Questões Nacionais e Regionais do Território Brasileiro. SILVEIRA, M. R. (Org.) ; LAMOSO, L. P....

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QUESTÕES NACIONAIS E REGIONAIS DO TERRITÓRIO BRASILEIRO

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QUESTÕES NACIONAIS E REGIONAIS DO TERRITÓRIO

BRASILEIRO

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MÁRCIO ROGÉRIO SILVEIRA LISANDRA PEREIRA LAMOSO

PAULO FERNANDO CIRINO MOURÃO

(ORGANIZADORES)

QUESTÕES NACIONAIS E REGIONAIS DO TERRITÓRIO BRASILEIRO

1a Edição Editora Expressão Popular

São Paulo – 2008

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ORELHA DO LIVRO

Este livro é resultado da reunião de trabalhos sobre algumas das principais questões que permeiam o ordenamento geoeconômico do território brasileiro, em duas escalas: a nacional e a regional.

A primeira parte aborda temas fundamentais para a compreensão do processo de reestruturação econômica, como as características das revoluções e evoluções logísticas, infra-estruturas, arranjos produtivos locais (APLs), a produção do espaço urbano, agroindústrias e meio rural.

A segunda parte contempla a escala regional e apresenta artigos que abordam os reflexos das políticas neoliberais para a economia catarinense, os espaços conservadores de poder e as redes sociais de poder no planalto latifundiário paranaense, as infra-estruturas e as circulações hidroviárias e portuárias ao longo dos rios Tietê e Paraná, os aspectos contemporâneos da industrialização, APLs (Arranjos Produtivos Locais) e Eixos de Desenvolvimento no interior paulista, a mercantilização do carnaval no nordeste brasileiro e os aspectos do ordenamento da Região Norte do país, destacando mineração, formação de sub-região e desenvolvimento sustentável.

O caráter da discussão aqui reunida contempla pesquisadores e interessados das mais diversas áreas do conhecimento, com ênfase nas Ciências Humanas.

Esta obra surgiu das inquietações do Grupo de Estudo em Desenvolvimento Regional e Infra-Estruturas (GEDRI) e foi ampliada com a contribuição de pesquisadores participantes de outros importantes grupos, como o Grupo de Estudos Dinâmica Regional e Agropecuária (GEDRA), o Grupo de Pesquisa Produção do Espaço e Redefinições Regionais (GAsPERR), o Grupo de Pesquisa Dinâmica Econômica e Formação Socioespacial, Produção do Território e Meio Ambiente na Amazônia (GAPTA), o Grupo de Estudos Regionais e Análises Territoriais (GERAT), o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ensino de Geografia (NEPEGeo) e o Grupo de Pesquisa Mineração e Desenvolvimento Sustentável.

Os Organizadores

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Revisão ortográfica: Simone Donegá Marques

FICHA CATALOGRÁFICA

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OS AUTORES

Adriana Renata Verdi. Graduada em Geografia pela UNESP (Universidade Estadual Paulista), mestre e doutora em Geografia pela USP (Universidade de São Paulo), com a tese “Grupos Econômicos Globais e Territórios Locais: Alcatel e Renault no Brasil”, defendida em 2003. Atualmente é pesquisadora do Instituto de Economia Agrícola do Estado de São Paulo. Participa do grupo de pesquisa “Agricultura Familiar e Desenvolvimento (IEA)” e do grupo “Arranjos Produtivos e Desenvolvimento Local”. Aloysio Marthins de Araújo Junior. Graduado, mestre e doutor em Geografia pela USP (Universidade de São Paulo), com a tese “A Indústria de Bens de Capital no Estado de São Paulo: da Gênese aos Problemas Atuais”, defendida em 2003. Atualmente é Professor Adjunto do curso de graduação e de pós-graduação em Educação da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). É líder do grupo de pesquisa “Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ensino de Geografia (NEPEGeo)”. Antonio Nivaldo Hespanhol. Graduado, mestre e doutor em Geografia pela UNESP (Universidade Estadual Paulista), com a tese “Dinâmica Agroindustrial, Intervenção Estatal e a Questão do Desenvolvimento da Região de Andradina”, defendida em 1997. Atualmente é Professor Assistente Doutor do Departamento de Geografia da UNESP, campus de Presidente Prudente, atuando nos cursos de graduação e de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Geografia. Participa do “Grupo de Estudos Dinâmica Regional e Agropecuária (GEDRA)”. Arthur Magon Whitacker. Graduado, mestre e doutor em Geografia pela UNESP (Universidade Estadual Paulista), com a tese “Reestruturação Urbana e Centralidade em São José do Rio Preto-SP”, defendida em 2003. Atualmente é professor do curso de graduação e de pós-graduação da UNESP, campus de Presidente Prudente (mestrado e doutorado). Participa do “Grupo de Pesquisa Produção do Espaço e Redefinições Regionais (GAsPERR)”. Celso Donizete Locatel. Graduado em Geografia e em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Jales. Possui mestrado e doutorado em Geografia pela UNESP (Universidade Estadual Paulista), com a tese “Modernização da Agricultura, Políticas Públicas e Ruralidade: Mudanças e Permanências na Dinâmica Rural das Microrregiões de Jales e de Fernandópolis”, defendida em 2004. Atualmente é Professor Adjunto da Universidade Federal de Sergipe, atuando nos cursos de graduação e de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Geografia e participa do “Grupo de Estudos Dinâmica Regional e Agropecuária (GEDRA)” e do “Grupo de Estudos em Desenvolvimento Regional e Infra-estruturas (GEDRI)”.

Climaco César Siqueira Dias. Graduado em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe (1981). Possui o título de especialista em Desenvolvimento Rural pelo Ministério

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da Agricultura (1982) e Administração Pública e Planejamento pela Universidade Católica do Salvador (1995). Mestre em Geografia pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), com a dissertação “Carnaval de Salvador: Mercantilização e Produção de Espaços de Segregação, Exclusão e Conflito”, defendida em 2002. Atualmente é Professor Assistente da Universidade Federal da Bahia e líder do “Grupo de Pesquisa Produção do Espaço Urbano/ Memória Geográfica/ Geografia e Literatura”. Elaine Cristina Cícero. Graduada em Geografia pela UNESP (Universidade Estadual Paulista). Mestranda em Geografia e bolsista da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). É integrante do “Grupo de Pesquisa Produção do Espaço e Redefinições Regionais (GAsPERR)”. Eliseu Savério Sposito. Graduado em Geografia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Presidente Prudente, mestre e doutor em Geografia pela USP (Universidade de São Paulo) e livre-docente pela UNESP (Universidade Estadual Paulista), com a tese “Contribuição à Metodologia de Ensino do Pensamento Geográfico”. Atualmente é Professor Titular do curso de graduação e de pós-graduação da UNESP de Presidente Prudente e professor visitante da Universidad Nacional de San Juan. É líder do “Grupo de Pesquisa Produção do Espaço e Redefinições Regionais (GAsPERR)”. Élson Luciano Silva Pires. Graduado em Economia pela Universidade Católica de Salvador (1982), mestre em Economia e doutor em Sociologia pela USP (Universidade de São Paulo) e livre-docente pela UNESP (Universidade Estadual Paulista), com a tese “Os Mercados de Trabalho nas Zonas de Integração Regional: a construção inacabada da re(gu)lação salarial na União Européia”. Atualmente é Professor Adjunto da UNESP, campus de Rio Claro e líder do “Grupo de Pesquisa Arranjos Produtivos e Desenvolvimento Local” e participa do “Grupo Trabalho, Sindicalismo e Sociedade”. Fernando dos Santos Sampaio. Graduado em Geografia e doutor em Geografia Humana pela USP (Universidade de São Paulo), com a tese “Made in Brazil: Dinâmica Sócio-Espacial da Indústria Citrícola Paulista”, defendida em 2003. Atualmente é professor do curso de graduação e do curso de Mestrado em Geografia da UNIOESTE (Universidade Estadual do Oeste do Paraná), campus de Francisco Beltrão e líder do “Grupo de Pesquisa Dinâmica Econômica e Formação Sócio-Espacial”. Gilberto Oliveira da Silva Junior. Graduado em Geografia, especialista em Sociologia Urbana pela UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e mestre em Geografia pela UFF (Universidade Federal Fluminense), com a dissertação “O Estado como Ordenador do Território Brasileiro: o Caso do BNDES”, defendida em 2002. Atualmente é professor do curso de graduação em Geografia da FERLAGOS (Fundação Educacional da Região dos Lagos). João Marcio Palheta da Silva. Graduado em Geografia pela UFPA (Universidade Federal do Pará), especialista em Desenvolvimento de Áreas Amazônicas pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA/UFPA), mestre em Planejamento do Desenvolvimento pela UFPA (NAEA/UFPA) e doutor em Geografia pela UNESP (Universidade Estadual Paulista), com a tese “Poder, Governo e Território em Carajás”, defendida em 2004.

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Atualmente é professor do curso de graduação e de pós-graduação em Geografia pela UFPA. É líder do “Grupo Acadêmico Produção do Território e Meio Ambiente na Amazônia (GAPTA)” e integrante do “Grupo de Estudos em Desenvolvimento Regional e Infra-estruturas (GEDRI)”. Lisandra Pereira Lamoso. Graduada, mestre em Geografia pela UNESP (Universidade Estadual Paulista) e doutora em Geografia pela USP (Universidade de São Paulo), com a tese “Exploração de Minério de Ferro no Brasil e no Mato Grosso do Sul”, defendida em 2001. Atualmente é professora do curso de graduação e de pós-graduação em Geografia da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados). É líder do “Grupo de Pesquisa Sócio-Econômico-Ambiental de Mato Grosso do Sul” e integrante do “Grupo de Estudos em Desenvolvimento Regional e Infra-estrutura (GEDRI)”. Luciene Cristina Risso. Graduada em Geografia, mestre em Conservação e Manejo de Recursos e doutora em Geografia pela UNESP (Universidade Estadual Paulista), com a tese “Paisagem, Cultura e Desenvolvimento Sustentável na Amazônia Brasileira: um Estudo de Caso”, defendida em 2006. É professora do curso de Geografia da UNESP, campus de Ourinhos e integrante do “Grupo de Estudos em Desenvolvimento Regional e Infra-estruturas (GEDRI)”. Márcia da Silva. Graduada, mestre e doutora em Geografia pela UNESP (Universidade Estadual Paulista), com a tese “Territórios Conservadores de Poder no Centro-Sul do Paraná”, defendida em 2005. Atualmente é professora do curso de graduação e de pós-graduação em Geografia da UNICENTRO (Universidade Estadual do Centro-Oeste), campus de Guarapuava e líder do “Grupo de Estudos Regionais e Análises Territoriais (GERAT)”. Márcio Rogério Silveira. Graduado em Geografia pela UDESC (Universidade do Estado de Santa Catarina) e doutor em Geografia pela UNESP (Universidade Estadual Paulista), com a tese “A Importância Geoeconômica das Estradas de Ferro no Brasil”, defendida em 2003. Foi professor do curso de graduação e de pós-graduação da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e atualmente é professor do curso de graduação (campus de Ourinhos) e do curso de pós-graduação (campus de Presidente Prudente) em Geografia da UNESP. É líder do “Grupo de Estudos em Desenvolvimento Regional e Infra-estruturas (GEDRI)”. Nelson Fernandes Felipe Junior. Graduado e mestre em Geografia pela UNESP (Universidade Estadual Paulista), com a dissertação “A Hidrovia Tietê-Paraná e a Intermodalidade no Estado de São Paulo”, defendida em 2008. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e integrante do “Grupo de Estudos em Desenvolvimento Regional e Infra-estruturas (GEDRI)”. Paulo Fernando Cirino Mourão. Graduado e doutor em Geografia pela USP (Universidade de São Paulo) e mestre em Geografia pela UNESP (Universidade Estadual Paulista), com a tese “Reestruturação Produtiva da Indústria e Desenvolvimento Regional: a Região de Marília”, defendida em 2001. Atualmente é professor do curso de graduação da UNESP, campus de Ourinhos e integrante do “Grupo de Estudos em Desenvolvimento Regional e Infra-estrutura (GEDRI)”.

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Saint-Clair Cordeiro da Trindade Júnior. Licenciado em Geografia, bacharel em Direito e em Geografia, mestre em Planejamento do Desenvolvimento pela UFPA (Universidade Federal do Pará) e doutor em Geografia pela USP (Universidade de São Paulo), com a tese “A Cidade Dispersa: os Novos Espaços de Assentamentos em Belém e a Reestruturação Metropolitana”, defendida em 1998. Atualmente é professor do curso de graduação e de pós-graduação da UFPA e participa do “Grupo de Pesquisa Cidade, Meio Ambiente e Urbanização na Amazônia”.

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SUMÁRIO

Apresentação PARTE I QUESTÕES NACIONAIS DO TERRITÓRIO BRASILEIRO As cinco revoluções e evoluções logísticas e seus impactos sobre o território brasileiro Márcio Rogério Silveira

A infra-estrutura como elemento organizador do território Lisandra Pereira Lamoso

BNDES: 50 anos de ordenamento do território brasileiro Gilberto Oliveira da Silva Junior

A mobilização dos territórios para o desenvolvimento de arranjos produtivos locais: gênese, aspectos conceituais e bases metodológicas Élson Luciano Silva Pires Adriana Renata Verdi

Produção e reprodução do espaço urbano: refletindo sobre uma escala e um recorte Arthur Magon Whitacker

Desenvolvimento da agricultura e espaço rural Celso Donizete Locatel Antonio Nivaldo Hespanhol

A consolidação do monopólio na citricultura brasileira Fernando dos Santos Sampaio

PARTE II QUESTÕES REGIONAIS DO TERRITÓRIO BRASILEIRO As políticas neoliberais dos anos de 1990 no Brasil e seus reflexos na economia catarinense Aloysio Marthins de Araújo Junior

Territórios conservadores de poder e redes sociais de poder: para pensar além de Guarapuava-PR Márcia da Silva

Reestruturação produtiva e industrialização no Oeste Paulista Paulo Fernando Cirino Mourão

A Hidrovia Tietê-Paraná e o Porto Intermodal de Pederneiras-SP Nelson Fernandes Felipe Junior Márcio Rogério Silveira

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Arranjo produtivo local e eixo de desenvolvimento: o caso de Birigüi-SP Eliseu Savério Sposito Elaine Cristina Cícero

O Carnaval de Salvador e a tirania de mercado Climaco César Siqueira Dias

A organização econômica dos territórios de mineração na Amazônia João Marcio Palheta da Silva

Diferenciação espacial e formação de sub-região: o baixo Tocantins na Amazônia oriental Saint-Clair Cordeiro da Trindade Júnior

O desenvolvimento sustentável na Amazônia brasileira é possível? Um estudo de caso em Lábrea – Estado do Amazonas (Brasil) Luciene Cristina Risso

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APRESENTAÇÃO

“Questões nacionais e regionais do território brasileiro” surge por iniciativa do Grupo de Estudos em Desenvolvimento Regional e Infra-estrutura (GEDRI) e foi enriquecido com a contribuição de pesquisadores de outros grupos, como o Grupo de Estudos Dinâmica Regional e Agropecuária (GEDRA), o Grupo de Pesquisa Produção do Espaço e Redefinições Regionais (GAsPERR), o Grupo de Pesquisa Dinâmica Econômica e Formação Sócio-Espacial, Produção do Território e Meio Ambiente na Amazônia (GAPTA), o Grupo de Estudos Regionais e Análises Territoriais (GERAT) e o Grupo de Pesquisa Mineração e Desenvolvimento Sustentável.

Os artigos foram agrupados em duas escalas de discussão – a nacional e a regional –, ambas permeadas pela discussão do território, como categoria de análise. Cada autor, a sua maneira, tece considerações que têm como ponto de partida referenciais teóricos sustentados por trabalho de campo, levantamento de dados e revisão bibliográfica. Alguns trabalhos são resultado de dissertações, teses e pesquisas acadêmicas e outros exclusivamente produzidos para compor esse livro.

Márcio Rogério Silveira abre a parte I com o texto “As cinco revoluções e evoluções logísticas e seus impactos sobre o território brasileiro”. O texto contribui ao qualificar a discussão sobre logística a partir de um enfoque geográfico, interpretando as revoluções logísticas em suas temporalidades e espacialidades diferenciadas, considerando as conexões com o externo, a divisão internacional do trabalho e os pactos político-econômicos entre as elites do Brasil e do exterior, fiel à interpretação rangeliana, sobre a formação social brasileira.

O segundo texto, da autora Lisandra Pereira Lamoso, traz alguns apontamentos para a reflexão do papel da infra-estrutura como elemento organizador do território. Nesse texto, a sustentação empírica parte do trabalho com as atividades extrativas no Pantanal sul-mato-grossense, que redefinem uma lógica de apropriação e ordenamento pelas grandes empresas, além de listar os projetos das Parcerias Público-Privadas (PPPs) e as iniciativas para a integração da infra-estrutura regional sul-americana.

Sobre infra-estruturas, a discussão não poderia caminhar sem a contribuição de Gilberto Oliveira da Silva Junior, com o texto “BNDES: 50 anos de ordenamento do território”, resultado de sua dissertação de mestrado, defendida na Universidade Federal Fluminense. O autor resgatou dos arquivos do BNDES todo histórico de investimentos do banco, o que lhe permitiu classificar as fases de atuação desse importante ator econômico.

Passamos do artigo de Gilberto Oliveira da Silva Junior para a discussão de Élson Luciano Silva Pires e Adriana Renata Verdi sobre os APLs (arranjos produtivos locais), que contribui com a discussão dos aspectos conceituais e metodológicos desse campo da Geografia onde predominam leituras eminentemente econômicas. Os autores discutem o papel das instituições e do território para o desenvolvimento econômico local e regional, com destaque para a transformação de localidades e regiões como fontes específicas de vantagens competitivas e de solidariedade na globalização.

Arthur Magon Whitacker compõe a primeira parte contribuindo com uma discussão sobre o urbano. O autor parte da proposta da Escola Francesa de Regulação que caracteriza os regimes de acumulação Fordista e Flexível para traçar as correspondências entre as lógicas de produção industrial, de gestão da produção e da learn production com o espaço urbano.

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Os dois textos seguintes, na escala nacional, discutem espaço rural e agricultura. Celso Donizete Locatel e Antonio Nivaldo Hespanhol apresentam “Desenvolvimento da agricultura e espaço rural”. Nesse texto, discutem questões conceituais que acompanham as redefinições sobre espaço rural, ruralidade e espaço agrário, apoiados em extensa bibligrafia. Discutem ainda, sobre o equívoco de utilizar a agricultura como o único critério para a definição do que sejam espaços rurais e ruralidade.

Fernando dos Santos Sampaio, professor da Unioeste de Francisco Beltrão, trabalha a consolidação do monopólio da citricultura com um recorte teórico preciso e a interpretação da agricultura com base em Lênin. O texto discute força de trabalho, os conflitos entre citricultores e a indústria, as estratégias das empresas e o papel dos avanços técnicos, redefinindo relações de trabalho e de produção.

A segunda parte do livro procura trabalhar a diversidade de temáticas presentes na escala regional, abrangendo política, economia, cultura, meio ambiente e regionalização do espaço brasileiro.

Aloysio Marthins de Araújo Junior nos propõe conhecer as repercussões das políticas neoliberais e seus reflexos na economia catarinense. Com dados de campo, o autor desmistifica o discurso neoliberal e expõe as peculiaridades do desenvolvimento e a participação do Estado no processo de redução das disparidades regionais.

Ainda sobre a Região Sul, há o texto “Territórios conservadores de poder e redes sociais de poder: para pensar além de Guarapuava-PR”. Nele, a autora Márcia da Silva analisa em detalhes a construção de redes sociais de poder e os apresenta através de esquemas interpretativos e sociogramas bastante ilustrativos da discussão teórica.

Sobre indústria e eixos de desenvolvimento, o interior do estado de São Paulo há muito tempo chama a atenção pelo seu dinamismo ainda pouco explorado. Paulo Fernando Cirino Mourão analisa as tendências do processo de reestruturação produtiva na indústria de Marília-SP. O texto procura mostrar como esse processo pode assumir diferentes formas, valorizando a importância da análise da evolução histórica da indústria local.

Eliseu Savério Sposito e Elaine Cristina Cícero publicam “Arranjo produtivo local e o eixo de desenvolvimento: o caso de Birigüi-SP”. O trabalho analisa a configuração socioespacial em seu sentido mais amplo, considerando a interação entre infra-estruturas de transporte e a atividade industrial, compondo o núcleo urbano industrial que passou a ser dinamizado pela rodovia e responsável pela consolidação de um eixo de desenvolvimento determinante na dinamização da economia local.

Nos capítulos sobre Birigüi e sobre a Hidrovia, o ponto de contato é o papel da infra-estrutura possibilitando a fluidez no espaço. O texto de Nelson Fernandes Felipe Junior e Márcio Rogério Silveira trabalha “A Hidrovia Tietê-Paraná e a Intermodalidade no Estado de São Paulo” e supera a discussão dicotômica entre as desvantagens do transporte rodoviário sobre o transporte hidroviário ou ferroviário, para analisar a necessidade dos investimentos em infra-estrutura de transporte, com destaque para a questão da multimodalidade como alternativa para a reestruturação do fluxo de cargas e para o incentivo a processos de desenvolvimento regional.

Sobre a porção norte do país, três capítulos particularizam essa complexidade regional. João Marcio Palheta da Silva apresenta “A organização econômica dos territórios de mineração na Amazônia”. A tônica é a discussão sobre projetos de mineração, relações de poder e território. O texto propõe a reflexão sobre o modelo de desenvolvimento econômico, relações de poder e fragmentação territorial.

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Saint-Clair Cordeiro da Trindade Júnior escreve sobre “Diferenciação espacial e formação de sub-região: o Baixo Tocantins na Amazônia Oriental”. A proposta teórica do autor pode ser pensada para outras situações. Afirma Saint-Clair que a idéia de homogeneidade geográfica não ajuda a compreender um espaço e que, para o Baixo Tocantins, não se trata de falar de individualidades ou de singularidades. Estas estão mais relacionadas ao conceito de lugar do que propriamente ao de região ou de sub-região. Assim, o autor passa a discutir quais as particularidades que permitem reconhecer o Baixo Tocantins como sub-região.

Luciene Cristina Risso coloca como título uma indagação, qual seja: se o desenvolvimento sustentável na Amazônia brasileira é possível. Suas reflexões partem de um estudo de caso em Lábrea. Seu estudo conduz a proposições concretas e a recomendações, que vão desde a introdução de moderna tecnologia de manejo dos recursos naturais, passam pela biotecnologia até chegarem ao aperfeiçoamento da legislação sobre a apropriação dos conhecimentos tradicionais, entre outros.

As relações entre cultura e mercado estão presentes no texto “O Carnaval de Salvador e a tirania do mercado”, de Climaco César Siqueira Dias. O autor revela a complexidade das manifestações que se reúnem no carnaval soteropolitano e as influências da mídia e da mercantilização sobre essa festa popular.

Em síntese, o livro é o conjunto de discussões universais, embasadas por dados, trabalhos de campo, revisões bibliográficas e entrevistas, que pretendem atingir não apenas a comunidade geográfica, como também pesquisadores – de áreas como Economia, História, Ciências Sociais, Letras, Agronomia, entre outros –, todos no esforço de compreender essa complexidade, determinada por múltiplas variáveis, aqui chamada de “Território Brasileiro”.

Os Organizadores

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QUESTÕES NACIONAIS DO TERRITÓRIO BRASILEIRO

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AS CINCO REVOLUÇÕES E EVOLUÇÕES LOGÍSTICAS E SEUS IMPACTOS SOBRE O TERRITÓRIO BRASILEIRO

MÁRCIO ROGÉRIO SILVEIRA

Universidade Estadual Paulista (UNESP) Ourinhos – SP

[email protected]

Em todas as regiões onde o destino o levou, o homem empenhou-se desde o princípio na resolução do problema do transporte e da circulação. Para isso, utilizou inicialmente as possibilidades que lhe oferecia o próprio corpo; e a adaptação deste aos instrumentos que foram inventados para lhe servirem de auxiliares foi uma primeira causa de diversidades.

Paul Vidal de La Blache INTRODUÇÃO Alvitre que as palavras de La Blache foram inspiradas em Karl Marx (“O Capital”) quando ele afirmou que “não existem soluções para problemas não formulados” – lembramos, do mesmo autor, as teorias de “trabalho necessário” e de “trabalho excedente” para supor tal comparação. Historicamente, as revoluções e evoluções nos sistemas de movimentos (infra-estruturas e meios de transportes) e nos fluxos só foram possíveis devido às necessidades alocadas tanto pelo meio físico e pela sociedade, quanto pela combinação de ambos, ou seja, não ocorrem por acaso. Portanto, a logística, os sistemas de movimento e os “fluxos econômicos” possuem motivações e essas serão identificadas aqui.

Nesse sentido, o presente trabalho traz uma requalificação das chamadas revoluções logísticas. Tradicionalmente, são considerados quatro períodos com datações específicas. Entrementes, consideraremos cinco revoluções e cinco evoluções logísticas como fundamentais, já que acompanham acontecimentos essenciais, isto é, as invenções e as inovações1 nos transportes e nas comunicações2. Motivos correlacionados são: a circulação de pessoas, mercadorias, informações e idéias. Portanto, tanto a mobilidade populacional 1 As inovações apresentam um caráter técnico, um organizacional, um cultural ou um sócio-políticas. O primeiro está conectado as novas máquinas, produtos e serviços ao consumidor; o segundo está ligado às estruturas organizacionais e práticas administrativas; o terceiro está relacionado aos novos valores e o quarto aos novos padrões de relações sociais e institucionais. O ponto-chave é o fato das inovações realizarem mudanças no espaço geográfico. 2 Consideraremos, nesse trabalho, revoluções logísticas e evoluções logísticas como as intensas transformações – entre revolução e evolução há diferença de intensidade – ocorridas nos sistemas de movimento e nas formas comunicações. Isso remete a evolução tecnológica dos meios e vias de transportes e comunicações, ao aumento dos fluxos de pessoas, de bens e de serviços (impulsionando o comércio e as trocas culturais). Todavia, para que tudo isso ocorra há necessidade de estratégia, de planejamento e de gestão em transportes, armazenamento e comunicações. Assim, quando há saltos tecnológicos nos sistemas de movimento e comunicações, nos fluxos econômicos e culturais há, por conseguinte, estratégia, planejamento e gestão a ponto de viabilizarem os mesmos – mesmo que seja desarticulada, como observado nas civilizações mais antigas. Lembramos que a logística stricto sensu não ocorreu continuamente no tempo e no espaço. Houve frações no tempo e no espaço onde os sistemas de movimento e de comunicações transformaram a ordem vigente a ponto de impulsionar civilizações e modos de produções, ou seja, interferindo nas relações de produção e de trabalho.

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(busca de trabalho, alimento, terras férteis, aventura e outros), o comércio (local, regional ou internacional), as trocas e a conquista de territórios são fundamentais para entendermos os motivos das revoluções e inovações da logística e, por conseguinte, dos transportes e das comunicações. O conceito de “revolução”, nesse caso, se soma ao de “logística”3 para expressar “um conjunto de estratégias, planejamento, gestão e transformações tecnológicas no setor de transportes e comunicações a ponto de ampliar as interações espaciais e mudar a ordem socioeconômica vigente”. Assim, em cada revolução logística, tanto as integrações territoriais, quanto a divisão territorial do trabalho foram ampliadas. Novos espaços comerciais surgiram e especializaram-se, novas formas de produção foram disponibilizadas, e as trocas culturais consolidadas.

As revoluções logísticas, ao longo do tempo, tornaram-se mais intensas, sobretudo quando passaram a ser, entre outras determinantes, conseqüência e causa das revoluções industriais. No capitalismo, a necessidade de se alterarem as relações de produção e de trabalho encurtou os períodos revolucionários nos transportes e intensificou as relações de trocas e os padrões tecnológicos.

Os impactos das revoluções logísticas sobre o Brasil foram amplos, apesar do país não participar, em nenhum momento, da liderança tecnológica e comercial global. Todavia, as elites políticas e econômicas, para atender às suas necessidades, procuraram implantar os mais novos sistemas de comunicação. Partiu-se da implementação dos transportes marítimo, ferroviário, hidroviário, rodoviário-automobilístico e aeroviário até se chegar aos modernos meios de telecomunicações. Esses sistemas de circulação proporcionaram ao país uma fluidez capaz de integrá-lo territorialmente (ampliação das interações espaciais). Atualmente, o setor encontra-se estrangulado, dificultando a fluidez e a implementação de estratégias logísticas adequadas. A PROBLEMÁTICA: AS REVOLUÇÕES LOGÍSTICAS Ake Anderson (1990), afirma que as grandes mudanças estruturais na produção, na locação, no comércio, na cultura e nas instituições são desencadeadas pelas lentas, mas contínuas mudanças nas redes de logísticas. Ainda assim, é a revolução logística que transforma a economia e os padrões sociais ou é a economia, acompanhada, inclusive, por uma série de outras determinações, que transforma a logística, impondo-lhe uma revolução? A última premissa é a mais plausível, devido às necessidades básicas impostas pela evolução da sociedade, como as mudanças nas relações de produção e de trabalho. São elas que geram e impulsionam boa parte das transformações socioeconômicas.

A evolução da humanidade não se baseia somente em princípios econômicos, no entanto, conforme avançamos no tempo, cada vez mais nos é imposto assumir, enquanto padrão de vida, as transformações geradas pelas mudanças das relações de produção e de trabalho. A crítica exposta nesse estudo está direcionada àqueles que explicam as revoluções logísticas como causas primárias da evolução econômica e cultural da

3 A logística, especificamente, a de transportes (estratégia de planejamento e gestão da circulação e das comunicações), no nosso entender, condiciona a aplicação e a evolução dos sistemas de movimento e fluxos políticos, sociais e econômicos no território. Portanto, antes de haver uma “revolução nos transportes”, há uma revolução logística (condicionada por um ou diversos fatores). A logística ultrapassa qualquer modo de produção ou fase dele. Entretanto, é condição fundamental para a aceleração contemporânea vivenciada atualmente por todos nós.

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humanidade. Entendemos que tal evolução constitui-se, somente, como uma das muitas determinações destacáveis – que funciona numa relação de causa-efeito.

Na contemporaneidade, o insistente “modismo” em torno da expressão logística contribui para atribuir a ela uma importância que não lhe cabe. A logística participa dos “circuitos espaciais de produção” e dos “círculos de cooperação no espaço”, mas somente enquanto estratégia, planejamento e gestão, e não como sistema de movimento e fluxos, ou seja, ela é uma estratégia e não um fixo ou um fluxo, propriamente dito. Ferrovias e rodovias não se configuram como “logística”. Antes, utilizam uma estratégia, um planejamento e uma gestão logística para a realização eficiente dos fluxos (para atender aos interesses das corporações e dos estados nacionais). Há necessidade, para isso, da utilização da indústria de equipamentos de transportes, de construção civil, da tecnologia da informação e do conhecimento científico.

A generalização do termo logística é comum entre técnicos e cientistas que atuam com as transformações logísticas recentes. Decorre da ausência de uma visão mais histórica e totalizadora e atende aos interesses empresariais e dos trabalhadores que procuram manter-se atualizados, face às novas transformações do mercado de trabalho no setor de transporte, de armazenamento e de distribuição.

Fato preocupante é que, cada vez mais, esse “modismo” tem sido incorporado pelos geógrafos, sobretudo os da nova geração, cuja formação está descolada dos clássicos da Geografia. Esses não acompanharam através de leituras, debates e outros meios, a evolução e as transformações dessas discussões, já que elas não são freqüentes.

A partir desse contexto, propomos uma requalificação periódica das revoluções logísticas apresentadas por Anderson (1990). O autor identifica quatro revoluções logísticas, relacionadas abaixo:

• Primeira: inicia-se na Itália, no século XI e termina nos países do Norte Europeu, no século XVI – as Cruzadas aumentaram as interações espaciais entre a Europa católica e o Oriente e, conseqüentemente, esse processo ampliou-se com as expansões marítimas, no século XVI – redução das barreiras de transportes e de comércio entre lugares longínquos;

• segunda: inicia-se na Itália, no século XVI e termina nos países do Norte Europeu, no século XIX – aumento do crédito e do comércio nas principais cidades comerciais (Gênova, Veneza, Florença, Londres, Amsterdã e outras) com vistas ao comércio internacional – melhoramento dos sistemas de transações para a expansão do comércio;

• terceira: inicia-se na Inglaterra, por causa da revolução industrial, no século XVIII e termina no século XXI – a Primeira Revolução Industrial desafogou as relações de trabalho, através de uma maior divisão coordenada do trabalho e ampliação técnica – em busca dos novos mercados;

• quarta: inicia-se no Japão, nos Estados Unidos, na Suíça, na Suécia e na Alemanha Ocidental, no final do século XX – através de um processo que envolveu o aumento constante do processamento de informações e da capacidade de comunicação, com repercussão na ampliação tecnológica, para melhor fluidez dos fluxos.

PONTOS MARCANTES: REVOLUÇÕES E EVOLUÇÕES LOGÍSTICAS

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A intensidade das invenções e inovações nos meios e nas vias de transportes e, por conseguinte, nas interações espaciais4, não são contínuas e nem somente ascendentes5. Elas apresentam períodos de expansão e de retração tecnológicas e de continuidades e descontinuidades histórico-espaciais. Quando há uma descontinuidade mais intensa, ocorre ruptura na revolução logística, que pode durar décadas e séculos, até o surgimento de outra. Da primeira para a segunda, houve uma descontinuidade, causada pela lentidão tecnológica e o isolamento espacial, causado pelo modo de produção feudal – e, a seguir, todas as revoluções logísticas apresentaram uma continuidade temporal. Todavia, sempre houve oscilações nas interações espaciais6.

Muitas vezes, quando há uma diminuição das invenções, das inovações e sua causa-efeito, ou seja, as interações espaciais – o que reflete numa crise das relações de produção e de trabalho – há a adaptação de alguns meios de transportes para casos até então inesperados. Há, portanto, um reaproveitamento da tecnologia já ultrapassada, conferindo-lhe uma espécie de sobrevida7. Observou-se esse fenômeno quando o motor a vapor foi adaptado a um chassi e a um barco (dando origem às locomotivas e aos navios a vapor); quando o motor a combustão foi utilizado na indústria aeronáutica (motores a jato) ou até mesmo quando as telecomunicações alinharam-se à era da computação, para criar a telemática, que, mais tarde, foi responsável pelo boom das redes duras (fibras óticas e comunicação por satélite). Esses momentos de requalificações, numa intensidade menor, podem ser designados como evoluções logísticas. Elas estão refletidamente presentes na história da humanidade.

4 As interações espaciais são representadas por um amplo e complexo conjunto de deslocamentos de pessoas, mercadorias, capitais e informações sobre o espaço geográfico, podendo variar em sua intensidade e freqüência, dependendo da distância e da direção (CORRÊA, 1997). Contudo, as interações espaciais podem se realizar através de diversos motivos ou propósitos e, por conseguinte, por diferentes meios e velocidades. Como exemplos, se destacam as migrações, as exportações, as importações, a circulação de mercadorias, o deslocamento de consumidores aos centros de compras, a visita a parentes e amigos, a ida ao culto religioso, praia ou cinema e o fluir de informações destinadas ao consumo de massa (CORRÊA, 1997). Vale ressaltar que os deslocamentos puros e simples não são esclarecedores para o entendimento das interações espaciais, necessitando, para isso, estabelecer uma dialética entre a reprodução e a transformação social do espaço. 5 “As invenções em cadeia, características da revolução industrial, acarretam modificações proveitosas nos métodos de produção. Tem-se distinguido freqüentemente, a partir de Schumpeter, a invenção da inovação em que o segundo termo – entre outras coisas – descreve a utilização, a partir de fins produtivos, de uma técnica recentemente inventada. Inovar é modificar uma função de produção, isto é, modificar a combinação existente do fator de produção. Schumpeter teve o cuidado de observar que a invenção técnica não é o único caminho que conduz à inovação. A criação de um novo produto, a concentração de empresas, a conquista de um novo mercado são inovações tanto quanto a exploração industrial de um invento” (NIVEAU, 1969, p. 34). Todavia, Niveau (1969, p. 37) ainda ressalta que “François Perroux critica a análise demasiada rígida de Schumpeter, que atribuiu ao individuo e à firma a invenção e a inovação. Essa personalização ignora a influência do grupo social e os fenômenos de criação coletiva que, se hoje se desenvolvem, não estiveram ausentes da revolução industrial”. 6 Do mesmo modo como houve oscilações nos avanços tecnológicos (equipamentos, inclusive, de alta tecnologia e gestão/estratégia/planejamento logístico) no setor de transportes. Apesar de haver outros fatores, os avanços tecnológicos estão relacionados com as interações espaciais numa relação de causa-efeito. 7 Nesses períodos observamos uma aplicação maior das inovações do que das invenções e essas ocorrem, especialmente, através das estratégias de planejamento e gestão logísticas e da requalificação (agrupamento/combinações) das invenções e das inovações tecnológicas passadas. A estratégia de planejamento e gestão logística torna-se, portanto, se bem aplicada, inovação essencial.

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Cada vez mais as revoluções logísticas8 vêm apresentando espaçamentos temporais menores (figura 01). Entre a primeira e a segunda, há um hiato de milhares de anos; da segunda até a terceira, de alguns séculos; desde então, elas passaram a acompanhar mais de perto as invenções e as inovações ocorridas a partir da primeira revolução industrial, num distanciamento de décadas. As invenções e as inovações vêm se processando temporalmente mais rápidas, a ponto de desestruturar o padrão imposto pelas revoluções industriais, isto é, pelos “Long Cycles”9.

Ao mesmo tempo, observam-se, temporalmente e espacialmente, “ressurgências” tecnológico-econômicas capazes de gerarem revoluções e evoluções logísticas10. As ressurgências – resultado de investimentos públicos e privados, de empreendedorismos, de

8 Invenções e inovações nos sistemas de transportes sempre ocorreram. Entretanto, o valor desses descobrimentos não se iguala aos períodos denominados de revoluções logísticas. Para que haja revolução é necessário que invenções e inovações se propaguem, criando efeitos de encadeamento nas interações espaciais a ponto de subverterem a estrutura existente e estimularem o crescimento econômico. 9 Com base nas invenções, inovações e, principalmente, no comércio exterior. 10 A expressão mais comum para o que chamamos de “ressurgências tecnológico-econômicas” é a de “metástases tecnológico-econômicas” (muito utilizada pelos economistas fisiocratas que comparavam a economia ao corpo humano). Pelo fato de se referir a uma patologia grave, escolhemos a expressão “ressurgência”. A palavra “metástases” evoluiu do grego metástatis (mudança de lugar, transferência) e nas ciências da saúde representa a formação de uma nova lesão tumoral a partir da primeira, mas sem continuidade entre as duas, ou seja, sem aumento do tumor inicial a ponto de contaminar outras áreas do corpo humano. O que ocorre é que as células neoplásicas se desprendem do tumor primário, caminham através do interstício, ganham uma via de disseminação, são levadas para um lugar distante e lá formam uma nova colônia neoplásica.

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pesquisa e desenvolvimento – frutificam, não necessariamente no mesmo espaço e tempo, a ponto de causar esparsamente revoluções e evoluções logísticas. Comumente são apresentadas mais inovações do que invenções tecnológicas nos sistemas de transportes. O mesmo vale para as revoluções industriais (primeira na Inglaterra, segunda na Alemanha e EUA e terceira no Japão e alguns outros espaços – ela é espacialmente multifocada, atua em rede e/ou sobreposição de redes e possui um alto grau de seletividade). Para que haja “ressurgências” é necessário que condições essenciais estejam criadas.

Cada revolução logística, e sua subseqüente evolução ocorreram em espaços e tempos distintos, como apresentado no quadro abaixo, influenciadas, indiretamente, pelas invenções e inovações acumuladas historicamente. Pode-se afirmar que o desenvolvimento econômico é acumulativo, mesmo que sejam facilmente identificadas rupturas temporais e espaciais. Durante parte do período feudal, houve um retrocesso na evolução tecnológica dos sistemas de transportes. Contudo, conhecimentos da primeira revolução e evolução logística permaneceram armazenados, especialmente, do período alexandrino e romano.11

Quadro 01: Localização, época e tecnologias das revoluções logísticas.

Fator Localização Tempo Sistemas de movimento (fixos e meios)

Primeira revolução e evolução logística

Mesopotâmia, Egito, Grécia e Roma, etc.

Expansão das grandes civilizações – Idade Antiga (4.000 a.C. – 476 d.C.).

Caravanas, rotas comerciais, uso contínuo da tração animal combinada com o uso da roda.

Segunda revolução e evolução logística

Europa católica (em contato com novos espaços – Cruzadas e rotas terrestres e marítimas) e Europa protestante (rotas marítimas).

Séculos XI ao XVI. Logística de guerra, transporte de armamentos (catapultas, etc.), rotas comerciais e caravanas por terra e rotas marítimas e a evolução tecnológica dos navios intercontinentais.

Terceira revolução e evolução logística

Europa, especialmente, Inglaterra.

Final do século XVIII e parte do século XIX.

Abertura de canais, calçamento de estradas (pedágios), a locomotiva e o navio a vapor e os cabos submarinos telegráficos intercontinentais.

Quarta revolução e evolução logística

Europa e América, sobretudo, Alemanha e Estados Unidos.

Final do século XIX e parte do século XX.

Velocidade nas trocas, motor a combustão e comunicações via cabo.

Quinta revolução e evolução logística

Japão, Estados Unidos e partes da Ásia.

Final do Século XX e início do século XXI.

Maior integração comercial, infovias, auto-estradas, telemática, trens de alta velocidade, fibra ótica, comunicação via satélite, etc.

Organizador: Márcio Rogério Silveira.

11 Rangel (2005, p. 271), afirma que o desenvolvimento não se faz com a mesma organização de uma parada militar, onde cada unidade guarda as distâncias regulamentares relativamente às que a precedem ou que a sucedem. “Na vida real, as posições se trocam, se embaralham, mudam continuamente os balanços mundiais de forças, passando inopinadamente um retardatário para uma posição de vanguarda, e vice-versa”. Ou seja, destacamos aqui as noções de “desenvolvimento desigual”, “desenvolvimento desigual e combinado” e “a vantagem do atraso”, corroborando para a sucessão espacial dos eventos logísticos, que acompanham ao mesmo tempo os eventos socioeconômicos. Temos, assim, uma ressurgência tecnológico-econômica.

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A PRIMEIRA REVOLUÇÃO LOGÍSTICA Na pré-história, os grupos humanos viviam isolados. As formas de captação dos

alimentos e manutenção da sobrevivência eram geradas no seio da família e da comunidade, aproveitando os recursos naturais e as experiências acumuladas. Mas as trocas entre os grupos humanos espacialmente dispersos eram raras. Prevalecia a tomada, através de conflitos, dos diversos utensílios e alimentos não produzidos pelos invasores. Entretanto, as trocas pacíficas de produtos mostravam-se muito mais estimulantes, já que o método de tomada a força era uma via de mão dupla – os invasores de hoje poderiam ser os invadidos de amanhã. A troca, então, surgiu como um meio pacífico de se conseguir suprir as necessidades não abrangidas pela produção comunitária, além da ampliação do conhecimento e da cultura. O escambo, apesar de permanecer restrito, esporádico e circunstancial, configurou-se como a primeira forma de trocas. O grande impacto na realização das trocas foi a utilização do produto-dinheiro (sal, peles, gado, metais e outros), ocasionando transformações técnicas importantes nos meios e vias de transportes e, por conseqüência, ampliação das interações espaciais. Esse sistema foi utilizado intensamente por vários séculos. Em alguns rincões do planeta, tanto o escambo como os produtos-dinheiro ainda são utilizados.

A primeira revolução logística acompanhou, temporal e espacialmente, a expansão do comércio. Essa, como já relatado, teve sua origem com as trocas, sobretudo, através do escambo e das formas primitivas de utilização da moeda (produtos-dinheiro). Após esse período, tivemos a “primeira evolução logística”, ocasionada pelo uso maciço da moeda, com características atuais, surgidas na Grécia e na Lídia, por volta do século VII a.C. Após a “revolução” logística, houve uma “evolução” logística repleta de continuidades e descontinuidades no espaço e nas tecnologias empregadas para locomoção (meios, vias, rotas, amplitude espacial e fluxos). A última grande transformação, no ocidente, referente a esse longo período, deu-se através dos caminhos, das estradas e da navegação romana. Aqui houve, com exceção dos povos asiáticos e mulçumanos, uma descontinuidade temporal, ocasionada pelo fim do Império Romano do Ocidente e pelo surgimento do feudalismo. Nesse momento histórico, as rotas terrestres e a navegação de longo percurso diminuíram e, por conseguinte, surgiram os feudos. O território, sobretudo o europeu, se tornou viscoso e seus fluxos de transportes diminuíram. Fato paralelo à decadência dos sistemas de movimento.

Conseqüentemente, atribuiu-se às “Cruzadas”, mais especificamente à IV Cruzada, o início da abertura da Europa. Novos impulsos culturais e tecnológicos permeavam as trocas entre o ocidente e o oriente. Demandas foram geradas e só puderam ser supridas pela produção nas novas cidades comerciais (Toscana, Gênova, Veneza, Bruxelas, Flandres). Esse momento já era o da segunda revolução logística. Novamente, era a necessidade de ampliar o comércio o fator importante para o surgimento de mais uma revolução logística. Não esquecendo que essa necessidade de se ampliarem as relações de produção e de trabalho foi o que subverteu a ordem econômica, a ponto de originar novas tecnologias logísticas. O antigo padrão começou a estalar e um novo começou a ser gestado. A SEGUNDA REVOLUÇÃO LOGÍSTICA

A segunda revolução logística iniciou-se através da retomada do comércio, após séculos de escuridão e inércia econômica e cultural. Fatores diversos e determinantes ocorreram durante o modo de produção feudal, a ponto de gerarem uma fase de transição – pressões nas relações de produção e de trabalho – para o capitalismo. Entre esses fatores,

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cita-se a ocupação de parte da Europa por mulçumanos e as Cruzadas. Ambas ocasionando aumento do comércio e do intercâmbio cultural com o Oriente. Subseqüentemente, destaca-se a abertura de antigas rotas terrestres entre as principais cidades comerciais da Europa e o oriente próximo, proporcionando, mais tarde, a formação das corporações de ofícios e as manufaturas. Destacaram-se, também, como desencadeadoras da segunda evolução logística, as “expansões marítimas” para a descoberta de novos espaços além-mar e a formação dos Estados Absolutistas resultantes da tomada de poder pela burguesia comercial.

A segunda revolução logística e sua evolução demandaram a consolidação de diversas instituições, como os bancos (banco de Amsterdã, banco da Inglaterra, banco da Suécia e outros) – para facilitar as transações comerciais e financeiras no âmbito internacional –; a construção de uma “ideologia mercantil” (o governo nacional como garantidor das relações econômicas e de trocas); a “acumulação primitiva do capital”, facilitada pela evolução tecnológica dos navios a vela e das formas de explorações coloniais. Esse período estendeu-se até o início da terceira revolução logística. A TERCEIRA REVOLUÇÃO LOGÍSTICA

A segunda revolução logística terminou quando a terceira desponta. Retrospectivamente, observou-se que esse momento coincidiu com a preparação para o auge da “primeira revolução industrial” – expansão do sistema técnico. A terceira revolução logística ocorreu através dos acontecimentos denominados por Niveau (1964) como “revolução agrícola (enclosures e progressos técnicos na agricultura) e revolução dos transportes”, baseadas no aumento da produtividade agrícola (rotação de terras e produtos, utilização de novas tecnologias e fertilização do solo), da ampliação dos canais e estradas de rodagem (pré-condições para o desenvolvimento econômico geral), sobretudo na Inglaterra para levar carvão mineral, matérias-primas e produtos industrializados de Manchester a Liverpool e vice-versa12. A Inglaterra construiu uma rede de vias líquidas (“febre de canais”) e estradas (constantemente reparadas para facilitar a movimentação das tropas), causando uma revolução nos transportes, a partir da segunda metade do século XVIII. Os principais investimentos vinham da iniciativa privada13.

Assim como a revolução industrial transformou radicalmente as condições de existência na maior parte do globo, assim uma semelhante revolução técnica no domínio da circulação, a revolução dos transportes, permitiu transportes mais rápidos, mais regulares, de maior capacidade e mais econômicos. A revolução dos transportes acompanhou a revolução industrial. Em ambos os casos se verificou uma evolução, ou melhor, uma série de sucessivas revoluções (DERRUAU, 1982, p. 105).

A pressão nas relações de produção e de trabalho desencadeou, juntamente com a evolução da máquina-ferramenta e das máquinas de fiar e de tear, uma transformação

12 O início da terceira revolução logística coincidiu com o início do primeiro ciclo de Kondratieff (1790-1848) e a sua evolução logística com o segundo ciclo (1848-1896). 13 No fim do século XVIII existiam 2.500 km de canais, em 1835 existiam 3.500 km e em 1890 já eram 4.000 km. Tais iniciativas contribuíram consideravelmente para a diminuição dos custos de transportes (NIVEAU, 1969).

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técnica e cultural no desenvolvimento e no uso dos sistemas de movimento. A utilização dos meios de transportes a vapor (locomotivas e navios a vapor) e a modernização das suas vias de acesso (rotas marítimas e vias de ferro) e os cabos submarinos telegráficos intercontinentais (entre a Inglaterra e a França, em 1850), para atender o capitalismo industrial nascente, só contribuíram para dar um novo impulso à industrialização e, por conseguinte, ao início de mais uma evolução logística. Segundo Marx (1988), os meios de comunicações e de transportes pré-existentes não podiam atender completamente a necessidade da produção industrial nascente, com sua divisão ampliada do trabalho. Isto posto, foi necessário revolucionar os sistemas de transportes e de comunicações. Com isso, destacaram-se os navios fluviais a vapor, as ferrovias, os transatlânticos a vapor e os telégrafos.

Essa evolução logística estava relacionada a uma nova fase expansiva do ciclo econômico de caráter industrial. Ela se amplia até colidir, no final do século XIX e início do século XX, com o surgimento de mais uma revolução logística, a quarta.

No âmbito tecnológico, a terceira evolução logística revelou readequações ao esgotamento das possibilidades de uso da máquina a vapor no setor industrial. Estava relacionada às estratégias adotadas pelo centro do sistema capitalista, liderado pelo império inglês, em adotar a expansão territorial dos seus domínios comerciais e “estímulos às invenções que permitissem a aplicação da máquina a vapor aos meios de transportes continentais e oceânicos, que haviam se mantidos manufatureiros” (MAMIGONIAN, 2000, p. 25). A QUARTA REVOLUÇÃO LOGÍSTICA

Essa revolução surgiu com a descoberta do uso econômico da eletricidade, do aço, do refino do petróleo, do motor a combustão e do avanço da indústria química e farmacêutica (química dos produtos sintéticos). O motor a combustão e sua utilização em automóveis, locomotivas (diesel e diesel-elétricas), barcos, navios e aviões proporcionaram transformações comerciais gigantescas em todo o mundo. Figurou como o período em que o poderio inglês, denominado por Lênin (1979) de “imperialismo”, foi paulatinamente substituído por novas forças, como a alemã, a estadunidense e a japonesa. A presente revolução logística, na verdade, principiou, como ocorreu anteriormente, uma revolução de caráter mais amplo, ou seja, uma revolução industrial. Estabeleceu-se, a partir desse momento, uma relação de causa e efeito entre as revoluções específicas (transportes, agrícola, etc.) que antecederam a revolução industrial e ela própria. Esboçou, como afirma Braverman (1977, p. 137), uma revolução técnico-científica onde a técnica “(...) assume um caráter científico à medida que o conhecimento das leis naturais aumenta e destitui o conhecimento fragmentário e as tradições fixas do ofício”. Houve, na verdade, uma exaustão das possibilidades tecnológicas da primeira revolução industrial (nos últimos vinte e cinco anos do século XIX – vide ciclos de Kondratieff), a ponto de dar origem a uma nova revolução, só que agora técnico-científica. Essa reabasteceu o acervo de possibilidades tecnológicas e tem um caráter consciente e proposital, que era amplamente ausente na anterior. A ciência tornou-se, portanto, uma mercadoria, transformando-se em auxiliar do capital.

Para Hirst e Thompson (1988), tanto a integração econômica quanto o domínio financeiro nunca foram tão intensos quanto nos períodos mercantilista e imperialista. Essa integração em escala global só foi possível com a evolução técnico-científica dos sistemas

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de transportes14. Atualmente, o que importa além da conexão entre territórios e o fluxo financeiro é a velocidade, a facilidade e a quantidade dessas transações.

Com o motor a combustão, os meios de transportes ficaram mais rápidos; com a evolução da química, o petróleo passou a ser utilizado para construção de vias mais modernas e rápidas (estradas de asfalto); com a eletricidade e a revolução na metalurgia, os meios de transportes aumentaram de tamanho, constituindo-se em grandes navios transoceânicos (cargueiros e petroleiros), obrigando à ampliação e à modernização dos portos, reestruturando os espaços regionais. Muitos portos de regiões costeiras e interioranas não comportavam mais os navios de alto calado e entraram em decadência – vide o caso dos portos de Florianópolis, de Antonina, de Porto Alegre e de Laguna, ambos na Região Sul do Brasil. Os caminhões aumentaram de tamanho (bi-articulados) e de potência e, por conseguinte, incrementou-se a quantidade de cargas transportadas. Os aviões aumentaram de tamanho, implicando no incremento da capacidade de transporte de passageiros e de cargas – além de serem utilizados para transporte de correspondência, especialmente encomendas urgentes (tipo Sedex) e de produtos de alto valor agregado (alta tecnologia e culturais)15. Ora, esse período de expansão, tanto no tamanho quanto na velocidade, após a segunda revolução industrial e quarta revolução logística, foi a quarta fase das evoluções logísticas16.

Alguém pode se perguntar: a Primeira e a Segunda Grande Guerra, ocorridas nesse período, não afetaram as trocas comerciais e, conseqüentemente, foram responsáveis por uma descontinuidade dessa revolução logística? Não, porque as demandas geradas por ambos os conflitos – onde foram aplicados os princípios do “keynesianismo bélico” – incentivaram grandes avanços tecnológicos no setor de transportes militares. Entrementes, logo foram utilizados para o transporte civil (da tática à prática). As trocas comerciais entre o novo e o velho mundo – em destaque, os integrantes do corpo denominados de aliados–, foram expressivas no que tange às armas, alimentos e equipamentos bélicos. Ademais, os citados conflitos também impulsionaram a utilização dos transportes (grandes navios mercantes escoltados por navios de guerra).

Vincula-se aos períodos de guerras a expansão da estratégia logística para o transporte e o alojamento de suprimentos e das tropas em operação. Logo em seguida, os mesmos princípios foram aplicados ao mundo dos negócios. Esse período coincidiu, ainda, com a fase do desenvolvimento das “redes duras”. A “QUINTA REVOLUÇÃO E EVOLUÇÃO LOGÍSTICA”

O primeiro passo para a quinta revolução logística constituiu-se na união, cada vez mais especializada, entre os microprocessadores (evolução e readequação), as telecomunicações e a informática (telemática). Esse vínculo se expressou pelos softwares e hardwares de última geração e específicos para as comunicações (intranet e internet).

14 Já que não existia a internet, as informações eram transportadas por vias circulantes de transportes, ou seja, qualquer tipo de integração utilizava essencialmente as vias e meios de transportes tradicionais. Por mais que na época a imaterialidade nas vias e meios de transportes estivessem sendo implementadas. 15 No Brasil, em 2006, foi observado, através de dados da Secretária de Comércio Exterior, que houve mais embarque, em quantidade de empresas, de mercadorias das micro-empresas pelos aeroportos de São Paulo e de Campinas do que pelos portos de Santos e de Paranaguá. O aeroporto de São Paulo também foi destaque entre as pequenas empresas. Todavia, as médias empresas utilizaram mais os portos marítimos. 16 O início da quarta revolução logística coincidiu com o início do terceiro ciclo de Kondratieff (1896-1948) e a sua evolução logística com o quarto ciclo (1948-1990).

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Tanto a internalização (intrafirma) quanto a externalização (interfirmas e outras formas), das comunicações, são mais reflexos da necessidade da organização corporativa do território do que da necessidade comunitária. Assim, se organizou a demanda corporativa pela logística e pela fluidez. Formas diversas foram reorganizadas, como os fixos em termos de direção e intensidade, como a fluidez através das estratégias e gestão logística (se estabeleceram novas formas de se organizar a fluidez territorial).

O segundo passo, e talvez o mais importante, foi o potencial demonstrado por essas inovações, no sentido de proporcionarem uma reestruturação econômica no âmbito mundial e, não só, por conseqüência atingirem o Brasil e o estado de São Paulo. Ambas as escalas possuíram um papel diferencial na nova lógica global de reorganização territorial dos blocos e das nações pelas corporações. As novas e/ou refuncionalizadas tecnologias foram capazes de tirar a concorrência entre os lugares da escala regional e colocá-la na escala global, além de incrementarem as especializações do território e a divisão territorial do trabalho. A logística revolucionada permitiu isso17.

O uso da internet para diversos fins logísticos marca o ápice dessa tendência. A tal ponto dessa tecnologia substituir, em muitos casos, o transporte de bens tangíveis, por vias materiais, e os bens intangíveis, por vias imateriais. É o caso de projetos arquitetônicos, design, textos, informações e outros, que, normalmente, eram confeccionados em papel e transportados para vários lugares, mudando de mãos constantemente e passando, materialmente, por barreiras alfandegárias. Muitas são as tecnologias:

• as “redes duras” – infovias e canais de comunicações imateriais (altamente sofisticadas) que permitem a transmissão de imagens em conexões múltiplas, inclusive, interespaciais;

• os aviões de grande porte, como o AIRBUS A380; • os portos com grandes calados, sistemas de armazenagens mais enxutos devido ao

just in time, esteiras mais velozes e seguras e sistemas de transbordo computadorizado em substituição aos estivadores;

• os contêineres diversos, como os frigorificados e os de alta capacidade; • a paletização automatizada; • o transporte ferroviário de alta tecnologia, como os Trens de Alta Velocidade

(TAV), Trens de Grande Velocidade (TGV), Trem Bala e trem de levitação magnética;

• as autopistas (free ways) pedagiadas, etc.

Em São Paulo, ambas as tecnologias não são incorporadas pelo seu turno mais moderno. Ainda não alcançamos a vanguarda tecnológica instalada nos portos, nas estradas de ferro, nas hidrovias, nas dutovias e nas conexões entre modais (intermodalidade). Mas, em certa medida caminhamos para isso, como nas redes de fibras óticas, nas comunicações imateriais, nas auto-pistas construídas para formação de corredores de exportação (em São Paulo e suas diversas auto-estradas, como a Anchieta, a Imigrantes, a Dutra, a Bandeirantes, a Anhanguera e a Washington Luis) e, sobretudo, na logística, para

17 Alguns exemplos dessa reestruturação são: 1) o deslocamento de parte da prestação de serviços diversos e confecção de softwares para a Índia; 2) o offshoring para a China; 3) a tecnologia em robótica e em transportes no Japão e Alemanha; 4) os serviços especializados em aeronáutica realizados na Rússia (aproveitando a mão-de-obra barata de engenheiros soviéticos); 5) a especialização dos territórios asiáticos em alta tecnologia.

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deslocamentos de bens, informações e pessoas. Como a lógica é atender ao capital, há uma crescente desproporção física e imaterial desses sistemas de engenharia e de fluxos nos territórios. Espaços de comando e de obediência possuem diferentes viscosidades e elas se refletem no nível de desenvolvimento do território. As desigualdades territoriais não são desfeitas, mas se reestruturam de maneiras diferentes, a ponto de mudarem completamente os territórios.

A quinta revolução logística enquadrou-se no contexto da terceira revolução industrial – sistemas técnico, científico e informacional – e, por conseguinte, iniciou-se um novo estágio da economia mundial. Ao mesmo tempo, destacou-se a política liberalizante, como já ocorrido nas revoluções anteriores. As novas tecnologias de transportes e gestão atenderam, dessa forma, à reestruturação econômica vigente (produtiva, comercial, de serviços e financeira).

Além dos meios e vias de transportes, altamente modernos, tangíveis e intangíveis, ocorreu uma gestão logística eficiente, funcionando em rede e utilizando sistemas intermodais. O paradigma de redes, presentes em todos os setores econômicos e sociais, numa conexão superposta, contribuiu para o entendimento do atual estágio do processo geral de produção – produção, distribuição, troca e consumo. Nesse, os sistemas de transportes e a logística tiveram participação efetiva. Dessa forma, destacaram-se alguns fatores que, em determinados momentos, se intercalaram para complementar a quinta revolução logística:

• logística de armazenamento e distribuição; • utilização do paradigma de rede; • bimodalidade e multimodalidade; • pesquisa e desenvolvimento em gestão e equipamentos; • aplicação de softwares e hardwares para o processamento de informações, aumento

das comunicações, gestão e equipamentos; • aumento extraordinário da capacidade de carga e da velocidade; • forte processo de terceirização que atingiu diversos setores, especialmente os

transportes; • acirramento da concepção neoliberal através do paradigma da “globalização

econômica”, onde uma das principais discussões, no centro do sistema capitalista, relaciona-se às transformações das empresas nacionais e multinacionais em “empresas globais” (independente do número de plantas industriais espalhadas, o que realmente importa é colocar o produto nos mais variados espaços do mundo) – permanecendo, entre as grandes empresas um centro de gravidade nacional fortemente identificável (BATISTA JUNIOR, 2000).

A quinta evolução logística não está em pleno desenvolvimento. Alguns atributos,

próximos temporalmente, precisam se efetivar, como as inovações tecnológicas e um sistema de normatização global, porém, diferenciado entre o centro e a periferia do sistema capitalista. Entre elas:

• o trem de levitação magnética de alta velocidade; • os automóveis multifuncionais, inclusive, autotripulados; • os aviões regulares supersônicos de passageiros e de cargas (aumento do

transportes de cargas por aviões, sobretudo, de alta tecnologia); • as viagens aeroespaciais;

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• a ampla utilização dos combustíveis alternativos, como os derivados da biomassa – álcool e biodiesel (VASCONCELOS; VIDAL, 1998) – e o hidrogênio, em substituição aos de origens fósseis;

• a padronização normativa global para os transportes – em substituição a alguns acordos bilaterais e intrablocos econômicos, etc.

O resultado, em andamento, mas ainda não completo, seria a integração mundial, de

blocos econômicos, espaços nacionais e territórios locais escolhidos (áreas expostas com boa base material, em detrimento das áreas sombreadas com pouca base material), de corporações econômicas (empresas-rede), de pessoas e de informações. Mas também se deve deixar claro que:

(...) os métodos modernos de comunicação e transporte ampliaram drasticamente o volume e a complexidade das transações, mas não se deve perder de vista que já existiam, nas décadas finais do século XIX, meios de informação e transporte (cabos submarinos telegráficos intercontinentais, navios a vapor e ferrovias) capazes de sustentar um sistema econômico genuinamente internacional (BATISTA JUNIOR, 2000, p. 29-30).

No entender de Thomas Friedman (2005), a nova ordem internacional viria

acompanhada da concretização de um “Mundo Plano”, composto pela união de forças que já se encontram em ação.

• Softwares (e hardwares) de fluxo de trabalho: facilitam a conexão em tempo real e em qualquer lugar (permitindo que o trabalho seja desmembrado, desagregado e espalhado por todo o mundo – fluindo de um lugar para o outro e aumentando sua produtividade). Aumento da jornada de trabalho (para 24 horas por dia e sete dias por semana) e de suas possibilidades espaciais, especialmente, por causa do fuso horário. Os softwares permitem que aplicativos de todo o mundo conversem uns com os outros, via web – hardwares complexos, como o VPN (rede privada virtual) que pode ser conectado a laptops e ligados a qualquer porta Ethernet com entrada cat-5 ou conexão banda larga sem fio;

• Código aberto (softwares abertos, como Apache e Linux) – comunidades que se auto-organizam. No caso do Apache, sua eficiência superou os da própria IBM a ponto desta adotar o software livre. Já o Linux tornou-se o maior concorrente do Microsoft Windows;

• Terceirização – o “bug do milênio”, no ano 2000, propiciou que os indianos assumissem a liderança global na prestação de serviços. O planejamento estatal em educação, destacadamente para as áreas técnicas e de alta tecnologia, preparou os indianos para a prestação de serviços especializados de informática, como resolver os problemas do “bug do milênio”. A boa qualificação e a prestação de serviços na Índia passaram a interessar firmas e governos de todo o mundo, com destaque para as estadunidenses. Fato semelhante, mas numa escala menor, ocorreu em outros paises asiáticos;

• Offshoring – expansão industrial chinesa através da construção de uma sólida base material (de ordem técnica, como energia, portos, aeroportos, ferrovias, rodovias, hidrovias, armazenagem e outras) e normativa (de ordem política, como leis,

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acordos, impostos, regulamentações, protocolos e outras). Ao mesmo tempo, investiram na educação tecnológica, nos sistema de offshoring e na entrada na OMC (Organização Mundial do Comércio), em dezembro de 2001;

• Cadeias de fornecimento global (pode-se citar a cadeia de fornecimento do Wal-Mart e do Carrefour) – centros e sistemas de distribuições globais, devido aos novos padrões do comércio internacional (desregulamentações, re-regulamentações, logística de gestão e de tecnologia – just in time, aumento da velocidade e da capacidade de cargas);

• Internalização – diversificação no oferecimento de serviços, através de melhor aproveitamento das economias de escalas e sincronização das cadeias de fornecimentos. Nesse sentido, há empresas, como a UPS, a FedEx, Aramex (Jordânia), Airborne, DHL e o sistema Sedex da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos;

• Tecnologia da informação – sítios de busca (Cadê/Yahoo, Google e outros) e de relacionamento (Orkut, Yahoo Grupos, como a “listageografia” e outros mais específicos, como o grupo de discussão da Geografia da Saúde, entre outros), que facilitam o acesso às informações e sistemas de comunicação digital, móvel, pessoal e virtual (palmtop, notebook, conexões sem fio, como transmissor infravermelho, circuitos Bluetooth integrados, antena Wi-Fi, iPaq e via telefonia celular).

Combinados, os pontos supracitados já se encontram em andamento. A quinta

revolução logística está se processando mais rápida que as anteriores, a ponto de se verificar o “achatamento do mundo” (FRIEDMAN, 2005). Destaca-se, também, um considerável aumento da virtualização, acompanhada pela imediatividade das relações de produção e de trabalho e pelo auto-atendimento.

Como exemplo da evolução do auto-atendimento no setor aéreo e sua repercussão logística, afirma-se que eles foram/são consideráveis, sobretudo, sobre o trabalho. Assim, observamos tais acontecimentos na maioria das empresas áreas brasileiras:

• primeiro momento: era necessário, para comprar uma passagem, que o passageiro se deslocasse espacialmente até uma agência de viagem ou um guichê de uma companhia aérea. Somente nesses pontos era emitido o bilhete por um funcionário;

• segundo momento: o funcionário que emitia o bilhete foi substituído por uma máquina que faz o mesmo serviço a um custo mais baixo. Mesmo assim, havia necessidade de que o passageiro se deslocasse para realizar a compra do mesmo (esse sistema mal foi implementado no Brasil);

• terceiro momento: o passageiro pode, em sua própria casa, comprar a passagem e emitir seu bilhete. Ele só precisa de um computador pessoal conectado à rede mundial de computadores e de uma impressora. Ainda de casa, pode pagar parcelado pelo cartão de crédito.

Fatos semelhantes ocorreram/ocorrem em outros setores, como o bancário, o

imobiliário, o de eletrodomésticos, etc. No último momento, o funcionário que emitia o bilhete e todos os responsáveis pela mobilização do passageiro até a compra de sua passagem, foram eliminados/realocados/prejudicados. De um sistema de logística simples passamos a um bem mais complexo.

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OS IMPACTOS DAS REVOLUÇÕES LOGÍSTICAS NO BRASIL

O Brasil, devido à sua formação histórica, só sentiu o impacto de uma revolução logística com o advento da segunda evolução logística, que surgiu consubstanciada no centro do sistema europeu pelas expansões terrestres e marítimas, no século XVI. Com as descobertas, pelos países ibéricos, podemos afirmar que o continente americano, especialmente o Brasil, não participou da gestação dessa revolução logística.

As relações de produção e trabalho, no Brasil, evoluíram, em quinhentos anos, do estágio mais primitivo (comunismo primitivo) para o mais avançado (em busca do capitalismo financeiro). Em relação aos sistemas de transportes também ocorreu o mesmo fenômeno, já que os mesmos, em quinhentos anos, tiveram que evoluir a ponto de alcançar o que existe de mais eficiente no mundo. Todavia, esse processo foi incompleto, permaneceram “rugosidades”, isto é, formas antigas em pleno convívio com formas modernas de transportes.

Muitos silvícolas brasileiros, praticantes da locomoção a pé, entraram em contato com sistemas de transportes mais evoluídos. Esses, trazidos por Portugal que, no século XVI, estava na vanguarda da navegação marítima. O desenvolvimento dos transportes na América, aproximadamente 70 mil anos, é revolucionado com as descobertas.

O continente americano também assistiu pacificamente a uma revolução técnica capaz de impor a abertura de canais e a construção de estradas de rodagem, de inovar a máquina a vapor e agregá-la aos meios de transportes, criando as estradas de ferro e a navegação a vapor. A terceira revolução logística e a primeira revolução industrial não passariam despercebidas por muito tempo. Destarte, houve o aproveitamento das estradas de ferro18 e da navegação a vapor fluvial e marítima. Posteriormente, construções e inovações tecnológicas ocorreram nos Estados Unidos. O impacto sobre o Brasil, sobretudo, com a vinda das estradas de ferro e da navegação a vapor, foi repleto de tragédias e benefícios econômicos.

(...) as estradas de ferro não participaram da fase revolucionária da industrialização na Inglaterra. Esse fato se justifica pela existência, em 1830, de não mais que 100 km de linhas férreas. Os países que se industrializaram tardiamente, como os Estados Unidos, a Alemanha, alguns outros países da Europa e o Japão, no entanto, foram favorecidos pela presença de transportes mais modernos, facilitando o desenvolvimento da Segunda Revolução Industrial. A partir desse momento, os EUA expandiram sua produção industrial em várias indústrias-chave. Somente entre 1889 a 1927 as indústrias de materiais de transportes e de bens de capital cresceram 969% (SILVEIRA, 2003, p. 66-67).

No Brasil, o contato com os sistemas de movimento (meios e vias de transportes)

mais modernos foi mediado pelas estradas de ferro e pela navegação a vapor. Ao mesmo tempo, os portos e os sistemas de armazenagem e de estocagem se modernizaram, especialmente, no porto de Santos, para atender à demanda agro-exportadora de café. Nem mesmo o arranque tecnológico e produtivo da última substituição de importações (1873-

18 Estados Unidos (1826), Cuba (1837), México e Peru (1849), Chile (1850), Brasil (1854), Colômbia (1855) e Argentina (1857).

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1896), do século XIX, foi capaz de engendrar, com exceção do estaleiro Mauá, a mais simples tecnologia para os sistemas de transportes. Equipamentos, peças de reposição e até mesmo dormentes eram importados. Espacialmente, as estradas de ferro integraram muitos centros produtores a poucos centros exportadores de café. Nesse ínterim, algumas cidades foram criadas ou refuncionalizadas, como ocorreu em cidades portuárias e de moradia dos barões do café.

O Brasil, um país de dimensões continentais, era um emaranhado de ilhas econômicas e populacionais. Isoladas e, em alguns casos, mais conectadas com a Europa (Belém, Manaus, Salvador, etc.). A navegação interiorana, devido ao relevo e, por conseguinte, à disposição fluvial, limitou territorialmente essa forma de transporte. O mais moderno, o navio a vapor, era mais comum na Região Norte – entre Manaus e Belém (Bacia Amazônica) e, a partir daí, o transporte marítimo de longo percurso. A navegação interiorana, a de cabotagem e o transporte ferroviário eram intercalados com formas mais primitivas, como as caravanas de muares (caminhos das tropas), as rodovias para carruagens, carroças e carros de boi, o arraste e a locomoção a pé por trilhas ou pelo litoral.

Os fatos supracitados não se repetiram por toda a América. Os Estados Unidos, juntamente com a Alemanha, através da Segunda Revolução Industrial, lideraram a quarta revolução logística (final do século XIX). Destacaram-se a utilização do petróleo, do motor a combustão, da linha de montagem, do automóvel e das vias asfaltadas. No Brasil – periferia do sistema capitalista – ocorreu conseqüências importantíssimas para os rumos econômicos do país; tratou-se, nesse período, da mudança da matriz dos transportes do sistema ferroviário para o rodoviário. Novamente, o país não participou da quarta revolução logística como irradiador de tecnologias de transportes. Fato comprovado com a chegada das montadoras automobilísticas estrangeiras, meio século depois, em 1957.

Todavia, o pacto político-econômico dominante (latifundiários agropecuaristas e burguesia industrial), na busca por viabilizar seus interesses através do aumento da produção industrial, criou infra-estruturas capazes de colocar o Brasil no rumo do crescimento econômico:

• construiu-se uma série de rodovias asfaltadas, em especial, as BRs; • instalou-se a capital da república no centro do país (altiplano goiano) – Brasília; • surgiu o incentivo fiscal para as indústrias de autopeças, na sua maioria, nacionais; • surgiram as montadoras automobilísticas estrangeiras; • ocorreu a criação da Petrobrás e a instalação de refinarias de petróleo em pontos

estratégicos do território brasileiro; • surgiu o incentivo ao transporte aéreo, como a criação de aeroportos de grande porte

(internacionais) e o surgimento de empresas aéreas, como a Transbrasil, Varig e outras regionais;

• construíram-se portos e dutovias.

O Estado também incentivou o desenvolvimento regional através de uma série de superintendências (SUDENE – Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, SUDECO – Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste, SUDAM – Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia, etc.), de pólos de desenvolvimento (Polonordeste, Polamazônia, etc.) e de outros incentivos governamentais seletivos espacialmente. A especialização produtiva do território foi determinada pelo planejamento estatal. Todavia, já havia a influência corporativa para o ordenamento do território. Só que

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prevalecia o projetamento voltado para o capital interno e a influência transnacional se acentuaria no decorrer dos anos e alcançaria seu auge na década de 1990. Fatores esses que contribuíram para a integração territorial (de um país continental), ampliação da malha rodoviária, diminuição da malha ferroviária, ampliação portuária, aumento da navegação marítima e hidroviária, ampliação da rede de telefonia, da produção e distribuição de energia e das comunicações via ondas (rádio e televisão). As interações espaciais foram ampliadas. Perfez-se uma vida de relações intensas entre diversos espaços do território brasileiro, consubstanciado pelo aumento das redes técnicas e dos fluxos materiais e imateriais.

Novamente, o Brasil não acompanhou a quinta revolução dos transportes, ficando em segundo plano no cenário internacional. Entrementes, a padronização do conhecimento tecnológico mundial permitiu ao país acompanhar mais de perto as grandes transformações evolutivas dos sistemas de transportes. Os líderes dessas transformações foram, sobretudo, os países europeus (Alemanha, França, Inglaterra), asiáticos e os Estados Unidos. Estamos falando do setor aeroespacial, ferroviário, rodoviário e informacional (redes duras)19.

Por mais que o país não tenha sido um dos gestores dessa revolução logística, ele aproximou-se da mesma – interrompida pela abertura econômica, no ano de 1991. Destacaram-se o desenvolvimento e a ampliação do sistema de fibras óticas (pesquisas avançadas na Unicamp – Universidade de Campinas), softwares e equipamentos ferroviários, trem de levitação magnética, programa aeroespacial, submarino nuclear e outros. Com a abertura econômica, o sistema de transportes brasileiro foi reestruturado, ocasionando uma série de concessões de empresas de transportes públicos à iniciativa privada e fusões, aquisições e falências de muitas outras empresas. Esse momento foi marcado pelo auge da influência coorporativa sobre o projetamento realizado pelo Estado no território. O governo planejou e reorganizou o território para atender a uma nova lógica de estratégia e gestão logística baseadas nas demandas corporativas, para permitir uma maior fluidez e competitividade territorial às empresas. Tais fatos se expressaram contundentemente no estado com maior densidade técnica, ou seja, São Paulo. Hoje, grupos financeiros e antigos clientes dos setores de transportes (com pouca experiência na gestão de transportes) são concessionários de portos, empresas ferroviárias, rodovias e outras; inclusive, muitas de capital internacional são operadoras logísticas. Assim, não há uma eficiência logística plena já que há uma forte especulação pelo capital financeiro e especulativo (grupos de investimentos), em contradição com o capital produtivo que tem interesse no aumento da qualidade do fluxo e na eficiência da fluidez.

A quarta revolução e a quinta revolução logísticas foram importantes para o Brasil, especialmente, porque no país iniciou-se um forte processo de reestruturação econômica, deflagrado através da produção e expandido para outras áreas da economia. No final da década de 1970 e início da década de 1980, a integração territorial brasileira alcançou padrões muito próximos dos encontrados atualmente. A partir daí, poucos espaços foram territorialmente incorporados pelos meios de circulação. Isso já não ocorreu economicamente, em especial porque o Centro-Oeste, a Região Amazônica e o interior nordestino (planícies de inundação do São Francisco) foram anexados ao processo

19 Outros países acompanharam muito de perto as transformações tecnológicas recentes, como a Coréia do Sul (e suas empresas Chaelbols de semicondutores e tecnologia da informação, indústrias de transportes, com empresas mundiais, como a LG – Joint Venture com a Philips, a Samsung, a Daewoo, Hyundai – maior do ramo de navios de grande porte –, e Kia Motors), a China e a Noruega.

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produtivo global. Grande parte das rodovias, aeroportos, portos, hidroelétricas, hidrovias e pólos de desenvolvimento interligados (por grandes sistemas viários) foram estabelecidos até o início da década de 1980. Muitos fazem parte de uma rede de múltiplos circuitos.

Na década de 1990, quando houve o estabelecimento da quinta revolução logística, as conseqüências sobre o Brasil foram grandes. Tal fato vinculou-se ao advento das políticas globalizantes e de integração territorial em larga escala (internacional) através do aumento dos circuitos espaciais de produção (fluxos de bens materiais) e dos círculos de cooperação no espaço (fluxos não-materiais – dinheiro, informação, etc.). Nesse contexto delineado, o Brasil passou a ser incorporado, cada vez mais, ao sistema produtivo mundial. Destarte, sua participação foi hierarquicamente pré-estabelecida, ou seja, produtor de commodities e paraíso turístico. A abertura alfandegária e a desindustrialização – através de uma série de fusões, aquisições, falências, privatizações e concessões – comprovaram tal afirmação.

As produções agroindustrial e mineral aumentaram. Todavia, a fluidez do território apresentou-se estrangulada – por mais que a gestão e as estratégias logísticas tenham adiado e, ainda, adiam o “apagão logístico” (mesmo havendo alguma implementação material). A base material da circulação estava sucateada e as construções e reformas não acompanharam o ritmo alucinante da demanda global por minérios e produtos agroindustriais brasileiros. O país aumentou sua base produtiva, todavia, as exportações de produtos com alto valor agregado (geralmente, são de preço alto, tecnologia empregada, peso baixo e tamanho pequeno e, por conseguinte, demandam logísticas especializadas) diminuíram. A logística desses produtos sofreu menos com os gargalos das infra-estruturas de transportes. Eles foram, paulatinamente, sendo substituídos por commodities, ou seja, alto peso, grande volume e valor agregado baixo.

A fluidez do território brasileiro ficou comprometida pelas várias viscosidades (gargalos infra-estruturais) localizadas. O que nos remete ao primeiro lustro do século XXI, às filas duplas de caminhões carregados de soja, desde o porto de Paranaguá até Curitiba, num percurso de mais de 80 quilômetros, e à falta de integração da distribuição da energia elétrica (o “apagão” do governo Fernando Henrique Cardoso). As infra-estruturas brasileiras contribuíram, em partes do território, com a formação de uma rede desarticulada, isto é, várias redes regionais. Os “pontos core” desses espaços reticulados ficavam a cargo das cidades, especialmente aquelas com funções político-administrativas (capitais estaduais) –, perfazendo uma gama de cidades grandes e algumas médias.

No início do século XXI, a necessidade de ampliação dos circuitos espaciais de produção e dos círculos de cooperação no espaço pressionou a fluidez do território. Novos territórios político-econômicos surgiram, com base na expansão agropecuária e agroindustrial e na extração mineral, e outros ampliaram o ritmo de reestruturação. As principais reestruturações econômicas do território ocorreram na “região Concentrada”, destacadamente, São Paulo20. No estado de São Paulo, a base da reestruturação econômica, partiu da metrópole e atingiu, a partir dela, as cidades médias do interior – as próximas, num raio de 100 quilômetros (macrometrópole), e as mais afastadas – formando “eixos de integração econômica” (devido à intensidade dos fluxos materiais e imateriais)21. A 20 Grandes empresas de capital local, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, iniciaram um processo de deslocamento territorial da produção, em direção ao interior de São Paulo, Minas Gerais, Centro-Oeste, Nordeste e Região Amazônica e da gestão para a capital paulista, como a Sadia e a Perdigão. 21 Não vamos abordar aqui a idéia de “eixos de desenvolvimento” por acharmos que dois fatores precisam, ainda, ser discutidos exaustivamente: a diferenciação conceitual entre desenvolvimento e crescimento (quais dos dois conceitos podem ser aplicados ou eles podem variar de acordo com a dinâmica do eixo escolhido) e a

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reestruturação citada iniciou-se na década de 1970, com a desconcentração industrial, ocorrida a partir da metrópole paulista e, ao mesmo tempo, foi acompanhada por uma concentração da gestão na metrópole. Todavia, esse processo de reestruturação se consolidou com a incorporação ao setor manufatureiro das atividades comerciais (lojas de múltiplas filiais) e de serviços (transportes, call centers, etc.). Simultaneamente, as atividades de alta tecnologia e serviços superiores aproveitaram as economias de escala para se fixarem na metrópole. Houve o aprofundamento da especialização econômica dos lugares e, dessa forma, “reinou” a seletividade em variadas escalas, sentidos, fatores e valores. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A idéia inicial dessa pesquisa foi requalificar a visão clássica sobre as revoluções logísticas. Assim, chegou-se a uma temporalidade e espacialidade diferenciada, além da inclusão de mais uma revolução logística. Agora, são cinco revoluções logísticas que vêm acompanhadas de períodos de evolução. Essa última, com menor intensidade, representa uma fase de refuncionalização – tentativa de manter em uso as tecnologias que estão maduras e se estandardizando (só que com uma outra função) – das invenções e inovações da revolução logística (maior intensidade). Assim, há sempre diferenciações nas interações espaciais. No Brasil, os impactos das revoluções logísticas chegaram sempre atrasados. Mesmo assim, o país tentou acompanhar a vanguarda das mudanças tecnológicas. Em um determinado momento, importando-as e, depois, tentando reproduzi-las. Assim, houve momentos de expansões e de retrações nas interações espaciais, tanto dentro do território brasileiro, quanto nas suas conexões internacionais. Logicamente que os melhores e os piores momentos estavam conectados ao aumento e à diminuição da divisão internacional do trabalho e, por conseguinte, dos pactos político-econômicos entre as elites brasileiras e as internacionais. O momento mais crítico enfrentado ocorreu a partir da década de 1980, quando uma crise internacional e a desestruturação política e econômica do país tornaram-se evidentes. Nesse período, grandes obras infra-estruturais de comunicações são abandonadas, a ponto de provocarem um estrangulamento nos transportes de cargas e passageiros. Com a abertura econômica de 1991, pronunciada pelo Presidente Fernando Collor de Melo, o aprofundamento da crise do setor de transportes foi eminente, comprometendo a fluidez do território. Algumas obras isoladas não acompanharam a necessidade de desenvolvimento econômico do país, sobretudo porque o mesmo se especializava na exportação de commodities, produtos que necessitam de maior fluidez. A partir de 1995, teve início a concessão de ferrovias, portos, rodovias, produção e distribuição de energia, etc. Em alguns casos, o aumento dos fluxos foi intenso, como nos troncos principais das ferrovias que se especializaram no transporte de commodities, mas abandonando trechos regionais e cargas estratégicas do ponto de vista nacional. O mesmo ocorreu com as rodovias, que tiveram as principais linhas de fluidez pedagiadas (no estado de São Paulo, em 2007, mais de 50% dos fluxos econômicos passavam pelos 30% de rodovias administradas pela iniciativa privada e menos que 50% circulavam pelos 70% das continuidade e a descontinuidade de espaços construídos (residenciais e empresariais) ao longo do eixo. Nesse sentido, é mais importante a continuidade das superfícies construídas (conurbação e/ou metropolização, tendo o eixo como norteador) e/ou dos fluxos econômicos.

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rodovias administradas pelo Estado). Ao mesmo tempo em que facilitou a especialização do fluxo, limitou e encareceu algumas cargas e imobilizou alguns transportadores. Ambos os acontecimentos interferiram diferentemente nas estratégias logísticas e, por conseguinte, nas interações espaciais.

