Nietzsche, escrita, educação: aproximações a um problema de pesquisa [TCC]
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, COMUNICAÇÃO, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
NIETZSCHE, ESCRITA, EDUCAÇÃO:
APROXIMAÇÕES A UM PROBLEMA DE PESQUISA
GUILHERME MAGALHÃES VALE DE SOUZA OLIVEIRA
SÃO PAULO
2011
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GUILHERME MAGALHÃES VALE DE SOUZA OLIVEIRA
NIETZSCHE, ESCRITA, EDUCAÇÃO:
APROXIMAÇÕES A UM PROBLEMA DE PESQUISA
Dissertação apresentada à Faculdade de
Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como requisito parcial para obtenção do título
de Licenciado em Filosofia.
Orientador(a): Yolanda Gloria Gamboa Muñoz
SÃO PAULO
2011
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AGRADECIMENTOS
Qualquer manifestação de agradecimento aqui é apenas uma menção à minha
profunda gratidão às pessoas que fizeram possível este trabalho.
Agradeço principalmente à minha família que, literal e amorosamente, bancou e
suportou minha vontade de empreender esta viagem até aqui.
À PUC-SP e ao Corpo Docente do Departamento de Filosofia, pela abertura de
caminhos, entre belíssimos encontros com documentos e seres humanos, nos estudos
científico-filosóficos.
Aos meus companheiros de disciplinas que com graça e instigação
compartilharam comigo a amizade pelo saber, a deriva de destinos.
À professora Yolanda Glória Gamboa Muñoz, sábia aventureira, que com ânimo,
alegria e coragem me acolheu no fim desta longa jornada.
Ao professor Julio Groppa Aquino, que insuflou novos ares para a continuação
desta e de outras viagens.
A todos aqueles, próximos e distantes, que me acompanharam e me
acompanham nesta errância: pois sem eles, senão impossível, nenhuma morada ou
caminho seria suportável. A isso chamo amizade.
Aos outros, sempre porvir – pois creio serem a esses desconhecidos encontros,
para além e aquém de si mesmo, que se destina qualquer ação: principalmente, aquela a
que costumamos chamar de educação. A isso também poderíamos chamar de amizade...
5
Justamente a precaução exige, como o faz com tanta
frequência, o risco da vida.
(…)
Também aquela saída não me salva, como provavelmente
ela não me salva em caso algum, antes me arruína,
entretanto é uma esperança e eu não posso viver sem ela.
(Franz Kafka, A Construção)
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RESUMO
Tendo em vista o cenário e as problematizações contemporâneas sobre as
práticas pedagógicas e acadêmicas com o foco nos modos de escrita, nosso trabalho
partiu da seguinte pergunta: para um homem que a maior parte de sua vida passou
escrevendo, ofício que para ele mesmo era uma “espécie de loucura”, haveria explicita
ou implicitamente, no que Nietzsche escreveu sobre a escrita, uma doutrina teórica e
técnica ou mesmo uma pedagogia do exercício escritural? – Antes, quais seriam as
relações entre escrita e educação na obra do filósofo alemão? Propusemo-nos, então, a
realizar uma revisão temático-bibliográfica sobre o problema da escrita no interior da
obra nietzscheana entre os fecundos anos de 1878 e 1886. De par dessa revisão, outras
passagens nos foram úteis para compreender a relação da escrita com a educação, como
por exemplo, as sobre práticas ascéticas e a investigação histórico-genealógica, duas
frentes de trabalho que poderiam compor, a nosso ver, o que Nietzsche entendeu por
auto-educação [Selbst-Erziehung]. O trabalho realizado figura, desta feita, como um
esforço para vislumbrar, no que o filósofo fez com e sobre a escrita, seu contributo
crítico às perspectivas educacionais de sua época, ao mesmo tempo em que permite
entrever, para o leitor, a possibilidade da escrita como plataforma pragmática pela qual
se operam diferentes relações entre o sujeito e a escrita, entre sujeito e verdade ou, nos
termos foucaultianos, entre subjetivação e veridicção.
Palavras-chave: Nietzsche; escrita; educação; Foucault.
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ABSTRACT
Having in mind the contemporary context and the questioning of pedagogical
and academic practices focusing on modes of writing, the present work has come to
being from the following interrogation: for a man who spent most of his life writing –
occupation which consists, as Nietzsche himself admitted, in a “kind of madness” –
would there be in what he wrote, explicitly or implicitly, a technical and theoretical
doctrine, or maybe a pedagogy of scriptural exercise? In other words, what would be the
connections between writing and educating according to the philosopher’s works?
Having said that, we aim at carrying forward a thematic-bibliographical revision on the
issue of writing, as thought of by Nietzsche, between the fertile years of 1878 and 1886.
Along with this perspective, some other passages have been useful to us in order to
comprehend the link between writing and education, i.e., ascetic practices as well as the
historical-genealogical inquiry, two distinct approaches suggested by Nietzsche that
could as well form, as we see it, what the philosopher has understood in terms of a self-
education. Thus, the present work makes an effort to understand, within that which
Nietzsche wrote with regard to the subject of writing, what his critical contributions
concerning the educational perspectives of his time were, at the same time as providing
the reader with the opportunity to possibly conceive writing as a pragmatic platform
through which several subject-writing, subject-truth or, in Foucault’s perspective,
subject-veridiction relations would take place.
Key-words: Nietzsche, writing, education, Foucault.
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SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS ..................................................................................................... 4
RESUMO ......................................................................................................................... 6
SUMÁRIO ........................................................................................................................ 8
APRESENTAÇÃO ........................................................................................................... 9
I. INTRODUÇÃO: APROXIMAÇÕES A UM PROBLEMA DE PESQUISA ............. 15
I. 1. Nietzsche, filosofia, vida: uma abordagem via educação .................................... 20
I. 2. Uma problemática educacional na filosofia alemã dos séculos XVIII-XIX: entre
Erziehung e Bildung .................................................................................................... 29
I. 3. Educação para a maioridade: o problema da tutelagem na Aufklärung kantiana 31
I. 4. Uma concernência ética: o uso racional de si mesmo ......................................... 33
I. 5. Da filosofia antiga à filosofia moderna: a questão da prática parrésica como crivo
analítico ....................................................................................................................... 34
I. 6. Pedagogia e governamentalidade: descrição de uma realidade educativa .......... 36
I. 7. Porque Nietzsche? ............................................................................................... 38
II. NIETZSCHE E EDUCAÇÃO ................................................................................... 40
II. 1. Educação: viagem ou errância? .......................................................................... 44
II. 2. 1886, revisão de um programa escritural ético-farmacopaico ........................... 46
II. 3. Educação e dessubjetivação: da vida escolar à auto-educação .......................... 49
II. 4. Algumas notas sobre as concepções e as críticas de Nietzsche sobre o processo
constitutivo/educacional do sujeito ............................................................................. 52
II. 5. Passagens sobre educação nas obras selecionadas de Friedrich Nietzsche ....... 57
III. NIETZSCHE E A ESCRITA ................................................................................... 75
III. 1. Modernidade, ciência experimental e escrita .................................................... 78
III. 2. Leonardo, escritor e inventor de si? .................................................................. 79
III. 3. Ler e escrever no Zaratustra .............................................................................. 80
III. 4. Passagens sobre escrita nas obras selecionadas de Friedrich Nietzsche .......... 83
IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 100
V. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 111
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APRESENTAÇÃO
Após tamanhos debates, tantos discursos, resta algo a dizer? – Com esse
ímpeto, muitas vezes cambaleante, nos lançamos à busca de um tema para a
investigação filosófica; para só depois pensar num problema, no que haveria de
problemático aqui e agora que lá onde se vai buscar perguntas e respostas pudesse
iluminar para as trevas do presente. Nosso temor, ou nossa preguiça, quiçá, venha pelo
peso dos vastos idealismos heroico-acadêmicos que um autor, que uma linha de
pensamento ou uma obra, quase que inevitavelmente carrega ao longo da história,
fazendo-nos cair em lisonjas e vícios analíticos, invencionices de linguagem e
convicção precatória, tornando-nos servos ideológicos de uma distopia melhorada; ou
talvez venha mesmo pelo fato de acabarmos como escrivães-marqueteiros dos
empoleirados sábios-comentaristas, de discussões insípidas e insidiosas.
Mas mesmo assolados pelo gasto e pelo sem gosto, procuramos alimentar um
apetite, arquitetar um interesse, elaborar um problema que nos sobressalte, tomar um
saber ou uma prática cotidiana como objeto de obsessão e de volição, uma tradição
como plataforma de crítica e invenção. Lançamo-nos em alguma pergunta que, para
nós, ainda não estaria bem respondida, ou antes, não estaríamos convencidos e
satisfeitos com suas respostas.
Após um percurso de leitura e escrita de trabalhos, filmes assistidos, diálogos
empreendidos, mais leitura, anotações esporádicas ou metódicas, leituras e escritas
fragmentárias... Cabeça cheia fica-nos ainda a questão: o que vale a pena ser falado,
nesse mundo de interpretações, visões, perspectivas, ideais, signos, essa imensidão de
significados e sentidos? O que cada trabalho de conclusão de curso de cada aluno de
filosofia de todos os anos ainda pode falar ou ensinar, deve falar?:
– Por que tudo isso? Ou – para quê tudo isso? O que é tudo isto?
Ainda, um problema da “episteme”, do conhecimento. Um problema do excesso,
do desmedido. Mas também, um problema da escrita, do escrever. E, quem sabe, enfim,
um problema da experiência e da expressão, de um despertar, de um criar, de uma
educação.
Entendemos, pois, que após muitos pensarmos sobre um pouco de tudo isto,
chegou a hora de deixar para trás ou simplesmente de lado. Quiçá, enfim, por hora,
superados.
10
* * *
Acercando-se desse tudo isto a partir de um filósofo e um recorte temático,
sigamos, então, o conselho de Peter Sloterdijk (SLOTERDIJK, 2004) e deixemos um
pouco de lado os comentários, demasiados e infinitos, e concentremo-nos numa
releitura – também ela, demasiada e infinita – da obra e filosofia de Friedrich Nietzsche.
Como este quis, na medida do possível, concentrarmo-nos numa lenta leitura de pelo
menos alguns de seus fragmentos que tratem, especificamente, da escrita e das relações
possíveis que a envolvem.
Uma leitura quiçá arbitrária, mas também respeitosa, de certa maneira fria,
cautelosa, sem ser rodeada de muitas apresentações e paixões. Atentemo-nos, pois, a
esse exercício um tanto datado, um tanto também excessivo em Nietzsche. Mas, quem
sabe, para nós, será atentar para uma primeira leitura sua, par excellence, a partir do
como e do que ele escreve sobre o escrever.
Não pretendemos trazer nenhuma tese inovadora ou mesmo uma proposta de
conclusão, de definição do que seja o objeto “escrita” em ou para Nietzsche. Para nós,
mais do que um trabalho inovador, ele se prestou antes como uma prova de fôlego do
que de criatividade. Dar conta dessas passagens sobre a escrita nas obras do filósofo
alemão nos parecia uma expressão de vontade e interesse em investigar e deixar falar –
de “pôr na mesa” – o que Nietzsche tinha a dizer sobre aquilo que ele mais fez ao longo
da sua vida: escrever.
Não intentamos, contudo, trazer todas as passagens as quais Nietzsche se refere
à escrita, mas antes, arbitrariamente, dar uma visão de conjunto, tentando conjugar as
passagens transcritas por meio de indicações temáticas, nem que seja para mostrar uma
miríade bricolada do tema da escrita, com suas incongruências, seus deslocamentos,
suas contradições, suas instabilidades enquanto prática de constituição de uma obra – e
de si mesmo.
Talvez, poderíamos dizer que pretendemos elaborar uma espécie de ensinamento
kafkiano sobre a construção – ou a educação – ética de si mesmo: de nossa morada, de
nosso refúgio, de nossa vida. Talvez, nossa única esperança para suportar o inevitável, o
imponderável.
* * *
11
Esse trabalho é a realização de uma revisão temático-bibliográfica em algumas
obras de Friedrich Nietzsche, que se compreendem no período histórico de 1878 a 1886,
sobre o tema e o problema da escrita. Essa revisão consistiu em cartografar, nas obras
do período destacado, as principais aparições dos termos escrita e escrever. Outros
termos como escritura, palavra/s, escritor/es, poeta/s, literato/s, pensador/es,
professor/es, livro/s, ler e educação foram também incluídos nessa cartografia,
abarcados a medida que foram aparecendo na nossa leitura. Esses outros termos, a nosso
ver, são o pano de fundo sobre o qual Nietzsche faz uso de e diz sobre a questão da
escrita – sua arte, sua prática, sua ética.
Nosso problema se destaca, então, desses usos e ditos sobre a escrita: o que
Nietzsche diz, escreve sobre a escrita? Qual é a importância dessa prática para sua vida
e sua obra? Ele propõe ou prescreve algo com relação a esse exercício? Quais são suas
funções, quais são suas técnicas? Será uma teoria sistemática do como se diz e se
escreve algo? Será uma pedagogia do ensino da leitura e da escrita? Será uma literatura
de formação? Será uma doutrina artística ou ascética, para o cultivo de si mesmo? Em
última instância, para quem passou boa parte da vida escrevendo, o que para esse
filósofo alemão seria uma “espécie de loucura”, qual é a relação entre a perspectiva
nietzscheana da educação e sua própria (e a alheia) prática escritural?
Nossas questões se transformaram, por sua vez, em hipóteses: a partir dos
diversos usos que fez da escrita, das funções a ela atribuídas, dos deslocamentos e dos
estilos que o filósofo alemão escolheu e praticou com e sobre ela, diferentemente de um
projeto formativo e mesmo de uma literatura de formação, é talvez possível vislumbrar
uma ética da escrita nietzscheana atrelada a um exercício ético de constituição do
sujeito? Entendendo ética como o campo do possível tanto para a liberdade quanto para
o poder, e exercício como “prática ascética”, mais do que conceber uma doutrina teórica
e técnica, total e estática, ou mesmo um projeto pedagógico-formativo único e
definitivo, tal ética da escrita operaria reconfigurações das hierarquias tradicionais das
práticas pedagógicas modernas, operando múltiplos deslocamentos nas relações e
funções desempenhadas, por exemplo, na relação entre mestre e discípulo.
Dessa maneira, a título meramente de esquema, nosso trabalho se divide em três
partes. Uma primeira, situando a problemática da escrita e da educação em Nietzsche
numa problemática histórica mais ampla, a do governo de si e dos outros na
modernidade. Problemática que Michel Foucault, muito devido aos estudos
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nietzscheanos, estabelece como uma tensão, filosófica e ontológica, entre verdade e
subjetividade. O problema do governo de si e dos outros, o problema da
governamentalidade propriamente dita (FOUCAULT, 2008c), aborda, como queremos
entender, outros temas um tanto mais específicos, não tão menores quanto mais
escorregadios, problemáticos no sentido de serem alvo e objetos constantes de diversas
“ciências” nos últimos tempos.
Logo, quais seriam esses temas escorregadios, familiares e ao mesmo tempo
incômodos para nosso século, nossa época? A nosso ver, talvez, temas como o da auto-
educação ou “educação por si próprio”; da autoformação ou de uma educação para a
emancipação e para o esclarecimento [Aufklärung]. Temas muito valorizados pela
Teoria Crítica alemã do século XX (ADORNO, 1995); temas também muito recorrentes
nas ideologias político-econômicas como o fascismo e o socialismo1. Tema também
muito valorizado nas perspectivas educacionais modernas, principalmente a partir de
meados do século XX (construtivistas, teologias da libertação, etc.), fundamentadas,
sobretudo, pelas ciências neuropsicológicas e psiquiátricas, valendo-se de seus termos e
usando suas prerrogativas para estruturar suas práticas pedagógicas.
A educação passa, então, quiçá, a ser entendida como essa ciência e essa arte que
mais evidencia a correlação constitutiva entre verdade e subjetividade. Passa-se a
demandar da pedagogia uma ciência da educação, dando cabo de compreender não só a
natureza humana, como uma arte e estratégia legítima em termos lógico-racionais para
se governar a si mesmo e o outro. Constituem-se verdades sobre o ser do homem;
estabelece-se regras, práticas, hábitos de conduta para esse homem ideal.
Uma história da educação e uma filosofia da educação talvez deveriam dar
conta, de maneira árdua e tão somente, de esquadrinhar e de desenredar as tramas
culturais e dos costumes, que ao longo da história, entre acaso, desejo e necessidade,
1 As perspectivas educacionais do fascismo, do socialismo e das ideologias liberais, todas oriundas do
efervescente período do início do século XX, apesar de uma aparente distância entre seus valores morais
ou fins políticos, possuíam um projeto formativo em comum, um ideal formativo em comum: parecido
em procedimentos e fins práticos, todos por meio do dispositivo escolar, crendo numa verdade única
sobre a realidade e na formação total de um ser humano a partir da mesma, na parte física e moral,
ideologicamente constituído e “desalienado” dos “erros” provenientes de outras perspectivas ideológicas.
Cf. SOARES, Rosemary Dore. “A concepção socialista da educação e os atuais paradigmas da
qualificação para o trabalho: Notas introdutórias”. In Educação & Sociedade, ano XVIII, nº 58, julho/97;
HORTA, José Silvério Baia. “A educação na Itália Fascista: a reforma Gentile (1922-1923)”.
Comunicação no site da Sociedade Brasileira de História da Educação,
<http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe4/individuais-coautorais/eixo05/JoseSilverioBaiaHorta-
Texto.pdf>, acesso em 18/12/11; e o célebre estudo de MARCUSE, Herbert. A Ideologia da Sociedade
Industrial: O Homem Unidimensional. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1973, talvez aponte diretamente a
esta questão: a formação de um ser humano dito, considerado “livre” seria uma formação única,
definitiva, absoluta?
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foram determinando as relações entre verdade e subjetividade, constituindo
configurações ético-políticos de se governar uma vida. Relações e configurações essas
que, para Foucault, se acentuam segundo uma arte de governar através da verdade ao
longo da modernidade. Ápice, talvez, que ocorre com as ciências humanas a partir do
séc. XIX, segundo a perspectiva de uma verdade ontológica e antropológica definitiva
sobre a natureza, a essência, o ser do ser humano.
Sob esse corte da governamentalidade e da pedagogia, mas especificamente
situada no século XIX, gostar-se-ia de trazer a baila de que maneira Nietzsche poderia
tomar parte dessa discussão. Entender-se-á que a questão da educação para Nietzsche,
longe de estar resolvida ou longe de ser uma resposta definitiva ao problema
educacional, passará a dialogar com esse contexto muito mais amplo, a ver, o de uma
educação em termos universais e humanistas, perspectiva própria da Europa como um
todo nos séculos XVIII-XIX e tema muito discutido por uma filosofia alemã dessa
mesma época.
Uma segunda parte prestará a função de elucidar algumas passagens das obras
nietzscheanas em questão para talvez constatar que Nietzsche toma parte dessa
discussão de maneira muito controversa. De uma primeira abordagem a favor de uma
educação para a arte e para a cultura, na crença de uma educação que nos tornasse
eruditos, emancipados, Nietzsche passará sistematicamente à desconstrução de uma
instituição e de uma ideia de educação, de condução do outro, para uma ideia de cultivo,
de autoformação de si, a partir de certas técnicas e práticas tanto ascéticas quanto
investigativas e científicas. Assim, a educação para Nietzsche, mais do que estar a par
de um projeto formativo que determinaria o destino do homem, que asseguraria a este
ser humano sua formação necessária e universal, educação que o salvaria, essa educação
nietzscheana estaria mais para um processo errante do que destinatário, mais para um
processo de superação de si mesmo do que de formação de si mesmo. Nesse sentido, a
idéia de “andarilho” comporia a metáfora para tal processo.
Numa terceira parte, enfim, exporemos algumas passagens, compreendidas
principalmente entre o período de 1878-1886, sobre os usos de Nietzsche para a escrita
ao longo de sua vida. A exposição dessas passagens consistirá em constatar a
polivalência e a mutabilidade que a função da escrita tem em Nietzsche, desvinculando
seu exercício de uma teoria sistemática e fechada dessa prática. Mostrando também a
relação dessa prática com outras, como a leitura e o andar, a escrita poderá se mostrar
como uma plataforma pragmática e útil para desenvolver não só investigações histórico-
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científicas como para intervir nos processos de constituição ético-moral do sujeito,
intervindo e desarticulando as relações entre verdade e subjetividade vigentes.
Com efeito, compartilhando de uma instigante hipótese foucaultiana
(FOUCAULT, 2010), quisermos pôr a prova de que modo Nietzsche realocou uma série
de preceitos e práticas da antiguidade filosófica em sua própria filosofia. Tentar-se-á
amparar a ideia de que, ao final, diferentemente de uma doutrina técnica ou artística ou
de uma pedagogia, o exercício escritural em Nietzsche estaria vinculado mais a um jogo
ético instável, arriscado e sem uma hierarquia de valores fixos, sem metas formativas
muito explícitas ou definitivas. Diversamente de uma viagem com um destino pré-
determinado e imutável, a escrita estaria disposta no cerne do complexo e errante
processo de constituição de si mesmo, considerado como uma “educação por si
próprio”, como uma atividade para o exercício ético de superação de si mesmo ou do
tornar-se o que se é.
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I. INTRODUÇÃO: APROXIMAÇÕES A UM PROBLEMA DE PESQUISA
O pensamento pensa sua própria história (passado), mas para se
libertar do que ele pensa (presente) e poder, enfim, ‘pensar de
outra forma’ (futuro).
Gilles Deleuze, Foucault.
