O papel feminino no mundo romano a partir de uma anedota de Petrônio

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Marcelo Leandro de Campos – RA 10.208.379 – 2º. Ano História Disciplina Antiguidade Ocidental – prof. Fábio Augusto M. Soares Ensaio: Relacionar uma fonte a um ou mais problemas historiográficos com bibliografia mínima de 4 obras, citadas e discutidas no texto. Fonte: Satyricon, de Petrônio O propósito deste trabalho é analisar a questão da representação do gênero feminino na antiguidade romana a partir de um trecho do Satyricon de Petrônio, a anedota sobre “a dama de Éfeso”. Subsidiariamente é possível também tecer considerações sobre relações de poder e extratificação social no mesmo período. 1- Abordagem Teórica O estudo de uma obra literária como fonte de informação sobre o imaginário e a realidade social de um determinado momento histórico partiu das considerações feitas nos trabalhos de Glaydson e Garraffoni: “O texto literário constitui, portanto, uma forma de registro histórico, diferindo deste propriamente dito pela sua não intenção de assim se constituir.(...) Pensar a Arte de Amar e o Satyricon como veículos de informações históricas de seus contextos implica, necessariamente, em uma concepção destas obras como

Transcript of O papel feminino no mundo romano a partir de uma anedota de Petrônio

Marcelo Leandro de Campos – RA 10.208.379 – 2º.

Ano História

Disciplina Antiguidade Ocidental – prof. Fábio

Augusto M. Soares

Ensaio: Relacionar uma fonte a um ou mais

problemas historiográficos com bibliografia mínima

de 4 obras, citadas e discutidas no texto.

Fonte: Satyricon, de PetrônioO propósito deste trabalho é analisar a questão da

representação do gênero feminino na antiguidade romana a

partir de um trecho do Satyricon de Petrônio, a anedota

sobre “a dama de Éfeso”. Subsidiariamente é possível também

tecer considerações sobre relações de poder e

extratificação social no mesmo período.

1- Abordagem Teórica

O estudo de uma obra literária como fonte de

informação sobre o imaginário e a realidade social de um

determinado momento histórico partiu das considerações

feitas nos trabalhos de Glaydson e Garraffoni:

“O texto literário constitui, portanto, uma forma de registro

histórico, diferindo deste propriamente dito pela sua não intenção

de assim se constituir.(...) Pensar a Arte de Amar e o Satyricon

como veículos de informações históricas de seus contextos

implica, necessariamente, em uma concepção destas obras como

produtos de um imaginário social a ser decodificado,

interpretado, uma vez que lida, simultaneamente, com questões

como liberdade e poder (...); nesse sentido o implícito do discurso

está carregado de múltiplos pensamentos encobertos”.

(SILVA, Glaydson, p. 25)

É necessário recorrer à interdisciplinaridade para uma

correta análise do material; em Garrafoni/Furnari vemos uma

descrição do esforço para reconstituir a estrutura

lingüística do Satyricon a partir de uma análise

filológica, onde concluem:

“Ao estudar o episódio da Dama de Éfeso, tomaremos como

pressuposto, portanto, que a literatura é uma linguagem e que,

para compreendê-la, torna-se necessário que recorramos às

alegorias, seus significantes e significados. Por meio do

questionamento do texto e da análise das estruturas e

vocabulário, pretendemos estabelecer um diálogo com os

personagens para explicitar os sentidos que produzem.”

( GARRAFONI/FURNARI, 94)

O ferramental da história a partir da

interdisciplinaridade permite ao historiador entender que

um texto literário, como a sátira, possui características

discursivas específicas, permeadas pelos interesses e

visões de mundo daqueles que a criaram (GARRAFONI 2009, p.

