O conceito de autonomia na política exterior brasileira: mudanças e continuidades

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O conceito de autonomia na política exterior brasileira: mudanças e continuidades Gustavo Gerlach da Silva Ziemath i RESUMO: O artigo apresenta as transformações por que passou o conceito de “autonomia” na política exterior brasileira. Para tanto, inicialmente é feita revisão teórica em relação às características da “história dos conceitos”, instrumental teórico relevante para o estudo histórico proposto. Na sequência, é feita consideração acerca da significação do conceito de “autonomia” na América Latina. Segue-se apresentando os significados de “autonomia” surgidos ao longo da história da política exterior brasileira republicana, especialmente após a 2ª Guerra Mundial. Finalmente, são apresentadas algumas reflexões acerca do significado de “autonomia” na realidade internacional contemporânea. PALAVRAS-CHAVE: História da política externa brasileira; História dos conceitos; Autonomia pela distância; Autonomia pela participação. INTRODUÇÃO Os debates no campo de estudo das relações internacionais são recorrentes e marcam a evolução da disciplina. Há cerca de 100 anos, quando as primeiras cadeiras universitárias de Relações Internacionais surgem na Europa e as primeiras obras sobre o tema ganham destaque, inicia-se o primeiro debate do campo, buscando definir qual seria a ontologia da disciplina: se pautada no dever-ser, como ilustrado na obra A grande Ilusão (1909), de Norman Angel, ou se embasada no estudo dos meios à disposição dos Estados para que esses pudessem garantir sua sobrevivência, como destacado na obra de Edmund Carr, Vinte Anos de Crise (1939). O segundo debate emerge nos anos de 1960 e começa a envolver a metodologia aplicada na disciplina. A influência do pensamento behaviorista dos estudos no campo da psicologia chega à área das Relações Internacionais e coloca, de um lado, autores clássicos, como Hedley Bull e Martin Wight, e, do outro, autores cientificistas, como Morton Kaplan. Enquanto aqueles defendiam o estudo das relações internacionais por meio da análise histórica, estes vislumbravam que o futuro da metodologia em relações internacionais passava, necessariamente, pela análise estatística de dados específicos, que permitiria aumentar o grau de previsibilidade do comportamento estatal. i O autor possui graduação e mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB).

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O conceito de autonomia na política exterior brasileira: mudanças e continuidades

Gustavo Gerlach da Silva Ziemathi

RESUMO: O artigo apresenta as transformações por que passou o conceito de “autonomia”

na política exterior brasileira. Para tanto, inicialmente é feita revisão teórica em relação às

características da “história dos conceitos”, instrumental teórico relevante para o estudo

histórico proposto. Na sequência, é feita consideração acerca da significação do conceito de

“autonomia” na América Latina. Segue-se apresentando os significados de “autonomia”

surgidos ao longo da história da política exterior brasileira republicana, especialmente após a

2ª Guerra Mundial. Finalmente, são apresentadas algumas reflexões acerca do significado de

“autonomia” na realidade internacional contemporânea.

PALAVRAS-CHAVE: História da política externa brasileira; História dos conceitos;

Autonomia pela distância; Autonomia pela participação.

INTRODUÇÃO

Os debates no campo de estudo das relações internacionais são recorrentes e marcam

a evolução da disciplina. Há cerca de 100 anos, quando as primeiras cadeiras universitárias de

Relações Internacionais surgem na Europa e as primeiras obras sobre o tema ganham

destaque, inicia-se o primeiro debate do campo, buscando definir qual seria a ontologia da

disciplina: se pautada no dever-ser, como ilustrado na obra A grande Ilusão (1909), de

Norman Angel, ou se embasada no estudo dos meios à disposição dos Estados para que esses

pudessem garantir sua sobrevivência, como destacado na obra de Edmund Carr, Vinte Anos

de Crise (1939).

O segundo debate emerge nos anos de 1960 e começa a envolver a metodologia

aplicada na disciplina. A influência do pensamento behaviorista dos estudos no campo da

psicologia chega à área das Relações Internacionais e coloca, de um lado, autores clássicos,

como Hedley Bull e Martin Wight, e, do outro, autores cientificistas, como Morton Kaplan.

Enquanto aqueles defendiam o estudo das relações internacionais por meio da análise

histórica, estes vislumbravam que o futuro da metodologia em relações internacionais

passava, necessariamente, pela análise estatística de dados específicos, que permitiria

aumentar o grau de previsibilidade do comportamento estatal.

i O autor possui graduação e mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB).

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Ao longo das últimas décadas, o debate em relações internacionais passa por outras

transformações significativas. O debate acerca da cientificidade da matéria passa, então, a

transcender o campo exclusivamente das relações internacionais, e passa a atingir, entre

outros, o campo da história e do pensamento histórico. A história, como se pode observar em

algumas correntes de pensamento do segundo debate, como a Escola Inglesa, já era entendida

como importante, para se compreender as relações internacionais dos países. O que passa a

ser cada vez mais recorrente nos estudos é a busca da compreensão do pensamento vigente

nas diferentes épocas de análise, que serve de fundo ideológico-conceitual para as decisões

políticas que se tornam fatos históricos. As decisões de políticos para iniciar guerras, para

concluir acordos e para posicionar-se em foros multilaterais passam a ser interpretadas de

maneira mais completa, com as lentes do passado.

Essa breve revisão de um tema característico da teoria das relações internacionais

serve para introduzir a problemática do presente estudo. Na medida em que se buscará nas

páginas seguintes compreender padrões de continuidade e de descontinuidade na concepção

de autonomia na política externa brasileira, é importante, antes de mais nada, localizar o

debate no campo maior das relações internacionais.

O presente estudo tem como objetivo específico – além do objetivo central de

compreender as nuances do conceito de autonomia na política externa brasileira – analisar,

ainda que brevemente, a evolução da história dos conceitos. Compreender a história do

pensamento diplomático brasileiro em relação à concepção de autonomia na política externa

passa por entender de antemão como os conceitos evoluem no tempo, respondendo a

dinâmica conjuntural das relações internacionais do país de onde o conceito é emanado.

Esse objetivo específico servirá para embasar teoricamente as mudanças no conceito

de autonomia dentro do pensamento diplomático brasileiro. Como será visto, a ideia de

“autonomia” na política exterior brasileira não é coesa. Pelo contrário, há uma significativa

polissemia, que reflete as diferentes maneiras como o próprio país se percebe na conjuntura

internacional do momento, especialmente em relação ao diálogo com os países centrais e à

participação em foros multilaterais.

Nesse contexto, o presente estudo se divide em três partes. Inicialmente, debater-se-á

a evolução da história dos conceitos, trazendo argumentos de autores internacionalmente

consagrados na área, como Quentin Skinner e outros autores do Grupo de Cambridge e da

3

Escola Americana de estudo do pensamento político, sempre voltando as ideias para o campo

das relações internacionais.

Na sequência, o trabalho passa a analisar a contribuição de pensadores brasileiros e

latino-americanos, para explicar questionamento recorrente na análise da política externa

brasileira: qual o grau de autonomia que a política exterior deve assumir. A perspectiva de

pensadores diplomatas e de pensadores acadêmicos - brasileiros e regionais - será levada em

conta, considerando ainda o momento em que eles desenvolvem suas ideias. Esse debate

inclui, naturalmente, a noção de continuidades e descontinuidades na política externa

brasileira, ou seja, como a percepção do conceito de autonomia se transforma na PEB e como

essas modificações influenciam a postura política brasileira diante de parceiros tradicionais,

como Estados Unidos e países europeus. Será dado maior destaque para os momentos

posteriores ao fim da Segunda Guerra Mundial. A noção do Barão do Rio Branco em relação

à aproximação com os impérios da época será lembrada como momento inicial na

preocupação em relação ao conceito de “autonomia”, embora o foco recaia no estudo do

período da Segunda Guerra Mundial, da política externa independente, do regime militar, e

do contraponto estabelecido em relação a esse regime na década de 1990.