Atualmente, no território brasileiro, o modal dominante é o rodoviário, o mais caro em ton./km, depois do transporte aéreo. Mesmo assim, o território paulista tem sido o maior responsável, entre todos os modais, pelo aumento das interações espaciais entre a metrópole, seu entorno imediato e o interior. A reestruturação econômica ocorrida em São Paulo acompanhou as linhas rodoviárias de penetração. Nessa mesma direção, acompanhando as linhas férreas e rodoviárias, estão as infovias. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS �ANDERSON, A. Les quatre révolutions logistiques. UHT 2001 (Urbanisme et techologies de l’habitat). Paris: Ministère de l’Équipement du Logement, dês Transports et de la Mer, n. 15, p. 1-14, mai. 1990. BALLOU, R. H. Logística empresarial: transportes, administração de materiais e distribuição física. São Paulo: Atlas, 1993. BATISTA JUNIOR, P. N. A economia como ele é... São Paulo: Boitempo, 2000. BENKO, G. Economia, espaço e globalização na aurora do século XXI. São Paulo: Hucitec, 2002. BRASIL, Ministério dos Transportes. Banco de informações e mapas de transportes 2006. Brasília, 2006. 1CD-ROM. BRAVERMAN, H. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: Guanabara, 1977. CORRÊA, R. L. Interações espaciais. In: CASTRO, I. E. de.; GOMES, Paulo. C. da C.; CORRÊA, R. L. Explorações geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. CUNHA, A. G. da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. DEFFONTAINES, P. A função das estradas de ferro nos meios de comunicação e transporte no Brasil. Boletim de Geografia, Rio de Janeiro, v. 5, n. 58, p. 1115-1128, jan. 1948. DERRUAU, M. Geografia Humana II. Lisboa: Editorial Presença, 1982. DEVAUX, P. As estradas de ferro. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964. ENGELS, F. O papel do trabalho na transformação do macaco em homem. São Paulo: Global Editora e Distribuidora, 1990. ESTADO DE SÃO PAULO. Secretaria dos Transportes. Boletim Estatístico da Secretaria de Transportes do Estado de São Paulo. São Paulo, 2005. FRIEDMAN, T. O mundo é plano: uma breve história do século XXI. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. HIRST, P.; THOMPSON, G. Globalização em questão: a economia internacional e as possibilidades de governabilidade. Petrópolis: Vozes, 1998. KON, A. Economia de serviços: teoria e evolução no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier/Ed. Campus, 2004. LA BLACHE, P. V. de. Princípios de Geografia Humana. Lisboa: Edições Cosmos, 1954.

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A INFRA-ESTRUTURA COMO ELEMENTO ORGANIZADOR DO TERRITÓRIO

LISANDRA PEREIRA LAMOSO Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD)

Dourados – MS [email protected]

INTRODUÇÃO

As atividades produtivas realizadas pela sociedade, ao necessitarem de uma base territorial, provocam sobre a mesma um processo dinâmico de organização que implica no estabelecimento de relações políticas, econômicas, culturais e ambientais em seu mais amplo sentido. Cada atividade produtiva exerce uma forma particular de interferência e, concomitantemente, incorpora as influências desse território, respondendo às necessidades específicas de diferentes setores e mercados consumidores.

O sentido de “organização” não implica em relações estáticas, mas dinâmicas e sujeitas a transformações que são determinadas historicamente, produzindo espaços diferentes dos originais.

Sanchéz (1991, p. 210) parte da hipótese de que “los cambios en los processos producivos son los que definen las transformaciones necesarias en la articulación territorial, resultando un espacio concreto”. O desenvolvimento e a aplicação da técnica condicionam as transformações num dado espaço concreto, constituindo uma rede de fixos (como, por exemplo, portos, aeroportos, estações ferroviárias, centrais geradoras de energia, etc.) e de fluxos (rodovias, ferrovias, aerovias, redes de transmissão de energia e de informações, etc), segundo a denominação de Santos (1996) que consideraremos neste texto, de forma genérica, como infra-estrutura.

A infra-estrutura é o suporte para a produção, a circulação e o consumo das mercadorias geradas pelas atividades produtivas e um dos elementos organizadores e produtores de espaço, influenciando no desenvolvimento econômico e definindo características do processo de acumulação. Trata-se de parte da produção material do homem. Sua distribuição no espaço é definida politicamente, como resultado do embate entre diferentes projetos políticos e, consequentemente, de interesses de classe.

A infra-estrutura materializa o resultado entre o estágio do desenvolvimento da técnica e a sua pertinência político-econômica. A infra-estrutura pode ser implantada em bases não tão atuais, do ponto de vista tecnológico, mas adequadas à viabilidade econômica. O que seria o mesmo que afirmar que estradas sem pavimentação existem e são utilizadas não porque não se conhece como pavimentá-las, mas porque sua pavimentação ainda não encontrou o retorno econômico necessário para a realização desse investimento.

Mercadorias de maior valor suportam o pagamento de custos de transferência maiores, que incorporam processos tecnologicamente mais sofisticados. Por exemplo, o boi “em pé” é transportado em caminhões boiadeiros cuja carreta é pouco mais que uma gaiola de madeira. Já o transporte de cortes congelados requer carretas com a tecnologia de refrigeração. A soja pode ser transportada a granel enquanto aparelhos de DVD exigem os contêineres e cargas como, por exemplo, remédios, exigem até mesmo veículos rastreados, que empregam GPS e comunicação via satélite.

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A infra-estrutura supera as condições naturais ou, então, se apropria delas ou se conforma a elas. A Estrada de Ferro Vitória-Minas, de 1908, utilizada para o transporte de minério de ferro no estado de Minas Gerais, seguiu os vales dos Rios Piracicaba e Doce até encontrar seu ponto de escoamento no Oceano Atlântico, no início dos anos quarenta. A formação dos mares de morros (na denominação de Ab´Saber) moldou o sistema de engenharia e condicionou a instalação das siderúrgicas ao longo da ferrovia, formando o “Vale do Aço”. A Ferrovia do Aço (ramal entre Jeceaba e Volta Redonda, que teve a construção iniciada em 1975) superou a formação dos mares de morros, adentrando-os através dos numerosos túneis, ou, passando acima deles, utilizando a resistência das armações de aço e do concreto, ligando de forma mais curta e mais rápida as minas aos principais consumidores. A Ferrovia do Aço tornou o transporte do minério de ferro mais rentável, com a obtenção de menor custo em termos de tonelagem unitária por quilômetro. Ambas superando os obstáculos naturais ou se adequando a eles, de acordo com o avanço técnico disponível e compatível com o retorno econômico.

A antiga Estrada de Ferro Sorocabana (que passou para a MRS Logística, após a concessão em 1996) foi construída de forma a acompanhar a expansão do café pelo interior paulista, até no extremo oeste se encontrar com as barrancas do Rio Paraná, passando por núcleos urbanos que durante décadas tiveram na ferrovia sua principal ligação comercial com a capital do estado, tais como: Presidente Prudente, Presidente Bernardes, Presidente Venceslau e Presidente Epitácio, assim como núcleos urbanos nomeados em homenagem aos diferentes Presidentes da República (Prudente de Morais, Artur Bernardes, Wenceslau Brás e Epitácio Pessoa). A estrada acompanhou a marcha do café ao mesmo tempo em que interferiu na expansão da mesma.

Historicamente, no Brasil, a implantação da infra-estrutura requereu a participação ativa do Estado22, não só de forma política como de forma econômica, através de investimentos diretos, que nortearam processos de maior concentração ou desconcentração econômica, minimizando ou acentuando desigualdades regionais.

Na fase primário-exportadora da economia brasileira, (...) o Brasil era um arquipélago econômico, cujas ‘ilhas’ ou regiões, grosso modo organizadas politicamente como unidades federadas ou ‘estados’, relacionavam-se muito pouco umas com as outras do ponto de vista econômico. A vida econômica das regiões gravitava essencialmente entre um ‘pólo’ interno, isto é, o mercado regional, ordenado geralmente em torno de um porto empório, e o mercado mundial ou ‘pólo’ externo (RANGEL, 2005, p. 518).

A infra-estrutura de transporte materializava essa dinâmica econômica, formando um

conjunto de sistemas regionais que encaminhava os produtos primários para os portos e, a partir daí, distribuía o fluxo de produtos importados. Dessa forma, configurava um “fator de resistência à unificação do mercado e, portanto, à industrialização” (RANGEL, 2005, p. 519), ainda que no Sudeste o complexo cafeeiro tenha ensejado a implantação de muitos

22 Katinsky (1994, p. 47) afirma que por ocasião da encampação da Estrada de Ferro D. Pedro II em 1865, houve polêmica irrelevante sobre estatização e privatização, já que todas as ferrovias brasileiras haviam sido realizadas por recursos estatais, através da garantia de juros e da isenção de taxas aduaneiras para todo material ferroviário.

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equipamentos de transporte (ferrovia, portos e estradas) e o capital cafeeiro “fôlego bastante para empreender a parte maior de seu parque ferroviário” (CANO, 2002, p. 67).

A predominância da modalidade rodoviária sobre a ferroviária tendia (...) a quebrar os isolamentos regionais e a unificar o mercado (...), o caminhão era um instrumento incomparável, quebrando os exclusivismos regionais, impondo novo esquema de divisão territorial do trabalho. O comércio deixava de passar forçosamente pelos portos-empórios, graças ao transporte de porta-a-porta, que nem a ferrovia nem a navegação de cabotagem podiam assegurar. (RANGEL, 2005, p. 519).

Embora tenha cumprido um papel histórico na integração dos mercados internos, as longas distâncias tornaram-se incompatíveis com o aumento do fluxo de cargas através do transporte rodoviário, exigindo uma reorganização que priorizasse a expansão da malha ferroviária.

ESTADO E INFRA-ESTRUTURA

Por se tratar de um dos elementos organizadores do espaço geográfico e por ter, historicamente, o Estado assumido um papel fundamental na definição da implantação da infra-estrutura, o planejamento com base na elaboração de planos plurianuais tem destacado a infra-estrutura como elemento relevante para a dinâmica regional e para o crescimento econômico, associando investimentos em infra-estrutura com o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto).

O Estudo da Dimensão Territorial dos Planos Plurianuais – 2006 – Marco inicial, no item “Território e Desenvolvimento”23 apresenta as seguintes características para infra-estrutura:

• Trata-se de capital fixo social básico, suporte da produção social e dos processos produtivos, de baixa elasticidade de oferta e elevada imobilização de capital e fator incondicional para a competitividade;

• Exige mecanismos de financiamento a longo prazo e que devem conciliar a universalização dos serviços básicos com a oferta de serviços sofisticados e superar a abordagem logística, aproximando-se dos sistemas de utilidade pública, acrescentando a distinção de “infra-estrutura social” para serviços como educação e saúde;

• Estabelece uma distinção entre infra-estrutura como suporte ao desenvolvimento, com características estritamente produtivas e setoriais daqueles de caráter social, que podem contribuir para a diminuição das heterogeneidades sociais e para a promoção da inclusão social e da cidadania.

A dimensão social, com destaque para a preocupação com a inclusão social, passa a

fazer parte dos textos técnicos do planejamento regional. Ainda que resulte em poucos efeitos práticos, constitui um avanço na medida em que coloca em pauta uma questão de difícil consideração, em se tratando da racionalidade econômica, que tende a permear o planejamento de investimentos e a equação da relação custo-benefício.

23 Disponível em http://www.planejamento.gov.br

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Duas questões relevantes presentes na discussão sobre a infra-estrutura como elemento ordenador do território são as relativas a seus impactos e a seu custeio.

O processo de desenvolvimento econômico não ocorre de forma espacialmente homogênea, do mesmo modo como as atividades humanas não se distribuem uniformemente sobre a superfície do planeta (DINIZ FILHO, 2002) e os espaços comportam características que lhe são peculiares. Espaços fisicamente diferenciados fazem com que um equipamento tecnicamente idêntico tenha usos e custos diferentes. Um porto marítimo não é o mesmo em Recife-PE ou em Santos-SP.

Os territórios, pelos usos diferenciados que têm, impactam e são impactados de formas distintas quando recebem os mesmos tipos de investimento. A definição sobre a implantação ou não e qual a localização dos investimentos é política e exige reflexão teórica contextualizada historicamente, na medida em que a relação custo-benefício é dinâmica e passível de alterações com o passar do tempo. Inclusive porque não devemos desprezar o avanço na técnica e a possibilidade que ela cria de transformar os impactos negativos decorrentes dos investimentos sobre as identidades sociais.

A questão da racionalidade técnica e econômica também está presente. A necessidade de encurtar as distâncias (a compressão espaço-tempo) do capital pode se deparar com “obstáculos” naturais, políticos e sociais. Como mensurar a relação custo-benefício de uma rodovia que deve atravessar uma área ecologicamente sensível ou interferir no espaço cotidiano de comunidades que serão marginalizadas pela velocidade desta mesma rodovia?

Como mensurar a relação custo-benefício entre investimento em infra-estrutura e crescimento do Produto Interno Bruto, se este é média que não atinge a todos de forma homogênea? Questões da Economia ou questões da Geografia? Trata-se de questões da relação Sociedade-Natureza, portanto objeto de todas as Ciências.

As respostas não estão dadas a priori. Quem tem respostas a priori são os interesses de grupos e a racionalidade da busca pela otimização do lucro. Estes têm respostas a priori. As demais estão por serem elaboradas a partir de reflexões teóricas e de trabalho de campo.

Da mesma forma que há espaços da economia global, que pouco se integram ao seu entorno, mas têm uma dinâmica que é própria de sua relação com outros pontos distantes do território, os equipamentos de infra-estrutura podem impactar pontos distantes do território, ou interesses econômicos não regionais (ou até mesmo nacionais). O caso da geração de energia elétrica para os projetos de alumínio na Amazônia Oriental são exemplos didáticos dessa possibilidade, pois demonstraram capacidade limitada de impulsionar processos de desenvolvimento local (MONTEIRO, 2005).

Como analisar essa relação sem ser reducionista ou pretender compartimentar o território? É imprescindível que a análise seja do todo e admitir que políticas compensatórias possam ser instrumentos úteis se bem elaboradas para minimizar os impactos negativos. Por exemplo, a inundação de parte da área rural do município sul-mato-grossense de Anaurilândia pela formação do lago da Hidrelétrica Sérgio Motta (no Rio Paraná) está diretamente ligada ao maior fornecimento de energia para o sudeste industrial, porção do território que produz mercadorias e serviços consumidos em Anaurilândia.

A arbitragem entre perdas e ganhos não é questão para o fórum judiciário, mas é uma questão política. Qual o projeto do País se pretende ao aumentar a capacidade de geração hidrelétrica?

A questão dos custos é de extrema relevância na medida em que implica em opções. Implica em decidir o que cortar quando se elabora o orçamento geral da União, pois a

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restrição de gastos está para ser administrada com priorizações. Cortar o aumento do funcionalismo público ou a duplicação da BR-116?

Esses dilemas serão vividos até que se resolvam as questões cruciais do desenvolvimento e seja retomado o crescimento econômico que permitirá os recursos para gastos sociais, sem o drama de ter que atingir os gastos sociais.

Para Mamigonian (2006), é na dívida pública descomunal que reside o cerne da crise brasileira desde os anos 80. Segundo o autor, houve a

(...) quebra do modelo nacional desenvolvimentista (1930-1980), de enormes realizações econômico-sociais, além naturalmente dos problemas criados por se ter tratado de um desenvolvimento sem reforma agrária (via prussiana desde Getúlio até Geisel) e da recolonização do Brasil sob a liderança do imperialismo do centro do sistema (bancário e industrial), num verdadeiro processo contra-revolucionário vitorioso desde 1990.

Esse conjunto de fatores, que faz parte do processo de desenvolvimento econômico

brasileiro, foi simplificado ou, melhor, reduzido ao combate à inflação, que tem pautado as ações dos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Luís Inácio Lula da Silva (2003-2006).

Para Mamigonian (2006), o processo de crescimento econômico induzido pelo Estado24 ajudaria na regeneração das suas finanças, hoje estranguladas pelo pagamento de juros, permitindo a efetiva concretização de políticas públicas nas áreas sociais (habitação, reforma agrária, etc.), assim como ajudaria no estímulo ao comércio externo que contasse com a possibilidade de financiamento das exportações nacionais e possibilitaria a rediscussão da dívida externa e interna.

As políticas de Estado são permeadas pelo confronto político-partidário e encontram na estrutura organizacional e operacional do aparelho do Estado, obstáculos à velocidade da implementação de projetos e propostas. Para os investimentos em infra-estrutura, duas são as propostas elaboradas de forma sistemática pelo Governo Federal (2003): as Parcerias Público-Privadas (PPPs) e os Projetos Pilotos de Investimento (PPIs).

AS PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS (PPPs)

As primeiras iniciativas de Parcerias Público-Privadas ocorreram no Reino Unido em 1992, sob o comando de John Major. Em 1997, com Tony Blair, o programa foi reformulado, tratando-se das Public-Private Partnerships, com o objetivo de mudar a forma de contratação de obras e serviços públicos, saindo da maneira tradicional de aquisição de ativos para uma lógica de compra de serviços (BRITO, 2005).

Portugal, Espanha, Finlândia, Grécia, Itália, Irlanda, Holanda, Canadá, Austrália e África do Sul também adotaram modelo semelhante, assim como Chile e México, na América Latina. 24 Através de investimentos maciços em infra-estruturas estranguladas; com concessões de serviços públicos à iniciativa privada operando no Brasil; aquisição dos equipamentos e dos serviços complementares no mercado nacional de fatores, gerando efeitos multiplicativos imediatos: geração de emprego de engenheiros, técnicos e operários nacionais, criação de sobras de caixas nestas empresas envolvidas, poupança a partir do uso das capacidades ociosas das empreiteiras, das indústrias de equipamentos, poupança que teria interesse em ser reaplicada, via intermediação bancária nacional, nas novas ferrovias, novas usinas elétricas, novos terminais portuários, novas linhas de metrô, etc. (texto completo disponível em: http://www.ourinhos.unesp.br/gedri/publica/artigos/mamigonian_03.pdf).

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No Brasil, as PPPs foram instituídas pela Lei 11.079/2004, aprovada em 30 de dezembro de 2004. Trata-se do aparato jurídico para regulamentar as relações entre poder público e iniciativa privada no compartilhamento de projetos.

Conforme definição da lei, Parceria Público-Privada é o contrato administrativo de concessão, na modalidade patrocinada ou administrativa. Concessão patrocinada é a concessão de serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, que envolve, adicionalmente à tarifa cobrada dos usuários, contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado. Concessão administrativa é o contrato de prestação de serviços do qual a Administração Pública é a usuária direta ou indireta, ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação de bens. Por exemplo, a administração de um hospital ou de um presídio, como ocorre na Inglaterra.

As PPPs podem ser utilizadas tanto para infra-estrutura quanto para serviços públicos, desde que respeitado o valor mínimo de vinte milhões de reais para os projetos e o prazo mínimo de cinco anos de vigência. Nas privatizações, ocorre a alienação dos ativos públicos ao setor privado, enquanto nas PPPs, ao término do contrato, a infra-estrutura implementada é transferida ao setor público. O parceiro privado fica responsável pela elaboração do projeto, financiamento, construção e operação de ativos, que posteriormente serão transferidos ao Estado enquanto o setor público torna-se parceiro na medida em que ele é comprador, no todo ou em parte, do serviço disponibilizado. O controle do contrato passa a ser por meio de indicadores relacionados ao desempenho na prestação do serviço e não mais ao controle físico-financeiro da obra. A estruturação de um projeto de PPP segue, geralmente, o modelo de Project Finance, que é uma forma de financiamento de um investimento de capital economicamente separável que tem, no fluxo de caixa do projeto, a fonte de pagamento dos empréstimos e do retorno do capital investido (BRITO, 2005).

A carteira de projetos iniciais (ver anexo I) selecionou projetos que possam estruturar sistemas logísticos, eliminar gargalos nos corredores de exportação e tenham alguma capacidade de geração de receitas (contratos de concessão patrocinada).

OS PROJETOS PILOTOS DE INVESTIMENTO (PPI)

Os PPIs são investimentos que não entram na conta das despesas públicas e, portanto, não afetam as metas de superávit primário estabelecidas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).

Para o ano de 2007, a dotação orçamentária é de 0,20% do PIB, o que representa cerca de 4.590 bilhões de reais.

As áreas abrangidas serão: transporte – logística nacional, metrôs, infra-estrutura hídrica, energia – petróleo, gás e meteorologia. Os critérios que pautam a seleção de projetos que receberão investimentos são: alto impacto econômico, relevância estratégica no Plano Plurianual do Governo, distribuição equilibrada entre as macrorregiões e prioridade para a área de transportes. (ver anexo II).

Embora a parte jurídica esteja relativamente elaborada, os investimentos não ocorreram como o esperado. As metas de empenho de recursos tanto para as PPPs quanto para os PPIs são aquém do previsto, pela falta de parceiros privados interessados nos projetos.

Uma das hipóteses para esse resultado pífio é a concentração de esforços do governo federal em políticas ortodoxas. Segundo Batista Junior. (2007), o Governo adotou a política de combate à inflação, ajuste das contas fiscais, reformas (previdência social, sistema

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tributário, lei de falências, entre outras), cumpriu as metas propostas pelo FMI, aumentou superávits fiscais primários e praticou os juros reais básicos mais altos do planeta. Tais ações não contribuem para uma expansão da economia e para a elevação do PIB e não criam condições de investimento, quaisquer que sejam os arcabouços jurídicos, o nome do plano ou o programa elaborado.

O Estado dispõe de duas alavancas para intervenção econômica: a fiscal, (representada pela política tributária, pelos investimentos públicos e gastos correntes) e a monetária (juros básicos, câmbio e oferta de crédito). Para Batista Junior. (2007), o Governo estaria aparentemente disposto a fazer uso da primeira, diminuindo a carga tributária e aumentando os investimentos em infra-estrutura de transporte e energia, como parece comprovado nas carteiras de projetos das PPPs e dos PPIs, enquanto a segunda estaria nas mãos do Banco Central, cada vez mais independente dos propósitos do Governo.

Segundo o economista, (...) uma redução mais acentuada das taxas de juro e a ampliação da oferta de crédito aumentariam a margem de manobra da própria política fiscal. Diretamente, porque juros menores aliviariam o custo da dívida interna. Indiretamente, porque a aceleração do crescimento econômico induzida pela queda dos juros ampliaria a base de incidência dos tributos e reduziria certos gastos (BATISTA JUNIOR, 2007).

Sem crescimento econômico, com altas taxas de juros, câmbio valorizado e com a

manutenção das preocupações ortodoxas do Banco Central, não há estímulo aos investimentos na infra-estrutura. A baixa taxa de crescimento do PIB revela momentos pouco propícios para que a iniciativa privada participe de uma PPP ou de planos de expansão da capacidade de produção.

Além da necessidade de ajustamento da política econômica para a retomada do crescimento, outro desafio é a qualidade da inserção do Brasil no mercado global, sua participação e seus parceiros no comércio exterior.

Segundo Mamigonian (2007), Na medida em que o comércio não é global e sim internacional, isto é, entre nações e que as dimensões geográficas de pequeno porte (França, Alemanha, Itália, etc.) não são mais bases territoriais suficientes para a acumulação capitalista, a economia mundial está gestando blocos continentais (União Européia, NAFTA, Bloco asiático projetado), cada um com moedas distintas e defendendo seus próprios interesses comerciais e financeiros. Isso quer dizer que o comércio internacional no interior dos blocos é facilitado, enquanto o comércio entre os blocos é desestimulado longe, portanto de um mercado mundial sem fronteiras.

A condição contemporânea coloca para o Brasil e para a América Latina a necessidade de fortalecimento de seu processo de integração, a todo custo bombardeado pelos grandes inimigos comerciais e pelo seu representante mais visível, que é a mídia comercial.

Essa integração necessária não ocorre concretamente, fisicamente, sem um aparato infra-estrutural de suporte. Nesse sentido, a proposta da IIRSA (Integração da Infra-Estrutura Regional Sul-Americana) representa um avanço político histórico para a região, quando propõe a construção de uma agenda comum de ações e projetos para a integração sul-americana.

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IIRSA – INTEGRAÇÃO DA INFRA-ESTRUTURA REGIONAL SUL- AMERICANA

A IIRSA é uma iniciativa multinacional, multissetorial e multidisciplinar que envolve 12 países da América do Sul, da qual participam os setores de transporte, energia e telecomunicações, envolvendo aspectos econômicos, jurídicos, políticos, sociais, culturais e ambientais (IIRSA, 2004). A iniciativa surgiu durante a Cúpula Sul-Americana de Brasília, em 2000.

A prioridade dada à infra-estrutura é justificada pelo documento da carteira de projetos da seguinte forma:

A visão da infra-estrutura como elemento chave de integração está baseada na noção de que o desenvolvimento sinérgico de transporte, energia e telecomunicações possam gerar um impulso definitivo para a superação de barreiras geográficas, a aproximação de mercados e a promoção de novas oportunidades econômicas (IIRSA, 2004).

O território sul-americano foi dividido em dez áreas, chamadas de Eixos de Integração e Desenvolvimento: Eixo Andino, Eixo Peru-Brasil-Bolívia, Eixo da Hidrovia Paraguai-Paraná, Eixo de Capricórnio, Eixo Andino Sul, Eixo do Escudo Guayanés, Eixo do Amazonas, Eixo Interoceânico Central, Eixo Mercosul – Chile e Eixo do Sul.

Dentro de cada eixo, os países definiram projetos prioritários de integração que foram hierarquizados em função de uma avaliação qualitativa conjunta sobre suas principais dimensões estratégicas. Os recursos para a realização dos projetos partem dos países juntamente com financiamentos obtidos no BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), na CAF (Cooperação Andina de Fomento)25 e no FONPLATA (Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata)26.

As assimetrias econômicas, sociais, políticas e culturais entre os países aumentam a dificuldade em priorizar uma carteira de projetos para investimentos, pois cada país apresenta suas necessidades mais prementes e a dificuldade reside em ajustar as necessidades nacionais com o objetivo de integração regional.

Duas reflexões sobre as implicações da IIRSA: Primeiro, além dos fatores históricos, entre Atlântico e Pacífico, existe a Floresta

Amazônica, o Pantanal e a Cordilheira dos Andes, para citar os principais. Qualquer intervenção, como é o caso dos projetos “estruturadores”, implica em impactos sociambientais negativos. A equação custo-benefício não é apenas econômica, pois envolve elementos que não tem valor econômico em si. Quanto vale a extinção de uma espécie? Ou quanto vale a alteração da identidade cultural e da vida cotidiana de comunidades que serão afetadas pelos projetos? Não são elementos mensuráveis e sobre eles não pode predominar

25 A CAF – Corporação Andina de Fomento, com sede na Venezuela – foi constituída em 1968. Trata-se de uma instituição financeira multilateral que apóia o desenvolvimento de seus países acionistas e a integração regional. Está composta por 16 países da América Latina e Caribe. Seus principais acionistas são: os cinco países da CAN (Comunidade Andina de Nações): Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela, mais 11 sócios: Argentina, Brasil, Espanha, Chile, Costa Rica, Jamaica, México, Panamá, Paraguai, Trinidad e Tobago e Uruguai; e 18 bancos privados da região andina. 26 Fondo Financiero para el Desarrollo de la Cuenca del Plata (FONPLATA), consolidado como organismo financeiro multilateral a partir de 1977, formado pelos países da Bacia do Prata, Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia.

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a racionalidade econômica, que confere preço a tudo e a todos, sob o eufemístico nome de “indenização”.

Essa discussão passa pelo campo técnico-científico, que oferece conhecimento e propostas de mitigação dos impactos negativos e também pela discussão coletiva. Ainda que nossos sistemas de planejamento não tenham encontrado a fórmula mágica de recolher as impressões coletivas e pessoais, o debate se faz necessário. Não o debate teatral que marca nossas audiências públicas, cronometradas, ensaiadas, para consumo comercial. Penso que nossos trabalhos de campo possam contribuir recuperando conhecimentos que escapam das empresas de consultorias, que são contratadas para avaliar os impactos dos projetos através de modelos econométricos.

A segunda reflexão é sobre a importância política para a população do continente. A integração que inicia pela base física é o passo para nossa aproximação cultural, nossa união de forças para superação das assimetrias e para o nosso maior intercâmbio. A fragmentação das forças dos países sul-americanos os coloca expostos aos interesses de economias internacionais alienígenas ao território, ao imperialismo norte-americano, às ações das corporações privadas que repatriam lucros para fora do continente, explorando o meio ambiente e a força de trabalho (precarização do trabalho).

São essas forças que incentivaram os rompimentos das relações diplomáticas entre Brasil e Bolívia, durante a negociação sobre o gás natural e a participação da Petrobrás. São esses interesses que procuram “demonizar” a figura do presidente venezuelano Hugo Chavez, que busca utilizar a estatal petrolífera para dar curso a seu projeto de desenvolvimento econômico. Quem seriam os perdedores com a aproximação entre a PDVSA (estatal venezuelana do Petróleo) e a Petrobrás27?

A integração regional é uma das formas de alcançar soberania regional. O isolamento entre os países sul-americanos os coloca suscetíveis a interferências externas. O argumento de que a dominação em tempos de globalização não ocorre através do aparato militar, mas do domínio do mercado, através das corporações internacionais e do pagamento de royalties pela tecnologia importada é moderninho, mas insuficiente.

No Paraguai, por exemplo, os Estados Unidos mantém uma base militar na localidade de Mariscal Estigarribia, Departamento de Boqueron, na porção ocidental do território paraguaio. Mariscal Estigarribia é uma localidade de três mil habitantes no Chaco Paraguaio, distante 250 km da Bolívia, próxima às províncias argentinas de Formosa e Salta, onde se estima, pois é segredo de Estado, que já estejam alojados 13 mil militares norte-americanos (MELE, 2005).

Sua localização estratégica deve-se ao fato de possibilitar o controle das reservas de gás e petróleo da Bolívia (Tarija), despachar efetivos para a zona da Tríplice Fronteira, onde reside uma importante comunidade árabe e monitorar a segunda maior reserva de água doce do Planeta, o Aqüífero Guarani (MELE, 2005). A integração dos países sul-americanos, seja através da IIRSA ou de outra iniciativa, é fundamental para a soberania regional, para o fortalecimento das relações comerciais que permitirão aos países fazer frente ao processo de formação de blocos econômicos liderados pelos Estados Unidos e Europa, com o crescimento da China e sua influência regional.

27 Trata-se da instalação de uma refinaria da PDVSA no estado de Pernambuco, na cidade de Abreu Lima (nome de um dos heróis do processo revolucionário libertador venezuelano), com investimentos estimados em 2 bilhões de dólares.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Os investimentos em infra-estrutura são fundamentais para a expansão da economia e

seus reflexos diretos e indiretos contribuem para a elevação das taxas de emprego formal, oportunidades de negócio e o aumento da arrecadação do Estado sem o aumento da carga fiscal e tributária, entre outros.

As questões socioambientais devem ser abordadas sob coordenação de grupos de pesquisa, movimentos sociais organizados e legítimos e não serem pautadas por interesses político-econômicos de externos à realidade brasileira, travestidos de “ecológicos”.

No Brasil, os investimentos em infra-estrutura tiveram duas propostas sistemáticas de financiamento e captação de recursos, as Parcerias Público-Privadas e os Projetos Pilotos de Investimento, ambos com resultados pífios frente aos desafios a serem cumpridos e à magnitude dos investimentos que são necessários.

As transformações no modelo de desenvolvimento econômico continuam na pauta como prioridade, para que as demais questões possam ter seu curso e o país retome o desenvolvimento econômico gerado por investimentos produtivos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO, T. B. Dinâmica regional brasileira nos anos noventa: rumo à desintegração competitiva? In: CASTRO, I. E. et al. (Org.). Redescobrindo o Brasil 500 anos depois. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, p. 73-92, 2000. BATISTA JUNIOR, P. N. Maldição do segundo mandato? Folha de São Paulo, São Paulo, 07, jan. 2007.Caderno Mais, p. 5. BRITO, B. M. B. de; SILVEIRA, A. H. P. Parceria público-privada: compreendendo o modelo brasileiro. Revista do Serviço Público, v.56, n. 1, p. 7-21, jan/mar. 2005. CANO, W. Ensaios sobre a formação econômica regional do Brasil. Campinas: Ed. Unicamp, 2002. CORRÊA, R. L. Região e organização espacial. 2 ed. São Paulo: Ática, 1987. DINIZ FILHO, L. L. Contribuições e equívocos das abordagens marxistas na geografia econômica: um breve balanço. Revista Terra Livre. São Paulo: AGB, p. 143-160, 2002. IIRSA. Planejamento territorial indicativo – carteira de projetos IIRSA 2004. Brasília. Ministério do Planejamento, 2004. MELE PEREYRA, C. Nueva base del comando sur de Estados Unidos em el corazón de Sudamérica. In: Millán, S. Las tropas norteamericanas y la geografia del saqueo: América Latina, Mercosur y Paraguay em la mira. Assunción: Base Investigaciones Sociales, 2005. MONTEIRO, M. de A. Meio século de mineração industrial na Amazônia e suas implicações para o desenvolvimento regional. Estudos Avançados. São Paulo: Ed. EDUSP, n. 53. 2005. MOTOYAMA, S. (Org.). Tecnologia e industrialização no Brasil: uma perspectiva histórica. São Paulo: Unesp/CEETEPS, 1994. RANGEL, I. Obras reunidas. 2 v. São Paulo: Contraponto, 2005. SÁNCHEZ, J. E. Espacio, economia y sociedad. Madri: Siglo XXI, 1991. SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1996. Sites pesquisados: http://www.iirsa.org <acesso em 4 de janeiro de 2007 às 8:30horas>

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http://www.ourinhos.unesp.br/gedri/publica/artigos/mamigonian_03.pdf <acesso em 9 de dezembro de 2006 às 21:40horas> http://www.planejamento.gov.br/arquivos_down/spi/Planejamento_territorial/Marco_Inicial.pdf <acesso em 8 de dezembro de 2006 às 20:30horas> http://www.imf.org/external/np/fad/2004/pifp/eng/031204.pdf <acesso em 8 de dezembro de 2006 às 20:30horas> http://www.planobrasil.gov.br/arquivos_down/plRevisao_Vol1.pdf <acesso em 4 de novembro de 2006 às 23:30horas>

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ANEXO I – Projetos com possibilidade de execução/conclusão através de Parceria Público-Privada.

Região/projeto

UF

Extensão

km

Custo total R$ milhões

NORTE 623 Rodovias 623 Construção do trecho rodoviário da BR-163 – Santa Helena – Divisa MT/PA – Santarém

MT/PA 1.174 623

NORDESTE 4730 Rodovias 41.972 Duplicação do trecho rodoviário na BR-101, Natal – Divisa SL/SE RN PB

PE AL 440 1.591

Duplicação do trecho rodoviário na BR-101, Divisa SL/SE – Entroncamento BR-324 (BA)

SE/BA 373 381

Ferrovias MA 1.230 Construção do trecho ferroviário Estreito – Balsas PE 240 480 Construção da Ferrovia Transnordestina, Ramal do Gesso PE 112 346 Construção da Ferrovia Transnordestina, trecho Petrolina – Missão Velha PE CE 361 364 Construção do contorno ferroviário de São Félix BA 0,3 40 Portos Recuperação e ampliação do Porto de Itaqui MA 160 Irrigação Salitre BA 31.300 362 Baixio do Irece BA 59.630 750 Pontal PE 7.897 256 SUDESTE 6.744 Rodovias 4.620 Duplicação do trecho rodoviário na BR-381, Belo Horizonte – São Paulo MG SP 30 1.500 Construção da BR-436, Arco Rodoviário Metropolitano (Porto de Sepetiva – BR 040)

RJ 80 250

Duplicação do trecho rodoviário na BR-116, Régis Bittencourt SP 32 970 Construção do Rodoanel Metropolitano de São Paulo – trecho Sul SP 23 1.900 Ferrovias 200 Construção do anel ferroviário de SP – Ferroanel – trecho Norte RJ SP 66 200 Portos 600 Melhoramentos da infra-estrutura portuária – Porto de Sepetiba (Zona de Apoio Logístico)

RJ 100

Adequação do complexo viário do Porto de Santos SP 16 500 Irrigação 1.324 Jaiba MG 66.000 ha 1.324 SUL 370 Ferrovias 370 Construção contorno de Curitiba PR 50 150 Construção da variante ferroviária Ipiranga – Guarapuava PR 110 220 CENTRO OESTE 600 Ferrovias 600 Construção do trecho ferroviário Alto Taquari (MT) – Rondonópolis (MT) MT 200 400 Trem Turístico do Pantanal MS 200 200 TOTAL 13.067 Fonte: Ministério do Planejamento, 2007.

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ANEXO II – Programação de investimentos para o PPI – 2007.

Programa de Trabalho Dotação Inicial

Modernização da Administração das Receitas Previdenciárias – Nacional 100.000.000

Participação da União no Capital – Companhia Docas do Rio de Janeiro – Ampliação da Rede Elétrica no Porto do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro. 4.000.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Brasília – Divisa DF/GO na BR-020/GO – Distrito Federal. 8.617.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa DF/GO – Divisa GO/BA – na BR-020/GO – Goiás 22.966.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Div. GO/MG – Uberlândia – na BR-050/MG – Minas Gerais. 4.200.000 Recuperação de Trechos Rodoviários – Entr. TO-280 – Entr. BR-153 (Gurupi) – na BR-242/TO – Tocantins. 4.000.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Entr. BR-373 – Barracão – na BR-280/PR– Paraná. 6.000.000

Elaboração de Projetos para Construção de Contornos Rodoviários na BR-493 no estado do Rio de Janeiro – Trecho Arco Metropolitano (Entr. BR-040 – BR-116 – BR-101 – Porto de Sepetiba) – Rio de Janeiro. 3.000.000 Construção de Viaduto na BR-101 no estado do Rio de Janeiro – Acesso ao Porto de Sepetiba – Rio de Janeiro. 3.500.000 Adequação de Acesso Rodoviário na BR-101 no estado do Rio de Janeiro – Acesso ao Porto de Sepetiba – Rio de Janeiro. 4.000.000

Construção de Contornos Rodoviários na BR-493 no estado do Rio de Janeiro – Trecho Arco Metropolitano (Porto de Sepetiba – BR-101) – RJ. 34.260.000 Duplicação de Trechos Rodoviários na BR-101 no estado do Rio de Janeiro – Trecho Santa Cruz – Itacurussá – RJ. 79.405.000

Sinalização do Canal de Acesso ao Porto de Rio Grande – Rio Grande do Sul. 3.000.000 Dragagem no Canal de Acesso, na Bacia de Evolução e junto ao Cais no Porto de Rio Grande – Rio Grande do Sul. 5.500.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa CE/PE – Divisa PE/BA - na BR-116/PE – Pernambuco. 15.000.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Vitória – Divisa ES/MG – na BR-262/ES – Espírito Santo. 10.000.000

Participação da União no Capital – Companhia Docas do Estado de São Paulo – Construção do Complexo Administrativo Portuário no Porto de Santos – São Paulo. 2.500.000

Participação da União no Capital – Companhia Docas do Espírito Santo – Contenção do Cais do Porto de Vitória – Espírito Santo. 2.500.000

Participação da União no Capital – Companhia Docas do Rio de Janeiro – Implantação de Balanças no Porto do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro 400.000

Adequação de Trechos Rodoviários na BR-493 no estado do Rio de Janeiro – Trecho Entrada BR-101 (Manilha) Entrada BR-116 Santa Guilhermina – Rio de Janeiro. 10.000.000

Participação da União no Capital – Companhia Docas do Estado de São Paulo – Derrocagem junto ao Canal de Acesso ao Porto de Santos – São Paulo. 10.000.000 Recuperação e Modernização no Sistema Elétrico do Porto de São Francisco do Sul – SC– Santa Catarina. 800.000

Participação da União no Capital – Companhia Docas do Rio de Janeiro – Ampliação da Retroárea do Porto do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro. 2.000.000

Participação da União no Capital – Companhia Docas do Espírito Santo – Recuperação da Plataforma Operacional do Cais do Porto de Vitória nos Berços 101, 102 e 103 – Espírito Santo. 2.000.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Catalão – Div. GO/MG – na BR-050/GO – Goiás. 1.800.000 Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa GO/MS – Três Lagoas – na BR-158/MS – Mato Grosso do Sul. 25.631.000

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Construção de Pátio de Estacionamento no Terminal de Contêineres (TECON) do Porto de Rio Grande – Rio Grande do Sul. 1.500.000 Construção de Viaduto na BR-280 no estado de Santa Catarina – ao Porto de São Francisco do Sul – Santa Catarina. 2.000.000

Participação da União no Capital – Companhia Docas do Espírito Santo – Recuperação do Sistema Viário Interno no Cais de Capuaba – Espírito Santo. 2.500.000

Participação da União no Capital – Companhia Docas do Estado de São Paulo – Dragagem de Aprofundamento no Canal de Acesso, na Bacia de Evolução e junto ao Cais no Porto de Santos – São Paulo. 42.500.000

Desenvolvimento de Biotecnologia na Amazônia – Nacional. 2.600.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Piripiri – Teresina – na BR-343/PI – Piauí. 3.000.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa CE/PI – Piripiri – na BR-222/CE – Piauí. 3.000.000

Participação da União no Capital – Companhia Docas do Espírito Santo – Recuperação do Pátio dos Berços 201 e 202 no Cais Comercial de Vitória – Espírito Santo. 3.000.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa CE/PB – Divisa PB/CE – na BR-116/PB – Paraíba. 4.694.000

Participação da União no Capital – Companhia Docas do Rio de Janeiro – Implantação do Sistema de Segurança Portuária (ISPS – CODE) no Porto do Rio de Janeiro (RJ) – no estado do Rio de Janeiro. 6.000.000

Participação da União no Capital – Companhia Docas do Estado de São Paulo – Remoção de Destroços no Canal de Acesso ao Porto de Santos – São Paulo. 3.000.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Entr. BR-282 – Divisa SC/RS – na BR-158/SC – Santa Catarina. 4.000.000 Recuperação de Trechos Rodoviários – S. Miguel do Oeste – Divisa SC/PR – na BR-163/SC – Santa Catarina. 4.000.000

Cumprimento de Obrigações Decorrentes da Transferência do Sistema de Transporte Ferroviário Urbano de Passageiros de Salvador – BA (Crédito Extraordinário) – no estado da Bahia. 0

Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa GO/BA – Entr. BR-242 – na BR-020/BA – Bahia. 6.705.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Fortaleza – Divisa CE/PI, na BR-222/CE – Ceará. 7.000.000 Recuperação de Trechos Rodoviários – Entr. BR-080/242 – Divisa MT/GO – na BR-158/MT – Mato Grosso. 7.523.000

Participação da União no Capital – Companhia Docas do Espírito Santo – Recuperação da Pavimentação da Estrada de Acesso ao Cais de Capuaba (ES) – no estado do Espírito Santo. 5.900.000

Derrocamento no Canal de Acesso ao Porto de Itajaí – SC – Santa Catarina. 6.000.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Entr. BR-230/316 – Divisa PI/CE – na BR-020/PI – Piauí. 6.500.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Entr. BR-153 – Div. MA/PA – na BR-222/MA – Maranhão. 7.000.000

Derrocamento junto ao Canal de Acesso ao Porto de São Francisco do Sul – SC – Santa Catarina. 7.200.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Cáceres – Div. MT/RO – na BR-174/MT – Mato Grosso do Sul. 7.600.000

Participação da União no Capital – Companhia Docas do Rio de Janeiro – Dragagem de Manutenção no Porto do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro. 6.000.000 Recuperação de Trechos Rodoviários – Entr. BR-290 – Entr. BR-158/287 – na BR-392/RS – Rio Grande do Sul. 10.927.000 Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa SC/RS – Fronteira Brasil/Uruguai – na BR-158/RS – Rio Grande do Sul. 9.542.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa SC/RS – Jaguarão – na BR-116/RS – Rio Grande do Sul. 9.877.000 Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa MT/GO – Entr. BR-060 (A)/364 – na BR-158/GO – Goiás. 8.905.000 Recuperação de Trechos Rodoviários – Entr. BR-116 – Entr. BR-365 – na BR-25/MG – Minas Gerais. 10.000.000

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Participação da União no Capital – Companhia Docas do Rio de Janeiro – Recuperação do Acesso Rodoferroviário no Porto do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro. 10.000.000 Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa GO/MT – Divisa MT/RO – na BR-364/174/MT – Mato Grosso. 11.279.245

Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa SC/RS – Aceguá – na BR-153/RS – Rio Grande do Sul. 14.769.000 Recuperação de Trechos Rodoviários – Porto de São Francisco do Sul – Canoinhas – na BR-280/SC –Santa Catarina. 10.026.000

Estruturação dos Sistemas Estaduais de Gerenciamento de Recursos Hídricos no Semi-Árido-Nacional. 18.700.000 Dragagem no Canal de Acesso, na Bacia de Evolução e junto ao Cais no Porto de Itajaí – SC – Santa Catarina. 12.000.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa SP/PR – Divisa PR/SC – na BR-116/PR – Paraná. 15.937.000

Desenvolvimento da Meteorologia – Nacional. 15.000.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa MG/SP – Divisa SP/PR – na BR-153/SP – São Paulo. 29.749.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa MG/GO – Divisa GO/MT – na BR-364/GO – Goiás. 21.435.000 Construção de Acesso Rodoviário na BR-101 no estado de Santa Catarina – ao Porto de Itajaí – SC – Santa Catarina. 16.000.000

Recuperação dos Molhes do Porto de Itajaí – SC – Santa Catarina. 12.700.000

Recuperação dos Berços 102 e 103 no Porto de São Francisco do Sul – Santa Catarina. 12.800.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Entr. BR-407 – Salvador – na BR-324/BA – Bahia. 38.702.000

Participação da União no Capital – Companhia Docas do Rio de Janeiro – Dragagem de Aprofundamento no Porto do Rio de Janeiro – no estado do Rio de Janeiro. 20.000.000

Participação da União no Capital – Companhia Docas do Rio de Janeiro – Dragagem do Canal de Acesso da Bacia de Evolução no Porto de Sepetiba – Rio de Janeiro. 20.000.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Entr. BR-135 – Juiz de Fora – na BR-040/MG – Minas Gerais. 20.000.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa MT/RO – Divisa RO/AC – na BR-364/RO – Rondônia. 17.514.000

Modernização do Trecho Calçada – Paripe do Sistema de Trens Urbanos de Salvador – BA (Crédito Extraordinário) – no estado da Bahia. 0

Recuperação de Trechos Rodoviários – Fortaleza – Divisa PE/CE – na BR-116/CE – Ceará. 21.799.445 Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa GO/MG – Divisa MG/SP – na BR-153/MG – Minas Gerais. 20.190.558 Adequação de Trechos Rodoviários na BR-050 no estado de Minas Gerais – Trecho Divisa GO/MG – Divisa MG/SP – MG. 23.670.000 Adequação de Trechos Rodoviários na BR-060 no Distrito Federal-Trecho Distrito Federal – Divisa DF/GO – DF. 14.200.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa MS/MT – Santa Helena – na BR-163/MT – Mato Grosso. 21.981.000 Adequação de Trechos Rodoviários na BR-060 no estado de Goiás – Trecho Divisa DF/GO – Entroncamento BR-153/GO – GO 20.515.000 Adequação de Trechos Rodoviários na BR-101 no estado do Rio Grande do Norte – Trecho Natal – Divisa RN/PB – RN. 104.750.000 Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa SP/MS – Corumbá – na BR-262/MS – Mato Grosso do Sul. 42.024.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Entr. BR-116 – Entr. BA-460 – na BR-242/BA – Bahia. 64.313.000 Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa SP/PR – Entr. BR-272 (para Japira) – na BR-153/PR – Paraná. 40.081.000 Recuperação de Trechos Rodoviários – Entr. BA-306 (para Chorrocho) – Divisa BA/MG – na BR-116/BA – Bahia. 60.987.000 Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa PR/MS – Divisa MS/MT – na BR-163/MS – Mato Grosso do Sul. 40.554.000

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Construção das Eclusas de Tucuruí no estado do Pará no Rio Tocantins – PA. 205.230.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa PI/CE – Fortaleza – na BR-020/CE – Ceará. 40.212.000 Adequação de Trechos Rodoviários na BR-101 no estado da Paraíba – Trecho Divisa PB/RN – Divisa PB/PE – PB. 123.420.000 Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa ES/MG – Divisa MG/SP – na BR-262/MG – Minas Gerais. 53.059.000 Recuperação de Trechos Rodoviários – Montes Claros – Divisa MG/GO – na BR-365/MG – Minas Gerais. 44.096.000 Adequação de Trechos Rodoviários na BR-101 no estado de Pernambuco – Trecho Divisa PB/PE – Divisa PE/AL – PE. 154.495.000

Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa PA/TO – Divisa TO/GO – na BR-153/TO – Tocantins. 63.028.900 Recuperação de Trechos Rodoviários – Poços de Caldas – Divisa MS/SP – na BR-459/MG – Minas Gerais. 49.745.000

Transferência da Gestão dos Perímetros Públicos de Irrigação – Nacional. 56.750.184

Implantação do Trecho Lapa–Pirajá do Sistema de Trens Urbanos de Salvador – BA (Crédito Extraordinário) – no estado da Bahia. 0

Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa TO/GO – Divisa GO/MG – na BR-153/GO – Goiás. 62.336.000

Apoio à Implantação do Corredor Expresso de Transporte Coletivo Urbano –Trecho Parque Dom Pedro II – Cidade Tiradentes – SP (Crédito Extraordinário) – no Município de São Paulo –SP. 0 Recuperação de Trechos Rodoviários – Divisa BA/MG – Divisa MG/RJ – na BR-116/MG – Minas Gerais. 59.323.000 Implantação do Trecho Eldorado – Vilarinho do Sistema de Trens Urbanos de Belo Horizonte – MG – no estado de Minas Gerais. 98.919.847

Adequação de Trechos Rodoviários na BR-381 no estado de Minas Gerais Trecho Governador Valadares – Belo Horizonte – MG. 178.505.000

Apoio à Implantação do Trecho Sul Vila das Flores – João Felipe do Sistema de Trens Urbanos de Fortaleza – CE (Crédito Extraordinário) – no estado do Ceará. 0

Construção da Ferrovia Norte–Sul (Crédito Extraordinário). 0 Adequação de Trechos Rodoviários na BR-101 no estado do Rio Grande do Sul – Trecho Divisa SC/RS – Osório – RS. 155.780.000

Modernização da Administração Fazendária – Nacional. 400.000.000 Adequação de Trechos Rodoviários na BR-101 no estado de Santa Catarina –Trecho Palhoça – Divisa SC/RS – SC. 261.560.000

TOTAL 3.361.688.179 Fonte: Ministério do Planejamento, 2007.

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BNDES: 50 ANOS DE ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO BRASILEIRO

GILBERTO OLIVEIRA DA SILVA JUNIOR Fundação Educacional da Região dos Lagos (FERLAGOS)

Cabo Frio – RJ [email protected]

INTRODUÇÃO

Neste início de século, uma antiga discussão renova-se calcada em transformações contínuas promovidas pelo sistema capitalista: a função do Estado na realização de políticas econômicas e sociais. As polarizações sempre existentes (Estado máximo versus Estado mínimo) ganham novos argumentos e aplicabilidades tentando desfazer o pólo contrário. Nas duas últimas décadas, grande parte da América Latina e, logicamente, também o Brasil, tiveram a promoção do Estado mínimo como políticas predominantes. No Brasil, este processo resultou no desgaste das classes trabalhadoras, bem como na capacidade regulatória do Estado, já que se encontra profundamente depredado (OLIVEIRA, 2004).

A força da política neoliberal, contudo, não esgotou o potencial do Estado brasileiro em contribuir nas transformações espaciais. Historicamente, o Estado brasileiro quase sempre promoveu diretamente modificações consideráveis na realidade e no sentido do território. Tal poder é proveniente de períodos anteriores, quando as políticas econômicas se baseavam na força do Estado, instrumentalizado pelo seu aparelhamento institucional (MONTEIRO FILHA, 2002). Um dos órgãos que melhor representa o aparelhamento do Estado brasileiro, e sem dúvida um dos mais atuantes no processo de ordenamento territorial do país nas últimas cinco décadas, foi o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).

Criado no âmbito do nacional desenvolvimentismo, o BNDES carrega em toda a sua história um amplo conjunto de políticas implementadas a fim de contribuir com a organização do território nacional, sempre se apresentando como o lugar por excelência das inúmeras transformações e como o principal executor de planejamentos tão díspares como o Plano de Metas (década de 50) e o Plano Nacional de Desestatização (década de 90). A importância do BNDES pode ser descrita, de maneira geral, em três pontos:

a) por tratar-se de uma instituição pública, nascida e consolidada através de diferentes fontes de recursos provenientes do povo brasileiro, como o imposto de renda, o PIS/PASEP (Programa de Integração Social/Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público) e, atualmente, o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), utilizados para financiar diversos setores produtivos que possuem grandes implicações no território nacional;

b) a grandeza alcançada pela instituição ao longo de cinqüenta anos (1952 – 2002), abrindo um enorme leque setorial com possibilidades de financiamentos a partir dos volumosos recursos do banco. Cabe mencionar que nestes cinqüenta anos o BNDES desembolsou cerca de R$ 500 bilhões, corroborando assim com a sua magnitude28. Com

28 O BNDES crescera de maneira tão expressiva que, em meados da década de 90, os retornos médios obtidos, em relação aos seus ativos, foi de 1,42% nos anos de 1992, 93 e 94, superando os de instituições

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um grande volume de recursos e poder de decisão sobre onde utilizá-lo, fica clara a posição do BNDES como um dos principais instrumentos do ordenamento territorial no Brasil;

c) o fato de ser uma instituição definida como a principal promotora do desenvolvimento do Brasil.

Este artigo tem o objetivo de apresentar o Estado brasileiro, na figura do BNDES, como um dos principais agentes do processo de ordenamento territorial do país, no período de cinco décadas (1952 – 2002). Para isso será utilizada uma periodização das atuações, proposta anteriormente (SILVA JUNIOR, 2004), a partir dos planos gerais e das execuções específicas, a fim de clarificar as transformações ocorridas nas políticas econômicas e a sua materialização no território nacional. Alguns marcos foram estabelecidos com base na quantidade de recursos disponibilizados para determinado setor, enquanto outros marcos foram estabelecidos pelas mudanças propostas pelo banco, sem que isso se apresentasse como um forte incremento dos financiamentos no setor incorporado.

Seguiremos a partir de agora a seguinte estrutura: • 1º período, 1952 – 1958: investimentos em infra-estrutura na preparação das

bases para o desenvolvimento industrial; • 2º período, 1959 – 1967: investimento em indústria de capital nacional estatal

e capital estrangeiro; • 3º período, 1968 – 1981: investimentos mais diversificados em outros ramos

da indústria, mas priorizando a iniciativa privada; • 4º período, 1982 – 1989: período da implementação da questão social como

preocupação do banco; e • 5º período, 1990 – 2002: fase de grande abertura nos financiamentos, quando

parte das empresas estatais financiadas pelo banco em décadas anteriores passa para as mãos da iniciativa privada.

1º PERÍODO (1952 – 1958) – INFRA-ESTRUTURA: CONDIÇÃO BÁSICA DO DESENVOLVIMENTO

O surgimento do BNDE29 foi parte de uma construção que visava à estruturação de um planejamento de desenvolvimento para o Brasil a partir de algumas bases essenciais, tendo o “Programa de Reaparelhamento Econômico” lugar de destaque e o banco como gestor de tal Programa. O Plano de Desenvolvimento iniciou-se com os estudos para obtenção dos recursos financeiros imprescindíveis à consecução do seu programa estabelecido em: “reaparelhamento de portos e dos sistemas de transporte; aumento da capacidade de armazenamento, frigoríficos e matadouros; elevação do potencial de energia; desenvolvimento das indústrias básicas; desenvolvimento da agricultura” (BNDE, 1952, p.32). Foi criado, então pelo Governo brasileiro, um adicional ao imposto de renda que foi aprovado pelo Congresso Nacional, em 26 de novembro de 1951, com o advento da Lei 1474, dando legitimidade jurídica ao novo órgão que surgiria oficialmente em 1952 – BNDE.

tradicionalmente poderosas na prática de financiamentos, como o BID com 1,15% e o BIRD com 0,81% (BNDES, 2000). 29 A instituição foi criada como Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, ainda sem a função social “S”, incorporado somente em 1982. Desta maneira, obedecerei a nomenclatura oficial dos períodos.

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Tanto a CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina), através do Grupo Misto de Estudos, quanto a Comissão Mista Brasil-EUA formularam os primeiros estudos e projetos, alinhavando as diretrizes do planejamento a ser executado pelo BNDE. Essas organizações promoviam as linhas de desenvolvimento a partir das indicações dos problemas existentes no país. A partir dessas diretrizes e, em consonância com a primeira parte do Plano de Metas, durante este primeiro período foram financiados 12930 projetos, entre os quais o setor de infra-estrutura, o qual foi contemplado com 91 projetos, enquanto o setor industrial ficou com o total de 38. Nesse período as linhas de financiamento do BNDE se restringiam em cinco setores: Energia, Transporte Ferroviário, Portos e Navegação, Armazenamento e Indústrias (BNDE, 1958).

Quando o BNDE foi criado, com a função de promover o desenvolvimento do Brasil via industrialização, encontrou uma estrutura territorial já bastante concentrada na Região Sudeste, apesar da incipiente desconcentração com vias de ocupação da fronteira agrícola. Segundo diversos autores, foi exatamente essa estrutura pré-existente que resultou em uma concentração produtiva na Região Sudeste, principalmente em São Paulo (FURTADO, 1974; LESSA, 1982; SANTOS, 2001).

Nesse primeiro período, o BNDE possuía o objetivo de priorizar os financiamentos em infra-estrutura a fim de dotar o território da materialidade necessária para uma efetiva integração econômica e, por conseguinte, desfazer o gargalo que freava o desenvolvimento industrial. Seguindo as orientações de gestores31, o BNDE priorizou os setores de energia e de transporte para que se consolidasse uma estrutura na qual o processo de industrialização pudesse ocorrer sem maiores problemas. Em conformidade com esta concepção, ocorreu o primeiro contrato ainda em 1952, assinado com a Rede Ferroviária Federal, possibilitando uma melhor ligação entre os três pólos dinâmicos do Sudeste: Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Na figura 1, pode-se notar a extrema concentração regional dos financiamentos concedidos nesse primeiro período, dotando a Região Sudeste da materialidade necessária ao desenvolvimento. Estes números se confirmam quando analisamos os números absolutos dos projetos beneficiados. Dos 128 projetos contratados, 86 se encontravam no Sudeste, corroborando a marca de 80% dos investimentos direcionados para esta área.

30 Nos dois primeiros períodos foi possível a quantificação em números absolutos dos financiamentos, porém, a partir do 3º Período, essa prática torna-se inviável com o exponencial crescimento do BNDES. 31 A idéia de uma classe social denominada de gestores, com forte influência nos estados, foi trabalhada anteriormente (SILVA JUNIOR, 2004) com base nas idéias de Bernardo (1999) e Oliveira (2003).

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Fonte: Relatórios de Atividades do BNDE (1952 – 1958).

Ao Sudeste coube também a maior variedade de setores financiados, englobando transporte ferroviário, energia e armazenamento, bem como as indústrias de base, capital e de consumo, indicando que essa região já teria condições de alocar um conjunto de indústrias de grande porte de forma a prosseguir com a política de substituição de importações, inserida em todas as fases do Plano de Metas (LESSA, 1982). Podemos citar como exemplos os financiamentos concedidos à Cia. Nacional de Álcalis, Indústria Reunidas de Ferro e Aço, Cia. de Eletricidade de Nova Friburgo (RJ), Cia. de Eletricidade do Médio Rio Doce e Cia. Força e Luz de Cataguases (MG), Fábrica Nacional de Vagões, Cia. Brasileira de Alumínio, Cia. Docas de Santos e Usina Elétrica do Paranapanema (SP). O Espírito Santo mostrou-se um corpo estranho nessa região, já que a sua ínfima participação (1%) foi representada por um único contrato: Usina Hidrelétrica de Rio Bonito.

As Regiões Sul e Nordeste possuíram estruturas internas bem desiguais. Com 81% dos financiamentos, o Rio Grande do Sul beneficiou-se de infra-estrutura em todos os setores, principalmente com a Comissão Estadual de Silos e Armazéns, Central Hidrelétrica de Jacuí e a Usina Termoelétrica de Candiota. No Nordeste, os estados da Bahia, Ceará e Pernambuco destacaram-se nesse período com 51%, 17% e 16%, respectivamente, dos financiamentos principalmente para Centrais Elétricas estaduais. Na Região Norte, somente o estado do Amazonas recebera financiamentos nesse período, como a Cia. de Petróleo da Amazônia e os Serviços Elétricos do estado. A Região Centro-Oeste obteve um grande equilíbrio entre seus dois estados. Goiás com 55% e Mato Grosso com 45% receberam os principais financiamentos destinados à Cia. Hidroelétrica de São Patrício e Estrada de Ferro Goiás (GO), Estrada de Ferro Noroeste do Brasil e Matadouro Industrial Campo Grande S.A. Com isso, as condições para o novo período estavam sendo construídas e proporcionariam novas concepções.

Figura 1: Investimentos do BNDE de 1952 a 1958.

0,51% 2,60% 4,73% 11,68%

80,49%

0,00% 10,00% 20,00% 30,00% 40,00% 50,00% 60,00% 70,00% 80,00% 90,00%

Norte Nordeste Centro- Oeste Sul Sudeste

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2º PERÍODO (1959 – 1967) – INDUSTRIALIZAÇÃO COM GRANDE DEMANDA DAS ESTATAIS E DAS EMPRESAS ESTRANGEIRAS

Politicamente, um dos marcos desse período foi a consolidação do Plano de Metas, baseado em estudos realizados pela Comissão Mista CEPAL/BNDE. A partir de 1959 o BNDE pôde enfatizar os financiamentos nas indústrias, principalmente nos setores de base e de capital, para as estatais, e de capital e consumo para as estrangeiras. Nesse segundo período, dos 275 contratos assinados, 73 foram destinados para o setor de infra-estrutura, dos quais 48 foram para o eixo de energia. O setor industrial foi agraciado por 169 contratos, sendo que às indústrias de base foram destinados 65 financiamentos e às indústrias de capital e de consumo foram destinados 78 e 26 financiamentos, respectivamente.

Outra característica predominante desse período foi a criação de algumas linhas de crédito específicas para determinada área, a partir da implementação de fundos geridos pelo BNDE. Cabe sublinhar que não houve a necessidade da criação de novas fontes de receita para o banco. Esses fundos foram possíveis graças ao aumento das receitas do banco, via pagamento dos primeiros financiamentos concedidos, bem como a prorrogação do prazo de cobrança do adicional do imposto de renda, maior fonte de recursos do BNDE até então.

Dessa maneira, em 1964, surgiu o FINAME (Fundo de Financiamento para Aquisição de Máquinas e Equipamentos Industriais), com o objetivo de incentivar a força competitiva do maquinário nacional. Esse fundo, destinado a compra de maquinaria necessária à determinada produção, exigia que houvesse um mínimo de componentes fabricados internamente no Brasil, contribuindo para a política de crescimento da indústria brasileira. Pretendia-se com o FINAME aumentar a capilaridade dos financiamentos concedidos, através de uma rede que refinanciava a compra e venda das máquinas. Criado como Fundo, em 1966 pelo decreto 5.9170, o FINAME transformou-se em autarquia, com o nome de Agência Especial de Financiamento Industrial, obtendo assim maior autonomia nas suas decisões. Pela resolução 146 de 1964 é criado também o FUNTEC (Fundo de Desenvolvimento Técnico e Científico). O objetivo desse fundo era financiar cursos de pós-graduação, ainda em pequena quantidade no Brasil, formando-se, dessa maneira, um corpo técnico de qualidade, possibilitando a autonomia rumo ao desenvolvimento também no quesito recursos humanos.

Na dinâmica espacial, esse período traz consigo uma clara mudança nos seus objetivos, já que aparece pela primeira vez, nos relatórios de atividades, a preocupação com as desigualdades regionais. Nesse sentido, entra oficialmente na pauta de objetivos do BNDE o investimento em busca da diminuição das disparidades econômicas regionais, conformando-se como condição sine qua non para o desenvolvimento do modo de produção capitalista e a integração nacional. Consolida-se, portanto, a partir desse período, a contradição própria desse sistema na dualidade concentração/desconcentração, que pode ser analisada a partir da figura 2:

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Fonte: Relatórios de Atividades do BNDE (1959 – 1967).

Nota-se que as duas atuais principais regiões econômicas do Brasil sofreram diminuições comparativas. Enquanto Sul e Sudeste somaram 93% dos financiamentos do primeiro período, nesse segundo o total caíra para 80%. Conseqüentemente, as outras três regiões obtiveram aumentos significativos, tendo a Região Centro-Oeste o dobro da sua participação anterior, bem como as Regiões Norte e Nordeste, incrementos ainda mais significativos. Essa mudança, de um período para o outro, pode ser encarada como um processo natural, haja vista a preocupação crescente com a integração econômica do país, principalmente a partir dos governos militares, dotando o território dos pré-requisitos materiais para a expansão produtiva. Essa tendência, contudo, não desabona a forte concentração espacial ocorrida nesses dois períodos. Seguindo o mesmo padrão, é a Região Sudeste que concentra a maior diversidade de setores, cabendo ao setor industrial os maiores impactos na divisão dos recursos do BNDE. Com 44% dos financiamentos, São Paulo destaca-se no Sudeste, seguido por Minas Gerais com 30%, Rio de Janeiro com 19% e Espírito Santo com 7%. Podemos citar os financiamentos para a Barragem de Três Marias, Cia. Siderúrgica Mannesmann, USIMINAS (MG), Cia. Metropolitana de Aços, Estaleiro Ishikawajima do Brasil, CSN – Companhia Siderúrgica Nacional (RJ), Cia. Vale do Rio Doce (MG/ES), Metalac S.A., Cosipa (Companhia Siderúrgica Paulista), Cia. Brasileira de Estireno e Willys Overland do Brasil (SP).

Na Região Sul, o Rio Grande continua com forte concentração somando 75% dos financiamentos, seguido pelo Paraná com 20% e Santa Catarina com 5%. Já na Região Centro-Oeste houve um acréscimo na concentração em Goiás, com 71 % contra 29% de Mato Grosso. A Região Norte concentrou seus financiamentos nos estados do Amazonas, com 59%, e do Pará com 41%, contudo, pela primeira vez, os estados do Acre e de Rondônia forma beneficiados. Em Rondônia, recebeu financiamento a Empresa de Mineração da Amazônia S.A., enquanto o Acre recebeu financiamento através do banco de crédito da Amazônia, atuante em toda a região. Esse financiamento no Acre é um exemplo

Figura 2: Financiamentos do BNDE de 1959 a 1967.

3,57%7,74% 7,64%

16,74%

64,32%

0,00%

20,00%

40,00%

60,00%

80,00%

100,00%

Norte Nordeste Centro-Oeste Sul Sudeste

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da nova política do BNDE, qual seja, conceder investimentos através de rede credenciada de bancos de desenvolvimento, contribuindo para a possibilidade de desconcentração espacial dos recursos.

Da mesma forma que as duas regiões anteriores, o Nordeste, apesar de receber uma porcentagem mais elevada no montante total, manteve sua estrutura de concentração interna. Bahia, com 55%, e Pernambuco, com 26%, aglutinaram 81% dos financiamentos concedidos ao Nordeste. Na Bahia, podemos destacar a Cia. Acumuladores Prest-O-Lite, na produção de baterias para automóveis e a Cia. de Indústrias Químicas do N.E., e, em Pernambuco, a Cia. Pernambucana de Borracha Sintética. 3º PERÍODO (1968 – 1981) A EMPRESA PÚBLICA PRIORIZANDO AS EMPRESAS PRIVADAS

O período de fortalecimento das empresas controladas pela iniciativa privada, coincide com a década na qual tradicionalmente se remete ao processo de descentralização regional. Essa década é consagrada por diversos autores como sendo os anos das melhores distribuições espaciais do setor produtivo, principalmente em referência à Região Nordeste. Segundo os objetivos principais do próprio BNDES, essa é uma das principais metas e que vem sendo atingida de maneira cada vez mais efetiva, como apresentado a seguir:

Fonte: Relatórios de Atividades do BNDE (1968 – 1981). Numa primeira observação, o processo de desconcentração espacial se confirma nas

atuações do BNDE, principalmente em relação ao Nordeste, que apresenta um incremento significativo. Enquanto sua participação passa de 8% para 19%, a participação do Sudeste decresceu 6 pontos. Já a Região Sul manteve a mesma proporção. As Regiões Centro-Oeste e Norte, contudo, continuaram com participações ínfimas do volume brasileiro, resultando inclusive em declínio de suas participações em comparação ao período anterior. Essas pequenas participações ocorreram, apesar de algumas aplicações de programas que tinham o objetivo de beneficiar as regiões menos favorecidas, como o PRODOESTE (Programa de

Figura 3: Financiamentos do BNDE de 1968 a 1981.

1,35%

19,69%

2,99%

17,01%

58,96%

0,00%

10,00%

20,00%

30,00%

40,00%

50,00%

60,00%

70,00%

Norte Nordeste Centro-Oeste Sul Sudeste

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Desenvolvimento do Centro-Oeste) e a SUDAM (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia). Os maiores favorecidos por esse programa foram as rodovias que interligavam as áreas de produção agropecuária dos estados. No mesmo ano, foi criado também o PROTERRA (Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e do Nordeste), beneficiando as indústrias de produtos agrícolas. Ainda nesse período surgiram três novas empresas ligadas ao BNDE: Embramec (Empresa Mecânica Brasileira S.A.), FIBASE (Financiamentos de Insumos Básicos S.A.) e IBRASA (Investimentos Brasileiros S.A.), com o objetivo de financiar diretamente empresas de capital privado nacional e de diferentes setores, para consolidar o chamado tripé produtivo. (NAJBERG, 1989).

A estrutura interna da Região Sudeste continuou a mesma dos períodos anteriores. São Paulo com 45% continuou com a liderança e confirmou a tendência do período com financiamentos para Ripasa Celulose e Papel, Indústrias Reunidas F. Matarazzo, Pirelli S.A. e a Usina da Barra Açúcar e Álcool. Duas questões, contudo, devem ser sublinhadas. O Rio de Janeiro concentrou seus financiamentos ainda nas empresas públicas como a Petrobrás, CSN, RFFSA (Rede Ferroviária Federal S.A.) e mesmo a Embrafilmes, fugindo da tendência do período. Já o Espírito Santo recebeu considerável volume de financiamentos graças à criação da Aracruz Celulose S.A., apesar de ter se beneficiado de financiamentos para a Cia. Vale do Rio Doce, para melhorias da infra-estrutura direcionadas às exportações do minério de ferro extraído de Minas Gerais.

A Região Sul obteve uma significativa transformação na distribuição dos recursos, com um maior equilíbrio entre os estados. O Rio Grande do Sul, com 47%, recebeu suas principais contribuições para a Indústria de Celulose Borregaard, Refrigeração Springer e, principalmente, para o Pólo Petroquímico de Triunfo. O Paraná, com 35%, teve como destaques os financiamentos para a Usina Hidroelétrica de Itaipu e o DER (Departamento de Estradas de Rodagem) do estado, fugindo à característica do período. Já em Santa Catarina, com 18%, destacaram-se os financiamentos para Papel e Celulose Catarinense S.A., Fundição Tupy e a Indústria têxtil Hering. A Região Centro-Oeste manteve a concentração no estado de Goiás com 54%, destacando-se os recursos direcionados para a Goiás Fertilizantes S.A. e a Centrais Elétricas do estado. Já Mato Grosso, com 26%, e Mato Grosso do Sul, com 7%, concentraram seus financiamentos no setor agropecuário ou indústrias ligadas aos produtos agrícolas, tendência do período na região. Podemos citar como relevantes os financiamentos para a Fazenda Bodoquema S.A., Laticínios Campo Grande e da Cifra-Agropecuária. O Distrito Federal, com 13%, concentrou seus financiamentos no setor de construção, como por exemplo, a Cimento Tocantins S.A. A Região Norte, apesar do aumento de estados na participação dos recursos, manteve a concentração entre os estados do Pará e do Amazonas com 46% e 45%, respectivamente. No estado do Amazonas, a Zona Franca de Manaus foi a grande beneficiada, com volumosos recursos direcionados para as indústrias de eletroeletrônicos estrangeiras e para a empresa de cimento Votorantim. O estado do Pará também concentrou seus financiamentos na região do Projeto Carajás, bem como em áreas interligadas. Como destaques, temos a Cia. Vale do Rio Doce, Alunorte Alumina do Norte do Brasil e a Alumínio Brasileiro S.A.

A Região Nordeste, contudo, é a que merece maior cuidado na sua divisão. Apesar do significativo crescimento no montante total do país, a divisão interna continuava extremamente desigual, com o estado da Bahia se apresentando como o maior beneficiário da chamada desconcentração regional. Se a Região Nordeste obteve um significativo

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aumento de 12% em relação ao segundo período, tal fato foi acompanhado pelo crescimento de 9% da Bahia, somando 64% de todos os financiamentos destinados à Região Nordeste. Houve, por certo, uma melhor distribuição entre os demais estados, não existindo um segundo estado com taxas de destaque, contudo, esse dado apenas corrobora a extrema desigualdade baiana em relação aos demais componentes da região. Quatro setores poderiam ser declarados como os principais responsáveis por essa concentração. O primeiro foi o setor de Papel e Celulose, com destaque para a Bahia Sul Celulose e a expansão da Aracruz Celulose. O segundo setor foi o agroindustrial, ligado ao programa pró-álcool. O terceiro foi o de infra-estrutura, necessário para comportar “o milagre econômico baiano” (SILVA JUNIOR, 2004), merecendo destaque a Cia. de Eletricidade do Estado da Bahia e o DER estadual. O último setor e, certamente o mais importante foi o Pólo Petroquímico de Camaçari, que recebeu um farto financiamento para uma constelação de empresas, como a Indústrias Químicas do Nordeste, Ultramold Resinas Sintéticas S.A. e a Petroquisa. Poderíamos ainda citar os estados de Pernambuco com 10%, graças às indústrias têxteis e ao setor agropecuário ligado ao álcool, e de Alagoas com 9%, principalmente através da Petroquisa, e o Ceará, com 5%, também relacionado com o setor têxtil. Desse modo podemos até aceitar a idéia de desconcentração regional, mas devemos sempre analisar o interior das regiões para compreender nuances do ordenamento territorial macroeconômico.

4º PERÍODO (1982 – 1989) ENFIM O SOCIAL COMO SINÔNIMO DE DESENVOLVIMENTO

Depois de inúmeras transformações, temos o início deste 4º período a partir de um marco que certamente é um dos mais importantes de toda a história do BNDE. Até porque, esse marco envolveu a ampliação das suas atribuições, culminando com a nova denominação – BNDES. Outras importantes mudanças, porém, ocorreram nesse período.

No âmbito das subsidiárias, as empresas Embramec, FIBASE e IBRASA, que atuavam na capitalização de empresas de capital nacional privado, cada uma priorizando determinado setor, unificaram-se em uma única empresa denominada de BNDESPAR (BNDES Participações). O FINAME, por sua vez, preservara sua estrutura e as tradicionais atividades de financiamento à comercialização de máquinas e equipamentos produzidos no Brasil. O Sistema BNDES seria formado a partir de 1982 pelo BNDES e suas duas subsidiárias – FINAME e BNDESPAR, estrutura vigente até hoje. Outro programa criado nesse período, mas que se origina de políticas implementadas no período precedente, é o PROEX (Programa de Apoio ao Incremento das Exportações), destinado ao beneficiamento das empresas que contribuíam para o equilíbrio da balança comercial, principalmente em um período com altas taxas de inflação.

Foi nesse período também que ocorreu outra mudança nos recursos do BNDES. Após a redemocratização do país, foi promulgada a Constituição de 1988 na qual foram extintas as contribuições do PIS/PASEP e se implementou o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador). Essa transformação significou também mudanças para o BNDES, que a partir desse ano contaria com 40% do novo fundo, como uma das principais fontes de recursos para sua administração. Temos o prosseguimento da lógica dos trabalhadores financiando a possibilidade de desenvolvimento do Brasil e, mais uma vez, a confirmação da necessidade de uma responsabilidade pública nos projetos beneficiados pelo BNDES.

O marco desse período, entretanto, foi a implementação do “S” ao nome do Banco. Após trinta anos de desenvolvimento econômico, enfim agrega-se, oficialmente, a noção de

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social ao desenvolvimento brasileiro. A decisão do governo federal, de implementar o Finsocial (Fundo de Investimento Social)32, atribuindo a gestão ao BNDE, culminou não só com a mudança na denominação como também agregando mais uma função. Através do Decreto-lei 1.940 de 25 de maio de 1982 foi instituído o Finsocial ficando a cargo do BNDES. Esse recurso deveria ser direcionado principalmente para os setores de alimentação, habitação popular, saúde, educação e amparo ao pequeno agricultor, mostrando uma nova disposição do BNDES. Fica bastante claro que toda a concepção de crescimento induzido, elaborada e defendida pelos governos antecessores, não havia dado conta das profundas desigualdades existentes no país. Pregava-se que a partir do desenvolvimento industrial, principalmente dos setores de base e de capital, toda a economia acompanharia tal crescimento, fazendo com que o desenvolvimento se espraiasse por toda a população. Somente o fato de se oficializar a necessidade de ações para a diminuição das desigualdades sociais mostra que a concepção fracassara.

Nos últimos anos de existência do Finsocial, já que em 1990 ele deixara de existir, foram lançados vários programas, dos quais alguns se mostraram contraditórios com a noção de desenvolvimento social. Foi implementado um projeto de informatização do sistema penitenciário, no qual o objetivo era a maior segurança no tratamento com indivíduos considerados de alta periculosidade. Outro programa foi o destinado a empresas privadas que mantivessem alguma iniciativa em projetos sociais. A primeira empresa a se beneficiar foi a Aracruz Celulose, que recebera financiamentos do BNDES, desde a criação da empresa em 1972, de todas as linhas existentes no banco. Os recursos do Finsocial destinados a Aracruz seriam para construção e reforma de escolas, creches, hospitais e postos de saúde em municípios do Espírito Santo e da Bahia. Corroborando mais uma vez que o tal “crescimento induzido” viciara-se nos recursos públicos.

Apesar desse 4º período ser marcado como o período da introdução da preocupação do social nas questões do BNDES, as porcentagens destinadas a esse novo setor decaíram no decorrer do período. Não se deve comparar, a partir de volumes investidos, setores tão díspares como indústria e social. Contudo, não podemos deixar de ressaltar a efetiva queda das porcentagens destinadas ao social, que culminou com a extinção dessa linha de financiamento em 1990. De 15% em 1983 e 1984, esse setor alcançou apenas 3% e 1%, do total financiado pelo BNDES, nos dois últimos anos de vigência do fundo.

Na figura 4 podemos notar que a estrutura de concentração permaneceu, tendo a Região Sul ficado com a mesma proporção dos períodos anteriores. As Regiões Norte e Centro-Oeste obtiveram crescimentos razoáveis, enquanto o Nordeste manteve seu patamar, em relação ao período anterior. Já o Sudeste, apesar da grande concentração, apresentou uma ligeira queda, aproximando-se pela primeira vez do patamar abaixo dos 50%.

32 Finsocial, assim como o Funtec, foi constituído como fundo perdido, não estando vinculado aos juros e taxas de devolução.

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Fonte: Relatórios de Atividades do BNDES (1982 – 1989).

Na Região Sudeste, a tendência dos períodos anteriores só é quebrada com a superação do Rio de Janeiro, com 25% dos financiamentos, sobre Minas Gerais, com 22%. São Paulo continuava com o maior volume de recursos da região somando 49% e o Espírito Santo com apenas 4%. Cabe mencionar que a região foi a que menos recebeu investimentos do Finsocial, com o setor de habitação, via BNH, sendo o maior beneficiário. Na Região Sul, também se manteve a tendência de equilíbrio entre estados, sendo que, nesse período, o Paraná figurava com 51%, seguido do Rio Grande com 29% e de Santa Catarina com 20%. Em relação ao Finsocial, houve grande demanda em 1983 e 1984 devido às fortes enchentes que atingiram partes dos três estados. No Centro-Oeste, o setor agropecuário continuava figurando como o principal beneficiário. Contudo, merece relevância os financiamentos para o Porto de Corumbá e para a Empresa de Energia Elétrica do Mato Grosso do Sul, contribuindo com os 16% do estado. Goiás, com 43%, e Mato Grosso, com 29%, continuavam com a maior concentração da região. Já a Região Norte foi a que apresentou a maior taxa de concentração. O Pará, com 75%, continuava a concentrar os investimentos no Projeto Carajás e adjacências, como a Cia. Vale do Rio Doce e a ALBRÁS (Alunínio Brasileiro S.A.). Perdendo muitos financiamentos, o Amazonas, com 14%, ainda priorizava as empresas da Zona Franca, como a Sharp Equipamentos Eletrônicos e a CCE da Amazônia. Todos os estados foram anualmente beneficiados com o Finsocial, como o Conselho Nacional de Seringueiros no Acre e a Fundação Papa João XXIII no Pará.

A Região Nordeste obteve uma melhora nos desequilíbrios internos, já que a Bahia, pela primeira vez, obteve uma taxa inferior aos 50%. Dos 46% do estado, o Pólo Petroquímico de Camaçari e o DER figuraram como os principais beneficiários. Pernambuco, com 13%, Maranhão, com 9%, graças a Cia. Vale do Rio Doce e às Centrais Elétricas do estado e o Ceará, com 9%, foram os que mais receberam recursos. Por fim, cabe ressaltar que, apesar da diminuição das porcentagens no decorrer do período, os

Figura 4: Investimentos do BNDES de 1982 a 1989.

7,06%

20,94%

4,04%

17,21%

50,75%

0,00%

10,00%

20,00%

30,00%

40,00%

50,00%

60,00%

Norte Nordeste Centro-Oeste Sul Sudeste

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recursos do Finsocial foram direcionados em sua maioria para a Região Nordeste, principalmente via SUDENE e governos dos estados, corroborando com a necessidade de revisão das políticas desenvolvimentistas. 5º PERÍODO (1990 – 2002) EXTINÇÃO DAS EMPRESAS ESTATAIS

Esse último período inicia-se com um BNDES extremamente modificado em comparação àquele órgão criado na década de 50, já que o banco mudara suas prioridades, buscando acompanhar as diversas transformações que afetaram o mundo e, precisamente, o Brasil. Muitas dessas mudanças tiveram, certamente, grande contribuição do BNDES, sendo que outras estavam em pleno surgimento.

As idéias liberais voltavam a emergir como a grande salvação dos países que pleiteavam uma condição mais favorável na nova ordem mundial, extremamente competitiva e desigual. Se os períodos precedentes foram pautados em uma integração nacional, segundo as diferentes ideologias desenvolvimentistas, o atual período é baseado na idéia de integração mundial, tendo a globalização como palavra de “ordem e progresso”. Sendo assim, algumas medidas se faziam extremamente necessárias. A principal delas, tida como modelo dos países desenvolvidos, era o enfraquecimento do Estado através de um processo de enxugamento dos seus aparelhos e atribuições (BECKER, 1988; TAVARES, 1999; OLIVEIRA, 2004). É nesse contexto, que temos o marco de início desse 5º período de atuações do BNDES.

O PND (Programa Nacional de Desestatização) foi criado seguindo a lógica de que esse processo era parte fundamental das reformas estruturadas, que visavam à chamada modernização do Estado brasileiro. Vinculado ao PND foi criado o FND (Fundo Nacional de Desestatização), o qual possuía o BNDES como gestor a fim de servir de lugar para depósito das ações, ou cotas emitidas, pelas empresas de propriedade direta ou indireta da União, cujas alienações fossem aprovadas pela Presidência da República. Na posição de gestor do FND, o BNDES teria o objetivo de dar suporte técnico, administrativo, financeiro e material ao Programa de Desestatização. O processo de privatização prosseguiu por todo o período (1990 – 2002), sendo que alguns leilões foram cercados de calorosas discussões, deixando em alerta a idéia de que o PND era “fruto da vontade da sociedade”. Dentre alguns desses leilões, podemos destacar o da CSN, símbolo do período nacional desenvolvimentista pautado nas empresas estatais, o da Cia. Vale do Rio Doce, bem como a grande maioria dos bancos estaduais.

Outra característica desse período foi a grande abertura nas possibilidades de financiamento. Enquanto nos primeiros períodos existiam regras extremamente limitadoras, nesse último, devido ao expressivo crescimento do banco, uma série de linhas de crédito foram abertas a fim de dar uma cobertura a praticamente todos os setores. Alguns dados merecem ser ressaltados, no que diz respeito à ampliação do leque de investimentos do banco, como é o caso do financiamento ao empreendimento New York City Center, shopping center localizado na Barra da Tijuca, bairro ocupado principalmente pelas classe média e alta do Rio de Janeiro. Outro exemplo que sublinha tal concepção é que, de 1998 a 2002, o BNDES financiou 59 universidades pelo país, via FUNTEC, sendo que somente quatro eram públicas.

