao branco e ao preto, as fachadas externas em estilo

tag reto (aquele tipicamente paulistano).

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Em direção oposta, as pixações da Fábrica Santo Antônio não dialogam com a

visibilidade (locadas no segundo piso da fábrica, em suas paredes internas, onde entra pouca

luz) e talvez pouco com a ousadia (quiçá mais no sentido de invasão de uma propriedade

privada) e muito mais com expressões que ficariam restritas aos próprios grupos de pixadores

que para ali iriam, tornadas visíveis quando da requalificação arquitetônica do bem.

Vale ressaltar uma pixação singular da Fábrica Santo Antônio, não por sua escrita,

mas por sua localização espacial: é a única em suporte horizontal, feita sobre o telhado do

edifício; só pode ser visualizada a partir de prédios mais altos, fotografias aéreas e

helicópteros, em clara alusão ao público a que se destinava a mesma (figura 11). Podemos

imaginar sua relação, portanto, com o próprio céu ou com um observador que precisa estar

acima, voando ou mesmo no próprio céu (como na imagem a seguir).

Fig. 11. Vista aérea da fábrica com destaque para a pixação sobre o telhado da Fábrica Santo Antônio (Base Google Earth, 2012)

Se as pixações da Fábrica Nossa Senhora da Ponte são signos que tecem relação

entre não-pixadores e pixadores, a Fábrica Santo Antônio tornou-se lócus para afirmações

identitárias e territoriais entre pixadores. As cores, os estilos, motivos e demais elementos,

assim como as frequentes sobreposições e repetições de marcadores em diferentes momentos

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de um enorme painel branco contínuo, sugere como o complexo Cianê fora ressignificado por

grupos marginalizados em âmbito urbano, pouco flagrados e pouco visíveis, que utilizam

formas de expressão visual, esteticamente impactantes, ininteligíveis, para materializarem

intervenções no espaço, subvertendo valores, construindo a paisagem e reafirmando-se

enquanto moradores da cidade.

Entre o crime e a expressão visual

O discurso do Estado enquadra a pixação como delinquência e poluição visual,

associando-a a criminalidade e a violência. No Brasil, é considerada vandalismo e crime

ambiental, com base no artigo 65 da Lei 9.605 de 12 de fevereiro de 1998, que estipula pena

de detenção de três meses a um ano, além de multa, para quem pixar, grafitar ou conspurcar

edificação ou monumento urbano (COLEÇÃO DE LEIS SOBRE PRESERVAÇÃO DO

PATRIMÔNIO, 2006).

Enquanto prática social que subverte a ordem estipulada, a pixação, no entanto, pode

também ser encarada enquanto fenômeno urbano que utiliza a cidade como suporte no qual as

pessoas exercitam a construção de suas identidades (MARTINS, YABUSHITA, 2008). Como

expressão que deixa marcas materiais na paisagem e que, na verdade, torna-se a própria

paisagem urbana, a pixação é forte indicativo das materializações de uma série de tensões que

coexistem na cidade moderna, que podem ser pensadas criticamente pelo arqueólogo e que

testemunham práticas de experimentação da vida cotidiana nas cidades.

Para além de visões rígidas e normativas de patrimônio, devemos, como cientistas

sociais, buscar compreender os mecanismos que, permeados de subjetividades e

intencionalidades, determinam o que é relevante e deve ser preservado (e como). Por outro

lado, a própria pixação sendo um protesto às normas estipuladas, não pode ser

patrimonializada ou estudada partindo-se da ótica vigente sobre patrimônio. Não faria sentido.

Enquanto arqueólogos, o que devemos fazer quando a pixação é parte da história do

próprio complexo fabril, mas que não será preservada ou de modo algum registrada? A

exclusão desta materialidade confirma a segregação de determinados grupos sociais e a

produção, uma vez mais, de memórias oprimidas. Sua presença atesta as rugosidades como

propôs Milton Santos (2008): sem tradução imediata, são manifestações locais do passado

produzidas em momentos distintos da história do espaço, que atestam por vezes resistências

ao avanço de outras lógicas.

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A análise das pixações em Sorocaba permitiu perceber sua exclusividade nas

fachadas externas da Fábrica Nossa Senhora da Ponte e sua predominância nos espaços

internos da Fábrica Santo Antônio. Na primeira em locais de ampla visibilidade (as fachadas),

dialógicas não apenas a outros grupos de pixadores, mas compositoras do ritmo urbano

daqueles que não o são; na segunda, exclusiva a relações estabelecidas intra-grupos de

pixadores, em locais de difícil acesso, com compreensão restrita. A ausência de mensagens

inteligíveis ao restante da população é clara e marca a reocupação de um espaço vazio, um

não-lugar (AUGÉ, 2008), utilizado por um “anônimo conhecido” (SPINELLI, 2007), o

próprio pixador, que representa um grupo. Afinal, as pixações são feitas para serem vistas e

reconhecidas, mas decodificadas por poucos.

Recentemente, o Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo,

junto a alguns membros da Comunidade São Remo, no bairro do Rio Pequeno, no Butantã,

realizaram intervenções nas fachadas do prédio expositivo, a partir de pixação e grafitagem

(INFORMAE, 2011). A ideia fora realizar uma aproximação entre o grafite enquanto

expressão urbana contemporânea e a arte rupestre. Os participantes deixaram nas paredes do

Museu registros de aspectos de seu cotidiano e a arqueologia buscou aproximar os moradores

da São Remo que, apesar da proximidade física, pouco interagem com o Museu de

Arqueologia.

Uma arqueologia urbana engajada, com a cidade, sob uma perspectiva freirianas,

[para além de uma Arqueologia na ou da cidade, como classicamente debatido (SALWEN,

1978; STASKI, 1999; STASKI, 2003)], deve, assim, ultrapassar visões de patrimônio que

enfatizam a relação norma/desvio, modelos normativos que ressaltam a homogeneidade social

e a aceitação de regras gerais (FUNARI, PELEGRINI, 2006), e buscar compreender a

materialidade que configura o mundo urbano em suas diversas dimensões. O arqueólogo pode

propondo novas narrativas, reconstruir memórias excluídas e grupos sociais segregados por

discursos oficiais, que deixam pouco ou nenhum registro escrito (que não as centenas de

pixações ininteligíveis a nós, leigos), que são pouco ou nada visíveis, mas que ao mesmo

tempo reapropriam-se e ressignificam o espaço, tornando-se parte fulcral da construção da

trama e da paisagem urbana, que nos é tão cara, e reivindicando seu direito à cidade.

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Entrevista com Prof. Dr. Gabino la Rosa Corzo

Professor e pesquisador cubano, especialista em Arqueologia. Possui graduação em

História pela Facultad de Humanidades de la Universidad de La Habana e Doutorado em

Ciências Históricas.

Ao longo de sua carreira acadêmica, tem atuado como pesquisador e docente nos

níveis de Graduação e Pós-graduação em diferentes universidades cubanas e em outros países.

Entre suas experiências profissionais, destacam-se cursos promovidos pelo LAP- NEPAM-

UNICAMP e pelo IFCH-UNICAMP.

É autor de várias publicações, sendo a mais recente, o livro Tatuados. Deformaciones

étnicas de los cimarrones en Cuba (2011).

A entrevista abaixo aborda sua trajetória acadêmica, as especificidades da

arqueologia cubana e algumas de suas impressões sobre a relação desta com a arqueologia

brasileira, entre outras coisas.

Entrevistadora

Carola Sepúlveda: Doutoranda em Educação pela UNICAMP, Mestra em Estudos de

Gênero e Cultura pela Universidad de Chile e Bacharel e Licenciada em História e Geografia

pela Universidad de Santiago de Chile. Bolsista Programa “Becas Chile- Formación de capital

humano avanzado en el extranjero” (CONICYT. Gobierno De Chile).

[email protected]

Entrevista

Entrevistadora: ¿Cómo se autodefine Gabino La Rosa?

Gabino La Rosa: Creo que es una de las preguntas más complejas que me han hecho en mi

vida profesional. Generalmente, a los humanos nos gusta definir a los que nos rodean, pero en

muy pocas ocasiones emprendemos la tarea de la autodefinición.

Yo creo que en toda autodefinición se enfrentan varios conceptos: lo que somos en realidad,

lo que nos gustaría ser y en cierta medida la forma en que los demás nos definen y que nos

inclina hacia el acatamiento de determinadas reglas y principios que en definitiva responden

al contexto social e histórico en que vivimos.

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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La autodefinición pasa por tamices éticos, humanos, políticos sociales, científicos,

profesionales, etc. Pero dejando a un lado el sistema de valores personales que me definen

como ser humano, que odia las injusticias, respeta las diferencias sociales, étnicas, raciales o

de cualquier tipo, ama la naturaleza y la familia; y para simplificar, desde el punto de vista

profesional me autodefino como un antropólogo.

Mi vida profesional se ha movido en los terrenos de la historia, la etnohistoria, la

etnoarqueología y la arqueología. Aunque siempre al realizar un abordaje a una problemática

he tomado como punto de partida y fundamento metodológico la historia, la etnología o la

arqueología, siempre, durante el proceso de investigación he recurrido a todas esas esferas del

conocimiento, pues me he propuesto como objetivo principal conocer al hombre inmerso en

un contexto social y acontecimientos específicos. Y para conocer y describir al hombre no

basta con una de estas esferas del conocimiento o disciplina.

E.: En relación a su trayectoria académica, ¿podría identificar algunas experiencias

significativas que siente lo habrían motivado a dedicarse a la arqueología y a los temas que

actualmente investiga?

G.R.: Es claro que las experiencias personales tienen gran significación en el derrotero

profesional de cualquier persona. En mi caso particular, nací en la ciudad de Cárdenas,

Provincia de Matanzas, Cuba. Esta ciudad estuvo vinculada de forma significativa a la

esclavitud de plantaciones. Por su puerto, salía una parte importante del azúcar que se

producía en la región de mayor concentración de esclavos, la Región Habana-Matanzas.

Esto determinó la existencia de una composición racial y cultural extremadamente rica y

compleja en esta ciudad. Yo asistí a la escuela pública y parte de mis amigos de infancia eran

descendientes de antiguas familias esclavas. Vivían en condiciones económicas y sociales

inferiores al resto de mis compañeros de colegio. Esos grupos y familias mantenían

tradiciones que diferían de las restantes y se encontraban limitados en sus espacios y alcances.

Estas relaciones crearon el basamento ético que se incorporó a mis intereses profesionales.

Cuando inicié mis estudios universitarios en la Facultad de Historia de la Universidad de la

Habana en el año de 1962, y aunque esos estudios respondían a conceptos renovadores

gracias a la Reforma Universitaria emprendida por la Revolución Cubana, aún estaban

saturados de conceptos y valores de la antigua universidad y aunque , por ejemplo, en el

terreno de la esclavitud se hicieron verdaderos aportes al conocimiento, la cuestión de las

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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formas en que los esclavos se resistieron o combatieron al sistema esclavista eran aún un

terreno prácticamente virgen.

Puedo ponerte, por ejemplo, que en Cuba eran conocidos los quilombos de los Palmares (pues

existía una bibliografía internacional al respecto), pero no se conocía nada de los quilombos

en Cuba. Pero esa situación varió pronto, gracias a los estudios históricos de amigos como

José Luciano Franco y algunos otros. Mi mayor satisfacción es haber contribuido a partir de la

aplicación de la arqueología y la etnología a ese proceso de conocimiento de esa realidad.

E.: Según su opinión ¿cuáles son las posibilidades que permitiría el incorporar abordajes

interdisciplinares a los estudios de base arqueológica?

