REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA UFMG -Escola de Música -Pós Graduação

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REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA ISSN: 1517-7599 volume 22 REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA junho / dezembro - 2010 julho / dezembro - 2010 edição especial – música popular volume 22 UFMG - Escola de Música - Pós Graduação Realização Patrocínio

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REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA

ISSN: 1517-7599

volume 22

REVISTA ACADÊMICA DE M

ÚSICA

junho / dezembro - 2010

julho / dezembro - 2010edição especial – música popular

volume 22

UFMG - Escola de Música - Pós Graduação

Realização Patrocínio

REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA

volume 22julho/dezembro - 2010

ISSN: 1517-7599

Editorial

Este volume 22 de Per Musi - Revista Acadêmica de Música, juntamente com o volume 23, são volumes temáticos de-dicados ao estudo da música popular, uma das sub-áreas que mais tem crescido no meio acadêmico brasileiro, finalmente refletindo uma das mais fortes vocações musicais deste país. O grande número de textos selecionados – 38, incluindo três partituras inéditas - permitiu alguns agrupamentos temáticos (como o hibridismo na música popular brasileira), manifes-tações tradicionais (como o lundu, choro, samba, canções, bossa-nova, baião, repente, ragtime, jazz moderno e musicais) ou mais recentes (como o axé, o mangue beat, música infantil e a nova música instrumental brasileira) e personalidades referenciais (como Ernesto Nazareth, Pixinguinha, K-Ximbinho, Gnattali, Guerra-Peixe, Tom Jobim, Hermeto Pascoal, Baden Powell, Egberto Gismonti, Victor Assis Brasil e o grupo UAKTI).

O renomado etnomusicólogo inglês Philip Tagg aceitou o convite de contribuir com dois artigos. Neste volume, nos traz um inusitado e fascinante estudo em torno da canção Yes we can, que embalou a campanha presidencial norte-america-na de Barack Obama. A partir de seu original sistema de análise da música popular, ele compara materiais harmônicos, melódicos, rítmicos, de instrumentação e da relação texto-música em canções de ícones como Bob Dylan, Beatles, Bob Marley e Dixie Chicks, entre outros, para estabelecer ligações entre estilo, política e poder.

A partir da história de vida de Hermeto Pascoal, Fausto Borém e Fabiano Araújo explicam o desenvolvimento das lin-guagens harmônicas na música eclética do genial “bruxo” da música brasileira instrumental.

Luiz Costa-Lima Neto analisa uma faceta pouco conhecida do multi-instrumentista, compositor e arranjador Hermeto Pascoal, qual seja a multiplicidade de recursos vocais e vocal-instrumentais que utiliza para dar vida à inquietude e originalidade de suas ideias musicais.

Fausto borém e Maurício Freire Garcia revelam o entrelaçamento dos aspetos musicais e religiosos na obra-prima Cannon para flauta, humming na flauta e sons pré-gravados de Hermeto Pascoal na interpretação do próprio compositor, a partir da análise melódico-harmônica da partitura restaurada, das práticas de performance e relações texto-música percebidas na gravação, e das experiências místico-religiosas na vida do compositor-intérprete.

A partitura de performance de Cannon para flauta, humming na flauta e sons pré-gravados de Hermeto Pascoal, trans-crita e editada por Fausto Borém a partir de sua gravação e desenho artístico de Ruy Pereira no disco Slaves Mass (1977) é aqui apresentada integralmente pela primeira vez.

A partir dos textos de Vinícius de Moraes e José da Veiga Oliveira, ambos ligados ao emblemático LP Canção do Amor Demais, Liliana Harb Bollos discute as fronteiras entre o popular e o erudito na Bossa Nova.

Silvio Augusto Merhy discute o embate entre letra, melodia e arranjo na canção O morro não tem vez de Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes e seus desdobramentos frente à divisão geográfica e social do Rio de Janeiro: favelas e Zona Sul, escolas de samba e Bossa Nova.

Carlos de Lemos Almada nos traz uma inovadora abordagem analítica ao adaptar procedimentos schenkerianos para compreender a música popular, revelando estruturas harmônicas, melódicas e intervalares que dão unidade a Chovendo na roseira, obra-prima de Tom Jobim.

Vera Lúcia Rocha Pedron Peres aborda a multiplicidade e o pós-modernismo na obra Rimsky (quinteto para cordas e piano) do compositor Gilberto Mendes, revelando sua intertextualidade e justaposição de estilos em que convivem refe-rências muito díspares da música erudita (atonalismo, serialismo, cadenza) e música popular (música de cinema, rock, fox trot, ritmos nordestinos, bossa nova, tango), além de citações que homenageiam o inspirador, Rimsky-Korsakov.

Fausto BorémFundador e Editor Científico de Per Musi

Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas aborda um dos aspectos mais marcantes do ritmo na música popular, a síncopa, desde o seu valor nos antigos tratados eruditos, suas relações com alturas, harmonia e ornamentação até sua presença nos “modernos” da música popular, ilustrando com trechos de Ernesto Nazareth, Pixinguinha, Tom Jobim, Hermeto Pascoal, Edu Lobo e Gilberto Gil.

Para refletir sobre a relação entre música, teatro, rádio e infância, Eugênio Tadeu Pereira, Cristiane da Silveira Lima, Gabriel Murilo Resende e Reginaldo Santos falam de sua experiência com o programa experimental “Serelepe – uma pitada de música infantil” da Rádio UFMG Educativa.

Maura Penna discute o processo de autonomia dos jovens em relação aos seus pais, sob o prisma da sociologia e da psicologia, tendo como pretexto canções populares brasileiras das duplas Roberto de Carvalho e Rita Lee, Marina Lima e Antônio Cícero e Fábio Jr.

Jorge Luiz Schroeder apresenta seu conceito de corporalidade musical a partir da performance de dois dos mais reco-nhecidos violonistas da música instrumental brasileira: Baden Powell e Egberto Gismonti.

Sob o ponto de vista dos estudos culturais, Álvaro Neder discute conceitos e ferramentas de análise aplicáveis à música popular (e à música popular brasileira, em particular), visando afirmar a música popular como área autônoma, com de-mandas teóricas e metodológicas próprias e irredutíveis àquelas originadas nos campos erudito e tradicional.

A partir de pesquisa de campo realizada em Sergipe e Pernambuco, Yukio Agerkop discute o fenômeno do mangue beat na expressão musical regional e híbrida de quatro grupos: Sulanca, Naurêa, Maria Scombona e Chico Science e Nação Zumbi.

Tocando em um tema normalmente evitado na academia, Armando Alexandre Castro propõe uma visão alternativa do gênero Axé music, tendo como subsídio a tabulação de dados coletados em Salvador, epicentro de um dos gêneros mais populares e rentáveis da música popular brasileira.

Cruzando as visões dos estudos literários, das artes cênicas e dos estudos em performance, Conrado Vito Rodrigues Falbo discorre sobre perspectivas teóricas para a análise da palavra cantada no âmbito da música popular.

Fausto Borém entrevista Fernando Bustamante, Ana Taglianetti e Daniel Souza sobre o Projeto Teatro Musical, gê-nero em franco crescimento no Brasil que integra as áreas artísticas do teatro, da dança e da música com tradições populares e eruditas.

Lembramos que todos os conteúdos e capas de Per Musi, desde janeiro de 2000 até o presente volume estão dis-poníveis para download ou impressão gratuitamente no site de Per Musi Online, no endereço www.musica.ufmg.br/permusi. As versões impressas de quase todos os números da revista ainda podem ser adquiridas através do e-mail [email protected].

Fundador e Editor CientíficoFausto Borém (UFMG, Belo Horizonte)

Corpo Editorial Internacional Aaron Williamon (Royal College of Music, Londres, Inglaterra)Anthony Seeger (University of California, Los Angeles, EUA)Eric Clarke (Oxford University, Oxford, Inglaterra)Denise Pelusch (University of Colorado, Boulder, EUA)Florian Pertzborn (Instituto Politécnico do Porto, Portugal)Jean-Jacques Nattiez (Université de Montreal, Canadá)João Pardal Barreiros (Universidade de Lisboa, Portugal)Jose Bowen (Southern Methodist University, Dallas, EUA)Lewis Nielson (Oberlin Conservatory, Oberlin, EUA)Lucy Green (University of London, Institute of Education, Londres, Inglaterra)Marc Leman (Ghent University, Ghent, Bélgica)Melanie Plesch (Univ. Católica, Univ. de Buenos Aires, Argentina)Nicholas Cook (Royal Holloway, Eghan, Inglaterra)Silvina Mansilla (Universidad Católica, Buenos Aires, Argentina)Xosé Crisanto Gándara (Universidade da Coruña, Corunha, Espanha)Thomas Garcia (Miami University, Miami, EUA)

Corpo Editorial no Brasil André Cavazotti (UFMG, Belo Horizonte)Cecília Cavalieri (UFMG, Belo Horizonte) Cristina Capparelli Gerling (UFGRS, Porto Alegre)Diana Santiago (UFBA, Salvador)Fernando Iazetta (USP, São Paulo)José Vianey dos Santos (UFPB, João Pessoa)Lucia Barrenechea (UNIRIO, Rio de Janeiro)Márcia Taborda (UFSJR, São João del Rey)Maurício Alves Loureiro (UFMG, Belo Horizonte) Maurílio Nunes Vieira (UFMG, Belo Horizonte)Norton Dudeque (UFPR, Curitiba)Rafael dos Santos (UNICAMP, Campinas)Rosane Cardoso de Araújo (UFPR, Curitiba)Salomea Gandelman (UNIRIO, Rio de Janeiro)Sônia Ray (UFG, Goiânia)Vanda Freire (UFRJ, Rio de Janeiro)

Conselho CientíficoAcácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC, Florianópolis)Adriana Giarola Kayama (UNICAMP, Campinas)André Cardoso (UFRJ, Rio de Janeiro)Ângelo Dias (UFG, Goiânia)Arnon Sávio (UEMG, Belo Horizonte)Beatriz Magalhães Castro (UNB, Brasília)Cíntia Macedo Albrecht (UNICAMP, Campinas)Eduardo Augusto Östergren (UNICAMP, Campinas)Fabiano Araújo (UFES, Vitória)Flávio Apro (UNESP, São Paulo)Guilherme Menezes Lage (FUMEC, Belo Horizonte)José Augusto Mannis (UNICAMP, Campinas)Lea Ligia Soares (EMBAP, Curitiba)Lincoln Andrade (UFMG, Belo Horizonte)Luciana Del Ben (UFRGS, Porto Alegre)Manoel Câmara Rasslan (UFMS, Campo Grande)Pablo Sotuyo (UFBA, Salvador)Patrícia Furst Santiago (UFMG, Belo Horizonte)Vladimir Silva (UFPI, Teresina)

O Corpo de Pareceristas de Per Musi e seus pareceres são sigilosos

PER MUSI - Revista Acadêmica de Música (ISSN 1517-7599) é um espaço democrático para a reflexão intelectual na área de música, onde a diversidade e o debate são bem-vindos. As idéias aqui expressas não refletem a opinião da Comissão Editorial ou do Conselho Consultivo. PER MUSI está indexada nas bases RILM Abstracts of Music, Literature The Music Index e Bibliografia da Música Brasileira da ABM (Academia Brasileira de Música).

ABM

Revisão Geral Fausto BorémMaria Inêz Lucas Machado

Universidade Federal de Minas GeraisReitor Clélio Campolina DinizVice-Reitora Rocksane de Carvalho NortonPró-Reitor de Pós-Graduação Ricardo Santiago GomezPró-Reitora Adj. de Pós-Graduação Andréa Gazzinelli Correa de OliveiraPró-Reitor de Pesquisa Renato Lima dos Santos

Escola de Música da UFMGDiretora Maria Inêz Lucas Machado

Programa de Pós-Graduação em Música da UFMGCoord. Sérgio FreireSub-Coord. Flávio BarbeitasSec. Geralda Martins MoreiraSec. Alan Antunes Gomes

Planejamento e Produção Isabela Scarioli - Cedecom/UFMGCamila Rodrigues (estagiária) – Cedecom/UFMG

Projeto GráficoCapa e miolo: Sérgio Lemos - Cedecom/UFMGDiagramação: Romero Morais - Cedecom/UFMG

Tiragem100 exemplares

Acesso gratuito na internetwww.musica.ufmg.br/permusi

Endereço para correspondênciaUFMG - Escola de Música - Revista Per Musi Av. Antônio Carlos 6627 - Campus PampulhaBelo Horizonte, MG, Brasil - 31.270 - 090Fone: (31) 3409-4717 ou 3409-4747Fax: (31) 3409-4720e-mail: [email protected] [email protected]

PER MUSI: Revista Acadêmica de Música - n. 22, julho/dezembro, 2010 -Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, 2010 –

n.: il.; 29,7x21,5 cm.SemestralISSN: 1517-7599

1. Música – Periódicos. 2. Música Brasileira – Periódicos. I. Escola de Música da UFMG

Sumário

ARTIGoS CIEnTíFICoSos acordes de Yes we can do vídeo da campanha presidencial de Barak obama ...................... 7The Yes we can chordsPhilip Tagg (Tradução de Fausto Borém)

Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação de sua linguagem harmônica ................ 22Hermeto Pascoal: life experience and the formation of his harmonic languageFausto BorémFabiano Araújo

o cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz ................................................................... 44The singer Hermeto Pascoal: instruments of voiceLuiz Costa-Lima neto

Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos em uma obra-prima para flauta ............................................... 63Cannon by Hermeto Pascoal: musical and religious aspects in a flute masterpieceFausto BorémMaurício Freire Garcia

Cannon (dedicada a Cannonball Aderley), para flauta, humming na flauta e sons pré-gravados .......................................................................................................................... 80Cannon (dedicated to Cannonball Aderley), for flute, flute humming and pre-recorded soundsHermeto Pascoal (Transc. e Ed. de Fausto Borém)

Canção do Amor Demais: um marco da música popular brasileira contemporânea ........ 83Canção do Amor Demais [Song of Too Much Love]: more than the presentation of Bossa Nova, a milestone of contemporary Brazilian popular musicLiliana Harb Bollos

Letra, melodia, arranjo: componentes em tensão em O morro não tem vez de Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes ................................................................................ 90Lyrics, melody, arrangement: elements in tension in Favela by Antonio Carlos Jobim and Vinícius de MoraesSilvio Augusto Merhy

Chovendo na roseira de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana ......................................... 99Chovendo na roseira by Tom Jobim: a Schenkerian approachCarlos de Lemos Almada

As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes ................................... 107Postmodern characteristics in the work Rimsky by Brazilian composer Gilberto MendesVera Lúcia Rocha Pedron Peres

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A memória e o valor da síncope:da diferença do que ensinam os antigos e os modernos .......................................................... 127Memory and the value of syncopation: on the difference between what the old and the modern teachSérgio Paulo Ribeiro de Freitas

Música e infância no rádio: o programa Serelepe na Rádio UFMG-Educativa .................... 150Music and childhood on radio: the Serelepe program at UFMG-Educativa stationEugênio Tadeu PereiraCristiane da Silveira Lima Gabriel Murilo Resende Reginaldo Santos

“Escute, pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras ................. 157“Listen to me, dad”: dialogs between fathers and sons in Brazilian popular musicMaura Penna

Corporalidade musical na música popular: uma visão da performance violonística de Baden Powell e Egberto Gismonti .............................................................................................. 167Musical corporality in popular music: a view of Baden Powell e Egberto Gismonti´s performances on the guitarJorge Luiz Schroeder

o estudo cultural da música popular brasileira ....................................................................... 181The cultural study of Brazilian popular musicÁlvaro neder

Circular cidade: poesia e groove na expressão musical de quatro grupos da região do mangue nordestino .................................................................................................... 196Circular cidade: poetics and groove in the musical expression of four groups from the mangue (mangrove) of northeastern BrazilYukio Agerkop

Axé music: mitos, verdades e world music ............................................................................... 203Axé Music: myths, truths and world musicArmando Alexandre Castro

A palavra em movimento: algumas perspectivas teóricas para a análise de canções no âmbito da música popular ..................................................................................................... 218The word in motion: some theoretical perspectives for the analysis of the song within the framework of popular musicConrado Vito Rodrigues Falbo

EnTREVISTA

Entrevista com Fernando Bustamante, Ana Taglianetti e Daniel Souza sobre o Projeto Teatro Musical .................................................................................................. 232Interview with Fernando Bustamante, Ana Taglianetti e Daniel Souza about the Teatro Musical ProjectFausto Borém

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TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.

Recebido em: 21/06/2009 - Aprovado em: 15/03/2010

os acordes de Yes we can do vídeo da campanha presidencial de Barak obama

Philip Tagg (Faculté de Musique, Université de Montreal, Montreal, Canadá)[email protected]

Tradução de Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG)[email protected]

Resumo: Estudo sobre o loop de quatro acordes ║: Sol Maior – Si Maior – Mi Menor – Dó Maior :║ na canção Yes we can [Sim, nós podemos] do vídeo de Will.i.am (ADAMS, 2008) lançado durante a campanha presidencial de Barack Obama nos Estados Unidos. A partir da identificação de IOCMs (Materiais Interobjetivos de Comparação) e PMFCs (Campos Paramu-sicais Conotativos) da análise musemática (TAGG, 2009), compara-se Yes we can com materiais harmônicos, melódicos, rítmicos, de instrumentação e de letras de canções populares da tradição afro-britânico-americana, levando-se também em consideração as atitudes de relevantes compositores e intérpretes populares social e politicamente engajados.Palavras-chave: Barack Obama, música e política, música e sociedade, análise musemática, harmonia da música popu-lar, intertexto.

The Yes we can chords

Abstract: Study of the four-chord loop ║: G – B – Em – C :║ in the song Yes We Can from the video by Will.i.am (ADAMS, 2008) released during the 2008 US presidential campaign of Barack Obama. Departing from IOCM and PMFC identifica-tion of the musematic analysis (TAGG, 2009), Yes We Can is compared to harmony, melody, rhythm, instrumentation and lyrics found in iconic popular songs of the Afro-Bristish-American tradition, also taking into consideration the attitudes of relevant composers and performers engaged in social and political issues.Keywords: Barack Obama, music and politics, music and society, musematic analysis, popular music harmony, intertext.

1 – IntroduçãoEste artigo surgiu como uma simples resposta a uma sim-ples questão enviada por Carol Vernallis à lista online da IASPM (International Association for the Study of Popular Music; veja www.iaspm.net) em Janeiro de 2009. Ela lan-çou a pergunta: “Alguém já se perguntou sobre a progres-são harmônica de Yes we can (Sim, nós podemos), sobre seu conteúdo musical, ou mesmo, sobre as canções populares que ela pode ecoar?”. Vernallis estava se referindo ao vídeo de mesmo nome da campanha presidencial de Barak Oba-ma (ADAMS, 2008). 1 As respostas dos membros da IASPM podem ser sumariadas nos seis pontos descritos a seguir:

(1) Mike Daley e Allan Moore refletiram sobre o poten-cial do acorde de Si Maior, o progredir harmonicamente “para um lugar inesperado” e o aspecto do “conforto e segurança” relativos da sequência de seu turnaround pla-gal (2) Allan Moore sugeriu similaridades com progres-sões de outras gravações, como Jungle (1973) da banda ELECTRIC LIGHT ORCHESTRA (ELO), What becomes of the brokenhearted (1966) de Jimmy RUFFIN e Southern man

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010

(1970) de Neil YOUNG. 2 (3) Barbara Bradby se referiu à Sitting on the dock of the bay [daqui para frente chamada apenas de Dock of the bay] (1968) de Otis RED DING, numa similaridade intertextual que também foi observada por diversos de meus alunos em Montreal. Ela também ob-servou uma similaridade melódica entre a frase cantada em 0:31 [aos 31 segundos da gravação] de Yes we can no vídeo de Obama e a frase incial “When the night. . .” (“Quando a noite. . .”) na canção Stand by me (1961) de Ben E. KING. (4) Matthew Bannister apontou similaridades com No woman no cry (1974) de Bob MARLEY e os Wailers e possíveis conotações antêmicas (do inglês anthemic, ou seja, com uma melodia fácil de cantar por muita gente e com o caráter digno ou solene dos hinos [anthems]) em Another girl another planet (1978) da banda de rock norte-americana THE ONLY ONES. (5) Danilo Orozco su-geriu similaridades com matrizes harmônicas de origem espanhola na América Latina. (6) Finalmente, David Usko-vich fez referência à canção Don’t stop be lieving (1981) da banda de rock norte-americana Journey. 3

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TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.

Esta lista de associações intertextuais contribui para um ra-zoável conjunto de IOCMs (Materiais de Comparação Inte-robjetiva, do inglês Interobjective Comparison Material; veja glossário de termos da análise musemática ao final desse artigo e mais detalhes em www.tagg.org/articles/ptgloss.html#IOCM), como normalmente aconteceria em um se-minário respeitável sobre música popular, no qual a análise musemática está na ordem do dia e no qual todas as refe-rências são relevantes, embora umas mais do que outras.

2 – os quatro acordesAntes de iniciar a análise musemática de Yes we can, gos-taria de esclarecer, dentro do possível, sobre as estruturas convencionais da progressão harmônica com a qual esta-mos lidando. Assim como meus colegas da IASPM, escutei o loop de quatro acordes que ocupa quatro compassos quaternários ║: G – B – Em – C :║ ou, em termos relati-vos, ║:I – III – vi – IV :║, como mostra o Ex.1. 4

Primeiro, com o andamento q =100, ouve-se esta sequ-ência harmônica se repetir nos primeiros 2:28 do tempo de duração total de 4:26 da canção, tocada em um violão acústico com seis cordas de aço (e não de nylon), com a batida mostrada no Ex.2. A não ser pelo acorde de Si Maior (III grau) no segundo compasso, realizado com uma pestana a partir da segunda casa na corda Lá, todos os acordes são tocados na primeira posição. Com exceção

Ex.1 – Os quatro acordes do turnaround de Yes we can(ADAMS, 2008; fotos em substituição às fotos originais publicadas no YouTube. Crédito das fotos: Dindão)

Ex.2 – A batida do violão em Yes we can

do acorde de Dó Maior (IV grau), cuja nota Dó aguda (pri-meira casa na corda Si) é substituída por uma nota Ré (terceira casa na corda Si) para criar um efeito de Cadd9 (acorde de Dó Maior com nona maior acrescentada) com pedal, nenhum acorde contém notas estranhas às tríades comuns (terças) em questão. 5 Todos os quatro acordes na sequência de Yes we can são ritmicamente articulados de maneira semelhante (ou idêntica) àquela mostrada na batida do acorde de Sol Maior do Ex.2. A fundamental de cada acorde geralmente aparece com a duração de duas colcheias, a segunda ligeiramente abafada, seguida das notas restantes do acorde, que podem ser uma semínima ou duas colcheias com uma batida que vai do grave para o agudo, tangendo as três ou quatro cordas superiores do violão. Por exemplo, a nota mais aguda do acorde mos-trado acima, um Sol, nem sempre é audível.

Não consigo pensar em nenhuma música, além de Yes we can, que corresponda exatamente a todas essas caracte-rísticas descritas acima. Referências intertextuais apre-sentadas por alguns dos meus alunos e por mim mesmo, assim como aquelas dos colegas na discussão online da IASPM, todas elas mostram alguma característica estru-tural comum. Mas, como veremos, alguns dados compa-rativos podem se mostrar mais relevantes do que outros. Em outras palavras, precisamos olhar as referências in-tertextuais com um foco mais preciso.

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TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.

3 - A alta Renascença e a bi-modalidade andina As referências de Danilo Orozco às matrizes harmôni-cas que Carlos Vega provavelmente teria chamado de bi-modais são significativas porque há um denominador comum entre os acordes de Yes we can e, por exemplo, a gravação de Guardame las vacas a que ele se refere. 6

Os acordes de Guardame las vacas mencionados por Oro-zco são semelhantes àqueles da canção La folia 7 cuja ubiquidade em toda a Europa na alta renascença é com-parável àquela do blues de doze compassos nos Estados Unidos do século XX. Uma variação comum da matriz de La Folia se desenrola como mostrado no Ex.3:

Se o acorde finalis nessa matriz de oito compassos, um Mi Menor, for considerado como tônica principal, então as funções relativas dos outros acordes serão aquelas da linha do meio mostrada no Ex.3. Se, por outro lado, escutarmos essa matriz no tom de Sol Maior (o tom do acorde initialis), será que a linha de baixo, em itálico, seria a mais correta? Bem, de fato não, porque a matriz termina com uma ine-quívoca cadência perfeita V-i (acordes de Si Maior – Mi Menor). Além disso, como ocorre na progressão de La Folia (mostrada acima), o acorde de Mi Menor é sempre precedi-do ou seguido apenas por tríades maiores de Ré (bVII) ou Si (V), ambas, em termos da harmonia triádica europeia, ten-do a função dominante no tom de Mi Menor, especialmen-te o acorde do V grau (Si Maior, alterado ascendentemente para incluir a sétima Ré #, ao invés das tríades específicas Si Menor e Ré Maior do tom, que tem o Ré natural). Além disso, não há uma relação cadencial no turnaround, nem plagal nem de dominante, entre os acordes finalis e initialis seguintes. O mesmo acontece em muitas progressões har-mônicas no estilo andino huayño, a exemplo da matriz de quatro acordes C – G – B – Em, a qual pode ser encontrada na versão de Quiaquenita (incluída em La flûte indienne, 1966) de LOS CALCHAKIS. Não consigo ouvir esta progres-são como sendo totalmente no tom de Sol (IV – I – III – vi): para mim, sempre soa como bVI - bIII – V - i, principalmen-te no tom de Mi Menor.8

Resumindo esta breve incursão pelas matrizes da alta renascença e andina, esses acordes, diferentemente da-queles de Yes we can: (1) terminam como cadências en-volvendo a dominante (V-i) no tom menor; (2) se iniciam na tríade da relativa maior ou da subdominante relati-

va maior; (3) geralmente são duas vezes mais longos. Considerando outros parâmetros da expressão musical associados com os acordes de Yes we can, seria relevan-te também observar que; (4) os andamentos dos IOCMs andino e da alta renascença, na maioria das vezes, são mais rápidos que q = 100; (5) sua métrica geralmente não é 4/4, mas sim 3/4 ou 6/8, ou uma combinação de ambas formando hemíolas; (6) quando tocado com bati-das do tipo rasgueado, qualquer instrumento harmônico de cordas é mais rápido do que quando dedilhado; (7) se o timbre de um violão com cordas de aço é pouco comum, o timbre de um violão com cordas de tripa ou nylon é mais comum (o som do violão “espanhol”), e o timbre mais agudo e metálico de uma bandola, tiple ou charango é ainda muito mais comum. Embora possamos especular a partir de possíveis bases comuns divergen-tes da imagem sônica triádica da harmonia “clássica”, ligada à europeidade urbana do século XIX, as razões acima me levam a pensar que as similaridades estrutu-rais não são suficientemente marcantes para defender uma comparação interobjetiva mais aprofundada nes-ta direção. Por isso, tentarei restringir as comparações, tanto quanto possível, aos materiais que mais de perto lembram os acordes de Yes we can.

4 - Quatro acordes, quatro harmoniasInvestigar o significado de uma sequência de acordes é o mesmo que tentar encontrar exemplos intertextuais de todas as harmonias presentes. Embora possa soar tauto-lógico, vale a pena lembrar que, a não ser que a matriz comece e termine no mesmo acorde, uma sequência de três acordes contém três harmonias, uma sequência de quatro acordes contém quatro harmonias e assim por diante. Esta obviedade deve ser reafirmada porque é fácil subestimar um dos mais importantes aspectos tonais do loop de acordes: a harmonia do último acorde do turna-round e sua volta para o primeiro. Em Yes we can, isto é representado pelo movimento da cadência plagal dos acordes de Dó Maior para Sol Maior (IV→I). De fato, é esta harmonia, e não o movimento V→vi (acordes de Ré Maior para Mi Menor) no meio do loop, que encerra al-gum potencial de finalização real. 9

O movimento plagal no sentido horário do círculo das quintas é quase tão comum em estilos como gospel, coun-try modal, rock folk e o rock baseado no blues quanto é raro no universo das sonatas de Corelli, óperas de Wag-

Ex.3 – Sequência harmônica da canção renascentista La Folia.

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TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.

ner, canções de câmara vitorianas, stand ards de jazz etc. que priorizam o sentido anti-horário do círculo das quin-tas. 10 As harmonias do turnaround plagal de Yes we can podem, de fato, constituir uma razão pela qual nós pro-vavelmente escutamos essa música como popular, como norte-americana e não como clássica e europeia. Podemos até escutar a referência plagal em algum Amém, canção gospel ou canção folclórica baseada na escala pentatônica maior mas, conotativamente, é difícil falar especificamente sobre o IV-I sem falar que esse encadeamento harmôni-co é muito idiomático nos outros estilos. E pode, mesmo, ser a marca de conclusão harmônica preferida em muitas canções no amplo leque das tradições da canção popular na língua inglesa. 11 Por isso, ao invés de nos determos aí, vamos investigar o passo harmônico inicial da sequência, que é, ainda, menos comum do que o IV-I.

5 – Primeiras impressões: → IÉ dito que a primeira impressão é a que fica. Este dita-do certamente se aplica às partidas harmônicas porque o segundo acorde em qualquer sequência é o que cria a primeira impressão de uma progressão ou direção harmô-nica. Entretanto, antes de discutir o passo I-III de Yes we can, devemos considerar aquele que é o primeiro passo de fato, ou seja, o passo que leva o ouvinte da ausência musical a algo musical. Em outras palavras, partindo do antes e fora da música para o primeiro som da canção. O acorde de Sol Maior na primeira posição do violão acús-tico em Yes we can é importante porque sua sonoridade cria a primeira impressão real da canção.

Exemplos de acordes de Sol Maior na primeira posição no início de canções, com levadas rítmicas ou simplesmen-te dedilhados, em um violão acústico com seis cordas de metal, e com um andamento moderado ocorrem no início das seguintes gravações de Bob DYLAN: The Times they are a-changing (1964a), It ain’t me babe (1964b), John Wesley Harding (1967), George Jackson (1971) e Kno-ckin’ on heaven’s door (1973).12 Esse acorde de Sol Maior também ocorre como primeiro acorde da tônica com frequência em um razoável número de canções de Woo-dy GUTHRIE como, por exemplo, Oklahoma Hills (1937), Grand Coulee Dam (1946) e Two good men (1946?). 13 O primeiro som em Yes we can é, em outras palavras, vir-tualmente idêntico ao primeiro som de diversas canções populares de reconhecidos cantores-compositores nor-te-americanos associados com políticas progressistas e mudanças sociais. Se estas alusões são intencionais ou não em Yes we can, as promessas de mudança e justiça social da recente eleição presidencial dos Estados Unidos, por outro lado, certamente poderiam estar, teoricamen-te, conectadas a figuras muito menos apropriadas dentro das tradições da música popular norte-americana do que Woody Guthrie e Bob Dylan. Basta imaginar as imagens, sons e palavras de artistas como Alice Cooper, Charlie Daniels ou Barry White como acompanhamento musical para uma plataforma eleitoral de um governo responsá-vel! 14 Obviamente, existe muito mais correspondência, tanto do ponto de vista da letra quanto da sonoridade,

entre o “It’s time for a change. . . ” (“É hora de mudar. . . ”) de Obama e The Times they are a-changing (“Os tempos de mudança”) de DYLAN.

Outro ponto significativo a respeito do acorde de Sol Maior, com suas quatro cordas soltas e terça dobrada (Si nas cordas Lá e Si) é que, assim como os outros dois acor-des na primeira posição que se repetem (Mi Menor e Dó Maior), é fácil para qualquer violonista amador que encon-tramos em festinhas ou acampamentos. Os acordes de Sol Maior, Mi Menor e Dó Maior são acordes que milhões de norte-americanos podem saudar com um yes, we can!. E mesmo o acorde de Si Maior, o segundo acorde de Yes we can, que pode ser entendido como um acorde de Lá Maior tocado com uma pestana na segunda casa, não apresenta nenhum desafio técnico para o músico amador de habili-dade mediana. 15 Mas não é tanto a acessibilidade poïética em si mesma que é semioticamente importante, mas sim o seu significado para a maioria dos que não tocam violão, mesmo pouco. Graças ao fato de que tocar esses acordes fáceis está dentro da capacidade de uma significativa mi-noria da população que toca violão, a maioria da socieda-de, por meio da exposição repetida a estes acordes de uma maneira simples no violão, tem aprendido a associá-los às palavras, ideias e situações que os acompanham.

6 – o passo harmônico inicial I→IIIO passo harmônico inicial I→III (acordes de Sol Maior para Si Maior em Yes we can) não é o início mais comum e nem o início mais incomum dos encadeamentos harmônicos da música popular na língua inglesa: I→IV, I→V, I→vi, pro-vavelmente também I→ii e I→iii são, provavelmente, mais comuns do que I→III, o qual, por sua vez, talvez seja menos usual do que I→II, I→bIII or I→bVII, mas provavelmente mais comum do que I→bVI (veja MOORE, 1992).

Em todo caso, o número de peças, ou seções de peças, que começam com I→III que chamaram minha atenção dentro do repertório relevante, ou pelo menos parcial-mente relevante, não impressiona. Achei apenas onze, lis-tadas a seguir em ordem alfabética: [1] Abilene (George HAMILTON IV, 1963); [2] Bell-bottom blues (Eric CLAP-TON, 1970); [3] The Charleston (GOLDEN GATE ORCHES-TRA, 1925); [4] Crazy (Patsy CLINE, 1961); [5] Creep (RADIOHEAD, 1992); [6] Jungle (ELECTRIC LIGHT OR-CHESTRA, 1979); [7] Nobody knows you when you’re down and out [daqui para frente chamada apenas de Down and out] (Bessie SMITH, 1929); 16 [8] Dock of the bay (Otis Redding, 1968); [9] Who’s sorry now (Connie FRANCIS, 1957); [10] Woman is the nigger of the world (John LENNON, 1975); [11] A World without love (PETER e GORDON, 1964). 17 Inicialmente, sem saber o porquê, descobri que apenas três dessas onze canções soavam suficiente parecidas como Yes we can para serem usadas como IOCMs convincentes para a sequência de acordes em questão. Uma vez que esse tipo de “intuição” não é muito útil em si mesmo, tentarei identificar e explicar as diferenças nos parâmetros da expressão musical que se articulam aí e em conexão com o passo harmônico inicial

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I-III, comum entre Yes we can e as onze peças comparati-vas. Este processo de eliminação deverá melhorar o foco para se observar as características mais salientes do loop de acordes de Yes we can.

Antes de tudo, há duas características estritamente har-mônicas que se destacam, do ponto de vista da semiótica, em relação à natureza do passo I→III: a linhas do baixo e o prolongamento harmônico. Todas as notas do baixo do loop de Yes we can coincidem com a fundamental das tríades, enquanto que CLAPTON, em Bell-Bottom Blues (1970), utiliza uma linha descendente no baixo por graus conjuntos de tal forma que os acordes, de fato, progridem como I→III5→vi→[I5→] IV (as notas do baixo, no tom de Sol Maior seriam Sol, Fá#, Mi [Ré] e Dó; e os acordes seriam G, Ré/F#, Em, G/D, C), uma progressão que contém dois acordes com inversão. Graças a precedentes famosos como Whiter shade of pale / Ária de BACH (I-V3-vi-I5, etc., Bach, 1731; PROCOL HARUM, 1967), acordes invertidos com linhas do baixo por grau conjunto se tornaram um confiável símbolo pop de “eruditismo” ou “pop clássico”. Trata-se de um mecanismo que retira esta canção-arranjo da esfera de participação popular, participação popular que pode ser exemplificada pelo estilo de violão toque-e-cante de Yes we can e suas tríades na posição fundamental. A utilização de acordes invertidos e graus conjuntos na li-nha do baixo elitizam a peça. Esta é apenas um das razões para tratar uma similaridade estrutural óbvia como a par-tida harmônica I→III com cautela. Outra razão harmônica para por em dúvida a relevância de uma comparação que envolva I→III é o prolongamento harmônico. Por exemplo, somente duas das dez peças que constituem IOCMs (Dock of the bay e Creep) apresentam I→III no início do loop de quatro compassos. Muitas das outras canções, na verda-de, incluem encadeamentos de harmonias com dominantes do círculo das quintas (sentido anti-horário) incompatíveis com o idioma tonal geral de Yes we can. Além disso, parâ-metros como andamento, padrão de acompanhamento e instrumentação podem também fazer algumas harmonias I→III soarem bastante diferentes daquelas de Yes we can.

As músicas The Charleston (q = 96) e Who’s sorry now (q = 88), por exemplo, embora sejam tocadas em um anda-mento semelhante ao de Yes we can (q =100), são muito diferentes em termos de instrumentação, rítmica e prolon-gamento harmônico. Tanto (1) a orquestração tradicional de jazz band em The Charleston, quanto (2) sua sonoridade lo-fi 18 típica dos discos de 78 rpm, (3) quanto, no caso de Who’s sorry now, sua sonoridade semi-amplificada dos pop combos da década de 1950, que se torna mais típica ainda com as tercinas constantes no piano, remanescen-tes do jazz “clink-clink-clink” de Stan FREBERG (1956) 19, são opções comparativas muito longínquas de Yes we can, que é tocada com a simplicidade de notas e tríades de um violão acústico. O prolongamento do I-III em The Charles-ton e Who’s sorry now em uma sequência de dominantes em quintas descendentes (I-III-VI-II-V-I nas tonalidades de Si b Maior e Mi b Maior, que são amigáveis para os metais e saxofones) são outras indicações óbvias dos estilos mu-

sicais e conotações de um mundo distante daquele de Yes we can. As duas canções country (Abilene e Crazy) podem também ser eliminadas como IOCMs por razões semelhan-tes de incompatibilidade de instrumentação, padrão de acompanhamento e prolongamento harmônico. 20

As canções Down and out (q. = 90, 12/8), Sitting on the dock of the bay (q = 103, 4/4) e Creep (q = 92, 4/4), por outro lado, seguem no mesmo caminho de Yes we can e pertencem, todas, ao repertório pop internacional anglo-americano pós-1955. Embora nenhuma destas canções apresente a batida simples de acompanhamento do cantor com violão acústico, elas se assemelham mais a Yes we can do que The Charleston, Who’s sorry now, Abilene e Crazy. Apesar disto, existem diversas diferenças estruturais im-portantes entre as três canções em discussão (Down and out, Dock of the bay e Creep) e, por outro lado, Yes we can. Por exemplo, todas as gravações de Down and out, sejam elas com q. = 90, tanto na gravação de Bessie SMI-TH (1929) quanto na de Eric CLAPTON (1992), sejam mui-to mais lentas, com o próprio CLAPTON (1970) ou Stevie WINWOOD (1966), todas elas tem o acompanhamento shuffle do blues lento ( ¼ , mesmo quando notado como o), tendo como acompanhamento a corneta, o piano e a tuba (na gravação de Bessie Smith) ou a guitarra elétri-ca, o órgão Hammond e a bateria (nas gravações de Clap-ton e Winwood), enquanto que os acordes Yes we can são apresentados em colcheias sem swing iiiq . 21 Além dis-so, o passo I-III inicial de Down and out segue com uma progressão de quintas descendentes que inclui o VI grau (E ou E7), ao invés do vi grau (Em), depois inclui o ii grau (Am) e, depois, passa por harmonias como #IVdim (C#dim), para seguir com II7 (A7), V7 (D7) e I (G). Não se ouve nenhum acorde diminuto ou uma extensa progressão com domi-nantes no círculo da quintas em qualquer parte de Yes we can. Esta canção foi concebida em um idioma diferente, seja nos aspectos tímbrico, métrico, rítmico ou tonal.

Sitting on the dock of the bay (REDDING, 1968), por outro lado, é em colcheias contínuas e sem swing iiiq e apresenta os quatro acordes de sua sequência virtualmen-te no mesmo andamento (q =104) de Yes we can: I – III – IV - II (G - B - C - A). Esta sequência de Dock of the bay é notável porque não contém nenhum passo harmôni-co plagal (IV→I) ou de dominante (V→I). Somente uma ponte de 19 segundos (1:24 - 1:43) do total dos 2:45 da canção inclui uma breve progressão: bVII→V→I (1:37 - 1:43) que leva de volta à sequência de acordes harmo-nicamente estática que ocupa toda a gravação, exceto por alguns segundos. A sequência de Dock of the bay é interessante também porque consiste em dois pares de acordes: primeiro, o I e o IV graus (Sol Maior e Dó Maior no tom de Sol Maior), que estão próximos entre si no círculo das quintas; segundo, o III e o II graus (Si Maior e Lá Maior no tom de Sol Maior), ambos para o lado dos sustenidos no círculo das quintas (longe dos graus I e IV) e separados entre si apenas pelo VI grau (Mi Maior). Mas esses quatro acordes não são tocados nessa disposição - experimente o efeito de tocá-los, ao contrário, na sequ-

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ência G-C-A-B ou, então, G-B-A-C[-G] -, uma vez que I e III (G→B) pertencem à mesma frase que Redding canta “Sitting on the dock of the bay. . .” (“Sentado na doca da baía. . .”), depois da qual ele respira. Após esta cesura no meio da canção, ele canta “Watching the tide roll in. . . ” (“Olhando a maré que chega. . .”) na segunda metade do loop de acordes (no seu encadeamento IV→II , C→A), que é um tipo de I-VI em Dó Maior, refletindo o mesmo tipo de distância harmônica de terça, como no encadea-mento I-III (na primeira metade do loop, G→B).

Não haveria nada de especial a respeito desta divisão da sequência em duas partes se os dois acordes triádicos, em cada metade, estivessem mais perto um do outro no círculo das tonalidades. Mas não é o caso. A segunda tríade de cada par, Si Maior e Lá Maior, situa-se distante não ape-nas um ou dois passos harmônicos de quinta da primeira tríade, mas a uma distância de quatro passos harmônicos no círculo das quintas (Sol Maior→(Ré Maior→Lá Maior→Mi

Maior)→Si Maior ou, em termos relativos, I→(V→II→VI)→III) e a uma distância de três passos harmônicos no círculo das quintas (Dó Maior→(Sol Maior→Ré Maior)→Lá Maior ou, em termos relativos, IV→(I→V) →II), respectivamente. É isto que faz a sequência de Dock of the bay soar como dois acordes vai-e-vem (shuttle chords) semelhantes, um após o outro – um constante movimento para frente e para trás – ao invés de uma sequência única e repetida de acordes como I-vi-IV-V ou I-V-bVII-IV. Este movimento de vai-e-vem em Dock of the bay, que é sublinhado pelo acréscimo de efeitos sonoros de praia como ondas que vem e vão, estão ausentes, é claro, em Yes we can, cuja sequência de acordes contém dois passos harmônicos de tonalidades vi-zinhas muito claros: Si Maior → Mi Menor (III→vi, com função dominante) e Dó Maior → Sol Maior (IV→I, com função plagal), o que dá a ela um definitivo caráter de re-petição e não de vai-e-vem duplo. 22

Nada disso significa que Sitting on the dock of the bay é inadmissível como uma evidência IOCM dos acordes de Yes we can. Mesmo que o caráter de vai-e-vem harmô-nico da gravação de Redding, seu prolongamento harmô-nico e sua orquestração divirjam claramente de Yes we can, sua ponte repete uma curta frase melódica (no trecho “Nothing’s gonna change. . .” [“Nada irá mudar. . .”], “I can’t do what ten people tell me to do. . .” [“Não posso fazer o que dez pessoas me pedem para fazer. . . “], etc., 1:24-1:37) que recorre de maneira semelhante em 0:31 de Yes we can (“It was sung by immigrants. . .” [“Era cantado pelos imigrantes. . .”]). 23 Como apontou bem Barbara Bradby na seu e-mail na lista da IASPM, aquela frase de Yes we can chega muito perto da declamação inicial “When the ni-ght. . .” [“Quando a noite. . . ”] em Stand by me (1961) na voz de Ben E. KING. Eu acrescentaria que as frases meló-dicas em cada uma dessas três canções podem ser carac-terizadas como proclamatórias, sinceras e apaixonadas. Eu também caracterizaria essas frases como sendo frases tipi-camente masculinas dos cantores soul da década de 1960 (por exemplo, Otis Redding, Wilson Picket, Marvin Gaye), que estão associados à luta norte-americana pelos Direi-

tos Civis e com o tipo de engajamento social que Michael Haralambos documenta em Right on! From blues to soul in black America (HARALAMBOS, 1974). Se há alguma vali-dade nesta análise da frase no ponto 0:31 de Yes we can, a conexão com o I-III de Dock of the bay se reforça cicli-camente por associação-cruzada. Sua corrente de conota-ções contém os seguintes tipos de elos indexadores: (1) a frase melódica de Yes we can lembra arquétipos melódicos cantados por cantores homens de música soul na final da década de 1960; (2) a música daquela época estava asso-ciada a uma imagem mais esperançosa e assertiva entre os afro-americanos nos Estados Unidos, (3) um dos mais famosos desses cantores foi Otis Redding, sendo Sitting on the dock of the bay um de seus maiores sucessos; (4) essa canção também contém o mesmo passo harmônico I-III como ocorre em Yes we can, a canção da campanha pre-sidencial de Barak Obama; (5) o governo presidencial de Obama marca outra grande mudança positiva nos Direitos Civis dos Estados Unidos.

A canção Jungle (1979) da banda ELO, menciona-da por Allan Moore, é no mesmo andamento de Yes we can (q=100). Seus três primeiros encadeamentos harmô-nicos são idênticos àqueles da canção de Obama: Ré Maior – Fá # Maior - Si Menor - Sol Maior (Jungle, no tom de Ré Maior) = I III vi IV = Sol Maior – Si Maior - Mi Menor - Dó Maior (Yes we can, no tom de Sol Maior). “Na mosca!”, poderíamos pensar. De fato, parece haver aí 100% de correspondência. Mas há um problema, uma vez que esta correspondência perfeita não soa exatamente como os acordes de Yes we can. Existem pelo menos quatro ra-zões para não se encaixarem: (1) os acordes da banda ELO não são utilizados em loop; (2) a sequência da banda ELO segue com uma cadência V→I (A→D) repetida, (3) os qua-tro acordes cobrem dois compassos, e não quatro, e são espaçados assim: | h.q |h. q |, com apenas uma nota para cada acorde, e não um compasso inteiro de , ou , ou qualquer outra padrão similar para cada acorde; (4) a instrumentação é totalmente diferente, pre-enchida com instrumentos tropicais do tipo “world music” associados, pelo menos na cultura musical urbana e não-tropical do “primeiro-mundo”, como o título da canção: Jungle (Selva). Posso escutar instrumentos que lembram o agogô, o guiro [tipo de reco-reco da América Central], cowbell, wood block e maracas. Mais ainda – e já fora da conotação deste campo (ou selva, para ser mais preciso), um bem audível e denso string pad [um sample sintetiza-do do naipe das cordas orquestrais]. Todas estas diferenças me deixam relutante para fazer referência aos acordes da banda ELO como um IOCM para os acordes de Yes we can de Obama, apesar da correta similaridade em termos de uma teoria harmônica convencional. Estas duas canções simplesmente não soam suficientemente similares.

Um raciocínio semelhante pode ser aplicado à canção Wo-man is the nigger of the world (1975) de John LENNON, embora por diversas razões de dessemelhança. Além do fato de que a sequência de John Lennon não é um loop, mas parte de uma sequência de um chorus de oito compas-

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sos (|| I - III - vi - I - IV - iv- I - I || no tom de Mi Maior), a batida da canção de Lennon é suingada (12/8 feel), o efei-to geral da intensidade sonora muito mais alto, o registro vocal mais agudo e o timbre mais rascante do que em Yes we can. Há também diferenças radicais de instrumentação entre as duas canções, sendo que a música de Lennon in-clui um piano percussivo, guitarra e contrabaixo elétricos, um saxofone estridente em primeiro plano e eventos de alta intensidade na bateria. Não se ouve nenhuma dessas características na canção de Obama.

Restam apenas duas músicas de IOCM I→III para discutir, a canção A World without love (PETER e GORDON, 1964) de Lennon e McCart ney e Creep da banda de rock inglesa Radio head (RADIO HEAD, 1992).

De 1964 até recentemente, trabalhei equivocadamente achando que os primeiros quatro compassos de cada ver-so de A World without love eram harmonizados com os acordes Mi Maior | Sol # Maior |Dó # Menor | Lá Maior (I−III−vi−IV), ou seja, a mesma progressão relativa do loop de acordes de Yes we can. A sequência, de fato, é Mi Maior | Sol # Maior | Dó # Menor | Dó # Menor (I−III−vi−vi). E a toquei com harmonia errada muitas vezes sem que qualquer ouvinte ou colega músico tenha reclamado, provavelmente porque a única nota melódica no quarto compasso, um Dó #, soa bem tanto sobre um acorde de Lá Maior quanto de Dó # Menor. O meu ponto de vista, neste caso, é sugerir mais uma vez que a correspondên-cia harmônica exata não é necessariamente o fator mais importante, se uma sequência de acordes em uma músi-ca soa como uma sequência de acordes de outra música. Neste contexto, isto significa que a parecença harmônica mais importante entre A World without love e Yes we can é o fato de ambas compartilharem os mesmos passos har-mônicos iniciais I→ III→ vi. Mas a sequência de Lennon e McCartney soa diferente de Yes we can principalmen-te porque: (1) a primeira é cantada em um andamento mais rápido ( = 134); (2) o acompanhamento é domina-do pelas pela pesada figuração “one-five oompah” do baixo de Paul McCartney; 24 (3) o seu I-III-vi não se repete em loop. Dito isto, o I-III-vi-vi em World Without Love não ocorre regularmente no início de cada verso em compasso 4/4 sem swing, com um acorde por compasso e com a batida do acompanhamento básico do violão acústico, mesmo que pouco audível na mixagem. Além disso, o prolongamento harmônico I - iv - I - I - ii - V - I (acordes de Mi Maior - Lá Menor - Mi Maior - Mi Maior - Fá # Menor - Si Maior - Mi Maior) em World without Love permanece dentro do mesmo idioma de trí-ades comuns no estado fundamental como em Yes we can, enquanto que sua instrumentação pop simples tem muito mais em comum com Yes we can do que Jungle da banda ELO, Woman is the nigger of the world de Lennon, isto para não citar The Charleston (que recebeu muitas gravações, inclusive da Golden Gate Orchestra) e Down and out com Bessie Smith etc. 25 Como em Dock of the bay, o I→III em World without love não compartilha com Yes we can alguns elementos estruturais comuns.

Entretanto, diferentemente de Dock of the bay, a gravação de Peter & Gordon não contém nenhum elemento de soul or gospel que dirija o ouvinte em direção a qualquer tipo de conotação relativa aos Direitos Civis. Se isto é verdade, que tipo de mensagem paramusical World without love contem? Vejamos seus versos [com o texto original após a tradução]:

[verso 1, verso 3] Por favor, prenda-me longe daqui e não permita o dia aqui dentro, onde me escondo com minha solidão. Não me importo com que dizem, não vou viver em um mundo sem amor.

[verso 2] Pássaros cantam desafinados e nuvens de chuva escon-dem a lua. Estou bem, aqui ficarei com minha solidão. Não me importo com que dizem, não vou viver em um mundo sem amor.

[ponte] Aqui vou esperar, daqui a pouco verei o sorriso do meu amor. Ela virá, não sei quando. Quando vier, perco, por isso baby, até lá.

[v.1, v.3] Please lock me away and don’t allow the day here inside where I hide with my loneliness. I don’t care what they say I won’t stay in a world without love.

[v.2] Birds sing out of tune and rain clouds hide the moon. I’m OK, here I’ll stay with my loneliness. I don’t care what they say I won’t stay in a world without love.

[bridge] Here I wait and in a while I will see my lover smile. She may come, I know not when. When she does I lose, so baby until then.

À primeira vista, as divagações deste jovem e apaixonado rapaz não têm nada a ver com a luta, esperança e coisas cotidianas que podemos encontrar nas frases de efeito dos discursos de Obama que ocorrem ao longo de Yes we can. Assim, basta escarafunchar um pouco abaixo da superfície da letra de Lennon e Mc Cartney para encontrar um parale-lo: um processo emocional que, se pudermos simplificar, vai do relativo desespero e escuridão a uma relativa esperança e luz, sempre com o mesmo sentido de determinação.

A sequência harmônica na canção Creep de Radiohead é o loop ║: I→III→IV→iv :║ (Sol Maior | Si Maior | Dó Maior | Dó Menor) com q=92 durante os quatro minutos que dura a canção. Cada loop cobre quatro compassos, com um acorde por compasso e rítmica de quatro colcheias ou semínimas sem swing na bateria e no violão ( iiiq no ximbau) e o padrão de simples q.e ׀ eq e no baixo. Considerando o movimento de acompanhamento como um todo, estas par-tes são mais semelhantes ainda ao padrão iq q do violão acústico de Yes we can do que aqueles de Dock of the bay. E, certamente, são muito mais próximos da canção de Obama do que o padrão |h. q| da banda ELO, ou o padrão suingado |q eq e| de Down and out ou de Woman is the nigger of the world, ou o padrão |iiq iiq| de Who’s sorry now. E, como acabei de afirmar, eles são, da mesma forma que Yes we can, repetidos sobre o mesmo período de quatro compassos em 4/4. Além disso, as harmonias do turnaround do loop de Ra-diohead, que vão de Dó Menor para Sol Maior (iv→I) é pla-gal como o turnaround de Yes we can, e os padrões de acom-panhamento são todos epítomes de um estilo pop-rock sem firulas (desenhos de ximbau standard simples na bateria, arpejos simples no violão, virtualmente sem reverberação ou qualquer outro tratamento de sinal sonoro etc.). A estética da essência crua em Creep se alinha bem com o caráter sem firulas do som do violão em Yes we can.

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Nenhuma das similaridades acima mencionadas pode refutar o fato de que há claras diferenças entre Creep e Yes we can, sendo a mais óbvia a gritaria nervosa e alienada e a guitarra elétrica com um poderoso over-drive ocorrendo em 39% do tempo da faixa rock de Radiohead. 26 Harmonicamente, há outra diferença im-portante: enquanto que Yes we can repete a sequência I-III-vi-IV, o loop em Creep segue o encadeamento I-III-IV-iv. Isto significa que, embora o turnaround em ambas as canções sejam plagais, o acorde de IV grau (Maior) em Creep ocorre um compasso antes, no lugar do Mi Menor (vi) de Yes we can e a tríade de Dó Maior (IV grau) de Yes we can ocorre na mesmo posição do loop do Dó Menor (iv grau) de Radiohead. Este acor-de de Dó Menor, com sua nota Mib, enarmonicamente contrastando, em termos de direcionalidade de condu-ção de voz, contra a nota Ré # ascendente do acorde de Si Maior, imprime ao loop de Creep um caráter único que pode contribuir para o dramático sentido de deses-perança da canção: 27 o Ré # sobe para o Mi natural, mas o Mib repetidamente reverte este movimento para baixo fechando novamente sobre o Ré natural e Sol. Yes we can não contém nenhum cromatismo descendente.

Apesar das claras diferenças entre Yes we can e Creep, essas duas canções definitivamente compartilham mais coisas em comum do que o encadeamento inicial I-III do loop quaternário de quatro compassos em Sol Maior. A questão é: como uma canção raivosa de auto-comise-ração, que trata de um personagem pilantra e esdrúxulo pode ter alguma coisa musicalmente significativa em comum com um personagem que afirma uma cren-ça coletiva na esperança, como ocorre em Yes we can. Uma razão poderia estar na ideia levantada por outros membros da IASPM, a de que o encadeamento apresen-ta uma forte qualidade de movimento para um lugar diferente, do tipo para cima e para fora que se observa no baixo ascendente I-III-vi e no movimento melódico 5 - #5 - 6 (voz interna Ré - Ré# - Mi) já mencionado; e que este movimento para cima e para fora indo para um lugar diferente é essencial tanto para expressar confiança na superação de dificuldades – “yes, we can” (“sim, nós podemos”’), quanto para vociferar aversão a qualquer coisa que gere auto-repulsa. O loop de acorde de Yes we can não tem a escorregada cromática descen-dente de Creep, nem seu encadeamento I-III, seguido pelo segundo encadeamento IV-II (Dó Maior - Lá Maior) direcionalmente “de engano” de Dock of the bay, possui nenhum dos efeitos para frente-e-para trás daqueles dois acordes vai-e-vem daquela canção. De fato, para aprofundarmos na questão do significado dos acordes de Yes we can, precisamos examinar o material compa-rativo que apresenta os outros dois acordes do loop da canção de Obama: vi e IV. Para ser mais preciso, preci-samos encontrar IOCMs que apresentem loops harmôni-cos no esquema I – x - vi - IV, no qual x é um alterna-tiva para III como meio viável de passar de I para vi. O acorde x mais comum seria, é claro, iii ou V (no tom de Sol Maior: Si menor ou Ré Maior).

7 - I – iii – vi - IVOs quatro primeiros acordes de What becomes of the brokenhearted? (RUFFIN, 1966) são Bb → Dm → Gm → Eb (ou, em termos relativos, I→iii→vi→IV), que parece ser o que estamos procurando. Infelizmente, este não é o IOCM curinga que precisamos, porque a sequên-cia de acordes na verdade se apresenta com inversões, Bb/F → Dm/F → Gm → Eb/G (ou, em termos relati-vos, I5→iii3→ vi→ IV3): três das quatro tríades estão invertidas. É verdade que não há uma linha do baixo em graus conjuntos cobrindo o intervalo de uma quarta justa ou intervalo maior nesta sequência, como ocorre em A Whiter shade of pale (PROCOL HARUM, 1967) ou, na voz de Clapton, Bell-Bottom blues (DEREK AND THE DOMINOES, 1970). Entretanto, as inversões das tríades e o caráter de nota pedal na linha do baixo na canção de Ruffin criam um efeito parcial de estaticidade har-mônica que não se resolve em um movimento substan-cial até muito mais à frente na peça. Além disso, assim como Bell-bottom blues de Clapton, a sequência inicial de What becomes of the brokenhearted? não é em loop e seu prolongamento contém harmonias incompatíveis com os acordes no estado fundamental e sistematica-mente sem swing de Yes we can. 28 Soma-se a isso o fato de que a canção da Mowtown é claramente orquestrada de maneira muito diferente, com piano, cordas, backing vocals e percussão. Talvez o iiiq em 4/4 e com q = 100 com timbre de voz masculina, semelhante ao que se ouve em 0:31 na canção de Obama possa atenuar algumas das diferenças acima mencionadas. Se for o caso, conexões interobjetivas eventuais entre elas são improváveis de fundamentarem uma parecença harmônica audível.

Incipts harmônicos I-iii no estado fundamental não são incomuns em outros tipos de canção da música pop anglofônica. Por exemplo, Puff the magic dragon (PETER, PAUL & MARY, 1963), The Weight (THE BAND, 1968) e Dan iel and the sacred harp (THE BAND, 1970), todas começam com I-iii-IV, enquanto que Sukyaki (SAKAMOTO, 1963) 29 e Hasta mañana da banda sueca Abba (ABBA, 1974), ambas apresentam a progressão I-iii-vi. O encadeamento harmônico ocorrendo mais no meio da canção e progredindo do I grau para o IV ou vi graus, passando antes pelo iii grau, também ocorre em Hangman (Pe ter, Paul and Mary, 1965), assim como em pontos proeminentes de It’s all over now Baby Blue (1965: I-iii-IV) e I pity the poor immigrant (1968: I-iii-vi) de Bob DYLAN. 30 Exceto por Sukiyaki e Hasta Maña-na, todas essas canções pertencem aos repertórios folk e folk rock norte-americano. Além disso, a canção Hangman, as duas canções de Dylan e as duas faixas da banda de rock canadense The Band (que acompa-nhou Dylan entre 1964 e1967) apresentam letras que divergem da temática de amor, diversão, raiva adoles-cente e nostalgia do pop. Apenas uma das canções, The Weight, utiliza um loop de acordes, I-iii-IV-I com q = 124 em um 4/4 regular com um acorde por compas-so. Assim como Hangman, a letra de The Weight con-ta uma história de experiências negativas e positivas,

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contrastantes, enquanto que o I-iii-vi de I pity the poor immigrant de Dylan acompanha a virada em direção à justiça no final de cada verso. 6 Por outro lado, em-bora todas essas canções apresentem um violão com batidas simples em progressões I-iii-IV ou I-iii-vi, com todos os acordes no estado fundamental, apenas uma delas (The Weight) apresenta um loop de acordes, e mesmo assim, como uma unidade de três acordes, e não de quatro. Mais ainda, nenhuma das canções tem a progressão I-iii-vi-IV, que seria a variante mais pró-xima do I-III-vi-IV de Yes we can. Resumindo, mesmo que haja similaridades e algumas possíveis referências às canções folk e folk rock norte-americanas com le-tras sérias, realmente precisamos buscar similaridades harmônicas mais convincentes em outras plagas.

8 - I - V - vi - IVA segunda de nossas duas alternativas para o III grau como elemento de ligação entre o I e o vi graus (entre Sol Maior e Mi Menor em Yes we can) é o V grau (Ré Maior em Sol Maior). A simples questão harmônica que se coloca é que o V grau é o relativo maior do iii grau (uma tríade de tonalidade específica em estado fundamental no terceiro grau da escala maior) e que, assim como o ii grau ou o III grau, o V grau contém duas notas adjacentes à tríade alvo, que é o vi grau. 32 Esta alternativa do segundo acor-de muda o loop de I-III-vi-IV (Yes we can) para I-V-vi-IV. Convenhamos que esta sequência soa bastante similar ao início do Canon de Pachelbel – ║: V │vi -iii │IV-I │ IV-V :║ –, um padrão que parece ter sido disseminado ampla-mente na música pop de língua inglesa. 33 Esta progressão de acordes constitui toda a base harmônica de All toge-ther now (1991) da banda de Liverpool THE FARM, com andamento q =108 em 4/4 e sua taxa de ritmo harmô-nico de um acorde por compasso. 34 Mais especificamen-te, a sequência I-V-vi-IV, também em 4/4 e com taxa de um acorde por compasso, pode ser escutada no início de cada verso de Let it be (1970: q =76 |C |G |Am |F) dos BEATLES, bem como, com taxa de dois acordes por com-passo, em No woman no cry (1974: q = 78 |C G3|Am F) de Bob MARLEY. O mesmo I-V-vi-IV também acompanha a deixa do coro em Country roads (1971: q =80 |D |A |Bm |G) de John DENVER e Not ready to make nice (2006: q=86 ║: G |D |Em |C :║ ) da banda country norte-ame-ricana DIXIE CHICKS. 35 Esta sequência de acordes tam-bém ocorre em canções barulhentas e otimistas de rock como We’re not going to take it (TWISTED SISTER, 1984: q =144) ou Another girl another planet (THE ONLY ONES, 1978: q =156), mas o andamento, rítmica, instrumentação e tipo de impostação vocal nessas canções seriam uma tentativa muito distante do caminhar relativamente tran-quilo e ordenado, sem firulas dos acordes de Yes we can. 36 De fato, a sequência de acordes da canção de Obama utiliza um andamento e um ritmo de discurso que têm muito mais em comum com as canções extremamente populares mencionadas antes. Mas a história não acaba aí. All together now, Let it be, No woman no cry, Country roads e Not ready to make nice, todas elas têm um caráter antêmico. Todas elas são eminentemente cantaroláveis e

todas elas apresentam letras que expressam esperança ou estímulo frente a problemas ou tempos difíceis. Tudo bem, a letra de Country roads menciona, apenas de passagem, um discreto arrependimento – “Tenho a sensação de que deveria ter voltado pra casa ontem. . .” – mas todas as outras apresentam, claramente, experiências tanto de di-ficuldades quanto de esperança, como mostra o Ex.4.

O vídeo Yes we can com a canção Yes we can encapsula os tipos de sentimentos listados na coluna Esperança, estímulo, determinação da tabela acima (Ex.4). A colu-na Problemas, no caso da canção de Obama, seria pre-enchida com citações como “escravos e abolicionistas”, “imigrantes [que desbravam] os confins implacáveis”, “os trabalhadores [que tiveram de] organizar”, “as mu-lheres [que tiveram] de lutar pelo voto”, “os obstáculos [que] estão no nosso caminho”, o “coro de cínicos que fala mais alto e mais dissonante”, e “a garotinha que estuda na escola desmoronando em Dillon”. Além do slogan “Yes we can” que diz tudo, a coluna três também abrigaria “eles forjaram um trilha”, “Rei que nos levou ao topo da montanha e nos apontou o caminho da Terra Prometida”, “oportunidade e prosperidade”, “curar esta nação”, “consertar este mundo”, “nunca houve nada de falso com a esperança” etc.

Embora nenhuma das quatro canções mencionadas no Ex.4 apresente um acompanhamento de violão de seis cordas com batida simples, todas elas, assim como Yes we can, transcorrem com a regularidade de um acorde para cada compasso ao longo de períodos de 4 compas-sos em métrica 4/4. Dois deles (No woman no cry e Not ready to make nice) repetem a sequência I-V-vi-IV pelo menos duas vezes em seguida, enquanto que a letra de todas as canções, incluindo Yes we can, justapõe expe-riências de dificuldades e esperança.

8 - IOCM em combinaçãoSeria realmente uma surpresa se houvesse qualquer outra canção que contivesse o mesmo tipo de loop de acordes, como ocorre em Yes we can, tocada com anda-mento semelhante e de maneira semelhante em relação à instrumentação, tonalidade e métrica. Por outro lado, o IOCM apresentado acima mostra que uma variedade de elementos encontráveis na tradição da música pop de língua inglesa está incorporada na sequência de acordes de Yes we can. Deve-se deixar claro também que aqueles elementos estruturais específicos são geralmente asso-ciados àquelas tradições com noções, atitudes, emoções, atividades, eventos e processos que, juntos, constroem um campo semântico razoavelmente coerente e cono-tativo. As características estruturais mais importantes e seus principais PMFCs (Campos Paramusicais Conotati-vos, do inglês Paramusical Fields of Connotation) podem ser sumariados, a grosso modo, na tabela do Ex.5.

Resumindo, há boas razões para acreditar que os acordes de Yes we can, ao recorrerem a tradições específicas da música popular em língua inglesa, contribuem para co-

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Características estruturais gerais

(sempre 4/4 em andamento moderado)

Gênero(s)(anglófono[s])

Conotações(PMFCs)

Sol Maior e outros acordes fáceis em violão acústico com 6 cordas de metal

Relacionado ao folk

Fácil de tocar, participativo, democrático, politicamente progressista, “sim, nós podemos”

I - III Pop Orientação para cima e para fora, possivelmente problemático

I - iii - viFolk, folk rock,country rock Narrativo, do povo

IV - I Gospel, soul, rock Pop de lingual inglesa, afirmativo, determinado, partici-pativo (“Amém”)

I - V - vi - IV Pop, rock Vai da dificuldade ao estímulo, determinação e esperança, antêmico, participativo, politicamente progressista

Ex.5 – Tabela-resumo dos IOCMs harmônicos e seus respectivos PMFCs em Yes we can.

Ex.4 – Tabela comparativa com frases-chave ”superando dificuldades” em letras de canções pop antêmicas que apresentam a variante I-V-vi-IV dos acordes de Yes we can

Canção Problemas Esperança, estímulo, determinação

The Farm:

All together now (1991)

“…forefathers died, lost in mil lions for a country’s pride”; “All those tears shed in vain; Noth-ing learnt and nothing gained”.

[“… antepassados morreram, perdidos entre milhões pelo orgulho de um país”; “Todas aquelas lágrimas derramadas em vão; não aprendemos nada e não ganhamos nada”.]

“…they stopped fighting and they were one”; “‘hope remains”; “‘Stop the slaughter, let’s go home”; …”joined together”; “All together now”.

[“… eles pararam de lutar e se tornaram um só”; “a esperança permanece”; “Pare a ma-tança, vamos para casa”; “…unidos”; “Todos juntos agora”.]

Beatles:

Let it be (1970)

“times of trouble”; “the broken heart-ed people”; “the night is cloudy”

[“tempos difíceis”; “o povo desiludido”; “a noite está nublada”.]

“Mother Mary comes to me“; “words of wisdom“; “There will be an answer“; “Still a chance“; “A light that shines on me“.

[“Mãe Maria venha a mim”; “palavras sábias”; “Haverá uma resposta”; “Ainda uma chance”; “Uma luz que brilha em mim”.]

Bob Marley:

No woman no cry (1974/5)

“The government yard in Trenchtown“; “ob-serving the hypocrites“; “good friends we’ve lost’“.

[“O quintal do governo em Trenchtown”; “observando os hipócritas”; “os bons amigos que perdemos”.]

“No woman no cry“; “dry your tears“; “I’ll share with you“; “got to push on through“.

[“Não, mulher, não chore”; “seque suas lágrimas“; “Dividirei com você”; “temos que continuar”.]

The Dixie Chicks:

Not ready to make nice (2006)

“I’ve paid a price and I’ll keep paying“; “too late to make it right“; “sad, sad story“; “my life will be over“.

[“Paguei um preço e continuarei pagando”; “tarde demais para consertar”; “triste, triste história”; “minha vida será finda”.]

“I’m through with doubt“; “I’m not ready to back down“; [I won’t] “do what… you think I should“.

[“Chega de dúvidas”; “Não estou disposto me retirar“; “Não farei ... o que você acha que eu deveria”.]

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Glossário: Para uma lista completa de termos e abreviaturas da aná-lise musemática, veja www.tagg.org/articles/ptgloss.html

Para uma lista de termos e abreviaturas de harmonia veja p.27-30 do Tagg’s Har mony Handout em www.abretagg.org/articles/xpdfs/harmonyhandout.pdf

Acordes vai-e-vem (chord shuttle): neologismo cria-do por Phillip Tagg em 1993 para descrever a oscilação entre dois acordes, por exemplo, entre as tríades de Si Menor e Sol Maior no início da Marche funèbre de Chopin, também conhecido como “pêndulo eólio” (BJÖRNBERG, 1989).

Campo Paramusical de Conotação: veja PMFC.

Comparação interobjetiva (Interobjective com-parison): Neologismo criado por Phillip Tagg em 1979 para descrever a comparação musical de intertextos de um ou mais elementos estruturais de uma obra musical com outra.

Estésico: Do francês esthésique (Molino, via Nattiez), é um adjetivo relacionado à aesthesis, ou seja, à percepção da música, ao invés da produção/construção/criação/rea-lização musical. Basicamente, o mesmo que recepcional e o oposto de construcional ou poïético. Na música, busca descrever um elemento da estrutura do ponto de vista de suas qualidades conotativas percebidas, ao invés de sua construção, por exemplo, “delicado”, “som de detetive”, “allegro” ao invés de “con sordino”, “acorde menor com sétima maior”, “quarta aumentada”, “pentatonicismo” etc.

Harmonia de terças (tertial harmony): Neologismo criado por Phillip Tagg em 1998 para descrever harmo-nias baseadas na superposição de terças que se entre-laçam (por exemplo, tríades comuns, acordes de sétima, acordes de nona etc.), ao contrário da harmonia quartal, em que há a superposição de quartas.

IoCM: Abreviatura de Material de Comparação Interob-jetiva (Interobjective Comparison Material), um neologis-mo criado por Phillip Tagg em 1979 para descrever inter-textos musicais, ou seja, trechos de outras obras musicais nos quais pode se demonstrar semelhança com a obra musical que é objeto de análise.

Material de Comparação Interobjetiva: veja IOCM.

Musema: Menor unidade de significado musical. Para o conceito original, veja o artigo de Charles Seeger On the moods of a musical logic no Journal of the American Musicological Society, v.13, p.224-261 (SEEGER, 1960); re-publicado no livro Studies in Musicology 1935-1975 (Berkeley: University of California Press, 1977, p.64-88; musema é definido na p.76).

Paramusical: Qualidade de um elemento semiologica-mente relacionado a um discurso musical específico sem ser estruturalmente intrínseco àquele discurso. Neologis-mo criado por Phillip Tagg em 1983 que significa literal-mente “ao lado da música”.

notações de estímulo, engajamento, afirmação, divisão do poder e participação democrática que parece fazer parte do ethos e programa político de Barack Obama. A justa-posição entre dificuldade e esperança que se observa no IOCM I-V-vi-IV (Ex.4) corresponde às citações do discurso de Obama sobre escravos, abolicionistas, imigrantes, tra-balhadores, mulheres e sua determinação em superar as diversas formas de injustiça. Olhando de perto um exemplo muito mais recente e específico, vale a pena acrescentar que as Dixie Chicks utilizaram uma variação do I-V-vi-IV do loop de acordes de Yes we can para acompanhar sua determinação de desafiar as ameaças pessoais que resulta-ram do fato da banda expressar a vergonha que sentiu pelo fato do ex-presidente norte-americano George Bush ser do mesmo estado natal que elas, o Texas. 37 Nas palavras de Obama, foi um tempo para mudanças e, mesmo, nas palavras de Dylan, os tempos são, espera-se, de “mudanças prá valer” (“a-changing for real”).

Embora este artigo já passe de 8.000 palavras, ainda há muito mais a ser dito sobre a música do vídeo da eleição de Obama e suas conotações. Pode-se argu-mentar, por exemplo, que o caráter antêmico do IOCM I-V-vi-IV não seja de grande importância para Yes we can e para sua letra, que é quase totalmente falada. Mas este argumento se esvazia em pelo menos um ponto: quais gravações consistindo de frases curtas chamativas apresentadas por diversos artistas, um de-pois do outro, formando uma série de conclamações, existem no gênero das canções pop reconhecidamen-te desde, pelo menos, Do They know it’s Christmas? da BAND AID (1984). E canções nesta forma – que chamo de charity stringalong (canções de solidariedade com solos de cantores) –, invariavelmente envolvendo uma chamada de participação em uma causa nobre. 38 Este cantar ou declamar consecutivamente, ao invés de si-multaneamente é simplesmente uma outra maneira de, musicalmente, apresentar um sentido de comunidade, que se pode comparar a um salmo ou hino. Yes we can combina, por assim dizer, o universo harmônico comu-nitário progressista da revista Sing out! 39, com um tipo de comunidade beneficente e participativa em prol de uma causa humanitária.

Os acordes de Yes we can também se referem a outras tradições da música popular anglófona, como a banda de rock formada por quatro homens (por exemplo, os Beatles, a primeira formação do Radiohead etc.), coun-try-rock e folk-rock (por exemplo, The Band) e soul (por exemplo, Otis Redding). Além disso, Yes we can acres-centa o rap e a pregação afro-americana àquela mistura de estilos, fundindo-os em um único produto. Esta fusão certamente parece se alinhar com os objetivos de unifi-cação e colaboração de Obama. Entretanto, todas essas questões – a inclusão musical de expressões da comu-nidade, o papel do rap e da pregação religiosa em Yes we can, e sua relação com o contexto político no qual o vídeo foi produzido e utilizado – estão, infelizmente, fora do escopo deste artigo.

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PMFC: Abreviatura de Campo Paramusical de Conota-ção (Paramusical Field of Connotation), um neologismo criado por Phillip Tagg em 1991 para descrever um cam-po semântico conotativamente identificável que se re-laciona com estruturas musicais (ou um conjunto delas). De 1979 a 1990, foi denominando de EMFA (Extramusi-cal Field of Comparison).

Poïético: Do francês poïétique (Molino, via Nattiez), é um adjetivo relacionado à poïesis, ou seja, o fazer musical, ou invés da percepção musical. Basicamente, o mesmo que

(termo usado, por exemplo, na frase “vamp till ready”).Referências de textos:BJÖRNBERG, Alf. On aeolian harmony in contemporary popular music. Org. Göteborg. IASPM - Nordic Branch Working Pa-

pers, no. DK 1. 1989 (também disponível online em www.tagg.org/others/bjbgeol.html) (Acesso em 18 de março, 2009).HARALAMBOS, Michael. Right on: from blues to soul in black America. London: Eddison Press: 1974.MOORE, Allan F. Patterns of harmony. Popular Music, v.11, n.1, 1992. p.73-106.VEGA, Carlos. Panorama de la música popular argentina. Buenos Aires: Losada: 1944.TAGG, Philip. Glossary of special terms, abbreviations, neologisms, etc. used in writings by Philip Tagg. www.tagg.org/

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fevereiro, 2008; gravado em 31 de janeiro, 2008).ANDERSSON, Lena. Hej du glada sommar. Polar POS 1175. 1973.BACH, Johann Sebastian. Air, Orchestral Suite in D Major (BWV 1068), 1731. Leipzig: VEB Deutscher Verlag fur Musik

(1973); also on Six Brandenburg concertos and four orchestral suites (Ouverturen). Archiv 423 492-2 (1988).BAND AID. Do They Know It’s Christmas?. FEED 1 [single], 1984.BEATLES, The. She loves you. Parlophone 5015. 1963.______. A Day In the life. Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Parlophone PCS 7027. 1967.______. Let it be. Let it be. Apple PCS 7096. 1970.CLAPTON, Eric. Veja DEREK AND THE DOMINOES. 1970.______. Nobody knows you when you’re down and out (unplugged, 9208) www.ca.youtube.com/watch?v=5aDykZEATzk

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construcional e o oposto de estésico ou recepcional. Na música, busca descrever um elemento da estrutura musi-cal do ponto de vista de sua construção, ao invés de suas qualidades conotativas percebidas, por exemplo, “con sordino”, “acorde menor com sétima maior”, “quarta au-mentada”, “pentatonicismo” ao invés de “delicado”, “som de detetive”, “allegro” etc.

Turnaround: Sequência repetida de acordes, geralmente em número de três ou quatro, ocupando uma frase de dois a quarto compassos, por exemplo, a sequência de acom-panhamento I-vi-ii/IV-V, também conhecida como vamp

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TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.

______. Its all over now, Baby Blue. Bringing it all back home. Columbia CS 9128. 1965.______. John Wesley Harding; I pity the poor immigrant. John Wesley Harding. CBS 25AP277. 1967.______. Lay, lady, lay. Nashville skyline. CBS 25AP278. 1969.______. George Jackson. CBS 45516. 1971.______. Knockin’ on heaven’s door. Pat Garrett and Billy The Kid. Columbia KC 32460. 1973.______. I shall be released. Before the flood. Island IDBD1. 1974.ELECTRIC LIGHT ORCHESTRA. Jungle (single com Shine a little love no Lado B). JET 12 144. 1973.FRANCIS, Connie. Who’s sorry now? MGM 12588. 1957.FREBERG, Stan. The Great pretender. Capitol 45-CL 14571. 1956.GOLDEN GATE ORCHESTRA. The Charleston. Edison Diamond 51542-R. 1925.GUTHRIE, WOODY. Oklahoma hills [disco original não encontrado]. 1937.______. [All of] You fascists are bound to lose. The Ballad operas: TheMartins and the Coys. Rounder 1819 (2000). 1944a.______. Hey Lolly Lolly. Legendary Woody Guthrie. Tradition 2058 (197?).1944b.______. This Land is your land. This land is your land. The Asch Recordings, Vol. 1. Smithsonian Folkways 40100 (1960). 1944c.______. Grand Coulee Dam. Columbia River Collection. Topic TSCD 448 (1988). 1945.______. Hard travelin’. The Greatest songs of Woody Guthrie.Vanguard VSD 3536 (1972). 1946.______. Two good men. Ballads of Sacco & Vanzetti. Smithsonian Folkways SF 40060 (1960). 1946-1947.HAMILTON, George (IV). Abilene. RCA Victor 47-9469. 1963.HOOLA BANDOOLA BAND. Man måste veta vad man önskar sig. Fri information. MNW 35P. 1972.JOURNEY. Don’t stop believing. Escape. Columbia TC 37408. 1981.KING, Ben E. Stand by me. Atco 6194.1961.LENNON, John. Imagine. Apple SAPCOR 10004. 1971.LENNON, John; THE PLASTIC ONO BAND. Instant karma; Woman Is the nigger of mankind. Shaved fish. Apple PCS 7173. 1975.LOS CALCHAKIS. La Flûte Indienne. Barclay Panache 920014. 1966.LYNYRD SKYNYRD. Free bird. Lynyrd Skynyrd. MCA DMCL 1798. 1973.MARLEY, BOB & THE WAILERS. No Woman no cry. Island WIP 6244; also No Woman no cry live at The Lyceum, London.

Island 16 398 AT (1975). 1974.PARAVONIAN, Rob. Pachelbel rant. www.youtube.com/watch?v=JdxkVQy7QLM (Acesso em 8 de fevereiro de 2009). 2006.PETER & GORDON. A World without love. Columbia DB 7225. 1964PETER PAUL AND MARY. Puff (the Magic Dragon). Warner WEP 601. 1963.______. Hangman. The Last thing on my mind. Warner WEP 617. 1965.PROCOL HARUM. A Whiter Shade Of Pale. Deram DM 126. 1967.RADIOHEAD. Creep. Parlophone TCR 6078; 1992.REDDING, Otis. Sitting on the dock of the bay. Stax 169027. 1967.RÖDA KAPELLET. Revolutionens vagga; Solidaritetssång för Chiles folk. Röda Kapellet. Avanti AVLP 01. 1974.______.Lärling: från arbetarhem via 9tp. Party Music/Partimusik. Avanti AVLP 02. 1976.RUFFIN, David. What becomes of the brokenhearted? Soul (Motown) 35022. 1966.SAKAMOTO, Kiu. Sukiyaki. Odeon 7-1-3030. 1963.SMITH, Bessie. Nobody knows you when you’re down and out. 78 Columbia 14451-D. 1929.SPENCER DAVIS GROUP, The. Nobody knows you when you’re down and out. Gimme some lovin. United Artists UAL 3587. 1967.THE BAND. The Weight. Music from Big Pink. Capitol ST 2955. 1968.______. Daniel and the sacred harp. Stage fright. Capitol SW 425. 1970.THE FARM. All together now. Jive ZB 44241. 1990.THE ONLY ONES. Another girl another planet. CBS 6576. 1978.THE PLATTERS. The great pretender. Mercury MT 117. 1955.TWISTED SISTER. We’re not going to take it. Stay hungry. Atlantic 7567-80156-2. 1984.WHITE, BARRY. I can’t get enough of your love babe. Pye Int. 7N25661. 1974.WILL.I.AM. Veja ADAMS, Wiliam. 2008.WINWOOD, Stevie. Veja SPENCER DAVIS GROUP. 1967.YOUNG, Neil. Southern Man. After the Gold Rush. Reprise 7599-27243-1. 1970.

Referência de vídeo:PECK, Cecília; KOPPLE, Bárbara. Shut up and sing (Cabin Creek Films/Weinstein, 2006).

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TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.

notas1. O vídeo, que nunca foi oficialmente sancionado pela campanha de Obama, foi disponibilizado online em fevereiro de 2008 e, até julho do mesmo ano,

foi assistido mais de 21 milhões de vezes. O vídeo é de autoria de “Will.i.am” (nome artístico de William Adams) e foi dirigido por Jesse Dylan, filho de Bob Dylan. Fonte: www.en.wikipedia.org/wiki/Will.i.am (Acesso em 15 de março de 2009).

2. O loop de acordes ║: Em |C - Am:║ / ║:Em - Em7 - C - Am:║ de Southern man não será discutido neste artigo. É, na verdade, uma variante dos acordes vai-e-vem (shuttle chords) no modo eólio (BJÖRNBERG, 1989).

3. Meus comentários foram enviados à lista da IASPM em 19 de Janeiro de 2009.4. Estou considerando o tom da peça como Sol Maior (I grau), mesmo que a matriz e a gravação ao final, na verdade, termine em Dó Maior (IV grau).5. No acorde de Dó Maior no início de Not ready to make nice (2006), as Dixie Chicks utilizam o mesmo efeito de nona adicionada (add9). Veja www.

youtube.com/watch?v=IHH8bfPhusM (Acesso em 6 de fevereiro de 2009).6. Como explica Carlos VEGA (1944, p.160), se referindo à musica nessa tradição, “No hay melodias en mayor y melodias en minor: hay simplemente me-

lodias bimodales” [não há melodias em maior ou menor: há simplesmente melodias bi-modais”.7. La Folia foi uma canção bastante popular no início do século XVI, provavelmente de origem portuguesa, também conhecida como Les folies d´Espagne

e que serviu de tema para muitas variações no século XVII.8. De fato, quando eu estava produzindo uma canção de solidariedade no Chile com nossa banda RÖDA KAPELLET (Solidaritetssång för Chiles folk, 1974),

optei, sem refletir o porquê naquela época, pela matriz VI–III–V–i (F–C–E–Am). Todos os músicos envolvidos nesta performance, mais Pedro van der Lee (musicólogo e performer argentino-sueco e tocador de huayño), consideravam a peça em Lá Menor, e não em Dó Maior. As outras canções mencionadas por Oro zco apresentam características semelhantes. Polo Margariteño também é bi-modal — G D (B) Em Am B Em — e Rio Manza-nares, harmonicamente, segue quase como Quiaquenita — G C E Am (VII–III–V–i). A versão de Elida Nuñes de Uruchaqina, referida por Orozco, é melodicamente bi-modal, mas na sua performance, não se observa nenhuma mudança de campo harmônico. Há, sim, uma espécie de fluxo permanente entre Lá Menor e Dó Maior. Sobre o comentário de VEGA (1944) a respeito de bi-modalidade, veja a nota anterior no presente artigo.

9. A mudança de Si Maior para Mi Menor pode ser um tipo de progressão mais direcional, com função dominante (como um tipo de cadência interrom-pida), mas ocorre tão claramente no meio da sequência que apresenta mais o caráter de uma progressão tonal temporária do que de uma finalização.

10. Por exemplo, comparando-se a sequência C G D A E (plagal) de Jimi Hendrix com a sequência (B) E A D G (função dominante) de Sweet Ge-orgia Brown. O jazz modal e o free jazz estabeleceram outras regras tonais, mas quase todos os outros tipo s de jazz, inclusive o bebop, se baseiam claramente na direcionalidade V-I e não IV-I.

11. As DIXIE CHICKS, por exemplo, terminam ambas Not ready to make nice e Taking the long way round (2006) com V–IV[–I], uma sequência mais idiomática do que V-I. O modo jônico e o passo harmônico V-I aparecem em alguns tipos de música country, mas sua ausência também acontece. Esta característica tonal pode ser derivada de sua preponderância relativa, dentro das músicas tradicionais afro-britânico-americanas, em modos que apresentam a 7ª maior a partir da tônica.

12. Sol Maior é uma das tonalidades preferidas de DYLAN. As seguintes canções são também em Sol Maior, embora sejam articuladas de maneira diferente do que acontece em The Times they are a-changing ou Yes we can: I pity the poor immigrant (em 3/4, 1968), I shall be released (com swing), Lay, lady, lay (com órgão e violão de aço, 1969), Don’t think twice (com palhetadas sistemáticas, 1963) e It’s all over now Baby Blue (Sol maior, mas com uso do capotraste preso no braço do violão, 1965).

13. O acorde da tônica Sol tocado na primeira posição marca o início de outras canções de GUTHRIE, como All you fas cists are bound to lose e Hey Lolly Lolly (1944). Mesmo a sempre popular This land is your land (1944) de Guthrie, que foi cantada nas festividades de inauguração da campanha de Obama, começa com um acorde de Sol Maior com cordas soltas, embora a canção seja m Ré Maior com o loop de acordes ║: G|D|A|D :║.

14. Por exemplo, School’s out (COOPER, 1972), A Few more rednecks (DANIELS, 1989), I Can’t get enough of your love babe (WHITE, 1974).15. Os acordes mais fáceis de se tocar no violão, na primeira posição, são Mi Maior, Mi Menor, Sol Maior, Lá Maior, Lá Menor, Dó Maior, Ré Maior e Ré Me-

nor. Não tive qualquer instrução no violão, mas posso produzir esses oito acordes sem dificuldade. Posso mesmo, geralmente com alguns milisegundos de atraso, fazer acordes com pestana como aquele Si Maior de Yes we can. Não consigo lembrar de uma única “canção de protesto” popular dentro das tradições do folk ou folk rock na língua inglesa que não esteja em uma daquelas oito tonalidades. A tonalidade menos comum seria Ré Menor, enquanto que, certamente, Sol Maior e Ré Maior estão entre as tonalidades mais comuns neste tipo de música.

16. Veja também as versões de CLAPTON (1971, 1992) e WINWOOD (1967).17. Seria interessante incluir neste estudo a progressão I–III–IV que ocorre na sequência ao final de Imagine de John Lennon (1971): IV–V–I–III–IV–V–I.

Com a letra, temos: [IV] “You may [V] say I’m a [I] dreamer [III] but I’m [IV] not the only [I] one; [IV] I hope some [V] day you’ll [I] jo-in us [III → IV] and the [V] world will [I] live as one” {traduzindo: [IV] “Você pode [V] dizer que sou um [I] sonhador [III] mas não [IV] sou o [I] único; [IV] espero que algum [V] dia você se [I] junte a nós [III → IV] e aí o [V] mundo [I] viverá como um só]. Infelizmente, tive de excluir esta referência porque o seu III grau não é um passo harmônico inicial e nem é seguido pelo vi grau.

18. O termo lo-fi (low-fidelity, ou “baixa fidelidade”) foi criado por Murray Schafer como antônimo de hi-fi (high-fidelity).19. Veja a paródia de Stan FREBERG (1956) da música The Great pretender dos THE PLATTERS (1955).20. Os acordes de Abilene são G|B|C|G|A|D|G C|G [D]| (com swing 4/4 rápido), enquanto que os de Crazy são G|B7|Em|Em|D |D7 |G |G [D]| (balada

um pouco lenta). Os acordes de Who’s sorry now são E|G7|C7|F7|B7|E etc. no tom de Mi Maior e andamento q = 88, e os acordes The Char-leston são B|D7|G7|C7| F7|B no tom de Si Maior e andamento q= 96.

21. Por exemplo, na gravação de CLAPTON (1972), o andamento é q. = 56.22. Note a distinção entre os acordes vai-e-vem (que BJÖRNBERG,1989, chama de pendu lum) e o loop de acordes. No passo harmônico vai-e-vem, o

acordes vão e depois voltam, mas no loop, os acordes giram ao redor. São necessários três pontos pelo menos para se criar uma forma tri-dimen-sional. Quanto maior o número de ângulos em uma forma bi-dimensional, mais ela se parecerá com o círculo. O diamante que se forma no campo de baseball norte-americano tem quatro ângulos (as “bases”), o que também acontece na área do pitch do jogo inglês rounders. Pode-se caminhar ao redor de um quarteirão completamente retangular. Mas não se caminha ao redor de uma linha reta entre dois pontos, não pelo menos dentro da física de Newton. Ocorre o mesmo com as sequências de acordes. Incidentalmente, Sitting on the dock of the bay também contém os sons de gaivotas na praia obrigatórios, além do barulho das ondas do mar.

23. O contexto desta frase na letra de Yes we can é o seguinte: “ ‘Yes we can’. It was sung by immigrants as they struck out from distant shores and pioneers who pushed westward against an unforgiving wildeness. ‘Yes we can’ “. [“ ‘Sim, nós podemos”, cantaram os imigrantes, quando se lançaram de praias distantes, assim como os pioneiros que se embrenharam no oeste contra a natureza inóspita. ‘Sim, nós podemos’ ”.]

24. Quando digo “one five oompah” [“I-V um-pá”], quero dizer a levada do contrabaixo em que “oom” são semínimas pontuadas leves no grave nos tempos 1 e 3, e “pah” são semicolcheias pesadas no registro médio. Para cada acorde, o baixo toca primeiro a fundamental do acorde da cifra e, depois, a quinta em relação àquela nota. Por exemplo, Mi e Si para o acorde de Mi Maior; Sol # e Ré # para o acorde Sol #, Dó# e Sol# para o acorde de Dó# etc. Algumas vezes, a ordem pode ser inversa quando for o acorde do V grau. Por exemplo, Fá# e Si para o acorde de Si Maior (V) no tom de Mi Maior (I).

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TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.

Philip Tagg é Professor de Musicologia na Faculté de Musique da Université de Montréal (Canadá). Co-fundador da Interna-tional Association for the study of Popular Music (IASPM) e mentor da Encyclopedia of Popular Music of the World (EPMOW), publicou dezenas de artigos nos mais prestigiosos periódicos. Foi professor do Institute of Popular Music da University of Liverpool (Inglaterra), onde orientou mestrandos e doutorandos e desenvolveu cursos de musicologia, análise, harmonia e semiologia relacionados à música popular. Trabalhou também na University of Göteborg (Suécia) e Swedish Council for Re-search in the Humanities and Social Sciences (Suécia). É organista erudito e tecladista em bandas de rock e pop, entre elas Röda Kapellet. Como compositor, escreveu obras corais e canções populares. É autor e colaborador de diversos programas de rádio educacionais relacionados à música popular. Recebeu diversos prêmios nas áreas de composição, ensino e pesquisa. Seu site www.tagg.org é um dos sites de musicologia e etnomusicologia da música popular mais visitados em todo o mundo, no qual dispobiniliza gratuitamente significativa parte de sua extensa obra didática e de pesquisa.

Fausto Borém é Professor Associado da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde criou o Mes-trado e a Revista Per Musi. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem um livro, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, musicologia, etnomusicologia da música popular e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e recitais nos principais eventos nacionais e internacionais de contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Arnaldo Cohen e músicos populares como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Tavinho Moura, Roberto Corrêa, Túlio Mourão e Fabiano Araújo Costa.

25. A sequência de acordes nos 12 compassos dos versos de A World without love é a seguinte: ║: E|G#|C#m|C#m|E|Am|E |E |F#m |B |E ||1ª casa: C B turnaround :║ 2ª casa: E ... seguindo até a ponte de 8 compassos ou até o final|. A instrumentação da canção consiste de: (1); os pesadamente pon-tuados “one-five oompahs” de Paul McCartney; (2) uma bateria simples e discreta; (3) uma batida simples do violão; (4) um órgão Vox acompanhando com string pads praticamente inaudíveis junto com a melodia do verso no break instrumental. A linha vocal é cantada por vozes masculinas jovens de maneira lírica e simples.

26. 39% da canção Creep, que dura 4:00, corresponde a 1:34. A gritaria e o overdrive ocorrem em dois pontos desta gravação: 1:02 -1:24 (22”) e 2:06-3:08 (1:02”).

27. A canção Creep é única, dentro do conhecimento que tenho sobre outras canções que se baseiam na sequencia do loop I-III-IV-iv. Baseio esta interpre-tação de dramática desesperança não tanto na letra da canção, embora seu conteúdo contenha bastante drama e desesperança, mas na harmonia, como é comum no tipo de análise musical exagerada que os alunos geralmente apresentam, geralmente com respostas do tipo alienado, com raiva, sem esperança, desesperado, cínico etc. Experimente substituir o acorde de Dó Menor por Ré Maior ou Ré Menor ou Fá Maior.

28. Além de outras inversões de tríades, Brokenhearted contém um acorde de Mi diminuto e apresenta alternâncias bem marcadas para o campo de Dó Maior-Lá Menor para depois voltar a Si Maior-Sol Menor.

29. Na verdade, Sukiyaki começa com acordes vai-e-vem plagais (I-IV-I no tom de Sol Maior) mas, antes, progride harmonicamente para I-iii-vi-V no compasso 5 do verso.

30. A progressão iii-IV em Baby Blue ocorre mais ao final de cada verso (em “Look out, the saints are coming through” [“Cuidado, os santos estão passando” no verso 1]. O iii→vi reaparece logo antes do ral lentando final ao final de cada verso de I pity the poor immigrant com Joan Baez no disco A Hard Rain concert, 1976).

31. O tipo de letra contando histórias que se observa em Hangman, The Weight e I pity the poor immigrant de Dylan também ocorre em outra canção bem conhecida que utiliza a partida harmônica I-iii [-vi] em andamento andante: A Day In the life (1967: “I read the news today” [“Leio as notícias de hoje”], “A crowd of people stood and stared” [“Uma multidão de pessoas parou e encarou”], etc.) dos Beatles. Sem qualquer consciência dessa conexão, nossa banda também utilizou este I-iii[-IV] por razões narrativas semelhantes em Revolutionens vagga (RÖDA KAPELLET, 1974).

32. O Ré e o Fá# do acorde de Ré Maior no tom de Sol Maior são ambos adjacentes à fundamental da tônica de Mi Menor.33. Para um hilariante pot-pourri de canções de derivadas do Canon de Pachelbel, veja PARAVONIAN (2006).34. Vale a pena mencionar que esta canção aparece no “. . . álbum Spartacus, o qual tem sido conectado. . . com temas favoritos da banda [The Farm], tais

como socialismo, fraternidade e futebol americano” (artigo All together now da Wikipedia (Acesso em 17 de março de 2009).35. Voltando a falar, pela última vez, do repertório político de esquerda da banda de rock da qual fui membro de 1972 a 1976, talvez valha a pena comentar

que utilizamos o loop I-V-vi-IV em Sol Maior (G - D - Em - C) para acompanhar as seções narrativas da montagem de 10 minutos de Lärling (RÖDA KAPELLET, 1976). A letra se refere ao tratamento injusto recebido por aprendizes na indústria e sua determinação de mudanças para melhorar de vida.

36. Don’t stop believing (1981) de JOURNEY tem um andamento mais moderado (q = 122) do que as faixas de Twisted Sister e Only Ones, e repete o loop I-V-vi-IV durante os versos. Mas, suas quatro semínimas duras, amplificadas no piano e arpejos de semicolcheias pseudo-clássicos na guitarra elétrica, revelam uma instrumentação muito diferente de Yes we can. Mesmo assim, a canção tem algum valor antêmico, com sua letra que clama alguém a não desistir (“Não pare de acreditar”). Um outro exemplo de rock antêmico com I-V-vi-IV em Sol Maior é Free bird de LYNYRD SKYNYRD (1973, q = 120). Entretanto, esta sequência harmônica faz parte de um período de 8 compassos - ║: I |V|vi|vi ] IV|IV|V|V :║ com o grau IV no com-passo 5 iniciando uma segunda frase. Mais apropriada, bastante antêmica e politicamente progressista é a icônica canção sueca Man måste veta vad man önskar sig (1972, ║: D|A|Bm|G :║; q = 120) da banda progressiva sueca HOOLA BANDOOLA. Entretanto, assim como ocorre com as referências de RÖDA KAPELLET (notas de fim 7, 29, 33), mesmo com raízes estilísticas na tradição pop/rock anglo→americana, a letra é em sueco, e não em inglês.

37. A história completa do incidente no teatro O2 Shepherd’s Bush Empire em Londres, em 2003, quando a cantora Natalie Maines das Dixie Chicks expres-sou sua vergonha de ter nascido no mesmo estado que o presidente George Bush e suas consequências para aquelas três heróicas musicistas jovens do Texas é contada no tocante documentário Shut up and sing (PECK e KOPPLE, 2006).

38. Alguns exemplos destes grupos são Artists united against apartheid (1985), os suecos Svensk rock mot apartheid (1985), Hear’n aid (1986) e Disco aid (1986). O verbo string along, de acordo com o Oxford Concise English Dictionary (1995), é uma expressão coloquial que significa “estar em companhia de”. Singalong, de acordo com o mesmo dicionário, significa “uma canção que alguém pode cantar junto” ou “uma ocasião de canto comunitário”. Se várias pessoas cantam ou falam, uma de cada vez e sucessivamente durante uma canção, elas certamente estão em companhia umas com as outras (e também com a canção), mas elas o fazem consecutivamente e não simultaneamente: daí o termo stringalong.

39 Entre os fundadores da revista Sing Out! estão Pete Seeger, Woody Guthrie, Paul Robeson, Alan Lomax e Irwin Silber. Para uma descrição e história da revista, veja www.singout.org/sohistry.html (Acesso em 18 de março, 2009)

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BORÉM, F.; ARAÚJO, F. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.22-43.

Recebido em: 21/08/2009 - Aprovado em: 13/03/2010

Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação de sua linguagem harmônica

Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG)[email protected]

Fabiano Araújo (UFES, Vitória, ES) [email protected]

Resumo: Estudo panorâmico sobre a trajetória musical e a formação das linguagens harmônicas do compositor, arranjador e multi-instrumentista Hermeto Pascoal ao longo de suas fases musicais, linguagens que são geralmente associadas, na música erudita, ao tonalismo, modalismo, atonalismo, polimodalismo, paisagem sonora e música concreta. São observados como elementos de sua experiência de vida (cultural, social, religiosa e profissional) podem ter influenciado a combinação vertical de sons na sua criação musical, bem como a sua proposta e utilização de conceitos como música universal, cifragem universal, música da aura, música dos ferros e método do corpo presente.Palavras-chave: Hermeto Pascoal; música popular brasileira; etnomusicologia brasileira; harmonia; análise musical; auto-didatismo em música.

Hermeto Pascoal: life experience and the formation of his harmonic language

Abstract: Panoramic study about the musical trajectory and development of the harmonic languages of the Brazilian composer, arranger e multi-instrumentalist Hermeto Pascoal through his musical phases, languages which are usually associated with the “classical” terms tonalism, modalism, atonalism, polimodalism, soundscape and concrete music. It is observed how elements of his life experience (cultural, social, religious and professional) may have influenced the vertical combination of sounds in his musical output as well as his proposition and usage of concepts such as universal music, universal chord notation, aura music, iron scraps music and present-body method.Keywords: Hermeto Pascoal; Brazilian popular music, Brazilian ethnomusicology; harmony; musical analysis; autodidacticism in music.

1 – IntroduçãoEste estudo panorâmico tem o objetivo de apresentar a formação da linguagem harmônica na trajetória musi-cal de Hermeto Pascoal. Conhecer o percurso não-con-vencional de sua formação nos mostra como surgem, se acomodam e se integram, dentro da sua obra, as diver-sas nuances de sua linguagem harmônica, que tem sido associada, na música erudita, aos termos tonalismo, mo-dalismo, atonalismo, polimodalismo, paisagem sonora e música concreta.

O conjunto de 366 peças do Calendário do som, bem como a maioria de sua vasta produção, se associa à mú-sica tonal. Entretanto, os procedimentos peculiares de Hermeto (músico de formação intuitiva, não letrada) de se afastar e de se aproximar dos centros tonais em cada uma delas, assim como sua grafia especial de cifras (que

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010

explicita a condução de vozes), podem revelar um pen-samento estruturado que, se nasceram de sua intuição e autodidatismo brasileiros, encontram eco e explicação nos princípios sistematizados por outro importante com-positor do século XX, o europeu Arnold Schoenberg (mú-sico de formação erudita, racional, mas autodidata como Hermeto Pascoal).

Ao desenvolver o princípio da Monotonalidade (ou seja, a manutenção de apenas uma tônica em uma peça ou por-ções significativas da mesma) e seus conceitos relaciona-dos (Tonalidade Expandida, Tonalidade Flutuante, Tona-lidade Suspensa, Transformação, Substituição, Regiões, Regiões Intermediárias, Acordes Vagantes), SCHOENBERG (2004, 2001, 1999) buscou simplificar as explicações para os crescentes afastamentos harmônicos proporcionados

“Eu uso a teoria, a teoria não me usa. . .” Hermeto Pascoal (CAVALCANTI, 2004)

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BORÉM, F.; ARAÚJO, F. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.22-43.

por notas alteradas estranhas à tonalidade inicial. Esta perspectiva inovadora foi aproveitada, no Brasil, por Pau-lo José TINÉ (2002) dentro do contexto do ensino da mú-sica popular, cujo repertório e práticas de performance quase sempre evitam os conceitos de modulação, polito-nalidade e atonalismo.

Hermeto Pascoal e sua obra constituem um rico manan-cial de temas de estudo, e proveria temas para diversas áreas de pesquisa em música: composição, performance, etnomusicologia, educação musical, organologia, música e tecnologia, sociologia e psicologia da música. Entre os trabalhos acadêmicos sobre o compositor, destacam-se sete dissertações de mestrado, em que a trajetória mu-sical de Hermeto Pascoal serve de contexto para focos diversos. Entretanto, ainda há uma grande dificuldade de obtenção de fontes consolidadas e atualizadas sobre esse tema. PRANDINI (1996) concentrou seu estudo nos ele-mentos rítmicos, harmônicos e melódicos característicos em improvisações que transcreveu de gravações de Her-meto Pascoal. TABORDA (1998) busca explicar a obra de quatro músicos populares brasileiros (Hermeto Pascoal, Caetano Veloso, Jards Macalé e Chico Mello) com base em matrizes eruditas europeias. K. RODRIGUES (2006) analisou o pianista Hermeto Pascoal juntamente com mais sete outros destacados pianistas da música popu-lar brasileira. ARAÚJO (2006), procurando avançar a pro-posta de TINÉ (2002), desenvolveu um modelo de análise harmônica aplicado à realização de leadsheets de peças selecionadas do Calendário do som, a partir de conceitos harmônicos de Schoenberg (sistematizados e discutidos por DUDEQUE, 2006), explicando a manutenção e afas-tamento de centros tonais na música de Hermeto. Dentro do viés da semiologia, ARRAIS (2006) focou em aspectos do ritmo, timbre e contorno melódico. A maioria das in-formações históricas nestes estudos quase sempre parte de artigos divulgados pela mídia, muitas vezes conflitan-tes. Neste cenário, Luiz Costa-Lima Neto e Lúcia Campos são exceções, pois oferecem discussões substanciadas em fontes etnomusicológicas primárias, entrevistas com o próprio compositor e seus parceiros em grupos diversos. Luiz COSTA-LIMA NETO (1999) estudou a caracterização de elementos rítmicos, harmônicos, melódicos e timbrísti-cos no período de Hermeto pascoal e Grupo (1981-1993). Lúcia CAMPOS (2006) abordou a influência do forró, choro e bandas de pífanos na rítmica do compositor. Luiz COSTA-LIMA NETO (2000, 2008, 2010a, 2010b) se desta-ca como o autor que mais publicou trabalhos sobre a vida e obra de Hermeto Pascoal em periódicos no Brasil e no exterior (veja seu artigo O cantor Hermeto Pascoal: a voz como instrumento neste número de Per Musi às p.44-62).

É grande o número de discrepâncias em relação a datas, nomes de pessoas, músicas e lugares a respeito de Hermeto Pascoal. O site oficial do compositor informa que o escritor baiano Roberto Torres “. . . está escrevendo a biografia do Hermeto há mais de 20 anos. . .”. Ao que tudo indica, Torres, que seria “. . . o pesquisador que mais conhecimento de causa tem a respeito da vida e obra do Hermeto” (MORE-

NA, Aline e PASCOAL, Hermeto, 2009b), ainda não termi-nou este trabalho. No mesmo site, encontra-se também uma errata de duas páginas (provida por Aline Morena e pelo próprio Hermeto Pascoal) sobre outra fonte impor-tante: o livro para crianças O Menino Sinhô, vida e música de Hermeto Pascoal para crianças (VILLAÇA, 2007). Agra-decemos a Hermeto Pascoal, Aline Moreno, Jovino Santos Neto e Itiberê Zwarg por terem generosamente revisado as informações históricas deste artigo.

Grosso modo e quase cronologicamente, a trajetória mu-sical de Hermeto Pascoal pode ser dividida em oito fases:

I (1936-1942): do nascimento à idade escolar, período de atenção e familiarização com sons de animais, melodias da fala, objetos, instrumentos musicais e festas do inte-rior em Lagoa da Canoa (Alagoas).

II (1943-1949): da infância à adolescência, período de prá-tica instrumental e trabalho informal como músico (fole de oito baixos/pandeiro) em Lagoa da Canoa e adjacências.

III (1950-1957): migração para grandes cidades do Nor-deste (Recife, Caruaru, João Pessoa), consolidação profis-sional (sanfona/pandeiro) e experimentação com o piano.

IV (1958-1968): migração para grandes centros do Su-deste (Rio de Janeiro e São Paulo), mudança do foco de sanfoneiro de regional para pianista de grupos instru-mentais, desenvolvimento como compositor e multi-ins-trumentista e experiência em festivais da canção.

V (1969-1977): viagens aos Estados Unidos, gravações como solista, consolidação internacional como composi-tor, arranjador e multi-instrumentista.

VI (1978-1993): consolidação da Escola Jabour com Her-meto Pascoal e Grupo, desenvolvimento da notação mu-sical, experiência com gravadoras de pequeno porte.

VII (1994-2002): socialização da Escola Jabour, pro-jetos musicais isolados, como a escrita do Calendário do som, shows nacionais e internacionais com outros solistas e grupos.

VIII (2003-presente): parceria com Aline Morena e for-mação do duo multi-instrumentista Chimarrão com Ra-padura, rompimento com as grandes gravadoras multi-nacionais e projeto de socialização da obra de Hermeto Pascoal na internet (partituras, textos, vídeos e grava-ções), shows com seu duo, grupo e big bands.

Quando não indicadas por citação, as informações histó-ricas incluídas neste artigo resultam de um cruzamento e concordância de dados das seguintes fontes: PASCO-AL (2009a, 2009b, 2009c), MORENA e PASCOAL (2009a, 2009b, 2009c, 2009d), SIXPACK (2009), COSTA-LIMA NETO (1999, 2000, 2008, 2010a, 2010b), VILLAÇA (2007), CAM-POS (2006), PRADINES (2006) e MARCONDES (1998).

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2- A trajetória musical eclética de Hermeto Pascoal

“A minha música começou no meu cordão umbilical. Foi quan-do eu nasci, o meu primeiro som foi esse. . .” Hermeto Pascoal (BARROSO, 2009).

Hermeto Pascoal nasceu em 22 de Junho de 1936 no sítio Olho d’Água em Lagoa da Canoa, no município alagoano de Arapiraca, “filho de agricultores [Pascoal José da Costa - ou Seu Pascoal, e Vergelina Eulália de Oliveira – ou Dona Divina], albino e de olho virado” (O. RODRIGUES, 2003). Por parecer um pequeno homenzinho, recebeu da família o carinhoso apelido de Sinhô (VILLAÇA, 2007, p.5-7). Logo se familiarizou com os sons que o rodeavam e vinham de fontes diversas: o fole do pai, os músicos Vicente Cego e Juvenal Tatu que vinham tocar no bar do pai, as sobras de ferro do avô ferreiro Sena da Bolacha, os animais, o sino da igreja, as festas e cantos populares de Lagoa da Canoa, os gritos dos vendedores na feira da vizinha Arapiraca (VILLAÇA, 2007, p.8-25). Aos sete anos, iniciou-se no fole de oito baixos, sem teclado, apenas com botões, também conhecido como harmônico ou pé-de-bode, pela simplicidade. Mas uma simplicidade dentro da qual Hermeto já vislumbrava combinações pouco usu-ais. Esse oito baixos em Dó de seu pai era essencialmente diatônico, mas incluía um Fá sustenido, segundo relata Hermeto em uma entrevista a Álvaro CAVALCANTI (2004, CD 4; ouça a faixa única entre 7’:48’‘ e 8’:05’’). Seu Pas-coal se animou, ao ver o talentoso filho tocando escon-dido seu fole, “. . .você vai agora é tocar, papai vai com-prar um para você, eu vou vender aí uma vaca, um boi, para comprar um bonito para você” (BARROSO, 2009). Do universo musical de sua infância, também faziam partes as flautas (pifes) de talo de mamona (carrapateira). Aos 11, com apoio da família, formou a dupla Os Galegos do Pascoal com o irmão Zé Neto, também albino, revezando fole e pandeiro em bailes da região (VILLAÇA, 2007, p.26).

No início de sua carreira profissional, Hermeto Pascoal percorreu um caminho ligado à prática de música ao vivo nas rádios. Os Galegos do Pascoal mudaram-se para o Recife em 1950, onde foram contratados pela Rádio Tamandaré. Conheceram Sivuca, que sentiu em Hermeto “. . . ainda de calças curtas. . . ‘o fogo sagrado’ ” (SIVUCA, 2000) e o ajudou a ingressar na Rádio Jornal do Commer-cio, onde seu irmão já estava. Juntos, os três formaram o trio O Mundo Pegando Fogo, nome imposto pelo pro-dutor da rádio Amarílio Niceias e referência à cor rosa-da e cabelos avermelhados dos três albinos; no trio foi também imposto a Hermeto o apelido de “Sivuquinha”. Na estreia do grupo no Largo da Paz, sem ensaio e com instrumentos novos que Hermeto e Zé Neto mal conhe-ciam (sanfonas de 80 e 120 baixos, ao invés do fole de 8!), o grupo agradou, até o momento em que o locutor pediu Vassourinha. Não conhecer o clássico do frevo em Recife foi fatal, apesar da tentativa de Sivuca, que antes de morrer considerou Hermeto “o Beethoven do século XX” (SIVUCA, 2000), de lhes salvar a pele. Hermeto foi obrigado, então, a tocar pandeiro na rádio. No progra-

ma ao ar livre A Felicidade bate à sua porta, Jackson do Pandeiro lhe deu um conselho: “Hesmeto [Jackson não conseguia falar Hermeto], se você ficar nesse negócio de tocar pandeiro, você não vai pra frente não. Não vê eu, estou começando a cantar, não vou ficar no pandeiro toda hora não”. (BARROSO, 2009). Resultado: suspenso do trabalho por quinze dias, por não aceitar tocar apenas pandeiro e ser chamado de “Sivuquinha”, Hermeto foi en-viado para a rádio de Caruaru e, Zé Neto, para a rádio de Garanhuns, para recomeçarem da estaca zero (VILLAÇA, 2007, p.36-37). O maestro Giusepe Mastroianni da Rádio Difusora de Caruaru percebeu que o jovem talento tinha ouvido absoluto, o que levou Hermeto a procurar a escola de música do maestro e violinista Laranjeiras. Mas deste ouviu que não poderia aprender música ali devido à sua deficiência visual, ao que respondeu: “Maestro, eu não preciso das aulas para aprender música. Música eu já sei. Vim até aqui para aprender como é que se escreve a mú-sica!” e logo decidiu que “Música não é para ver. Música é para sentir. Se eu deixar de tocar só porque não consigo ler as notas no papel, eu tô é frito!” (VILLAÇA, 2007, p.42-43). Mas pediu ao amigo Zé Gomes que lhe comprasse um livro de música, o Método para Acordeon do carioca Alen-car Terra onde, pela primeira vez e aos dezesseis anos, em meio ao oceano desconhecido de símbolos musicais, viu “aquela bola branca, quatro tempos. . . aquela hastezinha. . . a mínima pretinha. . .”. Aí, deixou de lado esta apren-dizagem, pelo menos por um tempo, porque aquela “. . . teoria ia me atrapalhar” (BARROSO, 2009).

Zé Neto mudou-se para o Rio de Janeiro a convite de Luiz Gonzaga. Hermeto, aos 19 anos, retorna ao Recife, onde passa a tocar sanfona no regional de choro da Rádio Jor-nal do Commercio. No ambiente das rádios, podia assistir aos ensaios de grupos orquestrais com os maestros Guer-ra-Peixe, Clóvis Pereira, Duda e Joaquim Augusto. Com o convite do guitarrista Heraldo do Monte para trabalhar na Boate Delfim Verde, transfere sua técnica da sanfona para o piano e aprende a tocar “jazz para americano ouvir. . . [para] marinheiros da base militar americana” (VILLAÇA, 2007, p.48-49). Ainda no Recife, tocou no regional de Ro-mualdo Miranda, cuja filha Ilza tornou-se sua esposa em 1954, com quem viveu 46 anos e teve seis filhos: Jorge, Fábio (músico multi-instrumentista como o pai), Flávia, Fátima, Fabíula [escrito assim mesmo!] e Flávio. Aceitan-do o convite de trabalhar no regional da Rádio Tabajara em João Pessoa, Hermeto teve contato com diversos gê-neros musicais – “bossa-nova, rock-and-roll, samba-jazz” (VILLAÇA, 2007, p.51), começou a compor e construiu uma grande reputação na Paraíba, mesmo sem saber ler música. Atraído pela efervescência musical do sudeste do Brasil, mudou-se para o Rio em 1958, para tocar sanfo-na com Pernambuco do Pandeiro em rádios. Na década de 1960, em meio aos festivais da canção, viu surgir a Bossa Nova, a Jovem Guarda, as canções de protesto e o Tropicalismo. Embora não se alinhe a nenhum destes mo-vimentos, Hermeto parece ter se identificado com aquele que é considerado o mais sofisticado harmonicamente, o que o levou a ser incluído no time de instrumentistas

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“herdeiros ou continuadores (muitas vezes sobreviventes) da linhagem da bossa-nova” por Ana Maria BAHIANA (1979-1980b, p.77). Para estudar o piano, instrumento caro e trancado a “sete chaves”, mas que fazia parte do instrumental básico das rádios e boates, Hermeto contou com o “jeitinho brasileiro” de Heraldo do Monte na Boate Delfim (VILLAÇA, 2007, p.49) e de Pernambuco do Pandei-ro na Rádio Mauá (CAMPOS, 2006, p.83).

No Rio de Janeiro, Hermeto logo expandiu sua cultura mu-sical tanto na música instrumental quanto acompanhan-do cantores em boates, como a Chicote. Tocou piano no conjunto e na boate do violinista Fafá Lemos. Substiuindo o acordeonista Chiquinho do Acordeom, fez parte, bre-vemente, do Trio Surdina com Fafá Lemos e o violonista Garoto. Depois, participou do conjunto do maestro, flau-tista e saxofonista Copinha no Hotel Excelsior. Em 1961, mudou-se para São Paulo onde, em 1964, a convite de Airto Moreira, com o fim do Sambalança Trio (que tinha o pianista César Camargo Mariano), fundou o Sambrasa Trio (ROBINSON, 2000). Além de tocar em casas noturnas como Stardust, sempre atento e autodidata, dedica-se ao estudo da flauta e saxofone. Acompanhou cantores de festivais como Geraldo Vandré, Edú Lobo e Marília Medalha (com Ponteio, 1º Lugar no 3º Festival de Música Popular Brasilei-ra da TV Record em 1967). Mais tarde, se apresentou como compositor de Serearei, cantada por Alaíde Costa no VII FIC - Festival Internacional da Canção de 1972 e de O Porco da festa cantada por Aleuda e ele no Festival Abertura da Rede Globo de Televisão em 1975.

Hermeto sabia que acompanhar cantores era o ganha-pão mais certo, mas sentia que não poderia se submeter para sempre às exigências dos shows, rádio e TV:

“. . . sob a patrulha ideológica do nacionalista Geraldo Vandré, Hermeto trajava terno e gravata e mantinha o cabelo bem curto.” (COSTA-LIMA NETO, 2008, p.24)

“Nem modernismo nacionalista, nem cosmopolitismo antropofági-co. O conflito de Hermeto com a intelligentsia urbana representa-da por Geraldo Vandré [diversas vezes acompanhado pelo Quarteto Novo], de um lado, e com a vanguarda da música popular [termo que não se aplica aqui, segundo Hermeto Pascoal] representada por Gilberto Gil [o qual o Quarteto Novo recusou acompanhar na música Domingo no parque], de outro, marcaram o caminho pessoal que Hermeto escolheria em seguida.” (COSTA-LIMA NETO, 2008, p.14)

Finalmente, o vácuo após o relativo declínio da canção brasileira com o fim dos grandes festivais abriu o espaço para a música instrumental, que levaria Hermeto a uma era de maturidade e autonomia musical:

“O predomínio do texto atingiu seu pique máximo com os festivais, nos derradeiros anos 60 e primeiros 70 – e quando a censura em-penhou esforços para emudecer a música brasileira, os primeiros murmúrios da música instrumental – sem texto, portanto, teorica-mente, incensurável e livre – se fizeram ouvir. . . mas o jejum for-çado imposto às plateias não criou de imediato um interesse por música instrumental. . . só começou a registrar dados positivos de crescimento a partir de 1974. . . A realização, extremamente bem sucedida, de uma verdadeira maratona de música improvisada, em 78 – o Festival de Jazz de São Paulo, em setembro – serviu para atestar a existência inequívoca de um interesse pelo gênero. . . e a

tendência ao modismo. ‘Ouço muita gente falar do Hermeto. Mas poucos entendem’, afirmou Theo de Barros, ex-companheiro de Hermeto no Quarteto Novo, em dezembro de 78. ‘Não sei se feliz-mente ou infelizmente, ele está sendo tratado como um modismo. . .’ ” (BAHIANA,1979-1980b, p.79-81)

“Ao se encerrar a década [de 1970], a música instrumental tinha no Brasil pelo menos dois grandes nomes. . . dois nomes que exem-plificavam perfeitamente essa passagem da linha jazz/bossa para uma linguagem mais misturada e mais ampla: Egberto Gismonti e Hermeto Paschoal [sic.]” (BAHIANA,1979-1980b, p.82-83).

Em 1969, a convite da cantora Flora Purim e do percus-sionista Airto Moreira, que mandava notícias otimistas de sua experiência de tocar com Miles Davis, Hermeto viajou para os Estados Unidos. Lá, participou dos LPs Natural Fe-elings (1970) e Seeds On the Ground (1971) de Airto, atu-ando como compositor, arranjador e instrumentista. Atra-vés de Airto, Hermeto e Miles Davis se conheceram, após um show do jazzista norte-americano. Hermeto lembra da súbita amizade que se estabeleceu entre os dois:

“Aquele jeitão dele, meio carrancudo. . . você tem que acreditar em alguma energia celestial. Isso foi antes de começar o show. Eu acredito nisso, senti um vibração bonita dele. Aí ele fez o show dele, eu assisti o show, depois eu fui em um, dois, três shows. A música dele eu não achava boa naquela época. . . aquele rock. . . Mas ele aí me ligou e disse que queria me ver de qualquer maneira. . . Quando eu cheguei lá e tal, levei um violão, ele se sentou, toquei um monte de música[s], cantando e solando. . .Quando acabei de tocar, ele chegou e disse: ‘Que pena que eu não posso gravar todas as suas músicas!’. Aí eu falei: ‘Mas como você sabe que eu quero te dar todas pra gravar? Eu vim também pra gravar aqui. Eu vou escolher as que eu quero te dar’. A partir daquele dia houve aquela simpatia geral. . . Ao ponto de eu ir pra casa dele e a gente lutar boxe. Uma vez eu dei uma porrada nele, errei e dei uma porrada nele. . .” (BARROSO, 2009).

E, de fato, através de Airto, conheceu Miles Davis, que se interessou logo pelas suas músicas:

Mostrei a ele umas 12 músicas, que eram bem diferentes de tudo aquilo que ele fazia. Disse que queria colocar algumas no disco dele e eu me senti à vontade para brincar e dizer que eu veria quantas músicas deixaria ele colocar no disco dele. (IVANOV, 2002)

Ao final, fora incluídas Nem um talvez e Igrejinha no dis-co Live evil lançado por Miles Davis em 1972. Nesse disco histórico, além de Hermeto e Airto Moreira, participaram muitas lendas do jazz: Keith Jarret, Joe Zawinul, Herbie Hancock, Chick Corea, John McLaughlin, Steve Grossman, Dave Holland, Jack DeJohnette, Art Farmer, Wayne Shorter, Joe Farrel, Hubert Laws, Ron Carter e Thad Jones (COSTA-LIMA NETO, 2010a; 2000, p.124). A partir daí, só cresceu o reconhecimento de Hermeto em todo o mundo e a expe-riência de interagir com grandes artistas como Stan Getz, Joe Pass, Barney Kessel, Dizzy Gillespie, Jhonny Griffin, Opa Trio (grupo uruguaio que acompanhava Flora e Airto), Ab-dullah Chhadeh, Laura Fygi, Pedro Jóia, entre outros.

Hermeto tem recebido muitas homenagens e prêmios como reconhecimento pelo seu trabalho. Em 1984, foi inaugurada uma escola municipal com seu nome em Cam-pestrinho (Alagoas). Em 1985, recebeu o título de cidadão honorário de Arapiraca, cidade vizinha à sua cidade natal. Em 1972 e 1973, recebeu os prêmios de Melhor Solista e

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Melhor Arranjador , respectivamente, pela Associação Pau-lista dos Críticos de Arte. No Rio, recebeu o Prêmio Sharp de Música por cinco vezes: Melhor Grupo em 1987, Melhor Disco Instrumental em 1993 com o disco Festa dos deuses, Melhor Disco Instrumental com Por Diferentes Caminhos e Melhor Música Instrumental por Pixitotinha em 1989 e Melhor Arranjo pelo disco Kids of Brazil do duo de violões Duofel. Em 1994, sua apresentação no Queen Elizabe-th Hall foi considerada pelo jornal The Guardian como o maior concerto de música popular da década. Em 2002, foi homenageado pelo SESC com a exposição Hermetis-mos Pascoais, sobre sua obra. Ainda em 2002, os flautistas da Pró-Música do Rio de Janeiro o escolheram como tema do espetáculo O Aprendiz de feiticeiro. Em 2004, recebeu o Troféu Monsueto no 3º Prêmio Rival Petrobrás de Música na categoria Música Instrumental pelo disco Mundo Verde Esperança, disco que ainda recebeu dois troféus no Prêmio Tim de Música. Em 2007, o DVD Chimarrão com Rapadura foi escolhido como um dos dez melhores em todo o mundo pelo historiador e produtor de jazz Arnaldo DeSouteiro, no qual Hermeto foi homenageado como Artista do Ano e Ali-ne Morena com Artista Revelação.

Em outubro de 2002, durante um workshop em Londrina conheceu a cantora Aline Morena, descrita por um crítico argentino como “Impactante. . . con una capacidad vocal asombrosa” (MOUJÁN, 2007), e a convidou para dar uma canja no dia seguinte com o seu Grupo em Maringá. Em seguida ela o acompanhou ao Rio de Janeiro e, no fim de 2003, Hermeto, “. . . assustado com a violência no Rio de Janeiro, colocou à venda sua casa na Zona Oeste. . .” (AL-BIN, 2009) e passou a residir com ela em Curitiba. Ensinou-lhe viola caipira, piano e percussão e, em março de 2004, estreou com ela o duo Chimarrão com Rapadura (ou seja, gaúcha com alagoano) no Sesc Vila Mariana em São Paulo (MORENA e PASCOAL, 2009a).

Hermeto Pascoal é mais conhecido tocando sanfona, fole de oito baixos, piano, flautas e saxofones. Mas, versátil multi-instrumentista e dotado de grande curiosidade em relação aos timbres, tem se expressado como virtuoso nos discos (e shows) em muitos outros instrumentos conven-cionais, entre eles teclados eletrônicos diversos, harmô-nio, cravo, órgão, escaleta, flauta de bambu, bombardino, fluguel, trumpete, violão, cavaquinho, viola caipira, ban-dola, craviola, clavinete, bateria, caixa, surdo, zabumba, pandeiro, pratos, triângulo – e em instrumentos exóticos, objetos e animais, como bocal de tuba, sapho, garrafas, berrante, assovio, buzinas, apitos, brinquedos, chaleira, máquina de costura, baldes, bacias, panelas, garfos, facas, balas, ruídos e gritos da voz, mangueira com voz, porta do estúdio, iefone, porcos, gansos, perus, galinhas, patos e coelhos (PASCOAL, 2009b, 2009c).

Estima-se que Hermeto Pascoal tenha composto mais de 4.000 músicas até 2007 (VILLAÇA, 2007, p.59; PRADINES, 2006), muitas das quais estão sendo editadas pelo ex-discípulo, pianista e professor Jovino Santos Neto. A sua produção fonográfica também é grande, especialmente

se levarmos em consideração as dificuldades históricas que as gravadoras lhe impuseram. Seu site oficial www.hermetopascoal.com.br (PASCOAL, 2009c) lista 35 grava-ções comerciais, o que inclui apenas os discos em que é o artista principal ou líder de grupos, os discos em que participa como um dos solistas principais ou discos em participa como arranjador ou diretor artístico: Hermeto (1971), A Música Livre de Hermeto Pascoal (1973), Slaves Mass (1977), Missa dos Escravos (1977), Zabumbê-bum-á (1979), Ao Vivo Montreaux Jazz Festival (1979), Cére-bro Magnético (1980), Hermeto Pascoal & grupo (1982), Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca (1984), Brasil Universo (1985), Só Não Toca Quem Não Quer (1987), Por Diferentes Caminhos: Piano Acústico (1988), Mundo Verde Esperança (1989, não lançado comercialmente), Festa dos Deuses (1992), Pau Brasil e Hermeto Pascoal ao vivo, Série Música Viva (1993), Hermeto Pascoal/Renato Borghetti - CCBB, ao vivo (1993), O Melhor da Música de Hermeto Pascoal (1998), Hermeto Pascoal: eu e eles (1999), Mundo Verde Esperança (2002), Chimarrão com Rapadura (2006) em CD e DVD em duo com Alina Morena.

Hermeto aparece como arranjador, maestro e instrumen-tista convidado em diversos discos. Para citar panorami-camente alguns de uma enorme lista, temos: Roteiro No-turno (1964) de Mauricy Moura; The Real Bobby Mackay (1969) de Bobby Mackay, Tide (1970) de Tom Jobim, Can-tiga de Longe (1970) de Edu Lobo, Natural Feelings (1970) e Seeds On the Ground (1971) de Airto Moreira, Live, Evil (Sony, 1972) de Miles Davis, Taiguara (1976) de Taiguara, Open Your Eyes, You Can Fly (1976) e Encounter (1977) de Flora Purim, Orós (1977) de Fagner, Robertinho no Passo (1978) de Robertinho do Recife, Maraponga (1978) de Ricardo Bezerra, Elis Regina, 13th Montreux Jazz Festi-val (1982) junto com Elis Regina, Instrumento do CCBB (1993) de Renato Borghetti (com Hermeto Pascoal), Kids of Brasil do Duofel (1996) e Stephan Kurmann Strings Play Hermeto Pascoal (2008) de Stephan Kurmann.

A estreia de Hermeto em gravações comerciais foi como sanfoneiro em três discos de Pernambuco do Pandeiro e seu Regional (CAMPOS, 2006, p.92-97, 141): No meu Brasil é assim (1954), Batucando no Morro (1954) e No arraial de Santo Antônio (1958). Gravou também no disco Ritmos Alucinantes (1956) do maestro Clóvis Pereira. Es-treou como pianista em gravações no disco Boate em sua casa, vol.2 (1958) com José Neto e seu Conjunto, grupo de seu irmão mais velho. Em São Paulo, gravou flauta, recém-aprendida, no disco de estreia Caminhos (1964) do baiano pioneiro da bossa-nova Walter Santos. Ainda na década de 1960, começou a gravar música instrumen-tal em trios e quartetos: o disco Conjunto Som 4 (1964) com o Som Quatro; o disco Em Som Maior (1965) no qual liderou o Sambrasa Trio, aparecendo também como com-positor pela primeira vez com a música Coalhada; o dis-co Quarteto Novo (1967) com o Quarteto Novo, o qual recebeu o nome do grupo e no qual incluiu O Ovo, uma de suas músicas mais tocadas até hoje. Em 1969, lançou Brazilian Octopus, o disco que teve o mesmo nome do

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“grupo mais estranho surgido na música brasileira”, cria-do para musicar os espetáculos promocionais de empresa Rhodia (Marcelo Dolabela, citado por CALADO, 2000).

No primeiro disco lançado no exterior, Hermeto (1971), os jazzistas convidados dão uma mostra do reconhecimento internacional do compositor: Gil Evans, Joe Farrell, Hubert Laws e Ron Carter, entre outros. A Música Livre de Her-meto Paschoal (1973) foi seu primeiro disco solo gravado como artista principal no Brasil e no qual consolidou seu primeiro grupo (Nenê, Mazinho, Hamleto, Bola, Alberto e Anunciação); o compacto Hermeto Pascoal (1975) foi o primeiro disco solo orquestral (com Porco na Festa de um lado e Rainha do Mar do outro). Em Slaves Mass (1977), gravado nos Estados Unidos, recorreu a dois porquinhos de estimação de dois garotinhos do Texas (veja foto do Ex.1 à p.65 nesse número de Per Musi). O álbum du-plo Hermeto Pascoal Ao Vivo – Montreux Jazz (1979) foi seu primeiro disco ao vivo. Em Cérebro Magnético (1980), além da composição e arranjos, fez o desenho da capa.

Sete LPs - Zabumbê-bum-á (1979), Cérebro Magnético (1980), Hermeto Pascoal e Grupo (1982), Lagoa da Canoa Município de Arapiraca (1984), Brasil Universo (1985), Só Não Toca Quem Não Quer (1987) e Festa dos Deuses (1992) - são frutos do período de extrema dedicação à prática musical, no qual se consolida o trabalho de Her-meto Pascoal e Grupo. Os músicos da assim chamada Escola Jabour (ZWARG, 2009a) ensaiavam todos os dias “from 2 to 8 pm”, segundo entrevista do músico Jovino a GILMAN (2009), o que é corroborado por COSTA-LIMA NETO (2008, p.2, 8), informando também que isto ocorreu “. . . durante doze anos consecutivos, de 1981 a 1993”, sendo que esse tempo de ensaio era acrescido “. . .pela prática diária matinal, quando os músicos ensaiavam os trechos mais difíceis de suas partes individuais . . .”. Her-meto sempre foi receptivo com músicos que quiseram conhecer sua rotina diária de ensaios. Além daqueles que se tornaram membros efetivos de longa duração no seu grupo - Itiberê Zwarg, Jovino Santos Neto, Márcio Bahia, Nenê, Carlos Malta, Antonio Luis Santana (mais conhe-cido como Pernambuco, mas que não deve ser confundi-do com Pernambuco do Pandeiro), Vinícius Dorin, André Marques, Fábio Pascoal – também passaram pela Escola Jabour os músicos Zabelê, Joyce, Jane Duboc, Aleuda, Paulo Braga, Zé Eduardo Nazário, Nivado Ornelas, Cacau, Mazinho, Anunciação, Arismar do Espírito Santo, Ricardo Silveira, Alfredo Dias Gomes, entre outros.