94). Foi exatamente a falta de leitura crítica dos textos

clássicos (como Petrônio, Apuleio e Juvenal) que produziu a

interpretação vigente no final do século XIX, da população

romana como uma massa amorfa, sem vontade própria, fútil,

que não gosta de trabalhar e gasta todas suas energias na

busca desenfreada do prazer. Ao passo que uma leitura

crítica permite o acesso às camadas sociais e/ou

identitárias menos favorecidas do mundo romano e sua ação

como sujeitos de sua história em dinâmicas de resistência,

acomodação e negociação. O estudo filológico a partir dos

textos em latim revelou, ainda, que no Satyricon Petrônio

dá voz aos diferentes segmentos sociais retratados em sua

obra, reproduzindo sua linguagem social com todos valores

orais e populares, com toda vivacidade e crueza que lhe são

peculiares, permitindo o contato com todo o universo

simbólico presente nas expressões cotidianas; como ressalta

Paulo Leminski, “essa crueza da linguagem de Petrônio sempre foi

maquilada nas traduções para as línguas modernas, onde giros eufemísticos,

ditados pelo moralismo, substituem o verdadeiro nome das coisas”. (SILVA,

Glaydson, p. 106-107)

2- A Dama de Éfeso

A anedota surge durante uma viagem de navio

empreendida pelos personagens principais do livro.

Encólpio, o narrador das aventuras, descreve a anedota como

um esforço de Eumolpo em destacar-se na conversação através

de ditos espirituais, durante as quais “(...) começou a dizer mil

bobagens sobre a leviandade das mulheres, sua facilidade em apaixonar-se,

sua presteza em esquecer amantes.”(PETRONIO, CX, p. 150). Eumolpo,

por sua vez, enuncia sua tese e a atualidade do assunto,

declarando:

“Não há uma única mulher, por mais fiel que seja, que uma

nova paixão não possa levar aos maiores excessos. Não é preciso,

para provar o que eu digo, recorrer às antigas tragédias, citar

nomes famosos nos séculos passados. Para isso, contar-vos-ei um

episódio ocorrido em nossos dias.” (idem)

Fazendo menção a um episódio atual, o autor dota a

narrativa de maior capacidade persuasiva (LEÃO, p. 80).

Garrafoni e Funari chamam a atenção para a construção

discursiva do autor; eles chamam a atenção inicialmente

para as expressões que ele emprega ao referir-se à dama: no

início da narrativa ela é descrita como matrona (senhora)

com pudicitia (grande reputação de castidade) a ponto de ser

modelo para outras feminae (mulheres); ao expressar enorme

dor pela morte do marido é definida como singularis exempli

femina (mulher de exemplo singular). Ela está, nesse

primeiro momento, encarnando o imaginário da virtude

feminina herdado do pensamento tradicional romano, e

enquanto isso o autor se refere a ela como matrona; o termo

deriva de mater (mãe), indicativo do principal papel que

lhe cabe na sociedade romana (SILVA, p. 896). No momento

seguinte, em que chama a atenção do soldado romano, ela é

agora a pulcherrima mulier (bela mulher); a expressão mulier

era utIlizada para descrever a mulher de baixa extração, o

extremo oposto da elevada matrona (FURNARI, GARRAFONI, p.

113). Nessa primeira visão a imagem da mulher age

intensamente sobre a imaginação do soldado, numa

interessante associação da imagem feminina aos mistérios do

mundo subterrâneo (monstro infernisque imaginibus). Na percepção

seguinte o soldado entende a cena a partir do imaginário da

época: trata-se de uma mulher consumida de desejo pelo

marido falecido. Ela está agora sendo descrita com um termo

médio e de amplo alcance (mulher, feminam), nem tão alto

como matrona ou tão baixo como mulier. Descrita como feminam

ela é imediatamente associada à sua característica central,

o desejo (desiderium). Glaydson também apóia essa leitura: a

despeito das especificidades de sua posição social, todas

mulheres possuem uma natureza comum, centrada no desejo

(SILVA, Glaydson, p. 108).

