REFLETINDO SOBRE A AUSÊNCIA DE PREPARAÇÃO PARA A APOSENTADORIA COMPULSÓRIA: UMA ANÁLISE DO...

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1 REFLETINDO SOBRE A AUSÊNCIA DE PREPARAÇÃO PARA A APOSENTADORIA COMPULSÓRIA: UMA ANÁLISE DO FILME LUGARES COMUNS Tatiana Aguiar Porfírio de Lima Assistente em Administração da PROGEP/UFPB Doutoranda em Administração pela UFPB [email protected] Cléverson Vasconcelos da Nóbrega Prof. de Administração do Campus SHNB/UFPI Doutorando em Administração pela UFPB [email protected] Diogo Henrique Helal Doutor em Ciências Humanas: Sociologia e Política pela UFMG Professor do Programa de Pós Graduação em Administração da UFPB Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco [email protected] RESUMO A centralidade do trabalho na vida das pessoas faz com que a sua ausência, sem planejamento, gere consequências negativas para os indivíduos. Nessa ótica, a partir da análise do filme Lugares Comuns 1 se busca refletir sobre o momento anterior e posterior a aposentadoria compulsória, que quando ocorre sem preparação, pode ocasionar perdas financeiras, sociais e dificuldades de reinserção do idoso no mercado de trabalho. A literatura revela que a aposentadoria compulsória é uma decisão unilateral, na qual os trabalhadores que não forem orientados profissionalmente podem se sentir inúteis, sem perspectiva de vida e de carreira, acarretando dificuldades financeiras e baixa estima, como ocorreu com o personagem principal do filme. Assim, observa-se que uma preparação dos idosos para a aposentadoria se torna crucial para que possam se planejar, reorientar sua carreira e sua vida pessoal. Palavras-chave: aposentadoria compulsória; orientação; perdas. 1 O Filme Lugares Comuns (Lugares Comunes), é argentino, dirigido e produzido em 2002 por Adolfo Aristarain e pelo Instituto Nacional de Cine Y Artes Audiovisuales (ICAA), estrelado por Mercedes Sampietro, Federico Luppi e Arturo Puig, com duração de 1h52min. Ganhador dos prêmios: Goya 2003, Festival de Gramado 2003, Festival de Havana 2002 e Festival San Sebastian 2002.

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REFLETINDO SOBRE A AUSÊNCIA DE PREPARAÇÃO PARA A APOSENTADORIA COMPULSÓRIA: UMA ANÁLISE DO FILME LUGARES COMUNS

Tatiana Aguiar Porfírio de Lima

Assistente em Administração da PROGEP/UFPB Doutoranda em Administração pela UFPB

[email protected]

Cléverson Vasconcelos da Nóbrega Prof. de Administração do Campus SHNB/UFPI

Doutorando em Administração pela UFPB [email protected]

Diogo Henrique Helal

Doutor em Ciências Humanas: Sociologia e Política pela UFMG Professor do Programa de Pós Graduação em Administração da UFPB

Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco [email protected]

RESUMO

A centralidade do trabalho na vida das pessoas faz com que a sua ausência, sem

planejamento, gere consequências negativas para os indivíduos. Nessa ótica, a partir da

análise do filme Lugares Comuns 1se busca refletir sobre o momento anterior e posterior a

aposentadoria compulsória, que quando ocorre sem preparação, pode ocasionar perdas

financeiras, sociais e dificuldades de reinserção do idoso no mercado de trabalho. A

literatura revela que a aposentadoria compulsória é uma decisão unilateral, na qual os

trabalhadores que não forem orientados profissionalmente podem se sentir inúteis, sem

perspectiva de vida e de carreira, acarretando dificuldades financeiras e baixa estima, como

ocorreu com o personagem principal do filme. Assim, observa-se que uma preparação dos

idosos para a aposentadoria se torna crucial para que possam se planejar, reorientar sua

carreira e sua vida pessoal.

Palavras-chave: aposentadoria compulsória; orientação; perdas.