A fluência de Hermeto em todos os instrumentos que co-nheceu permite a ele realizar projetos arrojados, como gravar dois álbuns sozinho, sem outros instrumentistas: o disco duplo Por Diferentes Caminhos (1989), de piano solo, e o disco Hermeto Pascoal: eu e eles (1999), que se refere ao fato do compositor tocar todos os instrumentos nesta gra-vação. Depois da dissolução do Grupo do Jabour, Hermeto gravou alguns discos com formações menores, como Pau Brasil e Hermeto Pascoal ao vivo, com o grupo de mesmo nome (1993), Hermeto Pascoal/Renato Borghetti - CCBB,

ao vivo (1993) e Solos do Brasil (2000), com o violonis-ta Sebastião Tapajós e o pianista Gilson Peranzzetta. Em Mundo Verde Esperança (2002), depois de 12 anos, Herme-to volta a contar com a participação de Hermeto Pascoal e Grupo, e mais 13 músicos da Itiberê Orquestra Família, em um disco que 13 das 14 músicas receberam nomes dos netos de Hermeto. Nele, ainda homenageia Vitor Assis Bra-sil, na música Vitor, e Nivaldo Ornelas, na guarânia Camila (CALADO, 2003). Em 2003, Hermeto participou, juntamen-te com outros compositores como Caetano Veloso e Egber-to Gismonti, de um projeto da Companhia Balé da Cidade de São Paulo para homenagear o pintor Cândido Portinari, compondo parte da trilha sonora com base no quadro Baile na roça (VILLAÇA, 2007, p.59).

Chimarrão com Rapadura (2006) reflete a mais recente parceria de Hermeto Pascoal: Aline Morena, uma multi-instrumentista que, além de se tornar sua esposa, abraçou sua concepção de música universal. Nas 19 faixas deste disco, cujo título explicita uma integração entre o Nordes-te e o Sul do Brasil (gaúcha com alagoano), o duo utiliza dezenas de instrumentos, convencionais e exóticos, como a porta do estúdio onde gravaram, balde, garfo, faca, cha-leira, mangueira com voz, vestido de copos de iogurte, cha-péu de castanholas, bota, sapatilha, plástico no tablado, saia de alumínio, percussão com água e boca, entre outros.

Atualmente, Hermeto mantém uma agenda cheia de compromissos no Brasil e no exterior, apresentando-se com cinco formações diferentes: solo, com seu grupo, em duo com Aline Morena e à frente de big bands e orques-tras sinfônicas.

3 - o afeto, a alegria e apoio familiar contra as dificuldades do mundo

“Como será a cidade grande? O mar. . . Como será o som do mar?” Hermeto Pascoal, aos 14 nos, antes de sair de casa (VILLAÇA, 2007, p.31)

A trajetória vitoriosa de Hermeto Pascoal contrapõe-se aos muitos nãos e hostilidades que recebeu ao longo da vida. Isto se deve, em grande parte, ao apoio que sempre recebeu dos pais, Seu Pascoal e Dona Divina. O triunfo do autodida-tismo que o acompanhou até a maturidade sobre o acade-micismo tem raízes na sólida e afetiva estrutura familiar:

“Hermeto sempre soube que era diferente, mas nunca se sentiu infe-rior nem desenvolveu complexos - aliás, eis um caso em que se pode afirmar: muito pelo contrário. Ainda era menino, em Lagoa da Ca-noa, a molecada da escola colocava um apelido atrás do outro, era aquela zuada - e ele nem aí. Era tão talentoso e divertido que no fim as meninas mais interessantes gostavam dele. E bastava um chame-go para a turma cair em cima: ‘Como é que você namora um cara desses, ele não enxerga direito e o olho dele vira!’ Na saída, Hermeto ia em um por um - era mais fortinho. ‘Você falou que eu sou feinho?’ E pá neles. Mais tarde, sempre aparecia um pai ultrajado. ‘Seu filho bateu no meu.’ Seu Pascoal, tranquilo, olhava pra Hermeto. ‘Filho, por que você bateu?’ Primeiro ouvia, depois acrescentava: ‘Então fez certo’. A mãe, dona Divina, dava também aquela proteção. Aconte-cia, por exemplo, de as mocinhas lavando roupa no rio começarem a fazer troça com o menino. ‘Que esquisito, olha como ele é branco! Você enxerga bem?’ Hermeto tinha pronta a resposta: ‘Levanta a

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saia que eu digo’. E lá iam as mocinhas fazer queixa do galego com dona Divina. Que primeiro ouvia, depois... ‘Respondeu certo. E tem mais: fui eu que ensinei.’ É por isso, graças a seu Pascoal e a dona Divina, que Hermeto se gosta, se acha bonito. ‘Sou uma árvore mui-to original’.” (O. RODRIGUES, 2003).

O seguinte diálogo, recuperado da infância de Hermeto, mostra seu avô tranquilizando sua mãe sobre seu talento musical:

“Pai, eu acho que Sinhô ta doido! Meu filho tá doido! Sabe aqueles ferros que o senhor joga fora? O Sinhô pegou uma porção deles!. . . Deixe o menino brincar. . .E ele tá lá até agora, trancado, batendo nos ferros. . . Olhe minha filha, eu acho que quem está doida é você! Ele está tocando. . .o baião Asa Branca de Luiz Gonzaga, que tanto tocava na feira. . .” (VILLAÇA, 2007, p.22)

Numa carta de 30 de abril de 2003 a seu ex-aluno do curso primário, Zélia Gaia se lembra “. . . dos pandeiri-nhos de latas de goiabada que Dona Divina, sua mãe, ensinava a fazer. . . das flautas de carrapateira que fa-zíamos na escola. . . ricas experiências. . .” (GAIA, 2003). A paciência que Hermeto encontrou na sua primeira e amorosa professora, não encontrou depois nos profes-sores de música que procurou: “Há muitos anos, arran-jaram um professor para me ensinar teoria, mas ele se recusou porque eu não enxergava direito.” (GONTIJO, 2000, p.2). Para CABRAL (2000, p.11),

“Hermeto Pascoal é um desses brasileiros que, pela determinação e pelo talento, conseguiram superar as deficiências do nosso sistema educacional. Nascido e criado em uma região desprovida de escola de música, ainda assim sempre quis ser músico . . . assumindo so-zinho, a própria educação. . . teve só uma professora na vida: dona Zélia, que o alfabetizou. . . ”.

Em Recife, Hermeto encontrou muitos obstáculos. Do produtor musical da Rádio Jornal do Commercio e patrão Amarílio Niceias, ouviu: “Você não toca bem a sanfona. . . Nem oito nem oitenta [baixos]!. . . Se quiser continuar na rádio, vai ter que tocar pandeiro. . . Você não tem é jeito pra música!” (VILLAÇA, 2007, p.39). Mas isto não foi empecilho para o determinado músico: Sempre prevale-ceu seu otimismo: “Siga em frente! Você tem o dom da música! Confie em você!”, dizia para si mesmo (VILLAÇA, 2007, p.40).

Certo dia, em Caruaru, já conhecido como bom sanfo-neiro, Hermeto achou uns penicos de ágata em um fer-ro-velho e os levou para tocar em um estúdio da rádio. VILLAÇA (2007, p.44-45) reconstrói o diálogo entre ele e os colegas músicos galhofeiros:

“- Que loucura é essa? O que é isso?- Isso é música, ouça que maravilha! A ágata dá um som danado!- Não, isso é só um penico – zombou um deles.

Hermeto ficou sério: - Os objetos têm sons. Estão só esperando para serem usados como instrumentos.

. . .O máximo que Hermeto conseguiu foi arrancar o riso de seus companheiros.”

Na volta ao Recife, já saudado por Sivuca como o “O Maior Sanfoneiro do Agreste” (BARROSO, 2009), Hermeto

não guardou ressentimentos contra o produtor da Rádio Jornal do Commercio Amarílio Niceias: “Eu não fiquei revoltado com nada disso. . .” (CAVALCANTI, 2004), pois queria apenas “. . . mostrar pra esse cara, sem raiva dele, que ele me fez um bem, não me fez um mal. Ele se arris-cou, ele podia ter feito um mal se eu fosse um cara que não tivesse a força que eu tenho. Eu poderia ter me dado mal, ter ficado desgostoso. Escutar um negócio desses com 14 anos de idade. . .” (BARROSO, 2009).

Já reconhecido como excelente instrumentista no meio musical em São Paulo, Hermeto ainda era visto cinicamen-te por boa parte da crítica especializada como “hermético” (CABRAL, 2000, p.12). Não faltaram produtores que quise-ram manipular seu talento em prol da indústria fonográ-fica. Hermeto fala do episódio em que foi convidado para gravar um disco como artista principal na Continental:

“O primeiro contrato que eu fui assinar era na Continental, com um produtor de disco e os produtores eram ‘donos dos músicos’. Quando eu fui convidado pra gravar, pra mim era uma grande chance, uma oportunidade de gravar, as minhas músicas todas debaixo do dedo para tocar. Quando eu chego lá, tava lá uma lis-ta, um papel com um monte de nomes de músicas. Aí ele pediu para eu sentar, e começou a ler, e disse: “E agora? Está bom essas músicas aqui?” Eu digo: “Pra que?”. [Produtor:] “Já escolhi as mú-sicas pra você gravar”. [Hermeto:]”As minhas músicas, o senhor me desculpe, mas, modéstia parte, quem escolhe sou eu. Isso aí que o senhor me falou, não são músicas, são letras. Tá muito ruim, quadrado. Isso aí eu toco na noite algumas vezes, uma ou duas dessas”. . . E eu estava na faixa dos 20 e poucos anos. [Produtor:] “Mas menino! Você vai perder uma chance dessas de gravar na Continental?” Eu digo: “Porque eu vou gravar? Porque eu sou bom músico ou não?”. [Produtor:] “É, mas você tem que escolher música conhecida”. Eu disse: “Mas eu quero ficar conhecido, se eu tocar música conhecida eu não vou ficar conhecido. Eu quero que as minhas músicas também fiquem conhecidas e que eu fique conhe-cido através das minhas músicas. Se for assim eu gravo, se não for assim, eu quero lhe agradecer, desculpa, mas eu não quero gravar nunca, não é só hoje não. Não quero que ninguém me convide, pode avisar para todos seus amigos empresários, diretores, que eu não quero gravar nunca a não ser as minhas músicas e como eu quero tocar. Não abro mão do jeito que eu quero gravar. Quem me chamar para gravar com alguém, tem que ser como eu quero tocar. Não estou precisando de nada, não quero nada” (BARROSO, 2009).

Falando sobre a música comercial-popular brasileira, WISNIK (1979-1980, p.7) distingue

“. . . dois modos de produção diferentes, tensos mas interpene-trantes dentro dela: o industrial, que se agigantou nos chamados anos 70, com o crescimento das gravadoras e das empresas que controlam os canais de rádio e TV, e o artesanal, que compreende os poetas-músicos criadores de uma obra marcadamente indivi-dualizada, onde a subjetividade se expressa lírica, satírica, épica e parodicamente.”

Dentro desta música artesanal, Hermeto criou, ainda, um nicho ainda menos comercial, menos disposto, como se tornou chavão na gíria cultural brasileira, “a fazer conces-sões”. A opção de Hermeto por uma música instrumental mais sofisticada, mesmo em discos de cantores, é quase religiosa e deixou uma produção histórica, como foi mos-trado acima. Ele não abre mão de sua posição radical-mente oposta à linha comercial geralmente imposta pelas gravadoras e mídia: “Essa turma não evoluiu nada. Minha intenção ao trabalhar com eles foi abrir a cabeça deles,

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mas eles apelaram: foram fazer música para novela. Como o meu amigo Fagner, que criticava a TV Globo e acabou cedendo. Ganhou muito dinheiro, mas cadê a alegria interior?” (CALADO, 2003). Perguntado sobre seus cantores preferidos, Hermeto parece se identificar apenas com aqueles dispostos a uma interação mais fle-xível e menos óbvia com a parte instrumental, aqueles que valorizam a criação, a improvisação. Cita alguns, como Johnny Alf e Guinga, mas diz que não ouve “figu-rões” como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, apesar de gostar deles, pois “. . . isso já passa no rá-dio, né? Aliás isso tem a ver com aquilo que falei sobre o não evoluir. . .” (IVANOV, 2002). Entre as cantoras, elogia a “genial Jane Duboc, quebramos tudo que tinha direito” (PASCOAL, 2000a, p.101-102) e dedicou a balada Dá-lhe coração a Eliane Elias, a quem diz “. . . ter visto nascer musicalmente” (MILLARCH, 1989c).

Mesmo no meio puramente instrumental, Hermeto mos-tra-se muito exigente. Ele não tem boas lembranças do encontro que seria o sonho dos fãs da música instrumental brasileira, o show Virada do milênio realizado no ATL Hall no Rio de Janeiro em 1999, quando tocou simultaneamen-te no palco com três outros grandes pianistas brasileiros - Arthur Moreira Lima, Egberto Gismonti e Wagner Tiso:

“. . . ‘Foi aquela coisa que se imagina que vai ser muito bom e acaba não sendo. Era para ser algo de improviso e o Egberto e o Wagner se prepararam para isso. Foi uma briga, não foi música. O Arthur, que era o erudito, foi o que mais me surpreendeu e se soltou. Carregamos os outros nas costas’, diz, brincando à sério. Arthur [presente à entrevista], depois, confirmou a coisa toda com um riso.” (IVANOV, 2002)

A imagem messiânica de Hermeto Pascoal que seus admi-radores adotam parece derivar da religiosa obsessão com que vive a música no seu dia-a-dia. Esta devoção, que às vezes parece beirar o transe religioso, é aparente também nos shows, como em uma inauguração de uma casa de jazz em Pendotiba (Niterói), na qual Hermeto e seu grupo “. . . tocaram por cinco horas e meia” (COSTA-LIMA NETO, 2008, p.9). Em outra oportunidade, durante o 1º Festival Internacional de Jazz, realizado em São Paulo em 1978, o show de Hermeto “. . . começou às 23 horas e prolongou-se até às 4 horas da madrugada, e com nomes internacio-nais como McLaughlin, Chick Corrêa e Stan Getz subindo ao palco e, praticamente pedindo para se integrarem ao seu som totalmente inusitado, múltiplo. . .” (MILLARCH, 1979). Esta obstinação em que cria um mundo particular com a música e que não se enquadra dentro dos limites de horário dos teatros onde se apresenta tem rendido a Hermeto algumas dificuldades. Na sua segunda apresen-tação durante os concertos do festival Som da gente no Town Hall em Nova Iorque em 1989, sentiu-se tolhido ao saber do tempo que teria e

“. . .não fez por menos: após demorar-se em falar numa homena-gem a alguns amigos presentes - como a pianista Eliana Elias e o baterista Dom Um Romão (que subiu ao palco, para um demorado abraço) ou ausentes - Miles Davis, que lhe havia telefonado à tar-de - referiu-se a uma suíte de 20 minutos que ainda está com-pondo, ‘mas que gostaria de apresentar’. . . começaram a mostrar a belíssima composição, mas não passaram dos primeiros acordes;

Hermeto interrompeu a apresentação, dizendo que o seu tempo de show havia acabado. . . Todos retiraram-se para os bastidores enquanto o público que lotava o Town Hall, em pé, aplaudia e gritava o seu nome, pedindo o retorno do grupo. . . Apesar do es-tímulo de Rob Crocker, um dos mais populares apresentadores da WQCD-101. . . Hermeto e seus músicos não retornaram ao palco. As lâmpadas foram acesas e o público deixou o teatro entusiasma-do com a música que ouviu naquela noite mas, no fundo sentindo que Hermeto não tivesse mostrado mais de seu som original, rico e harmonioso.” (MILLARCH, 1989b)

Em outra oportunidade, apresentando-se no Rio Mon-terey Jazz Festival em 1980 no Rio de Janeiro, não teve paciência com o público e sua interferência:

, “. . . Hermeto falou muito, experimentou vários instrumentos e fez alguns trocadilhos. Depois reclamou do barulho. Deu um aviso prévio. Começou a fazer um belíssimo solo de flauta, com o tema que apresentou em Montreux (gravado no LP da WEA, nas lojas), mas parou ao ouvir o barulho entre o público que se acotovelava a sua frente. E, irritado, saiu do palco, sob vaias. Tumultos, confusão. Voltou minutos depois, mas recebido com vaias, jogou a flauta no chão e se foi. Mais tarde, nos bastidores, disse que gostaria de ‘tocar para a imprensa’. A noite mais longa do festival acabou mais cedo.” (MILLARCH, 1980a)

Depois das primeiras experiências de gravação com grupos de regionais, Hermeto trabalhou com grandes gravadoras multinacionais, como EMI (1967), Polygram (1973 e 1992) e WEA (de 1977 a 1980), mas as dificuldades crônicas com a política comercial das mesmas o direcionou a pequenas gravadoras, como Som da Gente (1981-1993) e Maritaca:

“Convites eu sempre tive, mas não quero mais gravar por gravado-ras grandes. . . Elas não evoluíram nada. Querem gravar comigo só para dizer que têm Hermeto Pascoal no catálogo. Me tratam como aquela jóia exposta na vitrine para deixar as pessoas com água na boca, mas que ninguém consegue comprar.” (CALADO, 2003)

A saída encontrada por Hermeto para o tratamento hostil e explorador que as gravadoras lhe destinam é extrema e tem resultado na liberação ou perda de seus direitos autorais. Em relação às cópias domésticas do LP Brazilian Octopus no formato CD que estavam circulando em São Paulo, foi categórico: “Se a gravadora não se interessa em fazer o CD, essas pessoas têm que copiar mesmo. É o único jeito que o público tem de ouvir a nossa músi-ca” (CALADO, 2000). MILLARCH (1979) relata que “. . .o próprio Hermeto recomenda que todos que vão assistir seus espetáculos devem levar gravadores, pois nunca há a mesma sequência, o mesmo show.”. Ele, às vezes, deixa transparecer sua revolta com os impedimentos de socia-lizar sua obra com o público:

Meu discos estão sendo pirateados pelas Gravadoras. As minhas Gravadoras lançam os meus discos e não me dão satisfação. . . Nenhuma delas tem um recibo assinado por mim lá, deles pedindo uma autorização para lançar meus discos. Eu sei que as músicas são deles, mas para todos discos eu tenho direito autoral. . . Eu já falei: PIRATEIEM MEUS DISCOS. . . Não toco em rádio, pirateiem, vendam. Quem está dizendo sou eu. . . A [Rádio] MEC é uma rádio pobre. . . é do governo. . . Nós queremos a cultura. Mas se eles não tocarem. . . eu dou essa porra também. Eu quero é isso. Pirateiem os discos do Hermeto, estou mandando piratear, eu assumo. . . Todas são Ladras, estão me roubando e vão me roubar até eu mor-rer. . . Eu nunca recebi mil reais no Brasil, já assinei 70 recibos no ECAD de Brasília e nunca foi [equivalente a] mil reais. Da editora na França eu recebi seis mil reais da primeira vez. Aqui, a Rádio

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MEC fez cinco mil discos, mas não tem distribuição. . . Eles falam, anunciam na rádio dizendo: “Nas boas lojas”. Que boa nada, tem que vender em qualquer lugar. . .” (BARROSO, 2009).

Mas a vingança de Hermeto “tocando viola de papo pro ar” contra a indústria fonográfica já começou. O adven-to da internet ofereceu a Hermeto um instrumento ideal para socializar sua música. Ao comentar sobre o projeto de disponibilização gradual e gratuita da obra de Her-meto Pascoal no site www.hermetopascoal.com.br a par-tir em meados de 2007, Aline Morena comenta sobre a política injusta das multinacionais da gravação: “Então, adeus às grandes editoras que fizeram isso até hoje. Que elas aproveitem enquanto podem, porque vamos ofe-recer tudo gratuitamente.” (CASTRO, SOUZA e ROCHA, 2007). Em 2008, Hermeto decidiu declarar livre acesso para aqueles que quiserem gravar sua obra. Em uma folha colorida a lápis e emoldurada com desenhos de ferma-tas, acidentes musicais e um auto-retrato, o compositor documenta sua postura universalizadora: “Eu, Hermeto Pascoal, declaro que a partir desta data libero, para os músicos do Brasil, e do mundo, a gravação em CD de to-das as minhas músicas que constam na discografia deste site [www.hermetopascoal.com.br]. Aproveitem bastante. Hermeto Pascoal. Curitiba 17 do 11 de 2008. Testemunha: Aline Morena” (PASCOAL, 2008).

Jovino, que guarda boa parte dos originais da obra de Hermeto, fala sobre o que considera sua missão após a dissolução do Grupo:

“Desde que saí do Hermeto Pascoal e Grupo em 1993, disponibi-lizar sua música para músicos em todo o mundo se tornou uma de minhas prioridades. Sempre fui uma espécie de bibliotecário dos manuscritos, organizando-os e guardando-os. Quando me mudei para Seattle, comecei a editar algumas peças em compu-tador. Agora estamos perto de publicar um livro com parte de sua música para piano solo. Em seguida, viriam música para grupos de flautas, quartetos de cordas, peças sinfônicas, para big band e, claro, alguns dos arranjos para nosso Grupo. Tenho cerca de 1.000 peças em arquivo, o que será muito trabalho. Entretanto, sou o responsável por isto e considero minha missão garantir que este acervo musical surpreendente seja conhecido e ouvido. Trabalho diretamente com o Hermeto neste projeto e esperamos ter o pri-meiro livro em breve” (GILMAN, 2009).

Com os colegas, Hermeto também aprendeu a lidar com constrangimentos profissionais de uma maneira positiva, como no polêmico episódio com Miles Davis. Numa época em que os produtores do grande trompetista de jazz não se preocupavam em dar os créditos de músicas de outros compositores, Hermeto não teve seu nome incluído como autor das músicas Nem um talvez e Igrejinha gravadas no disco Live evil, lançado em 1972.

MILLARCH (1988), citando outra escorregadela de MiIes Davis, em que ele aparece como autor de Corcovado (Tom Jobim) e Aos pés da Santa Cruz (Marino Pinto e Zé da Zilda) no disco Quiet Nights (1962), o chama de “. . . useiro em se apropriar de temas alheios, tendo feito isto com ‘Igrejinha’ de Hermeto Paschoal, só pagando direi-tos após ameaças judiciais e mil broncas de Airto.” O erro não deixou Hermeto magoado: “Houve uma confu-

são e, mais tarde, tudo foi resolvido” (COMODO, 1996), explicando que “Eu gravei no disco do Miles Davis duas músicas minhas e saiu que o Miles tinha roubado as minhas músicas. Saiu mesmo o nome dele nas minhas músicas. Mas jamais eu, pelo conhecimento que eu te-nho com ele, [digo que] jamais ele ia fazer isso comigo, nem com ninguém” (BARROSO, 2009).

A determinação e a alegria parecem, de fato, nortear a vida de Hermeto Pascoal. Com o humor cáustico que per-meia os relatos de sua expedição para conhecer de perto a música brasileira, o jornalista norte-americano John KRICH (1993, p.117-118) comenta que Hermeto poderia ter razões para ser infeliz: ”. . . obeso, um olho-virado, atributos realçados pela barba de Papai-Noel despente-ada e a massa de cabelos brancos anelados que repousa sobre sua cabeça como tirinhas de papel de empacotar”. Mas se redime dizendo que

“. . . a partir do momento em que entrei na sua casa no subúrbio do Rio [no Bairro Jabour], senti que nunca havia encontrado alguém mais alegre. . . ‘Posso tocar qualquer coisa. Se você quiser, posso tocar até você!’ . . .Fiquei uma tarde assistindo à banda de Hermeto [Hermeto Pascoal e Grupo]”. . . [que] desaparece escada abaixo e volta com um cabide de paletó. Em segundos, ele arranca cada um dos ganchos torneados e [acha o som] que precisava e [que] somente pode ser obtido esfregando um no outro. . . Quando sua devotada esposa aparece perguntando pelo cabide, o grupo morre de rir. Eles já viram esta história se repetir muitas vezes. A esposa de Hermeto nem precisa da resposta para entender que mais uma peça da mobília acabara de se tornar um instrumento musical.”

O. RODRIGUES (2003) relata outro trecho que sugere a rejeição da mídia ao aspecto visual de Hermeto, que tem, no humor, um aliado para brincar com situações difíceis:

“Pouca gente lembra, mas em 1967, no III Festival de Música Po-pular Brasileira da Record, foi o Quarteto Novo - Hermeto, Heral-do, Théo de Barros e Airto Moreira - que ajudou “Ponteio”, de Edu Lobo, a chegar ao primeiro lugar. De vez em quando, trechos do festival são reprisados e quase nunca se vê Hermeto no palco, só suas mãos tiritando na flauta. “Eles deviam me achar muito feio pra mostrar.” Numa dessas grandes noites, ele se escondeu atrás de um cenário. Logo, o diretor apareceu para ver o que estava acontecendo. Hermeto: “Meus filhos estão duvidando que eu toco na televisão”. Nunca mais sumiram com ele.”

Este mesmo humor com que tem driblado os obstáculos que encontra pela vida, aparece na sua música. Entre seus projetos estava a ideia de transformar em música uma fita que recebeu de um gago alemão recitando poemas de amor (COMODO, 1996). Juntos, o humor e a alegria fazem parte da memória afetiva de Hermeto, nos festejos popu-lares nas ruas do Brasil, como na reencarnação das ban-dinhas, que Jovino presenciou como membro do Grupo:

“Certa vez, em 1982, durante o concerto no Teatro IBAM, co-meçamos a sair do palco com o piccolo, dois saxofones, tuba e percussão e depois, para fora do teatro, nas ruas, tocando alguns temas que o Hermeto havia escrito para aquela formação. A pla-teia nos seguiu. Desfilamos por um tempo e, então, voltamos para o teatro pra terminar o show. Aquilo criou situações extre-mamente engraçadas, como subir nos ônibus coletivos, entrar nos bares e, algumas vezes circular centenas de metros longe do teatro; Algumas vezes, tínhamos milhares de pessoas dançando atrás da gente nas ruas.” (GILMAN, 2009)

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Esta mesma memória afetiva que lhe remete sempre às suas raízes, à sua família, o motiva musicalmente. A voz do pai, Seu Pascoal, incluiu na faixa São Jorge , no disco disco Zabumbê-bum-á (1979). Na gravação de Santo Antônio , no mesmo disco, Hermeto gravou sua mãe Dona Divina descrevendo um ritual típico do interior, improvisando pedidos de prenda em uma típica procissão nordestina do santo casa-menteiro. Hermeto achou, nas dificuldades encontradas pela vida, motivações para traçar seu caminho e viver bem. Não é à toa que a frase escolhida por ele para finali-zar cada uma das 366 partituras do Calendário do som foi o voto generoso e otimista “tudo de bom, sempre”.

4 - A natureza

“Os animais são meus maiores professores.” Hermeto Pascoal (O. RODRIGUES, 2003)

A bandeira ecológico-musical de Hermeto pode ser apre-ciada nos títulos de suas músicas, como Dança da selva na cidade grande, Terra verde, Música das nuvens e do chão, Peixinho, Nascente, Quando as aves se encontram nasce o som, Caminho do sol, Fauna universal, Água lim-pa, Saudade do Tietê, Batucando nas Matas, Cordilheira do Andes, entre outras. E também em vídeos. Por exem-plo, Hermeto Pascoal e Grupo foram temas do vídeo eco-lógico Bagre Cego de Ricardo Lua (disponível em www.youtube.com como Hermeto e Grupo, Ballad for a blind albino catfish), em que ele e seus músicos aparecem fa-zendo música nas cavernas do Vale do Ribeira, em São Paulo, ameaçadas de destruição (MILLARCH, 1986). Já no vídeo Hermeto Pascoal and the music fom the frogs (disponível em www.youtube.com), Hermeto fala sobre a natureza e, tocando uma flauta de bambu ininterrupta-mente, entra em um poço de um riacho e gradualmente, saltando como um sapo, desaparece sob as águas. Este envolvimento com a natureza é antigo. Ele relata:

“Eu comecei a tocar no mato tudo que tinha de coisa . . .Então a gente inventava. Eu inventava muito. . . Você começa a analisar suas coisas de criança. Foi quando eu comecei a ver esse lado todo, o lado dos animais, que eu conversava com os animais, natural-mente. Eles entendiam tudo, a gente se entendia. Eles me enten-diam porque eu via a ação deles. . . o cavalo fazia com a orelha. Eu sabia os sinais. Por exemplo: Quando o cavalo via uma visage. O quê que é uma visage? É uma visão, uma coisa espiritual, uma energia. Que o animal é muito sensível. A gente põe eles no lugar errado, acha que o animal não tem espírito. É conversa fiada. O espírito deles é tão elevado quanto o nosso. . . Os sapos são gênios! São gênios, escondidos, excluídos por nós. Os sapos já dão a aula do que é orquestração natural. Eles são gênios, os sapos, os pás-saros. Deus botou os animais como o espelho verdadeiro da vida. . . O porco é tido como rude, talvez o animal mais rude que tem. . . Ele queria justamente [ouvir] um instrumento médio. Eu pegava um talo de abóbora. . . rachar no meinho com uma faquinha, com cuidado. . . e sopra como se fosse aquelas gaitas escocesas, em-purra no céu da boca, que fica aquele som assim, de céu da boca, como gaita escocesa. . . O porco, você toca aquilo ali, ele pára. . . Você sentia a felicidade dele. . . Hoje em dia, eu posso fazer com sax soprano. . . o porco vai delirar com você. . .” (BARROSO, 2009).

Os sons da natureza foram os primeiros sons musicais a habitarem a mente de Hermeto Pascoal; eram sons de al-tura “indeterminada” (cuja fundamental não é claramente

distinta ao ouvido humano), antes mesmo dos tons e semi-tons do pé-de-bode de seu pai. Muito antes do conceito de paisagem sonora de Murray Shaffer: “Até os 14 anos fiquei lá em Lagoa da Canoa em contato total com a natureza, com todos os animais. . . não escutava nem rádio porque nem havia luz elétrica. . .” (CAVALCANTI, 2004). Já adulto, Hermeto resgatou imagens da infância, de sua comunhão com a natureza e as reverte em música, como em Merco-som do álbum Hermeto Pascoal: eu e eles,1999):

Um dia, na estrada até Lagoa da Canoa, ele descobriu as formigas em travessia, trabalhando duro. Tiveram de chamar seu Pascoal em casa: ‘Seu filho ficou maluco, está deitado lá na estrada e não quer deixar os vaqueiros passarem com a boiada.’ Uma das coisas que encanta Hermeto é o que ele chama de ‘sonzinho’ das formigas. ‘Aquela areia branca, elas se arrastando na areia. . . Na gravação de um disco, comecei a me lembrar desse sonzinho, fiz assim na calça, saiu algo interessante. O técnico se assustou. Aí pronto, já comecei a tocar um forró. Você escuta um som que parece zabum-ba, mas não é: é calça jeans! Você vê que tudo é música. E isso que eu tô falando vale pra vaca, cavalo, boi, vale pra todos eles.’ O. RODRIGUES (2003)

Em entrevista sobre o primeiro disco Mundo Verde Espe-rança (1989; não lançado comercialmente; o segundo Mundo Verde Esperança foi lançado em 2002), Hermeto Pascoal relaciona seu pensamento ecológico-musical com uma filosofia de vida que aprendeu no interior do Brasil:

“Eu, que sou um cara da roça, que fui criado na roça, via muito bem que o dono do cercado tinha o cuidado de fazer uma vala do tamanho do terreno e plantava um negócio chamado macambira, que não pega fogo, para que o dono do outro terreno pudesse preparar o terreno para plantar, sem prejudicar o vizinho. Tudo era bem feito, feito com muito cuidado. Creio que isso acontece na música também.” (CASTRO, SOUZA e ROCHA, 2007).

“. . . passarinhos, formigas, sapos, porcos, bois, cavalos. ‘Os animais são meus maiores professores.’ E é na terra natal que Hermeto recebe as primeiras bênçãos do sol, da chuva, do mato, do vento; é onde ele descobre o som da areia e percebe as vozes da alma. ‘Eu arrancava um pedaço de carrapateira, aquele canudinho da mamona, e com uma faquinha fazia uma flautinha e começava a tocar. Primeiro, aquele som novo assustou os bichos. Mas aos pou-cos. . . Eu começava a tocar uma melodiazinha e ficava naquela só, para eles se acostumarem. No segundo dia já tinha dois. No ter-ceiro, foi aumentando, aumentando, a ponto de eu tocar tudo que quisesse. Agora não precisava mais escolher a musiquinha pra eles, não. . . Quando eu tocava o primeiro som na flauta, eles vinham e cobriam a árvore.’ O. RODRIGUES (2003)

Esta aprendizagem inicial, não orientada pela tradição europeia, acompanhou Hermeto no seu contato com as outras músicas: “Quando eu era pequenininho tocando a oito-baixos, com 8, 9 anos de idade eu tava tocando forró. . . baile, casamento e quando eu pegava na oito-baixos, eu já ’entortava‘ a oito-baixos. . . umas músicas muito doidas. Eu extraía dos ferros, das pancadas que eu dava nos ferros, aquelas harmonias” (COSTA-LIMA NETO, 1999, p.78). Para Hermeto, “O atonal é a coisa mais natural que existe”, o que levou COSTA-LIMA NETO (1999, p.190) a propor a perspectiva de uma trindade sonora experimental cujas raízes estão na infância do músico alagoano, e que, mais tarde, passou a subsidiar o sistema musical singular de Hermeto, incluindo suas melodias e harmonias. Esta trin-dade sonora paradigmática, segundo a qual som musi-cal e ruído são equivalentes, é derivada de três fontes

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distintas, percebidas por Hermeto graças a sua escuta ampliada: sons de animais, sons dos objetos e sons da voz humana. O próprio Hermeto percebe uma relação do atonalismo que chama de “fala dos objetos” com o ato-nalismo que ouve na fala humana, que conceituou com música da aura: “Os pedaços de ferro já tinham alguma coisa a ver com a música da aura. . . o som da aura que percebi desde minha infância. . .” (COSTA-LIMA NETO, 2000, p.131-132). Assim, se nos objetos, que são instru-mentos musicais esperando para serem tocados - como os “resultados incríveis” das moedas de 25 centavos de dólar (além do pé esquerdo de seu sapato!) que colocou entre as teclas de um Steinway para provocar o público novaiorquino (MILLARCH, 1989b) -, ele percebe a música dos ferros, nas pessoas ele percebe a música da aura.

Na sua análise da música Ferragens para piano solo, COS-TA-LIMA NETO (2000, p.135) observa a intenção progra-mática nas indicações de pedal e de fermatas sucessivas, como uma representação da reverberação que descreve os sons de pedaços de sucata de ferro do avô ferreiro Sena da Bolacha que povoaram sua prática musical na infância. Do ponto de vista harmônico, as alturas “indeterminadas” tra-duzidas para o piano resultam em clusters acompanhando uma melodia atonal e fragmentada (Ex.1). Entretanto, es-tas “. . . combinações harmônicas complexas. . .” têm raízes em “. . . elementos harmônicos simples como as tríades. . .” (COSTA-LIMA NETO, 1999, p.94-96).

O conceito de música da aura surgiu na década de 1980, quando se deu conta de que “O cantar das pessoas, na minha concepção. . . é o que chamamos de fala. Assim como os pássaros, nós somos pássaros também” (entre-vista a Luís Carlos Saroldi da Rádio MEC em 1997, cita-do por COSTA-LIMA NETO, 1999, p.177). No disco Lagoa da Canoa, município de Arapiraca (1983), na faixa Som da aura, ele utilizou os famosos trechos onomatopai-cos de narração esportiva “tiruliruli-tirulirulá” e “parou, parou, parou” dos locutores esportivos Osmar Santos e José Carlos Araújo, respectivamente. Hermeto descreve o procedimento para a realização da música da aura, simples para ele que tem ouvido absoluto e uma práti-ca de reconhecimento auditivo enorme: “É muito fácil tocar o som da aura, que nada mais é do que a energia

do som de cada pessoa através da música. E quando eu escuto a voz da pessoa, eu toco aquilo que estou escu-tando” (ESSINGER, 2000).

No disco Festa dos deuses (1992), pode-se apreciar várias instâncias de música da aura. Uma análise auditiva de três destas músicas - Pensamento positivo (a partir de uma fala do Presidente Collor de Melo), Aula de natação (a partir de uma aula ministrada pela filha Fabíula Pas-coal) e Três coisas (a partir de um poema de Mário Lago recitado por ele mesmo) - mostra procedimentos comuns: (1) escolha de trechos da fala humana pré-gravadas como ponto de partida para a criação musical, (2) apresentação da fala sozinha primeiro, (3) repetição da fala com do-bramento instrumental de teclados (piano e harmônio) aproximando de suas alturas “indeterminadas” e ritmos, o que resulta em um contorno melódico atonal heterofô-nico (um “quase-uníssono”), (4) acompanhamento com acordes esparsos em encadeamentos não funcionais ou atonais. Jovino, que foi quem tocou piano e harmônio nestas três faixas, observa que

“A música da aura ainda está nos seus estágios iniciais. . . pode imaginar um filme em que os diálogos do atores é também a trilha sonora? . . . Embora outros tentaram algo similar, em minha opi-nião, somente Hermeto conseguiu capturar a essência musical da fala.” (GILMAN, 2009)

Na faixa Três coisas, Hermeto Pascoal, Jovino Neto e Fábio Pascoal avançaram um pouco além desta fórmula básica acima, descobrindo redundâncias de células rítmicas na declamação poética de Mário Lago e as acompanhando com levada e instrumentação de baião; coincidindo ca-dências da fala com tríades perfeitas maiores e menores. Ainda no disco Festa dos deuses, a faixa Quando as aves se encontram, nasce o som também pode ser considera-da música da aura, mas os elementos primários aqui são as “vozes” de aves (uirapuru, sabiá, corvo, fogo-apagou, galo, bacurau, marreco) com um tratamento mais sofisti-cado: há solos a cappella alternando com trechos acom-panhados (com Hermeto nos teclados), dobramentos que se entrelaçam, células manipuladas com loops, acompa-nhadas com levadas de gêneros diversos (samba e valsa), harmonias contrastantes (atonalismo, tonalismo, moda-lismo, cromatismo). Embora a transcrição musical de can-

Ex.1 – Exemplo de música dos ferros com clusters atonais em Ferragens de Hermeto Pascoal.

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tos de pássaros nos remeta à iniciativa do compositor e ornitologista Olivier Messiaen, a abordagem de Hermeto é única no sentido da eclética liberdade de compor com os motivos que descobre nos cantos e as associações que faz com a rítmica popular.

Muitos dos animais que povoaram a infância de Herme-to reaparecem na sua obra. No disco Slaves Mass (1977), por exemplo, Hermeto utiliza trechos com gravação de guincho de dois porquinhos, “naturalmente afinados” em alturas diferentes, “. . . ‘executados’ por [Airto] Guimor-van [Moreira], proposta que Hermeto já tentou aplicar no Festival da Canção de 1972, no Maracanãzinho, em 72, e quase o levou à cadeia” (MILLARCH, 1977). A ideia dos porcos retorna no Festival Abertura da Rede Globo de Televisão em 1975, quando Hermeto ganhou o prêmio de melhor arranjo com O Porco da Festa (MILLARCH, 1975).

COSTA-LIMA NETO (1999, 2000) aponta vários exemplos da relação que Hermeto faz entre as vozes dos animais e sua tradução atonal na partitura. Esse atonalismo “natu-ral” ou ruidismo “ecológico” pode ser apreciado nos pri-meiros 16 compassos de Arapuá, incluída no disco Brasil universo (1986), em que um cluster no registro médio-grave sobre uma 4ª justa no baixo imita o zunido do tipo de abelha que dá nome à música (Ex.2; transcrição de Jovino Santos Neto, citado por COSTA-LIMA NETO, 2000, p.129). Já em Cores (disco Hermeto Paschoal e Grupo, 1982), cujo nome é uma referência ao arco-íris, às cigar-ras e aos amoladores de facas (COSTA-LIMA NETO, 1999, p.130), Hermeto utiliza o Lá4 de uma cigarra “gravada no jardim de sua casa” como um pedal agudo sobre dois pianos cuja somatória harmônica soa como um cluster (COSTA-LIMA NETO, 1999, p.140-142). Ainda em Cores, na coda, ele recorre a um cluster na região médio-aguda do piano para emular as “cores indefinidas” - parciais inarmônicos - de um pedaço de ferro sendo percutido (ou amolado) (Ex.2; transcrição de Jovino Santos Neto, citado por COSTA-LIMA NETO, 2000, p.136).

Se nos exemplos acima o atonalismo hermetiano resulta de uma abordagem vertical e homofônica, em Papagaio alegre (disco Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca, 1984), é fruto da escrita linear e polifônica. Embora as vozes sejam baseadas individualmente em escalas diver-sas, o resultado sonoro de sua superposição polimodal

não pode, auditivamente, ser considerado tonal, como mostra o trecho do Ex.3, que é uma redução da trans-crição de Jovino Santos Neto do original para piccolo, saxofone tenor, piano e contrabaixo elétrico sobre uma gravação da fala do papagaio de Hermeto, chamado Flo-riano, em torno do registro de Sib3 (COSTA-LIMA NETO, 1999, p.151-161; COSTA-LIMA NETO, 2000, p.129).

A valorização dos sons de animais pode ter inspirado Hermeto em alternativas de utilização da voz que não a fala humana. Foi ele “. . . quem sugeriu que ela [Flora Purim] experimentasse improvisação vocal sem palavras. . .” (McGOWAN e PASSANHA, 1999, p.167). Essa incor-poração de uma grande variedade de efeitos vocais, como grunhidos, choros, rangidos, emulação de distorções ele-trônicas, scatting aleatório e ondas de glissandi ajudou Flora Purim a vencer o prêmio de Melhor Cantora da Re-vista Down Beat por quatro vezes e ser nomeada duas vezes para o Grammy.

Ao descrever a Sinfonia do boiadeiro (1995), Her-meto recorre mais uma vez às vozes da natureza:

“Você já viu uma boiada de 3 mil reses em movimento? Eu via e ainda vejo essas boiadas viajarem dois, três meses de uma fa-zenda para a outra, o vaqueiro tangendo, o gado atravessando o rio, o aboio, o barulhos dos cascos na água. É essa a sinfonia.” (CABRAL, 2000, p.15).

5 – Três princípios da Música Universal

“A Harmonia é a mãe da música, o ritmo é o pai e a melodia ou o tema é o filho”“Bom gosto não se aprende na escola”“A prática é quem manda” Princípios da Música Universal de Hermeto Pascoal (MORENA, 2008)

O primeiro, o terceiro e o décimo-quarto princípios da música universal de Hermeto Pascoal, listados na epígra-fe acima, sintetizam e norteiam o processo de formação de sua linguagem harmônica. Diferentemente de muitos músicos populares que, por não terem tido a oportunida-de de estudar a música erudita, por isso criam, em torno dela, o mito de uma cultura superior e inatingível, Herme-to Pascoal sempre encontrou caminhos alternativos dian-te dos impedimentos de uma educação formal em música que lhe foram impostos. Ele relata: “. . . vim a aprender teoria com 42, 43 anos de idade. Eu memorizava muito as

Ex.2 – Clusters imitando o zumbido da abelha arapuá na música Arapuá (transcrição de Jovino Santos Neto) e os parciais inarmônicos de um pedaço de ferro percutido na música Cores (transcrição de Jovino Santos Neto),

ambas de Hermeto Pascoal.

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coisas. Quando eu viajava para São Paulo, mais ou menos uma hora de ônibus, ia cantando. Dava uma gorjeta ao cobrador e dizia: “Não sou doido, não sei música, não sei escrever e nem tenho gravador. Eu preciso ir cantando essa música até chegar na boate, até chegar no lugar em que eu toco”. (CASTRO, SOUZA e ROCHA, 2007)

Percebe-se, ainda hoje, entre músicos, diletantes e leigos, o automatismo de associar sofisticação musical e forma-ção erudita. Não é o caso de Hermeto, mas após quase 40 anos de profissão, ele viu-se atormentado com as fre-quentes perguntas de repórteres ávidos de saber sobre sua educação musical:

Quando fiz os meus 50 anos. . .eu falei para minha esposa Ilza. . . estou um pouco preocupado, as pessoas estão cobrando muito de mim. . . eu não sei dizer como foi que eu aprendi. . . tão achando que eu estou escondendo alguma coisa. . .vocês acham que se alguém fosse meu professor não estaria feliz de ser meu professor, não seria conhecido?. . . não tenho um professor aparente. . . estou me sentindo órfão. . . aquele filho que nasceu e gostaria de conhe-cer os pais (CAVALCANTI, 2004).

A constatação de seu autodidatismo vitorioso e tão efi-ciente quanto qualquer formação acadêmica, entretanto, não implica em um desconhecimento de sua parte dos valores musicais mais racionais e menos intuitivos, ca-racterísticos do músico letrado. Em Recife, Hermeto se maravilhava com os ensaios de Guerra-Peixe, “. . . mestre da arte da composição e do arranjo. . . ” (VILLAÇA, 2007, p.36), e com o pianista Alberto Figueiredo, “. . . que tocava só Chopin. . . [que] lia a partitura e criava” (CAMPOS, 2006, p.81). A influência da música erudita aparece em algumas músicas do Calendário do som. Em 8 de dezem-bro de 1996 (PASCOAL, 2000a, p.211), Hermeto comenta tanto sobre a questão da harmonia, quanto a questão da técnica no piano: “Esta música é muito erudita e cheia de modulações. Até breve! Haja mão esquerda”. Ainda refle-tindo uma prática erudita, somente esta música e mais quatro, em todo o livro, têm a mão esquerda realizada, com típicos gestos do pianismo romântico: repetidos ar-pejos em colcheias marcando as mudanças de harmonia e arpejos em quiálteras num jogo polirítmico de seis notas no acompanhamento contra quatro na melodia.

No Rio de Janeiro, admirava os ensaios do erudito-popular Radamés Gnattali. Com Edú Lobo, Hermeto, então pianis-ta do Quarteto Novo, teve a oportunidade de conhecer metrópoles mundiais da música erudita na Europa e nos Estados Unidos. Um importante contato de Hermeto com partituras de música do século XX parece ter ocorrido “. . . em Los Angeles, o Edu [Lobo] ficava mostrando umas partituras do Stravinsky para ele. . .”, embora Hermeto não considere muito o peso desta experiência na sua forma-ção, pois “. . . Ah, eu não tava muito interessado nisso não.” (entrevista de Jovino a COSTA-LIMA NETO, 1999, p.6). Mas o mesmo Hermeto, que em entrevista à Jazz Magazine em 1984 (citado por COSTA-LIMA NETO, 1999, p.4) disse: “Eu adoro tocar música ‘clássica’ ”, certamente tocou muitas vezes a Pavane de G. Fauré, incluída no LP Brazilian Oc-topus (1969) e a ária Kein Wort do Segundo Ato da ópera A Flauta mágica de Mozart, incluída no mais recente CD/DVD Chimarrão com Rapadura (2006). Sintomaticamente, sua parceria com Aline Morena, “. . . formada em canto lírico pela Universidade de Passo Fundo” (CASTRO, SOUZA e ROCHA, 2007), o motivou a compor para este último álbum uma música chamada À Capela.

Para descrever o estilo improvisatório de Hermeto, o crí-tico do The New York Times Stephen Holden fala mais de uma referência erudita do que do jazz norte-americano:

“. . .ofereceu momentos de virtuosismo no piano, embora não faça exatamente aquilo que os americanos pensam a respeito do jazz. . . ‘citações’, improvisando em torno de standards da música ame-ricana - como Two for the Road (de Henry Mancini, composta em 1967 para a trilha do filme Um Caminho Para Dois), My Funny Valentine e Round Midnight. . . Poderia-se descrever seu som e estilo como uma lembrança e improvisação de Rachmaninoff com a força do fogo latino-americano”. (MILLARCH, 1989a)

É muito provável que o contato com procedimentos da música erudita, diretamente com músicos de formação tradicional ou via outros estilos populares influenciados pela música erudita (como o jazz moderno), tenha inspi-rado Hermeto em harmonias e métricas mais complexas. O baterista Nenê conta que, como pianista do Quarte-to Novo, Hermeto tocava “Garota de Ipanema em 7/4” (CAMPOS, 2006, p.109). Em Pintando o sete de Hermeto,

Ex.3 - Atonalismo resultante do contraponto polimodal em Papagaio alegre (transcrição de Jovino Santos Neto) de Hermeto Pascoal.

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a “. . . assimetria do compasso 7/8 cria o efeito de estra-nhamento em relação à música popular convencional. . . ” (ARRAIS, 2006, p.12, 13). No “chorinho em sete” (um 7/4), que aparece na música 1º de Fevereiro de 1977 do Calendário do som (CAMPOS, 2006, p.102), também se podem reconhecer diversos padrões assimétricos, como [4/4 + 3/4], [2/4 + 2/4 + 6/8], mostrados no Ex.4, que não se relacionam com as métricas aditivas afro-brasi-leiras apontadas por SANDRONI (2001), mas provavel-mente com uma leitura jazzística de práticas eruditas.Admirador de Radamés Gnattali, ícone da música brasi-leira que melhor integrou as músicas erudita e popular, Hermeto lhe dedicou Mestre Radamés, música centrada em um complexo solo de bateria, cuja partitura revela “melodia de timbres”, “frases ritmico-melódicas desloca-das”, a “coexistência de diferentes pulsações”, a “fusão e alternância de células rítmicas” e a ausência ou “poucas barras de compasso” (CAMPOS, 2006, p.120-121).

Ironicamente, os problemas crônicos enfrentados pelo músico erudito no Brasil podem ter favorecido Hermeto ter se cercado de instrumentistas de alto nível e com experiência sinfônica. As “. . . dificuldades profissionais da classe de instrumentistas – onde se incluem desde os músicos de sinfônica até os integrantes de bandas carnavalescas. . .” de que falava Plínio Marcos, geraram (e têm gerado) uma desilusão, instabilidade profissio-nal e, mesmo, provocado a evasão das orquestras, em grande parte devido à incompetência do “. . . sindicato, a Ordem dos Músicos . . . nada fazem, nada reivindicam. . . ” (BAHIANA,1979-1980b, p.78). COSTA-LIMA NETO (1999, p.72) lembra que “. . . com exceção do percus-sionista Pernambuco, os demais integrantes do Grupo [do Jabour] tiveram passagens pela música erudita e a abandonaram para se dedicar à música popular . . . [for-mando um grupo] semelhante a um conjunto de mú-sica de câmara. . .” Márcio Bahia tocou na Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Itiberê estudou piano clássico. Carlos Malta estudou na Escola de Música da UFRJ e na Escola de Música Villa-Lobos. Jovino, que hoje leciona no Cornish College of the Arts (Estados Unidos) no qual compositores avant-garde

como John Cage, Joshua Kohl e Jarrad Powell foram compositores residentes, declarou a GILMAN (sem data) seu plano de re-orquestrar A sagração da primavera de Stravinsky para 10 músicos apenas.

Apesar de não ter tido professores eruditos, a proximi-dade de Hermeto com a música erudita é visível na suas obras sinfônicas que compôs, ainda muito pouco conhe-cidas, como Sinfonia em Quadrinhos; Sinfonia Berlim e sua gente; Suíte Pixitotinha; Suíte Paulistana; Suíte Mun-do Grande; Suíte Norte, Sul, Leste, Oeste; Sinfonia Vale do Ribeira e Sinfonia do Boiadeiro. Um dos ícones da música erudita brasileira, Isaac Karabtchevsky, quando o regeu à frente da Orquestra Jovem de São Paulo no Teatro Mu-nicipal, não economizou elogios: “Ele sempre me impres-sionou pelo domínio instrumental aliado a uma inventivi-dade rítmica e melódica, que engloba uma visão de todos os sons num resultado fantástico” (COMODO, 1996).

Mas Hermeto não reteve as terminologias eruditas, as regras formais e harmônicas, preferindo se guiar pelo resultado da realização musical, pelas sonoridades que diziam respeito à sua percepção e pelo vocabulário próprio da aprendiza-gem oral. Daí surgiram termos como “cacho de uva” (acor-des), “três andares” (superposição de três acordes) (ZWARG, 2009b), “garfinho” (síncope), “pendurada” (acento contra-métrico), “chão” ou “fora do chão” (ênfase nos tempos ou contratempos), “quebrar” (sair da ênfase nos tempos) (CAM-POS, 2006, p.86-87). Não estar preso à formação tradicional de música também lhe permitiu criar conceitos mais amplos como música universal, cifragem universal, música da aura, música dos ferros e utilizar o método do corpo presente, cria-do por Itiberê Zwarg (MORENA, 2009).

Favorecendo a prática, e não a teoria, na sua rotina musical, Hermeto alcançou um nível criativo em que a improvisação tornou-se muito próxima da composição, ao mesmo tempo fluente, em tempo real e com extraor-dinária riqueza de ideias:

“A surpreendente originalidade dessas ideias e a grande variedade de procedimentos composicionais empregados, resultam em im-provisações extremamente bem concebidas e finalizadas, podendo

Ex.4 - Padrões de [4/4 + 3/4] e [2/4 + 2/4 + 6/8] na métrica 7/4 em 1º de Fevereiro de 1977 de Hermeto Pascoal.

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ser ouvidas e estudadas independentemente de seus temas de ori-gem, demonstrando complexidade e nível artístico de composições previamente elaboradas PRANDINI (1996, p.91).

Da mesma forma, a diversidade harmônica que se encontra nas composições de Hermeto também parece estar pre-sente em suas improvisações e é fruto de sua abordagem, como relata Jovino: “É necessário compor e escrever como se fosse improviso e tocar como se fosse escrito” (COSTA-LIMA NETO, 1999, p.23). Após analisar alguns solos impro-visados no período entre 1985 e 1992, José Carlos Prandini observou a existência de padrões que dão unidade à sua música criada espontaneamente. Embora tenha utilizado uma amostragem pequena e tenha simplificado a harmo-nia de Hermeto nas suas transcrições e grafia, PRANDINI (1996, p.89-90, p.4 da segunda partitura do Anexo I) fala da improvisação de Hermeto como um frequente “grande adensamento de notas”, com predomínio de semicolheias, tercinas e fusas dentro de um “pensamento diatônico” jun-to com os quais podem aparecer a fixação em um acorde apenas, uma preferência pelas escalas Lídia, Superlócria e Dórica (e, em menor grau, a escalas Menor melódica, Mi-xolídia e Tons inteiros). Mas observa também que ocorrem “. . . superposições de elementos originários de outras áreas tonais, ou emprego de tonalidade expandida. . .” e, mesmo, “fala e ruído de animais”, como ocorre ao final da improvi-sação em O Tocador quer beber.

A orientação pela prática, e não pela teoria, permitiu ao discípulo Itiberê Zwarg, “herdeiro” das práticas musicais de Hermeto no Jabour, desenvolver o conceito de método do corpo presente, no qual a composição e a performance são processos quase simultâneos e participativos, carac-terística fundamental no processo criativo e coletivo da Itiberê Orquestra Família. Ele explica:

“. . . As músicas vão surgindo segundo o método de corpo presente. . . a capacidade de compor na hora, burilando as músicas ali no contato com os instrumentistas. . . O que sai dessas reuniões de corpo presente é delirantemente variado. Em Pedra do Espia há cho-rinho, forró, samba, valsa e muito mais. Tudo 100% instrumental. . . Partimos do som, da referência auditiva, ao invés do método tra-dicional - que usa a visão, o olhar cravado na partitura. As músicas amadurecem muito rápido. Ensaiamos muito. . .” (BARBOSA, 2001)

“Conforme vou compondo, em um instrumento qualquer,a música vai sendo executada quase simultaneamente à sua criação. Por exemplo: faço uma frase melódica e passo para o clarinetista; a harmonia para o pianista; e em seguida vou abrindo as vozes para todos os instrumentistas, parte por parte. . . Reproduzir de ouvido o que vou criando desenvolve a percepção rítmica, melódica, harmô-nica e a memória musical. . . a memória de cada um dos músicos é acionada pelo estímulo do som e não pelo estímulo gráfico. Só depois de parte da composição e arranjos prontos é que cada um dos instrumentistas com a ajuda de meu monitor, escreve o que executou, desenvolvendo a habilidade da escrita musical. . . apren-dem a escutar todos os instrumentos, presenciando [grifo nosso] e participando de todo o processo de criação.” (ZWARG, 2009c)

Jovino procura explicar as raízes do conceito harmônico de Hermeto, os quais aprendeu na Escola Jabour e levou para o exterior:

É sempre difícil explicar os conceitos harmônicos de Hermeto, mesmo para outros músicos. . . ele disse que costumava, na in-fância, ficar na oficina do avô ferreiro. . . batia na peças de ferro e tentava emular todos os harmônicos que ouvia no seu fole de

oito baixos. . . ele não segue as progressões harmônicas usuais, por isso, soa sempre novo e inesperado. . . embora seus acordes sejam bastante elaborados, são, na maioria, formados por tríades simples empilhadas umas sobre as outras. . . o que é radicalmente diferente do que é ensinado na maioria das escolas. Isto nos dá a oportunidade de criar música sem ser baseada na utilização de escalas e modos. Tenho mostrado este conceito aos meus alunos aqui na [Escola de Música do] Cornish College of the Arts em Se-attle [Estados Unidos] e é surpreendente como reagem quando descobrem que simples acordes podem criar harmonias complexas (GILMAN, 2009)

Na música De bandeja e tudo, COSTA-LIMA NETO (1999, p.148) reconhece ecos modais e sonoridades de “. . . efeito imponente, solene e místico” resultantes dos acordes com quartas e quintas justas sem terças, os quais normalmente se associam, na música erudita, desde os organa medievais, até as quintas diretas dos power chords do rock, passan-do pelas harmonias paralelas de Debussy. Novamente, e apesar da possibilidade de Hermeto ter ouvido estas re-ferências na sua vida de músico profissional maduro entre músicos letrados, é mais provável que estas sonoridades tenham surgido na sua música mais a partir da confor-mação de suas mãos sobre os instrumentos (sanfonas e teclados, como o recorrente acorde X4568) e mesmo, do modalismo típico nordestino, remanescente dos trovadores renascentistas, que José SIQUEIRA (1981) identificou no seu Sistema Modal na música folclórica do Brasil.

Outro recurso de complexidade harmônica comum em Hermeto, oriundo das exaustivas práticas de ensaio di-árias e não da teoria, é o dobramento da mesma linha melódica por outro instrumento transpositor sem se preocupar em manter a mesma tonalidade COSTA-LIMA NETO (1999, p.150), superposição que, obviamente, terá o mesmo efeito prático da politonalidade.

O contraponto, um elemento típico da música erudita, pertence ao vocabulário de Hermeto desde o início de sua carreira. Na gravação do disco Brazilian Octopus (1969), bolou uma linha contrapontística para duas flautas para acompanhar o repetitivo tema da música O Pássaro do gui-tarrista Lanny Gordim. O saxofonista Carlos Alberto relata a importância que Hermeto confere à sofisticação de sua criação musical: “Só que, na hora da mixagem, o contra-canto tinha sumido da gravação. O Hermeto ficou tão bra-vo que queria pegar o técnico. . .”(CALADO, 2000). Muitas vezes, ele deixa claro seu pensamento contrapontístico nas partituras, como na música 10 de setembro de 1996 do Calendário do som, inspirada em Tom Jobim (PASCOAL, 2000a, p.102). Mas a simultaneidade de linhas melódicas na música de Hermeto não parece derivar de suas expe-riências com música erudita mas, antes, podem remeter às experiência sonoras de sua infância, muitas vezes com-plexas. Por exemplo, a superposição de materiais desco-nectados, gerando a sensação de caos pela simultaneidade de diversas pulsações, andamentos e atmosferas é relatada por ele mesmo, “. . . [na feira de Lagoa da Canoa, em que] haviam os cantadores de embolada, os vendedores anun-ciando, os discos do Luiz Gonzaga tocando no megafone. . . e era tudo isso junto, de uma vez só. . . ”, o que pode ter servido de modelo para ele na “. . . bandinha da escola, na

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qual tocava tambor. . . atravessado de propósito para ver a marcha ficar trocada. . . ” (CAMPOS, 2006, p.134).

Uma das características do estilo composicional de Her-meto Pascoal é a economia de meios na utilização do vocabulário harmônico. Geralmente ele recorre à repe-tição dos mesmos tipos de acordes e a transposições de encadeamentos harmônicos (sequências), tanto em obras mais antigas quanto mais recentes. Mais do que isto, em muitas músicas, a predominância de um tipo de acorde sobre os demais é muito comum. Por exemplo, no ma-nuscrito do compositor de O Ovo (PASCOAL, 2008), peça gravada pela primeira vez no disco Quarteto Novo (1967), nota-se que a recorrência de acordes do tipo X4568 / 4 ocupa 75,6 % dos 45 acordes da peça. Já em Amor, paz e esperança (PASCOAL, 1980), os acordes menores do tipo Xm479 correspondem a 48,8% e os acordes do tipo X479 correspondem a 29,2 % do total de 41 acordes da peça (juntas, essas versões maior e menor deste acorde equi-valem a 78% do conteúdo harmônico utilizado!).

A economia de meios é ainda mais evidente em 22 de agosto de 1996, que ele diz ter composto “com um tipo de acorde, só com modulações” (PASCOAL, 2000a, p.83). Aqui, ele recorre mais uma vez ao típico acorde X 4568 (sem terça, com 4ª, 5ª, 6ª e reforço da oitava). Estão claros os dois procedimentos nos quais Hermeto se baseou para compor os encadeamentos harmônicos desta música: o mesmo tipo de acorde com fundamentais diferentes, mas sobre o mesmo baixo (como nos c.9-10: Bb 4568/F, Ab 4568/F, G 4568/F, Eb 4568/F) e, esporadicamente, o mes-mo tipo de acorde com a mesma fundamental, mas sobre baixos diferentes (como no c.13: B 4568/D#, B 4568/D).A genialidade harmônica de Hermeto fica evidente com a solução encontrada para sua concepção planejada

para a música 12 de novembro de 1996, que ele descre-ve assim: “compus esta música nos doze tons, maiores e menores” (PASCOAL, 2000a, p.165). Como se fosse um Bach da música popular do século XX, ele consegue con-centrar, em apenas 24 compassos contendo uma cifra cada, um passeio “bem-temperado” por todos os acor-des das tônicas dos 24 tons maiores e menores, basean-do-se em apenas dois tipos de acorde (X7+ e Xm 479). Desta forma, consegue utilizar uma variedade máxima de acordes, sem perder a coerência do discurso tonal tradicional da música popular. Tal coerência poderia ser explicada alternativamente como ambiguidades ou po-larizações em torno da tônica e da supertônica, ao invés de configurar modulações (Ex.5).

Avesso a rótulos, Hermeto precisou criar um para dar conta da diversidade que é o princípio básico de seu conceito de música universal, no qual cabem “. . . todos os estilos e todas as tendências. O Brasil, sendo o país mais colonizado do mundo, não poderia ser outra coisa . . . aquela mistura bem feita . . .”, como afirmou em uma entrevista à revista eletrônica Jungle Drums (citado por ARRAIS, 2006, p.7). Este conceito torna a música uma experiência mais ampla do que apenas o fazer musical. COSTA-LIMA NETO (2008, p.24-25) identifica na música universal opções de estilo de vida, como “arte” e “quali-dade”, em oposição a “dinheiro” e “quantidade”. De fato, o documento com dezessete Princípios da Música Uni-versal criada por Hermeto Pascoal, organizado pela dis-cípula a atual esposa Aline MORENA (2008), é visionário e valoriza atitudes como “. . . amar, criar, imaginar e se inspirar nos sons da natureza. . . misturar sem precon-ceitos, mas com bom gosto. . . são todos os mundos. . . só busca encontrar-se. . . a confraternização e o amor entre os povos. . . é alimento para a alma”.

Ex.5 – Economia de meios harmônicos, máxima variedade de acordes e ambiguidade tonal de Hermeto Pascoal na música12 e novembro de 1996.

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6 - Hermeto Pascoal: “Minha religião é a música” (GonTIJo, 2000, p.2)

“Eu rezo com a música, com o instrumento”. Hermeto Pascoal (O. RODRIGUES, 2003)

A religião, especialmente aquela dos ritos populares bra-sileiros, sempre fez parte do mundo musical de Hermeto Pascoal. As experiências religiosas estão presentes des-de sua infância em Lagoa da Canoa, nas procissões dos benditos e nas rezas das novenas (CAMPOS, 2006, p.69), nos mistérios das crenças, que ele mesmo relata: “Com 8 anos, achava que era alma, mas não era nada mais do que os morcegos dentro da igreja” (CASTRO, SOUZA e ROCHA, 2007). A religiosidade de Hermeto aparece nos títulos de muitas músicas, como Velório (disco Hermeto, 1971; relançado em CD como Hermeto Pascoal, Brazi-lian adventure), Religiosidade (disco Cérebro Magnético, 1980), Novena (disco Hermeto Pascoal e Grupo, 1982), Santo Antônio (disco Zabumbê-bum-á, 1979), São Jorge (disco Zabumbê-bum-á, 1979), Santa Catarina (1984), Monte Santo (disco Lagoa da Canoa, município de Arapi-raca,1984), Mentalizando a cruz (disco Brasil Universo, 1985), Magimani Sagei (disco,1982), Missa dos escravos (disco Slaves Mass, 1977), Igrejinha (gravada como Little church no disco Live evil de Miles Davis), Devoção, Mes-tre Mará (1979), 25 de dezembro de 1996 do Calendário do som (dedicada a Jesus), 16 de março de 1997 do Ca-lendário do som (dedicada ao médium espírita Doutor Fritz e seus irmãos espirituais), entre outras.

Falando da “cosmologia pessoal” de Hermeto Pascoal, COSTA-LIMA NETO (2010a), acredita que o Calendário do som (2000) é “uma obra sacra ‘inspirada por Deus’”. Ou Deuses. Ecumênico, Hermeto está atento às tradições re-ligiosas indígenas e afro-brasileiras. No processo de gra-vação de Magimani Sagei (1982), música com clima de dança tribal que se refere à índia cabocla Magimani Sagei (um possível “alter-ego de Hermeto”), e que tem corres-pondência com uma alta entidade espiritual na umbanda:

“. . . o técnico de estúdio Zé Luiz inventou, a pedido de Hermeto, pa-lavras com sonoridade tupi (“oirê, ogorecotara, tanajura”), enquanto, nos breques instrumentais, os músicos falavam palavras desconexas, sopravam apitos e gritavam. Os latidos dos cachorros Spock, Bolão e Princesa adensavam a textura geral, enquanto o andamento acele-rava até o final free, improvisado” (COSTA-LIMA NETO, 2008, p.10).

Em Missa dos escravos, incluída no disco Slaves Mass, pode-se observar novamente a voz como elemento típico da música ritualística:

“A frase cantada ‘Chama Zabelê pra poder te conhecer’ é entoada hipnoticamente num crescendo, em uma mesma nota grave con-tínua, como em um recitativo (recto tono) de uma missa católica medieval, acompanhada pelo naipe dissonante de flautas e tendo como base os batuques dançantes dos tambores da bateria. No final, um duo de porcos grunhindo dialoga com o solo vocal de gargalhadas, choro e gritos de Flora Purim, superpostos a uma melodia lenta tocada na flauta transversa em uníssono com a voz cantada, aparentemente inspirada nos cantos de rezadeiras e nos benditos e incelenças do catolicismo popular nordestino (COSTA-LIMA NETO, 2008, p.11).

Em outro exemplo do sincretismo afro-indígena no Bra-sil, Hermeto recorre a “. . . recursos vocais não conven-cionais, como sussurros, chiados, glissandi, ataques glo-tais, tosse, gritos” para criar a ambiência afro-brasileira de Mestre Mará (1979), e uma série de aliterações com palavras em torno do título:

“. . . técnica muito comum na embolada nordestina, para asso-ciar a denominação do ritmo afro-brasileiro ‘maracatu’, com o instrumento indígena ‘maracá’, além do gato-do-mato (na língua indígena) ‘maracajá’ e, finalmente, o nome do mestre ‘Mará’. Nes-ta música, a melodia cantada por Hermeto está numa velocidade (andamento) lenta, enquanto o coro explorando recursos vocais não convencionais está em outro andamento, mais rápido. A su-perposição incomum dos dois andamentos em “Mestre Mará” in-dica a presença de duas dimensões simultâneas. De fato, além da Umbanda, do espiritismo, e das tradições musicais relacionadas ao catolicismo popular do nordeste, nesta música o alagoano revela outra faceta de sua espiritualidade ao cantar: ‘Ô Mestre, recebi sua mensagem, foi com muita alegria que musiquei sua imagem.’ O ‘mestre’ em questão parece estar relacionado a outra figura que Hermeto denominou ‘O Dom’ ” COSTA-LIMA NETO (2008, p.11-12).

O jornalista Howard Mandel, da revista Down Beat, o compara com outras referências místico-musicais: “. . . Pascoal é um líder pan-global como [o compositor e pia-nista de jazz, poeta, filósofo, pioneiro da filosofia cós-mica afro-futurismo] Sun Ra e um individualista como [o multi-instrumentista e militante Afro-Americano] Rashaan Roland Kirk ” (McGOWAN e PASSANHA, 1999, p.161). Mesmo os músicos estrangeiros e que tiveram pouco contato com Hermeto percebem a religiosida-de com que ele abraça a música. Lyle Mays, tecladista do Pat Metheny Group diz que “Ele tem uma verdadei-ra devoção com o fazer musical, e nos expressa isto...” (McGOWAN e PESSANHA, 1991, p.160).

A música parece, de fato, ser um instrumento religioso de comunicação para Hermeto. A amizade que estabeleceu com Miles Davis refletiu-se na música de Hermeto muito tempo após a morte do jazzista norte-americano, ao lhe dedicar a música Capelinha e lembranças (disco Eu e eles, 1999):

“Essa música com o Miles foi o seguinte. . . aconteceu agora, de-pois dele lá no outro plano. . . por ser um gênio, um cara tão mu-sical, ele aprendeu essas músicas minhas [Little church e Nem um talvez no disco Live evil de Miles Davis], eu não precisei escrever partitura nem nada. . . Ele aprendeu gravando essas músicas no estúdio, e ficou. E eu tocando o Hammond. . . tocando num órgão elétrico que ele tinha lá, horrível. . . aumentei o volume e o som veio pela intuição. . . Uáaa, Uáaaa. . . Aí o Miles correu de lá e dis-se: ‘Oh, que som, que coisa bonita isso aí’. Então nesse meu disco agora, que eu fiz essa música e dediquei a ele. . . [para] retribuir. . . aquele convite que ele fez no disco dele [que] . . . me comunicando muito com ele espiritualmente. Comecei a tocar e sentia muito a presença dele na minha mente. . . Na gravação é que estava muito mais forte a intuição. . . que começa a capella. . . com os quatro flugelhorns. . . eu conversando com ele, brincando com ele. . . to-cando samba no flugelhorn. . . colocaram como se fossem duas músicas, não são duas músicas, aquilo é uma música só. Aquilo é a introdução da melodia” (BARROSO, 2009)

Hermeto, ecumênico, admira a doutrina espírita, reli-gião escolhida por muitos familiares de sua primeira esposa, Dona Ilza. Ele diz: “Eu vivi nesse meio e tenho muita experiência que o pai dela passou pra mim sobre

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Alan Kardec, mesa branca. Você não vê, por exemplo, ninguém de Alan Kardec na TV pegando dinheiro, vê?” (O. RODRIGUES, 2003).

Uma escuta atenta da música Chapéu de baeta (disco Festa dos deuses, 1992 ) revela Hermeto recitando sobre “. . . o som que embala a alma. . . quem premedita não procura e jamais encontra . . .é sair com fé, coragem, com muita me-ditação. . .” Já em Mentalizando a cruz, no longo trecho de piano solo que inicia a música, COSTA-LIMA NETO (2008, p.11) diz que “. . . foi composta por Hermeto e dedicada ao músico Paulo Cesar Wilcox” e que “Hermeto parecia con-vencido que o homenageado, recém-falecido, teria ‘sopra-do’ esta música aos seus ouvidos, como numa psicografia.”

A linguagem atonal geralmente aparece na música de Hermeto Pascoal como música da aura, em que “meu ou-vido absoluto, recebe os fenômenos sonoros cotidianos. O familiar é tornado exótico e vice-versa. . .” motivada por emulação de sons de altura não definida como a fala humana (como em Aula de Natação, na qual “. . . transpõe as diferentes durações e alturas da voz falada em prosa para o piano, resultando uma melodia totalmente atonal e de ritmo assimétrico” (COSTA-LIMA NETO, 1999, p.176) ou o som percutido de peças de metal de natureza pro-gramática como em Ferragens.

Em Canon para flauta solo, gravada no disco Slaves Mass por Hermeto PASCOAL (1977), a sua religiosidade torna-se explícita na intenção de emular uma sessão musical espírita no estúdio de gravação e se comunicar como o colega jazzista Julian “Cannonball” Adderley (1928-1976), recém-falecido. Uma análise da gravação e das partituras (veja a partitura original desenhada em forma de espiral no presente número de Per Musi [PASCOAL e PEREIRA, 1977, p.70] e a partitura restaurada [PAS-COAL e BORÉM, p.80-82, nesse volume de Per Musi.]), revela uma utilização expandida da linguagem harmô-nica modal. Em Cannon, Hermeto alterna um modalismo extremamente instável, sem centros modais definidos (que, por isso, pode ser percebido como quase-atonal), com polarizações modais (Sol Dórico/Eólio e, depois, Sol Eólio/Menor Melódico) que sugerem as etapas de uma sessão espírita: o contato, o transe, a incorporação es-piritual, e a despedida com a alma de “Cannonball” (BO-RÉM e FREIRE, 2010; veja artigo completo às p.63-79 no presente volume de Per Musi).

Sempre que lhe perguntam sobre religião, entretanto, Hermeto diz que “Minha religião é a música. Deus me dis-se: ‘A religião de vocês aí, meu filho, é o trabalho. É o que vocês gostam de fazer na vida’ ” (GONTIJO, 2000, p.2). Não é algo separado das atividades do dia-a-dia. Este in-teresse nas tarefas comuns e trabalho dos que cercam Hermeto também se reflete nos títulos de suas músicas, como Ilza na feijoada, em que faz referência à atividade da esposa desde seus tempos no Recife, ou Aula de na-tação que retrata a lida diária da filha Fabíula Pascoal, formada em educação física.

Aos poucos, o culto à música por Hermeto e seus se-guidores tem tomado a forma de um local público que abrigará, segundo sua esposa e parceira musical Aline Morena, “. . . um teatro, que terá o acervo do Herme-to, uma sala onde haverá o acervo multimídia. Além de acontecerem espetáculos de música universal, vão estar disponíveis os vídeos de shows, de workshops.” (CASTRO, SOUZA e ROCHA, 2007). O Templo do Som Hermeto Pascoal, cujo projeto arquitetônico “. . . já está pronto e é assinado pelo arquiteto Mário Biselli” será um espaço que, além de disponibilizar manuscritos originais, gravações raras e imagens, terá uma função educacional, onde pretende-se a discussão sobre mú-sica e seu papel na melhoria do ser humano (PAULA, 2007). Hermeto parece preparado para deixar o legado de sua missão na terra:

“. . .Deus fez uma escada infinita e a deu de presente a cada um de nós. Estou subindo os degraus e vou continuar subindo. Não é pre-ciso olhar para trás, porque a vida já é um espelho.” (CASTRO, SOU-ZA e ROCHA, 2007); “Tudo o que sei e serei agradeço a Deus, aos Deuses e ao meu dom espiritual e musical”. (PASCOAL, 2000b, p.18)

7 - Considerações finaisOuvidos desatentos às experiências de vida de Hermeto Pascoal podem reconhecer, dentro do seu eclético esti-lo composicional, ecos derivados diretamente de estilos eruditos, como melodias acompanhadas chopinianas; acordes paralelos debussynianos; os contrapontos, super-posições politonais e emancipação rítmica de Stravinsky; os clusters atonais da segunda escola de Viena; as super-posições métricas e harmônicas de Charles Ives; a com-plexidade rítmica de Boulez; as transcrições de Messiaen de sons da natureza para o piano; as paisagens sonoras de R. Murray Schafer; as manipulações eletroacústicas remanescentes de Pierre Schaeffer e Pierre Henry; os rui-dismo musicais de Luigi Russolo; a música conceitual de John Cage; e, mesmo, os modelos modais de composição e de improvisação oriundos do jazz.

Entretanto, basta acompanharmos a trajetória musical deste músico genial, para o qual não existe divisão entre composição, performance, arranjo e improvisação, para re-conhecermos, já na sua infância, as premissas da econo-mia política da música de Jacques Attali que COSTA-LIMA NETO (1999, p.42-43) identifica em Hermeto Pascoal: o “espelho do tempo e da sociedade”, a “ação crítica”, o “atri-buto do poder político e religioso” e o “germe da revolta”.

No caso de Hermeto, “. . .a tendência em buscar referên-cias musicais ao mesmo tempo consagradas e generali-zantes (música erudita, jazz). . .” (CAMPOS, 2006, p.78) não se aplica. Embora seus ouvidos de “gravador infinito” estiveram (e estão) literalmente atentos a todos os sons que o cercaram, inclusive os eruditos, seu processo de aprendizagem é único – resultado de suas experiências de vida musicais e não-musicais - e centrado na trans-missão oral do conhecimento. O caminho é outro, não tradicional, não-letrado, autodidata, mas os resultados sonoros não ficam aquém daqueles do tonalismo, mo-

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dalismo, atonalismo, polimodalismo, paisagem sonora e música concreta da música erudita.

Espera-se que este estudo de caso sobre Hermeto Pascoal possa servir de ponto de partida para estudos posterio-res, quiçá aqueles de natureza indutiva que, a partir da análise de um conjunto maior de músicas desse composi-tor genial, possam revelar mais detalhes sobre seu estilo composicional, especialmente seus percursos harmônicos.

Respondendo ao jornalista Álvaro Cavalcanti da Radio Nederland Wereldomroep sobre o encontro entre o tra-dicional e a vanguarda na música, Hermeto disse que “A

música para mim, não há como falar em vanguarda, falar em jazz, falar em baião, falar em chorinho. . . não tenho rótulos” e, mais à frente, sobre mesmice e variedade em música, “. . . o povo cansa de uma coisa só. . . .” (CAVAL-CANTI, 2004). O “tacho de sons” no qual CAMPOS (2006) descreve como os ritmos se misturam “tudo de uma vez só” é o mesmo no qual Hermeto Pascoal experimenta suas receitas em que cabem todos os ingredientes harmônicos, muitas vezes “tudo de uma vez só”. Do alto de suas expe-riências de vida e maturidade musical, o sempre inusita-do Hermeto Pascoal reflete, sem falsa modéstia, sobre si mesmo: “. . . naquele tempo eu era lindo e agora sou um santo.” (TÁRIK DE SOUZA, 1990).

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Fausto Borém é Professor Associado da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde criou o Mestrado em Música e a Revista Per Musi. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem um livro, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, mu-sicologia, etnomusicologia e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e apresentação de recitais nos principais eventos nacionais e internacionais do contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Fábio Mechetti, Luiz Otávio Santos, Arnaldo Cohen, Antônio Menezes e músicos populares como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Ta-vinho Moura, Roberto Corrêa, Maurício Tizumba e Túlio Mourão. Suas gravações incluem o CD Brazilian Music for the Double Bass, o CD e DVD O Aleph de Fabiano Araújo Costa, os CDs da Orquestra Barroca do Festival Internacional de Juiz de Fora de 2005 a 2009 (com Luiz Otávio Santos), a Suite for Flute and Jazz Piano de Claude Bolling (com Maurício Freire, Tânia Mara e Eduardo Campos) e No Sertão (com o violista Roberto Corrêa) e Cidades Invisíveis (com o saxofonista Daniel d´Olivier).

Fabiano Araújo é Mestre em Música pela Escola de Música da UFMG e Bacharel em Música Popular pelo Centro de Artes da UNICAMP. Foi professor da FAMES (Faculdade de Música do Espírito Santo) Atualmente é Professor Assistente do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), onde leciona Harmonia, Estruturação, Improvisação e Teclado. Lançou em 2007 o CD e DVD O Aleph, alcançando cotação máxima de crítica do Jornal O Globo. Seu novo trabalho de interpretação de nove peças do Calendário do Som de Hermeto Pascoal foi gravado e publicado em Portu-gal, com a participação do contrabaixista norueguês Arild Andersen do baterista Alexandre Frazão (Brasil/Portugal) e do saxofonista Guto Lucena (Brasil/Portugal).

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Recebido em: 21/08/2009 - Aprovado em: 20/03/2010

o cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz

Luiz Costa-Lima neto (UNIRIO, Rio de Janeiro) [email protected]

Resumo: Artigo sobre a utilização da voz na música do compositor Hermeto Pascoal, seja cantando, falando, gritan-do, sussurrando, rezando, tossindo, gargalhando, assobiando, produzindo sons guturais, sozinha ou simultaneamente com instrumentos de sopro, de teclas, com objetos sonoros não conven cionais ou, ainda, de outras formas. Ao con-templar a produção vocal na obra e na vida de Hermeto Pascoal, de maneira abrangente, pretendo mostrar uma faceta pouco conhecida do versátil compositor alagoano, além de revelar que a sua música e a sua personalidade partilham uma mesma ética, da qual a voz é instrumento.Palavras-chave: etnomusicologia; Hermeto Pascoal; música popular brasileira; voz; música instrumental.

The singer Hermeto Pascoal: the voice’s instruments

Abstract: Article about Brazilian composer Hermeto Pascoal’s utilization of his voice in his music, whether singing, talking, shouting, whispering, praying, coughing, laughing, whistling, producing guttural sounds, alone or simultane-ously with wind instruments, keyboards, non-conventional sound objects or even other forms. In considering the use of the voice in the work and life of Hermeto Pascoal, in a comprehensive way, I am seeking to show a lesser known facet of the versatile composer from Northeastern Brazil, as well as revealing that his music and his personality share the same ethics, in which the voice is the instrument.Keywords: ethnomusicology; Hermeto Pascoal; Brazilian popular music; voice; instrumental music.

1- Introdução

Eu me inspiro mais nas outras coisas para fazer música. Eu não es-cutei música para compor. Não. Eu me inspiro mais na pintura, no timbre de uma voz. (...) O cantar das pessoas, na minha concepção, o cantar de cada um de nós, é o que chamamos de fala. Assim como os pássaros, nós somos pássaros também (PASCOAL, 1997).

Hermeto Pascoal (nascido em 22 de junho de 1936, no Olho D’água da Canoa, Alagoas) é conhecido no Brasil e no exterior como um músico multi-instrumentista, ar-ranjador e compositor. Entretanto, em aproximadamente 60% das músicas gravadas em 13 discos autorais lan-çados a partir de 1972,1 ao invés de limitar-se a utilizar somente instrumentos como piano, teclados eletrônicos, flauta, sax, contrabaixo, bateria, etc. – além de instru-mentos não convencionais –, Hermeto Pascoal também utiliza a voz, mesmo não sendo ele, oficialmente, um can-tor, nem um compositor de canções. Além disso, em seus discos autorais Hermeto sempre contou com a participa-ção de cantoras como Flora Purim, Zabelê, Jane Duboc e Luciana Souza e, culminando o longo “namoro musical” com o canto, o compositor se casou com a cantora gaú-cha Aline Morena, sua atual companheira.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010

Na citação utilizada como epígrafe deste artigo Hermeto Pascoal relata que, desde quando ele era criança, a voz foi algo que o motivou “para fazer música”. Depois, ao lon-go de sua carreira profissional, a voz se tornaria um ins-trumento tão importante quanto os sopros, as cordas, os teclados e a percussão. De fato, ela parece integrar, com os demais instrumentos, um continuum indivisível que perpassa o território sonoro da Música Universal, confor-me Hermeto Pascoal designa a sua música inovadora, que problematiza a separação entre os pólos popular/erudito e nacional/internacional. A quantidade numerosa de com-posições gravadas onde a voz se faz presente na obra do alagoano demonstra sua importância, mas, apesar disso, este não foi, até então, um tema devidamente contempla-do nos estudos acadêmicos. Ao invés disso, Hermeto vem sendo considerado apenas como um compositor “multi-

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instrumentista” vinculado às tradições da música instru-mental popular, presente em gêneros e estilos, como, por exemplo, o choro, o frevo, o forró, as bandas de pífano ou o jazz. Entretanto, se Hermeto Pascoal está, de fato, rela-cionado a estes e a outros gêneros musicais importantes, por outro lado, ele os ultrapassa através da utilização de fontes sonoras que, convencionalmente, não são conside-radas “música”, como a voz falada, por exemplo. Esclare-cerei melhor meu argumento a seguir.

Ainda na epígrafe do presente artigo Hermeto Pascoal afirma que, em sua concepção, o “cantar das pessoas é a fala”. Não se trata de uma metáfora. Hermeto realmen-te escuta as falas das pessoas como se fossem melodias cantadas. Esta percepção ampliada e precocemente ex-perimental surgiu na infância do músico, tendo lhe cau-sado, inclusive, alguns problemas junto aos familiares que não compreendiam por que o menino insistia em dizer que essa ou aquela pessoa estava cantando enquanto falava. Sua própria mãe o chamava de aluado (“lunático”) devido à insistência in comum do garoto e, desta maneira, Her-meto Pascoal chegou a acreditar que tinha algum pro-blema auditivo. Décadas se passaram e somente a partir de seu LP autoral, lançado em 1984, intitulado Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca, o compo sitor decidiu se libertar dos fantasmas que o assombravam desde a in-fância. Começou, então, a gravar em disco as melodias da fala, que só ele parecia es cutar, denominando-as músi-cas da aura.2 Nelas, as melodias da fala são reproduzi das, nota por nota, nos teclados e, depois, são har monizadas e arranjadas para outros instrumentos. Desta maneira, ele provava para si mesmo e para os outros que não era “aluado” e nem tinha problemas auditivos. Pelo contrário, Hermeto é dotado de ouvido absoluto e de uma escuta ampliada através da qual tudo parece se tornar música.

A fala humana forneceu para ele os rudimentos de sua Música Universal ao lhe ensinar as primeiras melodias – atonais e ritmicamente assimétricas. A fala se tornaria, através da música da aura, uma estrela de primeira gran-deza em sua música, demonstrando a maneira paradoxal como o compositor alagoano exerce a experimentação através dos sons cotidianos e daquilo que é mais prosaico. Como Hermeto Pascoal afirmou: “A natureza é o cotidiano (...) é tudo o que você vê pela frente”. Ela inclui não apenas os animais e as matas, mas “pode estar também num car-ro na Avenida Brasil, na hora do rush, durante uma tem-pestade” (PASCOAL, entrevista com Gonçalves e Eduardo, 1998:48). E, complementando a afirmação anterior: “Eu sou o oposto de muitas escolas. Muitas pessoas pensam que Dó, Mi, Sol, Dó é natural, mas não é; é apenas o con-vencional (...). O atonal é a coisa mais natural que existe” (PASCOAL, entrevista com o autor, 1999). Desta forma, Hermeto Pascoal cria uma dicotomia entre, de um lado, o “natural” (as sonoridades universais e atonais da fala, da natureza, dos sons dos animais e dos objetos cotidianos, rurais ou urbanos) e, de outro lado, o “convencional” (o canto e os demais instrumentos, os gêneros e estilos mo-dais e tonais, regionais, nacionais ou internacionais).

Através do “natural”, Hermeto ultrapassa o “convencio-nal”, mas sem negá-lo. Como demonstrei em outro estudo (COSTA-LIMA NETO, 1999), para chegar ao atonalismo, rui-dismo, aleatorismo e outros “ismos” Hermeto Pascoal não frequentou escolas de música nem dependeu da música eu-ropeia de concerto, do jazz norte-americano ou de qualquer outro gênero musical. Ao invés disso, desde a sua infância no Nordeste, ele escutou atentamente o que estava a sua volta, na natureza e no cotidiano, e utilizou aquelas sonori-dades em sua música. Ao fundir o “natural atonal” e o “con-vencional modal e tonal” ele cria a sua Música Universal.

Embora na citação utilizada como epígrafe Hermeto este-ja se referindo ao papel fundamental que a musicalidade da fala teve na gênese de sua Música Universal, acredito que a partir de seu relato podemos depreender uma inter-pretação adicional: se “o cantar das pessoas é o que cha-mamos de fala”, a música abrangeria tanto o som, como, também, a palavra e os sentidos por ela enunciados. Desta forma, a análise etnomusicológica realizada neste artigo contemplará não apenas o canto, os demais instrumentos e os elementos da sintaxe musical (timbre, textura, ritmo, harmonia, etc.), como também as letras, narrações e os títulos das composições de Hermeto Pascoal. Estes dados serão complementados pelas entrevistas realizadas com membros de sua família, na região de Lagoa da Canoa, onde estive em 2008. A partir destas entrevistas relacio-narei a vida e a obra de Hermeto Pascoal a certos perso-nagens no imaginário popular do Nordeste, como Zumbi dos Palmares, Lampião e Antônio Conselheiro.

Som musical e discurso, palavra cantada e palavra falada podem ser considerados como instrumentos da voz. É o que pretendo realizar neste trabalho.3

2- O cantor Hermeto PascoalEm quatro das nove faixas do primeiro disco autoral lançado em 1972 (Buddah Records), nos EUA, intitulado simplesmente Hermeto,4 a voz é utilizada pelo compositor alagoano, pela cantora Googie e pelo casal Flora Purim e Airto Moreira. O experimenta lismo musical já transparece na peça Velório, composição que exemplifica a importân-cia da voz e dos objetos sonoros não convencionais na música de Hermeto Pascoal. Nesta composição, as vo-zes de Hermeto, Flora e Airto são ouvidas logo na seção inicial (00:14 – 01:11) e imitam a paisagem sonora dos enterros na terra natal de Hermeto ao simular rezas-de-defunto5 entreouvi das em meio a sussurros e murmúrios aleatórios. As vozes são an tecedidas e sucedidas por uma orquestra dissonante e atonal constituída por 36 garrafas (00:02 – 01:40). As notas e ritmos foram escritos por Her-meto em partitura e, depois, as partes foram interpreta-das por jazzmen de renome, tais como Joe Farrel, Hubert Laws, Ron Carter e Thad Jones, um pouco surpresos com seus novos instrumentos de sopro.

Os objetos sonoros não convencionais foram os primei-ros instrumentos de Hermeto Pascoal no Olho D’água da Canoa, onde o músico nasceu – um local praticamen-

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te inabitado, cercado por todos os lados pela natureza. Lá, o garoto albino se divertia tocando em duo com os pássaros utilizando flautas feitas por ele mesmo com folhas de mamona, ou compunha suas primeiras peças percutindo um carrilhão artesanal de ferrinhos roubados do monturo (lixo) de seu avô ferreiro, apelidado Sena da Bolacha.6 As melodias da voz, os sons dos pássaros e de outros animais, assim como os sons inarmônicos de objetos musicais não convencionais, como o carrilhão de ferros, constituíram a “tríade” paradigmática experi-mental da música de Hermeto Pascoal. Dessa maneira, enquanto que o som das garrafas da peça Velório pa-recia estar relacionado às flautas artesanais e ao car-rilhão, as vozes imitando as rezas-de-defunto, por sua vez, estavam associadas às melodias da fala que hoje integram as músicas da aura.

Um esclarecimento terminológico. Na série harmônica, presente na maioria dos instrumentos melódicos e har-mônicos da orquestra, com exceção de alguns instrumen-tos de percussão, as frequências parciais mantém com a frequência fundamental uma distância “igual à mul-tiplicação desta [fundamental] por um número inteiro” (CAESAR7). Nos sons inarmônicos dos sinos, carrilhões, gongos e outros objetos metálicos, por sua vez, “as par-ciais estão em relação não-harmônica, isto é, em uma relação matematicamente não inteira com a frequência mais grave” (idem). O resultado psico-acústico é que o som inarmônico é percebido sem uma altura definida; há uma distorção na afinação. No que diz respeito aos sons produzidos pela voz, é interessante observar que as vogais têm parciais harmônicos, mas as consoantes têm carac-terísticas espectrais “muito mais complexas, porque apre-sentam pequenos aglomerados de ruído” (idem). Hermeto Pascoal revelou em entrevista comigo (1999) que os sons dos ferros percutidos serviram como modelo para que ele, quando criança, descobrisse acordes atonais e dissonan-tes na sanfona de oito-baixos, popularmente denominada pé de bode. Ilustrando a influência dos sons inarmônicos em sua Música Universal, a composição intitulada Cores (1982), por exemplo, apresenta acordes tocados por dois pianos, cujas notas correspondem aproximadamente aos parciais de uma placa de ferro percutida.

A transcrição destes parciais para os pianos foi possível graças à percepção ampliada de Hermeto Pascoal. Acima dos “acordes inarmônicos”, Hermeto Pascoal acrescentou o silvo agudo de uma cigarra, cantando, destemperada.8

Após a introdução atonal da música Velório, em segui-da, de maneira algo irônica, as vozes de Hermeto, Airto e Flora passam a entoar glissandi “fantasmagóricos” em “u” e “a” (01:22 – 01:42), sucedidos pelo solo estridente do safo (ou sapho), um instrumento de cordas, fabricado no Japão, o qual, segundo Hermeto Pascoal (citado por CABRAL, 2000), é uma “mistura de berim bau com máqui-na de escrever”. A ironia com que Hermeto e os músicos parecem emitir os glissandi merecem um comentário à parte, pois demonstram, a meu ver, a forma irreverente

através da qual o alagoano lida com a tradição, como a declaração a seguir esclarece:

Aqui [no Brasil] estão sendo feitas as coisas mais novas e mais importantes, enquanto lá fora todos estão esgotados. (...) Mas isso não quer dizer que eu vou sair brandindo as raízes ou fazendo afir-mação de nacionalismo musical. Folclore? O que é isso? Pra mim só existe música. Ela é universal e está acima de rótulos ou marcas. Eu nunca digo que sou um “músico brasileiro”, mas um brasileiro que faz música. Porque, como músico, sou universal. (PASCOAL, entrevista com Ezequiel Neves, 1975)

As tradições musicais regionais ou “folclóricas” não são, para Hermeto, algo a ser preservado visando à perpetu-ação de uma suposta “autenticidade” das “verdadeiras raízes” nacionais. Antes, o músico alagoano recorre à tra-dição para, a partir dela, exercer a experimentação. Em sua obra, muitas vezes a modernidade parece emergir das tradições populares, especialmente da música nordestina, e vice-versa, num continuum sem rupturas, como exem-plifica a peça Velório.

Sucedendo a seção inicial atonal ocorre a segunda seção, a mais longa da peça, na qual Hermeto Pascoal se alterna improvisando no safo (01:42 – 03:29), na flauta transver-sal em Dó (03:29 – 04:54), e no piano (04:54 – 05:42), utilizando os modos Dórico (safo e flauta) e Mixolídio (piano). A orquestra é introduzida na terceira seção, pri-meiro com os metais da big band, depois com as cordas e, em seguida, com o tutti, sempre tendo a “cozinha”9 ao fundo (05:43 – 07:32). Após o clímax orquestral, atonal, a peça chega a quarta e última seção, novamente no modo Dórico. O piano solo utiliza a textura bordão, como as cordas graves da viola de um repente nordestino (07:34), enquanto Hermeto Pascoal improvisa na flauta transver-sal baixo (08:00 – 08:32).

A sucessão de seções musicais contrastantes presentes nesta composição sugere uma rapsódia ou, ainda, uma su-íte, denominação que o próprio Hermeto adota para intitu-lar suas composições mais extensas, com várias partes ou seções. Talvez a forma suíte ocorra na música de Hermeto Pascoal porque o músico, quando garoto, tocava sanfona de oito baixos, pandeiro e triângulo em feiras, forrós, fes-tas e bailes em Lagoa da Canoa, em Palmeira dos Índios e em povoados próximos.10 Nestes bailes, as danças con-trastantes eram encadeadas livremente, de acordo com a vontade dos dançarinos. Quanto à forma livre denominada rapsódia, acredito que outra explicação faz-se necessária. O próprio Hermeto Pascoal parece fornecê-la: “Todas as minhas composições começam com uma ideia e terminam com mudanças de estilo. Por quê? Respondo eu: é porque a música é universal e o onipotente não tem fronteiras, nem preconceito algum.” (PASCOAL, 2000, p.294). As duas explicações, combinadas, permitem-nos formular a hipóte-se de que a construção musical desenvolvida por Hermeto Pascoal encadeia contrastes sucessivos para simular uma “dança” improvisada, através da qual o músico e “o onipo-tente” se aproximam gradativamente. De fato, muitas ve-zes a forma musical das composições de Hermeto Pascoal parece resultar deste ritual religioso.11

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As mudanças entre os trechos falados e tocados, escri-tos ou improvisados das seções atonais e modais da peça Velório ocorrem sem costuras apa rentes, com as seções se imbricando umas nas outras num fluxo ininterrupto. Este continuum interliga num gesto único: o som das 36 garrafas e as vozes “rezando no Velório” (primeira seção); os instrumentos solistas safo, a flauta transversal em Dó e o piano (segunda seção); os instrumentos convencio-nais da big band e da orquestra de cordas (terceira se-ção); e, finalmente, o piano e a flauta transversal baixo (quarta seção). Desta maneira, a atonalidade e o ruidismo foram sucedidos pelo modalismo nordestino e ambos fo-ram amalgamados com os timbres característicos do jazz norte-americano e da orquestra clássica europeia numa fusão prenunciada, sinestesicamente, pelo título de outra composição deste mesmo disco: Coa lhada.12

Explorando a faringe como a porção da anatomia hu-mana que, ao conectar o nariz e a boca à laringe e ao esôfago, inter-relaciona o cantar e o comer, é inte-ressante observar que, além de Coalhada, outros títu-los de músicas compostas por Hermeto Pascoal men-cionam ou fazem alusão a alimentos ou utensílios de cozinha, como, por exemplo, em ordem cronológica: O Ovo, (1967),Tacho e Geléia de Cereja (1977); Pimentei-ra (1979b); De bandeja e tudo, A Taça (1982); Ilza na feijoada, O tocador quer beber (1985); Quiabo (1987) e Vai um chimarrão (1999). Além destes títulos, nos ro-dapés das partituras do Calendário do Som (2000) Her-meto mencionou uma quantidade grande de alimentos: “carne, peixe, piabinha, bacalhau, camarão, vinho tinto, verduras, maxixe, mandioca, feijão, imbuzada, batata-doce, milho, quentão, banana, laranjas e puxa-puxa.”13

Os títulos e referências aos alimentos na obra de Herme-to Pascoal podem significar que em sua música ocorrem misturas de “substâncias” (isto é, gêneros e estilos musi-cais), que, após serem fundidas, sofrem transformações em sua “aparência” e “sabor” iniciais, tornando-se origi-nais, ao fim do pro cesso. Mais do que isso, os alimentos estão associados à “cozinha”, isto é, um termo utilizado na música popular para designar a formação instrumen-tal constituída pelo contrabaixo, pela bateria e a percus-são, instrumentos que, na música de Hermeto Pascoal, são alçados à condição de solistas, saindo da “cozinha” para assumir o local mais nobre da “casa”. À cozinha estão associadas as classes populares – que tradicionalmente arrumam a mesa e servem a comida para as classes favo-recidas economicamente –, contudo, através do “som-co-mida”, Hermeto Pascoal “vira a mesa” e reverte os papéis sociais convencionais, enquanto reafirma sua identidade cultural e valoriza sua condição de imigrante nordestino. Mais há ainda outras interpretações possíveis relacio-nando música e comida na obra de Hermeto Pascoal. Apesar deste nunca ter feito, ao que tudo indica, refe-rências a metáfora da antropofagia cultural (ANDRADE, 1976 [1928]), acredito que a antropofagia como concei-to etnomusicológico poderia ser utilizada na análise da Música Universal. O conceito se origina do canibalismo

religioso praticado pelos índios Tupinambá no século XVI. Na prática antropofágica, o canibal, ao comer ritualmen-te o inimigo, acredita absorver suas qualidades, “com a morte significando o nascimento de um outro ser no ca-nibal” (ULHÔA, 1997, p.92). Segundo Oswald de Andrade a antropofagia teve como seu marco inicial a morte do primeiro bispo católico do Brasil, Dom Pero Fernandes Sardinha, devorado ritualmente pelos índios Caetés, em 16 de julho de 1556, na costa do estado de Alagoas, o estado natal de Hermeto.

Neste sentido, será útil verificarmos a relação – pouco explorada academicamente, até então –, entre Hermeto Pascoal e os “nativos”, isto é, os índios alagoanos. O músi-co cresceu numa região ainda hoje habitada pelos índios Xucuru-Kariri, os quais perderam sua língua nativa e a maioria dos indicadores mais visíveis de sua condição in-dígena. Apesar dos revezes advindos da colonização bru-tal, os remanescentes dos Xucuru-Kariri estão tentando redescobrir e reinventar suas tradições e parecem estar presentes na Música Universal de Hermeto Pascoal – não está ele também, (re)inventando tradições? O alagoano compôs várias músicas que aludem à cultura indígena (Tupizando, Mata verde, Magimani Sagei, Dança da Sel-va na cidade grande) e nos shows de Hermeto & Grupo, nos quais estive presente no período 1985-1992, muitas vezes o compositor e os músicos da banda entravam em cena imitando gritos de índios. A imitação, um pouco irô-nica, sem dúvida, não era, entretanto, apenas uma piada. O próprio Hermeto (PASCOAL, entrevista com Mário Ad-net, 1998) definiu a si mesmo como um “índio diferente”, ao mencionar a sua infância, quando vivia em contato com a natureza e construía flautas artesanalmente. Ob-servo inclusive que, para Hermeto, a flauta parece ser um instrumento com caráter quase sagrado, de maneira semelhante às flautas utilizadas pelos Xucuru-Kariri em seus Toré rituais. Toré (também chamado tolê, torém) é um misto de dança, ritual, canto e música instrumental utilizando principalmente flautas, “gaitas” e outros ins-trumentos de sopro, além de instrumentos percussivos. Constitui uma espécie de língua franca dos índios do Nordeste, sendo utilizado como um meio de as etnias es-palhadas pelos estados da região afirmar sua identidade cultural. Através do Toré os índios festejam e acreditam contatar os encantados, seres espirituais, aos quais recor-rem para obter orientação, cura, proteção, etc.14

Um ritual semelhante ao Toré ocorre na composição de Hermeto Pascoal para flauta transversal solo, vozes e sons pré-gravados, intitulada Cannon (1977). Nesta mú-sica ocorre uma “sessão espírita”, na qual Hermeto invo-ca, através da flauta e da voz, o espírito do saxofonista de jazz, Cannonball Adderley, falecido em 1975 (ver o artigo excelente de BORÉM e FREIRE, neste número). Além de exemplificar como os planos material e espiritual estão interligados na obra do “índio” Hermeto Pascoal, Cannon demonstra que o compositor alagoano “incorpora” al-guns aspectos musicais do jazz norte-americano. Entre-tanto – utilizarei novamente a metáfora antropofágica

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–, o jazz é apenas um dos “temperos” de um “banquete universal” no qual o “prato principal” é definitivamente outro: a “panelada” misturada de sonoridades, formas, texturas, modos escalares, timbres, gêneros e estilos musicais, especialmente do Nordeste do Brasil. Obser-vo ainda que, na música Velório, Hermeto Pascoal utiliza instrumentos que não são norte-americanos, europeus – e nem brasileiros –, como o safo, por exemplo, de origem oriental.15 Por estar aberto a influências sonoras de todo o mundo e, simultaneamente, se recusar a negar as raí-zes brasileiras, Hermeto Pascoal define sua música como Universal. Essa identidade cultural parece constituir a sua verdadeira “cidadania”. Assim, acredito que a deno-minação Música Universal pode ser considerada como a expressão consciente de uma tendência antropofágica inconsciente, por parte do “índio” Hermeto Pascoal. Sua Música Universal exemplificaria como “a cultura nati-va, que aparentemente foi comida pelas [culturas] mais ‘complexas’, na realidade as incorporou em seu ritual de re novação” (ULHÔA, 1997, p.99).

No LP lançado em 1973 (PolyGram Brasil), intitulado A música livre de Hermeto Paschoal (sic)16 seu primeiro disco autoral lançado no Brasil, três das seis faixas são, originalmente, canções (Asa Branca, Carinhoso e Gaio da Ro seira), a partir das quais Hermeto Pascoal fez arran-jos instrumentais para orquestra. Escolhi como objeto de análise, entretanto, uma outra música deste mesmo dis-co, o baião instrumental, em Lá menor, intitulado Bebê, uma das composições mais famosas de Hermeto Pascoal. Esta peça foi composta no violão e teve como inspiração as primeiras tentativas de fala de seu filho caçula, Flá-vio, que “lalava”,17 repetida mente, duas notas separadas por um intervalo de semitom (Mi - Fá), justamente as duas primeiras notas da melodia de Bebê,, que integram o mo tivo que estruturará toda a peça. Desta maneira, a voz forneceu a matéria-prima para a composição de uma peça na qual a presença vocal está como que ocul-ta nos sons dos instrumentos. Bebê, é, por este moti-vo, uma canção sem palavras, assim como várias outras composições instrumentais de Hermeto Pascoal. Em seu processo criativo, o compositor alagoano geralmente escreve primeiro a melodia, solfejando-a mentalmente (muitas vezes sem o auxílio de instrumentos), enquanto utiliza o ouvido absoluto para imaginar a harmonia que a acompanharia.18 Assim, Hermeto Pascoal confere a suas peças uma qualidade cantabile, como se o próprio músi-co estivesse cantando através dos instrumentos. Compo-sições como, por exemplo, Montreux (1979a), São Jorge (1979b), Santa Catarina (1984), Mente Clara (1987), Rainha da Pedra Azul, O Farol que nos guia (1992), dentre outras, parecem exemplificar o cantabile característico do estilo de Hermeto Pascoal.

No LP lançado em 1977, nos EUA, (gravadora Warner), intitulado Slaves Mass (Missa dos Escravos), a voz é bas-tante utilizada, em nada menos que seis das sete faixas do disco: solando simultaneamente com o piano (Escu-ta meu piano); com teclados eletrônicos (no longo solo

de Hermeto Pascoal em Tacho); multifonicamente, com a flauta transversal (em Cannon – dedicado a Canonball Adderley); além de ser utilizada percussivamente (Aquela valsa e Geléia de Cereja).

Na música que empresta o título ao disco, Missa dos Es-cravos, Hermeto imaginou

um grupo de escravos que havia fugido de uma fazenda, e depois de dias correndo pela floresta, encontrou um outro grupo também fugido. Eles se reuniram e celebraram a liberdade com uma missa no mato, com os animais (SANTOS NETO, 2008).

Na parte central da composição as vozes masculinas can-tam, em ostinato vocal, a frase que cresce hipnoticamen-te: “Chama Zabelê pra poder te conhecer”. Zabelê, neste caso, “é uma espécie de inhambu ou ave silvestre, que canta um pio melodioso” (SANTOS NETO, 2008). Acom-panhada pelo batuque dos tambores da bateria e pelo naipe dissonante de flautas transversas a frase hipnótica parece simular um (en)canto indígena ou, ainda, um recto tono de uma missa medieval. Na parte final da música, há um solo vocal de Flora Purim no qual ela integra um trio inusitado com dois porcos cantando, isto é, grunhindo. Missa dos Escravos é a primeira composição gravada de Hermeto Pascoal na qual o músico utiliza sons de ani-mais, procedimento que, mais tarde, seria uma de suas marcas registradas e que lhe renderia fama, enquanto que, por outro lado, o tornaria alvo de críticas por parte de músicos eruditos e populares puristas. Como mostrarei na segunda parte deste artigo, a ecologia e os sons dos animais desempenham um papel importantíssimo na vida e na obra de Hermeto Pascoal e não são fruto da “ex-centricidade” do compositor ou um artifício de marketing pessoal visando à autopromoção – como parecem sugerir alguns de seus críticos –, ainda que possam, em alguma medida, tê-lo auxiliado na construção da imagem pública de experimentador autodidata.

Continuando a análise da música Missa dos Escravos, o solo vocal não-convencional improvisado por Flora Purim utiliza choros e gargalhadas aleatórias ao invés de notas, es calas e ritmos previamente definidos. Os sons vocais incomuns produzidos por Flora se revestem de certa te-atralidade e parecem remeter à personagem conhecida na Umbanda como Pomba-gira, entidade geralmente as-sociada à ma gia e à sexualidade. Hermeto Pascoal con-tou-me em entrevista (1999) que, no início da década de 1970, quando esteve nos EUA com o casal Airto Moreira e Flora Purim, a cantora pediu seu conselho a respeito do repertório constituído de canções da bossa-nova e stan-dards do jazz com o qual pretendia se lançar no mer-cado norte-americano. O compositor alagoano disse-me que desaconselhou Flora a trabalhar com tal repertório, pois este seria demasiadamente convencional e já bem conhecido pelos “gringos”. Em alternativa, Hermeto Pas-coal sugeriu à cantora que fizesse algo diferente, como, por exemplo, que utilizasse a voz à maneira de um ins-trumento e/ou que empregasse recursos e sonoridades vocais não convencionais (“grite, mie, faça os sons mais

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malucos”19), combinando-os às músicas regionais, indí-genas e afro-bra sileiras, características estas que, mais tarde, se tornariam de fato a marca registrada do es tilo vocal popular-experimental de Flora Purim.

Uma parceria, ou melhor, uma jam session improvisada entre Hermeto Pascoal e outra grande cantora, não po-deria passar aqui despercebida. Refiro-me ao encontro breve, mas antológico, de Her meto Pascoal com Elis Re-gina na noite brasileira do Festival Internacional de Jazz em Montreux, na Suíça, em 1979, quando Hermeto e Elis interpretaram as músicas Garota de Ipanema (Anto-nio Carlos Jobim/Vinicius de Moraes), Corcovado (Anto-nio Car los Jobim) e Asa Branca (Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira). Segundo SANTOS NETO (2008) Hermeto Pas-coal & Grupo20 foram convidados a participar do Festival de Montreux após o diretor do Festival, Claude Nobs, tê-los assistido no Festival de Jazz de São Paulo, em 1978. Devido a grande procura por entradas, foram pro-gramadas duas apresentações em Montreux, a primei-ra, à tarde e, a outra, à noite. Claude Nobs queria que Hermeto & Grupo tivessem uma noite inteira somente para eles, contudo, como Hermeto era contratado pela gravadora Warner, a gravadora assumiu a produção do show e escalou, em cima da hora, a cantora Elis Regina para abrir os shows do alagoano.

A apresentação noturna de Hermeto Pascoal & Grupo durou mais de quatro horas e provocou “uma comoção enorme, apoteótica” (MIDANI, 2008, p.184). Segundo SANTOS NETO (2008), então pianista do grupo de Herme-to, mesmo após o 3º. bis o público estava eufórico e não parava de aplaudir, em pé, os músicos. O produtor exe-cutivo André Midani (da gravadora Warner) aproveitou para “empurrar” Hermeto de volta ao palco, junto com Elis. Surpreendidos, ambos tiveram que estabelecer quais canções seriam interpretadas, bem como definir, ao vivo, as tonalidades de cada uma delas. Contudo, apesar do desafio imprevisto, o que se viu a seguir foi, a meu ver, um encontro memorável. Os dois músicos acompanharam-se mutuamente combinando melodias afinadíssimas e re-harmonizações dissonantes, além de mudanças inesperadas de compasso, ritmo e andamen-to, recriando as três canções no calor da improvisação.

É interessante observar que o relato de André Midani so-bre o dueto de Elis e Hermeto é bem diferente do de Jovi-no Santos Neto. Midani parece tentar favorecer a cantora ao afirmar que a jam session com Hermeto teria ocorrido após o show de Elis, que, ainda segundo o produtor, te-ria sido um grande sucesso, “com onze pedidos de bis!” (MIDANI, 2008, p.185). A gravação em vídeo feita du-rante o Festival, entretanto, parece desmentir o relato do mega-executivo da Warner demonstrando exatamente o contrário, i.e., que a jam session entre a cantora e o ala-goano ocorreu após os bis do show de Hermeto & Grupo (e não o contrário) e, além disso, que o show de Elis não foi o sucesso esperado. Por achar que não tinha cantado bem, a própria Elis exigiu que Midani jurasse que nunca

lançaria o show em disco. A promessa foi descumprida pelo produtor logo após a morte inesperada da cantora, em 1982 (MIDANI, 2008, p.187-188).21

Controvérsias à parte, o dueto bem sucedido com Elis Regina demonstrou como Hermeto Pascoal aprendera algumas lições importantes com as cantoras e os can-tores durante sua carreira como intérprete contratado, antes de lançar-se como compositor. De fato, nos gru-pos regionais das rádios de Recife (1950), Caruaru (1952) e Rio de Janeiro (1958) e nos conjuntos de baile das bo-ates de São Paulo (1961-1967), onde Hermeto Pascoal tocou piano, flauta, contrabaixo (!) – ou qualquer outro instrumento que lhe rendesse eventualmente um cachê –, os instrumentistas eram solicitados pelos(as) vocalistas a transpor, ao vivo, as tonalidades das canções, bem como a “tocar de ouvido” novas canções, além de fazer arran-jos rapidamente. Confirmando a importância do aprendi-zado nas escolas práticas dos regionais das rádios e dos conjuntos de baile das boates noturnas, Hermeto Pasco-al afirma que: “para solar bem, antes é necessário saber acompanhar” (Itiberê Zwarg citado por PRADO, 2008).

Dentre as músicas do disco gravado por Hermeto Pas-coal & Grupo no Festival de Jazz de Montreux (1979a, WEA), escolhi como objeto de análise a peça intitulada Que brando tudo!, que, na verdade, é a segunda parte de um solo com mais de 10 minutos de duração criado im-provisadamente pelo virtuose.22 Segundo SANTOS NETO (2008), este solo surgiu no meio de uma outra compo-sição, intitulada Suíte Paulistana (1979b). O compositor, que estava na coxia escutando o Grupo executar sua música, irrompeu repentinamente no palco e começou a improvisar o solo de Que brando tudo!, acompanhado so-mente pelo contrabaixista Itiberê Zwarg e pelo baterista Nenê, enquanto que os demais músicos do Grupo perma-neciam no palco porque não sabiam se a Suíte Paulistana, interrompida no meio, seria retomada. Não foi.

Inicialmente escutamos o acompanhamento executado por Itiberê Zwarg, combinado à levada suave da bate-ria de Nenê, em ritmo de baião e andamento modera-do. Enquanto Itiberê e Nenê tocam ao fundo, Hermeto Pascoal inicia o solo, ao mesmo tempo em que ajusta os teclados – explorando a regulagem do vibrato do clavi-nete –, e assovia no microfone, testando o equipamento (05:17). A escolha da escala utilizada por Hermeto Pas-coal recaiu inicialmente no modo Mixolídio, mas este seria rapidamente abandonado e, com o abaixamento do 3º grau, o modo utilizado tornou-se Dórico, no qual a música permaneceu até o final.

Passada a fase de teste dos teclados e do microfone e já definida a gama escalar principal, Hermeto Pascoal, come-çou então a fazer efeitos de eco, tocando notas cromáticas descendentes no clavinete, em contratempos e síncopes, respondidas, em uníssono, pela sua própria voz, utilizando vogais isoladas e a sílaba “tá” (05:30) numa estranha mis-tura de embolada, coco e scat singing.

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A seguir, farei alguns comentários explicativos ou di-gressões com o objetivo de contextualizar minha aná-lise, antes de voltar ao solo improvisado de Que brando tudo! Scat singing é um tipo de improvisação vocal do jazz, que emprega vogais e sílabas nonsense (“da”, “ba”, “du”, “dé”, “bu”, etc.) e possibilita aos cantores e cantoras inventarem ritmos e melodias utilizando a voz à maneira de um instrumento de sopro. O scat singing foi inventado casualmente pelo trompetista e cantor Louis Armstrong, quando, durante uma sessão de estúdio, a partitura com a letra da canção interpretada por Armstrong caiu no chão e o trompetista teve que seguir cantando improvi-sadamente. Depois, o scat foi utilizado no bebop, estilo moderno de jazz que, misturado ao samba, aos ritmos afro-cubanos e às harmonias da bossa-nova, era toca-do por Hermeto Pascoal no Som Quatro e no Sambrasa Trio (1966), antes que o músico ingressasse no Quarte-to Novo (1967). Este grupo pioneiro, por sua vez, ten-tou eliminar as tendências do fraseado cromático rápido do bebop ao basear suas improvisações exclusivamente nas escalas modais e nos ritmos nordestinos. O alagoano Hermeto Pascoal sentia-se à vontade no Quarteto Novo, mas, ao mesmo tempo, era policiado pelo nacionalismo musical xenófobo que norteava as ideias de Geraldo Van-dré, cantor a quem o grupo acompanhava, um pouco a contragosto. Observo que, curiosamente, o “nacionalista” Vandré conhecia a música nordestina muito menos que o “jazzista” Hermeto. Na realidade, como o alagoano me contou em entrevista (1998), algumas canções de Vandré, como, por exemplo, Pra não dizer que não falei das flo-res, pareciam mais influenciadas pela guarânia paraguaia (compasso ternário ou binário composto, tom menor) do que pela música popular brasileira. Assim, após a disso-lução do Quarteto Novo, em 1969, o compositor alagoa-no viajou com Airto Moreira e Flora Purim aos EUA para lançar-se em carreira solo e misturar, livremente, todas as influências musicais e sonoridades que lhe viessem à cabeça. Nos EUA, na década de 1970, o free jazz23 e a música experimental erudita estavam no auge e o espaço era propício para que Hermeto Pascoal ousasse, além das fronteiras estéticas do Brasil e dos EUA.

Como expus em trabalho anterior (COSTA-LIMA NETO, 1999, p.28; 46-47; 50; 54), muito antes de ter tido conta-to com o free jazz norte-americano ou com a música eru-dita experimental Hermeto Pascoal já tinha desenvolvido, autodidaticamente, uma concepção experimental inova-dora, a partir do modelo fornecido pelas melodias da fala, do som dos animais e dos objetos sonoros inarmônicos de sua infância no Nordeste. Por isso, paradoxalmente, a liberdade estética que Hermeto encontrou na década de 1970, nos EUA, representou para ele a possibilidade de se reencontrar com as suas próprias raízes (experimentais) nordestinas – e expandi-las.

De fato, a paisagem sonora polifônica das rezas-de-defunto do Nordeste brasileiro e os timbres exóticos e a atonalidade da orquestra de garrafas tocadas na peça Velório (1972) apresentavam semelhanças surpreenden-

tes com o aleatorismo e o ruidismo praticados no jazz de vanguarda e na música erudita experimental norte-americana, enquanto que a embolada e o coco nordes-tinos presentes, de maneira modificada, em Quebrando Tudo!, partilhavam, por sua vez, algumas características em comum com o scat singing do jazz tradicional e com o bebop. Estas características incluíam, por exemplo, a utilização puramente sonora da voz sem a preocupação com o sentido gramatical, além da ironia e da comici-dade presentes tanto nos vocais de Louis Armstrong ou de Ella Fitzgerald, a mestra do scat, como nos mala-barismos vocais de Jackson do Pandeiro, o mestre dos cocos.24 A meu ver, o coco, o scat, o jazz, a embolada, o bebop e o baião cantados ou tocados pelos artistas do Brasil e dos EUA demonstravam como a diáspora africa-na nas Américas produzira uma arte popular de altíssi-ma qualidade, cuja importância musical ultrapassa(va) as fronteiras raciais, geopolíticas e os nacionalismos tacanhos. Hermeto Pascoal percebeu isso.

A capacidade do alagoano se expressar utilizando um idioma musical brasileiro, mas compreensível internacionalmente, parece ter possibilitado sua comunicação com o famoso jazzista Miles Davis – já que ambos falavam línguas mu-tuamente ininteligíveis. Suponho que esta característica, por assim dizer, “poliglota”, da Música Universal de Hermeto tenha influenciando o trompetista norte-americano a convi-dar o brasileiro para ingressar em sua banda fusion e partici-par, como compositor e intérprete, no disco Live-Evil (1972, Sony). Observo, contudo, que as duas peças compostas, can-tadas e assobiadas por Hermeto Pascoal (Little Church, Nem um talvez) nada tinham a ver com a fusão eletrificada de jazz, blues, rock e funk do disco de Miles.

A primeira composição, intitulada Little Church (ou Igre-jinha), é uma canção tonal modulante e lenta, harmoni-zada dissonantemente. A música parece estar relacionada à infância do músico brasileiro em Lagoa da Canoa. Se-gundo informação de Villaça (2006, p.9), após terem se mudado do Olho D’água da Canoa para a cidade de Lagoa da Canoa, o garoto e seus parentes moraram próximos à igreja, na mesma casa onde Pascoal José da Costa, pai de Hermeto, tinha uma mercearia pequena (visitada eventu-almente por índios Xucuru-Kariri, em busca de alimento). Todo o dia, às seis da tarde, a família Pascoal ouvia o tocar do sino, anunciando a hora de rezar a ave-maria. A partir desta informação de Villaça, por mim confirmada junto aos parentes de Hermeto Pascoal em Lagoa da Canoa, é possível supor que Igrejinha fosse uma reminiscência de hinos religiosos cantados pelos fiéis na igreja próxima à casa dos Pascoal ou, ainda, que estivesse relacionada, de maneira mais ampla, à paisagem sonora guardada na lembrança de Hermeto. Evidentemente, estou aqui ape-nas arriscando uma hipótese, mas parece confirmá-la o fato de a melodia de Igrejinha ser tonal, como muitos hi-nos católicos. A intensidade suave da canção, por sua vez, é semelhante ao volume sonoro (fraco) com que os fiéis fazem suas orações na igreja. Além disso, o timbre da melodia de Igrejinha é resultado do assobio de Hermeto,

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produzindo uma sonoridade semelhante ao silvo agudo de uma cigarra, inseto que parece gostar de “cantar” ao cair da tarde – no mesmo horário da ave-maria.

Seja como for, as duas canções do alagoano asseme-lhavam-se, no contexto jazzístico norte-americano, às baladas cool, de uma fase anterior da carreira de Miles Davis. Talvez essas semelhanças musicais tenham contri-buído para que o trompetista negro se identificasse com o “crazy albino”, como ele chamava Hermeto. O fato é que Miles Davis intitulou a primeira faixa do Lado B de Live-Evil como Selim – o nome de Miles, lido ao contrário. Selim, contudo, não havia sido composta por Miles Davis. Tratava-se, na verdade, da canção Nem um talvez, de au-toria de Hermeto Pascoal...

Volto à análise de Quebrando Tudo!. O improviso vocal começou a “esquentar” quando Hermeto Pas coal passou a intercalar duas notas do teclado em uníssono com a voz, utili zando, percussivamente, as sílabas “dá”, “bá” e “pá”, seguidas de “ru” e “ri” (05:50). O jogo vocal incluiu, en-tão, risos e gargalhadas (06:11), acompanhados de notas e clusters tocados com a mão direita na região aguda do clavinete. Na se quência, Hermeto Pascoal alterna os dedos polegar e indicador da mão direita para articular rapida-mente uma nota pedal no clavinete – a fundamental do modo –, enquanto a voz percorre, descendentemente, os semitons da escala cromática (06:24). A seguir, como uma citação do coco famoso de Jackson do Pandeiro, Sebastia-na, ouvimos as vogais do alfabeto, entoadas inicialmente fora de ordem: “ó”, “i”, “u”, “a”, “o”, “é” (06:40). O autodi-data Hermeto Pascoal parece se dar conta da “bagunça” e ar ruma a ordem das vogais, cantando-as em intervalos de terça com as notas do te clado, incluindo, ainda, as letras “ipssilone” (ípsilon) e “z” (07:00). Prosseguindo, o músico abandona as vogais e retorna às sílabas iniciadas com con-soantes explosivas – “dá”, “bá” e “pá” –, enquanto subdi-vide o ritmo, utilizando figuras de duração cada vez mais curta. Itiberê e Nenê, por sua vez, respondem ao tensio-namento rítmico do solo de Hermeto e aumentam o volu-me do baixo e da bateria (07:20). O andamento acelera e, num crescendo progressivo, o solo passa a incluir arpejos, escalas rapidíssimas e frases em quartas paralelas, além de tapas percussivos no teclado (07:56) – desferidos com certa violência –, até Hermeto Pascoal solicitar, com um sinal com a mão esquerda, que os mú sicos Itiberê e Nenê o deixassem improvisando sozinho (08:10).

Após o breque do baixo e da bateria, Hermeto Pascoal continua seu improviso, agora tocando e cantando solo, como numa cadenza experimental de um concerto pop, mas não demora a chamar os músicos de volta, dizendo ao microfone: “sim, não, olha, vem, porque eu vou que-brar, não tenha medo!” (08:40). Nenê e Itiberê respondem ao chamado e voltam a tocar, ainda mais rápido e for-te que antes. O público aplaude, eletrizado. Os músicos chegam então ao clímax, caótico e free, com Hermeto Pascoal fazendo glissandi em clusters ao deslizar as duas mãos no teclado, eventualmente gritando ou dando mais

gargalhadas (09:40), em transe aparente, acompanhado por Itiberê e pelos rulos frenéticos da bateria de Nenê, até explodirem, juntos, no cluster final. Quebrando tudo! terminou com os aplausos, gritos e assovios da plateia e com os três músicos ensopados de suor.

O baião-jazz-experimental Quebrando Tudo! é, a meu ver, uma metáfora antropofágica da desterritorialização pro-movida pela Música Universal de Hermeto Pascoal. É seu “grito de guerra” contra aqueles que querem nacionalizá-lo ou, ao contrário, internacionalizá-lo, impondo fronteiras arbitrárias ao seu som brasileiro-universal.

As composições de Hermeto Pascoal estão relacionadas à história pessoal do músico e para analisá-las satisfa-toriamente não basta descrever os sons que delas fazem parte. A pesquisa de campo por mim desenvolvida em La-goa da Canoa, no Olho D’água da Canoa e cercanias, em novembro de 2008, ampliará a análise etnomusicológica desenvolvida neste artigo.

3 - os instrumentos da voz

Para mim, compor é algo muito fácil. Minha cabeça é uma fonte, uma nascente. E uma nascente quer que alguém venha buscar a água, que vai sendo substituída. Eu tenho sempre que compor por-que minha cabeça se enche de ideias. (Pascoal IN ZAGO)

Lagoa da Canoa é uma cidade pequena, com cerca de 20.000 habitantes (IBGE, 2004), próxima a Arapiraca, centro comercial do Agreste e segunda maior cidade do estado de Alagoas, suplantada apenas pela capital, Ma-ceió. A aproximadamente 150 km. de Maceió e a ape-nas 20 minutos de carro a partir de Arapiraca, Lagoa da Canoa está situada no limite que separa, de um lado, a zona litorânea, de clima ameno e, de outro, a entrada do quentíssimo sertão alagoano, onde a atividade eco-nômica principal é a agricultura de subsistência, voltada principalmente para o plantio da mandioca, feijão, arroz e mi lho. A região de Arapiraca foi, durante muito tempo, dominada pela cultura do tabaco, o que fez a cidade os-tentar o título de Capital Brasileira do Fumo. Contudo, depois de sucessivas campanhas do Ministério da Saúde, o plantio do tabaco vem sendo substituído gradativa-mente pela monocultura da cana-de-açúcar, estampando a cor verde desta planta nos dois lados da estrada que liga Maceió a Arapiraca.

A força dos coronéis, dos grandes latifúndios e dos enge-nhos dos tempos coloniais ainda se faz sentir no estado de Alagoas, ecoando um passado nem tão distante de re-voltas e insubmissões populares de escravos, cangaceiros e peregrinos. No meio caminho entre o sertão e o litoral, Lagoa da Canoa parece ser habitada não apenas pelos moradores da cidade, mas também por personagens do imaginário popular do Nordeste, como Zumbi dos Palma-res, Lampião, Santo Antônio e Antônio Conselheiro.

A casa onde Hermeto Pascoal nasceu e viveu com seus pais e irmãos até, aproximadamente, os dez anos de idade

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(1946), antes de a família se mudar para a residência pró-xima à igrejinha na praça central de Lagoa da Canoa, era um pouco afastada desta cidade. Por estar próxima a uma nascente de água natural, o local recebeu a denominação de Olho D’água da Canoa. Da nascente jorrava a água de que os moradores de Lagoa da Canoa dependiam para so-breviver. Assim, diariamente, os vizinhos da família Pascoal iam ao Olho D’água, de carroça, a cavalo, nos jegues, ou mesmo a pé, voltando com seus tonéis, jarros, vasilhames, panelas ou botijas cheios com o líquido precioso.

Curiosamente, todos os parentes de Hermeto Pascoal que tive a oportunidade de conhecer e entrevistar em Lagoa da Canoa, no Olho D’água da Canoa ou em vilas pequenas e municípios próximos, como, por exemplo, em Girau do Ponciano, parecem possuir uma veia artística forte. Uns divertem-se rimando enquanto falam, outros cantam ou tocam instrumentos percussivos, dançam festivamente, enquanto outros, ainda, improvisam versos e melodias utilizando o coco e a embolada. A música está presente no cotidiano da família Pascoal como um todo. Ela faz parte de seu dia-a-dia e parece ser uma atividade quase tão natural quanto beber água.

No alto de um morro próximo ao local onde ficava a casa dos pais de Hermeto Pascoal no Olho D’água da Canoa, há um Cruzeiro, em direção ao qual as procissões se-guiam nos Dias Santos. Os laços de solidariedade e de reciprocidade presentes nos núcleos familiares de peque-nos agricultores e comerciantes de Lagoa da Canoa, bem como a paisagem sonora vocal das procissões ao Cruzeiro estão bem ilustrados na música Santo Antônio, gravada no LP Zabumbê-bum-á (1979b). Esta composição sinaliza a presença do que denominarei neste trabalho de ética musical comunitária, presente tanto na personalidade como na obra de Hermeto Pascoal e sobre a qual me de-terei mais à frente.

Cito, abaixo, dois trechos da “narração polifônica” ocor-rida nesta composição (00:55 – 01:21; 03:31 – 04:00):

- É esmola pros festejos de Santo Antônio, quero feijão, farinha, arroz, ovos, pinto, macaxeira, batata-doce, gerimum, tudo serve. - Ó de casa, ó de casa, vem dá uma esmolinha pra Santo Antônio, pra Santo Antônio ajudar você. - Pra fazer um leilão no dia 13 de junho. - É esmola pra Santo Antônio casamenteiro. - Com todo prazer e alegria, com a ajuda de nós todos, pra Santo Antônio nos dar sorte, saúde e felicidades. [Canta] Glorioso Santo Antônio com seu menino nos braços, fa zei com que Ele nos [in-compreensível] com seu amor.

(Vozes de Zabelê, Pernambuco e de Dona Vergelina Eulália de Oli-veira, mãe de Hermeto Pascoal).

No início da gravação, Dona Vergelina Eulália de Olivei-ra é entrevistada pelo filho, Hermeto Pascoal, investido na função temporária de “etnógrafo”, e podemos ouví-la descrevendo os preparativos e a procissão do dia de San-to Antônio, padroeiro dos pobres e santo “casamenteiro” (00:00 – 00:49). Na continuação – como num flash back da entrevista que Dona Vergelina acabara de conceder

–, escutamos sua voz falada, além das vozes de Zabelê e Pernambuco, simulando os fiéis pedindo, de casa em casa, alimentos e outros donativos (00:50 – 01:21). A banda principia a tocar na parte central, um baião modal em compasso binário e andamento animado (ut. 100). A me-lodia sincopada e modal (modos Eólio, Mixolídio com 11a. aumentada, Dórico e Lídio) é executada em terças por duas flautas transversas, acompanhadas pelo piano, con-trabaixo, bateria e percussão (01:22 – 03:11), e é entre-meada por frases esporádicas ditas pelos “fiéis” pedintes. Na parte final, os instrumentos saem, restando somente as duas flautas em uníssono, tocando uma melodia nova, em Fá Lídio. As vozes da mãe de Hermeto, de Zabelê e de Pernambuco retornam, gradativamente (03:12 – 04:07). Ao mesmo tempo, noutro canal de gravação, ouvimos Dona Vergelina cantando uma melodia modal, com di-visão rítmica composta, em Ré Dórico: “Glorioso Santo Antônio, com seu menino nos braços...” (03:28). Instru-mentos metálicos de percussão completam a textura po-lifônica, polimodal e polimétrica.

