“O conhecimento como potência: Substância em Anselm Kiefer e Apichatpong Weerasethakul”

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O conhecimento como potência: substância em Anselm Kiefer e Apichatpong Weerasethakul Artigo completo submetido a 26 de janeiro de 2014 Resumo: Análise crítica de obras de Anselm Kiefer e Apichatpong Weerasethakul, nas quais se identifica o conceito de substância de Aristóteles, sob a perspectiva da poíesis em Giorgio Agamben. Através de analogias, as obras são abordadas a partir de suas poéticas, desvelando o conhecimento-potência. Assim, os artistas determinam uma tendência: a necessidade de reinserção da natureza na cultura contemporânea. Palavras chave: conhecimento, substância, potência, Anselm Kiefer, Apichatpong Weerasethakul. Title: Knowledge as potency: substance in Anselm Kiefer and Apichatpong Weerasethakul Abstract: Critical analysis of Anselm Kiefer and Apichatpong Weerasethakul works by identifying in them the Aristotle's concept of substance in the perspective of the poíesis in Giorgio Agamben. Through analogies, works are approached from their poetics, unveiling the knowledge-potency. Thus, the artists determine a trend: the need for reintegration of nature in contemporary culture. Keywords: knowledge, substance, potency, Anselm Kiefer, Apichatpong Weerasethakul. A arte, com sua abertura metodológica, permite espaço para diversidade e complexidade do conhecimento gerado pela prática artística, possibilitando uma visão holística de um homem reintegrado à natureza. Para Aristóteles, estudar a natureza significa investigar a substância, entendida como vir a ser, o devir, o substrato da mudança, “forma imanente da coisa em potência”. (Aristóteles, 2012: 221). A transformação gerada pela prática artística, entendida como substância, é um movimento direcionado para a potência — conhecimento desvelado pela concretização da obra, noção inerente à substância. A palavra substância, (do grego ousia), é um substantivo feminino formado a partir do particípio presente do verbo ser. De acordo com Aristóteles, a substância é indefinível, ou seja, é impossível definir o que é algo, sendo o mais próximo que se pode chegar são dois extremos. (Aristóteles, 2012). Assim, seria fundamental para o estudo da natureza e da substância, o estudo das dualidades em oposição. A tensão de dois polos contrários é fundamental para existência da potência, para onde se direciona a transformaçao determinada pela substância. A alternância destes estados opostos é a transformação de que tratam o

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O conhecimento como potência: substância em Anselm Kiefer e Apichatpong Weerasethakul

Artigo completo submetido a 26 de janeiro de 2014 Resumo: Análise crítica de obras de Anselm Kiefer e Apichatpong Weerasethakul, nas quais se identifica o conceito de substância de Aristóteles, sob a perspectiva da poíesis em Giorgio Agamben. Através de analogias, as obras são abordadas a partir de suas poéticas, desvelando o conhecimento-potência. Assim, os artistas determinam uma tendência: a necessidade de reinserção da natureza na cultura contemporânea. Palavras chave: conhecimento, substância, potência, Anselm Kiefer, Apichatpong Weerasethakul. Title: Knowledge as potency: substance in Anselm Kiefer and Apichatpong Weerasethakul Abstract: Critical analysis of Anselm Kiefer and Apichatpong Weerasethakul works by identifying in them the Aristotle's concept of substance in the perspective of the poíesis in Giorgio Agamben. Through analogies, works are approached from their poetics, unveiling the knowledge-potency. Thus, the artists determine a trend: the need for reintegration of nature in contemporary culture. Keywords: knowledge, substance, potency, Anselm Kiefer, Apichatpong Weerasethakul.

A arte, com sua abertura metodológica, permite espaço para diversidade e

complexidade do conhecimento gerado pela prática artística, possibilitando uma visão

holística de um homem reintegrado à natureza. Para Aristóteles, estudar a natureza

significa investigar a substância, entendida como vir a ser, o devir, o substrato da

mudança, “forma imanente da coisa em potência”. (Aristóteles, 2012: 221). A

transformação gerada pela prática artística, entendida como substância, é um

movimento direcionado para a potência — conhecimento desvelado pela concretização

da obra, noção inerente à substância. A palavra substância, (do grego ousia), é um

substantivo feminino formado a partir do particípio presente do verbo ser. De acordo

com Aristóteles, a substância é indefinível, ou seja, é impossível definir o que é algo,

sendo o mais próximo que se pode chegar são dois extremos. (Aristóteles, 2012).

