Quando os Mortos Respondem: um Exame Crítico das Perspectivas Sobrevivencialista e da Interação...

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Debate Psi Uma Compilação da Evidência [Ano I, 2015] www.debatepsi.com 1 QUANDO OS MORTOS RESPONDEM: UM EXAME CRÍTICO DAS PERSPECTIVAS SOBREVIVENCIALISTA E DA INTERAÇÃO PSÍQUICA ENTRE VIVOS COMO MODELOS EXPLANATÓRIOS PARA OS CASOS DE MEDIUNIDADE por André Luís Neves Soares 1 1. Introdução Relatos de fenômenos psíquicos anômalos sempre existiram na humanidade. Sonhos premonitórios, coincidências bizarras, testemunhos de aparições de mortos e casas reputadas mal assombradas sempre foram uma constante no decorrer da história da humanidade. Antes do século XVII, poderíamos dizer que a perspectiva de um Cosmos pleno de propósitos, significado e de Entidades sobre-humanas gozava de total imunidade na cabeça das pessoas. Com o desenrolar da revolução científica, do antropocentrismo e do iluminismo, a superstição diante do desconhecido começou a desvanecer-se, cedendo espaço para o racionalismo científico. Assim, à medida que o homem descortinava alguns dos segredos do Universo, gradativamente a perspectiva daquele Cosmos pleno de significado e de propósitos, governado por uma Mente Suprema, abria espaço para a visão mecanicista de mundo. Na metade do século XIX, esse novo modo de pensar ainda ganhou novo impulso pela difusão das ideais de Darwin. Nessa transformação social, o paranormal foi banido da existência, embora ainda se admitisse que a vontade de Deus pudesse interromper o curso natural de causalidade. Newton, por exemplo, pensava que Deus poderia, ocasionalmente, intervir para ajustar a órbita dos planetas (Griffin, 1997 2 ). Nos últimos quatro séculos, o materialismo-mecanicista persiste como a corrente popular da ciência, guindo nossa visão de mundo, sendo ensinado como a “verdadeira realidade” em nossas instituições e livros escolares. Mas o que a maioria das pessoas não sabe é que o mecanicismo é apenas uma inferência sobre 1 Advogado, com formação jurídica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, contando com mais de 10 anos de estudos sobre pesquisa psíquica, incluindo, logicamente, o fenômeno de mediunidade. Atualmente mantém o site parapsi.com com o objetivo de divulgar amplamente a evidência acumulada sobre fenômenos psi. Para contato, via facebook, acessar o seguinte endereço de perfil: https://www.facebook.com/andresoares01. 2 Parapsychology, Philosophy and Spirituality: a postmodern exploration. Ed. State University of New York.

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QUANDO OS MORTOS RESPONDEM: UM EXAME CRÍTICO

DAS PERSPECTIVAS SOBREVIVENCIALISTA E DA INTERAÇÃO

PSÍQUICA ENTRE VIVOS COMO MODELOS EXPLANATÓRIOS

PARA OS CASOS DE MEDIUNIDADE

por André Luís Neves Soares1

1. Introdução

Relatos de fenômenos psíquicos anômalos sempre existiram na humanidade. Sonhos

premonitórios, coincidências bizarras, testemunhos de aparições de mortos e casas reputadas

mal assombradas sempre foram uma constante no decorrer da história da humanidade. Antes

do século XVII, poderíamos dizer que a perspectiva de um Cosmos pleno de propósitos,

significado e de Entidades sobre-humanas gozava de total imunidade na cabeça das pessoas.

Com o desenrolar da revolução científica, do antropocentrismo e do iluminismo, a superstição

diante do desconhecido começou a desvanecer-se, cedendo espaço para o racionalismo

científico. Assim, à medida que o homem descortinava alguns dos segredos do Universo,

gradativamente a perspectiva daquele Cosmos pleno de significado e de propósitos, governado

por uma Mente Suprema, abria espaço para a visão mecanicista de mundo.

Na metade do século XIX, esse novo modo de pensar ainda ganhou novo impulso pela

difusão das ideais de Darwin. Nessa transformação social, o paranormal foi banido da

existência, embora ainda se admitisse que a vontade de Deus pudesse interromper o curso

natural de causalidade. Newton, por exemplo, pensava que Deus poderia, ocasionalmente,

intervir para ajustar a órbita dos planetas (Griffin, 19972). Nos últimos quatro séculos, o

materialismo-mecanicista persiste como a corrente popular da ciência, guindo nossa visão de

mundo, sendo ensinado como a “verdadeira realidade” em nossas instituições e livros escolares.

Mas o que a maioria das pessoas não sabe é que o mecanicismo é apenas uma inferência sobre

1 Advogado, com formação jurídica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, contando com mais de 10 anos

de estudos sobre pesquisa psíquica, incluindo, logicamente, o fenômeno de mediunidade. Atualmente mantém o

site parapsi.com com o objetivo de divulgar amplamente a evidência acumulada sobre fenômenos psi. Para contato,

via facebook, acessar o seguinte endereço de perfil: https://www.facebook.com/andresoares01. 2 Parapsychology, Philosophy and Spirituality: a postmodern exploration. Ed. State University of New York.

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como enxergar a realidade. Ele não é de nenhuma maneira a única interpretação racional dos

fatos e fenômenos do mundo. Aliás, existem diversos fatos e fenômenos já submetidos ao

escrutínio do método científico (como os abaixo apresentados) que, se considerados, mostram

que o materialismo simplesmente deve ser rejeitado como uma explicação racionalmente

válida. Nesse ponto, Rhine (1965)3, refletindo sobre o lugar da Mente na natureza, já comentava

Entretanto, bastante estranhamente, não há quem afirme ter provado que a mente é material. Não se registra qualquer teoria física do processo mental consciente. É

extraordinário que um ramo da ciência aceite uma opinião sobre a mente não só sem

qualquer prova positiva mas sem mesmo formular uma hipótese não comprovada que

o justifique. Semelhante atitude só se pode caracterizar como de pura opinião, como

ato de ‘fé’. Entretanto, tornou-se quase tão característica dos círculos científico e das

salas de aula como a crença na alma tem sido a das escolas de teologia.

Vemos assim que o materialismo-mecanicista vai além de uma hipótese científica. Ele

é uma forte ideologia. É uma resposta social a superstição e a irracionalidade que levaram o

homem a praticar diversas atrocidades no passado. Essa ideologia está tão fortemente enraizada

na sociedade atual que qualquer ameaça (ainda que racional) é dogmaticamente rejeitada. Desse

modo, é comum os experimentos científicos que demonstram fendas no programa materialista

serem tratados como ciência de 2ª linha ou paraciência. Assim, e por ironia do destino, a

comunidade científica (diga-se, em algumas ocasiões) transforma-se no demônio a que sempre

disse combater: a irracionalidade.

No século XIX, esse mecanicismo chegou a ser levemente ameaçado pelo nascimento

do espiritualismo, não porque tal movimento social estimulava o renascimento irracional do

sobrenatural, mas porque alguns dos fenômenos ditos paranormais estavam sendo confirmados

pelos mesmos métodos utilizados pela ciência moderna. Debates ferozes se estenderem nos

círculos científicos da época, reputações foram manchadas, sociedades foram formadas para

investigar de forma imparcial alegações paranormais e prestigiosos homens da ciência

defenderam a existência de certos fenômenos anômalos, tais como a telepatia, a clarividência e

a psicocinese.

Tudo começou precisamente em 1848, quando a história de contatos com os mortos

transformou-se num movimento social por ocasião de um caso típico poltergeist, em

3 O Alcance do Espírito. ed. Bestseller.

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Hydesville, EUA. A enorme repercussão das meninas Margarett e Kate Fox "contaminou"

diversas pessoas na América (mais tarde na Europa), quando muitos passaram a acreditar serem

possuidores de poderes psíquicos. Os fenômenos espíritas, como então eram chamados,

basicamente se reduziam a efeitos físicos, a exemplo de pancadas sem contato que pareciam ser

comandadas por alguma inteligência (os espíritos dos mortos, diziam os espiritualistas). Quatro

anos mais tarde, o fenômeno das batidelas (ou tiptologia) virou moda nos círculos sociais

ingleses e franceses.

Numa conferência em 1882, William Barrett, renomado físico do período vitoriano,

propôs a fundação da Society for Psychical Research (S.P.R)4, instituição ainda ativa que conta

em sua biografia com os mais célebres pesquisadores, incluindo quatro prêmios Nobel, John

William Strutt (Lord Rayleigh), Charles Richet, J. J. Thomson e Henri Bergson, notórios

intelectuais que posam na história dessa Sociedade ao lado de outros gigantes do conhecimento,

como William James, Henry Sidgwick, William Crookes, F. W. H. Myers, Sir Oliver Lodge,

Alfred Russel Wallace, F. C. S. Schiller, William McDougall, C. D. Broad, Robert H. Thouless,

G. N. M. Tyrrell, Gardner Murphy, Carl Jung e Ian Stevenson. Ao longo dos tempos, os

membros e colaboradores da Sociedade produziram uma massa absurdamente gigantesca de

evidências a favor de manifestações psíquicas paranormais, inclusive a de mentes

desencarnadas serem capazes de se comunicar com algumas pessoas especialmente dotadas.

As primeiras experiências de percepção extrassensorial foram associadas ao hipnotismo.

Vide as pesquisas do Dr. E. Azam, Pierre Janet e Edmund Gurney, por exemplo. Na realidade,

uma feliz associação, pois alguns estudos apontam para o papel psíquico-condutivo do estado

hipnótico e de outros estados alterados da consciência. Então, pegando carona no movimento

espiritualista, por assim dizer, é que no século XIX foi presenciado o notável surto de interesse

na percepção extrassensorial e na psicocinese (i.e., a influência de pensamentos e intenções

sobre objetos ou sistemas físicos). Podemos citar as pesquisas de René Warcollier e Pierre Janet.

Por exemplo, R. Tocquet (1967)5 menciona que numa das experiências, R.W fixou o olhar num

cartão postal holandês datado de 1952, cartão esse que reproduzia moinhos de vento à beira

dum canal. Em seguida esse cartão postal lhe lembrou inconscientemente um outro cartão postal

4 http://www.spr.ac.uk/ 5 Os Poderes Secretos do Homem: um balanço do paranormal. São Paulo: Ibrasa.

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representando três jovens holandesas com coifas, de braços dados e que ele trouxera de Utrecht

em 1953. A percipiente, Mme. T., escreveu: “mulheres de braços dados, de coifas. Paisagem

holandesa, moinhos de vento, tulipas, canais floridos”. Pierre Janet cita o caso de uma paciente,

Josephine, que reproduzia simpaticamente todas as impressões sensoriais de seu hipnotizador,

isolado num outro aposento. Se bebia, ela realizava movimentos de deglutição; se beliscava o

braço ou a perna, ela se indignava. Uma queimadura fê-la dar gritos horríveis e indicou o lugar

exato que correspondia à lesão do operador hipnótico.

Paralelamente, muitas pessoas à época passaram a declarar serem possuidoras das mais

variadas habilidades paranormais, tais como a capacidade de movimentar objetos sem contato

(psicocinese), a de ler pensamentos (telepatia), a de observar remotamente certos

acontecimentos sem o uso dos sentidos normais (clarividência), a de conhecer o futuro

(precognição) ou até mesmo a de se comunicar com os mortos (mediunidade). Muito embora a

grande maioria dos casos possa ser rejeitada pela fraude; autoilusão; uso de controles

experimentais inadequados; relatórios mal feitos; vieses do experimentador; permanece na

literatura psíquica um resíduo de casos que não pode ser explicado pelas hipóteses “usuais”.

Por exemplo, os extensos relatórios das sessões de Leonora Piper, de Gladys Orborne Leonard

e de Stefan Ossowiecki não deixam dúvidas de que, no mínimo, algumas pessoas possuem

certas faculdades psíquicas completamente anômalas, como a telepatia e a clarividência nesses

casos.

A metodologia usual (antes da Era Rhine) resumia-se principalmente na execução das

séances (sessões) nos círculos europeus e dos EUA, quando os fenômenos produzidos pelo

psíquico ou médium eram analisados num aposento, geralmente com baixa luminosidade, por

pessoas interessadas, incluindo crédulos, mas também intelectuais e cientistas da época.

Durante essas sessões, muitos médiuns foram descobertos em fraude, a exemplo de Eusapia

Paladino, Henry Slade, Florence Cook, Marthe Béraud e Margery Crandon. É bem verdade que

as medidas antifraudes foram sendo aperfeiçoadas com as experiências, conforme resumiu

Fodor e Lodge (1952)6:

6 Fodor, Nandor e LODGE, Oliver. Encyclopedia of Psychic Science.

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Com o desenvolvimento da ciência dos sistemas de imposição, cada vez mais controles eficientes foram evoluindo. As mangas e as calças dos Irmãos de Davenport

foram amarradas em Bangor, E.U.A., Politi foi levado à Sociedade de Pesquisa

Psíquica de Milão num saco de lã, Mme. D 'Esperance, Senhorita Wood e Senhorita Fairlamb foram atadas em redes como peixes para prevenir simulação durante suas

sessões de materialização, Srta. Florence Cook foi trancada (num circuito elétrico),

Bailey foi fechado em uma gaiola com rede de mosquito na Austrália, Eusapia

Paladino foi amarrada pelo Prof. Morselli na poltrona com uma faixa espessa e larga

de fita cirúrgica do tipo usado em hospícios para segurar maníacos, e Rudi Schneider

estava sob um controle triplo formidável no National Laboratory of Psychical

Research.

Passada essa pequena incursão histórica sobre experiências psíquicas anômalas, convém

desde logo destacar o termo psi, que será abundantemente mencionado no decorrer do presente

artigo. De acordo com o psicólogo e professor emérito da Cornell University, Daryl J. Bem

(2011)7, a psi

denota o processo de transferência de energia ou informação que é atualmente inexplicável em termos de mecanismos físicos ou biológicos. O termo é puramente

descritivo; ele não implica que o fenômeno seja paranormal e não sugere nada a

respeito de seus mecanismos subjacentes.

Fenômenos psi historicamente encobrem a telepatia, a aparente transferência de

informação de uma pessoa a outra sem a mediação dos canais sensórios conhecidos; a

clarividência, a percepção de objetos ou eventos os quais não excitaram quaisquer dos canais

sensórios conhecidos; a precognição (cognição consciente) e a premonição (apreensão

afetiva) de um evento futuro que não poderia ser antecipado por qualquer processo inferencial;

e a psicocinese, a aparente influência de pensamentos e intenções sobre processos físicos ou

biológicos (Bem, idem).

Este artigo objetiva analisar criticamente as duas principais explicações supernormais

para os casos de Mediunidade, a saber: a hipótese da sobrevivência post-mortem e a do

funcionamento psíquico entre vivos. O trabalho detalha pormenorizadamente cada uma dessas

conjecturas, ressaltando ao leitor os mais notáveis argumentos contra e a favor a cada uma das

posições aqui rivalizadas, além de apresentar todas as pressuposições que subjazem esses dois

7 Feeling the Future: Experimental Evidence for Anomalous Retroactive Influences on Cognition and Affect.

Journal of Personality and Social Psychology, 2011, Vol. 100, No. 3, 407–425.

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modelos explanatórios e as quais quase sempre são ignoradas dentro das discussões sobre

Mediunidade.

Oportuno advertir que o presente exame crítico-filosófico estender-se-á dentro, mas

também para além da argumentação científica, porque as duas hipóteses rivais abaixo

apresentadas são suportadas em certos momentos por algumas assunções não-empíricas e

altamente controversas. Por outro lado - e é o que faz o tópico da mediunidade ser tão cativante

- são os relatos de casos de alguns médiuns extraordinários, exaustivamente testados sob

condições controladas, que tornam uma explicação “normal” (com uso de artefatos

experimentais, fraude deliberada ou inconsciente, vazamento sensorial, vieses de expectativa,

coincidências, etc.) até mesmo irracional. E dentre esses fantásticos médiuns, sem dúvida as

Sras. Leonora Piper e Gladys Osborne Leonard são as figuras mais destacadas para qualquer

pessoa de bom senso que esteja a par da literatura psíquica.

Para o leitor que discorda deste meu posicionamento, apostando ainda suas fichas no

sentido de que os melhores casos de mediunidade podem ser respondidos por um paradigma

"normal" (e não supernormal), sugiro a leitura dos extensos relatórios de casos relacionados às

médiuns acima indicadas e que foram publicados por décadas nos jornais e nas atas da Society

for Psychical Research, de Londres. Ademais, e para fazer justiça a produção mediúnica, os

casos dessas senhoras de nenhuma maneira mostram-se isolados, havendo na história da

pesquisa psíquica muitos outros médiuns que manifestaram fenômenos os quais racionalmente

demandam explicações com suporte em faculdades extrassensoriais ou de ação à distância sem

contato. Alguns resumos de casos desses outros médiuns também veremos aqui.

Agora, para aqueles que – igual a mim – fracassaram em enquadrar a fenomenologia

mediúnica (ao menos aquela emergida dos melhores casos) em explicações “normais”, porém

ainda possuem uma tendência conservadora, posso dizer que todo o conteúdo do presente

trabalho permanece coerente, ainda que considerássemos unicamente a produção mediúnica das

duas médiuns supracitadas [e para um excelente resumo que rebate as explicações “normais”

sobre Piper e Leonard, veja o capítulo 3 de Randi's Prize - What Sceptics Say About the

Paranormal, Why They are Wrong and Why it Matters, de Robert Mcluhan].

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A característica mais marcante dos casos mediúnicos (doravante também CMs) é o fato

de um sujeito (comumente conhecido como médium) obter, à revelia dos sentidos sensoriais,

informações verídicas sobre a vida de uma pessoa morta e situações ocorridas nas vidas de

pessoas ligadas ao falecido. CMs também são caracterizados por uma roupagem

“transcendental”, porque as informações percebidas pelos médiuns vêm pretensamente no

ponto de vista do falecido, além de conterem claras referências de uma existência - e de um

mundo - espiritual. A interpretação pelo valor de face de casos mediúnicos, ou seja, de que

algumas pessoas falecidas podem telepaticamente influenciar os vivos, será daqui em diante

chamada de a hipótese da sobrevivência ou simplesmente hipótese S.

Contudo, acima dessa aparência, CMs também podem ser interpretados como exemplos

de psi exercida pelo médium o qual, de forma inconsciente, dramatiza uma suposta

comunicação com pessoas mortas. De fato, em alguns lapsos críticos CMs parecem indicar o

esforço de uma mente desincorporada em se comunicar com os vivos, porém, em outros

momentos, o que vemos é a ação de uma fértil imaginação do médium (ou de algum álter ego

nele manifestado) misturada com claros exemplos de obtenção de informações da mente dos

vivos por meios telepáticos, amontoando-se tudo isso dentro de um contexto espiritualista cujo

autor pretensamente seria alguém falecido. Então aqui podemos frisar, desde logo, algumas das

principais razões porque CMs são tão dúbios de decifrar:

Em primeiro lugar, existe uma marcante ambiguidade sobre a interpretação das fontes

de informações captadas através de psi. Há exemplos que suportam, de um lado, a comunicação

post-mortem, e de outro, casos em que o médium obtém informações sobre a vida do falecido

a partir de fontes mundanas, seja através da telepatia com pessoas as quais conheciam

circunstâncias a respeito do falecido, ou então, pelo uso da clarividência com foco em registros

físicos que continham informações relacionadas ao morto. Para esta última interpretação dos

casos, na qual o funcionamento psíquico dos vivos seria exclusivamente responsável pelos

aspectos supernormais encontrados nos cenários mediúnicos, utilizaremos a nomenclatura

cunhada pelo filósofo Michael Sudduth, Living Agent Psi, ou simplesmente hipótese LAP.

Em segundo lugar, nos melhores casos mediúnicos as informações chegam com

frequência de um modo a refletir nitidamente o ponto de vista do falecido, não apenas em

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relação ao conteúdo, mas também através do uso da linguagem, tom de voz, comportamentos e

maneirismos próprios de uma pessoa morta. Por outro lado, ainda os melhores médiuns

compartilham características etiológicas típicas de pessoas com distúrbios dissociativos e outras

desordens da personalidade. Por exemplo, não raro a mediunidade é despertada após certa

experiência traumática na vida do médium. Além disso, algumas personalidades falecidas são

claramente fictícias ou estereotipadas, cristalinos exemplos de personificação inconsciente.

Em terceiro lugar, alguns médiuns exibem habilidades associadas ao falecido, tais como

falar um idioma estrangeiro, pintar, escrever obras literárias, jogar xadrez ou falar com

desenvoltura assuntos técnicos de conhecimento do morto. Sobrevivencialistas frequentemente

sustentam que tais acontecimentos são fortemente sugestivos de sua posição, porque requerem

um “conhecimento-como”, i.e., um conhecimento o qual somente a repetida prática e

treinamento podem permitir alguém desenvolver certa habilidade. Quando esses casos

aparecem, sobrevivencialistas ocasionalmente investigam o passado do médium e concluem

que ele ou nunca teve o benefício da prática sobre a habilidade relacionada ao caso, ou se teve

algum contato, foi insignificante a ponto de permitir que o médium, inconsciente ou

conscientemente, a desenvolvesse na extensão apresentada dentro das sessões mediúnicas.

Todavia, como o filósofo Stephen Braude (2003) assinala,

O terceiro problema com a literatura sobre sobrevivência é que ela falha em abordar assuntos centrais relacionados à natureza e aos limites das habilidades humanas,

especialmente aquelas emergidas da (a) vasta literatura sobre dissociação, (b) do

estudo de savantes e prodígios e (c) da crescente literatura sobre sujeitos altamente

dotados e inteligentes, mas que [atingem resultados frustrantemente abaixo do

esperado]. A relevância de (a) é que na hipnose, na múltipla personalidade e em certas

formas de automatismo, a dissociação parece liberar ou permitir o desenvolvimento

de habilidades que presumivelmente não teriam sido manifestadas de outra forma. A

relevância de (b) é que prodígios e savantes (e ainda pessoas comuns) podem exibir

habilidades sem a submissão aos processos normais de aprendizagem e de prática, e

(talvez o mais importante) na ausência de outras habilidades e capacidades que poderíamos esperar ocorrer paralelamente [...]. Além disso, tanto (a) quanto (c)

fortemente sugerem que nós todos podemos ser reservatórios de latentes criatividades

e inteligências.

Em quarto lugar, investigadores de casos sugestivos de sobrevivência post-mortem

raramente prestam aprofundada atenção sobre os elementos psicológicos envolvidos no caso.

Esse ponto é de especial importância para determinar se o médium tem interesses, necessidades

de sub-repticiamente usar, consciente ou inconscientemente, habilidades psíquicas para criar

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evidências (ou influenciar eventos) de um modo a sugerir a sobrevivência após a morte (Braude,

idem). Novamente, na histórica da pesquisa psíquica temos uma miscelânea de exemplos, os

quais ora sugerem um baixo nível de interesse do médium (e.x., bons casos de comunicadores

“drop-in”), ora indicam uma carência psicológica, uma profunda necessidade na existência de

fenômenos que respaldem a crença numa vida após a morte.

1.2. Levando o debate para bases racionais

Pessoas podem acreditar numa vida após a morte por diversos motivos, a despeito de

qualquer análise imparcial (ou mesmo de conhecimento) sobre fenômenos que poderiam

contribuir para essa crença. Muitos se sentem desconfortáveis com a ideia da própria extinção

ou de seus entes queridos, outros sofrem a influência de doutrinas religiosas ou filosóficas que

pregam a sobrevivência à morte. Alguns passam por experiências místicas ou no limiar da morte

que favorecem uma perspectiva de transcendência. Ainda há aqueles que necessitam acreditar

na existência de uma “outra vida” como forma de justificar seus preceitos morais e suportar a

aleatoriedade e a injustiça do mundo. Todos esses elementos não são mutuamente exclusivos,

podendo, portanto, agir em conjunto para reforçar cada vez mais o sistema de crença numa

“vida futura”.

De outro lado, existem importantes debates filosóficos sobre a (ir)redutibilidade causal

da mente ao cérebro, além de alguns fenômenos críticos que lançam um desafio real ao

establishment fisicalista na comunidade científica, tais como a própria psi; casos de influências

psicofisiológicas extremas; exemplos de sujeitos com capacidade e precisão extremas de

informação; automatismos e centros secundários de consciência; o elevado nível de criatividade

dos gênios; a experiência subjetiva; a unidade da experiência consciente; e o fenômeno da

memória (Kelly, E. et. al., 2007). Todos esses assuntos são relevantes e, de fato, põem em

dúvida a capacidade do cérebro ser o tipo de hardware adequado para produzir mentes.

Seja como for, a maioria das pessoas não está familiarizada com tais assuntos, mas

apesar disso quase todos têm uma opinião formada sobre a questão da sobrevivência após a

morte, variando desde a descrença a total credulidade. Porém, ordinariamente tais opiniões

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estão formadas sob frágeis alicerces conceituais os quais pressupõem premissas logicamente

impossíveis ou não suportadas empiricamente; exclusão de inferências viáveis para um

conjunto de dados; ou mesmo a admissão de assunções que vão de encontro às teorias

científicas mais bem estabilizadas na atual rede de conhecimentos humanos.

Tal é assim porque o debate da sobrevivência após a morte invariavelmente provoca

fortes conflitos emocionais, religiosos e ideológicos, os quais dificilmente são deixados de lado.

Agora, a psicologia subjacente a esse cenário é especialmente interessante, porque, em outros

campos da vida, as pessoas comumente são mais criteriosas e exigentes para aceitar ideias.

Considerando que este trabalho se propõe a levar a discussão para bases racionais, e não

enviesadas por necessidades psicológicas ou emocionais, ou por um conjunto de crenças

religiosas, ou ainda ideologias, as hipóteses para responder por casos mediúnicos devem buscar:

a) ser logicamente possíveis, i.e., não serem autocontraditórias e nem

fazerem uso de hipóteses auxiliares mutuamente exclusivas;

b) ser inferências, i.e., interpretações coerentes para alguns fenômenos

observáveis;

c) fazer predições sobre alguns fenômenos observáveis e,

simultaneamente, não serem surpreendidas com dados inesperados, os

quais escapam sua predição inicial (como condição de testabilidade).

Todavia, conforme já observamos no início deste artigo, isso nem

sempre será possível, pois algumas hipóteses auxiliares de S ou LAP

são não-empíricas, além de altamente controversas. Na verdade, os

casos mais sugestivos de sobrevivência são melhor elucidados em

termos de plausibilidade ou parcimônia de S sobre LAP (ou vice-

versa), inexistindo algo como “uma boa margem de segurança nas

respostas”.

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Além disso, devemos observar que quase sempre fenômenos são multi-inferenciais,

levando-nos a interpretações ambíguas. Nesse caso, devemos testar o poder explanatório de

cada hipótese concorrente. Decerto a melhor hipótese científica, além de possuir as exigências

retromencionadas, deveria explicar os mesmos fenômenos de suas rivais, porém, e

principalmente, ser aquela a sofrer o menor número de surpresas com dados inesperados à sua

predição inicial, evitando hipóteses auxiliares ad-hoc. Outras virtudes também podem ser

mencionadas, tais como, ser uma hipótese mais conservadora (i.e., ser o menos divergente

possível às teorias científicas mais bem estabilizadas); mais simples, econômica e elegante

(fazendo uso da menor quantidade de pressuposições); e consiliente (buscar um alcance

multidisciplinar, integrando-se na rede de conhecimentos humanos).

Nas linhas que se seguem, analisaremos o poder explanatório das hipóteses S e LAP,

para casos de mediunidade, com fulcro nas orientações acima e com vistas a descobrir a

explicação racionalmente mais parcimoniosa. Contudo, antes disso, faremos uma breve

incursão sobre as principais características dos casos de mediunidade, baseando-nos nos tipos

mais evidenciais já registrados na história das pesquisas psíquicas.

1.3. Os dados de Mediunidade

Definitivamente o atributo de maior relevância nos casos de mediunidade é a

canalização de informações verídicas por parte de uma pessoa viva (comumente conhecida

como médium) e as quais pretensamente provém de uma personalidade falecida, ou seja, existe

uma correspondência entre aquilo que o médium diz e a vida de uma pessoa morta ou a

situações, passadas ou presentes, ocorridas nas vidas de pessoas ligadas ao falecido. O processo

de canalização ocorre à revelia dos sentidos sensoriais habituais, além do que, outros aspectos

psicológicos associados ao morto podem ser canalizados pelo médium, tais como habilidades,

comportamentos e maneirismos.

O termo canalização usado aqui é completamente neutro quanto à fonte das

informações, isto é, se elas provém de uma pessoa falecida, ou alternativamente, de origens

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mundanas, tais como o cérebro de outras pessoas vivas (via telepatia entre vivos) ou registros

escritos (através de clarividência exercida pelo médium). A neutralidade do termo também se

estende ao sentido do fluxo das informações, ou seja, serve tanto para a hipótese de o médium

psiquicamente sondar as fontes de informação (ainda que de forma inconsciente), quanto para

estas influenciarem o cérebro/mente do médium8; ou mesmo para designar quaisquer

mecanismos de interação informacional (como aqueles da mecânica quântica) entre o

cérebro/mente do médium e as fontes de informação.

As impressões extrassensoriais obtidas pelo médium durante o processo mediúnico

podem chegar na forma de alucinações (na maioria das vezes visuais e sonoras), normalmente

associadas a um “estado alterado de consciência” denominado transe9. Pode acontecer também

que o sistema motor do médium ganhe autonomia e passe a realizar certos comportamentos

autônomos e inteligentes, como no caso da escrita automática (ou psicografia). A mediunidade

também pode surgir sobre outras roupagens, tais como a transcomunicação instrumental, a

psicopictografia e a tiptologia, sendo que as duas primeiras formas (o transe e a psicografia)

são as mais comuns e evidenciais, razão pela qual iremos especificamente nos focar nelas10.

De modo particular, o transe tem sido historicamente o meio mais sugestivo da

sobrevivência da personalidade pre-mortem porque, através dele, a entidade comunicante

consegue não apenas transmitir mensagens verídicas, mas também manifestar outros aspectos

psicológicos associados ao falecido, tais como idiossincrasias e habilidades que possuía na vida

corpórea. Nas notas de referência do segundo capítulo de Irreducible Mind (2007), a psicóloga

Emily Kelly aponta sobre a superioridade evidencial do transe, além de especular que a maior

parte dos médiuns contemporâneos age fora desse estado alterado de consciência (ou de outros),

o que explicaria, segundo pensa, a qualidade inferior dos casos atuais de mediunidade em

relação aos do passado. Observe-se:

8 Via psicocinese (PK). 9 Durante o transe algumas mudanças fisiológicas podem ocorrer, tais como a frequência cardíaca, ficando mais

acelerada. Além disso, podem acompanhar o processo contrações convulsivas e insensibilidade à dor. 10 A mediunidade pode se classificar também como do tipo mental ou de efeitos físicos. A primeira espécie é a de

maior relevância, por algumas razões, a saber, ela concede maior espaço à fluidez e velocidade das mensagens,

além de permitir a manifestação de características psicológicas não-verbais. Ademais, nem todos os efeitos físicos

sugerem uma inteligência por trás do fenômeno. Por exemplo, aportes, levitações e movimentos de objetos sem

contato, por si sós, sequer sugerem uma ação inteligente a qual pudéssemos atribuir a uma pessoa falecida.

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13

Vale também a pena notar [...] que a maioria dos melhores médiuns estudados extensivamente no final do século XIX e início do XX foi automatista de transe.

Embora a mediunidade tenha nos últimos anos se tornado um tema de interesse para

o público em geral, e, portanto, para a mídia, poucos dos médiuns de hoje parecem entrar num estado alterado [de consciência], muito menos num "transe" ou estado

alternado de personalidade. Na teoria de Myers, a suspensão do supraliminar é

favorável, senão absolutamente necessária, para o surgimento da mentação

subliminar, seja da própria mente ou da de uma pessoa falecida. Essa diferença notável

entre os médiuns atuais e os automatistas do passado pode explicar porque, na minha

opinião, o material produzido por médiuns recentes geralmente tem uma qualidade

probatória muito menor.

Durante o processo mediúnico, a consciência do médium pode ser removida, porém

podem ocorrer exemplos de co-consciência, o que é mais comum nos médiuns psicográficos.

Especificamente no transe, uma consciência secundária, via de regra, assume o controle do

organismo do médium, servindo de porta-voz para outras personalidades comunicantes11. Essa

consciência controladora tem seu próprio banco de memórias e caráter, enfim, ela constitui uma

personalidade integral a qual desloca de modo intermitente a do médium12. Quando o médium

recupera o controle corporal, ele muitas vezes ignora completamente o que aconteceu durante

o transe. Em outros momentos algumas reminiscências podem ficar retidas, a exemplo da

imagem de pessoas falecidas.

Tanto o controle (ou guia, conforme doutrinas espiritualistas) quanto os comunicadores

incidentais alegam ser personalidades falecidas, mas sua própria natureza é ambígua, aliás,

existem mais razões para acreditar que, pelo menos os controles, são fases ou elementos da

11 A justificativa fornecida é a de que nem todos os falecidos teriam a habilidade em estabelecer uma comunicação

mediúnica, razão pela qual aqueles com maior experiência e domínio assumem o comando do organismo do

médium e funcionam como porta-vozes, “procuradores” para outros espíritos carentes de semelhante destreza ou

desembaraço em estabelecer contato. 12 No seguinte relato do físico inglês Oliver Lodge (1890) podemos ter uma ideia de como acontece a mudança de

personalidade durante o transe. A médium em questão era Eleonora Piper. “A Sra. Piper já estava pronta e

começamos uma sessão. Sentei-me encarando a Sra. Piper num local parcialmente escurecido, e o Sr. Myers estava

ao alcance da voz do outro lado das cortinas, tomando nota do que era dito. A Sra. Piper sentou-se em silêncio,

inclinando-se para frente em sua cadeira, e segurando minhas mãos. Por algum tempo ela não pôde cair

inconsciente, mas por fim disse, ‘Oh, estou indo’, ocorreu que o relógio bateu uma vez (por uma meia hora), e ela

contraiu-se convulsivamente, proferindo ‘não’, e entrou numa aparente epilepsia. [Eu tinha visto epilepsia várias vezes antes e reconheci muitos dos sintomas óbvios costumeiros; não pretendendo, naturalmente, falar como um

médico]. Gradualmente tornou-se calma, e ainda segurando a minha mão direita, pigarreou em voz masculina, e

com características endurecidas distintamente alteradas, olhos fechados e não utilizados o tempo inteiro. Tendo

sido alertado do que esperar e como tratar a esta personificação, eu disse, ‘Bem, Doutor,’ ao que ele [pois soava

como um homem, e esqueci-me totalmente que era uma mulher que falava pelo restante da sessão: a maneira e

discurso inteiros eram masculinos] apresentou-se como ‘Dr. Phinuit’, e nós fizemos então as corriqueiras

observações normais. Achei difícil saber o que dizer, mas disse que eu tinha ouvido dele de Myers, e ele disse,

‘Ha! Myers, ele está aqui? Ele não estava aqui da última vez que vim’, ao que o Sr. Myers respondeu, ‘Sim, estou

aqui, Doutor’”.

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consciência do médium. Neste momento, é prudente então destacar que os termos controles e

comunicadores usados no presente trabalho são totalmente neutros, podendo designar mentes

desencarnadas que se comunicam através dos médiuns ou personalidades secundárias

desenvolvidas dentro de sua psique. Um outro termo muito usado e que, portanto, merece

esclarecimento desde logo é o de assistente. O assistente é aquele que participa presencialmente

de uma sessão mediúnica, podendo ser o próprio pesquisador ou os parentes e amigos do

falecido (que são assistentes enlutados ou os consulentes das mensagens).

Existem casos de médiuns extraordinários, tais como as Sras. Piper e Leonard, cuja

carreira ensejou a manifestações de centenas de personalidades pretensamente falecidas. De

regra, como já mencionamos, o controle assume o organismo do médium, mas por muitos

momentos ele cede transitoriamente o lugar para um comunicador incidental manifestar-se. No

caso daquelas médiuns, apesar do gigantesco número de comunicadores, os comportamentos

peculiares deles sempre se mantiveram coerentes todas as vezes que se manifestaram pelo corpo

da médium, ainda quando grandes lapsos de tempo entre uma “incorporação” e outra se

sucediam13.

Durante a vida do médium, mais de um controle pode aparecer, porém, geralmente, há

um principal. Podemos citar a guia indígena-asiática “Feda”, da britânica Sra. Gladys Osborne

Leonard; o árabe “Uvani”, de Eileen Garrett; o médico francês, “Dr. Phinuit”, da bostoniana

Sra. Leonora Piper; “Fletcher”, do médium Arthur Ford; e “Emmanuel” e “André Luiz”,

controles do médium mineiro Chico Xavier. Os controles principais, em especial aqueles que

surgiram no início da experiência mediúnica, raramente conseguem fornecer alguma evidência

concreta de que algum dia já tiveram uma existência corpórea (apesar de alegarem isso) e quase

sempre sustentam ter sido personalidades não contemporâneas (muitas vezes pessoas célebres),

13A respeito dessa unidade de consciência e de caráter dos comunicadores, Michael Sage (1904), por exemplo,

inclinava-se a favor de S: “A unidade de caráter e a de consciência nos comunicadores é uma das razões que

suportam mais fortemente a hipótese espírita. Se estivéssemos lidando com personalidades secundárias da Sra.

