Marcelo Leandro de Campos – RA 10.208.379 – 2º.
Ano História
Disciplina Antiguidade Ocidental – prof. Fábio
Augusto M. Soares
Ensaio: Relacionar uma fonte a um ou mais
problemas historiográficos com bibliografia mínima
de 4 obras, citadas e discutidas no texto.
Fonte: Satyricon, de PetrônioO propósito deste trabalho é analisar a questão da
representação do gênero feminino na antiguidade romana a
partir de um trecho do Satyricon de Petrônio, a anedota
sobre “a dama de Éfeso”. Subsidiariamente é possível também
tecer considerações sobre relações de poder e
extratificação social no mesmo período.
1- Abordagem Teórica
O estudo de uma obra literária como fonte de
informação sobre o imaginário e a realidade social de um
determinado momento histórico partiu das considerações
feitas nos trabalhos de Glaydson e Garraffoni:
“O texto literário constitui, portanto, uma forma de registro
histórico, diferindo deste propriamente dito pela sua não intenção
de assim se constituir.(...) Pensar a Arte de Amar e o Satyricon
como veículos de informações históricas de seus contextos
implica, necessariamente, em uma concepção destas obras como
produtos de um imaginário social a ser decodificado,
interpretado, uma vez que lida, simultaneamente, com questões
como liberdade e poder (...); nesse sentido o implícito do discurso
está carregado de múltiplos pensamentos encobertos”.
(SILVA, Glaydson, p. 25)
É necessário recorrer à interdisciplinaridade para uma
correta análise do material; em Garrafoni/Furnari vemos uma
descrição do esforço para reconstituir a estrutura
lingüística do Satyricon a partir de uma análise
filológica, onde concluem:
“Ao estudar o episódio da Dama de Éfeso, tomaremos como
pressuposto, portanto, que a literatura é uma linguagem e que,
para compreendê-la, torna-se necessário que recorramos às
alegorias, seus significantes e significados. Por meio do
questionamento do texto e da análise das estruturas e
vocabulário, pretendemos estabelecer um diálogo com os
personagens para explicitar os sentidos que produzem.”
( GARRAFONI/FURNARI, 94)
O ferramental da história a partir da
interdisciplinaridade permite ao historiador entender que
um texto literário, como a sátira, possui características
discursivas específicas, permeadas pelos interesses e
visões de mundo daqueles que a criaram (GARRAFONI 2009, p.
94). Foi exatamente a falta de leitura crítica dos textos
clássicos (como Petrônio, Apuleio e Juvenal) que produziu a
interpretação vigente no final do século XIX, da população
romana como uma massa amorfa, sem vontade própria, fútil,
que não gosta de trabalhar e gasta todas suas energias na
busca desenfreada do prazer. Ao passo que uma leitura
crítica permite o acesso às camadas sociais e/ou
identitárias menos favorecidas do mundo romano e sua ação
como sujeitos de sua história em dinâmicas de resistência,
acomodação e negociação. O estudo filológico a partir dos
textos em latim revelou, ainda, que no Satyricon Petrônio
dá voz aos diferentes segmentos sociais retratados em sua
obra, reproduzindo sua linguagem social com todos valores
orais e populares, com toda vivacidade e crueza que lhe são
peculiares, permitindo o contato com todo o universo
simbólico presente nas expressões cotidianas; como ressalta
Paulo Leminski, “essa crueza da linguagem de Petrônio sempre foi
maquilada nas traduções para as línguas modernas, onde giros eufemísticos,
ditados pelo moralismo, substituem o verdadeiro nome das coisas”. (SILVA,
Glaydson, p. 106-107)
2- A Dama de Éfeso
A anedota surge durante uma viagem de navio
empreendida pelos personagens principais do livro.
Encólpio, o narrador das aventuras, descreve a anedota como
um esforço de Eumolpo em destacar-se na conversação através
de ditos espirituais, durante as quais “(...) começou a dizer mil
bobagens sobre a leviandade das mulheres, sua facilidade em apaixonar-se,
sua presteza em esquecer amantes.”(PETRONIO, CX, p. 150). Eumolpo,
por sua vez, enuncia sua tese e a atualidade do assunto,
declarando:
“Não há uma única mulher, por mais fiel que seja, que uma
nova paixão não possa levar aos maiores excessos. Não é preciso,
para provar o que eu digo, recorrer às antigas tragédias, citar
nomes famosos nos séculos passados. Para isso, contar-vos-ei um
episódio ocorrido em nossos dias.” (idem)
Fazendo menção a um episódio atual, o autor dota a
narrativa de maior capacidade persuasiva (LEÃO, p. 80).
