O estudo de história em tempos de abundância de fontes digitais: algumas considerações

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1 O estudo de história em tempos de abundância de fontes digitais: algumas considerações. Lilian Starobinas Resumo O crescimento da disponibilidade, em meio digital, de acervos documentais variados, coloca a nós, educadores, diante de questões importantes no que diz respeito à metodologia de trabalho com o uso dessas fontes. Desde o surgimento da internet, era grande a expectativa de facilitar o acesso a documentos, jornais, imagens e áudios pertencentes aos acervos de instituições públicas, garantindo a oportunidade de contato com esses recursos a um público muito mais amplo que aquele que poderia dirigir-se pessoalmente às instalações de cada instituição. À medida que amplia-se a quantidade de documentos disponíveis para acesso via internet, o foco de atenção dos professores deve voltar-se para a reflexão sobre as estratégias de inserção desses materiais em atividades que promovam o estudo de diferentes situações históricas. O exercício de pesquisa, seleção, leitura e reinserção desses materiais em novos produtos culturais, frutos do processo de aprendizagem vivenciado por professores e alunos, entretanto, demanda um fazer profissional apurado. A proposta desse artigo é discutir questões conceituais que devem estar na base da orientação dessas práticas educacionais, visando favorecer um contato reflexivo e aprofundado com o conhecimento da História. Pretende-se igualmente discutir as perspectivas de estratégias dialógicas de participação do leitor, buscando consolidar, nos marcos educacionais, uma cultura da participação, dando sentido ao potencial tecnológico oferecido pelos recursos digitais. Autores como Carlos Ginzburg, Yochai Benkler,Martin Weller, Rachel Goulart Barreto, e Roger Chartier são alguns dos nomes de referência para essas reflexões. [email protected] @liliansta

Transcript of O estudo de história em tempos de abundância de fontes digitais: algumas considerações

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O estudo de história em tempos de abundância de fontes

digitais: algumas considerações.

Lilian Starobinas

Resumo

O crescimento da disponibilidade, em meio digital, de acervos documentais variados,

coloca a nós, educadores, diante de questões importantes no que diz respeito à metodologia de

trabalho com o uso dessas fontes. Desde o surgimento da internet, era grande a expectativa de

facilitar o acesso a documentos, jornais, imagens e áudios pertencentes aos acervos de

instituições públicas, garantindo a oportunidade de contato com esses recursos a um público

muito mais amplo que aquele que poderia dirigir-se pessoalmente às instalações de cada

instituição. À medida que amplia-se a quantidade de documentos disponíveis para acesso via

internet, o foco de atenção dos professores deve voltar-se para a reflexão sobre as estratégias

de inserção desses materiais em atividades que promovam o estudo de diferentes situações

históricas. O exercício de pesquisa, seleção, leitura e reinserção desses materiais em novos

produtos culturais, frutos do processo de aprendizagem vivenciado por professores e alunos,

entretanto, demanda um fazer profissional apurado. A proposta desse artigo é discutir

questões conceituais que devem estar na base da orientação dessas práticas educacionais,

visando favorecer um contato reflexivo e aprofundado com o conhecimento da História.

Pretende-se igualmente discutir as perspectivas de estratégias dialógicas de participação do

leitor, buscando consolidar, nos marcos educacionais, uma cultura da participação, dando

sentido ao potencial tecnológico oferecido pelos recursos digitais. Autores como Carlos

Ginzburg, Yochai Benkler,Martin Weller, Rachel Goulart Barreto, e Roger Chartier são

alguns dos nomes de referência para essas reflexões.

[email protected]

@liliansta

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O estudo de história em tempos de abundância de fontes

digitais: algumas considerações.

Ao considerar um contexto de expressiva ampliação do acesso a conteúdos diversos,

passíveis de ocuparem a condição de fontes históricas, coloca-se diante de nós uma série de

inquietações relacionadas a questões conceituais pertinentes ao estudo da história.