Quando o soldado lhe oferece comida, ela é agora uma

muliercula (uma mera mulher); assediada, ela é descrita como

abstinentia sicca (seca pela abstinência); a idéia implícita é

de que a nobre mulher vai se deixando cegar pelo desejo até

chegar à suprema desonra e degradação de copular com um

homem desconhecido encima do túmulo do marido recém

falecido. Ao mesmo tempo que isso ocorre a nobre família da

matrona e toda sociedade crêem que ela permanece velando o

falecido e sofrendo as agruras do luto, numa ácida

referência à fachada de moralidade atribuída às matronas da

alta sociedade.

Nesse momento da narrativa a Dama de Éfeso cedeu

desonrosamente à investida galante do soldado romano, até

aqui o herói da anedota, cheio de iniciativa e no controle

da situação. Mas subitamente os papéis se invertem: ocupado

com sua aventura amorosa, o soldado descuida suas

obrigações, e o corpo de um dos sentenciados é recuperado

por sua família. Antevendo um castigo mortal, ele submete

sua situação à dama de forma servil e subalterna. Toda

iniciativa agora se transfere à dama (descrita no episódio

ainda como mulier), que é agora misericordiosa e pudica (non

minus misericors quam pudica) e ao mesmo tempo uma inteligente

planejadora (prudentíssima femina) ao conceber um artifício

para salvar a vida do soldado: ela manda (iubet) que o corpo

do marido fosse colocado na cruz. Ao mesmo tempo em que

salva a vida do soldado, a ação da dama reduz a condição do

falecido, de um homem de importante posição social a de

substituto de um condenado à cruz (punição enormemente

degradante).

Em suas conclusões, os autores ressaltam diversos

elementos extraídos a partir da anedota: as regras do

domínio patricarcal são burladas pelas artimanhas da

mulher; ela logra sair do papel social que lhe é reservado,

como figura submissa e casta, e revela-se dominadora e

senhora da situação (FUNARI, GARRAFONI, p. 116).

Delfim Leão chama a atenção para dois detalhes:

primeiro, ao situar o episódio em Éfeso, o autor está nos

dando informações importantes: trata-se de um importante

porto marítimo, um grande entreposto comercial por onde

circulam comerciantes e navegantes vindos de diferentes

regiões do Império; a contestação dos valores de uma

sociedade patriarcal tradicional aparece no contexto dos

intensos contatos culturais entre Ásia e Europa propiciados

pela universalização do controle romano no século I d.C.,

período onde normalmente se situa a produção da obra.

Segundo, ao analisar como reagem os ouvintes à narrativa,

ele compõe uma amostragem de valores: os marinheiros do

navio riem a valer, claramente identificados com o soldado

e atraídos pela fantasia de corromper uma matrona; Trifena,

a única mulher presente, fica profundamente ruborizada

(sugerindo, entre outras possibilidades, uma consciência

pouco tranqüila com o relato); Licas, proprietário do barco

e homem de posses, por sua vez identifica-se com o marido

morto e com os valores patriarcais desonrados pela dama

(LEÃO, p. 80).

A mulher vista no Satyricon é dotada das contradições

inerentes à sociedade romana nesse período: é uma sociedade

que valoriza o ideário moral de uma sociedade patriarcal,

que reserva à mulher o papel secundário e passivo, e suas

obrigações com relação à fidelidade e castidade; como

Glaydson lembra muito bem, outro trecho do mesmo Satyricon

atribui catástrofes naturais e a ira dos deuses à

inobservância por parte das mulheres das regras da velha

moral romana (SILVA, Glaydson , p. 109). Ainda seguindo o

ideário patriarcal, o monopólio da responsabilidade é

masculino; os juízos de valor sobre a mulher via de regra

são todos negativos: ela não é digna de confiança, não é

sincera; não tendo controle sobre seu desejo, não pode ser

fiel, e apenas um tolo pode esperar isso dela (idem, p.

111); e a lista prossegue: falsas, interesseiras, não

confiáveis.

