QUESTÃO DE GÊNERO: UMA REVISÃO DA LITERATURA ACERCA DA DICOTOMIA ENTRE AS ESFERAS PÚBLICA E...

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QUESTÃO DE GÊNERO: UMA REVISÃO DA LITERATURA ACERCA DA DICOTOMIA ENTRE AS ESFERAS PÚBLICA E PRIVADA* Kátia Azambuja 1 RESUMO O presente artigo pretende fazer um debate teórico, a partir de uma revisão bibliográfica, acerca da dicotomia entre as esferas pública e privada dentro da teoria política feminista. Essa dicotomia é tema de debate muito antigo no pensamento político ocidental. As dimensões desse debate variam de acordo com os contextos históricos e sociais de cada época, no entanto podemos observar alguns pressupostos recorrentes: a caracterização dos governos como parte da esfera pública; e do ambiente doméstico, casa e estruturas familiares, como parte da esfera privada. Muitos teóricos do século XVIII e XIX desenvolveram a noção de “esferas separadas” para tratar de público e privado, separação que teve como função apartar homens e mulheres, assim impedindo o acesso das mulheres a esfera da política. Empregaremos o constructo de gênero para analisar a dualidade público-privado. Na literatura das Ciências Humanas existem alguns usos distintos para as terminologias da dualidade entre o público e o privado. Essa distinção por vezes causa ambiguidades. Utiliza-se o público e privado para diferenciar o Estado da sociedade; e para se referir à dicotomia entre vida pública e a vida não pública, a vida doméstica. A esta segunda dualidade que me deterei no artigo. A teoria política feminista tem o entendimento de que a esfera pública – política - não pode ser discutida isoladamente da esfera privada - pessoal. As relações que se estabelecem entre as esferas têm impacto sobre a vida das pessoas e as diferenças entre as esferas não são naturais, foram naturalizadas, e são o resultado de uma visão – política e ideológica – de mundo. 1 * Agradeço a Ricardo Azambuja, Marília Oliveira, Lucas La Bella Costa e Renata Albuquerque por contribuições e críticas a versões anteriores. ? Mestranda em Ciência Política pela UnB: [email protected] 1

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QUESTÃO DE GÊNERO: UMA REVISÃO DA LITERATURA ACERCA DA DICOTOMIA

ENTRE AS ESFERAS PÚBLICA E PRIVADA*

Kátia Azambuja1

RESUMO

O presente artigo pretende fazer um debate teórico, a partir deuma revisão bibliográfica, acerca da dicotomia entre as esferaspública e privada dentro da teoria política feminista. Essadicotomia é tema de debate muito antigo no pensamento políticoocidental. As dimensões desse debate variam de acordo com oscontextos históricos e sociais de cada época, no entanto podemosobservar alguns pressupostos recorrentes: a caracterização dosgovernos como parte da esfera pública; e do ambiente doméstico,casa e estruturas familiares, como parte da esfera privada.

Muitos teóricos do século XVIII e XIX desenvolveram a noção de“esferas separadas” para tratar de público e privado, separaçãoque teve como função apartar homens e mulheres, assim impedindo oacesso das mulheres a esfera da política. Empregaremos oconstructo de gênero para analisar a dualidade público-privado.

Na literatura das Ciências Humanas existem alguns usos distintospara as terminologias da dualidade entre o público e o privado.Essa distinção por vezes causa ambiguidades. Utiliza-se o públicoe privado para diferenciar o Estado da sociedade; e para sereferir à dicotomia entre vida pública e a vida não pública, avida doméstica. A esta segunda dualidade que me deterei no artigo.

A teoria política feminista tem o entendimento de que a esferapública – política - não pode ser discutida isoladamente da esferaprivada - pessoal. As relações que se estabelecem entre as esferastêm impacto sobre a vida das pessoas e as diferenças entre asesferas não são naturais, foram naturalizadas, e são o resultadode uma visão – política e ideológica – de mundo.

1* Agradeço a Ricardo Azambuja, Marília Oliveira, Lucas La Bella Costa e RenataAlbuquerque por contribuições e críticas a versões anteriores.

? Mestranda em Ciência Política pela UnB: [email protected]

O artigo está organizado em quatro seções: além da introdução edas considerações finais; será contextualizado historicamente odebate acerca da dualidade entre o público e o privado nopensamento político ocidental; posteriormente será apresentada umarevisão bibliográfica da teoria política feminista com osprincipais tópicos e abordagens acerca do tema. Trabalharemos comalguns escritos de Carole Pateman, Jean Bethke Elshtain, CatherineMackinnon, Susan Okin e Jean Cohen.