A sobreposição das vozes faladas por Dona Vergelina, Zabelê e Pernambuco produz uma textura semelhan-te àquela do primeiro exemplo analisado neste artigo, a composição Velório (1972), na qual Hermeto Pascoal, Airto Moreira e Flora Purim simulavam rezas-de-defunto. A polifonia de vozes faladas, nas duas músicas, não é, contudo, apenas um procedimento composicional in-teressante ou, ainda, um exemplo inusitado de como a percepção ampliada de Hermeto sobrepõe sonoridades contrastantes. Mais do que isso, ela revela que “no ima-ginário social há um leque de representações a partir do desdobramento de um mesmo símbolo” (Silva citado por SÁ, 2000). Esta duplicidade ou multiplicidade polifônica de representações a partir do mesmo símbolo, religioso, em ambas as músicas, pode significar que um mesmo ob-jeto ou pessoa se apresenta de maneira complexa, para-doxal ou mesmo, contraditória.

Acredito que este é o caso de Virgulino Ferreira da Sil-va (1897 – 1938), alcunhado Lampião, “Rei do Cangaço”, presença viva no imaginário da família Pascoal, dos mo-radores de Lagoa da Canoa e dos alagoanos e nordestinos em geral. Mas, talvez o leitor esteja se perguntando, qual a relação que poderia ser estabelecida entre personagens aparentemente tão contrastantes como Santo Antônio e Lampião e o que ambos teriam a ver com Hermeto Pasco-al? O nome do cangaceiro surgiu nas entrevistas por mim realizadas com os parentes de Hermeto Pascoal no Olho D’água da Canoa, próximo ao Cruzeiro para onde se diri-giam procissões como a descrita na música Santo Antô-nio. Além disso, o próprio Hermeto Pascoal relatou25 que, certa feita, sua mãe teria se escondido na mata próxima ao Olho D’água da Canoa, junto com ele e seus outros irmãos pequenos, durante três dias consecutivos, com medo de que Ma ria Bonita quisesse sequestrá-los. Assim, ao local onde o músico havia passado os primeiros dez anos de sua vida estavam associados, polifonicamente, a figura de um santo e a de um cangaceiro.

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O Cangaço sempre evocou representações sociais díspa-res. Lampião (no Nordeste, a palavra “lampião” se refere a uma lanterna ou candeeiro) foi assim alcunhado devido “a luz que emanava de sua arma quando ele atirava” ou, de acordo com outras fontes, por causa do “brilho irra-diado por sua pessoa” (GRUNSPAN-JASMIN, 2006, p.90). Era devoto fervoroso de Padre Cícero e tido como um herói miraculoso, supostamente dotado de poderes so-brenaturais de “clarividência e do dom da invisibilidade” (idem, p.227-243). Por dividir com os pobres o produto de seus roubos Lampião era considerado por uns como um bandido social, mas, ao mesmo tempo, seus crimes e crueldades frequentes o tornavam, aos olhos de outros, um justiceiro cruel temido principalmente pelos comer-ciantes, pelos coronéis, latifundiários e pela polícia.

O “banditismo social” é um conceito formulado pelo his-toriador Eric J. Hobsbawn (1969), referindo-se a uma for-ma de re sistência pré-capitalista praticada nas sociedades rurais. Os bandidos sociais eram camponeses fora-da-lei vistos por seus patrões e pelo Estado como criminosos, mas que, sob a ótica da sociedade camponesa, eram con-siderados heróis ou ícones da resistência popular. O herói mítico inglês, Robin Hood, seria um exemplo de bandi-do social. Posteriormente, outros estudiosos ampliaram o conceito de Hobsbawn, afirmando que o “banditismo social” também era praticado em outros contextos, como no alto mar, pelos piratas ou, ainda, no sertão (a palavra significa “deserto grande” ou “desertão”) brasileiro, pelos cangaceiros.

“O mar vai virar sertão e o sertão vai virar mar”, reza a profecia apocalíptica atribuída a Padre Cícero, tauma-turgo e santo popular de Juazeiro, no Ceará. A profecia parecia antever significados inusitados que o conceito de “banditismo social” adquiriria na contemporaneida-de, como exemplifica a declaração polêmica de Hermeto Pascoal, a seguir:

[As grandes gravadoras] é que estão me pirateando, prendem o meu trabalho lá somente para exibirem meu nome no selo e não pagam meus direitos autorais corretamente. A música depois de gravada pertence ao mundo, não tem essa de gravadora. Por isso podem colocar minha obra na internet. Quero ser pirateado! (PAS-COAL, entrevista com Garcia, p.28).

Lampião, Maria Bonita e seu bando de cangaceiros em suas andanças errantes percorreram o sertão dos estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte, Bahia e Sergipe. Não se sabe ao certo se o caminho trilhado pelo bando de Lampião teria cruzado com o Olho D’água da Canoa. Contudo, quando estive em frente ao local onde, um dia, estivera localizada a casa dos pais de Hermeto, a sobrinha do músico contou-me uma sugesti-va narrativa mítica sobre supostos tesouros roubados que Lampião teria escondido em buracos cavados na terra. Acredita-se popularmente que a pessoa que encontrasse estes tesouros, ao retirá-los da terra, não deveria, em hi-pótese alguma, olhar para trás, pois o tesouro desapare-ceria instantaneamente, como que por encanto.

Confirmando a multiplicidade polifônica de representa-ções sociais relacionadas a Lampião, a narrativa mítica acima mencionada o aproxima de Santo Antônio, pois o último, além de padroeiro dos pobres e santo “casamen-teiro”, também é invocado popularmente para se achar objetos perdidos. Neste sentido, Ro berto DaMatta faz uma aproximação interessante entre, de um lado, os ban-didos sociais e cangaceiros e, de outro lado, os peregrinos, pois “ambos teriam sido capazes de produzir uma outra realidade, ou seja, um projeto alternativo de um mundo novo”. Assim, “tanto o peregrino quanto os bandidos so-ciais rezam e caminham em busca da terra da promissão, onde os homens e mulheres finalmente encontrarão um lugar para realizar seus sonhos de justiça social” (DaMat-ta citado por SÁ, 2008).

Estes “sonhos de justiça social” daqueles que erram “em busca da terra da promissão” integram o que antes deno-minei de ética musical comunitária, presente na persona-lidade e na Música Universal de Hermeto Pascoal. O termo ‘ética’ deriva do grego ethos (caráter, modo de ser de uma pessoa). Compreende um conjunto de valores e princípios que norteiam a conduta humana e o bem comum.26 “Co-munidade”, por sua vez, diz respeito aos núcleos popula-cionais organizados a partir de laços de parentesco, vizi-nhança ou classe social, nos quais “a orientação da ação social (...) baseia-se em um sentido de solidariedade: o resultado de ligações emocionais ou tradicionais dos par-ticipantes” (Weber 1987, p.77). Na modernidade, o con-ceito sofreu modificações passando a incluir as redes de comunidades virtuais da internet, formadas por indivíduos de cidades, regiões, países e classes sociais distintas.27 As referências constantes aos alimentos na música de Her-meto Pascoal – por exemplo, nos títulos das composições, bem como na narração polifônica da música Santo An-tônio –, demonstram como, para o compositor alagoano, os sons e as músicas são semelhantes aos alimentos e a água da nascente próxima à casa de seus pais, no Olho D’água da Canoa. Devem ser socializados e repartidos, da mesma maneira que os donativos solicitados pelos fiéis na procissão descrita na narração da música Santo Antônio. Sons e alimentos integram, assim, uma mesma “natureza encantada e abundante, de fartura hiperbólica” (Travassos citada por COSTA-LIMA NETO, 1999, p.43), expressa, na música citada, pela variedade exuberante de escalas mo-dais. Neste sentido, o conflito permanente entre Hermeto Pascoal e a indústria fonográfica parece ocorrer porque as políticas opressivas e os altos padrões de lucro impos-tos na América Latina pelas cinco maiores gravadoras do mundo, Warner, BMG, Sony, Universal, EMI, são diame-tralmente contrários à ética musical comunitária e aos “sonhos de justiça social” nutridos por Hermeto Pascoal. Neste sentido, BISHOP (2004, p.2, 7) afirma que:

Na América Latina, onde a música ocupa um papel tão definido de expressão cultural, comprar um CD ao preço sugerido pelas grava-doras é simplesmente impossível para a maioria (...). Nas sociedades de “baixa-renda” pelo mundo, os piratas de CD não são vistos como bandidos (...). Em muitos casos são como Robin Hood, libertando a música dos sequestradores econômicos e devolvendo-a ao povo.

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Hermeto Pascoal parece, de fato, estar relacionado a cer-tas figuras do imaginário popular do Nordeste. A inter-relação entre o músico e os peregrinos, por sua vez, é sugerida pela música Monte Santo, gravada no LP Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca (1984), o mesmo disco no qual Hermeto gravou, pela primeira vez, as melodias da fala que o acompanhavam desde a sua infância, como mencionei na introdução.

Segundo SANTOS NETO (2008) o processo de criação de Monte Santo ocorreu em duas etapas. A peça, cujo título inicial era Nave-Mãe, seria incluída no LP lançado em 1982, intitulado Hermeto Pascoal & Grupo28 e consistia, originalmente, apenas de acordes tocados por Herme-to Pascoal no harmônio, além do solo improvisado na sanfona, cujo som foi processado através de efeitos ele-trônicos (harmonizer). Entretanto, Nave-Mãe terminou por ser deixada de fora do LP mencionado. Em 1984, Hermeto Pascoal e os músicos do grupo conheceram ca-sualmente o poeta baiano João Bá, que declamou o seu poema Monte Santo sobre a gravação feita dois anos antes e, por isso, o título inicial da composição foi alte-rado. Desta maneira, a voz acompanhou a música, e não o contrário, como uma primeira audição desta composi-ção poderia sugerir.

Incluo, a seguir, um trecho da narração do poema, a guisa de ilustração (02:11 – 03:54):

Do céu desceu uma luz, que Jesus Cristo mandou. Santo Antônio Aparecido, dos castigos nos livrou. Quem ouvir e não aprender, quem souber e não ensinar, lá no dia de Juízo, sua alma penará. Penitentes e contritos, na sagrada procissão, na bandeira de Pila-tos, anunciar, anunciar Ressurreição. (...) Era Antônio Conselheiro (...) e os rebeldes de Canudos.” (Voz de João Bá).

O início da narração de João Bá (“Do céu desceu uma luz... sua alma penará”) consiste, na verdade, de duas quadras sertanejas supostamente de autoria dos rebeldes da Guerra de Canudos.29 “Santo Antônio Aparecido” é, neste caso, Antônio Conselheiro, misto de profeta religioso e líder político de milhares de caboclos sertanejos pobres, além de ex-escravos sem emprego, que a ele se reuniram para viver em comunidade no arraial de Canudos. Antônio Conselheiro era contra a República recém-instaurada, por ele considerada anti-cristã e defendia a volta da monar-quia, assim como a manutenção do poder da igreja ca-tólica, ameaçada pelos ideais republicanos. O fanatismo religioso do sertão, região supostamente “incivilizada” e “inculta”, se contrapunha, assim, aos “ideais elevados” da ciência e da razão que caracterizariam o litoral do país. Mas o rumo que os fatos tomaram no combate em Canu-dos inverteria este enunciado falso.

O município de Monte Santo está localizado no sertão da Bahia, próximo à Terra Indígena de Massacará. Deve seu nome ao Frei Capuchinho Apolônio de Toddi, que, em 1775, chegando a um olho d’Água (!) na subida da serra ficou impressionado com a semelhança da mesma com o calvário de Jerusalém. O Monte Santo teve im-portância estratégica na guerra que se instaurou entre

as tropas militares enviadas pela República e os cerca de 20 mil seguidores de Antônio Conselheiro. Após meses de combates árduos, os militares chegaram, por fim, à vitória, depois que tombaram os últimos defensores do Arraial – dois homens, um velho e uma criança. Os cadá-veres de ‘Santo Antônio Aparecido’ e de seus fiéis foram decapitados, assim como Zumbi, durante o período co-lonial, e Lampião, durante o Estado Novo. Suas cabeças cortadas, à maneira de troféus macabros, foram exibidas para a população, como tática de intimidação.

Tendo testemunhado a resistência tenaz dos seguido-res de Conselheiro e a crueldade da degola, o até en-tão defensor da causa republicana, Euclides da Cunha, confidenciaria depois a um amigo, referindo-se ao livro (Os sertões) que acabara de escrever sobre a Guerra de Canudos: “Serei um vingador e terei desempenhado um grande papel na vida – o de advogado dos pobres ser-tanejos assassinados por uma sociedade pulha, covarde e sanguinária” (Cunha IN GALVÃO, 1902, p.133). Assim a República, proclamada alguns anos antes, preservava intactas as desigualdades entre o sertão e o litoral, veri-ficadas desde o período colonial.

“O que é [considerado] ruído numa velha ordem, é har-monia numa nova” (ATTALI, 1996 [1977], p.35). Segundo este autor, a música é, simultaneamente, um espelho e uma profecia e, mais do que um objeto em si mesma, é um meio de perceber o mundo, um instrumento de co-nhecimento. Como espelho, ela reflete a relação entre o ser humano e a sociedade de uma determinada época, enquanto que, como profecia, ela apresenta certo poten-cial subversivo, porque sendo concebida como ordenação do ruído – em outras palavras, como controle da desor-dem –, possui em si mesma o germe da revolta. Confir-mando o papel profético que Jacques Attali reserva à música, o “peregrino-cangaceiro” Hermeto Pascoal escala um monte santo metafórico em sua vida e obra. O ruído de sua ética musical comunitária adquire desdobramen-tos político-econômicos claros, apesar de o compositor não seguir partidos ou ideologias políticas. Ao investir contra o monopólio das gravadoras transnacionais incen-tivando os downloads gratuitos e o compartilhamento de sua obra pelos fãs na internet (veja a quantidade im-pressionante de vídeos de Hermeto Pascoal no Youtube) o compositor alagoano subverte a lógica do sistema ca-pitalista baseada no valor de compra e venda da músi-ca-mercadoria. A subversão levada a cabo por Hermeto parece confirmar a afirmação de ATTALI (1977, p.133) de que novas maneiras (não-comerciais) de fazer música in-dicam a emergência de uma nova sociedade, profetizando o futuro pós-capitalista. Nesta nova sociedade, a músi-ca seria partilhada por uma comunidade planetária, sem fronteiras rígidas entre os intérpretes e os compositores e entre a produção e o consumo. De fato, como demonstra-do por BISHOP (2004, p.2-3), pela primeira vez na história da indústria da música os consumidores se tornaram eles mesmos, produtores de música através dos duplicadores de CD que, a partir dos anos de 1990, passaram a cons-

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tituir um acessório padrão nos computadores pessoais. O título inicial da composição Monte Santo, isto é, Nave-Mãe, exemplifica como a ética musical comunitária de Hermeto Pascoal apresenta uma interface mística, como exemplifica a declaração algo messiânica a seguir: “Logo senti que estava diante de uma grande missão (...), fazer com que, através da música, as pessoas se amem cada vez mais, sem nenhum tipo de preconceito” (PASCOAL, 2000, p.17-18). Os sonhos de justiça social – nos quais há fartura simbólica de alimentos, música e amor –, são complementados, ainda, pela ecologia, como exemplifica a música Rede (1979b).

A letra desta música é um poema criado por Hermeto Pas-coal (bem antes de a ecologia ter se tornado moda), que é declamado e, depois, cantado pela intérprete Zabelê:

Me dê a rede, quero dormir, o ar é puro, não vou sair.Balance com força, mais um pouquinho,pro sono vir devagarinho.Quero sonhar bem diferente, talvez igual a um passarinho,quando acordar de manhãzinha, vou ver o sol nascer sozinho.E logo o dia vem clareando,os donos das matas vão se encontrando, andando e voando, nos ares cantando,nas matas, cuidando de tudo que é belo.Canto a natureza, que é linda, ainda, que é linda, ainda, que é linda assim.

As notas e ritmos tocados inicialmente de maneira suave pelo piano elétrico simulam uma rede rangendo e balan-çando, repetidamente, em andamento moderado e com-passo quaternário. Num tensionamento progressivo, o andamento é acelerado, pouco a pouco, junto com o cres-cendo de intensidade. A harmonia acompanha o aumen-to de tensão, sendo inicialmente constituída de acordes em quartas com 2as. ajuntadas (00:01 – 00:29), passan-do, em seguida, a incluir estruturas poliacordais (00:30), atingindo, finalmente, o clímax, com acordes dissonantes formados por 2as. 7as. e 9as. maiores ou menores (00:49 – 01:17). Como demonstrei em estudos anteriores (COSTA-LIMA NETO, 1999, p.90-98, 174-178; 2000, p.125-137), Hermeto Pascoal constrói estes e outros acordes disso-nantes tendo como inspiração as sonoridades inarmôni-cas dos objetos sonoros não convencionais, além dos sons produzidos pelos animais (mesclas de sons com espectro harmônico e de ruídos), como, por exemplo, o granulado do silvo destemperado da cigarra, o cricrilar dos grilos, o coaxar dos sapos, o pio dos pássaros, etc. Utilizando sua percepção ampliada, na música Rede Hermeto Pascoal adapta e transpõe estas sonoridades naturais inarmônicas e ruidosas para os instrumentos convencionais, como, por exemplo, o piano. A “transposição inarmônica” ocorre, ain-da, com relação à voz. Músicas como, por exemplo, Que-brando Tudo! (1979a) e Mestre Mará (1979b) demonstram os procedimentos vocais não convencionais utilizados por Hermeto: tosse, grunhidos, ataques glotais e consonantais, chiados, gritos, gargalhadas, sons guturais, etc.30

Zabelê declama o poema de Rede (00:11) tendo ao fun-do o som do piano, além de sons percussivos sutis e de apitos imitando os pios dos pássaros (00:43). Os mo-

mentos de maior tensão harmônica coincidem com o trecho do poema no qual Zabelê declama: “E logo o dia vem clareando, os donos das matas vão se encontran-do, andando e voando, nos ares cantando, nas matas, cuidando de tudo que é belo” (00:49 – 01:17; 05:01 – 05:24). De maneira semelhante ao que ocorrera no final da música Missa dos Escravos – no qual o choro, os risos, as gargalhadas e os gritos de Flora Purim se fundiram aos grunhidos ruidosos de dois porcos “cantores” –, na peça Rede, por sua vez, há uma associação musical en-tre, de um lado, a natureza, os animais e, de outro lado, as dissonâncias e tensões harmônicas (como na afirma-ção de Hermeto antes citada na introdução: “O atonal é a coisa mais natural que existe”). Observo ainda uma in-versão curiosa de papéis: enquanto que a letra cantada de Missa dos Escravos mencionava a ave “Zabelê”, de pio melodioso, na música Rede, por sua vez, Zabelê é uma pessoa de carne e osso, isto é, a cantora que declama e canta um poema sobre os pássaros e a natureza.

Assim, as composições Rede e Missa dos Escravos esta-belecem um continuum entre a natureza, os animais, a civilização e os seres humanos. Como assinalei em outro artigo (COSTA-LIMA NETO 2010b), há, na Música Uni-versal de Hermeto Pascoal, uma fusão de pólos aparen-temente opostos: fala/canto; animais/seres humanos; ruídos/notas; natureza/cidade; sonho inconsciente/vigí-lia consciente; criador/criatura; modernidade/tradição. Por isso, confirmando a fusão de opostos presente em sua música, o “índio diferente” Hermeto Pascoal afir-mou na citação que serviu como epígrafe neste artigo: “nós somos pássaros também”. Na obra do compositor alagoano os ruídos da natureza e dos animais compar-tilham, “democraticamente”, o mesmo espaço sonoro com as vozes e os demais instrumentos musicais. Sua concepção estética é, ao mesmo tempo, ecológica, reli-giosa, social e político-econômica.

Analogias entre Hermeto Pascoal, Antônio Conselheiro e Lampião ocorrem, finalmente, através de certas se-melhanças físicas. A barba e a longa cabeleira, em se tratando dos dois primeiros e, no que diz respeito ao músico e ao cangaceiro, a deficiência visual. Em suma, estes indivíduos possuem, de fato, perso nalidades multi-facetadas nas quais os terrenos do sagrado e do profano se inter penetram como as vozes de uma trama polifôni-ca sócio-musical. Parecendo confirmar a minha compa-ração, Hermeto Pascoal é visto publicamente no Brasil ora como um “mago”, ora como um “bruxo dos sons”. O “lado mago do bruxo” compõe o Calendário do Som (2000), através do qual constitui uma comunidade pla-netária e homenageia a todos os seres humanos através de 366 composições. O “lado bruxo do mago”, por sua vez, à maneira de um Lampião contemporâneo, decla-ra guerra permanente contra as grandes gravadoras e a indústria cultural. O “mago” tocou com Elis Regina no Festival Internacional de Jazz em Montreux, fez parce-rias com Jane Duboc e arranjos para estrelas da MPB, como, por exemplo, Maria Bethânia,31 enquanto que, o

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“bruxo”, critica acidamente o choro, a música regional e a MPB (“Esse pessoal que toca chorinho, músicas regio-nais, MPB, começa a tocar que nem velho, com cara de velho”32), e é menosprezado pelas grandes gravadoras e pelos produtores musicais (como demonstrou a con-trovérsia com o produtor André Midani, por ocasião da jam session de Hermeto e Elis Regina). O primeiro pre-tende erigir um “Templo do Som da Música Universal”33 e compõe músicas como Santo Antônio, Monte Santo, Igrejinha e Bebê,, enquanto que, o segundo, improvisa Quebrando Tudo! e “invoca” espíritos em Velório, Can-non, Missa dos Escravos.

Contudo, como os dois lados da mesma moeda, o “mago” e o “bruxo” são um só indivíduo. Integram a ética musical comunitária de Hermeto Pascoal, nascido no Olho D’água da Canoa, zona Agreste do estado de Alagoas.

4- Conclusão: o lençol de águas subterrâneasO público, os jornalistas, os intérpretes e os pesquisado-res relacionam Hermeto Pascoal às tradições da música popular e, mais especificamente, à música instrumental presente em gêneros como o choro, o frevo ou o jazz. Entretanto, apesar da denominação “músico popular instrumental”, as composições contempladas neste ar-tigo e muitas outras músicas criadas por Hermeto Pas-coal (totalizando quase 60% das composições gravadas nos seus discos) demonstram que, frequentemente, este “músico instrumentista” também canta (O Galho da ro-seira, Quebrando Tudo! Nem um talvez, Mestre Mará) e utiliza a sua voz e a de outros intérpretes de maneira não convencional (Velório, Missa dos Escravos, Cannon, Igrejinha). As palavras são muitas vezes desmembradas em sílabas e letras sem conteúdo semântico, com valor apenas sonoro. Através da voz, Hermeto Pascoal com-põe músicas que serão tocadas por outros instrumen-tos (Bebê, Montreux, as peças do Calendário do Som). Exemplos adicionais revelaram que o compositor cria ou utiliza falas, letras, poemas, imagens e narrativas que acabarão sendo transformadas em música (Rede, Santo Antônio, Monte Santo, as músicas da aura).

As fronteiras que separam a palavra falada, a palavra cantada e a palavra tocada no processo de criação mu-sical de Hermeto Pascoal são bastante tênues. Mais do que isso, a relação entre o falar, o cantar e o tocar pare-ce estar inserida numa dimensão mais ampla, sinestési-ca ou multi-sensorial. De fato, os sentidos físicos estão inter-relacionados na poiética do compositor alagoano, como exemplificaram os títulos e letras de suas músicas relacionadas aos alimentos. Além do paladar, a visão e o tato também estão amalgamados em sua obra, como demonstrou a citação utilizada como epígrafe neste ar-tigo: “Eu me inspiro mais na pintura para compor, no timbre de uma voz” (meu grifo). A multi-sensorialidade está relacionada, de maneira ainda mais ampla, a meu ver, à religiosidade de Hermeto Pascoal. Esta constitui um aspecto fundamental da ética musical comunitária do músico alagoano e ocupa um lugar central em sua vida

e obra. Hermeto Pascoal acredita que existem sentidos extra-físicos: a visão verdadeira, segundo ele, estaria na testa, num ponto equidistante entre os dois olhos, en-quanto a escuta, por sua vez, ocorreria na região da nuca e não apenas nos ouvidos (JARDIM e CARVALHO, 2001). Assim, o som e a imagem resultam de um processo físico e extra-físico. Confluem, ambos, na voz, que passa então a interligar o mundo material ao espiritual, a aura verbo-voco-visual, “terra da promissão”.

Na verdade, em se tratando de Hermeto Pascoal, as clas-sificações se tornam sempre problemáticas. A denomina-ção a ele atribuída de “músico popular instrumental”, por exemplo, parece ser apenas um rótulo, isto é, uma sim-plificação criada com o objetivo de classificar um artista inovador, etiquetando-o, envolvendo-o numa embala-gem e transformando-o num produto capaz de ser iden-tificado, comercializado e consumido. Entretanto, a ver-satilidade de Hermeto Pascoal dificulta conceitualmente esta classificação, pois, além de tocar instrumentos de cordas, sopros e percussão, ele também canta e, muitas vezes, toca e canta ao mesmo tempo. O fato de o músico alagoano não ser reconhecido publicamente como cantor parece ocorrer porque suas experimentações vocais ultra-passam aquilo que o senso comum espera convencional-mente de um cantor. Neste sentido, o “problema” é que Hermeto Pascoal é um cantor original, que subverte par-cialmente o primado da palavra e da imagem sobre o som vocal, ao dirigir a atenção para a matéria puramente so-nora produzida pela voz-instrumento. Suas composições questionam não apenas o rótulo de “música instrumen-tal”, mas também a própria noção de “música popular” – muito embora, por outro lado, não sejam reconhecidas como “música erudita”. O problema quanto à denomina-ção “músico popular instrumental” é aumentado ainda mais porque algumas das composições de Hermeto Pas-coal estão no limiar da não-música e do não-humano, como exemplificam, respectivamente, as músicas da aura (baseadas nas melodias da fala) e as músicas utilizando sons de aves, insetos, porcos, etc.

Avesso às tradições cristalizadas, populares ou eru-ditas, Hermeto Pascoal é um experimentador icono-clasta, um Macunaíma da música brasileira, um artista que desestabiliza as hierarquias pré-estabelecidas. Ao “Quebrar Tudo!” e questionar as categorias estéticas e os rótulos comerciais, Hermeto Pascoal cria novos paradigmas, desafiando a si mesmo e o público, os in-térpretes, os jornalistas, a crítica e os pesquisadores (incluo-me na lista). O seu ruído não se restringe so-mente a música e alcança a sociedade, a economia e a política. De forma só aparentemente despretensiosa, ao sabotar as grandes gravadoras transnacionais, o “peregrino-cangaceiro” contraria interesses podero-sos, enquanto profetiza o surgimento de uma comu-nidade planetária unida pelo som. E pela internet, que Hermeto Pascoal parece alçar a uma condição semi-divina, por possibilitar o compartilhamento gratuito de músicas, numa espécie de “pirataria transcendental”.

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A opinião de que Hermeto Pascoal é não mais que um “músico instrumental” (excelente, sem dúvida nenhuma) pode ter adquirido, sem que nós percebêssemos, uma conotação um pouco conservadora, ao privá-lo de sua voz e de tudo aquilo que ela diz, incluindo as críticas e atitudes dissonantes. O problema por ele levantado com relação à pirataria digital, por exemplo, sinaliza para a existência de uma crise generalizada na produção e na difusão musicais no Brasil. Esta crise parece ter como causa principal a falta de políticas culturais realmente eficazes por parte do Governo Federal, cujo orçamento anual destina atualmente à cultura apenas uma per-centagem pífia (0,7%), ainda abaixo do valor mínimo (1,0%) definido pela UNESCO. Os artistas são abando-nados à própria sorte e se vêem à mercê da ditadura do mercado e dos interesses exclusivamente comerciais da indústria musical transnacional – isto num país que tem na música um símbolo de nacionalidade (!).

Como Treece bem assinalou, a tradição de pensamento nacionalista no Brasil vem utilizando conceitos (“demo-cracia racial”, “luso-tropicalismo”) e ideologias neocolo-nialistas (“Marcha para o Oeste”, “integralismo fascista”) para construir uma narrativa mítica como uma “pedra de toque para uma história pacífica de integração política, social e econômica” (TREECE, 2008, p.11). Entretanto, a realidade dos fatos contrasta fortemente com este discur-so conciliatório, conforme demonstrado pelos exemplos de Zumbi dos Palmares, Lampião e Antônio Conselheiro, abordados neste artigo. No que diz respeito aos índios, continua Treece, a mitologia integracionista invocou con-tinuamente sua assimilação pela sociedade dominante, apesar de a população indígena ter sofrido, desde 1500, um verdadeiro genocídio, caindo de cerca de 5 milhões para apenas 100.000 no início do século XX. É exemplo deste discurso de “assimilação” o pronunciamento (ab-surdo) feito em 1969 pelo coronel Costa Cavalcanti, en-tão presidente da FUNAI, em plena ditadura militar: “Nós não queremos um índio marginalizado, o que queremos é um índio produtor, um índio que seja integrado no pro-cesso do desenvolvimento nacional” (Cavalcanti citado por TREECE, 2008, p.12). Após ter migrado de Lagoa da Canoa para as grandes cidades brasileiras em 1950 – e se ver cercado pelos nacionalismos de direita e de esquer-da na década de 1960 –, o nordestino Hermeto Pascoal teve que descobrir uma maneira de exercer sua arte e, ao mesmo tempo, escapar ao controle político-ideológico e estético. A saída encontrada pelo músico significou para ele, de um lado, o exílio e, de outro, a libertação: via-jou em 1970 para lançar-se em carreira solo nos EUA, enquanto, ao mesmo tempo, “emigrava para dentro do som universal”, assim continuando as experiências ini-ciadas em sua infância, no Olho D’água da Canoa, com os sons da fala, dos animais e dos objetos cotidianos. Desta maneira, como um índio pós-moderno, Hermeto Pasco-al ultrapassa(va) permanentemente os limites impostos pelas fronteiras geopolíticas e estéticas nacionais e in-

ternacionais, pois: “ninguém consegue ensacar o som!” (PASCOAL, entrevista ao autor, 1999). Assim ele criava sua maneira - “universal” - de ser brasileiro.

Ao incluir, desde a década de 1970, a ecologia sonora em sua música, Hermeto Pascoal dava voz aos animais e reafirmava sua identidade cultural nordestina, rural e “indígena”. Não se tratava de mera “excentricidade” ou de “exotismo”, dois termos utilizados contra ele de ma-neira depreciativa. Uma observação: enquanto este tipo de crítica rasteira ainda ecoa por aqui, paralelamente a música de Hermeto Pascoal vem sendo estudada cada vez mais nas universidades brasileiras e no exterior, por exemplo, nos EUA, na Inglaterra ou no IRCAM, criado por Pierre Boulez, na França.34 Ocorre que, para muitos brasileiros, a natureza ainda é um Inferno verde, título do livro de Alberto Rangel, prefaciado por Euclides da Cunha com palavras ainda atuais: “Faltam-lhe em geral [aos cartógrafos] a intimidade da Terra. Nunca sentiram em torno, entre as vicissitudes das explorações longín-quas, o império formidável do desconhecido” (CUNHA, 1909). Entretanto, para o imigrante Hermeto Pascoal os gêneros, estilos e sonoridades da cidade e do campo não estão separados, pois “a natureza é o cotidiano.” (PAS-COAL, 1998, p.48). Neste sentido, sua obra é como uma viagem acústica. E um ato de resistência. Em tempos de aquecimento global, desmatamento e extinção de es-pécies animais e vegetais o que parece ser mais vital do que recriar musicalmente os sons dos seres vivos, da natureza e do planeta como um todo, incluindo a selva de pedra das cidades grandes?

Voltamos, por fim, à musicalidade universal da fala. Atra-vés das músicas da aura descobrimos que ao falarmos, estamos cantando e, por isso, todos somos cantores. To-dos, sem exceção: o ex-presidente Fernando Collor de Mello, o poeta e militante comunista Mário Lago, o ba-curau, o marreco e o Papa João Paulo II...35 Existiria algo mais democrático, anárquico ou apolítico? Tendo como inspiração inicial o sotaque “cantado”, típico da região Nordeste, através das músicas da aura Hermeto Pascoal amplia os limites da aldeia e da vila rural para abranger todo o globo terrestre, assim aplicando a ética musical comunitária numa escala planetária.

“Minha cabeça é uma fonte, uma nascente” (Pascoal, citado por ZAGO). As músicas executadas por Hermeto e pelos intérpretes que o acompanharam nos discos e shows surgem desta fonte que fala, grita, reclama, sussurra, come, reza, canta e toca. A quem interes-sa dividir arbitrariamente a música em duas metades, “vocal”, de um lado, e “instrumental”, de outro? Folcló-rica, popular ou erudita? Brasileira ou internacional? Modal, tonal ou atonal?

Para o compositor, multi-instrumentista e cantor Herme-to Pascoal, a música é uma só.

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Maria Bethânia, 25 anos. [arranjo de Hermeto Pascoal na faixa Tomara] LP PolyGram, PLG848022-1, 1990. Miles Davis. Live-Evil. Japão: SONY, [1970], CD. SRCS 5715-6.____ . The Complete Jack Johnson Sessions, CDK 90926, Sony, 2003.

DocumentáriosBILLON, Yves, L’Allumé Tropical, Les Films du Village - La Cinquième, França, 1997.HINRICHSEN, Rodrigo, Quebrando tudo, TV Cultura, 2004. JARDIM, João e CARVALHO, Walter. Janela da Alma, Europa Filmes, Brasil, 2001.PRADO, Nico. Mosaicos – A Arte de Hermeto Pascoal, TV Cultura, 2008.

Documentos eletrônicoshttp://br.youtube.com/watch?v=SrgveUpwCnM&feature=related, acesso em 25/01/2010.http://www.youtube.com/watch?v=XOgHxIXyTKc&feature=PlayList&p=11E7EE48CA15EC8F&playnext=1&playnext_

from=PL&index=54, acesso em 29/01/2010.http://www.youtube.com/watch?v=X7Kv1TpZkTQ, acesso em 29/01/2010.http://www.youtube.com/watch?v=zGnqyIfyXOI&feature=PlayList&p=EC7003ABE3BF4C61&playnext=1&playnext_

from=PL&index=8, acesso em 29/01/2010.http://br.youtube.com/watch?v=B_jEaktTVSQ, acesso em 29/01/2010.http://br.youtube.com/watch?v=W821bgUU_mY, acesso em 29/01/2010.http://pt.wikipedia.org/wiki/Canudos#As_tr.C3.AAs_Canudos, acesso em 29/01/2010.http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro082.pdf, acesso em 29/01/2010.http://www.scielo.br/pdf/icse/v9n17/v9n17a03.pdf, acesso em 29/01/2010.http://br.youtube.com/watch?v=3BOga_GhZjE&feature=related, acesso em 29/01/2010. [música Peixinho, de Hermeto

Pascoal, intérprete: Jane Duboc. CD Brasil Universo.http://br.youtube.com/watch?v=wEiQSeyUkCM&feature=related, acesso em 29/01/2010. [música Tomara, arranjo: Her-

meto Pascoal, intérprete: Maria Bethânia].http://www.hermetopascoal.com.br, acesso em 29/01/2010.http://www.musimediane.com/article.php3?id_article=21. Acesso em 02/02/2010.

AgradecimentosAgradeço a Neílson Ávila e a Janete Pascoal pela hospitalidade com que fui recebido em Lagoa da Canoa, Alagoas, em novembro de 2008, bem como a todos os membros da Família Pascoal em Lagoa da Canoa, Olho D’água da Canoa, Girau do Ponciano e cercanias. Ao pesquisador José Roberto de Barros Torres pelas informações discográficas gentilmente enviadas por email, em 17/02/1999, ao compositor, arranjador e instrumentista Jovino Santos Neto pelas informações valiosas e, finalmente, a Denise Nagem, pelas revisões, comentários e críticas atentas.

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notas 1 De um total de 152 músicas gravadas nos 13 discos autorais lançados em 1972, 1973, 1977, 1979a, 1979b, 1980, 1982, 1984, 1985, 1987, 1992,

1999, e 2002, a voz é utilizada em cerca de 90 composições. Incluam-se na lista mais duas composições de Hermeto Pascoal – as baladas Little Church e Nem um talvez –, cantadas e assobiadas por Hermeto Pascoal no disco Live-Evil, de Miles Davis (disco gravado em 1970 e lançado em 1972, Sony). Finalmente, O Galho da roseira, de autoria dos pais de Hermeto, cantada e sussurrada pelo músico no disco Seeds on the ground (Bu-ddha Records, 1971), de Airto e Flora Purim, no qual Hermeto Pascoal participou como compositor, arranjador e intérprete.

2 Conferir as músicas da aura intituladas Tiruliruli e Vai mais garotinho (1984), compostas a partir de narrações futebolísticas feitas pelos radialis-tas desportivos Osmar Santos e José Carlos Araújo. Escutar Hermeto Pascoal fazendo a música da aura do ator francês Yves Montand em: http://br.youtube.com/watch?v=SrgveUpwCnM&feature=related, acesso em 25/01/2010. Conferir, finalmente, as faixas Pensamento positivo, Três Coisas e Quando as aves se encontram, nasce o som, (1992). Nestas três faixas Hermeto Pascoal faz a música da aura, do ex-presidente do Brasil, Fernando Collor de Mello e do poeta Mário Lago, além de “auralizar” os cantos das aves: Uirapuru, Sabiá, Corvo, Fogo-apagou, Galo, Bacurau e Marreco.

3 Para uma abordagem mais completa sobre a Música Universal, ver COSTA-LIMA NETO, 2008, p.1-33; e 2010a (no prelo). Sobre a música da aura, ver COSTA-LIMA NETO, 1999, p.174-9; 188-194. Sobre a dicotomia entre o “natural” e o “convencional”, ver COSTA-LIMA NETO, 2000, p.119-42.

4 Segundo SANTOS NETO, 2001, p.9, este primeiro disco autoral foi, em 1988, relançado por outra gravadora (Muse Records), sob o título Hermeto Pascoal, Brazilian Adventure. As músicas de Hermeto Pascoal referidas neste artigo podem ser escutadas, online, no Youtube.

5 Conjunto de orações rezadas em voz alta ou cantadas diante do morto. Ver CASCUDO, 1972, II, p.761. 6 A informação a respeito do apelido do avô de Hermeto Pascoal é de VILLAÇA, 2006, p.20. 7 Em: http://acd.ufrj.br/lamut/cropsite/home.html. Acesso em 02/02/2010. 8 Para maiores informações ver COSTA-LIMA NETO, 1999, p.6-11; 75-98; 127-143. 9 “Cozinha” é um termo utilizado na música popular para designar a formação instrumental básica constituída de contrabaixo, bateria e percussão.

Para Hermeto Pascoal, a “cozinha” é tão importante quanto os demais instrumentos.10 Sobre a inter-relação da música de Hermeto Pascoal com as feiras, bailes populares e rodas de choro ver CAMPOS, 2006; sobre as rapsódias das

“melodias infinitas” nordestinas ver ANDRADE, Mário de, 2006 [1928], p. 48–57, e TRAVASSOS, 1997, p.171. Observo que na cidade de Palmeira dos Índios, reside, ainda hoje, a professora que alfabetizou a Hermeto Pascoal, Dona Zélia Gaia, a qual, na infância do músico, convidava o garoto, seu irmão e seu pai para tocar nas festas da cidade, ver VILLAÇA (prefácio escrito por Zélia Gaia), 2006.

11 Para uma inter-relação entre os elementos musicais (forma, harmonia, ritmo, estilo, etc.) e a religiosidade de Hermeto ver a noção por mim formu-lada de Continuum separação-fusão paradoxal, em COSTA-LIMA NETO, 2010b.

12 Segundo informação de José Roberto de Barros Torres (email ao autor, 17/02/2009), que está escrevendo uma biografia de Hermeto Pascoal, Coa-lhada foi gravada originalmente em 1965, pelo Sambrasa Trio e, no mesmo ano, pelo organista Renato Mendes, no disco Órgão de Vanguarda. Ainda em 1965, Hermeto Pascoal teve gravada sua composição Sete contos pelo grupo Cinco-pados e pelo pianista Ely Arcoverde, além da música Balanço n° 1, pelo Jongo Trio. Nove anos antes, isto é, em 1956, Hermeto fazia a sua primeira gravação como instrumentista, no disco Ritmos Alucinantes, do compositor de frevos, maestro e arranjador Clóvis Pereira, em Recife.

13 Para uma discussão a respeito da sinestesia sob o ponto de vista etnomusicológico ver MERRIAN, 1964, p.85-102; para uma inter-relação entre os compositores clássico-românticos e a culinária (por exemplo, a “doçura” da música de Wolfgang Amadeus Mozart e as sobremesas batizadas com o nome deste compositor) ver NETTL, 1995, p.24-25.

14 Sobre o Toré, ver NEVES In Grunewald (org.), 2005, p.129-154.15 Observo que, a partir da década de 1950, Hermeto Pascoal tocou canções francesas e italianas nas boates, além de música cigana no conjunto de Fafá

Lemos, em 1959, no Rio de Janeiro. Ver SANTOS NETO, 2001, p.6 e COSTA-LIMA NETO, 1999, p.36-55.16 Neste disco de 1973 talvez tenha sido iniciada a confusão com o sobrenome de Hermeto, cuja grafia correta é “Pascoal”, sem “h”, segundo infor-

mação do biógrafo de Hermeto, José Roberto de Barros Torres e da família do músico, em Lagoa da Canoa. 17 Segundo informação em SANTOS NETO, 2001, p.10.18 Ver as cenas de Hermeto Pascoal compondo e solfejando as melodias do Calendário do Som, (em BILLON, 1997). Conferir a entrevista com o pianista

e compositor Jovino Santos Neto, na qual este descreve o processo composicional de Hermeto Pascoal e a maneira cantada pela qual o músico alagoano compõe suas melodias instrumentais, (em HINRICHSEN, 2004). Escutar a balada Montreux (1979a), em Sol menor, composta por Hermeto sem o auxílio de instrumentos, apenas algumas horas antes do show realizado no Festival de Jazz realizado na cidade de mesmo nome.

19 Hermeto, reproduzindo as dicas que ele transmitiu para Flora Purim. Em entrevista com Ezequiel Neves, 1975. 20 O Grupo que acompanhou Hermeto Pascoal no Festival de Jazz de Montreux era constituído pelos músicos Itiberê Zwarg, Jovino Santos Neto, Luis

Santana/Pernambuco, Zabelê, Nenê, Nivaldo Ornellas e Cacau.21 Ver o vídeo das três músicas em: <http://www.youtube.com/watch?v=XOgHxIXyTKc&feature=PlayList&p=11E7EE48CA15EC8F&playnext=1&pla

ynext_from=PL&index=54>; <http://www.youtube.com/watch?v=X7Kv1TpZkTQ>; <http://www.youtube.com/watch?v=zGnqyIfyXOI&feature=PlayList&p=EC7003ABE3BF4C61&playnext=1&playnext_from=PL&index=8>. Ver Elis Regina falando sobre a jam session com Hermeto Pascoal em http://br.youtube.com/watch?v=B_jEaktTVSQ, acesso em 29/01/2010. Segundo informação de SANTOS NETO (2008) após o Festival de Jazz de Montreux, Hermeto Pascoal, Elis Regina e seus respectivos grupos viajaram para Tóquio, onde se apresentaram novamente, todos dividindo, desta vez, o mesmo palco.

22 No LP com a gravação do show ao vivo de Hermeto & Grupo no Festival de Montreux (1979a) este solo está subdividido em duas faixas: a primeira recebeu o título de Maturi, enquanto que, a segunda, foi denominada Quebrando Tudo!. No vídeo postado no YouTube, o solo é apresentado como foi tocado ao vivo, isto é, sem interrupções, Quebrando tudo! começa aos 04:44. Ver http://br.youtube.com/watch?v=W821bgUU_mY, acesso em 29/01/2010. Observo que a expressão “Quebra tudo!”, criada por Hermeto Pascoal, se tornou parte do dicionário da música popular no Brasil, e sig-nifica: 1) Tocar com “paixão”, “com amor”, “dando tudo de si” (PASCOAL, Hermeto); 2) “Tocar como se cada show fosse a final de um campeonato” (PASCOAL, Fábio) e; 3) “Pelo contrário, ‘Quebrar tudo!’, significa construir musicalmente tudo.” (GUINGA). Ver HINRICHSEN, 2004.

23 Termo cunhado em 1967, pelo saxofonista norte-americano Ornette Coleman, para designar um tipo novo de jazz que se utilizava de improvisações atonais e assimétricas, e que fazia uso musical dos ruídos. Ver BERENDT, 1987; COSTA-LIMA NETO, 1999, p.45-50.

24 Hermeto Pascoal conheceu Jackson do Pandeiro na Rádio Jornal do Commercio, em Recife. Conferir o solo vocal embolado de Hermeto Pascoal na faixa musical Remelexo, no mesmo disco gravado no Festival de Jazz de Montreux (1979a).

25 Ver o depoimento irônico de Hermeto Pascoal em PRADO, 2008. Sobre Lampião e o Cangaço ver FACÓ, 1963; MELLO, 1993; GRUNSPAN-JASMIN 2006. 26 Ver http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro082.pdf, acesso em 29/01/2010.27 Ver http://www.scielo.br/pdf/icse/v9n17/v9n17a03.pdf, acesso em 26/12/2008.28 O Grupo que o acompanhava nesta época (entre 1981 e 1993) era constituído pelos músicos Antônio Luis Santana (Pernambuco – percussão), Itiberê

Zwarg (contrabaixo, bombardino, tuba), Jovino Santos Neto (piano, teclados, flautas), Márcio Bahia (bateria, percussão) e Carlos Malta (sopros).29 As duas quadras foram citadas por Euclides da Cunha, 2001 [1902], p.305.

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30 Para maiores noções sobre bio-acústica, ver CAESAR. http://acd.ufrj.br/lamut/cropsite/home.html. Acesso em 02/02/2010.31 Conferir a composição de Hermeto intitulada Peixinho, interpretada por Jane Duboc, gravada no CD lançado em 1985, em: http://br.youtube.com/

watch?v=3BOga_GhZjE&feature=related, acesso em 10/12/2008. Conferir a música Tomara (Rubinho Valença/Alceu Valença), do CD Maria Bethâ-nia, 25 anos (1990) em: http://br.youtube.com/watch?v=wEiQSeyUkCM&feature=related, acesso em 10/12/2008.

32 PASCOAL, entrevista com Yoda.33 Ver http://www.hermetopascoal.com.br, acesso em 29/01/2010.34 Ver CHOUVEL. Em: http://www.musimediane.com/article.php3?id_article=21. MATHIEU. Em: http://recherche.ircam.fr/equipes/repmus/Rapports/

mathieu2002/outils-analyse-BM-2002.pdf, p.24-38. Acesso em 02/02/2010.35 Ver CD lançado em 1992. Além das músicas da aura de Collor, Mário Lago e dos pássaros Hermeto Pascoal fez a música da aura do papa João Paulo II,

mas esta não foi incluída porque o Vaticano não concedeu a autorização.

Luiz Costa-Lima neto é Bacharel em Composição musical pela Universidade Estácio de Sá, Licenciado em Educação artística com habilitação plena em mú sica pelo Conservatório Brasileiro de Música, mestre em Musicologia brasileira pela UNIRIO, doutorando na mesma Universidade. É compositor, intérprete e arranjador, integrou a banda Tao e Qual na década de 1980, participou como compositor em Bienais e Panoramas de Música Brasileira Contemporânea. Professor de música na Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Pena e no Curso de Pós-graduação em Arteterapia da Clínica Pomar/ISEPE, Rio de Janeiro. Escreveu artigos publicados no Brasil e no exterior sobre a música de Hermeto Pascoal, sobre edu-cação mu sical, e sobre teatro, música e raça na cidade do Rio de Janeiro durante o século XIX. Desenvolve pesquisas sobre os índios Xavante (Brasil Central), e sobre a música na obra teatral e crítica de Luiz Carlos Martins Pena (1815-1848).

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BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.

Recebido em: 21/12/2009 - Aprovado em: 18/03/2010

Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos em uma obra-prima para flauta

Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG, Belo Horizonte) [email protected]

Maurício Freire Garcia (UFMG, Belo Horizonte, MG, Belo Horizonte)[email protected]

Resumo: Estudo de caso sobre Cannon de Hermeto Pascoal, obra para flauta, humming na flauta e sons pré-gravados, planejada como uma sessão espírita musical e gravada pelo compositor no disco Slaves Mass (PASCOAL, 1977). A partir do desenho artístico de uma pauta espiralada na capa interna do mesmo LP (PASCOAL e PEREIRA, 1977) e de uma tran-scrição baseada na faixa gravada, a partitura da obra foi detalhadamente reconstituída e editada (PASCOAL e BORÉM, 2010; incluída neste volume de Per Musi às p.80-82). A combinação das análises formal, escalar e proporcional da partitura e seu cruzamento com a análise espectral da gravação revelam grande unidade e uma íntima relação entre os conteúdos musicais e extra-musicais da obra, na qual elementos opostos dialogam: a improvisação e as camadas de superposição de sons pré-gravados, a sonoridade acústica e os sons manipulados, a performance individual e a coletiva, a estabilidade e a instabilidade modal, as linguagens popular (embolada, jazz modal, free jazz) e erudita (música concreta, atonalismo, cadenza, recitativo), os mundos terreno e espiritual. Apresenta também, em primeira mão, a abordagem analítica do “continuum separação-fusão paradoxal” da obra, a partir de ferramenta etnomusicológica criada e realizada por COSTA-LIMA NETO (2009). Inclui uma contextualização do papel da religião na música do “mago” multi-instru-mentista, arranjador e compositor da música popular brasileira.Palavras-chave: Hermeto Pascoal; música popular brasileira; modalismo; atonalismo; espiritismo e música; música eletro-acústica, análise musical.

Cannon by Hermeto Pascoal: musical and religious aspects in a flute masterpiece

Abstract: Case study on Cannon by Brazilian composer, arranger and multi-instrumentalist Hermeto Pascoal, a work for flute, flute humming and pre-recorded sounds, designed as a musical spiritism session and included in the LP Slaves Mass (PASCOAL, 1977). Departing from an artistic drawing of a music staff spiral included in the internal covers of the same LP (PASCOAL e PEREIRA, 1977) and a transcription based on the listening of the track in the same disc, the score of the work was reconstituted and edited in detail (PASCOAL e BORÉM, 2010; included in this issue of Per Musi, p.80-82). The combination of formal, scalar, proportional analyses with the spectral analysis reveal an intimate relation between the musical and extra-musical contents of the work, in which opposing elements dialog: improvisation and the layers of pre-recorded sounds, acoustical sounds and manipulated sonorities, individual and the collective performances, stable and unstable modalities, the popular (the Brazilian embolada, modal jazz, free jazz) and the classical (musique concrète, bi-modalism, atonalism, cadenza, recitative) languages, the earth and the spiritual worlds. It presents an original analytical approach of the work based on the “paradoxal separation-fusion continuum”, devised and realized by ethnomusicologist COSTA-LIMA NETO (2009). It also includes a context of the religion role in the music of the so-called “mago” (wizard) of the Brazilian popular music.Keywords: Hermeto Pascoal; Brazilian popular music; modalism; atonalism; spiritism and music; electro-acoustical music, music analysis.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010

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“Minha religião é a música”I. Hermeto Pascoal (GONTIJO, 2000, p.2)

“Eu rezo com a música, com o instrumento”. Hermeto Pascoal (RODRIGUES, 2003)

“. . .tão único e diferente dos outros. . . sua coragem de experimentar com todo e qualquer tipo de música

num nível muito avançado”. Flora Purim sobre Hermeto Pascoal (PURIM, 1977)

1 – Hermeto Pascoal e Cannon: contextos musical e religioso A relação entre música e espiritualidade na vida de Her-meto Pascoal é muito imbricada e transparece tanto na sua produção artística quanto na sua filosofia de vida. É comum encontrar, salpicando sua numerosíssima obra,1 reflexos das diversas experiências religiosas que tem vi-vido. É muito comum ele escolher temas musicais, títulos de música e, principalmente, criar atmosferas de rituais derivados do catolicismo, espiritismo, umbanda, medita-ção e ritos indígenas. Assim, Hermeto sintetiza, ao mesmo tempo, a vocação brasileira para o sincretismo religioso e musical. Um relato detalhado de suas experiências religio-sas relacionadas à música pode ser encontrado no artigo Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação de sua linguagem harmônica, publicado no presente número de Per Musi (BORÉM e ARAÚJO, 2010, p.22-43).

São comuns os depoimentos de músicos que abdicaram de seus estilos de vida, cidades de origem e trabalhos só para fazerem parte de seus grupos ou de seu convívio, especialmente na fase da Escola Jabour (BARBOSA, 2001; COSTA-LIMA NETO,1999; John KRICH, 1993; ZWARG, 2009a). Foi esta dedicação e respeito religiosos pela qua-lidade musical que tornaram lendários os ensaios diários na casa de Hermeto no Rio de Janeiro, “from 2 to 8 pm”, segundo entrevista do músico Jovino a GILMAN (2009), o que é corroborado por COSTA-LIMA NETO (2008, p.2 e 8): “. . . ensaiavam diariamente, das 14:00hs às 20:00hs, durante doze anos consecutivos, de 1981 a 1993”, sendo que esse tempo de ensaio que era acrescido “. . . pela prática diária matinal, quando os músicos ensaiavam os trechos mais difíceis de suas partes individuais . . .”

A devoção e envolvimento de Hermeto com a música muitas vezes sugere um estado de transe. Em Pendotiba (Niterói), Hermeto e seu grupo prolongaram o show de inauguração de uma casa de jazz por mais de cinco horas (COSTA-LIMA NETO, 2008, p.9). No 1º Festival Interna-cional de Jazz de São Paulo, em 1978, ao lado de nomes como John McLaughlin, Chick Correa e Stan Getz, o show de Hermeto “. . . começou às 23 horas e prolongou-se até às 4 horas da madrugada. . .“ (MILLARCH, 1979). Para Hermeto, esse transe parece fazer parte de um processo que não pode ser interrompido como um evento mera-mente artístico com hora marcada para acabar. No seu segundo concerto do festival Som da gente no Town Hall

em Nova Iorque, em 1989, revoltou-se contra esta limi-tação que tentaram lhe impor na duração do concerto e, após iniciar uma música, parou e saiu do palco alegando que o tempo dado a ele tinha se esgotado. Apesar dos pedidos do público, em pé, Hermeto não retornou com seu grupo (MILLARCH, 1989).

Na esteira do prestígio da bossa-nova nos Estados Uni-dos, aumentou muito o trânsito de músicos brasileiros decididos a desenvolver sua carreira musical no exterior na década de 1960, a exemplo do casal formado pela cantora Flora Purim e o percussionista Airto Moreira, que se mudaram para os EUA em 1967. Depois das dificulda-des iniciais, ficaram animados com a receptividade de seu trabalho, especialmente após seu contato profissional com Miles Davis. Em 1969, convenceram Hermeto a se mudar temporariamente para Nova Iorque, para gravar o disco chamado Hermeto (1971). Ao falar de sua empatia com Miles Davis, apresentado por Airto Moreira, Hermeto Pascoal revela um pouco do lado espiritual:

“o repórter [da Radio France disse] ‘. . . o Miles Davis esteve aqui dando uma entrevista pra mim e eu perguntei pra ele se, quando ele morresse, ele gostaria de ser músico? Aí ele falou que gostaria de ser um Músico que nem o Hermeto Pascoal’. . . eu disse pro cara também: ‘Se eu morresse eu gostaria de ser um músico como ele’ “ (BARROSO, 2009).

Menos de uma década mais tarde, Hermeto voltou aos Estados Unidos para gravar Slaves Mass (1977), no qual ficou ainda mais claro sua predileção pelo lado místico da música, o que já é sugerido no próprio título do ál-bum, que faz uma alusão à cultura afro-brasileira: missa dos escravos. Na faixa que dá nome ao disco, observa-se uma ampla utilização ritualística da voz (choros, gritos, gargalhadas, declamações, vocalizes), cuja sonoridade parece nos “. . . remeter à personagem conhecida na Um-banda como Pomba-gira. . .” (COSTA-LIMA NETO, 2010b, p.48). Hermeto consolida a atmosfera mística do disco com a utilização não convencional da voz em seis das sete faixas (COSTA-LIMA NETO, 2010b, p.48), e também com um intenso experimentalismo instrumental (técnicas expandidas da flauta, superposição de sons pré-gravados) e sonoridades exóticas (porcos grunhindo). Concorrem também para esta aura místico-religiosa as fotos na capa (Ex.1) – uma foto de Tom Copi cuja luz, em forma de aura, destaca os longos cabelos brancos de Hermeto que mos-tra, no lugar dos olhos, teclados refletidos em seus óculos - e na contra-capa do LP – uma foto avermelhada de Joel Sussman com Hermeto segurando um dos dois por-quinhos texanos utilizados na gravação da faixa-título Slaves mass (veja BORÉM e ARAÚJO, 2010, p.22-43, nesse volume de Per Musi).

Deste disco, escolhemos a faixa Cannon, composta por Hermeto em homenagem ao jazzista Julian “Cannonball” Adderley (1928-1976)2, um dos pioneiros do hard-bop (POLITOSKE, p.575), que atuou com Miles Davis até 1958 e se destacou também no free jazz na década de 1960 (KERNFELD, 1988, v.1, p.5-6), estilo da música popular

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esteticamente afim à música erudita aleatória. A análi-se de Cannon demonstra como, em Hermeto Pascoal, os aspectos musicais estão intrinsecamente ligados à sua visão mística e religiosa do mundo; neste caso, segundo a visão do espiritismo. Esta peça é centrada na performan-ce de Hermeto na flauta transversal solo,3 à qual foram mixadas diversas camadas de som gravadas e manipula-das previamente (o que nos remete ao campo erudito da música concreta), como falas em português e em inglês, vocalizações diversas (gritos, risos, canto) e percussão.

Cannon ilustra a formação eclética de Hermeto, com referenciais tanto populares quanto eruditos, apesar de nunca ter frequentado escola de música alguma. Seu iní-cio pode lembrar tanto a liberdade harmônica e intervalar da música erudita expressionista ou pós-1950, quanto o experimentalismo do free jazz (veja Exs.5 e 6 à frente). No primeiro trecho rítmico e alegre da música, a cantora Flora Purim reage saudosa e instintivamente, no meio da gravação, com um “Eh, Brasil!” (c.39, veja Ex.9 à fren-te). Mas a métrica ternária deste trecho permite também outra leitura, pois poderia ter origem na experiência do compositor com vidas passadas, vidas de formação mais tradicional, erudita. Como se trata de uma “sessão espíri-ta musical”, podemos especular sobre a métrica ternária de Cannon e as influências que o próprio Hermeto diz ter recebido do outro mundo. É ele mesmo quem diz que “. . . acredita ter aprendido a tocar ‘em 3/4’. . .”, talvez como fruto do que COSTA-LIMA NETO (2010a) considera ser “. . . recordações que o alagoano supõe ter sido de sua outra ‘encarnação’ em Viena, importante centro cultural da música erudita européia. . .”.

Ainda do ponto de vista do timing de distribuição dos eventos ao longo de Cannon, observa-se uma ocorrência

notável próxima a 2/3 de duração da peça, ou seja, numa proporção equivalente à seção áurea. A linha melódica principal (flauta + humming; Observação: hummings são vocalizações no bocal da flauta) e o “coração batendo”, antes assíncronos entre si, entram em fase (tornam-se sincronizados) momentaneamente (c.87-90; [03:47-03:52], veja Ex.5 e mais detalhes na próxima seção deste artigo), para depois seguirem cada um seu próprio cami-nho, fora de fase, assíncronos. Do ponto de vista religioso, poderíamos associar este evento ao momento em que de fato se estabelece o contato entre o médium e o espírito desencarnado. Do ponto de vista musical, para resistirmos à tentação de associar este procedimento à prática his-tórica de polimetria de Charles Ives no começo do século XX (e cair no erro da decantada ideia de que procedimen-tos musicais “cultos” ou “sofisticados” sempre vieram do estrangeiro), basta lembrarmos das experiências da in-fância de Hermeto na praça de Lagoa da Canoa ouvindo dois, três, quatro eventos superpostos e independentes ao mesmo tempo (CAMPOS, 2006, p.134). Para Hermeto, a aprendizagem de seu caminho pelo mundo, sua cultura e religião acontece no encontro com o povo, em casa, nas ruas, nos bares, nos teatros, pelo mundo.

Finalmente, Cannon pode ser considerada uma obra-prima do repertório da flauta por diversas razões. Pri-meiro, parece tratar-se da primeira peça surgida no cenário da música brasileira, até onde sabemos, para flauta e fita magnética. Segundo, trata-se de uma obra em que se vislumbra uma escrita altamente idiomática da flauta, não só com a sua utilização instrumental tradicional virtuosística dentro da linguagem modal expandida e dentro do espírito da cadenza de concer-to, mas também por explorar eficientemente, um gran-de leque de formas de ataque e técnicas expandidas,

Ex.1 – Misticismo nas fotografias da capa e contra-capa do disco Slaves mass (1977) de Hermeto Pascoal (Fotos de Tom Copi e Joel Sussman).

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como multifônicos e, especialmente, o humming. Outro aspecto que torna Cannon revolucionária e que tam-bém transgride a barreira entre os mundos erudito e popular, é a hibridação de práticas de performance que fazem referência a gêneros populares (como o jazz, a embolada ou o repente) e às práticas eruditas (como o modalismo quase-atonal, a música eletro-acústica, a cadenza de concerto), deixando irreconhecíveis os limites entre a composição prévia e a improvisação. Finalmente, em Cannon, todos os recursos composicio-nais, instrumentais e de técnicas de gravação em es-túdio são utilizados de maneira integrada, funcional e criando grande unidade musical. Nessa obra, Hermeto Pascoal atingiu a expressão de um ritual religioso-mu-sical que reflete não apenas a importância da experi-ência mística na sua vida, mas também a função social da música de uma maneira mais ampla, que aproxima diferentes povos, culturas e maneiras de tocar.

2 - Análise dos dados eletro-acústicos da gravação de CannonTexturalmente, Cannon foi construída com base em um solo de flauta ininterrupto sempre em primeiro plano, ao qual gradualmente se sobrepõe sons pré-gravados (vozes e per-cussão) produzidos por seis pessoas - músicos ou pessoas envolvidas no projeto de Slaves mass presentes no estúdio Paramount em Los Angeles: Hermeto Pascoal, Airto Moreira, Flora Purim, Hugo Fattoruso, Raul de Souza e Laudir de Oli-veira. As vozes aparecem em dois planos distintos: falas em primeiro plano, sem manipulação e falas e sons vocais em segundo plano, com manipulação da velocidade de repro-dução. Hermeto, sempre liderando o grupo, declama frag-mentos em português em [00:38], [00:52], [01:46], [02:17], [03:40], [04:10], [04:18], [04:35] e [04:37]). Esses fragmen-tos, quase sempre são seguidos de livres e esporádicas tra-duções para o inglês por outra voz masculina, possivelmente a de Airto Moreira (pode-se observar que é um brasileiro quem fala pela escorregadela na gramática da língua ingle-sa “everybody can express [sic] myself” em [02:12]). As falas femininas são de Flora Purim, notadamente uma em inglês e outra em português. Airto Moreira, junto com Flora Purim, foi quem ciceronou e parece ter sido o porta-voz de Hermeto na sua estadia nos Estados Unidos (Hermeto aparentemente falava pouco inglês na época).

Repetidas e atentas audições de Cannon permitiram a anotação dos seguintes trechos de fala sem manipulação de alturas, ainda assim sujeita a erros, pois nem sempre são audíveis e há uma grande superposição de sons ma-nipulados e não manipulados, além de mudanças de canal e seu efeito de espacialização:

- em [00:03]: (Voz masculina) “quem falou?”; - em [00:38]: (Hermeto) “o que você fez aqui . . . todos os lugares”- em [00:45]: (Voz masculina [Airto Moreira?]) “forever”- em [00:52]: (Hermeto) “o que você fez aqui, continua fazendo

muito mais”- em [01:00]: (Voz masculina) “forever”- em [01:19]: (Voz masculina) “I think I´m going to see you. . .I am

sure I´ll see you”

- em [01:24]: (Voz masculina) “I don’t know. . . what to say”- em [01:34]: (Voz masculina) “a friend” - em [01:39]: (Flora Purim) “I think I´m going to try again, slow.” - em [01:41]: (Voz masculina) “forever”.- em [01:46]: (Hermeto) “vejo em você uma alegria imensa, sem

fim... (conosco?)”- em [02:04]: (Voz masculina) “everybody can throw (?).”- em [02:12]: (Voz masculina) “everybody can express [sic] myself”- em [02:15]: (Hermeto) “você conforta todas as vidas neste

mundo”- em [02:40]: (Flora Purim): “êh, Brasil! .. . (risada) ”- em [02:43]: (Voz masculina) “forever”- em [03:40]: (Hermeto) “como é linda, linda, a sua alma”- em [03:42]: (Voz masculina) “som! (soul?)”- em [03:57]: (Voz masculina) “how beautiful. . . beautiful... is

your soul”- em [04:10]: (Hermeto) “mas é isso aí!”- em [04:18]: (Hermeto) “agora você está bastante livre para

andar em todos os ares. . .- em [04:21]: (Voz masculina) “toda a vida You ́ ll be always here”- em [04:24]: (Hermeto) “todos os cantos (?) “- em [04:32]: (Voz masculina) “Now. . . you are free!”- em [04:36]: (Hermeto) “estou gostando deste trabalho“- em [04:37]: (Hermeto) “o negócio é que. . . (?) “

Em segundo plano, e utilizando o recurso de aumento de velocidade de reprodução da fita magnética (o que resulta na transposição de uma oitava ou mais acima das alturas originais; trechos que, daqui para frente, serão chamados simplificadamente de “oitavados”), surgem vozes faladas, gritadas ou cantadas (Flora Purim faz vocalizes modais em [01:48], [01:56], [02:02], [02:12], [04:20] e [04:48]). Sur-gem também fragmentos percussivos, como sons sibilados com a boca em [02:08]; palmas em [03:14] e [03:24], per-cussão esparsa em metal entre [04:05] e [04:36], percus-são mais rítmica em [04:42] e como um “rulo” em [04:47] e [04:49]. Essas vozes e percussões “oitavadas”, estrate-gicamente distribuídas ao longo da forma musical, criam uma atmosfera não-terrena crescente e apropriada para a sugestão de um ritual místico: lembram vozes do além, sons de aves, de crianças, risadas, gritos, vocalizes agudís-simos, glissandi etc. Devemos ter em mente que, na época da gravação do disco (final da década de 1970), os recur-sos tecnológicos de manipulação sonora ainda estavam mais próximos da herança da final da década de 1940, deixada pelos pais da música concreta – os franceses Pier-re Schaeffer e Pierre Henri (EMMERSON e SMALLEY, 2001, p.60) - e ainda distantes do advento, em 1983, do proto-colo MIDI no processamento de eventos e sinais sonoros (EMMERSON e SMALLEY, 2001, p.61) e das facilidades de manipulação sonora dos modernos softwares (como a técnica de alterar o andamento sem alterar as alturas, por exemplo). Assim, para muitos dos ouvidos de hoje, a porção eletro-acústica de Cannon pode soar “datada”, e lembrar antigas trilhas de filmes ou seriados de TV que, psico-acusticamente, relacionamos com seres alienígenas (ou, no contexto da obra, espíritos desencarnados).

Para tentar reconhecer o conteúdo das falas e outros sons “oitavados”, reduzimos a velocidade de reprodução em 25% e 50%, o que permitiu notar que a maioria dos efeitos foi, de fato, feita com o aumento de 100% da velocidade do sinal original, um recurso de realização

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bastante simples e muito utilizado por compositores de música concreta desde a década de 1950.Abaixo, segue uma listagem de trechos de sons (falas e percussão) manipulados e superpostos que puderam ser compreendidos por meio da redução da velocidade de re-produção de Cannon:

- em [00:27]: (Hermeto “oitavado”) “o que você fez aqui. . . con-tinua fazendo muito mais”

- em [00:45]: (Hermeto “oitavado”) “você chegou”- em [00:47]: (Voz masculina “oitavada”) “meu dedo!”- em [01:02]: (Voz masculina “oitavada”) “viagem, malandro, prá

São Francisco. . .(outra voz) de corpo presente”;- em [01:11]: (Voz masculina “oitavada”, aboio) “Háh!”- em [01:38]: (sons guturais), (Hermeto “oitavado”): ”vamos falar

mais coisas!”- em [02:02]: (voz masculina “oitavada”) “saco de batata assada”- em [03:15]: (vozes em risos, cânticos, sons de aboio “oitava-

dos”) “Hei!.Hei!. . .Heia!...Heia!..”;- em [03:38]: (voz masculina “oitavada”) “let’s go! (?)”- em [03:57]: (voz masculina “oitavada”) “abre o livro” (repetida

3 vezes)- em [04:20]: (aboio, cantos, percussão em metal, Hermeto “oi-

tavado”) “Eita!” - em [04:45]: (voz masculina“oitavada”) “pode acender” (repeti-

da 3 vezes)- em [05:07]: (voz masculina“oitavada”) “pode acabar”- em [05:10]: (voz masculina“oitavada”) “deixa que eu mato”

Percebe-se claramente que algumas das falas não têm relação direta com o tema da sessão espírita de Cannon. São frases comuns do dia-a-dia dos estúdios, como possí-veis falas sobre a necessidade de silêncio e concentração no início dos takes de gravação (“quem falou?” [00:03]), um teste de microfone (“som!” em [03:42]), a satisfação musical na gravação (Hermeto: “estou gostando deste trabalho“ em [04:36]), um comentário sobre detalhes da gravação (Hermeto: “mas é isso aí!” em [04:10] “o negó-cio é que. . . “ em [04:37]), possível referência ao hábito dos músicos de comerem ou fumarem dentro do próprio estúdio (“saco de batata assada” [02:02] ou “deixa que eu mato” em [05:10]), a necessidade de deslocamento entre cidades da Califórnia (“viagem, malandro, a São Francis-co...de corpo presente” em [01:45]; observamos que o dis-co estava sendo gravado na cidade de Los Angeles; note que, ao dizer “corpo presente”, um dos presentes utiliza um vocabulário religioso). Essa habilidade de Hermeto de transformar qualquer som em música é característica desde a sua infância (BORÉM e ARAÚJO, 2010, p.22-42, nesse volume de Per Musi) e reflete a “. . . coragem de experimentar com todo e qualquer tipo de música. . .” de que fala Flora PURIM (1977).

Mas Hermeto utiliza, na maior parte de Cannon, os sons da fala (e também vocalizes e percussão) manipulados, que parecem guardar uma relação direta com o assunto da mú-sica, seja dando orientações de performance para o grupo (“vamos falar mais coisas” em [01:38]), seja em detalhes do possível ritual (“abre o livro”, repetido três vezes em [04:57] e “pode ascender”, repetido três vezes em [04:45]).

Esta relação texto-música fica mais evidente na utiliza-ção de sons não manipulados, na voz Hermeto Pascoal,

em português, que lidera o grupo: “o que você fez até aqui. . . todos os lugares” em [00:38], “o que você fez aqui, continua fazendo muito mais” em [00:52], “vejo em você uma alegria imensa, sem fim” em [01:46], “você conforta todas as vidas deste mundo” em [02:17], “como é linda, linda, a sua alma” em [03:40], “agora você está bastante livre para andar por todos os lugares. . . pelos rios(?)“ em [04:18], “estou gostando deste trabalho” em [04:35]. Ou, então, nas interações quase imediatas e fragmentadas em inglês, na voz de Flora Purim: “I think I’m going to try again. . . slow” (“acho que vou tentar de novo. . . devagar”) em [01:39]. Mas, principalmente (e possivelmente) na voz de Airto Moreira: “forever” (para sempre) em [01:00], “I think I´m going to see you. . .I am sure I´ll see you” (“acho que vou ver você. . .tenho certeza que vou ver você”) em [01:19], “I don’t know. . . what to say. . . to you” (“não sei o que dizer a você”) em [01:24], “a friend” (“um amigo”) em [01:34], “forever” (para sempre) em [02:43], “every-body can express [sic] myself” (“todo mundo pode se ex-pressar”) em [02:12], “how beautiful. . . beautiful... is your soul!” (“que linda, linda é a sua alma!”) em [03:57], “toda a vida You ´ll be always here” (toda a vida você estará sempre aqui) em [04:21], “Now. . . you are free!” (“agora você está livre!”) em [04:32].

A repetição de frases completas (“o que você fez aqui” aparece três vezes, sendo uma vez “oitavada”) e recor-rência de algumas palavras (“alegria”, “alma”, “vida”, “friend”, “forever”, “free” etc.) contribui não apenas para criar a atmosfera mística, mas também para, composi-cionalmente, dar unidade à obra. Tanto a flauta quanto os sons pré-gravados acontecem, boa parte do tempo, de forma declamatória. Embora o clima seja de improvisação (Flora afirmou que foi assim, como vimos acima), Herme-to exerce um grande controle sobre os materiais temá-ticos (harmônicos, melódicos, rítmicos, de articulação e tímbricos) que utiliza, como veremos mais à frente. Por isso, a repetição de materiais temáticos tanto na flauta quanto no emprego dos sons pré-gravados parece reme-ter a uma complexa e estruturada improvisação motívica.

Além das vozes, Hermeto utiliza a manipulação de ou-tros sons pré-gravados, adicionados ao canal principal da flauta, como elemento unificador de Cannon. As “batidas de coração”, por exemplo, que seriam um dos sinais da vida depois da morte de Cannonbal e uma prova de sua comunicação com Hermeto e seus músicos, recorrem cin-co vezes (veja Ex.5 à frente), pontuando todas as seções da forma musical (a forma A (ba) B A’ Codetta é explica-da mais à frente no Ex.5 e no texto que o precede):

Seção A: nos c.7-15; em [00:35-01:15]; dur.40’Ponte ba: nos c.45-55; em [02:47-03:07]; dur.22’ (continua na Seção B)

Seção B: nos c.56-68 (continuação da Ponte ba); em [03:07-03:29]; dur.22’ e nos c.83-124; em [03:43-04:26]; dur.43’

Seção A’: no c.140; em [04:45:-04:46]; dur.1’ (uma batida só!)

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Codetta: nos c.143; em [05:00-05:13]; dur.13’, as “batia-ds de coração” finalizam a música sozinhas

Outro elemento unificador em Cannon é a recorrência de materiais cromáticos (algumas vezes causando instabili-dade modal) em pontos de articulação importantes, no início ou final das seções da forma:

Seção A: o início (c.1-9) e finais (c.30-33) quase-atonais (veja Ex.6 e Ex.7, à frente); Ponte ba: a escala cromática descendente completa, próximo ao final (c.51-55; veja Ex.9, à frente);

Seção B: apojaturas cromáticas e terças cromáticas descendentes próximas ao final (c.117-124; veja Ex.10, à frente) e cromatismo Mi-Mib-Ré ao final (c.137-138);

Seção A’: modalismo instável em toda a seção (c.139-142; veja Ex.11, à frente);Codetta: bicorde de segunda menor Lá-Sib sustentado por 10 segundos (c.143; veja Ex.12, à frente).

Do ponto de vista instrumental, Hermeto toca a flauta em uma posição mais diagonal em relação ao corpo (menos horizontal; mais confortável, se-gundo ele) com uma embocadura relaxada (que re-sulta em sonoridades com mais ar, conhecidas com soffio ou sons eólios) e quase sempre sem vibrato,

seguindo uma tradição que se consolidou na música popular brasileira a partir do modelo do canto liso e declamado deixado por Mário Reis (GIRON, 2001, p.240) na década de 1930 e reafirmado por João Gilberto na década de 1960 (GIRON, 2001, p.17). Hermeto prefere utilizar outros efeitos expressivos (como diversos tipos de glissando, crescendi súbitos), contrastes de articulação (como o staccato e o mar-cato), timbres (como a aproximação da fala humana) e técnicas expandidas (como multifônicos e diversos tipos de humming).

Uma importante referência que Hermeto Pascoal pode ter encontrado na sua viagem aos EUA, ou antes dela, por meio de gravações, é a música revolucionária do multi-instrumentista cego de jazz norte-americano Rahssan Roland Kirk (1935-1977), na qual explorou técnicas ins-trumentais expandidas e técnicas de estúdio como uma ferramenta composicional. Na flauta transversal (que também tocava assoprando pelo nariz) se destacou como um pioneiro do humming, se tornando o modelo para im-portantes seguidores como Jeremy Steig, Thijs van Leer e Ian Anderson da banda Jethro Tull (RAHSSAN, 2010). Rahssan também tinha um lado místico, como ilustra o nome de seu disco I talk with the spirits (Limelight; Nola´s Penthouse Sound, 1964). Na faixa de mesmo título, as-sim como Hermeto em Cannon, RAHSSAN (1964) começa com uma quinta justa ascendente (Mi-Si), sem vibrato, e utiliza a linguagem modal (pentatônica em Sol). As-sim como Hermeto em Cannon, Rahssan também utiliza o humming extensivamente, embora quase sempre com a voz dobrando as mesmas notas da flauta. Fechando o conjunto de similaridades e coincidências, Rahssan tam-

bém se destacou no hard bop e free jazz, foi pioneiro das práticas de música concreta na música popular, colabo-rou com Cannonball Adderley e veio a falecer no ano de lançamento do disco de Hermeto.

A sonoridade e técnica característica de Hermeto Pasco-al na flauta pode ser apreciada no espectrograma mos-trado no Ex.2: (1) uma composição de parciais muito regular, em que pode ser observada uma frequencia fun-damental mais forte que os harmônicos superiores, (2) uma sonoridade non vibrato, caracterizada pela ausên-cia de oscilação detectável de frequencia ou intensidade no espectrograma) e (3) uma “nuvem” de frequências agudas, que indicam ruídos de ar característicos do som de flauta de Hermeto Pascoal. Ainda no Ex.2, pode-se observar, no solo de flauta sem acompanhamento, a maneira particular com que ele termina algumas notas abruptamente (como a 1ª nota - em anacruse, a 3ª e a 6ª notas, logo no início da peça).

Em relação às técnicas instrumentais expandidas da flau-ta, Hermeto utiliza glissandi (c.6, 10-11, 13-14, 16,22-26, 28, 34, 58, 69-72, 140-142) e multifônicos de oitava (c.5, 18, 79 e 89) e de terça maior (c.29), esporadicamente inseridos na linha melódica. Utiliza também a técnica do humming extensivamente, desde o c.31 (em [02:15], pró-ximo ao final da Seção A) até o final da obra, ou seja, du-rante exaustivos 2’58”, o que é um dos grandes desafios na performance desta obra. Pierre Yves-Artaud, uma das mais destacadas autoridades da flauta contemporânea, descreve os quatro tipos de humming na flauta: (1) pe-dal na flauta com melodia na voz; (2) pedal na voz com melodia na flauta; (3) flauta e voz em uníssono ou em oitavas e (4) o mais difícil, flauta e voz com melodia inde-pendentes o qual “. . .é extremamente complexo e requer um controle perfeito” (ARTAUD, 1995, p.119). Hermeto demonstra toda sua genialidade como compositor e in-térprete realizando esses vários tipos de humming (dois dos quais são mostrados no espectrograma do Ex.3). E vai além, realizando o humming nasal e um longo humming em terças paralelas. Abaixo, seguem as ocorrências e ti-pos de humming de Hermeto Pascoal em Cannon:

Seção A: - humming com a flauta em movimentos contrários (c.31-32);- humming nasal sem o som da flauta (três primeiras no-tas do c.33);- humming em uníssono com a flauta (c.33-35);

Ponte ba: - humming em uníssono com a flauta (c.36-50);- humming cromático descendente com pedal na flauta (c.51-55);

Seção B: - humming em uníssono com a flauta (c.55-91);- humming em terças paralelas com a flauta (c.91-94);- humming em uníssono com a flauta (c.95-103);

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- humming em terças paralelas com a flauta (c.104-116);- humming em portato paralelo a com pedal da flauta (c.117-118)- humming em terças paralelas com a flauta (c.119-124);- humming em uníssono com a flauta (c.124-138);

Seção A’: - humming em uníssono com a flauta (c.139-142);

Codetta: - humming em uníssono com a flauta e depois descendente com a flauta em pedal (c.143).

3 – Análise do contexto, partitura e perfor-mance de CannonPara a parte interna da capa do LP Slaves Mass, o artis-ta plástico Ruy Pereira criou um desenho artístico que inclui uma pauta em espiral com um coração no centro (Ex.4), na qual está notado parcialmente o solo de flauta de Hermeto Pascoal na música Cannon (PASCOAL e PE-

REIRA, 1977). No seu texto de apresentação desse disco, a cantora Flora Purim fala sobre a “transcrição” que Ruy Pereira realizou “nota por nota” (PURIM, 1977). A trans-crição publicada em 1977 não é completa e, na verdade, apesar de desenhada por Ruy Pereira (que não tinha for-mação musical), foi feita pelo próprio Hermeto, segundo nos informou Jovino SANTOS NETO (2009).

Para comparar a versão da partitura publicada na capa interna do disco com a gravação, foi necessário “desenro-lar” os 124 compassos do desenho da partitura espiralada. Depois, a partir da audição da gravação, foi possível veri-ficar que faltavam 19 compassos na partitura do disco (os c.47-55, referentes a um trecho lento em que a voz faz um humming em uníssono com a flauta e, depois, faz um humming cromático descendente, enquanto a flauta se-gura um pedal em Sol), o que deixa Cannon com 143 com-passos, de fato. Além disso, a gravação permite perceber que há muitas simplificações e discrepâncias na partitura original. Por exemplo, não foi anotada nenhuma das vozes (em uníssono, em movimento contrário ou em movimen-to contra um pedal sustentado) decorrentes da utilização

Ex.2- Espectrograma mostrando a sonoridade de Hermeto Pascoal na flauta no início de Cannon: composição de harmônicos muito regular, ausência de vibrato e “nuvem de frequências agudas (medidas no eixo vertical em Hz).

“Nuvem” de frequências agudas

Interrupções entre notas

Fundamentais fortes e sem vibrato

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Ex.3 - Espectrograma com dois dos vários tipos de humming realizados por Hermeto Pascoal em Cannon: (1) humming e voz em movimentos contrários (c.31); (2) humming em “uníssono” (c.33; na verdade, em oitavas paralelas, devido à

transposição da voz uma oitava abaixo).

humming nasal Flauta + humming

em uníssono

Flauta + humming em

movimento contrário

Ex.4 – Partitura espiralada de Cannon desenhada por Ruy Pereira a partir da transcrição de Hermeto Pascoal no LP Slaves Mass (PASCOAL e PEREIRA, 1977).

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de humming por Hermeto. Finalmente, há muitas notas, ritmos, métricas e sinais gráficos inconsistentes, equivo-cados ou difíceis de serem lidos. A partitura completa de Cannon, reconstruída em detalhe com base na gravação de Hermeto de 1977, está publicada no presente número de Per Musi, às p.80-82 (PASCOAL e BORÉM, 2010).

Flora Purim ainda acrescenta que a transcrição de Can-non “. . .levou seis horas. . .” porque foi uma experiência de total improvisação. A finalidade foi de se preparar uma sessão espiritual e tentar comunicação com Cannonball. Alguns de nós o fez [sic.] com muito sucesso” (PURIM, 1977). Comentando este episódio, o jornalista Aramis MILLARCH (1977), amigo de Airto Moreira, confirma que teria ocorrido

“. . . ‘uma verdadeira sessão de espiritismo realizada no estúdio’ segundo o relato que o próprio [Airto] Guimorvan [Moreira] nos prestou na semana passada. Hermeto, Hugo Fattoruso, Raul de Barros [sic; Na verdade, trata-se do trombonista Raul de Souza, cujo nome de nascimento era João de Souza e foi mudado por sugestão de Ary Barroso], Laudir de Oliveira, Airto e Flora Purim - que participaram da faixa, sentiram algo de espiritual ocorrer, como se a alma de Julian ‘Cannonball’ Adderley (1928-1976), grande amigo de todos os músicos participantes da sessão e a quem a faixa era dedicada, tivesse ‘baixado’ sobre eles. . .”

Uma análise formal de Cannon revela uma obra alta-mente estruturada e unificada. Embora a escrita um tanto rapsódica de Cannon possa sugerir uma suces-são de eventos desconectados, especialmente com a superposição de diversas camadas sonoras (com vozes soli declamadas em português e inglês; vozes faladas ou cantadas coletivas e manipuladas em segundo plano; percussões manipuladas em segundo plano) sobre o solo da flauta (e flauta com humming), sua forma pode ser descrita como uma forma canção A (ponte ba) B A’ Co-detta, sendo que a ponte ba é construída com materiais temáticos contrastantes das Seções B e A. Esta forma ternária em arco é apropriada para emular o caráter progressivo e em arco de uma sessão espírita – (1) o contato gradual e crescente, (2) o clímax, e (3) a despe-dida gradual e decrescente. As Seções A e B apresentam muitos contrastes entre si em relação ao andamento, métrica, articulações, materiais harmônicos e contor-no melódico. Na gravação do disco Slaves mass, os 143 compassos de Cannon duram 5’13’’. O Ex.5 apresenta uma esquema gráfico detalhado com as seções formais, seção áurea e os principais eventos da obra, com indica-ções de número de compasso e timings.

± 1/3 ± 2/3

0 1 2 3 4 5

Ι ----- Ι----- Ι-----Ι----- Ι----- Ι-----Ι---- Ι----- Ι-----Ι----- Ι----- Ι-----Ι---- Ι---- Ι-----Ι ----- Ι----- Ι----Ι ---- Ι----- Ι-----Ι ----- Ι----- Ι----Ι ---- Ι---- Ι-----Ι ----- Ι---- Ι----Ι ----- Ι-- Linha do tempo (div isões de 10 em 10 seg.) Seção A Ponte ba Seção B Seção A’ CoddetaForma (materiais temáticos contrastantes c.1 c.36 c.56 c.139 c.143 [00:00] [02:37] [03:07] [04:40] [04:57] [05:13]

Harmonia modal c.1 ----------------------- c.10 ------------------------- c.27 ------ c.30 ---------c.36--------------- c.56----------------------- c.95 ------------- c.139------ c.143 Instável -------------------Sol Dórico/ -----------------Sol Eó l io / --- instável------Sol Eól io -------- Sol Eól io ---------------- Sol Dórico------- instável --- instável Eól io Menor Ha rm.

Andamento c.1 Lento ad l ib i tum Ráp ido /Ad l ib i tum/Len to Rápido, dançante Lento ad l ibi tum

Sons pré-gravados

c.1 c.7 c.15 c.40 c.56 c.58 c.83 c.124 c.140 c.143vozes-- -x - - - - x- xxxxx- - - - - - - - -xxxxxxxxxxxxxxxxx- - - - - - - - - xxx- - - xx - - - - - - - - - - - - - - - - - - - xxx - xxxx- -xxxxx - - - - - - - - - - - - - - vozes manipuladas- - - - - - - -- - - x- - - - - - - - -xxx- - - - -xx- -xx - -xx - xx- - - - - - - x - -xx - xxx- -xxxxxxx -xxxxxxxxxx -xxxxxxxxxx - - - - - - - - - -xxx- - bat idas de coração - - xxxxxxxxxxxx- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -xxxxxxxxxxxxxxxx- - - - -xxxxxxxxxxxxxxxxxx - - - - - x- - - - xxxxxx

c.1 c.87 c.143

Ex.5 – Esquema gráfico analítico de Cannon de Hermeto Pascoal(seções formais, seção áurea e principais eventos com timing e número de compassos aproximados)

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A Seção A (c.1-35; [00:00-02:37]; dur. 2’37’’), dentro do programa do obra (uma sessão espírita musical), po-deria ser chamada de “Preparação para o contato com o mundo espiritual”. É em andamento Lento ad libitum, o que lhe confere um caráter de recitativo, com métrica quaternária na maior parte do tempo (há dois compas-sos 5/4 e um 3/4). Harmonicamente, é caracterizada por uma grande instabilidade modal inicial, em que os cen-tros modais passageiros de Lá, Sol, Mib, Ré, Fá, Sib, Láb, Fá, Dó e Sol se sucedem em um curto espaço de tempo (c.1-12; Ex.6), gerando um ambiente quase-atonal. As frases, que sugerem um legato cantabile, exibem con-tornos melódicos com saltos e intervalos incomuns para a música popular.

Em seguida, no trecho central da Seção A, observa-se maior estabilidade harmônica, embora não ocorra uma definição de um centro modal, mas sim uma polarização, que primeiro oscila entre Sol Dórico e Sol Eólio (c.10-26) e, depois, entre Sol Eólio e Sol menor harmônico (c.27-29). Digno de nota neste trecho é o crescendo finalizado com ataque brusco e respiração na nota Dó do c.44, criando

um efeito que tanto pode lembrar as performances pro-gramáticas dos pífanos nordestinos, quanto as primeiras técnicas da música eletro-acústica (afinal, além do solo de flauta, tudo o mais em Cannon foi construído com téc-nicas de estúdio), como tocar a fita gravada de trás para frente em um decrescendo. A Seção A termina instável harmonicamente (Ex.7), mais ainda do que no início, de-vido à sucessão de quartas justas descendentes Láb-MIb, Si-Fá#, Lá-Mi, Dó#-Sol#, que “resolvem” em dois tríto-nos: Sol#-Ré e Fá#-Dó (c.30). O trecho final da Seção A (c.31-35; [02:15-02:37]) contém um dos momentos mais delicados de Cannon e pode ser descrito como uma ”reza” íntima de Hermeto Pascoal. Apenas ele participa, ainda que realizando três vozes diferentes (c.31-32): (1) uma declamação suave e sincronizada com (2) uma melodia ascendente na flauta e (3) um baixo cromático descen-dente em humming na flauta (veja Ex.3 acima).

Nos trechos modalmente mais instáveis da Seção A, a articulação é em legato cantabile com muitos saltos me-lódicos, com frases típicas da música erudita atonal. Nos trechos de polarização modal, a articulação também é em

Ex.6 - Início da Seção A em Cannon de Hermeto Pascoal: contorno melódico com saltos e portamenti, articulação emulando swing e instabilidade modal.

Ex.7 – Final da Seção A em Cannon de Hermeto Pascoal: contorno melódico com saltos e instabilidade modal.

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legato, mas há grande recorrência de graus conjuntos que se organizam em gestos virtuosísticos mais prováveis de serem encontrados em cadenzas da música erudita tonal (Ex.8), como as volates em arco que saem do grave para o agudo e retornam ao grave (c.13-16, 20-21, 27, 28-29).A tessitura da Seção A é mais ampla de todas, compreen-dendo duas oitavas e uma quinta justa (Dó3 a Sol5). Ainda dignas de nota, e ocorrendo no primeiro compasso da mú-sica, são a nota inicial Lá, que também será a última nota da música (superposta a um Sib!, como veremos à frente) e a articulação tipicamente hermetiana em staccato (nas 1ª, 3ª e 6ª notas, veja Ex.2 acima), já simulando a articu-lação do swing do jazz (em que as notas de apoio são um pouco mais longas) e, assim, antecipando a comunicação e homenagem ao jazzista e amigo Cannonball Adderley (sa-xofonista, mas também flautista, como Hermeto), falecido um ano antes da gravação do disco. Outra referência a esta comunicação que vai se estabelecer é o surgimento da pri-meira de uma série de cinco batidas de coração, que ocorre em [00:35]. As vozes superpostas (“oitavadas” ou não; em primeiro ou segundo planos), tornam-se mais presentes no meio da Seção A e regridem ao final da mesma.

A Ponte ba (c.36-55; [02:37-03:07]; dur. 0’30’’), que tem a notação Alegre de Hermeto na partitura original (a única indicação de andamento, por sinal), poderia ser chamada

de “Contato inicial entre o mundo terreno e o mundo espiritual”. É uma combinação de materiais temáticos das Seções B e A (Ex.9) e se divide em três pequenas partes. A primeira (c.36-44; [02:37-02:45]; dur. 0’08’’) é uma ante-cipação da Seção B (que se inicia no c.56), tonalmente es-tável em Sol Eólio, com seu andamento rápido, sem swing, ritmo repetitivo e dançante, tessitura restrita e articulação em marcato. O crescendo finalizado com ataque brusco e respiração que havia ocorrido antes no c.17 da Seção A, volta a se repetir no c.44. A segunda parte (c.44-46; [02:45-02:55]; dur. 0’10’’) é um amálgama de caracte-rísticas da Seção A (a cadenza com volates ascendente e descendente) e da Seção B (o andamento rápido e a arti-culação em marcato). A terceira parte, (c.47-55; [02:55-03:07]; dur. 0’12’’) é uma recordação da Seção B, com seu andamento Lento e frases em legato cantabile de contorno melódico com saltos. O cromatismo ao final é um elemento articulador da forma que Hermeto lança mão nesta e nas outras seções de Cannon. As vozes superpostas retornam, continuam e se intensificam na Seção B.

A Seção B (c.56-138; [03:07:04:40]; dur. 1’33’’), que tem o mesmo caráter Alegre (embora não marcado por Hermeto na partitura original) do início da Ponte ba, poderia ser cha-mada de “Comunhão entre o mundo terreno e o mundo espiritual”. Ela epitomiza o encontro das culturas musicais

Ex.8 - Parte central da Seção A em Cannon de Hermeto Pascoal: escrita virtuosística erudita sugerindo cadenza.

Ex.9 – Materiais temáticos nas três partes da Ponte ba em Cannon de Hermeto Pascoal, derivados das Seções A e B.

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do nordeste (a embolada e o repente de Hermeto Pascoal) e dos Estados Unidos (o jazz de Cannonball Adderley), como mostra o trecho no Ex.10. É em andamento Dançante, rít-mico, com um light swing, com articulação em marcato e métrica ternária na maior parte do tempo (apesar de se iniciar com um provocante 7/4 + 3/4). Harmônica e me-lodicamente, é caracterizada por uma grande estabilidade modal em Sol Eólio (c.56-94) e Sol Dórico (c.95-138), o que pode nos remeter tanto ao modalismo nordestino (SI-QUEIRA, 1981) ou, no jazz, à herança modal dos históricos discos Milestones (1958) e Kind of blues (1959) de Miles Davis (KERNFELD, 1988, v.1, p.273; v.2, p.116-117). Esta es-tabilidade modal é enfatizada pelo humming da voz e flau-ta simultâneas de Hermeto em terças paralelas (c.91-94 e c.104-124). Além do swing, as blue notes Réb e Fá natural (c.107-108) são outro elemento jazzístico nesta seção em que a alma do norte-americano faz contato com os brasi-leiros. A tessitura é mais estreita, o que é típico nas danças populares: uma oitava e uma quinta justa (Dó3 a Sol4), com suas frases gravitando na maior parte do tempo em torno

da tônica Sol3 e das dominantes Ré3 e Ré4. A insistência na repetição de notas, associadas à imitação da voz do repen-tista nordestino no humming em terças paralelas com a voz, faz referência aos gêneros da embolada e do repente. As vozes superpostas e percussões se intensificam ao longo de toda a Seção B e continuam na Seção A’. Mas talvez o evento mais importante na Seção B seja a sincronização temporária (como são os contatos entre médiuns e almas desencarnadas) entre a flauta de Hermeto e as “batidas de coração” de Cannonball (c.87-90, [03:47, 03:52]). Esta sincronização ocorre, proporcionalmente, a cerca de 2/3 da duração da obra e coincide com a seção de maior atividade rítmica. Assim, percebe-se que a construção do clímax da obra segue a proporção áurea (veja Ex.5 acima).

A Seção A’ (c.139-142; [04:40-04:57]; dur. 0’17’’), que chamaríamos de “Volta ao mundo terreno”, poderia ser entendida como uma coda, mas seu contraste com os materiais temáticos que a antecedem (Seção B) e o significativo retorno ao clima inicial da obra confirmam

Ex.10 – Trecho da Seção B em Cannon de Hermeto Pascoal: encontro dos gêneros repente/embolada (ritmo dançan-te com notas repetidas, modalismo com tessitura estreita, imitação da voz do repentista nordestino no humming em

terças com a flauta) e jazz (light swing, blue notes, modalismo pós-Miles Davis).

Ex.11 – Seção A’ em Cannon de Hermeto Pascoal: recapitulação de materiais temáticos da Seção A.

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o fechamento em arco da forma (e da sessão espírita musical) de maneira sintética. Como ocorre na Seção A inicial e em apenas quatro compassos, temos aí o mes-mo andamento Lento ad libitum, a mesma instabilidade modal, a métrica quaternária, o cantabile das frases em legato e os contornos melódicos com saltos (Ex.11). As vozes superpostas e percussões continuam em toda a Seção A’ e adentram na Codetta.

O último compasso pode, pela sua natureza comple-xa e concentração de eventos e significados musicais, ser considerada uma Codetta (c.143; [04:57-05:13]; dur.00’16’’). Observa-se aí a recapitulação não apenas da forma em arco de Cannon, mas também de eventos importantes que ocorreram ao longo da obra (Ex.12). Está presente a mesma nota Lá3 do início da música (humming + flauta) que, em seguida, sobe para o Síb3, lembrando o cromatismo que permeou todas as seções. Depois, o ambiente modalmente instável se instala com o movimento oblíquo entre a flauta (que permanece no Síb3) e o humming da voz (que retorna para o Lá3). Este bicorde de segunda menor é sustentado como pedal por cerca de 10 segundos. Sobre este pedal, cresce a profu-são de vozes “oitavadas”. Também retornam as “batidas de coração”. Este adensamento de texturas se dá por vol-ta de 2/3 da duração da Codetta, espelhando também a proporção áurea da obra como um todo, que ocorreu na Seção B (veja Ex.5 acima). Após crescerem, as vozes ma-nipuladas desaparecem com glissandi em fading. Depois, no exato final de Cannon, restam apenas umas poucas

“batidas de coração”, o mesmo coração (de Cannonball Adderley?) que Ruy Pereira colocou no centro da espiral de sua partitura artística (veja. Ex.4 acima).

Do ponto de vista da orquestração da flauta e da voz utilizada no humming na flauta, Cannon utiliza tessituras amplas, mais comuns na música erudita. A flauta vai des-de sua nota mais grave, o Dó3 (c.17, 26, 28, 46, 76, 100, 123, e142) até um Sol5 (c.14), ou seja, uma extensão de duas oitavas e uma quinta justa, o que é pouco comum na música popular. A voz cantada de Hermeto Pascoal, que na partitura publicada neste número de Per Musi (p.80-82), foi anotada na clave de Sol, mas soa sempre uma oitava abaixo, vai, em som real, desde o Sol1 (c.55) até o Sol3 (c.33), ou seja, uma extensão de duas oitavas, pouco comum tanto no canto da música popular quanto no humming erudito prescrito por ARTAUD (1995, p.119).

4- Análise do continuum separação-fusão pa-radoxal de Cannon por Luiz Costa-Lima netoComo toda obra complexa, Cannon permite múltiplas leituras analíticas. Luiz Costa-Lima Neto, um dos mais importantes pesquisadores sobre a música de Hermeto Pascoal (veja seu artigo O cantor Hermeto Pascoal: a voz como instrumento neste número de Per Musi às p.44-62; COSTA-LIMA NETO, 2010a), já havia se interessado em investigar Cannon pelos seus lados exótico, no qual identificou “sons de pássaros” - e místico, no qual iden-tificou a “voz do próprio Hermeto, como se estivesse re-zando” (COSTA-LIMA NETO, 2008, p.11). Consultado so-

Ex.12 – Codetta em Cannon de Hermeto Pascoal: um único compasso com recapitulação da forma em arco da obra, de sua seção áurea e de materiais temáticos das Seções A e B.

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bre nossa reconstrução e edição da partitura de Cannon, e sobre a pertinência de possíveis dados extra-musicais na sua gravação, Luiz Costa-Lima Neto nos propõe uma análise etnomusicológica com base no que chama de “continuum separação-fusão paradoxal” (COSTA-LIMA NETO, 2009), a qual apresentamos aqui em primeira mão. Ele desenvolveu esta ferramenta metodológica a partir da observação da fala de Hermeto Pascoal e sua percepção poiética do imaginário, da maneira como “so-brepõe pólos opostos. . . até fundi-los. . .”, gerando um conjunto integrado de quatro fases inter-relacionadas, que pode ser constatado “. . . tanto nas peças improvisa-das como nas composições escritas.”

Para ele, Cannon pode ser compreendida como uma forma binária AB, precedida de introdução e finalizada por uma coda. Do ponto de vista ritualístico, o ouvinte passaria por uma preparação da sessão espírita (introdução; c.1-6), que levaria à busca e estabelecimento de contato com o espírito desencarnado (A; c.7-55), que levaria ao transe da incorporação (B; c.56-138) e que, finalmente, levaria a um retorno da consciência (coda; c.139-143). Na pri-meira fase de Cannon, que chama de Separação, COSTA-LIMA NETO (2009) identifica a abertura da sessão espírita (c.1-6; [00:00-00:35]), com uma “prece sem palavras”, realizada apenas pela flauta solo. Na segunda fase, que chama de Melodia ou embolada de opostos [numa alu-são ao gênero nordestino], o contexto ritualístico sugere uma invocação espiritual (c.7-55; [00:35-03:07]) coletiva do “doutrinador” (Hermeto Pascoal) com a ajuda dos ou-tros “médiuns” (demais músicos presentes na gravação, citados anteriormente) que criam uma “Atmosfera lúdi-ca. . . positiva. . . adequada ritualmente à sessão espírita musical”, em que “os opostos estão se aproximando...”. A terceira fase, que chama de Harmonia de opostos, (c.56-138; [03:07-04:40]) equivaleria ritualmente ao clímax e transe do contato e incorporação espiritual: em meio à multitude de efeitos instrumentais e vocais, convivem o sonhar e o estar acordado, a consciência e a inconsciên-cia, os espíritos encarnados e os desencarnados; as blue notes indicariam “. . .que o espírito do jazzista Cannon-ball Adderley ‘baixou’...” e que se liberta (“Agora você está bastante livre para andar em todos os ares, em todos os mundos, now you’re free!...”). Na quarta fase, que chama de Fusão paradoxal, (c.139-143; [04:40-05:13]) equiva-leria ao fechamento da sessão espírita, há um retorno à atmosfera inicial, mas diferente pelas reminiscências do transe atingido na terceira fase:

“. . .movimento de relaxamento (parcial) e, simultaneamente, re-tenção do tensionamento. . .. . . o estado de vigília é parcialmente restabelecido, mas a consciência e a inconsciência não estão sepa-radas como na fase inicial, pois foram unidas e englobadas por uma instância supraconsciente, espiritual, o ‘Outro-eu transcendente’ (conceito cunhado pelo etnomusicólogo inglês John Blacking).”

5- Considerações finaisCannon é uma obra pioneira na música popular brasileira, até onde sabemos, por ser a primeira utilizar a manipula-ção e utilização de sons pré-gravados em estúdio junto a um solo instrumental. Mais do que isso, é um retrato da

genialidade e dom de Hermeto Pascoal para transformar qualquer som em música, como falas e ruídos, mesmo aqueles gerados no cotidiano, às vezes sem nenhuma re-lação com o programa ou materiais temáticos da obra.

Podemos caracterizar Cannon como uma música fun-cional, cujo objetivo foi prover uma sessão espírita para Hermeto Pascoal e seus companheiros brasileiros nos Estados Unidos se comunicarem com o recém falecido músico norte-americano Cannonball durante a grava-ção do disco Slaves mass em 1977. Por outro lado, Can-non apresenta uma construção complexa, mais comum na música erudita, cujas proporções apresentam uma estrutura em arco cujo clímax e principal sincronicidade (quando os duplos Hermeto/flauta e Cannonball/“batidas de coração” entram em fase) coincidem com a seção áu-rea da obra. Mais do que isso, a complexidade de Can-non é aparente em níveis mais locais em toda a obra, com a exploração de melodias de grande tessitura, sal-tos e volates, a utilização de uma linguagem modal ins-tável que beira o atonalismo e a bi-modadidade, de téc-nicas instrumentais avançadas (harmônicos, glissandi, timbres ruidosos) e expandidas (multifônicos de oitava e terça, vários tipos de humming).

O gradual acréscimo dos sons pré-gravados, manipula-dos ou não, sobre a improvisação na flauta, é de tal ordem organizado que estimula o ouvinte, ao longo da forma, à sensação de presenciarem um ritual espíri-ta completo, em que o doutrinador e demais médiuns primeiro rezam, depois entram em transe, no clímax encontram com a alma que procuram (Cannonball Ad-derley), a tranquilizam e, finalmente, se despedem para retornarem ao mundo terreno. Do ponto de vista da instrumentação, podemos ainda associar os sons não manipulados (flauta, hummings, vozes declamando em português e inglês) ao mundo terreno e os sons mani-pulados (falas, risadas, gritos, vocalizes e percussão “oi-tavados” pelo dobramento da velocidade de reprodução da fita gravada) ao mundo espiritual.

Cannon é bem ilustrativa da linguagem eclética e híbri-da de Hermeto Pascoal. Podemos observar, nesta obra, sua abertura para uma música sem fronteiras entre o popular e o erudito, sem fronteiras entre os estilos ti-picamente nacionais (embolada, repente) e estrangeiros (jazz, a cadenza do concerto clássico, música concreta). A sofisticação da escrita composicional e idiomática de Hermeto Pascoal para a flauta, juntamente com sua cria-tiva integração dos recursos expressivos eletro-acústicos ao seu conteúdo programático, criam um grande sentido de unidade em Cannon que, por si só, deveria resgatá-la do ostracismo para fazer parte, ao lado de outras obras primas afins do repertório solístico da flauta – como Syrinx (1913) para flauta solo de C. Debussy, Density 21,5 (1936) para flauta solo de E. Varèse e Synchronisms N.1 (1962) para flauta solo e tape com sons sintetizados de Mario Davidovsky -, seja esse repertório erudito, popular ou, como nos ensina a natureza universal de Cannon e Hermeto Pascoal, popular-erudito.

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BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.

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pré-gravados. Partitura transcrita e editada por Fausto Borém a partir da gravação do compositor no disco Slave Mass (1977). Per Musi, n.22. Belo Horizonte: UFMG, 2010. p.80-82.

PASCOAL, Hermeto; PEREIRA, Ruy. Cannon (Partitura transcrita por Hermeto Pascoal e desenhada por Ruy Pereira). In: Sla-ves Mass (capa interna do LP). Hermeto pascoal (voz, piano, Fender Rhodes, violão, flauta doce e transversal, saxofone e clavineta), Flora Purim (voz), Airto Moreira (percussão, voz e porcos), Raul de Souza (trombone e voz), David Amaro (violão, guitarra e viola de doze cordas), Ron Carter (contrabaixo acústico), Alphonso Johnson (contrabaixo elétrico), Chester Thompson (percussão), Hugo Fattoruso (voz), Laudir de Oliveira (voz). WEA/Warner: BS2980, 1977. (LP)

Referências de gravaçãoPASCOAL, Hermeto. Cannon. In: Slaves Mass. Hermeto pascoal (flauta e voz) com participações vocais de Flora Purim,

Airto Moreira, Hugo Fattoruso, Raul de Souza e Laudir de Oliveira. WEA/Warner: BS2980, 1977. (LP)RAHSAAN, Roland Kirk. I talk with the spirits. Limelight, Nola´s Penthouse Sound, 1964 (LP re-masterizado como CD de

áudio; fragmento sonoro disponível em www.amazon.com/Talk-Spirits-Rahsaan-Roland-Kirk)

notas1 Segundo VILLAÇA (2007, p.59) e PRADINES (2006), Hermeto Pascoal teria escrito mais de 4.000 músicas até 2007. 2 O nome “Cannonball” é uma corruptela do apelido “cannibal”, uma referência ao grande apetite do músico Julian Adderley na infância (KERNFELD,

1988, p.5).3 Hermeto Pascoal é um dos mais reconhecidos multi-instrumentistas da história da música popular. É mais conhecido como virtuoso da sanfona, fole

de oito baixos, piano, flautas e saxofones. Entretanto, tem demonstrado sua versatilidade e virtuosismo em muitos outros instrumentos convencio-nais, entre eles teclados eletrônicos diversos, harmônio, cravo, órgão, escaleta, flauta de bambu, bombardino, fluguel, trumpete, violão, cavaquinho, viola caipira, bandola, craviola, clavinete, bateria, surdo caixa, surdo, zabumba, pandeiro, pratos, triângulo – e em instrumentos exóticos, objetos e animais, como bocal de tuba, sapho, garrafas, berrante, assovio, buzinas, apitos, brinquedos, chaleira, máquina de costura, baldes, bacias, panelas, garfos, facas, balas, ruídos e gritos da voz, mangueira com voz, porta do estúdio, iefone, porcos, gansos, perus, galinhas, patos e coelhos (PASCOAL, 2009a, 2009b).

4 Seção áurea é a divisão de uma linha em duas partes de maneira que a proporção do segmento menor para o segmento maior é igual à proporção do segmento maior para a somatória dos dois segmentos. Os segmentos equivalem a 0.618 e 0.382 do todo, o que é aproximadamente 2/3 e 1/3. Esta proporção é também encontrada com bastante aproximação na Série Fibonacci (1, 1, 2, 3, 5, 8, 13 etc.). Para outros exemplos do uso da seção áurea em música veja o livro Bela Bartók: An Analysis of His Music (Lendvai, 1971) e o artigo Bartók, Lendvai and the Principles of Proportional Analysis (Howat, 1983).

5 Para uma discussão aprofundada sobre a substituição histórica do portamento pelo vibrato na música erudita veja LEECH-WILKINSON em Per Musi, n.15 (2007, p.7-25).

6 Há muitas discrepâncias entre a transcrição de Cannon por Hermeto publicada na capa interna de Slaves mass (1977) e a gravação da música no mesmo disco. Algumas das diferenças relevantes são: dúvidas na notação de notas (Lá3 ou Dó4 no c.13; acidentes nos Lás do c.27; Si natural, Fá# e Lá natural no c.30; Fás no c.85; falta um bequadro no c.111; seria um bemol no Si do c.124?), notação simplificada de vozes, efeitos e dinâmicas (nenhuma voz realizada em humming é anotada; efeitos como glissandi e multifônicos não são anotados; observa-se apenas um crescendo no c.6), diferenças na notação de notas, ritmos e métrica (mínima no c.32; colcheias no c.83; quaternário nos c.119 ou 120; fusas do c.15 anotadas com quiálteras; fusas dos c.20-21 anotadas como semicolcheias; sextinas do c.29 simplificadas como colcheias; omissão de várias notas no c.30; omissão de um grande trecho lento - c.47-55 - em que há um humming cromático descendente com o pedal da flauta em Sol; o c.69 é anotado como um compasso quaternário, quando o correto é um ternário; semicolcheias do c.133 simplificadas como uma colcheia), inconsistência na notação da forma (repetição no c.88).

79

BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.

Fausto Borém é Professor Associado da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde criou o Mestrado em Música e a Revista Per Musi. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem um livro, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, mu-sicologia, etnomusicologia e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e apresentação de recitais nos principais eventos nacionais e internacionais do contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Fábio Mechetti, Luiz Otávio Santos, Arnaldo Cohen, Antônio Menezes e músicos populares como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Ta-vinho Moura, Roberto Corrêa e Túlio Mourão. Suas gravações incluem o CD Brazilian Music for the Double Bass, o CD e DVD O Aleph de Fabiano Araújo Costa, os CDs da Orquestra Barroca do Festival Internacional de Juiz de Fora de 2005 a 2009 (com Luiz Otávio Santos), a Suite for Flute and Jazz Piano de Claude Bolling (com Maurício Freire, Tânia Mara e Eduardo Campos) e No Sertão (com o violista Roberto Corrêa) e Cidades Invisíveis (com o saxofonista Daniel d´Olivier).

Mauricio Freire Garcia é Professor Adjunto da UFMG, onde já atuou como Diretor da Escola de Música e Diretor Adjunto de Relações Internacionais. Graduado pela mesma instituição em 1987, é o único flautista a receber o título de Douto-rado, com honras, no New England Conservatory, EUA. Desde 2003, tem atuado como 1º. Flautista Solista convidado da OSESP. Trabalhou com importantes compositores como Thea Musgrave, Ezra Sims, H. J. Koellreuter e Eduardo Bértola atuando no Boston MusicaViva, um dos principais grupos de música contemporânea dos EUA, e no Grupo de Música Contemporânea da UFMG. Já se apresentou nas principais salas do país além dos EUA, Europa e América do Sul. Em Boston se destacou como solista junto à Boston Chamber Music Society, o New England Conservatory Bach Ensemble e Contemporary Ensemble. Em 2005, apresentou-se ao lado do pianista Nelson Freire no Festival Piano aux Jacobins em Toulouse, França. Mantém, desde 1998, duo com o pianista Miguel Rosselini, com quem realizou uma série de recitais na Alemanha em 2008 e gravou um CD, lançado em 2009. Suas gravações incluem a Suíte em Si menor de Bach, Suite for Flute and Jazz Piano de Claude Bolling, Choros de Abel Ferreira e diversos CDs com a OSESP.

80

PASCOAL, Hermeto. Partitura de Cannon (dedicada a Cannonball Aderley), para flauta... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.80-82.

Recebido em: 10/12/2009 - Aprovado em: 18/02/2010PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010

& 45 cFlauta

[00:00]

Transc. e Ed. Fausto Borém

[Lento, ad libitum]

[00:01] jœ.[voz: "Quem falou?" + vozes no fundo]

. .œ Rœ. ˙ œ œ. ˙ .œ jœ>

˙b œb œ œb œ œ œb .œb Jœb œU

[Hermeto oitavado: "O que você fez aqui. . ."]

[00:27]

œb¥œbbOœ ˙b

&[00:29]

[Hermeto oitavado: ". . . continua fazendo muito mais"]

6 œ œb . œb œ œ œ œ œb œ. ≈ œb> œ3

[Hermeto: "o que você fez aqui. . . todos os lugares"]

[00:35]["coração batendo" inicia, assíncrono com a música]

œ œ œ œb œn .œ œb

[00:38]

[00:42]œb œb œ

,œ œn œb œb

u

&[vozes oitavadas]

[voz oitavada: "você chegou"] [voz oitavada:

"meu dedo!(?)"]

[00:45] [00:47]

9 œ∫ . œb œb . rœ œ> œ œ œ œ œb . rœ œ œ

[00:52]

œ œb œ œ ˙[Hermeto: "O que você fez aqui... continua fazendo muito mais"]

[01:00]

œb œ œ œ œ œ œb œ œ[voz masculina (Airto Moreira?): "Forever!"]

œb œ .˙ œ œ

&[01:04]

[voz oitavada: "viagem prá São Francisco, malandro. . ."]

[voz oitavada: ". . .de corpo presente"]

[01:02]13

œb œn œ œ œ œœ œb œ œ- œ-

[01:11] ["coração batendo" cessa][voz oitavada: (aboio) "Hah!"]

rœ œ .œ œ œ œ .œ ,œ œ .œ œ œ .œb œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œb œ œ

& 43 c[Voz masculina: "I think I´m going to see you. . .I am sure I´ll see you"]

[01:19]

16 œ œ œ. œb .œ Jœ[voz masculina: "I don´t know... what to say. . . " ]

[01:24]

.œbujœ .œ jœ. J

¥œ## œ# jœ. œœb [01:30]rœ œb œ œ œ œ œ œ œ

& 43 c

[voz masculina: ". . .to you"] [01:34]

20 œ,œ. œb œ œ,. ® œ. œ œ.

[Hermeto oitavado: "vamos falar mais coisas."]

[01:38][voz masculina: "a friend"]

[01:39]

œ œ œ. œ œ. œ œ œn . œ œ. œ œ œ. œb œ. [Hermeto: "Vejo em você uma alegria . . ."][Flora Purim: "I think

I´m going to try again. . . slow"]

[voz masculina: "Forever"]

[01:46]

.œb jœ .œb jœ .œb jœ .œb ‰

& 45 c√ √[Hermeto: ". . imensa

. . . sem fim!]

[Flora Purim: vocalize oitavado]

[01:48]24

.œ Jœ ˙rœ œœœœ œœ œœ rœ œœ

[Flora Purim: vocalize oitavado]

œ œb .œ Jœ ˙b‰ rœ jœ œb œ œ

‰ rœ œ œ[01:56] etc.

œ œb œ œ .œ> Jœ .œ J¥œ.

, Rall.[percussão][01:55]

≈œ ¥œ œœb œ œ œb œœ œ œœ œ# œ œ œb œb œ œ#

& c√ √acelerando

[Flora Purim: vocalize oitavado]

[02:02][voz oitavada: "saco de batata assada"]

28 œ œ œuœ.œb.œ.œ.œ.œb.œ.œ.œ.œ.œ.œ.œb.œ.

3

.œ œ .œœ jœ

[02:08] [percussão: sons vocais sibilados].œU œ. ¥œb œ

U œb œ. œ œ. œ œ. œ œ6

[Flora Purim: vocalize oitavado]

[02:12]

etc.

[voz masculina: "everybody can express [sic] myself"]

œb . œb œn œ# œ>œn œ œ#>œ œ# Jœ# œnu

‰u

3 3

.œb œ œ œ œ

CannonHermeto Pascoal

(dedicada a Cannonball Adderley)para flauta, humming na flauta e sons pré-gravados

81

PASCOAL, Hermeto. Partitura de Cannon (dedicada a Cannonball Aderley), para flauta... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.80-82.

& 43[Hermeto: [02:17]

Humming * (voz descendente) + flauta (voz ascendente)

[Declamação sincronizada com flauta + humming]

31

˙ œ .œ œb œ˙ ˙#≈ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ Œ ‰ ≈ ¿ ¿ ¿

3vo cê con for ta to das as

œb .œ œ œ œu

jœ.

. ‰˙n œ Jœ ‰¿ ¿ ‰ ≈ ¿ ¿ ¿ ¿ Œvi das des te mun do

Humming + flauta em uníssono

Humming nasal

[02:29]

œ œ œ œb œ œ œ œbŒ ‰ Jœ œ œ œ œ ˙ ˙˙ ˙- - - - - -

& 43[02:37]

Humming + flauta em uníssono

35 jœbU

.‰ ‰ jœ> œ> œ>

Jœ ‰ Jœ œ œsempre

[Rápido, rítmico, sem swing]Alegre

œ>œ>œ>œ>œ>œ>

œ œ œ œ œ œ[marcato sempre]

œ> œ œb œ œœ œ œ œ œ œb œ œ[Flora Purim: "Êh, Brasil..."]

[02:40]

.˙[voz masculina: "forever"][02:43]

œ œ œ œ[vozes oitavadas (aboio)]

˙ œ œ

& c 4342

œ œ œ œ œ .˙ ˙,

œ œ˘ [Ad libitum]

[02:47]["coração batendo" inicia, assíncrono com a música]

[02:45]

œb œ œ œ œb œ œ œbœU œ œ œ œ

[vozes oitavadascada vez mais presentes]

œ œ œ œ œb œ œ œ .œu œ œu

& 43 47[Lento][02:55]

47

œ œ œ œ œb œ œ œ œ

[vozes oitavadas (aboio) "Eh!"]

œb œ œHumming (voz descendente ) com pedal (flauta)[03:15]

.˙ œ œ# œn .œ̇ œb œ

[risadas oitavadas]

.œ̇# œn œ .œ̇b œ œb .˙ .˙

& 47 .. 43 47 43 ..[marcato sempre]

Humming + flauta em uníssono

[na 2a vez: percussão esparsa (palmas ); aboio oitavado: "Hei!.Hei!. . .Heia!...Heia!.."]

sempre

[Dançante, rítmico, light swing]["coração batendo" continua] [03:15]

56 œ> œ> œ> œb> œ> œ> œ> œ> œ>jœ> œb>jœ. .˙

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œ œ œ œb œ œ œ œ œ jœ. œ> jœ.

1

.˙,

&

[03:07]

60 2.

˙ Oœ.

[sempre dançante]

œ œ œ œ œ œ[vozes oitavadas cada vez mais intensas]

œb œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ .˙, œ œ œ œ œ œ

&66

œb œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ["coração batendo" cessa]

œb œ ˙,‰ jœ œ œ œ œ œ̂ ˙ œ œ œ œ œ œ œ̂

&72 .˙ , œ œ œ œ œ œ œb œ œ œ œ œ œ œ œ œb œ œ œ œ œ œb œ

[voz oitavada: "(?) "Let's go!" (?)][03:38]

œ œ œ œ œ œ

&* Humming: vocalizar notas dentro do bocal da flauta; a voz de Hermeto Pascoal soa sempre uma oitava abaixo.

78rœ œb œ œ œ œ

[Hermeto: "Como é linda. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . linda. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . a sua alma"[03:40]

˙,Oœ. œ œ œ œ

œb œ[voz masculina: "som!"]

œ œ œ œ œb œ œ œ œ œ œb œ["coração batendo" inicia, assíncrono com a música]

˙ œ œn œ œ œ œ œ œ

82

PASCOAL, Hermeto. Partitura de Cannon (dedicada a Cannonball Aderley), para flauta... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.80-82.

&85 œ œ œ œ œb œ œb œ œ œ œ œ

["batidas de coração" sincronizadas com a flauta] [03:47]

.œ jœ œb œ¿>¿>¿ .œ jœ œb œ¿>¿>¿ œ Oœ

.œ œb œ¿

>¿>¿ œ œ œ œb œ¿>¿>¿

&

Humming (1a.voz) + flauta (2a. voz) em terças paralelas

["batidas do coração" tornam-se assíncronas]

[03:52]

91

.œ Jœ œ œŒ . jœb œ œ .œ Jœ œ œ

.œb jœ œ œ .œ Jœ œ œ.œb jœ œ œ œ œ œ œ œb œœb œ œ œ œ œ .œ jœ œ œ.œ Jœ œ œ

[voz masculina: "How beautiful. . . . ."[03:57]

œ œ œb œ œ œn [vozes oitavadas: "Abre o livro!" (3x)]

œ œ œ œ œ œ

&98 œ œb œ œ œ œ

[". . .beautiful. . . . ."]

œ œ œ œ œ[". . . is your soul . . . ."]

œn œ œ œ œ œ .˙

Humming + flauta em uníssono

œ œ œ œ œb œ .˙Humming (1a.voz) + flauta (2a. voz) em terças paralelas

[04:04]

œ œ œ œ œb œœb œ œ œ œ œ .˙ .˙b

&

[vozes oitavadas soamcomo risadas de bebês]

106

œ œ œ œ œb œœb œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œbœ œ œ œ œ œ[percussão em metal oitavada]

œ œb œ œ œ œbœ œ œ œ œ œ .˙ .˙b[04:10]

œb œ œ œ œ œœ œ œ œ œb œ[Hermeto:". . . mas é isso aí"]

.˙b .˙

&112

œ œ œ œ œb œœb œ œ œ œ œ .˙ .˙b œ œ œ œ œb œœb œ œ œ œ œ[04:16]

œb œ œ œ œ œœ œ œ œ œ œ[Hermeto: "Agora você está bastante livre para andar. . ."]

[04:18]

œ œb œ œ œ œbœ œ œ œ œ œ[Humming portato + flauta legato em terças]

.œ̇b¯rœ œ¯rœ œ¯

.˙Rœ œb¯rœ œ¯rœ œ¯

&

[Hermeto: " . . .por todos os lugares. . . . .pelos rios (?)"]119

œ œb œ œ œ œœ œ œ œ œ œ[Legato]

[voz oitavada: "Eita!"]

[04:19]

.˙b .˙[04:20]

.˙ .˙

[Flora Purim: vocalize oitavado]

[voz masculina: "toda a vida you´ll be always here"][04:21]

.˙ .˙#.˙

.˙b .˙n

.˙#Humming + flauta em uníssono

["coração batendo" cessa]

˙̇ œ´

˙ œ[Rítmico] [marcato sempre]

.œ jœ œb œ œ œ ‰ jœ œb œ

&127 œ œ œ œ œ œ œb œ œ œ œ œ œ œ œ œb œ œ œ œ œ œb œ œ œ œ œ œ œb œ

& c[voz masculina: "Now. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . your are . . free ..."]

[04:32]132

œflœ̈ Œ .œ̂ .œ̂

[Hermeto:"estou gostando deste trabalho"][04:35]

œ̂ œ œ œb œ œb œ œ œ œ œ

[04:37]

˙ œ œ[Hermeto:"o negócio é que..."]

œ œ œ œb œ .˙U ,

& cRall.

[Lento][04:40][percussão oitavada][04:42]

[Ad libitum , cantabile]

[voz oitavada:"pode ascender (3x). . . vai"][04:45]

139

œflœflœflœflœbflœb>

¿>¿>¿>3

[som de metal oitavado]

[04:47]

["coração batendo", uma pulsação só]

œ,œb œn œb

Cannon foi gravada e transcrita por Hermeto Pascoal no discoSlaves Mass (1977). Esta edição completa foi revisada e editadapor Fausto Borém (2010), a partir da gravação e da partituraespiralada desenhada por Ruy Pereira na capa interna do disco.

.œ Jœ œb œ œ# u ,‰j¿æ>Ó ‰

j¿æ>

[04:57]Flora Purim: [vocalise oitavado]

[05:07]

œ œn .˙u

œ œ œ œ œ œ œ œ3 3 3

[falas e gritos oitavados]

[humming + flauta: de uníssono para 2a. menor]

["coração batendo" inicia. . . cessa sozinho][cresc. - - - - fading + gliss.]

[05:03]

[05:13]

[voz oitavada:"pode acabar"][voz oitavada:"deixa que eu mato!"][05:10]

œ œb .˙U

œ œ .˙

83

BOLLOS, L. H. Canção do Amor Demais: marco da música popular brasileira contemporânea. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.83-89.

Recebido em: 07/07/2009 - Aprovado em: 13/03/2010

Canção do Amor Demais: marco da música popular brasileira contemporânea

Liliana Harb Bollos (Faculdade de Música Carlos Gomes, EMESP Tom Jobim, São Paulo, SP)[email protected]

Resumo: Discussão sobre a importância do LP Canção do Amor Demais dentro do panorama da cultura brasileira, mais do que do âmbito da música popular em si, a partir do texto de Vinícius de Moraes na contracapa do disco e da crítica de José da Veiga Oliveira. A fronteira existente entre o popular e erudito fica menos evidente neste disco, por conta do alto grau composicional das canções e pelos arranjos assinados por Jobim, tendo em vista que ali se deu a apresentação de João Gilberto em disco e da batida do violão que iria simbolizar a Bossa Nova.Palavras-chave: Bossa Nova; Tom Jobim; Vinícius de Morais; João Gilberto; José da Veiga Oliveira; Música Popular Bra-sileira; Jornalismo Cultural; Cultura Brasileira.

Canção do Amor Demais [Song of Too Much Love]: a milestone in contemporary Brazilian po-pular music

Abstract: This article discusses the importance of the LP Canção do Amor Demais (Song of Too Much Love) within the panorama of Brazilian culture, much more than simply within the area of popular music itself. As the a starting point, this discussion uses the LP’s liner notes by Vinícius de Moraes and the critique by José da Veiga Oliveira to demonstrate that the existing border between popular classical music become less evident with this album. This is due to the high compositional quality of the songs and arrangements by Tom Jobim, the introduction of João Gilberto and the guitar rhythms that would come to symbolize bossa nova.Keywords: Bossa Nova; Tom Jobim; Vinícius de Morais; João Gilberto; José da Veiga Oliveira; Brazilian Popular Music; Cultural Journalism; Brazilian Culture.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010

1. IntroduçãoÉ sabido que a Bossa Nova surgiu no cenário musical bra-sileiro em meados de 1958 com a canção Chega de Sau-dade (Antônio Carlos Jobim/Vinícius de Moraes), inter-pretada pelo cantor e violonista João Gilberto e foi alvo da primeira grande manifestação de crítica de música popular nos jornais brasileiros. Muitos autores também mencionam a importância do LP Canção do amor demais (Festa, FT1801) da cantora Elizete Cardoso, por causa da participação de João Gilberto ao violão nesse disco. Mas esse disco nos trouxe algumas outras características im-prescindíveis para que entendamos o fenômeno Bossa Nova dentro do panorama da cultura brasileira, mais do que do âmbito da música popular em si.

A cantora Elizete Cardoso fora convidada por Vinícius de Moraes e Tom Jobim para participar do projeto idealizado pelo proprietário do selo Festa, Irineu Garcia, de unir a música e a poesia de ambos em disco. João Gilberto já se apresentava na noite carioca em 1957 e Jobim, que ficara impressionado com o som inovador do cantor baia-no, convidou Gilberto para participar do disco da canto-ra, acompanhando-a ao violão em duas faixas do disco:

“Chega de Saudade” (Jobim/Moraes) e “Outra vez” (Jo-bim). Pela primeira vez a batida que simbolizaria a bos-sa nova estava sendo gravada, porém a forma de cantar de Elizete Cardoso era ainda convencional, a acentuação rítmica das sílabas tônicas sempre se dava nos tempos fortes e o uso do vibrato ainda persistia. Essa caracterís-tica vocal da geração do samba-canção que João Gilberto passou a abolir a partir de sua volta ao Rio de Janeiro em 1957, seria utilizada por ele no início de sua carreira, quando chegou à capital federal para integrar o grupo-vocal Garotos da Lua como o novo crooner em 1950.

A forma com que o violão foi tocado, simplificando o samba e ao mesmo tempo fazendo uso de harmonia mais sofisticada e densa, provocou uma reação imediata de músicos, críticos, e também da gravadora Odeon, que instantaneamente convidou Gilberto a gravar o seu pri-meiro single, com “Chega de Saudade” de um lado e “Bim Bom” (João Gilberto) do outro, poucos meses depois do disco da cantora. Em sua coluna para o Diário Carioca, em 29/01/1965, Vinícius de Moraes relata o nascimento da canção “Chega de saudade”:

84

BOLLOS, L. H. Canção do Amor Demais: marco da música popular brasileira contemporânea. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.83-89.

(acompanhado de contrabaixo e bateria) e a nova sono-ridade adquirida pelo violão. Com isso, o violão toma o lugar do piano, criando uma sonoridade “nacional”, brasi-leira, marca de um estilo inconfundível que João Gilberto, a partir de “Chega de Saudade”, consagrou.

No entanto, ainda hoje ouvimos que a batida do violão é que chamou a atenção no disco Canção do Amor Demais, e não as composições ou tampouco os arranjos do disco. Na verdade, nesses arranjos tão pouco comentados é que estão a chave da renovação. Jobim preferiu conferir um caráter quase camerístico ao disco de Elizete Cardoso, simplificando sua instrumentação, fazendo uso de pou-cos instrumentos, abrindo, assim, espaço para o violão em algumas músicas. Notemos que as treze canções do disco possuem orquestrações muito diferentes uma das outras, sendo que algumas canções foram interpretadas quase a capela, acompanhadas somente de piano e contrabaixo. Nessa época, os pesados arranjos orquestrais eram base-ados em uma voz condutora acompanhada por uma or-questra que lhe servia de base, ou seja, não havia um jogo contrapontístico de vozes e instrumentos que pudessem participar do arranjo, como foi o caso desse disco.

Assim, a transição do samba tradicional para a bossa nova fazia-se presente não somente na batida do violão de Gilberto, mas sobretudo na voz ritmicamente conven-cional da cantora contrastando com os arranjos econômi-cos de Jobim, sintetizados nesse disco com uma harmonia densa, rica, difícil, considerada pelos opositores como in-fluência direta do jazz americano. Infelizmente, poucos críticos perceberam que a influência benéfica desses ar-ranjos veio também de grandes músicos brasileiros, como Villa-Lobos, Cláudio Santoro, Léo Perachi, Radamés Gna-talli e também do professor de Jobim, H. J. Koellreutter e de outros grandes compositores universais como Chopin, Debussy e Ravel, para citar somente três.

Muito embora consideremos que a música erudita, de modo geral, foi uma influência mais significativa em Tom Jobim do que em outros músicos da bossa nova, a relação desses dois ambientes musicais – erudito e popular - se propagou por toda a obra jobiniana. Portanto, não há como reduzir o trabalho composicional ou pianístico de Jobim somente dentro dos parâmetros da música popular, se é que realmente podemos fazer algum julgamento neste sentido, mas é sabido que Jobim foi aluno de piano de Lú-cia Branco e Tomás Terán, além de ter estudado harmonia com Hans Joachin Koellreuter. Este último afirmou que ele teria passado a Jobim noções de harmonia e contraponto clássicos e “rudimentos de execução pianística”, pois o que interessava ao professor era dar ao aluno uma instrução “globalizante” (KOELLREUTTER apud Cabral, p.45).

2. o disco Canção do amor demais revisitado por Vinícius de MoraesO repertório do disco, como já dissemos, é todo composto de músicas da parceria Jobim-Vinícius, porém, das treze canções do disco, nove (“Chega de saudade”, “Caminho de

Um samba todo em voltas, onde cada compasso era uma queixa de amor, cada nota uma saudade de alguém longe. Mas a letra não vi-nha. Fiz 10, 20 tentativas. Uma manhã, depois da praia, subitamente a resolução chegou. Queria, depois dos sambas do Orfeu, apresentar ao meu parceiro uma letra digna de sua nova música: pois eu realmente a sentia nova, caminhando numa direção a que não saberia dar nome ainda, mas cujo nome já estava implícito na criação. Era realmente a bossa nova que nascia, a pedir apenas, na sua interpretação, a divisão que João Gilberto descobriria logo depois (MORAES, 29/01/1965).