O período anterior mostrou uma tendência à desconcentração regional, apesar da manutenção das deformidades internas. Nesse período, será que a tendência se confirmou? Observemos a distribuição regional na figura 5:

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Fonte: Relatórios de Atividades do BNDES (1990 – 2002).

A distribuição regional não somente continuou concentrada, como esse processo se

acentuou em relação ao período anterior. Nota-se que, mais uma vez, as Regiões Sul e Sudeste, somadas, aglutinaram 75% dos desembolsos efetuados pelo BNDES. Além dessas duas regiões terem apresentado acréscimos nos seus desempenhos, a Região Nordeste, que se mantinha em uma crescente, apresentou uma queda substancial. A região Norte seguiu seu padrão gangorra e a região Centro-Oeste apresentou significativo aumento, que pode ser explicado pelo fato do aumento de financiamentos destinados para o setor agroindustrial, bem como da materialidade necessária para esse setor. Temos nesse período uma espécie de repetição da idéia de “exportar é o que importa”, emblemática dos governos militares, e que enxergam no setor agropecuário o principal filão da implementação dessa política (BACELAR, 2000).

Internamente, na Região Sudeste, foi o período de maior concentração de São Paulo, com 61% dos financiamentos regionais e maior diversificação de setores. Merecem destaque a Cia. Votorantim, Cia. Suzano de Celulose e a EMBRAER (Empresa Brasileira de Aeronáutica S.A.) O Rio de Janeiro, com 20 %, obteve pela primeira vez um equilíbrio entre o setor público e o privado, com destaques para a Petrobrás, Gerdau, CSN e Estaleiros Mauá. Minas Gerais, que diminuiu a sua porcentagem, possuiu como principais beneficiadas a Construtora Mendes Júnior, a FIAT e a AÇOMINAS. Por sua vez, o Espírito Santo continuou com 4% direcionados principalmente para Cia. Siderúrgica de Tubarão e Aracruz Celulose. A Região Sul possuiu o maior equilíbrio nos financiamentos com 38% para o Rio Grande do Sul, 34% para o Paraná e 28% para Santa Catarina. Dentre outros, podemos citar os financiamentos para Sadia S.A., Grendene e Riocell Papel e Celulose. No mesmo sentido da Região Sul, o Centro-Oeste também apresentou o maior equilíbrio dentre todos os períodos. Goiás com 31%, Mato Grosso com 27%, Distrito Federal com 26% e Mato Grosso do Sul com 16%, mais uma vez foram marcados pelo setor agropecuário, como a Caramuru Alimentos, Cervejaria Kaiser e Usinas Agroindustriais Itamarati. O grande salto do Distrito Federal se deu graças aos financiamentos direcionados aos Correios Brasileiros e à Brasil Telecom. Diferentemente das duas regiões anteriores, a Região Norte

Figura 5: Iinvestimentos do BNDES de 1990 a 2002.

3,63%

12,91% 8,30

%

17,75%

57,40%

0,00%

10,00%

20,00%

30,00%

40,00%

50,00%

60,00%

70,00%

Norte Nordeste Centro-Oeste

Sul Sudeste

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apresentou mais uma vez grande concentração dos principais estados. Pará, com 63% e Amazonas, com 20% mantiveram a tendência de financiamentos para os pólos de Carajás e Manaus. Tocantins já figura como a terceira força da região com 10% dos financiamentos, com destaques para a Cia. de Eletricidade do Estado e para Andrade Gutierrez Construções. O Nordeste, da mesma forma, continuou a apresentar um desequilíbrio interno. Ao mesmo tempo em que a região perdeu volume total do país, aumentou ainda mais a concentração no estado da Bahia, com 50% dos financiamentos regionais. Pernambuco, com o porto de Suape e Ceará, com a indústria têxtil, ambos com 12%, seguiram com posição de destaque enquanto o Maranhão confirmava-se como a quarta força da região, com 7%. É relevante, por fim, ressaltar que muitas empresas públicas que foram financiadas com os recursos públicos do BNDES, nesse período foram vendidas para a iniciativa privada que, por sua vez, também recebeu financiamentos para efetivar as compras. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É inegável o importante papel do BNDES como ator do ordenamento territorial brasileiro. Contudo, no decorrer dos períodos aqui apresentados, as transformações não foram muito significativas quando falamos de desconcentração dos investimentos e diminuição das disparidades espaciais. Do total desembolsado pelo BNDES, nos cinqüenta anos de análise, o estado de São Paulo foi o grande beneficiário, respondendo sozinho com 30% do total – cerca de 500 bilhões de reais. Não é por acaso que o estado se apresentou como o grande concentrador da principal região brasileira nos cinco períodos propostos. Essa concentração paulista torna-se ainda mais efetiva quando percebemos que o Rio de Janeiro, segundo lugar nos financiamentos totais, concentrou 12% dos recursos do banco. Esses dois estados, somados ao estado de Minas Gerais, terceiro colocado, com 11%, conferem mais clareza à forte concentração do Sudeste. Com 9% dos financiamentos, o estado da Bahia apresenta-se como uma espécie de outdoor da Região Nordeste, sendo claramente um dos estados que apresenta o maior grau de concentração dentro da sua região. Pernambuco, que aparece em segundo lugar na Região Nordeste, é o único que alcança a taxa de 2%, deixando apenas 1% para cada um dos outros estados, escamoteando, dessa maneira, a noção de desconcentração regional.

O Brasil possui uma tradição de pensar o seu desenvolvimento, prioritariamente, nos grandes projetos nacionais, negligenciando que, muitas vezes, a grandiosidade do desenvolvimento poderia ser pensada a partir de soluções consideradas pequenas, porém extremamente igualitárias. Os grandes projetos nacionais transformam-se muitas vezes em uma territorialidade alienígena, apropriada por seletivos grupos econômicos (SANTOS, 2001). Na maioria das vezes quem se beneficia desses grandes projetos são unicamente as grandes corporações, seja do setor de mineração, química, celulose ou mesmo as empreiteiras, que lucram valores exorbitantes a partir da demanda criada e dos créditos disponibilizados.

Essas considerações finais, contudo, mais do que pôr um ponto final, remetem a novos questionamentos extremamente importantes e que necessitam de uma investigação profunda. A Geografia não deve negligenciar a análise de importantes atores, como o BNDES, na construção de um modelo de ordenamento territorial do Brasil extremamente seletivo, direcionado basicamente para os detentores de poder político e econômico. Por isso, é de fundamental importância procurar entender essa geografia do poder, de maneira que, com consciência, busquem–se alternativas de desenvolvimentos socioespaciais mais igualitários.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BACELAR, T. Dinâmica regional brasileira nos anos noventa: rumo à desintegração econômica. In: CASTRO, I. E. de; EGLER, C. A. G. (Org.) Redescobrindo o Brasil: 500 anos depois. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, p. 73 – 89, 2000. BECKER, B. Questões sobre tecnologia e gestão do território nacional. In: Tecnologia e gestão do território. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1988. BERNARDO, J. Economia dos conflitos sociais. São Paulo: Cortez, 1991. BNDES. Relatórios de atividades. Rio de Janeiro: CEDOC, 1952 – 2002. BNDES. 30 anos de BNDES: avaliação e rumos. Rio de Janeiro: Área de Planejamento – CEDOC, 1982. FURTADO, C. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. LESSA, C. 15 anos de política econômica. São Paulo: Brasiliense, 1982. MONTEIRO FILHA, D. C. O BNDES e seus critérios de financiamento industrial: 1952 a 1989. In: BNDES: um banco de idéias – 50 anos refletindo o Brasil. Rio de Janeiro: BNDES, p. 65-89, 2002. NAJBERG, S. Privatização dos recursos públicos: os empréstimos do sistema BNDES ao setor privado nacional com correção monetária parcial. Dissertação (Mestrado) – Departamento de Economia, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 1989. OLIVEIRA, F. de. Há vias abertas para a América Latina? In: BORON, A. A. Nova hegemonia mundial: alternativas de mudanças e movimentos sociais. Buenos Aires: CLACSO, p. 111 – 118, 2004. OLIVEIRA, F. de. Crítica à razão dualista – o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003. SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro / São Paulo: Record, 2001. SILVA JUNIOR. G. O. BNDES: importante ordenador do território brasileiro. 2004. Dissertação (Mestrado) – Departamento de Geografia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004. TAVARES, M. da C. Império, território e dinheiro. In: TAVARES, M. da C.; FIORI, J. L. (Org.) Estados e moedas no desenvolvimento das nações. Petrópolis: Vozes, p.167-190, 1999.

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A MOBILIZAÇÃO DOS TERRITÓRIOS PARA O DESENVOLVIMENTO DE ARRANJOS PRODUTIVOS

LOCAIS: GÊNESE, ASPECTOS CONCEITUAIS E BASES METODOLÓGICAS

ÉLSON LUCIANO SILVA PIRES Universidade Estadual Paulista (UNESP)

Rio Claro – SP [email protected]

ADRIANA RENATA VERDI Instituto de Economia Agrícola (IEA) do Estado de São Paulo

São Paulo – SP [email protected]

INTRODUÇÃO

As configurações espaciais dos eventos característicos da economia mundial emergente podem ser apreendidas como um mosaico de regiões e de localidades produtivas especializadas, articuladas entre si e detentoras de processos complexos de crescimento endógeno. Tais regiões e localidades, além de proporcionarem nova lógica de dependências no espaço mundial, apresentam-se em diversos estágios e processos de desenvolvimento, desde simples aglomerações espaciais produtivas, passando por aglomerações especializadas em determinados setores econômicos até aglomerações com condições ideais de produção de especificidades e inserção territorial dos agentes presentes. Esse terceiro estágio de desenvolvimento das aglomerações implica na vigência de coordenação entre os agentes, na manutenção de proximidades mais complexas entre estes, na conformação de projetos coletivos e na criação de condições necessárias para o desenvolvimento de processos de territorialização, ou seja, na conformação de verdadeiros territórios. Tendo em vista essa perspectiva teórica, ao analisar as concepções, processos e experiências dos arranjos produtivos locais, procuramos contribuir para o debate acadêmico e político atual sobre Território: a territorialidade deve ser pensada como um atributo do território, tal como entendido desde sempre, ou como uma articulação complexa de interações entre fluxos, estruturas e instituições? Quais argumentos teóricos, empíricos e práticos podem sustentar a idéia que o território é uma construção social resultado de uma regulação coletiva? Que condições (tecnológicas, culturais, políticas ou outras) são requeridas para que o território, assim concebido, se posicione como o agente mais importante do desenvolvimento local e regional?

As respostas a essas questões devem mostrar como as novas teorias e as estratégias de desenvolvimento territorial local e regional sugerem novos elementos ao debate teórico e às expressões territoriais de situações diversas, como as apresentadas pelo Brasil. Nos últimos anos, é cada vez mais evidente a idéia de que o desenvolvimento localizado e dependente de ativos e recursos específicos próprios a certas localidades e regiões (“capital

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natural”, “capital humano”, “capital social”, “capital simbólico”) é a principal via de indução do desenvolvimento territorial local e regional. É nesse quadro que os APLs (Arranjos Produtivos Locais) vêm ganhando importância e conformando um mosaico de regiões produtivas e competitivas, que revelam identidades culturais próprias e experiências locais de desenvolvimento. Nos territórios de APLs são produzidos os recursos específicos necessários para o desenvolvimento territorial regional das nações.

Para expor esse raciocínio, estruturamos o artigo em três seções. A primeira, de caráter mais geral e de suporte para o entendimento dos aspectos teóricos da análise do território nas ciências sociais e seus vínculos com a análise dos recursos da dinâmica territorial. Uma das preocupações centrais consiste em estabelecer as relações entre os ativos e os recursos locais – especificidades, competitividade, solidariedade e cidadania – e as possibilidades de pô-los em marcha. A segunda seção estende essas abordagens às análises dos Arranjos Produtivos Locais, para reconciliá-las com as origens e os fatores explicativos das teorias e práticas do desenvolvimento territorial. A terceira seção conclui o artigo. Trata-se de sugerir a articulação entre os papéis das instituições e das organizações públicas e privadas com a competitividade e a governanca dos Arranjos Produtivos Locais, situando-a no debate contemporâneo da geografia do desenvolvimento, como uma maneira de estimular o pensamento e a ação estratégica local e regional na lógica nacional e global dos desenvolvimentos territoriais possíveis. O TERRITÓRIO PRODUTIVO NA DINÂMICA DE REGULAÇÃO DO ESPAÇO O conceito de território local em ação

Conforme tem sido abordado por vários autores, as novas tecnologias da informação e da comunicação estão influenciando todos os processos produtivos, as formas de organização do trabalho, a gestão empresarial e os modos de regulação dos processos socioeconômicos. Em tais circunstâncias, é necessário pensar além do “espaço” como suporte geográfico, já que o essencial é como introduzir inovações tecnológicas sociais e organizacionais no emaranhado tecido produtivo e empresarial, para o qual é preciso definir as novas formas de ação das administrações públicas. Estas devem incentivar o fomento produtivo e a negociação estratégica entre atores que buscam o desenvolvimento econômico e social em nível territorial. Nesse sentido, é mais adequado pensar o território em termos de espaços socialmente criados e organizados pelos atores sociais, a partir dos seus ativos e recursos, como condições e capacidades para materializar inovações técnicas e sociais, além de gerar sinergias positivas entre os responsáveis pelas atividades produtivas (tecido empresarial) e a comunidade (tecido cidadão).

Portanto, interessa-nos explorar o conceito de território como uma construção social promotora de recursos e ativos gerais e específicos, materiais e imateriais, sociais e culturais e, conseqüentemente, como principal ator do desenvolvimento econômico, social e ambiental. O território local e regional deve ser entendido como um espaço geográfico de tamanho variável, geralmente intranacional, mas que não se reduz a uma escala administrativa de planejamento estatal das políticas públicas estaduais locais/regionais, nem tampouco a uma condição de suporte geográfico das atividades econômicas e sociais. É o município e a região que se re-organiza agora como território.

O que nos deve interessar nessa análise são os dispositivos institucionais que fundam um território local, como uma escala portadora de dimensão institucional que se constitui nas inter-relações entre o indivíduo, a comunidade e os sistemas produtivos locais/regionais, nacionais e internacionais. O território local, através das estratégias dos

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atores, é um produtor de normas e de ordens implícitas que constituem um quadro regulador, um espaço geográfico fundado na proximidade organizacional particular (COLLETIS; PECQUEUR, 1993, GILLY; PECQUEUR, 1995). Ele é a constituição de um espaço abstrato de cooperação entre diferentes atores, de convergência entre vários interesses, com uma ancoragem geográfica estabelecida, disposta a engendrar os processos de criação dos recursos particulares (sociais, econômicos e virtuais), com o objetivo de implantar projetos, resolver problemas e apontar para soluções inéditas (PECQUEUR, 2000, BENKO; PECQUEUR, 2001). Assim, o território se constitui em um produtor de externalidades complexas, uma escala geográfica de proximidades organizacionais, um espaço de coordenação de ações entre os atores sociais (GILLY; TORRE, 2000, GILLY; PECQUEUR, 2000). Podemos acrescentar a essa concepção a idéia de que a institucionalização dessa cooperação institui e organiza o território simultaneamente como ator social do desenvolvimento e da representação simbólica do local.

Essa abordagem nega a perspectiva do território como um simples palco ou suporte das atividades humanas e dá mais ênfase às relações que fundamentam o ambiente histórico, econômico e social. Assim, o território é visto como “o modo de estabelecimento de um grupo, no meio ambiente natural, que na organização das localizações das atividades, instaura e faz prevalecer as condições da comunidade-linguagem e da aprendizagem coletiva” (PERRIN, 1992, GILLY; PECQUEUR, 1995, p.304). O território está assim assimilado a um meio complexo que “reagrupa em um todo coerente um aparelho produtivo, uma cultura técnica e os atores” (MAILLAT; PERRIN, 1992). Ele possui as potencialidades próprias de desenvolvimento graças ao jogo dos agentes locais. Esse território, histórico, social e cultural é também um território econômico marcado pelas condições favoráveis a uma economia de oferta de inovações e de produção de valor adicionado (BEAUVIALA , 1998, p.235). É nesse sentido que um território condiciona a localização dos agentes, pois as ações que sobre ele se operam dependem da sua própria constituição.

Nesse nível de reflexão, trata-se de referir-se não a um “local” definido a priori sobre critérios predeterminados, mas a um território socialmente construído pelos atores locais (as empresas dos diversos setores, os poderes públicos descentralizados ou locais, COURLET; SOULAGE, 1995). Os territórios locais guardam essa coerência com os compromissos sociais estáveis e se organizam segundo um conjunto de regras e de instituições que são parcialmente elaboradas nesse nível.

O sentimento de pertencimento a um território e a identidade coletiva em torno de um projeto comum de desenvolvimento, depende muito mais dos efeitos de proximidade organizacional e cognitiva de suas redes do que das divisões geopolíticas e administrativas.

O renascimento dos meios locais e regionais na qualidade de núcleos da organização econômica, cultural e política oferece novas e inesperadas possibilidades para a renovação da vida comunitária e do desenvolvimento local. A democracia e a cidadania tomam um novo sentido no contexto da sociedade local, assim como a criação de novas identidades e vocações locais e de novas ações democráticas. A realização de uma nova visão de política local constrói-se em relação ao novo contexto global: um desenvolvimento sustentável fundado na solidariedade converte-se em uma ferramenta indispensável para a construção de uma comunidade mais forte, mais equilibrada e melhor compreendida pelos povos que a compõem.

O mundo globalizado conforma um mosaico composto de uma miríade de regiões, de localidades, de países e blocos, que não são, necessariamente, equivalentes (BENKO;

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LIPIETZ, 1994, 2000). Nesse sentido, a “globalização” se traduz em um neologismo forjado, para designar a articulação expandida dos territórios locais em relação à economia mundial, sublinhando a persistência de uma inscrição espacial dos fenômenos econômicos, sociais e culturais. Contrariamente aos mais sombrios prognósticos da homogeneização, os territórios locais – com suas especificidades – não são apagados pelos fluxos econômicos da mundialização (BENKO, 1996, 2001; SCOTT, 1997).

A distribuição espacial dos ativos e recursos dos territórios

A constatação da concorrência territorial é muito evidente em várias regiões e tem contribuído para as novas teorias de crescimento e desenvolvimento econômico, até mesmo nos processos de integração. A idéia de que o desenvolvimento é localizado e depende de fatores próprios de determinadas regiões está na origem de numerosas contribuições empíricas e teóricas recentes, que trazem novas luzes sobre os mecanismos de indução do desenvolvimento local. Assim, as regiões, ou ainda melhor, os territórios, tornaram-se as fontes específicas de vantagens competitivas.

Gabriel Colletis e Bernard Pecqueur (1993) propõem uma leitura dos fatores de concorrência espacial mediante a idéia de uma oferta de produtos e serviços territoriais.

As análises desses fatores devem distinguir, de uma parte, os ativos e recursos e, de outra parte, a requalificação dos ativos ou dos recursos territoriais segundo sua natureza, genéricas ou específicas.

Os ativos podem ser entendidos como fatores “em atividade”, enquanto os recursos são os fatores a revelar, a explorar, ou ainda a organizar. Os recursos, diferentemente dos ativos, constituem assim uma reserva, um potencial.

Os ativos ou recursos genéricos definem-se pelo fato de que seu valor, ou potencial, é independente de sua participação em um determinado processo de produção (GAFFARD, 1990). Eles são totalmente transferíveis e seu valor é um valor de troca que se realiza no mercado. O preço é o critério de apreciação do valor de troca, o qual é determinado por uma oferta e uma demanda de caráter quantitativo.

Os ativos específicos existem como tais, mas seu valor é função das condições de seu uso. Enquanto um ativo genérico é totalmente transferível, um ativo específico implica em um custo, que não pode ser coberto mais ou menos elevado de transferência. A análise detalhada desse tema nos remete aos custos de transação desenvolvida por Williamson (1985).

Quanto aos recursos específicos, esses só existem no Estado virtual e não podem em nenhum caso ser transferidos. Eles nascem de processos interativos e constituem a expressão do processo cognitivo, que é efetivado quando atores com competências diferentes produzem novos conhecimentos graças à disponibilidade desses últimos. No momento em que conhecimentos e saberes heterogêneos são combinados, novos conhecimentos emergem, abrindo novas combinatórias e possibilidades (BENKO; PECQUEUR, 2001).

Essa oferta potencial de recursos específicos por um território é o principal fator de diferenciação dos espaços, não resultando somente do preço relativo dos fatores, nem dos custos de transporte (COLLETIS; PEQUEUR, 1993).

A noção de recurso específico é associada à dinâmica do território. A capacidade deste em criar competências novas impõe a necessidade de se trabalhar com a análise em termos de redes de firmas e de agentes. O território passa a fazer parte do processo de produção, a influenciar na organização dos sistemas produtivos na medida em que ofereça

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recursos específicos, pois a existência destes depende das condições específicas, historicamente construídas naquele local. Caso contrário, em ofertando recursos genéricos, a possibilidade de mobilidade desses, colocaria a participação dos territórios em causa, pois esses não comportariam uma dinâmica associada à criação de competências novas. Tal fato compromete uma diferenciação duradoura dos territórios.

Dada a importância dos recursos específicos na diferenciação e na dinâmica do território, trata-se de questionar a abordagem tradicional dos fatores de produção, baseada nos custos e de assumir a abordagem transacional, baseada na produção de externalidades positivas, estabelecidas a partir das relações entre os diversos agentes locais.

Para a atratividade dos agentes econômicos, a oferta de recursos específicos pode constituir na principal arma que um território dispõe para enfrentar a concorrência com os demais. Essa oferta depende da capacidade dos territórios de combinar competências internas e/ou externas, segundo um modo de coordenação orientado para a realização de externalidades de redes (COLLETIS; PECQUEUR, 1993). O território passa a ser atraente às empresas quando é capaz de produzir externalidades. Como produtor de externalidades, mediante a oferta de recursos específicos, o território pode criar irreversibilidades, impondo um certo custo às empresas que o deixam (COLLETIS; PEQUEUR, 1993).

Faz-se mister salientar que a capacidade de oferta de especificidades de um território não é desenvolvida apenas pelas políticas públicas, mas pode constituir fruto de alianças e parcerias entre atividades dos grandes grupos e agentes locais, envolvidos num interesse comum de partilha de ‘savoir-faire’ historicamente constituídos. Ao desenvolver a oferta de especificidades, os territórios propõem às empresas condições de uma melhor adaptabilidade às flutuações dos mercados mundiais, mostrando uma dimensão de estabilidade às suas estratégias, tendo em vista a instabilidade característica do contexto atual. Nesse sentido, os territórios e suas instituições podem se constituir armas importantes dos grupos frente às incertezas geradas pela competitividade global (VERDI, 2003).

Essas análises dos ativos e recursos fazem da proximidade geográfica um fator de competitividade territorial, isto é, a proximidade não sendo outra coisa que a característica intrínseca do território. Por outro lado, outros estudos da proximidade também partem de uma análise da coordenação dos agentes, para demandar se esta é ou não constrangida pela proximidade. Nesse caso, a proximidade é uma dimensão possível da coordenação entre agentes econômicos ou entre agentes e instituições (RALLET, 2000; VERDI, 2003).

A combinação de relações e os processos interativos constituem uma rede, revelando-se dessa forma como recursos específicos. Assim, o território assegura uma proximidade organizacional de tipo particular, permitindo “encontros produtivos” (COLLETIS; PEQUEUR, 1993, p. 498).

Cabe notar que nas análises empíricas, não pode ser deixada de lado a investigação dos bens públicos transnacionais, das infra-estruturas específicas de grande envergadura no território transnacional – como as redes de comunicação terrestre, fluvial e marítima –, e as redes energéticas. Por exemplo, para se estudar o grau da competitividade dos territórios no processo de integração das economias do Cone Sul, o desenvolvimento dos fluxos materiais, das redes e das trocas entre os países membros associados do Mercosul e igualmente dos mercados exteriores, deve-se analisar as condições das infra-estruturas específicas de grande envergadura no território transnacional, as redes de comunicação terrestre, fluvial e marítima e as redes energéticas. Assim, a questão da logística rodoviária e portuária, inseridas no movimento geral de modernização e de recomposição territorial, são condições necessárias para o avanço da integração e do desenvolvimento.

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Tais questões são cruciais para a Geografia Econômica e para a Economia Regional e Urbana, na análise do desenvolvimento econômico local. Elas colocam pelo menos duas direções possíveis para a pesquisa acadêmica: de um lado, a análise da concorrência territorial das aglomerações produtivas na integração do Mercosul e, de outro, a análise da capacidade de coordenação territorial dos agentes no desenvolvimento local/regional, para estabelecer normas e regras de convivência no progresso tecnológico, na distribuição dos investimentos públicos e privados, etc.

A dinâmica espacial dos recursos dos territórios

Segundo Pecqueur (2001:46-7), pode-se afirmar que cada processo de desenvolvimento territorial local depende basicamente da capacidade de se criar três fatores básicos: se inovar, se adaptar e se regular. É a capacidade de cooperação das redes de atores formais e informais que permite a realização conjunta dessas condições.

A capacidade de inovação pode ser técnica e social e diz respeito a um novo produto ou a um novo processo de fabricação, concebido por um empreendedor individual ou coletivo (empresa ou grupo). Ela é aplicada na organização da produção e do trabalho, alterando a organização social de conjuntos de empresas (por exemplo, a flexibilidade). A capacidade de inovação de um meio industrial compreende as descobertas tecnológicas e a ruptura das rotinas.

Além das inovações individuais, o desenvolvimento de um território requer uma inovação integrada como um patrimônio comum. Nem sempre essa inovação é bem aceita por todos em condições de se integrar (por exemplo, quando se trata de mudar o sistema de relações profissionais em vigor no território).

A capacidade de adaptação é outro recurso que um meio tem de reagir às mudanças dos mercados nacionais e mundiais e, com isso, garantir a segunda condição do desenvolvimento. A capacidade de reagir se mede pelo nível de solidariedade espacial que sustenta os atores no território, e essa não pode existir sem que o meio seja suficientemente denso, para que as relações entre os atores possam se intensificar (estrutura urbana, redes de transportes, população e mão-de-obra disponível e um número importante de PMEs (Pequenas e Médias Empresas). Por essas razões é que a solidariedade territorial não pode ser decretada nem instaurada a curto prazo, pois as redes informais, mais ainda que as redes institucionais, só se constroem a longo prazo.

A solidariedade territorial se configura em torno de um coletivo de empreendedores aberto a outros atores (bancos, poderes públicos, associações, consumidores, etc). Esse coletivo de atores deve estar inserido na cultura do meio onde está implantado. Ele deve ter uma consciência clara e positiva de sua identidade local e de sua cultura industrial, mas deve, da mesma maneira, ser reconhecido e legitimado como tal pelo conjunto do corpo social. A solidariedade territorial é o resultado de um ambiente favorável que permite que as relações de rede se adaptem às inovações e às necessidades vindas do exterior.

A capacidade de regulação é um recurso específico que um meio econômico local tem de produzir, como um conjunto de regras em harmonia com as regras de níveis mais elevados, a fim de prolongar a existência de uma solidariedade sócio-cultural entre todos os atores dos territórios nacionais e transnacionais. Segundo Pecqueur (2001, p. 49), a regulação pode ser definida como a regularidade e a estabilidade relativa das formas de solidariedade que permitem a reprodução das condições favoráveis à inovação. Ela é constituída por regras de comportamento que são explícitas e institucionais, mas também implícitas e informais. No primeiro caso, a lei e os regimentos organizam as relações entre

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atores a nível nacional, onde as sociedades locais têm pouco para se afirmarem. Entretanto, ela pode se apropriar de recursos institucionais para estabelecer comportamentos coletivos implícitos. A regulação local requer uma conivência entre os atores diretamente implicados na produção e na cultura do ambiente. Essa conivência organiza as relações entre os atores à sua maneira, procurando uma autonomia relativa com relação às regras em vigor nos níveis nacional e internacional.

Esse processo de desenvolvimento econômico, em geral aparece como a expressão da tríplice capacidade de uma sociedade econômica para inovar, ser solidária para reagir e regular para governar. No caso do desenvolvimento territorial local, são as redes informais e institucionais que criam um espaço de cooperação, no qual as três etapas podem se articular. A estratégia a partir do potencial local não é um fechamento, mas ao contrário, é uma abertura que se define em relação e em função dos outros níveis de regulação política (nacional, bloco de integração e global). OS ARRANJOS PRODUTIVOS LOCAIS E A DINÂMICA DO DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL

A noção de “Arranjos Produtivos Locais”, como uma nova instância de organização e institucionalização do planejamento e do desenvolvimento territorial no Brasil, vem se tornando referência obrigatória para as novas estratégias e expectativas dos agentes públicos e privados.

Dos sistemas aos arranjos produtivos locais: gênese, conceitos básicos e principais características

Como vimos abordando, a economia mundial emergente pode ser vista como um mosaico de regiões e localidades produtivas especializadas, de diversas expressões territoriais. É nessa nova dinâmica mundial que brotam os processos e estruturas que se apresentam sob as formas de Sistemas Produtivos Locais, marcados por imagens contrastadas que sugerem uma grande diversidade de situações. Trata-se da permanência de uma representação de agrupamentos locais de empresas de pequeno tamanho, de espaços especializados de produtores e de uma cultura industrial que marca as práticas e as mentalidades dos atores. Esses meios industriais não nascem do nada, mas reaparecem com a crise do Fordismo. Eles ressurgem como testemunha da permanência de uma osmose entre o conhecimento, a atividade de produção e as características sociais do lugar. Portanto, a ancoragem histórica da organização da produção em sistemas locais deve ser sempre evocada, antes de se querer descrever as formas contemporâneas e as perspectivas do futuro (PECQUEUR, 2001, p. 79-80).

Os SPLs (Sistemas Produtivos Locais), como fenômeno internacional, coincide com o aprofundamento de pelo menos dois fatores: o crescimento da demanda mundial de bens de consumo e o avanço dos progressos tecnológicos, principalmente na microeletrônica e na informática. A evolução quantitativa e qualitativa da demanda mundial, associada ao aparecimento de novos instrumentos tecnológicos, permite que as PMEs se desenvolvam para contornar os obstáculos característicos das grandes empresas.

Atender às especificidades da demanda mundial utilizando os novos recursos do novo paradigma tecnológico, sobretudo às novas tecnologias de comunicação e informação, promoveu a reestruturação produtiva, o aumento das oportunidades das pequenas empresas e uma valorização das especificidades locais. Tais mudanças contribuíram para uma nova

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reorganização espacial da produção, que culminou na emergência de um mosaico mundial de regiões (BENKO, 1996; SCOTT, 2001).

As características gerais dos SPLs, observadas na literatura internacional, retomam seis questões importantes para o desenvolvimento setorial e territorial (PECQUEUR, 2001, p. 81-2):

• Especialização dos produtores em um produto fundamental para a economia (têxteis, móveis, calçados, alimentos, etc.);

• Tecnologias e tipos de produtos compatíveis com a dimensão das unidades de produção;

• Grande número de empresas, mas sem a figura de “empresa líder”; • Sistema de interdependência estreita ou cooperação entre MPMEs (Micro, Pequenas

e Médias Empresas) locais, porém, bastante complexo; • Importância de uma densidade mínima de empresas; • Peso significativo na produção e até mesmo na exportação.

No Brasil, os APLs são geralmente considerados como instrumentos potenciais de

ação, capazes de promover um novo ciclo de desenvolvimento descentralizado com enraizamento territorial local e regional. As definições variam, mas há muitas convergências entre os agentes envolvidos.

O grupo responsável pela difusão do termo no Brasil, a REDESIST (Rede de Pesquisa em Sistemas Produtivos e Inovativos Locais) caminhou para uma definição rigorosa do conceito de APLs, como existência de “aglomerações espaciais de agentes econômicos, políticos e sociais, com foco em um conjunto específico de atividades econômicas que apresentam vínculos e interdependência. Geralmente envolvem a participação e a interação de empresas e suas variadas formas de representação e associação. Envolvem, também, diversas instituições públicas e privadas voltadas para: formação e capacitação de recursos humanos, como escolas técnicas e universidades; pesquisa, desenvolvimento e engenharia; política, promoção e financiamento. A participação e a interação das empresas podem ser desde produtores de bens e serviços finais até fornecedores de insumos e equipamentos, prestadoras de consultoria e serviços, comercializadoras, clientes, entre outros” (CASSIOLATO; LASTRES, 2003; REDESIST, 2003).

A aplicação dos conceitos retomou, entre os pesquisadores, o uso de antigos e novos instrumentos metodológicos que permitam identificar e classificar os diversos agrupamentos produtivos locais (CHROIX et al, 2003; CROCCO et al, 2003; REDESIST, 2003; SUZIGAN et al, 2004). Já os estudos de casos realizados de APLs indicam um elenco de instituições que fundamentam a sua existência com notável diversificação de papéis dos atores, movendo-se em espaços de intervenção que mudaram muito nos últimos anos (HADDAD, 2004). São micro e pequenos empresários, governos, entidades internacionais, sindicatos, consumidores, entidades não-governamentais, todos eles atores inseridos em complexas redes de cooperação permeadas de conflitos e competitividade (GUIMARÃES; MARTIN, 2001; COCCO; GALVÃO; SILVA, 2003; MONIÉ; SILVA, 2003; DALL’ACQUA, 2003; BNDES, 2004; NORONHA, 2005). Algumas dessas ações dos atores na busca da coordenação local se realizam nas experiências de governança territorial, que às vezes desafiam fronteiras e limites político-administrativos municipais, constituindo redes e territorialidades antes inexistentes na busca do desenvolvimento (BECKER & BANDEIRA, 2002; CORREA, 2003; PIRES; NEDER, 2006).

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Nesse sentido, o APL compreende um recorte do espaço geográfico, abrangendo desde parte de um município, até um conjunto de municípios contíguos, bacias hidrográficas, vales e serras que, além de ser um agrupamento de MPMEs especializadas em uma atividade, possui sinais de identidade coletiva, sociais, culturais, econômicos, políticos, ambientais ou históricos. O APL também detém capacidade de promover uma convergência em termos de expectativas de desenvolvimento local, estabelecendo parcerias e compromissos para manter e especializar os investimentos de cada um dos agentes no arranjo e seu entorno. Enfim, o APL pressupõe uma coordenação entre os mais variados agentes presentes num determinado recorte espacial. Tal coordenação entre os agentes eleva o Arranjo Produtivo Local ao status de território.

No Brasil, como no exterior, as pesquisas deverão avançar para explicar os diferentes tipos de desenvolvimento de APLs, resultantes de combinações específicas de processos históricos regionais e locais, somados a estratégias e táticas singulares, levadas a efeito com instituições e organizações particulares e públicas em territórios únicos.

Com base nesse quadro de referência teórica e metodológica, é possível traçar diferentes tipos de Aglomerados Produtivos (clusters) e de APLs, potenciais e efetivos, a partir dos seus dispositivos institucionais e de um conceito operacional que atenda, total ou parcialmente, aos seguintes critérios33:

• (1) existência de um aglomerado de agentes econômicos organizados em pequenas e médias empresas ou de produtores individuais ou familiares, com participação percentual relevante no cenário nacional;

• (2) atuação em um local determinado socialmente construído, que não necessariamente corresponda a uma divisão política do município ou sub-região do estado;

• (3) ocorrência de especialização produtiva em uma mesma atividade econômica; • (4) utilização de mão-de-obra qualificada ou semi-qualificada, sem hierarquia rígida

e com proteção social das relações de trabalho; • (5) possibilidade, real ou potencial, de vínculos de articulações interfirmas e entre

produtores, com vistas à consecução de determinados objetivos comuns, pela via da interação, da aprendizagem e da cooperação horizontal (subdivisão do trabalho entre empresas) entre si;

• (6) possibilidade de articulações do APL com certos agentes e instituições externas, que possam facilitar a consecução dos objetivos de mercado das unidades produtivas;

• (7) existência de instituições como agências, comitês, fóruns, consórcios e ONGs (Organizações Não-Governamentais) locais, públicas e privadas, que atuem em conjunto para dar suporte ao desenvolvimento do APL;

• (8) existência de cultura local comum e relação de confiança entre as empresas do APL, facilitadoras do processo de cooperação e aprendizagem.

Os itens 1, 2, 3 e 4 podem ser sistematizados com base nos dados da RAIS (Relação

Anual de Informações Sociais), transladados para indicadores de concentração espacial e sistemas de informações geográficas. Os itens 5, 6, 7 e 8 devem ser complementados com 33 Esse conceito operacional e a metodologia aqui proposta estão sendo aplicados em uma pesquisa coletiva sobre os APLs no estado de São Paulo, em realização no Laboratório de Desenvolvimento Territorial, do Departamento de Planejamento Territorial e Geoprocessamento da UNESP / Rio Claro.

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entrevistas e pesquisa de campo. Nesses casos, a pesquisa de campo serve para testar os dados secundários, identificar e caracterizar as diversas origens e as ações das empresas envolvidas nos APLs ligadas às mais diversas áreas e, conseqüentemente, as diferentes perspectivas e estratégias coletivas. As respostas encontradas devem ajudar na estruturação da tipologia final dos APLs selecionados, que visem ao apoio à elaboração de políticas públicas e de capacitação técnica de servidores públicos e empreendedores de MPMEs, em consonância com o desenvolvimento local.

A metodologia da pesquisa de campo aqui proposta deve partir de entrevistas e reuniões (à base de metodologia de grupos focais) com agentes dos setores envolvidos (empresas, associações, sindicatos, centros de pesquisas, assessorias técnicas, etc.), procurando identificar as estratégias e perspectivas dos agentes presentes nos arranjos produtivos locais. Os resultados da pesquisa deverão indicar as especificidades locais, as demandas coletivas atuais e futuras, os efetivos, o ambiente institucional para as decisões de estratégias coletivas de governança, as convergências ou resistências e os conflitos das organizações e instituições locais.

Os APLs e o desenvolvimento territorial em ação

Embora haja ênfase diferenciada nos discursos dos agentes sobre o papel dos APLs no novo desenvolvimento regional do país, é plausível supor que um projeto de competitividade empresarial para as aglomerações dos pequenos negócios, capaz de criar trabalho qualificado e de distribuir a renda entre grandes contingentes da população brasileira fora das áreas metropolitanas, precisa estar articulado a uma política de desenvolvimento que favoreça a mobilização dos recursos específicos e das potencialidades locais e regionais do território nacional, desde aqueles de menor capacidade até os dotados de uma forte dinâmica empresarial já existente.

O resultado desses processos inspirados nas experiências internacionais tem permitido avançar o debate acadêmico e político no sentido de mobilizar os territórios para o desenvolvimento local e regional. Essas experiências podem explicitar as mudanças na forma de atuação das organizações e das instituições no desenvolvimento dos territórios, de modo que esse entendimento contribua para criar condições favoráveis ao sucesso das atividades econômicas e sociais territorializadas dos grandes e pequenos negócios, públicos e privados.

Sob a égide da globalização da economia, o desenvolvimento territorial local reaparece sob múltiplas formas de aglomerações produtivas, entre elas os APLs. Ele é a representação de uma nova cultura econômica que renuncia à separação entre economia e o social, o local e o global, mas ainda com eficácia variável e autonomia limitada de se auto-regular. As experiências internacionais estudadas têm em comum, nas zonas industriais periféricas de tradição antiga de agricultura familiar e artesanato, as redes dos sistemas produtivos locais, que direcionam as estratégias de desenvolvimento econômico local. As experiências também revelam que não há um modelo único, nem mesmo um paradigma do desenvolvimento local. Cada sucesso regional alcançado é bastante específico, dificilmente transportável, exportável ou imutável.

Nesse novo contexto mundial de reterritorialização do processo de acumulação capitalista, o desenvolvimento territorial pode ser entendido como uma mudança socioespacial de caráter endógeno nos Estados-Nações, capaz de produzir competitividade, solidariedade e cidadania comunitária e de conduzir, de forma integrada e permanente, a mudança qualitativa e a melhoria do bem-estar da população de uma localidade ou de uma

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região. O processo de desenvolvimento territorial é dinamizado por expectativas de agentes locais/regionais, nas quais o território seria o agente/ator principal do desenvolvimento, enquanto que as políticas públicas, as instituições, as organizações e as governanças seriam os recursos específicos, a um só tempo disponíveis e a serem criados, inventados e/ou inovados no local ou região, ou nos mais diversos elos da rede mundial. O desenvolvimento territorial é o resultado de uma ação coletiva intencional de caráter local, portanto, uma ação associada a um Estado, a uma cultura, a um plano e a instituições locais, tendo em vista arranjos de regulação das práticas sociais (PIRES; MULLER; VERDI, 2006).

O essencial é como introduzir inovações tecnológicas sociais e organizacionais nos emaranhados do tecido produtivo e empresarial. Nessa perspectiva, coloca-se a questão da definição das novas formas de ação das administrações públicas, que devem incentivar o fomento produtivo, a cooperação e a negociação estratégica entre atores que buscam o desenvolvimento econômico e social no âmbito territorial. Nesse sentido, é mais adequado pensar o território em termos de espaços socialmente organizados, com seus ativos e recursos, suas capacidades para materializar inovações e gerar sinergias imateriais positivas entre os responsáveis pelas atividades produtivas (tecido empresarial) e pela comunidade (tecido cidadão). Essa concepção de território pressupõe considerá-lo como ativo no processo de desenvolvimento, capaz de interferir na tomada de estratégias dos demais agentes. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse artigo explorou a importância das instituições e dos territórios para o desenvolvimento econômico local e regional.

A análise do território contribuiu para o reforço do papel das instituições, das organizações e dos agentes na regulação e na dinâmica territorial, firmada junto às redes de compromissos cívicos, através do “capital social”. O território produtivo é uma construção dos atores organizados para atingir uma meta. Dada a capacidade de deter recurso específico, construído a partir de um projeto coletivo entre os agentes presentes, o território constitui o principal ator do desenvolvimento local e regional. A presença ou a ausência do recurso específico expressa as vantagens e as desvantagens locacionais dos territórios e mede a diversidade e a competitividade territorial.

Nesse contexto, a análise da governança territorial local, dinamizada pelos agentes organizados em instituições e empresas, mostra uma configuração territorial mais complexa, dada pelo aumento dos recursos imateriais e pela velocidade das informações e das inovações.

Assim sendo, na perspectiva do desenvolvimento territorial, as localidades e regiões tornam-se, cada vez mais, as fontes específicas de vantagens competitivas e de solidariedade na globalização. É por isso mesmo que o desenvolvimento territorial não é universalizável, nem transferível. Ele é um método de ação para os agentes e as comunidades, em um quadro normativo de resposta ao desenvolvimento “por cima”, que valoriza a intimidade das relações que partilham os mecanismos econômicos com a sociedade e a cultura locais.

A reflexão aqui proposta também sugeriu incorporar a análise do APL no desenvolvimento territorial, a partir das cidades pequenas e médias, articulados à logística e aos projetos de infra-estrutura econômica e social, que estimule a construção de uma visão sistêmica e estratégica compartilhada do desenvolvimento territorial local sustentável, como elemento de integração dos atores, de políticas públicas e de planejamento setorial.

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Isso suscita outras e novas questões: Como promover a articulação do conhecimento e práticas sociais, historicamente constituídos, aos processos produtivos locais, tendo em vista a necessidade atual de territorialização dos agentes econômicos e criação de especificidades? Quais tipos de cidades e de eixos de integração apresentam desvantagens locacionais que dificultam a formação e consolidação de um APL competitivo? Em especial, quais são os desafios enfrentados para superação dessas desvantagens?

Acreditamos que essa forma de conceber os APLs, articulado-os às cidades e à produção do território regional, tem a vantagem de escapar das análises dependentes do recorte rural-urbano e das divisões políticas tradicionais do planejamento de Estado, que deixam de captar o movimento da reterritorialização produtiva da história recente da economia brasileira. Ao considerar as condições da integração das atividades produtivas ao local de origem, como os APLs, coloca-se em questão a forma da inserção produtiva das MPMEs do local, em um espaço mais amplo (nacional ou internacional) e a maximização dos efeitos multiplicadores externos dentro da área de influência produtiva, a partir da territorialização das redes de relações econômicas e sociais.

Essa concepção amplia as possibilidades de compreensão dos processos econômicos e sociais localizados, além de abrir um leque de opções de investigação científica e de intervenção pública sobre as questões da redução das disparidades regionais, aliada às novas estratégias de desenvolvimento local de médio e longo prazo. Outra vantagem, decorrente dessa concepção, é o desafio de uma política nacional coordenada de apoio às especificidades territoriais locais e regionais no federalismo, que estimule mecanismos de governança para integrar estratégias, planos e políticas setoriais de longo prazo, tendo como referência comum o território socialmente construído. Essa análise pode enriquecer o leque de oportunidades de investimentos, capazes de estimular a gestão do desenvolvimento local no país, como instrumento importante para integrar os atores nas ações multisetoriais de governo e ampliar a participação da comunidade na implementação dessas ações. É nesse sentido que as ações dos governos deveriam levar em conta a descentralização, a formação de parcerias e a busca de soluções de caráter estrutural, em detrimento de ações pontuais que marcaram a política e o desenvolvimento regional do passado.

A coordenação dos agentes (sociais, econômicos e políticos) locais, imprescindível à conformação do território, parece constituir a fórmula do sucesso. Essa coordenação, que não apresenta modelo único, propõe a criação e valorização de especificidades na fase de globalização, pois constituem as verdadeiras fontes de valor, de novas possibilidades de competitividade e de desenvolvimento territorial, intransferíveis no espaço e no tempo.

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PRODUÇÃO E PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO: REFLETINDO SOBRE UMA ESCALA E UM RECORTE34

ARTHUR MAGON WHITACKER Universidade Estadual Paulista (UNESP)

Presidente Prudente – SP [email protected]

Procuraremos neste texto desenvolver elementos que nos auxiliem na compreensão da articulação da produção com a produção do espaço urbano, buscando identificar as ações sobre o território, próprias ao momento chamado de acumulação flexível do capital, através da análise de suas lógicas de produção industrial, de gestão da produção e da learn production.

Iniciaremos por discutir o conceito de produção e depois procuraremos aplicá-lo, principalmente, em uma de suas concepções, à organização do sistema fordista de produção e à acumulação flexível do capital, com o intuito maior de desenvolvermos uma análise sobre o espaço intra-urbano.

Partindo dos primeiros escritos de Marx, o termo produção diz respeito tanto à criação de obras (no sentido também proposto por Henri Lefebvre), incluindo o tempo e o espaço sociais, como à chamada produção material, ou seja, à fabricação de coisas e, por outro lado, à produção de relações sociais e, tomado de maneira ampla, envolve também a reprodução, correspondente aos níveis da produção descritos.

Embora seja usado em muitas acepções, não se trata de um conceito de menor importância. Destacaremos duas, não necessariamente opostas, mas que se mostram, em verdade, imbricadas. A primeira, levando em conta a historicidade que toda realidade contém, compreende a temporalidade dos fatos, a dinâmica dos acontecimentos e os processos de mudança, permanência e transformação. Podemos pensar a cidade a partir dessa acepção ampla, ao analisarmos a urbanização como processo e realidade que é.

Numa outra acepção, coloca-se a práxis, conjunto de práticas que traz em si o dever e que, originalmente, não se restringe à práxis política, mas também à práxis econômica e que se materializa no concreto da cidade, em oposição à acepção anterior, que não seria observável em tempo curto.

Numa análise do espaço, Lefebvre coloca a apropriação não como um simples ato de se apoderar fisicamente da cidade (embora não o exclua), mas de passar a desvendá-la, compreendê-la, direcioná-la e valorá-la conscientemente, suplantando, portanto, a troca pelo uso. A apropriação está referenciada a qualidades, em oposição à propriedade referenciada a quantidades. Tal posicionamento pode ser observado em várias obras do autor35.

Para sua formulação, Lefebvre compreende o desenvolvimento das forças produtivas, as relações sociais e as relações de produção, estas na base das duas primeiras. 34 O presente texto compreende trechos revisados e ampliados do segundo capítulo de nossa tese de doutoramento, referenciada ao final deste trabalho. 35 Principalmente em “The production of space” (LEFEBVRE, 1991).

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Na articulação dessas duas acepções, a produção social e a produção de coisas, a cidade se insere em duas escalas de produção: a do próprio processo de urbanização imbricado à industrialização e a da produção de bens, equipamentos, infra-estruturas e “objetos”, no sentido que Santos define em “A natureza do espaço”.

Procuraremos empreender uma análise que articulará em vários momentos as duas acepções, tomando como fio condutor o desenvolvimento recente do sistema fordista de produção. Uma observação, porém, deve ser feita. A produção não está vinculada apenas ao capitalismo. O industrialismo o suplantou, historicamente, uma vez que a produção industrial, nos moldes comuns ao fordismo, fora observada em muitas economias não capitalistas. Podemos verificar, também, que a acumulação flexível subordina, direta ou indiretamente, várias formas de produção.

O desenvolvimento do modo capitalista de produção passa, histórica e espacialmente, por uma série de transformações e crises impostas pela necessidade e, por vezes, pelo desejo de se promoverem alterações na dinâmica de produção e de reprodução do capital. Em uma rápida análise, sujeita a generalizações e simplificações, podemos enumerar alguns pontos do desenvolvimento do modo de produção hegemônico que balizarão nossa argumentação. Ressaltamos que tal desenvolvimento não é necessariamente linear no tempo, e geral em sua abrangência territorial.

Podemos, então, verificar, primeiramente, um momento de consolidação de economias nacionais que se deu através do comércio entre metrópoles e colônias, quando tivemos uma direta submissão de povos, línguas, religiões e governos de países por outros e de nações por outras, visando ao comércio, à obtenção de produtos e de mão-de-obra. Paulatinamente, esse processo – que alterou profundamente os limites de nações, línguas e povos – passou a se dar não apenas com o domínio direto de um país sobre outro, mas, pelo domínio principalmente econômico, atrelado a questões político-ideológicas e também culturais.

Seqüencialmente, tivemos a estruturação do capitalismo em uma base industrial e não mais apenas comercial. Essa base industrial ganha uma ampliação e um desenvolvimento mais sistematizado com o advento do chamado sistema fordista de produção, aplicação de técnicas baseadas em estudos desenvolvidos, sobretudo por Frederick Winslow Taylor, nos Estados Unidos, que visavam à otimização de processos do trabalho operário (CHIAVENATO, 2000) que foram aperfeiçoados, entre outros, por Henri Ford, objetivando a otimização da rotina industrial. Com o sistema fordista de produção principalmente a partir dos anos de 1910, mas fundamentalmente no pós Segunda Guerra –, houve a necessidade, e agora, a possibilidade técnica de se incrementar a produção de bens. Essa produção, que podemos chamar de produção em massa, passa a necessitar de mercados consumidores.

A procura e criação de mercados se deram de duas formas básicas: com exportações de países industrializados para países não industrializados, e com trocas entre países industrializados; por outro lado, e conseqüentemente, com o crescimento de uma base produtora, que se deu com a implantação de parques industriais em países e/ou regiões ainda não industrializados ou em processo de industrialização.

Com esse processo de expansão de mercados, que se deu nesse momento principalmente de forma horizontal, tivemos a implantação de muitas unidades industriais em diversos países e regiões, em decorrência de fatores como: procura por vantagens locacionais e mão-de-obra abundante e barata, bem como em função de esforços autóctones – esses sendo muitas vezes governamentais.

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Tais implantações se deram segundo dois aspectos básicos, que diferenciaremos segundo a origem de seus investimentos primários. De um lado, tivemos as implantações privadas, que não promoveram uma grande desconcentração da gestão, das decisões e dos projetos, mas, quase que tão somente, promoveram uma desconcentração da produção propriamente dita. No caso das implantações governamentais, pudemos verificar que se deram principalmente em infra-estrutura voltada aos segmentos industriais de maior prestígio, como siderúrgicos, para lembrar o exemplo brasileiro. Ressalte-se que, na prática, as implantações privadas e públicas tiveram uma constante interpenetração.

A partir dos anos de 1970 (não existe uma delimitação precisa, além de termos que verificar que isso não se deu pontualmente, seja quanto ao lugar, ao tempo, ou ao tipo de produção/produto, como já procuramos apontar anteriormente), começa a haver uma crise desse sistema produtivo36. Por estar calcado numa lógica industrial (seu crescimento se dá principalmente pela produção de bens) e numa produção em massa (a taxa de lucro e o volume da produção e seu valor agregado crescem com o aumento da produção), o sistema fordista de produção passa, sistematicamente, por dificuldades de ampliação contínua da taxa de lucros e de crescimento quantitativo e qualitativo dos mercados.

Começa-se a observar, no modo capitalista de produção, a procura por explicações, estudos e estratégias para a suplantação da crise. Passa-se a ter uma preocupação maior com o mercado de consumo e com estratégias de redução de custos.

Essas necessidades são marcadas por profundas modificações no desenvolvimento do sistema de produção e na distribuição espacial das empresas e da produção, o que se pode chamar de acumulação flexível do capital, mas fora chamado, também, de pós-fordismo, toyotismo e pós-industrialismo37.

As principais características dessa acumulação flexível do capital podem ser apontadas como uma mudança na lógica da produção, que no capitalismo industrial, no século XIX e no início do sistema fordista de produção (como já colocamos), se dava segundo uma lógica industrial e passa então a se dar segundo uma lógica financeira, sem esquecermos de que, durante todo o século XX, a lógica já foi a financeira – a própria crise de 1929 já é indicadora disso. Essa última implica numa produção não mais em massa, como anteriormente definimos, mas segmentada e definida a cada momento pelas demandas solváveis do mercado. Isso significa que, se no primeiro momento, o lucro das empresas industriais advinha da estandartização de bens, o que se tem agora é uma maior análise dos padrões de consumo, o que irá determinar uma produção que visa a uma diferenciação e substituição maior de bens. Podemos, ainda, verificar que, na lógica fordista, a relação entre empresas e territórios, no sentido de manutenção de localizações, é forte. Já na lógica flexível, as relações com o território são mais fluidas e os investimentos oscilam mais territorialmente, porque os grandes grupos, ao lado de ampliar suas atividades

36 Entre os autores que apontam os anos de 1970 como marco, destacamos Lipietz, A. “O capital e seu espaço” e Storper, M. “A industrialização e a questão regional no Terceiro Mundo”. 37 Tal termo é questionado, por razões diversas e, por vezes, complementares, por vários autores. Destacaremos: Henri Lefebvre, que preferirá o termo “sociedade urbana” (Cf. LEFEBVRE, H. “La revolución urbana”); Edward Soja, por entender que há uma reestruturação da produção industrial, tanto em suas lógicas de localização quanto em sua estrutura de funcionamento (Cf. SOJA, E. “A Geografia histórica da reestruturação industrial e regional”); Manuel Castells, por entender que a informação (ao se contrapor ao informacionalismo) é a maximização da produtividade, não a superação da produção industrial (CASTELLS, M. “A era da informação: economia, sociedade e cultura”, p. 226).

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abrindo novas unidades em novos territórios, compram e vendem ações de empresas já instaladas e que detêm parcelas do mercado consumidor.

No sistema fordista de produção, o aumento na produção e na reprodução era obtido com o aumento da base industrial e da base de consumidores. Com a acumulação flexível do capital, esse incremento não se dá simplesmente com o aumento numérico de consumidores – existem inclusive estudos que apontam para uma estabilização do mercado consumidor global –, mas, com o aumento do consumo individual, o que acarreta uma substituição mais rápida de produtos e a maior importância dada às estratégias de marketing.

Com isso, podem-se identificar, nas etapas produtivas, pelo menos três momentos distintos, complementares e importantes: a peri-produção a montante; a produção propriamente dita; a peri-produção a jusante (FISCHÉR, 1997).

A peri-produção envolve todas as atividades de projeto, desenvolvimento, pesquisa fundamental e aplicada e marketing. Essas etapas – tanto as peri-produções a jusante como a montante – passam a ser etapas fundamentais, uma vez que o produto deve ser constantemente melhorado e/ou substituído.

Territorialmente, passamos a ter uma maior mobilidade das indústrias, dos centros de pesquisa e de marketing, por exemplo, permanecendo, porém, centralizado o nível de gestão decisória.

Um exemplo a ser citado seria o caso do chamado processo de desconcentração industrial em São Paulo. Assim, podemos observar a instalação de novas unidades industriais e de pesquisa em muitas regiões do globo. Essas instalações visam, principalmente, à conquista de consumidores e ao aproveitamento de novas vantagens locacionais. Nesse caso, o acesso a redes, virtuais ou não, passa a ser fundamental.

Essa mudança no sistema produtivo, com um enorme incremento do que se chamou terciário, não se daria sem o desenvolvimento das técnicas e da tecnologia que estão presentes nas etapas peri-produtivas e produtivas, seja na forma de produtos, de sistematizações da produção, de marketing, comunicação e decisão entre diversos centros. O desenvolvimento das técnicas implica na possibilidade de uma simultaneidade, o que permite ao capital financeiro, por exemplo, vagar por diversos países, constantemente, através das conexões com as principais bolsas do mundo e às pessoas se falarem e acompanharem fatos em tempo real, assim como a propagação de costumes, hábitos e valores, chamados de globais. Dadas as características principalmente financeiras e a essa simultaneidade – traduzida no crescente emprego da técnica e na utilização de redes materiais e imateriais – o espaço e o território sofrem transformações profundas.

No sistema fordista de produção, há uma predominância de grandes empresas e de grandes plantas industriais com pequena mobilidade geográfica e funcional. Já na acumulação flexível se verifica um predomínio de pequenas empresas industriais e pequenos estabelecimentos industriais, com grande mobilidade geográfica e funcional. Essa mobilidade decorre da grande interdependência entre empresas, que freqüentemente se contratam umas às outras para que seja fechado o processo produtivo de determinado bem. É fácil imaginar que a relação com o território, no sentido anteriormente exposto, é tênue.

Verificam-se, em ambos os casos, fatores importantes a serem considerados quanto à localização industrial. No sistema fordista há uma lógica ligada ao custo de transportes. No caso da acumulação flexível, há fatores diferentes: cada vez mais se fala de uma indústria que não está amarrada a uma localização, o que se vem chamando de footloose industries. Essa tendência se acentuou nos últimos anos e vem trazendo novas características ao se

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qualificarem as localizações. Essa é uma tendência ligada às inovações tecnológicas nas formas e nos sistemas de comunicação.

As necessidades locacionais de uma empresa – como ressaltamos anteriormente – passam a ser ditadas pelo acesso aos transportes, às possibilidades de conexão à Internet, aos satélites e às telecomunicações, ou seja, ao acesso às redes, que, como também já mencionamos, são virtuais ou não.

Na análise dessas redes, percebe-se uma nova relação com o espaço. Temos as distâncias relativas tornando-se cada vez mais importantes que as distâncias absolutas. Temos a possibilidade de se estar virtualmente em qualquer ponto numa fração de tempo muito pequena. Medem-se cada vez mais as distâncias em frações de tempo.

Teria-se o espaço – graças à simultaneidade, às redes e à banalização e difusão de tecnologias, do consumo e dos hábitos que se lhe associam – se tornado homogêneo, a ponto de não mais fazerem sentido as fronteiras e as nações, frágeis ante uma economia e um mercado único e avassalador – o global? Em verdade, essa mundialização do capital promove uma fragmentação espacial e observa-se quase que uma supressão do tempo e não do espaço.

A fragmentação decorre não de uma tendência de se homogeneizar hábitos de consumo, por exemplo, mas das próprias contradições inerentes ao sistema de produção. Se por um lado, temos a “globalização” de mercados, por outro, temos a diferenciação cada vez maior entre as regiões que abrigam o desenvolvimento da técnica e das decisões, em detrimento daquelas que implementam as técnicas ou que só as “consomem”. Isso, sem nos referirmos às regiões excluídas (o que não quer dizer que não tenham uma participação) tanto do processo produtivo direto, como dos projetos de desenvolvimento e do consumo.

Essa fragmentação espacial decorre de uma fragmentação social e implica nesta. Os níveis de desenvolvimento e renda têm alcançado disparidades cada vez maiores

entre os ricos e os pobres, o que demonstra a inadequação de se considerar a tese da homogeneização do espaço. As diferenciações espaciais são também uma realidade e uma necessidade do modo capitalista de produção, não se podendo falar numa supressão do espaço pelo tempo.

Retomando a abordagem metropolitana, vê-se a articulação crescente dessas áreas com outras, não apenas territorialmente próximas, como a já célebre megalópole da costa leste americana, mas também territorialmente dispersas, como a análise de uma cidade como Los Angeles e suas diversas cidades satélites poderia demonstrar, mas, sobretudo, numa escala territorialmente descontinuada, distante e esparsa, que a mesma Los Angeles, como cidade mundial, serviria de exemplo38.

Numa escala nacional, poderíamos abordar o caso da metrópole paulista. Vários estudos demonstram que a cidade de São Paulo perde população e produção

industrial para sua Região Metropolitana e esta perde participação na produção industrial estadual e nacional. Poderia se pensar num esvaziamento da metrópole, mas, em verdade, observa-se que são as atividades de produção industrial propriamente ditas que estão se relocalizando. Se imaginamos a Região Metropolitana tradicionalmente delimitada, devemos conhecer seus limites conceituais, calcados na compartimentação e na fixidez. Isso nos leva à necessidade de contestação da hierarquia urbana como tradicionalmente elaborada, pois se observa que novas redes se formam, definidas por fluxos. Assim, a definição do local, inclusive do local na rede, se dá pela soma de conexões que ele permite 38 Sobre Los Angeles, ver: Gottdiener (1992) e Sassen (1998). As cidades na economia mundial.

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ou que dele se materializam. No plano dos fluxos materiais, a produção desconcentrada rompe com a estrutura tradicional da rede urbana. A flexibilidade já mencionada do espaço se torna rígida para o desenvolvimento dos processos necessários para a manutenção da taxa de lucros, e as possibilidades técnicas são indutoras, ao mesmo tempo em que foram criadas em função de novas necessidades de se garantir a reprodução do capital.

Isso nos permite apontar para uma relação entre inovação tecnológica e transformações na estruturação de região, culminando em novas territorialidades que podem indicar a necessidade de novas leituras do espaço, apoiadas não apenas na análise de indicadores e dados efetuados sob um recorte meramente territorial.

Na análise da localização das atividades produtivas ligadas à tecnologia ou não, como discutimos acima, verifica-se o desmantelamento funcional crescente da estrutura de produção fordista e o desenvolvimento de uma estrutura relacionada à acumulação flexível do capital, estreitamente relacionada à evolução do processo tecnológico.

Observa-se, assim, que a indústria tem cada vez mais atividades de serviços relacionadas para se concretizar. A separação entre o pensar e o fazer na indústria, já uma característica da Segunda Revolução Industrial, é incrementada pela separação entre empresas dessas funções, em decorrência da tendência à terceirização das atividades industriais39.

Nesse sentido, há uma crescente discussão sobre o que se deva classificar como serviços. A título de exemplo, em pesquisas empreendidas na indústria de confecções verifica-se a presença da terceirização de etapas produtivas, por meio de costureiras trabalhando em suas casas que figuram como terceirizadas. Em situações mais específicas e, nesse sentido, com o claro objetivo de redução de custos trabalhistas (através da burla), pode-se constatar a existência de muitas indústrias que, no plano fiscal, funcionam como locadoras de máquinas industriais e fornecedoras de mão de obra temporária, ambas atividades terciárias.

Castells (1999, p. 226-7) chama atenção para o fato de que os serviços não são o fim da indústria, mas a sua otimização, provavelmente do ponto de vista da estratégia do empresário.

De qualquer forma, a classificação de atividades econômicas não pode ser um indicador tomado sem maiores cuidados.

Na análise da reestruturação urbana, verifica-se em diversas cidades, com diferentes portes e níveis de articulação, que os espaços destinados às indústrias, nos chamados distritos industriais, perdem espaço nas ações de planejamento local nos últimos anos.

Por outro lado, as inversões em espaços destinados à troca, no caso investimentos privados diretos e públicos indiretos (através de adequações no plano viário e de bens de consumo coletivo) aumentam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A peri-produção a montante, a produção propriamente dita e a peri-produção a jusante são fatores de localização que se relacionam com o processo acima descrito e são fatores de

39 Importante salientar que as atividades de serviços relacionadas também envolvem tarefas menos elaboradas, como limpeza e conservação, guarda e segurança e que a terceirização na indústria envolve, cada vez mais, os processos produtivos. Talvez os maiores exemplos possam ser tirados da indústria automobilística, onde as chamadas parcerias culminam na entrega de sistemas completos do automóvel pelos fornecedores às montadoras (o que chega a dar um significado mais exato à palavra).

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localização industrial que implicam em importância quanto ao tipo de função, tipo de tecnologia utilizada, tipo de mão-de-obra que se procura e tipo de relação local ou regional de que se necessita para trabalhar. Isso permite compreender por que tal atividade se localiza nesta ou naquela cidade, e isso é importante porque os tipos de necessidade dependem do tipo de função.

As grandes empresas, para responder a essa nova necessidade, promovem uma disjunção funcional. Não se alocam a produção e as peri-produções numa mesma região, caso todas as necessidades não estejam lá presentes. A disjunção funcional geralmente é acompanhada por uma divisão técnica do trabalho. Na passagem do sistema fordista de produção para a acumulação flexível do capital, houve uma passagem de parte das atividades realizadas pela grande empresa para pequenas empresas especializadas: a disjunção funcional e a divisão técnica do trabalho são acompanhadas pela divisão espacial do trabalho.

As etapas da produção acima mencionadas implicam numa relação entre a inovação tecnológica, as novas tecnologias e a localização industrial.

No caso da peri-produção a montante, com grande presença da pesquisa fundamental e aplicada, verifica-se a procura por mão-de-obra altamente qualificada que não se encontra espalhada, mas se caracteriza por uma concentração geográfica nas metrópoles e nos chamados tecnopólos.

Tratando da produção propriamente dita, o trabalho que caracteriza essa atividade é considerado trabalho banal quando sempre exige uma mão-de-obra com pouca qualificação. Essa mão-de-obra aparece abundantemente e não custa muito porque não é caro criá-la. Caracteriza-se por uma dispersão geográfica.

Sob a análise de um quadro de necessidade de mão-de-obra pouco qualificada, podemos verificar dois aspectos principais.

Um primeiro com movimentação geográfica: dentro de um mesmo país, que pode ser caracterizado principalmente por desconcentração territorial industrial – embora a descentralização industrial, no sentido marxista do conceito, não venha ocorrendo. Um segundo aspecto estaria ligado à movimentação internacional, caracterizada por uma busca de mão de obra barata e abundante, classicamente tratada na Divisão Internacional do Trabalho.

Importante seria salientar que, a exemplo das peri-produções, também a produção não obedece a fatores nacionais/internacionais tão rígidos, embora a legislação trabalhista e outros fatores decorrentes e incorrentes a ela dêem uma certa homogeneidade em relação ao território nacional.

Na peri-produção a jusante, verifica-se uma produção mais ou menos qualificada e se encontram tanto atividades muito especializadas como também outras não muito especializadas. Há, portanto, uma tendência de concentração geográfica e, no plano dos fluxos da indústria, um duplo movimento, ou seja, de dispersão e de concentração.

Hoje não podemos considerar apenas a fabricação como etapa produtiva. Na acumulação flexível, a peri-produção é mais importante e se torna difícil separá-la da produção industrial, embora no plano do trabalho com dados empíricos a dificuldade se dê em atrelá-la àquela. Isso também coloca em xeque a usual divisão da economia em primário, secundário e terciário40.

40 Muito embora ainda a utilizemos, pela necessidade de uma classificação que seja compreensível e comparável.

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Por fim, é importante frisar que, numa primeira análise, a oposição entre sistema fordista de produção e acumulação flexível do capital não é tão clara no espaço, sendo preciso a investigação para se chegar a ela.

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DESENVOLVIMENTO DA AGRICULTURA E ESPAÇO RURAL

CELSO DONIZETE LOCATEL

Universidade Federal do Sergipe (UFS) Aracajú – SE

[email protected]

ANTONIO NIVALDO HESPANHOL Universidade Estadual Paulista (UNESP)

Presidente Prudente – SP [email protected]

INTRODUÇÃO

A incorporação crescente de tecnologia ao processo produtivo agrícola, o desenvolvimento de atividades não-agrícolas e as transformações sociais ocorridas no campo têm como conseqüência a redefinição dos papéis do espaço rural brasileiro que mescla funções tradicionais com novas funções. Além da produção de alimentos e matérias-primas, passaram a ser instaladas na zona rural atividades industriais e de serviço e emergiram novas demandas associadas ao lazer e à residência de parte da população urbana.

Diante das novas funções desempenhadas pelo campo, cada vez menos a concepção tradicional de espaço rural (e de ruralidade) é suficiente para explicar tal complexidade territorial.

Tradicionalmente, na Geografia Agrária, a análise de atividades relacionadas à agricultura, à pecuária e à exploração florestal permitiram a composição de uma visão do espaço agrário. Nesse sentido, o uso do vocábulo agrícola, no sentido estrito, deveria servir para restringir o âmbito dos estudos. No entanto, não é o que se pode verificar, sendo comum os enfoques que consideram as atividades agropecuárias como determinantes do espaço agrário, que acaba sendo empregado como sinônimo de espaço rural. A AGRICULTURA COMO ELEMENTO DEFINIDOR DO ESPAÇO RURAL

A agricultura é uma das atividades mais antigas do homem. Seu desenvolvimento permitiu mudanças fundamentais na organização social e no modo de vida, possibilitando, também, o sedentarismo nas primeiras aglomerações, base para o desenvolvimento social, econômico e tecnológico conhecido hoje.

O progresso técnico na agricultura é resultado de um longo processo histórico que pode ser dividido em fases. A primeira é anterior à Revolução Industrial, que retrocede até o neolítico e é caracterizada, em seu início, por um lento avanço agrícola, que terminou com a Revolução Agrícola do século XVIII. Na segunda fase, muito mais curta, com apenas dois séculos de duração, o progresso técnico geral afetou de forma mais rápida o processo produtivo agrícola e culminou na II Revolução Agrícola ocorrida no final do Século XIX e início do Século XX. Essa fase representou novos e

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espetaculares avanços no processo produtivo agrícola e redundou na chamada Revolução Verde, a partir dos anos 1950, por meio da qual foi inaugurada a terceira fase do progresso técnico na agricultura. A Revolução Verde representou um grande salto no desenvolvimento tecnológico da agropecuária, com a criação e incorporação de técnicas, como os cultivos hidropônicos, a engenharia genética, a biotecnologia, que resulta de um processo de convergência tecnológica. Os avanços tecnológicos desta fase atual da agricultura cada vez mais distanciam o agrícola do rural.

No entanto, desde o princípio a atividade agrícola foi vinculada ao campo, dadas as suas características e necessidades, destacando-se a terra como o principal fator de produção.

Diante disso, nas ciências sociais existe uma forte tendência de se vincular a agricultura ao agrário e ao rural, atribuindo a esse espaço características de arcaico, atrasado, rústico e às vezes inóspito e duro. Outras vezes, o considera como bucólico, saudável e puro. Da mesma forma, todos esses adjetivos são atribuídos ao homem do campo, que quase sempre é visto como agricultor ou criador de animais, com pouca instrução e cultura.

Essa vinculação não condiz com a realidade. Em primeiro lugar, por não ser a agricultura que define o espaço rural e a ruralidade e, em segundo lugar, porque essa atividade econômica não é exclusivamente praticada em espaços rurais, sendo sua prática bastante comum em espaços urbanos e periurbanos.

Outro aspecto importante a ser destacado é que a agricultura praticada no meio rural apresenta características diversas, compondo desde sistemas agrícolas tradicionais como a agricultura de subsistência e a itinerante (roças), até sistemas agrícolas modernos, dedicados à produção intensiva comercial de exportação, como por exemplo, o cultivo de soja no Brasil.

O nível tecnológico e as ligações intersetoriais apresentadas pelos sistemas agrícolas modernos colocam essas atividades agrárias muito mais próximas da realidade e da dinâmica urbana que da rural, dadas as suas características produtivas.

A prática da agricultura urbana não é um fato recente, pois sempre esteve presente ao longo da história da humanidade. No entanto, a incorporação desse tema à literatura acadêmica é bem recente. No editorial número um da Revista Agricultura Urbana encontra-se a afirmação de que o crescimento das cidades e de suas populações se constitui num dos maiores desafios do futuro, e que a importância da agricultura urbana no desenvolvimento sustentável das cidades vem crescendo41.

O fenômeno da expansão da agricultura nas cidades precisa ser relativizado, pois se faz necessário aprofundar os estudos sobre a prática da agricultura em outros períodos, comparando-os com o atual, para verificar se o aumento da agricultura urbana é real. Além desse aspecto, ainda há que se considerar o fenômeno da urbanização difusa, pois conforme esse processo avança, áreas dedicadas à prática agrícola vão sendo dotadas de infra-estruturas e serviços urbanos, para atender às necessidades da população residente, ou para possibilitar a relocalização residencial e industrial.

Na definição mais usual, o principal elemento que define a agricultura urbana é a sua integração ao sistema econômico e ecológico da cidade. Sobre esse aspecto é importante lembrar que a agricultura rural também está integrada à cidade. Além desse

41 Revista Agricultura Urbana, nº 1, RUAF (Resource Centre on Urban Agriculture and Forestry) e PGU-ALC (Programa de Gestion Urbana), Julho de 2000. <http://www.ipes.org/aguila/index.htm>.

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aspecto, deve-se destacar que os dois tipos de agricultura se complementam. Nesse sentido, se essa dimensão da agricultura não for bem compreendida, o conceito de agricultura continuará impreciso (MOUGEOT, 2000).

Usualmente, as definições de agricultura urbana estão apoiadas no tipo de atividade econômica (processo produtivo), no tipo de produto, na localização, no tipo de área, no destino dos produtos e no sistema e escala de produção. Com base nesses elementos, a agricultura urbana pode ser definida como uma atividade realizada em pequenas áreas dentro de uma cidade ou em seu entorno (periurbano) e destinada à produção para consumo próprio ou para a venda em pequena escala, em mercados locais.

Na tentativa de diferenciá-la da agricultura rural, Roese (2003) destaca que a área disponível para o cultivo é muito restrita; o conhecimento técnico por parte dos agentes produtores envolvidos diretamente é escasso; não há possibilidade de dedicação exclusiva à atividade; normalmente a produção está destinada ao consumo próprio; há grande diversidade de cultivo e; a finalidade da atividade é distinta, pois normalmente não é requisito para a agricultura urbana a obtenção de lucro.

Todos esses elementos utilizados para a definição da agricultura urbana - com exceção da localização – podem ser aplicados à agricultura rural. No entanto, não são suficientes para definir tal atividade e justificar a necessidade de conhecimentos, políticas públicas e know-how específicos. Ainda sobre o argumento de que não é requisito a obtenção de lucro na agricultura urbana, há possibilidade de haver uma relativizacão, pois praticamente em todas as cidades brasileiras existem muitos produtores de hortaliças, os quais produzem em terrenos urbanos, se dedicam exclusivamente a essa atividade e têm como finalidade a obtenção de lucro.

Na análise de Mougeot (2000), em qualquer cidade e em qualquer momento, seus alimentos são produzidos por uma agricultura que é de caráter rural, periurbano e intra-urbano, havendo a integração e complementaridade mútua em vários graus entre os três tipos (MOUGEOT, 2000).

Nesse sentido, a agricultura urbana pode ser definida como a prática agrícola dentro (intra-urbana) ou na periferia (periurbana) de centros urbanos, sejam eles pequenas localidades (vilas), cidades ou metrópoles onde se cultiva ou se cria, se processa e se distribui uma variedade de produtos alimentícios ou não, (re)utilizando os recursos humanos e materiais, produtos e serviços que se encontram no entorno dessa zona e, em contrapartida, oferece recursos humanos e materiais, produtos e serviços para essa mesma área urbana (MOUGEOT, 2000).

Nessa abordagem, outro fator importante para se compreender a prática da agricultura e sua importância na configuração do espaço, é o continuum urbano-rural. Nesse continuum pode-se identificar distintas zonas, a partir da densidade da edificação e do uso do solo. Em primeiro lugar, encontra-se o espaço propriamente urbano composto por uma edificação contínua, que se apóia numa estrutura articulada pelos sistemas de transporte, pelo uso do solo e pelas normas de planificação urbana. Em segundo lugar, encontram-se os espaços periurbanos, com uma edificação descontínua, que mescla elementos do urbano com resíduos agrários. Esse espaço, ainda que de predomínio urbano, caracteriza-se como uma zona de transição, com usos tão diferentes, com grandes equipamentos comerciais, polígonos industriais, cidades dormitório, urbanização de baixa densidade, condomínios fechados, áreas de agricultura residual, entre outros (GARCÍA RAMON et al, 1995).

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No primeiro caso, quando praticada, a agricultura ocorre em áreas muito restritas e dificilmente de forma intensiva. Já nos espaços periurbanos, ainda que, às vezes, a agricultura seja simplesmente o aproveitamento ilegal de espaços públicos e privados em zonas de reserva de solo, também pode abarcar formas de tipo intensivo, em capital e trabalho, que sejam muito competitivas (GARCÍA RAMON et al, 1995).

O argumento mais forte utilizado para a diferenciação da agricultura urbana é a sua localização e, contraditoriamente, é o que tem causado importantes debates. São poucos os estudos que fazem uma verdadeira distinção entre os locais intra e periurbanos e, quando o fazem, utilizam critérios muito variados. Os autores, que consideram essa diferença, utilizam como critérios para definir a agricultura intra-urbana elementos como: o número de habitantes, a densidade, os limites oficiais da cidade, o uso agrícola da terra zonificada para outras atividades, entre outros. Já para definir a agricultura periurbana, alguns autores procuram definir o limite externo da área peri-urbana, através da porcentagem da área edificada, infra-estrutura viária e espaços abertos (MOUGEOT, 2000).

De forma prática, o sistema produtivo da agricultura peri-urbana se organiza em função do abastecimento, em ampla medida, do mercado urbano com produtos frescos, que são perecíveis e requerem condições especiais de comercialização, diferentemente de outros produtos agrícolas. As zonas periurbanas exerceram e, em parte ainda exercem, um verdadeiro monopólio dessa produção. Também, a agricultura peri-urbana apresenta um caráter intensivo por prevalecer nessa atividade os fatores trabalho e capital sobre o fator terra (GÓMEZ MENDONZA, 1977).

É evidente, que não se pode definir precisamente o que é agricultura intra-urbana e peri-urbana. Mas, é certo que esse tipo de agricultura é praticada em larga escala. Segundo dados da FAO (Food and Agricultural Organization) de 1999, estima-se que 800 milhões de habitantes em todo o mundo participam em atividades relacionadas com esse tipo de agricultura as quais geram renda e produzem alimentos (CAMOS, 1982).

Através de estudo realizado na década de 1980, constatou-se que na área metropolitana de Barcelona, em muitas das urbanizações do cinturão industrial, entre 10 e 20 por cento das famílias dependiam em certa medida do cultivo de hortas familiares, normalmente ilegais, por utilizarem terrenos públicos ou de terceiros (CAMOS, 1982). Atualmente não se dispõe de dados sobre esse tipo de agricultura em Barcelona, mas pelo que se observa nas margens dos rios, das autopistas, rodovias, ferrovias e em terrenos baldios, ainda continua sendo importante esse tipo de agricultura para uma parcela da população, a prática da horticultura, às margens do Rio Beso, nas proximidades da Estação Trinitat Vella da linha Vermelha (L1) do Metrô de Barcelona.

No caso brasileiro, esse fenômeno é facilmente identificável, tanto nas grandes e médias42 cidades como nas pequenas aglomerações urbanas, a exemplo das microrregiões de Jales e Fernandópolis, no estado de São Paulo. Nessa região, mesmo não dispondo de dados estatísticos, pode-se assegurar que uma porcentagem significativa de famílias desenvolve atividades agrícolas nos quintais de suas casas, em terrenos baldios, às margens de vias públicas e de cursos d’água. Em alguns casos, essa produção não serve apenas para o autoconsumo, mas como principal, e às vezes, única fonte de renda da família, situação que pode ser verificada em cidades como 42 Sobre a prática da agricultura urbana nas cidades médias ver RESENDE (2004).

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Fernandópolis, Jales e Santa Fé do Sul, situadas no extremo Noroeste do estado de São Paulo. Pode-se verificar que se trata do cultivo de hortaliças em escala comercial, com o emprego de técnicas modernas, como a utilização de irrigação, e praticada em ambientes protegidos (plasticultura).

A agricultura é uma atividade produtiva muito complexa, que apresenta inúmeras facetas. Suas características variam pela pluralidade de técnicas utilizadas, condições naturais existentes, disponibilidade de recursos humanos e de capital, localização das áreas cultivadas e outros. Assim, para que se possa compreendê-la em suas várias dimensões é necessária a utilização de procedimentos e métodos que permitam uma análise territorial, não se limitando apenas a uma análise setorial, como freqüentemente acontece nos trabalhos de Geografia e também de outras áreas do conhecimento.

ESPAÇO RURAL E RURALIDADE Durante muito tempo, se considerou espaço agrário como sinônimo de espaço

rural. Tradicionalmente, e de forma simplista, esse espaço era definido como tudo aquilo que não é urbano. Em alguns trabalhos, se define espaço rural como a superfície cultivada ou com vegetação nativa, que não sofre a influência direta da cidade.

É evidente que não se pode entender o espaço rural como uma realidade isolada e matematicamente definida. Mas em ciências sociais, a dicotomia entre campo e cidade é amplamente adotada e empregada separadamente como categorias de análise.

A separação campo-cidade representa, segundo Marx, a maior divisão do trabalho material e intelectual. A cidade é considerada o lugar do trabalho intelectual. Sua existência implica de uma só vez a necessidade da administração, da política, da cobrança de impostos, etc. Assim, Marx explicita o conteúdo da divisão do trabalho e, mais claramente, a relação de poder que torna a cidade dominante sobre o campo. Na cidade se dirige, se administra e se regulamenta a vida comunal e dela emana o controle financeiro e ideológico e se conduz tanto a orientação material como a orientação moral da sociedade (REMY; VOYÉ, 1976, p. 245).

Nesse mesmo sentido, Henri Lefebvre (1969) afirma que vai se configurar a separação do campo e da cidade baseada na primeira e fundamental divisão do trabalho. Apoiando-se em Marx, esse autor também afirma que a divisão do trabalho entre a cidade e o campo corresponde à separação entre o trabalho material e o trabalho intelectual e, conseqüentemente, entre o natural e o espiritual43

No caso brasileiro, essa oposição não é tão clara, já que historicamente grandes capitais e grupos dominantes se constituíram no campo e durante muito tempo exerceram o domínio econômico e político no país. Após os processos de modernização

43 A esse respeito, Lefebvre acrescenta que "a la ciudad incumbe el trabajo intelectual: funciones de organización y dirección, actividades políticas y militares, elaboración del conocimiento teórico (filosofía y ciencias). La totalidad se divide; se instauran separaciones; entre ellas la separación entre Physis y Logos, entre teoría y práctica, y, ya destro de práctica, las separaciones entre praxis (creación sobre los grupos humanos), póiesis (creación de obras), téchne (actividad armada de técnicas y orientada hacia los productos). El campo, a la vez realidad práctica y representación, aportaría las imágenes de la naturaleza, del ser y de lo original. La ciudad aportaría las imágenes del esfuerzo, de la voluntad, de la subjetividad, de la reflexión, sin que estas representaciones se disocien de actividades reales" (LEFEBVRE, 1969, p. 47).

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pelos quais passou o país, a partir da década de 1930, a aristocracia rural perdeu poder, mas não deixou de exercer influência nas esferas política e econômica, haja vista que no Congresso Nacional cerca de 30 por cento dos deputados compõem a chamada bancada ruralista e defendem os interesses dos grandes fazendeiros44.

Pode-se afirmar que essa divisão do trabalho entre campo e cidade não é real na atualidade e também não ocorria de maneira tão clara no período pré-industrial, quando a população era predominantemente rural e desenvolvia localmente todas as atividades de manufatura e os serviços necessários à sua reprodução. Ela também não se dá no período posterior à modernização da agricultura, porque com a ampliação dos níveis de produtividade houve a redução dos postos de trabalho agrícola, se tornando expressiva a diversificação das atividades econômicas nas zonas rurais (SARACENO, 1996). É evidente que esse último argumento deve ser relativizado por se aplicar a determinadas regiões dos países desenvolvidos e a algumas áreas dos países subdesenvolvidos.

No entanto, nas ciências sociais predomina o emprego da concepção de espaço rural e do conceito de ruralidade que partem da oposição clássica entre os espaços urbano e rural e entre a cidade e o campo. A utilização dessa dicotomia respondeu à necessidade de se explicar os deslocamentos de recursos que acompanham os processos de modernização.

Nesse sentido, a escolha de um critério particular para definir o espaço não é casual ou arbitrário. Em geral, se observam as diferenças espaciais, mais significativas. Buscam-se reconhecer as regularidades ou similitudes e as tendências de se reproduzirem ou perderem o significado. Assim, os critérios estabelecidos dependerão dos objetivos perseguidos e dos fenômenos analisados. A escolha desses critérios é sempre possível em teoria, mas na prática é justificada e legitimada pela sua capacidade de explicar os processos em curso e o que de fato diferencia um espaço de outros (VEIGA, 2001).

