QUESTÃO DE GÊNERO: UMA REVISÃO DA LITERATURA ACERCA DA DICOTOMIA ENTRE AS ESFERAS PÚBLICA E...
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QUESTÃO DE GÊNERO: UMA REVISÃO DA LITERATURA ACERCA DA DICOTOMIA
ENTRE AS ESFERAS PÚBLICA E PRIVADA*
Kátia Azambuja1
RESUMO
O presente artigo pretende fazer um debate teórico, a partir deuma revisão bibliográfica, acerca da dicotomia entre as esferaspública e privada dentro da teoria política feminista. Essadicotomia é tema de debate muito antigo no pensamento políticoocidental. As dimensões desse debate variam de acordo com oscontextos históricos e sociais de cada época, no entanto podemosobservar alguns pressupostos recorrentes: a caracterização dosgovernos como parte da esfera pública; e do ambiente doméstico,casa e estruturas familiares, como parte da esfera privada.
Muitos teóricos do século XVIII e XIX desenvolveram a noção de“esferas separadas” para tratar de público e privado, separaçãoque teve como função apartar homens e mulheres, assim impedindo oacesso das mulheres a esfera da política. Empregaremos oconstructo de gênero para analisar a dualidade público-privado.
Na literatura das Ciências Humanas existem alguns usos distintospara as terminologias da dualidade entre o público e o privado.Essa distinção por vezes causa ambiguidades. Utiliza-se o públicoe privado para diferenciar o Estado da sociedade; e para sereferir à dicotomia entre vida pública e a vida não pública, avida doméstica. A esta segunda dualidade que me deterei no artigo.
A teoria política feminista tem o entendimento de que a esferapública – política - não pode ser discutida isoladamente da esferaprivada - pessoal. As relações que se estabelecem entre as esferastêm impacto sobre a vida das pessoas e as diferenças entre asesferas não são naturais, foram naturalizadas, e são o resultadode uma visão – política e ideológica – de mundo.
1* Agradeço a Ricardo Azambuja, Marília Oliveira, Lucas La Bella Costa e RenataAlbuquerque por contribuições e críticas a versões anteriores.
? Mestranda em Ciência Política pela UnB: [email protected]
O artigo está organizado em quatro seções: além da introdução edas considerações finais; será contextualizado historicamente odebate acerca da dualidade entre o público e o privado nopensamento político ocidental; posteriormente será apresentada umarevisão bibliográfica da teoria política feminista com osprincipais tópicos e abordagens acerca do tema. Trabalharemos comalguns escritos de Carole Pateman, Jean Bethke Elshtain, CatherineMackinnon, Susan Okin e Jean Cohen.
Introdução
O gênero muda e deve mudar o modo como pensamos a democracia, mas,
dada a força das tradições existentes, transcorrera algum tempo ate
que os detalhes da nova paisagem se tornem claros. Também não
devemos supor rapidamente demais que todas as suas características
mudarão.
Anne Phillips
A dicotomia entre as esferas pública e privada é uma temática
antiga no pensamento político ocidental. No entanto, essa
dicotomia foi naturalizada, não gerando o debate que elevasse o
tema a uma posição de destaque dentro da teoria política. Mesmo
com a variação de alguns pressupostos que envolvem a temática em
cada contexto histórico e social, podemos observar a recorrência
de algumas ideias centrais, como a caracterização de governos como
parte da esfera pública e do ambiente doméstico, casa e estruturas
familiares, como parte da esfera privada.
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Na literatura das Ciências Humanas existem alguns usos
distintos para as terminologias da dualidade entre o público e o
privado. Essa distinção por vezes causa ambiguidades. Utiliza-se o
público e privado para diferenciar o Estado da sociedade; e para
se referir à vida pública e a vida não pública, a vida doméstica.
Muitos teóricos do século XVIII e XIX desenvolveram a noção de
“esferas separadas” para tratar de público e privado, separação
que teve como função apartar homens e mulheres, impedindo, assim,
o acesso das mulheres à esfera da política. Nesse sentido,
empregaremos o constructo de gênero para revisitar a dualidade
público-privado. A definição de gênero trazida por Okin (2008)
será uma importante referência, uma vez que considera as
diferenças sexuais como algo socialmente construído:
“Gênero” refere-se à institucionalização social dasdiferenças sexuais; é um conceito usado por aqueles queentendem não apenas a desigualdade sexual, mas muitasdas diferenciações sexuais, como socialmenteconstruídas. (OKIN 2008, p. 306).
