Peça radiofônica e plasticidade verbal: investigação e composição de experimentos...

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LUCAS MARTINS NÉIA PEÇA RADIOFÔNICA E PLASTICIDADE VERBAL INVESTIGAÇÃO E COMPOSIÇÃO DE EXPERIMENTOS RADIOTEATRAIS LONDRINA 2013

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LUCAS MARTINS NÉIA

PEÇA RADIOFÔNICA E PLASTICIDADE VERBAL INVESTIGAÇÃO E COMPOSIÇÃO DE EXPERIMENTOS RADIOTEATRAIS

LONDRINA

2013

LUCAS MARTINS NÉIA

PEÇA RADIOFÔNICA E PLASTICIDADE VERBAL INVESTIGAÇÃO E COMPOSIÇÃO DE EXPERIMENTOS RADIOTEATRAIS

Trabalho desenvolvido para conclusão do curso de

Artes Cênicas da Universidade Estadual de

Londrina; apresentado como requisito para

obtenção do título de Bacharel em Artes Cênicas.

Orientadora: Prof.a Dr.

a Heloisa Helena Bauab

LONDRINA

2013

LUCAS MARTINS NÉIA

PEÇA RADIOFÔNICA E PLASTICIDADE VERBAL INVESTIGAÇÃO E COMPOSIÇÃO DE EXPERIMENTOS RADIOTEATRAIS

Trabalho desenvolvido para conclusão do curso de

Artes Cênicas da Universidade Estadual de

Londrina; apresentado como requisito para

obtenção do título de Bacharel em Artes Cênicas.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________

Prof.a Dr.

a Heloisa Helena Bauab

Departamento de Música e Teatro

(MUT – UEL)

________________________________________

Prof.a M.

e Sandra Parra Furlanete

Departamento de Música e Teatro

(MUT – UEL)

________________________________________

Prof.a Dr.

a Sonia Pascolati

Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas

(LET – UEL)

Londrina, 28 de novembro de 2013.

A todos aqueles que, de alguma forma, já se lançaram

ao desafio de tornarem reais os seus devaneios.

(Se obtiveram sucesso ou não, aí já é outra história...)

AGRADECIMENTOS

Aos meus amados pais, Antônio Néia e Margarida

Martins Néia, que não só me incentivaram e estiveram ao meu

lado nestes quatro intensos anos, como por toda uma vida; este

trabalho é o fruto da nossa vitória! Ao meu querido Pic, que

iniciou esta jornada comigo, mas, infelizmente, não pode

chegar até aqui. E à minha Magali, companheirinha inseparável

e remédio para meus males quando estou em Jacarezinho. À minha

prima, Maria Lúcia Giavina de Almeida Leite, pela amizade e

cumplicidade de velha data – e que se manteve mesmo a

distância.

À minha orientadora, Heloisa Bauab. Não somente pelo

empenho e afinco com que se dedicou a este trabalho, mas por

ter sido meu alicerce no curso de Artes Cênicas desde meu

primeiro ano de graduação e ter me permitido estar ao seu lado

em projetos e monitorias. Imensurável é o aprendizado que tive

contigo, Bauab – equivalente a toda a admiração que tenho por

ti!

À professora Sandra Parra, imprescindível na

construção deste trabalho; por estar sempre disposta a ouvir

minhas inquietações; pela generosidade de suas respostas e

pelas palavras sempre francas e sinceras – e por dar à

Clarinha o título de primeiro bebê que peguei no colo!

À professora Sonia Pascolati, responsável por minha

primeira incursão na pesquisa acadêmica; por sempre me receber

com um abraço afetuoso e confiar no meu trabalho – apesar de

meus procedimentos caóticos.

À Janete El Haouli, por ter me recebido de braços

abertos na TOCA e me fornecido vasto material para pesquisa

acústica.

Aos grandes e queridos professores que marcaram tanto

a minha trajetória na Universidade quanto o meu coração – sim,

sou descaradamente piegas: ao José Francisco Quaresma, à

Raimunda de Brito Batista e à Adriane Gomes, pessoas que não

me deixaram esmorecer em momentos de dificuldade. À Ceres

Vittori, à Fátima Carneiro dos Santos, ao Jailton Santana, à

Thais D'Abronzo, ao Mauro Rodrigues e à Cláudia Saito,

docentes também importantes nesta jornada. À Silvia Maria

Rodrigues, pelas conversas, risadas e acolhidas constantes na

secretaria do MUT.

À Camila Sanae, ao Jeferson Mendes, à Otávia Silla, à

Paula Regina e à Vanessa de Campos, meus queridos colegas e

grandes amigos, sempre dispostos a ajudar no que der e vier.

Às que não chegaram até aqui de "corpo presente", tenham a

certeza de que muito deste trabalho tem um pouquinho de vocês,

minhas lindas.

A toda a gente louca que eu conheci nessa Londrina

falabelliana: à Luciane Pedroso, à Sheila Mariano, à Leticia

Botelho, à Melina Uchida; à Nádia Ferrari de Abreu – que diria

que nos reencontraríamos nestas circunstâncias, minha filha?

Ao Giovanni Orsi. Ao Alan Macedo Gomes.

Ao Alef Garcez, à Amanda Tamarozzi, à Carol

Martineli, à Gisele Brito, ao Lucas Brandão, à Renata Torres e

à Thay Alves, companheiros da Primeiro Encontro. Ao Riccardo

Paglia, a quem muito devo pela oportunidade de estágio, e à

grande Edna Aguiar, belíssima referência na minha formação

teatral. À Meire Valin, sempre doce e com um sorriso de

esperança para nos dar. À minha turminha do Colégio José de

Anchieta, que me deu a oportunidade de encenar um Shakespeare

– e aos queridos Amanda Micheletti e Leonardo Capeletti

Ferreira.

E, por último – mas nunca, jamais menos importante

(pelo contrário!): a todos os colegas atores que aceitaram

participar dessa empreitada comigo. À Amarilis Irani, à Ananda

Ribeiro, à Camila Sanae – olha ela aí de novo! –, ao Danilo

Gomes Neiva, ao Gabriel Franco Rodrigues, ao José Paulo

Brisolla, à Julia Versoza, ao Marco Antonio Paixão, à Mary

Delgado, à Sofia Pellegrini, à Tainara Caroline e à Tica

Mehuta. Este trabalho não seria absolutamente nada sem a

dedicação, a disponibilidade e o carinho de todos vocês. À

Anna Dulce, uma querida que caiu de paraquedas na minha vida e

me ensinou diversos exercícios de voz e respiração. À Nani

Vasques, pelo delicado olhar sobre o trabalho – demonstrado

através das ilustrações. Ao João Lopes, grande figura da Rádio

UEL, sempre receptivo para as gravações e para uma boa prosa

sobre os tempos em que ele mesmo produzia radionovelas! Ao

Eddy Ieger, por nos ter aberto as portas do Estúdio de Música

da UEL. E ao Bruno Cardial, estagiário do Laboratório de

Radiojornalismo da UEL, que chegou aos quarenta e cinco do

segundo tempo para auxiliar na edição de As rubianadas.

A todos, enfim, com quem cruzei por estas estradas –

ora tortuosas, ora de tijolos amarelos. E continuo a busca

pelo pote de ouro ao final do arco-íris!

Eu queria então escovar as palavras para

escutar o primeiro esgar de cada uma.

Manoel de Barros

NÉIA, Lucas Martins. Peça radiofônica e plasticidade verbal:

investigação e composição de experimentos radioteatrais. 2013.

98 p. Trabalho de conclusão de curso (graduação em Artes

Cênicas) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2013.

RESUMO

A peça radiofônica, na condição de território de exploração da

plasticidade verbal, é a proposta desta pesquisa. Investiga-se

tanto o histórico do gênero e seus preceitos estéticos como,

na prática, a composição de experimentos radioteatrais a

partir de diferentes materiais textuais. Nesse ínterim, toma-

se a palavra como elemento plástico: palavra que pode ser

esculpida, moldada, trabalhada como ação via elocução –

resultado do encontro do vocábulo com o universo peculiar de

seu emissor.

Palavras-chave: Peça radiofônica. Experimentos radioteatrais.

Elocução.

NÉIA, Lucas Martins. Radio drama and verbal plasticity:

research and composition of radiotheatrical experiments. 2013.

98 p. Trabalho de conclusão de curso (graduação em Artes

Cênicas) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2013.

ABSTRACT

The proposal of this research is the radio drama while being

explored in the field of verbal plasticity. It is investigated

the historic of the genre and its asthetical precepts, as well

the composition of radiotheatrical experiments from diferent

textual materials. In the meantime, the word is taken as a

plastic element: the word that can be carved, molded and

worked as action by elocution - the result of the gathering

between the word and the particular universe of its

transmitter.

Key-words: Radio drama. Radiotheatrical experiments.

Elocution.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Pedi o oceano .................................. 49

Figura 2 – Janela para Juparassu .......................... 70

Figura 3 – Telegrama ...................................... 76

Figura 4 – Ba-o-Bárbara ................................... 85

Figura 5 – Azul como a, azul como a ....................... 90

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................ 12

1 FICÇÃO RADIOFÔNICA: UM APANHADO HISTÓRICO ............... 16

1.1 A FICÇÃO RADIOFÔNICA NO BRASIL ............................. 27

2 ELOCU(A)ÇÃO: DELÍRIOS DE UMA VOZ-CORPO .................. 33

2.1 PARA QUE O CORPO SONHE EM FORMA DE VOZ ....................... 34

2.2 PALAVRA E VOZ, O ENCONTRO DE MUNDOS ......................... 36

2.3 SOPROS ................................................. 41

2.4 RÉQUIEM PARA SÔNIA ....................................... 45

3 RUBIANADAS .............................................. 50

3.1 ACERCA DE RUBIÃO ......................................... 51

3.2 DA ADAPTAÇÃO ............................................ 52

3.3 DO TRABALHO COM OS ATORES .................................. 58

3.4 DOS RECURSOS E TÉCNICAS ACÚSTICOS ........................... 59

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................... 63

REFERÊNCIAS ............................................... 65

APÊNDICES ................................................. 69

APÊNDICE A – TEXTO AS RUBIANADAS ............................... 71

APÊNDICE B – CARTAZ AS RUBIANADAS ............................... 95

APÊNDICE ACÚSTICO ......................................... 96

APÊNDICE ACÚSTICO A – AS RUBIANADAS ............................. 97

INTRODUÇÃO

[...] me vejo em torno de um antigo aparelho de

rádio ouvindo e imaginando personagens, situações,

cenários, tempos e histórias (SPRITZER, 2005, p.

19).

Este trabalho nasceu de minhas inquietações acerca do

mundo da palavra. No curso de Artes Cênicas, creio que só

tomei um contato mais denso com este universo em momentos

pontuais; exemplos destes momentos: as aulas de Literatura

Dramática, ministradas pela professora Sonia Pascolati em meu

primeiro ano; a iniciação científica que desenvolvi –

novamente Sonia em minha vida, agora como orientadora! –

acerca de elementos da poética do dramaturgo italiano Luigi

Pirandello presentes no texto dramático Pirandello nunca mais,

do brasileiro Ricardo Hofstetter; e quando ingressei na

Oficina de Dramaturgia e Roteiro, coordenada pela professora

Heloisa Helena Bauab. Nestas instâncias, comecei a me

interessar pelo métier da carpintaria do verbo.

A Oficina fora meu "bálsamo benigno" durante três

anos de graduação. Por muitas vezes, sentia-me deslocado das

propostas sugeridas nas disciplinas regulares; ali, no

entanto, encontrava-me impelido a mergulhar sem culpa no mundo

das palavras. Foi aqui que constatei que não há uma receita a

ser seguida para dar forma a um devaneio. As palavras têm sua

própria voz, ditam seu ritmo; não devemos domá-lo – nem nos é

dado este poder -, mas sim navegar para além dele; buscar o

extracotidiano das palavras: eis um dos desafios.

13

Veio ao encontro destas ideias uma citação feita pela

professora Sandra Parra Furlanete durante uma conversa

informal em determinada rede social – isto quando eu ainda

moldava o projeto deste estudo – sobre como lidar com as

palavras em determinadas situações: elas são deliciosas; é

necessário, porém, saber ouvir seu fluxo para, aí sim, tentar

enquadrá-las em propostas e pensamentos. Não é uma questão de

domínio, mas de compreensão e troca.

Muitos destes pontos só se tornaram evidentes para

mim no correr de 2012, quando cursava a terceira série de

Artes Cênicas. Passei a me interessar por esse jogo de sedução

com as palavras e suas proposições de articulações poéticas

devido às disciplinas Direção Teatral I e Iluminação; ao

pensar em um mapa de luz para cena desenvolvida durante a

primeira matéria citada, lancei-me ao desafio de compô-lo a

partir dos acontecimentos e situações presentes na estrutura a

qual eu possuía. Para tal, iniciei uma escrita cênica. Com

este exercício, acredito que expandi meus horizontes no que

tange a questões ligadas a dramaturgia e composição.

Meu desafio, então, era: como partir da palavra para

construção de algo vinculado às Artes Cênicas que justificasse

este trabalho?

Ao refletir sobre o assunto, veio-me à mente o

trabalho da professora Bauab vinculado ao meio radiofônico.

Ora, o rádio me pareceu um meio extremamente propício aos meus

anseios, ao teor desta pesquisa no universo das palavras –

além de, a mim, soar extremamente atraente toda a aura "retrô"

que paira sobre o veículo.

Segundo Bauab (1990, p. 106), o ouvinte radiofônico

está inserido em um tempo-e-espaço autônomo: não há um objeto

específico ligado ao que está sendo dito para ser contemplado

pela visão, o que acarretará em um trânsito livre de imagens e

sensações. É exatamente por incitar isto que os sons têm o

poder de ir à mais obscura gaveta da memória.

14

Este fenômeno, esta característica primordial do

rádio, me apaixona. Esta possibilidade de falar a

cada um com a sua particularidade e ao mesmo tempo

a todos que estão ouvindo rádio. E na certeza de

que estes muitos não ouvem a mesma coisa, não ouvem

a mesma voz, não veem o mesmo corpo e se sentem

provocados nas suas memórias e nas suas imagens, de

maneiras totalmente diversas (SPRITZER, 2005, p.

21).

Foi por estes aspectos que me vi estimulado a

articular para as ondas radiofônicas uma "engenharia do verbo

e do som" (BAUAB, 1990, p. 105) enquanto experiência estética.

Ansioso como sou, recrutei doze atores e os dividi em três

práticas, visando a um mesmo objetivo para as três: a

composição de peças radiofônicas – partindo, porém, de

diferentes referências, diferentes materiais textuais como

alicerce dos trabalhos. O percurso, percalços e resultados

destas experiências estão devidamente relatados nas próximas

páginas.

No primeiro capítulo deste trabalho, traça-se um

histórico da ficção radiofônica, abordando seu desenvolvimento

na Europa em diversas instâncias, o terror causado nos Estados

Unidos por A guerra dos mundos, versão de Orson Welles, e o

Brasil das lacrimosas radionovelas e dos experimentos

artístico-sonoros desenvolvidos a partir da década de 1970.

No segundo capítulo, são introduzidas as já citadas

práticas, elaboradas por meio de reflexões acerca do encontro

da palavra – em todas as suas camadas – com o universo

particular ao seu emissor; tem-se a noção de palavra como

elemento plástico: palavra que pode ser esculpida, moldada,

trabalhada enquanto ação via elocução – poética resultante do

encontro anteriormente citado.

Por fim, bloco contendo relato do processo de As

rubianadas, peça radiofônica construída e elaborada por mim a

partir de jogos e improvisações realizados entre três atores

estimulados por tramas e personagens de contos de Murilo

15

Rubião; o material acústico resultante desta empreitada,

levado a público no dia 28 de novembro de 2013 no Centro

Cultural SESI/AML, encontra-se no CD – apêndice acústico – que

acompanha este trabalho.

Ainda como apêndices, estão dispostos a versão final

do texto radiodramático As rubianadas e o cartaz do evento da

apresentação supracitada.

Que a leitura, enfim, seja agradável!

1 FICÇÃO RADIOFÔNICA: UM APANHADO HISTÓRICO

Esta seção se propõe a levantar um histórico acerca

das ficções radiofônicas; seu escopo reside nas obras que

procuraram forjar um elo entre ouvintes e aparelho de rádio

por meio da voz de um emissor, tais como peças radiofônicas,

radionovelas e radioseriados; poemas sonoros, para os quais a

classificação "ficção" pode soar inadequada, também serão

pontualmente abordados.1

Historicamente, os primeiros escritos, experiências e

registros de autores interessados na criação de uma gramática

dramática específica para o rádio datam da Alemanha da década

de 1920, quando o veículo vive ainda sua "primeira infância".

(MONTAGNARI, 2004, p. 147).

A comedy of danger (1924), de Richard Hughes, é

considerada a primeira obra de ficção criada expressamente

para o meio radiofônico; como sua ação se passava em uma mina

de carvão, a sonoplastia se aproveitava de explosões, passos,

barulho de água e efeitos de eco. Era um primeiro passo para o

que se chamaria de Dunkelstil, estilo "no escuro", no qual as

personagens se encontravam em uma situação dramática cuja

visão lhes era privada; representavam-se realisticamente os

1 Adota-se, aqui, classificação proposta por Mirna Spritzer (2005, p.

45-46), na qual a categoria ficcional abrigaria os gêneros

radionovela, seriado e peça radiofônica; dentro deste último,

estariam contidos esquetes, contação de histórias, leituras

dramatizadas, radiodramas (peças radiofônicas dramáticas de cunho

realista), peças radiofônicas épicas, monólogos interiores, poemas

sonoros e criações experimentais.

17

sons, poupando os ouvintes de maiores esforços ou devaneios

imaginativos. (BAUAB, 1990, p. 107). Na obra SOS Rao-Rao-Foy

(1928), de Friedrich Wolf, é utilizado pela primeira vez um

recurso que ficaria famoso posteriormente com Orson Welles e

sua A guerra dos mundos: a dramatização de uma reportagem

transmitida ao vivo. (CORONATO; COLLAÇO, 2008, p. 3).

Em 1930, Alfred Döblin, mestre da literatura alemã,

vê sua obra Berlin Alexanderplatz – Die Geschichte vom Franz

Biberkopf (Berlim Alexanderplatz – A história de Franz

Biberkopf) alcançar significativa repercussão ao adaptá-la

para o veículo radiofônico. Esta peça se tornaria um marco

para a nascente radiofonia alemã. (LEÃO, 2003, s/p). Döblin,

conforme Heloisa Bauab (1990, p. 108), acreditava que o rádio

solicitava uma espécie de retomada do meio acústico, matriz de

toda a literatura.