Piper, a primeira dificuldade seria o seu grande número. Eu não sei o número exato de comunicadores que alegaram

aparecer por meio do organismo dela. Mas várias centenas podem ser encontradas nos relatórios da Society for

Psychical Research, e certamente a menção de todos eles é algo muito longe de ter ocorrido. Agora, cada

comunicador manteve sempre o mesmo caráter, a tal ponto que, com um pouco de prática, é possível reconhecer

o comunicador na primeira frase que ele pronuncia, se antes ele já tiver se comunicado. Alguns dos comunicadores

só aparecem em intervalos longos, mas mesmo assim eles permanecem inalterados.

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o que dificulta a confirmação de sua vida terrena, consequentemente, não contribuindo para a

validação de S:

As alegações dos controles de terem existido anteriormente como humanos encarnados apresentam outro problema em suas avaliações. A maior parte dos

controles alega uma vida distante e discreta que afronta qualquer verificação. O

controle de D. D. Home sempre falava no plural e nunca dava seu nome. Stainton

Moses era ocupado por uma liga organizada de controles que incluíam personagens

bíblicos, filósofos, sábios e personalidades históricas. Os personagens bíblicos

chamavam-se "Imperator" (Malaquias), "Preceptor" (Elias), "O Profeta" (Haggai),

"Vates" (Daniel), "Ezequiel", "Theophilus" (São João Batista), "Theosophus" (São

João, o Apóstolo), e "Theologus" (São João, o Divino) (Melton, G. J., 2000) 14.

Nos melhores momentos, controles disparam grande quantidade de material verídico

cuja obtenção não pode ser explicada por outra forma a não ser por um processo anômalo, como

a telepatia entre vivos ou entre o falecido e o médium. Isso quase sempre acontece nos primeiros

minutos da sessão. Porém, muitas vezes o material fornecido pelos controles degenera num

conteúdo vago, repetido, cheio de palpites e “pesca” de informações (por meios normais). Por

exemplo, “às vezes o Dr. Phinuit pesca. Ocasionalmente adivinha; e às vezes ele supre a

escassez da sua informação com os recursos de uma vívida imaginação” – disse o físico inglês

Oliver Lodge (1890) a respeito de um dos primeiros controles da médium Piper. Continuando,

Lodge relata, “o processo de pescaria é mais marcante quando a própria Sra. Piper não se

sente bem ou está cansada. (...) quando ele [Phinuit] não pesca, simplesmente tira de sua

memória e reconta velhos fatos que contou antes, ocasionalmente com adições próprias que

não os melhoram”. Brian Williams e William G. Roll (2007)15 destacam sobre o controle

“Uvani” da Sra. Garrett:

O psicólogo Ira Progoff perguntou a Uvani durante uma sessão com a senhora Garrett, 'Como você tem estado desde a última vez que nos encontramos?' O questionamento

pareceu confundir completamente Uvani e ele não deu nenhuma resposta, muito

embora ele próprio tivesse efetuado a mesma pergunta a Progoff durante as sessões

anteriores e mostrasse por meio disso que ele entendia a questão.

Em Mediunidade e Sobrevivência (1995), o psicólogo Alan Gauld menciona:

14 Encyclopedia of Occultism & Parapsychology. Thomson Gale; 5ª ed. (outubro 2000). 15 Spirit controls and the brain. Proceedings of Presented Papers: The Parapsychological Association 50th Annual

Convention (pp. 170 - 186). Columbus, OH: Parapsychological Association, Inc.

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Feda [controle da médium Gladys Osborne Leonard] sempre fala como se pudesse ver e ouvir diretamente os comunicadores cujas mensagens retransmite. Mas há muito que

demonstra não poderem estas alegações serem aceitas integralmente. Assim, a Sra.

W.H. Salter (138b, pp. 309, 312) diz, de uma série de declarações feitas por Feda sobre um comunicador, que depois se disse sua mãe (Sra. Verrall): ‘Muitas destas

declarações...são verdadeiras; contêm, porém, uma tal mistura de erros que

dificilmente surgiriam se o conhecimento de Feda derivasse de qualquer imagem ou

série de imagens claramente percebida. ‘E de novo: ‘A conclusão final a que posso

chegar...é que uma certa quantidade de informação verídica sobre minha mãe foi

entretecida por Feda, numa figura imaginária de uma viúva velha, baseada em ideias

preconcebidas do aspecto que tal quadro deveria apresentar’.

Ainda quando os controles são altamente convincentes em fornecer evidências de que

são quem alegam ter sido em vida, persiste um forte motivo para não darmos crédito a essa

reivindicação. Gauld esclarece:

Alguns controles, como GP [George Pellew] ou Bennie Junot, são muito semelhantes ao que eram em vida, e, de fato, convenceram muitas pessoas de sua autenticidade.

Outros, porém, como Julius Caezar, Sir Walter Scott e George Eliot, que alegou ter

encontrado Adam Bede no outro mundo, são tão implausíveis, deformados e

estilizados em sua dicção e sentimentos que ninguém os veria como qualquer coisa

que não fosse uma ficção. Mas os comunicadores mais plausíveis, garantirão, no tom

mais firme, a autenticidade dos menos plausíveis, de modo que a autenticidade do

primeiro fica inextricável e desvantajosamente amarrada à autenticidade do último, e

torna-se abundantemente claro que a manutenção do drama é de fundamental

importância e que todos os controles, de GP até Julius Caezar, são parte integrante da

fantasia criativa do dramaturgo.

Na sua revisão para Resurrecting Leonora Piper - How Science Discovered The

Afterlife, de Michael Tymn, Alan Gauld (2013)16 detalha ainda mais algumas das embaraçosas

características para a hipótese S, relatando um caso no qual até mesmo o convincente

comunicador GP toma parte de uma ridícula fantasia, além de assegurar a autenticidade de um

outro controle claramente fictício. Observe-se:

Pior ainda foi a prolongada história de Dean Bridgman Conner, um jovem de Vermont, que, em 1894, tinha ido trabalhar no México. Em 1895, ele foi dado como

morto na Cidade do México pelo Cônsul-Geral americano, por febre tifoide e lá

enterrado; mas um sonho que seu pai teve permitiu a suposição de que ele ainda estava vivo e sendo mantido prisioneiro. A Sra. Piper foi consultada, o que levou, em 1896,

a uma boa parte dos agentes da família a ser guiada por Phinuit e GP, procurando de

hospital a hospital, de prisão a prisão, no sul do México, porém sempre o

supostamente elusivo Dean não era achado. Outros espíritos foram cooptados para a

pesquisa. Enquanto isso, os controles de Piper em Boston garantiam repetidamente

aos pais de Dean que ele ainda estava vivo. Esta história se desenrolou ao longo de

muitas sessões, a maioria ainda não publicada. Mas no ano seguinte um audacioso e

16 Journal of the Society for Psychical Research [Vol. 77, n. 912, julho de 2013].

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17

ponderado jornalista que assumiu o caso foi capaz de conclusivamente provar que Dean tinha morrido, tal como inicialmente relatado pelo Cônsul-Geral (Philpott,

1915). Num ponto durante estes acontecimentos, um comunicador chamado John

Heard (um antigo assistente e amigo de Pellew, referido como 'Hart') anunciou que

ele tinha voado até ao México na companhia de um 'Julius Caesar' equipado com

capacete, armadura e espada. Posteriormente, o próprio Caesar escreveu em inglês

(soletrando seu nome com um 'z') e foi seguido por G.P., o qual afirmou que 'Caezar

é tão grande quanto era' e que ele (G.P.) estava indo para o México. Numa sessão

posterior G.P. acrescentou 'é Julius Caesar' (Sidgwick, 1915, pp.113—15). Aqui

temos um comunicador excepcionalmente impressionante (G.P.) e outro que também

tinha dado verificadas informações sobre si (Heard), garantindo a autenticidade de um

absolutamente ridículo (Caezar), todos os três, estando supostamente engajados numa

perseguição completamente sem sentido, uma loucura que eles não conseguiram captar. Sob tais circunstâncias, algum desses comunicadores interligados poderia ser

considerado 'autêntico'? Este episódio não é isolado.

Não por outra razão Eleanor Sidgwick (1925) concluiu que

Às vezes, comunicadores dramáticos, assim como controles, são claramente falsos, e nenhum critério em sua própria representação, ou na sua relação com o controle, é

oferecido para que um comunicador falso possa ser diferenciado de um verdadeiro. A

existência de falsos comunicadores em geral não é admitida [por eles próprios]17.

Além disso, a hipótese de controles e comunicadores serem mentes desencarnadas sofre

um novo embaraço, qual seja, personalidades de transe muitas vezes dizem coisas sem sentido

exatamente sobre a área de conhecimento a qual o falecido detinham domínio quando em vida.

Observa novamente Gauld:

Até mesmo os controles mais realistas, tais como GP [George Pellew], mostram sinais de serem imitações (não conscientes). Interrompem-se, no ponto exato em que o

estoque de conhecimento da Sra. Piper se esgota, assim como quando lhes é pedido

que falem coerentemente de Ciência, Filosofia e Literatura (o que GP em vida poderia

ter feito facilmente).

Os controles da Sra. Piper, por vezes, desculpam suas limitações dizendo que chegar

até a “luz” do médium produz um efeito de confusão neles, ou que não podem manipular o organismo dela de maneira com as quais ele não está acostumado. Estas

desculpas, porém, não são adequadas. A confusão que oblitera o entendimento de

Ciência e Filosofia do controle não os impede de gerar montes de bobagens sobre os

tópicos religiosos e filosóficos, apresentando-os, por vezes, como as mais profundas

verdades, em consequência das perguntas dos assistentes.

A “má qualidade”18 do que é verbalizado durante o transe pode ocorrer desde o início

de uma sessão, quando nenhuma novidade de valor significativo é revelada, ou mesmo no

17 Psychology of Mrs. Piper's Trance Phenomena. Proceedings of the Society for Psychical Research, V. 28, 1915,

pp. 315-332. 18 Por “má qualidade” quero dizer o material que parece frontalmente contrariar a reivindicação das personalidades

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18

decorrer dos melhores casos, quando o estoque de informações “paranormais” acaba, parece

que o controle não é “capaz de partir quando seu repertório de fatos estava vazio. Parecia

haver alguma liberação irresponsável de energia que precisava continuar até que o impulso

original se perdesse em incoerência”19 (Myers, F. H. W., 1889).

De fato, a desonestidade dos controles deve ser vista como algo não tão deliberado. Seja

lá o que eles forem (mentes desincorporadas ou personalidades secundárias integrantes da

psique do médium), quando assumem o comando, parecem experimentar (ou ser) uma fase

onírica, com metaperceptividade, da consciência do médium, desenvolvendo um drama de

comunicação post-mortem a partir de informações obtidas de fontes externas (por mecanismos

normais ou extrassensoriais – o que, para eles, é de certo modo irrelevante). Porém, ainda nos

melhores casos, o drama também é preenchido por ilusões, quimeras e devaneios resultantes de

um estado de consciência semelhante ao sonho, de modo que o material apresentado é uma

mistura de conteúdo altamente verídico com fantasias criadas por eles próprios.

O que as tentativas em fornecer comunicações evidenciais constantemente sugerem é um esforço do controle em buscar informações de todas as fontes, palpites, por vezes,

pesca de informações dos assistentes, em outros momentos, encaixando ligeiras

nuances juntas, e ansiosamente aproveitar qualquer impressão ou informação obtida,

seja por meio normal ou telepático, nunca sabendo como elas chegam ou de onde vêm.

Um tateio mental desse tipo [...] é o que o percipiente muitas vezes parece sentir fazer

em experimentos de transferência de pensamento. Entre numerosas impressões ele

tem que escolher o caminho certo. Portanto, certamente parece mais apropriado

atribuir tal sentimento sobre a informação, a qual, no final, vem de uma forma incerta

e fragmentada, quando vem, a alguma parte da mente da Sra. Piper do que a um

espírito exterior (Sidgwick, idem).

Realmente, parece que os controles não têm a menor capacidade de distinguir o material

que chega extrassensorialmente daquele que é produto de sua imaginação, pois, acaso tivessem,

seria conveniente para a qualidade do drama que se calassem toda vez que o estoque de

informações anomalamente percebidas acabou. Fazendo coro com Myers e Sidgwick, diz

Lodge (1889):

Ele [Phinuit] parece estar sob alguma compulsão por não ser silencioso. Talvez o

transe cessaria se ele não se esforçasse. De qualquer forma ele tagarela, e tem que se

de transe, i.e., que são mentes ainda ativas de pessoas que um dia já viveram. Na verdade, esse material de “má

qualidade” pode nos esclarecer muito a respeito da natureza dos controles e comunicadores em geral. 19 Comentários de Myers sobre a mediunidade da Sra. Piper.

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descontar uma grande quantidade de conversa que é, obviamente, e às vezes confessadamente, introduzida como provisória. [...] Ele faz o melhor que pode, mas

seria de grande valia se, quando compreendesse que as condições eram desfavoráveis,

informasse e então se calasse.

Então, vamos manter em mente que: (a) os primeiros (e alguns dos principais) controles

alegam ter sido personalidades não contemporâneas, sendo incapazes de fornecer evidências

mínimas de sua existência terrena; (b) algumas personalidades de transe sustentam ter sido

personagens bíblicos, filósofos e pessoas célebres, mas demonstram um parco conhecimento

na área de expertise de quem alegam ter sido; (c) controles pescam dos assistentes informações

por meios normais e as reapresentam como se fossem novidades contadas pelos comunicadores

incidentais; (d) o conteúdo da mensagem é mesclado com informações verídicas e fantasias

provenientes de um estado de consciência semelhante ao sonho. Considerando que algumas

dessas fantasias dizem respeitos a fatos verificáveis e, por essa razão, podemos afirmar que são

ilusões e devaneios da personalidade de transe, passamos a ter motivos para questionar todos

os relatos sobre material inverificável, tais como os relacionados ao ambiente e à aparência de

um “mundo espiritual”; (e) os controles mais convincentes de forma frustrante confirmam a

autenticidade daqueles flagrantemente fictícios.

Além disso, (f) existem claros exemplos que médiuns captam telepaticamente

informações da mente dos assistentes e montam um drama de comunicação post-mortem, por

exemplo, “um dia Hodgson estivera lendo com grande interesse a Vida de Scott, de Lockhart.

No dia seguinte, um ridículo Sir Walter Scott apareceu numa sessão de Piper, dando uma volta

turística pelo sistema solar, afirmando haver macacos no Sol” (Gauld, A., idem). Em outros

momentos, as personalidades de transe, ainda que passem informações verídicas, as apresentam

sob a perspectiva do assistente, observe-se:

Phinuit declarou que o Sr. J. T. Clarke estava em dificuldades financeiras, o que era verdade. Phinuit também afirmou mais adiante que as coisas iam melhorar, em quatro

meses e meio, e que “algumas pessoas não procederam honestamente com o senhor”.

Advertiu Clarke particularmente contra um homem chamado H. Nenhuma das outras

assertivas de Phinuit foi comprovada, mas elas refletiam as crenças de Clarke na época

(Gauld, idem).

No caso abaixo, o controle “Phinuit” passou a Lodge uma série de informações a

respeito do falecido Sr. Wilson. Na ocasião, a comunicação foi solicitada pelo filho do finado,

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20

George Wilson. Ao colher as informações, Lodge enviou uma carta a este último contando-lhe

o ocorrido. Eis a resposta do filho:

MEU CARO LODGE, — Sua carta com documento anexo alcançou-me quando estava partindo—e não pude fazer nada até que chegasse aqui. E agora, depois de

considerar, penso que devo falar um pouco.

As declarações feitas pela médium caem em duas classes: (1) aquela que se relaciona

a assuntos conhecidos por você; e (2) aquela sobre assuntos que você não podia

saber—como, por exemplo, minhas circunstâncias atuais ou minha vida passada. O

que é dito sobre o primeiro assunto é, como você veria, mais ou menos correto. O que

é dito sobre o último é completamente incorreto. (...) E, grosso modo, o tipo de senhor

representado é o oposto do caráter digno de meu pai. Ele era tranquilo e equilibrado,

odiava exageros, e, como a maior parte dos oficiais do Governo, evitava todas as

aparências públicas. Ele detestava gramática ruim, e redigia documentos do Governo

com precisão quase penosa20.

Tais exemplos, adicionados aos itens de (a) a (e) destacados acima, reforçam fortemente

a hipótese de que as personalidades de transe são fases da consciência da própria médium e que

dramaticamente fantasiam representar pessoas falecidas as quais teriam sobrevivido à morte.

Enquanto os itens de (a) a (e) sugerem que algumas linhas desse drama são escritas pela rica

imaginação dos controles, (f) indica a existência de informações captadas/recebidas

telepaticamente da mente dos assistentes, tais como nos casos de Walter Scott, Clarke e Wilson,

o que explicaria o material verídico fornecido nas sessões mediúnicas. Então, nesse momento

alguém poderia perguntar a um sobrevivencialista: por que sua hipótese é necessária para

explicar CMs?

Sobrevivencialistas podem sustentar que tais exemplos ocorreram na vida de alguns

médiuns de transe, não podendo o argumento contra S ser generalizado nos CMs em que a

consciência do médium não ficou totalmente afastada. Particularmente penso haver alguns

problemas em dizer isso. Em primeiro lugar, conforme já mencionamos, no estado de transe

temos os casos mais fortes a favor de S. Se sobrevivencialistas rejeitarem os médiuns de transe,

devem também rejeitar os melhores casos que fortalecem sua hipótese. Em segundo lugar,

foram justamente os médiuns de transe aqueles mais bem inquiridos na história da pesquisa

psíquica, logo, seus casos são aqueles que com maior margem de segurança excluem as

hipóteses normais, tais como fraude, observações mal feitas e leitura fria. Não vejo então como

20 MYERS, Frederic W. H.; LODGE, Oliver J.; LEAF, Walter e JAMES, William. A Record of Observations of

Certain Phenomena of Trance. Proceedings of the Society for Psychical Research, 1889-90 Volume VI, pp. 436-

659.

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um sobrevivencialista iria querer excluir os relatórios sobre as Sra. Piper e Leonard como

exemplos que fundamentam sua posição.

Por outro lado, existem exemplos de material o qual podemos classificar de “excelente

qualidade”. Quando tal conteúdo aparece, a elocução do transe ou escritos psicografados

carregam fortes características psicológicas relacionadas principalmente ao caráter, humor e

maneirismos de uma pessoa falecida, além de informações as quais os consulentes acreditam

se encaixar perfeitamente no ponto de vista de seu finado ente querido. De fato, é muito difícil

encarar tais casos sem assumir que, ao menos em aparência, eles realmente sugerem que uma

pessoa morta, sobrevivendo ao choque da morte, entra em contato com os seus conhecidos

vivos através do médium.

Por exemplo, numa das sessões em 1893, o casal Sutton tomou uma tentativa de

comunicação com sua filha Katherine (que morrera seis meses antes) através da médium Sra.

Piper. Detalhes como a dor de garganta, a paralisia da língua da menina, o cavalinho que o pai

lhe dera, sua febre e a forma dramática como as mensagens são passadas trazem à tona

marcantes elementos psicológicos característicos da falecida criança, além de informações

verídicas que encaixam exatamente no seu ponto de vista, e não o dos pais. Na seguinte

passagem “Phinuit” é o controle, vejamos:

Phinuit disse ‘... Uma criancinha está chegando perto de você...” Ele estende as

mãos, como que para uma criança, e diz, para reconforta-lo: “Venha cá, querida.

Não tenha medo. Venha, querida, aqui está sua mãe.” Ele descreve a criança e seus “cachinhos adoráveis”. “Onde está papai? Quero papai.” (Ele – isto é, Phinuit –

toma da mesa uma medalha de prata.) “Quero isto. Quero morder.” (Ela costumava

mordê-la) (Estende a mão para uma enfiada de botões.) “Depressa! Quero pôr na

minha boca.” (Os botões também. Morder os botões era proibido. Ele imitou

exatamente seus modos infantis.) “... Quem é Dodo?” (Seu apelido para o irmão,

George.) “... Quero chamar você de Dodo. Diga a Dodo que estou contente. Não

chorem por minha causa.” (Põe as mãos na garganta.) “A garganta não dói mais.”

(Ela tinha sempre dores na garganta e na língua.) “Papai, fale comigo. Não pode me

ver? Não estou morta, estou viva. Estou contente, com a vovó.” (Minha mãe estava

morta havia muitos anos.) Phinuit diz: “Aqui estão mais duas. Uma, duas, três, aqui,

- uma mais velha, outra mais jovem que Kakie.” (Correto)... A língua desta estaria seca? Ela fica me mostrando a língua. (Sua língua estava paralisada, e ela sofreu

muito com isto, até o fim.) Seu nome é Katherine. (Correto.) Ela chama a si mesma

de Kakie. Ela morreu no ano passado. (Correto.) “Onde está meu cavalinho?” (Eu

lhe dera um cavalinho.) “Cavalinho grande, não este aqui.” (Provavelmente refere-

se a um cavalo e carroça de brinquedo de que gostava.) “Papai, quero ir no cavalo

(cavalgar).” (Ela pedia por isto ao longo de toda sua doença)... (Perguntei se ela

lembrava qualquer coisa depois de ser trazida escada abaixo). “Eu estava tão quente,

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minha cabeça estava tão quente. (Correto)... Não chorem por mim, isso me deixa triste. Eleanor, quero Eleanor.” (Sua irmãzinha. Chamou muito por ela, no fim de

sua doença.) “Quero meus botões. Row, row, - minha música, - cantem agora. Vou

cantar com vocês. (Cantamos, e uma voz suave de criança cantou conosco): Lighty

row, lighty row, O’er the merry waves to go. Smoothly glide, smoothly glide, Wit the

ebbing tide. [Remando de leve, remando de leve Sobre as alegres ondas vamos

Deslizando suave, deslizando suave com a maré vazante.] (Phinuit pede-nos que nos

calemos, e Kakie termina sozinha): Let the Wind and waters be Mingled with our

melody, Sing and float, sing and float, In our little boat. [Que o vento e as águas Se

misturem com a nossa melodia, Cantando e boiando, cantando e boiando, Em nosso

barquinho.]...Kakie canta: “Bye, bye, baby, bye,bye, O baby bye. Papai, cante essa

comigo. (Papai e Kakie cantam. Estas duas eram as canções que ela costumava

cantar.) Onde está Dinah? Quero Dinah. (Dinah era uma velha boneca de trapo preta, que não estava conosco). Quero Bagie. (Apelido que dava à sua irmã Margaret.)

Quero Bagie para me trazer Dinah... Diga a Dodo, quando o encontrar, que gosto

dele. Querido Dodo. Costumava marchar comigo, e me carregava (Correto).’

(Gauld, 1995).

Em 1933, em datas e ocasiões distintas, quatro médiuns britânicas (Srtas. Campbell e

Bacon e Sras. Leonard e Mason) aparentemente manifestaram a comunicação com um rapaz

falecido, Edgar Vandy. Os assistentes no caso foram os irmãos do morto (George e Harold) e o

pesquisador psíquico C. D. Thomas. Os irmãos apresentaram-se sob nomes falsos. Cada uma

das sessões foi conduzida por um único assistente. Com exceção do Sr. Thomas e da Sra.

Leonard, os assistentes e tomadores de notas eram completamente desconhecidos das médiuns

do caso. Assim, o comunicador (apresentando-se como o falecido Edgar Vandy) relata, através

de quatro médiuns que se desconheciam, o incidente na piscina que o vitimou e muitos outros

detalhes para confirmar sua identidade. Nas sessões com a médium Leonard, o comunicador

introduziu-se a C. D. Thomas independente de interpelação. Este, que não conhecia Edgar, fora

antes solicitado por George Vandy para tentar uma ‘sessão por procuração’ com Leonard com

o objetivo de estabelecer comunicação com Edgar. Por esta razão Thomas desconfiou que a

personalidade jovial a qual “Feda” (guia de Leonard) afirmava estar presente poderia ser Edgar,

embora o próprio Thomas ignorasse até mesmo o nome. Itens evidenciais, e alguns bem

íntimos, foram repetidos pelas quatro médiuns, com destaque para a descrição de um dos

inventos de Edgar, o qual era uma máquina inédita e bastante complexa; a aparência física do

finado; detalhes de sua casa; e pormenores da causa mortis. Em The Case of Edgar Vandy. A

Report on a Series of Sittings with Mediums21, é difícil não concordar com Kathleen Gay (1957)

quando conclui:

21 Journal of the Society for Psychical Research. vol. 39. no. 691.

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23

Apesar das irrelevâncias, que confundem detalhes, e algumas declarações contraditórias nessas sessões, pode ser dito que a impressão mais clara deixada na

mente do leitor é a notável personalidade de Edgar Vandy, com suas raras qualidades

de mente e caráter e sua grande habilidade. Em todas as sessões esta figura trágica é descrita com suas esperanças frustradas e sua angústia e o sofrimento que sua morte

intempestiva ocasionou a sua família, e sua incapacidade para retribuir a ajuda àqueles

que a deram de muita boa vontade. Acima de tudo, as repetidas declarações de que

ninguém teve culpa de sua morte e que ninguém deveria ser responsabilizado. Isso foi

um acidente, e o fato de ninguém ter salvado a vida dele deveria ser aceito 'sem raiva,

somente com compreensão e lamento'.

Outro tipo de caso que normalmente é mencionado como de peso para a hipótese da

sobrevivência é o que se convenciou chamar de correspondências cruzadas. Nele, o pretenso

desencarnado transmite a determinadas médiuns (desconhecidas entre si) algumas frases as

quais, isoladamente, são ininteligíveis. Somente quando todos os trechos são reunidos é que se

verifica serem fragmentos de uma única e coerente mensagem, quando o conteúdo inteiro passa

a ganhar sentido. Ao que parece esse modelo de caso foi desenvolvido por um dos próprios

pioneiros da pesquisa psíquica (Frederic Myers), porém quando já falecido e como forma de

comprovar a sua sobrevivência à morte corporal. Myers, em vida, era um perito em Clássico e

as médiuns envolvidas (salvo a Sra. Verrall) eram ignorantes a respeito. Por essa razão as

correspondências cruzadas carregavam mensagens cifradas em temas da literatura Clássica.

Muitos episódios inteiressantes foram produzidos. Para deixar mais claro, transcrevo um

pequeno resumo de Rogo (1991) sobre uma das tentativas do comunicador “Myers” provar sua

sobrevivência. As médiuns relacionadas foram Piper, Verrall e sua filha:

O auge das correspondências cruzadas provavelmente ocorreu em 1906, quando a Sra. Piper ainda estava na Inglaterra. Durante uma de suas sessões com ela, Piddington

dirigiu ao pretenso Myers uma mensagem especialmente construída que preparou o

cenário. Explicou ele a "Myers" através da Sra. Piper: ‘Temos conhecimento do

esquema de correspondências cruzadas que você está transmitindo através de vários

médiuns e esperamos que continue com elas. Tente dar a A e B duas mensagens

diferentes, entre as quais não seja perceptível a menor ligação. Depois, logo que

possível, dê a C uma terceira mensagem que revele as sugestões ocultas’. Propôs

também que Myers designasse suas alusões à correspondência cruzada assinando os

escritos pertinentes com um triângulo transcrito dentro de um círculo. Havia um importante aspecto nessa mensagem, pois foi lida para a médium em transe

em latim ciceroniano. A Sra. Piper naturalmente não entendia latim e muito menos um

dialeto tão obscuro, mas a língua era bem dominada por Myers quando vivo. Os

controles da Sra. Piper responderam à mensagem dizendo que a entendiam.

Demorou apenas algumas semanas para que o falecido Myers decifrasse essa

complicada correspondência cruzada. Entre 17 de dezembro e 2 de janeiro, alusões

aos temas de estrela, esperança e a poesia de Robert Browning começaram a aparecer

nos escritos da Sra. Verrall e sua filha. Essas alusões tiveram pouco sentido para

Piddington até quando, em uma sessão com a Sra. Piper em Londres, ele recebeu uma

mensagem para ‘procurar Esperança, Estrela e Browning’. As alusões adquiriram

sentido perfeito quando Piddington estudou Browning e descobriu que a

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correspondência cruzada relacionava-se com os temas contidos em seu poema Abt

Vogler22.

Outros casos extraordinários de mediunidade podem ser citados, valendo destacar que

de nenhuma forma estou esgotando o estoque dos seus melhores momentos. De fato, a literatura

psíquica é extremamente rica e bem documentada, facilitando bastante o trabalho de pesquisa,

principalmente pelo acesso parcialmente gratuito ao jornal e as atas da Society for Psychical

Research.

Pois bem, em 1930, sob o comando do tenente HC Irwin, o R101, o maior dirigível do

mundo à época, veio a cair em sua rota da Inglaterra para as Índias, vitimando 46 dos 54

passageiros e tripulantes. Três dias depois, numa sessão realizada no National Laboratory of

Psychical Research, Harry Price, um pesquisador psíquico apurado em desmascarar médiuns

fraudulentos, juntamente com sua secretária e taquígrafa Ethel Beenbarn e o jornalista Ian D.

Coster, faziam uma sessão com a médium Eileen Garrett objetivando contatar o célebre e recém

falecido Arthur Conan Doyle. “Doyle” não apareceu, mas em seu lugar manifestou-se um

homem chamado "Irwin" e que, embora se desculpasse por interferir, insistia em falar. Então,

disse Price:

[...] a voz da médium novamente ficou alterada e uma entidade anunciou que era o tenente H. Carmichael Irwin, capitão do R101. Ele estava muito agitado, e de uma

longa série de frases espasmódicas forneceu aos ouvintes um reporte detalhado e

aparentemente muito técnico de como o R101 caiu.

Após Coster publicar o resultado da sessão, diversos jornais do mundo começaram a

estampar manchetes sobre este possível caso de comunicação post-mortem. À época, Garrett

não conhecia Coster e nem sabia do propósito da sessão.

Miles Edward Allen (2007) resume alguns outros detalhes:

As transcrições da sessão foram solicitadas e cuidadosamente estudadas por especialistas que investigaram o acidente, um dos quais pediu e recebeu uma sessão

adicional para entrevistar os tripulantes falecidos do R101. [Charlton, um funcionário

do governo britânico,] examinou a transcrição detalhadamente e afirmou que a ideia

de que alguém numa sessão pudesse obter de antemão tais informações técnicas era ‘grotescamente absurda’. Várias das declarações de Irwin - como a aeronave era

22 A Vida Após a Morte: evidências da sobrevivência à morte corporal. São Paulo: Ibrasa, 1991.

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pesada demais para seus motores – eram suposições públicas ou poderiam ser razoavelmente adivinhadas. Mas muitas declarações eram técnicas, confidenciais ou

simplesmente desconhecidas para qualquer um à época. Por exemplo, Irwin disse:

"Carga muito grande para um voo longo. Mesmo para um SL-8. Diga a Eckener..".

Ninguém na sessão sabia o significado de "SL-8" ou reconhecia o nome "Eckener."

Os especialistas britânicos que analisaram as transcrições das sessões sabiam que Dr.

Eckener foi o criador do Graf Zeppelin, mas mesmo eles tiveram que procurar através

de seus registros sobre dirigíveis alemães para descobrir que "SL-8" era o

identificador de um dirigível construído pela a empresa Schütte-Lanz, de Mannheim,

na Alemanha. Irwin disse: "tracas a estibordo alavancadas." "Tracas", um termo

desconhecido para todos na sessão, era uma expressão originalmente naval adotada

por designers de dirigível. Tracas são camadas paralelas de placas longitudinais que

formam os lados de uma embarcação. Irwin já foi da marinha e por isso “tracas” é um termo que seria provável de ele usar. Irwin disse: “Impossível subir. Não pode cortar.

Quase raspou os telhados de Achy. Manteve-se na ferrovia”. Achy, uma aldeia

francesa a doze milhas e meia ao norte de Beauvais, estava na rota do R101. Achy

podia ser vista num tipo de mapa de artilharia de larga escala levado no R101, mas a

aldeia era tão pequena que não aparecia em nenhum mapa de artilharia ou de estrada

normais. Nem ela era mencionada nos guias de Baedeker ou Michelin. Ela não se

estende sobre a linha ferroviária principal entre Amiens e Beauvais. Testemunhas

perto da cidade testemunharam que a aeronave sobrevoou extremamente baixo. Harry

Price concluiu: ‘É inconcebível que a senhora Garrett pudesse ter adquirido as

informações do R101 através dos canais normais e o caso apoia fortemente a hipótese

da sobrevivência.’ 23.

Nos dois casos a seguir, se LAP for a explicação para os fenômenos neles apresentados,

as médiuns deveriam ser capazes de adquirir psiquicamente as informações anômalas a partir

de mais de uma fonte, isso porque o conteúdo verbalizado na sessão estaria fragmentado, por

exemplo, algumas partes dele estariam na mente do assistente enquanto outras nas mentes de

pessoas distantes, ou então, gravadas em documentos que aparentemente apenas o falecido

conhecia. Sobrevivencialistas argumentam que, em episódios como tais, a hipótese S é mais

econômica e, portanto, mais parcimoniosa, afinal todas as informações anômalas poderiam ser

adquiridas a partir de uma única fonte, qual seja, a mente ainda ativa de uma pessoa que passou

pela transição a qual chamamos morte. Analisaremos profundamente a higidez desse

argumento mais a frente, quando analisarmos o poder explanatório de LAP. Os irretocáveis

extratos abaixo são tirados de Carter (2012)24.

No primeiro exemplo mencionado por Carter, a médium em questão foi a extraordinária

Sra. Piper. O trecho a seguir trata de uma diversidade de casos relativos ao período em que essa

23 The Survival Files: the Most Convincing Evidence yet Compiled for the Survival of Your Soul. Momentpoint

Media. 24 Science and the Afterlife Experience: Evidence for the Immortality of Consciousness. Inner Traditions.

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médium começou a manifestar um novo controle [“George Pelham”] em substituição ao “Dr.

Phinuit”.

[...] A Sra. Piper foi ainda levada à Inglaterra para ser testada, onde ela não conhecia ninguém e não poderia ter [ajuda de] comparsas. Como nos Estados Unidos, os

assistentes eram geralmente apresentados anonimamente; e a Sra. Piper continuava a

obter resultados impressionantes. No entanto, os investigadores não conseguiam

decidir se a Sra. Piper estava realmente em contato com pessoas falecidas ou se ela

estava apenas colhendo a informação telepaticamente das mentes dos assistentes.

O que se mostrou o ponto da virada para Hodgson foram as assim chamadas

comunicações GP. George ‘Pelham’ (um pseudônimo para Pellew) foi um jovem

advogado de Boston, intensamente interessado em literatura e filosofia. Como um

amigo de Hodgson, os dois haviam discutido a possibilidade da vida após a morte;

apesar de GP (Pellew) ser extremamente cético em relação a tal possibilidade, ele

prometeu a Hodgson que caso morresse primeiro e se encontrasse ainda vivo, iria

fazer o seu melhor para se comunicar. Dois anos mais tarde, GP encontrou a morte acidentalmente com 32 anos de idade,

devido a uma queda em Nova York, em fevereiro de 1892. Cerca de quatro semanas

depois, Hodgson acompanhou um amigo íntimo de GP para uma sessão com a Sra.

Piper, com o amigo sendo apresentado sob o falso nome de ‘John Hart’. Com Phinuit

[principal controle da médium à época] agindo como intermediário, as mensagens

pretensamente vindas de GP foram retransmitidas para Hart. Recorde-se que GP tinha

assistido a uma sessão com a Sra. Piper cerca de cinco anos antes, também sob nome

falso, e que Hodgson não pensava que a Sra. Piper lembrava de o ter visto. Mas, de

qualquer forma, durante a sessão o nome George Pellew foi dado por completo, o

assistente foi reconhecido por seu nome real, e as comunicações referiram-se a

incidentes que eram desconhecidos tanto para o assistente quanto para Hodgson. Um desses incidentes desconhecidos relacionava-se a James e Mary Howard, os quais

foram mencionados pelo nome, juntamente com o [nome] da filha deles, Katherine.

A mensagem era ‘Diga a ela, ela saberá. Eu resolveria as questões, Katharine’. Essas

palavras não significaram nada para Hodgson ou para o assistente, mas quando ‘Hart’

contou a James Howard uma parte da sessão no dia seguinte, aquelas palavras o

impressionaram mais do que qualquer outra coisa. GP, quando teve sua última estada

com os Howards, manteve frequentes diálogos com Katherine (uma garota de 15 anos)

sobre certos problemas filosóficos. Descobriu-se que GP havia dito à garota que ele

iria resolver os problemas e deixá-la saber, usando quase as mesmas exatas palavras

comunicadas na sessão.

