Quando os Mortos Respondem: um Exame Crítico das Perspectivas Sobrevivencialista e da Interação...
Transcript of Quando os Mortos Respondem: um Exame Crítico das Perspectivas Sobrevivencialista e da Interação...
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
1
QUANDO OS MORTOS RESPONDEM: UM EXAME CRÍTICO
DAS PERSPECTIVAS SOBREVIVENCIALISTA E DA INTERAÇÃO
PSÍQUICA ENTRE VIVOS COMO MODELOS EXPLANATÓRIOS
PARA OS CASOS DE MEDIUNIDADE
por André Luís Neves Soares1
1. Introdução
Relatos de fenômenos psíquicos anômalos sempre existiram na humanidade. Sonhos
premonitórios, coincidências bizarras, testemunhos de aparições de mortos e casas reputadas
mal assombradas sempre foram uma constante no decorrer da história da humanidade. Antes
do século XVII, poderíamos dizer que a perspectiva de um Cosmos pleno de propósitos,
significado e de Entidades sobre-humanas gozava de total imunidade na cabeça das pessoas.
Com o desenrolar da revolução científica, do antropocentrismo e do iluminismo, a superstição
diante do desconhecido começou a desvanecer-se, cedendo espaço para o racionalismo
científico. Assim, à medida que o homem descortinava alguns dos segredos do Universo,
gradativamente a perspectiva daquele Cosmos pleno de significado e de propósitos, governado
por uma Mente Suprema, abria espaço para a visão mecanicista de mundo.
Na metade do século XIX, esse novo modo de pensar ainda ganhou novo impulso pela
difusão das ideais de Darwin. Nessa transformação social, o paranormal foi banido da
existência, embora ainda se admitisse que a vontade de Deus pudesse interromper o curso
natural de causalidade. Newton, por exemplo, pensava que Deus poderia, ocasionalmente,
intervir para ajustar a órbita dos planetas (Griffin, 19972). Nos últimos quatro séculos, o
materialismo-mecanicista persiste como a corrente popular da ciência, guindo nossa visão de
mundo, sendo ensinado como a “verdadeira realidade” em nossas instituições e livros escolares.
Mas o que a maioria das pessoas não sabe é que o mecanicismo é apenas uma inferência sobre
1 Advogado, com formação jurídica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, contando com mais de 10 anos
de estudos sobre pesquisa psíquica, incluindo, logicamente, o fenômeno de mediunidade. Atualmente mantém o
site parapsi.com com o objetivo de divulgar amplamente a evidência acumulada sobre fenômenos psi. Para contato,
via facebook, acessar o seguinte endereço de perfil: https://www.facebook.com/andresoares01. 2 Parapsychology, Philosophy and Spirituality: a postmodern exploration. Ed. State University of New York.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
2
como enxergar a realidade. Ele não é de nenhuma maneira a única interpretação racional dos
fatos e fenômenos do mundo. Aliás, existem diversos fatos e fenômenos já submetidos ao
escrutínio do método científico (como os abaixo apresentados) que, se considerados, mostram
que o materialismo simplesmente deve ser rejeitado como uma explicação racionalmente
válida. Nesse ponto, Rhine (1965)3, refletindo sobre o lugar da Mente na natureza, já comentava
Entretanto, bastante estranhamente, não há quem afirme ter provado que a mente é material. Não se registra qualquer teoria física do processo mental consciente. É
extraordinário que um ramo da ciência aceite uma opinião sobre a mente não só sem
qualquer prova positiva mas sem mesmo formular uma hipótese não comprovada que
o justifique. Semelhante atitude só se pode caracterizar como de pura opinião, como
ato de ‘fé’. Entretanto, tornou-se quase tão característica dos círculos científico e das
salas de aula como a crença na alma tem sido a das escolas de teologia.
Vemos assim que o materialismo-mecanicista vai além de uma hipótese científica. Ele
é uma forte ideologia. É uma resposta social a superstição e a irracionalidade que levaram o
homem a praticar diversas atrocidades no passado. Essa ideologia está tão fortemente enraizada
na sociedade atual que qualquer ameaça (ainda que racional) é dogmaticamente rejeitada. Desse
modo, é comum os experimentos científicos que demonstram fendas no programa materialista
serem tratados como ciência de 2ª linha ou paraciência. Assim, e por ironia do destino, a
comunidade científica (diga-se, em algumas ocasiões) transforma-se no demônio a que sempre
disse combater: a irracionalidade.
No século XIX, esse mecanicismo chegou a ser levemente ameaçado pelo nascimento
do espiritualismo, não porque tal movimento social estimulava o renascimento irracional do
sobrenatural, mas porque alguns dos fenômenos ditos paranormais estavam sendo confirmados
pelos mesmos métodos utilizados pela ciência moderna. Debates ferozes se estenderem nos
círculos científicos da época, reputações foram manchadas, sociedades foram formadas para
investigar de forma imparcial alegações paranormais e prestigiosos homens da ciência
defenderam a existência de certos fenômenos anômalos, tais como a telepatia, a clarividência e
a psicocinese.
Tudo começou precisamente em 1848, quando a história de contatos com os mortos
transformou-se num movimento social por ocasião de um caso típico poltergeist, em
3 O Alcance do Espírito. ed. Bestseller.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
3
Hydesville, EUA. A enorme repercussão das meninas Margarett e Kate Fox "contaminou"
diversas pessoas na América (mais tarde na Europa), quando muitos passaram a acreditar serem
possuidores de poderes psíquicos. Os fenômenos espíritas, como então eram chamados,
basicamente se reduziam a efeitos físicos, a exemplo de pancadas sem contato que pareciam ser
comandadas por alguma inteligência (os espíritos dos mortos, diziam os espiritualistas). Quatro
anos mais tarde, o fenômeno das batidelas (ou tiptologia) virou moda nos círculos sociais
ingleses e franceses.
Numa conferência em 1882, William Barrett, renomado físico do período vitoriano,
propôs a fundação da Society for Psychical Research (S.P.R)4, instituição ainda ativa que conta
em sua biografia com os mais célebres pesquisadores, incluindo quatro prêmios Nobel, John
William Strutt (Lord Rayleigh), Charles Richet, J. J. Thomson e Henri Bergson, notórios
intelectuais que posam na história dessa Sociedade ao lado de outros gigantes do conhecimento,
como William James, Henry Sidgwick, William Crookes, F. W. H. Myers, Sir Oliver Lodge,
Alfred Russel Wallace, F. C. S. Schiller, William McDougall, C. D. Broad, Robert H. Thouless,
G. N. M. Tyrrell, Gardner Murphy, Carl Jung e Ian Stevenson. Ao longo dos tempos, os
membros e colaboradores da Sociedade produziram uma massa absurdamente gigantesca de
evidências a favor de manifestações psíquicas paranormais, inclusive a de mentes
desencarnadas serem capazes de se comunicar com algumas pessoas especialmente dotadas.
As primeiras experiências de percepção extrassensorial foram associadas ao hipnotismo.
Vide as pesquisas do Dr. E. Azam, Pierre Janet e Edmund Gurney, por exemplo. Na realidade,
uma feliz associação, pois alguns estudos apontam para o papel psíquico-condutivo do estado
hipnótico e de outros estados alterados da consciência. Então, pegando carona no movimento
espiritualista, por assim dizer, é que no século XIX foi presenciado o notável surto de interesse
na percepção extrassensorial e na psicocinese (i.e., a influência de pensamentos e intenções
sobre objetos ou sistemas físicos). Podemos citar as pesquisas de René Warcollier e Pierre Janet.
Por exemplo, R. Tocquet (1967)5 menciona que numa das experiências, R.W fixou o olhar num
cartão postal holandês datado de 1952, cartão esse que reproduzia moinhos de vento à beira
dum canal. Em seguida esse cartão postal lhe lembrou inconscientemente um outro cartão postal
4 http://www.spr.ac.uk/ 5 Os Poderes Secretos do Homem: um balanço do paranormal. São Paulo: Ibrasa.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
4
representando três jovens holandesas com coifas, de braços dados e que ele trouxera de Utrecht
em 1953. A percipiente, Mme. T., escreveu: “mulheres de braços dados, de coifas. Paisagem
holandesa, moinhos de vento, tulipas, canais floridos”. Pierre Janet cita o caso de uma paciente,
Josephine, que reproduzia simpaticamente todas as impressões sensoriais de seu hipnotizador,
isolado num outro aposento. Se bebia, ela realizava movimentos de deglutição; se beliscava o
braço ou a perna, ela se indignava. Uma queimadura fê-la dar gritos horríveis e indicou o lugar
exato que correspondia à lesão do operador hipnótico.
Paralelamente, muitas pessoas à época passaram a declarar serem possuidoras das mais
variadas habilidades paranormais, tais como a capacidade de movimentar objetos sem contato
(psicocinese), a de ler pensamentos (telepatia), a de observar remotamente certos
acontecimentos sem o uso dos sentidos normais (clarividência), a de conhecer o futuro
(precognição) ou até mesmo a de se comunicar com os mortos (mediunidade). Muito embora a
grande maioria dos casos possa ser rejeitada pela fraude; autoilusão; uso de controles
experimentais inadequados; relatórios mal feitos; vieses do experimentador; permanece na
literatura psíquica um resíduo de casos que não pode ser explicado pelas hipóteses “usuais”.
Por exemplo, os extensos relatórios das sessões de Leonora Piper, de Gladys Orborne Leonard
e de Stefan Ossowiecki não deixam dúvidas de que, no mínimo, algumas pessoas possuem
certas faculdades psíquicas completamente anômalas, como a telepatia e a clarividência nesses
casos.
A metodologia usual (antes da Era Rhine) resumia-se principalmente na execução das
séances (sessões) nos círculos europeus e dos EUA, quando os fenômenos produzidos pelo
psíquico ou médium eram analisados num aposento, geralmente com baixa luminosidade, por
pessoas interessadas, incluindo crédulos, mas também intelectuais e cientistas da época.
Durante essas sessões, muitos médiuns foram descobertos em fraude, a exemplo de Eusapia
Paladino, Henry Slade, Florence Cook, Marthe Béraud e Margery Crandon. É bem verdade que
as medidas antifraudes foram sendo aperfeiçoadas com as experiências, conforme resumiu
Fodor e Lodge (1952)6:
6 Fodor, Nandor e LODGE, Oliver. Encyclopedia of Psychic Science.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
5
Com o desenvolvimento da ciência dos sistemas de imposição, cada vez mais controles eficientes foram evoluindo. As mangas e as calças dos Irmãos de Davenport
foram amarradas em Bangor, E.U.A., Politi foi levado à Sociedade de Pesquisa
Psíquica de Milão num saco de lã, Mme. D 'Esperance, Senhorita Wood e Senhorita Fairlamb foram atadas em redes como peixes para prevenir simulação durante suas
sessões de materialização, Srta. Florence Cook foi trancada (num circuito elétrico),
Bailey foi fechado em uma gaiola com rede de mosquito na Austrália, Eusapia
Paladino foi amarrada pelo Prof. Morselli na poltrona com uma faixa espessa e larga
de fita cirúrgica do tipo usado em hospícios para segurar maníacos, e Rudi Schneider
estava sob um controle triplo formidável no National Laboratory of Psychical
Research.
Passada essa pequena incursão histórica sobre experiências psíquicas anômalas, convém
desde logo destacar o termo psi, que será abundantemente mencionado no decorrer do presente
artigo. De acordo com o psicólogo e professor emérito da Cornell University, Daryl J. Bem
(2011)7, a psi
denota o processo de transferência de energia ou informação que é atualmente inexplicável em termos de mecanismos físicos ou biológicos. O termo é puramente
descritivo; ele não implica que o fenômeno seja paranormal e não sugere nada a
respeito de seus mecanismos subjacentes.
Fenômenos psi historicamente encobrem a telepatia, a aparente transferência de
informação de uma pessoa a outra sem a mediação dos canais sensórios conhecidos; a
clarividência, a percepção de objetos ou eventos os quais não excitaram quaisquer dos canais
sensórios conhecidos; a precognição (cognição consciente) e a premonição (apreensão
afetiva) de um evento futuro que não poderia ser antecipado por qualquer processo inferencial;
e a psicocinese, a aparente influência de pensamentos e intenções sobre processos físicos ou
biológicos (Bem, idem).
Este artigo objetiva analisar criticamente as duas principais explicações supernormais
para os casos de Mediunidade, a saber: a hipótese da sobrevivência post-mortem e a do
funcionamento psíquico entre vivos. O trabalho detalha pormenorizadamente cada uma dessas
conjecturas, ressaltando ao leitor os mais notáveis argumentos contra e a favor a cada uma das
posições aqui rivalizadas, além de apresentar todas as pressuposições que subjazem esses dois
7 Feeling the Future: Experimental Evidence for Anomalous Retroactive Influences on Cognition and Affect.
Journal of Personality and Social Psychology, 2011, Vol. 100, No. 3, 407–425.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
6
modelos explanatórios e as quais quase sempre são ignoradas dentro das discussões sobre
Mediunidade.
Oportuno advertir que o presente exame crítico-filosófico estender-se-á dentro, mas
também para além da argumentação científica, porque as duas hipóteses rivais abaixo
apresentadas são suportadas em certos momentos por algumas assunções não-empíricas e
altamente controversas. Por outro lado - e é o que faz o tópico da mediunidade ser tão cativante
- são os relatos de casos de alguns médiuns extraordinários, exaustivamente testados sob
condições controladas, que tornam uma explicação “normal” (com uso de artefatos
experimentais, fraude deliberada ou inconsciente, vazamento sensorial, vieses de expectativa,
coincidências, etc.) até mesmo irracional. E dentre esses fantásticos médiuns, sem dúvida as
Sras. Leonora Piper e Gladys Osborne Leonard são as figuras mais destacadas para qualquer
pessoa de bom senso que esteja a par da literatura psíquica.
Para o leitor que discorda deste meu posicionamento, apostando ainda suas fichas no
sentido de que os melhores casos de mediunidade podem ser respondidos por um paradigma
"normal" (e não supernormal), sugiro a leitura dos extensos relatórios de casos relacionados às
médiuns acima indicadas e que foram publicados por décadas nos jornais e nas atas da Society
for Psychical Research, de Londres. Ademais, e para fazer justiça a produção mediúnica, os
casos dessas senhoras de nenhuma maneira mostram-se isolados, havendo na história da
pesquisa psíquica muitos outros médiuns que manifestaram fenômenos os quais racionalmente
demandam explicações com suporte em faculdades extrassensoriais ou de ação à distância sem
contato. Alguns resumos de casos desses outros médiuns também veremos aqui.
Agora, para aqueles que – igual a mim – fracassaram em enquadrar a fenomenologia
mediúnica (ao menos aquela emergida dos melhores casos) em explicações “normais”, porém
ainda possuem uma tendência conservadora, posso dizer que todo o conteúdo do presente
trabalho permanece coerente, ainda que considerássemos unicamente a produção mediúnica das
duas médiuns supracitadas [e para um excelente resumo que rebate as explicações “normais”
sobre Piper e Leonard, veja o capítulo 3 de Randi's Prize - What Sceptics Say About the
Paranormal, Why They are Wrong and Why it Matters, de Robert Mcluhan].
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
7
A característica mais marcante dos casos mediúnicos (doravante também CMs) é o fato
de um sujeito (comumente conhecido como médium) obter, à revelia dos sentidos sensoriais,
informações verídicas sobre a vida de uma pessoa morta e situações ocorridas nas vidas de
pessoas ligadas ao falecido. CMs também são caracterizados por uma roupagem
“transcendental”, porque as informações percebidas pelos médiuns vêm pretensamente no
ponto de vista do falecido, além de conterem claras referências de uma existência - e de um
mundo - espiritual. A interpretação pelo valor de face de casos mediúnicos, ou seja, de que
algumas pessoas falecidas podem telepaticamente influenciar os vivos, será daqui em diante
chamada de a hipótese da sobrevivência ou simplesmente hipótese S.
Contudo, acima dessa aparência, CMs também podem ser interpretados como exemplos
de psi exercida pelo médium o qual, de forma inconsciente, dramatiza uma suposta
comunicação com pessoas mortas. De fato, em alguns lapsos críticos CMs parecem indicar o
esforço de uma mente desincorporada em se comunicar com os vivos, porém, em outros
momentos, o que vemos é a ação de uma fértil imaginação do médium (ou de algum álter ego
nele manifestado) misturada com claros exemplos de obtenção de informações da mente dos
vivos por meios telepáticos, amontoando-se tudo isso dentro de um contexto espiritualista cujo
autor pretensamente seria alguém falecido. Então aqui podemos frisar, desde logo, algumas das
principais razões porque CMs são tão dúbios de decifrar:
Em primeiro lugar, existe uma marcante ambiguidade sobre a interpretação das fontes
de informações captadas através de psi. Há exemplos que suportam, de um lado, a comunicação
post-mortem, e de outro, casos em que o médium obtém informações sobre a vida do falecido
a partir de fontes mundanas, seja através da telepatia com pessoas as quais conheciam
circunstâncias a respeito do falecido, ou então, pelo uso da clarividência com foco em registros
físicos que continham informações relacionadas ao morto. Para esta última interpretação dos
casos, na qual o funcionamento psíquico dos vivos seria exclusivamente responsável pelos
aspectos supernormais encontrados nos cenários mediúnicos, utilizaremos a nomenclatura
cunhada pelo filósofo Michael Sudduth, Living Agent Psi, ou simplesmente hipótese LAP.
Em segundo lugar, nos melhores casos mediúnicos as informações chegam com
frequência de um modo a refletir nitidamente o ponto de vista do falecido, não apenas em
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
8
relação ao conteúdo, mas também através do uso da linguagem, tom de voz, comportamentos e
maneirismos próprios de uma pessoa morta. Por outro lado, ainda os melhores médiuns
compartilham características etiológicas típicas de pessoas com distúrbios dissociativos e outras
desordens da personalidade. Por exemplo, não raro a mediunidade é despertada após certa
experiência traumática na vida do médium. Além disso, algumas personalidades falecidas são
claramente fictícias ou estereotipadas, cristalinos exemplos de personificação inconsciente.
Em terceiro lugar, alguns médiuns exibem habilidades associadas ao falecido, tais como
falar um idioma estrangeiro, pintar, escrever obras literárias, jogar xadrez ou falar com
desenvoltura assuntos técnicos de conhecimento do morto. Sobrevivencialistas frequentemente
sustentam que tais acontecimentos são fortemente sugestivos de sua posição, porque requerem
um “conhecimento-como”, i.e., um conhecimento o qual somente a repetida prática e
treinamento podem permitir alguém desenvolver certa habilidade. Quando esses casos
aparecem, sobrevivencialistas ocasionalmente investigam o passado do médium e concluem
que ele ou nunca teve o benefício da prática sobre a habilidade relacionada ao caso, ou se teve
algum contato, foi insignificante a ponto de permitir que o médium, inconsciente ou
conscientemente, a desenvolvesse na extensão apresentada dentro das sessões mediúnicas.
Todavia, como o filósofo Stephen Braude (2003) assinala,
O terceiro problema com a literatura sobre sobrevivência é que ela falha em abordar assuntos centrais relacionados à natureza e aos limites das habilidades humanas,
especialmente aquelas emergidas da (a) vasta literatura sobre dissociação, (b) do
estudo de savantes e prodígios e (c) da crescente literatura sobre sujeitos altamente
dotados e inteligentes, mas que [atingem resultados frustrantemente abaixo do
esperado]. A relevância de (a) é que na hipnose, na múltipla personalidade e em certas
formas de automatismo, a dissociação parece liberar ou permitir o desenvolvimento
de habilidades que presumivelmente não teriam sido manifestadas de outra forma. A
relevância de (b) é que prodígios e savantes (e ainda pessoas comuns) podem exibir
habilidades sem a submissão aos processos normais de aprendizagem e de prática, e
(talvez o mais importante) na ausência de outras habilidades e capacidades que poderíamos esperar ocorrer paralelamente [...]. Além disso, tanto (a) quanto (c)
fortemente sugerem que nós todos podemos ser reservatórios de latentes criatividades
e inteligências.
Em quarto lugar, investigadores de casos sugestivos de sobrevivência post-mortem
raramente prestam aprofundada atenção sobre os elementos psicológicos envolvidos no caso.
Esse ponto é de especial importância para determinar se o médium tem interesses, necessidades
de sub-repticiamente usar, consciente ou inconscientemente, habilidades psíquicas para criar
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
9
evidências (ou influenciar eventos) de um modo a sugerir a sobrevivência após a morte (Braude,
idem). Novamente, na histórica da pesquisa psíquica temos uma miscelânea de exemplos, os
quais ora sugerem um baixo nível de interesse do médium (e.x., bons casos de comunicadores
“drop-in”), ora indicam uma carência psicológica, uma profunda necessidade na existência de
fenômenos que respaldem a crença numa vida após a morte.
1.2. Levando o debate para bases racionais
Pessoas podem acreditar numa vida após a morte por diversos motivos, a despeito de
qualquer análise imparcial (ou mesmo de conhecimento) sobre fenômenos que poderiam
contribuir para essa crença. Muitos se sentem desconfortáveis com a ideia da própria extinção
ou de seus entes queridos, outros sofrem a influência de doutrinas religiosas ou filosóficas que
pregam a sobrevivência à morte. Alguns passam por experiências místicas ou no limiar da morte
que favorecem uma perspectiva de transcendência. Ainda há aqueles que necessitam acreditar
na existência de uma “outra vida” como forma de justificar seus preceitos morais e suportar a
aleatoriedade e a injustiça do mundo. Todos esses elementos não são mutuamente exclusivos,
podendo, portanto, agir em conjunto para reforçar cada vez mais o sistema de crença numa
“vida futura”.
De outro lado, existem importantes debates filosóficos sobre a (ir)redutibilidade causal
da mente ao cérebro, além de alguns fenômenos críticos que lançam um desafio real ao
establishment fisicalista na comunidade científica, tais como a própria psi; casos de influências
psicofisiológicas extremas; exemplos de sujeitos com capacidade e precisão extremas de
informação; automatismos e centros secundários de consciência; o elevado nível de criatividade
dos gênios; a experiência subjetiva; a unidade da experiência consciente; e o fenômeno da
memória (Kelly, E. et. al., 2007). Todos esses assuntos são relevantes e, de fato, põem em
dúvida a capacidade do cérebro ser o tipo de hardware adequado para produzir mentes.
Seja como for, a maioria das pessoas não está familiarizada com tais assuntos, mas
apesar disso quase todos têm uma opinião formada sobre a questão da sobrevivência após a
morte, variando desde a descrença a total credulidade. Porém, ordinariamente tais opiniões
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
10
estão formadas sob frágeis alicerces conceituais os quais pressupõem premissas logicamente
impossíveis ou não suportadas empiricamente; exclusão de inferências viáveis para um
conjunto de dados; ou mesmo a admissão de assunções que vão de encontro às teorias
científicas mais bem estabilizadas na atual rede de conhecimentos humanos.
Tal é assim porque o debate da sobrevivência após a morte invariavelmente provoca
fortes conflitos emocionais, religiosos e ideológicos, os quais dificilmente são deixados de lado.
Agora, a psicologia subjacente a esse cenário é especialmente interessante, porque, em outros
campos da vida, as pessoas comumente são mais criteriosas e exigentes para aceitar ideias.
Considerando que este trabalho se propõe a levar a discussão para bases racionais, e não
enviesadas por necessidades psicológicas ou emocionais, ou por um conjunto de crenças
religiosas, ou ainda ideologias, as hipóteses para responder por casos mediúnicos devem buscar:
a) ser logicamente possíveis, i.e., não serem autocontraditórias e nem
fazerem uso de hipóteses auxiliares mutuamente exclusivas;
b) ser inferências, i.e., interpretações coerentes para alguns fenômenos
observáveis;
c) fazer predições sobre alguns fenômenos observáveis e,
simultaneamente, não serem surpreendidas com dados inesperados, os
quais escapam sua predição inicial (como condição de testabilidade).
Todavia, conforme já observamos no início deste artigo, isso nem
sempre será possível, pois algumas hipóteses auxiliares de S ou LAP
são não-empíricas, além de altamente controversas. Na verdade, os
casos mais sugestivos de sobrevivência são melhor elucidados em
termos de plausibilidade ou parcimônia de S sobre LAP (ou vice-
versa), inexistindo algo como “uma boa margem de segurança nas
respostas”.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
11
Além disso, devemos observar que quase sempre fenômenos são multi-inferenciais,
levando-nos a interpretações ambíguas. Nesse caso, devemos testar o poder explanatório de
cada hipótese concorrente. Decerto a melhor hipótese científica, além de possuir as exigências
retromencionadas, deveria explicar os mesmos fenômenos de suas rivais, porém, e
principalmente, ser aquela a sofrer o menor número de surpresas com dados inesperados à sua
predição inicial, evitando hipóteses auxiliares ad-hoc. Outras virtudes também podem ser
mencionadas, tais como, ser uma hipótese mais conservadora (i.e., ser o menos divergente
possível às teorias científicas mais bem estabilizadas); mais simples, econômica e elegante
(fazendo uso da menor quantidade de pressuposições); e consiliente (buscar um alcance
multidisciplinar, integrando-se na rede de conhecimentos humanos).
Nas linhas que se seguem, analisaremos o poder explanatório das hipóteses S e LAP,
para casos de mediunidade, com fulcro nas orientações acima e com vistas a descobrir a
explicação racionalmente mais parcimoniosa. Contudo, antes disso, faremos uma breve
incursão sobre as principais características dos casos de mediunidade, baseando-nos nos tipos
mais evidenciais já registrados na história das pesquisas psíquicas.
1.3. Os dados de Mediunidade
Definitivamente o atributo de maior relevância nos casos de mediunidade é a
canalização de informações verídicas por parte de uma pessoa viva (comumente conhecida
como médium) e as quais pretensamente provém de uma personalidade falecida, ou seja, existe
uma correspondência entre aquilo que o médium diz e a vida de uma pessoa morta ou a
situações, passadas ou presentes, ocorridas nas vidas de pessoas ligadas ao falecido. O processo
de canalização ocorre à revelia dos sentidos sensoriais habituais, além do que, outros aspectos
psicológicos associados ao morto podem ser canalizados pelo médium, tais como habilidades,
comportamentos e maneirismos.
O termo canalização usado aqui é completamente neutro quanto à fonte das
informações, isto é, se elas provém de uma pessoa falecida, ou alternativamente, de origens
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
12
mundanas, tais como o cérebro de outras pessoas vivas (via telepatia entre vivos) ou registros
escritos (através de clarividência exercida pelo médium). A neutralidade do termo também se
estende ao sentido do fluxo das informações, ou seja, serve tanto para a hipótese de o médium
psiquicamente sondar as fontes de informação (ainda que de forma inconsciente), quanto para
estas influenciarem o cérebro/mente do médium8; ou mesmo para designar quaisquer
mecanismos de interação informacional (como aqueles da mecânica quântica) entre o
cérebro/mente do médium e as fontes de informação.
As impressões extrassensoriais obtidas pelo médium durante o processo mediúnico
podem chegar na forma de alucinações (na maioria das vezes visuais e sonoras), normalmente
associadas a um “estado alterado de consciência” denominado transe9. Pode acontecer também
que o sistema motor do médium ganhe autonomia e passe a realizar certos comportamentos
autônomos e inteligentes, como no caso da escrita automática (ou psicografia). A mediunidade
também pode surgir sobre outras roupagens, tais como a transcomunicação instrumental, a
psicopictografia e a tiptologia, sendo que as duas primeiras formas (o transe e a psicografia)
são as mais comuns e evidenciais, razão pela qual iremos especificamente nos focar nelas10.
De modo particular, o transe tem sido historicamente o meio mais sugestivo da
sobrevivência da personalidade pre-mortem porque, através dele, a entidade comunicante
consegue não apenas transmitir mensagens verídicas, mas também manifestar outros aspectos
psicológicos associados ao falecido, tais como idiossincrasias e habilidades que possuía na vida
corpórea. Nas notas de referência do segundo capítulo de Irreducible Mind (2007), a psicóloga
Emily Kelly aponta sobre a superioridade evidencial do transe, além de especular que a maior
parte dos médiuns contemporâneos age fora desse estado alterado de consciência (ou de outros),
o que explicaria, segundo pensa, a qualidade inferior dos casos atuais de mediunidade em
relação aos do passado. Observe-se:
8 Via psicocinese (PK). 9 Durante o transe algumas mudanças fisiológicas podem ocorrer, tais como a frequência cardíaca, ficando mais
acelerada. Além disso, podem acompanhar o processo contrações convulsivas e insensibilidade à dor. 10 A mediunidade pode se classificar também como do tipo mental ou de efeitos físicos. A primeira espécie é a de
maior relevância, por algumas razões, a saber, ela concede maior espaço à fluidez e velocidade das mensagens,
além de permitir a manifestação de características psicológicas não-verbais. Ademais, nem todos os efeitos físicos
sugerem uma inteligência por trás do fenômeno. Por exemplo, aportes, levitações e movimentos de objetos sem
contato, por si sós, sequer sugerem uma ação inteligente a qual pudéssemos atribuir a uma pessoa falecida.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
13
Vale também a pena notar [...] que a maioria dos melhores médiuns estudados extensivamente no final do século XIX e início do XX foi automatista de transe.
Embora a mediunidade tenha nos últimos anos se tornado um tema de interesse para
o público em geral, e, portanto, para a mídia, poucos dos médiuns de hoje parecem entrar num estado alterado [de consciência], muito menos num "transe" ou estado
alternado de personalidade. Na teoria de Myers, a suspensão do supraliminar é
favorável, senão absolutamente necessária, para o surgimento da mentação
subliminar, seja da própria mente ou da de uma pessoa falecida. Essa diferença notável
entre os médiuns atuais e os automatistas do passado pode explicar porque, na minha
opinião, o material produzido por médiuns recentes geralmente tem uma qualidade
probatória muito menor.
Durante o processo mediúnico, a consciência do médium pode ser removida, porém
podem ocorrer exemplos de co-consciência, o que é mais comum nos médiuns psicográficos.
Especificamente no transe, uma consciência secundária, via de regra, assume o controle do
organismo do médium, servindo de porta-voz para outras personalidades comunicantes11. Essa
consciência controladora tem seu próprio banco de memórias e caráter, enfim, ela constitui uma
personalidade integral a qual desloca de modo intermitente a do médium12. Quando o médium
recupera o controle corporal, ele muitas vezes ignora completamente o que aconteceu durante
o transe. Em outros momentos algumas reminiscências podem ficar retidas, a exemplo da
imagem de pessoas falecidas.
Tanto o controle (ou guia, conforme doutrinas espiritualistas) quanto os comunicadores
incidentais alegam ser personalidades falecidas, mas sua própria natureza é ambígua, aliás,
existem mais razões para acreditar que, pelo menos os controles, são fases ou elementos da
11 A justificativa fornecida é a de que nem todos os falecidos teriam a habilidade em estabelecer uma comunicação
mediúnica, razão pela qual aqueles com maior experiência e domínio assumem o comando do organismo do
médium e funcionam como porta-vozes, “procuradores” para outros espíritos carentes de semelhante destreza ou
desembaraço em estabelecer contato. 12 No seguinte relato do físico inglês Oliver Lodge (1890) podemos ter uma ideia de como acontece a mudança de
personalidade durante o transe. A médium em questão era Eleonora Piper. “A Sra. Piper já estava pronta e
começamos uma sessão. Sentei-me encarando a Sra. Piper num local parcialmente escurecido, e o Sr. Myers estava
ao alcance da voz do outro lado das cortinas, tomando nota do que era dito. A Sra. Piper sentou-se em silêncio,
inclinando-se para frente em sua cadeira, e segurando minhas mãos. Por algum tempo ela não pôde cair
inconsciente, mas por fim disse, ‘Oh, estou indo’, ocorreu que o relógio bateu uma vez (por uma meia hora), e ela
contraiu-se convulsivamente, proferindo ‘não’, e entrou numa aparente epilepsia. [Eu tinha visto epilepsia várias vezes antes e reconheci muitos dos sintomas óbvios costumeiros; não pretendendo, naturalmente, falar como um
médico]. Gradualmente tornou-se calma, e ainda segurando a minha mão direita, pigarreou em voz masculina, e
com características endurecidas distintamente alteradas, olhos fechados e não utilizados o tempo inteiro. Tendo
sido alertado do que esperar e como tratar a esta personificação, eu disse, ‘Bem, Doutor,’ ao que ele [pois soava
como um homem, e esqueci-me totalmente que era uma mulher que falava pelo restante da sessão: a maneira e
discurso inteiros eram masculinos] apresentou-se como ‘Dr. Phinuit’, e nós fizemos então as corriqueiras
observações normais. Achei difícil saber o que dizer, mas disse que eu tinha ouvido dele de Myers, e ele disse,
‘Ha! Myers, ele está aqui? Ele não estava aqui da última vez que vim’, ao que o Sr. Myers respondeu, ‘Sim, estou
aqui, Doutor’”.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
14
consciência do médium. Neste momento, é prudente então destacar que os termos controles e
comunicadores usados no presente trabalho são totalmente neutros, podendo designar mentes
desencarnadas que se comunicam através dos médiuns ou personalidades secundárias
desenvolvidas dentro de sua psique. Um outro termo muito usado e que, portanto, merece
esclarecimento desde logo é o de assistente. O assistente é aquele que participa presencialmente
de uma sessão mediúnica, podendo ser o próprio pesquisador ou os parentes e amigos do
falecido (que são assistentes enlutados ou os consulentes das mensagens).
Existem casos de médiuns extraordinários, tais como as Sras. Piper e Leonard, cuja
carreira ensejou a manifestações de centenas de personalidades pretensamente falecidas. De
regra, como já mencionamos, o controle assume o organismo do médium, mas por muitos
momentos ele cede transitoriamente o lugar para um comunicador incidental manifestar-se. No
caso daquelas médiuns, apesar do gigantesco número de comunicadores, os comportamentos
peculiares deles sempre se mantiveram coerentes todas as vezes que se manifestaram pelo corpo
da médium, ainda quando grandes lapsos de tempo entre uma “incorporação” e outra se
sucediam13.
Durante a vida do médium, mais de um controle pode aparecer, porém, geralmente, há
um principal. Podemos citar a guia indígena-asiática “Feda”, da britânica Sra. Gladys Osborne
Leonard; o árabe “Uvani”, de Eileen Garrett; o médico francês, “Dr. Phinuit”, da bostoniana
Sra. Leonora Piper; “Fletcher”, do médium Arthur Ford; e “Emmanuel” e “André Luiz”,
controles do médium mineiro Chico Xavier. Os controles principais, em especial aqueles que
surgiram no início da experiência mediúnica, raramente conseguem fornecer alguma evidência
concreta de que algum dia já tiveram uma existência corpórea (apesar de alegarem isso) e quase
sempre sustentam ter sido personalidades não contemporâneas (muitas vezes pessoas célebres),
13A respeito dessa unidade de consciência e de caráter dos comunicadores, Michael Sage (1904), por exemplo,
inclinava-se a favor de S: “A unidade de caráter e a de consciência nos comunicadores é uma das razões que
suportam mais fortemente a hipótese espírita. Se estivéssemos lidando com personalidades secundárias da Sra.
Piper, a primeira dificuldade seria o seu grande número. Eu não sei o número exato de comunicadores que alegaram
aparecer por meio do organismo dela. Mas várias centenas podem ser encontradas nos relatórios da Society for
Psychical Research, e certamente a menção de todos eles é algo muito longe de ter ocorrido. Agora, cada
comunicador manteve sempre o mesmo caráter, a tal ponto que, com um pouco de prática, é possível reconhecer
o comunicador na primeira frase que ele pronuncia, se antes ele já tiver se comunicado. Alguns dos comunicadores
só aparecem em intervalos longos, mas mesmo assim eles permanecem inalterados.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
15
o que dificulta a confirmação de sua vida terrena, consequentemente, não contribuindo para a
validação de S:
As alegações dos controles de terem existido anteriormente como humanos encarnados apresentam outro problema em suas avaliações. A maior parte dos
controles alega uma vida distante e discreta que afronta qualquer verificação. O
controle de D. D. Home sempre falava no plural e nunca dava seu nome. Stainton
Moses era ocupado por uma liga organizada de controles que incluíam personagens
bíblicos, filósofos, sábios e personalidades históricas. Os personagens bíblicos
chamavam-se "Imperator" (Malaquias), "Preceptor" (Elias), "O Profeta" (Haggai),
"Vates" (Daniel), "Ezequiel", "Theophilus" (São João Batista), "Theosophus" (São
João, o Apóstolo), e "Theologus" (São João, o Divino) (Melton, G. J., 2000) 14.
