Raparigas sem brinco de pérola - figuras femininas em Dulce Maria Cardoso

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I CONGRESSO INTERNACIONAL DE CULTURAL LUSÓFONA - A MULHER NA LITERATURA E OUTRAS ARTES Raparigas sem brinco de pérola figuras femininas em Dulce Maria Cardoso Teresa Coelho Junho de 2012 Personagens femininas na literatura portuguesa contemporânea: de que palavras são feitas aquelas que perderam os brincos de pérola? Retratos de mulheres nas obras de Dulce Maria Cardoso, Campo de Sangue e Os meus sentimentos. traçados por vozes vulgares, públicas e íntimas. Procura-se, na leitura dos textos, compreender como a obra estética revela a vida. E como a personagem feminina tem traços comuns a todas as mulheres, sendo única e irrepetível.

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I CONGRESSO INTERNACIONAL DE CULTURAL LUSÓFONA - A MULHER NA LITERATURA E OUTRAS ARTES

Raparigas sem brinco de pérola

figuras femininas em Dulce Maria Cardoso

Teresa Coelho

Junho de 2012

Personagens femininas na literatura portuguesa contemporânea: de que palavras são feitas aquelas que perderam os brincos de pérola? Retratos de mulheres nas obras de Dulce Maria Cardoso, Campo de Sangue e Os meus sentimentos. traçados por vozes vulgares, públicas e íntimas. Procura-se, na leitura dos textos, compreender como a obra estética revela a vida. E como a personagem feminina tem traços comuns a todas as mulheres, sendo única e irrepetível.

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Quando pensei no tema deste congresso de cultura contemporânea, “a mulher na

literatura e outras artes”, imediatamente me surgiram, em oposição, duas figuras: “the

girl with a pearl earring”, de Vermeer – (1666-67) e “the girl with the dragon tatoo”,

Lisbeth Salander. Uma, personagem de mulher comum e anónima que terá dado origem

à Mona Lisa do Norte; outra, figura sem nada de convencional na sua feminilidade,1

plenamente nomeada, direta e indirectamente caraterizada na sua bizarria. A rapariga de

Vermeer, ligeiramente virada para mim, espreita do fundo do tempo, num álbum dos

mestres da pintura holandesa e continua aqui, com as mulheres que passaram

incógnitas, no mundo e na literatura; Lisbeth Salander está algures na rede virtual,

quando abro o mail que ela olha desinteressada. É a heroína extraordinária e silenciosa

que redime outras personagens femininas secundarizadas na submissão a mundos

violentamente masculinos. Estas duas imagens de mulher, plástica e literária, são como

extremos de um grande espectro de personagens femininas universais, e, por influência

direta do ficcional no real, imagens de mulheres que querem parecer-se com elas.

Porque na sociedade mediatizada em que vivemos, a mulher, como a criança, o jovem e

as relações que estabelecem, o que consomem e como se transportam, tudo é imposto

por imagens, discursos sobre essas imagens e discursos sobre os próprios discursos, em

que se perdeu o fio a quem imita quem, quem surge primeiro, quem dá origem a quê.

Não nos juntámos nós aqui também falando e discorrendo sobre o discurso de outras ou

outros, e tendo escrito sobre outros escritos?

Vou então “ler” convosco, mais no sentido hermenêutico (de interpretação) do que no

filológico (de quem “analisa e situa no contexto histórico”), textos de uma autora

portuguesa contemporânea, Dulce Maria Cardoso. Preferia fazê-lo no sentido de quem

incorpora a voz do texto e a reproduz, interpretando-o, como o actor – porque alguns

destes textos parecem escritos para serem ditos, porque os seus parágrafos têm a

dimensão dramática da oralização, da fala que se interrompe e retoma, e comenta o

próprio discurso, motor do pensamento e da história. Mas para isso seria necessário

outro espaço.

Como a maioria saberá, Dulce Maria Cardoso adquiriu maior notoriedade pública

quando recebeu, em 2011, os Prémios Ler/Booktailors, pelo seu último romance

publicado, O retorno. Já fora premiada com o Prémio Ciranda e o Prémio do PEN

1 Personagem da trilogia Millenium, bestseller póstumo de Stieg Larsson.

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Clube Português de Novelística, em 2010, pelo seu terceiro romance O chão dos

pardais, e recebera o European Union Prize for Literature, em 2009, pelo romance Os

Meus Sentimentos, assim como o Grande Prémio Acontece, em 2002, pela primeira

obra, Campo de sangue.