O conceito de ruralidade pressupõe a homogeneidade dos territórios agregados sob a categoria de rural e isto também vale para o conceito de urbano. Mesmo não sendo contíguos, os territórios rurais apresentam características comuns. No entanto, sobre o conceito de rural, não foi definido de maneira clara nem os elementos que deveriam ser considerados, nem o que se refere ao limite que distingue o rural do urbano. Pode-se acrescentar, ainda, a freqüente sustentação de que a diferença é a natureza social e a distribuição da população e das cidades no território e, às vezes, que essa diferença é cultural, o que dificulta o encontro de uma definição consensual, ainda que por tempo limitado (VEIGA, 2001).

Essa dificuldade pode ser atribuída ao fato de que no final do século XX, em especial nos países desenvolvidos e em algumas regiões de países subdesenvolvidos, como é o caso do Centro-Sul brasileiro, se observa uma complexidade de usos e fusões que se contrapõe com a polarização definida entre campo e cidade. As funções do meio rural não derivam unicamente de uma classificação de atividades ou de uso do solo, mas, são resultantes de processos de integração, difusão e inter-relação de elementos urbanos e rurais (GARCÍA RAMON et al, 1995).

Em relação ao conceito de ruralidade, amplamente empregado nas ciências sociais, há dois problemas. O primeiro está no fato dele se constituir numa categoria residual do fenômeno urbano, ou seja, as áreas onde não há concentração populacional 44 Ver José Eli da VEIGA, 2002.

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são automaticamente consideradas rurais. Assim, as categorias intermediárias de periurbana e semi-rural, que estabelecem a conexão entre os dois extremos do continuum urbano-rural, não possuíam nenhum significado ou identidade autônoma como espaço e, contraditoriamente, serviam para colocar todos os elementos que não eram característicos de nenhum dos dois extremos, classificando-os assim de alguma forma (SARACENO, 1996).

Com a intensificação do progresso técnico no meio rural e as transformações nos segmentos produtivos a partir da década de 1950, emergiram concepções como a de Teran Alvarez (1977), que considerava que a radical oposição entre campo e cidade tendia a debilitar-se e que nos países urbanizados seria substituída por uma nova forma de habitat, de modo de vida e de civilização, na qual as diferenças se atenuariam e depois desapareceriam.

Pelo que se pode observar na atualidade, tanto em áreas rurais como em áreas urbanas, as afirmações desse tipo não se confirmaram, pois o rural e o modo de vida no campo não desapareceram e estão sendo revalorizados e buscados, principalmente pela população urbana, ainda que com novos elementos e características. A visão de uma marcha crescente de urbanização, como única via de desenvolvimento do campo só pode ser considerada aceitável por quem desconhece a imensa diversidade que caracteriza as relações entre espaços rurais e urbanos dos países desenvolvidos (VEIGA, 2002).

Ademais, na malha urbana existem ilhas de ruralidade "pura". Para Lefebvre (1969), dentro da cidade encontram-se com freqüência territórios pobres, povoados por campesinos "mal adaptados", despojados de tudo o que constitui a nobreza da vida no campo. Mesmo essa afirmação tendo sido aplicada para uma realidade há mais de 40 anos, ainda é válida para a atualidade, pois facilmente se observa a mescla do rural e do urbano, tanto nas grandes cidades, como em áreas metropolitanas, tanto em países desenvolvidos como em países subdesenvolvidos. Assim, pode-se retomar a afirmação de que "a relación urbanidad-ruralidad no desaparece por tanto; por lo contrário: se intensifica" (LEFEBVRE, 1969, p. 27).

Deve-se acrescentar que, com a intensificação das relações, torna-se cada vez mais difícil separar o rural do urbano, o que não significa que esses espaços não existam. As categorias de análise campo e cidade ou rural e urbano, tomadas de maneira dicotômica não explicam a realidade territorial de um município, de uma região ou de um país.

Um outro problema sobre o conceito tradicional de ruralidade refere-se à presença de atividades agrícolas. Para o período pré-industrial, quando as atividades agrícolas eram predominantes, a agricultura poderia servir como indicador de ruralidade. Todavia, com os processos de modernização, as atividades agrícolas passam por grandes transformações, como a redução de postos de trabalho agrícola, o que induziu a uma diversificação das atividades econômicas, em alguns casos (SARACENO, 1996).

Essa diversificação leva a uma competitividade entre os novos usos do espaço rural, gerada pelas atividades residenciais, industriais e de ócio frente às agropecuárias. Com isso, a agricultura torna-se um elemento entre outros que compõem a nova dinâmica do espaço rural.

Nessas análises centradas nas atividades agrícolas, a tendência é fazer coincidir o rural, que é uma categoria territorial, com um setor que é a agricultura. Segue-se com uma oposição ao urbano, que por sua vez também é uma categoria territorial, que se faz coincidir com outros setores, que são a indústria e os serviços. Isso demonstra uma

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excessiva simplificação da realidade que não se verifica, exceto em situações excepcionais (SARACENO, 1996).

Nessa perspectiva de análise do espaço rural, na melhor das hipóteses, realiza-se um agrupamento das atividades em três grandes blocos, com relação à sua dinâmica, origem econômica e territorial. Assim, considera-se que as atividades agrárias, as agroindústrias e a indústria a domicílio são a base das atividades geradoras de emprego e riqueza em uma sociedade rural (GARCÍA RAMON et al, 1995, p.59).

No entanto, surgem as necessidades de expansão das atividades econômicas urbanas, assim como as necessidades que os habitantes buscam satisfazer no campo, provocando o avanço do urbano. Essas novas atividades vieram representadas pela descentralização industrial, residencial e de serviços, juntamente com as atividades de lazer. Esse processo, por um lado, dá lugar à expansão do uso urbano do território e, por outro, reafirma o rural, com o fenômeno da segunda residência, com a proteção dos espaços naturais, com o desenvolvimento do turismo rural e com a prática de esportes ligados à natureza.

Nesse sentido, para Wanderley (mimeo): (...) as transformações resultantes de processos sociais mais globais – a urbanização, a industrialização, a modernização da agricultura – não se traduzem por nenhuma ‘uniformização’ da sociedade, que provoca o fim das particularidades de certos espaços ou de certos grupos sociais. A modernização, em seu sentido amplo, redefine, sem anular, as questões referentes à relação campo/cidade, ao lugar do agricultor na sociedade, à importância social, cultural e política da sociedade local, etc.

Diante disso, Wanderley defende que o recorte rural-urbano continua sendo

pertinente para a análise das diferenças espaciais e sociais da sociedade moderna, mas que não pode ser utilizado como argumento do fim do mundo rural, mas para apontar a emergência de uma nova ruralidade.

As atividades que se consideram aqui como típicas de espaços rurais tradicionais associadas às novas atividades, são tidas como “geradoras” e “compensadoras”, respectivamente, que dão lugar às atividades “geradas”. Essas últimas são resultantes e, ao mesmo tempo, um reforço da dinâmica econômica e territorial do meio rural. Entre essas atividades “geradas” pode-se destacar a construção de moradias e infra-estrutura, o comércio, os serviços e equipamentos, que servem como niveladoras do modo de vida entre o campo e a cidade. Por fim, como atividades dessa mesma categoria estão as comunicações e os transportes, que aumentam a inter-relação das diferentes áreas (GARCÍA RAMON, 1995).

Como conseqüência desse processo crescente de diferenciação, o conceito de ruralidade perde progressivamente seu caráter de categoria analítica homogênea. Isso ocorre, em parte, devido ao fato de que as outras atividades paralelas/integradas com as agrícolas variam muito segundo o contexto e, em parte, pelo modo como algumas funções urbanas foram incorporadas e adaptadas ao meio rural (SARACENO, 1996). Isso impõe um desafio para as ciências sociais, já que é evidente a necessidade de se estabelecer novos critérios de definição espacial ou de classificação do rural, que

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permitam captar a realidade multifacetada apresentada, por exemplo, por várias regiões brasileiras45. CONSIDERAÇÃO FINAIS

Como se pode constatar, a agricultura é praticada tanto em áreas rurais como em áreas urbanas de grandes e pequenas cidades e em países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Assim, utilizar a agricultura como único critério de definição dos espaços rurais e da ruralidade representa um grande equívoco.

Deve-se admitir que a agricultura é uma atividade econômica fundamental que influencia muito na caracterização econômica, social e ambiental do espaço rural. No entanto, a agricultura raramente se constitui na atividade exclusiva do espaço rural. Essa atividade normalmente se integra com outras atividades e funções sociais, econômicas e ambientais em um único sistema. Assim, se pode considerar que a ruralidade não é a simples soma de todas as atividades econômicas, funções e características do “não-urbano”.

Em relação à definição de espaço rural e ao conceito de ruralidade, se colocam duas questões básicas. Como abordar a questão da ruralidade nesse contexto? A dicotomia cidade e campo ainda tem algum sentido?

É certo que o conceito de ruralidade, mesmo enfraquecido devido aos problemas apontados anteriormente, continua sendo uma categoria importante para a análise territorial. O que se torna imprescindível é a atualização de sua definição, na qual não se tomem os territórios agregados sob essa categoria analítica como homogêneos. A ruralidade deveria ser pensada a partir de uma realidade multifacetada, sujeita a multideterminações. Assim, deve-se utilizar como critério para a análise dos processos em curso e, conseqüentemente, da ruralidade, a urbanização difusa, a industrialização do campo, a pluriatividade, a agricultura part-time, a segunda residência, o fenômeno do turismo rural, as novas representações sociais, entre outros, que possam estar presentes no território a ser analisado. Dessa forma, se reforça a idéia de que o campo e a ruralidade estão vinculados a um "mundo rural" e não a um "mundo agrícola", sendo o primeiro entendido como um complexo que engloba o social, o cultural e o pessoal, ficando o segundo limitado a um segmento produtivo.

A diferenciação entre espaço rural e espaço urbano é válida para a análise territorial. O que não tem sentido é a oposição campo-cidade. Diante das novas realidades do meio rural, essa oposição perdeu todo o seu conteúdo explicativo. Não se deve considerar um espaço rural, mas sim espaços rurais que se integram paulatinamente com espaços urbanos. (JUNG, 1971). Também não se deve, simplesmente, elencar as funções do meio rural através de uma classificação de atividades ou de uso do solo, senão tomá-las como resultado de um processo de integração, difusão e inter-relação dos elementos característicos do âmbito urbano com os do rural, como destaca García Ramon (1996). Assim, as categorias rural e urbano têm que ser consideradas como complementares nas análises territoriais, por se tratar de espaços interdependentes que resultam do processo crescente de incorporação de tecnologias ao território.

45 É evidente que esse processo crescente de diferenciação do espaço rural não ocorreu em todo o território brasileiro, havendo, em termos de dimensão o predomínio do rural “tradicional”, sendo mais claro em regiões dos estados de maior concentração de população e de capital.

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As transformações observadas no meio rural, a partir da década de 1950, no Brasil, poderiam ser atribuídas a dois processos distintos, que se complementam. Um deles é a industrialização da agricultura, com a incorporação crescente de tecnologia ao processo produtivo, que vai mudar a dinâmica do setor agrário, as relações sociais de produção, a dinâmica populacional e intensificar as relações intersetoriais. O outro diz respeito à urbanização do campo que, por um lado, está relacionado com a expansão urbana difusa e, por outro, com o surgimento de novas atividades econômicas não-agrícolas e novas formas de habitat, que provocam mudanças significativas no modo de vida da população e na dinâmica do território. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BASILE, E.; ROMANO, D. Lo sviluppo rurale in Itália: metodologie di analisi, politiche economiche, problemi aperti. In: BASILE, E.; ROMANO, D. Sviluppo rurale: società, territorio, impreta. Milano: Franco Angeli, 2002. CAMOS, M. et al. Els horts familiars a l’entitat municipal metropolitana de Barcelona. Barcelona: Publicacions de la Corporación Metropolitana de Barcelona, 1982. CLOUT, H. Geografia rural. Barcelona: Oikos-tau, 1976. ENTRENA DURÁN, F. Câmbios en la constiyuición social de lo rural. De la autarquia a la globalización. Madrid: Editorial Tecnos, 1998. FAO (Food and Agricultural Organization). Organización de las Naciones Unidas para la Agricultura. Departamento de Agricultura. Cuestiones de la agricultura urbana. Revista Enfoques, Roma, 1999. Disponível em: <http://www.fao.org/ag/esp/revista/9901sp2.htm>. Acesso em 27 out. 2003. GARCÍA RAMON, M. D. et al. Geografía rural. Madrid: Sintesis, 1995. GÓMEZ MENDOZA, J. Agricultura y expansión urbana. Madrid: Alianza Editorial, 1977. JUNG, J. L’amenagement de l’espace rural: une illusion economique. Paris: Camann-Lévy, 1971. LEFEBVRE, H. El derecho a la ciudad. Barcelona: Península, 1969. 169p. MOLINERO, F. Los espacios rurales. Agricultura y sociedad en el mundo. Barcelona: Ariel, 1990. MOUGEOT, Luc L.A. Agricultura urbana: concepto y definición. Revista de Agricultura Urbana, RUAF (Resource Centre on Urban Agriculture and Forestry) e PGU-ALC (Programa de Gestion Urbana), n.1, ano 2000. RUAF, PGU-ALC. Disponível em: <http://ipes.org/aguila/publicaciones%20AU1/AUarticulo1.pdf>. Acesso em 15 set. 2004. PÉREZ CORREA, E. Lo rural y el desarrollo en América Latina. In: RODRÍGUEZ GONZÁLES, R.; PÉREZ CORREA, E. Espacios y desarrollos rurales: una visión múltiple desde Europa y Latinoamérica. Gijón (Asturias): Trea, 2004. REMY, J.; VOYÉ, L. La ciudad y la urbanización. Madrid: Instituto de Estudios de Administración Local, 1976. REMY, J. ; VOYÉ, L. La ville: vers une nouvelle définition ? Paris: L´Harmattan, 1992.

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A CONSOLIDAÇÃO DO MONOPÓLIO NA CITRICULTURA BRASILEIRA

FERNANDO DOS SANTOS SAMPAIO Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)

Francisco Beltrão – PR [email protected]

INTRODUÇÃO

Foi o processo de urbanização acelerada, verificado a partir da década de 1930, que forneceu a base sobre a qual se desenvolveu a indústria citrícola. Por um lado, houve a desocupação de terras antes empregadas em café ou gado. Por outro, o crescimento da demanda por fruta in natura criou condições para a formação de uma classe de comerciantes de laranja. O mercado das cidades, a demanda urbana, foi a base para a implantação da produção em maior escala e da industrialização inicial.

A indústria de processamento do suco de laranja concentrado surgiu sobre essa base e logo desenvolveu ampla ligação com o mercado externo, que pode ser analisada, em parte, no período 1965-1980, nos termos da chamada “política de crescimento via exportações”. A indústria esmagadora determinará a dinâmica desse setor a partir de 1970, bem como a dinâmica espacial da citricultura paulista e suas áreas de expansão. Estabeleceu-se uma relação direta entre a indústria de suco concentrado de laranja e a dinâmica espacial no período.

A indústria de suco de laranja brasileira é a mais competitiva do mundo e tal competitividade está ligada aos fatores internos que possibilitam a aquisição de matéria-prima e força de trabalho a baixos preços, fato esse que gera vários conflitos entre as partes envolvidas. Além disso, essa indústria tem utilizado outras estratégias para se consolidar como um setor altamente competitivo no mercado internacional.

O presente artigo parte de uma leitura do desenvolvimento do capitalismo no campo, tendo como referencial teórico as obras de Lênin. Buscamos discutir o papel da grande produção e a sua inserção nas atividades ligadas ao complexo citrícola paulista. Exporemos os fatores principais que nos ajudam a explicar a dinâmica da citricultura paulista: a forma de aquisição de força de trabalho, os conflitos entre citricultores e indústria e as estratégias adotadas pelas firmas processadoras.

A INTERPRETAÇÃO DA AGRICULTURA COM BASE EM LÊNIN

A divisão do trabalho marca o início da grande transformação técnica na produção: a pequena produção mercantil, a manufatura e depois a grande indústria são os estágios presentes da divisão do trabalho, que levarão cada vez mais a uma produção especializada, na qual a divisão de classes se tornará mais visível. É na etapa da grande indústria que se terá um trabalhador completamente expropriado, em que os laços que unem o homem à terra são rompidos de forma mais plena (LÊNIN, 1985, p. 42).

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Lênin também nos chama a atenção para o fato de que no desenvolvimento da grande indústria se alternam períodos de crescimento e de crise, o que acelera ainda mais a ruína dos pequenos proprietários e a sua transformação em proletários (LÊNIN, 1985, p. 343).

A grande indústria mecanizada só pode se desenvolver aos saltos, numa sucessão de períodos em que a prosperidade se alterna com as crises. Esse crescimento em saltos da fábrica intensifica enormemente a ruína dos pequenos produtores; a fábrica ou atrai massas de operários na época da febre de produção, ou os dispensa. A formação de um exército de reserva de desempregados, dispostos a aceitar qualquer trabalho, toma-se uma das condições da existência e do desenvolvimento da grande indústria mecanizada. (...) A "instabilidade" da grande indústria mecanizada sempre provocou, e continua a provocar, queixas reacionárias daqueles que continuam a ver as coisas com os olhos do pequeno produtor e se esquecem de que só essa "instabilidade" substitui a antiga estagnação por uma veloz transformação dos métodos de produção e de todas as relações sociais.

A superioridade da grande produção e o papel exercido pela grande indústria estão

ligados ao processo de socialização do trabalho; a produção estará destinada a um enorme mercado nacional e internacional, ao desenvolvimento das relações comerciais, ao grande progresso técnico, à mobilidade da população e à elevação do nível de necessidades e desenvolvimento do operariado.

As obras clássicas do marxismo que tratam sobre a agricultura (Lênin e Kautsky, principalmente) nos apontam que a agricultura tornou-se capitalista e o capitalismo promoveu uma revolução no modo de produzir da agricultura, e que a lógica do desenvolvimento presente na grande indústria também estará presente na agricultura. De forma geral, o desenvolvimento do campo passa a ser ditado pelas necessidades impostas pela cidade. A agricultura passa a ter o seu desenvolvimento ligado às necessidades de reprodução do capital em geral.

Para Lênin, o grande motor dessa revolução é a concorrência. A partir do momento em que um certo número de produtores está produzindo para o mercado, haverá concorrência entre eles. Tal concorrência leva à especialização, ou seja, o campo se especializa na agricultura e será cada vez mais comum os agricultores tornarem-se especializados em determinado produto. A especialização gera um êxodo rural, aumentando a população das cidades e, conseqüentemente, o mercado para os produtos agrícolas. Lênin, no seu livro “O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia” (1985, p.203), expõe o papel desempenhado pela especialização da agricultura na criação do mercado interno e no desenvolvimento das forças produtivas:

Em primeiro lugar, a especialização da agricultura provoca trocas entre as várias regiões agrícolas e entre os diversos estabelecimentos agrícolas e os vários produtos. Em segundo lugar, quanto mais a agricultura se adentra na circulação de mercadorias, tanto mais rapidamente cresce, da parte da população rural, a demanda de artigos de consumo pessoal produzidos pela indústria de transformação e tanto mais rapidamente – em terceiro lugar – cresce a demanda de meios de produção, porque nenhum empresário rural, grande ou pequeno, pode organizar a nova agricultura comercial com os velhos instrumentos e as velhas instalações “camponesas”. Finalmente, em

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quarto lugar, surge uma demanda de mão-de-obra, porque a formação da pequena burguesia rural e a adoção da economia capitalista pelos proprietários fundiários supõe necessariamente, a formação de um exército de assalariados e diaristas (...).

Com a concorrência e a especialização da produção, cria-se a possibilidade da

grande produção, superior do ponto de vista técnico, por ser mais racional. Quanto mais desenvolvido o capitalismo, mais evidente se torna a superioridade da grande produção. Com o uso da maquinaria moderna na agricultura, o trabalhador agrícola é empurrado para a cidade, o que eleva os custos da força de trabalho no campo, incentivando a sua substituição por máquinas.

Lênin considera a proletarização do campo uma característica progressista do desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, a vitória da grande produção também representa um progresso, pois é a marca do aprofundamento do capitalismo no campo. Ao gerar grandes migrações, torna-se possível o desenvolvimento da consciência e do espírito de iniciativa do trabalhador, pois esse deixa de ter vínculos com a terra.

Essas características, apontadas por Lênin ao analisar o desenvolvimento do capitalismo na Rússia, podem ser notadas ao analisarmos o desenvolvimento capitalista brasileiro e estão presentes no desenvolvimento da indústria citrícola, ou seja, a partir do momento em que a grande indústria passa a ditar o desenvolvimento da atividade agrícola, esta passa por intensas modificações, ficando a pequena propriedade submissa à grande e as duas submissas à grande indústria.

O processo de transformação da agricultura em atividade acessória da indústria passou por uma série de conflitos entre os citricultores e os industriais. Esses conflitos se dão normalmente em relação ao preço da caixa de laranja. Como não há um planejamento da produção, é comum a ocorrência de superprodução e o preço da caixa de laranja cai, criando uma situação desfavorável para o agricultor e altamente favorável para a indústria, que pode impor seus preços. Dessa forma o monopólio vai se consolidando, concentrando a produção na mão de poucos e criando uma estrutura altamente tecnificada.

O TRABALHADOR DA CITRICULTURA

No complexo agroindustrial citrícola é a colheita da laranja a fase que mais absorve mão-de-obra. Segundo a Secretaria de Agricultura e Abastecimento do estado de São Paulo, nesse estado existem por volta de 20 mil citricultores que empregam cerca de 40 mil pessoas na colheita da laranja, 16 mil tratoristas nas fazendas e 5 mil nos Packing Houses. Na década de 90, a citricultura foi a segunda cultura que mais absorveu mão-de-obra volante no estado, perdendo somente para a cana-de-açúcar. Dados apresentados por Neves e Marino (2002, p.23), estimam que no ano de 1999 foram gastos cerca de US$ 106 milhões no pagamento de trabalhadores para a colheita da laranja no Brasil.

Como o principal mercado da laranja é a indústria de sucos, as características do trabalho na colheita estarão ligados principalmente à forma adotada para a colheita da

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laranja para indústria46. Os dois principais personagens na colheita são o empreiteiro de mão-de-obra e o colhedor.

O empreiteiro, também denominado turmeiro ou “gato”, é uma figura presente em toda a contratação do trabalho volante na agricultura. A partir de 1963, com o Estatuto do Trabalhador Rural, que garantia os mesmos direitos do trabalhador urbano para os trabalhadores da agricultura, essa figura passou a representar uma forma de contratação de serviço utilizada pelos fazendeiros. Os proprietários rurais passaram a contratar o serviço de um único homem que se encarrega da contratação da mão-de-obra temporária que será utilizada.

O “gato” é a figura responsável pela seleção, contratação e supervisão dos trabalhadores que farão a colheita da laranja. Normalmente, possuem ônibus ou caminhões para fazer o transporte dos trabalhadores até os pomares. Alguns possuem caminhões para o transporte das frutas e das caixas dentro dos pomares. Segundo Celma Baptistela (1998, p.45), os empreiteiros em geral são homens (92%) com idade média de 35 anos, filhos de agricultores (66%), com uma média de cinco anos de escolaridade. Um grau mínimo de escolaridade era uma exigência das empresas, pois uma das atribuições dos empreiteiros era o preenchimento dos documentos de controle das operações por eles supervisionadas como, por exemplo, a folha de presença, anotações de produção e notas fiscais.

Entre as tarefas do empreiteiro ao constituir uma turma de colheita, está a de verificar a “habilidade dos indivíduos para trabalhar”, ou seja, selecionar entre a grande massa de trabalhadores rurais volantes, aqueles que têm uma produtividade maior de trabalho. 47

De acordo com Baptistela (1998), os colhedores de laranja, em 1994 eram na maioria homens (69,9%), entre 15 e 68 anos de idade, com baixa escolaridade e trabalhavam somente na laranja ou nesta e mais uma cultura. Os trabalhadores preferiam o trabalho na colheita da laranja ao da cana, pois, tinham a sombra da árvore para deixar sua água, algo que não ocorria com a colheita da cana.

A remuneração do trabalhador varia de acordo com a quantidade de caixas colhidas e essa média varia de região para região (tabela 1). Também varia o preço pago pela caixa em cada uma das regiões do estado. Em geral, o trabalho é intenso e a remuneração é baixa, além de ser um trabalho sazonal, ou seja, durante parte do ano os trabalhadores têm de se dedicar a outras atividades que não sejam a colheita da laranja.

46 A colheita da fruta para consumo in natura, exige maiores cuidados durante a retirada da fruta da árvore, sendo portanto, mais trabalhosa e especializada. Os trabalhadores que atuam nesse tipo de colheita têm uma remuneração maior por isso. 47 Segundo Baptistela (1998, p.50): “Na média, um volante colhia 68 caixas de laranja de 25 a 27 kg por dia e os que colhiam acima desta média eram disputados pelos empreiteiros, que lhes ofereciam algumas vantagens como: estarem sempre trabalhando na cultura da laranja ou em outras; na formação de uma nova turma eram os primeiros a serem chamados. Os que tinham desempenho espetacular, muitas vezes, eram agraciados pelos turmeiros que iam buscá-los e levá-los até suas casas, não sendo necessário irem até o ponto de encontro”.

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Tabela 1: Produção, Produtividade e Valor Pago pela Colheita da Laranja, nas Principais EDRs48 Produtoras de Laranja.

EDR R$/caixa* Caixas*/homem Produção**

(caixas) Valor da

colheita*** (R$)

Barretos 0,28 60,6 7.578.159 2.121.884,62

Araraquara 0,19 69,6 7.127.760 1.354.274,40

Jaboticabal 0,23 62,7 5.725.056 1.316.762,88

São José do Rio Preto 0,25 71,8 3.464.410 866.102,40

Catanduva 0,21 60,9 2.731.837 573.685,86

Limeira 0,27 73,0 2.664.240 719.344,80

Botucatu 0,18 69,3 2.175.990 391.678,14

Mogimirim 0,26 63,3 2.105.280 547.372,80

Lins 0,25 75,0 1.805.501 451.375,30

São João da Boa Vista 0,26 69,3 1.688.304 438.959,04 Obs.: * Caixas de 25kg49; ** Calculado pelo autor, convertendo-se as caixas de 40,8 kg em caixas de 25 kg; *** Valor médio do pagamento por caixa multiplicado pela produção, com base nos dados do IEA–SP.

Para se ter uma idéia, segundo Ribeiro (1992, p. 176), um colhedor de laranjas de mesa na Califórnia ganha mais de US$ 50 por dia. Os mais produtivos alcançam US$ 90 a US$ 100. Além disso, a cada degrau a mais que têm que subir na escada para colher a laranja, a remuneração se torna maior.

A forma de contratação de mão-de-obra utilizada na colheita passou por três momentos importantes.

No período anterior a 1985, a contratação se dava pelos empreiteiros de mão-de-obra (chamados popularmente de “gatos”), que eram responsáveis por arregimentar e transportar os trabalhadores até as fazendas. Isso se dava como forma de diminuir os custos com o pagamento de direitos trabalhistas.

A partir de 1985, após as greves50 dos trabalhadores volantes no estado de São Paulo, conseguiu-se através da Convenção Coletiva de Trabalho, uma série de garantias para o trabalhador volante: este passou a ser contratado diretamente pela indústria, tornando-se um operário desta. Nessa época se conseguiram as melhores condições de trabalho. Em 1994, cerca de 61% dos trabalhadores preferiam ser contratados diretamente pelas indústrias (BAPTISTELA, 1998).

A greve de Guariba, que se iniciou com os trabalhadores da cana e logo se transferiu para os da laranja, trouxe uma série de conquistas trabalhistas para os colhedores, como carteira assinada, pagamento pelo dia parado quando a colheita não

48 - Escritórios de Desenvolvimento Rural – EDR, é a regionalização feita pela Secretaria de Agricultura de São Paulo. O estado de São Paulo possui 40 EDRs. 49 Apesar do padrão de medida na citricultura ser a caixa de 40,8kg, para a colheita todos os cálculos são baseados na caixa de 25-27 kg. 50 Essas greves no estado de São Paulo, iniciadas em Guariba foram o marco de importantes conquistas para os trabalhadores volantes nesse estado. Para maiores detalhes ver: OLIVEIRA (1984).

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era realizada por motivos alheios ao trabalhador (chuvas intensas, por exemplo), descanso semanal remunerado, férias, 13º salário – enfim, os direitos trabalhistas dos trabalhadores do setor urbano. Além disso, através do Contrato Padrão, a colheita ficava por conta da indústria, o que representava uma vantagem para o trabalhador, pois o tempo de colheita da indústria é mais longo que o dos produtores individualmente. Nesse período, os empreiteiros (ou “gatos”) também eram funcionários da indústria, com uma série de responsabilidades sobre a mão-de-obra a ser contratada, mas não eram mais apenas agenciadores que ficariam com parte dos ganhos dos trabalhadores. Uma das reivindicações da greve de Guariba era que os trabalhadores tivessem a carteira de trabalho assinada sem a intermediação dos “gatos”.

Com o fim do Contrato Padrão, iniciou-se a transferência da responsabilidade da colheita da indústria para o fazendeiro. Nessa mesma época foi aprovada a Lei 8.949, de 09 de dezembro de 1994, que acrescentou um parágrafo único ao artigo 442 da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), autorizando a constituição de cooperativas em que não houvesse vínculo empregatício entre os seus cooperados. Além disso, a década de 90 marcou uma redução do grau de organização dos trabalhadores assalariados rurais, depois dos avanços obtidos na década de 8051.

Esses fatos criaram a possibilidade de formação de cooperativas “montadas” pelos antigos agenciadores de trabalhadores, os “gatos”. Essas “cooperativas” receberam o apelido de “gatoperativas” ou “fraudoperativas”. Um dos principais motivos era que caso não entrasse em alguma cooperativa, o trabalhador não conseguiria emprego, ferindo o princípio básico do cooperativismo que é o da vontade de associação. Segundo Almeida e Alves (2002, p.9).

Com o crescimento das cooperativas de trabalho, os trabalhadores tiveram que se tornar cooperados para conseguirem emprego na laranja. Portanto a adesão às cooperativas não foi livre e voluntária, quebrando o primeiro princípio fundamental do cooperativismo. É a affectio societatis, vontade de se associar. A proliferação das cooperativas de mão-de-obra e o descontentamento dos trabalhadores provocou uma denúncia da FETAESP à Procuradoria Regional do Trabalho. O Ministério Público do Trabalho revelou que todas as cooperativas investigadas eram uma perfeita reprodução da fraude, o que lhes rendeu o apelido de “fraudoperativas” ou “gatoperativas”, na medida que eram geridas por gatos, empreiteiros de mão-de-obra. Descobriu mais: que os trabalhadores preferiam o vínculo empregatício, que reputavam como mais vantajoso e seguro. Portanto, a opção do trabalhador em ingressar como sócio em cooperativa, decorria do desaparecimento da opção de emprego celetista.

A colheita mecanizada ainda não atingiu grau suficiente de maturação no Brasil.

Em 1997 foi testada, em Bebedouro, uma máquina de colheita de laranjas fabricada pela empresa Fruit Harvest International dos Estados Unidos. Essa máquina colhe a mesma quantidade que 30 trabalhadores com uma eficiência de 90%. Calculava-se, na época, uma redução de 10 a 15% nos custos de colheita. O equipamento chacoalha a árvore por meio de uma garra hidráulica emborrachada com uma pressão necessária para desgrudar

51 Para maiores detalhes ver: Almeida e Alves (2002, p. 5).

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a fruta do ramo, deixando a fruta cair em uma esteira circular que a despeja no caminhão (BAPTISTELA, 1998, p.115).

Marx nos aponta o fato de que o aumento da mais-valia pode ser feito de forma relativa (aumentando a produtividade do trabalho) ou absoluta (aumentando a jornada de trabalho ou diminuindo o custo de reprodução da força de trabalho). No caso brasileiro há um predomínio da extração da mais-valia absoluta, ou seja, o aumento da jornada ou diminuição de salários, nesse caso se manifestando com a diminuição dos direitos trabalhistas. O baixo custo da força de trabalho é o responsável pela não generalização da colheita mecanizada, pois acaba sendo mais compensador pagar pouco pela mão-de-obra do que aumentar sua produtividade.

A constatação de fraude nesse sistema de contratação de mão-de-obra foi logo vista pela Justiça do Trabalho e os fazendeiros ou indústrias foram considerados co-responsáveis pela contratação da mão de obra, tendo de pagar os direitos trabalhistas e enfrentar os processos na Justiça. Para evitar os problemas na Justiça, novas formas de contratação foram utilizadas. Uma delas foi por meio da contratação pelos sindicatos e a outra através dos condomínios de empregadores rurais52.

O condomínio, na verdade, é uma modalidade de contratação com o registro de empregados em nome de um coletivo de empregadores. Foi uma forma encontrada para evitar o grande número de ações trabalhistas sofridas pelos produtores. Ao utilizar essa forma de contratação, todos os participantes do condomínio são co-responsáveis na contratação e rateiam entre si os custos com os direitos trabalhistas.

Esses conflitos entre os trabalhadores e os citricultores não são os únicos existentes no complexo citrícola. Ao haver choques de interesses entre os citricultores e a indústria também temos a existência de conflitos. Exporemos abaixo os principais conflitos que existiram entre os citricultores e a indústria. OS CONFLITOS ENTRE OS CITRICULTORES E A INDÚSTRIA

A laranja representa o principal custo na produção do Suco de Laranja Concentrado, por isso a sua aquisição a baixos preços é um fator de competitividade do suco brasileiro em relação aos produzidos em outros países. A indústria citrícola brasileira se tornou uma das mais competitivas do mundo devido ao baixo custo da matéria-prima, ao menor custo das terras e ao baixo preço pago pela mão-de-obra, além dos incentivos dados pelo governo brasileiro.

Logicamente a busca, por parte da indústria, de estratégias para minimizar o preço pago pela laranja gerou uma série de conflitos de interesses53 entre os citricultores e a

52 “Este modelo de contratação foi empregado pela primeira vez em Rolândia, norte do estado do Paraná, na atividade de corte de cana-de-açúcar, em meados de 1997, sendo adotado também com sucesso nas safras de 1998 e 1999, estando agora estendido para outras atividades. Importa registrar, que os produtores rurais de Rolândia sentiram a necessidade de buscar uma alternativa de contratação porque sofreram uma rigorosa fiscalização do Ministério do Trabalho” (ALMEIDA e ALVES, 2002, p.13). 53 Como a demanda industrial é a mais importante para o citricultor, criam-se sérios problemas em relação à comercialização do produto, chegando-se a ponto de se queimarem os pés de laranja ou jogar parte da produção fora como forma de protesto em relação aos preços. É o que aconteceu, por exemplo, em julho de 1996 na região de Barretos-SP, quando houve bloqueios de estrada por produtores, impedindo a entrada de caminhões carregados nas fábricas. No mesmo mês, cerca de 50 citricultores pararam quatro caminhões de laranja na altura do Km 363 da rodovia Brigadeiro Faria Lima, em Taquaral, próximo a Bebedouro-SP. Os manifestantes jogaram mudas de laranja na pista e despejaram óleo diesel sobre as frutas que os

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indústria. A partir do gráfico abaixo podemos perceber a grande variação dos preços pagos ao produtor. A produção de suco concentrado é, em sua maior parte, exportada, sendo influenciada de forma direta pelas necessidades do mercado externo (no qual se destacam a Europa e os EUA) e pelas políticas comerciais dos países compradores.

Ao analisarmos os conflitos de interesse entre os agentes do setor, percebemos que o que mais se beneficia com a atual dinâmica do complexo citrícola é a indústria, pois como é a principal compradora da laranja produzida no estado, criou-se uma estrutura na qual a indústria atua como oligopsônio, sendo, portanto, beneficiada com matéria-prima a baixo preço e com uma força-de-trabalho barata e pouco organizada. A indústria brasileira ainda se beneficia do fato de só ter a indústria de sucos norte-americana como concorrente mundial, visto que a produção em outros países é insignificante.

A formação de associações54 na defesa dos interesses foi um marco importante na atuação dos citricultores e industriais como forma de gerenciar esses conflitos. Em 1974, foi fundada a Associtrus, entidade que reunia os citricultores com o objetivo de negociar com a indústria. Em 1975, as indústrias se reuniram na Abrassucos e passaram a agir de forma comum na disputa por preços da caixa de laranja. Até a década de 80, nos momentos de maior acirramento das disputas pelo preço da laranja entre indústria e citricultores, a ação mediadora estabelecida pelo Cacex55 foi fundamental. A partir de meados da década de 80, com a adoção do Contrato Padrão, houve um processo de auto-regulação do setor, havendo uma livre negociação entre as partes.

A adoção do Contrato de Participação56, ou Contrato Padrão, foi o marco mais importante da citricultura em sua relação com a indústria. Com esse instrumento, o preço da caixa de laranja seria definido de acordo com o preço do Suco de Laranja Concentrado na Bolsa de Nova Iorque. Enquanto durou a compra da laranja através do Contrato Padrão, a citricultura viveu momento de expansão.

Aproveitando-se desse momento, a indústria acabou incentivando significativamente a expansão da área plantada para locais mais distantes das processadoras, pois com o Contrato Padrão o custo de colheita e transportes ficava por conta das empresas processadoras e dessa forma o preço da caixa de laranjas era o mesmo, independente de ser produzido ao lado da indústria ou mais distante dela.

Uma das críticas feitas à adoção do Contrato Padrão foi que ela não incentivava o aumento da produtividade por parte dos citricultores e que acabou levando a um plantio em áreas mais distantes. Ao haver um aumento de área plantada e da produção, além da produção própria das indústrias, passou-se a ter grande volume de matéria-prima para comprar, o que trouxe a possibilidade de rompimento do que estava estipulado pelo Contrato. A estrutura oligopsônica da indústria de sucos possibilitou a ela forçar os

caminhões de empresas de suco da região transportavam. Em 1999, ocorreu a queima de plantações e o “aterro” de grande quantidade de laranjas devido aos baixos preços. 54 Para maiores detalhes sobre as Associações ver Rodrigues (1995). 55 - Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil. 56 Até então, a principal forma de aquisição da laranja era feita através do contrato a preço fixo, pelo qual o preço da caixa da laranja era fixado antecipadamente, com base numa projeção futura de produção. Os produtores reclamavam que, com esse contrato, não eram beneficiados pelos aumentos do preço internacional do suco de laranja.

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citricultores a diminuírem o preço da laranja e a abandonarem o contrato-padrão57, levando à livre negociação safra a safra.

Uma das “novidades” adotadas pelas indústrias nos anos 90, com o final do Contrato Padrão, foi a de deixar a cargo dos citricultores a entrega da fruta na porta da fábrica, ou seja, ficaria a cargo do fazendeiro a colheita e o transporte da fruta. Esse fato aumentou a dependência da agricultura em relação à indústria, transferindo os custos de transporte e colheita diretamente para os produtores. Além disso, a indústria, em alguns momentos, ao criar dificuldades para o descarregamento das laranjas, pressiona os produtores, causando prejuízos a estes58.

A verticalização ainda maior da produção, adotada pela indústria na década de 1990, aumentou ainda mais o poder de negociação da indústria. Com essa nova característica, a própria estrutura fundiária da citricultura alterou-se, ficando mais concentrada nas propriedades grandes e muito grandes, principalmente nas novas áreas de expansão da produção59. Para Paulillo (2001, p.17), começa a existir um processo excludente na citricultura, no qual não só o pequeno produtor perde seu poder de negociação, mas a citricultura de forma geral passa a ficar mais subordinada à indústria.

Com esse levantamento, de perspectiva estritamente econômica, pode-se compreender a existência de um processo excludente no segmento agrícola deste complexo agroindustrial. Este atinge preferencialmente a pequena produção de laranja, embora a queda do poder de negociação atinja toda a citricultura. Assim, não se pode garantir que a exclusão esteja ocorrendo somente na categoria da pequena produção. Segundo o FUNDECITRUS, 12 mil agricultores largaram a produção de laranja no estado de São Paulo, de 29 mil em 1990 para 17 mil em 2000. Esse é o melhor indicador do intenso processo de exclusão que se gera na produção de laranja do território citrícola brasileiro.

As informações passadas por Paulillo reforçam a tese da vitória da grande

produção, tendência para o setor citrícola nos anos 90. A submissão da atividade agrícola à industrialização se tornou mais marcante. A produção industrial se dá em poucas empresas, facilitando a defesa de interesses comuns. Os citricultores, principalmente os pequenos, são muito numerosos e têm dificuldades para se organizarem. Quando o papel regulador que o Estado exercia foi substituído por um sistema de “governança privada”, o enfraquecimento do setor agrícola se tornou mais marcante. Nas palavras de Paulillo (2001, p.19).

A efetivação do contrato-padrão significou a ascensão de um mecanismo de governança privada, no qual as ações coletivas

57 A queda informal do Contrato Padrão por algumas empresas se deu em 1992. Oficialmente só deixou de existir em 1995. 58 Em entrevista com um citricultor, que atualmente atua na indústria, foi afirmado que uma das grandes indústrias adotava a prática de colocar “no fim da fila” os caminhões de produtores que tinham contrato a preço fixo. Esses caminhões, enquanto ficavam no pátio da empresa esperando descarregar, tinham o seu custo de frete pago pelo citricultor, o que causava grande prejuízo a cada dia parado. Ao aceitar renegociar o preço da laranja, o produtor teria o seu caminhão colocado “no início da fila”, tendo sua laranja descarregada. Isso obrigava os produtores a renegociar o preço da laranja com a indústria, mesmo existindo um contrato a preço fixo. 59 Para maiores detalhes ver Sampaio (2003).

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determinaram a ascensão de uma rede de poder mais integrada. Os interesses industrial e agrícola estavam representados pelas associações de produto. Os interesses das empresas processadoras estavam unificados na ANIC (Associação Nacional da Indústria Cítrica), enquanto os dos citricultores eram disputados pelas CT-FAESP (Comissão Técnica da Federação dos Agricultores do Estado de São Paulo) e a ASSOCITRUS (Associação dos Citricultores Brasileiros). A forma híbrida de representação dos interesses dos produtores foi o principal problema da citricultura no início do período de vigência do contrato-padrão. Além de que as duas associações apresentavam altos desafios: a FAESP apresentava o dilema interno de representar a agricultura de forma geral ou de privilegiar alguns setores, e a ASSOCITRUS procurava expandir a sua atuação em todo o território citrícola através da abertura das delegacias regionais, além de contar com a falta de união dos produtores e a reduzida capacidade financeira (...).

É bom lembrar que a indústria acabou unindo seus interesses em apenas uma

organização, a Abecitrus (Associação Brasileira de Exportadores de Citros). Essa organização tem atuado em nome da indústria citrícola brasileira, enquanto as associações de produtores ficam enfraquecidas por não terem uma forma de ação conjunta. Segundo um produtor rural, membro da Associtrus por muitos anos, havia uma dificuldade para organização dos produtores na luta com a indústria. Além da dificuldade de organizar um grande número de produtores, a indústria procurava individualmente produtores que estavam envolvidos nos movimentos e negociava de forma privilegiada a compra de sua safra como forma de desmobilizar a categoria60.

No entanto, não é de interesse das indústrias que haja pouca motivação para o plantio da laranja, pois isso ocasionaria uma diminuição na produção e aumento no preço da matéria-prima. Portanto, se tem atuado no sentido de evitar um grande fluxo de substituição de plantios ao mesmo tempo em que se utilizam estratégias para compra da matéria-prima a baixos preços.

Várias ações são movidas por produtores de laranja, junto à SDE (Secretaria de Direito Econômico), acusando as indústrias de suco de agirem de forma cartelizada. Em 2001, o então presidente da Comissão de Economia da Câmara dos Deputados, o Deputado Federal Marcos Cintra (PFL-SP) conseguiu 171 assinaturas para a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar as denúncias contra a indústria de sucos. As empresas eram acusadas de se associarem para determinar o preço e as condições para a compra da safra de laranja. Segundo o presidente da Abecitrus Ademerval Garcia, não há uma ação de forma cartelizada, mas o fato de, no setor de sucos concentrados, as empresas terem características muito comuns impede que a atuação das processadoras seja diferente entre si.61

É importante salientar que, apesar de agirem em grupo, as empresas têm adotado diferentes estratégias concorrenciais entre si, ou seja, apesar do setor se estruturar em um oligopólio, em determinados momentos as estratégias de diferenciação, reestruturação, etc, são importantes para a competição entre esses oligopólios.

60 Entrevista realizada com ex-dirigente de uma associação de citricultores. 61 Folha de São Paulo, 07 nov. 2001. Caderno Dinheiro.

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Na busca de uma maior lucratividade, as empresas passam a utilizar, de forma mais intensa, equipamentos modernos, aumentando a composição orgânica de seu capital. Devido aos altos custos, esses equipamentos só podem ser adquiridos pelas grandes empresas, o que acaba provocando um processo de concentração, não só nas indústrias de esmagamento, como também na agricultura voltada para essa indústria.

Na citricultura, há necessidade de utilização de insumos modernos e o plantio exige maior nível técnico: uso de fertilizantes, mudas selecionadas, inseticidas, etc. Como a colheita se dá apenas no quarto ano após o plantio, há um adiantamento de capital durante os três primeiros anos, quando a laranja ainda não proporciona nenhum rendimento.

O adiantamento de capital para iniciar o plantio é algo fundamental. Os grandes capitais passam a atuar de forma determinante nesse setor, nos momentos dos novos plantios e da expansão da citricultura. Além das grandes fábricas processadoras, são os grandes produtores que terão condições de plantar pomares com maior resistência a doenças e obter ganhos de escala em sua produção. A concorrência entre os produtores gera a necessidade de maior eficiência na produção, tornando a produção em grandes áreas mais vantajosa. AS ESTRATÉGIAS EMPRESARIAIS NO SETOR CITRÍCOLA

Um dos fatores que estão ligados à dinâmica da acumulação de capitais são as estratégias adotadas pelas empresas no tocante aos seus processos produtivos, locacionais e comerciais para que se possibilite um maior grau de acumulação, visando à valorização e à reprodução do capital.

A consolidação da industrialização de citros contou com o papel marcante do Estado e essa característica transformou o processo industrial em centro do complexo. A indústria passou, em pouco tempo, a exercer o controle do setor, submetendo a agricultura aos seus interesses de acumulação.

Num setor como o da produção do Suco de Laranja Concentrado a diferenciação do produto é algo que se apresenta de forma muito pequena. A homogeneidade do produto industrializado leva as indústrias a terem de adotar outras estratégias que não apenas a diferenciação de produtos. Tais estratégias competitivas estão ligadas a três pontos básicos: aquisição de matéria-prima, transportes e comercialização, sendo que em todas elas o papel das inovações é marcante. A AQUISIÇÃO DA MATÉRIA-PRIMA

O custo da laranja como matéria–prima do Suco de Laranja Concentrado é o principal componente de custo. A principal inovação em relação ao processo de aquisição da matéria-prima é a chamada “integração para trás”. Várias processadoras iniciaram a produção das próprias laranjas, o que teve impactos variados no complexo citrícola62.

A concentração na produção industrial, frente ao grande número de citricultores, cria condições favoráveis para a indústria na negociação de preços. Somente nos momentos de altos preços no mercado internacional, a indústria procurava utilizar toda sua capacidade ociosa, pagando, em fins de safra, altos preços pela laranja.

62 Para maiores detalhes ver: Sampaio (2003), em especial o capítulo 5.

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Há casos de grupos de produtores alugarem a capacidade ociosa de processadoras e esmagarem suas próprias laranjas (“integração para frente”, ou à jusante), como é o caso da Montecitrus.

O uso da capacidade ociosa da indústria processadora é vantajoso para os produtores, pois esses passam a comercializar o seu próprio suco, tendo, portanto as vantagens da variação do preço no mercado internacional e os lucros advindos desse processo, não ficando tão submissos à indústria. Além disso, algumas processadoras, com um volume maior de matéria-prima, alugavam a capacidade ociosa de outras.

Tal prática, no entanto, foi questionada pelos citricultores junto ao CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), pois consideravam o fato como algo que poderia se tornar anti-concorrencial. O uso do processamento por terceiros seria um elemento facilitador da ação oligopsonista dos industriais na barganha com produtores rurais, ou “maquiaria” a relação entre produtor e indústria (no caso de produtores que alugam a capacidade ociosa da processadora), ou as fábricas processadoras agiriam de forma conjunta na compra da matéria-prima, aparentando apenas o uso da capacidade ociosa de uma pela outra.

Antes de tal ato ter sido julgado pelo CADE, a Montecitrus abandonou a prática e associou-se a CTM-Citrus e a Cambuhy63, tornando-se assim sócia no processo de industrialização, o que levou o CADE a não julgar esse caso específico, no entanto dando parecer favorável a outros contratos dessa natureza (CADE, 1997, p.5).

A utilização da capacidade ociosa de uma indústria por outras também constitui uma estratégia do aumento do poder oligopsonista das indústrias, pois atuando de forma conjunta conseguem melhores resultados na negociação do preço com os produtores rurais (CADE, 1997, p.5)

A estratégia comum, adotada nos anos 90, foi a verticalização da produção com base na integração à montante (tabela 2). O aumento no número de grandes empresas, que passou de 3 para 5 em meados dos anos 90, levou as empresas a adotarem a estratégia de “integração para trás” como forma de evitar uma dependência excessiva da aquisição das matérias-primas, o que poderia levar a uma perda do poder de planejamento nos momentos de safra.

Tal prática gerou reclamações de citricultores junto ao CADE, por a considerarem prejudicial à concorrência, solicitando providências no sentido de coibir tais práticas. No entanto, o parecer do CADE foi no sentido de afirmar a integração como um direito dos produtores, não entendendo este como uma prática anticoncorrencial (CADE, 1997).

A “integração para trás” possui uma série de aspectos positivos para as empresas: passam a depender menos da aquisição da fruta de terceiros, que possui grandes oscilações de preços; os custos são menores na produção em grande escala, o que possibilita a compra do restante da matéria-prima necessária a preços maiores, sem prejudicar a lucratividade; há possibilidade de maior monitoramento dos pomares e do nível técnico adotado na agricultura; e cria um maior poder de barganha com os produtores de laranja, pois a integração fortalece as indústrias no momento da compra da safra.

63 Essas empresas foram compradas pela Citrovita, do grupo Votorantim, em 1998.

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Tabela 2: Estimativa do grau de integração vertical das empresas – 1997/98 – Empresa Grau de Integração*.

Empresa Porcentagem Citrosuco Paulista S.A. 30% Sucocítrico Cutrale 30% a 40% Cargill Citrus 30% Coinbra – Frutesp S.A. 15% Citrovita Agroindustrial 50% Royal Citrus 40% Usina Nova América 25%

Obs.: * Percentual (%) de matéria-prima produzida nas fazendas da própria empresa Fonte: Paulillo, 2001, p. 14.

Além do plantio de pomares próprios, é comum entre as grandes empresas a

existência da chamada “fruta prisioneira”, que é a fruta produzida por diretores, altos funcionários e fornecedores cativos (parentes diretos, amigos de diretores, etc). A aquisição dessas frutas não traz preocupação para as empresas, pois existe grande fidelidade entre os produtores e a indústria. (NEVES e ZYLBERSTAJN, 1995).

AS INOVAÇÕES NO SISTEMA DE TRANSPORTE

O papel da inovação é de grande importância no processo de acumulação capitalista. Ao se aplicar algum tipo de inovação, a empresa consegue ter um custo de produção menor que o custo médio do mercado e, dessa forma, obter uma taxa de lucro superior à taxa média. Isso proporciona à empresa inovadora uma vantagem competitiva até que a inovação seja absorvida e utilizada por outras empresas, transformando-se no novo padrão tecnológico e, portanto, sendo a base para o cálculo da taxa média de lucro no setor.

Grandes inovações no sistema de transporte no setor citrícola marcaram os anos 80. Tais inovações se deram nas grandes empresas, consolidando assim a sua posição no mercado e criando maiores barreiras à entrada de novas empresas.

A principal inovação no setor de transportes se deu no início dos anos 80, pela Cargill, que deixou de fazer o transporte em tambores de aço, substituindo-os por caminhões-tanque e navios graneleiros, com terminais frigoríficos de grande porte nas duas pontas do processo.

Esse novo sistema de transportes proporcionou uma redução de custos significativa, o que levou os citricultores e outras indústrias a pressionarem a Cacex a tomar uma providência, pois a utilização do novo sistema de transportes por apenas uma empresa causaria graves problemas para o setor, com reflexos inclusive na área agrícola.

Com tais pressões feitas, a Cargill aceitou “compartilhar” seu sistema de transportes, que logo foi adotado pela Citrosuco e pela Cutrale. Atualmente, a Coinbra-Frutesp e a Citrovita também adotam o mesmo processo. As empresas de menor porte ainda utilizam o sistema de tambores de aço ou fazem algum tipo de parceria para a utilização do sistema a granel utilizado pelas grandes empresas. Conforme o parecer de Paulo Furquim de Azevedo dado ao CADE (1997, p.18).

Ocorre que o transporte a granel, por apresentar elevadas economias de escala, é hoje amplamente utilizado por poucas grandes empresas, que não somente possuem frotas de caminhões para esse fim, como

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possuem terminais próprios no porto de Santos e, em alguns casos, em importantes portos internacionais, como Rotterdam. As empresas que não possuem sistema próprio de transporte a granel normalmente utilizam-se dos serviços dessas poucas empresas, não se apropriando, evidentemente, da margem relativamente mais alta – como decorrência das barreiras à entrada – desse estágio da cadeia produtiva.

Outras inovações nos transportes estão associadas à comercialização do suco de

laranja não-concentrado. Com o aumento das exigências nos mercados consumidores de maior poder aquisitivo, outros atributos tem sido valorizados, principalmente o caráter “natural” do suco. Apesar das vantagens do suco concentrado em relação ao volume e ao custo do transporte, o suco não-concentrado tem tido grande aceitação nesses mercados, mesmo com um preço mais elevado. O transporte a longa distância do suco pasteurizado é muito complexo, o que dificulta a participação de empresas muito distantes dos centros consumidores. No entanto, o Brasil já possui tecnologia para atender esses mercados.

A utilização de novos sistemas de transporte, com base em caminhões-tanque e navios esterilizados, com uma tecnologia que permite viagens a longas distâncias sem alteração do sabor, fez com que o suco fresco, comercializado dessa forma, tenha conquistado esse mercado. No momento, somente duas empresas brasileiras têm o domínio dessa tecnologia: a Citrosuco e a Cutrale.

INOVAÇÕES NA COMERCIALIZAÇÃO

Outra inovação aplicada pelas empresas é a conquista de novos mercados ou a participação em nichos de mercados. Um exemplo disso é a produção do suco pronto para beber voltado ao mercado interno e a produção de suco orgânico e do suco social, com vistas ao mercado europeu.

Nem todas as grandes indústrias entraram na produção de sucos para o mercado interno, preferindo focalizar sua produção no Suco de Laranja Concentrado e subprodutos. No entanto, esse tem sido um mercado com forte crescimento, o que levou algumas firmas a se interessarem em diversificar a produção para esse setor (como é o caso da Cargill e da Citrovita, entre as 5 C´s64)

A União Européia adota algumas políticas de incentivo à fabricação de produtos que levam o selo ambiental (produção orgânica e sem agressão ao meio ambiente) e social (que cumpre uma série de requisitos sociais no seu processo produtivo, entre eles o registro em carteira, assistência médica e odontológica aos trabalhadores e repasse de uma porcentagem das vendas para a associação de trabalhadores). A compra é efetuada por um preço mínimo acima da cotação média do SLCC (Suco de Laranja Concentrado Congelado) e quando a cotação ultrapassa esse preço mínimo o pagamento é feito pelo preço de mercado. Além disso, existe um repasse de dinheiro baseado no volume comercializado para que a empresa, juntamente com os trabalhadores, o aplique nos projetos sociais.

A produção do suco orgânico ainda é marginal, mas tem sido feita pelo grupo Montecitrus e comercializado na Europa. O mercado europeu tem tido preferência pelo 64 As cinco grandes processadoras de suco de laranja – Cutrale, Citrosuco, Cargill, Coinbra-Frutesp e Citrovita – são conhecidas como 5 C’s. Em 2005, a Cargill vendeu o seu setor de processamento de suco de laranja para a Cutrale e Citrosuco, aumentando a concentração no setor.

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consumo de produtos naturais e “ecológica e socialmente corretos”, mesmo a preços mais altos.

De forma conjunta, a indústria tem atuado através da Abecitrus para a conquista de novos mercados, como é o caso do mercado chinês, cujas importações tiveram crescimento significativo nos últimos anos. Além da busca desses novos mercados, a Abecitrus tem pressionado contra as barreiras impostas pelos EUA em relação ao suco brasileiro.

Como estratégia para a entrada no mercado americano, algumas processadoras brasileiras adquiriram plantas industriais localizadas na Flórida, como forma de produzir e comercializar nos EUA, sendo beneficiados por sua política protecionista. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A indústria, ao submeter a agricultura aos seus interesses, provoca intensas transformações no meio rural. A agricultura passa a produzir diretamente para a indústria, tendo o seu desenvolvimento ligado às necessidades industriais. A dinâmica da produção de laranjas em São Paulo está associada aos movimentos ocorridos na transformação industrial. É a indústria de suco de laranja concentrado que determina os rumos tomados pela citricultura. A consolidação do monopólio da indústria de suco de laranja concentrado está associada aos conflitos entre as partes envolvidas no setor citrícola.

A existência de mão-de-obra barata foi um fator fundamental para a indústria se tornar altamente competitiva. A colheita da laranja é a fase que mais absorve mão-de-obra na produção do suco de laranja. A exploração desses trabalhadores, por parte da indústria ou dos citricultores, de forma a pagar o mínimo necessário à reprodução da força de trabalho, tem sido uma prática comum. O melhor período para os trabalhadores foi quando da vigência do contrato padrão, que os ligava diretamente à indústria, criando melhores condições de estabilidade no trabalho e melhores salários. Grande parte das conquistas trabalhistas para os trabalhadores volantes se deu devido aos movimentos grevistas da década de 1980.

Nos últimos anos, quando os citricultores passaram a se tornar responsáveis pela colheita, a formação de cooperativas de trabalho passou a ser uma alternativa para reduzir os pagamentos dos direitos trabalhistas e, assim, reduzir os custos da colheita. O papel da Justiça do Trabalho no combate às fraudes ocorridas com as cooperativas foi fundamental para o surgimento de alternativas de contratação.

Outro fator de competitividade na indústria de suco concentrado brasileira é o baixo preço da matéria-prima. A década de 1980 foi marcada por intensos conflitos entre citricultores e industriais que buscavam melhores preços pela caixa de laranja. Tais conflitos continuaram ocorrendo com novas características nos anos 90, o que proporcionou uma nova dinâmica na organização do setor citrícola. A adoção do contrato padrão criou ótimas condições para os citricultores, havendo uma expansão dos pomares. Ao mesmo tempo, a indústria buscava aumentar seu grau de verticalização buscando novas áreas para o plantio e evitando uma dependência muito grande da compra de matéria-prima de terceiros. Esse fato levou à superprodução da fruta nos anos 90, ocasionando uma crise para os citricultores que passaram a ter problemas para comercializar a sua safra, o que ocasionou uma diminuição do número de produtores.

Além da aquisição da matéria-prima e da força de trabalho a baixos preços, a indústria citrícola tem adotado diferentes estratégias como forma de se tornar mais

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competitiva. O papel das inovações e da atuação das empresas no mercado mundial foi de grande importância no processo de centralização dos capitais no setor. Mesmo havendo um forte grau de concentração, existe uma tendência à competição internamente ao oligopólio. Tal concorrência tem sido o motor impulsionador das inovações ocorridas no setor. É importante lembrar que com o aumento do nível técnico e a utilização de tais inovações aumenta-se a tendência à oligopolização. Nesse sentido, os citricultores e principalmente os trabalhadores, como elos mais fracos desse setor produtivo, são os que mais sentem o poder do monopólio e a submissão da agricultura aos interesses da acumulação industrial.

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QUESTÕES REGIONAIS DO TERRITÓRIO BRASILEIRO

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AS POLÍTICAS NEOLIBERAIS DOS ANOS DE 1990 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS NA ECONOMIA

CATARINENSE

ALOYSIO MARTHINS DE ARAÚJO JUNIOR

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianópolis – SC

[email protected] INTRODUÇÃO

No processo histórico de desenvolvimento do capitalismo, é possível verificar que nos países industrializados desenvolvidos a participação do Estado foi primordial para a maturação de seus respectivos parques produtivos. Ainda hoje, nesses países, os governos têm mantido políticas que aproximam Estado e iniciativa privada, definindo setores que necessitam de proteção para aumentar sua competitividade interna e externa.

A crise recessiva da economia mundial traz reflexos negativos à economia brasileira e esta tem buscado alternativas para um novo ciclo de investimentos e de maior inserção no comércio mundial. Isso tem sido feito com os novos parceiros comerciais do Mercosul (Mercado Comum do Sul), a futura Alca (Área de Livre Comércio das Américas), a possibilidade de maior intercâmbio com a União Européia e uma maior aproximação com a China e a Índia, etc.

Ao iniciar o processo de abertura comercial e de flexibilização econômica, os governos federais que se sucederam nos anos 90, deixaram o país com uma economia mais vulnerável aos acontecimentos externos. Ao praticar uma política econômica de caráter neoliberal, o país perdeu a capacidade de gerenciar as melhores estratégias para o seu processo de desenvolvimento econômico e social.

Claro que as políticas econômicas postas em prática em âmbito federal acabam por se refletir nos estados da Federação, que têm que buscar maneiras viáveis para seu processo de desenvolvimento econômico e social. E é isso que a economia catarinense tem feito nos últimos anos, marcando posição de destaque na economia nacional e direcionando parte de sua produção às exportações.

A partir da década de 90, toda a estrutura econômica e social brasileira foi alterada. Assim, várias questões têm que ser equacionadas: como conciliar a expansão produtiva nacional com os acordos comerciais, via blocos econômicos? Quais os reflexos sobre a economia catarinense a partir de tais políticas econômicas? Portanto, a redefinição do papel do Estado brasileiro toma maior importância, pois tem que buscar alternativas que permitam ao país retomar seu processo de investimentos, criando um novo ciclo de expansão produtiva interna e maior participação no mercado mundial.

REGIÃO, CRESCIMENTO ECONÔMICO, POLARIZAÇÃO E CONCENTRAÇÃO PRODUTIVA

O processo de industrialização nacional iniciou-se ao final do século XIX, quando um grande número de empresas passou a atuar em setores mais simples, isto é, bens de consumo não-duráveis, como têxteis e alimentos, além de outros produtos. Por questões

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históricas e que fogem ao objetivo desse artigo, entende-se que tal processo de industrialização iniciou-se a partir da Capital paulista, contando com uma infra-estrutura montada a partir da atividade cafeeira.

O processo de desenvolvimento industrial paulista, que se iniciou a partir do ramo têxtil (o principal, seguido pelo alimentício), criou condições para a diversificação no setor mecânico e de indústrias, como cimento e siderurgia. Isso se explica pela necessidade, existente na época, de manutenção de máquinas e a conseqüente criação de oficinas mecânicas. As próprias necessidades criaram as condições de se iniciar a fabricação de peças simples e de reposição (de acordo com a tecnologia disponível). Note-se que não era ainda propriamente uma indústria de base, concentrando-se em usinagem, forjarias, fundições, etc. Todavia, com o passar do tempo, tais empresas seriam capazes de fabricar artefatos mais complexos.

Portanto, a partir de um setor mais dinâmico, outras empresas foram formadas para o fornecimento de peças, consertos, etc., criando um processo de crescimento e de diversificação industrial. O processo de crescimento e de concentração industrial em São Paulo passou por dois momentos: inicialmente, por "concentração por estimulação", durante a Primeira Grande Guerra, quando a indústria paulista passou a produzir para sustentar a demanda interna do país, dada a redução da capacidade de importações. O segundo seria a "concentração por necessidade", levada a efeito nos anos 20, pela necessidade da indústria paulista ampliar sua necessidade por mais mercados e prosseguir o processo de acumulação de capital (RAUD, 1999). No primeiro momento, a indústria paulista deu um salto quantitativo, enquanto no segundo, qualitativo, diversificou a produção industrial.

Assim, durante a Primeira Guerra Mundial, a indústria nacional e, especialmente, a indústria paulista, já era capaz de poder substituir determinados produtos importados. Isso se deu também na crise do café dos anos 30 e durante a Segunda Grande Guerra.

Durante o governo Juscelino Kubitschek (1956-61), foi implementado o Plano de Metas, que dava ênfase aos problemas setoriais. A partir desse Plano, houve grande expansão da economia nacional e abertura ao capital estrangeiro para a instalação de indústrias no país. Os setores que se instalaram foram os de bens de consumo duráveis, como o automobilístico. Tais empresas concentraram-se principalmente no estado de São Paulo e, especificamente, nas proximidades da Capital (Grande São Paulo).

Desde os anos 60 o processo de integração nacional vinha se desenrolando. Foi, porém, a partir dos anos 70, que ganhou maior impulso. Entre várias dessas ações, pode-se destacar o esforço do governo federal em dar incentivos fiscais (principalmente para as regiões Norte e Nordeste), abertura de estradas, criação de pólos industriais, etc., o que atraiu capitais para essas regiões65. Nesse período, o governo priorizou os setores de bens intermediários e de capital. Em 1973, 49% dos projetos aprovados pelo Conselho de Desenvolvimento Industrial foram para esses setores. Já em 1978, passaram a 92% (RAUD, 1999, p. 192).

65 Por essa época, o governo brasileiro aplicava o conceito de pólos de desenvolvimento. A partir de 1995, novos estudos levaram ao conceito de Eixo de Desenvolvimento Integrado. Segundo Costa (s.d., p. 10), (...) "o conjunto de programas e projetos prioritários do governo, conhecido como Brasil em Ação, passou a expressar claramente essa nova abordagem, isto é, eles em geral almejam projetar os seus efeitos enquanto vetores capazes de deflagrar mudanças que impactarão a logística territorial como um todo".

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Dessa forma, os anos 70 foram marcados por uma forte desconcentração industrial, partindo de São Paulo e se espalhando por outros centros. Como processo dessa desconcentração66, foram criados pólos petroquímicos, siderúrgicos, de papel e celulose e outros não menos importantes67. É necessário salientar ainda que a indústria paulista passou a realizar um rápido processo de modernização e variedade, devido às necessidades de exportação e conseqüente aumento da competitividade internacional. Conforme indica Negri (1992, p. 23):

A despeito dessa descentralização industrial em São Paulo e dos fortes investimentos feitos no resto do país, há que se lembrar que a indústria paulista era, e continua sendo, o centro dinâmico industrial do país, funcionando como um verdadeiro eixo no qual teriam que se engendrar os compartimentos industriais regionalizados. Portanto, a política de desconcentração industrial não poderia resultar num declínio ou estagnação da matriz industrial de São Paulo.

Entretanto, a política de criar pólos de desenvolvimento regional não teve o resultado esperado, pois tais pólos foram formados com a noção de que apenas a existência deles pudesse gerar o desenvolvimento regional. Nesse sentido, a instituição de tais pólos de crescimento, não levou em consideração as articulações intra-setoriais e regionais, para que se obtivesse sucesso.

Ultrapassada a crise dos anos 80, quando praticamente toda a economia brasileira entrou em forte crise recessiva, a indústria paulista manteve a infra-estrutura montada anteriormente. Isso permitiu que pudesse solucionar, mesmo que parcialmente, a situação daquele período.

Apesar das tentativas para reduzir o alto grau de concentração industrial nos anos 60 e 70, a indústria paulista, ainda na década de 80, estava grandemente concentrada na cidade de São Paulo e em sua Região Metropolitana. Devido a diversos fatores de ordem infra-estrutural dessa região (terrenos com valor elevado, forte atuação sindical, problemas viários, etc.), houve uma intensificação dos movimentos de descentralização e desconcentração industriais em direção ao interior e a outros estados.

Atualmente, deve-se considerar as transformações que atravessam a economia mundial no tocante à introdução de novas formas de produção, tecnologia e deslocalizações, principalmente entre empresas dos países centrais e que acarretam mudanças na economia brasileira.

Com a abertura comercial brasileira iniciada a partir dos anos 90, a indústria nacional como um todo teve que se readaptar à situação vigente. As empresas tiveram que mudar seus focos de atuação e pensar em novas estratégias para a competição que se tornara mais acirrada. Surgia a necessidade de integrar todas as áreas de produção, onde as empresas teriam que se comunicar e inter-relacionar com empresas do mesmo setor. Enfim, as parcerias entre empresas, maior desverticalização da produção, entre outras medidas, acabaram por interferir em toda a cadeia produtiva. A partir dessa década, as

66 Utilizar-se-á o conceito definido por Cano (1991, apud RAUD, 1999, p. 198): "[...] o processo de descentralização, que corresponde à constituição de um processo de industrialização endógena nas zonas até então periféricas, e o processo de desconcentração, que se traduz pela implantação de filiais em regiões menos desenvolvidas, a fim de dispor de vantagens fiscais e financeiras". 67 Mais detalhes sobre esse processo podem ser encontrados em Negri (1992).

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novas estratégias empresariais buscaram movimentar-se em um processo de reestruturação organizacional e industrial.

As transformações econômicas também exigiram outras necessidades para os investimentos. As empresas multinacionais, já instaladas ou que quisessem se instalar, buscavam, além de mão-de-obra barata e fartos recursos naturais, qualidade em produtos e serviços. Dessa forma, outras necessidades impuseram-se para as empresas, diferentemente do que apregoavam as teorias sobre localização industrial.

Assim, pode-se considerar que essas novas necessidades empresariais desafiaram as teorias que explicavam as motivações locacionais. Pode-se argumentar que a chamada "Teoria Clássica da Localização", desenvolvida nos anos 20 por Alfred Weber, considerava a economia num contexto de mercado livre (concorrência perfeita), sendo que nos últimos anos, outros autores têm direcionado suas preocupações para as questões do desenvolvimento regional.

De modo geral, a teoria clássica da localização considera como aspectos essenciais para a localização de uma unidade produtiva: a) as fontes e localizações de matérias-primas serem amplamente conhecidas; b) o mercado consumidor exercer forte influência devido ao seu tamanho e potencial de consumo; e c) a mão-de-obra ser ilimitada, tendo uma dada taxa salarial (AZZONI, 1982; KON, 1994).

Entretanto, cabe salientar que muitas críticas são feitas a essa teoria, pois ela considera a economia estática, desconsidera os fatores dinâmicos da economia capitalista; o grau de monopolização e o progresso técnico de uma empresa ou setor produtivo; além do aspecto da concentração espacial industrial que leva a desigualdades regionais de renda, entre outras conseqüências (AZZONI, 1982).

Independente de qual corrente teórica se discuta, os fatos mostram uma realidade bastante difícil para as empresas industriais brasileiras.

Entre o final da década de 80 e início dos anos 90, a economia nacional enfrentou forte estagnação e as políticas governamentais voltaram-se para o combate à inflação. Devido à crise e aos problemas como falta de crédito e retração da demanda, muitas empresas deixaram de investir em novos processos de produção ou lançamentos de novos produtos68.

Somente os setores industriais mais modernos puderam se proteger através de estratégias que contemplassem a ampliação da capacidade ociosa planejada e da manutenção de preços (CAIADO, 1996). A partir de meados dos anos 90, a economia voltou a crescer em segmentos que antes estavam em sérias dificuldades. A partir de 1985 retomou-se o movimento de desconcentração das atividades industriais no interior do estado de São Paulo. Todavia, como demonstra o estudo da Fundação Seade (1990, p. 37), o processo que se desenvolvia poderia ser considerado como uma "desconcentração concentrada", isto é, as empresas se dirigiam ao interior buscando áreas já consolidadas ou em vias de consolidação, ou seja, zonas que pudessem oferecer boa infra-estrutura. Com a competição entre as empresas acirrada e uma violenta crise financeira dos estados da Federação, muitos deles criaram incentivos para a atração de empresas.

68 Nesse período, a economia em recessão não oferecia grandes estímulos para investimentos produtivos. Decorre que as empresas iniciaram os anos 90 sem poupança interna, defasadas tecnologicamente e sem oportunidades de investimentos. Isso levou muitas empresas a se endividarem, serem vendidas (muitas delas para o capital estrangeiro) e outras até a falirem.

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Na fase atual da economia brasileira e mundial, o modelo fordista de produção em grande escala cede lugar à produção focada na proximidade do consumidor, na qualificação do trabalhador e na qualidade de seus produtos. Nesse sentido, a produção pode estar localizada em novas regiões industriais; todavia, os centros de decisão ainda permanecem na cidade de São Paulo e áreas adjacentes. "Assiste-se, portanto, mais à extensão do pólo paulista do que a uma verdadeira descentralização industrial caracterizada pelo surgimento de pólos independentes" (AZZONI, 1990, apud RAUD, 1999, p. 201).

Os estados brasileiros estão passando por uma grave crise financeira, o que vem acarretando forte recrudescimento nos investimentos. Na busca de uma recuperação econômica, vários governos estaduais estão criando políticas que incentivem a atração e instalação de empresas em seus respectivos territórios, principalmente se utilizando de instrumentos fiscais (isenções). Isso tem fomentado a chamada "guerra fiscal", que mais tem prejudicado os estados (redução da arrecadação) do que incentivado um processo de desenvolvimento sustentado. OS DESNÍVEIS DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL EM SANTA CATARINA

É sabido que vários países têm praticado políticas de desenvolvimento tecnológico visando uma maior capacidade e competitividade empresarial. Dentre os estados brasileiros, Santa Catarina destaca-se em vários setores econômicos, seja em termos de produção voltada ao mercado interno regional e nacional, seja orientada para a exportação.

O crescimento das principais empresas catarinenses também vem direcionando para um processo de expansão internacional. Empresas líderes, como nos segmentos das agroindústrias, metal-mecânicas, cerâmicas, entre outras, conformadas em clusters69, assumem posições de destaque no cenário nacional e muitas delas atuam como referência nos respectivos setores de atuação70. Dessa forma, ações de internacionalização se tornam necessárias no processo de competitividade que se instalou no Brasil após a abertura da economia, a partir do início da década de 1990. Esse aspecto se torna importante ao se observar que um número significativo de empresas, que não partiu para estratégias de internacionalização, teve seus ativos adquiridos por empresas internacionais.

Além disso, cabe ressaltar que a formação socioeconômica do estado de Santa Catarina permitiu a criação de várias empresas de pequeno e médio porte. Essas, além de outros atributos, geram grande número de empregos e várias delas destacam-se no setor em que atuam. Saliente-se também os esforços do governo estadual e da iniciativa privada em criar um ambiente mais competitivo para as empresas poderem ter uma atuação empresarial mais destacada. Nesse sentido, a formação de uma rede de apoio tecnológico surge num momento de profundas mudanças na economia brasileira e internacional. 69 Um cluster pode ser considerado como um arranjo produtivo em que várias empresas do mesmo setor organizam-se para obter vantagens produtivas em termos de melhores preços com fornecedores, redução no custo de transportes, maior oferta e qualificação da mão-de-obra, entre outros benefícios. 70 Por razões que fogem ao objetivo desse artigo, não será aprofundado o debate acerca da formação econômica e social de Santa Catarina. Mais detalhes podem ser verificados em diversos autores, tais como: Mamigonian (1965); Mamigonian (1986) e Goulart Filho (2002).

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Cidades como Florianópolis e Joinville têm mantido em funcionamento vários projetos, destacando-se as chamadas "incubadoras tecnológicas". Essas têm incentivado a utilização de novas tecnologias por parte das empresas, destas e de outras regiões do estado, tendo sido reconhecidas de grande utilidade para as empresas que utilizam tais serviços. Entretanto, cabe ressaltar que as iniciativas ainda têm uma abrangência limitada. A composição produtiva da economia catarinense indicava, em 2001, que a agropecuária participava com 13,8%, a indústria com 48,6% e o setor de serviços com 37,6%. Tais dados colocavam a economia catarinense em 7º lugar na participação no PIB nacional, com 3,9% (FATOS E NÚMEROS, 2004).

Santa Catarina teve uma formação econômica e social bastante peculiar em relação a outros estados e macrorregiões brasileiras, dada a intensa relação comunitária advinda da colonização européia. Sua formação socioeconômica está "(...) inserida numa base latifundiária, a pequena produção mercantil do sul do Brasil, é a gênese da distinta dinâmica econômica, que será alcançada, frente ao norte brasileiro pastoril, extrativo e agro-exportador" (VIEIRA; PEREIRA, 1997, p. 456-7).

Dessa maneira, a estrutura criada a partir da pequena propriedade e a diversificação da economia catarinense levou a determinadas especializações em seu território ao longo de sua formação econômica e social. Assim, tomando-se a divisão econômica elaborada pela Federação das Indústrias do estado de Santa Catarina (2002) e Raud (1999), tem-se:

• Complexo Agro-industrial (alimentos e bebidas). Localizado no oeste catarinense, compreende as cidades de Chapecó, Concórdia e Videira, além de várias empresas espalhadas pela região.

• Complexo Madeireiro (mobiliário, papel e celulose, madeira). Situa-se no Planalto e abrange as cidades de Lages, no Sul, até Canoinhas, no Norte, além dos municípios de Curitibanos, Caçador e Campos Novos. Esse setor abrange ainda o setor de móveis, destacando-se as cidades de São Bento do Sul, Rio Negrinho, Mafra e Jaraguá do Sul.

• Complexo Mineral ou Pólo Cerâmico (indústria extrativa mineral e de produtos minerais não metálicos). Criciúma concentra a maior parte da produção desse setor, além das cidades de Tubarão e Urussanga, que têm tido relativa participação.

• Complexo Têxtil (inclusive vestuário, calçados e artefatos de tecido). Blumenau, Brusque e, com menor participação, os municípios de Jaraguá do Sul e Joinville são as cidades que têm a maior produção, situando-se no Vale do Itajaí.

• Complexo Eletro-metal-mecânico. Concentra-se no Nordeste do estado, tendo como principais cidades Joinville e Jaraguá do Sul.

• Complexo Tecnológico. Situado no litoral e proximidades, tem as cidades de Blumenau e Florianópolis como principais centros irradiadores de novas tecnologias ligadas à produção industrial, além de manterem importantes projetos voltados às incubadoras tecnológicas.

Entre outras, uma das características desses pólos ou complexos industriais é sua

alta verticalização da produção. Isso pode ser atribuído ao processo histórico, durante o qual muitas vezes a sobrevivência da empresa dependia da independência em relação às importações. Todavia, é importante apontar para a grande especialização de

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microempresas, mesmo considerando tal verticalização. A especialização pode transferir à empresas terceiras parte do processo produtivo e alguns serviços especializados, fazendo com que a grande empresa foque apenas em seu principal negócio. Isso se verifica com maior freqüência em momentos de maior demanda, principalmente em setores produtores de bens de consumo. Como corolário desse processo de terceirização, isso se tem verificado numa maior concentração territorial de pequenas e médias empresas, notadamente nos Complexos Moveleiro e Têxtil. Os dados da tabela 1 demonstram as informações descritas, considerando as empresas exportadoras. Tabela 1: Número de empresas exportadoras de Santa Catarina, por Mesoregião – 2001.

Mesoregião Número de empresas Grande Florianópolis 43 Norte 261 Oeste 140 Serrana 79 Sul 119 Vale do Itajaí 305 Total 947

Fonte: Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (2002, p. 60).

Apesar de se notabilizar por uma dinâmica capitalista mais avançada em algumas porções do território catarinense, isso não tem feito com que se diminuam as desigualdades regionais e sociais. Isso pode ser verificado a partir do aumento da concentração espacial da indústria, notadamente nas regiões do Vale do Itajaí e do litoral de São Francisco do Sul, regiões mais industrializadas do estado. Conjuntamente a tal processo de intensa industrialização, observa-se também um significativo aumento da urbanização, quase sempre desorganizada, isto é, com pouco (ou nenhum) planejamento urbano.

Houve, a partir da década de 70, a expansão para as denominadas cidades médias, devido a alguns fatores, tais como: falta de espaço nas cidades maiores (Joinville, Blumenau, Itajaí); elevação no preço dos terrenos; e maior procura por mão-de-obra qualificada (porém não-formal, isto é, apenas com conhecimento empírico), barata e com baixo grau de organização trabalhista. Dessa forma, as cidades menores tiveram um crescimento desorganizado, enquanto as cidades maiores receberam um grande contingente populacional devido ao intenso êxodo rural, com a instalação de diversas empresas industriais, aproveitando-se dos fatores acima descritos.

Nos anos 80, houve a consolidação dos grandes grupos econômicos e industriais, excluindo as pequenas empresas do processo de modernização produtiva. Verificou-se também um intenso processo de desconcentração territorial dos grupos catarinenses para outros estados brasileiros, atraídos por potenciais mercados consumidores, oferta de matérias-primas e em menor grau, isenções fiscais. Vários desses grupos passaram a ter atuação fora do território catarinense, situando-se como grandes grupos nacionais.

A constatação das desigualdades regionais se tornou um problema freqüente para as classes dirigentes catarinenses, tanto públicas como privadas. Nesse sentido, esforços têm sido feitos para reduzir tais desequilíbrios e aumentar a integração entre as regiões produtivas no estado, buscando criar um "modelo" de desenvolvimento regional, evitando a formação de grandes ajuntamentos.

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Concomitante à concentração espacial e econômica industrial, verifica-se ainda uma forte concentração espacial e produtiva da população, acelerando um processo de urbanização, por conta de uma malha urbana desorganizada e carente de infra-estruturas básicas. Além disso, há que se considerar uma elevada concentração de renda e empobrecimento de grandes parcelas da população, tanto aquelas ligadas ao meio urbano quanto ao setor rural.

Sendo assim, há a necessidade de um planejamento que dê sustentabilidade regional articulada com o restante do país e com o mundo.

OS DESAFIOS DA INTEGRAÇÃO ECONÔMICA E A INSERÇÃO DA ECONOMIA CATARINENSE

A literatura atual tem discutido com bastante freqüência sobre a formação de vários blocos econômicos, notadamente o Mercosul, a UE (União Européia), o Nafta (North American Free Trade Agreement), além de ensaios sobre a possível formação da Alca.

A integração econômica pode ser conceituada como a criação de um mercado sem restrições ao comércio e ao movimento de fatores de produção coordenada por instituições que propiciem a integração de áreas geográficas vizinhas ou não. Esta idéia de integração não é um tema novo, mas somente nas últimas décadas é que tem tomado maior relevância (GONÇALVES et al, 1998).

Esse processo de integração fora desencadeado pela necessidade de fortalecimento dos Estados Nacionais, que buscavam atingir essas metas. Atualmente, existem múltiplos exemplos de acordos visando à integração econômica, porém, vários deles ainda estão em formação, como o Mercosul.

A cooperação econômica e militar entre regiões ou Estados Nacionais é bastante antiga. Historicamente, podem ser citados como exemplos desse processo a Liga Hanseática (século XIII), o Zollverein (Estados Prussianos, 1834), a Comunidade Econômica Européia (1957).

A partir do final da Segunda Guerra Mundial, a política externa norte-americana começou a incentivar a criação de áreas de cooperação econômica e militar, com o intuito de aumentar sua influência geopolítica. Europa Ocidental e Japão, tendo suas economias destruídas pelo conflito, tornaram os Estados Unidos a única potência capaz de alavancar um processo de reconstrução mundial. A formação de um bloco socialista liderado pela União Soviética fez com que o mundo se dividisse em dois grandes blocos, que se caracterizaria pela bipolaridade.

A América Latina, por diferentes motivos, não foi beneficiada com os imensos volumes de capitais que foram direcionados à Europa Ocidental e ao Japão por parte dos Estados Unidos. Entretanto, ao findar esse "mundo bipolar" nos anos 80, os Estados Unidos voltaram-se para o continente americano, visando extrair maiores vantagens para suas empresas e tentando minimizar a influência da União Européia, que se consolidou como um bloco econômico e político. Dessa forma, a América Latina, ao final dessa década, passaria por ajustes econômicos, políticos (redemocratização) e sociais, visando à maior integração entre seus pares e o aprofundamento de seus laços de amizade e cooperação.

No início dos anos 50, o capitalismo internacional teve grande crescimento, inclusive integrando áreas periféricas aos países centrais, com a implantação de empresas multinacionais. A implementação de novos conhecimentos científicos e

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tecnológicos fez com que o sistema capitalista internacional (liderado pelos países industrializados) buscasse atingir não apenas os mercados locais ou regionais, mas também o mercado mundial.

Em 1948 foi estabelecido o GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio). Como eram acordos, isso dava margem a muitas distorções no comércio mundial. Em 1994 (Rodada Uruguai), o GATT se transformaria na OMC (Organização Mundial do Comércio), fato que lhe dava maiores poderes para impor, regulamentar e arbitrar uma série de normas. Conforme Castro e Cardoso (1995, p. 8): "O sistema de produção internacional passa agora a reger-se crescentemente por esquemas de contratação em que a qualidade certificada e os direitos de propriedade intelectual assumem papel de grande relevo".

