O ato de publicação

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ANDRÉ RANGEL RIOS O Ato de Publicação EDIÇÃO ONLINE Rio de Janeiro Outubro, 2008

Transcript of O ato de publicação

ANDRÉ RANGEL RIOS

O Ato de Publicação

EDIÇÃO ONLINE

Rio de Janeiro

Outubro, 2008

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Copyright © 2008 by André Rios

Publicação original como coletânea: O Ato de Publicação (ensaios).

Booklink, 2007, 214 p.; ISBN: 85-88319-84-5

Sendo vedado qualquer lucro comercial, autorizo que esta

edição on-line seja copiada eletronicamente ou em papel,

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Rios, André Rangel, 1958 - O Ato de Publicação / André Rangel Rios – Rio de Janeiro: Edição do Autor Online,

outubro 2008, 170 p.

1. Literária Comparada. 2. Narrativa e Medicina. 3. Literatura Brasileira. 4. Literatura Alemã. I. André Rios.

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DO MESMO AUTOR Romances:

A Ilha dos Prazeres. Uapê, 1997 Nada ou Isto não é um Livro. Garamond, 2001 Kant em Coma. 7Letras, 2006 Dentro do Teatro de Marionetes. Record, 2007 Aposta. 7Letras, 2007

Ensaios:

Mediocridade e Ironia. Caetés, 2002. Celebridade Intelectual e Pensamento Crítico. Booklink, 2005 Ensaios sobre Suárez e Descartes. Booklink, 2005

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Sumário

Prefácio................................................................................................5

“Suje-se gordo!”..................................................................................6

O ato de publicação enquanto o abjeto

da escrita literária...........................................................................36

Perspectivas movediças em Lorde, de João Gilberto Noll.......................................................................65

Rodrigues-Filho, Noll e Vonnegut. Escrita literária

e linguagem acadêmica..................................................................79

A escrita e a guerra em A céu aberto, de João Gilberto Noll.....................................................................119

Kafka e o ato de publicação...........................................................134

A metamorfose pelo ato de escrita................................................143

Do subterrâneo para o público......................................................160

Nota sobre os ensaios.....................................................................170

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Para o Tiago

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Prefácio

Os ensaios desta coletânea foram escritos a partir de questões

diversas. A discussão em torno do ato de publicação corresponde a

apenas uma linha de questionamento neles desenvolvida, não

chegando nem a ser um tema comum a todos os ensaios. Um outro

tema de especial destaque nestes ensaios foi, por exemplo, o abjeto.

Além disso, o ato de publicação não esteve em questão em cada um

dos ensaios; e, em alguns deles, quando é abordado, não discuto

senão o que chamei de ato intradiegético de publicação. No

entanto, o ato de publicação é, de fato, a questão que, no momento,

pretendo, com mais ênfase, pôr em debate.

De um modo geral, o que se busca nestes ensaios não é nem

tanto explicar, mas discutir e problematizar. De fato, alguns

ensaios podem ser de difícil compreensão quando o texto

comentado não tiver sido lido recentemente; assim, quem se

dispuser a lê-los terá, provavelmente, de mobilizar algum estoque

de paciência e concentração. Evidentemente, não garanto que o

investimento perquisitivo será devidamente recompensado. Cada

um fará o seu juízo. De minha parte, como sempre, agradeço as

leituras atentas.

Rio de Janeiro, 10 de novembro de 2007

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“Suje-se gordo!”

Quando se ouve o título do conto de Machado de Assis “Suje-se

Gordo!”1 ou se o lê rapidamente, tem-se primeiramente a idéia de que ele se refere a algo como um gordo que, sendo guloso, se lambuza ao comer vorazmente, tal como se esse título fosse escrito com uma vírgula que poria “gordo” como um vocativo: “Suje-se, gordo!”2 Entendido desta forma, esse título poderia ser mais enfaticamente formulado como: “Seu gordo nojento, enfia de uma vez o pé na jaca, vá fundo na sua asquerosa gulodice!”; “Se você é guloso e não quer se conter um pouco que seja, então que coma até estourar; por mim, você que se dane!” e coisas assim. Visto desse modo, em sentido figurado, o título também poderia ser: “Se você é corrupto, então que roube até ser preso!”; “Se você é preguiçoso, então que fique vadiando até não ter mais dinheiro!”; “Se você gosta de jogar e não se contém, então que perca tudo que tem!”; “Se você não contém os impulsos sexuais, então você que se entregue a eles e veja lá o quanto você vai se degradar!” Em resumo, seria como dizer: “Se você gosta de praticar alguma coisa exageradamente, que o faça até arrebentar!” É claro que não é necessário que essa entrega a um vício seja desastrosa; afinal, não é nada de muito grave que uma pessoa, por exemplo, não se contenha e coma chocolate até ter dor de barriga.

Contudo, essa vírgula não existe no título. Em todo caso, mesmo não existindo essa vírgula, se o entendimento do título tal como se ele tivesse uma vírgula é comum ou até mesmo inevitável (sobretudo se o título for apenas ouvido), então se trata, nesse caso, de uma leitura não apenas aceitável mas incontornável, ou seja, o título é também: “Suje-se, gordo!”

1 Machado de Assis, Obra completa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1986, vol. 2, p. 694-8. 2 Esta interpretação parece, de fato, ocorrer a muitos leitores da edição Aguilar das Obras completas de Machado de Assis, pois há nela, ilustrando o conto, o desenho de um gordo em trajes elegantes. Mais abaixo neste meu ensaio, se verá que esse desenho pode ser considerado inadequado ao texto, pois nada indica que, no conto, a frase “Suje-se gordo!” se refira a pessoas gordas; no entanto, o conto é tão polissêmico que, como será indicado, essa interpretação também pode ser aceita, ao menos se com precauções.

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E como entender esse título na forma que está literalmente, ou antes, virgulalmente, escrito? Em “Suje-se gordo!”, gordo está como advérbio. Tal como se pode dizer: “Coma rápido!” ou “Coma rapidamente!”; “Suje-se gordo!” é o mesmo que “Suje-se gordamente!”, que “Suje-se muito!” ou que “Suje-se à beça!”

Ainda que o entendimento dessa expressão com a vírgula possa soar mais negativo do que o dela sem a vírgula, o sentido das duas expressões não difere muito, porque, tanto em uma quanto em outra, o sentido é instável, oscilando de uma conotação francamente negativa até uma conotação basicamente positiva. As duas formulações do título com vírgula (digamos que essa seja a formulação oral) ou sem vírgula (que é a formulação escrita) significam desde (1) “Dane-se!”, “Vá para o diabo!”, “O problema é seu!” ou “Vire-se!” até (2) “Vai fundo!”, “Manda ver!”, “Isso aí!”, “Aproveita!”

O que é, porém, particularmente relevante – retornarei a isso mais abaixo – é que “Suje-se gordo!” pode ser entendido como uma exclamação e, enquanto tal, estará sempre estreitamente relacionado ao contexto que o provoca. É o caso da expressão: “Botar pra quebrar!”, que pode significar tanto que algo de bom quanto que algo de ruim vai ser feito; aliás, essa expressão também pode ser entendida como equivalendo a “Suje-se gordo!”

Assim, uma leitura possível deste conto é aquela segundo a qual o leitor ou leitora busca estabelecer, ao analisar o conteúdo da narrativa, o que significa o título e se ele tem, afinal, uma conotação positiva ou negativa. Desse modo, um leitor ou leitora experiente vai também se manter aberto para o caso do sentido da narrativa ser, quer simultaneamente quer oscilantemente, tanto positivo quanto negativo.

Contudo, o título pode ser também entendido como se interpelasse diretamente o leitor ou leitora: “Você, que gosta de ler contos (ou que gosta de literatura), vá fundo neste conto; regale-se, pois aqui você tem um bom exemplo disto!” Neste sentido, “Suje-se gordo!” seria o mesmo que “Permita que o prazer literário vá ao máximo!” De certo modo, se o título, numa leitura rápida, já é tão polissêmico, ele por si só é um exemplo do que é literatura.

Em vista disso, também é de se esperar que eu, enquanto intérprete do conto, proceda segundo manda o título. Assim, ouço o

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título me dizer: “Você, que gosta de ler um texto atribuindo a ele as coisas mais estapafúrdias, então vire e revire este conto até chegar às suas interpretações absurdas de sempre!” O título me soa, pois, tanto como um incentivo quanto como um desafio. Ele é como o enigma da esfinge. Ele desafia a todos que o lêem. Aceito o desafio: ainda que eu não esteja à altura da tarefa, vou fazer o possível para não desmerecê-la totalmente.

* * *

O conto se inicia com o narrador relembrando – ou seja,

reencenando em sua memória – a conversa que teve com um amigo durante o intervalo de uma peça de teatro:

Uma noite, há muitos anos, passeava eu com um amigo no terraço do Teatro de S. Pedro de Alcântara. Era entre o segundo e o terceiro ato da peça A Sentença ou o Tribunal do Júri. Só me ficou o título, e foi justamente o título que nos levou a falar da instituição e de um fato que nunca mais me esqueceu.3

Essa conversa, portanto, ocorreu – ficcionalmente – enquanto

dois amigos estavam dentro de um teatro, e teve seu tema derivado do título da peça; de modo que, tal como no conto que estamos lendo, também o título parece ser particularmente inspirador ou ser, de certo modo, o elemento principal, digamos, gerador do que interessa na peça e na conversa. Assim, temos um curioso jogo de palcos, um dentro do outro, embora o que esteja dentro pareça derivar do que está fora, ao mesmo tempo em que o que está fora parece ser o resumo ou o núcleo gerador do que está dentro. Com efeito, nunca é claro se o título resulta do conteúdo de um texto escrito, no caso, de uma peça, ou se é texto que resulta do título (se primeiro se escreveu a peça e depois se escolheu o título, ou vice-versa). E o que é importante em uma peça é sua representação ou seu texto escrito? Ou será que é a reação do público? Se a reação do

3 O texto do conto será citado na íntegra. Quem quiser reler o conto poderá fazê-lo sem pegar o livro na estante, basta ler a seqüência das citações.

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público (incluindo aí a crítica teatral) é importante, então os comentários à peça (ou a um conto) também fazem parte, em alguma medida, da própria peça (ou do conto)? Até que ponto a conversa no intervalo da peça faz parte da peça? Se a conversa foi inspirada pelo título da peça, se do enredo da peça não há mais lembrança, mas apenas da conversa, não será o título da peça, de certo modo, também o título da conversa (que é, afinal, também uma performance)? Com efeito, a conversa no intervalo, tal como a performance no palco, é também um enredo derivado do mesmo título. Mas, se a conversa passa a fazer parte de um conto, não se torna o conto mais uma performance do mesmo título (ou da mesma peça)? Mas não foi o título do conto que ensejou a narrativa dentro da qual a performance da conversa no intervalo se realizou, de modo que teria sido o título do conto que gerou o título da peça; título que, segundo é narrado, gerou a conversa que, por sua vez, constituiu o conteúdo do conto; conteúdo que, então, teria levado a que se chegasse ao título do conto? Ou seja, nunca fica claro o que está abrindo espaço para o quê. Se o intervalo da peça é conseqüência da peça, já a peça é mencionada no conto porque a conversa que ocorre em seu intervalo é um importante elemento do enredo do conto no qual a peça, sendo encenada, é interrompida para que seja encenada a conversa. Além disso, se o conto começa com as palavras de um narrador, é apenas para que, ao final do primeiro parágrafo, tal como se esse primeiro parágrafo não fosse mais que uma cortina que se abre, comece a narrativa do amigo com quem o narrador conversa; narrativa que, por sua vez, como já foi indicado, é a reencenação do título, ou mesmo do conteúdo da peça que está sendo encenada, ainda que esse conteúdo não seja narrado e seja declarado esquecido. Também, é claro, dentro da narrativa do amigo há outras narrativas; e dentro de algumas destas há ainda mais narrativas. Além da imbricação de narrativas, há a possibilidade de bifurcações; por exemplo, o título da peça seria A Sentença do Júri ou, talvez, O Tribunal do Júri, uma inexatidão da narrativa que deixa indeciso se o foco principal é o que se passa na cena do tribunal com os depoimentos e argumentações dos advogados ou na sala do júri onde são deliberadas as sentenças. Mas pode-se ir ainda mais longe, se considerarmos que o conto “Suje-se gordo!” está dentro de um livro; ou seja, o livro, que se abre com o título

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Relíquias de Casa Velha, é o palco onde esse conto se encena (conto que, aliás, de fato se encena em uma “casa velha” no sentido em que ele se encena no antigo Aljube, que era, na época em que o que os julgamentos teriam ocorrido, o prédio do tribunal do júri); do mesmo modo que o cidadão Machado de Assis entra em cena como o escritor Machado de Assis, que põe em cena o livro Relíquias de Casa Velha, que, por sua vez, abre o espaço para que um autor ficcional entre em cena narrando o conto “Suje-se gordo!”, no qual esse autor ficcional põe em cena um amigo narrador que, por sua vez, porá em cena todo um conjunto de outros personagens; sendo que, se existe livro, é porque existem essas narrativas todas e não apenas porque existe um título de livro, que, aliás, se não houvesse o resto do livro, seu conteúdo, seria apenas uma frase pela metade e não o título de um livro.

Com efeito, quem estiver lendo este meu ensaio já pode dizer: “Suje-se gordo!”, isto é, “Farte-se com tantas narrativas abrindo espaço para que tantas outras se encenem dentro delas!” Em todo caso, se não vou continuar aqui desenredando infinitamente a série de narrativas que se encenam imbricadamente, não posso deixar de lembrar que também este ensaio que estou escrevendo (e a sua leitura em um colóquio, bem como a sua reapresentação em um livro) são mais desdobramentos teatrais do “Suje-se gordo!” De fato, estou me esbaldando ao comentar este desdobramento de séries; sendo que, desse desdobramento, sou participante ativo, pois sou mais um desdobramento delas.

Mas acompanhemos a narrativa. Após o título “Suje-se gordo!”, que é algo como o toque que avisa o público do início do espetáculo, há esse primeiro parágrafo, citado acima, que, de certo modo, é o momento em que as cortinas se abrem para o enredo principal, isto é, o enredo mais extenso e que constituirá aquilo que os leitores costumam assumir como sendo, após preâmbulos convencionalmente aceitáveis e supostamente secundarizáveis, o assunto do conto propriamente dito:

– Fui sempre contrário ao júri, – disse-me aquele amigo, – não pela instituição em si, que é liberal, mas porque me repugna condenar alguém, e por aquele preceito do Evangelho; “Não queirais julgar

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para que não sejais julgados”. Não obstante, servi duas vezes. O tribunal era então no antigo Aljube, fim da Rua dos Ourives, princípio da Ladeira da Conceição.

Trata-se de um parágrafo, quer dizer, de um posicionamento

do narrador, que é particularmente complexo. O “amigo” do narrador se diz contrário ao júri. Ora, o júri é o palco principal no qual se desenvolverá a seguir a narrativa; é a ele, isto é, é a essa encenação, que é a reencenação do que foi dito no tribunal diante do juiz e do público, enfim, é ao que é dito nesse intervalo em que o espetáculo na sala de audiência é suspenso e o júri delibera, que o “amigo” do narrador é contrário; mas ele é contrário exatamente a quê na instituição do júri? Ele alega que o júri vai contra o preceito bíblico: “Não queirais julgar para que não sejais julgados”. Mas este preceito invalida a instituição do júri? Pelo visto não; tanto que o “amigo”, sem mostrar maiores hesitações, recorrendo apenas a um “não obstante”, afirma que serviu por dois períodos como jurado. A atitude do “amigo”, bem como sua justificativa, é tão ambígua quanto à expressão: “Suje-se gordo!” Na verdade, a sentença bíblica não parece invalidar a instituição do júri, mas sugere que os jurados, ao condenarem, estão condenando é a si mesmos. Seria talvez nesse sentido que o “amigo” não acredita no júri: ele não melhora as pessoas; antes, ele conspurca os jurados. O júri seria uma instituição contraprodutiva, que multiplica aqueles que julgam e, portanto, os culpados. Seria, assim, impossível ao júri julgar efetivamente, produzindo justiça na sociedade. Em última instância, o júri seria uma instituição autocontraditória, lhe sendo impossível alcançar sua finalidade: fazer justiça. Contudo, tal como essa instituição liberal (ou seja, o júri) é dúbia quanto ao papel que ela desempenha e é, até mesmo, impossível quanto à sua finalidade, assim também uma outra instituição liberal, bem como sua impossibilidade, está sendo indiretamente referida aqui, a saber, a literatura; de certo modo, o “amigo” está, desde o início, dizendo que não acredita no que é encenado numa obra literária, quer na peça A Sentença do Júri quer no conto “Suje-se gordo!”. Porém, o que teremos de discutir é se ele – no caso, nós – não acreditamos no conto porque haveria algo de inaceitável no seu enredo ou porque não se poderia estabelecer o que

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há nele para que se possa acreditar, ou seja, pode ser que o conto seja tão ambíguo quanto é seu título e quanto o é, do mesmo modo, a instituição do júri; um título que pode ser entendido tanto de forma negativa (“Dane-se!”) quanto de forma positiva (“Aproveite bem!”) e que, portanto, não permite que um leitor ou leitora – ao menos com base em uma leitura rápida – diga se está ou não de acordo com o que diz o “amigo” narrador. Assim também, se tudo o que acontece num palco (seja o palco enquanto texto do conto, enquanto lugar de encenação da peça, enquanto lugar da conversa no intervalo, enquanto sala de audiência do tribunal, enquanto sala do júri, etc.) não pode ser tido como simplesmente confiável por não pôr em cena uma verdade unívoca, também este palco: a fala do “amigo”, ou seja, a narrativa que o “amigo” expõe nessa fala, é não-confiável, não oferecendo um sentido estável; em outras palavras, a narrativa do “amigo” não é um porto seguro, um lugar estável dos sentidos; tal como o título, também a narrativa do “amigo” não é estável. Por isso, é que estive neste parágrafo escrevendo amigo entre aspas; afinal, “amigo” dá idéia de confiabilidade, de sinceridade, de ausência de segredos, mas o que o “amigo” narra transborda com segredos. Segredos que não são da mesma ordem que o segredo da sala do júri; afinal, sempre se pode vir a saber o que lá se discutiu e, necessariamente, se saberá o que lá se deliberou sob a forma de uma sentença; há segredos que são impossíveis de ser esclarecidos: o segredo das motivações últimas das decisões, enfim, os segredos que as motivações alegadas sempre ocultam ainda mais. Aqui, designar o parceiro de conversa como “amigo” cria em quem lê uma expectativa favorável ao que será narrado, embora o que será narrado seja ambíguo; ambíguo tal como o é o título. Daí ser interessante ainda lembrar que o primeiro parágrafo termina com: “...um fato que nunca mais me esqueceu”. Esse fato nunca esquecido é a narrativa do amigo. Ora, a tendência é entender que esse fato (a palavra “fato” sugere univocidade), que é a conversa, se nunca foi esquecido, é porque era algo de impressionante, e seria impressionante por ser uma lição de vida bem definida; contudo, ao final da leitura, poderemos nos questionar se o que faz com que o narrador do primeiro parágrafo não mais esqueça esse “fato”, isto é, essa conversa, é ela ser ambígua, é ela ser tão ambígua que continua a ecoar na sua cabeça. Entretanto, os primeiros passos do conto estão

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predispondo a que a narrativa seja lida como se ela se referisse apenas a um breve fato acontecido, sem maiores mistérios. Enfim, o início do conto engambela quem o lê para que o texto seja abordado com um olhar superficial ou, até mesmo, ingênuo. Ainda que o primeiro parágrafo já monte uma máquina narrativa topologicamente complexa com palcos se abrindo em outros palcos, o leitor ou leitora lepidamente embarca no segundo parágrafo como se o primeiro fosse só um inane lero-lero prolegomenal.

Mas prossigamos com a análise desse segundo parágrafo. Após ter posto em dúvida, além da credibilidade do júri, indiretamente também a da narrativa que se seguirá, o amigo – ou melhor, para entrarmos mais na cena do conto, vamos chamá-lo apenas de narrador (deixemos que o narrador que o introduziu no primeiro parágrafo seja referido por nós como o “narrador do primeiro parágrafo”) – diz que, por ser uma instituição liberal, o júri (assim como a literatura) é aceitável, mas que seu problema estaria em outro lugar. Quer dizer, o narrador se põe como aceitando que o que é liberal é bom e, de certo modo, irrecusável. Haveria assim a moldura do Estado liberal e, dentro dele, como em um palco, a instituição do júri. O liberalismo seria incontestavelmente certo – seria algo estável em sua certeza – e, enquanto instituição liberal, o júri não teria nenhum problema, mas seria um argumento religioso (ou da sabedoria tradicional, digamos, um provérbio; ou seja, também é ambíguo o exato estatuto dessa, por assim dizer, sentença), um preceito bíblico4, que, de alguma maneira, poria em questão o que se pratica no júri. O que aqui importa é que essa citação, entre aspas, entra como um preceito estável, como uma verdade que se pode seguir. De certo modo, enquanto uma verdade estável, esse preceito seria o contrário do título do conto, que é, como já mostrei, vertiginosamente ambíguo.

O que é, portanto, necessário destacar agora é que, se o título do conto não é a princípio compreensível, já o dito bíblico, “Não queirais julgar para que não sejais julgados”, parece ser imediatamente compreensível. Pode-se dizer, até mesmo, que a

4 Evidentemente, essa citação põe em cena a própria bíblia, o que, enquanto se trata do livro dos livros, ou seja, de palco de todos os palcos, cria um efeito de mise en abyme no que vemos esse pequeno conto conter um texto muito maior que ele, a Bíblia, e que, de certo modo, por ser a narrativa da origem do mundo e, assim, de todas as narrativas, antes, o conteria.

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enunciação deste preceito é também uma sugestão para o leitor do conto de como entendê-lo. Digamos que, seduzido pela Terra Prometida da estabilidade de sentidos, o leitor mudaria o foco de sua interpretação do conto no sentido de entendê-lo a partir da frase do Evangelho, secundarizando a sensação de incompreensão que “Suje-se gordo!” antes suscitava. Ou seja, ainda que a frase “Suje-se gordo!” vá aparecer logo mais abaixo no texto do conto e vá aparecer como sendo de tal modo enigmática que, mesmo quando o conto se conclui, ela permanece sem um esclarecimento satisfatório, na medida em que o leitor consegue relacionar os episódios ocorridos no tribunal e na sala do júri com a frase bíblica, ele considerará que compreendeu o texto e dificilmente retornará para checar se “Suje-se gordo!” ainda é um dizer enigmático; se o faz, em geral constata que, se a expressão “Suje-se gordo!” ainda é obscura, ela o é, do mesmo modo, também para o narrador, ou seja, não seria apenas quem lê o conto que seria incompetente para entender o significado dessa expressão, pois já o narrador, dentro do conto, o foi. Assim, se o título, ao propor um enigma para quem o lê, sugere que o conto seja lido como uma busca para esclarecê-lo, o surgimento do preceito bíblico no início da narrativa que é o, digamos assim, enredo ostensivo do conto, funcionando como um segundo título, propõe um caminho de interpretação que eclipsa o incômodo desafio inicial.

A compreensão do conto segundo a qual seu enredo ostensivo é uma exemplificação do preceito bíblico vou chamar de “leitura bíblica”5. Seja como for, o preceito bíblico e o “Suje-se gordo!” são,

5 Talvez essa “leitura bíblica” seja a mais comum para aqueles que lêem o conto pela primeira vez; entretanto, estou estabelecendo essa “leitura bíblica” não por me basear numa suposta primeira leitura que seja sociologicamente mais comum, mas na análise do texto. De fato, minha proposta não é a de desenvolver uma leitura sociológica baseada em dados empíricos; estou considerando que no interior conto é sugerido que se o entenda em função do preceito bíblico. Contudo, não me oponho (ao contrário, isso é algo que recomendo) a que se façam pesquisas empíricas sobre como se desenvolve a compreensão de um texto literário em um grupo social ao longo de um período de tempo. A meu ver, seria interessante que fosse dado a um grupo, por exemplo, esse conto que aqui discutimos, para que o grupo, após haver exposto, numa primeira leitura (que poderia até ser em voz alta), sua compreensão do texto, ele – após um certo período de tempo ou depois de alguma leitura acessória – viesse a desenvolver outras interpretações possíveis e considerar se, ao final, tem preferência por uma dessas subseqüentes interpretações desse mesmo texto. Do mesmo modo, se poderia dar um texto literário para ser lido por um grupo de pessoas com tal ou qual perfil e, em períodos de tempo

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segundo é dito mais abaixo no texto do conto, correlatos, no sentido em que um remete ao outro, um lembra o outro.

Reforçando a contradição do narrador, que alega que não se deve julgar ninguém, o parágrafo termina com ele indicando que serviu por dois períodos no Tribunal do Júri6. O narrador continua:

Tal era o meu escrúpulo que, salvo dous, absolvi todos os réus. Com efeito, os crimes não me pareceram provados; um ou dous processos eram mal feitos.

Embora não seja indicado o número exato, fica claro que o

narrador participou de vários júris. Desses tantos réus ele afirma só ter condenado dois, quer dizer, só teria votado pela condenação em dois júris. Cabe observar que é em uma oração concessiva que o narrador afirma que, nos outros casos, ou os crimes não foram provados ou os processos eram mal instruídos. Evidentemente, o leitor ou leitora, devido ao tom geral de brandura com o qual se expressa o narrador e suposto amigo, entende que o narrador teria uma atitude de evitar condenar; porém, é curioso que a frase comece com “Com efeito...”, pois assim ela pode também ser lida como se seu propósito primeiro fosse, ao contrário, o de condenar e, se ele não o fez, foi apenas porque os processos não apresentavam provas ou eram mal feitos. Enfim, houve esses dois casos em que o narrador – contrariando o preceito bíblico – votou pela condenação dos réus; tais dois votos constituem, digamos, em última instância, o núcleo factual (ainda que sejam fatos ficcionais) da narrativa do conto.

O primeiro réu que condenei era um moço limpo, acusado de haver furtado certa quantia, não grande, antes pequena, com falsificação de um papel. Não negou

determinados, reentrevistar essas mesmas pessoas para acompanhar que novos sentidos e valorações estéticas elas passaram a atribuir a ele. Enfim, considero que a realização de trabalhos sociológicos acerca da compreensão e a interpretação de textos literários é um trabalho relevante e que deveria ser realizado com mais freqüência. 6 Não chega a ser uma dificuldade do texto, mas confunde alguns leitores. O parágrafo fala “servi duas vezes”, mas não se trata de ter servido em dois julgamentos, como ficará evidente na continuação do conto, mas por dois períodos.

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o fato, nem podia fazê-lo, contestou que lhe coubesse a iniciativa ou inspiração do crime. Alguém, que não citava, foi que lhe lembrou esse modo de acudir a uma necessidade urgente; mas Deus, que via os corações, daria ao criminoso verdadeiro o merecido castigo. Disse isso sem ênfase, triste, a palavra surda, os olhos mortos, com tal palidez que metia pena; o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam a lástima da inocência caluniada.

Assim, esse primeiro exemplo de julgamento com condenação

é como mais uma pequena peça de teatro dentro da peça de teatro que é a narrativa deste narrador que, por sua vez, é já uma narrativa dentro daquela que o narrador do primeiro parágrafo trouxe para a cena do conto e assim por diante. O narrador apresenta o caso, expondo o desempenho da acusação e da defesa: tanto uma quanto outra buscam ser convincentes e, apoiadas nos mesmos fatos e aparências, argumentam exatamente o oposto. De certo modo, o que está sendo mostrado é que mesmo a realidade evidente e imediata – por exemplo, as atitudes do réu, sentado bem à frente de todos – pode ser entendida de várias maneiras e até mesmo de maneiras opostas.

Poucas vezes terei assistido a debate tão brilhante. O discurso do promotor foi curto, mas forte, indignado, com um tom que parecia ódio, e não era. A defesa, além do talento do advogado, tinha a circunstância de ser a estréia dele na tribuna. Parentes, colegas e amigos esperavam o primeiro discurso do rapaz, e não perderam na espera. O discurso foi admirável, e teria salvo o réu, se ele pudesse ser salvo, mas o crime metia-se pelos olhos dentro.

No entanto, o narrador é categórico em afirmar que não era

possível senão condenar o réu tal como se as evidências fossem de tal ordem que tudo provasse a sua culpa (a culpa de um réu, aliás, que, curiosamente, é descrito como sendo um moço “limpo”).

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Aceitando-se que o narrador segue o preceito do Evangelho, é difícil não pensar que o narrador foi brando, que ele gostaria de absolver o réu, mas que não havia jeito de fazê-lo, pois ele estava incriminado. Nessa “leitura bíblica”, a narrativa do julgamento e da deliberação do júri seria uma comprovação de que o narrador está de fato agindo em acordo com o preceito evangélico: ele não está julgando para não ser julgado, embora, devido a provas contundentes, ele não esteja mais do que cedendo às evidências e cumprindo uma obrigação cívica. Porém, nesse julgamento, há um membro do júri que votou pela absolvição; ou seja, embora o narrador tenha votado pela condenação, pode-se pensar que havia a possibilidade – e assim o fez aquele jurado – de absolver o réu; em todo caso, se houve um jurado que seguiu o preceito do Evangelho, esse não foi o narrador; de modo que, já nesse primeiro exemplo, fica sugerido que o narrador não faz o que ele diz que faz: ele não segue o preceito de não julgar; antes, julga e condena; assim também, o argumento de que ele não evitaria julgar pode ser entendido como uma denegação, pois, ao que parece, gosta de julgar (afinal, serviu por dois períodos no Aljube), e talvez, até mesmo, de condenar.

Mas, antes de descrever esse momento da condenação, o narrador, após uma curiosa digressão sobre a morte prematura do advogado de defesa (enfim, mais um conto dentro do conto), expõe como se desenvolveu o final dos trabalhos no tribunal:

O advogado morreu dous anos depois, em 1865. Quem sabe o que se perdeu nele! Eu, acredite, quando vejo morrer um moço de talento, sinto mais que quando morre um velho... Mas vamos ao que ia contando. Houve réplica do promotor e tréplica do defensor. O presidente do tribunal resumiu os debates, e, lidos os quesitos, foram entregues ao presidente do Conselho, que era eu.

Toda a cena do julgamento, como já disse, é como mais uma

peça dentro de outra peça, mais um conto dentro de outro conto. E o que nos narra esse pequeno conto (que começa com a citação mais acima) ao relatar a atuação da acusação e da defesa? De certo modo, esse conto nos narra como é a vida tanto num tribunal quanto no,

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digamos, teatro do mundo. O promotor cumpre o seu papel: ele deveria mostrar ódio, e mostra ódio, ainda que não o sinta ou que isso lhe seja indiferente. Mas o ódio, fingido que seja, parece ter sua eficácia; ou seja, não é necessariamente a sinceridade que conta, mas o fingimento, a ilusão de sinceridade. Em contrapartida, o advogado de defesa faz o mesmo: finge. Apenas, por ser um estreante, e cumprindo o papel esperado a um estreante, foi mais intenso e, assim, “admirável”, o que significa que foi igualmente insincero; afinal, nem parece haver a possibilidade de ser sincero: ao que tudo indica, nem há num tribunal (mas o conto nos sugere – é o que entendo – que também seja assim no palco do mundo)7 um código de gestos e palavras com o qual se possa expressar o que se pensa ou se argumenta de um modo totalmente sincero. Segundo o aparte do narrador, se a veemência do novato não salvou o condenado, é porque “o crime metia-se olhos dentro”; um aparte dúbio, pois ele mesmo indicara que o promotor não havia sido tão contundente assim (afinal o narrador facilmente percebeu que ele apenas fingia ódio), ou seja, na verdade, é ele mesmo que sugere que havia uma margem possível de defesa, tanto que um dos jurados foi contra a condenação. Quer dizer, é possível entender que, expostos os fatos, as argumentações não foram tão hábeis e convincentes assim, pois o promotor deixou muito facilmente que vissem que ele não nutria ódio, e a defesa não explorou o caso tão bem, pois deixou margem para que o narrador dissesse que o crime era evidente. Enfim, tudo é dúbio: dados os fatos, sempre se pode argumentá-los de um jeito ou do jeito contrário; inclusive as apreciações sobre as argumentações podem avaliá-las de um jeito ou do jeito contrário. Assim, também o leitor ou leitora poderá entender o conto de várias maneiras e avaliá-lo como bom ou ruim. Indo mais além, posso dizer que o leitor ou leitora deste meu comentário também poderá considerá-lo pertinente ou impertinente. É sempre o mesmo caso do título: “Suje-se gordo!”, que pode significar: “Vá para o inferno!” ou “Vamos em frente! Parabéns!”. E essa incerteza do sentido dos fatos e das frases é a mesma incerteza da vida. Assim, o jovem e talentoso advogado

7 É mais uma mise en abyme: o tribunal é parte do mundo, mas ele expressa o que acontece no mundo todo. Assim também, a literatura é produzida na vida social, mas, embora seja apenas parte dela, ela expressa a verdade da vida social mais intensamente do que os encontros das pessoas que, em última instância, são o que constitui essa vida social.

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morre dois anos depois. Um fato que causa perplexidade ao narrador. Ele prefere entender que foi uma vida nobre que se encerrou cedo demais. Mas, obviamente, poderia ter sido também a vida de um corrupto, a vida de alguém que viria ainda a se sujar gordamente com algum desfalque, mas que, por sorte, foi interrompida antes. O próprio conteúdo ostensivo do conto é sobre isso: sobre um homem, a princípio honesto e membro do júri, que viria muitos anos depois a (supostamente) cometer um crime. De certo modo, é mais um motivo para se desconfiar da eficácia da instituição do júri, porque mesmo jurados parecem não aprender a lição. Seja como for, se o narrador só aventa a possibilidade de que o jovem advogado seria honesto e honrado a vida toda, é porque ele está sendo tendencioso em seu julgamento. Tal como ele julga o jovem otimisticamente, ele também julga a si mesmo otimisticamente. Mas, é claro, pode ser tudo o contrário. O jovem advogado poderia ter se tornado um crápula. Do mesmo modo, pode ser que o narrador não siga o preceito que ele apresenta: pode ser que ele goste de julgar, e de condenar. E, se o narrador não condenou esse morto, nunca formalmente acusado e posto em julgamento, nada indica que, se o narrador fosse jurado num processo contra o jovem advogado, não viria a condená-lo.

Para a nossa discussão da instituição do júri, será ainda importante, porém, destacar a menção do ano de 1865. Com isso, podemos estabelecer o período no qual os fatos narrados se desenvolvem. Enfim, naquela época, há, em acordo com as leis vigentes, escravidão no Brasil. Mais abaixo voltarei a isso, bem como à questão da moldura liberal e de sua suposta estabilidade última e justificadora de instituições nela vigentes, tais como o júri e a literatura.

Prossigamos com a leitura do conto8:

8 Aqui corrigi o texto da edição Nova Aguilar; há nela erros grosseiros. A primeira linha do terceiro parágrafo da página 695 (“Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais”) é uma repetição indevida da primeira linha do parágrafo seguinte (que é o único lugar onde esta linha realmente deve estar) e, assim, exclui a linha inicial do parágrafo, ou seja, no lugar dessa primeira linha, no terceiro parágrafo se deveria ler: “Não digo o que se passou na sala secreta; além de ser secreto o...”. Há, nesse mesmo parágrafo, ainda um outro erro; no início de sua última linha no lugar da palavra “Cantarei” deveria estar a palavra “Contarei”.

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Não digo o que se passou na sala secreta; além de ser secreto o que lá se passou, não interessa ao caso particular, que era melhor ficasse também calado, confesso. Contarei depressa; o terceiro ato não tarda. Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que ninguém convencido do delito e do delinqüente. O processo foi examinado, os quesitos lidos, e as respostas dadas (onze votos contra um); só o jurado ruivo estava inquieto. No fim, como os votos assegurassem a condenação, ficou satisfeito, disse que seria um ato de fraqueza, ou cousa pior, a absolvição que lhe déssemos. Um dos jurados, certamente o que votara pela negativa, – proferiu algumas palavras de defesa do moço. O ruivo, – chamava-se Lopes, – replicou com aborrecimento: – Como, senhor? Mas o crime do réu está mais que provado.

Nesse trecho o narrador diz que não vai contar o que se passou

na sala do júri, mas só para, logo a seguir, contar. Flagrantemente, o que ele diz que não faz é o que ele faz; e vice-versa. Interessante também é que há a menção de que se está no intervalo da peça; contudo, para quem lê o conto, o mais importante, o palco principal, é exatamente o diálogo dos dois amigos durante o intervalo, enquanto a peça é que é a interrupção; ou seja, a peça sobre A Sentença do Júri é secundária frente à narrativa – que ocorre em seu intervalo – sobre a sentença do júri que, por sua vez, constitui a cena do conteúdo ostensivo do conto. O que o narrador nos conta é que houve onze votos contra um e que um jurado “cheio de corpo e ruivo”, ou seja, um jurado, possivelmente gordo, estava dando mostras não só de estar convencido da condenação, mas também de estar inquieto com o fato de haver alguém que se negava a condenar o réu (convém reparar que nada nos diz que o réu era gordo). Foi o narrador, enquanto presidente do júri, que propôs que não houvesse debate.

– Deixemos de debate, disse eu, e todos concordaram comigo.

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Mas, assim mesmo, o ruivo resolveu explicar seu voto:

– Não estou debatendo, estou defendendo o meu voto, continuou Lopes. O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo o réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade! Tudo por uma miséria, duzentos mil-réis! Suje-se gordo! Quer sujar-se? Suje-se gordo!

Uma explicação de fato ambígua, pois agora ele não está mais

alegando que o crime está provado, mas, sim, apenas criticando que a falsidade só renderia ao réu uma miséria. Ao que parece, é – segundo a argumentação do Lopes – porque o réu roubara pouco que ele mereceria ser condenado sumariamente. Condenação sumária com que, aliás, o presidente do júri concorda. No entanto, o que causa mais estranheza na argumentação é a expressão: “Suje-se gordo!” Com efeito, é ela que deixa o narrador confuso:

“Suje-se gordo!” Confesso-lhe que fiquei de boca aberta, não que entendesse a frase, ao contrário, nem a entendi nem a achei limpa, e foi por isso mesmo que fiquei de boca aberta.

Ele não entendeu a frase, nem a achou “limpa”. O réu havia

sido descrito como “limpo”; nada foi dito de ele ser gordo. Já do Lopes foi dito que ele era “cheio de corpo”; além disso, foi dele que veio a frase “suja”. Ou seja, o limpo foi condenado por um gordo usando palavras sujas no modo da sentença enigmática: “Suje-se gordo!” É como se o réu não estivesse sujo até aquele momento; seria a sentença, ou talvez apenas a exclamação de Lopes: “Suje-se gordo!”, que o teria conspurcado. Uma exclamação que, portanto, teria antes o modo de uma execração. Há, assim, outras contradições performáticas que se acumulam nessa frase. Ela, enquanto exclamação, é espontânea, mas, enquanto resultado de uma deliberação num júri após argumentações e exposição de provas no tribunal, seria também racional. Ela é uma sentença judicial (a sentença, de certo modo, não seria mais do que a reformulação dessa

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exclamação em termos jurídicos), mas parece uma execração religiosa, o que de certo modo revela um traço primitivo, enfim pré-liberal e pré-iluminista do tribunal do júri. Evidentemente, a mesma ambigüidade se transmite para o conto. Essa frase pode também ser entendida como oracular: com efeito, dita no contexto de uma peça, ela, ao ecoar como se fosse uma maldição, revela o caráter religioso e mítico do teatro e, portanto, da literatura. Essa conotação délfica chega ao leitor ou leitora, ainda que o anátema ou incitação “Suje-se gordo!”, num teatro da cidade do Rio de Janeiro (ou num conto), formalmente, seja um dito totalmente profano.

Embora surpreso ou, como ele disse, de “boca aberta”, o narrador, imbuído de sua posição de presidente do júri, se recompôs, ao menos momentaneamente, e transmitiu a sentença ao juiz:

Afinal caminhei e bati à porta, abriram-nos, fui à mesa do juiz, dei as respostas do Conselho e o réu saiu condenado. O advogado apelou; se a sentença foi confirmada ou a apelação aceita, não sei; perdi o negócio de vista.

É interessante o contraste entre a atitude resoluta do narrador

em transmitir a sentença condenando o réu (uma atitude que não sugere nenhum remorso, nenhum contragosto; enfim, não sugere nenhuma lembrança do preceito bíblico) e a subseqüente afirmação de que não sabe qual seja o resultado da apelação. Esse suposto desinteresse pela apelação pode sugerir tanto que o narrador não tem interesse por julgamentos (e, assim, por condenações) quanto que lhe basta a satisfação já desfrutada de haver condenado um outro homem, nada lhe importando o destino final do infeliz; o que, entretanto, deixa ainda margem para pensar que ele nutra uma atitude ambígua sobre se tem ou não remorsos por haver condenado alguém: afinal, ele evita saber o que acontece na última instância porque teme sentir remorsos excruciantes se visse que condenou um inocente ou ele sentiria raiva se soubesse que o réu não foi condenado? Em todo caso, quem segue a leitura bíblica (que atribui ao narrador ter sempre agido segundo o mencionado preceito), fica com a impressão de que o narrador limita-se a cumprir sua

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obrigação (que não é tanta obrigação assim pois ele poderia ter recusado tomar parte do júri) e evita maiores envolvimentos com o assunto.

Contudo, ao final, o narrador não saiu tão tranqüilo assim do tribunal:

Quando saí do tribunal, vim pensando na frase do Lopes, e pareceu-me entendê-la. “Suje-se gordo!” era como se dissesse que o condenado era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada. Achei esta explicação na esquina da Rua de S. Pedro; vinha ainda pela dos Ourives. Cheguei a desandar um pouco, a ver se descobria o Lopes para lhe apertar a mão; nem sombra de Lopes. No dia seguinte, lendo nos jornais os nossos nomes, dei com o nome todo dele, não valia a pena procurá-lo, nem me ficou de cor.

Ora, ele saiu inquieto foi com a frase do Lopes, não com ele ter

condenado o réu. Assim, ele tenta entender o que diz a frase. Ele tenta interpretar a frase como sendo algo que foi dito para o réu. “Suje-se gordo!” seria algo que desmereceria ainda mais o réu recém-condenado. Mas ele não parece satisfeito com a sua interpretação. A frase o incomoda. Ele ainda tenta alcançar o Lopes para pedir-lhe explicações, mas não o encontra. No dia seguinte, ainda procura o nome dele no jornal que trazia a lista dos jurados, mas, ainda que persistindo o incômodo da frase, ele se deixa esquecer do assunto. Contudo, foi a ele que a frase incomodou. A frase disse a ele algo que o incomodou. Embora ele tenha achado uma explicação para a frase, entendendo-a em referência ao réu, não conseguiu explicar no que propriamente a frase o incomodava; enfim, ele não entende no que a frase o interpela. De fato, a frase, por seu caráter exclamativo, é ambígua também em sua referência. Ela se refere tanto ao réu quanto ao júri, quanto ao próprio Lopes, quanto ao narrador (quanto aos leitores, quanto aos críticos literários etc.). Digamos que, na sala do júri, há uma lambança geral. Os jurados sujam o réu com uma condenação, mas se sujam gordamente em condená-lo quase por unanimidade (e seria algo

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assim que o Lopes exclama: “Já que é para condenar, condenemos por unanimidade!”); assim, o Lopes se suja por estar ávido por condená-lo, mas também o narrador, enquanto presidente do júri, também se suja por nem considerar que pode haver debate e por ir, resoluto e satisfeito, entregar o quanto antes a sentença ao juiz. O que, portanto, amofina o narrador, é se sentir acusado de “Suje-se gordo!”, é ele entender que foi dito a ele algo como: “Você que gosta de condenar, acabe logo com isso! Nada de debates! Entregue logo a sentença! Nem pense duas vezes!” Com o incômodo do narrador, vemos que, desde o início do conto, deveríamos ter levado em conta também mais essa cena: o interior do narrador, isto é, a sua consciência: aquele palco onde, tal como uma peça em temporada, as palavras se repetem dia após dia. Já o narrador do primeiro parágrafo nos relata uma conversa que “nunca mais me esqueceu”, tal como se a conversa, assim como uma peça, voltasse a ser representada vez por outra; do mesmo modo o narrador, ao contar o episódio do “Suje-se gordo!”, está reencenando, repetindo, esconjurando, celebrando, sua cena interior. Ele está tanto expondo um acontecido quanto se confessando; ele está tanto testemunhando quanto reincidindo: tanto se expurgando quando se sujando. Assim, o “Suje-se gordo!” se mostra ambíguo também no que ele pode ser tomado tanto como uma voz pronunciada publicamente quanto como uma voz interna, delirante, de certa maneira até persecutória ou paranóica. Com efeito, o narrador sente-se perseguido pelo “Suje-se gordo!”; ele vive assombrado por essa voz.

Mas, neste momento do conto, abre-se ainda mais uma cortina, mais uma cena se apresenta a nós: a cena familiar. Até aqui, ao menos na suposta ingenuidade da leitura bíblica, tem-se a impressão de que o narrador é de fato um seguidor temeroso do preceito evangélico e que, de tudo no mundo, o que ele mais deseja é não julgar ninguém. Ele seria bondoso e comedido: jamais se aplicaria a ele o “Suje-se gordo!”. Seu caráter pacato fica fortalecido quando o seu filho entra em cena. Primeiramente, o filho entrando em cena é quem lhe dá, na forma de um poema, as palavras que falam sobre o esquecimento que é próprio aos homens, o que explicaria por que o narrador acabou esquecendo do Lopes, quer dizer, do incomodo enigma: “Suje-se gordo!”. Ora, os que esquecem são os que perdoam. De certo modo, o que está sendo explicado é

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como o narrador, apesar de incomodado – talvez até mesmo irritado – com o Lopes ter dito para ele: “Suje-se gordo!”, esqueceu disso e, quem sabe, até o perdoou (o que também pode ser entendido como um perdão a si mesmo, que se sujou gordamente condenando sem discussão o réu).

Assim são as páginas da vida, como dizia meu filho quando fazia versos, e acrescentava que as páginas vão passando umas sobre outras, esquecidas apenas lidas. Rimava assim, mas não me lembra a forma dos versos. Em prosa disse-me ele, muito tempo depois, que eu não devia faltar ao júri, para o qual acabava de ser designado. Respondi-lhe que não compareceria, e citei o preceito evangélico; ele teimou, dizendo ser um dever de cidadão, um serviço gratuito, que ninguém que se prezasse podia negar ao seu país. Fui e julguei três processos.