Garrafoni e Funari chamam a atenção para a construção
discursiva do autor; eles chamam a atenção inicialmente
para as expressões que ele emprega ao referir-se à dama: no
início da narrativa ela é descrita como matrona (senhora)
com pudicitia (grande reputação de castidade) a ponto de ser
modelo para outras feminae (mulheres); ao expressar enorme
dor pela morte do marido é definida como singularis exempli
femina (mulher de exemplo singular). Ela está, nesse
primeiro momento, encarnando o imaginário da virtude
feminina herdado do pensamento tradicional romano, e
enquanto isso o autor se refere a ela como matrona; o termo
deriva de mater (mãe), indicativo do principal papel que
lhe cabe na sociedade romana (SILVA, p. 896). No momento
seguinte, em que chama a atenção do soldado romano, ela é
agora a pulcherrima mulier (bela mulher); a expressão mulier
era utIlizada para descrever a mulher de baixa extração, o
extremo oposto da elevada matrona (FURNARI, GARRAFONI, p.
113). Nessa primeira visão a imagem da mulher age
intensamente sobre a imaginação do soldado, numa
interessante associação da imagem feminina aos mistérios do
mundo subterrâneo (monstro infernisque imaginibus). Na percepção
seguinte o soldado entende a cena a partir do imaginário da
época: trata-se de uma mulher consumida de desejo pelo
marido falecido. Ela está agora sendo descrita com um termo
médio e de amplo alcance (mulher, feminam), nem tão alto
como matrona ou tão baixo como mulier. Descrita como feminam
ela é imediatamente associada à sua característica central,
o desejo (desiderium). Glaydson também apóia essa leitura: a
despeito das especificidades de sua posição social, todas
mulheres possuem uma natureza comum, centrada no desejo
(SILVA, Glaydson, p. 108).
Quando o soldado lhe oferece comida, ela é agora uma
muliercula (uma mera mulher); assediada, ela é descrita como
abstinentia sicca (seca pela abstinência); a idéia implícita é
de que a nobre mulher vai se deixando cegar pelo desejo até
chegar à suprema desonra e degradação de copular com um
homem desconhecido encima do túmulo do marido recém
falecido. Ao mesmo tempo que isso ocorre a nobre família da
matrona e toda sociedade crêem que ela permanece velando o
falecido e sofrendo as agruras do luto, numa ácida
referência à fachada de moralidade atribuída às matronas da
alta sociedade.
Nesse momento da narrativa a Dama de Éfeso cedeu
desonrosamente à investida galante do soldado romano, até
aqui o herói da anedota, cheio de iniciativa e no controle
da situação. Mas subitamente os papéis se invertem: ocupado
com sua aventura amorosa, o soldado descuida suas
obrigações, e o corpo de um dos sentenciados é recuperado
por sua família. Antevendo um castigo mortal, ele submete
sua situação à dama de forma servil e subalterna. Toda
iniciativa agora se transfere à dama (descrita no episódio
ainda como mulier), que é agora misericordiosa e pudica (non
minus misericors quam pudica) e ao mesmo tempo uma inteligente
planejadora (prudentíssima femina) ao conceber um artifício
para salvar a vida do soldado: ela manda (iubet) que o corpo
do marido fosse colocado na cruz. Ao mesmo tempo em que
salva a vida do soldado, a ação da dama reduz a condição do
falecido, de um homem de importante posição social a de
substituto de um condenado à cruz (punição enormemente
degradante).
Em suas conclusões, os autores ressaltam diversos
elementos extraídos a partir da anedota: as regras do
domínio patricarcal são burladas pelas artimanhas da
mulher; ela logra sair do papel social que lhe é reservado,
como figura submissa e casta, e revela-se dominadora e
senhora da situação (FUNARI, GARRAFONI, p. 116).
