O manifesto Pau-Brasil: denúncia à cultura da classe dominante e valorização do regional...

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0 CENTRO UNIVERSITÁRIO METROPOLITANO DE SÃO PAULO - UNIMESP FERNANDO GIORGETTI DE SOUZA O MANIFESTO PAU-BRASIL: DENÚNCIA À CULTURA DA CLASSE DOMINANTE E VALORIZAÇÃO DO REGIONAL POPULAR. Relatório de Pesquisa (TCC) na forma de artigo acadêmico exigido para a conclusão do curso de licenciatura plena em História, orientada pelo Prof. Dr. Henri de Carvalho Guarulhos/2012.

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CENTRO UNIVERSITÁRIO METROPOLITANO DE SÃO PAULO - UNIMESP

FERNANDO GIORGETTI DE SOUZA

O MANIFESTO PAU-BRASIL:

DENÚNCIA À CULTURA DA CLASSE DOMINANTE

E VALORIZAÇÃO DO REGIONAL POPULAR.

Relatório de Pesquisa (TCC) na forma

de artigo acadêmico exigido para a

conclusão do curso de licenciatura

plena em História, orientada pelo Prof.

Dr. Henri de Carvalho

Guarulhos/2012.

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No âmbito cultural, na virada do século XIX-XX, o Brasil viveu um

momento chamado “Belle Époque” e suas manifestações artísticas

compreendem o período de 1889 até 1922, findando-se justamente no ano do

Centenário da Independência.

Esse foi um tempo em que o país lutava para se afirmar junto aos países

“civilizados e progressistas”, já que era visto nas feiras internacionais como um

país periférico e atrasado, sendo as nossas diferenças culturais erroneamente

tratadas como desigualdades.

O país sofreu um crescimento populacional com a chegada dos

imigrantes: “Cerca de 3,8 milhões de estrangeiros entraram no Brasil entre

1887 e 1930.” (FAUSTO, 2004, p.275)

Ressaltando a “hospitalidade dos paulistas” com os imigrantes, afirma o

historiador brasileiro: “O Estado de São Paulo se destacou no conjunto,

concentrando sozinho a maioria de todos os residentes estrangeiros no país

(52,4%). Essa preferência se explica pelas facilidades concedidas pelo Estado

(passagens, alojamento) e pelas oportunidades de trabalho abertas por uma

economia em expansão. ” (FAUSTO, 2004, p.276)

Sobre os avanços científicos e tecnológicos da época, temos o

apontamento de Ribeiro: “Em começos do século XX, instalam-se as primeiras

centrais hidrelétricas no Rio de Janeiro e em São Paulo, com as quais surgiram

a iluminação elétrica, os serviços de transportes urbano, o telegrafo, o telefone,

o equipamento mecânico dos portos, todos explorados por empresas

estrangeiras” (RIBEIRO, 2007, p. 236)

Não há dúvidas de que o país sempre esteve nas mãos de exploradores,

desde o seu descobrimento, inclusive no campo ideológico.

Diversos foram os autores da literatura brasileira e da história, que

contribuíram registrando o momento histórico em que o Brasil viveu, as

transformações sociais, urbanas, políticas e as mudanças de paisagens

ocorridas nas grandes capitais, principalmente no Rio de Janeiro e em São

Paulo no início do século XX.

Referindo-se a urbanização Fausto (2004) diz ter sido na capital do

Estado de São Paulo “o salto mais espetacular. ”

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De fato, as maiores transformações ocorreram com o crescimento da

prática industrial e com o crescimento econômico, tendo os imigrantes,

principalmente os italianos e espanhóis papéis importantes nesse cenário. Eles

cruzaram o Atlântico, no intuito de construírem a América.

O operariado era constituído em sua maioria dos imigrantes italianos e

espanhóis. Eles introduziram e propagaram as ideias anarquistas e

comunistas, em oposição aos ideários positivistas da Nova República, até

então defendidos pela elite brasileira.

A abordagem do brasilianista sobre o papel dos sindicatos é positiva,

pois, “O rápido crescimento da indústria na década de 1920 criou oportunidade

para a organização mais efetiva dos sindicatos de trabalhadores urbanos. ”

(SKIDMORE, 2000, p. 141)

A questão da imigração italiana assinala dados estatísticos

consideráveis: “Em 1920, 71,4% dos italianos existentes no Brasil viviam no

Estado de São Paulo e representavam 9% de sua população total. ” (FAUSTO,

2004, p.279)

Nessa época o trabalho dos imigrantes, além de ser nas lavouras,

também ocorre nas cidades:

“A cidade oferecia um campo aberto ao artesanato, ao comércio de

rua, às fabriquetas de fundo de quintal, aos construtores

autodenominado “mestres italianos” aos profissionais liberais. Como

opção mais precária, era possível empregar-se nas fábricas

nascentes ou no serviço doméstico. ” (FAUSTO, 2004, p.284)

A sociedade brasileira vivia agitada. Além das comemorações do

Centenário da Independência, a movimentação da elite carioca e da elite

paulistana na construção de monumentos e nos preparativos da festividade,

merece atenção a criação do Partido Comunista:

“Um dos desdobramentos mais significativos dentro do trabalhismo e

da esquerda foi à fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em

1922. O PCB subsequentemente conseguiu recrutar muitos dos

antigos anarco-sindicalistas, que haviam dominado a organização do

trabalhismo urbano antes da guerra. ” (SKIDMORE, 2000, p. 142)

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Destarte, diante de todo esse quadro vivido pelo país, foi o Movimento

Modernista quem trouxe uma proposta de renovação para a cultura brasileira,

em especial, o “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” (1924), objeto de estudo em

questão, escrito pelo paulistano Oswald de Andrade (1890-1954).