Nos melhores momentos, controles disparam grande quantidade de material verídico
cuja obtenção não pode ser explicada por outra forma a não ser por um processo anômalo, como
a telepatia entre vivos ou entre o falecido e o médium. Isso quase sempre acontece nos primeiros
minutos da sessão. Porém, muitas vezes o material fornecido pelos controles degenera num
conteúdo vago, repetido, cheio de palpites e “pesca” de informações (por meios normais). Por
exemplo, “às vezes o Dr. Phinuit pesca. Ocasionalmente adivinha; e às vezes ele supre a
escassez da sua informação com os recursos de uma vívida imaginação” – disse o físico inglês
Oliver Lodge (1890) a respeito de um dos primeiros controles da médium Piper. Continuando,
Lodge relata, “o processo de pescaria é mais marcante quando a própria Sra. Piper não se
sente bem ou está cansada. (...) quando ele [Phinuit] não pesca, simplesmente tira de sua
memória e reconta velhos fatos que contou antes, ocasionalmente com adições próprias que
não os melhoram”. Brian Williams e William G. Roll (2007)15 destacam sobre o controle
“Uvani” da Sra. Garrett:
O psicólogo Ira Progoff perguntou a Uvani durante uma sessão com a senhora Garrett, 'Como você tem estado desde a última vez que nos encontramos?' O questionamento
pareceu confundir completamente Uvani e ele não deu nenhuma resposta, muito
embora ele próprio tivesse efetuado a mesma pergunta a Progoff durante as sessões
anteriores e mostrasse por meio disso que ele entendia a questão.
Em Mediunidade e Sobrevivência (1995), o psicólogo Alan Gauld menciona:
14 Encyclopedia of Occultism & Parapsychology. Thomson Gale; 5ª ed. (outubro 2000). 15 Spirit controls and the brain. Proceedings of Presented Papers: The Parapsychological Association 50th Annual
Convention (pp. 170 - 186). Columbus, OH: Parapsychological Association, Inc.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
16
Feda [controle da médium Gladys Osborne Leonard] sempre fala como se pudesse ver e ouvir diretamente os comunicadores cujas mensagens retransmite. Mas há muito que
demonstra não poderem estas alegações serem aceitas integralmente. Assim, a Sra.
W.H. Salter (138b, pp. 309, 312) diz, de uma série de declarações feitas por Feda sobre um comunicador, que depois se disse sua mãe (Sra. Verrall): ‘Muitas destas
declarações...são verdadeiras; contêm, porém, uma tal mistura de erros que
dificilmente surgiriam se o conhecimento de Feda derivasse de qualquer imagem ou
série de imagens claramente percebida. ‘E de novo: ‘A conclusão final a que posso
chegar...é que uma certa quantidade de informação verídica sobre minha mãe foi
entretecida por Feda, numa figura imaginária de uma viúva velha, baseada em ideias
preconcebidas do aspecto que tal quadro deveria apresentar’.
Ainda quando os controles são altamente convincentes em fornecer evidências de que
são quem alegam ter sido em vida, persiste um forte motivo para não darmos crédito a essa
reivindicação. Gauld esclarece:
Alguns controles, como GP [George Pellew] ou Bennie Junot, são muito semelhantes ao que eram em vida, e, de fato, convenceram muitas pessoas de sua autenticidade.
Outros, porém, como Julius Caezar, Sir Walter Scott e George Eliot, que alegou ter
encontrado Adam Bede no outro mundo, são tão implausíveis, deformados e
estilizados em sua dicção e sentimentos que ninguém os veria como qualquer coisa
que não fosse uma ficção. Mas os comunicadores mais plausíveis, garantirão, no tom
mais firme, a autenticidade dos menos plausíveis, de modo que a autenticidade do
primeiro fica inextricável e desvantajosamente amarrada à autenticidade do último, e
torna-se abundantemente claro que a manutenção do drama é de fundamental
importância e que todos os controles, de GP até Julius Caezar, são parte integrante da
fantasia criativa do dramaturgo.
Na sua revisão para Resurrecting Leonora Piper - How Science Discovered The
Afterlife, de Michael Tymn, Alan Gauld (2013)16 detalha ainda mais algumas das embaraçosas
características para a hipótese S, relatando um caso no qual até mesmo o convincente
comunicador GP toma parte de uma ridícula fantasia, além de assegurar a autenticidade de um
outro controle claramente fictício. Observe-se:
Pior ainda foi a prolongada história de Dean Bridgman Conner, um jovem de Vermont, que, em 1894, tinha ido trabalhar no México. Em 1895, ele foi dado como
morto na Cidade do México pelo Cônsul-Geral americano, por febre tifoide e lá
enterrado; mas um sonho que seu pai teve permitiu a suposição de que ele ainda estava vivo e sendo mantido prisioneiro. A Sra. Piper foi consultada, o que levou, em 1896,
a uma boa parte dos agentes da família a ser guiada por Phinuit e GP, procurando de
hospital a hospital, de prisão a prisão, no sul do México, porém sempre o
supostamente elusivo Dean não era achado. Outros espíritos foram cooptados para a
pesquisa. Enquanto isso, os controles de Piper em Boston garantiam repetidamente
aos pais de Dean que ele ainda estava vivo. Esta história se desenrolou ao longo de
muitas sessões, a maioria ainda não publicada. Mas no ano seguinte um audacioso e
16 Journal of the Society for Psychical Research [Vol. 77, n. 912, julho de 2013].
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
17
ponderado jornalista que assumiu o caso foi capaz de conclusivamente provar que Dean tinha morrido, tal como inicialmente relatado pelo Cônsul-Geral (Philpott,
1915). Num ponto durante estes acontecimentos, um comunicador chamado John
Heard (um antigo assistente e amigo de Pellew, referido como 'Hart') anunciou que
ele tinha voado até ao México na companhia de um 'Julius Caesar' equipado com
capacete, armadura e espada. Posteriormente, o próprio Caesar escreveu em inglês
(soletrando seu nome com um 'z') e foi seguido por G.P., o qual afirmou que 'Caezar
é tão grande quanto era' e que ele (G.P.) estava indo para o México. Numa sessão
posterior G.P. acrescentou 'é Julius Caesar' (Sidgwick, 1915, pp.113—15). Aqui
temos um comunicador excepcionalmente impressionante (G.P.) e outro que também
tinha dado verificadas informações sobre si (Heard), garantindo a autenticidade de um
absolutamente ridículo (Caezar), todos os três, estando supostamente engajados numa
perseguição completamente sem sentido, uma loucura que eles não conseguiram captar. Sob tais circunstâncias, algum desses comunicadores interligados poderia ser
considerado 'autêntico'? Este episódio não é isolado.
Não por outra razão Eleanor Sidgwick (1925) concluiu que
Às vezes, comunicadores dramáticos, assim como controles, são claramente falsos, e nenhum critério em sua própria representação, ou na sua relação com o controle, é
oferecido para que um comunicador falso possa ser diferenciado de um verdadeiro. A
existência de falsos comunicadores em geral não é admitida [por eles próprios]17.
Além disso, a hipótese de controles e comunicadores serem mentes desencarnadas sofre
um novo embaraço, qual seja, personalidades de transe muitas vezes dizem coisas sem sentido
exatamente sobre a área de conhecimento a qual o falecido detinham domínio quando em vida.
Observa novamente Gauld:
Até mesmo os controles mais realistas, tais como GP [George Pellew], mostram sinais de serem imitações (não conscientes). Interrompem-se, no ponto exato em que o
estoque de conhecimento da Sra. Piper se esgota, assim como quando lhes é pedido
que falem coerentemente de Ciência, Filosofia e Literatura (o que GP em vida poderia
ter feito facilmente).
Os controles da Sra. Piper, por vezes, desculpam suas limitações dizendo que chegar
até a “luz” do médium produz um efeito de confusão neles, ou que não podem manipular o organismo dela de maneira com as quais ele não está acostumado. Estas
desculpas, porém, não são adequadas. A confusão que oblitera o entendimento de
Ciência e Filosofia do controle não os impede de gerar montes de bobagens sobre os
tópicos religiosos e filosóficos, apresentando-os, por vezes, como as mais profundas
verdades, em consequência das perguntas dos assistentes.
A “má qualidade”18 do que é verbalizado durante o transe pode ocorrer desde o início
de uma sessão, quando nenhuma novidade de valor significativo é revelada, ou mesmo no
17 Psychology of Mrs. Piper's Trance Phenomena. Proceedings of the Society for Psychical Research, V. 28, 1915,
pp. 315-332. 18 Por “má qualidade” quero dizer o material que parece frontalmente contrariar a reivindicação das personalidades
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
18
decorrer dos melhores casos, quando o estoque de informações “paranormais” acaba, parece
que o controle não é “capaz de partir quando seu repertório de fatos estava vazio. Parecia
haver alguma liberação irresponsável de energia que precisava continuar até que o impulso
original se perdesse em incoerência”19 (Myers, F. H. W., 1889).
De fato, a desonestidade dos controles deve ser vista como algo não tão deliberado. Seja
lá o que eles forem (mentes desincorporadas ou personalidades secundárias integrantes da
psique do médium), quando assumem o comando, parecem experimentar (ou ser) uma fase
onírica, com metaperceptividade, da consciência do médium, desenvolvendo um drama de
comunicação post-mortem a partir de informações obtidas de fontes externas (por mecanismos
normais ou extrassensoriais – o que, para eles, é de certo modo irrelevante). Porém, ainda nos
melhores casos, o drama também é preenchido por ilusões, quimeras e devaneios resultantes de
um estado de consciência semelhante ao sonho, de modo que o material apresentado é uma
mistura de conteúdo altamente verídico com fantasias criadas por eles próprios.
O que as tentativas em fornecer comunicações evidenciais constantemente sugerem é um esforço do controle em buscar informações de todas as fontes, palpites, por vezes,
pesca de informações dos assistentes, em outros momentos, encaixando ligeiras
nuances juntas, e ansiosamente aproveitar qualquer impressão ou informação obtida,
seja por meio normal ou telepático, nunca sabendo como elas chegam ou de onde vêm.
Um tateio mental desse tipo [...] é o que o percipiente muitas vezes parece sentir fazer
em experimentos de transferência de pensamento. Entre numerosas impressões ele
tem que escolher o caminho certo. Portanto, certamente parece mais apropriado
atribuir tal sentimento sobre a informação, a qual, no final, vem de uma forma incerta
e fragmentada, quando vem, a alguma parte da mente da Sra. Piper do que a um
espírito exterior (Sidgwick, idem).
Realmente, parece que os controles não têm a menor capacidade de distinguir o material
que chega extrassensorialmente daquele que é produto de sua imaginação, pois, acaso tivessem,
seria conveniente para a qualidade do drama que se calassem toda vez que o estoque de
informações anomalamente percebidas acabou. Fazendo coro com Myers e Sidgwick, diz
Lodge (1889):
Ele [Phinuit] parece estar sob alguma compulsão por não ser silencioso. Talvez o
transe cessaria se ele não se esforçasse. De qualquer forma ele tagarela, e tem que se
de transe, i.e., que são mentes ainda ativas de pessoas que um dia já viveram. Na verdade, esse material de “má
qualidade” pode nos esclarecer muito a respeito da natureza dos controles e comunicadores em geral. 19 Comentários de Myers sobre a mediunidade da Sra. Piper.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
19
descontar uma grande quantidade de conversa que é, obviamente, e às vezes confessadamente, introduzida como provisória. [...] Ele faz o melhor que pode, mas
seria de grande valia se, quando compreendesse que as condições eram desfavoráveis,
informasse e então se calasse.
Então, vamos manter em mente que: (a) os primeiros (e alguns dos principais) controles
alegam ter sido personalidades não contemporâneas, sendo incapazes de fornecer evidências
mínimas de sua existência terrena; (b) algumas personalidades de transe sustentam ter sido
personagens bíblicos, filósofos e pessoas célebres, mas demonstram um parco conhecimento
na área de expertise de quem alegam ter sido; (c) controles pescam dos assistentes informações
por meios normais e as reapresentam como se fossem novidades contadas pelos comunicadores
incidentais; (d) o conteúdo da mensagem é mesclado com informações verídicas e fantasias
provenientes de um estado de consciência semelhante ao sonho. Considerando que algumas
dessas fantasias dizem respeitos a fatos verificáveis e, por essa razão, podemos afirmar que são
ilusões e devaneios da personalidade de transe, passamos a ter motivos para questionar todos
os relatos sobre material inverificável, tais como os relacionados ao ambiente e à aparência de
um “mundo espiritual”; (e) os controles mais convincentes de forma frustrante confirmam a
autenticidade daqueles flagrantemente fictícios.
Além disso, (f) existem claros exemplos que médiuns captam telepaticamente
informações da mente dos assistentes e montam um drama de comunicação post-mortem, por
exemplo, “um dia Hodgson estivera lendo com grande interesse a Vida de Scott, de Lockhart.
No dia seguinte, um ridículo Sir Walter Scott apareceu numa sessão de Piper, dando uma volta
turística pelo sistema solar, afirmando haver macacos no Sol” (Gauld, A., idem). Em outros
momentos, as personalidades de transe, ainda que passem informações verídicas, as apresentam
sob a perspectiva do assistente, observe-se:
Phinuit declarou que o Sr. J. T. Clarke estava em dificuldades financeiras, o que era verdade. Phinuit também afirmou mais adiante que as coisas iam melhorar, em quatro
meses e meio, e que “algumas pessoas não procederam honestamente com o senhor”.
Advertiu Clarke particularmente contra um homem chamado H. Nenhuma das outras
assertivas de Phinuit foi comprovada, mas elas refletiam as crenças de Clarke na época
(Gauld, idem).
No caso abaixo, o controle “Phinuit” passou a Lodge uma série de informações a
respeito do falecido Sr. Wilson. Na ocasião, a comunicação foi solicitada pelo filho do finado,
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
20
George Wilson. Ao colher as informações, Lodge enviou uma carta a este último contando-lhe
o ocorrido. Eis a resposta do filho:
MEU CARO LODGE, — Sua carta com documento anexo alcançou-me quando estava partindo—e não pude fazer nada até que chegasse aqui. E agora, depois de
considerar, penso que devo falar um pouco.
As declarações feitas pela médium caem em duas classes: (1) aquela que se relaciona
a assuntos conhecidos por você; e (2) aquela sobre assuntos que você não podia
saber—como, por exemplo, minhas circunstâncias atuais ou minha vida passada. O
que é dito sobre o primeiro assunto é, como você veria, mais ou menos correto. O que
é dito sobre o último é completamente incorreto. (...) E, grosso modo, o tipo de senhor
representado é o oposto do caráter digno de meu pai. Ele era tranquilo e equilibrado,
odiava exageros, e, como a maior parte dos oficiais do Governo, evitava todas as
aparências públicas. Ele detestava gramática ruim, e redigia documentos do Governo
com precisão quase penosa20.
Tais exemplos, adicionados aos itens de (a) a (e) destacados acima, reforçam fortemente
a hipótese de que as personalidades de transe são fases da consciência da própria médium e que
dramaticamente fantasiam representar pessoas falecidas as quais teriam sobrevivido à morte.
Enquanto os itens de (a) a (e) sugerem que algumas linhas desse drama são escritas pela rica
imaginação dos controles, (f) indica a existência de informações captadas/recebidas
telepaticamente da mente dos assistentes, tais como nos casos de Walter Scott, Clarke e Wilson,
o que explicaria o material verídico fornecido nas sessões mediúnicas. Então, nesse momento
alguém poderia perguntar a um sobrevivencialista: por que sua hipótese é necessária para
explicar CMs?
Sobrevivencialistas podem sustentar que tais exemplos ocorreram na vida de alguns
médiuns de transe, não podendo o argumento contra S ser generalizado nos CMs em que a
consciência do médium não ficou totalmente afastada. Particularmente penso haver alguns
problemas em dizer isso. Em primeiro lugar, conforme já mencionamos, no estado de transe
temos os casos mais fortes a favor de S. Se sobrevivencialistas rejeitarem os médiuns de transe,
devem também rejeitar os melhores casos que fortalecem sua hipótese. Em segundo lugar,
foram justamente os médiuns de transe aqueles mais bem inquiridos na história da pesquisa
psíquica, logo, seus casos são aqueles que com maior margem de segurança excluem as
hipóteses normais, tais como fraude, observações mal feitas e leitura fria. Não vejo então como
20 MYERS, Frederic W. H.; LODGE, Oliver J.; LEAF, Walter e JAMES, William. A Record of Observations of
Certain Phenomena of Trance. Proceedings of the Society for Psychical Research, 1889-90 Volume VI, pp. 436-
659.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
21
um sobrevivencialista iria querer excluir os relatórios sobre as Sra. Piper e Leonard como
exemplos que fundamentam sua posição.
Por outro lado, existem exemplos de material o qual podemos classificar de “excelente
qualidade”. Quando tal conteúdo aparece, a elocução do transe ou escritos psicografados
carregam fortes características psicológicas relacionadas principalmente ao caráter, humor e
maneirismos de uma pessoa falecida, além de informações as quais os consulentes acreditam
se encaixar perfeitamente no ponto de vista de seu finado ente querido. De fato, é muito difícil
encarar tais casos sem assumir que, ao menos em aparência, eles realmente sugerem que uma
pessoa morta, sobrevivendo ao choque da morte, entra em contato com os seus conhecidos
vivos através do médium.
Por exemplo, numa das sessões em 1893, o casal Sutton tomou uma tentativa de
comunicação com sua filha Katherine (que morrera seis meses antes) através da médium Sra.
Piper. Detalhes como a dor de garganta, a paralisia da língua da menina, o cavalinho que o pai
lhe dera, sua febre e a forma dramática como as mensagens são passadas trazem à tona
marcantes elementos psicológicos característicos da falecida criança, além de informações
verídicas que encaixam exatamente no seu ponto de vista, e não o dos pais. Na seguinte
passagem “Phinuit” é o controle, vejamos:
Phinuit disse ‘... Uma criancinha está chegando perto de você...” Ele estende as
mãos, como que para uma criança, e diz, para reconforta-lo: “Venha cá, querida.
Não tenha medo. Venha, querida, aqui está sua mãe.” Ele descreve a criança e seus “cachinhos adoráveis”. “Onde está papai? Quero papai.” (Ele – isto é, Phinuit –
toma da mesa uma medalha de prata.) “Quero isto. Quero morder.” (Ela costumava
mordê-la) (Estende a mão para uma enfiada de botões.) “Depressa! Quero pôr na
minha boca.” (Os botões também. Morder os botões era proibido. Ele imitou
exatamente seus modos infantis.) “... Quem é Dodo?” (Seu apelido para o irmão,
George.) “... Quero chamar você de Dodo. Diga a Dodo que estou contente. Não
chorem por minha causa.” (Põe as mãos na garganta.) “A garganta não dói mais.”
(Ela tinha sempre dores na garganta e na língua.) “Papai, fale comigo. Não pode me
ver? Não estou morta, estou viva. Estou contente, com a vovó.” (Minha mãe estava
morta havia muitos anos.) Phinuit diz: “Aqui estão mais duas. Uma, duas, três, aqui,
- uma mais velha, outra mais jovem que Kakie.” (Correto)... A língua desta estaria seca? Ela fica me mostrando a língua. (Sua língua estava paralisada, e ela sofreu
muito com isto, até o fim.) Seu nome é Katherine. (Correto.) Ela chama a si mesma
de Kakie. Ela morreu no ano passado. (Correto.) “Onde está meu cavalinho?” (Eu
lhe dera um cavalinho.) “Cavalinho grande, não este aqui.” (Provavelmente refere-
se a um cavalo e carroça de brinquedo de que gostava.) “Papai, quero ir no cavalo
(cavalgar).” (Ela pedia por isto ao longo de toda sua doença)... (Perguntei se ela
lembrava qualquer coisa depois de ser trazida escada abaixo). “Eu estava tão quente,
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
22
minha cabeça estava tão quente. (Correto)... Não chorem por mim, isso me deixa triste. Eleanor, quero Eleanor.” (Sua irmãzinha. Chamou muito por ela, no fim de
sua doença.) “Quero meus botões. Row, row, - minha música, - cantem agora. Vou
cantar com vocês. (Cantamos, e uma voz suave de criança cantou conosco): Lighty
row, lighty row, O’er the merry waves to go. Smoothly glide, smoothly glide, Wit the
ebbing tide. [Remando de leve, remando de leve Sobre as alegres ondas vamos
Deslizando suave, deslizando suave com a maré vazante.] (Phinuit pede-nos que nos
calemos, e Kakie termina sozinha): Let the Wind and waters be Mingled with our
melody, Sing and float, sing and float, In our little boat. [Que o vento e as águas Se
misturem com a nossa melodia, Cantando e boiando, cantando e boiando, Em nosso
barquinho.]...Kakie canta: “Bye, bye, baby, bye,bye, O baby bye. Papai, cante essa
comigo. (Papai e Kakie cantam. Estas duas eram as canções que ela costumava
cantar.) Onde está Dinah? Quero Dinah. (Dinah era uma velha boneca de trapo preta, que não estava conosco). Quero Bagie. (Apelido que dava à sua irmã Margaret.)
Quero Bagie para me trazer Dinah... Diga a Dodo, quando o encontrar, que gosto
dele. Querido Dodo. Costumava marchar comigo, e me carregava (Correto).’
(Gauld, 1995).
Em 1933, em datas e ocasiões distintas, quatro médiuns britânicas (Srtas. Campbell e
Bacon e Sras. Leonard e Mason) aparentemente manifestaram a comunicação com um rapaz
falecido, Edgar Vandy. Os assistentes no caso foram os irmãos do morto (George e Harold) e o
pesquisador psíquico C. D. Thomas. Os irmãos apresentaram-se sob nomes falsos. Cada uma
das sessões foi conduzida por um único assistente. Com exceção do Sr. Thomas e da Sra.
Leonard, os assistentes e tomadores de notas eram completamente desconhecidos das médiuns
do caso. Assim, o comunicador (apresentando-se como o falecido Edgar Vandy) relata, através
de quatro médiuns que se desconheciam, o incidente na piscina que o vitimou e muitos outros
detalhes para confirmar sua identidade. Nas sessões com a médium Leonard, o comunicador
introduziu-se a C. D. Thomas independente de interpelação. Este, que não conhecia Edgar, fora
antes solicitado por George Vandy para tentar uma ‘sessão por procuração’ com Leonard com
o objetivo de estabelecer comunicação com Edgar. Por esta razão Thomas desconfiou que a
personalidade jovial a qual “Feda” (guia de Leonard) afirmava estar presente poderia ser Edgar,
embora o próprio Thomas ignorasse até mesmo o nome. Itens evidenciais, e alguns bem
íntimos, foram repetidos pelas quatro médiuns, com destaque para a descrição de um dos
inventos de Edgar, o qual era uma máquina inédita e bastante complexa; a aparência física do
finado; detalhes de sua casa; e pormenores da causa mortis. Em The Case of Edgar Vandy. A
Report on a Series of Sittings with Mediums21, é difícil não concordar com Kathleen Gay (1957)
quando conclui:
21 Journal of the Society for Psychical Research. vol. 39. no. 691.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
23
Apesar das irrelevâncias, que confundem detalhes, e algumas declarações contraditórias nessas sessões, pode ser dito que a impressão mais clara deixada na
mente do leitor é a notável personalidade de Edgar Vandy, com suas raras qualidades
de mente e caráter e sua grande habilidade. Em todas as sessões esta figura trágica é descrita com suas esperanças frustradas e sua angústia e o sofrimento que sua morte
intempestiva ocasionou a sua família, e sua incapacidade para retribuir a ajuda àqueles
que a deram de muita boa vontade. Acima de tudo, as repetidas declarações de que
ninguém teve culpa de sua morte e que ninguém deveria ser responsabilizado. Isso foi
um acidente, e o fato de ninguém ter salvado a vida dele deveria ser aceito 'sem raiva,
somente com compreensão e lamento'.
Outro tipo de caso que normalmente é mencionado como de peso para a hipótese da
sobrevivência é o que se convenciou chamar de correspondências cruzadas. Nele, o pretenso
desencarnado transmite a determinadas médiuns (desconhecidas entre si) algumas frases as
quais, isoladamente, são ininteligíveis. Somente quando todos os trechos são reunidos é que se
verifica serem fragmentos de uma única e coerente mensagem, quando o conteúdo inteiro passa
a ganhar sentido. Ao que parece esse modelo de caso foi desenvolvido por um dos próprios
pioneiros da pesquisa psíquica (Frederic Myers), porém quando já falecido e como forma de
comprovar a sua sobrevivência à morte corporal. Myers, em vida, era um perito em Clássico e
as médiuns envolvidas (salvo a Sra. Verrall) eram ignorantes a respeito. Por essa razão as
correspondências cruzadas carregavam mensagens cifradas em temas da literatura Clássica.
Muitos episódios inteiressantes foram produzidos. Para deixar mais claro, transcrevo um
pequeno resumo de Rogo (1991) sobre uma das tentativas do comunicador “Myers” provar sua
sobrevivência. As médiuns relacionadas foram Piper, Verrall e sua filha:
O auge das correspondências cruzadas provavelmente ocorreu em 1906, quando a Sra. Piper ainda estava na Inglaterra. Durante uma de suas sessões com ela, Piddington
dirigiu ao pretenso Myers uma mensagem especialmente construída que preparou o
cenário. Explicou ele a "Myers" através da Sra. Piper: ‘Temos conhecimento do
esquema de correspondências cruzadas que você está transmitindo através de vários
médiuns e esperamos que continue com elas. Tente dar a A e B duas mensagens
diferentes, entre as quais não seja perceptível a menor ligação. Depois, logo que
possível, dê a C uma terceira mensagem que revele as sugestões ocultas’. Propôs
também que Myers designasse suas alusões à correspondência cruzada assinando os
escritos pertinentes com um triângulo transcrito dentro de um círculo. Havia um importante aspecto nessa mensagem, pois foi lida para a médium em transe
em latim ciceroniano. A Sra. Piper naturalmente não entendia latim e muito menos um
dialeto tão obscuro, mas a língua era bem dominada por Myers quando vivo. Os
controles da Sra. Piper responderam à mensagem dizendo que a entendiam.
Demorou apenas algumas semanas para que o falecido Myers decifrasse essa
complicada correspondência cruzada. Entre 17 de dezembro e 2 de janeiro, alusões
aos temas de estrela, esperança e a poesia de Robert Browning começaram a aparecer
nos escritos da Sra. Verrall e sua filha. Essas alusões tiveram pouco sentido para
Piddington até quando, em uma sessão com a Sra. Piper em Londres, ele recebeu uma
mensagem para ‘procurar Esperança, Estrela e Browning’. As alusões adquiriram
sentido perfeito quando Piddington estudou Browning e descobriu que a
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
24
correspondência cruzada relacionava-se com os temas contidos em seu poema Abt
Vogler22.
Outros casos extraordinários de mediunidade podem ser citados, valendo destacar que
de nenhuma forma estou esgotando o estoque dos seus melhores momentos. De fato, a literatura
psíquica é extremamente rica e bem documentada, facilitando bastante o trabalho de pesquisa,
principalmente pelo acesso parcialmente gratuito ao jornal e as atas da Society for Psychical
Research.
Pois bem, em 1930, sob o comando do tenente HC Irwin, o R101, o maior dirigível do
mundo à época, veio a cair em sua rota da Inglaterra para as Índias, vitimando 46 dos 54
passageiros e tripulantes. Três dias depois, numa sessão realizada no National Laboratory of
Psychical Research, Harry Price, um pesquisador psíquico apurado em desmascarar médiuns
fraudulentos, juntamente com sua secretária e taquígrafa Ethel Beenbarn e o jornalista Ian D.
Coster, faziam uma sessão com a médium Eileen Garrett objetivando contatar o célebre e recém
falecido Arthur Conan Doyle. “Doyle” não apareceu, mas em seu lugar manifestou-se um
homem chamado "Irwin" e que, embora se desculpasse por interferir, insistia em falar. Então,
disse Price:
[...] a voz da médium novamente ficou alterada e uma entidade anunciou que era o tenente H. Carmichael Irwin, capitão do R101. Ele estava muito agitado, e de uma
longa série de frases espasmódicas forneceu aos ouvintes um reporte detalhado e
aparentemente muito técnico de como o R101 caiu.
Após Coster publicar o resultado da sessão, diversos jornais do mundo começaram a
estampar manchetes sobre este possível caso de comunicação post-mortem. À época, Garrett
não conhecia Coster e nem sabia do propósito da sessão.
Miles Edward Allen (2007) resume alguns outros detalhes:
As transcrições da sessão foram solicitadas e cuidadosamente estudadas por especialistas que investigaram o acidente, um dos quais pediu e recebeu uma sessão
adicional para entrevistar os tripulantes falecidos do R101. [Charlton, um funcionário
do governo britânico,] examinou a transcrição detalhadamente e afirmou que a ideia
de que alguém numa sessão pudesse obter de antemão tais informações técnicas era ‘grotescamente absurda’. Várias das declarações de Irwin - como a aeronave era
22 A Vida Após a Morte: evidências da sobrevivência à morte corporal. São Paulo: Ibrasa, 1991.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
25
pesada demais para seus motores – eram suposições públicas ou poderiam ser razoavelmente adivinhadas. Mas muitas declarações eram técnicas, confidenciais ou
simplesmente desconhecidas para qualquer um à época. Por exemplo, Irwin disse:
"Carga muito grande para um voo longo. Mesmo para um SL-8. Diga a Eckener..".
Ninguém na sessão sabia o significado de "SL-8" ou reconhecia o nome "Eckener."
Os especialistas britânicos que analisaram as transcrições das sessões sabiam que Dr.
Eckener foi o criador do Graf Zeppelin, mas mesmo eles tiveram que procurar através
de seus registros sobre dirigíveis alemães para descobrir que "SL-8" era o
identificador de um dirigível construído pela a empresa Schütte-Lanz, de Mannheim,
na Alemanha. Irwin disse: "tracas a estibordo alavancadas." "Tracas", um termo
desconhecido para todos na sessão, era uma expressão originalmente naval adotada
por designers de dirigível. Tracas são camadas paralelas de placas longitudinais que
formam os lados de uma embarcação. Irwin já foi da marinha e por isso “tracas” é um termo que seria provável de ele usar. Irwin disse: “Impossível subir. Não pode cortar.
Quase raspou os telhados de Achy. Manteve-se na ferrovia”. Achy, uma aldeia
francesa a doze milhas e meia ao norte de Beauvais, estava na rota do R101. Achy
podia ser vista num tipo de mapa de artilharia de larga escala levado no R101, mas a
aldeia era tão pequena que não aparecia em nenhum mapa de artilharia ou de estrada
normais. Nem ela era mencionada nos guias de Baedeker ou Michelin. Ela não se
estende sobre a linha ferroviária principal entre Amiens e Beauvais. Testemunhas
perto da cidade testemunharam que a aeronave sobrevoou extremamente baixo. Harry
Price concluiu: ‘É inconcebível que a senhora Garrett pudesse ter adquirido as
informações do R101 através dos canais normais e o caso apoia fortemente a hipótese
da sobrevivência.’ 23.
Nos dois casos a seguir, se LAP for a explicação para os fenômenos neles apresentados,
as médiuns deveriam ser capazes de adquirir psiquicamente as informações anômalas a partir
de mais de uma fonte, isso porque o conteúdo verbalizado na sessão estaria fragmentado, por
exemplo, algumas partes dele estariam na mente do assistente enquanto outras nas mentes de
pessoas distantes, ou então, gravadas em documentos que aparentemente apenas o falecido
conhecia. Sobrevivencialistas argumentam que, em episódios como tais, a hipótese S é mais
econômica e, portanto, mais parcimoniosa, afinal todas as informações anômalas poderiam ser
adquiridas a partir de uma única fonte, qual seja, a mente ainda ativa de uma pessoa que passou
pela transição a qual chamamos morte. Analisaremos profundamente a higidez desse
argumento mais a frente, quando analisarmos o poder explanatório de LAP. Os irretocáveis
extratos abaixo são tirados de Carter (2012)24.
No primeiro exemplo mencionado por Carter, a médium em questão foi a extraordinária
Sra. Piper. O trecho a seguir trata de uma diversidade de casos relativos ao período em que essa
23 The Survival Files: the Most Convincing Evidence yet Compiled for the Survival of Your Soul. Momentpoint
Media. 24 Science and the Afterlife Experience: Evidence for the Immortality of Consciousness. Inner Traditions.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
26
médium começou a manifestar um novo controle [“George Pelham”] em substituição ao “Dr.
Phinuit”.
[...] A Sra. Piper foi ainda levada à Inglaterra para ser testada, onde ela não conhecia ninguém e não poderia ter [ajuda de] comparsas. Como nos Estados Unidos, os
assistentes eram geralmente apresentados anonimamente; e a Sra. Piper continuava a
obter resultados impressionantes. No entanto, os investigadores não conseguiam
decidir se a Sra. Piper estava realmente em contato com pessoas falecidas ou se ela
estava apenas colhendo a informação telepaticamente das mentes dos assistentes.
O que se mostrou o ponto da virada para Hodgson foram as assim chamadas
comunicações GP. George ‘Pelham’ (um pseudônimo para Pellew) foi um jovem
advogado de Boston, intensamente interessado em literatura e filosofia. Como um
amigo de Hodgson, os dois haviam discutido a possibilidade da vida após a morte;
apesar de GP (Pellew) ser extremamente cético em relação a tal possibilidade, ele
prometeu a Hodgson que caso morresse primeiro e se encontrasse ainda vivo, iria
fazer o seu melhor para se comunicar. Dois anos mais tarde, GP encontrou a morte acidentalmente com 32 anos de idade,
devido a uma queda em Nova York, em fevereiro de 1892. Cerca de quatro semanas
depois, Hodgson acompanhou um amigo íntimo de GP para uma sessão com a Sra.
Piper, com o amigo sendo apresentado sob o falso nome de ‘John Hart’. Com Phinuit
[principal controle da médium à época] agindo como intermediário, as mensagens
pretensamente vindas de GP foram retransmitidas para Hart. Recorde-se que GP tinha
assistido a uma sessão com a Sra. Piper cerca de cinco anos antes, também sob nome
falso, e que Hodgson não pensava que a Sra. Piper lembrava de o ter visto. Mas, de
qualquer forma, durante a sessão o nome George Pellew foi dado por completo, o
assistente foi reconhecido por seu nome real, e as comunicações referiram-se a
incidentes que eram desconhecidos tanto para o assistente quanto para Hodgson. Um desses incidentes desconhecidos relacionava-se a James e Mary Howard, os quais
foram mencionados pelo nome, juntamente com o [nome] da filha deles, Katherine.
A mensagem era ‘Diga a ela, ela saberá. Eu resolveria as questões, Katharine’. Essas
palavras não significaram nada para Hodgson ou para o assistente, mas quando ‘Hart’
contou a James Howard uma parte da sessão no dia seguinte, aquelas palavras o
impressionaram mais do que qualquer outra coisa. GP, quando teve sua última estada
com os Howards, manteve frequentes diálogos com Katherine (uma garota de 15 anos)
sobre certos problemas filosóficos. Descobriu-se que GP havia dito à garota que ele
iria resolver os problemas e deixá-la saber, usando quase as mesmas exatas palavras
comunicadas na sessão.
Três semanas depois, uma sessão foi organizada com os Howards, sem seus nomes serem fornecidos. Phinuit inicialmente disse algumas palavras; então, de repente,
apareceu GP para controlar diretamente a voz da Sra. Piper. Este novo controle durou
quase o tempo todo da sessão, cuja natureza Hodgson descreve.
‘As declarações foram intimamente pessoais e características. Amigos em comum
foram designados pelo nome, consultas foram feitas sobre assuntos particulares, e os
Howards, que não estavam predispostos a tomar qualquer interesse na pesquisa
psíquica, mas que tinham sido induzidos por parte do Sr. Hart a terem uma sessão
com a Sra. Piper, ficaram profundamente impressionados com a sensação de que eles
estavam, na verdade, mantendo uma conversa com a personalidade do amigo a quem
tinham conhecido por tantos anos’ [...].
Nas sessões posteriores, GP às vezes se comunicava diretamente através da voz da
Sra. Piper e em outros momentos por meio da escrita automática [psicografia], com a última ficando cada vez mais comum com o passar do tempo. A carreira de GP como
um comunicador "drop-in" persistiu até 1897, e dos 150 assistentes que foram
apresentados a GP durante esse tempo, ele reconheceu pelo nome 29 dos [assistentes]
que George Pellew tinha conhecido em vida (a única exceção foi uma jovem que ainda
era uma criança quando Pellew a vira pela última vez). Ele conversou com cada um
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
27
desses indivíduos na maneira apropriada, e mostrou um conhecimento íntimo de seus supostos relacionamentos passados com eles. Como escreve Hodgson, em cada caso,
‘o reconhecimento foi claro e completo, além de acompanhado por uma apreciação
das relações que subsistiam entre GP vivo e os assistentes’. E não houve um único
caso de falso reconhecimento; ou seja, GP nunca, por nenhuma vez sequer, saudou
qualquer um dos 120 que o Pellew vivo não tinha conhecido. Hodgson acrescenta:
‘a manifestação contínua dessa personalidade - tão diferente de Phinuit ou dos outros
comunicadores -com seu próprio reservatório de memórias, com a sua pronta
apreciação de qualquer referência a amigos de GP, com o seu ‘dar e receber’ em
pequenas conversas incidentais comigo mesmo, tem amplamente ajudado na
produção de uma convicção da presença real da personalidade GP, o que seria
totalmente impossível de transmitir por qualquer mera enumeração de declarações
verificáveis’.