Por fim, de modo a buscar promover indagações tentativas acerca do tema, busca-se

analisar qual seria a noção de autonomia que o Brasil deveria ter para si atualmente, no

contexto de aceleração das relações político-sociais e de intensificação das trocas comerciais

na era da globalização.

1. A HISTÓRIA DOS CONCEITOS

A difícil procura por um título para a presente seção é já representativa da dificuldade

intrínseca de se buscar analisar a vasta literatura acerca da mudança dos conceitos, ao longo

da evolução da história, e as implicações políticas dessas mudanças. Inicialmente se pensou

em nomear a seção “Implicações dos conceitos na história política”. Além de excessivamente

grande, o título não representava a dimensão histórica que merece grande destaque, vez que o

presente estudo busca analisar a evolução do conceito de “autonomia” ao longo da história da

política exterior brasileira. Optou-se, então, por um título homônimo do movimento

acadêmico da “Begriffsgeschichte”, que estuda o campo das ideias.

De acordo com Richter1, a “Begriffsgeschichte” nasceu na Alemanha, na mesma

época em que autores americanos começavam a estudar a “history of ideas”. O movimento

4

alemão, em razão das publicações inicialmente na língua germânica, não ganhou destaque

entre os países anglófonos, que desenvolveram correntes de pensamento próprias dentro

desse campo de estudo, como será visto a seguir. Não cabe aqui fazer análise aprofundada de

quais seriam as distinções entre a corrente alemã e as correntes saxônicas. O que merece uma

ponderação é que a definição de “Begriffsgechichte” acaba servindo para os fins desse artigo.

De acordo com os autores2 dessa corrente, que escrevem recorrentemente no periódico Archiv

für Begriffsgeschichte, a origem e as mudanças no significado dos conceitos decorrem da

conjuntura cultural e linguística do momento. Nesse sentido, a história é essencial para

compreender a evolução (mudanças) na significação dos conceitos.

A concepção da “Begriffsgeschichte” aproxima-se daquela dada pela Escola de

Cambridge em relação à evolução das ideias. Junto com a “new conceptual history”, mais

forte nos EUA, a Escola de Cambridge se diferencia de correntes marxistas e francesas (como

a Escola dos Anais), já que ambas contestam a concepção de que as ideias são algo sempre

presente e que seriam apenas reinterpretadas por autores mais recentes. Lançando mão de

recursos da filosofia da linguagem, da crítica literária e da história, os autores americanos e

os da Escola de Cambridge contestam qualquer presunção de imparcialidade de discurso e

defendem que é necessário constituir um método próprio para estudar a evolução das ideias.

Nada obstante, esses dois grupos anglo-saxões divergem quando a alguns aspectos em

relação ao estudo da história das ideias. Enquanto a Nova História Intelectual adota como

princípio o entendimento de que existe uma relação próxima entre o interprete e a obra, e que

ambos coconstituem os significados dos conceitos, a Escola de Cambridge entende que há

uma maior “passividade” na obra, e que o cerne da interpretação consiste na busca da

identidade histórica do texto, mediante o resgate da intenção do autor ao escrever os

conceitos da maneira como o fez. Optou-se, no presente estudo, em adotar a perspectiva da

Escola de Cambridge, que tem entre um de seus principais expoentes Quentin Skinner. A

opção é justificada pelo fato de que essa vertente, embora não abandone a crítica literária e a

filosofia da linguagem, busca na história as causalidades da determinação dos conceitos. Na

medida em que o trabalho adota uma perspectiva histórica de evolução do conceito de

“autonomia” na política externa brasileira, foi dada preferência à abordagem de Cambridge

que destaca o valor da história na “história dos conceitos”.

O primeiro aspecto que deve ser considerado é que um conceito não é uma palavra

apenas. Nele estão incutidas uma ou mais interpretações. Skinner3 indica que uma sociedade

5

passa a adotar conscientemente um conceito quando ela desenvolve um vocabulário dentro do

campo semântico que nasce com o conceito. Nesse sentido, a ideia de “autonomia”, na

sociedade brasileira, emerge sim como um conceito, porquanto em seu entorno existe um

vocabulário que visa a mais bem delinear o próprio conceito. As ideias de “autonomia na

dependência”, “autonomia pelo distanciamento”, “autonomia pela participação” e “autonomia

pela diversificação” são apenas alguns exemplos que serão analisados nas próximas seções e

que corroboram a ideia de que o termo “autonomia” não é apenas uma palavra, mas sim um

conceito.

Considerando que autonomia é um conceito, é importante também refletir acerca do

processo que leva a sociedade a modificar sua percepção em relação ao conceito. Skinner4

apresenta novamente ideias elucidativas. Para o autor, os conceitos não são estanques, sendo

eles passíveis de sofrer com uma “polissemia genuína”. Tal polissemia decorre, na visão do

autor, de diferenças ideológicas. Os defensores de determinadas ideologias iniciam

campanhas para modificar a percepção social de um conceito, e, embora por vezes consigam

determinar um significado único para ele, na maioria dos casos apenas conseguem ampliar os

sentidos da ideia veiculada pelo conceito. Tal concepção de polissemia no processo de

significação dos conceitos pode ser encontrada no conceito de “autonomia”5. Como será

visto, devido a fatores históricos conjunturais, uma ideologia ou outra ganhou maior peso no

pensamento diplomático brasileiro do último século. Tal ideologia trouxe consigo novas

interpretações para a concepção de autonomia. Se, em alguns casos ela poderia ser

meramente relacionada ao pragmatismo material, como no caso da autonomia buscada por

Getúlio Vargas, nas décadas de 1940, em outros a autonomia estava mais próxima da ideia de

afastar-se das estruturas hegemônicas de poder, de modo a garantir maior independência na

inserção internacional do país, como durante a política externa independente.

Dados os aspectos de que “autonomia” pode ser visto como um conceito e que tal

conceito recebe interpretações polissêmicas, cabe, agora, ponderar qual a relevância da

história no processo de compreensão das visões que se produzem em relação aos conceitos.

Farr6 aponta que entender a mudança por que passa a significação dos conceitos é, em grande

medida, entender as mudanças políticas, e vice-versa7. A mudança conceitual é uma

consequência imaginativa da crítica produzida por atores políticos que buscam resolver as

contradições que eles descobrem dentro de sua complexa rede de crenças e práticas, à medida

que eles tentam compreender e mudar o mundo em sua volta.

6

Não é apenas a história que importa na compreensão das mudanças conceituais.

Também aquilo que Farr8 chama de “constituição linguística da política” importa. O autor

busca dar a devida relevância aos aspectos linguísticos por trás da evolução de conceitos

políticos, uma vez que, como já prenunciava Hobbes em seus escritos é impossível fazer

política sem linguagem – e, como corolário, é impossível fazer conceitos políticos sem

linguagem. A ideia de “constituição linguística da linguagem” vem imbuída de dois aspectos.

Em primeiro lugar, um número enorme de ações políticas só pode ser executado por meio da

linguagem9. Em segundo lugar, crenças políticas são embasadas em conceitos que os atores

políticos sempre carregam para justificar seus atos. Não se pode dizer, contudo, que a prática

política é completamente embasada em conceitos, na medida em que a prática muitas vezes

gera consequências que escapam do entendimento conceitual previamente existente e que

podem vir a promover uma “reconceitualização”10

.