Além disso, o filho é que o teria levado a retornar ao júri e a

não seguir, como ele supostamente desejava, o preceito bíblico. Ora, o filho, assim podemos também pensar, se conhece bem o pai, estaria insistindo para que ele fosse ao júri porque sabe exatamente que o pai gosta de ser jurado; gosta, mas precisa fingir que não gosta (isto é, fingir tal como fazem os advogados); e, assim, conta com que lhe dêem algum pretexto para que ele vá. E, de fato, o narrador vai sem qualquer remorso ou hesitação; ao menos, é isso que a firmeza de suas palavras nos deixa crer: “Fui e julguei três processos.”.

Um destes era de um empregado do Banco do Trabalho Honrado, o caixa, acusado de um desvio de dinheiro. Ouvira falar no caso, que os jornais deram sem grande minúcia, e aliás eu lia pouco as notícias de crimes. O acusado apareceu e foi sentar-se no famoso banco dos réus. Era um homem magro e ruivo. Fitei-o bem, e estremeci, pareceu-me ver o meu colega daquele julgamento de anos antes. Não poderia reconhecê-lo logo por estar

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agora magro, mas era a mesma cor dos cabelos e das barbas, o mesmo ar, e por fim a mesma voz e o mesmo nome: Lopes. — Como se chama? perguntou o presidente. — Antônio do Carmo Ribeiro Lopes.

A narrativa sobre a segunda vez em que o narrador votou pela

condenação começa com ele admitindo que já havia lido sobre o caso nos jornais. O caso, pelo que se depreende da narração dele, não recebeu grande destaque; contudo, mesmo assim, ele o conhecia e, de certo modo, parece lamentar que, no noticiário, o caso fora apresentado “sem grande minúcia”; enfim, ele está dizendo que se interessou pelas minúcias, embora não as tenha encontrado, ainda que ele arremede dizendo que “lia pouco as notícias de crimes”. De novo, temos uma passagem que possibilita duas leituras contrárias. Os que estão seguindo a leitura bíblica (que pressupõe que o narrador é um homem piedoso, refratário a julgar) facilmente tomarão ao pé da letra que ele “lia pouco as notícias de crimes”. No entanto, como já indiquei, também se pode considerar que o narrador é um assíduo leitor da seção criminal e que a ponderação final é uma mera denegação. Em todo caso, é curioso que o narrador fale em “famoso banco dos réus”, pois isso sugere que o banco dos réus seja particularmente famoso para ele, que dedica muito de sua atenção para o que se passa nos tribunais.

Mas vejamos o que se passa nessa nova peça de teatro que entra em cena agora, diante dos nossos olhos. O acusado entra e vai sentar-se no banco dos réus; ele agora é magro. Ou seja, quando Lopes avidamente condenou o réu, ele era gordo ou, ao menos, “cheio de corpo”, mas, quando é réu, está magro. Ou seja, se a frase for lida com a vírgula: “Suje-se, gordo!”, então ela até pode se referir a algum jurado (ou aos jurados), mas não ao réu; afinal, o que se sabe dos réus é que eles somam as qualidades de “limpo”, “magro” e “ruivo”. Creio que a insistência no ruivo (e talvez também na barba) é um modo de indicar que a questão do júri diz respeito aos europeus colonizadores, e portanto aos não-escravos; é uma forma de frisar, em negativo, que a instituição do júri é uma tentativa de promover a justiça entre os brancos e, assim, ela reafirma a injustiça frente aos negros, escravizados e duramente injustiçados. Por outro

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lado, as duas condenações dizem respeito ao sistema financeiro, buscando protegê-lo. No primeiro caso, tratava-se da falsificação de um papel e, no segundo caso, o lesado é explicitadamente um banco. Fica assim fortemente sugerido que a instituição do júri, e talvez a Justiça de um modo geral, tenha como finalidade precípua proteger os lucros financeiros. De um modo ou de outro, é a pressuposta incontestabilidade do Estado liberal que está sendo ironizada: haveria instituições liberais no país, mas elas não põem fim à escravidão e, além disso, protegem os privilégios financeiros. Sem dúvida, nesse contexto, a frase “Suje-se gordo!” surge como um ato de parrhesia, pois ela está dizendo: “Quem rouba muito se dá bem!”; “O bom é ser rico (gordo em dinheiro) porque aí sempre se fica mais rico!”9; “Os grandes corruptos safam-se impunes!”; “Os países colonizadores (os ruivos) podem invadir, saquear e escravizar porque ao final eles só ficam mais ricos e nada lhes é cobrado!” De um modo mais específico, se poderia ainda dizer: “Numa sociedade liberal os ricos continuam ricos; os pobres, pobres; e os escravos, escravos!” Nesse sentido a frase “Suje-se gordo!” pode expressar tanto o júbilo dos privilegiados quanto o ódio dos revolucionários e oprimidos.

Já me não lembravam os três primeiros nomes, o quarto era o mesmo, e os outros sinais vieram confirmando as reminiscências; não me tardou reconhecer a pessoa exata daquele dia remoto. Digo-lhe aqui com verdade que todas essas circunstâncias me impediram de acompanhar atentamente o interrogatório, e muitas cousas me escaparam. Quando me dispus a ouvi-lo bem, estava quase no fim. Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou respondia de maneira que trazia uma complicação ao processo. Circulava os olhos sem medo nem ansiedade; não sei até se com uma pontinha de riso nos cantos da boca.

9 Quanto à ilustração estampada na edição Nova Aguilar em que vemos um gordo com ares de banqueiro, embora ela seja criticável porque, como vimos, o “Suje-se gordo!” não se refere a um réu gordo (nem a um banqueiro, mas apenas a um bancário), ela, nesse sentido que acabo de expor, é bem pertinente.

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Ele alega estar esquecido dos três primeiros nomes do réu, mas do último ainda lembrava, isto é, se esquecer está relacionado com perdoar, pode-se dizer que ele já quase o havia perdoado, se bem que a parte principal do nome, isto é, a parte principal da ofensa, ele ainda lembrava. Em todo caso, o narrador se diz perplexo com o reencontro: afinal, embora mais magro, lá está “a mesma voz”. Ele nem teria conseguido prestar atenção ao interrogatório, mas relata que Lopes respondia com firmeza e acabava por trazer “uma complicação ao processo”. Que “complicação”? Será que o Lopes tornava as acusações mais convincentes ou será que as tornava menos convincentes? Não fica claro. Mais uma vez a atitude do réu é tida como ambígua. Se bem que, se a intenção do narrador é justificar sua condenação, a complicação seria a de que o réu se incriminaria cada vez mais. De fato, a interpretação do narrador é a de que Lopes estava sem medo e talvez até mostrasse um riso irônico. Ou seja, o narrador sugere que Lopes estaria debochando, isto é, que não respeitaria a justiça e que, possivelmente, seria culpado.

Seguiu-se a leitura do processo. Era uma falsidade e um desvio de cento e dez contos de réis. Não lhe digo como se descobriu o crime nem o criminoso, por já ser tarde; a orquestra está afinando os instrumentos. O que lhe digo com certeza é que a leitura dos autos me impressionou muito, o inquérito, os documentos, a tentativa de fuga do caixa e uma série de circunstancias agravantes, por fim o depoimento das testemunhas. Eu ouvia ler ou falar e olhava para o Lopes. Também ele ouvia, mas com o rosto alto, mirando o escrivão o presidente. o teto e as pessoas que o iam julgar; entre elas eu. Quando olhou para mim não me reconheceu; fitou-me algum tempo e sorriu, como fazia aos outros.

Enquanto o narrador relata os acontecimentos na sala do

tribunal, ele se refere à música que os chama de volta para assistir a peça no intervalo da qual eles estão conversando. A música também é arte, tal como a peça da qual eles em breve assistirão a última

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parte, de modo que ela, assim como toda a arte – aí incluindo a própria literatura –, pode ser um atrativo tanto para que se saia do árido cotidiano quanto para que o efeito de encantamento e ruptura de uma outra arte seja desfeito. Nesse momento, a música é, portanto, como o canto das sereias: é uma sedução à qual se deve resistir. Para nós, leitores e leitoras, a peça principal é a conversa no intervalo; com o anúncio do fim do intervalo, surge a ameaça de que retornemos às rotinas sociais (em nada muda se a rotina social aqui é artística, pois, ao que parece pelo esquecimento total do conteúdo da peça, trata-se exatamente de um teatro – e assim de uma literatura – que em nada provoca o público, que não gera instabilidades), enfim, de que a narrativa seja bruscamente interrompida, ou seja, há sempre o risco de que um conto, se não finalizado, decaia para ser uma mera conversa cotidiana, um mero passatempo que não provoca ninguém a pensar, que não deixa ninguém perplexo. Entretanto, a música, embora ameace, não chega a interromper prematuramente a conversa: logo voltamos ao tribunal e, pela narrativa, acompanhamos a leitura dos autos, o inquérito e as testemunhas, bem como a apreciação dessas coisas pelo narrador, que ressalta “a tentativa de fuga do caixa e uma série de circunstâncias agravantes”. Ou seja, o narrador nos incute a posição dele de culpabilização do réu. Ele fala como se a posição dele fosse benevolente e equilibrada; de fato, esse parágrafo induz a quem o lê a tomar uma posição de que o réu, porque um dia julgou e condenou, agora será também condenado. Em outras palavras, quem lê o relato desse segundo julgamento, se for um adepto da leitura bíblica, em coerência com o preceito – mas, paradoxalmente, também em contradição a ele! – nutrirá a expectativa de que o réu, em conseqüência de haver outrora condenado um outro réu, seja agora condenado. Assim, o narrador e seus leitores bíblicos já se posicionaram quanto a condenar o réu. Esse pré-julgamento, no entanto, fica eclipsado pelo parágrafo seguinte que nos lembra que, tal como no primeiro julgamento relatado, os fatos apresentados e, em especial, as atitudes do réu, podem ser interpretados de maneiras opostas; enfim, não há verdade nos fatos, mas apenas interpretações dos fatos, as quais, certamente, dependem do ponto de vista e da vontade de quem as propõe.

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Todos esses gestos do homem serviram à acusação e à defesa, tal como serviram, tempos antes, os gestos contrários do outro acusado. O promotor achou neles a revelação clara do cinismo, o advogado mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer aquela paz de espírito.

Entretanto, após essa menção das interpretações

contraditórias, o narrador volta a mencionar o preceito bíblico e, assim, a tomar com clareza para si a leitura bíblica. Trata-se aqui mais uma vez do canto da sereia dessa narrativa. Com efeito, quando um personagem em uma obra literária assume uma posição com clareza e então, de certo modo, a propõe como uma possível interpretação dessa obra, o leitor ou leitora deveriam antes desconfiar dessa posição do que acriticamente abraçá-la. Esse é o caso do barbeiro Porfírio em “O alienista”; muitos críticos explicam esse conto assumindo para eles a posição do Porfírio, um personagem que, porém, também é ridicularizado dentro desse mesmo conto. A diferença aqui é apenas a de que o narrador não é ridicularizado explicitamente. Ao contrário, ele, a princípio, soa convincente e sensato.

Ao pé da palavra bíblica lembrou-me de repente a do mesmo Lopes: “Suje-se gordo!” Não imagina o sacudimento que me deu esta lembrança. Evoquei tudo o que contei agora, o discursinho que lhe ouvi na sala secreta, até àquelas palavras: “Suje-se gordo!” Vi que não era um ladrão reles, um ladrão de nada, sim de grande valor. O verbo é que definia duramente a ação. “Suje-se gordo!” Queria dizer que o homem não se devia levar a um ato daquela espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo!

Na primeira frase desse parágrafo, vemos “a palavra bíblica” e

o “Suje-se gordo!” aparecerem encadeados. De certa maneira, trata-se de dois mandamentos. Tal como o “Suje-se gordo!” tem sentidos

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opostos, também o preceito bíblico, que, a princípio, diria que se deve evitar condenar os outros, agora aparece no sentido oposto, pois ele agora sugere que o réu deve ser condenado; afinal, uma vez que o réu foi numa outra vez um jurado que condenou o réu, para que esse preceito se mostre verdadeiro, o esperado é que esse ex-jurado (que se conspurcou condenando), agora réu, seja condenado. Um preceito que, em uma primeira versão, soava como um imperativo ao perdão, agora surge como um imperativo à condenação: não condene ninguém para não ser condenado é o mesmo que condene quem já condenou alguém.

Enquanto o preceito bíblico soa ao narrador como um imperativo ou, ao menos, como uma justificativa para ele condenar o réu, o “Suje-se gordo!” lhe parece agora uma confissão do próprio réu de que Lopes considera adequado (ou talvez até justo) que se roube muito. O “Suje-se gordo!” assumiria dessa vez mais esse sentido de confissão, a saber, de confissão das convicções morais, quer dizer, das convicções imorais, do Lopes. Contudo, na medida em que o “Suje-se gordo!” continua a incomodar o narrador, isto é, na medida em que essa expressão ainda lhe soa interiormente quer como um imperativo quer como uma confissão, o narrador parece se sentir mais do que nunca impelido a condenar. Ou seja, por um lado, o “Suje-se gordo!” é a confissão do próprio narrador de que ele deseja condenar, de que ele deseja se sujar; por outro, essa frase é como um imperativo para que ele se esbalde em condenar mais esse réu. Enfim, vários caminhos parecem levar o narrador a condenar o réu. Ele se mostra, mesmo após ter participado de vários júris, siderado diante desta possibilidade, para ele, impar: condenar alguém que foi seu colega no júri. Numa situação dessas, só o que ele pode ouvir é: “Suje-se gordo!” Assim, ele presta pouca atenção ao que é dito à sua frente, apenas ouvindo e registrando o que lhe pareça corroborar a culpa do réu.

Idéias e palavras iam assim rolando na minha cabeça, sem eu dar pelo resumo dos debates que o presidente do tribunal fazia.

Ora, as “idéias e palavras” que rolam na cabeça dele, segundo

ele próprio mencionou, são: a palavra bíblica, o “Suje-se gordo!” e a

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culpa do ex-jurado. E é com essa disposição a condenar que ele vai para a sala secreta. Sem dúvida, mais essa vez, lhe é fácil condenar.

Tinha acabado, leu os quesitos e recolhemo-nos à sala secreta. Posso dizer-lhe aqui em particular que votei afirmativamente, tão certo me pareceu o desvio dos cento e dez contos. Havia, entre outros documentos, uma carta de Lopes que fazia evidente o crime.

Essa certeza da culpa do réu, porém, não é só do narrador, pois

todos os que, abraçando a leitura bíblica, lêem esse conto compartilham, a essa altura, dessa mesma determinação a condenar o Lopes. Os leitores bíblicos, com essa condenação, vêem surgir neles não só um sentimento de justiça, mas também um sentimento de compreensão do conto. De certo modo, a leitura bíblica segue o fundamentalismo religioso que, propondo-se seguir o Evangelho ao pé da letra, ardente e zelosamente inverte a sua mensagem, a princípio supostamente em favor do perdão, em uma condenação preconceituosa; o fanático suja-se assim gordamente no que ele, ao não se dar conta de como o sentido das palavras, e também o de uma frase bíblica, podem oscilar indo de uma interpretação até uma outra que lhe é contraditória, jubilosamente aceitam que haja uma condenação, onde, antes, seria exaltada a prática do perdão. Embora a leitura bíblica se proponha a ocultar a incômoda instabilidade gerada pelo enigmático “Suje-se gordo!”, o que se vê é que o próprio preceito bíblico em favor do perdão se inverte em uma expectativa de condenação, de condenação, pois, desse ex-jurado que já tendo condenado um outro réu e que agora, pela suposta força – ou lógica implícita – do preceito favorável ao perdão, por haver condenado, deve ser condenado. Mas, evidentemente, a leitura bíblica não reconhece sua instabilidade, sua autocontraditoriedade, de modo que, supondo que a sentença do Evangelho tem um sentido estável e unívoco, busca também estabilizar o “Suje-se gordo!” numa leitura segundo a qual essa frase ficaria reduzida a ser um epítome da doutrina moral falha do Lopes, que preconizaria a impunidade para os grandes corruptos. Em especial no caso do Brasil, seja do Brasil de ontem ou do de hoje, a impunidade dos ricos é um tema

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cativante; e também se aplica a esse conto. Porém, entender o conto todo apenas a partir disso é simplificar seu sentido. É certo, sem dúvida, que desde o início já foi proclamado: “Suje-se gordo!”, de modo que quem quiser entender o conto apenas segundo a Bíblia, que se farte! Que faça como bem entender e que siga para o próximo conto! Enquanto isso, chegando-se ao último parágrafo, a música já está tocando e o melhor é deixar essa conversa de lado e retornar para ver o último ato desta peça representada no intervalo.

Todo o resto do parágrafo – embora isso não chegue a alterar as convicções vingativas dos que praticam a leitura bíblica – indica que a condenação do réu por parte do narrador foi provavelmente abusiva.

Mas parece que nem todos leram com os mesmos olhos que eu. Votaram comigo dous jurados. Nove negaram a criminalidade do Lopes, a sentença de absolvição foi lavrada e lida, e o acusado saiu para a rua. A diferença da votação era tamanha que cheguei a duvidar comigo se teria acertado. Podia ser que não.

Conforme o próprio narrador reconhece, a diferença na

votação foi enorme. Ele ameniza, contudo, essa constatação admitindo apenas: “Podia ser que não.” Mais adequado talvez fosse dizer, apesar da inconfiabilidade da instituição do júri, que, em vista da votação, muito provavelmente o réu não era culpado. Nós é que, reconsiderando o que o narrador nos expõe, podemos até nos perguntar se será que foi mesmo esse réu quem ele condenou. Primeiramente, pelo que ele mesmo falou, não ouviu o réu com atenção; assim, ao que parece, ele teria condenado era um réu cuja culpa seria a de ter condenado um outro réu, ou seja, para ele, o crime verdadeiramente condenável não seria o de falsidade, mas o ter condenado um outro réu; ainda que essa acusação – a de haver condenado um outro réu – evidentemente não constasse dos autos desse segundo processo, o narrador conhecia bem essa circunstância, digamos, agravante, que, a seus olhos, era altamente incriminadora; foi esse, por assim dizer, réu bíblico que ele quis condenar. Em segundo lugar, ele mesmo também já havia

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condenado no outro julgamento e, portanto, merecia igualmente ser condenado; ou seja, foi também a ele próprio que ele condenou. Além disso, é claro que o narrador quer, desde o primeiro júri, condenar o Lopes, porque este o desmascarara como sendo ávido por condenar; ainda que o incômodo com o “Suje-se gordo!” tenha permanecido inexplicável para o próprio narrador, era-lhe inegável que a frase não lhe saía da cabeça e logo retornou durante esse julgamento. Condenar o Lopes seria também uma tentativa de catarse ou de banimento dessa frase, tão incômoda quanto verdadeira.

Agora mesmo sinto uns repelões de consciência. Felizmente, se o Lopes não cometeu deveras o crime, não recebeu a pena do meu voto, e esta consideração acaba por me consolar do erro, mas os repelões voltam.

Se durante os procedimentos do tribunal, era o “Suje-se

gordo!” que lhe rolava na cabeça, após a sentença proferida, são repelões que retornam constantemente. São repelões de culpa. Há culpa por ele ter condenado um inocente; há culpa por ele ter condenado a si mesmo; e há culpa por ele não ter conseguido condenar o Lopes, que lhe pôs a verdade do “Suje-se gordo!” na sua cabeça. Reparar que lembrar que o Lopes não foi condenado não é suficiente para amainar os repelões; eles voltam; se esses repelões se devessem apenas a ele ter votado por uma condenação que não houve, seriam fáceis de apaziguar, mas, se eles se devem ao narrador não ter conseguido condenar o Lopes – cumprindo o que a sentença bíblica diz –, então eles retornarão, e retornarão lembrando também ao narrador que ele é quem deveria ser condenado já que ele se esbalda em condenar os outros e até tem remorsos por esse que ele com tanta convicção – sem nenhuma hesitação bíblica – quis condenar, e não conseguiu. Se, sob o ponto de vista da leitura bíblica, o preceito bíblico eclipsa o “Suja-se gordo!”, agora nesse último parágrafo do conto são os repelões que eclipsam esse preceito. Porém, como que recompondo no conto o balanço da interpretação bíblica, ressurge nas linhas finais a frase bíblica.

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O melhor de tudo é não julgar ninguém para não vir a ser julgado.

Contudo, logo a seguir, retorna a frase-título acompanhada de

uma variante; para, mais uma vez, retornar a frase bíblica. É como se essas duas frases inter-relacionadas lutassem para se eclipsar uma à outra.

Suje-se gordo! suje-se magro! suje-se como lhe parecer! o mais seguro é não julgar ninguém...

Como “Suje-se gordo!” oscila entre sentidos opostos, “suje-se”

pode vir acompanhado do que seria seu oposto: “Suje-se magro!”, que nada se altera. É como se estivesse sendo dito: “Suje-se muito ou suje-se pouco, tanto faz! Seja como for, vá fundo, se esbalde!”. Como foi mostrado, a frase “Suje-se gordo!” tem diversos significados e diversos referentes10. Uma série importante de referentes, mas que não estive destacando na discussão desse parágrafo final, é a série que inclui a obra literária e quem as lê ou critica. Em todo caso, uma vez que a música já parou e devemos parar esta conversa e retornarmos aos nossos lugares rotineiros, vou apenas dizer que eu, como crítico, de fato, me esbaldei ao interpretar esse conto, mas, assim acredito, ao final não o julguei11, de modo que o leitor ou leitora não precisa considerar que é uma fatalidade me condenar, mas, se alguém assim o quiser, só o que posso dizer é “vá em frente”, “vá fundo em elogios à minha interpretação” ou “esculhambe o quanto quiser”, enfim: “criticando-me muito ou criticando-me pouco (e criticando Machado muito ou pouco), escrevam o quanto quiserem, escrevam até se fartarem!”

Acabou a música, vamos para as nossas cadeiras.

10 Como se vê, Machado de Assis está sendo demoniacamente paul-de-maniano. Nesse conto não é necessário procurar onde está a sutil frase que desconstrói o texto; ao contrário, já se esbarra nela desde o início. Ao invés de ela ser sussurrada, ela é berrada. Pode-se dizer que, nesse conto, a desconstrução machadiana não parte de um sussurro quase inaudível mas de um urro estonteante. 11 Aliás, deve-se reparar que, no conto, “não julgar” pode tanto significar “ser prudente e contido, evitando condenar” quanto “não parar para pensar, ir fundo, ser inconseqüente”.

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O ato de publicação enquanto o abjeto da escrita

literária

Em vários textos literários, é comum a menção e mesmo a

problematização do ato de escrita, sobretudo em textos autobiográficos ou pseudo-autobiográficos. E isto é particularmente freqüente nas obras de Machado de Assis de Memórias Póstumas de Brás Cubas em diante. Contudo, o ato de publicação, ou melhor, o processo de publicação e seus possíveis efeitos, se é referido, o é, em geral, de passagem – e, portanto, apenas superficialmente –; mas, quando sua menção é retumbante, como em Tristam Shandy, ela freqüentemente se dá envolta em um contexto de farsa tão radical que, embora não cesse de ser uma tematização dos efeitos da publicação, sua problematização se dilui na galhofa desenfreada. Assim, de fato, não é comum que um livro de colorido mais circunspecto, ou ao menos com alguns decibéis menos de gargantuanismo, mesmo referindo-se diretamente ao ato de escrita ou a seu resultado imediato (ou seja, ao texto supostamente recém escrito; texto que, aliás, é tido, em geral, como insuficiente ou mesmo mentiroso), dedique atenção mais detida ao processo de publicação, isto é, ao processo de publicação desde a aceitação do manuscrito pelo editor, passando pela recepção ou rejeição do livro pelo público, indo até os lucros auferidos ou não, bem como aos efeitos da fama ou da indiferença do público na prática criativa subseqüente do escritor ou escritora. Ou seja, a menção do ato de publicação é, em geral, excluída dos romances dramáticos, sendo permitida, e assim banalizada, nos romances aceitos, digamos, como carnavalescos e zombeteiros.

Não estou, portanto, dizendo que o ato de publicação seja um recalcado absoluto que voltaria tanto para assombrar a escrita quanto para reafirmar a necessidade estrutural de que sua incontornável omissão seja sempre mais uma vez reiterada para que a ficção possa surgir enquanto ficção. Talvez, em alguma medida, sempre haja uma parte do processo de produção de um texto que tenha de restar não mencionado – de fato, não posso imaginar um texto auto-epifânico, sem não-ditos –, mas o processo de publicação

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– como, aliás, acabo de indicar – é, sim, ainda que dissimulada ou banalizadamente, referido em diversos textos, mesmo nos romances menos histriônicos, embora ele, de fato, não seja, em comparação com o ato de escrita e mesmo com o ato de leitura, sobretudo quando a sátira rasgada não é o tom ostentado pelo romance, problematizado com a mesma ênfase12.

Com a virada narrativa de Machado de Assis a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas, temos livros que problematizam tanto o ato de escrita quanto o de leitura, mas reservas e pudores mantêm o ato de publicação, se, de fato, nem sempre totalmente fora, não mais, porém, que na margem do turbilhão metanarrativo.

Assim, por um lado, a principal condição, digamos, material para a escrita de um livro literariamente sofisticado – o que é, portanto, também parte do processo de publicação – é apresentada em Memórias Póstumas: Brás Cubas é escritor, isto é, o narrador tem habilidade na escrita. Embora muitos leitores tenham uma visão de Brás Cubas como um filhinho de papai, mimado e acomodado, enfim, pouco afeito a esforços, ele, ao contrário, parece ter se dedicado com regularidade a escrever (e a publicar) obras de cunho político e literário, mantendo até mesmo um jornal oposicionista pelo período – provavelmente longo pelos padrões da época – de seis meses. Lobo Neves – aparentemente com sinceridade – o cumprimenta pelos escritos políticos e alega não comentar os literários por “não entender deles” (cap. 50)13.

Por outro lado, Brás Cubas está morto, de modo que faltam à narrativa outras condições materiais, evidentemente indispensáveis,

12 O que se passa é que, a princípio, não me parece sustentável a idéia de que haja “um” não dito, único e essencial, cuja exclusão seja a condição de possibilidade para que haja o que é dito. Antes, até prova em contrário, pode-se bem mais confortavelmente supor que haja vários não-ditos dos quais não só o grau de ocultação difere a cada vez, mas também a importância estruturante de cada um deles é diversa e varia de acordo com as circunstâncias históricas; afinal, algo que é tabu hoje pode ser tema de conversa de salão pouco tempo depois. 13 Em relação a todos estes breves comentários sobre as Memórias póstumas de Brás Cubas, ver meu ensaio: ‘Soberania e Cooptação. A liberdade de teimar em Machado de Assis’, in: André Rangel Rios, Celebridade intelectual e pensamento crítico, 2006, cap. 1; disponível em http://usuarios.uninet.com.br/~arios/, p. 5-26 (acessado em 8/8/2007); edição original: idem, Rio de Janeiro, Booklink, 2005.

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para ser escrita: Brás Cubas, morto, não tem como pegar a pena ou sequer como ditar para alguém aquilo que, porém, está escrito, impresso e encadernado bem ali nas mãos dos leitores. Essa impossibilidade intradiegética do ato de publicação, ainda que tradicionalmente banalizado, surge, com efeito, logo nas primeiras linhas do romance. E é, sem qualquer explicação consistente, rapidamente posta de lado: “evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo”14. O que é alegado para essa omissão é que narrar “o processo extraordinário” “seria nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra”. Se narrá-lo seria necessário ou não, não é aqui o principal; a meu ver, o importante é que, enfim, seja abordada a questão das condições materiais da escrita – e publicação – de uma obra analisada a partir de seu conteúdo ficcional, ainda que isso, num romance realista, fosse, ao menos naquela época, ir contra não só convenções literárias vigentes, mas sobretudo ir contra as convenções do estilo realista pretendido. Afinal, como nos é claro hoje, não há nada mais anti-realista do que o narrador onisciente extradiegéticodo realismo. No caso das Memórias, por sua vez, teríamos um narrador em primeira pessoa, de certo modo mais viável realisticamente do que o narrador onisciente extradiegético, mas sempre ainda materialmente impossível. Seja como for, o gesto de recusar-se a explicar como a redação das Memórias foi possível é um gesto essencial na economia ficcional e, por isso, facilmente aceitável por todos aqueles que, desde o início, já se haviam disposto a ler uma obra de ficção. Este gesto marca o limite da metalinguagem e soterra consigo qualquer consideração específica quanto ao ato de publicação, que, obviamente, seria igualmente impossível15. Ou seja, há aqui uma contradição performática do ato de escrever e, sobretudo, do ato de publicar. Esta contradição performática, o ato (ato absurdo – e por isso ficcional –) de remeter a autoria do romance ao Brás Cubas já morto, nesse mesmo gesto, a fortiori remete a autoria a Machado de

14 Machado de Assis, Obra completa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1986, vol. 1, p. 513, ‘Ao leitor’. 15 O processo de publicação aparece problematizado de modo indireto em algumas passagens das Memórias. No caso, o que está em questão é o momento de recepção e celebrização que o processo de publicação pode implicar. Sobre isso ver meu ensaio: ‘Soberania e...’ op. cit.

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Assis. Possibilitando uma dupla leitura do livro: ele tanto foi escrito pelo escritor Brás Cubas quanto por Machado de Assis, que, a princípio, seria um escritor profissional então já bem reconhecido.

No entanto, essa assumida e ostentada (e, porque ostentada, dissipada no ato de leitura literária ou, se preferirem, no pacto ficcional) impossibilidade performática da narrativa transforma tanto a narrativa quanto o narrador em ficcionais. Nem a história de Brás Cubas é lida como sendo a de uma pessoa real, nem mais pode ser o Machado de Assis, enquanto autor juridicamente reconhecido e beneficiário dos lucros da venda do livro, quem é visto como escritor intradiegético do livro; por um lado, a vida de Brás Cubas é ficção (ainda que contundentemente referida à realidade social dos grupos privilegiados), por outro, há um narrador ficcional que surge na medida em que o autor jurídico tende a se calar (ainda que o narrador fale o que o autor jurídico gostaria de falar, embora se cale)16. Em um outro texto comentei essa tripla imbricação narrativa: narrador ficcional (Brás Cubas), signatário e beneficiário jurídico (Machado de Assis enquanto cidadão) e escritor literário (o, por assim dizer, personagem “Machado de Assis”, ou seja, o escritor implícito, que, por vezes, distanciando-se – ou, se preferirem, evanescendo – e mesmo contradizendo o cidadão Machado de Assis, assume, enquanto escreve ou é lido, uma peculiar e transitória existência)17.

Enfim, estando Brás Cubas morto, é evidente que tanto a escrita quanto a publicação das Memórias são performaticamente impossíveis, o que leva a que o livro tenha sido escrito por Machado de Assis (que, a princípio, seria o Machado de Assis signatário do livro) e a que, portanto, tenha, sob seu nome e devido à sua carreira como escritor, chegado a ser aceito pelo editor e, então, a ser

16 É característica da linguagem literária esta possibilidade de uma fala double-faced, ou mesmo multifacética, isto é, a possibilidade de que um personagem fale enquanto voz ficcional – e sendo reconhecido como ficcional – é que fale também enquanto porta-voz de uma pessoa determinada existente fora do livro, ou até que fale como porta-voz de um grupo social, ou ainda que fale o que o autor signatário do texto falaria ou gostaria de falar, mas não fala diretamente. De fato, em alguns romances, o que um personagem fala é o que o autor ou autora queria dizer, mas que, por diversas circunstâncias, não chega a dizer no dia-a-dia, ou seja, não diz quando está cara a cara com as pessoas que quer criticar. 17 Sobre isso ver: ‘Soberania e...’, op. cit.

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publicado. Ou seja, o texto das Memórias pode ser lido, e é lido, tanto como algo que Brás Cubas escreveu quanto como algo que Machado de Assis escreveu. Dessa maneira, há frases nas Memórias que podem ser atribuídas tanto a Brás Cubas quanto a Machado; além do quê, o próprio estilo das Memórias é, por quem lê, ora atribuído a Brás Cubas ora a Machado. De quem é o suposto pessimismo? Para alguns críticos é de Brás; para outros, de Machado. Para mim, o que importa no momento é indicar que as Memórias – e o mesmo se dá com Dom Casmurro – são um texto, a princípio, double-faced; se bem que sempre, como já comentei em um outro texto meu já referido18, pode-se ir mais além e ver por trás da narrativa de Memórias (e de Dom Casmurro), ou seja, por trás do Machado de Assis enquanto autor juridicamente reconhecido, um “Machado de Assis” que evanesce no e pelo ato de narrar; um “Machado de Assis” que, em muito, pode estar e está trabalhando contra o Machado de Assis signatário e seu público mais imediato19.

Em Dom Casmurro, o narrador estaria vivo. Sua deficiência seria a de não ser um escritor, ou seja, embora ele tenha tido uma educação que lhe permitiria escrever bem e, até mesmo, apresentar uma prosa com alguma sofisticação literária, não parece ter praticado a escrita regularmente ao longo da vida nem ter especificamente dado atenção à escrita literária. Embora não se possa ser peremptório em negar-lhe a possibilidade de escrever uma prosa com tantas referências bibliográficas e com maestria estilística equivalente a de escritores tais como Machado de Assis e, por que não?, Brás Cubas, pode-se considerar improvável e, assim,

18 Op. cit. 19 A relação entre o ato de escrita literário e a evanescência do autor enquanto pessoa jurídica é discutida no meu ensaio já mencionado; não me estenderei aqui sobre essa questão. Para a narratologia, trata-se simplesmente do “autor implícito”; a questão, porém, que levanto é a de que o “autor implícito”, para além de um personagem constituído a partir da narrativa das Memórias, se constitui também enquanto, no ato de narrar, se desfaz de características a ele atribuídas na suposição de ele ser o autor jurídico, ou seja, no ato de narrar, nas Memórias, o autor implícito evanesce; e, ao evanescer (tal como num processo de quenose), ele interage também com o personagem jurídico Machado de Assis, que, afinal, em alguma medida, participa desse esvaziamento de si mesmo. Ou seja, em minha análise, o “escritor implícito” não é apenas mais um personagem da narrativa, pois pode ter uma performance para além dela, no caso, interagindo com o autor jurídico, a quem ele pode contradizer ou dar voz, ou seja, que ele pode criticar ou potencializar.

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performaticamente contraditório que alguém como Bento Santiago, que se propõe inicialmente a escrever uma História dos Subúrbios, uma obra declaradamente sem exigências estilísticas maiores, venha, ao final, a escrever uma narrativa tão cheia de peripécias intra e intertextuais como se vê em Dom Casmurro. Mas há uma outra contradição performática pertinente ao ato de publicação que, como mostrarei mais abaixo, me parece mais importante e – do ponto de vista intradiegético – mais fortemente impeditiva do ato de publicar.

No entanto, o que me interessa no momento é deixar claro que, em Dom Casmurro, outras condições materiais de escrita e publicação estão até melhor preenchidas que nas Memórias. Por exemplo, mesmo sem ser um escritor de carreira, Bento Santiago teria dinheiro suficiente para publicar seu livro por contra própria: do ponto de vista da narrativa, isso seria materialmente possível. Além disso, ele explica com detalhes o que o motivou a se pôr a escrever, a saber, a monotonia de sua vida, segundo ele, de recluso, que ele leva morando afastado do centro do Rio. O que, porém, não fica claro e resta como performaticamente contraditório não é, portanto, Bento Santiago ter escrito o que escreveu, porque, afinal, ele parecia já vir remoendo tudo aquilo por anos a fio, mas o fato de o livro ter sido publicado. Por que ele, supostamente um recluso, se daria o trabalho de publicar algo para ele, segundo seus próprios critérios, tão vexaminoso? Voltarei a essa questão depois de, logo mais abaixo, comentar mais uma vez as Memórias.

O que é ainda importante indicar é que, enquanto o narrador realista onisciente e extradiegético exclui de um modo amplo qualquer tematização direta tanto do ato de escrever quanto do ato de publicação, o narrador em primeira pessoa que problematiza diretamente o ato de escrita acaba, no mesmo gesto, pondo em destaque o quanto a problematização do ato de publicação é evitada. Assim, tematização do ato de escrita e secundarização do ato de publicação se entretecem nas peripécias narrativas que tanto abrem o espaço ficcional quanto engajam os leitores e leitoras nas condições tacitamente postuladas para a abertura desse espaço ficcional. Desse modo, a traição de narrar isto ou aquilo se dá ao mesmo tempo que a traição de publicar – ou seja, de vender, comprar, ler e apreciar – o que é narrado. O ato de publicação –

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tomado em sentido amplo – envolve escritor e leitor na mesma traição.

O ato de traição, que é a publicação das Memórias, é possível devido à contradição performática de Brás Cubas escrever depois de morto e, assim, sem ter nada a perder; ao contrário, só tendo a ganhar, a saber, uma deliciosa vingança em cima daqueles que não valorizaram seu talento literário, ou seja lá quais outros mais talentos seus, enquanto viveu, ou mesmo na hora de seu enterro (ao qual, o que parece irritar o defunto, só compareceram onze pessoas). Assim, a contradição performática mais forte em Memórias – e que, enquanto tal, não é enfatizada (não sendo tampouco enfatizada por várias gerações de coniventes leitores, incluindo aí ainda os supostamente críticos) – é o privilégio concedido a esse escravocrata ricaço, Brás Cubas, de retornar depois de morto (privilégio que parece só ter sido assegurado a ele e, certamente, a nenhum escravo; privilégio de estar mais próximo de Deus e da salvação, proximidade com a qual a religião dos grupos dominantes, tida por eles como a verdadeira, autocomplacentemente não cessa de se regozijar); ou seja, de retornar para, enfim, trair seu próprio grupo social (traição, aliás, que ele não parece ter jamais pensado seriamente cometer em vida). O ato de publicar, embora performaticamente contraditório, é apenas um, digamos, benefício secundário, desse privilégio, ou seja, seria uma contradição performática acessória, embora, é claro, essencial ao livro enquanto texto ficcional.

Em Dom Casmurro, Bento Santiago estaria vivo tanto ao escrever quanto ao publicar suas memórias. Ele está supostamente auto-exilado no então longínquo bairro de Engenho de Dentro, mas não parece estar em uma situação que se equipare à de Brás Cubas, pois Brás Cubas volta para se vingar de quem está vivo enquanto Bento Santiago poderia, no máximo, pretender se vingar daqueles que já morreram. Publicar seu livro seria assim inócuo; mas não só inócuo, seria sobretudo contraprodutivo, pois seria Bento aquele que, ao fim das contas, estaria sendo humilhado; no caso, pode-se dizer, ele estaria se autoflagelando; e, com efeito, flagelando sua pessoa de austero patriarca. Do ponto de vista da narrativa de Bento Santiago, a publicação de Dom Casmurro é, performaticamente, fortemente contraditória. Toda a narrativa mostra o enorme e meticuloso esforço de Bento Santiago em ocultar da família e do

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mundo que Ezequiel não seria seu filho, mas sim filho de Escobar, bem como o fato de que ele vivia maritalmente separado de Capitu. Além disso, tudo o que é dito da condição de vida de Bento Santiago no momento em que ele escreve Dom Casmurro indica a firme opção de manter sua vida discreta. Ele não demonstra uma forte vontade de vingança, nem de atingir, à última hora, o sucesso, quer pelo escândalo quer pela literatura. Como, então, ele viria a publicar um livro em que relata em detalhe como quase envenenou seu próprio filho e o quanto ficou indiferente com as mortes tanto de Ezequiel quanto de Capitu? De fato, ele alega, o que é dúbio porque ele com cerca de 57 anos nem é tão idoso assim (retornarei a isso mais abaixo), que os amigos que ele tem, dado que os mais antigos já teriam morrido, são apenas os recentes, mas – ainda que para esses a repulsa suscitada pela publicação de Dom Casmurro pudesse ser menor do que a que seus antigos amigos, já há muito falecidos, sentiriam – esses amigos recentes lhe são, entretanto, muito atenciosos, podendo-se supor que não lhe sejam menos amigos do que lhe eram os antigos, e, lendo-se os simpáticos bilhetes deles convidando Bento para ir ao Rio ou a Petrópolis, nada indica que eles o considerem um casmurro: que interesse Bento Santiago poderia ter em chocá-los? Por que Bento não cultivaria para com eles a mesma atitude de discrição, e sobretudo segredo, que ele teve por tantas décadas para com os amigos antigos? A meu ver, é performaticamente contraditório que Bento Santiago, sem que isto resulte quer em uma confissão que o alivie quer em uma vingança que o deleite, viesse a publicar o Dom Casmurro, provavelmente fazendo-o com o próprio dinheiro e, em todo caso, sem ter (ao menos para si mesmo) qualquer perspectiva de sucesso literário ou, até mesmo, de ter satisfação com um tal sucesso, que, a essa altura da vida – ao contrário de Brás Cubas, que, mesmo morto, ainda tenta, movido por sua incontível vaidade, o sucesso com mais um livro –, não parece em nenhum momento poder sequer mudar seu modo de vida. Então, cabe voltar à pergunta: por que Bento Santiago publicaria o Dom Casmurro? A resposta me parece clara: baseado no que é narrado no livro, é contraditório que ele o publique. O ato de publicar é, portanto, o não tematizável; não tematizável neste livro bem como na grande maioria dos livros. De fato, o livro poderia ter vindo munido de um prefácio, de Machado ou de um personagem

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outro qualquer, dizendo que, tendo encontrado o livro em uma gaveta20, sem ter meios de avaliar a veracidade ou exatidão dos fatos narrados, o entrega para o público para que ele faça o juízo que mais lhe aprouver; com um prefácio assim, o não-tematizado ficaria restrito à decisão editorial final, à aceitação de divulgá-lo em jornais e distribuí-lo em livrarias, bem como à recepção, favorável ou não, por leitores e leitoras; contudo, não há um tal prefácio, não há esse tipo perdoável de traição post-mortem que conseguiria justificar, ao menos, o encaminhamento do livro para uma editora, se bem que o que há, o que o livro indica, é que Bento Santiago, por decisão dele mesmo, publicou o livro; afinal, que o livro foi publicado com seu assentimento fica claro logo no início do capítulo 2 quando ele escreve: “imprimi-lo [sc. o livro]”21. Esta indicação de que, sem maiores desculpas ou explicações, o livro foi publicado equivale ao acima citado trecho das Memórias em que Brás Cubas afirma que omitirá as explicações relativas a como ele, no além, as escreveu (e as publicou): trata-se de dissimular a omissão, ostentando-a.

Uma discussão mais atenta do segundo capítulo de Dom Casmurro, intitulado ‘Do livro’, pode nos mostrar como o processo de problematização do ato de publicação é tanto indicado quanto subtraído. Antes, contudo, como um preâmbulo, comentarei duas passagens importantes. A primeira delas é o final do ‘Ao leitor’, que inicia as Memórias, onde lemos:

A obra em si é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.

20 Algo de semelhante pode ser visto em Esaú e Jacó, mas não é meu objetivo aqui comentar o Aires enquanto autor. 21 No Capítulo 131, está escrito: “antes de mandar o livro para o prelo”; mas nessa passagem, a meu ver, trata-se basicamente de uma referência ao texto escrito do livro, não ao fato de publicar, ou seja, é porque mudar a ordem dos capítulos atrapalha o processo de impressão que o escritor, no caso, Bento Santiago, não vai se dar o trabalho de pôr os capítulos na ordem que seria a certa; assim, ele somente está avisando que o capítulo subseqüente é, na verdade, “anterior ao anterior”. Ora, embora até haja uma referência ao ato de publicação, o que se vê aqui é só mais um modo de se referir ao texto escrito e, como acontece com freqüência, indicar que ele não está tão bom quanto deveria. Em todo caso, o ato de impressão não equivale ao ato de publicação (que, obviamente, pode ocorrer sem que haja a impressão gráfica).

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Cito esse trecho porque ele pode ser lido como algo falado, tanto pelo Brás Cubas, quanto pelo Machado de Assis autor juridicamente reconhecido, quanto, ainda, pelo “Machado de Assis” evanescente, ou seja, como aquele que ao escrever se exime (mesmo que não totalmente, e talvez nunca totalmente) de suas obrigações de cidadão, podendo ir mais longe e até chegar ao ponto de ridicularizar a si mesmo enquanto autor signatário22. A opinião expressa na primeira frase, a saber, que a obra vale por si mesma, tal como se o escritor a tivesse escrito a partir unicamente de seu esforço criativo pessoal e autêntico, enfim, o culto a uma suposta autonomia estética do texto (devida a uma também suposta autenticidade última do ato de escrita autoral), é uma posição antiga e que segue sendo repetida ainda hoje, geralmente em entrevistas, por diversos escritores. Essa primeira frase parece ser uma opinião, ou antes, uma certeza comum a Brás Cubas, a Machado de Assis e, até mesmo, a “Machado de Assis” (ainda que este último, ao trabalhar também contra seu suporte físico-jurídico na pessoa do cidadão Machado de Assis, permite-nos pensar que ele, ao menos tendencialmente, dessacralize as certezas institucionais da autoridade artística; porém, na medida em que tal dessacralização não aparece de um modo realmente explícito e radical nos livros de Machado de Assis, é mais prudente deixar que, até prova em contrário, essa opinio communis da autonomia da obra literária frente ao público e aos editores também valha, ao menos em parte, para ele). Já a segunda frase, a hipótese de que o leitor gostará do livro, bem como a terceira parte, a suposição de que alguns leitores possam não gostar do livro, seguem um estilo que parece mais próprio à petulância do Brás Cubas post-mortem (nada garante que ele, antes de morrer, fosse, como escritor, assim irreverente), mas não deixa de expressar a opinião de vários escritores (e, por que não?, também a de Machado de Assis) que, reiteradamente, reforçam a idéia da independência do escritor frente à opinião do público. Ou seja, por um lado, haveria a obra enquanto resultado do trabalho independente do artista e, por outro, haveria um público

22 Um bom exemplo disso é como Erasmo ridiculariza a ele mesmo na Laus Stultitiae, chegando a ser citado nominalmente no n. 63. Sobre isso ver: André Rangel Rios, Mediocridade e ironia, 2ª edição, 2006; disponível em http://usuarios.uninet.com.br/~arios/, p. 51 e sgs. (acessado em 8/8/2007); edição original: idem, Rio de Janeiro, Caetés, 2002).