1 O Filme Lugares Comuns (Lugares Comunes), é argentino, dirigido e produzido em 2002 por Adolfo Aristarain

e pelo Instituto Nacional de Cine Y Artes Audiovisuales (ICAA), estrelado por Mercedes Sampietro, Federico

Luppi e Arturo Puig, com duração de 1h52min. Ganhador dos prêmios: Goya 2003, Festival de Gramado 2003,

Festival de Havana 2002 e Festival San Sebastian 2002.

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1 INTRODUÇÃO

Nas sociedades pré-industriais, o trabalho não tinha tempo específico e nem tempo

controlado, servia para a subsistência, era realizado no ambiente familiar, onde as pessoas

eram detentoras dos meios de produção (SILVA, 2008). Esse trabalho era regulamentado

pelo costume, pelas regras das guildas e das cidades. O mercado tinha papel incidental na

vida econômica da sociedade, uma vez que a economia servia as relações sociais (POLANYI,

1980).

Com o advento da modernidade, as grandes organizações passaram a desenvolver as

atividades que antes eram realizadas pelos pequenos trabalhadores individuais e pelo

Estado. Desta maneira, tornaram-se detentoras do poder e absorveram a sociedade pela

maior dependência de salário, externalização dos custos sociais e propagação da burocracia

industrial, influenciando a economia, a tecnologia, a política, as classes sociais, a religião e as

famílias (PERROW, 1992).

Houve uma inversão de valores: o trabalhador passou a ser valorizado pelo quanto

produzia em menor tempo, conforme o padrão ditado pela empresa. Deveria ser flexível e

dispor todo o seu tempo, esforço físico e mental para a empresa, exigindo-se dele cada vez

mais dedicação (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009). No sistema capitalista, a economia se separa

dos vínculos sociais, cujo fim não é mais a subsistência, mas sim o lucro (POLANYI, 1980).

A lógica do capital é quem ditas as “regras do jogo” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009;

POLANYI, 1980). Principalmente em épocas de crise econômico-financeiras, as empresas

costumam demitir ou estimular a aposentadoria dos mais idosos, alegando que eles são mais

lentos e tem maiores dificuldades de aprendizagem, fato que deixa em segundo plano o

tempo trabalhado, a experiência e a vida dedicada ao ambiente profissional.

O Estado, por meio legal (art. 40, § 1º, II, da Constituição Federal de 1988 e art. 51 da

Lei nº 8.213/91), obriga aos idosos que trabalham tanto da esfera pública quanto da privada

a se aposentarem compulsoriamente, ou seja, sem a necessidade de consentimento do

empregado, visando garantir meios de subsistência, em virtude de possíveis limitações de

ordem físicas e cognitivas decorrentes do envelhecimento. Na seara pública esse ato ocorre

quando o servidor completa 70 anos, independente de tempo de serviço ou gênero,

enquanto na área privada, essa modalidade poderá ser requerida pela empresa, desde que o

empregado tenha cumprido o período de carência e completado 70 anos se homem ou 65

anos se mulher (BRASIL, 1988; 1991).

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Todavia, muitos idosos mesmo após os 70 anos ainda se sentem aptos para trabalhar,

em virtude da melhor qualidade de vida com os avanços decorrentes da tecnologia e da

saúde (SILVA, 2008). Nesse contexto, o que se passa quando, abruptamente, se é retirado do

sujeito o direito de trabalhar? Para responder a esta questão recorre-se à análise do filme

argentino Lugares Comuns, produzido em 2002, pelo diretor Adolfo Aristarain, com o

objetivo de refletir acerca das consequências da aposentadoria compulsória, das perdas

financeiras, sociais e das dificuldades de reinserção no mercado de trabalho para os idosos,

considerando o caso brasileiro.

Apesar de o filme representar o contexto histórico a Argentina em seu período de

crise econômica no início dos anos 2000, pós-governo do presidente neoliberal Carlos

Menem, pode-se certamente associá-lo ao sentimento de incerteza, angústia e impotência

vivenciada pela maioria dos idosos brasileiros nessa fase da vida, em que se observa a crise

do capitalismo e a crescimento do desemprego (ANTUNES, 2010).

Essa estória foi retratada pelo protagonista Fernando Robles, um professor de

literatura de uma universidade em Buenos Aires, que ao completar 70 (setenta) anos foi

surpreendido com a notícia de sua aposentadoria compulsória, enquanto planejava seu

afastamento para participar de um curso de verão. Sua indignação pode ser relacionada a

falta de preparo psicológico e financeiro e a incapacidade jurídica para voltar ao trabalho.