Esse processo de “reconceitualização”, ou mudança nos conceitos, pode acontecer em

diversos graus. Hobsbawm11

aponta que a Era da Revolução trouxe mudanças políticas

profundas e, com elas, conceitos completamente novos ou totalmente resignificados, como o

de indústria e o de “liberalismo”. As mudanças nem sempre são tão profundas. Como aponta

Far12

:

Conceptual change varies from wholesale changes across AN

entire constellation of concepts (...) to more localized changes

in, say, the reference or attitudinal expressiveness of a single

concept.

Essa mudança tênue é a que pode ser observada na concepção de “autonomia” na

política externa do Brasil. A mudança pode ser entendida, em grande medida, como uma

mudança de atitude, como bem destacado na citação acima. O Brasil assume, ao longo do

século XX e do início do século XXI, um padrão de referência de autonomia que reflete sua

atitude em relação a grandes potências consolidadas e a sua vontade de promover uma

inserção internacional o mais universal possível – ou mais restrita – a depender da

compreensão de autonomia da época.

Resgatando em parte o debate sobre a importância da ideologia no processo de

formação e modificação dos conceitos, deve-se sempre ter em mente que os conceitos jamais

se sustentam sozinhos. Eles são uma constelação de ideias que compõem um sistema de

crenças. Esse esquema acaba sendo, na verdade, a teoria por trás do conceito. Nesse sentido,

7

o leitor deve buscar compreender a concepção de “autonomia” na política externa brasileira

de maneira integrada aos marcos teóricos mais fortes da época. Se, na década de 1950, o

pensamento heterodoxo cepalino influenciava as ideias de autores como Hélio Jaguaribe (que

já apresentava uma concepção de autonomia próxima daquela que seria desenvolvida nos

anos da PEI), nos anos 1990 a teoria neoliberal tinha força na região sul-americana e exercia

papel importante no projeto de autonomia pela integração, como será visto mais atentamente

na próxima seção.

Feito o debate conceitual basilar, parte-se agora para uma análise mais sistematizada

da ideia de autonomia na política exterior brasileira. Essa ideia de autonomia não pode ser

analisada per se, pois é parte do processo de continuidades e descontinuidades da prática de

política externa. Nesse sentido, as nuances no conceito de autonomia serão apresentadas a

partir de uma perspectiva historiográfica latino-americana e brasileira que analisa as

mudanças na política externa em geral e, dentro dessa grande política externa, as mudanças

no conceito de autonomia.

2. O CONCEITO DE AUTONOMIA DENTRO DAS CONTINUIDADES E MUDANÇAS

DA POLÍTICA EXTERIOR

Compreender as mudanças de posicionamento da chancelaria brasileira não é tarefa

simples, demandando grande revisão bibliográfica teórica e, principalmente, histórica. É

necessário ter em mente que o padrão histórico de conduta do Itamaraty é composto por um

acervo diplomático permanente que tende a variar dentro de uma continuidade13

.

Olhando, por exemplo, com especial atenção a participação brasileira nos organismos

multilaterais14

e a busca pela autonomia, Cervo15

afirma que, apesar de esse acervo

diplomático conformar uma linha de política exterior de relativa continuidade, há momentos

de valorização “kantiana” do multilateralismo normativo, nos quais o Brasil apresenta uma

visão de autonomia mais participativa, e momentos em que muitos dos governos de plantão

se armam de um pragmatismo na condução da política externa que remete aos tempos do

Barão de Rio Branco, tendo como consequência uma participação embasada em uma ideia

mais autárquica de autonomia.

Esse é apenas um exemplo de âmbito onde se verificam variações na política externa

brasileira. Outros vários também já ganharam destaque nas análises conceituais de

acadêmicos e diplomatas, como o de continuidades e descontinuidades nas relações com os

8

Estados Unidos – ganhando alcunha específica de “autonomismo” ou “dependentismo”;

“entreguismo” ou “nacionalismo”, por exemplo.

De modo a melhor compreender esse questionamento recorrente nas relações

internacionais do Brasil, a análise aqui proposta concentrar-se-á em dois aspectos.

Primeiramente, como a historiografia latino-americana aborda o tema, na medida em que se

verifica que o debate acerca das continuidades de política externa não se restringe ao Brasil.

Na sequência, serão apresentados alguns construtos conceituais que buscam servir de

instrumental para melhor perceber qual era a significação que se dava ao conceito de

“autonomia” em diferentes momentos da política externa, desde a década de 1930. O trabalho

se concentrará no período histórico mais recente (a partir de 1930), como dito acima, embora

faça referências a momentos da Primeira em República, nos quais a dimensão de

“autonomia” já começava a ser debatida.

2.1 – A PERSPECTIVA REGIONAL

Antes de apresentar a visão que a historiografia regional tem do tema, deve-se fazer

breve retrospectiva acerca da formação dessa historiografia, na medida em que ela, per se,

resulta do recorrente debate entre autonomia e dependência, o qual dialoga com a questão das

continuidades e descontinuidades.

Verifica-se que as raízes do pensamento historiográfico latino-americano encontram-

se nos debates que colocavam, de um lado, Sarmiento, ex-presidente argentino e defensor de

uma perspectiva de política externa universalista para os países da região – como bem

representa o seu associativismo às transformações globais no período da pax britannica -, e,

de outro lado, Martí, cubano que representava o ideal de autonomia e de ruptura16

.

Percebe-se, assim, que os debates entre as duas correntes de pensamento já se fazem

presentes desde os tempos da formação dos Estados nacionais na região. Cabe destacar que

tais questionamentos sobre autonomia e dependência vão perpassar vários momentos

históricos da história latino-americana do século XX.

Nos anos 1950 o problema da deterioração dos termos de troca e do

desenvolvimentismo é levantado pelos teóricos cepalinos, mostrando, por meio de

argumentos econômicos, a importância de romper com a perspectiva associativista. Autores

como Raúl Prebisch e Celso Furtado apresentavam a ideia de que os bens produzidos por

países da região perdiam valor, à medida que a renda internacional média aumentava, e que

9

os produtos importados pela região se tornavam constantemente mais caros, o que gerava

uma dependência econômica estrutural.

Na década de 1960, a Revolução Cubana resgata o ideal de Martí de que a ruptura é

imprescindível para o desenvolvimento da região. A partir do final dessa década, trabalhos

como o de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto dão destaque à dinâmica da

dependência política dentro do quadro econômico de centro-periferia que começara a ser

desenhado por autores cepalinos anos antes. Cardoso e Faletto17

atribuem grande parte da

falta de desenvolvimento latino-americano à relação política de subordinação estabelecida

entre os países da região e os países já desenvolvidos do hemisfério norte. O estruturalismo

cepalino ganha reforço em sua dimensão política e seus reflexos serão facilmente observados

nas propostas de inserção internacionais mais autônomas de vários países da região.

Nos anos 1970, o nacionalismo de fins do paradigma desenvolvimentista da política

externa brasileira representava a importância da autonomia para o crescimento econômico e

para o desenvolvimento da nação. A ideia de que a substituição de importações alcançava

seus estágios finais como mecanismo do desenvolvimento industrial de países da região como

Brasil, Argentina e México fazia com que o perfil autonomista ganhasse força. Ademais, as

taxas de crescimento significativas, no caso brasileiro, corroboravam a ideia de que era por

meio de uma autonomia autárquica que o Brasil alcançaria o pleno desenvolvimento.