Três semanas depois, uma sessão foi organizada com os Howards, sem seus nomes serem fornecidos. Phinuit inicialmente disse algumas palavras; então, de repente,

apareceu GP para controlar diretamente a voz da Sra. Piper. Este novo controle durou

quase o tempo todo da sessão, cuja natureza Hodgson descreve.

‘As declarações foram intimamente pessoais e características. Amigos em comum

foram designados pelo nome, consultas foram feitas sobre assuntos particulares, e os

Howards, que não estavam predispostos a tomar qualquer interesse na pesquisa

psíquica, mas que tinham sido induzidos por parte do Sr. Hart a terem uma sessão

com a Sra. Piper, ficaram profundamente impressionados com a sensação de que eles

estavam, na verdade, mantendo uma conversa com a personalidade do amigo a quem

tinham conhecido por tantos anos’ [...].

Nas sessões posteriores, GP às vezes se comunicava diretamente através da voz da

Sra. Piper e em outros momentos por meio da escrita automática [psicografia], com a última ficando cada vez mais comum com o passar do tempo. A carreira de GP como

um comunicador "drop-in" persistiu até 1897, e dos 150 assistentes que foram

apresentados a GP durante esse tempo, ele reconheceu pelo nome 29 dos [assistentes]

que George Pellew tinha conhecido em vida (a única exceção foi uma jovem que ainda

era uma criança quando Pellew a vira pela última vez). Ele conversou com cada um

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desses indivíduos na maneira apropriada, e mostrou um conhecimento íntimo de seus supostos relacionamentos passados com eles. Como escreve Hodgson, em cada caso,

‘o reconhecimento foi claro e completo, além de acompanhado por uma apreciação

das relações que subsistiam entre GP vivo e os assistentes’. E não houve um único

caso de falso reconhecimento; ou seja, GP nunca, por nenhuma vez sequer, saudou

qualquer um dos 120 que o Pellew vivo não tinha conhecido. Hodgson acrescenta:

‘a manifestação contínua dessa personalidade - tão diferente de Phinuit ou dos outros

comunicadores -com seu próprio reservatório de memórias, com a sua pronta

apreciação de qualquer referência a amigos de GP, com o seu ‘dar e receber’ em

pequenas conversas incidentais comigo mesmo, tem amplamente ajudado na

produção de uma convicção da presença real da personalidade GP, o que seria

totalmente impossível de transmitir por qualquer mera enumeração de declarações

verificáveis’.

No segundo exemplo de Carter, a médium foi a igualmente excepcional Sra. Leonard.

Neste episódio, a assistente, Sra. Talbot, depois de receber algum material bem sugestivo de

que seu falecido marido estava se comunicando através do controle “Feda”, foi novamente

surpreendida por algumas mensagens sobre um velho livro de notas. Estas mensagens

incialmente pareciam tolices, mas depois revelaram-se de valor inestimável para fortalecer a

interpretação da sobrevivência post-mortem de seu marido.

Em 19 de março de 1917, a Sra. Leonard realizou uma sessão para uma viúva, Sra. Hugh Talbot. De acordo com a Sra. Talbot, ‘naquele momento, Sra. Leonard não

sabia o meu nome e nem meu endereço, e nem eu já tinha ido a ela ou a qualquer

outro médium antes em minha vida’.

Durante a primeira parte da sessão, nada de extraordinário aconteceu. Houve apenas uma 'miscelânea de descrições' sobre várias pessoas. Mas, de repente, de acordo com

a Sra. Talbot:

Feda [principal controle da Sra. Leonard] deu uma descrição muito correta da

aparência pessoal do meu marido, e a partir daí somente ele parecia falar (através

dela, é claro) e um diálogo muito extraordinário se seguiu. Evidentemente, ele estava

tentando, por todos os meios ao seu alcance, provar sua identidade para mim e para

me mostrar que realmente era ele mesmo. . . Tudo o que ele disse, ou melhor, o que

Feda disse para ele, era claro e lúcido. Os incidentes do passado, conhecidos somente

por ele e por mim foram mencionados, pertences triviais por si próprios, mas que

para ele era de interesse específico e pessoal, e os quais eu conhecia, foram minuciosa

e corretamente descritos, e fui indagada se eu ainda os possuía. Sra. Talbot também foi perguntada várias vezes se ela acreditava que era o falecido

Sr. Talbot quem estava se comunicando.

Feda ficava dizendo: ‘Você acredita, ele quer que você saiba que realmente é ele

mesmo’. Eu disse que eu não podia ter certeza, mas eu pensei que devesse ser

verdade...

De repente, Feda começou uma cansativa descrição de um livro, ela disse que era de

couro e escuro, e tentou me mostrar o tamanho. Sra. Leonard, com as mãos, mostrou

um comprimento de oito a dez polegadas e quatro ou cinco de largura. Ela [Feda]

disse: ‘Ele não é exatamente um livro, não é impresso, Feda não chamaria isso de um

livro, isso tinha escritos dentro’.

Passou um bom tempo antes que eu pudesse ligar essa descrição com alguma coisa,

mas finalmente me lembrei de um livro de notas de couro vermelho do meu marido, que eu acredito que ele o chamava de livro de registro, e eu perguntei: 'É um livro de

registro?' Feda parecia confusa com isso e em não saber o que era um livro de registo,

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e repetiu a palavra, uma ou duas vezes, e depois disse: 'Sim, sim, ele diz que poderia ser um livro de registro'. Eu então disse: 'é um livro vermelho?' Neste ponto, houve

hesitação, eles achavam que possivelmente era, apesar de ele pensar que era mais

escuro.

A resposta era incerta, e Feda novamente começou uma descrição cansativa,

acrescentando que era para eu, após a conversa, procurar na página doze, por algo

escrito nela, que seria bastante interessante. Então ela disse: ‘Ele não tem certeza de

que isso está na página doze, poderia estar na treze, é muito extenso, mas ele quer

que você procure e tente encontrá-lo. Seria de interesse de ele saber se este trecho

está ali'.

Nada disso interessava a Sra. Talbot. Embora ela pensasse ter lembrado do livro, ela

não tinha certeza se ainda o possuía, e, de qualquer modo, a questão inteira parecia

sem propósito para ela. Ela respondeu: 'bem indefinidamente' que iria ver se poderia encontrar o livro, mas isso não satisfez o comunicador que estava aparentemente

passando as mensagens através de Feda.

Ela começou tudo de novo, tornando-se cada vez mais insistente e passou a dizer:

'Ele não tem certeza da cor, ele não sabe. Há dois livros, você saberá qual ele quer

dizer em razão de um diagrama de idiomas na frente. . . idiomas Indo-Europeu,

Ariano, semita e outros' . . . Isso soou tolices para mim.

Pensando que a médium estava cansada e falando bobagem, a Sra. Talbot ficou feliz

quando a sessão chegou ao fim. Durante o jantar naquela noite, ela mencionou sobre

a sessão para sua irmã e sobrinha, e 'depois de contar a minha irmã e sobrinha todas

as coisas que considerei interessantes ditas no início, mencionei que no final a

médium começou a falar um monte de tolices sobre um livro, e que me pedia para olhar na página doze ou treze a fim de encontrar algo interessante’. Depois do jantar,

sua irmã e sobrinha imploraram a ela para procurar pelo livro mais uma vez. Embora

a Sra. Talbot quisesse esperar até o dia seguinte, ela finalmente cedeu e, depois de um

pouco de procura encontraram dois velhos livros de notas do marido, nos fundos de

uma estante superior.

Sra. Talbot conta-nos no seu testemunho escrito que ela nunca tinha aberto quaisquer

dos livros de notas.

Um deles, de couro preto e gasto, correspondia em tamanho com a descrição dada, e

eu distraidamente o abri, perguntando em minha mente se o que eu estava procurando

tinham sido destruído ou perdido. Para meu espanto, meus olhos caíram sobre as

palavras: ‘Tabela de idiomas semitas ou siro-árabes’.

Ainda mais surpreendente foi o que ela encontrou na página treze. Nesta página, o Sr. Talbot tinha transcrito, há algum tempo em sua vida, a seguinte passagem de um livro

chamado Post Mortem, publicado anonimamente em 1881:

Descobri por certos sussurros os quais supostamente eu não conseguia ouvir e por

certos olhares de curiosidade ou comiseração os quais supostamente eu era incapaz

de ver, que eu estava perto da morte...

Presentemente, minha mente começou a se estender, não só sobre a felicidade que

estava por vir, mas acerca da felicidade que eu estava desfrutando. Eu vi formas há

muito esquecidas, amigos de infância, colegas de escola, companheiros da minha

juventude e da minha velhice, e todos juntos sorriram para mim. Eles não sorriram

por compaixão, que eu não mais sentia precisar, mas com aquele tipo de gentileza

que é trocada por pessoas as quais estão igualmente felizes. Eu vi minha mãe, pai e irmãs, todos os quais eu havia sobrevivido. Eles não falaram, mas ainda assim me

transmitiram seu inalterado e inalterável afeto. No momento em que eles apareceram,

fiz um esforço para perceber a minha situação física ... ou seja, eu me esforçava para

conectar minha alma com o corpo que estava deitado na cama de minha casa. . . o

esforço falhou. Eu estava morto.

Havia também ‘um diagrama de idiomas’ na parte da frente, combinando com a

descrição dada através de Feda. As irmã e sobrinha da Sra. Talbot corroboraram as

declarações da Sra. Talbot, e também forneceram testemunhos escritos e assinados

para os registros da SPR [Society for Psychical Research, em Londres].

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Além de comportamentos e maneirismos típicos da pessoa falecida, personalidades

comunicantes podem exibir habilidades não-idiossincráticas e que são correspondentes

àquelas que o falecido tinha em vida. Por exemplo, comunicadores podem falar num idioma

aparentemente desconhecido do médium, mas fluente por parte da personalidade falecida (ex.,

o caso tipo possessão de Íris Farczády25). No caso Robert Rollans/Géza Maróczy (1985), o

primeiro, médium psicógrafo, forneceu material evidencial sugestivo da sobrevivência de

Maróczy, mestre xadrezista falecido em 1951, além de exibir habilidades em xadrez

semelhantes às do falecido (Eisenbeiss e Hassler, 200626). Rollans, sustentando seguir os

comandos de Maróczy, travou uma disputa de xadrez que durou sete anos e oito meses com o

russo Viktor Korchnoi, 3º no ranking mundial. O próprio Korchnoi reconheceu que a disputa

foi travada no nível de grão-mestre e que seu desafiante jogava num estilo “antiquado”, o que

converge com a época de Maróczy, nas décadas de 20 e 30. Continuando no assunto sobre

habilidades, podemos ainda mencionar reportes de personalidades mediúnicas que reproduzem

destrezas literárias, pictóricas e musicais atribuídas a um falecido (ex., o caso Chico

Xavier/Humberto de Campos (Barbosa, 2005)27 e muitos exemplos da mediunidade de Jozef

Rulof e Rosemary Brown).

Fecho este ponto ciente de que algumas características da mediunidade mental não

foram mencionadas. Porém, para os propósitos deste trabalho, penso que o acima explanado

mostra-se suficiente, além do que, muitos outros pormenores serão mencionados adiante.

Vamos agora observar como as hipóteses rivalizadas argumentam frente à fenomenologia

acima apresentada.

25 Barrington, Mary Rose; Mulacz, Peter; Rivas, Titus. The Case of Iris Farczády--A Stolen Life. Journal of the

Society for Psychical Research. 2005, Apr, Vol 69(2), 49-77. Disponível on-line em:

http://www.txtxs.nl/artikel.asp?artid=738 26 Journal of the Society for Psychical Research [Vol. 70.2, No. 883 April 2006]. Uma tradução do caso segue em:

http://pt.scribd.com/doc/84026510/Artigo-Cientifico-de-um-Jogo-de-Xadrez-entre-um-Vivo-e-um-Morto 27 Humberto de Campos e Chico Xavier: a mecânica do estilo. Aras, SP, 1ª ed., IDE, 2005.

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2. Fundamentos da Hipótese da Sobrevivência (S) para os casos de mediunidade (CMs)

Para CMs serem exemplos de comunicações post-mortem, sobrevivencialistas devem

suportar as seguintes assunções:

S1: que a mente e o cérebro não tenham uma relação do tipo produtiva,

no sentido de que o último seja causa necessária da primeira;

S2: que, após a morte, o conjunto das características psicológicas do

falecido, especialmente sua cadeia de memórias, caráter e sentido de

identidade, não sofra uma modificação simultaneamente radical e

inesperada, a fim de que possamos inferir a sobrevivência de sua

personalidade e comprovar sua identidade, i.e., que comunicador e

falecido são numericamente o mesmo indivíduo;

S3: que alguns falecidos tenham interesse, desejo e motivação na

comunicação com os vivos;

S4: que algumas pessoas falecidas tenham percepção extrassensorial

(PES) para que possam se comunicar com o médium, influenciando-o

telepaticamente; ou então manipulando seu sistema motor, via

psicocinese (PK), a fim de expressar mais informações, além de exibir

as habilidades e maneirismos que tinham em vida. Falecidos também

devem usar PES para tomar ciência de acontecimentos que ocorreram

após a morte ou mesmo cognoscer, por meios telepáticos, os

pensamentos do médium, dos assistentes e de seus entes queridos ainda

vivos;

S5: que a transição da morte provoque um efeito liberador das

capacidades psi de uma pessoa, de modo que um sujeito, o qual nunca

demonstrou talentos psíquicos quando encarnado, passe a manifestar

habilidades psi sub-repticiamente, influenciando intensamente o

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médium com seus pensamentos ou tomando o comando executivo do

corpo biológico via PK;

S6: que uma pessoa viva (o médium) tenha uma sensibilidade especial,

qualquer que seja sua natureza, para manifestar cognitivamente os

efeitos da influência telepática de um falecido ou para lhe ceder

transitoriamente o controle corporal.

Vamos agora analisar pormenorizadamente cada uma dessas seis hipóteses auxiliares

ou pressuposições de S.

2.1. Comentários a respeitos de S1

S1: que a mente e o cérebro não tenham uma relação do tipo produtiva, no sentido de

que o último seja causa necessária da primeira.

A hipótese de a mente ser um subproduto da atividade cerebral é um dos establishments

da ciência contemporânea. Porém, tudo o que as observações empíricas provenientes da

psicologia, da neurociência, da linguística, da ciência da computação e da inteligência artificial

nos conta são correlações entre estados cerebrais e mentais. Mudanças comportamentais, de

humor, cognitivas, mnemônicas, e outras modificações na personalidade, subsequentes ou

simultâneas a alterações (na estrutura ou no funcionamento) cerebrais, não implicam

necessariamente numa redutibilidade causal daqueles estados mentais a estados do cérebro.

Esse tipo de relação produtiva é somente uma das inferências do relacionamento mente-

cérebro que, por infelicidade, tem sido abraçada dogmaticamente por grande parte da

comunidade científica.

Como alternativa à hipótese da produção, podemos interpretar as mesmas observações

empíricas das ciências cognitivas como exemplos de um cérebro permissivo ou transmissivo da

atividade mental. Essa outra inferência dos dados nem de longe é nova, possuindo raízes desde

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os diálogos de Platão e Hipócrates à filosofia de Emmanuel Kant. O desenvolvimento posterior

dessa posição acelerou-se na transição dos séculos XIX/XX, principalmente através do erudito

inglês Frederic Myers, além de Ferdinand Schiller, Henri Bergson e William James, que foi o

primeiro a expressamente declarar que a consciência poderia ser 'transmitida' pela atividade

cerebral, no lugar de produzida.

Muitas analogias já foram utilizadas para nos clarificar a ideia da teoria da transmissão,

com destaque para aquela de Myers o qual relacionou metaforicamente o interacionismo mente-

cérebro a passagem de luz num prisma. Resumidamente a respeito, a psicóloga Emily Kelly

descreve com acurácia o entendimento em artigo de 1994 publicado no The Journal of

Parapsychology:

[...] A parte de nossa vida mental, que ordinariamente estamos cientes, corresponde

somente a um pequeno segmento, visível a olhos nus, do espectro eletromagnético

filtrado num prisma, objeto que metaforicamente corresponderia ao cérebro (ou ao sistema nervoso como um todo). Entretanto, exatamente como o espectro

eletromagnético se estende bem além daquela porção visível, a consciência humana

poderia ir muito além da pequena porção que normalmente estamos cientes. A porção

visível – tanto do espectro eletromagnético como do espectro mental – não seria

superior nem inferior ao resto, mas simplesmente a porção que, em termos

evolucionários, melhor atendeu às necessidades do organismo em seu ambiente

imediato. Além disso, a porção visível ou supraliminar não é fixa, mas está em

constantes mudanças, expandindo, contraindo-se, não somente durante a vida de um

indivíduo, mas também no curso da evolução. Exatamente como a detecção sensória

do espectro eletromagnético evoluiu de uma simples irritabilidade a sistemas visuais

altamente complexos, então a porção supraliminar do espectro mental evoluiu de

simples respostas reflexas do sistema nervoso primitivo aos mais elevados processos cognitivos humanos.[...]. Myers sugeriu que no invisível segmento infravermelho do

espectro mental estão aqueles mais antigos e primitivos processos, informações ou

comportamentos que, ele insinuou, uma vez foram conscientes (tanto a nível

individual como evolucionário), mas são agora inconscientes e automáticos.

Correspondendo a pequena porção visível do espectro eletromagnético estão nossa

consciência e nossos habituais pensamentos e comportamentos. E, finalmente, no

invisível segmento ultravioleta do espectro mental estão aquelas capacidades mentais

as quais permanecem para a maioria de nós em estado de latência, porque elas não

foram ainda extraídas ou ativadas por processos evolucionariamente adaptativos.

Nessa região emergem, à medida que a consciência evolui, os mais novos e altos

processos mentais; incluindo os paranormais que ocasionalmente são reportados”. [...] O fato de a consciência ser bem maior tanto em extensão e em habilidade que nós

ordinariamente idealizamos sugeriu a Myers que ela é capaz de operar num ambiente

mais amplo daquele que presentemente percebemos. A existência de capacidades

latentes (por exemplo, o incremento da memória e a telepatia, ou o controle mental

sobre sistemas físicos) sugeriu a ele que aquelas capacidades podem em última

instância se tornarem mais completamente ativadas e operacionais, seja no curso da

evolução ou removendo o mecanismo do filtro do [ou que é o] cérebro, então a

consciência iria continuar a se expandir e se tornar ciente de um mais amplo ambiente

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que sempre existiu, embora indetectável por nossas limitadas capacidades

perceptivas.28 29

Pessoalmente, acredito que a teoria da personalidade humana de Frederic Myers, a qual

abraça a hipótese de um cérebro transmissivo (no lugar de produtivo), é a mais ousada e

abrangente teoria da personalidade que já se teve notícia na história das ciências cognitivas.

Estou certo que muitos dos psicólogos e neurocientistas podem discordar disso, especialmente

porque as ideias de Myers permanecem negligenciadas pela maioria dos membros da

comunidade científica, porém também tenho certeza que alguns vão partilhar dessa posição,

especificamente aqueles que estão a par das pesquisas psíquicas de 'borda’, tais como

fenômenos psi, mediunidade e experiências místicas e no liminar da morte, entre algumas

outras. Digo isso porque a perspectiva da personalidade apresentada por Myers simplesmente

é compatível com todos os fatos admitidos pela ciência convencional, mas também elucida fatos

adicionais, recalcitrantes à ciência paradigmática, tais como os mencionados por Edward F.

Kelly (2000)30, a saber:

a) exemplos da persistência da memória e de estados mentais organizados quando a atividade cerebral estivesse cessada ou severamente prejudicada [como alguns casos

de Experiências de Quase Morte (EQMs) sugerem];

b) a própria existência de fenômenos psi;

c) experiências místicas que liberam capacidades mentais superiores, a exemplo do

incremento na velocidade de leitura e de habilidades cognitivas, além de incursões

psi;

d) experimentos com psicodélicos. A interpretação de Aldous Huxley de tais

experiências como resultante de uma suspensão da normal ação de "filtrar" imposta

pelo cérebro deveria ser revisada levando em conta informações mais detalhadas sobre os modos fisiológicos da ação de agentes específicos. A cetamina, por exemplo, é um

anestésico dissociativo e uma poderosa droga enteógena em doses subanestésicas.

Seletivamente rompe o sistema receptor NMDA das camadas corticais superiores, que

desempenha um papel importante nas interações tangenciais entre as áreas corticais,

e ainda tais interações são extensamente presumidas em fornecer uma base fisiológica

normal para as experiências perceptiva e cognitiva organizadas.

e) desordem de múltiplas personalidades e transe mediúnico. Muitos fenômenos

incomuns têm sido reportados em tais casos, os quais parecem desafiar as teorias

convencionais da função global do cérebro. Por exemplo, em co-consciência uma

personalidade ‘B’ pode estar simultaneamente ciente de sua própria experiência e

28 Cook, Emily Williams. The subliminal consciousness: F. W. H. Myers’s approach to the problem of survival.

Journal of Parapsychology, vol.58, mar., 1994. 29 Uma outra analogia bastante difundida é a relação da TV com os sinais ou ondas eletromagnéticas que carregam

o som e as imagens. Neste último caso, assim como a TV, o cérebro transmite a mente (a qual seria análoga aos

sinais de som e imagem). Sendo assim, defeitos e avarias no aparelho de TV podem provocar chiados, imagens

distorcidas, perda de cores, etc., da mesma forma que doenças, síndromes e lesões no corpo/cérebro podem afetar

a mente. Porém, a destruição total do aparelho de TV não implica na dissolução dos sinais, semelhantemente, a

extinção corporal não causaria a cessação da mente. 30 Survival of Bodily Death. Esalen Invitational Conference, realizada entre 11 e 16 de fevereiro de 2000.

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daquela da personalidade A, mas não vice-versa. Semelhantemente, quando um múltiplo está na frente do espelho, diferentes ‘álteres’ personalidades podem

simultaneamente ter experiências visuais bastante divergentes, por exemplo, vendo

uma jovem loira vs. um velho homem de cabelo negro. No caso ‘Old Stump’, descrito

por James, uma personalidade secundária aparentemente não foi afetada por uma

enfermidade que produzia delírios na personalidade principal. O transe mediúnico da

Sra. Piper (...) ocasionalmente a fazia interagir com três assistentes de uma só vez,

falando com um e escrevendo diferentes mensagens para os outros dois usando ambas

as mãos, tudo ao mesmo tempo. Tais casos parecem envolver, de modo simultâneo,

sistemas importantes do cérebro de maneiras diferentes e potencialmente

incompatíveis.

f) sujeitos prodígios, especialmente savantes31. De uma perspectiva

neurocomputacional, o único caminho para ficar mais lógico e aritmeticamente preciso, desconsiderados elementos individualmente incertos (os neurônios), seria

simplesmente usar mais neurônios, e os poucos estudos existentes destes fenômenos

fascinantes sugerem que prodígios tampouco devem estar usando todos os neurônios

que eles têm, ou fazendo seus cálculos de alguma maneira radicalmente diferente que

as nossas.

g) a unidade da experiência consciente. Os ‘sujeitos’ de nossa vida mental, o fato de

nossos pensamentos, imagens, memórias, etc. serem experimentados como sendo

dirigidos por nós mesmos, operando como agentes unitários, em direção a descrição

de eventos externos ou internos, permanece um mistério fundamental apesar das

discussões recentes do ‘binding problem’.32

Podemos acrescentar ainda casos de sujeitos com capacidades mentais dentro da média,

mas com estruturas anatômicas e funcionais do cérebro bastante comprometidas ou mesmo

ausentes (vide os pacientes de Lorber, 198033). Muito mais poderia ser dito aqui, mas o

mencionado é suficiente para demonstrar que a teoria da transmissão definitivamente é muito

mais do que uma hipótese metafísica.

Embora devamos a William James o enunciamento da teoria da transmissão em sua

histórica apresentação na Conferência em Ingersoll, Human immortality: two supposed

objections to the doctrine (1898), foi Frederic Myers quem desenvolveu mais extensamente as

31 Pessoa intelectualmente limitada, mas que tem uma extraordinária habilidade em uma área, ex., música,

matemática etc. 32 O binding problem é um grande questão da neurobiologia moderna. Na sua vertente sensorial, o exemplo

paradigmático corresponde à questão de como é possível, por exemplo, a cor e forma de um objeto estarem

perceptualmente tão fortemente ligados, quando são processados em locais inteiramente diferentes do cérebro. Na esfera motora o binding problem envolve fundamentalmente a compreensão dos mecanismos de coordenação dos

movimentos do corpo comandados por áreas diferentes do cérebro. 33O neurologista inglês John Lorber descobriu que algumas pessoas com extrema hidrocefalia eram

surpreendentemente normais, em que pese terem o interior da caixa craniana composto de 95% de fluido cérebro-

espinhal. Entre cerca de 60 sujeitos observados nessa situação estava um jovem estudante da Universidade de

Sheffield que, não obstante ter seu crânio preenchido apenas com uma fina camada de células cerebrais, cerca de

um milímetro de espessura, e o resto preenchido com fluído, ostentava um QI de 126, sendo um firstclass degree

em matemática. Sua atividade mental e memória estavam dentro da normalidade ainda que tivesse um cérebro

somente com 5% do tamanho normal.

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bases de uma perspectiva da personalidade humana que demanda sua continuidade além da

morte corporal. A percepção de Myers persiste sendo a mais madura e bem desenvolvida

teoria que não apenas suporta, mas exige a sobrevivência psicológica após a morte física.

Simpatizantes com S indubitavelmente deveriam tê-la como ponto de partida, razão pela

qual passo a adotá-la como pedra angular a fim de apresentar uma teoria da sobrevivência

mais robusta, no lugar de fornecer ao leitor uma visão ingênua como a sustentada por

algumas doutrinas e filosofias dogmáticas que me abstenho de mencionar para não

desviarmos do foco.

Em sua monumental obra de dois volumes, Human Personality and its Survival of a

Bodily Death (1903), Myers sistematizou, escorado em inúmeras observações empíricas, que a

personalidade humana se estende muito além da consciência ordinária que normalmente

estamos cientes. Sua teoria apoia-se em cinco características centrais, conforme sintetizadas

pelo filósofo e doutor em psicoterapia Adam Crabtree (2007):

(1) fenômenos como psicografia, histeria, mediunidade, sonhos, hipnotismo e inspiração criativa forçam os investigadores a olhar além das explicações fisiológicas

já disponíveis e colocam centros de consciência, exteriores a consciência primária

(isto é, ao nosso 'eu' ordinário), como as fontes de muitas ações e percepções

complexas e automáticas;

(2) esses centros de consciência devem ser considerados, no mínimo nos casos bem

desenvolvidos, como personalidades ou eus [selves], sendo fontes inteligentes de

pensamentos, sentimentos e ações, com suas próprias cadeias de memória, exibindo

coesividade psicológica. Myers assinalava que esses centros não são necessariamente

meros estados alternados de consciência, mas podem operar concorrentemente com o

eu supraliminar (i.e., nosso eu ordinário, o qual normalmente tomamos como a nossa

identidade pessoal) e com outros eus os quais também funcionam subliminarmente; (3) os centros de consciência subliminares algumas vezes mostram ciência uns dos

outros. Myers também escreveu sobre um tipo de inclusividade na qual centros

subliminares podem em alguns momentos estar cientes dos pensamentos e ações da

consciência primária ou supraliminar, como também o ambiente na qual a consciência

supraliminar existe. Essa ciência, porém, é ordinariamente não recíproca;

(4) Myers reconheceu que existe uma forte ligação entre automatismos e capacidades

psi. Começando com seu estudo sobre psicografias nos anos de 1880, ele demonstrou

que as informações produzidas pelas consciências comunicadoras eram algumas vezes

verídicas e não poderiam ser explicadas por conhecimentos adquiridos através dos

sentidos ou outros meios normais. Evidências de faculdades supernormais foram

descobertas por toda a extensão dos automatismos sensorial (tais como as experiências de aparições de pessoas vivas, mortas e moribundas e o transe mediúnico) e motor

(como a psicografia) que ele estudou;

(5) ele depois hipotetizou um "Eu" ou Self Subliminar que abrange tanto as

consciências supraliminar e subliminares, estando ciente de todas as atividades que

ocorrem em cada uma delas. Esse Eu tem raízes num ambiente transcendental de

algum tipo, responsável por suas capacidades supernormais. Ele provê a unidade

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abrangente da psique, reconciliando seus aspectos "colonial" versus "unitário",

sobrevivendo ao choque da morte física.

Crabtree considera as características de (1) a (4) bem estabilizadas empiricamente. De

fato, estudos sobre automatismo revelam ações inteligentes e com propósitos bem definidos

que escapam a nossa percepção consciente, evidenciando que abaixo de nossa consciência

ordinária múltiplos centros de consciência funcionam concorrentemente sem que tenhamos

qualquer notícia sobre sua operacionalidade ou domínio sobre eles. Myers denominava isso de

o aspecto 'colonial' da psique. A tal respeito, o ponto de vista de Myers encontra coro com

grandes mentes da psicologia, a exemplo de William James, Morton Prince, Thomas

Mitchell e William McDougall.

Ao contrário da concepção freudiana que tomava a consciência como algo unitário e

rejeitava a noção de múltiplos centros de consciência, Myers desenvolveu sua teoria à luz dos

muitos ‘eus’ que habitam um indivíduo, partindo de uma variabilidade de casos sobre

automatismos, desde processos claramente patológicos, tal como a histeria, obsessão (ou ideia

fixa) e distúrbios dissociativos de identidade, a exemplos de fenômenos automáticos que

representam – segundo ele – “um aperfeiçoamento do estado normal, um estado supranormal,

uma fase nova, que se manifesta no decurso da evolução”34. Ele relatou muitos casos acerca

dessas manifestações superiores que escapam do limiar de consciência. Por exemplo, ele via a

inspiração genial, tal como acontece em algumas composições artísticas incontestavelmente

sublimes e na prodigiosidade de raciocínio não-lógico (como alguns dotados calculadores

mentais), como ideias cuja elaboração “a consciência do sujeito não teve participação, mas que

se formaram sozinhas, isto é, independente da vontade, nas regiões profundas [do Ser]” (idem).

Myers assim argumentava que os centros subliminares não são qualitativamente

superiores ou inferiores ao ‘eu’ supraliminar, possuindo o estrato mental abaixo da consciência

ordinária uma variedade enorme de material psicológico, alguns notavelmente sublimes, outros

representativos de uma degenerescência da personalidade, além da existência daqueles

considerados intermediários, nos quais ele classificou os sonhos.

34 Myers, Frederic. A Personalidade Humana. São Paulo: Edigraf, p. 66.

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Em algumas ocasiões esses centros subliminares, dotados de percepção, inteligência e

propósito se desenvolvem, agregando outros elementos da vida psicológica do sujeito, tais

como sentimentos, e uma própria cadeia de memórias, de uma modo que uma personalidade

nova, secundária, com um caráter bem definido passa a reivindicar o controle corporal, a

exemplo dos casos de distúrbios dissociativos de identidade (MPD/DID).

Esses centros subliminares, desenvolvidos a ponto de constituírem uma personalidade

autônoma ou não, muitas vezes funcionam como facilitadores para a liberação de habilidades e

capacidades psíquicas latentes, inclusive a psi, tal como diversos casos espontâneos e

experiências as quais relacionam a psi com estados alterados de consciência demonstram (por

exemplo, estudos controlados que atingiram correlações positivas entre o funcionamento psi e

estados alterados de consciência induzidos através da hipnose, da privação sensória ou ganzfeld,

da meditação e relaxamento progressivo, e de estados hipnagógicos e dos sonhos35).

Embora seja uma característica contingente de DID, em muitos casos de múltiplos (e

também de sujeitos hipnóticos) existe uma relação hierárquica entre as personalidades

secundárias e/ou entre personalidades secundárias e a personalidade primária ou original.

Assim a personalidade secundária ‘B’ pode ter ciência dos pensamentos e das ações da

personalidade original ‘A’, mas não ao contrário. Uma personalidade ‘C’ ainda é capaz de

emergir e estar ciente de tudo o que acontece com ‘B’ e ‘A’, e ambas ignorarem o surgimento

de ‘C’. Essa característica hierárquica entre alguns "eus" de um sujeito sugeriu a Myers que na

35 Veja: Honorton, C. (1977). Psi and Internal Attention States. In B. B. Wolman (Ed.), Handbook of

parapsychology (pp. 435–472). New York: Van Nostrand Reinhold; Krippner, Stanley; Ullman, Montague;

Vaughan, Alan (2003). Dream Telepathy: Experiments in Nocturnal Extrasensory Perception (Studies in

Consciousness). Hampton Roads Publishing Company; Radin, Dean (2013). Supernormal. Science, Yoga and the

Evidence for Extraordinary Psychic Abilities. Deepak Chopra Books.

Os conceitos de ‘labilidade’ e ‘inércia’ de William Braud são de grande relevância para clarificar a relação de psi

e estados alterados. Esse psicólogo admite que a meditação, relaxamento progressivo, hipnose e outros estados

alterados foram reconhecidos como facilitadores da performance ESP no laboratório. Tais estados alterados são

caracterizados pela focalização interior, ao passo que há uma redução da atenção aos ambientes físicos e sociais

que rodeiam o indivíduo. Os mundos físico e social têm uma estabilidade e uma capacidade de estruturar e organizar a atenção de uma pessoa. Em contraste, no sonho e na meditação, a mente pode rapidamente pular de

uma ideia para outra. Há uma menor padronização de processos cognitivos nesses estados, sendo menos

estruturados. A imagem é instável, mudando rapidamente. Braud então desenvolveu os conceitos de ‘labilidade’,

que é essa pronta capacidade para mudanças, permitindo uma livre variabilidade de um sistema, e do conceito

oposto de ‘inércia’, ou seja a tendência de resistir a mudanças. Braud argumenta que a probabilidade de um efeito

psi ocorrer é diretamente proporcional a quantidade de labilidade que o cérebro ou a mente do sujeito possui

(Hansen, 2001). Para aprofundar os conceitos, veja Braud, William (2003). Distant Mental Influence: Its

Contributions to Science, Healing, and Human Interactions (Studies in Consciousness). Hampton Roads

Publishing Company.

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base da psique humana existe uma individualidade final, um “Eu” o qual representa a unidade

total de um indivíduo. Ele então a chamou de o ‘Eu Subliminar’ [em maiúsculo], reservatório

de todas as manifestações psicológicas de uma pessoa e as quais podem se agregar em torno de

uma cadeia de memória, numa incomensurável quantidade de arranjos, permitindo uma

quantidade quase infinita de padrões de personalidade, da mesma forma que um caleidoscópio

pode ser balançado e dar origem a inúmeros desenhos geométricos. A sua personalidade

ordinária (i.e., aquilo que você reconhece como sendo 'você') é apenas uma das combinações

desses incontáveis elementos psicológicos, a qual certamente surgiu em razão da seleção natural

(e social). Além disso, a personalidade humana é dinâmica, estabelecendo com frequência

novos - e desfazendo antigos - arranjos com os variados elementos psicológicos da psique, tais

como sentimentos, percepções, propósitos, ideias, pensamentos, cadeia de memórias, etc.

Finalmente, com a dissolução corporal, haveria a sobrevivência daquele Eu Subliminar,

mas paralelamente ocorreria a aniquilação da personalidade ordinária a qual normalmente nos

identificamos. Alguns sobrevivencialistas podem exclamar, dizendo que esse não é o tipo de

teoria da sobrevivência a qual desejam dar felicitações, afinal, o que importa – dizem eles – “é

que as ‘minhas’ memórias, emoções e sentimentos, caráter e sentido de identidade sejam

preservados após a morte”. Bem, posso dizer que essa é uma linha de pensamento bastante

ingênua e muito distante do real significado da teoria de Myers. Essa preocupação de

sobrevivencialistas será agora enfrentada na segunda hipótese auxiliar de S, que levanta

questões acerca da comprovação da identidade pessoal dos comunicadores e se é possível

esperar que, após o choque da morte, possamos experimentar um estado de consciência

representativo de um continnum do nosso estado de consciência ordinário, muito embora,

quanto mais vivenciamos uma existência post-mortem, mais chances temos de nos afundar num

estado alternativo de consciência, ainda que isso ocorra gradativamente.

2.2. Comentários a respeitos de S2

S2: que, após a morte, o conjunto das características psicológicas do falecido,

especialmente sua cadeia de memórias, caráter e sentido de identidade, não sofra uma

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modificação simultaneamente radical e inesperada, a fim de que possamos inferir a

sobrevivência de sua personalidade e comprovar sua identidade, i.e., que comunicador e

falecido são numericamente o mesmo indivíduo.