Ao mesmo tempo, curiosamente, as mulheres do Satyricon

são em sua maioria representadas como pessoas livres,

independentes, cheias de iniciativa e profundamente

dominadoras, controlando inclusive a vida dos homens (idem,

p. 109). A mulher tem autonomia para se deslocar livremente

pela cidade e algumas delas, como a sacerdotisa Quartila,

tem enorme poder e status social. Outro elemento destacado

pelo estudioso é a capacidade de mobilidade social

demonstrada por algumas delas: Fortunata, por exemplo, a

esposa de Trimalchio, o homem mais rico de toda narrativa,

é definida como “pobre de origem” e em seguida como “a

sagaz administradora que cuida detalhadamente de sua

fortuna” (idem, p. 115).

“Ainda que dadas a ler pelo “olhar do inimigo”, dos

homens, as mulheres descritas por Ovídio e Petrônio são

representativas das mudanças nas condições femininas neste

período. Ovídio e Petrônio, juntamente com outros autores da

época, contribuem para a leitura de uma certa libertação das

mulheres dos antigos costumes romanos, na medida em que dão

a conhecer mulheres que querem ter o direito ao desejo, ao

prazer, rompendo com toda aura de valores castos que a tradição

romana lhes tinha legado” (idem, p. 140).

3- A serva

Há uma segunda personagem feminina na anedota, a serva

da viúva (ancilla); definida como “criada fiel”, acompanha

sua ama em seu retiro de luto e a serve; o ato de chorar

junto com ela indica uma familiaridade que vai além da mera

relação servo-senhor. Sua passividade inicial modifica-se

completamente quando o soldado entra em cena; ela é a

primeira a aceitar seus oferecimentos de comida e vinho, e

ao dar-se conta do fracasso do soldado em convencer sua ama

a comer, toma a iniciativa e vence sua resistência com um

discurso bastante articulado e persuasivo. Mais tarde,

diante agora do flerte do soldado, é a serva que a

incentiva a ceder: “Podereis resistir a tão doces inclinações e neste triste

lugar consumir vossos belos anos ?” (PETRONIO, CXII, p. 153).

Nas atitudes da serva vemos novamente as

características clássicas da mulher petroniana, de

independência e controle; o que chama a atenção é que estas

características estão presentes a despeito de sua condição

de serva (escrava). Isso nos remete a um estudo de Fabio

Faversani sobre a compreensão da dinâmica social a partir

de relações diretas de poder; ele lembra a crítica de

Finley à divisão tradicionalmente aceita da sociedade

romana, associando extratos jurídicos às camadas sociais.

Para o estudioso há tamanha inter-relação entre pobres e

ricos (e grande possibilidade de mobilidade social) que ele

considera mais válido o sistema de Alfody, que propõe uma

divisão verticalizada opondo setores rurais e urbanos. No

espaço urbano estariam lado a lado escravos, libertos,

pobres livres e (a partir das relações de patronagem) os

ricos (FAVERSANI, p. 44). Para ele a patronagem é a chave

para compreender as dinâmicas sociais da sociedade romana,

sobretudo quanto à mobilidade: o escravo, ao ser libertado,

torna-se cliente de seu antigo patrão; a partir dessa

relação pessoal de fidelidade e reciprocidade de favores, o

antigo escravo constrói uma rede de relações sociais que

lhe permite ascender socialmente (idem, p. 58). Os diálogos

da serva com sua ama seriam ainda um exemplo das relações

diretas de poder estabelecidas entre senhor e escravo;

longe de serem uma “massa livremente manipulada, sem

volição ou alternativas de afirmação, eles estabelecem uma

dinâmica ativa que concilia resistência, cooperação e

negociação como estratégias (de sobrevivência e afirmação)

para atingir seus objetivos (idem, p. 51-56). As relações

sociais são menos estanques do que se pensava, e dotadas de

grande fluidez de idéias e percepções (GARRAFFONI, 2009,

p.102).