Limitada por questões de tempo e espaço, colhi uma “amostra” da “população

feminina” apenas de dois universos ficcionais da escritora: Campo de Sangue e Os

Meus Sentimentos. Vou falar-vos de Eva, da mãe, da rapariga bonita, de Violeta,

Celeste, Dora, figuras da contemporaneidade, marcadas pelas características de uma

sociedade que Bauman classificou como líquida, por nela se ter perdido a consistência

das relações interpessoais e o sentido da busca intrapessoal. Sendo a obra de arte

“apenas um substituto enquanto a beleza da vida for deficiente”, no dizer de Mondrian,

cabe-lhe revelar esteticamente, no espelho em que nos reflete, a matéria da nossa

humanidade. É isso que a escritora faz com um estilo muito femininamente atual,

atrever-me-ia eu a dizer.

No percurso literário de Dulce Maria Cardoso, com a singularidade que caracteriza a

sua obra no panorama literário português, gostaria no entanto de traçar um ramo

genealógico com Virgina Woolf. Mulheres-escritoras de universos espácio-temporais

muito diferentes, cada uma a seu modo escreveu/escreve romances, narrou histórias que

fogem à linearidade cronológica e se desenvolvem dentro e fora do presente e do

passado, entrando e saindo da mente das personagens, entrando e saindo dos seus

discursos, pensamentos e silêncios.

Por outro lado, em Dulce Maria Cardoso parece-me também patente a constatação do

absurdo da existência, da fragilidade da linha que separa normalidade e loucura, ser e

parecer. As suas personagens, simultaneamente atuais e intemporais na dificuldade de

se definirem e de encontrarem um sentido para a vida, inscrevem-se em várias classes

sociais, e “vivem”, cada uma a seu modo, a luta entre quem são ou querem ser e aquilo

que parecem ou se esforçam por parecer. Vão da senhora que recebe semanalmente as

amigas para o chá-canasta formalmente perfeito2, à sua filha, “monstrengo” desolado e

mal-amado, envergonhado de si, vítima de desamor e indiferença. Da funcionária de

2 “a minha mãe sentada na sala da casa que hoje vendi com o vestido amarelo-clarinho de pregas que

lhe assenta tão bem ou aqui no Salão Princesa, ao fundo nos secadores, com a perna traçada, a folhear uma revista de moda, o dernier cri, in, Os meus sentimentos, p.61.

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notário, de dias amarfanhados, consolada na desgraça alheia3, à Denise do shopping,

personagem-tipo de uma sociedade de escravos. Profundas ou planas, a nenhuma sobrou

o brinco de pérola, símbolo da perfeição evolutiva da natureza e ponto de focagem do

olhar, no quadro.

Campo de Sangue começa: “Estão quatro mulheres na sala. Destas mulheres é preciso

saber antes de tudo que estão aqui por causa de um homem que cometeu um crime e que

se por acaso se encontrassem na rua não se cumprimentariam.” (p. 9)

Chamadas a identificar o homem, filho, ex-marido, amante, hóspede, são definidas pela

relação com ele. São testemunhas da vida que ele não teve. São actrizes contrariadas

perante os funcionários e o médico que as questiona. As epígrafes iniciais, versículos da

Bíblia, falam do pecado de Judas, que identifica Jesus e, assim, o entrega. As mulheres

também foram chamadas para identificarem o homem, o explicarem e, talvez, o

entregarem. Ele cometeu um crime que lembra L’étranger, de Camus: “com o calor há

sempre quem mate por razões alheias à vontade, o calor ferve o sangue que uma vez

derramado é rapidamente pó, um pó que se entranha facilmente na calçada,” (p.27) –

indício que surge logo no início da narrativa. Houve um crime, levado a cabo pelo

absurdo da existência, pela ilusão que conduziu o homem a confundir a rapariga bonita

que encontrara na praia com a outra, semi-marginal, que levou para casa e amou como

nunca antes. Cada uma das mulheres “Conta a verdade apesar de saber que a verdade se

apresenta de várias formas. Escolhe a verdade dela, a que lhe convém.” (p.164) Porque

verdade e realidade dependem de quem pensa, de quem vê, na literatura e na vida.

E são as analepses de um narrador que acompanha os pontos de vista das diferentes

personagens que nos dão uma visão global da(s) história(s). Cerca de um ano de

narrativa, onde todo o passado se encaixa em episódios evocados diversamente por cada

personagem.