Não são poucos os trabalhos sobre Friedrich Nietzsche e educação. O que ele
disse, o que foi dito sobre, como ele foi apropriado por outros, são temas recorrentes em
pesquisas acadêmicas. Pode-se dizer até que, por mais impreciso que seja, nas últimas
décadas, as perspectivas filosóficas nietzscheanas se espraiaram na academia, muito
pela retomada francesa desse autor nos anos 60, o que culminou também no uso dessas
perspectivas como plataformas analíticas no campo da pesquisa educacional.
Podemos dizer, a título de esquema, que ocorrem dois tipos de apropriação de
Nietzsche na academia. Um uso mais estritamente temático, conceitual-explicativo,
pedagógico-escolar, de formatação, transmissão e comentário de sua filosofia.
Apropriação necessária, muito instrutiva, rica em questionamentos e desenvolvimentos
de problemáticas. Sob a condição de um círculo de leitura e crítica compartilhada,
rotativa, tal arsenal crítico dura gerações e resulta numa ampla bibliografia para
consulta.
Mas há outro tipo de apropriação, digamos não tão ausente no primeiro, mas
mais concentrada num aspecto metodológico do que temático das obras de Nietzsche.
Essa apropriação por um viés metodológico, procedimental, estratégico, é um uso que
procura se valer de seus escritos como plataformas analíticas de outros temas e
conteúdos, como disparadores de novas pesquisas histórico-morais, como orientações
de leituras e conexões/inversões inesperadas, diálogos improváveis entre conceitos,
ideais, problemas heterogêneos. Esse viés compartilha da visão de um Nietzsche como
arquivo histórico, mas também de um Nietzsche como acontecimento, enquanto um
sintoma e controversamente um deslocamento de uma passagem histórica. Assim, é
então possível vislumbrá-lo também como um paradigma do pensamento moderno, das
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tarefas e limites do pensar e das ciências ditas humanas (MUÑOZ, 2002).
Encarar Nietzsche menos como um erudito do que um criador, menos um
filósofo do que um pensador, menos um poeta do que um escritor é tê-lo como um
companheiro da viagem investigativa, como um operador metodológico dos nossos
problemas. Valer-se de suas práticas investigativas e genealógicas, do teor de suas
investidas teórico-científicas sobre a história, as ciências humanas e a constituição
cultural, moral e ética de sociedades em diferentes épocas, traça a possibilidade de
desenredar o pensamento dos valores e das hierarquias morais, das lógicas e dos hábitos
culturais em vigor que o ordenam. O uso dessa reflexão metodológica que Nietzsche
nos legou, permite-nos olhar com outros olhos o presente.
O uso metodológico também toma Nietzsche, então, como um arquivo histórico.
É entender que ele toma parte de uma problemática histórica, com suas contingências e
acasos, com suas condições de possibilidade, com suas regras, com suas exceções. E
que nem ele, nem a sua obra, dizem respeito a uma resposta definitiva a esses
problemas.
Período histórico de efervescência das investigações científicas, da elaboração
de perspectivas e métodos científicos, Nietzsche aparece como aquele que refletiu e
historiou sobre os modos de fazer ciência, de dizer o conhecimento, mostrando seus
limites e suas arbitrariedades. Ao pôr em questão a relação entre homem e
conhecimento, entre conhecimento e realidade, ao atribuir ao conhecimento uma origem
não-religiosa e um fim não transcendental, o filósofo alemão realoca os acontecimentos
humanos de novo na ordem do devir histórico, de uma teleologia, senão inexistente,
desconhecida, caótica:
[...] a teleologia se baseia no fato de se tratar o homem dos últimos
quatro milênios como um ser eterno, para o qual se dirigem
naturalmente todas as coisas do mundo, desde o seu início. Mas tudo
veio a ser; não existem fatos eternos: assim como não existem
verdades absolutas. – Portanto, o filosofar histórico é doravante
necessário [...] (NIETZSCHE, 2006b: 2)
Por meio dessa noção de um movimento histórico, desse sentido histórico [historische
Sinn], nas palavras do autor, problematizam-se então as condições de emergência e
proveniência das verdades, dos conceitos, das ideias, dos valores, a fim de avaliá-los de
acordo com a pluralidade das culturas, da história e dos acontecimentos.
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Deste modo, Nietzsche, também pode ser encarado, por esse viés metodológico,
como um acontecimento e como um paradigma, como aquele que pôs em questão o
“valor dos valores”: em que medida uma valoração – um juízo – favorece isso e não
aquilo? Porque aquela “verdade” foi deixada de lado? Como isso se tornou “bom” e
aquilo passou a ser “mau”? São estes tipos de questionamentos que põe em cheque a
universalidade e a necessidade de certos valores morais e de conduta, de certos juízos,
de certas verdades. Essa abordagem nietzscheana de tratar o conhecimento como
criação e não como natureza, permite-nos abordar a problemática da verdade, do que é
tido como verdade e do que tem efeito de verdade, em relação as suas variadas formas
ao longo da história. Paradigma da filosofia moderna e das ciências humanas porque
acontecimento, histórico e cultural, que deslocou e ainda desloca, revolta,
continuamente reorganiza e re-hierarquiza a investigação filosófica e as possibilidades e
os limiares do pensamento ocidental moderno com respeito a si mesmo, ao mundo e ao
ser humano que o habita.
Por meio desse legado teórico-metodológico nietzscheano, dessas apropriações,
desses vieses problematizadores catapultados de sua obra, pensamos ser possível efetuar
o que o filósofo francês Michel Foucault (2008a) afirmou como sendo a tarefa da
filosofia: um diagnóstico do presente pela investigação histórico-genealógica e
científica. A partir dessa investigação, por fontes e documentos heterogêneos – tratados,
jornais, cartas, poesias, legislações, manuais –, elabora-se um diálogo, uma
confrontação de “realidades”, um desnudamento da “natureza imóvel” de um juízo, de
um julgamento, de um conhecimento, de um modo de vida, que constituiria os
fundamentos de uma “realidade primeira e última”. Dessa confrontação, passamos a
discernir e a caracterizar minuciosamente as constituições e as origens dessas realidades
arbitrárias: suas apropriações, suas origens não tão gloriosas, suas contradições e
oposições. Essa confrontação por meio de um recorte do que foi pensado, quisto e
desprezado outrora, pode nos evidenciar uma diferença última (VEYNE, 2009), um
corte, um desvio no rumo num impulso vigente – habitual, cultural, psicológico –,
exibindo os variados desníveis de um determinado campo do conhecimento ou da
prática social ao longo da história. Evidencia-nos, quiçá, a transitoriedade do
conhecimento, das práticas sociais, das maneiras como vemos e vivemos isto que se
chama de “realidade” e “verdade”.
Como Foucault (2005) nos lembrou, tal diagnóstico nos permite esmiuçar as
formações do conhecimento como o resultado de um processo fisiológico em prol da
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sobrevivência, entendendo o impulso “natural” de conhecer como antinatural, isto é,
como da ordem da estratégia, do artifício, da produção humana frente à necessidade de
sobreviver. Em outras palavras, o conhecimento é essa força antinatural de contenção e
organização de impulsos, analítica e não orgânica, mas também tirânica, que abre
caminhos para a dominação e a obediência, ao poder e à potência. Por isso mesmo,
necessária: mais do que manter uma relação de semelhança com a realidade, o
conhecimento é uma simplificação ou uma falsificação, um erro, um engano, uma
ilusão [Täuschung]. Ilusão que estabelece um tipo de relação com o real, com as coisas,
com a vida. Ilusão, não obstante, mais do que útil, necessária à vida: esta a quer, vive de
ilusão (NIETZSCHE, 2006b: Prólogo, 1; 2006c: 24)2.
Conhecimento, ilusão, moral: “entenda-se como a teoria das relações de
dominação sob as quais se origina o fenômeno ‘vida’” (NIETZSCHE, 2006c: 19).
Moral e pensamento, moral e corpo, moral e cultura. Entrelaçamento entre pensamento
e corpo, entre filosofia e fisiologia. Modos de vida codificados e disciplinados por
certos gostos, juízos e crenças ao longo de um processo histórico em transformação.
Modos de vida codificados e disciplinados por uma hierarquia de valores que muitas
vezes são assumidas como regra inquestionável, intransponível (NIETZSCHE, 2006b:
1).
O diagnóstico do presente por meio de uma investigação histórico-genealógica é
desentrelaçar essas arbitrariedades tidas como “universais”, “infinitas”,
“transcendentais”, “sagradas” ou simplesmente “boas”, afim de que elas apareçam,
senão tal como elas aconteceram, ao menos evidenciadas suas tramas menores, suas
contenções de fluxos, seus interesses contraditórios, sua estranha composição que lhes
deu a “vida” – seu sentido histórico:
O sentido histórico é muito mais próximo da medicina do que da
filosofia. [...] A história tem mais a fazer do que ser a serva da
filosofia e narrar o nascimento necessário da verdade e do valor; ela
deve ser o conhecimento diferencial das energias e dos
desfalecimentos, das alturas e das profundezas, dos venenos e dos
antídotos. Ela deve ser a ciência dos remédios. (FOUCAULT, 2008a,
p.274)
2 A citação de passagens das obras de Nietzsche será realizada ora referindo-se ao número do aforismo
antecedido pela data da edição e o símbolo de dois pontos; ora referindo-se à página onde consta tal
passagem. Ambas visam facilitar a identificação dessas passagens na maioria das obras, quando, por
exemplo, essas passagens não se encontram em aforismos.
19
A história, essa produção de signos, memória viva, farmacopeia da criação
cultural humana, palco dos problemas e das respostas a esses problemas; a história é
essa “ciência dos remédios”: mais essa atividade de se debruçar sobre o movimento,
sobre o devir histórico, sobre seus rastros sem traços, suas incongruências produtivas,
do que projetar um fim último desse movimento, sua evolução linear, seu progresso. A
história como pesquisa do que foi, em ruínas, deixado para nós, é tomar os fragmentos
do que o ser humano fez e se transformou para recompô-los na infinita miríade de
cultura e conhecimento, destituindo-os de sua autoridade metafísica e indagando-nos
sobre a possibilidade de se inserir no pensamento presente uma diferença, um pensar
diferente.
Uma ciência, um saber, uma filosofia histórica, de cunho genealógico3,
debruçada sobre os acontecimentos, não procurando sua origem, mas sua eterna e
movente composição lida com aquilo que venceu e foi vencido, com os venenos e com
os antídotos, pensamento científico que é uma longa depuração dos efeitos nefastos que
podem ter os impulsos, mesmo os de verdade, para o conhecimento e para a
sobrevivência do ser humano. Processos alquímicos, intensivos, purificadores,
amálgamas de impulsos e juízos, sob contínuas apropriações, disciplinando umas as
outras, perdendo-se em muitas formas até aprender a coexistência organizadora dessa
multiplicidade que compõe o pensamento, o corpo, a vida (NIETZSCHE, 2006b: 1;
2007: 113).
* * *
Leitor assíduo e quiçá o herdeiro que mais honrou a tarefa do filósofo alemão,
Foucault “usaria Nietzsche como operador” (MUÑOZ, 2002, p.36). Nessa leitura,
instiga-se a possibilidade de operar a união do pensamento científico com as forças
artísticas e a sabedoria prática da vida (NIETZSCHE, 2007: 113); encruzilhada entre
filosofia, ciências, artes e práticas do cotidiano: ler a realidade, produzi-la, vive-la.
Recorte teórico nietzscheano-foucaultiano que evidencia a tarefa de um pensador: a de
interpelar perpetuamente a atividade e o produto do conhecer, “[...] questionar o objeto-
sujeito das próprias ciências humanas; vias que, ao mesmo tempo, não poderiam ser
3 Segundo GIACOIA (2000), “de acordo com esse método [genealógico], a explicação de um fenômeno
qualquer depende sempre da reconstituição dos momentos constitutivos de seu vir-a-ser, de tal maneira
que o sentido atual desse fenômeno não pode ser obtido sem o conhecimento da série histórica de suas
transformações e deslocamentos".
20
afastadas das diretrizes constituídas pela ‘problematização constante’ e pelo
‘diagnóstico dos perigos’.” (MUÑOZ, 2002).
Problematização constante e diagnóstico dos perigos. Problematização dos
conceitos, dos procedimentos, dos hábitos, dos modos de vida. Análise dos riscos e
perigos que rondam qualquer modo de vida: de se tornar fraco, obsoleto, de causar dano
a si mesmo, de diminuir a potência de vida, de mata-lo.
Esse uso operador das artes e dos saberes humanos, esse uso artístico das
ciências, essa prática experimental da filosofia, essa re-apropriação da produção cultural
numa história sem fim de criações e interpretações humanas: “interpretar: el infinito: el
mundo. ¿El mundo? ¿Un texto?” (BLANCHOT, 1973)4. Aqui, história, filosofia e
ciências como invenção da vida: esta entendida não como um substantivo próprio,
incólume, mas na medida em que pode ser produzida sua vivacidade.
Na transversalidade do uso desses procedimentos, poderíamos nos aproximar do
que Oswald de Andrade quis com a antropofagia, pois parte-se, em última instância, de
uma apropriação imoral do “homem” para fundar outros homens, outras morais, outros
valores; movimento estritamente histórico-farmacopoético-antropofágico como uma
“prática pública da vida”5, em favor da mesma. Lemos o que foi escrito. Vemos o que
foi produzido. Mas não revivemos o que foi vivido. A partir desse contato com o túmulo
do que foi cultivado – o signo –, trazemos à tona tão somente a eterna vivacidade
(NIETZSCHE, 2008a: 408) das forças que alimentam as inúmeras vidas que viveram e
que poderão viver ainda:
Se considerarmos que toda ação de um homem, não apenas um livro,
de alguma maneira vai ocasionar outras ações, decisões e
pensamentos, que tudo o que ocorre se liga indissoluvelmente ao que
vai ocorrer, perceberemos a verdadeira imortalidade, que é a do
movimento [...] (NIETZSCHE, 2008a: 208.)
I. 1. Nietzsche, filosofia, vida: uma abordagem via educação
Pode-se apreender na obra nietzscheana uma relação intrínseca entre filosofia e
4 Algo como próximo do pensamento do “eterno retorno”? Daí sua implicação ética e científica? Cf. O
círculo vicioso de Pierre Klossowski. 5 Cf. Manifesto antropofágico de Oswald de Andrade.
21
vida, entre essa atividade do pensamento sobre si mesmo (FOUCAULT, 2006a) e a
relação e a intervenção que essa atividade produz na constituição de um modo de viver.
Poderíamos dizer ainda que, nesse sentido, a relação entre filosofia e vida é uma relação
de crítica e criação: uma relação intrincada entre educação, formação e transformação
constantes. Poderíamos, então, dizer de uma filosofia da educação nietzscheana? Não
tão apressadamente. Se a própria denominação de sua filosofia já pode nos parecer
difícil, intricada, pois até mesmo este teve que revisar o que “era” filosofia e filósofo
para então poder se distinguir deles, imaginemos, então, uma filosofia da educação.
Para entender melhor essa relação entre filosofia, educação e vida, é preciso
evitar algumas interpretações que podem relativizar ou mesmo enfraquecer o potencial
crítico-criativo de sua prática filosófico-historiadora. Toda essa retomada de Nietzsche
como um paradigma da modernidade (MUÑOZ, 2002) gerou muitas pesquisas sobre
suas perspectivas, da sua concepção de fisiologia humana a uma dinâmica das
intensidades, etc., que contribuem para a compreensão sempre problemática da
dimensão educacional de suas obras. Cremos que, apesar de o autor ter se ocupado
diretamente dessa dimensão ao longo de suas obras, ele mesmo mudou diversas vezes
de perspectiva e de opinião com relação a um processo ou a um procedimento de
formação do ser humano. Essa característica de mutabilidade do pensamento e da
argumentação, arrogada muitas vezes como um aspecto contraditório em suas obras, de
incoerência, de inconsequência ou apenas de relatividade, em nossas leituras, esse
aspecto comprovou-se muito mais fértil e inexplicável do que inconsistente, o que
contribuiu para refletirmos sobre a ação e a função do pensamento, do saber e de certas
práticas no conjunto de processos que se chamaria “educação”.
Segundo Maurice Blanchot (1973), talvez mais do que incoerência ou desrazão,
o pensamento nietzscheano, ao se constituir por afirmações que logo são retomadas em
outros escritos sobre a influência de outros pensadores e ideias, aplicadas de forma que
criticam, negam ou superam sua afirmação anterior, seria composto não por oposições,
mas por justaposições. Suas afirmações não se anulam diretamente, mas se ligam umas
as outras num jogo de forças, sempre a compor novas associações, direções, problemas,
perspectivas. É essa lógica da justaposição que lhe permitiu desenvolver sua filosofia a
partir das forças e da análise dos sistemas de valores por uma perspectiva histórico-
genealógica, a fim de entrever a constituição, a partir da medida da fraqueza da força e
não da falta ou do dever, do devir constante da cultura e da história humanas, da
transitoriedade das hierarquias de valores e sentidos que orientam os desejos e o rumo
22
das vidas humanas.
Para também explicitar a originalidade – ou a herança – do teor dos escritos de
Nietzsche, outro importante entusiasta e intérprete francês de suas obras e método,
Gilles Deleuze (1976), contribui como opções de abordagem a essa produção de si
mesmo em meio ao um jogo caótico de forças, com três conceitos: mais noções do que
conceitos, mais operadores do que princípios, que se complementam para o
entendimento do que Nietzsche pensou e fez com a filosofia e a educação.
Um primeiro conceito-noção é o de forças: energia, potência [Kraft, Gewalt,
Macht, entre outros]. Com esses diferentes termos para tentar descrever tão vasta,
abstrata, ao mesmo tempo fundamental dimensão para a compreensão dos
acontecimentos e do próprio ser humano, Nietzsche se aproxima de uma leitura de
mundo e de vida mais próxima da física do que da metafísica, mais naturalista e
interligada do que transcendental e hierárquica. Isto reflete os efeitos dos estudos à sua
época para compreender a complexa relação entre fenômenos e processos de
composição da natureza. Para o filósofo alemão, uma força só é em relação a uma outra
força. Postas em relação, em confronto, elas produzem movimento. Essa contínua e
cambiável relação entre forças é que constitui os seres, a vida. Vida como um encontro
entre forças em perpétua e mútua afecção.
Segundo Nietzsche, então, a filosofia deveria conceber-se não como uma
ontologia ou uma teleologia do ser ou da vida, como busca de sua origem ou de seu fim
último. A prática filosófica deveria ser concebida, antes, como uma semiótica dos
afetos, efetuando-se também como uma sintomatologia dos sentidos desses afetos6,
visando interpretar as afecções segundo uma analítica genealógica da composição das
forças, dos valores que dão intensidade e sentido a essas forças – estudo que ao mesmo
tempo busca “valor da origem” e “origem dos valores” (DELEUZE, 1976, p.4). Essa
atividade filosófico-genealógica consistiria, então, no observar e analisar, ao longo das
transformações históricas, de que maneira uma força se sobrepõe a outra, qual é aquela
que domina e a que é dominada, ao passo que também pergunta por qual é o valor que
regula, qual é a medida vitoriosa, averiguando assim as configurações costumeiramente
aceitas, ditas verdadeiras.
Um segundo conceito-noção é o de eterno retorno. Nele, reside a concepção de
um movimento geral das forças ininterrupto Designa um movimento produtor e
transformador, sem origem e sem fim, sem parar. O ser nunca é, sempre está em devir. 6 Cf. NIETZSCHE, 2006c, aforismo 187. Também cf. a nota 99 da edição utilizada.
23
O ser humano, assim como todos os outros seres, está num constante movimento de
tornar-se, de vir-a-ser. Portanto, esta perspectiva culmina na impossibilidade de se
propor algo como um programa ou um projeto definitivo de formação, uma idealidade
fixa da medida da ação humana; nem mesmo haveria um ideal de homem. Em tais
circunstâncias postas por Nietzsche, um ser humano “ideal”, virtuoso, de virtú, seria
aquele capaz de constantemente estar se experimentando, ora se adaptando, ora
combatendo, atuando não como uma força passiva, mas como aquela que melhor se
encontra com outras, bem ao modo de uma ética spinozista. Nesse caso, Nietzsche
atribui à atividade do ser humano como aquele que deve se interessar não por sua
salvação através de um modo de vida cujo regime de valores é fixo e estável, como por
exemplo, “idealismos” de religiões e ideologias. Antes, nesse ocupar-se consigo deveria
interessar a questão da sua alimentação: “como você deve alimentar-se para alcançar
seu máximo de força, de virtú no estilo da Renascença, de virtude livre de moralina?”
(NIETZSCHE, 2003, p. 36).
Entendido como uma ideia, uma hipótese ou um delírio quase demoníaco e
divino (NIETZSCHE, 2007: 285, 341), o eterno retorno compreende a necessidade de
afirmar a vida frente à tragédia da mesma: afirma-la, frente ao seu fim, sua degeneração,
seu sofrimento. É por meio dessa afirmação que se tem a necessidade de fazer escolhas
e correr seus riscos para além de qualquer sistema fixo e fechado de valores, gostos,
ideais ou praticas, para além de qualquer ressentimento, culpa ou vergonha, pois o que
está em jogo é a própria vida. Logo, é a partir da noção de eterno retorno que se pensa
uma ética da alimentação, uma educação para a saúde.
Um terceiro conceito-noção, não menos importante, é o de vontade de potência
[Wille zur Macht]. Força, vontade, desejo, impulso: termos conciliáveis que efetuam-se
como intensidades, direções, violências que não são da ordem do pessoal, do individual.