G.R.: La realidad es muy compleja y dinámica. Para conocerla, sobre todo en sus

manifestaciones pasadas, es necesario el abordaje interdisciplinario. Las dos cuestiones que

definen esa posibilidad son: la comprensión por parte del investigador de esa complejidad y la

existencia de laboratorios y equipos de profesionales de diferentes disciplinas dispuestos a

colaborar y enriquecer mutuamente sus campos de acción.

E.: De acuerdo a su experiencia, ¿cómo evalúa el estado actual de las relaciones entre

arqueólogos(as) brasileros(as) y cubanos(as)? y ¿qué posibilidades de diálogo académico

usted cree que podrían desarrollarse entre las comunidades científicas de ambos países?

G.R.: Creo que estamos en un momento importante de las relaciones y las posibilidades de

diálogo académico entre profesionales de Brasil y Cuba. A pesar de las diferencias

geográficas y de otro tipo, los puntos de coincidencia en el desarrollo histórico y la

conformación de fenómenos sociales paralelos como lo son la esclavitud de plantaciones, la

resistencia esclava, la composición étnica, la religiosidad popular, etc., hacen muy rico el

diálogo.

Estoy convencido que ya se ha iniciado un proceso de intercambio académico en el plano de

las agendas y las personalidades, que solo necesitan el apoyo institucional para un mejor

desenvolvimiento.

E.: De acuerdo a su experiencia, ¿cuáles serían las especificidades de la arqueología cubana?

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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G.R.: Bueno, este es uno de los terrenos más críticos en la actualidad en Cuba en el terreno de

las disciplinas científicas, lo que contrasta con el desarrollo alcanzado en otras esferas de la

investigación. Desdichadamente, y a diferencia de la gran mayoría de las naciones

latinoamericanas, Cuba carece de una formación académica adecuada dentro del campo de la

arqueología, pues las autoridades competentes han negado reiteradamente la posibilidad de la

creación de una carrera de grado en esta especialidad. El reducido grupo de arqueólogos

profesionales que han trabajado en los últimos 40 años han sido egresados de otras disciplinas

universitarias, que han devenido en arqueólogos gracias a la formación posgraduada, a la

realización de maestrías y doctorados.

Pero, contradictoriamente, en el país ocupa un lugar cimero el rescate, conservación y manejo

del patrimonio cultural en general, lo que demanda la existencia de este tipo de profesionales,

por lo que se ha recurrido a la formación de cursos emergentes en Escuelas Talleres, en las

que mediante cursos de dos años, jóvenes interesados en la arqueología se forman como

obreros calificados para enfrentar las complejas labores del rescate arqueológico de la riqueza

patrimonial.

Esto ha producido un vacío profesional en el que las primeras generaciones de arqueólogos

que se habían formado por la vía anterior, ya abandonan la profesión, fundamentalmente por

razones de edad o fallecimiento, mientras las nuevas generaciones que enfrentan el trabajo

carecen de una formación adecuada y cometen no pocos deslices en el terreno de la teoría y

la metodología.

Así, puede afirmarse que se ha iniciado un proceso en el que el desnivel de la arqueología

cubana en comparación con la restante del continente es cada vez más ostensible.

E.: En una entrevista que usted concedió por el lanzamiento de su libro “Tatuados.

Deformaciones étnicas de los cimarrones en Cuba” en Casa del Alba Cultural1 , usted señala

que el tatuaje representa para algunas etnias y tribus, entre ellas algunas africanas, una forma

de identificación, donde se establecen semejanzas y diferencias. En esa misma entrevista

usted señala que estos estudios sobre tatuajes lo han acompañado por más de veinte años. Si

recuperásemos la imagen del tatuaje que usted trabaja y la trasladásemos para hacer una

lectura de su trabajo ¿cómo definiría usted el significado de esta línea de investigación para

usted? ¿Siente que le ha permitido identificarse, acercarse a otros trabajos o investigadores(as)

¹http://www.ffo.cult.cu/index.php?option=com_content&view=article&id=161:entrevista-a-gabino-de-larosa&catid=67:otros

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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e o diferenciarse? ¿Estudiar estas temáticas ha significado para usted una especie de tatuaje

en términos metafóricos?

G.R.: Mi último libro (desde el punto de vista editorial) aborda los tatuajes de los cimarrones

en Cuba. Dada la complejidad del tema y la casi nula existencia de fuentes confiables, fue un

tema sobre el cual estuve acumulando información a lo largo de los años en que trabajaba en

otros proyectos y producía otros textos.

El haber podido recatar los mensajes de los cuerpos de los individuos que se revelaron al

sistema esclavista y comprobar que en la actualidad esos tatuajes (escarificaciones)

constituyen símbolos de identidad étnica, hace que sea mi libro más estimado. Si a esto se

suma el calor con que fue acogida su edición, y la opinión de colegas como Miguel Barnet,

presidente de la Unión de Escritores y Artistas de Cuba; Carmen Barcia, Profesora de Mérito

de la Universidad de la Habana; Michael Zeuske y Christian Cwik, ambos de la Universidad

de Colonia en Alemania, puedo confesarte que “Tatuados” me ha marcado, me ha

autoidentificado.

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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Resenha: HENDERSON, Hope; BERNAL, Sebastián Fajardo (comp.). Reproducción social y creación de desigualdades – discusiones desde la antropologia y la arqueologia

suramericanas. 1ª Ed. Cordoba: Encuentro Grupo Editor, 2012. 232 p.

Bruno Sanches Ranzani da Silva1

O livro compilado por Hope Henderson e Sebastián Bernal trata de um tema

candente na arqueologia contemporânea. Pensar em agência tem sido uma alternativa

conceitual para desalinhar as propostas estruturalistas que permeavam a interpretação

arqueológica, tanto de aspectos funcionais como de aspectos simbólicos da cultura material.

Os textos compilados nesta obra tentam mostrar as possibilidades e desafios do uso deste

conceito na América Latina.

Os compiladores introduzem a temática e os artigos do livro com um pequeno texto

de sua autoria. Nele, definem como objetivo do livro tratar os processos de reprodução social

em sociedades pré-hispânicas, históricas e contemporâneas. O conjunto de trabalhos

compilados faz jus à proposta geral da obra, defendendo casos em que determinados

indivíduos ou setores sociais logram (ou não) intervir na ordem das coisas. 1) Papel social

do(a) investigador(a) e relações sociais contemporâneas; 2) Sociedades históricas e relações

sociais coloniais; 3) Os agentes, as desigualdades e as mudanças sociais em sociedades pré-

hispânicas.

Os artigos seguem a ordem temática proposta pelos compiladores, e darei sequência

a essa ordem por julgá-la apropriada.

A primeira série de artigos, de Myriam Jimeno, Andres Salcedo e Alejandro Haber,

contempla a arqueologia e seu papel social na Colômbia e Argentina. Se preocupam em

esclarecer a subjetividade inerente ao trabalho de investigação eos consequentes problemas

gerados por cartografias étnicas desenhadas pela suposta neutralidade científica.

Myriam Jimeno apresenta o desenvolvimento da antropologia como ciência

acadêmica na Colômbia, tentando resumir, com êxito, 60 anos de uma disciplina em algumas

páginas. Seu percurso tem três momentos: o surgimento da antropologia na Colômbia, vinda

do estrangeiro, como uma disciplina de densas descrições etnográficas; o choque geracional

entre a primeira geração de antropólogos colombianos e seus mestres estrangeiros; a

institucionalização da disciplina e sua participação mais ativa em causas indígenas e

diversidade nacional. 1 Doutorando em Arqueologia pelo MAE/USP.

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De acordo com a autora, a antropologia colombiana passou de atividades de

“salvaguarda” de culturas a serem extintas pelo avanço da civilização ocidental, com

etnografias meramente descritivas nos anos 1940, para uma postura mais engajada de defesa

dos direitos das populações tradicionais. Nos anos 1970 e 1980, as comunidades indígenas

constituíram canais de interação diretos com o governo colombiano, e o fortalecimento dos

exércitos paramilitares fizeram com que os antropólogos buscassem outras áreas de atuação

(especialmente as comunidades rurais).

A principal bandeira daantropologia colombiana contemporânea, ressalta Myriam, é

a ampliação da cidadania - entender os indígenas e comunidades tradicionais em seus próprios

termos, ensinando o Estado a respeitar e reconhecer a diversidade de modos de viver. O que

ela chamou de naciocentrismo marcou o surgimento da antropologia na Colômbia e a

empreitada das novas gerações tem sido guiada rumo ao multicentrismo, no engajamento da

disciplina com a causa libertária e representativa de diferentes grupos sociais, procurando a

constituição de uma condição civil cada vez mais democrática.

Andrés Salceda, em seu artigo, comenta o mesmo processo de conformação da

nacionalidade, só que mais preocupado com a cartografia. As políticas segregacionistas com

raízes coloniais se materializam na segregação espacial promovida pelo governo colombiano

ainda nos dias atuais.

Durante o período colonial, Salceda fala do deslocamento compulsório de indígenas

para trabalhar nas encomiendas mineiras, da dependência administrativa de aldeias a centros

coloniais maiores e do esvaziamento de territórios não ocupados por colônias espanholas

(independente de sua ocupação por povos nativos). Ou seja, os territórios não ocupados por

colonos espanhóis eram considerados como baldíos, sujeitos a exploração com respaldo

governamental. Essa política continuou após a independência do país em 1821, com a Lei 61

permitindo a colonos e fazendeiros tomarem posse de baldios para extração de recursos e

empreendimento da colonização (assim se fez colonização da Antioquia e LlanosOrientales).

Os embates legais pela posse de terra, direitos de exploração de recursos e mão de

obra colocou em choque diversos setores constituídos durante o período colonial e que

tentavam manter seus privilégios na nova ordem (especialmente conflitos entre republicanos

iluministas e católicos monarquistas). No entanto, esses conflitos deixaram de lado os

interesses de grupos indígenas e trabalhadores rurais mestiços, maioria da população,

explorada como arrendatários ou em trabalhos semiescravos.

Os conflitos agrários se intensificaram no país, e a conformação de forças armadas

rebeldes seguiu uma onda de revoltas camponesas a partir dos anos 1940 (com maior

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intensidade nos anos 1970 e 1990). As FARC, entre outros grupos, se dizem bolivaristas

defensoras do campesino contra a opressão do estado e dos grandes fazendeiros. No entanto,

muitas comunidades rurais saem lesadas dos embates entre forças rebeldes, governo e forças

paramilitares (sob custódia dos grandes fazendeiros do vale do Magdalena).

A situação atual é a de um Estado que o autor chama de multicultural. Por um lado,

reconhece e redefine a identidade e direitos de comunidades indígenas e tradicionais, com

base em sua comprovada ancestralidade. Por outro, falha nas negociações de paz com os

grupos militares rebeldes e se propõe a defender os direitos dos cidadãos ao “combater a

violência com violência”. Seu propósito, como defende o autor, não é aparecer como o

“defensor do ilusório interesse comum da sociedade” (p. 34). “Ele surge como um

intermediário que legaliza e legitima formas de extração e acumulação de riqueza e formas de

estatalidade privativas, mercenárias e corruptas” (Aretxaga 2003 apud p. 34).

Os trabalhos anteriores mostram não só a relação conflituosa entre o estado e

comunidades tradicionais sobre os direitos por terra e vida, mas mostra também como as

ciências humanas se prestam a essa relação conflituosa. Alejandro Haber reflete sobre o

aparato conceitual e teórico que guia a arqueologia e antropologia. Seu artigo interpreta os

sítios arqueológicos de Ingaguassi e Tebenquiche Chico, no altiplano de Catamarca,

Argentina, pela perspectiva do uywaña, palavra indígena que indica, grosso modo, uma

relação constitutiva baseada na reciprocidade entre os agentes (humanos ou não humanos).