Nos anos 1980 e 1990, o regionalismo aberto, ainda que resgatando o ideal de que a

América Latina deveria abrir-se para o mundo, não deixa de atentar para algo há muito

apontado como necessário por pensadores como Hélio Jaguaribe, já na década de 1950: uma

verdadeira integração regional. A crise econômica que tornou a década de 1980 uma “década

perdida” para países como Brasil, Argentina e México fez com que os conceitos de

autonomia de suas políticas exteriores fossem revistos. Por fim, nos anos 2000, o debate

sobre a autonomia ganha novos contornos, com o avançar da globalização e das cadeias de

produção globais.

Raúl Bernal-Meza18

, um dos pesquisadores que pensam de acordo com os quadros

conceituais da historiografia latino-americana, debate tanto a questão da autonomia na região

quanto o tema das continuidades nas políticas externas dos países da região.

Ao tratar da questão da autonomia, Bernal-Meza destaca a relevância do tema para

todos os países do continente sul-americano. Ao apresentar um estudo acerca das

10

metodologias utilizadas na região, para se compreender as políticas externas nacionais, o

autor mostra que, a despeito da dispersão de perspectivas teóricas, os estudos históricos

convergiam para a análise de três questões em especial: a) a busca pela maximização da

autonomia; b) o desenvolvimento como objetivo nacional, para o qual a política externa

trabalhava; c) os Estados Unidos, como corolário automático da busca pela autonomia, na

medida em que é país importante para a política externa de qualquer país do continente

americano.

No que se refere ao debate sobre continuidades e descontinuidades, o autor busca

analisar os casos específicos de Colômbia, Chile, Brasil e Argentina. Mostra o autor que o

trabalho em torno da ideia de “paradigmas”, desenvolvido pelo professor Amado Cervo, o

qual será mais bem analisado abaixo, tende a ser um dos mais relevantes aportes

historiográficos da região para a compreensão de mudanças significativas em política externa.

Ademais, o autor ressalta que outros pensadores da região, como Mário Rapoport e José

Paradiso, buscam compreender as continuidades e descontinuidades nas políticas externas da

região por meio da compreensão de que a política externa é um “todo indivisível”, que deve

considerar as nuances nas estratégias de desenvolvimento dentro de uma visão sistêmica do

mundo19

.

Verifica-se, por meio da obra de Bernal-Meza, que as questões da autonomia e da

continuidade de política externa são recorrentes na historiografia latino-americana. A análise

recairá, na sequência, sob como autores contemporâneos do Brasil abordam esses temas.

2.2 A PERSPECTIVA BRASILEIRA

Os temas da autonomia e da continuidade de políticas de inserção internacional, como

visto acima, são recorrentes na historiografia regional. Na sequência, serão identificados

alguns pensadores brasileiros que desenvolveram construtos conceituais acerca dos dois

temas.

A especificidade da análise de autores brasileiros faz-se necessária pelo peculiar

padrão de desenvolvimento do Brasil. É importante, nesse sentido, matizar o conceito de

autonomia, na medida em que, como será visto, o conceito de autonomia, na perspectiva da

política externa brasileira, é mais ponderado do que aquele desenvolvido por pesquisadores

de outros países da região, em grande medida devido ao fato de que o nível de

desenvolvimento econômico de um país afeta sua capacidade de formular decisões

11

autônomas, bem como sua liberdade de ação internacional. Nesse sentido, o Brasil, com mais

recursos materiais e um mercado doméstico muito mais significativo, seria menos vulnerável

a decisões de países externos e teria capacidades suficientes para evitar a construção de uma

política externa balizada por uma dicotomia simplista “autonomia x associativismo”, como

acontece em outros países da região materialmente mais dependentes de grandes potências

externas20

.

O conceito de autonomia na política externa brasileira é tratado extensivamente na

literatura nacional e internacional21

e pode remeter ao início do período republicano, quando

o Barão do Rio Branco busca promover um alinhamento pragmático por meio da “aliança não

escrita” com Washington22

. A presente análise buscará compreender como o conceito de

autonomia no país varia conforme o contexto internacional desde os anos em que o Barão do

Rio Branco esteve a frente da chancelaria, mas dando destaque maior ao período posterior à

Segunda Guerra Mundial.

O pensamento do Barão do Rio Branco é extremamente complexo e merece estudos

próprios. A guisa de síntese, pode-se dizer que a política de José Maria da Silva Paranhos

Júnior foi norteada pelos seguintes princípios: intransigência da soberania nacional; definição

das questões lindeiras; inteligência cordial na política regional sul-americana; recuperação do

prestígio internacional do país e defesa dos interesses da elite agrário exportadora,

principalmente no referente às exportações de café e imigração.23

De modo a atender tais princípios, especialmente aquele relacionado à manutenção

das exportações do país, que eram o sustentáculo da economia nacional do período, era

necessário desenvolver as melhores relações possíveis com os Estados Unidos, maior

comprador do café brasileiro e potência emergente. Nada obstante, curvar-se aos interesses

estadunidenses, a fim de promover o ingresso de divisas estrangeiras no país, significaria, em

alguma medida, ir de encontro ao princípio da intransigência da soberania nacional.

Dentro desse quadro é que se desenvolveu o pensamento, por vezes entendido como

visionário e ao mesmo tempo pragmático do Barão do Rio Branco. O Barão soube promover

uma espécie de “alinhamento pragmático” em relação aos Estados Unidos, buscando garantir

o máximo de autonomia possível ao Brasil, garantindo, desse modo, a soberania nacional,

sem descuidar, contudo, da promoção de uma “aliança não escrita”, termo cunhado pelo

brasilianista Bradford Burns. Em termos práticos, o Brasil buscou sustentar sua autonomia

em momentos-chave, como durante a Conferência de Haia, quando divergiu dos EUA no

12

tocante à promoção da igualdade soberana dos Estados, buscando destacar, em outros

momentos, como ao abrir a primeira embaixada do país no exterior em Washington, a

vontade do país em ser a ponte na relação entre a potência emergente e os países sul-

americanos24

.

Essa dimensão da autonomia, sobretudo em relação aos EUA não foi nem mantida, na

prática, nem pensada, em termos conceituais, por outros nomes de relevo da política externa,

até os anos de 1950, quando o contexto de acirramento das tensões internacionais provoca

nova onda de reflexões no pensamento diplomático brasileiro. Grandes nomes da diplomacia

da década de 1920, como Afrânio de Mello Franco, pensaram a inserção internacional do

Brasil, embora em seu pensamento não estivesse presente a ideia de autonomia, ao menos de

maneira sistematizada. Mello Franco tinha grande preocupação em aproximar o Brasil ao

máximo do pan-americanismo, uma vez que o velho continente europeu era, para ele,

sinônimo de discórdias e instabilidades. Dentro da busca do pan-americanismo, Mello Franco

dava especial atenção para a promoção do direito internacional e do comércio exterior como

formas de intensificar a interdependência e reduzir a probabilidade de conflitos25

.

A ideia da autonomia volta a se fazer mais presente no contexto de acirramento das

tensões internacionais, nos anos finais da década de 1930. Em sua tese de doutoramento,

Gerson Moura26

destaca que o Brasil, no contexto da Segunda Guerra Mundial, buscava o

maior nível de autonomia possível dentro de um contexto insuperável de dependência em

relação aos Estados Unidos, que se tornava a potência hegemônica global. A busca por

autonomia não seria, contudo, um contraponto automático à Washington, buscando alinhar-

se, na medida do possível com o governo alemão. A busca por autonomia significava, na

verdade, a promoção da equidistância pragmática. O Brasil não atuaria de maneira pendular

entre Alemanha e EUA, mas sim de maneira autônoma, de modo a conseguir a maior

barganha possível na relação com os dois Estados. Getúlio Vargas atuava dessa forma, pois

tinha consciência que o Brasil, devido o contexto geográfico e econômico, dependia, em

grande medida, dos EUA. Contudo, o Brasil, diferentemente da Argentina, que adotara

postura mais neutralista, consegue matizar o conceito de autonomia, de modo a barganhar

ganhos materiais graças ao contexto internacional.