Tudo é vontade, querer. Vontade de potência, nesse sentido, não seria uma vontade de
dominar a força ou qualquer outra coisa, de conquista-la, mas sim uma vontade de
afirmar a própria vontade, alimentar aquilo que nela quer, potência sendo aquilo mesmo
que quer na vontade. A vontade de potência tem em si mesma sua finalidade: a de se
sustentar, cultivar-se, diferenciar-se enquanto força da vida, de ser. Segue-se, então, uma
lógica quase irracional do apetite, da nutrição, do cultivo, da produção.
Frente a essas noções de força, eterno retorno e vontade de potência há, então,
toda uma problemática filosófica e ético-pedagógica: qual o valor, o juízo ou a medida
que deve orientar a ação dos seres humanos? Quais são esses valores que designam o
24
que ele é e como deve ser sua formação? Observamos, dessa maneira, como o problema
filosófico da educação em Nietzsche não é apenas o que é adequado, certo ou bom
pensar ou fazer, mas é em vista do como se pode pensar e fazer, de como pode articular
e modificar seu pensamento, decompondo e reestruturando a ordem de suas ideias, de
modo a melhor intervir na lógica do próprio pensamento, intervindo também nos seus
hábitos, gostos, escolhas, ações.
Talvez seja no seu livro autobiográfico que Nietzsche (2003) melhor reflete
sobre sua trajetória e apresenta uma série de relações entre filosofia, educação e vida. A
filosofia é então, afirma ele, entendida e praticada como uma atividade vital, strictu
sensu – uma vontade de saúde [Willen zur Gesundheit], uma vontade de vida [Willen
zum Leben] (NIETZSCHE, 2003, p.25 e p.36). Uma filosofia como vontade de saúde é
fazer do pensamento e ação um trabalho sobre vontades, sobre forças, sobre essa
multiplicidade de impulsos que tutelam a vida (p.49): é lavrar o instinto de auto-
restabelecimento [Instinkt der Selbst-Wiederherstellung] (p.25), instinto de autodefesa,
de modo a apurá-lo como um princípio seletivo [auswählendes Princip], um apetite
escrutinador, como um gosto refinado para as forças que alimentam – as experiências
que devemos nos submeter, os tipos de pensamento que devemos efetuar, a maneira
como elaboramos as afeções –, a fim de não nos tornarmos fracos, pobres de espírito,
esvaídos de força7.
Em última instância, a atividade filosófica pode ser enfrentada como uma arte
da preservação de si mesmo [Kunst der Selbsterhaltung] (p.48), arte que cultiva a
vontade de saúde que constantemente se adquire e deve-se adquirir (p.84). Arte ou
prática que lida com a as forças e a hierarquia de valores as quais o indivíduo esta
submetido, de modo a elaborá-las como esse princípio seletivo que de “tudo o que vê,
ouve e vive forma instintivamente sua soma” (p.25-26): um indivíduo que prova,
escolhe, determina sua alimentação, dá a dose de sua ação. Arte ou prática produtora de
vida, de vitalidade, de vivacidade, cuja produção ou obra, enfim, é tornar o indivíduo
aquilo que ele é.
Mas como alguém se torna o que é? – enigmático e ambivalente questionamento
que atesta também uma tarefa, a tarefa; cujo destino é “desconhecido, incognoscível”
(NIETZSCHE, 2008c: 267): não se suspeita “sequer remotamente o que é” (2003, p.48).
Como Nietzsche atesta, não basta seguir a fórmula do “nosce te ipsum”, o conhece-te a
ti mesmo apolínio, o que seria antes para ele uma “fórmula da destruição”. Nessa tarefa 7 Para mais detalhes sobre o princípio seletivo e o “tornar-se”, referido logo adiante, cf. RICCI, 2007.
25
de tornar-se, deve-se optar por uma outra prática ético-moral: mais ambivalente,
desinteressada [selbstlos], que transita de um cuidado de si [Selbstigkeit8] à ausência de
si [Selbstlosigkeit9], de um cultivo de si [Selbstzucht
10] a um amor a si [Selbstsucht],
onde “esquecer-se, mal entender-se, empequenecer, estreitar, mediocrizar-se torna-se a
própria sensatez” (p.48). Moral cujo destino, o projeto e o fim são menos importantes
do que o próprio percurso, do que as experiências, as tentativas, os acasos e as
inevitabilidades que surgem ao longo de um processo de formação. Os erros, os desvios,
as vias secundárias, tudo aquilo que é considerado imoral ou doentio, são a própria
busca de saúde, o fortalecimento de seu caminho, a constituição de sua razão e de sua
verdade – “Foi a doença que me trouxe a razão” (p.40), já que “preferimos mesmo, para
alcançar a verdade, os caminhos tortuosos” (p.49). Daí, talvez, advenha o título do
capítulo de Ecce Homo, explicitando qual seria essa espécie de inteligência moral:
Não gostaria de abandonar uma ação após tê-la cometido, preferiria
deixar o mau resultado, as consequências, radicalmente fora da
questão do valor. Quando as coisas resultam mal, perde-se muito
facilmente o olho bom para o que se fez: um remorso parece-me uma
espécie de olho ruim. Honrar mais ainda dentro de si o que dá errado,
porque deu errado – isto sim está de acordo com minha moral. (2003,
p.35)
Desse ponto de vista possuem sentido e valor próprios até os
desacertos da vida, os momentâneos desvios e vias secundárias, os
adiamentos, as ‘modéstias’, a seriedade desperdiçada em tarefas que
ficam além d’a tarefa. (2003, p.48).
Percebemos como os desígnios dessa tarefa, a composição dessa obra que é o
tornar-se, alimentam-se constantemente das antíteses de seu processo, construindo e
fortalecendo, uma após a outra, o instinto e o princípio que coexistem em um indivíduo
para sobreviver11
. Assim, quase como um provérbio: “o que não o mata, o fortalece”
(NIETZSCHE, 2003, p.25)12
.
Desse modo, o processo de tornar-se, tal como o entendemos, não apresenta
uma finalidade formal, uma forma final a ser alcançada. Tornar-se implicaria, antes,
8 Literalmente, egoísmo.
9 Literalmente, altruísmo.
10 Literalmente, autodisciplina.
11 Cf. NIETZSCHE, 2006b, aforismo 224.
12 Resumir-se-ia a prática ético-moral dessa tarefa numa espécie de conceito infelizmente pouco
elaborado por Nietzsche, mas que ele mesmo o considerava como sua grande contribuição para o campo
da formação humana: a tresvaloração dos valores. Cf. NIETZSCHE, 2003, Prefácio. Cf. também
MARTON, 2006.
26
num processo de resistência. A finalidade é: resistir, persistir. Mas para persistir, é
preciso assumir constantemente uma forma, escolhê-la, afirmá-la. Mas se o fim de uma
forma é exatamente a possibilidade de resistir de um corpo ou ser que a incorpora, tal
forma só é “valida”, só é “útil” a medida que possibilita o ser insistir em ser, continuar
sendo. Toda “forma” é também vontade de potência: apresenta a mesma característica
de querer ser, de continuar sendo. Com isso, há toda uma dinâmica, há toda uma
modulação entre a insistência da forma e a insistência do ser, entre a insistência de uma
forma frente às outras. Uma dinâmica não de luta, não de empenho, fim ou desejo
essencial, mas feito de virtudes e vícios, de costumes, contenções e excessos, de metas e
desvios, acertos e erros.
A filosofia, tida com essa espécie de prática sobre a vida, por meio da qual se
elabora para si mesmo seus próprios remédios, suas próprias doses, ocorre nesse jogo
incessante que é a constituição dos seres. Esse si mesmo, sobretudo, entendamos no
sentido da elaboração de uma força, ou antes, de uma contra-força, composição de uma
vontade e uma medida oriunda de um processo volitivo-racional caótico, mas que
imprime, em meio a toda complexidade, imperfeição e erros, uma certa direção, um
certo sentido (NIETZSCHE, 2006b: 19). Desarrolhada pelo desinteresse e o amor a si, a
filosofia seria entendida, assim, como um modo de vida pelo qual se toma a si mesmo
em mãos e ocupa-se consigo à medida que se participa ativamente de sua própria
formação fisiológica e moral, não pressupondo-se o que se é, mas devotado à atividade
pela qual se cuida, altera-se, cura-se – movimento de tornar-se o que se é.
Parece-nos, então, que esse incessante, instável e complexo jogo entre forças
para a constituição dos seres e constituição de si mesmo enquanto uma composição de
pulsões, forças, entre comandos e obediências, tal jogo comporta tanto a questão da
escolha quanto o risco de cada modo de vida constituído. Esse jogo traz a possibilidade
de uma constante transformação do modo de pensar e viver, do modo como um
indivíduo se relaciona com as coisas, consigo mesmo e com os outros, ao sabor das
investidas científicas e dos exercícios sobre si mesmo; mas ao refletir e interferir nesse
jogo, impondo-se seleções, restrições, etc., põe-se a si mesmo em risco, pondo em
cheque o próprio modo de vida escolhido, aquilo que lhe garante sua sobrevivência –
seus hábitos, sua hierarquia de ideias e ideais, sentimentos, memórias e desejos. Todas
essas categorias filosóficas da subjetividade são parte de um jogo criativo e arriscado de
subjetivação, de constituição do sujeito, pela sua formação através dos outros e de certo
cultivo de si mesmo. Parece-nos, também, que todas essas categorias são postas em
27
operação no pensamento de Nietzsche sobre educação.
* * *
A questão do tornar-se, a nosso ver, é fundamental para abordar uma possível
perspectiva filosófica nietzschiana em relação à educação. Talvez sejam pelas inúmeras
problemáticas suscitadas por essa noção, bem como pelo olhar severo sobre as prática
de seus contemporâneos, que Nietzsche destoe em meio a seu tempo.
Cremos se depositar nessa vaga e nebulosa imagem de um processo de formação
instável, cujo procedimento não é infalível e cuja meta não se determina previamente,
mas se vive enquanto desvio ao seu caminho, o objeto de uma concepção de educação
desenvolvida por Nietsche desde os meados de sua maturidade, por volta de 1878 e
1879, até sua trajetória filosófica final, por volta de 1890. Essa concepção de educação,
pensada sem uma teleologia formal, sem um fim último moral, sem uma meta valorativa
pré-determinada, encerrada num movimento constante de formação e transformação,
intercedido por uma prática ascética flexível e versado numa ética mais estoica do que
cristã, mais cínica do que spinozista, o filósofo alemão em algumas passagens
denominará como auto-educação [Selbst-Erziehung]13
.
Nas aparições dessa auto-educação, Nietzsche se distinguirá, de uma maneira ou
de outra, de uma educação em seus termos comuns [Erziehung] ou de uma cultura geral
[Kultur] e, posteriormente, até de uma formação abrangente e artística, [Bildung] por
toda a vida, já que, para ele, será através de práticas com resultados um tanto incertos
que se alcança a educação necessária para a vida. Por vezes metódicas e ao mesmo
tempo empreendidas de forma descomedida e desvairada, essas práticas em Nietzsche
consistiram, basicamente, em leitura, escrita e caminhada, as quais este se dedicou por
13
Literalmente, auto-educação, entendida como educação de si por si mesmo. Auto-educação será a
nossa escolha para facilitar a leitura do termo Selbst-Erziehung ao longo de nosso texto, embora não
queremos nos filiar as noções correntes de autonomia ou mesmo automático, procurando-nos afastar do
entendimento de um processo que ocorre sem a participação da vontade ou do outro, ou mesmo sem o
conflito de componentes do acaso que constituem a vontade de um ser (Cf. NIETZSCHE, 2006c, 19.).
Com isso, queremos compartilhar da ideia de selbst, em relação mesma com o sentido reflexivo de self,
em inglês, e de si mesmo, em português, entendendo uma auto-educação como uma “educação por si
próprio”, tal como Paulo César de Souza traduz. Porém, uma educação, uma criação e condução de si por
si mesmo em relação a uma possibilidade autopoética, de composição das vontades, de constituição de
ilusões e de vitalidades, na organização dos sofrimentos e afetos, ideais e projetos, em relação ao acaso e
o caos. Uma possibilidade de uma autopoese, de produção vital de si por meio de sua alteridade, mas não
necessariamente uma capacidade de racionalidade autônoma, evoluindo progressivamente, edificante,
eficaz e suficiente de se dar doses, juízos, medidas, leis pré-determinadas, racionalmente formuladas, a
fim de “governar-se” segundo uma norma definitiva, alheia ao caos e a vontade. Quiçá, aqui também,
toda uma problemática entre “si mesmo” e “o outro” na educação a ser burilada mais adiante.
28
quase toda sua vida de uma maneira muito singular e as advertiu a si e a seus leitores,
bem ao seu modo paradidático e irônico, como técnicas dirigidas por um princípio
seletivo, de valoração perspectivada pela história, para manter certas relações analíticas
consigo e com os outros.
Esse termo, auto-educação, não é de nenhuma maneira bem definido e
esclarecido categoricamente por Nietzsche. Veremos que, ao longo das passagens
recolhidas, o termo auto-educação só aparece algumas vezes, referindo-se a aquele que
se auto-educou, o auto-educado [Selbst-Erzogenen]. Contudo, apesar de ser relacionado
e comparado a outros conceitos, como a própria formação [Bildung], a disciplina
[Zucht] e o cultivo [Züchtung], esse termo presta-se para talvez sumarizar um conjunto
de práticas, de atitudes, de atenções e de exercícios aos quais Nietzsche vincula àquele
que quer se tornar o que é: espírito-livre, ou antes, aquele cujo destino, cujo devir, se
traça por uma meta de forma determinada por si mesmo, mas ainda a ser alcançada e
sempre alcançada14
.
A auto-educação articulada por Nietzsche não consistirá em uma adequação à
cultura vigente, nem ao acúmulo erudito de conhecimentos e informações. Não será
propriamente dita uma prática para a formação de um gênio que, pelo sacrifício do povo
para que aquele se eduque, a arte genial salve seu tempo e dê a beleza e a justeza
necessárias para a vida em comunidade. No que Nietzsche escreveu em relação a esse
processo de auto-educação, quiçá, queremos surpreender as simetrias e as dissonâncias
das assimilações e apropriações das artes de existência greco-romanas pela educação
para a cidadania e a autonomia do cosmopolitismo emergente do século XIX.
Com efeito, é interessante perceber que esse tema da auto-educação e de destino
do homem não é um tema atemporal. Porém, sendo um tema caro tanto aos ascetismos
religiosos que dominaram moralmente a Europa por dois milênios quanto caro também
a uma Europa secular do século XIX, esses processos pelos quais um sujeito obedece e
comanda a si mesmo poderiam ser entendidos na chave de uma realocação das práticas
de governo de si e dos outros ao longo da história.
Num XIX em meio à miscigenação de culturas e a preocupação com as
sociedades emergentes, as principais perguntas culturais, políticas e filosóficas giravam
em torno de quais seriam as bases, os fundamentos e os princípios que iriam orientar as
práticas culturais, científicas, educativas, cívicas e morais de nações inteiras. Quais
instituições, práticas e saberes de articulação e contenção povoariam as cidades com o 14
NIETZSCHE, 2006c: Prólogo.
29
fim de formar um povo para viver sob um novo mundo.
I. 2. Uma problemática educacional na filosofia alemã dos séculos XVIII-
XIX: entre Erziehung e Bildung
Considerado pelo historiador Franco Cambi (1999) como o “Século da
Pedagogia”, o século XIX, período de pós-revoluções, de indecisão e de intensa
fermentação cultural, se viu confrontado, entre tantas outras questões, com o problema
da educação – da formação de um ser humano cujos princípios ontológicos,
epistemológicos, morais e políticos haviam sido abalados. Se pudermos mais ou menos
dizer que um pensamento educacional ou um projeto pedagógico é baseado na ideia de
homem, numa dada época ou cultura, a própria mudança dessa ideia de homem ao longo
da modernidade forçou a revisão, a discussão, a reelaboração dos contornos filosóficos,
lógicos, metafísicos e religiosos para a formação do que se chamaria de “homem”.
Contornos estes que fundamentariam e orientariam os procedimentos que um homem
poderia exercer sobre si mesmo e sobre os outros, numa determinada relação
pedagógico-social.
Pensando no que seria esse homem e sua educação, o que estava em jogo era:
quais as formas e os conteúdos que norteariam os projetos formativos? Aqui todo um
problema da definição da natureza do homem – como é possível defini-la, medi-la,
sobre quais parâmetros –, toda uma filosofia da ontologia do homem ou mesmo uma
antropologia. Mas também, todo um problema das racionalidades das práticas, dos
processos, dos métodos e atividades as quais possuíam uma pragmática e uma teleologia
bem específicas, baseadas nessas concepções de homem e de um saber sobre o homem
– que passaram da metafísica à biologia até psicologia.
O interessante texto de Fabiano de Lemos Britto, Sobre o conceito de educação
(Bildung) na filosofia moderna alemã (BRITTO, 2002), nos traz algumas referências e
caminhos para pensar a etimologia e a trajetória histórica dos termos envolvidos com o
pensamento educacional alemão. O conceito de Bildung, segundo Britto, com seus
deslocamentos e apropriações, com seus usos e diferenças para com outros conceitos,
foi decisivo para o desenvolvimento de uma filosofia alemã voltada para a educação.
Podemos dizer que, de Herder à Kant, tendo Goethe e Humboldt como seus
maiores representantes na área da literatura e da filosofia pedagógica, respectivamente,
30
essa formação se viu problematizada entre dois termos: Erziehung, considerado como
educação geral ou formação cultural-escolar técnica ou erudita, e Bildung, considerado
como formação pessoal, voltada para um processo de cultivo, de disciplina e progresso
moral.
No início do seu curso A hermenêutica do sujeito, Michel Foucault (2006b) já
apontava para certo “desnível”, notadamente discernido entre práticas adotadas em
certas culturas ao longo da história, entre “aprender” e “ocupar-se consigo”, entre uma
pedagogia compreendida como aprendizagem e uma outra forma de cultura, de Paidéia,
que giraria “em torno do que se poderia chamar de cultura de si, formação de si,
Selbstbildung” (p.58). Nesse desnível, Foucault enxergava a precipitação de certos
problemas que tangenciariam, segundo ele, a relação entre filosofia e espiritualidade:
entre as regras que legislam o verdadeiro e o falso, o certo e o errado em uma dada
cultura ou teoria moral e as práticas às quais os indivíduos se submetem e cultivam-se
para aderir a essas regras e juízos (p.19-20). Talvez seja nesse desnível que vai se
realocar a discussão na filosofia, na literatura e na pedagogia alemã dos séculos XVIII e
XIX, sobre o problema de uma educação para a emancipação ou maioridade.
Entretanto, apesar desse desnível nos parecer um crivo interessante para permear
nossa pesquisa e discernir aí toda uma série de deslocamentos e apropriações das
características de um termo ao outro e as variações atribuídas por cada autor a esses
termos – a problemática dos conceitos, dos procedimentos e da teleologia das ciências
pedagógicas no século XIX é muito mais complexa e menos palatável do que esse
esquema dicotômico. Tanto os conceitos de Erziehung, de Kultur, de Zucht e de
Bildung, entre outros, foram desenvolvidos nas discussões entre os pensadores com
respeito à melhor forma de educar o indivíduo, constituir o ideal de sujeito. Porém,
talvez seja no conceito de Bildung que se enraizaram mais profundamente as metas e os
ideais de uma educação que surgia frente às problemáticas da religião e da razão
capitaneadas pelo ideal de Aufklärung.
Para começar, segundo Britto, o próprio conceito de Bildung tem uma dupla
origem, aparentemente contraditória, que definirá o destino de algumas concepções
pedagógicas ao longo desse período histórico. Por um lado, uma raiz desse conceito era
oriunda do pensamento religioso (Bildungsreligion), o que transformava esse processo
de formação numa relação entre uma forma, uma imagem subjetiva interior normativa e
um processo cuja teleologia era transcendental, isto é, a formação só se dava após a
completude dessa forma que, em ultima instância, não se realizava em vida. Por outro
31
lado, outra raiz desse conceito era oriunda das ciências naturais, mais precisamente
biológicas, em que se considerava um impulso formativo, natural, como motor ou força
do desenvolvimento das espécies da natureza. Essa dupla origem de uma educação da
natureza juntamente com essa imagem interna como medida, como modelo para a
formação do homem, permearam as discussões sobre a pedagogia na Alemanha dos
Oitocentos aos Novecentos.
Para não retomarmos toda a discussão e pesquisa de Britto, tentaremos nos ater
tão somente a dois pontos que talvez elucidem um pouco como Nietzsche tomou parte
dessa discussão: a da educação para além da tutela e a de uma problemática ética gerada
pelo fim dessa tutela.
I. 3. Educação para a maioridade: o problema da tutelagem na Aufklärung
kantiana
O problema da educação na Aufklärung não foi colocado apenas por um só
autor. Tanto Immannuel Kant quanto Moses Mendelssohn, entre outros pensadores,
partilharam desse tema em algumas publicações, importando-se com a possibilidade de
uma nova ordem político-social e moral para a época (BRITTO, 2002; FOUCAULT,
2010).
Consolidava-se nesse cenário europeu do XIX, uma educação, pública e
compulsória, de cunho humanista, mais ou menos estruturada por um ideal de homem e
um projeto para moldar este homem. Encontrando na pedagogia kantiana a
exemplificação de seu modelo, de sua melhor elaboração de uma formação que passa a
ser entendida como processo através do qual um indivíduo torna-se sujeito, reconhecido
filosófica e politicamente de acordo com uma concepção de “humanidade” e de
“destinação” da mesma (BRITTO, 2002, p.4-5), o pensamento pedagógico da época
consistia em uma ideia, uma “verdade” sobre a natureza humana e, por derivação
imaginária e arbitrária, sobre seu destino. Sei o que é – logo, sei para onde vai seguir,
deve seguir; o que vai se tornar, deve se tornar.