Em seu caso, as relações humanas e não humanas envolvidas no cultivo da terra, construção

de moradias e canais de irrigação. Sua escolha conceitual reforça o caráter agentivo da

população local e, de fato, possibilita uma arqueologia descolonizadora, uma vez que Haber

desqualifica as interpretações estruturalistas e hierarquizantes para a existência dos canais.

Por meio da etnoarqueologia e de plantas arquitetônicas, o autor procura enxergar a

intencionalidade cotidiana dos indígenas na interação com o poder colonial. Inclusive, tenta

subverter a historiografia corrente ao atribuir o fim do assentamento de Ingaguassi, a mais

rica mina do altiplano durante a colônia, ao abandono voluntário dos indígenas após uma

revolta fracassada contra o governo colonial durante o carnaval – eles foram embora para suas

aldeias de origem porque preferiam não mais se submeter às demandas e relações insanas do

poder colonial com a terra e com o ouro. A “vitória colonial” não foi o decisivo na história do

assentamento, assim com a “vitória” norte-americana no Vietnam prova-se mais sobre o papel

que sobre suas perdas.

Além da agência das populações no passado, a abertura conceitual ao uywaña

possibilita a simetria interpretativa com saberes não-arqueológicos. Ao perguntar para o autor

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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“se ele achava que a vala crescia durante a noite”,um morador local pode buscar a validação

científica de seu conhecimento, ou por apenas estar colocando esse conhecimento estrangeiro

à prova (nada impede que a resposta “não” seja motivo de chacota do pesquisador). No

entanto, há o ponto de encontro cosmológico entre o estrangeiro e o local, um momento de

interação de saberes. Haber, e isso é importante, não apenas usa a palavra indígena, mas sim

o conceito, sua forma viva e cotidiana (como uma possibilidade, claro, do passado). E a

questão está colocada: porque nosso aparato teórico é mais apropriado para lidar com o

passado de grupos indígenas do que o “aparato teórico” (enfim, os modos de pensar sobre o

empírico) dos próprios grupos indígenas?

Esses trabalhos defendem claramente e com fortíssimos argumentos e casos

estudados, que a preocupação sobre os modos de vida de povos nativos e minorias sociais não

é uma questão de boa-vizinhança e humanidade, mas sim de políticas nacionais e

acessibilidade a recursos naturais (especialmente a terra). As ciências humanas, antropologia,

arqueologia, história, que são os casos, têm um papel fundamental na orientação dessas

políticas públicas ao serem contempladas com o direito de argumentar pela veracidade,

qualidade e merecimento dessas populações quase “depositárias” de culturas ditas milenares.

Exigir a ancestralidade de populações que foram compulsoriamente desalojadas de suas terras

de origem pelo processo colonizador seria cômico, se não fosse cruel.

Vale observar, brevemente, que o Brasil possui uma história similar aos parceiros

latino-americanos. Lucio Menezes Ferreira (FERREIRA 2005a, 2005b, 2009, 2010)analisa o

surgimento da arqueologia e antropologia ainda no Brasil imperial, com pesquisadores

naturalistas associados aos três principais museus do então Império – Museu Nacional, Museu

Paulista e Museu Paraense. Nos três casos, as discussões eram claramente orientadas para a

avaliação das possibilidades de ingresso dos indígenas brasileiros como cidadãos da nova

nação (recém-independente).

O artigo de Pedro Paulo Funari nos ajuda a pensar essa seara de possibilidades

interpretativas na arqueologia e seus fundos políticos. Funari menciona três estudos diferentes

sobre o mesmo sítio, o Quilombo de Palmares. Estudararqueologicamente esse importante

lugar da história nacional pode tomar diversas vias: pensá-lo como um ponto local de conexão

entre diferentes redes constituintes do mundo moderno global, pensá-lo a partir de uma

etnogênese própria da miscigenação colonial ou pensá-lo como uma exacerbação da lógica

colonial, chegando a ameaçar as colônias portuguesas como entreposto comercial é jogar com

as estruturas sociais e os agentes que nelas participam. O autor vai além ao nos lembrar das

preferências e usos distintos dessas interpretações por parte de múltiplosagentes sociais no

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presente (Movimento Negro, mídia independente, poder público), embora não se detenha

nesse tema.

Esse trabalho coloca em pauta a segunda temática anunciada pelos compiladores do

livro: Os problemas de pensar os enfoques relacionais para contextos específicos como os de

contato colonial (Brasil, Colômbia e Argentina). Pedro Paulo Funari, Alejandro Bernal Velez,

Silvana Buscaglia e Marcia Bianchi Villella trazem estudos de caso nos quais Pierre Bourdieu,

Anthony Giddens e Michel Foucault são referencias constantes no exercício de compreensão

das subjetividades em atuação direta nas estruturas, seja para tentar modificá-las, seja para

tentar tomar proveito delas. Quais seriam os limites das estruturas estruturantes e

estruturadas?

Alejandro Bernal Velez, por exemplo, trabalha com inventários e apelos às

ouvidorias reais da Argentina colonial no século XVI, para entender como os caciques de Don

Juan e Don Pedro foram bem sucedidos no manejo das instituições coloniais para enriquecer.

A tese de Alejandro pretende fugir da dicotomia “dominador/dominado”, pois reconhece a

possibilidade de transgressão, e observa como a própria estrutura colonial, enquanto nega a

autenticidade do exótico, se assenta sobre ele. Se, por um lado, as encomiendas eram

divididas entre os espanhóis mais ricos, por outro, os encomenderos precisavam manter uma

relação de certa parceria com as lideranças indígenas das comunidades em território de sua

posse, de modo a garantir acesso a recursos e mobilização de mão de obra. Por outro lado, os

caciques reconheciam sua posição política estratégica, e muitas vezes usavam métodos

coercivos e fraudulentos para ganho de causa de encomenderosmais promissores aos seus

interesses.

E, a meu ver, aí reside uma contrapartida importantíssima no argumento de Velez.

Ele deixa claro que a aproximação dos caciques aos colonizadores não representa um ganho

sem perdas, uma vez que os abusos registrados do poder cacical entre os seus deslegitimava a

liderança e crescia o desgosto entre os camponeses pela chefia corrompida. Ao mesmo tempo,

muitas lideranças indígenas viam na ouvidoria real uma instituição colonial que valia o risco

(e o custo) na tentativa de criminalizar os excessos dos encomenderos em defender seus

benefícios.

A institucionalização do cacicado e criação de capitanias familiares nas comunidades

indígenas destroem as relações de reciprocidade antes existentes e estabelece uma série de

interesses acumulativos típicos do capitalismo moderno. O autor defende que agência é

justamente o modo como os indivíduos testam a elasticidade das estruturas presentes.

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Seguindo a mesma proposta, Silvana Buscagliaapresenta parte dos estudos

arqueológicos desenvolvidos em Floridablanca, um dos primeiros assentamentos da Coroa

Espanhola no deserto Patagônico, durante o século XVIII (na Baia de San Julian, atual

província de San Julian, Argentina). O malgrado assentamento durou quatro anos apenas,

sendo desmantelado e queimado por ordem real, após considerar que seus colonos não tinham

meios para viverem por si próprios. Floridablanca possuía mais que um propósito agrícola e

ocupacional, seu planejamento, como nos mostra a documentação oficial, previa uma colônia

moldada pelas normas do iluminismo patriarcal, igualitária, pacífica e geradora de cidadãos

úteis. Munida de Bourdieu (1977), Lightfoot (1998) e Sahlins (1981, 1985 e 1995) na

compreensão teórica dos espaços criados pelos encontros coloniais, a autora pretende aguçar a

percepção das formas cotidianas e “subliminares” do habitus colonial, debruçando-se no

material arqueológico. Em poucas palavras, é possível ver como se constitui, no dia-a-dia, o

esquema colonial e as tentativas de subvertê-lo.

O corpo documental analisado é composto, basicamente, pelas cartas escritas pelo

superintendente da colônia, Don Antonio de Viedma, à Coroa Espanhola. Entre escritos e

omissões, a autora faz três observações: 1) o único contato interétnico que se afirma é daquele

entre o superintendente e o cacique (Julián); 2) O fluxo de bens é registrado como indo dos

espanhóis aos indígenas (em sua maioria bens recebidos da metrópole), enquanto que dos

indígenas só se registra a entrada de “favores” (força de trabalho, carne de guanaco); 3) Não

há menção sobre o mundo lúdico (consumo de álcool ou participação de jogos) em nenhum

dos lados. A documentação constrói a imagem de uma sociedade pautada pelas normas cristã,

produtiva e civilizadora.

Para os propósitos deste pequeno artigo, Buscagliaanalisa a indústria lítica do sítio, e,

para tanto, nos dá três razões: 1) O material é resultado de diversas práticas cotidianas das

populações indígenas (de práticos a lúdicos); 2) Seria uma novidade para os colonos

espanhóis, e aposta no argumento de Pfaffenberger (1988) de que a circulação desses

materiais seria acompanhada de relações e interações sociais; 3) Nesse momento de interações

é possível expressar, construir e negociar identidades. A distribuição do material lítico pelo

sítio e sua qualidade é base para seu argumento pela interação entre os colonos e a população

indígena em torno da tecnologia de lascamento. Das casas e do forte, o segundo é o que

apresenta uma quantidade maior de materiais líticos, seguido pela (suposta) casa do soldado

casado e as casas dos colonos civis. Sua interpretação é de que os militares, responsáveis pela

proteção do bem-estar e ordem da colônia, teriam tido um contato mais direto, e talvez mais

livre, com os indígenas que circundavam a exótica colônia.

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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Ainda em Floridablanca, Marcia Bianchi Villelliargumenta sobre as mesmas

condições normativas documentadas, mas tenta analisar sua subversão pela arquitetura e

organização espacial. Partindo da teoria da estruturação social de Giddens, trabalha com a

ideia de que a ocupação é planificada seguindo pautas de interação social. Sendo assim, é

relevante perguntar quais são os comportamentos previstos nas edificações existentes, quais

foram efetivamente desenvolvidos e quais foram executados além da previsão (e por quê?).

Ou seja, analisar os processos de criação, reprodução e transformação da ordem social,

percebendo que as estruturas sociais não são entidades acima do comportamento humano,

pelo contrário, são resultado de práticas do dia-a-dia (e aqui aparece o conceito de habitus de

Bourdieu).

Sobre essa teoria, Floridablanca nos brinda com um excelente exemplo ao revelar,

nas escavações, estruturas que não estavam previstas no plano oficial da coroa. Além dos

vestígios de consumo de álcool em uma delas e do cuidado estético na construção da soleira

em outra, a própria existência dessas estruturas já nos permite pensar sobre os limites de

alcance dos interesses estruturadores no cotidiano.

Até este momento do livro, os trabalhos têm sido felizes e positivos no uso do

conceito de agência como categoria analítica para pensar o poder individual e coletivo de

mudar a sociedade em que vivem. Victor Gonzáles Fernandés, Hope Henderson, Andrea H.

Cuéllar, Carlos Sanchéz, autores na sequência da obra, discutem problemas conceituais e

teóricos de pensar agência em sociedades pré-hispânicas. As principais questões giram em

torno da visibilidade da intenção humana no registro arqueológico (choque entre correntes

funcionalistas e simbólicas) e mesmo a permeabilidade dos sistemas culturais para tais atos de

subversão.

