Papillons : uma das representações do baile de máscaras na obra de Schumann

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i José Augusto Mannis Papillons uma das representações do baile de máscaras na obra de Schumann Trabalho de aproveitamento apresentado à disciplina Schumann: um homem de seu tempo? do curso de Pós-Graduação do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Amilcar Zani Netto. São Paulo novembro de 1998 publ. 1999: Cadernos de Pós-Graduação, Unicamp, ISSN 1516-0793, v.3, pp.59-75 rev. 2013

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José Augusto Mannis

Papillons

uma das representações do baile de máscaras

na obra de Schumann

Trabalho de aproveitamento apresentado à

disciplina Schumann: um homem de seu tempo? do curso

de Pós-Graduação do Departamento de Artes

Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da

Universidade de São Paulo, sob a orientação do

Prof. Dr. Amilcar Zani Netto.

São Paulo

novembro de 1998

publ. 1999: Cadernos de Pós-Graduação, Unicamp, ISSN 1516-0793, v.3, pp.59-75

rev. 2013

SUMÁRIO

1. Introdução ..................................................................................................................................... 1

2. Resumo de Flegeljahre ................................................................................................................. 3

3. Observações gerais........................................................................................................................ 4

4. Papillons: roteiro analítico ............................................................................................................ 6

4.1 Introdução ........................................................................................................................................... 7

4.2 Papillons, N.º 1 .................................................................................................................................... 7

4.3 Papillons, N.º 2 .................................................................................................................................... 8

4.4 Papillons, N.º 3 .................................................................................................................................... 9

4.5 Papillons, N.º 4 .................................................................................................................................. 10

4.6 Papillons, N.º 5 .................................................................................................................................. 12

4.7 Papillons, N.º 6 .................................................................................................................................. 12

4.8 Papillons, N.º 7 .................................................................................................................................. 13

4.9 Papillons, N.º 8 .................................................................................................................................. 14

4.10 Papillons, N.º 9 .................................................................................................................................. 15

4.11 Papillons, N.º 10 ................................................................................................................................ 16

4.12 Papillons, N.º 11................................................................................................................................. 19

4.13 Papillons, N.º 12 ................................................................................................................................ 22

5. Respostas aos Papillons .............................................................................................................. 24

iii

ÍNDICE DE FIGURAS

Figura 1 - Introduction aos Papillons .................................................................................................................................. 7

Figura 2 - Papillons N.º 1: motivo de Vult ........................................................................................................................ 7

Figura 3- Motivo de Vult em si bemol maior no Florestan (N.º 6) do Carnaval op. 9 (1834-5). ........................................ 8

Figura 4 - Introdução do N.º 2, salle de bal " vibrante de sons, flambante, emplies des formes, un ciel nordique, plein

d'aurores boréales..." ........................................................................................................................................................... 8

Figura 5 - Papillons, N.º 2: Walt andando pelo salão tumultuado desviando dos dançarinos - um passo aqui, outro lá - (se

faufilant) como deixa sugerir a complementaridade rítmica. .................................................................................................. 9

Figura 6 - Papillons, N.º 3: início ...................................................................................................................................... 9

Figura 7 - Papillons, N.º 3: final. .................................................................................................................................... 10

Figura 8 - Papillons, N.º 3 - compassos 14-16. ............................................................................................................... 10

Figura 9 - Papillons, N.º 4 .............................................................................................................................................. 11

Figura 10 - Papillons, N.º 4 - compasso 34. .................................................................................................................... 11

Figura 11 - Papillons, N.º 4 - parte central. ..................................................................................................................... 11

Figura 12 - Papillons, N.º 2 - segunda parte. ................................................................................................................... 12

Figura 13 - Papillons, N.º 5 ............................................................................................................................................ 12

Figura 14 - Papillons, N.º 6 - primeira parte da introdução. ............................................................................................. 12

Figura 15 - Papillons, N.º 6 - compassos 8-11, segunda parte da introdução (B). Motivo pp a ser variado. ........................ 13

Figura 16 - Papillons, N.º 6 - compassos 28-31, variação da frase ilustrada na figura anterior. ........................................ 13

Figura 17 - Papillons, N.º 7 - início, m.d. ........................................................................................................................ 13

Figura 18 - Fragmento característico de Vult (Florestan) no início do N.º 1 ...................................................................... 14

Figura 19 - Papillons, N.º 7 - ambiguidade Walt e Vult. ................................................................................................ 14

Figura 20 - Papillons, N.º 8 - compassos 9-12: Valsa. .................................................................................................... 15

Figura 21 - Papillons, N.º 9 - compassos 18-25. .............................................................................................................. 16

Figura 22 - Papillons N.º 3: Marcha. .............................................................................................................................. 16

Figura 23 - Papillons N.º 6 - compassos 8-11. ................................................................................................................. 16

Figura 24 - Papillons, N.º 10: primeira parte da introdução. ............................................................................................ 17

Figura 25 - Papillons, N.º 10: segunda parte da introdução. ............................................................................................. 17

Figura 26 - Papillons, N.º 10: terceira parte da introdução. .............................................................................................. 17

Figura 27 - Papillons, N.º 6: segunda parte da introdução, a partir do compasso 8. ........................................................... 18

Figura 28 - Papillons, N.º 10: valsa. ............................................................................................................................... 18