As mulheres são herdeiras de um pecado original. A ex-mulher chama-se Eva. ES no

remetente dos postais enviados de férias para o homem (cf. p.25). É a única personagem

com um nome no romance. Mesmo o homem, à volta de quem elas se reúnem, não

adquire nunca a identidade de um nome. Embora pense:

(…) o nome que é o que se diz sempre apesar de dizer tão pouco de cada um, o nome é muito

importante, já lho perguntaram tantas vezes, o seu nome por favor e ele diz o nome que lhe

3 idem, pp.139-151.

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puseram aquando da fotografia em que se conhece mais pequeno, a fotografia que só foi feita

porque se baptizou outra criança no mesmo dia, os pais da outra criança contrataram o

fotógrafo para eternizar a entrada do filho no reino dos céus, os seus ainda não se tinham

desgraçado, mas nunca se lembrariam de contratar o fotógrafo, diz ao menos o nome, se

disseres o nome pensam que te conhecem.” 4(p.47)

Sem o nome como vai o leitor conhecer as personagens? O campo de sangue foi

provocado pelo homem. Mas teria sido motivado pela senhoria da pensão decrépita

onde vivia? Pela mãe pisada pela vida? Pela mulher-primeira, a Eva protetora (ou que o

perdeu?) e nada exigia em troca do tudo que dava? Pela rapariga que o levou à loucura?

Ou seria o amor que o levou à loucura? Ou o sol, como a Mersault?

Os pensamentos de cada uma delas sobre as outras são julgamentos aos quais mulheres

sujeitam outras mulheres, num mundo de dominados. Mas também o homem é reduzido

à condição de objeto imprestável, depois do crime. O romance, enquanto género

literário, continua a explorar este fenómeno da reificação. Todas estas personagens

foram reduzidas à condição de coisas, à semelhança dos seres humanos cujas relações se

degradaram em valores de compra e troca, nas sociedades contemporâneas

imitadas/traduzidas na ficção.

Quando a senhoria sai da sala, as três mulheres sentem-se melhor, mais unidas porque ele

foi de cada uma delas durante algum tempo, unem-se na posse, cada uma delas o usou em

determinado tempo para algum fim, ele foi de cada uma daquelas três mulheres e isso deixa

sempre alguma saudade mesmo que nenhuma delas o queira neste momento, ele já não lhes

serve, aconteceu o mesmo com uma camisola de que a rapariga gostava muito, deixou de lhe

servir e a rapariga deitou-a fora, a ex-mulher desfaz-se de muitas coisas no lixo ou nas obras de

caridade conforme lhe apetece, a mãe deixou que a máquina de costura se avariasse porque já

não lhe serve para nada.

Mas cada uma das três mulheres culpa as outras e é isso que as desune, atiram para as

outras o dever de o salvar, é acima de tudo a culpa que as desune.

A mãe culpa a ex-mulher por o ter desencaminhado antes, na noite do corte de

electricidade, e depois. A mãe tem a certeza de que a ex-mulher o fez pecador e um pecador

acaba sempre mal, a menos que se arrependa. Para a mãe a ex-mulher ainda vive em pecado e

dificilmente se arrependerá, é disso que os olhos opacos da mãe a acusam, e é também disso

que fogem porque o pecado é guloso, anda sempre à procura de novos corpos.

A ex-mulher culpa a mãe por não amar o filho, por não o amar como uma mãe deve amar

um filho. Se o amasse como deveria nunca teria deixado de acreditar que o filho podia ser

alguém na vida, nunca o teria deixado dormir em restos de lençóis por bordar, os que sobravam

e que lhe davam azar aos sonhos. Se a mãe o amasse como devia teria acreditado que eles

podiam ser felizes e a mãe nunca acreditou.

A mãe não sabe o esforço que a ex-mulher fez para o salvar, a ex-mulher não sabe o esforço

que a mãe fez para que ele fosse alguém, uma da outra sabem apenas a culpa de que se acusam

apesar de nunca terem falado nisso, sabem o que pensam uma da outra e até o que pensam da

rapariga que não conhecem.

Nenhuma delas gosta da rapariga. Algumas razões coincidem, outras não. (pp.202-203)

4 Sublinhado meu.

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São razões mesquinhas de ódios entre mulheres que se enfrentam pela posse do homem,

das que conhecemos da literatura, do cinema e da vida. Mulheres que suportam papéis

familiares predestinados mas nem sempre assumidos, papéis turvos onde se perdem de

quem são, na preocupação de cumprirem a regra social.