No segundo exemplo de Carter, a médium foi a igualmente excepcional Sra. Leonard.
Neste episódio, a assistente, Sra. Talbot, depois de receber algum material bem sugestivo de
que seu falecido marido estava se comunicando através do controle “Feda”, foi novamente
surpreendida por algumas mensagens sobre um velho livro de notas. Estas mensagens
incialmente pareciam tolices, mas depois revelaram-se de valor inestimável para fortalecer a
interpretação da sobrevivência post-mortem de seu marido.
Em 19 de março de 1917, a Sra. Leonard realizou uma sessão para uma viúva, Sra. Hugh Talbot. De acordo com a Sra. Talbot, ‘naquele momento, Sra. Leonard não
sabia o meu nome e nem meu endereço, e nem eu já tinha ido a ela ou a qualquer
outro médium antes em minha vida’.
Durante a primeira parte da sessão, nada de extraordinário aconteceu. Houve apenas uma 'miscelânea de descrições' sobre várias pessoas. Mas, de repente, de acordo com
a Sra. Talbot:
Feda [principal controle da Sra. Leonard] deu uma descrição muito correta da
aparência pessoal do meu marido, e a partir daí somente ele parecia falar (através
dela, é claro) e um diálogo muito extraordinário se seguiu. Evidentemente, ele estava
tentando, por todos os meios ao seu alcance, provar sua identidade para mim e para
me mostrar que realmente era ele mesmo. . . Tudo o que ele disse, ou melhor, o que
Feda disse para ele, era claro e lúcido. Os incidentes do passado, conhecidos somente
por ele e por mim foram mencionados, pertences triviais por si próprios, mas que
para ele era de interesse específico e pessoal, e os quais eu conhecia, foram minuciosa
e corretamente descritos, e fui indagada se eu ainda os possuía. Sra. Talbot também foi perguntada várias vezes se ela acreditava que era o falecido
Sr. Talbot quem estava se comunicando.
Feda ficava dizendo: ‘Você acredita, ele quer que você saiba que realmente é ele
mesmo’. Eu disse que eu não podia ter certeza, mas eu pensei que devesse ser
verdade...
De repente, Feda começou uma cansativa descrição de um livro, ela disse que era de
couro e escuro, e tentou me mostrar o tamanho. Sra. Leonard, com as mãos, mostrou
um comprimento de oito a dez polegadas e quatro ou cinco de largura. Ela [Feda]
disse: ‘Ele não é exatamente um livro, não é impresso, Feda não chamaria isso de um
livro, isso tinha escritos dentro’.
Passou um bom tempo antes que eu pudesse ligar essa descrição com alguma coisa,
mas finalmente me lembrei de um livro de notas de couro vermelho do meu marido, que eu acredito que ele o chamava de livro de registro, e eu perguntei: 'É um livro de
registro?' Feda parecia confusa com isso e em não saber o que era um livro de registo,
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
28
e repetiu a palavra, uma ou duas vezes, e depois disse: 'Sim, sim, ele diz que poderia ser um livro de registro'. Eu então disse: 'é um livro vermelho?' Neste ponto, houve
hesitação, eles achavam que possivelmente era, apesar de ele pensar que era mais
escuro.
A resposta era incerta, e Feda novamente começou uma descrição cansativa,
acrescentando que era para eu, após a conversa, procurar na página doze, por algo
escrito nela, que seria bastante interessante. Então ela disse: ‘Ele não tem certeza de
que isso está na página doze, poderia estar na treze, é muito extenso, mas ele quer
que você procure e tente encontrá-lo. Seria de interesse de ele saber se este trecho
está ali'.
Nada disso interessava a Sra. Talbot. Embora ela pensasse ter lembrado do livro, ela
não tinha certeza se ainda o possuía, e, de qualquer modo, a questão inteira parecia
sem propósito para ela. Ela respondeu: 'bem indefinidamente' que iria ver se poderia encontrar o livro, mas isso não satisfez o comunicador que estava aparentemente
passando as mensagens através de Feda.
Ela começou tudo de novo, tornando-se cada vez mais insistente e passou a dizer:
'Ele não tem certeza da cor, ele não sabe. Há dois livros, você saberá qual ele quer
dizer em razão de um diagrama de idiomas na frente. . . idiomas Indo-Europeu,
Ariano, semita e outros' . . . Isso soou tolices para mim.
Pensando que a médium estava cansada e falando bobagem, a Sra. Talbot ficou feliz
quando a sessão chegou ao fim. Durante o jantar naquela noite, ela mencionou sobre
a sessão para sua irmã e sobrinha, e 'depois de contar a minha irmã e sobrinha todas
as coisas que considerei interessantes ditas no início, mencionei que no final a
médium começou a falar um monte de tolices sobre um livro, e que me pedia para olhar na página doze ou treze a fim de encontrar algo interessante’. Depois do jantar,
sua irmã e sobrinha imploraram a ela para procurar pelo livro mais uma vez. Embora
a Sra. Talbot quisesse esperar até o dia seguinte, ela finalmente cedeu e, depois de um
pouco de procura encontraram dois velhos livros de notas do marido, nos fundos de
uma estante superior.
Sra. Talbot conta-nos no seu testemunho escrito que ela nunca tinha aberto quaisquer
dos livros de notas.
Um deles, de couro preto e gasto, correspondia em tamanho com a descrição dada, e
eu distraidamente o abri, perguntando em minha mente se o que eu estava procurando
tinham sido destruído ou perdido. Para meu espanto, meus olhos caíram sobre as
palavras: ‘Tabela de idiomas semitas ou siro-árabes’.
Ainda mais surpreendente foi o que ela encontrou na página treze. Nesta página, o Sr. Talbot tinha transcrito, há algum tempo em sua vida, a seguinte passagem de um livro
chamado Post Mortem, publicado anonimamente em 1881:
Descobri por certos sussurros os quais supostamente eu não conseguia ouvir e por
certos olhares de curiosidade ou comiseração os quais supostamente eu era incapaz
de ver, que eu estava perto da morte...
Presentemente, minha mente começou a se estender, não só sobre a felicidade que
estava por vir, mas acerca da felicidade que eu estava desfrutando. Eu vi formas há
muito esquecidas, amigos de infância, colegas de escola, companheiros da minha
juventude e da minha velhice, e todos juntos sorriram para mim. Eles não sorriram
por compaixão, que eu não mais sentia precisar, mas com aquele tipo de gentileza
que é trocada por pessoas as quais estão igualmente felizes. Eu vi minha mãe, pai e irmãs, todos os quais eu havia sobrevivido. Eles não falaram, mas ainda assim me
transmitiram seu inalterado e inalterável afeto. No momento em que eles apareceram,
fiz um esforço para perceber a minha situação física ... ou seja, eu me esforçava para
conectar minha alma com o corpo que estava deitado na cama de minha casa. . . o
esforço falhou. Eu estava morto.
Havia também ‘um diagrama de idiomas’ na parte da frente, combinando com a
descrição dada através de Feda. As irmã e sobrinha da Sra. Talbot corroboraram as
declarações da Sra. Talbot, e também forneceram testemunhos escritos e assinados
para os registros da SPR [Society for Psychical Research, em Londres].
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
29
Além de comportamentos e maneirismos típicos da pessoa falecida, personalidades
comunicantes podem exibir habilidades não-idiossincráticas e que são correspondentes
àquelas que o falecido tinha em vida. Por exemplo, comunicadores podem falar num idioma
aparentemente desconhecido do médium, mas fluente por parte da personalidade falecida (ex.,
o caso tipo possessão de Íris Farczády25). No caso Robert Rollans/Géza Maróczy (1985), o
primeiro, médium psicógrafo, forneceu material evidencial sugestivo da sobrevivência de
Maróczy, mestre xadrezista falecido em 1951, além de exibir habilidades em xadrez
semelhantes às do falecido (Eisenbeiss e Hassler, 200626). Rollans, sustentando seguir os
comandos de Maróczy, travou uma disputa de xadrez que durou sete anos e oito meses com o
russo Viktor Korchnoi, 3º no ranking mundial. O próprio Korchnoi reconheceu que a disputa
foi travada no nível de grão-mestre e que seu desafiante jogava num estilo “antiquado”, o que
converge com a época de Maróczy, nas décadas de 20 e 30. Continuando no assunto sobre
habilidades, podemos ainda mencionar reportes de personalidades mediúnicas que reproduzem
destrezas literárias, pictóricas e musicais atribuídas a um falecido (ex., o caso Chico
Xavier/Humberto de Campos (Barbosa, 2005)27 e muitos exemplos da mediunidade de Jozef
Rulof e Rosemary Brown).
Fecho este ponto ciente de que algumas características da mediunidade mental não
foram mencionadas. Porém, para os propósitos deste trabalho, penso que o acima explanado
mostra-se suficiente, além do que, muitos outros pormenores serão mencionados adiante.
Vamos agora observar como as hipóteses rivalizadas argumentam frente à fenomenologia
acima apresentada.
25 Barrington, Mary Rose; Mulacz, Peter; Rivas, Titus. The Case of Iris Farczády--A Stolen Life. Journal of the
Society for Psychical Research. 2005, Apr, Vol 69(2), 49-77. Disponível on-line em:
http://www.txtxs.nl/artikel.asp?artid=738 26 Journal of the Society for Psychical Research [Vol. 70.2, No. 883 April 2006]. Uma tradução do caso segue em:
http://pt.scribd.com/doc/84026510/Artigo-Cientifico-de-um-Jogo-de-Xadrez-entre-um-Vivo-e-um-Morto 27 Humberto de Campos e Chico Xavier: a mecânica do estilo. Aras, SP, 1ª ed., IDE, 2005.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
30
2. Fundamentos da Hipótese da Sobrevivência (S) para os casos de mediunidade (CMs)
Para CMs serem exemplos de comunicações post-mortem, sobrevivencialistas devem
suportar as seguintes assunções:
S1: que a mente e o cérebro não tenham uma relação do tipo produtiva,
no sentido de que o último seja causa necessária da primeira;
S2: que, após a morte, o conjunto das características psicológicas do
falecido, especialmente sua cadeia de memórias, caráter e sentido de
identidade, não sofra uma modificação simultaneamente radical e
inesperada, a fim de que possamos inferir a sobrevivência de sua
personalidade e comprovar sua identidade, i.e., que comunicador e
falecido são numericamente o mesmo indivíduo;
S3: que alguns falecidos tenham interesse, desejo e motivação na
comunicação com os vivos;
S4: que algumas pessoas falecidas tenham percepção extrassensorial
(PES) para que possam se comunicar com o médium, influenciando-o
telepaticamente; ou então manipulando seu sistema motor, via
psicocinese (PK), a fim de expressar mais informações, além de exibir
as habilidades e maneirismos que tinham em vida. Falecidos também
devem usar PES para tomar ciência de acontecimentos que ocorreram
após a morte ou mesmo cognoscer, por meios telepáticos, os
pensamentos do médium, dos assistentes e de seus entes queridos ainda
vivos;
S5: que a transição da morte provoque um efeito liberador das
capacidades psi de uma pessoa, de modo que um sujeito, o qual nunca
demonstrou talentos psíquicos quando encarnado, passe a manifestar
habilidades psi sub-repticiamente, influenciando intensamente o
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
31
médium com seus pensamentos ou tomando o comando executivo do
corpo biológico via PK;
S6: que uma pessoa viva (o médium) tenha uma sensibilidade especial,
qualquer que seja sua natureza, para manifestar cognitivamente os
efeitos da influência telepática de um falecido ou para lhe ceder
transitoriamente o controle corporal.
Vamos agora analisar pormenorizadamente cada uma dessas seis hipóteses auxiliares
ou pressuposições de S.
2.1. Comentários a respeitos de S1
S1: que a mente e o cérebro não tenham uma relação do tipo produtiva, no sentido de
que o último seja causa necessária da primeira.
A hipótese de a mente ser um subproduto da atividade cerebral é um dos establishments
da ciência contemporânea. Porém, tudo o que as observações empíricas provenientes da
psicologia, da neurociência, da linguística, da ciência da computação e da inteligência artificial
nos conta são correlações entre estados cerebrais e mentais. Mudanças comportamentais, de
humor, cognitivas, mnemônicas, e outras modificações na personalidade, subsequentes ou
simultâneas a alterações (na estrutura ou no funcionamento) cerebrais, não implicam
necessariamente numa redutibilidade causal daqueles estados mentais a estados do cérebro.
Esse tipo de relação produtiva é somente uma das inferências do relacionamento mente-
cérebro que, por infelicidade, tem sido abraçada dogmaticamente por grande parte da
comunidade científica.
Como alternativa à hipótese da produção, podemos interpretar as mesmas observações
empíricas das ciências cognitivas como exemplos de um cérebro permissivo ou transmissivo da
atividade mental. Essa outra inferência dos dados nem de longe é nova, possuindo raízes desde
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
32
os diálogos de Platão e Hipócrates à filosofia de Emmanuel Kant. O desenvolvimento posterior
dessa posição acelerou-se na transição dos séculos XIX/XX, principalmente através do erudito
inglês Frederic Myers, além de Ferdinand Schiller, Henri Bergson e William James, que foi o
primeiro a expressamente declarar que a consciência poderia ser 'transmitida' pela atividade
cerebral, no lugar de produzida.
Muitas analogias já foram utilizadas para nos clarificar a ideia da teoria da transmissão,
com destaque para aquela de Myers o qual relacionou metaforicamente o interacionismo mente-
cérebro a passagem de luz num prisma. Resumidamente a respeito, a psicóloga Emily Kelly
descreve com acurácia o entendimento em artigo de 1994 publicado no The Journal of
Parapsychology:
[...] A parte de nossa vida mental, que ordinariamente estamos cientes, corresponde
somente a um pequeno segmento, visível a olhos nus, do espectro eletromagnético
filtrado num prisma, objeto que metaforicamente corresponderia ao cérebro (ou ao sistema nervoso como um todo). Entretanto, exatamente como o espectro
eletromagnético se estende bem além daquela porção visível, a consciência humana
poderia ir muito além da pequena porção que normalmente estamos cientes. A porção
visível – tanto do espectro eletromagnético como do espectro mental – não seria
superior nem inferior ao resto, mas simplesmente a porção que, em termos
evolucionários, melhor atendeu às necessidades do organismo em seu ambiente
imediato. Além disso, a porção visível ou supraliminar não é fixa, mas está em
constantes mudanças, expandindo, contraindo-se, não somente durante a vida de um
indivíduo, mas também no curso da evolução. Exatamente como a detecção sensória
do espectro eletromagnético evoluiu de uma simples irritabilidade a sistemas visuais
altamente complexos, então a porção supraliminar do espectro mental evoluiu de
simples respostas reflexas do sistema nervoso primitivo aos mais elevados processos cognitivos humanos.[...]. Myers sugeriu que no invisível segmento infravermelho do
espectro mental estão aqueles mais antigos e primitivos processos, informações ou
comportamentos que, ele insinuou, uma vez foram conscientes (tanto a nível
individual como evolucionário), mas são agora inconscientes e automáticos.
Correspondendo a pequena porção visível do espectro eletromagnético estão nossa
consciência e nossos habituais pensamentos e comportamentos. E, finalmente, no
invisível segmento ultravioleta do espectro mental estão aquelas capacidades mentais
as quais permanecem para a maioria de nós em estado de latência, porque elas não
foram ainda extraídas ou ativadas por processos evolucionariamente adaptativos.
Nessa região emergem, à medida que a consciência evolui, os mais novos e altos
processos mentais; incluindo os paranormais que ocasionalmente são reportados”. [...] O fato de a consciência ser bem maior tanto em extensão e em habilidade que nós
ordinariamente idealizamos sugeriu a Myers que ela é capaz de operar num ambiente
mais amplo daquele que presentemente percebemos. A existência de capacidades
latentes (por exemplo, o incremento da memória e a telepatia, ou o controle mental
sobre sistemas físicos) sugeriu a ele que aquelas capacidades podem em última
instância se tornarem mais completamente ativadas e operacionais, seja no curso da
evolução ou removendo o mecanismo do filtro do [ou que é o] cérebro, então a
consciência iria continuar a se expandir e se tornar ciente de um mais amplo ambiente
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
33
que sempre existiu, embora indetectável por nossas limitadas capacidades
perceptivas.28 29
Pessoalmente, acredito que a teoria da personalidade humana de Frederic Myers, a qual
abraça a hipótese de um cérebro transmissivo (no lugar de produtivo), é a mais ousada e
abrangente teoria da personalidade que já se teve notícia na história das ciências cognitivas.
Estou certo que muitos dos psicólogos e neurocientistas podem discordar disso, especialmente
porque as ideias de Myers permanecem negligenciadas pela maioria dos membros da
comunidade científica, porém também tenho certeza que alguns vão partilhar dessa posição,
especificamente aqueles que estão a par das pesquisas psíquicas de 'borda’, tais como
fenômenos psi, mediunidade e experiências místicas e no liminar da morte, entre algumas
outras. Digo isso porque a perspectiva da personalidade apresentada por Myers simplesmente
é compatível com todos os fatos admitidos pela ciência convencional, mas também elucida fatos
adicionais, recalcitrantes à ciência paradigmática, tais como os mencionados por Edward F.
Kelly (2000)30, a saber:
a) exemplos da persistência da memória e de estados mentais organizados quando a atividade cerebral estivesse cessada ou severamente prejudicada [como alguns casos
de Experiências de Quase Morte (EQMs) sugerem];
b) a própria existência de fenômenos psi;
c) experiências místicas que liberam capacidades mentais superiores, a exemplo do
incremento na velocidade de leitura e de habilidades cognitivas, além de incursões
psi;
d) experimentos com psicodélicos. A interpretação de Aldous Huxley de tais
experiências como resultante de uma suspensão da normal ação de "filtrar" imposta
pelo cérebro deveria ser revisada levando em conta informações mais detalhadas sobre os modos fisiológicos da ação de agentes específicos. A cetamina, por exemplo, é um
anestésico dissociativo e uma poderosa droga enteógena em doses subanestésicas.
Seletivamente rompe o sistema receptor NMDA das camadas corticais superiores, que
desempenha um papel importante nas interações tangenciais entre as áreas corticais,
e ainda tais interações são extensamente presumidas em fornecer uma base fisiológica
normal para as experiências perceptiva e cognitiva organizadas.
e) desordem de múltiplas personalidades e transe mediúnico. Muitos fenômenos
incomuns têm sido reportados em tais casos, os quais parecem desafiar as teorias
convencionais da função global do cérebro. Por exemplo, em co-consciência uma
personalidade ‘B’ pode estar simultaneamente ciente de sua própria experiência e
28 Cook, Emily Williams. The subliminal consciousness: F. W. H. Myers’s approach to the problem of survival.
Journal of Parapsychology, vol.58, mar., 1994. 29 Uma outra analogia bastante difundida é a relação da TV com os sinais ou ondas eletromagnéticas que carregam
o som e as imagens. Neste último caso, assim como a TV, o cérebro transmite a mente (a qual seria análoga aos
sinais de som e imagem). Sendo assim, defeitos e avarias no aparelho de TV podem provocar chiados, imagens
distorcidas, perda de cores, etc., da mesma forma que doenças, síndromes e lesões no corpo/cérebro podem afetar
a mente. Porém, a destruição total do aparelho de TV não implica na dissolução dos sinais, semelhantemente, a
extinção corporal não causaria a cessação da mente. 30 Survival of Bodily Death. Esalen Invitational Conference, realizada entre 11 e 16 de fevereiro de 2000.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
34
daquela da personalidade A, mas não vice-versa. Semelhantemente, quando um múltiplo está na frente do espelho, diferentes ‘álteres’ personalidades podem
simultaneamente ter experiências visuais bastante divergentes, por exemplo, vendo
uma jovem loira vs. um velho homem de cabelo negro. No caso ‘Old Stump’, descrito
por James, uma personalidade secundária aparentemente não foi afetada por uma
enfermidade que produzia delírios na personalidade principal. O transe mediúnico da
Sra. Piper (...) ocasionalmente a fazia interagir com três assistentes de uma só vez,
falando com um e escrevendo diferentes mensagens para os outros dois usando ambas
as mãos, tudo ao mesmo tempo. Tais casos parecem envolver, de modo simultâneo,
sistemas importantes do cérebro de maneiras diferentes e potencialmente
incompatíveis.
f) sujeitos prodígios, especialmente savantes31. De uma perspectiva
neurocomputacional, o único caminho para ficar mais lógico e aritmeticamente preciso, desconsiderados elementos individualmente incertos (os neurônios), seria
simplesmente usar mais neurônios, e os poucos estudos existentes destes fenômenos
fascinantes sugerem que prodígios tampouco devem estar usando todos os neurônios
que eles têm, ou fazendo seus cálculos de alguma maneira radicalmente diferente que
as nossas.
g) a unidade da experiência consciente. Os ‘sujeitos’ de nossa vida mental, o fato de
nossos pensamentos, imagens, memórias, etc. serem experimentados como sendo
dirigidos por nós mesmos, operando como agentes unitários, em direção a descrição
de eventos externos ou internos, permanece um mistério fundamental apesar das
discussões recentes do ‘binding problem’.32
Podemos acrescentar ainda casos de sujeitos com capacidades mentais dentro da média,
mas com estruturas anatômicas e funcionais do cérebro bastante comprometidas ou mesmo
ausentes (vide os pacientes de Lorber, 198033). Muito mais poderia ser dito aqui, mas o
mencionado é suficiente para demonstrar que a teoria da transmissão definitivamente é muito
mais do que uma hipótese metafísica.
Embora devamos a William James o enunciamento da teoria da transmissão em sua
histórica apresentação na Conferência em Ingersoll, Human immortality: two supposed
objections to the doctrine (1898), foi Frederic Myers quem desenvolveu mais extensamente as
31 Pessoa intelectualmente limitada, mas que tem uma extraordinária habilidade em uma área, ex., música,
matemática etc. 32 O binding problem é um grande questão da neurobiologia moderna. Na sua vertente sensorial, o exemplo
paradigmático corresponde à questão de como é possível, por exemplo, a cor e forma de um objeto estarem
perceptualmente tão fortemente ligados, quando são processados em locais inteiramente diferentes do cérebro. Na esfera motora o binding problem envolve fundamentalmente a compreensão dos mecanismos de coordenação dos
movimentos do corpo comandados por áreas diferentes do cérebro. 33O neurologista inglês John Lorber descobriu que algumas pessoas com extrema hidrocefalia eram
surpreendentemente normais, em que pese terem o interior da caixa craniana composto de 95% de fluido cérebro-
espinhal. Entre cerca de 60 sujeitos observados nessa situação estava um jovem estudante da Universidade de
Sheffield que, não obstante ter seu crânio preenchido apenas com uma fina camada de células cerebrais, cerca de
um milímetro de espessura, e o resto preenchido com fluído, ostentava um QI de 126, sendo um firstclass degree
em matemática. Sua atividade mental e memória estavam dentro da normalidade ainda que tivesse um cérebro
somente com 5% do tamanho normal.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
35
bases de uma perspectiva da personalidade humana que demanda sua continuidade além da
morte corporal. A percepção de Myers persiste sendo a mais madura e bem desenvolvida
teoria que não apenas suporta, mas exige a sobrevivência psicológica após a morte física.
Simpatizantes com S indubitavelmente deveriam tê-la como ponto de partida, razão pela
qual passo a adotá-la como pedra angular a fim de apresentar uma teoria da sobrevivência
mais robusta, no lugar de fornecer ao leitor uma visão ingênua como a sustentada por
algumas doutrinas e filosofias dogmáticas que me abstenho de mencionar para não
desviarmos do foco.
Em sua monumental obra de dois volumes, Human Personality and its Survival of a
Bodily Death (1903), Myers sistematizou, escorado em inúmeras observações empíricas, que a
personalidade humana se estende muito além da consciência ordinária que normalmente
estamos cientes. Sua teoria apoia-se em cinco características centrais, conforme sintetizadas
pelo filósofo e doutor em psicoterapia Adam Crabtree (2007):
(1) fenômenos como psicografia, histeria, mediunidade, sonhos, hipnotismo e inspiração criativa forçam os investigadores a olhar além das explicações fisiológicas
já disponíveis e colocam centros de consciência, exteriores a consciência primária
(isto é, ao nosso 'eu' ordinário), como as fontes de muitas ações e percepções
complexas e automáticas;
(2) esses centros de consciência devem ser considerados, no mínimo nos casos bem
desenvolvidos, como personalidades ou eus [selves], sendo fontes inteligentes de
pensamentos, sentimentos e ações, com suas próprias cadeias de memória, exibindo
coesividade psicológica. Myers assinalava que esses centros não são necessariamente
meros estados alternados de consciência, mas podem operar concorrentemente com o
eu supraliminar (i.e., nosso eu ordinário, o qual normalmente tomamos como a nossa
identidade pessoal) e com outros eus os quais também funcionam subliminarmente; (3) os centros de consciência subliminares algumas vezes mostram ciência uns dos
outros. Myers também escreveu sobre um tipo de inclusividade na qual centros
subliminares podem em alguns momentos estar cientes dos pensamentos e ações da
consciência primária ou supraliminar, como também o ambiente na qual a consciência
supraliminar existe. Essa ciência, porém, é ordinariamente não recíproca;
(4) Myers reconheceu que existe uma forte ligação entre automatismos e capacidades
psi. Começando com seu estudo sobre psicografias nos anos de 1880, ele demonstrou
que as informações produzidas pelas consciências comunicadoras eram algumas vezes
verídicas e não poderiam ser explicadas por conhecimentos adquiridos através dos
sentidos ou outros meios normais. Evidências de faculdades supernormais foram
descobertas por toda a extensão dos automatismos sensorial (tais como as experiências de aparições de pessoas vivas, mortas e moribundas e o transe mediúnico) e motor
(como a psicografia) que ele estudou;
(5) ele depois hipotetizou um "Eu" ou Self Subliminar que abrange tanto as
consciências supraliminar e subliminares, estando ciente de todas as atividades que
ocorrem em cada uma delas. Esse Eu tem raízes num ambiente transcendental de
algum tipo, responsável por suas capacidades supernormais. Ele provê a unidade
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
36
abrangente da psique, reconciliando seus aspectos "colonial" versus "unitário",
sobrevivendo ao choque da morte física.
Crabtree considera as características de (1) a (4) bem estabilizadas empiricamente. De
fato, estudos sobre automatismo revelam ações inteligentes e com propósitos bem definidos
que escapam a nossa percepção consciente, evidenciando que abaixo de nossa consciência
ordinária múltiplos centros de consciência funcionam concorrentemente sem que tenhamos
qualquer notícia sobre sua operacionalidade ou domínio sobre eles. Myers denominava isso de
o aspecto 'colonial' da psique. A tal respeito, o ponto de vista de Myers encontra coro com
grandes mentes da psicologia, a exemplo de William James, Morton Prince, Thomas
Mitchell e William McDougall.
Ao contrário da concepção freudiana que tomava a consciência como algo unitário e
rejeitava a noção de múltiplos centros de consciência, Myers desenvolveu sua teoria à luz dos
muitos ‘eus’ que habitam um indivíduo, partindo de uma variabilidade de casos sobre
automatismos, desde processos claramente patológicos, tal como a histeria, obsessão (ou ideia
fixa) e distúrbios dissociativos de identidade, a exemplos de fenômenos automáticos que
representam – segundo ele – “um aperfeiçoamento do estado normal, um estado supranormal,
uma fase nova, que se manifesta no decurso da evolução”34. Ele relatou muitos casos acerca
dessas manifestações superiores que escapam do limiar de consciência. Por exemplo, ele via a
inspiração genial, tal como acontece em algumas composições artísticas incontestavelmente
sublimes e na prodigiosidade de raciocínio não-lógico (como alguns dotados calculadores
mentais), como ideias cuja elaboração “a consciência do sujeito não teve participação, mas que
se formaram sozinhas, isto é, independente da vontade, nas regiões profundas [do Ser]” (idem).
Myers assim argumentava que os centros subliminares não são qualitativamente
superiores ou inferiores ao ‘eu’ supraliminar, possuindo o estrato mental abaixo da consciência
ordinária uma variedade enorme de material psicológico, alguns notavelmente sublimes, outros
representativos de uma degenerescência da personalidade, além da existência daqueles
considerados intermediários, nos quais ele classificou os sonhos.
34 Myers, Frederic. A Personalidade Humana. São Paulo: Edigraf, p. 66.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
37
Em algumas ocasiões esses centros subliminares, dotados de percepção, inteligência e
propósito se desenvolvem, agregando outros elementos da vida psicológica do sujeito, tais
como sentimentos, e uma própria cadeia de memórias, de uma modo que uma personalidade
nova, secundária, com um caráter bem definido passa a reivindicar o controle corporal, a
exemplo dos casos de distúrbios dissociativos de identidade (MPD/DID).
Esses centros subliminares, desenvolvidos a ponto de constituírem uma personalidade
autônoma ou não, muitas vezes funcionam como facilitadores para a liberação de habilidades e
capacidades psíquicas latentes, inclusive a psi, tal como diversos casos espontâneos e
experiências as quais relacionam a psi com estados alterados de consciência demonstram (por
exemplo, estudos controlados que atingiram correlações positivas entre o funcionamento psi e
estados alterados de consciência induzidos através da hipnose, da privação sensória ou ganzfeld,
da meditação e relaxamento progressivo, e de estados hipnagógicos e dos sonhos35).
Embora seja uma característica contingente de DID, em muitos casos de múltiplos (e
também de sujeitos hipnóticos) existe uma relação hierárquica entre as personalidades
secundárias e/ou entre personalidades secundárias e a personalidade primária ou original.
Assim a personalidade secundária ‘B’ pode ter ciência dos pensamentos e das ações da
personalidade original ‘A’, mas não ao contrário. Uma personalidade ‘C’ ainda é capaz de
emergir e estar ciente de tudo o que acontece com ‘B’ e ‘A’, e ambas ignorarem o surgimento
de ‘C’. Essa característica hierárquica entre alguns "eus" de um sujeito sugeriu a Myers que na
35 Veja: Honorton, C. (1977). Psi and Internal Attention States. In B. B. Wolman (Ed.), Handbook of
parapsychology (pp. 435–472). New York: Van Nostrand Reinhold; Krippner, Stanley; Ullman, Montague;
Vaughan, Alan (2003). Dream Telepathy: Experiments in Nocturnal Extrasensory Perception (Studies in
Consciousness). Hampton Roads Publishing Company; Radin, Dean (2013). Supernormal. Science, Yoga and the
Evidence for Extraordinary Psychic Abilities. Deepak Chopra Books.
Os conceitos de ‘labilidade’ e ‘inércia’ de William Braud são de grande relevância para clarificar a relação de psi
e estados alterados. Esse psicólogo admite que a meditação, relaxamento progressivo, hipnose e outros estados
alterados foram reconhecidos como facilitadores da performance ESP no laboratório. Tais estados alterados são
caracterizados pela focalização interior, ao passo que há uma redução da atenção aos ambientes físicos e sociais
que rodeiam o indivíduo. Os mundos físico e social têm uma estabilidade e uma capacidade de estruturar e organizar a atenção de uma pessoa. Em contraste, no sonho e na meditação, a mente pode rapidamente pular de
uma ideia para outra. Há uma menor padronização de processos cognitivos nesses estados, sendo menos
estruturados. A imagem é instável, mudando rapidamente. Braud então desenvolveu os conceitos de ‘labilidade’,
que é essa pronta capacidade para mudanças, permitindo uma livre variabilidade de um sistema, e do conceito
oposto de ‘inércia’, ou seja a tendência de resistir a mudanças. Braud argumenta que a probabilidade de um efeito
psi ocorrer é diretamente proporcional a quantidade de labilidade que o cérebro ou a mente do sujeito possui
(Hansen, 2001). Para aprofundar os conceitos, veja Braud, William (2003). Distant Mental Influence: Its
Contributions to Science, Healing, and Human Interactions (Studies in Consciousness). Hampton Roads
Publishing Company.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
38
base da psique humana existe uma individualidade final, um “Eu” o qual representa a unidade
total de um indivíduo. Ele então a chamou de o ‘Eu Subliminar’ [em maiúsculo], reservatório
de todas as manifestações psicológicas de uma pessoa e as quais podem se agregar em torno de
uma cadeia de memória, numa incomensurável quantidade de arranjos, permitindo uma
quantidade quase infinita de padrões de personalidade, da mesma forma que um caleidoscópio
pode ser balançado e dar origem a inúmeros desenhos geométricos. A sua personalidade
ordinária (i.e., aquilo que você reconhece como sendo 'você') é apenas uma das combinações
desses incontáveis elementos psicológicos, a qual certamente surgiu em razão da seleção natural
(e social). Além disso, a personalidade humana é dinâmica, estabelecendo com frequência
novos - e desfazendo antigos - arranjos com os variados elementos psicológicos da psique, tais
como sentimentos, percepções, propósitos, ideias, pensamentos, cadeia de memórias, etc.
Finalmente, com a dissolução corporal, haveria a sobrevivência daquele Eu Subliminar,
mas paralelamente ocorreria a aniquilação da personalidade ordinária a qual normalmente nos
identificamos. Alguns sobrevivencialistas podem exclamar, dizendo que esse não é o tipo de
teoria da sobrevivência a qual desejam dar felicitações, afinal, o que importa – dizem eles – “é
que as ‘minhas’ memórias, emoções e sentimentos, caráter e sentido de identidade sejam
preservados após a morte”. Bem, posso dizer que essa é uma linha de pensamento bastante
ingênua e muito distante do real significado da teoria de Myers. Essa preocupação de
sobrevivencialistas será agora enfrentada na segunda hipótese auxiliar de S, que levanta
questões acerca da comprovação da identidade pessoal dos comunicadores e se é possível
esperar que, após o choque da morte, possamos experimentar um estado de consciência
representativo de um continnum do nosso estado de consciência ordinário, muito embora,
quanto mais vivenciamos uma existência post-mortem, mais chances temos de nos afundar num
estado alternativo de consciência, ainda que isso ocorra gradativamente.
2.2. Comentários a respeitos de S2
S2: que, após a morte, o conjunto das características psicológicas do falecido,
especialmente sua cadeia de memórias, caráter e sentido de identidade, não sofra uma
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
39
modificação simultaneamente radical e inesperada, a fim de que possamos inferir a
sobrevivência de sua personalidade e comprovar sua identidade, i.e., que comunicador e
falecido são numericamente o mesmo indivíduo.
Aqui apresentamos duas questões que precisam ser de antemão resolvidas para a
validade de S. Uma delas procura saber se é possível realizarmos um julgamento de identidade
de modo que pudéssemos satisfatoriamente combinar a personalidade do comunicador com a
de alguém que um dia já vivera aqui na Terra. Se respondermos positivamente, então temos
passe livre para avançarmos sobre as demais discussões acerca da sobrevivência da
personalidade humana após a morte corporal. A resposta negativa, por outro lado, sequer
permite que o assunto da sobrevivência pessoal seja posto em discussão. Chamamos isso de “o
problema da identificação post-mortem”. A outra questão nos faz debater a respeito do impacto
da morte sobre as características psicológicas de uma pessoa até então corporalmente viva. Caso
esse impacto provoque um ‘estado alterado de consciência’ capaz de imediatamente dissolver
a cadeia de memórias e o caráter da personalidade ordinária ou comum, ainda que algo psíquico
sobreviva, não estamos mais falando de sobrevivência 'pessoal'. Vamos batizar isso de o
problema da dissolução da personalidade ordinária.
2.2.1. O problema da identificação post-mortem
Vamos supor que você tenha feito contato com um espírito o qual alega ter sido na vida
corpórea o seu grande amigo ‘Pedro’, recém-falecido. Sobre que bases você pode ter certeza
que aquele espírito, de fato, foi a pessoa ‘Pedro’ a quem você conhecia? Do mesmo modo,
imagine que você faleceu e após a morte recebe algumas impressões telepáticas provindas de
outro espírito o qual alega ter sido seu avô durante a vida física. Como você pode ter certeza
que é seu avô, e não um espírito enganador? Lembre-se, após a morte, perdemos o nosso corpo
com todas as características as quais pudessem nos fazer reconhecíveis, bem como reconhecer
os outros. Como você saberia que aquelas influências telepáticas não vêm de um vigarista?