Introdução

O gênero muda e deve mudar o modo como pensamos a democracia, mas,

dada a força das tradições existentes, transcorrera algum tempo ate

que os detalhes da nova paisagem se tornem claros. Também não

devemos supor rapidamente demais que todas as suas características

mudarão.

Anne Phillips

A dicotomia entre as esferas pública e privada é uma temática

antiga no pensamento político ocidental. No entanto, essa

dicotomia foi naturalizada, não gerando o debate que elevasse o

tema a uma posição de destaque dentro da teoria política. Mesmo

com a variação de alguns pressupostos que envolvem a temática em

cada contexto histórico e social, podemos observar a recorrência

de algumas ideias centrais, como a caracterização de governos como

parte da esfera pública e do ambiente doméstico, casa e estruturas

familiares, como parte da esfera privada.

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Na literatura das Ciências Humanas existem alguns usos

distintos para as terminologias da dualidade entre o público e o

privado. Essa distinção por vezes causa ambiguidades. Utiliza-se o

público e privado para diferenciar o Estado da sociedade; e para

se referir à vida pública e a vida não pública, a vida doméstica.

Muitos teóricos do século XVIII e XIX desenvolveram a noção de

“esferas separadas” para tratar de público e privado, separação

que teve como função apartar homens e mulheres, impedindo, assim,

o acesso das mulheres à esfera da política. Nesse sentido,

empregaremos o constructo de gênero para revisitar a dualidade

público-privado. A definição de gênero trazida por Okin (2008)

será uma importante referência, uma vez que considera as

diferenças sexuais como algo socialmente construído:

“Gênero” refere-se à institucionalização social dasdiferenças sexuais; é um conceito usado por aqueles queentendem não apenas a desigualdade sexual, mas muitasdas diferenciações sexuais, como socialmenteconstruídas. (OKIN 2008, p. 306).

A partir de meados do século XX, a separação das esferas

pública e privada começa a ser fortemente contestada pelo

movimento feminista, que não só na ação das ruas, mas também nos

discursos da academia, vem contrapondo e criticando os ideais

liberais, balizadores da separação das esferas do político e do

doméstico.

Na revisão bibliográfica a que se propõe esse artigo,

pretende-se observar como a teoria política feminista faz o debate

acerca da dicotomia nas esferas pública e privada a partir da

perspectiva de gênero, e levantando críticas à forma como a teoria3

liberal aborda essa mesma temática. Vale ressaltar que não será

feita uma imersão na perspectiva liberal. Pretende-se apenas

apontar suas limitações no trato da posição da mulher nas esferas

pública e privada a partir da teoria política feminista, da qual

se tomará emprestada as lentes para as críticas trazidas neste

artigo.

A teoria política feminista tem o entendimento de que a esfera

pública – política - não pode ser discutida isoladamente da esfera

privada - pessoal. As relações que se estabelecem entre as

esferas têm impacto sobre a vida das pessoas e as diferenças entre

as esferas não são naturais, foram naturalizadas, e são o

resultado de uma visão – política e ideológica – de mundo. A

naturalização das diferenças entre as esferas será debatida mais

adiante.

O artigo utilizará algumas autoras que são consideradas

expoentes na teoria política feminista e que são as mobilizadas

nos trabalhos desenvolvidos no Brasil a partir dessa abordagem

teórica. Dentre as diferentes posições sobre a divisão das esferas

públicas e privadas, encontram-se aquelas que sustentam o fim da

divisão entre essas esferas e as que defendem uma modificação nos

padrões de privado e relações de privacidade. Dessa forma

demonstrando as nuances do feminismo, assim podendo se falar em

feminismos. Utiliza-se aqui Carole Pateman, Iris Marion Young,

Susan Moller Okin, dentre outras autoras da teoria feminista.

Tem-se aqui algumas questões a serem debatidas, baseada

principalmente na abordagem feminista da (quase) extinção, ou pelo

menos, de grande modificação na diferença de como se da às

relações entre os indivíduos nas esferas públicas e privadas,

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entendendo que a mulher deveria ter uma maior presença e

representação na esfera pública, e nos estudos acerca da teoria

política democrática. Este artigo é composto por três seções:

além da introdução e das considerações finais, há uma grande seção

dividida em quatro subseções, a primeira sendo ela uma crítica ao

universalismo liberal; a segunda é sobre a pouca participação e

representação das mulheres na esfera pública; a terceira debate

sobre família e justiça interna e quarta e última aborda o direito

a privacidade.