Dessa forma, a reorganização produtiva para as empresas domésticas e, principalmente, para as multinacionais, tornara-se imperativa. Nesse sentido, os processos de integração regional em formação buscavam sua consolidação para uma maior inserção no comércio mundial, onde a concorrência tornara-se cada vez mais acirrada. Nesse processo, áreas em fase de industrialização seriam grandes receptáculos de investimentos para a modernização produtiva e para a criação de plataformas de exportação.

O Mercosul surgiu em 1991, pelo Tratado de Assunção, entre a Argentina, o Brasil, o Paraguai e o Uruguai71. Esse Tratado visava também à eliminação de barreiras tarifárias e não-tarifárias entre os Países-Membros. Previa-se, ainda, a necessidade de implementação de políticas macroeconômicas e setoriais e a harmonização das legislações. A formação do Mercosul também está interligada com a futura criação da Alca, sob liderança dos Estados Unidos.

Os acordos definidos pelo Mercosul pretendem criar uma área de fluxos de mercadorias, serviços, capitais e mão-de-obra. Entretanto, existem problemas conjunturais de grande monta para serem resolvidos, devido ao desequilíbrio das forças produtivas entre os Países-Membros.

Mas, por maiores que sejam os problemas enfrentados para a implementação do Mercosul, é evidente que o comércio multilateral entre os países cresceu muito. Conforme Oliveira (1996, p. 263-4): "(...) a integração regional vem, de um lado, servir de alternativa para resolver os problemas de ajustes e dos pagamentos da dívida externa e, de outro, estabelecer novas regras para a região se ajustar ao comércio internacional".

Há que se considerar que a criação do Mercosul tornou o Brasil mais atrativo para os investimentos estrangeiros. Conforme Costa (s.d.), a mudança do enfoque de planejamento, considerando os chamados Corredores Bi-oceânicos (que pretendem ligar o oceano Atlântico ao Pacífico), coloca em destaque toda a malha de transporte e comunicações que a integração regional entre o Brasil e os outros países do Cone Sul requer. À medida que a internacionalização da economia se amplia, elevam-se as necessidades de integração regional e continental, buscando o maior intercâmbio comercial.

Nesse sentido, as áreas mais desenvolvidas economicamente são aquelas em que os investimentos são mais direcionados, por contar com uma infra-estrutura já estabelecida. As regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre,

71 Em agosto de 2006 a Venezuela passou a fazer parte do bloco.

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Montevidéu e Buenos Aires formariam uma ampla rede de comunicações importantíssimas para a circulação de mercadorias e pessoas.

Todavia, ao mesmo tempo em que se busca uma vasta integração física interna no Brasil, a mobilização de forças requer vultosos capitais, pois o restante do País ainda não tem a infra-estrutura que as referidas regiões possuem. Dessa forma, tais planos de integração aprofundariam ainda mais a desigualdade entre as regiões.

No caso do Comércio Exterior e da Diplomacia brasileiros, os últimos governos federais têm tido uma política de maior aproximação entre o Mercosul e a União Européia. Num longo processo de negociações entre seus Países-Membros, a União Européia acabou se tornando o principal parceiro comercial do Brasil. Esse bloco econômico se tornou mais importante ao final dos anos 80, quando o mundo passou por profundas transformações econômicas, políticas e sociais. Esse período ficou marcado pelo fim da "bipolarização" entre Estados Unidos da América (capitalista) e URSS (socialista). Em 1989, a reunificação da Alemanha fez com que outras mudanças na configuração econômica, política, militar e social européia fossem levadas a efeito.

Também nesse contexto de intensas transformações, no início dos anos 90, a URSS entraria em colapso. Dessa forma, seu status econômico passaria a ser o de uma economia de mercado, trazendo consigo países do leste europeu72 também em processo de transformações econômicas, políticas, etc.

Assim, a economia capitalista passou a ser hegemônica e o mundo conheceria novas formas de relacionamento comercial e político. A partir da década de 90, a internacionalização da economia mundial se intensificou. Novas tecnologias foram implementadas em praticamente todos os setores produtivos.

Para garantir competitividade e crescimento econômico, a Europa ocidental, que já vinha mantendo acordos de cooperação econômica desde o final dos anos 50, implementaria o aprofundamento desses acordos, englobando um número maior de países que formariam a CEE (Comunidade Econômica Européia).

Uma característica do mundo atual é uma nova configuração econômica a partir do desenvolvimento de espaços regionais.

Na América Latina, o relacionamento comercial era mais focado entre os próprios países que em bloco. Com a formação do Mercosul, esse quadro tem se alterado em favor de uma maior proximidade entre diferentes blocos econômicos. Novos acordos têm sido estabelecidos visando uma futura área de livre-comércio intra-regional.

A partir de meados dos anos 90, a relação comercial entre a União Européia e a América Latina também foi se aprofundando e passando por transformações. Até a década de 80, a América Latina e a UE (União Européia) tinham baixos fluxos comerciais. Os interesses eram mútuos, pois à União Européia interessava os grandes mercados consumidores, constituídos pelo Nafta (acordo de livre comércio entre Canadá, Estados Unidos e México) e pela futura Alca que poderiam ampliar as trocas comerciais. Voltando-se para o Mercosul, isso pôde permitir uma maior penetração

72 Em quase cinqüenta anos no processo de formação da União Européia, observou-se uma integração gradativa de novos membros - Reino Unido, Irlanda, Dinamarca, Grécia, Portugal, Espanha, Áustria, Suécia e Finlândia que, até 2003, formavam a chamada Europa dos quinze. A Comunidade Européia chegou em 2004, com vinte e cinco membros, após o maior alargamento de sua história, a partir da adesão de Chipre, Estônia, Hungria, Polônia, República Checa, Eslovênia, Letônia, Lituânia, Malta e Eslováquia (SILVA, 2005).

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também num imenso mercado consumidor e, ao mesmo tempo, diminuir o peso da influência norte-americana sobre a região.

Há ainda um forte desequilíbrio entre os produtos que são exportados do Mercosul para a União Européia. Basicamente as exportações são de produtos com baixa intensidade tecnológica, ou seja, os produtos exportados são em sua maioria, commodities73. Também existem outros problemas que afetam as exportações do Mercosul para a União Européia como: barreiras técnicas e sanitárias, defesa comercial, etc. (THORSTENSEN, 1993).

Já as importações da União Européia são de produtos que agregam maior valor. Em longo prazo, isso poderá gerar enormes déficits comerciais entre ambos os blocos e também por países. Ou seja, é necessário que haja cooperação não só na eliminação de barreiras comerciais, mas também acordos para a transferência tecnológica, capacitação de mão-de-obra, joint ventures, etc., para que os desequilíbrios atuais sejam dirimidos.

Entretanto, para que o Mercosul tenha um peso considerável no comércio mundial, falta fortalecer-se e consolidar-se como um forte bloco, com peso político e econômico, que possa realizar as trocas comerciais em igualdade de condições com outros blocos econômicos, notadamente com a União Européia.

Para que ocorra um intercâmbio mais aprofundado entre os dois blocos econômicos, é preciso que os países latino-americanos solucionem seus graves problemas econômicos e sociais, que se intensificaram, principalmente ao adotarem políticas "neoliberais", tais como a abertura comercial, a adoção do câmbio fixo e valorizado, o incentivo às privatizações, o afastamento do Estado de setores produtivos e sociais, etc.

Mas é preciso ressaltar que o Mercosul vem se transformando em importante parceiro. É possível que, após resolver seus problemas internos do bloco como um todo (e das economias dos Países-Membros), tenha muito potencial para se desenvolver.

Mesmo com a consolidação do Mercosul e o aprofundamento das negociações com a União Européia, as empresas catarinenses ainda têm nos EUA seu principal mercado. Em 2001, Santa Catarina exportou US$ 3 bilhões, ou seja, 5,2% do total exportado pelo Brasil, colocando o estado em 5° lugar em termos nacionais. Os principais destinos das exportações catarinenses naquele ano foram os EUA (24%), a Argentina (8%), a Alemanha (7%) e a Rússia (6%) (FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DE SANTA CATARINA, 2002).

A mesma fonte indica ainda que os principais produtos exportados para os países do Mercosul eram ligados a bens de consumo simples, tendo baixo valor agregado. Ressalte-se também a crise argentina a partir de 2000, que reduziu drasticamente as exportações para aquele país. De qualquer forma, é necessário tornar os produtos exportados mais competitivos e aumentar o valor agregado destes.

Apesar dos dados apresentados relativos às exportações serem animadores, a economia catarinense direciona a maior parte de sua produção ao mercado interno (18% para o próprio estado e 56% para os demais estados, somando 74%), enquanto para o exterior é de 26% (FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DE SANTA CATARINA, 2002, p. 87).

73 Commodities: podem ser traduzidos literalmente como artigos de primeira necessidade; utilidades; bens móveis. Podem ser também transacionados em Bolsas de Valores.

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As informações permitem concluir que, mesmo tendo uma grande dinamicidade produtiva (indústria e agropecuária), é preciso realizar investimentos para tornar a economia catarinense mais competitiva. Isso se torna mais premente considerando a defasagem tecnológica encontrada na economia brasileira (e catarinense), além de gargalos infra-estruturais, notadamente no setor de transportes (rodovias, ferrovias, aeroportos e portos).

Para isso, deve-se criar instrumentos visando ao desenvolvimento equilibrado entre as distintas regiões do Brasil e suas articulações com o restante do subcontinente sul-americano. Portanto, os planos estratégicos atuais ainda mantêm a dependência de áreas não-industrializadas do país em relação às regiões mais industrializadas do centro-sul, que se internacionalizaram com a maior intensificação dos investimentos. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entre os anos 30 a 80, a participação do Estado brasileiro, durante o processo de formação de seu parque produtivo, foi de fundamental importância. Diferentemente do que ocorreu em passado recente, desde o início dos anos 90, estudiosos, empresários, autoridades, políticos, etc., que defendem as teorias "neoliberais", apregoam que já não é mais possível o Estado ser o executor de obras que alavancariam o desenvolvimento industrial e econômico, devido à sua baixa capacidade de investimentos. Estes, portanto, devem ser realizados a partir da iniciativa privada que definiria onde seriam alocados os seus recursos.

Com a maior internacionalização econômica e o aprofundamento da integração regional sul-americana (e, futuramente, do continente), torna-se imperioso para as empresas poderem contar com uma infra-estrutura que facilite a circulação de mercadorias e de pessoas. Sendo assim, os Planos de Desenvolvimento implementados pelo governo brasileiro desde 1997, se fundamentam em estabelecer uma malha rodo-hidro-ferroviária, uma ampliação e modernização dos portos, aeroportos, etc., de acordo com as necessidades do grande capital privado internacional e nacional.

Todavia, a política interna de desenvolvimento pode ficar comprometida, pois os interesses privados nem sempre se coadunam com as necessidades das diferentes regiões e populações distribuídas pelo território nacional e sul-americano. Isso pode ser verificado a partir da economia catarinense. Esta tem grande diversidade produtiva, criando, inclusive, condições para exportações. No entanto, no estado, é possível se verificar grandes disparidades regionais e sociais. Para que a economia catarinense possa se tornar mais competitiva, são necessários investimentos em setores considerados estrangulados, como em infra-estrutura de transportes, saneamento básico (que auxiliaria o setor turístico, por exemplo), além de aumentar a capacidade de consumo interno. É necessário também reduzir as disparidades regionais, sendo o Norte/Nordeste do estado as regiões que mais concentram atividades produtivas, enquanto outras regiões contribuem bem menos para a geração de recursos estaduais.

Dessa forma, a articulação em âmbito estadual e federal pode oferecer à economia catarinense as bases para o seu crescimento econômico, considerando, entre outros fatores, a proximidade com países integrantes do Mercosul, além de aumentar a oferta de empregos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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TERRITÓRIOS CONSERVADORES DE PODER E REDES SOCIAIS DE PODER: PARA PENSAR ALÉM DE

GUARAPUAVA–PR

MÁRCIA DA SILVA Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO)

Guarapuava – PR [email protected]

INTRODUÇÃO O tema deste estudo está fundamentado nas discussões sobre os grupos de poder

local e os territórios conservadores de poder numa região do Paraná que tem Guarapuava como cidade principal, funcional e populacionalmente. Ao chegar à cidade74, alguns fatos chamaram a atenção em relação à temática, já estudada parcialmente para Presidente Prudente-SP. O mais instigante era o conservadorismo presente nas relações.

A partir de algumas observações, conversas e leituras, entendeu-se, a priori, que aquele conservadorismo era resultado da tradição, das relações de tempo lento, de certos hábitos da vida cotidiana, de valores um pouco mais arraigados, etc. Mas o que diferenciava/diferencia Guarapuava (e áreas semelhantes), de outras regiões, que a caracterizava/caracteriza como conservadora? Conservadora em que sentido? O que é ser conservador/conservadora? Qual seria, então, a singularidade local? No nosso entender, a resposta estava na composição histórico-geográfica regional e nas próprias relações de poder político, além dos instigadores desses processos, ou seja, as formas de produção e seu viés econômico.

Iniciou-se, então, uma busca, por meio dos processos de ocupação e de formação territorial paranaenses, dos elementos constitutivos da região e de suas principais especificidades. O que diferenciava Guarapuava/sua região, em termos de formação histórica e de relações político-econômicas do restante do Paraná? O estudo da ocupação e da formação territorial demonstrou um grande empobrecimento local e um atraso socioeconômico na comparação deste com outros municípios de similar importância regional (mesmo com seus quase cento e noventa anos); uma estrutura de produção tradicional, voltada à pecuária (com início no tropeirismo); o isolamento decorrente da inexistência de vias de transporte adequadas e meios de comunicação, até os anos 1970, aproximadamente; uma indústria ainda vinculada ao extrativismo da madeira e da erva-mate; o latifúndio, como resultado da distribuição de sesmarias, etc. A partir dessa premissa, chegamos a um primeiro aspecto. Conservadoras, como sinônimo de atraso econômico-tecnológico, são algumas formas de produção, reflexo das ações de parte da sociedade, e não a sociedade “guarapuavana”.

Complementar ou implícito a questões históricas e sócio-econômicas, buscou-se compartilhar elementos vinculados ao poder político e às contradições/disputas existentes entre os principais grupos políticos locais que retardam, em alguns casos, o

74 Cheguei a Guarapuava no início do ano de 2002, ao passar no concurso público que me tornou professora da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO).

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desenvolvimento local-regional. A sustentação dos mesmos depende da permanência e não da mudança da estrutura existente, por isso buscam conservá-la, mesmo que para isso preguem a mudança, numa contradição “novo” versus “velho” ou “transformações” versus “permanências”. Mas, como afirmar que relações conservadoras levam à constituição de territórios conservadores? Os territórios são, então, conservadores por serem apropriados com base em disputas de poder, interesses e conflitos de grupos político-econômicos hegemônicos conservadores, estes relacionados, concreta ou simbolicamente, ao território, como resultado de suas ações e práticas contraditórias.

Com isso, além da premissa de que os territórios conservadores se constituiriam historicamente, procedentes de formações sociais mais arcaicas, com fortes tradições rurais (áreas pecuaristas e agrícolas pouco modernizadas ou modernizadas recentemente), são justificados, também, por relações políticas conservadoras, cuja articulação pode ser representada por meio de redes sociais de poder. Então, chegou-se a um segundo aspecto. Conservadoras são as relações políticas e não a sociedade “guarapuavana”. Assim, a proposta, em seu conjunto, objetiva compreender a formação de territórios conservadores de poder, identificados a partir das condições históricas de ocupação e de formação territorial, das características sócio-econômicas daí decorrentes e dos grupos de poder político locais e seus discursos legitimadores de ideologias e de práticas sociais determinadas.

A organização desses grupos pode ser observada pela análise das redes sociais, representativas de alianças e de dissidências dos atores políticos hegemônicos, exatamente o que se propõe neste texto. Estes, no entanto, devem ser vistos como atores sociais, produtos de contradições que os identificam, cada um deles, a um determinado grupo em oposição a outros grupos sociais, e não isoladamente, como se a sociedade e a dinâmica local a eles se restringissem. Cabe dizer que a rede aqui trabalhada, em esquemas interpretativos e sociogramas, se forma e é construída em razão de um objetivo comum, o da conquista do poder político, econômico e/ou simbólico. Assim, a intenção é a de demonstrar os sistemas interativos de relações, sejam grupos de atores ou de instituições e não indivíduos isolados. Por isso, podem importar os fluxos de relações que determinam o posicionamento de cada ator dentro da rede, mas, em especial, a rede em seu conjunto.

TERRITÓRIOS CONSERVADORES E REDES SOCIAIS DE PODER: CONSTRUINDO UMA TEMÁTICA

Na Geografia, que “se arroga o privilégio de ser a disciplina do espaço social” (SOUZA, 1995, p. 81), as abordagens sobre o território têm como marco os trabalhos de Robert Sack (1986)75 e de Claude Raffestin. Raffestin (1993) discute a relação e a distinção entre território e espaço. Para esse autor (1993, p. 144), o espaço “é, em primeiro lugar, um dado que antecede à invenção humana”. Então, é formado pela expressão, pelo que se vê. Mas há outro, o espaço em seu conteúdo, que tem seu significado dado pelos atores sociais, pelo percebido. Existe, desse modo, um espaço visível e um espaço abstrato, simbólico, ligado às ações e às relações que se inscrevem

75 Para Sack (1986), todavia, o território é definido, sobretudo através de um de seus componentes, a fronteira, numa visão preponderantemente política do território. Além disso, afirma que o território é uma invenção de uma classe social para seu próprio benefício.

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como território. O território, daí, “é um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia e informação, e que, por conseqüência, revela relações marcadas pelo poder.”

De acordo com Haesbaert (2002), o território surge quando, dentre outros, um indivíduo ou um grupo busca atingir, influenciar ou controlar pessoas, fenômenos e relacionamentos em determinada área geográfica. É a área de atuação de uma ação política ou político-econômica ou de proeminência de relações simbólicas. Com isso, é fundamentalmente um espaço definido e delimitado em razão de relações de poder. Ainda segundo o autor, o território se constitui como relações sociais projetadas nesse espaço, que podem formar-se e dissolver-se em escalas temporais muito rápidas ou não, ter existência regular ou periódica, ainda que o substrato espacial seja o mesmo. Por isso afirma que os territórios podem, também, ser estruturados ou desestruturados.

O sentido relacional presente no território traduz a incorporação, simultânea, do conjunto das relações sociais e de poder e da relação complexa entre processos sociais e espaço geográfico, este entendido como ambiente natural e ambiente socialmente produzido. Além do mais, o sentido relacional implica que se considere o significado do território, não apenas como vinculado às idéias de enraizamento, limite, estabilidade, fronteira, fixidez, mas também como vinculado às idéias de movimento, de fluidez, de conexão (HAESBAERT, 2002). Importa ainda, para o autor, perceber que à medida que as noções de controle, de ordenamento e de gestão espacial não se restringem apenas ao Estado, mas igualmente a outros distintos grupos sociais, bem como às grandes corporações econômicas e financeiras, o território deve ser apreendido como resultado da interação entre múltiplas dimensões sociais.

Teórico-metodologicamente, o território é estudado, segundo Haesbaert (1997), de diferentes formas. Para ele, o estudo passa pela compreensão enquanto instrumento do poder político e enquanto espaço de identidade cultural, instrumento de um ou de vários grupos culturais e/ou religiosos, como apropriação simbólica do espaço. Nesse caso, vale-se de diversos estudos, como os de Knight (1982), Tuan (1982) e Guatarri (1985). Haesbaert (1997, p. 40-1) então agrupa, após o compartilhamento dessas leituras, as abordagens conceituais de território em três vertentes: 1. a jurídico-política: “o território é visto como um espaço delimitado e controlado sobre o qual se exerce um determinado poder, especialmente o de caráter estatal; 2. a cultural(ista): “prioriza sua dimensão simbólica e mais subjetiva e; 3. a econômica que, segundo o autor é, muitas vezes, economicista, “minoritária, que destaca a desterritorialização em sua perspectiva material, concreta, como produto espacial do embate entre classes sociais e da relação capital-trabalho”. O mais comum, no entanto, afirma ele, são as posições múltiplas, que o entendem a partir das interfaces dessas vertentes.

Mediante essa discussão, Haesbaert (1997) indica que o território deve ser visto “não apenas como um domínio ou controle politicamente estruturado, mas também como uma apropriação que incorpora uma dimensão simbólica, identitária e, porque não, afetiva”. É a dimensão político-cultural, também por ele priorizada, em detrimento ao caráter econômico de análise do território. Compreende-se, assim, como Haesbaert (2002), que o território pode ser reapropriado e, portanto, vivenciado distintamente, sendo permitido designar sua territorialidade, na qual os atores sociais “vivenciam, simultaneamente, o processo territorial e o produto territorial através de um sistema de relações produtivas (ligadas ao recurso) ou existenciais (relevando a construção identitária, portanto da memória coletiva e da representação)” que são, por diversas vezes, mediadas por redes.

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Por isso, para o autor, território e rede se encontram articulados, embora analiticamente separados na maior parte dos estudos. Assim, as redes devem ser vistas também como fortalecedoras do território e não apenas como destruidoras, podendo ser “tanto um elemento fundamental constituinte do território como até mesmo se confundir com ele, como na noção de território-rede” (HAESBAERT, 2002). E é por isso que o território, no qual relações de poder se efetivam por meio de redes, é tornado território da rede ou das redes ou ainda território-rede. Assim, há território-rede em função da atuação de relações de poder em rede, constituídas como domínio e apropriação num determinado território. Mas, Haesbaert (2002) alerta sobre a afirmação de Raffestin (1993, p. 185): “a rede faz e desfaz as prisões do espaço tornado território: tanto libera como aprisiona. É o porquê de ela ser o ‘instrumento’, por excelência, do poder”.

Assim, há a possibilidade das redes sociais, sob o viés geográfico, não se constituírem espacialmente a partir de linhas e pontos e, portanto, não terem dimensão diretamente espacial. Entende-se que as redes sociais, formadas pelas relações entre indivíduos e grupos (direta ou indiretamente), podem se manifestar no território, mas essa manifestação se dá em sentido abstrato, em razão de um único ponto (ou não), no qual se estabelecem os embates e conflitos, as lutas, derrotas e vitórias. Esse é o caso da rede social de poder de Guarapuava. É como se ela, de imediato ou num primeiro momento, abarcasse apenas um “grande ponto”, o demarcado por sua trama de linhas e nós simbólicos.

As relações que constituem a rede ou o território-rede podem formar, ainda, o que Bourdieu (1999) chama de “campo de batalhas”, no qual as relações operam também pela força do sentido. Nesse campo, práticas, grupos de poder e de decisão e níveis de discurso se enfrentam por intermédio de interesses e reivindicações. “As posições que esses grupos ocupam configuram um campo de batalhas ideológico, expressão da luta de classes e do processo prevalecente de dominação” (BOURDIEU, 1999, p. 37).

Para além das lutas no espaço inclusivo do mercado, onde o critério decisivo é a propriedade, há um conflito entre valores que se materializam através de um estilo/modo de vida baseado no prestígio e na dominação. Esse estilo/modo de vida se apresenta através de instituições que dividem entre si o trabalho de dominação simbólica, com imposição de ideologias, culturas e práticas de grupos particulares. As estratégias discursivas dos diferentes atores dependerão das relações de forças simbólicas entre os grupos e dos interesses específicos que lhes são garantidos pela posição de seus membros nos sistemas de relações, que se estabelecem entre os diferentes campos dos quais eles participam.

Assim, importa dimensionar a força desses atores de gerar mudanças ou permanências no poder local, seja em Guarapuava-PR ou em Itabaiana-SE, por exemplo. O território, todavia, em sua relação com as redes, “um binômio de grande utilidade na Geografia”, de acordo com Haesbaert (2002), deve ser compreendido, assim como os territórios conservadores, também no sentido de novas perspectivas teóricas de análise. Os territórios, então, além de dominados, instrumentos de controle e exploração, são também diferentemente apropriados, concreta e simbolicamente, numa infinidade de significados. Com isso, podem ser diversos: geográficos, sociológicos, afetivos, identitários, conservadores, etc.

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TERRITÓRIOS CONSERVADORES E REDES SOCIAIS DE PODER EM GUARAPUAVA–PR

Diversos elementos, além da primeira impressão, qual seja, a de um conjunto de pontos interligados por linhas, podem ser utilizados para a análise das redes. Nesse caso, das redes sociais de poder. Embora a forma seja importante, por expressar o conteúdo, ela não é suficiente para explicar a rede em todas as suas características. Se bastasse a identificação de ligações entre vários componentes, poder-se-ia até afirmar que quase tudo teria relação ou seria rede. Pensando nisso, o estudo busca explicá-la para além de sua morfologia. Os fatores analisados se subsidiaram nas discussões de Scott (1991) a partir do grau de centralidade76 e do grau de centralização77, representados, neste texto, por quadros, esquemas interpretativos e sociogramas que indicam a dinâmica da rede. Para entender as redes sociais de poder: grau de centralidade

O grau de centralidade é uma, dentre as várias possibilidades de leitura das redes, inclusive as sociais. Expressa-se no número de conexões possíveis, e efetivamente realizadas, para cada ator na rede, demonstrando as suas relações na mesma. Assim, o grau de centralidade é mensurado pelos contatos estabelecidos diretamente pelos atores. É o que pode ser observado na tabela 1, numa primeira análise. A centralidade é, com isso, a posição de um ator em relação aos outros, mas considerando-se a quantidade de elos ou linhas que ele possui diretamente. A análise, mesmo sendo individualizada, já que importa os contatos diretos do mesmo, é realizada no conjunto da rede, na posição do ator em relação aos demais atores. Tabela 1: Guarapuava – Grau de centralidade.

Instituições Total (contatos diretos)

Grau de centralidade

(%) C – Partido Progressista (PP) 21 0,91 O – Repinho Reflorestamento e Compensados Ltda. 20 0,87 V – Partido Liberal (PL) 20 0,87 B – Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) 19 0,83 F – Cooperativa Agrária Mista de Entre Rios Ltda. 19 0,83 N – Grupo Superpão Ltda. 19 0,83 S – Partido Popular Socialista (PPS) 19 0,83 L – Grupo Gelinski Ltda. 18 0,78 K – Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) 18 0,78 U – Sociedade Rural 17 0,74 T – Associação Comercial e Industrial de Guarapuava (ACIG) 16 0,70 I – Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) 16 0,70 H – Federação das Indústrias do Estado do Paraná (FIEP) 15 0,65

76 O grau de centralidade varia de zero a um. Para calculá-lo, é preciso dividir o total de conexões existentes, para cada ator, pelo número de conexões possíveis. No caso em estudo, apesar de 24 atores, somente 23 conexões são possíveis, já que os atores não se conectam com eles próprios. Quanto mais próximo a 1, mais central é o ator na rede. 77 O grau de centralização é calculado a partir da soma das conexões possíveis e efetivamente realizadas, diretas e indiretas. Na rede aqui trabalhada são 552 conexões que, divididas por dois, já que são pares (A com B é igual a B com A; D com G é igual a G com D, etc.), chega-se a 276 conexões possíveis. Procede-se, então, utilizando-se regra de três. Se 276 é igual a 100%, as 52 conexões do PMDB equivalem a 18,84% das conexões possíveis, por exemplo, e assim sucessivamente.

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X – Coralplac Compensados Ltda. 15 0,65 G – Santa Maria Papel e Celulose Ltda. 14 0,61 P – Partido dos Trabalhadores (PT) 14 0,61 Z – Grupo Trajano Ltda. 13 0,57 M– Grupo Lacerda e Cia. Ltda 12 0,52 A – Partido Humanista da Solidariedade (PHS) 09 0,39 R –Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO) 09 0,39 J – Flabel Construção Civil Ltda. 07 0,30 D – Partido Democrático Trabalhista (PDT) 06 0,26 Q – Secretaria de Estado da Agricultura e Abastecimento (SEAB)

05 0,22

E – Partido da Frente Liberal (PFL) 02 0,08 Fonte: Entrevistas. Organização: Márcia da Silva.

Assim, é possível afirmar que a centralidade, embora não se trate de uma posição

fixa, hierarquicamente determinada, traz consigo uma idéia de poder. Quanto mais central é um ator, “mais bem posicionado ele está em relação às trocas e à comunicação, o que aumenta seu poder na rede”, aponta Marteleto (2001, p. 74). Mesmo a rede tendo prevalência em relação ao ator, como afirma Marteleto (2001), torna-se importante ter um grande número de vínculos ou de contatos diretos, aponta Scott (1991). A importância está, segundo ele, na possibilidade desses atores construírem formas alternativas de satisfazer suas necessidades e, portanto, de se tornarem menos dependentes de outros, indiretamente, o que é comum na rede. Por isso, dado que dispõem de muitos vínculos diretos, podem ter acesso (e conseguir) a um número cada vez maior de recursos dos atores no conjunto da rede (pelo contato destes atores com outros e destes com outros, etc), favorecendo-se mais rapidamente.

O enfoque da centralidade implica, então, em assegurar que os atores, com maior número de conexões diretas, possam ser importantes no sentido de afetar mais atores seja com suas idéias, com seu dinheiro ou com sua ideologia. Ao se observar a tabela 1, é possível perceber que C/PP, que tem como representante principal, localmente, o prefeito eleito em outubro de 2004, Luiz Fernando Ribas Carli e seu grupo político, é o maior centralizador das relações ou do poder político local. Ou seja, C/PP (ou os elementos ligados a esse partido) centraliza as conexões diretas. Com isso, do total de conexões possíveis da rede, 23, 21 (ou 0,91% do grau de centralidade) passam por C/PP. Esse partido, como se percebe no esquema interpretativo na seqüência (figura 1), dos 23 atores da rede, só não se relaciona com A/PHS e com D/PDT.

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Figura 1: Grau de centralidade do Partido Progressista (PP).

Fonte: Entrevistas. Organização: Márcia da Silva.

A abordagem realizada e a análise das redes sociais permitem afirmar que o

poder de C/PP é, até certo ponto, simbólico. Isso porque venceu a eleição para prefeito praticamente sozinho em termos de apoios partidários, coligado apenas com o I/PSDB, dos chamados “grandes partidos” que, na rede social de poder de Guarapuava, é bastante frágil. Os outros dois grupos de poder político (liderados pelo PL/Vítor Hugo Burko, prefeito de Guarapuava de 1996 a 2004, e pela família Matos Leão, tradicional na política local e com um atual deputado estadual/PMDB) uniram-se em prol de seu adversário, o atual deputado federal Cezar Silvestre (PPS) e de seu grupo. Carli, assim, ficou aparentemente isolado na política local. Por outro lado, teve apoio de grande parte da população, especialmente a mais carente, imbuída da idéia de mudança, impregnada por ele no imaginário social local.

Esse poder foi conquistado, é o que parece, através de seu carisma pessoal e da convicção com que defende suas idéias. Mas, também, através da aceitação, pela população, via slogans de suas campanhas, da construção simbólica de identificação com o “Renovar é preciso”, o “Juntos para mudar”, o “Pra frente é que se anda” e o “Fernando é gente que faz” – este último, uma analogia às diversas obras por ele realizadas durante sua primeira gestão como prefeito de Guarapuava. Conclui-se, afinal, que Fernando Ribas Carli, ator ligado ao PP com maior número de indicações (ou de conexões) pelos entrevistados, assim o foi mais como uma obrigação, já que tudo

C

B EF

G

KZ

X

V

U

T

I

H

J

L

M

NOP

Q

R

S

B - PMDB

E - PFL

F - C. Agrária

G - S. Maria

H - FIEP

L - G. Gelisnki

M - G. Lacerda

T - ACIG

K - PTB

X - Coralplac

V - PL

S - PPS

O - Repinho

N - G. Superpão

I - PSDB

J - C. Flabel

Q - SEAB

P - PT

R - UNICENTRO

U - S. Rural

Legenda

C - PP

Z - G. Trajano

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indicava que seria o futuro prefeito (para os entrevistados antes do pleito de outubro) ou pela confirmação do fato (para os entrevistados após o pleito), e/ou, ainda, por receio de que a pesquisa caísse em “mãos erradas”, ou fosse divulgada. Ou, então, por alguns dos entrevistados estarem buscando uma aproximação/reaproximação com o mesmo e, claro, por aqueles que realmente têm vínculos com o PP. Logo após esse ator principal, com 20 conexões cada, como pode ser percebido na tabela 2, estão O/Repinho e V/PL ou os atores a essas instituições ligados. Como exemplo, apresentamos os contatos diretos de O/Repinho (figura 2). Figura 2: Grau de centralidade da Empresa Repinho Reflorestamento e Compensados Ltda.

O

A BC

D

F

G

H

I

LMNP

R

S

T

U

V

X

ZK

B - PMDB

C - PP

F - C. Agrária

G - S. Maria

H - FIEP

L - G. Gelisnki

M - G. Lacerda

T - ACIG

Z - G. Trajano

X - Coralplac

V - PL

S - PPS

O - Repinho

I - PSDB

P - PT

R - UNICENTRO

U - S. Rural

Legenda

A - PHS

D - PDT

K - PTB

N - G. Superpão

Fonte: Entrevistas. Organização: Márcia da Silva.

Em relação ao proprietário de O/Repinho, o que se afirma, de senso comum, é

que fez a doação de compensados (e outros) para a construção de outdoors, especialmente para as campanhas de Fernando Ribas Carli, mas nada aqui pode ser comprovado, até porque não foi possível entrevistá-lo para sanar dúvidas. O que se observa é a presença dessa instituição em quase todas as análises realizadas, indicando que está em evidência na rede social de poder. Em relação a sua rede de contatos diretos (figura 2), O/Repinho só não se relaciona com três atores: E/PFL, J/Flabel e Q/SEAB.

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PARA ENTENDER AS REDES SOCIAIS DE PODER: GRAU DE CENTRALIZAÇÃO

De acordo com Marteleto (2001), mesmo os atores com maior número de contatos diretos, sendo elos importantes na rede, esta é, antes de tudo, um ambiente de trocas, que se dá em vários níveis. “A informação circula na rede, atingindo os atores também de forma indireta. Isso significa que não só a quantidade de elos diretos define a posição dos integrantes de uma rede” (MARTELETO, 2001, p. 73), mas também a quantidade de elos indiretos que permitem compreender, assim, seu grau de centralização. A centralização, então, ocorre na soma das conexões possíveis e efetivamente realizadas, diretas e indiretas, de cada ator, como observado na tabela 2. Com isso se mantêm, para a rede de Guarapuava, as leituras apontadas para a centralidade. A centralização, ao contrário da centralidade, mensura o conjunto de conexões para cada ator, mas o faz no conjunto da rede, por isso dá a idéia do quanto a rede está organizada ao redor de um ator ou de vários atores mais importantes, por meio de seus elos ou de suas linhas, diretas e indiretas.

As linhas são, efetivamente, as responsáveis pela dinâmica da rede, já que uma única linha permite o encontro de dois pontos, pelos quais é possível manter uma infinidade de outras linhas. Portanto, afirma Scott (1991), poucos pontos muito interligados caracterizam uma rede com alto potencial relacional ou capacidade produtiva (o limite é quando todos se relacionam com todos) e muitos pontos, mas pouco interconectados, caracterizam justamente o seu contrário, a fragilidade da rede. Nesse estudo, é a primeira opção que prevalece.

Apesar do grau de centralização elevado, no conjunto da rede, já que quase todos se relacionam, oferecendo densidade de linhas à rede, também deve ser ressaltado o fato da rede possuir, na média dos atores, um grau de centralização baixo, conforme tabela 2. Ou seja, nenhum deles possui um grau de centralização elevado a ponto de se destacar na rede. É como se o “peso” das relações fosse dividido entre todos. Assim, das 276 conexões, o maior número delas foi alcançado por B/PMDB, 52 ou 18,84%. Por outro lado, ao pensar a rede em seu conjunto (o que justifica a existência da mesma), a capacidade produtiva ou relacional é extremamente alta, posto que os 24 pontos ou atores produzem 276 conexões, o que confere à rede uma elevada densidade, onze vezes e meio maior que o número de pontos. Tabela 2: Guarapuava – g rau de centralização

Instituições Total Grau de centralização

(%) B – Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) 52 18,84 C – Partido Progressista (PP) 51 18,48 N – Grupo Superpão Ltda. 49 17,75 S – Partido Popular Socialista (PPS) 49 17,75 O – Repinho Reflorestamento e Compensados Ltda. 46 16,66 F – Cooperativa Agrária Mista de Entre Rios Ltda. 41 14,85 V – Partido Liberal (PL) 40 14,49 K – Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) 36 13,04 U – Sociedade Rural 35 12,68 L – Grupo Gelinski Ltda. 31 11,23 T – Associação Comercial e Industrial de Guarapuava (ACIG) 28 10,14

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G – Santa Maria Papel e Celulose Ltda. 23 8,33 H – Federação das Indústrias do Estado do Paraná (FIEP) 22 7,97 I – Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) 20 7,25 P – Partido dos Trabalhadores (PT) 20 7,25 X – Coralplac Compensados Ltda. 18 6,52 M – Grupo Lacerda e Cia. Ltda. 14 5,07 Z – Grupo Trajano Ltda. 14 5,07 A – Partido Humanista da Solidariedade (PHS) 09 3,26 R – Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO) 09 3,26 D – Partido Democrático Trabalhista (PDT) 07 2,54 J – Flabel Construção Civil Ltda. 07 2,54 Q – Secretaria de Estado da Agricultura e Abastecimento (SEAB) 05 1,81 E – Partido da Frente Liberal (PFL) 02 0,72

Fonte: Entrevistas. Organização: Márcia da Silva.

Mas há uma diferença, em termos de importância dos atores, na comparação do grau de centralidade com o grau de centralização. Alguns exemplos podem melhor evidenciar o fato. Conforme a tabela 2, é o B/PMDB que mais elos diretos e indiretos possui (52). Assim, mesmo com o maior número de conexões diretas do C/PP (21, conforme tabela 1), é o B/PMDB o ator mais importante, justamente por ter o maior número de contatos diretos e indiretos no conjunto da rede. Apesar, então, das 21 conexões diretas, o C/PP não é o ator principal no todo da rede, pois suas conexões indiretas, 30, são em número inferior às conexões do B/PMDB, que possui 19 diretas, mas 33 indiretas. O C/PP, com um total de 51 conexões, tem um grau de centralização menor (18,48%) que o B/PMDB.

Outro exemplo pode ser dado pelo O/Repinho e por V/PL. Eles possuem 20 conexões diretas cada um, mas, indiretamente, a O/Repinho possui 26 e o V/PL apenas 20, o que leva a O/Repinho a possuir um total de 46 conexões ou grau de centralização de 16,66% na rede, e o V/PL um total de 40 conexões ou 14,49% das centralizações. Uma das conclusões a que se pode chegar, a partir dos exemplos acima, é a de que B/PMDB e O/Repinho, com maior número de conexões indiretas, mantêm contatos estratégicos, isto é, atingem, com os contatos diretos, atores mais importantes ou aqueles com maior facilidade em se conectar a outros atores e, portanto, vinculam-se a uma maior quantidade de pessoas com menor esforço, otimizando suas relações. Isso significa, como mencionado, que não necessariamente os atores com maior número de contatos diretos em uma rede são aqueles que ocupam as posições mais centrais, em termos do conjunto da rede.

Esses se destacam, especialmente, em virtude de suas conexões indiretas que, apesar de empiricamente menos efetivas, oferecem maior dinâmica à rede. Assim, os grupos locais politicamente mais importantes estão aí representados, ou seja, o B/PMDB, o C/PP e o S/PPS como partidos políticos. Além desses, o N/Grupo Superpão demonstra ser um ótimo articulador do poder local, já que está presente em toda a rede com 19 contatos diretos, mas com 30 indiretos (tabelas 1 e 2), ou seja, se mantém em contato com os mais diversos atores, mesmo que não declaradamente.

A rede formada pela análise dos grupos político-econômicos de Guarapuava, assim, é caracterizada por uma difusão mais ou menos uniforme do grau de

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centralização ou de espacialização das informações, das trocas ou do poder. Esse poder, como já exposto, politicamente está distribuído entre os mesmos atores, que se relacionam com os grupos econômicos também mais importantes, mais especificamente o grupo N/Superpão, o F/Cooperativa Agrária e o O/Repinho. Mas, é preciso esclarecer que a inserção desses grupos econômicos na rede não significa a ausência de poder de outros grupos, mas talvez a sua fragilidade e até mesmo o desinteresse em articular-se com essas instituições que mais concentram o poder. Dentre os atores da rede, merecem ainda destaque, como visto na tabela 2, o G/Santa Maria; o L/Grupo Gelinski; o U/Sociedade Rural; o T/ACIG e; o K/PTB. REDES SOCIAIS DE PODER78

A partir do exposto nas tabelas 1 e 2 e dos desdobramentos apontados ao longo desse texto, foram elaborados sociogramas representativos das redes sociais de poder. O objetivo é o de verificar o quanto estão interligados os partidos políticos e o poder econômico centrado nas empresas. O primeiro sociograma expressa a rede em sua totalidade (figura 3). Na rede, os atores se encontram extremamente conectados uns com os outros, ficando praticamente impossível delimitar a quais grupos os mesmos pertencem (aliás, o pertencer a este ou àquele grupo é muito relativo, em política). Com isso, a rede deve ser analisada em conjunto, apesar do estudo individualizado de seus atores mais significativos. O que o todo da rede social representa? Como opera em termos de conjunto? De que maneira e por que os pontos estão interligados? O segundo sociograma apresenta a rede centrada somente nas empresas (Figura 4). O último demonstra, também particularmente, a rede centrada nos partidos políticos (Figura 5). Figura 3: Guarapuava – sociograma da rede social.

78 As posições das instituições, nas redes, expressam apenas a estrutura dos vínculos e conexões, sendo arbitrárias as posições esquerda e direita e superior e inferior.

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Fonte: Entrevistas. Organização: Márcia da Silva. GUARAPUAVA: REDE SOCIAL DE PODER CENTRADA NAS EMPRESAS

A análise da rede social de poder estabelecida pelas empresas (Figura 4) é possível a partir da representação de todos os contatos diretos, de cada uma delas, com os partidos políticos e o que denominamos de “outras instituições79”, bem como entre elas próprias. Nesse sentido, é uma rede centrada nas empresas, na qual todas as conexões partem delas. Na rede, do total de partidos políticos (dez), nove estão presentes (menos o PFL), significando que os contatos ocorrem em número elevado entre as empresas e os mesmos. O grupo “outras instituições” também se encontra presente no total, evidenciando uma elevada conectividade com os mesmos. Apesar da presença, na rede, de quase todas as instituições (23 das 24), não há nela efetiva quantidade de linhas, não sendo a rede, portanto, de densidade alta em termos conectivos. O que significa que, apesar do grande número de atores, as relações são mais restritas, não tendo a rede um grande potencial produtivo.

Figura 4: Guarapuava – sociograma da rede social centrada nas empresas

79 Além da classificação em partidos políticos e empresas, cinco instituições foram classificadas como “outras instituições”: FIEP (Federação das Indústrias do Estado do Paraná), SEAB (Secretaria de Estado da Agricultura e Abastecimento), UNICENTRO (Universidade Estadual do Centro-Oeste), ACIG (Associação Comercial e Industrial de Guarapuava) e Sociedade Rural.

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Fonte: Entrevistas. Organização: Márcia da Silva.

GUARAPUAVA: REDE SOCIAL DE PODER CENTRADA NOS PARTIDOS POLÍTICOS

A rede centrada nos partidos políticos (figura 5) ganha existência a partir dos contatos diretos destes com as empresas e com o grupo “outras instituições”. Além deles, percebe-se que seus outros contatos, os indiretos, não oferecem à rede uma densidade acentuada (como ocorre também na rede formada pelas empresas). Nela, porém, também está presente o grupo das “outras instituições”, bem como as nove empresas. Portanto, uma rede composta por todos os atores da rede social de poder de Guarapuava, demonstrando o leque intenso de relações que possuem esses atores. Mas, apesar disso, não produzem muitos elos, o que torna a rede menos produtiva do que a rede total. Esse fato pode ser considerado, inclusive, comum numa rede constituída por instituições com ideologias tão diferentes, mesmo que no Brasil esse aspecto seja pouco expressivo, se comparado a outros que envolvem essas instituições.

Figura 5: Guarapuava – sociograma da rede social centrada nos partidos políticos.

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Fonte: Entrevistas. Organização: Márcia da Silva. CONSIDERAÇÕES FINAIS: PENSANDO OS TERRITÓRIOS CONSERVADORES DE PODER E AS REDES SOCIAIS DE PODER

Esse texto teve como objetivo analisar os grupos político-econômicos e suas articulações, trazendo como contribuição, aos estudos de Geografia Política, a metodologia das redes sociais e seu liame com os territórios conservadores de poder. No estudo dos grupos de poder, por meio da compreensão de que as redes são estabelecidas em razão de relações de poder conservadoras, configuram territórios delimitados por essas relações, num universo simbólico que faz com que esses territórios sejam também considerados conservadores. O caminho analítico e interpretativo percorrido demonstrou que a formação das redes sociais de poder corresponde e dá sentido às visões e às estratégias de ação de alguns atores – aqueles que se apresentaram com maior destaque, tanto em termos de centralidade como de centralização. Eles são os responsáveis pela maior dinamização e densidade da rede, o que implica em dizer que possuem maior número de atores a eles ligados que contribuem, de alguma forma, para a manutenção de seu poder na rede social.

Veja-se, então, que mesmo partindo de uma análise particularizada, é preciso identificar o papel do ator na e para a rede em seu conjunto. É nesse sentido que o B/PMDB, o C/PP e o S/PPS, mais os grupos econômicos ou as instituições O/Repinho, F/Cooperativa Agrária e N/Grupo Superpão convivem numa constante de vínculos muito intensos, em especial os três partidos políticos, o que, na prática cotidiana, não se faz perceptível. É que, como já citado, o poder quer ver sem ser visto. Mas, as relações

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em rede demonstram que eles se vinculam indiretamente por meio de outros atores e mesmo diretamente. E esse é um dos objetivos da rede social de poder – o de revelar relações visivelmente inexistentes, os acordos tácitos e não aparentes, as lacunas, as contradições. Assim, é possível afirmar que o estudo das redes sociais pode ser aplicado para o estudo dos grupos de poder de qualquer natureza, bem como em outras situações e questões sociais.

Mas o que se apresenta, no entanto, são discussões que necessitam, ainda, de fundamentação, pelo enfoque que se quer atribuir. É certo, entretanto, que elas servem como ponto de partida para novas leituras da realidade, em especial dos territórios, adjetivados de conservadores. Na verdade, o texto também deve servir para repensar conceitos estabelecidos, apesar de não ultrapassar limites de resultados de inquietações em relação a algo ao mesmo tempo novo e diferente, que não passou despercebido ao olhar e à sensibilidade do geógrafo. E o que é o trabalho do geógrafo se não buscar entender, primeiro pela motivação, o lugar que a ele se apresenta? Nesse sentido concorda-se com Haesbaert (2002, p. 135) quando afirma que o conhecimento só avança, num caminho sem fim, quando as formas de ver o mundo mudam com ele, “e sempre como produto do jogo entre ‘realidade’ e representação, uma indissociável da outra (...)”. É o que se propõe pensar aqui.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1999. GUATARRI, F. Espaço e poder: a criação de territórios na cidade. Revista Espaço & Debates. São Paulo: Cortez, n. 16, 1985. HAESBAERT, R. Desterritorialização e identidade. Rio de Janeiro: EDUFF, 1997. HAESBAERT, R. Territórios alternativos. São Paulo: Contexto, 2002. KNIGHT, D. B. Identity and territory. Annals of the association american geographers, n. 4, 1982, p. 514-531. MARTELETO, R. M. Análise de redes sociais: aplicação nos estudos de transferência da informação. v. 30, n.1, jan./abr. 2001.[citado 16 outubro 2004]. p.71-81. RAFFESTIN, C. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993. SACK, R. The human territoriality: its theory and history. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. SCOTT, J. Social network analysis. London: Sage Publications, 1991. SOUZA, M. J. L. O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento. In: CASTRO, I. E.; GOMES, P. C. C.; CORRÊA, R. L. (Org.). Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand, 1995. TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo/Rio de Janeiro: Difel, 1982.

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REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E INDUSTRIALIZAÇÃO NO OESTE PAULISTA

PAULO FERNANDO CIRINO MOURÃO Universidade Estadual Paulista (UNESP)

Ourinhos – SP [email protected]

INTRODUÇÃO

Procuramos neste texto apresentar alguns aspectos do processo de reestruturação industrial em Marília, cidade média com 200 mil habitantes, localizada no Oeste Paulista80. O objetivo é mostrar como durante a década de noventa a cidade se consolidou como um pólo industrial dinâmico e especializado.

Para dar conta da interpretação do objeto da pesquisa, utilizamos a categoria de formação sócio-espacial, desenvolvida por Milton Santos (1977). Partindo do conceito marxista de formação econômico-social, o autor mostra como as diferentes formas técnicas e organizacionais do processo produtivo, que correspondem às diversas relações de produção existentes, tornam-se concretas sobre uma base territorial determinada.

Um outro pressuposto teórico foi a perspectiva desenvolvida por Schumpeter (1988) e pelos neo-schumnpterianos de que o processo de acumulação de capital é fundamentalmente dependente da capacidade inovativa dos agentes econômicos. Para Schumpeter, a inovação é o motor do desenvolvimento econômico. Hollanda Filho (1996) adverte que a concepção de inovação em Schumpeter não se restringe às inovações tecnológicas propriamente ditas.81 Esse autor vai considerar que a visão de Schumpeter fornece elementos para melhor se compreender o surgimento de desequilíbrios entre setores e entre firmas de um mesmo setor, com o progresso de algumas e a decadência – e eventual destruição – de outras, a partir da dinâmica da concorrência por inovações. Tal referência às estratégias e comportamento das firmas, será particularmente útil às análises sobre a evolução das empresas em nossa área de estudo.

Um terceiro conjunto de teorias utilizado em nossa análise é a interpretação do processo de industrialização brasileiro feita por Rangel (1982,1985) e a industrialização a partir da pequena propriedade mercantil, desenvolvida por Armen Mamigonian (2000). O estudo de uma realidade econômica regional no mundo atual não pode se furtar a buscar compreender as mudanças qualitativas que estão ocorrendo na economia

80 Nesse trabalho estamos considerando como Oeste Paulista a área compreendida pelas regiões administrativas de São José do Rio Preto, Araçatuba, Marília e Presidente Prudente. 81 Hollanda Filho (1996) mostra que as revoluções ou as inovações de grande impacto, a que Schumpeter faz referência, podem ocorrer das seguintes formas: “introdução de novos métodos de produção – que podem envolver inovações tecnológicas e/ou organizacionais; novas mercadorias; novas formas de organização da indústria e do comércio; novas fontes de matéria-prima; novos mercados”.

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mundial, com a ascensão das forças conservadoras e suas teses neoliberais. O Brasil, como um país dependente de capital externo abundante para equilibrar suas contas externas e manter sua inflação controlada, estará sujeito a crises periódicas. Dessa forma, é importante verificar como esses momentos de crise atuam no desenvolvimento regional. As cidades médias estão assumindo novas funções dentro do processo de reestruturação produtiva, seja com o surgimento de distritos industriais especializados, dos pólos de alta tecnologia ou da sua incorporação às redes globais. A crise do Estado Nacional estimula o discurso de valorização das forças econômicas endógenas, do poder político local, com a formação de parcerias entre o poder público e o privado, a valorização da pequena empresa, das potencialidades locais, num movimento aparentemente oposto ao da globalização. Na região estudada, o setor industrial de capital local tem mostrado um crescimento constante, com multiplicação de pequenas firmas, e grande capacidade de adaptação às crises, embora sofrendo seus efeitos. Encontramos na área aquilo que Santos (2001) chamou de uma especialização territorial produtiva, ou seja, com a acentuada divisão interurbana do trabalho no mundo atual, as cidades tornam-se mais especializadas. Assiste-se também a uma crescente mobilização da sociedade civil e das lideranças locais, no sentido de buscar articulações voltadas para o desenvolvimento regional. A questão aqui é verificar se estaríamos diante de uma reprodução dos distritos descritos por Beccatini (1994) na chamada Terceira Itália. CONCENTRAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO INDUSTRIAL NO BRASIL O período que se estende desde o início da industrialização brasileira até a década até 1970 é considerado como de intensa concentração da atividade industrial na Região Sudeste, em particular na Região Metropolitana de São Paulo.

As forças que mantêm a concentração espacial da indústria na Grande São Paulo ainda são atuantes, mas a tendência, a partir de 1970, é claramente a queda da participação relativa de São Paulo no total da produção industrial do país. Em 1970, o estado de São Paulo detinha 58,2% da produção e 48,0% do pessoal ocupado. Em 1980, caiu para 51,9% da produção e 45,7% do emprego e, em 1985, para 48,3% da produção e 38,2% do pessoal ocupado. No mesmo período, estados como Paraná, Minas Gerais, Bahia e Santa Catarina aumentaram sua participação (AZZONI, 1988).

Pacheco (1998) calcula que de 1970 a 1994 o produto industrial brasileiro cresceu 2,5 vezes e que esse aumento da capacidade instalada teria se localizado principalmente no interior de São Paulo (29%), no Sul do país (23%), em Minas Gerais (10%) e no Nordeste (9%).

Milton Santos (2001) também localiza o início dessa descentralização na década de 70, entendendo esse processo como sendo uma das manifestações da divisão territorial do trabalho no Brasil. Num primeiro momento, esse autor, ao contabilizar as porcentagens da descentralização, analisa o Sudeste como um todo, obtendo o Sul do país como a região ganhadora desse rearranjo do trabalho industrial no Brasil. Porém, ele destaca a importância de se dar uma atenção especial ao interior de São Paulo no processo de descentralização.

Evidenciando a reorganização industrial na região Concentrada, os estados sulinos e o interior do estado de São Paulo ganham com a emigração de estabelecimentos da Região Metropolitana de São Paulo,

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com a criação de novas indústrias e, paralelamente, com a concentração-dispersão do valor da transformação industrial. A automação industrial é, outrossim, responsável pela queda no emprego industrial, sobretudo nas indústrias que nascem modernas nessas “fronteiras internas” da área core do país. Por outra parte, as fronteiras agropecuárias modernas do Centro-Oeste tornam-se agora novas fronteiras industriais, “externas” à região Concentrada, e abrigam um número pequeno de poderosas indústrias. (SANTOS, 2001, p.109).

O autor coloca com clareza que a descentralização não se constitui apenas na

transferência de indústrias da área concentrada, mas também é uma área de criação de novas indústrias, uma nova fronteira interna que está sendo ocupada pelo capitalismo global.

Vários autores, entre eles Pacheco (1998), concordam que a desconcentração econômica perdeu fôlego após 1989, em razão, sobretudo da crise fiscal e financeira do setor público. Para Tinoco (2001), de 1985 a 1995 ocorreu um período de “impasse” na desconcentração, com alguns estudos apontando para a existência de uma reconcentração de alguns ramos industriais de alta tecnologia na metrópole, como o de Cano (1998). Pacheco (1998) é categórico em afirmar que a desconcentração continua, embora admita que num ritmo menor. A tese principal desse autor é que a desconcentração se manifesta na atualidade como uma fragmentação da economia nacional.

Quero dizer que há desconcentração sim, mas que ela se manifesta mais sob a forma de uma flagrante fragmentação da economia nacional do que no crescimento solidário das regiões, com acréscimos de capacidade produtiva nos principais espaços econômicos da nação. (PACHECO, 1998, p.226).

O autor levanta um aspecto importante, analisando a descentralização

como uma forma de disputa territorial, que freqüentemente tem se transformado numa guerra fiscal. Para ele, o país corre o risco de valorizar demais um discurso do lugar, onde os problemas nacionais acabam parecendo menos importantes do que os locais, com as regiões buscando saídas individuais para a crise, muitas vezes estabelecendo uma relação direta com o mundo.

OS DETERMINANTES DA DESCENTRALIZAÇÃO NO ESTADO DE SÃO PAULO NA DÉCADA DE NOVENTA E A PARTICIPAÇÃO DA REGIÃO “OESTE”.

Retomando a idéia de Milton Santos, que considera a descentralização uma nova divisão territorial do trabalho, qualquer teoria que se faça sobre o desenvolvimento regional no capitalismo, tem que obrigatoriamente analisar as condições históricas prévias das regiões, notadamente de seu “núcleo industrial”.

Cano aponta vários determinantes para a descentralização no interior de São Paulo: políticas de descentralização dos governos estaduais; políticas de atração municipal; custos da concentração na área metropolitana; investimentos do setor produtivo estatal; políticas de incentivo às exportações e o Pró-Álcool.

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A Região Oeste do estado teve, até o final dos anos 80 e 90, uma inserção pouco significativa nesse processo de descentralização, recebendo poucas plantas industriais que se desconcentram de São Paulo. Porém, os indicadores da indústria na região continuam a indicar um crescimento. Os dados do Valor da Transformação Industrial, no período de 1970 a 1985 (tabela 1), mostram a perda da participação relativa da Capital e um crescimento mais acentuado do interior nas regiões de Campinas, Vale do Paraíba, Litoral e Ribeirão Preto. A região de Bauru e as regiões do Oeste (Marília, São José do Rio Preto, Araçatuba e Presidente Prudente), que apresentaram em 1975 uma queda na produção industrial, voltam a crescer durante a década de 80. Destaca-se o fato dessas regiões estarem fora da principal área de dispersão da indústria no espaço paulista, que são a Região Metropolitana e as Regiões Administrativas de Campinas, Vale do Paraíba e Ribeirão Preto. Tabela 1: Distribuição espacial do valor da transformação industrial no total da indústria de transformação: 1970 a 1985 (valores em porcentagem). Estado e Regiões Administrativas 1970 1975 1980 1985 estado de SP 100,0 100,0 100,0 100,0 RegiãoMetropolitana 74,7 69,4 62,9 56,6 1)Capital 48,2 44,0 34,8 29,8 2)Demais municípios 26,5 25,4 28,1 26,8 Interior 25,3 30,6 37,1 43,4 1) Litoral 2,8 2,5 3,7 4,5 2)Vale do Paraíba 3,3 4,2 5,5 7,9 3) Sorocaba 2,2 2,4 4,1 4,3 4) Campinas 10,6 15,1 15,8 16,9 5) Ribeirão Preto 3,6 3,1 4,4 5,5 6) Bauru 0,9 1,0 1,3 1,4 7) Região Oeste 2,5 2,3 2,3 2,9 São J.do R. Preto 0,5 0,6 0,7 Araçatuba 0,5 0,4 0,4 Presidente Prudente 0,7 0,6 0,5 Marília 0,8 0,7 0,7 Fonte: FIBGE – Censos Industriais de 1970, 1975, 1980,1985.

A análise dos dados referentes ao valor adicionado da indústria de transformação

dessas regiões (tabelas 2 e 3), mostra que na década de noventa, o valor adicionado continua aumentado no Oeste. São José do Rio Preto e Araçatuba mostram um ritmo de crescimento maior na primeira metade da década. Marília parece retomar um crescimento lento a partir de 1994. Já Presidente Prudente mostra uma tímida participação e reduzido crescimento no período. Para podermos explicar esses dados, temos que considerar que são regiões com estruturas econômicas de histórias muito distintas.

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Tabela 2: Participação, no valor adicionado da indústria de transformação do estado de São Paulo, das regiões administrativas do Oeste: Araçatuba, São José do Rio Preto, Presidente Prudente e Marília. 1985–1996. (valores em porcentagem). Região Administrativa 1985 1990 1994 1996 1999 Araçatuba 0,48 0,66 0,65 0,96 1,08 São José do Rio Preto 0,67 0,95 0,89 1,55 1,73 Presidente Prudente 0,40 0,35 0,39 0,59 0,58 Marília 0,80 0,87 0,83 1,13 1,14 Região Metropolitana 57,32 57,89 53,50 51,95 47,03 Total Interior 42,68 42,11 46,50 46,50 52,97 Fonte: Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados – SEADE. Tabela 3: Valor adicionado da indústria por região administrativa, em reais de 1999.

Municípios 1995 1996 1997 1998 1999 Araçatuba 986.912.279 1.023.036.350 998.333.222 1.084.126.220 1.093.918.278 São José do Rio Preto

1.364.101.264 1.539.455.576 1.578.586.722 1.520.734.195 1.749.233.739

Presidente Prudente

607.789.920 592.554.778 603.908.823 647.196.634 593.015.018

Marília 1.051.318.602 1.211.644.064 1.181.478.920 1.240.443.190 1.147.686.049 Fonte: Fundação Seade.

Nas regiões de São José do Rio Preto e Marília é marcante a força da pequena

produção mercantil, expressa na pequena propriedade policultora, no pequeno artesanato e no pequeno comércio forte, que originou uma burguesia industrial local, produzindo para um sólido mercado popular; já em Araçatuba e Presidente Prudente, regiões agropecuárias com forte incidência de grande propriedade, o núcleo de indústrias de iniciativas locais possui menores proporções.

Por que então Araçatuba apresentou o maior ritmo de crescimento na década de noventa? Em primeiro lugar, lembremos que nenhuma das Regiões Administrativas possui estruturas econômicas homogêneas. A parte significativa da produção industrial da região de Araçatuba é obtida no município de Birigüi.

Algumas cidades são herdeiras de uma tradição surgida em períodos anteriores, mas cuja especialização se perfaz em décadas recentes. É o caso de Birigüi, onde em 1940 já se podiam encontrar alguns artesãos do ramo de selarias e sapatarias e onde, até os anos 70, algumas pequenas fábricas deram continuidade a esse tipo de empresa. A partir de 1980, a cidade passa a abrigar numerosas indústrias, todas elas de capitais de origem local. Em 1997 eram 153 empresas (mais de 85% delas são consideradas de pequeno porte), que geravam 11 mil empregos e produziam 129 mil pares de sapatos por dia. A cidade passou a ser conhecida como a capital do sapato infantil. Essa especialização vai criando uma economia de aglomeração, com a localização de empresas provedoras de embalagens, de fornecedores de componentes e de instrumentos de trabalho. Verificam-se ali as interseções do circuito produtivo. (SANTOS, 2001, p.136).

O relato mostra a existência de um setor industrial dinâmico, baseado em negócios que começaram pequenos e vão ganhando porte, conquistando mercado e

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atraindo novas empresas. Em Marília ocorre o mesmo processo de multiplicação de pequenos negócios, casos de sucesso e especialização industrial. Também devemos considerar que o restante da região de Araçatuba, baseada na agroindústria, teve seu crescimento na década de noventa, ligado a produtos de forte demanda externa, como as usinas de açúcar e álcool, os frigoríficos, o leite em pó, massas e polpas de frutas e outros. Além disso, essa região foi beneficiada com os investimentos realizados pelo Estado, como a hidrovia Tietê-Paraná, o gasoduto Brasil-Bolívia e a duplicação da rodovia Marechal Rondon, ligação com São Paulo. A crise dos anos oitenta e dos primeiros anos da década de noventa levou a uma estagnação do consumo popular, da produção agrícola e da construção civil, segmentos que representam os principais mercados da produção industrial de Marília. Além disso, como mostraremos no decorrer do trabalho, a região perdeu muitas indústrias, principalmente as produtoras de óleo. Dessa forma, a manutenção e a ampliação da região no valor adicionado da indústria no estado de São Paulo ficaram a cargo do núcleo industrial dinâmico que se consolida.

De forma geral, podemos observar que, mesmo durante o período recessivo da economia brasileira, o processo de crescimento industrial do interior paulista tem avançado.

Gonçalves (1982) chama essa perda de participação relativa da capital do Estado na produção industrial de “desconcentração centralizada”, ou seja, ao mesmo tempo em que a indústria se desconcentra em sua unidade de produção, há um movimento inverso de concentração das atividades financeiras e de gestão na capital. É importante lembrar que isso se tornou possível pelos avanços da informática e dos meios de comunicação e transportes, importantes para liberar as grandes empresas para novas estratégias de localização. Esse processo incrementa a capacidade de expansão das grandes firmas, oferecendo-lhes agilidade, a fim de instalar suas operações produtivas e de serviços nos pontos mais vantajosos sob os aspectos de custo e de mercado (CHESNAIS, 1996).

Nos países do centro do capitalismo, estão ocorrendo vigorosos processos de descentralização da indústria, que acabam provocando fenômenos de desindustrialização de antigas regiões. Storper (1990) mostra que, para ramos controlados por grandes grupos oligopolistas, a liberdade de localização é grande, na medida em que possuem processos de produção altamente padronizados, um baixo custo unitário de transportes de insumos e produtos e uma demanda estável de mão-de-obra, não ficando tão dependentes de economias de escala e da aglomeração.

Para os ramos industriais de baixa composição orgânica do capital, as diferenças salariais existentes entre as várias regiões e a metrópole paulista, certamente acabam auxiliando a descentralização. Esta pode ocorrer via transferência de fábricas, como ocorre ao longo da área próxima à capital ou pelo crescimento e multiplicação de fábricas de capital local, como pretendemos mostrar estar ocorrendo em Marília, no Oeste Paulista.

Parece-nos importante levar em conta que, numa economia periférica como o Brasil, tanto as inovações tecnológicas como as dos métodos organizativos da produção, acabam se concentrando em alguns lugares. Essas áreas oferecem maiores oportunidades de transações entre as firmas e mão-de-obra qualificada. Somem-se a isso os custos de desmontagem e da transferência, para entendermos como ainda são fortes no Brasil as vantagens da aglomeração. Podemos acrescentar a esses fatores o conservadorismo do empresariado, reticente a mudanças e aos riscos envolvidos.

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Discutindo os processos de alteração da configuração espacial da indústria nos países desenvolvidos, Scott & Storper (1988) já alertavam sobre a dificuldade das empresas em abandonar as concentrações industriais apenas pela ação das deseconomias de aglomeração. Para esses autores, somente um conjunto de mudanças técnicas e organizacionais permitiria maior liberdade de localização às empresas.

Para Storper (1990), os novos setores industriais são os que encontram mais facilidades para romper com o padrão geográfico de localização existente, pois não são tão dependentes dos fornecedores de insumos tradicionais e da mão-de-obra qualificada existentes nos antigos centros.

Segundo Negri (1996), o desenvolvimento industrial do interior está associado a duas determinantes básicas. A primeira reside na expansão e modernização da agricultura paulista, favorecida pela política de exportações do governo Federal, princi-palmente nos cítricos, soja, cana (Pró-Álcool) e derivados de carnes. As regiões de Campinas, Ribeirão Preto e São José do Rio Preto atraíram as agroindústrias, que foram se localizar próximas às fontes de matéria-prima, instaladas por grandes grupos nacionais e estrangeiros. Esse movimento provocou o crescimento de todo o setor destinado a fornecer insumos e bens de capital necessários às atividades agrícolas e industriais. Nessas regiões aparecem exemplos claros de formação de economias de aglomeração, no que se refere às transações entre firmas, formação de mão-de-obra e concentração da produção em grandes unidades.

Nesse aspecto, o de surgimento de setores novos via modernização e diversificação agropecuária, a área de nosso interesse teve um fraco desempenho. Em Bauru, o café foi substituído pela fruticultura e, principalmente, pela pecuária, que tomou mais da metade do seu território. Em Marília, o café ainda não perdeu sua importância na produção agrícola, ocorreu um crescimento relativo da soja e do trigo e, atualmente, da pecuária leiteira. Marília não atraiu um número significativo de agroindústrias ou de fabricantes de insumos, perdendo todo o seu setor de produção de óleos comestíveis. A segunda determinante reside na participação do Estado com investimentos na produção e na modernização da malha viária. Destacam-se a instalação de duas refinarias de petróleo (Paulínea e São José dos Campos), o Pró-Álcool, o Pólo Petro-químico e Siderúrgico de Cubatão, o complexo aeronáutico e as indústrias de material bélico em São José dos Campos, a concentração dos institutos de pesquisas e de empresas estatais no setor de telecomunicações e microeletrônica em Campinas. A região de Marília foi pouco beneficiada por esses investimentos, mesmo no que se refere à modernização da malha viária. A Hidrovia Tiête-Paraná não gerou mais do que expectativas na região, pois ainda falta infra-estrutura, principalmente terminais de embarque e desembarque. O gasoduto Brasil-Bolívia, que atravessa a região de Araçatuba, estando relativamente próximo a Marília, vem motivando estudos por parte de algumas indústrias, no sentido da instalação de um ramal até a cidade, o que permitiria a substituição dos fornos elétricos usados pela maioria das fábricas de biscoitos. Vemos que as determinantes colocadas por Negri (1996) enfatizam a criação de setores novos, na explicação do dinamismo industrial de áreas do interior. Acreditamos ser necessário acrescentar a essa análise um novo componente para a explicação da interiorização da indústria no estado de São Paulo: o crescimento de empresas de capital local, em ramos de baixa composição orgânica do capital. Ao mesmo tempo, não

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podemos cair na conhecida ortodoxia do crescimento endógeno, proposta pelos teóricos das novas regiões industriais, como Scott & Storper (1988), que atribuem o sucesso e o desenvolvimento das regiões industriais apenas a sua dinâmica interna. Valorizam o conjunto de externalidades que conseguem criar e que seriam os pré-requisitos locacionais das atividades intensivas em tecnologias ou das novas formas de organização da produção. O modelo proposto por esses autores é voltado fundamentalmente para os centros tecnológicos e não pode ser usado como um referencial analítico geral da explicação de áreas industrialmente dinâmicas, mas com predomínio da produção fordista tradicional.82 Algumas dessas cidades, onde existe um processo de multiplicação de pequenas empresas produzindo alimentos, móveis, confecções, sapatos, etc., localizadas em regiões do interior paulista, passaram recentemente a serem chamados de APLs (Arranjos Produtivos Locais). Esses arranjos, monitorados pelo governo do estado e pela FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), estão sendo equivocadamente vistos como áreas onde ocorre uma cooperação entre os empresários, o poder público e as instituições da sociedade civil, onde as empresas trabalham em parceria, com os processos competitivos sendo substituídos pela cooperação. A cidade de Marília é considerada atualmente um pólo produtivo na área de alimentação, com setenta empresas e 5.500 trabalhadores ocupados na atividade. Nela encontramos uma concentração do processo produtivo (três empresas são responsáveis por mais de 50% da produção e do emprego) e uma intensa competição entre as empresas de pequeno e de médio porte. Uma hipótese para explicar a multiplicação de empresas no setor de alimentos é o fato de elas serem unidades que exigem um pequeno investimento inicial e, na medida em que se utilizam de muita mão-de-obra, possuem uma chance de crescimento maior no interior do estado, onde os salários são inferiores aos da capital. Inicialmente atuam em segmentos do mercado popular e regional, passando, num segundo momento, a concorrer com as empresas instaladas na capital e em outras cidades. Além disso, nesse ramo industrial (alimentos) podemos considerar que as inovações tecnológicas são exógenas, isto é, há muito mais produtos de pesquisas realizadas fora das fábricas, como é o caso da incorporação que elas fazem das inovações dos fabricantes, cabendo à empresa desenvolver as "receitas" dos produtos e preparar a mão-de-obra. Isso facilita o acesso das empresas concorrentes às inovações, não ocorrendo um domínio absoluto do "progresso técnico" por um fabricante.

Algumas dessas empresas conseguem tal crescimento que passam a atrair grandes grupos nacionais e multinacionais interessados na sua aquisição. O crescimento de algumas dessas empresas muitas vezes ocorreu pela capacidade dos seus dirigentes em criar continuamente novos produtos e na agilidade para a incorporação de novas tecnologias dentro do setor em que atuavam.83

82 Podemos encontrar uma listagem dessas “externalidades” em Benko e Lipietz (1994) e em Scott & Storper (1988). As principais seriam a existência de centros de pesquisa, mercado de trabalho profissional, relações industriais articuladas geograficamente, facilidade de acesso, base educacional e cultural, clima de negócios e outras. 83 A idéia do empresário shumpeteriano nos parece válida. Porém, não pode ser vista descolada do processo histórico que estava na base dessa formação econômico-social. Schumpeter, ao analisar as origens dos capitalistas industriais de sucesso, enfatiza a inteligência e a capacidade de liderança de empreendedores de mentalidade industrial. (Cf. em Schumpeter, 1984).

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Esse processo parece estar ocorrendo no Oeste Paulista, podendo-se citar, entre outras, a produção de alimentos (não ligados à agroindústria alimentar) e esquadrias metálicas em Marília, eletroeletrônicos em Garça, móveis e também esquadrias metálicas em São José do Rio Preto e calçados em Jaú e em Birigüi. É importante ressaltarmos que esse tipo de industrialização no Oeste vem se fazendo em alguns da-queles ramos industriais que participaram das etapas iniciais da substituição de importações no Brasil, como os alimentos da primeira etapa e os materiais de construção da segunda etapa. Para demonstrarmos as origens desse núcleo industrial em Marília e vizinhança e indicarmos algumas tendências que o novo paradigma tecnológico e as políticas neoliberais trazem para a região, faremos uma análise da gênese e da evolução da atividade industrial na área estudada. O MUNICÍPIO DE MARÍLIA: UM BREVE HISTÓRICO DE SUA INDUSTRIALIZAÇÃO A Região Administrativa de Marília é composta por 51 municípios, localizados na porção oeste do estado de São Paulo. A cidade sede, Marília, está localizada a 440 km da capital.

A população total da região é de cerca de novecentos milhões de habitantes, sendo duzentos mil no município de Marília que, no período de 1991 a 2000, obteve um crescimento populacional de 2,3% ao ano, numa taxa superior ao do total estadual, que foi de 1,8 %.

No município de Marília a atividade industrial gera um valor adicionado um pouco superior ao do comércio e dos serviços, sendo o setor agropecuário pouco representativo. A cidade é a capital regional e possui um comércio bem estruturado, embora não consiga polarizar o consumo regional, sofrendo a concorrência de outras cidades médias próximas, como Bauru, São José do Rio Preto e Presidente Prudente. Apenas no final da década de noventa a cidade passa a atrair supermercados de maior porte e lojas de grifes famosas. Seu Shopping Center ainda passa por um processo de consolidação. Já no setor de serviços a cidade é reconhecidamente um pólo de saúde, realizando atendimentos mais sofisticados para uma região mais ampla do que a 11ª Região Administrativa. Também se destacam nos serviços as Instituições de Ensino. Segundo dados da Delegacia Tributária de Marília, dentro do setor industrial destacam-se o de alimentos, o de bebidas e a metalurgia.

A cidade surgiu na década de vinte, na transição da economia agroexportadora do café para a economia industrial. As indústrias que iriam se instalar no “oeste paulista”, principalmente após 1930, teriam forte ligação com a produção agrícola regional, sendo empresas pertencentes a grandes grupos nacionais e estrangeiros que atuavam no beneficiamento e na transformação do algodão. Marília se tornou, na década de quarenta, nessa especialização, uma das principais cidades industriais do estado de São Paulo. Junto com esse núcleo de empresas de grande porte ligadas a capitais de fora, surge um núcleo de pequenas unidades artesanais de alimentos, móveis, sapatos e implementos agrícolas, produzindo para o mercado local. A partir da década de cinqüenta, a região começa a perder as indústrias ligadas à transformação da matéria-prima local, mas assiste ao crescimento daquele núcleo inicial de pequenas empresas, principalmente do ramo de alimentos, bebidas e implementos agrícolas. O desenvolvimento prévio de uma base produtiva local e da rede urbana regional associado

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com a relativa distância da capital, permitiu que os pequenos negócios, geralmente de imigrantes, em ramos que exigiam pequeno investimento inicial, conquistassem o mercado regional. Esse tipo de industrialização baseado em capitais locais continua até os dias atuais, destacando-se a produção de alimentos (biscoitos, massas e doces), esquadrias metálicas e máquinas agrícolas (pulverizadores) – produtos com forte inserção no mercado nacional e exportações crescentes nos últimos anos. O ramo de alimentos atraiu corporações transnacionais, que adquiriram duas das maiores empresas locais: a Ailiram foi comprada pela Nestlé e a Raineri (massas) pela Ádria/Quaker. Podemos levantar dois pontos que foram fundamentais para o crescimento dessas empresas: a flexibilidade que apresentaram em diversificar seus produtos para atender às solicitações do mercado, principalmente nos períodos de crise; e a utilização de uma correta estratégia de vendas, que possibilitou a conquista de mercados regional e nacional. A estratégia de vendas está ligada, na maioria dos casos, à montagem de uma estrutura própria de distribuição, com equipes de vendedores ligados à fábrica, evitando ao máximo trabalhar com atacadistas ou intermediários, preocupação que se mantém nos dias atuais nas empresas locais. Um tipo de flexibilidade na produção já podia ser encontrado nas pequenas oficinas, que artesanalmente consertavam e produziam implementos agrícolas, existentes na região durante as fases do café, do algodão e do amendoim. Algumas dessas pequenas oficinas, geralmente de imigrantes japoneses, tornaram-se indústrias produtoras de máquinas e implementos agrícolas até a década de 70. Desde o início, essas firmas demonstraram grande capacidade de se adaptar às exigências do mercado agrícola, sempre lançando produtos novos que significavam um avanço tecnológico. Essas empresas, nos anos setenta e oitenta, vão acompanhando o processo de urbanização brasileira, diversificando suas linhas de produtos para fugir das crises do setor agrícola. Como exemplo temos a Sasazaki que se torna a maior produtora de esquadrias metálicas do Brasil; a Ikeda e Filhos que, além do arado de aiveca, produz churrasqueiras motorizadas e caixas de som de alta definição; e a Jacto, maior fabricante mundial de pulverizadores, que também produz máquinas agrícolas, carrinhos elétricos, utilidades domésticas de plástico, aparelhos para ginástica e coletores de energia solar.

Para Storper (1990), os sistemas flexíveis de produção podem ser caracterizados pelo desenvolvimento de duas capacidades por parte da empresa: a de alterar rapidamente um processo de produção e o seu produto, substituindo-o por outro (flexibilidade dinâmica) e a de ajustar as escalas de produção, para cima ou para baixo, num certo período de tempo, sem qualquer prejuízo aos níveis de eficiência (flexibilidade estática). No interior da empresa, pode-se obter a flexibilidade com o uso de equipamento e maquinaria reprogramáveis e por intermédio de processos de trabalho artesanais, o que exige a formação de um trabalhador polivalente. Nas relações entre empresas, o principal recurso para a obtenção da flexibilidade é a fragmentação organizacional do processo de produção, criando uma profunda divisão social do trabalho entre as empresas. A subcontratação é geralmente a forma principal assumida por essa divisão do trabalho, de tal forma que o sistema de produção se transforma numa cadeia produtiva. A flexibilidade assume também a forma de alterações na jornada de trabalho e na legislação trabalhista.

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A globalização do sistema técnico tem permitido às principais indústrias alimentícias de Marília, aquelas que possuem disponibilidade de capital para investimento, o acesso a máquinas e a tecnologias modernas, obtidas principalmente em feiras internacionais no exterior. Esse fato, aliado a um bom esquema de vendas e de distribuição já previamente montado, tem permitido a competição com os grandes grupos desse ramo. É evidente que procuram atingir um mercado diferenciado, geralmente mais popular. Como exemplo desse fato, podemos citar a indústria de biscoitos Xereta, que lançou uma linha de cereais matinais – num mercado onde estão a Kellog’s e, recentemente, a Nestlé. Seu produto é mais barato, pois usa embalagem mais simples e eliminou o atacadista, vendendo diretamente, principalmente em pequenos supermercados e mercearias. A indústria de biscoitos Marilan, que cresceu tendo como base um mercado de baixa renda (concentra parte significativa de suas vendas no Nordeste), recentemente sofisticou suas linhas de biscoitos, reformulou as embalagens e automatizou toda a fábrica, voltando-se para um público de maior poder aquisitivo, estando entre as cinco maiores fábricas do país. A empresa se utiliza de um moderno sistema de vendas e recebimento dos pedidos que garantem uma agilidade nas empresas superior à dos concorrentes de maior porte. Existem empresas que cresceram como subcontratadas de grupos de fora, como a indústria de confeitos de amendoim Dingo, que durante mais de cinco anos fabricou toda a linha de confeitos de amendoim vendidos pela Elma-Chips. A empresa teve um crescimento muito rápido. Quando o contrato com a multinacional acabou, ela teve dificuldades, mostrando que essa cadeia produtiva é bastante insegura para as empresas que não estão no seu topo. Nas grandes empresas de capital de fora instaladas na cidade, que possuem múltiplas filiais, ocorre uma redistribuição das tarefas entre as unidades, podendo esse processo implicar em: a) fechamento das fábricas mais antigas, de menor produtividade no grupo, como fizeram a Antártica, a Ceval e a Ádria em Marília; b) transferência de funções entre as filiais, como na Nestlé, que traz linhas de biscoitos da marca São Luiz para serem fabricados em Marília e transfere a produção de balas para outras unidades; c) reaproveitamento de máquinas consideradas antigas para a fábrica da Ádria em São Paulo, que são instaladas em Marília, num momento anterior ao fechamento da fábrica. Dentre as mais de mil empresas industriais cadastradas na região de Marília, a maioria é de pequeno porte e atua em nichos de mercados locais e regionais, que não têm interessado às grandes empresas, por serem mercados compostos por populações de baixo poder aquisitivo. Milton Santos já apontou essa realidade quando escreveu que:

(...) num país onde há grandes disparidades espaciais devidas a diferenças de densidades demográficas, econômicas e da rede de transportes, largas porções do território não sendo rentavelmente utilizáveis (para fins de distribuição) pelas maiores firmas, sua respectiva distribuição se faz por firmas menores. (SANTOS, 1992, p.63).

Para essas empresas a sobrevivência depende mais da flexibilidade em se adaptar às condições reais do mercado interno nacional do que da aplicação do conjunto de inovações tecnológicas e organizacionais do processo de reestruturação produtiva.

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OS DETERMINANTES DA ATRAÇÃO DE INVESTIMENTOS NA DÉCADA DE NOVENTA

Durante a década de noventa, não ocorreu, na região de Marília, uma queda significativa nem no nível de empregos industriais, nem nos níveis referentes ao valor adicionado fiscal para a atividade industrial, o que parece indicar que o quadro macroeconômico nada favorável do Brasil foi mais dramático, nas regiões de maior industrialização.

Dados obtidos pela RAIS (Relação Anual de Informações Sociais) indicam que de 1989 a 1997, o número de empregos industriais na microrregião de Marília teve uma variação positiva de 15%, num período em que os principais centros industriais do país tiveram uma variação negativa. Cresceu também, no período, em 60%, a remuneração média.

Como temos dados obtidos na pesquisa direta, mostrando que muitas empresas fecharam e novas foram abertas, seria importante conhecer a respeito das estratégias de localização dos estabelecimentos que iniciaram suas atividades na região e no estado de São Paulo, na década de noventa. Para iniciar a discussão, vamos utilizar os dados fornecidos pela PAEP (Pesquisa da Atividade Econômica Paulista), relativos à Região Administrativa de Marília, organizados na tabela 4, onde relacionamos os principais fatores que influenciaram na escolha locacional, indicados pelas empresas. No intuito de facilitar a leitura, apresentamos as porcentagens de empresas que indicaram determinado fator como importante, muito importante ou crucial para a sua localização na Região Administrativa de Marília. Comparamos esses dados com os obtidos para a Região Metropolitana e para o total do interior.

O dado mais discrepante foi o reduzido número de empresas que considerou, como fator importante para sua instalação na região, o preço do terreno. Como sabemos, pelos dados mostrados no item anterior, existe uma oferta de terrenos para indústria na região bem superior à demanda, o que possibilita a sua obtenção quase sem nenhum custo. Para esse fator ter sido indicado como relevante para apenas 6% das empresas, devemos considerar que outras determinações tenham sido mais decisivas na escolha da localização. No entanto, quando escutamos os empresários ou diretores das empresas, a possibilidade de obter terra doada é sempre apontada como um fator relevante.

De modo geral, para todos os fatores indicados, a região de Marília obteve índices menores que o restante do estado e da Região Metropolitana. Esse fato mostra que, embora todos esses fatores indicados tenham algum papel de atração de uma ou de outra empresa, provavelmente o fator principal de localização de empresas na região não foi detectado pela PAEP. Trata-se do fato da maioria delas ser de empresários da própria região, onde vivem suas famílias e onde o empresário possui laços afetivos e deseja permanecer.

Ressaltamos também a baixa freqüência de respostas para os fatores referentes à importância de Centros de Pesquisa, incentivos fiscais estaduais e municipais, proximidade de fornecedores e de consumidores e serviços técnicos de apoio e infra-estrutura urbana. A falta de centros de pesquisa e de serviços técnicos na região é bastante clara, sendo até surpreendente que esse fator foi importante para 14% e 29% das empresas, respectivamente. Tabela 4: Fatores de localização dos estabelecimentos industriais com mais de trinta empregados instalados no período 1990 – 1996.

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Região

Administrativa de Marília

Região Metropolitana de

São Paulo

Interior do estado de São Paulo

Fatores

Nº estab. % Nº estab. % Nº estab. %

Baixo custo da mão-de-obra 63 40 1.545 41 1.439 46

Qualificação da mão-de-obra 63 43 1.549 45 1.434 46

Proximidade de fornecedores 63 25 1.562 46 1.436 47

Proximidade de consumidores 64 30 1.553 50 1.448 55

Acesso ao sistema de transporte 65 40 1.559 52 1.443 56

Infra-estrutura urbana 65 34 1.578 61 1.455 65

Qualidade de vida 64 43 1.576 57 1.483 64

Centros de pesquisa e difusão tecnológica

50 14 1.431 21 1.344 30

Serviços técnicos de apoio 60 29 1.490 35 1.377 33

Incentivos fiscais estaduais 49 20 1.441 21 1.349 33

Incentivos fiscais municipais 53 23 1.438 26 1.379 34

Preço do terreno 62 6 1.457 40 1.362 42,8

Fonte: SEADE/PAEP, 1996. Organização: Paulo Fernando Cirino Mourão.

