“Power, Pleasure, Patterns: Intersecting Narratives of Media Influence"
O CORPO SEM VÉUS: A VOLÚPIA DA ILUSÃO - THE BODY UNVEILED: THE ILLUSION OF PLEASURE
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O CORPO SEM VÉUS: A VOLÚPIA DA ILUSÃO
Flávia Regina Marquetti
A nudez e sua representação ao longo da história da humanidade sofrem
profundas alterações, sobretudo no que toca a nudez feminina. O nu masculino, embora
apresente alterações, tem uma constância maior no que tange aos temas e motivos de
sua representação. Grosso modo, a representação do nu masculino está circunscrita aos
valores viris e guerreiros, motivo/tema que se confunde e se complementa, o corpo do
guerreiro, muitas vezes itifálico, é recorrente desde a pré-história, quando o falo, na
representação do masculino, conotava sua pujança fertilizadora e mortal1. No período
clássico grego, o uso das hermai ao longo das vias públicas tinha como função a
proteção da cidade. A correlação falo/arma/fecundação/proteção pode ser percebida
ainda na decoração de objetos guerreiros ou sacrificiais, como no duplo machado do
século V a.C. (Museu Nacional de Atenas), decorado com uma cena erótica de figuras
vermelhas. Nele é representado um jovem nu, sentado e com o falo ereto, levantando a
túnica de uma jovem que está em pé à sua frente para observar seu sexo, atrás do
homem é representado um galo sobre um pedestal. O galo é um dos símbolos eróticos
do período, mas também está ligado a Ares, deus da guerra. A cena e seu suporte
conjugam os valores viril/mortal do machado/falo à função protetora/fertilizadora.
Ao longo da história a representação do nu masculino se sofistica, o falo é
substituído pelas armas, seu símile, como em Leônidas, de David (1814 - Museu do
Louvre, Paris); o corpo forte, de formas atléticas e com postura sóbria ou guerreira irá
perdurar da Grécia Clássica até o final do XIX2, exceção para alguns pintores como
Caravaggio, que chocam ao apresentar corpos macilentos, por vezes efeminados, como
em O pequeno Baco doente (1593-1594- Galleria Borghese, Roma), ou ainda O rapaz
mordido por um lagarto (1593 – National Gallery, Londres), a representação de um
corpo não viril ou com conotações homoeróticas só será mais frequente a partir do
1 Conferir sobre esse tema o artigo: Flávia Regina Marquetti & Pedro Paulo Abreu Funari. Reflexões
sobre o falo e o chifre: por uma arqueologia do masculino no paleolítico. Dimensões, vol. 26, 2011, p.
357-371. ISSN: 2179-8869. 2 Henri Zerner (2009), em seu excelente capítulo, O olhar dos artistas, observa que David não vê como
algo proibido a exibição das partes: “o sexo de Leônidas está oculto apenas parcialmente pela bainha de
sua espada ... [ao passo que outro mancebo, à direita no quadro]... tem o sexo inteiramente encoberto de
forma ostentatória pela bainha de sua espada, escondendo/sugerindo o sexo em ereção. (p.108-09). Essa
passagem confirma a permanência da equivalência valorizada entre falo/arma na cultura ocidental e na
pintura.
simbolismo e mais exatamente do Modernismo em diante, quando o tema de Narciso é
revisto por diversos artistas, neste conjunto são profusas as imagens, pinturas e
principalmente fotografias que retratam o copo viril, itifálico ou não, com conotações
eróticas, outro pólo nessas representações modernas e contemporâneas são os jovens
imberbes, andróginos e efeminados. Caravaggio é ainda o autor de um dos mais belos
quadros abordando o mito de Narciso e cuja gestualidade será referência para a
produção homoerótica moderna, Narciso (1598 -1599 – Galleria Nazionale d’Arte
Antica, Roma). O desejo por si mesmo, portanto, por alguém inalcançável, ponto
central do mito de Narciso, é revistado, principalmente após o Modernismo, sob outro
ângulo, o desejo pelo igual, do mesmo sexo3.
Na Idade Média a representação da nudez, tanto a masculina quanto a feminina,
sofrerá uma inversão de valores, ela é marcada por corpos esquálidos, ultrajados, nos
quais o sofrimento físico, o martírio imposto ao corpo é ressaltado; mesmo visando uma
educação espiritual de desapego ao corpo e valorização do espírito, são raros os nus,
pois como nos informa Veyne (1998: 273-87), a valorização do espírito, da alma, e de
uma salvação desta na vida além túmulo, faz do corpo, da sexualidade e da vida
presente um inimigo do espírito, estas, como a mulher, serão associadas, ao longo de
toda a Idade Média, às práticas diabólicas, parceiras do diabo e motivo de temor e
desprezo. A vergonha sexual generaliza-se, o corpo torna-se perigoso, os farrapos dos
pobres, devem provocar nos crentes visões perturbadoras: um medo inconcebível nos
séculos anteriores, em que essa nudez parcial era tida como indigna, mas dificilmente
como fonte de inelutável perigo moral.