Então, na nova condição social, ele vê seu salário ser reduzido e procura outras

oportunidades de emprego, mas não consegue trabalho, então busca na bebida e no fumo

um consolo para sua entrada na velhice.

Com o aumento de sua crise financeira, ele tem que negociar o apartamento de

Buenos Aires por uma certa quantia em dinheiro e uma chácara na região montanhosa de

Córdoba, na qual ele irá morar com sua esposa Lili. Tal mudança, ao mesmo que surge como

uma esperança de melhores dias para o casal, se assemelha a um exílio imposto, reforçando

o sentimento de exclusão social e de falta de utilidade.

Fernando começa a trabalhar na chácara, tenta se adequar ao lugar, estudar e

compreender o plantio de flores para extrair a essência delas. Mas, a condição social, a idade

e o salário que recebe constituem empecilhos para a obtenção de crédito junto a um banco,

inviabilizando o negócio. Ao final, ele não se adapta a esse novo modo de vida no interior e

distante do contexto que viveu, acaba adoecendo e vem a falecer.

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2 ENVELHECIMENTO E APOSENTADORIA

O senso comum sobre o envelhecimento preconiza que, mesmo sendo um processo

biológico natural da vida humana, geralmente não estamos muito preparados para aceitar a

velhice. Considera-se a princípio que esta etapa da vida carrega consigo uma baixa na

autoestima, decorrente de uma fragilidade da saúde e transformações anatômicas e

funcionais, que trazem como consequência uma redução da qualidade de vida. Essa

perspectiva, que ganhou força com o advento da Revolução Industrial, ao se vincular a saúde

física à capacidade laboral como instrumento de ganhos financeiros para os empregadores,

ao mesmo tempo em que foi responsável por consolidar uma imagem negativa da velhice

como em um processo contínuo de decadência e perdas, proporcionou a legitimação de

direitos sociais como a universalização da aposentadoria (DEBERT, 2012).

Uma visão contemporânea do envelhecimento (FRANÇA, 2009; SOUZA, 2012;), por

outro lado, tem defendido que o avanço da idade pode ser convertido em uma espécie de

“vida nova”, ao elevar a autoestima, manter relações sociais no ambiente de trabalho ou

simplesmente por preservar um sentimento de “utilidade”, repercutindo no prolongamento

da vida laboral. De um lado, há uma concepção – velhice – que destaca os aspectos

negativos; e de outro, há a noção de terceira idade, que enfatiza questões positivas,

fortemente associadas ao consumo, dando uma falsa ideia de autonomia e independência

(SILVA, 2008).

Sobre a aposentadoria, alguns autores têm demonstrado que as mudanças que

ocorreram ao longo do tempo (HARDY, 2011; SCHULTZ; WANG, 2011) e a falta de consenso

em relação a seu conceito, contribuem para que atualmente algumas contradições e

ambiguidades sejam percebidas (ECKERDT, 2010; ROESLER, 2010). Uma delas diz respeito ao

entendimento de que a aposentadoria é uma instituição, uma experiência e um processo.

Reconhecê-la como uma instituição implica a existência de estruturas sociais que regulam a

saída dos trabalhadores do mercado de trabalho e, em troca, lhe fornecem algum tipo

retribuição pecuniária. É, ao mesmo tempo, tratada como experiência, quando um indivíduo

constrói, ao longo dos anos, sua própria condição de aposentado. Por fim, a aposentadoria

enquanto processo de transição, tem a ver com as decisões e os diversos contextos que

incidem na escolha do indivíduo sobre se e quando aposentar (SZINOVACZ, 2003).

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3 A PREPARAÇÃO PARA A APOSENTADORIA

Muitas vezes a decisão de se aposentar não depende do trabalhador, depende do

agente externo, o Estado ou a empresa, que o estimula a aderir algum plano de demissão

voluntária ou obriga-o a se aposentar pela restrição legal a idade de trabalho, como por

exemplo, a aposentadoria compulsória. Assim, não há escolha; o idoso se aposenta por

imposição e com perdas salariais (MARSHALL; TAYLOR, 2005).