Retomando o tema da hierarquização social, brevemente levantado pelo artigo de

Alejandro Haber, Victor González Fernandés propõe que a complexificação social não partiu

de elementos externos às sociedades (ele retoma as propostas de Elman Service, Robert

Carneiro, Boserup, Cohen, e Reichel-Dalmatoff e as discussões entre 1960 e 1980), tampouco

por dinâmicas que enfatizam o exercício de poder de poucos sobre muitos (proposições

trazidas por Timothy Earle e Charles Spencer entre 1970 e 1990). Citando o caso de San

Agustín, Huila, região de Mesitas (ocupada desde 1000 a.C.) e o gradual aglomeramento

populacional em torno de tumbas monumentais.

Estruturas existentes nos sítios estudados mostram certa igualdade produtiva

(ausência de diferenciação de materiais) que teria durado cerca de 2000 anos. Segundo o autor,

a quantidade de vestígios encontrados durante todo o Formativo 1 ao 3 (1000 a.C. e 1º século

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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d.C.) cresceu proporcionalmente à população e não parece haver distinção quanto ao acesso

nos modos de produção, e as aglomerações parecem ser feitas em torno de centros/famílias

cerimoniais. Durante o clássico regional (1000-900 d.C.) esses centros cerimoniais e suas

famílias regentes parecem ganhar importância com a construção de tumbas monumentais,

acompanhado do crescimento populacional em seu entorno e uma marcada distinção de

vestígios presentes nos sepultamentos associados aos monumentos, daqueles não associados.

A tese do autor é de que as elites religiosas não teriam se conformado por nenhum

tipo de grande diferenciação nas atividades de produção nem em acesso aos recursos. Sua

única diferença seria um poder ritual concebido pela tradição (tendo em vista a longevidade

do processo de complexificação aqui exposto). A fonte de mudança parece estar, defende

Fernandés, na própria estruturação e repetição de atividades religiosas durante 80 gerações, e

não no acesso exclusivo de uma elite aos excedentes ou modos de produção.

Essa proposta me parece instigante, mas fica a dúvida sobre o papel da

intencionalidade e da complexificação social em seu texto. Primeiro, seu argumento parece

atribuir agência nem a indivíduos nem ao coletivo, mas à própria estrutura (a repetição de

atividades rituais). Nesse contexto, o coletivo teria angariado a estabilidade dos sistemas

rituais por uma política de taxação baixa e receptiva. Não há uma relação bem estabelecida

entre como a elite religiosa teria ponderado sobre a manutenção de seu poder, o controle

simbólico e a política de taxas. Ou seja, há uma superestrutura que organiza as funções sociais

e há uma população que a repete, com pequenas doses de reformulação, uma premissa

inquestionada. O que tem força, assim me parece que conclui o autor, é a estrutura social e

não os seres humanos.

Segundo, nem ele, nem os autores que seguem, explicitam o que querem dizer por

“sociedades complexas” e “complexificação social”. Uma sociedade complexa é uma

sociedade hierarquizada? No texto de Victor, ficamos com essa impressão. Apesar de

derrubar barreiras sobre as origens da complexificação social, não faz uso crítico desse

conceito. A divisão de papeis sociais indica a existência de categorias sociais? Seriam todas

as formas de prestígio igualmente formas de hierarquização? Não seria hora de repensar o uso

do adjetivo “complexo” para sociedades humanas? Afinal, é preciso ser hierárquica e desigual

para ser complexa? Em suma, seria interessante fugir também das categorias evolucionistas de

classificação social se quisermos alcançar formas menos colonialistas de interpretação

arqueológica.

Hope Henderson vai um pouco mais além ao procurar em Eric Wollf as reflexões

sobre diferentes graus de acesso ao poder social. Para ela, há que desarticular as capacidades

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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de agenciamento das imagens de grandes chefias políticas. Em seu estudo de caso sobre a

antiga ocupação Muisca, no Vale do Leiva, Colômbia, entre os séculos XI e XVI da era cristã,

percebe que o possível surgimento de categorias sociais distintas (marcada pela leve

predominância de cerâmica em algumas residências, combinado com seu cercamento) não

impediu que a ocupação territorial ocorresse de maneira independente. Ou seja, em todo o

processo de ocupação Muisca no Vale de Leiva, a organização dos assentamentos parecia

obedecer a parâmetros não associados com os de uma elite que surgira desde o quarto século

antes da chegada dos espanhóis. Sua sugestão é de que o status social não era suficiente para

limitar os campos de ação dos demais setores da sociedade.

Por essa razão, a autora defende as formas de exercício de poder delimitadas por

Wollf e acredita que o poder organizativo (capacidade de controlar os contextos que permitem

criar as organizações e expressões das pessoas) e o poder estrutural (capacidade de gerar

configurações sociais que permitem as possibilidades e limites de atuação) podem ser mais

úteis em contextos pré-hispânicos que as reflexões sobre agenciamento centradas no poder

individual (capacidades pessoais de influência sobre os demais) e poder de mandar

(capacidade de forçar obediência).

Os casos de agenciamento individual que aqui foram contemplados não puderam ser

pensados sem as referências documentais a indivíduos específicos, além de ser mister

pensarmos nas possibilidades de vontade coletiva como importante agente na condução e

modificação da sociedade.

Andrea M. Cuellartoca na questão da visibilidade individual versus visibilidade

coletiva no registro arqueológico de populações pré-históricas; e como é possível combinar os

interesses trazidos pela agência com as conquistas teóricas de proposições clássicas como a

do cacicado. Seu estudo de caso é no Vale de Quijos, a partir do quinto século a.C., e

argumenta contra o rechaço do conceito de cacicado e sua referência à centralização social. Se,

por um lado, o crescimento populacional não teve aparente relação com a distribuição de

recursos (assentamentos estudados mantinham uma aparente independência na produção de

gêneros alimentícios – preponderando aqueles adequados ao ambiente local – e de

ferramentas líticas de obsidiana), por outro é evidente a tendência ao agrupamento em torno

de centros específicos. Ou seja, pode ser que a centralização não tenha ocorrido por razões

econômicas, mas não há por que ignorar os indícios de centralização geográfica, indicando

alguma forma de centralidade política.

O artigo da autora não apresenta nenhum argumento contra a proposição de

agenciamento. No entanto, está mais preocupada em defender a hierarquia como princípio

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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organizativo do que efetivamente refletir sobre as capacidades individuais ou coletivas de

mudança social.

Finalmente, o artigo de Carlos Augusto Sanchéz é um ataque direto ao conceito de

agência ao propor que ele nos traz uma visão ilusória de mobilidade social, enganando-nos

quanto aos reais efeitos da hierarquia social. O poder não é uma inerência a todas as relações

humanas, como o querem Giddens, Bourdieu e Foucault, mas “outorgado pelo controle

econômico da sociedade” (p. 210). Em um projeto de arqueologia regional pelo alto do

Magdalena, Colômbia, o autor vê a transição de uma sociedade agrícola sedentária com

independência produtiva, para uma sociedade centralizada em torno de centros políticos, com

claras delimitações de paisagem, construção de canais não-comunitários (associados a umas

poucas casas) e tumbas megalíticas a partir do primeiro século a.C. Para ele, fica clara a

relação entre a centralidade e o controle econômico dos meios de produção (agricultura), com

respaldo de instâncias da vida religiosa (tumbas monumentais). Os dados etnohistóricos

mencionam sociedades indígenas centralizadas já no século XVI e reafirma a estabilidade e

força dos mecanismos de controle da produção e subordinação dos “caciques secundários”

aos “caciques principais”.

O trabalho de Carlos Sanchéz aborda o registro arqueológico por uma perspectiva

marxista e acredita que dotar os protagonistas históricos de liberdade de atuação é deixar para

segundo plano as forças coercivas e constritoras da estrutura social. Em poucas palavras, lhe

parece uma proposta interpretativa viciada na pretensa liberdade empreendedora típica da

sociedade capitalista, que discursa pelo liberalismo meritocrático enquanto esconde seus

mecanismos de controle da produção.

Esse último artigo parece fechar o livro como um ciclo que percorre as vantagens e

desvantagens interpretativas de pensarmos o conceito de agência. De sua liberdade ao seu

liberalismo, do rompimento das correntes forçosas do estruturalismo para a ilusão traiçoeira

do capitalismo. As discussões propostas neste livro deixam clara a carência epistemológica

que ainda cerca o uso das teorias de agência em arqueologia. Ao mesmo tempo em que não

parece mais viável buscarmos respostas atemporais apenas nos mecanismos coletivos

previstos pela sociologia, história e antropologia, devemos tomar cuidado para não desbancar

no livre-cambismo de forças. Se não podemos perder de vista as pautas vivas dos movimentos

de minorias sociais, perceber o poder de mudança e manejo que reside nos indivíduos ou em

determinados setores além das elites é politicamente reconfortante. Embora a vida em coletivo

não seja suficiente para impedir o desvio de conduta e a subversão da ordem imposta, não

podemos dedicar toda a história de um povo a breves figuras exaustivamente historiografadas.

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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Pensar agência é pensar em atuação, nas forças que constroem as normas sociais e naquelas

que tentam alterá-las.

Vale observar, ainda, que há uma lacuna geral entre os artigos de arqueologia – os

métodos, descrições de materiais e imagens ilustrativas deixam muito a desejar. Entendo que

a ideia central desta obra não seja uma apresentação precisa das coleções e métodos de campo,

mas os argumentos dos autores, quando tem como objeto os vestígios arqueológicos, devem

ser mais explícitos nos modos de registro e coleta de dados. Os mapas costumam ser de baixa

resolução e pouco ilustrativos dos argumentos, e há poucas (quando há) imagens dos artefatos

descritos. Particularmente frustrante é a pouca reflexão e descrição dos métodos de campo.

Como encontrar a intencionalidade no registro arqueológico? Como fazer uma arqueologia

que escape dos moldes colonialistas nos quais a disciplina foi engendrada? Essas questões são

centrais no desenvolvimento de uma arqueologia mais democrática e diversificada. O único

artigo que me pareceu ponderado na apresentação dos materiais, imagens ilustrativas, planos

claros e legíveis e descrição dos métodos foi o de Silvana Buscaglia.

De todos os artigos de arqueologia, os métodos de escavação, ou o que foi possível

conceber deles, não parecem se distanciar muito do que usamos cotidianamente. A chave

parece residir na própria escolha teórica. Se compararmos dos dados apresentados por Carlos

Sanchéz, Hope Henderson, Andre Cuellar, por exemplo, podemos ver que todos trabalham

projetos de escala regional, tratando de populações pré-hispânicas, discutindo o surgimento de

hierarquias sociais, mas com resultados analíticos muito diferentes. Certamente que são

diferenças oriundas de múltiplos contextos (populações distintas, regiões distintas), mas a

similaridade dos dados apresentados (crescimento populacional, vestígios de tecnologias

produtivas e simbólicas, diferenciação social) deixa claro que muito do que foi entendido

parte das escolhas dos próprios autores.

Referências bibliográficas FERREIRA, Lucio Menezes. “Diálogos de arqueologia sul-americana: Hermann von Ihering, o Museu Paulista e os museus argentinos no final do século XIX e início do XX.” Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia Vol. 19 (2009): 63-78. FERREIRA, Lucio Menezes. “Footsteps of the American Race: archaeology, ethnography and romanticism in imperial Brazil.” In: Global Archaeology Theory: contextual voices and thoughts, por Pedro Paulo A. FUNARI, Andrés ZARANKIN e Emily STOVEL. New York: Springer, 2005b.

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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FERREIRA, Lucio Menezes. “Solo civilizado, chão antropofágico: a arqeuologia imperial e os sambaquis.” In: Identidades, discursos e poder: estudos da arqueologia contemporânea, por Pedro Paulo A. FUNARI, Charles E. ORSER Jr. e Solange Nunes de O. SCHIAVETTO. São Paulo: Annablume/PAFESP, 2005a.