Educar o homem é educá-lo segundo essas “verdades”: o que é o homem, qual o
rumo que deve seguir. Contudo, esse processo é entendido num viés de progresso
histórico, onde a formação implicaria num movimento de formatação, de alcance a
essas ideias de natureza e destino. O processo de formação em si seria estático, devido a
32
estarmos sempre em direção a esta meta cientificamente definida. A ideia de “cidadão
do mundo” permeia as dimensões dessa natureza bem como dessa destinação,
atribuindo à forma, a qual o indivíduo deve chegar, um modelo moral universal e
necessário.
Em sua Pedagogia (1996), Kant normalmente usa o termo Erziehung, no sentido
de formação dos indivíduos, tendo em vista o horizonte da cultura onde estão inseridos
(BRITTO, 2002, p.6). A cultura na qual Kant se insere é a do Iluminismo, a das Luzes, a
da Aufklärung. É no texto O que é o esclarecimento? (2005), por sua vez, que ele
descreve essa cultura caracterizada por uma certa atividade humana: o uso adequado da
razão. Para o filósofo de Königsberg, esse uso adequado da razão é o que coloca o ser
humano no caminho de sua destinação, considerando-o como um ser racional e
autônomo. O conceito de autonomia caracteriza bem essa condição a qual o homem
alcança quando esclarecido: saindo da sua minoridade para a maioridade, esse
movimento consiste na emancipação do indivíduo de sua tutelagem – tutela dos livros,
dos pedagogos, dos médicos. Autonomia como um uso adequado de sua própria razão,
para além da tutela e da obediência. A minoridade, por sinal, não é um estado do homem
por natureza ou por pressão social, mas se mantém pela própria atitude do mesmo:
atitude de preguiça ou de medo.
Vemos se desenhar então, um primeiro problema: o problema da tutela, o
problema da educação para a maioridade. Se a minoridade é um estado no qual o
indivíduo se mantém pela sua preguiça e covardia no uso de sua própria razão, ou antes,
pela sua obediência à tutela racional dos outros, como se daria a passagem para a
maioridade? Quem ou como se efetuaria tal passagem? Problema que, segundo Foucault
(2010, p.32-33), mantém-se incerto em Kant. Pois, se são as tutelas que não deixam um
indivíduo fazer uso de sua razão, o movimento ou o procedimento que um educador
efetuaria no indivíduo para que este fizesse a passagem conferiria a esta relação também
a característica de tutela. Kant, no mesmo texto, explora ora a impossibilidade de um
indivíduo, pelos seus próprios esforços, alcançar sua emancipação; ora, explora sua
possibilidade. Mas não descreve esse processo e não afirma também se haveria aí um
educador ou outrem para tal tarefa. Segundo Foucault (2010, p.34-38), Kant dá duas
soluções, ainda assim obscuras: a primeira, que tal passagem da minoridade para a
maioridade se daria por um processo progressivo de evolução histórica; outra solução se
daria pelo governo de um governante o qual fosse, também ele, um esclarecido, e cujas
leis seriam para a formação de homens esclarecidos. Uma solução histórica e outra
33
política, mas ambas obscuras, indefinidas, mal resolvidas.
Com efeito, o problema da educação e da tutela, problema de quem é que efetua
o gesto, quem é que educa o indivíduo para sua maioridade, abre-se então para um outro
problema, a ver, a da relação ética que um indivíduo estabelece consigo mesmo. Se não
é um educador que o efetua e se há aí, toda uma questão de que é a atitude do indivíduo
que o mantém sobre a tutelagem alheia, bem, parece-nos se configurar algo da ordem
não só da necessidade de uma educação pública, mas da ordem de um incutir uma
relação específica de si consigo mesmo.
I. 4. Uma concernência ética: o uso racional de si mesmo
Se é através de sua atitude que o indivíduo se mantém sob a tutela de outrem, há
algo aí, nessa atitude, nessa relação de si consigo, de problemático para Kant. Essa
dimensão da relação de si consigo mesmo, a qual chamaremos de dimensão ética, pode
se tornar alvo de questionamentos e investigações filosóficas a fim de que se estabeleça
que tipo de atitude ou relação ética, que tipo de conduta um indivíduo deve manter
consigo mesmo. A essa questão, cremos, a filosofia alemã se debruçou para pensar não
somente a vertente de uma educação escolar, disciplinar, instrutiva, mas, sobretudo, para
pensar essa dimensão ética do indivíduo e sua formação pessoal.
Podemos entender essa dimensão ética como um foco analítico o qual passou
muito tempo despercebido das investigações históricas e que, talvez, Foucault, por meio
de Nietzsche, Max Weber e outros, traz novamente à tona dos debates históricos. Se a
atitude ética, a conduta do indivíduo não é homogênea aos ditames morais e culturais de
uma cultura ou sociedade, se a atitude que alguém mantém consigo é o que possibilita a
ele aceitar, questionar ou refutar certos valores e modos de vida, há aí todo um campo
de investigação que põe em questão a conduta do sujeito em relação aos processos de
subjetivação. Processos estes que significam a adesão de um sujeito a uma norma ou
modo de vida e que o transforma, o subjetiva de acordo com essa norma a partir de uma
série de práticas culturais, médicas, políticas, éticas.
34
I. 5. Da filosofia antiga à filosofia moderna: a questão da prática parrésica
como crivo analítico
Tendo em vista tal dimensão ética, em seu penúltimo curso no College de
France, de 1983, Michel Foucault (2010) expõe algumas conclusões preliminares sobre
suas investigações histórico-filosóficas dos últimos anos. Na primeira hora de sua
última aula desse curso, Foucault estabelece uma diferença entre a dita filosofia antiga,
aproximadamente do século V a.C. ao II d.C., e a dita filosofia moderna,
aproximadamente do XVI até os séc. XIX e XX (p.314).
A filosofia moderna, "apresentada atualmente como objeto escolar e
universitário", "como um sistema de verdades num domínio determinado" tem pouco
em comum e "não deve ser de modo algum" compreendida como uma filosofia da
"prática parresiástica" – ou parrésica –, característica da antiga. Segundo Foucault, essa
prática parrésica caracteriza a filosofia antiga sob três aspectos entrelaçados um ao
outro: a atividade filosófica é uma forma de vida, é uma relação com o poder e é uma
interpelação perpétua (p.311-313). Com esta primeira distinção, em termos de um
movimento histórico do pensamento filosófico, entenderíamos a modernidade como
uma ruptura com a antiguidade.
Entretanto, poucas páginas depois, Foucault retorce a questão e apresenta a
seguinte hipótese: "não se poderia encarar a filosofia moderna, pelo menos a que
reaparece a partir do século XVI, como sendo a realocação das funções principais da
parresía dentro da filosofia e o resgate da parresía, que havia sido institucionalizada,
organizada, que havia desempenhado de forma múltipla, rica, densa, interessante aliás,
na pastoral cristã?" (p.316). Com essa pergunta, Foucault nos propõe, então, outro
entendimento desse movimento histórico: talvez, mais do que pensar em termos de
ruptura ou continuidade, poderia se fazer uma "história da filosofia", como uma "série
de episódios e formas", de recorrências e transformações, da "veridicção" (p.318).
História de uma filosofia encarada, portanto, não como um sistema de pensamento com
conceitos e teorias fechadas, grades fixas de inteligibilidade sobre um domínio
específico, mas uma filosofia encarada segundo sua força ilocutória, força de performar
por meio de um discurso uma ação: a do dizer-a-verdade.
Foucault, assim, propõe-nos uma outra história da filosofia, “que não se
alinhasse a nenhum dos dois esquemas que atualmente prevalecem com tanta
frequência”, a ver, a de uma história que busca a origem radical de algo ou ainda uma
35
história da filosofia como progresso ou avatar do desenvolvimento de uma
racionalidade (p.318). Por esse afastamento das perspectivas históricas ditas tradicionais
ou canônicas, sobretudo se a filosofia moderna não pode ser confundida com a filosofia
antiga, o que esses modos de filosofar em diferentes momentos na história teriam em
comum? Quais são as possibilidades do primeiro ser uma “retomada do ser” desse
último? E qual é a relevância dessa constatação para nossos interesses educacionais,
principalmente concernentes a uma reflexão sobre os problemas suscitados pela
Aufklärung e pela auto-educação tomadas no presente?
Embora pouco pareça com os tipos de observações aos quais Foucault chegou
com seus estudos anteriores – mais analíticos do que hipotéticos –, esse imbróglio, essa
quase contradição acerca dessa interpretação dos deslocamentos históricos, nos
possibilita fazer alguns questionamentos: se a filosofia moderna é uma retomada da
antiga, como é que se faz essa retomada? Como se investiga essa retomada? Logo,
adentramos em duas problemáticas educacionais: a da investigação histórica sobre as
ciências da educação e a das próprias práticas e racionalidades pedagógicas na
modernidade.
Para compreender melhor no que essa hipótese foucaultiana pode nos ajudar a
entender sobre essas problemáticas, ele mesmo nos traz exemplos sobre essa retomada
histórica da antiguidade pela modernidade. Com as Meditações cartesianas e a crítica da
Aufklärung kantiana (p.317), a filosofia moderna presta contas com os três aspectos
principais da prática parrésica da filosofia antiga. Descartes ao empreender um discurso
científico da verdade, interpelando a si mesmo e aos conhecimentos vigentes, ele busca
afirmar essa verdade quando diz “eu”, sustentando-a em relação às instituições
eclesiásticas, científicas e políticas de sua época. Kant, na sua crítica ao estado de
menoridade tutelado pelos experts e pela ciência, investe numa temática da autonomia e
do autogoverno como crivos conceituais para caracterizar tanto a constituição do sujeito
como a análise da história e de suas transformações.
Por esse approach histórico-filosófico e o crivo analítico da parrésia, Foucault
traz a baila dois temas relacionados entre si e caros a modernidade pedagógica: a
educação do sujeito a partir de sua relação consigo mesmo e com o outro; e um saber ou
verdade reguladora, normativa, mediadora dessas relações. Nesse sentido, o processo
pedagógico, ao longo do século XIX, vai se tornar uma espécie de pedra de toque da
cultura moderna européia, processo este compreendido como um duplo movimento
normatizador, de teores disciplinares e governamentais (AQUINO; RIBEIRO, 2009).
36
Disciplina entendida como um conjunto de práticas/saberes que exercem, pelo
acosso repetitivo, sistemático e espraiado, uma pressão individual e analítica no sujeito;
governamentalidade como um modo de entender o conjunto de tecnologias biopolíticas
que ensejam a adesão do sujeito a estas normas para um gerenciamento pessoal, um
autogoverno de si em relação a essas normas, para que se governe a vida em termos
tanto quantitativos e populacionais e quanto em qualitativos e individuais.
Acompanhados de Jorge Ramos do Ó (2003), esse duplo movimento poderia se
sumarizar no operador conceitual de governo de si mesmo.
I. 6. Pedagogia e governamentalidade: descrição de uma realidade educativa
Para o autor português, o “plano objectivo da realidade educativa” na
modernidade se configura por essa espécie de imperativo moral, operador conceitual ao
mesmo tempo em que é um mote e um problema para um modelo de conduta: o
governo de si mesmo, um modelo de conduta articulado pelo princípio de “autodomínio
a partir da confissão” da verdade sobre si. A tecnologia confessional, alastrada pelo
pastorado religioso e adotada na modernidade como prática pedagógica comum, permite
ao sujeito manter consigo mesmo uma relação de observador, de examinador, a fim de
que suas experiências psicológicas e sociais se regulem com a norma de conduta
vigente. Nesse princípio desenvolve-se boa parte das investidas da educação tornada
ciência pedagógica entre o XVIII e o XIX, cujas práticas eram apoiadas pelas
intrincadas explicações sobre a essência e a fisiologia do ser humano. Definida como
livre e autônoma por boa dos cientistas da educação, o problema conferido a essa
ciência por filósofos como que preocupados – de Kant à Piaget – não só em estabelecer
um projeto conciso e eficaz para o ser humano, mas também em estabelecer um tipo de
conduta moral perfeita, uma relação ética consigo mesmo a fim de que essa capacidade
de se dar as próprias leis convergisse para o imperativo moral da época.
Segundo Ramos do Ó, “desde finais de Oitocentos”, as instituições escolares
passaram “a constituir mais um local em que toda a racionalidade punitiva foi
desaparecendo para dar lugar a um tipo de sujeito que deveria fazer valer sua liberdade
de escolha e colocar no centro da sua relação com os outros e consigo a matéria ética”
37
(Ó, 2003, p.716). O espaço escolar, bem como a racionalidade pedagógica, entaleçam-
se na constituição de um “espaço de condução da conduta individual”.
Parece-nos que todas essas problemáticas educacionais em torno do mestre, da
ética de si e do projeto formativo para o homem dito moderno, vistas pela chave da
governamentalidade15
como investigação e reflexão histórica sobre as artes e
racionalidades da condução da conduta individual, flertam com essa retomada da
filosofia antiga pela moderna. Se a primeira foi caracterizada como parrésica, como um
modo de efetuar um discurso no próprio âmbito da vida, como uma forma de vida cuja
afirmação estaria em relação direta com o poder enquanto um questionamento infinito
dos modos de vida vigentes, por esse viés governamental, as práticas escolares não
seriam evidencias dessa retomada? Ou antes, essa apropriação, essa realocação da ideia
de governo de si mesmo e de autodomínio, característica da filosofia antiga e que se
institucionaliza mais intensamente no século XIX, figuraria entre outras ocorridas nessa
mesma época?
Esse recorte histórico do século XIX nos interessa exatamente para
problematizar essa hipótese foucaultiana da retomada, mais precisamente com relação
ao tema do governo e do autogoverno ou de uma educação em vista de uma
racionalidade de governar a si mesmo.
Nesse tipo de abordagem educacional, como descreveu Ramos do Ó, a alma se
torna preocupação central, não só dos especialistas pedagógicos, como do próprio
sujeito da educação, sendo, mormente, constituído enquanto capaz de se “corrigir,
purificar e salvar”. Essa dimensão ética, constitutiva do sujeito, pela qual ele se dá as
regras morais de seu proceder ético, toca diretamente no que concerne aos
procedimentos de autoformação ou auto-educação desenvolvidos ao longo desse século.
A auto-educação seria, então, um processo pelo qual se poderia retornar àquelas duas
primeiras problemáticas: a da educação para a emancipação e a da importância da
dimensão ética para a educação.
15
“Gostaria de fazer uma história da organização do saber tanto no que concerne à dominação quanto no
que concerne ao si. Por exemplo, estudei a loucura não em função dos critérios das ciências formais, mas
a fim de mostrar qual tipo de gestão dos indivíduos no interior e no exterior dos manicômios esse
estranho discurso tornou possível. Chamo ‘governamentalidade’ ao encontro entre as técnicas de
dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si.” (FOUCAULT, 1994) Tradução por Wanderson
Flor do Nascimento e Karla Neves.
38
I. 7. Porque Nietzsche?
A partir desse recorte do cenário educacional no século XIX, principalmente do
diz respeito à auto-educação e a dimensão ética do sujeito na pedagogia, visto sob a
problemática da governamentalidade foucaultiana, queremos entender que Friedrich
Nietzsche seja um valioso arquivo histórico para se pensar essa questão do governo e da
auto-educação em vias dos limites do saber e da prática educacionais e sob a
perspectiva da investigação histórica. Ao longo de suas obras, Nietzsche não só tocou e
desenvolveu essas duas problemáticas, como se tornou, de fato, um paradigma para se
pensar nos modos como o “mundo ocidental nos fez a todos transformar num certo tipo
de pessoa” (Ó, 2003, p. 717).
Nossa proposta de trabalho procedeu-se, então, como uma aproximação à
temática da auto-educação em Nietzsche a partir de uma proposição nossa com respeito
a uma plataforma pragmático-analítica: a escrita. Ao passar boa parte de sua vida
escrevendo, Nietzsche fez diversos usos e experimentou procedimentos de leitura e
escrita através dos quais pôde desenvolver uma filosofia singular, cujas abordagens
teórico-analíticas se desdobraram principalmente sobre as práticas pelas quais o sujeito
se constitui – a ver, procedimentos ascéticos, de autodomínio e auto-educação – e sobre
a necessidade mesma de, nesse processo ascético de auto-educação, um certo tipo de
investigação histórico-moral fosse empreendida.
O trabalho da academia, o trabalho da escola, o trabalho docente e discente, os
atores e os operários da educação. Trabalhos que comumente são pensados como
edificantes do homem, trabalhos que garantem ao homem sua existência. De fato, assim
o é. Mas é curioso ainda ver uma série de instituições pedagógicas se proliferarem sob a
sombra de crenças arbitrárias, definitivas, de uma esperança última de que alguma
educação possa garantir nosso “sucesso” na vida, nossa “felicidade”, nossa “liberdade”
– até mesmo nossa “salvação”.
De par da leitura das obras de Friedrich Nietzsche, fica ainda mais curioso
atentar para a construção dessas crenças pedagógicas sem levar em conta um olhar
crítico sobre o imaginário no qual elas se formam, sobre a proliferação de discursos, o
estabelecimento de hábitos, a invenção de juízos e práticas para a intervenção na vida
dos homens sob a justificativa de serem fundados por saberes e pensamentos estudados,
analisados, articulados, enfim, verdadeiros.
O que perguntar, então, para nosso presente pedagógico, nosso presente escolar?
39
Sobre sua arbitrariedade, sobre sua violência? Sobre sua tentativa de universalização, de
unidimensionalização? Conceitos talvez demasiado complexos e vagos. Nossa questão
não é versar sobre qual é o projeto pedagógico ideal para se formar um “determinado”
sujeito. Nossa questão também não será perguntar se haveria aí, nesse contexto do XIX,
outras alternativas para um projeto libertário para a educação do ser humano. O próprio
conceito de um projeto pedagógico, de uma articulação imaginária e racional de projetar
o devir do homem ou da humanidade, de conduzir o homem a seu fim último e
necessário, já não se basearia numa crença e numa esperança, numa construção
arbitrária e histórica, num conflito de interesses, perpetuado pela e na visão histórica e
cultural de um vencedor? Não haveria, então, outros modos de se pensar o gesto
educacional?
Mas a questão, como se disse, não é essa. A condição de arbitrariedade é sempre
tomada de antemão. É por essa noção de que toda ideia cria um arbítrio e, exatamente
porque é livre, nela se dá um juízo, um valor, um gosto; e é por ela que se começa a
pensar. É por ser arbitrária é que pode ser alterável, modificável. Tanto a história dessa
perspectiva quanto seu devir mesmo podem ser descarrilados por outra perspectiva e,
novamente, reintroduzidos na volição do acaso.
Por meio das lentes nietzscheanas, vislumbrar a produção das rupturas e
continuidades de uma cultura vigente ao longo da história – sua herança e seu porvir –,
ao mesmo tempo em que se vasculha, por meio dessa investigação histórica, a
emergência de certas saberes e práticas sobre o sujeito na contemporaneidade,
apresenta-se como um método interessante para se traçar as condições de possibilidade
do surgimento de vertentes educacionais, bem como traçar os possíveis limites com os
quais definimos o que é a educação do ser humano, hoje. Procura-se, com isso, fazer jus
à tradição crítica e criativa da Aufklärung, mais dialogando com ela do que a evitando,
na elaboração de um trabalho que aponta a uma indeterminada liberdade:
Não sei se é preciso dizer hoje que o trabalho crítico também implica
a fé nas Luzes; ele sempre implica, penso, o trabalho sobre nossos
limites, ou seja, um trabalho paciente que dá forma à impaciência da
liberdade.
(FOUCAULT, 2008b, p.351).
40
II. NIETZSCHE E EDUCAÇÃO
Quem chegou, ainda que apenas em certa medida, à liberdade
da razão, não pode sentir-se sobre a Terra se não como
andarilho – embora não como viajante em direção a um alvo
último: pois este não há.
Nietzsche, Humano, demasiado humano, 638.
Sabemos da relação que Nietzsche manteve com Platão: de admiração, de
crítica, de simpatia e de ruptura. Relação conturbada, mas fértil. Nietzsche deu seu
ultimato no Crepúsculo dos ídolos sobre o “problema de Sócrates” como um primeiro
décadent e estipulou como prerrogativa de sua tarefa a luta contra o dogmatismo das
antigas filosofias, principalmente o platonismo. A sua postura para com eles foi, de fato,
a de um imoralista com relação ao moralismo dogmático.
Em resumo, seu problema foi inserir um perspectivismo na história das criações
e das verdades humanas, das culturas e dos juízos. Nisto, consistia entrever os juízos
como uma criação humana, como um acontecimento, com sua proveniência e com sua
emergência em um determinado período e configuração de forças, numa tensão entre
acaso e necessidade. Para ele, “juízos de valor acerca da vida, contra ou a favor, nunca
podem ser verdadeiros, afinal; eles têm valor apenas como sintomas, são considerados
apenas enquanto sintomas – em si, tais juízos são bobagens.” (NIETZSCHE, 2006a: II,
2). Essa perspectiva permitiria ao historiador, ao filósofo ou ao pensador, diagnosticar
na transversal de seus pensamentos, seus ideais, seus valores, seus juízos, vislumbrando
as suas aparições ao longo da história e a pluralidade dos mesmos.
Não há apenas uma única perspectiva sobre a “realidade”. Isso não implica num
relativismo, pois não é a mesma “realidade” para todos. Quiçá implique que a
“realidade” talvez não seja composta por todas as perspectivas reunidas, como talvez
pensasse Heidegger com respeito a história da totalidade da verdade. Mas a pluralidade
de perspectivas, explicações, imagens e práticas sobre e pela “realidade”, implica, sim,
que há algo de incognoscível nisso que chamamos de “realidade”. Ou antes, a
“realidade” é uma fábula inventada por muitos. O acontecimento, aquilo sobre o que
41
dizemos e pensamos, então, talvez nos seja eternamente desconhecido, afinal. Talvez,
para Nietzsche, o conhecimento, a moral, o juízo, exatamente por serem uma invenção,
uma ilusão sobre a realidade, sua relação para com ela não seja a de identidade, mas de
uma outra ordem.