Delfim Leão chama a atenção para dois detalhes:
primeiro, ao situar o episódio em Éfeso, o autor está nos
dando informações importantes: trata-se de um importante
porto marítimo, um grande entreposto comercial por onde
circulam comerciantes e navegantes vindos de diferentes
regiões do Império; a contestação dos valores de uma
sociedade patriarcal tradicional aparece no contexto dos
intensos contatos culturais entre Ásia e Europa propiciados
pela universalização do controle romano no século I d.C.,
período onde normalmente se situa a produção da obra.
Segundo, ao analisar como reagem os ouvintes à narrativa,
ele compõe uma amostragem de valores: os marinheiros do
navio riem a valer, claramente identificados com o soldado
e atraídos pela fantasia de corromper uma matrona; Trifena,
a única mulher presente, fica profundamente ruborizada
(sugerindo, entre outras possibilidades, uma consciência
pouco tranqüila com o relato); Licas, proprietário do barco
e homem de posses, por sua vez identifica-se com o marido
morto e com os valores patriarcais desonrados pela dama
(LEÃO, p. 80).
A mulher vista no Satyricon é dotada das contradições
inerentes à sociedade romana nesse período: é uma sociedade
que valoriza o ideário moral de uma sociedade patriarcal,
que reserva à mulher o papel secundário e passivo, e suas
obrigações com relação à fidelidade e castidade; como
Glaydson lembra muito bem, outro trecho do mesmo Satyricon
atribui catástrofes naturais e a ira dos deuses à
inobservância por parte das mulheres das regras da velha
moral romana (SILVA, Glaydson , p. 109). Ainda seguindo o
ideário patriarcal, o monopólio da responsabilidade é
masculino; os juízos de valor sobre a mulher via de regra
são todos negativos: ela não é digna de confiança, não é
sincera; não tendo controle sobre seu desejo, não pode ser
fiel, e apenas um tolo pode esperar isso dela (idem, p.
111); e a lista prossegue: falsas, interesseiras, não
confiáveis.
Ao mesmo tempo, curiosamente, as mulheres do Satyricon
são em sua maioria representadas como pessoas livres,
independentes, cheias de iniciativa e profundamente
dominadoras, controlando inclusive a vida dos homens (idem,
p. 109). A mulher tem autonomia para se deslocar livremente
pela cidade e algumas delas, como a sacerdotisa Quartila,
tem enorme poder e status social. Outro elemento destacado
pelo estudioso é a capacidade de mobilidade social
demonstrada por algumas delas: Fortunata, por exemplo, a
esposa de Trimalchio, o homem mais rico de toda narrativa,
é definida como “pobre de origem” e em seguida como “a
sagaz administradora que cuida detalhadamente de sua
fortuna” (idem, p. 115).
“Ainda que dadas a ler pelo “olhar do inimigo”, dos
homens, as mulheres descritas por Ovídio e Petrônio são
representativas das mudanças nas condições femininas neste
período. Ovídio e Petrônio, juntamente com outros autores da
época, contribuem para a leitura de uma certa libertação das
mulheres dos antigos costumes romanos, na medida em que dão
a conhecer mulheres que querem ter o direito ao desejo, ao
prazer, rompendo com toda aura de valores castos que a tradição
romana lhes tinha legado” (idem, p. 140).
3- A serva
Há uma segunda personagem feminina na anedota, a serva
da viúva (ancilla); definida como “criada fiel”, acompanha
sua ama em seu retiro de luto e a serve; o ato de chorar
junto com ela indica uma familiaridade que vai além da mera
relação servo-senhor. Sua passividade inicial modifica-se
completamente quando o soldado entra em cena; ela é a
primeira a aceitar seus oferecimentos de comida e vinho, e
ao dar-se conta do fracasso do soldado em convencer sua ama
a comer, toma a iniciativa e vence sua resistência com um
discurso bastante articulado e persuasivo. Mais tarde,
diante agora do flerte do soldado, é a serva que a
incentiva a ceder: “Podereis resistir a tão doces inclinações e neste triste
lugar consumir vossos belos anos ?” (PETRONIO, CXII, p. 153).