Há, portanto, três grandes grupos genéricos para a representação do nu
masculino até o final do XIX, o guerreiro/viril, os que buscam retratar o corpo
espiritualizado e, em menor número, o efeminado ou andrógino. Já no final do XIX e
início do XX vê-se manifestar a busca de um corpo “real”, não mais idealizado e
perfeito como os dos deuses ou heróis, mas o corpo marcado pela ação do tempo, pelos
trabalhos braçais e pesados, ou pela posição sócio-cultural ocupada. Dentre os vários
artistas que inauguram esse novo período, o escultor Rodin merece destaque. Em sua
3 As análises das representações de Narciso podem ser conferidas em MARQUETTI, F. R. Um Corpo
Desejoso: A Figurativização no Mito de Narciso. OPSIS (UFG). , v.7, p.108 - 124, 2007. Ou uma leitura
mais completa, em MARQUETTI, F. R. Perseguindo Narciso. Um estudo da protofiguratividade no mito
de Narciso. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)
- Araraquara – SP, 1995.
obra a mescla entre a “perfeição” da forma, claramente delineada, limpa e emergente da
base bruta e não lapidada da pedra, que serve de suporte para a escultura, revela o
brilhantismo estético do escultor, pois ao explicitar o suporte rústico e fazer surgir o
corpo, geralmente nu, o escultor privilegia sua função de criador, que ao extrair da
brutalidade da pedra a forma nova, faz lembrar a todos, a incompletude, a obra
inacabada que é a própria humanidade. Dentre seus trabalhos, são destaques: Balzac, A
porta do Inferno, O Pensador e muitos outros, nos quais a renuncia à “finalização” da
obra confere a ela sua verdadeira beleza, guardando toda a força da sugestão do esboço.
Henri Zerner aponta para este fato ao comentar os diversos estudos e esculturas feitas
por Rodin para chegar ao monumento final de Balzac. Segundo o autor:
Rodin se confrontou aí com problemas interminavelmente discutidos
desde o século XVIII: Era preciso apresentar Balzac numa nudez heróica,
logo ele, cujo físico se prestava tão mal a isso? [...] Entre os inúmeros
estudos modelados do todo e das partes, um dos mais notáveis, que parece
uma obra independente, é o Balzac nu, de braços cruzados, plantado numa
atitude de desafio, que foi comparada à de um lutador [...].
Para chegar a uma solução definitiva, sabe-se como, afinal, Rodin
vestiu esse esboço de corpo com um roupão molhado no gesso e colocado
em volta das costas: a escultura estava pronta. (ZERNER, 2009:138).
O nu masculino é vestido, após o XIX, não só pelo tecido, mas pelos valores
sociais que o personagem representa na visão de seu grupo, o poder, que antes era fálico
ou das armas, continua presente no prestígio e alcance da figura, em sua imponência ou
em seu poder de luta e resistência contra o infortúnio, como ocorre com as
representações de trabalhadores braçais, exemplo é o quadro Os quebradores de pedras
(1849 - Galeria Neue Meister, Dresden, Alemanha), de Courbet, no qual o único efeito
de presença corporal é sugerido pela tensão, pelo esforço visível do garoto à esquerda e
pelo corpo frágil e desgastado sob as vestes remendadas do homem velho (Zerner,
2009:121).
Como afirma Philippe Contamine (2009: 586 - 587),
[...] as definições profissionais e o orgulho social são fragilmente definidas
num terreno e num meio em que o sucesso individual era exaltado de todas
as maneiras. A identidade se perde com o traje, porque o homem social é um
homem vestido. O nu, em uma sociedade de ordem, define o transviado ou o
excluído sob o olhar das pessoas vestidas e confina com o natural do homem
selvagem. O vestuário é uma das marcas essenciais da convivência social e
o palco de um surdo conflito entre a ordem política e o movimento
econômico, a partir do século XV, é objeto de uma regulamentação que
busca refrear as manifestações de elação dos indivíduos, ou seja, é uma
forma de manutenção do lugar, posição destinada pela Providência, a cada
um no corpo social.
O corpo masculino, agora vestido, é afirmação de sua posição social, ou de sua
exclusão.
O nu feminino e seus múltiplos véus
O corpo feminino foi e é sobreinvestido de inúmeros valores, talvez em maior
número que o nu masculino na arte e, digamos, de contornos mais difusos, o corpo
feminino despido, jamais foi apenas um corpo nu, sobretudo a partir do fenômeno social
e cultural da erotização do olhar pela difusão das imagens artísticas. Nas representações
do corpo feminino, um dos pontos que nos chama a atenção é a variação nos graus de
erotização4 ao qual ele é submetido, fazendo-o passar de natural/sagrado a
proibido/profano, fato não tão frequente em relação ao nu masculino, que mesmo
alternando entre o sagrado e o profano, não é visto como objeto interdito ao olhar,
obsceno ou proibido5. A nudez masculina sempre foi digna aos olhos da cultura
ocidental, mesmo quando erotizada.
Nas primeiras representações escultórias paleolíticas encontramos já o nu
feminino recoberto de valores que marcam a construção do sagrado, é o caso das
inúmeras vênus distribuídas por todo o continente europeu6. Nestas pequenas estatuetas
4 Aqui se coloca um problema delicado e quase impossível de se resolver para o amplo espectro
abordado, a definição de erotismo. Há várias tentativas de circunscrever o que seria o erótico, dentre elas,
a de Georges Bataille, que utilizaremos, pois não há como fazer uma ampla discussão neste capítulo.
Portanto, toma-se erotismo como “um dos aspectos da vida interior do homem, aquilo que põe nele o ser
em questão, e que faz diferir sua atividade sexual, da atividade sexual dos animais” (BATILLE, 1987: 27-
28). 5 Exceção para algumas imagens de Cristo nu na cruz que, por se aproximar dos cultos pagãos a deuses da
vegetação e, portanto, da fertilidade, foram recolhidas a locais mais reservados das igrejas ou tiveram o
sexo coberto por um pano para evitar o culto pelas mulheres. Semelhante destino obteve o quadro de São Sebastião de Fra Bartolomeu, como informa Daniel Arasse, retirado da igreja onde havia sido colocado
porque mulheres haviam confessado “que tinham pecado ao olhar para o santo por causa de sua beleza e
da imitação lasciva que lhe havia dado a virtú do pintor; colocado na sala do capítulo, o quadro também
perturbou os monges, visto que foi logo em seguida vendido e enviado ao rei da França.” (ARASSE,
2010: 555). 6 Para uma análise mais pormenorizada das vênus, conferir cap. 2 de MARQUETTI, F. R. Da sedução e
outros perigos. O mito da Deus Mãe. São Paulo: EDUNESP, 2012. Utiliza-se aqui o termo vênus em
minúscula para indicar as diversas estatuetas do período paleolítico e neolítico, ou seja como substantivo
comum, e não como nome próprio.
esculpidas em osso de mamute, pedra e outros suportes, as formas esteatopígeas são
uma constante, assim como a pouca ou nenhuma definição do rosto, mãos e pés, o
escultor do período valoriza as formas da mãe natureza: sexo, ventre, seios. O cuidado
em sua representação é minucioso, a ponto de esculpir os pequenos e grandes lábios da
vagina7, mas este é um nu natural, que prenuncia o sagrado, marcado pelos seus valores
de fecundidade/fertilidade e não erótico.