Não por acaso o LP Canção do Amor Demais teve uma importância fundamental para a música brasileira. Além do violão de Gilberto nas duas faixas, todos os arranjos do disco levam a assinatura de Tom Jobim, ainda desco-nhecido da grande mídia, apesar de ter musicado a peça de teatro Orfeu da Conceição de Vinícius de Moraes em 1956, alcançando prestígio e reputação. O que causou espanto, afinal, neste disco? Alguns músicos comenta-vam sobre a “batida” diferente do violão de Gilberto, porém, a recepção do disco foi bastante tímida, com a exceção do texto de José da Veiga Oliveira, estampado no “Suplemento literário” do jornal O Estado de S.Paulo, razão pela qual acreditamos que os músicos eram os mais interessados naquele disco, e não a crítica.

Quando o cantor e violonista João Gilberto lançou o seu primeiro single com “Chega de Saudade” e “Bim Bom”, ainda em 1958, poucos meses depois de ter participado do LP de Elizete Cardoso, o público imediatamente no-tou a originalidade, ou pelo menos, a estranheza daquela música, quando as rádios começaram a tocar. O impacto que essa música provocou foi enorme, considerada um verdadeiro divisor de águas, gerando as primeiras críti-cas jornalísticas, mas também influenciando o estilo de compor de vários músicos. Em pouco tempo o cantor baiano impôs um novo padrão estético à música popular brasileira, inventando um diálogo entre a voz e o vio-lão, transformando o violão em instrumento participante do processo criativo e não somente um “acompanhante” da voz, tão comum na época. A batida que ele imprimiu, desde a sua primeira gravação com Elizete Cardoso no LP Canção do amor demais, foi decisiva para que muitos jovens se interessassem em tocar esse instrumento.

O próprio poeta Manuel BANDEIRA disse que “para nós brasileiros, o violão tinha que ser o instrumento nacional, racial” (1955, p. 8). Ao contrário do piano, introduzido nas casas da alta classe média no século dezenove, o vio-lão foi escolhido pela classe menos favorecida, eviden-temente por ser mais barato e portátil, transformando-se no instrumento mais significativo da música popular brasileira, percorrendo o choro, o samba, a bossa nova, com desenvoltura, durante todo o século XX. João Gil-berto, por sua vez, conseguiu com que o violão migrasse também para a classe média, impondo ao violão um lugar não somente nas rodas de samba, mas também nas casas de concerto. Vimos, a partir de Gilberto, que o violão co-meçou a ser utilizado na música norte-americana, muitas vezes substituindo o piano como instrumento harmônico predileto, criando uma contraposição clara entre os gru-pos de jazz, que têm o piano como instrumento central

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pedra”, “Luciana”, “Janelas abertas”, “Eu não existo sem você”, “Estrada branca”, “Vida bela”, “Modinha”, “Canção do amor demais”) são parcerias de Jobim e Vinícius de Moraes, duas (“Serenata do adeus”, “Medo de amar”) são composições somente de Vinícius e duas (“As praias de-sertas”, “Outra vez”) pertencem somente a Jobim, o que reforça que o projeto estava focado na obra de Vinícius e Jobim e não na cantora Elizete Cardoso, convidada por eles para integrar o projeto. A contracapa do disco tam-bém merece destaque, pois há um texto de Vinícius de MORAES que elucida bem o projeto da parceira, transcri-to parcialmente abaixo:

Dois anos são passados desde que Antonio Carlos Jobim (Tom, se preferirem) e eu nos associamos para fazer os sambas de minha peça “Orfeu da Conceição”, de que restou um grande sucesso po-pular, “Se Todos Fossem Iguais a Você” e, sobretudo, uma grande amizade. (...)

Este LP, que se deve ao ânimo de Irineu Garcia, é a maior prova que podemos dar da sinceridade dessa amizade e dessa parceria. (...)

Nem com este LP queremos provar nada, senão mostrar uma etapa do nosso caminho de amigos e parceiros no divertidíssimo labor de fazer sambas e canções, que são brasileiros mas sem naciona-lismos exaltados, e dar alimento aos que gostam de cantar, que é coisa que ajuda a viver.

A graça e originalidade dos arranjos de Antonio Carlos Jobim não constituem mais novidade, para que eu volte a falar delas aqui. Mas gostaria de chamar a atenção para a crescente simplicidade e organicidade de suas melodias e harmonias, cada vez mais libertas da tendência um quanto mórbida e abstrata que tiveram um dia. O que mostra a inteligência de sua sensibilidade, atenta aos dilemas do seu tempo, e a construtividade do seu espírito, voltado para os valores permanentes na relação humana (MORAES, 1958).

Vinícius reitera o motivo pelo qual Elizete Cardoso foi esco-lhida para fazer esse trabalho, muito embora tenha sido Do-lores Duran convidada primeiramente, mas acabou pedindo um cachê alto demais para o humilde selo Festa (CASTRO, 2002, p. 176). Nesse sentido, a escolha por Elizete veio ao encontro do gosto dos compositores, uma vez que Dolores era a escolha de Irineu Garcia, dono do selo. Em seu texto, Vinícius expõe com cuidado que o tipo de voz dela “respira acima do popular”, assim como a música do disco:

Não foi somente por amizade que Elizete Cardoso foi escolhida para cantar este LP. É claro que, por ela interpretado, ele nos acrescenta ainda mais, pois fica sendo a obra conjunta de três grandes amigos; gente que se quer bem para valer; gente que pode, em qualquer circunstância, contar um com o outro; gente, sobretudo, se danando para estrelismos e vaidades e glórias. Mas a diversidade dos sambas e canções exigia também uma voz par-ticularmente afinada; de timbre popular brasileiro mas podendo respirar acima do puramente popular; com um registro amplo e natural nos graves e agudos e, principalmente, uma voz experien-te, com a pungência dos que amaram e sofreram, crestada pela pátina da vida. E assim foi que a Divina impôs-se como a lua para uma noite de serenata (MORAES, 1958).

Uma tradição que se formou a partir dessa época da Bos-sa Nova é que os encartes dos long-playng eram verda-deiras obras de arte, contendo fotos e gravuras de artis-tas plásticos, herança do Modernismo, época em que Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral, entre outros, desenharam várias capas de livros. Em 2005 foi publicado o livro Bossa

Nova e Outras Bossas - A Arte e o Design das Capas dos LPs de Caetano RODRIGUES e Charles GAVIN (Viva Rio/Petrobrás), justamente sobre este assunto. No caso dos LPs, além do trabalho gráfico interessante, apareceram os textos de apresentação nas contracapas dos discos. É o caso de Vinícius de Moraes que apresenta o disco de Eli-zete Cardoso, expondo de forma carinhosa o projeto, as-sim como Tom Jobim faz a apresentação no disco Chega de Saudade de João Gilberto. Aliás, nesse disco apareceu palavra bossa nova duas vezes, numa época em que ainda não se sabia como chamar aquela nova música. Na letra de “Desafinado” (“isto é bossa nova, isto é muito natural”) e no texto de Jobim em que ele afirma que “João Gilberto é um baiano “bossa-nova” de vinte e seis anos. Em pou-quíssimo tempo, influenciou toda uma geração de arran-jadores, guitarristas, músicos e cantores” (JOBIM, 1959).

Chamamos a atenção ainda para as palavras de Vinícius de Moraes, quando este se refere às composições de Can-ção do amor demais como sambas e canções, afinal, no decorrer de sua evolução, o samba tem recebido caracte-rísticas próprias da evolução de seu tempo, de sua gente, de seus intérpretes, de seus músicos, então, nada mais natural que ele se refira a sambas, quando o andamento da composição for mais rápido e a canções para músicas mais lentas. O importante, para Vinícius, é “mostrar uma etapa do caminho de amigos e parceiros no divertidíssi-mo labor de fazer sambas e canções, que são brasileiros, mas sem nacionalismos exaltados” (MORAES, 1958), essa dimensão menos historicista e mais estética que ele an-teviu, o que realmente iria acontecer com o lançamento do disco Chega de saudade de João Gilberto.

Certamente Canção do amor demais foi um marco da música popular brasileira contemporânea, tanto pela concepção moderna e inventiva dos arranjos e composi-ções, quanto pela participação de Jobim, Vinícius e João Gilberto na concepção e confecção do disco. No entan-to, não nos esqueçamos de que não foi por acaso que esses três artistas foram considerados os mentores de uma nova proposta musical que estava surgindo, uma vez que a obra (o disco) que eles realizaram era uma busca de renovação. E, talvez, por conta da repercussão desse disco, que se tornou o disco de apresentação da bossa nova, João Gilberto gravaria o single “Chega de Saudade” e “Bim bom”, alguns meses mais tarde.

Assunto que tem inspirado muitas polêmicas e discussões, tanto por parte de entusiastas quanto de opositores, a bos-sa nova surgiu de uma série de acontecimentos e influên-cias, como qualquer outra obra artística nova, impregnada de novas características renovadoras advindas de várias fontes. Como não dizer que o jazz, sobretudo o cool jazz, influenciou e muito os músicos brasileiros que deram ori-gem a esse movimento? Mas alguns músicos brasileiros da chamada Época de Ouro, como Custódio Mesquita ou Ary Barroso, também tomaram conhecimento da música americana e tampouco foram questionados quanto às suas influências americanas dentro de suas canções.

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De fato, a influência que a música popular america-na exerceu em todo o mundo é grande. Em meados de 1950, época em que os programadores de rádio, junta-mente com as grandes gravadoras de discos, detinham poder e impunham o gosto musical, alguns artistas brasileiros que buscavam uma saída para aquela mú-sica abolerada, imposta pelos meios de comunicação, aproximaram-se do novo estilo que estava se forman-do nos Estados Unidos, o cool jazz. Com características quase camerísticas como suavidade, pausas, contrapon-to e harmonização sutil, esse estilo de jazz se impôs, nos anos 1950, procurando se distanciar do modo nervoso do estilo bebop. Entre os principais representantes do cool jazz destacam-se os saxofonistas Gerry Mulligan, Paul Desmond, Lee Konitz e Stan Getz, o trompetista Chet Baker e o pianista Lennie Tristano, mas foram o ar-ranjador Gil Evans e o trompetista Miles Davis, ao lançar o LP The Birth of the Cool (Capitol, M-11026) em 1949 que estabeleceram esse novo estilo de jazz.

Em certa medida, a Bossa Nova realmente sofreu influência do estilo cool jazz em vários aspectos, como por exemplo, pela redução de instrumentos acompanhantes, gerando uma diminuição do volume do arranjo, sobressaindo, as-sim, o arranjo musical e, por conseguinte, a voz condutora. O cantor passa a se exprimir sem força, sem vibrato, mais suavemente, exercitando na voz a possibilidade de um ins-trumento de sopro. Alguns artistas norte-americanos fo-ram muito apreciados por músicos bossanovistas, como o trompetista e cantor Chet Baker, sobretudo o disco The best of Chet Baker sings (Pacific-EUA 792932, 1953) e a cantora Julie London com o disco Julie is her name (EMI-Br 799804, 1955), com o guitarrista Barney Kessel.

Entretanto, além da influência do jazz, consideramos vários outros fatores que foram imprescindíveis para o surgimen-to da bossa nova, tais como o trabalho que estava sendo desenvolvido por diversos artistas na época que traziam características inovadoras como os cantores Dick Farney e Lúcio Alves, o conjunto-vocal Os Cariocas, os violonistas Garoto e Luis Bonfá, o arranjador Radamés Gnatalli, o pia-nista e compositor Johnny Alf, os compositores da Geração de Ouro Dorival Caymmi e Ary Barroso (para ficar somente nesses nomes) e, como não poderia deixar de mencionar, a grande contribuição da música erudita brasileira, entre outros, Villa-Lobos, Hans-Joachin Koellreutter e Cláudio Santoro, todos presentes na música de Jobim.

Este último já se aliara em parceria com Vinícius de Mo-raes em 1955, cujo trabalho resultou na obra Canções de Amor (para canto e piano), uma seleção de canções musicadas por Santoro sobre poemas de Vinícius, que mostrou a Jobim quando se conheceram. Há, dentro do ambiente musical, muitas ressalvas quanto à influên-cia de Santoro sobre a obra de Jobim, inclusive os que defendem a possibilidade de plágio por parte de Jobim. Não podemos nos esquecer de que, à medida que se es-tuda, analisa e aprende uma obra, a assimilação ocorre inevitavelmente. Acreditamos que a música de Jobim é

tão fenomenal porque teve muitas assimilações que a enriqueceram excepcionalmente.

De fato, essas primeiras manifestações de renovação só demonstram o quanto significativa aquela música em formação viria a se tornar. Se a bossa nova se impõe ao deslocar alguns códigos de convenções musicais vigentes até então, como por exemplo, a dissonância moderna de “Desafinado”, quando sua letra reitera que “isto é bossa nova, isto é muito natural”, o disco Canção do amor de-mais de Elizete Cardoso apresenta, de uma só vez, as três figuras mais proeminentes da música popular moderna: João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Moraes.

3. Música e crítica por Veiga oliveira: análise e compreensão à altura do discoA recepção do LP Canção do amor demais, lançado em abril de 1958, foi tímida, com exceção de uma resenha que me-rece especial atenção, pois propõe, sem ressentimentos, uma leitura construtiva acerca do novo disco. Publicada no lendário “Suplemento literário” do jornal O Estado de S. Paulo em 28/02/1959, muitos meses depois do lançamento musical, a crítica “Canções de modinhas nossas” do crítico, musicólogo e professor José da Veiga Oliveira comenta dois discos recém-publicados, Canção do amor demais e Modi-nhas fora de moda da soprano Lenita Bruno.

O Suplemento Literário era uma das publicações jor-nalísticas mais prestigiosas da época e tornou-se uma espécie de ponte importante entre a universidade e imprensa, tendo como colaboradores críticos do Grupo Clima como Antônio Candido, Décio de Almeida Prado, Ruy Coelho, Antonio Branco Lefèvre, Álvaro Bittencourt e Alberto Soares de Almeida, entre outros. Esses intelec-tuais, primeiros formandos e depois professores da Fa-culdade de Filosofia da USP, foram os responsáveis pela publicação da revista Clima na década de 1940, que reuniu ensaios acadêmicos em diversas áreas. Esta pu-blicação praticamente definiu o destino intelectual do grupo e representou a entrada de cena de uma geração importante de críticos que iria convergir contato entre universidade e público, cultura e comunicação.

Tivemos a oportunidade de pesquisar no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP) cerca de 344 resenhas de música do Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo, desde o primeiro número do suplemento, de 06/10/1956 até 29/06/1963, sete meses depois do famo-so concerto no Carnegie Hall, tempo suficiente, portan-to, para que houvesse alguma outra publicação sobre a bossa nova nesse caderno. Não houve. O único texto que emite comentário sobre algum integrante do movimento é o de José da Veiga Oliveira. Pela relevância da crítica e importância da publicação em jornal de grande projeção, detenhamo-nos à análise e transcrição parcial da crítica sobre o lançamento do novo disco de Elizete Cardoso:

A “Canção do Amor Demais” (Festa, LDV 6002) obteve grande acei-tação por quatro motivos: a música admiravelmente comunicativa de Antonio Carlos Jobim, a poesia de Vinícius de Morais, a voz

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cálida e flexível de Elizete Cardoso e um registro sonoro dos mais perfeitos já produzidos no país.

Primeira indagação: será música popular ou erudita? Daquela possui todos os elementos de ritmo, imagens, motivos, colorido, menos o primarismo do conteúdo poético, a harmonia grosseira, defectiva e rudimentar. Música erudita ainda não é, muito embora algumas das melodias estejam próximas aos melhores “Lieder”. A singularidade dessas partituras reside na ambivalência, situadas na mui imprecisa fronteira que permeia os dois gêneros. Poder-se-ia considerar a “Canção do Amor Demais” como um ciclo de melodias (“Liederkreis”) à maneira dos de Schumann sobre textos de Heine ou Eichendorff. Sem nenhum tema poético que sirva de motivo-condutor (“Leitmotiv”) recorrente ou unitário, observa-se, todavia, uma unidade de escrita musical (“durchkomponiert”) que permite ouvir todo o microssulco qual uma única melodia distri-buída entre várias partes, sem que o plano artístico se veja afetado (OLIVEIRA, O Estado de S. Paulo, 28/02/1959).

Ao lançar um olhar à obra, o crítico expõe sua dúvida diante da música que encontra no disco, ao mesmo tem-po que propõe uma leitura construtiva sobre a suposta fronteira entre o erudito e popular. Oliveira questiona o pertencimento do disco (“Primeira indagação: será mú-sica popular ou erudita?”) ao propor uma questão, e não afirmar, como a maioria faz, com pontualidade e agudez, em qual tipo de música esse disco estaria inserido, se na música popular ou na erudita. O que ainda não sabíamos na época era que aquela música iria desencadear algo novo no cenário da música popular no Brasil, uma espé-cie de erupção de criatividade no campo de uma música que não era erudita mais, era popular, mas um popular mais sofisticado, cerebral, sutil, inovador. Acreditamos que essa música popular nada mais é do que uma nova tradição da música popular brasileira com características eruditas, dentro de um âmbito particularmente envolvido com questões de mercado e cultura de massa, cujo prin-cipal representante é Tom Jobim.

Na primeira frase de sua crítica, Veiga Oliveira delineia os motivos pelos quais o disco tinha sido aceito: “a música admiravelmente comunicativa de Antonio Carlos Jobim, a poesia de Vinícius de Morais (grafado com ‘i’ pelo crítico), a voz cálida e flexível de Elizete Cardoso e um registro so-noro dos mais perfeitos já produzidos no país”. Tínhamos evidências, portanto, de que o crítico realmente tentou compreender a obra. Depois de afirmar que, embora tenha elementos da música popular (ritmo, imagens, motivos, colorido), seu conteúdo poético e harmonia estão mais para o outro gênero musical (erudito), situando a obra na “imprecisa fronteira que permeia os dois gêneros”. Não podemos deixar de mencionar que Jobim estudou com professores da chamada música de vanguarda, erudita, como Koellreutter e popular, como Léo Perachi e sobre-tudo Radamés Gnatalli. Este último foi um dos primeiros músicos a transitar com fluência pelos dois mundos da música, por isso essa capacidade dele em situar-se no popular, apropriando-se ao mesmo tempo de elementos mais sofisticados, próprios do mundo erudito, do qual o crítico muito bem conhece. Oliveira segue seu texto com-parando o lied alemão com as canções do disco:

O que mais me impressionou foi a fusão indestrutível de poesia e música, funcionando uma como complemento da outra.

Desnecessário seria ressaltar tal circunstância em nossa canção de câmara. Daí a citação dos dois grandes poetas românticos alemães do século XIX, cujos textos encontraram compositores à altura (Goethe e Moericke; Schubert e Wolf poderíamos trazer, também, à colação).

Longe de mim a audácia de estabelecer apressadas equiparações entre obras definitivamente incorporadas ao patrimônio artístico universal e o ciclo de Jobim-Vinícius, sobre o qual só o tempo dirá de sua permanência no repertório.

Disse Marcel Beaurfils a propósito do binômio verbo-música no “Lied”: “O Lied acha-se ligado a seu texto. O menor desvio da pa-lavra torna-se sua ferida, seu impudor, sua tolice. Tudo se passa numa concentração de espaço e dos sentidos, onde a atenção nada dissocia, onde nenhuma ficção desvia nem anestesia. Texto e som: tudo é gravado. Quando o Lied se alarga para o grande painel, a margem de liberdade reaparece. Quando ele se comprime num medalhão, aí nenhum artifício é mais possível, nenhuma falta contra o pensamento e o bom gosto” (OLIVEIRA, 1959).

Ao estabelecer comparações entre a letra-música de Vinícius-Jobim e o Lied alemão de Schumann-Heine, o crítico consegue perceber “a fusão indestrutível de po-esia e música, funcionando uma como complemento da outra”, estabelecendo, desse modo, um elo entre a alta poesia de Vinícius de Moraes e Goethe, assim como a música sofisticada de Jobim e Schubert. Em seguida, o crítico faz um comentário de cada faixa do disco, ini-ciando sua análise por “Chega de saudade” (Jobim/Mo-raes), a canção que abre o disco:

“Chega de saudade”, um samba, abre a primeira faixa, introduzin-do o ouvinte à “Serenata do Adeus”, uma das melodias mais apre-ciadas da série. “Pizzicatti” dos contrabaixos, saxofone em plan-gentes escalas descendentes, além de trombone em “staccato”. A linha melódica converte-se, por vezes, num recitativo modulatório, que só uma artista como Elizete Cardoso poderia interpretar com verdadeira dignidade artística (OLIVEIRA, 1959).

Curiosamente, apesar de ter sido “Chega de saudade” a canção que mais chamou a atenção do disco, lançada há quase um ano antes desta crítica, seja pela riqueza e ori-ginalidade da composição ou pelo acompanhamento de João Gilberto ao violão, ela não recebe qualquer análise do crítico, que segue sua análise com a próxima música, “Serenata do adeus” (Moraes). Nesta música o crítico des-taca a melodia do saxofone, mas na verdade o instrumen-to que é tocado na gravação e tem destaque é o clarone, seja na introdução, quando abre a faixa, acompanhado em seguida de cordas ou fazendo contracanto com a voz. Também têm evidência, em momentos distintos da músi-ca, os trombones (com surdina), as madeiras (que prepa-ram o canto), a harpa e o violoncello (em pizzacato), em arranjo primoroso de Jobim. No arranjo, cada instrumento tem uma intenção, por vezes mínima, onde sobressai a voz da cantora Elizete Cardoso, formando, assim, um trio perfeito de composição-arranjo-interpretação. Veiga Oli-veira segue sua análise com “As praias desertas” (Jobim) e “Caminho de pedra” (Jobim/Moraes):

“As praias desertas”: imagens poéticas de imensos horizontes mari-nhos. A harmonia, como não poderia deixar de ser, é de feitio impro-visatório, impressionista. Piano, discreta percussão. Flauta, figuras rítmicas das cordas no registro médio imitam o ranger do carro de bois: “Caminho de pedra”. Nessa melodia encontramos a “Wande-

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rung” dos românticos alemães, a caminhada infinda. A música como que move-se, anda suavemente, ao ponto das palavras expirarem em melismas imponderáveis, à distância (OLIVEIRA, 1959).

Enquanto “Serenata do adeus”, uma balada grave e emocional, não recebe acompanhamento de seção rít-mica, mas um arranjo farto de instrumentos orquestrais, a terceira faixa, “As praias desertas”, tem uma intro-dução com flautas, com acompanhamento de bateria, contrabaixo e piano, este último faz contracantos com a voz durante toda a música. Aliás, como o próprio Vi-nícius de Moraes escreve que o disco é composto por sambas e canções, esta faixa é um samba-canção, por assim dizer, moderno, com acompanhamento leve, sutil. O que o crítico escreve como “discreta percussão” são vários acordes arpejados que o piano faz interpondo-se à voz de Elizete Cardoso. Para ele, esses arpejos são colocados como sussurros. Já em “Caminho de pedra” (Jobim/Moraes), o violão é presente durante toda a mú-sica desde a introdução com a flauta, enquanto que a trompa é o instrumento que imita o ranger do carro de bois, de caráter impressionista. Novamente o crítico faz analogia ao Romantismo alemão, trazendo o disco para o universo clássico, seguindo com sua análise:

“Luciana” apresenta um tempo de valsa, o clássico ¾. Canção embaladora, valsa brasileira. “Janelas abertas” realiza-se através de belíssima poesia, repleta de luz e sombra, cativeiro e libertação da alma. Jobim traduziu perfeitamente o texto de Vinícius. Mui apreciado tornou-se “Eu não existo sem você”. No instrumental, predomina o violão. Rica harmonia das cordas, com apoio de “pi-zzicatti” dos contrabaixos. “Outra vez” é um samba-canção com violinos em contracanto, violão e percussão. Canção nostálgica, dolente, reticente é “Medo de amar”: “Vire esta folha do livro e se esqueça de mim...” (OLIVEIRA, 1959).

Em “Janelas abertas” (Jobim/Moraes), temos novamen-te um samba-canção de caráter pré-bossanovista, em que a voz de Elizete Cardoso compõe o arranjo de for-ma primorosa e envolvente. Apesar de ser um samba-canção, o arranjo leve e inovador de Jobim destoa dos arranjos pesados da época. Aqui, depois da exposição do tema, vários instrumentos se interpõem e tocam a mesma melodia da voz, porém um de cada vez, pro-porcionando diferentes timbres ao arranjo. Em “Outra vez” (Jobim) João Gilberto conduz o acompanhamento da música ao violão, já em “Medo de amar” (Moraes) o arranjo torna-se mais denso, compondo bem a in-terpretação da cantora com a poesia e, finalmente em “Estrada branca” (Jobim/Moraes) Jobim acompanha a cantora ao piano. Nas palavras de Veiga Oliveira: “re-tornamos à natureza, aos espaços infindos e solitários: “Vou caminhando com vontade de morrer...” Ecos da “Winterreise” schubertiana numa paisagem tropical brasileira?” (OLIVEIRA, 1959).

“Vida bela”, para o crítico, “soa quase folclórico em seu modalismo, numa rítmica persistente e sincopada, per-cussão em destaque. Canção praiana, de matizes afri-canos” (OLIVEIRA, 1959). De certa forma, esta canção destoa das outras composições do disco, de sambas e canções, imprimindo um ritmo cadenciado, quase nor-

destino, precedendo em alguns anos à temática samba/morro da bossa nova do começo dos anos 1960, com canções da parceria Baden Powel/Vinícius de Moraes ou mesmo Tom Jobim (“O morro não tem vez”), entre ou-tros. Os acordes menores que se repetem dão essa ideia de modalismo que o crítico escreve. Já a interpretação de “Modinha” (Jobim/Moraes) de Elizete Cardoso só é comparável à de Elis Regina em Elis & Tom (1974), seja pela interpretação grave e intencional de ambas. Para o crítico:

Chegamos à “Modinha”. Que a ninguém iluda o titulo despreten-sioso. Breve concisa na forma, o conteúdo poético é antes trágico, de um supremo desconsolo. “Não! Não pode mais meu coração viver assim dilacerado, crucificado a uma ilusão que é só desilu-são...” Qual segunda voz, paralela e subjacente ao canto, o vio-loncelo funciona magnificamente como apoio da linha melódica, de uma intensidade expressiva que desafia qualquer descrição (OLIVEIRA, 1959).

Não temos dúvida de que o crítico tem conhecimentos musicais, e que não são poucos. E para conseguir fazer uma análise do disco cercou-se de seus conhecimen-tos teórico-musicais para conseguir propor uma com-preensão acerca da obra. Pensamos, aliás, que é essa qualidade que deve ser valorizada em um profissional do jornalismo musical e é tema de pesquisa desta au-tora (Bollos, 2007). Como dar conta de uma obra sem o conhecimento específico de música? Vimos, acima, que Oliveira se cercou de conhecimentos sobre a canção ale-mã Lied para fazer um paralelo com o disco de Elizete Cardoso, visto que o próprio crítico se indaga de onde provém aquele disco, do ambiente erudito da música ou do popular. O que nos surpreende é que ele, ao comen-tar cada música, consegue compor o instrumentário de cada faixa magistralmente, propondo uma escuta aten-ta, construtiva, impensável para os padrões atuais de crítica musical. Aliás, será que não poderíamos afirmar que também para os padrões de crítica musical da época (1959), sua análise era bastante diferenciada? Acredita-mos que para escrever críticas jornalísticas na imprensa, não basta somente escrever bem, mas acima de tudo, ter conhecimentos musicais que o ajudem a entender a mensagem da obra. E, para finalizar seu texto, Veiga Oliveira assertivamente afirma:

Por fim, a “Canção do amor demais”, que dá o título à coletânea, não destoa do caráter conciso, sentido e dolorido da precedente composição. Sobre fundo musical reticente, o violoncelo revela a infinita riqueza de suas possibilidades, ao sustentar todo um edi-fício harmônico. Palavra e música dão-se idealmente as mãos. A obra de Vinícius-Jobim é um marco da música brasileira contem-porânea (Oliveira, 28/02/1959).

Apesar de tentar evitar equiparações entre obras defi-nitivamente incorporadas ao patrimônio artístico uni-versal, Oliveira profetiza sobre a dupla Jobim-Vinícius, “sobre o qual só o tempo dirá de sua permanência no repertório”. E parece que o tempo acabou mostrando que o crítico tinha razão, pois a parceria Jobim/Vinícius tornou-se uma das mais importantes obras da música popular brasileira.

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BOLLOS, L. H. Canção do Amor Demais: marco da música popular brasileira contemporânea. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.83-89.

4. Considerações FinaisTanto o texto de Vinícius de Moraes na contracapa do disco quanto a crítica de José da Veiga Oliveira para o jornal O Estado de S. Paulo reforçam a importância desse disco de Elizete Cardoso para o desenvolvimento da música popular brasileira. Ambos demonstram que a fronteira existente entre o popular e erudito fica me-nos evidente por conta do alto grau composicional das canções e pelos arranjos assinados por Jobim. Não por acaso esses dois textos de Vinícius de Moraes e Veiga Oliveira são colocados lado a lado neste trabalho a fim de que vários aspectos, sobretudo musicais, possam ser avaliados em Canção do amor demais.

O primeiro por ser um dos mentores do disco, autor de letras e de várias músicas, mas também pela represen-tatividade que tem diante da cultura brasileira, de modo geral. Na capa do disco aparece ao lado do nome de Vinícius de Moraes o termo poesia ao invés de letra, da mesma forma no seu texto da contracapa do disco. Já Oliveira impõe à crítica musical um olhar respeitoso diante do disco, o que colabora para a boa compreensão

deste dentro do campo jornalístico, despertando inte-resse em conhecer esta nova obra. Mas, principalmente, por Veiga Oliveira ser um musicólogo e por atuar na im-prensa escrita como crítico de um dos mais importan-tes jornais brasileiros na época, o jornal O Estado de S. Paulo. Ambos perceberam a relevância do disco, tanto do ponto de vista histórico quanto estético, por emergir justamente no momento anterior que o fenômeno bossa nova, propondo um olhar atento às invenções e inova-ções que estavam surgindo.

Mais do que o disco de apresentação da bossa nova, porque, afinal, três grandes mentores do movimen-to musical em constituição estavam juntos no mesmo projeto, Tom Jobim, Vinícius de Moraes e João Gilber-to (como músico), Canção do amor demais é o marco que colaborou para renovar a música popular brasileira. Poucos anos depois o movimento bossanovista viria a se tornar um sucesso internacional sem precedentes na história da nossa música, demonstrando que sambas e canções podem ser levados a sério, com rigor e leveza, onde palavra e música dão-se idealmente as mãos.

Referências BANDEIRA, Manuel. Literatura de Violão. Revista da Música Popular, Rio de Janeiro, n. 10, out. 1955.BOLLOS, Liliana Harb. Um exame da bossa nova pela crítica jornalística: renovação na música sob o olhar da crítica. Tese

de Doutorado. PUC-SP, São Paulo, 2007.CABRAL, Sérgio. Antônio Carlos Jobim: uma biografia. Rio de Janeiro: Lumiar, 1997.CARDOSO, Elizete. Canção do amor demais. Festa. FT 1801. 1958. 1 CD.CASTRO, Ruy. Chega de saudade. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.GILBERTO, João. Chega de saudade. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1959. 1CD.JOBIM, Antônio Carlos. Texto da contracapa do disco Chega de saudade. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1959.MORAES, Vinicius. Certidão de nascimento III. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 29 jan. 1965.________. “Canção do amor demais”. Texto na contracapa do disco. Festa. FT 1801. 1958.OLIVEIRA, José da Veiga. Canções e modinhas nossas. Suplemento Literário. O Estado de S. Paulo, 28 fev. 1959.RODRIGUES, Caetano; GAVIN, Charles. Bossa Nova e Outras Bossas: A Arte e o Design das Capas dos LPs. São Paulo: Viva

Rio/Petrobrás, 2005.

Liliana Harb Bollos é Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP, 2007), Mestre e diplomada em Performance / Piano Jazz pela Kunst Universität Graz, Áustria (1996) e Bacharel e Licenciada em Letras (USP, 1987). Desde 1999 é profes-sora da Faculdade de Música Carlos Gomes onde leciona piano popular, língua portuguesa, harmonia popular e prática instrumental pedagógica. É professora de harmonia popular e percepção no Conservatório de Tatuí e é professora de história da música popular e pianista correpetidora da EMESP Tom Jobim. Como pianista já se apresentou com Al aíde Costa, Mark Murphy, Orquestra Sinfônica de Santo André e Duo Fel, Fernando Corrêa Quarteto, Coralusp e Ruy Castro-Sabá Quinteto, entre outros. Foi professora de piano popular do Festival de Música de Ourinhos (2005) e do Curso de Férias de Tatuí (2007). Com o Quarteto Imago (com Renato Correa, Watson Clis e Fernando Corrêa) já atuou no Festival de Inverno de Ouro Preto (2007), no Projeto SESI Música (Araraquara, Franca e Rio Claro, 2007) e em várias unidades do Sesc. É integrante do Quarteto Sonoro (com Daniel Allain, Fernando Corrêa e Sérgio Schreiber) com o qual foi um dos grupos premiados pelo ProAc da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Tem publicado diversos artigos em revistas (Opus, Contemporânea, Música Hodie, Revista Comunicação & Sociedade, entre outras) e livros (Ensino, música e interdisciplinaridade e Faculdade de Música Carlos Gomes).

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MERHY, S. A. Letra, melodia, arranjo, componentes em tensão em O morro não tem vez... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.90-98.

Recebido em: 27/05/2009 - Aprovado em: 13/03/2010

Letra, melodia, arranjo: componentes em tensão em O morro não tem vez de Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes

Silvio Augusto Merhy (UNIRIO, Rio de Janeiro, RJ) [email protected]

Resumo: O registro fonográfico tornou mais fácil pensar uma produção musical como documento, não apenas como objeto de apreciação estética. A gravação de canções populares permite prontamente decompor, recompor, analisar, destacar partes e pensá-las como objeto pertencente a uma rede social de amplitudes quase infinitas. Ocasionalmente, o modo como se combinam letra, melodia e arranjo faz brotar questões sobre a classificação dos gêneros. O arranjo mu-sical, suporte sonoro da canção, pode colocar em tensão a combinação letra e música e até mesmo deslocar o sentido do conjunto. Algumas das gravações de O morro não tem vez de Tom Jobim e Vinícius de Moraes revelam contrastes e tensões que tornam uma questão permanente o que se classificou como Bossa Nova.Palavras-chave: canção popular brasileira; samba; favelas cariocas; Bossa Nova; Tom Jobim; Vinícius de Moraes.

Lyrics, melody, arrangement: elements in tension in Favela by Antonio Carlos Jobim and Vinícius de Moraes

Abstract: Records have made easier to think over a musical issue as a document, not exclusively as an aesthetic object. Through song recordings it is possible to decompose, recompose, analyze, extract components, etc., and most of all consider them as belonging to a vast social net. Putting together lyrics, melody and arrangement poses the question of classifying genres. Musical arrangements, as a kind of song frame, can break apart the former sense of the combination lyrics/melody. Some recordings of O morro não tem vez by Tom Jobim and Vinicius de Moraes disclose contradictions and tensions in what is called Bossa Nova and make it a permanent question. Keywords: Brazilian popular song; samba; slums in Rio de Janeiro; Bossa Nova; Tom Jobim;Vinícius de Moraes.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010

1 - A fruição e a análise das canções popularesProduzir música tem como principal finalidade proporcio-nar fruição e prazer aos ouvintes. Transformar música em objeto de análise caracteriza-se por ser atividade restrita a um grupo qualificado de pessoas. A audição crítica é deixada de lado quando a fruição e o prazer prevalecem, pois implicam em uma atitude distraída que une música e ouvinte pelas sensações. Contudo, a análise e a crítica po-dem ser estimuladas pelo simples prazer de ouvir música. A determinação de isolá-lo da audição crítica nem sempre é necessária, como ocorre na apreciação musical, em que o gosto está sempre presente, enquanto que na análise isso nem sempre é possível. A análise musical aprofunda a apreciação e transforma todo o processo em objeto, envol-vendo ao mesmo tempo produção, obra e fruição.

No caso específico do analista, ele pode escolher se ouve pelo prazer puro e simples ou se o deixa de lado para

empreender processo de exame, interpretação, reflexão, explicação, etc. A análise pretende isolar o objeto e, de certa forma, distanciar o ouvinte, ele próprio transforma-do em um dos elementos da análise, junto com a fruição.

Quando submetidas ao exame dos estudiosos, surgem nas canções populares, logo ao primeiro olhar, tensões que não são percebidas na simples fruição e que agora, diante do analista, revelam desarmonias intensas entre seus compo-nentes. Antes ocultas ao prazer distraído, as tensões agora surpreendem pela evidência. Os ouvintes muitas vezes nem se dão conta de que a produção de sentido sofre interfe-rências com as desarmonias e desequilíbrios que ocorrem na produção ou nas performances das canções, tanto nas gravações quanto nas apresentações em público.

O conjunto letra – melodia é absorvido pelos consumi-dores com naturalidade, uma espécie de unidade orgâ-

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Em alguns aspectos o ambiente do Rio expõe o marco da divisão urbana, revelando forte tensão entre grupos hu-manos. A divisão e a tensão são visíveis na arquitetura – favela/bairro, no comportamento – violência/cortesia, na produção artística – música de concerto/música do mor-ro. No caso da música a divisão mais óbvia se exemplifica no contraste entre o ambiente da música de concerto, centralizada na programação do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, e o ambiente do samba, fenômeno tri-butário dos morros e das comunidades cariocas, onde se localizam as Escolas de Samba. Em alguns momentos, o contraste entre música de concerto e samba carnavalesco é percebido como realidade indisfarçável. Durante o perí-odo de carnaval, os ensaios do Bloco Cordão da Bola Preta podem ser ouvidos alegremente durante os intervalos dos concertos no Theatro Municipal, localizado exatamente em frente à sede do clube Bola Preta. Outro embate: a Sala Cecília Meireles, importante casa de concertos, está localizada no bairro da Lapa, tradicional reduto do samba e da boemia carioca. Hoje revitalizada, a Lapa concentra agenda significativa de shows de música popular, com su-cesso de público garantido. O samba e o choro podem ser ouvidos até nas calçadas em frente à Sala.

As temporadas de ópera, concertos e ballets com grandes nomes internacionais e estrelas nacionais sempre fizeram parte da programação da música clássica no Rio. O públi-co se interessa pelas assinaturas de temporadas onde os grandes nomes internacionais se somam às estrelas locais.1

A cultura do Samba tem sido noticiada desde o princípio do século com relatos sobre as rodas de samba, os des-files carnavalescos e a formação das primeiras Escolas de Samba. O panteão de nomes do samba tem sido sis-tematicamente cultivado e reverenciado.2

Na cidade do Rio de Janeiro, a música de concerto e o samba não se limitam a constituir apenas opções de pro-grama cultural, marcam comportamentos, modos de vida e até oposições sociais. A menção à temporada de ópera e às escolas de samba aponta para situações extremas, contudo outras situações revelam oposições mais dissi-muladas e contrastes menos intensos entre os gêneros musicais. Alguns deles não carregam marcas tão óbvias de sua origem social. O samba O morro não tem vez de Tom Jobim e Vinícius de Moraes de 1963 (MARCONDES, 1977), em suas muitas versões, expressa os contrastes da cidade partida de forma menos explícita.

3 - Modalidade de ocupação habitacionalA ocupação dos morros é um dos problemas que se eternizaram e que se tornaram característicos do Rio de Janeiro. O descaso perdura no poder público e os moradores tiveram que se adaptar, criando condições de sobrevivência que se naturalizaram através da ge-ografia da cidade, brindada por recorte montanhoso privilegiado. Morro e favela são usados como sinôni-mos, embora favelas tenham sido plantadas também em regiões planas.

nica resultante da união perfeita entre a palavra e os intervalos musicais.

A análise, no entanto, é compelida a considerar que a unidade orgânica de tal conjunto – a canção – não pas-sa na verdade de ideia naturalizada que não se susten-ta frente às suas condições de produção. No nível mais imediato constata-se que letras de músicas podem ser criadas antes, durante ou depois da composição das me-lodias, podem ser agregadas, montadas, modificadas ou simplesmente encomendadas, mudando o sentido da música. Em âmbito mais amplo as canções se colocam numa rede de produção que ata o processo de criação às canções anteriores compostas pelo artista, ao sistema de reprodução das artes em que ele está inserido, aos seus compromissos profissionais, à manutenção da sua ima-gem junto aos pares, à critica, ao público, etc.

Revelar por completo a rede social de relações em que as canções populares estão inseridas não é, por certo, uma aspiração deste estudo, embora tal desejo assom-bre constantemente muitos dos pesquisadores que têm a Música como objeto. Mas há evidências de que a realida-de das relações sociais ou da vida em grupo não pode ser simplesmente omitida ou ignorada, sem que se corram riscos de resultados insatisfatórios. Por isso consulta-se o modo de pensar e de pesquisar dos profissionais de Ci-ências Humanas e Sociais, na esperança de buscar auxílio para as explicações e análises.

A caracterização das práticas musicais, por exemplo, pode se tornar incompleta se, na descrição, o ambiente em que ocorre é desprezado.

É necessário que se descrevam os elementos característi-cos que estruturam o produto artístico considerando-se o seu impacto no mundo social. As funções dos elementos que estruturam a forma artística estão, de algum modo, conectados ao tipo de prática e ao perfil do grupo onde ela ocorre. A análise pode revelar como se dão estas co-nexões e que tensões elas podem criar.

2 - Divisão geográfica e social da cidadeA cidade do Rio de Janeiro, capital federal brasileira até 1959, tem sido vista, muitas vezes, como uma cidade par-tida, sendo o asfalto e a favela uma das metáforas mais eloquentes dessa divisão. A favela, modelo de urbaniza-ção caracterizado pela precariedade, é o ambiente urba-no predominante no recorte montanhoso. A uma partilha que se apresenta visível entre asfalto e favela (o morro constituiu-se como sinônimo de favela) correspondem outras divisões: em classes sociais, em qualidade de vida, em regiões geográficas (a cidade também é dividida em norte-sul), em universos culturais, nas estatísticas poli-ciais. A gênese social e o impacto cultural dessa partilha se perpetuam como marca da geografia, de modo que a luta contra e em defesa das favelas já se consolidou numa história de décadas. E os valores, fruto da partilha, têm sido igualmente combatidos e defendidos.

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A gênese das favelas é explicada por diversas hipóteses. Uma das mais aceitas é a da expulsão dos moradores po-bres, ocasionada pela execução do plano de saneamento e urbanização do Governo Rodrigues Alves (1902-1906). A construção das avenidas Central e Presidente Vargas levou a demolições e impediu que os moradores pobres permanecessem na região saneada.3

Julio César Pino, professor associado do Departamento de História da Kent State University, examinou, no artigo Sources on the history of favelas in Rio de Janeiro, fon-tes documentais que lhe permitiram balizar a ocupação ilegal de áreas no Rio de Janeiro desde 1898. O autor se queixa (PINO, 1997, p.112) de que o maior número de es-tudos foi conduzido por sociólogos estrangeiros, cientis-tas políticos e criminologistas, ressentindo-se da falta de estudos de história social que descrevam como as favelas foram construídas e quem são seus moradores.

PINO (1997, p.111) data 1940 como o marco de uma era ex-plosiva no crescimento das favelas na capital federal. No es-tudo observa-se que a maioria das fontes citadas é da década de 60 do séc. XX, talvez porque, neste período, a preocupação da sociedade e das autoridades tenha se tornado mais aguda. Contudo, a situação das moradias ilegais se mantém até os dias de hoje. O artigo registra levantamento de 1991, produ-zido pelo Instituto de Planejamento do Rio de Janeiro (IPLAN-Rio), mostrando a cidade ocupada por 661 favelas.

As comunidades que habitam as favelas e os bairros po-bres dos subúrbios cariocas são estigmatizadas. As con-dições de urbanização dos morros atestam a ausência do poder público, que pode ser absoluta durante certos mandatos. Em alguns deles prevalece a ideia de transfor-mar as favelas em bairros; em outros, a de transferir os moradores para condomínios especialmente projetados. O interventor Henrique Dodsworth (1937-1945), nomeado prefeito por Getúlio Vargas, pretendia construir Parques Pro-letários Provisórios, projeto político do governo federal. Tal-vez tenha sido o primeiro prefeito a planejar a transferência dos moradores das favelas para condomínios ou bairros.

A Praia do Pinto4 era uma favela à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, plantada ao nível do mar, em uma das regiões mais nobres da cidade, conhecida hoje pelo mais alto índice de desenvolvimento humano. Em 1955 Dom Hélder Câmara, bispo de Recife e bispo auxiliar do Rio de Janeiro, lançou a Cruzada São Sebastião, condomínio construído no bairro vizinho do Leblon, para abrigar os moradores da favela Praia do Pinto. O condomínio existe até hoje encravado no bairro.

O prefeito Carlos Lacerda (1961-1964) desenvolveu pro-jeto semelhante de transferência compulsória dos mora-dores de todas as favelas da cidade. No projeto, objeto de grande polêmica, foram criados vários bairros nos subúr-bios do Rio. Talvez tenha sido o momento em que mais moradores foram transferidos em toda história da cidade. A deputada Sandra Cavalcanti, encarregada da Secretaria

de Serviços Sociais da Prefeitura, tem sido até hoje acu-sada de causar o despejo truculento dos moradores.

O deslocamento gradual das favelas dos morros para os subúrbios ainda está na ordem do dia. Os estudos das demandas dirigidas pelos moradores das favelas ao po-der público mostram deficiência na oferta de serviços como escolas, luz elétrica, redes de água e esgoto, gás encanado, telefone, correio, etc.

As soluções para os problemas de moradia no Rio de Janeiro têm sido encaminhadas por visões antagônicas: retirada (quase sempre truculenta) de moradores para condomínios especialmente destinados a esta população ou urbanização dos locais de ocupação.

Nos bairros pobres a presença da autoridade do Estado pode ser sentida, mesmo que de forma incipiente. Entre-tanto, nas favelas ela sempre se caracterizou pela au-sência. A ideia de transformar as favelas em bairros se assumiu como projeto governamental a partir de 1994.5 A ideia de favela-bairro resulta da discussão de legalizar as favelas e tratar este modo de ocupação como modali-dade não totalmente condenável.

4 - A favela como temaA ideia de “resgatar a cidadania” através de projetos culturais tem sido muito difundida nas duas últimas dé-cadas. Variados projetos com variadas feições culturais surgem em todos as localidades brasileiras, inclusive por iniciativas governamentais. Nas favelas do Rio, alguns deles ficaram bem famosos, como o Grupo Cultural Afro reggae, ONG localizada no bairro de Vigário Geral.6

Outra ideia de promover a cidadania utiliza a defesa da cultura local, dos valores dos próprios moradores das “comunidades”. Não só os intelectuais e o governo como os próprios moradores fazem essa defesa, usando o discurso da autenticidade para valorizar sua cultura. “Comunidades”, termo que atualmente designa os gru-pos sociais que habitam favelas, têm surgido em muitas outras cidades brasileiras, não só no Rio. Mas é a marca simbólica das favelas e morros cariocas que mais forte-mente tem repercutido na sociedade e ganhado visibili-dade nos meios de comunicação.

O samba, há tempos elevado por consenso a traço de iden-tidade nacional, é historicamente associado à gente que vive nas favelas e nos morros cariocas. É um gênero musi-cal exaltado como produto de prestígio para as “comunida-des” e incensado como criação “autêntica” destes grupos.

“Morro”, “favela”, ”barracão” aparecem em muitas letras de sambas e de outros gêneros de canções brasileiras. Em muitas situações a presença dessas palavras é percebida como proselitismo ou como retórica em defesa de de-terminados grupos sociais. Em certas canções elas têm o fito de propagar os valores éticos das “comunidades” e concorrer para elevar o mérito artístico das músicas.

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Canções populares com esses temas foram produzidas já nas primeiras décadas do século XX, algumas os ex-puseram até nos títulos, como os sambas: Favela, de Roberto Martins e Valdemar Silva (lançado em 1936); Ave Maria no morro, de Herivelto Martins (lançado em 1942); Barracão de Luis Antonio e Oldemar Magalhães, (samba carnavalesco lançado em 1953).7 Alguns deles são tocados ainda hoje, outros já estão esquecidos. É possível compor lista numerosa, com canções de gêne-ros variados sobre o mesmo tema.

No início dos anos 60, nos ambientes onde as canções populares eram produzidas, o tema da ocupação ilegal para moradia transbordou das letras de canções e ganhou tons de radicalização e de conflito público de ideias entre os compositores e cantores.

5 - o samba O morro não tem vez e a escolha das gravaçõesO samba O morro não tem vez de Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes se destaca na numerosa lista sobre o tema por características que variam de gravação para gravação. Selecionamos algumas das que podem eviden-ciar as diferentes concepções e as contradições que co-locam em questão a coesão da própria criação. O samba tem sido gravado e regravado em diferentes épocas e em diferentes situações. Ao ser examinada de perto, a his-tória de suas gravações mostra que o seu sentido sofre mudanças e se transforma sensivelmente.

O jornalista Sérgio CABRAL (1997, p.497) listou trinta e oito (38) lançamentos diferentes de O morro não tem vez. Examinamos aqui apenas seis deles, entre 1963 e 2004. A escolha recaiu sobre gravações que apresentam fortes contrastes. Há contrastes no perfil dos artistas de capa, na concepção e estilo dos arranjos, nas condições de gravação, no lançamento e consumo da canção. Duas das gravações examinadas, as dos Cds do BR6 (2003) e do Garrafieira (2004), não aparecem na lista de Sérgio porque foram feitas após a edição do seu livro. Garra-fieira e BR6 são grupos musicais formados por músicos cariocas jovens, mas experientes. O Garrafieira nasceu com a marca de ser predominantemente instrumental e o BR6 exclusivamente vocal. Os integrantes do BR6 con-tam que o grupo nasceu sob a inspiração do conjunto vocal americano Take 6.

O cantor Jair Rodrigues incluiu O morro não tem vez como faixa do Lp O samba como ele é; Elis Regina incluiu-a no pot-pourri final do Lp No fino da bossa – ao vivo – vol.1 (Agostinho dos Santos canta O morro de Tom Jobim e Billy Blanco de 1955 [MARCONDES, 1977] na mesma faixa); Antonio Carlos Jobim estreou como cantor na faixa Fave-la incluída no Lp The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim, com Nelson Riddle e sua orquestra; o próprio com-positor criou para Favela belo solo de piano no Lp Antonio Carlos Jobim, the composer of Desafinado plays, gravado e distribuído nos Estados Unidos e reeditado no Brasil pela Elenco com o título de Antonio Carlos Jobim; no Cd BR6

o samba aparece como um dos vocais do grupo; no Cd Garrafieira ele surge na voz de Mariana Bernardes. A letra do samba é um dos aspetos importantes da análise:

O morro não tem veze o que ele fez já foi demaisMas olhem bem vocêsQuando derem vez ao morroToda a cidade vai cantarMorro pede passagemMorro quer se mostrarAbram alas pro morroTamborim vai falarÉ um é dois é três é cem é mil a batucarO morro não tem vezMas se derem vez ao morroToda a cidade vai cantar

6 - o poeta autor da letraA letra do samba é o elemento que, através da voz dos artistas, permanece inalterado em todos os registros. O autor da letra de O morro não tem vez, o poeta Vinícius de Moraes, não se envolveu com a canção popular brasileira da mesma maneira que Tom Jobim. Envolveu-se também intensamente, mas atuou de forma diferente. A peça Or-feu da Conceição, escrita por Vinícius, manifesta de forma explícita a defesa cultural dos valores das comunidades do Rio de Janeiro. A associação da etnia às favelas e ao samba permanece ainda hoje no nosso imaginário de modo muito semelhante ao que ele concebeu.

A criação e a produção de Orfeu da Conceição, encenada por atores negros, marcaram um episódio notável na bio-grafia de Vinicius. O próprio poeta descreveu como nasceu a ideia da peça, quando se sentiu “particularmente impreg-nado pelo espírito da raça”,8 quando guiava um amigo, o escritor americano Waldo Frank, em visita à favela da Praia do Pinto.9 Os ritos de macumbas nas favelas, assistidos por ele, tinham algo a ver com a Grécia clássica. Sua intenção foi então prestar uma “homenagem ao negro brasileiro”. O texto foi entendido como uma elevação dos dramas da po-pulação negra do Rio de Janeiro à condição de “universali-dade”. Além de uma carreira teatral de sucesso, tornou-se argumento da produção cinematográfica francesa L´Orfée nègre, filme premiadíssimo de Marcel Camus lançado no Brasil com o título de Orfeu do Carnaval.10 A montagem da peça reuniu os nomes dos artistas mais importantes na época, como Oscar Niemeyer para a cenografia e Tom Jobim para a música. A universalidade do drama foi enfa-tizada pelo teatrólogo Guilherme Figueiredo no programa da peça, que associa Orfeu, o músico grego, ao carioca da Conceição, o músico do morro.

7 - A canção transfigurada O morro não tem vez não faz parte do Lp Músicas do Orfeu da Conceição,11 mas tem a mesma fonte de inspiração, apesar de ter surgido bem depois.

A primeira gravação foi feita em 1963, na voz de Jair Rodri-gues, paulista do interior que chegou a São Paulo durante a década de 1950. O cantor ganhou fama nos anos 60, no

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apogeu da Bossa Nova e seu maior sucesso, Deixa isto pra lá, lançado em 1964, é considerado o primeiro rap brasi-leiro. O morro não tem vez é faixa do Lp O samba como ele é,12 ao lado de O que se leva desta vida de Pedro Caetano, Meu fraco é mulher de Heitor de Barros e Conde e Feio não é bonito de Gianfrancesco Guarnieri e Carlos Lyra. O morro não tem vez de Tom Jobim e Vinicius de Moraes é a oitava faixa. O arranjo desta gravação é, dentre os comentados, o único que não chama a atenção para a harmonia. Lembra os arranjos estilizados dos programas de auditório das Rá-dios, com vocal feminino e naipe de metais. A introdução com cavaquinho pretende mostrar que a origem do samba está nos morros cariocas e continua na Zona Norte da ci-dade. Não há cavaquinho na Bossa Nova.

No registro de Jairo SEVERIANO e Zuza HOMEM DE MELLO (1998, v.2, p.70) o sucesso de Jair Rodrigues está listado no mesmo capítulo em que estão resenhados os mais famosos títulos criados por Tom Jobim e Vinicius de Moraes: Garota de Ipanema, Samba do avião, Só danço samba. O título do Lp O samba como ele é reivindica au-tenticidade (o samba como ele realmente é), e contém re-pertório constituído basicamente de canções compostas por compositores não originários da Zona Sul do Rio de Janeiro, sem nenhuma semelhança com os sambas len-tos e intimistas. A maioria dos compositores que criaram os sambas lentos da Bossa Nova morava na Zona Sul da cidade ou circulava por ela. Tom Jobim, o compositor de maior prestígio, sempre habitou a Zona Sul. Jair Rodri-gues e os compositores listados no seu Lp certamente não faziam parte deste grupo.

A sua participação no programa O fino da bossa, propor-cionou-lhe um público mais amplo. A dupla Jair/Elis gra-vou inicialmente o Lp Dois na Bossa, cujo sucesso resultou na criação do programa, estreado em maio de 1965 com grande e duradouro sucesso. Do programa surgiram três Lps intitulados No fino da bossa e comercializados até hoje. Em 2000, Jair voltou a reviver o clima extrovertido das gravações de 1965 e apresentou O morro não tem vez em show para reverenciar o Lp Dois na bossa. O pot-pourri 13 final de No fino da bossa - ao vivo – vol.1, cantado por Elis Regina, Elza Soares, Lucio Alves e Agosti-nho dos Santos, foi gravado em 30/11/1965 e tem o “mor-ro” como tema. A faixa reúne, além de O morro não tem vez, Despedida da Mangueira de Benedito Lacerda e Aldo Cabral, Zelão de Sérgio Ricardo e O morro de Tom Jobim e Billy Blanco. O samba-canção O morro, gêmeo musical de O morro não tem vez, é anterior e foi criado por Tom Jobim para a Sinfonia do Rio de Janeiro.14 É menos conhecido, mas faz também a defesa dos “valores do morro” não re-conhecidos pelo “asfalto”. Está presente no pot-pourri pela voz de Agostinho dos Santos, que se apresentou, junto com os demais, como convidado do programa O fino da bossa, da TV Record, liderado por Elis Regina e Jair Rodrigues, em parceria. O ambiente da gravação é de festa e alegria eu-fórica e não de protesto. A expressão vocal de Elis é cheia de bossa (o mote do programa), com trêmulos e outros recursos vocais, que por vezes soam exagerados ou inade-

quados. Contudo o conjunto oficial do programa, o Zimbo Trio,15 saiu de cena substituído por um acompanhamento ao violão, o qual lembra o clima intimista da Bossa Nova, criando contrastes quando a euforia toma conta do grupo, mantendo o caráter suave, melancólico e, com a voz de Agostinho dos Santos, bastante lento em O morro.

Elis Regina (1945-1982) mantém-se ainda hoje como o modelo mais almejado de cantora brasileira. Sua carreira artística é muito conhecida e muito difundida. Durante o período em que atuou no Fino da Bossa na TV Record predominou, na sua interpretação, o estilo extrovertido de cantar, com energia em excesso e muita movimenta-ção de palco. O Zimbo Trio, que a acompanhou durante vários programas, também não se caracterizava por um estilo intimista ou jazzístico e se expressava no palco com muita intensidade, sem preocupação com sutilezas de dinâmica. Dez anos mais tarde, em Los Angeles, Elis gravou com Tom Jobim um dos discos mais famosos e reverenciados da MPB: o Elis e Tom (1974), tornado um ícone da Bossa Nova, por sua sonoridade contida, sutil e delicada em todas as faixas. O cuidado da produção, que transparece em todas as músicas, marca ainda mais o contraste entre o clima expansivo do programa ao vivo da TV Record e o disco de 1974.

No pot-pourri do Fino da Bossa, o tema do morro não pa-rece ter sido escolhido como expressão de luta em defesa dos grupos sociais, dos moradores de favelas submetidos a condições de vida desfavoráveis. No entanto, reafirma o gosto pelo samba e mostra a sua força de comunicação na televisão, para um público mais diversificado e numeroso, não restrito à classe média moradora da Zona Sul do Rio. O samba de Elis, extrovertido, alegre e com muita bossa, não se assemelha ao ambiente das escolas de samba e dos compositores tradicionais dos morros do Rio. Sua atuação no auditório da Record não nos faz nem de longe pensar com indignação na situação dos favelados do morro.

O Lp The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim, com a voz de Tom Jobim e arranjos de Nelson Riddle,16 foi gravado e lançado nos Estados Unidos pela companhia Warner, ten-do como artista de capa o compositor brasileiro. Tom assi-nou contrato com a gravadora e Nelson Riddle foi indicado para escrever os arranjos. Foi uma escolha ambiciosa, pois Riddle era um dos mais conhecidos arranjadores america-nos, responsável pelos discos dos cantores e cantoras mais famosos dos Estados Unidos e do mundo. O arranjador era também conhecido no Brasil, em parte pelos fãs que compravam discos de Sinatra e de Nat King Cole. O morro não tem vez, cujo título foi traduzido para Favela, fez parte do repertório selecionado para o disco. A tradução literal para o inglês – Somewhere in the hills – está registrada na Ipanema Music Co, sociedade pertencente ao produtor americano Ray Gilbert e é mencionada por Sérgio CABRAL (1997, p.245). Mas o título escolhido para os dois discos produzidos nos Estados Unidos, Antonio Carlos Jobim, the composer of Desafinado plays e The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim, foi mesmo Favela, abandonando-se

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Somewhere in the hills. É fácil entender que uma tradução literal poderia se afastar muito da ideia inicial de morro como sinônimo de favela e não como uma colina genérica, que em certas regiões é local de moradias de privilegiados e não de necessitados. O trabalho de Riddle foi recebido com restrições, mas se houve falhas não foi por desmerecer o “samba de morro”, que jamais surgiria ali, mas por desen-tendimentos quanto à estética bossanovista que deveria predominar. Tom Jobim teria se queixado, mas concordou em cantar, deixando notar um certo constrangimento. Talvez a canção brasileira, imaginada por Riddle, tivesse semelhança com os modelos americanos de gravação dos grandes astros ou das canções românticas feitas para dan-çar. O que se ouve em Favela, no Lp The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim, é um samba acompanhado por big band, escapando tanto da Bossa Nova quanto do “samba de morro”. Só que escapar do “samba de morro” não parece ter contrariado ninguém.

O Lp Antonio Carlos Jobim da Elenco, instrumental, com solo de piano de Tom Jobim e arranjos de Claus Oger-man,17 foi lançado em reedição no Brasil em 1964, um ano depois do elogiado lançamento da matriz americana com o título de Antonio Carlos Jobim, the composer of De-safinado plays. Um dos objetivos da reedição foi sem dú-vida a sofisticação e a qualidade da produção, apreciada pelo próprio compositor. A sua insatisfação com Nelson Riddle18 e a sua satisfação com o trabalho de Claus Oger-man revelam a face mais sofisticada da música brasileira, a face que, para muitos, a aproxima do jazz.

Tanto que, o resultado do Lp, também distante do “samba de morro”, deixou a todos entusiasmados com o traba-lho do arranjador e com o estilo instrumental jazzístico que predomina no álbum. O próprio produtor, Aloysio de Oliveria, assinou a contracapa brasileira e Claus Ogerman tornou-se arranjador muito prestigiado por aqui, requisi-tado tanto por Tom Jobim como por João Gilberto.19

A letra brasileira de O morro não tem vez desapareceu na gravação e com ela sumiram as reivindicações. O estilo ins-trumental desautoriza pensar em qualquer conexão possí-vel com os versos do samba. O título Favela permanece nos créditos, mas soa exótico e distante.Talvez o compromisso político de Tom Jobim com a luta contra as partilhas so-ciais injustas não fosse tão intensa quanto o do parceiro Vinícius, embora as relações profissionais e de amizade entre os dois o fossem. Considerando-se este dado, não teria sido dramático o abandono da letra na concepção do arranjo e da gravação americana de Claus Ogerman.

8 - os elementos de tensão não evidentes A ideia da “influência do jazz” surge quase sempre associada a um estilo harmônico determinado. Nas duas gravações de Favela, apresentadas com arranjos de Claus Ogerman e de Nelson Riddle, a harmonização mais simples é a de Claus Ogerman, que por ser instrumental, parece ao contrário bem mais jazzística do que a de Nelson Riddle, mais orquestral e harmonicamente mais elaborada. Nela se fundem o estilo

jazzístico e a qualidade musical. A crítica muito elogiosa na review de Pete Welding, o autor do texto disponível na con-tracapa de Antonio Carlos Jobim da Elenco, fala em “bossa nova movement”. Pete WELDING (1963) afirma que

Este é o álbum mais ‘curiosamente refrescante’. Curioso porque, durante todo o disco, Tom Jobim se apresenta como solista no es-tilo de one-finger piano. Refrescante porque é um dos álbuns mais cheios de lirismo, mais encantadores e deliciosos que resultaram da onda da bossa nova, a qual nos tem inundado no último ano.20

O texto elogia apenas o Tom Jobim melodista e instrumen-tista. O songwriter Tom Jobim e o letrista Vinícius foram deixados de lado. One-finger piano é um elogio porque se refere ao despojamento da execução, cuja qualidade está no puro “feeling”. Aloysio de Oliveira escreveu, na contracapa, um breve texto de apresentação para dar espaço à crítica da revista Downbeat,21 inserida no original e na íntegra.

A harmonização que se ouve nas gravações é um dos ele-mentos que geram tensão, principalmente considerando-se o proselitismo da letra. Esta afirmação não se aplica à gravação de Jair Rodrigues em que o elemento principal é a letra. Não há nenhuma menção ao jazz ou à Bossa Nova. O morro é o foco.

A harmonia utilizada nos discos Antonio Carlos Jobim da Elenco e No fino da bossa com Elis Regina ainda mantém a relação diatônica com a melodia como predominante, enquanto que nas outras gravações predominam a ree-laboração e a rearmonização. A progressão harmônica Am7 Em7 em modo menor natural, que harmoniza o iní-cio do samba no Lp Antonio Carlos Jobim, não é comum nas canções brasileiras gravadas na mesma época ou em épocas anteriores, mas tampouco contém as dissonâncias acrescentadas nas rearmonizações. Se examinarmos Fa-vela, de Roberto Martins e Valdemar Silva, Ave Maria no morro de Herivelto Martins e Barracão de Luis Antonio e Oldemar Magalhães veremos que o estilo harmônico é outro. A utilização do modo menor natural, que propor-ciona à melodia um sabor modal através do uso do V grau menor Em7, não fazia parte do vocabulário de acordes da maioria dos sambas. A harmonia inicial do pot-pourri de No fino da bossa acrescenta o acorde E7 produzindo dis-sonância de nona aumentada com a nota Sol da melodia.

A harmonização, aparentemente despretensiosa já propor-ciona, entretanto, um ambiente jazzístico na progressão do final da segunda parte F7(#9) E7(#9) D7(#9), com a cadên-cia em D7(#9), IV grau do modo menor melódico com nota estranha ao acorde. A progressão final descrita aparece em todas as gravações, completamente incorporada à melodia.

Os arranjos posteriores seguiram alterando a harmonia. No disco The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim a faixa Favela foi rearmonizada e sofisticou-se ainda mais. A har-monia inicial abandonou o modo menor natural, preferindo A7 Bb7 A7 Bb7, a mesma progressão escolhida pelo con-junto BR6. O grupo Garrafieira preferiu utilizar a harmoni-zação A7 G7 A7 G7 A7 G7 A7(#9) Dm7 G7(13) C#m7 C7 F6 E7 Am7 Em7 Am7. É esta a harmonização escolhida para

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a transcrição apresentada na coleção de Almir Chediak Tom Jobim (JOBIM, [1990], v.1, p.89). Em todos os padrões descritos, a dominante E7 é pouco efetiva, porque a sen-sível Sol # não é usada na melodia. O estilo predominante nas harmonizações tende a causar a impressão de que a harmonização “esqueceu” a retórica da letra, que profetiza que ”Quando derem vez ao morro toda a cidade vai cantar”. O contraste entre o estilo harmônico e a letra é evidente.

O arranjo ao vivo para Elis Regina No fino da bossa parece ainda acreditar que o canto do morro vai descer para o asfalto. Já no arranjo de Nelson Riddle para The Wonder-ful World of Antonio Carlos Jobim não há nenhum tambo-rim e a percussão e os metais soam pesadamente sem ne-nhuma conexão com a letra. As cordas não lembram nem o samba nem o balanço da bossa. Teria a linha melódica predominado sobre a letra e absorvido toda a atenção do arranjador americano? Parece ser um divórcio que se acentua ainda mais na gravação do Lp Antonio Carlos Jo-bim ao piano. O solo de piano se ambienta em um espaço no qual a “comunidade” do morro, acompanhada por mil tamborins, jamais se sentiria em casa. O feeling é, sem dúvida, mais adequado aos clubes dançantes do que à paisagem das favelas. Há certamente quem possa pensar que a favela ganha “universalidade” quando inspira músi-ca capaz de sensibilizar pessoas tão distantes quanto um crítico exigente da revista Downbeat.

O morro cantado pelo Garrafieira e pelo BR6 não causa espanto nem é desconcertante. Seguem o modelo de va-lorização da harmonia e das notas estranhas aos acordes. Embora haja semelhança quanto à valorização da harmo-nia e quanto ao gosto por acordes alterados, são grava-ções que reproduzem climas bastante distintos, BR6 cultiva o gosto pelas alterações de maneira semelhante à que o grupo Os Cariocas o fez nos anos 50 e 60. A tradição dos grupos vocais na canção popular brasileira é tributária dos grupos americanos e de Os Cariocas. São as duas prin-cipais referências na elaboração dos arranjos vocais, mesmo quando se percebe o balanço da bossa aflorando na voz do solista Eduardo Braga e a batucada ilustrando no início da faixa a origem do samba. O arranjo de André Protásio mantém a tendência de valorização da harmonização com acordes alterados, desenvolvida pelos Cariocas e retomada pelo Garganta Profunda, grupo de grande prestígio nas últi-mas décadas, criado pelo regente Marcos Leite.

Os arranjos vocais têm destinação prévia específica. São direcionados desde a concepção para o grupo que vai can-tá-los, de modo que o tipo de conjunto funciona como um dado previamente conhecido. Talvez por essa razão sejam menos autorais e mais instáveis ainda que os orquestrais.

Garrafieira se caracteriza por cultivar o samba urbano, so-bretudo na forma instrumental, porém, apesar disso, con-vocou a cavaquinista e vocalista Mariana Bernardes para o solo vocal de O morro não tem vez. O Cd, que valoriza os instrumentistas, não dispensou a presença da letra de Vinícius de Moraes na faixa gravada. De todas as gravações já mencionadas, esta é a mais movimentada e animada,

sendo tocada em andamento mais rápido que as demais e tendo o swing como elemento importante. O balanço apreciado na época em que se gravou No fino da bossa fez um longo percurso até o swing proposto pelo Garrafieira. Nas duas gravações, não só os arranjos são bem distintos, como a maneira de tocá-los também. A harmonia, bastan-te valorizada pelo Garrafieira, e o andamento mais rápido, imprimido pelos instrumentistas do grupo, garantem para o samba a possibilidade de ser ouvido de outra maneira.

Do ponto de vista dos ouvintes parece aceitável que uma harmonia bastante sofisticada possa sustentar po-esia tão cheia de proselitismo. O gosto pela harmonia sofisticada está bastante difundido e permite, sem so-bressaltos ou contrariedades, o seu casamento com a defesa dos ideais sociais.

9 - Considerações sobre uma prática naturalizadaA naturalização das categorias musicais ocorre como um processo constante. Algumas são construídas durante anos, outras durante décadas, sancionadas pelas estrutu-ras políticas, culturais ou educacionais.

A letra é o elemento mais estável da canção. Sob este ponto de vista, é o componente mais importante, porque a identifica e restringe as possibilidades de adaptação ou modificação dos versos.

No entanto, é preciso assinalar que a sua conexão ple-na com a melodia e a harmonia pode ser questionada. Sabemos que o choro Carinhoso de Pixinguinha, criado em 1917 como peça instrumental, recebeu apenas em 1936 a letra de João de Barro que conhecemos.22 Muitos compositores oferecem suas músicas para poetas colo-carem letras ou, em movimento oposto, compõem melo-dias para letras já existentes. Podemos fazer uma longa lista de situações semelhantes ou contrastantes com esta. Algumas canções estrangeiras tornam-se grandes sucessos e, depois de receberem a versão em português, são apropriadas pelo público como brasileiras. As ver-sões em português são às vezes as únicas gravações conhecidas pelo público. A cantora Marisa Monte fi-cou famosa com o pop Bem que se quis do italiano Pino Daniele com versão de Nelson Motta, tocado na trilha sonora da novela da Rede Globo O salvador da pátria de 1989. O original italiano E po che fà pouco se conhece.

O que chama a atenção não são as situações eventuais, mas o fato de que, mesmo dispondo desta informação, mantemos como real a ideia de que a canção possui uma unidade orgânica de pertencimento recíproco: aquela le-tra pertence àquela canção e aquela canção àquela letra.

Na prática ocorre que a canção é criada entre percalços reais, que apagamos da memória em favor da ideia de uma unidade orgânica natural. Acionada, a ideia de or-ganicidade ganha existência e age sobre a canção dando vida a um produto “pronto”.

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A canção – unidade de melodia e letra – é resultado de naturalização tanto quanto o é o arranjo musical, cujas definições disponíveis ainda são insuficientes para dar conta de suas especificidades e para caracterizá-lo como prática distinta da criação musical e da composição.

Os arranjos musicais são de fato composições porque são criações, que, escritas ou não, corporificam o mo-mento da produção musical. O ponto de vista que con-sidera que o arranjador é um técnico coloca em risco a figura do artista criador, personagem social muito valorizado. Os produtos dos arranjadores ainda não se definiram como obras autorais porque só interessam aos instrumentistas que os executam, sendo sua função restrita a esse momento. São tratados como trabalho derivado e não como obras autorais autônomas, pois a dimensão autoral se esvai após a performance.

No momento da produção de um disco, o artista que se anuncia é o cantor e não o arranjador. É o cantor que dá nome ao disco, associado ao compositor das canções, a eles se atribui função autoral. Eles são os artistas e não o arranjador, transformado num colaborador a soldo.O arranjo interfere na produção da canção como obra de criação e tem força de significação para produzir sentido e modificar a própria canção. No entanto, se aceita com tranquilidade a sua condição de categoria técnica e de trabalho derivado, naturalização que afasta a possibilida-de de inconformismo ou de luta efetiva pela condição de obra artística e por um lugar no âmbito da arte musical.

Nas gravações de O morro não tem vez os arranjos foram determinantes e interferem significativamente no sentido

que se produz. A ênfase reiterada dos arranjos nas notas estranhas à harmonia diatônica não fez com que se dei-xasse a canção de lado, mas antes parece ter estimulado as regravações, que se renovam desde 1970. É a melhor comprovação de que a existência de contrastes e tensões entre elementos de uma mesma peça pode não causar estranheza nem se transformar em fator de rejeição. É possível a aceitação de grandes contrastes no perfil dos artistas de capa e na concepção e no estilo dos arranjos. Também são bem absorvidas as estratégias de gravação, divulgação e consumo, elementos que certamente deter-minam o tipo de produto que se quer distribuir.

Não há do que se queixar. O samba continua sendo gravado com sucesso e continua seduzindo músicos e ouvintes que desprezam todas as contradições e incon-gruências. Ele permite que os arranjadores ajam como compositores de fato.

Nem o próprio compositor, Tom Jobim, parece ter re-clamado das transformações. Ao contrário, deve ter apreciado as harmonizações, pois a revisão dos song-books, que contém rearmonizações da canção, passou, é claro, pelas suas mãos. A preocupação com a “pre-servação de valores autenticamente brasileiros”, com a “música de raiz” e com a “identidade do samba” ainda não abalou o gosto por O morro não tem vez, nem sen-tenciou sua rejeição.

Se for escrita uma história da recepção das suas grava-ções talvez se revele mais claramente como estas lutas de representação se mantêm apaziguadas, pelo menos o suficiente para não perturbarem o prazer dos ouvintes.

ReferênciasCABRAL, Sérgio. Antônio Carlos Jobim. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumiar, 1997.CALDEIRA, Jorge (org). A história contada por quem viu. São Paulo: Mameluco, 2008.CASTELLO, José. O poeta da paixão. Rio: Companhia das Letras, 1999.JOBIM, Tom. Song book Tom Jobim. Org. Almir Chediak. S. Paulo: Lumiar, [1990]. 3 v.MARCONDES, M.(org). Enciclopédia de Música Brasileira. S.Paulo: Arteditora, 1977. 2v.PINO, Julio C. Sources on the history of favelas in Rio de Janeiro. Latin American Research Review, Vol. 32, No. 3 pp. 111-122.

Pittsburgh: The Latin American Studies Association, 1997.SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo. 2. ed. S. Paulo: Editora 34, 1998, 2 v.WELDING, Pete. Antonio Carlos Jobim. Texto na contracapa do disco. Elenco ME-9, 1963.

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DiscografiaBR6. BR6. Biscoito Fino, 2003. GARRAFIEIRA. Garrafieira. Biscoito Fino, 2004.JOBIM, Antonio Carlos. Antonio Carlos Jobim. Elenco ME-9, 1963. _____. Antonio Carlos Jobim, the composer of Desafinado plays. Verve, 1963._____. The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim. Warner WS 1611, [1965]._____. Antonio Carlos Jobim com Nelson Riddle e sua orquestra. Elenco MEV06, 1965.REGINA, Elis. No fino da bossa - ao vivo – vol.1. Cd- Velas BR - 11-V030.V1, 1994.RODRIGUES, Jair. O samba como ele é. Lp Philips (P 632.162 L), 1963._____. 500 anos de folia – vol.2. Trama T500/196-2. Cd, 2000.

notas1 O Theatro Municipal do Rio de Janeiro informa no seu site que, no seu concerto de estreia, a Orquestra Sinfônica do Theatro teve como solista o

tenor italiano Tito Schipa, sob a regência de Francisco Braga. O compromisso de temporadas de óperas, concertos e ballets que incluem artistas internacionais se formou desde o momento da inauguração do Theatro.

2 Paulo da Portela é personagem principal nas histórias do samba. Ele compõe verbete da Enciclopédia de Música Brasileira onde se descreve com muitas cores a sua participação nos desfiles carnavalescos e nas rodas de samba do subúrbio de Osvaldo Cruz.

3 Interessante a introdução e a reportagem sobre a revolta da vacina no livro organizado por Jorge CALDEIRA (2008, p.447).4 A favela da Praia do Pinto teria inspirado Vinícius de Moraes a criar a peça Orfeu da Conceição. (c.f. nota 8)5 Informações completas no site da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, que idealizou e executa o projeto favela-bairro. (www.rio.rj.gov.br/

habitat/favela_bairro.htm)6 No site do Grupo Cultural aparecem os dísticos “Música para combater a violência” e “Arte para transformar a realidade”.7 As datas estão todas indicadas no livro de Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello.8 A declaração aparece no programa da montagem de estreia da peça.9 José CASTELLO (1999, p.125), seu biógrafo, descreve também a visita à favela.10 O cineasta francês Marcel Camus transpôs Orfeu da Conceição para o cinema com o título de L’Orphé Nègre e teve uma premiação triunfante

em 1959, a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro, representando a França. Foi uma excelente divulgação para a música de Tom e Vinícius e para a canção popular brasileira.

11 Long Play 10”, Odeon MODB 3056, lançado em 1956.12 LP Philips P 632.162 L.13 Pot-pourri é sinônimo de medley, termo mais usado hoje.14 1954 é a data indicada por Sérgio Cabral para o disco Sinfonia do Rio de Janeiro, produzido pela gravadora Continental. (1997, p.514)15 O Zimbo Trio é um conjunto instrumental brasileiro surgido em 1964 e formado originalmente por Amilton Godoy ao piano, Luís Chaves no

contrabaixo e Rubinho Barsotti na bateria.16 Nelson Smock Riddle, Jr. (1921 – 1985) foi um conhecido bandleader americano, arranjador e orquestrador cuja carreira se expandiu a partir

do final dos anos 40. Ele produziu arranjos para vários cantores como Frank Sinatra, Dean Martin, Nat King Cole, Judy Garland, Peggy Lee, Ella Fitzgerald, entre outros.

17 Claus Ogerman (1930 - ) é um músico de origem alemã, nascido na Prússia (hoje parte da Polônia). Arranjador, regente e compositor, trabalhou na Alemanha, depois se fixou nos Estados Unidos. Tornou-se muito conhecido no meio musical brasileiro ao compor arranjos para discos de Tom Jobim e de João Gilberto.

18 Sérgio Cabral conta que a expectativa de Tom Jobim foi frustrada. Ele não se entendeu musicalmente com o arranjador americano. (1997, p.242)19 Ele fez os arranjos do LP Amoroso de João Gilberto.20 “As the Schwepps man woud say, this is a most “curiosly refreshing” album. Curious, for during the entire length of the disc, Jobim, who is the

featured soloist, plays what amounts to one-finger piano. Refreshing, because it is one of the loveliest and most deliciously lyrical albums to result from the bossa nova wave with which we’ve been inundated last year.”

21 “O texto habitual de contracapa que aqui deixa de figurar, é substituído neste caso pela transcrição da crítica de “DOWN BEAT”, “a mais conceituada revista musical dos Estados Unidos, que considerou este disco um dos melhores da temporada, e que nós temos o privilégio de oferecer a você.”

22 Severiano (1998, v.1, p.153-154) conta que o próprio Pixinguinha informou a data de 1917 como sendo o ano da composição. A peça instrumental teve muitas gravações, contudo após receber a letra em 1936 o número de gravações cresceu muito, sendo a primeira a de Orlando Silva em 1937.

Silvio Augusto Merhy é Bacharel em Direito pela UFRJ (1968), Bacharel em Piano pela UFRJ (1968), Mestre em Música pela UFRJ (1995) e Doutor em História Social pela UFRJ (2001). Atualmente, é Professor Associado II na UNIRIO. Atua no ensino de música principalmente com Harmonia de Teclado, Transcrição da Canção e História da Música Popular. Possui proficiência em russo, alemão, francês, inglês, espanhol e noções de grego. Ainda na UNIRIO, foi Diretor do Instituto Villa-Lobos e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Música.

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Recebido em: 27/11/2009 - Aprovado em: 13/03/2010

Chovendo na roseira de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana

Carlos de Lemos Almada (UNIRIO, Rio de Janeiro, RJ)[email protected]

Resumo: O presente artigo examina a canção Chovendo na roseira, de Antônio Carlos Jobim, focando as relações estru-turais aprofundadas existentes entre melodia, harmonia e forma. Isso é realizado através do método da análise schenke-riana, que recebe aqui algumas adaptações, de maneira a se ajustar apropriadamente às características dessa peça específica. Como resultado do processo analítico observa-se uma integração consistente e hierarquizada entre diversos fenômenos melódico-harmônicos presentes na superfície musical e em camadas estruturais internas, revelando relações inusitadas para uma peça de música popular. É especificamente marcante a onipresença do intervalo de quarta justa, infiltrado nos mais diversos aspectos da construção musical, em todos os níveis estruturais observados. Palavras-chave: Chovendo na roseira; Tom Jobim; análise schenkeriana.

Chovendo na roseira by Tom Jobim: a Schenkerian approach

Abstract: The present article examines the song Chovendo na roseira by Brazilian composer Antônio Carlos Jobim with focus on the deep structural relationships that exist among melody, harmony, and form. This was accomplished by us-ing procedures of the Schenkerian analysis, here adapted for better adjustment to the characteristics of this specific piece. From the analytical process, it is possible to observe a consistent and hierarchical integration among the several melodic-harmonic phenomena present on the musical surface and some of the internal layers, which reveal relationships that are unusual in a popular music piece. It is especially remarkable the ubiquity of the interval of the perfect fourth, which is embedded in several of the aspects of musical construction, in all structural levels considered.Keywords: Chovendo na roseira; Tom Jobim; Schenkerian analysis.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010

IntroduçãoA harmonia da bossa nova, em comparação com a de outros gêneros da música popular brasileira (em especial, o samba), é frequentemente qualificada como “sofisticada”, o que é em geral atribuído a dois tipos de preferências construtivas: pelo acréscimo de tensões nos acordes (nonas, décimas pri-meiras e décimas terceiras, por vezes também alteradas) e pela escolha de relações remotas entre estes e o centro tonal de referência (em especial, os acordes pertencentes à classe dos chamados empréstimos modais).1

Inúmeras canções de Antônio Carlos Jobim, reconheci-damente o principal compositor do gênero, formam um perfeito exemplo desse tipo de tratamento harmônico, algo que não traz por si só qualquer novidade. O que

mais impressiona em algumas dessas peças, entretan-to, é a existência de relações melódico-harmônicas “subterrâneas”, ancoradas em camadas estruturais mais profundas, o que recebe ainda pouca atenção no âmbito acadêmico.2

O presente artigo pretende examinar uma das mais pecu-liares estruturas melódico-harmônicas dentro da música popular brasileira: aquela que dá corpo à canção jobinia-na Chovendo na roseira. Para tal, a análise schenkeriana apresentou-se como o mais adequado método de aborda-gem, o qual, no entanto, exigiu certas adaptações, tendo em vista algumas características da referida canção (tais adaptações serão explicitadas no decorrer do estudo).

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cendente (Urlinie), seja ela 1-2-3-4-5-6-7-8 ˆˆˆˆˆˆˆˆ(no caso da opção pela centricidade em Lá) ou

1-2-3-4-5 ˆˆˆˆˆ (na alternativa Ré maior). Observa-se, ao contrário, uma prolongação da nota estrutural Lá por quase toda a seção, seguindo-se de um mo-vimento ascendente em direção a Dó#, através da nota de passagem Si. Deve-se atentar para o fato de que o Dó# encontra-se associado não ao acorde inicial (I grau em Lá mixolídio ou V em Ré maior), o que implicaria uma simples prolongação harmô-nica da fundamental à terça, mas a um acorde de qualidade de sétima dominante sobre a fundamental Fá#, como sua quinta.8 Como se observa no Ex.1-b, a tal progressão melódica de terça ascendente Lá-Dó# corresponde um movimento espelhado na linha do baixo, descrevendo também um intervalo de terça, porém descendente (Lá-Fá#), em cujo âmbito a nota Sol$, embora não presente na partitura, é nitidamen-te implícita. O Ex.2 resume sucintamente toda a se-ção A, revelando o interessante esquema de simetria espelhada, cujo eixo é a própria Kopfnote Lá.

• É consideravelmente significativa para a estrutu-ração global da canção a presença do intervalo de quarta justa descendente – justamente o motivo me-lódico que inicia a peça – entre as notas Lá e Mi (c.1-2) e Mi e Si (c.5-6, repetido nos c.9-10). Tal aspecto da melodia (saliente na própria superfície musical) é suportado pelo plano harmônico, o que se consta-ta através da proeminência de acordes de qualidade dominante com quarta suspensa:9 A7(sus4) (alter-nando com A6 entre os c.1-18) e F#7 (sus4) (em al-ternância com F#7 entre os c.19-22). No exame das demais seções a ubiquidade do intervalo de quarta será ainda mais enfatizada, tanto nos aspectos me-lódico quanto rítmico.

A análise da seção B (c.23-36) é apresentada no Ex.3, compondo-se do nível superficial e de duas reduções.

Observações:

• É fácil perceber no Ex.3-a uma segmentação simé-trica dos 14 compassos da seção B em duas metades (c.23-29 e c.30-36), em um nítido esquema de se-quenciação estrita de modelo por intervalo de se-gunda maior descendente.

• Chama também a atenção no superfície musical a onipresença da relação intervalar de quarta justa ascendente entre as fundamentais dos acordes em cada metade da seção.

• Como se observa no Ex.3-b, o motivo melódico prin-cipal da canção, o salto de quarta justa descendente (ver Ex.1-b), é aqui ampliado para quinta (inversão intervalar da quarta), propagando-se em sequência. Fica evidente na redução a existência de uma me-lodia composta, formada por duas linhas escalares descendentes que, como se constata no Ex.3-c, têm como objetivo prolongar os acordes principais em cada uma das duas metades da seção, respectiva-mente, D7M9 e C7M9.

Cristóbal Gallardo, em um artigo online no qual exami-na o emprego da análise schenkeriana em peças do re-pertório de música popular (GALLARDO, 2000), comenta sobre a necessidade de que o próprio objeto de estudo forneça condições propícias que justifiquem tal opção metodológica.3 Segundo o autor, essas condições devem corresponder, em diferentes medidas, às assunções mais fundamentais da teoria elaborada por Schenker, das quais a mais importante e determinante para a justificação do emprego do método é que a peça a ser analisada apresen-te uma linha melódica composta por notas que se subor-dinem a outras, e que isso possa se observar em relações recursivas, em diferentes níveis estruturais.4

É precisamente tal aspecto que justifica a presente abor-dagem. Como será aqui demonstrado, a canção Chovendo na roseira apresenta um notável planejamento arquitetô-nico em várias camadas de significação musical, mutu-amente conectadas em nítidas relações de hierarquia, a partir de sua própria superfície.

Chovendo na roseira possui algumas características inusi-tadas dentro do universo bossanovista, como é o caso da métrica ternária5 e de sua grande extensão (62 compas-sos). É possível subdividí-la em três seções: A (c.1-22); B (c.23-36); C (c.37-51), após a qual segue-se um da capo (c.1-13) e uma coda (c.52-62). É também interessante a organização harmônica da canção, que sugere (ao menos no plano superficial) dois pólos modais (nas seções A e C) intercalados por um trecho firmemente tonal (seção B).6

O Ex.1 apresenta a seção A da canção e três sucessivas reduções analíticas.

Sobre a análise do trecho é possível fazer as seguin-tes observações, de acordo com as diferentes camadas consideradas:

• Uma evidente centricidade em Lá e a presença cons-tante (na harmonia e na melodia) da altura Sol, a despeito do Sol# expresso na armadura de clave da partitura, sugerem uma organização harmônica mo-dal (Lá mixolídio) para o trecho. Uma interpretação alternativa seria considerar toda a seção A como uma prolongação do acorde dominante de Ré maior. Em vista dos desdobramentos futuros, opto por dei-xar temporariamente a questão em aberto.

• Como se percebe no Ex.1-a, tensões (nonas) e ou-tros acréscimos aos acordes (sextas e quartas, es-tas em substituição a terças), idiomáticos na bossa nova (assim como na valsa-jazz), apresentam-se aqui como elementos harmônicos estáveis (i.e., sem necessidade de resolução), incorporadas às tríades diatônicas tradicionais.7

• A primeira redução (Ex.1-b) evidencia a importân-cia do Lá inicial como nota principal (Kopfnote, na terminologia schenkeriana). No entanto, ao contrário do que se observa em uma análise schenkeriana tra-dicional, tal nota não inicia uma linha diatônica des-

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Ex.1 – Chovendo na roseira, seção A (c.1-22): a) superfície; b) c) d) três níveis intermediários.

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Ex.2 – Chovendo na roseira, seção A (c.1-22): plano geral

• Sob uma perspectiva estrutural mais ampla, pode-mos considerar a primeira metade (centrada em Ré) como hierarquicamente superior à segunda (em Dó). Isto se deve basicamente a dois fatos: (1) a Kopfnote Ré consititui-se um objetivo esperado, a partir dos acontecimentos desenrolados na seção A, tanto no plano harmônico – a prolongação de A7 – quanto no melódico – a ascenção Lá-Si-Dó# (ver Ex.2); (2) Dó, na metade da seção B, funciona, assim, como uma passagem não-diatônica entre as notas estruturais Ré e Si, esta como cabeça da seção C (ver Ex.4).

Observações referentes à seção C (Ex.4):

• A forte semelhança desta linha melódica com aquela da seção A (comparar especialmente a atuação do motivo principal, Exs. 1-b e 4-b), bem como a ma-nutenção de um pedal sobre o centro de referência (neste caso, Si) sugerem para o trecho a função de reexposição da parte principal, ainda que variada e transposta por intervalo de segunda maior ascen-dente. Contudo, tal paralelismo é atenuado por um fator ao mesmo tempo distintivo e decisivo: uma linha cromática descendente, de Mi3 a Mi2 (em des-taque no Ex.4-b), extraída como voz interna no en-cadeamento dos acordes.10 De acordo com a presente análise, é justamente tal linha, associada ao pedal em Si, que orienta a estrutura harmônica da seção e, consequentemente, a própria escolha dos acordes.

• A linha cromática transforma-se, assim, de um elemento subordinado e relativamente oculto na superfície musical em fator determinantemente es-trutural em níveis mais profundos, desmontando o paralelismo mais evidente entre os fenômenos mu-sicais das duas seções. A prolongação do Mi (atra-vés da escala cromática) rivaliza-se em importância àquela do Si da linha melódica principal, o que leva à conclusão de que, ao contrário do que acontece na seção A, a harmonia prolongada não é a que inicia o trecho (B7), mas sim a que o finaliza (E7), como evidencia o Ex.4-c.

• O Ex.5 resume e agrupa as análises das três seções (Exs.1, 3 e 4), com o acréscimo da recapitulação da seção A e o subsequente pulo para a coda (que nada mais é do que uma prolongação das sonoridades ini-ciais), apresentando uma estrutura análoga à habi-tual Ursatz da análise schenkeriana.

Desse esquema podem ser extraídas algumas observa-ções interessantes:

• A centralidade em Lá é incontestável, o que inviabi-liza a alternativa de Ré maior como tonalidade prin-cipal da canção.

• No lugar de uma Urlinie convencional, percebe-se uma estrutura melódica básica descrevendo um arco de quarta justa ascendente (em percurso diatônico), e que retorna ao ponto de partida de maneira quase cromática, com um apoio intermediário no segundo grau da escala (na seção C);

• O intervalo de quarta justa é também evidenciado como relação proeminente entre os baixos estrutu-rais. O esquema permite considerar o até aqui “enig-mático” Fá# da seção A como a dominante secun-dária do Si que encabeça a seção C (ver a ligadura prolongacional entre as duas notas no Ex.5), com a seção B (centrada em Ré) intermediando a resolução. Um reordenamento dos baixos principais explicita ainda mais a importância do movimento de quartas como elemento estrutural na canção (Ex.6);

ConclusõesEste estudo buscou examinar as complexas relações estruturais presentes na canção Chovendo na roseira. Para isso tornou-se necessário o emprego dos recursos da análise schenkeriana que, a despeito das adaptações efetuadas, em virtude das características específicas da peça, mostrou-se como a ferramenta ideal para tal in-vestigação no grau de profundidade adequado. É espe-cialmente marcante na análise da canção a presença do intervalo de quarta justa, nos mais variados aspectos e níveis estruturais, desde o principal motivo melódico (na superfície musical) à arquitetura harmônica básica (apre-sentada pelas relações de baixos primordiais), passando pela organização formal das seções, pela constituição de vários acordes (aqueles com quarta substituta e com nonas acrescentadas) e pelo próprio contorno da – por analogia – “Urlinie” resultante. É também interessante constatar que o modalismo (mixolídio) presente nas se-ções A e C é um fenômeno meramente superficial, sendo, por assim dizer, neutralizado sob uma perspectiva mais básica, o que se observa nas relações harmônicas da “Ur-satz” da canção (ver Ex.5). Julgo que os resultados obti-dos estimulam a aplicação de novas adaptações do mé-todo schenkeriano em outras análises futuras de peças de Antônio Carlos Jobim, principalmente visando investigar se a extraordinária capacidade de organização musical em camadas estruturais constatada neste trabalho está também presente em outras obras do rico e variado re-pertório desse formidável compositor.

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Ex.3 – Chovendo na roseira, seção B (c.23-36): a) superfície; b) c) dois níveis intermediários.

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Ex.4 – Chovendo na roseira, seção C (c.37-51): a) superfície; b) c) dois níveis intermediários

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Ex.5 – Chovendo na roseira, estrutura primordial

Ex.6 – Chovendo na roseira, reordenamento da sequência dos baixos estruturais

Referências ALMADA, Carlos de L. Samba de uma nota só: elementos musicais a serviço da expressão poética. In: XIX ENCONTRO

ANUAL DA ANPPOM, 2009. Curitiba. Anais ... Curitiba: UFPR, 2009. 1 CD-ROM (3 p.). FORTE, Allen. The American popular ballad of golden era., 1924-50. Princeton: Princeton University Press, 1995.GALLARDO, Cristóbal L. Garcia . Schenkerian analysis and popular music. Transcultural Music Review, nº 5, 2000.

Disponível em: http://www.sibetrans.com/trans/trans5/garcia.htm. Acesso em: 30/10/2009.GAVA, José E. A linguagem harmônica da bossa nova. São Paulo: Editora UNESP, 2002.GILBERT, Steven E. Gershwin´s art of counterpoint. Musical Quaterly, Nº 70/4, p. 423-56, 1984.INSTITUTO ANTÔNIO CARLOS JOBIM. Disponível em: http://www.jobim.org/jspui/acervo/acervodigital.jsp. Acesso em:

15/5/2009.JOBIM, Antônio C. Chovendo na roseira. In: Songbook Tom Jobim (vol. 3). Partitura. Rio de Janeiro: Lumiar, 1994, p. 32-34.MIDDLETON, Richard. Studying popular music. Buckingham: Open University Press, 2002.PY, Bruno de Oliveira. Estrutura tonal na obra de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana da canção “Sabiá”. 2004.

Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de Música, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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notas1 Para análises harmônicas de peças bossanovistas ver, por exemplo, GAVA (2002).2 Para uma análise estrutural de uma canção de Jobim (em parceria com Newton Mendonça) – Samba de Uma Nota Só –, com enfoque especial na

relação entre texto e música, ver ALMADA (2009). Ver também PY (2004), que realiza uma abordagem de Sabiá, outra famosa composição de Jobim, a partir dos métodos da análise schenkeriana.

3 É também pertinente conhecer o pensamento de Richard Middleton sobre o assunto: “não há razões para que a análise schenkeriana não possa ser aplicada em canções populares regidas pelo processo funcional tonal” (MIDDLETON, apud PY, 2004, p.21).

4 Outros pré-requisitos seriam: idioma tonal, estrutura harmônica calcada em tríades diatônicas (em especial, os graus I e V) e que a melodia da peça possa ser reduzida a uma linha descendente diatônica e em graus conjuntos (Urlinie), iniciando-se em III ( 3̂ ), V ( 5̂ ) ou I ( 8̂ ). Contudo, o próprio autor admite que tais “exigências” podem ser atenuadas ou até mesmo suprimidas de acordo com as particularidades de cada situação. É o caso, por exemplo, do característico emprego de tensões harmônicas não resolvidas em certos gêneros da música popular – entre os quais, a bossa nova –, o que concede a tétrades e pêntades estabilidade análoga à das tríades tradicionais. De acordo com Schenker, as dissonâncias presentes na superfície de uma peça musical nascem dos movimentos contrapontísticos das vozes, a partir de consonâncias, hierarquicamente superiores. Segundo Gallar-do, a discordância em relação a esse preceito schenkeriano não necessariamente desqualificaria uma análise. Como será mencionado, a utilização de tensões não resolvidas em acordes estruturalmente estáveis também acontece em Chovendo na Roseira

5 Em nome de uma maior precisão, talvez fosse mais apropriado classificar Chovendo na Roseira como representante do gênero “valsa-jazz” (e não como uma típica canção bossanovista), considerando não apenas os contornos rítmicos de sua linha melódica, calcados essencialmente em grupos de colcheias, mas principalmente a execução destas, efetuada dentro do assim chamado jazz feeling (i.e., dividindo os tempos na proporção 2/3-1/3, no lugar da notada 1/2-1/2). Contudo, seja qual for a opção escolhida para a classificação do gênero da canção, trata-se de um fator de pouca ou nenhuma relevância para os objetivos deste trabalho.

6 Como será demonstrado, o caráter modal das seções A e C representam fenômenos relativamente superficiais: estratos mais profundos revelam novos papéis para essas seções no esquema global da estrutura harmônica.

7 Este aspecto é enfatizado por Gallardo como uma das adaptações necessárias em análise schenkerianas de peças de música popular. O autor cita especialmente trabalhos de Steven Gilbert (1984), a partir de análises de obras de George Gershwin, e de Allen Forte (1995), sobre a balada popular norteamericana, em cujo texto foi cunhada a expressão “dissonâncias estáveis” [stable dissonances] (FORTE, 1997, p. 43).

8 A presença desse acorde tem um caráter um tanto enigmático, já que não é resolvido da maneira convencional. A razão de sua existência, como será visto, só se revela sob uma perspectiva mais global da estrutura da peça.

9 Ou seja, acordes de sétima dominante nos quais a terça maior é substituída pela quarta justa. Por exemplo, as notas que compõem A7(sus4) são: Lá, Ré (substituindo Dó#), Mi e Sol. As mesmas notas dispostas como Mi-Lá-Ré-Sol constituem uma sucessão de três quartas justas ascendentes (a inclusão da nona do acorde – Si – no grupo amplia ainda mais a sequência quartal).

10 O encadeamento de acordes baseado na escala cromática descendente é uma das características mais marcantes da construção harmônica de Jobim. A condução cromática, no entanto, apresenta-se em geral na linha do baixo (por exemplo, em Samba de Uma Nota Só, Corcovado, Inútil Paisagem, Brigas Nunca Mais, etc.). Para maiores detalhes, ver ALMADA (2009, p. 704-6).

Carlos de Lemos Almada é flautista, compositor, arranjador, professor e autor de livros sobre teoria musical e análise (“Arranjo”, Editora da Unicamp, 2000, “A estrutura do choro”, Editora Da Fonseca, 2006 e “Harmonia funcional”, Editora da Unicamp, 2009). É doutorando em Música pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, cuja pesquisa visa a análise da estrutura harmônica da Primeira Sinfonia de Câmara, op.9, de Arnold Schoenberg, dando continuidade a estudo realizado sobre a estrutura formal da mesma obra, durante o mestrado. Atualmente é professor de Harmonia e Análise na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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Recebido em: 27/10/2009 - Aprovado em: 13/03/2010

As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes

Vera Lúcia Rocha Pedron Peres (USP, São Paulo, SP)[email protected]

Resumo: O pós-modernismo na música ainda busca critérios que permitam sua compreensão, entre eles traços como fragmentação, descontinuidade, citação, justaposição de estilos e pluralismo. O presente estudo visa demonstrar as cara-cterísticas pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes por meio da análise de suas referências existentes, tendo em vista os procedimentos que norteiam as composições e os pressupostos pós-modernos. Além da identificação dos elementos paradigmáticos, e para ir além de uma abordagem indutiva (limitante, porque sincrônica), busca-se a identifi-cação da obra em relação ao modernismo (de crítica e de extensão), enfatizando suas diferenças constatadas na sintaxe, na epistemologia e na ideologia. São abordados os limites conceituais que se aproximam e se distanciam do modernismo buscando contribuir na reflexão da arte na atualidade.Palavras-chave: Gilberto Mendes; Rimsky; quinteto; pós-modernismo; sintaxe musical; descontinuidade musical; plu-ralismo musical; fragmentação musical; citação musical.

Postmodern characteristics in the work Rimsky by Brazilian composer Gilberto Mendes

Abstract: Postmodernism in music still needs criteria to facilitate its understanding, such as traits like fragmentation, discontinuity, quotation, juxtaposition of styles and pluralism. This study aims at demonstrating the postmodern char-acteristics in the work Rimsky by Brazilian composer Gilberto Mendes by means of analysing its existing references and having in mind the procedures that organize postmodern assumptions and musical compositions. Besides the identifica-tion of paradigmatic elements, and in order to surpass a simply inductive approach (restrictive because of its synchronic nature), it tries to connect the work to modernism (in both criticism and extended fields), emphasizing its differences in syntax, epistemology and ideology. The conceptual limits that make it closer and apart from modernism are discussed as an attempt to contribute to the reflection about the art today.Keywords: Gilberto Mendes; quintet; Rimsky; postmodernism; musical syntax; musical discontinuity; musical pluralism; musical fragmentation; musical quotation.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010

1. IntroduçãoOriginalmente criado na década de 1930 por Federico de Onís1 a ideia de um estilo pós-moderno não tem atual-mente nada da precisão que este lhe atribuía. Em nossa contemporaneidade pós-moderno é uma palavra com-posta que incorre em equívocos. Aplicado em várias áre-as diferentes, este termo ressurgiu nos anos 80 sem sua exata definição. O que é pós-moderno? Como defini-lo?

É importante retermos que o prefixo “pós” não significa apenas depois no tempo. ”Pós” admite aspectos estéti-cos de ruptura e de extensão do modernismo. A discus-são sobre a imprecisão da palavra pós-moderno como um termo composto cujo significado depende do significado

variável que se adote em relação ao modernismo gerou controvérsias entre os teóricos. Das discussões travadas depreendeu-se a conclusão de que pós-moderno não é uma categoria que possa caracterizar nosso zeitgeist em todos os seus aspectos e com claros critérios definidos. O termo “pós-moderno” cujo “moderno” está implícito foi defendido a partir de vários posicionamentos sem nenhum consenso. “Pós-modernismo”, portanto, deve ser considerado como uma extensão do modernismo, do contrário, toda a música não-moderna desde o fim do século XIX poderia ser classificada como pós-moderna. Em termos estéticos, se fragmentação, justaposição, ci-tação, pluralismo, não são categorias estritamente pós-modernas onde devemos situar sua diferença?

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O percurso adotado neste trabalho efetua a análise da obra Rimsky (2003) de Gilberto Mendes a partir da afir-mação dos autores Boudewijn BUCKINX2 e Rodolfo CO-ELHO DE SOUZA3 que o apontam como um compositor pós-moderno para verificar as principais característi-cas que possam pontuar essa hipótese e que permitam exemplificar, esclarecer, corroborar uma apuração objeti-va dessa tendência estética, como tentativa de detectar uma mudança estrutural.

2. Apresentação da obra Rimsky de Gilberto MendesA obra Rimsky (composta em 2003, na 3ª. fase de Men-des) inicia-se com a introdução de uma série atípica (isto é, não dodecafônica ortodoxa) que cria uma circunspec-ção na escuta. De desenvoltura rizomática4, descontínua, implica na possibilidade de mudança que se transforma numa ordem diversa, delineiam-se fragmentos de ci-tações, estilemas5 que se sucedem através de acordes/obstáculos, sem conexões. Aludindo períodos e estilos diferentes e apesar da fragmentação e choques de signi-ficados, resulta num só fio condutor onde o clima impe-rante (salvo o trecho atonal, mais abstrato e mais denso) é de alegria (pertencentes ao repertório popular como: ritmos de dança, música de cinema, bossa-nova), ou seja, que promove o envolvimento direto do ouvinte através do

reconhecimento de uso de referências que primam pela exclusão da intelectualidade e da seriedade.

Evidenciamos em sua fatura a preferência do autor pelo uso de acordes de 9a., que evocam o universo harmônico do impressionismo e do jazz.

A associação livre delineia-se incitando a imaginação e a memória, permitindo ao ouvinte a possibilidade de efe-tuar reconhecimentos. O fluir dos acontecimentos novos se sucede até decorrer um terço da obra quando passa a ser realimentado pelos fragmentos passados em sobre-posição constituindo um ritornello sem final conclusivo. Apresenta diferentes andamentos relacionados em uma única estrutura. A notação é tradicional. O aspecto tem-poral é métrico, os parâmetros são tradicionais (melodia, uso da barra de compasso). O aspecto harmônico é ora tonal, ora atonal, ora modal, às vezes ambíguo (quando verificado na utilização da série e seus desdobramentos).

A formação instrumental é tradicional. Vale observar: nesta, como em outras obras, o autor não dá nomes tra-dicionais de formas às suas músicas, mas nome literário. No entanto, Rimsky é um quinteto para piano e cordas. Examinemos com exemplos musicais esses procedimen-tos que serão utilizados nas análises subsequentes.

3. Listagem das referências existentes:6

Os exemplos Ex.1 a Ex.16 trazem as referências em Rimsky de Gilberto Mendes discutidas nesse artigo.

Ex.1 – Citação de Sheherazade (recitativo) em Rimsky de Gilberto Mendes (c.6-7)

Ex.2 – Elementos inspirados em Sheherazade em Rimsky de Gilberto Mendes (c.58-59)

Ex.3 – Elementos de Sheherazade transformada em Rimsky de Gilberto Mendes (c.74-76)

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Ex.4 – Elementos livres com fragmentos de citação de Sheherazade em Rimsky de Gilberto Mendes (c.20-22)

Ex.5 – Minimalismo em Rimsky de Gilberto Mendes (c.23-24)

Ex.6 – Música para cinema em Rimsky de Gilberto Mendes (c.40-47)

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Ex.7 – Trecho atonal em Rimsky de Gilberto Mendes(c.80 – 94, p.18)

Ex.8 – Cadenza para piano em Rimsky de Gilberto Mendes(c.95 – 102)

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Ex.9 – Fox trot em Rimsky de Gilberto Mendes (c.90-94)

Ex.10 – Ritmo (Nordestino Brasileiro) em Rimsky de Gilberto Mendes (c.13-14)

Ex.11 – Rock lento em Rimsky de Gilberto Mendes (c.38-40)

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Ex.12 – Bossa Nova em Rimsky de Gilberto Mendes (c.56-57)

Ex.13 – Citação do Quinteto em Si bemol Maior para piano e sopros de Rimsky-Korsakov em Rimsky de Gilberto Mendes (c.48-50)

Ex.14 – Melodias derivadas da série em Rimsky de Gilberto Mendes (c.61-62)

Ex.15 – Tango em Rimsky de Gilberto Mendes (c.69-72)

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original (violino I, c.1-2)

Inversão (violino I, c.12-13)

Retrogradação (violino II, c.28-29)

Inversão Retrógrada (viola, c.36-37)

Ex.16 – A série e suas inversões em Rimsky de Gilberto Mendes

4. Percurso da escuta em Rimsky de Gilberto MendesO percurso de escuta de Rimsky de Gilberto Mendes é detalhado abaixo, com a listagem dos traços existentes encontra-dos, sua localização por compasso e timing em cada uma das sete seções e recapitulação da obra:

SEÇÃo I: Part./compasso CD/counter

Apresentação da série original 1-2 00:01 – 00:07

Transição 3 00:10 – 00:24

Acorde de sexta 4 00:25

Motivo inspirado em Rimsky Korsakov 4-5 00:26 – 00:33

Citação de Sheherazade 6 00:34 – 00:40

Oscilação (acorde de la m com 7a, 9a, 11a) 8-10 00:40 – 00:58

SEÇÃo II:

Inversão da série 12-13 01:02 – 01:08

Evocação de ritmo brasileiro (piano e cordas) 13-17 01:09 – 01:49

Citação de Sheherazade (piano) 17-18 01:52 – 01:57

Citação de Sheherazade (violinoI) 19 01:59 – 2:05

Passagem livre com menção de Sheherazade 20-22 02:06 – 02:19

Minimalismo 23-27 02:20 – 03:30

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SEÇÃo III:

Retrogradação da série 28-29 03:33 – 03:42

Passagem livre no piano 30-31 03:42 - 03:49

Ritmo (cordas) 32-34 03:51 – 04:07

SEÇÃo IV:

Inversão retrógrada da série 35-37 04:08 – 04:18

Ritmo de rock lento 38-40 04:19 – 04:28

Música de cinema (apoiada em acorde de 4a. e 7a.) 40-47 04:30 – 05:00

Citação do Quinteto para piano e sopros 48-50 05:01 – 05:25

Melodia no piano 51-54 05:26 -05:53

Início de bossa nova no piano 55-57 05:54 – 06:09

Elementos inspirados em R. Korsakov + bossa nova 58-59 06:10 – 06:26

Finalização de bossa nova no piano 60 06:27 – 06:34

Melodia derivada da série + rock lento (piano) 61-68 06:35 – 07:35

Tango (melodia derivada da série + ritmo/tango) 69-72 07:35 – 08:24

Bossa nova + Sheherazade transformada 73-76 08:24 – 08:52

Acorde menor c/ figura de improviso como clichê 77-79 08:53 – 09:03

SEÇÃo V:

Trecho atonal + rock lento (piano) 80-94 09:04 - 11:03

SEÇÃo VI:

Cadenza p/piano (com fragmento de bossa nova) 95-103 11:04 – 11:46

RECAPITULAÇÃo:

Tango (harmonia e ritmo) 102-104 11:47 – 11:52

Ritmo (cordas) 105-106 11:53 – 12:02

Bossa nova 107-108 12:03 – 12:13

Melodia derivada da série + rock lento (piano) 109-116 12:14 – 12:49

Lirismo 117-120 12:50 – 13:09

Final sem conclusão (acomp. de rock lento/piano) 121-123 13:10 – 13:28

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5. Análise da obra: detalhamento da análise pormenorizada dos procedimentos5.1. A citação e a sintaxeRimsky foi escrita por encomenda de Philip Rathé, di-retor do Spectra Ensemble, da Bélgica, para ser estre-ada em 2000 em um Festival da Rússia. Tem, portanto, um projeto extramusical de homenagem ao compositor russo Nikolai Rimsky-Korsakov (1844-1908). As cita-ções de temas em Rimsky têm um intuito evocativo e referem-se às obras de Rimsky-Korsakov: Sheherazade e Quinteto em Si bemol Maior para piano e sopros. Para a verificação do original, recorremos à sua redução para piano a duas mãos. Observemos a melodia que Korsakov introduz no recitativo de Sheherazade, apresentado pelo solo de violino (Ex.17).

Em seguida, observemos a 1ª. citação de Korsakov em Mendes (c.6). Veremos que a utilização desta como

Ex.17 – Recitativo em Sheherazade de Rimsky-Korsakov (c.14-15)

Ex.18 – Citação de parte do tema de Sheherazade de Rimky-Korsakov em Rimsky de Gilberto Mendes (c.6-7)

uma singularidade exige uma solução de percurso (na medida em que pode elaborar saídas feitas por infe-rências locais). Inserida dentro de um sistema ato-nal/tonal (cuja série o corrobora) sai dessa ambiência ambígua e converge para a tonalidade usada por Kor-sakov (Ex.18).

Portanto, é importante notar que a melodia da “Shehera-zade de Mendes” é finalizada pela nota ré e não mi como em Korsakov. Em Korsakov encontramos uma continuidade. Em Mendes há uma descontinuidade e uma interrupção.

Outro exemplo neste sentido é a citação do Quinteto em Si bemol Maior para piano e sopros de Korsakov (Ex.19).Este trecho de Korsakov acima demonstrado aparece citado em Mendes e com repetição idêntica (diferentemente do trecho de Korsakov). Encontramo-lo entre o trecho onírico (que o autor denomina de música para cinema (c.40-47)) e um tema lírico feito pelo piano (c.51-55). Podemos notar

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que estas são diferentes concepções que agora se tornam equalizadas, convivendo pacificamente (p.8-11) (Ex.20).

O que resulta diferente então, são as sintaxes como con-cepções absolutamente opostas: a de Korsakov é teleoló-gica, enquanto que a de Mendes é casual7.

Outro ponto importante a frisar é que se a composi-ção de Mendes visa realizar uma homenagem, a citação não pode ser irônica. A finalidade da citação é evocar Sheherazade, o Quinteto em Si bemol Maior para piano e sopros de Korsakov e não desfigurá-la, isto é, Mendes pretende torná-la audível, propiciar o reconhecimento de maneira lúdica, como evocação, fazendo um apelo à memória, para produzir efeitos de verdade. Já a erudição enciclopédica referente ao Quinteto em Si bemol Maior não configura a certeza de ser efetivada com a mesma eficiência.

Outros trechos evidenciam o aparecimento do mesmo tema de Sheherazade transformados pela exigência ca-sual da sintaxe em Rimsky de Gilberto Mendes (c.17-22). Aqui há também modificações efetuadas nos confins da citação (início e fim) e inserção de elementos livres que confluirão em novas descontinuidades, cuja linha de fronteira em seu final é estendida.

É assim que através da utilização de materiais fragmen-tados constituiu-se essa sintaxe tipificada como plura-lista e inclusiva. A sintaxe é desconstruída em prol da figuralidade onde as imagens preponderam dando lugar à busca de novas sensações. Inverte-se a primazia da forma sobre o conteúdo: agora é o conteúdo que determina o processo composicional, possibilitando várias associações

Ex.19 – Solo de trompa no II Movimento do Quinteto em Si bemol Maior para piano e sopros de Rimsky-Korsakov (c.5-8)

Ex.20 – Citação do Quinteto em Si bemol Maior para piano e sopros de Rimsky-Korsakov em Rimsky de Gilberto Mendes (c.49-51)

a diferentes estados afetivos. A fragmentação efetuada na obra se realiza através de um procedimento duplo: promove o declínio da inteireza e da continuidade e ao mesmo tempo propicia a unificação na medida em que torna as frases musicais equalizadas onde as possíveis co-nexões não revelam seus pontos de ligação, tornando-os imperceptíveis. O uso do fragmento não exige desenvol-vimento, não se submete a nenhuma forma, prevalecendo o prazer do perder-se. Não há mais estruturação por re-gras sistemáticas. O tempo torna-se simultânea e para-doxalmente não-linear, sem se opor à continuidade, sem adotar a causalidade. Esta impressão é possibilitada pela admissão de fragmentos diferenciados que promovem a perda da totalidade e tornam-se indiferenciados em sua coexistência, desafiando a noção de centro.

Segundo Calabrese (1988), a citação pós-moderna torna-se um elemento de imprecisão. Nega a precisão e a ordem, valorizando o conceito de “vago” (p.178). Como vimos, com esse tipo de citação, passado e presente tornam-se sincrônicos, improváveis. O passado necessitará sempre ser modificado pelo presente, reatualizado, uma vez que precisa ser inserido em um novo contexto. Torna-se um desafio à arte aurática�, na medida em que se traduz num ready-made, num simulacro e numa contestação do esta-tuto da arte enquanto originalidade e subjetividade. Não existe preocupação com a precisão e sim com a evocação da memória afetiva transposta imprecisamente e adapta-da dentro da linha sonora em curso. A citação em Mendes não é perspícua, não se importando com a autenticidade da fonte. Esta é uma característica importante que joga com a relação entre o verdadeiro e o falso. Apesar de im-precisa, necessita apenas da existência do saber enciclo-pédico do ouvinte, como mostrado nos pares de exemplos

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Ex.21a-Ex.21b e Ex.22a-Ex.22b.O recurso do corte verificado através da mudança brusca (contraste) de andamento e dinâmica (mp/f; transmuta-ção de semínima 60 para 120) corrobora a existência da subtração das conexões decorrente da opção pelo proce-dimento inclusivo (o que permite contribuir para obscu-

recer a natureza do “discurso”) (Ex.23). Verificamos que Mendes se apropria do gesto de Kor-sakov dentro de uma concepção de improvisação idio-mática→ introduzindo elementos (ritmico-melódicos) rapsódicos transformados, que se apresentam como figuras de clichê características da improvisação (c.78,

Ex.21a - Motivo apresentado pelo fagote no II movimento de Sheherazade de Rimsky-Korsakov (c.5-9)

Ex.21b – Motivo de Korsakov (mostrado acima) transformado em Rimsky de Gilberto Mendes (c.74-76)

Ex.22a – Motivo melódico-ritmico de Korsakov (IV Movimento de Sheherazade, c.54-69)

Ex.22b – Motivo de Korsakov (mostrado acima) transformado em Rimsky de Gilberto Mendes (c.58-59)

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p.17). A utilização do recurso do fragmento revela o re-torno à espontaneidade (ao eximir-se dos antigos códi-gos de coerência da linguagem), configurando-se como um jogo que ao mesmo tempo contém e se livra das regras, desempenhando na obra uma desenvoltura que afirma o acaso→. A sintaxe submete-se às imposições do desejo, da sensação, do sentimento.

Em resumo, a heterogeneidade empregada desfaz a diferen-ça entre os materiais. Em Rimsky, o uso da citação e das re-ferências como fragmentos autônomos produz uma sintaxe nômade, evitando as conexões, o centro e a ordem, resultan-do num perder de vista dos grandes quadros de referência.

5.2. A série de Mendes como paródia pós-modernaSabemos que a série básica criada por Schoenberg, porta-dora de 12 sons distintos e irrepetíveis constituiu uma regra rigorosa de controle da composição musical dodecafônica.

Em Rimsky, a série introduzida por Gilberto Mendes sub-verte essa intenção. Mendes inicia sua obra sem indicação de tonalidade sugerindo uma audição atonal, tornando-a, entretanto, ambígua através da utilização predominante de intervalos consonantes. Constatamos, portanto, logo de início, uma intervenção do compositor que descarta a re-presentação rígida da série convencional para nos apontar uma nova singularidade em relação àquela.

Ao não se constituir como série estritamente dodecafô-nica, revela sua relação paródica com a arte do passado, sendo esta uma forte característica de sua linguagem. Sob este ponto de vista, sua postura implica a crítica ao Modernismo tardio através da inclusão deste em sua linguagem, mas com a série modificada, reapropriada. A série de Mendes destitui-se de parte de seus pressu-postos teóricos intransigentes (daquela de Schoenberg), possibilitando a contaminação de sua pureza, mesclan-do o tonal com o atonal. Examinemos de perto suas ca-racterísticas no Ex.24.

Ex.23 - Recurso de corte através de mudança brusca de andamento e de dinâmica em Rimsky de Gilberto Mendes (c.30-32)

Ex.24 – Série em Rimsky de Gilberto Mendes

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Verificamos a ocorrência de:• 4 intervalos de 3a. m;• 3 intervalos de 4a. J;• 2 intervalos de 3a.M;• 1 intervalo de 2a. M.

A série de Mendes despreza, portanto, o potencial inter-valar que (em Schoenberg) preconizava a emancipação da dissonância e o afastamento da tonalidade. Não há trí-tonos, nem intervalos de 7a., 9a., 2a.m. Não é anti-tonal, possui duas terças menores em seguida (propiciadoras de enunciação de arpejos). Enfim, a série de Mendes é distor-cida, ambígua, ambivalente e percorre o caminho contrário ao de Schoenberg. A série usada por Mendes preserva as características formais da série dodecafônica (doze notas irrepetíveis e suas inversões) subvertendo ao mesmo tempo seu conteúdo (predominância de intervalos consonantes portadores de possibilidades tonais). Ao mudar o conteú-do desta, verificamos que a intenção de Mendes não é de se ater à pureza do pensamento original de Schoenberg. Ao contrário, Mendes mantém as formas reflexas da série (Ex.25), com vistas à criação de uma ilusão perceptiva, que a torna híbrida, provocando sua desestabilização.Se Schoenberg objetivou a busca pelo singular, elimi-nando a noção de graus, de funcionalidade e hierarquia promovendo a escuta da nota individualizada, Mendes procura ativar o reaparecimento de configurações reco-nhecíveis. O conteúdo de Mendes apóia-se no significado, na aceitação e no resgate da consonância, de mais fácil assimilação. Desta forma, a série de Mendes se resseman-tiza, ironicamente, deslocando-se da abstração para in-troduzir posteriormente, a possibilidade de configurações melódicas (Ex.26). O autor utiliza a série, desconstruindo

concomitantemente o percurso de Schoenberg, reinter-pretando-o. Utiliza-se dos procedimentos da vanguarda para criticá-la, mostrando-se avesso à teoria.

Vimos que a série de Mendes não sendo antitonal possi-bilita uma configuração melódica que se generaliza, na medida em que é reutilizada ao se somar com a referên-cia introduzida pela rítmica do tango, propiciando seu reconhecimento pela escuta. Incorpora, desta forma, a utilização de códigos populares: (Ex.27).

A série de Mendes contesta a originalidade, recontex-tualizando-a. Como no dizer de HUTCHEON (1991), é reverente e irreverente ao mesmo tempo, fazendo coa-bitar a noção de sacralização e dessacralização, autori-dade e transgressão, continuidade e mudança. A nosso ver, habilita, contudo, o retorno daquilo que foi recal-cado pelo modernismo (a compreensibilidade através do que é cantável, a impressão de tonalidade, a memoriza-ção). Ela comporta, contudo, uma novidade que, como tal, exige a familiaridade com antigas convenções para que se possa averiguar sua discordância dos cânones prevalecentes e consequentemente invocar as conside-rações de intenção do autor, condição que o receptor pós-moderno não possui, por viver numa época em que o consumo imediato e o hedonismo não priorizam o co-nhecimento e a teoria. A compreensão da ironia pressu-põe uma grande cultura por parte do ouvinte12.

A série de Mendes questiona o ideal totalizante moder-nista, a tirania teórica, a racionalidade, o purismo, onde o autor procura propor uma abertura do texto cujo novo sentido evita prescrições, mas resgata fórmulas usadas.

Ex.25 – Retrogradação da série em Rimsky de Gilberto Mendes

Ex.26 – Melodias derivadas da série em Rimsky de Gilberto Mendes (c.28-29 e c.61-62)

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A série de Mendes é o elemento de diferença que distin-gue o modernismo do pós-modernismo, por desestabilizar a intenção (dodecafônica) de sons isolados e da não repe-tição, fazendo o percurso inverso do de Schoenberg. Ela é introduzida sempre depois de uma fermata ou de um ral-lentando, desconectada, portanto, do episódio anterior, incrementando a descontinuidade da sintaxe (Ex.28). 13.

5.3. Pós-Moderno e a atenuação das distinções – música popular/música erudita:Rimsky apresenta a inserção de ritmos e harmonias ca-racterísticas da música popular brasileira procurando viabilizar o cruzamento de linguagens tradicionalmente opostas, impossível em períodos históricos precedentes. Intenta contrapor-se ao purismo, procurando não as in-

compatibilizar, não imprimir uma visão dualista entre o erudito e o popular. Pretende realizar para isto conexões consideradas antes impossíveis, recusando a hierarquia e a hegemonia entre alta e baixa cultura.

Em sua autobiografia (1994) Mendes registra sua nature-za despreconceituosa que o acompanha desde a infância, reconhecendo o alto nível alcançado pela música popular urbana da canção norte-americana e europeia dos anos 30 e 40 e seu entrosamento com a música culta, que ele denomina ser um verdadeiro lied moderno. Pensan-do desta forma é que o autor utiliza-se amplamente do elemento popular em suas composições. Baseando-se em suas memórias perceptuais, permite “contaminações” que abolem todas as proibições.

Ex. 27 – Tango derivado da série em Rimsky de Gilberto Mendes (c.65-68)

Ex.28 – Série em Rimsky de Gilberto Mendes. (c.12)

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Em Rimsky verificamos o uso de superposições e “fu-sões” entre o popular e o clássico verificadas nos ele-mentos inspirados em Rimsky-Korsakov + bossa nova (c.58-60; Ex.29). Outras fusões são encontradas na série transformada em melodia + rock lento no piano (c.61-68); melodia de Sheherazade transformada + bossa nova (c.74-79); trecho atonal + rock lento (c.80-94); melodia da série + rock lento em recapitulação (c.109-112); melodia em progressão + rock lento (c.117-120).

Mendes não só incita ao reconhecimento. A urdidura do trecho atonal (Ex.30) em meio à sua textura abstrata14 jun-tamente com a inclusão de elementos de referência (verifi-cadas nos ritmos feitos pelo acompanhamento no piano de rock lento) ao mesmo tempo as obnubila (c. 80-94).

O tipo de linguagem utilizada em Rimsky, portanto, uti-liza-se da junção de elementos de origens diferentes15, cujo procedimento pode ser caracterizado como inclusi-vo e democrático. Tal medida pressupõe a intenção de um caráter de tolerância e diversidade como tentativa de questionamento das distinções.

6. Características pós-modernas em Rimsky de Gilberto MendesSumariando a ocorrência dos traços pós-modernos em Rimsky, constatamos as seguintes propriedades:

1. Série defectiva;2. Fragmentação, heterogeneidade, descontinuidade,

justaposição de estilos;3. Impureza; hibridismo; contaminações;4. Ironia;5. Ênfase nos processos primários, inconscientes (evo-

cação, desejo, imagem);6. Paródia;7. Ambiguidade (questionamento e conciliação); (reve-

rência e dessacralização);8. Apropriação, citação distorcida; imprecisão;9. Ausência de unidade; ausência de conexões;10. Estesia (ênfase nas sensações);11. Retorno à melodia; caráter melífluo (que impressiona

agradavelmente);12. Inexistência de desenvolvimentos musicais puros; 13. Volta ao conteúdo; busca de significados;14. Atemporalidade;15. Consciência histórica vista como pluralismo, como

presente sincrônico;16. Simplicidade;17. Uso de estilemas e estereótipos;18. Processo composicional determinado pelo material;19. Ênfase na superfície;20. Incerteza entre o verdadeiro e falso;21. Antiacademismo; contra o rigor e a exatidão; contra

proibições;22. “Moderno” deixa de ser um substantivo para tornar-

se um estilo (trecho atonal);23. Sintaxe casual, antinarrativa;24. Imersão (ao invés de distanciamento);

25. Caráter lúdico;26. Proposta de inclusão da música culta e da música

popular;27. Tendência predominante de exclusão da seriedade16,

hedonismo;28. Anarquia, procedimento assistemático;29. Repetições não variadas.

7. ConclusãoUtilizamos as evidências do exame feito por Omar Ca-labrese em seu livro “A Idade Neobarroca” (CALABRE-SE,1988) sobre estética e teorias contemporâneas para o esclarecimento das implicações do gosto e do pensamen-to dito pós-moderno que incidem na forma e na adoção de uma epistemologia anárquica. É importante realçar a advertência de Calabrese sobre a citação como um modo tradicional de construir um texto que existe em todas as épocas e estilos que, no caso pós-moderno, ele desconsi-dera a computação da quantidade de citações como um critério relevante para sua caracterização. Para Calabre-se, nem a quantidade das citações nem o ecletismo são características estritamente pós-modernas. Em meio às divergências teóricas existentes, o ecletismo→ (ou plura-lismo) tem sido apontado como a principal característica pós-moderna. Mas que tipo de ecletismo?

Em feição pós-moderna, esse ecletismo não só institui uma objeção da pureza e do elitismo, mas conjuga-os à ideia de desconstrução (derrideana) do significado que abole a noção de origem e de verdade e deságua na ideia de que só existem significantes, decorrendo daí a possibilidade de interpretações incessantes, onde todas se afirmam válidas. Se como já foi dito, a maioria das características atribuídas ao pós-moderno já foram an-teriormente encontradas em períodos anteriores, o que o distingue de outras épocas é uma aposta na proscrição da unidade estrutural e da teleologia em favor da des-continuidade e da atemporalidade possibilitados pela anomia da sintaxe. Não há mais uma direcionalidade visando pontos focais, oposições, pontos culminantes, não há mais a imposição do cânone modernista de proi-bições, nem a elaboração de um “discurso” sistemáti-co, mas uma errância, uma ausência de fundamento, de abandono da epistemologia e da teoria. Verificamos, portanto, a suspensão do juízo em prol da casualidade, da arbitrariedade, e da liberdade ilimitada. Colagem e citação subtraem as conexões e a citação que remete à concepção de autoria (ou seja, que tem como parâ-metros a originalidade, a autenticidade e a autorida-de) é que é criticada. Dessa forma a citação, através do procedimento da apropriação, por realizar uma altera-ção, necessita subverter o contorno melódico dirimindo a diferença das estruturas contraditórias. Não há mais sucessão temporal, porém, um contínuo de justaposi-ções de materiais e estilos de diferentes épocas que através de sua apropriação resultam presentificados, indiferenciados, homogeneizados. Como decorrência, a fragmentação resulta numa compilação de descontinui-dades cuja autonomia dos momentos se traduz, segundo

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Ex.29 – Sheherazade transformada+ Bossa-Nova em Rimsky de Gilberto Mendes (c.74)

Ex.30 – Excerto do trecho atonal em Rimsky de Gilberto Mendes (c.80)

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Podemos sintetizar esta questão numa pergunta: qual é a eficácia do excesso, se o que prevalece é a indistinção e a textura? Ou, contrariamente, a proposta desse hibridismo seria mitigar a tensão? O trecho atonal, representando os parâmetros modernistas (mesmo com a inclusão do elemento popular) não pode favorecer a aproximação do público desacostumado à apreciação desse código. Rei-tera apenas o procedimento (excessivo) de inclusão de-fendido no pós-modernismo, de reafirmar seu pretenso caráter democrático para realizar o afastamento de uma compartimentação maniqueísta.

Concluímos que as contaminações ou hibridações podem contribuir para diminuir ou amenizar as fronteiras entre o popular e o erudito, mas não conseguem sua supressão. Para os sabedores de que devemos evitar o maniqueísmo há também a necessidade de reconhecimento das contra-dições como impossibilidades de uma verdadeira fusão de categorias distintas. Os adeptos da atitude pós-moderna, no entanto, admitem as contradições sem questioná-las. Dentro desta lógica, no entanto, estes podem recair em um só lado da antítese, fato que tanto negam, como ob-serva Terry EAGLETON (1998). Admitir a contradição sig-nifica supor que na medida em que não há mais restri-ções, não há mais conflito.

A tentativa de desfazimento das oposições entre arte culta e arte inferior instaura a questão do uso de ele-mentos característicos da cultura de massa que viabili-zem o consumo da obra. Desta forma a arte pode cor-rer o risco de ser facilitada. Como conciliar sofisticação com o que é popular? Como dissemos, Mendes tenta solucionar essa dualidade resgatando a música popular norte-americana dos anos 30 e 40 naquilo em que esta é comparável à arte de elite, rejeitando a conjunção en-tre arte e mercadoria. Sua concepção de arte vincula-se aos pressupostos modernistas de autonomia, de elitismo, endereçada a seus pares, contrário à indústria cultural→. Renega os pressupostos do grupo Música Nova (atrelado aos temas de atraso e progresso) e volta-se para o antigo desprezo vanguardista pela indústria cultural. Enfatizan-do o aspecto semântico (referências, evocações) de suas composições da 3ª. fase, ele pretende não ser acessível, nem comunicativo (MENDES,1994, p.113) mas defende ao mesmo tempo a possibilidade de compreensão de sua música pela classe operária (MENDES,1994, p.113). Tenta escapar da polarização entre arte de elite e arte popular, derrubar as barreiras do preconceito, procurando solucio-nar as contradições na verdade insolúveis entre as classes sociais. Mendes procura evitar e rigidez e concebe a cons-trução do sentido deslocada mais para o subjetivo, o pas-sional, o intuitivo do que para o racional (MENDES,1994, p.169-170). O cerne do problema está em desfazer a ri-gidez e ao mesmo tempo não cair na vulgarização, na mediocridade corrente da arte de massa cuja finalidade é entretenimento e comunicação. É assim que para evitar a mediocridade Mendes volta-se para uma aristocracia do espírito elevando o popular para a transcendência (MEN-DES,1994, p.171). Mas a fusão das esferas alta e baixa,

ADORNO (1999), no fetichismo dos materiais, levando a audição ao gozo meramente metonímico. Em outras pa-lavras, promove a reabilitação do prazer e a diminuição da crítica, escamoteando a transparência do modo de produção das obras.