A presença de fornecedores de matérias-primas não é significativa na região, exceto para as indústrias de doces de amendoim. A distância de mais de 400 km de São Paulo e as distâncias maiores de outros grandes centros consumidores, também só poderiam indicar uma baixa referência a esse fator. A falta de infra-estrutura está relacionada a problemas de água e de fornecimento de energia elétrica, principalmente na cidade de Marília.

As maiores indicações foram para a qualificação da mão-de-obra, certamente relacionada às empresas de alimentos e de metalurgia, o baixo custo da mão-de-obra, o acesso ao sistema de transporte e à qualidade de vida. Nas entrevistas realizadas, vários empresários citaram o fato de gostar de morar nas cidades, não desejando mudar, mesmo alegando falta de ajuda do poder municipal e um descaso total do poder estadual, que realizou poucos investimentos na região. Um dos pontos mais criticados foram as condições precárias das estradas, principalmente a rodovia que liga Marília a Bauru, passagem obrigatória para se chegar a São Paulo, cuja duplicação se amarra a anos.

Façamos agora um resumo sobre os fatores de localização. A questão básica seria determinar se, comparado a outras regiões, o espaço regional de Marília está apresentando atratividades locacionais que caracterizem um clássico ambiente marshaliano.

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Vários fatores locacionais poderiam ser relacionados a esse ambiente urbano e regional, tais como a qualificação da mão-de-obra, a disponibilidade de serviços técnicos e, num grau menor, a proximidade dos fornecedores. Verificamos que para o ramo de alimentos, no segmento de produtos de amendoim e de biscoitos, apesar dos dados agregados da tabela não fornecerem indícios claros, nossa pesquisa direta indica uma atratividade forte na qualificação da mão-de-obra.

Na pesquisa direta ficou claro que no ramo de alimentos são importantes as variáveis locacionais fortemente baseadas na redução de custos, como a salarial e a fundiária. Não encontramos referências a benefícios tributários.

Para ampliarmos a discussão do impacto espacial do processo de reestruturação que se intensifica na região após a década de noventa, vamos analisar o fluxo de saída de estabelecimentos durante a década de noventa. Para isso, destacamos as empresas que deixaram de atuar no município de Marília nesse período e que possuíam mais de cem empregados.

A maioria das empresas desativadas não se transferiu para outras cidades e sim encerrou suas atividades. Dentro desse padrão, tivemos a Iguatemi (produção de armações e lentes óticas) que foi à falência devido à abertura para os importados e uma fábrica de calçados que possuía grande dificuldade em obter mão-de-obra qualificada e fornecedores na região. Havia também uma fábrica de esquadrias metálicas, cujos donos tinham como negócio principal uma distribuidora de bebidas em Marília e em Campo Grande-MS – portanto, eram inexperientes no ramo metalúrgico. Quando perderam a distribuição de bebidas na região de Marília, deixaram a cidade e desativaram a fábrica. Outro caso foi o de uma fábrica de seda, de capital japonês, cujo fechamento decorreu das dificuldades de exportação no início da década.

Mesmo com relação àquelas ligadas a grandes grupos nacionais de fora da cidade, como a Raineri-Ádria e a Antártica, não ocorreu a transferência da fábrica e sim seu fechamento, com a venda das instalações e das máquinas.

Dessa forma, não detectamos na década de noventa, a transferência de plantas industriais importantes para outras regiões, como havia ocorrido nas décadas anteriores com as fábricas de óleo de soja.

Para Storper (1990), a substituição do modelo industrial fordista por um novo regime de acumulação baseado na produção flexível, produziria novas formas territoriais, que deveriam se refletir na própria estratégia de localização das empresas. Fatores como a existência de serviços técnicos de apoio, a presença de centros de pesquisa e a disseminação de conhecimento científico, a presença de uma bacia de mão-de-obra qualificada, além de uma forte integração entre as empresas, deveriam ter aumentado a sua importância na estratégia de localização.

Encontramos evidência clara de que o que desempenha um papel particularmente crucial na localização das empresas na região de Marília é apenas a qualificação da mão-de-obra para a indústria de biscoitos e doces. Aqui podemos comprovar que existe uma provável vantagem histórica inicial da região, que se converteu num estímulo para a instalação de novas empresas. O raciocínio básico, quase schumpeteriano, é o de que Marília teria essa vantagem inicial construída durante as várias décadas de industrialização, possuindo mão-de-obra altamente qualificada e com vasta experiência no ramo de alimentos e, também, num segmento da metalurgia, que serve de base para impulsionar o surgimento de novas empresas nesses ramos.

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Deve-se ressaltar que o baixo custo dessa mão-de-obra mostra-se mais importante do que sua produtividade, ou seja, o aumento da qualificação dos trabalhadores não está resultando num significativo aumento salarial, contrariando a tese do distrito industrial inovativo, cooperativo, onde todas as classes sociais se beneficiariam do desenvolvimento endógeno.

O distrito industrial é uma entidade socioterritorial caracterizado pela presença ativa de uma comunidade de pessoas e de uma população de empresas num determinado espaço geográfico e histórico. No distrito industrial, ao invés do que acontece noutros tipos de meios, como por exemplo as cidades industriais, tende a criar-se uma osmose perfeita entre a comunidade local e as empresas. (BECATTINI,1994, p. 20).

Certamente não encontramos em Marília e região um modelo de

aglomeração que possua todas as características desses distritos industriais, o que nos leva a concordar com Amin & Robins (1984), que consideram impossível amalgamar, numa única categoria, processos e regiões muito diversos, fazendo desse modelo um símbolo para o novo espaço de acumulação. Dessa forma, podemos concluir que as dinâmicas espaciais dos processos de reestruturação industrial são bastante contraditórias e divergentes, embora não se possa negar que existam tendências manifestas para a constituição dos distritos industriais marshalianos, bem como de outros tipos de aglomerações localizadas fora das antigas áreas industriais fordistas. CONSIDERAÇÕES FINAIS A industrialização da região de Marília mostra o desenvolvimento prévio de uma base produtiva local e da rede urbana regional que, aliadas a uma relativa distância da capital, permitiram que os pequenos negócios, geralmente de imigrantes, em ramos que exigiam pequeno investimento inicial, se transformassem em pequenas indústrias. Deve-se destacar aqui, também, a existência de uma mão-de-obra numerosa, disponível e mais barata que a encontrada na capital, o que tornou alguns produtos fabricados em Marília competitivos com os produzidos por grandes empresas sediadas na capital do estado, principalmente para o mercado popular. A indústria em Marília vai manter um lento crescimento em plena crise dos anos oitenta, sendo que, em 1985, a região recuperou a participação no valor adicionado da produção industrial do estado que possuía em 1970. Durante os anos noventa, com a abertura aos importados, os dois principais ramos (alimentos e metalurgia) continuaram crescendo, embora as principais empresas tivessem que passar por um forte ajuste. Esse crescimento pouco teve a ver com a atuação das forças empresariais regionais, que apenas recentemente buscam uma integração cooperativa. Dessa forma, destacamos a impossibilidade de se fazer uma associação direta entre o núcleo de pequenas empresas dinâmicas da região com os distritos industriais da Terceira Itália. Mostramos também a possibilidade de convivência entre sistemas de produção fordista e novas formas de organização do trabalho, como o toyotismo, o que permite a existência de diferentes manifestações da reestruturação produtiva no território. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMIN, A.; ROBINS, K. Regresso das economias regionais? A geografia mítica da acumulação flexível. In: BENKO, G.; LIPIETZ, A. (Org.). As regiões ganhadoras.

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A HIDROVIA TIETÊ-PARANÁ E O PORTO INTERMODAL DE PEDERNEIRAS-SP

NELSON FERNANDES FELIPE JUNIOR

Universidade Estadual Paulista (UNESP) Presidente Prudente – SP [email protected]

MÁRCIO ROGÉRIO SILVEIRA Universidade Estadual Paulista (UNESP)

Ourinhos – SP [email protected]

INTRODUÇÃO Realizar estudos e pesquisas sobre transportes é fundamental para compreender as

transformações e a mutabilidade inerentes ao espaço geográfico. Assim, esse trabalho trata da Hidrovia Tietê-Paraná e do Porto Intermodal de Pederneiras-SP, na tentativa de demonstrar a relevância do transporte hidroviário e, sobretudo, da multimodalidade no que tange à nova lógica da dinâmica territorial. O texto possui como objetivo central analisar a possibilidade do Porto Intermodal de Pederneiras-SP fomentar o crescimento econômico local/regional, além da sua relação com o sistema de circulação e de transportes da Hidrovia Tietê-Paraná.

Contextualizar o sistema de circulação e de transportes no atual estágio da internacionalização da produção, da economia e dos mercados é fundamental para a compreensão do atual estágio das relações sociais, políticas e econômicas que permeiam os diversos territórios, visto que a atual economia flexível e a globalização se expressam pela diversidade de atores e elementos que mantêm constantes inter-relações e se imbricam. A acumulação flexível apresenta vários aspectos que se diferenciam do sistema fordista, atribuindo-lhe maior complexidade, quais sejam: o just in time84, flexibilização quanto à produção, mercado e mão-de-obra, terceirizações e terciarizações, trabalhador polivalente e altamente qualificado, circulação que antecede a própria produção, entre outros.

Diante desse contexto, faz-se uma análise sobre a Hidrovia Tietê-Paraná desde seu surgimento até os dias atuais, considerando seus aspectos de maior relevância, como seu funcionamento, viabilização, articulação e integração territoriais, circulação, fluidez, logística e otimização.

As vantagens do transporte hidroviário em comparação ao ferroviário e rodoviário são elucidadas com o intuito de fomentar esse modal dentro do território nacional. Isso, por conseguinte, acaba por repercutir diretamente no preço final dos produtos e estimula a produção e a comercialização. Ademais, uma extensa região constituída pelos estados de São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Goiás é influenciada pela 84 Palavra inglesa que significa produção somente no tempo, ou seja, produção de acordo com a demanda, sem haver estocagem de mercadorias.

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Hidrovia Tietê-Paraná e se beneficia com o transporte fluvial e multimodal – na qual está inserido o município de Pederneiras e seu Porto Intermodal – criando novas perspectivas para um maior crescimento econômico local/regional. No texto também é destacado o papel do Porto Intermodal do município de Pederneiras-SP, com destaque para as empresas instaladas na área portuária e as prestações de serviços de transporte. Realiza-se uma caracterização geral das empresas Torque S.A., Caramuru Alimentos S.A. e Louis Dreyfus Commodities Brasil S.A., com ênfase na operacionalização, infra-estruturas e logística.

A Hidrovia Tietê-Paraná e o Porto Intermodal de Pederneiras são partes integrantes do contexto marcado pelas novas lógicas organizacionais, operacionais e produtivas do capitalismo atual. Ambos permitem a articulação entre o local e o global, os fluxos materiais mediante a formação de redes, a intermediação entre produtor e mercado, além da reprodução do capital. A viabilização da hidrovia e do terminal é fundamental para a otimização do transporte hidroviário e para a intermodalidade no estado de São Paulo, já que se apresentam como alternativas para reestruturar a matriz de transportes e arrefecer o chamado Custo Brasil.

GLOBALIZAÇÃO, ECONOMIA FLEXÍVEL E REESTRUTURAÇÃO DOS TRANSPORTES NO BRASIL

Atualmente, o processo de globalização da economia e dos mercados, permeado pelo neoliberalismo, é conduzido em função dos interesses de empresas transnacionais, dos tecnocratas e dos grandes capitalistas. Tal ideologia desponta no final dos anos de 1970 e, principalmente, a partir dos anos de 1980 nos EUA e na Grã-Bretanha, diante das novas demandas do mercado e da mudança de perspectiva do Estado, que cada vez mais delega funções e responsabilidades ao capital privado e reduz sua intervenção na economia e no mercado.

A nova lógica produtiva e da gestão, decorrentes do advento da economia flexível, são aspectos intrínsecos ao novo contexto caracterizado pelas tecnologias ligadas ao ramo da informática, das telecomunicações e da própria produção. A inserção dos territórios na economia-mundo, juntamente com a introdução de novos sistemas tecnológicos e informacionais, determinou sobremaneira as mudanças nas formas de relacionamento entre o local e o global. O território apresenta três realidades que convivem dialeticamente: primeiramente, pode-se destacar a forte presença do capital privado; em segundo, os territórios marcados pelas constantes relações interpessoais, interempresariais e interestatais e; por último, as relações entre a sociedade e o meio, sendo que o agente antrópico transforma e utiliza a natureza, atribuindo-lhe valor de uso.

O processo de reestruturação econômico-produtiva em curso no Brasil e no mundo conduz a transformações também no mercado de trabalho, pois esse caminha juntamente com as novas tecnologias e capitais produtivos. Assim, demanda-se uma mão-de-obra qualificada e polivalente, ao mesmo tempo em que cresce sua participação na lógica organizacional e decisória das empresas. Em decorrência de tal fato, verifica-se um aprofundamento do processo de marginalização de grande parcela dos trabalhadores, visto que são mal-qualificados ou analfabetos. Em suma, tem-se uma forte tendência à inclusão de uma minoria qualificada e exclusão da grande maioria que fica à mercê das novas demandas em curso no mercado de trabalho, aumentando as desigualdades e o desemprego no país.

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Diante do processo de globalização, da ideologia neoliberal e da acumulação flexível, verifica-se que diversos reflexos e conseqüências são verificados no Brasil, sobretudo no que se refere à produção-circulação, à gestão e à logística inerentes aos novos processos e demandas do capital no limiar do século XXI. A reestruturação do sistema de circulação e transportes se torna um fator imprescindível para se adequar às novas necessidades de articulação, integração, mobilidade e acessibilidade nos diversos territórios, permeados pelos fluxos materiais e imateriais e pela fluidez. Dessa maneira, assegura-se a inter-relação entre espaços produtores e de demanda, sendo intermediada por uma logística de transportes condizente com as demandas do mercado local, regional, nacional e global.

A expansão do sistema de circulação e de transportes e a formação de redes e fluxos levam ao arrefecimento das distâncias geográficas e modificam a divisão social e territorial do trabalho, visto que há uma forte tendência à especialização funcional e produtiva nos diferentes territórios. Para garantir a fluidez material e imaterial é fundamental realizar maiores investimentos, visando à modernização e à readequação das infra-estruturas materiais, ao mesmo tempo em que se torna relevante o transporte hidroviário e a intermodalidade. Ademais, as transformações nas últimas décadas levaram a uma maior concorrência e competitividade entre as grandes empresas no mercado global, juntamente ao processo de monopolização/oligopolização, em que as corporações transnacionais controlam significativa parte das atividades industriais e de serviços, com destaque para as de tecnologia de ponta.

A inserção do Brasil na globalização econômica e nos mercados é refletida nos projetos de infra-estruturas para fomentar o crescimento. A manifestação das novas formas de articulação inter-regionais e do país com o exterior, sobretudo a partir da década de 1990, evidenciam os condicionantes que levaram o Brasil a uma maior inserção no processo de globalização e, ao mesmo tempo, fragmentação da economia nacional. Isso se deve ao fato de no país emergir um discurso localista/regionalista que não solucionou o problema nacional, mas fortaleceu os espaços já dinâmicos, que passaram a manter relações econômicas e financeiras com o restante do país (principalmente com o Sudeste) e com outros países, de uma maneira mais intensa. Sendo assim, essa política adotada foi na verdade uma estratégia que acabou por favorecer as cidades e regiões dotadas de condições já favoráveis, em detrimento das demais que carecem de investimentos visando à dinamização e ao crescimento econômico.

Tais projetos nacionais conduziram à intensificação das heterogeneidades entre as regiões e não a uma maior homogeneização do território brasileiro, ao passo que contribuíram com a iniciativa privada, sobretudo com as grandes corporações internacionais. Foram estabelecidos vários planos, como os ENIDs (Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento), o Brasil em Ação e o Avança Brasil, que visaram ampliar as potencialidades dos fluxos materiais, principalmente dos espaços dotados de maior densidade de infra-estruturas e tecnologias. Não obstante, tais projetos, criados pelo Estado a partir da segunda metade dos anos de 1990 e ao longo dos anos de 2000, não levaram a uma integração inter-regional, mas sim, das regiões produtoras de commodities85 e de extração de minérios – destacando-se o Centro-Oeste com o cultivo de soja e o Quadrilátero Ferrífero, em Minas Gerais – aos principais portos de 85 Palavra inglesa que significa produtos agrícolas que visam o mercado externo.

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exportação do país, como os casos de Santos (SP), Paranaguá (PR) e de Vitória (ES) e aos mercados internacionais, o que acaba por beneficiar as agroindústrias, que cada vez mais se expandem no espaço rural brasileiro e, também, o próprio Estado, que passa a obter maiores receitas, apesar dos incentivos fiscais concedidos às empresas.

As hidrovias são muito utilizadas em diversos países da Europa e nos EUA, superando, em algumas regiões, os outros dois tipos de transportes terrestres (ferroviário e rodoviário), como o caso do Vale do Reno-Ruhr, na Alemanha, onde o transporte de matérias-primas se dá basicamente via modal hidroviário. Assim como ocorre na Europa e nos EUA, maiores investimentos e alianças entre o poder público e o capital privado são essenciais para o fomento do transporte fluvial e intermodal no Brasil, alcançando uma maior racionalização do transporte de cargas no território nacional, sobretudo na movimentação de cargas agrícolas, interligando os espaços produtores aos centros de demanda.

O debate para buscar uma nova composição e reestruturação da matriz de transportes no Brasil, visando, ao menos, aproximar-se da vigente nos Estados Unidos e Europa, torna-se imprescindível, ainda mais quando se analisa a configuração territorial brasileira marcada pelas heterogeneidades, pela escassez de investimentos e pela despreocupação com regiões que se encontram à mercê do crescimento econômico. Assim, é notório que o Brasil possui uma grande dimensão territorial, com grandes diversidades socioeconômicas, com uma desigual distribuição de densidades tecnológicas e de infra-estruturas, além de uma capacidade heterogênea de gerar fluxos materiais e imateriais, o que acaba por demandar maiores investimentos públicos e privados em capitais produtivos, infra-estruturas e na multimodalidade, com o intuito de superação dos entraves ao crescimento.

Diante desse quadro passível de expansão, maiores investimentos no modal hidroviário requerem políticas voltadas às PPPs (Parcerias Público-Privadas) e, mais especificamente, em relação à Hidrovia Tietê-Paraná há a necessidade de se criar alternativas condizentes com as potencialidades oferecidas pela sua utilização otimizada. Sendo o estado de São Paulo a principal economia do país e o principal mercado consumidor em potencial, reestruturar a matriz de transporte de cargas se torna uma das principais metas para diversificação do escoamento de mercadorias, visto que o modal rodoviário predomina em todo o território nacional e apresenta, em muitos casos, condições de saturação, o que conduz à necessidade de cooperação entre os modais a partir da intermodalidade e, principalmente, a partir do fomento da Hidrovia Tietê-Paraná. Perante esse contexto, há necessidade de maiores investimentos no transporte fluvial de cargas e em terminais portuários, como o Porto Intermodal de Pederneiras-SP, já que se apresentam como alternativas viáveis à economia nacional e superação da dependência exacerbada do transporte rodoviário de cargas. Fomentar o sistema hidroviário e a intermodalidade são fundamentais para uma inserção competitiva do Brasil na economia global e para a articulação e a integração entre diversos territórios, ao mesmo tempo em que contribui sobremaneira para arrefecer o Custo Brasil e reestruturar a matriz de transportes no país. SURGIMENTO E ASPECTOS GERAIS DA HIDROVIA TIETÊ-PARANÁ

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A utilização dos rios Tietê e Paraná como vias navegáveis vem sendo proposta desde a década de 1950, quando um grupo de engenheiros liderados por Catullo Branco86 iniciou estudos para o aproveitamento múltiplo desses dois cursos fluviais.

No ano de 1967 foi firmado convênio entre os governos Federal e do estado de São Paulo para prosseguir com as obras de navegação no Sistema Tietê-Paraná, criando-se a CENAT (Comissão Executiva de Navegação nos Rios Tietê-Paraná).

Em 1974, foi firmado novo convênio envolvendo a CESP (Companhia Energética de São Paulo) para conclusão das obras de navegação fluvial. Dessa forma, foram criadas as barragens de Barra Bonita, Bariri, Ibitinga e Promissão, no rio Tietê, e Ilha Solteira e Jupiá, no rio Paraná.

Cortando grande parte do território paulista no sentido leste-oeste, o rio Tietê desemboca no rio Paraná. A união dos dois cursos fluviais constitui a Hidrovia Tietê-Paraná, possuindo 2.400 km de extensão (1.600 km referentes ao Rio Paraná e 800 km abrangendo os rios Piracicaba e Tietê) e uma região de influência que abrange cinco estados brasileiros, estando eles, entre os de maior relevância nacional, quais sejam: Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná e São Paulo.

O início do funcionamento da hidrovia é recente, pois ocorreu na medida em que foram concluídas as diversas obras de aproveitamento múltiplo dos rios Tietê e Paraná. A hidrovia do Tietê começou em 1981, com o transporte regional de cana-de-açúcar. Em 1991, iniciou-se o transporte de longa distância através de todo o rio Tietê e no Tramo Norte do rio Paraná, ligados pelo canal artificial Pereira Barreto, possibilitando que a navegação alcançasse o Sul do estado de Goiás e o Oeste do estado de Minas Gerais.

A viabilidade funcional e econômica da hidrovia, até a década de 1970, foi muito questionada entre os especialistas e o poder público, visto que faltavam maiores investimentos para sua execução e operacionalização. Nos dias atuais, várias empresas visam criar uma logística compatível com os lucros e benefícios que a hidrovia pode gerar. Todavia, a participação do poder público e do capital privado ainda é incipiente, o que acaba por dificultar o fomento do transporte hidroviário.

Dentre os estados de influência da Hidrovia Tietê-Paraná, pode-se destacar São Paulo, pois grande parte do seu tramo se encontra nesse território, a qual é servida por rodovias e ferrovias e está no centro de um conjunto de cidades que detêm grande destaque no estado como Campinas, Piracicaba, São José do Rio Preto, Araçatuba, Bauru e Sorocaba, sendo pólos industriais, comerciais e de serviços. Relevante é atentar para o eixo Bauru-Jaú, pois há uma estrutura hidro-rodo-ferroviária que desempenha importante papel no transporte intermodal de cargas, por meio do terminal da cidade de Pederneiras. Figura 01: Mapa da região de influência da Hidrovia Tietê-Paraná.

86 Engenheiro especialista em obras para viabilizar o transporte hidroviário fluvial, como barragens e eclusas.

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Figura 02: Representação do Porto Intermodal de Pederneiras e as infra-estruturas existentes.

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O TRANSPORTE DE MERCADORIAS E A REGIÃO DE INFLUÊNCIA DA HIDROVIA TIETÊ-PARANÁ

Os sistemas hidroviário e ferroviário, assim como a multimodalidade, vêm se destacando diante da relevância da racionalização do transporte de cargas no Brasil, sobretudo na movimentação de granéis, líquidos e minérios, interligando os espaços produtores aos de demanda. Dentro desse contexto, insere-se a Hidrovia Tietê-Paraná e seus terminais, como o de Pederneiras, que contribuem com a articulação e a integração entre o Centro-Oeste e o estado de São Paulo, através do transporte de soja dos estados de Goiás e Mato Grosso até o Porto de Santos.

Uma análise mais apurada da utilização do modal hidroviário evidencia um cenário, infelizmente, de subutilização dos cursos fluviais, apresentando infra-estruturas precárias e obsoletas, organização e logística de navegação ainda incipientes em grande parte dos casos, além da falta de projetos por parte do Estado e alianças entre o poder público e o capital privado que fomentem o sistema hidroviário e a intermodalidade no país. Com o intuito de superar a saturação do sistema rodoviário em território nacional e também do Custo Brasil, extremamente prejudicial ao crescimento econômico, faz-se necessário romper com a cultura exacerbadamente rodoviarista existente no país. São exemplos pertinentes as possibilidades criadas com as hidrovias Tietê-Paraná, Paraguai e São Francisco que, apesar de carecerem de investimentos públicos e privados e de projetos para que as infra-estruturas e a operacionalização possam ser otimizadas, importantes melhorias estruturais têm sido implantadas nos últimos anos.

Atribuir relevância à Hidrovia Tietê-Paraná e, por conseguinte, aos diversos terminais existentes ao longo de toda a sua extensão (como é o caso do Porto Intermodal do município de Pederneiras-SP), é condição para melhor articular espaços de produção e de demanda, ao mesmo tempo em que possibilita a intermodalidade, principalmente a cooperação entre os modais hidroviário e ferroviário, pois se encontram subutilizados e com escassez de investimentos e infra-estruturas para potencializá-los. Assim, sistemas hidroviários, como o caso da Hidrovia Tietê-Paraná, são novas alternativas que facilitam e estimulam a integração de diversos territórios, os fluxos materiais e as reestruturações na lógica organizacional e logística dos transportes no estado de São Paulo.

Um terminal fluvial, assim como um terminal marítimo, pode ser entendido, de forma geral, como um arranjo físico que compreende diversas obras de engenharia importantes sob o ponto de vista econômico, capaz de atender satisfatoriamente às seguintes funções:

• Carga e descarga das embarcações que utilizam as facilidades portuárias; • Estocagem temporária da carga desembarcada ou a ser embarcada; • Distribuição da carga (via ferrovia, rodovia e hidrovia) para os mercados de

demanda; • Processamento industrial e produção. Nota-se a tendência das indústrias de deslocarem suas plantas de produção para

junto das áreas portuárias, eliminando ou reduzindo os custos de transporte desde o cais do porto até a fábrica.

A intermodalidade consiste no uso de mais de um modo de transporte na movimentação de cargas, aproveitando-se dos aspectos favoráveis de cada modal, de maneira que o resultado final seja a otimização do escoamento dos produtos. Iniciativas

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públicas e privadas com o objetivo de ampliar a capacidade de transporte de cargas pela hidrovia vêm no sentido de integrá-la aos demais tipos de transportes, mediante a construção de terminais intermodais. Um terminal trimodal, como o de Pederneiras, permite o escoamento de cargas a partir de três modais diferentes: rodoviário, ferroviário e hidroviário.

No transporte intermodal, os modais não competem entre si, mas, se completam, contribuindo para o aumento do volume de cargas transportadas para o mercado externo via portos de exportação, como o Porto de Santos, por exemplo. Convém ressaltar que cada modal desempenha o papel de transportar os produtos mais adequados às suas características operacionais.

A hidrovia estimula a produção e a competitividade das mercadorias da sua região de influência e promove a integração dos modais (intermodalidade). Outras são as vantagens, quando comparado com os demais meios de circulação de mercadorias, como a necessidade de investimentos menores do que nas rodovias e ferrovias, baixo preço do frete, grande capacidade de escoamento de cargas, facilidades para o transporte de cargas volumosas e menor degradação do meio ambiente.

A integração entre hidrovia, ferrovia e rodovia, formando um sistema multimodal de transporte, garante uma circulação contínua e mais viável, desde a origem até o destino das mercadorias. Ademais, cabe ressaltar que o transporte fluvial é um fator de minimização do custo resultando, por conseqüência, na queda do valor das mercadorias e no aumento da competitividade dos produtos brasileiros no mercado internacional, ou seja, acaba por beneficiar tanto o capital privado quanto o Estado, mediante uma balança comercial favorável. A otimização da Hidrovia Tietê-Paraná requer terminais adequados para movimentação de cargas, instalação de modernos equipamentos de transbordo, armazéns, silos e entroncamentos multimodais, constituindo uma infra-estrutura satisfatória para o pleno funcionamento do sistema.

A existência do tripé ferrovia-rodovia-hidrovia conduz à desejada eficiência e otimização operacionais. Assim, esses três elementos e toda a infra-estrutura existente vêm garantindo a crescente valorização do transporte multimodal, especialmente nos EUA e Europa, em que os sistemas de transporte são bem estruturados, mediante uma logística intrínseca e investimentos públicos e privados. Por outro lado, nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento (como o Brasil), o transporte hidroviário e a intermodalidade ainda são incipientes, necessitando de maiores investimentos. No caso brasileiro, especificamente, observa-se uma demasiada valorização do transporte rodoviário, em detrimento dos demais, sobretudo a partir da segunda metade da década de 1950, com o governo de Juscelino Kubitschek.

A reestruturação do sistema de circulação e de transportes no Brasil é de vital importância para o futuro do país. Expandir o transporte fluvial contribui para corrigir distorções e problemas, cujos efeitos negativos mais profundos alcançam a economia nacional. Ainda que as vantagens entre hidrovia, ferrovia e rodovia possam ser variáveis de acordo com cada tipo de produto, é notório que o Brasil consome mais recursos por tonelada-quilômetro transportada do que outros países em que a hidrovia e a ferrovia são mais difundidas e utilizadas. Dentre os fatores que determinam tal característica está a falta de tradição e cultura brasileiras – estatal e privada – em relação ao transporte hidroviário.

Com o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, na década de 1950, e o estímulo à instalação de montadoras automobilísticas internacionais no ABC paulista

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(principalmente dos EUA e Europa), a indução ao transporte rodoviário, com a expansão das rodovias ligando diversos pontos do território nacional, acabou por arrefecer a participação dos demais tipos de transportes no escoamento de mercadorias.

No limiar do século XXI, a situação do transporte no Brasil deve ser alterada, pois é um aspecto imprescindível para possibilitar um crescimento econômico mais satisfatório. À medida que a produção, sobretudo de grãos, aumenta consideravelmente, cresce também a necessidade de obter maior competitividade no mercado externo. Assim, tornam-se fundamentais investimentos para a melhoria das rodovias brasileiras e para estimular o transporte hidroviário e ferroviário. Mediante a necessidade de produzir, armazenar e distribuir a produção de modo seguro, barato e com menor degradação ambiental é que se apresenta a Hidrovia Tietê-Paraná.

O sistema hidroviário Tietê-Paraná e a intermodalidade vêm provocando impacto direto na agricultura, na instalação de empresas e no surgimento de pólos de convergência de cargas, além de influenciar uma grande região que engloba cinco estados do Centro-Sul do Brasil, quais sejam: Mato Grosso do Sul, Goiás, Minas Gerais, Paraná e São Paulo. Seus reflexos geoeconômicos vão além do transporte de mercadorias, visto que há uma valorização do espaço e fluidez na articulação e no deslocamento de cargas. A dinâmica da hidrovia e da multimodalidade tende a uma concentração empresarial nos espaços em que se encontram os terminais portuários. Novas alternativas surgem em diversos municípios mediante a facilidade no que tange aos fluxos materiais e imateriais. Tabela 01: Dinâmica do transporte de cargas no Brasil.

Modais 1985 1999 2006

Rodoviário 57,6% 61,8% 60,0%

Ferroviário 23,6% 19,5% 20,1%

Hidroviário 14,3% 13,8% 14,3%

Outros 4,5% 4,9% 5,6%

Fonte: Geipot, 2007. Tabela 02: Transporte de grãos no Brasil em 2006.

Modais Total Rodoviário 67% Ferroviário 28% Hidroviário 6%

Fonte: Ministério dos Transportes, 2007.

Tabela 03: Transporte de soja e farelo pela Hidrovia Tietê-Paraná (em toneladas). Produtos

Transportados Junho 2004

Junho 2005 1° sem 2003 1° sem 2004

Soja e farelo 85 mil

106 mil 751 mil 811 mil

Fonte: Secretaria de Transportes do Estado de São Paulo, 2006.

Tabela 04: Custo para transportar 1 tonelada de carga não perecível por mil quilômetros (em dólares).

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Tipo de frete Valor

Frete rodoviário US$ 39

Frete ferroviário US$ 29 Frete hidroviário US$ 14

Fonte: Ministério dos Transportes, 2006. Assim, infere-se que o modal rodoviário possui grande predomínio no que tange

ao transporte de cargas no Brasil, apesar dos custos mais elevados quando comparado com os modais ferroviário e hidroviário. Essa cultura rodoviarista ainda é muito forte no país, mesmo com as vantagens oferecidas pelos outros modais.

Diante do destaque econômico e financeiro do estado de São Paulo, surge a necessidade de um sistema de circulação e de transportes mais eficiente, com o intuito de expandir a produção e a comercialização, juntamente com o fomento dos fluxos materiais e imateriais pelo território. Potencializar o funcionamento e a logística da Hidrovia Tietê-Paraná e do Porto Intermodal de Pederneiras é uma alternativa para que novas estratégias e investimentos públicos e privados fomentem a economia de vários municípios paulistas e também de toda sua região de influência. Tais transformações econômicas e produtivas são fatores que possibilitam o dinamismo e a articulação com outros espaços, mediante uma dialética intrínseca e que norteia os diferentes territórios.

Fundamental é romper com a idéia de concorrência entre os modais, pois na realidade eles se integram e se complementam. O modal rodoviário é indicado para transportar pequenas cargas a curtas e médias distâncias, entregando a mercadoria diretamente no local de demanda; a ferrovia conduz cargas de médio e grande porte; já a hidrovia transporta, com um custo muito menor, cargas em grandes quantidades a grandes distâncias. Cabe ressaltar que a ferrovia e a rodovia não perdem suas utilidades com a expansão do transporte hidroviário, pois os comboios transportam as cargas mais pesadas e que demoram mais para perecer, ficando os modais ferroviário e rodoviário responsáveis pela função de assistência.

Algumas das principais cargas transportadas pela Hidrovia Tietê-Paraná são: • Soja e farelo: a soja e o farelo estão entre os produtos mais transportados pela

hidrovia, possibilitando a interligação de extensas regiões produtoras e consumidoras.

• Cana: a cana é cultivada em larga escala no Centro-Oeste Paulista e é base econômica de muitos municípios da região. Há o transporte de cana pelo rio Tietê desde 1981.

• Álcool: cada vez mais o álcool produzido na região de Pederneiras é transportado por comboios fluviais, reduzindo o custo das usinas com o transporte.

Tabela 05: Movimentação total de cargas pela Hidrovia Tietê-Paraná nos últimos anos (em toneladas).

Anos 2003 2004 2005 2006 Quantidade de cargas escoadas

2.772.000 3.080.000

3.500.000

3.850.000

Fonte: Departamento Hidroviário do Estado de São Paulo, 2007.

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Tabela 06: Principais cargas escoadas pela Hidrovia Tietê-Paraná em 2005 (em toneladas).

Produtos Quantidade

Soja 937 mil

Cana 807 mil

Areia 681 mil

Milho 266 mil

Madeira 166 mil

Outros 248 mil

Total 3,5 milhões

Fonte: Departamento Hidroviário do Estado de São Paulo – Boletim Estatístico de 2006.

Tabela 07: Acidentes com transporte fluvial ao longo da Hidrovia Tietê-Paraná. Anos 2000 2001 2002 2003 2004 2005

Número de acidentes 2 4 3 5 10 8

Fonte: Departamento Hidroviário do Estado de São Paulo – Boletim Estatístico de 2006. Pela análise dos dados, verifica-se que o transporte fluvial de cargas pela hidrovia Tietê-Paraná vem aumentando nos últimos anos e que o número de acidentes, mesmo sendo baixo quando comparado com o modal rodoviário, cresceu entre 2000 e 2004. Contudo, em 2005 houve uma queda no número de acidentes em comparação a 2004. Ademais, cabe ressaltar que se faz necessário maiores investimentos na hidrovia como um todo e também nos terminais portuários, pois apesar dos avanços em infra-estruturas, participação do capital privado e movimentação de cargas na última década, a otimização do funcionamento do sistema intermodal ainda é incipiente e demanda um planejamento mais condizente com suas potencialidades oferecidas. Inserido nesse contexto aparece o Porto Intermodal de Pederneiras, com seu entroncamento hidro-rodo-ferroviário, visto que é um terminal trimodal e nó de convergência de soja e farelo oriundos dos estados de Goiás e Mato Grosso. Ademais, é parte integrante do funcionamento do sistema fluvial Tietê-Paraná, com participação do capital privado no processamento e no transporte de cargas. O PORTO INTERMODAL E SEU PAPEL NO MUNICÍPIO DE PEDERNEIRAS-SP

Com o início das operações do Porto Intermodal de Pederneiras, nos primeiros anos da década de 1990, este acabou por atribuir uma maior notoriedade e relevância ao município, mediante sua participação no contexto da Hidrovia Tietê-Paraná, como parte integrante desse sistema de circulação e de transportes que contribui para a economia regional, pois garante o escoamento de cargas que se destinam do Centro-Oeste (Mato Grosso e Goiás) em direção ao Porto de Santos através da multimodalidade.

A partir do ano 2000, o terminal iniciou uma nova fase de funcionamento, após a construção da rodovia vicinal que liga a área urbana de Pederneiras ao Terminal Intermodal e a extensão da linha férrea, com um terceiro trilho, que pertence à ALL

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(América Latina Logística)87. A construção dessa linha foi de suma relevância, pois acabou com o problema da incompatibilidade de bitolas que prejudicavam o escoamento de mercadorias para o Porto de Santos. A rodovia que liga a área urbana até o porto, em uma extensão de nove quilômetros, se encontra totalmente asfaltada, articulando estrategicamente os dois espaços, mediante a mobilidade e acessibilidade dentro do território.

Tabela 08: Transporte de grãos de soja para o Porto de Santos (em toneladas).

Mês/Ano 2002 2003 2004 2005 Janeiro 121.510 66.162 262.798 107.706 Fevereiro 86.167 111.691 374.019 390.765 Março 858.389 1.004.208 1.114.123 891.355 Abril 751.375 766.461 1.004.208 873.564 Maio 594.710 511.508 766.461 1.063.731 Junho 547.192 499.030 511.508 855.941 Julho 535.879 532.815 499.030 658.068 Agosto 535.895 336.753 532.815 644.011 Setembro 465.285 74.922 336.753 944.193 Outubro 426.892 101.248 74.922 430.722 Novembro 207.498 110.656 101.248 423.144 Dezembro 80.183 SD 110.656 SD

Fonte: Ministério dos Transportes. Obs: SD (sem dados disponíveis), 2006. Tabela 09: Transporte de farelo de soja para o Porto de Santos (em toneladas).

Mês/Ano 2002 2003 2004 2005 Janeiro 84.718 99.730 249.160 169.986 Fevereiro 101.484 113.266 195.468 179.973 Março 159.240 167.085 317.527 181.781 Abril 204.585 229.628 310.453 313.067 Maio 217.180 223.361 412.660 356.482 Junho 206.272 318.580 395.137 295.993 Julho 325.971 205.610 421.936 430.929 Agosto 216.099 279.771 310.562 200.180 Setembro 254.028 324.536 365.575 150.900 Outubro 264.035 229.302 278.500 179.842 Novembro 138.458 312.631 200.148 133.731 Dezembro 329.711 187.385 326.601 SD

Fonte: Ministério dos Transportes. Obs: SD (sem dados disponíveis), 2006. Tabela 10: Transporte de soja e farelo do Porto Intermodal de Pederneiras para o Porto de Santos em 2006 (em toneladas).

Empresas Quantidade Caramuru 37,5 mil de soja e farelo por mês

Louis Dreyfus 50 mil de soja por mês

87 A linha férrea que liga Pederneiras a Santos pertence à ALL. Todavia, o transporte de cargas é realizado pela empresa concessionária MRS Logística.

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Fonte: Caramuru Alimentos Ltda e Louis Dreyfus Commodities Agrícolas S.A, 2007. Com esse potencial, o Porto Intermodal de Pederneiras se caracteriza como um

fixo que contribui para o funcionamento do sistema Tietê-Paraná, visto que a multimodalidade facilita a circulação e o transporte de cargas, interligando diferentes espaços, regiões e até mesmo países. Em suma, o terminal se apresenta como um ponto nodal no que tange ao escoamento de soja e farelo que navegam pela hidrovia e chegam ao Porto de Santos.

A internacionalização da economia vem propiciando uma maior integração entre os diferentes países, originando, por conseguinte, uma nova divisão internacional do trabalho e especializações produtivas e funcionais. Com o advento da economia flexível, substituindo o obsoleto sistema fordista, novas características passaram a nortear a economia e a organização produtiva e comercial. Dessa forma, a circulação passou a desempenhar um papel de extrema relevância, presidindo, muitas vezes, a própria produção.

A transformação do espaço pela sociedade mediante inter-relações são processos intrínsecos à história e se verificam em âmbito global. No limiar do século XXI a intervenção humana no espaço é cada vez mais intensa. Assim, não se pode mais diferenciar as paisagens naturais das artificiais. Como revela Santos (1997, p. 64):

A produção do espaço é resultado da ação dos homens agindo sobre o próprio espaço, através dos objetos, naturais e artificiais. Cada tipo de paisagem é a reprodução de níveis diferentes de forças produtivas, materiais e imateriais, pois o conhecimento também faz parte do rol das forças produtivas.

A modificação do espaço está intimamente ligada às práticas econômicas e produtivas, e se delineia de acordo com o interesse dos grupos sociais que comandam as forças produtivas. As ações sociais que visam à produção e à distribuição requerem a existência de capitais e infra-estruturas (tecnologias, máquinas, equipamentos, vias, etc), para seu eficaz funcionamento e integração entre centros produtores e mercados consumidores.

O Porto Intermodal de Pederneiras, como sendo parte integrante das novas lógicas organizacionais, operacionais e produtivas do capitalismo atual, apresenta-se como um espaço de convergência de cargas escoadas pela Hidrovia Tietê-Paraná. Ademais, assegura a articulação entre o local e o global, os fluxos materiais mediante a formação de redes, a intermediação entre produtor e mercado, além da reprodução do capital.

A dinamicidade que caracteriza as áreas portuárias em geral não deve ser compreendida como resultado do simples determinismo geográfico, pois os fatores que desencadeiam tal processo são variados. Dessa forma, para uma compreensão eficaz é necessário fugir de uma visão reducionista, visto que o Porto Intermodal de Pederneiras é resultado de agentes e fatores políticos e econômicos que atuam no território. Diante desse contexto, a logística, as alianças entre o poder público e instituições privadas e um planejamento adequado são essenciais para a otimização do funcionamento do transporte multimodal e para uma melhor organização e eficiência do sistema de circulação e de transportes. Além disso, pólos dinâmicos podem despontar, criando, assim, uma realidade socioeconômica condizente com as potencialidades existentes em âmbito local e regional.

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Presente em diversos estados brasileiros, como Goiás, Paraná e São Paulo, a empresa Caramuru Alimentos se dedica à produção de grãos e farelos, armazenagem, extração e refino de óleos especiais de soja, milho, girassol e canola, entre outros. Com capitais e controle acionário nacionais, a empresa atua no Terminal Intermodal de Pederneiras desde 2001, armazenando soja e farelo e transportando as mercadorias via ferrovia até o Porto de Santos, em cooperação com a MRS Logística88. A Caramuru é uma empresa brasileira com grande atuação e destaque no ramo alimentício e nas exportações de commodities.

A empresa Caramuru atua no Porto Intermodal em cooperação com o Grupo Torque, já que esse se encarrega de transportar grãos de soja e farelo pela Hidrovia Tietê-Paraná, através da DNP – Indústria de Navegação. O Grupo Torque atua em vários ramos, como metalurgia e, principalmente, transporte hidroviário. Possui capitais e controle acionário nacionais e se destaca como a principal empresa de transporte da Hidrovia Tietê-Paraná. A empresa é responsável por toda parte logística e operacional ligada ao transporte fluvial de cargas, descarregamento dos comboios, condução das cargas até o armazém e, daí, para os vagões que escoam a carga até o Porto de Santos. Assim, grande parte da infra-estrutura existente – comboios, chapas de retirada da soja e de farelo dos comboios, esteiras que conduzem a carga até o armazém e, posteriormente, até os vagões, juntamente com o estaleiro para construção de barcaças – pertence à Torque. Por sua vez, as mercadorias, o armazém com capacidade para estocar 30 mil toneladas de soja e farelo e 115 vagões pertencem à Caramuru.

A produção oriunda do estado de Goiás é transportada até o município de São Simão (GO) via rodovia. No Porto de São Simão são carregados os comboios que se deslocam pela Hidrovia Tietê-Paraná até os terminais de Pederneiras e Anhembi. Nesse último, a carga é transportada até o Porto de Santos através do modal rodoviário. Todavia, no Porto Intermodal de Pederneiras as barcaças com grãos de soja e farelo são descarregadas, a carga é conduzida até o armazém, carregam-se os vagões e via ferrovia a produção é escoada, em sua grande maioria, até o Porto de Santos (cerca de 95% do total anual).

Outra empresa que se encontra na área portuária do município de Pederneiras é a Louis Dreyfus Commodities Brasil S.A. O grupo Louis Dreyfus, fundado por Leopold Louis-Dreyfus em 1851, é um conglomerado controlado pela holding89 S.A. Louis Dreyfus & CIE, sediada em Paris, França. A holding é propriedade exclusiva da família Louis-Dreyfus. O grupo atua em diversos ramos, quais sejam: na comercialização internacional de commodities agrícolas, extração de madeira, produção de energia, esmagamento e refino de sementes oleaginosas, produção de açúcar e álcool, processamento de frutas cítricas, exploração, refino e comercialização de petróleo e gás natural, telecomunicações, administração de frotas de navios oceânicos, projetos imobiliários e serviços financeiros.

88 A MRS Logística é a concessionária responsável pelo transporte de cargas do Terminal Intermodal de Pederneiras até o Porto de Santos. 89 Palavra inglesa que representa uma forma de oligopólio em que uma empresa é criada para administrar um conglomerado. Tal empresa possui a maior parte das ações das demais que compõem o grupo, sendo muito comum essa prática pelas grandes corporações.

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Com capitais e controle acionário internacionais (franceses), esse grupo é o maior do mundo no que tange à comercialização de commodities agrícolas. A unidade da empresa instalada no Terminal Multimodal de Pederneiras realiza as atividades de descarregamento dos comboios fluviais e armazenamento da soja em dois silos e em um armazém, totalizando uma capacidade de armazenar 13 mil toneladas de grãos de soja. Ademais, operacionaliza em cooperação com a MRS Logística, responsável por escoar os grãos do Terminal Intermodal de Pederneiras até o Porto de Santos. A Louis Dreyfus é uma empresa que atua, principalmente, no ramo de exportações de commodities em vários continentes, como na América do Sul e na Europa.

A Louis Dreyfus atua, no Porto Intermodal de Pederneiras, em cooperação também com a Comercial Quintella Comércio e Exportação S.A., já que é a empresa responsável pelo transporte dos grãos de soja pela Hidrovia Tietê-Paraná. A Comercial Quintella possui capitais e controle acionário nacionais e atua no ramo de transporte fluvial. Juntamente com a Torque, são as duas principais empresas que escoam produtos pela Hidrovia Tietê-Paraná. A Comercial Quintella e a Torque são prestadoras de serviços para as empresas Louis Dreyfus e Caramuru Alimentos, respectivamente.

A produção oriunda dos estados de Mato Grosso e Goiás é transportada até o município de São Simão (GO) via rodovia. No Porto de São Simão são carregadas as barcaças que se destinam pela Hidrovia Tietê-Paraná até o município de Pederneiras, via comboios da Comercial Quintella. No Porto Intermodal de Pederneiras, as barcaças com soja são descarregadas, em seguida as mercadorias são conduzidas até o armazém e silos através de esteiras, e daí até à ferrovia. Por fim, toda a carga é escoada até o Porto de Santos pela MRS Logística para ser exportada. Quanto à infra-estrutura da Louis Dreyfus no terminal, tem-se: o centro de descarregamento das barcaças e as esteiras que conduzem os produtos, além de dois silos e um armazém que comportam 13 mil toneladas de grãos de soja. Todavia, os comboios que escoam as cargas pela hidrovia pertencem à Comercial Quintella. Tabela 11: Dados gerais sobre as empresas que atuam no Porto Intermodal de Pederneiras, 2006.

Empresas Caramuru Alimentos Torque Louis Dreyfus Início de operação da empresa no Porto Intermodal de Pederneiras

2001 1994 2002

Controle acionário Nacional Nacional Francês Investimentos 6 milhões de reais 20 milhões de dólares SD* Fluxo de mercadorias em 2006

450 mil toneladas para o mercado externo e 21 mil

toneladas para o interno

471 mil toneladas de soja e farelo pela

hidrovia

50 mil toneladas de soja por mês para o

mercado externo Número de empregados 4 30 15 Empresas prestadoras de serviços

2 0 2

* Sem dados disponíveis. Fonte: Caramuru Alimentos, Torque e Louis Dreyfus, 2007.

Diante do exposto sobre as empresas, infere-se que suas lógicas organizacionais se enquadram diante do contexto da globalização da economia, em que o mercado externo ganha pujança em detrimento do interno. Assim, as grandes empresas dominam o

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mercado, utilizando-se das terceirizações para o transporte dos produtos. Soma-se a isso que o transporte fluvial e a intermodalidade são alternativas que potencializam o escoamento de cargas e podem contribuir para o fomento da matriz de transportes no Brasil e, principalmente, no estado de São Paulo. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Notória é a relevância da rede de circulação e de transportes para o fomento da economia e para a dinâmica territorial que caracterizam o limiar do século XXI. O espaço, no contexto da globalização, é permeado pela complexidade e por diversos elementos que o compõem e determinam suas peculiaridades. Tem-se a ação dos agentes econômicos, sociais e políticos que transformam os territórios, a constante relação entre os trabalhadores e as forças produtivas, a dialética intrínseca ao sistema capitalista, as heterogeneidades existentes entre os diversos espaços e indivíduos, as reestruturações tecnológicas e organizacionais, os acordos entre o poder público e instituições privadas, em que os tecnocratas cada vez mais asseguram privilégios e benefícios a si próprios e recebem concessões, entre outros.

O transporte fluvial de cargas é muito difundido na Europa e nos EUA, o que representa uma cultura diferente da verificada no Brasil, visto que lá o rodoviarismo é sobreutilizado. Já os modais ferroviário e hidroviário são subutilizados em nosso país, prejudicando a multimodalidade e a economia como um todo. O aumento da produção e da comercialização e a facilidade de escoamento de cargas via diferentes modais são fundamentais para o crescimento econômico regional e nacional. A reestruturação do sistema de transportes no país, mediante maiores investimentos e PPPs (Parcerias Público-Privadas), pode fortalecer a competição das empresas nacionais no mercado global de produtos agrícolas e industrializados. Por conseguinte, tem-se a criação de novos empregos, geração de renda e maior aquisição de receitas pelo Estado (compreendido em todas as suas instâncias).

O sistema Tietê-Paraná é uma rede hidroviária que possui um papel importante no fomento da produção, transporte e exportação, principalmente de gêneros agrícolas (destaque para a soja e o farelo). Os terminais intermodais, por sua vez, são alternativas que possibilitam aumentar o fluxo de mercadorias e contribuem para reestruturar a matriz de transporte no Brasil, sobretudo, no estado de São Paulo. A intermodalidade não consiste na competição ou valorização de um modal em detrimento dos demais, mas sim, em se criar uma cooperação entre os três tipos de modais (rodoviário, ferroviário e hidroviário), sendo que cada um fica responsável pelo transporte dos produtos que melhor se adaptam às suas características.

O Porto Intermodal de Pederneiras constitui-se como parte integrante do sistema de circulação e de transportes da Hidrovia Tietê-Paraná e carece de maiores investimentos e alianças entre o capital privado e o poder público para sua expansão. Compreendido como resultado da própria dinâmica do capital, favorece a articulação e a integração territoriais, interligando centros produtores e mercados consumidores.

Diversas vantagens são atribuídas ao transporte hidroviário e à intermodalidade, como a criação de empregos diretos e indiretos, o fomento da produção, do comércio e da prestação de serviços, o surgimento de outras empresas no município (peças, alimentos, materiais de limpeza, óleos, combustíveis, mecânicos, etc.) e o aumento da arrecadação de tributos pelo poder público municipal (ISS – Imposto sobre Serviços de qualquer natureza) e estadual (ICMS – Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e

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Serviços). Soma-se a isso o custo do frete mais baixo, quando comparado com os modais ferroviário e, principalmente, rodoviário, a grande capacidade de escoamento de cargas, o menor risco de acidentes, a menor degradação ambiental, entre outras vantagens.

O Porto Intermodal de Pederneiras, apesar das possibilidades oferecidas, requer maiores investimentos em infra-estruturas visando à otimização do seu funcionamento e da multimodalidade no estado de São Paulo. Parcerias Público-Privadas (PPPs) e um planejamento mais adequado são de suma relevância para que o sistema hidroviário Tietê-Paraná e o Terminal de Pederneiras potencializem a matriz de transportes no estado, superando a dependência exacerbada do rodoviarismo. Dessa maneira, alianças entre o poder público municipal e instituições privadas são fundamentais para possibilitar o crescimento econômico local/regional e a reestruturação da matriz de transportes no estado de São Paulo. Nesse caso, o primeiro realizaria concessões e estabeleceria metas a serem alcançadas pelas empresas, visando fomentar a expansão do terminal multimodal e a instalação de novas empresas.

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ARRANJO PRODUTIVO LOCAL E EIXO DE DESENVOLVIMENTO: O CASO DE BIRIGÜI–SP

ELISEU SAVÉRIO SPOSITO Universidade Estadual Paulista (UNESP)

Presidente Prudente – SP [email protected]

ELAINE CRISTINA CÍCERO

Universidade Estadual Paulista Presidente Prudente – SP [email protected]

INTRODUÇÃO

A dispersão da indústria para o interior, tanto do estado de São Paulo como do Brasil, não é um fato recente. Ela foi identificada, inicialmente, no início da década de 1970, e pode ser percebida pela análise de vários indicadores, principalmente daqueles que se referem ao valor da transformação industrial e ao número de empregos, confrontando-se dados da Região Metropolitana e do restante do estado de São Paulo. O primeiro diálogo a respeito do sentido e da orientação da desconcentração industrial no estado de São Paulo é feito com Lencioni (1994), para quem “(...) a política de descentralização industrial significou, sobretudo, dispersão abrangendo um raio de cerca de 150 km a partir da capital e, indo além desta distância, ao longo dos principais eixos rodoviários. A presente dispersão não nega os processos históricos de concentração industrial no território paulista, mas reforça a expansão da metrópole como condição e elemento deste processo.” (LENCIONI, 1994, p. 56).

A autora já toca em um indício importante na divisão territorial do trabalho, que se consolida com a emergência do papel dos eixos rodoviários na desconcentração industrial, principalmente no que concerne ao maior número de empregos gerados na indústria nas regiões servidas pelas rodovias, em comparação com áreas não tangenciadas por essa infra-estrutura. Finalmente, a autora citada afirma que houve, no estado de São Paulo, desconcentração industrial e não descentralização, já que o poder decisório, de comando e de gerenciamento e os serviços essenciais continuam concentrados na metrópole e em muitas empresas industriais, as quais, mesmo que localizadas no interior, mantêm sua sede na capital.

Sposito (1999, p. 213), ao tratar da desconcentração espacial da atividade industrial no estado de São Paulo, ressalta que tal processo não ocorre de forma homogênea. Um dos elementos mais fortes nesse processo são os eixos de desenvolvimento – entendidos como uma configuração socioespacial, fruto da interação entre infra-estruturas de transporte, atividade industrial e núcleos urbanos industriais –, que são a parcela do território responsável por aglutinar grande parte das empresas que saíram da Capital, formando núcleos urbanos industriais.

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Ao analisar o fenômeno da industrialização em Birigüi constatamos que o eixo da Rodovia Marechal Cândido Rondon não se consolidou na época da formação do arranjo produtivo local, visto que a indústria de calçados está presente na cidade desde a década de 1960, apresentando como fatores propulsores ao seu desenvolvimento elementos endógenos, principalmente a presença de mão-de-obra abundante e o pequeno capital que se direcionou para esse ramo industrial (ZAMPIERI, 1976, p. 93). Logo, antes de analisarmos o papel do eixo de desenvolvimento, faz-se necessário um esclarecimento sobre o caráter da industrialização em Birigüi. Para isso, vamos realizar uma exposição de idéias e um breve debate sobre o conceito de distrito industrial marshalliano90, já que se trata de um tipo de industrialização similar aos arranjos produtivos locais.

Becattini (1994) faz uma análise sobre os distritos industriais italianos e caracteriza-os como “uma entidade socioterritorial caracterizada pela presença ativa de uma comunidade de pessoas e de uma população de empresas num determinado espaço geográfico e histórico”. Trata-se de uma concentração geográfica de pequenas empresas especializadas, próximas e inter-relacionadas, que se beneficiam de um conjunto de economias associadas à própria aglomeração.

De acordo com esse autor, Alfred Marshall distinguia as indústrias principais e as indústrias auxiliares, pois as empresas de um distrito são, geralmente, de um mesmo ramo de atividades. Por conseguinte, a noção de “ramo calçadista”, por exemplo, deve englobar máquinas e produtos químicos, bem como as atividades e os serviços a ele inerentes. Esse é um outro aspecto comum entre os distritos industriais marshallianos e o papel industrial de Birigüi. De acordo com o cadastro da Prefeitura Municipal, há uma gama de empresas responsáveis por diferentes fases do processo produtivo do calçado, gerando uma característica e específica divisão territorial do trabalho.

Alguns exemplos podem ser destacados: • empresas de cartonagem que fornecem embalagens para o calçado, como Arco

Íris, Embalo, Jofer e outras; • empresas fornecedoras de componentes químicos, como Anderson, Criléia, Incal,

Killing e outras; • empresas fornecedoras de solados como Carrossel, Erron, Injetar, Petrilli e

outras; • fabricantes de facas industriais para balancim91 (facas moldadas para o corte do

material) como Beto Facas, Birifacas, Polyfacas e outras; • indústrias que fornecem componentes para calçados em geral, como a

Consulquímica (colas), Dublin (dublagem de matérias-primas), Etiqueta, Fábrica de Máquinas Bearare, Fiveltec (fivelas e enfeites) e Forteflex (palmilhas, cadarços e viras).

Quanto ao papel do eixo de desenvolvimento da Rodovia Marechal Cândido

Rondon, atualmente, ele se tornou um elemento importante na tomada de decisões sobre as novas localizações industriais. Exemplo desse aspecto é o caso das empresas que montaram unidade produtiva no estado do Mato Grosso do Sul, mais especificamente no

90 Cf. Marshall (1988). 91 O balancim é uma máquina pneumática que possui uma base onde é colocado o material (couro ou sintético) a ser cortado. As facas são dispostas sobre o material e recebem a pressão de um peso, realizando o corte das peças do calçado.

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município de Três Lagoas, beneficiadas pela fluidez do transporte entre os municípios e por isenções fiscais. Essa tendência aponta para a desconcentração na localização da indústria de calçado de Birigüi (mesmo que a cidade não tenha representação quantitativa na organização industrial do estado de São Paulo), município que se constitui num centro industrial altamente especializado, mas que perde, aos poucos, sua concentração industrial em virtude da reorganização da divisão territorial do trabalho decorrente da fluidez no deslocamento de mercadorias e de pessoas, definida pela infra-estrutura rodoviária e pela diferença, entre os estados de São Paulo e do Mato Grosso do Sul, na arrecadação do ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços), o que indica uma relocalização industrial na fronteira dos dois estados.

Quanto à importância da rodovia para a economia municipal, os empresários industriais vêem a autopista como um elemento positivo para a economia do município. Dentre os benefícios proporcionados pela autopista, os empresários apontaram os seguintes: segurança e rapidez no transporte; ligação com a capital São Paulo; e diminuição de custos, fundamental para a circulação de mercadorias.

Quanto às dificuldades encontradas para o escoamento da produção, esse aspecto não é fator importante para a economia do ramo, mas o alto custo do transporte (fretes e pedágios) e a demora no transporte de mercadoria para outros estados são apontados como as principais dificuldades para o crescimento das empresas industriais na cidade.

A importância do eixo de desenvolvimento e sua influência na localização industrial em Birigüi podem ser melhor explicadas nos itens seguintes. Vamos iniciar com a exposição dos fatores de localização industrial no município.

Para uma breve abordagem da noção de arranjo produtivo local como forma de organização territorial do trabalho, o diálogo será feito com Pires (2006). Para ele, no Brasil, “os Arranjos Produtivos Locais (APLs), são geralmente considerados como instrumentos potenciais de ação, capazes de promover um novo ciclo de desenvolvimento descentralizado com enraizamento territorial local e regional. As definições variam, mas há muitas convergências entre atores envolvidos.” O referido autor lembra que, para o SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio à Pequena Empresa), os APLs são “aglomerações de empresas localizadas em um mesmo território, que apresentam especialização produtiva e mantêm algum vínculo de articulação, interação, cooperação e aprendizagem entre si e com outros atores locais tais como governos, associações empresariais, instituições de crédito, ensino e pesquisa.” Entretanto, o grupo responsável pela difusão do termo no Brasil, a REDESIST (Rede de Pesquisa em Sistemas Produtivos e Inovativos Locais), caminhou para uma definição mais rigorosa do conceito de APLs, como existência de “aglomerações espaciais de agentes econômicos, políticos e sociais, com foco em um conjunto específico de atividades econômicas que apresentam vínculos e interdependência. Geralmente envolvem a participação e a interação de empresas e suas variadas formas de representação e associação. Envolvem, também, diversas instituições públicas e privadas voltadas para: formação e capacitação de recursos humanos, como escolas técnicas e universidades; pesquisa, desenvolvimento e engenharia; política, promoção e financiamento.’” Por isso, “a participação e a interação das empresas podem ser desde produtores de bens e serviços finais até fornecedores de insumos e equipamentos, prestadoras de consultoria e serviços, comercializadoras, clientes, entre outros.” (apud PIRES, 2006, p. 11)

Essas características comparecem, em grande parte, na divisão territorial do trabalho em Birigüi, pois é nesta cidade onde a maior parte das indústrias conforma um

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arranjo baseado na produção de calçados, onde as empresas se complementam no que concerne à transferência de mão-de-obra, à formação de uma atmosfera propícia para o ramo de atividades e às práticas para responder à crise econômica gerada pela abertura da economia brasileira, que propiciou a entrada de produtos do leste asiático baratos no mercado brasileiro. Por outro lado, a concorrência entre as empresas é evidente porque todas procuram maximizar seus lucros minimizando custos de produção para baratear os preços finais dos calçados, ampliar seus mercados específicos e incorporar tecnologias no processo produtivo.

FATORES DE LOCALIZAÇÃO INDUSTRIAL: A INDÚSTRIA DE CALÇADO EM BIRIGÜI

Ao tratar da ordem espacial, ou seja, o espaço explicado pelo seu uso, Santos e Silveira (2004) apontam que “cada momento da história tende a produzir sua ordem espacial, que se associa a uma ordem econômica e a uma ordem social. É necessário entender sua realidade a partir de forças que, freqüentemente, não são visíveis a olho nu.” (p. 289)

Assim, o estudo dos mecanismos que determinam a localização industrial sempre constituiu uma das preocupações principais da Geografia Econômica. A partir dos anos 1970, ela assume dimensão particular, em razão da velocidade das modificações tecnológicas em curso. A questão da localização industrial mostra-se deveras importante, não só para a diminuição dos custos de produção dos empresários, mas também para as coletividades territoriais e o Estado, pois são interessados na distribuição harmoniosa das atividades espaciais.

Benko (1999, p. 132), ao se referir à teoria da localização industrial, aponta que (...) o objetivo da teoria da localização é fornecer explicações da organização espacial das empresas, identificar as variáveis que determinam a localização e oferecer soluções analíticas. Deve também trazer respostas detalhadas às numerosas questões relativas à explosão espacial das empresas, à influência do meio ambiente, etc. Os enfoques mais ambiciosos procuram analisar as leis que presidem ao equilíbrio espacial das empresas.

De acordo com esse autor, a importância e a combinação dos fatores de localização não são idênticas para todos os ramos de indústria ou para todos os portes de empresas. A partir dos estudos realizados com base nos complexos industriais existentes, salientando os ramos industriais que mais necessitam de novas tecnologias, um grande número de fatores explicativos foi arrolado. São eles:

• A força de trabalho. A capacidade de atrair e conservar os trabalhadores é um

dos elementos mais importantes a se levar em conta na escolha dos novos sítios pelas empresas de alta tecnologia, por exemplo. A mão-de-obra divide-se em dois tipos: os executivos (pessoal mais qualificado, como os cientistas, engenheiros e administradores) e uma mão-de-obra barata para os serviços e para a fabricação rotineira na empresa.

• Universidades e institutos de pesquisa. As zonas universitárias exercem uma atração na localização das empresas, pois respondem diretamente às necessidades da alta tecnologia, oferecendo uma disponibilidade de mão-de-obra

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qualificada, além da possibilidade de colaboração da equipe científica com a pesquisa industrial;

• O atrativo da paisagem. Mostra-se importante o alojamento da empresa, seu preço, qualidade e a infra-estrutura adequada no entorno. A grande urbanização continua sendo fator importante para atrair executivos, mas os inconvenientes das metrópoles podem ser reduzidos ao se situarem na periferia das grandes cidades;

• A infra-estrutura de transporte. O custo do transporte desempenha papel menor para as atividades de ponta em relação à indústria tradicional. No entanto, o acesso fácil e rápido para as pessoas, como as pontes aéreas, são trunfos importantes. Os espaços próximos das rodovias e dos aeroportos conheceram uma industrialização rápida;

• Os serviços e o clima político e dos negócios. A presença dos consultores e das fontes de informação é fundamental para o desenvolvimento da alta tecnologia;

• As economias de aglomeração. Muitos autores atribuem grande importância às economias ligadas à grande urbanização. Os novos espaços industriais bem sucedidos nasceram perto das metrópoles. As economias de aglomeração são vitais para atividades de pesquisa e de desenvolvimento. E o grande número de empresas presentes num espaço limitado reduz, proporcionalmente, os custos fixos de infra-estrutura.

Sabidos os fatores que influenciam na localização industrial, cabe também refletir,

um pouco, sobre as mudanças de localização de atividades industriais, como é o caso da desconcentração da indústria de calçado de Birigüi em direção a Três Lagoas.

Ao analisar a política territorial das corporações automobilísticas, Santos e Silveira (2004, p. 112) afirmam que “as mudanças de localização de atividades industriais são às vezes precedidas de uma acirrada competição entre estados e municípios pela instalação de novas fábricas e, mesmo pela transferência das já existentes”.

Para exemplificar a velocidade com que certas áreas do território brasileiro são valorizadas e desvalorizadas, os autores fazem referência às indústrias automobilísticas que até há pouco tempo buscavam os benefícios das localizações nas áreas metropolitanas e hoje buscam novos territórios para se instalar.

Numa escala menor, a política territorial da indústria de calçado de Birigüi não tem se diferenciado da política territorial da indústria automobilística. Os empresários das indústrias de calçado têm recebido propostas para transferência das unidades produtivas para o município de Três Lagoas. Algumas empresas já aceitaram a proposta, como a Kidy’s, a Kiuty, a Kollis, a Mizuminho, entre outras que, em contrapartida, receberam incentivos como isenções fiscais e instalações prontas sem custo para a empresa.

Nesse processo, tanto o estado como o município concorrem e colaboram para valorizar o seu território, tornando-o mais atrativo às empresas. O município de Birigüi ofereceu, em 1995, incentivos à implantação de empreendimentos, como isenção de IPTU (Imposto Predial Territorial Urbano), isenção de taxas e doação de terrenos. Essa tendência não é característica apenas dessa área, pois, em novembro de 2005, várias indústrias de calçado, entre elas a Azaléia, saíram do pólo calçadista do Rio Grande do Sul e se localizaram no Nordeste do Brasil, em busca de isenções fiscais dadas pelo governo federal, deixando mais de 14.000 trabalhadores desempregados na região.

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Quadro 1: Incentivos à implantação de empreendimentos – Birigüi/SP Incentivos 1995 1997

Incentivo à implantação de empreendimentos através de isenção total de IPTU Sim Não Incentivo à implantação de empreendimentos através de isenção parcial de IPTU Não Não

Incentivo à implantação de empreendimentos através de isenção de taxas Sim Não Incentivo à implantação de empreendimentos através de cessão de terrenos Não Não Incentivo à implantação de empreendimentos através de doação de terrenos Sim Não

Fonte: Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados – SEADE. Pesquisa Municipal Unificada – PMU.

A LOCALIZAÇÃO DAS INDÚSTRIAS NA ÁREA URBANA DE BIRIGÜI

De acordo com Santos e Silveira (2004), a divisão territorial do trabalho é um conceito plural, pois o território ao longo do tempo é palco de divisões do trabalho superpostas, onde cada ramo industrial ou cada empresa emprega sua própria lógica de organização. Para eles, “cada empresa, cada atividade necessita de pontos e áreas que constituem a base territorial de sua existência, como dados da circulação e da produção e do consumo: a respectiva divisão do trabalho terá essa manifestação geográfica” (SANTOS; SILVEIRA, 2004, p. 290).

Por outro lado, a divisão territorial do trabalho pode ser pensada em diferentes escalas – da global à local – o enfoque dependerá do tipo de atividade ou empresa que ocupa determinado território e a lógica a que cada uma delas obedece: global, nacional ou escalas menores, geralmente intra-urbanas.

Baseando-se na escala local, as indústrias de calçado de Birigüi encontram-se, em sua grande maioria, ao redor do centro da cidade apresentando, no entanto, algumas especificidades que remetem ao processo histórico de produção do seu espaço urbano. Ao analisar a divisão do trabalho e o espaço construído, Santos (1994, p. 126) aponta que “o princípio de diferenciação entre os lugares, dentro de uma mesma formação social, é dado, sobretudo, pela força de inércia representada pelas heranças do passado, a começar pelo espaço construído, (...) e pelos elementos de transformação, representados por uma divisão do trabalho que transcende os limites locais”.

Cabe entender, portanto, como o espaço urbano é reorganizado de acordo com as mudanças ocorridas na estrutura produtiva.

Em 1970, a região central da cidade abrigava a maioria das indústrias de calçados. Na área periférica ao centro estavam localizadas as indústrias que necessitavam de grandes áreas, como a Anderson Clayton, que ocupava uma área de cinco alqueires e a Biol – Birigüi Óleo Ltda, que ocupava um alqueire (ambas beneficiadoras de algodão). De um modo geral, a localização industrial teve um certo sentido de direção, com a ocupação de antigas casas de comércio e de imóveis que abrigaram máquinas de café, arroz e algodão, principalmente nas proximidades do antigo leito da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, constituindo um espaço intra-urbano fruto de divisões do trabalho superpostas. No início dessa mesma década de 1970, há uma tendência para aquisição de áreas de uso industrial próximas aos acessos rodoviários para Araçatuba e para Bauru, apontando para a construção de um “distrito industrial” que estava sendo planejado, na referida área.

O que se observa, atualmente, é que a maioria das empresas deixou de ocupar a área central da cidade para se localizar nos bairros periféricos, muitas delas aproveitando

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prédios de antigas agroindústrias. As instalações da Biol, por exemplo, foram divididas e hoje abrigam nove fábricas de calçado de pequeno porte, entre outras empresas de ramos diferentes. O mesmo ocorre com o prédio das antigas instalações da Anderson Clayton, cujos arredores têm o uso do solo predominantemente industrial. Esses dois exemplos confirmam que a reabilitação de velhos prédios das antigas agroindústrias é uma prática imobiliária para a reutilização de construções que não mudam necessariamente de uso, mas, de dimensão das atividades industriais. MUDANÇAS NO REGIME DE ACUMULAÇÃO: DO FORDISMO À PRODUÇÃO FLEXÍVEL

Ao analisar as mudanças no regime de acumulação, Benko (1999) aponta que as novas estratégias de reestruturação produtiva, adotadas com o objetivo de desfazer as contradições inerentes à acumulação capitalista concentram-se, principalmente, na luta contra a rigidez. Antes de tratar do processo de reestruturação produtiva, convém entendermos a distinção entre estruturação e reestruturação produtiva.

Dall’Acqua explica que (...) entende-se por estruturação produtiva a distribuição das atividades produtivas por setores específicos que caracterizam a especialização de cada economia. Esta distribuição é definida pelas relações de compra e venda e pelo conjunto de proporções de diferentes parcelas que compõem a economia. A reestruturação produtiva, por sua vez, é entendida como o conjunto das transformações na estrutura produtiva das empresas e das sociedades em busca de modernização e diminuição de custos. Estas mudanças são motivadas pelo crescimento significativo da velocidade das transformações tecnológicas, pela situação conjuntural internacional e pelo processo de globalização econômica. (DALL’ACQUA, 2003, p. 33).

No âmbito de tais mudanças, as forças capitalistas, como resposta à crise de lucratividade dos anos 1970, procuraram, de um lado, desvalorizar a força de trabalho, reduzindo todos os componentes dos custos de produção, ou seja, desindexação e regulação concorrencial da formação dos salários, revisão em baixa do salário indireto, supressão das garantias de emprego, etc. Concomitantemente a isso, procuraram intensificar o uso das tecnologias da automação como suporte material a fim de remodelar a organização do trabalho, os processos de produção, os sistemas de gestão e a qualidade dos produtos e, mesmo, a norma social de consumo.

Castells (2003), ao tratar da reestruturação do capitalismo e da transição do industrialismo para o informacionalismo, salienta que apesar da diversidade de abordagens sobre esse processo, existem alguns consensos:

• Independente das causas e origens da transformação organizacional, houve, a partir dos anos 1970, uma divisão na organização da produção e dos mercados na economia global;

• Houve uma interação entre as transformações organizacionais e a difusão das tecnologias da informação. Todavia, as primeiras são autônomas e precederam à segunda;

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• As transformações organizacionais representaram a busca por formas de lidar com a incerteza causada pelo ritmo veloz das mudanças no ambiente econômico, institucional e tecnológico da empresa, propiciando flexibilidade na produção, no gerenciamento e marketing ;

• Muitas transformações ocorreram no sentido de redefinir os processos de trabalho, com o intuito de economizar mão-de-obra através da automação de trabalhos, eliminação de tarefas e supressão de camadas administrativas;

• Para as organizações que operam na economia informacional global, a administração dos conhecimentos e o processamento das informações são de suma importância.

No entanto, o autor aponta que essas interpretações abrangentes apresentam uma

propensão a fundir, numa única tendência evolucionária, processos que, embora inter-relacionados, são diferentes entre si. Em contrapartida, propõe considerar o desenvolvimento de diferentes trajetórias organizacionais, ou seja, “procedimentos de sistemas específicos de meios voltados para a produtividade e competitividade no novo paradigma tecnológico e na nova economia global” (p.211).

Benko (1999), ao analisar as raízes da reestruturação produtiva, remete à crise do fordismo com o desmoronamento da produção em massa, cuja demanda de bens produzidos em série estagnou num período em que os mercados nos países adiantados estavam saturados e no momento em que os consumidores procuravam bens mais diversificados e mais elaborados, principalmente no período pós-1970. Trata-se de uma época difícil, com múltiplas dimensões: crise monetária, crise industrial, crise do mercado de trabalho e crise do Estado do Bem-estar Social.

Vale a pena salientar que a crise mundial do fordismo não tem uma causa única, e sim, dois tipos de encadeamentos desestabilizadores que se sobredeterminaram um ao outro. Entende-se o desenvolvimento da crise como articulação de causas internas, isto é, a crise do próprio modelo de desenvolvimento, principalmente do lado da oferta, e de causas externas, como a internacionalização econômica que compromete a gestão nacional da demanda.

Busca-se, então, um regime de acumulação flexível, caracterizado pela flexibilização da produção no nível microeconômico, que deve ser entendido como a introdução de equipamentos de propósitos múltiplos e versatilidade na habilitação da mão-de-obra e na produção de bens e serviços.

A maior flexibilidade favorece a desintegração vertical das relações de proximidade entre dirigente e subcontratante, a troca mínima de informações e, portanto, a proximidade espacial, que permite a interação e a regulação final do processo de produção global.

A respeito da flexibilização da força de trabalho, no pós-fordismo (ou toyotismo), Benko (1999) aponta para uma flexibilização dos direitos, com a força de trabalho em função direta das necessidades do mercado consumidor. O toyotismo estrutura-se a partir de um número mínimo de trabalhadores, ampliando-se a produção através de horas-extras e com trabalhadores temporários ou subcontratados, dependendo das condições mercadológicas.

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A indústria de calçados no contexto da flexibilização produtiva

Castells (2003) afirma que há uma tendência no discurso de alguns analistas, qual seja: a empresa de grande porte está em crise e as pequenas e médias empresas, dotadas de flexibilidade, são vistas como agentes de inovação e fontes de criação de emprego industrial. Para alguns, a crise da empresa de grande porte é fruto da crise da produção estandardizada e o renascimento da produção artesanal. Outros autores defendem a tese contrária, apontando que as empresas de grande porte continuam a concentrar sua porção de capital e de mercados nas principais economias e que as empresas de pequeno porte possuem menor capacidade de investir em inovações tecnológicas em comparação às empresas maiores.

Diante da falta de consenso entre os autores, Castells (2003) chama a atenção para a necessidade de se separar “a afirmação sobre a transferência do poder econômico e capacidade tecnológica da grande empresa para as pequenas (...) da afirmação sobre o declínio da grande empresa verticalmente integrada como um modelo organizacional”. Para que a primeira condição pudesse se manter, ou seja, para que os grandes conglomerados empresariais pudessem continuar a sua expansão e conquista dos mercados internacionais, tornaram-se necessárias algumas mudanças nas suas estruturas organizacionais, que implicaram no “uso crescente da subcontratação de pequenas e médias empresas, cuja vitalidade e flexibilidade possibilitavam ganhos de produtividade e eficiência às grandes empresas, bem como à economia como um todo” (p. 214).

Sendo assim, as empresas de médio e pequeno porte parecem bem apropriadas ao sistema de produção flexível e seu dinamismo surge sob o controle das grandes empresas, que permanecem com o poder econômico. O que se evidencia é a crise do modelo baseado na integração vertical, na hierarquia de funções e na rigidez da divisão social e técnica do trabalho.

O esquema a seguir exemplifica a prática de subcontratação em uma das empresas de calçado pesquisada, identificada pela letra N. Essa empresa se restringe às atividades administrativa e comercial, visto que todo o processo de produção do calçado é realizado nas empresas subcontratadas. Contudo, o calçado leva a marca fantasia da empresa-mãe. Figura 1: Rede de subcontratação (empresa N).

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Fonte: Pesquisa de campo.

A pesquisa realizada abrangeu vinte empresas. Desse total, nove adotaram a

prática da subcontratação, oito não subcontratam e três eram subcontratadas de outras. Das nove empresas que subcontratam, duas são de grande porte, duas de médio porte, três de pequeno porte e duas microempresas. Verifica-se, pois, que a subcontratação no ramo dos calçados, como saída às atuais mudanças no modo de produção (e, consequentemente, como resposta à crise provocada pela abertura do mercado brasileiro aos produtos externos, iniciada no governo Collor de Melo, em 1990), não se constitui numa prática adotada apenas pelas grandes empresas, pois ela permeia toda a estrutura produtiva. Grande parte da indústria de Birigüi, principalmente a de calçado, é de porte pequeno e micro. Uma hipótese para explicar esse fenômeno é que, por se tratar de um Arranjo Produtivo Local, onde há cooperação e competição entre empresas do mesmo ramo, as indústrias de micro e pequeno porte são levadas a operar as mudanças organizacionais para se manter competitivas.

Ao pesquisar as indústrias na Região Metropolitana de Curitiba, Carleial (2001) deduz que, no nível externo, a flexibilidade diz respeito a todas as práticas desenvolvidas pela firma para minimizar o efeito de choques sofridos por ela – como externalização de serviços e terceirização – de modo que se passe, para outros, partes do processo produtivo mediante venda, aluguel ou cessão de máquinas. Refere-se, também, à relação estabelecida com fornecedores e compradores, no que diz respeito às exigências de confiança, qualidade e cooperação.

Torna-se necessário, no entanto, para essa análise, diferenciar as práticas de subcontratação adotadas pelas empresas de grande e médio porte daquelas adotadas pelas empresas de micro e pequeno porte. As primeiras, na maioria dos casos, subcontratam empresas registradas com trabalhadores legalizados (com registro em carteira e direitos trabalhistas); já as empresas de micro e pequeno porte contratam as “bancas”92, que no estudo de Carleial, enquadram-se como possibilidade de flexibilidade

92 As “bancas” funcionam, geralmente, em residências onde é reservado um espaço para abrigar algumas máquinas de pesponto (normalmente a etapa da produção subcontratada pela empresa-mãe é o pesponto), cujos funcionários trabalham na informalidade, ou seja, sem registro em carteira, incluindo o dono da

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interna subterrânea, observada a partir da presença de trabalhadores sem registro legalizado. A principal diferença, além da legalidade do trabalho, é que as empresas subcontratadas podem realizar todas as etapas do processo produtivo e o montante produzido é bem maior do que nas “bancas”.

Entre as vantagens apontadas pelas empresas que subcontratam, a mais citada foi a diminuição de encargos sociais. As demais vantagens referem-se: ao aumento da produção; à diminuição de riscos; ao aumento do lucro; à divisão de responsabilidades e de prejuízos; ao maior controle da produção e; à economia de equipamentos e de espaço físico. De um modo geral, a partir das vantagens apontadas, nota-se que a busca por flexibilidade tem, como objetivo principal, a manutenção ou o aumento da taxa de lucro das empresas.

Foram apontadas, também, algumas desvantagens na terceirização da produção, tanto pelas empresas-mãe como pelas subcontratadas. Entre as desvantagens apontadas pelas empresas-mãe, está o deslocamento das mercadorias, que foi apontado como dificuldade por duas empresas, apesar da maioria das empresas ou “bancas” subcontratadas se localizarem no município de Birigüi. Outras desvantagens foram apontadas, como: qualidade do serviço insatisfatória; responsabilidade pelos encargos trabalhistas93 e; alto custo e necessidade de maior controle. Há, nesse rol de vantagens e de desvantagens, contradições claras no comportamento das empresas, pois o que é vantagem para uma pode se tornar desvantagem para outra. Ou, em outras palavras, dependendo da forma e da capacidade de gestão empresarial, o que se apresenta como vantagem em um momento, pode se tornar um problema a ser resolvido em outro momento.

Para completar esse quadro, entre as empresas subcontratadas, as desvantagens apontadas foram: necessidade de organização diferenciada para atender à empresa-mãe e diminuição de lucros, pois foi alegado que o preço pago pela fabricação do par de calçado é muito baixo. Flexibilidade jurídica

Sobre a flexibilidade jurídica, a análise é feita a partir de um exemplo específico, aqui chamado de empresa B, uma das maiores indústrias de calçados de Birigüi. Ela conta com 1.300 funcionários e um faturamento mensal de R$ 4 milhões. A partir de 1999, a empresa passou por uma reorganização jurídica, deixando de ser de grande porte para formar um grupo de empresas de pequeno porte. O objetivo da reorganização foi para que ela pudesse se beneficiar dos incentivos oferecidos pelo governo federal, com a Lei 9.841 de 5 de outubro de 1999 (Estatuto das Micro e Pequenas Empresas94), que propõe um tratamento diferenciado às empresas de pequeno porte e às microempresas.

“banca”. Essa prática ilegal é descoberta, geralmente, quando um funcionário da “banca” é demitido e vai até o sindicato reclamar seus direitos (fundo de garantia por tempo de serviço, rescisão contratual, etc.), ou quando o dono da “banca” entra em falência e não consegue mais pagar os funcionários. É normal a falência desses negócios, pois o valor que a empresa-mãe paga pelo seu serviço é muito abaixo do valor de mercado e, por isso, o dono da “banca” acaba contraindo muitas dívidas, indo, muitas vezes, à falência. 93 Em caso de descoberta de trabalhadores sem registro em carteira, os encargos trabalhistas e as multas aplicadas pelos fiscais do Ministério do Trabalho recaem sobre a empresa-mãe, pois o dono da banca não pode ser considerado empresário, já que não detém o poder decisório sobre a produção. 94 Os textos dessas leis estão disponíveis no site: www.ministeriododesenvolvimento.gov.br.

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Sobre o tratamento jurídico diferenciado, na Constituição Federal, no seu Título VII (da ordem econômica e financeira), em seu Capítulo I (dos princípios gerais da atividade econômica), mais especificamente em seu art. 179, está escrito: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação dessas por meio de lei.”

A Lei n° 9.317 de 5/12/1996, e a Lei n° 9841 de 05/10/1999, complementam a Constituição ao estabelecerem as normas para microempresas e empresas de pequeno porte (EPPs). Com essa lei, o governo visa favorecer o desenvolvimento e o funcionamento da microempresa e da empresa de pequeno porte, com um tratamento jurídico diferenciado e simplificado.

No Estatuto das Micro e Pequenas Empresas, em seu Cap. II, há uma definição de microempresa e de empresa de pequeno porte. É considerada como microempresa, a pessoa jurídica e a firma mercantil individual que tiverem receita bruta anual igual ou inferior a R$ 244.000,00 e, se enquadra como empresa de pequeno porte, a pessoa jurídica e a firma mercantil individual que tiverem receita bruta anual superior a R$ 244.000,00 e igual ou inferior a R$ 1.200.000,00. A figura seguinte exemplifica a atual organização da empresa B.