Resumindo a biografia do autor escrita por Fonseca (1987) Oswald era

Bacharel em Ciências e Letras e Bacharel em Direito, além de escritor, foi

articulista do Diário Popular destacando-se também na autoria de peças

teatrais.

Então, com ele novas perspectivas e possibilidades de mudanças para a

sociedade brasileira são apresentadas, quebrando os velhos paradigmas

eurocentristas. Oswald faz a denúncia à cultura da classe dominante e valoriza

o regional popular no “Manifesto Pau-Brasil”.

Justificando a escolha do tema pesquisado, foi após as aulas

ministradas pela professora doutora Any Marise (FIG-UNIMESP), que entendi a

relevância do trabalho interdisciplinar, realizado com a leitura e análise dos

contos e dos poemas brasileiros.

Dedicando-me a leitura de textos e artigos abordando a Semana de Arte

Moderna de 1922, tomando gosto pela leitura da época em questão descobri

ser o Manifesto Pau-Brasil, um importante documento da historiografia

brasileira, pois, ele apresenta uma crítica à “ordem vigente” e busca uma

“reordenação social. ”

Soma-se ainda ser ele um objeto de estudos interdisciplinares, devido

sua importância histórica e cultural, sendo suas ideias contextualizadas por

pesquisadores e acadêmicos das disciplinas de Letras, História e Ciências

Sociais.

Consequentemente, conhecendo o objeto de estudo, através de uma

investigação científica e de pesquisa bibliográfica, tendo como objeto de

pesquisas teses, artigos e documentos impressos, a técnica de pesquisa

empregada foi a documentação.

A partir dessa descrição técnica e científica, de levantadas informações

sobre tempo e espaço, e do pano de fundo inicialmente apontado, inicia-se

então as considerações concernentes ao trabalho de Oswald de Andrade.

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Explicando a liderança de Oswald de Andrade antes e depois da

Semana de Arte Moderna em 1922, frisava a escritora: “a liderança inconteste

por sua ação estimuladora e informativa coube aos dois Andrades, Mário e

Oswald, tanto nos anos que antecederam a Semana como em todo o decorrer

dos anos 20. ” (AMARAL, 1970, p. 17).

De acordo com o Borges (2009) “ler a lírica modernista do poeta é

entender a sua significância no processo histórico das renovações ocorridas na

cultura brasileira após A Semana de Arte Moderna de 1922, e perceber seu

engajamento na luta contra a arte tradicional. ” (BORGES, 2009)

Sendo assim, o Manifesto Pau-Brasil propõe uma redescoberta dos

valores brasileiros, isto é, uma revisão crítica do passado histórico-cultural,

retornando e reconstruindo a poesia brasileira, dando-lhe um enfoque nacional.

Muitos autores já estudaram o manifesto e as obras oswaldianas, por

isso, uma das questões levantadas é se houve uma ruptura ou apenas uma

adaptação com a cultura europeia dominante.

O movimento modernista na poesia de Oswald de Andrade e as pinturas

de Tarsila do Amaral são analisados por Santini (2008) na tese “Ruptura e

identidade em Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral”. Constitui-se um

diálogo com a obra desses autores, e confirma ser heroico o movimento

modernista, apesar de seus dois polos opostos: o valorizador das tradições e

aquele que visa romper com os padrões europeus.

Na visão de Ferreira (2009), no estudo Tributo antropófago: ecos

europeus na poesia Pau-Brasil, o modernismo é “uma busca da independência

cultural com relação aos padrões europeus, o fim da imitação e da submissão

intelectual ao estrangeiro”.

Ela acredita ser Oswald de Andrade aquele quem “oferece estratégia

original contra o etnocentrismo: a antropofagia crítica e criadora”. A professora

descreve ainda que “O Modernismo brasileiro representa uma tentativa de

busca da construção da identidade nacional. Estéticas libertadoras delineiam

novos contornos para o país. Rejeitam-se valores europeus em prol do

nacional. ” (FERREIRA, 2009)

A especialista Massebeuf (2006), vê no Manifesto Pau-Brasil “uma

alavanca para a vanguarda brasileira, sem desempenhar função de destruição,

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mas de construção de novas propostas”, observando ainda ser “O manifesto

cultural de reinvindicações da identidade brasileira”. (MASSEBEUF, 2006)

Já o escritor Afrânio Coutinho no Movimento Pau-Brasil, Verde-Amarelo,

da Anta e Antropofagia (2001), salienta que dois anos depois de sua passagem

em Paris, o poeta Oswald de Andrade revela seu desejo em mudar o estilo da

poesia brasileira.

Esse desejo é comprovado através do depoimento prestado a Péricles

Eugênio da Silva Ramos jornalista do Correio Paulistano: “O primitivismo que

na França aparecia como exotismo – explica Oswald mais tarde – era para nós,

no Brasil, primitivismo mesmo. Pensei, então, em fazer uma poesia de

exportação e não de importação, baseada em nossa ambiência geográfica,

histórica e social. ” (ANDRADE, 1926 apud COUTINHO, 2001, p.50).