Debate: o público e o privado

A dicotomia entre o privado e o público é central para quase

dois séculos de produção feminista e luta política; é, em

última análise, o tema do movimento feminista.

Carole Pateman

Inicia-se aqui uma revisão bibliográfica que perpassa algumas

autoras da teoria política feminista para entender como as

feministas fazem o debate acerca dessa temática e observar também

a crítica de como é feito o debate na abordagem liberal sobre a

dualidade público/privado. Tem-se o entendimento de que esse

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debate não pode ser feito de forma separada, que essas esferas não

são separadas e sim sobrepostas e entrelaçadas.

A crítica feita pelas teóricas feministas sobre a teoria

política liberal faz esse debate a partir da perspectiva de que

(...) o feminismo tem um olhar diferenciado em relaçãoà ordem social dentro do qual as diversas dimensões sãodistintas, mas não separadas ou opostas, e que repousasobre uma concepção social da individualidade, queinclui homens e mulheres como criaturas biologicamentediferenciados, mas não desiguais. (PATEMAN, 1989, p.136)

As relações que se estabelecem entre as esferas pública e

privada têm impacto sobre a vida das pessoas e as diferenças entre

as esferas não são naturais, foram naturalizadas, e tratadas como

antagônicas e não intercambiantes e são o resultado de uma visão

de mundo – o liberalismo.

Para iniciar o debate, Okin tem o entendimento de que a

análise dessa relação – entre a esfera pública e privada - tem de

ser feita a partir da perspectiva de gênero.

Na medida em que tudo isso é convincente (...), seuimpacto sobre a teoria política poderia ser profundo,pois, no esforço feminista para compreender o gênero,nós encontramos o pessoal e o político misturados deuma maneira que confunde as categorias separadas dopúblico e do doméstico, e destaca a necessáriaincompletude das teorias políticas que continuam serestringindo ao estudo daquilo que foi definido, em umaera pré-feminista, como legitimamente político. (OKIN,2008, p. 320)

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A autora faz crítica a teoria política e as correntes

estabelecidas antes do feminismo e argumenta que devemos superar

os padrões estabelecidos de separação das esferas e

consequentemente de quem ocupa e sobressalta em cada esfera, pois

(somente) assim conseguiremos superar a longa era do patriarcado.

Aborda-se quatro questões para desenvolver o debate acerca da

dicotomia entre as esferas pública e privada: iniciando com uma

análise mais ampla ao liberalismo, criticando e denunciando as

formas enrijecidas e universalistas com as quais os teóricos

liberais tratam essa relação; passando pela a não presença das

mulheres na vida pública, consequentemente, nos espaços de decisão

política; seguindo para a família e justiça interna e, por último

o direito a privacidade.

Crítica ao universalismo liberal...

Um dos principais recortes de crítica das teóricas feministas

à teoria liberal é a crítica à neutralidade, a imparcialidade e a

universalidade com a qual os liberais tratam alguns temas, em

especial debates acerca da dicotomia entre as esferas pública e

privada nas relações pessoais. Iris Young (1990) faz a crítica a

Rawls no sentido de que ele e outros liberais constroem dois

paralelos identitários em relação ao “masculino” e ao “feminino”;

sendo a racionalidade e a impessoalidade características dos

homens; e a afetividade, o predomínio de relações pessoais

características das mulheres. Essas identidades construídas pelos7

liberais aportam debates e argumentos que valorizam a

impessoalidade em relação a posições objetivas de pessoas e/ou de

grupos. No entanto, esses argumentos estão escondidos atrás de um

véu de pretensa neutralidade e igualdade formal de direitos. Assim

contribuindo para a manutenção de um status quo e da legitimação e

normalização do masculino como sendo a característica identitária

padrão.

Atualmente, boa parte da corrente predominante da teoria

política continua utilizando esses conceitos (público e privado)

arbitrariamente, não levando em conta, que de acordo com a forma

que são trabalhados podem ser problemáticos. Arbitrariedade faz

com que tratem esses conceitos de forma ‘neutra’ e ‘universal’.