A nudez crua das vênus paleolíticas e mesmo neolíticas, com os seios e a fenda
vulvar explicitada, dará lugar a uma representação bem mais erotizada, que ainda
guarda os signos da fertilidade investidos no corpo nu da deusa, são as representações
imagéticas de deusas como Inanna e Afrodite. Mas se as imagens de Inanna trazem
pouco avanço erótico/escultório no trato das formas nuas da deusa8, em relação aos
períodos anteriores, na literatura se percebe a erotização da mesma, revelando em parte
a crueza do termo, próxima da representação naturalista da escultura, em parte o
requinte erótico, mostrando que o sagrado/natural, compreendido aqui como ato sexual
que favorece a reprodução do homem/natureza, já pressupõe ritos de sedução
elaborados.
A palavra poética confere às representações dessas deusas todo um approach
erótico inusitado, no qual o sagrado se faz sentir no corpo eroticamente poetizado da
deusa9.
Inanna, a virgem, presenciou uma inundação.
Ela salvou uma árvore, plantando-a onde pudesse cuidar dela.
...................................................................
Recostando-se em uma macieira, a deusa se deleitava.
Ela observava sua delicada vulva.
7 É ocaso, por exemplo, da Vênus de Willendorf, Museu de História Natural de Viena – Áustria. A
descrição pormenorizadas das estatuetas encontradas pode ser conferida em DELPORTE, H. L’image de
la femme dans l’art préhistorique. Paris: Picard, 1993. 8 No período sumério, as poucas imagens conhecidas da deusa Inanna representam-na em uma postura
hierática, o corpo nu, valorizando o sexo e os seios, embora as formas do rosto e os membros sejam bem
mais requintados. Como no famoso Vaso de Ishtar do Louvre. 9 A palavra enquanto signo sagrado assume formas que retomam o próprio sexo das deusas, isto ocorre, segundo nossa observação, na escrita cuneiforme Suméria, por exemplo, cuja representação do número
(1) um (materialização do mundo), é composta pelo triangulo/delta invertido e um traço vertical, partindo
do vértice do triângulo invertido – representação habitual para o sexo da deusa e suas coxas; em língua
grega, o Delta () retoma, a forma do sexo feminino, embora invertido, e está associado ao número 4, que, por sua vez, representa a terra. Nesta mesma perspectiva, vemos o alfa grego (que corresponde à
letra A e ao número 1) representar a cabeça do touro. As variações dessas representações nas culturas
antigas merecem um estudo mais aprofundado, o que colocamos aqui são apenas alguns pontos que nos
chamaram e chamam a atenção ao longo do trabalho de análise da protofiguratividade das deusas e das
culturas às quais pertencem.
Encantada com sua delicada vulva,
ela, a virgem, se deleitava.
..................................................................... Encontrei um noivo,
vamos dançar, vamos dançar.
Irei me deleitar com minha vulva delicada, vamos dançar, vamos dançar,
até que ele também se deleite com ela.
Minha vulva, o vaso sagrado da lua cheia, o gracioso chifre da lua nova,
um campo incultivado tornando-se selvagem,
um pasto fechado alimentado por chuvas, com curvas voluptuosamente femininas.
Por mim, fertilize minha vulva, da terra virgem, quem será o lavrador?
Para minha vulva úmida e expectante,
quem proporcionará o touro?
Lavre minha vulva, meu escolhido amado. ......................................................
(SEFATI, 1998: v.1 a 32)
Se antes, do Paleolítico à Idade do Bronze, a gestualidade, algumas vezes
indicando o sexo da deusa, conotava o convite à cópula, no hino a Inanna o convite é
feito sem rodeios e, na versão dada por Sefati, os adjetivos realçam o erótico da imagem
poética do herói/homem/lavrador que deve fecundar/lavrar a terra/Inanna para que ela
propicie a vida aos homens, ação pia e devocional, mas que deixa à mostra o corpo/sexo
voluptuoso, sensual e carnal da mulher/deusa/natureza. A ação antes apenas ligada ao
sagrado, de culto às forças da natureza, ganha uma roupagem nova, cultural, na qual o
prazer do corpo feminino em conjunção com o masculino e o prazer do jogo erótico das
palavras faz parte do estímulo/culto à deusa. O sagrado erotiza-se.
De maneira semelhante, mas menos explícitos, os Hinos Homéricos dedicados a
Afrodite também deixam entrever todo um erotismo, mas que vem recoberto de
ambiguidade poética e sobremodalizados por valores culturais ainda mais acentuados.
Quando eles iam subir para o leito bem construído,
ele é envolvido pela harmonia, beleza e brilho de seu corpo,
seus broches, espirais recurvadas, flores e colares.
Anquises desnuda-lhe a cintura, tira as vestes brilhantes
e coloca-as sobre o trono tauxiado com prata.
Em seguida, segundo a vontade e o desígnio divinos,
um mortal seduziu uma deusa imortal, sem o saber claramente.