Compartilha a mesma opinião de Coutinho a tese de Diniz (2003/2004)

que propõe estarem as ideias da Poesia Pau-Brasil em formação desde maio

de 1923, ocasião em que Oswald de Andrade pronuncia-se em uma

Conferência na Sorbonne em Paris, apresentando germes do caminho crítico

na escrita do manifesto e de outros textos.

A pesquisadora Leite (2004) destaca a projeção do Modernismo, pois

entende que o movimento “buscava retratar as manifestações populares de

forma verdadeira, e não mistificada. Buscava, assim, reforçar a identidade

brasileira. ” (LEITE, 2004, p. 2).

Em Machado (2006) a descrição do elemento social nas poéticas de

Mário e Oswald de Andrade tende valorizar o elemento nacional e representar

a vida brasileira, diante de tantas transformações. Ele analisa o contexto social

do movimento e exalta a objetividade do autor:

“O autor aponta que a poesia moderna deve ser objetiva e mostrar

somente aquilo que realmente enxerga. Ou seja, não procurar o belo

ou feio ou vice-versa” acrescentando ainda, “Além do fato de que as

obras desta época, o antigo, ultrapassado deve conviver com o

moderno, o novo, o que caracteriza uma mudança “antropofágica” na

medida em que o novo utiliza estruturas antigas para se construir

como tal. ” (MACHADO, 2006, p.130).

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Desse modo, existe uma antítese entre o popular e o moderno, entre o

colonial e o moderno, entre o popular e o erudito. Esses elementos caminham

juntos na poesia de Oswald de Andrade e essa sintonia entre esses polos

retrata o Brasil histórico e cumpre seu objetivo na poesia de exportação.

Dentre tantos enfoques, a Poesia Pau-Brasil evidencia a realidade

social, ao mostrar a divisão de classes com os pobres da favela e os ricos do

jóquei, e vê na miscigenação cultural, elementos importantes para a formação

da cultura, como se refere Machado (2006, p.126): “do e no Brasil”, ou seja, a

nativa de exportação, e a adquirida por meio dos elementos externos.

Os pesquisadores da Poesia Pau-Brasil apresentados nessa pesquisa,

expressam rejeição a cultura europeia imposta, defendendo a construção da

identidade brasileira. Essa pesquisa não se esgotou, por conta da dinâmica da

história social, permitindo, outras pesquisas analisando os movimentos

populares contemporâneos.

A propósito, em relação à crítica feita pelo próprio poeta, é bem

coerente, pois, ele retrata o momento histórico em que vivia: “... ainda não

proclamamos direito a nossa independência. Todas as nossas reformas; todas

as nossas reações costumam ser dentro do bonde da civilização importadas.

Precisamos saltar do bonde, precisamos queimar o bonde. ” (ANDRADE, 1990,

p.41 apud OLIVEIRA, 2002, p.65).

Logo, com sua poesia denunciou o atraso cultural vivido no Brasil desde

o seu descobrimento, e propôs uma ruptura dos moldes positivistas vigentes,

empregados também na cultura nacional elitizada e dominante.

“Oswald concebeu o momento em que vivia, e como, a partir de uma

cena casual na cidade, construiu uma espécie de alegoria do país. E

o que ela diz? Que a sociedade brasileira se constitui de elementos

díspares, bastante distantes entre si; por vezes contraditórios, mas de

uma contradição específica, cujas nuanças mostram a variedade do

problema: eles se acomodam, se chocam, se modificam e

permanecem. Em outras palavras, o ambiente do passado, da

tradição, já não é o mesmo, mas continua; a força do progresso é

irreversível, mas não é absoluta. ” (FERNANDES, 2006, p.316).

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E contestar os modelos vigentes não foi fácil, tendo em vista o

enfrentamento ao conservadorismo:

“Os campos estão claramente divididos, já em 1920: de um lado, as

forças do futuro, e, do outro os conservadores, os saudosistas de

uma época ultrapassada. Estão em conflito, enfim, o velho e o novo.

À inércia opõe-se o dinamismo, ao passado o porvir, à tradição a

renovação (ou talvez a revolução), ao ontem o hoje. É, numa palavra

a ruptura. ” (BRITO, 1971, p.136)

Pela sua militância, o poeta é considerado um dos vultos principais,

precursor do movimento vanguardista, junto com Tarsila do Amaral e Mario de

Andrade e organizadores da Semana de Arte Moderna (1922), em busca das

representações artísticas populares.

Através da linguagem poética, ele retrata a cultura e o costume das

classes populares genuinamente brasileiras, das camadas menos favorecidas

e seu trabalho é importantíssimo, pois, valoriza a identidade e história do povo

brasileiro.

O esforço de Oswald de Andrade é visto nas utilizações de metáforas,

com boa dose de humor, como estratégia para a representação da época em

que vive, buscando a superação das desigualdades sociais, entre a burguesia

e as classes populares.

O “Manifesto Pau-Brasil”, foi ironicamente escrito pelo poeta brasileiro

Oswald de Andrade respirando os ares parisienses e foi publicado no Brasil no

Correio da Manhã em 18 de Março de 1924.