Figura 29 - Papillons N.º 7: Vult com a máscara de Walt. ............................................................................................. 18

Figura 30 - Papillons, N.º 7: final, m.d. .......................................................................................................................... 19

Figura 31 - Papillons, N.º 11: breve introdução................................................................................................................ 19

Figura 32 - Papillons, N.º 11 - compassos 4-7. ................................................................................................................ 19

Figura 33 - Transformação do início da Grossevattertanz até chegar à Polonaise do N.º 11 em etapas sucessivas. ............... 20

Figura 34 - Papillons, N.º 11 - compassos 12-15............................................................................................................. 20

Figura 35 - Papillons, N.º 11 - compassos 22-23............................................................................................................. 21

Figura 36 - Papillons, N.º 11 - compassos 32-33: início do intermezzo. ........................................................................... 21

v

Figura 37 - Papillons, N.º 11 - compassos 29-30............................................................................................................. 22

Figura 38 - Carnaval op. 9, Coquette (N.º 7) - compassos 1-2 e 41-42 ............................................................................ 22

Figura 39 - Grossevattertanz ............................................................................................................................................ 22

Figura 40 - Papillons, N.º 12 - compassos 10-11: prossegue o baile. ................................................................................. 23

Figura 41 - Papillons, N.º 12 - compassos 32-37: motivo de Vult sobre Grossevattertanz. ............................................... 23

Figura 42 - Caprices en Forme de Valse, op.2 de Clara Wieck. ....................................................................................... 24

Papillons : uma das representações do baile de

máscaras na obra de Schumann

José Augusto Mannis

1. Introdução

“O baile - Papillons, Carnaval op. 9, Carnaval de Viena, as Davidsbündlertanz (que são

uma espécie de carnaval íntimo: a procura de duas máscaras no interior de uma mesma

pessoa) a quarta Novelette, que traz a indicação ballmässig (como um baile), as Ballszenen op.

109, o Kinderball op. 130 - trata-se sempre em Schumann de um jogo de aparição e

desaparição. Os dançarinos são revenats mascarados. As crianças dançam sozinhas, mimando

os adultos, ou os mortos, não se sabe. Os convidados parecem ser seus próprios duplos.

Todos em Papillons parecem ter retornado de um lugar longínquo, como borboletas

enclausuradas que revivem alguns instantes ao se libertarem de suas crisálidas. A dor é uma

máscara não convidada que bate à porta. Ela não passa de um retorno, o desaparecimento

que sempre reaparece. (Como numa festa não olhar para as pessoas e não vê-las como se

estivessem fantasiadas sendo que por trás das máscaras estivessem crianças ou mortos ?)

Seria preferível que a dor não fosse mais do que uma voz imprecisa, carregada de

advertências indecifráveis, acentuações obstinadas, o fraco ruído de uma borboleta que voa

em direção à janela e bate violentamente contra o vidro congelado, enquanto estamos

simplesmente tentando dormir...”1

Compostos de 1829 a 1831 e publicados em 19322 pelo editor Kistner em Leipzig, há esquisses dos

Papillons op. 2 anteriores ao op. 1 de Schumann, as Variações Abegg.3 O material da obra provém de Valsas a

duas mãos e Polonaises a quatro mãos que permaneceram inéditas, baseadas em obras de Schubert, as Quatre

Polonaises op. 75 (D. 599, fá maior, mib menor, mi maior e fá maior) (influenciando os Papillons N.º 5 e 11) e as

1 SCHNEIDER, Michel. La Tombée du jour. Paris: Seuil, c1989. p.107-108. (Traduzido por José Augusto Mannis)

2 CORTOT, Alfred. In: SCHUMANN, Robert. Papillons. Paris: Ed. Salabert, 1965. 25 p. (Editions de travail des Oeuvres de Schumann)

(Avant-propos).

3 HALBREICH, Harry. Schumann In: Guide de la musique de piano. TRANCHEFORT, François-René. (org.) Paris: Fayard, 1987. p.706-707.

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Valsas (Papillons N.º 2, 3, 7, 8, 9 e 10)4. O jovem Schumann (19 a 21 anos) chegou até a fazer passar o N.º 8

por uma obra inédita de Schubert !

Os primeiros a serem compostos foram N.º 1 (Vult/Florestan), 3 (A Bota), 4 (Valsa das máscaras),

6 (Dança de Vult) e 8 , todos notados em forma de Ländler5, o que evidencia mais uma vez a influência de

Schubert.6

Os Papillons marcam data tanto na história da obra de Schumann como na história da música: a

introdução de uma inspiração propriamente literária, transposta em música com muita exatidão.7 No caso

são as últimas páginas dos Flegeljahre8 (l’Age ingrat9) célebre romance de Jean-Paul (Richter)10 que Schumann

tanto admirava.11

Jean-Paul e Schubert eram os ídolos de Schumann, como confessa em uma carta a Wieck (pai de

Clara)12: “Schubert ainda é ‘meu único Schubert’ , particularmente porque tem tudo em comum com ‘meu único Jean-Paul’.

Quando toco Schubert, sinto-me como se estivesse lendo um romance de Jean-Paul em forma de música.”