Nas atitudes da serva vemos novamente as
características clássicas da mulher petroniana, de
independência e controle; o que chama a atenção é que estas
características estão presentes a despeito de sua condição
de serva (escrava). Isso nos remete a um estudo de Fabio
Faversani sobre a compreensão da dinâmica social a partir
de relações diretas de poder; ele lembra a crítica de
Finley à divisão tradicionalmente aceita da sociedade
romana, associando extratos jurídicos às camadas sociais.
Para o estudioso há tamanha inter-relação entre pobres e
ricos (e grande possibilidade de mobilidade social) que ele
considera mais válido o sistema de Alfody, que propõe uma
divisão verticalizada opondo setores rurais e urbanos. No
espaço urbano estariam lado a lado escravos, libertos,
pobres livres e (a partir das relações de patronagem) os
ricos (FAVERSANI, p. 44). Para ele a patronagem é a chave
para compreender as dinâmicas sociais da sociedade romana,
sobretudo quanto à mobilidade: o escravo, ao ser libertado,
torna-se cliente de seu antigo patrão; a partir dessa
relação pessoal de fidelidade e reciprocidade de favores, o
antigo escravo constrói uma rede de relações sociais que
lhe permite ascender socialmente (idem, p. 58). Os diálogos
da serva com sua ama seriam ainda um exemplo das relações
diretas de poder estabelecidas entre senhor e escravo;
longe de serem uma “massa livremente manipulada, sem
volição ou alternativas de afirmação, eles estabelecem uma
dinâmica ativa que concilia resistência, cooperação e
negociação como estratégias (de sobrevivência e afirmação)
para atingir seus objetivos (idem, p. 51-56). As relações
sociais são menos estanques do que se pensava, e dotadas de
grande fluidez de idéias e percepções (GARRAFFONI, 2009,
p.102).
4- Conclusão
Lourdes Conde Feitosa define de maneira muito
abrangente a origem e o alcance dos estudos sobre gênero na
antiguidade: as escolhas do historiador e as idéias
apresentadas nunca são aleatórias, são políticas; o
debruçar-se sobre o passado é uma forma de buscar
perspectivas para pensar a própria sociedade contemporânea.
As enormes mudanças que ocorrem nas relações entre os
universos feminino e masculino, e nas relações entre gênero
e poder, a partir de 1960, criam um interesse sobre as
experiências e o olhar feminino sobre a História; as
pesquisas revelam o que foi ignorado pelo discurso
patriarcal de supremacia do homem sobre a mulher, ao mesmo
tempo em que servem de justificativa para os paradigmas do
novo discurso.
A sociedade romana tem um caráter claramente
patriarcal e as relações públicas e cargos políticos são
monopólio dos homens; mas a complexidade social e jurídica
vai muito alem disso; uma expressão como “povo romano”
esconde uma série de diversidades jurídicas, econômicas,
étnicas e lingüísticas; as relações entre feminino e
masculino, sobretudo, são regidas pelos costumes próprios e
pela legislação local. A ampliação do universo documental
(moedas, inscrições, estátuas, tumbas, etc.) revela, por um
lado, a presença de uma classe de mulheres abastadas que
pratica uma intensa política de concessão de benefícios
(como distribuição de alimentos) e patrocínio de obras
públicas, desenvolvendo um complexo sistema de relações
pessoais de clientela que envolve patrocínio de corporações
de ofício e gerenciamento de propriedades particulares ou
de negócios familiares.
“Também encontram-se referências da participação
feminina em discussões políticas em escrutínios locais. Na
Pompéia romana, foram encontrados cartazes de propagandas
eleitorais (programmata) e inscrições em paredes (grafites), por
meio dos quais indicavam os seus candidatos, manifestavam o
seu apoio, discutiam e opinavam sobre a política local, mesmo
sem poderem, legalmente, participar das eleições” (FEITOSA,
p. 127).
Toda a questão do confinamento feminino no lar é
repensada; a visão da casa romana como espaço privado,
exclusivo para descanso e convívio familiar, cede espaço
para uma nova visão baseada em pesquisa arqueológica: as
casas aristocráticas surgem agora como espaços onde se
desenvolviam articulações políticas e relações de
clientelismo, supondo uma participação feminina nas
discussões políticas muito mais intensa do que imaginado. O
mesmo ocorre em relação às classes baixas (mulheres livres
pobres, libertas e escravas), onde elas agora são vistas
participando ativamente nas dinâmicas econômicas (atuando
como taberneiras, tecelãs, vendedoras, cozinheiras,
açougueiras, perfumistas, enfermeiras, entre outros) e no
espaço social (idem, p. 124-128).