Segundo o autor, o Manifesto Pau-Brasil recebeu esse nome, por ter

sido o Pau-Brasil a primeira riqueza do Brasil a ser exportada. Ele mesmo

declara: “[...] pensei [...] em fazer uma poesia de exportação. Como o pau-brasil

foi a primeira riqueza brasileira exportada, denominei o movimento Pau-Brasil. ”

(FARACÓ & MOURA, 2000, p. 259)

Sobre os preceitos dominantes na época, o historiador (H.-I. MARROU

apud TÉTART, 2000, p.107) assevera: “nos anos 1920, há um esforço em

inovar, dar novos enfoques a história, desvencilhando-a dos preconceitos

positivistas dominantes. ”

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Nesse sentido, percebe-se no poeta o seu entendimento em dar novos

ares empreendendo a luta pela poesia Pau-Brasil seguida pelo Manifesto

Antropofágico e demais obras.

Quanto ao fato do poeta ter escrito o manifesto na França, seu mecenas

Paulo Prado registra em um prefácio da Poesia Pau-Brasil: "Oswaldo de

Andrade, numa viagem a Paris, do alto de um atelier da Place Clichy - umbigo

do mundo - descobriu, deslumbrado, o seu próprio país. ” (FONSECA, 1987,

p.56).

Era costume dos intelectuais e de parte da elite da época, visitarem

Paris, em busca de estudo, de novidades da moda, e de deslumbramentos com

a beleza capital francesa.

Por isso, registra o historiador, “No afrontamento entre a “barbárie” e a

“civilização” que conhecia a jovem nação brasileira, Paris foi o modelo

incontestado, assim como a referencia mítica dos artistas. Ir a Paris tornou-se

uma necessidade para todo intelectual digno deste nome, como aliás para

muitos estrangeiros. ” (CARELLI, 1994, p.185)

Importa salientar, que o movimento antropofágico de Oswald de Andrade

recebeu esse nome, em alusão aos rituais empregados pelos índios

Tupinambás, que ao comerem a carne de seus inimigos, acreditavam que

obteriam a força, a coragem e a inteligência de seus inimigos, pois, comiam

simbolicamente o valor do outro.

Com isso, tendo em vista a absorção dos valores do outro, ou seja, do

melhor da cultura alheia, segundo o intelectual Antonio Candido (1985, p. 43), a

antropofagia oswaldiana era "uma atitude brasileira de devoração ritual dos

valores europeus, a fim de superar a civilização patriarcal e capitalista, com

suas normas rígidas no plano social e os seus recalques impostos, no plano

psicológico".

Debruçando-se sobre a deglutição das ideias europeias, o franco-

brasileiro Mario Carelli relata:

“A sociedade brasileira instaura transformações e mutações

essenciais, dado que afetam a própria forma dos modelos recebidos.

É normal que uma cultura de mestiçagem sirva-se de elementos de

empréstimo para se dizer. Mas, fazendo isso, cria novos conceitos,

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entre os quais a metáfora esclarecedora da antropofagia, elaborada

pelos modernistas. ” (CARELLI, 1994, p.179)

O modernista Mario de Andrade amigo pessoal de Oswald entende o

momento do abrasileiramento antropofágico do Brasil e diz: “Somos

confrontados aos problemas atual, nacional, moral, humano, de abrasileirar o

Brasil. ” (ANDRADE, apud CARELLI, 1994, p.175)

No entanto, segundo Carelli (1994, p. 175) não bastava ser apenas

confrontado com os problemas, mas, era necessário dar o primeiro passo

retornando a natureza antropofágica: “Oswald de Andrade (1890-1954), à

cabeça dos jovens inovadores, tinha a ambição de transformar a produção

intelectual brasileira em produto de exportação, mas só depois que voltasse a

ser fiel à sua natureza propriamente ‘antropofágica’”.

Ou seja, o antropofagismo no sentido cultural: “... vai criar as condições

favoráveis à progressiva tomada de consciência da ‘brasilidade’. ” (CARELLI,

1994, p.178)

Logo, ter consciência é o primeiro passo para as mudanças, e percebe-

se isso na declaração do uruguaio Galeano: “Ao interpretar a realidade, ao

descobri-la, a literatura pode ajudar a conhecê-la. E conhecê-la é o primeiro

passo necessário para começar a mudá-la: não existe experiência de mudança

social e política que não se desenvolva a partir de um aprofundamento da

consciência da realidade. ” (GALEANO, 1987, p.39).

E a consciência da brasilidade é interpretada por Oswald - o agente da

história - e nas palavras do historiador brasileiro Caio Prado: “O Homem é nos

fatos de que participa simultaneamente autor e ator, ser agente e ser pensante;

e é agente na medida em que é pensante, e pensante como agente. ” (PRADO,

2004, p.14).

Isto posto, Oswald demonstra no manifesto diversos elementos da

cultura brasileira, fazendo uma relação com a cultura popular e a cultura

acadêmica: “Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo.

Ver com olhos livres. Temos a base dupla e presente - a floresta e a escola. A

raça crédula e dualista e a geometria, a álgebra e a química logo depois da

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mamadeira e do chá de erva-doce. Um misto de "dorme nenê que o bicho vem

pegá" e de equações. ” (ANDRADE, 1924)

Para o escritor, “ver com olhos livres” significa ver o mundo sem tabus,

desprovido de preconceitos. Os professores de Rodrigues, Castro e Teixeira,

(1979, p.113), comentando esse trecho da poesia Pau-Brasil, descrevem a

postura de Oswald “ (sem desvios e nem interferências) constituir-se no

fundamento básico de sua criação”.