A partir de meados do século XX, a separação das esferas
pública e privada começa a ser fortemente contestada pelo
movimento feminista, que não só na ação das ruas, mas também nos
discursos da academia, vem contrapondo e criticando os ideais
liberais, balizadores da separação das esferas do político e do
doméstico.
Na revisão bibliográfica a que se propõe esse artigo,
pretende-se observar como a teoria política feminista faz o debate
acerca da dicotomia nas esferas pública e privada a partir da
perspectiva de gênero, e levantando críticas à forma como a teoria3
liberal aborda essa mesma temática. Vale ressaltar que não será
feita uma imersão na perspectiva liberal. Pretende-se apenas
apontar suas limitações no trato da posição da mulher nas esferas
pública e privada a partir da teoria política feminista, da qual
se tomará emprestada as lentes para as críticas trazidas neste
artigo.
A teoria política feminista tem o entendimento de que a esfera
pública – política - não pode ser discutida isoladamente da esfera
privada - pessoal. As relações que se estabelecem entre as
esferas têm impacto sobre a vida das pessoas e as diferenças entre
as esferas não são naturais, foram naturalizadas, e são o
resultado de uma visão – política e ideológica – de mundo. A
naturalização das diferenças entre as esferas será debatida mais
adiante.
O artigo utilizará algumas autoras que são consideradas
expoentes na teoria política feminista e que são as mobilizadas
nos trabalhos desenvolvidos no Brasil a partir dessa abordagem
teórica. Dentre as diferentes posições sobre a divisão das esferas
públicas e privadas, encontram-se aquelas que sustentam o fim da
divisão entre essas esferas e as que defendem uma modificação nos
padrões de privado e relações de privacidade. Dessa forma
demonstrando as nuances do feminismo, assim podendo se falar em
feminismos. Utiliza-se aqui Carole Pateman, Iris Marion Young,
Susan Moller Okin, dentre outras autoras da teoria feminista.
Tem-se aqui algumas questões a serem debatidas, baseada
principalmente na abordagem feminista da (quase) extinção, ou pelo
menos, de grande modificação na diferença de como se da às
relações entre os indivíduos nas esferas públicas e privadas,
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entendendo que a mulher deveria ter uma maior presença e
representação na esfera pública, e nos estudos acerca da teoria
política democrática. Este artigo é composto por três seções:
além da introdução e das considerações finais, há uma grande seção
dividida em quatro subseções, a primeira sendo ela uma crítica ao
universalismo liberal; a segunda é sobre a pouca participação e
representação das mulheres na esfera pública; a terceira debate
sobre família e justiça interna e quarta e última aborda o direito
a privacidade.
Debate: o público e o privado
A dicotomia entre o privado e o público é central para quase
dois séculos de produção feminista e luta política; é, em
última análise, o tema do movimento feminista.
Carole Pateman
Inicia-se aqui uma revisão bibliográfica que perpassa algumas
autoras da teoria política feminista para entender como as
feministas fazem o debate acerca dessa temática e observar também
a crítica de como é feito o debate na abordagem liberal sobre a
dualidade público/privado. Tem-se o entendimento de que esse
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debate não pode ser feito de forma separada, que essas esferas não
são separadas e sim sobrepostas e entrelaçadas.
A crítica feita pelas teóricas feministas sobre a teoria
política liberal faz esse debate a partir da perspectiva de que
(...) o feminismo tem um olhar diferenciado em relaçãoà ordem social dentro do qual as diversas dimensões sãodistintas, mas não separadas ou opostas, e que repousasobre uma concepção social da individualidade, queinclui homens e mulheres como criaturas biologicamentediferenciados, mas não desiguais. (PATEMAN, 1989, p.136)
As relações que se estabelecem entre as esferas pública e
privada têm impacto sobre a vida das pessoas e as diferenças entre
as esferas não são naturais, foram naturalizadas, e tratadas como
antagônicas e não intercambiantes e são o resultado de uma visão
de mundo – o liberalismo.