Nesse sentido, a construção conceitual de Gerson Moura de autonomia na

dependência tenta descrever a natureza da relação política do Brasil com seu principal

parceiro político-econômico da época – os Estados Unidos. Resgatando o arcabouço teórico

13

acima apresentado, o conceito de autonomia ganhou um matiz muito próprio, decorrente da

conjuntura política da época. A ideia central da significação do conceito não era complexa:

dentro de um sistema de poder internacional onde polos conflitivos se estabeleciam e

ameaçavam a estabilidade estadunidense, bem como sob uma condição política favorável,

devido à aproximação comercial e ideológica entre Brasil e Alemanha durante o início da

década de 1930, era viável a um aliado subordinado, como fora o Brasil nos anos de 1920 em

relação aos EUA, reter um grau de autonomia que lhe permitisse negociar com as grandes

potências.

No que se refere ao período democrático posterior à guerra, Bernal-Meza27

mostra que

o Brasil caminhou de períodos de mínima autonomia, durante os governos de Dutra, Getúlio

Vargas e Café Filho – pois era excessivamente dependente dos EUA em termos econômicos e

o contexto internacional era de crise pós-guerra – para períodos de autonomia matizada,

como o período de desenvolvimento associado, de Juscelino Kubitschek, e o período da

Política Externa Independente. Sobre o período em questão, Resende28

faz análise

pormenorizada da busca pela autonomia durante os anos conturbados da PEI. Verifica-se que

o conceito de autonomia evolui do desenvolvimentismo associado do início do governo de

Juscelino Kubitschek, passa pelos primeiros ensaios de maior autonomia com o lançamento

da Operação Pan-Americana e ganha peso conceitual e prático na política externa

independente, quando San Tiago Dantas, Araújo Castro e outros pensadores e políticos

nacionais passam a criticar abertamente o “congelamento do poder mundial” e a defender

uma via independente – porém não neutra nem indiferente – de inserção internacional.

Nos anos de Dutra e de Getúlio Vargas, o conceito de “pragmatismo impossível”29

é

representativo da ideia de autonomia pensada pelos formuladores de política externa da

época. O Brasil sai da guerra sem ter mais o mesmo poder de barganha em relação aos

Estados Unidos, uma vez que os principais problemas para a segurança da sociedade

estadunidense passaram a ser observados na Ásia e em outras regiões afastadas das Américas.

Além disso, o Brasil se colocava ideologicamente ao lado os estadunidenses.

A autonomia observada nos movimentos da “equidistância pragmática” não mais

existia, uma vez que a conjuntura política mudara. O Brasil promoveu uma política de “voto

duplo” com os EUA, no Conselho de Segurança, iniciou uma comissão econômica mista com

Washington e assinou um acordo militar com os americanos. Nenhuma dessas medidas,

contudo, trouxe os ganhos que trouxera a política de Vargas durante a Guerra, uma vez que

14

ficava patente que o país não possuía mais a mesma autonomia de inserção internacional, não

tanto em razão da conjuntura doméstica, mas, nesse caso, principalmente em razão da

situação da política internacional.

A significação do que seria a “autonomia” brasileira pode ser uma interessante chave

de leitura para o impasse que existia entre os grupos vistos como “entreguistas” e

“nacionalistas”, durante o governo democrático de Getúlio Vargas. Os “entreguistas” teriam

uma leitura de autonomia menos impactante do que aquela dos “nacionalistas”, que

perceberiam na autonomia a ideia de desenvolvimento autárquico, independente das relações

com as grandes potências, especialmente com os EUA. Nesse sentido, os “entreguistas”

favoreceriam a troca de minérios brasileiros em nome da cooperação militar com os

estadunidenses, pois isso não diminuiria nossa “autonomia”. Já os nacionalistas prefeririam a

nacionalização dos processos produtivos de bens estratégicos, como aconteceu com o

petróleo, por meio da criação da PETROBRAS. A polissemia dos conceitos, como visto em

termos teóricos acima, se revela, na prática, nos anos inicias da década de 1950.

Diante do surgimento de teorias heterodoxas, como a da deterioração dos termos de

troca e do avançar da “ameaça” comunista sobre países em desenvolvimento, o Brasil

começou a rever sua concepção de autonomia e seu projeto de inserção internacional no final

da década de 1950. O pensamento de Hélio Jaguaribe, especialmente por meio da obra O

Nacionalismo na atualidade brasileira, pode ser visto tanto como o reflexo, na política

externa, desses novos movimentos ideológicos e das mudanças políticas, quanto como a base

do que viria a ser veiculado oficialmente pela política externa independente alguns anos mais

tarde.

Em sua obra, Jaguaribe30

apresenta as ideias de “cosmopolitas” e “nacionalistas”

acerca da política exterior. Essas ideias seriam, para os efeitos do presente estudo, os

embasamentos ideológicos e políticos das diferentes visões de autonomia de política externa

da época. Se os cosmopolitas entendiam que a PEB deveria aproximar-se dos ideais

ocidentais, pois o país é culturalmente ocidental e tem uma economia complementar a dos

países desenvolvidos, os nacionalistas percebiam que a ideologia por trás do alinhamento

ocidental e da falsa complementaridade econômica minava aquele que deveria ser o principal

vetor da política exterior: o desenvolvimento nacional. A autonomia, para os cosmopolitas, já

vinham sendo exercida dentro de suas limitações naturais (ideológicas e econômicas). Para os

15

nacionalistas, a autonomia significava muito mais: era a capacidade de promover o

desenvolvimento nacional sem depender de outros países.

Para Jaguaribe, a linha de pensamento dos cosmopolitas deveria ser revista, uma vez

que era “anacrônico” para o estágio de desenvolvimento do país. A economia cada vez mais

complexa e a sociedade cada vez mais urbana demandavam uma nova orientação de política

externa. A perspectiva nacionalista seria melhor, desde que matizada, de modo a favorecer o

desenvolvimento do país.

A ideia do desenvolvimento como vetor da política externa, que é gestada por

Jaguaribe, ganha força no discurso oficial brasileiro durante a política externa independente.

Lançada quando da posse de Jânio Quadros, a PEI serviria de contraponto mais heterodoxo à

política econômica ortodoxa a ser implementada pelo governo. A PEI, com sua concepção de

autonomia que resgatava elementos do pensamento de Jaguaribe e de outros autores do ISEB

(Instituto Superior de Estudos Brasileiros), foi um momento de ruptura, primeiramente no

discurso e, depois, na prática, com relação ao projeto de inserção internacional prévio.

Durante a gestão de Afonso Arinos, primeiro dos chanceleres da PEI, houve os

primeiros ensaios de maior autonomia: o Brasil colocaria-se-ia, no discurso, a favor do fim da

descolonização, a favor do fim da segregação racial e a favor da diversificação do comércio

exterior nacional31

. Contudo, uma das críticas ao projeto iniciado por Afonso Arinos é o de

que seria ele um programa de “neutralismo”, pouco implementado e afastado da dimensão do

“desenvolvimento”, que deveria guiar a inserção externa do país32

.