Continuando a leitura do manifesto o poeta fala sobre o progresso do

Brasil, porém não exclui as paisagens populares:

“Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas

elétricas, nas usinas produtoras, nas questões cambiais, sem perder

de vista o Museu Nacional. Pau-Brasil. Obuses de elevadores, cubos

de arranha-céus e a sábia preguiça solar. A reza. O Carnaval. A

energia íntima. O sabiá. A hospitalidade um pouco sensual, amorosa.

A saudade dos pajés e os campos de aviação militar. Pau-Brasil. ”

(ANDRADE, 1924)

Acrescenta-se a isso, a importância da visão de Oswald e sua

contribuição para a literatura brasileira. Ele é reconhecido como “a personagem

mais viva de nosso modernismo, aquela que conseguiu gerar matrizes para

uma nova visão: abrir o presente instantâneo para alargar o futuro. ”

(RODRIGUES, CASTRO, MEDINA, 1979, p.113).

Almeida (2005) declara a relevância dos escritos antropofágicos

oswaldianos, “Ao propor o canibal como sujeito transformador, social e coletivo,

Oswald produz uma reescritura não só da história do Brasil, mas também da

própria construção da tradição ocidental na América. ” (ALMEIDA, 2005, p. 85)

Ao descrever o antropofagismo apresentado por Oswald, ela faz uso do

conceito braudeliano de longa duração:

“O conceito de antropofagia foi diversamente articulado ao longo dos

mais de 70 anos de sua apropriação positiva; contudo – é na

contemporaneidade que ele encontra um lugar no jargão – dentro e

fora do contexto brasileiro, refletindo uma busca de superação das

desigualdades sociais que estruturam o Brasil, correspondendo ao

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que, segundo Oswald, seria uma forma de enfrentamento dos

esquemas de opressão postos na sociedade de classes. ” (ALMEIDA,

2005, p.3)

Explicando esse conceito, tem-se: “A grande questão da História

estrutural braudeliana é que a ação do homem, estudado a partir dessa

proposta, é submetida às circunstâncias objetivas, “estruturais, pelas quais ele

está envolvido, e que ele pode alterar, mas à custa de um esforço penoso, e só

obterá resultados a longo prazo” (REIS, 2000, p. 105).

Tendo em vista ser o Manifesto Pau-Brasil influenciador do Movimento

Tropicália (1968) nas questões ideológicas, estéticas e literárias, na opinião de

Cunha (2010), nota-se também as ideias modernistas apresentando uma longa

duração, influenciando milhares de estudantes e pessoas mesmo quase um

século depois.

Desse modo, algumas obras Oswaldiana, além de serem consideradas

“clássicos da literatura brasileira”, são objetos de estudos históricos, pois,

realçam a realidade e contribuem para transformações culturais.

Em uma breve biografia do autor feita por comentaristas da literatura

brasileira, Oswald é o responsável por uma ruptura do modernismo com o

academicismo: “Oswald de Andrade realizou, com sua obra, a ruptura mais

radical do modernismo com as tradições acadêmicas e passadistas [...]

demonstrou com lucidez inventiva a determinação de ir até as últimas

consequências no propósito de destruir a pseudo-cultura, enlatada e

oficializada. ” (RODRIGUES, CASTRO, MEDINA, 1979, p.113).

Sua aspiração no Manifesto Pau-Brasil é colocar em evidencia e

descrever as paisagens brasileiras e nossa cultura com a originalidade de um

espírito nativo, nacionalista, concatenando as raízes primitivas com o

revolucionário artístico, conscientizando a nação da importância de retratar sua

própria manifestação cultural.

Observa-se isso no início do poema: “A poesia existe nos fatos. Os

casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são

fatos estéticos. ” (ANDRADE, 1924)

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Percebe-se na citação acima os modos de vida reais existentes na

história em especial a moradia popular. Para Oswald o nacional é o popular e

ele preocupa-se em explicar em detalhes a forma popular, porém enfatiza que

são fatos estéticos.

Outra preocupação do autor é com a formação étnica miscigenada e as

riquezas nacionais, longe da supervalorização de um sistema. Tenta explicar

isso generalizando, pois, escreve: “O Carnaval no Rio é o acontecimento

religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo.

Bárbaro é nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A

cozinha. O vatapá, o ouro e a dança. ” (ANDRADE, 1924)

Todavia, o poeta compara o erudito da obra de Wagner ser um

espetáculo estético e plástico, ou seja, um show, sucumbindo diante dos

cordões carnavalescos de botafogo.

É importante lembrar o significado do carnaval na época, uma vez, que o

poema indica ser um acontecimento religioso da raça, fato atualmente

divergente, devido às suas dimensões multiculturais no século XXI.

Nesse ponto, o autor deixa claro que “o bárbaro é nosso”. Denotando

sua ironia, o bárbaro é o popular, e contrapõe-se da concepção europeia

acerca das terras de ultramar, do novo mundo e de seus habitantes chamados

de “bárbaros” demonizados e desumanizados, numa equivocada ótica advinda

da cultura dominante.