Para iniciar o debate, Okin tem o entendimento de que a
análise dessa relação – entre a esfera pública e privada - tem de
ser feita a partir da perspectiva de gênero.
Na medida em que tudo isso é convincente (...), seuimpacto sobre a teoria política poderia ser profundo,pois, no esforço feminista para compreender o gênero,nós encontramos o pessoal e o político misturados deuma maneira que confunde as categorias separadas dopúblico e do doméstico, e destaca a necessáriaincompletude das teorias políticas que continuam serestringindo ao estudo daquilo que foi definido, em umaera pré-feminista, como legitimamente político. (OKIN,2008, p. 320)
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A autora faz crítica a teoria política e as correntes
estabelecidas antes do feminismo e argumenta que devemos superar
os padrões estabelecidos de separação das esferas e
consequentemente de quem ocupa e sobressalta em cada esfera, pois
(somente) assim conseguiremos superar a longa era do patriarcado.
Aborda-se quatro questões para desenvolver o debate acerca da
dicotomia entre as esferas pública e privada: iniciando com uma
análise mais ampla ao liberalismo, criticando e denunciando as
formas enrijecidas e universalistas com as quais os teóricos
liberais tratam essa relação; passando pela a não presença das
mulheres na vida pública, consequentemente, nos espaços de decisão
política; seguindo para a família e justiça interna e, por último
o direito a privacidade.
Crítica ao universalismo liberal...
Um dos principais recortes de crítica das teóricas feministas
à teoria liberal é a crítica à neutralidade, a imparcialidade e a
universalidade com a qual os liberais tratam alguns temas, em
especial debates acerca da dicotomia entre as esferas pública e
privada nas relações pessoais. Iris Young (1990) faz a crítica a
Rawls no sentido de que ele e outros liberais constroem dois
paralelos identitários em relação ao “masculino” e ao “feminino”;
sendo a racionalidade e a impessoalidade características dos
homens; e a afetividade, o predomínio de relações pessoais
características das mulheres. Essas identidades construídas pelos7
liberais aportam debates e argumentos que valorizam a
impessoalidade em relação a posições objetivas de pessoas e/ou de
grupos. No entanto, esses argumentos estão escondidos atrás de um
véu de pretensa neutralidade e igualdade formal de direitos. Assim
contribuindo para a manutenção de um status quo e da legitimação e
normalização do masculino como sendo a característica identitária
padrão.
Atualmente, boa parte da corrente predominante da teoria
política continua utilizando esses conceitos (público e privado)
arbitrariamente, não levando em conta, que de acordo com a forma
que são trabalhados podem ser problemáticos. Arbitrariedade faz
com que tratem esses conceitos de forma ‘neutra’ e ‘universal’.
Argumentos importantes nos debates contemporâneosdependem da suposição de que questões públicas podemser facilmente diferenciadas de questões privadas, deque temos uma base sólida para separar o pessoal dopolítico. Algumas vezes explicitamente, mas maisfreqüentemente de maneira implícita, perpetua-se aideia de que essas esferas são suficientementeseparadas, e suficientemente diferentes, a ponto de opúblico ou o político poderem ser discutidos de maneiraisolada em relação ao privado ou pessoal. (OKIN, 2008,p. 305)
Essa separação entre as esferas acaba por gerar hierarquia nos
debates acerca dos problemas que são tratados estritamente em cada
esfera, e essa hierarquização pode gerar invisibilidade de alguns
temas e reforçar a subordinação das mulheres em relação aos
homens.
Por trás de uma neutralidade, autores liberais criticam – ou
respondem as críticas anteriormente feitas a eles por elas - as
teóricas feministas por serem ideológicas e militantes ao
desenvolverem seus trabalhos teóricos, 8
o termo "ideologia" é apropriado aqui porque aambiguidade profunda da concepção liberal do privado edo público obscurece e mistifica a realidade social queajuda a constituir. As feministas alegam que oliberalismo é estruturado pelo patriarcado, bem como asrelações de classe, e que a dicotomia entre o privado eo público obscurece a sujeição das mulheres aos homensdentro de uma ordem aparentemente universal,igualitária e individualista. (PATEMAN, 1989, p. 120)
A autora considera que os teóricos liberais, com o discurso de
pretensa universalidade – ‘não ideológico’ - , não previram um
lugar para as mulheres na esfera pública, assim excluindo elas em
seus argumentos na construção de suas teorias. Portanto não
considerando as relações de gênero, não se preocupando com uma
política de diferença e tendo o masculino como normal e
consequentemente, universal.