O pensamento de Araújo Castro, refletindo em grande medida a concepção de

autonomia que visava dar ao Brasil o direito de se inserir na ordem internacional de modo a

universalizar suas relações e dinamizar o desenvolvimento doméstico, pode ser vislumbrado

no seu famoso discurso dos Três Ds. Proferido por ocasião da abertura da Assembleia Geral

da ONU de 1963, o discurso destaca o desenvolvimento, o desarmamento e a descolonização

como os princípios organizadores da política externa brasileira. O desenvolvimento, já

analisado acima, era o vetor da ação externa, e se tornava ainda mais central para o país

naquele momento de instabilidade interna, no qual o governo buscava implementar reformas

estruturais em diversos setores da economia. O desarmamento sempre foi tema muito caro a

Araújo Castro33

, e já no discurso de Castro se observava a lógica de que desarmar o mundo

serviria não apenas para promover a paz e a estabilidade, mas também o desenvolvimento,

dado que aumentaria os recursos materiais para esse fim. Por fim, a descolonização figurou

16

como elemento mais superficial no discurso34

, havendo apenas a menção de que o país era

contra qualquer tipo de colonialismo, político, econômico ou policial.

A PEI pode ser vista, assim, como um ensaio - primeiro no âmbito do discurso, com

Afonso Arinos como chanceler, e depois no âmbito prático, durante as gestões de San Tiago

Dantas e Araújo Castro – de autonomia em um contexto no qual o Brasil já mostrava que seu

desenvolvimento lhe garantiria um modelo de inserção internacional menos associado aos

EUA.

Terminado o período democrático, com o governo militar surgiria um novo contexto

político doméstico, bem como a política internacional passaria por transformações

significativas, que causariam, naturalmente, descontinuidades no projeto de inserção externa

do país, e uma resignificação da noção de autonomia na política exterior.

A despeito do “passo fora da cadência”35

que foi o governo de Castelo Branco,

momento em que há um retorno ao alinhamento com os EUA, o regime militar, em linhas

gerais, aplicou o que Gelson Fonseca36

chama de “autonomia pela distância”. Conceitua-se

“autonomia pela distância” como sendo uma política de não aceitação automática dos

regimes internacionais prevalecentes e, sobretudo, a crença no desenvolvimento parcialmente

autárquico, voltado para a ênfase no mercado interno; consequentemente, uma diplomacia

que se contrapõe a certos aspectos da agenda das grandes potências para preservar a

soberania do Estado nacional37

. Atitudes que caracterizam essa perspectiva de autonomia são

as recorrentes desavenças com os Estados Unidos em matérias como direito do mar,

desarmamento e comércio, ou ainda a ausência da proposição de candidatura brasileira a

assento não permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas de 1968 a 1988.

Sobre esse afastamento, Selcher38

destacou que o Brasil manteve baixo perfil de

atuação ao não demonstrar grande interesse na eleição para o Conselho de Segurança no

período entre 1969 e o fim de regime militar, na medida em que dele participar acentuaria

algumas vulnerabilidades políticas do país, como a leniência diante do colonialismo

português na África, as relações com o regime de Pretória, as violações de direitos humanos e

o regime de governo autoritário.

Essa visão de que o Brasil, devido a algumas escolhas de política doméstica, estaria

isolando-se no Conselho, é compartilhada por Araújo Castro. Em um telegrama de 196839

,

Araújo Castro, na posição de embaixador brasileiro na ONU, expressa que “faltaria ao meu

dever se não confiasse a Vossência minha grande preocupação com a visível deterioração da

17

posição brasileira na ONU, em virtude do acumulado de tantos votos negativos (contrários às

posições africanas): prevejo grandes dificuldades para quaisquer pretensões brasileiras a

posições eletivas na ONU, dado o desapontamento e mesmo a franca irritação de inúmeros

países africanos, que já não escondem sua hostilidade para conosco”. A dificuldade de

eleição era patente, e, diante desse cenário, os líderes do regime militar não se esforçavam

para garantir a presença brasileira no órgão. Muito antes pelo contrário: a ideia vigente de um

modelo de inserção internacional autônomo autárquico afastava qualquer interesse em

superar as dificuldades que se colocavam para o Brasil no âmbito multilateral da ONU.

Em depoimento posterior ao período em que ocupou o cargo de chanceler, Saraiva

Guerreiro, apresentou a sua visão de irrelevância em ser o Brasil eleito temporariamente ao

órgão – perspectiva hoje pouco presente entre os principais formuladores da PEB, como se

vera adiante. O ex-chanceler, que foi um dos grandes formuladores da política externa do

regime militar e promotor da autonomia pela distância, indicou que:

Nunca fui partidário da presença continuada do Brasil no

Conselho. Sempre considerei que o Brasil participar do Conselho era

bom para o Conselho, não necessariamente para nós; sobretudo não

havia por que nos desgastarmos fazendo campanha eleitoral em

disputas com pequenos países, merecedores de todo nosso apreço, em

troca de nada. Pertencer ao Conselho, como membro temporário,

não acrescenta ao nosso prestígio, mas sim ao do Conselho Hoje,

com o fim da Guerra Fria, e a possibilidade de o Conselho funcionar,

caberia uma reavaliação.40

É interessante destacar que o conceito de “autonomia pelo distanciamento” para

caracterizar boa parte do regime militar não é pacífico na literatura especializada. Lessa,

Couto e Farias41

, por meio de estudos de caso da participação brasileira em regimes da época,

como os de meio ambiente e de comércio, argumentam que não se pode englobar toda a ação

multilateral brasileira no período da Guerra Fria dentro do marco conceitual de “autonomia

pela distância”. Os autores indicam que o Brasil esteve longe de manter sistemática distância,

ausência, isolacionismo ou não participação, e que, mesmo quando esse afastamento existiu,

ele não foi necessariamente decorrente de uma tática brasileira.

No presente estudo, optou-se por seguir próximo ao argumento de Fonseca Jr, que é

respaldado por vários outros acadêmicos42

. Nesse sentido, cabe agora adensar um pouco mais

o significado de “autonomia pela participação”, que teria caracterizado o modelo de inserção

do Brasil ao longo da década de 1990 e seria o contraponto ao distanciamento do regime

militar aos órgãos multilaterais.

18

Fonseca Jr.43

desenvolve o termo “autonomia pela participação”, que será adaptado

por Vigevani e Cintra44

, ao cunharem o conceito de “autonomia pela integração”. A ideia era

de que o Brasil, desde a redemocratização, deveria aderir aos regimes internacionais,

inclusive os de cunho liberal, sem a perda da capacidade de gestão da política externa; nesse

caso, o objetivo seria influenciar a própria formulação dos princípios e das regras que regem

o sistema internacional. O Brasil passaria a ser um global trader, e buscaria mitigar os efeitos

nocivos da dependência excessiva diante dos EUA ou do afastamento conflitivo por meio da

participação nos regimes internacionais que se remodelavam no contexto internacional de fim

da Guerra Fria. O Brasil mostrar-se-ia interessado por assuntos globais, como a

reestruturação do Sistema Multilateral de Comércio, o adensamento do regime de mudanças

climáticas e o diálogo no regime de direitos humanos, bem como diversificaria suas relações

comerciais, sem, contudo, assumir postura conflitiva diante dos EUA.

Não se pode perder de vista que a conceituação proposta por Fonseca Jr. atendeu às

expectativas de, com uma sutileza de vocabulário, apresentar o padrão de inserção

internacional do Brasil em dois períodos recentes da história da política exterior brasileira. A

concepção de autonomia não perdeu sua relevância dentro do planejamento da política

exterior brasileira, o que houve foi uma alteração nos meios para se alcançar a consecução

das diretrizes autonomamente estabelecidas. A leitura proposta por Fonseca Jr. repercute até

os dias atuais na determinação do projeto de inserção internacional, como se pode ver por

meio da adaptação do seu conceito, em anos mais ressentes.