(HOMERO, Hino a Afrodite I, v 161 – 167)
Ao cantar o desnudar/desvelar da deusa, o aedo imprime ao canto toda a força
erótica contida na fratura, ou seja, na transformação estética que é a recuperação do
semi-simbólico presente na linguagem. O cinto da deusa é o elo que prende e guarda o
véu, desatado: o véu é retirado, deixando assim franqueado o acesso ao ventre da deusa.
O cinto, assim como todos os demais ornamentos recurvados e em ouro descritos no
Hino, possui um valor ambíguo, o termo ouro em grego é foneticamente intercambiável
à vulva e ambos conotam a fertilidade/fecundidade da deusa, que revestida por uma
carapaça sêmica se configura em riqueza material10
.
A sedução é ritual e como tal vem mediada pelo corpo/palavra – não um corpo
nu e exposto, mas vestido de transparências, perfumado e adornado: é o brilho da jóia
que revela o colo de Afrodite, assim como o véu a sua nudez. Entre o olhar desejante e
seu objeto interpõe-se uma barreira, fratura estética, intersecção entre o prazer e a
morte, a luz e a sombra: o cinto de Afrodite é um tempo/espaço – dentro do qual a
palavra encena um jogo de sedução e ambiguidade poética.
As imagens de Afrodite, deusa do sexo e da fertilidade entre os gregos, não
desmentem seus atributos sagrados e físicos, dentre as mais belas esculturas da deusa
temos: a Afrodite de Cnido, ou a de Arles, ambas de Praxiteles, cópias romanas no
Museu do Louvre – Paris; ou a mais famosa delas, a Vênus de Milos, também no
Louvre. Em todas elas, a deusa vem parcialmente nua, contrastando com a
representação de outras deusas como Hera, Atenas e mesmo Ártemis, cujos corpos são
representados vestidos. Afrodite não só revela suas formas arredondadas e perfeitas,
mas, principalmente, as insinua com o escorregar ou levantar do véu/túnica,
estabelecendo um contrato com seu observado/voyeur.
O olhar transgressor, que flagra o momento do cair do véu pudico, permitindo a
visão do corpo sagrado interdito, é a grande conquista na erotização das artes visuais,
que assim se equiparam aos jogos poéticos da linguagem.
A torção do corpo, que se oferece parcialmente, como que flagrado pelo olhar
em seu momento de intimidade, geralmente o banho, ou o corpo nu adormecido, que em
sua inconsciência se deixa observar, são recorrentes na arte desde a Antiguidade
Clássica, mas ganharão um lugar de destaque a partir da Renascença.
O nu na Idade Média praticamente inexiste, sobretudo o nu feminino, que é
ainda mais perigoso que o masculino. Os raros corpos apresentados ao olhar dos fiéis
10 Para a leitura completa dos ornamentos de Afrodite em seus hinos, verificar cap. 1 de MARQUETTI, F.
R. Da sedução e outros perigos. O mito da Deus Mãe. São Paulo: EDUNESP, previsto para 2012.
são o de Cristo, Adão e Eva, e o dos santos martirizados. Em todos é ostensivamente
marcada a dor, a queda, a doença, a putrefação do corpo11
em vida, pois a doença é
considerada um meio de vencer o mal que ameaçava o pecador; para as ordens
religiosas e mesmo o povo em geral, um doente não era um simples doente, era um
doente penitente, que aproveita a debilitação da carne para fortificar o espírito. “No
combate permanente travado entre a alma e o corpo, tudo que enfraquece o corpo só
pode elevar a alma” (GÉLIS, 2010: 77).
O martírio é desejado e suportado com abnegação, as imagens de mártires
antigas, como Águeda, Júlia e Apolônia, a quem os carrascos quebraram os maxilares e
arrancaram selvagemente os dentes, são um “deleite” para os olhos do crente e servem
de modelo de vida a ser seguido; cuidar dos corpos pútridos, afligidos por um câncer
purulento, ou cobertos de chagas também é outra forma piedosa de fortalecer o espírito
e combater os males da carne.
Exceção na representação do corpo nu, o culto a Maria Madalena, que se difunde
no século XV com uma iconografia bastante comum na qual a ex-pecadora aparece,
vestida com sobriedade, junto ao corpo de Cristo, beijando ora as chagas de suas mãos,
ora as dos pés. Data deste período, no entanto, uma representação de gosto bastante
bizarro para nossos dias, mas muito adequada ao pensamento medievo, a de Madalena
penitente no deserto (Santa Maria Madalena, Tilman Riemenschneider, escultura em
madeira, 1490-2, Bayerisches Nationalmuseum), que retrata seu corpo nu, despido de
seus trajes ricos e jóias, mas coberto de pêlos crespos de carneiro e pelos cabelos, que
cresceram para proteger seu pudor e ocultar o corpo. Esta representação de Madalena
desperta não só uma repulsa pelo corpo pecador, mas o aproxima ainda mais da
animalidade, tornando-o o oposto da alma.
O nu de Madalena metamorfoseado em cordeiro, no sentido cristão do termo, é
um dos exemplos desse sagrado medievo que dissocia e aproxima corpo e alma, o corpo
deve representar o espírito, encarnado-o. No entanto, após 1350 e a grande epidemia de
peste negra que varreu a Europa, sente-se o começo de uma mudança na forma de
retratar a vida e uma real mutação na maneira de viver.
11 É interessante notar que na Idade Média o corpo animado pelo espírito é belo, sobretudo quando se
refere a Cristo, que encarna a idéia da beleza perfeita, pois é o homem-Deus, mas mesmo ele, após a
morte, com a perda da alma animada, é feio, pois não é mais que morto, não é mais que corpo (cadáver).
Segundo Arasse (2010: 544), “O Deus encarnado assume na sua carne o terrível paradoxo do corpo
cristão: imagem da perfeição criada, testemunho da corrupção e da abjeção da morte.” A heroificação do
corpo, mesmo em uma visão trágica, é mantida pelos pintores do século XIV, dando uma atenção
renovada à representação do corpo humano, como informa Arasse (op. cit.:541).