Diferentes considerações fazem-se necessárias, já que testemunhamos um processo de

transformação sócio-técnico-cultural que tem desdobramentos variados no que diz respeito às

possibilidades de pesquisa, apreensão e circulação da informação. Cabe também tomar em

conta mudanças do ponto de vista da organização das instituições e mesmo dos hábitos de

sociabilidade, pois nelas residem alterações importantes nos processos de registro e de

divulgação dos materiais que passam a compor o acervo histórico sobre essa época. Os pontos

que se seguem, assim, constituem questionamentos que nos parecem necessários num projeto

de investigação que possa nos oferecer subsídios mais consistentes para compreender

transformações em curso no campo do ensino/aprendizagem, da pesquisa e do diálogo social

sobre história.

Para começar, é preciso romper com a naturalização dos recursos da tecnologia,

compreendendo-os como aparatos programados por grupos específicos, e, dessa forma,

estruturados de acordo com um conjunto de valores e de objetivos característicos desses

grupos. As disputas por essas definições, seja no campo de equipamentos e programas, seja

no que diz respeito às determinações técnicas da internet, são acirradas e possuem

desdobramentos variados. Temas como adoção de software livre ou software proprietário,

formatos abertos ou fechados, licenças de publicação flexíveis ou a rigidez do copyright,

ilustram algumas das lutas que estão na pauta dos cadernos de economia, direito, tecnologia e

cultura nos últimos 15 anos1. São discussões inerentes às colocações que se seguem, como

veremos.

Bezerra (2003, p.44) define sinteticamente os objetivos principais do estudo de

história na educação básica:

1 Como leituras de referência, sugerimos Lessig, L. (2005) , Silveira, S.A (2009)., Doctorow,C. (2008)

3

A história, concebida como processo, busca aprimorar o

exercício da problematização da vida social, como ponto de

partida para a investigação produtiva e criativa, buscando

identificar as relações sociais de grupos locais, regionais e

nacionais e de outros povos; perceber as diferenças e

semelhanças, os conflitos/contradições e as solidariedades,

igualdades e desigualdades existentes nas sociedades; comparar

as problemáticas atuais e de outros momentos, posicionar-se de

forma crítica no seu presente e buscar as relações possíveis com

o seu passado.

Nas palavras de Schmidt (2010, p.57),

o professor de história pode ensinar o aluno a adquirir as

ferramentas de trabalho necessárias; o saber-fazer, o saber-

fazer-bem, lançar os germes do histórico. Ele é o responsável

por ensinar o aluno a captar e valorizar a diversidade dos pontos

de vista. Ao professor cabe ensinar o aluno a levantar

problemas e a reintegrá-los num conjunto mais vasto de outros

problemas, procurando transformar, a cada aula de história,

temas em problemáticas.

"O livro didático tornou-se (…) um dos principais fatores que influenciam o trabalho

pedagógico, determinando sua finalidade, definindo o currículo, cristalizando abordagens

metodológicas e quadros conceituais, organizando, enfim, a sala de aula" diz o Vieira (2004.

p.16). Propor atividades no marco da educação formal que possam ir além do estreitamento

do recorte proposto pelos autores de cada coleção didática demanda avaliar os ganhos

proporcionados pelo acesso a uma amplitude maior de suportes documentais, e os cuidados

necessários para um uso focado, aprofundado e crítico desses recursos.

1. A amplitude de acesso a vastos acervos de pesquisa, em diferentes

suportes

As perspectivas de estudo de história, nos dias de hoje, passam pela possibilidade de

acesso facilitado a um acervo expressivo de fontes, em formato digital e disponíveis na

internet. Esse fato representa um ganho importante para educadores e estudantes, de forma

geral. Em especial, destacamos o sentido que possui para habitantes de cidades distante dos

grandes centros urbanos, onde são poucas as bibliotecas, os museus, os cinemas e demais

equipamentos culturais.