O avanço tecnológico obtido nos anos seguintes entre

os alemães, ao abrir perspectivas criativas para as técnicas

de gravação, consolidará e colocará no ar as intenções

inovadoras e artísticas da peça radiofônica, gênero que, "ao

reunir em si os elementos do audível, para além do material

musical, busca[rá] uma gramática própria que a diferencie de

outras linguagens." (MONTAGNARI, 2004, p. 147). Janete El

Haouli (2002, s/p) afirma que os conceitos de rádio-arte ou

arte acústica são decorrências diretas da intervenção de

artistas de vanguarda daquele período da República de Weimar:

Fruto de uma simbiose entre arte e técnica, as

peças radiofônicas experimentariam um florescimento

ímpar naquele país, chegando a ser sistematicamente

criadas por literatos, dramaturgos, diretores de

teatro e pelos próprios diretores das primeiras

rádios alemãs.

Esta preocupação revela a concepção do rádio como um

meio de efetiva comunicação, pressuposto que Bertolt Brecht

assinalou com muita clareza em seus escritos. O autor realizou

diversas adaptações de suas obras para o veículo radiofônico.

18

No entanto, sua obra dramática escrita especificamente para o

rádio se resume à cantata Der ozeanflug (O voo sobre o oceano,

1928); com músicas do compositor Kurt Weill, a peça tratava

sobre a primeira travessia aérea do Atlântico realizada por

Charles Lindenbergh em 1927.

Os estudos teóricos de Brecht sobre o rádio revelam

claramente o posicionamento do dramaturgo acerca de um veículo

cuja vocação está na comunicação, não apenas na transmissão de

informações de forma unilateral; o processo de plena

efetivação desta vocação passa, necessariamente, pela

consolidação da linguagem radiofônica a partir da exploração

de seus próprios recursos expressivos. (SILVA, 2005, s/p).

Será a exploração desses recursos que marcará o

Hörspiel — "jogo ou peça para o ouvido" em tradução literal

ou, mais propriamente, "peça radiofônica" – alemão. Descobriu-

se, por exemplo, o poder simbólico que os sons possuíam ao

exercitar a imaginação do ouvinte. El Haouli (2002, s/p) cita

o exemplo de Der Narr mit der Hacke (O tolo e o picareta),

peça de 1930 escrita por Eduard Reinacher. Nela, um monge

japonês cava obstinadamente um túnel através da face de

granito de uma montanha que isola do mundo exterior um

vilarejo da costa. Por anos, o único sinal que os habitantes

têm do monge é o som da sua picareta, que é ouvido como um

leitmotiv através de toda a peça. Quando o monge consegue

abrir, com suas últimas forças, a passagem que servirá para o

povo do vilarejo, descobrimos que, em sua juventude, esse

trabalhador solitário matou um homem com aquela picareta. "O

trabalho é a expiação de seu pecado, e o som da picareta

contra a pedra é o símbolo acústico de sua culpa", explicita

El Haouli (2002, s/p).

Experimentos mais radicais, contudo, marcariam em

definitivo o conceito de Hörspiel. Algumas práticas,

enxergando a peça radiofônica como meio para experimentações

sonoras de fato, romperam com a literatura convencional e

19

propuseram uma expansão do meio rádio. Peça com transmissão

datada de outubro de 1924, em Frankfurt, Zauberei auf dem

Sender (Microfone mágico), de Hans Flesch, desafiava as então

nascentes convenções de transmissão radiofônica com

interrupções, efeitos sonoros e distorção dos tempos musicais,

demonstrando aos ouvintes as propriedades "mágicas" do novo

meio. (EL HAOULI, 2002, s/p).

Em 1926, a peça radiofônica Der tönende Stein (A

pedra sonora), de Alfred Braun, então diretor da Rádio Berlim,

é denominada por ele de "filme acústico" – "cinema sonoro" ou

"cinema para ouvidos". Neste campo, também merece destaque o

cineasta alemão Walther Ruttmann, que apresentaria a obra mais

bem-acabada do gênero: Wochenende (Fim de semana), cuja

gravação foi comissionada em 1928 por Hans Flesch; a peça se

vale da banda sonora da película cinematográfica para

registrar sons produzidos em estúdio e manipulá-los em

montagem primorosa; seria então apresentado especialmente

através de radiodifusão. (EL HAOULI, 2002, s/p). Do repertório

de Ruttmann, destaca-se ainda Berlin, Symphonie einer

Grosstadt (Berlim, sinfonia de uma grande cidade, 1927), banda

sonora que, composta para documentário fílmico homônimo,

também fora transmitida no rádio.

É, aliás, do cinema – conforme bem frisa Bauab (1990,

p. 107) – que o rádio toma termos e técnicas emprestados para

a composição de ficção radiofônica, tais como fade in, fade

out, fusão e flashback, além do próprio conceito e prática de

montagem. Isto ocorreu à medida que a peça radiofônica "foi se

libertando da forte herança teatral que fazia por confinar a

todos – personagens e ouvintes – no espaço fixo de um palco

imaginário." (BAUAB, 1990, p. 107). El Haouli (2002, s/p)

corrobora este apontamento ao afirmar que o cinema ajudou a

alargar o conceito de Hörspiel e a lançar as bases para o

surgimento de uma linguagem e uma estética da arte acústica.

20

A dramaturgia de Wochenende é um bom exemplo disso:

estimulava a imaginação auditiva do ouvinte, fazendo-o criar

espaços onde a ação do filme sonoro transcorre. "O ouvinte

percebe a transição de um atordoante dia de trabalho para um

suave dia de descanso (um domingo) ao ar livre. Terminado o

repouso semanal, volta-se à dura realidade do trabalho numa

barulhenta metrópole moderna." (EL HAOULI, 2002, s/p). Tudo

isso ocorria através da lógica da montagem cinematográfica,

via cortes, fusões e justaposições.

Em 1928, Hans Flesch, junto a Friedrich Walther

Bischoff, comissionaria um segundo trabalho na linha dos

filmes acústicos: Hallo! Hier welle Erdball! (Alô! Aqui fala

Rádio Terra!), "sinfonia sonora" de acordo com o próprio

subtítulo. Conforme aponta El Haouli (2002, s/p), a julgar

pelas informações remanescentes, a obra era um mosaico

acústico mais voltado a demonstrações estéticas e técnicas do

novo veículo, porém sem a mesma envergadura do trabalho de

Ruttmann.

Ainda na Alemanha do período, destaca-se o trabalho e

o pensamento do filósofo Walter Benjamim sobre o veículo.

Autor de cinco peças radiofônicas, dentre as quais O que os

alemães liam enquanto seus clássicos escreviam se apresenta

como a de maior expressão, Benjamim foi responsável por uma

espécie de "ensaios ao microfone", dirigidos aos adolescentes

e abordando os mais variados temas: de mitologia a teatro de

marionetes, passando até mesmo por experiências próprias de

sua infância e juventude. Benjamim acreditava que a

popularização do rádio seria um importante meio para dirigir o

público ao saber. (BAUAB, 1990, p. 108).

Nos Estados Unidos, são os anos 1930 que registram os

primeiros radiodramas. É neste período e local que florescem

as pioneiras radionovelas, baseadas nos fragmentos de romances

publicados nos rodapés de jornais diários. Era o início das

soap operas (óperas de sabão), afinal, eram patrocinadas por

21

empresas de produtos de limpeza. (MONTAGNARI, 2004, p. 147).

Aprofundar-nos-emos sobre o gênero posteriormente, ao

discorrermos sobre seu desenvolvimento na América Latina.

Também é dos Estados Unidos a peça radiofônica de

maior impacto de todos os tempos: The war of the worlds (A

guerra dos mundos), "livre adaptação" de Orson Welles do

romance homônimo de H. G. Wells. Na noite de 30 de novembro de

1938, durante o programa Mercury theater – homônimo da

companhia de teatro comandada por Welles –, transmitido a

partir de Nova Iorque pela CBS, parte considerável do público

ouvinte de todo o país entrou em pânico ao acreditar que a

terra estava realmente sendo invadida por marcianos – assunto

da ficção científica armada por Wells. (MONTAGNARI, 2004, p.

146).

A transmissão se iniciou com o aviso de que se

tratava apenas de uma peça; em seguida, a emissão foi retomada

normalmente, tendo sido interrompida por boletins de notícias

cada vez mais frequentes, que davam conta dos impressionantes

acontecimentos que estavam a ocorrer. As intervenções de

vários "peritos" e o verniz dramático com que foram levadas a

cabo contribuíram para a credibilidade da reportagem.

A CBS calculou na época que o programa foi ouvido

por cerca de seis milhões de pessoas, das quais

metade passaram a sintonizá-lo quando já havia

começado, perdendo a introdução que informava

tratar-se do radioteatro semanal. Pelo menos 1,2

milhões tomaram a dramatização como facto verídico

[...]. E, desses, meio milhão tiveram certeza de

que o perigo era iminente, entrando em pânico (LÉ,

2012, p. 43-44).

Na França da década de 1940, destaca-se a censura a

Antonin Artaud. Em novembro de 1947, o diretor das emissões

dramáticas e literárias da Radio France, Fernand Pouey,

encomendou a Artaud uma emissão para o ciclo intitulado Voz

dos poetas; garantira total liberdade na elaboração do

trabalho. O contundente título, Pour en finir avec le jugement

22

de Dieu (Para acabar de vez com o juízo de Deus), fora

escolhido à etapa da aceitação do projeto. (JORGE; GOMES,

1975, p. 161-162).

Glossolalias perpassam toda a obra, cujo conteúdo

abarca guerra, crueldade, repressão, fecalidade e dicotomias

tais como o finito e o infinito, o Cristo que aceitou viver

sem corpo, o invisível, a consciência, o desejo sexual; ao

fim, um caminho possível: a emasculação e a evisceração do

homem. (PROFETA, 2006, s/p). As palavras e locuções utilizadas

não se apresentam para serem interpretadas em seu sentido

usual ou através de uma trama específica que supostamente

alinhavaria toda a tessitura acústica, mas são trabalhadas

enquanto potências poéticas e sonoras, tão pungentes quanto o

próprio conteúdo.

Após a escuta de uma primeira montagem – já em

janeiro de 1948 –, Artaud realizou pontuais cortes e

regravações. A emissão, no entanto, programada para 02 de

fevereiro de 1948, não foi ao ar por determinação da direção

da Radio France – expedida horas antes da estreia.

Curiosamente, a data é aproximadamente um mês anterior à morte

de Artaud. (LEÃO, 2003, s/p).

A Alemanha do pós-guerra veria – ou melhor, ouviria –

o renascimento da peça radiofônica literária em 1947, com o

extraordinário sucesso de Draussen vor der Tür (Do lado de

fora da porta), drama de Wolfgang Borchert sobre um soldado

alemão que retorna à sua casa. Em 1951, o Hörspiel teria novo

impulso com a produção de Träume (Sonhos), de Günter Eich, que

encabeçaria uma leva de criação de "peças-sonho" de outros

artistas. Durante os anos 1950 e início dos anos 1960, surgem

textos de Günter Eich, Ingeborg Bachmann, Max Frisch,

Friedrich Dürrenmatt, Ilse Aichinger, Heinrich Böll, Peter

Hirche, Fred von Hoerschelmann, Wolfgang Hildesheimer, Leopold

Ahlsen e Wolfgang Weyrauch, entre muitos outros escritores,

cujos trabalhos foram discutidos enquanto obra literária. Tem-

23

se, aqui, a era clássica da peça radiofônica alemã. (EL

HAOULI, 2002, s/p).

Expoente do teatro, Samuel Beckett também desenvolveu

um profícuo trabalho no território das peças radiofônicas. Sua

primeira experiência no gênero data de 1956: All that fall

(Todos os que caem), escrita a pedido da BBC. Words and music

(Palavras e música), de 1961, se apresenta, segundo Heloisa

Bauab (1990, p. 107), como

uma fabulação perfeita do processo criador em rádio

(ou em poesia?) Inicialmente, Palavra e Música,

personagens típicos do universo do autor, são

confrontados em sua solidão e mútua intolerância.

Intervém uma espécie de diretor - seu senhor

(poeta) - que não apenas lhes implora para

"entrarem num acordo" como, para isso, lhes fornece

um instrumento de grande utilidade: o tema. O tema,

o próprio Beckett o oferece ao compositor que

deverá preencher "as falas" de Música - nada além

de música - enquanto o autor irlandês segue o mote

proposto, se incumbindo de Palavras. [...] A

cantata de Words and music, porém, só se efetiva

nos momentos finais, depois de acompanharmos cada

etapa de sua construção a partir do jogo dialético

entre as palavras e a música, motivos celulares de

qualquer emissão radiofônica.

Voltando à Alemanha, a partir dos anos 1960, a peça

radiofônica seria repensada em seus fundamentos, passando a

abrigar diferentes correntes de pesquisa. Surgia assim o Neues

Hörspiel, ou a nova peça radiofônica. (BAUAB, 1990, p. 107).

Alguns acontecimentos foram determinantes para a

retomada das discussões em torno do Hörspiel. O primeiro, em

1961, foi a publicação de Das Hörspiel: Mittel und

Möglichkeiten eines totalen Schallspiels (A peça radiofônica:

meios e possibilidades de uma peça sonora total), livro de

autoria do austríaco Friedrich Knilli que abalaria a

instituição do Hörspiel clássico. Knilli afirmava que tal

modelo estava exaurido por se tratar de um discurso

eminentemente literário, e não genuinamente sonoro, alertando

para a necessidade da criação de um peça radiofônica total.

24

Diante desse "ataque", críticos e praticantes tradicionais do

Hörspiel reagiriam com desdém, considerando Knilli um mero

apologista dos ideais de Friedrich Wolf e Bertolt Brecht. (EL

HAOULI, 2002, s/p).

Outro acontecimento que contribuiu para a retomada

das discussões sobre o Hörspiel foram as experimentações de

Paul Pörtner. Entre 1964 e 1969, Pörtner realizaria os seus

Schallspielstudie, estudos de jogos sonoros — obras nas quais,

de acordo com El Haouli (2002, s/p),

[Pörtner] se valia de processos de compressão,

extensão e abstração de sons não-verbais a partir

de material verbal (palavras), filtrando-os,

modulando-os, permutando-os em técnicas de

manipulação sonora como material acústico puro.

Assim, Paul Pörtner abria um novo leque de

possibilidades criativas, bem como rompia, na base,

com a tradição literária, ao desconstruir a

semântica e o discurso verbal organizado.

Em 1968, a Rádio Sudoeste Stuttgart transmitia Fünf

mann menschen (Cinco homens humanos), de Ernst Jandl e

Friedericke Mayröcker, que receberia o importante Prêmio dos

Cegos de Guerra para Peça Radiofônica. (EL HAOULI, 2002, s/p).

Jandl e Mayröcker eram autores do concretismo alemão; por

vezes, engajaram-se diretamente na produção e gravação de seus

poemas fonéticos e sonoros. (BAUAB, 1990, p. 107).

Os jogos de linguagem, a poesia sonora, princípios da

colagem, citações, ready-made acústicos e uma nova relação com

a língua, o ruído e o som se tornariam ferramentas à

disposição de dramaturgos, críticos e literatos praticantes do

Neues Hörspiel. Era a peça radiofônica dialogando com as

experimentações poéticas da poesia concreta, que tem como

expoentes os brasileiros Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de

Campos e o suíço Eugen Gomringer. (EL HAOULI, 2002, s/p).

A partir daí, a peça radiofônica passou a contar com

a contribuição de compositores atraídos por essa nova

dramaturgia sonora não-dogmática. El Haouli (2002, s/p) afirma

25

que, "para alguns compositores de Música Nova, a criação de

peças radiofônicas era algo imediato, um ato quase instintivo

devido às inestimáveis contribuições de Pierre Schaeffer e

John Cage".

Por volta de 1970, a cidade de Colônia era polo de

experimentação do Hörspiel e também de música experimental. No

Seminário de Música Nova de Colônia, promovido em conjunto com

o departamento de Hörspiel da WDR, Mauricio Kagel discorreria

sobre o tema "Música como peça radiofônica", defendendo o

apagamento das fronteiras entre as duas formas artísticas para

benefício de ambas. Kagel, na verdade, atualizava o que Kurt

Weill já havia dito em 1925: a busca, através da paisagem

acústica como um todo, de fontes e meios — quer sejam

denominados de música ou sons — a fim de estruturar sua

própria arte. (EL HAOULI, 2002, s/p).

Caberia, entretanto, ao diretor do setor de Arte

Acústica da WDR, Klaus Schöning (1980, p. 172) cunhar o

conceito para a nova peça radiofônica:

No conceito de peça radiofônica cabem muitos

aspectos. A peça radiofônica funde os gêneros

tradicionais. Nela se fundem a literatura, a

música, a arte dramática. A peça radiofônica pode

ser a realização acústica de texto e partitura. Mas

também a montagem de materiais acústicos originais

(documentários): a literatura de fita magnética.

Nela diluem-se o lírico, o épico, o dramático. Nela

fundem-se fala, ruído, música. A peça radiofônica

como produto artístico autônomo e também desligável

do meio de comunicação em que nasceu.

Como exímia síntese de linguagens para a radiofonia,

Bauab ressalta o trabalho de Heinz von Cramer, compositor,

dramaturgo e diretor que habilmente fundia palavra, música,

ruído e tecnologia do som. Na avant-garde das grandes

renovações estéticas submetidas ao gênero por mais de quatro

décadas na Europa, Heinz dedicou-se à adaptação de clássicos

da literatura mundial – até o brasileiro Morte e vida

26

severina, de João Cabral de Melo Neto, mereceu tratamento

acústico em 1972. Essa transição da literatura para o rádio

ocorria como uma espécie de tradução sonora, dramatúrgica e

oral; ou seja, "ao invés de empobrecer o código poético

daquelas obras, ele fez por bem valorizá-lo." (BAUAB, 1990, p.

108).

El Haouli (2002, s/p) aponta que, a partir dos anos

1980, a peça radiofônica alemã começaria a ganhar relevância

na vida e na consciência sociocultural das pessoas, merecendo

um status semelhante ao da literatura, dos filmes ou dos

programas televisivos.

Colônia manteria por muito tempo o status de núcleo

experimental. Bauab (1990, p. 107-108) dá como exemplo dois

trabalhos veiculados pela WDR como arte acústica: Le Corpsbis

(O Corpobis), de Henry Chopin - referência francesa no que

tange à poesia sonora -, é uma cadeia de sons provindos do

corpo e da boca ("poesia física", segundo o próprio); e Ponte

Sonora Colônia-São Francisco, do norte-americano Bill Fontana,

experimento que mixou ao vivo sons captados de ambientes de

ambas as localidades.

Em novembro de 1989, representantes de emissoras de

rádio estatais da Europa, América e Austrália se comprometeram

a desenvolver e pesquisar a linguagem artística do rádio.

Nascia, assim, o grupo Ars Acustica, fórum internacional de

investigação, produção e difusão de arte acústica, apoiado

pela European Broadcasting Union–EBU.