—. Território Primitivo - A institucionalização da arqueologia no Brasil (1870-1917). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.

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GEOGRAFIA E ARQUEOLOGIA: UMA VISÃO DO CONCEITO DE RUGOSIDADES DE MILTON SANTOS

Geography and Archaeology: an overview of the concept of roughness as defined

Milton Santos.

Anderson Sabino1 Robson Simões2

RESUMO Neste trabalho trazemos reflexões que partem dos conceitos de espaço e rugosidade elaborados pelo renomado geógrafo brasileiro Milton Santos3 (1926-2001). Tais reflexões buscam contribuir para alavancar a construção de pontes que conectem de forma produtiva e permitam estabelecer frutífera interdisciplinaridade entre Geografia e Arqueologia. Palavras-Chave: Geografia; Arqueologia; Milton Santos. ABSTRACT In this paper we address the concepts of space and spatial roughness developed by the renowned Brazilian geographer Milton Santos (1926-2001). Our main purpose is to leverage the building of bridges that connect effectively Geography and Archeology allowing a productive interdisciplinary relationship for both sciences. Keywords: Geography, Archaeology, Milton Santos RESUMEN Este trabajo aporta reflexiones que parten de los conceptos de espacio y rugosidad producidos por el renombrado geógrafo brasileño Milton Santos (1926-2001). Estas reflexiones tienen como objetivo impulsar la construcción de puentes para conectar de manera productiva y establecer fructífera interdisciplinariedad entre la Geografía y la Arqueología. Palabras clave: Geografía, Arqueología, Milton Santos

1 Graduando em Geografia – Instituto de Geociências – UNICAMP [email protected] 2 Graduando em Geografia – Instituto de Geociências – UNICAMP [email protected] 3 Milton Santos foi professor da Universidade de Paris, Sorbonne, Universidade de Toronto, Canadá, Columbia University, Nova York e USP. Foi Diretor da École de Haustes Études en Sciences Sociales, Paris. Escreveu mais de 40 livros e publicou cerca de 300 artigos. Em 1994, conquistou o Prêmio Internacional de Geografia Vautrin Lud, equivalente ao Nobel de Geografia. Recebeu titulo de Doutor Honoris Causa de várias universidades do Brasil e do mundo.

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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Introdução

Entre os muitos focos comuns de pesquisa que aproximam Geografia e Arqueologia

estão os objetos do espaço, que podem ser considerados patrimônio, e participam da busca por

conhecimentos socioculturais em perspectiva histórica4. Se a Arqueologia tem como objeto

de pesquisa imediato a cultura material de sociedades humanas (FUNARI, 2006), presume-se

que cada evidência concreta tenha uma localização e um contexto espacial in situ.

Desse modo, sendo o espaço, em sua forma e conteúdo, objeto de estudo

da Geografia, não é de se surpreender que Arqueologia e Geografia possuam amplas áreas

compartilhadas de pesquisa e contribuição científica, sendo atualmente um dos campos mais

dinâmicos de exploração e exemplo possível de interdisciplinaridade exitosa.

O objetivo desse trabalho é discutir o conceito de rugosidade utilizado pela

Geografia miltoniana e, a partir da sua conceituação, refletir sobre interfaces comuns entre

Geografia e Arqueologia que possam gerar contribuições frutíferas e efetivas para ambas

as ciências.

Com estrutura segmentada em três pilares, o presente texto aborda inicialmente

conceitos essenciais do pensamento geográfico que embasam a ideia de rugosidade formulada

por Milton Santos; em seguida, aprofunda e discute este conceito; por fim, reflete sobre

os enfoques da Geografia e Arqueologia relacionados ao conceito de patrimônio.

Milton Santos

Como ciência em constante desenvolvimento, a Geografia vem buscando avançar

na lapidação de seus objetos e objetivos. No curso deste caminho, muitos foram os que

contribuíram para seu avanço, entre eles, destaca-se o geógrafo brasileiro Milton Santos,

conceituado pensador de questões fundamentais desta disciplina, como a determinação precisa

do objeto de estudo da Geografia, sua epistemologia e também a definição de espaço

geográfico.

Para este autor, a Geografia deve ocupar-se da análise dos sistemas de objetos

e sistemas de ações, que são inseparavelmente aliados ao tempo e compõem o espaço

geográfico que é o objeto de estudo da ciência geográfica. Sua principal ferramenta

metodológica é o estudo da técnica (SANTOS, 2012).

4 Milton Santos busca uma “epistemologia geográfica de cunho historicista e genético” (2012: 49).

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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A técnica, diversa em suas particularidades, mas una enquanto fenômeno, registra no

espaço seus diferentes momentos embutida no trabalho humano realizado, permitindo

a reconstituição de seu processo formador.

Nesse sentido, a noção de rugosidade tem papel importante, pois auxilia

na identificação das técnicas e conjunturas sociais de tempos precedentes, figurando assim

como uma ponte de diálogo entre a Geografia e a Arqueologia. Na definição de Santos:

Chamemos de rugosidade ao que fica do passado como forma, espaço construído, paisagem, o que resta do processo de supressão, acumulação, superposição, com que as coisas se substituem e acumulam em todos os lugares. As rugosidades se apresentam como formas isoladas ou como arranjos. (SANTOS, 2012: 140).

Sendo posicionado analiticamente por Milton Santos como interno ao espaço

geográfico, o conceito de rugosidade reflete a coexistência, no tempo presente, de elementos

de diferentes idades. As rugosidades são as feições moldadas num tempo anterior

e que mantém-se impondo às ações atuais suas possibilidades enquanto construções espaciais.

O espaço geográfico

O espaço é o conceito fundamental para a Geografia. Com o objetivo de facilitar

e alinhar o entendimento sobre esse conceito, exploraremos a seguir os elementos

que o compõem e como suas relações são concatenadas.

As análises geográficas focam, antes de tudo, as relações entre as ações e objetos

realizadas pelo homem social no e através do espaço. Logo, são essencialmente distintas

da visão da economia, que o entende como receptor de fluxos, ou da matemática,

que o enxerga sob o ponto de vista da geometria, relacionado com distâncias, polígonos,

limites e extensões.

Por conta das demandas de uma realidade complexa e dinâmica, as construções

epistemológicas da Geografia têm sido aprimoradas objetivando construir um abrangente

conceito de espaço que compreenda a diversidade e movimentos constantes do período atual.

Em vista disso, torna-se necessário elaborar um conjunto de ideias, categorias

e conteúdo a partir do espaço, tarefa complexa levada a cabo por Milton Santos. O geógrafo

brasileiro (2009: 10) aponta que “a própria metodologia deve ser renovada constantemente,

senão a realidade lhe escapa (...) [e ressalta que] analisar um fenômeno novo com uma

metodologia ultrapassada equivale a deformar a realidade, e isso não conduz a parte alguma”.

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Sincronizado com a atualidade, o espaço geográfico é dinamicamente modificado

pela sociedade de acordo com seus interesses, desse modo, a sociedade é um reflexo do seu

espaço, assim como o espaço é um reflexo da sua sociedade (MOREIRA, 2011).

Para Santos (2012: 63), o espaço é “um conjunto indissociável, solidário e também

contraditório de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente,

mas como o quadro único no qual a história se dá”.

Portanto, é sob uma visão sistêmica e de totalidade que o espaço deve ser analisado,

sua importância é detalhada por Milton Santos (2012: 115) ao afirmar que esta

é uma noção “das mais fecundas que a filosofia clássica nos legou, constituindo um elemento

fundamental para o conhecimento e análise da realidade. Segundo essa ideia, todas as coisas

presentes no Universo formam uma unidade".

O entendimento do todo suporta as análises geográficas, as coisas são partes do todo,

mas "a totalidade não é uma simples soma das partes. As partes que formam a totalidade

não bastam para explicá-la. Ao contrário, é a totalidade que explica as partes" (SANTOS,

2012:115).

De maneira dinâmica e constante a totalidade se redefine, esse movimento

é denominado totalização. A totalidade é resultado do processo de totalização. Ela está

submetida a esse incessante processo que a faz continuamente inacabada (SARTRE, 1972).

Assim, permanentemente incompleta, abriga incontáveis totalidades parciais, retratando,

portanto, um resultado instantâneo e pontual, sempre inconcluso das ações de totalização.

A análise local deve, com isso, reportar-se constantemente ao todo e do todo verificar

o que de implícito lhe influencia. A compreensão se dará nesta investigação multiescalar,

consideração fundamental para o uso do conceito de rugosidades que aqui se pretende.

Sistemas: objetos, ações e história

Pensando sob uma perspectiva relacional, os conceitos associados ao espaço, quando

considerados dentro de um contexto e em conjunto, formam uma base teórica e metodológica

a partir da qual é possível discutir os fenômenos espaciais em uma totalidade e seus

fundamentos.

Desse modo, conectados à ideia de totalidade estão os objetos e ações, seus sistemas

são novas totalidades que compõem a totalidade em contínuo movimento, o que foi designado

por Milton Santos como espaço (SANTOS, 2012).

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Sendo assim, os objetos, que em conjunto com as ações formam o espaço geográfico,

são “tudo o que existe na superfície da terra, toda herança da história natural e todo resultado

da ação humana que se objetivou. Os objetos são esse extenso, essa objetividade, isso que se

cria fora do homem e se torna instrumento material de sua vida” (SANTOS, 2012: 72). As

cidades, barragens, edifícios, instrumentos, veículos, entre outros, são exemplos

de objetos.

Complementarmente, os objetos devem existir como sistemas e não como massas

estocadas, eles são úteis ao homem, podendo ser simbólicos ou funcionais e só têm sentido

se associados às ações e vice versa. Ademais, objetos sempre carregam discursos

e simbolismos.

A ação é um fato humano, necessita de projeto, intenção, pois depende do objetivo

e da finalidade com a qual é praticada, e nisso o homem é único. “As ações humanas não

se restringem aos indivíduos, incluindo, também, as empresas, as instituições” (SANTOS,

2012: 82).

Além disso, ações podem conter também a racionalidade alheia, sustentada

por técnica e ciência e depositada em objetos técnicos que possuem as finalidades em si,

os executores são, dessa maneira, alienados do processo decisório, podendo dar-se de homem

para homem e de lugar para lugar.

As necessidades naturais ou criadas são origem das ações, as quais levam às funções.

“Essas funções, de uma forma ou de outra, vão desembocar nos objetos. Realizadas através de

formas sociais, elas próprias conduzem à criação e ao uso de objetos” (SANTOS, 2012: 83).

Continuamente, os “sistemas de objetos e sistemas de ações interagem. De um lado,

os sistemas de objetos condicionam a forma como se dão as ações e, de outro lado, o sistema

de ações leva à criação de objetos novos ou se realiza sobre objetos preexistentes” (SANTOS,

2012: 63). Ou seja, quando não está criando objetos, o homem age sobre a história

cristalizada, herdada do passado.

Abordando de maneira sintética, a forma é a aparência do objeto, que pode

se organizar, formando um arranjo, um padrão espacial. A função representa uma tarefa,

atividade ou papel a ser realizado pelo objeto. A estrutura é o modo como os objetos estão

inter-relacionados entre si, não é, portanto, visível, é implícita à forma, sendo um tipo de fonte

que gera as formas. O processo se constitui em uma estrutura em transformação, sendo ação

que ocorre continuamente visando um resultado qualquer, implicando tempo e mudança.

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Assim, os objetos se constituem nas formas do espaço, são as formas espaciais.