A incognoscibilidade da realidade para o homem, se não é atestada
completamente por Nietzsche, ao menos, ele a cogita na sua desconfia às ciências, ao
dizer da incompletude do conhecimento humano com relação à totalidade dos
acontecimentos. Há potências “escondidas e proibidas” que, longe de afastarem o
homem do conhecimento, a exploração, a experimentação dessas potências tidas como
vis, ardilosas, falaciosas – na criação, na promessa, na miragem, na sede, na fome – são
condições de possibilidade, um prelúdio para toda ciência e entendimento16
:
[...] o que é intelligere, em última instância, senão a forma na qual
justamente aquelas três coisas tornam-se de uma só vez sensíveis para
nós [...] um resultado dos diferentes e contraditórios impulsos de
querer zombar, lamentar, maldizer? (NIETZSCHE, 2007: 333)
A possibilidade de entendimento e de conhecimento, se compreendidos como
algo da ordem da identidade com a realidade, como a consciência de algo tornado
evidente, ignorando tudo aquilo que inconsciente ou imperceptível acontece, é um tipo
de pensamento “menos vigoroso (...) suave e tranquilo” (2007: 333): ele pode se
enganar mais vezes com respeito a natureza do próprio conhecer, pois não percebe a
incompletude, a distorção do entendido e do conhecido com relação ao acontecimento.
Essa incompletude, além do mais, não designa apenas o nosso conhecimento com
relação à natureza e ao mundo, mas com relação a nós mesmos: “Por mais longe que
alguém leve seu autoconhecimento, nada pode ser mais incompleto do que sua imagem
da totalidade dos impulsos que constituem seu ser.” (NIETZSCHE, 2008a: 119)17
.
Pode ser, contudo, que nessa relação de incompletude e de alteridade entre
conhecimento e acontecimento, entre conhecimento e ser, algo aconteça. A constituição
do conhecimento humano, os saberes que sustentam modos de vida e concepções de
mundo, mais do que inatos e estáticos, produzem-se por relações de mútua alteridade
entre os impulsos que o constituem e o jogo de organização, de apropriação de outros
16
Sobre a questão da ciência e do conhecimento, cf., por exemplo, NIETZSCHE, 2007, aforismos 12,
300, 333. 17
Cf. NIETZSCHE, 2088d, Cap. I.
42
conhecimentos, errando e reelaborando sensações, simultaneamente sendo selecionados
e constituindo tal princípio seletivo como um gosto. Saber e sabor. O saber como a
composição de um gosto pelas coisas, para aquilo que nutre a vida, que faz bem a vida,
muitas vezes, apesar do “gosto” vigente, saboreando os contrários e desvios
(NIETZSCHE, 2008c: 100). Saber como sabor enquanto esse conjunto de artifícios e
estratégias sobre a vida, sendo constituído exatamente por uma percepção que seleciona,
por uma constante elaboração dos afetos e pela seleção dos acontecimentos a fim de
garantir sua saúde. Vemos Nietzsche levar, por diversas imagens e transposições de
termos, essa relação entre conhecimento e fisiologia, entre educação e farmacologia,
num processo análogo entre constituição do espírito e do corpo, como processos de um
mesmo enredamento inventivo: o da vida. Pois, afinal de contas, “o que são, então,
nossas vivências? São muito mais aquilo que nelas pomos do que o que nelas se acha!
Ou deveríamos até dizer que nelas não se acha nada? Que viver é inventar?”
(NIETZSCHE, 2008a: 119).
A questão da invenção ou da novidade não é tanto o ineditismo, mas a da
diferença, por menor que seja. É esse o efeito do perspectivismo nietzscheano numa
investigação histórica. Não é tanto utilizar antigos modos de vida para retificá-los na
atualidade, mas simplesmente poder pensar que algo já foi diferente. Inserir o
conhecimento humano no seu devir histórico, enfim, implica que não há um valor
absoluto da vida em si mesma – “o valor da vida não pode ser estimado” (NIETZSCHE,
2006a: II, 2).
A querela com relação ao status do conhecimento na ordem das coisas, dos
limites do conhecimento e sua função para o homem é antiga. A questão da identidade e
da alteridade do conhecimento com relação ao mundo, aos homens, às coisas,
dependendo de sua formulação, configura toda uma hierarquia moral de valores para se
estudar e pensar os modos de vida humanos, para se problematizar e praticar formas de
vida. Pensar o “valor dos valores”: esse perspectivismo, essa reflexão histórica que visa
os deslocamentos pelos quais o ser humano altera e reinventa a si mesmo e o status do
conhecimento, talvez pudesse ser justificada antes mesmo de Nietzsche:
Não é, afinal, o que se passa com cada ser vivo, a quem
reconhecemos, enquanto vive, uma existência e uma identidade
próprias? Sim, nós dizemos que é o mesmo indivíduo desde a infância
até a velhice, e contudo jamais retém as mesmas características, seja
nos cabelos, na carne, nos ossos, no sangue, em todo seu corpo: ora
43
nasce continuamente para umas, ora morre para outras... Mas além do
corpo, também a alma é afectada: estados de espírito, hábitos,
opiniões, desejos, prazeres, alegrias, receios – nenhuma destas coisas
permanece em cada indivíduo; umas nascem, outras desaparecem... e
ainda o mais extraordinário é o que se passa com os nossos
conhecimentos: assim surgem, assim se vão, de tal sorte que nunca
somos os mesmos no que respeita aos nossos conhecimentos, pois
cada um deles, considerado em si, está sujeito a idêntica mudança.
(PLATÃO, 2006: 207d-e)
Talvez aqui, nessa eterna “mudança” do corpo, da alma e do conhecimento,
também residisse essa possibilidade de pensar sob tal “liberdade da razão”, que,
independente de sua identidade para com a natureza, pudesse pensá-la diferentemente. E
é por essa liberdade da razão que Nietzsche vai refletir, quiçá, sobre o itinerário da
formação do ser humano.
Apesar da problemática educacional alemã no XIX girar em torno da formação
(Bildung), da forma (Bild), disso que poderia ser a concepção do homem ideal e de um
projeto formativo, que versa para o ser humano um itinerário rígido e ao mesmo tempo
abrangente para se chegar a esta forma, a este “homem”, Nietzsche, mesmo após ter
tomado partido dessa perspectiva, tendo ele mesmo seu ideal de homem e de formação,
rompe com a possibilidade de uma ciência objetiva do homem e com a racionalidade
projetista de um método único e específico para alguém se tornar o que é.
Há muita coisa aí. Na imagem do andarilho, do escrever andando, do escrever e
do pensar dançando; do mover-se leve, dos hábitos breves, dos destinos temporários –
enfim, nessa imagem, que não é um fim último, tampouco um projeto de percurso, diz
muito sobre o que é essa vida em formação ou a formação da vida para o filósofo
alemão. Há algo aí, talvez, como uma ética da educação do andarilho18
: alguns
procedimentos, alguns princípios, por mais que transitórios, desse que se desloca, que
não pode deixar de se deslocar, por mais que pare e descanse de tempos em tempos. Ele
precisa sempre se pôr a caminho de, em “peregrinação ao estrangeiro” (NIETZSCHE,
2008c: Prólogo, 5), mas não para pregar alguma palavra, caminho ou moral, tal como
18
Com respeito a isso, é curioso ler as Confissões, bem como seus últimos escritos de vida, Os devaneios
do caminhante solitário de Jean Jacques Rousseau como documentos dessa arte de governar a si mesmo,
na aplicação dessa técnica da confissão por meio da escrita como governo de sua própria conduta.
Valores, conceitos e verdades, de ciências e hábitos mais ou menos vigentes, operam não só na instância
da maneira como se narra a si próprio e sua subjetividade, como operam também enquanto crivos de
avaliação de si mesmo, de quão distante um sujeito está desses modelos culturais de sujeitos, quão
distante e para onde deve rumar sua formação. Traçar as relações entre esse andarilho rousseauniano e o
andarilho nietzscheano, os valores, os hábitos e as práticas pelas quais eles se conduzem, poderá nos
trazer interessantes questões e clivagens dos pensamentos ético-educativos entre os séculos XVIII e XIX.
44
um homem religioso. Ele quer ver outras paisagens, ele quer encontrar outras pessoas,
outros costumes, sente-se sozinho nesse mundo que inventa para si próprio e quer
interpelar o outro, como um desconhecido, um cínico, um errante, a favor daquilo que
têm em comum ou da diferença que os aproxima: o cultivo de um modo de vida; tão
somente, talvez, para não parar e continuar andando, aprendendo a andar. Voar com os
próprios pés.
II. 1. Educação: viagem ou errância?
(...) uma curiosidade por toda espécie de alheio... Seguiu-se um
longo vagar, buscar, trocar, uma aversão a todo fixar-se, a todo
rude afirmar e negar; e igualmente uma dietética e disciplina
que pretendeu tornar o mais fácil possível, para o espírito,
correr longe, voar alto, sobretudo prosseguir voando.
Nietzsche, Humano, Demasiado Humano II, Prólogo, 5.
Um importante autor e ator da educação contemporânea nos traz, talvez, o
disparador dessa problemática educacional que procuraremos elucidar, a partir de
Nietzsche, com respeito às possíveis imagens, às possíveis racionalidades de um
processo de educação.
Numa palestra, intitulada Pedagogia: a terceira margem do rio19
, Antônio
Nóvoa, reitor da Universidade de Lisboa, proferiu um exuberante discurso sobre o
porvir filosófico e pragmático da educação, procurando, também ele, sair das vias
dicotômicas de análise, interpretação e crítica das instituições e práticas educativas. Seu
argumento era de que a educação, não sendo nem uma margem, nem outra, é o próprio
rio, produz-se em seu próprio movimento – deve-se fazer nas confluências de seu
próprio curso.
Na terceira e última parte de sua fala, Nóvoa frisou ser importante para a ciência
e a prática pedagógica compreenderem esse movimento – o processo pedagógico –
como uma viagem. A educação como uma viagem e com uma destinação. Uma viagem
19
Palestra realizada no Auditório da Escola de Aplicação, Faculdade de Educação da USP, no dia
20/05/11. Por ventura, voltaremos a nos referir a ela no nosso texto como NÓVOA, 2011.
45
que partiria de uma ideia de futuro (utópica: civilizada, emancipada, etc.) e uma
concepção dos seres (natureza: racionais, livres, etc.) que vivem hoje e que deverão
viver esse amanhã. Uma viagem com a esperança da chegada, uma viagem com a
certeza do ancoradouro. Do fim.
Antônio Nóvoa deu como personagens dessa viagem não só o aluno, aquele que
aprende, mas também aquele que ensina, o professor/a escola. Nóvoa parte do problema
da “hiper-responsabilização” do ator-espaço escolar, da inflação do professor/escola –
de suas tarefas, obrigações, objetivos. Com isso, procura chegar ao desembaraço desse
problema por meio da promoção da diversidade dos percursos educativos, pela
diminuição das responsabilidades escolares, promovendo, assim, uma espécie de
variedade institucional e curricular, com diferentes percursos, valores e técnicas, para
que teçam uma espécie de rede sócio-pedagógica. Nesse contexto, contudo, a viagem, o
processo formativo do indivíduo com uma destinação, estaria garantido: o destino de
sua natureza livre seria a própria diversificação de uma viagem formativa rumo à
liberdade social.
Apesar de ser uma apresentação breve de um discurso primoroso, percebemos
(bem ou mal) a sedução desta conjectura desenhada pelo notável conferencista
português. Delineando a educação como uma viagem, o destino possível para ela seria a
liberação curricular e des-uniformização das instituições, estipulando à liberdade
humana como paradigma de seu porvir o tão em vogue conceito de pluri ou
multiculturalidade.
Não obstante, vemos com certa desconfiança este discurso. Não muito pelo seu
conteúdo ou pelas suas propostas pragmáticas. Mas uma desconfiança fruto do modo
não só do discurso posto, mas do modo como o saber opera convicções acerca da
natureza humana e dos limites do conhecimento. Como já sabemos, tais operações
constituem, formam subjetividades, determinam regras e valores ético-morais. Tal
desconfiança é fruto dos próprios valores, já considerados “neutros”, naturalizados,
indispensáveis ao pensamento pedagógico. A ver, ao pensar uma natureza livre, o ser
humano já projeta inúmeros processos formativos pelos quais ele deve se tornar livre
(... custe o que custar?). Nesse jogo do conhecimento, nessa tensão entre modos de vida
passados, presentes e futuros, a dimensão ética do desejo é obliterada. Temos, então, um
regime de inteligibilidade (de saber) de definição-projeção fundamentada por uma
crença acerca de um conhecimento-ação. Este regime de inteligibilidade, regime que
produz nossa forma de perceber e compreender as coisas opera, muito embora, sobre a
46
crença de que ao conhecermos algo, somos capazes de realizá-lo (um objeto pela
técnica, uma ação por uma regra moral)20
. A novo título de hipótese, tal regime e crença
seriam perpetuados pelas noções de sujeito em formação e pelos processos os quais ele
deve passar para se tornar um. A escola foi e é uma grande reprodutora e difusora desse
regime: por um lado, fazendo-nos crer que o conhecimento é capaz de, senão salvar-
nos, conformar a realidade à nossa imagem e semelhança21
; por outro, fazendo-nos
governar a nós mesmos por meio de uma tecnologia pedagógica da verdade e da
adequação ética à essa verdade.
É nesse sentido – imaginando uma educação enquanto uma viagem, uma escola
como algum lugar que nos leva ao conhecimento, não obstante, sempre em movimento,
mas sempre, como porto salvador – que pensamos os perigos mesmos de um projeto
formativo salvacionista racional. Ao invés de investir nossos esforços críticos sobre o
próprio conhecimento, sobre os próprios discursos verdadeiros, analisando sua força de
verdade e coerção, não percebemos que a própria constituição do conhecimento é uma
senda de erros, um combate entre forças, interpretações, verdades e ilusões, talvez, sem
fim:
O mundo tornou-se novamente “infinito” para nós: na medida em que
não podemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre infinitas
interpretações. (NIETZSCHE, 2007: 374).
II. 2. 1886, revisão de um programa escritural ético-farmacopaico
Eu espero ainda que um médico filosófico, no sentido
excepcional do termo – alguém que persiga o problema da
saúde geral de um povo, uma época, de uma raça, da
humanidade –, tenha futuramente a coragem de levar ao cúmulo
a minha suspeita e de arriscar a seguinte afirmação: em todo o
filosofar, até o momento, a questão não foi absolutamente a
“verdade”, mas algo diferente, como saúde, futuro, poder,
crescimento, vida...
Nietzsche, A gaia ciência, Prólogo, 2. 20
Pretendemos elaborar melhor a especificidade operacional desse regime de inteligibilidade (nem tão)
moderno enquanto um “sistema de crenças”, tal como posto acima, assim como nos fez pensar Nietzsche
(2008a: 116). 21
Apesar de difícil confirmação, vale lembrar que a raiz da palavra Bildung é o termo Bild, que quer
dizer, geralmente, figura ou imagem; a substantivação deste termo indicaria um processo, uma ação pelo
qual o indivíduo torna-se à imagem e semelhança do que se projetou para si.
47
O ano de 1886 deve ter sido para o autor alemão como o atestado pelo qual se
compreende que não se sai impune do que se viveu – de suas escolhas, de suas
experiências, de seus pensamentos. Talvez não seja fácil calcular quanto sofrimento, a
que custo Nietzsche pode ter tido acesso ao seu modo de vida, acesso aos seus
remédios, às suas ilusões – a sua verdade. Não deve ter sido fácil de calculá-lo para ele
mesmo, tamanho o investimento de si mesmo na vida e na obra. Talvez acontecimentos
biográficos e passagens escritas digam muito pouco para designar as coincidências e
sinais, as penúrias, os alentos e os revezes, entre o caos e a vontade, que se sucederam
para Nietzsche acumular sofrimentos, paixões, forças, entendimentos, ilusões,
desilusões, revigorando, a seu próprio custo, sua disposição de pensamento, necessária
para continuar impingindo uma conduta singular de pensamento e de vida
(NIETZSCHE, 2003, p.12).
Não é uma questão de tornar esse ano 1886, esse período da vida de Nietzsche
como algo emblemático, previsível ou enigmático. Tampouco diríamos que foi como
um momento de reviravolta, como algum ponto de inflexão, ponto de ruptura ou de
superação de sua obra ou um dos tantos ao longo de sua obra. Por mais que pudéssemos
fazer interessantes conexões entre todos os acontecimentos desse período, em termos de
violência e importância para sua obra, para seu estranho ensinamento e saúde, partindo
de cada um desses predicados, talvez formular as razões dessa educação empreendida a
marteladas seja contrário mesmo ao que Nietzsche propôs fazer consigo e com sua
filosofia.
1886 é o ano que, passando boa parte dos últimos dois anos viajando, ora como
solitário, ora em companhia de poucos amigos, tendo escrito boa parte de seus mais
importantes livros e tendo vivido intensas paixões, para ele mesmo, estava tão somente
se recuperando das enfermidades corporais, éticas e psíquicas que o acometiam há
alguns anos. Em meados de 1885, vivendo somente para escrever (HOLLINGDALE,
1999, p.172), terminava de redigir as últimas partes de seu Zaratustra, esboçando aquilo
que chamou de Grande Saúde, consumando seu percurso de “cura espiritual”
(NIETZSCHE, 2008b-c: Prólogo, 2) que já durava mais de oito anos. Cura espiritual
que começara exatamente nos anos de 1878 a 1880, período das duas partes do
Humano, demasiado humano. Serão para os livros que escrevera até então, a partir
desse último, que em 1886 ele redigirá novos prólogos para os mesmos, numa maneira
48
de reafirmar e constatar aquilo que tinha constituído para si mesmo: um modo de
conduta, um método de pensamento e uma investigação científica – uma cura para os
idealismos, romantismos e niilismos segundo a perspectiva da história genealógica.
Pode-se ler nesses livros de 1878 a 1886 (a par da Genealogia da moral e do
Zaratustra apesar da importância dessas duas obras) o testemunho dessa espécie de
guinada filosófica, dessa superação de si mesmo, daquilo que pensava e via sobre o
mundo, a qual reverberará na sua concepção de educação. A arte e a filosofia,
entendidas antes como redentoras do ser humano, como aquelas que garantiriam, de
uma vez por todas, um modo de vida nobre e suportável, passam a ser vistas com
suspeita e ironia. Poderíamos arriscar dizer – e não é à toa que Nietzsche retoma isso no
prólogo tardio do Humano – que nesses anos, já a partir de 1878, cultivava-se um ensejo
de escrutinar e talhar, de olhar com mais frieza e malicia para as valorações e as
produções culturais de sua época; olhar cortante sobre os modos mesmos pelos quais o
ser humano era avaliado e talhado a ferro e fogo, a letras e disciplinas. Olhar sobre
como a vida precisa de “ilusão” e, se precisa, como é que se fabula, se a fabrica, se a
aplica.
Nietzsche entendeu que se era preciso toda uma outra fundamentação não só dos
modos como o ser humano entendia a sua cultura e suas crenças, seria preciso
remodelar as próprias práticas científicas e seus ideais, incluindo desde as ciências
naturais às humanas, culminando no problema de uma educação. Nisso consistiu a
abundância da temática não só da educação como da história, dos campos problemáticos
a serem revistos, questionando suas metodologias, seus efeitos de verdade e de poder.
Será nos dois volumes do Humano, Demasiado humano, mais precisamente no
seu segundo volume, consistindo de duas partes denominadas Opiniões e sentenças
diversas (1879) e O andarilho e sua sombra (1880), que Nietzsche passará a se deter
com mais ênfase sobre os procedimentos de escrita (escrita da história, escrita do
romance, a função da escrita para si e para o outro) voltados para a educação de si e dos
outros. São nessas duas últimas obras também, por exemplo, que ele primeiramente fará
uso de termos como Selbst-Erziehung ou Selbst-Erzogenen (2008b: 223; 2008c: 180,
267).
Àquela altura, tornara-se um problema as questões acerca da maneira como se
constituía o conhecimento, a ciência, a educação; como se constituíam as próprias
regras e a lógica da concatenação e enunciação do que era certo, instrutivo, verdadeiro,
regras baseadas muitas vezes em crenças metafísicas ou em modos irrefletidos do
49
pensamento científico e escrito. Foi também o momento das primeiras reflexões acerca
da necessidade de um filosofar histórico, tornado posteriormente numa metodologia
genealógica e a na noção de escrever com sangue, procurando fazer frente aos modos
arbitrários e ingênuos, perigosos para a vida, pelos quais os cientistas, os eruditos e os
formadores de cultura escreviam a história, a literatura, as leis, a fim de constituir um
corpus moral e epistemológico aceito e adequado do conhecimento e da formação de
suas nações e indivíduos.
Em seguida, iremos nos deter sobre alguns processos e concepções de educação
que Nietzsche explora ao longo de sua vida, envolvendo questões acerca da filosofia, da
ciência e da história. Ao mesmo tempo, Nietzsche passa a meditar mais profundamente
sobre as práticas ascéticas, na história e na sua própria experimentação, como
atividades essenciais para a formação de um pensador livre. No próximo capítulo,
focaremos a questão especificamente da escrita, a qual nos parece ser um dos temas
centrais destes prólogos e, porque não, dessas obras. Escrita entendida como um
procedimento que, nele mesmo, convergiria essas atividades: a da ciência, da história e
da filosofia, reunidas numa possível ética da prática de si mesmo. Atividades essas que,
ao nosso ver, encerrariam boa parte do que Nietzsche entende como auto-educação ou
uma “educação por si próprio”.