Atualmente, os avanços tecnológicos permitem a mais

variada gama de experimentações. Ora, qualquer um, munido de

um gravador, computador ou celular, pode gravar sons e editá-

los com programas de fácil manutenção. Pela internet,

proliferam sites com experimentos sonoros – obviamente a

quantidade se sobrepõe enormemente à qualidade, mas ainda

assim se encontram materiais interessantes, alguns mais

27

antigos e que, graças a este recurso, têm seu acesso

compartilhado.

Nesse panorama, o estabelecimento de uma espécie de

tipologia das poéticas radiofônicas, como esboça Mirna

Spritzer (2005, p. 44-47), se torna uma tarefa cada vez mais

delicada. Se já na análise de diversas das obras mencionadas

neste panorama histórico deparamo-nos com certa dificuldade ao

tentar enquadrá-las em gêneros específicos de ficção

radiofônica, na contemporaneidade, cujas formas artísticas são

fortemente marcadas pelo hibridismo e por diálogos

multimídias, muitos dos termos utilizados outrora podem soar

demasiadamente reducionistas.

1.1 A FICÇÃO RADIOFÔNICA NO BRASIL

O gênero das radionovelas, surgido nos Estados

Unidos, ganhava contornos cubanos ao privilegiar o "lado

trágico e lacrimoso da vida" – já se desenhava o estilo que

seria adotado em quase toda a América Latina. (MONTAGNARI,

2004, p. 147).

No Brasil, inicialmente, foram as produções

radiofônicas de natureza melodramática realizadas "ao vivo"

que fizeram a popularidade do radioteatro. Essas irradiações

conquistaram enorme popularidade nos anos 1940, 1950 e, a

partir dos anos 1960, em melodramas que construíram o padrão e

o sucesso das radionovelas. Estas, inspiradas nos folhetins

dos jornais, tornaram-se as grandes mentoras das atuais

telenovelas. (CALABRE, 2006, p. 31-36).

Neste tipo de radiodrama, os autores evidenciavam os

dramas amorosos. Os ruídos como pano de fundo possuíam a

função de instigar a imaginação do ouvinte; eram eles que

faziam a ligação entre o texto e a imaginação: prendiam a

atenção, chamavam o ouvinte a continuar participando da

28

radionovela, provocando-lhe a imaginação para tornar "real" na

mente, pelos ouvidos, a história que se passava. (VENSON,

1991, p. 20).

A Rádio Nacional foi, à sua época, a emissora mais

importante do país. Com uma ação homogênea, chegou a atingir

uma audiência de 50,2% em 1952. A PRE8 (prefixo da emissora)

alcançou seu ápice entre os anos de 1945 a 1956. Durante este

período, possuía uma infraestrutura financeira e

administrativa invejável; com verbas publicitárias, tinha uma

capacidade para manter uma equipe extraordinária, com salários

excelentes. (GOLDFEDER, 1980, p. 20).

Durante os anos em que ocupou o primeiro lugar de

audiência, a Rádio Nacional manteve em seu corpo de

funcionários um contingente de 8 diretores, 240 funcionários

administrativos, 10 maestros e arranjadores, 30 locutores, 124

músicos, 55 radioatores, 40 radioatrizes, 50 cantores, 45

cantoras e 18 produtores. (CALABRE, 2006, p. 126-127). Nesse

quadro de funcionários, estavam nomes como Amaral Gurgel, Max

Nunes, Haroldo Barbosa, Mário Lago, Elza Gomes e Paulo

Gracindo, ator bem-amado muito antes de protagonizar a

telenovela homônima.

Paulo Gracindo fora alçado, em 1951, ao status de

estrela nacional ao protagonizar o retumbante sucesso O

direito de nascer. De autoria do cubano Felix Caignet, a trama

se arrastou por diversos capítulos ao contar a história de

Albertinho Limonta, homem que, criado por uma escrava negra,

saía em busca de sua verdadeira mãe e descobria que a mesma se

encontrava enclausurada num convento. A mesma trama ganharia

três versões produzidas pela televisão brasileira

posteriormente.

No entanto, como frisa Rudyard Leão, não foram

somente os "folhetins para senhouras" que alçaram o sucesso

nas rádios brasileiras daqueles tempos. Os seriados de

aventura, saídos do mundo da pulp fiction – e ainda

29

majoritariamente importados – atraíam ouvintes masculinos. O

sombra, do escritor Walter Brow Gibson, foi um dos títulos que

mais chamou a atenção dos homens: dotada de poderes

sobrenaturais adquiridos no Oriente, a personagem-título

conseguia simular invisibilidade – característica favorecida

pela exibição radiofônica –, infiltrando-se nos esconderijos

dos bandidos. Nos Estados Unidos, o Sombra recebeu a voz de

Orson Welles; em São Paulo, coube ao radialista Octávio Gabus

Mendes. O programa se iniciava com a indefectível epígrafe:

"quem sabe o mal que se esconde nos corações humanos? O Sombra

sabe..." (LEÃO, 2003, s/p).

Seriados policiais e de aventura passaram a

proliferar nos mais variados horários, buscando capturar a

audiência masculina. Nesta safra, destacam-se As Aventuras de

Dick e Peter, radioseriado de Jerônymo Monteiro iniciada em

1937, e O anjo (1948), de Álvaro Aguiar. (LEÃO, 2003, s/p).

Também merece atenção o título Jerônimo, o herói do

sertão, criação nacional de Moysés Weltman fortemente

influenciada pelo faroeste americano. A trama, criada para a

Rádio Nacional em 1953, permaneceu 14 anos no ar; ganhou,

ainda, duas adaptações televisivas no formato novela nas

décadas de 1970 e 1980. Outras autoras que possuíam destaque

no universo das radionovelas eram Janete Clair e Ivani

Ribeiro; ambas migraram para a televisão e reeditaram, com o

advento do vídeo, diversos dos títulos que lhes outorgaram

prestígio à época do rádio.

O declínio da Rádio Nacional marca o esvaziamento do

período áureo do rádio no Brasil. Para Miriam Goldfeder (1980,

p. 22), "a falta de apoio do governo Kubitschek e a utilização

de formas demasiadamente repetitivas, tornando-as exaustivas,

culminaria em um processo lento de decadência."

Aos poucos a emissora foi perdendo a infraestrutura

que sustentava tanto as radionovelas como os programas de

auditório e humorísticos. Com isso, a mais famosa rádio dos

30

anos 1950 teve sua ascensão e queda marcadas pelas mudanças

políticas e pelo aparecimento da televisão, que conseguiu

absorver o contingente profissional e as fórmulas que fizeram

o mito da rádio PRE8 - mais um claro sinal a demonstrar que a

televisão brasileira tem suas raízes intrinsecamente

arraigadas no rádio. (CALABRE, 2006, p. 213-218).

O produto ideológico vendido e transmitido para o

público foi, durante o auge da Rádio Nacional, as ideias e

concepções políticas do Governo que sustentava seu arsenal

produtivo. (VENSON, 1991, p. 18). Em primeiro lugar estava o

nacionalismo exagerado de Vargas, junto com seu

intervencionismo estatal e o populismo como base de governo;

depois Dutra, que não trouxe grandes modificações. A Rádio

Nacional continuou recebendo suas verbas. Somente com

Juscelino Kubitschek é que as verbas sofreram cortes

consideráveis, revelando, então, uma estrutura abalada da

PRE8. (CALABRE, 2006, p. 215).

Ainda merece destaque o desenvolvimento do rádio no

Rio Grande do Sul, onde foi profícua a produção de

radioteatros, principalmente nos idos da década de 1940. O

período mereceu terna e saudosa análise por parte de Mirna

Spritzer no livro Bem lembrado, histórias do radioteatro em

Porto Alegre (2002).

Segundo El Haouli (s/d, s/p), as primeiras

experiências artísticas em rádio no Brasil datam da década de

1970, a partir da realização de seminários e concursos de

peças radiofônicas com a colaboração e o apoio do Instituto

Goethe, Grupo Opinião e Fundação Konrad Adenauer. Como

resultado desta iniciativa, os dramaturgos Fernando Peixoto,

Germano Blum e João das Neves foram convidados a estudar o

gênero peça radiofônica na Alemanha (Westdeutscher Rundfunk -

WDR, Colônia).

Em 1985, já com a realização do IV Concurso

Brasileiro de peças radiofônicas, a peça Noturno a duas vozes,

31

escrita, gravada e produzida por Heloisa Bauab, foi premiada

em primeiro lugar. (EL HAOULI, s/d, s/p). A atriz, diretora e

dramaturga, então, também recebeu da Fundação Konrad Adenauer

– uma das promotoras do concurso – uma bolsa para estagiar por

um ano na emissora alemã. Lá, a peça foi traduzida por

Berthold Zilly, produzida e transmitida pela WDR e

retransmitida por várias emissoras do país. A convite da

emissora de Colônia, Heloisa ainda escreveu e produziu um

ensaio/documentário radiofônico sobre a poesia concreta

brasileira. Ao retornar ao Brasil, ministrou diversas oficinas

e coordenou, ainda, o projeto AUdioFICções&ritMOS, núcleo de

Linguagem Radiofônica das Oficinas Culturais Três Rios.

Outra contribuição importante é a da musicista e

radiomaker Regina Porto, que trabalhou 11 anos na Radio

Cultura FM de São Paulo e foi comissionada, em 2002, para

fazer a peça Metrópole - São Paulo, um retrato acústico da

cidade de São Paulo, para a WDR. El Haouli (s/d, s/p) ainda

ressalta as importantes produções radiofônicas de Julio de

Paula, Roberto D'Ugo, Cynthia Gusmão, entre outros, da Rádio

Cultura FM de São Paulo.

No Rio de Janeiro, tem-se o reconhecido trabalho de

Lilian Zaremba, produtora do programa Rádio Escuta, produzido

e apresentado pela Rádio MEC. Há, ainda, as iniciativas de

Mauro Costa no trabalho com rádio comunitária. E, em 2003,

surge, por parte da radialista e idealizadora Francisca

Marques, o Núcleo de Rádio Arte, coletivo de pesquisa e

produção radiofônica que desenvolve projetos nas áreas de

documentação, radiodramaturgia, ecologia sonora e design de

som. (EL HAOULI, s/d, s/p).

Também é muito importante ressaltar o trabalho de

dramaturgos que buscaram a renovação da linguagem radiofônica,

entre eles as já citadas Heloisa Bauab e Mirna Spritzer, além

de Bosco Brasil, Sylvia Lohn, Mara Lúcia Cardoso, Ricardo

Milan, Jorge Rein, entre outros. Como ressalta El Haouli (s/d,

32

s/p), imprescindíveis foram as parcerias com as rádios alemãs,

que ofereceram financiamento para produção de peças

radiofônicas e de arte acústica.

Ressalta-se, ainda, o trabalho da própria Janete El

Haouli, uma das pesquisadoras-pilares deste capítulo – como

bem se pode observar nas citações. Na década de 1990, Janete

foi convidada pela WDR - Studio Akustische Kunst para realizar

o projeto Stratosound, retrato acústico do pesquisador e

performer da voz Demetrio Stratos. Em 1999, a DeutschlandRadio

de Berlin a convidou para desenvolver a peça de arte acústica

intitulada Brasil universo, em parceria com o músico

brasileiro Hermeto Pascoal e com a coprodução da WDR de

Colônia.

A participação de artistas-criadores empenhados nas

mais diversas experimentações acerca do som se faz vital para

a manutenção – e até mesmo a reforma – do espaço radiofônico

enquanto meio aliado à arte. Daí a importância de práxis

vinculadas ao tema. "Só assim, talvez, os conteúdos poderão

ser transformados, deixando o rádio de funcionar como mero

escravo do capitalismo globalizante, do trabalho e do lazer

cronometrados". (EL HAOULI, 2001, p. 251).

2 ELOCU(A)ÇÃO: DELÍRIOS DE UMA VOZ-CORPO

As páginas a seguir contemplam as fundamentações-

guias para as três práticas que propus ao decorrer deste meu

último ano de graduação em Artes Cênicas. Todas tiveram um

mesmo ponto de partida conceitual no que tange a jogos e

exercícios radioteatrais2 propostos nos primeiros ensaios – no

entanto, partiu-se, em cada grupo, de diferentes textos

literários; possuíam, ainda, um mesmo objetivo: a composição

de peças radiofônicas. Devido a imprevistos, falta de tempo e

curvas no meio do caminho, entretanto, algumas questões foram

readaptadas para a obtenção e finalização de materiais

acústicos de qualidade até o término deste ano.

Com o primeiro grupo, desenvolveram-se experimentos a

partir de diferentes materiais textuais – escolhidos pelos

próprios atores; o relato do processo e resultados obtidos

estão dispostos no tópico Sopros. Outro grupo tomou Valsa n°

6, peça teatral de Nelson Rodrigues, como alicerce – a parte

que lhe tange é abordada no subcapítulo Réquiem para Sônia. O

terceiro e último grupo – único no qual prevaleceu a proposta

inicial da concepção de uma peça radiofônica – teve como base

três contos de Murilo Rubião; este trabalho merecerá

aprofundamento no capítulo subsequente.

Mesmo partindo de proposições equivalentes, é

necessário frisar que as três práticas sofreram constantes

2 Acerca dos procedimentos da prática, o ator "apoia-se na estrutura

criativa que o teatro lhe oferece para ousar o acontecimento da

voz." (SPRITZER, 2005, p. 51).

34

adaptações conforme necessidades para além de questões

relativas a tempo ou a número de ensaios: levaram-se em conta

os componentes do grupo em sua individualidade artística e no

estabelecimento de uma identidade coletiva; desde o início, a

intenção não era sistematizar um método a ser aplicado a todo

e qualquer ator/grupo que venha a trabalhar com rádio, mas

sim, a partir de práticas e procedimentos radioteatrais,

investigar as possibilidades de um corpo que, no dizer de

Mirna Spritzer (2005, p. 55), "sonha em forma de voz" a partir

de materiais textual, sonoro, imagético ou audiovisual que lhe

servissem de impulso. Não se fixaram técnicas: suscitaram-se

estímulos que incentivaram os atores a desenvolverem seu

próprio caminho no que se refere à identidade do grupo no qual

estavam inseridos – identidade gerada pelo encontro dos

materiais pertinentes a cada núcleo (aos atores apresentados

e/ou por eles coletados) com o universo particular de seus

integrantes e através dos jogos e relações estabelecidos entre

eles em salas de ensaio.

Neste sentir, este trabalho, como também propõe

Spritzer (2005, p. 26), reconhece "a oralidade como expressão

individual e como experiência criativa coletiva".

2.1 PARA QUE O CORPO SONHE EM FORMA DE VOZ

Em sua tese de doutorado, intitulada O corpo tornado

voz, Mirna Spritzer aponta que, se no palco há um corpo a

explorar todas as suas potencialidades, no rádio a única

corporeidade presente, acessível ao espectador (ouvinte), é a

voz. Pensa-se, portanto, nesta voz como senhora absoluta da

ação; deve-se trabalhá-la de modo a, através de sua

manifestação física, representar todos os signos e identidades

visuais relativos ao corpo presentes em um espetáculo teatral.

(SPRITZER, 2005, p. 22).

35

Spritzer (2005, p. 24-26) crê que a experiência

radiofônica propicia aos atores a sensibilização da voz; esta

sensibilização proporciona um conhecimento vocal voltado para

o "efeito da voz, sua dimensão temporal e espacial, e o

estatuto de corpo que [a voz] assume nessa instância".

Ao abordar questões relativas ao dizer e ouvir, a

autora frisa as potências existentes por trás da fala: dizer é

reinventar o real e afirmar a palavra enquanto acontecimento

criativo; inclui o gesto, a melodia dos vocábulos, um olhar...

Existe um dizer no corpo, como há, também, um corpo no ouvir.

Isto se torna evidente no exercício radiofônico, no qual a

mera elocução e articulação de sons estabelece um mundo para o

ouvinte; um mundo sonhado através do acontecimento concreto da

voz. (SPRITZER, 2005, p. 29-30).

As práticas radiofônicas tornam clara a

impossibilidade de pensar e trabalhar a voz como um elemento

separado do corpo, afinal o ator será confrontado à

necessidade de ser presença através do ato da elocução. Será

através desta busca pela presença, da necessidade de manter a

fala viva, que o ator, ao mergulhar em seu próprio mundo à

procura de substratos particulares que sustentem as palavras,

criará

um texto feito de carne, sons, silêncio, movimento,

respiração e sangue. [...] O ator é um artista que

precisa da intimidade das palavras. Palavra-corpo,

dizer-corpo, escuta-corpo, voz-corpo (SPRITZER,

2005, p. 54).

"Não há dizer sem corpo e nem ouvir descarnado."

(SPRITZER, 2005, p. 35). A partir desta máxima, pressupõe-se o

dizer enquanto resultado do encontro da palavra com o universo

peculiar ao seu emissor. Procurar-se-á, agora, investigar a

noção de palavra como elemento plástico: palavra que pode ser

esculpida, moldada, trabalhada enquanto ação via elocução.

36

2.2 PALAVRA E VOZ, O ENCONTRO DE MUNDOS

Os procedimentos sugeridos para o início de todos os

experimentos práticos residiam na investigação das palavras –

palavra que, na definição de Armin P. Frank (apud KLIPPERT,

1977, p. 59), é "um campo de forças complexo e multipolar, que

se estende entre as suas funções de corpo sonoro, denotação

conceitual, evocação imagética e carga afetiva".

Nestas investigações, propôs-se o estabelecimento de

variados jogos com as palavras a fim de explorar seus mais

diversos níveis: forma, sonoridades, memória, conceituação,

abstração e tudo o que surgisse disso – outros sons, imagens,

até mesmo outras palavras.

[...] existe uma relação do ator com a palavra que

antecede o veículo, que não pressupõe

necessariamente a cena. [...] as experiências da

fala expressiva oportunizam exercitar uma voz-corpo

que é constitutiva do ofício do ator. Exatamente

por ter como sua arte o saber sensível dos sentidos

e fazê-los significar em seu corpo instrumento, o

ator possui a vocação para a palavra, para o dizer,

para encontrar, na composição das frases, a beleza

dos sons e dos andamentos (SPRITZER, 2005, p. 51).

Diversas experimentações rondaram o fenômeno da

palavra no início do século XX. Klippert (1977, p. 58-73) faz

um interessantíssimo apanhado histórico, rememorando desde a

radicalidade do Movimento Futurista italiano de 1909 – imbuído

do ímpeto da desconstrução agressiva da sintaxe – às operações

com os vocábulos utilizadas em peças radiofônicas alemãs de

caráter experimental desenvolvidas no correr da última metade

do século. Nestas peças, como explanado no primeiro capítulo,

buscava-se não explorar uma história linear, composta de

situações e personagens, e sim um mundo próprio às palavras –

teoria presente no tratado Rundfunkdrama und Hörspiel,

publicado por Arthur Pfeiffer em 1942.