O crescimento do acervo disponível para uso online, nas máquinas locais e mesmo

para a composição de novos materiais e impressão tem sido expressivo, como resultado de

projetos de digitalização de acervos de inúmeras instituições. Como exemplos, destaco o

trabalho que está sendo feito no Arquivo Público do Estado de São Paulo

4

(http://www.arquivoestado.sp.gov.br/), onde é possível ter acesso a diversos fundos

documentais, como jornais de diferentes cidades do estado, álbuns, cartas, anuários

estatísticos, etc. Ou a Brasiliana USP, livros, imagens, mapas, periódicos, obras de referências

e manuscritos estão acessíveis para leitura e usos educacionais variados. Igualmente podemos

mencionar o acervo de documentação produzida atualmente por diferentes instâncias do

Estado brasileiro, em formato digital, que cada vez vem sendo disponibilizados na rede - o

que só tende se avolumar, dado o início da vigência da Lei de Acesso à Informação Pública

(Lei 12527-2011), no último mês de maio2. Essa relação de exemplos mencionados, a que se

poderiam acrescentar muitas outras iniciativas, fala somente de acervos institucionalizados.

Soma-se a ela inúmeros outros espaços de publicação por usuários, em espaços como blogs,

serviços de compartilhamento de videos (Youtube, Vimeo, etc), de fotos (Flickr,

Wikicommons), em que é possível encontrar uma infinidade de referências interessantes para

os usos dos cursos de história.

A riqueza e variedade de acervos, entretanto, não são suficientes para um

deslumbramento com a chegada das tecnologias, nem atestam, em si, uma almejada

democratização do acesso a determinada gama de recursos culturais. Carlos Ginzburg começa

sua conferência, denominada "História na Era do Google" (Porto Alegre-2010), questionando

a ideia de que a internet é, em si, um instrumento democrático. Para Ginzburg, "a internet é

um instrumento potencialmente democrático", já que a própria perspectiva de uso desse

potencial demanda "dominar os instrumentos do conhecimento".

Nesse contexto de abundância, torna-se necessária uma ação de curadoria de fontes,

para qual é preciso um exercício continuo de desenvolvimento de critérios de seleção e

descarte, que não constituem ações triviais. Beiguelman (2011) fala de curadoria da

informação como uma ação que une o uso de mecanismos de busca, filtros pessoais,

agenciamento da informação e uso das plataformas para a divulgação desses links. Constitui,

portanto, uma atividade que agrega o olhar humano à seleção promovida pela mediação

automatizada, e enriquece essa seleção com referendos dos demais usuários das plataformas.

No espaço escolar, cabe aos professores agregar a crítica de fontes da internet às

habilidades a serem desenvolvidas pelos alunos. As inúmeras situações em que a atividade de

pesquisa integra-se aos projetos de trabalho em sala de aula são também oportunidades para o

2 Ver http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/Decreto/D7724.htm

5

trabalho de avaliação das fontes utilizadas, pelo próprio professor ou pelos colegas3. O uso de

fontes variadas, num processo de crítica e levantamento de hipóteses que possam auxiliar na

validação desses materiais, também oferecem boas oportunidades para esse debate em sala.

2. A capacidade diferenciada de interação com esses acervos, mediada por

filtros, programas variados, mecanismos de ampliação de imagens

cruzamento de dados, novas visualizações.

Mais além da utilização tradicional dos suportes culturais nas estratégias pedagógicas,

é preciso tomar em conta outras perspectivas de uso desses recursos, que agregam outras

experiências ao estudo da história.