II. 3. Educação e dessubjetivação: da vida escolar à auto-educação
Precisa-se de educadores que sejam eles próprios educados, (...)
provados a cada momento, provados pela palavra e pelo
silêncio, de culturas maduras, tornadas doces (...)
Nietzsche, Crepúsculo dos ídolos, VIII, 5.
Com a idade de 6 anos, já tendo aprendido a ler e a escrever com sua mãe,
Nietzsche ingressa na sua primeira escola em Naumburg, cidade onde mora até o início
da juventude. Destaca-se pelas suas habilidades intelectuais e poéticas, escrevendo
desde muito cedo, o que lhe rendou algumas bolsas de estudos ao longo de sua
formação escolar e acadêmica (HOLLINGDALE, 1999). Apesar de ter uma criação
50
intimamente religiosa, vindo de uma família cujo patriarca era um pastor protestante e
cuja infância passou brincando no jardim da igreja de seu pai, Nietzsche já se interessa
pelos estudos, pelas letras e pela história antiga, tendo conseguido suas primeiras
certificações em grego e latim antes mesmo dos 10 anos.
Aos 14 anos, ingressa na tradicional e rígida escola de Pforta, onde passa seus
próximos quatro anos. É com essa idade que escreve alguns dos seus primeiros textos,
incluindo uma primeira reflexão sobre experiências do que vivera até então22
. Na
escola, sob uma doutrina “espartana” de conduta e estudos, aprofunda seu gosto pela
pesquisa, leitura e escrita e chega a organizar uma “sociedade cultural”, um grupo de
estudos literários e musicais com seus amigos, grupo que dura até a sua saída da escola.
É ao longo desses anos em Pforta que Nietzsche começa a cultivar seu interesse
pela crítica acadêmico-científica. Sua formação até então religiosa, com leituras de
textos sagrados e míticos sob um olhar ingênuo, começa a sofrer a influência de seus
estudos históricos e culturais, acentuando seu olhar cético sobre os dogmatismos da
religião e do conhecimento.
Apesar de certa aptidão para os estudos, ele não foi nenhum aluno prodígio,
tendo falhado em disciplinas como matemática e gramática. Sinais de desobediência
apareciam até em seus escritos, com os quais mantinha uma intensa relação, mantendo
desde cedo uma prática escritural, com diários e ensaios, escrevendo trabalhos escolares
e trocando diversas cartas entre amigos com comentários e sugestões de estudos.
Nesse período escolar, Hollingdale (1999, p.20) afirma que Nietzsche passa pela
primeira de uma série de mudanças comportamentais, principalmente, com relação a sua
formação e aos seus estudos. Longe de ter sido fruto de algum acontecimento religioso
ou místico, esse processo de transformação e maturação de seu caráter e de seus
interesses, de sua própria formação, se dá exatamente pela sua vivência educacional.
Vivência compreendida pelos esforços na pesquisa, na leitura, na escrita. Esforços que,
escreve em 1859, se traduzem num desejo de conhecimento em relação à cultura e à
formação cultural em geral [Bildung], muito despertado por Wilhelm Humboldt
(HOLLINGDALE, 1999, p.22).
Também no ano de 1859, Nietzsche escreve um curioso e interessante poema
que talvez nos dê pistas sobre o que já pensava com relação a um processo de formação
e à importância que dava a liberdade de pensamento. Intitulado Ohne Heimat,
22
Trataremos desses escritos de infância, Aus meinem Leben, “Sobre minha vida”, no capítulo III que
corresponde à escrita.
51
literalmente, “sem casa”, o poema faz ligações entre a ideia da ausência de moradia e a
possibilidade de deslocar-se livremente, de vagar. O final do poema é um testemunho
desse sentimento errante que Nietzsche já cultivava e, por ventura, antecipava para um
homem moderno, um “cidadão do mundo”:
(...)
Niemand darf es wagen,
Mich danach zu fragen,
Wo mein Heimat sei:
Ich bin wohl nie gebunden
An Raum und flüchtge Stunden,
Bin wie der Aar so frei!...23
O cenário inicial dessa sua vida escolar talvez nos ajude a mostrar como o
processo educacional para Nietzsche tem sido, desde cedo, um procedimento, uma
estratégia importante de construção e desconstrução de seu caráter e pensamento. Talvez
nem seja tão estranho pensar que esse disparador, esse bocejo de despertar de um sonho
dogmático, possa ter se dado na escola, sob a tutela disciplinar e acadêmica de mestres e
regras. Sua educação deve ter sido prova da necessidade dessa tensão criativa,
encontrada entre a dureza da conduta e do pensamento acadêmico-científico e a doçura
e tranquilidade de uma criação maternal e religiosa, para possibilitar o confronto com
pontos de vista, para cultivar a vontade como possibilidade de tomar uma outra
perspectiva. Tensão deveras necessária para cultivar exatamente “o julgamento rigoroso,
o julgamento prudente, o raciocínio coerente”, procurando fazer da “Ciência e Razão,
suprema força do homem” (2006b: 265). Tensão entre conhecimento e vontade,
disciplina e impertinência gerando força: um tema também recorrente nos escritos
posteriores, pois através do arco tenso de seu pensamento disparam-se flechas, suas
próprias flechas, para metas cada vez mais distantes. Pensar essa tensão, esse confronto
de estudos, valores, perspectivas, será para Nietzsche uma espécie de ocupar-se de sua
própria formação e destino.
Logo, por mais que a ideia de formação [Bildung] se constituiu como base de
seu pensamento sobre a educação, ela já carregava consigo certas dissonâncias com o
pensamento dos outros pensadores da Bildung alemã, podendo Nietzsche ser tomado
como uma espécie de contraponto, de “paradigma” mesmo, com relação a outras
23
Ninguém ousa / Me perguntar / Onde é meu lar: / Quiçá nunca fui ligado / às horas voando ou ao
espaço / Sou tão livre como a águia a voar [tradução nossa]. Cf. HOLLINGDALE, 1999, p. 22.
52
filosofias da educação, divergindo desde sua ideia de homem à concepção dinâmica e
conceitual do processo de formação desse homem.
Entretanto, esse processo já vivido – e talvez conjeturado antes de sua fase dita
madura – como algo que pertenceria à liberdade de investigação e interpretação, da
crítica do pensamento por ele mesmo, de uma suspeita para com a crença ou a verdade,
da incerteza da morada, da instabilidade do caminho, das errâncias de um destino, tal
processo iniciado longinquamente, enfim, poderia ou não desembocar no que Nietzsche
vai pensar mais tarde sobre educação e auto-educação. Mas é interessante perceber
como o filósofo alemão vai desenvolvendo tal problema da educação: da escola como o
lugar dessa tensão criativa, essa tensão como a própria tarefa da escola (NIETZSCHE,
2006b: 265), ele transita para uma intensa crítica das instituições educacionais de sua
época, culminando na expectativa de novas instituições surgirem triunfantes24
. Não
obstante, passados os anos entre 1872 e 1878, no seu duplo livro de 1879 (2008b-c),
Nietzsche vai abrir mão dessas instituições de ensino, desse espaço próprio para esse
jogo de tensão e vai instalá-lo no próprio âmbito da relação do sujeito consigo mesmo e
com o outro, bem como na relação do sujeito com a história e o conhecimento. Jogo que
vai ser principalmente realizado por meio dos procedimentos de investigação, estudo,
leitura e escrita: tensão que irá emergir através dos confrontos de perspectivas culturais
e dos modos como se abordam tais tradições culturais, tratados filosóficos, documentos
históricos, obras artísticas que serão sinais de uma espécie de modo de vida e de
valoração.
Instalado nesse âmbito entre o público e o privado, entre o ético e o político,
entre o moral e o educativo, entre as práticas de si e as normas, valores e regras
estabelecidas para uma cultura, esse jogo de tensão aproxima-se muito ao que
entendemos do processo de formação e de constituição de si esquematizado por
Nietzsche.
II. 4. Algumas notas sobre as concepções e as críticas de Nietzsche sobre o
processo constitutivo/educacional do sujeito
Mas como nos reencontrarmos a nós mesmos? Como o homem
24
Cf. As cinco conferências de 1872 (NIETZSCHE, 2000).
53
pode se conhecer? É algo obscuro e velado.
Nietzsche, Schopenhauer educador, I.
É recorrente nas obras nietzscheanas a noção de um processo de constituição
constante do modo de ser do indivíduo – processo desconhecido, nos sentidos mais
gerais das palavras25
, de formação e deformação, de crítica e crise, de reafirmação
perene. Essa noção irregular, não progressiva, pela qual o homem literalmente sofre
para se tornar esse ser que está sempre em devir, dá mais vazão à ideia de errância do
percurso do que à ideia de destino da formação, de um destino previamente formado e
último. Com efeito, embora a noção de processo possa ser útil para entender a dinâmica
de transformações pelas quais o sujeito passa na constituição psicofísica, é difícil nos
valermos unicamente da noção de formação para compreendermos esse processo.
Não querendo nos aprofundar demasiadamente na discussão das concepções e os
deslocamentos que Nietzsche realizou com respeito à educação, nos deteremos sobre
passagens mais desconhecidas, dispersas em seus livros, que tratam muitas vezes dos
modos pelos quais se dão as relações pedagógicas ou como se deveria portar com
respeito aos estudos e à sua conduta. Talvez, suas reflexões acerca da educação sejam
uma de suas contribuições mais interessantes à educação moderna – principalmente, se
fizermos releituras pausadas de seus aforismos, tentando visitar as correlações, as
justaposições, os declives e re-apropriações dos movimentos de seu pensamento na
constituição de sua visão de mundo e de si mesmo e procurando mostrar a importância
não só da disciplina e da investigação, como de uma conduta do perder-se, do
desconhecer-se, de um ser em formação tomado tanto mais por Dionísio do que por
Apolo.
Relativamente a essa dimensão da educação em Nietzsche, vale a pena a leitura
de determinados trabalhos na língua portuguesa. Destaco dois, os quais, creio, fazem
um belíssimo trabalho de recolhimento de passagens e interessantes interpretações e
questionamentos dessas perspectivas educacionais nietzscheanas. Um primeiro, do José
Fernandes Weber (2008), ocupa-se de investigar exatamente esses deslocamentos de
concepções educacionais em Nietzsche, seus diferentes processos e ideais, tocando nas
25
A ideia de processo poderia ser colocada em questão: ampliada, distorcida, redesenhada, nas suas
várias acepções ao longo dos usos e desusos, como curso, método, proceder, movimento para frente,
acontecimento, êxito, aparecer, nascer; exatamente nesses sentidos, faz-se frente à ideia de do processo
judicial, baseado numa lei externa, jurisprudente... pedagógico?
54
questões relativas às transformações do modo de educar o outro e a si mesmo e à
conduta que se deve manter consigo mesmo na possibilidade de se assegurar a liberdade
de pensamento e formação. Outro, do filósofo espanhol Jorge Larrosa (2009), propõe-
nos leituras de determinadas passagens de Nietzsche a partir de problematizações dos
ideais da educação dita iluminista, como “destino”, “formação (Bildung)”, “liberdade”,
e de certas práticas utilizadas pela pedagogia escolar, como a leitura e a escrita. Temas
disparadores que nos fariam rever, de certo modo, toda essa problemática da educação
em torno da autonomia ou da emancipação, no século XIX.
O trabalho de Larrosa problematiza, mais uma vez, a questão da emancipação e
da liberdade (LARROSA, 2009, p.69-74). Para Nietzsche, o problema da liberdade
estava um pouco mais além do que encontrá-la, defini-la, justificá-la, crendo-se livre tão
somente na segurança de uma verdade absoluta reconhecida sobre o ser e seu devir. Para
Larrosa, é mostrar que tal conhecimento não tem uma relação de identidade com o ser,
que uma verdade nada mais é do que uma perspectiva, um olhar, uma aproximação e um
uso da realidade segundo critérios muito singulares e arbitrários e que com a força e o
tempo, com o hábito e o costume, seriam assim naturalizados, acreditados e quistos
como o bem e o certo. Logo, a relação que um filósofo, que um pensador tem com o seu
presente, com o conhecimento, a cultura e a “verdade” de sua época, quando
emancipado, ou tão somente tornado espírito-livre, é uma relação de um adulto tornado
criança (LARROSA, 2009, p.93-95). Com Nietzsche, a “maturidade do homem
significa reaver a seriedade que se tinha quando criança ao brincar” (2006c: 94) – de
modo jovial e enfático; sincero e alheado; de um autoconhecimento ingênuo, mas sem
pudor, o pensador é aquele sempre muito próximo e muito distante daquilo que fazem
dele para, constantemente, mergulhar na possibilidade do que pode ser.
A concepção de Nietzsche sobre a liberdade talvez estivesse um pouco aquém
quanto além de sua época. Pode-se assinalar como cultura vigente na Europa o
movimento romântico que se exprimia sob o sentimento e a filosofia moral de um
humanismo redentor, da cultura humana como progresso e salvação. Segundo
Nietzsche, afastando-se de suas próprias teorias da juventude, nem a educação nem a
arte poderiam realmente tornar os homens livres, salvá-los, enfim, do acaso e da
necessidade.
A liberdade em Nietzsche estaria aquém porque, de fato, há uma relação sempre
problemática na sua filosofia acerca das metas, dos ideais de homem, de suas
capacidades: para Nietzsche, tudo isso é muito arbitrário e fanaticamente sustentado por
55
práticas sociais, questão que deve sempre se suspeitar ao tratar das melhores formar de
conduzir a si mesmo ou o outro. Por exemplo, a sua crítica do “livre-arbítrio” cristão e
da “vontade-livre” schopenhaueriana resume-se nas devidas implicações que há entre
liberdade e necessidade, pensamento que ele mesmo cunhou como “pessimismo
dionisíaco” (NIETZSCHE, 2007: 370).
Por sua vez, a liberdade também estaria além, pois o que restaria ao homem,
nesse sentido, é fazer parte do combate eterno entre forças, entre o comando e a
obediência, entre o instinto e o conhecimento, entre o impulso e a razão. A importância
de um livre-pensar, então, entendida como tarefa do indivíduo, é produção da
divergência: mais do que estabelecer metas, seria afirmar o “poder oposto”, sempre
recordando “que não há uma moral única determinando o que é moral”, e mostrando
“que toda moralidade que afirma exclusivamente a si própria mata muitas forças boas e
vem a sair muito cara para a humanidade” (NIETZSCHE, 2008a: 164). Como vimos,
não é uma questão relativismo ou rabugice, mas de perceber que há tantas auroras que
não brilharam ainda (NIETZSCHE, 2008a, p.8).
É na proeminência dessas divergências, desses combates, como parte do
processo educacional, compreendido no âmbito de uma ética em sua relação com a
política, com a sociedade, com o poder, que também pensamos a respeito da hipótese
foucaultiana sobre a incerta retomada da filosofia antiga pela moderna. Nessa
realocação dos problemas da verdade e do governo de si e dos outros pela verdade,
Nietzsche tomaria parte nesse problema de maneira singular.
A seguir, apresentaremos a seleção e a transcrição de algumas passagens que nos
pareceram relevantes para entender, a nosso ver, as práticas pelas quais o sujeito vai se
constituir enquanto tal, em relação a uma cultura, mas podendo, em meio a ela,
dessubjetivar-se dos processos de subjetivação vigentes. Como mote para um futuro
estudo mais aprofundado, estabelecemos alguns temas, afim de que aflorem, pela leitura
dos aforismos, as duas dimensões que nos parecem importantes para se pensar o
processo de educação em Nietzsche, ou mais precisamente, de auto-educação.
Por um lado, procuramos evidenciar a importância da dimensão da conduta, da
disciplina, do autodomínio – mesmo que esses sejam sempre vistos em perspectiva, com
certa distância para com os valores que permeiam as práticas de conduta.
Por outro lado, procuramos evidenciar a dimensão da investigação científica,
histórico-filosófica, sob a ideia do perspectivismo e do sentido histórico. Tal
investigação, que mais tarde Nietzsche definirá como genealógica, da busca dos
56
deslocamentos dos valores e das práticas, mais do que sua origem triunfal, será de suma
importância para a possibilidade de valorar, avaliar, ajuizar diferentemente. Será o
historiador, ou melhor, aquele que se valer da história, que poderá conhecer novos
horizontes através de confrontos e conexões entre os modos de pensar e viver passados,
vividos e sonhados, e assim, buscar sua própria felicidade: “um homem no qual não só o
espírito se transformou ao estudar a história, mas também o coração, e que, ao contrário
dos metafísicos, está feliz em não abrigar em si ‘uma alma imortal’, mas muitas almas
mortais” (NIETZSCHE, 2008b, 17.)
Será a história, ou melhor, o sentido histórico, o olhar sobre o devir histórico das
“coisas humanas”, que permitirá o auto-educado elaborar sua experiência dando-lhe a
possibilidade de sua própria felicidade, sua própria valoração, a invenção de sua
conduta. É a história também que possibilitará um encontro com a alteridade, com o
“haver sido” tornado outro, não obstante, encontro necessário para a saúde daqueles que
querem se auto-educar. Mais do que educador ou historiador, o pensador, já livre, seria
este que encarnaria tal condição de elaboração de si e de um conhecimento
comunicável, compreensível, mas sempre suspeito. Daí, toda a problemática acerca de
um saber educativo, de uma prática pedagógica, pautados sobre a essência e o
conhecimento absoluto, sobre a crença desse conhecimento sobre a totalidade do ser
humano e sobre a eterna teleologia de uma forma que “salva”.
A nosso ver, essas dimensões, das práticas de si e da história, esquematizadas
dessa maneira apenas para facilitar talvez a variedade de suas apropriações, bem como a
complementaridade de seus resultados para a constituição educacional do sujeito,
reúnem aquilo pelo qual Nietzsche não apenas retoma os antigos, mas aquilo em que ele
se diferencia deles e de seu próprio presente.
Há de se destacar, ainda, entre essas duas dimensões, a importância da solidão
para a educação. Solidão que, para Nietzsche, talvez seja premissa dessas práticas de
conduta e de ciência. Solidão, “selvagem mãe das paixões” (2006b: Prólogo, 3), mas
também momento propício para conhecimento e perdição de si, para o enfrentamento e,
quiçá, o desinteresse para consigo; condição que nos ameaça, mas que sempre nos lança
em outra direção. Por tudo isso, suportar a solidão seria a postura, à medida que seria o
próprio exercício e a afirmação, da errância do auto-educado.
57
II. 5. Passagens sobre educação nas obras selecionadas de Friedrich
Nietzsche
A seguir, destacaremos algumas passagens sobre o tema da educação na obra de
Nietzsche – compreendidas entre os anos 1878 à 1886, nas suas principais obras
lançadas nesse período: Humano, demasiado humano, volume I (1878) e o volume II
(Opiniões e sentenças diversas, 1879 e O andarilho e sua sombra, 1880), Aurora
(1881), A gaia ciência (1882) e Além do bem e do mal (1886). Nossa seleção foi
esquematizada da seguinte forma: 1.Educação e práticas ascéticas – onde aparecem os
aforismos sobre autodomínio, disciplina e práticas de governo, incluindo passagens
sobre os hábitos e costumes (item 1a); 2.Educação e história – os principais aforismos
sobre sentido histórico e a relação filosofia-medicina, incluindo passagens sobre a
filosofia histórica de cunho genealógico como uma farmacologia (item 2a); 3.Educação
e relação mestre-discípulo – alguns aforismos sobre o papel do professor, do educador e
suas diferentes concepções de mestria; 4.Educação e autoeducação – aforismos que
tratam especificamente do pensador como o auto-educado; 5.Educação, errância,
solidão – onde personagens como o andarilho e o eremita encarnam a ética do pensador
e da autoeducação.
A essa seleção, poderíamos perguntar: quais são as práticas, os hábitos, como se
deve cultivar a si próprio? Como se deve estudar e olhar para a história e os
conhecimentos que fundam modos de vida humanos? De que modo devemos encarar
nossa formação, como nos encaminhamos em direção ao nosso destino?
Tal seleção dos aforismos, seguindo o critério de uma leitura aleatória aliada ao
recolhimento dos termos “educação”, “educador”, “auto-educado”, “pensador” no
índice remissivo contido na edição das obras em português, pretende servir de base para
uma leitura não separada da abrangência dos temas que Nietzsche alcança com esses
termos, mas permitindo dar maior importância a certas correlações que passam as vezes
desapercebidas na miríade de seus escritos fragmentários.
A ordem dos aforismos seguirá uma sequência intuitiva, tentando nutrir um
encadeamento entre suas principais ideias, arriscando expor, por esse encadeamento,
algumas evidências desse processo de constituição, de formação, de maturação do
sujeito, mas evitando estabelecer qualquer forma única ou definitiva desse processo.
Nossa intenção será a de criar, sobretudo, uma leitura fluída desses aforismos por meio
de uma contiguidade artificial mediada pela semelhança dos temas abarcados.
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Está claro que os temas que Nietzsche aborda em seus aforismos, bem como
suas possíveis reverberações problemáticas, extrapolam em muito os temas aqui
selecionados neste trabalho. Os títulos que encabeçam estes aforismos, bem como no
próximo capítulo, procurarão tão somente trazer indicações de ideias e problemas que
nos interessavam no momento. Eles não eliminam, mas tão somente alardeiam as tantas
outras conexões que se poderia fazer por esses aforismos, ainda no tocante aos temas da
educação, da história ou da escrita ou outros.