37

Bachelard (1976, p. 115), ao discorrer sobre o sonho

da linguagem e sugerir uma analogia entre palavra e casa,

impele-nos a trafegar pelos mais diversos "cômodos" dos

vocábulos:

As palavras – eu o imagino frequentemente – são

pequenas casas com porão e sótão. O sentido comum

reside no nível do solo, sempre perto do "comércio

exterior", no mesmo nível de outrem, este alguém

que passa e nunca é um sonhador. Subir a escada na

casa da palavra é, de degrau em degrau, abstrair.

Descer ao porão é sonhar, é perder-se nos distantes

corredores de uma etimologia incerta, é procurar

nas palavras tesouros inatingíveis.

Ao citar o exemplo do Poema das trincheiras, "peça

radiofônica curta" de Ernst Jandl, Klippert (1977, p. 69-72)

sinaliza para o desaparecimento da separação entre a palavra e

o que ela denota; o que se quer dizer apresenta-se de forma

acústica – o propósito da teoria de Pfeiffer.

O instrumento dessa concretização é a voz do autor-

leitor, o qual, através dela, não invoca apenas a

porção do universo em questão, mas também

transmite, ao mesmo tempo, a sua posição diante da

mesma. Desta forma, embora não surja um jogo de

papéis, de personagens, surge um jogo com os sons

da fala, que "corporificam" um mundo, diante do

qual o autor assume uma posição de representação e

valorização (KLIPPERT, 1977, p. 71-72).

Esta posição citada por Klippert vai ao encontro das

ideias de Gaiarsa tangentes ao sentido universal e singular da

palavra. Cada palavra possui seu universo, desdobrável em

diversos níveis; de acordo com o modo como ela é dita,

contudo, revelando a existência de um emissor, apresentará um

significado particular, tangente àquele que a alçou à dimensão

da fala. (GAIARSA, 2010, p. 321).

O autor prossegue: considera que nenhuma palavra

exista sem contexto. A partir do momento em que ela toma forma

– seja sob o signo da escrita, da voz ou até mesmo do

38

pensamento –, estará subjugada a uma série de mecanismos

relativos àquele universo. A abstração da mesma também não se

livra disso: é a palavra simplesmente explorada em outra

"realidade", a qual funciona sob regras e parâmetros próprios.

(GAIARSA, 2010, p. 321).

Klippert também só vê a palavra a vivenciar toda a

sua capacidade na elocução. Mesmo subordinada aos sistemas

linguísticos, inserida em uma frase pré-modulada, ela

apresenta algo de próprio quando dita. (KLIPPERT, 1977, p. 75-

76).

A elocução é o encontro, a convergência de aspectos

universais da palavra a aspectos particulares do interlocutor;

é a palavra a preencher toda a definição de Armin P. Frank

citada anteriormente; é letra-música-dança, mágica que ocorre

a partir de um centro: o ser humano. A partir do ser humano

que trafega do porão ao sótão.

APENAS

Palavras.

São letras – palavras articuladas.

São música – pontuação – entonação...

São dança – gestos – caras – atitudes

Numa cena.

A palavra, pois, está – ou pode estar – no corpo

todo,

e então ela se faz

seu espírito – na letra;

sua alma – na música;

seu modo de estar no mundo – na atitude∙gesto∙dança

Numa cena!

O centro – inspirador...

(GAIARSA, 2010, p. 332-333).

A palavra que se torna concreta, material através da

voz. Palavra que, por meio da elocução, transforma-se em ação.

Na unidade da palavra e da voz, a palavra se torna

um elemento funcional de categoria especial. Ela

aparece como tendo sido escolhida por esta voz, em

combinações realizadas por esta voz. [...] No ato

de uma tal fala, a palavra torna-se acontecimento.

39

Ultrapassa o anonimato do sistema de línguas e

passa a ser palavra de expressão, que é falada a

partir do centro de uma pessoa. Assim, pode tornar-

se palavra-ação, seja que apenas o processo de

manifestação dessa voz apareça como ação, seja que

também tenha um efeito "exterior" ou procure tê-lo,

na medida em que ordena, adverte, solicita,

admoesta, promete, etc (KLIPPERT, 1977, p. 76).

O termo elocução já aparece na Poética de

Aristóteles; para o filósofo grego, a elocução constitui,

juntamente com a fábula, os caracteres, o pensamento, o

espetáculo e o canto, os seis elementos da tragédia. É

consenso na literatura teatral que a elocução envolve o

sentido do texto pronunciado pelo ator; a este texto, o ator

empresta uma enunciação. (PAVIS, 2001, p. 121).

O pensamento de Marlene Fortuna acerca do trabalho do

ator com a oralidade caminha por vias muito próximas às

reflexões de Klippert, Bachelard e Gaiarsa: ela recomenda o

aprofundamento na "essência" da palavra – seu verdadeiro

significado naquele contexto –, termo que designa como

significante, "no qual o ator vai especular causas, objetivos,

gêneses, consequências, circunstâncias propostas, cronogramas

e fluxogramas da expressão." (FORTUNA, 2000, p. 119).

Neste sentido, o ator deve se deixar levar por um

"estado de entrega" em que se portará como uma criança a

desvendar os primeiros vocábulos; a procurar o entendimento

destes no jogo com sons, ritmos e os objetos que o originaram.

(FORTUNA, p. 119-120). Uma espécie de dissecação das palavras

pela qual os experimentos práticos já citados ousaram se

aventurar.

Esta é a mola propulsora para que o ator ultrapasse

uma interpretação equivocada do vocábulo naquele contexto e

obtenha uma visualização ou corporeidade do significante,

momento em que o ator faz convergir seu ritmo interno com o

resgate da sonoridade poética do texto – tudo a realizar-se,

assim, de forma orgânica.

40

Trabalhar com a visualização do sensório-verbal é,

enfim, predispor-se à criação de um fecundo campo

magnético em que a expressividade sonoro-vocal

advém da transformação oportuna da palavra em

elemento plástico. Daí vincular-se a gestualidade

corporal à imagética da palavra, em que o caráter

da visualização é complementado pela expressão

corporal (FORTUNA, 2000, p. 122).

Como no rádio a única expressão corporal a se

apresentar é a sonora, deve-se aprofundar esta questão

plástica da palavra. Ora, a palavra é material do ator; é

necessário, portanto, dilacerar seu "mero efeito decorativo

[...] para geri-la em ações viscerais." (FORTUNA, 2000, p.

119). Trabalhando-a enquanto ação, pode-se esculpi-la, moldá-

la.

Sobre a visualização do sensório-verbal, Fortuna

(2000, p. 122) aconselha o ator a "ouvir" imagens e a

investigar sons que possam ser representados corporalmente,

vivenciados sensorialmente e reproduzidos diagramaticamente –

o que é possível por meio da vinculação da gestualidade

corporal à imagética das palavras. Algumas destas proposições

foram abordadas nos exercícios práticos de modo a se pensar

como estes sons podem se refletir no corpo e, após,

manifestarem-se pela voz – não a mera reprodução do que foi

ouvido, mas como um som torna-se voz após todo este processo.

Fortuna (2000, p. 122) ainda considera que "o ator

deve falar com tamanha luz, como se estivesse pintando uma

tela – imagem cromática viva – em sua mente, projetada na

mente do outro (plateia)"; o discurso necessita, portanto,

produzir imagens, o que só será possível se este discurso for

proferido de forma viva e vigorosa.

Nos ensaios das práticas, foi utilizado o termo

"leitura cromatizada do texto", que consiste justamente nesta

leitura viva, no entendimento das sístoles e diástoles das

palavras, da pulsação e do ritmo próprios daquele discurso,

41

das sentenças e períodos a serem explorados por todos os

melismas da voz – não se esquecendo dos jogos com as palavras

anteriormente propostos, muito pelo contrário, sempre

procurando aprofundá-los.

O colorido e a matização obtida serão únicos, pois se

trata do encontro do universal e do particular, referente ao

momento mágico vivenciado por palavra-e-ator: a elocução.

2.3 SOPROS

Esmiúça-se, neste tópico, o trabalho realizado com o

grupo cujos componentes escolheram os próprios materiais

textuais. Nossas reuniões semanais em salas de ensaio se

iniciaram em março de 2013 e tiveram um fim em junho deste

mesmo ano. O objetivo era, no decorrer do processo, encaminhar

as práticas para a formulação e gravação de uma peça

radiofônica. O tempo, no entanto, foi escasso. E conduzir seis

vozes não é tarefa das mais fáceis!

Os procedimentos foram os mais diversos: desde

exercícios de escuta de material radiofônico, de sons do

ambiente – no caso, a praça do CECA, UEL – e, obviamente, o

trabalho a partir dos textos. A intenção era investigar todos

os níveis da palavra, decompô-la, se preciso, para a busca por

sonoridades. O trabalho com sons de objetos também ocorreu.

Improvisações em grupo e no escuro também foram

proposições executadas. O interessante é notar que os atores

pouquíssimas vezes trabalharam parados, fixos somente em um

lugar da sala. Os exercícios no escuro foram excelentes no

início ao permitirem certa desinibição dos componentes do

grupo para explorarem suas vozes-corpos, e eles não se

limitaram a pequenos espaços: trafegaram por toda a sala e

passaram por diversos níveis.

42

Foi por meio destas improvisações que passaram a se

estabelecer ligações entre os textos individualmente

trabalhados; de anotações realizadas durante os ensaios, foi

possível visualizar aproximações, afinidades e até mesmo

contraposições entre os integrantes do grupo e suas formas de

trabalho.

Os atores, então, passaram a desenvolver "leituras

cromatizadas" – a leitura viva destacada no tópico anterior –

dos textos que escolheram. Minha função aqui era investigar o

método de trabalho de cada um em particular para, assim,

orientá-los na elocução, na expressão sonoro-verbal do texto

de forma que esta soasse como o efetivo encontro de mundos

citado anteriormente – o do texto e o do ator. Para isso, por

intermédio da observação de seus métodos de trabalho e de uma

apurada leitura dos relatos produzidos em sala, mergulhei em

seus universos com o intuito de descobrir elementos poéticos

intrínsecos a cada um e como estes elementos dialogavam com os

textos trabalhados.

A atriz Amarilis Irani optou por trabalhar com um

trecho do poema Tabacaria, de Fernando Pessoa. Em sua

articulação, contrapôs uma menina e uma pessoa mais velha,

ambas defronte às sensações causadas por um chocolate. Em seus

escritos, revelava certa agonia ao procurar os sons, além de

ter se dedicado a uma espécie de classificação das risadas dos

transeuntes do CECA quando realizou a escuta do ambiente;

revelou-se com medo, angústia diante do assovio do vento e, em

outro momento, chegou à conclusão de que o metafísico se

manifesta no escuro. Propus que, para desenvolver seu

experimento, ela procurasse se aproveitar da facilidade que

possuía para transformar escuta em imagem poética na

articulação do som.

Camila Sanae selecionou o texto O amor acaba, de

Paulo Mendes Campos, como objeto de trabalho. Em seus

escritos, Camila se questionava sobre sua capacidade de

43

elocução; sentia que esta caminhava a passos minúsculos, tal

qual uma proposição do primeiro encontro do grupo. No entanto,

foi no escuro que as coisas lhe pareceram claras e ela pôde

explorar sua própria voz. Na desarmonia das vozes-corpos que

se manifestavam na escuridão, enxergou o sentido do caos;

sentia vontade de sua voz e da voz do outro, do som do outro.

O texto de Paulo Mendes Campos pontuava momentos nos quais o

amor parecia se findar para algumas pessoas – mas não do ponto

final para o mergulho no abismo eterno do silêncio, e sim no

traçar de um novo começo. Sugeri-lhe que explorasse esta

sensação de finitude e o medo de um recomeço no jogo das

palavras, avivando esta sensação concretamente no plano da

elocução ao descobrir cada palavra, cada nuance.

Danilo Neiva, em seus escritos, demonstrava a ânsia

por personificar devaneios – devaneios que se manifestavam em

formas de vozes, muitas vozes ou imagens áridas; e o som do

vento. O texto sobre o qual se debruçou consistia na letra de

uma música: Eternas ondas, de Zé Ramalho. Poderia, então,

personificar devaneios através de sua voz; poderia

personificar o vento. Como seria a ação do mesmo expressa por

palavras áridas? Como o vento passa a influenciar os outros

membros do grupo? – foram indagações que lancei ao ator.

Estrada, de Alexandre Sansão, foi o texto pinçado de

um blog da internet por Gabriel Franco Rodrigues. Tanto o

texto citado quanto os escritos de Gabriel – bem como suas

experimentações sonoras em salas de ensaio – jogavam com

subjetividade e fluxos de pensamento; mencionou, em certo

escrito, um mundo vastíssimo explorado pelo pensamento, mas

longe do alcance tangível. Propus ao ator que se deixasse

levar pelo fluxo das palavras na leitura, brecando naquelas

que mais o instigavam para uma investigação das mesmas.

Julia Versoza selecionou Circuito fechado, de Ricardo

Ramos, como objeto de estudo prático. O texto é construído

somente por substantivos, narrando um cotidiano que parece se

44

repetir ad eternum. Paradoxalmente, seus escritos manifestavam

uma enorme vontade de se expressar para além do tangível, ou

do que pode ser mensurado. Em um de seus primeiros textos,

aponta que é um privilégio grande demais somente sua "cabeça"

ter voz; ansiava por abrir a boca que possuíra no pé – e isto

ia ao encontro do exercício que sugeria investigar como a voz

ressoava pelas mais diversas partes do corpo (como seria uma

voz "de cuca", "da barriga", "do joelho"...). O caminho que

optou por guiar sua elocução é dos mais interessantes:

manifestava as sensações da pessoa por trás deste cotidiano –

uma pessoa aprisionada às palavras e que sonha se libertar.

O grupo contou, ainda, com Mariana Delgado, que

infelizmente se desligou do trabalho por motivos pessoais. Sua

participação, contudo, foi determinante para traçar uma

identidade ao conjunto, e muitos dos jogos que desenvolveu com

os outros atores permaneceram. Já ausente nos últimos ensaios,

escolhera fragmento de Eu não, de Samuel Beckett, para estudo.

Não foi possível, porém, um desenvolvimento a contento deste

trabalho de elocução no curto período em que Mariana ainda

frequentou as práticas.

Cheguei a formular uma pequena sinopse para

desenvolvimento de peça radiofônica a partir do material que o

grupo me fornecera. Intitulada Te espero na estrada, procurei

traçar uma linha dramática que unisse e justificasse o

trabalho de lapidação anterior de leitura dos textos. Questões

como a personificação do vento e o fascínio (e medo) que este

exerce sobre as pessoas – ainda mais em uma alma inocente e

que anseia por poesia – seriam contrapostas a pessoas que

procuram uma espécie de fuga do cotidiano através de uma

abstração – pessoas que querem se transformar em vento. A

esperança que pode residir ao fim destes processos

antagônicos, considerando esse fim um recomeço e uma nova

chance. O enigma, a aflição e o prazer existentes em não saber

o que se passou: se uma combustão de corpos ou o leve toque de

45

uma brisa. Tudo isto seria organizado não em atos, mas em

sopros, efêmeros como o próprio vento – enxergava nestes

acontecimentos intangíveis grandes possibilidades de

exploração em um veículo acústico. No entanto, a constatação

de que o tempo seria escasso para a obtenção de um resultado

satisfatório me fez abortar a ideia.

Infelizmente, houve um único contato dos atores com o

microfone, ainda no início do processo – abril de 2013. Os

registros, anteriores aos caminhos que propus a cada um na

exploração de seu material textual, apresentam leituras cruas,

que pouco evidenciam a questão do "encontro de mundos"

sugerida pela elocução. Posteriormente, houve uma

significativa melhora nos trabalhos, porém o prazo que

havíamos acordado para a finalização das atividades já havia

expirado, e todos tiveram que se desligar deste núcleo de

pesquisa para se dedicar a outros compromissos da graduação.

Um último fator ainda a se destacar deste conjunto é

o desenvolvimento do conceito de "tipografia poética" dos

textos trabalhados – como a elocução, em sua forma plena,

seria traduzida em verbo (ou mesmo em traços)? Vê-se aqui uma

aproximação do conceito de "partitura" para a sonorização que

Haroldo de Campos enxergava na poesia concreta – "o que foi

depois confirmado pelas inúmeras versões musicais de poemas

concretos e pelas edições em CD de interpretações

orais/musicais/sonoras feitas pelos próprios poetas."

(MACHADO, 2000, p. 218).

2.4 RÉQUIEM PARA SÔNIA

O grupo encarregado de trabalhar Valsa n° 6 foi

formado por três atrizes: Ananda Ribeiro, Tainara Caroline e

Tica Mehuta. Devido a incontáveis imprevistos, os ensaios se

deram praticamente de forma mensal entre março e setembro de

46

2013. Por meio das práticas, o objetivo era pensar na

transposição de um texto dramático para o veículo radiofônico;

o que motivava o trabalho era pensar em como se dariam as

mudanças de códigos e signos no trânsito teatro-rádio.

Segundo Mariana Oliveira, Valsa n° 6 se propunha mais

a levantar questões acerca da fábula do que a construí-la de

forma convencional, visto que

a peça apresenta elementos recorrentes de

perturbação que atrapalham a leitura a partir da

chave dramática tradicional: há inúmeros cortes,

fragmentações e mudanças repentinas de assunto que

interrompem o fluxo da recepção (OLIVEIRA, 2010, p.

80-81).

Ao recompormos os estilhaços que Nelson Rodrigues nos

apresenta, constatamos que a trama de Valsa n°6 trata de uma

menina de quinze anos, Sônia, que fora assassinada por golpes

de faca vindos de seu médico, o "gagá" (RODRIGUES, 1993, p.

212) Dr. Junqueira; sem se lembrar de seu passado, nem mesmo

de seu próprio nome, Sônia tenta recordar quem era e o que

acontecera, falando consigo mesma durante toda a peça e se

debatendo com as lacunas de sua memória. Foi destas lacunas

que nos aproveitamos.

Os encontros se iniciaram com a investigação das

possibilidades sonoras presentes no texto de Nelson Rodrigues.

Após algumas leituras, cada uma das atrizes foi sublinhando as

frases e circunstâncias que mais lhe chamavam atenção; cada

uma foi buscando a faceta de Sônia que mais dialogava consigo.

Após essa seleção de falas e algumas "leituras cromatizadas",

partimos, então, para improvisações no escuro, no intuito de

fazer com que aquelas Sônias dialogassem.

Para o desenrolar das experimentações, as meninas

necessitavam andar pela sala e realizar movimentos e

partituras corporais – exercícios de caráter puramente

teatral; sentiam-se, assim, mais à vontade para o trabalho de

exploração da voz: primeiramente acessavam outras

47

corporeidades, deixando, assim, que a voz surgisse no fluxo do

movimento e das relações que pouco a pouco iam estabelecendo.

No primeiro ensaio, começaram cercadas por um

retângulo dividido em três partes – cada qual ocupava uma; em

cada uma destas partes, uma cadeira. Andavam freneticamente,

sentavam-se em diversas posições, resignificavam as cadeiras.