Vigevani e Cepaluni45

estabelecem que o governo Lula teria promovido novo tipo de

autonomia, chamando-a de “autonomia pela diversificação”. A autonomia permaneceria, mas

ela passaria a se caracterizar pela adesão do país aos princípios e às normas internacionais por

meio de alianças Sul-Sul, inclusive regionais, e de acordos com parceiros não tradicionais

(China, Ásia-Pacífico, África, Europa Oriental, Oriente Médio etc.), pois se acredita que eles

reduzem as assimetrias nas relações externas com países mais poderosos e aumentam a

capacidade negociadora nacional. Mecanismos de concertação como BRICS e IBAS seriam

exemplos de como o Brasil buscaria exercer sua autonomia em um ambiente internacional

economicamente mais multipolar.

A ideia de autonomia pela diversificação pode ser encontrada também em outros

estudos consagrados, que focam não necessariamente no aspecto da autonomia, mas sim no

das continuidade e descontinuidades da política exterior brasileira desde a Proclamação da

19

República. O estudo de Cervo46

é emblemático nesse sentido. O autor utiliza a ideia de

“paradigmas” – liberal-conservador, desenvolvimentista, normal e logístico – que pretendem

organizar o objeto de observação – a política externa - e dar a ela inteligibilidade. São os

paradigmas conceitos analíticos que fazem referência não necessariamente à política externa

em si, mas ao papel do próprio Estado na conformação do projeto de inserção internacional

do país.

Para o caso brasileiro, defende o autor que, ao longo da história imperial e

republicana, o país passou por quadro paradigmas de política externa: (1) paradigma liberal-

conservador, que predominou desde a independência até 1930 e foi basicamente organizado

por um Estado que manobrava a política exterior com vista a atender os interesses de seus

grandes dirigentes, ou seja, direcionava a inserção internacional brasileira em nome dos

grandes produtores de bens agrícolas internacionalmente comercializáveis; (2) paradigma

desenvolvimentista, que vigorou entre 1930 e 1989 e se pautava em uma visão realista e

estadocêntrica de mundo, entendendo ser a política externa o vetor do desenvolvimento

industrial de uma complexa sociedade em transição e o Estado o grande promotor dessa

mudança; (3) normal, ou neoliberal, que vigora entre 1990 e 2002 e representa o triunfo

econômico do monetarismo sobre o estruturalismo cepalino, consignando ao Estado somente

a função de buscar estabilidade econômica; (4) logístico, que vigora nos tempos atuais e

mescla elementos dos dois paradigmas anteriores, criando um “estado empresário”, indutor

da atividade econômica, pública e privada, e que buscaria auxiliar na realização dos

diferentes interesses nacionais.

Cervo atribui as grandes transformações na política exterior à substituição de um

paradigma de Estado por outro, por meio da transformação ou substituição das elites

políticas. Ele identifica, especificamente, a Proclamação da República, a Revolução de 1930,

a eleição de Fernando Collor de Mello e a eleição de Lula como momentos-chave de

transformação. No primeiro momento, a Proclamação da República introduziria o paradigma

liberal-conservador, que fazia da política externa mecanismo para a promoção da exportação

do café produzido pela elite nacional. A Revolução de 1930 introduziria novo paradigma, o

desenvolvimentista, que visava aumentar a intervenção estatal no desenvolvimento do país.

Cabe ressaltar a importância de formulações teóricas - que influenciam a historiografia latino-

americana atualmente – na conformação dos ideais do paradigma desenvolvimentista: o

pensamento cepalino, o pensamento estruturalista e a teoria da dependência servem, segundo

Cervo, de arcabouço para a formulação do paradigma. A eleição de Fernando Collor de Melo

20

significa nova ruptura paradigmática, introduzindo o Estado normal, alinhado aos ideais

neoliberais de países centrais. Por fim, há o paradigma logístico, que consiste em modelo

pós-desenvolvimentista de inserção internacional, no sentido de que busca superar a tônica de

dependência estrutural cepalina sem se deixar levar pelas estratégias de liberalização

incontrolada e de Estado passivo, como defendia o paradigma normal. O Estado logístico

seria aquele capaz tanto de prover a estabilidade econômica quanto de transferir à sociedade

parte das responsabilidades do crescimento econômico, sem deixar de auxiliá-la na

consecução do objetivo maior do desenvolvimento nacional.

Embora os objetos de estudo de Cervo, Fonseca Jr. e Vigevani e Cepaluni sejam

distintos, a compreensão de um complementa o entendimento do outro: a leitura

paradigmática é capaz de oferecer argumentos importantes para se compreender as mudanças

na conceituação da autonomia dentro da política exterior brasileira. Pode se considerar que o

novo paradigma (logístico) de inserção internacional caminha em consonância com o

conceito de “autonomia pela diversificação”, acima apresentado: o Brasil, possuidor de

recursos econômicos razoáveis, pondera seu conceito de autonomia por meio de inserção

internacional diversificada, da qual fazem parte atores estatais e não estatais. É nesse

contexto que se debatem, na sequência, quais os desafios que se apresentam para o futuro do

conceito de autonomia e para o futuro do paradigma logístico no Brasil.

3. A SIGNIFICAÇÃO DE “AUTONOMIA” NO ATUAL CENÁRIO DE GLOBALIZAÇÃO

A presente seção busca fazer breve reflexão acerca do futuro da noção de autonomia

para a política externa brasileira que ainda se pauta no paradigma logístico para o Estado.

Busca-se mostrar que esses pensamentos de autonomia e de inserção internacional não podem

ir de encontro ao atual processo de globalização e de internacionalização das cadeias

produtivas globais. Deve, pelo contrário, buscar incluir de maneira não alinhada e não

automática os países no contexto da internacionalização da produção de bens de consumo de

maior valor agregado.

Segundo Sato e Cesar47

, graças aos avanços nas tecnologias da informação, há hoje no

mundo uma nova geografia do comércio internacional, ligada ao rápido avanço da

globalização dos processos produtivos. Nesse contexto, o comércio internacional deixa de se

fazer por meio das trocas de produtos finais acabados e passa a ser caracterizado pelas trocas

de componentes de um produto. Essa nova dinâmica, segundo os autores, vai de encontro à

lógica de negociação adotada pelos Estados no sistema multilateral de comércio,

21

marcadamente no que se refere às negociações da Rodada Doha. Estados como o Brasil, ao

envidarem esforços em negociações que reduzam as tarifas de bens finais, sem atentar para a

importância de se estabelecer novo sistema para regras de origem e mecanismos antidumping

de peças e componentes, não estariam atuando de acordo com a lógica do futuro, mas sim por

meio da análise das trocas comerciais do passado.

Os autores apontam que não se deve desmerecer a atuação da diplomacia brasileira no

contexto das negociações multilaterais: o país logrou, por meio de mecanismos de

concertação específicos, como o G-20, fazer parte do seleto grupo de países-chave para o

avançar da Rodada – ainda que represente menos de 2% do comércio mundial. No entanto, o

país não estaria aproveitando essa nova oportunidade para propor alternativas inovadoras que

pudessem trazer a negociação para mais perto da realidade do comércio mundial, que já é

bem distinta daquela de quando a Rodada foi lançada, há mais de uma década. Esse exemplo

do comércio internacional é aqui apresentado, pois é o que deixa mais clara a relação

anacrônica que começa a se estabelecer entre a vontade das instituições governamentais de

resguardar sua autonomia e a soberania do Estado, durante negociações internacionais, e o

atual contexto de globalização, que permeia não apenas questões comerciais, mas todo o

cenário internacional.

Diante do exposto, indaga-se se é possível que venha a acontecer uma mudança na

significação do conceito de autonomia, na política externa. A resposta tende a ser afirmativa.