Aqui apresentamos duas questões que precisam ser de antemão resolvidas para a

validade de S. Uma delas procura saber se é possível realizarmos um julgamento de identidade

de modo que pudéssemos satisfatoriamente combinar a personalidade do comunicador com a

de alguém que um dia já vivera aqui na Terra. Se respondermos positivamente, então temos

passe livre para avançarmos sobre as demais discussões acerca da sobrevivência da

personalidade humana após a morte corporal. A resposta negativa, por outro lado, sequer

permite que o assunto da sobrevivência pessoal seja posto em discussão. Chamamos isso de “o

problema da identificação post-mortem”. A outra questão nos faz debater a respeito do impacto

da morte sobre as características psicológicas de uma pessoa até então corporalmente viva. Caso

esse impacto provoque um ‘estado alterado de consciência’ capaz de imediatamente dissolver

a cadeia de memórias e o caráter da personalidade ordinária ou comum, ainda que algo psíquico

sobreviva, não estamos mais falando de sobrevivência 'pessoal'. Vamos batizar isso de o

problema da dissolução da personalidade ordinária.

2.2.1. O problema da identificação post-mortem

Vamos supor que você tenha feito contato com um espírito o qual alega ter sido na vida

corpórea o seu grande amigo ‘Pedro’, recém-falecido. Sobre que bases você pode ter certeza

que aquele espírito, de fato, foi a pessoa ‘Pedro’ a quem você conhecia? Do mesmo modo,

imagine que você faleceu e após a morte recebe algumas impressões telepáticas provindas de

outro espírito o qual alega ter sido seu avô durante a vida física. Como você pode ter certeza

que é seu avô, e não um espírito enganador? Lembre-se, após a morte, perdemos o nosso corpo

com todas as características as quais pudessem nos fazer reconhecíveis, bem como reconhecer

os outros. Como você saberia que aquelas influências telepáticas não vêm de um vigarista?

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Tais indagações tocam numa das questões filosóficas mais intricadas de todos os

tempos: o problema de se estabelecer uma base lógica para julgamentos de identidade. Em sua

excepcional obra Philosophy and the Belief in a Life After Death (1995), o filósofo R. W. K.

Paterson desenvolve com muita acuidade o assunto. Vamos agora resumir alguns pontos desse

autor para os propósitos deste trabalho.

Paterson divide a questão da identidade post-mortem em problemas ontológico e

epistemológico. O primeiro procura saber o que faz um indivíduo único e o quanto ele pode

mudar e se assemelhar a outros indivíduos sem perder sua distinção dos demais. O segundo

preocupa-se em descobrir um critério satisfatório para conseguirmos fazer julgamentos de

identidade.

Sobre o problema ontológico, Paterson inicia elucidando que o conceito de identidade é

compatível com mudanças, mas não mudanças muito drásticas e repentinas. Imagine o que quer

que seja chamado ‘A’ – exemplifica ele. ‘A’ tem cinco características discerníveis (incluindo

sua localização espacial). No tempo t1, ‘A’ tem as características a b c d e; em t2, ‘A’ tem as

características a b c d f; em t3 a b c f g; em t4 a b f g h; em t5 a f g h i. Paterson assim indaga,

‘A’ ainda existe em t5? Ele então diz que a resposta irá depender se estamos trabalhando com o

conceito de identidade absoluta ou de identidade relativa. Sob as bases do primeiro, ‘A’

definitivamente deixou de existir em t5. Porém, alguém pode considerar que ‘A’ não é algo

constante, adstrito a uma característica [no caso, (a)] ou a um conjunto fechado de

características (a b c d e), mas sim algo de características fluídas, o que, no exemplo, cobre

todas as combinações de características listadas nos diferentes tempos e poderia cobrir muitas

outras características não listadas, bastando que as combinações fossem suficientemente

relacionadas. Com isso Paterson deseja mostrar ao leitor que tanto as pequenas mudanças que

ocorrem repentinamente quanto as vastas mudanças que ocorrem gradualmente podem ser

compatíveis, pelo conceito de identidade relativa, com o objeto qualitativamente-alterado (‘A’

em t5) como sendo numericamente o único e o mesmo objeto de antes (‘A’ em t1).

Além disso, Paterson adverte que, no decorrer do tempo, a maioria dos objetos

(inclusive pessoas) muda consideravelmente e, com frequência, muda de forma completa,

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existindo, assim, muito mais uso para o conceito de identidade relativa do que para o de

identidade estrita ou absoluta.

No que diz respeito a questão epistemológica, o autor depois passa a revisar as principais

tentativas para estabilizar os fundamentos lógicos para um julgamento satisfatório da identidade

de uma pessoa, classificando-os em três vertentes de características, a saber: a) físicas (o corpo,

em sua totalidade; o cérebro; a constituição genética e o percurso espaço-temporal); b)

psicológicas (a memória e o caráter); e c) transcendentais (a alma e o ‘Eu’). Por motivos óbvios,

apenas (a) e (b) são bases empíricas para juízos de identidade, pelo menos enquanto estivermos

"do lado de cá"! Por essa razão nossa análise ficará limitada a elas duas.

Pois bem, desde logo é importante destacar que nenhuma das características acima é um

critério necessário para a avaliação da identidade pessoal. Por exemplo, o corpo (a.1), em sua

totalidade (especialmente as características faciais), é a evidência mais convincente de

identidade no caso de pessoas vivas, mas ainda assim uma pessoa continua sendo a mesma,

apesar de seu corpo sofrer muitas mudanças radicais, da infância até a velhice. De fato, tanto

sua aparência quanto sua composição atuais são radicalmente diferentes de quando era recém-

nascido. Ademais, pessoas ainda poderiam sofrer acidentes com danos estéticos avançados,

receber próteses e serem transplantadas, mas ainda assim continuariam a ser numericamente o

mesmo indivíduo.

No caso do cérebro (a.2), o debate mais recente sobre sua relação com a identidade

pessoal lança discussões enigmáticas, por exemplo, se o cérebro de uma pessoa fosse

transplantado para o corpo de outra, as memórias, o caráter e as habilidades do doador

acompanhariam o cérebro? E se o cérebro fosse dividido e diferentes partes dele fossem

transplantadas para vários corpos? Cada corpo iria receber uma parcela das memórias,

características e habilidades do doador? Como nós faríamos julgamentos de identidade sobre

isso? Paterson então chama atenção para o que já sabemos, ou seja, que interferências massivas

na integridade de nossos cérebros produzem massivas alterações mentais, porém, essas

alterações mentais são contingentes, e não consequências necessárias da interferência física.

Além disso, Paterson argumenta que, se nós rejeitamos a identificação de uma pessoa com o

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corpo, na sua totalidade, também devemos rejeitar identificá-la com qualquer parte dele,

incluindo o cérebro.

Já na hipótese da constituição genética (a.3) ser um critério necessário para juízos de

identificação, basta mencionar que todas as pessoas têm características significantes as quais

não são herdadas, mas adquiridas como resultado da experiência de vida. Além do mais, gêmeos

idênticos são indivíduos distintos, apesar de possuírem qualitativamente genes idênticos.

Quanto ao percurso espaço-temporal (a.4), também é um fato contingente, e não

necessário para a identidade pessoal. Podemos facilmente imaginar alguém desaparecer de um

lugar e reaparecer em outro sem deixar de ser ele mesmo (como Paterson lembra, físicos

quânticos já argumentam que isso acontece com partículas). Além disso, nós não seguimos

todas as posições espaço-temporais das outras pessoas para termos certeza que estamos lidando

com elas, de modo que essa característica não é um critério utilizado por nós no cotidiano, não

existindo, portanto, o menor sentido em exigi-la para os casos de identificação post-mortem.

Sobre os elementos psicológicos, Paterson argumenta que a memória (b.1) também não

pode ser um critério necessário para o julgamento de identidade, porque existem muitas

experiências as quais somos incapazes de lembrar e, paradoxalmente, casos em que parecemos

recordar de algo que na realidade nunca vivenciamos.

Já o caráter (b.2), i.e., aquele conjunto de hábitos, gostos, crenças, sentimentos, valores,

atitudes e habilidades que torna o comportamento de um indivíduo comparativamente estável

e previsível, fazendo-o um objeto de interesse e afeição (ou indiferença ou antipatia) para

aqueles que o cercam, igualmente não merece melhor sorte. Paterson destaca que podem existir

muitas pessoas com caráter similar, além de ser possível que existam duas pessoas com caráter

inteiramente combinado. Para piorar, os hábitos e gostos das pessoas podem ser alterados; elas

podem abraçar diferentes crenças e adotar diferentes valores no decorrer do tempo; e suas

habilidades podem com o tempo atrofiar e serem substituídas por habilidades completamente

novas.

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Paterson escreve muitos outros argumentos para rejeitar cada uma dessas características

(físicas e psicológicas) como critérios necessários e suficientes para juízos de identidade; em

outras palavras, todas elas são contingentes. Mas, para encurtamos a história, o ponto que desejo

destacar é o de que pessoas são, acima de tudo, marcadas por características frágeis e flutuantes

e, por essa razão, temos que nos contentar com um conceito relativo de identidade (que permite

mudanças (a) lentas e repentinas ou (b) vastas e graduais). Claro, podemos aumentar a

segurança na identificação ao combinarmos todas as características acima e, de fato, é isso que

fazemos habitualmente sem qualquer esforço. É por tal razão que identificar pessoas vivas é

bem mais fácil do que confirmar a identidade de um espírito que se comunica através de um

médium, afinal [nós, vivos] temos características adicionais (as físicas) para aumentar a

segurança de nosso julgamento. Porém, em muitas ocasiões do cotidiano fazemos juízos de

identidade automaticamente e de modo bem natural tão somente com base nas características

psicológicas de um indivíduo. Por exemplo, nas correspondências epistolares e eletrônicas e

nas conversas telefônicas você trata com a pessoa anunciada tão somente com base nas

memórias (ou seja, nas informações que ela partilha com você e que lhe sugerem ser quem diz)

e no caráter dela (hábitos de escrita, coloquialismo de linguagem ou tom de voz). Em tais casos,

há um juízo de identidade, a despeito de você não ter acesso ao corpo (especificamente a

aparência) do remetente da missiva ou do interlocutor.

Em What Would Constitute Conclusive Evidence of Survival After Death?36 (1961), o

falecido e renomado filósofo Curt. J. Ducasse faz apropriado paralelo entre a identificação de

pessoas vivas (com base somente em elementos psicológicos) e mortas que se manifestam

através de médiuns. Vejamos:

No curso de uma conferência realizada pelo autor [Ducasse] alguns anos atrás numa

reunião da American Society for Psychical Research, o público foi convidado a juntar-se na seguinte experiência. Vamos supor que eles foram informados que um amigo

nosso, John Doe, estava a bordo de um avião que colidiu no oceano e que nenhum

sobrevivente foi encontrado; porém, algum tempo depois, nossos telefones tocam e

(a) uma voz a qual reconhecemos como John Doe é ouvida e uma conversação com

ele nos convence que o locutor seja realmente John Doe. Ou alternativamente, vamos

supor (b) que a voz escutada não é a de John Doe, mas sim a de alguma outra pessoa

que aparentemente repassa as palavras dele para nós e vice-versa; e que o diálogo,

portanto, nos convence de que a pessoa com quem estamos conversando através

daquele intermediário é John Doe.

36 Journal of the Society for Psychical Research [41,1961-62, pp. 411-6.]

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A questão pedida ao público a considerar-se foi, qual o tipo, em um ou outro caso, do conteúdo daquele diálogo que nos faria considerar como certo ou altamente provável

que nosso interlocutor realmente fosse John Doe?

Obviamente, as situações imaginadas (a) e (b) são, ao todo, noções básicas, análogas aos casos em que uma pessoa está conversando com o pretenso espírito sobrevivente

de um amigo falecido que no caso (a) 'controla' temporariamente, pelo menos, partes

do corpo do médium, isto é, usa os seus órgãos vocais e audíveis ou escreve à mão;

ou então que, no caso (b), usa o médium apenas como intermediário, isto é, 'fala' com

ele telepaticamente e 'escuta', também telepaticamente, o que o médium ouve quando

nós falamos.

Desse modo, como os casos de John Doe e aquele do diálogo através de um médium

são completamente análogos, o tipo especial do conteúdo do diálogo que seria

adequado para provar ou fazer positivamente provável que John Doe tenha

sobrevivido ao impacto seria igualmente adequado para provar ou fazer positivamente

provável que a mente de nosso amigo falecido sobreviveu à morte de seu corpo.

Mas factualmente, considerando que os comunicadores são quem alegam ter sido, que

evidências de identidade eles nos fornecem através dos médiuns? Bem, especialmente pela

mediunidade de transe, interessantes pistas de identificação podem ser apresentadas e as quais,

quando combinadas, dão excelente margem de certeza no julgamento de identidade. Ainda que

o comunicador seja uma fase ou elemento da vida psicológica do médium, com tais pistas

podemos, de fato, identificar qual falecido a personalidade secundária está representando.

Assim, é frequente, por exemplo, que as informações comunicadas pelo médium

venham do ponto de vista do morto, desse modo poderíamos dizer que são as memórias do

desencarnado (especialmente aquelas partilhadas com seus parentes e conhecidos vivos) a

característica que habitualmente mais se presta a provar a identidade post-mortem. Além disso,

médiuns não raro exibem alguns elementos do caráter do falecido. Nos melhores momentos, o

caráter inteiro parece se manifestar, o que contribui massivamente para um juízo de identidade.

Médiuns de transe também têm uma faculdade clarividente e em muitos casos eles descrevem

alguns detalhes da aparência corporal a qual o pretenso comunicador tinha no último estágio da

vida física.

A par disso tudo, podemos resumir os seguintes pontos sobre a identificação de pessoas

falecidas:

a) Devemos nos satisfazer com um conceito relativo de

identidade (tanto para coisas quanto para pessoas vivas ou mortas), de

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45

modo a permitir que um indivíduo permaneça único e numericamente

o mesmo através do tempo, a despeito de constantes modificações em

suas características;

b) Essas modificações podem ser radicais, desde que

ocorram gradualmente no tempo e que permaneça havendo uma

relação significativa nas combinações de suas características;

c) Do ponto de vista lógico, não existe uma característica

humana necessária e suficiente para julgamentos de identidade, de

modo que o conceito de identidade pessoal é uma matéria de grau, e

não de certo ou errado;

d) Em razão de (c), julgamentos de identidade com base

somente em elementos psicológicos é perfeitamente viável, o que é feito

por nós habitualmente em determinadas ocasiões de nosso dia-a-dia;

e) Como consequência de (d), devemos também admitir a

possibilidade de juízos razoavelmente seguros de identificação post-

mortem efetuados tão somente com suporte nas características

psicológicas do falecido, de modo que seria razoavelmente aceitável

concluir, a depender das evidências de um caso, que o comunicador e

o falecido sejam numericamente o mesmo indivíduo.

2.2.2. O problema da dissolução da personalidade ordinária

Já mencionamos que a personalidade ordinária é apenas uma das combinações dos

incontáveis elementos psicológicos que povoam a psique, unidos de uma forma razoavelmente

estável por cadeias de memória; a nossa personalidade comum reflete um padrão como resposta

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as influências ambientais (incluindo de nossos próprios corpos físicos) na luta para nossa

autopreservação terrena. Esse padrão o qual consideramos como o nosso ‘normal estado de

consciência’ é apenas um dos quase infinitos padrões de personalidade que poderiam ser

modulados, porém, em face da seleção natural imposta pelo meio ambiente no qual estamos

inseridos, além das influências interoceptivas de nossos próprios corpos físicos, esse ‘estado

normal’ foi aquele que simplesmente prevaleceu. De modo semelhante, o psicólogo Charles

Tart (1997)37 comenta sobre essa característica semi-arbitrária de nosso estado ordinário de

consciência:

Durante o nosso crescimento e o nosso processo de integração à cultura, nós desenvolvemos um número muito grande de hábitos: modos rotineiros de perceber,

de pensar, de sentir e de agir. Esses hábitos funcionam automaticamente em nosso

meio ambiente ordinário de modo a constituir um sistema – o padrão a que damos o

nome de ‘consciência ordinária’ – que é estabilizado, mantendo automaticamente sua

integridade através de circunstâncias variáveis. Esquecendo o trabalho que nos custou, quando crianças, a construção desse sistema, e a relatividade cultural e a arbitrariedade

de grande parte do mesmo, nós tomamos por certo esse sistema e não colocamos em

dúvida o caráter ‘ordinário’ ou ‘normal’ dessa consciência.

Tart argumenta que alguns estados alterados de consciência (tal como o sonho, estados

hipnagógicos, o transe, os decorrentes de abalos emocionais e os induzidos por práticas de

relaxamento profundo, isolamento sensorial, meditação, hipnóticos, etc.) podem abrir as portas

para outros aspectos da realidade não acessíveis pelo nosso estado “normal” de consciência.

Sustenta, assim, que alguns conhecimentos são específicos-de-estado, somente acessíveis se

estivermos num determinado estado de consciência. Propõe então que, para compreender o que

aconteceria com nossa consciência após a morte, deveríamos investigar mais o que acontece ao

funcionamento mental em vida quando nossa capacidade de perceber o corpo e o ambiente o

qual nos cerca é severamente reduzida ou temporariamente eliminada, tal como nos sonhos, nos

estudos de privação sensória e na intoxicação cetamínica. Tart ainda nos lembra que,

[...]Em nosso estado ordinário de consciência, teremos nossa personalidade ordinária.

No entanto, se nosso estado de consciência for drasticamente alterado o mesmo acontecerá com nossa personalidade. E se o estado post-mortem for particularmente

favorável ao aparecimento de estados alterados, neste caso, mesmo se alguma coisa

sobreviver após à morte, não será provavelmente a nossa personalidade ordinária,

nosso sentido familiar do ‘Eu’ (idem).

37 In Doore, Gary. Explorações Contemporâneas da Vida Depois da Morte. São Paulo: Cultrix, 10ª ed.., p. 137.

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Desse forma, se nosso estado de consciência post-mortem realmente guardar grandes

semelhanças com nossa consciência onírica (ou aquelas resultantes de outros estados alterados

análogos), fica difícil sustentar a sobrevivência de nossa personalidade ordinária após a morte,

pois nos sonhos a função da memória (agimos como ‘perceber’, e não como ‘lembrar’), nosso

sentido de identidade, nossas emoções e processos de avaliação atuam de maneiras bastante

diferentes de quando estamos despertos.

Pois bem, mas vamos agora juntar os fios da meada, abordando o presente problema da

dissolução de nosso 'Eu' habitual sob a perspectiva de Frederic Myers.

Quando Myers desenvolveu sua teoria da personalidade, ele estava bastante ciente de

tudo isso. Na sua ótica, a personalidade ordinária (da mesma forma como os muitos ‘eus’

subliminares, a exemplo dos casos psicopatológicos de múltiplos, de transe ou hipnoticamente

induzidos) possui uma existência efêmera e transitória. Ela é apenas uma das combinações

possíveis do quase infinito número de arranjos que podem ser formados a partir dos elementos

psicológicos oriundos do reservatório de nossa unidade psíquica a qual ele denominou de ‘Eu

Subliminar’.

Frise-se que, para Myers, o Eu Subliminar não é um segundo ‘eu’ funcionando

inconsciente e paralelamente ao nosso ‘eu’ familiar, i.e., a nossa consciência ordinária. O Eu

Subliminar representa a individualidade total de um Ser; individualidade essa que pode se

expressar de inúmeras formas, e a nossa personalidade ordinária é apenas uma delas. Myers

chama os tipos de expressão do Eu Subliminar de “manifestações fenomenais”. Dependendo

do nosso estado de consciência, resultante das influências a que estamos submetidos, diferentes

manifestações fenomenais podem ocorrer, inclusive aquelas de casos psicopatológicos de

personalidades concorrentes, quando mais de uma manifestação acontece simultaneamente.

Admitindo, para fim de argumento a validade de S, com a morte, o Eu Subliminar, isto

é, nossa individualidade, passa a estar submetida a um novo cenário fenomenológico, com a

retirada dos influenciadores habituais (os ambientes natural e social que atualmente nos cercam

e, principalmente, a interferência dos nossos corpos físicos). Nessa nova realidade, é bastante

presumível que nosso Eu Subliminar, i.e., nossa individualidade total e final, passe a expressar-

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se de uma forma bastante diferente da atual, logo, assumindo uma nova personalidade; e o que

hoje consideramos ‘estado de consciência normal’, provavelmente será encarado, “do outro

lado”, como um estado alternativo e até mesmo bizarro.

Agora, quando avaliamos o problema da identidade pessoal, vimos que pessoas são

marcadas por características frágeis e flutuantes; e que podemos razoavelmente considerar

alguém como sendo numericamente o mesmo indivíduo ainda quando vastas modificações de

suas características acontecem, porém, desde que ocorram de forma gradual. Do ponto de vista

lógico, não existe nada a impedir que, após a morte, nossa personalidade seja modificada

gradativamente, adaptando-se de forma paulatina a nova realidade (ao contrário de uma

adaptação brusca e inesperada), além de também mantermos preservada a nossa cadeia de

memórias e o sentido de identidade.

Além disso, sob a perspectiva empírica, existem estados alterados nos quais a

capacidade de perceber o corpo e o ambiente imediato é severamente reduzida ou eliminada,

porém, ainda assim, o ‘eu’ resultante mantém muitas características e, principalmente, o sentido

de identidade e a cadeia de memórias da personalidade ordinária. Podemos mencionar casos de

experiência de quase morte. Relatos de EQMs evidenciam, com frequência, alterações na

percepção (encontrar uma “Luz”, entrar num túnel ou vazio escuro, experimentar estar fora-do-

corpo, etc.) e de sentimento (ex., experimentar paz ou alegria); mas os sentimentos dirigidos a

pessoas conhecidas (familiares, amigos, etc.), o sentido de identidade [durante a experiência, a

consciência experienciadora reconhece-se como sendo aquele sujeito o qual se encontra (ou

acredita se encontrar) no limiar da morte] e a cadeia de memórias ficam preservados, como

sugerem o fenômeno da Life review e o reconhecimento de pessoas durante a experiência [para

uma revisão geral, veja, por exemplo, Holden, Greyson e Debbie, 200938; e Carter, 201039). Os

casos stevensonianos de crianças que alegam recordar vidas passadas, por sua vez, indiciam a

persistência da memória, do sentido de identidade e de alguns elementos do caráter entre as

vidas atual e prévia, logo, com muito mais razão deveríamos esperar que nossa cadeia de

memórias, sentido de identidade e caráter ficassem preservados após o falecimento. O valor de

38 Holden, Janice Miner; Greyson, Bruce; e James, Debbie (2009). The Handbook of Near-Death Experiences:

Thirty Years of Investigation. Praeger. 39 Carter, Chris (2010). Science and the Near-Death Experience: How Consciousness Survives Death. Inner

Traditions.

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face dos casos mediúnicos também indica que a personalidade post-mortem mantém as

lembranças, o sentido de identidade (comunicador transmite as informações do ‘ponto de vista’

da pessoa falecida) e caráter da personalidade pre-mortem.

Todos esses exemplos fortalecem a hipótese de inclusividade sustentada por Myers,

quando, sob determinadas ocasiões, álteres personalidades podem eclodir, absorvendo

elementos da vida psicológica da personalidade comum. Contudo, como o choque da morte

implica, sob a perspectiva de S, a continuar termos experiências, porém sem mais as influências

do corpo físico e do nosso atual ambiente imediato, é de se acreditar, tal como nas situações

traumáticas que eventualmente acontecem em nossa existência terrena, que pessoas reajam

heterogeneamente a essa mudança; logo, não deveríamos esperar um padrão de características

psicológicas sendo genericamente absorvido pelo ‘eu’ resultante à morte. Por exemplo, tal

como nos casos psicopatológicos de múltiplos, uma álter personalidade pode conhecer dos

sentimentos, pensamentos e das ações da personalidade principal, porém não tomá-los como

‘seus próprios’ (vide o clássico relato de Morton Prince sobre a Sra. Beauchamp). Aqui não

existe a permanência do sentido de identidade. Analogamente, o trauma da morte talvez nos

faça enxergar o ‘eu’ atual como um outro indivíduo; ou talvez então mantenhamos o sentido de

identidade, mas sofreremos parcialmente de alguma barreira amnésica; ou ainda que nada disso

corra, talvez apenas experimentemos uma mudança relativa de caráter, nutrindo novos

sentimentos, olhando com indiferença nossa vida terrena, etc.

Enfim, ainda que a morte implique na substituição da personalidade ordinária como

resposta a uma nova realidade existencial, há evidências as quais, no mínimo, sinalizam que

essa modificação, ainda que se torne radical, não ocorra de forma abrupta e inesperada para

todas as pessoas.

2.3. Comentários acerca de S3

S3: que alguns falecidos tenham interesse, desejo e motivação na comunicação com os

vivos.

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Para o estabelecimento de uma comunicação é necessário que o receptor atenda o

chamado do emissor e, especificamente, em nosso cenário, que o falecido atenda à invocação

ocorrida em sessões mediúnicas (ou se intrometa, no caso de comunicadores “não

convidados”). Nesse processo pode acontecer que algumas pessoas mortas tenham interesse e

motivação suficientes para estabelecer contato e outras não e, nesse último caso, não teríamos

qualquer evidência de personalidades falecidas “invadindo” nosso mundo.

É possível também que sujeitos com grandes razões para estabelecer contato post-

mortem não o façam. Por exemplo, poderia ser esperado que alguém bastante interessado numa

“vida futura”, recém falecido, com fortes vínculos sentimentais com algumas pessoas vivas e

que tenha importantes negócios inacabados, mantivesse, após a morte, o interesse e motivação

em estabelecer contato mediúnico40. Porém, dentro da perspectiva da teoria da transmissão da

consciência, vimos ser bem plausível que o choque da morte provoque mudanças profundas na

personalidade. Uma consequência dessa alteração no caráter é que ficaria difícil prever que o

“Eu” resultante persistiria interessado em estabelecer comunicação com os vivos. Com enfoque

nisso, poderíamos, a grosso modo, esboçar os seguintes cenários hipotéticos a respeito do

interesse de falecidos em se comunicarem com os vivos, convindo pontuar que a prevalência

de algum deles não faz um caso contra S41:

40 Em Aristocracy of the Dead: New Findings in Postmortem Survival, Arthur S. Berger, faz uma análise detalhada

de “12 casos de comunicação ostensiva a fim de estabelecer se a evidência persuasiva de continuação da identidade

pessoal tem sido ou não fornecida. Seis sujeitos vêm de cenários diversos, enquanto os outros seis foram

pesquisadores especialistas os quais poderiam ter tido boa razão para desejarem se comunicar: os Sidgwicks

(Henry, 1, Eleanor 4), Myers (1), Gurney (1), Podmore (4), e James (4). Destaca-se que estas pessoas foram

também altamente evidenciais (1) ou não (4)”. O autor faz “uma análise diligente de fatores que poderiam

favorecer um bom Comunicador sob as três classificações gerais de dados pessoais; circunstâncias relativas à

morte; e circunstâncias relativas a comunicação póstuma. Os 12 sujeitos são então analisados biograficamente

numa tentativa de isolar variáveis-chaves que favorecem um bom Comunicador numa amostra pequena. 23

possíveis fatores significativos emergiram, os quais por sua vez foram testados contra uma amostra de 100 casos

da Society for Psychical Research e American Society for Psychical Research; 5 destes foram confirmados, 13 falsificados e 5 inconclusivos. Assim este tratamento exaustivo rende o seguinte esboço do comunicador ideal:

Um homem que persiste na busca de seus interesses e esforços, ele é um artista ou tem uma aptidão para a poesia

ou para música. Sua atitude em direção à possibilidade da sobrevivência humana depois da morte é fortemente

colorida com ceticismo ou dúvida. Ao falecer, sua morte será dolorosa ou desagradável, e ele morrerá deixando

seu trabalho inacabado. Nenhuma tentativa deveria ser feita a sua pessoa até pelo menos dois dias decorridos após

a sua morte. Quaisquer esforços para comunicação com ele deveriam ser feitos na casa de um médium que lhe era

estranho e que fala o mesmo idioma” (resenha de David Lorimer sobe a obra Aristocracy of the Dead: New

Findings in Postmortem Survival, de Arthur Berger. McFarland and Co., London, 1987. xi + 209 pp.). 41 Por exemplo, encontrar de uma maneira estatisticamente significativa mais casos C e D do que A e B.

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Cenários hipotéticos Personalidade pre-

mortem

Personalidade post-

mortem

Interesse na

Comunicação

Falecido A

Psicodinâmica favorável à comunicação mediúnica,

com interesses sobre o

assunto, além de elos

sentimentais e negócios

inacabados envolvendo as

pessoas mais queridas as

quais “deixou para trás”.

O “Eu” resultante à morte partilha dos aspectos

psicológicos que

fundamentam o interesse e a

motivação da personalidade

pre-mortem.

Sim

Falecido B Idem

O “Eu” resultante à morte

absorve todas as lembranças

da vida terrena, conhece o

caráter que tinha antes do

falecimento, porém tem

outra postura emocional, passando a ficar indiferente

aos acontecimentos e

pessoas na Terra. Por

exemplo, passa a aderir a um

novo sistema de crenças (ou

tem acesso a novas

informações) que deflaciona

o interesse na comunicação.

Não

Falecido C

Psicodinâmica

desfavorável à

comunicação mediúnica,

sem interesses sobre o assunto, desgosto pela

vida, depressivo, sem

vínculos sentimentais ou

assuntos inacabados. A

extinção da consciência

seria, para ele, até mesmo

um alívio.

O “Eu” resultante à morte

partilha dos aspectos

psicológicos que

fundamentam o desinteresse da personalidade pre-

mortem. Não

Falecido D Idem

O “Eu” resultante à morte

absorve todas as lembranças

da vida terrena, conhece o

caráter que tinha antes do

falecimento, porém tem outra postura emocional e,

exemplificadamente,

promove uma mudança

radical e direcionada à Vida,

passando a querer propagar

para outras pessoas que a

morte, longe de ser o fim, é

um “Portal” para novas

oportunidades e

crescimento pessoal.

Sim

Um outro importante assunto relacionado à motivação é o seguinte: vejo com bastante

desconfiança casos em que o médium quase sempre consegue estabelecer contato com o

falecido pretendido pela assistência. O problema a que me refiro aqui não é uma questão de

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fraude, por essa razão peço ao leitor hipoteticamente considerar que o médium em questão

efetivamente adquire informações anomalamente. Serei mais claro.

Neste exato momento, dia 05/10, acabei de entrar no site de estatística mundial

worldmeters e observei que, apenas neste ano de 2014, já ocorreram mais de 43 milhões de

mortes. Imagino então ser esperado que, em torno do médium, pelo menos algumas dezenas de

desencarnados devessem orbitar, de modo que muitas comunicações mediúnicas não solicitadas

fossem estabelecidas. De fato, na história da pesquisa psíquica existem muitos exemplos de

personalidades “não convidadas” as quais aparecem no meio da sessão e, na maior parte do

tempo, não é conseguido fazer uma identificação de quem elas teriam sido (para uma revisão

de uma série de casos assim, veja Gauld, 1971) 42. Esse tipo de comunicador inesperado, que

“cai” no meio da sessão, tem sido conhecido como comunicadores “drop-in”. Casos como tais

(ex., Runolfur Runolfsson/Runki, 197543), quando conseguem fornecer material suficiente para

identificação, fortalecem bastante a hipótese S porque demonstram que a motivação e o

interesse na comunicação são mais perfeitamente atribuíveis ao falecido do que ao médium. De

fato, o problema da motivação é algo central na discussão das hipótese aqui rivalizadas, porque

essa característica psicológica (“de se sentir motivado para”) pode orientar o funcionamento psi

em direção ao objeto da motivação, tal como demonstram a evidência anedótica e experimental

de psi. Assim, médiuns poderiam se sentir motivados de modo que sua PES ficasse orientada

em torno das informações relacionadas ao falecido que os assistentes suplicam mensagens.

Dessa forma, processos telepáticos entre vivos e incursões clarividentes com foco em

documentos sobre o falecido poderiam acontecer, abastecendo o médium com os dados

necessários para a dramatização de um contato post-mortem. Médiuns são pessoas, logo, têm

seus desejos e necessidades. Muitos deles assumem crenças religiosas, aderindo a

doutrinas que não apenas pressupõem a vida após a morte, mas estimulam a comunicação

com os mortos.

Para ilustrar melhor esse ponto, considere o seguinte exemplo hipotético. Digamos que

uma pessoa, a qual chamaremos de “João”, passe a frequentar reuniões doutrinárias de seu

42 A series of ‘drop in’ communicators. Proceedings of the Society for Psychical Research [Volume 55, parte 204,

julho de 1971]. 43 The Runki missing leg case. Haraldsson E. and Stevenson, I, 1975. A Communicator of the Drop-in Type in

Iceland: the case of Runolfur Runolfsson. JASPR 69. 33-59.

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grupo espiritualista, como forma de se confortar diante dos reveses da vida ou para superar a

perda de sua falecida e querida mãe. João então acata todo o dogmatismo decorrente e observa

que alguns de seus “irmãos de fé” tentam entrar em contato com entes espirituais. Não tarda

João também tenta. Mas João possui uma disposição à PES que outras pessoas aparentemente

não têm (como qualquer habilidade humana, PES é manifestada heterogeneamente na

população, assim como nem todos podem dirigir igual Ayrton Senna ou jogar futebol à la Pelé).

Dessa forma, João, assumindo que a comunicação post-mortem é um fenômeno real, possui

necessidades e desejos que acabam por orientar sua PES em torno de informações sobre pessoas

falecidas. Digamos que João é como o “Pelé do psiquismo”, logo, nos melhores momentos, a

PES dele se comporta de maneira estável em níveis bastante elevados de eficiência, quando

muitas informações verídicas sobre uma pessoa falecida são obtidas extrassensorialmente, da

mesma forma que Pelé fazia “mágica” dentro de campo, desconcertando seus adversários. Mas

mesmo Pelé tinha seus dias difíceis, de baixo rendimento, quando nada dava certo. João então

também tem seus dias de eclipse, quando um apagão de suas habilidades acontece. Ele não

consegue manifestar nada de valor, mas, no lugar de ficar calado, parece sofrer de uma

compulsão em dizer algo, talvez para preencher às expectativas dos consulentes que esperam

ansiosamente alguma mensagem de um falecido ente querido. Então João diz, mas nada do que

é mencionado nesses dias de apagão tem valor.

Dentro desse hipotético cenário, o qual não parece ficar distanciado da realidade de

muitos médiuns, não existe garantia nenhuma que, naqueles “melhores momentos”, as

informações obtidas anomalamente são provenientes da mente de pessoas mortas. De fato,

podemos dizer que João tem necessidades não apenas de satisfazer a carência sentimental dos

consulentes, mas também desejo de reforçar seus sistema de crença numa “vida futura”. Tudo

isso fica ainda mais evidente quando no passado do médium existe um evento traumático, como

a perda de alguém muito querido, semelhante ao caso de João. Assim, toda vez que os

consulentes saem satisfeitos da sessão, João também se realiza, ficando cada vez mais confiante

de que realmente consegue “falar com os mortos”, logo, confiante que sua muito amada e

falecida mãezinha continua viva, num reino espiritual de renovação, para onde vão seus amigos

e outros parentes também muito amados. Porém, tudo o que João faz (embora não esteja ciente

disso) é usar PES para adquirir informações da mente dos vivos (via telepatia) ou de registros

físicos (por clarividência). O aspecto dramático de como as informações são passadas, “como

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se” viessem dos mortos, longe de ser algo irrelevante, reflete a crença, desejo ou a necessidade

de João na comunicação com os mortos. Algumas vezes esses fatores psicológicos, reforçados

por influências socioculturais, podem se desenvolver subliminarmente, fora do controle da

camada de consciência ordinária, dando ensejo a comportamentos automáticos inteligentes e

com pretensos propósitos de trazer mensagens espirituais. Em alguns casos, uma personalidade

nova pode eclodir, com sua própria cadeia de memórias, pensamentos e caráter, alegando ser

um ente espiritual. Agora, todo esse contexto de comunicação post-mortem fornece a motivação

exata, dentro da psicodinâmica de João, para manifestar sua PES. Talvez nenhum outro

contexto, que não o espiritualista, iria servir de catalisador suficiente para uma PES altamente

refinada.

Essas linhas acima são muito importantes para analisarmos o aspecto motivacional em

CMs, até porque interesses e necessidades, ainda que não conscientes, são atributos psi-

condutivos que podem servir para guiar a PES em torno de algum evento ou informação (para

mais detalhes veja a seção ao lado, “teorizando psi”, especificamente sobre uma teoria

psicológica da psi. Observe sobre o modelo de Rex G. Stanford, PMIR – Psi Mediated

Instrumental Response). Agora, deixo claro que não pretendo generalizar o caso hipotético de

João para todos os episódios de aparente comunicação com os mortos. Na realidade, quando

abordarmos as características da hipótese LAP, veremos que a suposição de personificação

inconsciente por parte do médium encontra muitas dificuldades para ser credível.