Por outro lado, as ações, são o conteúdo que a sociedade produz. Vinculadas por uma relação

direta, quando modifica o espaço, a sociedade por consequência também se modifica.

Sob o efeito das forças da modernização, quase sempre associadas aos interesses

do capital global, as formas de um período específico do passado, que possuíam uma

finalidade específica, podem ter sua função inicial modificada pelo tempo. São essas formas

que Milton denomina de rugosidades.

Sendo marcas impressas no espaço, deixadas por ações ocorridas em tempos

pretéritos, as rugosidades produzem conflito entre o novo e o antigo, estabelecendo uma

relação de oposição e fricção, alvo de estudos da história, Arqueologia e Geografia.

Espaço e paisagem: estruturando ligações

A Arqueologia utiliza amplamente o conceito de paisagem em suas análises,

(PELLINI, 2007), a Geografia também o emprega e o diferencia do conceito de espaço.

Milton Santos elabora essa distinção entendendo que o espaço é sempre atual

e social, pois contém as funções exercidas pelos seres viventes e as materialidades.

A paisagem seria uma parte do que foi efetivamente construído em diferentes momentos

da história e que deixa aparentar a morfologia e as diferentes idades dos objetos no momento

da observação.

O autor pontua que a paisagem não interage com a sociedade,

mas sim o espaço o faz, já que “a história não se escreve fora do espaço e não há sociedade

a-espacial. O espaço, ele mesmo, é social” (SANTOS, 1982: 10). Como resultado,

a paisagem5 representa para Milton, “o espaço humano em perspectiva” (2012: 106).

A paisagem, cada vez mais artificializada, é também obra social, mas não permite,

por si só, a apreensão do conteúdo social passado ou atual. Para isso seria necessário um

estudo das técnicas, das ações e funções, analisáveis a partir do espaço.

Em seu esforço de distinguir espaço e paisagem, Santos destaca o caráter

da paisagem de não ultrapassar o limite do visível, “a rigor, a paisagem é apenas a porção

da configuração territorial que é possível abarcar com a visão” (SANTOS, 2012: 103).

Portanto, o território seria uma categoria do espaço, um dado, que com suas formas artificiais

ou naturais compõe as áreas (SANTOS, 2012).

5 Milton (2012) dá exemplo de uma cidade caso fosse bombardeada por uma bomba de nêutrons aniquiladora, antes seria espaço, após a explosão seria apenas paisagem.

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Contudo, o autor ressalta que é possível identificar funcionamento na paisagem.

Como são as formas que efetivam, possibilitam e condicionam as ações no espaço, a

paisagem guarda esses movimentos, sempre do passado, de forma cristalizada, sendo

“testemunha da sucessão dos meios de trabalho, um resultado histórico acumulado”

(SANTOS, 2012: 107). É nesse ponto que as rugosidades devem servir de ferramenta.

Santos (2012) afirma que o estudo geográfico não pode desconsiderar a paisagem,

pois ela é a demonstração do processo de totalização realizado num determinado instante.

Além dela, interessa ao geógrafo o movimento atual, as funções exercidas no

presente espaço, já para o arqueólogo, o vital será enxergar e aprofundar os processos

e configurações sociais do passado a partir dos objetos desse mesmo passado que

atravessaram os tempos (SANTOS, 2012). O apoio teórico sobre as rugosidades do espaço

geográfico podem auxiliar nesta empreitada.

Rugosidades do espaço

Milton Santos reciclou o conceito de rugosidade a partir das ideias do geomorfólogo

francês Jean Tricart6 (1920-2003) que foi seu orientador no período que estudou na França.

O autor aponta que muitos geógrafos já usavam a noção de rugosidade do espaço -

“expressão criada por Tricart para a geomorfologia” (SANTOS, 2009: 72), para reforçar

a ideia de resistência da concretude preexistente às forças de superposição.

As rugosidades seriam produtos de legados históricos exibidas em suas formas,

entendê-las é essencial "porque elas são o envoltório inerte dos instantes que marcam

a evolução da sociedade global, mas, igualmente, a condição para que história

se faça" (SANTOS, 1982: 42).

Desta maneira, são enxergáveis depoimentos físicos que a história nos presta,

pois as “formas antigas permanecem como a herança das divisões do trabalho no passado

e as formas novas surgem como exigência funcional da divisão do trabalho atual ou recente.

(SANTOS, 1982: 42).

As rugosidades do espaço carregam a inscrição dessas realizações passadas, trazendo

a possibilidade de conhecimento, não sozinha, dos responsáveis pelos processos e possuidores

do poder construtivo, a disponibilidade histórica de mais-valia e seus detentores, enfim,

6 Jean Tricart, geógrafo francês, doutor pela Universidade de Paris I, tem reconhecida importância para o desenvolvimento da Geografia. Foi especialmente pelos trabalhos em Geomorfologia e EcoGeografia que Tricart ganhou expressão mundial. O geomorfólogo era muito admirado e considerado por Milton Santos, juntos realizaram diversos trabalhos na área de Geografia aplicada.

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uma gama de informações a respeito de conjunturas anteriores, inclusive porque “não podem

ser apenas encaradas como heranças físico-territoriais, mas também como heranças

socioterritoriais ou sociogeográficas” (SANTOS, 2012: 43). Ademais, no presente:

O meio ambiente construído constitui um patrimônio que não se pode deixar de levar em conta, já que tem um papel na localização dos eventos atuais. Deste modo, o meio ambiente construído se contrapõe aos dados puramente sociais da divisão do trabalho. Esses conjuntos de formas ali estão à espera, prontos para eventualmente exercer funções, ainda que limitadas por sua própria estrutura. (SANTOS, 2012:141)

Para o autor, o meio ambiente é o meio de vida do homem, é a natureza unificada

pela história e mediada pela técnica, sendo o meio transformado, diferente do conceito muitas

vezes empregado pelos ambientalistas (SANTOS, 1995). Segundo Milton, o meio ambiente

construído constitui-se patrimônio da humanidade, um pertence constantemente remodelado

e transformado, abrangendo os objetos que constituem o espaço e condicionando as ações

que sobre ele serão exercidas.

Portanto, as rugosidades, como formas, fazem parte do meio ambiente construído,

fração do sistema de objetos do espaço que atestam as marcas particulares da cultura,

trabalho, sociedade, economia e tecnologia do momento histórico em que foram criadas,

daí ser possível categorizá-las não somente pelos aspectos físicos que apresentam,

mas, sobretudo, pelas relações que as interconectam ao seu passado histórico.

A condição para a existência aponta para o concreto, “é a materialidade – objetos

e corpos – que acaba por ser, em cada lugar, a única garantia” (SANTOS, 2012: 226).

É principalmente ao nível do lugar que o homem cria identificação com os objetos.

Esta territorialidade é fundamental para formação de sua consciência. As rugosidades do

espaço incorporam esta questão, dependem da valorização para terem sua existência

respeitada pelas intervenções futuras.

Tempos acelerados

Há um quadro de [Paul] Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso. (Walter Benjamin, 1994: 226)

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Como messianicamente expõem W. Benjamin 7 , as ações de modernização

confrontam incisivamente as formas espaciais de tempos pretéritos, as rugosidades. Estas

limitam geograficamente as ações impostas pelos avanços e inovações que são decorrentes

da aceleração crescente da história e da mundialização, configurando-se assim como mais

uma componente do campo de forças que é o espaço geográfico.

Santos associa o estudo das rugosidades ao estudo da paisagem, que sob efeito

das dinâmicas modernizantes passa a conter as múltiplas e novas camadas que são produzidas

pelas forças inovadoras. Essas camadas são gradativamente mais comprimidas e geradas

em número cada vez maior, porém ainda que esse processo seja agudo, ao contrário da visão

de Benjamin, as rugosidades não são eliminadas.

Como remanescentes, as rugosidades são justamente essas formas que sobrevivem

à sucessão do tempo e, como já visto, nos contam sobre as divisões do trabalho e sua

respectiva carga técnica:

Em cada subespaço, novas divisões do trabalho chegam e se implantam, mas sem exclusão da presença dos restos de divisões do trabalho anteriores. Isso, aliás, distingue cada lugar dos demais, esta combinação específica de temporalidades, diversas. (...) O tempo da divisão do trabalho vista genericamente seria o tempo do que vulgarmente chamamos de ‘modo de produção’. (...) As manifestações temporais e espaciais dessas divisões do trabalho sucessivas são tanto mais eficazes e visíveis quanto mais o tempo se divide (SANTOS, 2012: 136)

Enxergando esse cenário, Milton faz analogia com a Arqueologia, apontando que

“o estudo da paisagem pode ser assimilado a uma escavação arqueológica" (1997: 55).

Sob essa ótica, explica a dinâmica entre os estratos da paisagem como intercorrências

temporais: "Em qualquer ponto do tempo, a paisagem consiste em camadas de formas

provenientes de seus tempos pregressos, embora estes podem ter sofrido mudanças drásticas

(...) Assim, se a forma é propriamente um resultado, ela é também fator social ” (SANTOS,

1997: 55).

Em vista disso, a análise das camadas que compõem o palimpsesto da paisagem

pesquisada demonstra-se vital para o entendimento das reorganizações do espaço e das forças

que nele atuaram e atuam. Em constante metamorfose, o espaço se reestrutura e se adapta

às novas finalidades que as formas pretéritas adquirem, além de modificar as dinâmicas,

as ideologias e fluxos de produtos, produzindo, dessa maneira, novas espacialidades,

novas formas.

7 O filósofo alemão e crítico literário Walter Benjamin (1892-1940), comprou em 1921 o quadro Angelus Novus do próprio Paul Klee (1879-1940), pintor e artista gráfico suiço. (BENJAMIN, 1994)

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Em sua teorização, Milton Santos preocupou-se igualmente em resolver o problema

da dualidade espaço-tempo. Esses conceitos já haviam se tornado inseparáveis pela física,

mas a Geografia não dispunha de método capaz de evidenciar essa realidade.

Milton, então, lança mão das técnicas como o fator suficiente para unir o espaço

e o tempo efetivamente, “de um lado, dão-nos a possibilidade de empiricização do tempo e,

de outro lado, a possibilidade de uma qualificação precisa da materialidade sobre a qual

as sociedades humanas trabalham” (SANTOS, 2012: 54).

Esta materialidade toma forma pelas técnicas contidas no processo de trabalho

realizado pelo homem e apresenta-se em tempos posteriores, após mudanças de seu conteúdo

e funções, como rugosidades do espaço.

Partindo do princípio de que “o trabalho realizado em cada época supõe um conjunto

historicamente determinado de técnicas” (SANTOS, 2012: 56), é possível então identificar no

decorrer da história suas materializações e variações com auxílio das rugosidades,

redescobrindo as técnicas de construção, produção, sociabilidade e outras.

Portanto, rugosidades são registros de ações de um passado multifacetado, realizado

no espaço e que só fazem sentido, quando analisadas dentro do contexto espaço-social em sua

totalidade, constituem-se condições das possibilidades reais no presente.

Pontes de diálogo entre geografia e arqueologia

“O conhecimento, ao se fragmentar analiticamente para penetrar nos entes, separa o que organicamente está articulado” (LEFF, 2004).

As pontes que ligam a Geografia com a Arqueologia são inexoráveis.

Ambas necessitam de análises interdisciplinares, ambas analisam o patrimônio cultural

(SILBERMAN, 2007), este, por possuir uma dimensão espacial que é parte essencial de sua

identidade, é um dos focos de estudo da Geografia Cultural, sendo analisada por especialistas

como James Duncan, Denis Cosgrove e Stephen Daniels, além de pensadores atuais como

David Harvey.