4- Conclusão

Lourdes Conde Feitosa define de maneira muito

abrangente a origem e o alcance dos estudos sobre gênero na

antiguidade: as escolhas do historiador e as idéias

apresentadas nunca são aleatórias, são políticas; o

debruçar-se sobre o passado é uma forma de buscar

perspectivas para pensar a própria sociedade contemporânea.

As enormes mudanças que ocorrem nas relações entre os

universos feminino e masculino, e nas relações entre gênero

e poder, a partir de 1960, criam um interesse sobre as

experiências e o olhar feminino sobre a História; as

pesquisas revelam o que foi ignorado pelo discurso

patriarcal de supremacia do homem sobre a mulher, ao mesmo

tempo em que servem de justificativa para os paradigmas do

novo discurso.

A sociedade romana tem um caráter claramente

patriarcal e as relações públicas e cargos políticos são

monopólio dos homens; mas a complexidade social e jurídica

vai muito alem disso; uma expressão como “povo romano”

esconde uma série de diversidades jurídicas, econômicas,

étnicas e lingüísticas; as relações entre feminino e

masculino, sobretudo, são regidas pelos costumes próprios e

pela legislação local. A ampliação do universo documental

(moedas, inscrições, estátuas, tumbas, etc.) revela, por um

lado, a presença de uma classe de mulheres abastadas que

pratica uma intensa política de concessão de benefícios

(como distribuição de alimentos) e patrocínio de obras

públicas, desenvolvendo um complexo sistema de relações

pessoais de clientela que envolve patrocínio de corporações

de ofício e gerenciamento de propriedades particulares ou

de negócios familiares.

“Também encontram-se referências da participação

feminina em discussões políticas em escrutínios locais. Na

Pompéia romana, foram encontrados cartazes de propagandas

eleitorais (programmata) e inscrições em paredes (grafites), por

meio dos quais indicavam os seus candidatos, manifestavam o

seu apoio, discutiam e opinavam sobre a política local, mesmo

sem poderem, legalmente, participar das eleições” (FEITOSA,

p. 127).

Toda a questão do confinamento feminino no lar é

repensada; a visão da casa romana como espaço privado,

exclusivo para descanso e convívio familiar, cede espaço

para uma nova visão baseada em pesquisa arqueológica: as

casas aristocráticas surgem agora como espaços onde se

desenvolviam articulações políticas e relações de

clientelismo, supondo uma participação feminina nas

discussões políticas muito mais intensa do que imaginado. O

mesmo ocorre em relação às classes baixas (mulheres livres

pobres, libertas e escravas), onde elas agora são vistas

participando ativamente nas dinâmicas econômicas (atuando

como taberneiras, tecelãs, vendedoras, cozinheiras,

açougueiras, perfumistas, enfermeiras, entre outros) e no

espaço social (idem, p. 124-128).

A autora chama ainda a atenção para outra importante

dimensão do debate sobre gênero na antiguidade romana:

trata-se de uma sociedade anterior à imposição dos valores

do pensamento judaico-cristãos, com juízo de valor muito

negativo em relação à sexualidade, e estão sendo na

atualidade profundamente contestados; isso provoca

evidentemente um novo olhar sobre o mito da devassidão

moral dos antigos, destacando-se a percepção do sexo como

componente agradável e natural da vida, ou a necessidade

aparentemente tão moderna de querer compartilhar com outros

o prazer sentido numa relação. A autora menciona grafites

de Pompéia em que tanto o homem como a mulher aparecem como

dominadores do ato sexual; é comum ver inscrições onde a

mulher gosta de se definir como “possuidora”. Outro detalhe

interessante é a referência comum à prática de cunilíngua,

demonstrando uma busca comum de satisfação do desejo

feminino e uma conexão sexo-afetiva entre homem e mulher

baseada em outros parâmetros que não aqueles de dominação e

controle (idem, p. 128-135).