A rapariga não gosta delas mas não as culpa. Carrega na barriga a culpa mais pesada

que pode sentir, aquele filho é um estúpido acidente na vida que escolheu, daqui a quatro

meses livra-se finalmente daquele contratempo e descansa.

Mas apesar de tudo sentem-se cúmplices porque todas o tiveram e usaram da forma que

lhes deu jeito. E como cúmplices têm um entendimento secreto sobre o crime que cometeram.”

(p.204)

O crime dele foi um crime delas. São parceiras de jogo. O narrador oscila entre os seus

pontos de vista. Os campos de sangue associam-se. Real e virtuais. O crime que lança o

romance fez-se mais verdadeiro porque passou na TV, foi noticiado em todo o fulgor da

sua ficção nos jornais. O que a senhoria contou e os meios de comunicação revelaram é

um conjunto de mentiras fabricadas pelo homem no tempo todo que lhe sobrava da vida

que não tinha que “ganhar”.

Na sala de espera onde Eva fica sozinha enquanto as outras almoçam, ela pensa o seu

ódio pela rapariga e há outro homicídio que não chega a acontecer, o do filho do

homem,

tem a rapariga deitada no centro da sala e a criança já foi expelida em bocados ensanguentados

que estão pelo chão. Mais tarde tem de se reconstruir tudo para se ter a certeza de que a criança

está completa, as mãos da rapariga querem agarrar os bocados espalhados, grita, são meus, os

bocados do meu filho são meus, falta pouco para que a rapariga se esvaia em sangue, jorra

muito sangue da boca do corpo, o sangue é quase bonito, uma cereja esmagada que escorre, a

rapariga tem o útero rasgado para sempre, nunca mais poderá passar a mão pela barriga, o

desprendimento tem sempre um preço, a ex-mulher guarda os bocados da criança, bastará um

saco de plástico, um caixão branco de anjinho, um saco de plástico, (p.134)

Outro crime por cometer, o do homem, no dia de festejar o aniversário da mãe, dividido

entre deixá-la ou não morrer com o gás do forno avariado. “Não sei o que faça mãe, a

mãe sempre soube o que se devia fazer, o que ficava bem que se fizesse, (…) não sei o

que faça, mãe (…) acordo-a ou deixo-a morrer, mãe,” (p.113)5. O monólogo não

verbalizado é um homicídio por omissão, num mundo onde o pecado reina (vd. p. 238).

Entre o homem e cada mulher da sua vida há um comportamento específico. Repetido

como para fundar a relação, mas sublinhando a discrepância entre o que é um

comportamento e o que são os pensamentos e sentimentos que atravessam as

5 Novamente na p. 120.

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personagens, na lucidez com que o narrador as conta, adotando os vários pontos de

vista.

O homem e a ex-mulher “portavam-se como amantes”, leitmotiv repetido ao longo da

narrativa. “Ambos gostavam de se comportar como amantes, não tendo a obrigação de

fingir que se amavam, de se mostrarem felizes. Não se conseguiam afastar porque a

única obrigação que tinham era de se portarem como amantes.” (p.25)6 A sua relação

não é aquilo que parece, não corresponde aos comportamentos observáveis. Daí a

ferida de Eva, preterida, enganada, esquecida, limitada à vida interior, às suas

invenções, aos três níveis de água e de azul de que diz necessitar para viver.

O homem e a rapariga “portavam-se como apaixonados.”

Andavam abraçados na rua. Beijavam-se. Riam de tudo. Não achavam nada de que não

gostassem. Falavam ao mesmo tempo e forçavam coincidências. Quando se deitavam

provocavam o desejo com medo de adormecerem sem se terem amado. Quando isso

acontecesse a ilusão desfazia-se e a verdade apareceria intolerável. Seriam apenas dois corpos

que não sabiam o que faziam ao lado um do outro.” (p. 179)

O homem e a mãe: “Portavam-se como desconhecidos. (…) portavam-se como

estranhos mas nunca sentiram necessidade de se portarem de forma diferente.” (p.97)

Quem o visse pensaria que era um filho dedicado que ia visitar a sua mãe e com este engano

aos olhos dos outros veio o prazer de se parecer com quem nunca foi, de se aproximar duma

pessoa que poderia ter sido. (…) e soube que nunca poderia parecer um filho dedicado porque

era necessário que a mãe também se parecesse com uma mãe com saudades do filho, uma mãe

contente por ver o filho, e isso não acontecia. (pp.101-102)

É sempre um jogo de papéis de cada mulher na vida do homem; dele na vida delas. A

permanente ideia de que nada vai para além de uma aparência de normalidade que, nem

mesmo ela se consegue, por vezes, inventar. A mãe gastou-se a bordar os enxovais de

noiva de que sobreviviam, deixou de existir como mulher, como ser humano. “Há muito

tempo que a única coisa que a mãe quer é repetir todos os dias os mesmos gestos até ao

dia em que já não precise de os fazer.” (p.191) Mecanismos de autómato, não de gente.