Utilizamos as traduções de Paulo César de Souza para esta seleção de aforismos,
excetuando duas referências em espanhol, de German Cano (NIETZSCHE, 2010) e
Andrés Sánchez Pascual (NIETZSCHE, 2009). Os aforismos serão antecedidos pelas
suas respectivas numerações junto às abreviações empregadas para referência às obras,
que são as seguintes:
[MA] Menschliches, Allzumenschliches (Humano, demasiado humano I)
[VM] Vermischte Meinungen und Sprüche (Opiniões e sentenças diversas)
[WS] Der Wanderer und sein Schatten (O andarilho e sua sombra)
[M] Morgenröthe (Aurora)
[FW] Die fröhliche Wissenschaft (A gaia ciência)
[FWS] «Scherz, List und Rache» (“Brincadeira, astúcia e vingança”, contido no FW)
[JGB] Jenseits von Gut und Böse (Além do bem e do mal)
[Za] Also sprach Zarathustra (Assim falou Zaratustra)
Após cada aforismo, a medida do possível, tentou-se estabelecer a relação com
outros aforismos que o respondem, que o complementam ou que o contradizem. Apesar
da desordenação, facilita-se uma leitura circular de uma ordem singular entre os
aforismos.
* * *
1. Educação e práticas ascéticas: autodomínio, disciplina, governo
M 181. Governar. – Uns governam por prazer em governar; outros, para
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não serem governados: – para estes, é apenas o menor de dois males.
WS 305. A ginástica mais necessária. – Devido à ausência de autocontrole
nas pequenas coisas, esfarela-se a capacidade para o grande autocontrole.
Cada dia em que, ao menos uma vez, não nos privamos de algo pequeno, é
mal aproveitado e um perigo para o dia seguinte: essa ginástica é
indispensável, quando se quer manter a alegria de ser senhor de si.
FW 305. Autodomínio. – Esses mestres da moral que acima e antes de tudo
recomendam ao ser humano que tenha poder sobre si mesmo, acarretam-lhe
assim uma doença peculiar: uma constante irritabilidade para com todas as
emoções e inclinações naturais e uma espécie de comichão. Não importa o
que venha a empurrar, puxar, atrair, impelir esse homem irritável, partindo
de dentro ou de fora –, sempre lhe parece então que o seu autodomínio corre
perigo: ele não pode mais confiar-se a nenhum instinto, a nenhum bater de
asas, e fica permanentemente em atitude de defesa, armado contra si, de
olhar agudo e desconfiado, perene guardião do castelo em que se
transformou. Sim, ele pode tornar-se grande desse modo! Mas como ficou
insuportável para os outros, difícil para si mesmo, empobrecido e afastado
das mais belas casualidades da alma! E também de toda nova instrução!
Pois é preciso saber ocasionalmente perder-se, quando queremos aprender
algo das coisas que nós próprios não somos. [cf. MA 257, FW 306]
M 251. Estoicamente. – Há uma jovialidade peculiar ao estóico, quando se
sente limitado pelo cerimonial que ele mesmo estabeleceu para sua conduta;
então ele frui a si mesmo como dominador.
JGB 158. Ao nosso impulso mais forte, o tirano em nós, submete-se não
apenas nossa razão, mas também nossa consciência.
MA 395. Ensinando a mandar. – Por meio da educação deve-se ensinar as
crianças de famílias modestas a mandar, e as outras crianças a obedecer.
VM 191. Pró e contra necessários. – Quem não compreendeu que todo
grande homem deve ser não somente apoiado, mas também, para benefício
geral, combatido, certamente é ainda uma grande criança – ou também um
grande homem.
WS 318. Indícios de liberdade e não-liberdade. – Satisfazer suas
necessidades tanto quanto possível sozinho, embora imperfeitamente, eis a
orientação para a liberdade do espírito e da pessoa. Deixar que muitas
necessidades suas sejam satisfeitas, também as supérfluas, e tão
perfeitamente quanto for possível – isso educa para a não-liberdade. O
sofista Hípias, o qual tudo o que carregava, por dentro e por fora, havia
adquirido ou feito ele próprio, corresponde assim à orientação para o
máximo de liberdade do espírito e da pessoa. Pouco importa que não seja
tudo perfeitamente trabalhado: o orgulho remenda as partes defeituosas.
M 397. Educação. – A educação é um prosseguimento da geração e, com
freqüência, uma espécie de embelezamento posterior da mesma.
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JGB 188. Toda moral é, em contraposição ao laisser aller [“deixar ir”], um
pouco de tirania contra a “natureza”, e também contra a “razão”: mas isso
ainda não constitui objeção a ela, caso contrário se teria de proibir sempre, a
partir de alguma moral, toda espécie de tirania e desrazão. O essencial e
inestimável em toda moral é o fato de ela ser uma demorada coerção: para
compreender o estoicismo ou Port-Royal, ou o puritanismo, recorde-se sob
que coerção toda língua obteve até hoje vigor e liberdade – a coerção
métrica, a tirania da rima e do ritmo. Quanto trabalho se deram os poetas e
oradores de cada nação! – sem excetuar alguns prosadores de hoje, um cujo
ouvido mora uma consciência implacável – “por uma tolice”, como dizem
os broncos utilitários, acreditando-se espertos –, “em submissão a leis
arbitrárias”, como dizem os anarquistas, julgando-se “livres”, e até mesmo
de espírito-livre. Mas o fato curioso é que tudo o que há e houve de
liberdade, finura, dança, arrojo e segurança magistral sobre a Terra, seja no
próprio pensar, seja no governar, ou no falar e convencer, tanto nas artes
como nos costumes, desenvolveu-se apenas graças à “tirania de tais leis
arbitrárias”; e, com toda a seriedade, não é pequena a probabilidade de que
justamente isso seja “natureza” e “natural” – e não aquele laisser aller!
Todo artista sabe quão longe do sentimento de deixar-se levar se acha o seu
estado “mais natural”, o seu livre ordenar, pôr, dispor, criar nos momentos
de “inspiração” – e com que rigor e sutileza ele obedece então às mil leis
que troçam de toda formulação por conceitos, devido justamente à sua
natureza e precisão (comparado a elas, mesmo o conceito mais firme tem
algo de frouxo, múltiplo, equívoco –). O essencial, “no céu como na terra”,
ao que parece, é, repito, que se obedeça por muito tempo e numa direção:
daí surge com o tempo, e sempre surgiu, alguma coisa pela qual vale a pena
viver na terra, como virtude, arte, música, dança, razão, espiritualidade –
alguma coisa transfiguradora, refinada, louca e divina. A prolongada
sujeição do espírito, a desconfiada coerção na comunicação dos
pensamentos, a disciplina que se impôs o pensador, a fim de pensar sob uma
diretriz eclesiástica ou cortesã ou com pressupostos aristotélicos, a
duradoura vontade espiritual de interpretar todo acontecimento segundo um
esquema cristão, e redescobrir e justificar o Deus cristão em todo e qualquer
acaso – tudo o que há de violento, arbitrário, duro, terrível e anti-racional
nisso revelou-se como o meio através do qual o espírito europeu viu
disciplinada a sua força, sua inexorável curiosidade e sutil mobilidade:
mesmo reconhecendo a quantidade insubstituível de força e espírito que aí
teve de ser sufocada, suprimida e estragada (pois nisso, como em tudo, a
natureza se mostra como é, em toda a sua magnificência pródiga e
indiferente, que nos revolta, mas que é nobre). O fato de que por milênios os
pensadores europeus pensaram tão-somente a fim de provar algo – hoje,
bem ao contrário, para nós é suspeito todo pensador que quer “provar algo”
–, o fato de que sempre estiveram certos do que deveria resultar de suas
mais rigorosas reflexões, como outrora ocorria na astrologia asiática, ou
ainda hoje na inócua interpretação cristão-moralista que relaciona os
eventos pessoais à “glória de Deus” e “salvação da alma” – essa tirania, esse
arbítrio, essa extrema e grandiosa estupidez educou o espírito; ao que
parece, a escravidão é, no sentido mais grosseiro ou no mais sutil, o meio
indispensável também para a disciplina e cultivo [Zucht und Züchtung]
61
espiritual. Considere-se toda moral sob esse aspecto: a “natureza” nela é que
ensina a odiar o laisser aller, a liberdade excessiva, e que implanta a
necessidade de horizontes limitados, de tarefas mais imediatas – que ensina
o estreitamento das perspectivas, e em determinado sentido também a
estupidez, como condição de vida e crescimento. “Deves obedecer seja a
quem for, e por muito tempo: senão perecerás, e perderás a derradeira
estima por ti mesmo” – esse me parece ser o imperativo categórico da
natureza, o qual certamente não é “categórico”, como dele exige o velho
Kant (daí o”senão” –), nem se dirige ao indivíduo (que importa a ela o
indivíduo!), mas sim a povos, raças, eras, classes, mas sobretudo ao inteiro
bicho “homem”, a o homem.
M 48. “Conhece-te a ti mesmo” é toda a ciência. – Apenas no final do
conhecimento de todas as coisas o homem terá conhecido a si mesmo. Pois
as coisas são apenas as fronteiras do homem. [cf. VM 223]
1.a. Hábitos e costumes:
“o corpo é a Grande Razão”26
MA 427. Felicidade no casamento. – Tudo o que é habitual tece à nossa
volta uma rede de teias de aranha cada vez mais firme; e logo percebemos
que os fios se tornaram cordas e que nós nos achamos no meio, como uma
aranha que ali ficou presa e tem de se alimentar do próprio sangue. Eis por
que o espírito livre odeia todos os hábitos e regras, tudo o que é duradouro e
definitivo, eis por que sempre torna a romper, dolorosamente, a rede em
torno de si; embora sofra, em conseqüência disso, feridas inúmeras,
pequenas e grandes - pois esses fios ele tem que arrancar de si mesmo, de
seu corpo, de sua alma. Ele tem que aprender a amar, ali onde até então
odiava, e inversamente. Nada deve ser impossível para ele, nem mesmo
semear dentes de dragão no campo em que fizera transbordar as cornucópias
de sua bondade (...).
FW 295. Hábitos breves. – Eu amo os hábitos breves e os considero o meio
inestimável de vir a conhecer muitas coisas e estados, até ao fundo do que
têm de doce e de amargo; minha natureza é inteiramente predisposta para
hábitos breves, mesmo quanto às necessidades de sua saúde física e de
modo geral, até onde posso ver: do mais baixo ao mais elevado. Acredito
sempre que tal coisa me satisfará permanentemente – também o hábito
breve tem essa crença da paixão, a crença na eternidade –, e é de invejar que
eu tenha achado e reconhecido: – então ela me nutre pela manhã e à tarde e
espalha um profundo contentamento [Genügsamkeit], ao seu redor e dentro
26
Cf. NIETZSCHE, 2009, Primeira Parte, “De los despreciadores del cuerpo”. E é assim que Foucault
escreve sobre a questão de uma medicina do corpo por meio da história através do devir – “O corpo:
superfície de inscrição dos acontecimentos (enquanto a linguagem os marcam e as ideias os dissolvem),
lugar de dissociação do Eu (ao qual ele tenta atribuir a ilusão de uma unidade substancial), volume em
perpétua pulverização. A genealogia, como análise da proveniência, está, portanto, na articulação do
corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado pela história, e a história arruinando
o corpo” (FOUCAULT, 2008a, p. 265.)
62
de mim, de forma que eu nada mais desejo, sem que tenha de comparar,
desprezar ou odiar. – E um dia o seu tempo acabou: a coisa boa separa-se de
mim, não como algo que me repugna – mas pacificamente e de mim saciada
tal como eu dela, e como se nos devêssemos gratidão mútua, estendendo-
nos a mão em despedida. E algo novo já espera na porta, e igualmente a
minha crença – a indestrutível tola e sábia! – de que esse algo novo será o
certo, o certo e o derradeiro. Assim é com alimentos, pessoas, idéias,
cidades, poemas, peças musicais, doutrinas, programa do dia, modo de vida.
– Por outro lado, ódio os hábitos duradouros, penso que um tirano se me
avizinha e que meu ar fica espesso, quando os eventos se configuram de
maneira tal que hábitos duradouros parecem necessariamente resultar deles:
por exemplo, devido a um emprego, ao trato constante com as mesmas
pessoas, a uma morada fixa, uma saúde única. Sim, no mais fundo de minha
alma sinto-me grato a toda a minha doença e desgraça e a tudo imperfeito
em mim, pois tais coisas me deixam muitas portas para escapar aos hábitos
duradouros. – O mais insuportável, sem dúvida, o verdadeiramente terrível,
seria uma vida sem hábito algum, uma vida que solicitasse continuamente a
improvisação: – isto seria meu degredo e minha Sibéria. [cf. MA 427]
M 573. Mudar de pele. – A serpente que não pode mudar de pele perece.
Assim também os espíritos aos quais se impede que mudem de opinião; eles
deixam de ser espíritos.
JGB 264. Não se pode extinguir da alma de um homem o que seus
ancestrais fizeram com o maior prazer e a maior constância: se eram, por
exemplo, assíduos poupadores e criaturas de escrivaninha e caixa-forte,
modestos e burgueses nos desejos, modestos também nas virtudes; ou se
viveram habituados a dar ordens da manhã à noite, afeiçoados a
divertimentos rudes e a responsabilidades e deveres mais rudes ainda; ou se,
enfim, algumas vez sacrificaram velhos privilégios de nascimento e de
posse, para dedicar-se integralmente à sua fé – a seus “Deus” –, como seres
de consciência delicada e inexorável, que se ruborizam perante qualquer
compromisso. Não é possível que um homem não tenha no corpo as
características e predileções de seus pais e ancestrais: mesmo que as
evidências afirmem o contrário. Este é o problema da raça [Rasse]. Supondo
que se conheça algo dos pais, é permitida uma conclusão a respeito do filho:
alguma intemperança repulsiva, alguma inveja mesquinha, uma maneira
rude de sempre dar-se razão – as três coisas juntas constituíram sempre o
autêntico tipo plebeu –, têm de passar para o filho, tão seguramente como
sangue corrompido; e com ajuda da melhor educação e cultura não se
consegue mais que enganar a respeito dessa herança. – E outra coisa não
desejam hoje a educação e a cultura! Em nossa época tão popular, ou
melhor, plebéia, “educação” e “cultura” têm de ser, essencialmente, arte de
enganar – enganar quanto à origem, quanto à plebe herdada no corpo e na
alma. Um educador que hoje em dia pregasse a veracidade acima de tudo,
gritando continuamente a seus discípulos: “Sejam verazes! Sejam Naturais!
Mostrem-se como são!” – mesmo um tal ingênuo e virtuoso asno
aprenderia, após algum tempo, a tomar daquela furca [forcado] de Horácio,
para naturam expellere [expulsar a natureza]: com que resultado? “Plebe”
usque recurret [volta sempre]. [cf. MA 228]
63
2. Educação e história: sentido histórico, relação filosofia-medicina27
VM 17. Felicidade do historiador. – “Quando ouvimos os engenhosos
metafísicos e transmundanos falarem, sentimos, é verdade, que somos os
‘pobres de espírito’, mas também que nosso é o reino celeste da mudança,
com outono e primavera, inverno e verão, e deles é o mundo de trás, com
suas cinzentas, gélidas, infinitas névoas e sombras.” – Assim falou consigo
um homem, num passeio ao sol da manhã: um homem no qual não só o
espírito se transformou ao estudar a história, mas também o coração, e que,
ao contrário dos metafísicos, está feliz em não abrigar em si “uma alma
imortal”, mas muitas almas mortais.
MA 274. Um segmento de nosso Eu como objeto artístico. – É um indício
de cultura superior reter conscientemente certas fases do desenvolvimento,
que os homens menores vivenciam quase sem pensar e depois apagam da
lousa de sua alma, e fazer delas um desenho fiel: este é o gênero mais
elevado da arte pictórica, que poucos entendem. Para isto é necessário isolar
essas fases artificialmente. Os estudos históricos cultivam a qualificação
para essa pintura, pois sempre nos desafiam, ante um trecho da história, a
vida de um povo – ou de um homem –, a imaginar um horizonte bem
definido de pensamentos, uma força definida de sentimentos, o predomínio
de uns, a retirada de outros. O senso histórico [historische Sinn] consiste em
poder reconstruir rapidamente, nas ocasiões que se oferecem, tais sistemas
de pensamento e sentimento, assim como obtemos a visão de um templo a
partir de colunas e restos de paredes que ficaram de pé. Seu primeiro
resultado é compreendermos nossos semelhantes como tais sistemas e
representantes bem definidos de culturas diversas, isto é, como necessários,
mas alteráveis. E, inversamente, que podemos destacar trechos de nosso
próprio desenvolvimento e estabelecê-los como autônomos.
FW 337. A futura “humanidade”. – Se contemplo a era presente com os
olhos de uma era longínqua, não vejo no homem atual coisa mais digna de
nota do que sua característica virtude [Tugend] e doença [Krankheit],
denominada “sentido histórico” [historische Sinn]. É o começo de algo
inteiramente novo e estranho na história: dando-se a este gérmen alguns
séculos e até mais, dele poderia surgir uma planta maravilhosa, com um
odor igualmente maravilhoso, que tornasse a nossa velha Terra uma
habitação mais agradável do que foi até o momento. Nós, os homens de
agora, começamos justamente a formar, elo e elo, a cadeira de um futuro
sentimento bastante poderoso – nós mal sabemos o que estamos a fazer.
Quase temos a impressão de que não se trata de um novo sentimento, mas
do decréscimo de todos os antigos sentimentos: – o sentido histórico é ainda
algo muito pobre e frio, e muitos são dele acometidos como de uma geada,
tornando-se ainda mais pobres e frios. A outros ele parece um indício da
27
Aqui apenas tentou-se recuperar e ilustrar com algumas passagens as reflexões que Michel Foucault
apresenta em seu famoso e importante texto Nietzsche, a genealogia, a história (2008a).
64
idade que se avizinha sorrateira, e nosso planeta é por eles visto como um
doente melancólico, que escreve a história de sua juventude para esquecer o
presente. De fato, esta é uma das cores desse novo sentimento: quem é
capaz de sentir o conjunto da história humana como sua própria história
sente, numa colossal generalização, toda a mágoa [Gram] do doente que
pensa na saúde, do ancião que lembra o sonho da juventude, do amante a
quem roubaram a amada, do mártir cujo ideal foi destruído, do herói após a
batalha que nada decidiu e lhe causou ferimentos e a morte do amigo –; mas
carregar, poder carregar essa enorme soma de mágoas de toda espécie e
ainda ser o herói que, no romper do segundo dia de batalha, saúda a aurora e
a sua fortuna, como o ser que tem um horizonte de milênios à sua frente e
atrás de si, como o herdeiro de toda a nobreza do espírito passado, herdeiro
com obrigações, o mais aristocrático de todos os velhos nobres e também o
primogênito de uma nova aristocracia, cujos pares ainda nenhuma época viu
ou sonhou: tudo isso acolher em sua alma, as coisas mais antigas e mais
novas, perdas, esperanças, conquistas, vitórias da humanidade: tudo isso,
afinal, ter numa só alma e reunir num só sentimento: – isso teria de resultar
numa felicidade que até agora o ser humano não conheceu – a felicidade de
um deus pleno de poder e amor, cheio de lágrimas e risos, uma felicidade
que, tal como o sol no princípio da noite, continuamente se desfaz de sua
inesgotável riqueza e a derrama no mar, e que, tal como ele, só vem a se
sentir verdadeiramente rica quando até o mais pobre pescador pode remar
com remos de ouro! Esse divino sentimento se chamaria então –
humanidade [Menschlichkeit].
JGB 224. O sentido histórico [historische Sinn] (ou a capacidade de
perceber rapidamente a hierarquia de valorações segundo as quais um povo,
uma sociedade, um homem viveu, o “instinto divinatório” para as relações
entre essas valorações, para o relacionamento da autoridade dos valores com
a autoridade das forças atuantes): esse sentido histórico, que nós, europeus,
reivindicamos como nossa particularidade, nos foi trazido na esteira louca e
fascinante semibarbárie [Halbbarbarei] em que a mistura de classes e raças
[Stände und Rassen] mergulhou a Europa – apenas o século XIX conhece
esse sentido, enquanto seu sexto sentido. O passado de toda forma e todo
modo de vida, de culturas que então coexistiam e se superpunham, graças a
essa mistura precipita-se em nós, “almas modernas”, em toda parte nossos
instintos correm para trás, nós mesmos somos uma espécie de caos [Art
Chaos] –: afinal, como foi dito, “o espírito” [der Geist] divisa a sua
vantagem nisso. Mediante nossa semibarbárie de corpo e desejo temos
trânsito secreto por toda parte, sobretudo acessos ao labirinto das culturas
incompletas e a toda semibarbárie que jamais existiu na Terra, e na medida
em que a parte mais considerável da cultura humana foi sempre
semibarbárie, “sentido histórico” significa quase que sentido e instinto para
tudo, gosto e língua para tudo: no que logo se revela o seu caráter não-
nobre. Apreciamos novamente Homero, por exemplo: é talvez nosso avanço
mais feliz o fato de sabermos desfrutar Homero, do qual os homens de uma
cultura nobre (os franceses do século XVII, tal como Saint-Evremond,
digamos, que lhe censurou o esprit vaste [espírito vasto], e mesmo o último
eco dessa cultura, Voltaire) não souberam nem sabem se apropriar – e que
não se permitiram apreciar. O tão definido Sim e Não do seu palato
65
[Gaumens], seu pronto desgosto, sua hesitante reserva face a tudo que lhes
for estranho, seu horror à falta de gosto que há na curiosidade viva, e
sobretudo aquela má vontade que toda cultura nobre e autossuficiente
demonstra em admitir uma nova cobiça, uma insatisfação com o que é seu e
uma admiração do que é outro: tudo isso os predispõe negativamente até em
face das melhores coisas do mundo, que não são sua propriedade e não
poderiam se tornar sua presa – e nenhum sentido é mais incompreensível
para esses homens do que justamente o sentido histórico, com sua servil
curiosidade plebéia. Não é diferente com Shakesperae, essa estupenda
síntese hispano-mouro-saxã do gosto [Geschmacks], que faria um antigo
ateniense das relações de Ésquilo morrer de riso e de raiva: mas nós – nós
aceitamos, com secreta familiaridade e afeto, essa selvagem policromia,
essa miscelânea do que é mais delicado, mais grosseiro e artificial, nós o
fruímos como um refinamento da arte reservado justamente para nós, e nos
sentimos tão pouco incomodados pelos repugnantes miasmas e a
promiscuidade da ralé inglesa, em que vivem a arte e o gosto de
Shakespeare, quanto estaríamos ao andar na Chiaia de Nápoles, por
exemplo: onde seguimos nosso caminho encantados e dispostos, com todos
os sentidos alertas, embora as cloacas populares tomem conta do ar. Nós,
homens do “sentido histórico”: como tais temos nossas virtudes, não se
pode negar – somos despretensiosos, desinteressados, modestos, bravos,
plenos de auto-superação, de dedicação, muito gratos, muito pacientes e
acolhedores – e com tudo isso não somos talvez “de muito bom gosto”.