Como diz Anne Phillips (2011) se remetendo a formulação de
outras feministas, não há individuo neutro quanto ao gênero e,
quando os liberais tentam lidar com as mulheres apenas na condição
de cidadãs abstratas, estão desejando apagar não apenas diferenças
de classe, mas aquelas que podem ser diferenças ainda mais
intransigentes de sexo. “A democracia liberal deseja ignorar (e o
republicanismo cívico deseja transcender) todas as identidades e
diferenças mais locais; na realidade, as duas tradições insinuam o
corpo masculino e a identidade masculina em suas definições da
norma.” (PHILLIPS, 2011) Assim, essa bruma que envolve as
especificidades e identidades femininas presentes na sociedade
contribui para a dominação da mulher pelo homem, e a não aparição
da mulher no debate público, como por exemplo, em políticas
públicas de segurança específicas para mulheres.9
No ensejo da crítica a teoria liberal é observada a
naturalização do debate sobre a dicotomia entre as esferas pública
e privada; e isso acontece no momento em que os liberais não se
preocupam em especificar o espaço da mulher em suas teorias e na
sociedade ou quando o especificam tratam como ‘natural’
determinados papeis arcaicamente legados as mulheres. Nesse
sentido, como bem disse Okin: “os homens são vistos como,
sobretudo, ligados às ocupações da esfera da vida econômica e
política e responsáveis por elas, enquanto as mulheres seriam
responsáveis pelas ocupações da esfera privada da domesticidade e
reprodução. As mulheres têm sido vistas como “naturalmente”
inadequadas à esfera pública, dependentes dos homens e
subordinadas à família” (OKIN, 2008, p. 308). Essa inadequação
e/ou inadaptação da mulher a esfera pública, a política, vem sendo
tratada como natural desde os teóricos clássicos do liberalismo,
que legaram as mulheres a exclusiva responsabilidade do trato com
a casa e as crianças.
A não presença da mulher no espaço público/político...
O slogan do movimento feminista dos anos 1960 “o pessoal é
político” é a principal formulação de crítica à dicotomia das
esferas pública e privada, da forma como ela é trabalhada na
teoria política liberal. Demonstra – e denuncia - também as formas
de exclusão que essa dualidade desenvolve na sociedade e os
limites da democracia liberal. Limite que perdura mesmo com a
inclusão formal das mulheres na vida pública, a qual não é10
suficiente para o estabelecimento de relações democráticas, para
que indivíduos diferentes possam posicionar-se e desenvolver-se na
sociedade de forma não assimétrica.
Tal slogan é considerado a principal formulação de crítica a
essa dicotomia, pois foi a primeira vez ou, a vez melhor sucedida,
por parte do movimento feminista que conseguiu se expor de uma
forma mais explícita a necessidade de se tratar politicamente
questões que normalmente eram tratadas somente no ambiente
doméstico. O slogan traz a necessidade de debater publicamente
questões como violência doméstica, creche e o aborto; traz essas
questões para serem tratadas pelo Estado (e que se torne objeto de
intervenção dele) e pela sociedade como um todo e não somente ser
tratada no âmbito doméstico. Debate a ser feito com a participação
efetiva das mulheres.
O resultado dessa dicotomia é bem marcado quando observa-se a
participação das mulheres na política institucional e constatamos
o baixo quórum das mulheres nos espaços de poder e deliberação,
assim acentuando a desigualdade entre mulheres e homens na esfera
de mando. Pois a vida doméstica e a divisão sexual do trabalho
doméstico são nefastos para a participação política das mulheres e
acabam por entrar em contradição com o exercício da cidadania.