Além disso, o indivíduo pode sentir sofrimento após a aposentadoria pela ausência

do trabalho no que tange aos aspectos emocionais (ausência do sentimento de se sentir

parte da organização, das responsabilidades e de enfrentar desafios no trabalho); aspectos

tangíveis (status do cargo, perda de participar de eventos e reuniões); relacionamento com

colegas de trabalho; redução de salários e benefícios (FRANÇA, 2009; FRANÇA; SOARES,

2009; SOUZA, 2012).

Seja por necessidade, seja por desejar a continuidade de uma atividade, muitos

aposentados tentam retornar ao mercado de trabalho, dessa forma, a aposentadoria cada

vez mais deixa de representar a saída definitiva dos trabalhadores do mercado de trabalho, e

passa a ser percebida como uma etapa em que se torna possível continuar produzindo

(FRANÇA; SOARES, 2009).

O problema, no entanto, se insere quando, ao tentar retornar ao mercado de

trabalho, o idoso encontra dificuldades de reinserção. Não é raro encontrar aposentados

que tiveram somente um único emprego ou desenvolveram a mesma atividade durante

vários anos, sem conhecer outras experiências (FRANÇA, 2009). Assim, pela ausência de uma

preparação adequada, pela falta de alternativas ou como uma forma de sobrevivência,

alguns idosos se submetem a trabalhos precários, com contratos temporários ou a tempo

parcial, tornando-se assim duplamente excluídos (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009).

A orientação no momento que antecede a aposentadoria pode propiciar o

planejamento e a reflexão acerca do processo de aposentadoria para o trabalhador, que

pode envolver aspectos psicológicos, familiares, carreira e sociais (BITENCOURT et al., 2011).

Geralmente, ela é realizada através de programas de preparação para a aposentadoria

elaborados pelas organizações.

Esse programa pode ser composto de um módulo informativo (legislação) e/ou

módulo experiencial ou formativo (qualidade de vida), o qual geralmente mantém o

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acompanhamento do trabalhador até cinco anos após a aposentadoria (FRANÇA, SOARES,

2009).

4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A pesquisa qualitativa foi escolhida como a abordagem metodológica mais adequada

para a investigação, cujo objetivo foi analisar o filme criticamente e relacioná-lo a situações

vivenciadas pelo principal personagem diante da aposentadoria numa conjuntura marcada

por uma crise instaurada pelo capital em meados dos anos 2000 na Argentina.

Bartes (1972) apud Melo, Marçal e Fonseca (2009) alerta para a complexidade que é

a seleção das cenas, uma vez que, o que é excluído é tão importante quanto ao que se vai

incluir e irá interferir no restante da análise. Assim, além do roteiro em si, devem ser levados

em consideração outros aspectos como, por exemplo: a fotografia, a trilha sonora, se o filme

é preto e branco ou colorido etc. Para tentar minimizar tal limitação, durante as exibições do

filme os pesquisadores tentaram analisar o roteiro, as reflexões sociais inculcadas na trama,

o momento-chave da história do país, os valores sociais e o relacionamento familiar, os

domínios da vida cotidiana e as emoções do professor Fernando.

O percurso metodológico se iniciou com a exibição do filme para os pesquisadores,

de forma individualizada, durante o mês de julho do corrente ano. Após tal etapa, foram

estabelecidas as cenas temáticas e os quadrantes que seriam analisados.

O recorte dos relatos foi apoiado pelo uso do software Subtitle Edit versão 3.3.15,

cuja função é a edição de legendas. Nesse sentido, o corpus da pesquisa (transcrições ou

legendas para análise textual) resultou em 91 páginas, que além das falas, registrava o

tempo em minutos e segundos da cena que seria selecionada.

As etapas na condução da análise foram baseadas em Denzin (1989b, p.231-232)

apud Flick (2004) que sugere que o filme seja considerado no todo, que as cenas-chave

sejam anotadas, que sejam conduzidas “microanálises estruturadas” das cenas e das

sequências individuais e, por fim, que seja feita uma busca por padrões estendidos a todo o

filme como forma de responder as questões de pesquisa.