Em outro encontro, as cadeiras foram dispostas de forma

diferente e sem restrições de espaço – as seis, cadeiras e

meninas, ocupavam o mesmo local. As luzes estavam apagadas,

porém feixes incidiam por frestas da sala; formou-se um

verdadeiro umbral por onde se viam almas a vagar à procura de

Sônia. Sons, cadeiras a se arrastarem... Não havia uma

estruturação de ordem das falas e nem as mesmas seguiam o que

originalmente estava posto no texto, mas a atmosfera de Valsa

n° 6 ali estava instaurada.

Importante o comentário de uma das meninas ao término

do ensaio: "parece que conseguimos traduzir todo o texto em

sons". Foi neste momento que percebi certo equívoco em minha

proposta original: ora, por que deveríamos necessariamente

seguir à risca o texto dramático, obedecendo à ordem postulada

e, quando possível, atendendo às necessidades de suas

rubricas?

Acabávamos de encontrar um caminho que ia exatamente

ao encontro da proposta maior do trabalho: um corpo que sonha,

delira em forma de voz. Com isso, nossa Valsa não seguiria

precisamente o texto embrionário do processo.

Não podia desperdiçar, ainda, o rico material que

possuía em mãos, fruto das anotações de ensaios das meninas.

Para além de registros de fala e descrições dos ensaios, ricos

devaneios poéticos foram construídos: cada uma desdobrou,

estilhaçou Sônia em ainda mais facetas e nuances do que

pressupunha o texto. Riquezas nas construções de sentenças e

encaixes de pensamentos gritavam que seria uma verdadeira

heresia desperdiçar aqueles materiais.

48

Novos desencontros para ensaios e correrias

cotidianas, porém, inviabilizaram o registro acústico deste

trabalho em sua etapa final, quando optamos pela construção de

uma pequena cena a partir da esquizofrenia rodrigueana em

relação à passagem de Sônia deste mundo para o outro. Do

contato das três com o microfone, há apenas esboços das

primeiras "leituras cromatizadas" de trechos do texto

original.

Acerca da dramaturgia de Valsa n° 6,

[...] o que incita o leitor/público a acompanhar

esse jogo é a permanente caminhada por percursos

tão deslizantes e movediços. O público quer jogar

com essa situação, quer, num movimento ativo, ser

parte da narrativa, à medida que vivencia aquela

mente conturbada que é o personagem. Interessa

menos a sua essência e mais o universo no qual se

adentra juntamente ao personagem, quando se povoa,

então, outra lógica, a das incertezas (SOUZA DE

OLIVEIRA, 2011, p. 88).

A partir disso, para além de fragmentos, frases do

texto original empregadas em um ambiente soturno e incerto,

tencionava construir uma espécie de mosaico de Sônia,

miscelânea de uma das personagens mais instigantes da

dramaturgia brasileira. Se no texto original vamos, pouco a

pouco, desnudando o passado e os acontecimentos que permearam

a vida de Sônia anteriormente àquele momento, em nosso

processo trabalhávamos o incerto; dúvida que pairava, incidia

na vida de todos nós, seres que formavam – e ainda formam – um

todo ilógico e fragmentado, dividido entre reminiscências,

lembranças, memórias e devaneios do que nos ocorrera. Afinal,

o que é a memória senão estilhaços de acontecimentos e dúvidas

que nos levam inconscientemente à fantasia e à reformulação do

que de fato acontecera?

49

Figura 1 – Pedi o oceano

Fonte: Ilustração de Nani Vasques realizada especialmente para a

peça radiofônica As rubianadas.

3 RUBIANADAS

Este capítulo trata da composição da peça radiofônica

As rubianadas, construída por mim – trafegando entre as

funções de diretor, dramaturgo e montador, as quais se

encaixam na corruptela metteur-en-son (BAUAB, 1985, p. 3) – e

por mais três atores: José Paulo Brisolla de Oliveira, Marco

Antonio Paixão e Sofia Pellegrini. Ensaios e gravações-piloto

ocorreram desde o início do ano pelas salas do Departamento de

Música e Teatro e nos estúdios da Rádio UEL FM – contando com

a preciosíssima colaboração e disponibilidade do técnico João

Lopes. As gravações finais se deram em novembro de 2013 na

própria Rádio UEL e no Laboratório de Radiojornalismo do

Departamento de Comunicação – aqui sob a supervisão do técnico

Bruno Cardial, que gentilmente me auxiliou na execução da

montagem sonora.

O capítulo contempla, consequentemente, todo o

processo de elaboração da obra: desde as primeiras

investigações de possibilidades sonoras a partir de tramas e

personagens fantásticas de Murilo Rubião às várias etapas de

construção do texto radiodramático, passando pelas diversas

experimentações práticas – em salas de ensaio e ao microfone –

e culminando nos últimos ajustes para as gravações finais;

apresenta, ainda, meu trabalho na condução destas etapas e no

desenho de edição final do material captado, além das

pertinentes intervenções de minha orientadora, Heloisa Bauab.

51

Para tanto, aborda técnicas, recursos e fundamentação teórica

utilizados para composição da tessitura acústica.

Há, como nos trabalhos já mencionados, uma matriz

calcada na palavra. Como ponto de partida da prática, foram

selecionados três contos de Murilo Rubião; a cada ator coube

um conto específico – por mim escolhido – para as primeiras

investigações: O ex-mágico da Taberna Minhota ficou a cargo de

Marco Antonio; Bárbara foi designado a Sofia; A noiva da Casa

Azul, a José Paulo. Os textos se apresentavam como se

"contados" por um narrador-personagem, fator que contribuiu

para a escolha deste material e foi substancial para a

composição. Ora, estes discursos estão, certamente, destinados

a alguém – um leitor ou um ouvinte.

3.1 ACERCA DE RUBIÃO

Sempre aceitei a literatura como uma maldição.

Poucos momentos de real satisfação ela me deu.

Somente quando estou criando uma história sinto

prazer. Depois, é essa tremenda luta com a palavra,

é revirar o texto, elaborar e reelaborar, ir para a

frente, voltar. Rasgar (RUBIÃO, 1974, p. 5).

Murilo Eugênio Rubião nasceu em Carmo de Minas, sul

de Minas Gerais, em 1916, e morreu em Belo Horizonte, em 1991,

quatro dias antes da organização de uma exposição sobre sua

obra no Palácio das Artes. Formado em Direito, foi um dos

fundadores da revista literária Tendência. Trabalhou como

jornalista e ocupou altos cargos públicos, sendo Chefe do

Gabinete do Governador Juscelino Kubitschek e adido da

Embaixada do Brasil na Espanha. Idealizou, ainda, o Suplemento

Literário do jornal Minas Gerais em 1966.

Rubião possui, no total, trinta e três contos

originais. Costuma-se atribuir sua pouca produção ao trabalho

meticuloso com a linguagem – uma busca obsessiva pela palavra

exata, pela clareza do texto, pelo correto encadeamento dos

52

fatos. Não é à toa que ele tenha reescrito muitos de seus

contos em vida: entre reelaborações e republicações, tem-se um

total de oitenta e nove textos. (COSTA, MORAIS, 2008, s/p).

Os contos de Rubião estão posicionados em um novo

conceito de fantástico. Se as narrativas fantásticas dos

séculos anteriores apresentavam vampiros, mortos que

retornavam à vida, demônios – seres diferenciados do humano –,

o fantástico do século XX se incumbiu de revelar os mecanismos

que afligiam o homem e que se encontravam entranhados em sua

consciência e em suas ações. É neste panorama que as

personagens murilianas, aprisionadas a um sistema opressor que

as condena ao tédio, à solidão e ao sofrimento, sem chances de

fuga, (sobre)vivem. (ALEIXO, 2008, p. 197).

Virgínia Carvalho Costa e Márcia Marques de Morais

apontam para as lacunas e a transgressão de tempo e espaço no

universo muriliano, o que o aproximará dos sonhos; este

insólito, no entanto, é inserido no cotidiano habitual,

construído através de uma primorosa organização semântica e

sintática (muito devido à reescritura das obras) – indo na

contramão dos sonhos sob a óptica da psicanálise, tendo em

vista as dificuldades em se relatar verbalmente e com clareza

os produtos destes e de outros processos do inconsciente.

(COSTA, MORAIS, 2008, s/p).

3.2 DA ADAPTAÇÃO

Segundo a pesquisadora Lidia Camacho, há três formas

de adaptação da literatura para o rádio. A primeira é o que

ela toma por adaptação literal, e consiste em reproduzir, no

meio acústico, a obra original o mais fielmente possível; a

segunda é nomeada como adaptação livre, na qual o texto

literário que gerara o processo serve apenas como guia para a

tessitura sonora; a terceira recebe o título de transposição

53

radiofônica, e representa a transformação da obra de um meio

para o outro através de técnicas análogas – os procedimentos

sonoros escolhidos para a composição da obra radiofônica

seriam equivalentes aos linguísticos utilizados na obra

original. Como exemplo deste último tipo de adaptação, Camacho

cita A guerra dos mundos de Welles. A autora também reconhece

que as adaptações radiofônicas comumente transitam entre as

três formas registradas, apresentando, contudo,

características sobressalentes de uma nomenclatura específica,

a qual as classificaria. (CAMACHO, 2000, p. 61-65).

No que tange a As rubianadas, inicialmente houve a

preservação da integridade de diversos trechos dos contos de

Rubião. Contudo, ao decorrer das várias versões do texto,

foram necessárias diversas mudanças estruturais – muitas delas

recomendadas por Heloisa Bauab, orientadora deste trabalho,

diretora e dramaturga cuja obra para o meio radiofônico

mereceu destaque no primeiro capítulo –, todas visando à

elaboração dramatúrgica para junção dos três contos, bem como

à construção e à fluidez de diálogos entre as personagens;

pode-se dizer ainda que alguns dados, mínimos no material

textual, receberam uma espécie de lente de aumento. Por

conseguinte, As rubianadas se encaixa na categoria de

adaptação livre: diversas situações foram criadas

especialmente para a peça, tais como o encontro de personagens

de contos diferentes no trem que vai para Juparassu e toda a

sequência do pesadelo sonoro.

O processo de adaptação ainda se apresenta muito

arraigado às raízes do dramático; as saídas dramatúrgicas

utilizadas justificam e dão uma unidade coesa ao todo (mesmo

com este todo a se passar no terreno do fantástico). A peça,

contudo, foge de certos traços caros a uma obra dramática pura

(ROSENFELD, 2000, p. 30), tais como as unidades de tempo e

espaço.

54

[...] exige-se no drama o desenvolvimento autônomo

dos acontecimentos, sem intervenção de qualquer

mediador, já que o "autor" confiou o desenrolar da

ação a personagens colocados em determinada

situação (ROSENFELD, 2000, p. 30).

Sob esse prisma, As rubianadas apresenta

características épicas. Ora, há um narrador a intervir

constantemente na história apresentada; um mediador a truncar

o desenrolar da ação e o desenvolvimento autônomo dos

acontecimentos.

Percorramos as sequências propostas por As

rubianadas, cenas que procuram dar voz e cor aos devaneios da

personagem-narradora de A noiva da Casa Azul – conto que serve

como fio condutor para toda a adaptação. No texto

radiodramático, esta personagem recebe o nome de Pedro.

Há três momentos que demonstram a trajetória

maravilhosa de Pedro na busca por sua amada Dalila; três

"rubianadas" que, conforme seus desenvolvimentos, penetram

cada vez mais no onírico. Optou-se pela divisão destas

rubianadas em sequências – em detrimento do termo cenas –,

pois essas possibilitam idas e vindas pelo tempo e pelo

espaço, ainda que apresentem o desenvolvimento de uma só ação.

Estas rubianadas, gradativamente, mergulham no

insólito muriliano. A primeira, ao se passar na repartição na

qual Pedro trabalha, apresenta um homem comum, atordoado por

uma provável traição de sua noiva, Dalila. A segunda tem como

local-base um trem; revela um movimento, e, como tal,

apresenta suas consequências: o encontro de Pedro com seres

que possuem características maravilhosas.

É no trem que Pedro se encontra com a figura de

Galateu, seu chefe (na verdade, Galateu é a alcunha de uma

personagem do conto O lodo, também de Rubião). Na repartição,

Galateu era outro a soar como mais um homem comum a habitar a

terra; no entanto, nesta viagem, ele revela que fora mágico e

está a se tratar para reobter seus poderes com um tal de dr.

55

Pink (outra personagem originalmente d'O lodo); quando Pedro

está prestes a revelar suas desconfianças acerca de Dalila

para aquele homem, o trem para no ponto de descida de Galateu;

antes de se retirar do vagão, no entanto, o ex-mágico confessa

que aquela locomotiva, cheia de criaturas estranhas, saiu do

seu próprio bolso.

Nesta estação, adentra a robusta Bárbara, carregando

junto ao coração o seu filho, "raquítico e feio". Falastrona e

mal-educada, Bárbara não dá voz a Pedro ao vomitar sua

história: está a caminho de Juparassu para se encontrar com

seu marido, que lhe trará o presente que mais ambiciona: a

lua!

Bárbara é o conto que maior transformação sofre em

sua transposição para o meio acústico. O emissor do conto

original é, justamente, o marido de Bárbara; na tessitura

acústica, quem narra os fatos ocorridos é a mulher. Para isso,

foi realizado um intenso e profícuo trabalho de "mudança de

ponto de vista" junto à atriz Sofia Pellegrini, substancial

neste câmbio. Outra mudança – mas esta nos rumos da narrativa

– é o fato de ela pedir a Lua, sim, ao seu marido, e não mais

uma reles estrela. Este detalhe fora transmutado para atender

às necessidades da adaptação, principalmente na construção da

cena final – quando a Lua, ao se aproximar da Terra, leva as

marés para as Minas Gerais.

Esta rubianada já adentra no que há de mais insólito

no universo muriliano – e nos devaneios de Pedro. Seriam estes

seres todos delírios do namorado embriagado pelas lembranças

da moça da Casa Azul? "Apesar das coisas me aparecerem com

extrema nitidez, espelhando uma realidade impossível de ser

negada, resistia à sua aceitação". (RUBIÃO, 2010, p. 167). O

mesmo homem atordoado que constatará que a namorada há muito

já morrera – mesmo antes de ele cogitar a viagem a Juparassu,

mesmo antes de ele conhecê-la adulta! E aquelas personagens

56

curiosas, peculiares? Existiriam ou seriam frutos de sua

imaginação?

A terceira rubianada é, enfim, a imersão definitiva

no onírico. Ora, Juparassu é local para o devaneio; "Juparassu

é entrelugar do factual e da fantasia, onde presente e passado

se confundem, num tempo especial, que pode bem ser o tempo do

inconsciente." (COSTA; MORAIS, 2008, s/p). Será dentre os

escombros do passado de Pedro que se consolidará a fantasia

engordativa de Bárbara e que voltarão, em definitivo, os

poderes do mágico! Será esta pequena cidade do sertão da

Farinha Podre, coração de Minas, invadida pelo mar! Sim, Minas

virará mar. "Chuá, chuá, chuá..."

Pode-se dizer, desta forma, que estas rubianadas

acompanham o movimento do trem: vão do real ao ilusório em

fragmentações espaciais, temporais, tal qual o percurso do

conto original A noiva da Casa Azul. Costa e Morais (2008,

s/p) comparam esta fragmentação psíquica do narrador-

personagem do conto à própria Casa Azul, lugar da verdade e do

desejo, mas constituído de fragmentos.

Neste As rubianadas, a loucura incessante desta

personagem é acentuada através de seu contato com outros

seres, que podem ser somente figuras a imergir de sua

imaginação. Estas figuras, ainda, apresentam anseio semelhante

ao seu: querem alcançar algo. Pedro, narrador de A noiva da

Casa Azul e também de As rubianadas, ambiciona "recuperar o

desejo alienado nos estilhaços que lhe sobram." (COSTA;

MORAIS, 2008, s/p); Galateu deseja o mesmo no que tange aos

seus poderes; Bárbara é composta pelos seus próprios anseios,

sentindo-se incompleta – e realmente perdendo "pedaços", massa

corporal, no caso – quando estes não são realizados. Em As

rubianadas, essas figuras estilhaçadas se tornam evidentes e,

quando alcançam o que querem, o mundo que as abriga já não é

mais o mesmo.

57

O mais importante: toda esta articulação não se deu

na mera associação de ideias enquanto pensamentos intangíveis

a serem postos em um papel, e sim através das práticas

realizadas em sala de ensaio: da relação que os atores

propuseram para as personagens nos experimentos é que surgiram

os encontros destes seres e seu alinhavo na dramaturgia. E as

possibilidades nascidas no plano da escrita foram testadas em

sala de ensaio para se firmarem em definitivo como parte da

obra.

O diálogo com a orientadora também foi vital para a

construção da peça. Conforme já explanado, Bauab me aconselhou

a quebrar as enormes sequências literárias que eu trazia dos

textos de Rubião nas primeiras versões de As rubianadas; desta

forma, eu poderia criar e fazer fluírem diálogos e situações

que não cansassem os ouvintes. Também sugeriu, para não soar

tão óbvio, que os sons e ruídos não fossem ilustrados, somente

apresentados no momento de sua menção, e sim que surgissem em

outros pontos da peça – conferindo-lhe, assim, maior riqueza

acústica.

Como exemplo concreto desta criação coletiva, o

próprio texto radiodramático, em constante aprimoramento. A

primeira versão foi concebida, após vários encontros e

trabalhos radioteatrais, a partir dos contos de Murilo e das

primeiras experimentações dos atores; após revisão de Heloisa

Bauab, voltei a trabalhar com o grupo, que ora me fornecia

subsídios para a resolução de antigas questões e ora me

entregava novos materiais brutos – novos problemas a

solucionar! Houve momentos em que foi necessário um real

trabalho de dramaturgo – não de alguém que apenas coleta

material e o organiza, mas que também concebe elementos para

melhor articulação do todo. E assim formou-se a tríade atores-

autor-supervisora, responsável pelo resultado final.

58

3.3 DO TRABALHO COM OS ATORES

A intensa participação dos atores durante todo o

processo teve como finalidade a manutenção da identidade do

trabalho deste grupo específico, e aí se enquadra a questão da

elocução como encontro único entre enunciador e enunciado –

tão alardeada no capítulo anterior. Fosse este trabalho

realizado desde o início com outros atores, não só o resultado

final seria diferente, mas certamente o seriam também diversas

passagens do texto radiodramático. Ora, não foi um trabalho de

composição realizado somente a partir dos textos de Rubião,

mas sim de todas as possibilidades trabalhadas pelos atores,

do material levantado por aqueles indivíduos em ensaios. Ou

seja, não fui somente eu como dramaturgo que "rubianei": os

atores também sonharam concretamente Murilo Rubião através dos

sons.