No campo da pesquisa histórica, avança o uso de Sistemas de Informação

Georreferenciados (SIG) - um ambiente computacional que permite a articulação de bancos

de dados alfanuméricos com informações e visualizações espaciais. Segundo Ferla (2012) "a

incorporação privilegiada da dimensão espacial na agenda de pesquisas possibilitaria não

apenas o enriquecimento das possibilidades temáticas e da capacidade de integração de

distintas tipologias documentais, como também poderia fornecer novas perspectivas analíticas

e interpretativas para temas já relativamente bem explorados, mas que poderiam sofrer

ressignificações ou relativizações com o auxílio da tecnologia [...] proposta". Um estudo em

curso, numa associação entre o Laboratório da UNIFESP e o Arquivo Público do estado de

São Paulo é um SIG Histórico sobre a evolução das enchentes na cidade de São Paulo.

A experiência correlata, no âmbito escolar, permite a utilização de plataformas como o

Open Street Map ou do Google Earth, na integração a projetos em que a percepção espacial

inerente a situações da história possam agregar um outro olhar aos desafios que se colocavam

a sociedades específicas e aos arranjos territoriais que foram se configurando ao longo do

tempo.

O processamento de dados por filtros específicos de pesquisa proporcionam alguns

olhares de pesquisa que permitem boas constatações, como base para instigar a reflexão e o

3 Sobre uma experiência com gerenciamento de links, ver STAROBINAS, L. ; MANCEBO, E. ; LOCATELLI, S. O uso

de ferramentas da Web no Ensino Médio da Escola Vera Cruz, 2008. Disponível em: <

http://pt.scribd.com/doc/6218217/O-Uso-de-Ferramentas-Da-Web-No-Ensino-Medio-Da-Escola-Vera-Cruz>

Acesso em: 26/01/2012

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debate entre os alunos. Um exemplo simples é uma busca básica - um simples Ctrl F - no

texto da Constituição Brasileira de 1824, por termos como escravos, escravidão, negro ou

índio - ou termos correlatos. A ausência por completo dessas referências oferecem uma boa

pauta de discussão sobre os traços da sociedade que se institucionalizava no país no momento

de sua formação enquanto estado nacional independente.

Ferramentas como o Scraperwiki podem facilitar o processamento de material mais

volumoso, em busca de determinadas terminologias. Programas como o Many Eyes, da IBM,

prestam-se a visualizações alternativas dos dados. Um exemplo prático recente desses usos,

em formato aberto, foi o desenvolvimento do aplicativo Radar Parlamentar4, que permite a

comparação das semelhanças na orientação dos votos de grupos de parlamentares, facilitando

a observação concreta dos apoios políticos nas casas legislativas do país. O aplicativo foi

esboçado por uma equipe de alunos da Poli-USP, a partir de um desafio lançado pela própria

Câmara Municipal de São Paulo, num evento denominado Hackaton, estimulando

visualizações mais profícuas e usos inteligentes do vasto banco de dados que a instituição

possui. Maratonas de produção de novos olhares a partir do processamento desses bancos, do

mesmo estilo, tem ocorrido em diferentes lugares do mundo, a partir de bases de dados

públicos ou de acervos particulares, como foi o caso de iniciativa recente do jornal O Estado

de São Paulo.

A marca de várias dessas iniciativas é uma ação embasada em processos mais intensos

de participação social. Assim como o acesso a uma multiplicidade de fontes demanda, como

dissemos, uma ação educacional que auxilie alunos e professores a fortalecerem seu preparo

para a curadoria da informação e posterior inserção contextualizada da mesma, o acesso e uso

socialmente significativo das vastas bases de dados que vão sendo produzidas no dia a dia

apontam para uma ação integrada de comunidades específicas. O mote de sua coesão pode ser

ocasional ou duradouro - ações voltadas a impedir a degradação de patrimônio histórico em

risco iminente, ou acompanhamento da evolução dos investimentos públicos e privados em

projetos de preservação. O caráter coletivo dessa trilha de produção de conhecimento sobre a

sociedade se apoia na contribuição de habilidades variadas, que passam pela elaboração da

questão que norteia o projeto; pela criação de estratégias de ação; pela identificação das

informações que podem dar base ao projeto; pelo acesso ou produção dessas fontes; pela

decisão das ferramentas a serem utilizadas, por desenvolvimento de aplicativos que facilitem

4 http://radarparlamentar.polignu.org/index/

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o processamento, a visualização ou a circulação desses dados; pela comunicação dessa

proposta a um público mais amplo. Presta-se por completo ao engajamento de grupos

numerosos, com capacidades variadas, que podem trabalhar à distância e em horários

diversos.