Argumentos importantes nos debates contemporâneosdependem da suposição de que questões públicas podemser facilmente diferenciadas de questões privadas, deque temos uma base sólida para separar o pessoal dopolítico. Algumas vezes explicitamente, mas maisfreqüentemente de maneira implícita, perpetua-se aideia de que essas esferas são suficientementeseparadas, e suficientemente diferentes, a ponto de opúblico ou o político poderem ser discutidos de maneiraisolada em relação ao privado ou pessoal. (OKIN, 2008,p. 305)

Essa separação entre as esferas acaba por gerar hierarquia nos

debates acerca dos problemas que são tratados estritamente em cada

esfera, e essa hierarquização pode gerar invisibilidade de alguns

temas e reforçar a subordinação das mulheres em relação aos

homens.

Por trás de uma neutralidade, autores liberais criticam – ou

respondem as críticas anteriormente feitas a eles por elas - as

teóricas feministas por serem ideológicas e militantes ao

desenvolverem seus trabalhos teóricos, 8

o termo "ideologia" é apropriado aqui porque aambiguidade profunda da concepção liberal do privado edo público obscurece e mistifica a realidade social queajuda a constituir. As feministas alegam que oliberalismo é estruturado pelo patriarcado, bem como asrelações de classe, e que a dicotomia entre o privado eo público obscurece a sujeição das mulheres aos homensdentro de uma ordem aparentemente universal,igualitária e individualista. (PATEMAN, 1989, p. 120)

A autora considera que os teóricos liberais, com o discurso de

pretensa universalidade – ‘não ideológico’ - , não previram um

lugar para as mulheres na esfera pública, assim excluindo elas em

seus argumentos na construção de suas teorias. Portanto não

considerando as relações de gênero, não se preocupando com uma

política de diferença e tendo o masculino como normal e

consequentemente, universal.

Como diz Anne Phillips (2011) se remetendo a formulação de

outras feministas, não há individuo neutro quanto ao gênero e,

quando os liberais tentam lidar com as mulheres apenas na condição

de cidadãs abstratas, estão desejando apagar não apenas diferenças

de classe, mas aquelas que podem ser diferenças ainda mais

intransigentes de sexo. “A democracia liberal deseja ignorar (e o

republicanismo cívico deseja transcender) todas as identidades e

diferenças mais locais; na realidade, as duas tradições insinuam o

corpo masculino e a identidade masculina em suas definições da

norma.” (PHILLIPS, 2011) Assim, essa bruma que envolve as

especificidades e identidades femininas presentes na sociedade

contribui para a dominação da mulher pelo homem, e a não aparição

da mulher no debate público, como por exemplo, em políticas

públicas de segurança específicas para mulheres.9

No ensejo da crítica a teoria liberal é observada a

naturalização do debate sobre a dicotomia entre as esferas pública

e privada; e isso acontece no momento em que os liberais não se

preocupam em especificar o espaço da mulher em suas teorias e na

sociedade ou quando o especificam tratam como ‘natural’

determinados papeis arcaicamente legados as mulheres. Nesse

sentido, como bem disse Okin: “os homens são vistos como,

sobretudo, ligados às ocupações da esfera da vida econômica e

política e responsáveis por elas, enquanto as mulheres seriam

responsáveis pelas ocupações da esfera privada da domesticidade e

reprodução. As mulheres têm sido vistas como “naturalmente”

inadequadas à esfera pública, dependentes dos homens e

subordinadas à família” (OKIN, 2008, p. 308). Essa inadequação

e/ou inadaptação da mulher a esfera pública, a política, vem sendo

tratada como natural desde os teóricos clássicos do liberalismo,

que legaram as mulheres a exclusiva responsabilidade do trato com

a casa e as crianças.

A não presença da mulher no espaço público/político...

O slogan do movimento feminista dos anos 1960 “o pessoal é

político” é a principal formulação de crítica à dicotomia das

esferas pública e privada, da forma como ela é trabalhada na

teoria política liberal. Demonstra – e denuncia - também as formas

de exclusão que essa dualidade desenvolve na sociedade e os

limites da democracia liberal. Limite que perdura mesmo com a

inclusão formal das mulheres na vida pública, a qual não é10

suficiente para o estabelecimento de relações democráticas, para

que indivíduos diferentes possam posicionar-se e desenvolver-se na

sociedade de forma não assimétrica.

Tal slogan é considerado a principal formulação de crítica a

essa dicotomia, pois foi a primeira vez ou, a vez melhor sucedida,

por parte do movimento feminista que conseguiu se expor de uma

forma mais explícita a necessidade de se tratar politicamente

questões que normalmente eram tratadas somente no ambiente

doméstico. O slogan traz a necessidade de debater publicamente

questões como violência doméstica, creche e o aborto; traz essas

questões para serem tratadas pelo Estado (e que se torne objeto de

intervenção dele) e pela sociedade como um todo e não somente ser

tratada no âmbito doméstico. Debate a ser feito com a participação

efetiva das mulheres.