Assim, seria fundamental para o estudo da natureza e da substância, o estudo das

dualidades em oposição. A tensão de dois polos contrários é fundamental para

existência da potência, para onde se direciona a transformaçao determinada pela

substância. A alternância destes estados opostos é a transformação de que tratam o

artista alemão Anselm Kiefer e o tailandês Apichatpong Weerasethakul, em cujas obras

identificamos aspectos do conceito de substância de Aristóteles.

Kiefer declara que não trabalha "com cores ou ilusão, trabalho com substâncias"

(Kiefer, 2011), que pode ter aqui o sentido fundamental aristotélico, ligado ao vir a ser.

O artista, que se declara um alquimista (Kiefer, 2011), se relaciona com processos

físicos e químicos de substâncias e, a partir do conhecimento dos seus comportamentos,

insere a obra na própria natureza. Kiefer deixa os trabalhos expostos ao tempo, ao sol e

chuva, para obter a transformação da matéria e os efeitos desejados que constituem a

visualidade de seus trabalhos.

Em muitos dos seus trabalhos, encontramos substâncias cujas especificidades se

relacionam com intenções propositivas da própria obra. Kiefer elege o chumbo como a

substância para sua reflexão artística. Do latim Plumbum, o chumbo é um metal tóxico,

maleável, pesado, macio, tem um baixo ponto de fusão. É o metal correspondente, na

alquimia, ao planeta Saturno, relacionado com o tempo, densidade e peso,

características do chumbo trabalhadas por Kiefer em suas obras. O artista parte do

conhecimento do comportamento físico-químico do chumbo e de suas experiências com

a transformação do metal para compor sua poética visual. “O chumbo é um dos

materiais de sua preferência que – pelo seu aspecto e maleabilidade – atraiu o artista e o

impulsionou a um conhecimento profundo do mesmo; suas conotações ligam-se ao

planeta Saturno e ao sentimento de melancolia, pensamentos então incorporados de

forma subjetiva em sua obra.“ (Piva, s.d.: 2157). O conhecimento que Kiefer procura no

chumbo tem sentido aristotélico, se refere ao processo de transformação da substância,

como modo de refletir o seu próprio pensamento e realizar a potência na obra.

O artista expõe suas obras a diversas situações para conhecer as reações químicas

que ocorrem quando submetidas ao tempo. Desta forma, o artista pode induzir a

obtenção de diferentes reações químicas e processos físicos a fim de construir uma

visualidade que reflita sua interferência neste desencadear de transformações do

chumbo e sua interação com a natureza. “A subjetividade é a chama que anima toda

criação. Anselm Kiefer transforma seu local de trabalho em laboratório e observatório,

que lhe permite ter um papel ativo frente a frente com a natureza.” (Piva, 2010: 2159).

Em vitrine de vidro Kiefer apresenta sua obra To be titled (Figura 1), na qual uma

balança granatária tem de um lado o sal e de outro o enxofre. Abaixo dela, em um chão

craquelado de argila por uma ação do tempo, encontramos um livro de chumbo, com

pedaços de matéria amarela, o enxofre. Aqui encontramos uma importante relação com

o metal chumbo, que por ter seu ponto de fusão baixo, tem o poder de dissolução. Por

isso o chumbo pode ser pensado, na alquimia, como o metal solvente universal, por

estar ligado a uma dissolução na terra. Kiefer leva as qualidades específicas do

chumbo, como substância, para seu procedimento artístico, incorporando o modo de

fazer artístico aos processos de transformação do chumbo, expondo suas obras ao sol e

à chuva.

Figura 1. To be titled, Anselm Kiefer, 2011

216 x 130 x 130cm, Clay, lead, cardboard, iron, oil, salt and glass vitrine.

Kiefer frequentemente deixa seus quadros sob o sol e a chuva, com o intuito de acelerar algumas transformações, que se tornam visíveis nos materiais incorporados sobre a superfície das obras, e remetem a reflexões sobre o transcorrer do tempo, à fragilidade e efemeridade que permeiam a sociedade contemporânea. (Piva, s.d.: 2162).

Na obra Soando como da novilha pele, a terra (Figuras 2, 3 e 4) encontramos um

velho estetoscópio de ferro com aparência enferrujada preso à tela. Kiefer explica o uso

do estetoscópio (Kiefer, 2011) como análogo ao seu uso na medicina, utilizado para

escutar o que está dentro de um corpo, estabelecendo uma conexão entre as nuvens que

saem de um penhasco sólido e migram para suas próprias características fluidas. Nesta

obra, a paisagem aparece dividida ao meio, onde a parte de cima montanhosa está ligada

por meio do estetoscópio com a parte de baixo, em referência à presença de dualidades,

onde podemos ver uma escada de ligação entre o que está abaixo e o que está acima.