5 ANÁLISE DAS CENAS PRINCIPAIS

Após a microanálise das cenas, compreendeu-se que o filme poderia ser observado

em dois momentos distintos: a decisão de se aposentar, ou seja, o recebimento da notícia da

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aposentadoria compulsória; a o depois da aposentadoria, as consequências da não

preparação para esse processo.

A seguir apresenta-se os dois enquadres escolhidos para a discussão da temática.

Após a seleção das cenas, destacou-se as frases que as representam, com breve descrição e,

a posteriori, identificou-se os significados (moral da história) de cada uma delas.

5.2.1 Enquadre 1: A decisão de se aposentar

No quadro 1 se analisa o momento em que a notícia da aposentadoria é dada pelo

reitor da faculdade, sendo possível verificar o sentimento de ausência de responsabilização

pelo ato, o sentimento de culpa de Fernando pela própria aposentadoria, a auto reflexão e a

representação que a aposentadoria tem para a sociedade.

QUADRO 1- Análise do momento da notícia da aposentadoria Descrição Verbal Frases Destacadas Descrição da Cena Moral da história

Cena 1: Fernando momentos antes de saber a notícia

Consegui uma licença de 15 dias com esses cursos de verão... já faz dois anos que não paro.

(4 min 22 s a 5 min 1s) Fernando estava conversando com outra professora, ele estava pensando em tirar férias, de uma semana a dez dias, visto que já fazia dois anos que não parava, mas sem gastar muito. Nesse momento recebe um comunicado escrito de sua aposentadoria compulsória (nesse instante o ângulo da câmera foca no documento e logo após no rosto de Fernando, o que nos leva a crer que o diretor quis enfatizar a sensação da notícia vivenciada por Fernando.

Não há tempo para férias, lazer, o trabalho é central na vida do indivíduo. Também ausência de uma preparação para a aposentadoria, a notícia é dada por qualquer pessoa nenhum envolvimento emocional.

Cena 2: A responsabilização

Não, não tenho nada com isso. É coisa do Ministério. O decreto começou a vigorar há menos de um mês. E se cortam as verbas, não há outro jeito... é demitir ou obrigar as pessoas a se aposentarem. (...)Diga que vai ignorar o meu pedido, mas não me dê conselhos. - Eu não estou dizendo 'não',

(5 min 13 s a 6min 59s) Fernando vai a sala do reitor tomar satisfações, saber de quem mandou o aposentar. O reitor, diz que é má sorte e coloca a culpa no Governo que está reduzindo os gastos e afirmando que não há nada a fazer e ainda insinua que a culpa também é do professor

Há uma descentralização do poder, no qual a gerência imediata não se responsabiliza pelo ocorrido, repassa a culpa para algo maior (a legislação, o Estado e o sistema) no qual o trabalhador se sente desprotegido e sem ter a quem recorrer.

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mas existem outras questões a considerar: a honestidade, capacidade, disciplina, ideologia... Esse é o problema. - Não, não. Todos temos direito à opinião... - Mas, às vezes, você vai longe demais.

que é diferente e crítico (a cena expõe a indiferença em relação ao ato de aposentadoria, quando o reitor se levanta e oferece uma xícara de café com a fisionomia de que nada estivesse acontecendo).

A uma culpabilização do professor pela má-sorte e por apresentar uma postura crítica perante o sistema, diferente dos demais.

Cena 3: A reflexão do momento

Vá sentar em um banco da praça, e dar de comer aos pombos. - Acho que está mesmo na hora. - Eu estava brincando.

(10 min 28 s a 11m 46s) Fernando vai avisar ao advogado sobre aposentadoria, pede para ele recorrer e não contar nada a sua esposa para não estragar a viagem. Logo após no clima de brincadeira, o advogado insinua que Fernando está velho e manda sentar em um banco e dar comida aos pássaros (nesse momento, Fernando olha para o chão e balança a cabeça refletindo)

As pessoas têm o receio de se aposentar serem vistos como inúteis, por isso não dizem que estão aposentados ou postergam o momento da aposentadoria. A imagem da velhice é muito associada a incapacidade para o trabalho, ao corpo doente e a solidão.

Fonte: Cenas extraídas do Filme Lugares Comuns, 2002.