Segundo Duby (2009: 8-9), surge um realismo maior na forma de representação
da vida, isso decorre da crescente atenção e lucidez dada à natureza das coisas materiais,
a observação do mundo. A constatação de que o desprezo do mundo levava a uma
atitude enganosa, condenável e, sobretudo, inclinada para o mal fez a arte figurar os
aspectos da vida nos seus traços mais “fiéis”. Utilizando de todos os procedimentos de
ilusão, o pintor aplicou-se a retratar exatamente o que via, surgem, assim, as primeiras
cenas íntimas, no qual o espaço privado é mostrado, um exemplo é Van der Weyden,
que pinta a Virgem e o Anjo, (Anunciação, 1435-40, Museu do Louvre – Paris), no
espaço fechado e protegido do quarto da Virgem. O gesto e o figurino recatado de
Maria, a sobriedade do ambiente mesclada às cores de eleição da Virgem, contribui para
transformar o crente em voyeur deste momento sagrado. Tal como ocorria com as
representações de Afrodite, a transgressão do olhar, ao apropriar-se da intimidade da
Virgem, profana o sagrado, mundaniza-a conferindo-lhe um corpo palpável. Diversas
imagens da Virgem com o Menino explorarão, a partir do XV, essa intimidade mais
humana, para não dizer sensual, entre mãe e filho.
Segundo Carlo Ginzburg, citado por Arasse:
O estudo dos manuais para confessores e penitentes mostra também
que, por volta de 1540-1550, a luxúria toma o lugar da avareza a título de
pecado mais tratado e que, junto com ela, a vista “emerge lentamente como
sentido erótico privilegiado, imediatamente depois do tato”. [...] a invenção
da nudez é indissociável da consciência cristã do corpo nu [e, portanto, de
pecado]. [...] é preciso sublinhar que a erotização do olhar nas sociedades
européias é um fenômeno histórico que veio substituir, na Renascença, a
difusão da imagem mitológica fora de seus círculos tradicionais de recepção.
(2010: 558)
Com a difusão da representação erótica do corpo surge, em longo prazo, um dos
grandes motivos na pintura do XVI e que perdurou até o XIX, o corpo nu de uma
mulher na posição deitada, isolado, fora de um contexto narrativo e oferecendo-se ao
olhar. Os pintores que exploraram este motivo fizeram-no no contexto sociocultural do
casamento, pintando-o no interior dos tampos das luxuosas arcas de casamento
ofertadas à noiva pelo futuro esposo, segundo nos informa Arasse (2010: 559).
Destinadas a espaços íntimos, as personagens pintadas, geralmente
identificadas como ninfas ou Vênus, eram retratadas dormindo, a primeira a sair deste
lugar secreto, parecer ter sido a Vênus adormecida, de Giorgione, (1510 -
Gemäldegalerie Alte Meister, Dresden, Alemanha), e ganhou a tela, mas é com Ticiano,
em 1538, que surgirá o mais instigante e erótico nu feminino, a Vênus de Urbino,
(Galleria degli Uffizi, Florença, Itália).
Na Vênus de Urbino, denominação moderna dado à obra, ou a Donna ignuda, o
pintor rompe com o código mitológico, “código cultural e estilisticamente elevado”, de
representar o nu feminino, cuja postura, o gesto, a posição das mãos e demais membros
eram codificados. Ticiano torna aleatória toda referência mitológica ao instalar a figura
nua deitada em um leito palaciano, não em um ambiente aberto, como um jardim, um
campo, um lago ou outro local “frequentado” pelas ninfas/Vênus nuas de então.
Reforçando o deslocamento espacial dessa donna, o pintor sugere um contexto
matrimonial, segundo Arasse (2010:560), ao retratar em segundo plano, no fundo do
cenário, duas arcas e um vaso de murta, mas isso pouco basta para convencer o
admirador da obra de quê se trate de uma obra pintada para a celebração de um
casamento.
O ponto central da bela donna ignuda de Ticiano é ela estar acordada, e não
adormecida como em Giorgione, interpelando, com o seu olhar, o espectador, ao mesmo
tempo em que a posição da mão esquerda dirige a atenção para o seu sexo. A fusão
entre o olhar que desafia o espectador e a mão que, ao contrário das demais Vênus, não
cobre o sexo, mas excita-o, manipula-o, faz deste nu o mais transgressor e inovador
dentre as obras do período, um arquétipo da imagem erótica européia, como sugere
Arasse (ibidem: 561) 12
.
Mas não só o gesto é inesperadamente preciso em Ticiano, a colocação de uma
sombra profunda no púbis, indicando a pilosidade intima e o uso da ondulação dos
cabelos, caindo sobre a axila, geralmente depilada e exposta pelo braço direito erguido,
acentuam a “impudicícia” da imagem. Segundo Arasse, da Vênus de Giorgione à de
Ticiano,
os gestos da figura se transformam para entregar-se a uma operação de
mostrar-ocultar que coloca em jogo e em cena a pilosidade intima da figura.
Giorgione a havia simplesmente excluído da representação; Ticiano erotiza-
12 Mesmo modernamente o silêncio da crítica sobre a Vênus de Urbino é eloquente. Segundo Arasse
(2000:130-131), Mark Twain classificou o quadro de abominável, o mais “vil” que ele havia visto. E
mesmo estudiosos do pintor como Crowe e Cavalcaselle, na sua grande obra sobre Ticiano, não se
mostram chocados pela mão esquerda. E pour cause dela nada dizem. Descrevem o braço direito, a mão
direita e o seu bouquet de rosas, mas nem uma palavra sobre a mão esquerda. Como se a Vénus de Urbino
fosse maneta. Do lado da crítica e da história de arte, um pesado silêncio se foi adensando acerca dessa
mão esquerda, explicitando o interdito suscitado por sua gestualidade (mão e olhar).
lhe a sugestão, a preço de um “deslocamento” (os cabelos louros no lugar da
axila oculta) e de uma “elaboração secundária” (a sombra do púbis).