Figura 2: Modelo de organização da grande empresa.

Fonte: Pesquisa de campo.

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Na prática, a reorganização representou uma fragmentação da ordem jurídica e da organização intrafirma. Apesar de a empresa continuar ocupando o mesmo prédio, a organização em pequenas fábricas significou, no processo produtivo, uma especialização de cada unidade em determinado modelo produzido, similar à organização em mini-fábricas, verificada em outra empresa. Na organização em mini-fábricas, o “chão da fábrica” é dividido e organizado em pequenos grupos de funcionários responsáveis por um determinado modelo de calçado. Em cada uma dessas mini-fábricas, encontramos todas as etapas do processo produtivo: corte (onde o couro ou material sintético é cortado, compondo as peças do calçado), pesponto (onde as peças são coladas e costuradas) e acabamento e montagem (onde o calçado ganha forma e recebe o solado). A justificativa para a organização da produção dessa forma é que quando um número menor de funcionários fica responsável por um único modelo de calçado, há uma facilidade de controle da produção e, consequentemente, uma melhora na qualidade. Por outro lado, a parte administrativa da empresa (departamento de pessoal) continua centralizada como antes.

Assim como na flexibilização através da terceirização, a flexibilidade jurídica configura-se como uma reorganização da empresa com o objetivo de diminuir gastos e aumentar a taxa de lucro – nesse caso, a nosso ver, logrando benefícios através de um instrumento jurídico do Estado.

Elaboramos dois esquemas para representar a organização do chão da fábrica, verificada através da aplicação de questionários e de visitas às empresas. O primeiro esquema representa a organização por sessões, tradicional nas indústrias calçadistas. O segundo esquema representa a organização em mini-fábricas, um modelo de organização novo e que vem sendo implantado em várias empresas. É do que vamos tratar em seguida. Figura 3: Organização de fábrica por sessão.

Fonte: Pesquisa de campo. ORGANIZAÇÃO DO CHÃO DA FÁBRICA: DAS SESSÕES ÀS MINI-FÁBRICAS. Organização tradicional por sessões

Na organização por sessões, a matéria-prima adentra a empresa pela sessão de almoxarifado e é remetida à sessão de corte (onde o couro ou material sintético é

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cortado); em seguida, o material cortado é enviado ao pesponto (onde será costurado) e, depois, vai para a montagem. Esta última sessão recebe o calçado semipronto mais os outros componentes (cadarço, sola, etc.), recebidos do almoxarifado, para a montagem do calçado e posterior embalo. O calçado segue pronto para a expedição, onde as caixas são agrupadas em caixas maiores e enviadas para seus destinos comerciais.

As características da organização fabril por sessões são: • Cada sessão é responsável por uma parte do processo produtivo; • Todo modelo de calçado fabricado passa por todas as sessões, ou seja, percorre

todo o espaço da fábrica, aumentando-se, assim, a porosidade no processo produtivo;

• O operário não tem visão do processo produtivo, já que na sessão em que trabalha é realizada apenas uma etapa do processo de produção;

• Há uma verticalização na estrutura organizacional dos cargos e funções, com a conseqüente ausência de autonomia de decisão dos funcionários no chão da fábrica. Em geral, as decisões são centralizadas nos níveis hierárquicos superiores: gerente geral� gerente de produção� chefe de sessão. Cabe apenas ao operário executar as ordens dadas pelos seus superiores;

• O controle de qualidade do produto é menor, visto que o processo de produção está dissolvido em toda a fábrica, o que dificulta a identificação das falhas no processo produtivo.

Figura 4: Organização em mini-fábricas.

Fonte: Pesquisa de campo. Organização em mini-fábricas

Nesse modelo de organização, a diferença em relação à organização em sessões é que há uma fragmentação do processo produtivo entre as mini-fábricas, organizadas dentro do estabelecimento maior. As características da organização em mini-fábricas são:

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• Em cada uma delas é produzido um modelo de calçado, o que por sua vez proporciona maior especialização do operário;

• São unidades de fabricação, por isso elas contêm todas as etapas do processo de produção – do corte à montagem;

• Do ponto de vista hierárquico, não há uma significativa alteração em relação à organização por sessões, pois no lugar do chefe da sessão se encontra o chefe da mini-fábrica;

• O controle da qualidade é maior, já que se trata de unidades menores, com exclusividade da produção de determinado modelo. Isso facilita a identificação de falhas no processo produtivo, por meio de um maior controle do trabalho do operário.

A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA NA INDÚSTRIA DE CALÇADO

De acordo com os dados obtidos através da pesquisa de campo, quase dois terços das vinte empresas observadas informaram ter passado por uma reestruturação produtiva. Entende-se por reestruturação produtiva um conjunto de práticas que as empresas vêm adotando e que podem ser analisadas a partir da busca por flexibilidade interna da firma, abrangendo mudanças organizacionais, incorporação de novos equipamentos, métodos de organização da produção, etc.

As principais mudanças apontadas, como resultado desse processo, foram: terceirização da produção; mudanças na estrutura física e no maquinário; organização em empresas de pequeno porte; reordenamento da produção e do produto e; controle maior de gastos por meio de relatórios de resultados econômicos.

Todas as empresas que passaram por algum tipo de mudança apontaram somente os efeitos positivos resultantes, como: redução de custos; melhoria na produção e na qualidade; aumento das vendas; aumento da produção; diminuição do número de funcionários; maior controle e visão dos negócios e; fabricação de produtos adequados às exigências do mercado.

Apesar de não haver informação detalhada sobre quais foram todas as mudanças implementadas, é possível afirmar que há uma tendência para a reorganização da empresa com vistas ao aumento da produtividade e da rentabilidade. Um fator que corrobora nossa afirmação é o grande percentual de empresas que afirmaram ter passado por algum tipo de mudança. A título de exemplo, citamos o caso da empresa B (já citada), que no ano de 1995 operou uma reestruturação no quadro de funcionários. Em janeiro daquele ano, a empresa contava com 2.542 trabalhadores e, em dezembro do mesmo ano, contava com 1.019, ou seja, houve demissão de mais da metade do quadro de funcionários sem que houvesse queda na produção. Quanto à renovação de maquinário, essa mesma empresa adquiriu, em 2004, uma máquina injetora que, diferentemente das utilizadas até então, injeta o solado diretamente no calçado, é operada por um funcionário apenas e elimina várias etapas manuais de montagem do calçado.

Quanto às metodologias de organização da produção, as empresas vêm aderindo a novas formas, baseadas nos modelos representativos da produção flexível. As principais metodologias citadas foram: células de produção; controle de qualidade total; controle estatístico de processos; esteira elétrica; just in time (que reduz drasticamente a quantidade de material necessária para a produção continuar fluindo) e; sistema de

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estoque mínimo. No que concerne aos aspectos logísticos, as características são relativas à

freqüência de recebimento de matéria-prima e ao escoamento da produção, no intuito de verificar se as empresas continuam operando com grandes estoques de matéria-prima e de mercadoria. Por outro lado, é possível avaliar a importância de uma autopista – que oferece rapidez e fluidez no transporte, fatores importantes no atual estágio do capitalismo – na intensidade do fluxo de mercadorias.

No universo investigado, 65% das empresas recebem matéria-prima diariamente, com variação de uma a 30 vezes por dia; 25% recebem semanalmente, variando de uma a três vezes por semana e; 5% recebem uma vez ao mês.

Quanto ao escoamento da produção, há um fluxo ainda mais intenso, pois 90% das empresas escoam a produção diariamente, variando de uma a 12 vezes por dia95, e apenas 10% escoam a produção semanalmente.

Esses dados permitem deduzir o que se segue: em primeiro lugar, a maioria das empresas de calçados não trabalha com grandes estoques de matéria-prima e de mercadoria, ou seja, a compra do material e a quantidade do que é produzido estão condicionadas às encomendas dos compradores, caracterizando um exemplo típico de produção flexível e; em segundo lugar, o fluxo, praticamente diário de mercadoria, é facilitado pela presença de uma rodovia duplicada, o que contribuiu para o aumento desse fluxo.

Harvey (1992) argumenta que a aceleração no tempo de giro da produção experimentada com os sistemas de produção flexível só é possível com a redução do tempo de giro no consumo. O tempo de duração de um produto fordista típico era de cinco a sete anos, mas com a produção flexível esse tempo foi diminuído, em alguns setores, pela metade. Segundo esse autor,

(...) a acumulação flexível foi acompanhada na ponta do consumo, portanto, por uma atenção muito maior às modas fugazes e pela mobilização de todos os artifícios de indução de necessidades e de transformação cultural que isso implica. A estética relativamenteestável do modernismo fordista cedeu lugar a todo o fermento, instabilidade e qualidades fugidias de uma estética pós-moderna que celebra a diferença, a efemeridade, o espetáculo, a moda e a mercadificação de formas culturais. (HARVEY, 1992, p. 148).

Um exemplo simples desse processo na indústria de calçados, foi a adoção quase generalizada de materiais sintéticos no lugar do couro tradicional. Os empresários alegam que o material sintético apresenta inúmeras vantagens em relação ao couro, como: menor custo; menor perda de material por conta de eventuais defeitos e; é um produto mais flexível às mudanças na moda, permitindo a utilização de diferentes cores e texturas. Além disso, o que não é falado, mas que tem grande significado para essas mudanças, é que o material sintético é muito menos resistente do que o couro, o que significa menor durabilidade do calçado e maior consumo.

95 Essa quantidade nem sempre está atrelada à quantidade de calçados produzida, mas aos diferentes destinos da produção, já que cada empresa de transporte rodoviário, que presta serviço às empresas de calçados, controla o serviço de transporte para determinada região: por exemplo, a empresa de transporte Itapemirim leva os calçados para os estados do Nordeste do Brasil.

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MUDANÇAS NA ESTRUTURA DO EMPREGO E NA GESTÃO DA FORÇA DE TRABALHO

A crise da produção de bens padronizados e em massa trouxe, como conseqüência, o declínio do emprego industrial de estilo fordista. De acordo com Mattoso (1995), com a internacionalização e a financeirização do capital, países que, como o Brasil, implementaram estratégias passivas e subordinadas ao mercado mundial, submetem-se aos mecanismos pelos quais o grande capital busca aumentar a extração do excedente, debilitando a massa de produção e o número de empregos.

Fazendo uma leitura dos municípios localizados no eixo da Rodovia Marechal Rondon, através da ilustração da figura 5, é possível verificar que houve mudanças no número de estabelecimentos industriais nos principais municípios, de 1995 a 2003. Figura 5: Número de estabelecimentos da indústria (municípios do eixo da rodovia Marechal Cândido Rondon).

0100200300400500600700800900

1000

Andradina Araçatuba Bauru Birigui Botucatu LençóisPaulista

Lins Penápolis

1995

2000

2003

Fonte: Relação Anual de Informações Sociais – RAIS/Ministério do Trabalho. In: www.seade.gov.br. Tabela 1: Número de estabelecimentos industriais nos municípios da rodovia Marechal Cândido Rondon – 1995, 2000 e 2003.

Municípios 1995 2000 2003

Andradina 116 129 91

Araçatuba 416 496 399

Bauru 859 891 598

Birigüi 464 545 573

Botucatu 217 212 183

Lençóis Paulista 133 170 102

Lins 117 107 80

Penápolis 118 192 165

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Fonte: Relação Anual de Informações Sociais – Rais/Ministério do Trabalho. In: www.seade.gov.br.

O único município que apresentou crescimento no número de estabelecimentos industriais foi Birigüi. Em 1995, o município contava com 464 estabelecimentos e em 2003 contava com 573. Os demais municípios apresentaram queda no número de estabelecimentos, com destaque para Bauru que, em 1995 possuía 859 estabelecimentos, aumentou para 891 em 2000 e diminuiu para 598 em 2003. Portanto, enquanto em outros municípios o setor industrial decresceu ou estagnou, em Birigüi ocorreu o contrário. Esses dados podem ser confirmados pelo que já foi exposto anteriormente: por um lado, pelas próprias características da reestruturação produtiva e na divisão territorial do trabalho e, por outro lado, pelas estratégias de saída da crise adotadas pelas empresas, como a reorganização interna em mini-fábricas ou em sessões autônomas de produção – o que pode ter ampliado o número de estabelecimentos, mesmo que contabilizados dentro de uma mesma empresa.

De acordo com Dall’Acqua, a quebra do paradigma fordista trouxe como conseqüência o declínio do emprego industrial:

Desenvolveu-se uma nova espécie de reestruturação e de divisão internacional e regional do trabalho, em virtude das mudanças tecnológicas, baseadas nas formas flexíveis de organização do trabalho, e das mudanças nos processos produtivos, que passaram a necessitar de mão-de-obra mais qualificada, dado que o trabalho mais barato e menos qualificado não mais mostrava vantagens comparativas. O declínio do emprego nas indústrias manufatureiras é devido a certas formas de reorganização da produção que afetam os níveis de emprego: a intensificação do trabalho de um indivíduo, a racionalização da produção e do investimento e a mudança técnica. (DALL´ACQUA, 2003, p. 37).

As mudanças advindas do processo de reestruturação do capitalismo não atingiram apenas as relações de emprego, mas também a gestão da força de trabalho, reflexo da busca das empresas por flexibilidade.

Outro aspecto a ser considerado é que, em todos os municípios citados no Quadro 1, o número de estabelecimentos comerciais e de serviços é maior que o número de estabelecimentos da indústria, e apenas em Birigüi há uma aproximação entre os números de estabelecimentos em cada setor.

Como já foi indicado anteriormente, com base no estudo de Carleial (2001), a reorganização das empresas envolve uma reestruturação, tanto da esfera interna como da externa. Internamente, há incorporação de novas máquinas, mudanças em estruturas hierárquicas, novos requerimentos de qualificação dos trabalhadores e novas técnicas organizacionais associadas a uma estratégia que aproxima a concepção e a execução da produção. Externamente, a mudança é percebida no relacionamento com as demais empresas, fornecedores, subcontratadas, clientes, instituições de pesquisa, universidades, governos, etc., em conjunto com uma prática que busca a inovação com objetivo de obter vantagens competitivas.

Sobre as mudanças na gestão da força de trabalho se faz necessário, primeiramente, analisar dados fornecidos pelo sistema RAIS/CAGED sobre o número de admissões e demissões na indústria do município de Birigüi nas décadas de 1980 e 1990

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e a partir de 2000. Duas constatações foram feitas: em primeiro lugar, houve grande oscilação no número de admissões e demissões em determinados meses do ano e; em segundo lugar, essa grande oscilação foi verificada a partir da década de 1990. No que se refere à segunda verificação, ela pode ser explicada pela abertura comercial e financeira do Brasil, acompanhada do Plano Real (de 1994), deixando a economia brasileira suscetível às oscilações do mercado financeiro mundial. A partir desta última constatação, foi necessário buscar elementos concretos que explicassem a primeira verificação, ou seja, o porquê da oscilação do número de admissões e demissões em determinados meses do ano. Constatamos que tal oscilação pode ser explicada pela conjunção de alguns fatores, quais sejam:

• A sazonalidade da produção foi apontada, pelos funcionários, como motivo para demissões;

• Para os empresários, como muitos funcionários solicitam a demissão no final do ano para receber seus direitos trabalhistas (basicamente o FGTS – Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – e o seguro-desemprego), isso se torna vantajoso para a empresa, pois se faz um acordo informal com o funcionário, demitindo-o sem pagar a multa de rescisão contratual considerando-se que, sempre em janeiro do ano seguinte há uma queda na produção e as demissões já ocorreram no ano anterior;

• Por outro lado, outro mecanismo também deixou de ser utilizado pelos operários porque também era considerado um problema para os empresários: era o banco de horas, que se constituía com o acúmulo das horas-extras trabalhadas, que poderiam ser descontadas em épocas de refluxo na produção.

Além disso, outro fator que colabora para a grande rotatividade é a abundância de

mão-de-obra especializada no ramo calçadista no município – o que deixa os empresários à vontade para demitir – e o grande número de empresas – o que deixa o trabalhador mais tranqüilo, pois há muitas possibilidades de se empregar, dependendo da situação financeira de uma ou de outra empresa.

Quanto às mudanças na gestão da força de trabalho, elas foram explicadas por alguns aspectos, como: a variação do número de trabalhadores; as mudanças salariais; as formas de treinamento; a escolaridade; o número de turnos, que demonstra a flexibilidade na jornada de trabalho; a adoção do banco de horas, mesmo que de maneira limitada e; a rotatividade de funcionários.

Quanto à variação do número de trabalhadores, nos últimos 10 anos, 35% das empresas tiveram diminuição, 40% tiveram aumento e 25% permaneceram sem variação. Assim, é possível deduzir que parte das empresas vem diminuindo o quadro de funcionários e essa diminuição é verificada, principalmente, nas empresas de médio e grande porte. Por exemplo, a diminuição mais significativa ocorreu na empresa B, já citada, que demitiu 1.523 funcionários, quase 60% do quadro total, em 1995.

O quadro do piso salarial, que permanece em torno de R$ 350,00, é praticamente homogêneo entre as empresas. A média geral dos salários varia um pouco mais, pois a menor média é R$ 380,00 e a maior média fica por volta de R$ 700,00.

Os trabalhadores também apresentam um perfil de escolaridade bastante homogêneo. Em todas as empresas, a maioria dos funcionários já concluiu o 1° grau,

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65% têm 1° grau completo, 25% têm 2° grau completo, e 10% possuem 1° e 2° graus completos.

Quanto ao treinamento de trabalhadores, as empresas dão grande atenção a esse processo na própria empresa, ou seja, 75% oferecem treinamento interno, 50% dispõem do treinamento oferecido pelo SENAI (Serviço Nacional de Apoio à Indústria) e SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio à Pequena Empresa) e apenas 20% não oferecem nenhum tipo de treinamento aos funcionários.

A maioria das empresas possui a mesma jornada de trabalho (44 horas semanais), porém, o número de turnos de trabalho varia: 70% das empresas possuem um turno; 10% possuem dois turno; 15% possuem três turnos e; 5% possuem quatro turnos. Entre as empresas que possuem dois ou mais turnos, todas são de médio e grande porte e aumentam o número de turnos, principalmente, na sessão do corte e da montagem, porque nessas sessões, as máquinas ficam ligadas durante todo o dia e são desligadas apenas nos finais de semana. É o caso da injetora de solados da empresa B, que é uma máquina alemã caríssima e que dispensa a mão-de-obra para encaixe, colagem e montagem do calçado. Porém, devido ao gasto de energia necessário para o início de seu funcionamento, não pode ser desligada todos os dias.

A variação da jornada de trabalho semanal foi verificada em 55% das empresas, principalmente nos períodos de março a maio e de setembro a dezembro, meses de alta produção. O banco de horas foi adotado por 40% das empresas pesquisadas, sendo que 35% adotaram o banco de horas positivo e 5%, o negativo96.

No que se refere à rotatividade de funcionários, 50% das empresas possuem média rotatividade, 30% baixa e 20% alta rotatividade. Entre as justificativas apontadas para as demissões, a mais relevante foi a sazonalidade da produção, apontada por 40% das empresas, seguida da falta de funcionários qualificados, apontada por 30%. Outras justificativas também foram: pedido de demissões pelos funcionários para recebimento de benefícios e; conjuntura econômica. Entre as justificativas apontadas pelo baixo número de demissões, o fato de a empresa contar com bons funcionários foi apontado por 15% das empresas. As outras justificativas apontadas foram: política da empresa e chefia formada dentro da empresa, inibindo o número das demissões.

De acordo com Carleial (2001), é importante evidenciar as exigências sobre a qualificação dos trabalhadores como indício para uma efetiva mudança na relação capital/trabalho, pois esta é uma questão polêmica quando se discute reestruturação industrial. É comum encontrar, na literatura sobre a produção flexível, que as exigências de qualificação do trabalhador tenham se modificado em relação ao fordismo, pois se espera que o funcionário tenha capacidade de desempenhar diferentes funções, inclusive as que envolvam o conhecimento abstrato, ou seja, não apenas o conhecimento que foi incorporado nos treinamentos. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Algumas conclusões podem ser tiradas do que foi exposto anteriormente. Confrontando teses expostas sobre as mudanças na estrutura produtiva do Brasil e

nas novas características da divisão territorial, a territorialização das novas dinâmicas

96 No banco de horas negativo, o funcionário tem o acúmulo de horas de descanso que serão compensadas, em trabalho, posteriormente. No banco de horas positivo, o funcionário trabalha primeiro para então descansar posteriormente.

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econômicas tem forte influência pela presença de um eixo de desenvolvimento, referenciado por uma autopista. O paradigma dos eixos torna-se predominante, enfraquecendo a referência das áreas ou manchas de desenvolvimento. Nesse sentido, a presença das redes de transporte, como a rodovia Marechal Cândido Rondon, exerce um papel fundamental, visto que atende às necessidades de circulação e rapidez do atual estágio do capitalismo.

Apesar da indústria de calçados e de outros ramos estarem implantados no município de Birigüi desde a década de 1960, antes da conformação do eixo de desenvolvimento, com a duplicação da rodovia, por volta de 1996, o eixo pode ser considerado como um elemento dinamizador da economia local, visto que o número de indústrias e de empregos aumentou. Entre os empresários entrevistados, todos consideraram a presença da rodovia como um fator positivo para o arranjo produtivo local, facilitando, principalmente, o transporte de mercadorias e de pessoas. Ao mesmo tempo em que dinamiza a economia local, a rodovia propicia condições para novas localizações das indústrias, visto que algumas unidades produtivas estão se deslocando para Três Lagoas – MS, mesmo que as sedes das empresas permaneçam em Birigüi.

O “banco de horas” foi, até o momento, o principal exemplo da busca por flexibilidade das indústrias de calçados de Birigüi. Pode ser entendido, na tipologia apresentada por Carleial, como flexibilidade interna da gestão da força de trabalho, que por um lado pode representar menos demissões a curto prazo mas que, por outro, representa perdas trabalhistas ao operário.

A presença das chamadas “bancas” é um reflexo do processo de terceirização da produção, representando a precarização das relações de trabalho. Na tipologia apresentada por Carleial, pode ser entendida como a flexibilidade interna subterrânea, registrada pela presença de trabalhadores sem registro legal.

Para o sindicato da categoria, o banco de horas provocou a diminuição do desemprego na cidade em 64%. No entanto, as informações do Ministério do Trabalho e do Emprego (obtidas pelo sistema RAIS/CAGED) demonstram oscilação no número de contratações e demissões durante o ano, com incidência maior de demissões em dezembro.

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O CARNAVAL DE SALVADOR E A TIRANIA DE MERCADO

CLIMACO CÉSAR SIQUEIRA DIAS Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Salvador – BA [email protected]

INTRODUÇÃO

O carnaval de Salvador, festa que surgiu no final do século XIX, passou por profundas transformações motivadas pelas mudanças ocorridas na cidade ao longo de sua história. No entanto, é quase um consenso que o ponto de inflexão das grandes mudanças está associado ao surgimento do Trio Elétrico, que promove uma reconfiguração quase total na espacialização da festa.

O Trio Elétrico, ao mesmo tempo em que representou uma democratização da festa por incorporar grandes massas de foliões, também funcionou como um vetor hegemônico, na medida em que é uma técnica que só pode ser apropriada pelas elites econômicas, em virtude de seus elevados preços e custos de manutenção. Esse caráter hegemônico também se deve ao fato de o Trio dispor de um grande raio de alcance do som, o que impede que um grupo, que não utilize essa técnica, faça qualquer aproximação, pois os próprios participantes desse grupo teriam dificuldades em ouvir o seu próprio som.

A década de 1960 assistiu ao crescimento vertiginoso dos Trios e à permanência de outras formações, como os Afoxés que remontam ao final do século XIX; aos Blocos de Travestidos, que na década de 1930 conheceram o seu apogeu; às mudanças que se caracterizavam como uma formação eclética e lembravam o antigo entrudo, além de Escolas de Samba, Blocos de Índios e o folião pipoca97, que desde o surgimento do Trio já nasceu como maioria.

O surgimento dos Blocos Afro, a partir de 1974, configurou uma nova transformação na espacialidade do carnaval de Salvador, mostrando uma diversidade oriunda do cotidiano do lugar e acrescendo à festa componentes inspirados nas lutas sociais da cidade.

A consolidação desse modelo se deu por toda a década de 1980 e fez do carnaval de Salvador uma das maiores festas populares do mundo, pois esse contava com uma variação nas suas formações (Afoxés98, bloco de índio99, bloco de trio100, Trio

97 Denominação popular do folião que participa do carnaval nas ruas de Salvador, sem pertencer aos blocos ou a grupos organizados. 98 Agrupamento de foliões que desfilam movidos pelos ritmos executados pelo candomblé. 99 Grupo de foliões que utilizam indumentárias inspiradas nos povos indígenas norte-americanos e brasileiros. 100Agrupamento de foliões que trajam abadás, movidos pelo som do trio elétrico que executa, principalmente, a axé music.

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independente101, etc) – algo que o Rio de Janeiro, por exemplo, já não exibia, pois as escolas de Samba constituíam praticamente a formação única daquela festa carnavalesca.

As reformas neoliberais no Estado Brasileiro, iniciadas na década de 1990, encontraram na Bahia um espaço privilegiado, pois o grupo político que ascendia ao poder naquele momento participava da coalizão do governo Collor e, mais tarde, viria a ser o principal grupo do Partido da Frente Liberal, dentro da coalizão do governo Fernando Henrique Cardoso. A partir daí, começou a se desenhar o papel que a Bahia teria na reestruturação produtiva, sendo eleitos três eixos de desenvolvimento, a saber: agricultura irrigada, turismo e cultura. O carnaval de Salvador teria uma participação decisiva nos dois últimos eixos.

No plano local, esse momento pôde ser expresso na produção de um relatório intitulado “Salvador uma Alternativa Pós-Industrial. Cultura, Turismo e Alta Tecnologia”, documento publicado pela Secretaria da Indústria Comércio e Turismo (1990), que propôs a inserção da cidade em um modelo de empresariamento urbano e especialização produtiva, marca dos espaços mundiais da globalização, que Santos (1998) identifica.

O processo atual da globalização econômica, os novos significados do urbano e a incorporação de culturas locais pela sociedade do espetáculo trazem um novo sentido para a atividade turística, o que faz com que ela se estabeleça como uma atividade econômica sem precedentes na sua própria história. Nunca tantos locais estiveram tão submetidos, em todas as dimensões dos seus processos sociais, ao turismo, como observa Carlos:

A indústria do turismo transforma tudo o que toca em artificial, cria um mundo fictício e mistificado de lazer, ilusório, onde o espaço se transforma em cenário para o “espetáculo” para uma multidão amorfa mediante a criação de uma série de atividades que conduzem a passividade, produzindo apenas a ilusão da evasão, e, desse modo, o real é metamorfoseado, transfigurado, para seduzir e fascinar. Aqui o sujeito se entrega às manipulações desfrutando a própria alienação e a dos outros. (CARLOS, 1999, p. 26)

Incorporado ao discurso de governantes e de estudiosos, o turismo passa a ser encarado como a alternativa de crescimento econômico para muitos locais, incluindo-se nestes a cidade de Salvador. Afirma-se e ressalta-se a sua capacidade enxameadora de empregos e o seu papel distributivo de renda, sem se atentar, ou não se querendo atentar, para o fato de que a atividade turística, como qualquer outra atividade econômica, por si só, não consegue ser distributiva de renda, se as demais atividades forem concentradoras, como é o caso do Brasil.

No programa do Governo de Antonio Carlos Magalhães “Bahia Reconstrução e Integração Dinâmica" (1991), o então Governador assim se expressava:

Estou certo de que, apesar dos equívocos dos últimos anos, a Bahia será cada vez mais próspera e contribuirá com a sua indústria dinâmica, sua agricultura que se moderniza, seu potencial turístico e a força da cultura do seu povo para que o país retome o caminho do progresso. (p. 7)

101 Trio elétrico que percorre os circuitos carnavalescos acompanhado pelo folião pipoca.

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O posicionamento do Governador da Bahia daquela época era, na verdade, a expressão dos grupos neoliberais que, no Brasil, comandavam a inserção brasileira na economia de mercado da globalização econômica. Esse contexto fez esses grupos elegerem o turismo e a cultura como os produtos principais para a inserção de Salvador na economia globalizada, sendo o carnaval o principal produto dessa venda.

Mas é importante sublinhar que, embora a direita fosse hegemônica no comando desse processo, segmentos social-democratas foram seduzidos não só na Bahia, mas em vários lugares do mundo, a exemplo do que dizia Jack Lang, ex-ministro francês dos Affaires Culturelles: “a cultura é o nosso petróleo” (ARANTES, 1998, p.152).

Em outra crítica a essa situação, Arantes (2000) classifica como eufemismo expressões muito utilizadas por esses teóricos, como, por exemplo, "a parceria criativa" e afirma que a cultura passara a ser um importante elemento da aliança de classes e interesses que se apresentavam como alternativas de crescimento das economias urbanas estagnadas.

O Planejamento Estratégico de Cidades, proposto por Jordi Borja102 e que teve a adesão de expressivos segmentos de estudiosos das cidades, fornecia a seguinte receita para o seu sucesso: reconhecimento generalizado da crise provocada pela globalização e unificação dos diagnósticos dos vários segmentos; liderança personalizada e carismática; vontade dos cidadãos de promover uma reação.

Essa proposição, embora possa parecer contraditória em relação ao neoliberalismo, vai ao seu encontro ao estimular a competição entre lugares, o que é uma evidência muito explícita da naturalização do processo de globalização.

No plano local, essa tendência se afirma com a adesão de um grande número de estudiosos da cidade de Salvador, a exemplo de Fischer (1996), sobretudo ao se analisar esta afirmativa:

Nessa perspectiva, o plano estratégico de Barcelona é exemplar. Experiência iniciada por volta de 1988, teve por referência o plano estratégico de São Francisco, do início dos anos 80, o qual, por sua vez inspirou-se no modelo implementado em empresas privadas na década de 70. O que importa aqui não é a análise exaustiva desse modelo de plano de marcado teor funcionalista em seu início – não por acaso recriado como projeto estratégico pela própria Barcelona e replicado em cidades latino-americanas, como Bogotá, Rio de Janeiro e Salvador (FISHER, 1996, p. 16).

Essas citações iluminam o entendimento da construção do consenso, tão importante para o plano estratégico de cidades e que se instaura em Salvador a partir do reconhecimento, tanto do grupo dirigente como de alguns setores progressistas, de que existia uma crise que abrangia todas as classes e grupos sociais. Por isso, o turismo, associado a uma cultura-mercadoria, seria, como de fato se confirmou, o elo do consenso citadino exigido pelo Plano Estratégico de Cidades.

102 Urbanista e Geógrafo catalão, lecionou no Instituto Francês de Urbanismo em Paris e foi vice-presidente executivo da Área Metropolitana de Barcelona. Publicou com Manuel Castells “Local y global: la gestión de lãs ciudades em la era de la información”, obra em que os autores explicitam o planejamento estratégico de cidades.

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Ressalte-se que esses expressivos segmentos acadêmicos, embora não tivessem renunciado à crítica ao governo, manifestam, de forma clara, o abandono da crítica ao sistema capitalista e/ou ao processo de globalização econômica. E, ao fazer uma crítica “por dentro” do sistema, favorece-se a sua naturalização e se erguem os pilares para a construção dos consensos necessários à implantação da massificação do turismo. O espaço é transformado em mercadoria e, mesmo que a maior parte da população ficasse excluída dos benefícios dessa ação dos agentes de maior capacidade de produção do espaço, ainda assim, o discurso apregoava a grande capacidade que tinha o turismo de distribuir renda e multiplicar empregos, ancorado em festas como o carnaval.

Esse discurso, de certa forma, gera uma anestesia para a crítica, na medida em que ser contra a mercantilização do carnaval é ser contra empregos para a população pobre e ser contra o crescimento econômico da cidade ou o desenvolvimento de um mercado fonográfico regional, ficando a discussão, na maioria das vezes, restrita à possibilidade de “melhoria” do modelo e quase nunca à busca de alternativas para essa direção que tomava a festa.

A competição entre as cidades, destacada por Santos (2000) e Harvey (1996), quando analisam a globalização econômica, e por Vainer (2000), na discussão específica do Plano Estratégico de Cidades, faz-se notar na passagem em que este identifica que, no passado, o debate sobre a questão urbana incluía pontos como o crescimento desordenado, a força de trabalho, equipamentos coletivos e uso do solo, enquanto que “a nova questão urbana” teria como ponto central a competitividade urbana. E essa competitividade entre cidades, no caso de Salvador, é estimulada por uma administração municipal de esquerda, tendo no comando a prefeita Lídice da Mata103, como pode ser verificado a seguir no fragmento de um comunicado da Assessoria de Imprensa da Prefeita, contido nos arquivos da EMTURSA (Empresa de Turismo S.A.)104, no Relatório do carnaval de 1993:

Argumenta Emília Silva, Diretora-Presidente da EMTURSA. Emília sustenta que, apesar da campanha detonada pelo Rio de Janeiro contra o carnaval da Bahia, “os turistas e os próprios cariocas, não param de chegar a Salvador...” segundo ela, até a campanha contra a cidade serviu para incentivar o turismo ao invés de abalá-lo. “Todos agora querem ver que carnaval é esse que mexeu com o do Rio (...) e é natural que o país entediado com a festa teatral da Marquês de Sapucaí, volte os olhos para a alegria e participação nas ruas de Salvador”, concluiu. (EMTURSA, 1993, s.p.)

A guerra dos lugares (SANTOS, 2000), em Salvador, teria a cultura mercantil como a sua principal arma. E o carnaval seria a expressão máxima dessa cultura, não pela sua especificidade, mas pela sua prevalência hierárquica sobre os demais

103 No carnaval de 1993, a prefeita Lídice da Mata foi protagonista da “guerra contra o Rio”. Um comunicado de sua assessoria de imprensa revela os contornos da disputa ao se posicionar da seguinte maneira: “A Prefeitura de Salvador vem investindo pesado para garantir a animação nas ruas da cidade, onde, ao contrário do Rio de Janeiro, 'o povo não paga para brincar', como salientou a prefeita Lídice da Mata”. 104 Sociedade de economia mista- as cotas acionárias são divididas entre a Prefeitura Municipal de Salvador e a iniciativa privada através de um Conselho, sendo que a Prefeitura tem a posse de 99% dessas ações.

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brasileiros, gerando uma oportunidade ímpar de realização de valor dessa mercadoria chamada cultura.

Como reforço a esse argumento, pode ser acrescida a análise de Vainer (2000), que fornece os elementos complementares para uma compreensão mais abrangente dessa realidade mitificada. São três os neologismos caracterizados por Vainer para explicar o escopo do Planejamento Estratégico: Cidade-Mercadoria, Cidade-Empresa e Cidade-Pátria. Na questão de Salvador, a Cidade-Mercadoria e a Cidade-Empresa podem ser identificadas nas argumentações expostas acima, seja na compreensão da transformação da cultura local em mercadoria, seja no entendimento de que tudo na cidade é objeto dos negócios capitalistas. Já no caso da Cidade-Pátria, a sua ligação se dá com a “tese da baianidade”.

A “tese da baianidade” foi a costura feita por uma boa parte do pensamento acadêmico local, que teve como intenção destacar a relevância do lugar. Mas, ao tratar Salvador como lugar “mais único” do que os lugares únicos, transforma-se em discurso localista ou regionalista e no suporte principal da Cidade-Pátria.

Alguns estudiosos, embora apontem questões sociais que a venda da cidade não resolve, via de regra, mostram um lado “mais positivo”, em análises teóricas típicas das teses pós-modernistas, pois a realidade é um ponto de vista de cada estudioso. Isso pode ser apreendido dos escritos de um dos mais destacados pesquisadores da cultura, etnicidade e carnaval de Salvador, o antropólogo Milton Moura:

Do ponto de vista dos indicadores convencionais de desenvolvimento e bem-estar, tudo isso seria pouco, pois não altera o quadro de pobreza e marginalização da maioria da população. Visto de outro ângulo, o quadro pode ser visto com mais otimismo: a Negritude é, hoje, o emblema oficial da beleza da cidade e seus adolescentes e jovens experimentam um crescimento notável em termos de auto-estima. (MOURA, 1998, p.32)

Adiante, a ambigüidade porventura identificada nesse fragmento é dissipada, quando o mesmo autor conclui afirmando que:

Na era da globalização, a cidade do Salvador, que nunca se especializou em produzir mercadoria alguma por muito tempo, torna-se ela própria mercadoria, enquanto representação de uma coreografia entre mundos. O que coloca no tabuleiro da baiana é a representação de uma cidade como ensaio de convivência étnica excitante, prazerosa e integradora. (MOURA, 1998, p. 32)

Paulo Miguez, autor de vários textos sobre o carnaval, segue no mesmo diapasão da louvação localista e amarra de forma incontestável o trinômio Cidade-Empresa, Cidade-Mercadoria e Cidade-Pátria:

O carnaval, então passa a ser visto como um negócio estratégico pelos arranjos institucionais públicos e privados que se desenvolvem no seu entorno, inaugurando a aproximação entre festa e industria cultural, e pondo em movimento o que já vem sendo chamado genericamente de ‘indústria do axé'. (MIGUEZ,1998,p. 51)

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Assim, alinhando memória, cultura e festa, e articulando esse trinômio com os aparatos da indústria cultural, a Cidade da Bahia pode estar assentando as bases do seu futuro a partir do que a individualiza, diferencia e potencializa nos enfrentamentos dos desafios impostos pela globalização. (MIGUEZ,1998, p. 53)

A proposição da baianidade, embora tivesse um forte apelo emocional, não conseguiu o sucesso esperado, pois as contradições sociais de uma cidade que sempre apresentou um dos mais altos índices de desemprego do Brasil se revelavam a todo o momento através de manifestações populares radicalizadas. E, mesmo que uma parte da academia local fizesse coro com as teses da baianidade, alguns setores dessa mesma academia, ainda que minoritários, afrontavam essa proposição, a exemplo de Oliveira:

(...) não significa a dispensa de antigos mitos. Ao contrário estes são recuperados ou recauchutados em vista de sua reintegração funcional, a exemplo do que ocorre com a faustosa baianidade, sempre um posto a serviço do outro. Valores fundamentais como a preguiça e a musicalidade do povo, presentes no ritmo carnavalesco, se acoplam como componentes do próprio desenvolvimento na sua nova configuração mistificada posta como referencial dessa sempre nova cultura baiana, cuja reprodutibilidade só pode ser assegurada pela única via considerada legítima de atividade lucrativa. (OLIVEIRA, 2000, p. 16)

Mas, ao final, os setores que defendiam a mercantilização do carnaval foram os vencedores desse debate e, no início da década de 1990, iniciou-se o que eufemisticamente o poder político convencionou chamar de “profissionalização do carnaval de Salvador” que, na realidade, se constituía apenas da apropriação de uma das inúmeras formações – o Bloco de Trio e subordinação das demais –, podendo o Bloco de Trio se apropriar da música de outras formações como o Afoxé, o Bloco Afro, o Bloco de Índio, etc., mas sem perder a hegemonia do processo.

Esse movimento foi bem articulado pela indústria fonográfica, que via no axé music a possibilidade de grandes ganhos, previsão que se confirmou durante todos os anos de 1990. Mas, embora a indústria fonográfica tenha sido decisiva para o “sucesso” do modelo, há que se destacar a capacidade de reprodução da formação Bloco de Trio, o qual passa a ser o principal componente das micaretas105 que se espalharam por todo Brasil, com o domínio absoluto de um pequeno número de artistas baianos que se verifica até hoje. Micaretas que, em muitos municípios, passaram a ser uma resposta demagógica de dirigentes municipais sem propostas de aplicação do dinheiro público e que viam nesse tipo de festa a possibilidade de ganhos de popularidade junto aos seus munícipes.

A formação Bloco de Trio se adequou às exigências capitalistas por preencher alguns requisitos básicos da cultura mercantil: adaptabilidade a qualquer local, pois o único fator identitário é o artista; possibilidade de maior homogeneização e; menor resistência às mudanças impostas pelos interesses capitalistas, a exemplo da adaptabilidade do abadá106 às grandes marcas da moda. 105 Carnaval fora de época. 106 Segundo Moura (2001), esse termo, que nomeia a túnica tradicional e distintiva dos iorubás e de várias etnias da África Ocidental, vem designar agora, de preferência, a blusa esportiva, quase sempre de tecido

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Ao final da década de 1990, o carnaval de Salvador já contava com três circuitos – Avenida Sete/ Carlos Gomes, Pelourinho e Barra/Ondina –, sendo que este último surgiu para atender a uma exigência capitalista de maior homogeneidade e menor tempo consumido no desfile pela formação hegemônica. O Bloco de Trio, no seu apogeu, já contou naquele espaço com mais de quatro dezenas de agremiações e fez proliferar de forma exponencial o número de camarotes, ao passo que Afoxés, Bloco Afro, Mudanças, Travestidos, Bloco de Índio ficaram estagnados, não lograram o sucesso financeiro da formação principal, ou desapareceram da cena carnavalesca baiana.

O crescimento dos circuitos, na medida em que homogeneiza através de uma maior separação espacial das formações, permite a adequação da festa aos tempos da televisão, que também só demonstra interesse em transmitir o desfile da formação dominante, sendo esse o mesmo procedimento das empresas patrocinadoras. Fato que podia ser verificado nos constantes reclamos dos dirigentes do Ilê Ayê, durante toda a década, e até com o cancelamento do desfile do tradicional bloco afro Malê Debalê em 1997.

Dos empregos prometidos à população, mais da metade é composta de cordeiros107, e quase um quarto de ambulantes108, todos com ganhos e condições de trabalho aviltantes, numa evidente demonstração de que a imensa maioria da população não participou em nenhum momento dos ganhos que alguns grupos da elite econômica tiveram com a implementação do carnaval-negócio. Até mesmo a Prefeitura, avalista principal da mercantilização, nunca conseguiu completar cotas de patrocínio que cobrissem os seus custos com a festa.

O momento atual vai encontrar outro grande complicador para o carnaval de Salvador: a crise do axé music em âmbito nacional, com a abrupta queda na venda de discos e a diminuição da aparição de artistas em programas televisivos em rede nacional produzem uma drástica redução nas micaretas pelo Brasil, caindo de mais de oitenta micaretas com boa rentabilidade para menos de duas dezenas no momento atual. A maior fiscalização das contas dos municípios promotores de micaretas e a diminuição do afluxo de turistas com maior capacidade de gasto no período do carnaval também podem ser relacionados como fatores que estimulam o esgotamento do modelo.

Os sintomas dessa crise podem ser verificados no esvaziamento dos circuitos mais populares (Avenida Sete de Setembro/Carlos Gomes e Pelourinho). Nesses circuitos é possível observar, em determinados momentos das seis noites de carnaval, um completo esvaziamento de agremiações e trios elétricos, ficando centenas de milhares de pessoas caminhando por essas vias em busca de atrações. O esvaziamento também pode ser verificado na Praça Castro Alves, símbolo do carnaval popular de Salvador até a década de 1980, expressão maior da atual decadência do carnaval do centro da cidade. Há uma redução das entidades que desfilam na Barra, embora esse espaço seja dominado pela classe média consumidora que garante a permanência e sustentação do carnaval-negócio. Ainda como conseqüência, houve uma redução dos sintético, que quase todos os blocos passam a usar no cortejo, inclusive o Araketu, o Muzenza e o Olodum. 107 Denominação popular dos trabalhadores que fazem a segurança dos blocos carnavalescos de Salvador, segurando as cordas delimitadoras do território dos blocos, durante o período em que esses desfilam. 108 Grupo de trabalhadores informais que comercializam alimentos e bebidas nas vias onde acontecem os cortejos e nas áreas adjacentes, normalmente em caixas térmicas, em carrinho de mão.

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blocos alternativos que, com o impacto da crise do axé e do grande aumento do número de camarotes, deixaram de vender fantasias e, diferentemente dos grandes blocos, a principal receita daqueles não é o patrocínio de empresas, mas a venda de abadás.

A diminuição do pequeno patrocínio privado à Prefeitura é um poderoso indicador da crise do modelo, pois as empresas privadas, desde a implantação do carnaval-negócio, sempre se mostraram relutantes em comprar cotas de publicidade da prefeitura e patrocinar entidades populares, mesmo aquelas consagradas nacionalmente, a exemplo do Ilê Aiyê e do Olodum. Em 2007, dos oito milhões esperados com a venda de cotas de publicidade, a Prefeitura só conseguiu arrecadar um pouco mais de três milhões. Não fosse um suprimento emergencial feito pelo Governo do estado, o carnaval de Salvador teria sérios problemas de infra-estrutura básica que poderia comprometer a sua realização. O conflito entre Blocos de Trio e camarotes, em que os primeiros reclamam direito de arena, é também uma demonstração do esgotamento do modelo, pois o segmento que domina os camarotes sempre foi muito imbricado com o grupo dominante dos Blocos de Trio. Mas, na medida em que os lucros foram reduzidos dramaticamente, a aliança já não tem a solidez do passado.

As disputas entre entidades populares por verbas públicas, nesse ano, também quase comprometeram a realização do carnaval, pois o Ministério Público não aceitava liberar recursos do Ministério da Cultura, argumentando que os critérios da distribuição haviam sido alterados de forma abusiva.

O número cada vez maior de soteropolitanos que saem da cidade no carnaval é também um sintoma de crise. E esse fato pode ser explicado pelo perfil do folião preferencial adotado pelo modelo mercantil: jovens com capacidade de consumo e preferencialmente de pele branca.

A crise do axé deflagra um momento sem precedentes no carnaval baiano, pois o grupo hegemônico, mesmo conhecendo rentabilidades cada vez mais decrescentes, continua a exercer a sua posição de dominante local, ainda mantém algum empoderamento na escala nacional e é protagonista de algumas micaretas importantes no Brasil. Isso pode levá-lo a uma disposição de maior participação nas verbas públicas, seja através do instrumento de renúncia fiscal ou através de tráfico de influência. E, no outro lado, as organizações populares são cada dia mais dependentes das parcas verbas públicas, criando um ciclo vicioso difícil de ser rompido.

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A ORGANIZAÇÃO ECONÔMICA DOS TERRITÓRIOS DE MINERAÇÃO NA AMAZÔNIA

JOÃO MARCIO PALHETA DA SILVA Universidade Federal do Pará (UFPA)

Belém – PA [email protected]

INTRODUÇÃO

Dividiremos nossa análise nos municípios de Marabá (1913), Parauapebas (1988), Curionópolis (1988), Eldorado do Carajás (1991), Canaã dos Carajás (1993) e Água Azul do Norte (1991), criados em diferentes períodos a partir da fragmentação territorial de Marabá (o município-mãe que deu origem a esses municípios). Explicaremos suas questões de acordo com análise realizada a partir de trabalho de campo (2004), de forma que possamos entender suas problematizações, realizando uma breve conclusão em cada uma delas de acordo com as prerrogativas que consubstanciam as relações de domínio na Região sul/sudeste do Pará. Nesse caso, o território é entendido pelo seu uso, pelas relações e as ações entre a CVRD (Companhia Vale do Rio Doce), poderes públicos e atores sociais que se manifestam na organização e consolidação dos municípios. Assim, embora fragmentadas, podem ser lidas também no seu conjunto, não dissociando os processos que foram mais expressivos dentro de cada unidade territorial.

As relações de poder que se formam a partir dos processos conflituosos dependem do embate com atores sociais – sejam eles a CVRD, os produtores rurais patronais, os trabalhadores rurais sem-terra, pequenos colonos, posseiros, fazendeiros individuais ou empresariais, garimpeiros, dentre outros – junto ao poder público municipal. Todas as relações que contribuem para a gestão territorial dos municípios aqui estudados se diferenciam pelo grau e pela complexidade que cada ator social desenvolve ao longo das trajetórias político-econômico-sociais em seus territórios, mesmo havendo momentos em que alguns atores sociais atuem em mais de um município.

Os ciclos econômicos, pelos quais esses municípios passaram e o surgimento de novos tipos de extrativismo, principalmente o mineral, provocaram uma mudança na estrutura de poder local: grupos de profissionais liberais, empresas e bancos passaram a exercer o poder em conjunto com a oligarquia local, ora convergindo, ora divergindo nos seus interesses. Esse clima que ocorreu, a partir da segunda metade da década de 1970 (EMMI, 1988), carregou indícios dos tempos áureos da borracha e da castanha, na formação econômica do território de Marabá, onde podemos ver que a estrutura da oligarquia local ainda subsiste, embora tivesse rearticulado (diante de um novo modelo econômico, que envolve diferentes atores sociais na conquista econômica do território) com os novos atores sociais, para não perder totalmente o poder na região, através de diferentes formas de favores políticos e união dos grupos locais de poder.

Marabá continuou com seu papel de pólo regional, em função das relações político-econômicas que já vinham do início do século XX. Com a abertura das estradas,

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nas décadas de 1960 e 1970, e com os projetos de mineração na década de 1980 em seu território, o município se tornou ainda mais estratégico para o desenvolvimento do estado e do País, devido à exportação de produtos minerais para o mercado internacional e do valor significativo de suas reservas minerais existentes em seu território.

No Pará, a maioria dos municípios criados, principalmente aqueles que foram criados pós-década de 1980 no sudeste paraense, surgiu em razão de fatores políticos, o que tem colocado em xeque seu papel enquanto forma para se atingir o desenvolvimento sócio-econômico local.

O município de Marabá e os municípios criados a partir de sua fragmentação territorial, na década de 1980, não fogem ao contexto dos fatores político-econômicos citados. Políticas arraigadas do tradicionalismo por parte das elites oligárquicas e sem perspectivas de melhorar as condições de vida das populações foram exacerbadas por práticas sociais que se consolidaram no domínio de municípios como Marabá durante décadas. Na ausência de uma visão de planejamento voltada para a sua sociedade, acabaram deixando passar momentos importantes da história sócio-econômica e da política desse município. Com isso, causaram graves problemas sociais, que se refletem nas atuais configurações territoriais dos municípios e nos conflitos de poder, que se traduzem, também, nas emancipações territoriais, aqui estudadas.

O papel desempenhado por uma elite que sustentou o poder durante décadas e, com ele, se consolidou no domínio do poder local no sudeste paraense, manipulando as relações políticos-econômicas, sobretudo, para garantir seus domínios na região e, com isso, estreitar os laços políticos com a capital paraense, era uma forma de conseguir enfrentar as crises que oscilavam entre as economias extrativistas da borracha e, posteriormente, da castanha-do-Pará, que quase sempre os ajudavam a manter a estrutura de poder local. Por outro lado, deixava à margem os problemas urbanos e rurais de seus núcleos urbanos, desconsiderando as verdadeiras funções do governo no município.

PROBLEMAS E CONFLITOS TERRITORIAIS NO ESTADO DO PARÁ

Todas as questões que envolvem as relações de poder e as formas de desenvolvimento dos municípios estão ainda longe de serem resolvidas, devido a diferentes interesses dos atores locais. Parauapebas, Curionópolis, Canaã dos Carajás, Água Azul do Norte e Eldorado do Carajás são ainda municípios novos, em termos de emancipação política e econômica. Como Marabá, esses municípios apresentam antigos problemas sociais agravados com a introdução da mineração e por planejamentos realizados sem a participação da sociedade civil ou de grupos rivais, que disputam o poder local.

Em relação à questão econômico-financeira, a maioria dos municípios da mesorregião sudeste paraense é pobre economicamente, com pequena arrecadação, depende do repasse do governo federal e tem sua receita atrelada à questão do FPM (Fundo de Participação dos Municípios). São municípios que têm total dependência financeira e que acabam onerando outros municípios, por não possuírem infra-estrutura suficiente para atender sua população. Esta precisa, então, buscar serviços melhores em outras localidades próximas e, por sua vez, migra para municípios como Parauapebas ou

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para Marabá – os dois mais bem estruturados, entre o seis municípios estudados. Estes, portanto, recebem problemas que deveriam ser resolvidos nos municípios adjacentes.

As prefeituras acabam sendo o principal empregador. Sem perspectivas de atrair indústrias e serviços, esses municípios entregam seu futuro, em termos de desenvolvimento econômico, às vontades dos projetos que poderiam ser ou são implantados por parte da Companhia Vale do Rio Doce. Outro destaque está relacionado à dependência que os municípios têm em torno das atividades de mineração da CVRD, que monopoliza a exploração dos minérios na região. Nas entrevistas realizadas com representantes da sociedade civil organizada, foi quase que unânime a questão da necessidade de abertura do sul e do sudeste paraense para outras empresas realizarem suas prospecções. Outras empresas precisam dividir junto com a CVRD a responsabilidade econômica e social pelo desenvolvimento dos projetos na região. Acredita-se que só assim haverá uma redistribuição de poder econômico, em virtude da quebra do monopólio exercido pela CVRD na região.

Para tentar mudar esse quadro considerado crítico em relação não só ao poder público, mas em função das atividades desenvolvidas pela CVRD – que têm impactado alguns municípios que não possuem em seus territórios projetos da companhia, ou aqueles que futuramente poderão abrigar projetos dela –, criou-se uma alternativa, proposta pela ex-senadora Ana Júlia Carepa (eleita governadora do estado em 2005): aumentar a alíquota dos royalties para tentar amenizar os problemas sociais e econômicos, tanto para os que possuem projetos como para aqueles que acabam sofrendo influência desses projetos.

Depois da decisão da CVRD de implantar o pólo siderúrgico no Maranhão, os políticos paraenses questionaram o papel da companhia dentro do estado e, principalmente, na região de Carajás. Muitos manifestos foram feitos, principalmente por políticos paraenses, dentre eles o projeto da ex-senadora, que não foi somente motivado pela questão do pólo siderúrgico, mas sim pela pobreza que impera dentro da área em que a CVRD tem projetos, ou seja, daqueles municípios que os recebem, e de outros que não recebem benefícios da companhia.

Porém, toda a região, no momento, vive a expectativa do complexo de cobre, que começou com o Projeto Mineração Serra do Sossego em Canaã. Parauapebas é o primeiro caminho para se chegar a Canaã pela Estrada de Ferro Carajás. Portanto, a chegada de migrantes atraídos pelo Projeto de Mineração Serra do Sossego também causa impacto em Parauapebas.

Segundo representantes da ACIP (Associação Comercial e Industrial de Parauapebas), diferentemente de outros municípios, Parauapebas acaba sendo o pólo da microrregião, por possuir as atividades principais da CVRD. Segundo a Associação, “Canaã é um filme de Parauapebas, é um filme que passou aqui, e está passando lá, um boom de emprego, uma cidade que há dois anos tinha 13 mil habitantes, só hoje (2004), em mão-de-obra gerada no projeto tem 30 mil. É um canteiro de obras daqui até lá, Parauapebas foi isso. Parauapebas vai continuar sendo o pólo dessa microrregião”. Para representantes da ACIP, não terá outro jeito. Com o fim do primeiro estágio do projeto em Canaã, ocorrerá uma migração inversa em direção a Parauapebas, a principal e mais próxima com infra-estrutura melhor que Canaã. Por tal motivo, acreditam que esses migrantes, que estão indo em busca de empregos, vão ficar em Parauapebas. Nem todos irão conseguir empregos em Canaã, e Parauapebas será o local melhor para eles tentaram a sorte.

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Em se tratando da CFEM (Contribuição Financeira pela Exploração Mineral), o estado do Pará, em conjunto com o estado de Minas Gerais, responderam em 1999 por 73% de sua arrecadação, sendo respectivamente 31,7 e 41,4% da arrecadação do País. A crítica recai na própria experiência de Parauapebas, que recebe recurso109 por possuir os projetos da CVRD em seu município, muito embora o próprio município apresente graves problemas sociais, como de saúde e de infra-estrutura em alguns bairros mais distantes, como é o caso do bairro Liberdade, em contraste com o núcleo pioneiro da cidade, que recebeu investimento da CVRD no começo da implantação do Projeto Ferro.

Como esses municípios, que têm em seu território projetos de mineração, recebem muitos migrantes, a CVRD deveria, junto com o Estado e o poder público, pensar sobre essa questão. Embora não seja função da empresa, essas questões em parte são de sua responsabilidade indireta, devido à metamorfose que ocorreu nas últimas duas décadas do século XX. É preciso repensar a questão da mineração no Pará, definindo, sobretudo, a área que está sob a influência da CVRD e aplicar recursos para minimizar esses problemas diferentemente de como era na época do Fundo de Compensação das Áreas de Influência da CVRD.

Falta um banco de dados comum com indicadores sócio-econômicos em todos os municípios estudados nessa pesquisa e não se tem ainda definido qual seria o eixo de desenvolvimento desses municípios. Isso facilita ações de domínio como as que são em parte inerentes à CVRD na região, o que fragmenta as relações de poder dentro do município, não deixando espaço para novas idéias no que diz respeito às políticas econômicas e sociais traçadas a médio e longo prazo.

Em função do pólo siderúrgico, surge outro questionamento relacionado ao aumento das alíquotas da CFEM que transita no Congresso Nacional por parte de políticos paraenses. A questão vai além do aumento da alíquota e sua distribuição, assim como vai além da discussão sobre quais seriam as áreas sob a influência da CVRD no Pará e de que forma seriam aplicados esses recursos.

Os questionamentos feitos por alguns políticos desses municípios, dentre eles Parauapebas, é sobre a vida útil de cada projeto que a CVRD tem na região. Em alguns casos, como em Canaã, o projeto tem vida curta e uma parte do repasse proposto pelo novo projeto da senadora Carepa não iria beneficiar Parauapebas. Talvez por isso a indiferença de alguns políticos, que já alertavam sobre as possíveis migrações que viriam de Canaã em direção à Parauapebas, aumentando os problemas sociais desse município.

Segundo depoimentos, é impossível negociar com uma única empresa questões de interesses da sociedade. Com outras empresas presentes no município, necessariamente ocorrerá uma disputa para ver quem melhor assume um papel de destaque nos municípios, tanto no setor econômico, como no social. Crescerá, assim, o número de futuros projetos, de maneira que poderá realmente acontecer a verticalização da produção dentro do território paraense. Para isso é preciso evitar também que haja fuga de projetos para beneficiamento dos minérios em outros locais, fora do estado do Pará.

109 O município recebeu, em 1997, R$ 11.954.930,07; em 1998 recebeu R$ 14.394.61485 e; em 1999 recebeu R$ 15.326.455,45 de CFEM.

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RELAÇÕES DE PODER E A QUESTÃO DO TERRITÓRIO Por outro lado, a questão dos empregados, com a presença de outras empresas

nos municípios, está relacionada à liberdade de expressar seus descontentamentos com a administração local e de como o poder local age em função de seus interesses. Segundo alguns depoimentos, essa crítica, que poderia ocorrer caso outras empresas viessem a se instalar em Parauapebas, forçaria e diminuiria a perseguição política que ocorre, caso os empregados se posicionassem contra a vontade do poder público e dos seus representantes.

A tentativa de ex-membros da EEPP (Equipe de Educação Popular de Parauapebas) participarem do poder público ou de reativarem sua própria entidade representa iniciativas de viabilizar seus próprios discursos de desenvolvimento atrelado à formação política de atores excluídos do poder local. Seus membros procuram, a partir da experiência adquirida, definir qual seria a forma de se posicionar diante de um grande grupo econômico que monopoliza a economia mineral no município e quase em todo o estado do Pará.

Diante do fato político e de outros, como o econômico, os moradores sentem-se prejudicados pelos diversos governos municipais que se revezaram no poder municipal. Segundo eles “as propostas das prefeituras não eram propostas, eram imposição; a relação de diálogo entre o poder público e a sociedade inexiste nesse sentido na cidade”. Dessa forma, o discurso de ex-membros da entidade EEPP é de tornar o município um espaço público dinamizado pela participação popular.

Outro ponto relevante está relacionado ao poder público que dominou o município durante anos, o que inibia a entrada de outras indústrias para competir, sobretudo com a CVRD. Mas, segundo depoimento de ex-integrantes da EEPP, a própria CVRD não abrirá mão de suas jazidas ou da parte que contempla, principalmente, a Floresta Nacional de Carajás. A CVRD sente-se ameaçada por ser possível a exploração da floresta por uma outra empresa, que não seja ela.

Essa preocupação ambiental tem levantado questionamentos em relação à FLONA (Floresta Nacional de Carajás) e tem preocupado a comunidade da área técnica com restrições por parte dos ambientalistas, que vêem pela primeira vez um caso de exploração de uma Floresta Nacional, que coloca em risco a questão ambiental na região e no estado como um todo.

Por essas e outras questões ambientais locais e extra-locais, o Secretário de Meio Ambiente de Marabá destacou a importância de cada município ter em sua prefeitura uma lei ambiental e normas para licenciamento ambiental, considerados por ele indispensáveis para o desenvolvimento dos municípios. O Problema da FLONA é uma questão que, de forma direta ou indireta, mostra o peso político-econômico que a CVRD tem, monopolizando cada vez mais a questão mineral na região.

De uma maneira ou de outra, o importante é que se tem que repensar o papel da mineração no Pará e das empresas como a CVRD, que atuam dentro do estado, e no efeito multiplicador que foi gerado por esses projetos na Amazônia. A questão do aumento da alíquota tem que ser acompanhada por uma nova forma de pensar o desenvolvimento na região, que leve em consideração a sociedade local e os impactos gerados por esses projetos. É preciso não repetir os mesmos erros do passado, não apenas na quantificação, mas na qualificação da aplicação desses recursos, e não

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permitir que as empresas montem suas infra-estruturas fora do estado, ficando esse somente como o fornecedor da matéria-prima.

As questões referentes aos municípios no Brasil são questões que perpassam a sua viabilidade econômico-financeira e a possibilidade de cada um na capacitação de recursos para viabilizar tanto o planejamento quanto o desenvolvimento municipal. A relação de viabilidade econômica em municípios (como Marabá, Parauapebas, Curionópolis, Eldorado do Carajás, Canaã dos Carajás e Água Azul do Norte) é bem diferenciada. Marabá tem sua história econômico-social pautada em economias agrárias exportadoras, o que proporcionou o surgimento de grupos políticos locais, no domínio das políticas públicas e na formação de uma elite oligárquica que dominou seu território durante décadas, desde sua formação até a entrada de um outro tipo de extrativismo na região – o mineral. PROJETOS DE MINERAÇÃO NO TERRITÓRIO PARAENSE

As minas de Carajás, na década de 1980, pertenciam ao território de Marabá. Dessa forma, Marabá continuava a exercer o papel de pólo da região sudeste paraense e de líder político-econômico regional na mesorregião sudeste do estado. O primeiro projeto a ser implantado em Marabá foi o Projeto Ferro Carajás, carro-chefe do PGC (Programa Grande Carajás)110 – este último consistia em um pacote de incentivos fiscais111. O Projeto Ferro Carajás, anunciado na década de 1980, a fim de atrair investimentos para a Amazônia Oriental (relativos à agricultura, ao reflorestamento, à pecuária e ao setor mínero-metalúrgico) e industrializar esse território. Dessa maneira, qualquer projeto que estivesse relacionado e integrado a esse território teria direito aos chamados incentivos fiscais atribuídos pelos organismos financeiros de Estado que, nesse caso, eram representados pela SUDAM (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia).

Para esses empreendimentos, seria necessário montar toda uma infra-estrutura para alocar esses projetos e fazê-los funcionar. Assim, em anos anteriores, já tinham sido traçados os eixos de desenvolvimento, através dos planos de viabilização econômica para essa região, para que as empresas nela se instalassem. A Hidrelétrica de Tucuruí é o maior exemplo da grandiosa ambição que se pensou para a Amazônia brasileira a fim de atrair o capital nacional e internacional. A abertura das estradas em anos anteriores foi o primeiro passo para preencher a condição necessária para levar o capital a se instalar na Amazônia, viabilizando as políticas dos governos brasileiros.

A sobreposição de poderes dentro das instâncias governamentais serviu para legitimar atos que eram pensados para a Região Amazônica com fins econômicos, o que, por sua vez, explica o autoritarismo com que o projeto foi implantado e a sua completa desvinculação com a realidade local, contrariando os interesses da sociedade que ali se encontrava. Em conseqüência, as expectativas sociais e ambientais que hoje caracterizam Carajás fazem dessa região uma das áreas mais problemáticas do país em termos de conflitos sociais.

110 Decreto Lei nº 1813 de 24 de novembro de 1980. 111 Os incentivos fiscais também foram regulamentados pelo Decreto Lei nº 1815 de 24 de novembro de 1980, a todos os empreendimentos, numa área que abrangia os estados do Pará, Tocantins e Maranhão, num total de 895.236 km2.

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Outros projetos foram implantados, como o projeto manganês do Igarapé do Azul, em 1985, e o projeto ouro do Igarapé Bahia, em 1990. Mais recentemente houve o projeto Cobre, na Serra do Sossego em Canaã dos Carajás e a aquisição da Onça Puma em Ourilândia do Norte. Além da exploração mineral, a CVRD verticalizou seus empreendimentos, investindo em setores como o de transporte, como o sistema roll-on-roll-off; participou de convênios e parcerias como no caso do projeto soja no sudeste paraense através do sistema integrando rodovia-ferrovia-hidrovia, incluindo a possível viabilização da hidrovia Araguaia-Tocantins. Além disso, elaborou projetos para futuras instalações, como o do cobre do Salobo e o do níquel. Assim, desde a implantação do projeto ferro, a CVRD dinamizou sua economia investindo em diferentes setores, mostrando, dessa forma, o potencial que a companhia adquiriu desde que está instalada no estado do Pará.

Vale a pena ressaltar que a CVRD tem outros projetos fora da mesorregião sudeste paraense, mas que permaneceram dentro do estado do Pará, como a explorações da bauxita pela Mineração Rio do Norte. O grupo CVRD possui todo um aparato que foi montado pelo governo federal no Pará para exploração dos recursos minerais que, hoje, estão nas mãos da iniciativa privada, em decorrência do processo de privatização das estatais realizado pelo governo federal.

O efeito multiplicador que o Programa Grande Carajás geraria não se concretizou. O que vemos hoje na região, principalmente na que vai de Parauapebas, no Pará, a Santa Inês, no Maranhão, é o seguinte: um corredor de problemas sociais. A maioria dos municípios que se encontra no corredor da Estrada de Ferro Carajás encontra-se em situação de pobreza, sem expectativa de crescimento econômico e sem conseguir resolver seus problemas urbanos e rurais. O trem de passageiros da CVRD é um verdadeiro navio sobre rodas, com migrantes indo e vindo em busca de trabalho (nos projetos da companhia ou em outras empresas, quando não nas fazendas localizadas nesse trecho) e de melhores condições de vida nesse corredor.

A implantação dos grandes projetos na Amazônia intensificou a explosão demográfica dos diversos núcleos urbanos na região sudeste paraense – quando não foi responsável pelas suas criações – fazendo do núcleo urbano de Carajás, assim como dos condomínios fechados da CVRD tanto no Pará como no Maranhão, exemplos do ordenamento territorial criado pela companhia, não só para abrigar seus funcionários, mas também para vender uma imagem ordenada de seus projetos.

Seus núcleos habitacionais são exemplos das cidades de primeiro mundo em termos de organização. Porém, existe um controle social não só para aqueles que moram em seus núcleos urbanos, como também para aqueles que adentram seu território. O controle de entrada e saída das pessoas é uma das formas da companhia manter a ordem dentro dos seus núcleos, diferentemente do que acontece com aqueles povoados ou núcleos que estão em seu entorno.

Exemplo dessa natureza é Parauapebas, no sopé da Serra dos Carajás, onde apenas uma parte da cidade foi planejada para abrigar, logo no início da instalação do PFC (Projeto Ferro Carajás), os trabalhadores que viabilizaram a obra de exploração de ferro, assim como aqueles que trabalhavam na construção da estrada que dá acesso à Serra dos Carajás. Logo após sua instalação, ocorreu uma explosão demográfica, intensificada ao longo dos anos que sucederam a instalação do PFC, o que ajudou a fazer de Parauapebas umas das cidades mais populosas dessa região, porém, com todos os

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problemas urbanos: falta de infra-estrutura, problemas de saúde e prostituição – o que não ocorreu na CVRD.

As principais estações ferroviárias da CVRD no trecho entre Pará e Maranhão são: a do Anjo da Guarda, a de Santa Inês, a de Açailândia, a de Imperatriz – todas no Maranhão – e as de Marabá e Parauapebas, no Pará. Como podemos ver, todas essas estações foram pontos de chegada ou de saída para diversas localidades no Pará e no Maranhão. Os que migram nesse corredor têm diferentes histórias para contar quanto à sua migração. Paraenses e maranhenses que mudam de lugar em busca de melhores condições de vida, indo ou voltando, ajudaram a modificar as relações no sudeste paraense112, principalmente nos municípios aqui estudados.

Esses fatores, sobretudo, estão relacionados às expectativas econômicas que o Brasil vivia na época de instalação dos projetos da CVRD na Amazônia. Havia um conjunto de fatores que favoreceram as condições para que esses projetos fossem pensados na Amazônia, além dos recursos naturais que existiam na região. As variáveis que serviram de justificativa para a implantação dos projetos na Amazônia estavam relacionadas às condições de “duplicarem as exportações brasileiras, e com isso, conseguiriam mais dólares para o pagamento da dívida externa brasileira” (BENATTI, 1997, p. 82).

Com isso, ficaria mais fácil justificar, através do autoritarismo, a implantação que legalizou a instalação dos projetos na Amazônia, associados ao esgotamento das reservas da Companhia Vale do Rio Doce no centro-sul do Brasil, à expectativa vinculada pelo Banco Mundial em relação à carência do ferro no mundo na década de 1980, a outros recursos minerais existentes em Carajás e à possibilidade de crescimentos das divisas para pagamento dos juros da dívida externa (BENATTI, 1997, p. 82).

Dessa forma, a Amazônia brasileira estava relacionada a uma das fronteiras de expansão do capital internacional na América Latina. Toda essa forma estava também associada à possibilidade de “desenvolvimento” da Amazônia. Assim, o governo conseguiu desenvolver sua estratégia de associação do capital privado nacional e internacional ao capital estatal, numa associação que era de 51% do capital da CVRD, tendo o Estado Nacional como seu principal acionista e os outros 49% pulverizados em diferentes capitais nacionais e internacionais. Associava, assim, a escala local à internacional visando, sobretudo ao mercado internacional de exportação do ferro.

Esses empréstimos consolidaram a viabilização do PFC (Projeto Ferro Carajás) e sua instalação no município de Marabá no começo da década de 1980. A PFC fez seu primeiro transporte de ferro em 1985, com a inauguração da Estrada de Ferro Carajás, ligando as minas de Carajás no Pará ao porto de Itaqui-Madeira no Maranhão. Era o começo de uma nova era para os municípios do sudeste paraense e, conseqüentemente, para o Pará, representava a era dos minérios, que se tornava a principal economia da região. A CVRD, que já era uma das maiores empresas de mineração do Brasil, ganhava mais elementos para se transformar numa das maiores empresas de mineração do mundo. Operava em dois sistemas destacados por ela – o sistema norte e o sistema sul –, o que indicava o crescimento que a empresa vinha ganhando com a instalação de seus projetos no Brasil e na Amazônia.

112 Relatório de viagem que serviu como tema para o ensaio “Impressões do Passageiro de Ferro”: reflexões de um viajante ”. Publicado no livro: “10 Anos da Estrada de Ferro Carajás”, em 1997, pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA/UFPA).

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O território de Marabá sofreu conseqüências com todos esses acontecimentos. Esses foram provocados pela implantação dos projetos da CVRD e também por outros fatores, o que contribuiu muito com o crescimento demográfico e com a fragmentação não só do seu território, mas das relações político-econômicas, a partir da fragmentação dos grupos de poder na partilha do poder político e do domínio econômico do município, e, conseqüentemente, da região sul/sudeste paraense.

A CVRD, como ator hegemônico na região de Carajás, organiza suas relações a partir de sua exploração mineral e de seus contratos econômicos com quem financia seus projetos. Ela desenvolve relação com a gestão pública local e com os demais atores sociais que participam da vida ativa do estado e dos municípios onde ela possui projetos.

De uma maneira ou de outra, o poder que a companhia adquiriu localmente vem de longos anos de sua trajetória como uma grande empresa de mineração não só no cenário nacional, como também no internacional. Não se pode afirmar que a CVRD omitiu sua participação na vida econômica dos municípios, pois seus projetos trouxeram recursos financeiros para onde estavam instalados. Porém, pela falta de uma visão de futuro dos políticos paraenses, não foi possível exigir da empresa um outro tipo de participação qualitativa para que ela pudesse participar mais ativamente em parcerias com os municípios na resolução de seus problemas urbanos e rurais.

Isso não quer dizer que a CVRD deixou de participar do desenvolvimento local, mas queremos dizer que sua participação poderia e pode se dar de uma outra maneira, possibilitando aos municípios não dependerem somente da empresa, mas permitindo que possam construir outra alternativa que não seja a do minério.

De fato, os 411.000 hectares, que estão sob o poder de exploração da empresa, impedem a abertura de uma outra frente que correlacione o poder na região. Com o monopólio da CVRD fica difícil negociar. Não foi possível quebrar as barreiras do protecionismo da empresa e criar abertura para que outras empresas brasileiras viessem a explorar a região com compromisso e responsabilidade, visando ao desenvolvimento dos locais onde estivessem sendo instalados novos empreendimentos. Se isso tivesse acontecido, ter-se-ia evitado fugas de projetos para outros estados, viabilizando realmente seus interesses com compromisso de efeito multiplicador na região. Houve, no caso, ausência de planejamentos que levassem em conta a participação efetiva da sociedade local, criando alternativas de viabilidade não só econômica, mas também social, respeitando as sociedades atingidas pelos projetos.

Embora os atores sociais entrem em conflitos pelo poder local e por outro tipo de ordenamento no território, sempre excluíram de maneira direta a CVRD. Com raras exceções, como a do MST (Movimento dos Sem-Terra), a companhia não teve questionado seu papel na região com força suficiente que fizesse a empresa mudar seu comportamento no estado do Pará.

Com a privatização, aos poucos a empresa mudou, para o vizinho estado do Maranhão, sua base logística que tinha na capital paraense. Houve reclamações, mas não com a devida notoriedade, pelo simples fato de a empresa não temer a ordem legal dos paraenses.

Quais definições e proposta de desenvolvimento com base local o Estado apresentou em relação à companhia? Na visão do senso comum, desde o primeiro trem carregado de minério que saiu de Carajás através da estrada de ferro que vai da mina no Pará até o porto de Itaqui, no Maranhão, a população apenas viu o minério sair, sem nada se fazer. Para ela, parece que o Estado ficou alheio a sua condição de organizar e

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governar o território diante da lógica econômica imposta pela empresa. Assim, deixa a cargo da empresa a tarefa que de fato seria sua de direito: responsabilizar-se pela viabilidade dos territórios ocupados pela CVRD.

O destino da fábrica de placas seria outro, se de fato há muito tempo o poder público paraense tivesse deixado de lado seus interesses individuais e olhado para o futuro da mineração no estado. As relações que a CVRD vem estabelecendo localmente viabilizam o desenvolvimento de suas ações rumo ao Maranhão. Um conjunto de processos pesou na decisão de instalar a fábrica no estado do Maranhão, já que o porto está localizado em São Luís e a Estrada de Ferro Carajás tem como destino final esse estado. Dessa forma, fica muito mais em conta para a empresa diminuir seus custos instalando a fábrica no Maranhão do que atender às reivindicações dos paraenses.

Alguns dos argumentos da CVRD poderiam ter sido contestados em relação à instalação do pólo siderúrgico no Maranhão – a elite paraense só contestou o fato depois de consumado. Mais do que a capacidade de contestar, é necessário pensar em um estado não somente como mais um mero centro minerador e produtor de semi-acabados das empresas do Grupo CVRD.

Durante vários meses, ocorreu um debate, sem muito efeito para a CVRD, entre os representantes do poder público e da elite paraense, sobre a definição do pólo siderúrgico. Reuniões foram realizadas e houve debates – tudo depois de uma possível constatação de que o Pará não seria o centro das intenções da empresa para instalação do pólo siderúrgico.

Um jornal da capital paraense publicou diversos artigos sobre a CVRD, alguns deles acusando a companhia de débitos em relação aos royalties, que, segundo estudo realizado pelo DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral), estão aproximadamente em 226 milhões de reais. Segundo nota na imprensa, a CVRD disse “não concordar com os critérios utilizados pelo DNPM para a apuração desses valores e, portanto, a CVRD considera que esses valores não são devidos” (O Liberal, 2003 painel, p. 2).

Por outro lado, o DNPM acusa ainda a CVRD de ter ficado anos sem pagar a taxa de pesquisa. Essa taxa é relativa ao pagamento anual por hectare que o DNPM cobra de todas as empresas mineradoras que fazem pesquisas geológicas de exploração mineral. Com base no memorial da empresa, o DNPM expede o alvará de pesquisa e com isso cobra a taxa que representa R$ 1,06, que contabiliza uma dívida de R$ 13 milhões.

Desde 1998, quando contestou na justiça a cobrança da taxa, a CVRD vinha depositando em juízo os depósitos relativos ao pagamento da taxa. No início de 2003, a companhia voltou a pagar ao DNPM.

O estado do Pará elaborou um documento denominado “Agenda Pará”, exigindo compensações da CVRD. O documento destaca a verticalização do cobre e do alumínio no Pará, investimentos em relação ao ferro-gusa, além da construção de 40 mil casas populares para a população com renda mensal de até R$ 30,00.

Outros 180 milhões de reais (correspondentes em dólares de hoje) estão incluídos na “Agenda Pará” para a realização das obras de construção das eclusas de Tucuruí. Esse documento é uma resposta do Estado e de entidades de classes pela decisão da CVRD de instalar a fábrica de placas de aço no Maranhão. Caso a CVRD diga não à “Agenda Pará”, afirma o governador: “impõe não só uma urgente releitura da realidade paraense

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por parte da companhia, mas também uma mudança de comportamento que indique a todo o Pará um novo momento” (O Liberal, agosto de 2003: atualidades, p. 6).

Desses 411.000 hectares, a CVRD tem explorado uma parte e suas pesquisas delineiam que serão utilizados outros tantos hectares quantos forem de interesse da companhia. Porém, na gestão territorial, o estado paraense que não fomentou práticas disciplinadoras de exploração mineral, mostra a sua omissão enquanto poder público – o mesmo poder que hoje contesta o tratamento dispensado pela CVRD ao estado do Pará.

A privatização levou ao esquecimento projetos tidos como certos no Pará e à mudança de comportamento da companhia em relação ao território em que atua. Municípios ficaram só na esperança e sem qualquer justificativa aceitável: por que os projetos antes prioritários ao Estado e à companhia hoje estão no esquecimento e por que compromissos assumidos foram esquecidos?

Não se pode dizer o mesmo em relação aos municípios que recebem os royalties – na sua maioria, os municípios paraenses, no sudeste do estado, vivem em precárias condições e dependem dos repasses dos fundos do governo federal e estadual.

Parauapebas é o maior exemplo disso. Canaã dos Carajás, que está recebendo o Projeto Mineração Serra do Sossego da CVRD, também deposita suas esperanças nos royalties e nas arrecadações advindas das empresas que virão para o município. Assim, as políticas públicas vão sendo direcionadas segundo as intencionalidades dos projetos da CVRD. As relações de poder que comandam as ações políticas dos paraenses quase sempre foram desfavoráveis ao estado do Pará, muito embora tenhamos representantes nos poderes do Estado Brasileiro. A Amazônia passou por experiências desastrosas e pouco se tomou como lição. Apenas continuamos a repetir erros do passado quando se trata de falta de planejamento para o Pará e para toda a Amazônia.

Destarte, a maior experiência que se venha a tirar das relações da empresa com o Estado é que precisamos evoluir em termos de proposta e de viabilidade econômica, financeira e social. É necessário conhecermos os recursos naturais que podem contribuir para o desenvolvimento da sociedade paraense.

O Estado precisa ter um projeto de desenvolvimento não setorizado, mas que atinja o seu território como um todo. Só teríamos condições de conceber as riquezas e dar condições às sociedades locais para que participassem do desenvolvimento de cada localidade se viabilizássemos as condições político-econômico-sociais das sociedades locais.

A questão da siderurgia parece ser coisa do passado. O desenvolvimento paraense poderia ser pensado em termos do presente. E, para o futuro, é indispensável criar condições para viabilizar a parceria da CVRD, sem que essa seja o maior interlocutor dos recursos do Pará, estado que tem que ter nos recursos naturais seu poder de barganha.

“Os donos do poder” são hoje aqueles que recebem influência dos dirigentes da CVRD e o Estado é um mero coadjuvante na economia dos recursos minerais – aquele Estado que legitimou a ação da companhia que hoje ele contesta. E atrelado ao “poder dos donos”, sem uma proposta de desenvolvimento que envolva a companhia num compromisso de planejamento, a partir dos recursos que ela extrai do estado, este faz com a CVRD uma parceria que vise o desenvolvimento das sociedades atingidas pelos seus projetos.

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Enquanto a elite paraense manifesta seu descontentamento com a empresa, para o Maranhão ela dirige todo o seu potencial de parque industrial, não só na instalação do pólo siderúrgico, mas na construção do píer de seu porto no Maranhão, para aumentar a capacidade dos navios. Segundo a ex-governadora do Maranhão, Roseana Sarney, “o novo investimento reafirma a confiança da Companhia Vale do Rio Doce no Maranhão”. Segundo a matéria do jornal O Liberal, quando entrar em funcionamento em 2004, a capacidade do terminal portuário aumentará de 56 milhões de toneladas para 85 milhões, aumentando, assim, a capacidade do porto de Ponta da Madeira no Maranhão. Com isso, estima-se que a quantidade de navios chegará a 50 por mês.

A CVRD prepara-se para ampliar sua exploração mineral no Pará, e prepara sua infra-estrutura para receber essa produção no Maranhão. A elite paraense diz que em troca receberá a migração que passará a ocupar o território do sul/sudeste paraense e o minério ficará no Maranhão. A contradição está na crença de que a economia do minério irá sozinha trazer o desenvolvimento para os dois estados. Nesses anos todos que a companhia explora o minério na Região Amazônica, pouca coisa mudou em se tratando da melhoria das condições e qualidade de vida daqueles municípios que estão sob a área de influência da empresa nos dois estados.

Outro fato importante é que a preparação da segunda fase do porto de Itaqui e Madeira no Maranhão proporcionará à CVRD receber a atracação do maior graneleiro do mundo – “Berge Stahl”. Hoje, o único porto que recebe embarcações com capacidade para até 360 mil toneladas de carga é o de Rotterdã, na Holanda.

Enquanto o Pará vai à imprensa e denuncia, o Maranhão prepara seu espaço e realiza infra-estruturas em seu território, abrindo possibilidades de novos empreendimentos da CVRD. Nesse ínterim, parece que a questão locacional favorece as proximidades do Porto, que recebe cada vez mais infra-estrutura e se moderniza para novos tempos de globalização e de inserção da empresa no mercado internacional.

A realidade é que com os processos de poder, que vieram junto com os interesses de um grande grupo de mineração, qual seja, a Companhia Vale do Rio Doce, aos poucos se suplantou o poder do Estado paraense e até mesmo o nacional. A CVRD se multifacetou e criou sua hegemonia no território que ela domina em Carajás, direcionando seus interesses muito diferentes dos interesses do estado do Pará.

Uma outra questão relevante está relacionada ao papel das siderúrgicas que atuam em Marabá. Depois de decidido o pólo siderúrgico para o Maranhão, a Companhia Vale do Rio Doce anunciou a joint-venture com uma empresa norte-americana – Nucor. A CVRD deverá vender minério de ferro para a empresa norte-americana, que transformará em ferro-gusa e exportará para sua matriz nos Estados Unidos, onde será transformado em aço. Pelo projeto será construída uma usina em Marabá.

Estudos realizados pelo Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (CREA-PA) indicam a possibilidade de construção de mais usinas no Pará – uma de placas de ferro e outra para produção de blocos, tarugos e aços longos. Segundo o geólogo Evaldo Pinto da Silva, “a produção do Maranhão está estimada em 3,7 milhões de toneladas/ano, enquanto a demanda mundial de placas hoje é de 26 milhões de toneladas/ano e a previsão para o ano de 2010 é de 35,5 milhões de toneladas/ano” (O Liberal, agosto de 2003, painel, p. 07).

Além do MSS (Mineração Serra do Sossego), Canaã dos Carajás terá o projeto Alvo 188. Outros projetos de cobre seguirão: Cristalino em Curionópolis, Igarapé Bahia

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e Alemão em Parauapebas e Salobo em Marabá completam o projeto cobre da CVRD no Pará. Todos funcionarão com uma produção de aproximadamente 768 mil toneladas de concentrado de cobre e 261 mil toneladas de cobre catodo por anos. Com isso, o Brasil deixará de ser dependente da importação do minério. A CVRD será uma das maiores empresas produtoras de cobre e o Brasil um dos cinco maiores produtores do minério.

Do total dos investimentos que a CVRD destinou para Carajás, pouco está relacionado à verticalização da mineração no Pará. O minério continua saindo quase que in natura, sendo agregado pouco valor ao produto. Com isso, o estado deixa de arrecadar e a sociedade local acaba não sendo beneficiada pelos investimentos realizados pela companhia conforme deveria ser.