Seja como for, devemos ficar de mente aberta para o fato de que, numa sessão

mediúnica, pode acontecer que as necessidades e as motivações do médium forjem a aparência

de sobrevivência de um caso, quando na verdade todas as informações anômalas foram

adquiridas a partir de fontes mundanas. Daí a importância de comunicadores drop-in, porque

eles deslocam a motivação e o interesse para a comunicação em direção à personalidade intrusa,

dificultando uma explicação em termos de PES do médium orientada na satisfação de suas

necessidades psicológicas. Comunicadores drop-in são muito difíceis de terem sua identidade

confirmada, frequentemente aparecem numa única sessão para nunca mais voltar, não havendo

muito razão para que a PES do médium esteja orientada em direção a pessoas falecidas

desconhecidas de todos, cuja comprovação da identidade dificilmente irá ocorrer e sequer

interpeladas a manifestarem-se.

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Para concluir um ponto lançado linhas atrás, penso que na vida de um médium genuíno,

e considerando o gigantesco número de pessoas desencarnadas, uma boa parte dos

comunicadores deveria ser do tipo drop-in; logo, desconfie daqueles médiuns os quais sempre

manifestam o morto convocado. Pessoas falecidas não estão servindo às forças armadas e nem

são eleitores obrigatórios. A interpelação por comunicação não é algo compulsório, inexistindo

muito fundamento de o porquê os interpelados deveriam aparecer com maior frequência em

relação aos “não convidados”.

2.4. Comentários acerca de S4

S4: que algumas pessoas falecidas tenham percepção extrassensorial (PES) para que

possam se comunicar com o médium, influenciando-o telepaticamente; ou então manipulando

seu sistema motor, via psicocinese (PK), a fim de expressar mais informações, além de exibir

as habilidades e maneirismos que tinham em vida. Falecidos também devem usar PES para

tomar ciência de acontecimentos que ocorreram após a morte ou mesmo cognoscer, por meios

telepáticos, os pensamentos do médium, dos assistentes e de seus entes queridos ainda vivos;

Se pelo menos alguns dos comunicadores são realmente mentes desencarnadas, eles

devem usar PES sub-repticiamente para tomar conhecimento dos pensamentos do médium, do

contrário não conseguiriam responder os questionamentos dos consulentes durante as sessões.

Por exemplo, no caso de psicografia relatado por G. N. M. Tyrrell (1939)44 à Society for

Psychical Research (SPR), que de nenhuma maneira difere do padrão, o controle (“irmão D”)

da médium apresentou um comunicador drop-in bastante responsivo, observe-se:

Comunicador D.: [...] eu quero apresentar um homem que encontrei aqui. Ele não está muito feliz porque, depois de ter feito algumas coisas boas em sua vida, ele fez

algo ruim bem no fim dela, ele agora se sente infeliz entre os muitos que, depois de

uma vida comum, voltam ao ponto de partida no final. Ele está muito interessado

nisto, ele está aqui esperando.

44 Volume 31, 1939-1940. Julho de 1939, p. 91-95.

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Outra escrita. O medo me levou a fazer uma coisa muito perversa pela qual não posso me perdoar e isso não é aquilo o que o mundo pensou sobre eu ter perdido minha

oportunidade.

(Qual é seu nome?) Whiteman. Eu estive aqui há muitos anos atrás. [...]

(Quando você morreu?) Eu morri há muito tempo. Penso que faz uns 50 anos.

(Nós passamos por seu túmulo a esta tarde em Holywell?) Eu não tenho nenhum

túmulo.

(Você morreu na batalha então?) Não tivesse morrido lutando eu seria mais feliz

agora.

(Você está infeliz por cinquenta anos?) Não, mas desde que presenciei tantas mortes

esplêndidas as quais me lembro.

(Qual o seu nome?) Whiteman, John Whiteman.

(O que você fez?) Não tive sucesso, mas eu teria me salvado às custas de outros.

Todos nós objetivamos isso, mas nenhum escapou.

(Escapou do que?) Morte. (Como você encontrou o D.?) No campo da batalha eu o vi morrer e desde então o

vejo ajudar os homens a morrer (nós tentamos confortá-los). Sim, é isso que ele está

me dizendo, vir e ajudar, não ficar preso a coisas que aconteceram há 50 anos atrás,

mas eu continuo cheio de remorso e mostrei aos outros que eu mesmo não podia

instruir.

(Novamente tentamos encorajá-lo) É isso o que ele diz.

(Qual era seu trabalho aqui?) Eu ensinei a Palavra.

(Um clérigo?) Sim.

(Onde era seu trabalho?) O nome foi perdido, isso foi muito tempo atrás.

(Você era casado?) Ai de mim!

(Nós podemos fazer alguma coisa por você?) Eu apenas acabei de começar o que faço. Ajude-me por oração, isso é tudo.

(Diga-nos onde você morreu) (escrito de maneira muito fraca) L O N D R E S.

Considerando que o falecido John Whiteman (J.W), por óbvio, não possuía mais um

corpo, a única forma de ele tomar ciência das perguntas feitas seria, a princípio, através de uma

interação (a) telepática com a médium ou outras pessoas vivas, ou (b) clarividente acerca das

perguntas escritas a lápis. E J.W deve ser bem habilidoso em usar sua PES, porque ele manteve

uma extraordinária coerência responsiva, como se efetivamente estivesse lendo os

questionamentos elaborados.

Além disso, falecidos comunicantes devem usar PES para tomar conhecimento de fatos

ocorridos após a sua morte. Por exemplo, C. D. Thomas (1933)45 relata um caso com a médium

Sra. Leonard. O comunicador era um garoto que em vida se chamava Willie. Numa das sessões,

o controle “Feda” diz:

Diga ao pai dele que Willie o acompanhou numa jornada, muito recentemente; um nome "S" é relacionado ao lugar, um nome bem longo. Lá Willie observou alguns

45 Uma consideração de uma Série de Sessões por Procuração. Proceedings of the Society for Psychical Research

[Volume 41, 1932-1933, pp. 139-185].

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animais e esteve muito interessado em cavalos. Seu pai estava conversando sobre

operações de corte, como se ele fosse cortar e arrumar numa escala muito grande.

Thomas comentou:

No início de novembro de 1922, o pai do Willie, acompanhado por um amigo, foi

convidado a Stock Yards para ver alguns cavalos; enquanto lá estava, a conversa girou em torno do corte de gelo, que é feito numa grande escala naquela parte do Canadá,

milhares de toneladas sendo cortadas e armazenadas para o verão. O pai do menino é

um engenheiro (...).

Uma comparação de datas mostra que a visita e a conversa foram há alguns poucos

dias antes da sessão em que isso foi mencionado.

Falecidos também poderiam tomar o comando do corpo físico do médium da mesma

forma que nossas mentes “possuem” nossos respectivos corpos. Nesse cenário, o organismo do

possuído seria manipulado psicocineticamente (PK), não mais pela ação de sua própria mente,

mas por uma mente a ele exterior. Chamaremos isso de a teoria da possessão (Tp), a qual

habitualmente tem sido relacionada a uma alternância involuntária da personalidade, quando

'B' (seja um falecido ou um centro de consciência subliminar) retira 'A' do controle, passando a

ter o comando executivo do corpo. Contudo, devemos ter em mente que na hipótese de cessão

voluntária de controle - como pode ocorrer em alguns momentos da mediunidade de transe - o

princípio de regência da possessão é exatamente o mesmo46.

Comparativamente à teoria da influência telepática (TIT), na qual o falecido influencia,

“inunda” - por assim dizer - os pensamentos do médium com os seus próprios, TP talvez seja

mais adequada para responder pelos casos em que o médium exibe com fidedignidade

habilidades e comportamentos associados ao falecido. Na influência telepática, a mente do

médium (ou dos controles) deve apreender os pensamentos do comunicador para então repassá-

los aos consulentes, numa espécie de “telefone-sem-fio do Além”. Então a mente do médium

está sempre envolvida no processo, de modo que as matérias ou habilidades dominadas pelo

46 Aliás, admitindo a verdade de S, o simples fato de estarmos num corpo, produzindo comportamentos voluntários,

torna a possessão algo praticamente mandatório, muito embora uma versão pampsiquista de universo possa

explicar a relação mente-corpo através de uma interação mente-mente. Pampsiquismo pressupõe que elementos

capazes de manter um estrutura auto-organizada possuem aspectos mentalísticos, ainda que em formas bastante

rudimentares. Dessa forma, nossa mente poderia influenciar telepaticamente essas ‘colônias de mentes’ dos seres

microscópicos que habitam nossos corpos (de moléculas a células, ou até mesmo a partir de estruturas mais

primárias, como partículas), mentes essas as quais estão ainda em fases embrionárias.

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falecido em vida, mas fora do alcance de proficiência do médium (ou dos controles), com muita

dificuldade deveriam ser reproduzidas na sessão.

Dessa forma, explicar casos como o do dirigível R101 pela TIT é muito custoso, porque

a médium Eileen Garrett não tinha o menor conhecimento técnico sobre o funcionamento - e

peças - de aviação. Penso ser razoável esperar que essa ignorância devesse impor alguma

barreira de entendimento durante a comunicação com o “espírito” do tenente H. C. Irwin. Pior

ainda elucidar, também pela TIT, os episódios em que o médium mostra uma habilidade

característica do falecido, mas fora de sua destreza, tal como falar um idioma estrangeiro ou

tocar um instrumento. Tudo pode ficar ainda mais complicado quando acrescentamos as

ocasiões em que o médium demonstra comportamentos e maneirismos típicos do falecido. Em

tais circunstâncias, ao menos em termos de TIT, deveríamos sustentar que o médium

mimicamente dramatiza a linguagem corporal, os trejeitos pertencentes ao “espírito” quando

em vida.

Contudo, se invocarmos TP, todas essas dificuldades desaparecem, porque a mente do

médium (ou dos controles) é afastada do processo e o comunicador, assumindo o comando

executivo do corpo físico (i.e., o comando da interface biológica de acesso ao nosso mundo),

manifesta-se diretamente através dele. Além disso, o comunicador não precisaria usar PES para

tomar ciência dos questionamentos dos consulentes dentro das sessões, porque agora ele

apreenderia as indagações pelos canais sensoriais do possuído. Porém, ainda assim não

deveríamos expectar uma intervenção cristalina do falecido em nosso mundo, porque seria

esperado que fatores ambientais e, principalmente, estados físicos do corpo do médium

perturbassem a consciência do comunicador durante o processo de possessão.

Por outro lado, TP deve explicar uma formidável questão, qual seja, se por possessão

desejamos dizer que uma mente manipula psicocineticamente um corpo biológico, que tipo de

relação nossas mentes e respectivos corpos têm para que sejam tão intimamente vinculados, de

modo que “Eu” manipule veementemente o meu corpo, produzindo movimentos voluntários,

mas não tenha essa mesma habilidade psicocinética para manipular outros corpos ou mesmo

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quaisquer objetos físicos?47 [Presentemente não consigo imaginar uma solução razoável para

isso, porém desenvolvo um pouco mais esse problema na nota de referência abaixo].

Além disso, a teoria da influência telepática parece ser mais adequada para justificar o

material de "má qualidade" emergido durante as sessões. Ora, se a mente do médium está

envolvida no processo, seus pensamentos e desejos, suas memórias, expectativas e fantasias

turvam o processo de influência, razão pela qual deve ser esperado que CMs sejam marcados

por uma instabilidade qualitativa das informações, variando de uma sequência estupenda de

acertos inquestionáveis a uma divagação degenerada e incoerente, oriunda da camada onírica

da consciência do médium.

47 Devemos ter em mente que, muito embora admitamos que capacidades PK possam determinar a ação corporal,

disso não decorre que o “poder” psicocinético tenha que ser robusto. De fato, algumas teorias que conjecturam

uma mente dirigindo o cérebro pressupõem a junção crítica no reino do minúsculo. Por exemplo, o falecido neurocientista e laureado Nobel John Eccles especulava que a mente seria capaz de afetar a atividade cerebral ao

manipular a forma como as substâncias químicas são liberadas na fenda sináptica. O físico Henry Stapp, por sua

vez, sugere que o ponto de interação entre a mente e o cérebro seria ao nível dos íons de cálcio, os quais são 1

milhão de vezes menores que os microespaços sinápticos. Já o físico Evan Harris Walker idealizava que interação

ocorria na coordenação do tunelamento de elétrons responsáveis pela liberação dos neurotransmissores nas

vesículas sinápticas.

O que todas essas hipóteses têm em comum é que uma diminuta influência PK sobre determinados elementos

microscópicos, porém críticos para a ação corporal, é suficiente para desencadear efeitos em larga escala, como

carregar um piano e praticar esportes, da mesma forma que a queda de um Airbus A380 numa grande cidade pode

ter sido desencadeada por pequeno defeito num dos circuitos elétricos de uma peça crucial para a navegação aérea.

Em síntese, nem sempre causas têm tamanho proporcional aos efeitos delas resultantes.

Por outro lado, para produzir movimentos corporais coordenados, tal como um pianista durante o concerto, a influência PK de sua mente sobre partes de seu cérebro (ainda que a nível microscópico) pressupõe níveis

estupendamente altos de estabilidade em manipular com precisão as atividades sinápticas, iônicas ou eletrônicas

para produzir os movimentos adequados. Mas, grosso modo, tocar um instrumento é apenas um meio exagerado

de demarcar a questão, porque níveis igualmente altos de estabilidade e precisão são requeridos a todo momento

de nossa vida diária, desde quando você acorda de manhã e coloca o chinelo, prepara o café, vai ao trabalho e volta

pra casa. Você desempenha milhares de movimentos voluntários e, a prevalecer a teoria da possessão, sua mente,

através de PK, gerencia todo o “espetáculo”, ou seja, toda a atividade sináptica, iônica ou eletrônica correspondente

(ou o que seja!), e o faz com um grau absurdo de sucesso, dia após dia, mês após mês e ano após ano. Esta seria

uma taxa de êxito que simplesmente não tem paralelos quando objetos inanimados ou outros organismos são o

foco da atenção psicocinética. Então devolvemos a pergunta: que tipo de relação nossas mentes e respectivos

corpos têm para que sejam tão intimamente vinculados, de modo que “Eu” manipule veementemente o meu corpo, produzindo movimentos voluntários, mas não tenha essa mesma habilidade psicocinética para manipular outros

corpos ou mesmo quaisquer objetos físicos? Uma saída seria negar a possessão e tentar explicar a relação

mente/corpo pela teoria da influência telepática. Isso seria equivalente a admitir, como na nota de referência acima,

que estruturas auto-organizadas, ainda que em nível micro, tais como as células e moléculas de nosso corpo,

tenham alguma vida mental, ainda que em forma rudimentar, ou seja, deveríamos sustentar a filosofia do

pampsiquismo. Mas mesmo assim o problema é recalcitrante, pois continuaríamos a ter que explicar porque não

influenciamos na mesma intensidade as “micromentes” que habitam os corpos de outros organismos vivos? Por

que as “micromentes” de nossos corpos seriam mais ‘obedientes’ ao nosso comando do que as micromentes que

compõe outros seres?

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Agora, qualquer que seja o modelo de contato com nosso mundo, por influência ou

possessão, por PES ou PK, ou ambos, parece ser inquestionável que os comunicadores devem

possuir um funcionamento psi altamente refinado, dada a elevada fluência responsiva de suas

influências telepáticas ou esforços psicocinéticos. E com isso chegamos na próxima

pressuposição para S, diretamente relacionada a presente.

2.5. Comentários acerca de S5

S5: que a transição da morte provoque um efeito liberador das capacidades psi de uma

pessoa, de modo que um sujeito, o qual nunca demonstrou talentos psíquicos quando

encarnado, passe a manifestar habilidades psi sub-repticiamente, influenciando intensamente

o médium com seus pensamentos ou tomando o comando executivo do corpo biológico via PK.

Em S1 vimos que o desenvolvimento da consciência, tanto em termos de

amadurecimento de um organismo quanto no aspecto evolucionário, constitui na aquisição de

novos e mais altos processos mentais e na automatização de alguns já conquistados.

Assinalamos também que a morte provavelmente deve provocar um estado alterado de

consciência, de modo que uma nova personalidade pode eclodir e substituir a personalidade

pre-mortem. Observamos que, tal como alguns estados dissociativos, a personalidade resultante

do choque da morte pode manifestar capacidades e habilidades latentes as quais estavam

suprimidas durante a vida encarnada porque simplesmente não foram extraídas ou ativadas por

processos evolucionariamente adaptativos. Nesse contexto, o incremento de habilidades psi

pode ser uma característica experimentada por alguns falecidos.

2.6. Comentários acerca de S6

S6: que uma pessoa viva (o médium) tenha uma sensibilidade especial, qualquer que

seja sua natureza, para manifestar cognitivamente os efeitos da influência telepática de um

falecido ou para lhe ceder transitoriamente o controle corporal.

Em S1 começamos a ver uma perspectiva bem plausível da personalidade humana que

a estende para muito além da nossa consciência comum. Como disse Myers: “acreditamos

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apenas que o que se processa por baixo do limiar da consciência e fora dos limites da porção

de nosso campo de consciência adaptado às necessidades da vida ordinária é ao mesmo tempo

mais extenso e complexo do que aquilo que se contém nos referidos limites”48. Penso que essa

é uma afirmação a qual deveria ser incontroversa nos dias atuais e todas as formas de

comportamentos automáticos são exemplos de tal assertiva.

Já também mencionamos por diversas ocasiões que estados alterados de consciência

podem liberar capacidades e habilidades psíquicas que até então estavam latentes, suprimidas

nos estratos subliminares da psique simplesmente porque não foram ativadas por processos

adaptativos, quer no curso da evolução, quer no curso do amadurecimento de um indivíduo. A

tal respeito, vejamos outros comentários da psicóloga Emily Kelly (2007):

Na perspectiva de Myers sobre o modelo de mente, os processos subliminares

emergem quando a consciência é desviada do seu funcionamento normal,

supraliminar: 'até certo ponto, no mínimo, a suspensão da vida supraliminar deve ser a liberação do subliminar” (HP, volume 1, p. 122). Mais especificamente, “parece

como se esta faculdade supersensorial assumisse a atividade em uma proporção

inversa às atividades da vida diária” (Myers, 1886b, p. 287). Os processos

supernormais, como a telepatia, realmente parecem ocorrer mais frequentemente

enquanto o percipiente ou o agente (ou ambos) está adormecido, nos estados entre o

sono e a vigília, de doença, ou de morte; e o funcionamento subliminar em geral

emerge mais prontamente durante os estados alterados da consciência como a hipnose,

histeria, ou até uma distração comum. Assim, enquanto o funcionamento supraliminar

normalmente reflete “o paralelismo familiar entre estados corporais e mentais,” os

processos mentais subliminares poderiam variar “inversamente, no lugar de

diretamente, com a atividade observável do sistema nervoso ou da mente consciente"

(Myers, 1890b, p. 320; 1891d, p. 638).

Já falamos também que, para Myers, a evolução da consciência significava na

automatização progressiva de processos psicológicos apreendidos pela consciência

supraliminar, liberando o foco de atenção de nossa percepção consciente para o

desenvolvimento de processos cada vez mais avançados e complexos e os quais ainda não foram

despertados. Além disso, – para ele – nossa percepção habitual por intermédio dos sentidos

sensoriais está para nossa consciência ordinária, assim como a telepatia e a clarividência estão

para alguns centros superiores de consciência subliminares. Nas raras ocasiões que percepções

extrassensoriais são dominadas pelo ‘eu’ comum, isso representaria - na sua perspectiva - um

processo de integração da personalidade em direção à formação de um Ser mais bem acabado,

48 Myers, Frederic. A Personalidade Humana. São Paulo: Edigraf, p. 67.

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porque mais recursos do reservatório psíquico de nossa individualidade passam a ser dominados

conscientemente. Myers adverte ainda que algumas manifestações psíquicas claramente

patológicas podem representar um processo necessário para o desenvolvimento de capacidades

e habilidades as quais mais tarde irão se revelar extremamente sublimes.

Então, se a nossa consciência comum está bastante focada (ou ocupada) com o

processamento e a avaliação dos incontáveis estímulos provenientes do ambiente físico, os

quais inundam nossos canais sensoriais, é bem improvável que devêssemos perceber certas

influências que atingem diretamente as nossas mentes, sem passar por aqueles mesmos canais.

De fato, se coisas como telepatia existem, devemos possuir – por amor a nossa sanidade! –

algum mecanismo para filtrar/tampar as inúmeras influências provenientes das bilhões de

mentes que povoam o planeta. Sob o paradigma da teoria da transmissão, o cérebro/corpo

cumpre esse papel, restringindo nossa percepção consciente para as impressões que atingem

nosso sistema sensório e, de certa forma, podemos concluir que o sistema cérebro-corpo-

ambiente é bastante eficiente em puxar/prender o foco de atenção de nossa consciência

ordinária para os problemas do cotidiano.

Porém, quando aquele sistema cérebro-corpo-ambiente permite afrouxamentos – até

mesmo nos fugazes desvios de distração diários – não tarde materiais localizados nas camadas

subliminares “sobem” para a região supraliminar, sendo o sonho o fenômeno que mais

frequentemente dá mostras dessa troca de material psicológico entre o sublimar e supraliminar.

Quando essa “subida” de material acontece, vemos que o cérebro/corpo não executou aquele

papel de filtrar/tampar, o que, durante o estado de vigília, pode eventualmente trazer

perturbações em nosso foco de atenção para aqueles inúmeros inputs que chegam através dos

sentidos.

Dessa forma, as influências telepáticas (originadas nos mortos ou mesmo de outras

pessoas vivas), via de regra, são incapazes de despertar a atenção de nosso eu habitual, já muito

ocupado com o processamento dos estímulos sensoriais. Porém, isso de nenhuma forma quer

dizer que essas influências não são apreendidas pela mente; de fato, elas ficam em estado de

latência em outras regiões fora do espectro mental correspondente à consciência de vigília, quer

nos médiuns, quer nas pessoas comuns. Diante disso, devemos postular que, ao contrário da

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maioria, médiuns devem possuir uma permeabilidade maior entre as camadas subliminares e o

supraliminar, permitindo com maior facilidade a “subida” de elementos psicológicos latentes

para a consciência de vigília, tenham esses elementos origens no próprio indivíduo ou não.

Quando o material é transindividual podemos dizer que são exemplos de faculdades

supernormais atuando sobre (ou a partir) do indivíduo, a exemplo da telepatia e da clarividência,

muito embora a maior parte desses elementos seja de autoria do próprio indivíduo, que os

produz a partir de alguma camada de consciência subliminar agindo sem a participação de sua

vontade consciente, tais como muitas fantasias e dramas desenvolvidos pelo ‘eu onírico’ que

são mais tarde percebidos por nosso ‘eu desperto’ quando acordamos pela manhã.

Essa perspectiva do processo de mediunidade traz muitas vantagens para S: em primeiro

lugar, ela se adequa perfeitamente ao paradigma da influência telepática, que considero o

modelo mais provável para suportar a intervenção de pessoas mortas em nosso mundo; em

segundo lugar, ela confirma um fato notoriamente observado: a mediunidade exercida através

de estados alterados, tal como o transe, é mais evidencial do que aquela exercida pela

consciência de vigília; em terceiro lugar, ela justifica as baboseiras e todo material sem sentido

e fantasioso mencionados pelos controles ou guias, afinal, não penas elementos psicológicos

transindividuais migram entre os estratos da vida psíquica do médium! Como o próprio Myers

admitiu, a psique parece possuir um caráter mitopoético, i.e., uma certa tendência de criar

histórias e desenvolver fantasias, principalmente – acrescento – quando privada de estímulos

para processar. Porém, essas mesmas histórias e fantasias, ou mesmo alucinações (muitas vezes

verídicas), são o ‘idioma do subliminar’, ao contrário da comunicação verbal e lógica do

supraliminar. Dessa forma, o caráter dramático com que o subliminar se exprime representa a

sua linguagem, seu mecanismo de comunicação com a nossa consciência de vigília49.

Vamos agora analisar se o funcionamento psi exclusivamente exercido por agentes

vivos (a hipótese LAP – Living Agent Psi) é suficiente para elucidar a gama de fenômenos

49 De fato, deveríamos até mesmo reconhecer uma relativa superioridade do “idioma” subliminar, pois, a

comunicação codificada pela escrita e por sons fonéticos (para a comunicação oral) encontra muitas limitações

para transmitir toda a expressão e a intensidade do que realmente sentimos e vivenciamos, nossos estados

emocionais mais exaltados e as experiências mais profundas. A esse respeito, o subliminar, quando age

coordenadamente, parece mais eficiente.

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ocorridos durante a prática mediúnica. Nesse intento, vamos verificar, tal como fizemos em S,

as assunções, explícitas ou implícitas demandadas por LAP.

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3. Fundamentos da hipótese psi exercida exclusivamente por agentes vivos (LAP) como

alternativa para explicar os casos de mediunidade (CMs)

A aparência de sobrevivência post-mortem na mediunidade, por outro lado, pode ter

uma causa mundana, qual seja, o funcionamento psi exercido exclusivamente pelas

mentes/cérebros de pessoas vivas, associado com alguns outros elementos psicológicos

inabituais os quais veremos mais abaixo. Nesse caso, como o cérebro/corpo não está afastado

do processo, todo a fenomenologia mediúnica, tanto seus aspectos supernormais como aqueles

inteiramente psicológicos, pode ser causalmente explicada sob bases fisicalistas.

É certo, porém, que LAP não necessita ser uma hipótese fisicalista, pois o

funcionamento psi pode ser, ao mesmo tempo, inconciliável com aquilo que o cérebro/corpo

faz e não implicar na existência de mentes desencarnadas dotadas de poder para influenciar o

nosso mundo terreno. No final das contas, casos mediúnicos poderiam ser exemplos de uma

atividade mental que transcende a capacidade do cérebro e que, portanto, a mente não estaria

sujeita aos seus limites; porém, uma vez rompido o laço corpóreo, mentes não teriam mais o

poder de se manifestar no mundo físico. O problema com esse tipo de interpretação é que ela

esvazia toda a discussão em torno de casos mediúnicos, afinal, a mediunidade não imporia mais

dificuldades a uma visão de mundo fisicalista do que a própria existência de psi já faz. Além

disso, essa versão mais fraca da sobrevivência, ainda admitindo que algo psíquico sobreviva,

não garante a permanência de um ‘Eu’, i.e., de um ego após a morte, enquanto S, por sua vez,

reconhecendo o valor de face dos casos mediúnicos, admite que pelo menos alguns

comunicadores são quem realmente alegam ter sido em vida, carregando as lembranças e o

caráter de sua última existência corporal. Assim, ainda que acolhêssemos psi em bases

extracorpóreas, isso não implica necessariamente na sobrevivência pessoal.

Passadas essas observações, vamos analisar as assunções que a ação psi entre vivos deve

suportar para explicar a aparência de sobrevivência manifestada nos casos mediúnicos.

LAP1: excluídas as chances de aquisição normal de informações, o material verídico

produzido durante CMs deve ser, alternativa ou cumulativamente: a) obtido pela percepção

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extrassensorial do médium, o qual possui uma capacidade psíquica de ‘sondar’, ainda que

involuntariamente, fontes mundanas e/ou impessoais (por exemplo, (a.1) através de processos

telepáticos, adquirindo informações relevantes nas mentes/cérebros de pessoas vivas que

conheciam o falecido; (a.2) por meios clarividentes, com foco em objetos físicos (diários,

fotografias ou quaisquer outros documentos) os quais registram dados sobre a vida do falecido;

(a.3) com o uso de telepatia retrocognitiva, quando o médium adquiriria tudo o que precisa

diretamente da mente/cérebro do falecido, porém, quando ele ainda se encontrava vivo; (a.4)

por intermédio de uma incursão telepática num reservatório de memórias Universal e

impessoal); b) fornecido pelas mentes/cérebros de pessoas que conheciam o finado, as quais,

nutrindo desejos e esperanças em contatá-lo, acabam por involuntária e telepaticamente

‘influenciar’ a mente/cérebro do médium na direção correta, provendo-lhe informações

verídicas;

LAP2: o médium e/ou os consulentes devem ter desejos, necessidades e motivações para

se comunicarem com pessoas falecidas;

LAP3: em determinados casos, especialmente na mediunidade de transe, o médium

experimenta uma divisão de sua consciência ordinária (personalidade A), quando um novo ‘eu’

assume o comando corporal e alega ser uma pessoa que já teve uma existência corpórea

(personalidade B). Essa nova personalidade controladora, oriunda das camadas subconscientes

do médium, é capaz de dramatizar o caráter de quem alega ter sido quando encarnado

(digamos, B'), apresentando hábitos, gostos, maneirismos, inflexão de voz e, algumas vezes,

habilidades que parentes e amigos de B' identificam como sendo correspondentes àqueles de

B'. Em outras oportunidades, a personalidade controle B serve de porta-voz para uma outra

personalidade secundária (C). Durante a sessão, B repassa aos consulentes tudo o que consegue

“ouvir” e entender de C; e tal como B, C também sustenta ser alguém que teve uma existência

terrena (C'). Muito embora C não tenha o controle corporal do médium, o material fornecido a

B é capaz de igualmente convencer parentes e amigos de C' de que C possui um caráter

semelhante ao de C'. Essa habilidade de encenação altamente criativa e verídica às vezes

relaciona-se a falecidos os quais o médium teve um contato extremamente tênue ou mesmo

nenhum.

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3.1. Comentários acerca de LAP1

LAP1: excluídas as chances de aquisição normal de informações, o material verídico

produzido durante CMs deve ser, alternativa ou cumulativamente: a) obtido pela percepção

extrassensorial do médium, o qual possui uma capacidade psíquica de ‘sondar’, ainda que

involuntariamente, fontes mundanas e/ou impessoais (por exemplo, (a.1) através de processos

telepáticos, adquirindo informações relevantes nas mentes/cérebros de pessoas vivas que

conheciam o falecido; (a.2) por meios clarividentes, com foco em objetos físicos (diários,

fotografias ou quaisquer outros documentos) os quais registram dados sobre a vida do

falecido; (a.3) com o uso de telepatia retrocognitiva, quando o médium adquiriria tudo o que

precisa diretamente da mente/cérebro do falecido, porém, quando ele ainda se encontrava vivo;

(a.4) por intermédio de uma incursão telepática num reservatório de memórias Universal e

impessoal); b) fornecido pelas mentes/cérebros de pessoas que conheciam o finado, as quais,

nutrindo desejos e esperanças em contatá-lo, acabam por involuntária e telepaticamente

‘influenciar’ a mente/cérebro do médium na direção correta, provendo-lhe informações

verídicas.

A via crucis de casos mediúnicos é justamente a seguinte: nós necessitamos confirmar

se aquilo que o médium diz a respeito de uma pessoa falecida tem cunhos de veracidade, do

contrário ficaremos, de forma até bastante indulgente, com a hipótese das fantasias de uma

mente sonhadora (isso para não dizer o pior, tal como as chances de fraude!). Porém, confirmar

as declarações do médium significa que a informação nelas contida é acessível de alguma

maneira, esteja ela na mente de algumas pessoas vivas ou registrada em documentos, tais como

diários, certidões, fotografias, etc. Então, como poderíamos ter certeza que, no lugar do

“espírito” do falecido estar usando PES para influenciar com seus pensamentos a mente do

médium, não é o médium que usa PES para sondar a mente dos vivos e/ou acessar

clarividentemente registros físicos?

Até que tenhamos mais dados sobre o funcionamento de psi, uma solução para esse

dilema permanece pendente, de modo que a escolha entre uma e outra hipótese recai

presentemente em critérios de parcimônia ou plausibilidade. Sob a perspectiva da ciência

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convencional em relação ao problema mente-cérebro, na qual a atividade mental é

dogmaticamente considerada um subproduto da maquinaria neural, sem dúvida a ação psíquica

entre vivos é a opção para explicar a aparência de sobrevivência nos casos de mediunidade.

Sobre isso, concordamos com Carter (2012) na seguinte observação:

Claro, o motivo óbvio por trás da hipótese de super-PES [i.e., a hipótese LAP com efeitos de grande magnitude] é a entendida implausibilidade de sua principal rival. A

ideia de sobrevivência desencarnada é considerada tão antecedentemente improvável

que qualquer explicação alternativa em termos de PES é considerada preferível, não

importa o quão absurda ou sem suporte. Mas já vimos que a ideia da sobrevivência

não é incompatível com quaisquer dos fatos conhecidos da fisiologia. A hipótese de

que o cérebro produz a mente e a hipótese rival que o cérebro funciona como um transmissor/receptor para a mente são totalmente compatíveis com os fatos comuns,

e então não há nada sobre os fatos comuns que favorece quaisquer das hipóteses.

Como tal, não há realmente nenhuma improbabilidade antecedente da [hipótese da]

sobrevivência — nem qualquer probabilidade antecedente também. A questão reside

inteiramente nos testemunhos sobre os fatos.

Realmente, a teoria da transmissão de James, Myers e outros não é falsificada pelos

fatos considerados comuns, tanto aqueles provenientes da neurofisiologia quanto da psicologia.

O que as observações empíricas das ciências cognitivas sugerem são apenas correlações entre

estados mentais e cerebrais; essas observações não autorizam a ninguém afirmar que os

primeiros são causalmente dependentes ou produzidos pelos últimos. Neste momento é

importante identificar o fisicalismo, como uma hipótese científica (que carece ainda de

comprovação), e o fisicalismo, como ideologia (sendo objeto de crença). Semelhante a Carter,

diz Braude:

Estritamente falando, a evidência fisiológica não mostra que a individualidade ou a consciência é exclusivamente ligada a processos corporais, muito menos a processos

de qualquer corpo físico em particular. Talvez interpretações psicanalíticas dos dados

parecem inicialmente convincentes porque pressupostos fisicalistas são generalizados

e profundamente enraizados. E, se assim for, pode ser um útil exercício intelectual tentar nos despojar desses pressupostos e, em seguida, tomar um novo olhar sobre os

dados (Braude in Rock, 2014).

Mas o quê sobrevivencialistas tem a dizer sobre LAP?

De fato, a tentativa de explicar CMs através do funcionamento psi entre vivos (Living

Agent Psi - LAP) fez com que o professor de sociologia Hornell Hart cunhasse o termo Super-

PES (em The Enigma of Survival, 1959), uma vez que – para ele – explicar toda a gama

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fenomenológica ocorrida nos cenários mediúnicos, sem a participação de mentes

desencarnadas, exigiria que o médium utilizasse uma PES altamente poderosa e refinada, cujo

poder e alcance não é encontrado fora dos casos de aparente comunicação com os mortos.

Dali para frente, muitos estudiosos sobre a sobrevivência post-mortem abraçaram o

raciocínio e o vocabulário de Hart (destaques recentes para Almeder, 199250; Gauld, 199551;

Fontana, 200552; Carter, 201253 e; Beischel, 201454). Com esse entendimento, tanto Hart quanto

outros já concluíram que, em certos casos, seria mais parcimonioso concluir pela influência

telepática de um falecido do que sustentar um funcionamento psi extremamente elástico por

parte dos vivos. Decorrente dessa elasticidade que alguns atribuem à PES dos vivos para

responder pelos fenômenos ocorridos em contextos mediúnicos, vem uma segunda linha de

ataque por parte dos sobrevivencialistas, qual seja, a de que Super-PES não é uma hipótese

científica. Vejamos o argumento.

Considerando o critério Popperiano sobre hipóteses científicas, sabemos que uma teoria

científica deve ser falseável, quer dizer, ela deve fazer certas predições que podem ser refutadas

através de sucessivos testes laboratoriais ou de repetidas observações de fatos naturais. Se as

predições teóricas não forem confirmadas após baterias de testes ou de observações,

preferencialmente por diferentes pesquisadores e diferentes laboratórios ou grupos de pesquisa,

dizemos que a teoria foi falseada, do contrário, ela permanece transitoriamente uma alternativa

para explicar os fenômenos os quais visa elucidar. Enfim, se uma teoria não pode ser refutada,

ela não tem natureza científica. Por exemplo, considere o solipsismo. Essa concepção filosófica

preconiza que a única realidade é o ‘eu’ empírico e suas experiências. Assim, além de ‘você’,

a natureza e as outras pessoas e seres que lhe cercam, aliás, todas as coisas do Universo não

possuem existência real. Muito embora o solipsismo possa estar conciliado com a nossa

percepção das coisas e/ou pessoas, ele simplesmente não pode ser refutado, logo, não é uma

hipótese científica.

50 Death and Personal Survival: The Evidence for Life After Death. Rowman & Littlefield Publishers. 51 Mediunidade e Sobrevivência. São Paulo: Pensamento. 52 Is There An Afterlife? A Comprehensive Overview of the Evidence. O Books. 53 Science and the Afterlife Experience: Evidence for the Immortality of Consciousness. Inner Traditions. 54 Among Mediums: A Scientist's Quest for Answers. Windbridge Institute, LLC.