No romance de Jean-Paul, três são os personagens principais: Walt, seu alter ego e contrário Vult e a

jovem amada Wina. Walt e Vult já são prefigurações de Florestan e Eusebius. A escolha deste romance em

4 SCHUMANN, Robert. Carta a Wieck, 1829: “Também vou pedir-lhe que me envie todas as valsas de Schubert, e inclua os gastos em minha conta. Creio que

elas formam uns dez ou doze livros.” apud CHISSELL, Joan. Schumann música para piano. Tradução por Marco Antonio Esteves da Rocha. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. 111 p. (Guias Musicais BBC) p. 18. Tradução de: Schumann Piano Music.

5 Dança figurada de caráter popular praticada na Áustria, no sul da Alemanha e na Suíça alemã. Conhecida desde o séc. XVIII sendo até hoje

uma das mais significativas. Se caracteriza por sua melodia, seu ritmo ternário e interpretado com segundo tempo encurtado e terceiro

prolongado: [3/4 = ] A influência de Schubert ocorreu através de seus 16 Ländler (“Homenagem às belas

vienenses”) e 2 Escocesas, op.67, D 734, publicadas em fevereiro de 1827. Peças limitadas a tonalidades simples modulando com clareza e sem muita surpresa, supostamente dirigidas a um público amplo de amadores (DE PLACE, Adelaïde. Schubert. In: Guide de la Musique de piano. TRANCHEFORT, François-René. (org.) Paris: Fayard, 1987. p. 687. )

6 CORTOT, Alfred. op. cit.

7 HALBREICH, Harry. op. cit.

8 Romance em quatro volumes, os três primeiros lançados em 1804 e o quarto em 1805. Vid nota 9.

9 A tradução literal do título corresponderia aos ‘anos que precedem a adolescência’. O título em francês aparece em L’Age ingrat. In:

Dictionnaire des oeuvres. SCHOELLER, Guy. (org.) Paris: Laffont-Bompiani, 1968. v. 1. (coleção Bouquins)

10 Johann-Paul-Friedrich Richter (1763-1825), romancista alemão.

11 HALBREICH, Harry. op. cit.

12 SCHUMANN, Robert. Carta a Wieck, 1829. apud CORTOT, Alfred. In: SCHUMANN, Robert. Papillons. Paris: Ed. Salabert, 1965. (Avant-

propos).

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particular revela o conflito interno de Schumann indeciso entre a carreira musical (Vult) e literária (Walt).13

O título original em francês Papillons (masculino plural) não sugere que os irmãos gêmeos Walt e Vult

seriam em 1831 as ‘crisálidas’ de Eusebius e Florestan ?

2. Resumo de Flegeljahre 14

Walt, um jovem tabelião e filho do prefeito de uma pequena cidade alemã, descobre ao abrir o

testamento do velho von Kabel que ele mesmo é o herdeiro universal e que a família do falecido fora

completamente deserdada. Porém, antes de tomar posse da herança, Walt deve as cumprir cláusulas

contidas no testamento, como por exemplo, permanecer uma semana na casa de cada um dos parentes

deserdados; exercer durante três meses sua profissão de tabelião; passar um dia todo afinando pianos;

corrigir dez páginas impressas de uma revista. Os erros que lhe escaparem na correção ou nos atos de

tabelião, bem como cada corda que quebrar ao afinar os pianos, serão denunciados pelos parentes que o

estarão vigiando, pois cada falha corresponderá proporcionalmente a partes de terra ou troncos de árvores

que Walt deverá lhes ceder. Além disso, no caso de seduzir uma jovem, perderá um sexto da herança. Por

um adultério perderá um quarto. Naturalmente Walt aceita as condições que lhe são impostas. Na estrutura

do romance, o cumprimento das cláusulas não passa da trama externa, sendo a substância verdadeira

constituída pela representação da vida plena de emoção, humor, poesia e ironia, numa região do interior da

Alemanha. Nessa atmosfera se desenvolve a relação entre Walt e seu irmão gêmeo, Vult, que fugiu da casa

de seu pai para se tornar flautista e há muito tempo não se tinha notícias.

Vult reaparece logo no início do romance. Após ter pousado num albergue em sua região natal,

onde acabou sabendo da história do testamento, ele volta para sua cidade, Elterlein, e se esconde nos

galhos de uma macieira de onde observa na sala de seu pai que está iluminada, sua mãe Véronique e

Galdine, uma linda pequenina judia corcunda acolhida pela família como uma filha. Walt se referia a ela

como “uma pequena joia”. Vult retoma então sua viagem com o objetivo de defender e proteger seu irmão

durante as provas a que se submeterá.

13 HALBREICH, Harry. op. cit.

14 L’ Age ingrat In: Dictionnaire des oeuvres. SCHOELLER, Guy. (org.) Paris: Laffont-Bompiani, 1968. v. 1. (coleção Bouquins). (Traduzido por

José Augusto Mannis)

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Walt é “uma alma cândida e inocente de poeta”, um sonhador ingênuo, sensível, incapaz de sobreviver

aos perigos da vida. Ele precisa da ajuda de “Vult o selvagem” que, antes de experimentar o mundo – sem ter

aprendido a controlar os impulsos de seu temperamento – já se acostumara a considerar a realidade com

um ceticismo inteligente e uma ironia mordaz. O primeiro encontro entre os dois irmãos ocorreu no

albergue de um vilarejo, ao por do sol. Vult tocava flauta. Os dois irmão se reconhecem e se abraçam. A

partir deste episódio se inicia a intriga do romance. De longe ou de perto, às claras ou às escondidas, a

assistência de Vult, sempre afetuoso e vigilante, cumpre sua tarefa defensiva. Os temperamentos de Vult e

Walt se integram, se completam e, consequentemente, por vezes se atraem, outras se repudiam. O romance

inteiro é de um movimento contínuo entre diferentes estados de espírito, que podem ser confusos e

complexos.