Um exemplo de banco de dados produzido por alunos do Brasil inteiro, por exemplo,

são as imagens reunidas pelas equipes participantes das Olimpíadas Nacionais de História do

Brasil5. A cada edição, uma das tarefas tem sido a produção de imagens da cidade - um

monumento público, uma construção que teve seu uso alterado ao longo do tempo, etc.

Contando com a participação de estudantes mais de 4 mil escolas, em todos os estados do

país, é possível pensar nesse material como um acervo de interesse em propostas de trabalho

variadas do ponto de vista do estudo da história. Outros projetos em rede, que fazem uso do

potencial de produção de vídeo e fotos digital de equipamentos simples - celulares, câmeras -

tem contribuído para a circulação do registro de depoimentos de trajetórias de vida e

circulação de fotos do patrimônio material - cito como exemplo o "Coisas Boas de minha

Terra" promovido pelo Educarede - Cenpec - Fundação telefônica, em parceria com a

Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, nos anos de 2004 e 20056.

5 Sobre a ONHB, ver Meneguello, C. Olimpíada Nacional em História do Brasil – uma aventura intelectual? IN

http://www.anpuh.org/revistahistoria/view?ID_REVISTA_HISTORIA=14&impressao

6 Livros virtuais foram produzidos a partir do trabalho das escolas, e podem ser acessados nesse link

http://www.educared.org/educa/index.cfm?id_comunidade=1

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3. Novas concepções de autoria, com a popularização de modalidades

variadas de criação e menor formalidade na relação entre autores e público

The Wealth of the Network, livro de Yochai Benkler, professor da escola de Direito de

Harvard, foi lançado em 2006. No capítulo três, Benkler analisar o que chama de "produção

por pares": processos de produção colaborativa, mediadas pela rede, de forma descentralizada

e não hierárquica, capaz de gerar resultados expressivos no campo do conhecimento. A

Wikipédia é o produto mais famoso desse tipo de processo, possuindo procedimentos internos

de regulação que permitem limites variados na capacidade de edição, de acordo com a

reputação que vai sendo adquirida por seus editores dentro da comunidade.

O próprio livro de Benkler, aliás, é um exemplo dessas outras formas de promover a

circulação e a recriação de ideias. O livro está à venda em formato impresso, mas pode

também ser acessado por meio de leitura em um arquivo eletrônico gratuito com diagramação

semelhante à impressa (pdf), em formatos que facilitam pesquisa e reutilização (html, xml,

odt), ou numa plataforma Wiki, onde há o texto, link para fontes explicativas de determinados

conceitos, ligações para casos variados que exemplificam as afirmações do autor, e

possibilidade de comentários dos leitores. Na página de remixagem, pode-se encontrar áudios

de narração do livro, produzidos pela comunidade de suporte.

A facilitação da publicação por meio das plataformas digitais; as combinações

possíveis para autorias e interação com autores; a inserção mais ágil do retorno dos leitores ao

próprio autor e do debate dos leitores entre si; a recombinação de textos com vídeos, áudios,

links; todos esses elementos compõem um processo recente de produção cultural, que abala a

posição consagrada da voz do autor e abre espaço para um processo dialógico promissor no

que diz respeito a ampliação dos debates e ao aprofundamento das reflexões.

A circulação entre pares e o sistema de referenciamento por citações não é,

certamente, um fenômeno novo. A digitalização, entretanto, facilita tecnicamente esse

processo e vem permitindo uma aproximação entre autores e leitores numa escala e ritmo que

é inédita.