Todos os investimentos que foram feitos pela companhia são importantes – não podemos negar sua contribuição – muito embora essa contribuição só agora seja questionada. Ou seja, só agora aqueles que comandam a vida política do Estado perceberam que não bastam somente esses projetos sociais113, mas que tem que haver muito mais para gerar o efeito multiplicador na região de Carajás e assim beneficiar a sociedade local.

Desde que saiu o primeiro carregamento de minério de ferro do território paraense, essa região mudou completamente suas relações econômicas com a empresa e com os diferentes atores sociais que estão presentes no sudeste paraense. Atraídos pelos projetos, migrantes, empresas e empresários vieram em busca dos investimentos que a CVRD estava fazendo em Carajás.

A CVRD montou sua base logística em Carajás e em São Luís. Em Belém, a Docegeo e uma base administrativa foram montadas. Depois da sua privatização, a empresa desativou quase tudo na capital paraense. Aos poucos a CVRD foi transferindo todas as suas bases de Belém para São Luís, deixando apenas um de seus funcionários, o diretor de marketing, num pequeno escritório. O desmonte realizado pela empresa na capital paraense era irreversível, a empresa não tinha mais nenhuma razão para continuar em Belém e sua ligação permanecia apenas com seus projetos que estavam localizados nos municípios paraenses.

Quando a elite paraense se deu conta, a CVRD apenas continuava no Pará em razão de seus projetos, pois as minas não se deslocam de lugar. A CVRD, aos poucos, também foi embora e levou consigo a maior riqueza do subsolo paraense – seus minérios. Através de seu acelerado volume de exploração e tecnologia, aos poucos a empresa carregou para o exterior riquezas das jazidas que a natureza formou durante um longo período geológico. Como já ressaltou Stephen Bunker (1985), o que mudará nessas economias extrativistas será a aceleração do ritmo de exploração, como se pode visualizar na falta de verticalização da produção de minérios em Carajás.

Embora ocorra um aumento nas exportações do Pará, esse crescimento econômico não vem acompanhado pela modernização da indústria, nem pela ressonância econômica nos municípios, traduzidos em qualidade de vida para suas populações. Nada garante que o Pará, cada vez mais um estado minerador, possua e tenha como base somente esse tipo de economia para seu desenvolvimento. Torna-se necessário criar

113 Não temos os valores que são investidos em projeto sociais no Pará, mas certamente são pouco representativos no conjunto do lucro da CVRD. Na sua maioria, são projetos paliativos, que não resolvem os problemas sociais.

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estratégias de desenvolvimento em outras escalas como, por exemplo, o potencial agrícola do estado.

A indústria que permanece em Carajás, seja ela da CVRD, sejam suas associadas, bem como as que prestam serviço ou são parceiras da companhia, não têm apresentado significativos avanços na criação de pólos de desenvolvimento (que não deram certo na região), nem acarretado benefícios à sociedade local. Pelo contrário, em se tratando das guseiras, a floresta da região corre risco de total desaparecimento, pois não ocorre reflorestamento para se obter o carvão vegetal. Muitas vezes são trabalhadores rurais que em seus lotes utilizam a economia do carvão e vendem para guserias de Marabá, colocando em risco seu próprio futuro. É comum passar pela Transamazônica e entrar em um dos diversos ramais que levam aos assentamentos rurais e comunidades que associam a agricultura à prática de comercialização do carvão com as guserias, sem qualquer projeto de reflorestamento.

Há questionamentos em virtude de novos empreendimentos a serem instalados pela CVRD, como, por exemplo, foi o de Canaã dos Carajás, assim como o Projeto Mineração Serra do Sossego, ampliando, dessa forma, a área sob influência da CVRD. Novos estudos deverão ser feitos para definir de fato quais seriam as áreas sob influência direta e indireta da companhia, no Pará, para beneficiar esses municípios.

Enquanto não se definir essa questão, o Estado paraense precisa elaborar metas de desenvolvimento que contemplem a empresa como um de seus parceiros e não a tomem como inimiga, como querem alguns políticos, que sempre foram omissos, e quando puderam interferir numa melhor definição do papel da companhia em território paraense, nada fizeram.

As relações de poder que definem práticas espacializadas tanto da empresa como do poder público precisam ser revistas, a fim de se criarem condições de negociações entre as partes envolvidas e os representantes da sociedade civil. O território, assim, torna-se um campo onde atuam diferentes forças, que condicionam práticas diferenciais de atores sociais em busca de seus anseios. Essas práticas tornam-se opressoras para outros atores sociais quando eles se sentem prejudicados por elas. O campo de poder que se forma é marcado por conflitos de interesses, nesse caso, entre a companhia e representantes da sociedade civil.

Agora como uma empresa privada, não podendo se omitir do papel que a consagrou com uma empresa que recebeu o aval de organismos financeiros internacionais pelo seu papel que desempenha na região quando ainda era uma empresa estatal, a CVRD apresenta-se como aquela empresa que cuida do meio ambiente, que investe em projetos sociais e que, de uma forma ou de outra, mantém diálogo com aqueles que querem com ela debater.

A empresa não pode ter apenas a imagem de uma companhia que cumpre com suas obrigações financeiras sem ter nas formas de implantação de seus projetos os benefícios para as sociedades locais, que muito garantem respeito no mercado internacional. Deve preocupar-se com os impactos sócio-ambientais na sua área de atuação.

Por isso, com os pagamentos dos royalties, a CVRD equipou a cidade de Parauapebas com infra-estrutura e em outros municípios fez parcerias para tratamento de água, construção de escolas e outros investimentos. De alguma forma, a CVRD tem participado, muito embora a maioria desses projetos tenha como mentor a própria

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companhia, já que muitos municípios deixam nas mãos da empresa o papel de elaboração e realização do projeto.

Dessa forma, aos poucos a empresa assumiu, sem a menor pretensão, o papel que deveria ser do Estado e do município. Antes tudo começava e terminava na CVRD, pois ela decidia quem contratava e elaborava as formas pelas quais seriam realizados seus projetos sociais que estariam em benefício dos municípios que tinha como parceiros.

O poder, que a empresa paulatinamente foi conquistando, ultrapassou seu poderio econômico na região. Alguns de seus funcionários ou ex-funcionários tornaram-se empregados do poder público nos municípios em que a empresa atua e outros tantos foram confundidos com aqueles que tinham poder dentro do município.

O século XXI começa com os mesmos conflitos do passado, agravados pela falta de transparência de ambas as partes – Estado e empresa –, na definição de suas prioridades no território que está sob seus domínios. As sobreposições de territórios e de domínios deixam claros os diversos conflitos que surgem envolvendo diferentes setores da sociedade civil. A resolução desses conflitos passa pela definição de prioridades e do grau de desenvolvimento que cada um terá em relação ao território de seu domínio ou de sua influência, sem desconsiderar outras partes.

Sejam eles MST (Movimento dos Sem-Terra), empresa de mineração, siderurgias ou castanheiros, há necessidade de uma definição clara e de uma reavaliação do uso do território em Carajás. Como já ressaltaram Milton Santos e Maria Laura Silveira (2001), é o uso do território que interessa. Nesse caso, os recursos que estão disponíveis no território e sua utilidade respondem a sua função social e econômica na definição do projeto de desenvolvimento da sociedade de Carajás.

Nesse caso, a ordem que se faz surgir é a de um conflito de interesses quando observamos espaços dos municípios que estão sob a área de mineração em Carajás. Esses municípios são “escolhidos” pelas empresas mineradoras para efetivarem seus projetos. Enquanto isso, outras áreas, que são potencialmente virtuais para possíveis projetos, que não fazem parte diretamente do conjunto de interesses da grande empresa, ficam momentaneamente excluídas do processo de organização econômica do território. A organização territorial que envolve outros atores sociais, como é o caso de Carajás, acontece pela forma de conflito, envolvendo diferentes interesses e atores sociais que não estão diretamente ligados à empresa de mineração. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A multiplicidade de fenômenos, que ao longo da História do Pará acelerou as transformações sócio-espaciais, não foi acompanhada de políticas públicas que contemplassem de imediato a curto, médio e longo prazo as sociedades amazônicas. O que, por sua vez, criou processos de pobreza e acabou não garantindo suas permanências sócio-econômico-culturais nas regiões que os grandes projetos se instalaram, como foi o caso de Carajás.

Os corredores ou eixos de desenvolvimento no Pará, seguem a sua própria lógica de organização territorial. Esta última responde aos interesses das elites econômicas locais e internacionais, conflitando com os interesses das sociedades, que em sua maioria foram vítimas do processo de capitalização na Amazônia pelo grande capital da mineração, o qual a conectava à escala internacional pelo valor estratégico que seus recursos minerais têm na economia-mundo.

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Os interesses econômicos internacionais contrastam com a pobreza local. Rica em minerais e em outros recursos naturais, a Amazônia paraense convive com o quase completo abandono de ordem legal por parte do Estado para manutenção de suas sociedades. Garantir mais que suas permanências no território é um desafio que a sociedade civil organizada tem para sua própria viabilidade sócio-econômico-cultural na região paraense.

É necessário garantir as populações tradicionais e a toda sociedade que vive na Amazônia seus direitos, não só de uso dos recursos naturais, mas também de humanidade. Respeitando suas particularidades, assim como seu direito de escolher suas formas de integração e desenvolvimento sócio-econômico.

A multiplicidade de atores sociais que lutam pelos seus mais variados direitos tende a acirrar o controle e as lutas pelo uso e posse dos recursos naturais essenciais para o desenvolvimento da sociedade amazônica. E, ainda hoje, na Amazônia do século XXI, antigos males do passado assolam a nossa história de impunidade e desrespeito pelos povos amazônicos, como conflitos agrários entre os mais diversos atores sociais e a entrada simultânea do grande capital – seja ele das grandes empresas mineradoras, seja do agronegócio –, sem o devido planejamento de ordem social e econômica que acabam desconsiderando as potencialidades e as particularidades das comunidades amazônicas.

É necessário criar possibilidades efetivas de participação da sociedade civil nas formas de desenvolvimento regional, não como mera coadjuvante, mas como produtora de sua realidade para legitimar e legalizar seu papel de sociedade civil, na produção de seus territórios.

O grande desafio nas formas de uso dos recursos naturais, na Amazônia, está na maneira de não mais cometermos os erros do passado. Não é mais possível ocupar a floresta com atividades predatórias como foram as agropastoris, madeireiras e as explorações indiscriminadas dos recursos minerais.

A forma, o uso e a transformação dos recursos minerais estão sendo realizados na Amazônia de maneira irracional para as sociedades locais. O que somente mudará será seu ritmo acelerado sem os efeitos multiplicadores, aumentando na região a dicotomia entre as formas de exploração dos recursos e a dinâmica econômica regional. Por sua vez, riqueza e pobreza regional convivem juntas, sem interferência do poder público para direcionar os efeitos multiplicadores.

Como garantir um projeto nacional de uso dos recursos minerais se o controle e a ausência do Estado são quase completos na Amazônia, especialmente no estado do Pará? Municípios ricos em minerais contrastam com a pobreza local. A ausência legal de canais, que possibilitem a participação da sociedade civil organizada, prevalece na maioria das localidades paraenses. Se as políticas de ordenamento territorial forem construídas sem a efetiva participação da sociedade civil, nada teremos de novidade, senão a legitimação do processo de exterminação dos recursos humanos e naturais, acirrando ainda mais os conflitos na região e no estado do Pará com a falta de participação dessa sociedade.

É necessário se discutir a essência da palavra participação na Amazônia nas suas mais diferentes frentes de inserção da sociedade, para não se destruir o patrimônio natural, social e cultural amazônico – apenas usando como exemplos o que já vem sendo alertado por alguns autores que estudam os processos de transformação do espaço amazônico.

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Dessa forma, torna-se necessário analisar as políticas e práticas que têm como objetivo conservar, preservar e modificar o território amazônico, com aquelas sociedades que fazem do estado do Pará seu habitat para suas relações de produção e que possam, assim, garantir suas territorialidades com mais justiça social. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (FALTOU O SOBRENOME E O PRENOME DO AUTOR DO ARTIGO). A Vale samba o Pará dança. O Liberal, Belém, 02 mar. 2003. Atualidades, p. 02. ASSEMBLÉIA Legislativa do Pará. Comissão especial de estudos das possibilidades econômicas e administrativas de emancipação das sub-regiões Tapajós e Carajás. Relatório Geral. Belém, 1995. ASSOCIAÇÃO Independente dos Fiscais de Tributos do Estado do Pará. Pará fiscal. Belém: ASIFEPA, 1997. n.116. BRASIL Mineral. A integração de Carajás, (FALTOU A CIDADE DE PUBLICAÇÃO), n.28, mar. 1986. BRASIL Mineral. Para onde vai a Vale, (FALTOU A CIDADE DE PUBLICAÇÃO), ano V, n.43, jun.1987. BUNKER, S. G; COELHO, M. C. N; LOPES, A. G. Ferro, castanha-do-Pará e a luta pela terra: o em torno de um projeto de mineração na Amazônia. In: PALHETA, J. M. da S.; SILVEIRA, M. R. (Org.). Geografia econômica do Brasil: temas regionais. Presidente Prudente: Ed. UNESP, 2002. p.15-40. CARAJÁS. Mesa redonda internacional – relatório. Fórum Carajás, 1995. CAREPA, A. J. Um novo modelo de desenvolvimento para a Amazônia. Brasília: Senado Federal, 2003. COELHO, M. C. N.; COTA, R. G. (Org.). 10 anos da estrada de ferro Carajás. NAEA/UFPA, 1997. COMPANHIA Vale do Rio Doce. Atividades no Pará. Rio de Janeiro: CVRD, 2003. COMPANHIA Vale do Rio Doce. Carajás atualizado. Rio de Janeiro: CVRD, 1995. COMPANHIA Vale do Rio Doce. Relatório anual. Rio de Janeiro: CVRD, 1994. COMPANHIA Vale do Rio Doce. Relatório social. Rio de Janeiro: CVRD, 2002. COTA, R. G. Carajás: a invasão desarmada. Petrópolis: Vozes, 1984. CRUZ NETO, R. G; GRUDA, J. P. Sudeste do Pará: um estudo de sua história. Marabá: CEPASP, V. I, 1990. DEPARTAMENTO Nacional de Produção Mineral. Informe mineral. Brasília: DNPM, 2003. EMMI, M. F. A oligarquia do Tocantins e o domínio dos castanhais. Belém: NAEA/UFPA, 1988. HÉBETTE, J. (Org.). O cerco está se fechando. Belém: NAEA/UFPA, 1991. NOSSO Pará. A economia dos contrastes. Belém: [s.n.], 1999. PALHETA, J. M. da S.; SILVEIRA, M. R. (Org.). Geografia econômica do Brasil: temas regionais. Presidente Prudente: Ed. UNESP, 2002. ROBERTS, J. T. Squatters and urban growth in Amazônia. (FALTOU A CIDADE): (FALTOU A EDITORA), (FALTOU O ANO). (FALTOU O NÚMERO DE PÁGINAS). (Mimeo). SECRETARIA de Estado de Indústria Comércio e Mineração. Pará rico por natureza. Belém: SEICOM, 1999.

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TRIBUNAL de Contas dos Municípios do Estado do Pará. Município de Marabá. Belém: 2002.

DIFERENCIAÇÃO ESPACIAL E FORMAÇÃO DE SUB-REGIÃO: O BAIXO TOCANTINS NA AMAZÔNIA

ORIENTAL*

SAINT-CLAIR CORDEIRO DA TRINDADE JÚNIOR Universidade Federal do Pará (UFPA)

Belém – PA [email protected]

INTRODUÇÃO

Quando se busca o reconhecimento de uma região como unidade geográfica e como espaço de planejamento e gestão, algumas posturas têm sido recorrentes. Uma delas considera a falência da região. Isso porque os processos de globalização, especialmente da economia e da cultura, teriam se encarregado de tornar os espaços mais homogêneos, induzindo a uma dificuldade de reconhecer nitidamente conjuntos regionais e/ou sub-regionais. Uma outra postura defende a dificuldade de se estabelecer políticas públicas numa escala intermediária entre o local e o nacional, ao modo da região ou da sub-região, tendo em vista a ausência de uma clara representação política nesse nível de organização espacial/geográfica. Há ainda a postura que advoga o foco das políticas de desenvolvimento na escala local, e especificamente na escala municipal, como parte do projeto de descentralização das políticas públicas e da gestão. Daí a recorrência em se falar de desenvolvimento endógeno e desenvolvimento local, dando-se ênfase à escala do município, em vez de políticas de desenvolvimento regional, como era bastante comum num passado bem recente.

Para o caso amazônico, soma-se a essas argumentações o chamado "fracasso" das políticas de desenvolvimento regional que ocuparam as agendas governamentais, especialmente a partir da década de 1960, quando então um dos principais focos do planejamento se colocava em nível regional.

O presente trabalho busca reconhecer, a partir de um subespaço específico – o Baixo Tocantins, no estado do Pará – as particularidades socioespaciais que o caracterizam como uma sub-região no contexto da Amazônia oriental. Para isso problematiza-se a relação sociedade-natureza do ponto de vista da formação

* O presente artigo constitui-se parte das contribuições do autor nas discussões, diagnóstico e elaboração de Planos Diretores de Municípios localizados à jusante da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins, no estado do Pará, por meio de Convênio entre a UFPA (Universidade Federal do Pará), a ELETRONORTE (Centrais Elétricas do Norte do Brasil S. A.), a FUNPEA (Fundação de Apoio à Pesquisa, Extensão e Ensino em Ciências Agrárias) e as Prefeituras dos Municípios de Baião, Cametá, Igarapé Miri, Limoeiro do Ajuru e Mocajuba.

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socioespacial, de maneira a compreender o processo de produção do espaço que o define como uma unidade sub-regional. A REGIÃO E A DIALÉTICA DO UNIVERSAL E DO SINGULAR

Quando se fala em unidades regionais como a Amazônia, ou em unidades subregionais, como o Baixo Tocantins114, não se pensa no reconhecimento de um espaço geográfico apresentando uma pretensa unicidade, como se poderia imaginar num primeiro momento, mas em reconhecer particularidades que estejam assentadas na formação socioespacial desse conjunto considerado. A necessidade de se pensar em planos diretores urbanos, conforme os atuais parâmetros legais, seja do ponto de vista constitucional, seja do ponto de vista do Estatuto da Cidade, que enfoca a escala do planejamento especialmente em nível municipal, dificilmente as questões regionais e sub-regionais podem ser descartadas, dado o conjunto de elementos que devem ser pensados para fins de planejamento e gestão para além da escala municipal. Daí, mais uma vez, tornar-se premente a discussão dessa escala geográfica como foco de políticas públicas de desenvolvimento socioespacial.

Assim, parte-se do pressuposto de que para se compreender o Baixo Tocantins é necessário considerá-lo como uma sub-região, na acepção geográfica do termo. Nesse sentido, estamos nos referindo a certa porção do espaço que se caracteriza por uma dada particularidade. Não significa tratar de unicidade geográfica, de espaço homogêneo, nem tampouco em falarmos daquilo que é único, das singularidades geográficas:

A particularidade traduz-se, no plano espacial, na região. Esta resulta de processos universais que assumiram especificidades espaciais através da combinação dos processos de inércia, isto é, a ação das especificidades herdadas do passado e solidamente ancoradas no espaço, de coesão ou economias regionais de aglomeração que significa a concentração espacial de elementos comuns numa dada porção do espaço e de difusão que implica no espraiamento dos elementos de diferenciação e em seus limites espaciais impostos por barreiras naturais ou socialmente criadas (CORRÊA, 1997, p. 192).

A idéia de homogeneidade geográfica não ajuda a compreender um espaço, como o Baixo Tocantins, que, não obstante a identidade do ponto de vista de sua geografia física e humana, é um espaço também diverso, tanto no que diz respeito à natureza, quanto no que se refere à existência humana. Por outro lado, também não se trata de falar de individualidades ou de singularidades, que estão mais relacionadas ao conceito de lugar, que propriamente ao de região ou sub-região.

Sabemos muito bem da existência de diversas singularidades, ou seja, de diferenças internas que poderiam ser reconhecidas nesse conjunto sub-regional que é o Baixo Tocantins, mas é principalmente a partir de suas particularidades que podemos identificá-la como uma sub-região. Nesse sentido, a proposta de entendimento a ser esboçada aqui, busca reconhecer essa fração do espaço amazônico como um espaço particular, como uma sub-região, que serve de mediação entre o regional (Amazônia) e o singular (os espaços locais).

114 Para efeitos do presente diagnóstico, estamos considerando como Baixo Tocantins o conjunto regional formado pelos seguintes Municípios: Baião, Mocajuba, Cametá, Igarapé Miri e Limoeiro do Ajuru. Todos eles situados à jusante do rio Tocantins e da barragem da Usina Hidrelética de Tucuruí.

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Considerando a impropriedade de se tratar essa sub-região como espaço homogêneo e a dificuldade de situá-la no contexto maior em que se insere reconhecendo apenas singularidades, uma indagação se faz pertinente: quais as particularidades que permitem reconhecer o Baixo Tocantins como sub-região? A resposta a essa questão pode ser encaminhada de diferentes maneiras.

Num dado enfoque geográfico, o quadro fisiográfico poderia definir uma unidade sub-regional a priori, considerando, por exemplo, a presença e a importância do rio Tocantins na caracterização geográfica dos municípios aí presentes. Sem dúvida, várias críticas podem ser dirigidas ao reconhecimento do Baixo Tocantins como um sistema fisiográfico a priori. Primeiro porque privilegia um quadro natural, cuja existência é anterior à presença do homem, desconsiderando processos históricos e identidades culturais que conformaram seu espaço socialmente produzido, cuja caracterização vai além do espaço natural. Depois, porque desconsidera a formação territorial e sua dimensão humana e histórica como elemento importante para reconhecer e compreender o papel desse subespaço no contexto amazônico e brasileiro.

É necessário, portanto, considerar a formação geográfica não necessariamente a partir de uma base fisiográfica como ponto de partida, na qual os processos históricos e socioeconômicos acontecem e se desenrolam, como atores num cenário pré-definido, posto que tal postura nos induziria a estabelecer recortes regionais ou sub-regionais pré-concebidos, anteriores à dinâmica social e, portanto, arbitrários do ponto de vista dos processos históricos.

Também não é suficiente pensar na possibilidade de uma combinação harmônica de processos naturais e socioeconômicos, definindo um possível gênero de vida sub-regional, à maneira das regiões vidalianas, tão recorrentes na geografia clássica. Definir, dessa forma, significaria estabelecer caracterizações fisiográficas isoladas, seguidas de perfis econômicos, culturais e demográficos também isolados, que posteriormente seriam articulados entre si para o reconhecimento de um quadro sub-regional bem específico. Nesse caso, mais uma vez a relação que se estabelece entre sociedade e natureza, definindo padrões de organização territorial, formas de reprodução econômica e de representações sócio-culturais seria tratada como o resultado de uma somatória de fatores que, quando sobrepostos, definiriam uma dada particularidade regional.

De igual modo, identificar uma sub-região reconhecendo-se simplesmente núcleo ou núcleos polarizadores que irradiam fluxos de mercadorias, pessoas e informações dentro de um raio de influência imediata, à maneira dos modelos econômicos desenvolvimentistas, não ajuda a tratar a formação territorial e socioeconômica como decorrentes de processos históricos que explicam a natureza das relações e de elementos espaciais. Esses elementos espaciais compõem o quadro territorial, visto não apenas como base física, mas como um sistema que é composto por objetos naturais e socialmente produzidos – que definem paisagens, formas e padrões de organização do espaço – e relações, que dão sentido a esses objetos e formas geográficas, revelando particularidades regionais e sub-regionais, como se percebe no Baixo Tocantins.

A necessidade de superação de meros discursos sobre a região ou a partir da região e de avançar na proposição conceitual é algo que tem exigido cada vez mais repensar a definição de região e, consequentemente, de sub-região. O que então considerar nessa definição?

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BAIXO TOCANTINS: EM BUSCA DE SUAS PARTICULARIDADES De início, faz-se necessário levar em conta na constituição do quadro regional e/ou

sub-regional o homem como o centro dessa discussão. Nesse sentido, a particularidade regional é dada pelo papel dos subespaços no contexto maior em que se inserem, tomando como elemento principal os agentes sociais na produção/construção do espaço geográfico e na definição do ordenamento territorial.

Por outro lado, ainda que pensar as realidades amazônicas a partir da noção de lugar seja de extrema importância nos dias de hoje, não se trata de suplantar o conceito de região e de sub-região pelo de lugar, como se a Amazônia fosse formada apenas por singularidades, ou ainda, que esse conjunto de singularidades não configurassem conjuntamente qualquer particularidade regional ou sub-regional.

A noção de região serve de mediação entre processos gerais e singulares do ponto de vista histórico e econômico, como também reconhece, no espaço, uma dimensão e um recorte mediador que pode revelar grande força política ou mesmo uma dada identidade territorial. Daí sua importância para fins de planejamento e gestão de caráter participativo e democrático.

Dessa forma, há necessidade de pensarmos o regional e, nesse caso também, o sub-regional, como sendo uma construção histórica, e, conseqüentemente, o espaço geográfico como sendo uma produção social, formada por um sistema de objetos geográficos naturais (rio, floresta, etc.) e sociais (rodovias, cidades, etc.) intrinsecamente articulados a um sistema de ações – produção econômica, relações políticas, valores culturais, etc. (SANTOS, 1994).

Nessa concepção, poderíamos falar então de uma unidade sub-regional como sendo a expressão espacial/geográfica de uma dada formação socioeconômica, sendo também, em conseqüência, uma formação socioespacial (SANTOS, 1982).

Isso nos leva também a alguns questionamentos para situarmos o Baixo Tocantins como uma unidade sub-regional na Amazônia oriental, a saber: a) qual o papel dessa fração do espaço amazônico na divisão intra-regional do trabalho?; b) que identidades histórico-culturais essa porção do espaço revela?; c) que conjuntos de objetos geográficos (naturais e socialmente produzidos) conformam particularidades ao seu ordenamento territorial? e; d) como se insere esse subespaço nas estratégias de desenvolvimento regional traçadas para a Amazônia e face às políticas territoriais pensadas para o conjunto do espaço amazônico?

O papel do homem na configuração da identidade regional não pode ser distanciado de um outro elemento que nos parece de grande importância para compreender a Amazônia: a presença da natureza.

A natureza, aqui considerada, não é a natureza isolada, mas a natureza recurso e a natureza reconhecida a partir de uma identidade de vida e ligada a relações econômicas e culturais, presentes no interior da própria região. É nesse sentido que a natureza permite compreender a particularidade, ainda que não considerada como um elemento isolado e a-histórico na formação socioespacial.

Assim sendo, desde o início do processo de ocupação pelo colonizador, o rio Tocantins foi definido como elemento estratégico na conquista da região, seja como fator que ajudava a assegurar a defesa do território, seja como perspectiva de controle econômico, razão pela qual ocorreram os primeiros povoamentos ao longo do rio e a partir dele começaram a ser extraídos os produtos da floresta, voltados inicialmente para as drogas do sertão, sob o controle das ordens religiosas. O papel do rio como via de

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circulação, logo lhe possibilitou a condição central de elemento estratégico, do ponto de vista econômico (circulação e comércio) no ordenamento territorial e na possibilidade de estruturação da embrionária rede urbana amazônica.

A natureza (rio e floresta), portanto, parece ser o elemento inicial de uma possível identidade regional que se formava. Essa natureza, com sentido econômico muito forte, especialmente do ponto de vista comercial, também favoreceu a expansão das atividades agrícolas à jusante do Tocantins quando a Coroa portuguesa, por meio da Companhia do Grão Pará e Maranhão, estimulou o comércio de produtos amazônicos com o mercado mundial (período de 1760 a 1778), com especial destaque à produção do cacau, que aí se fazia presente. Nos períodos posteriores, a floresta e o rio consolidaram, com maior ou menor inserção, sua importância na economia regional, como aconteceu no período da borracha, em que a sub-região teve pouca importância do ponto de vista da produção, mas que, nem por isso, anulou seu papel no processo comercial e de circulação das riquezas, especialmente como entreposto de outros produtos que se faziam presentes na bacia do Tocantins, como é o caso da castanha-do-Pará.

Dessa maneira, a importância da natureza é reafirmada a cada momento histórico, seja como recurso – a exemplo do extrativismo animal (o pescado no rio) e vegetal (açaí na floresta) –, seja como via de circulação.

Mesmo no momento mais recente, quando a sub-região do Baixo Tocantins é apenas indiretamente atingida pelas políticas territoriais desenvolvimentistas, a condição de jusante a que estão sujeitos os municípios que compõem essa unidade sub-regional, também referenda essa identidade. Desta feita pelos impactos ambientais relacionados ao rio e à floresta, como a diminuição da quantidade e da variedade do pescado, e também na alteração do nível de várzea, que repercutiram na produtividade agrícola.

É necessário destacar, igualmente, o papel que essa unidade geográfica assume ao longo da formação espacial amazônica na divisão territorial interna do trabalho, seja por meio do extrativismo (drogas do sertão, açaí, pescado, castanha-do-Pará, etc.), seja por meio da produção agrícola (cacau, mandioca, milho, pimenta-do-reino, etc.). Esse papel é reafirmado nos diversos momentos históricos por que passa a região, definindo-a principalmente como uma região agrícola e extrativista – conforme se observa nos dados dos principais produtos econômicos (quadro 01) e de ocupação profissional da população, segundo setores diferenciados de atividades (tabela 01) – em moldes tradicionais e com pouca modernização das técnicas de produção. Quadro 01: Principais produtos econômicos do Baixo Tocantins.

Municípios Principais produtos Baião Pimenta-do-reino, cacau de várzea,mandioca, banana. Cametá Pimenta-do-reino, cacau, açaí, madeira em tora. Igarapé Miri Açaí, pimenta-do-reino, cacau, café, olaria, movelaria, construção naval, lavoura

branca. Limoeiro do Ajuru Açaí, pesca, cacau de várzea, madeira, palmito, olarias. Mocajuba Pimenta-do-reino, cacau de várzea, açaí, mandioca, arroz e milho.

Fontes: Prefeituras dos Municípios e IBGE. Censo Demográfico, 2000 apud Projeto GESPAN (2004).

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Tabela 1: Pessoas de 10 anos ou mais de idade, ocupadas por setor de atividade do trabalho – 2000.

Baião Cametá Igarapé Miri L. do Ajuru Mocajuba Municìpios/ setores Hab. % Hab. % Hab. % Hab. % Hab. %

Agricultura, Pecuária, Silvicultura, Explo. Florestal e pesca

3.608 52,18 17.848 56,38 4.974 28,63 2.414 41,09 3.265 49,80

Ind. Extrativa e de transferência e distribuição de eletricidade, gás, água.

892 12,90 2.241 7,08 4.134 23,79 815 13,87 629 9,59

Construção 177 2,56 731 2,31 619 3,56 103 1,75 327 4,99 Comércio, reparação de veículos automotores, objetos pessoais e domésticos

946 13,68 3.815 12,05 3.212 18,49 942 16,03 712 10,86

Alojamento e alimentação

87 1,26 631 1,99 458 2,64 115 1,96 220 3,36

Transporte, armazenagem e comunicação

113 1,63 806 2,55 525 3,02 254 4,32 123 1,88

Intermediação financeira e atividade imobiliária, aluguéis e serviços prestados às empresas

120 1,74 432 1,36 229 1,32 40 0,68 98 1,49

Administração pública, defesa e seguridade social

228 3,30 839 2,65 564 3,25 311 5,29 166 2,53

Educação 410 5,93 1.735 5,48 1.022 5,88 435 7,40 370 5,64 Saúde e serviços sociais

34 0,49 455 1,44 136 0,78 50 0,85 165 2,52

Outros serviços coletivos, sociais e pessoais

90 1,30 414 1,31 341 1,96 111 1,89 195 2,97

Serviços domésticos

107 1,55 868 2,74 836 4,81 179 3,05 277 4,23

Organismos intern. e outras inst. Extraterritoriais

- - - - - - - - - -

Atividades mal definidas

104 1,50 842 2,66 325 1,87 106 1,80 9 0,14

TOTAL 6.915 100,00 31.657 100,00 17.375 100,00 5.875 100 6.556 100,00 Fonte: IBGE. Censo Demográfico, 2000 apud Projeto GESPAN (2004).

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O sentido da ocupação do território amazônico, a partir da jusante, também deu

uma importância histórica fundamental ao baixo curso do rio Tocantins, que definiu uma subunidade regional registrada por “rugosidades geográficas” – marcas do passado fixadas no espaço (SANTOS, 1978) –, com destaque para a cidade de Cametá, à margem esquerda do rio, que é uma das mais antigas cidades da região (fundada em 1635). Os municípios aí existentes fizeram parte de uma formação territorial que não é recente (quadro 2) se considerarmos o conjunto do espaço regional amazônico. Quadro 2: Genealogia e dinâmica municipal do Baixo Tocantins.

Município Origem e dinâmica Cametá

Originário do sítio Camutá Tapera, fundado em 1620, próximo da aldeia dos índios Camutás, pelo Frei Cristovam de S. José, à margem esquerda do rio Tocantins. Em 1635 teve suas terras doadas por Francisco Coelho Carvalho, 1o. Governador do Maranhão, a seu filho Feliciano Coelho, que fundou a vila Viçosa de Sta. Cruz de Cametá. Em 1713 adquiriu conhecimento legal na categoria de Vila. Em 1841 recebeu a categoria de Comarca. Em 1848, foi elevada à categoria de cidade. Em 1930 foi confirmada sua condição de Município.

Baião

Fundada à margem direita do rio Tocantins em 1694. Originária da sesmaria concedida por Antônio de Albuquerque Carvalho a Antônio Baião. É elevada à categoria de freguesia em 1758. Elevada à categoria de vila em 1833 com a denominação de Nova Vila de St. Antônio do Tocantins. Em 1843 volta a denominar-se de Baião. Elevada à categoria de cidade em 1895.

Igarapé Miri

Antiga paróquia, erguida em 1753. Elevada à categoria de freguesia em 1758. Elevada à categoria de vila em 1843 e de cidade no mesmo ano. Em 1930 é extinta, anexada a Abaetetuba, recriado no mesmo ano.

Mocajuba

Freguesia fundada em 1853 a partir do povoado de Maxi. Transferência da sede da freguesia de Maxi para o Sítio Mocajuba em 1854. Elevada à categoria de vila em 1872, quando foi desmembrada de Cametá. Elevada à categoria de cidade em 1895. Em 1930 o Município é extinto e anexado a Baião, e recriado em 1935.

Limoeiro do Ajuru

Formação histórica datada do século XIX. Em 1961 foi reconhecido como Município, desmembrado de Cametá.

Fonte: Tavares (1992), A Província do Pará (1994) e www.pa.gov.br. Organização: Saint-Clair Cordeiro da Trindade Júnior.

Assim, o elemento natural – a jusante do rio – adquire um sentido histórico, uma

vez que está associado ao processo de produção social do espaço. Essa importância confere, igualmente, um ordenamento dendrítico ao território, ou seja, um sentido de ordenamento e povoamento definido precipuamente pela circulação fluvial, acompanhando a via principal e seus afluentes.

São elementos caracterizadores do padrão dendrítico: a) forte dependência da circulação fluvial; b) ausência de cidades de porte médio; c) grande número de cidades

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locais com funções econômicas e político-administrativas muito similares; d) forte dependência em relação a uma cidade primaz, que se destaca pela sua importância, localização e magnitude, responsável, igualmente, por drenar os fluxos e as riquezas de sua hinterlândia (CORRÊA, 1987).

No caso do Baixo Tocantins, o padrão dendrítico parece não se romper completamente se o compararmos a outras subunidades regionais da Amazônia oriental. Isso se ratifica pela forte dependência, ainda, da circulação fluvial – não obstante a presença de rodovias estaduais paralelas ao rio (Transcametá, PA-151 e PA-150) – e pela ausência de cidades de porte médio, ainda que Cametá assuma um papel de cidade intermediária no sistema de cidades, quanto ao oferecimento de serviços e à distribuição de determinadas mercadorias115. Sua importância, sua forma e seu perfil de polarização não a definem, entretanto, como um sub-centro regional, como ocorre com Marabá, no sudeste do Pará, e com Santarém, no oeste paraense. Em contrapartida, a presença dominante de centros urbanos locais (Baião, Igarapé Miri, Mocajuba e Limoeiro do Ajuru), com população reduzida (tabela 1) e com pequena oferta de serviços, define um conjunto de cidades com funções muito parecidas, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista político-administrativo, cujo rebatimento é flagrante na paisagem intra-urbana. Tabela 2: População das cidades do Baixo Tocantins (ano de 2000).

Cidades Número de habitantes Baião 7.944 Cametá 31.775 Igarapé Miri 22.856 Limoeiro do Ajuru 3.771 Mocajuba 14.464

Fonte: IBGE (2000). A baixa complexidade do sistema de cidades se explica em grande parte, ainda,

pelo papel polarizador que é exercido por Belém como cidade primaz para o conjunto de cidades localizadas no baixo curso do rio Tocantins. Belém é responsável pela drenagem de riquezas e de fluxos dessa sub-região, que é definida como hinterlândia imediata da

115 De maneira um pouco diferente de Andrade e Lodder (1979), que consideram similares as denominações centros intermediários, cidades médias, cidades de porte médio, centros urbanos médios, cidades de posição intermediária na hierarquia urbana brasileira e cidades de extrato médio, consideramos, acompanhando o raciocínio de Sposito (2001), cidade de porte médio como aquela que possui um determinado patamar populacional, delimitado aqui, a partir da proposição de Santos (1993) entre 100.000 e 500.000 habitantes; e cidades médias aquelas que assumem um determinado papel na estrutura urbana regional como centro sub-regional, não sendo simplesmente centros locais, mas que são capazes de polarizar um número significativo de centros menores e articular relações de toda ordem como anteparo e suporte às metrópoles regionais, não compondo junto com estas uma unidade funcional contínua e/ou contígua. Por outro lado, as cidades intermediárias são aquelas que se colocam num intervalo da hierarquia urbana entre as principais cidades regionais e as cidades locais, podendo ou não assumir importância regional. Assim considerando, toda cidade média é uma cidade intermediária, mas nem toda cidade intermediária pode ser considerada cidade média. Ademais, existem centro urbanos de porte médio que não são necessariamente cidades médias, a exemplo do que acontece com as cidades de mais de 100.000 habitantes que compõem regiões metropolitanas. Há, ainda, cidades que, mesmo não atingindo o porte médio, assumem o papel de centros urbanos sub-regionais, alçando-se, portanto, à condição de cidade média.

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capital do estado, ao mesmo tempo colocando aquela sub-região em dependência direta desta cidade primaz. Essa é uma continuidade do padrão de organização do espaço e dos fluxos que a configuram, pouco alterada ao longo de todo o processo de formação histórica do espaço regional amazônico, e que não foi rompida, mesmo nos últimos anos, em decorrência da reestruturação do espaço regional. Isso faz revelar, novamente, uma outra particularidade sub-regional do baixo curso do rio Tocantins, fazendo-o bem diferente de outras sub-unidades regionais da Amazônia oriental.

O padrão dendrítico, dominante no ordenamento territorial, e que configura uma baixa complexidade ao sistema de cidades, é, também, uma permanência da paisagem ribeirinha, que confere uma importante particularidade a esse subconjunto regional. Esse sistema simples de povoamento existente no Baixo Tocantins também se difere dos altos e médios cursos do rio, cuja polarização foi capturada por outros núcleos regionais e extra-regionais, relativizando a importância polarizadora da capital do estado do Pará, que assume a condição de metrópole da Amazônia oriental e que para o Baixo Tocantins se define como cidade primaz no sistema de cidades.

Do ponto de vista do modelo de urbanização aí presente, uma outra particularidade se revela: a forte presença da cidade tradicional. No atual contexto regional, reconhecem-se vários modelos de urbanização que foram impostos e/ou que subsistem, a saber: o modelo de urbanização espontânea (decorrente das frentes de expansão agrícola, mineral, etc.), o modelo de urbanização dirigido pelo Estado ou pela iniciativa privada (relacionado a projetos de colonização agrícolas que usaram como bases logísticas as agrovilas, as agrópolis e as rurópolis), o modelo de urbanização dos grandes projetos (construção de franjas urbanas modernas e planejadas – company towns – para atender aos interesses das empresas), e o modelo de urbanização tradicional (cidades ribeirinhas, que subsistem e mantêm fortes ligações com o rio e com a floresta) (BECKER, 1990b).

Para a realidade do Baixo Tocantins, uma sub-região tradicionalmente ribeirinha, afetada apenas indiretamente pelas frentes de expansão econômica, que tomaram corpo a partir da década de 1960, nos parece marcante a presença do modelo de urbanização tradicional, ainda que seja uma região situada entre dois grandes empreendimentos, a Usina Hidrelétrica de Tucuruí (produção de energia elétrica) e o Complexo Albras/Alunorte (produção de alumina e alumínio). A título de exemplo, nenhum dos grandes projetos instalados no Pará situam-se na microrregião de Cametá ou mesmo na mesorregião do Nordeste Paraense (quadro 03).

A única exceção a esse quadro sub-regional diz respeito à porção territorial de Baião que faz divisa com o Município de Tucuruí. Nesse caso em específico, as dinâmicas de ordenamento do território e de formação socioespacial têm acompanhado de perto a mesma dinâmica verificada naquele Município. Quadro 3: Grandes projetos no estado do Pará.

Grande Projeto Município Distância aproximada da capital

Microrregião Mesorregião

Projeto Carajás Parauapebas 879 km Parauapebas Sudeste Paraense Projeto Albras/Alunorte Barcarena 30 km Belém Metropolitana de

Belém UHE de Tucuruí Tucuruí 300 km Tucuruí Sudeste Paraense Projeto Trombetas Oriximiná 800 km Óbidos Baixo Amazonas Projeto Jarí Almerim 400 km Almerim Baixo Amazonas

Fonte: Trindade Junior (2002a).

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Dentre as principais características dos municípios situados à jusante da Usina

Hidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins, destaca-se a tradição ribeirinha da população local, traduzida, igualmente, para o plano de sua organização espacial – herança de uma forma dendrítica de rede urbana (CORRÊA, 1987) –, a despeito de outras formas de circulação que mais recentemente passam a articular essas realidades locais ao restante da região. Diferentemente dos municípios situados à montante da mesma hidrelétrica, na sua maioria recentemente emancipados e com forte influência da dinâmica das rodovias, da lógica intencional do Estado (MACHADO, 1999) e da mobilidade da força de trabalho recém-chegada à Região Amazônica, o sistema de povoamento urbano situado à jusante, possui uma forte presença de populações tradicionais – inclusive quilombolas (quadro 2) –, de origem local, que traduz estreita relação com o rio, não simplesmente por estarem localizados às margens desse, mas principalmente por apresentarem uma interação funcional (a exemplo da circulação fluvial e uso para as atividades domésticas), de subsistência material (fonte de recursos alimentares), lúdica (uso do rio para o lazer) e simbólica – imaginário sócio-cultural (TRINDADE JUNIOR, 2002b). Quadro 4: Comunidades quilombolas no Baixo Tocantins.

Municípios Número de comunidades

Nomes das comunidades

Baião 32 Anilzinho, Aparecida, Araquembaua, Baião, Bailique Beira, Bailique Centro, Boa Esperança, Boa Vista, Campelo, Carará, Cupu, Fé em Deus, França, Fugidos, Igarapé Preto, Igarapezinho, Joana Peres, Mangabeira, Nova América, Pachural, Pampulônia, Paritá Mirim, Pirizal, Poção, Santa Fé, São Benedito, São Bernardo, Teófilo, Umarizal da Beira e Umarizal do Centro.

Cametá 18 Biribatuba, Boa Vista, Carapajó, Curuçambaba, Jabuti-Apedu, Jaituba, Joana Coeli, Juaba, Laguinho, Mapu, Maracu do Carmo, Mola, Pacujaí, Porto do Campo, Porto Seguro, Rio Tabatinga, Tomásia e Vila do Carmo.

Igarapé Miri 01 Igarapé Miri Mocajuba 01 Vila Vizânia

Fonte: CIGA (Centro de Cartografia Aplicada e Informação Geográfica) da UnB (Universidade de Brasília) apud Jornal O Liberal, 08 mai. 2005, Cad. Atualidades, p. 3.

Por outro lado, a importância das cidades e a compreensão da estrutura interna das mesmas face ao processo de ocupação dessa sub-unidade regional se faz necessária, dado o papel que as mesmas desenvolveram ao longo do processo de produção do espaço local e regional e dada a relevância que assumem nas propostas de desenvolvimento. Como "nós" espaciais, difusores e articuladores da dinâmica social e econômica, acabam por assumir um papel fundamental no ordenamento do território. Por essas condições, mesmo que se faça presente o domínio de uma “psicosfera urbana” – esfera dos valores, dos comportamentos, que assume uma dimensão essencialmente urbana (SANTOS, 1994) –, não há como desconsiderar as fortes ligações com a vida ribeirinha tradicional. Daí a significativa presença de pessoas morando ainda

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fora das sedes municipais (tabela 2)116 –, que resguardam certa peculiaridade a esses espaços no contexto da Amazônia oriental, fortemente reestruturada pelas frentes de expansão econômica e por um processo acentuado de urbanização da população. Tabela 3: População do Baixo Tocantins segundo o local de domicílio. Município/sub-região População total População fora da sede

municipal População na sede municipal

Baião 21.119 13.175 7.944 Cametá 97.624 65.729 31.775 Igarapé Miri 52.604 29.743 22.856 Limoeiro do Ajuru 19.564 15.795 3.771 Mocajuba 20.542 6.086 14.464 Baixo Tocantins 213.572 130.528 80.810

Fonte: IBGE (2000).

No que se refere ao perfil da força de trabalho aí presente, trata-se de um grande contingente populacional com fortes raízes regionais, diferentemente do que se verifica à montante da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, cuja mão-de-obra de imigrantes é presença forte. Também a pouca versatilidade do uso dessa força de trabalho dá um perfil bastante peculiar e um diferencial a ser considerado como particularidade, haja vista que a pouca mobilidade da força de trabalho em atividades esporádicas e sazonais, a exemplo do que acontece em outras sub-regiões, define uma população de maior enraizamento, seja do ponto de vista cultural, seja do ponto de vista econômico. Tabela 4: População do Baixo Tocantins segundo a naturalidade.

Municípios/ Baixo

Tocantins

População total do município

Naturais do Pará Naturais de outros estados

Naturais de outros países

Baião 21.119 20.194 925 - Cametá 97.624 97.183 428 13 Igarapé Miri 52.604 52.104 500 - L. do Ajuru 19.564 19.513 51 - Mocajuba 20.542 20.330 212 - Baixo Tocantins

213.572

209.324

2.116

13

Fonte: IBGE (2002).

Esse perfil populacional faz do Baixo Tocantins uma sub-região de forte identidade, contrapondo-se a outras regiões onde a fronteira econômica teve um impacto muito forte, implicando, igualmente, na fragmentação territorial. Isso talvez explique a coesão política do território, fato que resulta na quase inexistência de propostas de redivisão político-administrativa, bastante comuns em outras sub-regiões da Amazônia oriental. Mesmo municípios compostos por um número significativo de núcleos menores, como Cametá, onde há os núcleos Vila do Carmo e Carapajó, não vivenciam a perspectiva de novos recortes político-administrativos e de propostas de emancipação política, à exceção de Juaba (quadro 2), que já manifestou intenção de emancipação política. Trata-se, portanto, de uma sub-região com um relativo grau de coesão interna, 116 Dos municípios considerados, o único que apresenta predominância de pessoas morando na sede municipal é o Município de Mocajuba.

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com pouca presença de migrantes extra-regionais e com pequena desestruturação do poder político historicamente consolidado. Quadro 5: Número de localidades com intenções de emancipação por desmembramento no Pará. no. novo

municìpio município de

origem sub-

região no. novo

municìpio município de

origem sub-região

1 Santana do Capim

Aurora do Pará Guamá (NP)

13 Gleba do Sudoeste

S. Félix do Xingu S. F. Xingu (SEP)

2 Vila Mandi Santana do Araguaia

C. do Araguaia (SEP)

14 Lago Grande do Curuai

Santarém Santarém (BA)

3 Icoaraci Belém Belém (MB)

15 Cruzeiro do Sul Itupiranga Tucuruí (SEP)

4 Bela Vista do Pará

Dom Eliseu Parago-minas (SEP)

16 Rio Vermelho Xinguara Redenção (SEP)

5 Vila Bela Vista

Floresta do Araguaia

C. do Araguaia SEP

17 Novo Paraíso S. Geraldo do Araguaia

Redenção (SEP)

6 Mosqueiro Belém Belém (MB)

18 Brejo do Meio Marabá Marabá (SEP)

7 Louro do Norte

Garrafão do Norte

Guamá (NP)

19 Vila Paraguatins

Aveiro Itaituba (SOP)

8 Castelo dos Sonhos

Altamira Altamira SOP

20 Vila Paraguatins

Marabá Marabá (SEP)

9 Vila Nova Canadá

Água Azul do Norte

Paraua-pebas (SEP)

21 Vila Juaba Cametá Cametá (NP)

10 Cajazeiras Itupiranga Tucuruí (SEP)

22 Santa Fé Marabá Marabá (SEP)

11 Vila Livramento

Garrafão do Norte

Guamá (NP)

23 S. José do Araguaia

Xinguara Redenção (SEP)

12 Morada do Sol

S. Félix do Xingu

S. F. Xingu (SEP)

24 Moraes Almeida

Itaituba Itaituba (SOP)

Obs.: BA – Baixo Amazonas; MJ – Marajó; MB – Metropolitana de Belém; NP – Nordeste Paraense; SEP – Sudeste do Pará; SOP – Sudoeste do Pará. Fonte: Assembléia Legislativa do Estado do Pará apud Jornal O Liberal, 18 jan. 2004, Cad. Painel, p. 9.

Do ponto de vista das políticas desenvolvimentistas, o Baixo Tocantins apenas indiretamente teve sua dinâmica afetada. Mesmo as rodovias, como a Transcametá e PA-151, paralelas ao rio Tocantins e que alteraram o fluxo da circulação fluvial, não foram capazes de negar e anular a circulação fluvial, especialmente à margem esquerda do rio, onde se situa a cidade de Cametá. Isso nos permite apontar dois elementos. Se por um lado o ordenamento territorial ficou praticamente inalterado, por outro, as políticas de compensação como aquelas decorrentes do impacto da implantação da Usina Hidrelétrica de Tucuruí também pouco se voltaram para essa sub-região, bem diferente do que aconteceu na montante, onde os impactos foram mais visíveis, obrigando as ações compensatórias a se fazerem mais presentes.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Presença forte da natureza como recurso, via de circulação e representação simbólico-cultural; padrão de ordenamento territorial de caráter dendrítico; condição de jusante ou de baixo curso fluvial como definidor de um processo histórico pioneiro na ocupação da região; modelo de urbanização tradicional, com paisagens urbanas tipicamente ribeirinhas; população com fortes raízes culturais e históricas relacionadas à vida local; coesão política e poucas perspectivas de fragmentação territorial. Essas são algumas particularidades que definem o Baixo Tocantins como um subconjunto regional no contexto da Região Amazônica e especificamente no contexto imediato da Amazônia Oriental.

Nesse sentido, pensar o desenvolvimento socioespacial para os municípios que compõem esse subconjunto regional, implica reconhecer aquelas particularidades devidamente contextualizadas no conjunto regional imediato (Amazônia oriental) e mediato (Região Amazônica), bem como refletir sobre sua configuração territorial como resultado de processos mais amplos que tiveram rebatimentos locais. Isso nos faz reconhecer no Baixo Tocantins especificidades da Amazônia ribeirinha que sobrevive, como uma unidade sub-regional, resiste e se redefine face às transformações ocorridas na Região Amazônica nas últimas décadas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, T. A.; LODDER, Celsius A. Sistema urbano e cidades médias. Rio de Janeiro: IPEA, 1979. Coleção Relatórios de Pesquisa. A PROVÍNCIA DO PARÁ, 27 e 28 de março de 1994. Caderno Especial (História dos municípios do Pará). BECKER, B. K. Amazônia. São Paulo: Ática, 1990a. BECKER, B. K. Fronteira e urbanização repensadas. In: BECKER, B. K.; MACHADO, L. O.; MIRANDA, M. Fronteira amazônica: questões sobre a gestão do território. Brasília: Ed. UnB, 1990b. p. 131-144. CORRÊA, R. L. A periodização da rede urbana da Amazônia. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 4, n.3, p. 39-68, jul./set. 1987. CORRÊA, R. L. Trajetórias geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. p. 171-80. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Sinopse preliminar do censo demográfico 2000. Rio de Janeiro: IBGE, 2000. MACHADO, L. O. Urbanização e mercado de trabalho na Amazônia brasileira. Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, vol. XIII, n.1, p. 109-138, jan./jul.1999. O LIBERAL, Belém, p. 3, 08 mai. 2005. Caderno Atualidades PROJETO GESPAN. Gestão participativa de recursos naturais. Informações básicas sobre treze municípios da região do Baixo Tocantins, estado do Pará: uma contribuição ao planejamento municipal. Belém, 2004. SANTOS, M. Por uma geografia nova: da crítica da geografia a uma geografia crítica. São Paulo: Hucitec, 1978. SANTOS, M. Espaço e sociedade. Petrópolis: Vozes, 1982. SANTOS, M. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo: Hucitec, 1994. Coleção Geografia: Teoria e Realidade, n.25.

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SPOSITO, M. E. B. As cidades médias e os contextos econômicos contemporâneos. In: SPOSITO, M. E. B. (Org.). Urbanização e cidades: perspectivas geográficas. São Paulo: Ed. UNESP, 2001. p. 609-643. TAVARES, M. G. C. O município no Pará: a dinâmica territorial municipal de São João do Araguaia-PA. Rio de Janeiro, 1992. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Instituto de Geociências, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1992. TRINDADE JUNIOR, S. C. A cidade e o urbano no Pará: significado, importância e dinâmica sócio-espacial. Belém: Ed.UFPA, 2002a. (mimeo.) TRINDADE JUNIOR, S. C. Imagens e representações da cidade ribeirinha na Amazônia: uma leitura a partir de suas orlas fluviais. Revista Humanitas, Belém, v. 18, n. 2, p. 135-148, jun. 2002b.

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O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NA AMAZÔNIA BRASILEIRA É POSSÍVEL? UM ESTUDO DE CASO EM

LÁBREA – ESTADO DO AMAZONAS (BRASIL)

LUCIENE CRISTINA RISSO Universidade Estadual Paulista (UNESP)

Ourinhos – SP [email protected]

INTRODUÇÃO

A Região Amazônica possui a maior área com cobertura florestal primária. No planeta todo subsiste apenas 1/5 desse tipo de floresta; entretanto, observa-se claramente que essa região está no centro das ameaças às florestas primárias remanescentes no planeta (WORLD RESOURCES INSTITUTE – WRI, 1997).

No presente momento histórico, infelizmente, a Amazônia está sofrendo incontáveis pressões advindas do modelo capitalista vigente, apesar de todo o movimento ambientalista. Segundo observamos, uma das principais ameaças para a Região Amazônica brasileira é o desmatamento com vistas à expansão agropecuária. Outras ameaças como o garimpo, a retirada ilegal de madeiras (principalmente em Lábrea), a biopirataria, a ação de missionários, etc., são igualmente constantes. A situação é crítica no chamado “Arco do Desflorestamento”.

Diante desse quadro, este artigo tem como finalidade identificar as influências externas que se lançam na Amazônia em geral e na comunidade indígena Apurinã do igarapé Mucuim (AM), que vive na paisagem do médio rio Purus, município de Lábrea, estado do Amazonas.

Para isso, analisamos o processo de ocupação atual da Região Amazônica e, em particular, da comunidade Apurinã, verificando os vetores de pressão e conflito. Assim procedendo, encontramos subsídios para analisar também a questão do desenvolvimento sustentável, questionando suas possibilidades diante da realidade atual.

O desmatamento se concentra na área do chamado ‘arco do desmatamento’ que se estende do Maranhão ao Acre. Os estados de Mato Grosso, Pará e Rondônia, nessa ordem, são os estados que apresentaram as maiores taxas de desmatamento no período de 1998 a 2000 (BRASIL, 2002, p.13). Os desmatamentos são realizados numa faixa de 50 Km de cada lado das rodovias que foram abertas na região. Entretanto, as fronteiras da devastação estão se ampliando para além desse arco do desmatamento, avançando para o sul do estado do Amazonas, próximas ao município de Lábrea, área de nosso estudo.

Para Lábrea, estão avançando as madeireiras (principalmente a madeireira Gethal S.A.), garimpos e grilagens de terras. No entorno da cidade predominam os desmatamentos para favorecer a agropecuária e houve uma grande migração do campo para a cidade, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) (2000).

O desmatamento realizado pelas indústrias madeireiras abre caminho para outras atividades – a pecuária, a agricultura e a colonização. Desses desmatamentos, 80% da

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madeira explorada têm origem ilegal (BRASIL, 1997), dificultando o controle do governo sobre essa atividade e a obtenção de dados confiáveis.

Segundo o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), as madeireiras foram responsáveis pela abertura de mais de 3 mil km de estradas ilegais nos últimos anos só no sul do Pará. A abertura de estradas clandestinas facilita, também, a entrada de grileiros em regiões ainda inexploradas.

Para as madeireiras a selva não tem limites. Estão macabramente modernizadas e dispõem de grandes serrarias instaladas em enormes balsas, que, navegando pelos rios, promovem verdadeira pirataria das espécies nobres e raras, sem pagar nada ao Estado. Tais madeiras vão para os países ricos, onde se transformam em móveis de luxo ou decoram ricas residências sustentadas por sua sociedade de consumo (...) As madeireiras não respeitam nem as leis trabalhistas, nem a propriedade de ninguém, nem mesmo de tribos indígenas, particulares ou do governo. Depois das árvores cortadas, serradas e o tronco principal utilizado, todas as outras partes são jogadas como lixo dentro dos rios (PROCÓPIO, 1992, p.123).

Relatórios explanam que havia “1300 madeireiras de médio porte na Amazônia e outras 1200 serrarias familiares pequenas no estuário do Amazonas em 1999” (GREENPEACE, 1999).

Durante a década de 1990, diversas indústrias madeireiras multinacionais – malasianas, chinesas e alemãs – instalaram-se na Região Amazônica, em decorrência do esgotamento crescente da cobertura florestal do Sudeste Asiático e da África Central (GREENPEACE, 1999). A Amazônia passou a ser encarada pelas multinacionais madeireiras como a principal fonte de madeira tropical.

Em 1996, a empresa malasiana WTK comprou a Amaplac do Amazonas por sete milhões de dólares, localizada numa área de 300 mil hectares próxima ao rio Juruá. A chinesa Tianjin Fortune Timber adquiriu a Compensa do Amazonas (MUGGIATI; GONDIM, 1996, p.1). As principais indústrias madeireiras multinacionais instaladas na Amazônia, de acordo com o Quadro 1, são: Quadro 1: Principais madeireiras instaladas na Amazônia brasileira

Madeireiras Origem Amacol (Amazônia Compensados e Laminados )

Kiani (EUA)

Amaplac S.A. Indústria de Madeiras WTK Brasil Florestal

Grupo WTK (Malásia)

Braspor Madeiras Ltda. Controle Português Cifec Madeira Indústria e Comércio Ltda. Cifec (China International Forestry Corporation) (China) Compensa (Madeiras Compensadas da Amazônia)

Tianjin Fortune Timber (China)

Eidai do Brasil (Eidai do Brasil Ltda. Indústria e Comércio)

Eidai Inds. Inc. USA (Eidai) (Japão)

Eldorado Exportação e Serviços Capital francês Gethal Amazonas S.A. Indústria de Madeiras Westag & Getalit AG (Alemanha) Janus Brasil Janus International Inc. (Sara Hallitex) (EUA) Jaya Tiasa (Carolina Indústria e Comércio de Madeiras Tropicais Ltda.; Companhias Maginco; Selvaplac Verde S.A.)

Rimbunan Hijau (Malásia)

Lawton Madeiras da Amazônia Lawton Lumber Company (EUA)

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Mil10 Madeiras Ltda. Precious Woods (Suíça) Nordisk Timber Ltda. Dahlhoff, Larsen & Horneman AS (Dinamarca) Robco Madeiras Robinson Lumber Co. Inc. (EUA) Terra Resources Brazil Ltda. Grupo Nevada Manhattan Inc. (EUA) Fonte: GREENPEACE, 1999.

A WTK e a alemã Gethal são líderes do mercado do Amazonas (MUGGIATI; GONDIM, 1996, p.1).

As florestas podem ser exploradas legalmente através dos planos de manejo florestal, previstos no Código Florestal nº 4771/1965. Mas, nesse universo de ilegalidade, muitas madeireiras não possuem planos de manejo. Assim, o quadro atual revela a exploração florestal praticada sem manejo adequado, a prevalência da desonestidade na fiscalização, favorecendo o corte de espécies protegidas por lei e a invasão de áreas protegidas e de terras indígenas (GREENPEACE, 1999).

As indústrias do setor, que possuem planos de manejo, muitas vezes não os respeitam. Segundo a Secretaria de Assuntos Estratégicos (BRASIL, 1997), a maioria dos planos de manejo florestal existentes serve “apenas para satisfazer exigências legais”.

Mesmo com plano de manejo, os impactos afetam diretamente “a estrutura florestal e a composição do ecossistema” (GREENPEACE, 1999). “Em 1998, 27 milhões de hectares da floresta amazônica se tornaram vulneráveis ao fogo em decorrência do corte seletivo de madeira de elevado valor comercial”.

Além disso, a atividade madeireira apresenta índices de desperdício incríveis. “2/3 de todas as árvores exploradas na Amazônia viram sobras ou serragem” (GREENPEACE, 1999, p.2).

Os lucros da atividade madeireira também não se revertem para a sociedade local. Segundo o Greenpeace (1999), os benefícios para as comunidades locais da região continuam baixos, já que a indústria oferece empregos de péssima qualidade e o acesso ao lucrativo mercado internacional é dominado por empresas estrangeiras. A maior parte da madeira ainda se direciona para os mercados nacionais da Região Sudeste.

Por outro lado, a crescente pressão dos mercados externos, principalmente da União Européia (responsável pela aquisição de 40% da madeira exportada, segundo o GREENPEACE, 1999), sobre os fornecedores de madeira tropical está levando algumas indústrias a buscar certificação, relatando a origem da madeira para poderem exportar.

O equivocado paradigma117 do “progresso” ainda persiste quanto à Amazônia. Chamo de progressista, e não de desenvolvimentista, a teoria que enaltece o crescimento econômico a qualquer custo, mesmo que para isso seja necessário provocar diversos impactos ambientais (desmatamento, poluição e contaminação) e culturais (conflitos sociais, expropriação de comunidades e populações). Essa teoria é totalmente influenciada pela economia capitalista vigente, para a qual o lucro imediato empresarial é o que importa.

O empresariado se lança aos empreendimentos, alimentado pela demanda dos mercados nacional e internacional por produtos. O Brasil já é o maior exportador de soja e de carne, fato que incentiva a produção e a expansão agropecuária em direção à Região 117 Paradigma: conjunto de princípios, idéias e valores compartilhados por uma comunidade servindo de referência e de orientação; a mudança de paradigma ocorre quando surgem novas visões da realidade (BOFF, 2002, p.198).

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Amazônica. Para esses empreendimentos, o empresariado conta com o apoio de políticos e, também, com as facilidades da exploração da mão-de-obra daqueles que precisam de qualquer trabalho para poder sobreviver.

Isso acontece porque a valorização de um recurso natural por um grupo social está relacionada com os aspectos de percepção ambiental, que dependerá da sua cultura. Desse modo, dentro do sistema capitalista, valoriza-se o recurso que agrega potencial econômico imediato, descartando-se o restante. Embora a floresta tenha grande valor ambiental, além de ser fundamental para as gerações futuras, esses grupos empresariais consideram necessário agregar valor econômico à floresta, entendendo-a, apenas, como mais um “negócio” lucrativo.

As pressões atuais sobre a Amazônia brasileira são oriundas de uma teia econômica, que envolve tanto interesses internacionais como nacionais. Muitos países cobram do Brasil o Desenvolvimento Sustentável da região, mas não se comprometem em avaliar, por exemplo, as origens das madeiras que se dirigem aos mercados da União Européia e dos Estados Unidos, que por sua vez importam 40% e 31%, respectivamente, da madeira exportada (GREENPEACE, 1999). Os interesses nacionais que pressionam a região vinculam-se, principalmente, à expansão agropecuária, que, por sua vez, também está influenciada pelo comércio internacional. Ambas as pressões resultam em conflitos com os povos da floresta, cuja sobrevivência depende da mesma.

A conversão da floresta para a prática da pecuária é uma das maiores responsáveis pela destruição ambiental. Os principais agentes são os grandes e médios pecuaristas. Tipicamente, a maioria dos empreendimentos é de pecuária extensiva, ocupando pouca mão-de-obra. Está concentrada nas regiões do sul e sudeste do Pará, na Ilha de Marajó e na região do Baixo Amazonas, seja em áreas de terra firme ou em várzeas como em pastos naturais ou plantados. Muitas vezes, a pecuária apenas ocupa terras já desmatadas pelas madeireiras. Em algumas áreas se substituiu o gado por búfalos, já que estes se adaptaram muito bem em áreas alagadiças.

Os impactos dessa atividade, além dos impactos provocados pelo desflorestamento, é a compactação do solo e a interferência nos padrões hidrológicos da várzea.

O plantio de soja, atualmente, surge como uma grande ameaça para a Amazônia Legal e vem crescendo nos municípios localizados no arco do desmatamento. O plantio no Brasil iniciou-se no estado do Paraná, na década de 1970, e moveu-se para o cerrado na década de 1990, ocupando vários tipos de campos nativos amazônicos (FEARNSIDE, 2001).

A região de expansão da soja está concentrada na área que margeia a BR-163 (Cuiabá-Santarém). A chegada da soja é uma conseqüência da globalização agrícola, que também tem como tendência aproximar-se dos terminais portuários – Santarém (PA) que é término da BR-163 e Itacoatiara (AM) que é o porto da hidrovia do Rio Madeira. Esse agronegócio está relacionado com P&D (Pesquisa e Desenvolvimento) feito pela Embrapa Soja e fundações estaduais e privadas, o qual prevê a adaptação da soja às condições edafo-climáticas da Amazônia. A soja, estrela do agronegócio nessa região, tem sido considerada pelos ambientalistas como vilã, embora apareça, na atualidade, como a heroína das exportações brasileiras.

Os impactos da soja não estão restritos somente à conversão do uso da terra, mas a outros impactos, “of the massive infrastructure development needed to provide

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transportation for harvest and entry of inputs”, chamado por Fearnside (2001, p.24) de ‘dragging effect’ – efeito de arraste –, ou seja, várias obras de infra-estrutura vinculadas ao cultivo da soja, como a abertura de estradas e hidrovias.

Os impactos causados pelo plantio de soja, de acordo com Fearnside (2001) são: Costs include biodiversity loss when natural ecosystems are converted to soy beans, severe impacts to some of the transportation systems, soil erosion, health and environmental effects of agricultural chemicals, expulsion of population that formerly inhabited the areas used for soy beans, lack of production of food for local consumption because crop land used for subsistence agriculture is taken over by soy beans...Employment generation by soy bean cultivation is minimal (FEARNSIDE, 2001, p.24).

O complexo agrícola da soja está sendo considerado o novo fator para o desmatamento amazônico. Ela está se espalhando não somente no estado do Mato Grosso, mas, também em Rondônia, Pará e em Humaitá (sul do estado do Amazonas).

Esse modelo agro-exportador não é compatível com o equilíbrio amazônico porque os solos da terra firme são inadequados às práticas agrícolas convencionais. O ideal para a região seriam os modelos de agricultura familiar e ecológica. No entanto, sua capacidade de inserção diminui progressivamente, à medida que a agricultura familiar se distancia dos centros populacionais, onde os preços são mais altos.

Quanto à biopirataria, vários produtos amazônicos estão sendo contrabandeados e patenteados no exterior. Somente em 2002, foram comprovados sete casos e 21 estrangeiros foram presos contrabandeando espécies da fauna e da flora. Todos, porém, foram libertados e mandados de volta ao país de origem (BIOPIRATAS, 2003).

A Ong AmazonLink (2004, p.1), que analisa casos de biopirataria no Brasil, mostra que a andiroba, a copaíba, ayahuasca, curare e açaí possuem várias patentes no exterior. Diz a ONG que não sabe “(...) até que grau o termo biopirataria se aplica para cada um dos detentores de patentes e marcas aqui mencionados”. Porém, ela considera “questionável a prática de patenteamento de plantas e cultivares tradicionalmente usadas pelas comunidades da Amazônia e o registro de seus nomes como marcas” (...).

Algumas empresas se especializaram em atividades de bioprospecção em áreas indígenas na Amazônia. “Uma delas é a Shaman Farmaceuticals da Califórnia” (CASADO, 1996, p. A17). “Esta empresa até 1997 tinha pesquisado cerca de 7 mil plantas extraídas da floresta amazônica” (ASSUMPÇÃO, 1997, p. 14).

Outra ameaça na região são as ações de missionários. Essas ações têm provocado a divisão da aldeia em facções segundo as crenças e a perda de referenciais culturais, principalmente, porque atrás dessas ações escondem-se intenções de acesso a recursos minerais e genéticos da terra indígena. A FUNAI (Fundação Nacional do Índio) proíbe a entrada de missionários em terras indígenas, mas, infelizmente isso continua acontecendo, por falta de fiscalização. Inclusive, a comunidade estudada foi convertida pela Igreja “Deus é Amor”.

Dessa maneira, é urgente a demarcação de terras indígenas, como uma forma de protegê-las da expropriação e da invasão por diversos grupos econômicos internacionais e nacionais, que realizam desmatamentos, mineração, projetos agropecuários, etc., além da pressão internacional pela obtenção dos recursos biológicos e do saber medicinal

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indígena, principalmente na Amazônia Legal. Consequentemente, de certa forma, a demarcação contribui para a conservação da floresta amazônica, igualmente ameaçada.

Assim, entendemos que a Amazônia é palco de vários e discrepantes interesses. São muitos os olhares que se encompridam sobre essa região, cada um deles priorizando um ângulo da questão. Por isso, a discussão da conservação da Amazônia é tão complexa.

Esperamos que esse artigo alerte para a situação atual da Região Amazônica e promova um repensar em novas formas de ocupação em bases conservacionistas. RESULTADOS E DISCUSSÃO: O CASO DA TERRA INDÍGENA APURINÃ DO IGARAPÉ MUCUIM (LÁBREA/AM – BRASIL) – PRINCIPAIS AMEAÇAS E CONFLITOS

Na área de estudo analisada, o futuro é ameaçador. O fato incontestável é que todo o Sul do estado do Amazonas está ameaçado, devido à sua proximidade com o estado de Rondônia em que o plantio de soja e os garimpos estão se expandindo. Também porque conta com as florestas mais preservadas do estado. Novas frentes de desmatamento e grilagem de terras estão avançando sobre a área de estudo, possibilitando caminhos para a expansão agropecuária, acarretando impactos ambientais e culturais.

O avanço dos madeireiros na Amazônia segue em direção a florestas ainda preservadas, como na região de Lábrea no estado do Amazonas, como cita Mendes (2003):

Grandes desmatamentos e frentes de grilagem de terras públicas estão ocorrendo em Apuí, Lábrea, Boca do Acre, Novo Aripuanã e Rodovia do Estanho no estado do Amazonas, estado até então bastante preservado...Em Lábrea e Boca do Acre, no sul do Amazonas, mais de 15 mil hectares ao longo do ‘Ramal dos Baianos’ foram desmatados entre fins do ano passado e primeiro semestre deste ano, antes que o IBAMA chegasse à área.

Outra denúncia relata que madeireiras estão “cobiçando os seringais acreanos e de Lábrea para exportação ilegal do mogno” (SALES, 2003).

A madeireira Gethal S.A., com sede em Itacoatiara (AM), comprou o seringal Serihã e explora, desde 1998, a área totalmente incidente na Terra Indígena Apurinã do Igarapé Mucuim.

Segundo as informações dos Apurinã, as madeiras que mais retiram são: açacu (Hura crepitans), louro (Nectandra pichurim), copaíba (Copaifera multijuga), samaúma, itaúba (Mezilaurus itauba) e muiratinga (Olmedia maxima), nas proximidades do Igarapé Mucuim e Monte Alegre e perto do lago do Sacado no rio Purus.

Na área do Igarapé Mucuim, a Gethal retirou tantas árvores que o cacique Alonso, que já morou nas capoeiras antigas, perdeu alguns referenciais do espaço. Isso é muito grave, pois é uma perda do conhecimento do espaço, perda de referenciais que usavam para explorar seus recursos.

Numa das visitas a essas capoeiras, encontramos sete toras de Açacu e três de Muiratinga (Olmedia maxima) lançadas nas águas do rio, perto do lago do Sacado e Mucuim (07º 38’58.1’’S e 66º04’16.4’’W).

Além dos impactos negativos sobre a flora, bem como em suas relações ecológicas (no solo, na fauna associada) e sobre o ecossistema em geral, há impactos na água

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devido à madeira do Açacu (Hura crepitans), pois seu látex é muito venenoso, matando peixes e contaminando as águas que os índios bebem.

As constantes invasões da terra indígena colocam em risco os recursos ambientais necessários ao bem-estar econômico e cultural dos Apurinã.

Esses fatos demonstram a coexistência de dois tempos na Amazônia: o tempo rápido, baseado no sistema capitalista atual e o tempo lento, baseado no tempo exercido pelos povos da floresta. Ambos entram continuamente em choque.

As fronteiras dos Apurinãs são marcadas pelo rio Purus e por igarapés. Algumas fronteiras são pontos de maiores conflitos com outros grupos sociais. As fronteiras também têm caráter étnico, denotando a afirmação da identidade Apurinã em contraposição à cultura ribeirinha e à nossa, urbano-industrial.

Devido à proximidade dos ribeirinhos com os recursos hídricos e vegetais inseridos na Terra indígena, as invasões são constantes já que os espaços são de interesse comum das duas comunidades tradicionais. Os ribeirinhos invadem a Terra Indígena para extraírem peixes, animais, castanhas e seringas, o que está causando diversos impactos ambientais na Terra Indígena. São conflitos provocados pelo uso e manejo dos recursos naturais de forma incompatível com a concepção de natureza dos Apurinã.

Essas práticas da população regional, no sentido de utilizar os recursos ambientais da terra indígena, estão em total desacordo com o parágrafo 2º do artigo 231 da Constituição Federal pátria, o qual estabelece que “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes” (BRASIL, 2004a).

O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NA AMAZÔNIA BRASILEIRA É POSSÍVEL?

O conceito de desenvolvimento sustentável, do relatório Brundtland de 1987, definido como “aquele que atende as necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades" (COMISSÃO MUNDIAL SOBRE O MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO – CMMAD, 1991, p.46) está no centro do discurso ecológico mundial, mas tem propiciado diferentes leituras e visões do seu significado, dependendo dos atores sociais envolvidos e de seus interesses. Por exemplo, para o caso dos grupos econômicos dominantes, que controlam os meios de produção, o objetivo, segundo Cerqueira et al (1995), é a manutenção do sistema socioeconômico vigente, o que implica na continuidade de um modelo social que está intimamente relacionado com a emergência da crise ambiental.

Para Redclift (1992, p.25), a discussão do conceito se concentra na definição acerca daquilo que deve ser sustentado.

Assim, a determinação do que a sociedade como um todo pretende sustentar aponta para um conflito entre as diferentes concepções de sustentabilidade, o que requer uma reflexão crítica e cuidadosa de qualquer proposição de desenvolvimento sustentável (MARQUES et al, 2001).

Stahel (1995, p.104), na mesma linha, questiona: "tal conceito tem algum sentido dentro do quadro institucional e econômico atual, o capitalismo?". Senão, corre o risco de esvaziamento:

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Ao buscar-se um desenvolvimento sustentável hoje está-se ao menos implicitamente, pensando em um desenvolvimento capitalista sustentável, ou seja uma sustentabilidade dentro do quadro institucional do capitalismo de mercado. No entanto, não se colocando a questão básica quanto à própria possibilidade de uma tal sustentabilidade, o conceito corre risco de tornar-se um conceito vazio, servindo apenas para dar uma legitimidade para a expansão insustentável do capitalismo (STAHEL, 1995, p.104).

Quando analisamos os objetivos do capitalismo – do atual modelo de desenvolvimento – e os objetivos da sustentabilidade ambiental, percebemos claramente as contradições. Enquanto o desenvolvimento capitalista visa à produção e à acumulação, criando necessidades incessantes e, consequentemente, alto consumo, manutenção das regras do mercado, etc., a sustentabilidade aponta para limitações de recursos e energia. Como diz Vargas (1997, p.236) "está-se-á apenas e inutilmente tentando conciliar lobo e cordeiro".

Atualmente, as forças de mercado estão se direcionando ao capitalismo. É o mercado "que direciona e sanciona os desenvolvimentos compatíveis com a lógica de acumulação e de expansão capitalista" (STAHEL, 1995, p.107). E como fica difícil haver um desenvolvimento mais eqüitativo através do mercado! Vargas (1997, p.236) chega até a dizer que o capitalismo atual "pode ser tudo, menos insustentável", porque seu sistema se sustenta com base nas suas próprias contradições.

Stahel (1995, p.108) diz que o desenvolvimento sustentável inclui um conjunto multidimensional – com aspectos políticos, sociais, culturais e físicos – e, dessa forma, conclui que o capitalismo atual é insustentável do ponto de vista da entropia porque "a insustentabilidade surge quando a degradação entrópica suplanta a capacidade dos seres vivos em assegurar uma baixa entropia, ou seja: a base material e energética da vida vai se reduzindo" (STAHEL, 1991, p.117).

Assim, não há o equilíbrio, pelo contrário, a "aceleração do tempo com o capitalismo é assim a aceleração da degradação entrópica" (STAHEL, 1991, p.113). Em outras palavras, enquanto o tempo da biosfera é regulado pelo tempo cíclico, em que tudo se renova na Natureza, o capitalismo reproduz o tempo evolutivo, em que há alta entropia, como lixo e poluição.

O equilíbrio que envolve a entropia não é somente do ponto de vista ambiental, mas em todos os aspectos, principalmente indicativo da qualidade de vida. Marques et al (2001) chamam ainda a atenção para o fato de que a maior preocupação não é a respeito da existência de uma elevada diversidade de significações para o conceito de desenvolvimento sustentável, mas, refere-se ao papel que o conceito tem cumprido como dispositivo ideológico de controle social. O que pode ocorrer, fundamentalmente, de duas maneiras:

• primeiramente, por meio da assimilação do conceito pelo discurso ambiental, em função da lógica econômica e não, como seria de se esperar, que ele fosse assimilado pelo discurso econômico em função da lógica ambiental;

• em segundo lugar, o termo corre o perigo de se tornar um clichê, que todos usam e ninguém se preocupa em implementar, de forma que sua força simbólica de transformação da realidade em direção ao estabelecimento de uma sociedade efetivamente sustentável seja gradativamente neutralizada.

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Após a propagação do conceito de desenvolvimento sustentável, a Amazônia foi

invadida por projetos sustentáveis. A palavra sustentável e o conceito nela embutido têm sido muito utilizados, se prestando a embasar muitos projetos econômicos na Região Amazônica. No entanto, devemos salientar que o conceito de Desenvolvimento Sustentável tornou-se um instrumento ideológico, em alguns casos, porque muitas empresas se valem desse “discurso mágico” a fim de garantir a aceitação de seus projetos na região, como é o caso da madeireira Gethal (alemã) que, em 2002, promoveu desmatamento dentro da Terra Indígena em estudo, mas, possuía um plano de manejo sustentável.

Fica o questionamento: a retirada da madeira estava sendo sustentável para quem? Estava beneficiando quem? As populações? Não. Os lucros da atividade madeireira não se revertem para a sociedade local.

Assim, o conceito de Desenvolvimento Sustentável aplicado à Amazônia brasileira deve ser visto com muito cuidado, já que a depender do executor, pode ser sustentável para ele, e não para as comunidades envolvidas.

Dessa forma, na Amazônia, hoje, estão presentes instituições embasadas em diversos paradigmas:

• paradigma preservacionista, defendido pelas pessoas que entendem que a floresta deve ser preservada conforme a visão da Natureza Intocada, como diz Diegues (1994), sem que se considerem as necessidades das populações locais;

• paradigma progressista, defendido pelas pessoas que pretendem implantar na Amazônia políticas totalmente incompatíveis com o uso sustentável das florestas, envolvendo a expansão do agronegócio, abertura de gasodutos, rodovias, industrialização e garimpo – sem nenhum cuidado ambiental. Para eles, o lucro empresarial imediato é o que importa;

• paradigma conservacionista, cuja proposta está ligada à filosofia do desenvolvimento sustentável, e é defendida por aqueles que acreditam na compatibilização do desenvolvimento com a conservação da Natureza. Entretanto, muitos progressistas usam esse paradigma como mera fachada e discurso, a fim de realizar seus projetos econômicos com maior liberdade.

Assim, a depender do setor, as visões de desenvolvimento sustentável são

diferentes, principalmente na Amazônia, sendo necessária uma maior fiscalização do governo brasileiro com relação aos projetos sustentáveis na Amazônia, ao desmatamento e ao agronegócio, assim como um melhor planejamento econômico, social e ambiental.

Diante dessas contradições, podemos dizer que a idéia de desenvolvimento sustentável é utópica e desafiadora, já que é grande o desafio de conciliar os objetivos do capitalismo com a conservação. O Desenvolvimento Sustentável na Região Amazônica é bem restrito, pois se deve respeitar a escala possível da sustentabilidade e a dimensão (social, econômica, ambiental e cultural) que se quer atingir. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível ocupar sem destruir a floresta? Podemos dizer que depende da ocupação. Vimos no decorrer desse artigo que a ameaça maior sobre a Região Amazônica é a influência do capitalismo que, cada vez mais, está presente, mais rápido e

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grave, causando destruição ambiental e cultural. A expansão do desmatamento e a expansão agropecuária já estão ocorrendo, mas podem se intensificar e acabar com as florestas de entorno de Terras Indígenas, prejudicando a qualidade de vida das populações que sobrevivem diretamente dos produtos que a Natureza oferece.

A destruição da floresta pouco contribuiu para a geração de renda das populações e aumento da riqueza nacional. O desmatamento só favoreceu uma minoria de empresários nacionais e estrangeiros e alguns fazendeiros, promovendo a concentração de renda e de terra brasileira. Além disso, as conseqüências do desmatamento sobre o meio ambiente não compensam. Portanto, o desmatamento é injustificável. Mas, para que a floresta amazônica não seja destruída é preciso que ela tenha valor econômico agregado.

A manutenção do ecossistema amazônico é essencial e inteligente, porque é um recurso fundamental no que concerne aos produtos alimentícios, medicinais e farmacológicos, tanto para os povos da floresta como para nossa sociedade no presente e no futuro.

Para conter o desmatamento será preciso um conjunto de políticas públicas embasado na conscientização acerca dessa problemática, e que, num segundo momento, gere incentivo às formas econômicas conservacionistas no restante do país, evitando que as fronteiras amazônicas sejam totalmente atingidas pela exploração capitalista, cujo objetivo primordial é o lucro e a satisfação do mercado internacional.

Algumas propostas de atividades de manejo podem ser sugeridas, respeitando a escala e a dimensão (econômica, social e ambiental) que se quer atingir. Para a Região Amazônica em geral sugerimos: delimitação de Terras Indígenas, minimização de conflitos agrários e sociais, planejamento urbano, agroextrativismo, agroecologia, incentivo ao ecoturismo, criação de Unidades de Conservação, fiscalização ambiental, controle maior do desmatamento e valoração econômica dos recursos naturais.

Para isso, é mister que se introduzam a moderna tecnologia de manejo dos recursos naturais e a biotecnologia, assim como também é necessário que as leis sejam melhoradas e contemplem as questões vinculadas aos direitos de apropriação dos conhecimentos tradicionais e, principalmente, que se fomente a pesquisa e haja incentivo da educação superior na região, principalmente mediadas por brasileiros.

As propostas de agricultura e pecuária para a Região Amazônica brasileira poderiam viabilizar-se somente em áreas já desmatadas, que necessitam ser reflorestadas com espécies de valor econômico, dentro dos princípios da agroecologia. E a pecuária, em áreas já devastadas e também espécies de transição entre a floresta e o cerrado. Que possamos trilhar um caminho para a Amazônia, respeitando a dinâmica natural e dos povos da floresta. Para viabilizar isso, são essenciais novas percepções, novos olhares, novos valores e respeito à diversidade cultural desse universo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSUMPÇÃO, J. C. Floresta vira farmácia. Folha de S.Paulo, São Paulo, 1 jun. 1997. Caderno Mais, p. 14. BAPTISTA, S. C. Relatório cartográfico da terra indígena Apurinã do Igarapé Mucuim. Brasília: FUNAI, 2002. BECKER, D. F. (Org.). Desenvolvimento sustentável: necessidade e/ou possibilidade?. Santa Cruz do Sul: Ed. EDUNISC, 1997.

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