É importante salientar, que o autor não é um xenófobo, que apenas

rejeita a cultura alheia e sim um antropófago que se serve do melhor dela.

Nas palavras do indigenista brasileiro,

“A imitação do estrangeiro que era inevitável não seria um mal em si,

... O mal residia e ainda reside na rejeição de tudo que era nacional e

principalmente popular, como sendo ruim”, [...] a alienação passou a

ser condição mesma desta classe dominante, inconformada com seu

mundo atrasado, que só mediocremente conseguia imitar o

estrangeiro, e cega para os valores de sua terra e de sua gente. ”

(RIBEIRO, 1981. p. 143).

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Em um dos parágrafos do poema o autor trata da história da exploração

brasileira com o bandeirantismo, relembrando a escravidão e retratando o

glamour dos bailes frequentado pela elite.

Além de descrever o academicismo e erudismo Imperial, mencionando o

lado “doutor” da sociedade elitista brasileira, faz ainda a denúncia acerca das

riquezas materiais, pregadas pelo capitalismo consumista, contrastando o

erudismo intelectual com a riqueza de nossa fauna, exemplificando a poesia de

linguagem simples, na figura do gavião penacho:

“Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado

doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui

Barbosa: uma cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A

riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de Jockey. Odaliscas

no Catumbi. Falar difícil. O lado doutor. ” (ANDRADE, 1924)

Fazendo a relação entre esse “lado doutor” descrito por Oswald e a

velha tradição sobre o emprego da palavra, observa-se nela a desigualdade

social, sendo que “Vinha dos velhos tempos a ideia de que quem não fosse

doutor (medico ou bacharel) não valia nada. ” (AMERICANO, 1962, p. 325).

Continuando a poesia, Oswald ironiza a “longa duração” de um país

dominado pelos interesses estrangeiros e de certo modo, influenciado pela

cultura dominante, das classes sociais que com sua força foram marcando o

espaço e não deixando um respiradouro para as classes populares. “Fatalidade

do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens. O

bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de dores

anônimas, de doutores anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo.

Esquecemos o gavião de penacho. ” (ANDRADE, 1924)

Com isso, trata de assuntos cotidianos do povo brasileiro, evidenciando

as culturas vigentes, ilustrando assim a necessidade de termos uma identidade

cultural, um renovo, desvencilhando-se do velho conservadorismo e

apropriando-se do novo. Nasce um novo tempo, surge uma nova mentalidade

para a cultura brasileira. O nivelamento da cultura brasileira com as demais.

De acordo com Darcy Ribeiro, “Através dessas criações se manifestam

sentimentos reprimidos, tensões e esperanças; se difundem imagens

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intensificadoras da solidariedade corporificando, por cima das tensões que

afligem a sociedade, representações cada vez mais inclusivas da nação como

povo e do popular como nacional. ” (RIBEIRO, 1981, p.159)

Daí, temos a importância do popular como nacional em nossas

representações culturais descritas por Oswald e demais poetas da atualidade.

Em sua época, (1920-1930) o desenvolvimento capitalista gerou muitos

mutilados, conformados com o sistema. Porém, Oswald de Andrade mostrou-

se um homem atuante, sujeito da história em espaço e tempo e denunciou a

cultura da classe dominante e valoriza o popular nacional.

O poeta é um dos responsáveis, junto com os modernistas da época,

pela transformação da história, buscando um unívoco, um fator de

universalização.

Nesse sentido, o Manifesto Pau-Brasil trata da não exportação da poesia

exaltando a brasilidade do povo, a libertação da cultura intelectual extrínseca

ao país e a conquista intrínseca das ideias renovadoras da linguagem,

expressão cultural de um povo: “A nunca exportação de poesia. A poesia anda

oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária.

” (ANDRADE, 1924)

A vida das pessoas é descrita, como ela é. Não é mais só a história de

uma elite “dos chamados homens bons”. Agora o autor retrata a história do

povo simples, “dos chamados pés descalços”, a história das virtudes da

culinária e das donas de casa.

Nota-se “um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo

se deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram. A volta à

especialização. Filósofos fazendo filosofia, críticos, crítica, donas de casa

tratando de cozinha. A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e

descobrem. ” (ANDRADE, 1924)

Com o advento da industrialização e do capitalismo hiper-tardio, o autor

observou e descreveu as mudanças, enfatizando a agilidade, escrevendo sobre

a velocidade dos trens, dos bondes, dos carros, etc.:

“Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo: o teatro de base

e a luta no palco entre morais e imorais. A tese deve ser decidida em

15

guerra de sociólogos, de homens de lei, gordos e dourados como

Corpus Juris. Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Ágil e ilógico. Ágil o

romance, nascido da invenção. Ágil a poesia. A poesia Pau-Brasil,

ágil e cândida. Como uma criança. Uma sugestão de Blaise

Cendrars: - Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira

a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos

fará partir na direção oposta ao vosso destino. ” (ANDRADE, 1924)

Para reforçar a sua ideia acerca do empirismo a cultura brasileira é

exaltada pelo poeta, e retratada na sua mais primitiva forma. Assim é o

entendimento de Oswald, sobre a necessidade de mudança cultural: “Contra o

gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos,

perdidos como chineses na genealogia das ideias. A língua sem arcaísmos,

sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros.