A autora chama ainda a atenção para outra importante
dimensão do debate sobre gênero na antiguidade romana:
trata-se de uma sociedade anterior à imposição dos valores
do pensamento judaico-cristãos, com juízo de valor muito
negativo em relação à sexualidade, e estão sendo na
atualidade profundamente contestados; isso provoca
evidentemente um novo olhar sobre o mito da devassidão
moral dos antigos, destacando-se a percepção do sexo como
componente agradável e natural da vida, ou a necessidade
aparentemente tão moderna de querer compartilhar com outros
o prazer sentido numa relação. A autora menciona grafites
de Pompéia em que tanto o homem como a mulher aparecem como
dominadores do ato sexual; é comum ver inscrições onde a
mulher gosta de se definir como “possuidora”. Outro detalhe
interessante é a referência comum à prática de cunilíngua,
demonstrando uma busca comum de satisfação do desejo
feminino e uma conexão sexo-afetiva entre homem e mulher
baseada em outros parâmetros que não aqueles de dominação e
controle (idem, p. 128-135).
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PETRONIO. Satiricon. Tradução de Marcos Santarrita. São
Paulo: Editora Abril, 1981.
ANEXOS
Matrona quaedam Ephesi
[CXI] "Matrona quaedam Ephesi tam notae erat pudicitiae, ut
vicinarum quoque gentium feminas ad spectaculum sui
evocaret. Haec ergo cum virum extulisset, non contenta
vulgari more funus passis prosequi crinibus aut nudatum
pectus in conspectu frequentiae plangere, in conditorium
etiam prosecuta est defunctum, positumque in hypogaeo
Graeco more corpus custodire ac flere totis noctibus
diebusque coepit. Sic adflictantem se ac mortem inedia
persequentem non parentes potuerunt abducere, non
propinqui; magistratus ultimo repulsi abierunt,
complorataque singularis exempli femina ab omnibus quintum
iam diem sine alimento trahebat. Adsidebat aegrae fidissima
ancilla, simulque et lacrimas commodabat lugenti, et
quotienscumque defecerat positum in monumento lumen
renovabat. "Una igitur in tota civitate fabula erat: solum
illud adfulsisse verum pudicitiae amorisque exemplum omnis
ordinis homines confitebantur, cum interim imperator
provinciae latrones iussit crucibus affigi secundum illam
casulam, in qua recens cadaver matrona deflebat.
"Proxima ergo nocte, cum miles, qui cruces asservabat, ne
quis ad sepulturam corpus detraheret, notasset sibi lumen
inter monumenta clarius fulgens et gemitum lugentis
audisset, vitio gentis humanae concupiit scire quis aut
quid faceret. Descendit igitur in conditorium, visaque
pulcherrima muliere, primo quasi quodam monstro infernisque
imaginibus turbatus substitit; deinde ut et corpus iacentis
conspexit et lacrimas consideravit faciemque unguibus
sectam, ratus (scilicet id quod erat) desiderium extincti
non posse feminam pati, attulit in monumentum cenulam suam,
coepitque hortari lugentem ne perseveraret in dolore
supervacuo, ac nihil profuturo gemitu pectus diduceret:
'omnium eumdem esse exitum et idem domicilium' et cetera
quibus exulceratae mentes ad sanitatem revocantur.
"At illa ignota consolatione percussa laceravit vehementius
pectus, ruptosque crines super corpus iacentis imposuit.
Non recessit tamen miles, sed eadem exhortatione temptavit
dare mulierculae cibum, donec ancilla, vini odore corrupta,
primum ipsa porrexit ad humanitatem invitantis victam
manum, deinde retecta potione et cibo expugnare dominae
pertinaciam coepit et: 'Quid proderit, inquit, hoc tibi, si
soluta inedia fueris, si te vivam sepelieris, si antequam
fata poscant indemnatum spiritum effuderis? Id cinerem aut
manes credis sentire sepultos? Vis tu reviviscere! Vis
discusso muliebri errore! Quam diu licuerit, lucis commodis
frui! Ipsum te iacentis corpus admonere debet ut vivas.'