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Assim, da mesma maneira que o solipsismo, a “possível existência de Super-PES não

pode ser refutada, e permanece concebível em teoria que qualquer evidência para

sobrevivência poderia ser explicada como originada nas habilidades psíquicas dos vivos”

(Fontana, 2005)55. Julie Beischel (2014), doutora em farmacologia e toxicologia, além de

ostensiva pesquisadora sobre CMs, pondera nas seguintes palavras:

Na explicação de super-psi (ou super-PES), quando uma médium recebe informações sobre o falecido, ela usa psi para adquirir informações das mentes dos assistentes, do

experimentador ou de outros [por telepatia]; [e/ou] a partir de um tempo futuro,

quando ela recebe um feedback sobre a leitura [através de precognição]; e/ou a partir

de itens, localizações, fotos, documentos, etc. distantes [via clarividência]. Porque

super-psi é tão abrangente (daí o 'super'), ela não pode ser refutada (não mais do que

seria uma teoria que propõe que Deus está sussurrando a informação à médium ou

uma na qual alienígenas estão transmitindo as informações diretamente para a cabeça

dela) e, portanto, ela realmente não se qualifica como uma hipótese científica. É mais uma ferramenta filosófica para discutir alternativas para a [hipótese da]

sobrevivência56.

Com isso, alguns entendem que LAP, quando invocada na sua versão Super para

explicar a fenomenologia emergida nos contextos de mediunidade, não deve ser considerada

uma hipótese científica, porque ela simplesmente não pode ser refutada.

Os filósofos Stephen Braude e Michael Sudduth (Braude, 2003; Braude, 2014; Sudduth,

2014) acreditam que esses dois primeiros ataques contra LAP são questionáveis e

supervalorizados por defensores de S. No seu excelente Immortal Remains (2003), Braude

expõe acuradamente as fraquezas desses argumentos. Peço agora vênia para transcrever alguns

excertos a fim de ser mais fiel as palavras desse autor, as quais concordo amplamente.

Inicialmente, Braude (2003) enfraquece a sustentação de que não teríamos evidência de

funcionamento psi dos vivos, em grandes magnitudes, fora dos casos de aparente sobrevivência

post-mortem. Ele cita alguns exemplos:

Em primeiro lugar, é verdade que não temos evidência direta para o tipo exato de super-psi necessária para explicar os bons casos de sobrevivência. Mas há um

conjunto substancial de provas diretas, de fora do laboratório, para, no mínimo, uma

psi muito elegante. Os exemplos mais surpreendentes podem ser os casos de mediunidade física. Mas um argumento decente poderia ser que a PES reportada em

alguns casos espontâneos é também poderosamente impressionante (veja, por

55 Op. Cit. 56 Op. Cit.

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exemplo, Gurney, Myers, Podmore, 1886; Rhine, 1981; Sidgwick, 1922; Society for Psychical Research, 1894; Tyrrell, 1942/1961). Esses corpos de evidência mostram,

pelo menos, que o funcionamento psíquico pode operar em níveis de magnitude e

refinamento que excedem a qualquer coisa inequivocamente demonstrada em

experimentos de laboratório. Isso enfraquece o argumento que o funcionamento

psíquico é improvável de operar em um nível ainda mais alto. Além disso, como já

disse anteriormente, não existe um padrão claro pelo qual pudéssemos medir o quão

'super' um fenômeno psi é.

Além disso, Braude deixa claro que não precisamos invocar uma causa grande em

magnitude e poder para explicar efeitos em larga escala. Ademais, argumenta que, dado o nosso

ainda empobrecido conhecimento sobre o funcionamento de psi, não estamos em posição para

afirmar que seus efeitos em larga escala são mais difíceis de produzir do que os mais modestos.

Acrescenta ainda que nossa ignorância sobre o mecanismo da psi nos impede de colocar limites

para ela, obrigando-nos a cogitar não apenas de uma psi dos vivos poderosa, mas talvez

ilimitada (pelo menos em teoria):

[...]Como veremos quando começarmos a examinar em detalhes alguns dos melhores casos de sobrevivência, é questionável se precisamos de uma psi de níveis sem

precedentes de magnitude ou refinamento para acomodar as provas de

sobrevivência[...]. Para entender o porquê, precisamos examinar os casos específicos. Mas vale a pena fazer agora um ponto geral. Não importa se estamos preocupados

com a causalidade paranormal ou normal, nós não precisamos supor que efeitos

devem ser proporcionais às suas causas. Em particular, um grande evento pode ser

produzido por um pequeno evento. Por exemplo, para disparar uma mina ou explodir

um avião psicocineticamente, tudo que é necessário é uma cutucada no lugar certo, e

não um evento em uma escala comparativamente grande.

[...]O próximo ponto é mais abstrato. Ele aborda mais diretamente a alegação de

Almeder de que necessitamos de evidência independente para super-psi antes de a

aceitarmos como explicação para casos de sobrevivência. O problema é este. Mesmo

se aceitarmos a existência de funcionamento psíquico, nós não sabemos quase nada

sobre sua natureza. Não sabemos como ele funciona, e não sabemos sua história

natural — ou seja, qual é o papel (se houver algum) que isso desempenha na vida. Mas considerando a grandeza da nossa ignorância sobre a natureza de psi, devemos

(no mínimo) cogitar a possibilidade de uma psi extensiva, uma vez que admitimos que

ela pode assumir formas mais moderadas. Richet uma vez observou, em relação a

evidência para a materialização,

‘é tão difícil entender a materialização de uma mão viva, quente, articulada e móvel

ou mesmo de um único dedo, quanto para compreender a materialização de uma

personalidade que vem e vai, fala e move o véu que a cobre’. (Richet, 1923/1975, p.

491)

[...]Nós podemos generalizar esse ponto. Em nosso nível atual e empobrecido de

compreensão, os fenômenos psíquicos em grande escala ou refinados não são mais

incríveis ou enigmáticos do que os fenômenos mais modestos. Por exemplo, no caso de PK, uma vez que não temos ideia de como os agentes afetam sistemas físicos

remotos, não temos motivos para supor que os efeitos de PK são inerentemente

limitados em escopo ou refinamento. Apesar da postura teórica de alguns

parapsicólogos, nós não sabemos de que maneira PK em menor escala viola ou

contorna as restrições habituais para influenciar outros sistemas físicos. Então não

estamos em posição para definir antecipadamente limites sobre até que ponto aquelas

aparentes violações podem chegar. De fato, não só podemos cogitar a possibilidade

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de uma psi extensiva, mas talvez tenhamos que cogitar a possibilidade de uma psi

ilimitada (pelo menos em princípio).

Mais à frente, Braude fragiliza o argumento de que LAP, quando invocada na sua versão

Super para explicar toda a fenomenologia emergida nos casos de aparente sobrevivência, não

deveria ser considerada uma hipótese científica, por não ser irrefutável (i.e., infalseável, no

linguajar Popperiano). Além disso, deixa clara sua posição de que ambas as hipóteses, S e PAV,

padecem do “mal” da infalseabilidade em alguma medida, classificada por ele como

infalseabilidade no sentido fraco:

[...]Essa linha de raciocínio levou alguns a reclamar que 'nada poderia responder pela não-existência de super-psi' (Almeder, 1992, p. 53) e, portanto, que a hipótese é

empiricamente sem sentido. Essa preocupação é compreensível, mas acredito que

podemos facilmente eliminá-la. Eu admitiria que explicações em termos de super-psi

falham somente no estrito [sentido] dos testes de falseabilidade Popperiano. Mas isso

não é o mesmo que dizer que nada pode responder contra essas explicações[...].

Talvez nós podemos deixar isso um pouco mais claro ao distinguir dois aspectos nos

quais uma hipótese pode ser infalseável. Vamos chamá-las de infalseabilidades forte e fraca.

'A hipótese H é fortemente infalseável' = df 'absolutamente nada pode responder

contra H'

'Hipótese H é fracamente infalseável' = df '(a) tanto H e não-H são compatíveis com

os dados, mas (b) algumas evidências podem ser razoavelmente consideradas como

apresentando H menos plausível do que não-H'

Eu diria que a hipótese de super-psi é infalseável no sentido fraco. Então quando eu

digo que qualquer evidência ostensiva para sobrevivência será compatível com uma

explicação alternativa de super-psi, não significa que nada pode responder contra a

explicação em termos de super-psi.

Eu realmente concordo com Almeder que se nós formos confrontados com[...] qualquer caso [de sobrevivência] intimamente aproximado do ideal, teríamos boas

razões para aceitar a hipótese da sobrevivência. Ainda concordo que seria irracional

(em algum sentido adequadamente robusto) não a aceitar. Mas, como veremos,

nenhum caso aproxima-se do ideal que possamos conjeturar. Esse é o problema. Os

melhores casos aproximam-se do ideal em diferentes graus, em diferentes ângulos. E,

não raro, esses casos nos lembram principalmente de quão pouco sabemos sobre os

vários aspectos da natureza humana[...]

Na verdade, uma das características mais frustrantes do tópico da sobrevivência - pelo

menos no ponto onde enfrento essas questões — é que temos de escolher entre duas

hipóteses fracamente infalseáveis: sobrevivência e super-psi. Nós sabemos tão pouco,

não apenas sobre psi em geral, mas também sobre as características presumíveis de

uma vida futura, que somos incapazes de prever com alguma confiança com que os dados devem parecer. Criar hipóteses testáveis acerca das evidências de sobrevivência

simplesmente não é falseável. Alguns podem achar essa afirmação surpreendente, e

protestarem da seguinte maneira. 'É certo, se super-psi pode ser sorrateira e

imprevisível, então nós não podemos fazer previsões específicas e falseáveis sobre

como a evidência para super-psi deveria parecer. Mas a evidência a favor da

sobrevivência não é assim; ela nos permite fazer 'certas predições testáveis'

(Almeder, 2001, p. 347) — por exemplo, que o sujeito possuiria memórias

particulares que apenas a pessoa falecida poderia ter, ou habilidades características

desta pessoa’.

Mas isso é simplesmente falso. Primeiro, dificilmente é uma previsão específica dizer

que sujeitos teriam certas memórias ou habilidades. Na verdade, não temos uma pista

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de quais memórias particulares ou habilidades, ou de que certos tipos de memórias ou habilidades um sujeito é provável a ter, especialmente na ausência de pressupostos

questionáveis e presumivelmente arbitrários sobre como o trauma da morte corporal

afetar-nos-ia cognitivamente. Nós podemos apenas conjeturar quais os tipos de

prejuízos ou de aperfeiçoamentos, ou que mudanças no comportamento pessoal, essa

transição pode produzir (p. 15-19).

Quando analisamos S2, tivemos a oportunidade de mencionar que – na perspectiva da

sobrevivência post-mortem – o choque da morte implica a continuar termos experiências, porém

sem mais as influências do corpo físico e do nosso atual ambiente imediato. Como

consequência, conjeturamos várias possibilidades sobre as características dessa nova forma

existencial. Ponderamos que, analogicamente a situações traumáticas que eventualmente

acontecem em nossa existência terrena, falecidos também poderiam reagir heterogeneamente a

transição da morte e que, por essa razão, não deveríamos esperar um padrão de características

psicológicas sendo genericamente absorvido pelo eu resultante à morte (isso se algum eu

permanecer integrado, e não apenas fragmentos de uma personalidade). Por exemplo, tal como

nos casos psicopatológicos de múltiplos, a álter personalidade pode conhecer dos sentimentos,

pensamentos e das ações da personalidade principal, porém não tomá-los como seus próprios.

Aqui não existe a permanência do sentido de identidade. Semelhantemente a isso, talvez o

trauma da morte nos fizesse enxergar o eu atual como um outro indivíduo; ou então, com o

falecimento (quem sabe!) alguns de nós conseguissem sustentar o sentido de identidade, porém

padecessem parcialmente de alguma barreira amnésica; ou ainda que nada disso ocorresse,

poderia ser que certas pessoas experimentassem tão somente uma leve mudança de caráter,

enquanto outros sujeitos passassem por alterações mais drásticas, tal como olhar com

indiferença parentes e amigos de sua antiga existência terrena, etc.

Dessa forma, porque sabemos tão pouco (a) de como deve parecer uma vida após a

morte e (b) de como funciona os mecanismos da mediunidade, qualquer informação adquirida

anomalamente por um médium e relacionada a vida de um falecido poderia ser coberta pela

hipótese da sobrevivência. Portanto, da mesma forma que Super-PES, não teríamos um jeito de

refutar S.

Ainda nos momentos em que o médium diz coisas sem sentido, poderíamos justificar

que as mensagens do falecido comunicador sofrem algum tipo de adulteração em razão de

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interferências de material psicológico originado na mente do médium ou nas mentes de outros

desencarnados. Essas interferências, longe de serem uma suposição ad-hoc e gratuita, deveriam

ser encaradas como de senso comum. Quando apresentarmos o Argumento da Complexidade

Restritiva desenvolvido por Braude (2003), isso ficará bastante claro. Por ora, podemos dar

hipotéticos exemplos dessa interferência, tais como: a) o médium poderia misturar as

mensagens dos mortos com fantasias criadas por alguma camada onírica funcionando abaixo

do seu limiar de consciência; b) ele poderia também desvirtuar as mensagens, interpretando-as

segundo algumas ideais e valores culturalmente preconcebidos; c) poderia esporadicamente

adquirir algumas informações da mente dos vivos, mas em outros momentos seria influenciado

pelos pensamentos do falecido; d) mais de um comunicador poderia influenciar

simultaneamente o médium, que ficaria confuso e consequentemente trocaria os destinatários

das mensagens, etc. Enfim, todas essas suposições são frequentemente invocadas por

defensores de S dentro de contextos mediúnicos com o objetivo de justificar as declarações do

médium que parecem não provir do falecido. Porém, quando simpatizantes da teoria da

sobrevivência promovem tais alegações, eles simplesmente transformam S numa hipótese

irrefutável, logo, não estão em posição de levantar esse mesmo argumento contra Super-PES.

A verdade a ser declarada é que em nosso atual e empobrecido conhecimento sobre o

funcionamento psi, bem como de outras facetas da personalidade humana, não estamos em

posição de excluir nenhuma das hipóteses rivais, S ou LAP. Estamos autorizados, no máximo,

a fazer preferências entre elas, dependendo das características de um caso a outro, mas

conscientes que a hipótese preterida também é capaz de dar conta do caso.

Um outro tipo de refutação de sobrevivencialistas contra LAP diz respeito ao conceito

de obscuridade da informação. Uma informação é considerada obscura quanto mais recôndita

ou oculta sua fonte estiver do médium e/ou de outras pessoas vivas. Assim, - pensam alguns

partidários de S - deveria ser mais parcimonioso considerar um contato direto entre médium-

falecido do que admitir que o médium tenha a capacidade de sondar as mentes de pessoas vivas

localizadas a milhares de quilômetros de distância; ou pior, não deveríamos dar tanto crédito

para uma explicação de LAP que demanda uma capacidade clarividente de o médium sondar

registros escritos, como diários e anotações pessoais do falecido, que aparentemente eram

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ignorados de qualquer pessoa viva, e os quais somente foram publicamente conhecidos após a

revelação mediúnica.

Porém, essa crítica de sobrevivencialistas aborda uma perspectiva de obscuridade da

informação do ponto de vista físico, e o que é fisicamente obscuro não significa que também o

seja psiquicamente. Aliás, a evidência da parapsicologia demonstra que a dificuldade de acesso

físico a uma informação, como grandes distâncias ou barreiras sensoriais e eletromagnéticas

(v.g., isolamento através de gaiolas de Faraday) não afetam o desempenho de psi. Como

Braude coloca, essa linha de ataque de defensores de S seria semelhante a postular que médiuns

deveriam ter melhores resultados se suas cabeças estivessem encostadas nas dos assistentes.

3.1.1. O problema das múltiplas fontes de informação

Vamos agora analisar mais um dos argumentos habitualmente levantados por partidários

de S contra a hipótese LAP, qual seja, o problema das múltiplas fontes. Esse argumento baseia-

se numa ideia de economicidade de variáveis para explicar um mesmo fenômeno. Grosso modo

é o seguinte: enquanto podemos dizer que S precisa postular que todas as informações

adquiridas anomalamente pelo médium foram obtidas a partir de uma única fonte, i.e., da mente

de um determinado falecido, LAP, em alguns casos críticos, deve demandar que o médium

obteve as mesmas informações a partir de mais de uma fonte. Isso acontece quando todo o

material anômalo fornecido pelo médium não está concentrado num mesmo lugar, seja na mente

de uma única pessoa ou algum registro físico privilegiado. As informações estão dispersas e –

de acordo com LAP – o médium deveria ser capaz de acessá-las remotamente e então uni-las

de forma coerente com a finalidade de representar o drama da sobrevivência post-mortem.

Walter Franklin Prince, um dos pioneiros da pesquisa psíquica e famoso por tratar do

caso de múltiplas personalidades de Doris Fischer, concede-nos um exemplo hipotético deste

problema, o qual ele nomeou de labirinto telepático (1920):

[...] Enquanto um fato necessário ou conveniente para uma comunicação mediúnica poderia ser, se houvesse intenção, captado de tia Mary, a 50 milhas de distância a

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oeste, outro fato de avô Brown, a 300 milhas de distância a leste, outro fato de um homem que vive nas vizinhanças onde o pai nasceu a 1000 milhas de distância ao sul,

e ainda outro fato de uma das várias pessoas de algum lugar no mundo familiarizada

com um livro excessivamente raro onde está especificamente registrado – e isso não

pode ser suposto – de como o incidente possivelmente aconteceu há trinta anos atrás,

e que todas estas pessoas estavam mentalmente envolvidas contemporaneamente nos

vários fatos reconstituídos pela médium, ou que todas elas pensavam sobre eles por

meses ou anos. Desse modo, se isso for admitido, nós teríamos um modelo de labirinto

telepático, de alcance e complexidade bem além de qualquer coisa indicada dentro do

círculo de telepatia o qual nós atualmente temos conhecimento57.

Partidários de S então alegam que, nos episódios marcados com essa característica, o

poder explanatório de LAP é deflacionado (vide, por exemplo, os resumos sobre as

comunicações GP e o caso da Sra. Talbot, p. 21-24). O psicólogo britânico Alan Gauld (1995),

comentando a respeito de alguns casos por procuração, argumenta nas seguintes palavras:

[...] E mesmo que houvesse tais fontes acessíveis à clarividência, as fontes para cada

caso deveriam estar em diversos lugares, de modo que o médium precisaria localizá-las, lê-las e sintetizá-las numa história coerente e plausível. A telepatia com algum

vivo que possuísse todos os fragmentos de informação soa como uma proposição

muito mais aceitável. 2. No entanto parece que em dois casos de ‘sessões por

procuração’ citados neste capítulo não havia pessoa viva que tivesse toda a informação

[...] Para ambos estes casos, portanto, teríamos de postular, pela hipótese da PES

[LAP], pela qual a Sra. Leonard localizou (telepaticamente) duas fontes separadas de

informação, canalizou-as e fundiu os resultados. [...] Poderíamos propor que o

médium fica sabendo, pela mente do assistente, da identidade da pessoa, em nome de

quem faz as perguntas, e que isto, de algum modo, o capacita a focalizar a mente desta,

de onde obtém pistas para outras informações, e daí por diante. É só começar a pensar

nos detalhes para perceber que o processo é grotescamente implausível. Nomes certos,

endereços, datas e assim por diante – detalhes que identificam exclusivamente uma pessoa -, estão dentre os itens mais difíceis para os sensitivos obterem; e, no entanto,

tais detalhes únicos de identificação (ou seus equivalentes) teriam de ser obtidos [...]

antes que o médium pudesse determinar que fonte de informação usar e, em alguns

casos, várias fontes, à medida que, por assim dizer, a mente do médium se deslocasse

ao longo da cadeia de pistas.

Mas qual a consistência desse argumento? O que poderíamos dizer contra ele a fim de

verificarmos sua higidez? Essa questão levantada por partidários de S, a respeito de múltiplas

fontes de informação, realmente impõe dificuldades para a hipótese LAP? Bem, penso que

tanto Braude quanto Sudduth dispõem de perspectivas muito sedutoras e as quais quase

completamente fulminam uma vitória dos defensores de S sobre esse ponto. Sudduth (2014)58

diz:

57 Prince, W. F. (1920). Certain characteristics of veridical mediumistic phenomena compared with those of

phenomena generally conceded to be telepathic. Journal of the American Society for Psychical Research vol. 15.

pp 559-75. 58 In Rock, Adam J. The Survival Hypothesis: Essays on Mediumship. McFarland.

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Em primeiro lugar, supor que LAP não pode dar conta de m6 [múltiplas fontes de

informação] parece supor que LAP opera de forma análoga ao processamento comum

de informação, procedendo de modo passo-a-passo, coletando e, em seguida, organizando as informações. Sobrevivencialistas muitas vezes falam que psi tem que

passar por uma fase de seleção para organizar as informações, ou para reuni-las e, em

seguida, integrá-las, como se LAP operasse semelhante a um bibliotecário tentando

reconstruir um catálogo de cartões físicos depois que os cartões foram espalhados por

toda a cidade por um furacão e misturados com dezenas de milhares de outros pedaços

de papel (Lund, 2009, pp. 174, 199). Mas essa visão de psi e sua relação com a

complexidade da tarefa é, no mínimo, subdeterminada pelos dados atualmente à nossa

disposição.

Realmente, existe alguma boa evidência que o efeito psi de vivos é independente da

complexidade da tarefa. Por exemplo, num dos estudos de Osis, os sujeitos tinham que

influenciar o resultado de lançamentos de dados, um por vez, com o objetivo de que as faces

resultantes (1 a 6) combinassem com a indicação ocultada e previamente registrada dentro de

um envelope opaco. Se PES e PK atuam como processos perceptuais e motores, então, no

estudo de Osis, presume-se que uma pessoa primeiro deve usar PES para conhecer a face alvo

indicada dentro do envelope e depois usar PK para afetar a queda do dado (Hansen, 200159).

Hansen comenta:

Se este é o caso, escores PK com alvos escondidos devem ser muito menores do que

aqueles com alvos conhecidos pelo sujeito. Por exemplo, se PES e PK forem

independentes e cada uma delas funciona com precisão de 10% das vezes, então elas em conjunto funcionariam apenas 1% das vezes (0,10 x 0,10 = 0,01). Os escores

seriam bastante reduzidos.

Osis constatou que os escores de alvos escondidos foram os mesmos de alvos

conhecidos, indicando que PK não pode ser comparável a outras forças da natureza.

[...]

Experimentos PK com alvos-ocultos agora são vistos como [meios] para testar os

efeitos do que é chamado de complexidade da tarefa. Complexidade neste sentido

refere-se à quantidade de informação aparentemente necessária para duplicar uma

tarefa psi através de atividades sensório-motores humanas normais (por exemplo, na

experiência de Osis, primeiro era necessário descobrir a identidade do alvo e, em

seguida, influenciar a queda dos dados; dois passos eram necessários). Fazer uma tarefa mais complexa não reduz os escores, e isso foi confirmado por outros estudos

com alta complexidade que ainda alcançaram sucessos. Estas experiências

estimularam trabalhos teóricos e, em 1974, Helmut Schmidt sugeriu que psi era 'meta

orientada'. Ele declarou: ‘Isso sugere que PK não pode ser adequadamente

compreendida em termos de algum mecanismo pelo qual a mente interfere com a

máquina de algum meio habilmente calculado, pode ser mais apropriado ver PK

como um princípio meta-orientado, e que visa o sucesso de um evento final, não

importa o quão complexos são os passos intermediários’.

59 The Trickster and the Paranormal. Xlibris.

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Sudduth60 acrescenta:

[...] participantes têm realizado com sucesso tarefas PES de combinações cegas nas quais eles combinaram duas cartas desconhecidas, ao contrário de simplesmente

identificar uma única carta desconhecida (Kennedy, 1995). Por isso, não é verdade,

em geral, que nos faltam casos nos quais os participantes têm adquirido e integrado

informação a partir de múltiplas fontes através de PES.

Essa característica de independência da complexidade da tarefa possui dois pontos que

devem ser bem destacados: em primeiro lugar, a psi funciona abaixo do nível da consciência de

vigília e de forma meta-orientada. Essa característica é medida em termos de necessidades,

desejos, ainda que inconscientes, de uma pessoa. Em outro lugar61 já tivemos a oportunidade

de falar que,

[...]alguns relatórios já indicavam, sob métodos quasi-experimentais de medição e

análise, de que a psi poderia funcionar inconscientemente (de forma não-deliberada)

em certas situações. Carpenter, por exemplo, diz: W. Edward Cox (1956) demonstrou que as pessoas inconsciente e espontaneamente embarcam com menor frequência em

trens nos dias de acidentes ferroviários do que nos dias de controle, i.e., sem acidentes.

Assim, ele mostrou o que parecia ser uma premonição espontaneamente inconsciente,

funcionando como um modo de proteção. [...]

O próprio Stanford (1970) mostrou que alvos PES ocultados poderiam ser usados

inconscientemente para ajudar pessoas que participam de um teste de memória; e

Martin Johnson (1971, 1973) relatou que estudantes universitários poderiam

espontânea e inconscientemente ser ajudados em testes quando as respostas corretas

ficavam gravadas, porém tampadas, nas folhas de resposta. E Douglas Dean (1962)

demonstrou que indivíduos sendo monitorados fisiologicamente por um

pletismógrafo produziam diferentes tipos de reações quando um agente distante ficava

olhando para nomes de pessoas importantes para aqueles, em comparação com períodos em que nomes aleatórios eram observados. [...]

Stanford observou ainda que, no laboratório, as pessoas são geralmente convidadas a

tentar usar conscientemente as habilidades psi, enquanto as ocorrências espontâneas

sugerem que tais habilidades podem ser inconscientemente ‘convocadas a entrar em

jogo’ nos momentos de necessidade (a exemplo de eventos que envolvem acidentes,

testes de memória e respostas fisiológicas inconscientes).

Em segundo lugar, não existem paralelos entre as cadeias de causalidade normal e

paranormal. Assim, por exemplo, quando Gauld questiona LAP para casos nos quais as

informações estão dispersas em diferentes lugares, dizendo que "o médium precisaria localizá-

las, lê-las e sintetizá-las numa história coerente e plausível", essa exigência deixa de fazer tanto

sentido, porque "localizar", "selecionar" e "sintetizar" são eventos intermediários dentro de uma

cadeia normal de causalidade, mas o funcionamento psíquico parece não ser analisável em

60 Op. Cit. 61 Teorizando a psi < http://debatepsi.com/teorizando_a_psi.pdf>

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termos de passos intermediários entre a causa e o seu efeito. De fato, como já mencionamos,

evidências experimentais apontam que necessidades e motivações humanas, nas circunstâncias

apropriadas, podem desencadear efeitos psi sem que haja uma correlação positiva entre a

complexidade da tarefa com o tamanho do efeito.

Na realidade, a independência da complexidade da tarefa levou alguns a hipotetizar que,

sob condições favoráveis (de humor, relaxamento, estado psicológico e talvez ambientais)62 e

63, bastaria que alguns sujeitos nutrissem desejos e boas motivações para que algo aconteça que

simplesmente aconteceria. Braude (2003), sem nenhum conteúdo pejorativo, chama isso de a

“hipótese da varinha mágica”:

De acordo com essa hipótese, (a) a ação de psi não requer nada mais que uma necessidade ou desejo eficazes (sob condições favoráveis), e (b) dada essa

necessidade ou desejo, virtualmente tudo pode acontecer. Mas nesse caso, não

precisamos supor que uma PES refinada exige complexos procedimentos de pesquisa

- por exemplo, do tipo usado para se procurar referências numa biblioteca, para

adquirir informações na internet ou procurar pistas numa investigação policial. E nós

não precisamos supor que uma PK [psicocinese] refinada exige um constante

monitoramento de PES sobre os resultados das atividades de alguém - por exemplo,

da mesma forma que a direção de um carro e uma cirurgia cerebral requerem um

feedback sensorial. Pode ser suficiente apenas desejar que alguma coisa aconteça e

então ela acontece. Complexidade da tarefa simplesmente pode não ser um

problema64.

Assim, em razão de um desejo e motivação eficazes, “coincidências” favoráveis podem

acontecer na vida de todos nós, sem que sequer tenhamos nos dado conta que tivemos um papel

nisso, ainda que inconscientemente. Dessa forma, médiuns, além de serem sujeitos inclinados

a psi, podem nutrir desejos e motivações suficientemente eficazes para que as informações

relevantes sobre a vida de um falecido eclodam em sua mente, não importando onde estejam

registradas, ainda que em mais de uma fonte. Dessa forma, e não por outra razão, conclui

Sudduth65:

A força explanatória da hipótese da sobrevivência depende de m6 ser improvável, caso a sobrevivência não seja verdade [m6 = o médium tem conhecimento robusto,

62 Haja vista alguma evidência da influência do humor, estados dissociativos, relaxamento, estados

neurofisiológicos e da atividade geomagnética sobre o desempenho psi (veja Irwin e Watt, 2007, caps. 4 e 8). 63 Já comentamos também em Atitudes e características da personalidade moderadoras da performance PSI <

http://debatepsi.com/psi_vari%C3%A1veis%20subjetivas.pdf> 64 Immortal Remains: the Evidence for Life After Death. Rowman & Littlefield Publishers, Inc, 2003. 65 Op. Cit.

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íntimo e detalhado sobre informações a respeito da vida de um falecido e as quais estão localizadas em mais de uma fonte]. Para mostrar isso é necessário que o

sobrevivencialista adote uma suposição sobre LAP ter certos limites, sendo limitada

pela complexidade da tarefa, etc. O ponto de Braude é que não temos garantia sobre

quaisquer dessas assunções [i.e., desses limites]. Assim, enquanto o problema de

múltiplas fontes pode evitar que um defensor da hipótese LAP justificadamente afirme

que m6 não é surpreendente (caso sobrevivência seja falsa), o sobrevivencialista está

impedido de justificadamente alegar que m6 é surpreendente (caso a sobrevivência

seja falsa). No mais, o problema de múltiplas fontes simplesmente nos empurra na

direção do agnosticismo sobre se a sobrevivência é a melhor explicação para os dados.

Por outro lado, as chances de uma psi ilimitada em escopo e refinamento parecem estar

apenas no plano teórico, e não na realidade do cotidiano, ainda que ela seja completamente

independente da complexidade da tarefa, excluindo passos intermediários (tal como é de se

esperar dentro de uma cadeia normal de causalidade), e assuma formas milagrosas a exemplo

da varinha mágica. Para esclarecer esse ponto, Braude desenvolve razões bastante persuasivas

e que, num primeiro momento, parecem favorecer bastante defensores de S, mas que no final

empurram seu idealizador, exclusivamente quanto ao argumento de múltiplas fontes de

informação, a declarar uma vitória muito tímida de S sobre LAP; muito embora, num balanço

geral das características de CMs, Braude adote uma postura agnóstica em relação a essas duas

hipóteses.

A ideia central de seu raciocínio, batizado de o Argumento da Complexidade Restritiva,

sugere que o funcionamento psi de uma determinada pessoa viva, ainda que teoricamente

ilimitado, fique incorporado dentro de uma rede enormemente complexa de interações, sendo,

portanto, vulnerável a interferências igualmente potentes dentro dessa rede, sejam estas normais

ou paranormais (inclusive formas de defesa psíquica). Braude (2003) então levanta um certo

paradoxo de super-psi para explicar os melhores casos de mediunidade, porque quanto mais

admitimos que a psi dos vivos seja virtuosa ou super, mais obstáculos aparecem para interferir

nos sucessivos êxitos que os melhores médiuns já apresentaram durante sessões mediúnicas.

Peço licença para trazer longos excertos desse autor, sendo bem fiel as suas palavras:

[...] Em primeiro lugar, é preciso considerar um paralelo com a onipotência psíquica. Precisamos considerar por que, ainda que os pensamentos possam matar ou

mutilar, muitos de nós ainda estamos vivos e intactos. Como já observado em outros

lugares (Braude, 1997), mesmo que o funcionamento psíquico seja teoricamente

ilimitado em refinamento ou magnitude, ele pode ser severamente restringido na

prática. Por um lado, a maioria (se não todas) as nossas habilidades ou capacidades

são sensíveis a situações, como e em que grau nós as expressamos depende de muitos

fatores contextuais. Considere, por exemplo, a nossa capacidade para circular o

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sangue, focar nossos olhos, digerir alimentos, discutir detalhes íntimos de nossas vidas, mostrar compaixão, mostrar a nossa inteligência ou paciência, ou lembrar

aquilo que lemos. Essas capacidades, e provavelmente todas as outras, não são

constantes e nem uniformes. Elas variam de acordo com o nosso humor, saúde, idade,

momento do dia, nível de tensão, etc., e, em geral, elas podem ser reduzidas ou

aumentadas de muitas maneiras. Mesmo habilidades virtuosísticas são vulneráveis a

inúmeras influências. Por exemplo, o desempenho de um grande atleta pode ser

prejudicado por lesões, doenças, perda temporária de confiança, preocupação com

problemas pessoais, grandes adversários, ou até mesmo os adversários fracos que têm

um grande dia. Da mesma forma, a capacidade de um grande comediante para ser

engraçado (ou a habilidade de um músico excepcional para executar sua performance)

pode ser prejudicada, contraposta, ou neutralizada de várias maneiras e em diferentes

graus. Agora é razoável pensar que as capacidades psíquicas também exibiriam essas vulnerabilidades. E, em qualquer caso, a evidência sugere fortemente que o

funcionamento psíquico é, de fato, altamente sensível a situações e susceptível a

várias formas de interferência. Portanto, parece razoável supor que não importa o quão

extensas, refinadas ou virtuosísticas nossas capacidades psíquicas possam ser, assim

como outras capacidades, elas também vão estar casuisticamente sujeitas a reais

limitações.

Assim, mesmo que uma psi hostil seja ilimitada em escopo ou refinamento, ela é

ilimitada apenas em princípio. Ela ainda estaria sujeita a inúmeras restrições, do

mesmo jeito que as formas normais de hostilidade. Ela ficaria incorporada dentro de

uma rede enormemente complexa de interações, psi e não-psi, aparentes e ocultas,

locais e globais, e seria vulnerável a interferências igualmente potentes ou a freios e contrapesos (incluindo defesas psíquicas) dentro dessa rede. Essa conjectura parece-

me incontroversa e (na verdade) de senso comum. Uma vez que assumimos ou

permitimos que as interações psíquicas ocorrem, devemos consequentemente ter uma

visão muito ampla de como as nossas tentativas de esforços psíquicos podem ser

frustradas, mesmo durante períodos de máxima fluência ou potência [...] Mas talvez

o mais importante, podemos também ser 'pegos no fogo cruzado' (por assim dizer) de

processos que de outra forma não estão relacionados aos nossos interesses - por

exemplo, por distrações e interferências externas [...].

A perspectiva de onisciência mediúnica levanta um conjunto de questões paralelas. De

acordo com a hipótese super-psi, um médium deve contar com uma PES repetida e

contínua, não só para sustentar no transe uma persona, mas para ser consistentemente

bem sucedido de um assistente a outro, especialmente ao longo de uma inteira carreira [a exemplo de Piper e Leonard]. Presumivelmente, então, o grau de sucesso requer

sejam contornados, por um período excepcionalmente longo, todos os obstáculos que

poderiam concebivelmente interferir com a coleta psíquica de informações [...].

Mas este é o problema. Quanto mais complexa e extensa permitimos que a rede

subjacente de atividades psíquicas possa ser, haverá mais obstáculos diante de

qualquer investigação ou esforço psíquico em particular para navegar [...].

Se essas considerações estão no caminho certo, elas ainda podem ser estendidas para

versões da varinha mágica sobre a hipótese de super-psi, segundo a qual necessidades

ou desejos sozinhos podem ser causalmente eficazes e a complexidade da tarefa é

irrelevante para o sucesso de psi. Inevitavelmente, uma PES ou PK de sucesso terá

que navegar no denso nexo causal subjacente, sejam ou não aqueles esforços psíquicos causalmente simples ou complexos. Assim, mesmo se o funcionamento psíquico

funcionar como uma varinha mágica, isso significa apenas que a relação de

causalidade entre um estado mental e seu efeito psíquico é primitivo. De acordo com

a hipótese da varinha mágica, atividades psíquicas individuais são causalmente

simplificadas. Elas não vão ser analisáveis em termos de um maior refinamento, da

sequência subjacente de eventos entre a causa e o efeito. Mas esse tipo de simplicidade

causal não descarta a preempção causal. Mesmo os processos causais primitivos são

vulneráveis à rede circundante de influências potencialmente opostas e a cadeias

causais cruzadas. Então, mesmo que admitamos que varinhas mágicas possam

funcionar, disso não se segue que elas funcionem à revelia de tudo. Os fiandeiros das

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lendas e os contos de fadas entendem isso. Feiticeiros podem duelar e perder uma luta; eles podem ser pegos no fogo cruzado; e varinhas mágicas podem titubear ou

falhar.

[...] Considerar o nosso completo potencial psíquico é presumivelmente um ideal

inatingível, assim como para todas as atividades mundanas nas quais rotineiramente

executamos abaixo - na verdade, consideravelmente abaixo – de nosso melhor teórico.