O resultado dessa dicotomia é bem marcado quando observa-se a

participação das mulheres na política institucional e constatamos

o baixo quórum das mulheres nos espaços de poder e deliberação,

assim acentuando a desigualdade entre mulheres e homens na esfera

de mando. Pois a vida doméstica e a divisão sexual do trabalho

doméstico são nefastos para a participação política das mulheres e

acabam por entrar em contradição com o exercício da cidadania.

Como diz Phillips, essa questão da divisão sexual do trabalho tem

q ser tratada como uma questão política e não somente social, pois

o impedimento ou a grande dificuldade da mulher em participar da

política é prejudicial à democracia. Além do mais, nesses espaços

existem demandas e ‘traquejos’ aos quais as mulheres não dominam,

pois historicamente nunca lhes foi permitido acesso a esses

espaços. O debate que as feministas tentam fazer é também no

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sentido da ampliação da representação política das mulheres, para

que os temas pertinentes as mulheres não sejam tratados apenas por

homens, como por exemplo, a questão do aborto. No entanto,

essa situação desigual e diferenciada não é apresentadacomo um problema [na teoria liberal], aparece entãocomo desdobramento natural do sexo, e não das relaçõesde gênero – entendidas como relações de poder, queassumem características historicamente variáveis – e dapolítica – entendida como um conjunto de instituições,regras e valores com permeabilidade e configuraçãotambém variáveis (MIGUEL e BIROLI, 2011, p.167-168).

Assim, a permeabilidade variável dessas relações dificulta o

pertencimento, por parte das mulheres, ao campo da política. Pois,

existem limites a esse pertencimento, entraves simbólicos advindos

de práticas históricas e culturais do alijamento das mulheres da

esfera pública.

Ativistas dos movimentos de mulheres de muitos cantos do

mundo, por exemplo, apontam que legislaturas ocupadas

majoritariamente por homens não podem representar devidamente as

mulheres (YOUNG, 2006). No entanto, a simples entrada de mulheres

nos espaços de deliberação não assegura que suas demandas sejam

atendidas, porque apensar da existência da desigualdade de gênero,

essa é perpassada por desigualdades étnicas, de classe e

religiosas, tornando essa representação complexa. Com efeito, as

trajetórias de vida e política de cada representante vão refletir

na sua atuação. Ações afirmativas como as cotas, são ferramentas

importantes para o exercício da democracia, muitas vezes não

exercido por alguns setores por não se sentirem representados. Se

as cotas no Brasil tivessem efetividade, como em outros países,

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por exemplo, a Argentina, ampliaria a representação institucional

das mulheres, podendo também ampliar a diversidade dessa

representação. Assim abarcando melhor as intersecções sociais que

perpassam as mulheres.

Sendo assim, a teoria liberal trata as relações que se

desenvolvem na esfera pública de forma genérica, universal, não

discriminando – em tese – as especificidade entre homens e

mulheres, pois não consideram a existência dessa diferença, assim

tratando de forma igual os dois sexos, não levando em conta os

gêneros. Dessa forma não colocando a mulher em nenhum lugar no

âmbito do público. A igualdade - de fato - necessita, portanto,

igualar o poder para criar papéis definidos por mulheres ou para

criar papéis que tanto homens como mulheres possam desenvolver

(não apenas a igual oportunidade de buscar papéis definidos por

homens).

Família e justiça...

Teóricos vinculados às correntes de pensamento hegemônicas na

teoria política clássica relutaram em confrontar as relações

familiares e julgá-las à luz de padrões de justiça. Pateman (1989)

mostra que os liberais clássicos, por exemplo, caracterizaram a

família como uma unidade biologicamente determinada e naturalmente

encabeçada por um homem. Em oposição a este âmbito natural da

família eles opunham a justiça, construção da sabedoria humana por

excelência, a qual diria respeito a relações determinadas de

maneira convencional entre as famílias.

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Como disse Jean Bethke Elshtain (1981), a família é para o

homem a relação ética que serve de base para todas as outras,

incluindo a cidadania; e as mulheres se definem por ela (a

família): a família pode ser o início e o fim de uma mulher. Aí

está um dos pontos da crítica feminista à lógica liberal

patriarcal, pois a esfera pública se desenvolve (para os homens) à

custa da esfera doméstica construindo, por exemplo, valores

sociais como a cidadania e o respeito ao próximo, já as mulheres

não têm esse mesmo estímulo no ambiente familiar. De acordo com

liberalismo patriarcal as mulheres não teriam condições de se

dedicar a uma coletividade maior que a família – a política – pois

elas só saberiam lidar com uma ética íntima e interesses

familiares.