Como falamos. Como somos. ” (ANDRADE, 1924)

É assim que nasce a poesia Pau-Brasil, que dá origem ao germe

antropófago de assimilação e aculturação, de uma sociedade heterogênea que

manifesta uma crítica ao erudismo e ao mesmo tempo, busca a identidade

nacional, enraizada em tradições europeia.

Retomando o manifesto, o poeta em sua indignação afirma: “Não há luta

na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros. Uma

única luta - a luta pelo caminho. Dividamos: poesia de importação. E a Poesia

Pau-Brasil, de exportação. ” (ANDRADE, 1924)

A transição não parava por aí. O naturalismo estava em voga, inovações

mudavam as mentes. Os quadros de pirogravuras cederam lugar às

fotografias. O mundo estava em constante movimento. Os homens

movimentavam-se também no campo artístico:

“Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes

sábias do mundo. Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadro de

carneiros que não fosse lã mesmo, não prestava. A interpretação no

dicionário oral das Escolas de Belas Artes queria dizer reproduzir

igualzinho.... Veio a pirogravura. As meninas de todos os lares

ficaram artistas. Apareceu a máquina fotográfica. E com todas as

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prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa genialidade

de olho virado - o artista fotográfico. ” (ANDRADE,1924)

Conforme indica (Schwartz, 1995, p. 137) não era toda a população que

poderia ter em sua sala uma “pleyela” - nome dado ao piano inventado por

Ignaz Joseph Pleyel (1757-1831). Esse fato demonstra ser exclusividade da

elite gozar da arte e de seus benefícios, devido seu alto custo.

Com isso, Oswald de Andrade ironiza o poeta parnasiano e demonstra o

acesso restrito ao piano apenas as elites.

“Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinha na parede.

Todas as meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o

piano de patas. A pleyela. E a ironia eslava compôs para a pleyela.

Straviski. A estatuária andou atrás. As procissões saíram novinhas

das fábricas. Só não se inventou uma máquina de fazer versos - já

havia o poeta parnasiano. ” (ANDRADE, 1924)

O escritor Galeano resgata o pensamento marxista sobre as artes, pois,

percebe o fato de poucas pessoas possuírem acesso a elas e confirma isso

quando explica: “Como meio de revelação da identidade coletiva, a arte deveria

ser considerada um artigo de primeira necessidade, e não um luxo. Mas na

América Latina o acesso aos produtos de arte está vedado à imensa maioria. ”

(GALEANO, 1999, p.10)

O entendimento de Karl Marx sobre às artes é ser ela, “... a mais alta

alegria do homem... Uma necessidade de todos, mas um luxo de poucos. ”

(MARX apud GALEANO,1999, p.29)

Insiste Oswald de Andrade acerca da arte elitista: “Ora, a revolução

indicou apenas que a arte voltava para as elites. E as elites começaram

desmanchando. Duas fases: 1a) a deformação através do impressionismo, a

fragmentação, o caos voluntário. De Cézanne e Malarrmé, Rodin e Debussy

até agora. 2a) o lirismo, a apresentação no templo, os materiais, a inocência

construtiva. ” (ANDRADE, 1924)

A dinâmica da reconstrução é percebida no trecho:

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“O Brasil profiteur. O Brasil doutor. E a coincidência da primeira

construção brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia

Pau-Brasil. Como a época é miraculosa, as leis nasceram do próprio

rotamento dinâmico dos fatores destrutivos.

A síntese

O equilíbrio

O acabamento de carrosserie

A invenção

A surpresa

Uma nova perspectiva

Uma nova escala

Qualquer esforço natural nesse sentido será bom. Poesia Pau-Brasil.

” (ANDRADE, 1924)

Diante das mudanças Oswald de Andrade apela pela mudança dos

moldes europeus, através de uma nova perspectiva, servindo-se de uma nova

escala, uma arte para o povo, com um novo sentimento:

“O trabalho contra o detalhe naturalista - pela síntese; contra a

morbidez romântica - pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento

técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa. Uma nova

perspectiva. A nova, a de Paolo Ucello criou o naturalismo de

apogeu. Era uma ilusão de ótica. Os objetos distantes não diminuíam.

Era uma lei de aparência. Ora, o momento é de reação à aparência.

Reação à cópia. Substituir a perspectiva visual e naturalista por uma

perspectiva de outra ordem: sentimental, intelectual, irônica, ingênua.

Uma nova escala:

A outra, a de um mundo proporcionado e catalogado com letras nos

livros, crianças nos colos. O reclame produzindo letras maiores que

torres. E as novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes.

Gasômetros Rails. Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tics de

fios e ondas e fulgurações. Estrelas familiarizadas com negativos

fotográficos. O correspondente da surpresa física em arte. ”

(ANDRADE, 1924)

Avaliando esse contexto de mudanças, o poeta sugere também a

renovação do espírito artístico, e o retrato da vida cotidiana, trazendo a

realidade da cultura brasileira presente:

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“A reação contra o assunto invasor, diverso da finalidade. A peça de

tese era um arranjo monstruoso. O romance de ideias, uma mistura.