Afinal, nós geralmente ficamos muito aquém da perfeição. Porém, isso não é nem

uma desgraça nem uma surpresa. Somos imperfeitos, limitados e erráticos, e a vida é

complexa, difícil e cheia de obstáculos. Não temos nenhum problema em admitir

nossas falhas e limitações para realizações não-psi, e eu não posso ver por que isso

deve ser mais difícil de compreender com relação ao funcionamento psíquico. E,

claro, se a coleta psíquica de informações pode ser impedida pelo tráfico psíquico não-

aparente criado pela inteira comunidade de mentes, a possibilidade de falha parece considerável. Na verdade, é por isso que, mesmo em uma abordagem simpática e

amplamente de mente aberta ou liberal para a hipótese de super-psi, as falhas

mediúnicas tornam-se não apenas inteligíveis, mas talvez quase obrigatórias. Então,

aparentemente (e de modo irônico), a hipótese de super-psi sugere que PES enfrente

muitos obstáculos naturais para ser consistentemente bem sucedida, pelo menos ao

nível exigido nos melhores casos de mediunidade [...].

De fato, esses obstáculos justificam compreensivamente porque não percebemos efeitos

psi com regularidade. Ainda que em tese ela seja ilimitada em escopo ou refinamento, essa

admissão teórica igualmente amplia os efeitos de interferência e bloqueio subjacentes daquela

complexa rede de interação causal. Agora diversamente de interações normais, os efeitos de

interferência sobre um esforço psi são muito maiores, porque neste caso devemos considerar

fatores adicionais de balanceamento, especialmente as atividades psi produzidas pela

comunidade universal de mentes. Na realidade, é até uma surpresa que algum esforço psi

consiga atravessar as interferências dentro da enorme rede de interações causais. Além disso, a

psi, quase todo o tempo, atua de forma não-intencional e inconsciente (logo, não detectada),

seja para influenciar o mundo ao nosso redor ou para bloquear a influência de outras pessoas.

Braude continua:

Agora, a diferença entre o caso relativamente normal e aquele de uma psi hostil é que

no último, as oportunidades de preempção causal parecem aumentar dramaticamente. Precisamos cogitar de um leque muito mais amplo de fatores

potencialmente de contrapeso - em particular, toda uma série de interações psíquicas

não-aparentes. Afinal, tanto a evidência anedótica e experimental - para não

mencionar o senso comum - sugerem que os processos psíquicos podem ser acionados

de forma inconsciente. Mas, nesse caso, presumivelmente cada pessoa faria várias

tentativas para influenciar o mundo psiquicamente, para servir a uma variedade de

necessidades ou interesses genuinamente motivadores. A menos que pensemos nesses

termos, não levaremos a possibilidade de uma psi hostil (ou super-psi em geral) a

sério. Porém, uma vez que permitimos aquele vasto reservatório de fatores

potencialmente interferentes, nós podemos razoavelmente esperar que poucos (se

algum) dos nossos ‘esforços’ psíquicos consigam sucesso, não importa o quão

poderosa e ilimitada a psi possa ser em tese [...]

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Mas qual é a característica marcante dos melhores casos mediúnicos que o tornam

impressionantes a ponto de exigirmos uma psi altamente refinada ou super? Braude deixa claro

que não é a quantidade de material verídico que pode ser revelado nas sessões, mas sim a

consistência que esse material é apresentado, i.e., a regularidade de uma boa quantidade de

êxitos que alguns médiuns têm não somente entre a troca de um assistente para o outro, mas

durante sua carreira inteira.

Gostaria de salientar que o que faz os melhores casos mediúnicos tão impressionantes

não é simplesmente a quantidade de material verídico revelado durante as sessões. Afinal, um médium pode transmitir uma grande quantidade de informações

corretas durante um longo período. Mas isso pode ser apenas uma percentagem muito

pequena do total do material que ela proporciona, enquanto o resto é falso ou típicas

tolices mediúnicas. Então, o que faz os melhores casos tão impressionantes é tanto a

quantidade de material correto e a consistência com que os sujeitos o fornecem.

Nos parágrafos acima, observamos então que Braude a todo momento ressalta a

improbabilidade de psi dos vivos dar conta dos melhores casos mediúnicos, não importa o quão

potente ela seja, ainda que teoricamente ilimitada em extensão e refinamento. Ele pontua:

“[...]aparentemente, quanto mais virtuoso ou super nós permitimos que psi seja, menos

provável que a hipótese de super-psi consiga lidar com a evidência”. Isso acontece porque

existe uma relação diretamente proporcional entre admitir uma psi virtuosa ou ilimitada, tal

como uma varinha mágica (a fim de justificar os melhores casos mediúnicos), e a quantidade

de obstáculos dentro da rede de interações causais que devem ser superados por qualquer

sondagem ou esforço psíquico executado pelo médium. Daí a incongruência de super-psi dos

vivos lidar com melhores exemplos de mediunidade, os quais são notoriamente marcados pela

alta consistência de material verídico, pois “uma vez que permitimos aquele vasto reservatório

de fatores potencialmente interferentes, nós podemos razoavelmente esperar que poucos (se

algum) dos nossos ‘esforços’ psíquicos consigam sucesso, não importa o quão poderosa e

ilimitada a psi possa ser em tese”.

Mas entre as páginas 92/95 de seu Immortal Remains, o autor começa aplicar o mesmo

raciocínio para a hipótese S, então vemos que sobrevivencialistas sofrem das mesmas

dificuldades para explicar a interação médium-falecido que os partidários de LAP padecem

para explicar a interação médium-assistente. Braude prossegue:

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[...] Eu argumentei que a interação psíquica médium-assistente pode ser bloqueada pela complexidade restritiva do nexo causal subjacente. E porque eu tratei essa linha

de raciocínio como uma espécie de apoio indireto para a hipótese de sobrevivência,

eu tenho sugerido que a interação psíquica do médium-comunicador seria relativamente imune aos estragos da complexidade causal. Aparentemente, então,

tenho chegado a assumir que a interação causal entre o médium e o falecido

comunicador é mais direta do que entre o médium e o assistente, como se o falecido,

em algum sentido permanecesse a parte da rede causal ou estivesse acima dela. Mas

por que seria assim? Se a sobrevivência é um fato e podemos interagir com o falecido,

então comunicadores falecidos deveriam ser incluídos entre aqueles que estão agindo

dentro do nexo causal. Então, se a extensa rede de causalidade não-aparente pode

interferir com a interação médium-assistente, ela também deveria frustrar os esforços

mediúnicos para 'ler' as mentes dos comunicadores, ou as tentativas dos

comunicadores para influenciar os médiuns. Mas, nesse caso, a complexidade causal

parece ser um problema, não importa o quê. Não é mais claro por qual motivo a

interação psíquica entre médium-assistente é mais difícil de explicar do que a interação entre médium-comunicador. Se as dificuldades que se apresentam para a

interação psíquica médium-assistente aumentam com a complexidade do nexo causal

psíquico subjacente, isso também deveria ser válido para a psi do médium-

comunicador. Presumivelmente, os dois tipos de interação enfrentam uma enorme

variedade de obstáculos em potencial. Assim, se tanto os vivos quanto os mortos

contribuem para a vasta rede de causalidade subjacente, então, presumivelmente,

ambos, médiuns e comunicadores falecidos, poderiam ser pegos no fogo cruzado de

atividades psíquicas subjacentes.

Na verdade, os casos reais parecem confirmar isso. Médiuns muitas vezes parecem

encontrar alguma interferência normal a partir de seus próprios processos de

pensamento em curso, e, ocasionalmente, [encontrar] a interferência psíquica de outras fontes vivas (por exemplo, os assistentes). E alguns casos sugerem outro tipo

de interferência: a concorrência entre os aspirantes a comunicadores, cada um

disputando o controle do médium [ou seja, disputando] o análogo mediúnico ao

telefone ou microfone.

Esta reserva ao argumento da Complexidade Restritiva parece-me legítima e

séria. Parece arbitrário supor que os comunicadores desencarnados permanecem a

parte do nexo causal, uma vez que nós admitamos a possibilidade de sua existência e

de sua interação com os vivos. Mas, nesse caso, não está claro por que deveria haver

uma dificuldade menor na interação com mentes desencarnadas do que com mentes

encarnadas. Presumivelmente, isso deve ser tão difícil para o comunicador e médium

criar (por exemplo) uma personificação de transe consistente e de longo prazo, tanto

quanto seria para o médium realizar a mesma coisa através da clarividência e da telepatia com os vivos. Ambas as tarefas encontrariam obstáculos provenientes do

movimentado nexo subjacente de atividade psíquica, e essa rede causal subjacente

teria de incluir tentativas do falecido para reunir informações e influenciar os

vivos. Agora, como observei, os dados mediúnicos são, no mínimo, compatíveis com

esse quadro. Casos reais sugerem a interferência de ambas as fontes, de falecidos e de

vivos.

Além disso, nenhum caso é tão consistentemente bom tanto quanto ele

presumivelmente seria caso a comunicação entre o falecido e o médium fosse direta e

desimpedida. Mas similarmente nenhum caso é tão bom como seria se psi entre os

vivos fosse desimpedida e não sujeita a restrições reais. Então, mais uma vez, parece

que estamos diante de um impasse entre as hipóteses de super-psi e sobrevivência.

Agora, como já declaramos anteriormente, Braude enxerga uma pequena vantagem de

S sobre LAP, ao menos quanto ao argumento de múltiplas fontes de informação rotineiramente

arguido por sobrevivencialistas contra a super-psi (ou super-PES). Resumidamente, podemos

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apresentar essa vantagem da seguinte forma: em alguns bons casos mediúnicos, para explicar o

material verídico através de super-psi, devemos sustentar que o médium teve acesso a mais de

uma fonte de informação, logo, ele deve manter a integridade de mais de um vínculo psíquico,

por exemplo, com as mentes do assistente e de outra pessoa viva a qual também conhecia muitas

coisas sobre o falecido. Por outro lado, diante dessas mesmas circunstâncias,

sobrevivencialistas apenas precisam sustentar a integridade de um único vínculo, qual seja,

entre o médium e o falecido. Essa diferença é substancial, porque dentro da enorme e caótica

rede de interações causais, com inúmeros obstáculos, psi e não-psi, aparentes e ocultos,

relacionados (tal como formas de defesa psíquica) e principalmente não-relacionados (a

exemplo das várias interferências psíquicas cruzadas produzidas pela comunidade de mentes)

já deve ser difícil manter a integralidade de um único vínculo psíquico de forma consistente,

ainda que haja eventuais recaídas, imagine vários! Dessa forma, tanto S quanto LAP não

conseguem lidar com essa questão satisfatoriamente, embora para a última haja um desafio

ligeiramente maior.

[...] Parece ainda existir uma desanalogia entre as hipóteses de super-psi e sobrevivência, e eu acho que ela age a favor da sobrevivência. Para os

sobrevivencialistas, uma convincentemente persona de transe semelhante-a-Tom não

requer mais do que a interação bem-sucedida entre o médium e o falecido Tom. Ainda

se a atividade dentro do nexo causal interferir com a interação médium-comunicador,

a integridade desse único vínculo (porém esporádico) é tudo o que importa. Enquanto

médium e comunicador fazem um contato decente de vez em quando, eles possuem

uma chance de produzir uma personificação de transe credível, mesmo que ela não

seja deslumbrante em sua precisão e consistência. Assim, ainda quando o nexo de

causalidade é frequentemente rompido devido a inevitável desordem ou ao tráfego

dentro do nexo, sobrevivencialistas apenas precisam postular uma fonte confiável de

informação. No entanto (como já vimos), a situação é diferente para os partidários da hipótese de

super-psi. Os casos mais assustadores para super-psi são aqueles que exigem o acesso

a múltiplas fontes obscuras de confiável informação, todas as quais são

potencialmente vulneráveis à interferência de dentro do nexo causal. Assim, em

princípio, parece que vamos ter que conceder uma vantagem explanatória para os

sobrevivencialistas, pelo menos por razões de parcimônia.

Em todo caso, essa pequena vantagem de S sobre LAP é de nível teórico e diz respeito

apenas ao problema de múltiplas fontes de informação. No geral, casos reais de mediunidade

carregam uma miscelânea de características que ora parecem indicar a influência de alguém

falecido, ora sugerem que médiuns dramatizam uma suposta comunicação com uma

personalidade falecida cujos elementos verídicos adquiridos anomalamente foram tomados a

partir de fontes mundanas. No tópico 1.3 vimos muito disso e é por essa razão que Braude

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arremata:

[...] É claro que, uma vez que nenhum caso real está perto do ideal, e visto que mesmo os melhores casos apresentam uma frustrante mistura de material verídico e de

baboseiras, como observamos anteriormente, a evidência não pode fornecer nenhuma

base sólida para decidir a favor da sobrevivência em detrimento de super-psi. Partindo

do princípio de que o funcionamento psíquico pode ser obstruído por uma massa

inimaginavelmente complexa de atividade psíquica subjacente, casos reais de

mediunidade parecem muito como seria de se esperar – por ambas as hipóteses, da

sobrevivência e da super-psi.

3.2. Comentários acerca de LAP2

LAP2: o médium e/ou os consulentes devem ter desejos, necessidades e motivações para

se comunicarem com pessoas falecidas.

Em 2.3 (páginas 43/48) já falamos muito sobre a característica psi-condutiva da

motivação, dos desejos e das necessidades humanas. Desenvolvemos um cenário de caso no

qual a necessidade e o desejo na comunicação com os mortos, algumas vezes alimentados por

circunstâncias pessoais trágicas (tal como a perda de um ente querido), são reforçados por

influências socioculturais, podendo orientar a PES do médium em torno de informações

relacionadas a um determinado falecido, de modo que haja tanto uma sondagem psi sobre fontes

mundanas, quanto uma dramatização inconsciente de pessoas falecidas. Agora não tenho muito

mais a acrescentar, e reservo-me a analisar a seguinte crítica de Carter (2012) contra LAP:

Também observamos que PES normalmente funciona entre pessoas que compartilham

alguma conexão emocional ou que estão de outra forma ligadas de algum jeito. Mas

nos casos por procuração discutidos [ex., o caso de Edgar Vandy, p. 16], a conexão era extremamente tênue; nos casos drop-in, ao que parece não houve qualquer

conexão. Ainda assim é sustentado que uma enorme quantidade de telepatia ocorreu

entre indivíduos [vivos] com quem houve muito pouco ou nenhuma associação ou

conexão.

Relativamente aos casos de sessões por procuração, nos quais o pesquisador psíquico

é interpelado pelos parentes do falecido a estabelecer contato com este através de seu ou sua

médium experimental, temos a dizer o seguinte. Nesse tipo de caso, o pesquisador

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habitualmente não conhece o falecido e, em alguns exemplos, também não conhece os parentes

que suplicam as mensagens post-mortem [para um resumo e discussão de vários episódios

assim, veja Thomas, 1933]66. Além disso, o médium desconhece todos os envolvidos, salvo o

pesquisador, que conduz o caso. A crítica de Carter, a princípio, parece ter alguma justificativa,

porque a evidência experimental de psi sugere que ligações emocionais favorecem as interações

telepáticas entre os sujeitos, então deveria ser improvável – caso LAP seja a explicação para

CMs – que médiuns tivessem sucesso em casos nos quais eles não possuíssem nenhuma espécie

de conexão emocional, sensorial e cognitiva com os assistentes e com o falecido quando vivo.

No entanto, existem casos por procuração em que a aparência de comunicação post-mortem é

muito marcante, tanto pelo material verídico fornecido quanto pela manifestação do caráter

típico do pretenso falecido (por exemplo, Thomas, 1948).

Contudo, há alguns graves problemas com essa linha argumentativa. Em primeiro lugar,

a crítica de Carter também deve voltar-se contra a hipótese S, afinal não está claro que o falecido

e o médium sempre compartilham alguma conexão emocional ou de qualquer outro tipo. Se a

mediunidade deve ser explicada pelo seu valor de face, devemos então presumir que, pelo

menos em alguns exemplos, falecidos e médiuns interagem telepaticamente e de forma

consistente desde o primeiro contato, porém, que tipos de ligações poderiam existir entre eles

antes disso? Presumivelmente de nenhuma espécie, no entanto eles conseguem se inter-

relacionar psiquicamente. Isso fica claro quando o médium apresenta um novo comunicador e,

logo na primeira sessão, já fornece substancial quantidade de informações verídicas.

Em segundo lugar, ainda que a reciprocidade emocional entre os sujeitos possa

favorecer o desempenho da psi, isso não significa que outros fatores psicológicos não estejam

servindo de condutores a um funcionamento psíquico refinado ou poderoso. Ligações

emocionais podem simplesmente ser contigentes, e não necessárias. Como já discutimos em

linhas anteriores, tal como na hipótese da varinha mágica, talvez desejos e motivações na

medida certa, por parte de um sujeito psi-talentoso, sejam suficientes para que muitas coisas

bizarras virtualmente aconteçam.

66 Proceedings of the Society for Psychical Research [Volume 41, 1932-1933, pp. 139-185].

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Dessa forma, penso que o argumento de Carter falha na tentativa de deflacionar a chance

da telepatia entre vivos responder pelos casos de mediunidade em que o contato prévio entre o

médium e os demais envolvidos foi mínimo ou inexistente. O próprio Carter dá o exemplo de

comunicadores drop-in para fortalecer seu discurso. Contudo, esse tipo de comunicador

inesperado frequentemente não tem relação com os assistentes, com o pesquisador e nem com

o médium, então também não deveria ser esperado que médium e comunicador conseguissem

se inter-relacionar psiquicamente, ainda mais de forma consistente. Todavia, Carter desliza em

não perceber isso.

3.3. Comentários acerca de LAP3

LAP3: em determinados casos, especialmente na mediunidade de transe, o médium

experimenta uma divisão de sua consciência ordinária (personalidade A), quando um novo

‘eu’ assume o comando corporal e alega ser uma pessoa que já teve uma existência corpórea

(personalidade B). Essa nova personalidade controladora, oriunda das camadas

subconscientes do médium, é capaz de dramatizar o caráter de quem alega ter sido quando

encarnado (digamos, B'), apresentando hábitos, gostos, maneirismos, inflexão de voz e,

algumas vezes, habilidades que parentes e amigos de B' identificam como sendo

correspondentes àqueles de B'. Em outras oportunidades, a personalidade controle B serve de

porta-voz para uma outra personalidade secundária (C). Durante a sessão, B repassa aos

consulentes tudo o que consegue “ouvir” e entender de C; e tal como B, C também sustenta

ser alguém que teve uma existência terrena (C'). Muito embora C não tenha o controle corporal

do médium, o material fornecido a B é capaz de igualmente convencer parentes e amigos de C'

de que C possui um caráter semelhante ao de C'. Essa habilidade de encenação altamente

criativa e verídica às vezes relaciona-se a falecidos os quais o médium teve um contato

extremamente tênue ou mesmo nenhum.

Para resumir, podemos dizer que médiuns deveriam ser capazes de reproduzir o caráter

de uma pessoa falecida a qual muitas vezes nunca teve qualquer espécie de contato. Quando

abordamos o problema da identidade pessoal, lançamos mão da definição de caráter utilizada

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por Patterson e que será muito útil agora, i.e., o caráter como aquele “conjunto de hábitos,

gostos, crenças, sentimentos, valores, atitudes e habilidades que torna o comportamento de um

indivíduo comparativamente estável e previsível, fazendo-o um objeto de interesse e afeição

(ou indiferença ou antipatia) para aqueles que o cercam”.

Médiuns deveriam então espelhar esse conjunto de características comportamentais

associados a uma pessoa falecida através de um processo de personificação. Mas a criação de

uma persona a que nos referimos aqui não é uma ação consciente com o objetivo espúrio de

ludibriar os assistentes, mas sim um fenômeno autêntico do poder criativo do inconsciente67,

em que uma persona de transe eclode sustentando ser um determinado indivíduo falecido,

imitando seus maneirismos, coloquialismo de linguagem e outras características distinguíveis

que permitem, ao menos em tese, os parentes e conhecidos deste reconhecerem certa identidade

de caráter entre a persona de transe e o falecido.

Que o inconsciente tem uma tendência dramaturga ninguém deveria duvidar, sendo os

sonhos o meio mais trivial do “dramaturgo oculto” mostrar seu trabalho, desenvolvendo

enredos e fantasias, na sua maioria das vezes a partir das influências provindas do ambiente

exterior. O próprio

Myers postulou uma faculdade 'mitopoética' (HP, Vol. 2, p. 5), existindo na consciência subliminar de todos, que constantemente produz fantasias, histórias,

imagens poéticas e outras criações espontâneas que em algumas ocasiões podem

atravessar o limiar da consciência para dentro da consciência supraliminar (Adam

Crabtree, 2007).

Além disso, conforme Tart esclarece (2009) “a personificação inconsciente de outra

personalidade é um fenômeno psicológico geralmente aceito”. E prossegue:

Quando eu estava bastante envolvido na pesquisa da hipnose na Universidade de Stanford, na década de 1960, um dos itens padrão na nossa escala regular de

susceptibilidade hipnótica para indivíduos talentosos incluía, por exemplo, tal

sugestão e hipnotizadores de palco muitas vezes entretinham a audiência escolhendo

alguns voluntários do público obviamente tímidos de aparência, escolhendo

sutilmente entre eles aqueles como tendo alto talento hipnótico, hipnotizando-os, e

67 O termo ‘inconsciente’ aqui é utilizado dentro de uma perspectiva Myersiana, i.e., como sinônimo de centros

subliminares de consciência, dotados de inteligência e propósitos e, em algumas vezes, de sua própria cadeia de

memórias. Esses centros subliminares são inconscientes apenas do ponto de vista da consciência ordinária, uma

vezes que agem automaticamente, escapando quase sempre da percepção desta.

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então sugerindo que eles eram uma estrela do rock ou artista semelhante. Performances teatrais e extrovertidas como eles cantando eram geralmente muito

impressionantes! Esse tipo de coisa é rotina para hipnotizadores de palco, então a ideia

de personificação inconsciente por parte dos médiuns é plausível (Tart, 2009).

O fisiologista francês e laureado Nobel Charles Richet (192268) já há muito

exemplificava:

Digo à jovem Alice, hipnotizável e hipnotizada... ‘você não é Alice; você é uma

senhora idosa’ (pouco importa que se tenha ou não feito passes magnéticos: a sugestão

verbal faz tudo). Logo após Alice começa a tossir, imita o caminhar e a voz cansada de uma mulher de idade. Durante uma hora, durante duas horas, e às vezes até mais

tempo, se se não cansa a paciência dos observadores, ela age em pensamentos e gestos

tal como se fosse a outra [...].

Não se tem que objetar à simulação. Certamente que uma simulação é possível. Mas

não há simulação. A questão é ponto líquido e não nos tornaremos a ele. Aliás

muitíssimo pouco importa saber se Alice, nas profundezas de sua consciência,

conservou ou não alguma vaga lembrança de que é Alice. O que é evidente,

incontestável, é que ela se deixa levar, sem poder reagir, até o ponto de poder imitar a

personagem que se lhe apresentou. Que resta nela um bocado de sua personalidade

anterior, é mais do que possível, é certo; mas em todo o caso a inteligência por inteiro

se adapta momentaneamente à personalidade sugerida e isso com uma energia, uma tenacidade, uma perfeição e uma sinceridade que os mais hábeis cômicos seriam

radicalmente incapazes de imitar.

Além da hipnose, podemos ainda mencionar outras formas da criação inconsciente de

uma persona, tais como (a) os casos psicopatológicos de múltiplos (MPD/DID) e (b) seus

homólogos não-patológicos encorajados por práticas xamanistas, extáticas, esotéricas e

espiritualistas (Hageman e Krippner, 201469).

Especificamente sobre (b), penso haver poucas dúvidas de que, em tais contextos,

práticas dissociativas são encorajadas através de rituais ou reuniões de grupo. Aqui está o ponto

nevrálgico, porque os estados de consciência induzidos socioculturalmente (como o transe ou

outros estados assemelhados ao hipnótico) podem ser sugestionáveis às crenças disseminadas

sectariamente. Assim, ainda que não devamos generalizar, difícil não concluir que muitos dos

episódios da cultura espiritualista são atingidos pelas seguintes palavras de Richet (idem):

Há, em quase todas as experiências de espiritismo, personificação. Tomo de empréstimo a palavra a J. Maxwell, que assim chama a tendência que os médiuns têm,

nas suas respostas, em atribuir os fenômenos e as respostas a uma personalidade

distinta. Essas personalidades algumas vezes são múltiplas, mas em geral há uma que

68 Traité de metapsychique (versão em português, ed. Lake, s/n, p. 108-110). 69 In Rock, Adam J. The Survival Hypothesis: Essays on Mediumship. McFarland.

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toma a dianteira às outras, não lhes permitindo realizar o intento. É o que em linguagem espirítica se chama um guia. Os notáveis fenômenos (objetivos) que

Eusápia Paladino produzia, eram por ela atribuídos a John King. Da mesma maneira

os fenômenos (subjetivos) produzidos pela Sra. Piper os atribuía a Phinuit.

Essa personificação explica-se perfeitamente pela ação do inconsciente, o qual é como

um cidadão estrangeiro que habita em nós, que tem os seus movimentos, as suas

ideias, as suas lembranças, as suas vontades, os sentimentos – que estão inteiramente

à parte da nossa consciência.

No interessante artigo Psiquiatria Popular Brasileira: a Função Reguladora do

Transe70, o psiquiatra Fernando Portela Câmara conclui que a disciplina do transe, dentro de

contextos e agenda específicos promove uma “regulação biopsicossocial [do médium] em

nossa cultura [e] faz com que síndromes tais como personalidade múltipla (transtorno

dissociativo da identidade), e correlatos, existam em outras culturas como transtornos de

significativa prevalência, mas não entre nós”. Essas síndromes e transtornos passam a ser

substituídos por personificações de entidades ou “espíritos” dos mortos, dentro de rituais

contextualizados não apenas aceito, mas demandados e normatizados pelas seitas aderidas pelo

médium, o qual passar a gozar de relevante posição dentro do grupo. Observe-se:

O processo misto de terapia e iniciação conhecido como 'desenvolvimento da mediunidade' consiste em disciplinar os transes descontrolados do indivíduo,

promovendo repetidas abreações não-verbais, por vias psicomotora e vegetativa, até

a sua completa dessensibilização. Daí emerge uma personalidade equilibrada,

tranquila, livre de seus padeceres neuróticos, e que se mantém sua homeostase nervosa

através dos transes regulares no centro ou terreiro, geralmente associados a trabalhos

de cura e assistência à comunidade que busca auxílio espiritual e psicológico em tais

lugares. O médium agora ganha importância em seu meio, aprende a entrar e sair de

um transe, controlando agora o que antes se manifestava de forma desordenada e

descontrolada, causando-lhe medo, dissociação, mal-estar e sofrimento. O médium

que se especializa em transe e possessão passará a ser veículo (ou 'aparelho', ou

'cavalo') de uma entidade tutelar da seita, que pode ser o espírito de um morto ilustre

ou um orixá, que através dele 'disponibiliza conhecimentos do mundo espiritual' para

aconselhar, prever, diagnosticar, tratar e tudo mais.

Tony Jinks, em The Psychology of Belief in Discarnate Communication (2014), citando

estudo de Maraldi et al., (2010) diz:

Socialização permite que uma experiência anômala seja consolidada num sistema de crenças resiliente. Por exemplo, o Centro Espírita em São Paulo, Brasil, oferece a

educação da mediunidade com base no movimento do Espiritismo Kardecista, e aqui

os alunos são ensinados sobre a estrutura religiosa para interpretar as experiências ao

lado de técnicas mediúnicas, tais como a indução de ASCs [estados alterados de

consciência] (Krippner, 2008). Esta formação fortalece a crença na comunicação

desencarnada, embora a experiência subjacente tem sido identificada como uma

70 Psychiatry on Line [maio de 2005 – vol. 10 – nº 5] <http://www.polbr.med.br/ano05/mour0505.php> acesso em

22/12/2014.

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consequência de processos inconscientes reprimidos, embora dinâmicos71.

Porém, sobrevivencialistas podem argumentar que, diversamente dos casos de

hipnotismo e de outras formas de dissociação, há exemplos de aparentes comunicações com os

mortos nos quais a persona de transe reproduz com grande fidedignidade muitos elementos do

caráter de um falecido que era desconhecido ou de pouquíssimo conhecimento do médium (e

quase todos os casos resumidos neste trabalho carregam essa característica, especialmente as

comunicações da menina Katherine e de GP). Então, partidários de S sustentam a

implausibilidade da hipótese de personificação inconsciente, porque o médium deveria, a partir

das informações factuais adquiridas (por PES) sobre a vida de um falecido, ter a habilidade de

fazer uma imitação realista deste sem o benefício da prática. E para essa imitação ser

convincente, persuadindo pesquisadores e assistentes (tal como nas comunicações de GP), ela

deve ser estável, reproduzindo as mesmas variações de caráter que o falecido tinha em vida,

adequando-se de um assistente ao outro. Essa alegação tem alguma base porque todos nós

somos multifacetados e reagimos (e nos apresentamos) de modos diferentes de acordo com o

ambiente e os tipos de relações interpessoais. Por exemplo, você provavelmente é reconhecido

por seus colegas de trabalho de um modo diverso de que é reconhecido por sua esposa ou

namorada, filhos ou amigos mais íntimos. Assim, se o falecido era uma pessoa mais reservada

e séria no trabalho, a persona inconscientemente fabricada durante o transe mediúnico, para ser

persuasiva, deveria habilmente dramatizar/imitar tais características quando os assistentes da

sessão fossem ex-colegas de profissão do falecido. Por outro lado, se o mesmo morto era uma

pessoa marcadamente extrovertida e brincalhona em seu ambiente doméstico, a persona de

transe deveria salientar tais qualidades, caso a esposa ou filhos do falecido tomassem parte na

assistência.

Agora – concluem os defensores de S –, por mais que PES capacite a aquisição anômala

de informações factuais, é autoevidente que habilidades (cênicas ou quaisquer outras menos

idiossincráticas, tais como musicais, literárias, pictóricas, falar um idioma não aprendido, etc.)

não podem ser manifestadas apenas a partir de conhecimentos factuais (adquiridos

normalmente ou via PES); isso porque, para o desenvolvimento de uma habilidade, há a

necessidade de praticá-la. Assim, nos casos em que (a) o médium desconhecia o falecido e (b)

71 In Rock, Adam J. The Survival Hypothesis: Essays on Mediumship. McFarland.

.

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a dramatização foi desde o início muito convincente, uma explicação em termos de PES do

médium seria insubsistente, porque simplesmente a ele não foi oportunizada a chance de

treinar/praticar uma imitação realista do falecido. Gauld (1995) desenvolve com grande

propriedade esse ponto:

A capacidade de construir, dramatizar ou imitar toda uma personalidade a partir destes elementos [vários atributos do caráter] é em si uma habilidade que não pode ser

reduzida a mero conhecimento de fatos. Deixem-me ilustrar. Num certo período da

minha vida, passei muito tempo estudando correspondências, diários, papéis, etc. de

Henry Sidgwick e F. W. H. Myers. Aprendi muitos fatos sobre suas vidas particulares,

seus amigos, seus hábitos e sua vida doméstica; muitos mais fatos do que se possa

supor que o maior dos sensitivos possa obter por PES. Mas nenhuma quantidade deste

conhecimento factual (conhecimento que) de per se teria me capacitado a imitá-los

(uma habilidade; conhecimento como), de maneira que seus amigos íntimos achassem

que não fosse algo absurdo ou patético. Meu desempenho teria sido infinitamente pior que o da Sra. Piper ou da Sra. Leonard, em seus melhores dias – em verdade, em seus

piores dias! Deve ser dito que não sou o tipo de pessoa que faz imitações em festas

para obter aplausos. Não tenho talento para isso. Mas um imitador hábil, que vemos

tanto no palco como na televisão, não se sairia muito melhor? Tal pessoa teria as

habilidades próprias de sua profissão, e sem dúvida tentaria algo, se pressionada. Mas

imitar, digamos, o Sr. Edward Heath [Ex-Primeiro-ministro do Reino Unido de 1970

a 1974] não deixa de ser uma habilidade diferente da de imitar Sir Harold Wilson [Ex-

Primeiro-ministro do Reino Unido de 1964 a 1970 e 1974 a 1976]. Alguns imitadores

conseguiriam imitar a um, mas não ao outro. E as habilidades de fazer uma imitação

de Heath e a outra de Wilson devem ser adquiridas separadamente, ouvindo gravações

de som e vídeo, praticando, gravando as tentativas, praticando de novo, e assim por diante. Não surgem diretamente de saber fatos sobre as vidas de Heath e de Wilson,

seus maneirismos, vozes, hábitos de pensamento, modos de falar, etc. Mesmo que

concordemos (temerariamente) que médiuns como a Sra. Piper e a Sra. Leonard

possam ter tido enormes poderes de PES, ainda resta um imenso problema: como

traduziram o conhecimento factual que foram capazes de obter daquela forma em

imitações convincentes de pessoas falecidas, bem conhecidas de seus assistentes72.

Por outro lado, a teoria da sobrevivência não padeceria desse mesmo problema, porque

ela simplesmente pode pressupor a possessão do corpo do médium por uma mente

desencarnada. Nesse cenário, teoricamente não ocorreria nenhuma aquisição paranormal de

habilidades (no caso, habilidades cênicas) e, principalmente, não haveria o desprezo de um

pressuposto (aparentemente) autoevidente para o desenvolvimento de habilidades, qual seja, a

necessidade de reiterada prática e treinamento. Pela hipótese da possessão, o próprio falecido

manifesta o comportamento peculiar que tinha em vida, logicamente não mais pela manipulação

(psicocinética) do corpo a que estava associado em sua existência terrena, mas agora pela

tomada do comando executivo do organismo do médium. Entretanto, vale a pena recordar que

a teoria da possessão também não está imune de questionamentos, havendo em face dela grande

72 Op. cit., p. 112.

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dificuldade em sua capacidade explanatória [veja comentários nas pp. 52 e segs.].

Além disso, partidários da hipótese de [personificação inconsciente + PES] do médium

podem sustentar que a dramatização verídica ocorrida em alguns casos de mediunidade é

explicável pelo fato de que profundos estados alterados de consciência (tal como o transe)

podem superar os obstáculos físico, cognitivo e emocional que interferem com o

desenvolvimento de uma habilidade. Observe mais uma vez os argumentos de Braude (2003):

Considere, em primeiro lugar, os tipos de coisas que podem interferir com o desenvolvimento de habilidades, mesmo quando temos a oportunidade de praticar.

Para começar, quando aprendemos uma nova habilidade, costumamos fazer uma certa

quantidade de desaprendizagem, pelo menos nos casos de aquisição motora e hábitos

cognitivos que interferem com a manifestação dessa habilidade. Por exemplo, ao

aprender a palestrar de forma mais eficaz, um professor pode ter que superar tendências a murmurar, rir nervosamente, recair numa linguagem técnica obscura,

zombar com desdém para perguntas estúpidas, ou concluir afirmações com a frase

‘você percebe?’ Da mesma forma, um estudante de piano pode ter que desaprender

hábitos há muito arraigados de dedilhado e de pedalar, com o objetivo de avançar para

o nível mais elevado de perícia exigido por uma nova e difícil peça. Além disso, a

aprendizagem de qualquer tipo (seja de habilidades ou de informações) é muitas vezes

altamente carregada de resistências; ela pode ser dificultada por um número infinito

de outros medos, inseguranças e crenças interferentes.

Agora você pode pensar que essas barreiras para aprender uma nova habilidade

somente fortalece a posição sobrevivencialista. Afinal, elas somente aumentam o

número de desafios enfrentados pelo médium (por exemplo) que manifesta as

habilidades de um comunicador sem o benefício da prática. Porém, esses obstáculos físico, cognitivo e emocional podem ser superados de modo relativamente fácil nos

estados hipnóticos ou outros profundamente alterados. Por exemplo, sobre a

influência de hipnotistas de palco, bons sujeitos hipnóticos fazem coisas que eles

nunca fizeram antes – por exemplo, dançar tango, imitar acuradamente seus chefes

(ou vários animais de criação), comportar-se de uma maneira manifestamente

sedutora e mais comumente exibir habilidades criativas e dramáticas que eles

poderiam ser muito inibidos para expressar73.

Na linha desse argumento, podemos acrescentar que durante a explosão do movimento

espiritualista, entre a segunda e a primeira metades dos séculos XIX e XX, a América e a Europa

eram sociedades eminentemente androcêntricas74, como consequência, a supressão do potencial

intelectual e da liberdade criativa das mulheres era comparativamente avassaladora ao que

podemos ainda reclamar nos dias atuais, havendo enormes restrições de suas ações e

73 Op. Cit., p. 116. 74 “Termo cunhado pelo sociólogo americano Lester F. Ward em 1903, está intimamente ligado à noção de

patriarcado, porém não se refere apenas ao privilégio dos homens, mas também da forma como as experiências

masculinas são consideradas como as experiências de todos os seres humanos e tidas como uma norma universal

tanto para homens quanto para mulheres, sem dar o reconhecimento completo e igualitário à sabedoria e

experiência feminina” <http://pt.wikipedia.org/wiki/Androcentrismo> Acessado em 05/01/2015.