Elas reificaram-no, como ele as usou. Todos parecem alguém que não são de facto, e

sofrem o absurdo desse desvio.

A construção das personagens pelo discurso do narrador confunde o leitor naïf que

tenderá a justapor narrador e personagem narrada, pela frequente sobreposição do ponto

de vista de quem conta com o da personagem sobre quem se conta. DMC é exemplar na

6 Vd. por exemplo, pp. 167, 206

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subtil passagem entre a voz de um narrador heterodiegético e omnisciente, para a de um

narrador homodiegético, personagem e voz narrativa que evidencia o ponto de vista de

um participante na história.

Assim, é curioso notar que a proposição: “um amor tão exagerado, quase uma doença,”

seja assumida por várias vozes, e que a ideia expressa se modifique na alteridade: “um

amor tão exagerado, quase uma doença,” pensava o homem do sentimento da ex-mulher

por si (p.175); pensou depois do seu amor pela rapariga bonita. (cf. pp. 176, 195, 199,

200, 220); pensa Eva, já no final da relação, do amor que dedica ao homem (cf. p. 213).

O amor pode ser excessivo? Pode ser doentio? Pode camuflar o absurdo da sua

ausência? Eva sabe que “A verdade é sempre muito difícil de compreender. A mentira é

sempre mais compreensível, mais lógica, mais correcta como tudo o que é construído.”

(p. 146) Como a ficção é mais compreensível que a realidade. A literatura é uma

construção estética que imita o mundo, revelando-o. Mas o discurso do narrador e os

pontos de vista que adota neste romance mimetizam, de certo modo, a confusão de cada

ser enredado em relações familiares e sociais múltiplas e a ausência de nomes joga a

favor da própria confusão do leitor.

A rapariga assustada com o “novo” homem que a dada altura se revela, sabe que

os tarados nunca parecem o que são, é por isso que enganam as vítimas tão bem, (…) um pobre

coitado ou um tarado perigoso, podia ser as duas coisas, olhou bem para ele, não teve dúvidas,

era apenas um pobre coitado, (…) a rapariga bonita pensava em deixá-lo quando lhe deu a mão

e aceitou casar-se com ele,” (pp. 222-223)

O pobre coitado revelou-se afinal um criminoso. A rapariga mentiu. Todas elas mentem.

Para se defenderem. Para sobreviverem. Para acreditarem que são alguém que não são.

uma mulher que aceita em casa um homem sem se casar só pode ser uma, nessa noite Eva

disse-lhe que passava em frente do muro por causa dele, os olhos meigos de Eva pediam-lhe

que ele também mentisse para que se amassem desde sempre, mas ele ficou calado e Eva

desistiu do que queria inventar (p.132)

São as palavras que não se dizem que prevalecem. Sempre. Quando Eva se cruza com a

ex-sogra num corredor do hospício, a caminho do depoimento:

A ex-mulher escolhe as palavras. As palavras que surgem são as que sempre quis dizer, que

são as únicas que não serão ditas. Procura outras. Tem pouco tempo e está nervosa. (…) as

duas mulheres têm pouco tempo para corrigir o silêncio de que se fez o passado.” (p.146)

Quando fala com o médico que avaliará se o homem deve ser julgado pelas leis dos

homens ou pelas leis de Deus:

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o médico nunca poderá compreender o pacto deles. Ninguém pode compreender. Escolhe as

palavras que não pode dizer. Precisamos um do outro para nos enganarmos. Sobrevivemos ao

bairro e os sobreviventes nunca são boas pessoas porque apesar de tudo sobreviveram. Uma

boa pessoa sucumbe se vê coisas terríveis. Ele nunca me amou, eu nunca o amei. Ele amou-me

e eu amei-o. Somos dois casos perdidos. Precisávamos um do outro para fingir coisas

diferentes. (p.165)

A vida destas mulheres faz-se de silêncios, de ilusões que fabricam e consomem. Está

cheia do lixo de que cada uma se desfaz a seu modo.