Como diz Phillips, essa questão da divisão sexual do trabalho tem
q ser tratada como uma questão política e não somente social, pois
o impedimento ou a grande dificuldade da mulher em participar da
política é prejudicial à democracia. Além do mais, nesses espaços
existem demandas e ‘traquejos’ aos quais as mulheres não dominam,
pois historicamente nunca lhes foi permitido acesso a esses
espaços. O debate que as feministas tentam fazer é também no
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sentido da ampliação da representação política das mulheres, para
que os temas pertinentes as mulheres não sejam tratados apenas por
homens, como por exemplo, a questão do aborto. No entanto,
essa situação desigual e diferenciada não é apresentadacomo um problema [na teoria liberal], aparece entãocomo desdobramento natural do sexo, e não das relaçõesde gênero – entendidas como relações de poder, queassumem características historicamente variáveis – e dapolítica – entendida como um conjunto de instituições,regras e valores com permeabilidade e configuraçãotambém variáveis (MIGUEL e BIROLI, 2011, p.167-168).
Assim, a permeabilidade variável dessas relações dificulta o
pertencimento, por parte das mulheres, ao campo da política. Pois,
existem limites a esse pertencimento, entraves simbólicos advindos
de práticas históricas e culturais do alijamento das mulheres da
esfera pública.
Ativistas dos movimentos de mulheres de muitos cantos do
mundo, por exemplo, apontam que legislaturas ocupadas
majoritariamente por homens não podem representar devidamente as
mulheres (YOUNG, 2006). No entanto, a simples entrada de mulheres
nos espaços de deliberação não assegura que suas demandas sejam
atendidas, porque apensar da existência da desigualdade de gênero,
essa é perpassada por desigualdades étnicas, de classe e
religiosas, tornando essa representação complexa. Com efeito, as
trajetórias de vida e política de cada representante vão refletir
na sua atuação. Ações afirmativas como as cotas, são ferramentas
importantes para o exercício da democracia, muitas vezes não
exercido por alguns setores por não se sentirem representados. Se
as cotas no Brasil tivessem efetividade, como em outros países,
12
por exemplo, a Argentina, ampliaria a representação institucional
das mulheres, podendo também ampliar a diversidade dessa
representação. Assim abarcando melhor as intersecções sociais que
perpassam as mulheres.
Sendo assim, a teoria liberal trata as relações que se
desenvolvem na esfera pública de forma genérica, universal, não
discriminando – em tese – as especificidade entre homens e
mulheres, pois não consideram a existência dessa diferença, assim
tratando de forma igual os dois sexos, não levando em conta os
gêneros. Dessa forma não colocando a mulher em nenhum lugar no
âmbito do público. A igualdade - de fato - necessita, portanto,
igualar o poder para criar papéis definidos por mulheres ou para
criar papéis que tanto homens como mulheres possam desenvolver
(não apenas a igual oportunidade de buscar papéis definidos por
homens).
Família e justiça...
Teóricos vinculados às correntes de pensamento hegemônicas na
teoria política clássica relutaram em confrontar as relações
familiares e julgá-las à luz de padrões de justiça. Pateman (1989)
mostra que os liberais clássicos, por exemplo, caracterizaram a
família como uma unidade biologicamente determinada e naturalmente
encabeçada por um homem. Em oposição a este âmbito natural da
família eles opunham a justiça, construção da sabedoria humana por
excelência, a qual diria respeito a relações determinadas de
maneira convencional entre as famílias.
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Como disse Jean Bethke Elshtain (1981), a família é para o
homem a relação ética que serve de base para todas as outras,
incluindo a cidadania; e as mulheres se definem por ela (a
família): a família pode ser o início e o fim de uma mulher. Aí
está um dos pontos da crítica feminista à lógica liberal
patriarcal, pois a esfera pública se desenvolve (para os homens) à
custa da esfera doméstica construindo, por exemplo, valores
sociais como a cidadania e o respeito ao próximo, já as mulheres
não têm esse mesmo estímulo no ambiente familiar. De acordo com
liberalismo patriarcal as mulheres não teriam condições de se
dedicar a uma coletividade maior que a família – a política – pois
elas só saberiam lidar com uma ética íntima e interesses
familiares.
A família está no âmago da desvalorização cultural e da
dependência econômica vinculadas aos papéis tradicionais de
gênero. Neste sentido, é de fundamental importância para o
feminismo acabar com — ou pelo menos, rever profundamente — a
divisão público/privado, já que, como argumenta Okin, “é a
permanência dessa dicotomia que torna possível que os teóricos
ignorem a natureza política da família, a relevância da justiça na
vida pessoal e, consequentemente, uma parte central das
desigualdades de gênero” (OKIN 2008, p. 307).