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
40
Tais indagações tocam numa das questões filosóficas mais intricadas de todos os
tempos: o problema de se estabelecer uma base lógica para julgamentos de identidade. Em sua
excepcional obra Philosophy and the Belief in a Life After Death (1995), o filósofo R. W. K.
Paterson desenvolve com muita acuidade o assunto. Vamos agora resumir alguns pontos desse
autor para os propósitos deste trabalho.
Paterson divide a questão da identidade post-mortem em problemas ontológico e
epistemológico. O primeiro procura saber o que faz um indivíduo único e o quanto ele pode
mudar e se assemelhar a outros indivíduos sem perder sua distinção dos demais. O segundo
preocupa-se em descobrir um critério satisfatório para conseguirmos fazer julgamentos de
identidade.
Sobre o problema ontológico, Paterson inicia elucidando que o conceito de identidade é
compatível com mudanças, mas não mudanças muito drásticas e repentinas. Imagine o que quer
que seja chamado ‘A’ – exemplifica ele. ‘A’ tem cinco características discerníveis (incluindo
sua localização espacial). No tempo t1, ‘A’ tem as características a b c d e; em t2, ‘A’ tem as
características a b c d f; em t3 a b c f g; em t4 a b f g h; em t5 a f g h i. Paterson assim indaga,
‘A’ ainda existe em t5? Ele então diz que a resposta irá depender se estamos trabalhando com o
conceito de identidade absoluta ou de identidade relativa. Sob as bases do primeiro, ‘A’
definitivamente deixou de existir em t5. Porém, alguém pode considerar que ‘A’ não é algo
constante, adstrito a uma característica [no caso, (a)] ou a um conjunto fechado de
características (a b c d e), mas sim algo de características fluídas, o que, no exemplo, cobre
todas as combinações de características listadas nos diferentes tempos e poderia cobrir muitas
outras características não listadas, bastando que as combinações fossem suficientemente
relacionadas. Com isso Paterson deseja mostrar ao leitor que tanto as pequenas mudanças que
ocorrem repentinamente quanto as vastas mudanças que ocorrem gradualmente podem ser
compatíveis, pelo conceito de identidade relativa, com o objeto qualitativamente-alterado (‘A’
em t5) como sendo numericamente o único e o mesmo objeto de antes (‘A’ em t1).
Além disso, Paterson adverte que, no decorrer do tempo, a maioria dos objetos
(inclusive pessoas) muda consideravelmente e, com frequência, muda de forma completa,
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
41
existindo, assim, muito mais uso para o conceito de identidade relativa do que para o de
identidade estrita ou absoluta.
No que diz respeito a questão epistemológica, o autor depois passa a revisar as principais
tentativas para estabilizar os fundamentos lógicos para um julgamento satisfatório da identidade
de uma pessoa, classificando-os em três vertentes de características, a saber: a) físicas (o corpo,
em sua totalidade; o cérebro; a constituição genética e o percurso espaço-temporal); b)
psicológicas (a memória e o caráter); e c) transcendentais (a alma e o ‘Eu’). Por motivos óbvios,
apenas (a) e (b) são bases empíricas para juízos de identidade, pelo menos enquanto estivermos
"do lado de cá"! Por essa razão nossa análise ficará limitada a elas duas.
Pois bem, desde logo é importante destacar que nenhuma das características acima é um
critério necessário para a avaliação da identidade pessoal. Por exemplo, o corpo (a.1), em sua
totalidade (especialmente as características faciais), é a evidência mais convincente de
identidade no caso de pessoas vivas, mas ainda assim uma pessoa continua sendo a mesma,
apesar de seu corpo sofrer muitas mudanças radicais, da infância até a velhice. De fato, tanto
sua aparência quanto sua composição atuais são radicalmente diferentes de quando era recém-
nascido. Ademais, pessoas ainda poderiam sofrer acidentes com danos estéticos avançados,
receber próteses e serem transplantadas, mas ainda assim continuariam a ser numericamente o
mesmo indivíduo.
No caso do cérebro (a.2), o debate mais recente sobre sua relação com a identidade
pessoal lança discussões enigmáticas, por exemplo, se o cérebro de uma pessoa fosse
transplantado para o corpo de outra, as memórias, o caráter e as habilidades do doador
acompanhariam o cérebro? E se o cérebro fosse dividido e diferentes partes dele fossem
transplantadas para vários corpos? Cada corpo iria receber uma parcela das memórias,
características e habilidades do doador? Como nós faríamos julgamentos de identidade sobre
isso? Paterson então chama atenção para o que já sabemos, ou seja, que interferências massivas
na integridade de nossos cérebros produzem massivas alterações mentais, porém, essas
alterações mentais são contingentes, e não consequências necessárias da interferência física.
Além disso, Paterson argumenta que, se nós rejeitamos a identificação de uma pessoa com o
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
42
corpo, na sua totalidade, também devemos rejeitar identificá-la com qualquer parte dele,
incluindo o cérebro.
Já na hipótese da constituição genética (a.3) ser um critério necessário para juízos de
identificação, basta mencionar que todas as pessoas têm características significantes as quais
não são herdadas, mas adquiridas como resultado da experiência de vida. Além do mais, gêmeos
idênticos são indivíduos distintos, apesar de possuírem qualitativamente genes idênticos.
Quanto ao percurso espaço-temporal (a.4), também é um fato contingente, e não
necessário para a identidade pessoal. Podemos facilmente imaginar alguém desaparecer de um
lugar e reaparecer em outro sem deixar de ser ele mesmo (como Paterson lembra, físicos
quânticos já argumentam que isso acontece com partículas). Além disso, nós não seguimos
todas as posições espaço-temporais das outras pessoas para termos certeza que estamos lidando
com elas, de modo que essa característica não é um critério utilizado por nós no cotidiano, não
existindo, portanto, o menor sentido em exigi-la para os casos de identificação post-mortem.
Sobre os elementos psicológicos, Paterson argumenta que a memória (b.1) também não
pode ser um critério necessário para o julgamento de identidade, porque existem muitas
experiências as quais somos incapazes de lembrar e, paradoxalmente, casos em que parecemos
recordar de algo que na realidade nunca vivenciamos.
Já o caráter (b.2), i.e., aquele conjunto de hábitos, gostos, crenças, sentimentos, valores,
atitudes e habilidades que torna o comportamento de um indivíduo comparativamente estável
e previsível, fazendo-o um objeto de interesse e afeição (ou indiferença ou antipatia) para
aqueles que o cercam, igualmente não merece melhor sorte. Paterson destaca que podem existir
muitas pessoas com caráter similar, além de ser possível que existam duas pessoas com caráter
inteiramente combinado. Para piorar, os hábitos e gostos das pessoas podem ser alterados; elas
podem abraçar diferentes crenças e adotar diferentes valores no decorrer do tempo; e suas
habilidades podem com o tempo atrofiar e serem substituídas por habilidades completamente
novas.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
43
Paterson escreve muitos outros argumentos para rejeitar cada uma dessas características
(físicas e psicológicas) como critérios necessários e suficientes para juízos de identidade; em
outras palavras, todas elas são contingentes. Mas, para encurtamos a história, o ponto que desejo
destacar é o de que pessoas são, acima de tudo, marcadas por características frágeis e flutuantes
e, por essa razão, temos que nos contentar com um conceito relativo de identidade (que permite
mudanças (a) lentas e repentinas ou (b) vastas e graduais). Claro, podemos aumentar a
segurança na identificação ao combinarmos todas as características acima e, de fato, é isso que
fazemos habitualmente sem qualquer esforço. É por tal razão que identificar pessoas vivas é
bem mais fácil do que confirmar a identidade de um espírito que se comunica através de um
médium, afinal [nós, vivos] temos características adicionais (as físicas) para aumentar a
segurança de nosso julgamento. Porém, em muitas ocasiões do cotidiano fazemos juízos de
identidade automaticamente e de modo bem natural tão somente com base nas características
psicológicas de um indivíduo. Por exemplo, nas correspondências epistolares e eletrônicas e
nas conversas telefônicas você trata com a pessoa anunciada tão somente com base nas
memórias (ou seja, nas informações que ela partilha com você e que lhe sugerem ser quem diz)
e no caráter dela (hábitos de escrita, coloquialismo de linguagem ou tom de voz). Em tais casos,
há um juízo de identidade, a despeito de você não ter acesso ao corpo (especificamente a
aparência) do remetente da missiva ou do interlocutor.
Em What Would Constitute Conclusive Evidence of Survival After Death?36 (1961), o
falecido e renomado filósofo Curt. J. Ducasse faz apropriado paralelo entre a identificação de
pessoas vivas (com base somente em elementos psicológicos) e mortas que se manifestam
através de médiuns. Vejamos:
No curso de uma conferência realizada pelo autor [Ducasse] alguns anos atrás numa
reunião da American Society for Psychical Research, o público foi convidado a juntar-se na seguinte experiência. Vamos supor que eles foram informados que um amigo
nosso, John Doe, estava a bordo de um avião que colidiu no oceano e que nenhum
sobrevivente foi encontrado; porém, algum tempo depois, nossos telefones tocam e
(a) uma voz a qual reconhecemos como John Doe é ouvida e uma conversação com
ele nos convence que o locutor seja realmente John Doe. Ou alternativamente, vamos
supor (b) que a voz escutada não é a de John Doe, mas sim a de alguma outra pessoa
que aparentemente repassa as palavras dele para nós e vice-versa; e que o diálogo,
portanto, nos convence de que a pessoa com quem estamos conversando através
daquele intermediário é John Doe.
36 Journal of the Society for Psychical Research [41,1961-62, pp. 411-6.]
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
44
A questão pedida ao público a considerar-se foi, qual o tipo, em um ou outro caso, do conteúdo daquele diálogo que nos faria considerar como certo ou altamente provável
que nosso interlocutor realmente fosse John Doe?
Obviamente, as situações imaginadas (a) e (b) são, ao todo, noções básicas, análogas aos casos em que uma pessoa está conversando com o pretenso espírito sobrevivente
de um amigo falecido que no caso (a) 'controla' temporariamente, pelo menos, partes
do corpo do médium, isto é, usa os seus órgãos vocais e audíveis ou escreve à mão;
ou então que, no caso (b), usa o médium apenas como intermediário, isto é, 'fala' com
ele telepaticamente e 'escuta', também telepaticamente, o que o médium ouve quando
nós falamos.
Desse modo, como os casos de John Doe e aquele do diálogo através de um médium
são completamente análogos, o tipo especial do conteúdo do diálogo que seria
adequado para provar ou fazer positivamente provável que John Doe tenha
sobrevivido ao impacto seria igualmente adequado para provar ou fazer positivamente
provável que a mente de nosso amigo falecido sobreviveu à morte de seu corpo.
Mas factualmente, considerando que os comunicadores são quem alegam ter sido, que
evidências de identidade eles nos fornecem através dos médiuns? Bem, especialmente pela
mediunidade de transe, interessantes pistas de identificação podem ser apresentadas e as quais,
quando combinadas, dão excelente margem de certeza no julgamento de identidade. Ainda que
o comunicador seja uma fase ou elemento da vida psicológica do médium, com tais pistas
podemos, de fato, identificar qual falecido a personalidade secundária está representando.
Assim, é frequente, por exemplo, que as informações comunicadas pelo médium
venham do ponto de vista do morto, desse modo poderíamos dizer que são as memórias do
desencarnado (especialmente aquelas partilhadas com seus parentes e conhecidos vivos) a
característica que habitualmente mais se presta a provar a identidade post-mortem. Além disso,
médiuns não raro exibem alguns elementos do caráter do falecido. Nos melhores momentos, o
caráter inteiro parece se manifestar, o que contribui massivamente para um juízo de identidade.
Médiuns de transe também têm uma faculdade clarividente e em muitos casos eles descrevem
alguns detalhes da aparência corporal a qual o pretenso comunicador tinha no último estágio da
vida física.
A par disso tudo, podemos resumir os seguintes pontos sobre a identificação de pessoas
falecidas:
a) Devemos nos satisfazer com um conceito relativo de
identidade (tanto para coisas quanto para pessoas vivas ou mortas), de
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
45
modo a permitir que um indivíduo permaneça único e numericamente
o mesmo através do tempo, a despeito de constantes modificações em
suas características;
b) Essas modificações podem ser radicais, desde que
ocorram gradualmente no tempo e que permaneça havendo uma
relação significativa nas combinações de suas características;
c) Do ponto de vista lógico, não existe uma característica
humana necessária e suficiente para julgamentos de identidade, de
modo que o conceito de identidade pessoal é uma matéria de grau, e
não de certo ou errado;
d) Em razão de (c), julgamentos de identidade com base
somente em elementos psicológicos é perfeitamente viável, o que é feito
por nós habitualmente em determinadas ocasiões de nosso dia-a-dia;
e) Como consequência de (d), devemos também admitir a
possibilidade de juízos razoavelmente seguros de identificação post-
mortem efetuados tão somente com suporte nas características
psicológicas do falecido, de modo que seria razoavelmente aceitável
concluir, a depender das evidências de um caso, que o comunicador e
o falecido sejam numericamente o mesmo indivíduo.
2.2.2. O problema da dissolução da personalidade ordinária
Já mencionamos que a personalidade ordinária é apenas uma das combinações dos
incontáveis elementos psicológicos que povoam a psique, unidos de uma forma razoavelmente
estável por cadeias de memória; a nossa personalidade comum reflete um padrão como resposta
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
46
as influências ambientais (incluindo de nossos próprios corpos físicos) na luta para nossa
autopreservação terrena. Esse padrão o qual consideramos como o nosso ‘normal estado de
consciência’ é apenas um dos quase infinitos padrões de personalidade que poderiam ser
modulados, porém, em face da seleção natural imposta pelo meio ambiente no qual estamos
inseridos, além das influências interoceptivas de nossos próprios corpos físicos, esse ‘estado
normal’ foi aquele que simplesmente prevaleceu. De modo semelhante, o psicólogo Charles
Tart (1997)37 comenta sobre essa característica semi-arbitrária de nosso estado ordinário de
consciência:
Durante o nosso crescimento e o nosso processo de integração à cultura, nós desenvolvemos um número muito grande de hábitos: modos rotineiros de perceber,
de pensar, de sentir e de agir. Esses hábitos funcionam automaticamente em nosso
meio ambiente ordinário de modo a constituir um sistema – o padrão a que damos o
nome de ‘consciência ordinária’ – que é estabilizado, mantendo automaticamente sua
integridade através de circunstâncias variáveis. Esquecendo o trabalho que nos custou, quando crianças, a construção desse sistema, e a relatividade cultural e a arbitrariedade
de grande parte do mesmo, nós tomamos por certo esse sistema e não colocamos em
dúvida o caráter ‘ordinário’ ou ‘normal’ dessa consciência.
Tart argumenta que alguns estados alterados de consciência (tal como o sonho, estados
hipnagógicos, o transe, os decorrentes de abalos emocionais e os induzidos por práticas de
relaxamento profundo, isolamento sensorial, meditação, hipnóticos, etc.) podem abrir as portas
para outros aspectos da realidade não acessíveis pelo nosso estado “normal” de consciência.
Sustenta, assim, que alguns conhecimentos são específicos-de-estado, somente acessíveis se
estivermos num determinado estado de consciência. Propõe então que, para compreender o que
aconteceria com nossa consciência após a morte, deveríamos investigar mais o que acontece ao
funcionamento mental em vida quando nossa capacidade de perceber o corpo e o ambiente o
qual nos cerca é severamente reduzida ou temporariamente eliminada, tal como nos sonhos, nos
estudos de privação sensória e na intoxicação cetamínica. Tart ainda nos lembra que,
[...]Em nosso estado ordinário de consciência, teremos nossa personalidade ordinária.
No entanto, se nosso estado de consciência for drasticamente alterado o mesmo acontecerá com nossa personalidade. E se o estado post-mortem for particularmente
favorável ao aparecimento de estados alterados, neste caso, mesmo se alguma coisa
sobreviver após à morte, não será provavelmente a nossa personalidade ordinária,
nosso sentido familiar do ‘Eu’ (idem).
37 In Doore, Gary. Explorações Contemporâneas da Vida Depois da Morte. São Paulo: Cultrix, 10ª ed.., p. 137.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
47
Desse forma, se nosso estado de consciência post-mortem realmente guardar grandes
semelhanças com nossa consciência onírica (ou aquelas resultantes de outros estados alterados
análogos), fica difícil sustentar a sobrevivência de nossa personalidade ordinária após a morte,
pois nos sonhos a função da memória (agimos como ‘perceber’, e não como ‘lembrar’), nosso
sentido de identidade, nossas emoções e processos de avaliação atuam de maneiras bastante
diferentes de quando estamos despertos.
Pois bem, mas vamos agora juntar os fios da meada, abordando o presente problema da
dissolução de nosso 'Eu' habitual sob a perspectiva de Frederic Myers.
Quando Myers desenvolveu sua teoria da personalidade, ele estava bastante ciente de
tudo isso. Na sua ótica, a personalidade ordinária (da mesma forma como os muitos ‘eus’
subliminares, a exemplo dos casos psicopatológicos de múltiplos, de transe ou hipnoticamente
induzidos) possui uma existência efêmera e transitória. Ela é apenas uma das combinações
possíveis do quase infinito número de arranjos que podem ser formados a partir dos elementos
psicológicos oriundos do reservatório de nossa unidade psíquica a qual ele denominou de ‘Eu
Subliminar’.
Frise-se que, para Myers, o Eu Subliminar não é um segundo ‘eu’ funcionando
inconsciente e paralelamente ao nosso ‘eu’ familiar, i.e., a nossa consciência ordinária. O Eu
Subliminar representa a individualidade total de um Ser; individualidade essa que pode se
expressar de inúmeras formas, e a nossa personalidade ordinária é apenas uma delas. Myers
chama os tipos de expressão do Eu Subliminar de “manifestações fenomenais”. Dependendo
do nosso estado de consciência, resultante das influências a que estamos submetidos, diferentes
manifestações fenomenais podem ocorrer, inclusive aquelas de casos psicopatológicos de
personalidades concorrentes, quando mais de uma manifestação acontece simultaneamente.
Admitindo, para fim de argumento a validade de S, com a morte, o Eu Subliminar, isto
é, nossa individualidade, passa a estar submetida a um novo cenário fenomenológico, com a
retirada dos influenciadores habituais (os ambientes natural e social que atualmente nos cercam
e, principalmente, a interferência dos nossos corpos físicos). Nessa nova realidade, é bastante
presumível que nosso Eu Subliminar, i.e., nossa individualidade total e final, passe a expressar-
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
48
se de uma forma bastante diferente da atual, logo, assumindo uma nova personalidade; e o que
hoje consideramos ‘estado de consciência normal’, provavelmente será encarado, “do outro
lado”, como um estado alternativo e até mesmo bizarro.
Agora, quando avaliamos o problema da identidade pessoal, vimos que pessoas são
marcadas por características frágeis e flutuantes; e que podemos razoavelmente considerar
alguém como sendo numericamente o mesmo indivíduo ainda quando vastas modificações de
suas características acontecem, porém, desde que ocorram de forma gradual. Do ponto de vista
lógico, não existe nada a impedir que, após a morte, nossa personalidade seja modificada
gradativamente, adaptando-se de forma paulatina a nova realidade (ao contrário de uma
adaptação brusca e inesperada), além de também mantermos preservada a nossa cadeia de
memórias e o sentido de identidade.
Além disso, sob a perspectiva empírica, existem estados alterados nos quais a
capacidade de perceber o corpo e o ambiente imediato é severamente reduzida ou eliminada,
porém, ainda assim, o ‘eu’ resultante mantém muitas características e, principalmente, o sentido
de identidade e a cadeia de memórias da personalidade ordinária. Podemos mencionar casos de
experiência de quase morte. Relatos de EQMs evidenciam, com frequência, alterações na
percepção (encontrar uma “Luz”, entrar num túnel ou vazio escuro, experimentar estar fora-do-
corpo, etc.) e de sentimento (ex., experimentar paz ou alegria); mas os sentimentos dirigidos a
pessoas conhecidas (familiares, amigos, etc.), o sentido de identidade [durante a experiência, a
consciência experienciadora reconhece-se como sendo aquele sujeito o qual se encontra (ou
acredita se encontrar) no limiar da morte] e a cadeia de memórias ficam preservados, como
sugerem o fenômeno da Life review e o reconhecimento de pessoas durante a experiência [para
uma revisão geral, veja, por exemplo, Holden, Greyson e Debbie, 200938; e Carter, 201039). Os
casos stevensonianos de crianças que alegam recordar vidas passadas, por sua vez, indiciam a
persistência da memória, do sentido de identidade e de alguns elementos do caráter entre as
vidas atual e prévia, logo, com muito mais razão deveríamos esperar que nossa cadeia de
memórias, sentido de identidade e caráter ficassem preservados após o falecimento. O valor de
38 Holden, Janice Miner; Greyson, Bruce; e James, Debbie (2009). The Handbook of Near-Death Experiences:
Thirty Years of Investigation. Praeger. 39 Carter, Chris (2010). Science and the Near-Death Experience: How Consciousness Survives Death. Inner
Traditions.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
49
face dos casos mediúnicos também indica que a personalidade post-mortem mantém as
lembranças, o sentido de identidade (comunicador transmite as informações do ‘ponto de vista’
da pessoa falecida) e caráter da personalidade pre-mortem.
Todos esses exemplos fortalecem a hipótese de inclusividade sustentada por Myers,
quando, sob determinadas ocasiões, álteres personalidades podem eclodir, absorvendo
elementos da vida psicológica da personalidade comum. Contudo, como o choque da morte
implica, sob a perspectiva de S, a continuar termos experiências, porém sem mais as influências
do corpo físico e do nosso atual ambiente imediato, é de se acreditar, tal como nas situações
traumáticas que eventualmente acontecem em nossa existência terrena, que pessoas reajam
heterogeneamente a essa mudança; logo, não deveríamos esperar um padrão de características
psicológicas sendo genericamente absorvido pelo ‘eu’ resultante à morte. Por exemplo, tal
como nos casos psicopatológicos de múltiplos, uma álter personalidade pode conhecer dos
sentimentos, pensamentos e das ações da personalidade principal, porém não tomá-los como
‘seus próprios’ (vide o clássico relato de Morton Prince sobre a Sra. Beauchamp). Aqui não
existe a permanência do sentido de identidade. Analogamente, o trauma da morte talvez nos
faça enxergar o ‘eu’ atual como um outro indivíduo; ou talvez então mantenhamos o sentido de
identidade, mas sofreremos parcialmente de alguma barreira amnésica; ou ainda que nada disso
corra, talvez apenas experimentemos uma mudança relativa de caráter, nutrindo novos
sentimentos, olhando com indiferença nossa vida terrena, etc.
Enfim, ainda que a morte implique na substituição da personalidade ordinária como
resposta a uma nova realidade existencial, há evidências as quais, no mínimo, sinalizam que
essa modificação, ainda que se torne radical, não ocorra de forma abrupta e inesperada para
todas as pessoas.
2.3. Comentários acerca de S3
S3: que alguns falecidos tenham interesse, desejo e motivação na comunicação com os
vivos.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
50
Para o estabelecimento de uma comunicação é necessário que o receptor atenda o
chamado do emissor e, especificamente, em nosso cenário, que o falecido atenda à invocação
ocorrida em sessões mediúnicas (ou se intrometa, no caso de comunicadores “não
convidados”). Nesse processo pode acontecer que algumas pessoas mortas tenham interesse e
motivação suficientes para estabelecer contato e outras não e, nesse último caso, não teríamos
qualquer evidência de personalidades falecidas “invadindo” nosso mundo.
É possível também que sujeitos com grandes razões para estabelecer contato post-
mortem não o façam. Por exemplo, poderia ser esperado que alguém bastante interessado numa
“vida futura”, recém falecido, com fortes vínculos sentimentais com algumas pessoas vivas e
que tenha importantes negócios inacabados, mantivesse, após a morte, o interesse e motivação
em estabelecer contato mediúnico40. Porém, dentro da perspectiva da teoria da transmissão da
consciência, vimos ser bem plausível que o choque da morte provoque mudanças profundas na
personalidade. Uma consequência dessa alteração no caráter é que ficaria difícil prever que o
“Eu” resultante persistiria interessado em estabelecer comunicação com os vivos. Com enfoque
nisso, poderíamos, a grosso modo, esboçar os seguintes cenários hipotéticos a respeito do
interesse de falecidos em se comunicarem com os vivos, convindo pontuar que a prevalência
de algum deles não faz um caso contra S41:
40 Em Aristocracy of the Dead: New Findings in Postmortem Survival, Arthur S. Berger, faz uma análise detalhada
de “12 casos de comunicação ostensiva a fim de estabelecer se a evidência persuasiva de continuação da identidade
pessoal tem sido ou não fornecida. Seis sujeitos vêm de cenários diversos, enquanto os outros seis foram
pesquisadores especialistas os quais poderiam ter tido boa razão para desejarem se comunicar: os Sidgwicks
(Henry, 1, Eleanor 4), Myers (1), Gurney (1), Podmore (4), e James (4). Destaca-se que estas pessoas foram
também altamente evidenciais (1) ou não (4)”. O autor faz “uma análise diligente de fatores que poderiam
favorecer um bom Comunicador sob as três classificações gerais de dados pessoais; circunstâncias relativas à
morte; e circunstâncias relativas a comunicação póstuma. Os 12 sujeitos são então analisados biograficamente
numa tentativa de isolar variáveis-chaves que favorecem um bom Comunicador numa amostra pequena. 23
possíveis fatores significativos emergiram, os quais por sua vez foram testados contra uma amostra de 100 casos
da Society for Psychical Research e American Society for Psychical Research; 5 destes foram confirmados, 13 falsificados e 5 inconclusivos. Assim este tratamento exaustivo rende o seguinte esboço do comunicador ideal:
Um homem que persiste na busca de seus interesses e esforços, ele é um artista ou tem uma aptidão para a poesia
ou para música. Sua atitude em direção à possibilidade da sobrevivência humana depois da morte é fortemente
colorida com ceticismo ou dúvida. Ao falecer, sua morte será dolorosa ou desagradável, e ele morrerá deixando
seu trabalho inacabado. Nenhuma tentativa deveria ser feita a sua pessoa até pelo menos dois dias decorridos após
a sua morte. Quaisquer esforços para comunicação com ele deveriam ser feitos na casa de um médium que lhe era
estranho e que fala o mesmo idioma” (resenha de David Lorimer sobe a obra Aristocracy of the Dead: New
Findings in Postmortem Survival, de Arthur Berger. McFarland and Co., London, 1987. xi + 209 pp.). 41 Por exemplo, encontrar de uma maneira estatisticamente significativa mais casos C e D do que A e B.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
51
Cenários hipotéticos Personalidade pre-
mortem
Personalidade post-
mortem
Interesse na
Comunicação
Falecido A
Psicodinâmica favorável à comunicação mediúnica,
com interesses sobre o
assunto, além de elos
sentimentais e negócios
inacabados envolvendo as
pessoas mais queridas as
quais “deixou para trás”.
O “Eu” resultante à morte partilha dos aspectos
psicológicos que
fundamentam o interesse e a
motivação da personalidade
pre-mortem.
Sim
Falecido B Idem
O “Eu” resultante à morte
absorve todas as lembranças
da vida terrena, conhece o
caráter que tinha antes do
falecimento, porém tem
outra postura emocional, passando a ficar indiferente
aos acontecimentos e
pessoas na Terra. Por
exemplo, passa a aderir a um
novo sistema de crenças (ou
tem acesso a novas
informações) que deflaciona
o interesse na comunicação.
Não
Falecido C
Psicodinâmica
desfavorável à
comunicação mediúnica,
sem interesses sobre o assunto, desgosto pela
vida, depressivo, sem
vínculos sentimentais ou
assuntos inacabados. A
extinção da consciência
seria, para ele, até mesmo
um alívio.
O “Eu” resultante à morte
partilha dos aspectos
psicológicos que
fundamentam o desinteresse da personalidade pre-
mortem. Não
Falecido D Idem
O “Eu” resultante à morte
absorve todas as lembranças
da vida terrena, conhece o
caráter que tinha antes do
falecimento, porém tem outra postura emocional e,
exemplificadamente,
promove uma mudança
radical e direcionada à Vida,
passando a querer propagar
para outras pessoas que a
morte, longe de ser o fim, é
um “Portal” para novas
oportunidades e
crescimento pessoal.
Sim
Um outro importante assunto relacionado à motivação é o seguinte: vejo com bastante
desconfiança casos em que o médium quase sempre consegue estabelecer contato com o
falecido pretendido pela assistência. O problema a que me refiro aqui não é uma questão de
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
52
fraude, por essa razão peço ao leitor hipoteticamente considerar que o médium em questão
efetivamente adquire informações anomalamente. Serei mais claro.
Neste exato momento, dia 05/10, acabei de entrar no site de estatística mundial
worldmeters e observei que, apenas neste ano de 2014, já ocorreram mais de 43 milhões de
mortes. Imagino então ser esperado que, em torno do médium, pelo menos algumas dezenas de
desencarnados devessem orbitar, de modo que muitas comunicações mediúnicas não solicitadas
fossem estabelecidas. De fato, na história da pesquisa psíquica existem muitos exemplos de
personalidades “não convidadas” as quais aparecem no meio da sessão e, na maior parte do
tempo, não é conseguido fazer uma identificação de quem elas teriam sido (para uma revisão
de uma série de casos assim, veja Gauld, 1971) 42. Esse tipo de comunicador inesperado, que
“cai” no meio da sessão, tem sido conhecido como comunicadores “drop-in”. Casos como tais
(ex., Runolfur Runolfsson/Runki, 197543), quando conseguem fornecer material suficiente para
identificação, fortalecem bastante a hipótese S porque demonstram que a motivação e o
interesse na comunicação são mais perfeitamente atribuíveis ao falecido do que ao médium. De
fato, o problema da motivação é algo central na discussão das hipótese aqui rivalizadas, porque
essa característica psicológica (“de se sentir motivado para”) pode orientar o funcionamento psi
em direção ao objeto da motivação, tal como demonstram a evidência anedótica e experimental
de psi. Assim, médiuns poderiam se sentir motivados de modo que sua PES ficasse orientada
em torno das informações relacionadas ao falecido que os assistentes suplicam mensagens.
Dessa forma, processos telepáticos entre vivos e incursões clarividentes com foco em
documentos sobre o falecido poderiam acontecer, abastecendo o médium com os dados
necessários para a dramatização de um contato post-mortem. Médiuns são pessoas, logo, têm
seus desejos e necessidades. Muitos deles assumem crenças religiosas, aderindo a
doutrinas que não apenas pressupõem a vida após a morte, mas estimulam a comunicação
com os mortos.
Para ilustrar melhor esse ponto, considere o seguinte exemplo hipotético. Digamos que
uma pessoa, a qual chamaremos de “João”, passe a frequentar reuniões doutrinárias de seu
42 A series of ‘drop in’ communicators. Proceedings of the Society for Psychical Research [Volume 55, parte 204,
julho de 1971]. 43 The Runki missing leg case. Haraldsson E. and Stevenson, I, 1975. A Communicator of the Drop-in Type in
Iceland: the case of Runolfur Runolfsson. JASPR 69. 33-59.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
53
grupo espiritualista, como forma de se confortar diante dos reveses da vida ou para superar a
perda de sua falecida e querida mãe. João então acata todo o dogmatismo decorrente e observa
que alguns de seus “irmãos de fé” tentam entrar em contato com entes espirituais. Não tarda
João também tenta. Mas João possui uma disposição à PES que outras pessoas aparentemente
não têm (como qualquer habilidade humana, PES é manifestada heterogeneamente na
população, assim como nem todos podem dirigir igual Ayrton Senna ou jogar futebol à la Pelé).
Dessa forma, João, assumindo que a comunicação post-mortem é um fenômeno real, possui
necessidades e desejos que acabam por orientar sua PES em torno de informações sobre pessoas
falecidas. Digamos que João é como o “Pelé do psiquismo”, logo, nos melhores momentos, a
PES dele se comporta de maneira estável em níveis bastante elevados de eficiência, quando
muitas informações verídicas sobre uma pessoa falecida são obtidas extrassensorialmente, da
mesma forma que Pelé fazia “mágica” dentro de campo, desconcertando seus adversários. Mas
mesmo Pelé tinha seus dias difíceis, de baixo rendimento, quando nada dava certo. João então
também tem seus dias de eclipse, quando um apagão de suas habilidades acontece. Ele não
consegue manifestar nada de valor, mas, no lugar de ficar calado, parece sofrer de uma
compulsão em dizer algo, talvez para preencher às expectativas dos consulentes que esperam
ansiosamente alguma mensagem de um falecido ente querido. Então João diz, mas nada do que
é mencionado nesses dias de apagão tem valor.
Dentro desse hipotético cenário, o qual não parece ficar distanciado da realidade de
muitos médiuns, não existe garantia nenhuma que, naqueles “melhores momentos”, as
informações obtidas anomalamente são provenientes da mente de pessoas mortas. De fato,
podemos dizer que João tem necessidades não apenas de satisfazer a carência sentimental dos
consulentes, mas também desejo de reforçar seus sistema de crença numa “vida futura”. Tudo
isso fica ainda mais evidente quando no passado do médium existe um evento traumático, como
a perda de alguém muito querido, semelhante ao caso de João. Assim, toda vez que os
consulentes saem satisfeitos da sessão, João também se realiza, ficando cada vez mais confiante
de que realmente consegue “falar com os mortos”, logo, confiante que sua muito amada e
falecida mãezinha continua viva, num reino espiritual de renovação, para onde vão seus amigos
e outros parentes também muito amados. Porém, tudo o que João faz (embora não esteja ciente
disso) é usar PES para adquirir informações da mente dos vivos (via telepatia) ou de registros
físicos (por clarividência). O aspecto dramático de como as informações são passadas, “como
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
54
se” viessem dos mortos, longe de ser algo irrelevante, reflete a crença, desejo ou a necessidade
de João na comunicação com os mortos. Algumas vezes esses fatores psicológicos, reforçados
por influências socioculturais, podem se desenvolver subliminarmente, fora do controle da
camada de consciência ordinária, dando ensejo a comportamentos automáticos inteligentes e
com pretensos propósitos de trazer mensagens espirituais. Em alguns casos, uma personalidade
nova pode eclodir, com sua própria cadeia de memórias, pensamentos e caráter, alegando ser
um ente espiritual. Agora, todo esse contexto de comunicação post-mortem fornece a motivação
exata, dentro da psicodinâmica de João, para manifestar sua PES. Talvez nenhum outro
contexto, que não o espiritualista, iria servir de catalisador suficiente para uma PES altamente
refinada.
Essas linhas acima são muito importantes para analisarmos o aspecto motivacional em
CMs, até porque interesses e necessidades, ainda que não conscientes, são atributos psi-
condutivos que podem servir para guiar a PES em torno de algum evento ou informação (para
mais detalhes veja a seção ao lado, “teorizando psi”, especificamente sobre uma teoria
psicológica da psi. Observe sobre o modelo de Rex G. Stanford, PMIR – Psi Mediated
Instrumental Response). Agora, deixo claro que não pretendo generalizar o caso hipotético de
João para todos os episódios de aparente comunicação com os mortos. Na realidade, quando
abordarmos as características da hipótese LAP, veremos que a suposição de personificação
inconsciente por parte do médium encontra muitas dificuldades para ser credível.
Seja como for, devemos ficar de mente aberta para o fato de que, numa sessão
mediúnica, pode acontecer que as necessidades e as motivações do médium forjem a aparência
de sobrevivência de um caso, quando na verdade todas as informações anômalas foram
adquiridas a partir de fontes mundanas. Daí a importância de comunicadores drop-in, porque
eles deslocam a motivação e o interesse para a comunicação em direção à personalidade intrusa,
dificultando uma explicação em termos de PES do médium orientada na satisfação de suas
necessidades psicológicas. Comunicadores drop-in são muito difíceis de terem sua identidade
confirmada, frequentemente aparecem numa única sessão para nunca mais voltar, não havendo
muito razão para que a PES do médium esteja orientada em direção a pessoas falecidas
desconhecidas de todos, cuja comprovação da identidade dificilmente irá ocorrer e sequer
interpeladas a manifestarem-se.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
55
Para concluir um ponto lançado linhas atrás, penso que na vida de um médium genuíno,
e considerando o gigantesco número de pessoas desencarnadas, uma boa parte dos
comunicadores deveria ser do tipo drop-in; logo, desconfie daqueles médiuns os quais sempre
manifestam o morto convocado. Pessoas falecidas não estão servindo às forças armadas e nem
são eleitores obrigatórios. A interpelação por comunicação não é algo compulsório, inexistindo
muito fundamento de o porquê os interpelados deveriam aparecer com maior frequência em
relação aos “não convidados”.