Os meus sentimentos é um longo stream of consciousness, refletindo as incoerências do

fio da consciência humana, colada à voz da narração, aparentemente liberta de controlo

exterior. Um texto construído na mente da protagonista autodiegética, que o leitor

encontra, logo no início do romance, no momento do acidente e da morte anunciada no

título, e realiza uma longa analepse, em que a própria voz mimetiza outras e se vai

respondendo, no eterno diálogo que tece uma mulher, consigo própria e com o mundo.

inesperadamente

não devia ter saído de casa, não devia ter saído de casa, não devia ter saído de casa, durante

algum tempo, segundos, horas, não sou capaz de mais nada,

inesperadamente paro

a posição em que me encontro, de cabeça para baixo, suspensa pelo cinto de segurança, não me

incomoda, o meu corpo, estranhamente, não me pesa, o embate deve ter sido violento, não me

lembro, abri os olhos e estava assim, de cabeça para baixo, os braços a bater no tejadilho, as

pernas soltas, o desacerto de um boneco de trapos, os olhos a fixarem-se, indolentes, numa gota

de água parada num pedaço de vidro vertical, não consigo identificar os barulhos que ouço,

recomeço, não devia ter saído de casa, não devia ter saído de casa,

são tão maçadoras as legalengas (p.9)

Nas frases entrecortadas, o discurso suspende-se, por brancos na folha. E reproduz, num

monólogo/diálogo interior de cerca de 300 páginas, a história de vida da personagem da

mulher morta no carro, e as histórias, por ela imaginadas, daqueles com quem se cruzou.

Imaginadas, porque a focalização interna da protagonista implica a focalização externa

das outras personagens. Mas neste romance essa restrição parece, por vezes,

ultrapassada. Daí o leitor ser arrastado num turbilhão de palavras em que não pode

deixar-se confundir. Os discursos direto e indireto livre de outras personagens, inscritos

entre as palavras de Violeta, figuram memórias dos outros nela e a confusão dos

pensamentos numa consciência aceleradamente a atingir o fim.

Como nos relatos de sobreviventes a naufrágios, afogada no temporal, nos segundos que

precedem a morte, a narradora improvável, revê a vida numa longa analepse, onde

outras se encaixam. E o romance conta a memória das emoções e conceções da mulher

gorda a quem a vida aconteceu ao lado, a quem a vida impôs um destino que lhe roubou

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a vida. Porque “quando nos põem numa vida não sabemos ter outra” (p.28, 122, 156,

181) “quando nos põem numa vida temos de a levar para todo o lado” (p.139) “quando

tentamos fugir da vida em que nos puseram acabamos por nos perder” (p.140) ”quanto

mais queremos fugir da vida que temos mais ela se agarra a nós” (p.150). Um discurso

interrompido aleatoriamente por ideias mais íntimas, ou por frases feitas, ou pela vox

populi… “as regras de educação e de cortesia devem manter-se sempre que possível”

(p.138); “uma senhora deve em qualquer circunstância ser chic, très chic” (p.189) “não

houve rapaz deste bairro com quem não tenha ido até que se meteu com um retornado

preto e já mais nenhum a quis” (p.90) É a ficcionalização de alguém que, podendo ter

tido tudo, pouco ou nada teve, pouco ou nada foi: “a menina é má, a menina é uma

menina mesmo muito má” (p.23, p.147) dizia a criada, vítima de todos, da criança com

o estigma da rejeição dos pais: “esta miúda faz tudo para nos aborrecer”; “esta miúda

faz sempre o que não deve”; “com esta miúda ninguém consegue fazer nada, nem

sequer morrer” (p.159). “a vergonha que o teu pai tem de ti, Violeta” (p.31) “o meu pai

tinha vergonha da mostrenga em vez de ter vergonha do bastardo” (p.188). Depois, a

sua própria filha que não lhe chega a dizer “os teus pais não gostavam de ti porque não

merecias, eu não gosto porque não mereces” (p77). E os últimos a vê-la:

os rapazes calam-se por segundos quando me vêem, e depois, um deles, tanto faz, são todos

parecidos, diz large, extra extra large, todos se riem, ainda a gargalhada não se desfez e já estão

enredados em suposições, come para aí o triplo de uma pessoa normal, pode ser uma doença, a

cama, já imaginaste a cama

era uma mulher tão gorda, tão gorda, que quando caía da cama caía para os dois lados

(pp. 20-21)