O jargão popular: “em briga de marido e mulher, não se mete a
colher” ilustra bem o problema da justiça na vida pessoal, que
como sugere John Rawls, em Uma teoria da justiça, o homem – pai de
família com mulher em casa – tem o poder de justiça, de ditar as
regras das relações, assim podendo ocultar da sociedade questões
como a violência dentro da família. Este é mais um ponto de
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crítica da abordagem feminista em relação à teoria liberal, pois
ela acaba por invisibilizar – e deixa-los somente no ambiente
privado - problemas que devem ser tratados na esfera pública.
Para Okin, não existe um problema na família comoinstituição. O problema estaria na estrutura de gêneroda família, que restringe as oportunidades dasmulheres, em especial, e torna mulheres e criançasvulneráveis. A dualidade entre o público e o privadoequivale, neste ponto, ao problema da divisão sexual dotrabalho (Apud, BIROLI, 2010, p. 55)
que acarreta para as mulheres a invisibilidade do trabalho
doméstico e a não remuneração pelo mesmo. Essa divisão sexual do
trabalho doméstico também resulta nas carreiras profissionais
destinadas para cada gênero, quando da oportunidade das mulheres
trabalharem fora de casa.
Nesse debate sobre justiça, acesso e os limites que ela tem,
avalia-se que não se deva buscar a justiça em termos de igualdade
e sim de equidade; e nesse momento o papel do Estado como agente
promotor dessa equidade é muito importante. Construir ferramentas
e mecanismos que possibilitem o desenvolvimento – inicialmente
desigual - das potencialidades e capacidades das mulheres, de
forma em ter a longo prazo, de fato, direitos iguais. No entanto,
não se pode ter o entendimento de que o Estado é um agente neutro
ou uma arena imparcial onde as pessoas têm condições iguais de
desenvolverem seus objetivos de acordo com seus interesses, pois
esse entendimento está aportado em ideais liberais. Pois o
liberalismo tem a igualdade e a liberdade como premissas e tendo o
Estado como agente promotor e garantidor dessas premissas.
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Outrossim, sabe-se que essa igualdade de direitos entre os
indivíduos – mulheres e homens - não se dá de fato nem na esfera
de domínio público, tampouco na esfera privada, onde os princípios
de justiça e igualdade são relativizados no ambiente familiar e
obscurecidos pelo direito a intimidade.
O direito à privacidade...
Para tratar sobre o direito à privacidade utiliza-se o debate
mobilizado por Jean Cohen em seu ensaio Repensando a privacidade. Cohen
tenta construir “uma concepção de privacidade que seja um
complemento adequado à redefinição feminista do conceito de espaço
público” (COHEN, 2012, p.168). Para tanto, Cohen reúne algumas
perspectivas e críticas ao direto à privacidade para desenvolver
seu argumento. Que vão desde a preocupação com questões legais
levantadas por algumas teóricas feministas até críticas
comunitaristas ao liberalismo.
O primeiro enfoque não leva em conta as dimensõesnormativa e de empoderamento presentes nos direitos àprivacidade, visto estar preocupado em desmascarar opapel funcional que eles podem exercer na preservaçãodas desigualdades e das hierarquias. O segundo éperturbado pelas velhas suposições atomísticassubjacentes a muitas justificações liberais do direitoà privacidade (e de outros direitos individuais).(COHEN, 2012, p.171-172)
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Ambas abordagens propõem o abandono do discurso da privacidade
como um todo, pois entendem o direito a privacidade como liberal.
Consequentemente, para Cohen, ambas as críticas são unilaterais: a
primeira, porque leva em conta apenas a subordinação da prática
jurídica à preservação de um sistema de dominação; a segunda,
porque confunde o significado formal com o significado substantivo
da individualidade ligada aos direitos à privacidade.
As teóricas feministas preocupadas com questões legais, que
defendem o abandono da justificação dos direitos reprodutivos em
termos de privacidade, por exemplo, argumentam que o discurso da
privacidade fortalece um falacioso modelo liberal de relações
sociedade/Estado (privado e público) que dissimula as hierarquias
de gênero e obscurece a realidade social que ele ajuda a
constituir, ao invés de torná-la acessível ao escrutínio público,
da comunidade e do Estado. Por conseguinte, o direito à
privacidade “baseia-se no suposto de que, contanto que o Estado
não interfira na vida privada, os indivíduos autônomos interagirão
livre e igualitariamente” (Olsen, 1991, Apud COHEN, 2012, p. 174).