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que pode reagir tanto favoravelmente quanto desfavoravelmente à obra, mas que, de um modo ou de outro, não poderia, ao menos diretamente, influenciar no que se torna obra literária. Como disse, essa posição segue sendo defendida por diversos escritores embora eles, em vez de se referirem a leitores, se refiram por vezes ao “mercado”. Seja como for, nisso, de um modo ou de outro, basicamente se nega a força – digamos, literariogêncica – do processo de publicação. Antes, nem o escritor escreve sem levar em conta o horizonte de publicação, nem os leitores escolhem os livros que vão ser publicados, mas, em geral, se vêem motivados a ler a partir do que foi publicado e considerado digno de ser lido. Além disso, é claro, os escritores são, antes de tudo, leitores, bem como os editores e livreiros também o são, mas todos se orientam – apesar de os editores supostamente lerem muitos manuscritos –, em última instância, pelo que é publicado, pelo que vende, pelo que faz sucesso. Não se pode estabelecer, senão juridicamente (o que é, por sua vez e a seu modo, problemático), quando é que um escritor escreveu (e não plagiou) o livro que ele assina (pensemos, a título de exemplo, nas Reportatae medievais: quem afinal as escreveu?23). Tampouco se pode dizer quando é que um livro tornou-se um livro publicado e, enquanto tal, afeta seu autor e a leitura dele pelo público. Há livros que nunca foram impressos e que podem ser considerados como livros publicados (pensemos, por exemplo, em um livro de Ockham do qual, pelo que se saiba, só circulou um manuscrito e do qual talvez só tenha existido este exemplar, mas que foi incluído numa edição recente de suas obras completas; quando ele foi publicado? E o Brown Book de Wittgenstein, do qual inicialmente só foram feitas três cópias datilografadas para circular pelo seu dileto grupo de

23 Reportatae são anotações de aulas, feitas por alunos, publicadas posteriormente sem que o professor as corrija; já uma Ordinatio são anotações revistas pelo professor. Mas não é um livro, qualquer livro, sempre reportatae do escritor daquilo que ele, enquanto outro de si mesmo, está pensando? (Exemplos modernos de reportatae são as lectures de Wittgenstein em Cambridge anotadas por Moore, Smythies e outros e “publicadas postumamente” sem terem passado por qualquer revisão por parte de Wittgenstein; ora, sendo esses livros catalogados e vendidos como sendo de autoria de Ludwig Wittgenstein, pode-se perguntar se, enquanto sua autoria, a publicação não ocorria já quando ele falava em sala de aula; afinal, falar constituiu todo o seu trabalho enquanto autor: para ele, falar foi o mesmo que publicar.)

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Cambridge; isto valia como publicação?)24. Seja como for, um livro sempre é escrito visando um horizonte de publicação; aqui valeria propor uma analogia com o argumento de Wittgenstein contra a linguagem privada: se sempre se fala ou se pensa dentro de um horizonte de tradutibilidade, sempre se fala ou se pensa em vista a ser entendido por mais alguém, ou seja, um livro fora do horizonte de publicação teria de ser um livro escrito em algum tipo de linguagem privada, o que é impossível. De certo modo, escrever, seja lá o que for, é já se conectar no processo de publicação. Do mesmo modo, tudo o que se lê se lê reforçando o processo de publicação, renovando a posição do leitor ou da leitora nesse processo. O processo de publicação no formato livro é uma forma de buscar institucionalizar e controlar a difusão do texto, no caso do capitalismo, sobretudo de tirar lucro desse processo. As análises relativas ao ato de escrita e ao ato de leitura precisam ser reproblematizadas levando-se em conta o processo de publicação no qual tanto a escrita quanto a leitura se inserem. Daqui para frente, a escrita literária deverá não mais se esquivar de problematizar esta antiga recusa de se ver como um produto (um resultado do processo de publicação), em grande extensão, fora do controle dos atos de escrita e de leitura considerados isoladamente. Para a escrita desde o século XIX e, em especial, no Alto Modernismo, o processo de publicação, que, afinal, se confunde com o processo de mercantilização e de midiatização, passou a ser visto como algo, se não inominável, ao menos não tematizável radicalmente. Se em outras práticas artísticas a questão da produção da obra de arte e de sua mercantilização foi diversas vezes problematizada com considerável repercussão no público25, em literatura, ao menos entre escritores e escritoras que alcançaram reconhecimento

24 Do mesmo modo, não se pode dizer com facilidade quando um leitor individual lê um livro e quando ele o está lendo a partir do que lhe foi dito por amigos e em resenhas. 25 Nas artes plásticas pode-se lembrar de Andy Warhol, mas no teatro não são raras as peças sobre atores enfrentando dificuldades para montar uma peça, ou mesmo a própria peça que, afinal, está ali sendo encenada; além disso, no cinema, é fácil lembrar de A noite americana, de Truffaut, de 1973. Até que ponto o “processo de publicação” é efetivamente tematizado nessas obras ou elas por vezes se mantêm apenas girando em torno das queixas mais circunstanciais dos artistas são questões que têm de ser tratadas a partir da análise de cada uma delas.

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internacional, nada de semelhante foi feito. Na literatura francesa, o papel do editor recebeu relativo destaque como se pode ver, por exemplo, em de Os últimos dias de Corinto, de Robbe-Grillet26, onde ele narra sua atuação como editor. Particularmente interessante é um texto de Jean-Philippe Toussaint, ‘Le jour où j’ai rencontré Jérôme Lindon’, que é o segundo trecho que pretendo citar antes de retornar ao Dom Casmurro, no qual ele narra sua conversa com o bem-afamado editor de Les Éditions de Minuit, Jérôme Lindon, e da aceitação por parte dele de seu primeiro livro, La salle de bain, descrevendo sua reação extática em decorrência do exuberante sentimento de ter, então, se tornado escritor:

Saindo desse primeiro encontro [com Jérôme Lindon], neste fim de tarde de dezembro de 1984, pouco a pouco minhas forças me abandonaram, muitas coisas estavam se realizando de uma vez só, um excesso de emoções, e eu me sentei em uma calçada, rua de Rennes, era noite, decorações natalinas pendiam de fios nas fachadas da lojas, eu estava na beirada da rua, a testa úmida com a transpiração, os faróis dos carros passavam no meu rosto, meu olhar se ofuscava e me sentia desfalecer lentamente, eu olhava as lanternas traseiras dos carros que se afastavam pelo bulevar Saint-Germain, olhava o céu, olhava a cidade, havia levantado a gola do meu sobretudo e não me mexia mais, estava lá, na rua, em Paris, por volta das seis horas da noite, eu tinha vinte e sete anos, logo vinte e nove, eu acabava de deixar Jérôme Lindon e La salle de bain ia ser publicado pelas Éditions de Minuit.27

26 Ver: Alain Robbe-Grillet, Os últimos dias de Corinto, Sulina, 1987. A tematização da atividade editorial se dá nesse livro de Robbe-Grillet não exatamente para problematizar a atividade editorial em geral, mas para justificar especificamente a atividade de editor desempenhada por Robbe-Grillet. Abordar a narrativa apologética do trabalho editorial de Robbe-Grillet seria me desviar das discussões que estou apresentando aqui. 27 Jean-Philippe Toussaint, La salle de bain, Paris, Minuit, 1985/2005, p. 139-140.

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A aceitação por parte de Lindon, pela intensidade das emoções

desencadeadas, parece ter sido vivenciada por Toussaint como o ponto culminante do processo de publicação, ainda que Toussaint, nesse momento, não pudesse ter certeza quanto à boa ou má recepção de seu livro pelo público. O que, porém, parece claro é que Toussaint, desde que se pôs a escrever, vislumbrava no horizonte ser aceito por Lindon ou alguém equivalente. Por um lado, sendo Lindon enquanto editor, aos olhos de Toussaint, a metonímia do processo de publicação28, podemos dizer que, desde o início, era o processo de publicação que, tal como um buraco negro, atraía fortemente a escrita de Toussaint; por outro lado, editado e distribuído pela Minuit, La salle de bain tornava-se um livro fadado a ser lido e comentado (ou seja, fadado a atrair público e crítica específicos) por ser, afinal, um elaborado romance de um jovem e promissor escritor francófono. Ou seja, o livro já existia, isto é, nas palavras de Brás Cubas “a obra em si” já estava lá. Agora havia a aceitação de um editor de tal prestígio que, para Toussaint, ela já valia como publicação, de modo que, em certa medida, ele nem se

28 De fato, o editor, escolhendo textos para publicação, faz a vez de metonímia do público leitor e do sucesso do autor. Em ‘Kafka e o ato de publicação’, analisando um trecho de uma carta de Kafka a Milena, vou mais adiante e proponho também que, além de metonímia do público, o editor pode assumir o papel de duplo maligno, ou seja, daquele que, permitindo que o escritor se mantenha em sua suposta pureza criativa e pensante, faz, digamos, o trabalho sujo. De fato, na história intelectual do Ocidente há alguns exemplos dessa dobradinha santo-vilão: Agostinho tem Alípio em Roma; Pascal tem Arnaud; e Kafka tem Brod. O duplo maligno não precisa ser sempre a mesma pessoa ao longo da vida (de fato, Kafka contou ainda com Werfel, Musil, Schikele etc.), e também o mocinho pode, por vezes, aprender, ao menos em parte, as artimanhas do vilão. No caso da literatura, o que é, em geral, visto como o trabalho sujo é o ato de pôr a obra (supostamente escrita a partir de um arroubo criativo que, quando relatado, o é quase sempre de um modo mais ou menos estilizado) para, ansiando-se pelo sucesso e eventualmente auferindo-se lucros, ser publicada. A aceitação de Lindon, ou seja, sua decisão de publicar La salle de bain, enfim, de fazer com que um texto inédito se tornasse um livro rentável, é também o gesto pelo qual Lindon purifica Toussaint, pondo-o na posição de escritor criativo e reservando para si enquanto editor as preocupações com as vendas e a promoção comercial do livro. Toussaint emociona-se por se sentir escritor, ou seja, por não mais precisar agir como um mascate de sua obra, enviando-a e tentando vendê-la para mais este ou mais aquele editor de língua francesa; do momento da aceitação da publicação em diante, Toussaint poderia se preocupar prioritariamente com o ato de escrita tal como se o processo de publicação nunca tivesse sido aquilo que, desde o início de sua prática de escrita, atraía e norteava sua criatividade literária.

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preocupava de se o público se agradaria dele ou não; assim, se se agradasse, ele se pagaria a tarefa, mas, se não, parece que, já que Lindon aprovara, esse público também mereceria um piparote. De um lado, portanto, há o livro e, de outro, o público; o editor entra como se fosse apenas um catalizador transformando Toussaint em escritor e o público em leitor. Lindon surge como que para desaparecer, sendo logo a seguir substituído por uma sensação de êxtase que, pelo que tudo indica, em breve seria assimilada por Toussaint que, daí em diante, se tornaria o que ele já se supunha capaz de ser: o escritor independente e autônomo; sem dúvida, logo seguro de seu novo, e longamente ansiado, papel social. Seja como for, o processo de edição/publicação aparece como um intermediário e, assim, está problematizado, embora em um grau mínimo e a caminho de desaparecer; em todo caso, o editor Lindon surge como a fina nata do processo de edição e, se ele é citado nessa passagem, o é em contraste com a grande maioria dos editores que, antes, seriam a escória do processo de publicação, impedindo e não facilitando que escritor e livro cheguem a seu lugar natural nas mãos do público leitor29. O que, porém, não é mencionado é qualquer coisa relativa ao, digamos, lado sujo do processo de publicação: nada é falado sobre dinheiro e sobre perspectivas de venda ou de estratégias para divulgação. Apesar da clara referência de que a mediação quase miraculosa de Lindon se dá no âmbito de seu trabalho numa empresa editorial, nada é problematizado quanto à dimensão mercantil da publicação. Ao final, vê-se que Lindon surge nessa fábula como um deus ex machina que salva o escritor e seu livro de uma injustiça literária, de modo que o processo de publicação, se entra em cena com a menção da pessoa do editor, só o faz para depois desaparecer, sem ser problematizado enquanto processo mercantil, deixando espaço para que o escritor, finalmente redimido, se entregue a um emotivo arrebatamento cósmico-cosmopolita.

Enfim, do realismo de Machado de Assis ao pós-modernismo de Toussaint, o processo de publicação, se mencionado, o é para, a seguir, de algum modo, ser repelido como se não fizesse parte do

29 De certo modo, um editor pernicioso, a crer pelo trecho que antecede a esse que citei, seria Robbe-Grillet, que, por estar lecionando nos Estados Unidos, deixou que o livro de Toussaint ficasse parado em seu escritório, Lindon, casualmente, o pegou e veio a lê-lo: grande Lindon e dúbio Robbe-Grillet.

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jogo, como se fosse, salvo raras exceções (como a chancela editorial de Lindon), um fator prejudicial à ludicidade livre e prazerosa entre escritor, livro e público leitor. O processo de publicação em sua materialidade é, de preferência, nunca lembrado como relevante, sendo desconsiderado como um momento crucial na gênese do livro; nesse sentido, devido a essa esquiva em tematizá-lo, ele é o abjeto da escrita e do prazer literário.

O Dom Casmurro segue, a seu modo, o procedimento de enfatizar o ato de escrita; nisso chegando, diversas vezes, a comentar o que, ali no texto, teria acabado de ser escrito, evitando, porém, tematizar mais a fundo o processo de publicação. Ou seja, a materialidade imediata do ato de escrita, bem como o seu resultado enquanto texto escrito, é repetidamente tematizada, mas não o ato de publicação em suas amplas conseqüências sociais e, em especial, nos efeitos sobre o autor intradiegético do livro. Assim, o primeiro capítulo, sendo uma explicação, ao mesmo tempo em que uma tomada de decisão, quanto ao título do livro, tem como título: ‘Do título’. Tudo se passa como se o livro, em sua origem, estivesse explicando essa sua origem: a explicação do título seria, ela mesma, uma dedução do título; algo como a mão desenhada no ato de desenhar ela mesma. O que fica, entretanto, de fora é o ato de publicação. O capítulo 2 também enfatiza o ato de escrita. Se esse segundo capítulo se intitula ‘Do livro’, este título se refere ao livro enquanto escrito, até mesmo – como veremos – enquanto objeto escrito, mas não sugere com clareza que se trate de um livro enquanto resultado de um processo de publicação. Enfim, sua primeira frase é uma referência ao ato de escrever e suas motivações: “Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão.” Ora, “antes disso” seria antes de começar a começar o livro que, evidentemente, já está sendo escrito. O “antes disso”, portanto, põe entre parêntese a existência do próprio ato que está ocorrendo tal como se comentar o ato de escrever fosse algo que, segundo alguma etiqueta literária, devesse ser mantido fora do livro. O capítulo, embora seja já o segundo do livro, apresenta-se como não fazendo parte do livro, ou seja, apresenta-se como se estivesse transgredindo a estrutura adequada a uma obra literária. No teatro, em especial em peças cômicas, há personagens que, em apartes,

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falam com o público sobre o que se passa no palco, mas, no teatro, isso é uma convenção antiga, e ninguém duvida de que o aparte faz parte do texto da peça. No Dom Casmurro, também os leitores e leitoras, embora se dando conta de que o procedimento é relativamente pouco freqüente em romances, reconhecem o Capítulo 2 tanto como sendo um “aparte” quanto como estando perfeitamente integrado no texto do livro; afinal, nisso está o inequívoco e saborosamente moderno estilo de Machado/Brás. Com efeito, nesse Capítulo 2 há a imbricação das vozes narrativas de, pelo menos, Bento, Brás, Machado e, por que não?, “Machado”. A metanarrativa brinca de ora excluir ora enfatizar a referência ao ato de escrita tal como se ela fosse, por um lado, uma travessura literariamente repreensível e, por outro, um artifício peculiarmente engenhoso.

A seguir Bento Santiago indica sua condição de vida e, nisso, indiretamente, sua condição financeira:

Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá.

O trecho mostra, em sua primeira frase, que Bento trata o criado a distância. Depois, deixa claro que ele tem recursos suficientes para empreender algo como construir uma casa, o que, cabe notar, indica que ele também pode, com seus recursos, pagar para publicar o livro; ou seja, Bento vive numa casa que reproduz, em acordo com sua memória, a casa em que viveu na infância, do mesmo modo que o livro que ele está escrevendo, irônica ou mesmo auto-ironicamente intitulado Dom Casmurro, também, tal como uma casa, vai abrigar a narrativa de sua vida, sendo que, se ele pôde arcar com as despesas para a casa, por que não poderia fazer o mesmo para o livro? Contudo, embora as condições materiais para a publicação do livro estejam sugeridas, delas nada se falará. Nesses capítulos iniciais, a única referência direta ao fato de que o livro será, ou já está, publicado se dá na frase: “...me vexa imprimi-lo... [sc. o que escreveu sobre o desejo que o levou a construir a casa nova tal como a da rua Mata-cavalos]”. O infinitivo “imprimir” permite tanto a leitura de que é Bento que põe para imprimir o que vai

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relatar quanto a de que ele deixou que isso fosse impresso; enfim não podemos, com base no que nos é narrado, decidir nada. O que, porém, podemos ver é que Bento alega sentir vergonha de trazer a público um determinado propósito seu que, possivelmente, lhe parece uma tolice, o de restaurar na velhice a adolescência. Ora, se ele se envergonha disso, tanto mais ele se envergonharia de narrar sua certeza de que Capitu o traiu. De fato, embora se possa até entender que o propósito dele é de, ao construir essa casa, reter para si apenas dois períodos de sua vida: o que vai da infância à adolescência e o da velhice, eliminando, portanto, a idade adulta, ou seja, sobretudo todo o período em que esteve casado com Capitu, de modo que, entendido assim, seria do propósito de apagar Capitu de sua vida que ele teria vergonha. Ora, mas é exatamente isso que ele vai contar em detalhes ao longo de todo o livro; e a palavra “imprimir” comprova claramente que o livro – ficcionalmente (mas também, tal como sabem os leitores, extraficcionalmente) – foi publicado (e que, de certo modo, desde o início de sua escrita, ele já era pensado como um livro a ser publicado). Enfim, não há dúvida de que, apesar de se tratar de uma problemática contradição performática, intradiegeticamente o Dom Casmurro foi publicado (retornarei a isso ao comentar mais abaixo o Capítulo 129). Ou seja, desde o início do livro, sem que isto seja tematizado como um problema, apesar de, dado que seria vergonhoso, ser indicado como sendo um problema, o ato de publicação é mencionado, ao mesmo tempo em que é posto de lado, ficando oculto sob a pirotecnia de supostos apartes metaliterários. Que há motivos para que o livro seja escrito é algo que fica claro e chega a ser compreensível, mas, uma vez que se evidencia na narrativa a arraigada mentalidade patriarcal, bem como sua coerência de vida a respeito de manter sua vergonha de ter sido traído totalmente escondida de todos, parentes ou não, fica evidenciado que Dom Casmurro jamais poderia ter sido publicado. É o patriarcalismo de Bento, ao qual ele nunca renunciou e ao qual ele não é levado a renunciar ao escrever Dom Casmurro, que torna sua publicação impeditivamente contraditória. Afinal, Dom Casmurro não é uma confissão que Bento empreenda para purgar-se de sua má conduta e tornar-se menos rancoroso; antes, ele parece escrever Dom Casmurro para mostrar que não se arrepende e que, apesar das maldades, tornou-se, ao entrar nos anos, um bom

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sujeito ainda que, aos olhos daquele jovem melindroso, que inoportunamente o abordou no trem, seja tido como casmurro. Mas seria possível a uma pessoa de mentalidade empedernidamente patriarcal, sem tendências autodestrutivas (ao contrário, com evidente senso de autoconservação), mesmo já próximo à velhice, publicar que foi traído? Minha resposta a essa questão é a de que a publicação de Dom Casmurro é um ato performaticamente contraditório, de modo que os problemas em publicá-lo, para que o romance se desenvolva, acabam por ser deixado de lado como um não-dito, um refugo, um abjeto.

Mas é nisso que está uma das maiores ironias do livro. Trata-se do que chamei em um outro texto de uma ironia em acontecimento30, isto é, de uma ironia que não pretende atingir um grupo imediato ou mesmo contemporâneo, mas que, tal como um incêndio que fosse se alastrando aos poucos, vai se tornando compreensível apenas na medida em que as interpretações vão se sucedendo ao longo do tempo. Assim, primeiramente, considerou-se que Dom Casmurro era a narrativa de um marido traído; depois, argumentou-se que tudo poderia ser paranóia de Bentinho; ultimamente, tem-se freqüentemente retomado o tema quer para tentar novos julgamentos pró ou antitraição (propondo-se considerações antipatriarcais ou feministas) quer para declarar a dúvida como indecidível. O que fica claro é o quanto a questão parece inevitável para os intérpretes e leitores. Por que ela seria assim tão importante? Seria talvez porque os críticos e leitores se mantêm dentro da mesma mentalidade que levou Bento a se

30 Para ser breve, permito-me citar: “Trata-se (...) de uma ironia em acontecimento, isto é, de uma ironia que não tem a função instrumental de persuadir um grupo imediato e delimitável, mas que vai acontecendo na medida em que surgem seus intérpretes, que tanto mais rirão quanto mais ficar caracterizado o quão pouco a ironia foi anteriormente percebida. Este tipo de ironia pode, inclusive, ser proposta como visando um público futuro, ou seja, trata-se de uma ironia que corre o risco de não ser nunca compreendida. (...) Há algo de heróico na ironia em acontecimento no que ela corre o risco de restar para sempre incompreendida e, portanto, sendo distorcida...” (cf.: André Rangel Rios, Mediocridade e ironia, 2ª edição, 2006; disponível em http://usuarios.uninet.com.br/~arios/ (acessado em 8/8/2007); edição original: idem, Rio de Janeiro, Caetés, 2002, p. 57). Em Mediocridade e ironia, indico que esta ironia em acontecimento se dá na Laus Stultitiae, de Erasmo, no conto O alienista, de Machado de Assim, bem como nas Memórias póstumas de Brás Cubas.

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preocupar de se Capitu foi ou não a esposa exemplar segundo os padrões do patriarcalismo? Ou seja, perguntar se ela traiu ou não, se é inocente quanto à traição ou não, não é já perguntar se ela se adequou ou não ao que o patriarcalismo espera de uma esposa? Mas o que, ironicamente, leva a que tantos leitores e leitoras fiquem andando em círculos em torno da questão da traição ou não-traição? Afinal, o quanto valorizam essa questão é o quanto não conseguem pensar e sentir fora da mentalidade patriarcal. Ou seja, Dom Casmurro é, nesse aspecto, uma armadilha: ele induz a que os leitores e leitoras perguntem pela traição e, assim, a que traiam o quanto seguem sendo obcecadamente patriarcalistas.

Atualmente, portanto, percebe-se com clareza a contradição no conteúdo da narrativa de Bentinho na medida em que ele tanto fornece elementos para que se condene quanto para que se absolva Capitu. O que não é percebido é que, nessa narrativa em primeira pessoa de um patriarca, há, materialmente, uma contradição que impede que Bento Santiago tivesse deixado que ela fosse publicada e, ainda menos, que tivesse se encarregado pessoalmente de publicá-la31. Bento Santiago, vivo, publicar sua autobiografica, o Dom

31 Como já indiquei a não-tematização do ato de publicar não é um recalcado absoluto; o que argumento é que ele é pouco discutido; contudo, há análises importantes dele: Bourdieu, em As regras da arte, discute vários aspectos da relação entre os escritores – em especial, a inserção social ou, mais especificamente, o habitus deles – e o processo de publicação. Além disso, em especial em relação ao publish or perish, o problema da publicação e do quanto a publicação condiciona o trabalho criativo dos cientistas tem sido tratado em diversas pesquisas (embora essas pesquisas não se refiram ao que se considera escrita literária, elas põem o problema em evidência também para os críticos literários). Não sou, portanto, um pioneiro, nem pretendo o estar sendo, o que me parece, porém, é que essas análises, embora interessantes também para o que venho discutindo, consideram o ato de publicar de um ponto de vista restrito e externo. A meu ver, para reverter os séculos de ênfase no autor e de silêncio em relação à publicação, é necessário que se busque problematizar a questão da publicação por diversos caminhos. O caminho ao qual estou me dedicando – e que me parece extremamente importante – é o de questionar o ato de publicação a partir de como os próprios textos literários se referem ou não a ele; mas para reforçar essa linha de questionamento proponho também que se recorra a textos, por assim dizer, paraliterários como cartas, diários e entrevistas. Ou seja, para problematizar o processo de publicação (e problematizá-lo a ponto de nele incluir, em grande extensão, o ato de escrita e de leitura) são necessárias não só pesquisas sociológicas, antropológicas, econômicas, demográficas, jurídicas e biográficas, mas também análises textuais, sendo que, assim acredito no momento, são as análises dos textos literários que potencializarão as diversas pesquisas, por assim dizer, externas ao

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Casmurro, não é menos improvável do que Brás, morto, publicar suas Memórias32. Na verdade, o caráter mais farsesco das Memórias, tal como em Tristam Shandy, não deixa espaço para que o leitor, aceitando que até o ato de publicação é para ser entendido como ficcional, se preocupe, ou se desgoste, com as possíveis conseqüências de o livro ter sido publicado; contudo, o tom mais sério, por vezes melancólico, de Dom Casmurro não tem tanta eficácia em neutralizar o desgosto que, sendo o livro publicado, as pessoas nele concernidas venham a sentir; daí Bento alegar, como citei acima, que seus amigos já estão mortos, uma passagem que, a princípio, sugeri como sendo dúbia, mas que, a rigor, é mentirosa, dado que, no Capítulo 129, Bento se dirige diretamente a Sancha (viúva de Escobar), que, segundo considera, ainda estaria viva, para preveni-la para que não continue lendo o livro que, portanto, ele considera estará publicado33:

que se aceita serem os textos propriamente literários; se bem que, assim também considero, o questionamento do ato de publicação mudará a compreensão do que seja o literário, além de que – sendo, afinal, um desafio – esse questionamento acabará por ser mais tematizado também em obras literárias. Ou seja, se, durante vários séculos, problematizar o texto tido como literário a partir do ato de publicar não era uma questão relevante, desde alguns anos há um crescente número de discussões sociológicas sobre escritores, leitores e firmas de edição, mas, apesar disso, escritores e críticos seguem tacitamente aceitando que a obra literária tenha um grau de autonomia tal, que questões relativas ao ato de publicar devem preferencialmente ser remetidas às ciências sociais, ou seja, sempre ainda persiste o mote brás-cubasiano: “a obra em si é tudo”. Minha proposta, portanto, é a de que se analise mais aprofundadamente o que estive chamando de materialidade do conteúdo narrativo, bem como o quanto a omissão em analisá-la se associa com a recusa em tematizar e problematizar a relação do ato de escrita e do ato de leitura com o processo de publicação. 32 O que está aqui em questão não é meramente a confiabilidade ou a não confiabilidade do narrador, mas, seja como for, a impossibilidade performática de que o livro, materialmente considerado a partir de seu conteúdo narrativo, seja publicado. 33 No Capítulo 119, Bento se dirige às leitoras prevenindo-as de que, se, com a leitura da história que acaba de relatar sobre seu interesse sexual por Sancha, essas leitoras estariam beirando um abismo, elas não deveriam, porém, fechar o livro, pois ele já mudaria de rumo. É claro que esse tipo de referência ao próprio texto escrito pressupõe que há um livro publicado, mas o tom de chacota, bem como e a referência a pessoas externas à narrativa e que teriam consciência de seu caráter ficcional, embota a questão das conseqüências intradiegéticas de sua publicação, de modo que não sugere, antes oculta, uma possível contradição performática na publicação da narrativa, por mais demeritório que o ato de publicá-la pudesse ser para o autor. Bem diferentes são as conseqüências do

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D. Sancha, peço-lhe que não leia este livro; ou, se o houver lido até aqui, abandone o resto. Basta fechá-lo; melhor será queimá-lo, para lhe não dar tentação de abri-lo outra vez. Se, apesar do aviso, quiser ir até o fim, a culpa é sua; não respondo pelo mal que receber. O que já lhe tiver feito, contando os gestos daquele sábado, esse acabou, uma vez que os acontecimentos, e eu com eles, desmentimos a minha ilusão; mas o que agora a alcançar, esse é indelével. Não, amiga minha, não leia mais.34

O que Bento vai narrar a seguir é o quanto Ezequiel se tornou supostamente semelhante em seus trejeitos e aspectos físicos a Escobar, o que, portanto, segundo supõe, evidenciaria a traição de Escobar; traição a ele e também a Sancha. Se Bento adverte Sancha para que não prossiga com a leitura, seria porque seria vergonhoso para ela sentir-se traída. Ora, se Sancha não deveria ler sobre a suposta traição, muito menos Bento deveria escrever sobre lea, e ainda menos publicá-la. Que é performaticamente contraditório que ele publique já comentei, o que chama atenção aqui é que ele está consciente de estar fazendo mal a mais alguém ao publicar, a mais alguém que, afinal, seria inocente desse adultério. Mas publica. Ele age de uma maneira que não lhe melhora a vida, mas que, assim ele o crê, piorará a vida de Sancha. Até antes dessa passagem, possivelmente não havia ainda nada que, embora publicado em um livro, pudesse realmente incomodar Sancha (afinal, Bento reconhece que ela não cedeu a suas insinuações). Mas Bento Santiago resolve, declarando-se consciente de que atingirá Sancha, publicar em Dom Casmurro os argumentos que ele considera altamente convincentes da traição de Escobar, mostrando que está, deliberadamente, levando a que ela sofra. Ou seja, a questão aqui é a de que publicar a traição é pernicioso para Bento; isso é especialmente contraditório porque mostraria nele uma autodestrutividade única em sua vida e totalmente contrária à sua costumeira discrição, além de causar

Capítulo 129, referindo-se diretamente a um personagem interno à narrativa, no caso, a Sancha. 34 Machado de Assis, op. cit., p. 927.

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sofrimento a Sancha, o que, de fato, não só seria uma maldade gratuita de Bento, mas também um ato vil e covarde, além de mais um prejuízo à sua – até então zelosamente preservada – reputação. Ou seja, Bento Santiago está, portanto, não só consciente de estar fazendo “mal” a uma viúva, mas está, em um capítulo especialmente destacado para isso, anunciando com clareza que sabe que o está fazendo. E, além de tudo isso, está mostrando que, no início, mentiu, já que há quem ainda tenha vivido o suficiente para sofrer com o que ele está escrevendo; e isso apesar de que, de todo modo, ainda é ele, Bento Santiago, quem mais sai diminuído do que ele está publicando. O que se passa é que ele, nesse capítulo, está expondo publicamente o quanto é maldoso e desconsiderado, ou seja, nesse capítulo ele está claramente passando para ele mesmo uma sentença de que não se importa com o mal que faz aos outros; no entanto, os leitores geralmente já estão, a essa altura do livro, seduzidos pela narrativa, quer pela graciosidade do estilo (que provavelmente atribuem a Machado de Assis), quer por se solidarizarem muito mais facilmente com um marido que se alega traído do que com uma esposa acusada de sedutora sem direito a defesa e, sobretudo, sem direito a recusar as regras do jogo patriarcal, que, no geral, desfavorecem as mulheres. Mas, ao que me parece, ao menos nas primeiras gerações de leitores, não houve quem desse destaque a essa passagem para reconhecê-la como confirmação tanto da não confiabilidade narrativa de Bento (que mentira no Capítulo 2) quanto de seu pouco apreço, se não por todas as demais pessoas, pelo menos pelas mulheres que considera frágeis.

Ou seja, Bento se mostra intradiegeticamente particularmente perverso não só pelo que narra, mas na medida em que a narrativa se mostra consciente da maldade que é sua publicação: agir como age e narrar o que narra – sobretudo se o texto pudesse ser considerado um desabafo de ordem particular – não é a pior das maldades; o requinte de perversão, porém, é alcançado quando a narrativa se declara danosa devido a ter sido, de plena consciência, publicada. Um livro que não poderia ter sido publicado, mas cujo narrador quer ver publicado e, sem remorsos, diz ter sido publicado, é uma traição que vai além da de Brás, porque não vai contra apenas a sociedade patriarcal que não lhe deu o reconhecimento ou, no caso específico de Bento, não lhe deu uma mulher submissa, vai contra

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tudo o que o narrador é e foi: Bento, de fato, inicialmente um patriarcalista zeloso de sua respeitabilidade viril, destruiria a si mesmo. No entanto, ele leva junto com ele os leitores que não se dão conta de que, em um capítulo enfático, Bento está declarando que não merece respeito, pois não respeita nem é solidário com essa outra pessoa, Sancha, que ele supõe vá sofrer; ironicamente, Bento seduziu leitores e mais leitores a dar-lhe razão e, aceitando se preocuparem com a pergunta pela inocência ou não de Capitu, a se mostrarem adeptos do jogo do patriarcalismo: jogo (no caso, o machismo) no qual – o que é, afinal, uma lição que se pode tirar do livro – todos, em uma larga medida, perdem. No Capítulo 129, o ato de publicação e algumas de suas conseqüências tanto é problematizado quanto – devido a como a narrativa envolveu os leitores em suas tonalidades melancólicas – permanece obstruído na mente dos leitores que não o reconhecem como nocivo sobretudo a Sancha. Esse capítulo que, como mais um disfarce, termina com uma referência ao paraíso de Dante é talvez o momento em que a narrativa de Dom Casmurro aposta mais alto, mais se arrisca a perder a simpatia dos leitores e leitoras; ainda que tenha conseguido, até hoje, se safar magnificamente.

Mas deixemos esse, por assim dizer, umbigo publicacional do livro, para seguirmos Bento em mais uma crise sua, a saber, quando ele tem a idéia de envenenar seu filho. Afinal, Brás Cubas nunca tramou matar ninguém, nem se consumiu em ciúmes quando sua amada casou com outro; não tinha tampouco ciúmes quando, depois, a dividia com outro (com o marido legítimo dela), nem mesmo quando teve de cessar os encontros de alcova. Já Bento Santiago expôs as entranhas malignas e assassinas do patriarcalismo. Sendo assim, a publicação de seu livro é uma traição muito maior; por isso, é mais improvável, e dessa improbabilidade talvez derive muito de sua diversão; de fato, a publicação de Dom Casmurro e seu subseqüente sucesso mostram uma simpatia do público para com o viúvo, simpatia que, a despeito de suas diversas atitudes comprometedoras, como sabemos, foi não só facilmente conquistada, mas também longamente mantida. No entanto, Machado de Assis arrisca muito mais com Bento do que com Brás. Brás estava protegido na medida em que seu ato de escrita – independentemente do ato de publicar – era já materialmente

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impossível, levando a que o público, inadvertidamente o lesse como ficção; contrariamente, Bento Santiago, simplesmente por estar vivo, podia materialmente tanto ter escrito quanto, do ponto de vista financeiro e prático, ter publicado o livro (de fato, o impedimento material de publicá-lo, embora forte, restringe-se, a princípio, a uma contradição performática entre o conteúdo escrito e a posição de Bento na sociedade patriarcal). Se os leitores não se deram conta da traição que é o ato de publicação de Dom Casmurro, é porque foram bem engambelados pelo envolvente conteúdo narrativo, que, recorrendo a seduções próprias ao pacto ficcional35, os impingiu a idéia, ou a certeza, de que, em se tratando de uma obra apenas ficcionalmente publicada, não se deveria ir mais adiante com questionamentos. Seduzidos pelo estilo e pelas anedotas, o público não se deu conta da ironia que, em seu sub-reptício processo de acontecimento, o atinge, em surdina, para além da primeira fase de recepção, ou seja, da fase em que o público predominantemente se solidariza com Bento em suas dores contra Capitu. De fato, depois, veio uma segunda fase, quando a crítica e o público se deram conta de que talvez Capitu fosse inocente. A terceira fase é esta que ainda persiste em que se enfatiza a indecidibilidade. E agora – é o que sugiro aqui – estaria começando uma quarta fase, quando se teria passado a ver que a ironia era a de que público e crítica estiveram vivenciando (e parecem ainda não conseguir senão continuar a vivenciar), com intensidade e deleite, os dilemas do patriarcalismo, vendo-se sempre ainda apaixonadamente na busca por decidir entre traição e fidelidade. Schnitzler, um contemporâneo mais jovem de Machado, vivendo nas terras de onde veio nossa Leopoldina, expõe repetidamente o mesmo dilema: os homens modernos reconhecem a igualdade, inclusive sexual, das mulheres, mas não suportam os ciúmes. De fato, na Traumnovelle (de 1926!) a reconciliação final só parece possível porque a mulher, Albertine, não teve relações extraconjugais reais (mas apenas imaginárias)36. De certo modo, talvez mais moderno do que esse vienense admirado por Freud tenha sido Eça ao permitir que Alves se reconciliasse com a mulher.

35 Na verdade, há uma grande variedade de pactos ficcionais e os diferentes gêneros e movimentos literários recorrem a diferentes formulações do pacto ficcional. 36 Arthur Schinitzler, Traumnovelle, Berlin, Fischer, 1954.

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Seja como for, como que buscando superar em perversidade esses patriarcalistas quanto às suas rancorosas contradições emocionais, Bento, segundo ele narra, quase deu veneno ao filho. Ou seja, a aposta de que Bento atrairia a simpatia do público, ao menos nesse aspecto, foi bem mais alta. Mas, se ainda hoje ele gera mais simpatia que repugnância (se é que gera repugnância), é porque o público atual continua, em muito, tendo a mesma “sensibilidade” patriarcal quanto ao quão grave é a mulher fazer certas coisas que, para os homens, são veniais ou honrosas.

Com efeito, o escritor aposta ao escrever, mas também o editor e o público. O momento em que cartas são distribuídas, fichas postas na mesa, lances dobrados e jogos apresentados é o processo de publicação. Os apostadores gozam de muita liberdade no jogo, mas desde que sigam regras; e, se jogam, estão em busca de ganhar alguma coisa a mais do que o que tinham no início. O jogo literário, do mesmo modo, se dá em um espaço de liberdade onde há várias regras vigentes, e blefes. Habilidade, blefe e sorte, mas tudo em um espaço de liberdade para o qual quem entrou (e supostamente exercendo sua liberdade) aceitou um pacto, no caso, o pacto literário; um pacto que, certamente, não é a renúncia total da liberdade, mas é a aceitação de algumas condições, das quais uma condição freqüente é, por exemplo, a de aceitar que o que se escreve seja, enquanto ficção, válido e, assim, publicável, embora – do ponto de vista intradiegético – pragmaticamente impublicável.

De fato, a aceitação de que se trata de obras de ficção e de se pôr a lê-las sem maiores questões é uma decisão basicamente tida como um gesto de liberdade. Contudo, ainda que deixemos de lado a questão do quando leitores são socialmente formados e do quanto são comercialmente induzidos a comprar e a gostar disto ou daquilo (processo de indução que fica obliterado no gesto de engajamento no jogo lúdico da literatura e que, no final das contas, é aquilo com o que se está, tal como de contrabando, tacitamente sendo conivente para que o prazer buscado seja de fato sentido), é evidente que uma escolha, ainda que ostensivamente referida a um momento de arrebatamento estético, nunca é totalmente livre; afinal, escolher – por mais que seja percebido como um gesto individual e único – sempre se associa ou se opõe a esta ou àquela tendência social, de modo que – como negar? – muitas escolhas supostamente

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sofisticadas e sutis são, ainda que desapercebidamente, perpassadas por preconceitos grotescos.

Assim, ao engajar-se numa prazerosa leitura das Memórias, o leitor não se põe a pergunta: por que mais este privilégio divino e único de retornar para escrever e publicar mais um livro é dado a esse que já foi em vida tão privilegiado? Ao não se pôr essa pergunta, o leitor, tal como se esta fosse a ordem natural das coisas, compactua com a lógica – desde longo tempo vigente – segundo a qual “aos privilegiados, mais privilégios ainda!”

Bento Santiago, favorecido pelos leitores, alcança um privilégio ainda maior: ele narra sua vida, ou seja, a perseguição implacável que empreendeu contra a esposa e o filho, e é visto predominantemente como um bom sujeito37 que, suportando a dupla traição da esposa manipuladora e do amigo dissimulado, expõe, de coração aberto, sua vida. Mas, como já disse, ainda que se aceite que Capitu teve relações sexuais com Escobar, não é coerente que quem escondeu ter sido, segundo seus conceitos, traído viesse então, quando ninguém mais pensa no assunto, expor tudo publicamente. Além disso, ainda que, só após várias décadas, a crítica tenha vindo a enfatizar a possível inocência de Capitu, as referências a Otelo já estavam lá gritando para os leitores que os ciúmes de Bento poderiam ser infundados, ou seja, a lerdeza dos críticos não muda o fato de que a narrativa de Dom Casmurro seja um texto que, em diversos sentidos, trabalha fortemente contra a reputação de Bento, porque, afinal, se houve o que ele entende por traição, ele se humilha ao publicar, se não houve, ele se deprecia ao ceder à paranóia a ponto de publicar e, em qualquer dos casos, causa enorme sofrimento a uma viúva porque, publicando, também a expõe e a humilha. No entanto, ninguém nunca fez a pergunta de por que Bento Santiago teria publicado suas memórias. Mais uma vez o leitor é cooptado para uma posição de se deleitar ao simpatizar com o jogo social patriarcal (sendo que, se o fez e o faz ainda com tanto gosto, é porque ainda está muito perto, ou mesmo dentro dele). E mais uma vez essa cooptação ganha força com a não

37 Bento Santiago teria cerca de 54 anos em 1899; pelos padrões da época já seria um senhor de idade avançada, embora, de fato, ainda não um velhinho. A figura do bom velhinho supostamente bem intencionado aparece em primeiro plano no Memorial de Aires; sobre isso ver: ‘Soberania e...’, op. cit., em especial p. 16 e sgs.

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problematização da questão da impossibilidade performática de publicar, ou seja, ganha força com a aceitação do que é contrabandeado para o ato de leitura quando o leitor estabelece o pacto ficcional que o põe dentro da ludicidade tida como literária. Assim, não havendo questionamento quanto à sua publicação, o fato de o livro ter sido escrito predomina aos olhos dos leitores reforçando a honestidade de Bento Santiago, porque, afinal, se não estivesse totalmente seguro da traição de Capitu, ele não o teria escrito. Contudo, o leitor, ao entrar no pacto ficcional, não se importa – ou seja, deixa como não questionado – que o livro seja impossível de ter sido publicado porque, afinal, ele aceita que quem o escreveu e publicou foi Machado de Assis (inadvertidamente não se dando conta de que, intradiegeticamente, o livro foi publicado, o que deveria ter conseqüências sobre o que pensar da integridade de Bento), de modo que o que ele considera ter em mãos é um livro de ficção que, como parte de seu evento ficcional, se constitui como uma autobiografia ficcional que foi publicada por Machado de Assis (de fato, em geral o ato intradiegético de publicação ou é banalizado ou desconsiderado), o que pode, inclusive, amplificar o prazer de leitura porque, sendo o livro percebido como impossível de – se fosse uma autobiografia não-ficcional – ter sido publicado, esse livro então estaria exatamente expondo algo de absolutamente inconfessável, isto é, tanto algo absolutamente inconfessável quanto, por isso mesmo, profundamente verdadeiro enquanto vislumbre de uma mente que, para além dos próprios interesses pessoais, se desnudou (o que, mais uma vez, aumentaria a credibilidade da narrativa).

Assim, neste jogo, temos a seguinte série de apostas crescentes: 1. não há a tematização explícita das condições materiais de publicação de Dom Casmurro; 2. isso leva a que o leitor se engaje no pacto ficcional sem se perguntar sobre como foi possível o livro ser publicado, embora possa pairar ao fundo o sentimento de sua inviabilidade; 3. o sentimento da inviabilidade da publicação não ganha corpo porque imediatamente o leitor atribui a publicação a Machado de Assis (tendendo ou a banalizar ou a desconsiderar que o livro foi publicado intradiegeticamente), que, enquanto escritor reconhecido e publicando o impublicável, estaria oferecendo um vislumbre realista da alma do personagem (ou seja, quanto mais

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inviável é a publicação do livro, ao se engajar no pacto ficcional, mais acriticamente o leitor tende a fazê-lo); 5. assim, num primeiro momento, o público tende a se solidarizar com Bento Santiago, que é percebido como sincero e vítima; 6. no entanto, num segundo momento, inclusive porque Machado de Assis não cessa de crescer em sua fama de ironista, a leitura contrária ganha força, isto é, Capitu é inocentada; 7. daí, busca-se a estabilidade na hipótese de ser indecidível se Capitu traiu ou não e de se ela, tendo traído, teria feito algo errado ou certo; 8. todas essas interpretações, no entanto, pelo padrão obsessivo com a questão da traição e do ciúme, sugerem que uma forte ironia de Dom Casmurro – ironia que veio, furtivamente, se impondo ao longo de décadas – é a de mostrar a críticos e leitores o quanto eles, por persistirem tendo tanto prazer nessas leituras, não cessaram apaixonadamente de ser, em maior ou menor medida, patriarcais tal como Bento Santiago.

Mas por que Bento Santiago publicou o Dom Casmurro?

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Perspectivas movediças em Lorde,

de João Gilberto Noll

Ao chegarmos ao corpo do livro, Lorde, onde há a narrativa do escritor desembarcando em Londres, começamos pela frase: “Quando saía da porta da alfândega...” (p. 9)38. Aqui, também, enquanto leitores e leitoras, estamos saindo da porta da alfândega. De certa forma, acabamos de negociar a leitura do livro e, quem sabe, até já pagamos “impostos alfandegários” (ou seja, eventualmente já lemos o título, o nome do autor, as orelhas e a quarta capa) para, enfim, lê-lo. Em todo caso, o estamos lendo: estamos desembarcando juntos com o narrador (e também o autor?) tanto na aventura do livro em sua materialidade quanto na da narrativa que ele contém.

Apenas a partir dessa frase inicial, não podemos decidir quem, além de nós leitores e leitoras, está chegando a Londres. De fato, só por essa primeira frase nem sabemos onde se está chegando; contudo, alguns de nós leitores ou leitoras, pelo que a orelha adiantou, sabe que é da chegada de um escritor a Londres que se trata. Que escritor? O próprio Noll ou um escritor ficcional? Mas será, se for ficcional, que é ficcional para – ao recorrer, por exemplo, ao expediente de exageros e auto-ironias autodepreciantes – retratar o próprio Noll mais verdadeiramente ainda, ou é ficcional num distanciamento sem retorno entre o autor signatário e o narrador? Quanto de Kafka há em K.? Como decidi-lo? Há em O processo, tal como argumenta Canetti, um “outro” processo, que seria o próprio processo de Kafka em seu relacionamento e noivado com Felice? Há na viagem desse escritor brasileiro inominado, convidado à Londres por um professor inglês no propósito de que dê algumas palestras, uma “outra” viagem que seria a do Noll-escritor?

O narrador chega, pois, afobado ao aeroporto, carregando duas malas e uma sacola. Eu, de minha parte, chego ao corpo do livro e aí o encontro já tendo lido a orelha; orelha que, por exemplo, me conta que Noll foi “o primeiro escritor brasileiro convidado pelo King’s

38 Os números de página inseridos no texto entre parênteses são referentes ao livro Lorde, de João Gilberto Noll (São Paulo, Francis, 2004).