Figura 2. Tonend wie des kalbs haut die erde (Soando como da novilha pele, a terra), Anselm Kiefer,

2011. 280 x 546 x 14 cm, Oil, emulsion, acrylic, shellac, charcoal and lead on canvas.

‘ Figura 3. Tonend wie des kalbs haut die erde (Soando como da novilha pele, a terra), Anselm Kiefer,

2011. Detalhe 1.

Figura 4. Tonend wie des kalbs haut die erde (Soando como da novilha pele, a terra), Anselm Kiefer,

2011. Detalhe 2.

A obra O sal da terra (Figura 5) nos mostra os três elementos, o sal, o enxofre e

o mercúrio, com seus respectivos símbolos químicos NaCl, S e Hg. Este trabalho

apresenta a transformação das substâncias e a dualidade dos opostos do S e Hg:

mercúrio e a sua característica de grande volatibilidade e o seu oposto, o elemento

denso por natureza, o enxofre. O sal, aqui referido como na alquimia, é a substância

responsável por converter as naturezas opostas, deixar o enxofre volátil e o mercúrio

denso.

Figura 5. Das saltz der erde (O Sal da terra) Anselm Kiefer, 2011. 280 x 570 x 56cm Oil, emulsion,

acrylic, shellac, chalk, charcoal, salt, and iron object on canvas.

Os objetos presos às telas são referentes à manipulação de substâncias em

laboratório, como uma balança granatária e também com a prática médica, como o

estetoscópio. Esses objetos estão inseridos nas paisagens construídas por Kiefer, em um

desejo de cortar e perfurar a natureza de suas telas, e pode ser pensado como a presença

de dualidades usando uma analogia de um dentro e fora da própria tela. Esses objetos

são a interface entre meios interno e externo, uma possibilidade de estabelecer conexão

do homem e da natureza por canais fisicamente estabelecidos.

A conexão do homem com da natureza é também tema central das obras do artista

visual Apichatpong Weerasethakul. A natureza em suas obras se manifesta como mais

poderosa do que o próprio homem, como um elemento fundamental que permeia as

transformações. Em suas obras, estas transformações ocupam um lugar central, nas

quais os momentos se alternam sem qualquer narrativa dramática ou ênfases

diferenciadas entre eles. O importante para este artista consiste na apresentação do

duplo, na qual a transformação se dá com a alternância de estados, como estratégia de

desvelar a potência. Como na substância de Aristóteles, a dualidade implica em um

processo dinâmico de transformação.

A figura do duplo, que permeia grande parte da sua obra, é uma manifestação disso, dessa insistência em que haja sempre dois, que nunca se transformem em um só, e que achem uma forma se relacionar mas de se manter separados. (Gomes, 2010).

O projeto Primitivo, uma série de vídeoinstalações da qual faz parte o filme Tio

Boonmee, que Pode Recordar suas Vidas Passadas (Figura 6), aborda essencialmente

nossa condição de indissociados da natureza, que teria sido esquecida. Nele

Apichatpong Weerasethakul aponta a necessidade de nos reintegrarmos no universo

natural — a necessidade de uma reconciliação.

Primitivo trata de reencarnação e transformação. É a reencarnação da presença (e ausência). É também a reencarnação do cinema como um meio de transporte, como no tempo de Méliès: o filme nos leva de nosso próprio mundo. Primitivo é uma meditação sobre estas viagens em veículos fabulosos, que provocam a transformação das pessoas e da luz. (Weerasethakul, 2008)

Figura 6. Frame do filme Tio Boonmee, que Pode Recordar suas Vidas Passadas: Boonsong

transformado em criatura macaco.

O filme conta uma história de um homem, Boonmee, que está morrendo de

doença renal em uma fazenda no meio da floresta e é visitado pelo fantasma de sua

mulher, e por seu filho, Boonsong, que, após ter desaparecido na floresta, regressa na

forma de uma estranha criatura semelhante a um macaco. Boonsong é reconhecido pela

família mesmo sem ter aspecto humano — para eles a criatura macaco continua sendo o

mesmo. Como em Aristóteles, Boonsong passa a outros estados a caminho do seu devir,

e apesar de suas transformações, continua substancialmente o mesmo.

O artista nesse filme trabalha o elemento mágico justaposto com elementos da

cultura contemporânea e coloca o mito em posição de irrelevância completa, se tratado

como questionamento quanto à sua existência e realidade. Em um momento do filme, o

fantasma da falecida esposa de Boonmee senta-se a mesa para jantar junto com a família

(figura 7). Desta forma, Apichatpong Weerasethakul potencializa o mágico através de

uma estrutura poética que nos envolve em problemáticas atuais da humanidade, como o

uso contemporâneo da medicina e a tentativa de controle de processos naturais.