Sendo assim, o próprio conceito de privacidade pressupõe uma noção
ideológica de uma esfera de vida “natural”, pré-política, na qual
as relações baseiam-se no consentimento entre adultos livres e
iguais, relações que normalmente se desenvolvem no ambiente
doméstico.
Para fazer o debate acerca do direito à privacidade a partir
da perspectiva comunitarista Cohen traz Machael Sandel e Mary Ann
Glendon que têm argumentos voluntarista e individualista,
respectivamente. Glendon afirma que as decisões da Corte, por
exemplo, protegendo a autonomia decisória envolvem uma concepção
da sociedade como coleção de indivíduos separados, autônomos e17
autossuficientes (Glendon, 1987 e 1991, Apud COHEN 2012). Glendon
tem o entendimento de que o direito à privacidade na constituição
americana simplesmente como o “direito a ser deixado em paz”, o
qual apresenta o indivíduo como autárquico, isolado e soberano.
Para Sandel o princípio da privacidade como autonomia vai
além, contestando a noção voluntarista da ação individual. Cohen
ilustra o debate com citações de Sandel, mesmo argumento que ele
usa contra John Rawls, afirmando que “a concepção liberal de
justiça, que privilegia a ideia de direitos iguais sobre as
concepções substantivas do bem, baseia-se em um conceito
antropológico do indivíduo não apenas isolado, atomístico e
autônomo, mas também radicalmente não situado” (Sandel, 1982, Apud
COHEN, 2012.). Um indivíduo com o self essencialmente
descompromissado é “um sujeito (...) de posse, individuado
previamente e dado anteriormente a seus fins” (Sandel, 1982, Apud
COHEN 2012). Assim, esse indivíduo assume uma postura distanciada
em relação à vida em sociedade e escolhe de forma voluntária sua
própria concepção do bem, como se ele tivesse esse poder de
escolha. Nesse sentido, com o direito a privacidade, o indivíduo
descompromissado e autônomo é concebido como externo a sua própria
identidade, não possui vínculos constitutivos, mas apenas um
conjunto de preferências entre as quais pode escolher livremente.
Para Cohen, uma vez abandonadas as velhas maneiras de
constutir associações íntimas e sua relação com o poder estatal,
pode-se ainda tratar da questão relativa a se traçar e/ou como
traçar uma fronteira no interior do terreno do social.
Em suma, quero invocar a noção de privacidade derelações [relational privacy] para abranger o que eracompreendido pela privacidade de entidade, mas sem a
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sua bagagem patriarcal. Como tal, a privacidade derelações protege a interação comunicativa intensamentepessoal entre íntimos com relação ao controle ouintervenção injustificada por parte do Estado ou deterceiros, mas com uma ressalva fundamental: que asexigências de justiça não sejam violadas no interior darelação. (COHEN, 2012, p. 177)
Sobre a privacidade “Jean Cohen, por exemplo, relaciona o
exercício da autonomia a um processo criativo que exige a
preservação de espaços de si (a partir da noção de “territories of the
self”, de Erving Goffman (2010)) para a produção das identidades,
frágeis e individualizadas.” (Apud, BIROLI, 2010, p. 54) No
entanto, existe dificuldade objetivas e diferenças entre mulheres
e homens no ambiente doméstico de poderem ter a preservação dos
espaços de si.
Cohen consensua, em partes, com a teoria liberal no que diz
respeito à questão da privacidade. A autora argumenta que “os
direitos à privacidade asseguram autonomia decisória ao indivíduo
no que diz respeito às questões pessoais.” (COHEN, 2012, p. 181)
No entanto, problematize-se aqui o que seria ‘questões pessoais’
que a autora traz como “o que é considerado como uma decisão ética
sobre a vida correta ou uma questão moral de justiça” (COHEN,
2012, p.185), pois essa mesma questão pessoal pode ser referente à
decisão de uma mulher em interromper sua gravidez e também a um
marido querer que sua esposa não interrompa uma gravidez por
questões religiosas que podem ser consideradas éticas e morais
também. Assim sendo uma posição voluntarista, como diria Sandel,
pois esse marido estaria agindo conforme sua concepção de bem.