Os atores começaram o processo brincando com as

estruturas e sonoridades das palavras e frases articuladas dos

contos murilianos, trabalhando a partir daquelas referências e

jogando, estabelecendo contato um com o material do outro. Foi

do ensaio que surgiu o barulho do trem, a decisão por adaptar

o conto Bárbara sob a óptica da personagem-título.

Iniciei o caminho de composição das personagens na

contramão do que o próprio Murilo Rubião propunha em sua

poética: a objetividade de sua linguagem e a constante busca

da clareza acabavam por intensificar o fantástico em sua

literatura (ALEIXO, 2008, p. 191); ou seja, ele tomava

potências distintas na forma e no conteúdo justamente para

acentuar o insólito.

Sempre propus que os atores trabalhassem no limiar do

exagero, do rebuscado, a fim de que fossem construídas

caricaturas com as vozes. Acreditava que isso soaria bem na

exploração das variadas possibilidades acústico-teatrais que o

59

fantástico abrange; o resultado ao microfone, porém, não ficou

a contento.

Por sugestão da orientadora, os atores desceram um

pouco o tom carregado das personagens; por vezes, a palavra

não precisa ser sublinhada no plano da expressão para se fazer

entender – já possui potência suficiente no fluxo do texto.

Optou-se, então, por se trabalhar com o tom natural dos atores

pontuado por momentos de exagero – exagero este que chega ao

máximo na sequência do pesadelo sonoro.

Outra sugestão de Heloisa Bauab foi a escalação de

outros atores para darem conta da polifonia de personagens. No

desenho inicial do trabalho, pensava que os três estudantes

poderiam se responsabilizar por todas aquelas vozes em um jogo

com o farsesco e o exagero; quando esta articulação estética

caiu, porém, este jogo não mais se justificava, e José e Sofia

– conforme alertou Bauab –, possuem timbres muito

característicos, o que poderia confundir o público se os dois

aparecessem repetidamente, mesmo em personagens com uma só

fala. Recorri, então, a nomes que me acompanharam nos outros

experimentos e não me negaram assistência.

3.4 DOS RECURSOS E TÉCNICAS ACÚSTICOS

A miscelânea de formas de composição acústica

proposta por As rubianadas – ora a peça é guiada pela fala,

ora somente por música, ora por ruídos – procura destoar do

que se cristalizou como ficção radiofônica devido à herança

das radionovelas.

O exagero proposto pontualmente no plano da expressão

sublinha algumas características murilianas, enquanto a opção

por evidenciar alguns ruídos – a música do circo, o barulho do

mar – vindos de fonte sonora humana, deixando assim explícito

60

o fato de que toda aquela ilusão é artificial, marca a

exposição dos dispositivos de composição radiofônica.

Para a edição final, conforme sugestão da

orientadora, procurou-se a espacialização das personagens no

espectro sonoro; cada personagem e cada situação dramática

também mereceu um tratamento acústico diferenciado. A narração

de Pedro se localiza ao centro – conforme modelo tão caro às

peças radiofônicas clássicas. Seu discurso enquanto vivencia

os fatos narrados, no entanto, está posicionado ao lado

esquerdo do espectro (o lado da lógica e da razão no cérebro

humano), enquanto personagens como Galateu e Bárbara estão ao

lado direito (o lado da criatividade e das artes). Quando

tomam a posição de narradores de suas histórias, Galateu e

Bárbara vão para o centro do espectro.

O trem trafega pelos polos esquerda-direita, o que,

além de indicar o movimento do veículo, dá a ideia de que o

mesmo é uma espécie de elo entre esses dois mundos: o

concreto, crível aos ouvidos humanos, e o insólito. Há, ainda,

sobreposições de discursos quando estes estão em consonância –

ou, por vezes, até mesmo em dissonância, como no estonteante

prólogo. Como exemplo mais claro deste efeito, o momento da

leitura que Pedro faz da carta deixada por Dalila – aqui,

percebe-se que o discurso é idêntico no plano da forma, mas

não referente às intenções dos emissores, já que Pedro, em um

primeiro momento, mesmo desconfiado de que Dalila ficara

balançada ao encontrar o ex-noivo, não vê maldade no ato de

ela ter dançado com o cavalheiro por educação, enquanto que,

através da elocução de Dalila, já localizada no "plano do

fantástico" do espectro acústico, nota-se claramente certa

perfídia no aceite do convite. As diversas variações de polo

no espectro por parte de Pedro se tornam constantes quando,

atordoado pelas figuras com que trombou no decorrer deste

caminho, por todas as informações que lhe foram despejadas

61

sobre Dalila e sobre si mesmo, ocorre o que está intitulado no

roteiro como "pesadelo sonoro".

Quanto à exploração das diversas formas de

composição, é bom ressaltar que não há uma intenção meramente

expositiva: cada movimento foi pensado de forma a se construir

uma dramaturgia sonora, pertinente – obviamente – ao universo

muriliano e às peculiaridades de cada conto e personagem. No

que tange à parte do ex-mágico, também intitulada de

"elucubrações circenses", optou-se por apresentar aquela

história como um grande espetáculo de circo, com direito a

plateia, risos, exagero na forma da expressão, construção de

momentos de tensão, a música e outros elementos ora a ilustrar

exatamente o que está se dizendo na fala – momentos de

melodrama circense –, ora a ditar o ritmo da mesma, ora a se

contrapor ao discurso. "Da voluptuosidade ou do apetite

desenfreado da vida" é muito forte nos jogos de palavras,

surgidos a partir do improviso dos atores. As partes

conduzidas por Pedro variam entre momentos de extrema lógica e

racionalidade – tradicionais, na elaboração da tessitura

acústica – a puros devaneios sonoros.

Nesta fusão (e confusão!) entre o que é o real ou

ilusório para Pedro, são expostos os recursos acústicos na

forma da expressão: é notório, conforme já frisado, que as

vozes dos atores são as responsáveis pelo trem – vozes que se

convertem no barulho da máquina propriamente dito por um

processo de fusão, bem como as ondas do mar ora são

realisticamente mostradas, ora não passam de um "chuááá,

chuááá" pronunciado. Há, ainda, diversas interrupções de

ruídos que remetem ao (des)sintonizar e às mudanças de estação

de um antigo aparelho de rádio, o que não deixa o público se

esquecer de que está a acompanhar uma ficção radiofônica. A

opção pela utilização destes recursos, muito característicos

do meio acústico, reforça a ideia de que se está contando

algo.

62

Ao final, o encontro definitivo: a voz de Pedro passa

por um processo de transformação, como se o mesmo fosse

gradativamente aprisionado a um aparelho radiofônico – o que

acontece de fato! Aqui não haveria mais dúvidas de se estar

ouvindo uma tessitura acústica para rádio, de estar-se vivendo

uma ilusão. Seria o equivalente, se estivéssemos falando de

teatro, à explicitação da caixa preta e dos dispositivos

teatrais – no decorrer, em pequenas porções; agora em

definitivo. Sim, os ouvintes foram expostos a uma pulsão

contínua de devaneios articulados traduzidos sob forma

acústica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Infelizmente não consegui cumprir a meta inicial que

tracei para cada um dos três grupos. O quarto ano de Artes

Cênicas, por si só, muito exige dos alunos – bem como os

outros anos, e dez destes atores eram discentes regulares do

curso. Vistos estes percalços, não há Hércules que enfrente os

desafios aos quais me propus de maneira satisfatória em um ano

letivo.

Devo, no entanto, muito a todos os atores que

integraram os experimentos práticos. Nos momentos de maiores

angústias e em espinhosas encruzilhadas teóricas, pegava-me a

refletir sobre nossas práticas e nossas tão frutíferas

discussões - e assim conseguia visar caminhos viáveis;

diversas das frases que eles disseram, muitas em um ímpeto

pós-exercício, foram essenciais para me guiar nesta jornada.

Além de me ajudarem a compreender a voz como potência

artística e criativa plena e a elocução como ação legítima a

ser investigada no trabalho do ator, não recuaram em me

auxiliar por uma última vez nas etapas finais das gravações de

As rubianadas.

Descobri que não precisava elucubrar ou ir muito além

para escrever estes relatos; não foi necessário sistematizar

métodos que servirão de guias para outros trabalhos

radiofônicos - até porque isso, além de soar muito

pretensioso, é algo que não existe; cada processo, por mais

que se aproveite de conceitos já estabelecidos, apresenta suas

64

singularidades (assim como as palavras!) e traça seu próprio

caminho. Bastou, então, que eu me concentrasse nas práticas em

andamento para que todos estes escritos surgissem.

Este trabalho, portanto, também é de responsabilidade

dos atores; atores que compartilharam comigo este fascínio

pelas palavras e pelo meio acústico. Os tijolos desta casa

foram eles que produziram; fui apenas um pedreiro a passar

cimento para interligá-los.

E, graças à realização de As rubianadas, pude tomar

contato com a gramática acústica e seus meandros: a partir da

convergência e articulação de signos sonoros – voz, música e

ruídos –, procurei explorar as possibilidades do rádio como

veículo de arte acústica em todas as suas dimensões. Apesar de

o ponto de partida ser a palavra escrita – e eu correr o risco

de ela se sobrepor como recurso mais significante na obra

final devido a isso –, busquei integrá-la aos outros elementos

sonoros de forma a obter uma sintaxe radiofônica plena.

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Londrina, 1991.

APÊNDICES

70

Figura 2 – Janela para Juparassu

Fonte: Ilustração de Nani Vasques realizada especialmente para a

peça radiofônica As rubianadas.

71

APÊNDICE A

AS RUBIANADAS

peça radiofônica de

LUCAS MARTINS NÉIA

a partir de tramas e personagens fantásticas de

MURILO RUBIÃO

e jogos e improvisações dos atores

JOSÉ PAULO BRISOLLA DE OLIVEIRA

MARCO ANTONIO PAIXÃO

SOFIA PELLEGRINI

supervisão dramatúrgica

HELOISA BAUAB

(Versão original gravada em novembro de 2013 nos estúdios da Rádio

UEL FM e do Laboratório de Radiojornalismo do Departamento de

Comunicação, Centro de Educação, Comunicação e Artes da Universidade

Estadual de Londrina, Brasil.)

72

AS RUBIANADAS

PRÓLOGO: JANELA PARA JUPARASSU

PRIMEIRA RUBIANADA: NA REPARTIÇÃO

SEQUÊNCIA I – TELEGRAMA

SEGUNDA RUBIANADA: NO TREM E EM OUTRAS FRAÇÕES DE MUNDO

SEQUÊNCIA II – PARTIDA DA ESTAÇÃO

SEQUÊNCIA III – ESTRANHOS PASSAGEIROS

SEQUÊNCIA IV – O EX-MÁGICO DA TABERNA MINHOTA OU ELUCUBRAÇÕES

CIRCENSES

SEQUÊNCIA V – BÁRBARA OU DA VOLUPTUOSIDADE E DO APETITE DESENFREADO

DA VIDA

SEQUÊNCIA VI – INQUIETAS SOMBRAS

TERCEIRA RUBIANADA: EM JUPARASSU

SEQUÊNCIA VII – (LEMBRANÇAS DE) DALILA MOÇA

SEQUÊNCIA VIII – A VOLTA À TERRA MÃE

SEQUÊNCIA IX – TOUS LES GARÇONS...

SEQUÊNCIA X – A CASA AZUL

EPÍLOGO: PESADELO SONORO (CÂNTICO DOS CÂNTICOS)

73

PERSONAGENS/VOZES POR ORDEM DE ENTRADA

GALATEU

BÁRBARA

PEDRO

CARTEIRO

COLEGA DE TRABALHO

DALILA

DONO DO RESTAURANTE

LOCUTOR DO CIRCO

GAROTO-PROPAGANDA DO CIRCO

UMA MULHER

JORNALISTA

MOÇA DE SORTEIOS

POLICIAL

PASTOR

ESPECTADORA

ESPECTADOR

UMA COLEGA DE TRABALHO

CHEFE

SEGISMUNDO (IMITADO POR BÁRBARA)

AGENTE DA ESTAÇÃO

COLONO

E AINDA

VOZES E SONS DE AUDITÓRIO E PLATEIA

ONOMATOPEIAS DE UMA CRIANÇA PEQUENA

FRANÇOISE HARDY

74

ao metteur-en-son:

Não se furte em acrescentar ruídos de sintonia

e/ou interferências em algumas pechas;

lembremos de que se trata de uma tessitura acústica

a ser transmitida por uma estação qualquer

e cujo meio material na qual permanece registrada

está sujeito à danosa ação do tempo.

75

PRÓLOGO: JANELA PARA JUPARASSU

OUVE-SE O SINTONIZAR DE UM RÁDIO – COMO SE ALGUÉM ESTIVESSE A

TRAFEGAR POR DIVERSAS ESTAÇÕES; NESTE ÍNTERIM, SINTONIZAM-SE

FRAGMENTOS DOS SEGUINTES DISCURSOS – ORA A FALA DE UM, ORA A FALA DE

OUTRO, ORA FALAS EM CONCOMITÂNCIA –, EXCLAMADOS EM UM CRESCENTE

ÍMPETO DE LOUCURA E PERMEADOS POR MÚSICAS RETUMBANTES, BEM COMO

TRECHOS FAMILIARES AOS OUVIDOS DO PÚBLICO – TAIS COMO O TOQUE DO

REPÓRTER ESSO OU A ABERTURA DE A VOZ DO BRASIL...

GALATEU – ...concluí que somente a morte poria termo ao meu

desconsolo. Firme no propósito, tirei dos bolsos uma dúzia de leões

e, cruzando os braços, aguardei o momento em que seria devorado por

eles. No entanto, nenhum mal me fizeram! Rodearam-me, farejaram

minhas roupas, olharam a paisagem e se foram...

BÁRBARA – ...meu marido me levava ao cinema, aos campos de futebol.

O menino sempre ia carregado nos braços, pois, ano após o seu

nascimento, continuava do mesmo tamanho, sem crescer uma polegada. E

eu só desejava, nessas ocasiões, ou máquina de projeção ou a bola

com a qual se entretinham os jogadores...

PEDRO – ...Juparassu surgiria no cimo da serra, mostrando a

estaçãozinha amarela. Deixei que a ternura me envolvesse e a

imaginação fosse encontrar, bem diante dos olhos, aqueles sítios que

representavam a melhor parte da minha adolescência...

EIS QUE, NO AUGE DA RETUMBÂNCIA DE MÚSICAS, VOZES E TONS, HÁ UMA

BRUSCA MUDANÇA DE ESTAÇÃO. OUVEM-SE APENAS ALGUNS ACORDES AO FUNDO –

MERO RASCUNHO DOS RUFARES ANTERIORES. COMO SE PROVIESSEM DE DENTRO

DE UM RÁDIO, AS PALAVRAS ABAIXO:

PEDRO - ...azul como a; azul como aaa; azul como a, azul como a,

azul como a...

76

Figura 3 - Telegrama

Fonte: Ilustração de Nani Vasques realizada especialmente para a

peça radiofônica As rubianadas.

77

PRIMEIRA RUBIANADA: NA REPARTIÇÃO

SEQUÊNCIA I – TELEGRAMA

UMA REPARTIÇÃO. MÁQUINAS DE ESCREVER A TODO VAPOR.

CARTEIRO – Telegrama.

O BARULHO DAS MÁQUINAS CESSA AO FINDAR DA FALA ACIMA; À FALA ABAIXO,

OUVE-SE UM RASGAR DE ENVELOPE E UM DESDOBRAR DE PAPEL.

PEDRO (NARRADOR) – Não foi dúvida, e sim a raiva quem me possuiu

quando, de posse daquela carta, tomei conhecimento de seu conteúdo.

COLEGA DE TRABALHO – O que é?

PEDRO – É de Dalila.

COLEGA DE TRABALHO – O que está escrito?

PEDRO – Que dançara ontem

algumas vezes com o ex-noivo.

(PEQUENO ACORDE DE TANGO)

Encontrou-se com ele em uma

festa, (OUTRO ACORDE, MAIS

INTENSO) cortejou-a, (ACORDE

AINDA MAIS INTENSO) e ela não

o repelira por simples questão

de cortesia. (UM ÚLTIMO

ACORDE, A FINDAR O TANGO) E,

hoje pela manhã, partiu de

volta a Juparassu no primeiro

badalar do sino.

DALILA – ...encontrei-me com

ele em uma festa, (PERFÍDIA NA

VOZ A SE ACENTUAR A CADA

ACORDE DO TANGO) cortejou-me e

não o repeli para dançar por

simples questão de cortesia.

COLEGA DE TRABALHO – E o que você vai fazer agora?

PEDRO (NARRADOR) – Não titubeei: saí às pressas da repartição com

destino à estação de trem. O meu destino era certeiro.

78

SEGUNDA RUBIANADA: NO TREM E EM OUTRAS FRAÇÕES DE MUNDO

SEQUÊNCIA II – PARTIDA DA ESTAÇÃO

INICIA-SE, PROGRESSIVAMENTE, O BARULHO DE UM TREM. VOZES HUMANAS SE

ALTERNAM COM RUÍDOS DE UMA MARIA FUMAÇA REAL E COM TRECHOS DE O

TRENZINHO DO CAIPIRA, DE VILLA-LOBOS. A VOZ DE PEDRO, AO MENCIONAR O

SEU DESTINO, TRANSFORMA-SE PAULATINAMENTE NO APITAR DO TREM.

PEDRO – Juparassuuuuuuuuu!

SEQUÊNCIA III – ESTRANHOS PASSAGEIROS

PEDRO (NARRADOR) – Ao adentrar o vagão de número três do trem que

atravessaria as Minas Gerais, deparei-me com criaturas exóticas: um

senhor de aparência fúnebre, tão pálido que eram notórias todas as

suas veias; uma senhora magra e esguia com o olhar fixo em um eterno

horizonte... Até mesmo um coelho, um coelho a proferir grunhidos

humanos a seu acompanhante. E qual não foi minha surpresa ao avistar

o senhor Galateu, chefe da repartição na qual trabalho, a penetrar

aquele mesmo vagão?

INICIA-SE A AMBIÊNCIA DO TREM, SEMPRE INTERROMPIDA EM MOMENTOS DE

NARRAÇÃO.

GALATEU – Ora se não é o destino um grande gozador? Sempre a cruzar

o caminho daqueles mais suscetíveis a alguns milagres do mundo.

PEDRO (NARRADOR) – Foi com estas palavras que ele sentou-se à minha

frente. Muitas palavras, pouca estatura. O homem chamava a atenção

pelo fraque velho e batido que trajava e pela enorme cartola em sua

cabeça. Começou a discorrer sobre tudo: do tempo às questões

políticas do país...

GALATEU – ...e este não é o maior problema! Desde que aquele nanico

assumiu a presidência que as Minas não mais recebe atenção nos

setores que lhes são vitais para pujança econômica... (MUDANÇA DE

TOM) Aborreço-te, Pedro?

PEDRO – Não, senhor! Só estou um pouco enfastiado com o movimento do

trem...