5- Bibliografia

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Curitiba, no. 48/49, p. 119-135, 2008. Editora UFPR.

PETRONIO. Satiricon. Tradução de Marcos Santarrita. São

Paulo: Editora Abril, 1981.

ANEXOS

Matrona quaedam Ephesi

[CXI] "Matrona quaedam Ephesi tam notae erat pudicitiae, ut

vicinarum quoque gentium feminas ad spectaculum sui

evocaret. Haec ergo cum virum extulisset, non contenta

vulgari more funus passis prosequi crinibus aut nudatum

pectus in conspectu frequentiae plangere, in conditorium

etiam prosecuta est defunctum, positumque in hypogaeo

Graeco more corpus custodire ac flere totis noctibus

diebusque coepit. Sic adflictantem se ac mortem inedia

persequentem non parentes potuerunt abducere, non

propinqui; magistratus ultimo repulsi abierunt,

complorataque singularis exempli femina ab omnibus quintum

iam diem sine alimento trahebat. Adsidebat aegrae fidissima

ancilla, simulque et lacrimas commodabat lugenti, et

quotienscumque defecerat positum in monumento lumen

renovabat. "Una igitur in tota civitate fabula erat: solum

illud adfulsisse verum pudicitiae amorisque exemplum omnis

ordinis homines confitebantur, cum interim imperator

provinciae latrones iussit crucibus affigi secundum illam

casulam, in qua recens cadaver matrona deflebat.

"Proxima ergo nocte, cum miles, qui cruces asservabat, ne

quis ad sepulturam corpus detraheret, notasset sibi lumen

inter monumenta clarius fulgens et gemitum lugentis

audisset, vitio gentis humanae concupiit scire quis aut

quid faceret. Descendit igitur in conditorium, visaque

pulcherrima muliere, primo quasi quodam monstro infernisque

imaginibus turbatus substitit; deinde ut et corpus iacentis

conspexit et lacrimas consideravit faciemque unguibus

sectam, ratus (scilicet id quod erat) desiderium extincti

non posse feminam pati, attulit in monumentum cenulam suam,

coepitque hortari lugentem ne perseveraret in dolore

supervacuo, ac nihil profuturo gemitu pectus diduceret:

'omnium eumdem esse exitum et idem domicilium' et cetera

quibus exulceratae mentes ad sanitatem revocantur.

"At illa ignota consolatione percussa laceravit vehementius

pectus, ruptosque crines super corpus iacentis imposuit.

Non recessit tamen miles, sed eadem exhortatione temptavit

dare mulierculae cibum, donec ancilla, vini odore corrupta,

primum ipsa porrexit ad humanitatem invitantis victam

manum, deinde retecta potione et cibo expugnare dominae

pertinaciam coepit et: 'Quid proderit, inquit, hoc tibi, si

soluta inedia fueris, si te vivam sepelieris, si antequam

fata poscant indemnatum spiritum effuderis? Id cinerem aut

manes credis sentire sepultos? Vis tu reviviscere! Vis

discusso muliebri errore! Quam diu licuerit, lucis commodis

frui! Ipsum te iacentis corpus admonere debet ut vivas.'

"Nemo invitus audit, cum cogitur aut cibum sumere aut

vivere. Itaque mulier aliquot dierum abstinentia sicca

passa est frangi pertinaciam suam, nec minus avide replevit

se cibo quam ancilla, quae prior victa est.

[CXII] "Ceterum, scitis quid plerumque soleat temptare

humanam satietatem. Quibus blanditiis impetraverat miles ut

matrona vellet vivere, iisdem etiam pudicitiam eius

aggressus est. Nec deformis aut infacundus iuvenis castae

videbatur, conciliante gratiam ancilla ac subinde dicente:

'Placitone etiam pugnabis amori? Nec venit in mentem,

quorum consederis arvis?'