Numa passagem, quando Walt admira o belo e frívolo conde Clotaire, a alma de Vult se invade

imediatamente pelo mais negro dos ciúmes. Estas exaltações resolvem-se no epílogo do trecho, que conduz

a uma das mais sugestivas e curiosas cenas: os dois irmãos se reconciliam, estando próximos de uma janela,

ao luar. Walt treme de emoção e afeição e Vult enche seus olhos de lágrimas. Porém, para que seu irmão

não perceba, Vult coloca-se por trás fazendo e desfazendo a pequena trança nos cabelos, pedindo que

prenda a fita nos dentes impedindo-o desta forma de se virar.

Sem dúvida o acontecimento mais grave é causado por uma jovem: Wina, a doce filha do general

polonês Zablocki, pela qual ambos apaixonam-se ao mesmo tempo.

Na cena final, representada por Schumann nos Papillons, Vult (Florestan) entra num baile de

máscaras, troca de máscara com seu irmão Walt (Eusebius) e descobre que Wina o prefere. Então decide

partir sem avisar ninguém. “Vult tomou sua flauta e saiu tocando, desceu as escadas, afastou-se da casa e se foi sem nada

dizer. Walt ouviu ecoar da rua a canção que se distanciava cada vez mais, sem saber que seu irmão estava indo embora...”

3. Observações gerais

Schumann dedicou os Papillons às suas cunhadas Thérèse, Rosalie et Émilie15, com as quais tinha

uma doce amizade, sobretudo com Rosalie. Ao enviar-lhes a partitura, Schumann escreveu: “o tempo está hoje

tão doce, tão divino, que me tomo a sonhar que uma carruagem ornamentada de rosas e puxada por um cortejo de borboletas

15 Esposas dos seus irmãos Edouard, Charles e Jules. (CORTOT, Alfred. op. cit. Avant-propos.)

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enlaçadas por fios de ouro e prata me leve até o doce lar materno. Ali, e lendo a cena final dos Flegel Jahre, todas essas

borboletas se transformariam em sons, em danças, e em reflexos: reflexo do amor angélico de Wina, do sentimento poético de

Walt e da alma ardente de Vult”.16

Em alemão, baile de máscaras se diz Larventanz. Observe-se que larve significa tanto ‘máscara’

quanto ‘larva’17 e que nos bailes à fantasia (bal costumé) o traje de rigor era o da crisálida (carapaça/casulo da

larva da borboleta), de onde se origina o título.18

A crítica para a obra foi excelente e Grillparzer, na Wiener Musikalische Zeitung, destaca a

originalidade do jovem compositor. 19 Em carta ao crítico Rellstab, Schumann revela: “Tomo a liberdade de

acompanhar os Papillons de algumas palavras sobre sua origem. O Senhor se lembra certamente da última cena dos Fegel

Jahre: as danças das Crisálidas, Walt, Vult, Wina, a dança de Vult e a troca das máscaras, as declarações, a desilusão, a

partida brusca do irmão e a cena final. Muitas vezes eu virava a última página, pois o final me deixava invencivelmente

entrever um recomeço, e foi assim, quase inconscientemente, que, ao piano diante do qual estava sentado, minhas borboletas

nasceram umas depois das outras”.20

Há em Papillons mudanças excentricamente rápidas de tonalidade, andamento, ritmo. A dificuldade

nesta obra está nas distâncias extremas entre estados de espírito contrários e que precisam ser percorridos

instantaneamente. 21

Em seu diário de 1831, Schumann escreveu: “ ... mudanças rápidas e matizes variados, de modo que o

ouvinte ainda esteja com a página anterior na cabeça quando o executante já tiver terminado. Essa ‘auto-obliteração’ dos

Papillons talvez seja passível de crítica, mas por certo não deixa de ser artística.”22 E de forma idêntica Schumann se

16 SCHUMANN, Robert. Carta de 17 de abril de 1832. (CORTOT. Alfred. op. cit. Avant-propos.)

17 CHISSELL, Joan. Schumann música para piano. Tradução por Marco Antonio Esteves da Rocha. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. 111 p. (Guias

Musicais BBC) p.17. Tradução de: Schumann Piano Music.

18 CORTOT, Alfred. op. cit. (Avant-propos).

19 HALBREICH, Harry. op. cit.

20 CORTOT, Alfred. op. cit. (Avant-propos).

21 SCHNEIDER, Michel. op. cit.

22 CHISSEL, Joan. op. cit. p.20.

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refere ao Carnaval op. 9, ao escrever a Clara: “ No ‘Carnaval’ cada nova peça anula a precedente e nem todos podem se

habituar a isso”.23 É o mesmo procedimento que em Papillons.