2.4. Comentários acerca de S4
S4: que algumas pessoas falecidas tenham percepção extrassensorial (PES) para que
possam se comunicar com o médium, influenciando-o telepaticamente; ou então manipulando
seu sistema motor, via psicocinese (PK), a fim de expressar mais informações, além de exibir
as habilidades e maneirismos que tinham em vida. Falecidos também devem usar PES para
tomar ciência de acontecimentos que ocorreram após a morte ou mesmo cognoscer, por meios
telepáticos, os pensamentos do médium, dos assistentes e de seus entes queridos ainda vivos;
Se pelo menos alguns dos comunicadores são realmente mentes desencarnadas, eles
devem usar PES sub-repticiamente para tomar conhecimento dos pensamentos do médium, do
contrário não conseguiriam responder os questionamentos dos consulentes durante as sessões.
Por exemplo, no caso de psicografia relatado por G. N. M. Tyrrell (1939)44 à Society for
Psychical Research (SPR), que de nenhuma maneira difere do padrão, o controle (“irmão D”)
da médium apresentou um comunicador drop-in bastante responsivo, observe-se:
Comunicador D.: [...] eu quero apresentar um homem que encontrei aqui. Ele não está muito feliz porque, depois de ter feito algumas coisas boas em sua vida, ele fez
algo ruim bem no fim dela, ele agora se sente infeliz entre os muitos que, depois de
uma vida comum, voltam ao ponto de partida no final. Ele está muito interessado
nisto, ele está aqui esperando.
44 Volume 31, 1939-1940. Julho de 1939, p. 91-95.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
56
Outra escrita. O medo me levou a fazer uma coisa muito perversa pela qual não posso me perdoar e isso não é aquilo o que o mundo pensou sobre eu ter perdido minha
oportunidade.
(Qual é seu nome?) Whiteman. Eu estive aqui há muitos anos atrás. [...]
(Quando você morreu?) Eu morri há muito tempo. Penso que faz uns 50 anos.
(Nós passamos por seu túmulo a esta tarde em Holywell?) Eu não tenho nenhum
túmulo.
(Você morreu na batalha então?) Não tivesse morrido lutando eu seria mais feliz
agora.
(Você está infeliz por cinquenta anos?) Não, mas desde que presenciei tantas mortes
esplêndidas as quais me lembro.
(Qual o seu nome?) Whiteman, John Whiteman.
(O que você fez?) Não tive sucesso, mas eu teria me salvado às custas de outros.
Todos nós objetivamos isso, mas nenhum escapou.
(Escapou do que?) Morte. (Como você encontrou o D.?) No campo da batalha eu o vi morrer e desde então o
vejo ajudar os homens a morrer (nós tentamos confortá-los). Sim, é isso que ele está
me dizendo, vir e ajudar, não ficar preso a coisas que aconteceram há 50 anos atrás,
mas eu continuo cheio de remorso e mostrei aos outros que eu mesmo não podia
instruir.
(Novamente tentamos encorajá-lo) É isso o que ele diz.
(Qual era seu trabalho aqui?) Eu ensinei a Palavra.
(Um clérigo?) Sim.
(Onde era seu trabalho?) O nome foi perdido, isso foi muito tempo atrás.
(Você era casado?) Ai de mim!
(Nós podemos fazer alguma coisa por você?) Eu apenas acabei de começar o que faço. Ajude-me por oração, isso é tudo.
(Diga-nos onde você morreu) (escrito de maneira muito fraca) L O N D R E S.
Considerando que o falecido John Whiteman (J.W), por óbvio, não possuía mais um
corpo, a única forma de ele tomar ciência das perguntas feitas seria, a princípio, através de uma
interação (a) telepática com a médium ou outras pessoas vivas, ou (b) clarividente acerca das
perguntas escritas a lápis. E J.W deve ser bem habilidoso em usar sua PES, porque ele manteve
uma extraordinária coerência responsiva, como se efetivamente estivesse lendo os
questionamentos elaborados.
Além disso, falecidos comunicantes devem usar PES para tomar conhecimento de fatos
ocorridos após a sua morte. Por exemplo, C. D. Thomas (1933)45 relata um caso com a médium
Sra. Leonard. O comunicador era um garoto que em vida se chamava Willie. Numa das sessões,
o controle “Feda” diz:
Diga ao pai dele que Willie o acompanhou numa jornada, muito recentemente; um nome "S" é relacionado ao lugar, um nome bem longo. Lá Willie observou alguns
45 Uma consideração de uma Série de Sessões por Procuração. Proceedings of the Society for Psychical Research
[Volume 41, 1932-1933, pp. 139-185].
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
57
animais e esteve muito interessado em cavalos. Seu pai estava conversando sobre
operações de corte, como se ele fosse cortar e arrumar numa escala muito grande.
Thomas comentou:
No início de novembro de 1922, o pai do Willie, acompanhado por um amigo, foi
convidado a Stock Yards para ver alguns cavalos; enquanto lá estava, a conversa girou em torno do corte de gelo, que é feito numa grande escala naquela parte do Canadá,
milhares de toneladas sendo cortadas e armazenadas para o verão. O pai do menino é
um engenheiro (...).
Uma comparação de datas mostra que a visita e a conversa foram há alguns poucos
dias antes da sessão em que isso foi mencionado.
Falecidos também poderiam tomar o comando do corpo físico do médium da mesma
forma que nossas mentes “possuem” nossos respectivos corpos. Nesse cenário, o organismo do
possuído seria manipulado psicocineticamente (PK), não mais pela ação de sua própria mente,
mas por uma mente a ele exterior. Chamaremos isso de a teoria da possessão (Tp), a qual
habitualmente tem sido relacionada a uma alternância involuntária da personalidade, quando
'B' (seja um falecido ou um centro de consciência subliminar) retira 'A' do controle, passando a
ter o comando executivo do corpo. Contudo, devemos ter em mente que na hipótese de cessão
voluntária de controle - como pode ocorrer em alguns momentos da mediunidade de transe - o
princípio de regência da possessão é exatamente o mesmo46.
Comparativamente à teoria da influência telepática (TIT), na qual o falecido influencia,
“inunda” - por assim dizer - os pensamentos do médium com os seus próprios, TP talvez seja
mais adequada para responder pelos casos em que o médium exibe com fidedignidade
habilidades e comportamentos associados ao falecido. Na influência telepática, a mente do
médium (ou dos controles) deve apreender os pensamentos do comunicador para então repassá-
los aos consulentes, numa espécie de “telefone-sem-fio do Além”. Então a mente do médium
está sempre envolvida no processo, de modo que as matérias ou habilidades dominadas pelo
46 Aliás, admitindo a verdade de S, o simples fato de estarmos num corpo, produzindo comportamentos voluntários,
torna a possessão algo praticamente mandatório, muito embora uma versão pampsiquista de universo possa
explicar a relação mente-corpo através de uma interação mente-mente. Pampsiquismo pressupõe que elementos
capazes de manter um estrutura auto-organizada possuem aspectos mentalísticos, ainda que em formas bastante
rudimentares. Dessa forma, nossa mente poderia influenciar telepaticamente essas ‘colônias de mentes’ dos seres
microscópicos que habitam nossos corpos (de moléculas a células, ou até mesmo a partir de estruturas mais
primárias, como partículas), mentes essas as quais estão ainda em fases embrionárias.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
58
falecido em vida, mas fora do alcance de proficiência do médium (ou dos controles), com muita
dificuldade deveriam ser reproduzidas na sessão.
Dessa forma, explicar casos como o do dirigível R101 pela TIT é muito custoso, porque
a médium Eileen Garrett não tinha o menor conhecimento técnico sobre o funcionamento - e
peças - de aviação. Penso ser razoável esperar que essa ignorância devesse impor alguma
barreira de entendimento durante a comunicação com o “espírito” do tenente H. C. Irwin. Pior
ainda elucidar, também pela TIT, os episódios em que o médium mostra uma habilidade
característica do falecido, mas fora de sua destreza, tal como falar um idioma estrangeiro ou
tocar um instrumento. Tudo pode ficar ainda mais complicado quando acrescentamos as
ocasiões em que o médium demonstra comportamentos e maneirismos típicos do falecido. Em
tais circunstâncias, ao menos em termos de TIT, deveríamos sustentar que o médium
mimicamente dramatiza a linguagem corporal, os trejeitos pertencentes ao “espírito” quando
em vida.
Contudo, se invocarmos TP, todas essas dificuldades desaparecem, porque a mente do
médium (ou dos controles) é afastada do processo e o comunicador, assumindo o comando
executivo do corpo físico (i.e., o comando da interface biológica de acesso ao nosso mundo),
manifesta-se diretamente através dele. Além disso, o comunicador não precisaria usar PES para
tomar ciência dos questionamentos dos consulentes dentro das sessões, porque agora ele
apreenderia as indagações pelos canais sensoriais do possuído. Porém, ainda assim não
deveríamos expectar uma intervenção cristalina do falecido em nosso mundo, porque seria
esperado que fatores ambientais e, principalmente, estados físicos do corpo do médium
perturbassem a consciência do comunicador durante o processo de possessão.
Por outro lado, TP deve explicar uma formidável questão, qual seja, se por possessão
desejamos dizer que uma mente manipula psicocineticamente um corpo biológico, que tipo de
relação nossas mentes e respectivos corpos têm para que sejam tão intimamente vinculados, de
modo que “Eu” manipule veementemente o meu corpo, produzindo movimentos voluntários,
mas não tenha essa mesma habilidade psicocinética para manipular outros corpos ou mesmo
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
59
quaisquer objetos físicos?47 [Presentemente não consigo imaginar uma solução razoável para
isso, porém desenvolvo um pouco mais esse problema na nota de referência abaixo].
Além disso, a teoria da influência telepática parece ser mais adequada para justificar o
material de "má qualidade" emergido durante as sessões. Ora, se a mente do médium está
envolvida no processo, seus pensamentos e desejos, suas memórias, expectativas e fantasias
turvam o processo de influência, razão pela qual deve ser esperado que CMs sejam marcados
por uma instabilidade qualitativa das informações, variando de uma sequência estupenda de
acertos inquestionáveis a uma divagação degenerada e incoerente, oriunda da camada onírica
da consciência do médium.
47 Devemos ter em mente que, muito embora admitamos que capacidades PK possam determinar a ação corporal,
disso não decorre que o “poder” psicocinético tenha que ser robusto. De fato, algumas teorias que conjecturam
uma mente dirigindo o cérebro pressupõem a junção crítica no reino do minúsculo. Por exemplo, o falecido neurocientista e laureado Nobel John Eccles especulava que a mente seria capaz de afetar a atividade cerebral ao
manipular a forma como as substâncias químicas são liberadas na fenda sináptica. O físico Henry Stapp, por sua
vez, sugere que o ponto de interação entre a mente e o cérebro seria ao nível dos íons de cálcio, os quais são 1
milhão de vezes menores que os microespaços sinápticos. Já o físico Evan Harris Walker idealizava que interação
ocorria na coordenação do tunelamento de elétrons responsáveis pela liberação dos neurotransmissores nas
vesículas sinápticas.
O que todas essas hipóteses têm em comum é que uma diminuta influência PK sobre determinados elementos
microscópicos, porém críticos para a ação corporal, é suficiente para desencadear efeitos em larga escala, como
carregar um piano e praticar esportes, da mesma forma que a queda de um Airbus A380 numa grande cidade pode
ter sido desencadeada por pequeno defeito num dos circuitos elétricos de uma peça crucial para a navegação aérea.
Em síntese, nem sempre causas têm tamanho proporcional aos efeitos delas resultantes.
Por outro lado, para produzir movimentos corporais coordenados, tal como um pianista durante o concerto, a influência PK de sua mente sobre partes de seu cérebro (ainda que a nível microscópico) pressupõe níveis
estupendamente altos de estabilidade em manipular com precisão as atividades sinápticas, iônicas ou eletrônicas
para produzir os movimentos adequados. Mas, grosso modo, tocar um instrumento é apenas um meio exagerado
de demarcar a questão, porque níveis igualmente altos de estabilidade e precisão são requeridos a todo momento
de nossa vida diária, desde quando você acorda de manhã e coloca o chinelo, prepara o café, vai ao trabalho e volta
pra casa. Você desempenha milhares de movimentos voluntários e, a prevalecer a teoria da possessão, sua mente,
através de PK, gerencia todo o “espetáculo”, ou seja, toda a atividade sináptica, iônica ou eletrônica correspondente
(ou o que seja!), e o faz com um grau absurdo de sucesso, dia após dia, mês após mês e ano após ano. Esta seria
uma taxa de êxito que simplesmente não tem paralelos quando objetos inanimados ou outros organismos são o
foco da atenção psicocinética. Então devolvemos a pergunta: que tipo de relação nossas mentes e respectivos
corpos têm para que sejam tão intimamente vinculados, de modo que “Eu” manipule veementemente o meu corpo, produzindo movimentos voluntários, mas não tenha essa mesma habilidade psicocinética para manipular outros
corpos ou mesmo quaisquer objetos físicos? Uma saída seria negar a possessão e tentar explicar a relação
mente/corpo pela teoria da influência telepática. Isso seria equivalente a admitir, como na nota de referência acima,
que estruturas auto-organizadas, ainda que em nível micro, tais como as células e moléculas de nosso corpo,
tenham alguma vida mental, ainda que em forma rudimentar, ou seja, deveríamos sustentar a filosofia do
pampsiquismo. Mas mesmo assim o problema é recalcitrante, pois continuaríamos a ter que explicar porque não
influenciamos na mesma intensidade as “micromentes” que habitam os corpos de outros organismos vivos? Por
que as “micromentes” de nossos corpos seriam mais ‘obedientes’ ao nosso comando do que as micromentes que
compõe outros seres?
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
60
Agora, qualquer que seja o modelo de contato com nosso mundo, por influência ou
possessão, por PES ou PK, ou ambos, parece ser inquestionável que os comunicadores devem
possuir um funcionamento psi altamente refinado, dada a elevada fluência responsiva de suas
influências telepáticas ou esforços psicocinéticos. E com isso chegamos na próxima
pressuposição para S, diretamente relacionada a presente.
2.5. Comentários acerca de S5
S5: que a transição da morte provoque um efeito liberador das capacidades psi de uma
pessoa, de modo que um sujeito, o qual nunca demonstrou talentos psíquicos quando
encarnado, passe a manifestar habilidades psi sub-repticiamente, influenciando intensamente
o médium com seus pensamentos ou tomando o comando executivo do corpo biológico via PK.
Em S1 vimos que o desenvolvimento da consciência, tanto em termos de
amadurecimento de um organismo quanto no aspecto evolucionário, constitui na aquisição de
novos e mais altos processos mentais e na automatização de alguns já conquistados.
Assinalamos também que a morte provavelmente deve provocar um estado alterado de
consciência, de modo que uma nova personalidade pode eclodir e substituir a personalidade
pre-mortem. Observamos que, tal como alguns estados dissociativos, a personalidade resultante
do choque da morte pode manifestar capacidades e habilidades latentes as quais estavam
suprimidas durante a vida encarnada porque simplesmente não foram extraídas ou ativadas por
processos evolucionariamente adaptativos. Nesse contexto, o incremento de habilidades psi
pode ser uma característica experimentada por alguns falecidos.
2.6. Comentários acerca de S6
S6: que uma pessoa viva (o médium) tenha uma sensibilidade especial, qualquer que
seja sua natureza, para manifestar cognitivamente os efeitos da influência telepática de um
falecido ou para lhe ceder transitoriamente o controle corporal.
Em S1 começamos a ver uma perspectiva bem plausível da personalidade humana que
a estende para muito além da nossa consciência comum. Como disse Myers: “acreditamos
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
61
apenas que o que se processa por baixo do limiar da consciência e fora dos limites da porção
de nosso campo de consciência adaptado às necessidades da vida ordinária é ao mesmo tempo
mais extenso e complexo do que aquilo que se contém nos referidos limites”48. Penso que essa
é uma afirmação a qual deveria ser incontroversa nos dias atuais e todas as formas de
comportamentos automáticos são exemplos de tal assertiva.
Já também mencionamos por diversas ocasiões que estados alterados de consciência
podem liberar capacidades e habilidades psíquicas que até então estavam latentes, suprimidas
nos estratos subliminares da psique simplesmente porque não foram ativadas por processos
adaptativos, quer no curso da evolução, quer no curso do amadurecimento de um indivíduo. A
tal respeito, vejamos outros comentários da psicóloga Emily Kelly (2007):
Na perspectiva de Myers sobre o modelo de mente, os processos subliminares
emergem quando a consciência é desviada do seu funcionamento normal,
supraliminar: 'até certo ponto, no mínimo, a suspensão da vida supraliminar deve ser a liberação do subliminar” (HP, volume 1, p. 122). Mais especificamente, “parece
como se esta faculdade supersensorial assumisse a atividade em uma proporção
inversa às atividades da vida diária” (Myers, 1886b, p. 287). Os processos
supernormais, como a telepatia, realmente parecem ocorrer mais frequentemente
enquanto o percipiente ou o agente (ou ambos) está adormecido, nos estados entre o
sono e a vigília, de doença, ou de morte; e o funcionamento subliminar em geral
emerge mais prontamente durante os estados alterados da consciência como a hipnose,
histeria, ou até uma distração comum. Assim, enquanto o funcionamento supraliminar
normalmente reflete “o paralelismo familiar entre estados corporais e mentais,” os
processos mentais subliminares poderiam variar “inversamente, no lugar de
diretamente, com a atividade observável do sistema nervoso ou da mente consciente"
(Myers, 1890b, p. 320; 1891d, p. 638).
Já falamos também que, para Myers, a evolução da consciência significava na
automatização progressiva de processos psicológicos apreendidos pela consciência
supraliminar, liberando o foco de atenção de nossa percepção consciente para o
desenvolvimento de processos cada vez mais avançados e complexos e os quais ainda não foram
despertados. Além disso, – para ele – nossa percepção habitual por intermédio dos sentidos
sensoriais está para nossa consciência ordinária, assim como a telepatia e a clarividência estão
para alguns centros superiores de consciência subliminares. Nas raras ocasiões que percepções
extrassensoriais são dominadas pelo ‘eu’ comum, isso representaria - na sua perspectiva - um
processo de integração da personalidade em direção à formação de um Ser mais bem acabado,
48 Myers, Frederic. A Personalidade Humana. São Paulo: Edigraf, p. 67.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
62
porque mais recursos do reservatório psíquico de nossa individualidade passam a ser dominados
conscientemente. Myers adverte ainda que algumas manifestações psíquicas claramente
patológicas podem representar um processo necessário para o desenvolvimento de capacidades
e habilidades as quais mais tarde irão se revelar extremamente sublimes.
Então, se a nossa consciência comum está bastante focada (ou ocupada) com o
processamento e a avaliação dos incontáveis estímulos provenientes do ambiente físico, os
quais inundam nossos canais sensoriais, é bem improvável que devêssemos perceber certas
influências que atingem diretamente as nossas mentes, sem passar por aqueles mesmos canais.
De fato, se coisas como telepatia existem, devemos possuir – por amor a nossa sanidade! –
algum mecanismo para filtrar/tampar as inúmeras influências provenientes das bilhões de
mentes que povoam o planeta. Sob o paradigma da teoria da transmissão, o cérebro/corpo
cumpre esse papel, restringindo nossa percepção consciente para as impressões que atingem
nosso sistema sensório e, de certa forma, podemos concluir que o sistema cérebro-corpo-
ambiente é bastante eficiente em puxar/prender o foco de atenção de nossa consciência
ordinária para os problemas do cotidiano.
Porém, quando aquele sistema cérebro-corpo-ambiente permite afrouxamentos – até
mesmo nos fugazes desvios de distração diários – não tarde materiais localizados nas camadas
subliminares “sobem” para a região supraliminar, sendo o sonho o fenômeno que mais
frequentemente dá mostras dessa troca de material psicológico entre o sublimar e supraliminar.
Quando essa “subida” de material acontece, vemos que o cérebro/corpo não executou aquele
papel de filtrar/tampar, o que, durante o estado de vigília, pode eventualmente trazer
perturbações em nosso foco de atenção para aqueles inúmeros inputs que chegam através dos
sentidos.
Dessa forma, as influências telepáticas (originadas nos mortos ou mesmo de outras
pessoas vivas), via de regra, são incapazes de despertar a atenção de nosso eu habitual, já muito
ocupado com o processamento dos estímulos sensoriais. Porém, isso de nenhuma forma quer
dizer que essas influências não são apreendidas pela mente; de fato, elas ficam em estado de
latência em outras regiões fora do espectro mental correspondente à consciência de vigília, quer
nos médiuns, quer nas pessoas comuns. Diante disso, devemos postular que, ao contrário da
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
63
maioria, médiuns devem possuir uma permeabilidade maior entre as camadas subliminares e o
supraliminar, permitindo com maior facilidade a “subida” de elementos psicológicos latentes
para a consciência de vigília, tenham esses elementos origens no próprio indivíduo ou não.
Quando o material é transindividual podemos dizer que são exemplos de faculdades
supernormais atuando sobre (ou a partir) do indivíduo, a exemplo da telepatia e da clarividência,
muito embora a maior parte desses elementos seja de autoria do próprio indivíduo, que os
produz a partir de alguma camada de consciência subliminar agindo sem a participação de sua
vontade consciente, tais como muitas fantasias e dramas desenvolvidos pelo ‘eu onírico’ que
são mais tarde percebidos por nosso ‘eu desperto’ quando acordamos pela manhã.
Essa perspectiva do processo de mediunidade traz muitas vantagens para S: em primeiro
lugar, ela se adequa perfeitamente ao paradigma da influência telepática, que considero o
modelo mais provável para suportar a intervenção de pessoas mortas em nosso mundo; em
segundo lugar, ela confirma um fato notoriamente observado: a mediunidade exercida através
de estados alterados, tal como o transe, é mais evidencial do que aquela exercida pela
consciência de vigília; em terceiro lugar, ela justifica as baboseiras e todo material sem sentido
e fantasioso mencionados pelos controles ou guias, afinal, não penas elementos psicológicos
transindividuais migram entre os estratos da vida psíquica do médium! Como o próprio Myers
admitiu, a psique parece possuir um caráter mitopoético, i.e., uma certa tendência de criar
histórias e desenvolver fantasias, principalmente – acrescento – quando privada de estímulos
para processar. Porém, essas mesmas histórias e fantasias, ou mesmo alucinações (muitas vezes
verídicas), são o ‘idioma do subliminar’, ao contrário da comunicação verbal e lógica do
supraliminar. Dessa forma, o caráter dramático com que o subliminar se exprime representa a
sua linguagem, seu mecanismo de comunicação com a nossa consciência de vigília49.
Vamos agora analisar se o funcionamento psi exclusivamente exercido por agentes
vivos (a hipótese LAP – Living Agent Psi) é suficiente para elucidar a gama de fenômenos
49 De fato, deveríamos até mesmo reconhecer uma relativa superioridade do “idioma” subliminar, pois, a
comunicação codificada pela escrita e por sons fonéticos (para a comunicação oral) encontra muitas limitações
para transmitir toda a expressão e a intensidade do que realmente sentimos e vivenciamos, nossos estados
emocionais mais exaltados e as experiências mais profundas. A esse respeito, o subliminar, quando age
coordenadamente, parece mais eficiente.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
64
ocorridos durante a prática mediúnica. Nesse intento, vamos verificar, tal como fizemos em S,
as assunções, explícitas ou implícitas demandadas por LAP.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
65
3. Fundamentos da hipótese psi exercida exclusivamente por agentes vivos (LAP) como
alternativa para explicar os casos de mediunidade (CMs)
A aparência de sobrevivência post-mortem na mediunidade, por outro lado, pode ter
uma causa mundana, qual seja, o funcionamento psi exercido exclusivamente pelas
mentes/cérebros de pessoas vivas, associado com alguns outros elementos psicológicos
inabituais os quais veremos mais abaixo. Nesse caso, como o cérebro/corpo não está afastado
do processo, todo a fenomenologia mediúnica, tanto seus aspectos supernormais como aqueles
inteiramente psicológicos, pode ser causalmente explicada sob bases fisicalistas.
É certo, porém, que LAP não necessita ser uma hipótese fisicalista, pois o
funcionamento psi pode ser, ao mesmo tempo, inconciliável com aquilo que o cérebro/corpo
faz e não implicar na existência de mentes desencarnadas dotadas de poder para influenciar o
nosso mundo terreno. No final das contas, casos mediúnicos poderiam ser exemplos de uma
atividade mental que transcende a capacidade do cérebro e que, portanto, a mente não estaria
sujeita aos seus limites; porém, uma vez rompido o laço corpóreo, mentes não teriam mais o
poder de se manifestar no mundo físico. O problema com esse tipo de interpretação é que ela
esvazia toda a discussão em torno de casos mediúnicos, afinal, a mediunidade não imporia mais
dificuldades a uma visão de mundo fisicalista do que a própria existência de psi já faz. Além
disso, essa versão mais fraca da sobrevivência, ainda admitindo que algo psíquico sobreviva,
não garante a permanência de um ‘Eu’, i.e., de um ego após a morte, enquanto S, por sua vez,
reconhecendo o valor de face dos casos mediúnicos, admite que pelo menos alguns
comunicadores são quem realmente alegam ter sido em vida, carregando as lembranças e o
caráter de sua última existência corporal. Assim, ainda que acolhêssemos psi em bases
extracorpóreas, isso não implica necessariamente na sobrevivência pessoal.
Passadas essas observações, vamos analisar as assunções que a ação psi entre vivos deve
suportar para explicar a aparência de sobrevivência manifestada nos casos mediúnicos.
LAP1: excluídas as chances de aquisição normal de informações, o material verídico
produzido durante CMs deve ser, alternativa ou cumulativamente: a) obtido pela percepção
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
66
extrassensorial do médium, o qual possui uma capacidade psíquica de ‘sondar’, ainda que
involuntariamente, fontes mundanas e/ou impessoais (por exemplo, (a.1) através de processos
telepáticos, adquirindo informações relevantes nas mentes/cérebros de pessoas vivas que
conheciam o falecido; (a.2) por meios clarividentes, com foco em objetos físicos (diários,
fotografias ou quaisquer outros documentos) os quais registram dados sobre a vida do falecido;
(a.3) com o uso de telepatia retrocognitiva, quando o médium adquiriria tudo o que precisa
diretamente da mente/cérebro do falecido, porém, quando ele ainda se encontrava vivo; (a.4)
por intermédio de uma incursão telepática num reservatório de memórias Universal e
impessoal); b) fornecido pelas mentes/cérebros de pessoas que conheciam o finado, as quais,
nutrindo desejos e esperanças em contatá-lo, acabam por involuntária e telepaticamente
‘influenciar’ a mente/cérebro do médium na direção correta, provendo-lhe informações
verídicas;
LAP2: o médium e/ou os consulentes devem ter desejos, necessidades e motivações para
se comunicarem com pessoas falecidas;
LAP3: em determinados casos, especialmente na mediunidade de transe, o médium
experimenta uma divisão de sua consciência ordinária (personalidade A), quando um novo ‘eu’
assume o comando corporal e alega ser uma pessoa que já teve uma existência corpórea
(personalidade B). Essa nova personalidade controladora, oriunda das camadas subconscientes
do médium, é capaz de dramatizar o caráter de quem alega ter sido quando encarnado
(digamos, B'), apresentando hábitos, gostos, maneirismos, inflexão de voz e, algumas vezes,
habilidades que parentes e amigos de B' identificam como sendo correspondentes àqueles de
B'. Em outras oportunidades, a personalidade controle B serve de porta-voz para uma outra
personalidade secundária (C). Durante a sessão, B repassa aos consulentes tudo o que consegue
“ouvir” e entender de C; e tal como B, C também sustenta ser alguém que teve uma existência
terrena (C'). Muito embora C não tenha o controle corporal do médium, o material fornecido a
B é capaz de igualmente convencer parentes e amigos de C' de que C possui um caráter
semelhante ao de C'. Essa habilidade de encenação altamente criativa e verídica às vezes
relaciona-se a falecidos os quais o médium teve um contato extremamente tênue ou mesmo
nenhum.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
67
3.1. Comentários acerca de LAP1
LAP1: excluídas as chances de aquisição normal de informações, o material verídico
produzido durante CMs deve ser, alternativa ou cumulativamente: a) obtido pela percepção
extrassensorial do médium, o qual possui uma capacidade psíquica de ‘sondar’, ainda que
involuntariamente, fontes mundanas e/ou impessoais (por exemplo, (a.1) através de processos
telepáticos, adquirindo informações relevantes nas mentes/cérebros de pessoas vivas que
conheciam o falecido; (a.2) por meios clarividentes, com foco em objetos físicos (diários,
fotografias ou quaisquer outros documentos) os quais registram dados sobre a vida do
falecido; (a.3) com o uso de telepatia retrocognitiva, quando o médium adquiriria tudo o que
precisa diretamente da mente/cérebro do falecido, porém, quando ele ainda se encontrava vivo;
(a.4) por intermédio de uma incursão telepática num reservatório de memórias Universal e
impessoal); b) fornecido pelas mentes/cérebros de pessoas que conheciam o finado, as quais,
nutrindo desejos e esperanças em contatá-lo, acabam por involuntária e telepaticamente
‘influenciar’ a mente/cérebro do médium na direção correta, provendo-lhe informações
verídicas.
A via crucis de casos mediúnicos é justamente a seguinte: nós necessitamos confirmar
se aquilo que o médium diz a respeito de uma pessoa falecida tem cunhos de veracidade, do
contrário ficaremos, de forma até bastante indulgente, com a hipótese das fantasias de uma
mente sonhadora (isso para não dizer o pior, tal como as chances de fraude!). Porém, confirmar
as declarações do médium significa que a informação nelas contida é acessível de alguma
maneira, esteja ela na mente de algumas pessoas vivas ou registrada em documentos, tais como
diários, certidões, fotografias, etc. Então, como poderíamos ter certeza que, no lugar do
“espírito” do falecido estar usando PES para influenciar com seus pensamentos a mente do
médium, não é o médium que usa PES para sondar a mente dos vivos e/ou acessar
clarividentemente registros físicos?
Até que tenhamos mais dados sobre o funcionamento de psi, uma solução para esse
dilema permanece pendente, de modo que a escolha entre uma e outra hipótese recai
presentemente em critérios de parcimônia ou plausibilidade. Sob a perspectiva da ciência
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
68
convencional em relação ao problema mente-cérebro, na qual a atividade mental é
dogmaticamente considerada um subproduto da maquinaria neural, sem dúvida a ação psíquica
entre vivos é a opção para explicar a aparência de sobrevivência nos casos de mediunidade.
Sobre isso, concordamos com Carter (2012) na seguinte observação:
Claro, o motivo óbvio por trás da hipótese de super-PES [i.e., a hipótese LAP com efeitos de grande magnitude] é a entendida implausibilidade de sua principal rival. A
ideia de sobrevivência desencarnada é considerada tão antecedentemente improvável
que qualquer explicação alternativa em termos de PES é considerada preferível, não
importa o quão absurda ou sem suporte. Mas já vimos que a ideia da sobrevivência
não é incompatível com quaisquer dos fatos conhecidos da fisiologia. A hipótese de
que o cérebro produz a mente e a hipótese rival que o cérebro funciona como um transmissor/receptor para a mente são totalmente compatíveis com os fatos comuns,
e então não há nada sobre os fatos comuns que favorece quaisquer das hipóteses.
Como tal, não há realmente nenhuma improbabilidade antecedente da [hipótese da]
sobrevivência — nem qualquer probabilidade antecedente também. A questão reside
inteiramente nos testemunhos sobre os fatos.
Realmente, a teoria da transmissão de James, Myers e outros não é falsificada pelos
fatos considerados comuns, tanto aqueles provenientes da neurofisiologia quanto da psicologia.
O que as observações empíricas das ciências cognitivas sugerem são apenas correlações entre
estados mentais e cerebrais; essas observações não autorizam a ninguém afirmar que os
primeiros são causalmente dependentes ou produzidos pelos últimos. Neste momento é
importante identificar o fisicalismo, como uma hipótese científica (que carece ainda de
comprovação), e o fisicalismo, como ideologia (sendo objeto de crença). Semelhante a Carter,
diz Braude:
Estritamente falando, a evidência fisiológica não mostra que a individualidade ou a consciência é exclusivamente ligada a processos corporais, muito menos a processos
de qualquer corpo físico em particular. Talvez interpretações psicanalíticas dos dados
parecem inicialmente convincentes porque pressupostos fisicalistas são generalizados
e profundamente enraizados. E, se assim for, pode ser um útil exercício intelectual tentar nos despojar desses pressupostos e, em seguida, tomar um novo olhar sobre os
dados (Braude in Rock, 2014).
Mas o quê sobrevivencialistas tem a dizer sobre LAP?
De fato, a tentativa de explicar CMs através do funcionamento psi entre vivos (Living
Agent Psi - LAP) fez com que o professor de sociologia Hornell Hart cunhasse o termo Super-
PES (em The Enigma of Survival, 1959), uma vez que – para ele – explicar toda a gama
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
69
fenomenológica ocorrida nos cenários mediúnicos, sem a participação de mentes
desencarnadas, exigiria que o médium utilizasse uma PES altamente poderosa e refinada, cujo
poder e alcance não é encontrado fora dos casos de aparente comunicação com os mortos.
Dali para frente, muitos estudiosos sobre a sobrevivência post-mortem abraçaram o
raciocínio e o vocabulário de Hart (destaques recentes para Almeder, 199250; Gauld, 199551;
Fontana, 200552; Carter, 201253 e; Beischel, 201454). Com esse entendimento, tanto Hart quanto
outros já concluíram que, em certos casos, seria mais parcimonioso concluir pela influência
telepática de um falecido do que sustentar um funcionamento psi extremamente elástico por
parte dos vivos. Decorrente dessa elasticidade que alguns atribuem à PES dos vivos para
responder pelos fenômenos ocorridos em contextos mediúnicos, vem uma segunda linha de
ataque por parte dos sobrevivencialistas, qual seja, a de que Super-PES não é uma hipótese
científica. Vejamos o argumento.
Considerando o critério Popperiano sobre hipóteses científicas, sabemos que uma teoria
científica deve ser falseável, quer dizer, ela deve fazer certas predições que podem ser refutadas
através de sucessivos testes laboratoriais ou de repetidas observações de fatos naturais. Se as
predições teóricas não forem confirmadas após baterias de testes ou de observações,
preferencialmente por diferentes pesquisadores e diferentes laboratórios ou grupos de pesquisa,
dizemos que a teoria foi falseada, do contrário, ela permanece transitoriamente uma alternativa
para explicar os fenômenos os quais visa elucidar. Enfim, se uma teoria não pode ser refutada,
ela não tem natureza científica. Por exemplo, considere o solipsismo. Essa concepção filosófica
preconiza que a única realidade é o ‘eu’ empírico e suas experiências. Assim, além de ‘você’,
a natureza e as outras pessoas e seres que lhe cercam, aliás, todas as coisas do Universo não
possuem existência real. Muito embora o solipsismo possa estar conciliado com a nossa
percepção das coisas e/ou pessoas, ele simplesmente não pode ser refutado, logo, não é uma
hipótese científica.
50 Death and Personal Survival: The Evidence for Life After Death. Rowman & Littlefield Publishers. 51 Mediunidade e Sobrevivência. São Paulo: Pensamento. 52 Is There An Afterlife? A Comprehensive Overview of the Evidence. O Books. 53 Science and the Afterlife Experience: Evidence for the Immortality of Consciousness. Inner Traditions. 54 Among Mediums: A Scientist's Quest for Answers. Windbridge Institute, LLC.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
70
Assim, da mesma maneira que o solipsismo, a “possível existência de Super-PES não
pode ser refutada, e permanece concebível em teoria que qualquer evidência para
sobrevivência poderia ser explicada como originada nas habilidades psíquicas dos vivos”
(Fontana, 2005)55. Julie Beischel (2014), doutora em farmacologia e toxicologia, além de
ostensiva pesquisadora sobre CMs, pondera nas seguintes palavras:
Na explicação de super-psi (ou super-PES), quando uma médium recebe informações sobre o falecido, ela usa psi para adquirir informações das mentes dos assistentes, do
experimentador ou de outros [por telepatia]; [e/ou] a partir de um tempo futuro,
quando ela recebe um feedback sobre a leitura [através de precognição]; e/ou a partir
de itens, localizações, fotos, documentos, etc. distantes [via clarividência]. Porque
super-psi é tão abrangente (daí o 'super'), ela não pode ser refutada (não mais do que
seria uma teoria que propõe que Deus está sussurrando a informação à médium ou
uma na qual alienígenas estão transmitindo as informações diretamente para a cabeça
dela) e, portanto, ela realmente não se qualifica como uma hipótese científica. É mais uma ferramenta filosófica para discutir alternativas para a [hipótese da]
sobrevivência56.