Vamos encontrá-la só, no momento final da vida, em trânsito entre a casa que deixou de

ter e a que não poderá, portanto, voltar e a casa de uma cliente. Entre o passado e o

infinito…

inesperadamente

não sinto dores, não tenho medo, os meus olhos afogados na gota de luz, os meus ouvidos um

albergue de grilos,

neste momento posso já não existir aqui

este momento pode já não existir para mim (p.10)

Se a narração depende da voz e da organização que o narrador impõe à história, há,

neste romance, marcada pelos deíticos e pela focalização interna, uma exacerbação da

subjectividade do que é narrado, na medida em que se anula a distância entre quem

conta e o que é contado e se encurta também esse espaço com quem lê, empaticamente

ou com a objectividade do leitor literário experiente. Por outro lado, a predominância da

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utilização do presente do indicativo para todos os tempos da história, compacta o tempo

no momento da morte, o momento da narração, um tempo que escapa à cronologia:

sei de tudo num tempo que não é este que está a passar, nem o que já passou, nem o que vai

passar, um tempo planificado, acessível por inteiro como as estradas dos meus mapas, o tempo

finalmente cartografado como as terras dos mapas, sítios que só existem para me esperarem,

tempos que só existem para que eu os percorra, de cabeça para baixo, suspensa pelo cinto de

segurança, num momento em que posso já não existir, num momento que pode já não existir

para mim (pp. 215-216)

Nos tempos de fim de um império cresceu Violeta, a filha de Celeste, a mulher que usa

o Francês para parecer distinguée. Presa na teia das aparências, afivelada ao mundo

colonial moribundo, Celeste pertence ao tempo da História onde se inscreve a ficção, na

medida em que representa um sector da sociedade portuguesa que passou a viver em

função do passado, descolado do real. A gorda vitimizada é a mãe de Dora, o anjo que

salvou os avós. É ainda a vendedora de ceras depilatórias, a melhor, num combate

desigual contra os lasers espanhóis.

De entre as personagens secundárias, lembro as personagens-tipo Denise e Betty,

clientes das ceras – nomes marcados de um mundo dos salões de estética, como as

raparigas do Salão Princesa, de outros tempos, Denise com o seu escravo ucraniano,

Betty na vivenda clandestina, com a profissão clandestina, a vida clandestina. E Maria

da Guia, a criada da mãe que a criou a ela, que se matou a ser criada e não chegou a ser

mulher, que contava a Violeta a história da sua infância e dos muitos irmãos, dos mortos

em pequenos e da mãe que foi vendendo os outros por falta de pão e amor para dar.

Violeta atravessa a vida e a história quase sem saber o que é o amor.

conheço o amor de ouvir falar7

um corpo a repousar sobre outro corpo, a respiração acertada peito contra peito, uma mão

caída e logo outra que a segura, o silêncio que cobre os corpos transpirados, pode o amor ser

isto, pode o amor

os rapazes gostavam de mim nas matinées

ser esta paz da carne saciada (p.41)

Só a maternidade a faz descobri-lo: “nasceste para que eu soubesse como é o amor que

só conhecia de ouvir falar” (p.280).

Muitas mulheres e algumas figuras masculinas: Baltazar, o pai, homem do regime

salazarista que matava os gatos do quintal com leite envenenado, que esmagava os

7 p. 41, p. 50, p. 52, p. 251

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pássaros das gaiolas e queimava os bichos de olhos de vidro esbugalhados, espantados

com a morte. (vd. p.39) Tal como o homem de Campo de sangue, também esta

personagem masculina é desresponsabilizada pela loucura.

o teu pai não está maluco, nunca mais te quero ouvir a dizer semelhante disparate

o meu pai não enlouqueceu, foi apenas um hábito que tomou conta dele, a loucura é um

abismo, não um caminho que se faz com mais ou menos vagar, o teu pai está bem, só precisa

de estar sozinho, nada mais do que isso, não te quero ouvir a repetir os disparates que ouves na

rua, e eu não repetia, e com o tempo ganhei o hábito de considerar tudo normal, (…) o meu pai

nunca ficou xexé como o Ângelo diz, é tão maldoso o Ângelo, (p.103)

Ângelo é o meio-irmão, o bastardo que vingativamente acusou o pai na época da

revolução, o fantoche lamentável que matou o pai de ambos com a negação da

paternidade ensinada pela mãe (outra mulher na sombra esconsa de uma espelunca de

amante). “para se vingar o seu filho deitou-se com a mostrenga da irmã” (p.173)