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College de Londres para ocupar o cargo de writer in residence”. Uma explicação com ressaibos ufanistas: por que dar destaque a que se trata do “primeiro brasileiro”? Em todo caso, isso soa, sem dúvida, como uma honraria para o Noll. Mas não trai essa frase uma certa submissão, uma certa necessidade de reconhecimento por uma nação colonialista, por uma nação que por tanto tempo, ao menos do ponto de vista literário, nos ignorou?

Mas o que importa se a Inglaterra ignora ou não os escritores brasileiros? Muito pior não é que sejam por aqui, ao menos na percepção de alguns deles ou delas, ignorados? Não é na posição de ignorado e solitário que se põe o narrador de Lorde? Será que é possível negar que o reconhecimento externo – e não só na literatura, mas em tantas outras áreas – seja por vezes o caminho necessário para que o reconhecimento interno efetivamente aconteça? Seja como for, vários escritores brasileiros já seguiram para o exterior aceitando convites semelhantes. Vários, por exemplo, estiveram na Alemanha. Alguns livros foram, de fato, gestados durante essa situação de bolsista ou de, como nos indicou a orelha, seja lá o que isso signifique, writer in residence. Assim, Loyola Brandão e João Ubaldo escreveram sobre a estada deles em Berlim. O Mongólia, de Bernardo Carvalho, também se associa a uma bolsa estrangeira. E o Berkeley em Bellagio do “próprio” Noll é um antecedente dele nesse mesmo gênero livro-de-escritor-brasileiro-bolsista-no-exterior.

Agora, Noll vai a Londres. Ele aceitou o convite ou se submeteu ao convite? O convite vem do colonizador cultural para o virtualmente colonizado. A orelha se orgulha do convite e, assim, de certo modo, se submete a ele. Mas aceitar não é sempre e necessariamente se submeter; ainda que, considerando-se o peso da história, a não-submissão total seja aqui talvez impossível. Contudo, ainda que, em alguma medida, a submissão seja inevitável, sempre se pode sabotá-la: sobretudo se se tem como arma a elaboração de um texto literário, de um texto, pois, polissêmico e, assim, topologicamente contorcido, ou seja, de um texto, na multiplicidade de seu jogo, incontrolável e, ao final, imprevisível.

Quando saí pela porta da alfândega, duas pesadas malas, sacola pendurada no ombro, nem pensei em

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olhar para os que esperavam atrás de uma corda os passageiros que chegavam a seu destino. Súbito me tornara incrivelmente calmo.

Nesse trecho inicial, não há ainda o que distinga o narrador do

autor signatário. Noll, de cuja vida e pessoa só sei que nasceu em Porto Alegre e que foi writer in residence em Londres, pode ter chegado exatamente assim, inquieto e inseguro; ao menos para mim e para demais leitores pouco informados sobre sua biografia, soa plausível que um escritor, em geral entendido como um ser meio neurótico, tenha se portado com melindres paranóicos e arroubos, ainda que imaginários, de irritação e despeito. Ao longo deste primeiro parágrafo, porém, algumas linhas divergentes se anunciam. O narrador ficcional irá começar a descolar do autor-Noll, embora o leitor ou leitora possa se sentir sempre reinstigado a tentar ler por detrás do narrador o que não seria senão o “próprio” Noll ou, ao menos, tentar reconstituir, por detrás das incertezas do relato do narrador-escritor, os conflitos pelo qual o Noll-escritor passou ao aceitar o convite, ou seja, a hipótese de leitura segundo a qual Lorde seria, por parte de Noll – que, tal como seu personagem-narrador, foi “chamado por um cidadão inglês para uma espécie de missão” (p. 9) –, uma resposta ao imperativo de submissão que esse convite para uma missão implica.

* * *

Uma vez que só posso acompanhar essa viagem à Inglaterra,

ou antes, esse livro, por um número limitado de páginas39, restringirei minha análise de Lorde a quase apenas o primeiro parágrafo; depois continuarei a passos largos até amarrar uma conclusão. Assim, ao contrário do narrador (e do autor), praticamente não vou sair do Heathrow, não vou nem perambular por Londres; só rapidamente, para poder concluir, mencionarei Liverpool. Ironicamente, o que o narrador ameaça fazer, ou seja,

39 Este texto foi originalmente apresentado no Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), em 2006, segundo enfatizado pelos organizadores, apenas textos com no máximo 12 páginas seriam incluídos nos anais.

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retornar o mais rapidamente possível para o Brasil – não permanecendo talvez não mais que algumas horas no aeroporto – é quase o que farei. O narrador, já neste parágrafo inicial, diz que, se acabou deixando Porto Alegre, foi por estar vivendo sozinho e sem dinheiro, enfim, por não ter mais nada, de modo que – é o que podemos supor –, se ele tivesse retornado, teria retornado para uma existência nula; já de minha parte, se eu não retornar, se eu seguir comentando o livro, ficar perambulando com ele por Londres, para não exceder o limite de páginas para publicação nos anais do congresso, terei de interromper abruptamente meus comentários e não terei chegado de volta a lugar algum, não terei concluído minha viagem interpretativa pelo livro de Noll, enfim, não terei cumprido minha missão40. Contudo, se tenho de retornar às pressas, se não posso contornar minha submissão às regras do estilo acadêmico e ao limite de espaço para a publicação, se tenho que aceitar que a minha estada na Inglaterra será de apenas algumas páginas, pelo menos não me atormento com dúvidas, mas sei que, nesta chegada ao Heathrow, encontrarei alguém, se não me esperando, ao menos já lá: de fato, desde a primeira frase já encontrei o narrador com seu nervosismo e insegurança. Minha dúvida apenas é a de se acredito em seus temores ou se o considero um neurótico autotorturantemente hesitante. Logo de início, tendo a suspeitar que sua desconfiança frente a “o inglês” é exagerada; ao mesmo tempo, porém, me agrada ver seu espírito independente, observando que ele não se lamuria, mas, antes, assume a postura de que não ficará esperando por ninguém, e sim retornará no próximo vôo, ainda que suas perspectivas no Brasil lhe pareçam esgotadas.

40 Ou antes, não terei cumprido minha submissão, a submissão minha e de meus colegas aqui na Abralic, ao imperativo da produtividade acadêmica; todos precisamos falar e incluir nossos papers (ou, mais exatamente, nossos mini-papers) nos anais do congresso, por isso temos de ler apenas um punhado de páginas cada um. Noll, ao escrever Lorde durante sua estada a convite do King’s College (um college da Universidade de Londres), não deixa de estar cumprindo também uma missão acadêmica; assim, sob certo aspecto, Lorde resultaria de uma submissão à academia, à academia em sua versão internacional ou mesmo globalizada; se, porém, resulta ou não em submissão, é uma questão que as contorções literárias da narrativa problematizam, revertem, deslocam e recolocam. Discuto a questão da relação entre Noll e a universidade no ensaio logo a seguir: Rodriques-Filho, Noll e Vonnegut. Escrita literária e linguagem acadêmica, no qual comento sobretudo Berkeley em Bellagio.

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Assim, no primeiro parágrafo, há a descrição dos primeiros momentos da chegada ao aeroporto e a apreensão do narrador quanto a se o inglês que o convidou para “uma espécie de missão” (p. 9) o estará de fato esperando. Foi o referido inglês quem lhe enviou as passagens e seus números de telefone, “um do escritório, outro da residência”. Contudo, o narrador tem inicialmente a certeza de que não adiantaria ligar para esses números, pois eles “talvez nem existissem”. O inglês lhe teria “afiançado” que o narrador fora convidado por “uma razão especial”, mas, apesar das atenções, do respeito e dos gastos até então dispensados pelo inglês com o narrador, ele entende que o provável é que “ele [o inglês] nem sequer aparecesse no aeroporto”. Contudo, o narrador diz que sempre teve dúvidas a respeito do inglês e, se aceitou o convite – o qual, aliás, quis até o último momento recusar –, foi por estar, como já mencionei, vivendo solitariamente e sem dinheiro. Segundo suas palavras, portanto, o que ele aceitou não foi só um convite, mas foi algo que o inglês havia “afiançado”, isto é, foi uma fiança, quer dizer, ele foi, de certa maneira, posto precariamente em liberdade pelo inglês. O narrador, portanto, como ele mesmo explica, “não tivera outra escolha”; por isso, aceitou a fiança e foi despender em Londres, como que num exílio, sua ambígua liberdade; ambígua porque, se esse exílio o liberta da vida imobilizada em Porto Alegre, o põe na dependência do inglês, em quem não confia ou em quem resiste confiar.

Como já disse, não conheço a vida de Noll. Mas é ficcionalmente plausível que um escritor brasileiro, que, como consta do segundo parágrafo, tem vários livros publicados (mais abaixo será dito serem 7 os livros do narrador [p. 61], assemelhando-o, assim, a Noll, que tem também vários livros publicados, o que o põe também na posição de ser um escritor reconhecido, mas dele diferenciando-o, se considerado em detalhe, pois Noll, em 2004, tinha 10 livros publicados41), mas que não são encontrados nas lojas, o que os caracteriza como pouco comerciais. É, então, plausível pensar que, no Brasil, um escritor estabelecido-alternativo (“...livros muitas vezes bem recebidos pela crítica quando não pelo público...’ [p. 20]) não venda muito e que viva isolado, sem dinheiro e distante

41 Segundo consta da lista “Outras obras do autor” na página 2 de Lorde.

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dos amigos, ou, até mesmo, “sem amigos”. Se esse perfil do narrador se aproxima ou não do de Noll, se é um exagero auto-irônico ou não de sua figura, são questões que podem ser discutidas, o que, porém, estou sugerindo é que – ainda que no interior da narrativa possa ser considerado um exagero para autojustificar a viagem – esse perfil pode ser entendido como uma crítica do quão pouco a cena cultural brasileira prezaria seus escritores, por assim dizer, mais literários (enfim, aqueles que não chegam a ter ou nem tentam ter livros best-seller), ainda que tenham um trabalho de fôlego.

É, em todo caso, nessa condição de desterrado na própria terra que o narrador aceita o convite, ou antes, a fiança, que lhe possibilita essa, por assim dizer, new lease of live, indo para a Inglaterra, de modo que, se ele está tendo que arriscar cair na dependência do inglês, isso não se deve a nenhuma boa vontade do narrador em reconhecer a benemerência de seu anfitrião ou de se curvar, sentindo-se honrado pela homenagem feita a ele com o convite por parte de uma suposta autoridade cultural estrangeira, mas porque a literatura o levou ao exílio, primeiramente ao exílio existencial em sua própria terra, depois ao exílio também geográfico, agora em Londres. O Brasil surge ambiguamente, por um lado, como um país que não valoriza e não apóia suficientemente seus escritores, deixando-os vagarem exilados por aqui ou em Londres, mas, por outro, seriam os próprios escritores ou escritoras – criaturas rebeldes ou desajustadas – que, ao se aprofundarem na prática de seu ofício (ao chegarem, por exemplo, ao cabalístico número de 7 publicações), acabariam por ter se posto à parte da sociedade, se não pelas suas obras, que seguiriam sendo publicadas – ainda que pouco divulgadas –, mas pelo modo de vida – aparentemente radical em sua solidão – que assumiriam com sua dedicação intensa à escrita, o que, pelo visto, ao final, os deixa quase incapacitados até mesmo para exercer o ofício pelo qual estiveram empenhando suas vidas. Em todo caso, é um ser humano avariado, quase incapacitado para a vida social, paranóico, financeiramente arruinado (“no bolso trinta libras talvez, se tanto”), arriscando uma situação de servidão involuntária, que desembarca em Heathrow.

Esse escritor combalido – depois o narrador insistirá que está “velho” (p. 25 e sgs.) – é, porém, ainda lúcido quanto a seu desejo de não submissão em sua missão. Sua irritação quanto à possível não

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vinda do inglês, quanto ao inglês se fazer de importante deixando-o humilhantemente à espera, renovando assim sua situação brasileira de desprestígio e isolamento, seria, se assim considerada, nem tanto paranóica, mas justificável. Contudo, não foi nem tanto pelo reconhecimento na forma do haver-alguém-à-espera que o escritor veio, mas, segundo ele enfatiza (embora o narrador – que obviamente não é necessariamente confiável – possa, como sugeri, estar exagerando sua situação de penúria; exagero que serviria, ao menos em parte, para justificar, sobretudo para ele mesmo, sua incompreensível vinda), para “ter na Inglaterra uma graninha extra para me sustentar”.

E o que quer o inglês? Segundo o narrador se recordará no segundo parágrafo, o inglês o perguntara sobre os seus livros – pois ele não os encontrara nas lojas – e fala em estar escrevendo um livro. De certo modo, o narrador faz ou fará parte de um livro de um inglês, mas é o narrador, ou o Noll, quem está escrevendo um livro, Lorde, incluindo o inglês (ainda que nos três primeiros parágrafos esteja apenas à espera do inglês), tal como se ele estivesse tentando, pela escrita, se antecipar e assim conter, ou deglutir, o livro do inglês antes que ele (o inglês) o incorpore em seu livro; tal como se a questão fosse a de quem incorporará, isto é, deglutirá primeiro o outro. Em todo caso, é o inglês que o está convidando e financiando, ou seja, é ele que está provocando e produzindo o livro do escritor, ou antes, o que afinal soa mais pomposo, do writer in residence; portanto, o livro recai sob a missão – seria uma submissão desta missão – que o atraiu até a Inglaterra. Assim, o livro se torna uma luta, uma disputa de quem devora quem primeiro: de quem será o livro sobre quem? E de quem será o livro que sairá escrito? Do inglês, que pagou, possibilitando-o, ou do escritor, que o escreveu, realizando-o? Se, por um lado, o inglês, ao convidar o escritor e trazê-lo para a Inglaterra, ao, por assim dizer, mastigá-lo através das portas da alfândega, o está deglutindo para dentro de seu país, por outro, o escritor começa também um exercício de mastigação em que, ora se inquieta esperando o inglês, ora o expele, decidindo-se a não mais esperá-lo, e sim a precipitadamente retornar ao Brasil42. A

42 Um momento curioso tanto para a questão da deglutição recíproca entre o brasileiro e o inglês, quanto para a do reconhecimento enquanto escritor, quanto para a das contradições narrativas, isto é, do caos narrativo (mas que

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pulsação, porém, entre a inquietação e a súbita tranqüilidade – igualmente um tipo de movimento mastigatório – também é, na medida em que a agitação e a tranqüilidade são sintomas físicos, já o início de um processo corporal de transformação. Assim, vão, no mesmo ritmo, também oscilando, ao longo do livro, as perspectivas do narrador frente à vida: 1. ora o narrador parece ter um projeto linear de vida, segundo o qual ele veio a Londres, cumprirá uma missão e depois retornará ao Brasil; 2. ora seu projeto de vida parece ir se dissolvendo em um caos com propostas e sentimentos inarticulados; 3. ora parece haver vários projetos concorrentes já despontando neste primeiro parágrafo, mas que se desdobrarão em maior substância ao longo do livro, levando a que o narrador se afaste de sua identidade inicial dependente da atividade da escrita. Vemos, pois, se alternarem na narrativa três projetos de vida diversos: 1. um projeto linear com a possibilidade de restituição ao seu lugar de partida; 2. um projeto de mergulho no caos, que também é um projeto de abertura e busca do novo; e 3. um projeto polifônico, que busca assumir, para além de seu projeto inicial porto-alegrense de escritor, outros projetos e mesmo uma nova identidade (de preferência uma que melhor o insira na vida na Inglaterra).

Por meio de uma nova apreciação e recapitulação do que vimos até agora, observemos como esses projetos se apresentam no início de Lorde. Nos dois primeiros parágrafos, o narrador se delineia como um escritor brasileiro chegando a Londres, convidado por uma instituição inglesa, provavelmente de cunho acadêmico, com a passagem já paga, bem como com hospedagem e estada garantidas. Seria um escritor – como se vê mais abaixo na narrativa – com reconhecimento no Brasil, com um lastro de sete livros e com um discreto reconhecimento internacional, ou seja, a princípio parece se tratar da narrativa de uma pessoa que, apesar de uma situação econômica adversa e com concomitante declínio na vida social, tem sua vida ainda organizada na medida em que tem planos para o futuro e, a despeito da pouca vendagem de seus livros, está ainda numa trajetória de vida em ascensão. Ou seja, o livro começa criando

aqui não deixa de sugerir que o narrador estaria paranoicamente exagerando sua penúria financeira) é quando ele entra em uma livraria em Londres para ver se há nela seus livros em tradução inglesa e os encontra (p. 93).

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a expectativa de uma “narrativa linear de restituição”43: o que era, a princípio, esperado pelo narrador (narrador-personagem ou narrador-Noll anamorfosizado em escritor-personagem?) era ser recebido por uma instituição acadêmica, dar algumas palestras e voltar para o Brasil44. Enfim, uma história linear com restituição final a um estado inicial melhorado (o narrador voltaria ao Brasil para prosseguir o mesmo tipo de vida, tendo um pouco mais de prestígio e também, quem sabe, “uma graninha extra”). Mas, na frase que sucede o primeiro ponto final deste primeiro parágrafo do livro, a narrativa desliza na direção de uma “narrativa do caos” e de sua aceitação fatalista45; buscando, porém, resistir a ela, logo a seguir, por meio de uma reformulação do projeto restitutivo46. A reformulação se mostra pouco efetiva, pois a narrativa não cessará de descambar para narrar a ampliação do caos. Ele passará a sobrepor hipóteses e mais hipóteses algo desconexas, vindo mesmo a

43 Recorro a uma tipologia desenvolvida pela sociologia da medicina, no caso, à tipologia de Ezzy (cf.: D. Ezzy, ‘Illness narratives: time, hope and HIV’, Social Science and Medicine, 50, 605-17, 2000). De fato, trata-se de uma tipologia mais adequada para a análise de entrevistas com pacientes do que para a análise de textos literários; contudo, uma vez que a metamorfose se associam a um trajeto prévio de sofrimento corporal, incluindo períodos de doença do narrador, me é importante para pôr em destaque as variações de perspectivas do narrador, bem como as das dos leitores e leitoras que, por vezes, também se esforçam para restituir à narrativa um horizonte de unicidade de sentido. 44 “Quando saí pela porta da alfândega, duas pesadas malas, sacola pendurada no ombro, nem pensei em olhar para os que esperavam atrás de uma corda os passageiros que chegavam a seu destino.” (p. 9) O narrador descreve a si exatamente como um literato brasileiro, pouco acostumado a convites internacionais, que, afobado com a viagem, chega com a bagagem adequada para uma estada de umas duas semanas. 45 “Súbito me tornara incrivelmente calmo” (p. 9). A calma é, de fato, incrível; afinal, é bem possível entendê-la, antes, não como calma, mas como pavor; pavor frente ao caos. O que produziria a sensação de calma seria a ocorrência daquilo que era temido; quando acontece um contratempo, mas que era esperado, ou antes, temido, pode-se ter a impressão, e o “tranqüilizante” consolo, de que, enfim, acontecida a catástrofe (instaurado o caos), paradoxalmente, já que, tendo ocorrido o pior, tudo se estabiliza, aparentemente haveria novamente uma ordem nas coisas. O fatalismo tem sua face tranqüilizadora. 46 “Se ele não aparecesse, iria para um hotelzinho barato e retornaria para o Brasil no dia seguinte.” (p. 9) Ou seja, embora o narrador esteja perplexo e sem saber o que fazer por não encontrar “o inglês”, ele faz um plano de retirada para recuperar a sua vida, isto é, o seu projeto de vida anterior. A princípio ele está negando que algo possa ter acontecido – em conseqüência a esse convite, a essa viagem e a esse abandono – que tenha mudado a sua vida, que tenha tornado impossível o seu projeto de vida e de futuro.

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apresentar uma releitura de seu passado segundo à qual o caos teria surgido lá antes da viagem, de modo que ele então começará a construir um entendimento de sua viagem como sendo algo empreendido na busca exatamente de esquivar-se de um caos que já estaria se insinuando no Brasil47. E, logo mais abaixo, confirmando a precariedade de sua situação, lemos: “...no bolso trinta libras talvez, se tanto” (p. 10). Uma afirmação que, solapando a segurança de uma possível restituição, põe a narrativa novamente na rota do caos; com efeito, numa narrativa segundo a qual um escritor com sete livros é convidado por uma instituição inglesa de prestígio, este escritor nunca chegaria a Londres com apenas trinta libras no bolso. Quem chega a Londres com apenas trinta libras são os imigrantes desesperados; além do quê, dificilmente ele passaria pela polícia de imigração se não pudesse, além talvez do visto (para o qual pode haver exigências de comprovação de renda e dos objetivos da viagem), provar que tinha dinheiro para se manter no período da estada declarado por ele. Ou seja, não apenas a narrativa oscila entre narrar a restituição ou o caos, mas se mantém contraditória, não assumindo ela mesma uma posição clara e coerente, ao menos não-caótica. Na verdade, logo após a primeira frase, ou seja, após a oração temporal que inicia o livro: “Quando saí pela porta da alfândega, duas pesadas malas, sacola pendurada no ombro,...”, que é a descrição que mencionei de um escritor chegando afobado, a frase seguinte: “...nem pensei em olhar para os que esperavam atrás da corda...”, se, por um lado, tem um tom decidido de quem se mantém com o controle da situação, por outro, indica que o narrador já está seguro de que – e, portanto, perplexo com isso – o inglês não o está esperando. Em outras palavras, a narrativa não só oscila entre uma narrativa de restituição e uma do caos, mas, ao mesmo tempo, também tenta evoluir para uma narrativa polifônica (pois o narrador talvez esteja vindo, embora convidado enquanto escritor brasileiro, na busca de superar a identidade de escritor – daí ele falar em “derradeiro livro” [p. 11] –, enfim, na busca de se libertar da prisão que se tornou sua vida de escritor, está disposto, portanto, a abraçar novos projetos e novas perspectivas de vida: “Tinha vindo para Londres para ser vários...” [p. 28]), mas o faz de

47 “...eu não tivera escolha. Então eu vim.” (p. 10)

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um modo tal que por vezes num mesmo período sintático as duas narrativas se misturam48, forjando uma indepurável amálgama de tranqüilidade e perplexidade, confusão e autodeterminação.

Não só o narrador segue relatando as sucessivas metamorfoses de um projeto de caos em tentativas de recompor novas metas de restituição49, mas também o leitor ou leitora pode se sentir instigado, em relação à narrativa do livro, a também tentar compor, a partir do relato do escritor, um entendimento totalizante da narrativa que, ora se torna desagregadora, impossibilitando qualquer síntese de seus sentidos, ora permite emergir a possibilidade de um sentido único. Unificação de sentido que, muitas vezes, surge com a questão do retorno ao Brasil. De certa maneira, o Brasil se mantém na narrativa como a Terra Prometida do sentido biográfico unificado: retornar ao Brasil seria como que fechar esse problemático ciclo de vida que teria se iniciado com a ida para Londres50. Pode-se perguntar até que ponto a volta ao Brasil,

48 Evidentemente, para além dessas tipologias narrativas da sociologia médica, há ainda outras oscilações narrativas. Há, como já indiquei, a oscilação entre o caráter autobiográfico e não-autobiográfico, mas há sobretudo uma narrativa paranóica que constantemente tenta se impor, mas se dissolve antes de se tornar dominante. Seja como for, ainda haveria outras narrativas ou aspectos narrativos que vão e voltam sem que fique claro o quanto eles caracterizam ou não a narrativa (por exemplo, teria que se analisar como o texto se dirige ao leitor e, nisso, qual a função dos “ah”, “hein?” etc.). Também se teria de discutir o que formalmente sustenta a “grande” narrativa que possibilita que essas tantas narrativas concorrentes possam ser narradas, e compostas como um romance. 49 A restituição se anuncia, em geral, por momentos de pacificação, em especial quando é criado um breve momento de alívio com o surgimento de frases pacificadoras: “Ao chegar em casa, a calefação no ponto” (p. 23); “Deitei de roupa e tudo na cama. Era bem confortável” (p. 13); “Tudo era ponto pacífico” (p. 24). Logo em seguida a essas frases, porém, a confusão retorna ao texto. Essa pulsação, em formas e ritmos sempre algo diversos, é recorrente ao longo de todo o texto. Em especial, cabe indicar como sendo um exemplo particularmente importante de momento restitutivo a expectativa quanto ao encontro com o professor Mark: “Se tudo corresse como esperava, teria agora no professor Mark alguém em quem me apoiar na cidade” (p. 45); reparar como a narrativa progressivamente descamba para o caos, indo de uma agradável antecipação do encontro até o choro intenso (p. 44 a 48). 50 Um outro tema que poderia ser discutido em Lorde é o da “ruptura autobiográfica” (“biographical disruption”), um tema proposto por Bury (M. Bury, ‘Chronic illness as biographical disruption’, Sociology of Health and Illness, 1982, v. 4, 2, p. 167-182) e que tem sido muito discutido (ver: S. J. Williams, ‘Chronic illness as biographical disruption or biographical disruption as chronic illness? Reflections on a core concept’, Sociology of Health and Illness, 2000, v. 22, p. 40-67). Até que ponto a irrupção da doença, ou seu

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enquanto recusa ou recuo frente à experiência radical com o estrangeiro, não conduziria a um distensionamento do sentido literário, à rarefação de sua polissemia. Uma questão adicional aqui seria a de (1.) se haveria nas repetidas referências à volta ao Brasil uma crítica implícita a uma literatura estreitamente ocupada com a realidade social, ou (2.) se essa antiliterariedade da volta ao Brasil não diria respeito apenas a um problema próprio a esse escritor que, desenraizado, está em viagem, sendo esse escritor o narrador ou, quem sabe, o “próprio” Noll. Nessas duas perspectivas, seria, então, necessária uma viagem sem retorno pelo inglês, isto é, pela literatura inglesa em sentido amplo, ou por qualquer literatura estrangeira também tomada em sentido amplo (e não como modelo canônico), para que o sentido da palavra escrita possa ser sustentado em suas tensões potencializadoramente literárias, incessantemente tensionando-se polifonicamente entre pacificação e caos.

Mas não são só os projetos que se transformam. O corpo do narrador, logo no início, já começa a sofrer transformações. Primeiramente, é o narrador que busca maquiar as rugas (p. 27), mas, através do mal-estar e do cansaço, enfim, de um processo de doença (os primeiros sintomas mórbidos mencionados são psíquicos: perda da memória [p. 16] e deterioração mental [p. 27]) e tentativa de restituição, é o corpo do narrador que vai se transformando até culminar com sua metamorfose no corpo de um inglês proletário. Ora, essa metamorfose pode ser entendida como o

diagnóstico, interrompe, ou mesmo irreversivelmente rompe os projetos de vida em andamento? Até que ponto a “ruptura” inicial pode se tornar um reforço da antiga identidade (ver: Janine Pierret, ‘Interviews and biographical time: the case of long-term HIV nonprogressors’, Sociology of Health and Illness, 2001 v. 23, n. 2, p. 159-179) e, portanto, ser vista, antes, como um elemento que reforça uma continuidade identitária, em vez de rompê-la? Até que ponto o que é entendido como sendo uma “ruptura” causada pela doença não é um processo de mudança já em curso – e apenas precipitado, catalizado ou tornado palpável – pela irrupção da doença (ou pelo convite, ou pela viagem, ou pela metamorfose)? Assim, haveria as perguntas: há uma ruptura na narrativa de Lorde? Trata-se de uma ruptura (a ida para Londres) que irremediavelmente rompe um projeto de vida ou que reforça traços identitários anteriores? Qual a relação dessas rupturas com mudanças no corpo ou com sofrimentos e doenças? Cabe lembrar que transformações corporais as mais diversas e profundas ocorrem em obras do Noll. Há até mesmo metamorfose com mudança de sexo como em A Céu Aberto (Companhia das Letras, 1996) – embora a princípio ainda continuasse se tratando da “mesma” pessoa – ou como que mudando para um outro corpo como no final de Lorde. Que tipo de ruptura biográfica estaria ocorrendo com essas metamorfoses?

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resultado de um processo de canibalização, mas não só da deglutição de um corpo morto, como foi o caso com o bispo Sardinha, mas de um corpo vivo e, conseqüentemente, amplamente inserido na cultura e vida inglesa; daí a metamorfose em um ex-estivador de Liverpool. A metamorfose se dá logo depois do último e talvez do mais robusto momento restitutivo do livro, ou seja, quando ao narrador, após ter sido reconhecido por ser um escritor brasileiro importante, é oferecido um cargo de professor de língua portuguesa na Universidade da Cidade de Liverpool. Mas, se a metamorfose é, por um lado, um aprofundamento no caos, ela, por outro, abre a possibilidade de novos projetos pacificadores, que podem restituir o narrador a uma vida estável. Por exemplo, sendo agora o narrador, após sua metamorfose no ex-estivador, um inglês de nascimento, ele não precisa mais de passaporte ou visto e poderá viver e trabalhar sem impedimentos na Inglaterra. Na verdade, toda essa narrativa pulsante entre caos e plano estabilizador nunca se desagregou totalmente; antes, ela sempre foi contida por algumas amarras; particularmente evidente é, nisso, a questão do dinheiro: afinal, desde o início da narrativa sempre nos foi esclarecido de onde vinha o dinheiro e quando ele estava prestes a acabar; em paralelo a isso, a questão da necessidade de ter um trabalho foi várias vezes mencionada51. Seja como for, o narrador não se tornou um brasileiro que teria meramente um inglês dentro da barriga, mas assumiu, ele mesmo, o corpo e o idioma de um inglês típico e bem arraigado em seu país, assim como assumiu o trabalho dele. Ou foi tudo ao contrário? Quem deglutiu quem? Será que o resultado não foi que ao final o brasileiro é que virou um inglês? É a mesma questão do início: quem estava à espera de quem? Quem escreveria o livro sobre quem?

Mas será que são embates que têm de ser decididos? Será que não são eles constitutivos da própria escrita literária? Será que, se

51 Além de atento ao dinheiro, cabe observar que o narrador, salvo quando doente, manteve-se quase sempre bem orientado no tempo e no espaço; de fato o narrador várias vezes se refere aos pontos cardeais. A única exceção é quando há um pulo no tempo na narrativa, ou seja, quando o narrador repara que o tempo passou muito rápido indo do início da noite para o fim da madrugada de um modo surpreendente (p. 96); no entanto, ao que parece, foi o tempo que deu um salto, pois o narrador percebeu com clareza a incongruência, de modo que ele mesmo não se mostrou desorientado, mas, sim, o tempo é que teve um tilt caotizante (em todo caso, isso só se deu uma vez).

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alcançássemos uma escrita literária brasileira utopicamente distendensionada, não seria exatamente nisso que perderíamos muito do literário na escrita? Será que não temos de seguir buscando metamorfoses e canibalismos sem fim?

Contudo, por mais interessantes que possam ser essas questões, já esgotei as quantas páginas nas quais podia conjurar o metamorfismo de Lorde para submetê-lo ao formato aceito para publicação nos anais do Congresso da Abralic52. Ou seja, ainda que essa metamorfose de Lorde em paper tenha sido incompleta e insuficiente e que minha prosa acadêmica tenha se deixado contaminar por momentos caotizantes, creio ter conseguido apresentar um plano estabilizador e explicativo que, ao menos em vários momentos, chegou a se firmar, embora, é claro, como é de se esperar pelo ritmo das pulsações textuais, já em breve não resistirá ao caos, mostrando-se então, numa releitura, contraditório e implausível, precisando ser revisto e reformulado.

52 Ver nota acima sobre as exigências para do Congresso da Abralic, de 2006, para a inclusão de papers nos anais.

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Rodrigues-Filho, Noll e Vonnegut.

Escrita literária e linguagem acadêmica

É possível dizer que todo o texto é autobiográfico. Não só

escrever nesta ou naquela língua é já uma confissão autobiográfica, mas mesmo apenas o ato de escrever – de testemunhar, portanto, que aprendi a escrever – é, nele mesmo, um gesto autobiográfico. É sobretudo do ato de escrita, mas, sem dúvida, é também de seus agentes, que um texto presta testemunho. Em todo caso, sejam quais forem as circunstâncias do ato de escrita, todo o texto é uma fatia da vida daquele que o escreveu (ou, tratando-se de vários autores, daqueles que o escreveram). Evidentemente, um texto pode ser mais ou menos revelador de fatos específicos da vida cotidiana de quem o escreveu. Um paper sobre um tema científico, por exemplo, ainda que, para um estudante de literatura ou de filosofia, possa parecer árido e impessoal, não deixa de apresentar vários elementos da biografia dos autores. Procurando um exemplo disso, me pus a navegar na internet, a partir de páginas já abertas na tela do computador, até chegar ao acaso ao artigo: ‘Hydroxylation of the Labdane Diterpene Cupressic Acid by Fusarium graminearum’53. O autor principal é Edson Rodrigues-Filho. Por mais técnico que seja o tema e a linguagem, ainda assim, alguns dados biográficos – para além do que o conteúdo do artigo possa indicar como competência e preferência temática do autor – podem ser inferidos deste paper. Para conferir a correção ou não de minha leitura – ou antes, para cruzar dados e assim checá-los –, na era do currículo Lattes (uma espécie de panóptico acadêmico), não teremos maiores dificuldades. O nome Edson Rodrigues Filho sugere que se trata de um brasileiro (hipótese que é reforçada pelo fato de a revista onde o artigo está publicado – embora só aceite artigos em inglês54 e tenha já o título apenas em inglês – ser brasileira, ou ao menos “Brazilian”); em todo caso, tendo seu sobrenome “Filho” ao final, já começamos

53 Edson Rodrigues-Filho et al., Journal of the Brazilian Chemical Society, vol.13, nº 2, São Paulo, 2002. 54 A homepage do Journal of the Brazilian Chemical Society é bem clara quanto à aceitação apenas de artigos em inglês: “Only manuscripts written in English can be considered”.

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aprendendo como se chama seu pai. O artigo também nos conta que ele trabalha na Universidade Federal de São Carlos. Além disso, vemos que ele escreve em inglês, ou ao menos participa de um trabalho coletivo de escrita em língua inglesa. O fato de que ele trabalha em conjunto com outros pesquisadores, e em contato com uma instituição norte-americana, também nos é mostrado pelo paper. A posição de primeiro autor em um artigo com colaboração internacional é sugestiva de que Rodrigues-Filho, esse provável brasileiro que anglicizou ou internacionalizou seu nome com um hífen, é um pesquisador estabelecido.

Indo ao currículo Lattes de Rodrigues-Filho (a sua autobiografia oficial), não podemos confirmar se ele é brasileiro no sentido de ter nascido no Brasil ou de ter a nacionalidade oficial brasileira; contudo, é evidente que ele, sendo professor da Universidade de São Carlos desde 1992, é brasileiro no sentido de levar a vida no Brasil de um modo amplamente enraizado. Pelo pós-doutorado na University of Minnesota (concluído em 1996, com apoio do CNPq; são desta universidade também três dos colaboradores do artigo citado) fica razoavelmente esclarecido que ele fala e escreve em inglês: afinal, além disso, dos 70 artigos publicados por ele nos últimos dez anos – todos sempre com colaboradores – 61 são em inglês, dois em espanhol e sete em português, ou seja, quase 90% do que ele escreve é em inglês. Academicamente, podemos, portanto, dizer que ele fala inglês. Em todo o caso, o número de artigos em revistas internacionais (poderíamos ainda conferir quantas são Qualis A internacional) corrobora nossa hipótese de que ele é um pesquisador já estabelecido. Contudo, há algo que vimos no artigo que o currículo Lattes não só corrobora, mas amplia: Rodrigues-Filho nunca publicou um artigo individual, só assinado por ele; de fato, Rodrigues-Filho pratica sempre autoria coletiva, e principalmente em inglês. Sua assinatura é sempre parte de uma assinatura coletiva. No entanto, apesar de todo esse currículo prolífico e globalizado, com papers de autoria científica coletiva internacional e em inglês, sem estilo personalizado de escrita, Rodrigues Filho (o indivíduo) não recebe no momento Bolsa de Produtividade, não estando, assim, classificado como Pesquisador 1B, 2A ou qualquer coisa assim. Seja como for, com base nos agradecimentos ao final do artigo, podemos

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constatar que seu grupo – o trabalho de autoria coletiva – foi apto a receber financiamento da Capes, do CNPq e da Fapesp. Enfim, apenas com base em uma leitura atenta do artigo, ainda que claramente predomine nele uma linguagem científica coletiva e de estilo impessoal55, já se podia deduzir muito de como é a vida de Rodrigues-Filho, ou seja, de como ele ocupa a maior parte de seus dias. Embora o currículo Lattes nos comprove e nos conte mais alguns aspectos de sua vida (seu atual local de trabalho e provavelmente também de residência, onde morou durante seu pós-doutorado, suas viagens para congressos, seu conhecimento de línguas estrangeiras – praticamente só o inglês –), nos permitindo supor que sua idade esteja em torno dos 50 anos, vários outros aspectos de sua vida não são divulgados. Nada sabemos sobre seus interesses artísticos, seus hobbies, sua orientação sexual ou sobre a saúde de seus pais. Nada nos é dito acerca dos sofrimentos ou das alegrias de sua existência fora da universidade. Contudo, do ponto de vista estrito da vida acadêmica, ou seja, para a leitura e avaliação de seus papers, essas informações são irrelevantes. O que é, porém, importante ressaltar é que há como que uma continuidade na qualidade das informações do currículo com as que aparecem no paper: Se, por um lado, não convém que conste no paper informações além da instituição onde se trabalha e de que agências financiaram a pesquisa, por outro lado, se algum dado a mais fosse referido, provavelmente seria mais alguma informação já contida no Lattes. O currículo Lattes, embora não seja literalmente em inglês, compartilha a mesma linguagem científica que o paper; aliás, o Lattes, embora em português, é basicamente compreensível para um falante do inglês. De toda a forma, o Lattes de Edson Rodrigues Filho tem, no item sobre publicações, muito mais palavras em inglês que em português, vindo a documentar a trajetória para ele adotar, ou para ele ter sido adotado pela língua inglesa, no que foi até rebatizado, ungido com um estratégico hífen facilitador de citações, como Rodrigues-Filho.

55 O artigo é escrito com amplo uso de construções passivas. Por três vezes aparece o pronome pessoal “we”. Assim, o artigo é tanto impessoal, no sentido de não relatar diretamente dados autobiográficos quanto afirmativo de uma autoria coletiva. Não discutirei aqui a questão da autoria coletiva em ciência. Sobre essa questão, ver: Mario Biaglioli e Peter Galison, Scientific Authorship. Credit and Intellectual Property in Science, New York, Routledge, 2003.

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Berkeley em Bellagio, de João Gilberto Noll, também é um texto autobiográfico. Logo na capa, com título e design que sugerem se tratar de um romance, a assinatura do autor João Gilberto Noll, um autor individual, um romancista, já nos oferece alguns dados biográficos, havendo também o texto das orelhas e, abrindo-se o livro, vê-se um traço autobiográfico dos mais óbvios, mas ainda assim um dos mais significativos: o uso da língua portuguesa no modo brasileiro. O texto do livro começa com o narrador-escritor andando pelo campus da Universidade de Berkeley. Nele é difícil inferir o que seja próprio à vida de Noll ou a seu personagem, ainda que este chegue a ser, por duas vezes, interpelado como “Joao, Joao” (p. 47-48 e p. 62)56. E, em contraste com Rodrigues-Filho, Noll – seja felizmente seja infelizmente – não tem um currículo Lattes com base no qual possamos corroborar ou infirmar o que nos é narrado em Berkeley em Bellagio. Há, porém, na internet uma página que tem ares de ser autorizada por Noll57. Nela há uma cronologia de sua vida. Segundo nos é aí relatado, Noll não só esteve em duas ocasiões em Berkeley (o que corresponde à narrativa ficcional), uma vez em 1996, como escritor visitante, e outra em 1997, lecionando literatura brasileira, mas também há uma história de outros contatos com a esfera universitária. Ele cursou a graduação, parte no Rio Grande do Sul, parte no Rio de Janeiro, vindo a se formar em Letras, em 1979, na PUC-Rio. Esteve na Universidade de Iowa em 1982 num programa de escritores. Coordenou, segundo esse site, oficinas literárias na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1994 (mas isto é um erro do site, pois Noll, nesse ano, foi o primeiro escritor visitante, não na Federal, mas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, num programa que prosseguiu com Sérgio Sant’Anna e outros)58. Além disso, recebeu um “Prêmio da Fundação Guggenheim”, em 200259; trata-se da bolsa que essa instituição confere a “intelectuais e artistas”, entre os quais há tanto professores universitários e pesquisadores das áreas da ciência e do ensino de

56 A simples indicação do número de página entre parênteses no texto se refere sempre a J. G. Noll, Berkeley em Bellagio, Rio de Janeiro, Objetiva, 2002. 57 http://www.joaogilbertonoll. com.br/index.html 58 Ver: http://www2.uerj.br/~clipping/0003044_v.htm. Acessado em 2 de set.

2006. 59 O site da Fundação Guggenheim, porém, indica que Noll recebeu a bolsa em 1999.

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literatura quanto alguns artistas e escritores sem um forte vínculo de trabalho com a universidade60; ou seja, essa bolsa, ainda que incluindo não-acadêmicos, segue relacionada com o universo acadêmico, sobretudo com seu estamento internacionalmente dinâmico (a “cúpula de scholars” em Bellagio, segundo diz o narrador – p. 29), levando a que, por exemplo, um romanescamente estilizado outsider da universidade como é o narrador-escritor de Berkeley em Bellagio tenha de tentar se pôr em diálogo com essa esfera acadêmica globalizada, buscando se posicionar frente a ela. Por fim, há, em 2004, a estada como escritor-residente no King’s College, um dos mais antigos colleges da Universidade de Londres, ocasião em que escreveu Lorde, um livro no qual, mais uma vez, um escritor estilizado como outsider de instituições acadêmicas e culturais busca se posicionar frente a um convite de uma instituição universitária estrangeira. Um outro item que esse site destaca na vida de Noll é o ano de 1985, quando foi defendida a primeira tese de mestrado sobre sua obra, na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Para esse site, portanto, o meio universitário é importante na carreira de Noll. Instituições de caráter universitário proporcionam marcos relevantes, mostrando-se, em alguns casos, intimamente relacionadas com o processo de escrita de alguns de seus livros, sendo centralmente tematizadas no texto dos dois últimos. Mas, se no texto do site a universidade brasileira, ao lado das instituições estrangeiras, aparece com relativo destaque – a PUC-Rio, a primeira tese sobre sua obra e as oficinas literárias em uma universidade pública do Rio de Janeiro –, em seus últimos livros, tanto em Berkeley em Bellagio quanto em Lorde, os narradores-escritores aparecem estilizados como sendo ignorados pela universidade brasileira; em todo caso, as instituições culturais brasileiras, no momento em que se desenvolve a narrativa, se mostram inoperantes

60 Segundo o site da Fundação Guggenheim: “Em memória de seu filho, falecido a 26 de abril de 1922, o Senador e Senhora Simon Guggenheim instituíram a John Simon Guggenheim Memorial Foundation, com o propósito de oferecer bolsas a intelectuais e artistas, a fim de assisti-los sem distinção de raça, credo ou cor e com a maior liberdade possível nas respectivas pesquisas ou criatividade, de forma a melhorar a qualidade de educação e a prática profissional e artística, estimular a pesquisa e contribuir para maior compreensão internacional” (cf. http://www.gf.org/portug.html).

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frente às dificuldades do narrador-escritor em prosseguir com seu trabalho de escrita. Ao contrário, as instituições estrangeiras – a Universidade de Berkeley (mencionada explicitamente), a Fundação Guggenheim (referida apenas como “Fundação” ou “Fundação americana”) e o King’s College (metonimizado na figura de “um cidadão inglês” que o convidara para vir a Londres “em uma espécie de missão”61)– são presenças fortes, elementos estruturantes do texto, constituindo até mesmo um marco de ruptura na vida do personagem, possibilitando, sobretudo, que o narrador-escritor prossiga com seu trabalho de escrita; tudo se passa, nesses dois livros, como se o narrador-escritor fosse um deixado-de-fora pelas instituições universitárias brasileiras, ao mesmo tempo em que ele, por sua vez, também as deixa de fora, no caso, de sua obra. Em outras palavras: as atividades acadêmicas brasileiras de Noll não foram incluídas ficcionalmente em sua ficção recente.

O início de Berkeley em Bellagio já mostra essas tensões tanto entre o Noll-escritor e o personagem-escritor quanto entre a não efetividade da universidade brasileira e a performance do falar inglês associada à esfera universitária norte-americana e globalizada:

Ele não falava inglês. Quando deu seu primeiro passeio pelo campus de Berkeley, viu não estar motivado. Saberia voltar atrás? Não se arrependeria ao ter de mendigar de novo em seu país de origem? Fingir que não pedia pedindo refeições, ou a casa de veraneio de um amigo em pleno inverno para escrever um novo livro – ah, quando os pingüins chegam à costa daquele extremo sul do Brasil, o vento passa destelhando e uma voz noturna chama, chama pelo desaparecido infame... Ele não fala inglês e se perguntava se algum dia arranjaria disposição para aprender mais uma língua além do seu português viciado... (p. 9) [o grifo é meu]

61 J. G. Noll, Lorde, São Paulo, Francis, 2004, p. 9.

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Assim, sem aparentemente – ou marcantemente – ter participado da universidade, admitindo “não ser um cara de altas formações acadêmicas” (p. 16), o narrador-escritor chega a Berkeley sem falar inglês, sem falar, portanto, a língua da universidade, sem estar efetivamente inserido na dinâmica universitária globalizada. O que não fica claro é se o narrador-escritor não participou da universidade no Brasil ou se é a universidade brasileira que deve ser entendida – apesar de Rodrigues-Filho ter numerosos colegas como ele – como não ainda universidade: como não ainda (o que é, pelo visto, um pressuposto para sua internacionalização e pujança) falando inglês.