(IBIDEM:561)
A erotização dada por Ticiano vai além da explicitada por Arasse, o pintor
multiplicou e estabeleceu correspondências simbólicas e espaciais para os signos
retratados no quadro. A mão direita, que parece mais pudica a critica, ao “acariciar” um
bouquet de rosas, reforça a ação sexual da esquerda e confirma ser a jovem uma cortesã,
uma especialista na arte do sexo, uma vez que é bastante difundido na cultura do
período, sobretudo entre as classes mais altas, o simbolismo da rosa aberta, enquanto
sexo deflorado, que se opõe ao botão de rosa (fechado) para a imagem da virgem.
Outros elementos presentes ainda no leito da Vênus confirmam isso, como o lençol
branco puxado, sob a mão direita, revelando o vermelho intenso do leito, ainda neste
local encontra-se um pequeno suporte para velas, igualmente vermelho e esférico,
semelhante a uma pequena maçã, que contém um toco de vela apagado. A estética
oriunda do Barroco, na representação de naturezas mortas, já havia codificado esses
signos13
: o desalinho do lençol, revelando o encarnado, conota a passagem de um estado
a outro, no caso, de virgem (branco do lençol) a deflorada/sexualmente ativa (vermelho
do leito); o toco de vela branca, apagada, no castiçal/maçã reforça a leitura da mudança
de estatuto da jovem e sua conotação sexual transgressora, uma vez que a maçã retoma
o pecado original assim como a vela, a passagem do tempo.
Mas este jogo de mostrar-ocultar tem ainda outro desdobramento no quadro, a
cena secundária das arcas, nela vê-se uma jovem, vestida de branco, ajoelhada e
entretida em buscar algo dentro de uma das arcas abertas, enquanto outra figura
feminina, mais velha, trajando um vestido vermelho com mangas brancas, observa-a em
pé, tendo um vestido marrom jogado sobre os ombros, o vestido sustido pela mulher,
encontra-se invertido, com a parte superior caída sobre seu ventre e a saia em suas
costas. Sem prolongar muito a análise, basta chamar a atenção para a relação existente
entre os baús/arcas e o feminino, quer no universo matrimonial do período, quer na
13 A leitura feita aqui toma como referência os códigos utilizados na representação das naturezas mortas
indicados por Lambert em Caravaggio (2001), mas a análise se pauta na semiótica para estabelecer o
rearranjo desses códigos na composição. Uma leitura completa dos valores associados às flores, à maçã e
outros símbolos ligados ao feminino pode ser encontrada na obra já citada: MARQUETTI, F.R. Da
sedução e outros perigos. A murta é uma flor ligada ao matrimônio por ser consagrada, desde a
Antiguidade, a Afrodite e aos ritos ligados ao casamento e à fertilidade, portanto, possui conotação
erótica.
tradição herdada da Antiguidade clássica, na qual a mulher (seu ventre) é comparada a
uma jarra ou caixa/baú que guarda todos os males, como em Pandora.
Na correlação espacial e protofigurativa estabelecida no quadro, o baú equivale
ao sexo feminino, a jovem de branco (virgem) vasculha/descobre os segredos do sexo
sob a supervisão de uma mulher mais velha, vestida de vermelho, que sustenta a tampa
do baú com sua mão esquerda, espelhando o jogo criado entre o lençol, o leito, as cores
e os gestos da figura em primeiro plano. A jovem ajoelhada encontra-se posicionada em
linha reta com o olhar da Vênus, criando uma triangulação com o observador, que
estabelece a equivalência entre ambas. O ponto de convergência das linhas do
quadriculado do tapete, que indica o ponto de fuga no segundo quadro, se situa
exatamente na linha vertical que desce até o sexo da Vênus; determinando, não apenas
uma relação de correspondência entre os dois pontos coordenados, mas também uma
correlação metafórica entre o corpo, o baú e o quadro, entre a abertura do espaço da
perspectiva e a abertura do corpo14
.
Ticiano, com sua donna ignuda, implanta um novo tempo na representação do
corpo, não mais o sagrado ou mitificado, no qual a nudez natural, mesmo que erotizada,
vinha recoberta de valores ora positivos, como no o culto das deusas da fertilidade, ora
negativos, para os cristãos, dada a ligação do feminino com o Mal; mas o corpo carne,
humano, profano, secular, perigosamente próximo e licencioso. Como muito bem
coloca Guinzburg:
Nascendo do espetáculo da carne, o prazer da cor ‘exprime-se de
imediato sob a forma de um desejo de tocar’ – um tocar que não é ‘mais real
do que a carne que desperta o desejo’. O que o corpo do espectador
experimenta então é ‘uma sensibilidade de alguma forma alucinatória: a
visão torna-se então como que um tocar’. Cúmulo de uma pintura que se
tornou efetivamente ‘libertina’ no sentido mais forte do termo, o corpo
impele para seu termo a erotização da visão, fazendo dela o equivalente do
tato: ‘Diante dos quadros dos grandes coloristas, o espectador tem a
impressão de que seus olhos são dedos’. Além das estratégias de sedução
próprias à pintura erótica, a exaltação pictórica do corpo constitui o
fundamento de uma erótica da pintura. (In: ARASSE, 2010: 564)
14 Arasse sugere que o quadro teria sido encomendado pelo Duque de Urbino para Giulia Varano, sua
mulher, que à data teria quatorze anos, segundo um “desígnio de lembrança e de recomendação acerca do
que se deveria fazer para uma boa preparação para a união sexual sem o cometimento do pecado do
prazer dissociado da procriação” (2000:150).