No filme analisado, percebe-se claramente a consideração da aposentadoria

enquanto instituição (SZINOVACZ, 2003), uma vez que, sua atribuição compulsória não

permite ao trabalhador a preparação necessária nem tampouco a possibilidade de decidir

quando se aposentar. É algo imposto, estabelecido legalmente.

Quando esse dia da aposentadoria chega, não há o que fazer ou a quem recorrer,

não se saber a quem responsabilizar, ninguém pode fazer nada para suspender o ato, pois a

legislação é inflexível, não favorece o retorno do indivíduo após a aposentadoria ao mercado

de trabalho.

Muitas vezes, nesse tipo de aposentadoria, as pessoas se sentem ainda mais

deprimidas, principalmente as que ainda estão se sentindo bem e aptas para desempenhar

as atividades, por terem geralmente sua imagem de aposentados associada a corpo

envelhecido, a doença e a incapacidade (SILVA, 2008).

5.2.2 Enquadre 2: O depois da aposentadoria

O momento após a aposentadoria é geralmente muito complicado para o idoso que

se depara com perdas salariais e dificuldade de reinserção no mercado de trabalho. O Estado

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e as empresas geralmente não preparam as pessoas para a etapa de pós-aposentadoria,

para outras carreiras ou novas atividades.

Essa responsabilidade pela reinserção é imposta ao próprio trabalhador que na

maioria das vezes se sente despreparado, sem competências necessárias para assumir uma

nova carreira e enfrentar a competência acirrada por uma vaga no mercado de trabalho.

A ausência dessa orientação profissional pode favorecer o sentimento de

desesperança e de inutilidade do aposentado.

No quadro 2 é possível observar o momento logo após a confirmação da

aposentadoria, a desesperança pela impossibilidade em reverter a aposentadoria, a

necessidade de se replanejar financeiramente e busca por outro emprego.

QUADRO 2 – Análise do momento após a confirmação da aposentadoria Descrição Verbal Frases Destacadas Descrição da Cena Moral da história

Cena 1: A desesperança

- Não tenha boas notícias. Não consegui demover o Reitor, de modo que você está despedido. E ferrado. Vão começar a lhe pagar, com sorte, em dois ou três meses. - Quanto? - O mínimo. - Não pode, eu contribuí para muito mais. - Pode, se a situação melhorar, eles aumentam. Por agora, é o que se pode conseguir.

(33 min 31 s a 34 min 29s) Fernando vai ao escritório do advogado que confirma a aposentadoria e que não há o que fazer, os processos contra o Governo demoram demais e não adiantam

A aposentadoria para muitos representa a perda de sentido da vida, de esperança de dias melhores.

Cena 2: O replanejamento

- Andaremos de ônibus. - Cinema, vídeos, livros. Que tal a metade, também? - Corte. Se sobrar, aí vamos ver. - Não sei como, Lili. - Nós ficaremos em casa, esquecemos o vinho, o café... deixamos o telefone para o mínimo... - Não tem jeito, Lili, ainda assim não dá.

(34 min 30 s a 36min 39s) Na mesa da cozinha Fernando com a caderneta faz o controle das contas a pagar e conversa com sua esposa Lili dos cortes que terão que fazer depois da aposentadoria.

Com a aposentadoria há perda de salário e o mínimo não é digno, o idoso tem que replanejar suas finanças e economizar ainda mais para tentar sobreviver.

Cena 3: A busca por outro emprego

De repente, compreendemos que pensar era tudo que podíamos fazer. E ninguém nos pagaria por isso, e tampouco, nos daria qualquer tipo de trabalho. Disseram que estávamos fora do mercado, desatualizados,

(36 min 40 s a 37min 25s) Lili busca empregos em jornais impressos para Fernando, enquanto ele procurar emprego nas agências por telefone. Fernando vai enfrentar as filas de desempregados a

O capitalismo é excludente, há grande discriminação do idoso no mercado de trabalho. E sem alternativas, preparação e reorientação de

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fora do sistema. Fora de tudo. Estávamos à margem. Excluídos, prescindíveis, descartáveis.

busca de trabalho. E coloca anúncios nas universidades para dar aulas particulares, mas não tem retorno. Então, sua esposa coloca a casa a venda.

carreira, o trabalhador idoso se submete a trabalhos precários para tentar sobreviver.