Embora livros de escritores-brasileiros-vivendo-no-exterior-como-bolsistas-de-instituições-estrangeiras sejam em si já quase um gênero literário, a presença e problematização da instituição universitária é na literatura e na cultura brasileiras, em comparação com os Estados Unidos, escassa. Isso não é exatamente uma surpresa. Afinal, várias das principais universidades norte-americanas existem há mais de um século ou até há bem mais que isso, constituindo uma robusta história de ensino e pesquisa. A University of California, por exemplo, tem suas origens relacionadas à corrida do ouro em meados do século XIX, tendo sido fundada a partir da fusão de algumas instituições de caráter universitário em 1868. Universidade de Harvard, a mais antiga universidade norte-americana, atualmente a primeira no ranking das melhores universidades do mundo62, foi fundada em 163663. É verdade, contudo, que Harvard foi reestruturada como uma moderna universidade de pesquisa apenas na segunda metade do século XIX; o que se passa, porém, é que essa reforma não só se dá com base já

62 Ver: http://ed.sjtu.edu.cn/rank/2006/ARWU2006_Top100.htm. Evidentemente, não estou aqui implicitamente aceitando os critérios metodológicos da avaliação (sobre isso ver: http://ed.sjtu.edu.cn/rank/2006/ARWU2006Methodology.htm), ou mesmo que uma avaliação desse tipo seja possível. Apenas estou me referindo a um ranking muito divulgado pela mídia e que aparentemente tem grande efeito no mundo acadêmico. 63 Diferentemente do Brasil, onde a Coroa portuguesa proibia a criação de instituições de ensino superior, e só no século XX foram fundadas as primeiras universidades, na América espanhola, desde o século XVI foram fundadas diversas universidades, o que, contudo, não levou a que universidades modernas, com relevância social e econômica, propulsionando a industrialização, fossem constituídas senão recentemente.

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em uma considerável história acadêmica como também servil como o modelo que foi assimilado pelas universidades já existentes. Em outras palavras, a universidade faz parte da sociedade e da cultura norte-americanas desde o século XVII, vindo a crescer e a se modernizar potencializando o desenvolvimento econômico do país. No Brasil, a universidade começou a se modernizar em uma dimensão mais ampla somente a partir da década de 1970. Nos Estados Unidos, a universidade está há muito entranhada na sociedade e na cultura. A Ivy League, por exemplo, tem numerosas referências em Os Simpsons64. Harvard é o cenário de diversos filmes desde Love Story até Legalmente loira; Robert Langdon, em O código Da Vinci, é professor de simbologia em Harvard65. E a Universidade de Berkeley, onde tanto Noll quanto seu personagem estiveram, aparece, da mesma maneira, em diversos filmes, possuindo uma extensa lista de ex-alunos ficcionais: desde Elaine (a filha da Mrs. Robinson, na Primeira Noite de um Homem) até a dra. Christina Yang, em Grey’s Anatomy, passando ainda por Katherine Watson, a personagem feminista de Julia Roberts em O Sorriso de Monalisa66. E é também a Universidade de Berkeley que o inglês David Lodge, então professor em Birmigham, satirizou no livro Changing Places, de 197567. Ou seja, na mídia norte-americana, seria fácil reunir numerosos exemplos de filmes e seriados em que a universidade é importante agente dramático. Na literatura, também. Em alguns livros de Updike, Roth ou Barth, por exemplo, a universidade tem papel de destaque. Além disso, cabe mencionar que muitos dos mais conhecidos escritores norte-americanos trabalharam por longos ou por múltiplos períodos em universidades; alguns exemplos são: Ellison, Roth, Barth, Heller, Coover, Vonnegut entre outros (todos estes, no Brasil de hoje, teriam de ter seu currículo Lattes). Particularmente interessante para nós é Vonnegut que, na década de 60, lecionou no curso para formação de escrito da

64 http://www.snpp.com/guides/ivy.html. 65 http://en.wikipedia.org/wiki/Harvard_University. 66 Há uma lista de ex-alunos ficcionais de Berkeley em http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_University_of_California%2C_Berkeley_alumni#Fictional. Em O Sorriso de Monalisa, é dito que a Miss Watson é formada por uma suposta Oakland State University, que, no contexto, deve, sem dúvida, ser entendida como um nome ficcional para a Universidade de Berkeley. 67 David Lodge, Changing Places, Penguin, 1992.

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Universidade de Iowa, onde Noll, como já mencionado, esteve em 1982; além disso, Vonnegut, em 1967, tal como Noll em 2002, recebeu uma bolsa da Fundação Guggenheim, também indo por meio dela à Europa; mas não à Bellagio de Noll, e sim de volta a Dresden, onde sobrevivera em 1945 a um bombardeio incendiário arrasador; e, ainda, a bolsa de Vonnegut também serviu, tal como para Noll, para que ele escrevesse um livro, Slaughterhouse Five68, publicado em 1968 (transformado em filme em 1972), onde a guerra e a incompreensão entre os seres humanos são tematizadas; questões que, ainda que com ênfase diferente, aparecem em Berkeley em Bellagio.

No Brasil a universidade raramente é vista no cinema, na televisão ou na literatura; e, quando aparece, em geral é apenas como cenário, pouco contribuindo para o andamento da trama. Tampouco se pode dizer que os escritores de maior destaque no Brasil chegam a ter uma relação estreita com a universidade. Mas, em Berkeley em Bellagio, o deslocamento do narrador para a Universidade de Berkeley, com seus “bosques” (p. 19) e “pesados prédios” (p. 14), um espaço estranho a ele, onde se fala o inglês, é um dos principais desencadeantes da narrativa, onde a tensão – exacerbada em Bellagio – entre, de um lado, ser brasileiro, desvalorizado e falante do português e, de outro, ser estrangeiro, recebendo o investimento de uma bolsa para trabalhar com liberdade e criatividade69 ou, em outras palavras, entre o escrever literariamente em português e o falar inglês se mantém por todo o livro.

Nas primeiras páginas de Berkeley em Bellagio, a ênfase nas dificuldades de falar inglês é constante. O narrador até consegue se comunicar quanto ao essencial do dia-a-dia: “Claro, sabia pedir um sanduíche, uma coca, algo assim”; contudo, só alcança a vida intelectual, isto é, só dá suas aulas em português: “no mais falava com seus alunos de cultura brasileira em português” (p. 11). Ou seja, ele não falava inglês, mas os alunos da Universidade de Berkeley falam inglês e português. E isso gera nele desconfiança sobre o que eles irão fazer com o que estão aprendendo; desconfiança, entretanto, que também se aplica ao que ele mesmo esteja fazendo,

68 Kurt Vonnegut, Matadouro 5, Porto Alegre, L&PM, 2005. 69 Ver nota acima sobre a Fundação Guggenheim.

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ao que ele, um desempregado que chegou aos Estados Unidos com “menos de cem dólares” no bolso (p. 16), depois de sucessivas humilhações para obter um visto repetidamente negado, veio fazer:

Fez [isto é, o personagem-escritor] três vezes em vinte dias Porto Alegre – São Paulo – Porto Alegre de ônibus rumo ao consulado americano, dinheiro emprestado, levando recortes de jornais comentando seu período como escritor-residente em Berkeley, agora como futuro professor convidado, dando cursos sobre Clarice, Graciliano, Raduan, Caio, Mirisola e alguns outros, mais alguns cursos sobre MPB, quando ele cantava, ele que gostava de cantar desde pequeno, cantava sobretudo bossa nova e tropicália como um emissário de pérolas brasileiras que os alunos americanos pareciam receber com a efusão conveniente às melhores notas – para depois operar as mais produtivas relações

internacionais para o país deles controlar

melhor o cosmos.” (p. 14) [grifo meu] O narrador sabe, portanto, que, mesmo dando o melhor de si

para apresentar o melhor do Brasil, ele está, em última instância, é colaborando com a dominação dos Estados Unidos sobre o mundo, o que ele, deixando transparecer laivos de paranóia, entende como um controle sobre todo o “cosmos”. Seja como for, ao menos quanto à busca de controle sobre a América Latina, enfim, quanto às relações escusas entre a esfera universitária globalizada e a esfera político-militar, o narrador não tem dúvidas, já que ele sabe que Maria, uma antropóloga brasileira, amiga sua em Berkeley, estuda na “Escuela de las Americas, um instituto norte-americano, algo assim, se não me engano no Estado da Geórgia, formando militares e ditadores para a América Latina, como, por exemplo, o argentino Gautieri” (p. 13). No entanto, apesar de não desconhecer ingenuamente o caráter ambíguo de sua posição de possível colaborador dessa dominação norte-americana, também não se considera conivente com ela, pois sua situação é, antes, a de ter fugido da “falta de trabalho” e da falta

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“do convívio em volta de uma mesa de refeição, sob um endereço seguro” (p. 10)70. Foi, portanto, sua situação aflitivamente precária que, superadas as dificuldades do visto, o levou a ir para Berkeley; e é o medo de retornar a essa situação que o leva a pensar em “viver definitivamente naquele país com um bom salário de professor de cultura brasileira” (p. 11). Mas para ter esse salário, que pelo visto não era possível no Brasil – ou ao menos não o era na UERJ –, ele tem que aprender inglês, ou seja, “precisava mesmo era ir à ação, falar inglês, testemunhar nessa língua a todos que pudessem se interessar pela sua vida” (p. 11), quer dizer, ele precisaria sair da passividade que é o falar português – a ação estaria, portanto, no falar inglês –; contudo, ele antevê um possível problema nesse anseio, que nem seria só dele, mas aparentemente de outros brasileiros, enfim, o anseio de conhecer “a bem-aventurança de aprender uma nova língua, sim, todos pareciam querer sair do abrigo da língua portuguesa” (p. 20); sua hesitação se deve a ele, pela peculiaridade de seu ofício de escritor, ser uma exceção: “menos ele, escritor, que temia se extraviar de sua própria língua sem ter por conseqüência o que contar” (p. 20). Enquanto Rodrigues-Filho tem que escrever em inglês para sobreviver, enquanto será tanto melhor para ele quanto mais rápido ele passe para o outro lado, deixando de vez “o abrigo da língua portuguesa” (p. 20); para um escritor brasileiro, extraviar-se da língua é desaparecer como escritor. Em Lorde essa tensão entre a literatura brasileira e a língua inglesa pode ser vista em um incidente bizarro, mas expressivo: o professor inglês que está escrevendo um livro sobre o narrador-escritor e o convidará a ir à Inglaterra, ao vir ao Brasil, pede diretamente ao narrador-escritor que lhe envie exemplares brasileiros de seus livros, pois não os encontrou nas livrarias por aqui71; mas, quando o narrador-escritor está em Londres e entra em uma livraria, ele logo encontra exemplares de seus livros, em tradução para o inglês72. A questão que se pode colocar, no entanto, é a de se ele teria encontrado seus livros em Londres se os tivesse, vivendo em Porto Alegre, escrito – como sua segunda língua – em inglês, e a de se ele teria sido

70 Em Lorde o narrador, para explicar sua vinda a Londres, é taxativo: “...a pura verdade vinha de que eu não tivera escolha” (p. 10). 71 J. G. Noll, Lorde, p. 11. 72 Op. cit., p. 93.

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convidado a ir a Londres se tivesse escrito seus livros, não em português, mas em seu inglês. O emprego nos Estados Unidos e mesmo já as bolsas internacionais colocariam o narrador-escritor em uma situação catch-22: ele precisa “falar inglês” para assegurar sua sobrevivência longe da precariedade de sua existência no Brasil, recebendo um bom salário na University of Berkeley, mas, se ele se dedicar a “falar inglês”, distanciando-se da língua e da vida no Brasil, não terá por que ser convidado para lecionar em Berkeley; do mesmo modo, se seus livros são vendidos em Londres, é porque eles foram traduzidos do português, mas, porque eles foram escritos em português, eles não são vendidos no Brasil, e ele vive precariamente aqui, pois os livros que vendem no Brasil – é o que podemos completar – são os que são traduzidos do inglês, de modo que, se ele, vivendo em Porto Alegre, os tivesse escrito em inglês, eles não venderiam nem em Londres nem no Brasil. Ou seja, ele é escritor porque escreve em português, mas, porque escreve em português, não vende no Brasil, mas, também porque escreve em português, ele é convidado a ir para a esfera universitária internacional, onde se vê levado a falar inglês para de fato se firmar e sair de sua situação precária, mas, se ele, ao “falar inglês”, se extraviar do português – e, pelo visto, em Berkeley em Bellagio, se extraviará –, ele deixa de ser o interessante escritor que viria a ser traduzido e convidado como bolsista.

Assim, se, por um lado, não falar inglês é posto como um problema logo na primeira frase de Berkeley em Bellagio, por outro, deixar de ser escritor em língua portuguesa é também um risco que o narrador corre desde o início ao se haver com esse problema que abre a narrativa. A bolsa da “Fundação” é para que ele possa escrever um livro livre de suas amesquinhantes preocupações com a sobrevivência, mas essa bolsa como que o abduz para um outro mundo, levando-o a “falar inglês”, esquecendo-se do português e ficando, assim, impossibilitado de escrever o livro que ele, finalmente livre das dificuldades financeiras, poderia escrever. Aquilo que possivelmente levaria a Rodrigues-Filho trabalhar com o máximo de produtividade – um generoso grant e o contato com outros pesquisadores qualificados – é, para o narrador-escritor de Berkeley em Bellagio, contraprodutivo, ou até impeditivo. Com efeito, o ato de escrita literária se mostra perpassado por

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contradições diferentes do da escrita científica. O currículo de Rodrigues-Filho mostra que a escrita científica não mais se reconhece como científica e de qualidade se ela não fala o inglês, de modo que, se ela não é em inglês, isso já é uma deficiência em cientificidade; ao contrário, a linguagem literária, talvez mesmo em inglês, não possa nunca ser em inglês, não possa nunca ser essa linguagem que busca “controlar melhor o cosmos”.

É, porém, no início de Berkeley em Bellagio, quando o narrador ainda não vivenciou em toda sua extensão o risco de se extraviar do português e não vê como resistir aos ambíguos convites, aparentemente generosos, desses que ele, entretanto, sabe – essa misteriosa “Fundação” – que são fomentadores, ou controladores, da criatividade.

Apesar da desconfiança, e mesmo apesar de – tal como em Lorde – não querer, até de relutar em ir morar fora, o narrador acaba aceitando o convite da Fundação que, dadas suas circunstâncias, lhe parece irrecusável:

Não, ele [o narrador-escritor] não queria voltar ao exterior para morar, ah, não, apenas cultivava um convite, que lhe caíra do céu, de trabalhar no seu romance por um largo tempo em Bellagio, aldeia nas proximidades de Milão, junto ao lago di Como rodeado por montanhas com picos nevados... (p. 20) [o grifo é meu]

Embora na Itália, esse “palácio” mantido pela tal Fundação

norte-americana também é um lugar onde se fala inglês: é um espaço acadêmico; os que estavam aí eram “a maior parte acadêmicos americanos de áreas mais voltadas às ciências, tecnologia” (p. 24). É esse, digamos, inglês tecnológico que seria o mais danoso para a escrita literária do narrador; ao que parece, é o inglês acadêmico-tecnológico o grande risco para o ato de escrita, para o seu livro, que, aliás, o que não surpreende, nessa Bellagio maravilhosa, mas antiliterária, “teimava em não avançar” (p. 24). E a estada em Bellagio, seu contato com outros residentes, se dá sempre à sombra de sua dificuldade em falar inglês, no seu “inglês de ginasiano retardado” (p. 26) e no “todo-poderoso inglês” (p. 27)

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que, afinal, é falado por “essa cúpula de scholars” reunida nessa “‘Catedral’ americana” (p. 29). Mesmo a “Catedral” estando na Itália, é o inglês que nela impera; tampouco o francês é falado, uma língua que há pouco era ainda a principal da cultura internacional, língua que o narrador, aliás, aprendeu – cursando “cinco anos de Alliance” (p. 38) – e ainda lembra bem, não é falada, não é mais compreendida que o português (p. 37-39). Pelo visto, saber francês não eclipsou o português: o problema é o inglês, o inglês dos scholars, esse é o que é incompatível com o ato de escrita.

A passos largos, a história da relação entre o ato da escrita literária e o falar inglês em Berkeley em Bellagio pode ser contada da seguinte maneira. Primeiramente, o narrador fala apenas seu inglês de “ginasiano retardado”; nesse momento seu trabalho de escrita não avança. O que se passa é que todo esse tempo em que o narrador fica chamando a atenção para a precariedade de seu inglês pode ser entendido como um período em que ele, ainda que sem zelo ou constância, está tentando melhorá-lo; de fato, uma vez, ele se concentrou “numa região do cérebro que imaginei ser o centro de todas as línguas, um ponto que, dominado, me daria a fluência necessária para andar pelo inglês, francês, italiano, russo, finlandês, chinês, esperanto...” (p. 26), mas o que ele precisava mesmo era somente falar inglês; bastaria ter se concentrado na área do cérebro que fala inglês que ele já se comunicaria muito bem em Bellagio. Contudo, ele continuou ainda sem dominar o inglês – e, digamos, sem tampouco ser dominado pelo inglês –, vivendo à parte naquele “reino quase absoluto dos scholars” (p. 40), onde a maioria era de “acadêmicos americanos de áreas mais voltadas às ciências” (p. 24). No entanto, esse esforço de concentração teve resultado, ou algum outro evento miraculoso – digamos, algo como que “caído do céu” – se sucedeu, de modo que de repente o narrador se surpreendeu falando inglês: “It’s ok, it’s ok” (p. 55). E “naquele instante” constatou que

“...eu já pensava em inglês, já não conseguia processar um pensamento que não fosse em inglês, se me perguntassem de onde tinha vindo a repentina fluência nessa língua, um cínico que me ouvia cá dentro responderia que eu fora

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iluminado durante o meu longo sono pelo Espírito Santo – Holly Ghost, é lógico, tudo em inglês.” (p. 55) [o grifo é meu]

É um momento de virada na narrativa ou de agravamento

máximo de uma crise. Seria o momento em que o narrador-escritor passou para o outro lado, ou pensa que passou. Ele fala em ter sido “iluminado”, mas, à parte a fluência que ele, de algum modo desinibindo-se, pode ter passado a ter, seu inglês é, na melhor das hipóteses, dúbio; afinal, ele fala coisas como: “Holly” (e não: “Holy”) e, logo abaixo, “I’m understanding”. Sua percepção, porém, é a de que ele domina o inglês: “Confesso que no meu primeiro pensamento aceitei essa condenação de dominar apenas uma nova e mais do que poderosa língua, não nego” (p. 56). Ele chega a considerar seu inglês como “irretocável” (p. 57-58). Ele não percebe que não só na sintaxe e no vocabulário, mas provavelmente também na pronúncia e entonação, ele reproduz, ainda que, devido à fluência, com mais possibilidade de aceitação, os mesmos estigmas que o põe como subalterno. Mas será ao se dar conta do quanto seu trabalho de escrita, no que toca ao estilo e temática, é diferente de uma certa prática norte-americana de escrita de sucesso que ele verá que, mesmo falando com fluência, ele não se tornou – e não pode se tornar – um norte-americano. É ao conversar com um escritor, um playwriter e também professor da Universidade de Chicago (afinal lá, ao contrário de no Brasil, as universidades – paradoxalmente? – valorizam, ou ao menos remuneram satisfatoriamente, os escritores, ainda que, no caso, como se verá, possam ser escritores lirerariamente criticáveis) que ele se dá conta de como suas concepções literárias são discordantes:

“...ele pergunta sobre o que que eu escrevo, vou lá filosofando em torno do meu personagem de sempre que aparece a cada livro; ele pergunta meio irritado o que acontece de fato nos meus livros, digo que não sei contar talvez porque nada aconteça de fato nessas minhas histórias, mas conte, conte o que de fato acontece nesse não-acontecer –, nada, pára!, respondo no meu inglês

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irretocável, de um golpe entendo o mood

americano para a ação, tá certo, fora da ação eles não ficam muito tempo, querem sempre o movimento em progressão, mais e mais, e mais ainda, não importa para quê, se para matar, dominar, construir morrer, salvar, armar, mas que se siga adiante; esse escritor americano por exemplo na minha frente só tem um desafio a fazer a seus alunos na Universidade de Chicago, ele conta: não quero saber do sentido dessas coisas que os personagens fazem, a pergunta é: o que acontece, o que acontece, contem, contem, o resto é ninharia para enrolar a fome intelectual dos povos subalternos... (p.57-58) [o grifo é meu]

Estar, ou sentir que ele está, dentro da língua norte-americana

possibilitou ao narrador entender o culto à ação (o “mood americano”) que seria próprio a esses norte-americanos de Bellagio, próprio até mesmo a esse escritor, ou antes, playwriter. Mesmo supostamente fluente no inglês, o narrador se vê levado a constatar que está longe de escrever da mesma maneira, ou seja, de escrever no mesmo inglês; ainda que ele tenha esquecido o português, ainda que agora ele tenha de seguir escrevendo com palavras e verbos ingleses, ele não conseguirá persistir no mood americano da ação pela ação:

Eu quase me encolho diante das assertivas dele, os meus romances então não passam de seqüelas do subdesenvolvimento, esses personagens um tanto crônicos que faço, que não sabem nem para onde ir, se for verdade que procuram algum caminho; ainda não encontraram nem ao menos a técnica mais elementar da vida, ou seja, não sabem como lançar a intenção num gesto claro, soberano, preciso – só assim, diz ele, o cara se destaca da natureza e passa a cavar seu próprio enredo. (p. 58) [o grifo é meu]

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Se o narrador se tornou, em alguma medida, fluente no inglês, isso o levou foi, ao entender o mood norte-americano, a reforçar sua diferença irredutível a ele. Assim, se, num primeiro momento, quando se sente fluente no inglês, ele chega a pensar que o “romance que vim escrever aqui...” “...avança”, na verdade, depois desse deslumbramento inicial, ao qual se sucede essa conversa com o playwriter, logo acima relatada, não há de fato nada que indique que o romance efetivamente avança até ele já ter retornado ao Brasil e estar se enfrentando com o problema de voltar a falar português, ou antes, de voltar a pensar em português, o que ele, com sua repentina fluência no inglês, havia perdido (“só consigo pensar em inglês” – p. 62), quando ele, após reconhecer que “devagarinho vou ganhando a lembrança do meu português” (p. 87), percebe que “logo recomeçarei a trabalhar no meu romance” (p. 87). Daí em diante, certamente em português, a escrita do romance volta a ser mencionada explicitamente mais duas vezes: “e eu avançava no meu livro” (p. 91) e “a escrita do meu livro em curso” (p. 94). Se ele, porém, volta a interromper sua escrita, não é porque esteja impossibilitado internamente, lingüisticamente, a escrevê-lo, mas para dar atenção a Sarita, à filha de seu namorado, levando-a até o campo de refugiados. Isso, no entanto, é mais uma aventura lingüística em Berkeley em Bellagio. No campo de refugiados, Sarita encontra, por ela mesma, a menina refugiada, uma “afegã ou avizinhada” (p. 79) que o narrador havia visto no avião (e depois contado sobre ela à Sarita), quando, “depois do desastre” (p. 78)73, essa menina e muitos outros migravam para Porto Alegre (a “cidade que costuma sediar o Fórum Social Mundial” – p. 78):

Milagrosamente, Sarita descobria por si mesma que aquela era a menina sobre a qual eu lhe contara, a tal criança fugitiva da guerra junto a seu povo, atravessando mares, continentes e agora ali, com os pés no barro da chuva que caíra à noite anterior pela cidade e arredores... (p. 103) [o grifo é meu]

73 Desastre que, sem dúvida, poderia ser uma guerra, até mesmo a guerra no Afeganistão, já que a narrativa, o que está nela mesma indicado, se desenvolve após a “queda das torres em Nova York” (p. 46).

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Há, portanto, uma atração recíproca entre as jovens meninas.

Elas vão espontaneamente uma ao encontro da outra:

Sarita disse oh, assim mesmo, oh, como se ainda não soubesse falar, virgem de semântica. É que ela descobria naturalmente como ensinar uma língua para um ser estrangeiro –, isso não se aprende, é puro dom, assim oh, OH!, como se estalasse o primeiro sentido da espécie... (p. 103) [o grifo é meu]

Ao contrário do que se passava em Bellagio, onde um grupo

com forte presença masculina se comunicava preferencialmente em inglês, enfim, um grupo que tinha o inglês como a língua supostamente universal, mas que excluía ou punha como subalternos os estrangeiros, aqui duas meninas, pela imediatidade de expressões carregadas de sentimento, “OH!”, se aproximam e se entendem, como que reciprocamente ensinam uma para a outra uma língua que parte de um estágio pré-semântico, que não está sobrecarregada de saberes codificados pelos scholars. Ao contrário de se reunirem em um palácio, o encontro se dá em um acampamento. E, ao contrário das propostas paternalistas e prepotentes – evidentemente, estruturalmente ineficazes – de fazer “mutirões de dedicados voluntários” dos quais dependeria “o desenvolvimento de países pobres” (p. 17)74, há a solidariedade espontânea entre duas meninas que se vêem como iguais e amigas. As interjeições, em especial: “oh!”, são como que a marca de uma linguagem utópica que criaria uma solidariedade própria aos bons

74 Em duas passagens de Berkeley em Bellagio surge a proposta cínica da realização de mutirões de voluntários para tutelar os povos excluídos do circuito globalizado do tecnoanglicismo: a passagem citada, que expressa a posição de uma aluna de Berkeley, e uma outra, que seria algo dito pelo playwriter: “ele mesmo respondia: acabar com os governos corruptos, desentravar o processo democrático em cada região, pegando a tal, a mitológica oportunidade a todo cidadão [...] não é preciso revolução de espécie alguma, tudo tem seu próprio ritmo – democracia, educação para as massas e, enfim, a tecnologia, a única maneira de todos se acessarem mutuamente; enfim, é esse o mais ambicioso programa dessa hora, e só com mutirões de voluntários teremos condições de aplicá-lo pelo mundo...” (p. 45-46 – o grifo é meu).

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selvagens, representadas quintessencialmente como a amizade espontânea de duas jovens meninas. O encontro delas é, porém, só a culminância, só a manifestação mais palpável desta linguagem pré-semântica associada a uma solidariedade que parece estar excluída da linguagem tecnológico-acadêmica da ação, isto é, do falar “inglês” ou, mais exatamente, do falar o tecnoinglês da ação para a dominação do cosmos; de fato, as interjeições, tal como uma tentativa do narrador de Berkeley em Bellagio de gerar, em contrapartida ao aprendizado alienante do inglês, uma solidariedade com quem lê (ou mesmo, quem sabe, deva-se dizer, com as leitoras, isto é, com quem souber ler o livro tal como uma jovem menina amiga), surgindo já na primeira página (“ah” – p. 9), perpassam toda a narrativa do livro, até sua última eclosão na página final do livro. Uma eclosão que também se dá, tal como parece ser próprio ao fenômeno lingüístico em suas diversas manifestações, com referência, em última instância, a alguma atividade supra-humana, o que é assinalado pelo uso das expressões: “Milagrosamente” e “puro dom” (ver meu grifo nas duas longas citações acima).

Ou seja, a escrita de Berkeley em Bellagio se desenvolveria tensionada entre o “Ele não falava inglês”, na primeira linha, e o “disse oh”, no último parágrafo, enfim, entre a linguagem tecnoacadêmica da ação e o sentimento pré-semântico da amizade espontânea (isto é, da sinceridade absoluta), o que é também, por um lado, a tecnoacademia globalizada relacionada à guerra e à migração forçada e, por outro, a militância social mundial relacionada à paz e ao acolhimento.

Entre uma e outra linguagem – entre o tecnoinglês da ação e da dominação e a OH!-língua da solidariedade e da sinceridade absoluta –, há ainda uma terceira: a linguagem sexual do corpo. Os corpos se comunicam sexualmente ao longo do livro. O ato sexual cria alianças entre corpos. Há sexo entre homem e mulher, entre homem e homem e entre mulher e mulher. No sexo, tanto os iguais quanto opostos se comunicam. Assim, o narrador tem um namorado em Porto Alegre, depois uma amiga em Berkeley; interage com um ragazzo em Bellagio, e reencontra seu namorado em Porto Alegre. Também os demais convidados da Fundação em Berkeley têm relações sexuais, homo e heterossexuais. Contudo, apesar de sua tolerante universalidade e apesar de possibilitar algumas

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aproximações entre as pessoas, o ato sexual não parece capaz de alterar a lógica do poder própria ao falar inglês, não parecendo favorecer nem aos que falam inglês nem aos que buscam se comunicar de um modo pré-semântico; de fato, em Bellagio, até mesmo o “Bispo” tem mulher e uma filha e nem por isso deixa de ser “Bispo” (p. 75)75. Ou seja, o sexo cria uma rede de encontros, possibilita uma comunicação através do gozo dos corpos, mas aparentemente não muda em nada a lógica globalizadora do macropoder. O quanto o sexo atua sobre os micropoderes, possibilitando uma micro-história de confrontos e conquistas é um tema que deixo em aberto no presente ensaio.

O que se vê, portanto, é que um marcante evento de cunho autobiográfico de Noll implantado ficcionalmente em seu narrador-escritor que viaja a convite de instituições da esfera universitária globalizada é o da experiência da linguagem, da resistência da escrita literária brasileira, ou mesmo porto-alegrense, frente ao tecnoinglês, bem como a tentativa de explorar outras dimensões expressivas da linguagem. Assim, o livro Berkeley em Bellagio é o resultado de aventuras problematizantes da linguagem. O aprendizado de uma dessas aventuras, ou seja, uma interpretação possível do livro, é entendê-lo como uma crítica à universidade em sua dinâmica global não só de dominação linguístico-conceitual, mas também de associação com governos autoritários e mesmo com guerras.

Embora Berkeley em Bellagio não seja conclusivo – de fato, é um livro em aberto, terminando com reticências –, é, sem dúvida, um livro que aponta para o convívio pacífico entre os povos por meio de outras vias de contato que não sejam os órgãos inteiramente controlados pela tecnoacademia elitista e paternalista que nutrem associações escusas com ditaduras e guerras. Quem promoveria essa nova fraternidade mundial seriam exatamente os desterrados, os sem-terra76 e, em especial, os migrantes sem pátria. Assim, o livro, no final, ainda que sempre inconclusivamente, está retomando a

75 “...vou em frente para o gabinete do “Bispo” da Fundação, o bondoso homem. Ele está sentado junto à lareira acesa, a sua mulher (sim, ele tem uma, mesmo que o homem não largue suas vistosas vestes eclesiais) lendo um policial israelense, a filha adolescente na janela...” (p. 75). 76 O Movimento dos Sem-Terra é citado nas p. 19 e 20.

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proposta de O homem unidimensional77, de Marcuse, que, ao citar Benjamin no último parágrafo, põe toda a esperança do mundo, totalmente dominado pela tecnociência, naqueles que, marginalizados, não tendo mais nada a perder, podem radicalmente se rebelar. A “Grande Recusa” só seria possível devido àqueles que, embora sem esperança, lhe dariam, no entanto, a vida.

Curiosamente, The one-dimensional man, publicado em 1964, e primeiramente em inglês, é a culminância de anos de trabalho de Marcuse em universidades norte-americanas, ou seja, pelo visto, por mais rebelde que se seja, por mais sem-esperança que se seja, acaba-se por retornar – ainda que para reivindicar a força dos sem-esperança – à esfera universitária globalizada. Se esse livro de Marcuse é paranóico ao reconhecer que “as tendências totalitárias da sociedade unidimensional torna os modos e os meios tradicionais de protesto inefetivos” (cap. 10), Berkeley em Bellagio, na medida em que não deixa nenhuma possibilidade para um pensamento crítico que não seja, em algum momento, reconduzido para a universidade norte-americana – ou seja, para a “poderosa língua”, que é o tecnoinglês –, também o é. E se Marcuse em O homem unidimensional considera que:

“...sob a base popular conservadora há o substrato de desterrados e excluídos, os explorados e perseguidos de outras raças e outras cores, os desempregados e os inempregáveis. Eles estão fora do processo democrático; a vida deles é a mais imediata e a mais real necessidade de que se ponha fim em condições de vida e instituições intoleráveis. Assim, a oposição deles é revolucionária, ainda que a consciência deles não seja. A oposição que eles exercem golpeia o sistema de fora e, por isso, não é evitada pelo sistema...”

Em Berkeley em Bellagio, os imigrantes, bem como seus

idiomas e suas meninas, são os destituídos nos quais está depositada

77 Utilizo para citação a versão online em inglês do site: http://www.marcuse.org/herbert/pubs/64onedim/odmintro.html.

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uma possibilidade de romper com a unidimensionalidade da dominação acadêmico-militar norte-americana.

Além de tudo isso, O homem unidimensional se detém longamente exatamente na questão da linguagem e sua força unidimensionalizante, especialmente no capítulo intitulado: “O fechamento do universo do discurso”. Nesse capítulo, vários usos de linguagem são apresentados e analisados, inclusive o uso de siglas como NATO, URSS etc. demonstrando como, por meio desses diversos dispositivos, é o próprio pensamento que é bloqueado em suas possibilidades críticas. Essa língua unidimensionalizada corresponde ao falar inglês de Berkeley em Bellagio. Marcuse começa esse capítulo com uma expressiva passagem de Barthes:

“No atual momento da história, toda a escrita política não pode mais do que confirmar um universo policial, do mesmo modo a escrita intelectual não pode senão instituir uma para-literatura, que não mais ousa dizer seu nome.” (Epígrafe do Capítulo 4) [o grifo é meu]

Essa citação será ainda mais provocativa se nos pusermos a

pensá-la em relação tanto ao próprio livro que a cita quanto a Berkeley em Bellagio. Afinal, O homem unidimensional é uma escrita política que confirma o universo policial. Seu poder de gerar contestação, portanto, só pode estar em seu efeito literário, em seu efeito de subversão da linguagem tecnológica totalitária que ele descreve e, nisso, mobiliza as forças contrárias que tanto mais se rebelam quanto mais lêem que a rebelião é impossível. A avassaladora dominação unidimensional da ordem tecnológica é multifaceticamente descrita, mas nunca como triunfo absoluto, se bem que fique ao encargo de quem lê reconhecê-la não como derrota asfixiante, mas como tarefa revolucionária. Assim, apesar de saber-se um produto do “universo policial” e de confirmá-lo com todas as letras e siglas, O homem unidimensional gera nos leitores a estranheza de eles serem incontornavelmente unidimensionais, deixando-os desconfortáveis com eles mesmos, ou seja, o livro gera um desconforto que, muito pela verve de sua escrita, se transmuta

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em revolta. Contudo, sobre a linguagem destes revoltosos nada é dito.

De fato, o narrador de Berkeley em Bellagio desde o início se sente desconfortável, se sente à margem da língua tecnoacadêmica, que, porém, ele reconhece como poderosa, ou mesmo “todo-poderosa”. O desconforto só parece se amenizar quando ele passa a ter fluência em inglês, mas logo volta quando percebe que seu estilo e sua temática são incompatíveis com o mood norte-americano. De toda forma, o desconforto do narrador o põe numa posição de rebeldia frente à grandiosa e magnífica ordem tecnoacadêmica patrocinada pela “Fundação”. Enfim, o narrador, tal como seus personagens, é um “crônico”. Aos Hoffnuglosen de Benjamin, citados por Marcuse, correspondem os “crônicos” ficcionais do narrador (e também os de Noll). No entanto, o mais característico desse narrador-“crônico” de Berkeley em Bellagio é que é a escrita que o resgata da não-cronicidade de sua suposta fluência no inglês, enfim, da linguagem unidimensional da ação pela ação. Ou seja, toda a viagem do narrador a Bellagio pode ser entendida como uma tentativa da “Fundação” de unidimensionalizar sua escrita.

E é também, como veremos, para fugir da unidimensionalidade da linguagem que Vonnegut precisou de 23 anos para conseguir escrever sobre suas vivências em Dresden:

Quando voltei para casa depois da Segunda Guerra Mundial, há vinte e três anos, achei que seria fácil escrever sobre a destruição de Dresden, já que tudo o que eu teria de fazer seria relatar o que eu tinha visto. E também acreditei que resultaria em uma obra-prima, ou que me renderia muito dinheiro, já que o assunto era tão grandioso. (p. 8; M5)78

Ora, o perigo que o espreitava era o de escrever não literatura,

mas, tal como Barthes se expressa, “para-literatura”: a descrição grandiosa do acontecimento confirmaria o acontecimento como padrão de conduta; e o acontecimento, em última instância, era a guerra, o sem sentido da morte de milhares de seres humanos.

78 Kurt Vonnegut, op. cit.; as citações referentes a Matadouro 5 serão feitas diretamente no texto do artigo indicando o número da página seguido de “M5”.

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Quem incisivamente percebeu o perigo da para-literatura foi a esposa de O’Hare, um amigo seu dos tempos de guerra. Quando o visitava, Vonnegut tentava lembrar com o amigo as coisas que haviam se passado com eles; mas pouco lhes vinha à memória. Enquanto isso, Mary, a esposa de O’Hare, rondava os dois com evidente irritação. Interpelada por Vonnegut pelo motivo da irritação, ela respondeu que era porque ela sabia como Vonnegut contaria a sua história sobre a guerra:

Você vai fingir que vocês eram homens em vez de crianças. E vocês serão interpretados no cinema por Frank Sinatra e John Wayne ou algum outro desses safados glamourosos e defensores da guerra. E a guerra vai parecer maravilhosa, para que tenhamos outras delas. E elas serão lutadas por crianças como as que estão lá em cima [brincando no quarto delas]. (p. 21)

Então, tendo entendido os receios de Mary e se comprometido

a não fazer a guerra parecer maravilhosa: “dou a minha palavra de honra: não haverá nenhum papel para Frank Sinatra e John Wayne” (p. 22), o livro pôde ser escrito. E o personagem central do livro, que, segundo Mary, era uma criança, é, como diria o narrador de Noll, um “crônico” sobre quem a guerra, com toda a sua crueldade, se abate.

Nesses vinte e três anos, portanto, Vonnegut mudou sua concepção de como abordar o tema e aperfeiçoou seu modo de escrita. O que ele busca passar aos leitores e leitoras não são só os horrores da guerra – afinal isso seria uma forma de, ao reforçar as cores trágicas do cenário de fundo, potencializar o glamour –, mas sobretudo o não-sentido da guerra (e da vida), de modo que esse não-sentido ressurja inquietantemente no ato de leitura. Para isso ele recorrerá a narrativas concorrentes, temporalmente não-lineares, e que, ao final, se sobrepõem sem se harmonizarem. Nessas narrativas a linguagem também é posta em questão de diferentes modos (por vezes, contudo, com semelhanças ao que é discutido em Berkeley em Bellagio).

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Matadouro 5 tem dez capítulos. No primeiro e no décimo, quem fala é Vonnegut. Ele comenta as dificuldades para escrever o livro. Logo na primeira página, ele menciona que voltou a Dresden, em 1967, “com dinheiro da fundação Guggenheim (que Deus a mantenha)” (p. 7; M5), que, como comentarei mais abaixo, é uma atitude contrária a de Noll que não só não menciona o nome da fundação quanto se mostra desconfiado dela, considerando-a associada ao, digamos, complexo universitário-militar globalizado. No capítulo dois, começa a história de Billy Pilgrim. Como já mencionei, ela é narrada não-linearmente, um recurso, a meu ver, utilizado para dar destaque a episódios da guerra e do cotidiano, mencionando-os abruptamente, de modo a reforçar sua incompreensibilidade, mantendo os leitores e leitoras em um estado de perplexidade frente à impossibilidade de síntese de um sentido para a vida humana. Ao contrário do que preconiza o playwriter de Chicago, que, recusando-se a parar para pensar no sentido, só quer saber da ação, isto é, da ação que John Wayne pode interpretar no cinema, Vonnegut, instado por Mary, a quem o livro é dedicado (ou seja, apesar do trabalho estilístico realizado pelo signatário Vonnegut, sendo oficialmente uniautoral, Matadouro 5, também é uma autoria coletiva, ainda que ao modo literário, pois foi provocado por Mary), busca deixar para os leitores e leitoras uma sensação de não-sentido da guerra e da vida; mas essa perplexidade frente ao não-sentido, que a colocação da questão pelo sentido pode suscitar, é algo de que, a princípio, em sua linguagem literária, ou antes, “para-literária”, o playwriter – não podendo dominar – foge. Contudo, na medida do possível, para apresentar um resumo, vou contar o enredo de Matadouro 5 linearmente.

Billy Pilgrim, tal como o narrador de Berkeley em Bellagio e os seus personagem (bem como os personagens de Noll) é um “crônico”. Ele não é, de modo algum, um herói, tampouco um herói à la John Wayne; magro e desajeitado, sem presença de espírito, dócil ao destino, ele equivale a uma criança largada no mundo. Billy nasceu em Ilium, no estado de Nova York, em 1922. Começou a estudar optometria (optometrist é o técnico que trabalha em uma ótica) pouco antes de ser convocado para a guerra na Europa. Após um treino rápido e insuficiente, ele toma parte na Batalha de Ardènnes, em dezembro de 1944, e é capturado pelos alemães.

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Pouco antes, ele se torna, pela primeira vez, “solto no tempo” (unstuck in time). Não há nenhuma explicação sobre sua condição de ficar “solto no tempo”, isto é, de ele subitamente se deslocar mentalmente para um outro período de sua vida, no passado ou no futuro; isso se dá como que, usando um termo de Noll, “miraculosamente”; de fato, é como se ele tivesse aprendido subitamente uma outra linguagem, uma linguagem todo-poderosa, no caso a linguagem, como veremos, dos trafalmadorianos.

Tendo sido preso pelos alemães, ele é enviado primeiramente para um campo de prisioneiros onde vê tanto russos morrendo quanto alguns oficiais ingleses vivendo confortavelmente desde o início guerra (eles receberam, logo ao serem presos, uma remessa desproporcional de mantimentos pela Cruz Vermelha). Os ingleses, que parecem não cuidar dos russos moribundos, oferecem um lauto jantar para os americanos, que, após estarem havia muito tempo sem comer, ficam com diarréia. Os americanos são, a seguir, levados para Dresden, uma bela cidade, intacta pelos bombardeiros, sem indústrias ou destacamentos militares; não era considerada alvo potencial para bombardeios. Em Dresden, eles são postos para realizar diversos trabalhos, inclusive em uma fábrica de xarope alimentício para mulheres grávidas. Em 13 e 15 de fevereiro de 1945 (portanto próximo ao fim da guerra na Europa, em 8 de maio de 1945), Dresden é devastada por bombas incendiárias. No livro, fala-se em 130.000 mortes79, mais do que a bomba de Hiroxima (80.000 mortes). Os prisioneiros americanos, alojados em um matadouro, que tinha o número “5” pintado em uma parede externa, abrigados no porão do prédio, sobrevivem e são, depois, postos para resgatar corpos, o que se mostra impossível, de modo que os corpos passam a ser queimados com lança-chamas. Em maio, os prisioneiros são libertados pelos russos e repatriados.

De volta aos Estados Unidos, Billy termina seu curso e fica noivo de Valencia, a filha do dono da escola de optometria, mas tem um colapso nervoso, sendo tratado em um hospital para veteranos, onde é apresentado a Kilgore Trout, um escritor de ficção científica, cujos livros quase não vendem. Quando sai do hospital, Billy se casa com Valencia e, com alguma ajuda do pai dela, que é rico, Billy

79 Hoje as estimativas são de um número bem menor de mortes: entre 25.000 e 30.000; ver Wikipedia: “Bombing of Dresden in World War II”.

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também enriquece. O casal tem dois filhos. Na noite do casamento de sua filha, Billy diz ter sido raptado por trafalmadorianos. Os trafalmadorianos vivem em quatro dimensões, de modo que, para eles, o que acontece sempre está presente, antes e após ter acontecido. Abduzido para Trafalmador, Billy é posto em um zoológico, onde ele copula com a atriz pornô Montana Wildhack. No entanto, Billy, devido a alguma distorção no tempo, retorna à Terra poucos instantes após ter sido abduzido, de modo que ninguém percebe que ele esteve durante meses em um outro planeta. A princípio ele também não conta nada sobre o que se passou com ele. Só quando ele sofre um acidente de avião, ficando entre a vida e a morte em decorrência de um ferimento na cabeça, ocasião em que sua mulher, desesperada, após dirigir até o hospital em um carro danificado, morre devido à inalação de monóxido de carbono, é que ele, ao retornar para casa, vai à Nova York e, num talk show no rádio, narra suas experiências em Trafalmador e discute o conceito trafalmadoriano de tempo. É ainda durante sua convalescença do acidente que, na cama ao lado, ele conhece o professor de história de Harvard chamado Bertram Copeland Rumfoord, que exatamente estaria escrevendo sobre o bombardeio de Dresden, buscando narrá-lo favoravelmente à Força Aérea norte-americana. Apesar de ter sido expulso do talk show, depois Billy consegue uma relativa popularidade com seus relatos de Trafalmador. Pode-se assim supor que foi devido a alguma lesão cerebral (e pela influência dos livros de ficção científica de Kilgore Trout) que Billy passou a falar em Trafalmador e a se sentir solto no tempo, mas essa hipótese explicativa, ou qualquer outra, não são apresentadas nem discutidas em Matadouro 5. Seja como for, Billy, solto no tempo, revive não só suas experiências de guerra quanto seu nascimento e sua morte, que será em 1976, quando os Estados Unidos estariam balcanizados em pequenos países, e Chicago foi bombardeada por “chineses furiosos”. Billy será asssassinado por uma arma laiser.

A história do livro é, pois, estapafúrdia. De fato, há pelo menos três histórias principais, salpicadas de subnarrativas, que não só concorrem entre si, mas que chegam a ser amplamente incompatíveis. Uma narrativa é a da própria escrita do livro e suas dificuldades (os capítulos 1 e 10). Uma segunda narrativa é a vida de Billy na Terra, desde seu nascimento, passando pela guerra, pelo seu

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estudo de optometria e pelo seu casamento, indo até sua morte em 1976 (uma história de vida que, excetuando-se a morte por uma arma laiser, é plausível; em todo caso, apesar do final fantástico, ela se passa dentro da ordem temporal humana). A terceira história é a da abdução para Tralfamador, bem como o estado de solto no tempo de Billy. A primeira e a terceira narrativa são particularmente conflituosas.