O quadro histórico, uma aberração. A escultura eloquente, um pavor

sem sentido. Nossa época anuncia a volta ao sentido puro. Um

quadro são linhas e cores. A estatuária são volumes sob a luz. A

Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar das gaiolas, um sujeito magro

compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No jornal

anda todo o presente. ” (ANDRADE, 1924)

Sua declaração apela a para a pluralidade, um misto de cultura e de

religiões. Aponta ainda, para o processo de aculturação ocorrido desde o

descobrimento do país, de sua cultura multifacetada, um misto de cultura

europeia empregada na educação e nativa através do conhecimento empírico,

tendo em vista, a apresentação dos aspectos culturais e religiosos.

Sua proposta modernista é a mudança na literatura brasileira e isso ele

deixa claro na metáfora “acertar o relógio”: “O trabalho da geração futurista foi

ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional. ” (ANDRADE, 1924)

Deve-se notar a evocação pela regionalidade e a pureza pelo autor nas

últimas as estrofes do poema: “Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser

regional e puro em sua época. ”

Subentende-se no manifesto Pau-Brasil um apelo nacionalista,

convocando os leitores a fazerem uma digestão da cultura, livre do meeting

cultural e a serem práticos e originais apreciando nossas raízes culturais – a

nossa cultura - Pau-Brasil. Oswald apela pela atitude de espírito quando diz:

“O estado de inocência substituindo o estado de graça que pode ser

uma atitude do espírito. O contrapeso da originalidade nativa para

inutilizar a adesão acadêmica. A reação contra todas as indigestões

de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa

demonstração moderna. Apenas brasileiros de nossa época.

O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística.

Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas.

Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem

pesquisa etimológica. Sem ontologia. ” (ANDRADE, 1924)

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Nas palavras de (SCHWARTZ, 1995, p.145) nesse trecho do Manifesto

Oswald “pregava a aliança da ingenuidade e da ciência”.

Mas, além disso, o Manifesto incita e aguça o sentimento humano

unindo a miscigenação e a pluralidade de manifestação artística e cultural do

povo brasileiro, chamados pelo autor de: “Bárbaros, crédulos, pitorescos e

meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu

Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil. ”

(ANDRADE, 1924)

Charles Péguy (1873-1914), figura intelectual da época, censura à

história de esquecer o essencial: os atores mudos, a massa, a espessura da

história. (PÉGUY apud TÉTART, 2000, p.105)

Por essa via, não esquecendo que todos são atores e não apenas os

integrantes da classe dominante, o antropólogo Darcy Ribeiro (1981, p.131)

denuncia o processo de deculturação vivido pelos negros e pelos índios, ao

serem primeiramente “desumanizados”, e tratados como “coisas ou bichos” e

depois “re-humanizados” sendo inseridos ao regime de trabalho pelos seus

senhores.

Em relação aos costumes, ao trabalho alienado e a relação servil,

escreve Marx:

“Os costumes são as relações que os interesses em contato

estabelecem entre os homens. Até hoje só se têm presenciado

interesses antagônicos, tendo-os sacrificado sempre uns pela

prosperidade de outros. É evidente desde logo que os interesses dos

mais fortes têm por si mesmo determinado o sistema de relações

entre os homens e imposto as apreciações relativas ao que havia de

considerar-se como o bem e ao que devia de ser considerado como o

mal. Os costumes preponderantes de uma época são os costumes da

classe dominante, e a moral vulgar é sempre a que se conforma com

os seus interesses. ” (MARX, 2010, p.34-5)

No entanto, mesmo diante de tanta opressão vivida pelo povo brasileiro,

recomenda Darcy Ribeiro: “... apesar de tudo, somos uma província da

civilização ocidental. Uma nova Roma, uma matriz ativa da civilização

neolatina. Melhor que as outras, porque lavada em sangue negro e em sangue

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índio, cujo papel, doravante, menos que absorver europeidades, será ensinar o

mundo a viver mais alegre e mais feliz. ” (RIBEIRO, 1995, p.265)

Ao estudar esse documento histórico da literatura brasileira, descobre-se

sua significância. Como exprime (BLOCH, 1963 apud PRADO, 2007, p.149),

“para o historiador a comparação é rica em potencialidades e pode contribuir

para a reflexão sobre novos problemas e questões, tornando mais fácil a crítica

das relações entre fenômenos e mais precisa a formulação de algumas

conclusões. ”

Portanto, conclui-se ser exatamente isso que a poesia de Oswald de

Andrade possibilita: a descrição de um tempo histórico, reflexões,

comparações, críticas, e compreensões da história brasileira.

O Manifesto Pau-Brasil constitui-se em um importante passo adiante na

história nacional das manifestações populares e artísticas. Nele o entendimento

de Oswald de Andrade sobre o Brasil de seu tempo é notado e mudanças

acontecem.

É uma literatura atualmente lida por milhares de estudantes brasileiros,

devido sua pluralidade temática, sua historicidade, sua geograficidade, seus

aspectos culturais e linguísticos, potencializado como um importante objeto de

estudos interdisciplinares.

Indubitavelmente, questões como a brasilidade, a miscigenação do povo

brasileiro, a formação da identidade, o acesso à cultura, a dominação das

elites, a valorização da cultura popular, a deglutição do outro, isto é, as

absorções do melhor da cultura vinda de outros países, a xenofobia, entre

outras problemáticas continuam sendo abordadas pela sociedade

contemporânea, quase um século após sua escrita.

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