"Quid diutius moror? Jacuerunt ergo una non tantum illa

nocte, qua nuptias fecerunt, sed postero etiam ac tertio

die, praeclusis videlicet conditorii foribus, ut quisquis

ex notis ignotisque ad monumentum venisset, putasset

expirasse super corpus viri pudicissimam uxorem.

"Ceterum, delectatus miles et forma mulieris et secreto,

quicquid boni per facultates poterat coemebat et, prima

statim nocte, in monumentum ferebat. Itaque unius cruciarii

parentes ut viderunt laxatam custodiam, detraxere nocte

pendentem supremoque mandaverunt officio. At miles

circumscriptus dum desidet, ut postero die vidit unam sine

cadavere crucem, veritus supplicium, mulieri quid

accidisset exponit: 'nec se expectaturum iudicis

sententiam, sed gladio ius dicturum ignaviae suae.

Commodaret ergo illa perituro locum, et fatale conditorium

familiari ac viro faceret.' Mulier non minus misericors

quam pudica: 'Ne istud, inquit, dii sinant, ut eodem

tempore duorum mihi carissimorum hominum duo funera

spectem. Malo mortuum impendere quam vivum occidere.'

Secundum hanc orationem iubet ex arca corpus mariti sui

tolli atque illi, quae vacabat, cruci affigi.

"Usus est miles ingenio prudentissimae feminae, posteroque

die populus miratus est qua ratione mortuus isset in

crucem."