“engravidar a irmã mostrenga” (p.265). Vozes do mundo e personagens sem força

própria, movidas pelas mulheres que os rodeiam e lhes inculcam os sentimentos a ter. E

ainda os figurantes, sombras dos rapazes e dos homens dos momentos do sexo. A

crueldade dos olhos e das palavras: “olha para aquela gorda perdida de bêbeda” (p.12,

p.53). “este aspecto e ainda por cima bêbeda” (p.25)

a todos os homens com quem fui e que calharam perguntar-me o nome respondi sempre com

uma charada e

um nome de flor que também é uma cor

bêtises ma chérie, bêtises

nunca nenhum acertou, talvez fosse estranho, talvez tivesse achado realmente estranho se

tivesse pensado nisso, não pensei, até ele todos os homens que tentaram adivinhar,

responderam Rosa, a maior parte não arriscou, sorriu e pôs-se a andar, queriam lá saber o meu

nome, era só uma pergunta, a mais comum, para afastar o silêncio, o embaraço, a vergonha de

terem estado dentro de uma mulher como eu, nunca conheci nada mais desapiedado do que a

carne saciada, o que é certo é que até esta noite, até ele, todos os homens tinham respondido

Rosa, um erro de que gostava, outro nome e não era eu que ali estava mas a tal Rosa, uma

criatura que chegava a lamentar quando me dava para isso. (…) e se nunca mais tiver lugar em

mim, se nunca mais me pertencer, por que me deixo morrer,

por que me mata a avida

acelero em direcção ao infinito que se tornou o meu destino, (p.13-15)

Só o último homem, que Violeta não sabia ser o último, acertou. E talvez o facto de ser

finalmente nomeada por um homem de passagem, a tenha feito aproximar daquela que o

nome designava, de quem ela era, reduzindo-a ao monte de carne do desenlace.

I Congresso Internacional de Cultura Lusófona – A mulher na literatura e outras artes

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“O inferno são os outros.”, disse uma personagem de Sartre. Este romance é uma

demonstração do aforismo. “o inferno é o esquecimento” (p.166) diz a narradora. E o

romance é um combate da memória.

As raparigas e mulheres que figuram na obra de Dulce Maria Cardoso não têm a

sedução do brinco de pérola a focar o olhar do leitor ou, dito de outro modo, não têm o

encanto da simplicidade de vidas feita de acasos naturais, sem contornos trágicos. Mas

também, como vulgarmente se diz e dos contros tradicionais se conclui, os amores/vidas

felizes não têm história. Eva, Violeta, Dora, as outras (e nós) situam-se na zona do arco-

íris entre uma rapariga de Vermeer e a redentora e tristemente solitária heroína

tecnológica. As suas histórias, contadas maioritariamente por vozes femininas, estão

ancoradas por informantes (quase transformados em indícios) nos nossos dias, em vagos

espaços nacionais: a grande cidade, o bairro periférico, a zona litoral, a aldeia do

interior… Cada leitor visualizará a sua Lisboa, Marvila, Caparica, Estoril, Forcalhos...

“quando nos contam uma história ouvimos sempre outra” (p.29, p.289) diz a voz da

narração em Os meus sentimentos. É o contributo da nossa subjetividade.

Estas personagens são contemporaneamente trágicas porque efémeras, sem heroísmo,

numa sociedade que, sendo de massas, é esquizofrenicamente individualista. As

narrativas reproduzem a ideia de identidades problemáticas, errantes na confusão das

cidades onde os caminhos se multiplicam e o indivíduo se perde. São personagens que

figuram a precaridade das relações e a liquidez da sociedade onde o absurdo da

velocidade quotidiana asfixia a vida: mulheres à deriva, sem as âncoras de laços

duradouros, à procura de si na desordem do mundo.

Steiner diz que “Um intérprete é um decifrador e comunicador de significações. É um

tradutor entre linguagens, entre culturas, e entre convenções de representação.” (Steiner,

1993:19) Na realidade, os textos de Dulce Maria Cardoso não necessitam intérpretes,

apenas leitores. Esta comunicação pretende apenas contribuir para contagiar o prazer de

os ler.

Bibliografia

CARDOSO, Dulce Maria, (2002) Campo de sangue, Alfragide, Edições ASA.

(2005) Os meus sentimentos, Alfragide, Edições ASA. .

STEINER, Georges (1993), Presenças Reais, Lisboa, Editorial Presença.