GALATEU – Mas sua fisionomia indica que algo muito maior que este

balançar atinge-lhe. Responda: está satisfeito com teu emprego?

PEDRO – Oh, mas é claro, senhor! Não tenho do que reclamar.

GALATEU – Pode se abrir comigo, meu caro. Não me veja como aquele

homem do escritório que só sabe falar em burocracias! Sei o quão

penosa é a vida em uma repartição pública. O destino de todo homem,

ao atingir certa idade, é enfrentar uma avalaaanche do tédio e da

amargura. E, mesmo acostumados às vicissitudes desde a meninice,

através de um longo processo de dissabores, alguns não conseguem

encarar esta vida com a devida sobriedade.

79

TROMBETAS COMO A ANUNCIAR UMA PRÓXIMA ATRAÇÃO.

GALATEU – Eu fui um destes. Um dia, dei com os meus cabelos

ligeiramente grisalhos num espelho... No espelho da Taberna Minhota.

PEDRO – (ESPANTO) O senhor já trabalhou em uma taberna?

GALATEU – Posso dizer... Que nasci em uma taberna. (MELANCOLIA)

Posso dizer que nasci naquele momento. Ali fui atirado à vida, sem

pais, sem infância ou juventude. Sem estar preparado para o

sofrimento.

CESSA, DE VEZ, A AMBIÊNCIA DO TREM.

SEQUÊNCIA IV – O EX-MÁGICO DA TABERNA MINHOTA OU ELUCUBRAÇÕES

CIRCENSES

GALATEU – (ASSUME A POSIÇÃO DE NARRADOR) A descoberta daqueles fios

brancos não me espantou, e tampouco me surpreendi ao retirar do

bolso... (RISADA) O dono do restaurante! Sim, o dono do restaurante!

Ele sim, perplexo, me perguntou...

DONO DO RESTAURANTE – Como pôde ter feito isso? Tirar-me do seu

bolso? Como vim parar aqui?

GALATEU – O que eu poderia responder nessa situação? Eu, uma pessoa

que não encontrava a menor explicação para minha presença no mundo!

(APLAUSOS DO AUDITÓRIO) Disse-lhe que nascera cansado e entediado.

Sem meditar na resposta, ofereceu-me emprego; passei a divertir a

freguesia (RISADAS DIVERSAS E PALMAS DA ASSISTÊNCIA A PERDURAREM ATÉ

O FINAL DA FRASE) da casa com meus passes mágicos. O homem,

entretanto, não gostou da minha prática de oferecer aos espectadores

almoços gratuitos, (PALMAS SE INTENSIFICAM) que eu extraía

misteriosamente de dentro do paletó. Querendo de mim se livrar,

apresentou-me ao empresário do...

PRATOS E RUFAR DE TAMBORES.

LOCUTOR DO CIRCO – O Circo-Parque Andaluz!

MÚSICA DE CIRCO.

GAROTO-PROPAGANDA DO CIRCO – Venham, venham! Sensacional atração: o

mágico da Taberna Minhota! Venham, venham...

GALATEU – O público, em geral, me recebia com frieza. (BOCEJO) Ao

contrário dos dias de hoje, àquela época não me apresentava de

casaca ou de cartola. Mas, quando, sem querer, começava a extrair do

chapéu coelhos, cobras, lagartos, os assistentes vibravam. Sobretudo

no último número, em que eu fazia surgir, por entre os dedos, um

jacaré! Em seguida, comprimindo o animal pelas extremidades,

transformava-o numa sanfona. E encerrava o espetáculo tocando...

LOCUTOR DO CIRCO – O Hino Nacional da Cochinchina.

80

TOCA-SE O HINO, QUE ACOMPANHARÁ A PRÓXIMA FALA.

PEDRO – Juparassuuuuuuuuu...

UMA MULHER – Pam-pam, pã-rã-rã-rã-rã-pam-pam...

GALATEU – Os aplausos vinham de todos os lados, sob o meu olhar

distante. Não me tocavam nem os elogios das criancinhas que iam às

matinês de domingo. (HINO VAI DESAPARECENDO AOS POUCOS, MERGULHANDO

A FALA EM UM SILÊNCIO PERTURBADOR) Por que me emocionar com aqueles

rostos inocentes, destinados a passar pelos sofrimentos que

acompanham o amadurecimento do homem? Muito menos me ocorria odiá-

las por terem tudo que ambicionei e não tive: um nascimento e um

passado. (PAUSA) Com o crescimento da popularidade, a minha vida

tornou-se insuportável.

JORNALISTA – Com o crescimento da população mundial, o Instituto de

Análise Demográfico-Sentimental informa...

MOÇA DE SORTEIOS – O número de hoje é...

GALATEU – A minha vida tornou-se insuportável!

MOÇA DE SORTEIOS – Seis...

JORNALISTA – Sete bilhões de pessoas no mundo.

MOÇA DE SORTEIOS – Sete...

JORNALISTA – Sete bilhões de pessoas sem rumo.

MOÇA DE SORTEIOS – Zero.

GALATEU – (DE FORMA RÁPIDA E SINCOPADA) Quase sempre, ao andar pela

rua, provocava o assombro dos pedestres ao sacar um lençol do bolso

– só queria um lenço para assoar o nariz! Se eu mexia na gola do

paletó, logo aparecia um urubu. Em outras ocasiões, indo amarrar o

cordão do sapato, das minhas calças deslizavam cobras! (GRITOS DE

MULHERES E CRIANÇAS) Situação cruciante.

PEDRO – Situação... Cruciante.

GALATEU – (DESOLADO) Nada fazia...

PEDRO – Cru-ciante.

GALATEU – Olhava para os lados...

PEDRO – Cru.

GALATEU – ...e implorava com os olhos por um socorro!

PEDRO – Cru.

GALATEU – Que não poderia vir de parte alguma. (RÁPIDA PAUSA; SOM DE

SIRENE E BARULHO DE AGLOMERAÇÃO) Vinham guardas, ajuntavam-se

81

curiosos, um escândalo. Tinha de comparecer à delegacia e ouvir a

autoridade policial vociferar:

POLICIAL – É proibido soltar serpentes em vias públicas!

GALATEU – Tímido e humilde, mencionava a minha condição de mágico,

reafirmando o propósito de não molestar ninguém! Também, à noite,

costumava acordar sobressaltado com um pássaro ruidoso a bater as

asas ao sair do meu ouvido. (REVOAR DE PÁSSARO)

GALATEU (PASSADO) – Saia do meu ouvido, seu pássaro imundo!!! Vá

bater as asas na casa da Cacilda!

GALATEU – Numa dessas vezes, disposto a nunca mais fazer mágicas,

mutilei as mãos. Não adiantou! Ao primeiro movimento que fiz, elas

reapareceram novas e perfeitas nas pontas dos tocos de braço!

(PAUSA) Concluí que somente a morte poria fim ao meu desconsolo.

UMA MULHER – (EM TOM DE LITURGIA) Uuuh...

GALATEU – Afastei-me da zona urbana e busquei a serra. Ao alcançar o

ponto mais alto...

UMA MULHER – Uh, uuuh...

PASTOR – E o diabo tentou o Senhor: pula, que teu Pai mandará dois

anjos para lhe salvar.

GALATEU – Abandonei o corpo ao espaço.

BARULHO DO VENTO.

UMA MULHER – Uh, uuuh...

PASTOR – E o senhor mandou teus anjos.

GALATEU – Senti apenas uma leve sensação da morte. Logo me vi

amparado por um paraquedas. (CESSA O VENTO) Com dificuldade,

machucando-me nas pedras, sujo e estropiado, consegui regressar à

cidade, onde a minha primeira providência foi adquirir... Uma

pistola!!!

ESPECTADORA – (ASSUSTADA) Ah! Não faça isso!

ESPECTADOR – É agora. É agora!

GALATEU – Em casa, estendido na cama, levei a arma ao ouvido.

ESPECTADORA – Não, que é isso?

Você não pode fazer isso. Não,

não... Tenha cuidado.

ESPECTADOR – É agora, é agora;

isso, vai. É a hora. É, é,

você consegue!

GALATEU – Puxei o gatilho, à espera do estampido, a dor da bala

penetrando na minha cabeça.

82

ESPECTADOR – Isso, vai; isso!!!

ESPECTADORA – Não!!!

O SOM DE UM TIRO BRUSCAMENTE CORTADO.

GALATEU – Não veio o disparo nem a morte: a arma se transformara num

lápis!

A PLATEIA O OVACIONA, TRIUNFANTE!!!

GALATEU – (COM PESAR) Rolei ao chão soluçando! Eu, que podia criar

outros seres, não encontrava meios de libertar-me da existência!

(PAUSA; MUDANÇA DE TOM) Eis que uma frase, uma frase que escutara

por acaso na rua, trouxe-me nova esperança de romper em definitivo

com a vida...

JORNALISTA – O Instituto de Análise Demográfico-Sentimental informa:

ser funcionário público é suicidar-se aos poucos.

GALATEU – Não me encontrava em condições de escolher qual forma de

suicídio seria melhor: se lenta ou rápida. Por isso me empreguei na

Secretaria do Estado! (BARULHO DO DATILOGRAFAR DE MÁQUINAS A DITAR O

RITMO DAS FALAS SUBSEQUENTES; INICIA-SE EM UMA VELOCIDADE NORMAL)

1930, ano amargo, mais longo que os posteriores à minha primeira

manifestação de vida ante o espelho da Taberna Minhota. Não morri,

conforme esperava. Maiores foram minhas aflições e maior o meu

desconsolo. (PARAM AS MÁQUINAS) Quando era mágico, pouco lidava com

os homens. O palco me distanciava deles... Agora/

UMA COLEGA DE TRABALHO – Tem uma pilha aí pra você assinar –

documento por documento!

GALATEU – (VOLTAM AS MÁQUINAS DE ESCREVER; O DATILOGRAFAR, BEM COMO

A VELOCIDADE DAS FALAS, CADA VEZ MAIS ACELERADO) Obrigado à

proximidade de meus semelhantes, necessitava compreendê-los,

disfarçar a náusea que me causavam. E toda aquela situação levou-me

à revolta contra a falta de um passado!

PEDRO – (COMEÇA A GAGUEJAR, NEURASTÊNICO) Da-dadadada-dada...

GALATEU – Por que somente eu não tinha alguma coisa para recordar? O

amor? (AQUI CESSAM AS MÁQUINAS) O amor me veio por uma funcionária/

PEDRO – (AO PRENÚNCIO DA PALAVRA "AMOR", AGORA A BALBUCIAR EM UM TOM

DOCE) Da-dadada-Dalila!

GALATEU – (CONTINUA, SEM DAR MUITA ATENÇÃO AO DRAMA DE PEDRO)

...vizinha de mesa de trabalho. Ela me distraiu um pouco dos meus

tormentos. (VOLTAM AS MÁQUINAS; O DATILOGRAFAR MAIS RÁPIDO QUE

NUNCA) Cedo, no entanto, retornou o desassossego, e eu me debatia em

incertezas: como me declarar à minha colega se eu nunca tivera

sequer uma experiência sentimental?... (O FINDAR DO BARULHO AS

MÁQUINAS) 1931 entrou triste, com ameaças de demissões coletivas na

Secretaria e a recusa da datilógrafa em me aceitar. Ante o risco de

ser posto na rua, procurei acautelar meus interesses. Fui ao chefe

83

da seção e lhe declarei que não podia ser dispensado, afinal aqueles

dez anos de casa eram sinônimo de estabilidade no cargo!

CHEFE – (COMO SE TOSSISSE) Dez! Dez. Dez, dez, dez... (SARCÁSTICO) O

seu cinismo é surpreendente. Jamais poderia esperar que um reles

empregado com um ano de trabalho tivesse a ousadia de afirmar que

está na labuta há dez anos...

GALATEU – Para lhe provar não ser leviana a minha atitude, procurei

nos bolsos documentos que comprovassem a veracidade do que eu dizia.

Só achei um papel amarrotado, fragmento de um poema inspirado nos

seios da datilógrafa. Dez anos... (TOM MELANCÓLICO) Confiara demais

na faculdade de fazer mágicas e ela fora anulada pela burocracia.

VOLTA A AMBIÊNCIA DO TREM.

PEDRO – Que história incrível, senhor Galateu!

GALATEU – (NÃO MAIS SOB O STATUS DE NARRADOR) Sem os antigos dons de

mago, não consegui abandonar a pior das ocupações humanas...

PEDRO – O senhor me perdoe, mas... Como conseguiu chegar à chefia da

repartição?

GALATEU – Ora, para alguma coisa estes vinte anos – que alguns

julgam quatro ou cinco – me serviram! Por mais curioso que possa

parecer, o mesmo homem que me taxara de cínico indicou meu nome para

seu substituto quando se aposentou da chefia. Você sabe que algumas

ocupações exigem certa frieza e comportamentos não muito

ortodoxos... (RETOMA A CONDIÇÃO DE NARRADOR) Até hoje suspiro alto e

fundo. Não me conforta a ilusão: serve somente para aumentar o

arrependimento de não ter criado todo um mundo mágico. (REPENTINA

MUDANÇA; VOLTA O HINO NACIONAL DA COCHINCHINA) Mas estou ciente de

que ainda posso fazê-lo! De que voltarei a arrancar do corpo lenços

vermelhos, azuis, brancos, verdes... De que encherei a noite com

fogos de artifício! E serei ovacionado, coberto dos aplausos dos

homens de cabelos brancos, das meigas criancinhas! (OUVEM-SE

APLAUSOS, ASSOVIOS E GRITOS)

PEDRO – (A CORTAR A ILUSÃO) Como o senhor tem tanta certeza disso?

GALATEU – Porque estou a caminho de mais uma consulta com o

famigerado doutor Pink da Silva e Glória, conhece? Ele possui uma

clínica bem no meio da estrada para Juparassu. Bem no meio do

nada... O sujeito consegue recuperações milagrosas aos olhos da

medicina e está particularmente empenhado em meu caso. Ele disse que

todos os meus poderes acabaram atolados no lodaçal que possuo dentro

de mim. O que ele faz é drenar a lama que ali está para desafogar

toda a mágica. Já obtivemos progressos bem interessantes.

PEDRO – É mesmo?

GALATEU – (CONVICTO) Sim! (PAUSA) Posso confessar-lhe uma coisa? (EM

TOM DE LOUCURA) Este trem... Eu o retirei do meu bolso.

FORTE APITAR DO TREM.

84

PEDRO (NARRADOR) – Armou o picadeiro, contou sua história e foi-se

embora.

SEQUÊNCIA V – BÁRBARA OU DA VOLUPTUOSIDADE E DO APETITE DESENFREADO

DA VIDA

TREM A PROSSEGUIR SEU CAMINHO.

PEDRO (NARRADOR) – Eu estava estupefato! Sabia que ser funcionário

público era padecer no inferno, mas não desconfiava, até então, do

poder de alguns demônios. Quando pensei que poderia fugir de todas

aquelas elucubrações, um novo ser chamou-me a atenção – não só a

minha, mas a de todos naquele vagão. (RECLAMAÇÕES DOS PASSAGEIROS)

Adentrou pela porta uma senhora farta de carnes, que mal conseguia

se locomover pelo estreito corredor dentre os bancos. Sentou-se à

minha frente e, apesar da cara de poucos amigos, não pude deixar de

alertá-la que alguma coisa se movia incessantemente no bolso

localizado junto a seu regaço.

BÁRBARA – Oh, não se preocupe! É meu filho, que carrego junto ao

peito.

PEDRO – Ele está no seu bolso?

BÁRBARA – Sim. É pequeno o suficiente para tal. Se você me visse no

período de gestação, não acreditaria. Meu ventre se dilatara de

forma tão assustadora que eu chegava a ficar escondida atrás daquela

barriga colossal!

PEDRO – A senhora me perdoe, mas... Como é sua graça?

BÁRBARA – Bárbara.

PEDRO – Bom, dona Bárbara, perdoe-me a indelicadeza, mas é um pouco

difícil imaginá-la maior do que está.

BÁRBARA – Não, não: eu murchara! A barriga é que crescera. Temia

que, do meu ventre, saísse um gigante ou um monstro! Para meu

desapontamento, no entanto, nasceu um ser raquítico e feio, pesando

um quilo. (O CHORO DO BEBÊ NO PARTO) Já possui oito anos, e não

cresceu sequer um milímetro desde o nascimento... Aí tenho que

carregá-lo para todos os lados. Oh, como é difícil lidar com algo

que não encomendamos.

PEDRO – Presumo que a senhora seja... Casada.

BÁRBARA – Sou, sou sim. Por um infortúnio do destino, confesso. Era

companheira inseparável de Segismundo na meninice. Namoramos,

noivamos e, um dia, nos casamos.

PEDRO – Ah, os encantadores amores da juventude...

BÁRBARA – Agora, porém, não passamos de simples companheiros. Meu

marido não consegue... (COM MALÍCIA) Atingir-me satisfatoriamente.

85

Figura 4 – Ba-o-Bárbara

Fonte: Ilustração de Nani Vasques realizada especialmente para a

peça radiofônica As rubianadas.

86

PEDRO – Como?

BÁRBARA – Atingir... Meu coração de forma satisfatória.

PEDRO – (ENVERGONHADO) Oh, sim, sim, entendi... Perdão pela

indiscrição.

BÁRBARA – Se bem que eu seria injusta se dissesse que ele não

procura me agradar. Desde a nossa juventude que ele satisfaz todas

as minhas vontades. Levara tantos tombos ao subir em árvores pra

pegar frutas por minha causa; (COM PRAZER) apanhara tanto dos

meninos que eu pedia pra ele agredir! Ao fim, sempre consigo dele o

que quero, seja com uma palavra afetuosa ou com um doce olhar. E, a

cada pedido realizado, eu engordo um pouco.

PEDRO – Imagino que seu marido, então, seja extremamente devotado à

senhora.

BÁRBARA – Houve uma época na qual, temeroso pela minha saúde e por

meu peso, ele se fez duro. Ameaçou até abandonar-me ao primeiro

pedido que recebesse! Mergulhei, então, em uma tristeza sem fim.

Todos diziam que minha angústia contagiava o ambiente. Acabei por

definhar, e meu ventre a crescer assustadoramente – foi aí que

constatamos a gravidez. (COM TERNURA) Quando meu marido me viu

magra, pálida, ficou com medo de que aquilo fosse prenúncio de grave

moléstia. Temia que nosso filho morresse em meu ventre! Suplicou-me,

então, para que eu lhe pedisse algo. (TOMA A POSIÇÃO DE NARRADORA)

Pedi o oceano. Chuááá, chuááá, chuááá...

NESTE MOMENTO, FUNDEM-SE O SOM DA VOZ DE BÁRBARA E O SOM REAL DO

MAR. PEDRO AFOGA-SE EM SUAS LEMBRANÇAS POR DALILA.

PEDRO – (AFOGANDO-SE) Da... Dalila! Daliiila! Daaa... Dalilaaa.

CORTE BRUSCO.