4. Papillons: roteiro analítico

N.º Papillons

Influência das VALSAS de Schubert

Influência das POLONAISES de Schubert

Sem influência direta

Intro X

1 X

2 X

3 X

4 X

5 X

6 X

7 X

8 X

9 X

10 X

11 X

12 X

23 SCHNEIDER, Michel. op. cit. p.77.

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4.1 Introdução

Como um arpejo, num gesto introdutório a uma canção. Ou como o anúncio aos presentes de uma

narrativa que vai começar. Pode ser um simples “Era uma vez...” (com as reticências para chegar à

dominante de ré).

Figura 1 - Introduction aos Papillons

4.2 Papillons, N.º 1

Dança das Larvas. (Vult - Florestan com traços de Eusebius)

Logo após a Introduzione, esta peça em ré maior surge como se nos deparássemos subitamente com

um movimento já iniciado de oitavas, como se algo já viesse ocorrendo antes deste início24.O motivo desta

peça, retomado no Carnaval op. 9 em Florestan, identifica-se com as palavras de Jean-Paul: “Sentia-se como um

herói, com sede de fama, que parte para a primeira batalha.”25

Figura 2 - Papillons N.º 1: motivo de Vult

24 “Ecouter Schumann, c’est très souvent entrer dans un discours qui a déjà commencé.” (SCHNEIDER, Michel. op. cit. p.75.)

25 CHISSELL, Joan. op. cit. p.34.

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Figura 3- Motivo de Vult em si bemol maior no Florestan (N.º 6) do Carnaval op. 9 (1834-5).

4.3 Papillons, N.º 2

(Baile) e (Walt - Eusebius com traços de Florestan)

“Walt entra no salão e circula pelo tumulto. Uma passagem de perder o fôlego.”

Uma introdução em mi bemol maior com desenho de uma ágil e ampla voluta representando a

energia e a vivacidade do baile: vibrante de sons, flamejante, um céu nórdico, pleno de auroras boreais.... - palavras de

Jean-Paul descrevendo o baile. Na verdade estes quatro primeiros compassos estariam para Walt assim

como a Introduzione para Vult. Haveria então uma introdução para cada um dos dois personagens

masculinos centrais26.

Figura 4 - Introdução do N.º 2, salle de bal " vibrante de sons, flambante, emplies des formes, un ciel nordique, plein

d'aurores boréales..."

26 ZANI NETTO, Amílcar. Comentários recolhidos durante seminário.

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Logo em seguida temos em lá bemol maior uma figuração com complementaridade rítmica,

movimento claramente direcionado e dinâmica ágil, correspondendo a Walt circulando pelo salão,

costurando entre as pessoas.27.

Figura 5 - Papillons, N.º 2: Walt andando pelo salão tumultuado desviando dos dançarinos - um passo

aqui, outro lá - (se faufilant) como deixa sugerir a complementaridade rítmica.

4.4 Papillons, N.º 3

Walt chega ao lado de Vult. Aparição grotesca e medonha de “uma bota errando aqui e lá, e calçando ela

mesma”28.

Schumann se referiu a este movimento como a “bota de sete léguas em fá sustenido menor”.29 Nele temos

ainda a representação de uma marcha dos companheiros de Davi (Davidsbündler).30

Figura 6 - Papillons, N.º 3: início

27 Walt quitte sa petite chambre, et, impatient de retrouver Wina, pénètre dans la salle de bal “vibrante de sons, flambante, emplie de formes, un ciel nordique, plein

d’aurores boréales, bousculé des zigzags de créatures entrechoquées.” Et c’est, se faufilant parmi ce tumulte, le passage fugitif d’un premier Papillon véritable (Walt), brévissime ‘Prestissimo’ à perte d’haleine, en mi bémol, puis la bémol. (HALBREICH, Harry. op. cit.)

28 HALBREICH, Harry. IBID

29 CHISSELL, Joan. op. cit. p.18-19.

30 ZANI NETTO, Amilcar. Comentários recolhidos durante seminário.

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(a) [a partir do compasso 1] e (b) [a partir do compasso 9] são tonais (fá sustenido menor). (c) [a

partir do compasso 17] caracteriza um cânon modal, evidenciado ao final (antepenúltimo compasso) com

mi bequadro (quinto grau menor). Apesar do modo ser lídio, a conclusão não é típica deste modo.

Figura 7 - Papillons, N.º 3: final.

Destaque-se a sexta napolitana subentendida no fá bequadro (si bemol, ré, fá) antes do mi

(dominante de lá), compasso 14.

Figura 8 - Papillons, N.º 3 - compassos 14-16.

4.5 Papillons, N.º 4

A valsa relâmpago deste movimento evoca simplesmente algumas máscaras: a Esperança (máscara

de Vult/Florestan), uma pastora, uma freirinha, um arlequim mexendo com as meninas...

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Figura 9 - Papillons, N.º 4

No compasso 34, A Tempo, a mesma frase aparece mas com sol agudo no lugar do fá (*), uma

segunda acima na repetição, de forma semelhante ao que ocorre na ossia de Cortot para a repetição da

segunda parte do N.º 2.

Figura 10 - Papillons, N.º 4 - compasso 34.

A parte central desta peça lembra o jogo rítmico da segunda parte da N.º 2 (Walt) –

complementação m.d./m.e., sendo aqui a m.e. simplificada.