A vivência de tempo dos trafalmadorianos (eles viveriam em “quatro dimensões”) leva a que eles percebam tudo, passado presente e futuro, como acontecimentos inalteráveis e eternos. Trata-se, portanto, de uma linguagem totalitária, acarretando o conformismo e, conseqüentemente, a submissão. De fato, os trafalmadorianos negam o livre-arbítrio, que eles alegam ser uma questão que só existe para os humanos; na verdade, os humanos são entendidos por eles como sendo máquinas; aliás, para eles, todas as coisas seriam máquinas, inclusive as plantas e os animais. O que eles propõem a Billy é que ele aprenda a retornar apenas aos bons momentos. Ora, pelo que se constata na narrativa, Billy segue retornando a maus momentos, por exemplo, aos acontecimentos da guerra. O ponto de vista totalizante e totalitário próprio aos trafalmadorianos não seria adequado aos humanos, que, afinal, vivem na perspectiva linear e finita do tempo, sem acesso a uma visão sub specie aeternitatis; além do quê, como é supostamente o caso de Billy, se um humano tivesse tal percepção, nada garante que ele conseguiria retornar apenas aos bons momentos. Seja como for, a perspectiva trafalmadoriana é desumana e desumanizante (com efeito, eles chegam até a pôr seres humanos em um zoológico). Essa perspectiva é a paródia de todas as perspectivas totalizantes: seja uma teoria filosófica metafísica, seja uma teoria teológica, seja uma teoria redentora da História, seja um filme heroizante e glamourizante à la John Wayne, seja a fé no progresso da ciência, seja uma ideologia patriótica militarista, seja um delírio com elementos de ficção científica, e assim por diante. De certo modo, o sentido total leva ao conformismo, que, desafortunadamente, é um conformismo à guerra e ao sofrimento em geral. Para evitar a neutralização do caráter inexplicável e chocante da narrativa de suas vivências em Dresden por algum discurso ou ideologia totalizante, Vonnegut – em sua, digamos, co-autoria com Mary – trouxe em

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grande estilo uma narrativa totalizante para entrar em confronto com o sem-sentido da crueldade e do extermínio. No que a narrativa trafalmadoriana fracassa em reverter o sofrimento humano, ela é, no fim das contas, tal como todas as narrativas totalizantes por mais pomposas e grandiloqüentes o são, ridícula e abstrusa. Uma característica em comum das teorias totalizantes é seu caráter seletivo: tal como os trafalmadorianos, o historiador de Harvard também é seletivo na escrita de sua história; do mesmo modo, a redenção cristã (um tema que aparece no livro com curiosas reinterpretações da vida de Jesus80) também seleciona os justos para reuni-los no Paraíso, o que, porém, de nada serve para evitar ou redimir os humanos de eventos como o bombardeio de Dresden. Evidentemente, o professor de Harvard é uma evidência da promíscua relação entre discurso universitário e guerra. Podemos assim dizer que falar trafalmadorianês, isto é, preconizar uma teoria totalizante e conformista é o mesmo que, em Berkeley em Bellagio, falar inglês. Ou seja, Matadouro 5, tal como Berkeley em Bellagio, também pode ser lido como uma aventura da linguagem: a linguagem pessoal e aberta à perplexidade e ao não-sentido do narrador-escritor em primeira pessoa se contrapõe e resiste à linguagem totalizante (e banalizadante – ou despolitizante – do sofrimento) que assume a figura caricata do todo-poderoso trafalmadorês em seu ponto de vista sub specie aeternitatis. Billy, tal como o narrador-escritor em Berkeley em Bellagio, é, ele mesmo, tanto personagem quanto o campo de batalha: é nas vivências deles e nas interpretações delas que se dá grande parte do confronto. Do ponto de vista da linguagem de Vonnegut nos capítulos 1 e 10, ou seja, do ponto de vista de uma linguagem da finitude e da impossibilidade da compreensão totalizadora, Billy é um “crônico” que, tal como um Hoffnungsloser – um sem-esperança – de Marcuse-Benjamin, instiga os leitores a se incomodarem com o conformismo que, com a leitura do livro (seja o Matadouro 5 seja O homem unidimensional), aprendem a ver em si os condicionantes

80 Jesus é mencionado duas vezes. Uma vez é indicado que a lição do Evangelho cristão seria a de que ninguém deve se meter com uma pessoa que tenha “boas relações” (tal como Jesus, um aparente vagabundo, tinha com Deus). Uma segunda vez, é narrado um episódio em que Jesus está com José em sua oficina e lhes é encomendado pelos romanos fazer cruzes; e eles fazem. Além disso, a Bíblia é mencionada algumas outras vezes.

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totalitários da ordem social e a se revoltarem contra eles. Assim, Billy oscila entre duas linguagens, entre dois pontos de vista: por um lado, o humano do livre-arbítrio e da linearidade temporal e, por outro, o trafalmadoriano do determinismo-conformismo e da saltitação no tempo. Do mesmo modo, “Joao” oscila entre falar português, que é praticar a escrita literária, e falar inglês, que é o agir sem pensar (de fato, não mais pensar em português é o mesmo que não pensar, pois não se pensa criticamente no tecnoinglês). Entre essas duas línguas há em Matadouro 5 também uma linguagem do corpo. Em Matadouro 5, comer comida é uma forma de comunicação corporal particularmente marcante. Assim, os ingleses recebem os prisioneiros americanos com um jantar. Há também o episódio em que os presos americanos consomem a colheradas o xarope para gestantes, e Edgar Derby, um dos soldados prisioneiros, numa passagem tanto intensa quanto enigmática, chega a chorar quanto põe o pirulito de xarope na boca (p. 169; M5). Quanto ao sexo, por um lado, ele parece morno ou quase inexistente entre Billy e Valencia apesar de terem tido dois filhos, por outro, há o enforcamento do polonês que teve relações sexuais com uma alemã (p. 164; M5), uma passagem forte que indica que a sexualidade tem poder subversivo embora, a meu ver, a ênfase aí esteja menos no sexo, em sua intensidade ou incontibilidade, mas na questão do racismo e da arbitrariedade jurídica do nazismo. De resto, há pouca coisa mais sobre sexo além da cena quase lírica em que Billy e mais dois presos, ao abrirem uma porta por engano, vêem um grupo de jovens adolescentes nuas no chuveiro (p. 167; M5).

Enquanto Vonnegut não conseguia escrever sem recair, seja no inglês-John Wayne (que seria o mesmo que o do playwriter de Chicago), seja no inglês acadêmico-militar de Rumfoord, isto é, enquanto ele não conseguia evitar essas duas formas de trafalmadorês e, portanto, essas duas formas de agir sem pensar criticamente, não conseguia escrever seu romance (isto é, não conseguia escrever literatura). É só depois que seu diálogo literário com outros livros e as novas formas de expressão estilísticas deles amadurece é que ele pode começar a escrever sobre suas vivências em Dresden de um modo antibelicista e, sob esse aspecto, contra o militarismo norte-americano. Podemos supor que de livros como Catch-22 (uma cáustica paródia antiguerra), de Joseph Heller, e The

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end of the road (um livro crítico ao existencialismo enquanto modismo intelectual supressor da liberdade de pensar), de John Barth, Vonnegut assimilou, a seu modo, formas novas de expressão estilística e de abordagem temática que possibilitaram que ele se esquivasse do inglês wayniano heroicizante e legitimador de um discurso e, como é lembrado em Berkeley em Bellagio, de uma diplomacia que visa “controlar melhor o cosmos” (p. 14)81.

Tal como o narrador-escritor de Noll (e, por que não?, também tal como Noll) Vonnegut teve de se afastar do inglês totalizante e controlador do cosmos para poder escrever, sem glamourizações redentoras, sobre suas vivências. Vonnegut teve, portanto, de mudar seu inglês, no estilo e na abordagem temática, para poder expor para os leitores e leitoras, bem como para si, o não-sentido das ações na Segunda Guerra. Enfim, é o inglês tornado, nas palavras de Marcuse, “the language of total administration” (ou seja, uma versão real da “novilíngua” ficional de Orwell) que tem de ser, usando uma palavra de Derrida – um crítico pertinaz das totalizações metafísicas – “desconstruído”. Ou seja, até para criticarmos o que nos tolhe, no caso o que tolhe a escrita do personagem-escritor de Noll, ou mesmo a de Noll, bem como a de Vonnegut, precisamos recorrer, aqui na pessoa de Marcuse e de Derrida (que por tantos anos atuaram em diversas instituições nos Estados Unidos), à universidade norte-americana (que, afinal, tanto lhes deu suporte e tanto os promoveu). Até o momento, portanto, neste ensaio, estou como que seguindo Marcuse ao repetir sua descrição unidimensional da sociedade. Derrida, porém, considera que, por mais intensa que possa ser a busca de um fechamento unidimensional do pensamento, ele nunca se realiza. Se é possível desconstruir o pensamento metafísico, é porque essa forma totalizante de pensar, desde sempre, trabalha contra ela mesma; de certa maneira, ela se funda nessa tensão mesma que ela propõe suprimir. Nesse sentido, pode-se dizer, a desconstrução seria uma forma de otimismo. Contudo, a desconstrução está sempre comprometida com a linguagem que ela busca desconstruir: ela é sempre parasitária e, por isso, nem sempre forte o suficiente para levar a cabo a tarefa que ela anuncia. Visto assim, pode-se dizer que o desconstrucionista seria mais uma versão

81 Ver mais acima a segunda longa citação do presente ensaio.

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do “crônico”. Marcuse, enquanto pensador e autor do livro O homem unidimensional, não reivindica estar fora do fechamento que ele descreve. Já Derrida propõe que ele não está nem totalmente dentro nem totalmente fora do sistema: ele seria um antimetafísico pensando parasitariamente com as mesmas categorias da metafísica. Marcuse é, assim, um pensador moderno: para ele há um projeto da modernidade, um projeto racional que, se é maculado de irracionalidade, o é em sua pretensão de sufocantemente racionalizar toda a sociedade. Já Derrida, um pensador pós-moderno, não aceita que haja um projeto de modernidade que, em sua pretensão de racionalidade, não esteja desde o início, eivado pelo não racionalizável, pelo não calculável. Para Marcuse, é o projeto (no projeto de racionalidade) que é eivado de irracionalidade; para Derrida, é a racionalidade que é impurificável da irracionalidade. De fato, recorrendo a um exemplo ligeiro, falar como Kant em “razão pura” tal como se se pudesse atingir um pensamento lógico purificado de um uso da linguagem calcado no sensível é contraditório; afinal, falar em “purificar” a razão é já recorrer a uma metáfora referida ao sensível: a “razão pura” está inextricavelmente referida ao sensível – ao impuro – no qual ela sempre está efetivamente entranhada e do qual somente analiticamente pode ser abstraída. Mas afirmar a impossibilidade de controle total – tal como o faz a desconstrução derridiana – não é, mais uma vez, reafirmar a busca pelo controle máximo do mundo (ou mesmo do “cosmos”), ainda que não seja o controle total? Não é a desconstrução um antídoto – ou ao menos um moderador – contra a megalomania euro-norte-americana de poder total, uma megalomania que, tendo meios – tal como Kurtz e Hitler tiveram –, é descomedidamente cruenta e autodestrutiva?

Sendo assim, temos, por um lado, a megalomania totalitária que cooptaria todas as ações e todos os discursos de contestação e, por outro, a paranóia que, enquanto discurso social, não seria um delírio distante da realidade, mas uma versão ultracrítica do fechamento ideológico que, porém, só teria força contestadora na medida em que, ao gerar incômodo, como é o caso do discurso literário anti-John Wayne/Frank Sinatra, leve a que pessoas ajam ou novas idéias ganhem credibilidade rompendo a dominância da unidade discursiva que subjuga diversas nações e povos e os mantêm

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na posição de subalternos econômicos e culturais, enfim, em uma situação de tal destituição que, por vezes, em vez de buscarem se impor, apenas almejam serem tratados com benevolência ou ajudados por algum “mutirão de voluntários”.

De fato, tanto para Rodrigues-Filho, quanto para Noll, quanto para Vonnegut, a universidade norte-americana busca explicar, e assim controlar, o mundo, ou até mesmo o cosmos. Cada um vai lidar com essa linguagem “todo-poderosa” a seu modo. Pode ser que Rodrigues-Filho tenha suas estratégias de resistência apesar de sua aparente docilidade em submeter-se à lógica das publicações científicas; o que se passa é que nos papers não há espaço de manobra para que se conteste o tecnoinglês; ao contrário, um paper em química só é um paper, e só pode ser publicado enquanto tal, se nele não houver qualquer contestação à sua própria linguagem. Talvez Rodrigues Filho seja extremamente crítico ao sistema que lhe fomenta as pesquisas; no entanto, o Rodrigues-Filho (com hífen) não pode, enquanto químico, expor suas críticas. Já Noll e Vonnegut, enquanto escritores, ao tentar escrever, se defrontam com a necessidade de contestar a unidimensionalidade literária, isto é, o trabalho para-literário que o playwriter pratica; daí haver vários aspectos semelhantes nas estratégias de um e de outro.

Assim, Rodrigues-Filho não chega a ser abruptamente abduzido para Tralfamador; com base em seu currículo Lattes vemos que ele vai se encaminhando para lá lentamente, talvez lentamente demais, de modo que ele não parece ter sofrido grandes rupturas em sua carreira; em todo caso, ao que parece, ele está em uma dimensão intermediária; sua estada em Minnesotta foi, provavelmente, um momento importante, mas ela está inserida em um processo gradual; afinal, de certo modo, antes de ir a Minnesotta, ele já estava lá, ou seja, ele já estava escrevendo em inglês e, portanto, já estava na esfera acadêmica internacional. Contudo, embora Rodrigues-Filho – se analisarmos seu currículo Lattes, teremos de reconhecer isto – tenha incontestáveis méritos, ele não chega, ou não chega ainda, a fazer parte, em sua área, de uma cúpula globalizada de scholars tal como a que vimos reunida em Bellagio. O mais perto de Bellagio que Rodrigues-Filho chegou foi Minnesotta, mas a Minnesotta de Rodrigues-Filho é ainda uma Bellagio muito modesta. Sendo assim, do ponto de vista do jet set acadêmico internacional, o

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Rodrigues-Filho, isto é, o Rodrigues-Filho com hífen, que é o único a que temos acesso pelas suas publicações, é um humilde servidor (mas será que Rodrigues Filho publica outras coisas com algum outro pseudônimo?; será ele também, fora da academia, um escritor?; terá ele formas de resistência a isso que parece guiá-lo tão inexoravelmente?).

Com efeito, ainda que um cientista seja também atento à linguagem que ele usa, buscando sempre aperfeiçoar seu manejo de termos técnicos e a concisão das descrições, nele – veja-se, por exemplo, o artigo de Rodrigues-Filho – não está presente nenhum impasse quer frente ao uso do inglês, quer frente ao uso dele tal como é proposto pela, digamos, cúpula internacional de scholars. Ao contrário, para o personagem-narrador de Noll (e, nesse caso, para Noll), resistir ao que o playwriter tenta prescrever-lhe enquanto linguagem de ação pela ação, enfim, resistir ao “mood americano” e persistir no uso, digamos, “crônico” do seu português se mostra condição de sobrevivência enquanto escritor e, assim, uma ousada afirmação dessa prática de liberdade através da escrita literária. Ou seja, ao contrário de Rodrigues-Filho dos papers, o personagem-escritor de Berkeley em Bellagio “não falava inglês” e, se seguiu sendo um escritor literário, foi porque, superando as seduções, resistiu a falar inglês.

Tudo se passa como se tivéssemos três níveis. (1) O nível da vida comum: Rodrigues Filho (sem hífen); Noll indo para Berkeley e seu personagem-escritor vivendo sua precariedade econômica; Vonnegut e Billy enquanto cidadãos americanos com sua profissão e sua atuação na Segunda Guerra. (2) O nível da linguagem

potencializada: Rodrigues-Filho (com hífen) escrevendo no inglês científico; o personagem-escritor de Berkeley em Bellagio falando inglês com fluência; Billy Pilgrim solto no tempo. (3) O nível da linguagem totalitária: Rodrigues-Filho alçado à “cúpula dos scholars em Bellagio” (o que não ocorre); o personagem-escritor escrevendo como o playwriter (o que também não chega a acontecer); Billy em Trafalmador, vivenciando a história como os trafalmadorianos (algo que ocorre em Matadouro 5). Contudo, há também um imbricamento. Há como que um deslizamento que diferencia hierarquicamente entre Rodrigues Filho, Noll e Vonnegut. Rodrigues Filho não consegue, enquanto escritor de papers, resistir

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ao discurso unidimensional, não consegue, portanto, deixar de ser um de seus serviçais (como indiquei, sua inclusão – no nível 3 – na “cúpula dos scholars em Bellagio” é um mero artefato da minha análise). Já Noll resiste ao playwriter e retorna à Porto Alegre para novamente escrever em português, ainda que seja para voltar a viver precariamente (a “mendigar de novo em seu país de origem”, como é dito na primeira página do romance – p. 9). Entretanto, Vonnegut como que supera o playwriter, ou seja, ele acaba no topo da literatura norte-americana e internacional. Em outras palavras, estruturalmente Vonnegut pode “amadurecer” enquanto escritor até se tornar uma celebridade intelectual internacional diferenciada, mas, a princípio, Noll não pode amadurecer senão para ser uma celebridade intelectual brasileira. Ora, exatamente essa parece ser uma das razões para a precariedade de sua vida no Brasil: o personagem-escritor se recusou a ser o equivalente brasileiro do playwriter (o que seria, digamos, o autor de novelas para a televisão ou de best-sellers associando cor local e retórica internacional à la Wayne/Sinatra), ou seja, não escreve em português sem seguir a gramática do inglês-Wayne/Sinatra. No entanto, se nos Estados Unidos parece ser possível ir além do tecnoinglês e ainda sobreviver ou, até mesmo, ficar rico, no Brasil a vida parece sobremodo árdua: ou se é playwriter de best-seller/telenovela ou – no caso de ser resgatado da miséria pelo “mutirão de voluntários” que, no nosso ponto de vista, é a atuação da “Fundação” – se pode tentar dominar (e foi isto que o playwriter de Chicago buscou pedante e insensivelmente ensinar ao personagem-escritor) a gramática da para-literatura comercialmente rentável a nível internacional. Quem, porém, tal como o personagem-escritor renuncia a falar inglês para seguir praticando uma escrita literária, digamos, não-alinhada, provavelmente só o fará se aceitar voltar à vida precária com a falta “do convívio em volta de uma mesa de refeição, sob um endereço seguro” (p. 10). Em contraste, nos Estados Unidos ou na esfera tecnocadêmica globalizada, uma escrita, por assim dizer, “não-alinhada” parece possível; daí haver heróis intelectuais internacionais: Vonnegut, Pynchon, Marcuse ou Derrida. São autores que, no caso dos filósofos, são, por vezes, execrados por grande parte dos universitários (recentemente, sem dúvida, foi Derrida o mais hostilizado), mas podem gozar de uma simpatia que,

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para além da resistência inicial da ortodoxia acadêmica, atinge vários outros grupos culturais. Esses intelectuais contestatários, com suas críticas, tanto incomodam quanto previnem – ou até servem de sparring – para que a tecnoacademia permaneça robusta contra petardos intelectuais da periferia. Se é para que haja oposição, que ela venha de alguém que não seja radicalmente outro. Por isso, há “mutirões” como o dessas tantas fundações internacionais que não cessam de convidar – de certo modo para assimilá-los e, assim, em certa medida embotá-los – escritores brasileiros como bolsistas. Noll, porém, busca problematizar esses convites irrecusáveis. Seu personagem não acredita em carreira internacional, tampouco parece ter dado qualquer crédito a uma carreira nacional. Assim, para ele, a “Fundação” é mais uma armadilha, mas uma tentativa de cooptação, e portanto de sufocação, de sua escrita literária. Já Vonnegut se mostra grato à “fundação Guggenheim (que Deus a mantenha)” (p. 7; M5), pois, se, para ele, essa fundação, por um lado, pode ser uma armadilha para transformá-lo em um playwriter glamourizador da guerra, ela pode, por outro lado, ser o impulso necessário – e parece que o foi – para que ele vá além do playwriter, para que ele escreva para pôr em questão o próprio modo conformista de escrever. Ou seja, a Vonnegut não só não está obstruído, mas até lhe é possibilitado que ele questione o tecnoinglês hegemônico; se isso talvez enfraquece o militarismo norte-americano, isso também fortalece a dominação cultural dos Estados Unidos ao mesmo tempo em que amaina sua fúria megalômana de poder, bem como a concomitante autodestrutividade dela. Assim, determinar (tal como é o caso de O homem unidimensional que apresenta uma descrição que corrobora a unidimensionalidade policial da sociedade moderna) até que ponto essa transgressão literária é contestadora ou é, enquanto reapropriável, cooptada é algo que depende da leitura de Matadouro 5; e a leitura depende do caráter literário, isto é, não controlável do texto. Enfim, ao contrário da paranóia que acomete um paciente psiquiátrico o pondo em uma posição pragmaticamente prejudicada em seu convívio social, a paranóia literária, enquanto ela retrata uma realidade ou uma forte tendência da sociedade, sendo uma antecipação da autodestruição conseqüente à megalomania totalitária do macropoder, acaba por dificultar ou impedir que a sociedade se entregue à autoconsumpção

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autista ou à agressividade suicida. De fato, o personagem-escritor em Berkeley em Bellagio chegou a entrar em um processo autodestrutivo quando começou a falar inglês, já que, quanto mais falava inglês, mais arruinada ficava sua prática literária. Só a renúncia a seu engajamento com o projeto linguístico-político totalitário da “Fundação” lhe restituiu sua capacidade de resistir à comercialização para-literária e midiática, personificada pelo playwriter. Ou seja, a “Fundação” não pode ser, como foi para Vonnegut, um caminho para que ele resista à gramática da literatura comercial (em sintonia com o tecnoinglês); pelo menos não o pode ser com a mesma facilidade que foi para Vonnegut; daí Noll, devido a sua desconfiança, não chegar ao ponto que chega Vonnegut de não só mencionar o nome “fundação Guggenheim”, mas ainda de desejar que “Deus a mantenha!”.

De fato, Noll, e seu personagem, parece enfrentar dois fronts, um interno e outro internacional. Já Vonnegut parece que, se superar o provincianismo da literatura-Wayne/Sinatra, estará, no mesmo gesto, no cenário internacional. Enfim, seu fracasso, ou antes, sua cronicidade durante 23 anos, podia ser bem recompensada tanto simbólica quanto financeiramente. Ao contrário, o personagem-escritor de Noll tem como máximo de reconhecimento simbólico ser convidado por estrangeiros (e, da mesma maneira, é o que ele recebe ao aceitar a bolsa dos estrangeiros, seu maior sucesso financeiro). Em ambos os casos, o que está, porém, em risco é sua prática de escrita, seu estilo, digamos, “crônico”, isto é, o personagem-narrador de Noll não está cronicamente seguindo a carreira (e, assim, obedecendo às metas de produtividade), mas sim está cronicamente resistindo (e, assim, agindo em sua escrita literária)82.

82 O livro se chama Berkeley em Bellagio. De certo modo, o título poderia ser apenas: “Berkeley e Bellagio”, pois ele trata de duas estadas, uma na Universidade de Berkeley e outra em Bellagio, concluindo com o retorno a Porto Alegre. Ao falar “Berkeley em Bellagio”, o título nos faz pensar no filósofo idealista George Berkeley, que, de certo modo, seria o personagem-narrador, andando em Bellagio. De fato, o nome da cidade de Berkeley se deve a George Berkeley; assim, também o nome da universidade é dele derivada. Em vista disso, podemos pensar que o personagem-narrador, em sua estada na Universidade de Berkeley, teria se tornado um idealista, de modo que sua estada em Bellagio seria, ao menos inicialmente, a estada de um idealista. Mas em que sentido se deveria entender “idealista” aqui? De fato, não se pode dar uma

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Em outras palavras, a Vonnegut (e a outros norte-americanos), para além de uma carreira de para-literato, é dada a possibilidade de “amadurecer” enquanto escritor inovador norte-americano ou até como literato internacional sofisticado83. Embora possa se aceitar que haja exceções, há que se reconhecer que no Brasil não há, a princípio, a possibilidade de amadurecer até se tornar um escritor literariamente inovador na esfera internacional84. O que se pode razoavelmente ambicionar é ser um escritor de sucesso a nível nacional (nesse caso, se seguiria mutatis mutandis os padrões do playwriter) ou – incorrendo-se, porém, em grandes dificuldades simbólicas e financeiras – tentar se firmar com um escritor inovador

interpretação única. Leituras diferentes podem trazer entendimentos diversos do que seja “idealista”. A princípio, um idealista berkeleyano seria alguém que considera que as coisas não existem nelas mesmas, mas apenas na medida em que as percebemos, sendo que as percebemos somente na medida em que Deus as sustenta com perceptíveis por nós. Ou seja, é possível se dizer que o que o personagem-narrador vê em Bellagio seria um mundo criado por Deus, isto é, pela “Fundação”, enfim, um mundo ideal, fechado sobre si mesmo, que fala uma língua fechada sobre si mesmo, uma língua totalitária. Mas sempre é possível que também se entenda que a percepção das coisas seja uma percepção sensual, uma entrega total aos sentidos, de modo que o personagem-narrador seria, na verdade, não um idealista, mas um sensualista radical. 83 O tema do “amadurecimento” autoral, que aqui estou me referindo mais especificamente em relação à autoria literária, mas que poderia ser desenvolvido em relação à autoria científica, à musical, à cinematográfica, à teatral etc., é algo que precisa ainda ser mais aprofundado. Pretendo escrever um ensaio focando essa questão. Deixo-a, porém, desde já indicada. O que estou aqui sugerindo é que haveria uma hierarquização internacional não apenas das posições dos escritores em seu estado já “amadurecido”, mas, bem antes, uma hierarquização das possibilidades de amadurecimento da prática de escrita literária (bem como de escrita científica, musical etc.). Essa hierarquização, contudo, não é rígida, passando por constantes rearranjos; rearranjos que, sem dúvida, reasseguram, no geral, a hegemonia da produção euro-norte-americana, mas que, abrindo a cada vez brechas e atalhos, podem permitir que alguns autores, contrariando as expectativas, ascendam aos primeiros patamares. Noll parece não valorizar essas exceções, preferindo problematizar o caminho mais provável. 84 Paulo Coelho tem um enorme sucesso internacional; porém, não é reconhecido como escritor literariamente inovador. Sem dúvida, a extensão de seu sucesso internacional merece ser melhor pesquisada e discutida. Ele é uma exceção para confirmar a regra de que quem se cria para um sucesso dentro do Brasil dificilmente chega a fazer um retumbante sucesso internacional. Como já me referi na nota acima, o livro de Noll não problematiza exceções; exceções evidentemente são possíveis também entre escritores e escritoras com um trabalho de escrita tido como diferenciadamente elaborado, enfim, como literariamente sofisticado (o que mereceria, por sua vez, receber o adjetivo de “literário” precisa se mais problematizado; toco aqui nesse tema apenas de passagem).

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de âmbito local. Enfim, ou se chega a um sucesso nacional oportunístico-midiático ou se sobrevive em uma interminável cronicidade literária85. Afirmar e problematizar a opção pela cronicidade literária como posição de contestação são, a meu ver, dois dos principais temas de Berkeley em Bellagio.

Assim, vemos que tanto em Berkeley em Bellagio quanto em Matadouro 5 a questão de como desenvolver uma escrita literária são questões centrais. Nesses dois livros a escrita literária surge em oposição a um uso totalitário da linguagem. Enquanto, porém, na prática da escrita, Noll não apresenta as instituições universitárias brasileiras como importantes, isto é, enquanto em Berkeley em Bellagio a continuidade entre o currículo de vida de Noll e o do narrador do livro é precária, em Matadouro 5 tanto é explicitamente mencionado o período em que Vonnegut lecionou na Universidade de Iowa quanto o recebimento da bolsa da fundação Guggenheim. As instituições norte-americanas são importantes na trajetória do escritor norte-americano, quer para que se torne um playwriter-Wayne/Sinatra, quer para que se torne um escritor literariamente diferenciado, enquanto, ao contrário, as instituições brasileiras não o são para o escritor brasileiro; para o escritor brasileiro, porém, ainda que ciente dos riscos, as instituições norte-americanas são importantes (paradoxalmente, essas instituições que têm em muito o papel de fomentar uma unidimensionalidade cultural internacional entre os subalternos, pode proporcionar reforço financeiro e de capital simbólico para que um “crônico” consiga romper com a unilateralidade cultural de uma nação periférica e culturalmente dependente como é o Brasil). A meu ver, a descontinuidade entre o currículo de Noll e o do narrador de Berkeley em Bellagio, em contraste com a continuidade entre o currículo de Vonnegut e o de Vonnegut-narrador de Matadouro 5, expressa o caráter irrelevante das instituições brasileiras na constituição de uma escrita literária não-alinhada. De fato, para Vonnegut as instituições norte-americanas têm, por um lado, um papel positivo, por exemplo, com o emprego em Iowa, a bolsa da Guggenheim e, mais tarde, em 1971, o recebimento de seu master’s degree em antropologia pela

85 Este “ou... ou...” não excluí, porém, posicionamentos intermediários.

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Universidade de Chicago com base em seu romance Cat’s cradle86, por outro lado, elas têm um papel negativo, por exemplo, com Rumfoord e sua glorificação da Força Aérea norte-americana. Vonnegut, em Matadouro 5, não deixa de reconhecer a tensão presente na atuação contraditória dessas instituições. Mas em Berkeley em Bellagio as instituições brasileiras são, se não inexistentes, ineficazes: muito mais importantes são a Universidade de Berkeley e a “Fundação” (ou seja, a Fundação Guggenheim). A meu ver, a omissão de referências a instituições brasileiras (uma crítica com base autobiográfica?) em Berkeley em Bellagio pode ser entendida como uma crítica incisiva a como a universidade brasileira se esforça pouco para criar brechas em um servilismo que se entranha no próprio uso da linguagem. De fato, a vida cotidiana em Porto Alegre, “a cidade que costuma sediar o Fórum Social Mundial” (p. 78), parece ser muito mais importante e libertária do que as universidades brasileiras. De fato, do que adiantarão as universidades brasileiras se, frente à escrita literária, elas, como ocorre com Rodrigues-Filho, só falarem inglês?

86 Sobre seu master’s degree Vonnegut comenta: “I left Chicago without writing a dissertation - and without a degree. All my ideas for dissertations had been rejected, and I was broke, so I took a job as a P.R. man for General Electric in Schenectady. Twenty years later, I got a letter from a new dean at Chicago, who had been looking through my dossier. Under the rules of the university, he said, a published work of high quality could be substituted for a dissertation, so I was entitled to an M.A. He had shown Cat's Cradle to the Anthropology Department, and they had said it was half-way decent anthropology, so they were mailing me my degree. I'm class of 1972 or so.” Cf.: http://www.vonnegutweb.com/vonnegutia/education.html

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A escrita e a guerra em A céu aberto,

de João Gilberto Noll

A céu aberto, de João Gilberto Noll,87 é uma narrativa em primeira pessoa do singular. A narrativa é posterior aos acontecimentos relatados, usando tempos verbais no passado. Trata-se de uma narrativa basicamente linear, embora haja alguns falshbacks e diversas lacunas, por exemplo, não se fala da mãe nem da primeira infância do narrador. No cenário mais amplo, não fica caracterizado qual seria o país (o narrador chega até a se perguntar: “Em que país estou?” [p. 77]) nem mesmo em que continente ele se localiza; no entanto, uma vez que nada indica que seja um país fora da América Latina, fica tacitamente sugerido que a história se passa nesse continente88. Na verdade, sendo o livro em português, uma leitura possível é a de que ela se desenvolveria em um país semelhante ao Brasil, em uma variante ficcional do Brasil, digamos, em uma Costaguana brasileiramente lusófona. Seja como for, a época pode ser estabelecida como sendo algum período posterior ao final dos anos 80, período em que o uso de teste de DNA mencionado pelo narrador (p. 109) começou a ser disponibilizado de um modo cada vez mais amplo (esse teste é o evento datável mais tardio referido no livro); sendo o livro de 1996, poderíamos supor que a conclusão da escrita ficcional se daria próxima à data de publicação do livro.

Não é raro em uma narrativa em primeira pessoa e de cunho autobiográfico, ficcional ou não, que ela inclua uma justificativa direta ou indireta do ato de escrita que a produz. Muitas vezes, a narrativa autobiográfica reivindica alguma suposta verdade até então pouco veiculada, ou mesmo ignorada; e esta suposta verdade seria a motivação para o ato de escrita. De fato, também podem ser várias as supostas verdades a serem apresentadas pela escrita

87 João Gilberto Noll, A céu aberto, São Paulo, Companhia das Letras, 1996. Todas as referências deste livro serão feitas mencionando apenas o número de página entre parênteses ou, se a clareza exigir, entre colchetes. 88 Em todo caso, uma vez que, na guerra, se usam sucatas da 2ª Guerra Mundial, não se trata nem de países europeus nem de países da América do Norte.

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repristinante do narrador. Em geral, o momento de início do ato de escrita, sucedendo-se ou não após um período de hesitação quanto à difícil tarefa de falar de si mesmo, é já indicativo do que supostamente precisa, enfim, ser definitivamente esclarecido. Em A céu aberto, no entanto, não há nenhuma referência direta ao próprio ato que o escreve, nem a uma suposta necessidade de empreendê-lo. Há uma passagem, porém, em que o ato de escrita até pode estar sendo subentendido:

Eu poderia descrever seus lábios em volta de minha glande. Mas não farei isso por absoluta incapacidade de extrair alguma figura dali... (p. 80)

Mas, embora se possa deduzir daí que o narrador considera

que narrar uma descrição, pondo-a por escrito, seja extrair dela alguma figura, não há, ainda assim, nenhuma problematização específica do ato de escrita, tal como ocorreria se fossem atribuídas a ele a expectativa de um resultado ou a obtenção de um objetivo determinado, assim como contestar algo, conscientizar a sociedade de algum perigo, ter algum efeito terapêutico para o escritor (ou para o leitor) ou expiar alguma culpa por meio de uma compungida confissão. Só o que vemos é que o ato de escrita, sem se pôr em destaque, simplesmente se dá; assim, dando-se, funda e, nos sucessivos episódios narrados, mantém, bem como intensifica, a própria escrita que ele produz. Esta escrita, cuja motivação última nunca se esclarece, se dá na tensão entre a casa enquanto espaço familiar e a guerra enquanto empreendimento militar para supostamente assegurar a possibilidade da casa, mas que, paradoxalmente, se mostra como violadora do interior da casa e, portanto, como destruidora do acolhimento físico e moral do familiar.

Em nenhum momento, o narrador se refere a si mesmo como escritor, ou mesmo como tendo qualquer intenção de escrever seja lá o que for; enfim, ele não surge no texto como sendo sua causa. Além disso, o final do livro sugere que o narrador pode ter sido morto pela polícia. Sendo assim, o texto admite duas possibilidades para o ato de escrita: ou o narrador – apesar do que o final abrupto da narrativa sugere – não foi morto e, então, pôde escrever o livro

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(ainda que o motivo de ter se posto a escrever continue obscuro) ou é alguém mais (talvez “o filho de Artur”, de quem é repetidamente dito no livro que é escritor e que se tornou um escritor de relativo sucesso) que o teria escrito, ou seja, nesse caso, o livro, que evidentemente é uma ficção assinada por Noll, seria – segundo o conteúdo de seu próprio texto – apenas ficcionalmente autobiográfico. Entretanto, vivendo o filho de Artur na Suécia, bem longe do narrador e suas vivências, e, lá, escrevendo peças teatrais, não romances, o texto de A céu aberto não dá base para que se considere provável sua autoria. Ou seja, a narrativa de A céu aberto não assegura a possibilidade de seu próprio ato de escrita; antes, ela insinua sua impossibilidade. Certamente, isso é, porém, comum em obras ficcionais. Os narradores oniscientes são por si próprios, independentemente de qualquer consideração sobre o ato de escrita, impossíveis. Há diversas narrativas em primeira pessoa que estruturalmente excluem a possibilidade de seu ato de escrita, por exemplo, aquelas em que o personagem morre no final, antes de poder ter escrito o texto que, contudo, está sendo lido. As narrativas de ficção científica supostamente escritas em um futuro distante são evidentemente impossíveis, se não quanto a seu ato de escrita, ao menos quanto a sua transmissão para nós, que vivemos apenas em 2007. De resto, A céu aberto segue o procedimento usual: o de não problematizar o ato de publicação. O ato de publicação é mencionado nele apenas sob a forma de tornar pública uma peça, isto é, de ela ser representada para o público, mas a possível ausência de público – e, assim, a dependência intrínseca entre teatro e público – é banalizada com o argumento de que, se não aparecerem pessoas para assisti-la, se poderá chamar os animais (“se não conseguirmos gente vai com os animais mesmo” [p. 118]).

A linguagem de A céu aberto é próxima, sobretudo quanto ao vocabulário, do que se considera a linguagem oral. Contudo, embora haja algumas poucas e breves passagens em que a narração interage com o leitor (p. ex., “pasmem!” [p. 66]), não há interjeições como “hein” ou “hum” reforçando a oralidade, nem gírias; o que há é a oscilação no uso da 2ª pessoa do singular e de “você” em um mesmo parágrafo, um traço característico da linguagem oral em algumas regiões do Brasil. Ainda assim, pode-se dizer que se trata de um texto escrito e não de um texto oral transcrito. O que é característico

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dessa escrita é, do ponto de vista de um revisor profissional, o uso, digamos, insuficiente de vírgulas (sendo a vírgula um sinal gráfico, acrescentado ou não no momento da escrita, sua ausência não tem uma relação imediata com a oralidade; antes, seria uma decisão estilística para sugerir o ritmo oral; se bem que, em geral, a omissão de vírgulas é usada para expressar monólogos interiores e nem tanto a linguagem oral); essa insuficiência se dá a ponto de se ver algumas enumerações em que os termos estão justapostos sem que haja vírgula entre eles (por exemplo: “para mastigá-la engoli-la digeri-la e expulsá-la...” [p. 17]; “...exterminarmos os civis crianças velhos e mulheres” [p. 132]). Assim, o que se tem é um texto que parece ter sido posto no papel de um modo espontâneo, sem ter sido nunca revisado. Ainda que um texto apenas jogado no papel, em geral, tenha marcas como frases truncadas e inconsistências gramaticais características (por exemplo, ao contrário do uso oral, em A céu aberto, onde a 2ª pessoa do singular sempre, no interior de uma mesma frase, é conjugada corretamente, não podendo isso ser entendido como um traço de oralidade)89, ou seja, ainda que haja sinais de revisão, o efeito é o de uma linguagem escrita como se tivesse sido posta no papel, por assim dizer, primo jacto.

É essa escrita fora do padrão da revisão pela qual usualmente passam os textos para serem acolhidos no formato de livro que encontramos em A céu aberto, ou seja, trata-se de uma escrita que parece contestar seu acolhimento no formato de livro ao não se engajar na, digamos, ordem lingüística editorialmente vigente. De fato, esta tensão entre escrita e ordem se apresenta na temática de A céu aberto.

Tematicamente, A céu aberto se desenvolve em confrontos intermitentes entre o narrador-escritor e o exército em guerra; nos intervalos, o narrador vive em alguma casa em que há relacionamentos familiares ou, por assim dizer, familiaróides tais como os laços afetivos entre narrador e irmão, narrador e Artur, Artur e Aparecida, narrador e esposa (no caso, a esposa seria o irmão após sua metamorfose em mulher), narrador com a esposa e o filho

89 Há, é claro, o uso ocasional de “ele” onde a gramática prescritiva exigiria o pronome oblíquo, mas não estou me referindo a essas gramáticas que são próximas ao modo de falar em Portugal; antes, refiro-me ao registro, por assim dizer, universitário, no qual também aparece exatamente o uso ocasional de “ele” como objeto direto.

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do Artur, narrador e capitão, narrador e prostituta (isso, aliás, num hotel e apenas brevemente, não efetivamente numa casa, talvez, portanto, em uma casa por demais precária e que, afinal, não parece ter protegido o narrador). Ou seja, em A céu aberto há, do início ao fim, ou antes, até o término abrupto, uma tensão entre escrita narrativa e ordem militar em guerra (ou seja, em estado de exceção). Há guerra no início do livro e, embora em momento algum se fale em paz, é dito, na parte final da narrativa, que a guerra retorna. Mas, de fato, há um período longo em que o narrador trabalha como vigia noturno. Nesse período sem guerra, ele se casa, sua mulher fica grávida e, deixando-o, ela vai para a Suécia junto com “o filho do Artur”, ela volta vários anos depois (sem o filho dela, que “morreu semanas após o parto” [p. 123]), há a retomada da vida em comum com a esposa; em outras palavras, o narrador vive uma vida em que tem uma casa (ainda que não leve uma vida familiar que seguisse aqueles padrões morais que, geralmente para efeitos dramáticos ou humorísticos, são ainda, em especial na dramarturgia televisiva, apresentados como os supostamente tradicionais). O que se vê, portanto, é uma contraposição entre guerra e casa; porém, a casa se mostra insuficiente para proteger o narrador da guerra, ou mesmo da violência que assombra também o interior da casa. Assim, a única “casa” que abriga a vida do narrador ao longo de toda a narrativa é tão-somente a própria escrita da narrativa, ainda que ela, como indicado acima, talvez seja impossível. Assim, o narrador fala que: “a céu aberto tudo me abrigava melhor que numa casa” (p. 102). Esse “a céu aberto” não é, portanto, a casa de família, mas tampouco é o acampamento militar, “a céu aberto” é, antes, este espaço de possibilidades que, juntamente com sua coragem tácita – ou mera ausência de medo – e apesar dos inegáveis perigos, deixa o narrador com margem de manobra suficiente, isto é, com liberdade, para que, com a devida cautela, mas sempre correndo risco, transite entre a casa e a guerra, entre o familiar e o inóspito, fazendo dessa errância – que se reflete na escrita – um abrigo “melhor que numa casa” (p. 102).

De fato, o narrador é nômade, ou seja, ele troca de casa, ou de morada, várias vezes, o que sempre está relacionado com a guerra90.

90 Em linhas gerais, são mencionadas sucessivamente as seguintes moradas do narrador (dentre as quais há algumas casas no sentido de casa de família):

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A primeira mudança se dá quando o narrador leva o irmão doente para encontrar o pai, que é oficial do exército roxo, a fim de que ele dê dinheiro para que sejam comprados remédios para o irmão. O pai, porém, totalmente dedicado à guerra, é uma clara indicação de que a guerra leva à dissolução do familiar. O irmão fica na enfermaria e o narrador acaba sendo obrigado a vestir uma farda e a tornar-se sentinela, o que, já que ele acaba se decidindo por fugir, o transforma em desertor de um exército no qual ele nunca se alistou. É o exército em guerra – e o não-acolhimento do pai (um paique claramente abandonou os filhos, e que, portanto, não assumiu seu papel como elemento estruturador do familiar) – que o transforma em desertor. O narrador não é um desertor por princípio, por desobediência civil, mas por imposição do exército (e devido ao abandono do pai); e, se ele se mantém livre (ou ao menos não se deixa ficar apegado ou preso nem ao exército nem à casa de família, não é por ele defender grandes ideais humanísticos transcendentes, mas porque não se ilude nem de que a vida feliz seja estar acolhido em uma casa de família (porque ela sempre está assombrada pela violência do fora) nem de que ela seja se engajar na ordem militar (que sempre rui e ressurge da incessante repetição ou pulsação da violência que a legitima e a destrói). Nisso é a própria escrita que – podendo ser vista como desertora da ordem, no caso, tanto da suposta ordem do estado de exceção quanto do suposto acolhimento da casa de família – resta como o único lugar para se chegar a uma felicidade que, embora certamente nunca plena, ao menos não é, apesar de sua errância, ilusória.

É por essa região em guerra que o narrador perambula na parte inicial do livro. Mais tarde, na parte final do livro, quando a guerra recomeça, tendo estrangulado sua mulher, ele fica foragido

Escola do Divino (p. 9), algum lugar com cama onde o narrador e o irmão acordam (p. 9), se põem a caminho para encontrar o exército roxo (p. 14), acampamento do pai (p. 19), encontro com o Artur e estada em sua casa (p. 25), novamente no acampamento militar (p. 38) (vai a tenda do general [p. 52]), deserção do exército (p. 57), volta ao acampamento (p. 61) (dentro da tenda, cusparada na cara do pai [p. 63]), novamente sai do acampamento (p. 63), entra na igreja em que encontra o irmão (p. 67), começa o emprego de vigia do paiol onde fica às noites (p. 78), parece que vai morar com a mulher na nova casa dela (p. 128), depois de estrangular a mulher foge (p. 139), embarca em um navio para fugir e fica morando em uma cabine (p. 141), foge do navio (p. 154), fica pela rua até alugar um quarto num hotel (p. 162), é levado ao Comissariado de Polícia (p. 162), volta para o hotel (p. 162).

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numa cabine em um navio até se aventurar a descer em um porto, que, afinal, também fica numa região envolvida na guerra, onde não é claro se ele – para sua surpresa, considerado como terrorista – veio ou não a ser pego e morto pela polícia. Toda essa região se mostra envolta em um clima que não exclui o fantástico. De fato, ao longo da história narrada, há alguns episódios fantásticos e alguns em que o comportamento das pessoas – e, por vezes, do próprio narrador – se mostra incongruente; incongruente ao menos do ponto de vista da psicologia postulada nos romances realistas. Há várias passagens anti-realistas; as mais marcantes talvez sejam as metamorfoses, a do irmão em mulher (p. 74) e a do corpo do narrador em um corpo semelhante ao do capitão desdentado (p. 156). Citarei, a título de exemplo, uma outra passagem, mais sucinta, mas que também é particularmente absurda:

...e eu [é Artur quem fala] olhei ele abrindo a boca em minha direção para que eu pudesse ver o que realmente vi: da sua garganta nascia uma luz como se viesse de uma lâmpada roxa, sério, e o velho emitia de tempos em tempos uma espécie de arroto e nesses arrotos a luz roxa da garganta dele como que resplandecia um pouco, é fato, se fortificava lá dentro e vinha em pulsações e me banhava aí com mais intensidade... (p. 35)

Há também várias passagens em que o comportamento dos

personagens, ainda que não sendo propriamente fantástico é, porém, bizarro: o relacionamento narrador-irmão-pai, o comportamento das sentinelas no acampamento militar, o relacionamento entre Artur e Aparecida, o irmão vestido de noiva, o padre que se deita num caixão e assume uma aparência cataléptica (e acaba mesmo morrendo), o ato de o narrador estrangular a esposa, as atitudes entre o capitão do navio e o narrador. Vou citar como exemplo uma passagem particularmente significativa sobre um garoto que, num contexto em que as pessoas da cidade estão fortemente apreensivas com a guerra, apresenta um comportamento, se comparado com o delas, claramente discrepante:

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Fui até o mercadinho próximo. Uma mulher comprava um cacho de bananas com ar nervoso, a criança pendurada em sua saia trazia a expressão acabrunhada. Era a guerra que nos deixava assim. O garoto que me atendia no mercadinho não: vestindo uma camisa cor de vinho e uma gravata preta exibia uma expressão solene, como se declarasse que deveríamos partir para a guerra sem queixas, tão-so para vencer. Ele tinha uma longa cicatriz na testa, contou-me que fora chamado para a tropa dali a três dias e não via a hora de voltar da luta vitoriosa para a companhia da mãe, de novo, mas aí com a medalha de bravura no peito; então sairia a campo e faria daquele mercadinho um supermercado e também entreposto dos mais variados produtos já que vivíamos aqui nessa encruzilhada de todos os caminhos – mas antes de chegar esse tempo ele queria injetar a guerra na veia na marra do campo de batalha, viver em férrea disciplina, não acordar para o mundo fora do combate. Era preciso vencer o inimigo com todas as letras, dizimar o inimigo sem piedade, ultrajar sua honra até o último vestígio, extravasar-nos por suas terras que na verdade sempre foram nossas por direito, sugarmos as tetas quentes de suas mulheres, bebermos do leite destinado à sua cria, não satisfeitos exterminarmos os civis crianças velhos mulheres. (p. 131-2)

O interessante aqui, nesse cenário de medo e desalento, é que

este comportamento, o de entusiasticamente querer ir para uma guerra absurda e até sem nome, tanto pode ser lido – o que parece ser o ponto de vista do narrador – como um comportamento tão absurdo quanto a própria guerra (e também tão despropositado quanto vários outros episódios narrados no livro), quanto pode ser visto – assumindo-se uma perspectiva histórica ampla – como um comportamento freqüente em diversas guerras no século XX, em especial, na 1ª Guerra Mundial, para a qual se voluntariaram

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entusiasticamente jovens como Wittgenstein e Kafka, bem como inúmeros poetas expressionistas91; também na 2ª Guerra Mundial, apesar dos constantes bombardeios e da derrota já inexorável, o exército alemão ainda contou com a adesão de jovens entusiasmados, que impensadamente repetiam, tal como o garoto da Costaguana de Noll, os chavões da propaganda oficial.92

Assim, podemos ver que as passagens anti-realistas em A céu aberto – seja pelo comportamento extravagante das pessoas seja pelo frio desrespeito à vida humana – podem expressar, e de um modo muito mais cáustico, a realidade da alienação dos homens, talvez sobretudo dos jovens, diante da guerra, ou seja, pode-se dizer, há um método no delírio que, estranhamente, é comum à ficção e à realidade.