Figura 7. Frame do filme Tio Boonmee, que Pode Recordar suas Vidas Passadas, o fantasma da

falecida mulher de Boonmee participa de um jantar com os vivos.

O artista nos mostra Boonmee fazendo hemodiálise em uma cena onde a natureza

se mostra mais presente do que o ambiente hospitalar do procedimento (Figura 8).

Podemos também ver em alguns pontos do filme a transformação de Boonmee em

peixe, outra vida do personagem que volta a ser humano no momento seguinte.

Figura 8. Frame do filme Tio Boonmee, que Pode Recordar suas Vidas Passadas, rotina hospitalar

no meio da selva.

Como no conceito de substância de Aristóteles, em Tio Boonmee o importante são

as transformações, o tornar-se o que já era em potência originalmente. Apichatpong

Weerasethakul apresenta a simples existência da dualidade, sem qualquer discurso sobre

uma maior relevância de um polo sobre o outro: “Tio Boonmee é uma afirmação do

poder de transformação, de que toda destruição, toda morte, leva a um outro estado.”

(Gomes, 2010). A destruição aqui gera a potência de um estado em constante

transformação.

As obras são aqui analisadas sobre a perspectiva da poíesis de Giorgio Agamben

que, em harmonia tênue com seu oposto, a prâxis, governa ela mesma as próprias leis

da prática artística. As analogias poéticas são estruturas metodológicas de grande

abertura que podem recorrer a elementos mágicos, míticos e animistas para

potencializar a obra, isto é, para revelar um conhecimento. A noção de potência está

relacionada com o devir, que para Agamben se pode encontrar na raiz da poiésis: “[...]

estava no interior da poíesis a pro-dução na presença, isto é, o fato de que, nela, algo

viesse do não ser ao ser, da ocultação à plena luz da obra [...]”, ou seja, a poiésis como

“um modo de verdade, entendida como desvelamento.” (Agamben, 2012: 123).

O uso de metáforas e relações analógicas, metodologia utilizada neste trabalho,

são modos presentes, tanto na ciência quanto nas artes, de acessar o conhecimento,

constituindo o estatuto da poíesis — estatuto determinante que, para Agamben reside na

“produção da verdade e na abertura, que resulta dela” (Agamben, 2012:122).

Anselm Kiefer e Apichatpong Weerasethakul usam como estrutura poética a

alternância de estados como estratégia de desvelar esse conhecimento, a potência. A

dinâmica dos opostos coexistentes e interdependentes, sob a perspectiva da substância,

pode ser pensada como uma analogia aos binômios cultura – natureza, e real –

imaginário. Kiefer e Apichatpong, ao usar como estrutura da sua prâxis a poíesis,

estabelecem uma relação de coexistência e interdependência entre os pares de opostos,

apontando assim para uma tendência da arte contemporânea: a necessidade de

reinserção da natureza na cultura.

Referências

Agamben, Giorgio (2012) O homem sem conteúdo. Belo Horizonte: Autêntica. Aristóteles (2012). De anima, trad. Gomes dos Reis, Maria Cecília. São Paulo: Ed. 34. Gomes, Juliano, (2010). Tio Boonmee que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (Loong Boonmee raleuk chat), de Apichatpong Weerasethakul.

[Consult. 2012-06-10] Disponível em <URL: http://www.revistacinetica.com.br/tioboonmee.htm

Kiefer, Anselm (2011). Depoimento em vídeo. [Consult. 2012-07-20] Disponível em <URL: http://www.youtube.com/watch?v=Vo438C7MBlk

Piva, Márcia Helena Girardi, (2010). Anselm Kiefer: paisagem, memória e ruínas nas Megalópolis,

[Consult. 2012-09-18] Disponível em <URL: http://www.unicamp.br/chaa/eha/atas/2010/marcia_helena_girardi.pdf

Piva, Márcia Helena Girardi, [s.d.]. O espaço subjetivo: a obra de arte como um lugar utópico

a ser adentrado e experimentado [Consult. 2011-08-10] Disponível em <URL: http://www.anpap.org.br/anais/2011/pdf/chtca/marcia_helena_girardi_piva.pdf

Weerasethakul, Apichatpong (2008). Depoimento em vídeo. [Consult. 2012-09-18] Disponível em <URL: http://www.animateprojects.org/films/by_project/primitive/primitive