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Considerações Finais
Pensei o quanto desconfortável é ser trancado do lado de fora;
e pensei o
quanto é pior, talvez, ser trancado no lado de dentro.
Virginia Woolf
O debate da teoria política feminista reúne posições que vão
desde a aceitação e concordância com alguns pontos centrais da
teoria liberal até posições que questionam diretamente a dicotomia
e separação entre as esferas pública e privada da forma como são
tratadas pelo liberalismo. Sendo assim, as teóricas feministas têm
o entendimento de que as estruturas sociais que foram idealizadas
e teorizadas por liberais, da forma como estão organizadas,
contribuem para cristalizar as formas de opressão que naturalizam,
hierarquizam e subordinam o papel da mulher na sociedade.
O principal argumento feminista é que a doutrina da separação
das esferas, do individualismo ostensivo e o igualitarismo da
teoria liberal, obscurecem a realidade patriarcal de uma estrutura
social de desigualdade e de dominação das mulheres pelos homens.
Sendo assim, não se pode entender as esferas públicas – o estado e
mundo do trabalho – sem levar em conta o fato de que são
generificadas, de que foram construídas sob a afirmação da
superioridade e da dominação masculinas e que pressupõem a20
responsabilidade exclusiva feminina pela esfera doméstica. Apesar
da grande importância dessas questões, e de muitas outras
similares a essas, a maior parte da teoria política hoje, ao
manter-se distante da reflexão sobre a velha dicotomia
público/doméstico, é incapaz de considerá-las. Assim corroborando
para a manutenção da pretensa neutralidade e imparcialidade da
teoria política, e na prática das relações sociais contribui para
o alijamento das mulheres dos espaços públicos.
No debate iniciado ao longo dessa revisão refletiu-se acerca
de quatro questões principais: a crítica ao universalismo liberal;
a pouca participação e representação das mulheres na esfera
pública; debate sobre família e justiça interna e o direito a
privacidade. Tem-se como preocupações principais a pouca
representação da mulher na esfera pública, principalmente nos
espaços e deliberação e a questão de justiça interna a família que
acaba se mesclando com a questão do direito a privacidade.
Entendendo o privado como uma redoma que permite ao homem o
exercício irrestrito de um poder patriarcal, onde pode subordinar
as mulheres e as crianças sem a ciência de agentes externos, como
outros familiares e o próprio Estado. Chama-se atenção para o fato
que esse ambiente particular do lar torna-se uma dimensão dentro
da pública, na qual são reproduzidas as estruturas patriarcais da
sociedade, como uma espécie de microcosmos onde o que muda é o
propulsor do poder, não sendo do Estado e seus representantes
masculinos, mas sim do marido/pai, do ‘homem da casa’.
A pouca representação das mulheres nos espaços de mando está
diretamente relacionada com a desigualdade histórica, pelos anos
de opressão e submissão das mulheres em relação aos homens no
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ambiente doméstico, por mais que os avançados na emancipação
feminina tenham sido grandes, por exemplo, na ocupação de mais da
metade dos postos de trabalho no Brasil, ainda não está superada
essa questão. Vê-se isso nos números de candidatas nas eleições ou
na remuneração das mulheres, que segue inferior à dos homens para
a realização de tarefas iguais.
Assim, espera-se ter articulado a bibliografia acerca da
dicotomia entre as esferas pública e privada resultando em uma
revisão bibliográfica em consonância com o debate crítico feito
pela teoria política feminista e contribuindo com os estudos
acerca das relações de gênero nessa temática. Sabe-se também das
limitações do artigo, pois não se esgotou o debate acerca do tema,
nem todos os textos das autoras citadas foram trabalhados aqui e
que autoras e autores da teoria política contemporânea ficaram de
fora do debate nesse artigo. Além do mais, tentou se fazer uma
revisão bibliográfica numa perspectiva mais ampla e general, um
panorama, que não se detêm nos detalhes, que não deixam de ser
importantes, mas que, no entanto, serão abordados num estudo menos
introdutório futuramente.
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