A família está no âmago da desvalorização cultural e da

dependência econômica vinculadas aos papéis tradicionais de

gênero. Neste sentido, é de fundamental importância para o

feminismo acabar com — ou pelo menos, rever profundamente — a

divisão público/privado, já que, como argumenta Okin, “é a

permanência dessa dicotomia que torna possível que os teóricos

ignorem a natureza política da família, a relevância da justiça na

vida pessoal e, consequentemente, uma parte central das

desigualdades de gênero” (OKIN 2008, p. 307).

O jargão popular: “em briga de marido e mulher, não se mete a

colher” ilustra bem o problema da justiça na vida pessoal, que

como sugere John Rawls, em Uma teoria da justiça, o homem – pai de

família com mulher em casa – tem o poder de justiça, de ditar as

regras das relações, assim podendo ocultar da sociedade questões

como a violência dentro da família. Este é mais um ponto de

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crítica da abordagem feminista em relação à teoria liberal, pois

ela acaba por invisibilizar – e deixa-los somente no ambiente

privado - problemas que devem ser tratados na esfera pública.

Para Okin, não existe um problema na família comoinstituição. O problema estaria na estrutura de gêneroda família, que restringe as oportunidades dasmulheres, em especial, e torna mulheres e criançasvulneráveis. A dualidade entre o público e o privadoequivale, neste ponto, ao problema da divisão sexual dotrabalho (Apud, BIROLI, 2010, p. 55)

que acarreta para as mulheres a invisibilidade do trabalho

doméstico e a não remuneração pelo mesmo. Essa divisão sexual do

trabalho doméstico também resulta nas carreiras profissionais

destinadas para cada gênero, quando da oportunidade das mulheres

trabalharem fora de casa.

Nesse debate sobre justiça, acesso e os limites que ela tem,

avalia-se que não se deva buscar a justiça em termos de igualdade

e sim de equidade; e nesse momento o papel do Estado como agente

promotor dessa equidade é muito importante. Construir ferramentas

e mecanismos que possibilitem o desenvolvimento – inicialmente

desigual - das potencialidades e capacidades das mulheres, de

forma em ter a longo prazo, de fato, direitos iguais. No entanto,

não se pode ter o entendimento de que o Estado é um agente neutro

ou uma arena imparcial onde as pessoas têm condições iguais de

desenvolverem seus objetivos de acordo com seus interesses, pois

esse entendimento está aportado em ideais liberais. Pois o

liberalismo tem a igualdade e a liberdade como premissas e tendo o

Estado como agente promotor e garantidor dessas premissas.

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Outrossim, sabe-se que essa igualdade de direitos entre os

indivíduos – mulheres e homens - não se dá de fato nem na esfera

de domínio público, tampouco na esfera privada, onde os princípios

de justiça e igualdade são relativizados no ambiente familiar e

obscurecidos pelo direito a intimidade.

O direito à privacidade...

Para tratar sobre o direito à privacidade utiliza-se o debate

mobilizado por Jean Cohen em seu ensaio Repensando a privacidade. Cohen

tenta construir “uma concepção de privacidade que seja um

complemento adequado à redefinição feminista do conceito de espaço

público” (COHEN, 2012, p.168). Para tanto, Cohen reúne algumas

perspectivas e críticas ao direto à privacidade para desenvolver

seu argumento. Que vão desde a preocupação com questões legais

levantadas por algumas teóricas feministas até críticas

comunitaristas ao liberalismo.

O primeiro enfoque não leva em conta as dimensõesnormativa e de empoderamento presentes nos direitos àprivacidade, visto estar preocupado em desmascarar opapel funcional que eles podem exercer na preservaçãodas desigualdades e das hierarquias. O segundo éperturbado pelas velhas suposições atomísticassubjacentes a muitas justificações liberais do direitoà privacidade (e de outros direitos individuais).(COHEN, 2012, p.171-172)

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Ambas abordagens propõem o abandono do discurso da privacidade

como um todo, pois entendem o direito a privacidade como liberal.

Consequentemente, para Cohen, ambas as críticas são unilaterais: a

primeira, porque leva em conta apenas a subordinação da prática

jurídica à preservação de um sistema de dominação; a segunda,

porque confunde o significado formal com o significado substantivo

da individualidade ligada aos direitos à privacidade.