O patrimônio cultural, sendo material, imaterial ou natural, está vinculado,

sobretudo, à diversidade cultural, “o que faz com que o conceito de Patrimônio Mundial seja

excepcional é sua aplicação universal. Os sítios do Patrimônio Mundial pertencem a todos os

povos do mundo, independentemente do território em que estejam localizados” (UNESCO,

2013).

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Aline Vieira de Carvalho e Paulo Funari reafirmam a importância do patrimônio: “no

contexto da acessibilidade, os patrimônios materiais e mesmo os imateriais adquirem extrema

força simbólica. Escolhidos por determinados grupos sociais, esses patrimônios tornam-se

representações de tempos, espaços e acontecimentos específicos” (2010: 11).

A Geografia, em especial uma de suas ramificações, a Geografia Cultural, aborda

o patrimônio sob a perspectiva do espaço, pois toda análise sobre o patrimônio cultural

necessita de uma análise espacial.

Nesse sentido, a ideia de rugosidade se associa analogamente com o conceito

de patrimônio que é intrínseco à noção de espaço. A Arqueologia enfoca e valoriza as formas

espaciais que se apresentam, para delas obter os conteúdos que cercaram sua construção.

Com esse desejo, a noção de rugosidade, relacionada com heranças visíveis que

informam sobre situações sociais, condições técnicas do passado e “tipos de capital utilizados

e suas combinações técnicas e sociais com o trabalho” (SANTOS, 2012: 140) pode contribuir

em grande medida nas análises relacionadas ao patrimônio.

Os estudos associados ao levantamento de patrimônios materiais e imateriais levam

em conta seus territórios, pois é no espaço que se concretiza a noção de tombamento.

Adicionalmente, quando analisado pela Geografia, esse processo histórico e político

de seleção de bens e paisagens é pensado sob a ótica de produção do espaço,

e as formas de apropriação e de valorização do território.

Outras pontes conectam Geografia e Arqueologia no que se refere aos estudos

do patrimônio. Além dos estudos geomorfológicos e de relevo, nas últimas décadas tem

crescido o suporte da Geografia em pesquisas que demandam análises baseadas em sistemas

de informação geográfica (SIG), que são apoiados por imagens de satélites de sítios

arqueológicos e também técnicas de georreferenciamento, documentação cartográfica

e geotecnologias para suportar o planejamento de sítios históricos, territórios e cidades com

patrimônio cultural destacado.

Considerações finais

Geografia e Arqueologia somente podem ser entendidas dentro de um contexto

histórico e social. Contudo, é importante destacar que “os geógrafos trabalham também com

os objetos do presente” (SANTOS, 2012: 73), preocupando-se com as possibilidades atuais

de mudanças físicas e funcionais, sem perder de vista a indissociabilidade entre objetos

e ações.

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Para Funari, a Arqueologia “estuda os sistemas socioculturais, sua estrutura,

funcionamento e transformações com o decorrer do tempo a partir da totalidade material

transformada e consumida pela sociedade” (2006: 16). Tendo como objetivo “a compreensão

das sociedades humanas e, como objeto de pesquisa imediato, objetos concretos” (2006: 16).

Segundo Rivers, Knappett e Evans (2011: 6), Arqueologia visa compreender

“relações espaciais. [E] A própria atividade de examinar as correlações espaciais da estrutura

social inicial tem um positivo efeito de levantar problemas importantes em termos gerais

e simples".

Assim, a Arqueologia tem como foco a compreensão do passado, a preservação

da memória material e imaterial e a formação da consciência a respeito das relações sociais

anteriores. Com isso, entendemos que as rugosidades, não esgotam em si os fatores passíveis

de interpretação, mas vem contribuir para a formação do arcabouço teórico da Arqueologia.

Ambas as disciplinas buscam o conhecimento da gênese das formas e dos estratos

que compõem os espaços. As camadas são os processos históricos que nele atuaram

e o modificaram. Ao longo dos últimos dois séculos essas camadas tem se formado mais

rapidamente.

Esse processo de formação foi acelerado pelas novas tecnologias, pelo

desenvolvimento econômico e o crescimento da população, produzindo distorções

e contrastes, pois não se considerou e tampouco se tratou de forma responsável, as camadas

antigas, tendo sido estas singularmente esquecidas – e até varridas.

Analogamente, os espaços do período atual, principalmente os urbanos, lidam com

dilemas semelhantes aos dos palimpsestos, cujos textos foram eliminados para permitir

a reutilização da matriz.

Segundo David Harvey (2003: 69), geógrafo inglês e renomado pesquisador

do período atual, o “pós-modernismo cultiva (...) um conceito do tecido urbano como algo

necessariamente fragmentado, um ‘palimpsesto’ de formas passadas superpostas umas

às outras e uma ‘colagem’ de usos correntes, muitos dos quais podem ser efêmeros”.

As camadas antigas e suas rugosidades, sendo marcas impressas no espaço deixadas

por formações ocorridas em tempos anteriores, geram atrito conflituoso entre o novo

e o antigo (SANTOS, 2012).

Perceptíveis, as necessidades dos espaços antigos e dos espaços da atualidade são

distintas, essa diferença promove tensão, embates e mudanças. As mudanças, em geral,

tendem a modificar as camadas anteriores. Essas mudanças podem ser observadas tanto nos

processos sociais como também nos objetos materiais.

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Contudo, espera-se que nos espaços históricos transformados existam traços

que remetam ao passado, ainda que as dinâmicas dos espaços contemporâneos sejam

diferentes das que consolidaram as estruturas espaciais no passado.

Para isso, é necessário manter os traços antigos e não descartá-los, em um cenário

em que as pressões exercidas sobre as estruturas espaciais são originadas pela tensão entre

a mutação dos processos sociais, a lógica de acumulação do capital e seus reflexos no espaço

geográfico.

Essa tensão levanta uma questão vital: como planejar a construção da próxima

camada do palimpsesto de forma a satisfazer os anseios e as necessidades do futuro,

sem agredir, em medida razoável, as camadas anteriores?

Um evidente tratamento de descarte tem sido dado para grande parte das rugosidades

espaciais, especialmente as urbanas, aos espaços abandonados como fábricas antigas, velhos

galpões e sítios históricos entre outros. Além de inadequado e ineficiente, esse processo

apenas perpetua e faz elevar possíveis rupturas e tensões sociais, ademais, anuncia a perda

da memória social histórica.

Ainda que possamos constatar atualmente um aumento da visibilidade dos bens

culturais e naturais do mundo, ou seja, a valorização contemporânea do patrimônio, as ações

de refuncionalização desses espaços históricos e o denominado turismo cultural, quase sempre

distorcido e desenfreado, somente explicitam a dialética entre cultura e mercadoria.

Sobre esse fenômeno de mercantilização do patrimônio histórico, o arqueólogo Neil

Silberman8 aponta "o passado tem sido apresentado como um parque temático" (2004: 11).

Há no quadro atual uma evidente polarização de propósitos e intenções. Por um lado,

a opinião pública deseja preservação, intensificação e a reconstrução. Já as modernizações

do capital, atuam no sentido de negar o passado, reconstruir totalmente diferente a vida e os

espaços ou inseri-los na lógica de mercado através de ações exógenas à preservação genuína

do patrimônio. Como destacado por Luchiari, “na arena econômica [atual], a tradicional

subjetividade da cultura foi incorporada a uma racionalidade que busca legitimar identidades

hegemônicas” (LUCHIARI, 2005: 95).

Essas ações geram, não poucas vezes, danos aos grupos sociais e à busca por

igualdade. A compreensão histórica deve ser completa para resistir e não se tornar apenas um

8 Neil Silberman é referência mundial em estudos sobre patrimônio e memória. Professor da Universidade de Massachusetts (Amherst). Em 2012, por convite do LAP - Laboratório de Arqueologia Pública / IFCH –UNICAMP, ministrou cursos e palestras no Brasil.

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dado sem siginificado, como afirma o geógrafo e historiador David Lowenthal, "Quanto mais

realista parece a reconstrução do passado mais ela é parte do presente" (1994: 302).

Neste sentido, o aprofundamento das discussões acerca do patrimônio cultural torna-

se essencial diante da necessidade de interpretação das transformações sócio-espaciais

provenientes da ligação entre patrimônio, políticas públicas e mercado.

Geralmente associadas ao planejamento de estratégias e gestão territorial do

patrimônio em múltiplas escalas, as análises geográficas ligadas ao patrimônio possibilitam

também a compreensão dos aspectos funcionais, formais e normativos desses bens.

Sendo, sobretudo, abrangentes instrumentos de análise para o entendimento da importância

dos novos significados políticos, econômicos, sociais e culturais imputados ao patrimônio

cultural, não somente em nível macro, mas principalmente no nível das sociedades locais.

Entende-se, enfim, que além do olhar para o patrimônio cultural, que une Geografia

e Arqueologia, outras pontes de diálogo estão sendo construídas, possibilitando que essas

ciências tenham uma fecunda interdisciplinaridade, pois ambas tem um papel vital

na construção do futuro.

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Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

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Resenha: ANTÚNEZ, Carlos Arredondo; HERNÁNDEZ, Odlanyer de Lara; RODRÍGUEZ, Bóris Tápanes. Esclavos y cimarrones en Cuba: arqueologia histórica en la

Cueva El Grillete. Buenos Aires: Instituto Superior del Profesorado Dr. Joaquín V. González – Centro de Investigaciones Precolombinas, 2012. 180p.

Victor Gomes Monteiro1

O livro “Esclavos y cimarrones en Cuba: arqueologia histórica en La Cueva El

Grillete” foi produzido em conjunto por três autores com distintas áreas de especialidades,

todas convergindo para a Arqueologia. Bóris Tápanes e Odlanyer Lara são arqueólogos com

certa experiência em escavações em Cuba. Carlos Antunes contribuiu com seu conhecimento

em ciências biológicas, zooarqueologia e antropologia física. O livro é uma ótima referência

para análise da cultura material de contextos quilombolas ou cimarrones, tanto por apresentar

possibilidades metodológicas de análise dos materiais, quanto por traçar um panorama geral

do movimento cimarronero, pelo menos no que se refere à Província de Matanzas (região

ocidental de Cuba). Ao aprofundar os estudos na “Cueva El Grillete” e traçar paralelos com

outros sítios de cimarrones já estudados, os autores conseguem demonstrar com maior

riqueza de detalhes o cotidiano desses indivíduos e salientar o quanto ainda falta ser estudado

em termos de Cuba a esse respeito, mesmo com a consciência de que o potencial para este

tipo de estudo seja enorme.

O objetivo principal do texto não era propriamente revisar a historiografia a partir do

elemento da cultura material, mas sim entender a partir de uma micro-escala, o que é o sítio

“Cueva El Grillete” e as dinâmicas de sobrevivência dos escravos cimarrones. Para tal o

acesso a cultura material, munida de uma perspectiva da Arqueologia da Paisagem, que

procura entender não somente os sítios arqueológicos isolados de seus meios, mas sim

entender as paisagens arqueológicas presentes no espaço geográfico, ou seja, os processos e

formas culturais do espaço (Boado, 1999), são de fundamental importância. O alicerce

informacional do refugio cimarrón “Cueva El Grillete” é somente a documentação

arqueológica (cultura material) e os elementos relacionados à paisagem, muito pouco se tem

de documentação escrita acerca do local.