"Nemo invitus audit, cum cogitur aut cibum sumere aut
vivere. Itaque mulier aliquot dierum abstinentia sicca
passa est frangi pertinaciam suam, nec minus avide replevit
se cibo quam ancilla, quae prior victa est.
[CXII] "Ceterum, scitis quid plerumque soleat temptare
humanam satietatem. Quibus blanditiis impetraverat miles ut
matrona vellet vivere, iisdem etiam pudicitiam eius
aggressus est. Nec deformis aut infacundus iuvenis castae
videbatur, conciliante gratiam ancilla ac subinde dicente:
'Placitone etiam pugnabis amori? Nec venit in mentem,
quorum consederis arvis?'
"Quid diutius moror? Jacuerunt ergo una non tantum illa
nocte, qua nuptias fecerunt, sed postero etiam ac tertio
die, praeclusis videlicet conditorii foribus, ut quisquis
ex notis ignotisque ad monumentum venisset, putasset
expirasse super corpus viri pudicissimam uxorem.
"Ceterum, delectatus miles et forma mulieris et secreto,
quicquid boni per facultates poterat coemebat et, prima
statim nocte, in monumentum ferebat. Itaque unius cruciarii
parentes ut viderunt laxatam custodiam, detraxere nocte
pendentem supremoque mandaverunt officio. At miles
circumscriptus dum desidet, ut postero die vidit unam sine
cadavere crucem, veritus supplicium, mulieri quid
accidisset exponit: 'nec se expectaturum iudicis
sententiam, sed gladio ius dicturum ignaviae suae.
Commodaret ergo illa perituro locum, et fatale conditorium
familiari ac viro faceret.' Mulier non minus misericors
quam pudica: 'Ne istud, inquit, dii sinant, ut eodem
tempore duorum mihi carissimorum hominum duo funera
spectem. Malo mortuum impendere quam vivum occidere.'
Secundum hanc orationem iubet ex arca corpus mariti sui
tolli atque illi, quae vacabat, cruci affigi.
"Usus est miles ingenio prudentissimae feminae, posteroque
die populus miratus est qua ratione mortuus isset in
crucem."
A Matrona de Éfeso
CXI – “Havia uma mulher casada em Éfeso que era de uma
castidade tão notável que levava as mulheres até mesmo dos
povos vizinhos a visitá-la. Então, quando ela perdeu o
marido, não se limitando a seguir o enterro com os cabelos
soltos, segundo o costume geral, ou a bater no peito nu na
presença da multidão, ela também acompanhou o defunto no
túmulo e resolveu chorar e velar o corpo colocado na
cripta, de acordo com o costume grego, por duas noites
inteiras. Nem os pais, nem os parentes puderam afastá-la
daquele local, pois ela se atormentava assim e buscava a
morte através da abstinência de alimentos; os magistrados,
repelidos por último, foram-se embora, aquela mulher de
exemplo singular, por quem todos lastimavam, já passava o
quinto dia sem alimento. A mais fiel escrava daquela mulher
atormentada não se afastava dela e, ao mesmo tempo, não só
compartilhava suas lágrimas com as de sua senhora, mas
também reacendia a lâmpada colocada no monumento toda as
vezes em que ela se apagava. Assim, pois, na cidade inteira
era esse o único assunto, os homens de todas as classes
sociais reconheciam que tal atitude se destacava como
exemplo verdadeiro de castidade e de amor, quando, nesse
meio tempo, o imperador daquela província ordenou que
ladrões fossem pregados em cruzes ao lado daquele túmulo,
no qual a mulher velava o cadáver fresco. Então, na noite
seguinte, quando o soldado que vigiava as cruzes, para que
ninguém levasse corpo para a sepultura, notou uma luz
brilhando mais forte entre os túmulos e ouviu o soluço de
alguém chorando, por um vício da raça humana ele desejou
saber quem era, ou o que estava fazendo. Então, ele desceu
para o interior do túmulo e, quando viu aquela mulher
belíssima, primeiro ficou parado, como que perturbado por
algum monstro ou por fantasmas infernais. Em seguida,
quando viu um corpo de homem estendido e ainda observou as
lágrimas e as faces golpeadas pelas unhas, evidentemente
percebendo o que era – uma mulher que não conseguiu