Figura 11 - Papillons, N.º 4 - parte central.

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Figura 12 - Papillons, N.º 2 - segunda parte.

4.6 Papillons, N.º 5

(Wina/Clara)

Polonaise larvée. Refere-se à jovem polonesa Wina, filha do general Zablocki. Influenciada pelas

Quatre Polonaises op. 75 de Schubert.

Figura 13 - Papillons, N.º 5

4.7 Papillons, N.º 6

(Vult/Florestan)

Dança de Vult, durante a qual ocorre a troca de máscaras.

Figura 14 - Papillons, N.º 6 - primeira parte da introdução.

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Pode-se observar que os mesmos sforzandi da polonaise do N.º 5, compassos 9-11, permanecem no

início desta introdução. No compasso 4, citação de fragmento característico de Vult (Florestan) no N.º 1.

Idem, compassos 20 e antepenúltimo.

O trecho pp após a primeira barra dupla (a partir do compasso 8) [que reaparecerá integralmente no

N.º 10 com dinâmica ff ] retorna variado a partir do compasso 28, muito mais leve e dançante. A introdução

está estruturada em A-B-A.

Figura 15 - Papillons, N.º 6 - compassos 8-11, segunda parte da introdução (B). Motivo pp a ser variado.

Figura 16 - Papillons, N.º 6 - compassos 28-31, variação da frase ilustrada na figura anterior.

4.8 Papillons, N.º 7

(Vult e Walt)

A introdução (compassos 1-8) inicia-se com uma transformação do motivo de Vult, N.º 1.

Figura 17 - Papillons, N.º 7 - início, m.d.

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Figura 18 - Fragmento característico de Vult (Florestan) no início do N.º 1

À barra dupla, jogo semelhante ao da segunda parte do N.º 2 (complementaridade rítmica à m.d.)

contra uma linha fluente à m.e. Nesta página totalmente ambígua no tocante aos elementos próprios a

Florestan (Vult) e Eusebius (Walt), pode-se imaginar Vult com a máscara de Walt declarando-se a Wina.

Figura 19 - Papillons, N.º 7 - ambiguidade Walt e Vult.

Obs.: Na figura acima, a dinâmica mp é indicada por Cortot31, enquanto que Clara32 Schumann

indica mf.

4.9 Papillons, N.º 8

Uma pequena introdução em do# menor (trágica ?) precede a verdadeira valsa vienense em ré b

maior33, que deve ser acompanhada de brilhante impulsão rítmica.34 Seguindo-se ao N.º 7 esta peça entra

subitamente e ff, provocando um corte na trama anterior, como uma edição cinematográfica ou uma

31 CORTOT, Alfred. op. cit. p.10.

32 SCHUMANN, Clara. (Ed.) In: Piano music of Robert Schumann. New York: Dover Publ. Inc., 1972.

33 Schumann poderia ter escrito esta valsa em do# maior, sobretudo porque já tinha um sol maior dominante no final da introdução. A escolha

expressa da tonalidade em ré bemol revela uma provável intenção de opor a Introdução à Valsa.

34 CORTOT, Alfred. op. cit. p.11.

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articulação brusca num romance: corta a cena de Vult com a máscara do irmão e encadeamento imediato

de um plano geral do baile.

Figura 20 - Papillons, N.º 8 - compassos 9-12: Valsa.

4.10 Papillons, N.º 9

Após uma pequena introdução (compassos 1-9) temos uma passagem agitada e pp que poderia se

enquadrar numa mesma família que a Marcha da N.º 3 e na N.º 6 compassos 8-16 - movimento com um

certo paralelismo de blocos em cada uma das mãos. A dinâmica desta passagem que é sistematicamente

interrompida, freada, de forma brusca, provoca, a cada vez, um vácuo na sequência, quase que uma ‘falta

de ar’ no ouvinte e no intérprete, uma sensação de abandono, como explica Michel Schneider: “le douloureux

peut aussi prendre chez Schumann la forme paradoxale d’un mouvement si inexorablement rapide qu’il n’avance plus, ou bien

d’un arrêt vertigineux donnant l’impression d’un précipice, d’une précipitation, d’une accélération. Deux formes musicales chez

Schumann peuvent être liées à une sorte de sentiment de détresse temporelle, d’abandon. D’une part, la contrainte de la

‘Durchfürrung’, d’aller toujours vers l’avant, une fois l’œuvre commencée, ce temps irréversible dans lequel on est engagé, pris

par la main - mais cette main peut toujours vous lâcher -, voudrait-on s’arrêter, reprendre souffle, que ce n’est pas possible.

D’autre part, le pianissimo subito’: au milieu d’un élan, le son semble s’évanouir d’un coup, comme si la vie venait soudain à

manquer, ou l’amour; le temps est alors plié en arrière. Dans les deux cas, ce qui arrive, ce n’est pas d’avoir mal, de souffrir,

c’est d’avoir ‘du mal’. Du mal à être, à continuer, à ne pas abandonner cette partie dans laquelle sans cesse on est dans

l’abandon.”35

Esse sentimento de algo suprimido, de falta de alguma coisa, ilustra o sofrimento, a desilusão de

Vult que se vê abandonado após saber que não terá Wina e parte solitário, tocando sua flauta e

continuando a vida.