Através da organização estrutural dos capítulos é possível perceber que os autores

compartilham de uma visão um tanto quanto cartesiana de divisão entre “dados históricos” e

“dados arqueológicos”, ou de isolamento de elementos que deveriam estar em constante

1 Bacharel em História pela UFPel (2012). Pesquisador Associado do LÂMINA.

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diálogo, que é o contexto histórico (proveniente de documentos escritos) em consonância com

o contexto arqueológico (criado por todos elementos da cultura material). Essa divisão fica

bem nítida com a escolha de deixar o segundo capítulo destinado a descrição e apresentação

dos “dados históricos” e os seguintes capítulos (3º; 4º 5º) para os “dados arqueológicos”, sem

tratar as fontes ditas históricas como potencialmente elucidativas da vida material dos

cimarrones, ou seja, sem considerar esta documentação escrita como sendo portadora de

materialidade e vetor da cultura material, tanto em seu conteúdo escrito, onde pululam

referências a respeito das “materialidades do passado”, como na sua própria materialidade de

documento constituído de suporte físico específico.

Na introdução os autores fazem uma análise da gênese até a atualidade da pesquisa

em arqueológica histórica em Cuba, observando que até os anos 1960 as pesquisas se

focavam muito nos estudos das elites nas sociedades coloniais. Os estudos em arqueologia da

escravidão e dos cimarrones em Cuba, só vão se reverter em estudos sistematizados e de

maior profundidade a partir dos anos 1990, principalmente pelas investigações realizados por

Gabino La Rosa (1989; 1991). O grosso das publicações arqueológicas de escravidão e

cimarrones se deram nas alturas de Habana-Matanzas. Nas regiões de Limonar, Coliseo e

San Antonio de los Baños, não se tem proliferado estudos, mesmo com o potencial dessas

regiões. Por outro lado a densidade e o contexto das plantações de café e açúcar de Habana-

Matanzas tem sido, do ponto de vista arqueológico, bem estudadas.

O segundo capítulo “Algunos datos históricos”, é divido em duas partes. Num

primeiro momento são apresentadas as informações de cunho contextual e histórico da região

de Matanzas, desde a formação da indústria açucareira e da introdução da mão de obra

escrava, ao processo de cimarronaje. Através de uma série de dados oficiais colhidos junto

aos Arquivos da Província de Matanzas e outros locais, os autores traçam um cenário da

rebeldia escrava na região com os focos de fugas e conseqüentemente de caça aos cimarrones.

Num segundo momento os autores discorrem a respeito das autoridades locais e dos

indivíduos responsáveis pela manutenção e execução do sistema repressivo e coercitivo do

sistema escravista cubano: os rancheadores. A documentação produzida pelos rancheadores

em suas “batidas de caça” são uma das mais ricas fontes de informação da dinâmica e

estratégias de sobrevivência dos cimarrones, como também do poder repressivo que buscava

o extermínio desse fenômeno social. Através de seus “relatórios”, eles descreviam de certa

maneira o cotidiano dos cimarrones, ao elencar as características de seus refúgios, a cultura

material presente nessas habitações e informações sobre os escravos capturados ou executados.

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Esse registro das atividades dos rancheadores era além de uma obrigação burocrática, uma

estratégia para melhor entender a dinâmica dos cimarrones.

Um ponto que merece destaque nesse capítulo, pelo menos para quem trabalha com

resistência escrava, rebeliões e quilombolas no Brasil, é o registro da preocupação dos

senhores e administradores locais da região de Guamacaro, de uma possível conspiração

escrava que acabou não tomando proporções maiores em 1830. Saliento essa parte, por

perceber que as notícias de conspirações escravas (em grande escala), mesmo na maioria das

vezes não passando de boatos ou não chegando a se concretizar, são processos que permeiam

tanto Cuba quanto o Brasil, como no exemplo da suspeita de uma conspiração escrava na

província do Rio Grande de São Pedro nas primeiras décadas do séc. XIX (Maestri, 1984,

p.145-146) ou do temor das autoridades da cidade de Pelotas para a possibilidade de uma

revolta em massa dos cativos locais, incentivado por elementos estrangeiros (Monteiro, 2012).

Os autores mantêm uma divisão, proveniente do trabalho de Gabino La Rosa Corzo

(1989; 1991), entre cimarronaje simple, que seria o primeiro nível de resistência, e as

quadrilhas de cimarrones, que consistiam de grupos armados, que se deslocavam de um local

a outro sem praticar agricultura, vivendo de caça, pesca, e roubos, estes fariam parte da

resistência ativa. Essa divisão entre resistência ativa e passiva é pouco produtiva e não leva

em consideração as resistências cotidianas e simbólicas, que não se encontram

necessariamente no campo da resistência física direta.

No terceiro capítulo “Trabajos arqueológicos en Matanzas” os autores elencam uma

série de trabalhos arqueológicos desenvolvidos na região de Matanzas (Cafetal La Dionisia;

Cueva El Garrafón o Mural; Cueva Los Cristales; etc.). Salientam que são poucos os

trabalhos executados com relação a potencialidade de pesquisa na região. As pesquisas

relacionadas à escravidão não são propriamente relacionados ao cimarron, proporcionando na

maioria das vezes um panorama contextual e sócio-político em que estavam inseridos os

escravos. Os autores salientam que seguem para este trabalho o espaço natural de Matanzas

em que se moveram os cimarrones, e não exatamente uma representação objetiva dos limites

territoriais da província.

No quarto capítulo “La Cueva El Grillete” os autores entram no objeto específico das

suas pesquisas que é o sítio “El Grillete” em Matanzas. Os dados arqueológicos retirados da

“Cueva El Grillete” são analisados nas primeiras páginas do capítulo, relegando-se o final ao

desenvolvimento e aplicação do conceito de paisagem.

Nessa parte do livro os autores descrevem de forma mais detida os aspectos

metodológicos e contextuais da cultura material que dá base para produção deste trabalho.

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Nesta primeira sessão do capítulo são descritos os dados quantitativos e de análise tipológica

dos materiais, com destaque aos objetos de maior relevância para o entendimento da vida dos

cimarrones que viveram naquele local. Ao final do capítulo os autores apresentam alguns

aspectos do que entendem por paisagem e desenvolvem esse conceito baseando-se no sítio

“Cueva El Grillete”. O estudo da Arqueologia da Paisagem é um aspecto até então não

sistematicamente estudado em Cuba e de grande potencial para o estudo dos escravos

cimarrones. Pela perspectiva que os autores seguem a paisagem não é mais estática, da ordem

física e ambiental, mas sim é vista como construção social, imaginária, enraizada a cultura.

Por esse motivo se propõe como objetivo deste trabalho entender paisagens arqueológicas, ou

seja, os processos e formas de culturalização do espaço. Inspirados em Criado Boado (1999),

entendem a paisagem como um produto social, com três dimensões espaciais intrínsecas e

relacionais: o espaço como meio físico ou ambiental da ação humana; o espaço enquanto

meio construído pelo ser humano, onde se produzem as relações entre indivíduos e grupos; e

o espaço enquanto meio pensado e simbólico que oferece a base para desenvolver e

compreender a apropriação humana da natureza.

Seguindo essa linha de pensamento, os autores desenham cada um dos espaços com

relação ao sítio estudado. O espaço natural diria respeito às elevações onde se encontra a

“Cueva El Grillete” e que constituem a Sierra de Guamacaro. O espaço como meio

construído poderia ser percebido, através da geografia das elevações da Sierra de

Guanamacaro, que permitem inferir de certa maneira as possíveis vias de transito e a

mobilidade dos cimarrones nessa zona. Por último os autores destacam o espaço como meio

simbólico, que se demonstraria na cultura material através de elementos que poderiam

conformar aspectos de religiões afro-cubanas. Certo para os pesquisadores é que a construção

do mundo cimarrón não se limitou apenas a cultura material, mas também ao uso dos meios

naturais, especialmente dos sistemas montanhosos e das covas que formataram parte

imprescindível de suas vidas.

O quinto e último capítulo “Zooarqueología de la cueva el grillete” apresenta

especificamente a pesquisa da fauna presente no sítio, com análise bastante detalhada de cada

especificidade dos materiais ósseos e conseqüentemente da dieta alimentar dos cimarrones

que em algum momento habitaram aquele local. Em resumo é possível depreender a partir da

análise zooarqueológica dos materiais do sítio, que os cimarrones obtinham sua sobrevivência

muito em função do aproveitamento das diversas espécies introduzidas pelos europeus a fauna

nativa e da utilização dos recursos naturais. O registro não intencional ou as informações

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deixadas por esses indivíduos no tempo se dá na forma dessa dieta rica em carne animal

(proteína), e nos utensílios de uso cotidiano que permanecem no registro arqueológico.

No sexto capítulo estão os apontamentos finais. Os autores ressaltam o valor dos

estudos em arqueologia para dar luz a esse fenômeno social do séc. XIX que foram os

cimarrones. As características geográficas e ambientais do sítio estudado “Cueva El Grillete”

permitiram a conservação e preservação natural desses materiais tanto da ação do clima

tropical como da ação antrópica. Artefatos como armas, vasilhas de cerâmica, recipientes e

contas de vidro, cachimbos, três fogões e abundantes restos ósseos de animais, conformaram

o espaço de habitação temporal dos cimarrones que ali estiveram. O auge do fenômeno da

cimarronaje na área teria sido os anos de 1820 a 1840, no entanto as evidências arqueológicas

apresentadas neste livro inclinam os autores a pensar em outro momento de habitação que se

estabeleceria entre 1840 e 1886, próximo a abolição da escravatura em Cuba.

Referências bibliográficas BOADO, Felipe Criado. Del terreno al espacio: planteamentos y perspectivas para La Arqueología del Paisaje. Capa 6. Grupo de Investigación em Arqueología del Paisaje, Universidad de Santiago de Compostela, 1999. CORZO, Gabino La Rosa. Armas y tácticas defensivas de los cimarrones em Cuba. Reporte de Investigación del Instituto de Ciencias Históricas. Nº 2. Academia de Ciencias de Cuba. La Habana. 1989. _______. Los Palenques em El Oriente de Cuba. Resistencia y Ocazo. Editorial Academia. La Habana. 1991. MAESTRI, Mário. A charqueada e a gênese do escravismo gaúcho. Porto Alegre: EST, 1984. MONTEIRO, Victor Gomes. Um inventário do medo: a Pelotas escravista e a representação do medo através das Atas da Câmara Municipal de Pelotas (1832-1850). 2012. Trabalho Acadêmico – Curso de História. Instituto de Ciências Humanas. Universidade Federal de Pelotas. Pelotas, 2012.

número 8 | 2013

EDITORES Aline Carvalho (LAP/NEPAM/UNICAMP) Pedro Paulo A. Funari (LAP/NEPAM/UNICAMP) COMISSÃO EDITORIAL Ana Piñon (Universidad Complutense de Madrid, Espanha) Andrés Zarankin (UFMG) Charles Orser (Illinois State University, EUA) Erika Robrahn-González (Documento Patrimônio Cultural, Arqueologia e Antropologia Ltda) Gilson Rambelli (LAAA / NAR / UFS) Lourdes Dominguez (Oficina del Historiador, Havana, Cuba) Lúcio Menezes Ferreira (UFPel) Nanci Vieira Oliveira (UERJ) CONSELHO EDITORIAL Bernd Fahmel Bayer (Universidad Nacional Autónoma de México, México) Gilson Martins (UFMS) José Luiz de Morais (MAE/USP) Laurent Olivier (Université de Paris, França) Martin Hall (Cape Town University, South Africa) Sian Jones (University of Manchester, Inglaterra) COMISSÃO TÉCNICA Derivaldo Reis de Sousa Franciely da Luz Oliveira Marcos Rogério Pereira ESTÁGIO – REVISÃO TEXTUAL Camila Secolin PROJETO GRÁFICO João Batista Ruela Luiza de Carvalho DIAGRAMAÇÃO João Batista Ruela ISSN 2237-8294