Devemos considerar que um dos fatos significativos no pós-modernismo é que, através do desterro da lingua-gem (já iniciado no modernismo) na verdade o que ocorre (contrariamente a este) e contraditoriamente, é uma pro-cura da significação (da comunicação perdida decorrente do vazio e da abstração deixados pelo formalismo), res-tando como única saída, a reabilitação dos materiais do passado. Daí porque a descontinuidade tornar-se siste-mática (o que, por outro lado, incorre na cilada de incidir num outro tipo de normatividade).

Em Rimsky, constatamos a não utilização de uma sin-taxe tradicional teleológica. Os materiais utilizados possibilitam a formação de presentes sincrônicos, onde as “oposições” não mais se contradizem, somente se chocam. A multiplicidade abole o ponto de vista único para afirmar a ausência de centro e de convergência. A justaposição nega a dialética, afirmando o caos. Não há desenvolvimento→. No entanto, o uso de repetições de notas inseridas na série, como também as repetições dos fragmentos apresentados em descontinuidade, parece uma tentativa de facilitar a assimilação que requisita a necessidade de ouvi-los de novo. Seria essa uma forma de possibilitar (contraditoriamente) a fixação e a memo-rização perdida na descontinuidade?Constatamos que a arte para Mendes demanda espirituali-dade e transcendência em relação aos assuntos cotidianos (MENDES,1994, p.62-63), despojamento ascético, liberda-de, ética, contemplação. Porém, podemos também afirmar que a utilização das contaminações que introduzem ele-mentos populares acaba favorecendo a eliminação da aura da arte por privilegiar a sensação e a imersão, negando a contemplação almejada por Mendes, embora este não veja aí uma irreconciliabilidade. Ao contrário, Mendes não pre-tende eliminar a aura da arte, mas defendê-la.

Em Rimsky, a “Sheherazade de Mendes”, cuja apropriação descaracteriza o ritmo original para sua transformação numa versão ainda mais popularizada porque impregnada do balanço da bossa-nova (MENDES, 1994, c.74), acaba por enfatizar mais o pólo popular do que o erudito, do qual mantém somente a melodia em excerto. Já o tre-cho atonal, como referente modernista (MENDES, 1994, c.80), superposto ao acompanhamento do piano como rock lento, contém uma densidade e complexidade que acaba enfatizando melhor, como decorrência, o aspecto abstrato do que permitindo desvelar o conteúdo referen-cial do ritmo do rock, cuja escuta quase não o reconhece, diluindo-o na urdidura. Dito de outra forma: no trecho atonal a opção pelo procedimento inclusivo acaba obli-terando as referências populares, recaindo mais para o efeito hermético, conformando-se em contraposição à fi-guração como elemento portador de compreensibilidade.

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como dissemos, é utópica→. Se afirmarmos a inexistência de fronteiras entre o erudito e o popular alegando que só o que existe na verdade é a música (classificada como boa ou ruim), estaremos caindo em polarizações que remetem a categorias de valor que rejeitam as demais atribuições concorrentes: reincidimos num dualismo e numa posição igualmente absolutista. Bom ou ruim demonstra, portan-to, a função social de suas respectivas legitimações. Não reconhecer isso é uma forma de imprimir e sobrepor os conceitos das classes dominantes para as massas. Caberia a pergunta: qual a verdade do oprimido?

Devemos lembrar que a estética popular implica na su-bordinação da forma à função e que a estética erudita propugna critérios de julgamento sobre o modo de pro-dução das obras a despeito da função. O gosto sofisticado pressupõe a aversão ao gosto vulgar, por supor sujeitos sociais diferentes que traduzem suas posições de acordo com as distinções que os exprimem. Música popular e música erudita são separadas por conceitos sociológicos que consideram diferentes performances, convenções e instituições (a bossa-nova, por exemplo, é um fenômeno burguês). Portanto, a arte, se pensada em termos de pro-dução necessita que reconheçamos o binômio “produção/consumo” ligado a processos formais que se constituem em músicas de diferentes tipos e separadas sociologica-mente. Mesmo com a introdução da banalidade, das refe-rências populares, dos estilemas, essa música (possuidora dessa sintaxe onde o procedimento inclusivo admite o erudito) não é consumida e assimilável pelas classes po-pulares→. Como já frisamos, o hibridismo tem seus limites verificados no modo de produção, no consumo, na circu-lação e na recepção das obras como forma de distinção (conforme BOURDIEU (1979) e BRACKETT (2002)).

Se, por um lado Mendes faz positivamente a crítica à me-diocridade (do popular?) hoje existente na nossa sociedade de massa, denunciando sua estrita dependência da lógica comercial onde ele nos confessa a dificuldade de sobre-vivência a uma modernidade filisteia, por outro lado, na sua tentativa de resistência às tendências de dissolução do belo e daquilo que ele chama de verdadeira arte, evitando a perda de sua qualidade, faz um esforço para garantir a perenidade do artista na procura de uma essência que se perdeu. Porém, em nossa contemporaneidade não há mais espaço para a realização de uma arte inteiramente autô-noma. O mercado é uma instância intrínseca à produção que vê a arte como produto legítimo da sociedade capi-talista, o que faz com que a estética retorne à sua origem mundana. Neste aspecto, paradoxalmente, Mendes defen-de a reintrodução do belo na arte contemporânea aproxi-mando-se de Adorno no sentido de uma estética que pode ser considerada contrária ao embrutecimento do homem e de certa forma, saudosista. Ao defender o belo, contrapõe-se à mudança da noção de obra de arte feita pela moder-nidade que já realizara sua dessacralização.

Sabemos que o belo clássico salientou a preocupação com a qualidade da obra, com a contemplação, com a

transcendência, com o valor de culto, com a aura. A mo-dernidade, através da aceleração das forças produtivas e da consequente mutação das condições de produção, afluiu na ideia de artista como trabalhador, matando a originalidade da obra para possibilitar a fruição (em con-traposição à contemplação). Ao negar a produção e o consumo, Mendes posiciona-se contra a mutação da arte e do artista. A reintrodução da contemplação correspon-de ao retorno da aura numa época secularizada a qual mantém como consequência, a preservação das catego-rias ideais. Esta constatação abala a crítica da metafísica iniciada na modernidade. Neste período a arte atacou a materialidade da obra para atacar a aura, transformando o sagrado em profano. Concernente ao pós-modernismo, verificamos por um lado, a quebra da seriedade (propi-ciada pelas contaminações) e do rigor que favorecem e imersão e consequentemente diminuem a distância im-posta pela obra imbuída de aura. Por outro, a constatação concomitante da existência de compositores críticos do capitalismo, defensores da noção de criação, genialidade e arte contrária à instrumentalização. Perguntamos: faz-se música para que o ouvinte realize a semiose que quiser, ou ainda existe a intenção do autor?

Compreendemos que em suas contradições, Mendes refle-te as da sociedade em que vive. As afirmações de Mendes nos revelam as aporias em que se encontra o compositor contemporâneo na necessidade de reescrever sua vida.

Ao rejeitar a ideia de progresso o pós-modernismo elide a vanguarda, encerrando a dissidência e o “make it new”.→ Este, como transgressão, não poderia ser infinito. Não há mais rebeldia, nem revolução, nem recusa, nem negação. O que pode haver é a novidade que não mais tem mais impacto, não é mais intempestiva. O novo não tem mais poder de transformação porque o que outrora foi contun-dente, torna-se repetição. O que está aí não muda o que já foi conquistado pela modernidade porque não contém mais o choque da estranheza, apenas a simples diferencia-ção. À medida que não há mais proibições, a utilização da profusão de materiais torna-se equalizada, não havendo mais necessidade de ruptura. Do lado da recepção da obra o que constatamos é uma indiferenciação que não remete mais à perplexidade. De onde se conclui que os ready ma-des de hoje não mais produzem impacto. Concluímos que o procedimento de reabilitação dos materiais do passado e a preocupação da transcendência podem levar ao distan-ciamento da realidade objetiva. A utilização da prática das citações deve, portanto ser amplamente considerada. A ci-tação, ao tornar-se maneira de fazer, moda, pode tornar-se um perigo, como no consumo de mercadorias, onde o retro não causa nenhum impacto, mas acatamento, estabilida-de, perda de contundência. O procedimento inclusivo de materiais do passado pode apenas reintroduzir o antigo de forma fetichizada, lúdica e ornamental. Faz-se mister, por-tanto, refletir sobre como não negar o consumo e ao mes-mo tempo não ser consumido pelas imposições do capital.Como dissemos, as concepções estético-ideológicas pós-modernas estão atreladas ao moderno sem superá-lo. O

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pós-modernismo não é uma ruptura, uma vez que não há mais normas a quebrar. Nega a história, não tem compro-misso com a verdade, não comporta mais nenhuma ten-são entre presente e passado. A intenção pós-moderna é abater a austeridade, o hermetismo, o que assegura maior facilidade de assimilação (requisitos encontrados nas ten-dências da Nova Consonância e da Nova Simplicidade). Em outras palavras, o pós-modernismo para evitar ser pres-critivo pretende, neste sentido, não propor nada. Recusa a negatividade, sendo essa sua política apolítica. Vimos que “pós-moderno” não é um termo que possa caracte-rizar nossa contemporaneidade como critério claramente

definido. Peter BURGER (1988) reconhece no pós-moderno a atenuação de uma rígida dicotomia entre arte superior e arte inferior onde não existem materiais avançados, uma vez que todos os repertórios históricos de materiais estão igualmente disponíveis ao artista. Ele alerta, no entanto, para que o fascínio dos materiais não seja transformado em critério de apreciação estética, devendo se desfazer de um manuseio arbitrário para realizar uma reflexão sobre a autonomia da arte e das condutas artísticas. Neste sentido, quanto à constatação de uma crise da arte ele adverte que, tanto a exigência de abolição da separação entre e vida quanto a aceitação destas, poderão incorrer no fim da arte.

Referências ADORNO, Theodor W. – “O fetichismo na música e a regressão da audição”. In: Coleção Os pensadores -Textos Escolhidos.

São Paulo: Nova Cultural, 1999, p.65-198.BENJAMIN, Walter – “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”. In: Obras Escolhidas - Magia, Técnica, Arte e

Política. São Paulo: Editora Brasiliense,1996, v. 1.BOURDIEU, Pierre – La distinction - critique sociale du jugement. Paris: Les Éditions de Minuit,1979.BRACKETT, David – “Where´s It Art”: Postmodern Theory and the Contemporary Musical Field. In: LOCHHEAD, Judy and

AUNER, Joseph – Postmodern Music/Postmodern Thought. New York: Routledge, 2002, p.207-231.COELHO DE SOUZA, Rodolfo – Encarte do CD Gilberto Mendes – piano solo – Rimsky.BURGER, Peter – “O declínio da Era Moderna”. In: Novos Estudos CEBRAP no. 20,, março de 1988, p.81-95CALABRESE, Omar – A Idade Neobarroca. Lisboa: Edições 70, 1988.DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix – O que é a Filosofia? São Paulo: Editora 34, 2004.________ - Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2004, vol. 1, 3 e 4.EAGLETON, Terry – As ilusões do pós-modernismo. RJ: Jorge Zahar Ed., 1998.HUTCHEON, Linda – Poética do Pós-Modernismo – História. Teoria. Ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991.MENDES, Gilberto – Uma odisséia musical – dos mares do sul à elegância pop/art déco. São Paulo: EDUSP, 1994.TEIXEIRA COELHO – Moderno pós Moderno - modos e versões. São Paulo: Iluminuras,2001.Partituras:MENDES, Gilberto – Rimsky, 27 p.(partitura com escrita de próprio punho do autor).RIMSKY-KORSAKOV, Nikolai – Sheherazade – Suite Sinfonica op.35 (redução para piano) de Teodor Fuchs. Buenos Aires:

Ricordi Americana, 59 p.________ - Quinteto em Si bemol Maior (op.post.) – para piano, flauta, clarineta, trompa, fagote. New York: International

Music Company, 64 p.

Documento eletrônico:www.remue.net/cont/Blanchot_Hoppenot.pd Acesso em: 21/06/2006.

Reprodução sonora (CD):Gilberto Mendes – Piano solo – Rimsky (edição do Programa Petrobrás de Música 2002, realizado pelo Laboratório de Acús-

tica Musical e Informática da ECA/USP, Março-Setembro de 2003). Quarteto de cordas da Cidade de São Paulo: Betina Stegman (1o.violino), Nelson Rios (2o.violino), Marcelo Jaffé (viola), Robert Suetholz (violoncelo), Lídia Bazarian (piano).

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notas:1 Escritor e crítico literário espanhol (1885-1966).2 BUCKINX, Boudewijn – O Pequeno Pomo – ou a história do pós-modernismo. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998.3 Referência verificada na apresentação do encarte (assinada por este autor) do CD “Gilberto Mendes – piano solo – Rimsky.”4 Empregamos a concepção de rizoma postulada por Deleuze por acreditarmos que esta traduz melhor a ideia de uma linha (justaposta, segmentada),

cujo “motor” é o desejo (CALABRESE,1988) que nega o princípio da unidade em defesa da multiplicidade de materiais. Deleuze prescreveu: “Faça o rizoma e não a raiz, nunca plante! Não semeie, pique! Não seja nem uno, nem múltiplo, seja multiplicidades! Faça a linha e não o ponto (...).” (Cf. DELEUZE; GUATTARI, 2007, p.36). Nosso interesse é o de demonstrar que essa acepção de rizoma personaliza o imperativo de uma heterogeneidade instaurada numa grande linha contínua que por sua lógica nômade simultaneamente a contém e a oblitera.

5 Estilemas: constantes estilísticas, traços de estilo, de códigos em desuso (TEIXEIRA COELHO, 2001, p.67). 6 Obs.: A citação do Quinteto para piano e sopros de Rimsky Korsakov, o “minimalismo”, “rock lento” e “música para cinema” foram existentes indi-

cados pelo próprio compositor. A presença de “fox trot” também por ele afirmada, porém sem sua devida localização, nos levou a detectá-la, por inferência, nos compassos 90-94 devido à similitude de seu componente rítmico.

7 Apesar de o autor incorporar uma recapitulação dos elementos apresentados.8 Refiro-me à inaplicabilidade do critério de autenticidade da produção artística que deixa de ter valor de culto como objeto único (a questão da

originalidade anteriormente comentada) e se torna dessacralizado, explicitado por Walter BENJAMIN (1996).9 Idioma: usado aqui no sentido de conter uma gramática (escalas, padrões, estruturas rítmicas e intervalos). Possui uma dupla função: simultanea-

mente alude e desfaz o reconhecimento.10 Como no pensar de Deleuze, agora a riqueza em termos sintáticos não trata mais de impor uma forma à matéria, mas de manter juntos os hetero-

gêneos, sem deixar de ser heterogêneos (DELEUZE; GUATTARI, 1980, p. 141). 11 Aqui é necessário reportarmo-nos às observações de Linda Hutcheon sobre a duplicidade paradoxal do pós-moderno. Este está atrelado ao mo-

dernismo não rejeitando-o por completo mas, inserindo e subvertendo seus códigos: evidenciamos na paródia simultaneamente deferência e transgressão (HUTCHEON,1991).

12 Esse é um requisito também necessário quanto à citação apropriada por requerer do ouvinte a erudição das obras em seus contextos para poder avaliar a transgressão efetuada, pois do contrário esta não pode ser percebida.

13 Podemos fazer outra leitura da utilização da série feita por Mendes. Esta pode também significar uma alusão à rigidez (como medida irônica, uma vez que a série de Mendes não a contém e cujo detalhe só se percebe através de sua análise) do modernismo (no caso a série como elemento de ordem) ao prenunciar os demais elementos (livres, heterogêneos e casuais) que lhe seguem. Este procedimento pode ser visto como uma medida conciliatória onde a oposição de precisão e imprecisão nos sugeriria a associação de dois gostos como a única maneira possível de tentar “orga-nizar” a sintaxe. Também a existência de uma recapitulação verificada depois da cadenza no piano (a partir do compasso 102 até o fim da peça promovendo o retorno do tango, do ritmo nas cordas, da bossa nova, da melodia derivada da série acompanhada pelo rock lento no piano) sugere a intenção de recuperar uma retórica cujos princípios formais embora já estejam perdidos são reintroduzidos por Mendes. Devemos considerar que a destruição da forma e dos nexos se traduz na descontinuidade, impedindo a capacidade de recordar pra frente, sendo a recapitulação a única ma-neira de favorecer a rememoração do ouvinte (em contraposição ao modernismo) através da repetição dos elementos anteriormente apresentados.

14 Quanto mais a representação se desvincula de seu referente, mais o som representa a si mesmo, isto é, mais ele é concreto. Neste sentido, a pos-sibilidade de abstração em música faz-se através do corte dos vínculos com as figuras tradicionais de reconhecimento.

15 Devemos lembrar que já no séc. XV, num outro contexto e com diferentes motivações, a melodia pagã “chanson de l´homme armé” foi amplamente utilizada pelos compositores como cantus firmus e pretexto para o emprego da forma canônica na produção da polifonia (como referência pagã nas missas religiosas, porém de difícil identificação para os leigos em sua urdidura). Contudo, vemos nesse processo o intuito de exprimir o que era conhecido como a ciência musical da época.

16 Devemos frisar que neste sentido encontramos exceções no pós-modernismo como no caso de Schnittke, compositor que melhor expressou sua resistência intelectual e simbólica ao Comunismo através de sua atração pelo irracional e pelo seu extremo pessimismo. Desta forma, Schnittke destoa do hedonismo pós-moderno ao optar pela expressão dramática.

17 O ecletismo inclui a citação, a mistura estilística, e o pastiche como formas que através de sua coexistência se tornam indiferenciados.18 De acordo com HOPPENOT (cf. documento eletrônico na bibliografia) a fragmentação pós-moderna produz a desorganização do estado perceptivo

temporal que paradoxalmente não se opõe à continuidade causando, ao mesmo tempo, sua destruição. Ele afirma: “cada fragmento é uma totali-dade que nega a totalidade” (...) “onde a ausência de tempo leva à superabundância de tempo”.

19 Não nos esqueçamos, no entanto, que aquilo que Mendes considera como a boa música orquestral norte-americana desses anos foi um produto historicamente situado, não afastado do cotidiano e que também respondia às manifestações de uma cultura de mercado.

20 David BRACKETT (2002) defende essa ideia ao constatar as diferenças de procedimentos existentes nessas esferas.21 Observamos que John Zorn (1953), compositor norte-americano e saxofonista, que se utiliza de um verdadeiro caleidoscópio de materiais como

que acionados por controle remoto faz música que não pode ser considerada popular, sendo consumida no máximo por jovens intelectuais. Suas composições receberam as etiquetas de vanguarda, jazz, experimental, free jazz, ruído.

22 “make it new” – termo proposto por Ezra Pound: significa “tornar algo novo”, achar alguma ideia nova no sentido de não ter sido ainda pensada.

Vera Lúcia Rocha Pedron Peres é graduada em História pela FFLCH (USP) e mestre em Artes (programa de Música em Processos de Criação Musical pela ECA - USP) sob a orientação do Prof. Dr. Rogério Luiz Moraes Costa. Estudou harmonia e estética com o Prof. Hans-Joachim Koellreutter e piano com os professores: Sebastina Benda, Caio Pagano, Amílcar Zani e Nahim Marun.

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Recebido em: 02/10/2009 - Aprovado em: 13/03/2010

A memória e o valor da síncope: da diferença do que ensinam os antigos e os modernos1

Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas (UNICAMP, Campinas, SP)[email protected]

Resumo: A síncope é um tema privilegiado nos estudos da música popular que reaparece aqui em um conjunto de con-siderações que, marcado pelo viés dos saberes das velhas disciplinas de Contraponto e Harmonia, sublinham a interação e, principalmente, a inseparabilidade entre métrica (divisão, ritmo, acentuação, prosódia, etc.) e altura (notas, interva-los, relação dissonância-consonância, acordes, notas auxiliares, etc.) na apreciação crítica das figurações sincopadas. Na primeira parte percorre-se uma mínima memória da arte e da teoria da síncope na tradição ocidental culta para, na segunda parte, observar-se que, em medida tácita e sutil, resíduos dessa tradição afetam juízos de valor em alguns dos sincopados cenários da música popular atual.Palavras-chave: síncope; análise musical; teoria e crítica da música popular.

Memory and value of syncopation: on the difference between what the old and the modern teach

Abstract: Syncopation is a privileged issue in popular music studies that reappears here in a number of considerations that, marked by the bias of knowledge of the old disciplines of Counterpoint and Harmony, underline the interaction and, especially, the inseparability between metric (division, rhythm, accentuation, prosody, etc.) and pitches (notes, intervals, dissonance-consonance relationship, chords, auxiliary notes, etc.) in a critical analysis of the figures of syncopation. The first part covers up a minimum memory of the art and theory of syncopation in the Western erudite tradition, so that, in the second part, it can be noted that, in tacit and subtle manner, residues of this tradition can affect the value judgment in some of the syncopated worlds of popular music today. Keywords: syncopation; musical analysis; theory and criticism of popular music.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010

1 - Introdução: da síncope letrada e sua coexistência em cenários conflituososA síncope é assunto que se destaca nos “múltiplos discur-sos” que, como mapeou TRAVASSOS (2005), confirmam a condição da “música popular como tema privilegiado da cultura brasileira”.2 Procurando conversa com tais discur-sos o presente texto argumenta: a síncope é uma questão de rítmica, mas é também, inseparavelmente, uma ques-tão de alturas. Tal “ponto de escuta”, característico dos antigos, especializados e consideravelmente privilegiados textos e cursos formais do Contraponto e da Harmonia, será reouvido aqui num percurso que delineia marcos da síncope letrada desde os finais do século XV até os iní-cios do XIX. Sem deixar de valorizar a sempre lembrada

presença da síncope na música urbana da viragem para o século XX até nossos dias, a intenção de uma re-escuta assim é sublinhar que tais artesanalidades cultas, insti-tuídas em cenários embaralhados, conflituosos, plenos de interações negociadas e imprevisíveis, também se mistu-ram nesse “um bocadinho de cada coisa” que compõem a sincopada música popular que podemos escutar hoje.3

Nos centros musicais cultos da velha Europa, um lugar capital de onde partiu ainda jovem (em formação) para conquistar novos mundos, a síncope veio se consolidan-do como uma figuração de alto valor artístico na música contrapontística culta da renascença. Quando madura, essa será a síncope canônica, a síncope de catequização

“Mas, porque omitiste a ligadura? Já disse que não devemos perder qualquer ocasião para usar uma síncope .

Johann Joseph Fux, 1725 (FUX, 1971, p. 60).

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(cristã, ocidentalizante): a síncope de escola que no geral se aprende, desde o iluminismo, através da codificação fuxiana inspirada no modelo quinhentista observado na música de Palestrina. Por conta de sua primeira datação (séculos XIV ao XVI), a síncope já possui vasta cultura ar-tística e teórica quando a incipiente tonalidade harmôni-ca ensaia seus primeiros passos. Assim, se sabe, a síncope do stile antico antecede a sistematização moderno-con-temporânea dos compassos. Sem as barras do compasso, mas não sem métrica, o deslocamento rítmico – que faz a fama das figuras de síncope – se observa nessa música pré-tonal, basicamente, nos deslocamentos dos acentos do texto cantado (prosódia) e nos desvios da pulsação pendular (cujo padrão se constitui da alternância perió-dica da consonância no tempo forte contra a dissonância no tempo fraco), respeitando-se as convenções do anda-mento e das subdivisões rítmicas impostas pelos estilos eruditos da polifonia vocal europeia.4

Se, no nível da artesanalidade, a noção pré-tonal de síncope pertence a uma concepção de música que não pôde imaginar o divórcio das alturas (notas e intervalos) de seus desenhos rítmicos, em outro nível, tal música também não pôde existir fora de um cenário ele próprio sincopado. O mundo onde essa síncope modal, vocal e contrapontística convive, interage e abre espaço para a síncope tonal, instrumental e harmônica é o mundo onde a Europa de um Tinctoris, passando por um Palestrina, se transforma na Europa de um Rameau, de um J. S. Bach e de um Beethoven. É também o mundo onde se desco-bre que é possível forjar o Novo Mundo (Novi Orbis). Um cenário vivo, amplo, intenso, que sofre ligaduras de toda ordem: musicais, sociais, culturais, linguísticas, econômi-cas, científicas, mitológicas, filosóficas, etc.

Parte desse mundo que assiste o florescimento da sínco-pe pós-modal na Europa cosmopolita assiste também “a revolução mais radical da história da música ocidental” (HARNONCOURT, 1993, p.27): a conversão da música determinada pelos cânones do Stylus gravis (primeira prática ou stile ântico) para a música do Stilus luxu-rians (segunda prática ou stile moderno). Re-sinalizar as célebres tensões entre as duas práticas é necessário numa revisão que deseje destacar a presença da síncope colonizadora que se fez ouvir nas circunvizinhanças das missões cristãs interferindo massivamente na primei-ra idade da música popular que veio se inventando em paragens do Caribe, Cuba, México, EUA, Jamaica, Haiti, Bolívia, Colômbia, Paraguai, Uruguai, Venezuela, Chile, Argentina, Brasil, etc. Territórios protetorados que se fa-zem reconhecer hoje por sua típica (enraizada, nativa, natural, pura, peculiar, característica, exótica ou estere-otipada) maneira sincopada de fazer música.5

Em tais “regiões periféricas à Europa ocidental – ideal de civilização e fonte de modelos culturais para as socieda-des em sua órbita” (TRAVASSOS, 2000, p.24), a exuberan-te síncope popular contemporânea (pós-segunda prática, pós-barroca, pós-clássica, pós-romântica, pós-colonial,

etc.) possui qualidades que superam em muito tanto a gravidade das síncopes do contraponto quanto os pre-ceitos modernos da bela ciência da harmonia (dita hoje tradicional). Com isso, mesmo desconsiderando fatores históricos e sócio-culturais, tal exuberância “puramente musical” já é capaz de invisibilizar o fato de que a síncope pré-século XIX também compõe aquilo que somos hoje. A tal ponto que, para um “ponto de escuta” musicológi-co mais incisivo: a síncope é “uma das mais importantes fórmulas rítmicas surgidas nas Américas no século deze-nove” e “pode-se afirmar que a síncope característica de-senvolvida nas Américas não tem relação nenhuma com a antiga sincope europeia” (CANÇADO, 2000, p.6).

Tal invisibilidade pode tornar-se um vício de método, cercear consideravelmente nosso alcance crítico e com-prometer nossas estimativas da profundidade, duração e repercussão dos processos de sincretismo que o nos-so velho Novo Mundo atravessa nas diferentes fases da sua interminável descoberta. Não valorizar a presença do stile di Palestrina – considerando que “a música de Palestrina, devido ao seu caráter estritamente religioso e seu conservadorismo, tornou-se o modelo ideal para a Contra-Reforma” (CARVALHO, 2000, p.49-50) – pode nos levar a não ouvir a presença da música da Igreja, essa su-perestrutura distribuidora de síncopes que, naqueles anos da idade moderna (antecedendo e depois convivendo com as menos lembradas músicas da ópera e das corporações militares e com a, sempre citada, sincopada “música das danças europeias de salão”) foi uma personagem institu-cional com grande poder de barganha na mixagem nego-ciada que veio formando o ouvido musical destes lugares ditos novos e populares.6

Nas disputas do moderno contra o antigo, a síncope é um dispositivo caro aos antigos que os modernos vão desapropriar e os contemporâneos vão transformar. São muitos os registros para a apreciação desses apre-ços, apropriações e reinvenções e, considerando que síncope “designa um conceito criado pelos teóricos da música erudita ocidental [...], talvez não seja inútil examinar como tal conceito foi formulado por estes” (SANDRONI, 2001, p.20).

Mesmo que, no presente artigo, o entendimento de quem são esses “teóricos da música erudita ocidental” difira do elenco já referenciado por Sandroni, e mesmo que a diacronia da síncope, com saltos e lacunas, seja re-deli-neada a seguir de maneira muito geral, defende-se aqui a divulgação de um patrimônio conceitual e artístico (da humanidade) que, grosso modo, ainda se encontra for-malmente alienado dos limites precondicionados (usual-mente sincrônicos e paramétricos) que vamos impondo ao campo da música popular no âmbito acadêmico.

Algum apossamento desse legado histórico, teórico, técni-co e culto (e por isso supostamente “desinteressante” para alguns dos “múltiplos discursos” que cuidam do “nosso po-pular”) oportuniza também observar uma espécie de tra-

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jetória por inflação (aumento excessivo, superabundância com desvalorização, banalização, etc.). Notar tal inflação – ou “diluição” no sentido de Pound (1986, p.42-43), ou ainda “falsificação” no sentido de Adorno (2004, p.36-38) – em dispositivos musicais como a síncope é tarefa mean-drosa e imprecisa, mas pode ser útil nos estudos que abor-dam as interações contínuas e prolongadas que, pratica-das por muita gente e em vários lugares ao mesmo tempo, contribuíram com a formação e consolidação dessa música que aprendemos a chamar de popular.

2 - Sobre a síncope do estilo antigo: quando o muito longe se mostra muito perto7

Em seu Kontrapunkt, LA MOTTE prefere eleger Josquin des Prés (c.1440-1521) como o “capítulo fundamental do contraponto” (e não Palestrina como, desde Fux, se tor-nou o mais usual). Considerando os méritos musicais de Josquin (e de outros compositores nascidos no século XV, tais como Ockeghem e Isaak) e as diversas motivações de La Motte, esta re-datação da disciplina permite observar algo da arte e normalização da síncope europeia em fases ainda anteriores aos anos de 1500. Anteriores assim aos tantos efeitos das misturas e contra-misturas cada vez mais inevitáveis e densas resultantes das tensões provo-cadas por ocorrências coexistentes e incisivas como a Re-forma Protestante, o Atlântico Negro e as conquistas do Novo Mundo que – em enredos traumáticos, difíceis de descrever ou mesmo de imaginar – vão desterritorializar e re-significar a síncope para sempre.

Ratificando a convicção de que na teoria culta europeia, desde a mais elementar definição, na síncope as alturas não se separam da métrica, La Motte (1998, p.76-89) argumen-ta: “a síncope (ou retardo) é uma dissonância que conquista o tempo forte”. Assim, acompanhar a trajetória da síncope é também “contemplar a emancipação da dissonância”:

Em Perotin [c.1160-1236] eram as consonâncias perfeitas [unís-sono, 8ª, 5ª e 4ªs] as que regiam os tempos fortes. Com os neer-landeses, foram as consonâncias imperfeitas [3ªs e 6ªs], as tríades maior e menor e o acorde de sexta [primeira inversão], as que con-quistaram para si esta posição. A dissonância também vai abrindo caminho em direção aos tempos acentuados e, nesta posição, a dissonância é percebida como um acontecimento sonoro, da mes-ma maneira que a dissonância de passagem [colocada no tempo fraco] que se utiliza como uma via para ir de uma consonância a outra. Contudo, a dissonância se adentra nos tempos fortes com extremada precaução. Em Josquim, as regras para o tratamento das dissonâncias do tempo forte são extremamente rígidas [...]. Salvando-se umas poucas exceções, só existem três formas [Ex.1], cada uma delas com duas variantes (LA MOTTE, 1998, p.76).

Observa-se ainda que na música de Josquin e seus con-temporâneos a síncope não se emprega em qualquer lugar nem o tempo todo. Essa estimada “dissonância acentua-da” tinha um uso mais reservado, uma função específica de “figura construtora de forma”.

Se quisermos nos aproximar da música de Josquin temos que es-tudar o papel de construtoras de forma que desempenham as dis-sonâncias acentuadas. A saber: essa forma de dissonância aparece em meio do contexto musical de modo manifestadamente singu-lar. Na maior parte dos casos se assinala com ela o final de uma frase ou de uma passagem (LA MOTTE, 1998, p.78).

Culto e comedido esse uso da dissonância sincopada como figura cadencial já está normalizado em 1477 no Líber de arte contrapuncti de Johannes Tinctoris (c.1435-1511): essa é “a suspensão sincopada”, “a sincopação descendente para uma cadência que é usualmente en-contrada na polifonia da metade e final do século XV” (TOMLINSON, 1998, p.403).8 La Motte (1998, p.78) ilustra essa função de “fixação quase tonal”, esse papel de “con-ferir estabilidade momentânea”, com uma bela seleção de fragmentos onde as figuras de síncope ornamentam finalizações sobre diferentes graus dos modos. O Ex.2 re-produz algumas dessas pontuações.

Ex.1 - Tipificação das formas básicas das figuras de síncope em Josquin.9

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A partir desse marco renascentista – que nos ensina que “a força expressiva e a beleza da dissonância acentuada [retardo ou suspensão] se baseiam em parte em sua qua-lidade de síncope” (FORNER e WILBRANDT, 1993, p.128) – essa conjunção melos-rythmos vai conhecer um vas-to percurso artístico e teórico. Mas no essencial estará sempre distendendo (inflacionando) o limite mecânico-expressivo que podemos apreender aqui. O Ex.3 traz uma síntese da fortuna crítico-teórica da síncope. Um concen-trado de termos, conceitos e entendimentos considerados importantes nas definições que, salvo diferenças pontu-ais, encontramos em diversos tratados e manuais. Grosso modo, esta normalização serve como referência prelimi-nar para a observação geral das síncopes na música culta europeia dos séculos XVI ao XIX e também das síncopes das músicas populares do século XX.

Entre a geração de Tinctoris (†1511) e Josquin (†1521) e a de Palestrina (†1594), surge um dos grandes referen-ciais do antigo: o Istitutioni harmoniche (1558 e 1573) do teórico, compositor e clérigo franciscano Gioseffe Zarlino (1517-1590). Zarlino cuida da síncope em várias passagens do Istitutioni... mostrando que o dispositivo possui notável papel na música de seu tempo. O Ex.4, extraído da terceira parte do Istitutioni..., discute três diferentes casos de síncope. No primeiro temos a sin-copação ¯9–8, i.e., a modernizadora resolução da dis-

sonância acentuada em consonância justa. No segundo a ligadura ¯9–8 vem seguida da tradicional ¯7–6, uma espécie de síncope de compensação que atenua o grau de perfeição da oitava. E o terceiro apresenta uma sequência de síncopes onde a sonoridade ¯9–8 se encadeia por elisão (inflação por justaposição) com a síncope ¯7–6.

Dando um passo na história o Ex.5 traz uma mínima amostragem da síncope na engenharia contrapontística de Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-1594). Con-forme os estudos sobre o uso da dissonância em Pales-trina publicados por JEPPESEN em 1946, a síncope (a dissonância acentuada) ocupa importância evidente no tecido palestriniano. Jeppesen demonstra tal qualidade quantitativamente: em 1489, 5 compassos examinados nos Cruxifixus de 15 Missarum liber (livros de Missas) de Palestrina, são encontrados 1163 síncopes dissonantes, 1006 notas de passagem e 315 bordaduras, perfazen-do um total de 20,85% de dissonâncias. Examinando o mesma quantidade de compassos nos Benedictus desses 15 livros, Jeppesen encontrou 955 síncopes dissonantes, 1469 notas de passagem e 445 bordaduras, num total de 24,08% de dissonâncias (JEPPESEN, 1992, p.284-285).

O Ex.5b mostra uma resolução ornamentada, indício de que, por inflação, os embelezamentos da desculpa (re-

Ex.2 - A síncope como figura de dissonância em cláusulas escolhidas nas obras de Josquin.10

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solução) vão se tornar cada vez mais sofisticados. Para comentar essa intensificação da ornamentação na parte final da síncope OWEN prepara dois grupos de figura-ções hipotéticas. No primeiro (Ex.6 a, b, c, d, e) aparecem ornamentações da resolução típicas da suspensão pré-século XVII (OWEN, 1992, p.47). E o segundo (Ex.6 f, g, h, i) adianta ornamentações que se consolidaram a partir do século XVIII (OWEN, 1992, p.178).

Contudo, antes de adentrarmos de vez no período da sín-cope tonal, importa notar que estes poucos fragmentos

da síncope renascentista já são suficientes para que a lição da “potência dos contrários” (ARISTÓTELES, 1998, p.144) – lição de fundo da música (e da cultura) ocidental – se reafirme: “A beleza é multíplice” escreveu Giordano Bruno (1548-1600), o famoso teólogo, filósofo, escritor, frade italiano e contemporâneo de Palestrina:

Entre coisas completamente similares, não existe beleza. [...] A beleza se revela no engate das partes distintas: a beleza de tudo consiste na própria variedade. [...] O princípio, o meio e o fim, o nascimento, o aumento e a perfeição de tudo o quanto vemos resulta de contrários, por contrários, em contrários e para os con-trários (BRUNO apud TATARKIEWICZ, 1991, p.374 e 377).

Ex.3 - Uma síntese da normalização tradicional da figura de síncope.11

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Ex.4 - Figuras de síncope da p.198 do Istitutioni harmoniche de Zarlino: Sincope ottimamente risolte.

Ex.5 - Amostragem de figuras de síncope em dois fragmentos de obras de Palestrina.12

a) Tu nobis dona fontem lacrymarum

b) Sicut cervus

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Na teoria de Zarlino – comenta ABDOUNUR (1999, p.43) – a música, como a pintura, torna-se mais arrebatadora “se for pintada com várias cores”. A arte dos sons “proporcio-nará maior prazer aos sentidos se proceder como a própria natureza, que gera seres semelhantes de uma mesma es-pécie, mas contrapõe essa semelhança introduzindo dife-renças e traços variantes infinitos”. Mestre do Stylus gravis, Zarlino defende que a perfeição resulta do confronto de elementos distintos, discordantes e contrários, possuindo em suas partes, proporções, movimentos e tessituras va-riadas. Entende que a consonância precisa ser contraposta, valorizada pela oposição da dissonância: a harmonia não se dá entre coisas completamente semelhantes, “isso pre-cisa até ser evitado” (i.e., proibido por regras) “em nome de poupar o ouvido da insistência dessa perfeição”. Mais tarde vamos ouvir SCHOENBERG (2001b, p.58) redizer: “as expressões consonância e dissonância, usadas como an-títeses, são falsas”. E DAHLHAUS (1990, p.21) reiterar: “o pré-requisito de uma harmonia é a varietà ou a diversità”

Assim – artisticamente, tradicionalmente, eurocentrica-mente –, é um equivoco supor que “dissonâncias sinco-padas” são aquilo “que não se pode fazer”. Sincopar não é algo “do outro”, não é um “não-belo” ou uma “discordân-cia” ingenuamente entendida como uma escolha que, jo-gando contra o patrimônio, seria “indesejável”, “proibida” ou mesmo uma “contravenção ao ocidental”. O conceito é bem mais nuançado e dinâmico. “Dissonâncias sincopa-das” são forças de movimento e contraste, são estímulos contrários, medidas de equilíbrio, dinamismo e risco que dotam o discurso de expressividade, agudeza, engenho e interesse.→ O fato do acento dissonante ser fruto de uma relação (e não algo em si) não se confunde com “caco-fonia” ou “anormalidade”. Dissonância e consonância,

metro e contra-metro, se pertencem: um não se realiza plenamente sem o outro. Entre o dito e o não dito, os “gê-nios” da música culta europeia são justamente aqueles que dominam a arte da “conjunção dos opostos” (TOMÁS, 2002, p.97). Arte que se realiza no manejo das síncopes e de tantos outros truques de deslocamento, distorção, desencaixamento e contra-norma. A norma (o Canon, a Lei), como afirmava Tinctoris em 1477 em sua famosa oi-tava (e última) “regra de uma condução de vozes ideal” é: “que em todas as vozes contrapontísticas reine a diversi-dade melódica, rítmica e de qualquer tipo”, “a variedade é exigência urgentíssima em todo contraponto”(TINCTORIS apud FORNER e WILBRANDT, 1993, p.25).

3 - normalização da síncope no estilo modernoUm belo registro dos inícios da era tonal, mostrando que 150 anos depois de Tinctoris a síncope era tema de con-versas cultas (e não um pormenor de técnica restrito aos especializados), se lê no Compendium musicae de 1618 escrito ainda em Latim por um jovem, educado entre jesuítas, que se tornou conhecido como o filósofo René Descartes (1596-1650).

A síncope se produz quando, em uma voz, o final de uma nota se ouve ao mesmo tempo em que o começo de uma outra nota da parte contrária [outra voz]. Como se pode ver no exemplo exposto [Ex.7], onde o último tempo da nota B está em dissonância com o início da nota C; contudo, isto se tolera porque a lembrança da nota A se conserva nos ouvidos. E, assim, a B com respeito à C, é só uma voz relativa na qual se suportam as dissonâncias. Mais ainda, a variedade destas faz que as consonâncias, entre as quais estão situadas, se ouçam melhor e inclusive provoquem a atenção, pois, quando se ouve a dissonância BC, aumenta a expectativa e, em certa medida, se suspende o juízo sobre a doçura da sinfonia até que se chegue à nota D, na qual se satisfaz mais ao ouvido e, todavia se lhe dá maior satisfação na nota E. Com esta, depois

Ex.6 - Ornamentação da resolução (desculpa) da suspensão segundo Owen.

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de que o final da nota D manteve a atenção, a nota F, que vem imediatamente após, forma uma perfeita consonância, pois é uma oitava. Estas síncopes são utilizadas nas cadências, porque agra-da mais o que finalmente chega após ter sido esperado durante muito tempo; e por isso, depois de ter ouvido uma dissonância, o ouvido descansa melhor em uma consonância perfeita ou no uníssono (DESCARTES, 1992, p.108-109).

O Ex.8 ilustra a sincopação idealizada por Johann Jo-seph Fux (1660-1741) cento e poucos anos depois do Compendium de Descartes. Nesta espécie de escritura – que passou a ser a norma escolar do que é a síncope no contraponto modal renascentista – o tal processo de inflação se evidencia. A função cadencial da síncope se diluiu e, seja por razões de eficiência didática ou pelo distanciamento histórico e geográfico, o aprendiz, afas-tando-se da arte dos antigos mestres da síncope, deve se preocupar menos com as funções construtoras de forma e se esforçar ao máximo para encontrar o maior número possível de ligaduras.14

Em 1725, nos diálogos do Gradus ad Parnassum, Fux cuida da síncope na “Lectio quarta”: “a quarta espécie do contraponto”

é chamada ligadura ou síncope, e pode ser consonante ou disso-nante. A ligadura consonante resulta quando as duas mínimas, a no arsis [tempo fraco] e a no thesis [tempo forte] são consonan-tes. [...] A ligadura dissonante resulta quando a mínima no arsis é consonante (que deve sempre ser o caso), a mínima no thesis, contudo, é dissonante (FUX, 1971, p.55).

Ex.7 - A síncope segundo Descartes no Compendium musicae de 1618.

Ex.8 - Síncopes no Gradus ad Parnassum de Johann Fux (1971, p.61).

Pouco antes, em 1722, Jean-Philippe Rameau (1682-1764) também destacou a síncope em seu Traité de I’harmonie. No Livro 3 (“princípios de composição”), a síncope dá título ao Artigo 7, para o qual RAMEAU (1986, p.296-299) escreve um hipotético trecho musical (Ex.9) ilustrando várias situações de síncope.15 Esse trecho tem interesse teórico, pois, mesmo se mantendo fiel aos números do contraponto e do baixo cifrado, concentra potencialidades bastante avançadas (inflacionadas) em relação ao que foi a antiga síncope de linhagem franco-flamenga. Pelos números podemos ver que algumas li-gaduras são efeitos rítmicos (cifradas com 3, 6, 5 e 8, ou seja, são consonâncias) enquanto que outras mostram tensões notáveis: a ligadura já parte de intervalo disso-nante (o trítono, 4# ocupando posição de preparação!); a resolução do intervalo dissonante (4#) se dá na outra voz (baixo); o intervalo dissonante (2) se intromete na posição métrica de resolução; a voz que provocou a dis-sonância se movimenta por grau ascendente (4#→6) ou mesmo salta (2→6); o último 7, ao se resolver em um 5, ilustra também a ousada possibilidade de uma desculpa (resolução) cair sobre uma consonância perfeita, o que seria proibido no estilo polifônico rigoroso (CARVALHO, 2000, p.90; LA MOTTE, 1998, p.76-77). Definitivamente o moderno Rameau não é mais um professor de contrapon-to modal do século XVI, e muitas das licenças sugeridas nesse trecho só se tornaram arte na música dos finais do século XVIII e ao longo do século XIX.

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Implicado com Rameau (e com a “Harmonia”, emble-mas de um estado social causador dos males da con-dição humana) o philosophe-musicien Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) não deixou faltar um verbete para a “Syncope” no Dictionnaire de musique que pu-blicou em 1768:

Síncope é a prolongação sobre o tempo forte de um som começado em tempo fraco; assim toda nota sincopada está em contratempo, e toda sucessão de notas sincopadas é uma marcha em contra-tempo. [...] A síncope tem seus usos na melodia para a expressão e o goût du chant; contudo sua principal utilidade está na harmonia para a prática das dissonâncias. A primeira parte da síncope ser-ve como preparação: a dissonância se ataca na segunda; e numa sucessão de dissonâncias, a primeira parte da sincopa seguinte serve, ao mesmo tempo, para salvar a dissonância que precede e para preparar a que segue. [...] O senhor Rameau pretende que esta palavra derive do conflito dos sons que se entrechocam de alguma maneira na dissonância; porém as sincopas são anteriores à nossa harmonia, e muitos casos existem de síncopes sem disso-nância (ROUSSEAU, 2007, p.368-369).16

Outro letrado que marcou a teoria musical na segunda metade do século XVIII foi Johann Philipp Kirnberger (1721-1783). Como uma espécie de prenúncio da era clássica seu trabalho é considerado uma síntese que re-úne e reavalia a antiga tradição contrapontística, a arte do baixo contínuo de viés bachiano e as modernas ideias do baixo fundamental de Rameau (KIRNBERGER, 1979; LESTER, 2006, p.773; WASON, 2006, p.57). Em 1773, ocupado com os verdadeiros princípios para a prática da harmonia, Kirnberger enfrentou sistematicamente as suspensões dissonantes deixando um registro detalhado (minimamente referenciado no Ex.10) de como músicos de então poderiam entender, explicar e cifrar (numa dis-

pendiosa inflação de números) o fenômeno inflacionado das ligaduras em uma, duas, três ou mesmo quatro vozes.

Nesse mesmo período (séculos XVII e XVIII), no vasto cam-po das figuras retóricas da música barroca alemã – a cul-tura musical matizada pelo viés reformista luterano –, a síncope tem lugar assegurado no conjunto das “figuras de dissonância e deslocamento” (BARTEL,1997, p.446), ou “fi-guras de dissonância que afetam a harmonia e a condução de vozes” (LÓPEZ-CANO, 2000, p.167-168). Vale notar que Josquin também é referência para o mundo luterano, pois, por sua mestria, controle e ordenação dos recursos mu-sicais “esse primeiro músico de expressão moderna” (LA MOTTE, 1998, p.xi) personifica uma aspiração nascida já

nos primórdios da época burguesa, de “compreender” com critério de ordem tudo o que constitui o fenômeno musical e de resolver a essência mágica da música na racionalidade humana. Lutero chama Josquin [...] “o mestre das notas que devem ter feito o que ele queria, enquanto os outros mestres da música devem fazer o que as notas queriam”. Dispor conscientemente de um material natural significa a emancipação do homem com respeito à coação natural da música e a submissão da natureza aos fins humanos (ADORNO, 2004, p.57).

Segundo BARTEL (1997, p.396-405), a síncope (syncopa-tio ou ligatura), uma suspensão com ou sem uma dis-sonância resultante, é um dos mais antigos dispositivos descritos pelos teóricos como um dos principais meios de formar e embelezar uma composição.19 Esse “ponto de escuta” da síncope foi registrado por diversos tratadistas e professores, dentre os quais Bartel compila as passa-gens onde Susenbrotus,20 Burmeister, Nucius, Thuringus, Kircher, Bernhard, Janovka, Walter e Sheibe definem e exemplificam a figura da síncope.21

Ex.9 - Demonstrações de síncopes modernas conforme Rameau em 1722.17

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FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.

Esse percurso de mais de três séculos – que separa (e une) as cláusulas sincopadas de Tinctoris, as cadeias de suspensões de Fux e as sincopações normalizadas por te-óricos da harmonia moderna e pelos cultores da retórica musical – dá pistas das transformações que a síncope so-fre no âmbito da própria música e teoria culta europeia. Esse tipo de processo de re-funcionalização, diluição ou deslocamento (onde um dispositivo anteriormente reser-vado para um determinado papel se vê expandido para papéis diferentes), ora desqualificando e ora qualificando, também se faz notar na formação disso que agora cha-mamos de música popular urbana. Música onde a trans-formação modernizadora, afirmadora, re-significadora ou trans-cultural surge em meio a percursos assim, de infla-ção, e não propriamente, ou exclusivamente, da invenção de algo que jamais se fez antes.22

Tal processo de adesão excessiva a um determinado dis-positivo pode carregar o valor negativo de maneirismo (afetação, excesso, banalização, etc.). Estigma que con-tribui na desvalorização de uma artesanalidade que pode, por isso, ser vista como um stilus luxurians demais, um estilo imoderado, misturado, popularesco, de mau gos-to, desinteligente, indiscreto, pobre e inculto justamente porque deseja imitar o culto (o rico, o inteligente, o origi-nal, etc.), e tal imitação se mostra, ou é percebida como, ilegítima, exagerada e indecorosa.23

4 - Retransformação: da síncope moderna para a síncope do estilo livreToda essa polifonia – as músicas e teorias que perpassam os séculos XV ao XVIII – assiste o surgimento de uma sínco-pe sincrética, um dispositivo novo (moderno) que se conso-lidou no estoque das dissonância da tonalidade harmônica (notas de passagem, bordaduras, cambiatas, escapadas, apojaturas, antecipações, etc.). Uma síncope expandida que, em boa parte da narrativa contemporânea (séculos XIX e XX) da história da música universal (i.e., da música culta da Europa na Europa e nas suas colônias), vai se fazer representar por aquilo que a síncope (ligadura, retardo ou suspensão) se tornou na emblemática música de J. S. Bach.

O que deu cunho específico à música do Barroco foi a experiência conjunta de toda a Europa que teve [...] na obra de Bach seu ponto culminante. ‘E como toda a música alemã posterior remonta a Bach, o gênio musical alemão, dominaria de futuro no mundo ocidental’ [...]. A obra de Bach é simultaneamente ponto de confluência e pon-to de partida. Ponto de confluência da música europeia e ponto de partida da música futura das nações. (NEUNZIG, 1985, p.9).24

Barroca, clássica e romântica, a síncope dessa universal “música futura das nações” se faz representar minima-mente nos fragmentos reunidos nos Ex.11 e 12. Nesses fragmentos as três etapas da antiga síncope – prepa-ração, ligadura e resolução – vão sofrendo inflações de todo tipo: mutações, implantes, variações, ornamenta-ções e combinações com outras diferentes espécies de dissonâncias. A rítmica da síncope é usada em texturas homorítmicas sugerindo o caminho para a sincopação das figuras de acompanhamento (Ex.11a). Entre a disso-nância e sua resolução surgem permeios bastante sofis-ticados (Ex.11b). Cadeias de síncopes agora já ocupam papéis motívicos temáticos (Ex.11c). E certos mestres nos surpreendem com resoluções ascendentes (Ex.11d).

No correr dos séculos XVIII e XIX a teoria se vê obriga-da a distinguir coisas que estão se tornando indepen-dentes na síncope: de um lado o deslocamento métrico e de outro as espécies de dissonâncias. A dissonância ocupa a preparação (Ex.12a). O desenho rítmico ago-ra pode estar carregando dissonância de antecipação (Ex.12b) e não mais exclusivamente de suspensão ou retardo. Surgem novos usos para a síncope da antiga prática (Ex.12c). As suspensões não são explicitamente resolvidas (Ex.12d). Agora, rompendo a sisudez do esti-lo estrito, já estamos ouvindo o galante estilo livre. E, como dizia o teórico musical alemão Heinrich Christoph Koch (1749-1816) em 1782: “no estilo livre, dissonância não precisa ser preparada” (KOCH apud RATNER, 1980, p.23). Agora, contando com esse “poderoso recurso para a produção de tensão expressiva, personificando em si o princípio estético essencial da tensão e relaxamento” (BENJAMIN, 1986, p.69), a musica burguesa europeia, caucasóide e culta, alcança a textura legítima e recor-rente da sincopação plena (Ex.12e).

Ex.10 - O acorde perfeito maior e suas suspensões dissonantes segundo Kirnberger em 1773. 18

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FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.

a) Johann Gottfried Walter (1684-1748), Musicalisches Lexicon, 1732.

b) Johann Sebastian Bach (1685-1750), Concerto Italiano

c) Johann Sebastian Bach, Inventio 6 (BWV 777)

d) Johann Sebastian Bach, um caso de resolução ascendente

Ex.11 - Mostruário de síncopes europeias emblemáticas da música culta moderna. 25

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FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.

Com esses poucos fragmentos vamos percebendo que, com acentos vários, a figura de síncope é uma filha natu-ral dessa “música das nações”, dessa babel pós-bachiana, desta hegemônica tonalidade harmônica que nos cerca. Vamos apreendendo que o “conflito com a métrica preva-lecente” (SALZER e SHACHTER, 1999, p.67) e o atrito com a consonância predominante que se dão numa síncope não são defeitos (arritmia, deformidade, imperfeição, fra-queza moral, funcionamento irregular ou falho, carência de linhagem, ou coisas do tipo). E que, embora seja uma tarefa um tanto dispendiosa, é possível notar que os tra-ços de síncope estão mesmo certificados em tanta arte e registrados em tanta teoria.

5 - Valoração: algumas síncopes são mais do que outrasUm registro da síncope feito pelas elites letradas no Bra-sil nos inícios do século XIX foi deixado pelo mestre ca-pela da Sé de São Paulo, o tenente coronel André da Silva Gomes (1752-1844). No seu tratado A arte explicada de contraponto, SILVA GOMES cuida da Ligadura nas lições 9ª a 13ª (LANDI, 2006, p.184-200). O zeloso espaço re-servado ao assunto evidencia que, mesmo aqui – num Brasil dos idos anos de 1800 quando uma música popular vem se formando ao redor das igrejas, das corporações militares e das aglomerações urbanas – o efeito retórico expressivo da síncope é algo de grande valor a ser apren-dido com cuidado e diligência pelo músico que está so-frendo a sua devida catequese ocidentalizante.

Conhecedor dos segredos da arte que explica, Silva Gomes sabe dos efeitos da síncope. Sabe que se trata de um con-trário ao que é o regular, sabe do seu real deslocamento. Mas sabe também que esses efeitos não são impróprios, antes são valores artísticos altamente positivos na arte católica, conservadora e ocidental. Como todo músico mi-nimamente treinado nos cânones da arte europeia, sabe que não se trata de tomar um único partido: tempo e con-tra-tempo, acordo e tensão, não são valores excludentes, são forças constituintes da música que interagem numa negociada síntese de opostos. “Essa ação e reação que da luta recíproca de forças discordantes extrai a harmonia do universo” (BURKE apud TOCH, 2001, p.146).

Ao final da 9ª lição, Silva Gomes faz um precioso co-mentário, “Preceitos concernentes aos Usos e Modos de Formar a Ligadura”, que antecede as lições especí-ficas sobre a Ligadura:

Tendo estabelecido os Sábios a variedade de Espécies com que se propuseram a organizar o corpo da Composição, admitidas e orde-nadas as Agradáveis Consonâncias e aspirando a tornar aprazível o som das mesmas Dissonantes fazendo que elas fossem índices sensíveis da bela Harmonia, querendo, parece de propósito, chocar primeiro o ouvido com a Dissonância, para que depois ficasse mais susceptível e recebesse com maior recreio a Consonância que se seguisse; nestes termos, proporcionando os Meios para que isso se conseguisse, eles estabeleceram experimentados preceitos en-tre os quais um deles muito especial e capaz de modificar a dura aspereza da Dissonância foi o uso e modo de unir estas Espécies com Ligaduras, chegando por esta descoberta a ponto de intro-duzir felizmente e com estimável apreço, as Falsas e Dissonantes

nas Composições, prescrevendo as partes que a Ligadura se deve dividir, não menos do que muitas inerentes circunstâncias, todas importantes e precisas para o feliz êxito de uma bem ajustada Composição (SILVA GOMES in LANDI, 2006, p.184).

Assim, Silva Gomes re-ensina a grande regra: tratar da síncope é tratar da variedade como valor estético, pois “In omni contrapuncto varietas accuratissime exquien-da est” – “a variedade é exigência urgentíssima em todo contraponto” (TINCTORIS apud FORNER e WILBRANDT, 1993, p.25). Conforme o musicólogo alemão Heinrich Besseler (1900-1960), no século XV

entendia-se por varietas uma modificação da técnica musical de qualquer tipo que se pudesse pensar, tendo essa modificação o va-lor de preceito principal. Quer dizer que a repetição de grupos ou desenhos de notas, a repetição do mesmo e de coisas similares ou a reaparição de um determinado ritmo no compasso seguinte era mal vista. A ideia melódica deve apresentar a cada momento algo novo, inesperado, surpreendente. Não se busca a regularidade, mas sim a irregularidade (BESSELER apud LA MOTTE, 1998, p.18).

Como os demais tratadistas, Silva Gomes distingue duas qualidades principais de ligadura: A ligadura pre-cisa (a síncope necessária, i.e., a dissonante) “refere-se ao tratamento da suspensão, onde a nota ligada deve ser preparada e seguida de sua resolução, ordinaria-mente, por grau conjunto descendente” (LANDI, 2006, p.41). A ligadura voluntária “refere-se ao tratamento da síncope, pela qual ocorre apenas um jogo alternan-te de consonâncias podendo a nota ligada ser tratada livremente, isto é, alcançada e/ou deixada por grau conjunto ou salto” (idem).

Como o Ex.3 já pré-anunciou, tal distinção específica é téc-nica, mas é também uma distinção de valor: agrega capital artístico, social, cultural, simbólico, linguístico, escolar. Con-solidada no ambiente sacro erudito pré-moderno, tal dis-tinção técnico-valorativa sofreu seus sincretismos e numa espécie de repercussão impremeditada se fez qualidade de grande apreço nos mundos contemporâneos das músicas populares sincopadas. A distinção se fundamenta na con-cepção artística de que, embora não seja possível nem dese-jável desenvolver tramas musicais só com a ligadura precisa (a síncope dissonante), seu uso implica habilidade, beleza, esmero e maestria, implica em agudeza e engenho.→

Não se trata, é claro, de excluir totalmente o uso da li-gadura voluntária (a síncope consonante). Trata-se de colocá-la em seu devido lugar e proporção. Entre as duas se estabelece uma relação intencionalmente assimétri-ca: uma variedade equilibrada por uma desigualdade. O conhecedor do ofício, o “gênio”, se faz reconhecer pelo uso da síncope mais difícil, expressiva, complexa, varia-da, inteligente e criativa, ou seja: a síncope de tipo dis-sonante e/ou ornamentada. De maneira relativa, geral, e combinada com uma série de fatores diversos (musicais e extra-musicais), vamos notar que estilos, gêneros, músicas e músicos que invertem tal assimetria – i.e., usam mais ou usam demais as síncopes consonantes – são julgados como algo de qualidade menos artística, mais pobre, infe-rior, monótona, vulgar ou menor.

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a) Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), fragmento do Quarteto, K. 387, Molto Allegro, 1782.

b) Carl Philipp Emanuel Bach (1714-1788), Kurze und leichte Klavierstucke, n. 12.

c) Franz Joseph Haydn (1732-1809), Sonata n. 12.

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6 - Síncopes características: os garfinhos na música popular brasileira Não raro tal distinção – que, vale insistir, não é auto-suficiente, pois é apenas uma das tantas especificidades que atuam nos domínios de um campo – realça matizes xenofóbicas e nacionalistas: a “melhor sincope” (a “boa”, a “característica”) é a “mais brasileira” (ou, para outras pessoas, em outros lugares, será a “melhor” ou a “mais” caribenha, cubana, negra, portenha, jazzista, etc.). O cri-tério está sutilmente presente na distinção entre o que é música sincopada mais ou menos “comercial” (síncopes difíceis vendem menos, são menos dançáveis, e são per-cebidas como tristes, problemáticas, etc.) e entre o que é mais ou menos “tradicional” (síncopes difíceis são mais legítimas, antigas, originais, verdadeiras, de raiz, etc.).→ Não formalmente expressa – e sempre entre aspas, pois

tudo isso tem validade delimitada –, tal distinção atua no nível do conhecimento tácito, subentendida, é uma espécie de segredo recôndito que contribui para alimen-tar a crença estereotipada de que “algumas síncopes são superiores” e por isso devem ser “separadas e conser-vadas” como cultura autêntica e pura. Com isso, dentro deste campo da música popular, algumas músicas, seus músicos e simpatizantes, podem perfeitamente não re-conhecer ou validar esse tipo de critério, enquanto que outros vão se identificar totalmente com ele.→

O Ex.13 reúne algumas síncopes brasileiras intencional-mente escolhidas em obras emblemáticas produzidas por mestres da “nossa” artesanalidade sincopada recente. Antes, uma observação deve ser feita. Esses fragmentos são grafados aqui de maneira simplificada, sugestiva e

d) Ludwig van Beethoven (1770-1827), Sonata, op.1, (Pathétique), Rondo, 1798-99.

e) Robert Schumann (1810-1856), Kinderscenen, op. 15, n. 10 (Fast zu ernst), 1838.

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provisória e visam ilustrar o argumento (de que as combi-nações das qualidades das alturas nos desenhos rítmicos das síncopes influem numa distinção valorativa). Como se sabe, nas músicas populares uma composição não se fixa com demasiada rigidez, já que na escrita, leitura, inter-pretação, arranjo ou improvisação que se pratica nesse campo tudo isso (notas, tessituras, divisões rítmicas, ar-ticulações, quantidades e qualidades dos acordes, tona-lidades, instrumentação, andamentos, etc.) vai mesmo se modificando a cada singular recriação. Certamente tais impermanências implicam em medidas analíticas obje-tivas (quais intervalos são consonantes ou dissonantes, quais figurações são sincopes ou não, etc.) que vão diferir substancialmente das medidas aferidas aqui.

A intenção do Ex.13 é estimular associações entre, por um lado, o que conhecemos destas obras e autores, o lu-gar e o valor que estes “nomes” – o “feitiço do nome do mestre” como dizia Walter Benjamin (apud BOURDIEU, 2007, p.287) –, ocupam na música, na cultura, na eco-nomia, no mundo social em que vivemos.→ E, por outro lado, a ocorrência objetiva de letras “d” (dissonâncias) contrapostas às letras “c” (consonâncias). Importa no-tar a relação de proporção/desproporção entre “d” e c”, a variedade (riqueza, complexidade, originalidade) das combinações sequenciadas e a qualidade das posições ocupadas. Por ex., “d” em preparações ou resoluções pode ser sinal de engenho, criatividade, modernização, virtu-osismo, impureza, etc.; “c” em lugar de suspensão pode ser sinal de imperícia, menor qualidade artística, humor, ironia, etc. Importa notar que o valor tradicional (tonal, ocidental) não está na opção por “d” ou por “c”, e sim no equilíbrio ou desequilíbrio conseguido entre elas. Combi-nações “d” e “c” também dão indícios do desenvolvimento causa-efeito da trama. Por ex., estereotipadamente, “c” pode indicar repouso ou distensão, enquanto que “d” im-plica em tensão e movimento, etc.

Contudo, é preciso frisar com clareza que tais associações ou referências não são suficientemente alimentadas ex-clusivamente pelo puro isolamento técnico-objetivo das combinações entre “d” e “c”. Como se sabe, o valor em música popular é uma grandeza relacional, depende de efeitos combinados onde aspectos incontáveis e diversos interagem. Assim, os parâmetros de ritmo e altura jamais estão sozinhos na tarefa de julgar qual é ou não a boa síncope. O ritual leva em conta quem está fazendo música para quem, aonde e por que, o texto das canções, as qua-lidades da harmonia, o timbre, a tessitura, o vibrato, o an-damento, a instrumentação, o volume, os processamen-tos de mixagem, a mise-en-scène, a expressão corporal,

a iluminação, os olhares, todo o ambiente que um fato musical evoca incluindo o tamanho, o comportamento e a adesão de algum público aficionado, etc. Enviesada-mente os fragmentos amostrados no Ex. 13 realçam tão somente os aspectos do controle das alturas que com-põem a melodia (intervalos consonantes ou dissonantes, notas do acorde ou notas auxiliares, tensões disponíveis, preparação, suspensão, resolução, etc.), mas o horizonte de compreensão da questão das síncopes características (brasileiras ou outras) é, como se sabe, bem mais am-plo e miscigenado. A síncope é também (ou muito mais) uma questão de elocução, um modo de expressar, assim, não é propriamente uma questão exclusiva da composi-ção (notação, etc.), é um componente de interpretação e performance, um tipo de pronúncia ou sotaque que atua também (ou muito mais) no tecido rítmico dos “acompa-nhamentos” destas melodias.

7- Em conclusãoA visita a esta memória da síncope oportuniza notar que, na arte e na teoria, a síncope não é uma noção unívoca que se acha homogeneamente pré-estabelecida e paralisada em algum lugar. Como tantos dispositivos musicais que vão atravessando o processo da coloniza-ção ocidental, a síncope da tradição erudita não é um patrimônio privativo e anistórico que, puro, ileso e au-tônomo, vai percorrendo épocas e lugares sem sofrer re-definições e experimentar novos usos e pronunciações. Arguta, prestigiosa, institucional, dominadora e milenar, essa síncope letrada toma parte das “mestiçagens que nos constituem” (BARBERO, 2008, p.262), é uma das muitas “falas” – das muitas maneiras de pensar, de ver, ouvir, fazer e julgar – que discursam nas longas e tortu-osas conversas que estão na linha do telefone-sem-fio das transformações do mundo.

Mesmo correndo o risco de reelaborar o que já está dito em alguns dos “múltiplos discursos sobre música popular”, vale concluir notando que observações desta natureza – a busca de uma historicidade formativa do que seria a síncope brasileira, a busca do que e em que medida compõe uma espécie de DNA, ou de “alma” da musicalidade brasileira, etc. – dependem do cruza-mento de um espesso caldo de considerações. E nesta densa trama de “impossível pureza” (BARBERO, 2008, p.263), de inúmeras e inacabadas interações transfor-mativas, as qualidades e posicionamentos das alturas no interior do desenho rítmico da síncope são apenas mais alguns dos mínimos detalhes, frações pequeninas de artesanalidade sutil e subliminar, que se misturam nos nossos julgamentos de valor.

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a) Ernesto Nazareth (1863-1934), Brejeiro, maxixe.

b) Pixinguinha (1897-1973), Carinhoso, choro-canção.

c) Pixinguinha, Lamentos, choro.

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d) Tom Jobim (1927-1993), Chega de Saudade.

e) Hermeto Pascoal (1936-), Surpresa.

(Cont.) Ex.13 - Mostruário mínimo do valor da síncope em desenhos melódicos da MPB.

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f) Edu Lobo (1943-) e Vinícius de Moraes (1913-1980), Só me fez bem.

g) Gilberto Gil (1942-) e Capinam (1941-), Soy loco por ti América.

(Cont.) Ex.13 - Mostruário mínimo do valor da síncope em desenhos melódicos da MPB.

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notas1 A expressão “da diferença do que ensinam os antigos e os modernos” foi tomada de LANDI (2006, p.122).2 Considerando que “a música popular atrai os eruditos” e “pesquisadores vinculados às universidades”, TRAVASSOS (2005) mapeia a produção acadê-

mica que trata da música popular nos campos da etnomusicologia, antropologia, estudos literários, semiótica da canção, sociologia e historiografias. Para SANDRONI, que tratando da “síncope brasileira” relê diversos estudiosos (tais como Edison Carneiro, Mario de Andrade, Andrade Muricy, Oneyda Alvarenga, Nogueira França, etc.), “de fato, alguns musicólogos viram na síncope uma característica definidora não apenas do samba, mas da música popular brasileira em geral” (SANDRONI, 2001, p.19). Sobre a síncope como um tema privilegiado nos estudos da música brasileira ver ANDRADE (1989; 2006), CANÇADO (2000), MACHADO (2007), NAPOLITANO (2007), SANDRONI (2001), SODRÉ (1979) e WISNIK (2003).

3 A expressão “um bocadinho de cada coisa” foi tomada de BESSA (2005).4 Sobre as normas de adequação música e texto (Latim) na polifonia ver Benjamin (1979, p.9-10),

Carvalho (2000, p.105-107), Forner e Wilbrandt (1993, p.103-105), Jeppesen (2005, p.38-47) e La Motte (1998, p.174-181).Tratando da “inclusão do ritmo” no estilo palestriano Forner e Wilbrandt (1993, p.96-103) sugerem a unidade de tempo de 70 pulsações por minuto, nesse andamento a figura de síncope ocupa duas unidades de tempo. O andamento é um fator a ser considerado na re-significação da síncope. Para uma comparação acentuada com um caso atual de “síncope bra-sileira” onde a figura de síncope ocupa uma unidade de tempo, temos que, “enquanto no Rio [de Janeiro] a pulsação média dos sambas[-de-enredo], nos desfiles [de carnaval], tem sido de 132 a 138 [pulsações por minuto], ela é de 138 a 144 em São Paulo, pela marcação de 1989” (IKEDA, 1990). Assim, no andamento, é vertiginosa a diferença que se observa entre uma suposta síncope palestriniana e uma estereotipada síncope de samba-de-enredo.

5 O uso do termo massivo em contexto anterior aos meios de comunicação de massa foi sugerido por GARCÍA CANCLINI (2003, p.255-256): “A rigor o processo de homogeneização das culturas autóctones da América começou muito antes do rádio e da televisão, nas operações etnocidas da conquista e da colonização, na cristianização violenta de grupos com religiões diversas, – durante a formação dos estados nacionais – na escolari-zação monolíngue e na organização colonial ou moderna do espaço urbano. [...] A noção de cultura massiva surge quando as sociedades já estavam massificadas”.

6 Uma alusão ao título de NEVES (1985). O próprio termo “católico” – do Latim catholice (universalmente), catholicus (universal, geral, regular), catholicum (regra geral), catholica (propriedades gerais, o universo), (TORRINHA, 1942, p.130) – é útil para pensarmos a memória da síncope. No cadinho que nos coube nesse Novo Mundo, aprendemos a falar da “síncope brasileira” (ou, conforme o narrador, da “síncope cubana”, da “sincope jamaicana”, da “síncope do Ragtime norte-americano”, etc.) da mesma maneira que aprendemos a falar de um catolicismo “brasileiro”. Um sutil contra-senso, já que o termo “católico” pretendeu dizer justamente aquilo “que é universal”. Mas esse contra-senso (esse universal vertido em particular) deslocou-se frente ao fato de que, apesar das origens (já sincréticas) do termo e da própria religião, o Brasil, como outras paragens do Novo Mundo, acabou negociando seu jeito particular de ser “católico”. E esse “jeito de ser”, esse “modo próprio de perceber e narrar, contar e dar conta” (BARBERO, 2008, p.261) acaba sendo reconhecido como tal.

7 A expressão “muito longe, muito perto” foi tomada de SAFATLE (2007).8 Datado de 1477 o Líber de arte... de Johannes Tinctoris (c.1435-1511) é um marco renascentista do registro teórico da síncope. Tal registro foi pre-

cedido – informa RIEMANN (1962, p.249-250) – por normalizações da síncope encontradas em tratados franceses cem anos mais antigos. Tratados como o célebre Ars nova (c.1322), o Ars perfecta in musica e o Liber musicalium atribuídos a Philippe de Vitry (1291-1361), e também em trabalhos atribuídos a Johannes de Muris (c.1290-c.1351) como o Libellus cantus mensurabilis (c.1340). No repertório as dissonâncias sincopadas também estão presentes nessa música do século XIV, p.ex., em obras de Philippe de Vitry, Guillaume de Machaut (c.1300-1377) e Francesco Landini (c.1327-1397). Cf. GROUT e PALISCA (1994) e PALISCA (1996). Observa-se com essas tão antigas figuras novas que, desde cedo, no “canto polifônico racio-nal”, a síncope é um pormenor sui generis dentre os “meios técnicos de expressão” que, “com a finalidade de moldar a paixão”, decorrem daquilo que o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) chamou de “notação racional” (cf. LIMA REZENDE, 2009). Por volta de 1911, em seu “fundamentos ra-cionais e sociológicos da música”, WEBER (1995) destacou correlações entre a “notação” e o “papel fundamental que a Igreja desempenhou em todo o processo de racionalização” que culminou na moderna música ocidental – a música “condicionada” pela “Akkordhamonik” (harmonia de acordes).E que isto tenha sido possível teve seu fundamento [...] nas soluções precedentes de problemas tecnicamente racionais. Assim particularmente na criação da notação racional (sem a qual nenhuma composição moderna seria sequer concebível) e, já antes, na criação de instrumentos determi-nados que impeliam à interpretação harmônica dos intervalos musicais, e sobretudo na criação do canto polifônico racional. Teve papel nessas realizações na Alta idade Média o monacato dos territórios missionários do Norte-Ocidente, que sem suspeitar o alcance posterior de seus atos racionalizou para seus fins a polifonia popular [...]. Foram particularidades absolutamente concretas – condicionadas sociologicamente e pela história da religião – da situação externa e interna da igreja cristã no Ocidente que originaram ali, a partir de um racionalismo próprio apenas ao monacato do Ocidente, esta problemática musical, que na sua essência era de tipo “técnico” (WEBER, 1995, p.50-51).

9 Adaptado de LA MOTTE (1998, p.76). No exemplo a letra “c” corresponde a um intervalo consonante e a letra “d” a um dissonante. Por conseguinte, suspensões como ¯9-8, ¯2-1,¯4-5, ¯7-8, bem como as eventuais resoluções ascendentes (que aparecem mais tarde na música culta europeia), não estariam ainda em uso na época de Josquin (LA MOTTE, 1998, p.77). Note-se ainda que o desenho de síncope não é puramente melódico, já que depende de no mínimo duas vozes.

10 Conforme LA MOTTE (1998, p.78-81). Para estimular comparação com uma grafia da síncope que aparece na música popular atual, as cláusulas dos Ex. 2a e 2b foram reescritas (no destaque) em compasso dois por quatro.

11 O Ex.3 procura resumir diversas referências. Em um primeiro grupo – reunindo autores que seguem a normalização proposta por Fux, onde a síncope ocupa a destacada posição de quarta espécie de contraponto – estão: CARVALHO (2000), FORNER e WILBRANDT (1993), FORTE e GILBERT (2003), FUX (1971), JEPPESEN (1992; 2005), KENNAN (1987), OWEN (1992), SALZER e SHACHTER (1999), SCHENKER (1987) e SCHOENBERG (2001a). Dentre os que não seguem as espécies fuxianas estão: BENJAMIN (1979), LA MOTTE (1998) e PISTON (1998). Os termos usados em tratados brasileiros e portugueses nos séculos XVIII e XIX foram recolhidos em FAGERLANDE (2002) e LANDI (2006). Para estudos que abordam as relações entre métrica e altura na tonalidade harmônica ver BERRY (1985), COOPER e MEYER (2000), KOMAR (1971), KRAMER (1985) e LA RUE (1989).

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12 Conforme BENJAMIN (1979, p.150 e 173). Esses fragmentos não trazem todas as informações que constam na partitura e os comentários analíticos são parciais.

13 O uso da dissonância é assim um critério de valor altamente positivo no julgamento artístico ocidental. Seu emprego denota risco, virtuosismo, habi-lidade e maestria composicional. Com isso, Palestrina pôde ser considerado um dos grandes do seu tempo porque, entre outras coisas, conseguia usar mais dissonâncias do que outros maestros da época. No ranking demonstrando estatisticamente a capacidade de uso de diversas dissonâncias (notas de passagem, suspensões, bordaduras e antecipações) compilado por HUANG e CHEW (2005) com o auxílio de um software para análise musical, vemos que Palestrina aparece em primeiro lugar com 18,37% de dissonâncias, em segundo vem Tomás Luis de Victoria (1548-1611) com 14,8%, depois William Byrd (1540-1623) com 10,57% e por fim Orlando di Lasso (c.1530-1594), com 7,84%.

14 Não se trata, é claro, de uma não percepção do ideal de diversidade defendido pelos grandes teóricos do renascimento como Tinctoris e Zarlino. Fux conhece a importância artística da variedade, basta ir até à sua 5ª espécie, por isso mesmo chamada de “contraponto florido” (FUX, 1971, p.64-67). Mas é que o diligente Fux é um personagem do Iluminismo exercendo o poder de abstração e o melhor da concepção pedagógica de seu tempo: “a maneira do Iluminismo conhecer [e logo ensinar] uma coisa era: identificar, separar e classificá-la” (GAINES, 2007, p.190). Fux trata do uso da síncope em cláusulas (cadências) em diversas passagens ao longo do Gradus... , p.ex., no “Exercitii V. Lectio III. De trium partium Fugis”.

15 Ver ainda Livro 2 (da natureza e propriedade dos acordes) Artigo 1 e Artigo 4 (RAMEAU, 1986). Para Rameau o efeito de síncope é algo comparável a uma colisão, daí a origem do termo. Síncope seria composta por duas palavras gregas: syn e copto (RAMEAU, 1971, p.78; ROUSSEAU, 2007, p.368). Syn é um prepositivo que implica em juntamente (ao mesmo tempo, associação, etc.) que aparece em palavras como sincronia, sinergia, sinfonia, sinônimo, síntese, simetria, simbiose, símbolo, etc. Já copto (-cope) significa bater, colidir ou cortar e é usado como pospositivo no eruditismo latino do renascimento em palavras como apócope (mudança fonética que consiste na supressão de um ou vários fonemas no final de uma palavra, por exemplo: cine, por cinema, bel por belo), perícope (trecho da Bíblia ou de um livro) e síncope (HOUAISS).

16 O texto “Syncope, en Musique” de Rousseau foi publicado primeiramente em 1765, no XV volume (p.747) da célebre Encyclopédie... editada por Diderot e D’Alembert entre 1751 e 1772.

17 A partir de RAMEAU (1986, p.298; 1971, p.316). 18 A partir de KIRNBERGER (1979, p.172).19 Adotando o termo “suspensão”, BARTEL (1997, p.396) não deixa de avisar que, em inglês, suspention é normalmente usado como tradução de

syncopatio ou syncopa. No entanto, suspention tem conotação de harmonic syncopation e, em inglês, este termo ficou mais reservado para os aspectos da síncope que implicam no controle das questões de altura. Por outro lado, o termo inglês syncopation é normalmente entendido como uma alteração de ordem rítmica (não necessariamente implicando em dissonâncias no campo das alturas). Tal separação se mostrou necessária na contemporaneidade, pois desde a síncope do estilo livre (ver itens 4 e 5), nem todas as dissonâncias acomodadas no desenho rítmico da síncope são suspensões (ou retardos). A advertência de Bartel – igualmente lembrada nas notas do tradutor in FORTE e GILBERT (2003, p.60) – é determinante para os estudos da síncope no Brasil referenciados em publicações de língua inglesa. Nos dicionários, enciclopédias ou outros textos em inglês, possivelmente, as informações sobre a síncope estarão compartimentadas. Em parte as informações estarão no verbete síncope, onde, no geral, a ênfase recairá nos aspectos de deslocamento métrico, pulso, rítmica, prosódia, etc. Mas serão os verbetes “suspensão” (Francês e inglês: suspension; Alemão: vorhalt; Italiano: sospensione; Espanhol: suspensión) e “retardation” (retardo) que, provavelmente, trarão informações sobre a questão das alturas da síncope tradicional (aquela que antecede o estilo livre). Na cultura viva das síncopes, parece inadequado, para dizer assim, especializar ou compartimentar de maneira muito rígida as diferentes propriedades que compõem o denso entendimento das dissonâncias acentuadas. Mas, dependendo de tendências e intenções, teóricos, críticos, professores, e artistas podem mesmo escolher o caminho da compartimentação paramé-trica. E isso pode ser positivo ou não dependendo de inúmeras outras variáveis. Em qualquer caso o alerta de Bartel continua válido. Como leitores e/ou pesquisadores vamos exercer nossas escolhas informados e informando sobre os riscos e benefícios desta compartimentação específica que carrega sequelas das estereotipadas compartimentações de fundo e mais gerais da nossa cultura atual (i.e. da musicologia de viés eurocêntrico ou anglo-americano) que prefere realmente distinguir suspensão de síncope. Suspensão implica no reino das alturas, termo mais reservado à síncope apolínea, a síncope caucasiana, pensante, letrada, europeia, ocidental, tradicional, histórica e de formação cristã, é a erudita síncope do Velho Mundo, etc. Síncope implica no reino das rítmicas (a sincopada, a sincopação), termo mais reservado à síncope dionisíaca, a síncope rebolada, negra, afro-miscigenada ou afro-latina, ocidentalizada, sincrética, oral, corporal e sem história – é a síncope de transe que encanta os corpos e as palmas das mãos que se confundem nesse nosso Novo Mundo, todo ele tão quente e sincopado, etc. E assim vamos reafirmando nossas crenças e preconceitos inabaláveis: a música que pensa não é sincopada e a música sincopada não pode pensar.

20 Em torno de 1540 o professor e humanista alemão Joannes Susenbrot (c.1484-1543) dizia que “a syncope ocorre quando uma letra ou sílaba é removida do meio de uma palavra” (BARTEL, 1997, p.396). Acepção idêntica se encontra no Vocabulário Portuguez & Latino de Raphael BLUTEAU, publicado entre 1712 e 1728 e tido como “o mais antigo dicionário da língua portuguesa”. Segundo Bluteau a “Syncopa” é termo gramatical e ocorre “quando se tira uma letra, ou sílaba do meio de uma palavra, dizendo duum em lugar de duorum, composius em lugar de compositus”. Já “Syncope” é termo médico, “deriva-se do grego Syncoptein, cortar, porque corta o coração, e todas as faculdades vitais [...]” (BLUTEAU, 1712-1728, p.818). Assim, instituída pelos eruditos da história literária, poética e linguística, essa noção de síncope interatua com a noção de síncope instituída para a observação da música. A síncope da gramática é um recurso culto aceito na avaliação dos desvios, transformações e reinvenções que ocorrem com as palavras em situações coloquiais e nas variações mais populares da cultura oral, como, por ex., nas célebres variações sincopadas que transfor-maram “vossa mercê” em “vossemecê” em “vosmecê” e chegaram até o “você”, que por aférese (supressão de fonema no princípio da palavra) já se reinventou como “ocê” ou “cê” e, que por apócope (supressão no final da palavra), já tornou possível até o uso escrito do solitário “c” como um pronome de tratamento. Tal maneira de entender o percurso das palavras em direção aos usos de caráter mais atual e popular (que notamos nos estudos dos colegas que se ocupam da síncope fonética), em alguma medida, parece influir naquelas soluções do campo acadêmico musical que, numa espécie de simplificação metodológica conveniente, pondo em plano bem mais secundário o aspecto das alturas, escolhe focar o aspecto rítmico da síncope como um parâmetro essencial na apreciação das músicas de registro híbrido, oral e popular. Músicas historicamente recentes (dos finais do século XIX para cá) que se desenvolveram no entorno dos centros urbanos do Novo Mundo passando por transformações análogas aos desvios que, por síncope, se dão na língua falada.

21 Conforme BARTEL (1997, p.402), alguns desses autores preocupam-se com a etimologia da palavra. Para o musico poeticus tcheco Tomáš Baltazar Janovka (1669-1741), syncopatio ou syncopsis, vem do grego Syncopo. Para o teórico e compositor alemão Johann Gottfried Walther (1684-1748) a palavra grega é synkopto. E, para ambos, o termo grego foi traduzido para o Latim como ferio (ferir, golpear, lograr, enganar) ou verbero (atacar, fus-tigar, deitar por terra, esmagar com palavras em um discurso). No Latim, conforme TORRINHA (1942, p.852), a palavra syncopa (ou syncope) significa desmaio; syncopo implica em cair com uma síncope; syncopatus: que tem uma síncope. A palavra suspensus pode significar algo preso em cima, algo que se sustém nos ares, que está na expectativa, na incerteza, incerto, que depende, submisso, parado, retido, etc. (TORRINHA, 1942, p.850).

22 Em certa medida, esse fenômeno de inflação acompanha componentes diversos da tonalidade harmônica. Outros dispositivos moderno-contem-porâneos que poderiam, rapidamente, ilustrar o argumento seriam, por ex.: A propagação da dominante (o V7 principal) para a ideia de dominante secundária que inflaciona a tonalidade com diversos outros V7. O acorde diminuto que se transfere do locus específico do VII grau do modo menor (escala harmônica) para diversos outros locais do sistema (inclusive da tonalidade maior). O acorde de sexta aumentada (SubV7), a princípio re-servado para a função dominante da dominante no modo menor que se expande, generalizando o recurso para incontáveis pontos de preparação. O acorde de sexta napolitana (bII), original de uma mutação da tonalidade menor que empresta seu efeito diferenciado à tonalidade maior (como

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bII7M ou como bVII7M). As vizinhanças de terceira (mediantes, submediantes) raras e especiais (i.e. inexplicáveis) nos séculos XVII e XVIII que se tornaram estereótipos até banais ao longo dos séculos XIX e XX. Dispositivos da época da “saturação da tonalidade” ou “pós-tonais” (tais como o “acorde de Tristão”, o “acorde de Scriabin”, o “modo de Liszt”, a “escala de tons inteiros”, a “escala octatônica”, os acordes por superposição de quartas, etc.), também passam por esse tipo de processo e crítica quando ganham uso na música popular urbana.

23 Sobre a noção de decoro como um princípio básico não só da música, mas de toda a conduta humana no século XVIII ver o estudo de LUCAS (2003).24 A arguta tese de que a música alemã solidifica a “experiência conjunta de toda a Europa” foi enunciada pelo compositor e flautista alemão

Johann Joaquim Quantz (1697-1773) em 1752: “Num estilo que, como o da Alemanha atual, consiste numa mistura dos estilos dos diferentes povos, cada nação encontra alguma coisa com que tem afinidades”. Para Quantz, a música da Alemanha é “mais universal e mais agradável”, pois conjuga e mistura os bons elementos da “pura música italiana”, que já não se assenta “sobre fundamentos tão sólidos como outrora”, e do “puro estilo francês” que “permaneceu excessivamente simples” (QUANTZ apud GROUT e PALISCA, 1994, p.477). O bordão que apregoa J. S. Bach como uma espécie de “ponto de partida” da música moderno-contemporânea, possui inúmeros registros. Conforme BENÉVOLO (2004, p.61-62), para o teórico e historiador Johann Nikolaus Forkel (1741-1818), primeiro biógrafo de Bach e o primeiro a lutar pelo reconhecimento da sua genialidade postumamente, Bach é o “príncipe dos clássicos passados e futuros”. Em um contexto de soerguimento nacionalista, Forkel declara a arte de Bach como um “tesouro inigualável exclusivamente alemão” e dedica a sua biografia aos “admiradores patrióticos da verdadeira arte musical”. Conforme KATER, Beethoven teria dito: “Bach não é um riacho, é um oceano!” Um jogo com a palavra “bach” que em alemão significa riacho (In: WEBERN, 1984, p.89). Para Debussy, Bach é o “ancestral de qualquer música” (DEBUSSY, 1989, p.194). Para Anton Webern (1883-1945) “tudo acontece em Bach”, “tudo o que veio após Bach já estava em preparação [...]”. “Aliás, Bach compôs de todas as maneiras possíveis, ocupou-se de tudo que pode ser pensado!” (WEBERN, 1984, p.82, 66 e 84). Sobre a invenção de J. S. Bach como um dos pilares supremos do reino do espírito alemão, uma espécie de “essência hereditária de um grande passado”, ver o estudo de DAHLHAUS (1999, p.116-125). No momento de nacionalização da música brasileira, ecos desse culto ao nome de Bach (um mestre das sincopas) vão repercutir em nosso entorno. No seu Ensaio sobre a música brasileira, de 1928, Mário de Andrade (1893-1945) vê Bach (e também Haydn e Mozart) como um “espírito totalmente universal” (ANDRADE, 2006, p.14), e no capítulo intitulado “Polifonia” declara: “a harmonização europeia é vaga e desraçada”. Nos anos de 1930 a 1945, nesse mesmo contexto de invenção de um nacionalismo brasileiro e moderno, Heitor Villa-Lobos (1887-1959) compõe as célebres Bacchianas Brasileiras expondo artisticamente sua percepção de possíveis afinidades entre a música popular (sincopada) que se fazia no Brasil e a música de Bach.

25 O Ex.11a é citado em BARTEL (1997, p.404), o Ex.11b em PISTON (1998, p.54) e o Ex.11d em LA MOTTE (1988, p.58). Tais autores trazem uma vasta coleção de exemplos minimamente referenciada aqui.

26 O Ex.12a é citado em PISTON (1998, p.85); o Ex.12b em KENNAN (1978, p.71-72); o Ex.12c em PISTON (1998, p.64); o Ex.12d em KENNAN (1978, p.66) e PISTON (1998, p.74).

27 Sobre o sentido dos termos “distinção” e “capital” (artístico, social, cultural, simbólico, linguístico, escolar, etc,) no vocabulário teórico colocado pelo sociólogo Pierre Bourdieu, ver BOURDIEU (2007), SHUKER (1999) e VALLE (2008). Sobre o sentido dos termos agudeza e engenho na crítica musical setecentista, ver LUCAS (2007).

28 Leia-se, como documento datado, um trecho escolhido no verbete Síncope do Dicionário da Música do “musicólogo” francês Michel Brenet (pseu-dônimo de mademoiselle Marie Bobillier, 1858-1918):

Modernamente, graças à música chamada negra e o sucesso alcançado pelas pequenas orquestras de jazz, convertidas em veículos de transmissão da música dançante procedente da América do Norte, a síncope é algo consubstancial dessa música. A origem das complicadas combinações de ritmos onde a forma sincopada adquire extraordinária preponderância, se encontra nas formas primárias da música própria dos povos africanos que há alguns séculos foram levados à América. Em todos os povos de civilização rudimentar, um dos valores substantivos da música é o ritmo. Os cantos, como as danças populares, oferecem sucessões e combinações de ritmos diversos nos quais reside o grande interesse que aos indígenas na-turais despertam suas músicas. Daí, pois, que os negros, hoje completamente aclimatados e naturalizados em terras americanas, e particularmente na América do Norte, por lei inevitável de atavismo racial, cantem e produzam sua música conservando em sua lírica a modalidade das escalas pentatônicas africanas e a tendência a fazer do ritmo um meio expressivo. Na música popular e nas danças americanas, as fórmulas sincopadas adquiriram um grau insuspeitável de riqueza desde há pouco mais de meio século. A síncope se transformou em elemento essencial da música de dança. Os cake-walks e os foxtrotes não são outra coisa que combinações de ritmos nas quais se faz todas as formas de síncope imagináveis que por superposição ou por cruzamento umas com as outras, produzem aspectos dinâmicos de irresistível efeito (BRENET, 1962, p.478).

29 Com o termo “campo”, Bordieu se refere a espaços específicos de posições sociais nos quais um determinado bem é produzido, consumido e classificado. O campo se particulariza [...] como um espaço onde se manifestam relações de poder, o que implica afirmar que ele se estrutura a partir da distribuição desigual de um quantum social [capital social] que determina a posição que um agente específico ocupa em seu seio. [...] A es-trutura do campo pode ser apreendida tomando-se por referência dois pólos opostos: o dos dominantes e os dos dominados. Os agentes que ocupam o primeiro pólo são justamente aqueles que possuem um máximo de capital social; em contrapartida, aqueles que se situam no pólo dominado se definem pela ausência ou pela raridade do capital social específico que determina o espaço em questão (ORTIZ, 1983, p.21). No “campo”, os agentes (indivíduos ou instituições) que ocupam a posição dominante tendem a adotar estratégias conservadoras ou ortodoxas que visam manter (canonizar) os valores que lhes são favoráveis. Os agentes que ocupam posições inferiores no interior do campo (i.e., aceitam a hie-rarquia do campo) tendem a adotar estratégias que objetivam alcançar os padrões de excelência dominantes ou a adotar estratégias heterodoxas ou heréticas que visam a contestação e a subversão das estruturas hierárquicas vigentes. “A estratégia dos agentes se orienta, portanto, em função da posição [atual e potencial] que eles detêm no interior do campo, a ação se realizando sempre no sentido da ‘maximização’” dos capitais (ORTIZ, 1983, p.22). Basicamente, o que está em jogo nesse “campo” da música popular são relações de poder entre o que é a “boa” e a “má” música, “quem é” o “grande músico” e “quem não é”, e “quem são” os “autorizados” a julgar (classificar, hierarquizar) os bens da música popular. Cf. BOURDIEU (2007), CAVALCANTI (2007, p.19) e VALLE (2008, p.105).

30 Sobre esta temática ver o estudo de CAVALCANTI (2007). 31 As harmonias do Ex. 13b e 13c baseiam-se nas cifras de Edmilson Capelupi. O fragmento 13e foi retirado das transcrições de PRANDINI (1996, p.72).

Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas é professor da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC (Florianópolis) atuan-do nas áreas de teoria da música, harmonia tonal, contraponto e análise musical. Atualmente é aluno do Doutorado em Música da UNICAMP onde desenvolve pesquisa na área de Fundamentos Teóricos da Música Popular.

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PEREIRA, E. T. et al, Música e infância no rádio: o programa Serelepe... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.150-156.

Recebido em: 02/09/2009 - Aprovado em: 18/02/2010

Música e infância no rádio: o programa Serelepe na Rádio UFMG - Educativa1

Eugênio Tadeu Pereira (UFMG, Belo Horizonte. MG) [email protected]; [email protected]

Cristiane da Silveira Lima (UFMG, Belo Horizonte. MG)[email protected]

Gabriel Murilo Resende (UFMG, Belo Horizonte. MG)[email protected]

Reginaldo Santos (UFMG, Belo Horizonte. MG)[email protected]

Resumo: Este artigo tem como eixo temático a música infantil no rádio e faz uma reflexão a partir das experiências do programa Serelepe: uma pitada de música infantil, na Rádio UFMG Educativa, 104,5 FM, apresentado desde agosto de 2005 em Belo Horizonte. Seu caráter experimental é derivado da tentativa em integrar as áreas de teatro, música e comunicação, juntamente à proposta de difusão musical.Palavras-chave: rádio, música infantil, criança, educação musical.

Music and childhood on radio: the Serelepe program at UFMG - Educativa station

Abstract: The main theme of this article is childhood music on the radio. It reflects about the experiences of Serelepe: uma pitada de música infantil (Serelepe: a pinch of kid’s music), a program broadcasted at 104.5 FM of the UFMG Edu-cativa Radio Station, since august 2005, in Belo Horizonte, Brazil. Its experimental outline is derived from an attempt to integrate the areas of Drama, Music and Communication, within the music broadcast proposal.Keywords: radio, music for children, child, musical education.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010

1. ApresentaçãoO Serelepe: uma pitada de música infantil é um progra-ma de rádio para crianças, oriundo do Curso de Gradu-ação em Teatro da Escola de Belas Artes da UFMG, que vai ao ar todos os finais de semana2 pela Rádio UFMG Educativa 104,5 FM, na região metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais. Ele pode ser ouvido também pela Internet, de qualquer lugar do mundo, no link www.ufmg.br/online/radio. Contatos com o programa podem ser feitos pelo e-mail [email protected] e também pelo blog http://programaserelepe.blogspot.com.

O programa é divido em quatro blocos: o Mão na Cum-buca – músicas daqui e acolá (dedicado exclusivamente a músicas brasileiras); o De Cabo a Rabo – quem conta um canto canta um conto (com histórias cantadas); o De Mala e Cuia – um passeio musical (com músicas de diferentes países) e, por fim, o Balaio de Gato – de tudo um pouco (no qual tentamos misturar músicas, histórias, brincadeiras, dicas culturais, dentre outros).

Por estar inserido na programação de uma rádio edu-cativa, o projeto tem se caracterizado por um processo contínuo de experimentação de diferentes linguagens, buscando integrar, principalmente, as áreas de Teatro, Música e Comunicação. Em 2007, ele se tornou também uma disciplina optativa no curso de Graduação em Teatro na EBA/UFMG, configurando um espaço de pesquisa para os alunos do curso que possibilita o improviso, a brinca-deira, a atitude lúdica e, concomitantemente, uma visão crítica em relação à música, às formas de comunicação e às artes produzidas para crianças.

Ainda em 2007, os idealizadores do programa – e ou-tros artistas – representaram o Brasil no 8º Encontro da Canção Infantil Latino-americana e Caribenha, realizado na cidade de Valparaíso, no Chile3. Nesta ocasião, vários contatos foram estabelecidos com realizadores de pro-gramas radiofônicos para crianças em diferentes países da América Latina4.

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PEREIRA, E. T. et al, Música e infância no rádio: o programa Serelepe... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.150-156.

Sem a pretensão de tentar mudar o gosto dos ouvintes, nem de transformar a produção musical e cultural vol-tada para as crianças, o Serelepe tem buscado abordar o universo infantil sob um ponto de vista que tem a in-tenção de criar diferentes possibilidades de escuta e de tornar acessível uma produção musical que julgamos de interesse para qualquer ouvinte, mas que não se encontra disponível em outros canais de comunicação. Dessa for-ma, o Serelepe não se constitui em um programa alter-nativo, mas uma proposta alternativa de difusão musical. Objetivamos criar um espaço aberto para a divulgação de trabalhos feitos por, para e com crianças, buscando man-ter um determinado padrão de qualidade, valorizando a inventividade dos artistas e dos ouvintes. Nosso interesse está voltado para aguçar a sensibilidade auditiva e para incentivar a curiosidade musical, isto é, criar possibilida-des e estímulos para uma escuta mais variada, rica e cria-tiva, em que a imaginação do ouvinte possa “criar asas”.

A programação do Serelepe privilegia artistas de todo o mundo com pouca inserção na grande mídia, mas tam-bém promovemos novas escutas de artistas já conhecidos. Determinadas músicas feitas para adultos, por exemplo, adotam uma linguagem que poderia ser igualmente apro-priada por crianças, por causa de seu jogo de palavras, pelo modo como brincam e fazem humor. Um exemplo disso é a letra de As mariposa, de Adoniran Barbosa, cuja letra diz o seguinte:

As mariposa, quando chega o frio/ Fica dando vor-ta em vorta da lâmpida, pra se esquentar/ Elas roda, roda, roda e dispois se senta/ Em cima do prato da lâmpida pra discansar/ Eu sou a lâmpida e as muié é as mariposa/ Que fica dando vorta em vorta de mim/ Toda as noite só pra me beijar.

Essa letra tem uma atmosfera que – a nosso ver – se re-laciona com o universo infantil. O eu-lírico desses versos, com seu português “ruim”, descreve como as mariposas ficam à sua volta, querendo lhe beijar. Mas não seria esta uma metáfora para falar do universo da sedução, da pa-quera? Também. Isso, entretanto, não exclui a apropria-ção lúdica que a imagem da lâmpada rodeada de mari-posas permite.

Já o grupo Secos e Molhados, para citar outro exemplo, tem uma música bastante conhecida chamada O Vira, de João Ricardo e Luli, baseada nas histórias de lobisomem. Eis a letra:

O gato preto cruzou a estrada/ Passou por debaixo da es-cada/ E lá no fundo azul/ Da noite da floresta/ A lua ilumi-nou/ A dança, a roda, a festa/ Vira, vira, vira, homem/ Vira, vira lobisomem.

Essa é uma releitura de uma lenda, associada muitas ve-zes ao universo infantil. Mas quem canta é Ney Mato-grosso, ainda no grupo Secos e Molhados, com seu rosto pintado e suas coreografias ousadas. Tanto O Vira quanto As Mariposa são músicas que têm sido recebidas, com en-tusiasmo, pelas crianças. Mas por quê?

Revela-se a questão da especificidade do nosso público: o que e quem determina o que é música para criança? Criança gosta do quê? Como fazer uma programação mu-sical dedicada ao público infantil que respeite a sua sen-sibilidade e a sua inteligência? É sobre essas indagações que este artigo reflete.

2. “Pré-conceitos” e “pós-conceitos” sobre a relação música, infância e rádio: a ação do SerelepeAntes de pertencer a uma faixa etária, as crianças são seres humanos. A infância é uma fase da vida em que não apenas se assimilam informações e conteúdos, mas em que se aprendem hábitos e valores que podem ser levados por toda a vida. Erik Erikson (1976) nos instiga a pensar que a identidade do sujeito e de uma nação tem início nos rituais de infância. É durante a infância que os sujeitos mais desenvolvem suas habilidades básicas cognitivas e motoras necessárias à vida. É nesse período também que estruturamos a linguagem e compreende-mos as “regras” que permitem a vida em comum. Por isso é tão importante o acesso à cultura, à educação e à saúde de qualidade, sobretudo nos primeiros anos. A formação que se tem na infância tem impactos diretos no futuro jovem/adulto.

Sendo assim, uma programação musical voltada para o público infantil deve estar atenta a este caráter de for-mação mais amplo – e não deve se voltar exclusivamente para “ensinar conteúdos ou boas maneiras” às crianças, tais como contar até dez, tomar banho ou escovar os dentes. Existem espaços mais apropriados e eficazes do que o rádio ou a música para esse tipo de orientação.

Observa-se que as crianças tendem a gostar das músicas às quais têm acesso pela sua família, pelos meios de co-municação (sobretudo a televisão) ou pelas influências de amigos. Muitas crianças só escutam aquilo que seus pais ou irmãos ouvem: uma música feita por e para adultos; na maioria das vezes, de fácil consumo.

No senso comum, o que define se uma música é ou não para crianças é um critério temático/ pedagógico. Acredita-se que música para crianças deve ser instrutiva (ensinando, por exemplo, a soletrar ou contar), deve ensinar hábitos de higiene pessoal e da boa educação (como escovar os dentes, tomar banho, dizer “por favor” e “obrigado”, etc.), deve ensinar valores morais (como respeitar o próximo e cuidar da natureza). Outra característica encontrada nas letras das músicas para crianças é a frequência assombrosa de animais (e quase sempre mencionados no diminutivo), ou ainda, que versam sobre seres fantásticos, tais como monstros, bruxas ou bicho papão. Luis Maria Pescetti (in BRUM, 2005, p.31), discutindo a sua experiência em pro-gramas de rádio e com música para crianças, faz uma crí-tica irônica e bem-humorada, afirmando:

Nas canções infantis há mais animais do que na Arca de Noé. Estão cheias de bichos. Arainhas, galinhazinhas, cachorrinhos, mariposinhas, tartaruguinhas, gatinhos, lagartinhas, verminhos,

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vaquinhas, abelhinhas, pombinhos... Até vampiros. Basta! Por que ninguém fez uma canção infantil sobre um pocinho de petróleo, por exemplo?5.

Em seu texto, o autor apresenta também uma lista enor-me de temas possíveis de serem abordados, que vão des-de o liquidificador, o telefone, os pés das girafas, uma briga entre os pais, à perda de um avô, etc. O problema é menos o tema em si do que o modo como eles se torna-ram exaustivos, padronizados e repetitivos, contribuindo muitas vezes para o estabelecimento de estereótipos e preconceitos. O universo infantil é frequentemente abor-dado de modo ingênuo e edulcorado, como se toda crian-ça fosse alegre e feliz por natureza e em tempo integral, como se não vivesse também seus dilemas e conflitos... É uma espécie de infância idílica e inventada pelo adulto que não a viveu, pois ela nunca existiu e talvez, nunca existirá. Essa infância é cantada em verso e prosa como um mundo feliz idealizado. Mas quem de nós teve uma infância somente feliz?

Outras vezes, as crianças aparecem como seres barulhen-tos, inquietos e incapazes de ficarem em silêncio, que só sabem correr e fazer bagunça por todos os lados. São sempre ingênuos, pois vivem fazendo perguntas descon-certantes aos adultos, às quais só terão respostas quando atingirem uma suposta maturidade. No entanto, temas considerados sérios ou densos, tais como a perda, a morte, a dor, por exemplo, seriam mais apropriados para adultos.

Se, por um lado, esses temas mais comuns são um mo-dus operandi no imaginário dos compositores de músicas para crianças; por outro lado há um leque de produções musicais que têm como mote temas diversos e que dizem claramente, e com poesia, sobre temas gerais da vida. Walter BENJAMIN (1924, p.237), já em 1924, ao falar so-bre livros infantis, dizia que

a criança exige dos adultos explicações claras e inteligíveis, mas não explicações infantis, e muito menos as que os adultos con-cebem como tais. A criança aceita perfeitamente coisas sérias, mesmo as mais abstratas e pesadas, desde que sejam honestas e espontâneas.

Portanto, é de grande importância uma atitude sincera ao refletir acerca da ideia de infância que orienta as esco-lhas em um programa infantil, seja do ponto de vista dos diálogos nas locuções, seja nas seleções musicais. Essa honestidade é decorrente de um respeito às crianças e aos demais ouvintes que procuramos ter.

Observa-se, também, uma falta de preocupação geral com a qualidade timbrística e com o nível de elaboração das produções musicais, quiçá artísticas de modo geral, voltadas para as crianças. A maior parte delas oferece pouca ou nenhuma inventividade e curiosidade que insti-guem a imaginação do ouvinte: são frequentemente pou-co elaboradas, baseadas em padrões rítmicos, melódicos e harmônicos bastante simplórios, com repetição exage-rada de palavras no diminutivo, rimas fáceis e previsíveis, com uma instrumentação pobre e reduzida (normalmen-

te composta por uma bateria eletrônica e um teclado), acompanhadas quase sempre por coreografias, como se criança não conseguisse ouvir música sem se mexer. En-fim, faltam variedade e riqueza nos arranjos sonoros e nos textos dessas músicas. O que se vê difundido nos grandes centros comerciais são coletâneas de canções de domínio público, reunindo pela enésima vez Ciranda cirandinha, Sapo Cururu e O Cravo brigou com a rosa. Não é o caso de desmerecer essas músicas, patrimônio cultural nacional, mas de convidar a trazer algo renovado ao rearranjá-las e regravá-las. A novidade objetivada não está meramente no aparato eletrônico ou na orquestra sinfônica. Acredi-tamos que essa novidade está em revelar, na própria mú-sica, aquilo que quase ninguém ouviu. Na própria música deve haver algo de novo, de frescor.

Os argumentos e justificativas que são dados para a re-corrência desses padrões, normalmente, são a afirmação de que a mídia dá às crianças exatamente aquilo que elas querem. Ora, a relação dos meios de comunicação com a sociedade não pode ser vista de modo tão mecânico, redu-cionista e linear: os meios de comunicação não fornecem simplesmente os produtos desejados pelo público, nem lhes impõem com facilidade, os seus produtos (como se o público não soubesse discernir e não tivesse autonomia alguma para refletir e escolher, entre os produtos ofere-cidos, aqueles que lhe mais interessam, como se consu-misse tudo indiscriminadamente6). Afinal, o que constitui a comunicação é mais do que produzir e receber discur-sos. O que estabelece o vínculo comunicativo é “a ação de afetar e ser afetado pelo outro através de materiais sig-nificantes. É produzir/ consumir discursos, representações, sentidos para e em decorrência do outro – e sofrer, junto com ele (embora não necessariamente igual a ele), as con-sequências” (FRANÇA, 2006, p. 86). Entendemos os meios de comunicação como instrumentos sociais que dialogam permanentemente com os valores e com os sentidos com-partilhados, reproduzindo-os e também os modificando. No entanto, também não podemos negligenciar o fato de que as pressões de natureza econômica influenciam sobre-maneira no tipo de programação oferecido e que isso não implica necessariamente em uma preocupação com a qua-lidade ou com a riqueza dos produtos oferecidos. É notório que a mídia exerce uma grande influência no sentimento de massa, formando opinião, e operando no que GREEN (1988; 1997) chama de significado musical delineado7.

No que diz respeito à produção dedicada às crianças, te-mos conhecimento de um conjunto substancial de artis-tas produzindo à margem dos grandes meios de comuni-cação e que, por isso, não alcançam um grande público. As músicas apresentadas por nós vêm de diversas partes do mundo. Muitos são os grupos espalhados pela Amé-rica Latina. Citando alguns deles como: Los Musiqueros, Pro-Música do Rosário Niños, Mariana Baggio, Judith Akoschky e Luiz Pescetti, na Argentina; El Taller de los Juglares, na Venezuela; Julio Brum con los Pájaros Pinta-dos, no Uruguai; Cantoalegre, Fundación Nueva Cultura e Coro Acuña, na Colômbia; Cântaro, Son de la Ciudad e

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Brenda Cervantes, no México. Em menor proporção, apre-sentamos algo do que é produzido na América do Norte (como Pete Seeger, dos Estados Unidos), na Europa (Les Petits Loups du Jazz, Bruno Coulais), na Ásia e na África (com músicas tradicionais encontradas nas pesquisas do canadense Francis Corpataux, etc).

No Brasil há uma variada produção musical contem-porânea: Adriana Partimpim, Cecília Cavalieri França, Cuidado que Mancha, Curupaco, Duo Rodapião, Hélio Ziskind, Lydia Hortélio, Márcio Coelho e Ana Favaretto, Palavra Cantada, Teca de Brito, Viviane Beineke, dentre outros (sem mencionar os clássicos Arca de Noé, Saltim-bancos, Adivinha o que é).

Ora, como as crianças poderiam gostar de tais artistas e de suas músicas se elas sequer os conhecem? É preciso haver espaços de visibilidade para outros tipos de produção mu-sical para que as crianças possam escolher do que gostar, um espaço para ampliar as possibilidades que fazem parte da sua formação. De um modo geral, o universo radiofôni-co é fundado em uma música de consumo rápido, dirigido para uma comercialização imediata e de fácil substituição. Pouco ou nada é produzido no rádio para crianças em Belo Horizonte8. Já que o Serelepe não é regido por uma lógica mercadológica, ele não está preso a padrões dessa natureza.

É claro que o objetivo é também o de agradar – mas o gosto pode ser cultivado, criado, antecipado, descoberto, revis-to. E ninguém gosta de uma coisa só: é possível gostar de coisas muito diferentes, sem que uma exclua a outra. Luis PESCETTI (2005, p.29), escritor e músico, afirma ter sido vá-rias vezes questionado sobre o fato de divulgar em seu pro-grama músicas que não são originariamente voltadas para um público infantil, o que poderia aborrecer as crianças. Ele afirma, retrucando: “qual o perigo do aborrecimento? O za-pping?”9 Se toda vez que a gente se aborrecesse com algo, a gente logo a abandonasse, não sairíamos do lugar. Ninguém abandona a leitura de um livro por não ter gostado de uma única página. Ele afirma, ainda, que essa pergunta sobre o aborrecimento é sempre feita por jornalistas, nunca pelos pais que escutam o programa com seus filhos (2005, p.30). E, pelo que parece, nem pelas próprias crianças.

Nossa opinião está implícita naquilo que elegemos e in-serimos em nossos programas para que os ouvintes pos-sam ouvir, apreciar e escolher estar em sintonia com o programa ou buscar outra proposta. Portanto, o Serelepe almeja oferecer aos seus ouvintes o variado leque de pos-sibilidades temáticas dedicadas à infância.

3. A apreciação como pilar necessário ao desenvolvimentoA música é uma linguagem de todos. Ela é um sistema simbólico que atravessa limites culturais. Somos respon-sáveis pela reprodução do que já foi e pela produção do que virá. Como construir uma cultura musical de amplo acesso, que não privilegie somente certos segmentos às vezes pueris dessa arte? SWANWICK (1979) acredita que

a formação musical do ser humano desenvolve-se sobre três principais pilares: composição, apreciação e perfor-mance; e dois secundários: literatura e habilidades. Se-gundo FRANÇA (1998, p.68-69):

A apreciação, espera-se, permeia toda experiência musical, sen-do um mediador básico para o desenvolvimento musical [...] A escuta sensível e atenta é determinante no fazer musical [...] Nestas circunstâncias, a apreciação estará monitorando a pro-dução musical [...] 10

A apreciação musical bem orientada desenvolve um sen-so crítico no ouvinte, permitindo-o julgar melhor o que ouve e o que se produz musicalmente. A programação do Serelepe busca oferecer oportunidades aos ouvintes de construírem referências de expressão musical de modo que, no futuro e no presente, possam fazer escolhas mais conscientes sobre o que ouvir. O problema não é uma es-colha certa ou errada e sim a falta de opção ou a incapa-cidade de escolher com critérios mais amplos e relevan-tes. Reimer, citado por FRANÇA (1998, p.71), acredita que “escutar uma grande variedade de música funciona como um alicerce para decisões criativas”11 e, segundo FRANÇA (1998, p.71), a apreciação musical “nutre o repertório de opções sobre o qual os estudantes agem criativamente, transformando, reconstruindo e reintegrando ideias em novas formas e significados.”12

A música é muito utilizada como plano de fundo para situ-ações variadas. A proposta de escuta do Serelepe é trazê-la para o foco da atenção, instigando o ouvinte ao desafio de discernir as propostas composicionais: um instrumento di-ferente, o encadeamento dos sons, um tema de um perso-nagem, sons estranhos, estórias “sem pé nem cabeça”, etc.

Paynter, de acordo com FRANÇA (1998, p.70), argumen-ta que “a música não pode ser apreendida por contem-plação passiva: é necessário comprometimento, esco-lha, preferência e decisão.”13 E, para McAdams, segundo FRANÇA (1998, p.70), “a apreciação musical (bem como apreciar artes visuais ou ler um poema) é e deve ser considerada seriamente por um artista como um ato criativo por parte do participante”.14

4. Considerações sobre os nossos objetivos e a nossa experiênciaO objetivo do Serelepe é fazer desse espaço aberto no rádio um lugar de escuta e de invenção. Temos o obje-tivo de experimentar outras linguagens, outros jeitos de fazer locução e de explorar as sonoridades, os textos e os BGs15, bem como divulgar trabalhos considerados pe-los próprios integrantes coerentes e bem feitos, mas que não circulam na grande mídia – ou que até circulam, mas em outro contexto.

Além disso, o Serelepe tem sido um espaço de experi-mentação de diferentes propostas por parte de seus in-tegrantes. O programa, na verdade, não conta com lo-cutores profissionais e nem está dentro de convenções radiofônicas, como os das grandes rádios comerciais. É

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buscada, a cada programa, uma maneira diferente de nos comunicarmos com o ouvinte. Desde sua estreia até hoje, foram experimentadas diferentes formas de dizer o texto e quase foram criados personagens recorrentes (como o distraído que adora cantar e sempre perde o seu momen-to de falar ou a mal-humorada que às vezes é brava, ou-tras vezes, romântica...). Os textos, escritos previamente, são elaborados de acordo com as músicas programadas, mas podem também não se referir exatamente a elas. Ge-ralmente as locuções têm a função de ilustrar, comentar e inserir informações extras sobre as músicas e também de incluir comentários que vão além do que a música apresenta. Em outras palavras: não há um roteiro rígido, o que nos permite, a cada vez, reinventá-lo. Quando a letra da música está em uma língua estrangeira, é de praxe descrever, em poucas palavras, o que ela diz. O repertório é escolhido a partir das discotecas dos pró-prios integrantes do projeto (que desenvolvem um intenso trabalho de pesquisa), das doações que o Serelepe recebe por intermédio da Rádio UFMG Educativa, pelo acervo da própria Rádio e de um acervo de mais de 200 CDs, disponi-bilizado pelo Duo Rodapião16, de Belo Horizonte - MG, que integra o Movimento da Canção Infantil Latino-Americana e do Caribe. Também informamos os dados sobre o intér-prete, o compositor e o CD de onde a música foi retirada. Outra característica do programa é a de tocar as músicas

do princípio ao fim, ao contrário das práticas mais usuais do rádio que as cortam antes de seu término.

Algumas vezes, os locutores chamam a atenção para a letra, outras vezes para os instrumentos. Em nossas gra-vações, a brincadeira com texto está sempre presente, pois, como o brincar faz parte do universo da criança, os locutores usam esse meio como uma chave para entrar em contato com o universo infantil. Criamos diálogos fantasiosos entre nós mesmos, inventamos rimas sem pé nem cabeça, até arriscamos cantar de vez em quando, porém sempre valorizando uma escuta atenta às nuances de sentido, de ritmo, de sonoridades, respeitando a capa-cidade das crianças de compreenderem as brincadeiras propostas e fazerem, elas mesmas, as suas próprias asso-ciações. Queremos oferecer a elas alternativas, mas esta-belecendo uma conversa, uma tentativa de aproximação. Tal como escreve o músico e professor uruguaio Julio Brum, o nosso trabalho (assim como o dele) é o de “via-jar pela imaginação, de agitar a sensibilidade, de “fazer cosquinhas” nas ideias e valores que o sistema nos mos-tra como imutáveis e permanentes; trata-se de convidar a nossa infância a construir e explorar outros mundos” (BRUM 2005, p.67)17. Esse é o convite que o Serelepe faz aos ouvintes, ao temperar as suas manhãs de sábado com pitadas de música infantil, tentando “fazer cosquinhas” nas ideias mais usuais de música e de infância.

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cators of musical understanding. University of London, 1998 297f. enc. Tese (doutorado).FRANÇA, Vera. Sujeitos da comunicação, sujeitos em comunicação. In. GUIMARÃES, César e FRANÇA, Vera (orgs). Na

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Trad. Oscar Dourado.MACHADO, Arlindo. Máquina e imaginário – o desafio das poéticas tecnológicas. 3. ed. São Paulo: EDUSP, 2001.SWANICK, Keith A Basis for Music Education, London: Routledge, 1979.

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Leitura recomendada:BENJAMIN, Walter. História cultural do brinquedo (1928). In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, vol.1. Magia e técnica,

arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. pp.244-248.______ . Brinquedo e brincadeira – observações sobre uma obra monumental (1928). In: BENJAMIN, Walter. Obras esco-

lhidas, vol.1. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. pp.249-253.GREEN, Lucy. Music on Deaf Ears: Musical meaning, ideology and education. Manchester and New York: Manchester

University Press, 1988.___________. Music, Gender, Education. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.McADAMS, Stephen ‘The auditory image: a metaphor for musical and psychological research on auditory organization’.

In: CROZIER, W. R. and CHAPMAN, A. J. (eds) Cognitive Processes in the perception of Art, Amsterdam: Elsevier, 1984.NACHMANOVITCH, Stephen. Ser Criativo – o poder da improvisação na vida e na arte. São Paulo: Summus, 1993.PAYNTER, John. Music in the Secondary School Curriculum. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. PEREIRA, Eugenio Tadeu. A difusão da canção infantil. In: Anais do 4º Encontro da Canção Infantil Latino-americana e

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n.38. Mar.-Abr./2001.________. Brinquedos e infância. Revista Presença Pedagógica. v.8, n.44, Mar.-Abr./2002. Ed. Dimensão. Publicado tam-

bém em: Revista Criança. n.37. Nov./2002. Ministério da Educação.REIMER, Bennett. A Philosophy of Music Education, New Jersey: Prentice Hall, 1970/1989.SCHAFER, Murray. Ouvido Pensante. São Paulo: Unesp, 1991.

notas1 Uma versão preliminar deste texto foi publicada na Presente! Revista de Educação, ano 17 n. 65, Salvador, Ago/Nov/ 2009. Para a Revista PerMusi

vários pontos foram acrescidos e revisados.2 A partir de 08 de marco de 2008, o programa passou a ser apresentado aos sábados as 9h da manhã, tendo uma hora de duração. Os programas

“pilulas”, que duravam de 5 a 8 minutos e que eram apresentados diariamente às 9h45min, desde 07 de setembro de 2005. Atualmente o programa está sendo exibido em partes aos domingos às 9 horas da manhã, conjuntamente a outros programas para crianças. O Serelepe começou suas ati-vidades a partir de um convite do coordenador da rádio, prof. Elias Santos e por Rosaly Senra, no mesmo ano de inauguração da UFMG Educativa.

3 O 9º Encontro da Canção Infantil Latino-americana e Caribenha ocorreu entre 19 e 25 de outubro de 2009, no México. Outras informações no site: http://9cancioninfantil.cnart.mx/. Último acesso em: 22/10/2009. Em 2011 o Brasil sediará o 10º Encontro, sob a coordenação de Márcio Coelho e Ana Favaretto.

4 São eles: ARGENTINA: programa Taracatá, coordenado por Julio Calvo (www.radiodelaciudad.gov.ar), que, lamentavelmente, não está mais no ar; Me extraña araña, na AM 750 - Radio Nacional Córdoba, sob coordenação de Coqui Dutto; Radio Mafalda, produzida por Alejo e Julio Villarroel (http://radiomafalda.dynalias.net:86); Vampiro Negro, da Radio Nacional Argentina 870 AM, produzido por Luís Pescetti. URUGUAI: Para Escuchar-te mejor, da Emisora del sur, sob coordenação de Suzana Bosch (www.sodre.gub.uy). MÉXICO: ¡Ay escuintles! (www.radioeducacion.edu.gob.mx), programa de curta duração produzido por Gabriel Sanvincente; Hola Luis, da Radio Universidad Nacional Autónoma de México 96.1 FM, também produzido por Luis Pescetti. PORTO RICO: Ambos a Dos, cuentos y canciones produzido por Nelie Lebrón (www.radiouniversidad.pr).

5 Tradução nossa, a partir do original: “en las canciones infantiles hay más animales que en el Arca de Noé. Están llenas de bichos. Añaritas, gallinitas, perritos, maripositas, tortuguitas, gatitos, gusanitos, vaquitas, abejitas, palomitas... hasta vampiros. !Basta! ¿Por qué nadie hizo una canción infantil a un pocito de petróleo, por ejemplo?”

6 Na tradição dos estudos em comunicação, existem diferentes abordagens da relação entre a mídia e a sociedade. Algumas dessas tradições de pesquisa hoje são muito criticadas pelo seu mecanicismo e linearidade como, por exemplo, a Escola Funcionalista Americana, também conhecida pela rubrica da Mass Communication Research, que pautava seus estudos a partir da ótica dos efeitos dos meios de comunicação sobre o público, e a Escola de Frankfurt, ou “Teoria Crítica”, que desenvolveu toda uma abordagem acerca da Indústria Cultural, mas enfatizando o caráter ideológico dos meios de comunicação. Ambas se sustentam no paradigma informacional, que aborda as instâncias de produção de mensagens e de recepção como pólos isolados e separados, cabendo à produção um papel ativo e de controle sobre as mensagens, ao passo que o receptor é relegado ao lugar de um consumidor passivo. Esse paradigma já não é consensual e uma nova perspectiva vem sendo desenvolvida, apoiando-se no chamado paradigma relacional ou praxiológico. Para um breve panorama dessas teorias, cf. FRANÇA, Vera. Sujeitos da comunicação, sujeitos em comunica-ção. In. GUIMARÃES, César e FRANÇA, Vera (orgs). Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. pp.61-88. Para uma reflexão acerca da mídia, compreendida não apenas em sua dimensão de aparato técnico, mas também em seu caráter relacional, que permite uma modalidade de experiência assentada no transporte e deslocamento de signos, cf. ANTUNES, Elton e VAZ, Paulo Bernardo Vaz. Mídia: um aro, um halo, um elo. In: In. GUIMARÃES, César e FRANÇA, Vera (orgs). Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. pp.43-60.

7 Lucy Green considera como significado musical inerente as relações dos materiais sonoros entre si em uma peça musical, ou entre as demais estru-turas musicais de uma cultura; e significado musical delineado como a relação inseparável, consciente ou não, dos significados inerentes com seu contexto social de produção, distribuição e recepção (GREEN, 1997b, p.27-29).

8 Uma das poucas referências que conhecemos foi o programa Carretel de Invenções, idealizado pro Francisco Marques, o Chico dos Bonecos e produ-zido pela AMEPPE - Associação Movimento de Educação Popular Integral Paulo Englert e pela Fundação Fé e Alegria, que foi ao ar durante alguns anos pela Rádio Favela e outras rádios comunitárias, no início da década de 1990. Esse programa ainda é ouvido em algumas rádios brasileiras. Mas vale lembrar: a concessão da Rádio Favela também é de rádio educativa. Entre as rádios comerciais, desconhecemos outros programas.

9 Zapping: estratégia de mudar de canal possibilitada, sobretudo, pelo advento do controle remoto e que instaura uma nova modalidade de recepção, no qual o espectador/ ouvinte não se fixa em um único programa, mas ao contrário, se desloca de um a outro livremente. “O zapping é mania que

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tem o espectador de mudar de canal a qualquer pretexto, na menor queda de ritmo ou de interesse do programa e, sobretudo, quando entram os comerciais”. (MACHADO, 2001, p. 143).

10 Tradução nossa, a partir do original: Listening is expected to pervade any active musical experience, being a basic medium for musical growth. […] Sensitive and discerning listening is determinant in musical making. […] In these circumstances, listening will be monitoring the musical output […].

11 Tradução nossa, a partir do original: Reimer believes that ‘listening to a great variety of music’ works as “fodder for creative decisions”12 Tradução nossa, a partir do original: It nourishes student’s repertoire of options upon which to act creatively, transforming, reconstructing and

reintegrating ideas into new shapes and meanings.13 Tradução nossa, a partir do original: Paynter argues, music cannot “be apprehended by passive contemplation: it calls for commitment; for choice,

preference, and decision.”14 Tradução nossa, a partir do original: Musical listening (as well as viewing visual arts or reading a poem) is and must be considered seriously by an

artist as a creative act on the part of the participant.15 BG é a abreviação do termo técnico background, usado para designar os sons ou músicas que estão de fundo, em segundo plano, acompanhando

a locução.16 Duo formado por Miguel Queiroz e Eugênio Tadeu que, desde 1994, produz espetáculos e CDs dedicados ao público infantil.17 Viajar por la imaginación, de agitar la sensibilidad, de “hacerle cosquillas” a las ideas y valores que el sistema nos muestra como inmutables y perma-

nente, se trata de invitar a nuestra infancia a construir y explorar otros mundos.

Eugênio Tadeu Pereira é Professor do Curso de Graduação em Teatro da Escola de Belas Artes da UFMG. Mestre em Educação - FaE/UFMG, Doutorando em Artes Cênicas - ECA/USP; integrante do Duo Rodapião; idealizador e coordenador do projeto Pandalelê - Laboratório de Brincadeiras – CP/UFMG (1993 a 2003) e integrante do Movimento da Canção Infantil Latino-Americana e do Caribe.

Cristiane Lima é Mestre em Comunicação Social - FAFICH/UFMG, bacharel em Radialismo pela UFMG, professora de Música no Centro Pedagógico da Escola de Educação Básica e Profissional da UFMG e na Fundação de Educação Artística.

Gabriel Murilo Resende é Licenciado em Música pela UFMG, professor de música na Pró-Music e no Centro de Musica-lização Infantil da Escola de Música da UFMG, compositor, arranjador e produtor musical.

Reginaldo Santos é Licenciado em Teatro pelo curso de Graduação da Escola de Belas Artes da UFMG, Professor de Teatro do Galpão Cine Horto, onde também atua no projeto Conexão Galpão. Coordenador Artístico do Centro de Referência de Cultura e Desenvolvimento Social de Matozinhos.

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Recebido em: 20/12/2009 - Aprovado em: 18/02/2010

“Escute, pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras *

Maura Penna (DEM/UFPB, João Pessoa, PB)[email protected]

Resumo: As relações entre pais e filhos(as) configuram um tipo particular de relação entre gerações, na medida em que ocorrem no seio da família, instituição social marcada por vínculos de dependência e responsabilidade e por laços emocionais. Diversas canções que têm essas relações como tema são reunidas no CD Como nossos pais (2008), que ex-emplifica a tendência, também presente na indústria fonográfica, de preservação da produção musical, na medida em que apresenta diversas gravações com datas entre 1966 e 1988. Deste CD, selecionamos três canções que claramente configuram uma fala filial dirigida ao pai como interlocutor: Papai me empresta o carro (de Roberto de Carvalho e Rita Lee); Já fui (de Marina Lima e Antônio Cícero); Pai (de Fábio Jr.). Numa análise que articula contribuições da sociologia e da psicologia, mostramos como essas canções revelam diferentes momentos do processo de conquista da maturidade e da autonomia pelos jovens, com suas contradições, refletindo também as transformações sociais na configuração da família e no comportamento sexual. Discutimos, ainda, com base na tipologia proposta por TATIT, como essas canções tratam diferentemente a relação entre letra e melodia.Palavras-chave: canção; família; relações entre pais e filhos(as); indústria fonográfica.

“Listen to me, dad”: dialogs between fathers and sons in Brazilian popular music

Abstract: The relationships between parents and their children configure a specific part of the relationship between gen-erations, as they occur on the nucleus of the family, which is a social institution linked together by dependency, respon-sibility and emotional bounds. Several songs which have these relationships as a theme are grouped on the album Como nossos pais (2008) (Like our parents). This album exemplifies a tendency, also present in the phonographic industry, of the preservation of musical production, as it presents several recordings from dates varying between 1966 to 1988. From this album, we have selected three songs that clearly fits the scenario of a son/daughter speaking to his/her father: Papai me empresta o carro (Dad lend me the car) (by Roberto de Carvalho and Rita Lee); Já fui (I’m gone) (by Marina Lima and Antônio Cícero); Pai (Father) (by Fábio Jr.). In an analysis that articulates contributions from sociology and psychology, we reveal how these songs show different moments of the process, with their contradictions, through which the youth conquers maturity and autonomy. We also show how these songs reflect the social transformations on the configuration of the family and sexual behavior. We also discuss, based on the typology proposed by TATIT, how these songs deal dif-ferently with the relationship between lyrics and melody.Keywords: song; family; relationship between father and children; phonographic industry.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010

1. A canção popularLuiz TATIT (2004) discute, em seu livro O século da can-ção, como no Brasil, durante o século XX, a canção popu-lar se consolidou e se disseminou como uma prática artís-tica capaz de “traduzir os conteúdos humanos relevantes em pequenas peças formadas de melodia e letra” (TATIT, 2004, p.11). A seu ver, nesse período a canção se libertou dos gêneros rítmicos predefinidos, na medida em que o maior compromisso passou a ser entre o modo de dizer melódico e a própria letra (TATIT, 2004, p.229):

[...] em qualquer época, precisamos celebrar os encontros, la-mentar as separações, anunciar e denunciar situações, retratar o lirismo e a estética do cotidiano. Já há história suficiente na canção popular para se depreender um certo revezamento dos modos de dizer – envolvendo sempre melodia e letra – que ser-ve justamente para contemplar esses conteúdos psicoculturais. (TATIT, 2004, p.232).

Por sua vez, Monclar VALVERDE (2008, p.270-271) criti-ca essa concepção – tanto de Luiz Tatit quanto de José Ramos Tinhorão, outro estudioso da música popular bra-sileira – da canção como “um formato musical que, bem

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ou mal, simplesmente espelha a dinâmica e a estrutura da palavra falada”, encontrando sua força, portanto, na “sua condição de veículo da mensagem”. Contrapondo-se a este posicionamento, VALVERDE (2008) interpreta a im-portância adquirida pela canção como um acontecimento da história da música, enfatizando os seus aspectos pro-priamente musicais. Para este autor, a canção é uma for-ma musical típica da cultura popular urbana que se tor-nou “o último reduto da tonalidade”. Por estar centrada na melodia, o percurso narrativo da canção é mais simples e concentrado. Além disso, a simplificação instrumental da música pop e o seu padrão de “acompanhamento” har-mônico estabelecem uma relação solo-acompanhamento em que a melodia é a figura, o que “acentua ainda mais a unidade desta Gestalt temporal que é a canção e reforça o seu poder expressivo” (VALVERDE, 2008, p.271-272). O autor considera a canção, portanto, uma “microestrutura tonal exemplar” (VALVERDE, 2008, p.275).

Indo além, VALVERDE (2008) enfatiza diversos aspectos que são colocados em jogo através da mediação da per-formance do cantor:

[...] enquanto forma musical e formato midiático, a canção não se reduz ao feliz casamento entre palavra e música: a voz, pela sin-gularidade de seu timbre, torna presente o corpo e o desempenho de alguém real; a melodia, a seu modo e sem dizer nada, conta uma história envolvente, quando não arrebatadora; o arranjo e a instrumentação datam e localizam o acontecimento que se canta, conferindo concretude e familiaridade à ficção; as palavras, enfim, formam o elo simbólico de uma comunidade de falantes que são anônimos e se desconhecem, mas se reconhecem, enquanto falan-tes. (VALVERDE, 2008, p.272-273 – grifos do original)

Assim, para VALVERDE (2008, p.275-276), a gestualida-de vocal que se realiza através da canção pode ser mais importante para a adesão do ouvinte do que o conteúdo veiculado por sua letra, o que permite o envolvimento com a canção, mesmo que suas palavras estejam em uma língua que não dominamos.

Desta forma, VALVERDE (2008) não aborda apenas a can-ção como uma composição que articula melodia e letra, mas considera especificamente a sua realização con-creta, particular, ou seja, uma determinada ocorrência da composição, aproximando-se assim da concepção de performance de ZUMTHOR (2007), que também a vincu-la à voz e ao corpo: “A performance dá ao conhecimen-to do ouvinte-espectador uma situação de enunciação” (ZUMTHOR, 2007, p.70). Entretanto, em se tratando de um registro fonográfico (como no material por nós ana-lisado), é abolida “a presença de quem traz a voz”, além de ser possível ultrapassar o “puro presente cronológi-co”, pois a voz gravada “é reiterável, indefinidamente, de modo idêntico” (ZUMTHOR, 2007, p.14). Na gravação não há, portanto, uma visão global da situação de enuncia-ção, pois falta um elemento de mediação – no caso, o elemento visual (ZUMTHOR, 2007, p.69).