suportar a saudade do extinto marido – levou para aquele
túmulo seu pequeno jantar e aconselhou aquela mulher
chorosa a não persistir numa dor inútil e não dilacerar seu
peito com um gemido que não lhe serviria em nada. Ele
argumentou que todos teriam aquele mesmo fim e aquela mesma
morada e ainda disse outras coisas com as quais as mentes
atormentadas são reconduzidas à razão. Mas ela, chateada
com aquela tentativa de consolo, castigou mais
violentamente seu peito e depositou cabelos arrancados
sobre o corpo do defunto. O soldado, contudo, não recuou,
mas, com aquele mesmo estímulo, tentou dar alimento à pobre
mulher, até que sua escrava [certamente corrompida] pelo
bom cheiro do vinho, primeiro ela estendeu sua própria mão
vencida até o espírito de humanidade daquele sedutor,
depois, repetida a dose da comida e bebida, derrotou a
obstinação de sua dona e disse: O que você poderá lucrar
sendo aniquilada pela falta de alimento, sendo enterrada
viva, entregando sua alma que ainda não foi condenada,
antes que os destinos exijam? Acreditas que os restos
mortais, ou os manes sepultados percebem teu sacrifício?
Você não quer voltar a viver? Não quer usufruir das coisas
boas da vida, enquanto ainda pode, dissipando esse erro
próprio das mulheres? O próprio corpo do defunto deveria
encorajá-la a viver? Ninguém deixa de ouvir, quando está
sendo coagido a se alimentar, ou a viver. Assim, a mulher,
faminta devido ao jejum de alguns dias, admitiu que sua
perseverança fosse rompida e fartou-se de alimento não
menos avidamente do que a escrava, que foi vencida
primeiro.
CXII – Mas vocês sabem o que geralmente costuma inquietar a
satisfação humana. Com as mesmas palavras ternas com que
tinha conseguido que a senhora quisesse viver, o soldado
abordou também a castidade dela. E aquele jovem não parecia
disforme ou pouco eloqüente à virtuosa senhora,
acrescentando-se a isso a influência de sua escrava, que
dizia a tempo todo:
Ainda lutarás contra este agradável amor? [Não vem à tua mente
nas terras de quem vieste a te estabelecer?] Para que ficar me
alongando tanto? A mulher não mais se absteve de saciar
aquela parte de seu corpo e o soldado vitorioso a persuadiu
de ambas as coisas. Eles, então, deitaram-se juntos não só
aquela noite, em que celebraram suas núpcias, mas também no
dia seguinte e ainda no terceiro dia, evidentemente com as
portas do túmulo fechadas, para que qualquer um que viesse
ao monumento, entre conhecidos e desconhecidos, pensasse
que aquela virtuosíssima esposa exalava seu último suspiro
sobre o corpo de seu marido. Mas o soldado, encantado pela
beleza da mulher e pelo mistério, comprava e levava para o
túmulo, imediatamente ao cair da noite, tudo de bom que
conseguia, dentro de suas possibilidades. Assim, os pais de
um
crucificado, quando viram a guarda baixada, tiraram durante
a noite o corpo pendurado e lhe prestaram a última
homenagem. E o soldado logrado, quando viu no dia seguinte
uma cruz sem cadáver, sentiu o chão sumir a seus pés e,
temendo a punição, expôs à mulher o que tinha acontecido.
Ele disse que não iria esperar a sentença do juiz, mas que
iria determinar ele próprio para si a pena de morte, com a
espada, por negligência. Por isso, ele queria que ela lhe
concedesse um lugar para morrer e dedicasse aquele túmulo
fatal a seu amante e a seu marido. A mulher, não menos
misericordiosa que virtuosa, disse: Que os deuses não
permitam que eu assista, ao mesmo tempo, aos dois funerais
dos dois homens mais especiais para mim. Prefiro pendurar o
morto a matar o vivo. Depois desse discurso, ela ordenou
que o corpo de seu próprio marido fosse retirado do
sarcófago e pregado na cruz que estava vazia. O soldado pôs
em prática o plano genial daquela mulher sapientíssima e,
no dia seguinte, o povo espantado ficou a se perguntar de
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