As transformações na interpretação de “autonomia” por que passou o Brasil nas últimas

décadas podem servir de exemplo e de reforço da ideia teórica acima apresentada de

polissemia conceitual e de mudança nos conceitos de acordo com o momento histórico. Faz-

se sempre necessário adaptar o pensamento político e diplomático a novos contextos

internacionais, de modo a barganhar o máximo de ganhos materiais para o desenvolvimento

nacional. No atual contexto de intensificação da globalização, o conceito de autonomia

precisa passar por uma revisão – seja no Brasil, em outros países latino-americanos e em

várias Estados -, de modo a não ser compreendido como a contraposição ao “outro” ou como

a vontade de desenvolvimento autárquico. A autonomia não deve ser perdida, mas ela deve

ser equacionada, de modo a não prejudicar a integração dos países ao processo de

adensamento da interdependência político-econômica global.

22

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base nas considerações teóricas sobre a história dos conceitos, se pode concluir

que a linguagem é o espelho da realidade social. Nesse sentido, o processo de mudança na

sociedade é causa central nas transformações por que passam os conceitos e as ideias

aventadas pelo mesmo conceito. Assim, utilizando um exemplo apresentado acima, se a ideia

de “autonomia na dependência” surge no contexto político-econômico de necessária barganha

nacionalista, em nome da consecução de interesses materiais – e por isso a concepção de

dependência e de auxílio ainda se fazia presente no discurso – a percepção da “autonomia

pelo distanciamento” do período militar já era outra. O Brasil da década de 1970 já não mais

tinha uma complementaridade econômica em relação ao mercado estadunidense, e não mais

precisava sustentar uma aproximação incondicional em nome do seu desenvolvimento. O

conceito de autonomia ganhava novos contornos, pois a realidade social daqueles que

pensavam a ideia de autonomia não era mais aquela das décadas de 1930, 1940 e 1950.

O mesmo vale para distanciar a significação de “autonomia” durante o regime militar

– embora não seja pacífico entre acadêmicos, hoje, que o pensamento diplomático

efetivamente buscasse o distanciamento – e o período imediatamente posterior. Durante a

fase da política exterior considerada “normal”, nos termos do professor Cervo (2008), o

Brasil adensou sua presença em regimes multilaterais. A ideia era a de que não se poderia

influenciar a reconfiguração da ordem internacional do pós-Guerra Fria sem estar presente

nos foros que debateriam tal reestruturação. Ademais, o Brasil não mais tinha tantas

“hipotecas” que constrangiam a ação externa do país, como a do apoio ao colonialismo e o

não respeito aos direitos humanos e ao meio ambiente, observadas durante o regime militar.

A polissemia do mesmo conceito – “autonomia” – também pode ser verificada no

estudo histórico. A ideia de autonomia não varia apenas de país para país na América Latina,

mas também dentro do próprio Brasil e em um mesmo contexto histórico. A polissemia fica

clara nos diferentes projetos de Brasil que se apresentavam na década de 1950 e, em alguma

medida, nos anos inicias da década de 1960. Os “entreguistas” tinham uma visão de

“autonomia” criticada pelos “nacionalistas”, e vice-versa. O estudo de Hélio Jaguaribe foi

capaz de analisar de maneira precisa essa dicotomia que se desenhava e que tinha como pano

de fundo central a percepção de que o projeto de Brasil deveria, necessariamente, se pautar na

promoção do desenvolvimento nacional.

23

A ideia do desenvolvimento como vetor de política externa segue presente no

pensamento diplomático brasileiro hodierno. O desafio contemporâneo, contudo, é distinto

daquele da década em que Jaguaribe escreveu O nacionalismo na atualidade brasileira.

Atualmente, a interdependência político-econômica demanda que os Estados desenvolvam

um significado de autonomia que não limitem sua integração aos processos produtivos

internacionais. Entrar nas “cadeias produtivas globais” não significa abrir de maneira

indiscriminada o país para o mercado internacional. Significa, isso sim, aproximar-se de

processos produtivos mais dinâmicos e eficientes, sem esquecer as lições que a história do

conceito de autonomia pode fornecer.

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jun 1987 2 Entre os autores, pode se destacar Reinhard Kosseleck e Christian Bermes, atual diretor do periódico alemão

“Archiv für Begriffsgeschichte”. 3 Quentin Skinner. Language and Political Change. In: Political Innovation and Conceptual Change. BALL,

Terence; FARR, James, HANSON, Russell (ed). Cambridge: Cambridge University Press, 1989. p.8. 4 Quentin Skinner, Language and Political Change. p.15 – 18.

5 Estudo sistematizado acerca do processo de polissemia dos conceitos pode ser observado em obras de

sociólogos históricos. Charles Tilly (1985; 1992) e Michael Mann (1997), por exemplo, trabalham com a

polissemia do conceito de “Estado” e suas consequências político-econômicas, especialmente para países que

ainda não possuíssem o aparato burocrático central tão consolidado. 6 James Farr. Understanding conceptual change politically. In: Political Innovation and Conceptual Change.

BALL, Terence; FARR, James, HANSON, Russell (ed). Cambridge: Cambridge University Press, 1989. p.25 7 Aqui se deve destacar que tanto a mudança conceitual pode ser um reflexo da mudança política quanto o

contrário: por vezes a mudança na linguagem leva ao novo conceito que embasa a nova política (FARR, 1989,

P.31). 8 James Farr. Understanding conceptual change politically. p.26.

9 No campo da diplomacia isso é especialmente verdade, uma vez que, por princípio, o diplomata busca sempre

o diálogo como mecanismo de solução de conflitos, e jamais a força. O uso preciso de termos específicos em

correspondências diplomáticas, como Notas Verbais, corrobora esse entendimento. 10

James Farr. Understanding conceptual change politically. p.29 11

HOBSBAWM, E. J. A era das revoluções: Europa 1789 – 1848. 10. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1997.

p.17. 12

James Farr. Understanding conceptual change politically. p.31. 13

Tullo Vigevanni; Rodrigo Cintra. Política externa no período FHC: a busca de autonomia pela integração.

Tempo Social, v. 15, n. 2, p. 31-61, 2003 14

Amorim (2007, p. 05) aponta que Rui Barbosa foi um pioneiro da diplomacia multilateral no Brasil,

inaugurando, em 1907, na Conferência de Haia, uma linha de atuação que perdura até os dias de hoje, qual seja,

a de defesa da democratização das relações internacionais e de igualdade jurídica entre os Estado. 15

Amado Cervo. Inserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p

28 – 30. 16

José Flávio Sombra Saraiva (Org.). História das relações internacionais contemporâneas: da sociedade

internacional do século XIX à era da globalização . 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p20. 17 Fernando Henrique Cardoso.; Enzo Faletto. Dependência e desenvolvimento na América Latina: ensaio de

interpretação sociológica. Rio de Janeiro, 1970. 143p.

27

18

Raúl Bernal-Meza. América Latina en el mundo: el pensamiento latinoamericano y la teoría de relaciones

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Raúl Bernal-Meza. América Latina en el mundo. p. 353 20

O autor agradece os comentários de Flávio José Sombra Saraiva em relação ao presente estudo, que

facilitaram o desenvolvimento dessa ideia de que existe uma concepção própria de autonomia no Brasil que se

diferencial daquela observada em outros vizinhos regionais. 21

Vide MOURA, 1980; VIGEVANI, 2003; BURNS, 2003; FONSECA JR., 2004; VIGEVANI, 2007;

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1964). 1ed.Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2013, v. 2. 26 Gerson Moura. Autonomia na dependência: a política externa brasileira de 1935 a 1942. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1980. 27 Raúl Bernal-Meza. América Latina en el mundo. 28

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