Com isso, alguns entendem que LAP, quando invocada na sua versão Super para
explicar a fenomenologia emergida nos contextos de mediunidade, não deve ser considerada
uma hipótese científica, porque ela simplesmente não pode ser refutada.
Os filósofos Stephen Braude e Michael Sudduth (Braude, 2003; Braude, 2014; Sudduth,
2014) acreditam que esses dois primeiros ataques contra LAP são questionáveis e
supervalorizados por defensores de S. No seu excelente Immortal Remains (2003), Braude
expõe acuradamente as fraquezas desses argumentos. Peço agora vênia para transcrever alguns
excertos a fim de ser mais fiel as palavras desse autor, as quais concordo amplamente.
Inicialmente, Braude (2003) enfraquece a sustentação de que não teríamos evidência de
funcionamento psi dos vivos, em grandes magnitudes, fora dos casos de aparente sobrevivência
post-mortem. Ele cita alguns exemplos:
Em primeiro lugar, é verdade que não temos evidência direta para o tipo exato de super-psi necessária para explicar os bons casos de sobrevivência. Mas há um
conjunto substancial de provas diretas, de fora do laboratório, para, no mínimo, uma
psi muito elegante. Os exemplos mais surpreendentes podem ser os casos de mediunidade física. Mas um argumento decente poderia ser que a PES reportada em
alguns casos espontâneos é também poderosamente impressionante (veja, por
55 Op. Cit. 56 Op. Cit.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
71
exemplo, Gurney, Myers, Podmore, 1886; Rhine, 1981; Sidgwick, 1922; Society for Psychical Research, 1894; Tyrrell, 1942/1961). Esses corpos de evidência mostram,
pelo menos, que o funcionamento psíquico pode operar em níveis de magnitude e
refinamento que excedem a qualquer coisa inequivocamente demonstrada em
experimentos de laboratório. Isso enfraquece o argumento que o funcionamento
psíquico é improvável de operar em um nível ainda mais alto. Além disso, como já
disse anteriormente, não existe um padrão claro pelo qual pudéssemos medir o quão
'super' um fenômeno psi é.
Além disso, Braude deixa claro que não precisamos invocar uma causa grande em
magnitude e poder para explicar efeitos em larga escala. Ademais, argumenta que, dado o nosso
ainda empobrecido conhecimento sobre o funcionamento de psi, não estamos em posição para
afirmar que seus efeitos em larga escala são mais difíceis de produzir do que os mais modestos.
Acrescenta ainda que nossa ignorância sobre o mecanismo da psi nos impede de colocar limites
para ela, obrigando-nos a cogitar não apenas de uma psi dos vivos poderosa, mas talvez
ilimitada (pelo menos em teoria):
[...]Como veremos quando começarmos a examinar em detalhes alguns dos melhores casos de sobrevivência, é questionável se precisamos de uma psi de níveis sem
precedentes de magnitude ou refinamento para acomodar as provas de
sobrevivência[...]. Para entender o porquê, precisamos examinar os casos específicos. Mas vale a pena fazer agora um ponto geral. Não importa se estamos preocupados
com a causalidade paranormal ou normal, nós não precisamos supor que efeitos
devem ser proporcionais às suas causas. Em particular, um grande evento pode ser
produzido por um pequeno evento. Por exemplo, para disparar uma mina ou explodir
um avião psicocineticamente, tudo que é necessário é uma cutucada no lugar certo, e
não um evento em uma escala comparativamente grande.
[...]O próximo ponto é mais abstrato. Ele aborda mais diretamente a alegação de
Almeder de que necessitamos de evidência independente para super-psi antes de a
aceitarmos como explicação para casos de sobrevivência. O problema é este. Mesmo
se aceitarmos a existência de funcionamento psíquico, nós não sabemos quase nada
sobre sua natureza. Não sabemos como ele funciona, e não sabemos sua história
natural — ou seja, qual é o papel (se houver algum) que isso desempenha na vida. Mas considerando a grandeza da nossa ignorância sobre a natureza de psi, devemos
(no mínimo) cogitar a possibilidade de uma psi extensiva, uma vez que admitimos que
ela pode assumir formas mais moderadas. Richet uma vez observou, em relação a
evidência para a materialização,
‘é tão difícil entender a materialização de uma mão viva, quente, articulada e móvel
ou mesmo de um único dedo, quanto para compreender a materialização de uma
personalidade que vem e vai, fala e move o véu que a cobre’. (Richet, 1923/1975, p.
491)
[...]Nós podemos generalizar esse ponto. Em nosso nível atual e empobrecido de
compreensão, os fenômenos psíquicos em grande escala ou refinados não são mais
incríveis ou enigmáticos do que os fenômenos mais modestos. Por exemplo, no caso de PK, uma vez que não temos ideia de como os agentes afetam sistemas físicos
remotos, não temos motivos para supor que os efeitos de PK são inerentemente
limitados em escopo ou refinamento. Apesar da postura teórica de alguns
parapsicólogos, nós não sabemos de que maneira PK em menor escala viola ou
contorna as restrições habituais para influenciar outros sistemas físicos. Então não
estamos em posição para definir antecipadamente limites sobre até que ponto aquelas
aparentes violações podem chegar. De fato, não só podemos cogitar a possibilidade
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
72
de uma psi extensiva, mas talvez tenhamos que cogitar a possibilidade de uma psi
ilimitada (pelo menos em princípio).
Mais à frente, Braude fragiliza o argumento de que LAP, quando invocada na sua versão
Super para explicar toda a fenomenologia emergida nos casos de aparente sobrevivência, não
deveria ser considerada uma hipótese científica, por não ser irrefutável (i.e., infalseável, no
linguajar Popperiano). Além disso, deixa clara sua posição de que ambas as hipóteses, S e PAV,
padecem do “mal” da infalseabilidade em alguma medida, classificada por ele como
infalseabilidade no sentido fraco:
[...]Essa linha de raciocínio levou alguns a reclamar que 'nada poderia responder pela não-existência de super-psi' (Almeder, 1992, p. 53) e, portanto, que a hipótese é
empiricamente sem sentido. Essa preocupação é compreensível, mas acredito que
podemos facilmente eliminá-la. Eu admitiria que explicações em termos de super-psi
falham somente no estrito [sentido] dos testes de falseabilidade Popperiano. Mas isso
não é o mesmo que dizer que nada pode responder contra essas explicações[...].
Talvez nós podemos deixar isso um pouco mais claro ao distinguir dois aspectos nos
quais uma hipótese pode ser infalseável. Vamos chamá-las de infalseabilidades forte e fraca.
'A hipótese H é fortemente infalseável' = df 'absolutamente nada pode responder
contra H'
'Hipótese H é fracamente infalseável' = df '(a) tanto H e não-H são compatíveis com
os dados, mas (b) algumas evidências podem ser razoavelmente consideradas como
apresentando H menos plausível do que não-H'
Eu diria que a hipótese de super-psi é infalseável no sentido fraco. Então quando eu
digo que qualquer evidência ostensiva para sobrevivência será compatível com uma
explicação alternativa de super-psi, não significa que nada pode responder contra a
explicação em termos de super-psi.
Eu realmente concordo com Almeder que se nós formos confrontados com[...] qualquer caso [de sobrevivência] intimamente aproximado do ideal, teríamos boas
razões para aceitar a hipótese da sobrevivência. Ainda concordo que seria irracional
(em algum sentido adequadamente robusto) não a aceitar. Mas, como veremos,
nenhum caso aproxima-se do ideal que possamos conjeturar. Esse é o problema. Os
melhores casos aproximam-se do ideal em diferentes graus, em diferentes ângulos. E,
não raro, esses casos nos lembram principalmente de quão pouco sabemos sobre os
vários aspectos da natureza humana[...]
Na verdade, uma das características mais frustrantes do tópico da sobrevivência - pelo
menos no ponto onde enfrento essas questões — é que temos de escolher entre duas
hipóteses fracamente infalseáveis: sobrevivência e super-psi. Nós sabemos tão pouco,
não apenas sobre psi em geral, mas também sobre as características presumíveis de
uma vida futura, que somos incapazes de prever com alguma confiança com que os dados devem parecer. Criar hipóteses testáveis acerca das evidências de sobrevivência
simplesmente não é falseável. Alguns podem achar essa afirmação surpreendente, e
protestarem da seguinte maneira. 'É certo, se super-psi pode ser sorrateira e
imprevisível, então nós não podemos fazer previsões específicas e falseáveis sobre
como a evidência para super-psi deveria parecer. Mas a evidência a favor da
sobrevivência não é assim; ela nos permite fazer 'certas predições testáveis'
(Almeder, 2001, p. 347) — por exemplo, que o sujeito possuiria memórias
particulares que apenas a pessoa falecida poderia ter, ou habilidades características
desta pessoa’.
Mas isso é simplesmente falso. Primeiro, dificilmente é uma previsão específica dizer
que sujeitos teriam certas memórias ou habilidades. Na verdade, não temos uma pista
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
73
de quais memórias particulares ou habilidades, ou de que certos tipos de memórias ou habilidades um sujeito é provável a ter, especialmente na ausência de pressupostos
questionáveis e presumivelmente arbitrários sobre como o trauma da morte corporal
afetar-nos-ia cognitivamente. Nós podemos apenas conjeturar quais os tipos de
prejuízos ou de aperfeiçoamentos, ou que mudanças no comportamento pessoal, essa
transição pode produzir (p. 15-19).
Quando analisamos S2, tivemos a oportunidade de mencionar que – na perspectiva da
sobrevivência post-mortem – o choque da morte implica a continuar termos experiências, porém
sem mais as influências do corpo físico e do nosso atual ambiente imediato. Como
consequência, conjeturamos várias possibilidades sobre as características dessa nova forma
existencial. Ponderamos que, analogicamente a situações traumáticas que eventualmente
acontecem em nossa existência terrena, falecidos também poderiam reagir heterogeneamente a
transição da morte e que, por essa razão, não deveríamos esperar um padrão de características
psicológicas sendo genericamente absorvido pelo eu resultante à morte (isso se algum eu
permanecer integrado, e não apenas fragmentos de uma personalidade). Por exemplo, tal como
nos casos psicopatológicos de múltiplos, a álter personalidade pode conhecer dos sentimentos,
pensamentos e das ações da personalidade principal, porém não tomá-los como seus próprios.
Aqui não existe a permanência do sentido de identidade. Semelhantemente a isso, talvez o
trauma da morte nos fizesse enxergar o eu atual como um outro indivíduo; ou então, com o
falecimento (quem sabe!) alguns de nós conseguissem sustentar o sentido de identidade, porém
padecessem parcialmente de alguma barreira amnésica; ou ainda que nada disso ocorresse,
poderia ser que certas pessoas experimentassem tão somente uma leve mudança de caráter,
enquanto outros sujeitos passassem por alterações mais drásticas, tal como olhar com
indiferença parentes e amigos de sua antiga existência terrena, etc.
Dessa forma, porque sabemos tão pouco (a) de como deve parecer uma vida após a
morte e (b) de como funciona os mecanismos da mediunidade, qualquer informação adquirida
anomalamente por um médium e relacionada a vida de um falecido poderia ser coberta pela
hipótese da sobrevivência. Portanto, da mesma forma que Super-PES, não teríamos um jeito de
refutar S.
Ainda nos momentos em que o médium diz coisas sem sentido, poderíamos justificar
que as mensagens do falecido comunicador sofrem algum tipo de adulteração em razão de
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
74
interferências de material psicológico originado na mente do médium ou nas mentes de outros
desencarnados. Essas interferências, longe de serem uma suposição ad-hoc e gratuita, deveriam
ser encaradas como de senso comum. Quando apresentarmos o Argumento da Complexidade
Restritiva desenvolvido por Braude (2003), isso ficará bastante claro. Por ora, podemos dar
hipotéticos exemplos dessa interferência, tais como: a) o médium poderia misturar as
mensagens dos mortos com fantasias criadas por alguma camada onírica funcionando abaixo
do seu limiar de consciência; b) ele poderia também desvirtuar as mensagens, interpretando-as
segundo algumas ideais e valores culturalmente preconcebidos; c) poderia esporadicamente
adquirir algumas informações da mente dos vivos, mas em outros momentos seria influenciado
pelos pensamentos do falecido; d) mais de um comunicador poderia influenciar
simultaneamente o médium, que ficaria confuso e consequentemente trocaria os destinatários
das mensagens, etc. Enfim, todas essas suposições são frequentemente invocadas por
defensores de S dentro de contextos mediúnicos com o objetivo de justificar as declarações do
médium que parecem não provir do falecido. Porém, quando simpatizantes da teoria da
sobrevivência promovem tais alegações, eles simplesmente transformam S numa hipótese
irrefutável, logo, não estão em posição de levantar esse mesmo argumento contra Super-PES.
A verdade a ser declarada é que em nosso atual e empobrecido conhecimento sobre o
funcionamento psi, bem como de outras facetas da personalidade humana, não estamos em
posição de excluir nenhuma das hipóteses rivais, S ou LAP. Estamos autorizados, no máximo,
a fazer preferências entre elas, dependendo das características de um caso a outro, mas
conscientes que a hipótese preterida também é capaz de dar conta do caso.
Um outro tipo de refutação de sobrevivencialistas contra LAP diz respeito ao conceito
de obscuridade da informação. Uma informação é considerada obscura quanto mais recôndita
ou oculta sua fonte estiver do médium e/ou de outras pessoas vivas. Assim, - pensam alguns
partidários de S - deveria ser mais parcimonioso considerar um contato direto entre médium-
falecido do que admitir que o médium tenha a capacidade de sondar as mentes de pessoas vivas
localizadas a milhares de quilômetros de distância; ou pior, não deveríamos dar tanto crédito
para uma explicação de LAP que demanda uma capacidade clarividente de o médium sondar
registros escritos, como diários e anotações pessoais do falecido, que aparentemente eram
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
75
ignorados de qualquer pessoa viva, e os quais somente foram publicamente conhecidos após a
revelação mediúnica.
Porém, essa crítica de sobrevivencialistas aborda uma perspectiva de obscuridade da
informação do ponto de vista físico, e o que é fisicamente obscuro não significa que também o
seja psiquicamente. Aliás, a evidência da parapsicologia demonstra que a dificuldade de acesso
físico a uma informação, como grandes distâncias ou barreiras sensoriais e eletromagnéticas
(v.g., isolamento através de gaiolas de Faraday) não afetam o desempenho de psi. Como
Braude coloca, essa linha de ataque de defensores de S seria semelhante a postular que médiuns
deveriam ter melhores resultados se suas cabeças estivessem encostadas nas dos assistentes.
3.1.1. O problema das múltiplas fontes de informação
Vamos agora analisar mais um dos argumentos habitualmente levantados por partidários
de S contra a hipótese LAP, qual seja, o problema das múltiplas fontes. Esse argumento baseia-
se numa ideia de economicidade de variáveis para explicar um mesmo fenômeno. Grosso modo
é o seguinte: enquanto podemos dizer que S precisa postular que todas as informações
adquiridas anomalamente pelo médium foram obtidas a partir de uma única fonte, i.e., da mente
de um determinado falecido, LAP, em alguns casos críticos, deve demandar que o médium
obteve as mesmas informações a partir de mais de uma fonte. Isso acontece quando todo o
material anômalo fornecido pelo médium não está concentrado num mesmo lugar, seja na mente
de uma única pessoa ou algum registro físico privilegiado. As informações estão dispersas e –
de acordo com LAP – o médium deveria ser capaz de acessá-las remotamente e então uni-las
de forma coerente com a finalidade de representar o drama da sobrevivência post-mortem.
Walter Franklin Prince, um dos pioneiros da pesquisa psíquica e famoso por tratar do
caso de múltiplas personalidades de Doris Fischer, concede-nos um exemplo hipotético deste
problema, o qual ele nomeou de labirinto telepático (1920):
[...] Enquanto um fato necessário ou conveniente para uma comunicação mediúnica poderia ser, se houvesse intenção, captado de tia Mary, a 50 milhas de distância a
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
76
oeste, outro fato de avô Brown, a 300 milhas de distância a leste, outro fato de um homem que vive nas vizinhanças onde o pai nasceu a 1000 milhas de distância ao sul,
e ainda outro fato de uma das várias pessoas de algum lugar no mundo familiarizada
com um livro excessivamente raro onde está especificamente registrado – e isso não
pode ser suposto – de como o incidente possivelmente aconteceu há trinta anos atrás,
e que todas estas pessoas estavam mentalmente envolvidas contemporaneamente nos
vários fatos reconstituídos pela médium, ou que todas elas pensavam sobre eles por
meses ou anos. Desse modo, se isso for admitido, nós teríamos um modelo de labirinto
telepático, de alcance e complexidade bem além de qualquer coisa indicada dentro do
círculo de telepatia o qual nós atualmente temos conhecimento57.
Partidários de S então alegam que, nos episódios marcados com essa característica, o
poder explanatório de LAP é deflacionado (vide, por exemplo, os resumos sobre as
comunicações GP e o caso da Sra. Talbot, p. 21-24). O psicólogo britânico Alan Gauld (1995),
comentando a respeito de alguns casos por procuração, argumenta nas seguintes palavras:
[...] E mesmo que houvesse tais fontes acessíveis à clarividência, as fontes para cada
caso deveriam estar em diversos lugares, de modo que o médium precisaria localizá-las, lê-las e sintetizá-las numa história coerente e plausível. A telepatia com algum
vivo que possuísse todos os fragmentos de informação soa como uma proposição
muito mais aceitável. 2. No entanto parece que em dois casos de ‘sessões por
procuração’ citados neste capítulo não havia pessoa viva que tivesse toda a informação
[...] Para ambos estes casos, portanto, teríamos de postular, pela hipótese da PES
[LAP], pela qual a Sra. Leonard localizou (telepaticamente) duas fontes separadas de
informação, canalizou-as e fundiu os resultados. [...] Poderíamos propor que o
médium fica sabendo, pela mente do assistente, da identidade da pessoa, em nome de
quem faz as perguntas, e que isto, de algum modo, o capacita a focalizar a mente desta,
de onde obtém pistas para outras informações, e daí por diante. É só começar a pensar
nos detalhes para perceber que o processo é grotescamente implausível. Nomes certos,
endereços, datas e assim por diante – detalhes que identificam exclusivamente uma pessoa -, estão dentre os itens mais difíceis para os sensitivos obterem; e, no entanto,
tais detalhes únicos de identificação (ou seus equivalentes) teriam de ser obtidos [...]
antes que o médium pudesse determinar que fonte de informação usar e, em alguns
casos, várias fontes, à medida que, por assim dizer, a mente do médium se deslocasse
ao longo da cadeia de pistas.
Mas qual a consistência desse argumento? O que poderíamos dizer contra ele a fim de
verificarmos sua higidez? Essa questão levantada por partidários de S, a respeito de múltiplas
fontes de informação, realmente impõe dificuldades para a hipótese LAP? Bem, penso que
tanto Braude quanto Sudduth dispõem de perspectivas muito sedutoras e as quais quase
completamente fulminam uma vitória dos defensores de S sobre esse ponto. Sudduth (2014)58
diz:
57 Prince, W. F. (1920). Certain characteristics of veridical mediumistic phenomena compared with those of
phenomena generally conceded to be telepathic. Journal of the American Society for Psychical Research vol. 15.
pp 559-75. 58 In Rock, Adam J. The Survival Hypothesis: Essays on Mediumship. McFarland.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
77
Em primeiro lugar, supor que LAP não pode dar conta de m6 [múltiplas fontes de
informação] parece supor que LAP opera de forma análoga ao processamento comum
de informação, procedendo de modo passo-a-passo, coletando e, em seguida, organizando as informações. Sobrevivencialistas muitas vezes falam que psi tem que
passar por uma fase de seleção para organizar as informações, ou para reuni-las e, em
seguida, integrá-las, como se LAP operasse semelhante a um bibliotecário tentando
reconstruir um catálogo de cartões físicos depois que os cartões foram espalhados por
toda a cidade por um furacão e misturados com dezenas de milhares de outros pedaços
de papel (Lund, 2009, pp. 174, 199). Mas essa visão de psi e sua relação com a
complexidade da tarefa é, no mínimo, subdeterminada pelos dados atualmente à nossa
disposição.
Realmente, existe alguma boa evidência que o efeito psi de vivos é independente da
complexidade da tarefa. Por exemplo, num dos estudos de Osis, os sujeitos tinham que
influenciar o resultado de lançamentos de dados, um por vez, com o objetivo de que as faces
resultantes (1 a 6) combinassem com a indicação ocultada e previamente registrada dentro de
um envelope opaco. Se PES e PK atuam como processos perceptuais e motores, então, no
estudo de Osis, presume-se que uma pessoa primeiro deve usar PES para conhecer a face alvo
indicada dentro do envelope e depois usar PK para afetar a queda do dado (Hansen, 200159).
Hansen comenta:
Se este é o caso, escores PK com alvos escondidos devem ser muito menores do que
aqueles com alvos conhecidos pelo sujeito. Por exemplo, se PES e PK forem
independentes e cada uma delas funciona com precisão de 10% das vezes, então elas em conjunto funcionariam apenas 1% das vezes (0,10 x 0,10 = 0,01). Os escores
seriam bastante reduzidos.
Osis constatou que os escores de alvos escondidos foram os mesmos de alvos
conhecidos, indicando que PK não pode ser comparável a outras forças da natureza.
[...]
Experimentos PK com alvos-ocultos agora são vistos como [meios] para testar os
efeitos do que é chamado de complexidade da tarefa. Complexidade neste sentido
refere-se à quantidade de informação aparentemente necessária para duplicar uma
tarefa psi através de atividades sensório-motores humanas normais (por exemplo, na
experiência de Osis, primeiro era necessário descobrir a identidade do alvo e, em
seguida, influenciar a queda dos dados; dois passos eram necessários). Fazer uma tarefa mais complexa não reduz os escores, e isso foi confirmado por outros estudos
com alta complexidade que ainda alcançaram sucessos. Estas experiências
estimularam trabalhos teóricos e, em 1974, Helmut Schmidt sugeriu que psi era 'meta
orientada'. Ele declarou: ‘Isso sugere que PK não pode ser adequadamente
compreendida em termos de algum mecanismo pelo qual a mente interfere com a
máquina de algum meio habilmente calculado, pode ser mais apropriado ver PK
como um princípio meta-orientado, e que visa o sucesso de um evento final, não
importa o quão complexos são os passos intermediários’.
59 The Trickster and the Paranormal. Xlibris.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
78
Sudduth60 acrescenta:
[...] participantes têm realizado com sucesso tarefas PES de combinações cegas nas quais eles combinaram duas cartas desconhecidas, ao contrário de simplesmente
identificar uma única carta desconhecida (Kennedy, 1995). Por isso, não é verdade,
em geral, que nos faltam casos nos quais os participantes têm adquirido e integrado
informação a partir de múltiplas fontes através de PES.
Essa característica de independência da complexidade da tarefa possui dois pontos que
devem ser bem destacados: em primeiro lugar, a psi funciona abaixo do nível da consciência de
vigília e de forma meta-orientada. Essa característica é medida em termos de necessidades,
desejos, ainda que inconscientes, de uma pessoa. Em outro lugar61 já tivemos a oportunidade
de falar que,
[...]alguns relatórios já indicavam, sob métodos quasi-experimentais de medição e
análise, de que a psi poderia funcionar inconscientemente (de forma não-deliberada)
em certas situações. Carpenter, por exemplo, diz: W. Edward Cox (1956) demonstrou que as pessoas inconsciente e espontaneamente embarcam com menor frequência em
trens nos dias de acidentes ferroviários do que nos dias de controle, i.e., sem acidentes.
Assim, ele mostrou o que parecia ser uma premonição espontaneamente inconsciente,
funcionando como um modo de proteção. [...]
O próprio Stanford (1970) mostrou que alvos PES ocultados poderiam ser usados
inconscientemente para ajudar pessoas que participam de um teste de memória; e
Martin Johnson (1971, 1973) relatou que estudantes universitários poderiam
espontânea e inconscientemente ser ajudados em testes quando as respostas corretas
ficavam gravadas, porém tampadas, nas folhas de resposta. E Douglas Dean (1962)
demonstrou que indivíduos sendo monitorados fisiologicamente por um
pletismógrafo produziam diferentes tipos de reações quando um agente distante ficava
olhando para nomes de pessoas importantes para aqueles, em comparação com períodos em que nomes aleatórios eram observados. [...]
Stanford observou ainda que, no laboratório, as pessoas são geralmente convidadas a
tentar usar conscientemente as habilidades psi, enquanto as ocorrências espontâneas
sugerem que tais habilidades podem ser inconscientemente ‘convocadas a entrar em
jogo’ nos momentos de necessidade (a exemplo de eventos que envolvem acidentes,
testes de memória e respostas fisiológicas inconscientes).
Em segundo lugar, não existem paralelos entre as cadeias de causalidade normal e
paranormal. Assim, por exemplo, quando Gauld questiona LAP para casos nos quais as
informações estão dispersas em diferentes lugares, dizendo que "o médium precisaria localizá-
las, lê-las e sintetizá-las numa história coerente e plausível", essa exigência deixa de fazer tanto
sentido, porque "localizar", "selecionar" e "sintetizar" são eventos intermediários dentro de uma
cadeia normal de causalidade, mas o funcionamento psíquico parece não ser analisável em
60 Op. Cit. 61 Teorizando a psi < http://debatepsi.com/teorizando_a_psi.pdf>
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
79
termos de passos intermediários entre a causa e o seu efeito. De fato, como já mencionamos,
evidências experimentais apontam que necessidades e motivações humanas, nas circunstâncias
apropriadas, podem desencadear efeitos psi sem que haja uma correlação positiva entre a
complexidade da tarefa com o tamanho do efeito.
Na realidade, a independência da complexidade da tarefa levou alguns a hipotetizar que,
sob condições favoráveis (de humor, relaxamento, estado psicológico e talvez ambientais)62 e
63, bastaria que alguns sujeitos nutrissem desejos e boas motivações para que algo aconteça que
simplesmente aconteceria. Braude (2003), sem nenhum conteúdo pejorativo, chama isso de a
“hipótese da varinha mágica”:
De acordo com essa hipótese, (a) a ação de psi não requer nada mais que uma necessidade ou desejo eficazes (sob condições favoráveis), e (b) dada essa
necessidade ou desejo, virtualmente tudo pode acontecer. Mas nesse caso, não
precisamos supor que uma PES refinada exige complexos procedimentos de pesquisa
- por exemplo, do tipo usado para se procurar referências numa biblioteca, para
adquirir informações na internet ou procurar pistas numa investigação policial. E nós
não precisamos supor que uma PK [psicocinese] refinada exige um constante
monitoramento de PES sobre os resultados das atividades de alguém - por exemplo,
da mesma forma que a direção de um carro e uma cirurgia cerebral requerem um
feedback sensorial. Pode ser suficiente apenas desejar que alguma coisa aconteça e
então ela acontece. Complexidade da tarefa simplesmente pode não ser um
problema64.
Assim, em razão de um desejo e motivação eficazes, “coincidências” favoráveis podem
acontecer na vida de todos nós, sem que sequer tenhamos nos dado conta que tivemos um papel
nisso, ainda que inconscientemente. Dessa forma, médiuns, além de serem sujeitos inclinados
a psi, podem nutrir desejos e motivações suficientemente eficazes para que as informações
relevantes sobre a vida de um falecido eclodam em sua mente, não importando onde estejam
registradas, ainda que em mais de uma fonte. Dessa forma, e não por outra razão, conclui
Sudduth65:
A força explanatória da hipótese da sobrevivência depende de m6 ser improvável, caso a sobrevivência não seja verdade [m6 = o médium tem conhecimento robusto,
62 Haja vista alguma evidência da influência do humor, estados dissociativos, relaxamento, estados
neurofisiológicos e da atividade geomagnética sobre o desempenho psi (veja Irwin e Watt, 2007, caps. 4 e 8). 63 Já comentamos também em Atitudes e características da personalidade moderadoras da performance PSI <
http://debatepsi.com/psi_vari%C3%A1veis%20subjetivas.pdf> 64 Immortal Remains: the Evidence for Life After Death. Rowman & Littlefield Publishers, Inc, 2003. 65 Op. Cit.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
80
íntimo e detalhado sobre informações a respeito da vida de um falecido e as quais estão localizadas em mais de uma fonte]. Para mostrar isso é necessário que o
sobrevivencialista adote uma suposição sobre LAP ter certos limites, sendo limitada
pela complexidade da tarefa, etc. O ponto de Braude é que não temos garantia sobre
quaisquer dessas assunções [i.e., desses limites]. Assim, enquanto o problema de
múltiplas fontes pode evitar que um defensor da hipótese LAP justificadamente afirme
que m6 não é surpreendente (caso sobrevivência seja falsa), o sobrevivencialista está
impedido de justificadamente alegar que m6 é surpreendente (caso a sobrevivência
seja falsa). No mais, o problema de múltiplas fontes simplesmente nos empurra na
direção do agnosticismo sobre se a sobrevivência é a melhor explicação para os dados.
Por outro lado, as chances de uma psi ilimitada em escopo e refinamento parecem estar
apenas no plano teórico, e não na realidade do cotidiano, ainda que ela seja completamente
independente da complexidade da tarefa, excluindo passos intermediários (tal como é de se
esperar dentro de uma cadeia normal de causalidade), e assuma formas milagrosas a exemplo
da varinha mágica. Para esclarecer esse ponto, Braude desenvolve razões bastante persuasivas
e que, num primeiro momento, parecem favorecer bastante defensores de S, mas que no final
empurram seu idealizador, exclusivamente quanto ao argumento de múltiplas fontes de
informação, a declarar uma vitória muito tímida de S sobre LAP; muito embora, num balanço
geral das características de CMs, Braude adote uma postura agnóstica em relação a essas duas
hipóteses.
A ideia central de seu raciocínio, batizado de o Argumento da Complexidade Restritiva,
sugere que o funcionamento psi de uma determinada pessoa viva, ainda que teoricamente
ilimitado, fique incorporado dentro de uma rede enormemente complexa de interações, sendo,
portanto, vulnerável a interferências igualmente potentes dentro dessa rede, sejam estas normais
ou paranormais (inclusive formas de defesa psíquica). Braude (2003) então levanta um certo
paradoxo de super-psi para explicar os melhores casos de mediunidade, porque quanto mais
admitimos que a psi dos vivos seja virtuosa ou super, mais obstáculos aparecem para interferir
nos sucessivos êxitos que os melhores médiuns já apresentaram durante sessões mediúnicas.
Peço licença para trazer longos excertos desse autor, sendo bem fiel as suas palavras:
[...] Em primeiro lugar, é preciso considerar um paralelo com a onipotência psíquica. Precisamos considerar por que, ainda que os pensamentos possam matar ou
mutilar, muitos de nós ainda estamos vivos e intactos. Como já observado em outros
lugares (Braude, 1997), mesmo que o funcionamento psíquico seja teoricamente
ilimitado em refinamento ou magnitude, ele pode ser severamente restringido na
prática. Por um lado, a maioria (se não todas) as nossas habilidades ou capacidades
são sensíveis a situações, como e em que grau nós as expressamos depende de muitos
fatores contextuais. Considere, por exemplo, a nossa capacidade para circular o
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
81
sangue, focar nossos olhos, digerir alimentos, discutir detalhes íntimos de nossas vidas, mostrar compaixão, mostrar a nossa inteligência ou paciência, ou lembrar
aquilo que lemos. Essas capacidades, e provavelmente todas as outras, não são
constantes e nem uniformes. Elas variam de acordo com o nosso humor, saúde, idade,
momento do dia, nível de tensão, etc., e, em geral, elas podem ser reduzidas ou
aumentadas de muitas maneiras. Mesmo habilidades virtuosísticas são vulneráveis a
inúmeras influências. Por exemplo, o desempenho de um grande atleta pode ser
prejudicado por lesões, doenças, perda temporária de confiança, preocupação com
problemas pessoais, grandes adversários, ou até mesmo os adversários fracos que têm
um grande dia. Da mesma forma, a capacidade de um grande comediante para ser
engraçado (ou a habilidade de um músico excepcional para executar sua performance)
pode ser prejudicada, contraposta, ou neutralizada de várias maneiras e em diferentes
graus. Agora é razoável pensar que as capacidades psíquicas também exibiriam essas vulnerabilidades. E, em qualquer caso, a evidência sugere fortemente que o
funcionamento psíquico é, de fato, altamente sensível a situações e susceptível a
várias formas de interferência. Portanto, parece razoável supor que não importa o quão
extensas, refinadas ou virtuosísticas nossas capacidades psíquicas possam ser, assim
como outras capacidades, elas também vão estar casuisticamente sujeitas a reais
limitações.
Assim, mesmo que uma psi hostil seja ilimitada em escopo ou refinamento, ela é
ilimitada apenas em princípio. Ela ainda estaria sujeita a inúmeras restrições, do
mesmo jeito que as formas normais de hostilidade. Ela ficaria incorporada dentro de
uma rede enormemente complexa de interações, psi e não-psi, aparentes e ocultas,
locais e globais, e seria vulnerável a interferências igualmente potentes ou a freios e contrapesos (incluindo defesas psíquicas) dentro dessa rede. Essa conjectura parece-
me incontroversa e (na verdade) de senso comum. Uma vez que assumimos ou
permitimos que as interações psíquicas ocorrem, devemos consequentemente ter uma
visão muito ampla de como as nossas tentativas de esforços psíquicos podem ser
frustradas, mesmo durante períodos de máxima fluência ou potência [...] Mas talvez
o mais importante, podemos também ser 'pegos no fogo cruzado' (por assim dizer) de
processos que de outra forma não estão relacionados aos nossos interesses - por
exemplo, por distrações e interferências externas [...].
A perspectiva de onisciência mediúnica levanta um conjunto de questões paralelas. De
acordo com a hipótese super-psi, um médium deve contar com uma PES repetida e
contínua, não só para sustentar no transe uma persona, mas para ser consistentemente
bem sucedido de um assistente a outro, especialmente ao longo de uma inteira carreira [a exemplo de Piper e Leonard]. Presumivelmente, então, o grau de sucesso requer
sejam contornados, por um período excepcionalmente longo, todos os obstáculos que
poderiam concebivelmente interferir com a coleta psíquica de informações [...].
Mas este é o problema. Quanto mais complexa e extensa permitimos que a rede
subjacente de atividades psíquicas possa ser, haverá mais obstáculos diante de
qualquer investigação ou esforço psíquico em particular para navegar [...].
Se essas considerações estão no caminho certo, elas ainda podem ser estendidas para
versões da varinha mágica sobre a hipótese de super-psi, segundo a qual necessidades
ou desejos sozinhos podem ser causalmente eficazes e a complexidade da tarefa é
irrelevante para o sucesso de psi. Inevitavelmente, uma PES ou PK de sucesso terá
que navegar no denso nexo causal subjacente, sejam ou não aqueles esforços psíquicos causalmente simples ou complexos. Assim, mesmo se o funcionamento psíquico
funcionar como uma varinha mágica, isso significa apenas que a relação de
causalidade entre um estado mental e seu efeito psíquico é primitivo. De acordo com
a hipótese da varinha mágica, atividades psíquicas individuais são causalmente
simplificadas. Elas não vão ser analisáveis em termos de um maior refinamento, da
sequência subjacente de eventos entre a causa e o efeito. Mas esse tipo de simplicidade
causal não descarta a preempção causal. Mesmo os processos causais primitivos são
vulneráveis à rede circundante de influências potencialmente opostas e a cadeias
causais cruzadas. Então, mesmo que admitamos que varinhas mágicas possam
funcionar, disso não se segue que elas funcionem à revelia de tudo. Os fiandeiros das
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
82
lendas e os contos de fadas entendem isso. Feiticeiros podem duelar e perder uma luta; eles podem ser pegos no fogo cruzado; e varinhas mágicas podem titubear ou
falhar.
[...] Considerar o nosso completo potencial psíquico é presumivelmente um ideal
inatingível, assim como para todas as atividades mundanas nas quais rotineiramente
executamos abaixo - na verdade, consideravelmente abaixo – de nosso melhor teórico.
Afinal, nós geralmente ficamos muito aquém da perfeição. Porém, isso não é nem
uma desgraça nem uma surpresa. Somos imperfeitos, limitados e erráticos, e a vida é
complexa, difícil e cheia de obstáculos. Não temos nenhum problema em admitir
nossas falhas e limitações para realizações não-psi, e eu não posso ver por que isso
deve ser mais difícil de compreender com relação ao funcionamento psíquico. E,
claro, se a coleta psíquica de informações pode ser impedida pelo tráfico psíquico não-
aparente criado pela inteira comunidade de mentes, a possibilidade de falha parece considerável. Na verdade, é por isso que, mesmo em uma abordagem simpática e
amplamente de mente aberta ou liberal para a hipótese de super-psi, as falhas
mediúnicas tornam-se não apenas inteligíveis, mas talvez quase obrigatórias. Então,
aparentemente (e de modo irônico), a hipótese de super-psi sugere que PES enfrente
muitos obstáculos naturais para ser consistentemente bem sucedida, pelo menos ao
nível exigido nos melhores casos de mediunidade [...].