Nesse sentido, a disseminação do conceito de Recursos Educacionais Abertos vem

contribuindo de forma consistente para auxiliar na reflexão sobre as formas de inserir essas

práticas no cotidiano da escola. De acordo com a definição estabelecida pela

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Unesco/COMMONWEALTH OF LEARNING, em 2011, são Recursos Educacionais

Abertos:

materiais de ensino, aprendizado, e pesquisa em qualquer

suporte ou mídia, que estão sob domínio público, ou estão

licenciados de maneira aberta, permitindo que sejam utilizados

ou adaptados por terceiros. O uso de formatos técnicos abertos

facilita o acesso e o reuso potencial dos recursos publicados

digitalmente. Recursos educacionais abertos podem incluir

cursos completos, partes de cursos, módulos, livros didáticos,

artigos de pesquisa, vídeos, testes, software, e qualquer outra

ferramenta, material ou técnica que possa apoiar o acesso ao

conhecimento.

Esse convite à adoção de um suporte didático menos cristalizado, que pense em

conhecimento de uma forma mais dinâmica que estanque, é também um convite a reconhecer

a autoria de professores e alunos no processo educacional - o que vale tanto para a educação

básica quanto para o ensino superior. Trata-se de olhar para a autoria enquanto uma

capacidade que demanda exercício para desenvolver-se, e cujo esboços, rascunhos, tentativas

e erros, em suportes culturais variados, constituem parte da trajetória7.

4. A transformação dos valores definidores do que se registra, em que

suporte e sob que política de manutenção e conservação.

A penetração dos aparatos digitais nas diferentes esferas da vida nos obriga a pensar

em várias questões relativas aos registros que esses usos imprimem, os registros que

produzimos conscientemente - ou não - e os usos desse acervo.

Câmaras de monitoramento nas ruas, nos edifícios, nos estabelecimentos comerciais e

até nas escolas produzem a cada dia horas e horas de imagens sobre a vida cotidiana da

população. Sinais do telefone celular, aplicativos georreferenciados, GPS dos automóveis

permitem uma cartografia específica da mobilidade de grupos específicos. O uso do cartão de

crédito, os programas de bônus por emissão de nota fiscal, são fonte de terabytes de dados

sobre hábitos de consumo. O histórico de uso de motores de busca e as atividades nas Redes

Sociais constituem um ativo milionário das empresas que se apropriam e negociam essas

informações8.

7 Sobre Recursos Educacionais Abertos, sugiro a leitura dos artigos do livrorea.net.br, entre os quais encontra-

se um de minha autoria.

8 Sobre o tema, ver LEMOS, A. Mídias Locativas E Vigilância: sujeito inseguro, bolhas digitais, paredes virtuais e

territórios informacionais, in http://www2.pucpr.br/ssscla/papers/SessaoJ_A21_pp621-648.pdf

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Se estamos falando em abundância de fontes a partir da digitalização de acervos

produzidos até o século passado, talvez seja necessária outra terminologia para especificar a

enxurrada de imagens, textos e vídeos agregados a plataformas variadas a cada minuto. O que

se observa é uma mudança de prática impulsionada pelas alterações dos suportes

tecnológicos: o barateamento da produção de imagens, seja pela popularização de câmeras ou

de celulares, seja pela substituição da impressão em papel pelo consumo nas telas do telefone,

tablets, etc. O exercício de curadoria dessas imagens, como hábito pessoal, é inexpressivo:

duzentas fotos são tiradas, duzentas fotos são publicadas, independente de sua qualidade

técnica, de sua redundância, dos olhos fechados e das caretas, da imagem do chão captada por

casualidade. Quando muito há a discussão sobre cuidados com imagens comprometedoras:

exposição demasiada do corpo, presença em lugares socialmente mal vistos, companhias

perigosas, enfim, um rol limitado de motivos que refreiam o impulso imediato de divulgar.