As teóricas feministas preocupadas com questões legais, que

defendem o abandono da justificação dos direitos reprodutivos em

termos de privacidade, por exemplo, argumentam que o discurso da

privacidade fortalece um falacioso modelo liberal de relações

sociedade/Estado (privado e público) que dissimula as hierarquias

de gênero e obscurece a realidade social que ele ajuda a

constituir, ao invés de torná-la acessível ao escrutínio público,

da comunidade e do Estado. Por conseguinte, o direito à

privacidade “baseia-se no suposto de que, contanto que o Estado

não interfira na vida privada, os indivíduos autônomos interagirão

livre e igualitariamente” (Olsen, 1991, Apud COHEN, 2012, p. 174).

Sendo assim, o próprio conceito de privacidade pressupõe uma noção

ideológica de uma esfera de vida “natural”, pré-política, na qual

as relações baseiam-se no consentimento entre adultos livres e

iguais, relações que normalmente se desenvolvem no ambiente

doméstico.

Para fazer o debate acerca do direito à privacidade a partir

da perspectiva comunitarista Cohen traz Machael Sandel e Mary Ann

Glendon que têm argumentos voluntarista e individualista,

respectivamente. Glendon afirma que as decisões da Corte, por

exemplo, protegendo a autonomia decisória envolvem uma concepção

da sociedade como coleção de indivíduos separados, autônomos e17

autossuficientes (Glendon, 1987 e 1991, Apud COHEN 2012). Glendon

tem o entendimento de que o direito à privacidade na constituição

americana simplesmente como o “direito a ser deixado em paz”, o

qual apresenta o indivíduo como autárquico, isolado e soberano.

Para Sandel o princípio da privacidade como autonomia vai

além, contestando a noção voluntarista da ação individual. Cohen

ilustra o debate com citações de Sandel, mesmo argumento que ele

usa contra John Rawls, afirmando que “a concepção liberal de

justiça, que privilegia a ideia de direitos iguais sobre as

concepções substantivas do bem, baseia-se em um conceito

antropológico do indivíduo não apenas isolado, atomístico e

autônomo, mas também radicalmente não situado” (Sandel, 1982, Apud

COHEN, 2012.). Um indivíduo com o self essencialmente

descompromissado é “um sujeito (...) de posse, individuado

previamente e dado anteriormente a seus fins” (Sandel, 1982, Apud

COHEN 2012). Assim, esse indivíduo assume uma postura distanciada

em relação à vida em sociedade e escolhe de forma voluntária sua

própria concepção do bem, como se ele tivesse esse poder de

escolha. Nesse sentido, com o direito a privacidade, o indivíduo

descompromissado e autônomo é concebido como externo a sua própria

identidade, não possui vínculos constitutivos, mas apenas um

conjunto de preferências entre as quais pode escolher livremente.

Para Cohen, uma vez abandonadas as velhas maneiras de

constutir associações íntimas e sua relação com o poder estatal,

pode-se ainda tratar da questão relativa a se traçar e/ou como

traçar uma fronteira no interior do terreno do social.

Em suma, quero invocar a noção de privacidade derelações [relational privacy] para abranger o que eracompreendido pela privacidade de entidade, mas sem a

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sua bagagem patriarcal. Como tal, a privacidade derelações protege a interação comunicativa intensamentepessoal entre íntimos com relação ao controle ouintervenção injustificada por parte do Estado ou deterceiros, mas com uma ressalva fundamental: que asexigências de justiça não sejam violadas no interior darelação. (COHEN, 2012, p. 177)

Sobre a privacidade “Jean Cohen, por exemplo, relaciona o

exercício da autonomia a um processo criativo que exige a

preservação de espaços de si (a partir da noção de “territories of the

self”, de Erving Goffman (2010)) para a produção das identidades,

frágeis e individualizadas.” (Apud, BIROLI, 2010, p. 54) No

entanto, existe dificuldade objetivas e diferenças entre mulheres

e homens no ambiente doméstico de poderem ter a preservação dos

espaços de si.