De fato, esses obstáculos justificam compreensivamente porque não percebemos efeitos
psi com regularidade. Ainda que em tese ela seja ilimitada em escopo ou refinamento, essa
admissão teórica igualmente amplia os efeitos de interferência e bloqueio subjacentes daquela
complexa rede de interação causal. Agora diversamente de interações normais, os efeitos de
interferência sobre um esforço psi são muito maiores, porque neste caso devemos considerar
fatores adicionais de balanceamento, especialmente as atividades psi produzidas pela
comunidade universal de mentes. Na realidade, é até uma surpresa que algum esforço psi
consiga atravessar as interferências dentro da enorme rede de interações causais. Além disso, a
psi, quase todo o tempo, atua de forma não-intencional e inconsciente (logo, não detectada),
seja para influenciar o mundo ao nosso redor ou para bloquear a influência de outras pessoas.
Braude continua:
Agora, a diferença entre o caso relativamente normal e aquele de uma psi hostil é que
no último, as oportunidades de preempção causal parecem aumentar dramaticamente. Precisamos cogitar de um leque muito mais amplo de fatores
potencialmente de contrapeso - em particular, toda uma série de interações psíquicas
não-aparentes. Afinal, tanto a evidência anedótica e experimental - para não
mencionar o senso comum - sugerem que os processos psíquicos podem ser acionados
de forma inconsciente. Mas, nesse caso, presumivelmente cada pessoa faria várias
tentativas para influenciar o mundo psiquicamente, para servir a uma variedade de
necessidades ou interesses genuinamente motivadores. A menos que pensemos nesses
termos, não levaremos a possibilidade de uma psi hostil (ou super-psi em geral) a
sério. Porém, uma vez que permitimos aquele vasto reservatório de fatores
potencialmente interferentes, nós podemos razoavelmente esperar que poucos (se
algum) dos nossos ‘esforços’ psíquicos consigam sucesso, não importa o quão
poderosa e ilimitada a psi possa ser em tese [...]
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
83
Mas qual é a característica marcante dos melhores casos mediúnicos que o tornam
impressionantes a ponto de exigirmos uma psi altamente refinada ou super? Braude deixa claro
que não é a quantidade de material verídico que pode ser revelado nas sessões, mas sim a
consistência que esse material é apresentado, i.e., a regularidade de uma boa quantidade de
êxitos que alguns médiuns têm não somente entre a troca de um assistente para o outro, mas
durante sua carreira inteira.
Gostaria de salientar que o que faz os melhores casos mediúnicos tão impressionantes
não é simplesmente a quantidade de material verídico revelado durante as sessões. Afinal, um médium pode transmitir uma grande quantidade de informações
corretas durante um longo período. Mas isso pode ser apenas uma percentagem muito
pequena do total do material que ela proporciona, enquanto o resto é falso ou típicas
tolices mediúnicas. Então, o que faz os melhores casos tão impressionantes é tanto a
quantidade de material correto e a consistência com que os sujeitos o fornecem.
Nos parágrafos acima, observamos então que Braude a todo momento ressalta a
improbabilidade de psi dos vivos dar conta dos melhores casos mediúnicos, não importa o quão
potente ela seja, ainda que teoricamente ilimitada em extensão e refinamento. Ele pontua:
“[...]aparentemente, quanto mais virtuoso ou super nós permitimos que psi seja, menos
provável que a hipótese de super-psi consiga lidar com a evidência”. Isso acontece porque
existe uma relação diretamente proporcional entre admitir uma psi virtuosa ou ilimitada, tal
como uma varinha mágica (a fim de justificar os melhores casos mediúnicos), e a quantidade
de obstáculos dentro da rede de interações causais que devem ser superados por qualquer
sondagem ou esforço psíquico executado pelo médium. Daí a incongruência de super-psi dos
vivos lidar com melhores exemplos de mediunidade, os quais são notoriamente marcados pela
alta consistência de material verídico, pois “uma vez que permitimos aquele vasto reservatório
de fatores potencialmente interferentes, nós podemos razoavelmente esperar que poucos (se
algum) dos nossos ‘esforços’ psíquicos consigam sucesso, não importa o quão poderosa e
ilimitada a psi possa ser em tese”.
Mas entre as páginas 92/95 de seu Immortal Remains, o autor começa aplicar o mesmo
raciocínio para a hipótese S, então vemos que sobrevivencialistas sofrem das mesmas
dificuldades para explicar a interação médium-falecido que os partidários de LAP padecem
para explicar a interação médium-assistente. Braude prossegue:
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
84
[...] Eu argumentei que a interação psíquica médium-assistente pode ser bloqueada pela complexidade restritiva do nexo causal subjacente. E porque eu tratei essa linha
de raciocínio como uma espécie de apoio indireto para a hipótese de sobrevivência,
eu tenho sugerido que a interação psíquica do médium-comunicador seria relativamente imune aos estragos da complexidade causal. Aparentemente, então,
tenho chegado a assumir que a interação causal entre o médium e o falecido
comunicador é mais direta do que entre o médium e o assistente, como se o falecido,
em algum sentido permanecesse a parte da rede causal ou estivesse acima dela. Mas
por que seria assim? Se a sobrevivência é um fato e podemos interagir com o falecido,
então comunicadores falecidos deveriam ser incluídos entre aqueles que estão agindo
dentro do nexo causal. Então, se a extensa rede de causalidade não-aparente pode
interferir com a interação médium-assistente, ela também deveria frustrar os esforços
mediúnicos para 'ler' as mentes dos comunicadores, ou as tentativas dos
comunicadores para influenciar os médiuns. Mas, nesse caso, a complexidade causal
parece ser um problema, não importa o quê. Não é mais claro por qual motivo a
interação psíquica entre médium-assistente é mais difícil de explicar do que a interação entre médium-comunicador. Se as dificuldades que se apresentam para a
interação psíquica médium-assistente aumentam com a complexidade do nexo causal
psíquico subjacente, isso também deveria ser válido para a psi do médium-
comunicador. Presumivelmente, os dois tipos de interação enfrentam uma enorme
variedade de obstáculos em potencial. Assim, se tanto os vivos quanto os mortos
contribuem para a vasta rede de causalidade subjacente, então, presumivelmente,
ambos, médiuns e comunicadores falecidos, poderiam ser pegos no fogo cruzado de
atividades psíquicas subjacentes.
Na verdade, os casos reais parecem confirmar isso. Médiuns muitas vezes parecem
encontrar alguma interferência normal a partir de seus próprios processos de
pensamento em curso, e, ocasionalmente, [encontrar] a interferência psíquica de outras fontes vivas (por exemplo, os assistentes). E alguns casos sugerem outro tipo
de interferência: a concorrência entre os aspirantes a comunicadores, cada um
disputando o controle do médium [ou seja, disputando] o análogo mediúnico ao
telefone ou microfone.
Esta reserva ao argumento da Complexidade Restritiva parece-me legítima e
séria. Parece arbitrário supor que os comunicadores desencarnados permanecem a
parte do nexo causal, uma vez que nós admitamos a possibilidade de sua existência e
de sua interação com os vivos. Mas, nesse caso, não está claro por que deveria haver
uma dificuldade menor na interação com mentes desencarnadas do que com mentes
encarnadas. Presumivelmente, isso deve ser tão difícil para o comunicador e médium
criar (por exemplo) uma personificação de transe consistente e de longo prazo, tanto
quanto seria para o médium realizar a mesma coisa através da clarividência e da telepatia com os vivos. Ambas as tarefas encontrariam obstáculos provenientes do
movimentado nexo subjacente de atividade psíquica, e essa rede causal subjacente
teria de incluir tentativas do falecido para reunir informações e influenciar os
vivos. Agora, como observei, os dados mediúnicos são, no mínimo, compatíveis com
esse quadro. Casos reais sugerem a interferência de ambas as fontes, de falecidos e de
vivos.
Além disso, nenhum caso é tão consistentemente bom tanto quanto ele
presumivelmente seria caso a comunicação entre o falecido e o médium fosse direta e
desimpedida. Mas similarmente nenhum caso é tão bom como seria se psi entre os
vivos fosse desimpedida e não sujeita a restrições reais. Então, mais uma vez, parece
que estamos diante de um impasse entre as hipóteses de super-psi e sobrevivência.
Agora, como já declaramos anteriormente, Braude enxerga uma pequena vantagem de
S sobre LAP, ao menos quanto ao argumento de múltiplas fontes de informação rotineiramente
arguido por sobrevivencialistas contra a super-psi (ou super-PES). Resumidamente, podemos
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
85
apresentar essa vantagem da seguinte forma: em alguns bons casos mediúnicos, para explicar o
material verídico através de super-psi, devemos sustentar que o médium teve acesso a mais de
uma fonte de informação, logo, ele deve manter a integridade de mais de um vínculo psíquico,
por exemplo, com as mentes do assistente e de outra pessoa viva a qual também conhecia muitas
coisas sobre o falecido. Por outro lado, diante dessas mesmas circunstâncias,
sobrevivencialistas apenas precisam sustentar a integridade de um único vínculo, qual seja,
entre o médium e o falecido. Essa diferença é substancial, porque dentro da enorme e caótica
rede de interações causais, com inúmeros obstáculos, psi e não-psi, aparentes e ocultos,
relacionados (tal como formas de defesa psíquica) e principalmente não-relacionados (a
exemplo das várias interferências psíquicas cruzadas produzidas pela comunidade de mentes)
já deve ser difícil manter a integralidade de um único vínculo psíquico de forma consistente,
ainda que haja eventuais recaídas, imagine vários! Dessa forma, tanto S quanto LAP não
conseguem lidar com essa questão satisfatoriamente, embora para a última haja um desafio
ligeiramente maior.
[...] Parece ainda existir uma desanalogia entre as hipóteses de super-psi e sobrevivência, e eu acho que ela age a favor da sobrevivência. Para os
sobrevivencialistas, uma convincentemente persona de transe semelhante-a-Tom não
requer mais do que a interação bem-sucedida entre o médium e o falecido Tom. Ainda
se a atividade dentro do nexo causal interferir com a interação médium-comunicador,
a integridade desse único vínculo (porém esporádico) é tudo o que importa. Enquanto
médium e comunicador fazem um contato decente de vez em quando, eles possuem
uma chance de produzir uma personificação de transe credível, mesmo que ela não
seja deslumbrante em sua precisão e consistência. Assim, ainda quando o nexo de
causalidade é frequentemente rompido devido a inevitável desordem ou ao tráfego
dentro do nexo, sobrevivencialistas apenas precisam postular uma fonte confiável de
informação. No entanto (como já vimos), a situação é diferente para os partidários da hipótese de
super-psi. Os casos mais assustadores para super-psi são aqueles que exigem o acesso
a múltiplas fontes obscuras de confiável informação, todas as quais são
potencialmente vulneráveis à interferência de dentro do nexo causal. Assim, em
princípio, parece que vamos ter que conceder uma vantagem explanatória para os
sobrevivencialistas, pelo menos por razões de parcimônia.
Em todo caso, essa pequena vantagem de S sobre LAP é de nível teórico e diz respeito
apenas ao problema de múltiplas fontes de informação. No geral, casos reais de mediunidade
carregam uma miscelânea de características que ora parecem indicar a influência de alguém
falecido, ora sugerem que médiuns dramatizam uma suposta comunicação com uma
personalidade falecida cujos elementos verídicos adquiridos anomalamente foram tomados a
partir de fontes mundanas. No tópico 1.3 vimos muito disso e é por essa razão que Braude
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
86
arremata:
[...] É claro que, uma vez que nenhum caso real está perto do ideal, e visto que mesmo os melhores casos apresentam uma frustrante mistura de material verídico e de
baboseiras, como observamos anteriormente, a evidência não pode fornecer nenhuma
base sólida para decidir a favor da sobrevivência em detrimento de super-psi. Partindo
do princípio de que o funcionamento psíquico pode ser obstruído por uma massa
inimaginavelmente complexa de atividade psíquica subjacente, casos reais de
mediunidade parecem muito como seria de se esperar – por ambas as hipóteses, da
sobrevivência e da super-psi.
3.2. Comentários acerca de LAP2
LAP2: o médium e/ou os consulentes devem ter desejos, necessidades e motivações para
se comunicarem com pessoas falecidas.
Em 2.3 (páginas 43/48) já falamos muito sobre a característica psi-condutiva da
motivação, dos desejos e das necessidades humanas. Desenvolvemos um cenário de caso no
qual a necessidade e o desejo na comunicação com os mortos, algumas vezes alimentados por
circunstâncias pessoais trágicas (tal como a perda de um ente querido), são reforçados por
influências socioculturais, podendo orientar a PES do médium em torno de informações
relacionadas a um determinado falecido, de modo que haja tanto uma sondagem psi sobre fontes
mundanas, quanto uma dramatização inconsciente de pessoas falecidas. Agora não tenho muito
mais a acrescentar, e reservo-me a analisar a seguinte crítica de Carter (2012) contra LAP:
Também observamos que PES normalmente funciona entre pessoas que compartilham
alguma conexão emocional ou que estão de outra forma ligadas de algum jeito. Mas
nos casos por procuração discutidos [ex., o caso de Edgar Vandy, p. 16], a conexão era extremamente tênue; nos casos drop-in, ao que parece não houve qualquer
conexão. Ainda assim é sustentado que uma enorme quantidade de telepatia ocorreu
entre indivíduos [vivos] com quem houve muito pouco ou nenhuma associação ou
conexão.
Relativamente aos casos de sessões por procuração, nos quais o pesquisador psíquico
é interpelado pelos parentes do falecido a estabelecer contato com este através de seu ou sua
médium experimental, temos a dizer o seguinte. Nesse tipo de caso, o pesquisador
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
87
habitualmente não conhece o falecido e, em alguns exemplos, também não conhece os parentes
que suplicam as mensagens post-mortem [para um resumo e discussão de vários episódios
assim, veja Thomas, 1933]66. Além disso, o médium desconhece todos os envolvidos, salvo o
pesquisador, que conduz o caso. A crítica de Carter, a princípio, parece ter alguma justificativa,
porque a evidência experimental de psi sugere que ligações emocionais favorecem as interações
telepáticas entre os sujeitos, então deveria ser improvável – caso LAP seja a explicação para
CMs – que médiuns tivessem sucesso em casos nos quais eles não possuíssem nenhuma espécie
de conexão emocional, sensorial e cognitiva com os assistentes e com o falecido quando vivo.
No entanto, existem casos por procuração em que a aparência de comunicação post-mortem é
muito marcante, tanto pelo material verídico fornecido quanto pela manifestação do caráter
típico do pretenso falecido (por exemplo, Thomas, 1948).
Contudo, há alguns graves problemas com essa linha argumentativa. Em primeiro lugar,
a crítica de Carter também deve voltar-se contra a hipótese S, afinal não está claro que o falecido
e o médium sempre compartilham alguma conexão emocional ou de qualquer outro tipo. Se a
mediunidade deve ser explicada pelo seu valor de face, devemos então presumir que, pelo
menos em alguns exemplos, falecidos e médiuns interagem telepaticamente e de forma
consistente desde o primeiro contato, porém, que tipos de ligações poderiam existir entre eles
antes disso? Presumivelmente de nenhuma espécie, no entanto eles conseguem se inter-
relacionar psiquicamente. Isso fica claro quando o médium apresenta um novo comunicador e,
logo na primeira sessão, já fornece substancial quantidade de informações verídicas.
Em segundo lugar, ainda que a reciprocidade emocional entre os sujeitos possa
favorecer o desempenho da psi, isso não significa que outros fatores psicológicos não estejam
servindo de condutores a um funcionamento psíquico refinado ou poderoso. Ligações
emocionais podem simplesmente ser contigentes, e não necessárias. Como já discutimos em
linhas anteriores, tal como na hipótese da varinha mágica, talvez desejos e motivações na
medida certa, por parte de um sujeito psi-talentoso, sejam suficientes para que muitas coisas
bizarras virtualmente aconteçam.
66 Proceedings of the Society for Psychical Research [Volume 41, 1932-1933, pp. 139-185].
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
88
Dessa forma, penso que o argumento de Carter falha na tentativa de deflacionar a chance
da telepatia entre vivos responder pelos casos de mediunidade em que o contato prévio entre o
médium e os demais envolvidos foi mínimo ou inexistente. O próprio Carter dá o exemplo de
comunicadores drop-in para fortalecer seu discurso. Contudo, esse tipo de comunicador
inesperado frequentemente não tem relação com os assistentes, com o pesquisador e nem com
o médium, então também não deveria ser esperado que médium e comunicador conseguissem
se inter-relacionar psiquicamente, ainda mais de forma consistente. Todavia, Carter desliza em
não perceber isso.
3.3. Comentários acerca de LAP3
LAP3: em determinados casos, especialmente na mediunidade de transe, o médium
experimenta uma divisão de sua consciência ordinária (personalidade A), quando um novo
‘eu’ assume o comando corporal e alega ser uma pessoa que já teve uma existência corpórea
(personalidade B). Essa nova personalidade controladora, oriunda das camadas
subconscientes do médium, é capaz de dramatizar o caráter de quem alega ter sido quando
encarnado (digamos, B'), apresentando hábitos, gostos, maneirismos, inflexão de voz e,
algumas vezes, habilidades que parentes e amigos de B' identificam como sendo
correspondentes àqueles de B'. Em outras oportunidades, a personalidade controle B serve de
porta-voz para uma outra personalidade secundária (C). Durante a sessão, B repassa aos
consulentes tudo o que consegue “ouvir” e entender de C; e tal como B, C também sustenta
ser alguém que teve uma existência terrena (C'). Muito embora C não tenha o controle corporal
do médium, o material fornecido a B é capaz de igualmente convencer parentes e amigos de C'
de que C possui um caráter semelhante ao de C'. Essa habilidade de encenação altamente
criativa e verídica às vezes relaciona-se a falecidos os quais o médium teve um contato
extremamente tênue ou mesmo nenhum.
Para resumir, podemos dizer que médiuns deveriam ser capazes de reproduzir o caráter
de uma pessoa falecida a qual muitas vezes nunca teve qualquer espécie de contato. Quando
abordamos o problema da identidade pessoal, lançamos mão da definição de caráter utilizada
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
89
por Patterson e que será muito útil agora, i.e., o caráter como aquele “conjunto de hábitos,
gostos, crenças, sentimentos, valores, atitudes e habilidades que torna o comportamento de um
indivíduo comparativamente estável e previsível, fazendo-o um objeto de interesse e afeição
(ou indiferença ou antipatia) para aqueles que o cercam”.
Médiuns deveriam então espelhar esse conjunto de características comportamentais
associados a uma pessoa falecida através de um processo de personificação. Mas a criação de
uma persona a que nos referimos aqui não é uma ação consciente com o objetivo espúrio de
ludibriar os assistentes, mas sim um fenômeno autêntico do poder criativo do inconsciente67,
em que uma persona de transe eclode sustentando ser um determinado indivíduo falecido,
imitando seus maneirismos, coloquialismo de linguagem e outras características distinguíveis
que permitem, ao menos em tese, os parentes e conhecidos deste reconhecerem certa identidade
de caráter entre a persona de transe e o falecido.
Que o inconsciente tem uma tendência dramaturga ninguém deveria duvidar, sendo os
sonhos o meio mais trivial do “dramaturgo oculto” mostrar seu trabalho, desenvolvendo
enredos e fantasias, na sua maioria das vezes a partir das influências provindas do ambiente
exterior. O próprio
Myers postulou uma faculdade 'mitopoética' (HP, Vol. 2, p. 5), existindo na consciência subliminar de todos, que constantemente produz fantasias, histórias,
imagens poéticas e outras criações espontâneas que em algumas ocasiões podem
atravessar o limiar da consciência para dentro da consciência supraliminar (Adam
Crabtree, 2007).
Além disso, conforme Tart esclarece (2009) “a personificação inconsciente de outra
personalidade é um fenômeno psicológico geralmente aceito”. E prossegue:
Quando eu estava bastante envolvido na pesquisa da hipnose na Universidade de Stanford, na década de 1960, um dos itens padrão na nossa escala regular de
susceptibilidade hipnótica para indivíduos talentosos incluía, por exemplo, tal
sugestão e hipnotizadores de palco muitas vezes entretinham a audiência escolhendo
alguns voluntários do público obviamente tímidos de aparência, escolhendo
sutilmente entre eles aqueles como tendo alto talento hipnótico, hipnotizando-os, e
67 O termo ‘inconsciente’ aqui é utilizado dentro de uma perspectiva Myersiana, i.e., como sinônimo de centros
subliminares de consciência, dotados de inteligência e propósitos e, em algumas vezes, de sua própria cadeia de
memórias. Esses centros subliminares são inconscientes apenas do ponto de vista da consciência ordinária, uma
vezes que agem automaticamente, escapando quase sempre da percepção desta.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
90
então sugerindo que eles eram uma estrela do rock ou artista semelhante. Performances teatrais e extrovertidas como eles cantando eram geralmente muito
impressionantes! Esse tipo de coisa é rotina para hipnotizadores de palco, então a ideia
de personificação inconsciente por parte dos médiuns é plausível (Tart, 2009).
O fisiologista francês e laureado Nobel Charles Richet (192268) já há muito
exemplificava:
Digo à jovem Alice, hipnotizável e hipnotizada... ‘você não é Alice; você é uma
senhora idosa’ (pouco importa que se tenha ou não feito passes magnéticos: a sugestão
verbal faz tudo). Logo após Alice começa a tossir, imita o caminhar e a voz cansada de uma mulher de idade. Durante uma hora, durante duas horas, e às vezes até mais
tempo, se se não cansa a paciência dos observadores, ela age em pensamentos e gestos
tal como se fosse a outra [...].
Não se tem que objetar à simulação. Certamente que uma simulação é possível. Mas
não há simulação. A questão é ponto líquido e não nos tornaremos a ele. Aliás
muitíssimo pouco importa saber se Alice, nas profundezas de sua consciência,
conservou ou não alguma vaga lembrança de que é Alice. O que é evidente,
incontestável, é que ela se deixa levar, sem poder reagir, até o ponto de poder imitar a
personagem que se lhe apresentou. Que resta nela um bocado de sua personalidade
anterior, é mais do que possível, é certo; mas em todo o caso a inteligência por inteiro
se adapta momentaneamente à personalidade sugerida e isso com uma energia, uma tenacidade, uma perfeição e uma sinceridade que os mais hábeis cômicos seriam
radicalmente incapazes de imitar.
Além da hipnose, podemos ainda mencionar outras formas da criação inconsciente de
uma persona, tais como (a) os casos psicopatológicos de múltiplos (MPD/DID) e (b) seus
homólogos não-patológicos encorajados por práticas xamanistas, extáticas, esotéricas e
espiritualistas (Hageman e Krippner, 201469).
Especificamente sobre (b), penso haver poucas dúvidas de que, em tais contextos,
práticas dissociativas são encorajadas através de rituais ou reuniões de grupo. Aqui está o ponto
nevrálgico, porque os estados de consciência induzidos socioculturalmente (como o transe ou
outros estados assemelhados ao hipnótico) podem ser sugestionáveis às crenças disseminadas
sectariamente. Assim, ainda que não devamos generalizar, difícil não concluir que muitos dos
episódios da cultura espiritualista são atingidos pelas seguintes palavras de Richet (idem):
Há, em quase todas as experiências de espiritismo, personificação. Tomo de empréstimo a palavra a J. Maxwell, que assim chama a tendência que os médiuns têm,
nas suas respostas, em atribuir os fenômenos e as respostas a uma personalidade
distinta. Essas personalidades algumas vezes são múltiplas, mas em geral há uma que
68 Traité de metapsychique (versão em português, ed. Lake, s/n, p. 108-110). 69 In Rock, Adam J. The Survival Hypothesis: Essays on Mediumship. McFarland.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
91
toma a dianteira às outras, não lhes permitindo realizar o intento. É o que em linguagem espirítica se chama um guia. Os notáveis fenômenos (objetivos) que
Eusápia Paladino produzia, eram por ela atribuídos a John King. Da mesma maneira
os fenômenos (subjetivos) produzidos pela Sra. Piper os atribuía a Phinuit.
Essa personificação explica-se perfeitamente pela ação do inconsciente, o qual é como
um cidadão estrangeiro que habita em nós, que tem os seus movimentos, as suas
ideias, as suas lembranças, as suas vontades, os sentimentos – que estão inteiramente
à parte da nossa consciência.
No interessante artigo Psiquiatria Popular Brasileira: a Função Reguladora do
Transe70, o psiquiatra Fernando Portela Câmara conclui que a disciplina do transe, dentro de
contextos e agenda específicos promove uma “regulação biopsicossocial [do médium] em
nossa cultura [e] faz com que síndromes tais como personalidade múltipla (transtorno
dissociativo da identidade), e correlatos, existam em outras culturas como transtornos de
significativa prevalência, mas não entre nós”. Essas síndromes e transtornos passam a ser
substituídos por personificações de entidades ou “espíritos” dos mortos, dentro de rituais
contextualizados não apenas aceito, mas demandados e normatizados pelas seitas aderidas pelo
médium, o qual passar a gozar de relevante posição dentro do grupo. Observe-se:
O processo misto de terapia e iniciação conhecido como 'desenvolvimento da mediunidade' consiste em disciplinar os transes descontrolados do indivíduo,
promovendo repetidas abreações não-verbais, por vias psicomotora e vegetativa, até
a sua completa dessensibilização. Daí emerge uma personalidade equilibrada,
tranquila, livre de seus padeceres neuróticos, e que se mantém sua homeostase nervosa
através dos transes regulares no centro ou terreiro, geralmente associados a trabalhos
de cura e assistência à comunidade que busca auxílio espiritual e psicológico em tais
lugares. O médium agora ganha importância em seu meio, aprende a entrar e sair de
um transe, controlando agora o que antes se manifestava de forma desordenada e
descontrolada, causando-lhe medo, dissociação, mal-estar e sofrimento. O médium
que se especializa em transe e possessão passará a ser veículo (ou 'aparelho', ou
'cavalo') de uma entidade tutelar da seita, que pode ser o espírito de um morto ilustre
ou um orixá, que através dele 'disponibiliza conhecimentos do mundo espiritual' para
aconselhar, prever, diagnosticar, tratar e tudo mais.
Tony Jinks, em The Psychology of Belief in Discarnate Communication (2014), citando
estudo de Maraldi et al., (2010) diz:
Socialização permite que uma experiência anômala seja consolidada num sistema de crenças resiliente. Por exemplo, o Centro Espírita em São Paulo, Brasil, oferece a
educação da mediunidade com base no movimento do Espiritismo Kardecista, e aqui
os alunos são ensinados sobre a estrutura religiosa para interpretar as experiências ao
lado de técnicas mediúnicas, tais como a indução de ASCs [estados alterados de
consciência] (Krippner, 2008). Esta formação fortalece a crença na comunicação
desencarnada, embora a experiência subjacente tem sido identificada como uma
70 Psychiatry on Line [maio de 2005 – vol. 10 – nº 5] <http://www.polbr.med.br/ano05/mour0505.php> acesso em
22/12/2014.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
92
consequência de processos inconscientes reprimidos, embora dinâmicos71.
Porém, sobrevivencialistas podem argumentar que, diversamente dos casos de
hipnotismo e de outras formas de dissociação, há exemplos de aparentes comunicações com os
mortos nos quais a persona de transe reproduz com grande fidedignidade muitos elementos do
caráter de um falecido que era desconhecido ou de pouquíssimo conhecimento do médium (e
quase todos os casos resumidos neste trabalho carregam essa característica, especialmente as
comunicações da menina Katherine e de GP). Então, partidários de S sustentam a
implausibilidade da hipótese de personificação inconsciente, porque o médium deveria, a partir
das informações factuais adquiridas (por PES) sobre a vida de um falecido, ter a habilidade de
fazer uma imitação realista deste sem o benefício da prática. E para essa imitação ser
convincente, persuadindo pesquisadores e assistentes (tal como nas comunicações de GP), ela
deve ser estável, reproduzindo as mesmas variações de caráter que o falecido tinha em vida,
adequando-se de um assistente ao outro. Essa alegação tem alguma base porque todos nós
somos multifacetados e reagimos (e nos apresentamos) de modos diferentes de acordo com o
ambiente e os tipos de relações interpessoais. Por exemplo, você provavelmente é reconhecido
por seus colegas de trabalho de um modo diverso de que é reconhecido por sua esposa ou
namorada, filhos ou amigos mais íntimos. Assim, se o falecido era uma pessoa mais reservada
e séria no trabalho, a persona inconscientemente fabricada durante o transe mediúnico, para ser
persuasiva, deveria habilmente dramatizar/imitar tais características quando os assistentes da
sessão fossem ex-colegas de profissão do falecido. Por outro lado, se o mesmo morto era uma
pessoa marcadamente extrovertida e brincalhona em seu ambiente doméstico, a persona de
transe deveria salientar tais qualidades, caso a esposa ou filhos do falecido tomassem parte na
assistência.
Agora – concluem os defensores de S –, por mais que PES capacite a aquisição anômala
de informações factuais, é autoevidente que habilidades (cênicas ou quaisquer outras menos
idiossincráticas, tais como musicais, literárias, pictóricas, falar um idioma não aprendido, etc.)
não podem ser manifestadas apenas a partir de conhecimentos factuais (adquiridos
normalmente ou via PES); isso porque, para o desenvolvimento de uma habilidade, há a
necessidade de praticá-la. Assim, nos casos em que (a) o médium desconhecia o falecido e (b)
71 In Rock, Adam J. The Survival Hypothesis: Essays on Mediumship. McFarland.
.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
93
a dramatização foi desde o início muito convincente, uma explicação em termos de PES do
médium seria insubsistente, porque simplesmente a ele não foi oportunizada a chance de
treinar/praticar uma imitação realista do falecido. Gauld (1995) desenvolve com grande
propriedade esse ponto:
A capacidade de construir, dramatizar ou imitar toda uma personalidade a partir destes elementos [vários atributos do caráter] é em si uma habilidade que não pode ser
reduzida a mero conhecimento de fatos. Deixem-me ilustrar. Num certo período da
minha vida, passei muito tempo estudando correspondências, diários, papéis, etc. de
Henry Sidgwick e F. W. H. Myers. Aprendi muitos fatos sobre suas vidas particulares,
seus amigos, seus hábitos e sua vida doméstica; muitos mais fatos do que se possa
supor que o maior dos sensitivos possa obter por PES. Mas nenhuma quantidade deste
conhecimento factual (conhecimento que) de per se teria me capacitado a imitá-los
(uma habilidade; conhecimento como), de maneira que seus amigos íntimos achassem
que não fosse algo absurdo ou patético. Meu desempenho teria sido infinitamente pior que o da Sra. Piper ou da Sra. Leonard, em seus melhores dias – em verdade, em seus
piores dias! Deve ser dito que não sou o tipo de pessoa que faz imitações em festas
para obter aplausos. Não tenho talento para isso. Mas um imitador hábil, que vemos
tanto no palco como na televisão, não se sairia muito melhor? Tal pessoa teria as
habilidades próprias de sua profissão, e sem dúvida tentaria algo, se pressionada. Mas
imitar, digamos, o Sr. Edward Heath [Ex-Primeiro-ministro do Reino Unido de 1970
a 1974] não deixa de ser uma habilidade diferente da de imitar Sir Harold Wilson [Ex-
Primeiro-ministro do Reino Unido de 1964 a 1970 e 1974 a 1976]. Alguns imitadores
conseguiriam imitar a um, mas não ao outro. E as habilidades de fazer uma imitação
de Heath e a outra de Wilson devem ser adquiridas separadamente, ouvindo gravações
de som e vídeo, praticando, gravando as tentativas, praticando de novo, e assim por diante. Não surgem diretamente de saber fatos sobre as vidas de Heath e de Wilson,
seus maneirismos, vozes, hábitos de pensamento, modos de falar, etc. Mesmo que
concordemos (temerariamente) que médiuns como a Sra. Piper e a Sra. Leonard
possam ter tido enormes poderes de PES, ainda resta um imenso problema: como
traduziram o conhecimento factual que foram capazes de obter daquela forma em
imitações convincentes de pessoas falecidas, bem conhecidas de seus assistentes72.
Por outro lado, a teoria da sobrevivência não padeceria desse mesmo problema, porque
ela simplesmente pode pressupor a possessão do corpo do médium por uma mente
desencarnada. Nesse cenário, teoricamente não ocorreria nenhuma aquisição paranormal de
habilidades (no caso, habilidades cênicas) e, principalmente, não haveria o desprezo de um
pressuposto (aparentemente) autoevidente para o desenvolvimento de habilidades, qual seja, a
necessidade de reiterada prática e treinamento. Pela hipótese da possessão, o próprio falecido
manifesta o comportamento peculiar que tinha em vida, logicamente não mais pela manipulação
(psicocinética) do corpo a que estava associado em sua existência terrena, mas agora pela
tomada do comando executivo do organismo do médium. Entretanto, vale a pena recordar que
a teoria da possessão também não está imune de questionamentos, havendo em face dela grande
72 Op. cit., p. 112.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
94
dificuldade em sua capacidade explanatória [veja comentários nas pp. 52 e segs.].
Além disso, partidários da hipótese de [personificação inconsciente + PES] do médium
podem sustentar que a dramatização verídica ocorrida em alguns casos de mediunidade é
explicável pelo fato de que profundos estados alterados de consciência (tal como o transe)
podem superar os obstáculos físico, cognitivo e emocional que interferem com o
desenvolvimento de uma habilidade. Observe mais uma vez os argumentos de Braude (2003):
Considere, em primeiro lugar, os tipos de coisas que podem interferir com o desenvolvimento de habilidades, mesmo quando temos a oportunidade de praticar.
Para começar, quando aprendemos uma nova habilidade, costumamos fazer uma certa
quantidade de desaprendizagem, pelo menos nos casos de aquisição motora e hábitos
cognitivos que interferem com a manifestação dessa habilidade. Por exemplo, ao
aprender a palestrar de forma mais eficaz, um professor pode ter que superar tendências a murmurar, rir nervosamente, recair numa linguagem técnica obscura,
zombar com desdém para perguntas estúpidas, ou concluir afirmações com a frase
‘você percebe?’ Da mesma forma, um estudante de piano pode ter que desaprender
hábitos há muito arraigados de dedilhado e de pedalar, com o objetivo de avançar para
o nível mais elevado de perícia exigido por uma nova e difícil peça. Além disso, a
aprendizagem de qualquer tipo (seja de habilidades ou de informações) é muitas vezes
altamente carregada de resistências; ela pode ser dificultada por um número infinito
de outros medos, inseguranças e crenças interferentes.
Agora você pode pensar que essas barreiras para aprender uma nova habilidade
somente fortalece a posição sobrevivencialista. Afinal, elas somente aumentam o
número de desafios enfrentados pelo médium (por exemplo) que manifesta as
habilidades de um comunicador sem o benefício da prática. Porém, esses obstáculos físico, cognitivo e emocional podem ser superados de modo relativamente fácil nos
estados hipnóticos ou outros profundamente alterados. Por exemplo, sobre a
influência de hipnotistas de palco, bons sujeitos hipnóticos fazem coisas que eles
nunca fizeram antes – por exemplo, dançar tango, imitar acuradamente seus chefes
(ou vários animais de criação), comportar-se de uma maneira manifestamente
sedutora e mais comumente exibir habilidades criativas e dramáticas que eles
poderiam ser muito inibidos para expressar73.
Na linha desse argumento, podemos acrescentar que durante a explosão do movimento
espiritualista, entre a segunda e a primeira metades dos séculos XIX e XX, a América e a Europa
eram sociedades eminentemente androcêntricas74, como consequência, a supressão do potencial
intelectual e da liberdade criativa das mulheres era comparativamente avassaladora ao que
podemos ainda reclamar nos dias atuais, havendo enormes restrições de suas ações e
73 Op. Cit., p. 116. 74 “Termo cunhado pelo sociólogo americano Lester F. Ward em 1903, está intimamente ligado à noção de
patriarcado, porém não se refere apenas ao privilégio dos homens, mas também da forma como as experiências
masculinas são consideradas como as experiências de todos os seres humanos e tidas como uma norma universal
tanto para homens quanto para mulheres, sem dar o reconhecimento completo e igualitário à sabedoria e
experiência feminina” <http://pt.wikipedia.org/wiki/Androcentrismo> Acessado em 05/01/2015.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
95
capacidades aos caprichos e desígnios masculinos. Isso talvez explique a superioridade
numérica de médiuns mulheres. Nesse contexto, é mais do que provável, é certo, que para
algumas mulheres a manifestação de personalidades secundárias durante o transe mediúnico
tenha servido de mecanismo para a liberação de sentimentos, emoções e, acima de tudo, de
material altamente criativo em estado de latência, até então suprimidos pelas pressões
socioculturais. Além disso, considerando que o material desenvolvido durante as sessões de
mediunidade é supostamente criado pelos “espíritos” dos mortos, não se poderia atribuir
responsabilidades propriamente as médiuns, impingindo-lhes censuras morais, caso a criação
mediúnica afrontasse padrões perduráveis de comportamento, regras de conduta ou preceitos
éticos bem sedimentados na sociedade patriarcal.