A Matrona de Éfeso

CXI – “Havia uma mulher casada em Éfeso que era de uma

castidade tão notável que levava as mulheres até mesmo dos

povos vizinhos a visitá-la. Então, quando ela perdeu o

marido, não se limitando a seguir o enterro com os cabelos

soltos, segundo o costume geral, ou a bater no peito nu na

presença da multidão, ela também acompanhou o defunto no

túmulo e resolveu chorar e velar o corpo colocado na

cripta, de acordo com o costume grego, por duas noites

inteiras. Nem os pais, nem os parentes puderam afastá-la

daquele local, pois ela se atormentava assim e buscava a

morte através da abstinência de alimentos; os magistrados,

repelidos por último, foram-se embora, aquela mulher de

exemplo singular, por quem todos lastimavam, já passava o

quinto dia sem alimento. A mais fiel escrava daquela mulher

atormentada não se afastava dela e, ao mesmo tempo, não só

compartilhava suas lágrimas com as de sua senhora, mas

também reacendia a lâmpada colocada no monumento toda as

vezes em que ela se apagava. Assim, pois, na cidade inteira

era esse o único assunto, os homens de todas as classes

sociais reconheciam que tal atitude se destacava como

exemplo verdadeiro de castidade e de amor, quando, nesse

meio tempo, o imperador daquela província ordenou que

ladrões fossem pregados em cruzes ao lado daquele túmulo,

no qual a mulher velava o cadáver fresco. Então, na noite

seguinte, quando o soldado que vigiava as cruzes, para que

ninguém levasse corpo para a sepultura, notou uma luz

brilhando mais forte entre os túmulos e ouviu o soluço de

alguém chorando, por um vício da raça humana ele desejou

saber quem era, ou o que estava fazendo. Então, ele desceu

para o interior do túmulo e, quando viu aquela mulher

belíssima, primeiro ficou parado, como que perturbado por

algum monstro ou por fantasmas infernais. Em seguida,

quando viu um corpo de homem estendido e ainda observou as

lágrimas e as faces golpeadas pelas unhas, evidentemente

percebendo o que era – uma mulher que não conseguiu

suportar a saudade do extinto marido – levou para aquele

túmulo seu pequeno jantar e aconselhou aquela mulher

chorosa a não persistir numa dor inútil e não dilacerar seu

peito com um gemido que não lhe serviria em nada. Ele

argumentou que todos teriam aquele mesmo fim e aquela mesma

morada e ainda disse outras coisas com as quais as mentes

atormentadas são reconduzidas à razão. Mas ela, chateada

com aquela tentativa de consolo, castigou mais

violentamente seu peito e depositou cabelos arrancados

sobre o corpo do defunto. O soldado, contudo, não recuou,

mas, com aquele mesmo estímulo, tentou dar alimento à pobre

mulher, até que sua escrava [certamente corrompida] pelo

bom cheiro do vinho, primeiro ela estendeu sua própria mão

vencida até o espírito de humanidade daquele sedutor,

depois, repetida a dose da comida e bebida, derrotou a

obstinação de sua dona e disse: O que você poderá lucrar

sendo aniquilada pela falta de alimento, sendo enterrada

viva, entregando sua alma que ainda não foi condenada,

antes que os destinos exijam? Acreditas que os restos

mortais, ou os manes sepultados percebem teu sacrifício?

Você não quer voltar a viver? Não quer usufruir das coisas

boas da vida, enquanto ainda pode, dissipando esse erro

próprio das mulheres? O próprio corpo do defunto deveria

encorajá-la a viver? Ninguém deixa de ouvir, quando está

sendo coagido a se alimentar, ou a viver. Assim, a mulher,

faminta devido ao jejum de alguns dias, admitiu que sua

perseverança fosse rompida e fartou-se de alimento não

menos avidamente do que a escrava, que foi vencida

primeiro.

CXII – Mas vocês sabem o que geralmente costuma inquietar a

satisfação humana. Com as mesmas palavras ternas com que

tinha conseguido que a senhora quisesse viver, o soldado

abordou também a castidade dela. E aquele jovem não parecia

disforme ou pouco eloqüente à virtuosa senhora,

acrescentando-se a isso a influência de sua escrava, que

dizia a tempo todo:

Ainda lutarás contra este agradável amor? [Não vem à tua mente

nas terras de quem vieste a te estabelecer?] Para que ficar me

alongando tanto? A mulher não mais se absteve de saciar

aquela parte de seu corpo e o soldado vitorioso a persuadiu

de ambas as coisas. Eles, então, deitaram-se juntos não só

aquela noite, em que celebraram suas núpcias, mas também no

dia seguinte e ainda no terceiro dia, evidentemente com as

portas do túmulo fechadas, para que qualquer um que viesse

ao monumento, entre conhecidos e desconhecidos, pensasse

que aquela virtuosíssima esposa exalava seu último suspiro

sobre o corpo de seu marido. Mas o soldado, encantado pela

beleza da mulher e pelo mistério, comprava e levava para o

túmulo, imediatamente ao cair da noite, tudo de bom que

conseguia, dentro de suas possibilidades. Assim, os pais de

um

crucificado, quando viram a guarda baixada, tiraram durante

a noite o corpo pendurado e lhe prestaram a última

homenagem. E o soldado logrado, quando viu no dia seguinte

uma cruz sem cadáver, sentiu o chão sumir a seus pés e,

temendo a punição, expôs à mulher o que tinha acontecido.

Ele disse que não iria esperar a sentença do juiz, mas que

iria determinar ele próprio para si a pena de morte, com a

espada, por negligência. Por isso, ele queria que ela lhe

concedesse um lugar para morrer e dedicasse aquele túmulo

fatal a seu amante e a seu marido. A mulher, não menos

misericordiosa que virtuosa, disse: Que os deuses não

permitam que eu assista, ao mesmo tempo, aos dois funerais

dos dois homens mais especiais para mim. Prefiro pendurar o

morto a matar o vivo. Depois desse discurso, ela ordenou

que o corpo de seu próprio marido fosse retirado do

sarcófago e pregado na cruz que estava vazia. O soldado pôs

em prática o plano genial daquela mulher sapientíssima e,

no dia seguinte, o povo espantado ficou a se perguntar de

que modo o morto tinha ido parar na cruz”. (Texto em latim

e tradução cf. FUNARI, GARRAFFONI, p. 108)

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