BÁRBARA – Dalila? (PAUSA) Quem é Dalila?

PEDRO – Dalila... Dalila é minha namorada.

BÁRBARA – Oh! E ela estará te esperando na estação, não é?

PEDRO – Não! Ela não sabe que vou a seu encontro. Não vejo a hora de

beijá-la, abraçá-la! Não vejo a hora de olhar para seus olhos e

dizer: "vim de surpresa para ficarmos noivos". Seus olhos... Azuis

como o céu, azuis como a... Azuis como o mar!

BÁRBARA – Um amor da juventude... Estes mares costumam ser

excessivamente tormentosos e padecer de terríveis ressacas.

PEDRO – (SÉRIO, COMO A MUDAR DE ASSUNTO) A senhora conseguiu o mar?

BÁRBARA – (PINGOS D'ÁGUA) Segismundo trouxe-me uma pequena garrafa

contendo água do oceano. O senhor tem razão... (COM FASCÍNIO) A água

do mar é azul como o céu, é cristalina! Passei a dormir com a

garrafinha entre os braços – o menino não era nem nascido ainda...

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Sempre, ao acordar, eu provava um pouco da água. Mas o líquido pouco

durou... Depois, legitimamente mãe, pedi a meu marido um ba-o-bá,

plantado no terreno ao lado do nosso. Acredita que, primeiramente,

Segismundo me veio com um galho da árvore? Cheguei até a fazer troça

de toda a situação...

BÁRBARA (PASSADO) – (A VOCIFERAR) Idiota!!! Não lhe pedi um galho!

SEGISMUNDO (IMITADO POR BÁRBARA) – Ma, ma, mas... Bárbara, o baobá é

demasiado frondoso, é muito grande!

BÁRBARA – Acredita que meu marido se assustou com meu tom de voz!?

Segismundo é muito tolo, até hoje não sabe diferenciar um chiste de

algo mais sério... Como o dono do imóvel se recusou a vender a

árvore separadamente, tivemos que adquirir toda a propriedade por um

preço exorbitante, acredita?

PEDRO – Mas você o retirou da terra? Por que não deixou o baobá

fincado no chão de origem?

BÁRBARA – Por que não deixa sua namorada a vagar pelo mundo em paz?

(TOQUE SINISTRO) Por vezes, necessitamos que certos seres se curvem

a nossas vontades. Eu só queria... Eu só queria colocar meus pés

naquele tronco. Chegar ao topo do baobá, sentir a maciez de suas

folhas... Coisa que não conseguiria com a árvore em pé.

PEDRO – (ENGRAÇADINHO) Até porque ela não ficaria em pé se a senhora

a escalasse, não é?

BÁRBARA – (IGNORANDO-O) Fechado o negócio, contratamos o serviço de

alguns homens que, munidos de pás, picaretas e um guindaste,

arrancaram o baobá do solo e o estenderam no chão. (MUDANÇA DE TOM)

Como era rijo aquele tronco; todo aquele tronco à minha mercê...

Senti-me uma normalista quando lá desenhei um coraçãozinho com o meu

nome e o nome de Segismundo... (BARULHO DE VENTO) Só que as folhas

murcharam, o colorido foi desaparecendo... Secou. Ficou feio. Não

servia mais pra nada. Nada mais me servia... (CESSA O VENTO) E o

fedelho, mesmo minúsculo, sempre a espernear, a torrar minha

paciência com seu choro, suas gritarias...

PEDRO – Mas por que pedidos tão grandiosos?

BÁRBARA – Ora, eu necessito de algo que me complete! O senhor...

Como é seu nome?

PEDRO – O meu? É Pedro.

BÁRBARA – ...o senhor Pedro há de convir que não é qualquer coisa

que se equipara a uma mulher de minha envergadura, não é? (TOMA A

FUNÇÃO DE NARRADORA) Já estava me sentindo vazia, fraca quando

encontrei novamente a garrafinha... A garrafinha da água do mar!

Mesmo vazia, ela me encheu de vontade... E uma lâmpada acendeu no

meu estômago!

APITO DE UM NAVIO.

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BÁRBARA (PASSADO) – Seria tão feliz se possuísse um navio.

SEGISMUNDO (IMITADO POR BÁRBARA) – Ma, mas... Bárbara, meu bem,

ficaremos pobres, não teremos como comprar alimentos. O garoto

morrerá de fome!

BÁRBARA – Com doçura, persuadi Segismundo.

BÁRBARA (PASSADO) – (A VOCIFERAR) Não importa o garoto!!! Teremos um

navio, que é a coisa mais bonita do mundo.

BÁRBARA – Lá foi Segismundo novamente para o litoral. (BARULHO DO

MAR) O quão amável ele é quando quer satisfazer as minhas

vontades... Dentre os transatlânticos ancorados no porto, (OUTRO

APITO DE NAVIO) escolheu o maior! Mandou que o desmontassem e o

transportassem à nossa cidade. Ah, quando, na estação, chegou um

trem carregado somente com as partes do navio, meus olhos se

encheram de lágrimas! (RISADA DA CRIANÇA) Até um gracejo fiz para

meu pequeno, que acompanhara o pai na empreitada! Quando o barco

ficou pronto... Oh, eu não desci mais a terra! Passava os dias e as

noites no convés; sentia-me plena ao desfilar pela nau.

PEDRO – E por que desceu a terra e pegou este trem?

BÁRBARA – Um dia, comecei a olhar fixamente para o céu.

Repentinamente, Segismundo se prostrou diante de mim desesperado,

pedindo que eu parasse de admirar as estrelas. Tentou até puxar-me

pelo braço, mas não contava com minha força. Quem acabou arrastando-

o fui eu. Foi então que eu pedi...

PEDRO – (CURIOSO) O quê?

BÁRBARA – A lua.

PEDRO – A lua!?

BÁRBARA – Sim, a lua. (TOQUE CELESTIAL) E eu a terei hoje! Hoje, eu

me completarei com a lua.

PEDRO – Seu marido? Seu marido...

BÁRBARA - Ele me prometeu que nos encontraríamos em Juparassu. Ele

com o meu presente e eu com todo o amor que possa caber dentro de

mim.

PEDRO – Haja amor, minha senhora. Haja amor...

SEQUÊNCIA VI – INQUIETAS SOMBRAS

APITAR DO TREM.

PEDRO (NARRADOR) – (RONCO DE BÁRBARA) Sentia-me exausto. Todas

aquelas histórias na minha cabeça... Eu não conseguia dormir!

Bárbara somente virara de lado e caíra nos braços de Morfeu. Um sono

profundo, que chegava a emudecer o barulho do trem. Eu não mais via

89

a face daquela mulher, e sim um amontoado de manchas a compor uma

tela de proporções gigantescas. Não sabia mais quem era Bárbara,

quem era Galateu... Por alguns instantes, tudo parecia fruto de uma

febre, uma febre inebriante que me fazia clamar mais e mais por

Dalila, mergulhar nos retalhos de memória que deformavam meu

inconsciente. Só conseguia mergulhar em Dalila...

UMA MULHER – (EM TOM DE LITURGIA) Uh, uuuh...

90

Figura 5 – Azul como a, azul como a...

Fonte: Ilustração de Nani Vasques realizada especialmente para a

peça radiofônica As rubianadas.

91

TERCEIRA RUBIANADA: EM JUPARASSU

SEQUÊNCIA VII – (LEMBRANÇAS DE) DALILA MOÇA

APITAR DO TREM.

PEDRO (NARRADOR) – Juparassu! Juparassu surgia ante os meus olhos,

no alto da serra. Mais quinze minutos e estaria na plataforma da

estação, aguardando condução para casa, onde mal jogaria a bagagem e

iria ao encontro de Dalila. Da Dalila da Casa Azul! Da Dalila que,

em menina, tinha o rosto sardento e era uma garota implicante,

rusguenta. Não a tolerava e os nossos pais, por questões de divisas

de terras, se odiavam. Mas, certo verão, por ocasião da morte de meu

pai, os moradores da Casa Azul, assim como os ingleses das duas

casas de campo restantes, foram levar-me suas condolências, e tive

dupla surpresa: (INCIDE MÚSICA ROMÂNTICA) Dalila perdera as sardas,

e seus pais, ao contrário do que pensava, eram ótimas pessoas!

Trocamos visitas e, uma noite... Beijei Dalila. (AQUI A MÚSICA

ATINGE O ÁPICE) Beijei Dalila. Nunca Juparassu apareceu tão linda e

nunca as suas serras foram tão azuis. (MUDANÇA DE ESTAÇÃO; COMO SE A

VOZ DE PEDRO SAÍSSE DE UM APARELHO DE RÁDIO) Azul como aaa, azul

como a; azul como a, azul como a, azul como a...

TOQUES DE PIANO QUE CONDUZEM A UM METAL PESADO.

PEDRO – (LOUCO, DESVAIRADO) Eu beijei... Dalila. Eu beijei Dalila.

Eu beijei Dalila! Eu beijei Dalila! Eu beijei Dalila. Eu beijei

Dalilaaa!

CORTE SECO DA MÚSICA.

PEDRO (NARRADOR) – E quanto a Bárbara... Bárbara não mais roncava.

PEDRO – Bárbara? Barbarata? Barbarella? Barbazul?

PEDRO (NARRADOR) – Bárbara havia desaparecido.

SEQUÊNCIA VIII – A VOLTA À TERRA MÃE

FORTE APITAR DO TREM. AMBIÊNCIA DE UMA ESTAÇÃO: PASSAGEIROS A

DESCEREM, FUNCIONÁRIOS A DESCARREGAREM OS VAGÕES.

AGENTE DA ESTAÇÃO – O senhor é o engenheiro encarregado de estudar a

reforma da linha, não? Por que não avisou com antecedência que

chegaria? Arrumaríamos o nosso melhor quarto.

PEDRO – Ora, meu amigo, não sou engenheiro e nem pretendo ver obra

alguma.

AGENTE DA ESTAÇÃO – Então o que veio fazer aqui?

PEDRO – Tenciono passar as férias em minha casa de campo.

92

AGENTE DA ESTAÇÃO – Hum. Não sei como poderá, pois... Acontece que

as casas de campo estão em... Ruínas.

ACORDE DE SUSPENSE.

PEDRO – (DESCONCERTADO) Quem me alugaria um cavalo para dar umas

voltas pelas vizinhanças?

AGENTE DA ESTAÇÃO – Mas não há cavalos por aqui. Ao menos não em um

raio de cem quilômetros. E para que cavalos se nada há de

interessante para ver nos arredores?

PEDRO – (RETOMA FÔLEGO POUCO A POUCO) É que, é que há muitos anos

não venho por estas paragens. Queria só rever alguns lugares por

onde passei a um... A um par de anos atrás!

AGENTE DA ESTAÇÃO – O senhor me assustou! Pensei que conversava com

um paranoico. Quer que eu lhe acompanhe neste passeio para melhor

direcioná-lo?

PEDRO – Não, obrigado. Deixa que eu vou sozinho.

UM RUÍDO ENSURDECEDOR DE VENTO.

SEQUÊNCIA IX – TOUS LES GARÇONS...

PEDRO (NARRADOR) – Não caminhara mais de vinte minutos quando,

próximo ao local de minha casa, fui tomado por uma música... Uma

música saída diretamente da minha juventude. A primeira música que

eu dancei com Dalila!

OUVEM-SE SONS A SIMBOLIZAR UM ANTIGO RÁDIO A SER SINTONIZADO E

INICIA-SE A MÚSICA TOUS LES GARÇONS ET LES FILLES, NA VOZ DE

FRANÇOISE HARDY. EM DETERMINADO TRECHO DA MÚSICA, OUVE-SE DALILA A

SUSSURAR, SÁDICA, ALGUNS VERSOS DE OUTRA FORMA:

FRANÇOISE HARDY – [...]

oui mais moi

je vais seule

par les rues

l'âme en peine

oui mais moi

je vais seule

car personne ne m'aime

mes jours comme mes nuits

sont en tous points pareils

sans joies et pleins d'ennuis

personne ne murmure

"je t'aime" à mon oreille

DALILA –

oui mais vous

il va seul

par les rues

l'âme en peine

oui mais vous

il va seul

car personne ne vous aime

personne ne murmure

"je t'aime" à son oreille

AO TÉRMINO DESTE TRECHO, VOLTAM AS INTERFERÊNCIAS NO RÁDIO.

COLONO – Porcaria de rádio!

93

SEQUÊNCIA X – A CASA AZUL

TOQUE RÁPIDO A CAUSAR SUSPENSE.

PEDRO – (ESTARRECIDO) Meu Deus!

PEDRO (NARRADOR) – De repente, estaquei aturdido: da minha casa

restavam somente as paredes arruinadas, a metade do telhado caído, o

mato invadindo tudo... Eu me recusava a acreditar em tudo aquilo!

COLONO – Deixe Deus fora disso, meu filho.

PEDRO – O senhor mora aqui há muito tempo?

COLONO – Desde menino.

PEDRO – Certamente conheceu esta casa antes dela se desintegrar. O

que houve? Foi um tremor de terra?

COLONO – Nada disso aconteceu. Sei da história toda, contada por meu

pai. (TOMA A POSIÇÃO DE NARRADOR) Há muito tempo, toda a região foi

assolada por uma epidemia de febre amarela que perdurou por muitos

anos. A partir daí, ninguém mais se interessou pelo lugar. Os

moradores das casas de campo sobreviventes nunca mais voltaram, nem

conseguiram vender as propriedades. E o rapaz que vivia nessa casa

aí foi levado para a capital com a saúde precááária... Nem sei se

ele resistiu à doença.

PEDRO – E... Dalila?

BARULHO DO VENTO.

PEDRO (NARRADOR) – (UM SUPLÍCIO DE ESPERANÇA) Dalila!

COLONO – Não conheço ninguém com esse nome não, senhor!

PEDRO – A moça... A moça da Casa Azul.

COLONO – Ah! A noiva do moço desta casa? (PAUSA) Morreu.

INTERFERÊNCIAS NA TRANSMISSÃO.

PEDRO (NARRADOR) – (TOM FANTASMAGÓRICO; VENTOS QUE, GRADATIVAMENTE,

FICAM MAIS FORTES) Fiquei siderado ao ver ruir a tênue esperança que

ainda alimentava. Sem me despedir, retomei a caminhada. Os passos

trôpegos, divisando confusamente a vegetação na orla da estreita

picada... Ao subir até uma pequena colina, avistei as ruínas da Casa

Azul. Avistei-as sem assombro, sem emoção. Cessara toda a minha

capacidade emocional. Senti meus passos se tornaram firmes novamente

e me muni de coragem: de dentro daqueles escombros eu iria retirar a

minha amada.

RAJADAS DE VENTO.

94

EPÍLOGO: PESADELO SONORO (CÂNTICO DOS CÂNTICOS)

É NO CONTATO DE PEDRO COM O PASSADO QUE GALATEU RECUPERA SEUS

PODERES EM DEFINITIVO E BÁRBARA TEM REALIZADA SUA GRANDE FANTASIA

ENGORDATIVA: A LUA. E A CHEGADA DO SATÉLITE EM JUPARASSU CAUSARÁ

TORMENTAS TERRÍVEIS NOS MARES; CONCRETIZA-SE A CHEGADA DO MAR ÀS

MINAS GERAIS!

GALATEU – A lua. A luuuuuua. A luuuuuuuuua...

BÁRBARA – Eu quero a lua!

GALATEU – É ela! É ela, é ela...

PASTOR – E era Noé da idade de seiscentos anos, quando o dilúvio das

águas veio sobre a terra.

INTERRUPÇÃO NA TRANSMISSÃO.

JORNALISTA – Senhores ouvintes, nosso boletim meteorológico informa:

qualquer modificação nas estações da lua pode causar algum tipo de

tormenta nas marés. Bruscas modificações são capazes de provocar

ondas gigantes.

VOLTAMOS À NOSSA PROGRAMAÇÃO NORMAL.

BÁRBARA – Eu quero... O oceano. Chuááá. Chuááá. Chuááá...

O MAR TOMA TODO O ESPECTRO ACÚSTICO.

GALATEU – O mar... O mar nas Minas Gerais!

PEDRO – Dalila!!! Eu vi Dalila! Eu vi Dalila!!!

BÁRBARA – Dalila veio com o mar!

PASTOR – E aconteceu que, passados sete dias, vieram sobre a terra

as águas do dilúvio.

PEDRO – (AFOGANDO-SE) Dalila! Eu vou... Eu vou ao teu encontro! Da,

Daaa, Daliiila! Daaa... Dalilaaa.

PASTOR – E durou o dilúvio quarenta dias sobre a terra. E cresceram

as águas e levantaram a arca, (INTERFERÊNCIA NA TRANSMISSÃO) e ela

se elevou sobre a terra.

PEDRO – (COMO SE ESTIVESSE PRESO A UM APARELHO DE RÁDIO) Da minha

casa restavam somente as paredes arruinadas, a metade do telhado

caído, o mato invadindo tudo... Eu me recusava a acreditar em tudo

aquilo!

BÁRBARA – Chuááá... Chuááá... Chuááá... Chuááá...

95

APÊNDICE B

APÊNDICE ACÚSTICO

97

APÊNDICE ACÚSTICO A

98

AS RUBIANADAS

(versão original gravada em CD)

Três instâncias oníricas. A busca de um homem por sua misteriosa

amada; as reminiscências de um ex-mágico a clamar pela volta de seus

poderes; a ânsia e voracidade de uma mulher que engorda

desenfreadamente a cada pedido que lhe atendem. Trajetórias que se

cruzam no trem a caminho de Juparassu, local onde tudo pode

acontecer... Rubianeie conosco através dos sons!

FICHA TÉCNICA

intérpretes

AMARILIS IRANI

(Espectadora)

DANILO GOMES NEIVA

(Chefe)

GABRIEL FRANCO RODRIGUES

(Espectador,

Agente da Estação)

JOSÉ PAULO BRISOLLA DE OLIVEIRA

(Pedro,

Jornalista)

JULIA VERSOZA

(Uma Colega de Trabalho)

LUCAS MARTINS NÉIA

(Colega de Trabalho, Pastor)

MARCO ANTONIO PAIXÃO

(Galateu, Carteiro,

Dono do Restaurante,

Locutor do Circo,

Garoto-Propaganda do Circo,

Policial, Colono)

SOFIA PELLEGRINI

(Bárbara, Uma Mulher,

Moça de Sorteios, Segismundo)

TAINARA CAROLINE

(Dalila)

texto, direção e produção

LUCAS MARTINS NÉIA

técnicos de som

BRUNO CARDIAL

JOÃO LOPES

edição

BRUNO CARDIAL

LUCAS MARTINS NÉIA

peça radiofônica gravada nos estúdios do

LABORATÓRIO DE RADIOJORNALISMO

e da RÁDIO UEL FM

realização

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA

(Depto. de Música e Teatro e Depto. de Comunicação – CECA)

NOVEMBRO DE 2013