Neste contexto de transformação do olhar para o corpo e mesmo de vivência do
próprio corpo que a Renascença encerra, deve-se destacar o longo caminho que se faz
para aprofundar a interiorização deste corpo na intimidade. O corpo no banho,
iluminado pelo prazer dos sentidos vai inspirar diversos pintores, que buscam no gesto
íntimo, destituído de malícia, uma iniciativa de reforma espiritual, segundo afirma
Contamine (2010:625-7), na qual se procura reconciliar a aparência e o íntimo.
O corpo e sua representação na arte, ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX,
vão sofrer inúmeras transformações, mas a mais significativa talvez seja a noção de que
“a experiência do real, informe em si, não pode se fixar em imagens senão pela
intermediação da imaginação” (Zerner, 2009:118). Ingres, Delacroix, Degas e outros
nomes do período, imprimem novas formas ao nu, mas é Courbet, em 1866, com o seu
A Origem do Mundo, hoje no Museu d'Orsay – Paris, que perturbou e chocou os meios
artísticos. O quadro apresenta um plano fechado sobre o sexo e o ventre de uma mulher
nua deitada sobre uma cama, com as coxas afastadas, e sem a presença do rosto. O
quadro é de um realismo cru, que faz retomar as imagens das vênus paleolíticas e, de
certa forma, encerra o período da sobremodalização de valores míticos e/ou eróticos
sobre o corpo feminino, abrindo uma nova discussão amparada pela biologia e pelas
práticas médicas, com a recente abordagem sobre a saúde física, a anatomia, a
discecação de cadáveres15
.
Alain Corbin explicita essa mudança ocorrida no XIX, no que tange à diferença
entre homem e mulher e sua representação:
A reviravolta das representações e das normas será progressivamente
confrontada pelas descobertas da biologia. Os cientistas não cessam de
explorar aquilo que distingue os homens e as mulheres em sua anatomia e
fisiologia. [...]
[...] a importância agora atribuída às “tormentas uterinas” revela-se
considerável até o final desse século XIX que Michelet enxerga como
“século das doenças da matriz16
”. Essa convicção suscita imperativos
culturais. Ela limita as competencias da mulher, e a submete mais
estritamente que outrora às eventualidades somáticas. Ela reduz a união
sexual a um ato puramente fisiológico, como o são a micção e a defecação.
Em revanche, essas mesmas certezas liberam o espírito da mulher de um
15 Conferir sobre o assunto: CONTAMINE, P. (2009), Op. cit.: 600-627. 16 Grifo nosso. O uso do termo matriz é importante, pois retoma os valores ligados à
fecundidade/fertilidade vista desde o paleolítico para definir o feminino. Conferir: MARQUETTI, F. R.
Op. cit. 2012
corpo automático: a influência da civilização e da cultura moral que a define
serão, precisamente, vencer as injunções da natureza. (2009: 188-189)
O jogo, agora excludente, entre o natural/cultural na definição do papel da
mulher e na representação de seu corpo é importante pois marcará o advento da
representação artística do século XX até o contemporâneo e, principalemnte, a
banalização do corpo feminino e do nu.
A fotografia também revolucionou o olhar dirigido sobre a nudez dos corpos. O
novo regime, escópico, que afirma a idéia de olhar, examinar, com conotação científica,
instaura uma nova ordem visual, na qual surge um novo espectador, decisivo na história
do olhar, aquele que observa o corpo e o traduz, de forma desencantada, des-sublimada,
“uma carne entregue ao excesso e ao desamparo de sua contingência”. A fotografia
autoriza um “voyeurismo da exatidão”, situando o espectador numa posição frontal em
um teatro de evidência. Eliminando toda possibilidade de recorrer a ilusão, ela desnuda
secamente e submete à “presença inevitável e insignificante” do corpo, à sua pureza,
como afirma Jean Baudrillard17
.
O sexo não pode mais ser dissimulado, ele é apresentado em sua materialidade
genital, não só o feminino, mas sobretudo o masculino, indisfarçável sob o efeito do
desejo, a obscenidade ganha espaço, nascendo da transgressão e da repulsa a esse desejo
explicitado. Ou como afirma Jeudy: “o sentimento da obscenidade é um pudor revoltado
e uma angústia diante do excesso de visibilidade do corpo; como se, em sua total
exibição, este perdesse escandalosamente todo segredo, todo enigma.” (1998:101)
O caminho trilhado pela representação do nu atingirá seu ponto máximo com o
advento da Pop Art, que colocará o corpo e sua representação ao lado dos objetos de
consumo, remetendo sempre à vida urbana na sociedade de massa, ampliando os
resíduos presentes no cotidiano e ironizando os objetos retratados, destruindo o contexto
familiar que tinham inicialmente, enfatizando sua banalização.
O exagero na representação de objetos e situações cotidianas, a fragmentação do
corpo em suas partes mais vendáveis, o uso reiterado e ampliado dos clichês e do Kitsch
como matéria prima da obra de arte pode ser visto em obras como: O que exatamente
torna os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes? (1956) ou Minha Marilyn (1965),
ambos de Richard Hamilton e no Museu Ludwing, Colônia, na qual o artista explora a
imagem do corpo enquanto objeto de consumo, malhado, moldado pela cirurgia
plástica, ele é mecânico e automático, não mais um corpo expressivo.
17 Citado por A. Cobin, Op. cit: 215
Na sacada, de Peter Blake, (1955/57- Tate Gallery, Londres) dialoga, por sua
vez, com duas outras grandes obras: O balcão, de Manet (1868/69 – Museu d’ Orsay,
Paris) e Perspectiva II: O balcão de Monet, de Magritte (1950 – Museum van
Hedendaagse Kunst). Se Magritte já estabelecia uma crítica à pintura e a sociedade do
século XIX, Blake busca ultrapassá-lo ao produzir uma colagem de signos, objetos,
referências históricas - tudo esvaziado de sentido, perceptível como amontoado de
informações inúteis, poluição visual, na qual o corpo, vestido, surge como prenuncio da
perspectiva pós-humana que põe em xeque as certezas da identidade social/cultural e
mesmo do que vem a ser o humano no século XX.