E também os episódios fantásticos podem se mostrar regidos por uma, digamos, lógica ou coerência narrativa equivalente ao que se espera de narrativas convencionalmente ditas realistas. Assim, o narrador resiste, ou ao menos não cede, nem à sedução de engajar-se em manter a todo custo uma casa de família, nem à de se voluntariar para o exército (sendo que é ao exército que ele parece resistir mais). Mas a forma do irmão resistir ao exército – bem como ao padre e à vida masculino-militar em geral –, ou seja, ao estado de exceção, é metamorfosear-se em mulher (afinal, a mulher, a feminilidade, é – segundo uma vertente em A céu aberto93 – elemento essencial à casa e ao seu modo de acolhimento); assim ele pode, enquanto mulher, se casar com o narrador, seu irmão, e constituir uma casa de família. A metamorfose do irmão se insere,

91 “…hat Kafka in seinen Kriegsdienst-Wunsh hineingetrieben – wie ganze Regimenter expressionistischer Lyriker neben ihm” (Bernd Neumann, Franz Kafka. Aporien de Assimilation, Munique, Wilhelm Fink Verlag, 2007, p. 25). 92 “Auch ich empfand eine pubertäre Begeisterung für den Krieg und den Sieg. Mein Freund Franz sagte zu mir: Hoffentlich dauert der Krieg so lange, daß auch wir Soldat werden.” (Dieter Wellershoff, "Was gelingt, ist das Buch"; disponível em:http://www.welt.de/print-wams/article133896/Was_gelingt_ist_das_Buch.html; acessado em 16 de julho de 2006). 93 Reparar que o garoto militarista fala em voltar da guerra para a “companhia da minha mãe”. A volta para casa é sobretudo volta para a mãe, para o elemento feminino e reprodutor. Contudo, cabe lembrar, que o garoto acredita que o exército seja, de certo modo, uma ampliação da casa, isto é, ele percebe o exército e a guerra como sendo o uso adequado de uma violência mantenedora da casa enquanto casa da mãe, e não como desencadeadores de uma violência catastrófica capaz de destruir até o elemento feminino reprodutor.

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portanto, em uma lógica de resistência ao estado de exceção, sendo, então, fortemente voltada para a constituição de um abrigo para manter toda a violência lá fora, embora, nesse mesmo gesto, possa ser uma tentação de fixação para o narrador, um obstáculo para sua vida a céu aberto. O irmão parece, portanto, engajar-se radicalmente na casa de família. A radicalidade desse engajamento a favor da casa se expressa, como já foi dito, em sua metamorfose em mulher, indicando que casa-paz-feminino-reprodução estão intrinsecamente relacionados. O empreendimento parece ter tido um sucesso temporário, apesar das repetidas incursões do fantástico (que é, por sua vez, uma forma discreta, mas efetiva de violência à ordem supostamente racional da casa) nessa vida que deveria ser uma serena e ordeira “vida comum” em família. A casa de família – é o que a narrativa não cessa de mostrar – está, porém, sim, em seu interior, sempre sendo assombrada pela violência exterior na forma da quebra da coerência comportamental e de acontecimentos fantásticos. Mas o irmão tornado elemento feminino consegue, ainda assim, manter uma vida familiar à sua volta. Se ele, ou melhor, ela abandona o narrador, seu marido, é para seguir para a Suécia com o “filho de Artur”, ou seja, é para torná-lo seu novo marido, vindo a constituir com ele novamente uma casa e, provavelmente, dando-lhe o suporte que permitiu que ele se transformasse em um autor teatral de sucesso. Ainda que a mulher do narrador pratique violências que o atingem, em especial, <1> quando ela engravida em decorrência de ter tido relações sexuais com o filho de Artur e com o narrador no mesmo dia fértil e fazendo questão de que não se saiba quem será o verdadeiro pai (“a criança terá dois pais pelo resto da vida” [p. 110]) e ainda <2> quando, grávida, deixa o narrador para ir para a Suécia com o filho de Artur (o filho dela nasce na Suécia e morre após o parto), ela o retém, e por vários anos. A casa de família se mostra, portanto, tanto um lugar de acolhimento e procriação quanto um lugar de violência e também de morte (no caso, da morte do recém-nascido, concebido na âmbito da “família”). Assim, o narrador, apesar de deixado pela mulher, continua morando na mesma casa, mantendo seu emprego de vigia no paiol e, portanto, preservando o mesmo estilo e ritmo de vida que tinha quando casado; leva assim a vida até quando sua esposa retorna, o que se dá por ocasião da retomada da guerra, evento que, por sua vez, torna

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iminente que a casa venha a ser invadida e ele fuzilado como desertor, ou seja, quando passa a ser iminente que, na casa, irrompa definitivamente a violência do exército, enfim, na iminência da brutal irrupção da violência na casa, o narrador, antecipando-se à ruína do acolhimento, estrangula a mulher. Por um lado, estrangular a mulher seria, na narrativa, como indiquei acima, mais um comportamento incongruente, por outro, pode-se ver nele o resultado de uma lógica de dissolução da suposta proteção e acolhimento da casa de família e sua transformação, para o narrador, em lugar de humilhação e violência, mas sobretudo de morte (no caso, como já indiquei, da morte do filho da esposa, ou seja, do filho que talvez fosse seu, marcando a família – antes o lugar da reprodução – com o estigma da morte; além disso, a casa, sendo invadida, tornar-se-ia o palco de seu fuzilamento, ou seja, nessa “lógica” implacável, sua mulher – devido à morte do filho, efetivamente transformada então em uma não reprodutora – talvez não estivesse mais protegida da morte). A narrativa nos deixa por vezes indecisos quanto àquilo que, em alguma medida, corresponde e quanto àquilo que escapa à coerência, quer à coerência convencionalizada como sendo própria ao realismo, quer a alguma outra coerência, talvez até mesmo a uma, por assim dizer, coerência onírica. Na verdade, a narrativa se desenvolve a partir de uma colagem de coerências que ora estão em mera contigüidade ora se imbricam. Por isso, há passagens que talvez sejam apenas fantásticas ou apenas realistas, além de passagens que podem ser lidas a partir das duas, por assim dizer, coerências. Algumas passagens realistas ou pragmáticas, que indicam, portanto, uma “vida comum”, seriam: o narrador ir encontrar o pai para pegar dinheiro com ele para comprar remédios para o irmão doente; as coisas todas que o narrador aprendeu a partir dos comentários do capitão sobre quais seriam os portos mais e os menos policiados (informação da qual o narrador faz um uso, a princípio, eficaz); a idéia de fazer um teste de paternidade; o documentário da TV alemã sobre o Carnaval no Rio de Janeiro (p. 77) (quando a mulher do narrador, em conseqüência de uma pergunta feita, afirma já ter estado no Rio); a consciência quanto a outras guerras (“Vietnã, Coréia, Paraguai” [p. 55]; e a irritação de que a guerra em que ele está não tem nome!); o fato de se localizar no contexto mundial falando de um modo adequado da

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Suécia e várias cidades de lá (p. 97), bem como de Londres; etc. Mas esses momentos narrativos realisticamente coerentes sempre podem ser interpretados como fazendo parte de um contexto fantástico mais abrangente; de fato, a Suécia, por exemplo, que parece ser o lugar por excelência da razão, uma região livre desta guerra que violenta todas as casas de família por esse país por onde o narrador perambula, não só tem pensadores com idéias bizarras, tal como é narrado pela esposa (p. 123), mas também, juntamente com a Inglaterra, que é mencionada como Londres, podem ser países vendedores de armas para o conflito nesta sempre beligerante Costaguana (de fato, a guerra usa aviões que são sucatas da 2ª Guerra Mundial [p. 133], os quais, possivelmente, tal como o nosso porta-aviões, foram vendidos pela Inglaterra), o que poria esses países não como exteriores ao conflito, mas como parte dele, talvez até mesmo como sendo a causa dele; nesse caso, o supostamente racional e pacífico seria a causa do irracional, do fantástico e do arbitrariamente violento94, enfim, o racional e estrangeiro seria a causa da incongruência dos comportamentos violentos no país onde vive o narrador. Essa mesma imbricação geográfica entre o cá e o lá, também, de certo maneira, ocorre com o tempo da narrativa. Ele parece por vezes se acelerar e se sobrepor (dois exemplos: <1> quando o irmão, que fora deixado no acampamento, reaparece na igreja onde, ao que parece, já estaria há algum tempo; <2> o tempo em que, na ausência da esposa, o narrador fica trabalhando de vigia acrescido ao tempo em que fica na cabine do navio parecem somar um tempo muito maior do que o período de 1987, início do uso forense de testes de DNA, até 1996, quando o livro foi publicado); contudo, considerada de um modo amplo, a narrativa é, sim, sem maiores problemas, predominantemente linear.

Visto tudo isso, podemos dizer que, em A céu aberto, há dois tipos de engajamento que seriam particularmente perigosos. O primeiro é o do garoto que, repetindo chavões propagandísticos, quer ir para a guerra, contando que a guerra irá proteger sua casa e que, portanto, depois, ele poderá voltar para onde mora sua mãe e

94 As guerras reais mencionadas pelo narrador – Vietnã, Coréia e 2ª Guerra Mundial – indicam que o mundo para além do país onde ele vive não é, na verdade, nem mais nem menos absurdo do que os países para além de suas fronteiras.

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retomar a loja na qual ele espera ter grandes lucros. Esta crença, ou engajamento, incondicional pela casa, que leva a que a guerra seja entendida como a garantia da casa (como saneadora última e definitiva da casa, assegurando-a, ao final, como um espaço totalmente puro e não-violento), é uma perigosa negação, uma unidimensionalização nefasta do sentido de casa, dissimulando a enorme violência que está sempre assaltando a casa; como inúmeros jovens entusiastas da 1ª Guerra Mundial, o garoto provavelmente não vai voltar, mas, se voltar, encontrará seu país empobrecido, talvez sua casa destruída e, até mesmo, sua mãe já morta. Mas ele, em nome de seus grandes ideais, que não são, porém, senão chavões requentados, pode matar e poderia até fuzilar o narrador, seu vizinho, se soubesse que ele é tido como desertor. O segundo tipo particularmente perigoso de engajamento é o do pai do narrador que, em vez de zelar pelos filhos, ou seja, de atentar, minimamente que fosse, para o familiar, os abandonou para se dedicar inteiramente à guerra, ao inóspito. Sua paternidade só piorou tudo, pois foi ela que, na esperança de um acolhimento familiar, atraiu o narrador para o exército, o que não ajudou seu irmão e, ainda por cima, o pôs na condição de desertor. O pai oficial é a prova cabal de que a guerra não garante a família, porque, embora ela até se proponha a refundar a ordem sobre a qual a sociedade com suas famílias poderia voltar a usufruir da paz, na verdade, a guerra logo passa a se alimentar da própria destruição que ela causa, recriando assim, a cada vez, as condições para o seu retorno ou intensificação. Frente ao garoto militarista e ao pai oficial do exército, o irmão tornado mulher surge como uma tentação menor, mas a ser, ao final, extirpada (o que seria, portanto, mais outra explicação para o estrangulamento); com efeito, o irmão tornado mulher, que se mostra engajado na busca de felicidade numa vida voltada para a casa de família; para uma casa tendo marido, ou maridos, e filho, ainda que esse irmão tornado mulher tenha mostrado ter uma visão dinâmica da vida familiar (e contrária ao militarismo), agindo tal como se uma família não pudesse ter uma ordem fixa no modo pai/mãe/filho legítimo, uma vez que, nesse caso, a violência poderia logo irromper na forma do patriarcalismo (daí ela preferir ter dois pais para o filho, o que seria, na prática, tentar evitar que qualquer um dos dois pais assumisse a postura distante e autoritária –

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portanto, patriarcal – do pai deles, que, afinal, acabou abandonando-os, bem como sendo por eles renegado), de modo que, se ela não persistiu no projeto de permanecer ao lado do narrador, ela, sem dúvida, se manteve firme quanto a seguir tendo o familiar à sua volta, partindo, assim, para formar, na Suécia, mais uma vez uma família, agora no modo marido/mulher/filho talvez do ex-marido. Embora o narrador, mantendo-se vigia no paiol, tenha continuado por vários anos na sombra desse modelo familiar dinâmico, ao final, com o retorno da guerra, que, aliás, sempre esteve por ressurgir, matou a mulher – que, de todo modo, não parecia mais ter como deter a guerra – e retornou a seu nomadismo. O narrador-escritor, afinal, não se satisfez com o acolhimento encontrado nem no casamento nem no exército, enfim, sua identidade não depende nem de ser marido nem de ser soldado; de fato, ele parece se sentir vivendo é quando está a céu aberto, nesse espaço entre a casa e o exército, entre o abrigo da casa e o estado de exceção. Assim, ele resistiu tanto à Cila da violência mantenedora da casa quanto à Caríbdis da violência disruptiva (revolucionária ou não; embora especificamente o exército não tenha nenhum perfil programático-revolucionário), abolidora do acolhimento da casa. Assim também, uma escrita a céu aberto deverá se desenvolver entre duas violências: por um lado, a ordem livresca dos estilos e dos gêneros literários; por outro lado, a escrita espontânea e vociferante que não cessa de se criticar e de experimentar. Saber ir da casa à guerra e voltar é o que se pode entender como uma escrita a céu aberto. No entanto, não se deve esquecer que, pelo que se vê em A céu aberto, não se trata da mera encenação de um ir e vir, mas de, de fato, se arriscar; de modo que, falhando, se pode não ir além de se tornar apenas um sedentário vigia de paiol ou de, perdendo todo o rumo, se expor a destruir-se ou a ser destruído, estigmatizado como terrorista; em outras palavras, trata-se de, apesar do risco de falhar, se arriscar a ir em frente, propondo algo que estimule ou incomode, isto é, trata-se de, por um lado, esquivar-se de tornar-se um escritor domesticado, escrevendo segundo fórmulas e clichês e, por outro, de evitar esgotar-se em uma guerra constante a tudo que não parecer novo o suficiente, enfim, de evitar descair para um experimentalismo supostamente revolucionário, mas que, repetitivamente, só leve a novas experimentações contestatórias.

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Enfim: nem ética pela ética; nem catástrofe pela catástrofe. A céu aberto seria a liberdade de, apesar dos riscos, transitar entre o ético e o catastrófico. A céu aberto seria a prática paradoxal de uma escrita ético-catastrófica.

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Kafka e o ato de publicação

Em 1920, em uma das cartas que Kafka escreve de Merano para

Milena, ele conta uma breve história sobre Dostoiévski que lhe parece misteriosa:

A Senhora conhece a história do primeiro sucesso de Dostoiévski? Trata-se de uma história que resume muitas coisas e que, além disso, vou citar pela comodidade devida ao grande nome, afinal, uma história daqui do lado ou de mais perto ainda teria o mesmo significado. Aliás, não conheço a história com exatidão, talvez nem os nomes. Quando Dostoiévski escreveu seu primeiro romance, Gente Pobre, morava com um amigo literato, Grigoriev. Grigoriev passou dois meses vendo as numerosas folhas escritas em cima da mesa, mas só pegou o manuscrito quando o romance ficou pronto. Leu-o, entusiasmou-se e, sem dizer nada a Dostoiévski, levou-o para Nekrassov, que era, nessa época, um famoso crítico. À noite, depois das 3 horas, bateram na porta de Dostoiévski. Grigoriev e Nekrassov entraram no quarto, abraçaram e beijaram Dostoiévski. Nekrassov, que Dostoiévski até então não conhecia, declarou-o a esperança da Rússia. Eles ficaram uma, duas horas em conversas que diziam respeito principalmente ao romance; somente ao amanhecer se despediram. Dostoiévski, que sempre se referia a essa noite como a mais feliz de sua vida, encostou-se à janela, olhou-os se afastarem, não conseguiu conter-se e começou a chorar. Seu sentimento profundo nesse momento, que ele descreveu não sei mais onde, era: “ Esses homens tão magníficos! Como são bons e nobres! E como eu sou vulgar. Se eles pudessem me ver! Se

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eu apenas lhes dissesse, não acreditem nisso.” Que Dostoiévski, então, também se propôs imitá-los é apenas um floreado, é apenas ainda a última palavra que a juventude invencível precisa ter, e já não pertence à minha história, que, portanto, termina. Reparou, minha cara Senhora Milena, o quanto essa história é misteriosa e impenetrável ao entendimento? Acredito no seguinte: Grigoriev e Nekrassov certamente não eram, até onde se pode falar sobre isso em termos gerais, mais nobres do que Dostoiévski, mas agora permita a Senhora assumir um olhar mais geral da situação, um olhar que Dostoiévski naquela noite, de fato, não buscava, e a Senhora se convencerá de que Grigoriev e Nekrassov realmente eram magníficos – enquanto Dostoiévski, impuro, comum, sem propósito – e de que ele naturalmente nunca se aproximaria, nem de longe, a Grigoriev e Nekrassov; e uma retribuição ao ato generoso deles, enorme e independente no mérito, nunca estará em questão. Vê-se cerimoniosamente pela janela como eles se afastam e, nisso, como fica evidente a inacessibilidade deles. Infelizmente o significado da história fica misturado com o grande nome de Dostoiévski.95

Essa história apresenta, de um lado, o escritor e sua obra, uma obra que surgiu exclusivamente de seu trabalho, nem seu colega de quarto teria opinado sobre ela antes que estivesse pronta, e, de outro lado, tudo o mais a que o artista, cessado seu trabalho de autêntica e independente criação, entrega sua obra; obra que aqui é apresentada, portanto, como um objeto autônomo e, a princípio, referido a si mesmo. Como essa obra chegará ao público? Enfim, como ela será publicada?

A princípio, a obra está ali, em cima da mesa; o artista a produziu, mas ele não parece ter nenhum contato com esse outro

95 Franz Kafka, Die Briefe, Frankfurt am Main, Melzer/ Zweitausendeins, 2005, p. 951-952. Neste ensaio, todas as traduções para o português são minhas.

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mundo fora de seu quarto, fora de seu espaço de criação. O artista não pediu nada, nem para si nem para a obra.

É Grigoriev, o colega de moradia, também literato, mas, pelo visto, com incursões pelo mundo exterior à criatividade artística, que, sem falar com Dostoiévski, sem, portanto, comprometê-lo nessa empreitada para além do espaço propriamente artístico, vai apresentar o manuscrito ao crítico Nekrassov. Depois disso, Grigoriev e Nekrassov vêm ao quarto de Dostoiévski, que é proclamado “a esperança da Rússia”; Dostoiévski vê Grigoriev e Nekrassov como pessoas magníficas e, sentindo-se vulgar, talvez não merecedor desse sucesso, chora. Esta anedota sobre reconhecimento e, em certa medida, celebração do trabalho do escritor – sem que o escritor tenha se ocupado diretamente em divulgar sua obra – é, para Kafka, misteriosa.

Grigoriev, ao ler o manuscrito de Dostoiévski, funciona primeiramente como uma metonímia do público leitor. Depois, ao agenciar a fase inicial de publicação do manuscrito, isto é, levando-o para que Nekrassov o leia, ele, que, afinal, é também literato, atua como um duplo do escritor-Dostoiévski, mas um duplo maligno, que suja as mãos pondo o manuscrito – até então resultado inconspurcado da criatividade artística – no circuito que o levará a ser publicado e, por que não?, a render dinheiro para o, nessa anedota, até o momento inocente Dostoiévski.

O curioso é que Kafka pretende estar contando a “história do primeiro sucesso de Dostoiévski”; no entanto, nessa história, nada é falado quanto à publicação e vendagem do livro. Tudo se passa como se, para Kafka, o reconhecimento de Nekrassov valesse já como o sucesso literário. Nekrassov, de fato, entra na história ainda como uma figura de transição entre a supostamente pura criatividade artística e a mercantilização da obra. Nekrassov parece ter ao menos três papéis na história: 1. o de metonímia do público; 2. o de escritor-empresário; 3. o de empresário, pois sua aprovação da obra parece já valer como sua publicação e, até mesmo, como boa recepção dela. Enquanto isso, Dostoiévski se mantém puro: ele não fez mais do que escrever sua obra; não correu atrás de dinheiro, nem foi venal. Esta seria, assim, a noite mais feliz de sua vida: foi reconhecido como escritor apenas com base no que, livre e independentemente, criou.

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Contudo, Kafka considera que essa história, que, segundo ele, “resume muitas coisas” (digamos, resume muitos mistérios), fica prejudicada por causa do “grande nome” Dostoiévski. Trata-se de uma história de sucesso, na verdade não só do primeiro sucesso, mas do sucesso todo que, daí em diante, não mais cessou, mas é exatamente o grande nome de sucesso, Dostoiévski, que distorceria a história. Kafka afirma que “uma história daqui do lado ou de mais perto ainda teria o mesmo significado”. Ora, como uma história de sucesso seria ainda uma história de sucesso se o protagonista fosse alguém “daqui do lado” que nunca fez sucesso algum? Ora, talvez porque, para Kafka, o “sucesso” em questão não seja a publicação e a grande vendagem de livros. De fato, a história não é sobre a grande aclamação pela crítica e público que Gente Pobre recebeu, mas sobre o entusiasmo de duas pessoas que faziam a vez de metonímia do público e da crítica, além de, subentendidamente, estarem dispostas a empresariar o livro. Porém, pelo visto, Dostoiévski não se sente tão fora desse circuito comercial assim. Ao contrário, Grigoriev e Nekrassov parecem ter gostado do manuscrito sem que ninguém, por meio de resenhas ou recomendações, lhes tivesse imposto isso. E o interesse imediato deles é conversar sobre o romance; eles expressam um interesse puramente literário: por isso, são vistos como pessoas “magníficas”. Aparentemente, Dostoiévski, embora tenha se engajado na conversa noite a dentro, não pensava apenas no romance enquanto literatura, mas se via pego na tensão de, por um lado, reconhecer-se como escritor e, por outro, obter lucros com o sucesso que ele, recém proclamado “a esperança da Rússia”, teria. Na verdade, seus duplos malignos se mostraram, naquela noite, mais interessados no caráter literário da obra do que ele próprio. Mesmo assim, a grande metamorfose da noite foi que, de alguém que não teria clareza de seu “sucesso” literário, se tornou “a esperança da Rússia” e viria a ser, mais tarde, o “grande nome” Dostoiévski.

O que incomoda Kafka na anedota é o “grande nome”, ou seja, o sucesso junto ao público em geral. Kafka considera que a parte mais importante da história é a que vai até o fim da noite; tudo o mais que está subentendido na história, isto é, a publicação, a venda e a celebrização do escritor, enfim, aspectos da história que ele, ao nem mencionar, desqualifica. Kafka quer que a anedota seja sobre o

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“sucesso” literário independente da publicação e de suas repercussões no grande público. Na verdade, o “sucesso” dele, Kafka, em 1920, está mais próximo do “sucesso” de alguém “daqui do lado”, ou seja, de um desconhecido, do que do sucesso do “grande nome” Dostoiévski. Embora isso não seja explicitado, fica insinuado que o tornar-se um “grande nome” pode obscurecer a pureza da criatividade literária não conspurcada com o lado comercial do livro. Kafka está sugerindo, com suas restrições ao contar a história, que a metamorfose em escritor não só independe da fama subseqüente (que pode ou não advir), mas que, de alguma maneira, pode ser prejudicada por ela. Seja como for, Kafka, no seu modo de narrar, busca – para além do ato solitário de escrita – dar destaque apenas ao reconhecimento metonímico pelo público, ignorando ou, antes, desprezando o reconhecimento mais amplo e, é claro, efetivamente lucrativo. Ou seja, para Kafka, a obra literária resulta de um trabalho puramente individual; o máximo de, digamos, “impureza” que ele concede para que alguém se sinta metamorfoseado em escritor é ter um reconhecimento metonímico por alguns outros escritores ou críticos; enfim, nem à publicação do livro nem à aclamação por um público numeroso é atribuída qualquer relevância: por isso, Dostoiévski acaba sendo um mau exemplo.

Essa estilização de Kafka de sua compulsão a escrever por escrever encontra ressonância na crítica, que se esbalda em citar as mesmas passagens de suas cartas a Felice. Kafka é par excellence o escritor que não sujou as mãos. Quem não se espanta de que livros como O processo e O castelo não tenham sido finalizados e encaminhados para publicação? Com efeito, foram publicados, mas por Max Brod. Para Kafka, Brod cumpria, conjuntamente, os papéis de Grigoriev e Nekrassov. Brod era tanto a metonímia do público (de quem a leitura atenta, os comentários e os incentivos talvez já lhe valessem mais do que o livro publicado lhe traria) quanto seu duplo maligno, aquele que sujava as mãos empreendendo publicações. É certo que Brod não foi o único duplo maligno de Kafka, mas foi o mais importante deles: com Kafka vivo ou morto. Foi Brod, numa postura de empresário, quem apresentou a Rohwolt e a Wolff a proposta de publicação de Contemplação96 enquanto Kafka, numa

96 Franz Kafka, Drucke zu Lebzeiten, Frankfurt am Main, Fischer Verlag, 2002, p. 7-40.

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visita à editora, se mostrava retraído, dando mesmo a impressão de não querer publicar.97 Até a responsabilidade quanto à ordem final dos textos incluídos em Contemplação Kafka preferiu transferir para Brod, pedindo que ele a revisse, porque, na véspera, devido à presença de Felice, que ele acabara de conhecer, Kafka poderia ter cometido “alguma tolice”98. E, se foi assim no início, continuou sendo depois do fim; o pedido, que a crítica também tanto gosta de repetir, de que Brod queimasse todo seu espólio literário, foi, mais uma vez, uma maneira de lavar as mãos, deixando para o amigo o trabalho sujo de encaminhar os inéditos para publicação. E Brod foi ainda mais longe: transformou Kafka num “grande nome”.

No entanto, ao menos em vida, Kafka, com suas poucas e discretas publicações, parece ter conseguido se manter no difícil equilíbrio entre sentir-se um escritor, acreditar nisso com todas as forças, e não ir além de interações praticamente metonímicas com a crítica e o público. O preço que pagou foi ter de continuar em seu trabalho burocrático. Mas, enquanto escritor, manteve-se magnífico. O interessante é que ele não fugia do público; antes, lia, com muito gosto, para amigos e em público. Embora não tenha experienciado em vida o que é, tal como Dostoiévski, ser um escritor com grande vendagem, era, em grande medida, consciente do efeito de seus textos sobre o público. Enfim, nunca passou por um dilaceramento tão intenso quanto o do Dostoiévski da anedota, que sentia não ser tão magnífico assim, ou seja, que sabia que, dentro dele próprio, ao lado de sua pureza de escritor criativo, convivia seu duplo maligno. Kafka esconjurou-o, impondo sobretudo a Brod essa tarefa, supostamente maligna, de publicar.

Mas o transbordamento emocional de Dostoiévski não parecia se dever apenas a um conflito interior entre generosidade artística e malícia empresarial. Naquela noite, o que predominou foi, aparentemente, o sentimento sublime de sentir-se um escritor grandioso, ou seja, “a esperança da Rússia”. Quando em sua vida,

97 Wollf narra a seguinte lembrança do encontro, em 1912: “...ich habe im ersten Augenblick den nie auslöschbaren Eindruck gehabt: der Impressario [Brod] präsentiert den von ihm entdeckten Star [Kafka]... Wollte er [Kafka] denn, dass man seine belangelosen Kleinigkeiten drucke – nein, nein, nein...”, citado em: Reiner Stach, Kafka. Die Jahre der Entscheidung, Frankfurt am Main, Fischer, 2003, p. 68. 98 Kafka, op. cit. An Max Brod – 14.8.1912;. p. 90.

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com base nos documentos que sobreviveram, podemos pensar que Kafka vivenciou – ou tentou conter – um tal arrebatamento? Ora, se a conversa com Rohwolt não parece ter emocionado Kafka, sem dúvida, na noite em que entregou a revisão final dos textos de Contemplação, afloraram emoções fortes. Se foram emoções devidas a sentir-se escritor ou a estar se interessando por Felice, não é possível determinar; em todo caso, não há relato de que tenha sido uma torrente avassaladora de emoções. Evidentemente, temos de acreditar em muito nos relatos que nos faz o próprio Kafka; mas não é estabelecer a verdade dos acontecimentos que estou buscando aqui, e sim analisar como Kafka, ele próprio, e seus biógrafos estilizaram esse significativo momento em que surge o sentimento de, enfim, ser verdadeiramente um escritor, ainda que, nesse momento, não se seja instantaneamente arrebatado à fama de Dostoiévski, enfim, o que me interessa é analisar a estilização de como alguém, mesmo sem ter publicado nenhum livro, se vê inebriado com a sensação de ser um escritor literário. Alguns escritores parecem ter cedido prazerosamente ao êxtase99. Kafka também. Mas ele tentou com todas as forças canalizar esse êxtase para intensificar sua escrita, buscando pôr de lado qualquer entusiasmo ou empenho com a publicação, de modo que, embora tenha euforicamente escrito por vários meses, realizou a revisão dos textos de Contemplação com enfado100.

De fato, os meses entre a revisão dos textos de Contemplação e sua publicação em janeiro de 1913 são um período em que Kafka se mostra tomado por intensa energia criativa. Nesses meses, entre outras coisas, além da revisão de Contemplação, ele esboça O desaparecido, prossegue com seu Diário, inicia o relacionamento e a correspondência com Felice, escreve O Veredicto (na noite de 22 para 23 de setembro de 1912) e tem a idéia de A metamorfose (17.11.1912), trabalhando nela por cerca de seis semanas até concluí-la. O estado de excitação de Kafka com a escrita era visível. Retornando da Itália, em 29 de setembro, Brod e Weltsch foram recebidos na estação de trem por um Kafka que lhes relatava com

99 Em ‘O ato de publicação enquanto o abjeto da escrita literária’ (ver acima), comento um êxtase semelhante relatado por Jean-Philippe Toussaint. 100 Sobre a atitude de Kafka na preparação de Contemplação para a publicação ver: Stach, op. cit., p. 92 e segs.

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orgulho seus excessos literários noturnos; em especial seu paroxismo inspiracional quando escreveu O Veredicto ao longo de uma noite de ininterrupta atividade de escrita. Sobre isso, citando o diário de Brod, um biógrafo de Kafka, Reiner Stach, faz o seguinte relato:

“Kafka em êxtase”, escreve Brod em seu diário, “escreve noite adentro. Um romance que se passa na América.” Dois dias mais tarde: “Kafka em um êxtase inacreditável.” Ainda um dia depois: “Kafka, que continua muito inspirado. Um capítulo pronto. Estou feliz com isso.” Com base nessas anotações, Kafka na noite de 1º de outubro já teria concluído ‘O foguista’, o primeiro capítulo de O desaparecido; de fato, uma velocidade extática de trabalho se se considerar que ‘O foguista’ é cerca de duas vezes e meia mais longo que O Veredicto, que, ainda assim, custou oito horas de trabalho.101

Enquanto Dostoiévski chorava vendo Grigoriev e Nekrassov se afastarem e considerava que, se eles pudessem vê-lo em suas intenções, saberiam logo que ele, de fato, não era assim tão magnífico, que seus esforços visassem puramente à literatura, mas que ele estava, afinal, até disposto a imitar o lado empresarial daqueles dois, Kafka concentrava todas as suas forças e emoções na atividade de escrita; e o fez, em certa medida, em detrimento de seu compromisso com a publicação já combinada, revisando os textos de Contemplação com contrariedade, tal como se somente o fizesse por exigência de Max Brod. Se, segundo Kafka, o jovem Dostoiévski chegou a considerar Grigoriev e Nekrassov como exemplos, ele próprio resistiu a essa tentação, não tomando Brod (nem mais ninguém) como exemplo de escritor profissional, convergindo todas suas energias para a escrita; no caso, estilizando sua escrita como independente da comercialização, enfim, uma estilização de pureza literária pretendida também por outros escritores e, em geral,

101 Stach, op. cit., p. 119-200.

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positivamente apreciada pela crítica até hoje102. Assim, esses poucos meses foram, segundo Stach103, um dos períodos de mais intenso trabalho literário na vida de Kafka.

Kafka é, portanto, um escritor que, embora não sendo abastado, de um modo admiravelmente eficaz se esquivou da tentação de profissionalizar-se. Ele apostou alto no quanto sua recusa a deixar de ser magnífico resultaria em torná-lo cada vez mais magnífico. De certo modo, o que Kafka diz na carta à Milena é que ele resistiu à tentação de ser Dostoiévski, de degenerar-se em Dostoiévski, de perder de vista que o sucesso literário é algo que, antes, diz respeito a quem resiste à fama, enfim, que é algo que a fama apenas soterra, distorce. O sucesso literário é infame.

102 No acima referido ‘O ato de publicação enquanto o abjeto da escrita literária’, comento a difundida prática de evitar a tematização do ato de publicação em textos literários que não são abertamente debochados. 103 Stach, op. cit., p. 193.

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A metamorfose pelo ato de escrita

Gostaria de contar aos Senhores,

quer isto lhes interesse quer não,

por que não consegui me tornar

nem mesmo um inseto. Conto-

lhes solenemente que tentei

muitas vezes me tornar um

inseto. Mas eu não me

equiparava nem mesmo a isso...

Dostoiévski. Notas do subterrâneo104

…je mehr ich schreibe und je

mehr ich mich befreie, desto

reiner und würdiger werde ich…

Kafka. Carta a Felice de 24.11.1912105

Kafka, reiteradamente, se declara absolutamente engajado no

ato de escrita. A partir sobretudo de suas cartas, entende-se que ele renunciaria a uma vida socialmente mais intensa para poder se dedicar prioritariamente a escrever. Seu emprego seria uma escolha paradoxal: trabalhar na firma de seguros lhe possibilitaria uma independência financeira relativa que, embora ainda o roubando de tempo e forças, lhe permitia escrever e manter um convívio social favorável à sua prática literária. A crítica, em geral, tem enorme simpatia por essa opção radical de Kafka pela escrita e, quase unissonamente, lamenta que ele tenha tido de perder tempo ocupando-se como burocrata. A imagem que se passa é a de um Kafka empenhado em manter a pureza do ato de escrita contra o

104 F. Dostoevsky, Notes from the Underground, The Project Gutenberg Etext. Neste ensaio, todas as traduções para o português são minhas. 105 Franz Kafka, Die Briefe, Frankfurt am Main, Melzer/ Zweitausendeins, 2005, p. 461.

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medíocre cotidiano que lhe exigia trabalhar; enfim: escrita literária vs. trabalho burocrático. Corngold acompanha na vida de Kafka o surgimento de um gnosticismo de escrita (writerly... gnosticism)106; em outras palavras, Kafka chegaria a alcançar um estado de consciência superior através da escrita. Corngold confere um destaque especial ao que ele chama de gnosticismo poético tardio de Kafka (Kafka’s late poetic gnosticism)107.

Kafka também se mostra esquivo quanto a publicar. Especialmente a publicação de seu primeiro livro, Contemplação108, se deu por insistência e empenho de Max Brod. Numa breve história sobre o primeiro sucesso literário de Dostoiévski, que Kafka narra em uma carta a Milena, é claro o quanto o sucesso social amplo e o tornar-se “grande nome” são vistos por ele com distanciamento109. O que Kafka considera relevante é o ato de escrita; no máximo, ele ainda parece aceitar como positiva a interação com alguns críticos e com um público limitado. Assim, Brod funciona para Kafka tanto como metonímia do público e da crítica quanto como seu duplo maligno que empreende a transferência do ato de escrita individual para o domínio público. Ou seja, Kafka não resiste apenas ao seu trabalho burocrático, mas também ao ato de publicação, ao menos no quanto este pode ser entendido como burocrático e comercial.

Além disso, é devido à sua entrega incondicional ao ato de escrita que Kafka explica suas atitudes anti-sociais. Numa carta ao pai de Felice, sr. Carl Bauer, ele descreve esta sua relação incontornável com a escrita:

Considere o Senhor apenas isto que é importantíssimo: todo o meu ser diz respeito à literatura, essa orientação eu tenho rigorosamente mantido até o meu trigésimo aniversário; se eu alguma vez a abandonar, não mais viverei. Tudo que sou ou que não sou decorre disso. Sou calado,

106 Stanley Corngold, Lambent Traces. Franz Kafka, Princeton, Princeton U. P., 2004, p. 112. 107 Corngold, op. cit., p. 112. 108 Franz Kafka, Drucke zu Lebzeiten, Frankfurt am Main, Fischer Verlag, 2002, p. 7-40. 109 Kafka, Die Briefe, p. 951-952. Comento esta carta acima em ‘Kafka e o ato de publicação’.

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insociável, mal-humorado, egocêntrico, hipocon-dríaco e efetivamente doentio. Basicamente não me queixo da nada dessas coisas todas, trata-se do reflexo terreno de uma necessidade mais elevada.

É difícil dizer se Kafka está nessa carta argumentando a favor de

seu casamento com Felice ou contra. Enfim, sua sinceridade e sua seriedade para com compromissos assumidos seriam virtudes. Poderiam ser pontos positivos, embora Carl Bauer, é claro, pudesse, lendo essa carta, formar a opinião contrária. Mas não é em si a posição de Kafka para com o casamento que me interessa, e sim como ele expõe, ou estiliza, seu compromisso para com o ato de escrita como sendo algo que o contrapõe à vida social em sentido amplo. Na verdade, se o irrita encontrar-se socialmente com pessoas que o afastariam da prática solitária da escrita, também o irrita o modo como ele mesmo se porta socialmente. Se as outras pessoas, porque elas o desviam do ato de escrita, o aborrecem, Kafka, que, afinal, aceita – ou não vê como recusar – convites sociais (e só para sentir-se desconfortável nessas ocasiões), parece considerar que ele também aborrece as pessoas, e mais ainda que elas a ele. Em todo caso, Kafka em sociedade não se vê como essencialmente diferente das outras pessoas (se ele chateia, essas outras pessoas também chateiam a ele e a si mesmas). Há, portanto, duas pessoas em conflito: o Kafka-escritor, que é um, e o Kafka-social, que é outro; sendo que o duplo social de Kafka, mal-humorado e hipocondríaco, isto é, o duplo maligno do escritor, parece ser até mais pernicioso do que as outras pessoas, pois estas, afinal, parecem tratá-lo com cortesia e, segundo relatos, até o consideravam gentil e simpático.

Nessa mesma linha de resistir reconhecer-se como socialmente integrado, Kafka parece ter se atormentado com a questão de se o casamento o arrastaria para viver predominantemente como seu duplo socializado – e, portanto, deletério para o ato de escrita – ou se, com o apoio de sua esposa, ainda conseguiria manter a solidão alegadamente indispensável para o Kafka-escritor. Sobre isso há interessantes trechos em seu Diário. A assunção do caráter produtivo e, portanto, necessário da solidão parece incontestável para Kafka:

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Eu necessito estar sozinho por muito tempo. O que consegui fazer é um resultado apenas de ter estado sozinho.110

Para Kafka, o ato de escrita precisa ocorrer na pureza da

solidão, sem intromissões da sociedade. Sem que, até mesmo, haja a intromissão de um tipo de conversa literária que, pelo visto, é literariamente corrompida:

Tudo o que não se refere à literatura eu odeio; conversas me entediam (ainda quando se referem à literatura); fazer visitas me entendia; os sofrimentos e as alegrias dos meus parentes me entediam profundamente. Conversas me tiram tudo aquilo que eu considero importante, sério, verdadeiro.111

A literatura se mostra também como tendo um duplo maligno.

A literatura enquanto mera conversa social, isto é, no que, ao abandonar a solidão, passou para o outro lado, tornando-se entretenimento, ou mesmo empreendimento lucrativo, o entedia.

É aí que Kafka localiza seu medo (“Angst”): nessa passagem de sua atividade de escrita solitária para uma vida familiar e social na qual a literatura até tem seu lugar, embora apenas como algo que o aborrece, não mais como algo que o arrebata ou dilacera, e que, em todo caso, só poderá surgir se a solidão seguir preservada. Sem o ato de escrita solitário, que o vínculo matrimonial tanto ameaça, ele teme passar para o outro lado; dele, enquanto escritor, restando apenas o duplo maligno.

O medo do vínculo, de passar para o outro lado. Então não estarei nunca mais só.112

110 Franz Kafka, Tagebücher, Frankfurt am Main, Fischer Verlag, 2002, p. 569. 111 Op. cit. 112 Op. cit.

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Ainda pondera que, com suas irmãs, era diferente: ele até conseguia se manter do lado literário. Duvida, porém, que, com sua mulher, isso seja possível.

Em geral, diante das minhas irmãs, sobretudo tempos atrás, eu era muito diferente do que sou diante das pessoas. Destemido, de coração aberto, forte, surpreendente, arrebatado como de resto o sou apenas pela escrita. Se, com a mediação de minha mulher, eu pudesse ser assim diante de todo mundo! Não acabaria então privado de escrever? Somente isso não, somente isso não!113

Ao menos nessas notas parece claro para Kafka que o ambiente

feminino proporcionado por suas irmãs, que o ajudavam a manter a solidão do ato de escrita, tem poucas possibilidades de se repetir no casamento com Felice. Talvez Felice até pudesse fazer com que Kafka – que socialmente se auto-estiliza como um casmurro – pudesse tornar-se um ser destemido, surpreendente e forte, enfim, alguém mais sociável, mas isso, transformá-lo em um versátil animal social, parece que o privaria de escrever. Em todo caso, uma coisa lhe parece incontestável:

Sozinho eu eventualmente poderia, talvez, abrir mão do meu posto de trabalho. Casado isso nunca será possível.114

Enfim, Kafka precisa de sua solidão para assegurar a pureza de

seu ato de escrita. A atividade de escrita tem que, para que o ímpeto não se embote e suas energias não se desbaratem, ser mantida afastada dos compromissos sociais e familiares próprios ao casamento, de seu posto de trabalho e da literatura de salão. Ao escritor zeloso da pureza do ato de escrita se contrapõe, em primeira linha, o duplo maligno na figura do marido eternamente burocrata que tem a literatura como entretenimento social; no entanto, a figura de um outro duplo maligno se insinua: o escritor que dispensa

113 Op. cit., p. 569-570. 114 Op. cit., p. 570.

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o trabalho burocrático para viver apenas da escrita, digamos, o escritor mercenário. Se há a escrita empenhada em sua pureza, há também a escrita transmutada em entretenimento, produzida, em geral, por escritores na prática de seu ganha-pão. Por vezes, profissionalizar-se como escritor foi, de fato, uma tentação para Kafka. No entanto, a princípio, preferiu continuar em seu trabalho burocrático; assim, sacrificava seis horas de seu dia, mas tinha ainda tempo para escrever sem a premência de publicar.

Pelo que Kafka fala, a solidão que ele, até então, desfruta no ato de escrita lhe é prazerosa, tornando-o intrépido e arrebatado, mas não lhe esconjura totalmente as tentações de seus duplos, dessas figuras literariamente perniciosas que o assombram: o marido, o bem-falante e o escritor profissional com sucesso na venda de livros e resenhas. Ou seja, para Kafka o sucesso literário não é o que se atinge com a carreira social de profissional da escrita. O escritor literário tem como verdadeiro sucesso manter sua solidão, zelando nela pelo surgimento de um ato de escrita que seja puro. O verdadeiro sucesso literário só secundariamente pode se tornar sucesso de vendas. Um livro não é escrito para isto: para vender. Kafka entende a escrita literária fundamentalmente como um ato solitário. Ele desconfia de todas suas apropriações sociais. Apesar das dificuldades, ele, ainda assim, busca se manter puro até em relação à publicação de seus textos. Primeiramente, deixou que Brod fizesse os principais contatos para a publicação de Contemplação; depois, no fim de sua vida, pediu a Brod que queimasse todos os inéditos. Kafka empurrou para cima do amigo, o mais que pôde, o papel de duplo maligno instituindo-o agente literário e, posteriormente, testamentário. Todas essas histórias, que poderiam ser vistas como mesquinhas e medrosas, mantêm sua graça na medida em que, tal como Kafka, tantos outros partilham do pressuposto de que ao ato de escrita é reservado um lugar inconspurcado pela publicação e pelo entretenimento social. Ora, e essa é minha questão, todo o ato de escrita sempre já ocorre no horizonte publicacional. Se Kafka solicitou a Brod que queimasse seus inéditos, é porque ele, em alguma medida, já os considerava publicados; no máximo, o que estava pedindo é que sua divulgação cessasse. Quando Kafka entregou seu Diário para Milena, não era isso já um ato de publicação? Quando se dá a publicação de um

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texto? Ora, ela ocorre com o ato de escrita. O que está escrito está publicado. O que o autor pode é impedir a divulgação, isto é, queimar ou deletar tudo. Mas publicado já está. E já tem seu público, ainda que seja só aquele que o escreveu, mas que, evidentemente, já imediatamente se tornou um outro diante do ali escrito; tanto que, muitas vezes, rascunhos escrevinhados por puro desabafo acabam como material para compor romances. O que as editoras e os circuitos midiáticos em geral buscam fazer é transformar os inúmeros escritos que proliferam na sociedade em produtos comerciais rentáveis (isso é o que leva as editoras a buscar estabelecer tanto padrões de produção quanto padrões de consumo, sem nunca esquecer que tais padrões – como em tudo que é chamado de arte – terão sempre de variar ou, até mesmo, de se deixar surpreender por algo fora dos padrões, mas que, espera-se, acabará assimilado na lógica do lucro financeiro).