35 SCHNEIDER, Michel. op. cit. p.87-88.

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Figura 21 - Papillons, N.º 9 - compassos 18-25.

Figura 22 - Papillons N.º 3: Marcha.

Figura 23 - Papillons N.º 6 - compassos 8-11.

4.11 Papillons, N.º 10

A introdução desta peça consiste, grosso modo, em uma colagem de três materiais distintos:

A primeira parte da introdução, uma espécie de marcha que se enquadraria também no grupo da

Marcha da N.º 3, dos compassos 8-16 da N.º 6 e do N.º 9 (fora a introdução).

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Figura 24 - Papillons, N.º 10: primeira parte da introdução.

A segunda parte da introdução (compassos 9-16) retoma o N.º 9 (10-42) mas desta vez sem a

freadas súbitas.

Figura 25 - Papillons, N.º 10: segunda parte da introdução.

A terceira parte da introdução (compassos 17-24, Più lento) é uma réplica em ff e sol maior dos

compassos 8-16 da N.º 6 ( pp e em lá maior).

Figura 26 - Papillons, N.º 10: terceira parte da introdução.

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Figura 27 - Papillons, N.º 6: segunda parte da introdução, a partir do compasso 8.

Encadeamento com valsa schubertiana (compassos 25-44), empregando desenho de arcadas

contínuas e fluidas à m.e., lembrando a passagem ambígua em que Vult estaria usando a máscara de Walt

no N.º 7 (compassos 9-24).

Figura 28 - Papillons, N.º 10: valsa.

Figura 29 - Papillons N.º 7: Vult com a máscara de Walt.

Ao final, após uma curta recapitulação da introdução (compassos 69-72), volta a valsa (74-82)

tendo à mão direita o motivo (sol - do - ré - sol) possivelmente empregado por Schumann em outras obras.

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Figura 30 - Papillons, N.º 7: final, m.d.

4.12 Papillons, N.º 11

(Wina/Clara)

Seguindo a linha da introdução da N.º 10, chegamos aqui praticamente a uma verdadeira Fanfarra.

Figura 31 - Papillons, N.º 11: breve introdução.

Introdução (compassos 1-3) da polonaise inspirada no op. 75 de Schubert: Wina alegre e coquette.

Figura 32 - Papillons, N.º 11 - compassos 4-7.

O motivo dos compassos 6-7 (retomado em 18-19 e 26-27) parece anunciar a Fanfarra com a

Grossevattertanz do N.º 12, cuja melodia está presente na voz superior.

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Figura 33 - Transformação do início da Grossevattertanz até chegar à Polonaise do N.º 11 em etapas

sucessivas.

Um segundo material entra no caldeirão deste N.º 11 : figuras que repetidamente parecem

impulsionar algo adiante (fig. 33 A) e se dissipando em seguida (fig. 33 B) e diluindo-se na sequência do

compasso 16. Ao reaparecer no compasso 48 (in Tempo vivo) a parte B é modificada.

Figura 34 - Papillons, N.º 11 - compassos 12-15.

Vemos em seguida no compasso 22 a aparição súbita, rompendo a regularidade métrica, das células

ilustradas na figura 34. Freada extremamente brusca (oitavas descendentes) e relance, tomando grande

impulso para seguir adiante (oitavas ascendentes). Essa parada e repartida, que ocorre também nos

compassos 58-59, traz novamente a sensação de perda, de abandono - a perda de um movimento regular

onde se estava confortavelmente instalado e subitamente nos é tirado sem explicações (como no N.º 9 ) -

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juntamente com a necessidade vital de prosseguir sem se deixar abalar.36 O personagem em questão é sem

dúvida Vult.

Figura 35 - Papillons, N.º 11 - compassos 22-23.

O intermezzo deste N.º 11 (compassos 32-39) parece querer expressar em seu Più lento a emoção

dolorosa de Vult abandonado. Por coincidência temos quase que o tema de Clara em tonalidade maior na

voz superior descendente37

Figura 36 - Papillons, N.º 11 - compassos 32-33: início do intermezzo.

Nos compassos 29-30 e 44-46, temos quase que um mimetismo de risada - Wina se diverte (fig. 36).

O mesmo efeito será empregado duas vezes no Carnaval op. 9, em Coquette (N.º 7) compassos 1-3 e 41-42

(fig. 37) representando a frivolidade da personagem e, ainda no Carnaval, em Réplique (N.º 8), compassos 2-3

e 6-7 o desdém para um dançarino/personagem apaixonado que se declara. O elemento retorna no

compasso 44.

36 Vid texto de Michel Schneider no N.º 9.

37 Doloroso do op. 2 de Clara Wieck, que será escrito após Papillons. Vid fig.41, p.15.

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Figura 37 - Papillons, N.º 11 - compassos 29-30.

Figura 38 - Carnaval op. 9, Coquette (N.º 7) - compassos 1-2 e 41-42

4.13 Papillons, N.º 12

Finale com Fanfarra em escrita de trompas soando a Grossevattertanz38 (Dança do Vovô), conhecida

desde o séc. XVII39, executada na Alemanha para anunciar o final dos bailes40 (a nossa Valsa do Adeus).