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capacidades aos caprichos e desígnios masculinos. Isso talvez explique a superioridade

numérica de médiuns mulheres. Nesse contexto, é mais do que provável, é certo, que para

algumas mulheres a manifestação de personalidades secundárias durante o transe mediúnico

tenha servido de mecanismo para a liberação de sentimentos, emoções e, acima de tudo, de

material altamente criativo em estado de latência, até então suprimidos pelas pressões

socioculturais. Além disso, considerando que o material desenvolvido durante as sessões de

mediunidade é supostamente criado pelos “espíritos” dos mortos, não se poderia atribuir

responsabilidades propriamente as médiuns, impingindo-lhes censuras morais, caso a criação

mediúnica afrontasse padrões perduráveis de comportamento, regras de conduta ou preceitos

éticos bem sedimentados na sociedade patriarcal.

De fato, penso que todos aqueles a par com a literatura de estados dissociativos deveriam

considerar as ilações de Braude empiricamente bem suportadas. Então, neste momento

podemos resumir as coisas assim: estados alterados de consciência não são apenas psi-

condutivos, favorecendo experiências extrassensoriais, mas eventualmente podem também ser

liberatórios, no sentido de retirar os obstáculos físico, cognitivo e emocional castradores do

potencial criativo de um indivíduo.

Porém, opositores da hipótese da sobrevivência ainda têm que explicar a indagação de

Gauld, i.e., como médiuns traduziriam “o conhecimento factual que foram capazes de obter

daquela forma [via PES] em imitações convincentes de pessoas falecidas, bem conhecidas de

seus assistentes”? Resumidamente, o argumento de Gauld é que nenhuma quantidade de

conhecimento factual de per se é suficiente para capacitar alguém a realizar uma imitação

realista de uma pessoa desconhecida. Contudo, penso que o argumento de Gauld ignora uma

desanalogia entre os modos de aquisição normal e paranormal de informações. Vejamos melhor.

Gauld exemplifica dizendo que através de muito estudo coletou grande quantidade de

conhecimento factual sobre as vidas de Henry Sidgwick e F. W. H. Myers, então argumenta que

nenhuma quantidade deste conhecimento factual teria o capacitado a imitá-los. Todavia,

diversamente de como Gauld coletou as informações sobre Sidgwick e Myers, médiuns de

transe geralmente não adquirem informações de forma proposicional, do tipo “o falecido ‘A’

morreu carbonizado após um acidente automobilístico”. Poderia ser bem provável o médium

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apreender essa informação na forma de sensação de queimadura, ou cheiro de algo queimado,

ou então, uma experiência visionária sobre o falecido incendiado dentro de um carro, etc. De

fato, em muitos momentos dos transes (digamos) de médiuns bem autenticados, tais como as

Sras. Piper e Leonard, as personalidades controles manifestaram alucinações que as

capacitaram a adquirir informação realmente verídica. Por exemplo, o controle “Feda”, da Sra.

Leonard, relata sua percepção de como as mensagens dos comunicadores lhe chegam:

[...] eles [os comunicadores] tentam [transmitir as mensagens] por qualquer meio, sensação, visão, audição, mas Feda acha por sensação o mais fácil. Eles podem sugerir

calor ou frio, se o objeto que eles pensam é um metal. Muito é feito por sugestão. Eles

podem fazer Feda sentir uma coisa que é fria ou quente, exatamente como se ela

[Feda] sentisse isso com seus dedos. Você sabe, assim como pessoas hipnotizadas

podem ser sugestionadas.

[...]seu pai [Feda aqui refere-se ao Sr. John, falecido pai do pesquisador psíquico

Drayton Thomas] diz que há momentos em que Feda não pode vê-lo, mas somente

escutá-lo. Ele deseja assinalar que, quando Feda não pode vê-lo, mas somente escutar,

ela deve ter algum meio de localizá-lo. Isso não é, ele pergunta, por uma luz ou

substância enevoada? Bem certo, quando Feda não pode vê-lo, Feda pode ver algo

como uma luz próximo ao assistente ou indo embora. Feda teve duas ou três sessões com uma pessoa antes de ver o comunicador, embora pegasse mensagens por

sensações ou audição75.

Agora, é natural supor que essa percepção verídica em forma de alucinações

(relacionadas a mais de um sentido sensorial) pode capacitar a personalidade de transe a fazer

uma imitação realista de um determinado falecido, sobretudo se as impressões chegam através

de experiências visionárias ou clarividentes, analogicamente a fragmentos de um filme (decerto,

eivado de interferências) a se desenrolar diante das vistas do médium (ou da personalidade

controle).

Além disso, devemos acrescentar que as personalidades controles, da mesma forma que

alguns sujeitos prodígios ou exemplos de savantismo, possuem uma memória absurdamente

retentiva, claramente lhes auxiliando na construção de uma persona assemelhada ao falecido

que alega ser.

De mais a mais, enquanto é razoável admitir que em alguns casos (tais como o de GP)

pôde ter havido qualitativamente uma imitação bem realista de um certo falecido76, alguém,

75 The Modus Operandi of Trance Communication. According to Descriptions recieved through Mr. Osborne

Leonard. In the Proceedings of the Society for Psychical Research [Vol.38, part 107, July, 1928-9]. 76 Porque o comportamento peculiar de GP – tal como como revelado pela médium – aparentemente foi

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todavia, pode palusivamente sustentar que julgamentos de semelhança entre o caráter

manifestado pelo comunicador e aquele que o falecido possuía em vida talvez tenham sido

enviesados por fatores emocionais e crenças pessoais. Assistentes, por exemplo, podem ter seus

julgamentos comprometidos pela perda de um ente querido e o desejo que continuasse vivo

(não importando como, ainda que de uma forma “espiritual”!). Eles podem ainda permitir que

sua crença numa “vida futura”, o medo da morte, ou de uma existência sem significado

propiciem julgamentos tendenciosos, etc. Agora, tudo isso pode aparecer diante dos

investigadores psíquicos de uma forma superficialmente velada, através de relatos que

aparentam ser imparciais, mas que na realidade camuflam elementos psicológicos os quais

enfraqueceriam uma interpretação sobrevivencialista e que poderiam ser descobertos por

investigação psicanalítica somente um pouco mais séria. Esse ponto toca no coração de um

grande problema da literatura sobre a sobrevivência post-mortem, porque partidários da

hipótese S realmente concentram poucos esforços em termos de investigação sobre as

motivações e necessidades dos envolvidos nos casos.

Vamos atacar agora separadamente o ponto em que tipos de habilidades não-

idiossincráticas são exibidas por sujeitos em casos mediúnicos; habilidades como tocar o

mesmo instrumento musical que o falecido dominava, ou escrever poesias, pintar ou mesmo

falar um idioma não-aprendido com semelhante desenvoltura da pessoa falecida. Advirto,

porém, que o acima exposto sobre a habilidade de personificação também pode ser aplicado

aqui (e vice-versa), sendo a divisão entre habilidades idiossincrática (a personificação) e não-

idiossincráticas estabelecida meramente com fins didáticos.

Recapitulando o raciocínio de sobrevivencialistas, lembramos que eles geralmente

argumentam que o médium nunca esteve exposto à habilidade relacionada ao caso (ou se teve,

o tempo de exposição foi mínimo e incompatível com o suposto alto nível de proficiência

exibido). Concluem então que a hipótese de o falecido estar possuindo o organismo do médium

é a opção mais parcimoniosa, justamente porque habilidades são coisas que as pessoas

desenvolvem somente com a prática – ao contrário da mera aquisição de conhecimentos

proposicionais. Para sobrevivencialistas, habilidades não poderiam então ser comunicadas

normal ou paranormalmente, sem a submissão a algum período de prática. Você, por exemplo,

reconhecível em detalhes íntimos, por vários indivíduos e em ocasiões separadas.

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por mais que estudasse tudo a respeito, acumulando grande quantidade de informação, não

conseguiria de uma hora para outra falar japonês com proficiência, tocar piano com

desenvoltura ou imitar um Rembrandt ou Caravaggio sem ter sido exposto a algum processo

usual de prática (de fato, muita prática e treinamento!). Contudo, algumas objeções podem ser

feitas sobre tal argumento. Vejamo-las nos parágrafos que se seguem.

Em primeiro lugar e talvez o mais importante, devemos estar atentos sobre o problema

da confiabilidade dos dados. Alguns casos podem não ter sido bem documentados,

consequentemente falhar em demonstrar que o médium, de fato, teve em seu passado alguma

exposição normal à habilidade apresentada.

Em segundo lugar, enquanto a prática pode ser indispensável para aperfeiçoar uma

habilidade, é questionável que ela seja essencial para alguém manifestar uma habilidade

(mesmo que notável) pela primeira vez. Observe, por exemplo, o caso do garoto húngaro Erwin

Nyiregyhazi. Antes de receber lições formais de música aos cinco anos de idade, com dois já

reproduzia as músicas cantadas para ele. Até o fim do seu terceiro ano demonstrava afinação

perfeita, reproduzindo na gaita qualquer melodia que lhe cantavam; e aos quatro tocava piano

e compunha (Feldman e Morelock, 2003)77. Conforme ressalta Braude (2003): “de fato,

prodígios musicais como Mozart, Mendelssohn e Schubert, e prodígios matemáticos tal como

Gauss, usualmente manifestam excepcionais habilidades antes de aperfeiçoar ou desenvolvê-

las através da prática”78; e para nosso conhecimento "não temos nenhuma razão para pensar

que os sujeitos nos casos de sobrevivência demonstram níveis de perícia mais impressionantes

que (digamos) as primeiras exibições de musicalidade de Mendelssohn". Esse raciocínio

claramente elucida casos como os da médium britânica Rosemary Brown, que alegava canalizar

músicos famosos (a exemplo de Chopin e Schubert). A produção musical da Sra. Brown (apesar

de qualitativamente controversa) chegou a receber reconhecimento que seu estilo e qualidade

guardavam semelhanças com os supostos autores clássicos que alegava canalizar. Seja como

for, o fato é que a médium já havia recebido alguma educação musical (ainda que modesta) e

exposta a concertos e música clássica, o que – para uma pessoa prodígio – já poderia ser

77 Extreme Precocity: Prodigies, Savants, and Children of Extraordinarily High IQ

<http://www.davidsongifted.org/db/Articles_id_10467.aspx> Acessado em 07/01/2015. 78 Op. Cit., p. 117.

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suficiente para exibir níveis de proficiência bem mais elevados do que a maioria das pessoas

com anos de prática.

Em terceiro lugar, excluída a habilidade relacionada ao caso (musical, pictórica,

literária, linguística, etc.), os médiuns desses casos geralmente não fornecem nenhuma outra

evidência que pudesse sugerir que os falecidos (alegadamente canalizados) estão de fato se

comunicando. Por exemplo, a médium estadunidense Pearl Curran, por influência do suposto

“espírito” de uma inglesa do século XVII, autoaclamada Patience Worth, elaborou

extraordinárias, gigantescas e numerosas peças literárias, romances, histórias, poemas, etc., de

forma prodigiosamente fluente, sem erros e revisões, de improviso ou não, com recorrente uso

de locuções dialéticas obsoletas e arcaicas (as quais não eram familiares inclusive para leitores

bem-educados), além de revelar um conhecimento histórico e geográfico corretamente

contextualizado com seus trabalhos. Embora toda a produção de Patience

incomensuravelmente superasse a educação e o conhecimento que Pearl adquiriu normalmente

na vida, Patience nunca forneceu uma única peça de informação capaz de corroborar a sua

alegada existência terrena, ou então, transmitir informações verificáveis de outros “espíritos”,

como é usualmente feito pelas personalidades controles. Além disso, conforme Braude analisa

entre as páginas 133-175 de seu Immortal Remains, o caso todo carrega algumas outras

conjecturas que Patience era um tipo de facilitador para a liberação das mais altas capacidades

criativas, intelectuais e mnemônicas em estado de latência e as quais somente conseguem ser

reveladas através de estados de consciência anormais ou dissociados79.

79 Por exemplo, assim como crianças prodígios, Pearl também tinha problemas na escola, achando seus professores

tediosos ou detestáveis; sua adolescência foi estressante, sendo pressionada a ser mais convencional do que ela

realmente era. Além disso, Pearl era uma pessoa marcadamente inteligente e cujo alto potencial estaria sendo

sufocado por pressões de um contexto social que desprezava os feitos femininos, o que é reforçado pela

personalidade acérbica e não ortodoxa de Patience; a circunstância de o gênio literário de Pearl manifestar-se

somente na fase adulta – diferente dos casos de prodígios regulares que mostram insights de genialidade desde

tenra idade – pode ser explicado pelo fato de Pearl ter tido poucas oportunidades para expressar seus dons literários,

o que somente conseguiu ao ser exposta à tábua ouija, sendo que o contexto espiritualista poderia ter-lhe servido

de cobertura para a responsabilidade pessoal diante da liberação de ideais não ortodoxas e politicamente incorretas

através de Patience; ademais, o nome composto Patience Worth pode revelar a tendência de pacientes com distúrbios de múltiplas personalidades (MPD/DID) escolher nomes aliterativos para suas alteres personalidades.

Por último e para rebater o argumento de que ainda os sujeitos prodigiosos necessitam de um período de gestação

para praticar e treinar seus dons criativos extraordinários (benefício que Patience aparentemente não teve), Braude

adota a conjectura que Patience, antes de sua manifesta aparição, já existia por algum tempo como uma

personalidade alternativa e autoconsciente e que gradualmente desenvolvia seus potenciais cognitivos e suas

peculiaridades (possivelmente a partir do momento que Pearl foi apresentada a ouija, por volta de seus 30 anos de

idade, i.e., um ano antes de Patience publicamente se revelar). Contra o argumento de que seria muito duvidoso

uma personalidade alternativa existir e ainda praticar habilidades literárias por um ano sem ser detectada, Braude

ressalta que em casos de MPD/DID não é infrequente que aqueles que têm um amigo ou cônjuge com MPD

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Em quarto lugar, por todo o presente trabalho estamos discutindo capacidades humanas

inabituais que transcendem os modos usuais de aquisição de informações, então devemos

também estar abertos para o fato de que a exposição a determinados tipos de habilidades pode

assumir um tipo extrassensorial. Por exemplo, sobre o caso Jensen, um doutor da Filadélfia

descobriu que sua esposa era um bom sujeito hipnótico. Após algumas sessões hipnóticas de

regressão, ela começou a falar sueco, manifestando uma personalidade chamada “Jensen”.

Braude então destaca que a grande quantidade de fala sueca somente foi produzida após falantes

dessa língua começarem a frequentar as sessões, o que sugere a influência telepática dos

assistentes sobre o sujeito. Idêntico raciocínio pode ser aplicado para as habilidades literárias

de Pearl/Patience Worth (se bem que aqui as fontes potenciais de informações permanecem até

hoje obscuras)80.

julguem-no confuso, distraído, excêntrico, inconstante e com problemas de humor sem dar conta que seu amigo

ou companheiro padece de dissociação da personalidade. Então algo similar poderia ter acontecido com Pearl,

ainda que a massa dos testemunhos não ratifique comportamentos inabituais ou estranhos por parte dela. 80 Idem, p. 125.

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4. Casos mediúnicos: Sobrevivência post-mortem (S) ou Living Agent Psi (LAP)?

No presente trabalho expus o tanto quanto possível as pressuposições que subjazem as

duas hipóteses aqui rivalizadas, além de apresentar resumidamente os principais argumentos

contra e a favor de S ou LAP no que concerne aos casos de mediunidade. Pelo que observamos,

nos casos em que uma explicação normal é insuficiente, os dados de mediunidade infelizmente

não permitem escolhas claras sobre qual hipótese paranormal deve responder pela

fenomenologia apresentada. A principal razão disso decorre de nosso ainda empobrecido

conhecimento sobre o funcionamento de psi, mais especificamente sobre suas limitações (se é

que existem).

Se nós considerarmos a psi ilimitada (ou muito poderosa) em escopo e refinamento, de

um lado, isso capacitaria o médium a proezas magníficas, fazendo o apelo a ação de uma

inteligência desencarnada algo não impossível, porém gratuito para explicar os casos de

mediunidade. Por outro lado, e ironicamente, quanto mais admitirmos uma psi superpoderosa,

maiores dificuldades teremos de adequá-la a um modelo fisicalista, e nesse caso abrimos brecha

para a existência de mentes desencarnadas, inclusive com poderes para influenciar o nosso

mundo terreno (como a mente/cérebro de médiuns).

Do lado reverso da moeda, tivemos também a oportunidade de analisar o Argumento da

Complexidade Restritiva de Stephen Braude (p. 75 e segs.), e penso que esse filósofo

desenvolveu o mais claro (e talvez cogente) raciocínio sobre a existência de limites a psi, ao

menos no plano prático de nosso dia-dia. O argumento contextualiza os esforços psi dentro do

“fogo cruzado” de uma gigantesca rede de interações causais na qual o sucesso do

funcionamento psíquico estaria contrabalanceado com inúmeros fatores interferentes e de

bloqueio, sejam eles psi e não-psi, intencionais e não-intencionais, ocultos ou aparentes. Agora,

isso não nos ajuda muito a escolher uma das hipóteses aqui rivalizadas, pois tanto a interação

psíquica entre vivos (médium e assistentes, por exemplo) e aquela entre o médium e o falecido

estariam sujeitas as mesmas causas interferentes dentro daquela enorme rede de causalidades,

incluindo formas de defesa psíquica e, principalmente, interferências não-relacionadas, mas

que eventualmente cruzam o caminho, involuntariamente prejudicando o sucesso-psi de

alguém.

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Sob essa perspectiva, a qual parece mais adequada a elucidar os sucessos e fracassos

dos médiuns, vemos que os dados de mediunidade são mutuamente compatíveis com as

hipóteses S ou LAP. Do ponto de vista da teoria da sobrevivência, por exemplo, as influências

telepáticas do falecido sobre o médium estariam diluídas numa grande rede de elementos

intervenientes, sejam eles em formas de psi (tais como as influências telepáticas dos assistentes

ou das demais pessoas vivas e, eventualmente, a influência de outros mortos também desejos

em se comunicar) e não-psi (a exemplo da presença de disposições físicas, psicológicas e

circunstanciais refratárias recaídas sobre o médium, como a fadiga, estresse mental, dor de

cabeça, problemas gerais de saúde, humor não favorável, ansiedade, preocupações financeiras

ou de relacionamentos pessoais ou de trabalho, demais eventos aleatórios que perturbam a

concentração ou mentalização, a sugestionabilidade do estado de transe, entre tantas outras).

Nesse cenário, é de muito bom senso concluir que o tateio mental do médium, por muitas

vezes, fique perdido diante de inúmeros elementos interferentes. Frases sem sentido e

fantasiosas podem ser confundidas como se provenientes do pretenso falecido, mas que não

passam de interferências do material produzido nas camadas subliminares da consciência do

médium (pensamentos, ideais e devaneios, etc.). Além disso, informações sensorialmente

“pescadas” ou mesmo adquiridas extrassensorialmente de pessoas vivas podem também ser,

com equívoco, atribuídas ao falecido. Todavia, naqueles momentos mais favoráveis, nas horas

de baixo "ruído", quando a interação médium-falecido vencesse o poder de interferência,

suplantando (ainda que momentaneamente) a concorrência dos incontáveis obstáculos, uma

límpida mensagem post-mortem poderia emergir em nosso mundo terreno.

Decerto sabemos que muitas personalidades mediúnicas podem ser facilmente rejeitadas

como produtos do inconsciente do médium, dramática e criativamente desenvolvidas dentro de

sua psique, ainda que de forma não-intencional, e com a ajuda (ou não) de capacidades

extrassensoriais (por exemplo, a maioria dos pesquisadores psíquicos considera os controles

“Phinuit” e “Feda” como personalidades secundárias das médiuns Piper e Leonard,

respectivamente). Por outro lado – e é o que já dissemos ser o aspecto cativante sobre a

mediunidade – é a presença de uma quantidade de casos que podem ser classificados como

formidáveis e os quais deveriam fazer o cético mais racional a, no mínimo, suspender sua

admissão de que todas as personalidades mediúnicas não passam de fases ou elementos da vida

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psicológica do médium81.

Não por outra razão partilho do entendimento de Kelly (2010) quando diz que

Sem o conhecimento de todos os limites de psi ‘normal’ [“normal” para distinguir a psi de casos mediúnicos], era impossível dizer que as declarações de um médium

tinham atravessado esses limites e estabelecido a sobrevivência de uma pessoa

falecida. Tornou-se, e permanece até hoje, em grande parte uma questão de julgamento pessoal se alguém decide que as declarações de um médium são evidência para psi

entre pessoas vivas ou para psi entre o médium e uma pessoa falecida82.

De fato, desde o final do século XIX, os pioneiros da pesquisa psíquica reconheceram

esse impasse, então desenvolveram experimentos para reduzir as chances de o funcionamento

psíquico entre vivos responder pelas informações anomalamente adquiridas por médiuns, tais

como as (1) sessões por procuração e as (2) correspondências cruzadas. Além disso, voltaram

suas atenções aos (3) casos de comunicadores drop-in (p. 81/82; 18/19; e 47, respectivamente).

Enquanto em (2) e (3) a motivação para as comunicações parecia ser mais forte por parte da

pessoa falecida do que por quaisquer pessoas vivas, em (1) parecia haver uma redução das

chances de ser estabelecido um "link" entre o médium e as pessoas vivas que conheciam as

informações contidas nas comunicações (Kelly, idem). Porém, desgraçadamente nenhum desses

três tipos de caso é capaz de nos proporcionar escolhas inequívocas entre S ou LAP, sobretudo

à luz: (a) da possibilidade de que o simples interesse do médium em contatar os mortos já pode

ser suficiente para capacitá-lo a adquirir anomalamente informações sobre qualquer falecido

(enfraquecendo S diante de (2) e (3)); e (b) da evidência de que a psi é independente da

complexidade da tarefa (enfraquecendo S em face de (1)).

Agora, apesar de nossa atual incapacidade de imaginar um teste que nos capacite

determinar a fonte das informações anomalamente adquiridas por médiuns, não deveríamos nos

sentir desestimulados, muito menos partilhar do pessimismo de Rogo (1991) de que

[...]a maior mística da controvérsia da sobrevivência é exatamente esta

impenetrabilidade fundamental. Por causa de sua própria natureza, duvido que a

81 No presente trabalho citei alguns, tais como as personalidades da menina Katherine, de Edgar Vandy, de George

Pelham, de Runki, do tenente HC Irwin, do Sr. Talbot e do xadrezista Maróczy. Mas o número de casos acumulados

de fato é considerável, principalmente quando consideramos os arquivos da Society for Psychical Research, de

Londres. 82 Some Directions for Mediumship Research. Journal of Scientific Exploration, Vol. 24, No. 2, pp. 247–282, 2010.

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questão seja algum dia resolvida para a satisfação de todos. Esse tempo somente virá quando descobrirmos um método confiável pelo qual possamos manter contato

sistemático com os mortos e esse dia provavelmente nunca chegará.

Conforme destacam, respectivamente, Kelly (2010) e Gauld (1995), "claramente, há

muita coisa que poderíamos fazer para avançar a pesquisa sobre mediunidade tanto

metodológica quanto teoricamente" e "a pesquisa da imortalidade não é falta de coisas a fazer,

mas falta de fundos, que acarreta necessariamente falta de pessoal".

Rogo, por outro lado, parece acertar quando diz que "a melhor chance da parapsicologia

seria explorar mais aquelas linhas de indícios já em consideração". De fato, insistir nos tipos

de experimentos (1), (2) e (3) acima poderia nos proporcionar novos insights para lidarmos com

o problema da fonte das informações. Kelly (2010), por exemplo, aposta que seu teste com

sessões por procuração83 "sugere que podemos voltar a produzir resultados significativos com

[estes tipos de] pesquisas que podem, eventualmente, nos colocar em uma melhor posição para

desenvolver novas ideias para avaliar a hipótese da sobrevivência". Ao mesmo tempo,

poderíamos propor variações sobre aqueles três modelos experimentais e criar outros que

porventura tenham a nos contar muita coisa. Por exemplo, Gauld imagina experiências

direcionadas a obter comunicação mediúnica de pessoas vivas. Diz esse psicólogo:

Os comunicadores vivos poderiam defrontar-se com as mesmas dificuldades e cair nos mesmos pantanais que os desencarnados; e então poderíamos obter algumas pistas

sobre os mecanismos da comunicação, a sustentabilidade do que chamei de teoria da

influência [sobre essa teoria, veja p. 53 e seg.].

Poderíamos multiplicar trabalhos como os do Windbridge Institute84, fundado por Mark

Boccuzzi e a Dra. Julie Beischel, certificando sujeitos que efetivamente fornecem informações

anomalamente adquiridas sobre pessoas falecidas. De fato, um dos problemas da crítica contra

a sobrevivência é que algumas vezes pesquisadores e teóricos generalizam conclusões sobre

sujeitos que nunca demonstraram aquisição anômala de informações sobre a vida de pessoas já

falecidas.

83 No qual os assistentes são cegamente avaliados sobre suas leituras, da mesma forma que outras cinco leituras

de controle. 84 http://www.windbridge.org/

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Ainda, poderíamos propor uma aperfeiçoamento de outros tipos de modelos

experimentais que também confrontam as hipóteses S e LAP. Por exemplo, Ian Stevenson et.

al. (1989)85 relatam que o ex-presidente da Society for Psychical Research, Robert H. Thouless,

concebeu um teste que, usando palavras-chave de seu exclusivo conhecimento, codificou duas

mensagens as quais então publicou. Thouless, enquanto vivo, convidou médiuns ou sensitivos

para tentar descobrir as palavras-chave, declarando sua intenção de comunicá-las, se pudesse,

após a sua morte. Nesse experimento, tal como em outros de mensagens cifradas, as atenções

ficam demasiadamente voltadas para um material verbal muito específico (as palavras-chave)

que, no final, pode ser contraproducente ou irrelevante. Contraproducente porque exige que,

após a morte, tenhamos guardado na memória uma informação muito específica, e não sabemos

que tipos de alterações a transição da morte – em hipótese – poderia provocar em nosso

funcionamento mental, consequentemente, não sabemos que tipos de memórias teríamos maior

probabilidade de reter (memória episódica, proposicional, etc.). Irrelevante porque, ainda que

o médium não consiga obter as palavras-chave, o fato de falhar repetidamente em adquirir via

PES quaisquer informações sobre o sujeito-alvo (quando vivo) e drasticamente passar a ter

ostensivo sucesso (após a morte deste), não faz do caso um fracasso. Muito pelo contrário,

resultados assim têm muito a nos dizer e, a princípio, favorecem uma visão sobrevivencialista.

Com isso em mente, poderíamos então projetar uma série de sessões por procuração, com uso

de protocolos de cegamento, em que médiuns autenticados seriam convidados a fazer repetidas

leituras psíquicas de pessoas moribundas, antes e depois da morte destas, contrastando o grau

de sucesso das leituras. Uma diferença significativamente positiva para acertos-post-mortem

talvez indique um papel ativo por parte do falecido (acertos incluem não apenas a avaliação de

material verbal, mas também a avaliação sobre a eventual manifestação de elementos do caráter

e de habilidades).

Paralelamente, poderíamos também apresentar a tais médiuns uma sequência de testes

psíquicos estimulantes (mas que não demandam a intromissão direta de alguém falecido), como

forma de averiguar o alcance e o refinamento de sua PES (por exemplo, em investigações

policiais e na procura de pessoas desaparecidas).

85 Two Tests of Survival After Death: Report on Negative Results. Journal of the Society Psychical Research [vol.

55, n. 815].

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Do mesmo modo, e dada a evidência (ainda que anedótica) sobre obsessão, médiuns

poderiam tentar contato com supostos desencarnados que eventualmente guardam relação

parasitária com pacientes psiquiátricos (que repercussões haveria para a questão da

sobrevivência um processo de cura desse jeito?).

Igualmente, poderíamos nos debruçar sobre o problema de múltiplas fontes de

informação (MFI), solicitando dados (a) os quais os comunicadores acreditam que apenas eles

tinham conhecimento (quando vivos), mas que possam ser posteriormente verificados pelos

pesquisadores (vide o caso do livro mencionado pelo comunicador Sr. Talbot – p. 23); e (b)

dados de conhecimento privado entre o falecido e uma determinada pessoa. Ora, todos nós

interagimos socialmente com vários indivíduos, em diversos lugares, em diferentes momentos

e ocasiões, seja em casa, na academia, no trabalho, na rua, na internet, etc. Assim,

frequentemente, interagimos e travamos conversas com alguma pessoa sem que outras de

círculos de convivência distintos tenham conhecimento sobre o que foi feito ou dialogado.

Decerto, muito daquilo que testemunhamos e conversamos (ainda que sobre coisas banais e

irrelevantes) fica acidentalmente restrito a um grupo de convivência. Eu, por exemplo, posso

me lembrar de certos acontecimentos e conversas com (1) colegas de trabalho, (2) com colegas

de pesquisa psíquica e (3) com meus familiares os quais os sujeitos desses três círculos sociais

(a exceção de mim) não têm conhecimento sobre o que foi feito ou dialogado nos meus outros

círculos sociais que eles não pertencem. Então, se eu sobrevivesse à minha morte corporal e

fosse o tipo de mente desencarnada capaz de influenciar o cérebro/mente de um médium, seria

interessante transmitir através dele mensagens de múltiplos círculos sociais os quais eu

pertencia, forçando os partidários de LAP a postular que o médium fosse capaz de estabelecer

vínculos psíquicos com, no mínimo, três fontes de informação, enquanto para S bastaria ser

postulado somente o vínculo médium-falecido. Assim, ainda que o funcionamento psíquico do

médium possa dar conta de MFI, à luz do Argumento da Complexidade Restritiva existe uma

clara linha argumentativa favorável à hipótese S e que merece ser explorada (para mais, veja p.

79/80).

Além disso, melhorias na confiabilidade dos julgamentos sobre as mensagens são

sempre bem-vindas, como, de fato, os estudos recentes têm realizado (aplicação de métodos

quantitativos, protocolos com cegamento, critérios para cômputo de acertos e erros, leituras de

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controle, etc.) [por exemplo, Beischel, J., e Schwartz, G. E (2007)86; Roy, A. E. e Robertson, T.

J. (200187, 200488, Kelly, E. W. (2010)89].

Ainda que jamais sejamos sorteados pela eventualidade da vida com aquilo que Braude

(2014) considerou o caso idealmente favorável à sobrevivência90, penso que se conseguíssemos

(a) acumular um grande conjunto de experimentos sobre mediunidade que favorecessem, ainda

que em pontos isolados e em diferentes graus, uma interpretação sobrevivencialista (em

detrimento ao funcionamento psíquico entre vivos) e; b) conjugássemos tais pesquisas a outras

fontes de evidência [tais como as experiências de quase-morte (EQMs), de saída do corpo

(EFCs) e de visões no leito de morte (Deathbed Visions), casos de Aparições dos mortos91 e de

crianças que alegam recordar uma vida passada92, além dos estudos psicofisiológicos de estados

alterados de consciência e sobre a psi “normal” (i.e., fora de contextos mediúnicos)], teremos

86 Anomalous information reception by research mediums demonstrated using a novel triple-blind protocol.

Explore, 3, 23–27. 87 A double-blind procedure for assessing the relevance of a medium’s statements to a recipient. Journal of the

Society for Psychical Research. 2001;65(3):161-174. 88 Results of the application of the Robertson-Roy protocol to a series of experiments with mediums and

participants. Journal of the Society for Psychical Research. 2004;68(1):

18-34. 89 Op. Cit. 90 Para Stephen Braude (2014) um caso ideal para a sobrevivência “seria [...] aquele que, embora talvez não

conclusivamente excluísse os apelos ao funcionamento psíquico entre vivos, não obstante esticaria essa hipótese

ao ponto de ruptura - aquele no qual até mesmo as pessoas simpáticas a essas conjecturas paranormais estariam

inclinadas a jogar a toalha. Então ele enumera as seguintes características para o caso idealmente favorável à

sobrevivência, a saber: 1. O caso seria etiologicamente distinto dos casos de DID ou de outras desordens

psicológicas. Por exemplo, os médiuns não devem ter um histórico documentado de psicopatologia [...]. 2. As manifestações do falecido (personalidade prévia ou comunicador desencarnado) não devem, à luz de uma

competente e profunda análise psicológica, servir a quaisquer aparentes necessidades psicológicas dos vivos. 3.

Essas manifestações devem fazer mais sentido (ou melhor, só fazer sentido) em termos de agendas ou interesses

razoavelmente atribuíveis ao falecido. 4. As manifestações devem começar, e devem ser documentadas, antes do

sujeito (ou qualquer pessoa no círculo de conhecidos do sujeito) ter identificado ou pesquisado a vida do falecido.

5. O sujeito deve fornecer fatos verificáveis e íntimos sobre a vida do falecido. 6. A história e o comportamento

do falecido (como revelados através do sujeito) devem ser reconhecíveis, em detalhes íntimos, por vários

indivíduos, de preferência em ocasiões separadas. 7. O sujeito deve também exibir algumas das habilidades ou

traços idiossincráticos do falecido. 8. Essas habilidades ou características devem ser tão estranhas para o sujeito

quanto possível, por exemplo, provir de uma cultura significativamente diferente. 9. As habilidades associadas ao

falecido devem ser de um tipo ou de um grau que geralmente requerem prática, e que são raramente (ou nunca) encontradas em prodígios ou savantes. 10. Para que os investigadores verifiquem as informações comunicadas

sobre a vida do falecido, deve ser necessário acessar múltiplas fontes física, cultural e geograficamente afastadas. 91 Excelentes revisões gerais, traduzidas para o português, sobre o tema de Aparições de pessoas vivas, moribundas

e mortas podem ser encontradas em Andrew Mackenzie, Fantasmas e Aparições (editora Pensamento), e G. N. M.

Tyrrell, Alucinações e Aparições (editora Ulisseia). 92 Para mais, veja diversos estudos do prof. Ian Stevenson, alguns deles já traduzidos para o português pela editora

Vida e Consciência. Além disso e principalmente, existem diversos artigos a respeito que podem ser encontrados

gratuitamente pela internet, inclusive no site da Division of Perceptual Studies, da Universidade da Virgínia, EUA.

<http://www.medicine.virginia.edu/clinical/departments/psychiatry/sections/cspp/dops/home-page>

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boas chances de nos aproximar a uma resposta segura a respeito do impasse S vs. LAP.

Mas para isso é necessário muito dinheiro nessas áreas de pesquisa, além da conjugação

de esforços semelhantes àqueles empreendidos pelos pioneiros da pesquisa psíquica. De fato,

nas primeiras décadas de estudos sobre a mediunidade, os esforços não vinham apenas dos

pesquisadores, mas também de médiuns e assistentes enlutados; quando todos compreendiam

ao que Myers classificou como “a questão que mais importa ao homem”93. Convergentemente,

Kelly (2010) relata que:

Uma das impressões mais fortes que eu tomo a partir dos relatórios das sessões por procuração das décadas de 1920 e 1930 é o quanto esforço de equipe essa pesquisa

teve - por parte dos médiuns, que estavam dispostos a persistir ao longo de um

período de anos cooperando com os investigadores; por parte dos investigadores,

que também eram os assistentes por procuração e que desenvolveram uma relação

íntima e agradável com os médiuns ao realizar regularmente com estes sessões durante anos; e por parte dos assistentes enlutados que, como Oliver Lodge (1935:11)

observou, compreendiam ‘a importância de uma visão mais ampla do que a sua

própria e imediata tristeza e necessidade’. Com tal esforço colaborativo, podemos

mais uma vez produzir uma importante evidência de mediunidade, talvez até mesmo

algumas que poderiam em última análise mover-nos para além do impasse

sobrevivência/super-psi (grifamos).

Mas infelizmente não temos nos dias atuais o mesmo elevado nível de

comprometimento que os pioneiros tiveram. “Há menos pessoas ricas e com tempo livre, e

algumas das investigações que seriam hoje desejáveis requereriam equipamento científico

sofisticado e dispendioso” – adverte Gauld. Além disso, – e prossegue esse psicólogo:

Os governos e agências que concedem verbas não têm fundos suficientes sequer para os problemas deste mundo, e certamente não subsidiarão o estudo dos problemas

relativos ao outro. Se apenas um número suficiente de indivíduos interessados pudesse

se reunir e contribuir com seu dinheiro e seu tempo, poderíamos esperar um progresso

harmonioso, em vez de fragmentário.

Fecho aqui este trabalho com o sentimento de ter resumido as principais questões

relacionadas à interpretação de casos de mediunidade, especificamente nos episódios em que

uma explicação “normal” é prontamente afastada. Informo ainda que tenho a meta de

constantemente revisar e ampliar o presente trabalho. Então, continue acompanhando o site

debatepsi.com para mais novidades.

93 A Personalidade Humana, p. 11.

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BIBLIOGRAFIA

A bibliografia está pontualmente indicada nas notas de referência.