Mas Kafka considera o sucesso literário como independente do sucesso de vendas e do tornar-se um “grande nome”. Ao menos é isso que sugere, como já mencionado acima, na breve história que conta à Milena e que ele considera “misteriosa” a respeito do primeiro sucesso literário de Dostoiévski115. Embora esteja se referindo ao sucesso de Gente Pobre, que não foi pouco, ele diz que, na verdade, o “grande nome” de Dostoiévski não acrescenta nada de importante à anedota que ele narra, pois, “afinal, uma história daqui do lado ou de mais perto ainda teria o mesmo significado”. Ou seja, Kafka considera que a história do primeiro sucesso de vendas e de público de um autor “teria o mesmo significado” se ela não dissesse respeito a esse autor enquanto “grande nome”. Ora, que sucesso então sobraria? Seria o sucesso do ato solitário de escrita literária. Em todo caso, o sucesso de vendas e de crítica não acrescentaria nada de essencial ao ato de escrita. Uma coisa seria o ato de escrita; outra, a publicação, o sucesso e a fama nacional e internacional. Assim, para Kafka, tanto maior seria o sucesso quanto menos o escritor fosse levado a “passar para o outro lado”.

E um dos mistérios dessa história sobre Dostoiévski deve mesmo estar em como ele praticava sua escrita. Conta-se que o final de Crime e Castigo foi escrito às pressas para pagar dívidas; e

115 Kafka, Die Briefe, p. 951-952. Ver meu comentário sobre essa carta no ensaio mais acima: ‘Kafka e o ato de publicação’.

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dívidas de jogo. Não posso imaginar nada mais anti-Kafka, nada que seja mais escandalosamente “passar para o outro lado” do que um escritor ir a um cassino e não só perder lá todo o dinheiro, mas também comprometer os adiantamentos de livros que ainda nem foram escritos. Dizem também que Dostoiévski escreveu O jogador para pagar dívidas de jogo. De fato, um curto-circuito impressionante: por um lado, o ato de escrita se desenvolve sugando o que a vida social (“o outro lado”) lhe oferece como temática e experiência e, por outro, o que provoca o ato de escrita é a necessidade premente de obter dinheiro por causa do jogo. Assim, o ato de escrita, ao contrário de puro, é, para sua inspiração e motivação, parasitário da jogatina; e a jogatina é inspiradora e parasitária do dinheiro a ser obtido com a venda do que o ato de escrita produz. O que parasita o quê?

Em Dostoiévski, o ato de escrita e o ato de publicação (e vendagem) se abraçam em recíproco parasitismo.

De fato, ato de escrita e ato de publicação não se dão separadamente, ainda que, devido a uma série de fatores, se possa estilizá-los como separados. A vida discreta de Kafka e sua ansiedade em defender a pureza do ato de escrita têm servido para que a mitologia da solidão literária tenha se mantido plausível até hoje, apesar de trabalhos como os de Bourdieu e dos Estudos Pós-coloniais, que consideram o tornar-se escritor e o sucesso dos livros a partir do jogo de trocas sociais. Seja como for, nas interpretações de Kafka essa pureza segue, em geral, sendo bem aceita. Mas Dostoiévski é um enorme, digamos, um monstruoso contra-exemplo da necessidade de resguardo do ato de escrita. Enquanto Kafka escrupulosamente evitava seus circunspectos duplos: o marido fiel, o burguês sociável e o escritor funcionário; Dostoiévski convivia promiscuamente com seus destrambelhados duplos: o grande nome, o epilético, o revolucionário, o prisioneiro, o convertido, o jogador e o escritor profissional.

Apesar da vida conturbada de Dostoiévski, Kafka admirava sua obra. Aliás, a obra de Dostoiévski – com sua expressão de angústia, dor e religiosidade – não é incompatível com o que Kafka pensava sobre a purificação pela escrita. De fato, o monstruoso nunca deixou de inspirá-lo, de se imiscuir em sua escrita, de sisificamente incitá-lo a repurificações. À Felice ele escreve dizendo que A metamorfose é

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um texto “nojento”; e talvez ele seja, de fato, seu livro tematicamente mais monstruoso, além de, provavelmente, ser seu livro mais monstruoso em termos de fama (foi o único livro que, em sua vida, teve duas edições, além de seguir sendo seu livro mais lido e, assim, contribuindo para o seu agora monstruosamente “grande nome”). Mas essa escrita nojenta parece ter sobre ele um forte efeito libertador:

…quanto mais escrevo [sc. A metamorfose] e quanto mais me liberto, tanto mais puro e digno me torno...

(Carta a Felice de 24.11.1912)116

E, de fato, A metamorfose, como argumentarei mais abaixo,

pode ser lida como a narrativa de uma purificação. A história de Samsa, a princípio, seria uma narrativa onisciente e extradiegética focada em torno de seu corpo. Porém, com a sua morte a narrativa continua, tornando-se mais ampla, no caso, expandindo seu foco, de modo a acompanhar a família Samsa num passeio de domingo. Para alguns intérpretes, essa mudança de foco na voz narrativa parece incômoda. De fato, em se tratando de Kafka, se esperava algo, digamos, mais perfeito, ou mais suave ou mais abrupto, mas essa guinada de foco, de Gregor para a família, parece pouco habilidosa; soa, antes, como um deslize, como um remendo duvidoso ao final. Há quem preferisse que a narrativa acabasse quando o ser estranho morre. Mas isso talvez se deva ao pressuposto de que A metamorfose seria essencialmente uma crítica à vida pequeno-burguesa do caixeiro-viajante, de modo que, morto Samsa, a narrativa poderia acabar. No entanto, se A metamorfose for lida também como uma ascensão contemplativa, ou seja, como um exercício de esvaziamento (de quenose) da vida burguesa, de modo que, do ponto de vista individual (no caso, no de Samsa), quanto à sua inserção nessa mesquinha vida burguesa, a narrativa teria, de fato, de prosseguir para além da dissolução do ponto de vista córporo-individual.

116 Op. cit., p. 461.

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Antes de prosseguir com a discussão de A metamorfose, recapitularei alguns pontos já comentados. Para Kafka, o ato solitário de escrita purifica. O ato de escrita não depende intrinsecamente do ato de publicação e seus efeitos, de modo que o escritor não precisa, com o ato de escrita, atingir a fama; ao contrário, tornar-se escritor profissional traz consigo o risco de passar “para o outro lado”. Ou seja, idealmente, o ato de escrita é tanto mais purificador quanto menos ele resultar em um texto publicado e lucrativo, enfim, quanto menos o texto levar a que aquele que escreve se veja enredado em posturas sociais de escritor profissional. Para aqueles que defendem a pureza do ato de escrita literária, deveria soar como altamente paradoxal que o ato de escrita resulte em algo como um sólido livro (sólido ao menos nos tempos pré-internet de Kafka), em algo como uma carcaça vendável, enfim, em algo como uma tumba – ou cenotáfio – do ato de escrita heroicamente solitário.

Especificamente no contexto em que A metamorfose é escrita, Kafka se vê entre a Silas de tornar-se escritor e a Caríbdis de manter-se um funcionário burocrático. Kafka está tensionado entre duas metamorfoses. Por um lado, pode acordar um dia e seu livro, Contemplação, ter sido publicado metamorfoseando-o em escritor; por outro, pode se casar com Felice, metamorsoeando-se definitivamente em burocrata. Ele só ainda estará a salvo na medida em que conseguir, navegando entre esses dois escolhos, preservar a pureza do ato de escrita. Kafka tem que, por um lado, seguir escrevendo sem se deixar seduzir pelo que o sucesso em publicar e vender (esse comércio de carcaças) pode trazer e, por outro, tem de se afastar da sedução do casamento/família e do que isso, ao estabelecê-lo como funcionário, lhe traria.

Kafka e Samsa partem, portanto, de uma situação semelhante. Samsa, tal como Kafka, quer abandonar o emprego (tem supostamente planos para isso), que ele alega manter apenas por responsabilidade para com a família. Em menor escala e com menos paixões do que Dostoiévski, Kafka também vive em recíproco parasitismo entre cultivar a escrita e manter um ganha-pão (também fazendo das agruras de seu ganha-pão tema para a escrita e assegurando com o ganha-pão a solidão por ele tida como necessária para a escrita). Samsa não propriamente escreve, ao menos, a

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princípio, não produz narrativas escritas, mas ele se divide entre uma narrativa sua imaginária que conta sua vida fora do trabalho (conta, aliás, em especial, como ele se demitiria, isto é, o que ele, então, falaria para o patrão) e o respeito temeroso pelo chefe. Portanto, tanto Kafka-escritor e Kafka-funcionário quanto Samsa-fabulador e Samsa-funcionário reciprocamente se parasitam. E, em A metamorfose, Kafka, no ato de escrita, parasitará ainda a vida parasitária que ele imagina para Samsa; assim, ao escrever, vivenciará o mesmo processo de distanciamento da mente em relação ao corpo, que é um fio condutor da narrativa do conto (de certa maneira, não há como negá-lo, qualquer consciência contemplando seu corpo externamente pode percebê-lo como uma carcaça orgânica que come – e até digere – coisas mortas e mesmo em apodrecimento)117, ou seja, trata-se de um processo que resultará em uma consciência contemplando – para além de seu corpo abandonado – a vida social de um ponto focal externo. Samsa, para receber os elementos de sua monótona história de vida, tem de parasitar narrativamente a vida do funcionário Kafka (que, por sua vez, parasita, trabalhando e morando na casa dos pais, a vida burguesa de modo a ter tempo e assunto para escrever suas histórias), e Kafka, estilizando sua vida na do caixeiro-viajante, escreve a narrativa de Samsa (que pode ser entendida tanto como uma narrativa sobre Samsa quanto como uma narrativa do Samsa já se desligando de seu corpo); uma narrativa que produz e vivencia um processo de distanciamento, ou mesmo de libertação, das carcaças que aprisionam a ele (sc. Kafka, mas também Samsa), no caso, se trataria sobretudo de um processo de libertação da carcaça livro na qual a Contemplação está prestes a resultar; o interessante é que, considerada assim, A metamorfose é uma narrativa autopurificatória, ou seja, para além de autopurificatória dos parasitismos burgueses, ela é autopurificatória da própria produção da carcaça A metamorfose; mais especificamente: Samsa-consciência se purifica do corpo (que sua consciência parasitava), da família (que o parasitava e de que ele também parasitava o status de pai-provedor) e da sociedade burguesa (à qual ele carreirística e conformisticamente se submetia), enquanto Kafka, ao escrever A

117 Que, nesse contexto de distanciamento, a narrativa siga na terceira pessoa é, de fato, bastante adequado.

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metamorfose, parasitariamente também se autopurifica de males semelhantes e da própria escrita (e publicação) de A metamorfose. Assim, há em A metamorfose uma voragem de parasitismos perpassada por uma narrativa que, pelo seu progressivo distanciamento do corpo humano decente (ou seja, integrado na vida social e laboral), pode ser entendida, e mesmo vivenciada, como purificatória. Sendo assim, tanto faz dizer que a narrativa de A metamorfose se dá através da voz de Kafka ou da de Samsa no que, uma ou outra, vai se afastando, se purificando, do próprio corpo (da própria carcaça) que – num processo de desumanização, com a voz narrativa se distanciando dele (e ele, o corpo, logo perdendo a voz humana e articulada)– se metamorfoseia em um “Ungeziefer”, ou seja, em um “parasita” (um parasita que, no Brasil, usualmente se considera seja uma barata). Em todo caso, sendo o parasitismo Kafka-Samsa tão intrínseco, para facilitar minha exposição começarei falando como se apenas Samsa estivesse em questão.

Considerando-se formalmente, não é, de fato, ilegítimo dizer que, inicialmente, a voz narrativa em A metamorfose é uma voz onisciente com foco em Samsa. Mas uma tal análise formalista da narrativa falha em apreender o que acontece ao ato de narrar – no caso, ao ato de escrita – na medida em que a voz narrativa, tendo surgido, segue apresentando a história de Samsa, indo até após a morte do corpo metamorfoseado. O surgimento da narrativa expressa um momento de ruptura na história narrada. Com ela, Samsa passa a ser visto de fora, ou seja, aquela voz que, pode-se supor, estivera incorporada em Samsa se pôs de fora olhando-o e relatando o que se passa com ele, externa e internamente, bem como com sua família. O surgimento da voz narrativa é um passo num processo de purificação de Samsa (Kafka). Com o surgimento dessa voz narrativa, todo um complexo regime de parasitismos entrará em crise e buscará se reestruturar; nisso várias outras metamorfoses, para além da do corpo de Samsa, serão desencadeadas ou, quando anteriores ao início da narrativa, serão revertidas. O surgimento da voz narrativa é, portanto, uma metamorfose; e é uma metamorfose em uma história com diversas metamorfoses.

Algumas das metamorfoses de maior relevância são: a falência do pai; a inatividade do pai; as dívidas que o pai passou a ter para com aquela pessoa que será o chefe de Gregor; o trabalho de Gregor

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como caixeiro-viajante; o aluguel por parte de Gregor do apartamento caro para a moradia da família; o pai engordar devido à inatividade; o surgimento da voz narrativa; Gregor constatar ter o corpo de algo como um inseto; Gregor não ir trabalhar; o pai relatar para a família que as dívidas não consumiram todo seu dinheiro; o pai voltar a trabalhar; a mãe voltar a costurar; a irmã se afastar de Gregor e se unir à mãe; inquilinos serem aceitos na casa e várias rotinas mudarem; o pai voltar a ficar mais ágil e passar a usar sempre o uniforme de trabalho; o inseto morrer; os inquilinos serem mandados embora; a carcaça do inseto ser jogada no lixo; a família sair a passeio; a irmã se tornar fisicamente uma mulher e ser encaminhada para casar; a família mudar para um apartamento menor, mas mais bem localizado. Ou seja, a sociedade onde Gregor se insere é composta de parasitismos recíprocos que passam por diversas mudanças e reacomodações; sua família é como um grupo de átomos com valências parasitárias ativas e em recombinação (o tornar-se barata é apenas o agente catalisador de mais recombinações). Pelo que é narrado, num primeiro momento, é o pai de Gregor que trabalha e sustenta financeiramente a casa. Depois, ele entra em falência; Gregor vem então a ter o trabalho mais importante, e toda a família passa a parasitá-lo. No entanto, apesar de o pai haver escondido de Gregor que ainda teria dinheiro para saldar a dívida e, assim, estar aparentemente explorando o filho, não é claro que Gregor seja simplesmente uma vítima do pai, pois foi o próprio Gregor quem escolheu o apartamento maior e mais caro, o que, evidentemente, complica a situação financeira, prolongando o prazo para que ele possa pagar a dívida, de modo que, sob esse aspecto, é ele quem mantém a família em sua dependência, ou seja, pode-se pensar que Gregor não só tenta insidiosamente assumir a posição paterna, no caso, a de pai-provedor, mas também busca protelá-la. Seja como for, nesse apartamento maior, sustentado por Gregor, parecem haver se estabelecido várias interações parasitárias. O pai parasita o trabalho do filho; o filho parasita a posição de pai-provedor. O filho paga as despesas da casa; sua família o apóia para que trabalhe. Gregor tem planos de parar de trabalhar; para a irmã há o plano de estudar violino. Resumindo, a narrativa indica três momentos consecutivos de equilíbrio parasitário. O primeiro, anterior à falência do pai. O segundo, o trabalho de Gregor como

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caixeiro-viajante. E o terceiro, a família se mudando para outro apartamento. Um quarto momento fica sugerido: o casamento da filha; casamento que trará várias metamorfoses e, conseqüentemente, vários rearranjos parasitários. Em A

metamorfose, a sociedade é apresentada como sucessivos sistemas de trocas baseados em diversas formas de parasitismo; sistemas ágeis e capazes de rearranjos metamórficos, de modo que, mesmo a metamorfose em um inseto (algo que nos parece extraordinário), acaba por ser, sem maiores escândalos, bem assimilada. Trata-se de uma sociedade entregue a uma constante química metamórfica de acomodações parasitárias na qual não há dimensão reflexiva e contemplativa; antes, os pensamentos de Gregor, descritos pela voz narrativa, são argumentos adaptativos, não sendo nem críticos nem efetivamente transformadores. A família Samsa e a sociedade onde ela se insere funcionam como uma economia de parasitismos recíprocos e interconexos que, forçada a mudanças, se readapta para retornar ao mesmo tipo de funcionamento auto-reprodutor. Há pensamento adaptativo, nunca pensamento contemplativo.

O surgimento da voz narrativa é o aparecimento de uma dimensão contemplativa. De início, ainda há uma proximidade maior entre o que a voz narra e como o inseto se comporta, mas, ao final, o inseto está entregue à sua própria reatividade química; assim, ele, já sem se importar com a família, atraído pela música, entra na sala. A atração do inseto pela música não é uma atração reflexiva ou contemplativa, mas meramente animalesca. A música – ao menos a do violino da irmã de Gregor – se mostra, não como uma arte capaz de pôr em questão o automatismo metamórfico social, mas apenas como uma prática de entretenimento que pode atrair um pouco mais ou um pouco menos a atenção dos burgueses; enfim, a música é nisso o exemplo de arte que apenas participa das interações parasitárias próprias ao convívio social, no caso, próprias àquelas relações entre locatários e inquilinos. Já a voz narrativa – que, no caso, é o ato de escrita –, criando a dimensão contemplativa, permite, ao contrário, que o asqueroso sistema social metamórfico seja exposto, desvelando-o como vazio em seu automatismo impensantemente auto-reprodutor. Olhada de fora, a família Samsa e, assim, a sociedade em geral se mostram uma carcaça oca inserida

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em repetidos processos readaptativamente transformadores, uma gigantesca barata indo atrás de seus alimentos podres.

As interpretações de A metamorfose tenderam sempre a se concentrar especificamente no caráter nojento do inseto e nos banais hábitos burgueses da família, entendendo-a como uma narrativa irônica com aspectos cômicos, mas basicamente sombria. No entanto, se nos mantivermos atentos à voz narrativa entendendo-a como um processo de abertura para uma dimensão contemplativa, poderemos perceber A metamorfose como uma narrativa libertadora, através da qual quem a lê – e quem a escreve (seja Samsa seja Kafka) – alcança um distanciamento pacificador, pairando acima das mesquinharias parasitárias das famílias burguesas.

A libertação final de Samsa – ou da voz narrativa, ou do ato de escrita –, separando-se da carcaça parasítica, é também a liberação da família para outros parasitismos (o novo apartamento e o casamento da filha); enfim, fica evidenciado que a sociedade burguesa, enquanto carcaça quimicamente – ou animalescamente – autodeterminada a reproduzir-se em seus parasitismos sórdidos (impensante e insensível à arte purificadora; só aceitando a arte de entretenimento, uma arte que até a barata aprecia), funciona por ela mesma, ou seja, na verdade, ela não precisa de arte enquanto ato de escrita não-parasitário, não-lucrativo. Assim, não é necessário nem que Samsa – ou Kafka – publique seu livro, nem que a sociedade o leia; afinal, se fosse publicado e lido, nada se alteraria; com efeito, o mais provável é que o livro acabasse por ser incorporado em um sistema de lucros e honrarias, enfim, em processos químico-animalescos de parasitismo e engorda.

Com A metamorfose, Kafka mostra que é inútil tanto ser um bom burguês quanto um escritor que publica, pois publicar pode ser logo apropriado em algum novo parasitismo burguês. Com A Metamorfose, portanto, Kafka não só denuncia e critica o parasitismo filistino burguês, mas também reforça, o tanto quanto podia, sua própria posição de, digamos, parasita abstrato, isto é, a posição de quem suga de sua vida burguesa para escrever, abstraindo dela uma escrita literária, ou seja, algo que, devido a sua radicalidade, contrariando as perspectivas mais prováveis, acabaria por exsudar um resto inassimilável, irremetamorfoseável

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readaptativamente, enfim, algo que, ao subtrair-se da vida burguesa, pairaria contemplativamente acima dela. Ou seja, ao escrever A metamorfose, com a Contemplação em vias de ser publicada, Kafka, em vez de empenhar-se nas correções do livro em processo de edição, faz a revisão dele com má vontade, querendo, ao contrário, se dedicar a escrever coisas que ainda não tinham perspectiva de publicação118. Em noites de êxtase, solitariamente se põe a escrever como que construindo diques para manter-se a seco, precavidamente protegido para o caso de o sucesso literário lhe solicitar a profissionalização, encomendando-lhe mais manuscritos, parasitando-lhe a criatividade, metamorfoseando sua criatividade literária em mina de ouro, em fonte de renda para a jogatina parasitária social. Se Dostoiévski, em vários momentos de sua vida, transformou o ato de escrita em apostas de jogo e transformou seus vícios em páginas literárias, Kafka, ao contrário, buscou parasitar a vida burguesa mediana e repetitiva para transformá-la em ato de escrita irreconvertível para o jogo social, tal como se o ato de escrita pudesse gerar um dividendo contemplativo abstrato.

Assim, podemos suspeitar que Kafka escreveu A metamorfose para purificar sua atividade de escrita do processo de produzir um livro. Em breve, ele acordaria, e lá estaria, de um lado, a carcaça de Contemplação e, de outro, ele enquanto escritor-parasita, isto é, escritor profissional. A metamorfose é a contemplação disso que seria seu ato de libertação pela narrativa. Samsa, tornado voz em terceira pessoa, ao narrar sua vida, transcende para uma posição de contemplação do automatismo readaptativamente reprodutor da família e da sociedade burguesa. Kafka o acompanha nisso. O paradoxo é que, se a voz narrativa derivada de Samsa se dissolve em pura contemplação das mesquinharias sociais, Kafka acaba com mais um livro em sua mão, ou seja, A metamorfose, que seria o livro que, ao enlevá-lo ao desapego gnóstico de contemplador dos determinismos sociais, purifica Kafka enquanto escritor, o pondo na posição de ser ele quem, antes de tudo, embora marginalmente, parasita a burguesia burocrática, ainda que, paradoxalmente, se comprometa com mais uma carcaça a ser comercializada: o livro A metamorfose.

118 Sobre essa má vontade de Kafka em preparar a Contemplação para a publicação, ver: Stach, op. cit., p. 92 e segs.

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Curiosamente, A metamorfose foi o único livro de Kafka que, durante sua vida, teve duas edições, sendo até hoje seu texto de melhor desempenho comercial. É a carcaça dele que mais se reproduziu. Desse modo, ainda que seja uma reação ao processo de tornar-se escritor desencadeado pela publicação de Contemplação, é evidente que Kafka escreveu A metamorfose no horizonte publicacional, ou seja, por mais que escrever uma narrativa nojenta o purificasse, ele produzia, ainda assim, mais uma carcaça comercializável e, por que não?, tão adequada a entreter burgueses parasitários quanto o violino da irmã de Gregor. No entanto, Kafka parecia acreditar que aqueles que parasitassem essa carcaça pela leitura (tal com ele o fez pela escrita) possivelmente se purificariam, ou seja, se libertariam, em alguma medida, da teia dos parasitismos burgueses reciprocamente reprodutores. Seja como for, os puristas da escrita podem se dar por consolados: afinal, sua escrita nem foi motivada por uma encomenda formal, nem sua publicação foi para saldar dívidas de jogatina no cassino.

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Do subterrâneo para o público

O livro de Dostoiévski, Notas do subterrâneo119, começa com uma nota do autor – que, no caso, seria o próprio Dostoiévski – explicando que tanto o autor das notas subseqüentes quanto as notas são fictícios. No entanto, argumenta Dostoiévski, pessoas como o autor das Notas do subterrâneo não só poderiam existir, mas, de fato, existem e fariam parte de uma geração que ainda viveria naquela época. Poderíamos chamar um recurso retórico como esse, isto é, a anteposição de uma “Nota do Autor” (ou de um prefácio), de “facilitador narrativo”. Trata-se de um trecho que, embora fazendo parte da obra à qual se refere, se destaca dela tal como se não fosse uma parte sua, assumindo uma clara função de mediação entre a obra e o público. Um “facilitador narrativo” pode ter diversas funções no processo de negociação da obra, da qual faz parte, com o público; inclusive pode ter a função de dificultar ao público que ele se dê conta de algum aspecto específico da obra. Por isso, talvez fosse melhor falar, não em “facilitador”, mas em “instância de negociação”, no caso, de negociação com o público, embora a negociação possa ser, antes, com o editor ou com algum aparato censor oficial ou oficioso.

Um facilitador tem, portanto, o papel de conduzir negociações que podem se dar em diversos níveis e de maneiras extremamente variadas. Assim, o final feliz ou melodramático que um filme hollywoodiano acrescenta a um conto de Philip Dick, ao supostamente adaptá-lo para o grande público, seria um facilitador narrativo. O happy end seria um artifício que negociaria uma aceitação mais ampla da narrativa-base (seja de um conto de Philip Dick seja de algum outro tema), de modo, por exemplo, a obter financiamento e atingir uma grande bilheteria. No entanto, o final feliz seria parte integrante do filme; somente em comparação com a narrativa-base é que se poderia dizer que ele seria um acréscimo, isto é, algo externo à proposta temática inicial. Ou seja, um facilitador faz, a princípio, parte do texto ou do filme que o inclui, de

119 F. Dostoevsky, Notes from the Underground, The Project Gutenberg Etext.

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modo que é apenas no mesmo gesto em que se determina o que seria a narrativa-base que se pode estabelecer o que a ela é “acrescentado” como facilitador. Enfim, o que seja um facilitador narrativo depende da interpretação que se dá ao texto, ao filme, à pintura ou ao que mais seja que apresente uma narrativa. Contudo, os “facilitadores narrativos” que chamam mais atenção e que, de um modo mais premente, podem provocar o trabalho de interpretação são aqueles que, quer por meio de títulos ou subtítulos, quer por algum outro artifício gráfico, se apresentam como externos ao que seria a narrativa propriamente em questão.

De fato, de um modo geral, apesar do caráter singular e, por isso, de certo modo, provocativo de vários facilitadores de inicialização (como é o caso dessa nota explicativa inicial), a crítica literária tem se preocupado relativamente pouco com eles. Derrida, em La dissémination, escreveu um interessante texto, um prefácio, sobre os prefácios (de fato, os prefácios são, em geral, facilitadores de inicialização textualmente extensos, tendo, por vezes, numerosas páginas), além de sempre se mostrar atento às notas de pé de página (que, em geral, são facilitadores bem mais breves que os prefácios, embora possam também se estender longamente, a ponto de constituir um texto paralelo); no entanto, um trabalho efetivamente focado no tema dos facilitadores narrativos literários ainda está por ser feito.

Embora eu não vá desenvolver o tema dos facilitadores aqui, é necessário propor alguns pontos de análise a respeito deles. Assim, é importante considerar que, embora muitas vezes os facilitadores sejam – ao menos ficcionalmente – uma parte claramente destacável do, digamos, corpo do texto, por vezes o trabalho de facilitação pode se dar tacitamente através do formato em que o texto se apresenta; seria, por exemplo, o caso de um romance epistolar ou de um diário. Nas cartas trocadas, ou nas anotações do diário, poderia estar presente a justificativa de as cartas, ou de o diário, terem sido escritas e em que circunstâncias foram escritas, bem como quais foram os cuidados tomados pelo autor ou autora ficcional para que o texto fosse preservado e, por fim, publicado. Contudo, o usual é que romances no formato de troca de cartas ou de diário tragam uma apresentação inicial explicando – no caso, facilitando ou negociando com o público – as condições da publicação do suposto manuscrito.

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Um bom exemplo de facilitador de inicialização é a “Advertência” que inicia Esaú e Jacó. Nela está explicado como a obra ali publicada foi encontrada; de lambuja já fica também justificada a publicação futura do Memorial de Aires. Um outro exemplo interessante de facilitador de inicialização é o “Ao leitor” que inicia as Memórias póstumas de Brás Cubas; trata-se de um breve trecho que, porém, está graficamente integrado na narrativa do livro, sendo, inclusive, assinado por Brás Cubas, por meio do qual são negociadas, ainda que apenas parcialmente, as circunstâncias narrativas do livro.

De facilitador entretecido na narrativa, o exemplo mais óbvio é a própria voz narrativa das Memórias póstumas de Brás Cubas na medida em que a voz de Brás Cubas, mantendo o tom de chacota, vai explicando e antecipando muito do que ocorre na narrativa, ou seja, na medida em que a narrativa avança, seus desdobramentos são negociados pela própria voz narrativa, que, por sua vez, aproveita seus próprios trejeitos explanatórios e digressões extemporâneas para fazer com que a narrativa prossiga com boa aceitação pelo público leitor. Assim, para se considerar que os trejeitos narrativos à la Sterne de Brás Cubas são um facilitador, é necessário que se assuma que, essencialmente, a narrativa deveria ser conduzida por uma voz ordenadora e não-auto-referente, de modo que o que excedesse a um tal modelo seria algo a mais, ou seja, seria algo não-essencial que poderíamos chamar de “facilitador de condução da narrativa”.

O que se passa é que, a rigor, o facilitador não é, como já disse, um artifício da narrativa, mas um artifício interpretativo da narrativa. Assim, se falar em facilitadores narrativos ajuda ou não na compreensão do texto, é algo que só pode ser decidido após se tomar posição sobre se a interpretação que confecciona conceitualmente tais facilitadores ajuda ou não na compreensão do texto, ou seja, facilitador e interpretação são interdependentes.

Retornando à análise do texto de Dostoiévski, logo veremos que um “facilitador” pode ser contraprodutivo, isto é, pode criar dificuldades, potencializando conflitos inerentes à narrativa. De fato, a observação inicial de Notas do subterrâneo parece visar principalmente estabelecer uma clara separação entre o que o “homem subterrâneo” narra e o que Dostoiévski pensa. Com a

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observação inicial, Dostoiévski está negando que o homem subterrâneo seja seu porta-voz; ao contrário, ele se mostra hostil ao homem subterrâneo e dá ares de que está, com essa sua narrativa, trazendo a público algo de abominável, ou seja, ele tanto se justifica frente ao público quanto lhe aguça o apetite sugerindo que a narrativa trará algo de novo e interessante. Assim, pode-se constatar que a observação negocia com êxito com o público, passando para ele uma justificativa atraente do texto subseqüente. No entanto, quanto mais Dostoiévski se distancia do homem subterrâneo tanto mais ele exacerba uma contradição referente ao ato de publicação das notas escritas pelo homem subterrâneo. Ora, o homem subterrâneo se apresenta como não tendo amigos e vivendo isolado. Como um texto seu teria chegado a ser publicado? Seria Dostoiévski, então, um amigo seu?

O homem subterrâneo relata ter estudado em uma boa escola e ter passado a vida lendo muito. Ele se orgulha da cultura que tem e narra que seus amigos também o consideram culto. Em vista disso, pode-se supor que o homem subterrâneo teria a habilidade de escrever com a fluência e a boa escolha de palavras que as Notas do subterrâneo testemunham. Digamos que vários trechos autobiográficos incluídos esparsamente no texto justificam – portanto, “facilitam” – a aceitação de que o texto escrito tenha sido mesmo escrito pelo homem subterrâneo (e não apenas por Dostoiévski). A negociação facilitadora não é, porém, dado o isolamento social do homem subterrâneo, suficiente no que diz respeito a justificar especificamente o ato de publicação.

A contradição que o “facilitador de inicialização” não só não consegue justificar, mas chega até mesmo a potencializar, põe, no entanto, em evidencia, em um outro nível, uma contradição inerente ao modo de o homem subterrâneo se pôr e de se entender na vida social. O homem subterrâneo se sente diferente das outras pessoas com as quais ele se vê obrigado a conviver; foi assim sobretudo na escola, mas, depois, também no trabalho. Ele considera que a “pessoa direta”, ou seja, “o homem normal real”, “é estúpido”. Esse homem normal e estúpido é o que aceita a razão e as leis da natureza, de modo que, na verdade, não seria livre, pois para ser livre seria necessário agir como ele, contrariando o que seria aparentemente racional e desejável, afirmando, ao se desviar do

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comportamento normal, sua liberdade. Ser livre é, portanto, recusar o que a sociedade propõe como sendo razoável ainda que isso leve ao isolamento social. Em outras palavras, o homem subterrâneo se sente diferente das outras pessoas na medida em que ele as percebe como vivendo segundo o automatismo social regido pelo razoável. Ele se considera livre exatamente por agir de um modo deliberadamente contrário ao do homem normal. Ele tem horror à vida regular e supostamente segura do homem direto e normal, mas, para isso, devido à sua enfática recusa, ele, tendo recusado prosseguir com a carreira burocrática à qual seus estudos o possibilitaram, acaba aceitando viver, longe de seus ex-colegas de escola, com um emprego burocrático de menor relevância e, assim, com pouco dinheiro, mas cultivando seu sentido de liberdade e superioridade em relação aos antigos colegas. Depois, demite-se desse emprego ao receber uma pequena herança de cujos parcos rendimentos passa a viver. Contudo, seu isolamento o leva a perder até o pouco jeito que tinha em engajar-se positivamente no convívio social, ou seja, na mesma medida em que se mantém distante das outras pessoas normais, ele se mostra, em momentos de fraqueza, carente de convívio e trato humano, sendo levado a buscar de um modo desastrado (e para ele, posteriormente, embaraçoso e auto-acusatoriamente angustiante) ser reconhecido pelos outros; assim, quanto mais ressentido ele fica com aqueles que, afinal, ele considera que não o trataram como ele mereceria, mais ele se distancia do convívio social, mas, quanto mais ele se distancia do convívio social, mais ele tanto sente falta desse convívio quanto se torna menos apto a lidar com as pessoas, o que o leva a novas frustrações, a mais distanciamento, a maior certeza de sua diferença e superioridade, a menos trato social, a mais carência, a mais isolamento etc. Uma vez, para aliviar seus ressentimentos em relação a uma pessoa que ele considerou que não o tratara com o devido respeito, o homem subterrâneo tentou publicar uma sátira; de fato, isso poderia levar a romper seu círculo vicioso de ressentimento e isolamento, porque, com a publicação, ele provavelmente romperia, ou seu isolamento (pois seria lido e comentado) ou seu ressentimento social sufocante (pois seria, ao ser publicado, reconhecido pela sociedade). Mas não conseguiu publicar; seu texto não foi aceito em nenhuma revista. Por isso,

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porém, é que suas Notas do subterrâneo saírem publicadas é, afinal, contraditório com seu isolamento: sua publicação o tiraria do subterrâneo, rompendo o círculo vicioso autodestrutivo. Se, apesar da publicação, ele recomporia o círculo vicioso, é uma possibilidade, mas, de alguma forma, tudo seria então diferente; afinal, ele seria um escritor, e um escritor bem diferente dos escritores filistinos: o círculo vicioso autodestrutivo, se recomposto, ocorreria com uma outra dinâmica, enfim, poderia até realimentar sua atividade de escritor (tal como o jogador Dostoiévski escrevendo O jogador).

A rigor, o homem subterrâneo, devido a seu sentimento de ser diferente e, conseqüentemente, livre, é, por um lado, levado a afundar num círculo vicioso que o isola cada vez mais, fazendo com que fique improdutivamente remoendo sentimentos mesquinhos, e, por outro, é levado a escrever. Nisso, em escrever, seu problema está em não conseguir pôr o que escreveu para publicar, o que, enfim, é mais uma conseqüência de seu isolamento. Mas ele, se considerarmos todo seu preparo devido à escola e às suas leituras posteriores, bem como seu senso crítico aguçado, é um escritor, e um escritor tão radical e empenhado, que não consegue publicar. É Dostoiévski que lhe dá a chance de publicar e, assim, mostrar ao mundo e a si mesmo o escritor hábil e intensamente passional que o homem subterrâneo, afinal, é. Mas é também Dostoiévski que o rouba de ser um escritor. Dostoiévski nega-lhe a amizade, rouba-lhe os lucros do livro e usurpa-lhe o reconhecimento social. Talvez, vendo seus escritos publicados e comentados, ainda que criticados, o homem subterrâneo não só deixaria de ser subterrâneo, mas poderia considerar que seu radicalismo em recusar o filistinismo de seus colegas era bem justificado: de tanto achar que vivia isolado e em vão, tendo publicado suas notas subterrâneas, acabaria por ter de se haver com a questão de não ter vivido nem fora da sociedade, já que, antes, contemplava suas entranhas mais repugnantes, nem em vão, já que seus escritos poriam a sociedade para se repensar.

Mas o homem subterrâneo continuou subterrâneo. Dostoiévski é que se portou como um empresário trambiqueiro, como o duplo maligno do escritor subterrâneo, comercializando sua obra e retendo para si todos os lucros e glórias. O homem subterrâneo, ao contrário, se manteve inconspurcado em sua radicalidade de contestador do filistinismo. Apesar de suas oscilações ocasionais motivadas por

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carências demasiadamente humanas que o impeliam a esmolar algum gesto de acolhimento amical, manteve-se enquanto escritor distante do filistinismo que leva a que escritores talentosos escrevam apenas para obter o dinheiro que lhes sustente a vida burguesa, enfim, a vida de homem normal. Foi Dostoiévski que cometeu esse ato vil, a saber, o de publicar o livro do homem subterrâneo para ficar com os lucros. O homem subterrâneo, enquanto isso, se manteve um escritor puro e implacável, sem contrair compromissos de qualquer natureza para publicar suas Notas do subterrâneo. Se sua já referida sátira, segundo o homem subterrâneo nos narra, foi por ele – aliás, então ainda um escritor novato – amenizada e, talvez por isso, acabou não sendo publicada, suas Notas do subterrâneo não foram, por ele, amenizadas em nada. As Notas seriam a expressão sem compromissos contemporizadores do que o homem subterrâneo pensa de si e do mundo; ele nada fez para adequar seu texto ao gosto do público. Ao contrário, até isso Dostoiévski se permitiu fazer: ele interrompeu o texto do homem subterrâneo, tornando-o de mais fácil leitura, ou seja, amenizando-o, ao decidir por publicar apenas o trecho inicial (ironicamente Dostoiévski, que publicou romances longuíssimos, considerou melhor cortar – ao menos em comparação com suas obras – precocemente o texto do homem subterrâneo). É pelo menos o que se pode ler no “facilitador de finalização” com o qual o livro abruptamente chega ao fim:

Não terminam aqui as Notas desse paradoxista. Ele foi incapaz de resistir à tentação de continuá-las. Mas parece-nos que se pode parar aqui... (p. 156)

Esse final repentino e autoritário reforça a contradição contida

na nota inicial: se o homem subterrâneo não tinha amigos, como seu manuscrito veio a ser publicado? O que é mais intrigante é que o tom da nota final – tal como, aliás, o da nota inicial – são de hostilidade para com o homem subterrâneo. Ele aparece como alguém que não consegue se conter; no caso, que não consegue parar de escrever, ou seja, que não consegue trabalhar o texto para que ele resulte em uma escrita equilibrada e palatável para o grande público. O homem subterrâneo, além de todas as desmedidas de seu comportamento social, ainda parece irritar Dostoiévski por não se conter no ato de

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escrita, por se entregar voluptuosamente a uma escrita incessante e sem compromissos com os leitores; em conseqüência, Dostoiévski tem de intervir e cortar o texto, estabelecendo, assim, o compromisso literário que tornou o texto publicável.

O homem subterrâneo é, portanto, o exemplo do escritor radical que, tal como Kafka, se dedicaria desmedidamente a escrever, atribuindo à publicação uma importância secundária. Mas, nas Notas, a contradição não está apenas entre o escritor e seu empresário, isto é, entre Dostoiévski enquanto empresário – e, assim, duplo maligno – e o homem subterrâneo enquanto escritor; antes, a contradição maior parece estar na consideração do ato de escrita como podendo estar fora do ato de publicação (é o que os facilitadores de inicialização e de finalização expressam); de fato, talvez o escritor puro só possa publicar ficcionalmente, ou seja, talvez o escritor puro só exista ficcionalmente. Em outras palavras, se há, por um lado, uma contradição entre escritor radical e empresário (na verdade, porém, o homem subterrâneo enquanto escritor, em sua extrema radicalidade, não tem nem amigos nem empresário; afinal, Dostoiévski – ou uma versão ficcional dele –, aparecendo como o autor signatário do livro, é antes um usurpador que um empresário), há, por outro lado, também essa contradição entre o ato de escrita, independente de seu engajamento no processo de publicação, e a sua publicação efetiva. Talvez essa contradição entre ato puro de escrita e ato de publicação seja apenas uma radicalização da contradição entre escritor e empresário; seja como for, através dela, o que é apresentado nas Notas do subterrâneo é exatamente a impossibilidade dessa pureza do ato de escrita, já que o ato de escrita sempre se dá no horizonte publicacional. Por isso, é que o escritor que praticaria o ato de escrita em sua pureza tem de ser – segundo Dostoiévski – um escritor ficcional; e, no caso, um escritor que além de, tal como outros escritores, ter que entregar sua obra para um empresário enquanto duplo maligno, ainda a verá não só ser publicada por esse duplo maligno, mas também a verá ser por ele apropriada autoralmente; desse modo, Dostoiévski seria, por assim dizer, duplamente o duplo maligno do homem subterrâneo, uma vez que ele assume a função de editor e de autor signatário (o proprietário jurídico) das Notas. Podemos, porém, ir mais longe e dizer que Dostoiévski foi o duplo maligno tanto do homem

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subterrâneo quanto dele mesmo, isto é, se radicalizarmos desse modo a interpretação, podemos dizer que quem teria escrito as Notas teria sido um Dostoiévski-subterrâneo, mas que, para se manter subterrâneo e radical, entregou o manuscrito para ser agenciado e publicado por seu duplo maligno, o então já reconhecido “grande nome”120 Dostoiévski, que, ao final, sem maiores escrúpulos, declarou-o um personagem ficcional, recolhendo para si todos os lucros e todas as honras.

O que se passa é que os facilitadores de inicialização e de finalização interagem para criar um efeito de contenção (ou de colocação entre parêntese) de uma escrita que seria impublicável. Contido entre a nota inicial e a final haveria um magma impublicável.

No entanto, esse texto caudaloso foi publicado. Mas o foi duplamente atenuado pela ostensiva declaração tanto de sua ficcionalidade enquanto texto, quanto da ficcionalidade de seu autor subterrâneo. Mas e se o personagem fosse real? Se o homem subterrâneo fosse real e tivesse realmente escrito suas Notas, essas notas, como já disse, provavelmente o teriam afetado já no ato de escrita (sobretudo porque ele, ao escrevê-las, pensaria em publicá-las e, nisso, já anteciparia em muito qual seria a reação quer dos editores quer da sociedade, de modo que ele estaria se pondo em um relacionamento em certa medida intenso com seu meio social) e, mais ainda, o ato efetivo de publicação o teria profundamente afetado: a publicação daria ao homem subterrâneo a possibilidade de maior interação social e um ganho financeiro que talvez o ajudasse a romper com o círculo vicioso de autodestruição; com efeito, esses “benefícios secundários” da publicação, quem sabe, o poriam, como já comentei, em um outro patamar de vida ou, se preferirem, de autodestruição. Mas, ficcionalmente não publicadas pelo homem subterrâneo, as Notas não o afetam, de modo que ele resta incolumemente subterrâneo. Sendo assim, podemos perguntar se esse homem radicalmente subterrâneo e, apesar de suas condutas sociais contraditórias, radicalmente crítico da sociedade é o indício de uma reivindicação de Dostoiévski de que ele mesmo praticaria, ao menos parcialmente, uma escrita subterrânea ou se é uma crítica

120 Sobre a questão do “grande nome”, ver acima: ‘Kafka e o ato de publicação’ e ‘A metamorfose pelo ato de escrita’.

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dele a quem busca praticar – o que, antes de tudo, seria autodestrutivo e anti-social – esse ato de escrita puro que (em vão, ou de um modo meramente ficcional) buscaria se eximir de sua incontornável inclusão no horizonte publicacional.

Enfim, as Notas tratam do tema do artista que, não aceitando compromissos entre prática artística e realização social da arte, se isola da sociedade, entrando num processo contraprodutivo – ou francamente autodestrutivo – que, afinal, o impede de desenvolver sua arte ao menos no modo que lhe seria humanamente, isto é, socialmente possível; além disso, esse livro nos mostra que, em alguns casos, tal contraprodutividade chegaria a ponto de o escritor subterrâneo não ser nem reconhecido como artista: o artista radical seria, então, um artista incógnito (incógnito até para si mesmo?). É a questão paradoxal da esterilidade da radicalidade artística inegociável. Há meio termo entre arte radical e arte cooptada? Henry James retornou a esse conflito em diversos escritos. Kafka parecia vivenciá-lo no dia-a-dia de sua prática de escrita. As Notas, esse impublicável publicado, nos expõem – nos lacera – essa ferida subterrânea.

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NOTA SOBRE OS ENSAIOS

Acerca dos ensaios reunidos neste livro, se não são de todo

independentes e idiossincráticos, pode-se assumir que, antes, eles se originem, em grande parte, de questões apresentadas e discutidas em sala de aula no Instituto de Medicina Social da Uerj e em alguns eventos acadêmicos. De um modo geral, sob esse ponto de vista, todos eles derivam da pesquisa que realizo no âmbito da bolsa Prociência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Perspectivas movediças em Lorde, de João Gilberto Noll foi lido no ‘Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada’ (Abralic), no Rio de Janeiro, em 2005. “Suje-se gordo!” foi parcialmente lido no ‘III Seminário de Estudos Literários e Filosóficos – Valores do Abjeto’, realizado na UFF, em 2006. Rodrigues-Filho, Noll e Vonnegut. Escrita literária e linguagem

acadêmica foi lido em uma versão abreviada no ‘Ensaio Aberto Gerd Bornheim: Arte Brasileira e Filosofia’, na Uerj, em 2006; esta versão abreviada será publicada em Rosa Dias (org.), Arte Brasileira e Filosofia, Rio de Janeiro, Uapê, 2007. A escrita e a guerra em A céu aberto, de João Gilberto Noll foi lido no ‘Congresso da Abralic’, em São Paulo, em 2007, e foi publicado nos anais do evento, em www.abralic.org.br. Kafka e o ato de publicação deverá aparecer em um livro-coletânea sobre o abjeto, em 2008. O ato de publicação enquanto o abjeto da escrita literária, A metamorfose pelo ato de

escrita e Do subterrâneo para o público foram escritos para aparecerem diretamente neste livro.