Figura 39 - Grossevattertanz

O baile prossegue em 2/4 nos compassos 10-17

38 Uma caricatura dos Filisteus. (CORTOT, Alfred. op. cit. p.22.)

39 CHISSEL, Joan. op. cit. p.35.

40 A Grossevattertanz aparece também para encerrar o baile do Carnaval, op. 9 (Marcha dos Davidsbundler contra os Filisteus) e no Carnaval de Viena

(marcha em fa# maior) logo antes do Très animée, citando ainda no trecho a Marselhesa, proibida em todo o território austríaco.

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Figura 40 - Papillons, N.º 12 - compassos 10-11: prossegue o baile.

Mas a Fanfarra volta a interromper (18-24). Subitamente temos o motivo completo de Vult

(Florestan) do N.º 1 que ressurge, e mais tarde percebe-se que a Fanfarra tocando a Grossevattertanz

permanece na m.e.

Figura 41 - Papillons, N.º 12 - compassos 32-37: motivo de Vult sobre Grossevattertanz.

O motivo de Vult vai se encurtando, distanciando, apagando, transformando-se em seis toques de

sino41 (como no romance de Jean-Paul: “Os rumores da noite de carnaval se apagam, o carrilhão da torre soa seis

horas”), criando uma verdadeira fotografia sonora da cena final dos Fegeljahre42, representando o

distanciamento do irmão que partia. Esse desaparecimento também está presente no acorde de lá maior ao

final (compassos 90-91), as notas são relaxadas uma a uma, gerando uma filtragem sucessiva até que

permaneça somente a nota lá, concluindo em seguida, após dois impulsos do lá grave, com ré maior.

Desaparecer de forma suave, sem perceber, filer à l’ anglaise, ou, sair à francesa, parece ser uma coisa

própria da escrita de Schumann (v. Variações Abegg e, de outra forma, em surgimento mágico, ’ Paganini, no

41 O procedimento de metamorfose sucessiva da célula anuncia a técnica de variação contínua de Brahms.

42 A primeira versão dos Papillons trazia em exergo: “Écoutez! Dans le lontain, Walt écoutait, transporté, les notes qui fuyaient, car il ne comprenait pas que son frère s’ en allait avec elles”. (CHISSELL, Joan. op. cit. p.19-20.) (SCHNEIDER, Michel. op. cit. p.79)

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Carnaval op. 9 ). Cabe novamente referência ao seu diário de 1831: “mudanças rápidas e matizes variados, de modo

que o ouvinte ainda esteja com a página anterior na cabeça quando o executante já tiver terminado. Essa ‘auto-obliteração’ de

Papillons talvez seja passível de crítica, mas por certo não deixa de ser artística.”

5. Respostas aos Papillons

Clara responde quase que imediatamente aos Papillons com um op. 2 de sua autoria, em estilo de

dança, intitulado Caprices en Forme de Valse, sendo que esta peça possui um efeito de desaparecimento

paulatino no final da n.º 2. Ela explora amplamente um motivo ascendente sugerido, talvez, pelo ‘herói’ de

Schumann (as oitavas na mão direita no N.º 1 [Vult] dos Papillons ). E, mais importante que tudo, o N.º 7 de

Clara inclui uma indicação de doloroso em fá menor para um desenho descendente que logo se tornaria o seu

‘tema’ na música de Schumann:

Figura 42 - Caprices en Forme de Valse, op.2 de Clara Wieck.

Ao receber os Papillons, a mãe de Schumann responde: “Weisener tocou os Papillons para mim no seu

antigo piano; e só posso me orientar por minhas impressões, pois não entendi nenhuma nota. Ah ! Certamente há na peça

coisas que fizeram cair lágrimas dos meus olhos, mas é sobretudo o final que me fez mergulhar em uma profunda melancolia.

Esses acentos que se distanciam, que vão se apagando, são a imagem da velhice: cada ano expira um som até o dia em que

não se ouvirá mais nada. Feliz aquele que deixa atrás de si longas ressonâncias e entregue seu poder a almas superiores. Que

minhas últimas horas possam ser como esses longínquos murmúrios...”43

Campinas, 17 de novembro de 1998

José Augusto Mannis

43 SCHNEIDER, Michel. op. cit. p.101-102.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHISSELL, Joan. Schumann música para piano. Tradução por Marco Antonio Esteves da Rocha. Rio de

Janeiro: Zahar, 1986. 111 p. (Guias Musicais BBC) Tradução de: Schumann Piano Music.

CORTOT, Alfred. In: SCHUMANN, Robert. Papillons. Paris: Ed. Salabert, 1965. 25 p. (Editions de

travail des Œuvres de Schumann)

DE PLACE, Adelaïde. Schubert. In: Guide de la Musique de piano. TRANCHEFORT, François-René.

(org.) Paris: Fayard, 1987. p.687.

HALBREICH, Harry. Schumann In: Guide de la musique de piano. TRANCHEFORT, François-René.

(org.) Paris: Fayard, 1987. p.706-707.

L’Age ingrat. In: Dictionnaire des oeuvres. SCHOELLER, Guy. (org.) Paris: Laffont-Bompiani, 1968. v. 1.

(coleção Bouquins)

SCHNEIDER, Michel. La Tombée du jour. Paris: Seuil, c1989. 186 p. (La Librairie du XXe siècle)

SCHUMANN, Clara. (Ed.) In: Piano music of Robert Schumann. New York: Dover Publ. Inc., 1972.