Mas é preciso salientar, comparativamente, que embo-ra TATIT (1986, p.3) caracterize a canção e analise sua eficácia a partir da relação entre “o seu componente

melódico e seu componente linguístico”, centrando-se então na composição1, ele também reconhece que: “A harmonia, o arranjo instrumental e a gravação [...] são trocados a cada versão apresentada”, de modo que os “arranjos e as gravações podem produzir de novo a canção, dando-lhe um perfil nem sonhado pelo autor” (TATIT, 1986, p.1). Deste modo,

A canção, como a música, transcorre e só tem sentido no tempo. Ela precisa de tempo para se constituir. No entanto, mais que tudo, desafia a inexorabilidade do tempo, materializando-o em substân-cia fônica vocal. [...] O núcleo entoativo da voz engata a canção na enunciação produzindo efeito de tempo presente: alguém can-tando é sempre alguém dizendo, e dizer é sempre aqui e agora. (TATIT, 2002, p.20)

Como consequência, TATIT (2002, p.20), ao considerar que o embrião entoativo “reproduz a circunstância de enun-ciação a cada execução”, aproxima-se em certa medida da noção de performance de ZUMTHOR (2007) acima discu-tida e, através dela, da abordagem de VALVERDE (2008), cuja concepção valoriza mais o caráter musical da canção.

No âmbito deste trabalho, enfatizamos, como TATIT (2004), a relação entre melodia e letra, mas tomando as canções selecionadas na especificidade das gravações apresentadas no CD Como nossos pais (FAOUR, 2008), cujas características diferenciais abordamos adiante. Por conseguinte, num primeiro momento, considerando os textos verbais – as letras – como narrativas, analisamos como retratam as relações entre pais e filhos(as), que configuram um tipo particular de relação entre gerações. Num segundo momento, discutimos como essas canções tratam diferentemente a relação entre letra e melodia, com base nos processos de tematização, figurativização e passionalização (cf. TATIT, 1986, 2002, 2004).

2. Gerações e famíliasDentre os vários significados do termo “geração”, apre-sentados pelo Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa, encontramos: “ação ou efeito de gerar(-se)” e “função pela qual um ser organizado produz outro semelhante; procriação, germinação”. Por extensão de sentido, temos ainda “grau de filiação em linha direta”; “tronco familiar, grupo racial; ascendência, estirpe, gene-alogia” – dentre outras acepções.

Com base nesses sentidos de “geração”, podemos pensar a família como uma instituição social que organiza e le-gitima a procriação. “A família é sempre um resultado das relações sexuais passadas ou correntes: sem sexo não há família” – como indica THERBORN (2006, p.12). Ao mesmo tempo, ela regula as relações sexuais, “determinando quem pode e quem deve ou não ter relações sexuais com quem”. No entanto, não existe um modelo único e universal de fa-mília, embora ela seja correntemente vista como uma ins-tituição que contribui para a perpetuação da ordem social.

Diante da existência de sociedades com práticas sexuais e matrimoniais bastante diferenciadas, o antropólogo LÉVI-STRAUSS (1980, p.14) considera a família como

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“uma das questões mais escorregadias dentro do estudo da organização social”, de modo que não deve ser tra-tada de forma dogmática. Para o autor, a família pode ser definida como um grupo social que apresenta as se-guintes características:

1) Tem sua origem no casamento. 2) É formado pelo marido, pela esposa e pelos filhos(as) nascidos do casamento, ainda que seja concebível que outros parentes encontrem o seu lugar junto do grupo nuclear. 3) Os membros da família estão reunidos por a) laços legais, b) direitos e obrigações econômicas, religiosas e de outro tipo, c) uma rede precisa de direitos e proibições sexuais, além duma quantidade variável e diversificada de sentimentos psicológicos tais como amor, afeto, respeito, temor, etc. (LÉVI-STRAUSS, 1980, p.16)

Nesta definição, a instituição do casamento – que pode ter diferentes formas, a depender da cultura – é um componente essencial. Já GIDDENS (2005, p.151) defi-ne a família como “um grupo de pessoas diretamente unidas por conexões parentais, cujos membros adultos assumem a responsabilidade pelo cuidado das crianças”, procurando, assim, contemplar as transformações que ocorrem nas sociedades ocidentais contemporâneas – onde é grande a diversidade de formas de famílias e de núcleos domésticos, inclusive no tocante a divórcios, recasamentos, coabitação, assim como a núcleos fami-liares monoparentais ou construídos a partir de parce-rias homossexuais. Desta forma, não se prendendo mais à instituição do casamento, a conceituação de família enfatiza a importância da relação intergeracional, o que salienta o papel da mesma na reprodução, na educação infantojuvenil e na socialização.

Por outro lado, o Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa traz ainda, como significados da palavra “ge-ração”, por extensão de sentido: “conjunto de pessoas que têm aproximadamente a mesma idade” e “espaço de tempo correspondente ao intervalo que separa cada um dos graus de uma filiação e que é avaliado em cerca de 25 anos”. Isto indica que, apesar dos vínculos de apoio à geração mais jovem, dentro da família, há uma distância e/ou uma oposição entre gerações, na medida em que existe potencialmente a referência ao grupo com a mes-ma idade fora do núcleo familiar.

Nesse trânsito entre a família – a primeira unidade so-cial em que vivemos, nosso primeiro campo de socia-lização – e o “mundo lá fora” – a começar pela esco-la – que nos traz novas referências, crescemos e nos tornamos autônomos, adultos responsáveis, capazes de, por nossa vez, assumir a responsabilidade pelo cuidado das crianças em novas famílias. Pois desta forma as so-ciedades humanas se renovam e se preservam, passando suas tarefas de geração a geração.

Como diz LÉVI-STRAUSS (1980, p.16) na citação ante-riormente apresentada, os membros da família estão reu-nidos tanto por “direitos e obrigações econômicas, reli-giosas” ou de outra ordem, quanto por uma “quantidade variável e diversificada de sentimentos psicológicos tais

como amor, afeto, respeito, temor, etc”. Assim, do pon-to de vista psicológico e da formação da personalidade, esse processo de tornar-se adulto e ser capaz de construir novas famílias depende das próprias relações familiares que contextualizaram – melhor dizendo, constituíram – a nossa formação.

Aos vinte, ou trinta e poucos anos, somos amantes, trabalhamos, somos amigos. Somos parceiros num casamento, pais dos nossos filhos. Mas continuamos também a ser, sob ângulos que talvez não nos convenham mais, filhos dos nossos pais.

Pois nossa família, nossa primeira família, foi o cenário onde nos tornamos indivíduos à parte. Foi também a primeira unidade social na qual vivemos. E, quando a deixamos, levamos conosco muitas das suas tendências formativas. Ficamos ligados a ela interior-mente, por mais que tentemos nos libertar. E a maioria das pes-soas – mesmo que de modo distante, obrigatório e rotineiro – fica ligada a ela também externamente.

Porém, mesmo mantendo a conexão – a conexão interna, a cone-xão externa –, continuamos a lutar para nos libertar dessa primei-ra família. Aprendemos a ver o mundo com nossos olhos, e não com os dos nossos pais. (VIORST, 1999, p.229)

Num processo marcado por contradições, na oscilação en-tre vínculos e rupturas, os jovens – os filhos(as) – conquis-tam sua autonomia e, por sua vez, podem se tornar pais/mães. Por tudo isso, fica claro que as relações entre pais e filhos(as) configuram um tipo particular de relação entre gerações, na medida em que ocorrem no seio da família, instituição social marcada tanto por vínculos de depen-dência e responsabilidade, quanto por laços emocionais.

3. o CD temático Como nossos pais e o mercado fonográficoArgumentando que a atuação do mercado fonográfico não é tão simples e homogênea como pode parecer, TATIT (2004, p.231-232) discute como, ao lado do investimento em “lançamentos explosivos” – e efêmeros –, há também uma preocupação com a diversidade e com a preservação de gêneros, estilos, atuações e mesmo artistas:

Tudo ocorre como se o mundo financeiro, em interação com o mundo artístico, captasse e ao mesmo tempo influenciasse um ritmo de alternância cultural que serve para manter vivas e atuan-tes todas as dicções (modos de compor e de cantar) que formam o universo musical da nossa sociedade. Em outras palavras: não se pode cultivar um só gênero ou uma só dicção por muito tempo pois a sociedade é complexa e precisa dos gêneros e dicções aban-donados para se reconhecer integralmente. (TATIT, 2004, p.232)

Como uma das estratégias que exploram essa perma-nência, TATIT (2004, p.246) aponta, nos anos de 1990, as regravações de antigos sucessos: desde “relançamentos de antigos LPs em formato de CD até as compilações dos melhores momentos da carreira, passando pelos Song-books e pelas reinterpretações de clássicos do cancionei-ro nacional e internacional”.

Também agrupando repertório já consagrado, o CD Como nossos pais (FAOUR, 2008), de caráter temático, produzido pela Som Livre em 2008, foi idealizado pelo jornalista, crítico e pesquisador musical – que também

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atua como escritor e produtor musical – Rodrigo Faour, também responsável pela seleção de repertório e pelos textos do encarte. Como informa a biografia disponível em seu site pessoal, Faour tem trabalhado “no proces-so de revitalização do acervo das principais gravadoras brasileiras (Universal, SonyBMG, EMI, Warner e Som Li-vre), produzindo compilações e reedições de álbuns im-portantes da música brasileira, sempre acompanhados de textos explicativos assinados por ele”2. Sem dúvida, a coletânea Como nossos pais (FAOUR, 2008) relaciona-se com este trabalho: ela reúne gravações de vários intér-pretes, com datas entre 1966 e 1988, a partir de fo-nogramas cedidos pela SonyBMG, EMI, RGE e Universal – como informa o encarte do CD.

Neste ponto, vale ressaltar que tomamos o CD como um objeto cultural não estritamente musical ou sonoro, pois imagens e textos verbais escritos, presentes no encarte, também o integram e são por nós considerados. E o en-carte traz, em sua contracapa, um texto de apresentação assinado por seu idealizador, que assim se inicia:

As delicadas relações entre a figura do pai e seus filhos foram muito bem descritas através dos tempos por nossos compositores, sempre argutos cronistas do cotidiano. Neste disco, selecionamos faixas dos anos [19]60 para cá em que embates, admirações e reflexões de várias ordens são postas à prova em forma de samba, rock, balada, forró e outras levadas. (FAOUR, 2008 – encarte)

Dedicado por FAOUR (2008 - encarte) ao próprio pai, a caracterização deste CD como uma manifestação da preservação ou permanência da produção musical, acima discutida por TATIT (2004), evidencia-se por um certo olhar para trás na história, que também se revela nas ilustrações da capa do disco, com base em fotos de diversas épocas – pertencentes a acervos pessoais, conforme agradecimento no encarte – que retratam pais e filhos(as) em diversas faixas etárias. Tais fotos são evidentemente antigas, como também as gravações reapresentadas no CD em questão, pois a mais recen-te data de vinte anos antes da produção da coletânea. Isso também reforça a colocação de TATIT (2004, p.232) quanto à preservação de diversos modos de compor e de cantar (que chama de “dicções”) que fazem parte do universo musical de nossa sociedade.

Pela importância de evidenciar tais questões, especifica-mos as 14 canções reunidas no CD, com as referências de autoria e intérprete, além dos dados da gravação original: 1. Coisinha do pai (de Jorge Aragão/ Almir Guineto/

Luiz Carlos) – intérprete Beth Carvalho – gravação original do LP “No pagode” (RCA Victor, 1979)

2. Papai vadiou (Rody do Jacarezinho/ Gaspar do Ja-carezinho) – Leci Brandão – do LP “Leci Brandão” (Copacabana, 1985)

3. O mundo é um moinho (Cartola) – Cazuza – do LP “Cartola bate outra vez” (Som Livre, 1988)

4. Como nossos pais (Belchior) – Elis Regina – do LP “Falso brilhante” (Philips, 1976)

5. Avôhai (Avô e pai) (Zé Ramalho) – Zé Ramalho – do LP “Zé Ramalho” (Epic/CBS, 1978)

6. Papai me empresta o carro (Roberto de Carvalho/ Rita Lee) – Rita Lee – do LP “Rita Lee” (Som Livre, 1979)

7. Já fui (Marina Lima/ Antônio Cícero) – Marina Lima – do LP “Todas” (PolyGram, 1985)

8. Pai (Fábio Jr.) – Fábio Jr.– do LP “Fábio Jr.” (Som Li-vre, 1979)

9. Naquela mesa (Sérgio Bittencourt) – Nelson Gonçal-ves – do LP “Passado e presente” (RCA Victor, 1974)

10. 14 anos (Paulinho da Viola) – Paulinho da Viola – do LP Élton Medeiros e Paulinho da Viola “Samba na madrugada” (RGE, 1966)

11. Espelho (João Nogueira/ Paulo César Pinheiro) – João Nogueira – do LP “Espelho” (EMI-Odeon, 1977)

12. De pai pra filha (Martinho da Vila) – Martinho da Vila – do LP “Verso… Reverso” (RCA Victor, 1982)

13. Herança de meu pai (Benício Guimarães) – Jackson do Pandeiro – do LP “Isso é que é forró” (Polyfar/Philips, 1981)

14. Papai sabe-tudo (Leo Jaime/ Leandro) – Erasmo Car-los – do LP do especial infantil “Plunct, Plact, Zuuum 2” (Som Livre, 1984)3

Como o próprio texto do encarte esclarece, apesar do tí-tulo Como nossos pais (FAOUR, 2008) – que permite re-meter também à figura materna –, a intenção é homena-gear os pais – figuras paternas, masculinas. Mas é preciso contextualizar essa homenagem e essa centralidade da figura masculina na relação com os filhos, nas canções do CD, diante das transformações sociais da família no mun-do atual. Como discutem CAVALCANTI e MELO (2008), na organização da sociedade brasileira, com as suas especi-ficidades, há uma “grande variedade de ‘famílias alter-nativas’, de relacionamentos com outras configurações, diversidades de classes, de etnias, etc”. Neste sentido, o número de famílias chefiadas por mulheres em nosso país cresceu 30% na última década, atingindo a marca de 14,6 milhões de lares, de acordo com o Instituto Brasi-leiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na imensa maioria desses lares, a mulher é divorciada ou o pai abandonou a família (VALADARES, 2005, p.61).

Um texto sobre a coletânea, disponível no site de Rodrigo Faour e também assinado por ele, assim apresenta o disco:

Este CD mostra as relações de pai & filho/filha vistas pela lente da MPB de várias fases e vertentes. Pelo viés do respeito ou do humor, nas mais diversas situações – das mais corriqueiras às saias mais justas (ou seriam calças?). Temos aqui os conselhos paternos, a admiração por seus ensinamentos, a superproteção, as broncas mútuas, a saudade do pai que se foi, o encanto do pai com os filhos pequenos e o mesmo atrapalhado em cuidar deles sozinho… Enfim, uma bela história contada em forma de disco4.

Muitas dessas músicas, no entanto, falam sobre os pais ou sobre sua relação com seus filhos ou filhas, mas não chegam a explicitar um caráter dialógico, como é o caso da conhecida canção Naquela mesa (BITTENCOURT, 2008), composta pelo filho do músico e compositor Jacob do Bandolim, que canta a saudade do pai: “Naquela mesa tá faltando ele / E a saudade dele tá doendo em mim”.

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Para nossa análise, selecionamos três canções que cla-ramente configuram uma fala filial dirigida ao pai como interlocutor, pois falam com o pai: Papai, me empresta o carro, de Roberto de CARVALHO e Rita LEE (2008); Já fui, de Marina LIMA e Antônio CÍCERO (2008); Pai, de FÁBIO Jr.(2008). Mesmo que não tenhamos, aqui, a fala do pai como resposta, suas letras pressupõem o diálogo e, potencial e intencionalmente, esperam uma resposta. Procuramos, então, discutir como essas três canções re-velam diferentes momentos do processo de conquista da autonomia pelos jovens, com suas contradições: os vín-culos afetivos, a dependência, a repressão, a rebeldia, o desejo de assumir a própria vida e a própria sexualidade; tornar-se adulto e, por sua vez, pai.

4. Três momentos/movimentos na relação pai–filhos(as)Os filhos que falam com seus pais nas três canções escolhidas não são mais crianças, mas sim jovens (ado-lescentes ou adultos) em diferentes momentos do seu processo de construção da individualidade – ou seja, no processo de se tornar indivíduos à parte, nos termos de VIORST (1999, p.19) –, de conquista da independên-cia e da autonomia.

Em Papai, me empresta o carro (CARVALHO; LEE, 2008), um rapaz que ainda mora com a família – “aqui em casa é im-possível namorar” – e é dependente dela, inclusive finan-ceiramente, pede o apoio do pai para levar a sua “garota” ao cinema e “tirar um sarro”. Apesar de cantada pela voz feminina da roqueira Rita Lee, o enunciador é claramente seu alter-ego masculino, pois, como mostra MAINGUE-NEAU (1996, p.85), nem sempre há coincidência entre o “produtor físico do enunciado (o indivíduo que fala ou es-creve)” – no caso, a cantora – e a categoria do “eu”, aquele que se coloca como enunciador – seu alter-ego.

Papai, me empresta o carro Papai, me empresta o carro Tô precisando dele pra levar Minha garota ao cinema Papai, não crie um problema Não tenho grana pra pagar um motel Não sou do tipo que frequenta bordel Você precisa me quebrar esse galho Então, me empresta o carro Papai, me empresta o carro Pra poder tirar um sarro com meu bem! (CARVALHO; LEE, 2008)

Gravada originalmente no final da década de 1970, a canção revela uma configuração tradicional de família – nuclear e patriarcal –, onde o pai desempenha claramente a função “instrumental” de provedor. Desta forma, é aqui retomada a visão da família nuclear como a unidade mais bem equipada para lidar com as demandas da sociedade industrial, defendida pelo sociólogo funcionalista Talcott Parsons. Nessa “família convencional”, a especialização de funções determina que um adulto pode trabalhar fora de casa enquanto o outro adulto cuida da casa e dos fi-lhos: enquanto o marido/pai atua como provedor, a mu-lher/mãe cumpre a função “afetiva”, emocional, dentro

do ambiente doméstico. Por tratar tal divisão de tarefas domésticas como natural e inquestionável, a concepção de Parsons de família é atualmente considerada ultrapas-sada (GUIDDENS, 2005, p.152-153).

Por outro lado, no entanto, essa canção também reflete a “revolução sexual” que ocorreu no mundo ocidental, no último terço do século XX, impulsionada por inovações tec-nológicas que permitiram dissociar sexo de procriação:

Em primeiro lugar, em termos culturais e legais, houve uma secu-larização da sexualidade, libertando-a de regras religiosas ou de quaisquer outras normas apriorísticas que a considerassem “pe-caminosa” ou condenável de algum modo, quando exercida fora do casamento e por puro prazer, sem intenção de procriação. [...] A revolução real foi, é claro, a prática em si mesma. Ela se ma-nifestou claramente em mais iniciações sexuais pré-maritais, em idades mais jovens. Ao passo que a idade do casamento aumentou, a idade da primeira relação sexual diminuiu. A prática de sexo pré-marital ampliou-se de forma significativa. (THERBORN, 2006, p.306-307)

Apesar de a expressão “tirar um sarro” poder ser tomada de forma mais branda, há outras indicações – como as re-ferências ao motel e ao bordel – da aceitação do sexo pré-marital. Por outro lado, pelo caráter patriarcal da família representada e pela tradição machista de nossa sociedade, é possível também considerar que tal aceitação poderia se limitar aos filhos do sexo masculino: o pai teria orgulho de incentivar as manifestações de masculinidade de seu filho rapaz, que assim prova que “já é um homem”. A mesma liberalidade talvez fosse questionada, portanto, em rela-ção às filhas mulheres. Neste sentido, apesar de a canção ter um enunciador masculino, a voz feminina de Rita Lee, pela singularidade de seu timbre, torna presente o corpo e o desempenho de uma mulher real, como indicam tan-to VALVERDE (2008, p.272 – trecho acima citado) quanto ZUMTHOR (2007, p.83-85), para quem a voz “possui plena materialidade”, estabelecendo “uma relação de alteridade que funda a palavra do sujeito”. Desta forma, a performan-ce da cantora coloca em cena a dimensão feminina e, em certa medida, a postura feminista: a mulher reivindicando seus direitos e sua liberdade.

Na canção, a afirmação de masculinidade do filho é tam-bém compartilhada pelo pai, que com a mesma idade tam-bém “pintava o sete”, revelando-se assim uma tradição familiar: tal pai, tal filho; ou filho de peixe, peixinho é.

Papai eu não fumo,Papai eu não bebo,Meu único defeito é não ter medoDe fazer o que gosto, u-hu!Papai eu apostoNa minha idade você pintava o seteMamãe tem ódio de uma tal ElizeteAqui em casa é impossível namorarEntão qual é a sua?Eu só quero um sarroMeia hora no seu carro com meu bem! (CARVALHO; LEE, 2008)

Se vinculado à família e de certa forma reproduzindo seus valores, inclusive provando ser um bom filho – que não fuma e não bebe –, o jovem rapaz reafirma sua in-

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dividualidade – pois não tem medo de fazer o que gos-ta, o que pode ser visto como um “defeito”, pelo pai –, fortalecendo-se no processo de conquista de autonomia, preparando-se para o momento de deixar o lar.

Esse momento de despedida e, em certa medida, de rup-tura é retratado na canção Já fui (LIMA; CÍCERO, 2008), gravada originalmente por Marina Lima em LP de 1985:

Tchau, coroa! Tchau, tchau, cara! Sim, o tempo voa Sou mulher já! Tem alguém à espera Que vai ficar uma fera Se eu demorar demais Tem essa fissuraTem minha loucura Tem a de vocês Vocês sabem que eu os amo E muito Mas, com licença, eu vou à luta Sem limite Pois se a Terra é mesmo fruta Eu tenho apetite (LIMA; CÍCERO, 2008)

A interjeição (tchau) com que a letra se inicia, sendo logo repetida – e que irá também encerrar a canção – marca claramente a despedida, o momento em que a filha deixa o lar. No entanto, é interessante notar que seu sentido dicionarizado não é de adeus, mas sim de até logo, até a vista5, o que indica que, embora assumin-do suas escolhas e sua própria vida, a filha reconhece e pretende manter os vínculos com os pais: “vocês sabem que eu os amo”. O jogo com as palavras cara e coroa – os dois lados de uma moeda, mas também tratamento informal dado a pessoas próximas – permite inferir que a filha se dirige ao casal: ao pai (cara) e à mãe (coroa). Mais uma vez, a configuração familiar é nuclear.

Reafirmando a sua individualidade e o direito às suas escolhas, a filha declara: “com licença, eu vou à luta”. Aqui, há uma clara relação intertextual com o título do livro autobiográfico de Eliane Maciel, publicado no fi-nal da década de 1970 com bastante repercussão, sendo uma referência corrente, portanto, na época em que o LP de Marina foi lançado, e pouco depois, em 1986, a obra foi adaptada para o cinema6. Assim, a filha – que podemos supor que conquistou alguma independên-cia financeira, inclusive – sai de casa e vai à luta para buscar suas verdades, para atender a seus anseios, seus desejos – sua “fissura”, sua “loucura” –, num processo que é também uma luta para se libertar da família e aprender a ver o mundo com seus próprios olhos. “Pois o ato de sair de casa só se torna uma realidade emocional quando deixamos de ver o mundo com os olhos de nos-sos pais”, como discute VIORST (1999, p.233).

“Sou mulher já!”, diz a filha. E isto não tem apenas o sen-tido de “não sou mais criança”, mas também de maturi-dade sexual, pois “tem alguém” que a está esperando e ela vai embora “com seu amor”, como a segunda parte da letra explicita. Encontramos aqui também, portanto,

um reflexo da “revolução sexual” das últimas décadas do século XX, com indicações de mudanças comportamen-tais também para as mulheres. “Mais do que qualquer coisa, a revolução sexual tornou o longo período de sexo pré-marital e a pluralidade de parceiros sexuais durante a vida um fenômeno ‘normal’, tanto no sentido estatístico quanto no moral” (THERBORN, 2006, p.310).

Tchau, coroa! Tchau, tchau, cara! Sim, o tempo voa Sou mulher já! A gente se liga Tarde demais pra briga Pra que ficar rancor? Eu quero viver Sim, quero viver Vou com meu amor Mas vocês sabem que eu os amo E muito Mas, com licença, eu vou à luta Já disse E nem tem essa de culpa E nem tem palpite Tchau! (LIMA; CÍCERO, 2008)

Retomando questões já apresentadas na primeira parte da canção, a segunda parte traz elementos que revelam as tensões e dificuldades de todo esse processo, através das referências a brigas, rancor, culpa... Como diz GIDDENS (2005, p.166), “a vida familiar circunscreve praticamente todo o campo de experiência emocional”. Pois a família tanto apóia a criança em seu processo de vida, quanto a reprime; e os filhos podem se acomodar e também se rebe-lar. Convém lembrar que não é fácil se tornar “indivíduo à parte”, adulto autônomo, capaz de se autogovernar. Neste processo de amadurecimento pessoal e social, intelectual e emocional, neste processo de conquista da liberdade indi-vidual, nossas escolhas não precisam ser ou de desafio ou então de obediência em relação aos nossos pais: “A sepa-ração não exige que os repudiemos. Exige escolhas livres” (VIORST, 1999, p.234-235).

Já em Pai (FÁBIO Jr., 2008), um filho independente e mais velho – por sua vez já pai – reavalia a sua relação com seu pai e busca meios de reconstruir os vínculos afetivos, depois de ambos terem se distanciado, física e/ou emo-cionalmente.

Pai Pode ser que daqui a algum tempo Haja tempo pra gente ser mais Muito mais que dois grandes amigos Pai e filho talvez Pai Pode ser que daí você sintaQualquer coisa entre esses 20 ou 30 Longos anos em busca de paz (FÁBIO Jr., 2008)

Não é clara a razão do distanciamento entre os dois: se é o caso de um “pai ausente”, pelo papel de provedor ou por alguma forma de abandono do lar, por separação ou divórcio (cf. GIDDENS, 2005, p.161). Até mesmo a possi-bilidade de o pai ter falecido se insinua na sequência, no pedido para que renasça, ao mesmo tempo em que ele

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é convidado a partilhar de atividades cotidianas – como jantar ou brincar –, o que fortalece a ideia de que esse renascimento seja simbólico.

Pai Pode crer, eu tô bem eu vou indo Tô tentando, vivendo e pedindo Com loucura pra você renascer PaiEu não faço questão de ser tudo Só não quero e não vou ficar mudo Pra falar de amor pra você Pai Senta aqui que o jantar tá na mesa Fala um pouco, tua voz tá tão presa Nos ensina esse jogo da vida Onde a vida só paga pra ver (FÁBIO Jr., 2008)

O filho, que tenta resgatar os laços afetivos com o pai, não quer mais reprimir nem esconder seus sentimentos, e ao mesmo tempo reconhece a experiência do pai e a sua capacidade de aconselhar e ajudar. No entanto, também reafirma sua própria autonomia, na medida que não é mais a criança cujos medos eram superados no colo do pai. Porém, mesmo assim, quer o contato, quer o afeto de “recostar no peito”.

Pai Me perdoa essa insegurança É que eu não sou mais aquela criança Que um dia morrendo de medo Nos teus braços você fez segredo Nos teus passos você foi mais eu Pai Eu cresci e não houve outro jeitoQuero só recostar no teu peito Pra pedir pra você ir lá em casa E brincar de vovô com meu filhoNo tapete da sala de estar (FÁBIO Jr., 2008)

E se ele não é mais criança, pois cresceu – como é inevitá-vel na vida –, o seu filho ainda é criança, e desse modo o afeto buscado pode ser encontrado na relação avô e neto.

[..] o fato de nos tornarmos pais ou mães pode atuar como uma reconciliação, destinando aos nossos pais melhores papéis, li-bertando-os para que sejam – como avô e avó – mais amorosos, pacientes e generosos do que foram como mãe e pai. Não mais preocupados em instilar valores morais, não mais encarregados da disciplina e das regras, não mais responsáveis pela formação do caráter, assumem o que há de melhor neles, e nós – felizes com tudo o que podem oferecer aos nossos filhos – começamos a perdoar os pecados deles, reais ou imaginários. (VIORST, 1999, p.235-236 – grifos nossos)

Então, esse filho que se tornou pai pode, a partir desse novo papel, dimensionar melhor a sua própria relação com seu pai – seu herói e seu bandido –, marcada pela ambi-valência, pelos sentimentos conflitantes de amor e ódio.

Pai Você foi meu herói, meu bandido Hoje é mais, muito mais que um amigo Nem você nem ninguém tá sozinho Você faz parte desse caminho Que hoje eu sigo em pazPai, paz (FÁBIO Jr., 2008)

Como mostra VIORST (1999, p.235), alterando antigas perspectivas da infância do indivíduo, tornar-se pai pode ser uma fase construtiva do desenvolvimento, contri-buindo para uma visão mais compreensiva das relações familiares e para a cicatrização de velhas feridas. Deste modo, o pai pode tornar-se “mais que um amigo”, sendo possível, então, seguir em paz o próprio caminho.

5. Distintos tratamentos da relação entre letra e melodiaEntendendo que a canção tem profundo vínculo com a fala – tendo nela até mesmo a sua origem –, TA-TIT (2002, p.11-12) enfoca “a canção como produto de uma dicção” e passa a estudar a “fala camuflada em tensões melódicas”. A fala cotidiana, o discurso oral, as coisas ditas de um indivíduo a outro são sonoridades com caráter puramente utilitário, destinadas a desapa-recer. Ao se tornarem canções, no entanto, entram em outra dimensão.

A instabilidade e imprecisão das entoações de nossa fala cotidia-na indicam, entre outras coisas, que elas não foram criadas para resistir ao tempo, a menos que sejam transformadas em algum projeto melódico digno de preservação. Trata-se justamente do que ocorre com as canções: suas melodias são inspiradas nos con-tornos da fala, mas acabam adquirindo um “sentido musical” – ou seja, uma direção estabilizada por leis de condução – que, este sim, merece ser perenizado. (TATIT, 2004, p.123)

Assim, em diversas obras (cf. TATIT, 1986, 2002, 2004) trata dos “tipos de compatibilidade entre melodia e letra” (TATIT, 2004, p.76), destacando os processos de figurativi-zação, tematização e passionalização.

Interessante notar que as três canções aqui estudadas exemplificam esses processos. Já analisamos como cada uma expressa uma relação distinta com o pai, um modo de se dirigir a ele, na medida em que refletem diferen-tes momentos no processo de amadurecimento pessoal do jovem, implicando em mudanças na sua relação com a família e, especificamente, com o pai. Mas cada uma dessas canções também trata diferentemente a relação entre letra e melodia.

O processo de figurativização é o que mais explicita a re-lação básica da canção com a fala coloquial, fazendo uso de recursos que visam mostrar que “a situação locutiva, criada por uma determinada canção, é viável e poderia estar acontecendo durante o tempo e o espaço de sua execução” (TATIT, 1986, p.25).

Na medida em que configuram uma fala filial dirigida ao pai, as três canções analisadas fazem uso do processo de figurativização, que sugere “ao ouvinte verdadeiras ce-nas (ou figuras) enunciativas”. Todas elas fazem uso, por exemplo, de vocativos – papai; cara, coroa; pai – que con-tribuem para presentificar o tempo e o espaço da voz que canta (TATIT, 2002, p.21).

Pela figurativização captamos a voz que fala no interior da voz que canta. Pela figurativização, ainda, o cancionista projeta-se na

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obra, vinculando o conteúdo do texto ao momento entoativo de sua execução. Aqui, imperam as leis de articulação linguística, de modo que compreendemos o que é dito pelos mesmos recursos utilizados no colóquio. (TATIT, 2002, p.21)

No entanto, em Papai me empresta o carro (CARVALHO; LEE, 2008) e Pai (FÁBIO Jr., 2008), que são musicalmente contrastantes, esse processo de figurativização se articu-la a outros recursos musicais de estabilidade melódica7. Na primeira, predomina a tematização e, em Pai, o pro-cesso de passionalização.

O instrumental característico do rock, o caráter rít-mico da canção e a interpretação animada e enérgica de Rita Lee evidenciam a prevalência da tematização em Papai me empresta o carro (CARVALHO; LEE, 2008), processo que sustenta as “canções aceleradas, centra-lizadas no refrão e repletas de recorrências melódicas”, que estimulam o movimento corporal e a dança (TATIT, 2004, p.62-63).

A forma acelerada de estabilização melódica privilegia os acentos e, portanto, as vogais salientes e breves, entre as quais percutem intensamente as consoantes. Essas características favorecem a constituição de células rítmicas bem definidas que vão se agru-pando num processo denominado tematização. (TATIT, 2004, p.43 – grifo do original)

Já a passionalização se caracteriza como a forma desace-lerada de estabilização, que valoriza o percurso melódico em seus desdobramentos progressivos.

A dominância da passionalização desvia a tensão para o nível psíquico. A ampliação da frequência e da duração valoriza a so-noridade das vogais, tornando a melodia mais lenta e contínua. A tensão de emissão mais aguda e prolongada das notas convida o ouvinte para uma inação. Sugere, antes, uma vivência intros-pectiva de seu estado. Daqui nasce a paixão que, em geral, já vem relatada na narrativa do texto. Por isso, a passionalização melódica é um campo sonoro propício às tensões ocasionadas pela desunião amorosa ou pelo sentimento de falta de um objeto de desejo. (TATIT, 2002, p.23)

Embora não se refira ao amor sensual, a canção Pai (FÁ-BIO Jr., 2008) é marcada pelo alto envolvimento emo-cional na relação com o pai. Como analisamos na seção anterior, com base na letra, o enunciador é um filho já adulto que, depois de ter se distanciado física e/ou emo-cionalmente de seu pai – um estado disjuntivo, portanto, nos termos de TATIT (1986, p.26-27) –, busca os meios de reconstruir os vínculos afetivos, ou seja, busca um novo “estado de conjunção”, que permita recobrar o equilíbrio. O processo de passionalização também se evidencia pela emotividade da interpretação vocal de Fábio Jr.– própria de um “cantor romântico” –, articulada a um acompanha-mento instrumental que progressivamente se enriquece e se torna mais denso, mas sempre deixando a voz em primeiro plano. Desta forma, constrói-se gradativamente um clímax sonoro, através do crescendo em intensidade, densidade e expressividade emotiva. Ressalte-se, inclusi-ve, que a intensidade constitui “um parâmetro de dosa-gem do afeto investido”, como diz TATIT (2002, p.15). Em comparação com o rock de Rita Lee, esta canção explora

muito mais as variações – e mesmo os contrastes – de dinâmica. Desta forma, portanto, busca-se que o ouvinte se emocione com a canção.

Por sua vez, é em Já fui (LIMA; CÍCERO, 2008) que se encontram menos presentes os recursos de concentra-ção temática ou de expansão passional dos contornos: há pouca reiteração ou sustentação vocálica. É apre-sentada “a voz do enunciador dizendo algo considerado oportuno” (TATIT, 2004, p.77), no caso a filha falando diretamente com os pais em tom de despedida e, em certa medida, de desafio. O canto é lento e pausado, e embora em alguns momentos se mostre mais expressi-vo, não chega a construir uma continuidade melódica que progressivamente leve a um crescendo de expressão emotiva, como acontece em Pai. O acompanhamento instrumental comedido, que não chega a criar uma base rítmica capaz de estimular corporalmente, deixa a voz constantemente em primeiro plano para apresentar o que tem a dizer. É apenas na ausência da fala que os encadeamentos rítmicos e harmônicos dos instrumentos ganham importância e se expandem – entre as partes da letra e especialmente ao final, quando se combinam com a voz (já sem texto) que explora, inclusive expres-sivamente, vocalizes e a interjeição tchau (cuja função entoativa veremos a seguir).

Nesta canção (LIMA; CÍCERO, 2008), portanto, a figura-tivização é o processo predominante, atuando na criação de uma cena enunciativa que se apresenta, aqui e agora, como viável. Neste processo, além da função dos vocati-vos “cara” e “coroa” (acima mencionada), cabe destacar o papel da interjeição “tchau” – cuja importância para marcar o momento em que a filha deixa o lar já foi dis-cutida na seção anterior. Aqui, convém ressaltar que a in-terjeição constitui um verdadeiro nó “de entrelaçamento do texto com a melodia”, pois esse som vocal “não é nem bem um texto nem bem uma melodia. É uma unidade entoativa por excelência, com valor, ao mesmo tempo, musical e linguístico” (TATIT, 1986, p.23).

Retomando, agora, a citação de TATIT (2004, p.232) apre-sentada no início do texto, podemos constatar que as três canções analisadas exemplificam o revezamento, presen-te na história da canção popular, de modos de dizer – en-volvendo sempre melodia e letra e os diferentes modos de tratar a relação entre elas – que serve justamente para contemplar os conteúdos psicoculturais relativos às rela-ções afetivas e familiares.

Se as diferentes dicções que formam o universo mu-sical da nossa sociedade dizem respeito aos modos de compor e de cantar, é interessante notar que as grava-ções das canções selecionadas são realizadas por seus compositores (pelo menos um deles). TATIT (2002, p.13) apresenta o fato de os compositores se tornarem natu-ralmente cantores – “Afinal, a voz que fala é a voz que canta” – como um elemento que reforça sua concepção de que a canção popular tem sua origem na fala. No

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caso em estudo, isto permite pressupor que as realiza-ções específicas analisadas – o arranjo e a gravação – são suficientemente fiéis à composição.

“Arranjos e gravações trabalhadas podem não só intensificar a com-patibilidade entre os componentes [letra e melodia] como também podem criar outros graus de adequação e outros espaços de com-patibilidade”. [...] Cabe apenas a constatação de que os trabalhos de arranjo e gravação mais bem sucedidos, em nível de eficácia da comunicação, têm sido aqueles que aproveitam a compatibilidade já existente [na composição] entre o texto e a melodia e a valorizam, aumentando a cumplicidade com o ouvinte. (TATIT, 1986, p.63)

6. Considerações finaisAs três canções analisadas, que trazem uma fala filial di-rigida ao pai como interlocutor, integrantes de um CD temático datado de 2008 – que exemplifica a estraté-gia mercadológica de investir também na permanência –, tiveram gravações originais há mais de 20 anos. No entanto, mostram-se ainda representativas das relações entre filhos(as) e pais, relações inter-geracionais que se desenvolvem no interior da família, com grande peso emocional. Como aponta GIDDENS (2005, p.170), apesar da enorme variação de relacionamentos sociais e sexu-ais nas sociedades ocidentais contemporâneas, a família continua sendo uma instituição firmemente estabelecida, ainda que submetida a grandes tensões. Pois as crianças das gerações mais novas sempre precisarão ser cuidadas, e, do ponto de vista psicológico, os pais homens têm um papel específico e importante a desempenhar no desen-volvimento da criança – e, por extensão, da pessoa:

Como destruidores construtivos da unidade mãe-filho. Como fo-mentadores da autonomia e da individuação. Como modelos de masculinidade para os filhos. Como confirmação da feminilidade para as filhas. E como a figura outra-que-não-a-mãe que fornece uma segunda fonte de amor constante. [...] E quando não temos pai, sentimos sua falta. (VIORST, 1999, p.77)

Contemplando conteúdos psicoculturais ainda presentes – por serem, até certo ponto, questões existenciais – tais canções podem permanecer, sendo retomadas e manten-do-se significativas. Deixam, assim, o seu recado.

Entretanto, “utilizar cada composição para deixar um recado de ordem existencial, conceitual, comportamen-tal, enfim, essencial, representa um outro modo de en-carar a melodia e, consequentemente, de se relacionar com a letra” (TATIT, 2004, p.230). Nesse outro modo, sem estar mais preso aos gêneros rítmicos predefinidos, “em vez de produzir um samba, um blues, um baião ou um rock, o compositor propunha diretamente um modo de dizer melódico que só mantinha compromisso com a própria letra” (TATIT, 2004, p.229).

Assim, ao mesmo tempo em que, nas cenas que constro-em, as três canções analisadas dão recados aos pais (dos enunciadores), para nós elas deixam recados que refle-tem as mudanças nas relações familiares e nos compor-tamentos em nossa sociedade. Por outro lado, também exemplificam distintos modos de cantar, de compor e de tratar a relação entre melodia e letra – ou seja, expressam diferentes dicções presentes na canção popular brasileira.

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da polícia da família. João Pessoa: Conferência Internacional Educação, Globalização e Cidadania, 2008. Digitado. (Trabalho apresentado em mesa redonda)

GIDDENS, Anthony. Sociologia. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2005.LÉVI-STRAUSS, Claude. A família. In: LÉVI-STRAUSS, Claude; GOUGH, Kathleen; SPIRO, Melford. A família: origem e evo-

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TATIT, Luiz. A canção: eficácia e encanto. São Paulo: Atual, 1986. _______. O cancionista: composição de canções no Brasil. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 2002._______.O século da canção. Cotia/SP: Ateliê, 2004.THERBORN, Göran. Sexo e poder: a família no mundo. São Paulo: Contexto, 2006.VALADARES, Ricardo. Acima do bem e do mal. Veja, edição 1891, 9 fev. 2005, p.58-65. Disponível em: http://veja.abril.

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VIORST, Judith. Perdas necessárias. 19. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1999.ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

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nossos pais. Rio de Janeiro: Som Livre, 2008. CD. faixa 6. FÁBIO Jr. Pai. (intérprete: Fábio Jr.) In: FAOUR, Rodrigo (Org.). Como nossos pais. Rio de Janeiro: Som Livre, 2008. CD.

faixa 8. FAOUR, Rodrigo (Org.). Como nossos pais. Rio de Janeiro: Som Livre, 2008. CD.LIMA, Marina; CÍCERO, Antônio. Já fui (intérprete: Marina Lima) In: FAOUR, Rodrigo (Org.). Como nossos pais. Rio de

Janeiro: Som Livre, 2008. CD. faixa 7.

notas→ Este texto apresenta uma versão revista e ampliada de PENNA (2009). Agradecemos à Profa. Eurides Santos e aos Profs. Carlos Sandroni e Luis

Ricardo Silva Queiroz pela sua leitura crítica e valiosas contribuições para o processo de reelaboração. 1 “O próprio registro autoral de uma composição incide sobre os versos e o contorno melódico emitidos pela voz do cantor.” (TATIT, 1986, p.1)2 Conforme biografia de Rodrigo Faour, disponível em: http://rodrigofaour.com.br/quem-e-rodrigo-faour. Acesso em: 13 set. 2009.3 Conforme informações disponíveis em: http://rodrigofaour.com.br/cats/discos/coletaneas Acesso em: 13 set. 2009.4 Disponível em: http://rodrigofaour.com.br/cats/discos/coletaneas Acesso em: 13 set. 2009.5 De acordo com o Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa.6 Conforme informações disponíveis em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Com_Licença,_Eu_Vou_à_Luta Acesso em: 13 set. 2009.7 Como mostra TATIT (1986, p.60), há os protótipos de canções que exploram predominantemente cada um dos processos: figurativização, temati-

zação e passionalização (ver tb. TATIT, 2002, p.26 – sobre a arquicanção como canção-modelo). No entanto, usualmente, cada canção faz uso dos três processos, sendo por vezes difícil identificar qual deles é predominante.

Maura Penna é Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco, Mestre em Ciências Sociais pela Uni-versidade Federal da Paraíba, Graduada em Música (licenciatura e bacharelado) e Educação Artística pela Universidade de Brasília. Atualmente é Professora Adjunto I do Departamento de Educação Musical da Universidade Federal da Para-íba. Tem experiência na área de Música, Arte e Educação, Estudos Culturais, com ênfase em Educação Musical, atuando principalmente nos seguintes temas: educação musical, política educacional para arte e música, prática pedagógica em música, pesquisa em educação, além de manifestações culturais e artísticas na contemporaneidade – especialmente mú-sica popular e midiática. É autora de Música(s) e seu ensino (Sulina, 2008), entre outras obras já esgotadas, e de inúmeros artigos publicados em coletâneas, periódicos científicos e anais de congressos.

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SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180.

Recebido em: 06/10/2009 - Aprovado em: 20/02/2010

Corporalidade musical na música popular: uma visão da performance violonística de Baden Powell e Egberto Gismonti

Jorge Luiz Schroeder (Unicamp, Campinas) [email protected]

Resumo: Recorte da tese de doutorado (SCHROEDER, 2006) em que proponho o conceito de corporalidade musical para poder explicar as performances de cinco músicos populares. Através da investigação das relações que dois deles (Baden Powell e Egberto Gismonti) constroem com seus instrumentos (violão popular) e linguagens (música popular instrumen-tal), pretende-se enfatizar a performance como um jogo de tensões entre as possibilidades particulares dos músicos (tanto de realização quanto de entendimento musical) e as linguagens, gêneros e instrumentos musicais escolhidos por eles para expressão. Estes instrumentos são marcados por regras oriundas de um processo histórico e coletivo que não se realiza num só indivíduo, e os músicos, marcados por possibilidades e dificuldades que não permitem a realização plena de uma exigência coletiva. Deste jogo complexo nasce a música.Palavras-chave: corporalidade musical; performance musical; música popular; Baden Powell; Egberto Gismonti.

Musical corporality in popular music: a view of Baden Powell e Egberto Gismonti´s performances on the guitar

Abstract: Study based on the doctoral dissertation (SCHROEDER, 2006) in which I propose the concept of musical corporality to be able to explain the performances of five Brazilian popular musicians. Through the investigation of the relations that two of these musicians (Baden Powell e Egberto Gismonti) construct with their instruments (the popular acoustic guitar) and languages (instrumental popular music), we intend to emphasize the performance as a game of ten-sions between the particular possibilities of the musicians (for the realization as well as for the musical understanding) and the languages, genres and musical instruments chosen by them for expression. These instruments are marked by rules derived from a historical and collective process that does not happen in one single individual. On the other hand, the musicians are marked by possibilities and difficulties that do not allow the full realization of collective requirements. Music is born from this complex game.Keywords: musical corporality; music performance; popular music; Baden Powell; Egberto Gismonti.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010

1 - Palavras iniciaisEste artigo é um recorte da minha tese de doutorado (SCHROEDER, 2006), onde tentei esboçar um conceito, o de corporalidade musical, tendo como base a análise da obra fonográfica de cinco violonistas populares (Baden Powell, Egberto Gismonti, Ulisses Rocha, André Geraissati e Michael Hedges). Hoje considero mais prudente deno-minar a corporalidade musical de noção. Ainda que aos poucos uma trilha para o status de conceito possa ir se formando, conforme eu puder deixar mais precisos seus contornos com artigos e pesquisas posteriores, talvez a noção de corporalidade musical seja por enquanto apenas o resultado de um esforço de adequação de outras várias

noções e conceitos, importantes com referência ao corpo e à oralidade surgidos em outras áreas do conhecimento, para o mundo da música. Uma espécie de tradução.

Tentando, portanto, tornar minhas considerações mais aprofundadas, poderia começar dizendo que a corpora-lidade musical é fruto de um trabalho interdisciplinar. Por muitos anos minha atividade musical se deu na área da dança. Tocando em aulas de técnicas de dança di-versas, compondo peças para coreografias, ministrando aulas de música para bailarinos, foi inevitável que a pre-ocupação com o corpo e com as formas de concebê-lo

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contagiasse minhas inquietações como músico. Na área da dança se fala muito sobre o corpo, e por vários vie-ses, como os da anatomofisiologia, das terapias corporais, da educação somática, das teorias sobre o movimento, e das próprias técnicas de dança (balé clássico, dança con-temporânea, dança moderna, danças do Brasil, danças do oriente etc.). Mergulhado nesse universo seria difícil ficar imune à influência de destacar o corpo como produtor de danças e, mais difícil para mim, mergulhado nesse am-biente, não acabar por considerar o corpo como produtor efetivo e fundamental de músicas.

Dito dessa maneira parece óbvio que o corpo possa assu-mir a responsabilidade da realização de músicas, criando ou executando. Mas as consequências dessa aparente-mente simples mudança de eixo podem ser avassaladoras, do ponto de vista das concepções tradicionais da música. Trazer o corpo, na sua totalidade, para dentro das discus-sões musicais, ou mais, para o centro dessas questões, requer um esforço de reflexão considerável, já que em grande parte dos casos, o corpo do músico é tomado ape-nas como meio necessário para a concretização de ideias musicais. Aliás, atualmente com o desenvolvimento dos recursos digitais, outros meios para essa concretização vão sendo instituídos a partir da diluição da interferência mais direta do corpo. Já é possível, por exemplo, compor e executar músicas digitalmente sem que se saiba tocar algum instrumento. Portanto, considero a discussão sobre o lugar que o corpo ocupa nos campos de reflexão da mú-sica não apenas necessária mas, acima de tudo, urgente.

Contudo, algo me incomodava no modo como os bailarinos se referiam ao corpo. Como se fosse um instrumento. As comparações entre a manutenção dos instrumentos mu-sicais (afinação, regulagem, limpeza etc.) e a manutenção do instrumento-corpo para a dança eram fácil e frequen-temente evocadas. O incômodo começou cedo. Isto porque eu compreendia a distinção entre meu corpo, por exemplo, e a materialidade de meu instrumento (o violão), mas não entendia como era possível fazer uma dissociação seme-lhante entre a pessoa que dança e seu corpo. “Mas é ela mesmo quem dança!”, pensava, “então como é que a pes-soa consegue pensar-se de fora, como que manipulando um mecanismo que é o seu próprio corpo?”

Ao tentar transferir o que ouvia sobre o corpo na dança para a música, com vontade de desenlear os nós que surgiam entre as duas artes no meu trabalho diário, confrontava a conveniência de poder-se distinguir o corpo “dançante” ou “tocante” da própria pessoa que dança ou toca. Desse modo, pessoa de um lado e corpo do outro, parece mais fácil enaltecer o trabalho técni-co, e por isso abstrato e padronizado, da preparação do corpo. A metáfora da máquina se encaixa perfeitamente nesse modo técnico de pensamento e preparação dos artistas (“você ainda não está pronto”). Mas nutria dú-vidas fortes quanto à qualidade “maquínica” que, deste modo, devia se exigir dos bailarinos e, por consequência direta, também dos músicos.

O fato de “descobrir” o corpo, ou melhor ainda, as preo-cupações com o corpo por influência direta do trabalho com a dança, contudo não me deixava à vontade. Por um lado, sentia o entusiasmo da novidade de poder fa-lar do corpo como algo de fundamental importância na realização musical, em todos os sentidos. Por outro lado, percebia o distanciamento da pessoa que dança ou toca que essa visão de corpo-instrumento parecia trazer. Se para a música o corpo era considerado apenas no seu aspecto funcional, então emprestar a visão mais apro-fundada do corpo provinda da dança, mas que a meu ver pertencia a um mesmo ideário “maquinal”, talvez não ajudasse muito a mudança de cenário. Suspeitava do perigo de estar deslocando um equívoco surgido numa área para um outro local.

Este conflito se tornou crônico no processo de investiga-ção da tese, fazendo-me oscilar entre o total encanta-mento com relação à importância do corpo na música e a enorme frustração de ter que tomar o corpo na sua acep-ção maquinal. Destituído de suas principais prerrogativas, quais sejam, aquelas que o tornam único e reconhecível na sua expressão, o corpo concebido como instrumento aparece limpo daquele grupo de qualidades e característi-cas que o complexificam e o tornam ambíguo como texto (e também na sua expressão). Se isto facilita o trabalho de formação tradicional de dançarinos e músicos, redu-zindo bastante a quantidade de estratégias (ou ferramen-tas) necessárias para a “construção” ou “moldagem” dos alunos, conforme parâmetros previamente estabelecidos e processos de formação rigidamente sistematizados; por outro lado dificulta o diagnóstico e a solução dos impas-ses a que este processo abstrato chegou nos dias atuais. Principalmente na formação de novos artistas.

Ainda que o corpo seja socialmente constituído, tanto nas expressões quanto nas dissimulações ou contenções, essa constituição coletiva permite e deseja que ele seja também individualidade. Permite e deseja a atualização do coletivo, que pode vir das opções pessoais. Permite e deseja a distinção, sem as quais grande parte o jogo social atual se dissolve. Portanto, como vim compreender depois, meu incômodo apontava para a existência de um processo de homogeneização na formação dos dançari-nos e músicos que, paradoxalmente, se alinhava (à sua maneira) à tão criticada “massificação” produzida pela indústria da cultura. E essa homogeneização parecia pro-vir, por mais absurdo que pareça, de uma facção da “alta cultura” da dança, que eu identificava mais facilmente talvez por não ser minha área de formação artística. En-tretanto, fazia pensar nesse processo igualmente instala-do na “alta cultura” musical, quando concebe o intérprete instrumentista como um meio de transmissão das ideias dos compositores para o público, e apenas isto.

Ao contrário da anulação da pessoa em favor do corpo, pensava na possibilidade da inserção do corpo em favor da pessoa, do músico neste caso. Por isso tentei inverter a equação erigida pela dança (o corpo como instrumento)

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e pensar o instrumento musical como parte do corpo. As dificuldades foram grandes, mas considero os resultados, ainda que incipientes, bastante promissores.

2 - Realinhamento teórico metodológicoPara que isto pudesse acontecer foi necessário um gran-de desvio teórico, no sentido da alteração radical da fundamentação epistemológica e do procedimento me-todológico da pesquisa; processo que se tornou difícil, confuso e complexo. Tive que deixar de lado tudo aquilo que estava mais à mão no que diz respeito à bibliogra-fia, por exemplo. Textos sedutores como os processos de associação entre o desenvolvimento de técnicas instru-mentais e programas de conscientização corporal (como o caso do método do professor de violão Enrique PINTO, 2001; ou o de piano de José Alberto KAPLAN, 1987); ou as associações entre ensino de instrumento e aborda-gens psicosomáticas (como o caso dos textos de Violeta GAINZA, 1988; ou mesmo as reflexões psicofisiológicas musicais de Edgar WILLEMS,1969) visando a reorgani-zação postural, o redirecionamento nos caminhos do movimento, a reestruturação do pensamento técni-co com base na consciência articular, na economia de energia ou no domínio do peso, todos eles tiveram que ser evitados. Não por falta de valor ou utilidade naquilo a que se propõem, mas pelo fato de se enfraquecerem quando utilizados numa dimensão investigativa para as quais não foram construídos.

Aos poucos me desestimulei a buscar nos métodos de ensino de instrumento as chaves para uma concepção menos mecanicista e psicossomática do corpo. Embora a Educação Musical tenha se debruçado com mais demora nas questões sobre o corpo, temia que os empréstimos teóricos das ciências biológicas ou médicas, que cons-tatava realizarem-se nesta área, acabassem por trazer a reboque as preocupações e objetivos taxionômicos, ex-plicativos e terapêuticos das suas áreas de origem, rene-gando a um segundo plano (por vezes até abandonando) questões de maior interesse especificamente musicais (como, por exemplo, os processos criativos ou a dimensão discursiva da música).

Para esta investigação interessava menos observar quais processos corporais os músicos utilizavam para solucionar seus problemas de postura, condicionamento, resistência, longevidade técnica, evitando ou até mesmo curando le-sões mais sérias. Importava saber quais os fatores que os levavam a fazer certas escolhas musicais e não outras; os motivos pelos quais certas opções, dentre as muitas pos-síveis, eram usadas enquanto outras eram descartadas. Desconfiava que as escolhas de linguagens musicais a se-rem utilizadas, de propostas estéticas a serem oferecidas, de sonoridades a serem desenvolvidas, até mesmo de so-luções técnicas a serem implementadas, não provinham apenas das vontades pessoais ou das ideias musicais de cada músico. Alguns outros fatores, condicionantes das realizações musicais, permaneciam ocultos, não explica-dos. Contudo davam indícios de existirem. E penso que

foram essas pequenas pistas que acabei por perseguir du-rante o trabalho de pesquisa.

Em primeiro lugar, estabeleci uma ênfase maior na me-todologia empírica, na observação mais cuidadosa e extensiva dos músicos em ação, na pronúncia de seus respectivos discursos. Os dados obtidos através dessas observações empíricas e analisados a partir de outras fontes teóricas permitiram comparações com outras aná-lises feitas sobre as mesmas peças ou músicos por analis-tas de outras vertentes teóricas.

Em segundo, deixei de lado as teorias do corpo, mais pro-pícias às influências biológicas, e passei para as teorias da ação centradas na cultura, no que diz respeito aos mú-sicos, e para as teorias do discurso e da enunciação, no que diz respeito às músicas. Nessa dimensão foi possível estabelecer um local de observação que permitiu o livre trânsito entre níveis distintos de análise musical e con-textual. Foi possível, por exemplo, criar um elo entre as informações harmônicas e melódicas das peças analisa-das e os modos particulares dos músicos pronunciarem os discursos (sotaques, dicções). Foi possível também esta-belecer paralelos entre escolhas sonoras e rítmicas, e cer-tas atitudes de renovação, atualização, desconstrução ou manutenção de certos padrões de discurso (que podemos também chamar de gêneros de discurso), ajudando a si-tuar mais claramente a posição de cada músico analisado dentro de um cenário musical maior. No caso particular da minha análise, este cenário maior foi o campo da mú-sica popular instrumental.

Em terceiro, foi possível superar algumas falsas dicoto-mias presentes no ideário musical, que aloja convenien-temente em pólos opostos e conflitantes o individual e o coletivo, o singular e o plural, o inteligível e o sensível, a vontade e a possibilidade, a ideia e a realização. Por meio da mudança epistemológica foi plenamente possí-vel considerar esses elementos todos como constituin-tes igualmente fundamentais das realizações musicais. Em outras palavras, foi possível enxergar que o indiví-duo não se constitui fora de uma coletividade, e que o coletivo não anula o indivíduo; que a obra musical é singular e ao mesmo tempo faz parte de um gênero de discurso determinado, que possui padrões de procedi-mento, valores e desenvolve percepções e sensibilidades específicas, compartilhadas; que tanto a razão quanto a sensibilidade são resultado de construções culturais; que a vontade de tocar se ajusta às possibilidades de to-car, incorpora as dificuldades e através delas é desenvol-vida; e, finalmente, que a ideia musical se dá no mesmo movimento, ou impulso, com a qual vai sendo realizada em sua concretude, e não há primazia ou hierarquia fixa entre essas duas dimensões da realização musical (entre o pensar e o fazer).

Com este material teórico-metodológico nas mãos foi pos-sível, então, partir para a análise do material fonográfico dos cinco músicos, violonistas populares, que escolhi, ten-

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do como principal motivo o modo explícito como, dentro de um mesmo gênero de discurso musical, cada um deles se portava de modo único, pessoal, idiossincrático, frente a um mesmo grupo de exigências musicais, presentes numa mes-ma linguagem musical que todos igualmente partilhavam.

Por questão de espaço, resolvi, para este artigo, concen-trar-me apenas em dois dos cinco músicos analisados: Baden Powell e Egberto Gismonti. Existem algumas razões para esta escolha. Deixando de lado o fato dos dois mú-sicos terem carreiras consolidadas no mundo da música popular brasileira (tanto instrumental quanto cancionista, visto que ambos compuseram indiscriminadamente pe-ças instrumentais e canções) e serem reconhecidos como marcos importantes na consolidação da legitimidade da música brasileira internacionalmente, acho muito impor-tante o fato de que ambos se conheciam pessoalmente e conheciam um a obra do outro. Egberto não esconde a grande admiração que tem por Baden e tampouco a influ-ência que dele recebeu como músico, compositor e vio-lonista. Essa identificação musical e afetiva entre os dois músicos propicia uma análise comparada entre suas obras, de modo a favorecer um esclarecedor cotejamento ponto a ponto que, para a dimensão deste artigo, permite a in-clusão de maior quantidade de informações ao se comen-tar de uma só vez os aspectos concernentes às duas obras. Outra razão é o fato da obra fonográfica dos dois músicos ser de mais fácil acesso do que dos outros três analisados. Isto permite a complementação que o leitor pode fazer das minhas análises, ouvindo as peças sugeridas.

3 - Sobre as contribuições teóricasAntes de entrar nas análises dos músicos, gostaria de fa-zer um pequeno parêntese apenas para situar algumas contribuições que considero fundamentais para a elabo-ração da ideia de corporalidade musical.

Durante o processo de investigação da tese foram três os autores que se sobressaíram como fornecedores de pistas para a construção da corporalidade. Maurice Merleau-Ponty, com sua ideia de corpo próprio, me aju-dou na inversão dos termos da equação (instrumento como parte do corpo ao invés de corpo como instru-mento). Neste caso específico a ordem dos fatores altera radicalmente o produto. Pierre Bourdieu cujas noções de habitus e campo de atividade social foram cruciais para entender os limites dentro dos quais os músicos escolhidos se movimentavam (no caso, a música popu-lar instrumental) e a importância de suas respectivas contribuições para a instituição, ampliação e renovação desse campo musical. Mikhail Bakhtin, que inicialmen-te contribuiu com o conceito de carnavalização, per-mitindo perceber certa nuance nos comportamentos musicais, principalmente desses dois músicos que irei apresentar em seguida, que atestam, de um (Baden), sua reverência irreverente e, do outro (Egberto), sua rebel-dia disciplinada, em relação à uma tradição consagrada. Mas também com as ideias de gênero de discurso e esti-lo, que confirmaram, por um outro viés, a dissolução da

falsa dicotomia entre individualidade (o gênio) e coleti-vidade (o gênero), reformulando a ideia de genialidade em função de um controle de uma linguagem musical específica, dentro da qual, e somente ali, a genialidade faz sentido e é reconhecida como tal.

A partir desses conceitos foi possível erigir um alicerce so-bre o qual as especificidades musicais puderam ser devi-damente colocadas. Entretanto, atualmente alguns outros autores puderam se juntar a esses três primeiros, oferecen-do a oportunidade de lapidar um pouco melhor a noção da corporalidade. Um deles foi Paul Zumthor, quando discute a oralidade; mais especificamente a vocalidade. Este tema já havia sido abordado na tese por meio de Michel De Cer-teau, contudo de modo não convenientemente aprofun-dado. Encontrei uma identificação quase imediata entre a vocalidade e a corporalidade no que diz respeito à forma única, viva e circunstanciada (ou contextualizada) da pro-núncia (da fala ou do canto, no caso de Zumthor e da per-formance instrumental, no meu caso). Esse momento con-creto da realização é igualmente enfatizado por Zumthor pela presença imprescindível do corpo. Ao localizar a voz “entre o corpo e a palavra” (2007, p.85), abre o precedente para que eu possa localizar a corporalidade entre o corpo e a música. Então a corporalidade, de uma certa maneira, deixa de coincidir com o corpo e passa a ser manifestação do corpo concretizada em som, em música. Dessa forma, muito embora o instrumento tocado não seja a voz pro-priamente dita (emanação direta do corpo, como afirma ZUMTHOR, 2007, p.27), ele adquire propriedades “corpo-rais”, se integra de tal forma ao corpo (torna-se parte dele, altera suas dimensões MERLEAU-PONTY, 1999, p.198-199) que torna perfeitamente utilizável no contexto instrumen-tal a afirmação do autor: “dizendo qualquer coisa, a voz se diz” (ZUMTHOR, 2007, p.86). Para nós, se torna: “tocando qualquer música a corporalidade se diz”. Ou seja, o músico se mostra ao mostrar sua música.

A transubstanciação dessa exposição própria do músico em linguagem musical permite a apreensão, porque for-nece indícios fortes da sua presença, dessa corporalidade. Mesmo na forma de gravação, em fonogramas, sem a pre-sença visual do corpo. É fato que, tanto quanto na leitura de um texto escrito, a escuta de um fonograma exige com-plementação de seu ouvinte. Tanto quanto a revitalização da entonação necessária para a leitura de um texto, para a compreensão de uma fala congelada no papel, uma re-vitalização da imagem gestual do músico tocando talvez seja necessária para a “leitura” da corporalidade. E é aí que entra, tanto num caso quanto no outro, o conhecimento da língua e a familiaridade com o gênero de discurso uti-lizado, para que essa complementação (a aproximação da performance viva que originou o texto) possa acontecer. Então eu beneficiei-me do fato de tocar violão, ao inves-tigar violonistas. Violão popular, em primeiro lugar; em segundo, o fato de já ter visto esses violonistas tocando (Egberto ao vivo, Baden por meio de imagens de vídeo). Em terceiro, através do esforço de tentar executar algumas de suas músicas. Estas foram as estratégias que utilizei para

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tentar recompor, o mais fielmente possível, alguns traços marcantes das suas respectivas corporalidades. Traços, evidentemente, eleitos (certamente construídos), mas que não invalidam minhas análises.

Outro autor, podemos dizer tardio, que veio a contribuir com minha investigação foi Davi Le Breton. Com sua socio-logia do corpo (2006) e antropologia das emoções (2009), forneceu argumentos poderosos no que diz respeito à am-biguidade e complexidade das expressões (e porque não dizer também das emanações) através do corpo.

A sociologia, cujas pesquisas têm no corpo seu fio condutor, não

deve nunca esquecer da ambiguidade e da efemeridade de seu ob-

jeto, a qualidade que possui de incentivar questionamentos muito

mais que de constituir fontes de certezas (BRETON, 2006, p.33).

Concebendo as expressões do corpo como construções so-cioculturais, apreendidas através de modos específicos de mediação comportamental; exercidas através de modelos gestuais limiares entre “mostrar” e “esconder”; essas ex-pressões constituem um sistema simbólico complexo, ins-tável, por onde circulam mais ou menos livremente inúme-ros componentes tanto condicionantes quanto libertários, contudo significantes para quem as exercita, utiliza, reco-nhece, vive. Nesta dimensão procurei localizar a corporali-dade musical. Daí a dificuldade em delineá-la claramente, de constituí-la em conceito, de abstrair ou generalizar seu alcance. Contudo ela se mostrou válida neste cenário de-senhado para sua elaboração: a performance violonística de músicos populares, dentro do gênero da música popu-lar instrumental. Neste pequeno âmbito, a contribuição da corporalidade parece permitir algumas inferências difíceis de conseguir através das análises exclusivamente musi-cais, ou eminentemente corporais (no sentido biológico do termo). Espero que o próprio leitor possa corroborar essa afirmação com as análises que farei a seguir.

4 - CarnavalizaçãoComo já mencionei acima, a perspectiva da corporalidade musical, do modo como a concebo, cria algumas oportu-nidades não só de descrição e explicitação de caracterís-ticas discursivas presentes nas performances mas, tam-bém, de comparação entre performances, que considero proveitoso para o caso dos nossos dois músicos. Aspectos e atitudes peculiares numa certa dimensão podem se mostrar interligadas numa outra. Estilos e características apresentados como idiossincráticos podem ocultar pro-cessos ou ideários com alto grau de proximidade. E este é o caso da carnavalização nos dois músicos. Ela aparece em ambos, contudo de modo particular em cada um de-les. Comecemos com Baden.

4.1 - Carnavalização em BadenBaden Powell de Aquino nasceu em Varre-Sai, pequeno município próximo à cidade do Rio de Janeiro, no dia 6 de agosto de 1937. Terceiro filho de pai violinista ama-dor, cedo se interessou pela música. Tendo inicialmente aprendido alguns rudimentos do violão com o próprio

pai, logo, porém, passou a ter aulas com um “verdadei-ro professor de violão” (segundo a expressão usada por Baden no DVD Velho amigo), James Florence, conhecido como Meira, amigo e companheiro de grupo musical do pai de Baden. Completou seus estudos na Escola Nacional de Música do Rio de Janeiro, estudando arranjo, harmo-nia, contraponto, orquestração e composição. Tendo um desenvolvimento e envolvimento bastante rápido com a música e com o violão, logo se tornou profissional, a partir dos 15 anos. Como violonista profissional, acompanhou várias cantoras e cantores famosos na Rádio Nacional, em excursões pelo país, e em casas noturnas e boates, constituindo gradualmente uma carreira promissora que se solidificou principalmente na década de 1950, quando iniciou parcerias com grandes nomes da música popular, como Billy Blanco, Vinícius de Morais, Paulo César Pinhei-ro, entre outros. A partir daí, formou-se como um dos grandes nomes do violão no Brasil, tendo extrapolado sua fama até a Europa, principalmente França e Alemanha, países onde viveu por muitos anos. Morreu em setembro de 2000 deixando vasta obra fonográfica atualmente dis-ponível em discos LP e CDs.

Baden se orgulhava de dizer que estudou todo o mé-todo de violão de Tárrega (Francisco de Asís Tarrega Eixea, 1852-1909, violonista e compositor espanhol) ainda menino, como consta em seu depoimento no DVD Velho amigo. Por ser menino humilde de cidade pequena, o fato de dominar rapidamente as habili-dades necessárias ao bom desempenho do violonista clássico certamente despertou seu interesse em face a aprovação quase unânime de todos que o ouviam tocar (DREYFUS, 1999). Acompanhando o pai nas “noitadas” de festas e serestas, manteve contato com músicos importantes e já amplamente considerados dentro da música popular, como Pixinguinha, Jacó do Bandolin, Dino 7 Cordas, entre outros.

Ainda que não seja minha intenção detalhar sua biogra-fia aqui, podemos inferir, em outras palavras, que Ba-den se formou como músico a partir de um mergulho no encontro das águas de duas tradições fortes do violão: a erudita e a popular brasileira. Influências de Tárrega, Fernando Sor e Andrés Sergovia, por um lado, Dilermano Reis e Garoto, por outro, foram sempre afirmadas por ele (DREYFUS, 1999, p.21). Portanto, é possível afirmar que Baden se projetava a partir da apropriação de parâ-metros de qualidade (sonoridade, agilidade, inventivida-de) e valores artísticos provindos dessas duas vertentes principais que, aliás, mantinham canais firmes e dinâmi-cos de trocas simbólicas.

A partir dessa situação específica, deste cenário musical por onde Baden circulava, é possível detectar em suas performances um traço pessoal, bastante sutil mas muito presente, a qual dei o nome de carnavalização. O termo, emprestado de BAKHTIN (2002) veio a calhar por conta de uma característica a ele atribuída pelo autor, a partir de sua interpretação das festas populares da idade média.

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Essa visão, oposta a toda ideia de acabamento e perfeição, a toda pretensão de imutabilidade e eternidade, necessitava manifestar-se através de formas de expressão dinâmicas e mutáveis (protéi-cas), flutuantes e ativas. Por isso todas as formas e símbolos da lin-guagem carnavalesca estão impregnados do lirismo da alternância e da renovação, da consciência da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder. Ela caracteriza-se, principalmente, pela lógica original das coisas “ao avesso”, “ao contrário”, das permu-tações constantes do alto e do baixo (“a roda”), da face e do tra-seiro, e pelas diversas formas de paródias, travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos bufões. A segunda vida, o segundo mundo da cultura popular constrói-se de certa forma como paródia da vida ordinária, como um “mundo ao revés” (BAKHTIN, 2002, p.9-10).

Bakhtin se refere a um momento específico, o das festas populares, onde a ordem do poder se altera, pelo me-nos temporariamente. O grotesco se sobrepõe ao belo, o provisório ao perene, a instabilidade se instala e o torto supera o reto. As partes baixas, sujas, íntimas do corpo aparecem; a alma desce ao submundo do material e os tronchos tornam-se reis.

Na obra de Baden esse momento não é instituído clara e abertamente como nas festas as quais Bakhtin se refere. Baden defende a ordem, se alinha com a tradição, enal-tece-a. Mas deixa que nas fissuras do seu “bem tocar” se infiltrem pequenos jorros do grotesco, do incontido. O in-controlado aparece em sua obra não como erro ou equí-voco, mas como uma presença rarefeita, um murmúrio de resistência daquilo que é o avesso da perfeição, daquilo que instiga a ordem, daquilo que balança o equilíbrio, sem chegar a desfazê-lo, mas usurpando-o de sua segu-rança absoluta. Baden talvez seja aquele mal necessário que ao desestabilizar uma lei, renova-a, atualiza-a, e am-plia seu significado, invertendo sua direção ideológica a favor daqueles que ela supostamente prejudica.

Como isto acontece? Quais seriam os prováveis indicado-res dessa atitude carnavalesca? Um bom exemplo, para começar, é a interpretação que Baden faz da música Be-rimbau, uma de suas composições mais conhecidas, no CD Ao vivo no teatro Santa Rosa (faixa 5). Embora te-nha recebido letra de Vinícius de Morais, nesta versão ela aparece em seu estado instrumental. Baden inicia a performance da peça com uma introdução solística (so-zinho), os outros instrumentistas (piano, baixo acústico e bateria) vão entrando gradativamente até que a seção introdutória se torna uma espécie de improvisação rítmi-ca coletiva sobre o tema principal da música (que na ver-são cantada recebe a palavra “berimbau”). Depois disso inicia-se a melodia principal (por volta dos 46 segundos na gravação) seguida do refrão (capoeira me mandou, di-zer que já chegou, chegou para lutar/Berimbau me confir-mou, vai ter briga de amor, tristeza camará...), essas partes apresentadas numa ordem mais comumente conhecida pelo público1. Volta o tema principal seguido novamente do refrão; depois disso aparece uma seção de improvisa-ção solística (por volta dos 2min02s) que termina numa ponte para um novo aparecimento do refrão. Volta o tema principal numa última aparição e tem-se então o final, numa coda curta que retoma o tema do “berimbau”.

Um dos traços mais aparentes onde é possível inferir esta carnavalização anunciada é o andamento acelera-do que Baden imprime à peça. É possível comparar essa diferença de andamento com uma outra interpretação da mesma música no CD Baden Powell, uma coletânea da gravadora Movieplay (faixa 4), em que é mantido um andamento mais próximo das versões cantadas, mais lento e cadenciado. A aceleração proporciona uma forte instabilidade rítmica, perceptível tanto na difícil sincronia entre os instrumentistas quanto nas impre-cisões que acontecem nas transições entre as seções da música. Pode parecer, numa primeira audição, que Baden decide bruscamente mudar de trecho e que seus acompanhantes, atentos e acostumados a esse tipo de rompante do violonista, o seguem prontamente como que num impulso de reação imediata. Não parece ha-ver, nesta versão, uma preocupação muito grande com a obediência rígida da quadratura de frases da peça. Com exceção da seção da melodia principal e do refrão, as outras passagens intermediárias (pontes e improvisos) parecem acontecer de uma forma mais livre, em que a regularidade de ciclo harmônico e frasal dá lugar à in-tensidade e a efervescência do clima a ser atingido em cada momento. Isto dificulta, por mais bem ensaiados que possam estar os músicos, a execução mais preci-sa das transições entre as partes, criando um provável clima de relativa insegurança (vencido pela atenção do-brada dos músicos acompanhantes), o que pode enfati-zar ainda mais a sensação de urgência já estabelecida pelo andamento rápido.

Baden procede dessa maneira em muitas outras ocasiões2, acelerando os andamentos, desestabilizando a métrica, borrando a plasticidade das massas sonoras, as transições entre seções das músicas, tudo isto parecendo desafiar os músicos que o acompanham e a sua própria habilidade no instrumento. Esse excesso, a meu ver, faz eco com as con-siderações de Bakhtin. Baden, ainda que numa situação diferente daquela desenhada por Bakhtin sobre a Idade Média, utiliza desse processo de deformação da regula-ridade das músicas para “sujar” a limpeza exigida pelas regras oficiais de execução, às quais ele, apesar de tudo, parece querer continuar atrelado. A sonoridade de seu violão, na aceleração desmedida do andamento, fica dis-torcida pela inclusão inevitável dos ruídos de raspagem das unhas nas cordas e na madeira do violão, indo mui-to além do limite de sonoridade consensualmente aceita para o instrumento (esses ruídos de excesso os violonistas chamam de trastejamento). Limite a partir do qual os vá-rios sons que o violão emite, voluntária e involuntaria-mente, se avolumam e quase se igualam numa espécie indistinta de percussão violonística, em que o ataque das notas passa a valer mais do que a ressonância; o barulho se equipara ao som.

Assim temos uma inversão da regra, o contrário da lim-pidez, o ruído; o contrário da linha melódica, a percus-são rítmica; o contrário da previsão, o inusitado. O tema do berimbau, que não deixa de ser um instrumento meio

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melódico e meio percussivo, vem bem a calhar como pretexto que justifica o excesso, que permite a “gros-seria” (que, no entanto, ganha um toque de virtuosismo com Baden) e a inversão tolerável da hierarquia tradi-cional da música popular. Baden troca o alto (o som musical) pelo baixo (o barulho).

O que impressiona é o jorro de vitalidade que Baden con-segue impor nesse controle descontrolado que infiltra nas fissuras das regras do “bem tocar”. Ele, sem dúvida, de-monstra técnica, habilidade e vigor, ou seja, alguns dos elementos mais preciosos na avaliação dos músicos, pelo menos no meio musical no qual Baden se tornou aprecia-do. Entretanto esses mesmos elementos são transfigura-dos, estimulados até seu estado limítrofe, sem que o medo de perverter a ordem impeça sua exacerbação. Contudo, Baden paradoxalmente distorce a música, mas não a que-bra. Não chega a descaracterizar sua configuração, mas borra. Usando uma força avassaladora da carnavalização da interpretação (a abundância de vigor, sonoridade e velocidade, o exagero da técnica que vai além das pro-priedades obedientes do instrumento) Baden oferece uma alternativa grotesca, mas aceitável (e até admirável), aos modos valorizados e se exprimir no violão. Melhor ainda, ele insere o grotesco cuidadosamente em suas perfor-mances de tal modo a se misturar e se confundir com os sinais de virtuosismo, ou neles se fundir, a ponto de, por um lado, ser aceito e admirado graças a esses mesmos sinais (e que inclusive o identificam, o individualizam, o instituem como músico consagrado e único) e, por outro, manter um rastro de rebeldia e ousadia, marcas reconhe-cidas e reconhecíveis nos considerados grandes artistas.

Mas a carnavalização não aparece apenas na aceleração e na sonoridade peculiar de Baden. Ela se manifesta tam-bém na dimensão harmônica e melódica. Isto é possível notar pela opção que ele faz por um tipo de sonoridade violonística melhor conseguida quando se estimulam as cordas soltas. Esta sonoridade possui algumas ca-racterísticas que a diferencia da sonoridade das cordas presas. Uma das prováveis razões para essa escolha de Baden é o fato de que as cordas soltas, por vibrarem na sua máxima extensão, mantêm suas ressonâncias mais intensas e por mais tempo do que quando são “encurta-das” pela digitação da mão esquerda (ou seja, quando as cordas estão presas). Uma outra característica é que, ao contrário das cordas presas, o timbre das cordas soltas é mais aberto, mais metálico, mais exuberante, então permite maior intensidade de toque porque responde com mais intensidade ao toque. Há uma última carac-terística nas cordas soltas: elas dificultam o controle. As cordas presas são mais facilmente abafadas em suas vibrações, já que um pequeno alívio na pressão de sua digitação a faz cessar de vibrar. As cordas soltas, por sua vez, precisam da ação de abafá-las para que silenciem. Essa dificuldade geralmente causa um efeito sonoro na execução que são espécies de “sobras” de sons vibrando. Quando se muda de acorde, no violão, este fenômeno pode acontecer se estão presentes as cordas soltas, tor-

nando os encadeamentos de acordes menos nítidos em suas transições (é quase como tocar piano com o pedal de sustentação apertado).

Mas para que esta sonoridade aberta das cordas soltas se efetive e se torne predominante no resultado final da performance é preciso escolher cuidadosamente os acor-des (e, por consequência as tonalidades) mais propícios, ou seja, a escala e seu grupo de notas que permita maior utilização das cordas soltas; aquela em que um número maior de acordes, ou de possibilidades de construção de acordes, permita a inclusão de cordas soltas. Esta não é uma escolha simples. Mesmo quando a tonalidade ade-quada já está determinada para a execução de certa peça musical, isto não garante que toda a peça possa ser to-cada com a ajuda das cordas soltas; alguns trechos po-dem oferecer dificuldades para se manter uma igualdade sonora (é bom sempre lembrar que estamos falando do gênero instrumental popular!). Nesse caso, ainda existe o recurso das rearmonizações (troca de acordes).

Podemos dizer, rapidamente, que são pelo menos dois os motivos principais para a troca de acordes numa peça de música popular: (1) para incluir uma marca específi-ca, pessoal, na interpretação da peça (descobrir um novo caminho harmônico, inusitado ou característico que, por sua vez, não desfigure a melodia e não descaracterize o gênero musical, mas identifique seu executante); e (2) para adaptar alguma passagem específica às possibilida-des mecânicas de execução do instrumento. Baden soma a esses dois motivos básicos um terceiro: a conquista de uma sonoridade particular. Ele parece procurar muitas vezes aquelas soluções harmônicas em que prevalecem as sonoridades mais abertas e intensas das cordas soltas, alterando frequentemente suas interpretações. Mesmo quando executa suas próprias músicas, Baden procura constantemente soluções que parecem caminhar nesse sentido, alterações perceptíveis quando comparamos as várias versões que gravou das mesmas peças (Berimbau é um bom exemplo dessa busca, mas também Garota de Ipanema e Samba de uma nota só são bons exemplos des-se procedimento em Baden).

No campo melódico, por sua vez, a rebeldia carnavalesca de Baden se mostra numa mistura às vezes insólita de velocidade e ecletismo. Explico melhor. A ideia comum, e equivocada, de que a música se constituiria numa “lin-guagem universal” é um argumento que, mesmo quando tenta elevar a música a um patamar diferenciado dentre os inúmeros sistemas simbólicos existentes, concebe o músico, em contrapartida, como um verdadeiro “poliglo-ta” musical. Coisa que, na prática, raramente acontece; e sempre com limitações. Baden parece aceitar essa crença no ecletismo quando escolhe (ou concorda) em gravar uma grande diversidade de gêneros musicais, como mos-tra seu legado fonográfico. Baden gravou desde samba tradicional (Na baixa do sapateiro e Inquietação, de Ary Barroso), marchinhas de carnaval (Pastorinhas, de Noel Rosa e João de Barro), chorinho (Lamento e Carinhoso de

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Pixinguinha), bossa nova (Garota de Ipanema, de Tom Jo-bim e Vinícius de Moraes; Samba de uma nota só, de Tom Jobim e Newton Mendonça), standards do jazz tradicio-nal (Stella by starlight, de Ned Washinton e Victor Young; My funny valentine, de Richard Rogers e Lorenz Hart), bee bop (Round midnight, de Thelonious Monk, Cootie Willia-ms e Bernie Hanighen), canções populares (Chão de es-trelas de Silvio Caldas e Orestes Barbosa; Dora, de Dorival Caymmi) e música erudita (Prelúdio em ré menor, Double e Jesus, alegria dos homens de Bach; Adágio de Albinoni), entre outras. Também nas suas improvisações ele mistu-rou desde linhas mais jazzísticas, padrões de blues, melo-dias de chorinho, até passagens eminentemente bachia-nas e improvisos rítmicos com acordes nos sambas. Aqui também é possível interpretar essa enorme liberdade que Baden parecia sentir em transitar por uma diversidade grande de gêneros musicais, muitos deles contraditó-rios entre si (no sentido da incompatibilidade de solu-ções melódico-harmônicas ou rítmicas características de cada gênero abordado), como um traço de rebeldia, de perversão às regras (neste caso particular, das regras de “purismo”, visto que o ecletismo tornou-se, na época em que Baden iniciou sua carreira, meta a ser almejada pelos intérpretes; e que continua ainda hoje).

Embora participasse de perto do movimento da bossa nova, na década de 1950, ele não se filiou definitiva-mente em nenhuma corrente musical das épocas em que atuou.

Baden Powell nunca pertenceu a nenhum movimento, a nenhuma congregação. Ele nunca se ajustou a nenhum molde, nunca seguiu nenhuma orientação e, sobretudo, nunca se limitou a um gênero. Quando a marca registrada da bossa nova era aquela famosa ba-tida [do violão de João Gilberto], à qual todos os músicos da dé-cada de 60 se amarraram, Baden continuava percorrendo todos os ritmos, inclusive o da bossa nova, com um sotaque infinitamente pessoal e original (DREYFUS, 1999, p.67).

Ainda que exagerada, a citação acima não deixa de constatar esse ecletismo cultivado, ou pelo menos in-centivado, pelas atitudes e escolhas musicais de Baden. Em todo caso, ao nos aprofundarmos um pouco mais sobre sua obra fonográfica, é possível inferir que esse ecletismo mantém um centro ao redor do qual todas essas outras linguagens abordadas por Baden circulam, num movimento centrípeto. Este centro de atração é o samba. Podem advir certas dúvidas em considerar Baden como jazzista, quando toca jazz, ou violonista erudito, quando toca Bach. Contudo certamente não aparecem muitas dúvidas quando o consideramos sambista. Muito da sua produção criativa se manifestou nesse gênero. Inclusive um grupo fundamental de músicas que com-pôs com Vinícius de Moraes, conhecidos como Afro-sambas (que podem ser ouvidos nos CDs Os afro-sambas de Baden e Vinícius; Os afro-sambas – Baden Powell; e uma versão de Paulo Bellinati e Mônica Salmaso Afro-sambas – Baden Powell e Vinícius de Moraes). Conjunto de canções que atualizou o gênero quando fundiu, num mesmo cadinho, o samba tradicional com elementos ca-racterísticos da música dos candomblés.

Desse modo, é possível incluir na lista de rebeldias car-navalescas de Baden, contra um padrão de atitudes já previamente determinado e valorizado, a inclusão de ci-tações de vários outros gêneros musicais dentro do sam-ba, e também do samba dentro desses outros gêneros que pronunciava. Penso nessa atitude como uma espécie de “paródia a favor”. Isto porque, além de remeter a um conhecimento considerado “autêntico” e “legítimo” pela inteligência musical de sua época (como o da música eru-dita, para os tradicionais, e do jazz, para os progressistas), e que Baden mostrava dominar e reconhecer sua legitimi-dade citando-o, trabalhava a seu favor na medida em que delegava a ele, por força das circunstâncias, essa mes-ma autenticidade e legitimidade que ia aos poucos con-quistando como músico. É bom salientar que Baden não desdenhava a música “legítima” ou mesmo seus padrões do “bem tocar”, visto que era através deles que sua con-sagração era aos poucos alcançada. Mas não unicamen-te através deles. Ao contrário disto, ele parecia querer confirmar essa legitimidade mostrando respeito e até um certo grau de reverência aos gêneros mais consagrados na sua época (a música erudita e o jazz).

Todos esses fatores, embebidos nas suas possibilidades (facilidades e dificuldades) e entendimento (apropriações e recusas) criam, a meu ver, uma proposta discursiva e es-tética que caracteriza sua produção artística, tanto quan-do interpreta músicas alheias quanto nas suas próprias composições. Passemos agora ao outro músico.

4.2 - Carnavalização em EgbertoEgberto Gismonti nasceu no Carmo, pequena cidade no interior do estado do Rio de Janeiro, no dia 5 de dezem-bro de 1947. Filho de pai libanês e mãe italiana fez o percurso tradicional de estudos musicais em conserva-tórios, estudando piano e violão. Depois de ter passado por 15 anos de estudos tradicionais, teve a oportunida-de de estudar, em Paris, com Nadia Boulanger (profes-sora de vários músicos consagrados em vários gêneros e linguagens musicais, tais como Almeida Prado, Quincy Jones, Raul do Vale, Frank Zappa entre muitos outros) e Jean Barranqué (discípulo de Schoenberg e Webern). Retornando ao Brasil, inicia sua carreira pública parti-cipando do Festival da Canção de 1968, com a canção Sonho 70, interpretada na ocasião pelos Três Moraes, já aqui demonstrando certa dose de transgressão e van-guarda assimilada provavelmente em seus estudos pa-risienses. Grava seu primeiro LP com a mistura da mú-sica erudita da vanguarda do século 20 com a música brasileira, utilizando ritmos tradicionais do frevo, choro, maracatu, batuque, samba, dentre outros. Possui, atual-mente, a gravadora Carmo, que se dedica ao lançamento de novos talentos da música instrumental brasileira.A dimensão carnavalesca, sutil e insistente em Baden, com Egberto assume proporções bem maiores. Aqui o grotesco bakhtiniano também aparece principalmente como a exacerbação, o excesso de atuação, que atin-ge um estado limítrofe tanto da obra que se propõe a executar (ou criar) quanto do gênero musical na qual se

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instala, ou do qual irradia suas intervenções artísticas. Di-ferentemente de Baden, Egberto não tem a preocupação de instalar seus excessos nas fissuras da ordem “oficial” musical. Ao contrário, ele explode essa mesma ordem estabelecida através da instauração de uma outra, que constrói a partir de suas misturas e experiências entre linguagens e gêneros, que acabam por constituir uma proposta estética (podemos dizer também, um universo sonoro discursivo, ou um dialeto) particular.

Sua exasperação temporal, por exemplo, que ele utiliza com frequência no violão, não estremece uma organi-zação musical preestabelecida, não borra seus limites bem delineados, mas habita um mundo já praticamen-te beneficiado pela existência dos borrões, pelas ha-churas e pelas linhas fragmentadas e indefinidas. Em outra palavras, Egberto toma a liberdade de construir um universo musical, uma proposta estética, que con-tém, ou pelo menos pressupõe, a possibilidade do ex-cesso (na verdade, exige). Vários exemplos poderiam ser citados, entretanto considero a peça Dança das ca-beças (faixa 2 do LP Dança das cabeças) suficiente para ilustrar minhas afirmações.

Numa arquitetura complexa (são oito minutos de música ininterrupta), na qual apresentações dos dois temas prin-cipais são intercaladas com seções novas e com trechos de improvisações e desenvolvimentos, Egberto costura uma sequência na qual alterna diversos climas sonoros. Imagens sonoras múltiplas surgem em correspondência direta com as várias articulações que elabora com aqui-lo que podemos chamar de elementos principais eleitos para a confecção da peça. Com um material estrutural reduzido, ele consegue apresentar uma gradação ampla de matizes sonoros (timbrísticos, de intensidades, de ar-ticulações, de texturas e tonais), elaborando verdadeiras paisagens sonoras em constante transformação, em que ora um, ora outro elemento toma a frente do discurso, estabelecendo uma dinâmica intensa num jogo de trocas entre figura e fundo durante toda a peça.

Um desses elementos, por exemplo, é o que chamamos de “notas rebatidas”. É um recurso que, muito usado por violonistas, consiste de notas repetidas continuamente, formando uma espécie de ressonância reiterativa cuja função principal, na peça analisada, é a de preencher os vazios deixados pela costura dos temas melódicos apre-sentados, adensando sua textura sonora. São repiques de notas que se interpõem às notas da linha melódica, como acontece num outro exemplo conhecido desse procedi-mento que são os ponteados da viola caipira, que podem ser tocados apenas sobre uma corda, alternando notas da corda presa com notas da corda solta, intercaladas geral-mente uma a uma. Na Dança das cabeças a nota rebatida é elemento constituidor e fundamental na sua estrutura. Ela aparece quase sempre provinda de uma corda solta; a depender do trecho da peça ora é corda aguda, ora é cor-da grave. Mesmo nas seções de improvisação e desenvol-vimento mais livres, o mote da nota rebatida se mantém

presente, algumas vezes transfigurado em arpejo repetiti-vo (como na seção que inicia por volta dos 2min08s, que chamei na análise de “ponte estendida”, ou na segunda seção de improviso, por volta dos 4min33s).

O desenvolvimento dessa peça permite que ampliemos um pouco mais a ideia das notas rebatidas, generalizan-do-as como bordão. A ideia do bordão, nesta peça em particular, é sempre apresentada de maneiras diferen-tes. Na introdução, por exemplo (até por volta dos 42s), aparece logo de início como função da primeira nota grave que, a partir do momento da entrada de uma série de acordes repetidos (uma melodia de acordes), se aco-moda com intensidade diminuída por detrás da melodia de acordes. Passa de figura a fundo até a entrada do tema principal (aos 42s). Já na entrada do tema secun-dário (por volta dos 58s), o bordão é transferido para a tumbadora (instrumento de percussão tocado por Naná Vasconcelos, acompanhante de Egberto nesta versão), que transforma o bordão melódico/harmônico do violão em bordão rítmico da tumbadora. Os acordes iniciais, transformados em arpejos na seção que inicia por volta dos 2min08s, passam de protagonistas a acompanhan-tes durante todo o trecho, e assim as alterações vão se sucedendo por toda peça.

As notas rebatidas, contudo, não são exatamente o tra-ço rebelde na execução da peça, mas sim um elemento estrutural na sua arquitetura. Entretanto, a insistência, a repetição praticamente ininterrupta, a obstinação por esse fundo reiterativo, enfatizado pela sensação de urgência suscitada pelo andamento ágil e pela rítmi-ca pontilhada que praticamente a percorre do início ao fim, este sim poderia exemplificar um traço grotesco (bakhtiniano) de Egberto. Só que, diferente de Baden, essa agitação toda consubstancia um terreno já “carna-valizado”, com o qual os elementos de rebeldia que ele apresenta na execução não se mostram em conflito, mas sim em relação de cumplicidade.

Embora Egberto, assim como Baden, extrapole o anda-mento com o qual executa a peça (há várias frases ex-tremamente rápidas, principalmente no tema secundário, que aparece por volta dos 58s, 1min32s e 6min11s, e em algumas seções de improvisação, por volta dos 4min33s e 6min43s, onde é possível perceber auditivamente traços desse exagero temporal, quando não ouvimos nitidamen-te todas as notas que ele toca, mas captamos seu gesto espasmódico), exagere os contrastes abruptos de inten-sidades (variando em instantes de um pianíssimo quase inaudível para um fortíssimo trastejado) e abuse do uso das cordas soltas (em busca de uma sonoridade também aberta, ressonante e intensa), ele faz tudo isso dentro de um terreno previamente arquitetado que sustenta e dá corpo e sentido estrutural a esses excessos. Em Egberto os exageros não são traços de rebeldia dissimulada, mas elementos próprios da sua linguagem. Enquanto Baden parece querer se apossar de um discurso oficial de um modo não-oficial, se é que se pode dizer isso, Egberto

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parece já estar de posse de um discurso não-oficial em que suas “grosserias” musicais só ajudam a reafirmar esse universo especial que cria.

Na dimensão melódico-harmônica, Egberto mantém a pre-ferência pelas cordas soltas, já assinalada na sonoridade de Baden Powell. Mas também nesse quesito Egberto desfruta de uma relação diferenciada, já que teve contato prolon-gado com a vanguarda contemporânea erudita em seus estudos na Europa e pôde, com certeza, reorganizar suas expectativas harmônicas para dissonâncias mais ousadas, de certo ponto de vista não tão próximas das sonoridades populares cultivadas no Brasil3. Egberto utiliza abundan-temente não só dos ostinatos e bordões em cordas soltas, acrescentados de acordes que vão se movimentando e al-terando as relações dissonantes com esses bordões utiliza-dos, mas também das mudanças de acordes em paralelo, onde se fixa uma fôrma de mão e faz com que ela pas-seie pelo braço do violão livremente (estratégia que utiliza acordes paralelos na forma de frases melódicas e que, se acrescentados de cordas soltas, causam efeitos inusitados de dissonâncias). Os exemplos de utilização dessa estraté-gia são vários, como na peça Em família (faixa 3 do CD Em família, tocada muitas vezes na forma de solo de violão nas apresentações ao vivo4), ou nas versões que elabora de Aquarela do Brasil, de Ari Barroso (faixa 1 do LP Duas vozes) e de Fé cega, faca amolada, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos (faixa 9 do CD Dança das cabeças).

Um outro sinal que parece comprovar essa afirmação é a constituição de seus violões. Dentre vários que possui, alguns dos que mais usa possuem mais do que as seis cordas do violão padrão. Um deles é um violão com dez cordas de nylon e o outro possui quatorze cordas de aço, mas não na disposição dos violões de doze cordas que encontramos no mercado. Esses últimos possuem seis cordas duplas que são estimuladas par a par, já que o par funciona como se fosse uma única corda (a afinação é feita em uníssono ou oitavada, a cada par, seguindo geralmente a afinação tradicional EADGBE). Então, re-tomando, o violão de dez cordas de Egberto funciona como um violão tradicional, de seis cordas, onde foram acrescentadas outras quatro acima da corda mais gra-ve, primeira e terceira mais finas e a segunda e quarta mais graves. A afinação desse violão obedece a afinação tradicional, variando apenas as afinações das cordas acrescentadas (no caso da peça Em família a afinação é FAAG-EADGBE). O violão de quatorze cordas de aço obedece o mesmo padrão do anterior, com a diferença de que as quatro primeiras cordas (as mais agudas) são duplas, enquanto as demais permanecem únicas. O sis-tema de afinação desse violão é igual ao anterior e varia conforme a peça a ser tocada.Nesse quesito em especial, Egberto demonstra uma relação mais individualizada com seu instrumento, na medida em que o altera de forma mais contundente. Baden altera mais frequentemente a afinação da sexta corda (tradicionalmente afinada na nota mi) e menos frequentemente a afinação da terceira corda (tradicio-

nalmente afinada na nota sol). Um outro indício impor-tante da relação especial que Egberto mantém com o violão pode ser constatado no fato de que ele raramente toca músicas que não as suas próprias no instrumento. Ainda que alguns exemplos contrários possam ser ga-rimpados na sua discografia, é significativo como esta preferência por suas próprias criações se mantém desde os primeiros discos por ele gravados. O mais curioso é constatar que esta mesma atitude não acontece quando Egberto se dedica ao piano. São bem conhecidas suas interpretações de vários outros autores ao piano. Uma interpretação possível para esta atitude aparentemente reservada, dedicada ao violão, origina do fato de que pode haver uma diferença significativa no tipo de vín-culo que ele estabeleceu com o violão em comparação com o piano. No programa Ensaio, produzido pela TV Cultura em 1992, Egberto esclarece que seu violão pos-sui esse número avantajado de cordas para que ele, “um pianista, possa tocar violão. Só isso”5. Ou seja, Egberto se considera um pianista que toca violão e isto o obri-ga a tomar certas providências, por exemplo o aumento do número de cordas, para que ele possa se expressar “como um pianista” ao violão.

Essa declaração do próprio Egberto oferece uma pis-ta importante sobre sua corporalidade ao violão. Ao contrário de Baden, que era violonista, Egberto utiliza o violão (e alguns outros instrumentos como flautas, percussão, violoncelo) como fonte de expressão, quase como um complemento necessário à concretização de suas ideias musicais. A meu ver isto indica uma consci-ência bastante nítida das limitações que Egberto perce-be em si mesmo como violonista. Esta afirmação pode parecer equivocada à primeira vista, mas se refletirmos um pouco mais sobre o assunto podemos constatar que (1) isto não diminui em nada a qualidade musical de Egberto ao violão, ao contrário, esclarece a sua inte-ligência em saber aproveitar de modo artístico suas limitações no instrumento (digo limitação porque os recursos que ele se utiliza no violão não são típicos de um violonista tradicional, como a independência total das mãos na produção de sons, técnica apenas recen-temente desenvolvida principalmente pelos guitarristas, e aqueles recursos dos violonistas tradicionais não são explorados por Egberto); e (2) esta atitude deixa mani-festa aquilo que chamei de corporalidade musical, que é a elaboração discursiva feita a partir dos recursos ad-quiridos, das possibilidades articulares tornadas possibi-lidades expressivas, e da consciência dos limites dentro de um plano de ação expressiva que, embora Egberto não enfoque o instrumento (já que ele não se considera violonista), direciona toda a energia expressiva para a construção de peças que extravasam vigor e refletem uma relação tranquila e consciente com um instrumen-to secundário (entretanto bastante usado, e com pro-priedade, pelo músico).

A corporalidade musical é a chave para a compreensão desse uso, podemos dizer engenhoso e astuto, dos recursos

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mecânicos, possibilidades articulares, agilidade digital etc., como componentes fundamentais da realização musical. A música não parte apenas de uma ideia. Ela está mer-gulhada nas possibilidades de realização, a ponto da ideia inicial poder ser totalmente modificada (ou até abandona-da) se sua realização esbarra numa dificuldade insuperável. O próprio Egberto afirma, na mesma entrevista já citada, que as inversões dos acordes com que está acostumado no piano, ao serem transferidas para o violão demandam “muito malabarismo” que ele não apreciaria fazer. Por isso a inclusão de mais algumas cordas em seu violão. Nesse sentido, as músicas poderiam ser pensadas como fruto de uma tentativa de equilíbrio entre possibilidades, desejos e imposições do instrumento e a vontade de conduzi-lo para a concretização de um discurso significativo e expressivo. Novamente aparecem os três pontos do triângulo dinâ-mico de forças que atuam sobre as realizações musicais: as exigências corporais contidas nas linguagens musicais, nos instrumentos e as possibilidades e características dos músicos. Digo triângulo dinâmico porque ele se equilibra a cada vez de uma forma diferente, para cada músico espe-cífico, para cada peça realizada e para cada versão de cada peça. E é justamente disso que iremos falar a seguir.

5 - oralidade e escritaComo um último ponto abordado em relação à corpora-lidade tomaremos a relação intrínseca que ela mantém com o que alguns pensadores definem como oralidade e com sua contrapartida, a escrita. A oralidade comu-mente é colocada em oposição à escrita. A partir, então, dessa falsa oposição, várias associações equivocadas vão sendo construídas entre, por exemplo, oralidade e analfabetismo, ou oralidade e primitivismo. Como nos alerta Paul Zumthor:

É inútil julgar a oralidade de modo negativo, realçando-lhe os traços que contrastam com a escritura. Oralidade não significa analfabetismo, o qual, despojado dos valores próprios da voz e de qualquer função social positiva, é percebido como uma lacuna. Como é impossível conceber realmente, intimamente, o que pode ser uma sociedade de pura oralidade (supondo-se que tenha exis-tido algum dia!) [...] Daí ser frequente, nos autores que estudam as formas orais da poesia, a ideia subjacente – mas gratuita – de que elas veiculam estereótipos “primitivos” (ZUMTHOR, 1997, p.27).

Não é minha intenção aprofundar essa discussão neste espaço, isto exigiria um artigo específico, mas apenas lembrar rapidamente os perigos de opor a oralidade à es-critura. Tomando as palavras de Michel de Certeau:

Referir-se à escritura e à oralidade, quero precisar logo de saída, não postula dois termos opostos, cuja contrariedade poderia ser superada por um terceiro, cuja hierarquização se pudesse inver-ter. [...] A oralidade se insinua sobretudo como um desses fios de que se faz, na trama – interminável tapeçaria – de uma econo-mia escriturística (CERTEAU, 1994, p.233, a ordem das frases foi invertida por mim).

No que concerne aos nossos estudos da música popular, a oralidade é algo que se estabelece em relação à escri-ta musical, ou seja, existe como um pensamento musical híbrido, mas que não é homogêneo, no sentido de perfei-tamente misturado em doses proporcionais. É manchado,

esfumaçado, borrado, visto que muito do que se desen-volveu em matéria de concepções musicais favorecidas pela possibilidade da escrita musical ou já estava conta-minado pelas práticas orais, ou acabou por contaminá-las. Isto ocorrendo em graus diferenciados de dosagem para cada linguagem ou gênero musical específico (em alguns casos, para cada músico ou peça musical). O fato de um gênero sobreviver através de sua transmissão oral não implica necessariamente que ele não incorpore pro-cedimentos desenvolvidos graças à escrita. E, por sua vez, o fato de um gênero adotar a escrita como forma de propagação e conservação não implica isolamento total de procedimentos de caráter oral. Em todo caso, talvez evitemos o equívoco de estagnar a oralidade no analfabetismo musical (que, no entanto, existe em parte considerável dos músicos populares) ou no primitivismo (considerando a música conservada e desenvolvida sem registro escriturístico menor do que a música escrita). Baden e Egberto estudaram em escolas tradicionais de música e, portanto, ambos dominam a escrita, a leitura e a teoria musical. Pretendo dar apenas um exemplo de procedimento que, se envolve concepções escriturísticas, também envolve vestígios de oralidade. E isto será feito a partir de algumas versões gravadas de uma mesma peça. No caso de Baden, utilizaremos a já citada Berimbau, e no caso de Egberto, Salvador.

Refiro-me às versões de Berimbau gravadas nos CDs (1) Ao vivo no Teatro Santa Rosa – faixa 5; (2) Baden Po-well à vontade – faixa 2; (3) Baden, Márcia, Originais do Samba Show/Recital – faixa 5; (4) Os afro-sambas de Baden e Vinicius – faixa 9; (5) Baden live à Bruxelles – faixa 11. As versões de Salvador estão nos seguintes CDs e Lp (1) 1969 – faixa 1; (2) Violões – faixa 9; (3) Solo – faixa 2, lado B.

Sem querer estender demais as análises, é possível per-ceber numa primeira audição, mesmo que não apro-fundada, as diferenças que cada uma dessas versões sustenta em relação às outras. A primeira versão de Berimbau, já comentada anteriormente, se destaca pela velocidade e pela quantidade de intervenções de seções de improviso, estabelecendo um clima de urgência e, ao mesmo tempo, de liberdade na costura dos temas prin-cipais da peça. A segunda versão, mais cadenciada (an-damento médio) e tocada apenas com violão e pandeiro, parece oferecer um desenho mais nítido de suas ideias principais (introdução, melodia principal e refrão, que nesta versão é cantado). Baden não deixa de aproveitar a oportunidade para improvisar, entretanto, diferente da primeira versão, seus improvisos são executados sobre os temas principais, obedecendo de modo mais conti-do, o ciclo regular das quadraturas de cada seção. Na terceira versão, tocada ao vivo como a primeira, inicia também com um andamento mais cadenciado, próxi-mo da segunda versão. A introdução é executada com o violão e um berimbau e lá já se ouve uma improvisa-ção rítmica sobre a célula principal de berimbau. Uma ladainha tradicional é iniciada e terminada enquanto

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o improviso rítmico continua como fundo (ou acom-panhamento). Começa um jogo de pergunta e resposta entre melodias improvisadas ao violão e frases entoadas pelo cantor. Logo depois desse momento o andamento acelera, começam a tocar os atabaques, mas os impro-visos do violão continuam, desta vez alternando frases rítmicas com frases melódicas. Nesta versão a melodia principal só inicia depois de mais de cinco minutos de improvisação, é repetida e logo seguida por nova seção de improvisação melódica. Não aparecem aqui nem o tema secundário e nem o refrão, substituídos por im-provisações melódicas e rítmicas. Na quarta versão até mesmo o nome da peça foi alterado para Variações so-bre Berimbau. Inicia-se a peça com um toque de berim-bau, logo seguido pelo violão. O andamento é também cadenciado (de médio para lento). Inicia a percussão e o violão faz um pequeno improviso que se transforma em acompanhamento para uma ladainha tradicional, can-tada desta vez pelo próprio Baden. O andamento é leve-mente acelerado, outros cantos tradicionais de roda de capoeira são cantados. Nova aceleração do andamento é feita, um improviso do violão marca levemente o ritmo forte da percussão que permanece presente e constante durante toda a peça. Aqui também as melodias princi-pal, secundária e do refrão não são tocadas, sustentan-do a peça apenas os improvisos e referências aos can-tos tradicionais das rodas de capoeira. A última versão, também ao vivo, tocada apenas com o violão, aparece num andamento um pouco mais lento. Uma introdução forte, com acordes recheados de cordas soltas, é seguido da mesma ladainha de capoeira (presente também nas versões 3 e 4). O andamento acelera e um novo canto é cantado, logo seguido pelo canto próprio da música, com letra de Vinícius. Por essa razão as melodias todas são apresentadas na forma cantada, acompanhada com variações rítmicas e de registro do violão. Um impro-viso aparece depois de cantadas a estrofe, o refrão e a repetição da estrofe. A partir daí o violão apresenta o tema principal na forma instrumental, seguido de uma improvisação que adia o refrão. Este último aparece no-vamente cantado e depois disso um retorno ao tema principal instrumental termina a peça.

A primeira versão de Salvador, a primeira gravada por Egberto no seu primeiro disco, aparece num andamento médio, acompanhado apenas pela percussão, recurso bem próximo de algumas gravações do próprio Baden, que interpretou várias peças apenas com violão e percussão. Aparecem, depois de uma introdução rítmica, os temas principal, secundário e novamente o principal, seguidos por uma mudança do instrumento percussivo acompanhante (de bateria para atabaque), anunciando a seção de impro-visação. Volta a seção do tema principal sem, entretanto que ele apareça. Segue-se o tema secundário, novamente o tema principal, dessa vez com sua respectiva melodia presente, e uma coda parecida com a introdução. A segun-da versão, tocada ao vivo, inicia com uma longa seção de introdução (mais de dois minutos) onde o primeiro tema é citado, seguido por um improviso. Segue a entrada do

tema principal num andamento vertiginoso (quase não se escuta a melodia tal sua velocidade). O tema secundário é apresentado no mesmo fluxo vertiginoso. Retorna o tema principal seguido de uma seção de improviso. Retorna novamente o tema principal seguido por nova seção de improviso que rompe com a urgência rítmica dos temas principais. Volta novamente o tema principal seguido do secundário e da repetição do principal. Há um improviso final onde a música Berimbau de Baden é citada e uma coda final. A terceira versão contrasta com as anteriores principalmente no andamento, bastante mais lento do que as outras duas. O clima que se estabelece nesta versão é contrastante com as outras porque transforma a urgência presente nas primeiras versões em melancolia profunda. Nesta versão não aparece o tema secundário, apenas o principal entremeado de seções de improvisação. No final Egberto chega a improvisar um canto, que anuncia o fim da peça, seguido por uma pequena coda.

Ainda que estas descrições sucintas das várias versões de cada peça possam ter sido enfadonhas para o leitor, elas foram necessárias para tentar mostrar o nível de liberdade de execução de que partilham esses dois músicos. Mesmo sendo as duas peças bem conhecidas do público que acom-panha a carreira e as apresentações dos dois violonistas, eles frequentemente tomaram a liberdade de alterá-las a ponto de desconstrui-las quase que totalmente. No caso de Baden acontece uma versão em que nenhum dos temas principais da peça são tocados (talvez por isso a mudan-ça do nome de Berimbau para Variações sobre Berimbau que atribuiu a essa versão), e uma outra onde apenas o tema principal é citado. Em Egberto a versão mais lenta (a terceira) perverte não apenas a sequência dos temas apre-sentados nas outras versões, mas também o clima total da peça, transformando-a praticamente numa outra. Esta li-berdade, que ambos demonstraram em várias outras opor-tunidades, executando outras peças, é algo que remete à liberdade do orador, do contador de histórias, do narrador. Os dois músicos conhecem profundamente o discurso mu-sical que irão pronunciar, sabem de sua organização pois, não por coincidência, são os compositores dessas peças. Executaram essas mesmas peças (executa ainda, no caso de Egberto) inúmeras vezes, tornando-as conhecidas das audiências, entretanto, concedem a elas a possibilidade de alterações radicais, a depender das situações especiais onde esse discurso determinado vai ser pronunciado, ou publicado (no sentido de tornado público).

Essa situação de alterações constantes, que no entanto não descaracterizam as músicas, faz pensar numa relação com as peças que leva em conta o ato de sua pronúncia. E esse “levar em conta a pronúncia” inclui possibilidades de execução que podem estar fora do planejamento ini-cial que os dois fizeram para as execuções das músicas. Esse traço é que remete a um trato que eu considero de caráter oral das realizações. Ainda que a complexidade dessas peças remeta à um tipo de concepção que con-diz com uma visão teórico-escriturística da música. Que fique claro que com isto não estou negando a existência

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de vestígios dessa oralidade naqueles músicos que tocam lendo partitura, ou executam uma organização previa-mente determinada com maior rigor (que pode ou não estar fixada numa partitura, entretanto soa com um grau maior de organização e exige maior rigidez na execução). Mesmo nesses casos são várias, embora mais sutis, as es-colhas e alterações que acabam por serem feitas. No caso de Baden e Egberto essas alterações soam mais claras, suas escolhas são mais perceptíveis na comparação das várias versões, as mudanças são mais abruptas e mais ra-dicais, conforme a versão. Isto não deixa de ser, além de um indício dessa presença híbrida de oralidade e escritura (visto que as duas peças citadas se originam de um tra-balho musical sofisticado, proporcionado pela tradição da teoria escriturística musical, realizado por dois músicos escolados), mais um sinal de carnavalização, no sentido de que o texto é conhecido, os papéis estão distribuídos e determinados, mas as performances são sempre novas, tal qual o contador de histórias que conta sempre a mesma história e ela sai sempre diferente.

Esta é uma característica da performance que, segun-do Paul Zumthor, “implica tudo o que, em nós, se en-dereça ao outro” (ZUMTHOR, 1997, p.203). Para ele, “o intérprete, na performance, exibindo seu corpo e seu cenário, não está apelando somente à visualidade. Ele se oferece a um contato” (ZUMTHOR, 1997, p.204). E esse contato com o público certamente modifica aque-le plano inicial embutido no discurso a ser pronun-ciado, o que torna a audiência parte integrante desse discurso no ato de sua publicação. Este envolvimento parece estar presente, ou melhor, consciente, nos nos-sos dois músicos a partir dos indícios que eles nos for-necem das atitudes que tomam quanto à realização de suas performances musicais. A corporalidade musical,

portanto, se soma a tentativa que outros conceitos e noções vêm fazendo no sentido de religar opostos, tais como oralidade e escrita, indivíduo e sociedade, músi-co e corpo, gênero de discurso e estilo pessoal, ação e pensamento, música e significação.

6 - Algumas consideraçõesSão ainda muitas as arestas a serem ajustadas, no que diz respeito à ideia de corporalidade musical. Entretan-to, ela já aponta um caminho na direção de se levar em conta a inseparabilidade entre ideia ou ideal musical e as possibilidades concretas corporais de realizá-las. As-sim podemos observar com mais clareza o elo que une as possibilidades corporais com as necessidades expres-sivas, ou seja, a busca da coincidência entre o que de-sejo dizer e o que consigo dizer, empreendida pelos mú-sicos analisados. Mas outras situações de performance musical precisariam ser investigadas com esse mesmo instrumento analítico (o que já estou realizando na mi-nha atual pesquisa sobre a corporalidade na canção po-pular). Entretanto, acredito que algo aponte para uma percepção, embora ainda incipiente, da performance musical como uma totalidade complexa e plural. Com-plexa no sentido da instabilidade da realização musical, e plural porque cada nova versão, ou audição, de uma mesma peça coloca em funcionamento sistemas de sen-tidos diversos, visto ser a performance e sua recepção diretamente influenciadas pelo contexto real (tempo e espaço) em que acontecem. O que implica em constru-tos conceituais e teóricos capazes de conduzir um pro-cesso de explicitação dessa complexidade e pluralidade em termos de possibilidades de análise efetivas. Creio, portanto, que a corporalidade musical pode ser conside-rada mais um passo na direção do estabelecimento de um pensamento complexo musical.

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p1995. 1 CD.GISMONTI, Egberto et. al. Violões. São Paulo: Projeto Memória Brasileira, p1992. 1 CD.GISMONTI, Egberto e VASCONCELOS, Naná. Dança das cabeças. Muchen, GE: ECM, p1977. 1 disco analógico.______. Duas vozes. Muchen, GE: ECM, p1985. 1 CD.GISMONTI, Egberto. 1969. Rio de Janeiro: Universal Music, p1969. 1 CD.______. Em família. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, p1981. 1 CD.______. Solo. Muchen, GE: ECM, p1979. 1 disco analógico.POWELL, Baden. Baden live à Bruxelles. São Paulo: Lua Music, p2005. 1 CD.______. Baden Powell à vontade Rio de Janeiro: Universal Music, p1967. 1 CD.______. Baden Powell ao vivo no Teatro Santa Rosa. Rio de Janeiro: Universal Music, p1966. 1 CD.______. Baden Powell. Rio de Janeiro: Movie Play Music do Brasil, p2002. 1 CD.______. Baden, Márcia, Originais do Samba Show/Recital. Rio de Janeiro: Universal Music, p1968. 1 CD.______. Os afro-sambas de Baden e Vinícius. Rio de Janeiro: Universal Music, p.1966. 1 CD.______. Os afro-sambas. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, p.1991. 1 CD.

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notas1 Isto porque o próprio Baden alterou de várias maneiras, em outras interpretações da mesma peça, a ordem de suas partes principais, chegando ao

ponto de suprimir totalmente o refrão, como na versão de Berimbau no CD Baden, Márcia, Originais do Samba show/recital (faixa 5).2 No mesmo CD Ao vivo no Teatro Santa Rosa podemos destacar outros exemplos, como no Prelúdio em Ré menor de Bach (faixa 4) e Consolação

(faixa 6) em que os andamento são exageradamente acelerados.3 Lembremos que o movimento “ruidístico” da tropicália iniciaria na mesma época em que Egberto iniciava sua carreira.4 Fragmento disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=kpRwEulQ62E>. Acesso em: 20 dez. 2009.5 É possível ver essa declaração no trecho do vídeo já citado anteriormente. <http://www.youtube.com/watch?v=kpRwEulQ62E>

Jorge Luiz Schroeder é Bacharel em Composição (1987), Mestre em Educação (2000) e Doutor em Educação (2006) pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente atua como profissional de Pesquisa do Instituto de Artes da Unicamp. Coordena o grupo de pesquisa Música, Linguagem e Cultura (Musilinc) (www.cnpq.br). Atua como professor do Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes (Unicamp). Suas publicações principais são: Música e conhe-cimento. Revista Digital Art&, v.09, p.09, 2008. Música e Ciências Humanas. Pro-Posições (Unicamp), Campinas, v.15, n.1, p.209-216, 2004. Junto com Sílvia Nassif Schroeder; A construção do conhecimento em arte. In BITTENCOURT, Agueda (org). Estudo, pensamento e criação. Campinas: Gráfica da Faculdade de Educação, 2005, v.1, p.75-82; O dentro e o fora da música. Ensinarte: revista das artes em contexto educativo, Braga-Portugal, n.3, p.02-14, 2004.

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Recebido em: 06/12/2009 - Aprovado em: 20/02/2010

O estudo cultural da música popular brasileira: dois problemas e uma contribuição

Álvaro neder (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro/IFRJ, RJ)[email protected]

Resumo: No estágio em que se encontram os estudos de música popular no Brasil, é crucial discutir a definição de “música popular” e as abordagens teóricas usadas para fundamentar sua análise. Ambas as questões são tratadas aqui por meio de uma articulação crítica que envolve estruturas musicais, sociedade e cultura. Propõe-se, portanto, uma contribuição teórica aos estudos de música popular brasileira, e não uma análise do conteúdo de tais estudos. A partir de uma discussão das principais classes de definições de música popular empregadas usualmente, defende-se uma con-cepção dinâmica e relacional de música popular, inserida em sociedades contemporâneas complexas e contraditórias. Metodologicamente, discutem-se diferentes abordagens que vêm se propondo a estudar culturalmente as contribuições singulares da música popular, irredutíveis aos métodos analíticos desenvolvidos para as músicas erudita e tradicional. O ensaio conclui com a defesa de uma musicologia renovada pelas discussões travadas no âmbito dos estudos culturais, para uma adequada investigação da música popular em sua especificidade. Palavras-chave: música popular; estudos culturais; metodologia; definição; sociedade e cultura.

The cultural study of Brazilian popular music: two problems and a contribution

Abstract: At the current state of popular music studies in Brazil, it is crucial to discuss the definition of “popular music”, and the theoretical approaches employed to ground its analysis. Both issues are examined here through a criti-cal articulation involving musical structures, society and culture. Thus, what I propose is a theoretical contribution to Brazilian popular music studies, not an analysis of the content of such studies. Starting with a discussion of the prin-cipal classes of definitions of popular music usually employed, a defense is made of a dynamic, relational conception of popular music as currently practiced in complex, contemporary, contradictory societies. Methodologically, I discuss different approaches for the cultural study of the singular contributions of popular music, which are irreducible to the analytical methods developed for art and traditional music. The essay concludes with a defense of a musicology reno-vated by the debates held in cultural studies circles, for an adequate investigation of popular music in its specificity. Key Words: popular music; cultural studies; methodology; definition; culture and society.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010

IntroduçãoOs estudos acadêmicos e institucionais de música popular (a canção popular aí incluída com destaque), considerada em sua especificidade e complexidade, são recentes no mundo inteiro. O ano de 1981 poderia ser considerado um marco, em razão da ocorrência da primeira Conferência Internacional sobre Pesquisa em Música Popular, na Uni-versidade de Amsterdã (JOSEPHS, 1982). No Brasil, a can-ção popular, em seus aspectos culturais, passou a chamar a atenção de acadêmicos de diversos setores que não a música a partir dos anos 1960, com o advento da cha-mada MPB (ver, por exemplo, GALVÃO, 1968; SANTIAGO,

1977; SCHWARZ, 1970). No terreno da musicologia, no entanto, fora iniciativas isoladas, não houve um interesse definido pelo desenvolvimento de ferramentas metodoló-gicas que dessem conta da música popular enquanto tal, e que objetivassem relacionar suas estruturas musicais a questões sociais, históricas ou culturais.

Assim, no estágio em que se encontram os estudos de música popular no Brasil, torna-se crucial discutir a defi-nição de “música popular” e as abordagens teóricas usa-das para fundamentar sua análise. Propõe-se, portanto,

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uma contribuição teórica aos estudos de música popular brasileira, e não uma análise do conteúdo de tais estudos. Como em qualquer disciplina ou campo de conhecimen-tos, os dois problemas – definição e teoria – estão inter-ligados. Uma determinada concepção do objeto organiza um feixe de ferramentas teóricas especificamente apro-priadas para dar conta das características consideradas por esta concepção, ignorando outras que não se incluam aí. Os métodos analíticos – que não serão objeto deste ensaio – são, por sua vez, decorrentes das escolhas defi-nicionais e teóricas, sendo igualmente apropriados para certas características e inadequados para outras. Fica, assim, confirmada a necessidade de debater os dois pro-blemas mencionados antes de se começar a empreender a análise ou mesmo optar pelo método a ser empregado.

Neste sentido, por exemplo, entendendo-se “música po-pular” como aquela que vem “do povo” (categoria sempre inventada e frequentemente idealizada), critérios como “autenticidade” e “identidade nacional” ou “regional” são priorizados, e o que não se encaixa aí é desprezado. Ou seja, desconsidera-se a maior parte da produção das classes populares contemporâneas, e que desenvolve experiências sônicas não passíveis de apreensão segundo métodos ide-ados para músicas tradicionais. Além disso, essas músicas são especialmente importantes por expressar suas condições objetivas de existência ou o mundo em que desejariam viver.

Se, no entanto, entende-se que “música popular” – ou, pelo menos, a “boa música popular”, ou a única música popular que mereceria ser estudada – é uma elaboração erudita de materiais “populares”, deixa-se de lado o que pareceria ser “primitivo” ou “mal feito” segundo estes critérios eru-ditos – e vimos na frase anterior o que é desconsiderado. Na medida em que os musicólogos voltados ao repertório dito erudito entendem por “música popular” de interes-se apenas aquelas músicas que apresentam “sofisticada” organização – segundo os critérios eruditos, derivados de matrizes europeias –, estes musicólogos tendem a acredi-tar que os métodos desenvolvidos para a música erudita são pertinentes para a análise de toda a música popular.

Para referendar esta visão que reprime a especificidade do popular, invoca-se a noção, frequentemente mencio-nada, de que “a música popular não é uma área, é um objeto”. Os problemas decorrentes deste equívoco são inúmeros: a perda da especificidade da música popular e de suas contribuições (as experimentações sobre o tim-bre, a microtonalidade, as inflexões rítmicas mínimas, as métricas não-europeias, e diferentes modelos de escuta, por exemplo), a carência de ferramentas analíticas para lidar com esta especificidade, a aplicação forçada de pa-râmetros estéticos da música de concerto de origem eu-ropeia ao popular, e o recalcamento e desvalorização de um número enorme de gêneros, músicas e pessoas que resistem a este leito procustiano.

Portanto, na situação brasileira atual, é sensível a neces-sidade de estabelecer um entendimento sólido com rela-

ção a este duplo problema definicional-teórico. A falta deste entendimento prejudica a adequada compreensão do objeto e estimula o diletantismo, consequentemente impedindo o desenvolvimento e consolidação dos estudos de música popular como campo legítimo e autônomo de investigação, que necessita dedicação especial, especiali-zação e formação específicas.

Em suma, o termo “música popular” é vago o bastante para ser definido de maneira bastante discrepante, de-pendendo de quem o emprega. Isto tem levado pesqui-sadores a abandoná-lo quase por completo, adotando denominações individuais que terminam por aumentar a confusão, fragmentar ainda mais o campo e desunir os especialistas nesta área. Respondendo a este problema, a partir de uma compilação e discussão das principais classes de definições de música popular empregadas usu-almente, argumenta-se aqui que o termo música popular é contraditório justamente por evidenciar as contradições sociais a que está exposta a própria música popular. Se-ria impossível encontrar um termo livre de tais contra-dições, uma vez que tanto música como sociedade são atravessadas por elas. Por conseguinte, muito embora o termo “música popular” não carregue nenhum significado essencial que obrigue seu uso, é uma denominação útil justamente por designar um terreno de trocas, diálogos e embates pela significação.

A música popular se constrói e se define pela sua plurali-dade, justamente no contato e confronto com outras mú-sicas, por meio de seu uso por sujeitos concretos, por sua vez mediado por categorias históricas, sociais e culturais. Em consequência, a compreensão de seu significado de-verá, necessariamente, passar pela discussão de tais con-frontos, sujeitos e categorias. Como todos estes elementos estão sempre em movimento, dificilmente o termo “mú-sica popular” indicará um conjunto fechado de músicas e suas características, que seja válido em todo tempo e lugar. Portanto, não se pode definir música popular por meio das características idealizadas pelos românticos do século XVIII – origem rural, tradição oral, autoria coletiva, “espontanei-dade”, “autenticidade”, e assim por diante. Também não se pode fazê-lo atribuindo-se ao popular supostas qualida-des inerentes de “resistência”. Nem tampouco por meio de categorias como “manipulação”, “imposição” ou “colonia-lismo cultural”. O “popular”, segundo esta concepção, não é uma coisa, um produto, um artefato, mas um terreno onde múltiplos vetores de forças se encontram e colidem, transformando-se continuamente. Segundo Stuart Hall,

[a] cultura popular não é nem, em um sentido “puro”, as tradições populares de resistência . . . nem são as formas que são impostas sobre e a elas. É o terreno no qual as transformações são operadas. (HALL, 1981, p.228)

Assim, a busca da pureza de uma definição rigorosa equi-valeria igualmente à purificação da própria música, reti-rando-a do cenário histórico específico onde ocorrem sua elaboração e seus confrontos, sempre e a cada vez, o que resultaria em seu empobrecimento e reificação.

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O fato de que todos os sentidos são social e histo-ricamente marcados (o que uma pessoa defende ser popular pode ser contestado por outra pessoa ou outro tempo) ressalta a constatação de que o uso do termo “música popular” nunca será desinteressado, portanto “objetivo”. Este nome será usado de maneira diferente dependendo da pessoa que o proferiu, em cada mo-mento, em cada local; e seu caráter e características serão definidos e construídos com referência a seus outros in absentia, notadamente a música erudita e a música tradicional. Adota-se aqui, então, uma outra maneira de compreender a música popular em seu di-namismo: através de suas relações.

Uma definição altamente influente do termo “música po-pular” como música rural, e que perdura de certo modo até hoje, foi dada por Mário de Andrade. Estando muito bem informado sobre as técnicas e a história da música e da literatura eruditas, Mário interessou-se também, de maneira especial, pela música tradicional rural. Isto fica evidenciado na síntese de sua contribuição proposta pelo etnomusicólogo Gérard Béhague.

Seu ensaio sobre música brasileira (ANDRADE, s.d.) foi o primei-ro intento perceptivo de delinear e analisar os vários elementos sonoro-estruturais da música folclórica brasileira. Sua concep-ção de música era dinâmica, em oposição às visões prevalen-tes em sua época. Em seus estudos de música luso-brasileira, afro-brasileira e, em menor grau, música indígena brasileira, ele concebia a dinâmica musical como multidirecional. Seus estudos de danças dramáticas, que ele denominou bailados . . . e “música de feitiçaria” . . . permanecem sendo os mais estimulantes da literatura etnomusicológica brasileira porque, com seu estilo de prosa único, conseguiu combinar questões socioculturais e mu-sicais. Andrade considerou a base etnográfica e a justificativa de contextos de performance musical, o que o tornou um verdadeiro etnomusicólogo em conceito, senão em método, propriamente. (BÉHAGUE, 1993, p.483-484)

Não seria possível fazer, aqui, justiça ao inestimável le-gado do polígrafo. Busca-se, apenas, indicar um dos mais poderosos vetores que confluíram para a consolidação de um dos sentidos preferenciais da ideia de música popular. Com certeza uma tal concisão, em se tratando de figura de tão vasta, complexa e multifacetada obra, é problemá-tica – mas, aqui, inescapável.

Para Mário, como foi dito, o termo “música popular” se referia às músicas das comunidades rurais tradicionais, e ele o opunha à “música popularesca”, urbana e media-tizada, exatamente aquela que, hoje, é mais geralmente compreendida como “música popular”. A maneira pela qual Mário entendia a “música popular” (tradicional) es-tava imbricada em seu projeto político nacional e inter-nacional. Ela teria responsabilidades no processo que, em sua visão, levaria o país do atraso à equiparação com os países “desenvolvidos”. Esta preocupação com o campo folclórico – que detinha, em sua visão, a identidade nacional – foi mobilizada por força do ideal utópico de Mário: a condução progressiva do “povo brasileiro” de um estado de atraso tecnológico até a superação deste, e que seria presidida pela música

erudita (de origem europeia). Esta visão é claramente ex-pressa no famoso Ensaio.

Uma arte nacional já está feita na inconsciencia do povo. O artis-ta tem só que dar pros elementos já existentes uma transposição erudita que faça da música popular, música artistica, isto é: ime-diatamente desinteressada. (ANDRADE, s.d., p.16)

Assim, a música folclórica é guindada à condição de de-tentora da essência nacional. No outro pólo da dicoto-mia, a música “popularesca” (como ele se referia à música popular-comercial, como vimos), eivada de internaciona-lismos, não conduziria à efetivação de sua utopia, seu projeto teleológico de superação do atraso tecnológico brasileiro rumo ao progresso, mas sem perda da “essência”. Só o que poderia realizar esta condução adequadamen-te, da “música interessada” dos festejos, rituais religiosos e cantos de trabalho para a “música desinteressada” do puro deleite estético seria a música erudita.

Temos assim, em Mário, uma clara hierarquia: a “músi-ca popular” (tradicional) detém o “caráter nacional”, mas é, em si, insuficiente; é preciso conclamar as normas do mundo desenvolvido – a música erudita – para poder fazer dela música “artística”. Já a música “popularesca” seria de escasso interesse, se algum. Vemos aí uma de-finição, como foi dito, altamente influente e duradoura de música “popularesca”, que é – continua sendo – um real obstáculo para o desenvolvimento da musicologia da música popular no Brasil. As críticas, ubíquas ainda hoje, contra as supostas “dominação cultural” estadunidense e “manipulação” da indústria cultural são, em grande parte, devedoras daquela definição (sendo que a noção de “ma-nipulação” recebe, também, reforço considerável por par-te do pensamento adorniano). Ambas as críticas são, já há vários anos, problematizadas pelos popular music studies por meio de aprofundadas reflexões teóricas e empíricas (algumas das quais a ser mencionadas no decorrer deste ensaio), razão pela qual tais discussões não podem pres-cindir deste aporte.

Como foi dito, a concisão inescapável desta referência a Mário impede que se investigue a complexidade de seu pensamento com relação à música popular. Pode-se, con-tudo, indicar esta complexidade por meio de alguns frag-mentos, como o seguinte, em que Mário declara que se podem encontrar núcleos de música popular mesmo nas maiores cidades do país.