As crianças descabeladas; a bagunça na sala de estar; o coral desafinado dos amigos na

festa; as paródias dos artistas e dos fatos políticos; o deslize de comportamento do policial;

todos esses temas povoam as infindáveis imagens que estão sendo produzidas a cada dia,

compondo um acervo poderoso no que virá a ser, um dia, o legado dos registros históricos de

setores da sociedade no início do século XXI. Nas palavras de Lemos9, "a cibercultura não

pertence mais à sociedade do espetáculo, no sentido dado a essa pelo situacionista francês

Guy Debord. Ela é mais do que o espetáculo, configurando-se como uma espécie de

manipulação digital do espetáculo".

Do ponto de vista do historiador, o cuidado com a preservação documental e a

discussão sobre as manipulações de fontes documentais são de grande relevância. Os debates

sobre os quesitos orientadores da eliminação do suporte em papel na documentação pública e

mesmo da destruição de acervos institucionais de órgãos públicos em diversos estados vem

ocorrendo, nem sempre com resultados que garantam segurança ao patrimônio histórico nem

eficiência em sua aplicação. É fundamental, nesse sentido, uma postura atuante dos

profissionais do campo, demandando uma política pública que garanta a multiplicação das

cópias dos acervos, e também um olhar para os formatos digitais, com o objetivo de evitar sua

caducidade.10

9 Lemos, A. Ciber-Socialidade.Tecnologia e Vida Social na Cultura Contemporânea.In

http://www.facom.ufba.br/pesq/cyber/lemos/cibersoc.html

10 Sobre o tema o artigo de Sérgio Amadeu no livrorea.net.br.

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5. Algumas reflexões para concluir

Diz Chartier em Inscrever e apagar:

O medo do esquecimento obcecou as sociedades europeias da

primeira fase da modernidade. Para dominar a sua inquietação

elas fixaram, por meio da escrita, os traços do passado, as

lembranças dos mortos ou as glórias dos vivos e todos os textos

que não deveriam desaparecer. (...) Em um mundo em que as

escritas podiam ser apagadas, os manuscritos perdidos, e os

livros estavam sempre ameaçados de proibição, não era uma

tarefa fácil. Paradoxalmente, seu sucesso poderia criar, talvez,

outro perigo: o de uma proliferação textual incontrolável, de um

discurso sem ordem nem limites. O excesso de escrita, que

multiplica os textos inúteis e abafa o pensamento sob o acúmulo

de discursos, foi considerado um perigo tão grande quanto seu

contrário. Portanto, embora temido, o apagamento era

necessário, assim como o esquecimento também o é para a

memória.

O texto de Chartier nos convida a pensar no ruído produzido pela informação em

excesso. E nos coloca no limite entre a angústia da escassez e do desnorteio diante do mar de

opções. É nessa condição que nos colocamos para acompanhar e buscar refinar uma prática do

estudo da história que procure caminhos para poder usufruir da riqueza de vozes, e ao mesmo

tempo propor desafios que obrigue ao aprofundamento da leitura e a tessitura coesa de links

entre os materiais em novas produções do pensamento.

Trata-se de inspirar-se no que Weller (2011) chama de "uma pedagogia da

abundância", apontando para processos que possam promover processos estudo e reflexão

apostando numa certa liberdade e imprevisibilidade dos caminhos de pesquisa, fazendo uso de

suportes culturais variados e incentivando a atuação coletiva na filtragem e disseminação dos

recursos.

Como sugere Barreto (2002).

o professor da sala de aula possível - como ela pode ser - não se

deixa seduzir apenas pela atratividade das novas tecnologias,

nem privilegia somente a interação dos alunos com elas. Tem,

como horizonte, a interação maior: a discussão (das

informações coletadas e dos processos vividos) para o confronto

dos diferentes percursos (individuais), visando a produção

(coletiva) de sínteses integradoras que extrapolam conteúdos

específicos.

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