De fato, penso que todos aqueles a par com a literatura de estados dissociativos deveriam
considerar as ilações de Braude empiricamente bem suportadas. Então, neste momento
podemos resumir as coisas assim: estados alterados de consciência não são apenas psi-
condutivos, favorecendo experiências extrassensoriais, mas eventualmente podem também ser
liberatórios, no sentido de retirar os obstáculos físico, cognitivo e emocional castradores do
potencial criativo de um indivíduo.
Porém, opositores da hipótese da sobrevivência ainda têm que explicar a indagação de
Gauld, i.e., como médiuns traduziriam “o conhecimento factual que foram capazes de obter
daquela forma [via PES] em imitações convincentes de pessoas falecidas, bem conhecidas de
seus assistentes”? Resumidamente, o argumento de Gauld é que nenhuma quantidade de
conhecimento factual de per se é suficiente para capacitar alguém a realizar uma imitação
realista de uma pessoa desconhecida. Contudo, penso que o argumento de Gauld ignora uma
desanalogia entre os modos de aquisição normal e paranormal de informações. Vejamos melhor.
Gauld exemplifica dizendo que através de muito estudo coletou grande quantidade de
conhecimento factual sobre as vidas de Henry Sidgwick e F. W. H. Myers, então argumenta que
nenhuma quantidade deste conhecimento factual teria o capacitado a imitá-los. Todavia,
diversamente de como Gauld coletou as informações sobre Sidgwick e Myers, médiuns de
transe geralmente não adquirem informações de forma proposicional, do tipo “o falecido ‘A’
morreu carbonizado após um acidente automobilístico”. Poderia ser bem provável o médium
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
96
apreender essa informação na forma de sensação de queimadura, ou cheiro de algo queimado,
ou então, uma experiência visionária sobre o falecido incendiado dentro de um carro, etc. De
fato, em muitos momentos dos transes (digamos) de médiuns bem autenticados, tais como as
Sras. Piper e Leonard, as personalidades controles manifestaram alucinações que as
capacitaram a adquirir informação realmente verídica. Por exemplo, o controle “Feda”, da Sra.
Leonard, relata sua percepção de como as mensagens dos comunicadores lhe chegam:
[...] eles [os comunicadores] tentam [transmitir as mensagens] por qualquer meio, sensação, visão, audição, mas Feda acha por sensação o mais fácil. Eles podem sugerir
calor ou frio, se o objeto que eles pensam é um metal. Muito é feito por sugestão. Eles
podem fazer Feda sentir uma coisa que é fria ou quente, exatamente como se ela
[Feda] sentisse isso com seus dedos. Você sabe, assim como pessoas hipnotizadas
podem ser sugestionadas.
[...]seu pai [Feda aqui refere-se ao Sr. John, falecido pai do pesquisador psíquico
Drayton Thomas] diz que há momentos em que Feda não pode vê-lo, mas somente
escutá-lo. Ele deseja assinalar que, quando Feda não pode vê-lo, mas somente escutar,
ela deve ter algum meio de localizá-lo. Isso não é, ele pergunta, por uma luz ou
substância enevoada? Bem certo, quando Feda não pode vê-lo, Feda pode ver algo
como uma luz próximo ao assistente ou indo embora. Feda teve duas ou três sessões com uma pessoa antes de ver o comunicador, embora pegasse mensagens por
sensações ou audição75.
Agora, é natural supor que essa percepção verídica em forma de alucinações
(relacionadas a mais de um sentido sensorial) pode capacitar a personalidade de transe a fazer
uma imitação realista de um determinado falecido, sobretudo se as impressões chegam através
de experiências visionárias ou clarividentes, analogicamente a fragmentos de um filme (decerto,
eivado de interferências) a se desenrolar diante das vistas do médium (ou da personalidade
controle).
Além disso, devemos acrescentar que as personalidades controles, da mesma forma que
alguns sujeitos prodígios ou exemplos de savantismo, possuem uma memória absurdamente
retentiva, claramente lhes auxiliando na construção de uma persona assemelhada ao falecido
que alega ser.
De mais a mais, enquanto é razoável admitir que em alguns casos (tais como o de GP)
pôde ter havido qualitativamente uma imitação bem realista de um certo falecido76, alguém,
75 The Modus Operandi of Trance Communication. According to Descriptions recieved through Mr. Osborne
Leonard. In the Proceedings of the Society for Psychical Research [Vol.38, part 107, July, 1928-9]. 76 Porque o comportamento peculiar de GP – tal como como revelado pela médium – aparentemente foi
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
97
todavia, pode palusivamente sustentar que julgamentos de semelhança entre o caráter
manifestado pelo comunicador e aquele que o falecido possuía em vida talvez tenham sido
enviesados por fatores emocionais e crenças pessoais. Assistentes, por exemplo, podem ter seus
julgamentos comprometidos pela perda de um ente querido e o desejo que continuasse vivo
(não importando como, ainda que de uma forma “espiritual”!). Eles podem ainda permitir que
sua crença numa “vida futura”, o medo da morte, ou de uma existência sem significado
propiciem julgamentos tendenciosos, etc. Agora, tudo isso pode aparecer diante dos
investigadores psíquicos de uma forma superficialmente velada, através de relatos que
aparentam ser imparciais, mas que na realidade camuflam elementos psicológicos os quais
enfraqueceriam uma interpretação sobrevivencialista e que poderiam ser descobertos por
investigação psicanalítica somente um pouco mais séria. Esse ponto toca no coração de um
grande problema da literatura sobre a sobrevivência post-mortem, porque partidários da
hipótese S realmente concentram poucos esforços em termos de investigação sobre as
motivações e necessidades dos envolvidos nos casos.
Vamos atacar agora separadamente o ponto em que tipos de habilidades não-
idiossincráticas são exibidas por sujeitos em casos mediúnicos; habilidades como tocar o
mesmo instrumento musical que o falecido dominava, ou escrever poesias, pintar ou mesmo
falar um idioma não-aprendido com semelhante desenvoltura da pessoa falecida. Advirto,
porém, que o acima exposto sobre a habilidade de personificação também pode ser aplicado
aqui (e vice-versa), sendo a divisão entre habilidades idiossincrática (a personificação) e não-
idiossincráticas estabelecida meramente com fins didáticos.
Recapitulando o raciocínio de sobrevivencialistas, lembramos que eles geralmente
argumentam que o médium nunca esteve exposto à habilidade relacionada ao caso (ou se teve,
o tempo de exposição foi mínimo e incompatível com o suposto alto nível de proficiência
exibido). Concluem então que a hipótese de o falecido estar possuindo o organismo do médium
é a opção mais parcimoniosa, justamente porque habilidades são coisas que as pessoas
desenvolvem somente com a prática – ao contrário da mera aquisição de conhecimentos
proposicionais. Para sobrevivencialistas, habilidades não poderiam então ser comunicadas
normal ou paranormalmente, sem a submissão a algum período de prática. Você, por exemplo,
reconhecível em detalhes íntimos, por vários indivíduos e em ocasiões separadas.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
98
por mais que estudasse tudo a respeito, acumulando grande quantidade de informação, não
conseguiria de uma hora para outra falar japonês com proficiência, tocar piano com
desenvoltura ou imitar um Rembrandt ou Caravaggio sem ter sido exposto a algum processo
usual de prática (de fato, muita prática e treinamento!). Contudo, algumas objeções podem ser
feitas sobre tal argumento. Vejamo-las nos parágrafos que se seguem.
Em primeiro lugar e talvez o mais importante, devemos estar atentos sobre o problema
da confiabilidade dos dados. Alguns casos podem não ter sido bem documentados,
consequentemente falhar em demonstrar que o médium, de fato, teve em seu passado alguma
exposição normal à habilidade apresentada.
Em segundo lugar, enquanto a prática pode ser indispensável para aperfeiçoar uma
habilidade, é questionável que ela seja essencial para alguém manifestar uma habilidade
(mesmo que notável) pela primeira vez. Observe, por exemplo, o caso do garoto húngaro Erwin
Nyiregyhazi. Antes de receber lições formais de música aos cinco anos de idade, com dois já
reproduzia as músicas cantadas para ele. Até o fim do seu terceiro ano demonstrava afinação
perfeita, reproduzindo na gaita qualquer melodia que lhe cantavam; e aos quatro tocava piano
e compunha (Feldman e Morelock, 2003)77. Conforme ressalta Braude (2003): “de fato,
prodígios musicais como Mozart, Mendelssohn e Schubert, e prodígios matemáticos tal como
Gauss, usualmente manifestam excepcionais habilidades antes de aperfeiçoar ou desenvolvê-
las através da prática”78; e para nosso conhecimento "não temos nenhuma razão para pensar
que os sujeitos nos casos de sobrevivência demonstram níveis de perícia mais impressionantes
que (digamos) as primeiras exibições de musicalidade de Mendelssohn". Esse raciocínio
claramente elucida casos como os da médium britânica Rosemary Brown, que alegava canalizar
músicos famosos (a exemplo de Chopin e Schubert). A produção musical da Sra. Brown (apesar
de qualitativamente controversa) chegou a receber reconhecimento que seu estilo e qualidade
guardavam semelhanças com os supostos autores clássicos que alegava canalizar. Seja como
for, o fato é que a médium já havia recebido alguma educação musical (ainda que modesta) e
exposta a concertos e música clássica, o que – para uma pessoa prodígio – já poderia ser
77 Extreme Precocity: Prodigies, Savants, and Children of Extraordinarily High IQ
<http://www.davidsongifted.org/db/Articles_id_10467.aspx> Acessado em 07/01/2015. 78 Op. Cit., p. 117.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
99
suficiente para exibir níveis de proficiência bem mais elevados do que a maioria das pessoas
com anos de prática.
Em terceiro lugar, excluída a habilidade relacionada ao caso (musical, pictórica,
literária, linguística, etc.), os médiuns desses casos geralmente não fornecem nenhuma outra
evidência que pudesse sugerir que os falecidos (alegadamente canalizados) estão de fato se
comunicando. Por exemplo, a médium estadunidense Pearl Curran, por influência do suposto
“espírito” de uma inglesa do século XVII, autoaclamada Patience Worth, elaborou
extraordinárias, gigantescas e numerosas peças literárias, romances, histórias, poemas, etc., de
forma prodigiosamente fluente, sem erros e revisões, de improviso ou não, com recorrente uso
de locuções dialéticas obsoletas e arcaicas (as quais não eram familiares inclusive para leitores
bem-educados), além de revelar um conhecimento histórico e geográfico corretamente
contextualizado com seus trabalhos. Embora toda a produção de Patience
incomensuravelmente superasse a educação e o conhecimento que Pearl adquiriu normalmente
na vida, Patience nunca forneceu uma única peça de informação capaz de corroborar a sua
alegada existência terrena, ou então, transmitir informações verificáveis de outros “espíritos”,
como é usualmente feito pelas personalidades controles. Além disso, conforme Braude analisa
entre as páginas 133-175 de seu Immortal Remains, o caso todo carrega algumas outras
conjecturas que Patience era um tipo de facilitador para a liberação das mais altas capacidades
criativas, intelectuais e mnemônicas em estado de latência e as quais somente conseguem ser
reveladas através de estados de consciência anormais ou dissociados79.
79 Por exemplo, assim como crianças prodígios, Pearl também tinha problemas na escola, achando seus professores
tediosos ou detestáveis; sua adolescência foi estressante, sendo pressionada a ser mais convencional do que ela
realmente era. Além disso, Pearl era uma pessoa marcadamente inteligente e cujo alto potencial estaria sendo
sufocado por pressões de um contexto social que desprezava os feitos femininos, o que é reforçado pela
personalidade acérbica e não ortodoxa de Patience; a circunstância de o gênio literário de Pearl manifestar-se
somente na fase adulta – diferente dos casos de prodígios regulares que mostram insights de genialidade desde
tenra idade – pode ser explicado pelo fato de Pearl ter tido poucas oportunidades para expressar seus dons literários,
o que somente conseguiu ao ser exposta à tábua ouija, sendo que o contexto espiritualista poderia ter-lhe servido
de cobertura para a responsabilidade pessoal diante da liberação de ideais não ortodoxas e politicamente incorretas
através de Patience; ademais, o nome composto Patience Worth pode revelar a tendência de pacientes com distúrbios de múltiplas personalidades (MPD/DID) escolher nomes aliterativos para suas alteres personalidades.
Por último e para rebater o argumento de que ainda os sujeitos prodigiosos necessitam de um período de gestação
para praticar e treinar seus dons criativos extraordinários (benefício que Patience aparentemente não teve), Braude
adota a conjectura que Patience, antes de sua manifesta aparição, já existia por algum tempo como uma
personalidade alternativa e autoconsciente e que gradualmente desenvolvia seus potenciais cognitivos e suas
peculiaridades (possivelmente a partir do momento que Pearl foi apresentada a ouija, por volta de seus 30 anos de
idade, i.e., um ano antes de Patience publicamente se revelar). Contra o argumento de que seria muito duvidoso
uma personalidade alternativa existir e ainda praticar habilidades literárias por um ano sem ser detectada, Braude
ressalta que em casos de MPD/DID não é infrequente que aqueles que têm um amigo ou cônjuge com MPD
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
100
Em quarto lugar, por todo o presente trabalho estamos discutindo capacidades humanas
inabituais que transcendem os modos usuais de aquisição de informações, então devemos
também estar abertos para o fato de que a exposição a determinados tipos de habilidades pode
assumir um tipo extrassensorial. Por exemplo, sobre o caso Jensen, um doutor da Filadélfia
descobriu que sua esposa era um bom sujeito hipnótico. Após algumas sessões hipnóticas de
regressão, ela começou a falar sueco, manifestando uma personalidade chamada “Jensen”.
Braude então destaca que a grande quantidade de fala sueca somente foi produzida após falantes
dessa língua começarem a frequentar as sessões, o que sugere a influência telepática dos
assistentes sobre o sujeito. Idêntico raciocínio pode ser aplicado para as habilidades literárias
de Pearl/Patience Worth (se bem que aqui as fontes potenciais de informações permanecem até
hoje obscuras)80.
julguem-no confuso, distraído, excêntrico, inconstante e com problemas de humor sem dar conta que seu amigo
ou companheiro padece de dissociação da personalidade. Então algo similar poderia ter acontecido com Pearl,
ainda que a massa dos testemunhos não ratifique comportamentos inabituais ou estranhos por parte dela. 80 Idem, p. 125.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
101
4. Casos mediúnicos: Sobrevivência post-mortem (S) ou Living Agent Psi (LAP)?
No presente trabalho expus o tanto quanto possível as pressuposições que subjazem as
duas hipóteses aqui rivalizadas, além de apresentar resumidamente os principais argumentos
contra e a favor de S ou LAP no que concerne aos casos de mediunidade. Pelo que observamos,
nos casos em que uma explicação normal é insuficiente, os dados de mediunidade infelizmente
não permitem escolhas claras sobre qual hipótese paranormal deve responder pela
fenomenologia apresentada. A principal razão disso decorre de nosso ainda empobrecido
conhecimento sobre o funcionamento de psi, mais especificamente sobre suas limitações (se é
que existem).
Se nós considerarmos a psi ilimitada (ou muito poderosa) em escopo e refinamento, de
um lado, isso capacitaria o médium a proezas magníficas, fazendo o apelo a ação de uma
inteligência desencarnada algo não impossível, porém gratuito para explicar os casos de
mediunidade. Por outro lado, e ironicamente, quanto mais admitirmos uma psi superpoderosa,
maiores dificuldades teremos de adequá-la a um modelo fisicalista, e nesse caso abrimos brecha
para a existência de mentes desencarnadas, inclusive com poderes para influenciar o nosso
mundo terreno (como a mente/cérebro de médiuns).
Do lado reverso da moeda, tivemos também a oportunidade de analisar o Argumento da
Complexidade Restritiva de Stephen Braude (p. 75 e segs.), e penso que esse filósofo
desenvolveu o mais claro (e talvez cogente) raciocínio sobre a existência de limites a psi, ao
menos no plano prático de nosso dia-dia. O argumento contextualiza os esforços psi dentro do
“fogo cruzado” de uma gigantesca rede de interações causais na qual o sucesso do
funcionamento psíquico estaria contrabalanceado com inúmeros fatores interferentes e de
bloqueio, sejam eles psi e não-psi, intencionais e não-intencionais, ocultos ou aparentes. Agora,
isso não nos ajuda muito a escolher uma das hipóteses aqui rivalizadas, pois tanto a interação
psíquica entre vivos (médium e assistentes, por exemplo) e aquela entre o médium e o falecido
estariam sujeitas as mesmas causas interferentes dentro daquela enorme rede de causalidades,
incluindo formas de defesa psíquica e, principalmente, interferências não-relacionadas, mas
que eventualmente cruzam o caminho, involuntariamente prejudicando o sucesso-psi de
alguém.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
102
Sob essa perspectiva, a qual parece mais adequada a elucidar os sucessos e fracassos
dos médiuns, vemos que os dados de mediunidade são mutuamente compatíveis com as
hipóteses S ou LAP. Do ponto de vista da teoria da sobrevivência, por exemplo, as influências
telepáticas do falecido sobre o médium estariam diluídas numa grande rede de elementos
intervenientes, sejam eles em formas de psi (tais como as influências telepáticas dos assistentes
ou das demais pessoas vivas e, eventualmente, a influência de outros mortos também desejos
em se comunicar) e não-psi (a exemplo da presença de disposições físicas, psicológicas e
circunstanciais refratárias recaídas sobre o médium, como a fadiga, estresse mental, dor de
cabeça, problemas gerais de saúde, humor não favorável, ansiedade, preocupações financeiras
ou de relacionamentos pessoais ou de trabalho, demais eventos aleatórios que perturbam a
concentração ou mentalização, a sugestionabilidade do estado de transe, entre tantas outras).
Nesse cenário, é de muito bom senso concluir que o tateio mental do médium, por muitas
vezes, fique perdido diante de inúmeros elementos interferentes. Frases sem sentido e
fantasiosas podem ser confundidas como se provenientes do pretenso falecido, mas que não
passam de interferências do material produzido nas camadas subliminares da consciência do
médium (pensamentos, ideais e devaneios, etc.). Além disso, informações sensorialmente
“pescadas” ou mesmo adquiridas extrassensorialmente de pessoas vivas podem também ser,
com equívoco, atribuídas ao falecido. Todavia, naqueles momentos mais favoráveis, nas horas
de baixo "ruído", quando a interação médium-falecido vencesse o poder de interferência,
suplantando (ainda que momentaneamente) a concorrência dos incontáveis obstáculos, uma
límpida mensagem post-mortem poderia emergir em nosso mundo terreno.
Decerto sabemos que muitas personalidades mediúnicas podem ser facilmente rejeitadas
como produtos do inconsciente do médium, dramática e criativamente desenvolvidas dentro de
sua psique, ainda que de forma não-intencional, e com a ajuda (ou não) de capacidades
extrassensoriais (por exemplo, a maioria dos pesquisadores psíquicos considera os controles
“Phinuit” e “Feda” como personalidades secundárias das médiuns Piper e Leonard,
respectivamente). Por outro lado – e é o que já dissemos ser o aspecto cativante sobre a
mediunidade – é a presença de uma quantidade de casos que podem ser classificados como
formidáveis e os quais deveriam fazer o cético mais racional a, no mínimo, suspender sua
admissão de que todas as personalidades mediúnicas não passam de fases ou elementos da vida
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
103
psicológica do médium81.
Não por outra razão partilho do entendimento de Kelly (2010) quando diz que
Sem o conhecimento de todos os limites de psi ‘normal’ [“normal” para distinguir a psi de casos mediúnicos], era impossível dizer que as declarações de um médium
tinham atravessado esses limites e estabelecido a sobrevivência de uma pessoa
falecida. Tornou-se, e permanece até hoje, em grande parte uma questão de julgamento pessoal se alguém decide que as declarações de um médium são evidência para psi
entre pessoas vivas ou para psi entre o médium e uma pessoa falecida82.
De fato, desde o final do século XIX, os pioneiros da pesquisa psíquica reconheceram
esse impasse, então desenvolveram experimentos para reduzir as chances de o funcionamento
psíquico entre vivos responder pelas informações anomalamente adquiridas por médiuns, tais
como as (1) sessões por procuração e as (2) correspondências cruzadas. Além disso, voltaram
suas atenções aos (3) casos de comunicadores drop-in (p. 81/82; 18/19; e 47, respectivamente).
Enquanto em (2) e (3) a motivação para as comunicações parecia ser mais forte por parte da
pessoa falecida do que por quaisquer pessoas vivas, em (1) parecia haver uma redução das
chances de ser estabelecido um "link" entre o médium e as pessoas vivas que conheciam as
informações contidas nas comunicações (Kelly, idem). Porém, desgraçadamente nenhum desses
três tipos de caso é capaz de nos proporcionar escolhas inequívocas entre S ou LAP, sobretudo
à luz: (a) da possibilidade de que o simples interesse do médium em contatar os mortos já pode
ser suficiente para capacitá-lo a adquirir anomalamente informações sobre qualquer falecido
(enfraquecendo S diante de (2) e (3)); e (b) da evidência de que a psi é independente da
complexidade da tarefa (enfraquecendo S em face de (1)).
Agora, apesar de nossa atual incapacidade de imaginar um teste que nos capacite
determinar a fonte das informações anomalamente adquiridas por médiuns, não deveríamos nos
sentir desestimulados, muito menos partilhar do pessimismo de Rogo (1991) de que
[...]a maior mística da controvérsia da sobrevivência é exatamente esta
impenetrabilidade fundamental. Por causa de sua própria natureza, duvido que a
81 No presente trabalho citei alguns, tais como as personalidades da menina Katherine, de Edgar Vandy, de George
Pelham, de Runki, do tenente HC Irwin, do Sr. Talbot e do xadrezista Maróczy. Mas o número de casos acumulados
de fato é considerável, principalmente quando consideramos os arquivos da Society for Psychical Research, de
Londres. 82 Some Directions for Mediumship Research. Journal of Scientific Exploration, Vol. 24, No. 2, pp. 247–282, 2010.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
104
questão seja algum dia resolvida para a satisfação de todos. Esse tempo somente virá quando descobrirmos um método confiável pelo qual possamos manter contato
sistemático com os mortos e esse dia provavelmente nunca chegará.
Conforme destacam, respectivamente, Kelly (2010) e Gauld (1995), "claramente, há
muita coisa que poderíamos fazer para avançar a pesquisa sobre mediunidade tanto
metodológica quanto teoricamente" e "a pesquisa da imortalidade não é falta de coisas a fazer,
mas falta de fundos, que acarreta necessariamente falta de pessoal".
Rogo, por outro lado, parece acertar quando diz que "a melhor chance da parapsicologia
seria explorar mais aquelas linhas de indícios já em consideração". De fato, insistir nos tipos
de experimentos (1), (2) e (3) acima poderia nos proporcionar novos insights para lidarmos com
o problema da fonte das informações. Kelly (2010), por exemplo, aposta que seu teste com
sessões por procuração83 "sugere que podemos voltar a produzir resultados significativos com
[estes tipos de] pesquisas que podem, eventualmente, nos colocar em uma melhor posição para
desenvolver novas ideias para avaliar a hipótese da sobrevivência". Ao mesmo tempo,
poderíamos propor variações sobre aqueles três modelos experimentais e criar outros que
porventura tenham a nos contar muita coisa. Por exemplo, Gauld imagina experiências
direcionadas a obter comunicação mediúnica de pessoas vivas. Diz esse psicólogo:
Os comunicadores vivos poderiam defrontar-se com as mesmas dificuldades e cair nos mesmos pantanais que os desencarnados; e então poderíamos obter algumas pistas
sobre os mecanismos da comunicação, a sustentabilidade do que chamei de teoria da
influência [sobre essa teoria, veja p. 53 e seg.].
Poderíamos multiplicar trabalhos como os do Windbridge Institute84, fundado por Mark
Boccuzzi e a Dra. Julie Beischel, certificando sujeitos que efetivamente fornecem informações
anomalamente adquiridas sobre pessoas falecidas. De fato, um dos problemas da crítica contra
a sobrevivência é que algumas vezes pesquisadores e teóricos generalizam conclusões sobre
sujeitos que nunca demonstraram aquisição anômala de informações sobre a vida de pessoas já
falecidas.
83 No qual os assistentes são cegamente avaliados sobre suas leituras, da mesma forma que outras cinco leituras
de controle. 84 http://www.windbridge.org/
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
105
Ainda, poderíamos propor uma aperfeiçoamento de outros tipos de modelos
experimentais que também confrontam as hipóteses S e LAP. Por exemplo, Ian Stevenson et.
al. (1989)85 relatam que o ex-presidente da Society for Psychical Research, Robert H. Thouless,
concebeu um teste que, usando palavras-chave de seu exclusivo conhecimento, codificou duas
mensagens as quais então publicou. Thouless, enquanto vivo, convidou médiuns ou sensitivos
para tentar descobrir as palavras-chave, declarando sua intenção de comunicá-las, se pudesse,
após a sua morte. Nesse experimento, tal como em outros de mensagens cifradas, as atenções
ficam demasiadamente voltadas para um material verbal muito específico (as palavras-chave)
que, no final, pode ser contraproducente ou irrelevante. Contraproducente porque exige que,
após a morte, tenhamos guardado na memória uma informação muito específica, e não sabemos
que tipos de alterações a transição da morte – em hipótese – poderia provocar em nosso
funcionamento mental, consequentemente, não sabemos que tipos de memórias teríamos maior
probabilidade de reter (memória episódica, proposicional, etc.). Irrelevante porque, ainda que
o médium não consiga obter as palavras-chave, o fato de falhar repetidamente em adquirir via
PES quaisquer informações sobre o sujeito-alvo (quando vivo) e drasticamente passar a ter
ostensivo sucesso (após a morte deste), não faz do caso um fracasso. Muito pelo contrário,
resultados assim têm muito a nos dizer e, a princípio, favorecem uma visão sobrevivencialista.
Com isso em mente, poderíamos então projetar uma série de sessões por procuração, com uso
de protocolos de cegamento, em que médiuns autenticados seriam convidados a fazer repetidas
leituras psíquicas de pessoas moribundas, antes e depois da morte destas, contrastando o grau
de sucesso das leituras. Uma diferença significativamente positiva para acertos-post-mortem
talvez indique um papel ativo por parte do falecido (acertos incluem não apenas a avaliação de
material verbal, mas também a avaliação sobre a eventual manifestação de elementos do caráter
e de habilidades).
Paralelamente, poderíamos também apresentar a tais médiuns uma sequência de testes
psíquicos estimulantes (mas que não demandam a intromissão direta de alguém falecido), como
forma de averiguar o alcance e o refinamento de sua PES (por exemplo, em investigações
policiais e na procura de pessoas desaparecidas).
85 Two Tests of Survival After Death: Report on Negative Results. Journal of the Society Psychical Research [vol.
55, n. 815].
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
106
Do mesmo modo, e dada a evidência (ainda que anedótica) sobre obsessão, médiuns
poderiam tentar contato com supostos desencarnados que eventualmente guardam relação
parasitária com pacientes psiquiátricos (que repercussões haveria para a questão da
sobrevivência um processo de cura desse jeito?).
Igualmente, poderíamos nos debruçar sobre o problema de múltiplas fontes de
informação (MFI), solicitando dados (a) os quais os comunicadores acreditam que apenas eles
tinham conhecimento (quando vivos), mas que possam ser posteriormente verificados pelos
pesquisadores (vide o caso do livro mencionado pelo comunicador Sr. Talbot – p. 23); e (b)
dados de conhecimento privado entre o falecido e uma determinada pessoa. Ora, todos nós
interagimos socialmente com vários indivíduos, em diversos lugares, em diferentes momentos
e ocasiões, seja em casa, na academia, no trabalho, na rua, na internet, etc. Assim,
frequentemente, interagimos e travamos conversas com alguma pessoa sem que outras de
círculos de convivência distintos tenham conhecimento sobre o que foi feito ou dialogado.
Decerto, muito daquilo que testemunhamos e conversamos (ainda que sobre coisas banais e
irrelevantes) fica acidentalmente restrito a um grupo de convivência. Eu, por exemplo, posso
me lembrar de certos acontecimentos e conversas com (1) colegas de trabalho, (2) com colegas
de pesquisa psíquica e (3) com meus familiares os quais os sujeitos desses três círculos sociais
(a exceção de mim) não têm conhecimento sobre o que foi feito ou dialogado nos meus outros
círculos sociais que eles não pertencem. Então, se eu sobrevivesse à minha morte corporal e
fosse o tipo de mente desencarnada capaz de influenciar o cérebro/mente de um médium, seria
interessante transmitir através dele mensagens de múltiplos círculos sociais os quais eu
pertencia, forçando os partidários de LAP a postular que o médium fosse capaz de estabelecer
vínculos psíquicos com, no mínimo, três fontes de informação, enquanto para S bastaria ser
postulado somente o vínculo médium-falecido. Assim, ainda que o funcionamento psíquico do
médium possa dar conta de MFI, à luz do Argumento da Complexidade Restritiva existe uma
clara linha argumentativa favorável à hipótese S e que merece ser explorada (para mais, veja p.
79/80).
Além disso, melhorias na confiabilidade dos julgamentos sobre as mensagens são
sempre bem-vindas, como, de fato, os estudos recentes têm realizado (aplicação de métodos
quantitativos, protocolos com cegamento, critérios para cômputo de acertos e erros, leituras de
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
107
controle, etc.) [por exemplo, Beischel, J., e Schwartz, G. E (2007)86; Roy, A. E. e Robertson, T.
J. (200187, 200488, Kelly, E. W. (2010)89].
Ainda que jamais sejamos sorteados pela eventualidade da vida com aquilo que Braude
(2014) considerou o caso idealmente favorável à sobrevivência90, penso que se conseguíssemos
(a) acumular um grande conjunto de experimentos sobre mediunidade que favorecessem, ainda
que em pontos isolados e em diferentes graus, uma interpretação sobrevivencialista (em
detrimento ao funcionamento psíquico entre vivos) e; b) conjugássemos tais pesquisas a outras
fontes de evidência [tais como as experiências de quase-morte (EQMs), de saída do corpo
(EFCs) e de visões no leito de morte (Deathbed Visions), casos de Aparições dos mortos91 e de
crianças que alegam recordar uma vida passada92, além dos estudos psicofisiológicos de estados
alterados de consciência e sobre a psi “normal” (i.e., fora de contextos mediúnicos)], teremos
86 Anomalous information reception by research mediums demonstrated using a novel triple-blind protocol.
Explore, 3, 23–27. 87 A double-blind procedure for assessing the relevance of a medium’s statements to a recipient. Journal of the
Society for Psychical Research. 2001;65(3):161-174. 88 Results of the application of the Robertson-Roy protocol to a series of experiments with mediums and
participants. Journal of the Society for Psychical Research. 2004;68(1):
18-34. 89 Op. Cit. 90 Para Stephen Braude (2014) um caso ideal para a sobrevivência “seria [...] aquele que, embora talvez não
conclusivamente excluísse os apelos ao funcionamento psíquico entre vivos, não obstante esticaria essa hipótese
ao ponto de ruptura - aquele no qual até mesmo as pessoas simpáticas a essas conjecturas paranormais estariam
inclinadas a jogar a toalha. Então ele enumera as seguintes características para o caso idealmente favorável à
sobrevivência, a saber: 1. O caso seria etiologicamente distinto dos casos de DID ou de outras desordens
psicológicas. Por exemplo, os médiuns não devem ter um histórico documentado de psicopatologia [...]. 2. As manifestações do falecido (personalidade prévia ou comunicador desencarnado) não devem, à luz de uma
competente e profunda análise psicológica, servir a quaisquer aparentes necessidades psicológicas dos vivos. 3.
Essas manifestações devem fazer mais sentido (ou melhor, só fazer sentido) em termos de agendas ou interesses
razoavelmente atribuíveis ao falecido. 4. As manifestações devem começar, e devem ser documentadas, antes do
sujeito (ou qualquer pessoa no círculo de conhecidos do sujeito) ter identificado ou pesquisado a vida do falecido.
5. O sujeito deve fornecer fatos verificáveis e íntimos sobre a vida do falecido. 6. A história e o comportamento
do falecido (como revelados através do sujeito) devem ser reconhecíveis, em detalhes íntimos, por vários
indivíduos, de preferência em ocasiões separadas. 7. O sujeito deve também exibir algumas das habilidades ou
traços idiossincráticos do falecido. 8. Essas habilidades ou características devem ser tão estranhas para o sujeito
quanto possível, por exemplo, provir de uma cultura significativamente diferente. 9. As habilidades associadas ao
falecido devem ser de um tipo ou de um grau que geralmente requerem prática, e que são raramente (ou nunca) encontradas em prodígios ou savantes. 10. Para que os investigadores verifiquem as informações comunicadas
sobre a vida do falecido, deve ser necessário acessar múltiplas fontes física, cultural e geograficamente afastadas. 91 Excelentes revisões gerais, traduzidas para o português, sobre o tema de Aparições de pessoas vivas, moribundas
e mortas podem ser encontradas em Andrew Mackenzie, Fantasmas e Aparições (editora Pensamento), e G. N. M.
Tyrrell, Alucinações e Aparições (editora Ulisseia). 92 Para mais, veja diversos estudos do prof. Ian Stevenson, alguns deles já traduzidos para o português pela editora
Vida e Consciência. Além disso e principalmente, existem diversos artigos a respeito que podem ser encontrados
gratuitamente pela internet, inclusive no site da Division of Perceptual Studies, da Universidade da Virgínia, EUA.
<http://www.medicine.virginia.edu/clinical/departments/psychiatry/sections/cspp/dops/home-page>
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
108
boas chances de nos aproximar a uma resposta segura a respeito do impasse S vs. LAP.
Mas para isso é necessário muito dinheiro nessas áreas de pesquisa, além da conjugação
de esforços semelhantes àqueles empreendidos pelos pioneiros da pesquisa psíquica. De fato,
nas primeiras décadas de estudos sobre a mediunidade, os esforços não vinham apenas dos
pesquisadores, mas também de médiuns e assistentes enlutados; quando todos compreendiam
ao que Myers classificou como “a questão que mais importa ao homem”93. Convergentemente,
Kelly (2010) relata que:
Uma das impressões mais fortes que eu tomo a partir dos relatórios das sessões por procuração das décadas de 1920 e 1930 é o quanto esforço de equipe essa pesquisa
teve - por parte dos médiuns, que estavam dispostos a persistir ao longo de um
período de anos cooperando com os investigadores; por parte dos investigadores,
que também eram os assistentes por procuração e que desenvolveram uma relação
íntima e agradável com os médiuns ao realizar regularmente com estes sessões durante anos; e por parte dos assistentes enlutados que, como Oliver Lodge (1935:11)
observou, compreendiam ‘a importância de uma visão mais ampla do que a sua
própria e imediata tristeza e necessidade’. Com tal esforço colaborativo, podemos
mais uma vez produzir uma importante evidência de mediunidade, talvez até mesmo
algumas que poderiam em última análise mover-nos para além do impasse
sobrevivência/super-psi (grifamos).
Mas infelizmente não temos nos dias atuais o mesmo elevado nível de
comprometimento que os pioneiros tiveram. “Há menos pessoas ricas e com tempo livre, e
algumas das investigações que seriam hoje desejáveis requereriam equipamento científico
sofisticado e dispendioso” – adverte Gauld. Além disso, – e prossegue esse psicólogo:
Os governos e agências que concedem verbas não têm fundos suficientes sequer para os problemas deste mundo, e certamente não subsidiarão o estudo dos problemas
relativos ao outro. Se apenas um número suficiente de indivíduos interessados pudesse
se reunir e contribuir com seu dinheiro e seu tempo, poderíamos esperar um progresso
harmonioso, em vez de fragmentário.
Fecho aqui este trabalho com o sentimento de ter resumido as principais questões
relacionadas à interpretação de casos de mediunidade, especificamente nos episódios em que
uma explicação “normal” é prontamente afastada. Informo ainda que tenho a meta de
constantemente revisar e ampliar o presente trabalho. Então, continue acompanhando o site
debatepsi.com para mais novidades.
93 A Personalidade Humana, p. 11.
Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015]
www.debatepsi.com
109
BIBLIOGRAFIA
A bibliografia está pontualmente indicada nas notas de referência.