Nas regiões mais ricas do Brasil, qualquer cidadinha do fundo ser-tão possui água encanada, esgotos, luz elétrica e rádio. Mas por outro lado, nas maiores cidades do país, no Rio de Janeiro, no Recife, em Belém, apesar de todo o progresso, internacionalismo e cultura, encontram-se núcleos legítimos de música popular em que a influência deletéria do urbanismo não penetra. A mais im-portante das razões dêsse fenômeno está na interpenetração do rural e do urbano. . . . [Quase] todas as cidades brasileiras estão em contato direto e imediato com a zona rural. . . . Por tudo isso, não se deverá desprezar a documentação urbana. Manifestações há, e muito características, de música popular brasileira, que são especificamente urbanas, como o Chôro e a Modinha. Será preciso apenas ao estudioso discernir no folclore urbano, o que é virtualmente autóctone, o que é tradicionalmente nacional, o

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que é essencialmente popular, enfim, do que é popularesco, feito à feição do popular, ou influenciado pelas modas internacionais. (ANDRADE, s.d., p.166-167)

Esta mesma linha é seguida em Música, Doce Música, quando Mário explica que

[o] verdadeiro samba que desce dos morros cariocas, como o ver-dadeiro maracatu que ainda se conserva em certas nações do Re-cife, esses, mesmo quando não sejam propriamente lindíssimos, guardam sempre, a meu ver, um valor folclórico incontestável. Mesmo quando não sejam tradicionais e apesar de serem urbanos. (ANDRADE, 1976, p.280)

No Macunaíma, Mário faz seu herói procurar, sem pre-conceitos, o terreiro de Tia Ciata – em cuja casa teria nascido, segundo consta, aquele que é considerado o primeiro samba urbano carioca gravado, Pelo telefone. Sem ser, de fato, merecedor desse pioneirismo, Pelo te-lefone foi, entretanto, fundamental do ponto de vista das transformações que operou no mercado (CABRAL, 1996, p.32-33). Além disso, os frequentadores assídu-os da casa de Tia Ciata incluíam virtualmente todos os sambistas cariocas dessa época comprometidos com o mercado de massas. No Macunaíma há ainda referên-cia a Pixinguinha, artista da maior importância para o mercado discográfico e a nascente cultura de massas no Brasil (MUSEU DA IMAGEM E DO SOM, 1970). Sabe-se também que Pixinguinha foi parceiro, colaborador, co-lega e/ou amigo de boa parte dos sambistas cariocas daquele tempo, também intimamente envolvidos com os mass media, como Donga, João da Baiana e muitos outros. Finalmente, há o trecho final de “Macumba”, em Macunaíma, que reunia no terreiro de Tia Ciata “ad-vogados taifeiros curandeiros poetas o herói, gatunos, portugas, senadores” (ANDRADE, 1978, p.56) – ou seja, uma alegoria da sociedade brasileira como um todo. Aqui o narrador faz uma defesa do samba urbano.

E para acabar todos fizeram a festa juntos comendo bom presun-to e dançando um samba de arromba em que todas essas gentes se alegraram com muitas pândegas liberdosas. (ANDRADE, 1978, p.63, grifo meu)

Apesar dessas e de outras evidências, no entanto, nem sempre a dialética do pensamento andradiano foi consi-derada por seus seguidores, resultando em uma visão da “música popularesca”, no mínimo, pouco favorável. Esta parece ser, talvez, uma das importantes razões para o desprestígio da música popular (tal como a entendemos hoje, com todas as suas contradições – não apenas a mú-sica “sofisticada” como a de um Tom Jobim, mas também a música “brega” como a de um Lindomar Castilho, além de muitas outras) no espaço institucional acadêmico bra-sileiro da música. Esta preocupação é explicitada pelo musicólogo Sean Stroud, indicando, no estranhamento de seu olhar estrangeiro, a visível contradição entre a so-ciedade e a academia neste país.

. . . [É] realmente paradoxal que, em uma nação que parece tanto valorizar a música popular, não haja departamentos dedicados a estudos de música popular em universidades brasileiras (os poucos acadêmicos brasileiros que trabalham no campo estão, em geral,

baseados em departamentos de História, Literatura ou Política), e virtualmente não haja revistas científicas brasileiras especializa-das em estudos de música popular. (STROUD, 2008, p.186)

Corroborando o que diz Stroud, em outros campos aca-dêmicos que não o da música, a música popular brasilei-ra goza de apreciável prestígio, não sendo incomum que destacados profissionais desses outros campos tenham produzido importantes contribuições para a área em questão. Podem-se citar historiadores (CONTIER,1985, 1986, 1991 e 1998; NAPOLITANO, 1999, 2001, 2003), crí-ticos literários (BRITO, 1972; CAMPOS, 1993; FAVARETTO, 1979; GALVÃO, 1968; MATOS, 1982; PERRONE, 1988; SANT’ANNA, 1986; SANTIAGO, 1977, 2000; SCHWARZ, 1970; VASCONCELLOS, 1977; WISNIK, s.d., 1982, 2004), sociólogos (NAVES, 1998); linguistas (TATIT, 1986, 1994, 1996, 1997, 2001); antropólogos (VIANNA, 1988, 1995); e semioticistas (SANTAELLA, 1984), entre outros.

Além disso, o trabalho desses pesquisadores tem a vir-tude de articular a música a contextos sociais, culturais e históricos, produzindo interessantes comentários so-bre diversos aspectos da sociedade e cultura brasilei-ras obtidos ao se fazer falar a música. Ao contrário, as discussões sobre música popular no âmbito dos cursos universitários de música estão voltadas, prioritariamen-te, à técnica musical, e nisto parecem não se diferenciar do que ocorre no restante do mundo ocidental1. Nestes cursos busca-se, preferencialmente, analisar a música popular com vistas ao domínio técnico dos recursos, sejam de execução vocal ou instrumental, sejam de composição, harmonização, improvisação ou arranjo. É incipiente ainda – com exceções dignas de menção (ver, por exemplo, ARAÚJO, 1987, 1992, 1999, 2000; CARVA-LHO, 1991) – a produção musicológica que visa articular elementos propriamente musicais a questões culturais e sociais da música popular, preferencialmente de manei-ra crítica e problematizadora.

Mais uma vez, isso é decorrência de escolhas teórico-metodológicas que são, por sua vez, decorrências de definições: se entendermos música popular como puro fato musical, deixamos de vê-la como possibilidade de iluminar aspectos da vida social e cultural mais ampla, de acordo, por exemplo, com conceitos como o de “fato social total” e de “jogo absorvente”.2

Sem pretender questionar a validade de análises da músi-ca popular voltadas exclusivamente à pedagogia técnica, nos cursos universitários de música, argumenta-se aqui em favor de uma adição, um alargamento dos interesses musicológicos institucionais com relação a essa música. Esta ampliação da abrangência do enfoque investigativo musicológico nos cursos universitários brasileiros, neces-sariamente inter- ou transdisciplinar, procuraria compre-ender os elementos musicais singulares da música popular e correlacioná-los a questões culturais, sociais e históricas mais amplas. A musicologia institucionalizada ocuparia, assim, um espaço que é seu, um espaço que não foi coberto consistentemente pelos acadêmicos de outras disciplinas

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devido à complexidade e especificidade de manipulação do instrumental musicológico. Além disso, a formação de quadros competentes nesta área apenas poderia se dar no âmbito do ensino universitário e de pós-graduação, com sua demanda de rigor e integração multidisciplinar.

É sempre bom lembrar, também, que o estudo cultural da música popular é eminentemente crítico, e, embora a contri-buição que possa fornecer à compreensão da música, socie-dade e cultura brasileiras seja potencialmente inestimável, dificilmente poderá ser implementado se deixado na depen-dência do mercado e do leitor leigo. Os títulos não acadê-micos sobre música popular atestam uma preferência por abordagens meramente descritivas, factuais, jornalísticas, raramente analíticas e interpretativas. Isso é corroborado pela etnomusicóloga Suzel Ann Reilly a propósito de uma das séries editoriais mais ambiciosas dedicadas à música po-pular, Ouvido Musical/Todos os Cantos (Editora 34).

Se bem que em seu conjunto estas publicações sejam muito deta-lhadas, a maioria dos autores da série são jornalistas e seus inte-resses giram mais em torno da documentação meticulosa do que em redor do debate teórico. (REILLY, 2003, p.20)

2. Definições: delimitando um campo de estudosSegundo BIRRER (1983, p.104), há quatro tipos de defini-ções para música popular, e que podem ocorrer de manei-ra pura ou combinada:

1. Definições normativas: Presume-se, de maneira apriorística, que a música popular seja uma expressão cultural inferior; 2. Definições negativas: Música popular é a música que não é de outro tipo (geralmente música “erudita” ou “fol-clórica”); 3. Definições sociológicas: Música popular é aquela as-sociada com (produzida por ou para) um grupo ou classe social particular;4. Definições tecnológico-econômicas: Música popular é aquela disseminada por meios de comunicação de massa e/ou em um mercado massificado.3

Marcadamente ideológicas e essencialistas, nenhuma des-sas definições poderia comunicar rigorosamente o sentido do termo “música popular”. É visível a arbitrariedade da primeira. Quanto à segunda, embora se possa concordar que a música popular não seja o mesmo que música eru-dita ou folclórica, suas margens são fluidas, pois as três músicas partilham seus elementos entre si. Para MIDDLE-TON (1997, p.4), há também arbitrariedade na definição da natureza de cada tipo de música: em geral, parte-se do princípio de que a música erudita seja exigente, comple-xa, difícil. Por oposição, a música popular seria entendida como “acessível”, “simples”, “fácil”. No entanto, muitas peças comumente compreendidas como eruditas (o coro “Aleluia” de Handel, muitas canções de Schubert, mui-tas árias de Verdi) possuem qualidades de simplicidade. Da mesma maneira, não parece que as gravações dos Sex

Pistols sejam “acessíveis”, que a obra de Frank Zappa seja “simples” ou que a de Billie Holiday seja “fácil”.

A terceira definição é uma crença derivada do conceito marxista de determinação da superestrutura pela infra-estrutura, conceito superado entre os marxistas de linha gramsciana, entre outros (para eles, haveria uma relativa autonomia da cultura com relação à economia. Esta de-finição falharia por que o campo musical não poderia ser reduzido à estrutura de classes, ou seja, os tipos de músi-cas e as práticas musicais nunca são propriedade privada de um contexto social particular. A mobilidade social e a fluidez interclasses, além do caráter cada vez mais indi-ferenciado da difusão midiática e dos mercados culturais, tornariam isso óbvio hoje. No entanto, mesmo no século 19 as músicas burguesas eram apreciadas por trabalha-dores, a música erudita sendo executada por bandas e em desfiles. Ao mesmo tempo, a chamada “música folclórica” era objeto de disputa entre “camponeses”, operários da indústria, escritores e artesões da pequena burguesia e colecionadores das classes altas (MIDDLETON, 1997, p.4). Para ser válida, a quarta definição haveria que compro-var: 1) que os modos de difusão em massa (inicialmente impressos, a seguir eletromecânicos e eletrônicos) teriam afetado apenas a música popular, tornando-a mercadoria, o que não se verifica (hoje as gravações de música erudita e tradicional são vendidas em bancas de jornal e disse-minadas pelo rádio e outros media, tornando a definição ineficaz); e 2) que a música popular estaria excluída da disseminação por métodos face a face (por exemplo, con-certos, música de “barzinho”) e estaria indissoluvelmente agrilhoada à sua condição de mercadoria, impossibilitada de propagar-se gratuitamente e de ser fruto de produção coletiva. Ao contrário, a música popular circula maciça-mente em ambientes que celebram exclusivamente seu valor de uso (em detrimento de seu valor de troca): gru-pos de amadores, festas particulares e cultos religiosos podem ser citados, entre muitos outros.

Middleton comenta também algumas das combinações destas definições, encontradas tanto no senso comum como em abordagens acadêmicas. Não seria ocioso res-saltar, mais uma vez, a inter-relação entre definição, teo-ria e método, evidente no exame destas sínteses.

A primeira seria a positivista, que se concentra no aspec-to quantitativo do “popular”. Como ilustração deste enfo-que, Middleton oferece o exemplo do musicólogo Char-les Hamm, que propõe “a lidar com as peças que sejam demonstravelmente os itens mais populares da ‘música popular’, com os itens mais largamente disseminados da música disseminada nos mass media” (HAMM apud MI-DDLETON, 1997, p.5). A síntese positivista, portanto, de-rivaria da categoria 4, mas também, em alguma medida, das categorias 2 e 3.

A segunda síntese é denominada por Middleton de es-sencialismo sociológico. Aqui, a “essência” do popular

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é tida como constante; no entanto, há marcada varia-ção, de acordo com a ideologia do observador: ou esta “essência” é proferida de cima ou engendrada de baixo. Ou “o povo” é considerado um ingênuo manipulado, ou um sujeito histórico progressista e ativo (ver TINHORÃO, 1972, 1974, 1999). Esta síntese derivaria da categoria 3 mas também, de certa maneira, das categorias 1 e 4 (MIDDLETON, 1997, p.5).

A “objetividade” prometida pelo enfoque positivista cedo se revela uma ilusão, evidenciando que esta abordagem não é menos livre da ideologia que qualquer outra. Vol-tando-se à mensuração do mercado, deixa escapar tudo o que não se conforma a estes parâmetros e práticas – ignorando a extremamente intensa atividade musical que transita por outros circuitos. Citado por Middleton, o et-nomusicólogo Charles Keil explicita estas outras práticas silenciadas pelo método positivista na resenha em que critica o livro de Hamm, descrevendo-o como

. . . um reportar contínuo de nomes, datas, títulos de canções, exemplos musicais de uma procissão de canções em forma merca-doria que começaram . . . em 1789. O autor exclui excessivas ten-sões dialéticas do livro desde o início: nenhuma música de igreja será considerada; também não é permitida nenhuma preocupação com aqueles estadunidenses que não podiam adquirir partituras e um piano; e não há lugar para música primariamente instrumental como marchas, ragtime, jazz ou polca até 1950. Deixar de fora cristãos estadunidenses brancos e negros é deixar muita coisa de fora. Deixar de fora pessoas pobres e operários não parece correto. (KEIL apud MIDDLETON, 1997, p.5)

Mesmo tomando a abordagem positivista em seus pró-prios termos de referência, não se encontra consistência. A confiabilidade de números de vendagem de CDs e esta-tísticas de execução em rádio é notoriamente suspeita. A metodologia de contagem não é divulgada pela indústria e os números estão sujeitos a manipulação. A execução nas rádios e TVs é, muitas vezes, dependente do pagamen-to de verbas extras às emissoras e/ou a seus funcionários ou agenciadores pelas gravadoras (o chamado jabá; nos EUA, payola; ver, por exemplo, SILVA, 2007, que analisa a chamada Lei Anti-Jabá, e, nos EUA, COASE, 1979).

Além disso, pouca atenção é dada ao comportamento de setores específicos que podem contradizer o que ocor-re nos segmentos mais massificados. Um exemplo deste caso foi a situação estudada pelo antropólogo Herma-no VIANNA (1983) no universo do funk carioca. Segundo Vianna, este gênero se desenvolveu a partir da iniciativa de equipes de som que promoviam bailes de subúrbio no Rio de Janeiro utilizando discos comprados pessoalmen-te, de um em um, nos EUA, e mantidos em segredo dos concorrentes. Logo, trata-se de um fato social e cultural da maior importância que, no entanto, seria insignifican-te, naquele momento, do ponto de vista mercadológico. Misturadas às avassaladoras figuras do mercado mais co-mercial, experiências interessantes como essa, em merca-dos segmentados, se diluem e se perdem.

Middleton lembra também a tendência de se privilegiar a categoria do “jovem” no âmbito da metodologia po-

sitivista. Isto seria problemático porque os jovens des-pendem uma quantidade desproporcionalmente grande de sua receita em mercadorias para o lazer, como CDs. Isso levaria a negligenciar grupos de faixas etárias mais avançadas que podem usar músicas diferentes, e de maneiras diferentes. O musicólogo aponta ainda como falhas dessa síntese: o foco no “momento de troca”, em oposição ao “momento de uso” (por exemplo, dissemi-nação através da audição ao rádio, música de fundo, performance ao vivo e circulação gratuita entre ami-gos de gravações feitas em casa); similarmente, práti-cas musicais não centradas na forma mercadoria são ignoradas; e a tendência a padronizar diferentes escalas temporais (um álbum pode vender um milhão de cópias em uma semana, mas outro pode fazer o mesmo no de-correr de alguns anos). A consequência é a reificação da música popular. Canções são tratadas meramente como objetos, e seu papel na cultura é negligenciado. A defi-nição positivista não poderia, então, informar o sentido do termo “música popular”, pois tal sentido, repleto por múltiplas camadas de ideologia, não é o foco da inves-tigação, que são os dados em si próprios.

Por sua vez, os métodos e definições essencialistas parti-riam de premissas qualitativas, não quantitativas. A es-sência seria formulada pela elite (“de cima”) e transmiti-da para as classes populares (“para baixo”) ou o inverso. O primeiro caso empregaria conceitos como “manipulação” e “padronização”, e o popular seria aproximadamente equivalente a “massificado” ou “comercial”. Já no segun-do caso, os conceitos operativos seriam “autenticidade” e “espontaneidade”, e “popular” significaria “do povo”.

Em ambas as situações, a riqueza potencialmente ofe-recida pelo exame da cada caso específico é perdida em função de esquemas generalizantes e apriorísticos. Os exames de casos específicos evidenciam que não existe esta abstração de um “popular” em estado puro – que música folclórica brasileira, com exceção da música in-dígena tradicional, se assim considerada, poderia se dizer totalmente independente da música europeia introduzi-da por portugueses e outros? Evidenciam também que a presença de elementos da “alta cultura” ou de culturas estrangeiras nas culturas populares dificilmente se colo-ca em termos de “manipulação” ou “massificação”, sendo mais adequadamente investigada como produto de apro-priação ativa, transformação e incorporação por parte das classes populares de algo que passa a lhe pertencer de fato e direito – a exemplo da harmonia no samba, no cururu, na moda de viola e em muitas outras músicas tradicionais. É um processo eminentemente contraditó-rio, em que todas as faixas de cultura (inclusive as várias culturas populares) se reorganizam continuamente, esta-belecendo relações de poder entre si.

Neste sentido é fundamental e suficiente consultar o que escreveram os mais destacados pesquisadores da cultura popular na Idade Média, Renascimento e Idade Moderna (ver, por exemplo, BAKHTIN, 1993 e BURKE, 1989). A cultu-

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ra popular (desde pelo menos estes períodos), além de defi-nir-se pela heterogeneidade, se caracterizou pela mistura e permeabilidade com relação ao que seria hoje denominado “estrangeiro” ou “das classes dominantes”, com o fluxo de informações seguindo nos dois sentidos. É nesta direção que Middleton conclui sua crítica aos esquemas essencia-listas que vão “de cima para baixo” e “de baixo para cima”.

Em ambos os casos, o problema é que processos culturais con-cretos, localizados historicamente de maneira específica, são reduzidos a esquemas abstratos. Ignoram-se contradições no in-terior do processo produtivo. Os consumidores são vistos como receptores passivos, pelos teóricos da cultura de massas, ou como uma classe inerentemente oposicional, por ultra-esquerdistas em busca de um puro proletarianismo. Mas, na prática, nem a música popular, de qualquer modo que seja compreendida, nem seus Ou-tros – “canção folclórica”, “música tradicional”, “música erudita”, “música burguesa”, ou o que quer que seja – caminham no palco histórico nesta forma não-contaminada. (MIDDLETON, 1997, p.6)

O que isso importa, em termos de premissa, definição, teoria e metodologia de estudo da música popular, é, de acordo com MIDDLETON (1997, p.6), que a “música popu-lar” (ou o nome que se desejar) apenas pode ser pensada no contexto da totalidade do campo musical (estenden-do-se para o passado, em diálogo com a “música erudita” e com a “música folclórica”, e também para o futuro), e este campo nunca permanece estático, está sempre em movimento. Se os sentidos do termo “música popular” se constroem continuamente em relação com seus outros musicais, de acordo com cada sociedade em questão, o termo é situado socialmente. Mas como os sentidos se modificam numa mesma sociedade, em diferentes perío-dos históricos, o termo é também situado historicamente.

3. Teoria e metodologia: lidando com a singularidade da música popularMuito do estudo musicológico da música popular no mundo anglo-saxônico, em seus primórdios, buscou seus métodos na musicologia tradicional. Musicólogos erudi-tos provavelmente sentir-se-ão à vontade com a leitura de trechos como o seguinte, escrito por William Mann na aurora do fenômeno representado pelos Beatles.

. . . [A] canção lenta e triste sobre This Boy, que figura proeminen-temente nas apresentações dos Beatles, é expressivamente inco-mum por sua música lúgubre, mas harmonicamente é uma de suas mais intrigantes, com suas cadeias de clusteres pandiatônicos, e o sentimento é aceitável porque vocalizado de maneira clara e bem definida. Mas o interesse harmônico é típico de suas canções mais rápidas, também, e fica-se com a impressão de que eles pen-sam simultaneamente a harmonia e a melodia, tão firmemente são construídos em suas canções os acordes maiores de tônica com sétimas e nonas, e as inclinações para o tom da submediante bemol, tão natural é a cadência eólia ao final de Not A Second Time (a progressão de acordes que finaliza a Canção da Terra, de Mahler). . . . Pode também ser significativo que a canção de George Harrison Don’t Bother Me seja um bocado mais primitiva, harmo-nicamente . . . (MANN, 1963, não paginado)

Os problemas da aplicação dos métodos de análise estru-tural desenvolvidos para a música erudita, contudo, logo se fizeram notar, e foram discutidos por vários musicó-logos especializados em música popular (ver, por exem-

plo, TAGG, 1982; SHEPHERD, 1982; MIDDLETON, 1997 e 2000; MCCLARY e WALSER, 1990).

Entre estes problemas, pode-se mencionar o jargão téc-nico inapropriado ou ideológico. A referência, na citação acima, a “clusteres pandiatônicos”, associa a música dos Beatles à de Stravinsky, mas não se verifica, na verdade, uma identidade de propósito, natureza ou função da téc-nica em uma e outra música. A qualificação de “primitiva” é ideológica por assumir que a música popular seja regida pelos critérios de inovação e complexidade harmônica da música erudita, quando seus critérios são outros.

Uma dificuldade específica da musicologia tradicional para lidar com a música popular diz respeito à valoriza-ção desigual de elementos básicos, decorrente do desen-volvimento histórico contrastante entre música popular e erudita. A música popular favoreceu historicamente o aspecto corporal (a dança, o movimento físico) e social (a experiência coletiva, a conexão da música ao aqui e agora dos acontecimentos e práticas sociais, como o trabalho e as críticas a ele, o ritual religioso e a festa). Ao contrário, a música erudita (na tradição que remonta ao domínio da Igreja, no período medieval) tomou para seu modelo os trabalhos de Pitágoras e Boécio, privilegiando o acesso à música através da contemplação de relações numéricas, com a abstração dos contextos corporal e sócio-histórico.

Mais tarde, com a ascensão da burguesia no século XIX, de sua ideologia da satisfação postergada e do controle dos apelos corporais em nome da racionalidade, sendo informada pelo idealismo alemão, surge a musicologia como disciplina orientada para uma música transcen-dente e autônoma, “desinteressada” como havia proposto KANT (2000). Seu valor não seria o de meramente propor-cionar prazer corporal ou interação social, mas acesso à verdade por meio de sua sofisticação cognitiva. Pode-se tomar como comprovação desta afirmação um dos im-portantes formuladores da estética musical erudita no século XIX, Eduard Hanslick.

Para Hanslick, o conteúdo da música não deveria ser bus-cado na emoção (ele ataca especificamente a chamada “estética da emoção”, então em voga), mas na própria forma, concebida como espírito e essência.

A partir disso, a preeminência que o conteúdo ideal assume em música com respeito às categorias de forma e conteúdo se tor-na aparente. Evidentemente, as pessoas costumavam considerar que um sentimento a flutuar através de uma peça musical era o sujeito, a Ideia, o conteúdo intelectual, e, por outro lado, as sequências tonais bem definidas e artisticamente criadas eram consideradas a mera forma, a imagem, a vestimenta sensual da concepção supersensual. Entretanto, a parte “especificamente musical” é precisamente a criação do espírito artístico, com o qual o espírito contemplativo se une em completo entendimento. O conteúdo ideal da composição está nestas estruturas tonais con-cretas, não na vaga impressão geral de um sentimento abstrato. A forma (como estrutura tonal), em oposição ao sentimento (como suposto conteúdo), é precisamente o conteúdo real da música, é a música em si, enquanto o sentimento produzido não pode ser nem conteúdo nem forma, mas efeito real. Da mesma maneira, o suposto material, aquilo-que-representa, é precisamente o que é

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estruturado pela mente, enquanto o que é supostamente aquilo-que-é-representado, ou seja, a impressão do sentimento, é ineren-te ao substrato físico dos sons e em grande parte conformado a leis fisiológicas. (HANSLICK, 1986, p.60)

Esta longa citação é extremamente importante por con-densar algumas premissas cruciais da musicologia erudita tradicional, que entram em conflito inconciliável com a análise da música popular.

Primeiramente, se o conteúdo da música não está na emoção, por implicação não se encontra também nos âmbitos corporal e social4. Como se viu, para Hanslick, o conteúdo da música estaria na própria forma, concebida como espírito e essência. Esta compreensão é reforçada por DAHLHAUS (1995, p.52), para quem Hanslick entende que “forma” é um análogo da “ideia musical”, “um conceito puramente e completamente presente em sua realidade”. Como consequências imediatas da priorização da noção de forma, a musicologia possui alto refinamento para lidar com a própria forma, além de alturas e harmonias, pouco refinamento para lidar com ritmos e é pouco eficiente para lidar com timbres. Em contraste, a música popular coloca ênfase no som concreto (timbre, tratamento eletroacústi-co, processamento tecnológico do som, ornamentação), no ritmo e em variações microtonais, não devotando especial interesse a arquiteturas sofisticadas da forma.

Em segundo lugar, explicita-se na citação acima, de Hans-lick, uma estética abstracionista, o que vai de encontro à fruição popular. Esta busca nos sons características que ex-pressem seus estados emocionais, e que simultaneamente sejam coadjuvantes na expressão corporal destes estados, tudo isso variando segundo os diferentes contextos so-ciais. Se a escuta ideal da música erudita é distanciada, corporalmente inerte, imersa no silêncio e contemplação da sala de concerto ou do lar burguês, a música popular é ouvida em uma multiplicidade de situações, indicando diferentes modelos de escuta. Estas situações podem in-cluir uma festa em que se dança, se come e se conversa, um jogo de futebol em que uma batucada contribui para a empolgação, uma situação em que a introversão se mistura ao desempenho de funções no mundo exterior tal como possibilitadas pelo walkman dos anos 80 e, modernamente, pelo Ipod/MP3, e muitas outras.

Cada um destes contextos de escuta propicia diferentes sentidos para a mesma música. A mesma bateria de esco-la de samba produzirá diferentes associações, represen-tações, sentimentos e ações se ouvida durante a compe-tição anual no Sambódromo do Rio de Janeiro, num jogo de futebol, no bar da quadra da escola durante um ensaio, ou, gravada, no rádio do carro em meio ao trânsito, em casa ou numa festa com amigos.

Esta importância da multiplicidade de contextos de es-cuta para a música popular, bem como a aceitação im-plícita da multiplicidade de sentidos e emoções que se constroem a partir das diversas experiências corporais e de interações com outros sujeitos permitidas por estes

contextos, contrastam com a visão expressa acima por Hanslick. Em especial quando este busca reduzir o sentido a efeitos da estutura musical ou a leis fisiológicas.

Como consequência da preocupação primordial com a for-ma e a estrutura, surge, na musicologia tradicional, uma ênfase na partitura que foi denominada por Philip Tagg de “notaciocentrismo” (notational centricity, TAGG, 1979, p.28-32). A tradição da notação musical na sociedade oci-dental surgiu em conexão com as funções litúrgicas da música nos primórdios da igreja cristã. Tal como a palavra de Deus, a música dedicada a seu serviço deveria igual-mente ser imutável. Para isso foi desenvolvido um siste-ma de armazenamento que fosse confiável, em oposição às vicissitudes da tradição oral. Mesmo considerando os diferentes graus de observação da partitura de música eru-dita (mais literal ou menos), dependendo do período his-tórico, é forçoso concordar que este foi o único meio de armazenamento dessa música por mais de um milênio. Já a música popular não foi concebida nem para ser armaze-nada, nem para ser comercializada sob esta forma (tanto a representação de música popular por meio de notação gráfica quanto a comercialização de partituras são pou-co representativas quando comparadas à representação e comercialização na forma de áudio em diversos suportes).

Com isso surge o problema de que muitos parâmetros expressivos importantes na música popular não podem ser representados adequadamente usando partituras. Como descrever aí múltiplas e dinâmicas regulagens de captação de som (tipos de microfones, tipos de posi-cionamento deles, tipos de superfícies refletoras ou ab-sorventes, etc.), processamento de som (reverb, flanger, phaser, equalização, etc.), timbres (de sintetizadores, de samplers, de guitarras e outros instrumentos eletroa-cústicos, de amplificadores, etc.)?

Evidentemente, esta centralidade da partitura na cultura erudita evidencia a premissa de que há uma hierarquia entre a obra, tida como essencial e detentora de valor de culto, e a performance, colocada no plano das meras apa-rências (remetendo à metafísica). Ao contrário, a música popular relativiza o papel fundacional do compositor e da obra ao permitir modificações radicais desta (harmo-nia, melodia, ritmo, gênero, letra) em cada situação de performance. Relacionada à questão do contexto aludida acima, uma performance popular estará, em grande parte das vezes, fincada em seu momento, seu tempo e espaço, incorporando novos detalhes especificamente musicais e/ou modificando a letra para comentar fatos da atualidade.

Como decorrência do notaciocentrismo, a escuta é mo-nológica. A análise musical, tal como efetuada tradicio-nalmente na música erudita, se prende à partitura e não à performance, como foi dito. Portanto, exclui de seus interesses a maneira como a obra é efetivamente expe-rimentada pelos diversos ouvintes, em suas diferentes versões e contextos, e favorece a noção de “arte” em oposição à de “prática”.

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A leitura de uma partitura musical por um musicólogo envolve muitos anos de treinamento, e este tradicional-mente coloca grande ênfase na percepção da harmonia funcional. Logo, é lícito supor que, para a maior parte dos musicólogos formados desta maneira, é extremamente difícil ouvir música sem fazer o baixo assumir um papel central na condução da harmonia, e sem um padrão de expectativa harmônica tonal-funcional. Ambos podem ser fundamentais para muita da música erudita conside-rada mais importante, mas o mesmo não ocorre necessa-riamente na música popular, especialmente em músicas como dance, trance, house, soul, funk ou mesmo o rock. A respeito desse último, o musicólogo Alf Björnberg de-clara: “Em geral, pode-se argumentar que a harmonia é um parâmetro menos importante da expressão musical no rock do que, por exemplo, ritmo, melodia e timbre” (BJÖRNBERG, 1985, não paginado). Susan McClary vai ainda mais longe, ao criticar a cadência como represen-tação do poder patriarcal, valorizando, ao contrário, mú-sicas que a evitam e produzem uma estrutura harmônica simples ou mesmo inexistente (MCCLARY, [1991] 2002).

Na discussão dos problemas da análise da música po-pular, salienta-se a questão da pertinência. Por meio do conceito de pertinência, ao invés de reificar “a música” e dela abstrair critérios ideais de análise e valoração, o analista vê-se obrigado a especificar de que música está falando, e sob que ponto de vista. Afinal, cada música que seja significante para uma dada comunidade o é segundo os critérios específicos desta comunidade.

Com relação ao ponto de vista, como vimos, a aplicação da musicologia tradicional à música popular tem se concen-trado nos interesses de produção (ou seja, de compositores, intérpretes, arranjadores, etc.). Diferentemente, no âmbito dos estudos de música popular, a ênfase está na crítica cul-tural, e então o foco se desloca para o ouvinte. No entan-to, esta oposição produtor versus ouvinte não é dicotômica mas dialética, visto que os papéis dos ouvintes, executantes e mediadores muitas vezes se superpõem. As tecnologias atuais contribuíram muito para isso, ao possibilitar que o leigo produza suas próprias versões – remixes – de músicas lançadas comercialmente, através do uso de diferentes tipos de software amigáveis. Estas músicas são amplamente dis-seminadas pela internet, abolindo a figura do intermediário e as determinações econômicas impostas por este.

Abordando as diferenças entre música erudita e popular, o etnomusicólogo Charles KEIL (1966) produziu uma di-ferenciação influente que pode ser entendida como re-lacionada ao que está se denominando aqui pertinência. Discutindo o conceito de “sentido incorporado” (embodied meaning), de Leonard MEYER (1956), Keil propôs a noção de “sentimento engendrado” (engendered feeling). Segun-do Meyer, os ouvintes criam o sentido de um fluxo sonoro relacionando um som a outro, construindo sequências que comunicam uma sensação de tensões e relaxamentos que estariam “incorporados” nessas sequências. Este aspecto “narrativo” está intimamente associado à música erudi-

ta ocidental e à maneira predominante de ouvi-la, sendo adequadamente representado pela notação convencional. Já a ideia de “sentimento engendrado”, de Keil, refere-se ao impulso que faz a música tornar-se viva, levando o ou-vinte ao movimento, e que não pode ser captado por uma notação. Para Keil, não se trata de processos sintáticos, mas do uso, por parte dos músicos, de microvariações rít-micas em nível subsintático.

Esta distinção em termos de pertinência seria confirmada, mais tarde, como extremamente relevante para a história da constituição dos estudos de música popular. Recolo-cando a questão em outra formulação influente, Andrew CHESTER (1970, p.75-82) propôs diferenciar a forma de construção da música erudita como extensional. Isto é, como desenvolvimento sincrônico e diacrônico através da combinação de partículas musicais básicas rumo a uma complexidade crescente nos dois sentidos. Diferen-temente, a construção da música popular seria intensio-nal (termo em inglês relativo a intensividade, criado por Chester): ao invés de combinar as unidades básicas rumo a uma complexidade formal/estrutural, essa música atin-giria a complexidade em seus próprios termos, através da modulação intensiva das frequências e inflexões rítmicas destas unidades. No entanto, tais dinstinçoes não devem ser vistas como mutuamente excludentes, mas de ma-neira variavelmente complementar, definindo a diferença entre o popular e o erudito por meio de um critério de grau (de predominância de cada processo), e não de na-tureza. Nesse sentido, a noção de pertinência passou a ser importante para os estudos de música popular, como for-ma de entender e analisar cada música em sua especifi-cidade, através do levantamento dos aspectos relevantes para os envolvidos na prática musical em questão.

Isto implica em um deslocamento da centralidade da “obra” original e de sua representação gráfica (não mais vistas como “a música”), e do “autor” como instância fun-dacional. O olhar se dirige à realidade complexa na qual se insere uma música hoje: impossível falar dos senti-dos de uma canção popular sem se remeter aos múltiplos discursos que a representam; aos vários tipos de media que a veiculam; às tecnologias que os tornam possíveis; entrevistas, merchandising, fotografias, promoções; ins-tituições; processos de produção; contextos de recepção; organização social; relações de poder; transformações culturais; e assim por diante. Os sentidos constroem-se intertextualmente (KRISTEVA, 1974, p.340) pelo sujeito confrontado por todas estas instâncias.

Mesmo assim, este sujeito continua atribuindo o seu pra-zer aos sons musicais, aos efeitos por eles provocados em seu corpo (individual e social). Em consequência, parece recomendável que os sons de cada canção, em sua espe-cificidade, sejam valorizados pela análise, sob pena de se recair em uma generalização abstrata.

Portanto, reconhece-se tanto a natureza radicalmente interdisciplinar/ transdisciplinar dos estudos de música

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popular quanto a necessidade de atentar para a descri-ção/ análise/ interpretação das estruturas musicais (de superfície e profundas) em sua concretude, bem como ao excesso que as transcende. Devido a isso, aqui serão mencionados alguns exemplos que vêm demonstrando a multiplicidade de direções teóricas (com consequências metodológicas) que têm se mostrado capazes de efetivar aproximações plausíveis em relação a este objeto fugidio.

Deve-se notar que algumas destas, como o feminismo, já foram mencionadas, neste caso por meio do trabalho de Susan MCCLARY ([1991] 2002). Entre as importantes contribuições do feminismo para os estudos de música popular figura a preocupação em desvelar as codifica-ções do corpo culturalizado (a construção do gênero sendo parte da cultura). Nisto se inclui a desmistificação da ideia de que a música seria qualitativamente “femi-nina” (pertencente ao “corpo”). Mesmo que a música e o discurso sejam dependentes de processos corporais para seu estabelecimento (discutiremos isso adiante), este corpo é sempre mediado por discursos social-históricos, inclusive verbais e musicais.

Outra das abordagens que os estudos de música popular têm experimentado é a etnografia. Procura-se aqui arti-cular detalhes específicos da(s) prática(s) musical(is) em questão à performance cultural estudada. Um exemplo pode ser encontrado em NEDER (2007). Aqui, a multiplici-dade de gêneros em uma mesma classificação da faixa de recepção (a MPB), fato inédito na história da música po-pular brasileira, é entendida de maneira mais abrangente do que simplesmente um fenômeno musical. O autor pro-põe que as modificações culturais específicas do momen-to histórico dos anos 60, no contexto brasileiro e global, produziram um diálogo entre diversas faixas culturais e sociais. Entre estas faixas figuram as várias minorias re-presentadas no discurso da MPB (nordestinos, favelados, “caipiras”, a mulher – discutida no trabalho de Nara Leão e Maria Bethânia, entre outras), a música negra estadu-nidense (representada, já em 1963, pela música de Jorge Ben), o rock, a poesia culta (Chico Buarque, Caetano Velo-so, etc.), música paraguaia, boliviana, e assim por diante. Por meio da análise da relação entre gênero musical e subjetividade, é sugerido que, ao contrário da construção de um sujeito monológico, tal como ocorreria na sociali-zação realizada no âmbito de um gênero, a MPB, com sua porosidade radical entre diversas faixas culturais, seria o indício de (e predisporia para) subjetividades mais pro-pensas ao diálogo com o outro.

Ainda outra dessas abordagens é a representada pelas te-orias do discurso. Aqui, tanto os discursos “extramusicais” quanto os discursos especificamente musicais são vistos como interativos. Estas abordagens, ao invés de reduzir o discurso musical ao linguístico, buscam entender a inter-dependência e a influência recíproca de ambas instâncias. Trabalhos de linguistas e psicanalistas ressaltam a evidên-cia de que voz (com todos os seus parâmetros de altura, duração, intensidade e timbre) e gesto são anteriores à

simbolização, de maneira que nossa relação com a música não pode ser inteiramente explicada por meio da conven-cionalização de estruturas musicais pelo discurso verbal. Tampouco a música seria “inata” em nós. O que ocorre em um bebê prestes a ser inserido no mundo da significação é uma complexa dialética entre estruturas biológicas e so-ciais, que segmentam o contínuo dos sons experimenta-do por ele, associando-o a diferentes sensações oriundas tanto do corpo como da cultura. Isto é explicado, entre outros, pela psicanalista e linguista Julia Kristeva.

Obstruída pelas constrições das estruturas biológicas e sociais, a carga pulsional sofre estases. A facilitação pulsional se fixa provisoriamente e marca descontinuidades naquilo que se pode chamar de os diferentes suportes materiais suscetíveis de se-miotização – a voz, os gestos, as cores. As unidades e diferenças fônicas (mais tarde, fonêmicas), cinésicas ou cromáticas, são as marcas de tais estases da pulsão. Conexões ou funções estabe-lecem-se então entre estas marcas discretas, sustentadas pelas pulsões, e se articulam segundo sua semelhança ou oposição, seja por deslocamento ou condensação. Encontramos aqui os princípios da metonímia e da metáfora, indissociáveis da econo-mia pulsional que os sustentam. (KRISTEVA, 1974, p.28)

Ao relacionar dialeticamente corpo (desde sempre cultu-ralizado) e sociedade por meio do simbólico, a psicaná-lise compreende uma experiência do corpo variável em relação ao lugar, história e cultura, portanto nunca dada de maneira essencial. O sentido musical situa-se na ex-periência corporal, mas essa experiência é mediada pelo discurso verbal, pois tanto o corpo quanto o mundo físico não podem ser experienciados ou concebidos fora da lin-guagem. Tanto o próprio funcionamento da linguagem se baseia em processos corporais – metáfora e metonímia originando-se, respectivamente, de condensação e des-locamento das pulsões, como expresso acima – quanto o experimentar gestos musicais como gestos físicos ou emocionais depende das operações discursivas que pos-sam tornar tais gestos musicais significativos.

Assim, questões identitárias, políticas, estéticas, corpo-rais, de etnicidade, nacionalidade, classe e outras esta-belecem entre si uma relação complexa, no âmbito dos discursos verbais. Esta relação servirá como um contex-to para apreender, classificar e criticar os sons musicais, quaisquer que sejam. Por outro lado, os discursos musi-cais (gênero, estilo, retórica, técnicas e tecnologias, in-tertextualidades entre idioletos, etc.) se conectam tanto a processos corporais como culturais, tal como discutido acima. Isso torna possível que WALSER (1993), BRACKETT (1995) e NEDER (2007) proponham que os sentidos mu-sicais não apenas sejam constituídos por discursos extra-musicais, mas também sejam constitutivos deles.

Por sua vez, as teorias da mediação têm também repre-sentado uma corrente importante dentro dos estudos de música popular. Elas representam o ceticismo dos pes-quisadores deste campo com relação à ideia de que os sentidos musicais encontram-se nas obras “em si” (pen-samento substancialista proposto de maneira especial-mente influente por Hanslick, como vimos, e extrema-mente disseminado no mundo da música erudita). Contra

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esta noção, que remete todo o valor da música à suposta autoridade fundacional do compositor individual (o gê-nio), as teorias da mediação, de caráter sociológico, pro-curam entender de que maneira as instituições, os canais de disseminação, os meios de comunicação, os forma-dores de opinião, a aprovação/crítica do público, e, em última análise, a estrutura social mais ampla, contribuem para a construção do que se entende por “a música”.

Um primeiro proponente a se destacar com uma teoria da mediação da música foi Theodor Wiesegrund Ador-no, buscando, com isso, evitar o reducionismo primário à noção de “classe”, recorrente nas análises marxistas anteriores. Para Adorno, os efeitos da obra sobre o re-ceptor são apenas um aspecto da totalidade social em que ambos estão inseridos.

. . . [O]s efeitos das obras de arte, das formações espirituais de um

modo geral, não são algo absoluto e último, [e que supostamente]

seriam suficientemente determinados pela referência ao receptor.

Pelo contrário, os efeitos dependem de inúmeros mecanismos de

difusão, de controle social e de autoridade, e, por fim, da estrutura

da sociedade, dentro da qual podem ser examinados seus contex-

tos de atuação. Dependem também dos estados de consciência e

inconsciência – que são socialmente determinados – daqueles sob

os quais o efeito se exerce. (ADORNO, 1986, p.108)

Portanto, de acordo com a teoria da mediação de Adorno, não é possível acesso à obra “em si”, seja pela audição, seja pela análise: ambas são experiências mediadas por toda a vivência social. Esta teoria poderia servir para es-clarecer muito das atitudes (des)valorativas com relação à música popular, bem como proporcionar recursos para entender suas transformações. Mas teve escasso aprovei-tamento nesta área, porque, para Adorno, quanto melhor a história das formas de uma música e sua inserção em uma grande tradição representarem a totalidade social, em todas as suas contradições, tanto mais autônoma será esta música. Este critério postula uma discutível totali-dade para a música de tradição austro-germânica (por definição, centralizada na tradição vienense, portanto parcial). Este mesmo critério, ao definir a música popular por seu caráter necessariamente parcial, não autônomo, a excluiu de qualquer consideração por parte do filósofo que pudesse ser útil para o campo.

Entre uma sociologia da música que, em seus aspectos mais radicais, tende a reduzir a música às determinações sociais impostas aos artistas e fruidores, e, de outro lado, a estética, com seus postulados da obra de arte trans-cendental, não-mediatizada, subjetivizante, fundacional, autônoma – escasso valor heurístico poderia ser produ-zido para a análise da música popular. É nesse contexto, como alternativa e diferencial, que se insere o trabalho do sociólogo Antoine HENNION (2002).

Hennion se propõe a estudar a música sem deixar de identificar no especificamente musical parte do objeto de pesquisa. Ao mesmo tempo, coloca grande esforço na

reflexão sobre a atividade do amador (o praticante e/ou ouvinte dedicado, não profissional). Isto é essencial em sua análise, e se diferencia da crítica sociológica pro-posta por BOURDIEU (1984), descrita por Hennion nos seguintes termos:

[Segundo Bourdieu,] a cultura é uma fachada que disfarça meca-nismos sociais de diferenciação, os objetos artísticos sendo “ape-nas” meios para a naturalização da natureza social dos gostos; os julgamentos estéticos são apenas denegações deste trabalho de naturalização, que só pode ser realizado se desconhecido enquan-to tal. (HENNION, 2002, p.81-82)

Ao contrário, Hennion acredita tanto na produtividade do amador quanto na da obra, declarando que

precisamos reconhecer o momento da obra em sua dimensão espe-cífica e irreversível; isto significa vê-la como uma transformação, um trabalho produtivo, e permitir-se tomar em consideração as (altamente diversificadas) maneiras pelas quais os atores descre-vem e experimentam o prazer estético. (HENNION, 2002, p.81-82)

A consequência é a relativização do papel das determina-ções sociais, designando um papel significativo à agência dos sujeitos envolvidos no processo. Assim, por exem-plo, ao invés de entender o rap como produto da “falsa consciência” burguesa ou das maquinações da indústria – apesar dos altos lucros que o gênero, atualmente, a ela proporciona –, Hennion o discute em função da crítica que este dirige ao rock, às suas técnicas sofisticadas e à sua dependência de idolização. Ao contrário do rock, o rap (ao menos em sua fase inicial) teria encontrado na performance de palco não a grandiosidade dos megacon-certos de rock, mas a celebração do imediato e da comu-nidade local, transformando

rivalidades e lutas em uma disputa improvisada sustentada por um dado fundo musical, executados em um equipamento cuja quali-dade não importa contanto que seja alto o bastante, para serem ouvidos no calor do momento por colegas, companheiros, iguais. (HENNION, 2002, p.88)

O levantamento das opções teórico-metodológicas prati-cadas no âmbito do campo inter e transdisciplinar aberto recentemente pelos estudos de música popular poderia se estender indefinidamente. Os exemplos selecionados e comentados buscam apresentar as abordagens que pa-recem mais representativas e frutíferas, mas tal seleção é evidentemente parcial e sempre sujeita a discussões e complementações adicionais. No entanto, para os efeitos deste ensaio, é necessário delimitar tal levantamento, e é em consideração a esta delimitação que encerramos a presente exposição.

4. ConclusõesEntende-se, portanto, o estudo da música popular como empreitada complexa, entrecruzamento das palavras, dos sons instrumentais, dos gestos, dos corpos, das vozes, das condições de produção, comercialização e transmissão, das mediações, das interferências produzi-das pelos receptores que assim se inscrevem produtiva-mente no texto, e muitas outras variáveis, tudo se dando dentro do terreno complexo da cultura.

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À demarcação rígida de fronteiras nesta área corres-ponderia fatalmente o empobrecimento de sua com-preensão. Para evitar este empobrecimento, foi em-preendida uma revisão das diferentes definições de música popular e suas limitações.

Tendo em vista o risco de reificação da ideia de música popular por meio do problema definicional, a condução da pesquisa nesta área precisa se defrontar com as di-ficuldades teórico-metodológicas enfrentadas por uma tradição herdada da musicologia tradicional. Responden-do a este desafio, foram descritas algumas alternativas que vêm sendo empregadas de maneira profícua no caso específico da música popular. Buscou-se aqui não o fe-chamento do campo em torno destas alternativas, mas,

ao contrário, ressaltar exatamente a necessidade de se explorarem múltiplas e diferentes abordagens teórico-metodológicas à música popular, cuja inserção na pes-quisa acadêmica é recente, como foi salientado.

A problematização das limitações da aplicação de uma estética musical tradicional ao objeto música popular, não obstante, não nos libera da necessidade de lidar com a materialidade da música. Há um momento em que os sons impactam o corpo (físico e cultural) – e o estudo destes sons, em sua irredutível especificidade, em cone-xão com este impacto, é possibilitado por uma musicolo-gia que leve em conta a especificidade da música popular, uma musicologia renovada pelas discussões travadas no âmbito dos estudos culturais.

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notas1 Para Simon FRITH (1996, p.267), “a musicologia produz música popular para pessoas que desejam compô-la ou executá-la”. Ver também COOK (1990).

2 Com a noção de “fato social total”, Mauss produziu enorme influência sobre a antropologia, sustentando que certos eventos sociais são a síntese

da sociedade e de suas instituições, o que tornaria a análise desses eventos especialmente estratégica para uma disciplina que visaria especialmen-

te a totalidade social. Já Geertz, com o conceito de “jogo absorvente”, entende que tais jogos são eventos investidos com sentidos especialmente

importantes para a cultura dos envolvidos, que vão muito além da mera situação concreta presenciada, e que precisam ser adequadamente inter-

pretados para evidenciarem-se em toda sua magnitude a um observador externo. A respeito desses dois conceitos, ver, respectivamente, MAUSS,

1974 e GEERTZ, 1973).

3 É necessário esclarecer as diferenças entre o normativo e o negativo. O normativo é compreendido como aquilo que não é nem mesmo colocado

em discussão, sendo imposto como verdade genérica antes do exame dos casos específicos. Se o normativo “tem qualidade ou força de norma”,

segundo o Dicionário Aurélio, norma é por ele definida como: “6. Filos. Tipo concreto ou fórmula abstrata do que deve ser, em tudo o que admite

um juízo de valor” (FERREIRA, 1999). Ao contrário, no caso das definições negativas, que propõem o que a música popular “não é”, pode-se discutir

se uma determinada música popular não é “música folclórica” (dentro desta, se não é “folclórica urbana” ou “folclórica rural”, como vimos em Má-

rio de Andrade) ou não é “música erudita”, “música religiosa”, “música de propaganda”, “música burguesa” ou “música proletária” além de outras

possibilidades. Evidencia-se assim que o normativo não se confunde com o negativo e vice-versa.

4 Importantes correntes de pensamento compreendem a emoção como construto oriundo da dialética entre corpo, ou instância biológica, e so-

ciedade, ou instância cultural (lembrando-se que, no humano, o biológico é culturalizado). Entre seus proponentes, destacam-se, na sociologia,

Norbert ELIAS (1993, 1994a, 1994b, 1995 e 1998); na psicologia, Lev Semenovich VIGOTSKI (1996, 1998 e 2000); e, na psicanálise, Sigmund FREUD

(1957). Conferir, a este respeito, os conceitos freudianos de pulsão, energias originadas no corpo, e de superego, instância constituída a partir da

interiorização das interdições sociais.

Álvaro Simões Corrêa neder é musicólogo e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, onde é coordenador da Pós-Graduação em Produção Cultural. Possui Doutorado Multidisciplinar em Letras (Literatura Brasileira, Linguagem e Teoria da Literatura) pela PUC-Rio (2007) e finalizará em 2010 seu segundo doutorado, na UNIRIO, em Música. Foi Teacher Assistant na Universidade Brown durante parte de seu estágio de doutoramento de 18 meses nesta universidade, ministrando o curso Introduction to Ethnomusicology. Publicou o livro Creativity in Educa-tion: Can Schools Learn with the Jazz Experience? (WCP, EUA, 2002). Sua tese de doutorado sobre a MPB dos anos 60 foi selecionada pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC-Rio para representar o programa no Grande Prêmio Na-cional Capes de Teses de Doutorado 2008. Como crítico musical, publicou textos para vários livros de referência lançados nos EUA e acima de 2.300 artigos na imprensa norte-americana. Desde 1980 atua como professor de música, músico e produtor musical, tendo sido membro da Old Time String Band, coordenada pelo etnomusicólogo Jeff Titon.

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Recebido em: 10/10/2009 - Aprovado em: 20/02/2010

Circular cidade: poesia e groove na expressão musical de quatro grupos da região do mangue nordestino

Yukio Agerkop (Centro de La Diversidad Cultural, Caracas, Venezuela)[email protected]

Resumo: Apresentação do fenômeno musical de três grupos de Aracajú - Sulanca, Naurêa, Maria Scombona - e um de Recife - Chico Science e Nação Zumbi, que realizam uma hibridização musical de elementos locais e regionais com elementos transnacionais. Os músicos e os apreciadores da música destes grupos desenvolvem um senso próprio de lo-cal, enfatizando as particularidades da sua região como as tradições musicais, a arte verbal, a linguagem do Português regional e o aspecto lúdico na atuação. Desenvolve-se um olhar específico sobre uma região culturalmente similar, a região do mangue de Aracaju e Recife, a partir da música e da poesia da geração contemporânea, inspirados na vida urbana, nas expressões culturais da região e nas correntes musicais não-brasileiras ou transnacionais.Palavras-chave: performance; discurso musical;arte verbal, poética; música popular brasileira; música do mangue.

Circular cidade: poetics and groove in the musical expression of four groups from the mangue (mangrove) of northeastern Brazil

Abstract: Introduction to the phenomenon consisting of three music groups from Aracaju (Brazil) - Sulanca, Naurêa, Maria Scombona - and one group from Recife (Brazil) - Chico Science e Nação Zumbi, which developed a musical hy-bridization based on local and regional elements on one hand, and transnational elements on the other. The musicians and their fans are constructing an own sense of locale, stressing the characteristics of the region where they live, with its musical traditions, the current verbal arts, the regional Portuguese, and the playful character of the different musi-cal expressions. This study aims at providing an alternative vision of a specific cultural space, the mangue (mangrove) region of Aracaju and Recife, focusing on different kinds of artistic expressions, the discourse of the musicians who are influenced by urban life, regional cultural expressions and non-brazilian - or transnational - musical trends. Keywords: performance; musical discourse; verbal art; poetics; Brazilian popular music; mangue music.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010

1 - Introdução Na metade dos anos 1990, o nordeste brasileiro chama a atenção nacional por um fenômeno musical particular e inovador, sendo depois o modelo ou a base para fenôme-nos musicais similares em outros grandes centros urba-nos do Brasil. A performance1 forma uma parte essencial dos grupos musicais deste movimento, onde os músicos se reapropriam de expressões culturais de suas regiões, combinando-as com gêneros musicais urbanos não brasi-leiros como o funk e o punkrock. Neste artigo, veremos o fenômeno sócio-musical de três grupos musicais de Ara-caju e um de Recife, respectivamente: Sulanca; Naurêa; Maria Scombona; e Chico Science e Nação Zumbi.

A performance, em especial o uso particular da arte verbal, determina o senso de identidade de cada grupo musical e interage com a intenção e a mensagem que estes pretendem transmitir para o público. O aspecto temporal e a repetição são expostos de uma maneira peculiar na estrutura das músicas. Para abordar os as-pectos musicais, entra-se no conceito do groove, que é utilizado nos discursos verbais e musicais dos músicos do mangue e dos grupos de Aracaju abordados neste ar-tigo. Primeiramente, veremos o conceito de “identidade mangue” e as fronteiras em que o fenômeno musical da região do mangue se vê inserido.

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2 - Identidade mangue Na minha visita ao Nordeste do Brasil nos anos de 2004 até 2007, realizei uma pesquisa de doutorado em etno-musicologia, e fiquei interessado nos fenômenos musi-cais de grandes centros urbanos, em conjuntos musicais que misturam expressões musicais rurais com correntes musicais transnacionais. O cenário é a região do man-gue e esta denominação se origina dos manguezais, que caracterizam o litoral de diversos estados do Nordes-te como os Estados de Sergipe, Alagoas, Pernambuco e Paraíba. Logo no interior destes estados do Nordeste, no chamado agreste encontra-se uma variedade de ex-pressões culturais de caráter rural; e, no litoral desta região, encontramos as cidades de Aracaju e Recife, que são cercadas por manguezais e se caracterizam por rica biodiversidade. A região também se distingue pela di-versidade de expressões culturais, razão pela qual mú-sicos de Recife assinalam a similitude entre a riqueza cultural da região e a riqueza natural dos manguezais. Os textos cantados dos grupos abordados neste traba-lho utilizam frequentemente referências à paisagem da cidade e também da região rural.

Na área do Caribe, autores como Édouart GLISSANT (1981, 1997) e Jean BERNABÉ (1993) teorizam sobre o mangue (manguezais) como símbolo da nova comunida-de humana pluricultural caribenha. Ao abordar o concei-to da crioulização2, eles contrapõem enfoques monocul-turais, entre outros, a negritude, e a pluriculturalidade. Glissant substituiu o conceito monolinguísta da identida-de de raiz pelo conceito do rizoma (rhizome-identity): o “creole” é ao mesmo tempo absolutamente original, mas cresce como um rizoma sem raízes fixas. Uma situação semelhante se revela na região do mangue no fenômeno de formação de grupos musicais por jovens que adotam abordagens pluriculturais, tanto na sua criação musical quanto na sua performance. Não existe uma identidade do “creole”, mas os jovens músicos selecionam, através dos meios de comunicação, as mais recentes tendências musicais dos Estados Unidos, Caribe e Europa.

Os quatro grupos que receberam minha atenção nesta pesquisa são: Sulanca; Naurêa; e Maria Scombona, de Aracaju; e Chico Science e Nação Zumbi, de Recife. O pri-meiro grupo com o qual tive contato foi Sulanca, e este grupo é formado por sete músicos. Eles utilizam instru-mentos de percussão, uma guitarra e um baixo elétrico. Às vezes, o cantor Jorge Ducci usa um megafone para modificar a voz, e imitar os cantores da região campei-ra do nordeste. Misturam a música campeira sergipana com elementos do rock. Naurêa, também de Aracaju, é um grupo de sete músicos que interpretam baiões3, côcos, sambas, misturando-os com elementos de correntes mu-sicais transnacionais dos Estados Unidos e do Caribe, que se destacam pelo uso de roupas diferenciadas. Maria Scombona é um conjunto que interpreta principalmen-te blues e blues-rock norte-americano, abrindo exceções para músicas nordestinas como a embolada. O líder e cantor do grupo enfatiza as características linguísticas

regionais. O conjunto que serviu de modelo para os três primeiros grupos mencionados anteriormente foi Chico Science e Nação Zumbi, da cidade de Recife.

Depois da morte do líder Chico Science, em 1997, o gru-po continuou com o nome simplificado Nação Zumbi. Este grupo começou no início dos anos 1990 uma nova corren-te musical chamado (movimento) mangue, um fenômeno sócio-musical, caracterizando-se por jovens músicos que começaram a misturar as mais diversas expressões musi-cais nordestinas, em especial as de Pernambuco, com uma grande variedade de correntes musicais transnacionais. O caráter de vanguarda do chamado mangue teve um papel fundamental na formação de outros fenômenos musicais como a moda nova do Estado de São Paulo, os três grupos musicais de Aracaju abordados neste artigo, e o tecno-brega de Belém do Pará.

3 - Fronteiras culturaisOs grupos musicais abordados neste artigo estão situa-dos numa esfera fronteiriça em diferentes níveis. O con-texto sócio-geográfico no qual se situam é o Nordeste, região em desenvolvimento, que se encontra entre a modernidade e contemporaneidade dos grandes centros urbanos e a vida rural e arcaica. Também se encontra entre o rico Sul e Sudeste do País e a Europa, e os Esta-dos Unidos, no hemisfério norte. No grande centro ur-bano, observe–se a fronteira entre o centro e a periferia, ambos formando a temática nas mensagens emitidas pelos músicos destes grupos abordados aqui.

As tradições musicais da região rural de Sergipe e Pernam-buco representam o valor histórico, e são apropriadas pelas novas gerações de músicos adaptadas às novas tendências musicais de contextos urbanos. As cidades de Laranjeiras e São Cristóvão, por exemplo, são cidades históricas, que se opõem ou contrastam com Aracajú, cidade contemporâ-nea de 150 anos de existência. O aspecto histórico destas cidades se reflete nas tradições musicais que mantêm um caráter arcaico e estático. De outra forma, os grupos mu-sicais de Aracaju estão na fronteira entre a periferia da cidade e o centro: como eles se posicionam na fronteira entre o histórico e o contemporâneo? Talvez possam ser considerados como mediadores, “cultural brokers” entre a cultura da periferia e a cultura do centro da cidade.

4 - o groove e a arte verbal...A gente ouve aquela voz rouca, do cara no meio da multidão querendo ser ouvido. Daí vem o drive dele, gritando aargh, no limi-te da voz... (DUCCI, Jorge, em entrevista concedida ao autor deste artigo, junho 2005)

Esta frase do cantor Jorge Ducci do grupo Sulanca, revela uma característica do fenômeno sócio-musical de grupos musicais de Aracaju e dos grupos do mangue de Recife: o drive ou groove - a percepção de um ciclo em movimento ou uma for-ma de organizar padrões que se revelam da música regional do Nordeste que é reafirmada, ressaltada na criação musical destes grupos do contexto urbano da região do mangue.

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Parte da força musical dos grupos da região do mangue está ligada a alguns conceitos, como a palavra groove e a mistura de elementos de correntes musicais brasilei-ras e não brasileiras. Apresenta-se, a seguir, como estes aspectos são trabalhados pelos grupos. A palavra groove regularmente surge no discurso de músicos de Aracaju e de Recife, como Jorge Ducci e os músicos do Chico Scien-ce e Nação Zumbi. Este último grupo mencionado gravou uma música chamada Quilombo Groove.

Nos anos 1990, surgiram estudos com o objetivo de teori-zar o conceito do groove, que está relacionado a elemen-tos como a repetição e a redundância, bem como à expe-riência participativa por parte do músico e do receptor. O termo se refere a um senso intuitivo de um estilo em pro-cesso, à percepção de um ciclo em movimento ou a uma forma de organizar padrões que se revelam (FELD, 1994, p.109). Existem vários termos para designar estilos com seus processos, que incluem um senso sonoro, uma bati-da como o mangue, o afrobeat, o reggae-beat e outros. Cada cultura musical possui um groove com seus próprios significados musicais, e este groove tem a particularidade de atrair, arrastar o ouvinte, ou seja, chamar a atenção:

[...]Todos os grooves e batidas se apropriam de maneiras de cap-turar a atenção do ouvinte; o sentido intuitivo do senso do groove ou batida é o reconhecimento de estilo em movimento [...] termos linguísticos como ‘groove’, som ou batida – significantemente co-dificam um senso não especificado, mas organizado como algo suspenso numa maneira distintiva, regular e atrativa, atuando para prender a atenção do ouvinte. (FELD 1994, p. 112)4.

Na arte verbal do Nordeste, refletida em gêneros como a embolada5, côco6 ou no canto de Chico Science, os sons das palavras são o que chama a atenção: o encadeamento das palavras, em certos momentos, entra no contratempo do padrão rítmico. Esta característica também pode ser observada no funk norte-americano. As frases cantadas por Chico Science, por exemplo, são emitidas em uma respiração, colocando pressão nas cordas vocais. Desta forma, consoantes como /s/, /t/, /b/ e /g/ são evidencia-das. Um bom exemplo desta técnica pode ser percebida na música Maracatu de Tiro Certeiro (de Chico Science):

É de tiro certeiro, é de tiro certeiro,Como bala que cheira a sangueQuando o gatilho é tão frioComo quem ta na mira, oh, morto!Ehh, foi certeiro oh, se foiO sol é de aço, a bala escaldante, tem gente que é como barro , que ao toque de uma se quebra,outros não,ainda conseguem abrir os olhos e no outro dia assistir TVMas comigo é certeiro, meu irmãoNão encosta em mim, que hoje não estou pra conversa.Seus olhos estão em brasa,Fumaçando, fumaçando!, fumaça,Não saca a arma não, arma não!Já ouvi, calma!As balas já não mais atendem ao gatilhoJá não mais atendem ao gatilho, já não mais atendem… hêêê

Ex.1 - Maracatu de Tiro Certeiro (Chico Science e Nação Zumbi, 1994)

A poesia criada por Chico Science é diferente da forma tra-dicional de se interpretar os côcos, maracatus7 e embola-das, por quebrar as regras de acentuação do português, ou o encadeamento de palavras, como, por exemplo, o enca-deamento das palavras ”já” e “não” no verso “[...] as balas já não mais atendem ao gatilho”. Nas discussões ao redor da arte verbal, desenvolve-se a noção de que a linguagem poética desvia-se da linguagem normal: o uso inventivo da linguagem poética em músicas atrai a atenção do ouvinte e é percebido como não usual (BAUMANN, p.17). Na poesia das músicas de Chico Science, percebe-se uma linguagem não usual que atrai a atenção do ouvinte, por seus disposi-tivos e pelo seu ritmo próprio, criando uma tensão rítmica entre o canto e o padrão rítmico - neste caso o do maraca-tu de baque virado - dos tambores alfaia e caixa. Uma das formas pela qual a linguagem poética se revela é através do paralelismo, que envolve a repetição com variações sis-temáticas de estruturas fônicas, gramaticais, semânticas ou prosódicas. O uso fluente da linguagem é um veículo efetivo para a exposição de competência comunicativa (BAUMANN, p.18-19).

Uma das características do Nordeste é uma fluência es-pecial no uso da linguagem, que se reflete nas diversas formas de arte verbal, na maneira criativa de construir frases, e no uso de paralelismos. Na embolada e no côco, com suas inflexões, a nasalidade e o timbre da voz do falar português rural não devem ser subestimados. Ocor-re um fenômeno especial, pois, para poder encaixar as palavras, as sílabas, ao padrão “irregular” dos tambores alfaias, desenvolve-se um ritmo cantado diferente, não como o usual da tradição do maracatu de baque virado. Os versos desta música foram criados por Chico Science, que não vinha originariamente da tradição do maracatu.

O jogo de sílabas e palavras, em que a repetição de síla-bas e sons das consoantes chama a atenção do ouvinte, também é uma das características do funk norte-ameri-cano8. O funk norte-americano aqui referido é também chamado p-funk, ou pure funk9, interpretado pelos mú-sicos e grupos como James Brown, Funkadelic, Parlia-ment, George Clinton e seu grupo e Bootsy Collins e o seu próprio grupo. Estes grupos são praticamente forma-dos por afro-americanos, e o funk também se inclui na chamada Black Music, a música dos afro-descendentes norte-americanos. Característica do funk ou p-funk é o forte caráter lúdico, expresso com o uso de roupas extra-vagantes, como astronautas de naves espaciais, e óculos escuros coloridos enormes, expressões faciais com risos, além da dança funk, às vezes efetuada por quase todos os músicos em um concerto, maneira particular de dançar onde o corpo marca o timeline, o pulso básico do padrão rítmico do funk. Em entrevistas, os músicos de funk fazem diversas brincadeiras e a linguagem usada é o inglês afro-americano, com características e gírias próprias.

O aspecto lúdico de diversas tradições musicais campei-ras do Nordeste - a exemplo do maracatu rural, cavalo marinho, dança de São Gonçalo10 de Laranjeiras e a arte

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de Chico Science - têm diversas semelhanças com a tra-dição do funk ou p-funk: a dança está presente em todas elas, o uso de roupas diferenciadas, e expressões verbais e brincadeiras corporais para provocar risos no público. Um exemplo é a música do baixista estadunidense Bootsy Collins, que inclui um forte espírito lúdico nas suas atu-ações no palco e nos seus textos, estabelecendo um jogo verbal. Na música Shine-o-Myte (Rag Poping), observa-se um mesmo fenômeno com um jogo de palavras e sílabas que destacam consoantes como /i /z/, e /f /s.

Bootsy gonna shine like the light from shiny shoesShine o MyteHit meootsy-be that-play unke-feIs Ootsy-bezay, is that plezay, is unke-fezayOotsy-be that-play unke-feUnky-feIs unky-fezay, ha ha ha

Ex.2 - Shine o Myte (Bootsy Collins, 1982)

Percebe-se, então, uma semelhança entre o jogo de pala-vras e a repetição de palavras, as palavras com sintática semelhante, e consoantes similares entre as palavras des-ta música de Bootsy Collins com as cantadas por Chico Science. A música Fé e Umbigada, do grupo Naurêa, apre-senta um caso parecido na maneira silábica de cantar, emitida numa respiração, à maneira de Chico Science. As frases são emitidas de maneira staccato, de maneira bas-tante rápida, que é característica do côco ou embolada. Os fonemas imprimem o caráter especial desta música, e as consoantes /v/, /g/ e /z/ são pronunciadas precisamen-te, de maneira staccato, em frente da boca com os lábios e ênfase na garganta. As palavras “volta” e “vai” são pro-nunciadas com ênfase. A letra é a seguinte:

Volta neguinha, o leite taiouVolta neguinha, não sei não senhôVolta neguinha, viver sem fulôVolta neguinha, não sei não sinhô

Vai ter festa umbigada vai ter féVai ter festa umbuzada vai ter féTem novena e congada vai ter féUmbigada e umbuzada vai ter fé

Ex.3 - Fé e Umbigada (Naurêa, 2001)

Característica da letra é a repetição quase idêntica das frases, com pequenas diferenças silábicas, por causa da proximidade sintática das palavras, como umbigada, um-buzada e congada.

No caso das novas correntes musicais de Recife e de Ara-caju, pode-se observar como um conjunto de maracatu chama a atenção quando passa pela rua em um dia de carnaval, com o som potente das suas alfaias, caixas e gongues. Em Sergipe, os tambores de onça, zabumbas e vozes dos cantores populares chamam a atenção nas festas do calendário católico ou feiras populares. Estes elementos instrumentais e vocais são explorados pelos jovens músicos de centros urbanos como Recife e Ara-

caju. Aqui, ainda cabe a observação de que num encon-tro cultural ou feira, nos centros urbanos do Nordeste, podem-se ouvir diferentes ritmos e timbres ao mesmo tempo ou alternadamente, devido aos diferentes grupos que desfilam concomitante nas ruas da cidade. A músi-ca dos grupos como Sulanca e Naurêa, com as camadas rítmicas e sonoras alternadas, é em parte o reflexo deste fenômeno nas feiras e encontros culturais.

5 - Discurso musical do groove e da vida urbanaUm elemento particular na música de Sulanca é a aproxi-mação da guitarra e baixo aos timbres dos instrumentos percussivos regionais. A intenção dos músicos é adotar os ritmos de tradições musicais sergipanas para a guitarra e baixo, mas com a distorção comum da música funk e har-drock. O grupo Sulanca é o único grupo em Sergipe, entre os eleitos nesta pesquisa, que a executa desta maneira, e a mistura de estéticas transnacionais com a música re-gional começa com o uso de um megafone para ampli-ficar e distorcer a voz. Numa entrevista, Jorge, do grupo Sulanca, explica sobre o uso da voz ligada à palavra drive, outro conceito ligado às teorias sobre o groove:

Porque, aquela história, quando a gente está pesquisando o folclore, a gente ouve aquela voz rouca, do cara no meio da multidão e o cantor querendo ser ouvido. Daí o drive dele, da voz que canta, gri-tando “aaaahhhrrg” no limite da voz, rasgando a voz, pra ser ouvido. E respondido pelo coro. Aquele solo e resposta, que é característica da música tradicional de Sergipe. Aí ele quer ser ouvido, no meio de tanta gente. E aí ele vai ao limite. Na banda, quando boto um drive na voz, colocando uma ‘postura’, é bebendo isto, esta coisa do cantante no meio da manifestação [...] trago este registro, como José de Jorge do ‘terreiro José do Jô’, porque é o limite dele. E nós queremos fazer este registro dentro da banda. Além do megafone, que registro muito bem isto, e o megafone já tem uma distorção natural. Ele ajuda a trazer este grito do cantor no meio do povo. É saber destas particularidades do povo, da música sergipana. (DUCCI, Jorge, em entrevista concedida ao autor deste artigo, junho 2005)

A palavra groove, surgida no meio musical do funk ameri-cano, é conhecida por músicos como Jorge Ducci e usada por ele no seu discurso sobre a sua própria música. No funk, é o swing, a força rítmica que atrai o ouvinte para dançar. A influência deste gênero pode ser observada na maneira como a música é construída em camadas sonoras e rítmi-cas, às vezes alternadas, efetuadas pelos grupos musicais Chico Science e Nação Zumbi, Mestre Ambrósio, Sulanca e Naurêa. Estas camadas rítmicas são formadas por instru-mentos percussivos como alfaias, tambores, tambores de onça, triângulo, além do uso da guitarra e baixo elétrico e sons eletrônicos produzidos com computador e sampler.

A estrutura da música do grupo Sulanca é basicamente formada pelos ritmos das diferentes tradições musicais rurais sergipanas com os seus instrumentos. A guitarra e baixo elétrico tocam as fórmulas rítmicas e melódicas curtas das tradições musicais rurais. Aqui, se mostram elementos de gêneros transnacionais, o funk e pop nor-te-americanos combinados com ritmos campeiros. Os padrões melódicos e rítmicos de um, dois ou três com-passos são repetidos várias vezes como uma figura, o chamado leitmotif, para o resto da música, característi-

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ca do funk e pop. No funk estadunidense estas fórmulas são executadas na guitarra ou baixo elétrico, acompa-nhado pela bateria.

Chico Science e Nação Zumbi trabalhavam com pa-drões rítmicos e melódicos diferentemente de Sulanca. Padrões rítmicos e melódicos da guitarra ou baixo do funk e pop estadunidense foram transferidos para os instrumentos de percussão (alfaia ou conga). No caso de Sulanca, padrões rítmicos de tradições musicais rurais e de tradições afro-sergipanas são transferidos para a guitarra e baixo elétrico. A semelhança entre os dois grupos é o uso de uma base harmônica simples de dois a quatro acordes, para desenvolver a força da percussão e ressaltar os timbres produzidos através de distorções na guitarra e sons eletrônicos, mas também por intermédio do uso de instrumentos de percussão e pífanos alter-nando as partes da guitarra e baixo. Jorge explica isto ao abordar o processo de misturar diferentes padrões rítmicos das tradições afro de Sergipe:

Geralmente os ritmos estão em 4 por 4. A primeira coisa que eu faço em compor, é pegar uma manifestação, por exemplo o samba de parelha. Ou qualquer outra manifestação. A partir daquela batida dele, começo a formatar a música, a partir da minha vivência, de-pois começo compor dentro daquela música, dentro daquela batida. Depois aí começo fazer cruzamentos; que eu posso introduzir den-tro dessa primeira batida; aí venho trazendo elementos de outras tradições, por exemplo a caixa do bacamarteiro: ‘Tum tutum tu-tum’. Aí já tem um acento do cacumbi que combina com a caixa do bacamarteiro:’cutúm cutúm tum’; isso já dá o caminho para botar o baixo: ‘gujam gujam jam’; voltando para o caso do rock, não é rock, é o acento do cacumbí; aí vou combinando, aí trago o pandeiro da chegança. No final uso o violão, para ver os acordes. A música é feito a partir desta formatação. Se você ouvir o disco, não ouve a manifestação como ela é tocado no interior; por exemplo se pegar o cacumbi ela tem caixa, ganzás, tambor de onça, tamborim. Cinco instrumentos na tradição. Que é que eu faço: tenho cinco instru-mentos; uso o tambor da batucada e fazemos combinações. A ideia de Sulanca é fazer combinações de batidas folclóricas. E uma batida que é de caixa, você bota o tambor ou a guitarra ou baixo fazer. E Sulanca passa por essas vertentes aí. É esse universo aí. (DUCCI, Jorge, em entrevista concedida ao autor deste artigo, junho 2005)

O uso de poucos acordes tem algumas razões: os textos cantados têm influência da tradição do repente ou da embolada. A característica do repente é o canto de im-proviso em cima de um acorde de sustentação, em um modo nordestino.

Por outro lado, há a influência do rap, funk e punk, onde os textos são cantados em cima de poucos acordes, e o timbre da guitarra distorcida e dos tambores dão des-taque. Os textos cantados pelos grupos aqui abordados geralmente se referem à vida urbana com todas as suas peculiaridades. As descrições de situações cotidianas são logo bem recebidas pelos jovens dos grandes centros ur-banos, podendo se identificar e espelhar nas diversas si-tuações representadas nas músicas.

As composições do grupo Naurêa revelam um uso par-ticular de frases que rimam, com um próprio ritmo de palavras e o uso de temas ligados à cidade. Um exemplo é a música Circular Cidade, um tema que faz uso do

modo medieval (ou nordestino). O modo é Dórico (Frí-gio – E) alterado, com a sexta menor. A música começa com uma nota em Mi em forma de drone, uma nota fundamental que serve de base para as outras notas que a têm como referência. Observa-se que os finais das li-nhas melódicas terminam nesta nota fundamental. Esta abordagem melódica pode ser encontrada em diversas partes da Europa Sul-oriental e Sul da Europa, em ilhas como Sardenha, Sicília, na Grécia, Albânia, Macedônia e outras. Em Circular Cidade, a nota Mi do começo é dis-torcida e tocada com tecnologias do computador como o sampler. O caráter destes modos nordestinos com o uso do drone poderia ser interpretado como reflexo do meio ambiente seco e quente do Nordeste, como as re-giões secas ou semi-áridas do Sul da Europa. É uma das representações musicais do sertão do Nordeste. Aqui se encontra também outra semelhança com o mangue de Recife dos anos 1990, ao abordar a vida urbana viven-ciada por jovens das classes populares e um pouco mar-ginalizados. A música Circular Cidade, do Naurêa:

Bateu carteira na feira

Aprontou estripulia

Tomou quatro pinga e meia

Por causa da brincadeira

Parou na delegacia

Tomou ônibus trocado

Por causa da correria

O carro foi assaltado

Ganhou buraco de bala

Sem saber da onde vinha

Iê iê iê iêê...cidade, iêê, cidade (2x)

Iê iê iê iêê na cidade

Tomou a última dose

Sozinho sem companhia

Morreu toxoplasmose

Na veia via virose

A cabeça que ardia

Viu a moça na janela

Tão bela que comovia

Paixonou-se de verdade

De manhã foi pra cidade

Cantar “lôa” de alegria

Iê iê iê iêê...cidade, iêê, cidade (4x)

Iê iê iê iêê na cidade

Ex.4 - Circular Cidade (Naurêa, 2001)

Ocorre a combinação da melodia em modo nordestino, um padrão melódico da tonalidade em mi-maior com a sétima abaixada. O acorde, o primeiro por efeitos ele-trônicos, executado provavelmente pelo computador ou sampler, cria um drone11, termo inglês para designar o tom mais importante e geralmente o mais grave do padrão melódico, que soa continuamente, como guia para a melodia do instrumentista ou do cantor se de-senvolver. O tom Mi é que é a base, na qual a melodia instrumental e a voz terminam depois de cada frase ou quatro frases.

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AGERKOP. Y. Circular cidade: poesia e groove... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.196-202.

6 - Palavras finaisNeste artigo, observa-se o uso da poesia e o groove na arte verbal na região do mangue com suas peculiarida-des, tais como o jogo de palavras, a repetição, a rima, uma característica, tanto nas tradições musicais das re-giões rurais do Nordeste, quanto no contexto do mangue e outros grupos urbanos. Além disto, percebe-se uma semelhança desta arte verbal: a de correntes musicais transnacionais como o funk e o rap norte-americano. Foi também possível observar como o conceito do groove adquire uma dimensão própria na música destes grupos, com as particularidades rítmicas dos instrumentos de tradições como o maracatu de baque virado12, o mara-catu de brejão13, o côco e a embolada.

Percebe-se, no processo de misturar elementos musi-cais locais e nacionais com elementos transnacionais, o desenvolvimento de novos significados na atuação e

na dimensão sonora. A interação do grupo que efetua a performance com o público é uma maneira intrínseca de ver as sutis maneiras de produzir significados que são reconhecidos pelo público. Sobre este aspecto, Small observou o seguinte:

Human beings are constantly devising new meanings for existing gestures and new gestures for existing meanings, and it is this element of indeterminacy, of choice, even of a degree of arbitra-riness, that leaves room for creative development and elabora-tion. In fact, in neither verbal nor gestural languages is there a complete one to one relationship between signifier and signified; meanings are constantly slipping and sliding into new meaning, mainly, as we shall see in a moment, through the power of meta-phor (SMALL, 1998, p.60).14

Nas novas cenas musicais recifenses e aracajuanas, novos significados são criados a partir de tendências transnacionais e nacionais, e são elaborados na poesia com jogos verbais e/ou metáforas.

Referências AGERKOP, Yukio. Fronteiras e Movimento Cultural entre o Caribe e Salvador: o Samba-reggae, o Merengue e o Reggae.

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nível em: <http://www.rlwclarke.net>. Acesso em: jun. 2008.DEPESTRE, René. Una Ejemplar Aventura de Cimarroneo Cultural. In: El Correo de la UNESCO, No 34, Diciembre 1981.

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Maria Scombona. Grão. 2001. Brasil www.mariascombona.com.br

Referências de entrevistasDUCCI, Jorge. Aracajú, 21 de junho 2005, 2 fitas cassete (60 min). Entrevista concedida a Yukio Agerkop.

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AGERKOP. Y. Circular cidade: poesia e groove... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.196-202.

notas1 A performance é um termo que aborda tópicos essenciais como o ato de fazer música, a práxis corporal, a temporalidade, conhecimentos discursi-

vos e a repetição. Numa performance musical procuramos compreender o que o homem faz quando participa de uma ação musical, para entender

a sua natureza e a função que desempenha na vida humana.

2 O conceito de creolização primeiramente se estabeleceu depois da descoberta europeia das Américas, para descrever o processo pela qual formas de

vida do Antigo Mundo se tornaram autóctones no Novo Mundo. Hoje em dia, o termo “creolização” aparece em escritos sobre a globalização e pós-

modernidade como sinônimo de hibridismo e sincretismo para ilustrar as misturas que acontecem em sociedades na era de migrações e telecomuni-

cações. A designação histórica do termo, no entanto, se refere aos efeitos de adaptação de seres humanos quando vivem em um novo ambiente.

3 O baião é uma forma musical do nordeste que inclui dança e canto acompanhado por um acordeom (sanfona), uma zabumba, um triangulo e

eventualmente um baixo eletrônico e outros instrumentos. Forma uma parte integral da expressão musical forró, do nordeste do Brasil. O padrão

rítmico e melódico do baião é amplamente explorado por grupos musicais brasileiros.

4 All grooves and beats have ways of drawing a listener´s attention; one´s intuitive sense of a groove or beat is a recognition of style in motion […].

Linguistic shorthands-terms like groove, sound, or beat – significantly code an unspecifiable but ordered sense of something that is sustained in a

distinctive, regular, and attractive way, working to draw the listener in (FELD 1994, p.112). (Tradução nossa, grifos do autor)

5 A embolada é uma tradição musical, arte verbal do litoral do nordeste onde dois cantores alternam versos cantados de forma silábica, com acom-

panhamento de dois pandeiros.

6 O côco é uma tradição musical do nordeste, e inclui danças y cantos acompanhados por pandeiros y zabumbas e outros instrumentos. Em cada

região do litoral do nordeste, o coco é interpretado de forma diferente com uma instrumentação própria.

7 O maracatu é uma expressão musical do estado de Pernambuco (também no interior do estado de Sergipe), sendo tocado especialmente na época

de carnaval. Existem duas variedades, sendo o maracatu rural e o maracatu de baque virado da cidade de Recife, caracterizado por tambores alfaias,

os taróis e o gongue.

8 O funk norte-americano se origina do soul e rhythm and blues dos anos ´50 e ´60 nos Estados Unidos, onde as linhas do baixo e os padrões repeti-

tivos da guitarra elétrica assumem um papel importante. É uma expressão musical por excelência para ser dançada.

9 Pure funk significa funk puro, a interpretação do gênero funk na sua essência, para se diferenciar dos gêneros ligados ao funk, o disco, o soul e o

rhythm and blues.10 A dança de São Gonçalo de Laranjeiras é uma expressão musical rural do interior do Estado de Sergipe, com mais ou menos 7 cantos e danças

acompanhados por uma caixa, um violão, um cavaquinho e dois caraqajés ou puítas. Caracteriza-se por sua dança espetacular e lúdica, onde os

homens estão vestidos de saias e pintados como mulher.

11 O drone é um termo inglês para designar a nota mais importante de um sistema melódico, usualmente executada em um instrumento no caso da

música clássica indiana, ou em uma corda de um instrumento de cordas.

12 O maracatu de baque virado é uma tradição musical afro-brasileira da cidade Recife, organizado em uma corte com um rei, uma rainha, príncipes,

soldados e outros; inclui dança e é acompanhado pelos tambores alfaias e taróis, e o gongue.

13 O maracatu de brejão é uma tradição musical do interior de Sergipe, de Brejo Grande, onde existe uma comunidade quilombola Brejão dos Negros.

O maracatu de brejão é tocado com tambor zabumba, tambor de onça ou cuíca de porca, chocalho e apito.

14 SMALL, Christopher. Musicking: the Meanings of Performing and Listening, 1998. Os seres humanos constantemente inventam novos significados

para gestos existentes e novos gestos para significados existentes, e é este elemento de indeterminação, de escolha, até certo grau de arbitra-

riedade, que possibilita o desenvolvimento e elaboração criativa. De fato, tanto na linguagem verbal quanto na linguagem gestual, ocorre uma

relação mútua entre o significante e o significado; significados constantemente se convergem em novos significados, principalmente, como se

vê, através da força da metáfora.

Yukio Agerkop é Doutor em Etnomusicología pela Universidade Federal da Bahia, defendendo a tese com o título “Poética de Uma Paisagem: Discurso e Atuação de Quatro Grupos Musicais da Região do Mangue” (junho, 2007). Depois dos estudos de Musicologia na Universidade de Amsterdam (Holanda, 1996), trabalhou como pesquisador musicológico na Fundação de Etnomusicologia e Folclore (FUNDEF, Caracas). Atualmente, trabalha como pes-quisador no Centro de la Diversidad Cultural em Caracas, Venezuela. Está produzindo documentários sobre as ilhas Dominica y St. Lucia do Caribe oriental. Realiza palestras sobre a música venezuelana e das ilhas Dominica y St. Lucia. Desenvolveu um método para a aprendizagem da bandola cordillerana de Venezuela. Participou dos Encontros Nacionais da ABET e do Encontro de Estudos Caribenhos em Salvador em 2007.

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Recebido em: 14/10/2009 - Aprovado em: 20/03/2010

Axé music: mitos, verdades e world music

Armando Alexandre Castro (UFBA, Salvador, BA)[email protected]

Resumo: O artigo discute a Axé music, oferecendo elementos na tentativa de desconstrução de três mitos nela eviden-ciados: monocultura, baixa qualidade técnica e sua decadência. A metodologia utilizada privilegia a análise de conteú-do, tendo como meios de verificação e coleta de dados entrevistas semi-estruturadas com músicos, técnicos, produ-tores e empresários musicais de Salvador, além de pesquisa documental relacionada ao campo musical baiano atual.Palavras-chave: Axé music; música popular brasileira; produção musical; world music.

Axé Music: myths, truths and world music

Abstract: The article discusses Axé music providing elements in an attempt to deconstruc three myths related to it: monoculture, low technical quality and its decadence. The method used focuses on content analysis, departing from verification of data collected through semi- structured interviews with musicians, technical staff, producers and music business executives from Salvador (Brazil), along with documental research related to the musical scene of Bahia today.Keywords: Axé music; Brazilian popular music; musical production; world music.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010

1. IntroduçãoEm El Milagro de Candeal (2004), o diretor espanhol Fer-nando Trueba, centrando sua argumentação em essencia-lizações acerca da musicalidade, da cultura e religiosidade da Bahia, apresenta o encontro entre o pianista cubano Bebo Valdez e Carlinhos Brown. Ainda nas primeiras cenas, Bebo Valdez confidencia ao músico, compositor e pesqui-sador baiano Mateus Aleluia – Grupo Tincoãs, Cachoeira, Bahia -, o conselho ofertado a ele, em 1947, por uma Ya-lorixá - também cubana -, caso prosseguisse em sua inves-tigação musical e antropológica motivada por questiona-mentos identitários: conhecer a cidade de Salvador, Bahia.

À beira mar, o diálogo entre os músicos é precedido de inúmeras outras cenas que apontam indícios e entrela-ces dos aspectos religiosos, culturais e musicais baia-nos inscritos ao longo do tempo e história, como que atendendo às expectativas de parcela considerável de estrangeiros e suas imagens/impressões de uma Bahia mítica e paradisíaca plasmada nestes aspectos. A pelí-cula segue. Do simpático taxista, ele recebe um sono-

ro e entusiasmado “(...) Então seja bem vindo à Bahia. Terra da Felicidade!”. Em seguida, surge a imagem da estátua de Vinícius de Moraes instalada em Itapuã. Após o desembarque no Pelourinho, a ida a uma das Igrejas Católicas deste, onde presencia um ensaio musical de Mateus Aleluia e integrantes do Grupo Musical Gêge Nagô1. Na cena seguinte, eis que surge Carlinhos Brown e o Grupo Zárabe, numa espécie de aquecimento pelas ruas e becos do Candeal Pequeno, como num ensaio a céu aberto do que aconteceria mais adiante na apresen-tação e aparição destes numa das festas mais tradicio-nais de Salvador: a festa de Yemanjá.

As imagens apresentam alguns elementos emblemáticos da marca Bahia no mundo globalizado: música, performan-ces, criatividade, diversidade, onde tradição e modernidade dialogam, não raro, sem maiores incidentes. Por outro lado, revela as estratégicas arquiteturas de veiculação e inscri-ção de elementos simbólicos a marcas territoriais distinti-vas, como no caso Bahia, a partir da seleção de elementos

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que atendem e redimensionam a imagem de uma Bahia marcadamente étnica, exótica e espontânea, tal como apontaram viajantes, brasilianistas e naturalistas que por estas terras se aventuraram em outros tempos.

Das surpresas e entusiasmo dos primeiros viajantes es-trangeiros, passando pelas cantigas de capoeira e re-quebros da portuguesa/brasileira/hollywodiana Carmem Miranda, e chegando aos refrões pop´s da Axé music, a Bahia (re)afirma sua inscrição e presença em parte con-siderável do cenário cultural internacional. Na MPB, sua presença é central, podendo ser percebida enquanto te-mática e inscrição vultosa de artistas e autores que a ela se reportaram. Numa perspectiva histórica, cantaram, compuseram e corroboraram com tal participação, nomes como Tia Ciata, Donga, Xisto Bahia, Dorival Caymmi, As-sis Valente, Carmem Miranda, Ary Barroso, João Gilberto, Vinícius de Moraes, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Cos-ta, Tom Zé, Raul Seixas, Moraes Moreira, Maria Betânia, Roberto Mendes, entre outros2.

Desta fonte diversa e multicultural, o surgimento de uma Bahia plural em sua produção musical contemporânea, com trânsito entre o samba-chula do Recôncavo ao Rock and Roll, de onde ainda se faz ouvir nas inúmeras cenas musicais soteropolitanas o grito Viva Raul! Bahia do sé-culo XXI, naturalmente plural e plugada em links e wire-less, consensos e conflitos, timbaus e guitarras.

Entretanto é aí que se percebe o maior desafio da produção musical baiana contemporânea, onde poucos olhares midi-áticos têm conseguido perceber tal diversidade. Não raro, esta escassa visibilidade midiática destes diversos fazeres musicais locais e suas complexas redes de pertencimento e conectividade têm corroborado com o desconhecimento ou a disseminação de discursos e textos que omitem – al-guns casos – e/ou distorcem as cenas musicais soteropoli-tanas, reiterando a necessidade de que não basta somen-te produzir canções, grupos e elaborações estéticas, mas executá-las e publicizá-las a um maior número possível de pessoas, tal como afirma Nando Reis na obra Itaim para o Candeal – faixa que encerra Timbalada - primeiro disco desta banda, lançado em 1993: “(...) Gosto de tocar no rá-dio, o que parece óbvio, é fundamental”.

Neste sentido, se evidenciarão neste trabalho, outras possibilidades de compreensão da Axé music, tendo como prerrogativas centrais a díade estética e mercado. O gê-nero baiano massivo enquanto produção, fruição e apre-ciação estética, mas também sua relevante participação e interação com as tramas mercadológicas e organiza-cionais. Mais uma vez, da Bahia para o mundo, música. Desta vez, com articulação empresarial.

O objetivo deste artigo é apresentar a produção musical baiana contemporânea denominada Axé music, ofertan-do elementos na tentativa de desconstrução de três mi-tos (monocultura, baixa qualidade técnica e sua suposta decadência). A metodologia utilizada privilegia a análise

de conteúdo, tendo como meios de verificação e coleta de dados, entrevistas semi-estruturadas com músicos, técnicos, produtores e empresários musicais de Salvador, pesquisa documental e de campo, além de inscrição em boletins eletrônicos relacionados ao campo musical baia-no e da indústria musical brasileira.

2. Breve História da Axé musicA breve história aqui apresentada se faz pela necessidade de contextualização, não se configurando como objeto central de análise3. Procura evidenciar a década de 1980, enquanto temporalidade de legitimação dos chamados blocos de trio4 no carnaval soteropolitano – ampliando consideravelmente o alcance comercial e mercadológico deste – fato que possibilitou o surgimento de novos gru-pos e bandas musicais.

Estimuladas e contratadas por empresários destes blocos carnavalescos, e, seguindo parâmetros estético-musicais apontados pelos Novos Baianos, Dodô e Osmar, Moraes Moreira, Pepeu Gomes, Armandinho, e da religiosidade e força percussiva apontada por blocos afro como Filhos de Gandhi, Muzenza, Badauê, Ilê Aiyê e Olodum, iniciou-se a formação de um relevante conjunto de novos artistas e estrelas de trio em Salvador, tais como Luiz Caldas, Sa-rajane, Ademar e Banda Furtacor, Virgílio, Jota Morbeck, Djalma Oliveira, Lui Muritiba, Daniela Mercury, Zé Paulo, Marcionílio, Banda Pinel, entre outros.

A estética musical herdada pela Axé music é composta por diversos estilos e gêneros musicais locais e globais, como o frevo, o ijexá, o samba, o reggae, a salsa, o rock e lambada, entre outros. Percussão e guitarras – baianas, preferencialmente5 - temperavam o “caldeirão” de uma cidade que reverbera música e etnicidade. MOURA (2001, p.221) conceitua Axé music, a partir desta pluralidade em sua gênese, como não sendo um gênero musical, mas “in-teface de estilos e repertórios”.

Trataremos desta questão mais adiante, mas cabe salientar que apesar desta diversidade, havia duas predominâncias no carnaval soteropolitano até a primeira metade da déca-da de 1980: Dodô e Osmar no quesito trio-elétrico; e o Fre-vo, enquanto gênero musical massivo. É Luiz Caldas quem desloca consideravelmente estas referências, inscrevendo não somente o trio-elétrico Tapajós, mas o ijexá nas rádios comerciais da cidade. O Tapajós - propriedade de Orlando Tapajós -, é palco, inclusive, da banda Acordes Verdes, que tinha Luiz Caldas como seu cantor e idealizador6.

Em 1985, Luiz Caldas lança o LP Magia, magistral regis-tro comercial de um artista que logo alcançaria as para-das de sucesso de boa parte do Brasil com a faixa Fricote (Nêga do cabelo duro). Tendo como autores o próprio Luiz Caldas e Paulinho Camafeu, Fricote representava uma musicalidade baiana de entretenimento. A ampla receptividade da obra e deste artista com visual exótico reforçava as dinâmicas musicais locais já existentes em Salvador, tais como a musicalidade e a territorialidade

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dos blocos-afro – relevantes enquanto referência esté-tica para autores, artistas e sociedade.

A intensa presença midiática de Luiz Caldas no cenário musical e sua associação, à época, com o jovem e promis-sor Bloco Camaleão; a ascensão dos blocos-afro espalha-dos pela cidade; o interesse e incursão das gravadoras no campo artístico local; o apoio de empresários e radialistas também locais, com relevante destaque para Wesley Ran-gel7 e Cristóvão Rodrigues8, respectivamente; o início de uma aliança entre artistas e as forças políticas, são ape-nas alguns elementos e indícios que corroboram, à época, com a situação privilegiada da Bahia no campo cultural e artístico nacional.

O novo cenário musical baiano de meados da década de 1980 necessitava de nome, paternidade e referên-cias para registro. Convencionou-se, então, a partir de inscrições e iniciativas jornalísticas: Luiz Caldas, o pai; o LP Magia e a música Fricote, marcos iniciais. Vamos a eles: a expressão Axé music é reforçada coletivamente a partir de textos e críticas do jornalista baiano Haga-menon Brito que procuravam negativar tal produção musical. Na relação inicial de seus primeiros artistas e a Imprensa, a diminuta compreensão acerca do gênero contemplava a dependência desta com o setor fonográ-fico nacional, e, quase sempre orientavam para a supos-ta ausência de criatividade e baixa qualidade técnica de seus músicos e intérpretes.

A correlação de forças midiáticas e musicais, à época, procurou, sem sucesso, ofuscar que na nomenclatura Axé music, para além dos preconceitos e estereótipos, conti-nha a possibilidade de fusão, do encontro entre estéticas e instrumentos musicais distintos: Axé, representando o afro, o tribal, o negro, o candomblé; Music contemplava o pop, o world music, neste caso, estilizado pelo encontro de guitarra e timbau, além da mediação pela voz em re-frões fáceis e repetitivos.

Quanto à necessidade de instituir paternidade e refe-rências, há controvérsias. Luiz Caldas, o álbum Magia e a obra Fricote não podem ser considerados marcos ini-ciais, mas indícios relevantes na historiografia da Axé music, enquanto suas primeiras e magistrais referências mercadológicas. Deve-se considerar o caráter processu-al deste fenômeno, tal como Norbert Elias sugere: “(...) nada mais inútil quando lidamos com processos sociais de longa duração, do que a tentativa de determinar um começo absoluto” (ELIAS, 2001, p.234). Artistas atuais, à época, já se apresentavam e registravam lançamento de discos antes mesmo de Luiz Caldas – Chiclete com Banana, por exemplo, lançou em 1983 dois discos: Traz os Montes e Estação das Cores.

O fato mais marcante é que em 1986, o álbum Magia atinge a marca de 120 mil cópias vendidas, e a exposição midiática e musical de Luiz Caldas, à época, represen-tava novas possibilidades para a indústria fonográfica

nacional que, prontamente, se voltaria para a mais nova produção musical soteropolitana. É neste contexto que surge e se substancializa no cotidiano da cidade, mais tarde Brasil, a música Faraó (autoria de Luciano Gomes), elencando o Olodum e seus ensaios no Pelourinho, como vitrine de músicas, artistas e compositores emergentes. Nestes ensaios, artistas e autores, apresentavam e expe-rimentavam suas músicas, em busca de legitimação po-pular. A ocorrência de tal aceitação representava alcançar outras etapas da produção musical que desembocaria em profissionais como Wesley Rangel e Cristóvão Rodrigues.

Neste breve relato, vale o registro de que o Olodum, me-diante a pronta aceitação popular de suas obras, cantores e de seu ensaio na famosa “Terça da Benção”, passou a promover duas modalidades deste: aberto e fechado. O “ensaio aberto” era realizado nas noites de domingo, no Largo do Pelourinho; o “fechado”, nas noites de terça-fei-ra, na quadra do Teatro Miguel Santana, sendo necessária a aquisição comercial de ingressos.

Neguinho do Samba, percussionista experiente e respon-sável pelos arranjos percussivos da banda Olodum, apre-sentava boa parte de suas “experimentações” sonoras, fundindo o samba-duro baiano e o reggae jamaicano, chegando às células rítmicas do samba-reggae – base rítmica predominante e característica da Axé music.

Neste sentido, GILROY (2001, p.92-98) reflete acerca da modernidade a partir das culturas do Atlântico Negro, caracterizada pelo seu aspecto híbrido, e não restrito a etnicidade e nacionalismo. A Axé music pode ser in-corporada às reflexões deste autor, assim como, alguns elementos de sua gênese – por exemplo, o fenômeno disseminador dos blocos afro-soteropolitanos -, como mote, ou, sendo a estas pertencentes. Parte considerável de artistas da Axé music procurou se desvencilhar desta temática, enquanto outros a tomaram como temática central de seu repertório.

LIMA (2002, p.77-96) corrobora com esta discussão, a partir de três exemplos soteropolitanos emblemáticos - Ilê Aiyê, Olodum e Timbalada -, afirmando existir entre estes, trajetórias discursivas distintas envolvendo mú-sica e etnicidade. A ampla atuação nacional e interna-cional do Grupo Cultural Olodum realçou e impulsionou sua dinamicidade e complexidade organizacional, dialo-gando tradição e modernidade a partir de ideais vincu-lados à etnicidade, e, em especial, aos dilemas e dramas do afrodescendente baiano e brasileiro, como observou DANTAS (1994, p.36).

Acerca da percussão enquanto elemento da Axé music, ainda hoje se pode perceber a predominância desta nos blocos afro, blocos de trio, artistas e bandas responsáveis pela música dos blocos de corda - ainda que alguns blo-cos afro tenham se aventurado e solidificado experiências percussivas a instrumentos harmônicos e melódicos. Um dos principais precursores desta transformação, o bloco

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Ara Ketu, chegou a ser acusado e criticado por se distan-ciar dos seus elementos e objetivos iniciais, como num processo acentuado de descaracterização registrado por GUERREIRO (2000, p.33-39).

As transformações não estavam restritas ao universo da Axé music, mas à própria cidade... A década de 1980 não apresentou somente o início da aparição midiática e estruturação empresarial do gênero em questão, mas o início de um conjunto de transformações socioeconô-micas e culturais no Estado, tais como os primeiros anos de atividade do Complexo Petroquímico de Camaçari; da implantação de Shoppings Centers; do maior complexo de comunicação do Estado (Rede Bahia); da aparição e fortalecimento de grandes organismos empresariais carnavalescos, chamados blocos de trio (MIGUEZ, 2002, p.252-304); do surgimento dos blocos afro e ampliação de suas atividades, contando, inclusive, com registros fonográficos; de encontros musicais inusitados até en-tão, como o Concerto da Orquestra Sinfônica da Bahia com o Afoxé Filhos de Gandhi - fruto de provocações e reivindicações de artistas e compositores baianos; de Carlinhos Brown e seu Vai quem Vem, grupo que se des-dobraria posteriormente, em sua perspectiva musical e multi-étnica intitulada Timbalada.

MOURA (2001, p.120) sinaliza parte destas transfor-mações enquanto modernização da cidade de Salvador, sendo, inclusive, motivo e tema para outras formas de visibilidade e inscrição no/do carnaval soteropolitano, as-sinalando a força relacional deste enquanto experiência social comunitária que se estende aos novos modelos de convivência urbana contemporânea. Para MIGUEZ (ibid., p.265), a década de 1980, então, se configura enquanto consolidação do mercado de bens simbólico-culturais no Brasil, iniciado nas duas décadas anteriores e, no caso Bahia, duas dinâmicas se consolidam, prioritariamente, na formatação e legitimação da Axé music: os blocos afro (estética e temáticas) e os blocos de trio (mercado).

Na década de 1990, é este mercado que ativa seus me-canismos, personagens e teias midiáticas, e eleva a Axé music, e seus principais interlocutores, ao topo das pa-radas musicais nacionais, reposicionando no tabuleiro competitivo da indústria fonográfica o gênero sertane-jo. Aliando a percussividade dos blocos afro aos acor-des e harmonias de bandas e artistas como Luiz Caldas, Sarajane, Reflexu’s, Daniela Mercury, Banda Eva, Banda Beijo (Netinho), Chiclete com Banana, Asa de Águia, entre outros, consolidou-se na agenda dos programas televisivos, de rádio, do mercado fonográfico nacional, sendo alvo dos interesses das gravadoras majors em atividade no país.

O repentino sucesso comercial e midiático da Axé music também oportunizou comportamentos isomórficos no mercado, e inúmeros registros negativos. Um deles, a pro-liferação de considerável contingente de bandas, intérpre-tes e empresários que não privilegiaram o lado artístico

de suas produções, deixando na história fonográfica deste gênero álbuns e gravações de questionável qualidade.

Numa outra perspectiva, sua extensão efetiva aos dias atuais encontra-se diretamente relacionada ao próprio desenvolvimento do carnaval soteropolitano, e suas múl-tiplas atividades inter-relacionadas. Dentre elas, desta-que para os blocos de cordas, e o conjunto de organiza-ções empresariais advindos das estrelas e artistas deste segmento musical, motivando discussões e embates ideo-lógicos acerca de elementos presentes e constituintes de aspectos circunscritos a tradição e modernidade.

Entretanto, ainda hoje, não raro, a constante presença e legitimação da Axé music no cenário musical local e nacio-nal é marcado por dissensões e mitos – estes, compreen-didos enquanto ideias não correspondentes com a verdade do fato social. Dentre os mitos, neste trabalho, destaque para o da monocultura, da suposta baixa qualidade técnica e de sua tão propagada crise/decadência/desaparecimento.

3. Mito I – Monocultura da Axé MusicA compreensão de que a produção musical baiana atual é restrita ao Axé music é equivocada (Ex.1), e, não raro, amparada no desconhecimento da relevante diversidade presente no campo musical baiano. Ora silenciosa, ora invocando os meios de comunicação, parte considerável da diversa produção musical baiana é exportada diaria-mente, seja na virtualidade, seja nas remanescentes lojas tradicionais de CD´s e DVD´s, ou nos inúmeros shows e participações de artistas baianos que se apresentam fora e dentro da Bahia.

Composta por inúmeros artistas esteticamente vincu-lados ao mundo do Rock, Reggae, Forró, Samba, Samba Junino (semelhanças rítmicas ao Samba Duro de bairros como o Engenho Velho de Brotas), Pagode, Partido Alto, MPB, Salsa/Merengue, Jazz, Erudito e Pop, a Bahia dia-loga sua textualidade e inscrição no competitivo campo das marcas, a partir da relação tradição e modernidade. É bem verdade que, dentre inúmeros gêneros e estilos mu-sicais, é a Axé music o maior exemplo de estruturação e organização empresarial, mas não o único. Monocultura pressupõe unidade e ausência de outros discursos e ele-mentos estéticos – não sendo este, o caso da Bahia. A Bahia, e em especial Salvador, congrega produção e frui-ção de inúmeros gêneros musicais (Ex.1).

Os elementos simbólicos podem conferir à Bahia sentidos do Pop - de popular -, massiva e carismática, onde os registros do percussionista do Olodum erguendo o instru-mento de percussão com as cores da África já não mais lhe pertencem... Configura-se enquanto arquivo sempre disponível a downloads, evidenciando e disseminando a marca de um Estado com produção musical diversificada que, não raro, agrega e agrada, fixa e desloca constante-mente sentidos identitários, (re)orientando olhares, sen-sações, experiências e as próprias (re)significações iden-titárias (HALL, 1999; CANCLINI, 2003).

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ção e funcionalidade das marcas na contemporaneidade, identificando, distinguindo, localizando, enquadrando e incorporando sentidos diversos em seu processo de exis-tência, sendo a marca, um campo simbólico que se ali-menta do real (o histórico de seus produtos e obras) e do imaginário (através da comunicação). Ou seja, as es-tratégias corporativas pertencentes à gestão de marcas englobam bens tangíveis e intangíveis que se locupletam e se (re)significam socialmente (ibid., p.188).

A Axé music, assim como os demais gêneros musicais produzidos na Bahia contemporânea, constitui-se en-quanto marca distintiva e agregadora de significantes, relações físicas/metafísicas e potencialidades, tal como qualquer outro gênero musical. Para NORBERTO SILVA (2003, p.208), as significações sociais são estruturantes, constituindo utilidade e tessituras identitárias diversas que favorecem consumo e distinção. Não obstante, a au-tora aprofunda as discussões acerca da criação, utiliza-

Quadro I – Bares, Boites e Casas de Shows/Eventos em Salvador9

Bairro Espaço/Casa de Show Gêneros Musicais

Rio Vermelho

BoomerangueCasa da MãeTom do SaborEspaço Jequitibar/Varanda do SESIBorrachariaAll Music BarThe Twist Pub

MPB, Salsa, Forró, Pop, Rock, Reggae, Eletrônico, outros.

ParalelaBahia Café HallWet’n WildParque de Exposições

Axé music, Pagode, Sertanejo, Salsa, Forró, Pop, Rock, Reggae, Eletrônico, Gospel, outros.

ComércioMuseu du RitmoCais Dourado

Axé music, Pop Rock, MPB.

OrlaMamagayaBeach Beer

Pagode, Axé music, outros.

Avenida ContornoBahia MarinaCais Dourado

Axé music, Pop Rock, MPB.

Ribeira Marina da Penha Pagode e Arrocha.

Barris Beco de Rosália MPB.

Pituba

What’s UpRock ItPra ComeçarHit Music Bar

Pop Rock, Forró, Reggae.

Barra Club LotusBohemia

Eletrônico, Forró, Pop Rock, Axé music.

Jardim dos NamoradosMadrre

Forró, Axé music, Pop, Funk, Pagode, Eletrônico, MPB.

Boca do Rio Empório Forró, Pagode e Axé music.

GaribaldiEstação Ed Dez

Pagode, Forró, Axé music, Pop Rock e Gospel.

Campo Grande Concha Acústica do TCAMPB, Reggae, Axé music, Forró, Rock, outros.

Fonte: Pesquisa de campo do autor realizada entre os meses de março e setembro de 2009.

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Esta relação - consumo e lógica social – também é ana-lisada por BOURDIEU (1989, p.36) em considerações acerca do fenômeno da distinção social e da sociedade de consumo. SAHLINS (2003, p.128-161) amplia esta discussão evocando conceitos estruturantes do capita-lismo industrial e pós-industrial. Para SAHLINS (ibid., p. 209), objetos e pessoas estão “unidos em um sistema de avaliações simbólicas, sendo o próprio capitalismo um processo simbólico”. CASTORIADIS (2000, p.142), ao descrever as ordens racionais existentes nos campos simbólicos específicos, adota a expressão “universo sig-nificativo” para tal assunto.

Neste sentido, a lógica social do consumo enquanto ele-mento distintivo e possuidor de significações sociais e sentidos, pode ser incorporada ao configurar a Axé mu-sic enquanto marca impulsionadora de novas lógicas e atores sociais. ELIAS (1995, p.50) advoga que a condição humana é desejosa de diferenciação e status, a partir de regras socialmente instituídas e legitimadas de valores e hierarquizações distintivas mediante o consumo. Para ELIAS (ibid. p. 50-51), tais valores “são sempre determi-nados também pela nossa esperança de ver que os ou-tros têm consciência do nosso mérito, ou pelo aumento do nosso prestígio pessoal”. A produção cultural, neste sentido, se constitui como elemento distintivo, tipifi-cando sujeitos e suas representações sociais desejadas a partir deste com o outro.

Compreendendo o campo simbólico como a territoriali-dade mediada pelos signos e símbolos, enquanto elemen-tos “por excelência da integração social” que possibilitam o consenso acerca do sentido do social (BOURDIEU, 1989, p. 07-16), o próprio sentido de contemporâneo é cons-tantemente ressignificado mediante as transformações econômicas, tecnológicas e sociais também constantes. Não obstante, a espetacularização (DEBORD, 1997, p.13) é um dos sinais contemporâneos mais incisivos, e, sendo assim, a produção musical baiana contemporânea aqui apresentada se locupleta desta estrutura que mundializa cultura(s), atribuindo novos sentidos à contemporaneida-de, ao espetáculo.

Sendo assim, a Axé music, enquanto produção simbólica, corrobora com a inscrição do produto Bahia mundo afora, como é comum em outras territorialidades que articulam elementos e feixes constitutivos de seu patrimônio cultu-ral como estratégia de atratividade e mercantilização de produtos turísticos formatados, dinâmicos e globalizados. Para IANNI (1999, p. 124), a obtenção de renda mediante negociação do seu espaço, das suas culturas e produções simbólicas, além de provocar deslocamentos, integra-se ao contemporâneo, onde:

Em todas as esferas da vida social, compreendendo as empresas transnacionais e as organizações multilaterais, os meios de comu-nicação de massa e as igrejas, as bolsas de valores e os festivais de música popular, as corridas automobilísticas, as guerras, tudo se tecnifica, organiza-se eletronicamente, adquire as características do espetáculo produzido com base nas redes eletrônicas, informá-ticas, automáticas, instantâneas e universais.

Eis, então, que a telemática e as convergências em redes eletrônicas realçam o poder do simbólico contemporâneo, contribuindo para configurar o âmbito das políticas neoli-berais. Nesta lógica, no campo baiano, são inúmeras as ini-ciativas governamentais, não somente relacionadas à Axé music, mas a outros gêneros. Da extinta Secretaria de Cul-tura e Turismo do Governo do Estado da Bahia, até 2006, projetos como o Emergentes da Madrugada, Bahia Singu-lar e Plural, Sons da Bahia, permitiram o registro fonográfi-co de boa parte desta diversidade cultural do Estado.

A visibilidade, mais uma vez, no caso Bahia, ressalta apoios do Estado aos seus artistas, uma vez que, não raro, dada à força midiática e massiva de seus repertórios e incursões, estrelam campanhas publicitárias estratégicas que destacam as potencialidades culturais e naturais do Estado para seus principais centros emissivos de turistas. É a música e a etnicidade como elementos simbólico-cul-turais, e fatores motivacionais de deslocamento turístico.

O simbólico, neste caso, produzindo reconhecimento, afetividade, representatividade – política, inclusive – e ignora o arbitrário, o descrédito e o ilegítimo. Ainda assim, compreendendo desta forma o campo simbólico, não se pode excluir as outras forças e poderes nele ins-critas, dentre estes, a produção artística e as relações e conflitos daí advindos. Um deles é a competitividade entre os próprios estados brasileiros, tendo como su-porte, as suas produções artísticas e culturais de um lado, e, do outro, a força dos meios de comunicação aí instalados enquanto atores relevantes nas tramas da Indústria Cultural. MOURA (1996, p.07), no caso Bahia, observa que descartar ou não procurar evidenciar suas potencialidades, seria equívoco:

O produtor, o mercador e a mercadoria são um mesmo todo, con-traditório e desigual. Em descartando a participação desse todo na sua diversidade, que significa inclusive potencialidades ainda não cogitadas e exploradas, estaríamos arriscando um capital humano fantástico, o que poderia adquirir cores sombrias em tempos de vacas tão magras.

Em outras palavras, envolve outras possibilidades de be-nefícios não restritos ao Carnaval – enquanto dinâmica e temporalidade. Enquanto dinâmica, a Axé music se subs-tancializa em artistas/empresários locais consagrados nacionalmente, suscitando novas atividades, necessida-des, profissionais, consensos e conflitos... Enquanto tem-poralidade, a Axé music extrapola o circuito do carnaval soteropolitano, numa extensa programação de shows e micaretas que se inter-relacionam com o carnaval de Salvador, numa espécie de retro-alimentação não restrita às sonoridades, mas às corporações locais – produtoras, agenciadores, editores musicais, etc.

É o mercado do entretenimento, da indústria cultural centrada especialmente em Salvador e seu Recôncavo, que corroboram com os alinhaves identitários, tanto no sentido dos arcabouços sociológicos quanto naquele dos temas econômicos. Em outras palavras, que Bahia é esta,

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capaz de competir com transnacionais da indústria fono-gráfica, por exemplo, tensionando a partir de uma produ-ção musical e fruição estética próprias? Novos e velhos vetores de sentido (NORBERTO SILVA, 2003, p.203-223) se inscrevem, e são estimulados, junto ao imaginário na-cional e internacional acerca do lócus e ethos Bahia.

Por outro lado, houve críticas à participação estratégica da Bahiatursa nos últimos anos, quando de seu apoio a alguns artistas da Axé music em shows por outros pa-íses, tendo como contrapartida, a divulgação da marca Bahia e de suas ferramentas publicitárias, tais como portais eletrônicos de divulgação turística10. O fato é que a mesma Bahiatursa também proporcionou a via-gem internacional do grupo folclórico baiano Zambia-punga, entre outras iniciativas governamentais de apoio e fomento às produções artísticas e culturais.

O mito da monocultura pode estar atrelado à força po-lítica, econômica e empresarial dos principais artistas deste gênero baiano. No aspecto político, se articula-ram relações, benefícios e interesses com governantes e meios de comunicação. O carnaval soteropolitano, por exemplo, vem passando por complexas modificações de modo a atender interesses dos gestores culturais vincu-lados à iniciativa privada, no campo música. O tradicio-nal e gratuito encontro de trios da Praça Castro Alves não mais existe, e o tradicional circuito do Campo Gran-de apresenta sinais de decadência e de pouco interesse dos principais artistas.

A concentração econômica dos principais artistas da Axé music no carnaval soteropolitano é considerável. Bandas e artistas como Ivete Sangalo, Asa de Águia e Chiclete com Banana, individualmente, são representantes empre-sariais de inúmeros blocos e camarotes.

Passando ao campo simbólico, Axé music pressupõe diver-sidade e dela se (retro)alimenta, onde é comum seus artis-tas experimentarem em seus repertórios músicas inteiras, fragmentos, ou combinações entre gêneros presentes na produção musical baiana. Nada extraordinário, até então, uma vez que a polissemia conceitual das experimentações e encontros dos gêneros musicais é inerente ao próprio conceito de gênero, numa perspectiva de que suas fron-teiras estéticas do gênero musical enquanto apropriação e categoria são tênues, distintivas e subjetivas.

Nesta direção, a confluência das formas rítmicas e melódi-cas de uma musicalidade das ruas de Salvador, Recôncavo e demais regiões se interfacia com elementos da cultura mundial pop, multiétnica, multicultural e world music11, representando a própria “interface de estilos” sugerida por MOURA (2001, p.220). Para GUERREIRO (2000, p.117), a centralidade da produção musical baiana contemporânea assentada na percussividade é que garante sua inscrição ao universo da world music, onde funcionam mais facilmente as fusões entre células rítmicas, entre timbres sonoros, per-formances, corporalidades e novos sentidos de pertença.

As origens embrionárias da Axé music são distintas, e, quase numa rítmica antropofágica/tropicalista, consegue unir, fundir céluas rítmicas e melodias, popularizando e entretendo sem maiores reflexões ou preocupações – fato que acentua seu caráter massivo e de entretenimen-to. Ainda segundo MOURA (ibid., p.221):

Vejo aí, também, o próprio ecletismo dos elementos que passam a se encontrar nesse intrigante repertório que tantas páginas tem merecido de jornalistas, críticos, comunicólogos e cientistas so-ciais. A axé music apresenta-se como texto identitário difuso e aparentemente aproblemático e consensual, referindo-se à Bahia como um todo, já desde o início contando com a participação de músicos de várias origens e estilos.

Passando ao campo organizacional, boa parte dos artistas da Axé music se articulou, empreendendo suas próprias empresas relacionadas à gestão cultural – administração das carreiras artísticas e atividades a estas relacionadas, tais como, selos fonográficos, editoras musicais, agências de publicidade, estúdios de gravação, produtora de shows e eventos, entre outras.

Pode-se perceber a preponderância dos artistas relacio-nados ao universo Axé music, onde boa parte dos seus artistas é proprietária de editoras musicais, situando a Bahia de forma representativa e relevante junto aos te-mas pertinentes ao direito autoral.

A Bahia vem se configurando como o terceiro estado em número de Editoras Musicais no país (revista Su-cesso CD/Show Business/ECAD/UBC–2008), sexto em arrecadação pública, inscrevendo alguns de seus Au-tores na liderança de rankings nacionais e regionais no quesito recebimento de Direitos Autorais – categoria Execução Pública.

No campo da edição musical soteropolitana, boa parte das Editoras Musicais é de propriedade dos artistas locais, sejam cantores ou autores, aproximando-se do quadro do Sudeste do País onde estas organizações - líderes deste mercado - estão divididas entre as de propriedade das majors12 e dos artistas locais. Em Salvador, esta atividade é mais um dos desdobramentos evidenciados a partir da profissionalização do Carnaval Baiano e da legitimação da música denominada Axé music.

A monocultura do Axé music em Salvador não proce-de, mas apresenta indícios de que este gênero musical apresenta evidências de profissionalização, tendo, ainda, objetivos definidos e articulação social entre os atores, fortalecendo o campo. DiMAGGIO e POWELL (2005, p.31) afirmam que o campo organizacional só pode ser consi-derado se houver legitimação empírica e com definições institucionais. Para tal, os autores afirmam que são ne-cessários quatro elementos:

a) um aumento na amplitude da interação entre as orga-nizações no campo;

b) o surgimento de estruturas de dominação e padrões de coalizões interorganizacionais claramente definidos;

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c) um aumento na carga de informação com a qual as organizações dentro de um campo devem lidar;

d) o desenvolvimento de uma conscientização mútua en-tre os participantes de um grupo de organizações de que estão envolvidos em um negócio comum.

Em 1999, visando ao maior grau de profissionalismo, so-lução de problemas coletivos do setor e ampliação dos destinos e públicos da Axé music, surge a APABahia – As-sociação dos Produtores de Axé para o Desenvolvimento da Música da Bahia -, comumente chamada de APA.

O surgimento e desenvolvimento da Axé music e de organis-mos coletivos como a APA Bahia, tanto nos aspectos esté-ticos quanto organizacionais, remete, em boa parte, à pro-fissionalização e dinamismo da produção artística e musical no Estado da Bahia. Dentre as atividades da APA, o monito-ramento da execução de seus repertórios em localidades es-tratégicas, assim como a própria empresarização de horários nas rádios comerciais de outros estados, visando à exposição e execução musical dos seus associados. Não obstante, atua no campo político, tendo representação no Cluster de Cultu-ra e Entretenimento do Estado da Bahia.

J.R., produtor da banda Rapazzolla, sobre a diversidade musical soteropolitana e organização empresarial da Axé music, comenta13:

[...] o Axé é a grande referência musical atual da Bahia, mas sabe-mos que existem outros ritmos acontecendo na cidade. Viajamos toda semana, mas, em Salvador, frequentamos eventos de outros gêneros, e sempre divulgamos isso nas entrevistas. (...) A produção de uma banda de Axé Music é muito organizada. Mais até que o Pagode, por exemplo. Posso falar porque trabalhei como produtor de pagode por dez anos.

Não obstante, Salvador, a partir de iniciativas de artistas e da própria sociedade civil, vem apresentando inúmeros eventos relacionados a outras musicalidades. Tanto quan-to o Axé music, o Rock é merecedor de destaque frente a sua estética e organização. Dedicação, profissionalismo e amor ao Rock fizeram surgir na cena soteropolitana a Associação Cultural Clube do Rock da Bahia – ACCRBA -, em 1991. Exemplo emblemático no Brasil, esta associa-ção sem fins lucrativos atua incisivamente na produção e organização de eventos culturais, prestação de serviços em forma de cooperativa, captação de convênios e asses-soria junto às bandas de rock. Pioneira dentre as associa-ções de Rock no Brasil, são de sua responsabilidade ações que se solidificam na realização do Primeiro Festival de Rock do Carnaval do Brasil (1994); Primeiro Dia Muni-cipal do Rock do Brasil – 28 de junho, em homenagem a Raul Seixas -, através da Lei 5404/98.

Caracteriza-se, ainda, pela articulação e intransigência quando o assunto é desrespeito ao Rock no Estado, as-sim como, quando se trata de reivindicar maiores espaços para este segmento. A ACCRBA possui site, rádio/podcast, comunidade virtual de relacionamento, msn, fotolog, ví-deos no youtube, grupos de discussão na rede, entre ou-tros. Dentre suas realizações, destaque para o Palco do

Rock - realizado no Carnaval de Salvador, bairro de Piatã, onde frequência superior a oito mil pessoas por ano14.

A receptividade do Reggae e do Forró na Bahia, por exemplo, despertou o surgimento de eventos específicos e inúmeras bandas destes gêneros com relevante diversidade, inclusive. Bandas e artistas com repertórios que transitam entre o tra-dicional reggae - raiz, ou reggae roots -, aos mais híbridos, com destaque para Edson Gomes, Sine Calmon, Diamba, Adão Negro, Massai, Palmares, Mosiah, entre outros.

O Forró também soube consolidar seu cast de artistas e agenda de contratantes. Dentre as bandas baianas, des-taque para Estakazero, Colher de Pau, Adelmário Coelho, Flor Serena, Virado no Mói de Coentro, A Volante do Sargento Bezerra, Cangaia de Jegue, Sobe Poeira, Acara-jé com Camarão, Tio Barnabé, são exemplos verossímeis de que outros gêneros musicais se estruturaram, estéti-ca e mercadologicamente, em paralelo à Axé music, e se fazem presentes na mídia.

4. Mito II – Baixa qualidade técnica O segundo grande mito relacionado a Axé music é esta-belecido a partir de sua suposta “baixa qualidade téc-nica”. Mas o que caracterizaria e fundamentaria esta expressão? Arranjos mal elaborados? Canções repetiti-vas? Músicos tecnicamente pouco habilitados? Excesso de unidade temática composicional? A participação no campo permite afirmar que tais críticas estão alicerça-das a partir da disseminação do senso comum plugado em desconhecimento e preconceito.

A sensibilidade e qualidade técnica dos músicos, arran-jadores e diretores musicais em atividade nas bandas de Axé music são relevantes no processo de legitimação des-ta, ainda que tais informações sejam restritas ao meio musical. Assim, como em qualquer outro gênero musical popular massivo, o virtuosismo não é regra fundante para alcance do sucesso, necessitando, ainda, de elementos outros - rede de relacionamentos, carisma, oportunismo, sorte, inteligência, habilidade e senso estético.

Na Axé music, autodidatas e doutores atuam inten-samente numa rotina nacional e internacional de ensaios, shows, viagens, gravações, estúdios, etc. O ecletismo na formação destes profissionais só corro-bora com a requisitada diversidade constituinte da Axé music, potencializando, inclusive, oportunidades, como afirma MOURA (2001, p.197):

A princípio, o trio-elétrico tocava frevo, dobrado, marcha e passo doble. Com a introdução de recursos do rock no instrumental e no repertório, e em seguida do canto, ampliaram-se consideravelmente as possibilidades de sucesso e a demanda de consumo da banda.

Músicos vinculados ao universo Axé, não raro, também acumulam experiências profissionais em outros estilos e gêneros musicais em Salvador, tais como o Choro, Jazz, Samba, Rock, Funk, Forró, Eletrônico, entre outros.

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O Rock, por exemplo, estabelece diálogo constante com a Axé music, proporcionando informações relevantes a bandas como Asa de Águia, Netinho, Ivete Sangalo e Jammil e uma Noites. Estas influências são percebidas nos arranjos, nos fraseados, timbres e agressividade de alguns efeitos, distor-ções e riffs de guitarra. Adail Scarpelini, natural de Aracajú/SE, guitarrista e diretor musical da banda Voa Dois – banda Revelação do Carnaval de Salvador 2008 -, informa que a centralidade da produção musical para Sergipe era – para muitos, segundo ele, ainda é - a Bahia. Visibilidade e retorno financeiro, mas, acima de tudo, pela experiência de estar ao lado de músicos que sempre respeitou e admirou.

Por muito tempo toquei e dirigi musicalmente bandas e cds de for-ró. Calcinha Preta (SE), Caviar com Rapadura (CE), Colher de Pau (BA), mas sempre quis ter a experiência da Axé Music, da união entre percussão/harmonia. Toquei com Netinho, e agora estou com a Voa Dois, além de sempre estar produzindo e gravando com ou-tros artistas. Quando as bandas de Axé iam a Aracajú, a gente ia aos shows, procurava conversar com os músicos, lia os encartes. A Bahia era nossa maior referência musical.

Em 2008, o Prêmio Multishow de Música Brasileira premiou um destes renomados músicos, Radamés Venâncio, na cate-goria Melhor Instrumentista, enquanto Ivete, representante de uma vertente acentuadamente pop da Axé music, foi agraciada nas categorias de Melhor Cantora e Melhor DVD (Multishow ao Vivo – Ivete Sangalo no Maracanã).

Detentor de inúmeros prêmios nacionais e internacionais, Carlinhos Brown consegue aproveitar estas situações para discursar sobre uma Bahia sempre planetária e referencial na música nacional, exaltando a capacidade de diálogo es-tético da produção musical baiana contemporânea.

Sua ampla concepção musical não dispensa os ensina-mentos e provocações herdadas de músicos contemporâ-neos - baianos ou radicados na Bahia -, como Ernest Wi-dmer, Walter Smétak e Lindemberg Cardoso, assim como, numa escala internacional, negocia espaços mediante novos encontros musicais. De sua parceria com o DJ Dero, em 2004, resulta o disco com forte influência eletrônica Candyall Beat, que tem como principal hit a obra “Ma-riacaipirinha”. Lançados inicialmente na Espanha, disco e obra alcançam sucesso, remetendo, neste mesmo ano, Carlinhos Brown - naquelas plagas conhecido por Carli-to Marron -, à condição de convidado musical do Fórum Universal das Culturas, realizado em Barcelona.

Da parceria feita com Sérgio Mendes, em 1985, conseguiu emplacar cinco composições no álbum “Brasileiro” – ganhador do Grammy de melhor disco de World Music. Em Salvador, neste mesmo ano, recebe também o Troféu Caymmi. Inúmeros outros prêmios vieram nos anos seguintes, coroando Bro-wn como um dos maiores nomes da Axé music, ora como músico, produtor ou compositor.

A preocupação com a qualidade profissional dos músicos acompanhantes também se constitui verossímil no mo-mento da formação das bandas. José Raimundo, tecladis-

ta, arranjador e diretor musical que acompanhou Netinho de 1989 a 1998, declara15:

Jomar entrou no grupo em 1996... A decisão de termos dois tecla-distas foi uma sugestão minha, pois usávamos muito sequencer (programação), e sempre quis muito ter outro tecladista tocando comigo, por conta dos muitos detalhes de teclados que minhas duas únicas mãos não conseguiam executar. O primeiro tecladista que tocou com a gente foi Glauton Campelo - um excelente pia-nista jazzista carioca que morou 8 anos nos EUA e que tocava com Djavan ao lado de Paulo Calazans.

Arranjos, neste sentido, corroboram com a lógica de identi-ficação e diferenciação do artista, e são inúmeros os exem-plos de arranjos que se tornaram referências, remetendo, diretamente, músico/arranjador a artista, e vice-versa.

A estética musical da Axé music encontra-se nos referen-ciais de timbragem e sonoridade contidos nos arranjos, mas, também, a partir do entrosamento musical das ban-das e artistas que souberam aliar a força da sonoridade percussiva à variedade de timbres e recursos tecnológicos contidas na organologia ocidental tradicional, como gui-tarra, bateria, contrabaixo, saxofone, etc. Em outras pala-vras, o encanto se dá pela magia e carisma do artista, seu entrosamento com seus pares, repertórios selecionados e previamente testados nas dezenas de shows e micaretas realizadas durante o ano, dentro e fora do Brasil.

Entrosamento, carisma, virtuosismo e sensibilidade são elementos referenciais nas justificativas de obtenção do sucesso por parte dos artistas e bandas de Axé music. O virtuosismo, na contemporaneidade, nem sempre é ga-rantia de êxito – reconhecimento pessoal e comercial. As musicalidades desta são frutos do encontro entre músi-cos formados nos conservatórios e academia, nas igrejas e terreiros de candomblé, na generosidade presente nos conselhos informais, e, principalmente, nas dinâmicas das ruas da cidade que se pretende mundial a partir de seus fazeres e saberes artísticos, em especial, a música.

5. Mito III – Fim da Axé music A relação arte/espaço, nesta discussão, a partir da per-cepção imponente da produção musical baiana contem-porânea no certame das condições geográficas nacionais, evidencia uma territorialidade resoluta em suas convic-ções de afirmação artística perante o outro - nacional ou estrangeiro; local ou global.

A especulação, neste sentido, acerca da decadência, ou fim da Axé music é antiga e pode ser melhor percebida a partir do início do século XXI, e os maiores argumentos encon-tram-se centrados no declínio de vendas dos produtos fo-nográficos, e na escassez e ausência de renovação de seus quadros artísticos. Seus principais defensores parecem ig-norar que a crise é do setor fonográfico mundial - mais acentuadamente, do formato CD -, irrompendo-se em inú-meras fusões e desaparecimentos de gravadoras interna-cionais, além da migração dos artistas para as plataformas de música online. Sendo a crise fonográfica mundial, evi-dente que haveria repercussão na produção musical baiana

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contemporânea, promovendo quebras de contrato e desli-gamentos de artistas dos casts das gravadoras – fato que impulsionou o surgimento e fortalecimento da produção fonográfica local, com inúmeros selos, editoras, produtores e distribuidores de menor porte.

As agendas de shows, as estratégias de diferenciação e inscrição estética e mercadológica são elementos rele-vantes e não podem ser desconsiderados em tais refle-xões. Não obstante, inúmeros artistas e bandas musicais vêm sendo incorporadas ao texto da Axé music, o que demonstra sua capacidade de renovação estética junto às suas células matrizes advindas do samba-reggae, en-quanto marca e território simbólico em processo afirma-ção, expansão e internacionalização.

A Axé music transcendeu, rompendo fronteiras e barreiras mercadológicas e territoriais. Por outro lado, impulsionou o surgimento de setores e atividades que corroboram com o desenvolvimento da música no Estado, além de disseminar a marca Bahia nos quatro cantos do mundo. Nos campos es-téticos ou organizacionais, inovou, criando novos mercados e possibilidades de experiências. Novas redes de profissiona-lidade foram, e continuam sendo implementadas na Bahia, assim como a tessitura de uma ampla teia de relações a par-tir da legitimação deste gênero em outras localidades.

Por outro lado, a Axé music dinamizou o surgimento e de-senvolvimento de carnavais extemporâneos pelo Brasil - mais conhecidos como micaretas -, o mercado de trios elé-tricos e carros de apoio, a promoção de eventos, produção fonográfica, tecnologia aplicada à musica, entre outros.

A Axé music está presente em eventos nacionais ou interna-cionais relevantes no showbusiness musical contemporâneo, comprovando sua vertente pop repleta de influências e in-formações. Em eventos como o Axé Brasil (BH) – exclusivo do gênero -, Brazilian Day, Festival de Montreux, Rock in Rio, a Axé music conquista espaços. Nas edições 2008 do Rock in Rio Lisboa e Madrid, artistas como Carlinhos Brown e Ivete Sangalo foram recebidos por um público que, em sua maio-ria, conhecia e cantava seus principais sucessos.