Cohen consensua, em partes, com a teoria liberal no que diz

respeito à questão da privacidade. A autora argumenta que “os

direitos à privacidade asseguram autonomia decisória ao indivíduo

no que diz respeito às questões pessoais.” (COHEN, 2012, p. 181)

No entanto, problematize-se aqui o que seria ‘questões pessoais’

que a autora traz como “o que é considerado como uma decisão ética

sobre a vida correta ou uma questão moral de justiça” (COHEN,

2012, p.185), pois essa mesma questão pessoal pode ser referente à

decisão de uma mulher em interromper sua gravidez e também a um

marido querer que sua esposa não interrompa uma gravidez por

questões religiosas que podem ser consideradas éticas e morais

também. Assim sendo uma posição voluntarista, como diria Sandel,

pois esse marido estaria agindo conforme sua concepção de bem.

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Considerações Finais

Pensei o quanto desconfortável é ser trancado do lado de fora;

e pensei o 

quanto é pior, talvez, ser trancado no lado de dentro.

Virginia Woolf

O debate da teoria política feminista reúne posições que vão

desde a aceitação e concordância com alguns pontos centrais da

teoria liberal até posições que questionam diretamente a dicotomia

e separação entre as esferas pública e privada da forma como são

tratadas pelo liberalismo. Sendo assim, as teóricas feministas têm

o entendimento de que as estruturas sociais que foram idealizadas

e teorizadas por liberais, da forma como estão organizadas,

contribuem para cristalizar as formas de opressão que naturalizam,

hierarquizam e subordinam o papel da mulher na sociedade.

O principal argumento feminista é que a doutrina da separação

das esferas, do individualismo ostensivo e o igualitarismo da

teoria liberal, obscurecem a realidade patriarcal de uma estrutura

social de desigualdade e de dominação das mulheres pelos homens.

Sendo assim, não se pode entender as esferas públicas – o estado e

mundo do trabalho – sem levar em conta o fato de que são

generificadas, de que foram construídas sob a afirmação da

superioridade e da dominação masculinas e que pressupõem a20

responsabilidade exclusiva feminina pela esfera doméstica. Apesar

da grande importância dessas questões, e de muitas outras

similares a essas, a maior parte da teoria política hoje, ao

manter-se distante da reflexão sobre a velha dicotomia

público/doméstico, é incapaz de considerá-las. Assim corroborando

para a manutenção da pretensa neutralidade e imparcialidade da

teoria política, e na prática das relações sociais contribui para

o alijamento das mulheres dos espaços públicos.

No debate iniciado ao longo dessa revisão refletiu-se acerca

de quatro questões principais: a crítica ao universalismo liberal;

a pouca participação e representação das mulheres na esfera

pública; debate sobre família e justiça interna e o direito a

privacidade. Tem-se como preocupações principais a pouca

representação da mulher na esfera pública, principalmente nos

espaços e deliberação e a questão de justiça interna a família que

acaba se mesclando com a questão do direito a privacidade.

Entendendo o privado como uma redoma que permite ao homem o

exercício irrestrito de um poder patriarcal, onde pode subordinar

as mulheres e as crianças sem a ciência de agentes externos, como

outros familiares e o próprio Estado. Chama-se atenção para o fato

que esse ambiente particular do lar torna-se uma dimensão dentro

da pública, na qual são reproduzidas as estruturas patriarcais da

sociedade, como uma espécie de microcosmos onde o que muda é o

propulsor do poder, não sendo do Estado e seus representantes

masculinos, mas sim do marido/pai, do ‘homem da casa’.

A pouca representação das mulheres nos espaços de mando está

diretamente relacionada com a desigualdade histórica, pelos anos

de opressão e submissão das mulheres em relação aos homens no

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ambiente doméstico, por mais que os avançados na emancipação

feminina tenham sido grandes, por exemplo, na ocupação de mais da

metade dos postos de trabalho no Brasil, ainda não está superada

essa questão. Vê-se isso nos números de candidatas nas eleições ou

na remuneração das mulheres, que segue inferior à dos homens para

a realização de tarefas iguais.

Assim, espera-se ter articulado a bibliografia acerca da

dicotomia entre as esferas pública e privada resultando em uma

revisão bibliográfica em consonância com o debate crítico feito

pela teoria política feminista e contribuindo com os estudos

acerca das relações de gênero nessa temática. Sabe-se também das

limitações do artigo, pois não se esgotou o debate acerca do tema,

nem todos os textos das autoras citadas foram trabalhados aqui e

que autoras e autores da teoria política contemporânea ficaram de

fora do debate nesse artigo. Além do mais, tentou se fazer uma

revisão bibliográfica numa perspectiva mais ampla e general, um

panorama, que não se detêm nos detalhes, que não deixam de ser

importantes, mas que, no entanto, serão abordados num estudo menos

introdutório futuramente.

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