Fonte: Cenas extraídas do Filme Lugares Comuns, 2002.

Constata-se que essa queda na alta estima, pode decorrer das perdas financeiras,

sociais e das dificuldades encontradas para se reinserir no mercado. Tal fato favorece o

isolamento social do aposentado e o sentimento de inutilidade.

Uma adequada orientação profissional para a aposentadoria poderia reduzir os

efeitos negativos que a aposentadoria pode causar no indivíduo (CAMBOIM et al., 2011).

Portanto, esse planejamento poderia ter contribuído com uma preparação social e

psicológica para que Fernando refletisse e se adaptasse a nova condição, facilitasse a

obtenção de novas competências para desenvolver atividades distintas, seguisse na carreira

de empreendedor ou aprendesse a viver o tempo livre, minimizando perdas e, talvez,

prolongando a sua vida.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Fernando buscou durante o filme explicar os acontecimentos da vida e não apenas

descrevê-los, criticar o sistema que é excludente, incerto e alienante. Mas, a “verdade”

acerca da vida é relativa e as melhores perguntas que poderiam auxiliar nesse trajeto (O

quê? Como? Onde? Quando? Por quê?) são muitas delas “lugares comuns”,

desconsideradas, pois muitos só se importam com o objetivo (o fim) e não os meios.

Assim é o capitalismo, que valoriza a busca pelo lucro, fragiliza os valores que se vão

em nome do progresso avassalador, de uma economia de mercado. Há uma quebra de

tradição e de respeito à herança, do trabalho que transpassa de pai para filho, para um

trabalho que gere mais renda, mais individual (POLANYI, 1980).

Fernando, ao longo da história, faz o filho refletir pelo sentido do trabalho, por

trabalhar por vocação, fazer aquilo que se gosta, por prazer e não tão somente por dinheiro.

Mas, ao mesmo tempo, observa-se que ele não tira férias há muito tempo e nem tem o

costume de ficar com a família (filhos e netos), o trabalho também é centralizante e

individual.

Apesar disso, o trabalho é visto como um mecanismo essencial para essa integração

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social e a autorrealização do indivíduo. Ficar sem trabalhar ou aposentado, pode gerar

sensação de perdas pela ausência do trabalho, no que tange aos aspectos emocionais

(ausência do senso de parte da organização, das responsabilidades e de enfrentar desafios

no trabalho); aspectos tangíveis (status do cargo, não participação em eventos e reuniões);

relacionamento com colegas de trabalho; redução de salários e benefícios (BITENCOURT et

al., 2011; MOREIRA, 2011; FRANÇA, 2009; FRANÇA, SOARES, 2009; SOUZA, 2012).

Foi o que aconteceu com Fernando, após se aposentar. Sofreu, teve perdas

financeiras, emocionais, isolou-se. Mas, o sistema capitalista não está preocupado com os

sentimentos desses trabalhadores; culpabiliza-os e apropria-se da situação de fragilidade

para flexibilizar os direitos deles e precarizar as relações laborais. Quem é idoso e está

desempregado, é duplamente penalizado sendo mais difícil replanejar a vida nesse

momento. Os “não empregáveis” têm maior dificuldade de sobressair dessa situação

precária e de se reinserir no mercado de trabalho (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009).

A preparação para a aposentadoria pode minimizar os efeitos negativos que a

aposentadoria possa causar no indivíduo (CAMBOIM et al., 2011), reorientar o idoso para

outra carreira ou para desenvolver outras atividades. No filme, Fernando não conseguia mais

trabalho, não tinha como sobreviver com uma renda tão baixa, teve que se desfazer dos

bens, morar em outro lugar e tentar empreender individualmente, sem conhecimento do

negócio e sem recursos financeiros, gerente do próprio risco, do fracasso e da desilusão de

estar fora do sistema.

Ao final, o personagem não consegue prosperar no negócio, não se adapta a esse

novo modo de vida do interior, e solitário, distante do contexto que viveu, acaba adoecendo

e morre. E a vida continua, como se nada tivesse acontecido, indiferente, como um lugar

comum. É preciso, portanto, se preparar para esse momento, pensar em outras carreiras ou

atividades que propicie o sentimento de bem estar e de utilidade a pessoa aposentada.

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