Dentre as primeiras iniciativas de internacionalização do gênero baiano, está a Copa do Mundo de 1990, na Itália, como assinala o tecladista José Raimundo16:

Fomos para Copa do Mundo, na Itália, em 1990. Foi uma grande estratégia comercial da Perdigão que levou o Trio-elétrico para Torino. Foi o primeiro trio-elétrico que chegou na Europa de na-vio e montado. Na época em que estivemos na Itália, a lambada estava no auge por lá com o grupo Kaoma. Música brasileira eles só conheciam Caetano, Gil, Benjor, Djavan, etc. Enfim, MPB. O Axé era conhecido por uma minoria de italianos que frequentavam o carnaval da Bahia. Quando começamos a tocar ninguém dançava, pois eles têm uma cultura de assistir ao espetáculo e nunca ti-nham visto um caminhão com um som daquele tamanho. Há um ponto interessante nisso, pois tinha gente lá de todas as culturas, pois era uma Copa do Mundo. Eles começaram a ficar fascinados com o ritmo da música e, meio desajeitados, imitaram muitos bra-sileiros que estavam lá dançando, e começaram a entrar no clima de festa que a Axé proporciona.

Desde a segunda metade da década de 1990, os respon-sáveis pelo Festival de Montreaux, Suíça, agendam apre-sentações de artistas baianos da Axé music, corroborando com o processo de expansão e internacionalização da carreira de seus artistas. Margareth Menezes, Olodum, Araketu, Ilê Aiyê, entre outros.

Também o Brazilian Day – Rede Globo como uma de suas maiores empresas articuladoras – reserva a participação de artistas da Axé music como protagonistas. A atuação da maior empresa de comunicação e entretenimento da Améri-ca Latina junto à Axé music tem sido crescente nos últimos anos, principalmente a partir da parceria com a Rede Bahia – organização e registro de boa parte dos shows no Festival de Verão, cabendo à Rede Globo a divulgação e distribuição comercial através de sua gravadora, a Som Livre.

Outro vetor relevante na expansão dos mercados da Axé music é o próprio Carnaval soteropolitano que - apesar das recentes controvérsias acerca de seus custos e acen-tuação de seu viés comercial -, ao se profissionalizar e internacionalizar, corrobora e termina por disseminar, a reboque, as musicalidades e artistas presentes no even-to. A lista internacional de convidados famosos é exten-sa, mas só para citar os anos de 2007 e 2008: a banda irlandesa U2, o produtor musical Quincy Jones, Naomi Campbell, Arto Lindsay, e tantos outros que ou não foram captados pelas câmeras ou preferiram o anonimato, se é que é possível, mas que representam a possibilidade de maior publicização, nível internacional, de uma dinâmica centrada, mas não exclusiva à Axé music.

Não obstante, a presença de celebridades nacionais tam-bém corrobora neste processo, pois revela a também ex-tensa programação de shows, lavagens, festas populares, feijoadas e ensaios, reforçando, em grande medida, a ideia mítica de existencialidade exclusivamente festiva do território baiano e sua gente. Nesta lógica de retro-alimentação das marcas - Axé music e Carnaval -, como que numa espécie de feedback, também é apontada por DANTAS (2005, p.20), quando afirma a disposição da nova geração de artistas da música baiana em “cruzar frontei-ras”, corroborando no processo de legitimação e amplia-ção do receptivo turístico no carnaval:

O carnaval baiano dobrou de tamanho nos anos 90: de um para dois milhões de foliões por dia participando da festa. Isso se deveu a políticas públicas de atração de turistas? Não. Ainda que, efe-tivamente, as políticas públicas tenham sido fundamentais para viabilizar infra-estrutura, equipamentos e capacitação de pessoal para receber turistas, o que duplicou a presença desses turistas foi a música baiana. Foi Daniela Mercury, que se tornou a maior ven-dedora de discos do Brasil no início da década de 1990, levando todo o país a se apaixonar pelo samba reggae “O canto da Cidade”; foi o Olodum, que levou a um patamar de prestígio internacional essa sonoridade rítmica, que conquistou ícones do pop interna-cional, como Paul Simon e Michael Jackson; foi o Chiclete com Banana, a Banda Cheiro de Amor, a Banda Eva, que ajudaram a “nacionalizar” o carnaval baiano.

A etnicidade é elemento pujante neste processo, onde não somente os blocos afro são seus representantes,

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mas artistas como Daniela Mercury, Margareth Mene-zes, Timbalada, Motumbá, Ara Ketu, entre outros, se apropriam mais incisivamente de seus discursos, símbo-los e temáticas musicais.

Sobre a receptividade de turistas nacionais e internacio-nais com a Axé music, e demais artistas soteropolitanos com relevante participação no carnaval soteropolitano, o empresário Paulo Roberto, ex-proprietário da Aky Dis-cos, que até o ano de 2001 se constituía a maior rede de lojas de discos da Bahia, confirma o interesse dos turistas pela Axé music 17:

Uma espécie de encanto... Os gringos e turistas nacionais che-gavam na loja procurando por Olodum, Daniela Mercury, Chicle-te com Banana, e quem mais da Axé Music a gente oferecesse eles compravam. O fornecimento de CDs do Olodum para as lojas do Centro Histórico, por exemplo, tinha de ser semanal. Era de 300/400 unidades para as maiores lojas, e volumes menores para as lojas pequenas, toda semana.

Outro aspecto relevante na argumentação contrária ao fim da Axé music, é a cobertura midiática internacional do Carnaval de Salvador, que registra números ascen-dentes de profissionais cadastrados - fato incontestá-vel de que boa parte do mundo já manifesta interesse no maior evento de rua do mundo e sua musicalidade maior. Não raro, seus artistas excursionam por diversos países, configurando Espanha e Portugal como líderes neste receptivo.

Sua inscrição no mercado de bens simbólicos também contempla registros de não aceitação, aversão e restri-ção de sua execução pública, inclusive com leis, como nos casos dos carnavais de Recife e Olinda, que proi-biram artistas e repertórios vinculados ao gênero com argumentos que contemplam o respeito e valorização aos costumes locais. A medida visa salvaguardar laços identitários com o frevo, e as danças deste, enquanto dinâmicas culturais. Contudo, não se pode argumentar que Pernambuco não contribua para a disseminação e legitimação da Axé music pelo Brasil, ao contrário. O Recifolia, carnaval fora de época, encontra nos artistas baianos, seus trios elétricos, performances, refrões e re-pertórios, os moldes do carnaval soteropolitano.

Relevante exemplo de carisma na Axé music, e, natural-mente ambientada em apresentações nacionais e inter-nacionais, a Chiclete com Banana recebeu o Prêmio Press Award 2007, na categoria de Show Brasileiro, pelo seu destaque nos EUA, e, em julho de 2008 apresentou-se nas cidades de Roma, Milão, Porto e Lisboa, em eventos de grande porte e com ingressos esgotados antecipadamente.

Artistas e empresários estrategistas, os responsáveis pela banda Chiclete com Banana estão sabendo impri-mir uma imagem e identidade musical com relevante personalidade e apresentam um histórico de diálogo com obras de novos e emergentes compositores. Dentre eles, e em épocas distintas, destaque para Val Macambi-ra, Carlinhos Brown, e, mais recentemente, a dupla Ale-

xandre Peixe e Beto Garrido, além de Paulo Prata, tem fornecido à banda inúmeros sucessos que, após experi-mentações em micaretas e shows, logo caem no gosto do público, integrando rapidamente o acervo de sites e programas que distribuem arquivos peer to peer, vide Youtube, e-mule, entre outros.

Ainda que não se constituam referências em técnica e virtuosismo musical, a banda estruturou sua carreira cal-cada no entrosamento do grupo, no carisma de seu líder e na escolha de um repertório sempre atualizado com o seu público. A capacidade de performance, diálogo e constru-ção de repertório, neste sentido, apresenta a Chiclete com Banana como das mais relevantes bandas da Axé music, em se tratando de discografia, inclusive (Ex.2).

Em contrapartida ao fato de, historicamente, não ter apresentado altos índices de vendas no quesito fono-gráfico como Ivete Sangalo, Netinho e Banda Eva, por exemplo, a banda mantém uma sequência regular de registros (Ex.2) que atende seu público mais fiel, ape-lidado de Nação Chicleteira, Chicleteiro, Maluquetes do Chiclete, etc. Chicleteiro convicto e apaixonado, o promotor de eventos e produtor musical soteropolitano Jader Santos, comenta esta relação18:

A empatia de Bell Marques sempre supera as expectativas. O cara e a banda são demais. Sempre acompanho o Chiclete, e, além das músicas, nunca vi Bell começar uma puxada de trio sem pedir paz e agradecer a presença e carinho do público, do profissionalismo que vai dos cordeiros aos empresários. Participo de dois fã-clubes do Chiclete, um em Salvador e o outro, via internet, com alguns amigos e amigas da Espanha. (...) Posso dizer que trabalho com música hoje, graças a minha paixão pelo Chiclete com Banana.

Artista e defensora da Axé music em suas inúmeras entrevistas, Ivete Sangalo pode ser considerada a pro-tagonista de maior sucesso mercadológico do gênero. Mesclando elementos da música pop internacional, como efeitos de guitarra e teclados, à percussividade local, a artista e empresária Ivete Sangalo coleciona fama, poder, publicidade, prêmios, discos de ouro, pla-tina, platina duplo, platina triplo, e sua presença na mídia televisiva é certeza de audiência para uma artis-ta que já supera a marca de oito milhões de unidades fonográficas comercializadas19.

A sua inscrição e permanência no universo da Axé music é intencional e motivo de orgulho, como se pode perceber na resposta dada ao jornalista baiano Osmar Martins - comumente chamado de Marrom -, publicada no Correio da Bahia, em 24/05/2007:

Osmar Martins – Ultimamente até os críticos mais ferrenhos reco-nhecem e escrevem: “Ivete Sangalo, se quisesse, já teria migrado para o pop ou até a MPB”. Mas você faz questão de afirmar que é uma cantora de Axé. Por quê?Ivete Sangalo – Porque sou. Nunca tentei me definir nem ser de forma diferente, estou aí na estrada e feliz. Isso mostra o quanto o seguimento da Bahia tem poderes especiais. Sou feliz fazendo o que faço. A Bahia está em mim de forma inteira, e isso traz reali-zações e muita felicidade. Viva o Axééééééééé’!!!!!!

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Quadro II – Discografia Banda Chiclete com Banana

Ano Disco/CD/DVD Gravadora

1983 Traz os Montes Continental

1983 Estação das Cores Continental

1984 Energia Continental

1985 Sementes Continental

1986 Fissura Continental

1987 Gritos de Guerra Continental

1988 Fé Brasileira Continental

1989 Tambores Urbanos Continental

1990 Toda mistura será Permiida Continental

1991 Jambo BMG/Ariola

1992 Classificados BMG/Ariola

1993 Chiclete com Banana BMG/Ariola

1994 13 BMG/Ariola

1995 Banana Coral BMG/Ariola

1996 Menina dos Olhos BMG/Ariola

1997 Para Ti BMG/Ariola

1997 É Festa BMG/Ariola

1998 Bem me quer BMG/Ariola

1999 Borboleta Azul BMG/Ariola

2000 São João de Rua BMG/Ariola

2000 Universo Paralelo BMG/Ariola

2001 Santo Protetor BMG/Ariola

2003 Chiclete na caixa, banana no cacho (CD) BMG

2004 Chiclete na caixa, banana no cacho (DVD) BMG

2005 Sou Chicleteiro BMG

2007 Tabuleiro Musical Sony/BMG

Fonte: Mazana/Chiclete com Banana, 2008.

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6. Considerações FinaisA mera e descontextualizada compreensão, neste sentido, da suposta “crise” da Axé music, tendo como argumenta-ção central os índices e estatísticas da indústria fonográ-fica é errônea, como já foi dito. Mas cabe reiterar, ainda, que os shows se configuram a fonte maior de renda des-tes artistas, não a vendagem de produtos fonográficos. A indústria fonográfica é relevante no mercado de bens simbólicos, é bem verdade, mas sua participação não se configura determinante e exclusivo fator ao sucesso. Seus principais interlocutores parecem saber disso, e através de ações individuais ou coletivas (APA, ABT, entre outros) vêm se articulando junto a outras formas de promoção dos seus artistas e repertórios. Entretanto, é inegável que o rápido sucesso deste gênero musical baiano contemporâneo estimulou comportamen-tos isomórficos envolvendo mercado e estética, que ter-minaram por estimular o surgimento de inúmeras produ-ções com baixa qualidade técnica, inclusive.

Enquanto World Music, a musicalidade baiana denomi-nada Axé music conjuga, exemplarmente, dois aspectos fundamentais: referência rítmica original (percussão) e fusão de gêneros, estilos e células musicais. O constante diálogo entre tradição e modernidade, onde tambores e guitarras encontram-se devidamente ensaiados e dispos-tos para embates, ora sonoros, ora silenciosos.

A Axé music, em diversas unidades de análise, conseguiu estabelecer e manter relação com os principais orga-nismos de comunicação e entretenimento do país, para muito além daquilo que se efetivava como seu período de festa e auge fonográfico. O preconceito estético rela-cionado à Axé music não encontra lastro em seu campo real de shows, ensaios e estratégias competitivas visando sobrevivência no acirrado mundo dos negócios deste seg-mento da indústria cultural. Artistas e empresários deste gênero musical souberam estruturar estéticas, mas tam-bém a profissionalização e autonomização de um campo.

O desempenho econômico do Estado - amplamente es-truturado no setor de serviços -, reconhece a relevância da Axé music e carnaval soteropolitano e, não raro, trans-forma seus principais artistas em estrelas de comerciais turísticos, numa missão de disseminar a marca Bahia, mas, também, de atender àqueles que, em níveis diferen-ciados, possuem percepção acerca desta territorialidade.

Por outro lado, pensar a Axé music com exclusividade no âmbito das relações comerciais, via indústria fono-gráfica, de produtos individualizados e personalizados é outro equívoco, uma vez que, anualmente, inúmeras co-letâneas deste gênero musical são lançadas no mercado nacional e internacional.

Pop e World Music, a Axé music é dinâmica articulada e rizomática no mercado de bens simbólico-culturais, satisfazendo parcela relevante de um mundo ávido por dinâmicas musicais cotidianas do outro, do estranho, do exótico, do efêmero e diverso.

O estranhamento produz a interculturalidade neces-sária, que, fluída que é não se limita exclusivamente à relevância religiosa e étnica presente nas canções dos Filhos de Gandhi, Malê de Balê e do Olodum, numa in-teração constante Bahia/Mundo/Bahia; do Ilê Aiyê, pelo pioneiro posicionamento étnico-estético; da influência do funk no repertório da recém chegada banda Negra Cor; do repertório e utilização de instrumentos relacio-nados a outros gêneros, como o violino, e sua adapta-ção à percussão - Vixe Mainha; de Daniela Mercury, seu “balé mulato”, discursos, atitudes e sensibilidade artís-tica e organizacional; de Ivete Sangalo, carisma ímpar, repertórios e articulação empresarial.

Acima de tudo, de pessoas que cantam, dançam e atestam a larga barra de uma Bahia notabilizada por suas próprias canções, compositores, músicos e artistas. Artistas que se tornaram empresários, e aprenderam a fazer e exportar a música de um Estado com larga barra no assunto Brasil.

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notas1 Grupo Musical de Cachoeira, Bahia, liderado por Valmir Pereira. Com forte influência dos Tincoãs, o Gêge Nagô segue sua trilha musical fazendo a

ponte entre música, religião e os universos barroco católico e do candomblé afro-brasileiro presentes no Recôncavo Baiano. 2 Necessário reconhecer que não somente a música, mas outros agentes estéticos e artistas também inscreveram e colaboraram com a inscrição da

Bahia no cenário artístico local/global. Dentre eles, Hansen Bahia (xilogravura); Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro (literatura); Glauber Rocha (cinema); Carybé (artes plásticas); Mário Cravo e Mário Cravo Neto (escultura);entre outras, que não se integram ao escopo deste artigo.

3 O historiador Milton Moura é a maior referência neste assunto, a partir de sua Tese de Doutoramento (2001).4 Paulo Miguez (1996) sinaliza que os primeiros blocos de trio no Carnaval de Salvador surgem na primeira metade da década de 1970, a partir da

iniciativa de jovens de classe média-alta da cidade. A expressão remete à substituição das atrações musicais tradicionais, tipo charangas e orques-tras carnavalescas, pelo trio-elétrico enquanto palco móvel para apresentação de bandas e artistas locais emergentes.

5 Na organologia, é uma variante eletrificada do bandolim, com uma estética que remete a uma miniatura de guitarra. Foi criada na década de 1940, pelos amigos Dodô e Osmar, sendo inicialmente denominada de pau elétrico, e rebatizada como guitarra baiana no final dos anos 70. O performá-tico músico baiano Armandinho é seu maior executante.

6 Fundada inicialmente em 1980, a banda Acordes Verdes teve duas formações. Inicialmente com Luiz Caldas (Voz e Guitarra), Jota Morbeck (Voz), Toinho Bipbop (Contrabaixo), Tan e Eduardo (Percussão). Posteriormente, a formação apresentava Luiz Caldas (Voz e Guitarra), Carlinhos Brown e Tony Molla (percussão), Cesinha (Bateria), Alfredo Moura (Teclados), Carlinhos Marques (Contrabaixo), Paulinho Caldas e Silvinha Torres (Backing Vocals).

7 Proprietário do maior estúdio de Salvador deste período (Estúdio WR), promove a partir da década de 1980, uma articulação de suas ati-vidades de empresário e produtor musical, corroborando com inúmeros projetos musicais que integraram a Axé Music, impulsionando o desenvolvimento desta música baiana.

8 Um dos primeiros radialistas locais que acreditou na Axé Music enquanto movimento estruturado e com perspectivas de profissionalização (MOURA, 2001).

9 Quadro elaborado pelo autor, a partir de visita ao campo e entrevista com músicos e promotores de eventos. Para a compreensão deste quadro, é necessário reiterar que se tratam de espaços com capacidade para pequenos, médios e grandes shows, além de: i) Os locais acima não evidenciam a totalidade dos bares, boites e demais espaços com capacidade de realização de shows em Salvador; ii) A coluna referente aos gêneros musicais

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contempla os estilos mais preponderantes dos espaços agrupados em bairros, a partir da fala dos próprios administradores destes, e informações eletrônicas disponibilizadas através de boletins por alguns sites de eventos. Neste quadro, não se considera a intensidade dos eventos musicais em teatros em Salvador, ainda que, haja registros de shows nestes espaços.

10 O governo do Estado da Bahia é o mantenedor e gestor do site www.bahia.com.br, e disponibiliza faixas indicativas, banners e folders aos grupos e produtores musicais que excursionam por outras cidades e países com apoio oficial.

11 A expressão world music compreende a fruição estética musical dos países, sendo o elemento étnico quase sempre preponderante neste processo dialogal envolvendo gêneros e estilos musicais.

12 Corporações Fonográficas nacionais e transnacionais, vide Sony/BMG, Warner Chappell, Universal Music, Som Livre e EMI. 13 Entrevista concedida ao autor em 22/07/2008. 14 www.accrba.com.br15 Entrevista concedida ao autor em 29/07/2008.16 Ibid., 2008.17 Entrevista concedida ao autor em 05/08/2008. Já tendo sido responsável por 75% do mercado da venda de discos e fitas na Bahia e alguns estados

do Nordeste. O avanço indiscriminado da pirataria virtual e física levou à redução desta rede em 2002 e encerramento das atividades no comércio varejista em 2007. O empresário continua vinculado ao showbusiness musical, via Estação CD, atuando no setor de distribuição atacadista de cds e dvds. Nos últimos anos, distribuiu as produções fonográficas de bandas como Timbalada, Olodum, Pimenta Nativa, Cheiro de Amor e Babado Novo.

18 Entrevista ao autor em 04/07/2008. O entrevistado se refere ao Maluquetes Chicleteiros Fan Club Sur Europa, sediado na cidade de San Sebas-tián, Espanha.

19 Fonte: Associação Brasileira de Produtores de Discos – ABPD/2007. Unidade fonográfica entendida entre as mídias de suporte para os fonogramas, podendo ser CD, DVD ou até mesmo o antigo vinil.

Armando Alexandre Castro é Doutorando pelo Núcleo de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal da Bahia (NPGA/UFBA), com objeto de tese sobre o desenvolvimento do mercado de administração e edição musical baiano. É Mestre em Cultura e Turismo pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC/UFBA), Especialista em História Social e Educação e Licenciado em Música pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL). É Professor Assistente do Instituto de Música da UCSAL, e integrante do Grupo de Pesquisa O Som do Lugar e o Mundo (FFCH/UFBA). Autor do livro Irmãs de fé: tradição e turismo no Recôncavo Baiano (E-papers, 2006) que trata do processo de turistificação da secular Irmandade da Boa Morte, em Cachoeira, Bahia.

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Recebido em: 15/11/2009 - Aprovado em: 20/03/2010

A palavra em movimento: algumas perspectivas teóricas para a análise de canções no âmbito da música popular

Conrado Vito Rodrigues Falbo (UFPE, Recife, PE)[email protected]

Resumo: O presente artigo apresenta as linhas gerais de algumas perspectivas teóricas que podem ser úteis para a análise de canções no âmbito da música popular. O eixo orientador das perspectivas teóricas aqui apresentadas é a abordagem da canção a partir da performance da palavra cantada, ou seja, o conjunto de interações que se estabelece entre o corpo do intérprete, notadamente sua voz, e o público no momento em que ocorre a performance da canção, seja esta performance presencial ou mediatizada. Partimos das ideias de Paul ZUMTHOR (1993; 2005; 2007) sobre per-formance e vocalidade procurando estabelecer um diálogo interdisciplinar com outros campos do pensamento estético, sobretudo os estudos literários, as artes cênicas e os estudos da performance. Palavras-chave: música popular, canção, performance.

The word in motion: some theoretical perspectives for the analysis of the song within the framework of popular music

Abstract: The present paper outlines some theoretical perspectives that can be useful to the analytical practices that focus on the song within the framework of popular music genres. The core of the theoretical perspectives presented here is an approach of the song based on the performance of the sung word, that is, the ensemble of interactions that take place between the performer’s body, especially his/her voice, and the audience at the moment of the performance, may it be presential or mediatized. We began with Paul ZUMTHOR’s ideas (1993; 2005; 2007) on performance and vocality to try to establish an interdisciplinary dialogue with other fields of knowledge, especially literary studies, theater and performance studies.Keywords: popular music, song, performance.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010

1. Introdução: a canção como objeto de estudoApesar dos recentes avanços no campo dos estudos voltados para a música popular, ainda carecemos de um instrumental teórico e analítico mais consistente no que diz respeito ao exame dos procedimentos estéticos utilizados por composi-tores e intérpretes no processo criativo da canção, a forma expressiva mais utilizada pelos artistas da música popular. Como já alertava o pesquisador e compositor Luiz Tatit, uma análise estritamente musical da canção não é capaz de re-velar toda sua riqueza de significados, o mesmo podendo ser dito de um exame que se restringe à letra da canção (TATIT, 2007). Outros trabalhos demonstram que, além da relação dinâmica entre melodia e letra, a performance desempenha um papel fundamental na construção dos significados, po-dendo chegar até a transformar completamente o sentido original de uma canção (VALENTE, 2003).

A canção possui uma característica de versatilidade que a permitiu passar por diversas mudanças ao longo do tempo, assimilando novas tecnologias, novos padrões estéticos e novas funções sociais, mas sempre mantendo seu extraordinário poder comunicativo. Do universo tra-dicional dos acalantos, cantigas de roda e cantos de tra-balho ao modismo descartável das paradas de sucesso, a canção é uma forma expressiva de ampla inserção so-cial, seja por meio de sua transmissão oral ou por meio do rádio, da televisão, dos discos e dos shows. Na so-ciedade de consumo contemporânea, a canção continua tendo um papel preponderante na chamada indústria do entretenimento, ocupando lugar de destaque no debate sobre novas possibilidades de utilização comercial da internet, para citar apenas um exemplo.

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Um importante movimento de valorização do estudo da canção vem tomando forma em diferentes áreas do co-nhecimento e um dos resultados disto é o crescimento da IASPM (International Association for the Study of Popular Music), instituição fundada em 1981 e formada por pesqui-sadores de várias áreas do conhecimento, contando desde o ano 2000 com uma seção latino-americana da qual fa-zem parte inúmeros pesquisadores brasileiros. Entretanto, a diversidade das disciplinas envolvidas neste processo e a falta de comunicação entre os inúmeros setores acadê-micos faz com que as pesquisas que vêm sendo realizadas acabem por ter uma influência dispersa, não contribuindo para um maior diálogo entre as distintas áreas acadêmi-cas nem para a construção da visão transdisciplinar que a canção demanda enquanto objeto de estudo, por suscitar questões relativas ao texto, à música, à performance e a outros aspectos da expressão artística.

A canção é encarada no presente artigo como uma for-ma expressiva que produz significados de uma maneira específica, na qual todos os seus elementos constitutivos (letra, melodia, acompanhamento instrumental, perfor-mance etc.) guardam uma relação dinâmica. Deste modo, o texto não pode ser dissociado da melodia (ou mesmo da ausência desta), assim como ambos não podem ser consi-derados de maneira abstrata, mas em sua interação plena no momento da performance, seja ela presencial (em uma apresentação ao vivo) ou mediatizada (capturada e trans-mitida por meios tecnológicos).

Não pretendemos justificar o estudo da canção com a afirmativa de que as letras de canções da música po-pular podem ser analisadas como obras literárias. O principal motivo desta impossibilidade está no fato de que, diferentemente do que ocorre com o texto literá-rio, a letra de canção não é a canção, mas um de seus vários elementos constitutivos, que alcançará plenitude expressiva apenas quando percebido de forma conjun-ta com os demais elementos. O pesquisador americano Charles Perrone, em estudo pioneiro sobre a poesia da canção na música popular brasileira, afirma que “as le-tras de canção são destinadas à transmissão oral num cenário musical. Se o texto é criado com a finalidade de ser cantado, e não para ser lido ou recitado, ele deve ser estudado na forma dentro da qual foi concebido” (PERRONE, 2008, p.23-24). Além disso, ao justificar sua adoção da perspectiva dos estudos literários na análise da canção, Perrone chama atenção para as especificida-des formais da canção ao mencionar o termo “literatura de performance”, utilizado por Betsy BOWDEN (1982)1 para designar certas características das canções que não aparecem na página impressa, como flexões vocais, rima forçada de voz, onomatopeia, pronúncia, duração, entoações estranhas, pausas etc. (PERRONE, 2008, p.26).

Ressaltamos que não há qualquer juízo de valor nas ob-servações acima, mas apenas o reconhecimento de que estamos tratando de uma forma expressiva (a canção) que demanda um olhar analítico atento a estas diferenças. Não

ignoramos que são numerosas e significativas as relações entre letras de canções e textos literários 2: ambos guar-dam entre si semelhanças essenciais, sobretudo devido à manipulação artística de palavras e sons. Não é por acaso que o presente artigo parte dos estudos literários tomando como ponto de partida a performance da palavra cantada, e muitas vezes adaptando à análise da canção perspecti-vas teóricas originalmente voltadas para o estudo de obras literárias. Entretanto, ressaltamos que nosso escopo não é comparar obras literárias e letras de canções, mas apontar perspectivas teóricas que permitam a análise de canções (consideradas em sua totalidade multimodal) de acordo com parâmetros e critérios específicos ou devidamente adaptados às suas peculiaridades formais.

A análise da canção realizada à luz dos estudos literários costuma focar-se exclusivamente nas letras, ignorando os aspectos musicais e performáticos que são igualmente fundamentais na construção dos significados das can-ções. Estudos como o de Walter J. ONG (1999) e Paul ZUMTHOR (1993; 2005; 2007) representam importantes marcos teóricos, pois redefinem antigos padrões vigen-tes na pesquisa com textos literários, ampliando alguns conceitos de uso corrente e oferecendo um novo alcance à própria compreensão do que entendemos contempo-raneamente por literatura. Estas modificações não sig-nificam apenas uma mudança de enfoque no trabalho com a análise de textos literários, mas também abrem espaço para que manifestações artísticas como a canção também possam ser analisadas sob o prisma dos estudos literários, colocando todo um referencial teórico à dispo-sição de uma visão ampla da palavra, que compreende sua multiplicidade de expressão: não apenas a palavra escrita, mas também a palavra vocalizada em diferentes contextos, seja recitada, encenada ou cantada.

2. Voz: o corpo e o som da subjetividadeO corpo pode ser considerado a dimensão espacial da identidade humana. Ocupamos um lugar no espaço, so-mos matéria, mas não apenas isso: também percebemos o mundo de forma espacial, em sua rica multidimensio-nalidade, e interagimos com nosso ambiente através de relações essencialmente espaciais. Para a artista plástica e pesquisadora Fayga Ostrower, as vivências do espaço são determinantes na construção do senso de identidade e sociabilidade das pessoas:

As formas de espaço constituem tanto o meio como o modo de nossa conscientização, ou seja, o espaço torna-se, simultanea-mente, forma das experiências vividas e imagem de seus conte-údos [...] E do mesmo modo, quaisquer conteúdos afetivos que queremos expressar e comunicar aos outros são por nós tradu-zidos intuitivamente como imagens de espaço. Mesmo quando essa comunicação se dá a nível verbal. Ao dizermos, por exem-plo, que algo nos toca de modo profundo ou apenas superficial, usamos intuitivamente imagens de espaço. Quando falamos das qualidades de um indivíduo (um ser in-divisível), como sendo aberto ao mundo ou fechado, como sendo expansivo ou intro-vertido, desligado, envolvente, atraente, repulsivo, distante, pró-ximo, usamos sempre imagens de espaço. Não há outra maneira possível de conscientizar, formular e comunicar nossa experiên-cia (OSTROWER, 1999, p.86. Grifos da autora).

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A observação da artista nos permite vislumbrar uma ex-periência de espaço mais ampla e complexa, não restrita a uma acepção puramente visual, como tendemos a pensar no caso das artes plásticas, mas apontando para uma ação conjunta e complementar de todos os sentidos na percep-ção dos múltiplos aspectos da realidade. Trata-se de uma perspectiva orgânica do espaço, no sentido de sua vivência plena pelo ser humano, sem divisões e separações.

Se, como diz Ostrower, o espaço é “tanto o meio como o modo” de nossas experiências vivas, podemos dizer que o corpo, enquanto dimensão espacial da condição humana, é também nosso meio e nosso modo de ser e de estar no mundo. O corpo nos fornece ferramentas de percepção e interação com o ambiente e com outros indivíduos: ao mesmo tempo em que nossos órgãos captam estímulos externos, também os filtram e permitem que elaboremos respostas e formulemos perguntas, em forma de novos estímulos sensoriais num ciclo comunicativo que se es-tende até o fim da vida. Entre estes sinais produzidos pelo corpo com finalidade de comunicação (os gestos, por exemplo) nos interessa particularmente a voz.

Podemos entender a voz como uma extensão de nosso corpo, revelando características próprias de cada indiví-duo. Paul Zumthor, ao comentar as relações entre a lín-gua escrita e falada, nos diz que:

Não se pode imaginar uma língua que fosse unicamente escrita. A escrita se constitui numa língua segunda, os signos gráficos re-metem, mais ou menos, indiretamente às palavras vivas. A língua é mediatizada, levada pela voz. Mas a voz ultrapassa a língua; é mais ampla do que ela, mais rica [...] Assim, a voz, utilizando a linguagem para dizer alguma coisa, se diz a si própria, se coloca como uma presença (ZUMTHOR, 2005, p.63).

Esta observação de Zumthor pode ser relacionada com as ideias de Barthes sobre o que este último chamou de “grão da voz”, como veremos mais adiante, no sentido de que a “presença da voz” também significa a presença de um indivíduo que faz uso de sua voz (seja falando, cantando, gritando etc.). Na voz está inscrito o corpo de quem a emite, pois a voz também está ligada ao aspec-to material, concreto, corporal da identidade individual, explicitando traços pessoais e culturais desta identidade.

A voz é um dos primeiros instrumentos de que dispo-mos como meio expressivo, o som vem antes do gesto ou da escrita e configura-se como o primeiro traço de nossa identidade. As crianças choram ao nascer: uma primeira manifestação de vida, inegavelmente sonora. Esta relação de identidade que estabelecemos com a voz, entretanto, é mais complexa do que pode aparen-tar. O pesquisador Patrick BERTHIER, ao comentar as inovações tecnológicas voltadas para atividades como a decodificação acústico-fonética e reconhecimento do locutor3, chama atenção para o fato de que existe uma grande variedade de elementos que fogem ao alcance da análise acústica e tornam estes processos extrema-mente complexos, quando não impossíveis do ponto de vista técnico. Conforme Berthier:

existe outra coisa na voz, uma vez tratadas as dimensões fonológica e idiossincrática da fala. A marca individual justaposta à marca do significante não faz toda a voz. É este resto, nem locução nem locu-tor, nem língua nem indivíduo, que faz o ‘Homem’ e torna a instân-cia da voz problemática. A instância da voz na fala, compreendida no sentido em que Lacan fala da instância da letra no inconsciente. Aproximação que outros já operaram, forjando o belo neologismo ‘inSOMsciente’, ‘um equivalente do inconsciente pelo som’. É esta dimensão infralinguística e supra-individual que convém estudar para revelar o que está em jogo na voz (BERTHIER, 1998, p.61)4.

O trecho acima deixa entrever a complexidade e muta-bilidade dos fatores envolvidos nas relações entre voz e identidade. Berthier ressalta que nossa voz não é herdada geneticamente, sendo antes um “construto psico-históri-co” em constante desenvolvimento.

A voz é considerada um objeto de estudo “fugidio” no dizer de Elizabeth Travassos, ao analisar algumas pers-pectivas teóricas ligadas ao estudo da voz nos campos da musicologia e etnomusicologia. Ela constata a grande carência de termos técnicos precisos que permitam uma abordagem analítica satisfatória das várias modalidades de expressão vocal, sobretudo do canto, chamando aten-ção para o fato de que

na literatura acadêmica e científica, encontram-se pelo menos três grandes vertentes de abordagem da voz e do canto: descri-ções naturalizadoras do corpo e do som, que não se pode ignorar nem incorporar irrefletidamente; tipologias vocais válidas para o canto erudito, repletas de orientação para a prática e compro-metidas com uma pedagogia vocal; estudos etnográficos da fala, do canto ‘popular’ e ‘étnico’. Começam a desenvolver-se, também, inventários e análises dos recursos vocais técnicos e estilísticos dos cantores populares (TRAVASSOS, 2008, p.117).

A pesquisadora conclui pela necessidade de promoção de um maior diálogo entre estas distintas áreas do conhe-cimento como forma de se alcançar uma compreensão mais abrangente da voz e de suas manifestações.

Esta complexidade que cerca a voz também pode ser ob-servada no que diz respeito à plurifuncionalidade dos ór-gãos que compõem o aparelho fonador humano. A boca, como exemplifica Lucia Santaella, serve à satisfação de necessidades fisiológicas (comer, beber, respirar), mas também está envolvida com o prazer, sendo difícil separar estes dois aspectos nas funções que desempenha, sobre-tudo no processo que origina a fala, já que esta

não se coloca apenas a serviço da comunicação e interação dos seres humanos entre si e destes com o mundo. Ela também pode produzir um excedente de prazer. Assim como da função de comer se acresce o prazer da degustação, na fala está inscrita a possi-bilidade do canto. Encantamento do canto: fala transmutada em prazer (SANTAELLA, 2002, p.37-38).

Além disso, sabemos que é impossível falar da voz como fenômeno isolado, sobretudo quando percebemos a in-tensidade de sua conexão com a audição: não podemos produzir sons vocais se não formos capazes de ouvi-los. Desde antes de seu nascimento, o feto humano já é capaz de ouvir sons, notadamente a voz de sua mãe, e a audição desempenha um papel fundador nesta fase primária de percepção do mundo. “De acordo com o musicólogo Iegor

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Reznikoff é o ouvido, quando percebe as diferentes frequ-ências sonoras (alturas), que constrói a noção de espaço no ser humano, e não o olho, ao contrário do que se tem afirmado até agora” (VALENTE, 1999, p.102).

A voz desempenha funções determinantes em situa-ções que envolvem o bebê desde muito cedo na vida humana. O pesquisador Gil nuno Vaz cita o exem-plo do acalanto, modalidade de canção que mistura o canto, a fala e o movimento corporal em síntese harmoniosa e eficaz:

A canção é realizada em sua plenitude apenas pela voz da mãe, pro-duzindo sons com certo modo de emissão (canto) e intenção (fala) e usando os braços (movimento) para imprimir um balanço ao corpo da criança, embalando-a até adormecer. A contenção desses modos em um campo expressivo mínimo, representado pela Canção, serve à repetição contínua, e quase que hipnótica, de uma forma simples e curta que induz ao estado de sonolência (VAZ, 2007, p.19).

Percebemos que, no exemplo do acalanto, a voz desem-penha um papel central que conjuga elementos de natu-rezas diversas (música, linguagem verbal e movimento), canalizando sua força expressiva para uma finalidade es-pecífica. Esta capacidade agregadora da voz é de extrema importância para a análise da canção e de sua perfor-mance, como veremos mais adiante.

A cantora e psicanalista Marie-France Castarède, em busca de uma abordagem psicanalítica da voz, associa a forma do acalanto entoado pela voz materna ao “sen-timento oceânico” considerado por Freud a base da reli-giosidade humana. Nesse sentido, o acalanto seria para-digmático como restituidor da sensação de plenitude do bebê no ambiente do útero materno, perdida logo após o nascimento. Assim escreve Freud:

Uma criança recém-nascida ainda não distingue seu ego do mun-do externo como fonte das sensações que fluem sobre ela. Apren-de gradativamente a fazê-lo, reagindo a diversos estímulos. Ela deve ficar fortemente impressionada pelo fato de certas fontes de excitação, que posteriormente identificará como sendo seus pró-prios órgãos corporais, poderem provê-la de sensações a qualquer momento, ao passo que, de tempos em tempos, outras fontes lhe fogem - entre as quais se destaca a mais desejada de todas, o seio da mãe -, só reaparecendo como resultado de seus gritos de socorro (FREUD, 1976, p.84).

O grito do recém-nascido representa bem mais que um sinal de descontentamento ou protesto, ele assinala a descoberta de um novo meio de expressão que passará a ser utilizado de maneira cada vez mais deliberada e articulada pelo indivíduo. Um meio de expressão que ul-trapassa o utilitarismo da comunicação para inscrever-se também como ferramenta de tradução do indizível: a voz. Do grito à fala articulada em linguagem, o longo e com-plexo percurso da voz acompanhará o desenvolvimento do sujeito e sua transmutação em um ser capaz de mani-pular relações simbólicas por meio da linguagem.

A partir dos processos descritos por Freud, Marie-France Castarède posiciona a voz como agente mediador entre o corpo e a linguagem no processo de formação do sujeito:

Se o grito é a primeira expressão afetiva, a voz vai lhe suceder, introduzindo fenômenos sonoros especificamente humanos, como as vibrações harmônicas. Ela é mediadora entre o corpo e a lin-guagem [...] A voz é mediação, não apenas para o sujeito em si mesmo, entre seu corpo e a língua, mas com a voz do outro. Ela se encarna em um ‘discurso vivo’, para retomar a expressão de André Green. A fala levada pela voz é diferente do pensamento, pois ela é resultado de uma descarga motora. Falar de viva voz ao outro é se descarregar (CASTARÈDE, 2004, p.134).

Por meio da voz (e da escuta, evidentemente) o ser hu-mano vai construir seu estatuto de sujeito. A voz desem-penha um papel essencial no desenvolvimento da noção de Eu, que vai possibilitar sua interação com o Outro; ela representa uma espécie de ponte entre corpo e lingua-gem, identidade e alteridade.

3. Música das palavras: som, significado e signoPodemos pensar o caminho do som ao significado como uma série de “estágios” que levariam o ser humano da vo-calidade pura do bebê (a princípio, apenas sons sem qual-quer vinculação necessária com significados linguísticos) até o desenvolvimento destas potencialidades vocais em linguagem verbal, codificada, convencional. Este trajeto pode ser interpretado como uma passagem, ou evolução, de um uso “natural” da voz, onde há uma clara preva-lência do som, até seu uso “cultural”, determinado pela dinâmica simbólica da linguagem. Entretanto, a prática nos mostra que esta separação é reducionista e esconde mecanismos mais complexos na utilização da voz pelo ser humano. O músico e professor canadense Murray Schafer propõe uma gradação entre dois pólos extremos: de um lado os vocábulos isoladamente considerados e sons vo-cais manipulados eletronicamente (representando o má-ximo de som), de outro, a fala deliberada e articulada em linguagem (o máximo do significado) (SCHAFER, 1992, p.240). Esta gradação não implica um caminho sem volta do som à linguagem, mas nos permite vislumbrar uma série de formas de expressão intermediárias entre som e significado que são usadas simultaneamente, de dife-rentes maneiras em diferentes contextos sociais, sem que guardem entre si qualquer relação hierárquica.

Toda linguagem verbal tem uma musicalidade própria. A articulação das palavras e seus significados na fala reve-la elementos essencialmente musicais como o ritmo e a variação das frequências sonoras, ou alturas (melodia). A característica melódica da fala é identificada pelos tone-mas, definidos como “traços entoativos localizáveis em de-terminados pontos do discurso. A afirmação, a resignação e a constatação implicam no movimento melódico descen-dente, enquanto contentamento, exclamação e surpresa determinam o movimento melódico ascendente. É nessa medida que um ouvinte, ignorante de uma dada língua, é capaz de captar algo da mensagem comunicativa, pois é sensível à expressividade da enunciação” (VALENTE, 1999, p.110). Assim, não podemos falar de uma separação entre som e significado, pelo contrário, ambos mantêm uma rela-ção complementar na expressão vocal. Por mais elaborado que seja, o discurso verbal não prescinde destes elementos musicais para complementar ou reforçar expressivamente

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Média na Europa, a pesquisadora Margit Frenk conclui que, naquele contexto histórico e social, a palavra escrita não pode ser compreendida de outra forma senão como suce-dâneo da fala e/ou canto (FRENK, 2005, p.16-17). Sua pes-quisa, alicerçada em fartas referências documentais e lite-rárias, nos permite perceber o processo de transformação de uma cultura essencialmente oral, que vai sendo paula-tinamente modificada a partir da difusão da linguagem es-crita e, mais tarde, com o advento da imprensa. Entretanto, o longo período de coexistência entre os universos oral e escrito é marcado por uma preponderância do primeiro so-bre o segundo, já que os textos eram escritos para serem lidos em voz alta (ou oralizados) para uma outra pessoa ou grupo de pessoas, e mesmo a leitura individual não se confundia com leitura silenciosa, pois era de praxe que os textos fossem lidos em voz alta mesmo quando o leitor o fazia de forma solitária. A leitura tal como a praticamos contemporaneamente, ou seja, leitura solitária (ou priva-da) e silenciosa, é fruto de vários séculos de transforma-ções dos hábitos sociais ligados à transmissão da palavra. A pesquisadora ressalta a característica de mobilidade que possuem os textos dentro de uma tradição oral:

Por sua indissolúvel ligação com a memória e com a performan-ce, em um momento e lugar dados, toda literatura vocalizada - seja ou não oral em seu modo de composição, esteja ou não registrada, além disso, em um papel - se encontra em contínuo movimento. Não há texto fixo, mas um texto que a cada vez vai modificando-se. Quando se transcreve um texto desta índole em um manuscrito (ou, mais tarde, em um impresso), o que se regis-tra é apenas uma versão, versão efêmera, que se pronunciou em certa ocasião e que difere mais ou menos das pronunciadas em outras ocasiões (FRENK, 2005, p.36).

Neste contexto, percebemos que os textos escritos, ape-sar de estabelecerem variadas relações com a palavra fa-lada e/ou cantada, não poderiam ser concebidos de forma independente das manifestações orais. Seja para poste-rior oralização ou para registro de uma performance oral ocorrida em determinada ocasião, a escrita sempre se co-locava como serva da voz, ou como “língua segunda”, na já citada expressão de Paul Zumthor.

As observações de Frenk sobre os “textos em movimen-to” também podem ser estendidas ao universo da canção, pois esta resiste em assumir uma forma fixa, tendendo a ser constantemente transformada a cada performance. Os registros escritos da canção (a simples transcrição da letra ou a letra acompanhada da partitura com a melo-dia), tendem a ser insuficientes para a compreensão da totalidade dos seus significados, e demandam sempre a observação da performance propriamente dita como forma de suprir as limitações da linguagem escrita. Este ponto será desenvolvido mais adiante.

As reflexões sobre o desenvolvimento da leitura, fruto da disseminação da linguagem escrita no mundo ocidental, nos levam a uma maior consciência do aspecto origina-riamente sonoro da palavra. Em conhecido estudo origi-nalmente publicado em 1982, o pesquisador Walter J. Ong demonstrou que as diferenças entre os domínios da ora-lidade e da escrita eram muito mais profundas do que se

os conteúdos que quer veicular. Mesmo em uma sofisti-cada exposição oral, ainda podemos ouvir pulsar ritmos e sons que remontam àqueles primeiros balbucios do bebê, extremamente ricos em articulação sonora, mas ainda não adaptados (ou reduzidos) ao sistema simbólico da lingua-gem. Podemos, então, aplicar a este caso a já mencionada gradação proposta por Schafer para relacionar os pólos ideais da entoação (voz falada) e do canto (utilização mu-sical da voz), percebendo que existem igualmente várias gradações de mistura entre eles e que uma separação com-pleta seria impossível.

Alfredo BOSI chama atenção para o som no signo lin-guístico5 lembrando a célebre expressão de Ferdinand de Saussure, quando este referiu-se à linguagem humana como “pensamento-som”. Conforme Bosi, os signos da linguagem escrita estão profundamente ligados à sua origem sonora, mais especificamente vocal:

O signo vem marcado, em toda sua laboriosa gestação, pelo es-cavamento do corpo. O acento que os latinos chamavam anima vocis, coração da palavra e matéria-prima do ritmo, é produzido por um mecanismo profundo que tem sede em movimentos abdo-minais do diafragma. Quando o signo consegue vir à luz, comple-tamente articulado e audível, já se travou, nos antros e labirintos do corpo, uma luta sinuosa do ar contra as paredes elásticas do diafragma, as esponjas dos pulmões, dos brônquios e bronquíolos, o tubo anelado e viloso da traqueia, as dobras retesadas da laringe (as cordas vocais), o orifício estreito da glote, a válvula do véu palatino que dá passagem às fossas nasais ou à boca, onde topará ainda com a massa móvel e víscida da língua e as fronteiras duras dos dentes ou brandas dos lábios.

O som do signo guarda, na sua aérea e ondulante matéria, o calor e o sabor de uma viagem noturna pelos corredores do corpo. O percur-so, feito de aberturas e aperturas, dá ao som final um proto-sentido, orgânico e latente, pronto a ser trabalhado pelo ser humano na sua busca de significar. O signo é a forma da expressão de que o som do corpo foi potência, estado virtual. (BOSI, 2008, p.52-53).

Desta maneira, a voz é responsável por inscrever o cor-po no signo linguístico. A força da ligação entre som e linguagem pode ser observada também na linguagem escrita, onde percebemos a presença do som na palavra enquanto signo visual. Podemos dizer que o desenvolvi-mento da linguagem escrita acontece paralelamente ou posteriormente ao desenvolvimento linguístico da voca-lidade humana, mas não prescinde desta, a não ser nos casos em que há uma incapacidade fisiológica que afeta a audição e impõe a necessidade de substituir os estímulos sonoros pelos visuais e táteis.

Um exemplo que pode ajudar a compreender melhor esta ligação entre som e signo diz respeito ao desen-volvimento da leitura no mundo ocidental. A leitura, como é praticada na sociedade contemporânea, é uma atividade solitária e silenciosa na qual é ressaltado o aspecto visual da percepção sensorial. Este é um dos motivos pelos quais a linguagem escrita tende a ser vis-ta como separada do universo sonoro das manifestações da voz. Entretanto, a palavra escrita nunca deixou de estar intimamente ligada à voz e à possibilidade de sua transformação em sons por meio da leitura em voz alta.Ao analisar os hábitos de escrita e leitura durante a Idade

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suspeitava até então. Ao analisar características de cultu-ras marcadas pelo que ele denominou “oralidade primária” (grupos de indivíduos totalmente não familiarizados com a escrita), ele observa algumas características psicodinâmi-cas que diferenciam radicalmente os processos de comuni-cação nos universos da oralidade e da escrita, não apenas no que diz respeito ao aspecto formal das mensagens, mas sobretudo nas maneiras de estruturar o pensamento e a consciência da realidade por meio da linguagem. Conforme o pesquisador, as diferenças entre o pensamento de base oral e escrita têm suas raízes na própria natureza do som, identificado por ele como “poder e ação” dadas suas carac-terísticas intrinsecamente dinâmicas:

O som existe apenas quando está deixando de existir. Não é sim-plesmente perecível, mas essencialmente evanescente, e é sentido como evanescente [...] Não há meio de parar o som e ter som. Posso parar uma câmera de filme e deter uma imagem fixada na tela. Se eu parar o movimento do som, nada terei - apenas silêncio, absolutamente nenhum som. Toda sensação acontece no tempo, mas nenhum outro campo sensório resiste deste modo à ação sus-pensa, à estabilização (ONG, 1999, p.32).

A partir da constatação destas características particula-res do som, Ong inicia um exame da influência que elas exercem na percepção sensorial e na transmissão de men-sagens vocais, mapeando os modos segundo os quais se estrutura a comunicação baseada na palavra oralizada 6.

A escrita na civilização ocidental contemporânea (in-cluindo suas formas impressa e eletrônica) encontra-se completamente interiorizada nos indivíduos por seu am-plo e corrente uso: nas expressões de Ong, trata-se de uma sociedade de mentalidade “quirográfica” (baseada na escrita), ou mais especificamente, “tipográfica” (base-ada na imprensa). Ong conclui que a escrita é uma forma de tecnologia ligada à palavra, e esta tecnologia foi res-ponsável por uma reestruturação tão profunda da cons-ciência humana, que tornou especialmente difícil para os indivíduos letrados contemporâneos a compreensão do modo de pensamento das sociedades de base oral.

O “escritocentrismo”7 da sociedade ocidental contempo-rânea coloca o texto escrito em uma posição de destaque. A escrita passa a ser encarada como uma ferramenta le-gitimadora das ideias, sendo identificada com a moderni-dade e com o valor da produção artística e intelectual as-sim veiculada. Este movimento de valorização da escrita teve como contrapartida o desprezo pelas formas orais de expressão, consideradas durante muito tempo inferiores às formas de expressão escrita, pois, entre outros motivos alegados, não permitiriam a transmissão das ideias com a mesma sofisticação proporcionada pela escrita. Os re-flexos deste movimento foram sentidos de maneira bas-tante intensa no âmbito acadêmico: no campo dos estu-dos literários, por exemplo, a atenção exclusiva ao texto escrito fazia com que se ignorasse toda uma produção poética que não estava baseada nesta forma de trans-missão. Além disso, as análises “escritocêntricas” tendiam a desconsiderar alguns aspectos de determinados textos literários que, apesar de escaparem ao registro escrito,

eram essenciais para a satisfatória compreensão dos sig-nificados da obra. A transmissão oral que acontece com a performance e que, hoje sabemos, afeta diretamente o próprio estilo do texto pode ser citada como exemplo de um elemento que era rejeitado como contingencial e secundário em relação à palavra escrita. O clássico estudo de Paul Zumthor sobre “literatura” medieval8 é um exem-plo de como o papel central conferido pela academia ao texto escrito impedia a satisfatória compreensão das ma-nifestações poéticas deste período histórico.

Um dos pontos de maior relevância no trabalho de Walter Ong é justamente chamar atenção para o fato de que a expressão de base oral não pode ser analisada de acordo com critérios provenientes de um pensamento de base letrada: dadas as diferenças intrínsecas de cada modo de consciência e estruturação da expressão, não é possível traçar entre eles uma divisão hierárquica. Esta percep-ção não apenas modifica a maneira como encaramos a produção artística e intelectual de sociedades orais, mas também nos oferece uma ferramenta valiosa para rever o modo como enxergamos nossa própria produção escrita. A percepção de que oralidade e escrita influenciam de formas diferentes o pensamento e a expressão possibilita uma visão histórica, portanto crítica, do nosso modo de expressão centrado na escrita.

A predominância do texto escrito na análise acadêmica da canção é percebida pela antropóloga Ruth Finne-gan, quando ela diz que “não é de surpreender que a palavra escrita ou passível de ser escrita tenha com tanta frequência tido lugar central no estudo das can-ções - é ela que pode ser isolada para análise e trans-missão” (FINNEGAN, 2008, p.19). Conforme a pesqui-sadora, este foco no aspecto textual das canções está relacionado com uma tendência recorrente no pensa-mento ocidental em identificar o aspecto intelectual do humano com a linguagem, em oposição ao aspec-to emocional que estaria identificado com elementos não-verbais:

Nesta visão, a performance musical representa o aspecto sensório, incontrolável e até perigoso da natureza humana (especialmente, é claro, quando manifestado na música popular ou não-ocidental) [...] Alguma música, no entanto, escapou dessas associações: os gêneros eruditos mediados pela notação musical (FINNEGAN, 2008, p.21).

Percebemos aqui o poder normalizador da escrita, domi-nando os elementos não-verbais e reduzindo-os a uma linguagem passível de ser convenientemente transmitida e analisada nos meios acadêmicos.

4. Tripla perspectiva analítica: texto, música e performanceO exame da canção como forma expressiva é útil quando analisamos as maneiras pelas quais a voz é utilizada para a produção de significados, tanto linguísticos quanto mu-sicais. Porém, como aponta Gil Nuno Vaz, a canção não é um objeto de fácil definição:

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A canção, no senso comum, é entendida como a reunião de letra e música em uma forma simples. Essa noção generalizada decorre da importância que elas detêm no processo de criação artística [...] Quando se fala do significado de uma canção, contudo, o binômio ‘letra e música’ deixa margem para alguns questionamentos. Afinal, expressões como ‘canção instrumental’ ou ‘canção sem palavras’ são usadas costumeiramente quando uma composição musical é senti-da e referida como tal, mesmo sem a letra. E muitos poemas são denominados canções, ainda que as palavras não sejam cantadas com qualquer melodia [...] Fazendo-se uma compilação de diversas definições de canções, é possível reunir oito elementos ligados a ela com maior frequência: (1) o canto / (2) de um texto poético / (3) geralmente acompanhado por um instrumento / (4) dentro de uma determinada forma musical / (5) de duração geralmente breve / (6) com certa interação entre música e poesia / (7) relacionado com diversos contextos, como dança, trabalho, acalanto, reza / (8) de âmbito erudito ou popular (VAZ, 2007, p.11-13).

Todos os componentes da canção complementam-se para construir seus significados, o que pede uma abor-dagem analítica específica. O fato de podermos diferen-ciar na canção componentes verbais (o texto, ou letra) e musicais (a melodia e o acompanhamento instrumental) não quer dizer necessariamente que ela seja uma for-ma simples de superposição de linguagens. É verdade que, em alguns casos, podemos encontrar poemas que foram posteriormente musicados, mas que não tiveram originalmente nenhuma intenção musical por parte do autor; ou ainda melodias compostas inicialmente como temas instrumentais que, mais tarde, inspiraram a composição de uma letra. Em todo caso, dada a si-multaneidade de sua expressão, os elementos verbais e musicais presentes na canção afetam-se mutuamente, modificando seus significados originários e criando uma nova forma de linguagem, não necessariamente sujeita às dinâmicas de funcionamento das linguagens que fo-ram conjugadas para criá-la.

Por não ser apenas texto, nem apenas música, as análises puramente literárias ou estritamente musicais da canção acabam por não considerá-la em sua plenitude e riqueza de significados. Augusto de Campos, no poema-prefácio que escreveu para o livro Os últimos dias de paupéria, de Torquato Neto, escreve:

Estou pensandoNo mistério das letras de músicaTão frágeis quando escritasTão fortes quando cantadasPor exemplo ‘nenhuma dor’ (é preciso reouvir)Parece banal escritaMas é visceral cantadaA palavra cantadaNão é a palavra faladaNem a palavra escritaA altura a intensidade a duração a posiçãoDa palavra no espaço musicalA voz e o mood mudam tudoA palavra-cantoÉ outra coisa (CAMPOS, 2005).

Podemos traçar um paralelo entre o texto de Augusto de Campos e o que Roland Barthes chamou de “grão da voz”, ao escrever sobre determinados gêneros da música cantada nos quais “uma língua encontra uma voz” (BARTHES, 1982,

p.237). Barthes compreende a voz na canção (sobretudo na canção erudita) como elemento produtor de significados que ultrapassam a simples veiculação musical da língua para representar a materialidade de um corpo que fala/canta:

O ‘grão’ da voz não é - ou não é apenas - seu timbre; a significân-cia que ele abre não se pode definir mais precisamente que pela própria fricção da música e de outra coisa, que é a língua (e de forma alguma a mensagem). É preciso que o canto fale, ou ainda melhor, escreva (BARTHES, 1982, p.241-242. Grifo do autor).

Podemos dizer que o “grão da voz” foi a forma que Bar-thes encontrou para pensar o modo específico por meio do qual a canção produz seus significados, por meio da realização de uma “escritura cantada da língua” (BAR-THES, 1982, p.242). Obviamente, quando o autor utiliza as palavras “escrever” e “escritura”, o faz de acordo com o conceito amplo de texto tal como concebido pela se-miótica, de maneira alguma restrito à linguagem escrita.

Temos na canção uma mensagem linguística e uma mensagem musical, ambas veiculadas simultaneamente pela voz; acontece que a voz não é capaz de veicular esta mensagem complexa sem transformá-la por meio da materialidade do corpo do emissor (o cantor ou in-térprete). Para compreender o alcance das palavras de Barthes, basta escutar versões de uma mesma canção executadas por diferentes intérpretes (os exemplos se multiplicam na proporção direta da popularidade da canção escolhida): em muitos casos é simples perceber como os significados da canção podem ser completa-mente alterados pelas qualidades vocais (inclusive qua-lidades idiossincráticas) de cada intérprete - precisa-mente “a voz e o mood” mencionados por Augusto de Campos em seu já citado poema-prefácio.

Dadas estas peculiaridades formais, a composição de can-ções no âmbito da música popular segue parâmetros pró-prios, que nem sempre coincidem com os parâmetros utili-zados por poetas e músicos em sua atividade criativa. Para Luiz Tatit, o cancionista (maneira pela qual ele faz referên-cia ao compositor de canções ou compositor popular), não se considera músico nem poeta; mistura um pouco de tudo e não encontra muita orientação para sua atividade criati-va nem nos conservatórios nem nos cursos de letras, dadas as especificidades de seu processo de criação, inclusive no que diz respeito ao registro escrito de suas composições, já que as canções são geralmente refratárias a um padrão único de execução (TATIT, 2007, p.100-101) 9.

Como a canção é tomada pelo domínio da voz, em toda sua multiplicidade e mutabilidade, ela tende a ser re-transformada por quem canta a cada nova interpretação. Esta característica se reflete na dificuldade em registrar as canções sob forma escrita: cada forma de notação deixa de fora algum elemento importante para a compreensão dos significados da canção. Voltando ao já citado exem-plo das várias versões de uma mesma canção, podemos encontrar casos em que a canção é registrada da mes-ma maneira (por exemplo, uma partitura com a melodia

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e a letra, além das indicações para o acompanhamento instrumental) e ser cantada de maneiras completamen-te opostas por seus intérpretes. Diferentemente do que ocorre com a música (no caso de uma peça instrumen-tal) e com a poesia, o que fica de fora do registro escrito é essencial para a canção, não podendo ser considerado elemento contingencial ou secundário.

Estas observações nos levam ao conceito de performance, por meio do qual a necessidade de uma abordagem espe-cífica da canção pode ser mais bem compreendida. Afinal, é apenas com a performance (modo pelo qual acontece a execução da canção) que acontecerá a expressão plena de seus conteúdos linguísticos, musicais e subjetivos.

5. Sobre os conceitos de Performance A etimologia da palavra “performance” remete a uma ação por meio da qual se atribui uma forma a alguma coi-sa ou se revela a forma de algo (do latim, formare: formar, dar forma a). O dicionário também nos oferece sinônimos como “interpretação”, “atuação” e “desempenho”, apon-tando para uma pluralidade de significados e acepções da palavra (HOUAISS, 2007). Desta maneira, podemos empregar o termo “performance” para fazer referência a uma apresentação artística (a performance de um músi-co/bailarino/ator) ou para caracterizar o desempenho de um indivíduo na realização de determinada tarefa, não necessariamente de natureza artística (a performance de um atleta, a performance de um estudante em um teste). O mesmo termo pode ser aplicado até mesmo quando nos referimos a uma ação não-humana (a performance de uma máquina ou de um carro, por exemplo). Esta diversi-dade de utilizações do termo implica esforços específicos no sentido de buscar conceitos de performance adequa-dos aos respectivos contextos dentro do quais serão utili-zados (artes, esportes, física aplicada etc.).

Mesmo quando direcionamos o foco para uma área es-pecífica do conhecimento (em nosso caso, as artes) a complexidade conceitual permanece. Examinando com mais atenção o primeiro exemplo dado por nós para as utilizações da palavra “performance”, ou seja, uma apresentação artística, é simples perceber que esta ex-pressão engloba uma imensa variedade de manifesta-ções expressivas. Marvin Carlson, em texto originalmen-te publicado em 1996, chama atenção para exemplos contemporâneos desta complexidade, ao perceber a di-ferenciação dos usos do termo no âmbito da imprensa ligada às artes e espetáculos:

O The New York Times e o Village Voice [jornais norte-america-nos de grande circulação] ambos agora incluem uma categoria especial de ‘performance’ - separada de teatro, dança e filmes - incluindo eventos que frequentemente também são chamados de ‘arte-performace’ ou até ‘teatro de performance’. Para muitos, este último parece tautológico, já que em dias mais simples con-siderava-se que todo teatro estava envolvido com performance, sendo o teatro, de fato, uma das ‘artes de performance’. Este uso em grande parte ainda está conosco, como também está a prática de chamar qualquer evento teatral específico (ou, para este fim, eventos específicos de música ou dança) de uma ‘per-formance’ (CARLSON, 2008, p.71).

Além de fazer referência à performance na acepção já citada de apresentação artística (citando a expressão “arte de performance” que poderia ser aplicada ao teatro, dança ou música), este trecho nos fornece mais um caso de emprego da palavra “performance” como modalidade de expressão artística diversa do teatro, da dança e do cinema, identificada pela expressão “arte-performance” (performance art na expressão original inglesa) ou sim-plesmente “performance”.

No caso da arte-performance, o termo “performance” é utilizado para identificar não a atividade genérica de apre-sentação de um trabalho artístico, mas um gênero espe-cífico de arte. A chamada arte-performance, ou apenas performance, tem raízes tanto no teatro quanto nas artes plásticas. Sob esta denominação encontra-se um amplo espectro de manifestações artísticas, extremamente difícil de ser agrupado segundo características comuns. O pesqui-sador Renato Cohen, em pesquisa dedicada a este gênero, destaca como ontologia da performance a aproximação entre vida e arte, apontando suas ligações com um movi-mento maior, chamado live art, denominação que começou a ser utilizada no Reino Unido em meados dos anos 1980 para designar um novo modo de encarar a arte, incluindo expressões como, por exemplo, o happening:

A live art é a arte ao vivo, mas também a arte viva. É uma forma de se ver a arte em que se procura uma aproximação direta com a vida, em que se estimula o espontâneo, o natural, em detrimento do elaborado, do ensaiado.A live art é um movimento de ruptura que visa dessacralizar a arte, tirando-a de sua função meramente estética, estilista. A ideia é resgatar a característica ritual da arte, tirando-a de ‘espaços mor-tos’, como museus, galerias, teatros, e colocando-a numa posição ‘viva’, modificadora.Esse movimento é dialético, pois na medida em que, de um lado, se tira a arte de uma posição sacra, inatingível, vai se buscar, de outro, a ritualização de atos comuns da vida (COHEN, 2007, p.38).

Cohen chama atenção para o posicionamento da perfor-mance como “arte de fronteira”, aglutinando inúmeras linguagens artísticas (teatro, dança, pintura etc.) e refra-tária a definições e categorizações, dadas suas atitudes experimentais no sentido de romper convenções. O pes-quisador afirma que a performance é uma atividade de natureza essencialmente cênica, com antecedentes his-tóricos que remontam a experiências análogas no campo das artes plásticas e do teatro10. Entretanto, o autor res-salta que “a ideia de interdisciplina como caminho para uma arte total aparece na performance como uma espécie de reversão à proposta de Gesamtkunstwerk de Wagner. Na concepção da ópera wagneriana, esse processo de uso de várias linguagens é harmônico [...] Na performance [...] utiliza-se uma fusão de linguagens (dança, teatro, vídeo etc.) só que não se compondo de uma forma harmônica, linear. O processo de composição das linguagens se dá por justaposição, colagem” (COHEN, 2007, p.50).

Também é interessante falar sobre como a academia tem se comportado no sentido de desenvolver ferra-mentas analíticas que contemplassem a imensa va-riedade de produções artísticas reunidas sob o termo

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“performance”. Neste sentido, são pioneiras as ideias de Richard Schechner no sentido de propor um “novo paradigma” que deslocava o foco do teatro para a performance (considerada uma categoria mais ampla, dentro da qual estaria compreendida a noção clássi-ca de teatro), reformulando os programas de estudo das universidades norte-americanas e permitindo o surgimento do que contemporaneamente se denomina performance studies. A abordagem proposta por Sche-chner tornou-se conhecida como Broad Spectrum Ap-proach (abordagem de amplo espectro) definida pelo foco transdisciplinar na performance:

Em vez de treinar profissionais da performance não-empregá-veis, departamentos de dança e teatro deveriam desenvolver cursos que mostrassem como a performance é um paradigma-chave em muitas culturas, modernas e antigas, não-ocidentais e euro-americanas.[...]O pensamento performativo precisa ser visto como meio para análise cultural. Matérias de estudos de performance precisam ser ensinadas fora dos departamentos de artes de performance, como parte do núcleo do currículo (SCHECHNER, 2008, p.8).

Conforme Schechner, a tradição ocidental do teatro e dança (tanto do ponto de vista do estudo acadêmico como da formação de profissionais) precisa ser repensada tendo como referência a performance, do contrário irá desmoronar. “A alternativa feliz é expandir nossa visão do que é performance, estudá-la não apenas como arte, mas como meio de entender processos históricos, sociais e culturais” (SCHECHNER, 2008, p.9).

A questão da performance de fato tem sido estudada sob diferentes pontos de vista, em diferentes áreas acadêmi-cas. Como exemplos situados fora do âmbito das artes de performance, podemos citar a linguística e a antropologia como campos em que a performance tem sido utilizada como paradigma teórico.

No caso da linguística, as ideias de J. L. Austin representam um divisor de águas: conhecido por seu conceito de “atos de fala” (speech acts), o eixo central de seu trabalho es-teve na consideração de que a fala é uma forma de ação. Em seus escritos, AUSTIN fala sobre certas elocuções, que qualifica como “performativas”. Entre estas elocuções (ut-terances), que teriam apenas a aparência de declarações ou afirmações, o autor dá o exemplo da frase “Eu aceito” dita no curso de uma cerimônia de casamento:

Aqui poderíamos dizer que, ao dizer estas palavras, estamos fa-zendo alguma coisa - a saber, casando, em vez de declarar alguma coisa, a saber, que estamos casando. E o ato de casar-se, como, digamos, o ato de apostar, é, ao menos preferivelmente (embora ainda não precisamente) descrito como dizer certas palavras, em vez de realizar [to perform] uma ação diferente, interna e espiritu-al, da qual estas palavras são meramente o signo externo e audível (AUSTIN, 2008, p.177. Grifos do autor).

A performance também tem ocupado um lugar central no campo das ciências sociais. Inicialmente o conceito foi utilizado na antropologia, auxiliando as práticas etnográ-ficas voltadas para culturas não-familiarizadas com a lin-

guagem escrita, ou centradas em manifestações orais e/ou ritualizadas da palavra (recitações, cantos, cerimônias etc.). O antropólogo Victor Turner, ao comentar ritos de passagem de tribos africanas nos quais certos indivíduos são submetidos a um período de isolamento para poste-riormente serem devolvidos ao convívio social, aponta para a característica da “liminaridade” (liminality na expressão original inglesa, do latim limen = limiar) que este isola-mento confere aos indivíduos enquanto estão passando pelo rito. Escreve Turner que “os atributos da liminarida-de ou das personas liminares (pessoas-limiar) são neces-sariamente ambíguos, pois esta condição e estas pessoas eludem ou escorregam através da rede de classificações que normalmente localizam estados e posições no espa-ço cultural” (TURNER, 2008, p.89). Ao mesmo tempo em que a ordem social é temporariamente suspensa para estes indivíduos, tornando-os completamente despossuídos (in-clusive de sua identidade), forma-se entre eles um profun-do senso de igualdade que vai além da solidariedade entre membros de uma mesma sociedade. Conforme Turner, o estado liminar responsável pelo senso de igualdade (que ele chama de communitas) entre os indivíduos submetidos ao rito, é importante na dialética social de igualdade/desi-gualdade, homogeneidade/diferenciação.

A liminaridade é frequentemente destacada como uma caracterísica da performance, seja quando consideramos a performance como gênero artístico (a “arte de fronteira”, que aglutina várias linguagens sem se identificar espe-cificamente com nenhuma delas) ou como apresentação artística (atividade essencialmente efêmera, relacionada à presença do artista e do público em determinado espaço-tempo, que não pode ser repetida e dificilmente pode ser reproduzida, capturada ou registrada de maneira eficaz). O trabalho de Victor Turner com as tribos africanas gerou outras importantes contribuições à performance como pa-radigma teórico, sobretudo no que diz respeito ao conceito de “drama social” que extrapolou os limites da etnografia para alcançar uma aplicação muito mais ampla dentro do panorama das ciências sociais.

Também no campo dos Estudos Culturais ou Teoria Cul-tural a noção de performance (utilizada sob as denomi-nações performance cultural ou intercultural) vem sendo utilizada como paradigma no entendimento de processos ligados à construção de identidades dentro dos contextos (multi/inter/trans)culturais contemporâneos.

Uma vez traçadas as linhas gerais da evolução dos con-ceitos de performance e de sua utilização por parte de algumas áreas do conhecimento acadêmico, é chegado o momento de definir a abordagem que utilizaremos na presente pesquisa, tendo em vista seu direcionamento para a análise teórica da canção.

Preliminarmente, podemos entender a performance como a atividade complexa que ocorre no momento da execu-ção de um texto (tomando o termo no sentido de men-sagem poética, não necessariamente escrita), da mesma

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forma como dizemos que um músico ou cantor executa uma peça musical quando este toca ou canta baseado, ou não, nas indicações escritas de uma partitura.

No caso da canção, um primeiro elemento que se apre-senta na estrutura da performance é a presença do intér-prete: através do corpo e de sua expressão viva por meio da voz, dos gestos ou de expressões faciais (e, eventual-mente, outros elementos visuais ligados ao corpo, como figurinos, adereços, maquiagem etc.), o artista vai “dar forma” ao texto e transmiti-lo ao público num só ato. Po-demos retomar a ideia já citada de Fayga Ostrower para dizer que o corpo é, ao mesmo tempo, “o meio e o modo” pelos quais ocorre a performance, ressaltando o papel central da voz neste processo.

A presença do artista remete a uma característica teatral da performance, no sentido de que o texto apenas alcan-ça a plenitude de seus significados quando, à semelhança da encenação, são acrescentados à palavra escrita uma série de elementos que potencializam e complementam seu conteúdo expressivo. Do mesmo modo, podemos en-carar o exemplo da partitura musical, código escrito que necessita ser complementado pelo intérprete no momen-to da execução da peça. Tanto o exemplo da música como do teatro ilustram bem a pluralidade deste texto, que transborda o que está registrado na forma escrita ao se desdobrar em outros elementos relevantes para a análise da construção dos significados.

Nas palavras de Paul Zumthor,

Introduzir nos estudos literários a consideração das percepções sensoriais, portanto, de um corpo vivo, coloca tanto um problema de método como de elocução crítica. De saída, é necessário, com efeito, entreabrir conceitos exageradamente voltados sobre eles mesmos em nossa tradição, permitindo assim a ampliação de seu campo de referência (ZUMTHOR, 2007, p.27).

Em um de seus livros mais conhecidos, A letra e a voz (1993), Zumthor utiliza o termo “literatura” (entre aspas) como forma de sinalizar que a definição conteporânea de literatura - ligada ao texto escrito, à leitura silenciosa e individual e a uma cultura livresca - está muito aquém do que ele prefere chamar simplesmente de “poesia”, apon-tando para uma ideia mais ampla de manifestação poé-tica da palavra, que engloba outros elementos além da linguagem escrita. A “poesia” estaria, assim, intimamen-te ligada à ideia de ritualidade ou performance, e seria identificada por ele através da expressão “texto poético” (não necessariamente escrito). Zumthor distingue vários momentos na existência de um texto poético: a forma-ção (criação ou composição do texto); a transmissão, que propiciaria a recepção por parte do público, e a reitera-ção, já que esta recepção pode acontecer repetidas vezes sem que seja percebida como redundante pelo ouvinte. A possibilidade de reiteração do texto poético é extrema-mente relevante para o conceito de performance, já que as condições de cada performance não são estáticas e po-dem chegar a modificar os significados do próprio texto. Apesar disso, certas características gerais são mantidas,

preservando a identidade do texto sem com isso torná-lo fechado às interferências ambientais de cada situação performática (ZUMTHOR, 2007, p.65).

É interessante notar que Paul Zumthor inicia suas investi-gações sobre a vocalidade11 a partir de estudos no campo da “literatura” medieval. O importante papel desempe-nhado por elementos como a voz e a música na constru-ção dos significados desta “literatura” levou-o a propor uma divisão entre “texto” e “obra”: o primeiro seria uma “sequência linguística que tende ao fechamento, e tal que o sentido global não é redutível à soma dos efeitos de sentidos particulares produzidos por seus sucessivos componentes” e a segunda, “o que é poeticamente comu-nicado, aqui e agora - texto, sonoridades, ritmos, elemen-tos visuais; o termo compreende a totalidade dos fatores da performance” (ZUMTHOR, 1993, p.220).

Um paralelo com o pensamento de Roland Barthes pode ser interessante neste caso: lembramos o ensaio De l’oeuvre au texte (BARTHES, 1984), originalmente publi-cado em 1971, no qual BARTHES desenvolve conceitos semelhantes utilizando a mesma denominação mais tar-de empregada por Zumthor. A diferença é que a “obra”, para Barthes, seria fechada em si mesma, enquanto o “texto” seria plural, aberto e dinâmico. A ironia presente no fato de Barthes e Zumthor utilizarem palavras tro-cadas para denominar ideias semelhantes é facilmente compreendida se levarmos em conta a diferença entre as perspectivas teóricas adotadas por cada um: Barthes toma o texto escrito como ponto de partida e de che-gada, enquanto Zumthor parte deste mesmo texto para ir além do que está escrito e examinar as manifestações expressivas da voz humana. Mesmo com estas diferenças, o diálogo entre as formulações revela uma preocupação comum em pensar a literatura como algo que escapa a conceitos e fórmulas teóricas fechadas, apontando para uma abertura conceitual que revela novos caminhos na análise das manifestações da palavra (seja escrita ou ora-lizada) e leva a dissecar definições tradicionais para ree-xaminar sua instrumentalidade teórica, tendo em vista a multiplicidade e dinamismo das manifestações artísticas produzidas pelo ser humano.

Este ensaio de Barthes é comentado pelo pesquisador W. B. WORTHEN (2008), que explora a relação entre textu-alidade e poder. Para Worthen, Barthes consegue dife-renciar dois aspectos da textualidade frequentemente confundidos: o primeiro diz respeito ao papel dos textos como “veículos canônicos de intenção autoral” (aspecto relacionado ao conceito barthesiano de “obra”), enquan-to o segundo estaria mais diretamente ligado à intertex-tualidade (relacionado ao conceito de “texto”). Worthen procura repensar oposições relativas à textualidade e à performance, inserindo na discussão as relações de po-der que permeiam estas questões: “Palco versus página, literatura versus teatro, texto versus performance, estas oposições simples têm menos a ver com a relação entre escrita e atuação do que com poder, com os meios pelos

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quais autorizamos a performance, fundamentamos sua significância” (WORTHEN, 2008, p.12).

Neste sentido, a performance aproxima-se da dimensão dinâmica do “texto” barthesiano, já que este

tenta se colocar exatamente atrás do limite da doxa (a opinião corrente constitutiva de nossas sociedades democráticas, potente-mente ajudadas pelos meios de comunicação de massa, não é ela definida por seus limites, sua energia de exclusão, sua censura?); tomando a palavra ao pé da letra, poderíamos dizer que o Texto é sempre paradoxal (BARTHES, 1984, p.74. Grifos da autor).

Aplicando estas reflexões sobre a performance à canção, encontramos nesta forma expressiva um veículo comple-xo em termos formais, além de altamente versátil, tanto do ponto de vista da utilização do corpo como ferramenta artística/comunicativa como de sua capacidade de inser-ção social, estabelecendo uma relação de comunicação com diversos públicos.

Ao analisar alguns aspectos relativos à performance da canção, Christian Marcadet chama atenção para a dis-tinção conceitual entre “performance” e “interpretação”. Para ele,

A performance abrange um quadro mais amplo com o seu am-biente social e humano, as condições contextuais (históricas, sociológicas, técnicas e midiáticas) que a tornam possível, en-quanto a interpretação refere-se mais precisamente ao artista em cena, aos meios artísticos (vocais, corporais e gestuais) que o mesmo mobiliza e à relação singular que estabelece com os públicos (MARCADET, 2008, p.11).

Entretanto, a concepção de “interpretação” desenvolvida por Marcadet muito se assemelha à ideia de “performan-ce” tal como apresentada por Paul Zumthor, vejamos:

A interpretação das canções é por essência o cerne do que é fun-damental na performance. É corrente de sentidos em atos como há corrente de lava. A performance induz uma relação entre um artista e uma audiência, que convém analisar, e o conceito que permite essa análise é o de modo de comunicação cena/plateia – ou in-térprete/público, que marca a natureza e a intensidade da relação estabelecida entre os diferentes atores da performance. Disso decor-rem novos campos de investigação: relações cantor/público e no-ções secundárias e flexíveis de participação, adesão, identificação, interação, intrusão, até mesmo co-criação. A interpretação é funda-mentalmente uma arte de síntese que combina encenação, enun-ciado, personalidade, mito, pulsões do público e contexto. O artista deve pensar globalmente as suas performances cênicas, atendendo a seu repertório, a sua personalidade, às personagens que represen-ta, os meios artísticos aos quais recorre, como os públicos aos quais seus espetáculos são destinados (MARCADET, 2008, p.13).

Como podemos perceber, a atenção específica ao aspecto cênico que o termo “interpretação” quer denotar apenas complementa as ideias de Paul Zumthor sobre a perfor-mance e as situa no panorama específico da canção. As palavras de Marcadet, à semelhança de Paul Zumthor, apontam para uma compreensão mais ampla de “texto poético”, o que ocorre por meio de um exame atento das condições nas quais este texto será efetivamente perfor-matizado. Esta abordagem é necessariamente transdis-ciplinar e abrangente, não podendo se resumir a um ou outro aspecto formal da performance da canção.

O pesquisador Gil Nuno Vaz sublinha o papel central do corpo na estrutura básica da canção ao estudá-la como campo sistêmico. Segundo ele, a gênese da canção esta-ria no movimento corporal: gestos que se desdobram em gestos sonoros, entre os quais o gesto vocal que, por sua vez, produz a fala (gesto verbal) e o canto (gesto musical). Conforme o pesquisador,

é altamente provável que a canção tenha emergido, historicamen-te, da necessidade de conjugar toda a potencialidade expressiva do corpo humano [...] de modo mais autônomo possível, em um campo expressivo mínimo, para cumprir uma função específica, como o acalanto, por exemplo (VAZ, 2007, p.21).

Partindo destes elementos essenciais da canção (fala, canto e movimento), percebe-se os efeitos de duas forças agindo sobre eles, pois, “se de um lado a canção busca, no processo evolutivo, intensificar a conectividade entre seus elementos para garantir a continuidade sistêmica (for-ça centrípeta), de outro, ocorre uma ação desintegradora (força centrífuga) de cada um desses modos primitivos de manifestação corporal em busca de seu campo expressivo próprio” (VAZ, 2007, p.25). Sob esta perspectiva da canção como forma expressiva primitiva ou embrionária, modos específicos de expressão ligados ao corpo (como música, dança e poesia) seriam formas derivadas da canção e não o contrário (ideia da canção como superposição de lingua-gens específicas). Deste modo, pensar a performance da canção seria voltar ao início de um caminho expressivo, na busca pela reintegração de linguagens corporais cada vez mais independentes e sofisticadas, mas que guardam entre si uma origem comum, ligada a uma visão orgânica e não compartimentalizada do corpo humano.

A canção é capaz de se adaptar a diversas formas do dizer poético e aos mais distintos suportes, mantendo os traços de sua estrutura original ao mesmo tempo em que con-segue absorver inúmeras inovações tecnológicas relativas tanto à atividade de composição e gravação como aos circuitos de divulgação artística e distribuição. A perfor-mance da canção, com todas as mudanças por que passou no último século, continua sendo fonte de prazer artístico e espaço de comunicação entre artistas e público, sempre pronta a absorver novidades e fazer uso delas a serviço da expressão artística do ser humano.

6. Canção, mercado e mídiasPor ser extremamente versátil como forma de expressão artística, a canção adaptou-se a inúmeras mudanças relativas aos suportes técnicos que utiliza, ensejando a criação de um mercado específico voltado para a sua pro-dução e consumo.

Inicialmente, temos a presença simultânea do cantor e do(s) ouvinte(s) em um mesmo espaço e tempo como requisito essencial para a performance da canção. Ape-sar desta modalidade de performance ainda persistir na sociedade ocidental contemporânea na forma de shows, festivais e recitais, ela já não é mais a única possibilidade de performance da canção desde que foram desenvolvi-

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dos meios de captar, fixar e transmitir o som à distân-cia. Em seu estudo histórico sobre o desenvolvimento da “paisagem sonora” (soundscape na expressão original em inglês), o canadense Murray Schafer aponta o período do século XIX, por ele chamado de “revolução elétrica”, como decisivo no desenvolvimento das tecnologias relativas ao som, destacando entre elas o telefone, o fonógrafo e o rádio: “com o telefone e o rádio, o som não estava mais ligado ao seu ponto original no espaço; com o fonógrafo, ele foi libertado de seu ponto original no tempo” (SCHA-FER, 1994, p.89). Estas tecnologias tornaram possível o surgimento do fenômeno batizado por Schafer de “esqui-zofonia”, ou seja, a desvinculação entre o som original e sua transmissão ou reprodução eletroacústica:

Originalmente, todos os sons eram originais. Eles ocorriam em apenas um tempo e espaço. Sons eram indissoluvelmente ligados aos mecanismos que os produziam. A voz humana viajava tão lon-ge quanto alguém pudesse gritar. Todo som era inimitavelmente único [...] Desde a invenção dos equipamentos eletroacústicos para transmissão e armazenamento do som, qualquer som, por mínimo que seja, pode ser amplificado e executado em todo o mundo, ou gravado em fita ou disco para as gerações futuras. Nós separamos o som do produtor do som (SCHAFER, 1994, p.90).

A esquizofonia representa um importante divisor de águas para a performance da canção, trazendo mudanças tanto para os intérpretes como para os ouvintes. Com a possi-bilidade de gravar e posteriormente reproduzir o som em discos e fitas, foi iniciado um processo tecnológico que começou com as gravações lo-fi, passou pela era hi-fi 12 e continua até hoje com os arquivos sonoros digitais vei-culados pela internet. Este caminho de captação e mani-pulação do som foi trilhado também, de maneira diversa, no campo das imagens (fotografia, cinema, televisão e vídeo-tape). Na época da esquizofonia, a performance da canção passou a ser também mediatizada.

Para Paul Zumthor,

é indiscutível que a transmissão midiática retira da performance muito de sua sensualidade [...] o que falta completamente, mesmo na televisão ou no cinema é o que denominei tatilidade. Vê-se um corpo; o rosto fala, canta, mas nada permite este contato virtual que existe quando há a presença fisiológica real [...] Uma performance mediatizada não é verdadeiramente teatral, no sentido que a en-tendo; no entanto, essa performance se faz bastante diferente do que poderia ser qualquer forma de escrita (ZUMTHOR, 2005, p.70).

Esta afirmação relaciona-se com as ideias de Zumthor so-bre o que poderíamos chamar de graus de performaticidade presentes nos diversos textos poéticos. Deste modo, o tex-to escrito e a performance ao vivo representam os pontos extremos desta escala, respectivamente, de menor e maior grau de performaticidade. Em todos os casos, porém, a per-formance pode ser entendida como uma interação entre texto poético e leitor, daí a afinidade entre o pensamento Zumthor e as teorias literárias conhecidas como “estética da recepção”13. O leitor (expressão tomada no sentido de também incluir o ouvinte/espectador) é um componente chave no desenvolvimento da performance, desempenhan-do uma atividade criativa que caminha lado a lado com o trabalho do artista, e que é fundamental para a produção

dos significados da obra de arte apresentada, sendo esta um conjunto complexo de elementos expressivos.

O desenvolvimento de tecnologias de gravação e re-produção do som também abriu a possibilidade de no-vas formas de exploração comercial da canção: além da venda de partituras e ingressos para óperas e reci-tais, também se tornou possível vender fitas e discos que registravam a performance dos cantores, ou pelo menos parte desta performance (o som). Desde estes primeiros tempos, a indústria fonográfica já passou por inúmeras etapas na consolidação de um mercado espe-cífico voltado para a produção e consumo da canção. Este trajeto da canção no mercado foi examinado de-talhadamente pela pesquisadora Heloísa Duarte Valen-te, que propõe a denominação canção das mídias em substituição à corrente expressão canção popular ou canção pop, dadas as especificidades dos papéis atri-buídos à canção dentro do panorama de uma socieda-de que ela chama de “midiática”:

Ao nos referirmos à canção das mídias, estamos [...] tratando da canção em uma gama de modalidades que tem uma orientação comum: ter nascido no âmbito de uma sociedade já dominada pe-los meios de comunicação de massas (as mídias). Isto se traduz, sucintamente falando, numa canção composta, executada, difun-dida e recebida segundo os recursos oferecidos pelo conjunto de técnicas de som (e/ou do audiovisual) vigente que, por sua vez, está condicionado à esfera político-econômica das gravadoras. Acrescente-se que, em relação aos séculos precedentes, a can-ção das mídias atenderá a um público cuja sensibilidade cambiará mais rapidamente ao longo dos anos, graças à implantação de novas tecnologias do som e da imagem [...] Posto isto, podemos afirmar que a canção das mídias segue as mesmas normas que definem a indústria do entretenimento (VALENTE, 2003, p.60).

Ainda conforme a pesquisadora, as inovações técnicas re-lativas às mídias sonoras também criaram novos padrões estéticos para atender às demandas do mercado. Tais pa-drões acabam por afetar diretamente a performance das canções, interferindo em todo o processo: desde a escolha do repertório, passando pela gravação, até a reprodução por meio de discos, fitas e das rádios. A crescente popula-rização das mídias torna as canções e seus meios de repro-dução acessíveis a um número cada vez maior de ouvintes (ou consumidores), tornando este mercado ainda mais pro-missor e atraente para investimentos. Os artistas passam a ser encarados sob uma perspectiva essencialmente comer-cial: eles e suas obras são devidamente “adaptados” com vistas às exigências mercadológicas e todo um aparato de marketing passa a atuar interferindo diretamente em todas as etapas de criação e veiculação de suas canções.

Em artigo publicado originalmente em 1990, mas ainda pertinente em relação ao atual panorama da música po-pular, Luiz Tatit14 analisa o funcionamento deste mercado e alguns fatores decisivos para o estudo da nova perfor-mance da canção:

o novo artista deixou de ser o estímulo inicial para o investimen-to das empresas de gravação e se tornou o resultado, repentino aos olhos do público, de uma cadeia de diligências mercadoló-gicas e promocionais, quase infalíveis, que produzem os artistas

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das condições sensoriais de uma situação de performan-ce presencial. Porém, as possibilidades técnicas à dispo-sição do artista de hoje não se resumem aos aparatos eletrônicos de manipulação do som. Com o desenvolvi-mento do mercado fonográfico, foram elaboradas outras maneiras de veiculação da performance, sendo o vídeo-clipe a mais notável entre elas. Além das gravações, das fotos nas capas dos discos e das apresentações ao vivo (cada vez mais sofisticadas em termos de performance), o artista agora podia ter sua obra traduzida nas imagens em movimento do vídeo-clipe, inicialmente criado como peça publicitária para divulgação comercial de lança-mentos musicais, mas logo desenvolvendo padrões es-téticos próprios e conquistando espaços específicos no mercado. À semelhança das gravações em áudio, os ví-deo-clipes não se limitaram a reproduzir as performan-ces ao vivo, mas desenvolveram suas potencialidades no sentido de complementar e até mesmo transformar o sentido das canções a que estavam vinculados.

Paul Zumthor acredita que a ausência do artista na performance mediatizada “carrega uma expectativa ir-remediável para a integridade do corpo” (ZUMTHOR, 2005, p.94); expectativa esta que seria responsável por desencadear um processo de recomposição da situação da performance ao vivo através justamente dos recursos tecnológicos que se encontram à disposição dos artistas. Entretanto, não se pode negar que os novos suportes téc-nicos terminaram por criar linguagens próprias, interfe-rindo diretamente na recepção do público.

com características já preestabelecidas para assegurar o míni-mo de sucesso necessário ao retorno do capital investido. E no centro deste novo estado de coisas formou-se igualmente uma nova competência: o homem de estúdio. Aquele que, sendo ou não músico, sabe converter uma canção, por mais simples que seja, num produto expressivo e agressivo que invade a sala do ouvinte com a mesma exuberância de um som ao vivo. Chamado de produtor, diretor, técnico ou engenheiro de som, este persona-gem oculto, cuja habilidade é completamente desconhecida do grande público, está por trás de inúmeros êxitos do mercado do disco. Sem esse respaldo de qualidade sonora, caminhando pari passu com as convenções eletrônicas e assegurando um acaba-mento técnico impecável, de nada adiantariam as mais perfeitas estratégias de marketing (TATIT, 2007, p.132).

As observações de Tatit demonstram como as regras do mercado interferem diretamente na performance da can-ção, não apenas nas etapas de veiculação e divulgação junto ao público, mas também durante o processo de criação/gravação. Sob este ponto de vista, o trabalho do produtor de estúdio torna-se tão importante quanto o do compositor, já que altera diretamente a obra (ou, em ter-mos mercadológicos, o produto) que chegará aos olhos e ouvidos do público.

Hoje existe todo um sofisticado aparato tecnológico es-pecialmente desenvolvido para as mídias audiovisuais, que permite desde a manipulação de sons e imagens originais até sua própria criação por meios digitais. Toda esta riqueza de possibilidades técnicas representa o es-tágio atual de um longo caminho percorrido desde os primeiros e precários registros fonográficos e que tem por objetivo principal permitir ao público a reprodução

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notas1 Bowden realizou um estudo sobre as canções de Bob Dylan, tendo como foco a dimensão performática dos textos deste compositor.2 Veja-se, a título de exemplo, o caso de textos literários que são posteriormente musicados e transformados em canções, ou dos inúmeros escritores

que se dedicam também a compor letras de canções.3 Os dois processos referidos por Berthier procuram, respectivamente, “identificar uma mensagem linguística no fluxo fonatório, independentemente

das particularidades e variações individuais, a fim de, por exemplo, transformar diretamente a fala em escrita” e “identificar o locutor, qualquer que seja o teor linguístico de sua fala” (BERTHIER, 1998, p.60).

4 Todas as traduções são de minha responsabilidade.5 O som no signo, ensaio contido no livro O ser e o tempo da poesia, originalmente publicado em 1977.6 Walter Ong compara sociedades de base oral e letradas, tendo como resultado um elenco exemplificativo de características do pensamento e

expressão de base oral. Assim, em contraste com sociedades letradas, a oralidade seria: aditiva em vez de subordinativa; agregadora em vez de analítica; redundante ou copiosa; conservadora ou tradicionalista; próxima ao mundo vivenciado (lifeworld); de tom agonístico; empática ou par-ticipativa em vez de objetivamente distanciada; homeostática; situacional em vez de abstrata (ONG, 1999, p.37-57).

7 A expressão é de Margit FRENK (2005).8 A letra e a voz (ZUMTHOR, 1993).9 Vocação e perplexidade dos cancionistas, texto originalmente publicado em 1983 no jornal Folha de São Paulo.10 Como exemplos destes antecedentes históricos, o autor cita os chamados happenings, iniciados nos anos 1960 nos EUA e relacionados às experi-

ências surrealistas dos anos 1920 na Europa, e a body art (arte do corpo) que encara o corpo do artista como suporte expressivo e instrumento de interação com o espaço e com a plateia. No campo das artes plásticas, a chamada action painting praticada por artistas como o norte-americano Jackson Pollock, ao destacar os movimentos do artista por meio de suas pinceladas, também contribuiu com o movimento que tentava repensar as artes, oferecendo uma visão menos estática e segmentada da criação artística.

11 Diferentemente de Walter J. Ong, que sempre utilizou o termo “oralidade” para fazer referência às manifestações sonoras da palavra, Zumthor introduz o termo “vocalidade”, preferindo-o ao anterior por situar melhor esta dimensão sonora da palavra, relacionando-a especificamente à voz humana.

12 lo-fi e hi-fi, respectivamente, abreviações das expressões inglesas low-fidelity e high-fidelity, utilizadas geralmente como referência a uma menor ou maior fidelidade de reprodução do som.

13 Teorias identificadas também pela expressão inglesa reader-response criticism, elaboradas por autores como Stanley FISH, Wolfgang Iser e Hans-Robert Jauss.

14 Canção, estúdio e tensividade, artigo originalmente publicado na Revista USP, 1990.

Conrado Falbo é Mestre em Teoria da Literatura pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (2009). Atua profissionalmente como músico (violonista), professor e escritor, além de preparador vocal de atores. Seus principais focos de pesquisa acadêmica e criação artística são: performance, corpo e vocalidade; intersemio-se (relações entre poesia, música e artes cênicas); e música popular. Atualmente desenvolve pesquisa de doutorado sobre as dimensões performáticas da poesia brasileira desde o modernismo.

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Recebido em: 21/08/2009 - Aprovado em: 19/04/2010

Entrevista com Ana Taglianetti, Daniel Souza e Fernando Bustamante sobre o Projeto Teatro Musical na UFMG

Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte)[email protected]

Palavras-chave: teatro; musicais; música popular; canto; belting; Broadway; Disney.

Interview with Ana Taglianetti, Daniel Souza and Fernando Bustamante about the Teatro Musical Project at UFMG

Keywords: theatre; musicals; popular music; singing; belting; Broadway; Disney.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jan. - jul., 2010

Ana Taglianetti e Daniel Souza (Monitores do Projeto Teatro Musical na UFMG) e Fernando Bustamante (Diretor Convidado do Projeto Teatro Musical na UFMG)

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1 - FAUSTo BoRÉM: Primeiro, gostaria que vocês falassem um pouco sobre os musicais, este gênero de tanto sucesso e ainda tão pouco estudado aca-demicamente, no contexto da história da música e principais centros de produção.

DAnIEL SoUZA: A música tem um papel primordial nos espetáculos teatrais desde os tempos mais remo-tos. Na Grécia Antiga, o canto era comumente utili-zado e Aristóteles já se referia à música como um dos seis elementos fundamentais das tragédias gregas. Com o passar dos tempos, na Idade Média, podemos observar também os dramas litúrgicos ou religiosos e outras representações, como jograis, saltimbancos e malabaristas que se utilizavam da linguagem musi-cal e dramática na mesma representação. No renas-cimento e barroco, houve uma grande propagação de gêneros teatrais cantados, culminando no surgimento das primeiras óperas. Com a chegada do século XIX, a ópera, a opereta e o cabaret tornam-se cada vez mais criativos e mais populares. Na Broadway, em Nova Yorque, EUA, o teatro musical ganhou sua versão mais próxima do que conhecemos hoje. Mas outros centros artísticos no mundo têm também grande importância na produção de musicais, como o West End, em Lon-dres e diversos teatros franceses.

2 - FAUSTo BoRÉM: Podem citar alguns dos principais compositores e letristas/roteiristas do teatro musical?

DAnIEL SoUZA: No teatro musical internacional, po-demos destacar compositores como Jerome Kern, Cole Porter, Irving Berlim, George e Ira Gershwin, Vincent Youmans, Alan Jay Lerner, Leonard Bernstein e Andrew Lloyd Webber, Cole Poter, Richard Rodgers Hammers-tein, Frederick Loewe, Stephen Sondheim (que também era um grande letrista), John Kander, Fred Ebb, Clau-de-Michel Schoenberg, Elton John (por seus trabalhos para a Disney Theatrical), Marvin Hamlisch, Stephen Schwartz, Jonathan Larson, entre muitos outros. Entres os letristas e roteiristas, não podemos esquecer nomes como Oscar Hammerstein II, o próprio compositor Son-dheim, Tim Rice, Jerry Herman, também compositor e Alain Boublil.

AnA TAGLIAnETTI: Como veem, são muitos! Mas a gente sempre tem os nossos preferidos... Rodgers e Hammerstein, Shoenberg e Boubil, Stephen Sondheim são os meus eleitos!

FERnAnDo BUSTAMAnTE: Já o teatro musical bra-sileiro, desde o final do século XIX, também teve gran-des compositores. Destaco Chiquinha Gonzaga (gran-de referência para o Teatro de Revista), Carlos Gomes, Ary Barroso e Assis Valente, que também musicaram peças e revistas teatrais. A partir da década de 1960, Chico Buarque, Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Tim Rescala estão entre os mais importantes compositores do gênero no Brasil.

3 - FAUSTo BoRÉM: Historicamente, a ópera acompa-nhou a estética de cada época (barroco, classicismo, ro-mantismo, expressionismo etc.), com também valorizou as expressões culturais fortes de alguns países, como a dança na França, o bel canto na Itália e a literatura na Alemanha. Há um paralelo na história dos musicais?

DAnIEL SoUZA: A história dos musicais é bem mais recente do que a história da ópera, mas a evolução do gênero a partir dela, de outras expressões musicais e da dança é eviden-te. A opereta e o cabaret foram os grandes inspiradores dos primeiros musicais e a linha que separa um gênero do ou-tro nos primórdios do teatro musical é, muitas vezes, tênue. Alguns exemplos são os musicais Jesus Cristo Superstar e Hair, fortemente enraizados no pop e no rock. Outros, como Dreamgirls, Raisin, Purlie, The Wiz, Ragtime e A Cor Púrpura trazem uma grande influência da cultura norte-americana afro-descendente. Na França, a literatura e as guerras inspi-raram criações como Les Misérables e Miss Saigon. Em Lon-dres, Andrew Lloyd Webber inspirou-se na literatura para as composições de Cats e O Fantasma da Ópera e na vida de Eva Perón, da Argentina, para a composição do musical Evita. Óperas do século XIX, como Madame Butterfly, La Bo-hème e La Traviata também foram inspiradoras de enredos de musicais, como em Miss Saigon, Rent e Moulin Rouge, este último um longa-metragem de 2001 que ainda não re-cebeu versão para o palco. Mas, certamente, uma das mais fortes expressões culturais que influenciaram a produção de musicais foi o cinema e suas grandes produções, que ora reproduziam um grande musical dos palcos, ora inspiravam outros que fariam temporada em teatros do mundo inteiro. A própria Disney transformou alguns de seus grandes clás-sicos de animação e longa-metragem, como A Bela e a Fera, O Rei Leão, A Pequena Sereia e Mary Poppins, em musicais de sucesso no palco. Devemos citar os musicais criados em cima de grandes coletâneas de canções de sucesso do sé-culo XX, como Mamma Mia!, inspirado nas músicas do gru-po Abba, We will rock you com músicas do grupo Queen, Movin´Out, baseado nas melodias de Billy Joel, Good Vibra-tions, com músicas dos Beach Boys e All Shook Up, baseado em sucessos de Elvis Presley.

4 - FAUSTo BoRÉM: Quais são as diferenças estéti-cas e mercadológicas entre os musicais para adultos e para crianças?

FERnAnDo BUSTAMAnTE: Historicamente, existe um preconceito sobre a montagem de espetáculos para crian-ças, muitas vezes considerada uma arte menor. Entretanto, os artistas que investem nesse segmento têm mostrado a importância de uma boa equipe de criação em um es-petáculo, seja ele destinado ao público adulto ou infan-til. Deve haver uma preocupação com todos os elementos que compõem a encenação (qualidade do texto, música, cenário, figurino, iluminação, elenco de atores, cantores e bailarinos etc.), seja qual for o gênero da peça. Portanto, as diferenças estéticas estão relacionadas aos mecanismos utilizados para articular esses elementos na encenação. Em termos de mercado, podemos afirmar que existe uma forte

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tendência de, nos espetáculos infantis, criar um interesse também nos pais e acompanhantes presentes na plateia. Não acontece o inverso no musical adulto.

5 - FAUSTo BoRÉM: no Brasil, e em Belo Horizonte, especificamente, houve um processo continuado de de-senvolvimento dos musicais? Quais são as perspectivas?

FERnAnDo BUSTAMAnTE: O Teatro de Revista é a maior referência do teatro musical no Brasil. Depois da sua decadência na década de 1950, o gênero retorna aos palcos em algumas adaptações do modelo da Broadway, a partir da década de 1960. No período do regime militar vimos seu recrudescimento pela ação da censura oficial em montagens como as de Chico Buarque (Roda Viva, Gota d’Água e pera do Malandro). Ainda assim, o gênero parecia não ter o mesmo espaço na preferência do públi-co, como ocorreu no final do século XIX.

No início do século XXI, espetáculos voltam a importar o modelo americano da Broadway e recebem versões brasi-leiras com o trabalho de Cláudio Botelho e Charles Möel-ler. A precisão técnica e o virtuosismo chamam a atenção do público e a demanda por profissionais para compor o elenco destes espetáculos têm contribuído para o desen-volvimento dos musicais no Brasil.

Em Belo Horizonte, destacamos o trabalho do diretor Pe-dro Paulo Cava em montagens musicais adultas e infantis a partir da década de 1970. Outros nomes do teatro mineiro contribuíram para fomentar o desenvolvimento do gênero no estado. O Grupo Galpão, Grupo Ponto de Partida, Ernani Maleta, Fernando Muzzi, Maurício Tizumba são alguns deles.

6 - FAUSTo BoRÉM: E você próprio, Fernando [Bus-tamante], não podemos esquecer, que tem desenvol-vido aqui em Belo Horizonte um trabalho referencial no teatro musical, com prêmiações como diretor, pro-dutor, ator, preparador corporal, entre outras. Dá para se perceber que há um sopro novo na cidade em torno da produção e aprendizagem do gênero musical. Você Ana, que fundou a principal escola de preparação de cantores-atores para musicais no país [a Casa de Ar-tes operÁria, em São Paulo] e tem vasta experiência no exterior com o canto lírico e o belting, mudou-se para a cidade há dois anos. E você, Daniel [Souza], que trabalhou na Disney dos EUA e graduou-se em regência orquestral, concentra boa parte de suas ati-vidades nesta área. Como surgiu a ideia de iniciar um núcleo de produção de musicais, integrando o ensino do teatro, música e dança na universidade brasileira?

AnA TAGLIAnETTI: Tudo começou espontaneamente, a partir da disposição do maestro Daniel Souza e da soprano Fabíola Protzner de criarem um espetáculo de highlights de musicais com os alunos do Bacharelado da Escola de Música da UFMG. Isso foi em 2008, ano em que ingressei na UFMG e me mudei de São Paulo para BH. Como soube-ram da minha longa experiência com esta linguagem cê-

nica na Casa de Artes OperÁria 1, em São Paulo e da minha decisão de morar em Belo Horizonte, acabaram por me convidar para desenvolver com eles um projeto de monta-gem, que acabou intitulado Uma noite na Broadway. Este projeto frutificou, se tornou o Projeto Teatro Musical na UFMG, foi apresentado em várias cidades de Minas Gerais e, no ano seguinte, acabamos encenando o Uma noite na Broadway II. O projeto se desdobrou em duas frentes, este que continuei coordenando e outro, com o diretor Fer-nando Bustamante, que foi convidado para coordenar a montagem de A Pequena sereia. Ambos projetos contaram praticamente com o mesmo elenco. Em 2010, começare-mos a encenação do projeto Uma noite na Broadway III.

Ainda do ponto de vista de inserção dos musicais na univer-sidade, devo dizer que a UFMG é a primeira universidade brasileira a incluir este tópico em um currículo de um curso superior de música. E isto só foi possível com o apoio do Professor Lucas Bretas, como Diretor da Escola de Música da UFMG e como Professor que implantou esta disciplina no currículo. Para 2011, temos a previsão da vinda do maestro e Doutor em Música norte-americano Barry Kolman, com lar-ga experiência no repertório sinfônico e de musicais, como pesquisador e professor visitante da Fullbright.

7 - FAUSTo BoRÉM: Como se dá a seleção dos elencos e quais são os requisitos para participar do projeto. Há preferências por tipos de voz, tipos físicos, personali-dades etc.? Há um predomínio de atores que cantam e dançam, de músicos que atuam e dançam ou de baila-rinos que atuam e cantam?

AnA TAGLIAnETTI: A seleção de elenco para um musical de grande porte, especialmente para os “importados enla-tados”, parte de alguns pré-requisitos. Para um determi-nado papel, o diretor procura, por exemplo, uma jovem de 20 a 24 anos, magra e negra, que seja cantora e bailarina profissional. Se for isso que ele precisa para aquele deter-minado papel, não adianta artistas com outros perfis dese-jarem fazer o teste, estão claras as demandas do diretor. Na maioria das audições, quando as provas são divulgadas, já se sabe precisamente o que se espera para os papéis, inclu-sive a extensão e tipo vocal. Portanto, com as partituras do repertório em mãos, um cantor pode, por exemplo, saber se consegue atingir os limites melódicos inferior e superior das canções, com a intensidade e qualidade necessárias. Costuma ser tudo muito específico.

No caso de produções menores, ou montagens originais, ou de textos brasileiros, isso pode ser diferente. As au-dições podem ter um caráter mais aberto, mais livre. Em geral, os candidatos passam por uma pré-seleção de currí-culo e, então, são chamados - ou não! - para serem ouvi-dos, e isso acontece em quase todos os casos. No caso do Projeto Teatro Musical na UFMG, a coisa é bem diferente. Estamos selecionando elencos para projetos educativos. Nossos testes não são eliminatórios, mas sim classifica-tórios. Qualquer um pode participar, guardadas as dimen-sões do que tem para oferecer ao artista em formação.

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FERnAnDo BUSTAMAnTE: Gostaria de acrescentar que, não raro, o diretor de musicais enfrenta imprevistos – como doença, acidentes, viagens etc.- que acarretam a substituição de membros do elenco. Por isso mesmo, é comum, e mais seguro, a preparação de dois elencos: o principal e o substituto ou alternante. Só para dar um exemplo, na estreia da versão estendida de A Pequena sereia (inspirada no repertório musical e roteiro da Bro-adway) em Minas Gerais, tínhamos cerca de 50 pessoas no elenco, entre cantores-atores, bailarinos, músicos de orquestra e pessoal de iluminação e de gerenciamento de palco. Por outro lado, a flexibilidade brasileira ajuda nestas horas. Só para dar um exemplo, na versão abre-viada de A Pequena sereia (inspirada no texto original de Hans Christian Andersen e músicas do filme da Disney) minha atriz-cantora Jai Baptista faz três papéis com perfis diferentes, o que exige muita agilidade na tro-ca de figurinos e caráter das falas e canções: uma das irmãs-sereias, a noiva que pretere Ariel e a gaivota-ma-cho Sabidão. Mas o improviso tem também o seu lugar: quando a Jai, que é negra, faz o papel de Sabidão e en-toa um agudo áspero e desafinado, o siri Sebastião faz um aparte – “Cala a boca, Elza Soares!”, que se tornou um bordão que só pode ser apreciado no Brasil.

8 - FAUSTo BoRÉM: Uma questão delicada na rela-ção diretor versus elenco: como se dá o processo de cortes no elenco por insuficiência na expressão ou demandas do personagem? Como o diretor aborda a questão da competição e da humildade entre os membros do elenco?

FERnAnDo BUSTAMAnTE: Normalmente, fazemos au-dições para avaliar as condições técnicas e o perfil de cada integrante do elenco a ser escolhido. Entretanto, se houver a necessidade de cortes, “diplomacia” é a palavra-chave para resolver a questão. Vivemos num meio cheio de vaidades e é preciso medir as palavras na hora de tomar qualquer atitude. Acredito que a “competição” deve ocorrer somente no momento das audições. Durante os ensaios, é essencial ter consciência da importância do coletivo e do trabalho colaborativo de cada integrante.

DAnIEL SoUZA: A modificação de um elenco durante a construção ou durante a temporada de apresenta-ções de um espetáculo é sempre um processo com-plicado. As decisões devem levar em consideração os prós e os contras no caso de cortes ou trocas de papéis no elenco. Às vezes, o corte é necessário e até indispensável, mesmo com as rupturas que causa no trabalho ou nos relacionamentos dentro do próprio elenco. Porém, é sempre importante lembrar que as questões pessoais devem ser colocadas de lado para que prevaleça o profissionalismo.

AnA TAGLIAnETTI: Na minha experiência, vi isso acon-tecer raras vezes, uma vez que no próprio processo de seleção os escolhidos costumam ser eleitos por serem ca-pazes de dar conta do recado.

9 - FAUSTo BoRÉM: Poderiam situar o Projeto Tea-tro Musical no contexto brasileiro, tanto em relação às praças consolidadas de São Paulo e Rio de Janeiro, quanto a outros possíveis pólos emergentes?

AnA TAGLIAnETTI: Sem dúvida nenhuma, o Projeto Te-atro Musical na UFMG possibilitou a descoberta de incrí-veis talentos mineiros para o teatro musical. E agora, com tantos jovens artistas de Belo Horizonte preparados para o trabalho com essa linguagem, essa cidade se torna um cal-deirão de possibilidades maravilhosas para que os diretores locais possam contar com estes artistas, agora mais prepa-rados para lidar com a linguagem do musical. Os talentos que descobrimos aqui são de alta qualidade, e acredito que Belo Horizonte tem tudo para se tornar a próxima cidade brasileira, depois de Rio de Janeiro e São Paulo, a entrar no circuito dos grandes musicais. Basta que os produtores lo-cais queiram investir em montagens e que os atores quei-ram permanecer em BH e trabalhar localmente. Há uma grande tradição do canto em Minas Gerais, e este parece um bom momento para que o estado pare de exportar seus melhores talentos. Como educadora com quase 20 anos de experiência no ensino de musicais, já formei centenas de artistas, e confesso que poucas vezes me deparei com o ní-vel dos jovens talentos para o musical que encontrei aqui.

10 - FAUSTo BoRÉM: Quais as diferenças entre o mu-sical norte-americano e o teatro de revistas brasileiro? Porque o primeiro se tornou um mercado milionário e o segundo entrou em decadência após uma época de ouro?

FERnAnDo BUSTAMAnTE: O teatro de revista retratou a sociedade da época, tornou mais acessível o gênero ao grande público e contribuiu para difundir modos e costu-mes através da linguagem composta pela crítica apimenta-da e personagens alegóricos. Entretanto, o apelo para o es-cracho e para o nu explícito, em detrimento da comicidade, foi o grande responsável pela sua decadência. Já o musical norte-americano apostou na versatilidade de estilos musi-cais, no apuro técnico e na miscigenação de estilos e raças. Esses fatores reunidos foram essenciais para o desenvolvi-mento de um mercado milionário do entretenimento.

11 - FAUSTo BoRÉM: Quais são os desafios de dirigir cenicamente um musical?

FERnAnDo BUSTAMAnTE: É muito importante para o diretor/encenador esclarecer para todos os membros da equipe de criação que a “música”, nos musicais, torna-se um adjetivo do substantivo teatro, ou seja, tudo deve ser planejado em função da cena. Muitas vezes, a canção ou trecho instrumental pode ser uma verdadeira obra pri-ma, mas pode não permitir a intenção ou expressão do personagem. Isso se aplica a todos os outros elementos cênicos. Outros fatores importantes são o acabamento, o planejamento das transições, entradas e saídas de cenário e elenco, as coreografias etc. Cada detalhe é importante para compor um grande espetáculo.

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instrumento, a voz, com a maior destreza possível, o que só é possível com o desenvolvimento de uma técnica muito sólida. Assim como acontece na música erudita, a técnica vocal para o teatro musical tem o canto lírico em sua base. Entretanto, a técnica belting é a mais uti-lizada nesta manifestação artística.

O belting consiste numa expressão vocal da “fala-canta-da”. Estamos falando o texto, mas uma fala que se expres-sa em frequências sonoras específicas, as notas musicais. A clareza do texto teatral está em primeiro plano. Aqui, o objetivo é fazer teatro, é contar uma história. O texto precisa ser entregue para o público com absoluta clareza. A técnica do belting foi desenvolvida com este propósito. É, na verdade, uma mistura de estilos que acabou resul-tando numa técnica muito apropriada para a linguagem teatral. Há também o objetivo de se mostrar virtuosismo, mas dentro de uma concepção bem diferente, em que a cena possui uma importância maior. Raramente a exten-são vocal feminina, por exemplo, é usada nos seus ex-tremos. Por outro lado, sopranos de graves abertos são essenciais para os grandes papéis dos musicais. Muitas vezes, no que diz respeito aos homens, se requer tenores com graves privilegiados, ou barítonos com agudos pri-vilegiados para a execução das canções. Existe até uma expressão no meio musical que utiliza o belting que de-nomina esses cantores de “baritenors”.

A técnica para a execução de música popular brasileira tem similaridades e diferenças em relação ao canto líri-co e ao belting. Como no canto lírico, o cantor de MPB tem sua atenção voltada principalmente para a música, mas precisa de outros recursos musicais sofisticados, como a improvisação, que é praticamente inexistente no teatro musical e, mais ainda, na música erudita tra-dicional. Por outro lado, o cantor de MPB se aproxima mais do teatro musical pela preocupação com o enten-dimento das palavras, daí a restrição na utilização de vibrato e a moderação do virtuosismo.

A MPB, na maioria dos casos, não precisa que seus intér-pretes usem uma grande extensão vocal, o que não quer dizer que eles não a possuam. A voz torna-se um instru-mento do grupo, um instrumento que emite palavras, mas sempre com a música em primeiro plano. Não há cena teatral, ou quando há, é bastante sutil. Não é necessária uma grande projeção da voz, pois a MPB está associada ao recurso de amplificação. O cantor popular precisa sa-ber usar bem o microfone e que deve ser tratado como um outro instrumento musical. Não é assim tão fácil usar corretamente o microfone. Novamente, isto não quer di-zer que o cantor popular não saiba projetar a voz, mas não faz parte do estilo contemporâneo da música popu-lar, especialmente a brasileira. Além das questões técni-cas, é importante ressaltar que cada uma destas formas de utilização da voz – lírico, belting ou popular - possui estilos com características próprias. Bem próprias. Mas o que também não significa que não sejam intercambiáveis e possam trocar influências entre si.

12- FAUSTo BoRÉM: Quais são os desafios de se fazer um musical com música ao vivo?

DAnIEL SoUZA: Existem vários desafios para se fazer um musical ao vivo, que geralmente dura cerca de 140 minutos. O primeiro e maior deles é o financeiro: além dos cantores/atores, é preciso contratar os músicos para a formação instrumental desejada, além de, minimamente, técnicos de som. O ideal é que todo espetáculo de tea-tro musical seja microfonado (cantores, instrumentistas e atores), para se obter um melhor equilíbrio sonoro e evi-tar um grande desgaste das vozes. Em caso de tempora-das de pelo menos quatro apresentações por semana isso se torna essencial para a saúde vocal do ator/cantor, para se obter melhores resultados na performance. Por outro lado, a formação instrumental de um musical geralmente é reduzida por questões financeiras ou de espaço. O pró-prio equipamento de sonorização é uma questão finan-ceira delicada: microfones, caixas e mesas de som especí-ficas costumam elevar muito os custos em uma produção. A própria necessidade de economizar acaba atrapalhan-do, pois costuma-se ensaiar sem os equipamentos de som para diminuir custos, o que, depois, gera problemas para equilibrar solistas, coro e orquestra no palco.

13 - FAUSTo BoRÉM: Quais são os desafios de tradu-ção dos textos originais para o português?

FERnAnDo BUSTAMAnTE: Traduzir é muito diferente de “versionar” uma música, o que é o ideal. Na versão, existe a preocupação em aproximar a sonoridade das pa-lavras originais. O sentido das frases tem que ser mantido. O nosso vocabulário possui palavras muito extensas, es-pecialmente em relação ao inglês, e isso dificulta ainda mais o trabalho. Outro fator que deve ser considerado é o contexto onde os textos e as músicas originais estão inseridos. Uma piada em inglês pode não funcionar em português, se não for adaptada à realidade brasileira. Re-ferências a gírias, costumes e hábitos na cultura da língua original devem ser cuidadosamente avaliadas e adaptadas para fazerem sentido no português brasileiro.

14 - FAUSTo BoRÉM: Podem falar sobre as diferenças entre as técnicas vocais do musical, da música popular e da ópera? Há uma relação entre técnicas vocais e clareza na expressão do texto?

AnA TAGLIAnETTI: A ópera utiliza a técnica lírica de canto, que consolida uma linha que privilegia o vibra-to → contínuo associado a uma impostação da voz bas-tante característica. O repertório operístico é bastante específico no que diz respeito à tipologia das vozes e à extensão vocal necessária. Da mesma forma, as deman-das de resistência vocal costumam ser grandes. O cantor lírico costuma oferecer ao seu público seus malabaris-mos vocais particulares: suas notas mais graves ou mais agudas, suas coloraturas, todo o virtuosismo que é re-sultado de muito trabalho e que leva uma vida inteira para lapidar. Mas o objetivo é fazer música, “tocar” este

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15 - FAUSTo BoRÉM: É possível para um cantor inte-grar as diferentes técnicas vocais?

AnA TAGLIAnETTI: Quero esclarecer que, embora haja certo preconceito disseminado sobre estereótipos no meio musical – cantor lírico, cantor popular, cantor de musicais, é um mito dizer que o uso de uma técnica impossibilita o uso de outra. São como chaves liga-desliga, por mais que alguns discordem. São maneiras diferentes de usar o apa-relho vocal. Não há razões que impeçam o ajuste do apare-lho vocal de acordo com a necessidade. Como o instrumen-tista de cordas, o cantor pode iniciar, graduar e interromper o vibrato, como forma de expressão. Pode, também como o instrumentista de cordas que aproxima ou afasta o arco do espelho ou do cavalete, mudar o timbre e intensidade da voz, aumentando ou diminuindo o espaço oro-faríngeo e laríngeo ou, mesmo, mudando o formato dos lábios. Mas, é claro, deve se conhecer os mecanismos para fazê-lo. Não adianta o cantor achar que pode cantar ópera se nunca estudou a técnica do canto operístico e a cultura da ópera! Para dominar qualquer uma destas técnicas, são necessá-rios muitos anos de prática e estudo.

Por isso, o cantor que desenvolve uma técnica lírica consolida-da, que talvez seja a mais complexa, não terá dificuldades em transitar pelas outras técnicas, desde que resguarde algumas coisas. Tecnicamente falando, o canto lírico é o que apresenta maior dificuldade de execução. Assim, se o cantor quiser se aventurar pelas três técnicas, aconselho o estudo do canto lírico, antes de mais nada. É recomendável que o cantor de musicais possua técnica lírica, especialmente porque o reper-tório mais antigo de teatro musical exige essa versatilidade. A técnica lírica correta também proporciona uma grande saúde vocal e permite desenvolver uma resistência vocal ímpar, qua-lidade que o cantor de belting precisa para sobreviver a mara-tonas típicas da agenda dos musicais, como oito espetáculos consecutivos por semana, às vezes dois no mesmo dia.

16 - FAUSTo BoRÉM: Quais são os desafios de adap-tar uma partitura orquestral de um musical para a ins-trumentação disponível em uma escola de música na universidade pública brasileira?

DAnIEL SoUZA: No Brasil, as condições oferecidas para se produzir um musical não são fáceis. Para que a sua produção não se torne inviável, é necessário que os or-ganizadores adaptem os custos à realidade orçamentária que dispõe. Muitas vezes, não há dinheiro para fazer os espetáculos com música ao vivo. Assim, recorre-se a play backs prontos ou encomenda-se a sua gravação. Mas fa-zer o espetáculo com música ao vivo é sempre mais inte-ressante para o público e para os cantores, pois se pode flexibilizar os andamentos, as intensidades, as articula-ções, a priorização das vozes etc. e levar em consideração a acústica de cada teatro ou sala. No caso de arranjos ou re-orquestração, a música deve ser analisada princi-palmente em relação às questões de equilíbrio sonoro e timbres pretendidos na narrativa do espetáculo. Assim, qualquer adaptação da partitura deve considerar cuida-dosamente as intenções da composição original.

17 - FAUSTo BoRÉM: Ainda se observa bastante pre-conceito de ambas as partes, música erudita e a músi-ca popular, permeando seu espaço de convivência, seus valores estéticos, repertório, práticas de performance etc. Como se situa o musical dentro deste embate?

FERnAnDo BUSTAMAnTE: O teatro musical aparece nesse contexto como um mediador, já que torna possível o diálogo entre a música erudita e a música popular den-tro de uma mesma encenação.

18 - FAUSTo BoRÉM: O Projeto Teatro Musical é um pro-jeto que demanda uma grande dedicação artística por parte de todos os envolvidos: estar disponível para centenas de horas de ensaio, aprender as falas, canções e coreografia dos colegas e cobri-los em emergências etc. Poderiam comentar sobre este ambiente de artistas ecléticos que se parece com uma grande família, em que todos se ajudam mutuamente no sucesso e no fracasso de realizar um papel?

FERnAnDo BUSTAMAnTE: O artista de musicais tem que ser, obrigatoriamente, um profissional versátil. Saber cantar, dançar e interpretar minimamente são os princí-pios básicos no perfil de quem deseja trabalhar um dia com o gênero. E o saber não exclui a necessidade de es-tudar diariamente para garantir a manutenção do corpo, voz e canto do ator. E por estarmos sujeitos a limitações e imprevistos físicos - como rouquidão, distensões etc. - voltamos àquela questão da necessidade de um corin-ga para todos os papéis. A gente acaba sempre voltando àquela máxima: “O espetáculo não pode parar!”

19 - FAUSTo BoRÉM: Falem sobre o show Uma noite na Broadway.

AnA TAGLIAnETTI: Uma noite na Broadway é apenas o produto final, apresentado em público, de um processo de aprendizagem vivencial que procurou instrumentalizar os participantes nas técnicas necessárias para a performance em teatro musical. Corpo, movimento, técnica vocal, in-trodução ao teatro e vivência de montagem de espetáculo, tudo isso condensado em um só curso que resultou em uma montagem de highlights de grandes musicais da Broadway.

20 - FAUSTo BoRÉM: Quais são os planos futuros para o Projeto Teatro Musical?

DAnIEL SoUZA: Para 2010, o Projeto Teatro Musical de-verá produzir o espetáculo Uma Noite na Broadway III – Jazz!, que incluirá muitas das mais famosas músicas do repertório de jazz da Broadway. A coordenação do curso, oferecido como uma disciplina em nível de graduação, estará centrada nas questões pedagógicas, buscando te-máticas diferentes e aprendizados complementares para os alunos a cada novo espetáculo. Quanto a outros planos futuros, eles dependem de patrocínio e parcerias dentro e fora da UFMG, mas incluem principalmente seminários, masterclasses nacionais e internacionais com grandes nomes do teatro musical e da música em geral.

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Notas1 A Casa de Artes OperÁria é o principal centro especializado no ensino e pesquisa da linguagem de musicais no Brasil. Foi criado por Ana

Taglianetti em 2003. Alguns de seus trabalhos envolveram a preparação de mais de 30 espetáculos musicais, como A Palavra, e a formação de artistas do teatro musical como Alexandre Lima, Keila Bueno, Kátia Barros, Gianna Pagano, Julio Mancini, André Loddi, Luana Bichique, entre muitos outros.

2 Para uma discussão aprofundada sobre a substituição histórica do portamento pelo vibrato na música erudita veja LEECH-WILKINSON em Per Musi, n.15 (2007, p.7-25).

Ana Taglianetti é professora, cantora, atriz e diretora teatral especializada em ópera e teatro musical. Mestranda em Performance Vocal pela City University of New York e Bacharel pela Escola de Arte Dramática da ECA / USP. Em Nova Ior-que, especializou-se em Teatro Musical pela Lee Strasberg Theatre Institute, Regência de Ópera na Juilliard School of Mu-sic e Ópera na Mannes College of Music. Foi aluna de canto de Rosiris del Bianco e Leila Farah no Brasil e, em New York, foi aluna de Dodi Protero, Conrad Osborne, Trish McAffrey, Richard Barrett e Julian Kwok. Foi estagiária da Amato Opera, atuando com o maestro Tony Amato. Participou quatro vezes do programa VOICExperience com Sherrill Milnes, cantando no Players Club de New York e nos parques da Disney, na Flórida, e coordenou este programa no Brasil em 2006. Fundou a Casa de Artes OperÁria (www.operaria.com.br) em 2003, centro de formação para o teatro musical e ópera, na cidade de São Paulo, a partir da qual dirigiu mais de 30 espetáculos musicais. Sua montagem do musical A Palavra recebeu o prêmio de Melhor Espetáculo e indicações para os prêmios de Melhor Direção e Melhor Iluminação do Festival de Limeira de 2007. Recebeu o prêmio de Atriz Revelação em 1987, ao ser dirigida por Gabriel Villela em A Capital Federal. Também foi dirigida por Silnei Siqueira, Luis Damasceno, Rodrigo Santiago, Beth Lopes, Joaquim Goulart e Carlos Alberto Soffredini. No Teatro Mvnicipal de São Paulo interpretou os papéis de Nedda (I Pagliacci, 1998), Leila (Pescadores de Pérolas, 1999) e Susanna (Bodas de Fígaro, 2000). No Brooklyn Center of Performing Arts, em Nova Iorque, interpretou Mrs. Maurrant (Street Scene, 2000), Cherubino (Bodas de Figaro, 2000), Zozo (A Viúva Alegre, 2001), Cherubino (Three Little Pigs-2001). Na Amato Opera, em Nova Iorque, interpretou os papéis de Sacerdotisa (Aida, 1997), Musetta (La Bohème, 1998), Sally (O Morcego, 1999), Contessa Ceprano (Rigoletto, 1997), Giovanna (Rigoletto, 1997), Pagem (Rigoletto, 1997), Nedda (I Pagliacci, 1998). Com a Bronx Opera interpretou Toy Lamb Seller (Hugh the Drover, 1998) e Sally (O Morcego, 1999). Na Mannes College of Music interpretou Mrs. Pinkerton (Mme. Butterfly, 1997), Margherite (Mephistophele, 1998), Mimi(La Bohème, 1998). De 2002 a 2004 interpretou a Sra. Potts em A Bela e a Fera da Disney Theatrical Productions em São Paulo e integrou o elenco de Cole Porter: Ele Nunca Disse Que Me Amava. Em 2007, protagonizou e foi assistente de direção do musical José e Seu Manto Technicolor, dirigido por Iacov Hillel. Desde 2008, coordena o Projeto Musicais na UFMG, em Belo Horizonte, onde já dirigiu duas edições do espetáculo Uma Noite Na Broadway. Versionou o texto para o português e dirigiu a ópera A Serva Patroa de Pergolesi, apresentada na abertura do I Festival de Teatro Musical de Belo Horizonte em 2009 e do I Festival de Música de Divinópolis, em 2010. Atualmente, interpreta o papel de Úrsula, na premiada montagem de A Pequena Sereia, dirigida por Fernando Bustamante.

Daniel Souza →é regente e diretor musical do Projeto Teatro Musical - Programa de Musicais na UFMG. Em 2008, foi um dos seis regentes selecionados para o 39º Festival de Inverno de Campos do Jordão, onde teve a oportunidade de estudar com os Maestros Kurt Masur (Alemanha) e Ronald Zolmann (Bélgica). Estudou também com Roberto Tibiriçá, Charles Roussin, Suely Lauar, Iara Fricke Matte, Hoger Kolodziej (Alemanha), Osvaldo Ferreira (Portugal), Florin Totan (Romênia) e Lincoln Andrade e outros. É Bacharel em Regência pela Escola de Música da UFMG. Dedica-se ao estudo do teatro musical, piano, harpa, interpretação teatral, sapateado, dança de salão e canto (lírico e belting com a professora Ana Taglianetti). Coordenou diversos cursos e eventos de música erudita em Belo Horizonte que tiveram a participação de Neyde Thomas, Gilberto Tinetti e Fábio Zanon. Em 2007, criou, coordenou e dirigiu o Projeto Don Giovanni nas Ruas, com a versão “pocket” da ópera de Mozart. Em parceria com Ana Taglianetti, coordenou Uma Noite na Broadway, em 2008 e Uma Noite na Broadway II – O Baú dos Sonhos em 2009. Fez a direção musical de A Pequena Sereia (com direção geral de Fernando Bustamante) em 2009 e A Serva Patroa: A Ópera ao alcance de todos (com direção geral de Ana Taglianetti) em 2009-2010. Regeu as Orquestra Acadêmica do Festival de Campos do Jordão, Orquestra de Câmara de Itaúna, Orquestra de Ópera e de Câmara das II, III IV Semanas da Música de Ouro Branco, Orquestra Sinfônica da Escola de Música da UFMG, Orquestra de Musicais da UFMG e a Orquestra Drammato.

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Fernando Bustamante é Licenciado em Artes Cênicas pela UFMG. Ator, produtor, diretor e coreógrafo profissional, trabalhou em cerca de 30 peças de teatro e musicais desde 1995, muitos das quais foram premiadas. Em 2008, dirigiu e produziu o espetáculo A Arca de Vinicius, que recebeu os prêmios SESC/SATED de Melhor Espetáculo, Melhor Diretor e USIMINAS/SINPARC de Maior público, Melhor Espetáculo e Melhor Iluminação. Em 2005, produziu o musical Lampiãozinho e Maria Bonitinha, que recebeu os prêmios SESC/SATED de Melhor Espetáculo, Melhor Ator, Melhor Atriz, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Atriz Coadjuvante e os Prêmios USIMINAS/SINPARC de Melhor Espetáculo, Melhor Texto, Ator Revelação, Melhor Iluminação, Melhor Figurino e Melhor Trilha Sonora. No mesmo ano, foi indicado como Melhor Preparador Corporal com a peça Sem Vergonhas no Prêmio SESC/SATED. Em 2004, atuou e produziu Os Saltimbancos, que recebeu o prêmio de Melhor Espetáculo Infantil e Melhor Atuação no 1º Festival Nacional de Teatro de Juiz de Fora. Em 2004, recebeu o prêmio de Melhor Ator na peça O Menino Maluquinho, concedido pelo SESC/SATED. Em 2003, dirigiu e produziu A Pequena Sereia, recebendo os Prêmios SINPARC e SESC/SATED de Melhor Espetáculo, Melhor Atriz, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Cenário e Maior Público. Em 2003, foi indicado à Melhor Coreografia do Prêmio SATED com a peça Sonho Dourado. Em 2001, recebeu o Prêmio de Melhor Ator Coadjuvante pela AMPARC com a peça O Mistério da Princesa Feiurinha. Em 2000, foi indicado como Melhor Ator Coadjuvante com a peça Com Jeito Vai pela AMPARC e SESC/SATED.

Fausto Borém é Professor Associado da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde criou o Mestrado em Música e a Revista Per Musi. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem um livro, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, musicologia, etnomusicologia e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e apresentação de recitais nos principais eventos nacionais e internacionais do contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Fábio Mechetti, Luiz Otávio Santos, Arnaldo Cohen, Antônio Menezes e músicos populares como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Tavinho Moura, Roberto Corrêa, Maurício Tizumba e Túlio Mourão. Suas gravações incluem o CD Brazil-ian Music for the Double Bass, o CD e DVD O Aleph de Fabiano Araújo Costa, os CDs da Orquestra Barroca do Festival Internacional de Juiz de Fora de 2005 a 2009 (com Luiz Otávio Santos), a Suite for Flute and Jazz Piano de Claude Bolling (com Maurício Freire, Tânia Mara e Eduardo Campos) e No Sertão (com o violista Roberto Corrêa) e Cidades Invisíveis (com o saxofonista Daniel d´Olivier)