Por fim, o Grande Nu Americano nº 98 (1967 - Museu Ludwing, Colônia), de
Tom Wesselmann, no qual o corpo representado é estilhaçado, desarticulado e prioriza
os ícones de uma sociedade de consumo (sexual/pornográfica): seios, boca vermelha,
cabelos loiros. Os fragmentos do corpo feminino estão em meio a objetos igualmente
descartáveis e de consumo rápido e efêmero: cigarro, laranja, caixa de lenços de papel,
estabelecendo, a partir da correspondência das cores, formas e disposição espacial, a
equivalência entre objetos/corpo. O sexo, como afirma Kristina Orfati (2009:550), agora
não mais pertence apenas à esfera exclusiva dos preservativos e absorventes higiênicos,
como suporte a todas as espécies de anúncios de produtos de consumo, ele também se
torna mais um produto a ser consumido pela sociedade.
O corpo aparece, nestas condições, como o último ponto de
ancoragem e testemunha das transformações e tensões induzidas pela
reflexividade social – de um tempo eternamente presente e atual, no qual o
corpo e o sexo assumem uma aparência enigmática, obsessiva e frígida,
brutal e familiar, nua e indiferente, de um materialismo gélido.
(SUQUET, 2011: 564-5).
O corpo, o nu não é mais o “fantasma” do imaginário, da evocação, ele não
mais pertence ao mundo do secreto e do possível, sua representação real ou iconográfica
dissolve qualquer mediação, qualquer imaginário e, no limite, qualquer transgressão,
nada mais é desvelado, tudo é exibido e está à venda. Banalizada e consumida a nudez
feminina, e mesmo a masculina, esvaziou-se do sagrado, do erótico, racionalizada e
higienizada no XIX, adquiriu seu glamour no cinema, vulgarizou-se no consumo da
cultura de massa, e no final do século XX e início do XXI, transforma-se em
pornografia democrática e popular: exibicionismo e voyeurismo veiculado pela televisão
e na internet, a intimidade é exibida com uma tranquila despreocupação.
Exemplos dessa banalização são os “romances” ideados18
pelo programa Big
Brother Brasil ao longo de suas várias edições, e que tiveram seu ponto alto, enquanto
estratégia de audiência, no programa de número 12, veiculado a partir de janeiro de
2012, com o suposto estupro de Monique Amin por Daniel Gustavo Rodrigues. A
necessidade de conjugar sexo e violência para elevar a audiência, é fator determinante
para se pensar o quanto a exposição dos corpos e a prática, mesmo que camuflada, de
sexo já não despertam o interesse da população, sendo necessário inserir o último elo
desta cadeia que leva ao embrutecimento do homem, a violência.
Pascal Orly, ao comentar a violência corporal, resume muito bem esta situação:
Aqui estamos na fronteira do comportamento ordinário, do qual já
não participa aquilo que o antigo olhar sobre o “povo” qualificava, com
plena razão, de emoções populares, que sublevam episodicamente toda uma
população ou parte dela, transformada em “massa” em situação de tumulto
ou canalizada. O exemplo do estupro coletivo [idéia inerente ao BBB 12,
pois, no mundo virtual em que vivemos, ver é compartilhar a ação] aí está
para nos recordar que, mais uma vez, tudo é questão de olhar: o ordinário é o
que está na ordem, e aquilo que muda consiste na maneira como os valores
dominantes do espaço/tempo considerado desenham as fronteiras entre o
honrado, o tolerado e o condenado. (2011:191)
A saturação do espaço público pela frieza dos simulacros sexuais, pela extrema
violência de massa, conflitos e guerras transmitidas ao vivo, e a eliminação das
distinções entre o são e o enfermo, corpo normal e corpo anormal, da relação entre a
vida e a morte em uma sociedade medicalizada de ponta a ponta (Courtine, 2011: 11)
revela, ao menos em parte, as mutações históricas na qual se inserem o sujeito
contemporâneo e seu corpo.
Gradativamente percorre-se o deslocamento dos limites entre o público e o
privado, até chegar-se à substituição do privado pelo íntimo. “É tudo ou nada: ele se
esconde ou se exibe, mas quando se exibe, sua aparição é bem um outro espetáculo, o
18 As trocas sexuais que ocorrem na casa do BBB são parte de um roteiro pré-estabelecido ao qual os participantes, geralmente modelos e atores desconhecidos do grande público, devem se submeter. Embora
o programa seja vendido como realidade, não ficção (o oposto das novelas ou outros programas no qual o
público acompanha a vida íntima de personagens, mas tem consciência de que é ficção), ele está
catalogado no portal da Rede Globo como show. Enquanto show (reality show), é definido como:
“espetáculo teatral ou cinematográfico em que há música, dança, coreografia e, geralmente, está montado
em torno de um cantor ou animador” (Ferreira: 1986). Portanto, possui, ao menos, um script que deve ser
seguido e possui uma organização dramatúrgica - ficcional, para comprová-lo basta uma análise das
estruturas narrativas estabelecidas ao longo dos programas.
espetáculo encurralado pelos meios de visão onipresentes e onipotentes” (Michaud,
2011: 557). O corpo é sujeito e objeto do ato artístico, invadido pelos aparelhos de
visão, nada mais está fora da vista, mas neste jogo de espelhos já não há identidade,
apenas o vazio se refletindo em múltiplas imagens, o corpo, o nu, o homem e a arte se
esvaem.
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