Vamos admitir finalmente: o que para nós, homens do “sentido histórico”, é
mais difícil captar, sentir, saborear, amar, o que no fundo nos encontra
prevenidos e quase hostis, é justamente o perfeito e definitivamente maduro
em toda cultura e arte, o genuinamente nobres nos homens e obras, o seu
momento de mar liso e de alciônica satisfação consigo, o quê de áureo e frio
que têm as coisas que se completaram. Talvez nossa grande virtude do
sentido histórico esteja necessariamente em oposição ao bom gosto, pelo
menos ao melhor gosto, e apenas de modo precário, hesitante, constrangido,
sejamos capazes de reproduzir em nós as pequenas, breves, excelsas
felicidades e transfigurações da vida humana, tal como aqui e ali
resplandecem: aqueles momentos e prodígios em que uma grande força
deteve-se voluntariamente ante o ilimitado [Unbegrenzten] e desmedido
[Masslosen] –, em que desfrutamos uma abundância de sutil prazer na
repentina contenção e petrificação, no permanecer e firmar-se num chão que
ainda treme. A medida [Mass] nos é estranha, confessemos a nós mesmos; a
comichão que sentimos é a do infinito [Unendlichen], imensurado
[Ungemessenen]. Como um ginete sobre o corcel em disparada, deixamos
cair as rédeas ante o infinito, nós, homens modernos, semibárbaros; e temos
a nossa bem-aventurança ali onde mais estamos – em perigo [Gefahr].
VM 223. Para onde é preciso viajar. – A direta observação de si próprio
não basta para se conhecer: necessitamos da história [Geschichte], pois o
passado continua a fluir em mil ondas dentro de nós; e nós mesmos não
somos senão o que a cada instante percebemos desse fluir. Também aí,
quando queremos descer ao rio do que aparentemente é mais nosso e mais
pessoal, vale a afirmação de Heráclito: não se entra duas vezes no mesmo
rio. – Esta é uma sabedoria já bastante repisada, sem dúvida, mas que
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permanece robusta e substancial como sempre: assim como a de que, para
entender a história, deve-se procurar os resíduos vivos das épocas históricas
– de que se deve, como fez o patriarca Heródoto, viajar pelas nações – que
são apenas estágios culturais mais antigos que se fixaram, em que podemos
nos situar –, sobretudo entre os povos denominados selvagens ou semi-
selvagens, ali onde o ser humano despiu ou ainda não vestiu a roupagem da
Europa. Mas existem igualmente uma arte e uma intenção de viagem mais
sutis, que nem sempre requerem transportar-se de um lugar a outro por
milhares de milhas. Muito provavelmente, os últimos três séculos continuam
vivendo também em nossa vizinhança, com todas as suas colorações e
refrações culturais: eles pedem apenas que sejam descobertos. Em não
poucas famílias, e mesmo indivíduos, as camadas ainda se acham
claramente superpostas: em outros casos pode haver falhas na rocha, mais
difíceis de compreender. Certamente que em regiões afastadas, em vales
montanhosos pouco visitados, em comunidades mais fechadas, uma amostra
venerável de sensibilidade mais antiga pôde se conservar mais facilmente e
deve ser rastreada: enquanto é muito pouco provável que se façam tais
descobertas em Berlim, por exemplo, onde o ser humano chega ao mundo
lixiviado e escaldado. Quem, após um longo treino nessa arte da viagem,
torna-se um Argos de cem olhos, acompanhará sua Io – seu ego, quero dizer
– por toda parte, afinal, e em Egito e Grécia, Bizâncio e Roma, França e
Alemanha, no tempo dos povos nômades ou dos sedentários, no
Renascimento e na Reforma, na pátria ou no estrangeiro, em oceano,
floresta, vegetação e montanha, novamente descobrirá as aventuras desse
ego transformado e em devir. – Assim o autoconhecimento [Selbst-
Erkenntnis] se torna oniconhecimento [All-Erkenntnis] no tocante a tudo
que passou: tal como, numa outra cadeia de raciocínio, aqui apenas aludida,
a autodeterminação [Selbst-Bestimmung] e autoeducação [Selbst-Erziehung]
dos espíritos mais livres e longividentes poderia tornar-se onideterminação
[All-Bestimmung], no tocante a toda a humanidade futura. [cf. M 48]
M 49. O novo sentimento fundamental: nossa definitiva transitoriedade. –
Antigamente buscava-se chegar ao sentimento da grandeza do homem
apontando para a sua procedência divina: isso agora é um caminho
interditado, pois à sua porta se acha o macaco, juntamente com outros
animais terríveis, e arreganha sabidamente os dentes, como que a dizer:
“Não prossigam nesta direção!”. Então se experimenta agora a direção
oposta: o caminho para onde vai a humanidade deve servir para provar sua
grandeza e afinidade com Deus. Oh, tampouco isso resulta em algo! No
final desse caminho se encontra a urna funerária do último homem e coveiro
(com a inscrição: “nihil humani a me alienum puto” [nada de humano me é
estranho]). Não importa o quanto a humanidade possa ter evoluído – e
talvez ela esteja, no fim, ainda mais baixa do que no começo! – para ela não
há transição para uma ordem mais alta, assim como a formiga e a lacrainha
não podem, no final de sua “trajetória terrestre”, alcançar o parentesco
divino e a eternidade. O tornar-se [Werden] arrasta atrás de si o haver sido
[Gewesensein]: por que haveria uma exceção a esse eterno espetáculo, uma
exceção para um pequeno astro e uma pequena espécie que o habita? Fora
com tais sentimentalismos!
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M 52. Onde estão os novos médicos da alma? – Foi através dos meios de
consolo que a vida recebeu o fundamental caráter sofredor em que hoje se
crê; a maior doença dos homens surgiu do combate a suas doenças, e os
aparentes remédios produziram, a longo prazo, algo pior do que aquilo que
deveriam eliminar. Por desconhecimento, os recursos momentaneamente
eficazes, anestesiantes e inebriantes, chamados de “consolações”, foram
tidos como os verdadeiros remédios, e nem mesmo se notou que o preço
pago por esses alívios imediatos era frequentemente uma piora geral e
profunda do mal-estar, que os doentes iriam sofrer as conseqüências da
embriaguez e, depois, a privação da embriaguez, e, depois ainda, uma
oprimente sensação geral de inquietude, agitação nervosa e indisposição.
Atingido um certo grau de doença, não havia mais recuperação – disso
cuidavam os médicos da alma, por todos reconhecidos e adorados. – Diz-se
de Schopenhauer, com razão, que ele enfim levou novamente a sério os
sofrimentos da humanidade: onde está aquele que enfim também levará a
sério os antídotos para tais sofrimentos e porá no pelourinho o inacreditável
charlatanismo com que, sob os mais belos nomes, a humanidade habituou-se
a tratar suas doenças da alma?
2.a. Genealogia e farmacopoética histórica:
“teoria dos venenos”, “ciência dos remédios”
MA 1. Química dos conceitos e sentimentos. – Em quase todos os pontos, os
problemas filosóficos são novamente formulados tal como dois mil anos
atrás: como pode algo se originar do seu oposto, por exemplo, o racional do
irracional, o sensível do morto, o lógico do ilógico, a contemplação
desinteressada do desejo cobiçoso, a vida para o próximo do egoísmo, a
verdade dos erros? Até o momento, a filosofia metafísica [metaphysische
Philosophie] superou essa dificuldade negando a gênese de um a partir do
outro, e supondo para as coisas de mais alto valor uma origem miraculosa,
diretamente do âmago e da essência da “coisa em si”. Já a filosofia histórica
[historische Philosophie], que não se pode mais conceber como distinta da
ciência natural, o mais novo dos métodos filosóficos, constatou, em certos
casos (e provavelmente chegará ao mesmo resultado em todos eles), que não
há opostos, salvo no exagero habitual da concepção popular ou metafísica, e
que na base dessa contraposição está um erro da razão: conforme sua
explicação, a rigor não existe ação altruísta nem contemplação totalmente
desinteressada; ambas são apenas sublimações, em que o elemento básico
parece ter se volatilizado e somente se revela à observação mais aguda. –
Tudo o que necessitamos, e que somente agora nos pode ser dado, graças, ao
nível atual de cada ciência, é uma química das representações e sentimentos
morais, religiosos e estéticos, assim como de todas as emoções que
experimentamos nas grandes e pequenas relações da cultura e da sociedade,
e mesmo na solidão: e se essa química levasse à conclusão de que também
nesse domínio as cores mais magníficas são obtidas de matérias vis e
mesmo desprezadas? Haveria muita gente disposta a prosseguir com essas
pesquisas? A humanidade gosta de afastar da mente as questões acerca da
origem e dos primórdios: não é preciso estar quase desumanizado, para
sentir dentro de si a tendência contrária?
68
WS 188. O transplante espiritual e físico como remédio. – As diferentes
culturas são diferentes climas espirituais, cada um dos quais é
particularmente danoso ou salutar para esse ou aquele organismo. A história
em seu conjunto, enquanto saber sobre as diferentes culturas, é a
farmacologia, mas não a ciência médica mesma. É necessário antes o
médico, que se utilize dessa farmacologia para enviar cada qual ao clima
que lhe for proveitoso – temporariamente ou para sempre. Viver no
presente, no interior de uma única cultura, não basta como prescrição geral,
aí pereceriam muitas espécies de homens extremamente úteis, que nela não
podem respirar de modo saudável. Com a história devemos lhes fornecer ar
e procurar mantê-las; também os homens das culturas que ficaram para trás
têm seu valor. – Ao lado desse tratamento dos espíritos, a humanidade deve
procurar, no tocante ao corpo, mediante uma geografia médica, descobrir
quais degenerações e enfermidades cada região da Terra ocasiona e,
inversamente, quais fatores curativos oferece; então, gradualmente, povos,
famílias e indivíduos devem ser transplantados, de forma demorada e
contínua, até que sejam dominadas as doenças físicas hereditárias. A Terra
inteira será, enfim, um conjunto de estações de saúde.
FW 113. A teoria dos venenos. – Tantas coisas têm de se reunir, para que
surja um pensamento científico; e cada uma destas forças necessárias tem de
ser isoladamente inventada, treinada, cultivada! Mas no isolamento elas
produziam efeito bem diverso do que passam a ter no interior do
pensamento científico, no qual se restringem e disciplinam mutuamente: –
elas atuavam como venenos, por exemplo, o impulso de duvidar, o impulso
de negar, o de aguardar, o de juntar, de dissolver. Muitas hecatombes
humanas ocorreram, até esses impulsos chegarem a apreender sua
coexistência e a sentir que eram todos funções de uma força organizadora
dentro de um ser humano! E como ainda está longe o tempo em que as
forças artísticas e a sabedoria prática da vida se juntarão ao pensamento
científico, em que se formará um sistema orgânico mais elevado, em relação
ao qual o erudito, o médico, o artista e o legislador, tal como agora os
conhecemos, pareceriam pobres antiguidades! [cf. VM 224, FW 300, 326,
382]
M 571. Enfermaria de campo da alma. – Qual o remédio mais eficaz? – A
vitória. [cf. VM 152, 166]
3. Educação e relação mestre-discípulo: professor, educador, mestria
VM 181. Educação distorção. – A extraordinária incerteza de todo o
sistema de ensino, em virtude da qual todo adulto tem agora a sensação de
que seu único educador [Erzieher] foi o acaso, o caráter volúvel dos
métodos e intenções pedagógicas se explica pelo fato de que agora as mais
antigas e as mais novas forças culturais são, como numa confusa assembléia
popular, mais ouvidas do que entendidas, e a todo custo querem demonstrar,
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com sua voz, seu berreiro, que ainda existem ou que já existem. Nessa
absurda algazarra os pobres mestres e educadores ficaram primeiramente
atordoados, depois calados e enfim embotados, tudo suportando e agora
deixando que seus alunos tudo suportem. Eles mesmos não são educados:
como poderiam educar? Eles mesmos não são troncos que cresceram retos,
vigorosos e plenos de seiva: quem a eles se ligar, terá de se torcer e se
curvar, e afinal se mostrar contorcido e deformado.
JGB 63. Quem é professor [Lehrer] nato considera cada coisa apenas em
relação aos seus alunos – inclusive a si mesmo.
WS 70. O mais inepto educador. – Nesse, todas as suas reais virtudes se
acham plantadas no solo do seu espírito de contradição; naquele, em sua
incapacidade de dizer “não”, em seu espírito de concordância; um terceiro
desenvolveu toda a sua moralidade a partir de seu orgulho solitário, um
quarto, de seu forte instinto de sociabilidade. Supondo agora que nesses
quatro, devido a educadores ineptos e ao acaso, as sementes das virtudes
não tivessem sido espalhadas no solo de sua natureza com a terra mais rica e
fecunda: então eles seriam criaturas sem moralidade, débeis e
desagradáveis. E quem teria sido justamente o mais inepto dos educadores e
o mau destino desses quatro indivíduos? O fanático moral, que acredita que
o bem só pode nascer do bem e crescer no bem.
WS 282. O professor, um mal necessário. – O menor número possível de
pessoas entre os espíritos produtivos e os espíritos famintos e receptivos!
Pois os mediadores falseiam quase automaticamente a nutrição que
transmitem: e querem, como pagamento por sua intermediação, muita coisa
para si, que então é tirada dos espíritos originais, produtivos: a saber,
interesse, admiração, tempo, dinheiro, etc. – Portanto: veja-se o professor
como um mal necessário, exatamente igual ao comerciante: como um mal
que devemos tornar menor possível! – Se a miséria das condições alemãs
atuais talvez tenha sua principal razão no fato de muitos quererem viver – e
viver bem – do comércio (ou seja, de procurarem diminuir ao máximo os
preços do produtos e subir ao máximo os preços para o consumidor,
beneficiando-se da máxima desvantagem de ambos): então podemos ver no
grande número de professores uma das principais razões da miséria
intelectual: por causa disso aprende-se tão pouco e tão mal. [cf. VM 181,
223, WS 180, 267]
M 447. Mestres [Meister] e alunos. – Faz parte da humanidade de um
mestre advertir seus alunos contra ele mesmo.
M 495. Nossos mestres [Lehrer]. – Quando jovens, tomamos nossos mestres
e orientadores do tempo em que vivemos e dos círculos que deparamos:
temos a irrefletida confiança de que o presente terá mestres que valem mais
para nós do que para qualquer outro, e de que os acharemos sem muito
procurar. Por essa infantilidade temos de pagar caro depois: temos de expiar
nossos mestres em nós. Então iremos buscar os orientadores certos pelo
mundo inteiro, inclusive o mundo do passado – mas talvez seja tarde
demais. E, no pior dos casos, descobrimos que eles viveram na época de
70
nossa juventude – e que então nos equivocamos.
VM 125. O círculo deve ser concluído. – Quem acompanhou uma filosofia
ou uma arte até o final de sua rota e fez a volta no final, compreende por
vivência íntima por que os mestres e professores que vieram depois se
afastaram dela, muitas vezes com expressão desdenhosa, em direção a uma
nova rota. O círculo tem de ser circunscrito – mas o indivíduo, seja ele o
maior de todos, fica solidamente no seu ponto da periferia, com implacável
expressão de tenacidade, como se o círculo não pudesse jamais ser fechado.
M 537. Mestria – A mestria é alcançada quando, na realização, não se erra
nem se hesita.
WS 267. Não há educadores [Erzieher]. – Como pensador [Denker], só se
deveria falar de educação por si próprio [Selbst-Erziehung]. A educação da
juventude por outros é ou um experimento realizado em alguém
desconhecido, incognoscível, ou uma nivelação por princípio, para adequar
o novo ser, seja qual for, aos hábitos e costumes vigentes: nos dois casos,
portanto, algo indigno do pensador, obra de pais e professores, que um
desses audazes honestos chamou de nos ennemis naturels [nossos inimigos
naturais]. – Um dia, quando há muito tempo estamos educados, segundo a
opinião do mundo, descobrimos a nós mesmos [entdeckt man sich selber]:
começa então a tarefa do pensador, é tempo de solicitar-lhe ajuda – não
como um educador, mas como um auto-educado [Selbst-Erzogenen] que
tem experiência [Erfahrung]. [cf. VM 181, 223, WS 180, 282]
4. Educação e auto-educação: pensador, auto-educado
FW 189. O pensador [Denker]. – Ele é um pensador: isto é, ele sabe como
ver as coisas de modo mais simples do que são.
M 446. Hierarquia. – Existem, em primeiro lugar, pensadores superficiais,
em segundo, pensadores profundos – aqueles que vão ao fundo de algo –,
em terceiro, pensadores radicais, que vão à raiz de algo – o que tem muito
mais valor do que ir apenas ao seu fundo! –, e, por fim, aqueles que enfiam
a cabeça no pântano: o que não deveria ser sinal de profundidade nem de
radicalidade! Estes são os nossos caros do subsolo!
JGB 290. Todo pensador profundo tem mais receio de ser compreendido de
que ser mal compreendido. Neste caso talvez sofra sua vaidade; mas
naquele sofrerá seu coração, sua simpatia, que sempre diz: “Oh, por que
desejam passar também por essas coisas?”
M 504. Os práticos. – Somos nós, pensadores, que temos de primeiramente
constatar e, se necessário, decretar o gosto agradável de todas as coisas. As
pessoas práticas terminam por adotá-lo de nós, a sua dependência em
relação a nós é inacreditavelmente grande, o mais ridículo espetáculo do
71
mundo, por mais que o desconheçam e orgulhosamente nos ignorem, a nós,
os não-práticos: eles até menosprezariam sua vida prática, se quiséssemos
menosprezá-la: – algo a que poderia nos incitar, de vez em quando, um
pequeno desejo de vingança.
WS 241. Como o pensador utiliza uma conversa. – Ainda sem ser um
espreitador, pode-se ouvir muita coisa, quando se sabe ver bem, mas
perdendo-se de vista por instantes. As pessoas não sabem utilizar uma
conversa, no entanto; aplicam demasiada atenção ao que querem dizer e
responder, enquanto o verdadeiro ouvinte se contenta, muitas vezes, em
responder de modo provisório e dizer alguma coisa como paga de cortesia,
enquanto, com sua fina memória, guarda tudo o que o outro falou,
juntamente com o tom e os gestos de como ele falou. – Na conversa
habitual, cada um acredita ser aquele que a conduz, como dois navios que
andam um ao lado do outro e aqui e ali se tocam, ambos na crença de que o
outro navio o segue ou até mesmo é rebocado.
M 530. Digressões do pensador. – Em alguns, a marcha do conjunto de seu
pensamento é rigorosa e inexoravelmente ousada, às vezes cruel consigo
mesma, mas no detalhe são brandos e flexíveis; giram dez vezes em torno
de algo, com benévola hesitação, mas acabam por seguir seu rigoroso
caminho. São rios de muitos meandros e afastados eremitérios; há locais, em
seu curso, em que a corrente brinca de esconder consigo mesma e faz para si
um breve idílio, com ilhas, árvores, grutas e cascatas: e depois prossegue,
passando por rochedos e forçando caminho pela mais dura pedra.
WS 342. Estorvos do pensador. – O pensador deve olhar calmamente para
tudo que o interrompe (estorva, como se diz) em seus pensamentos, como
um novo modelo que se oferece ao artista para posar. As interrupções são os
corvos que trazem alimento ao solitário.
FW 228. Contra os mediadores. – Quem quer mediar entre dois pensadores
decididos mostra que é medíocre: não tem olho para o que é único; enxergar
semelhanças e fabricar igualdades é característica de olhos fracos.
WS 246. O silêncio do asco. – Alguém sofre, como pensador e ser humano,
uma profunda e dolorosa transformação, e dá testemunho público disso.
Mas os ouvintes nada percebem! Ainda acham que é exatamente o mesmo!
– Essa experiência habitual já produziu asco em não poucos escritores: eles
haviam estimado exageradamente a intelectualidade humana e, ao se dar
conta do erro, juraram a si mesmos guardar silêncio.
5. Educação, errância, solidão: o andarilho e o eremita28
JGB 278. – Andarilho, quem é você? Vejo-o que anda por sua estrada, sem
desdém, sem amor, com olhar inescrutável; úmido e triste, como uma sonda 28
Cf. NIETZSCHE, 2009, “El caminante”.
72
que da profundeza volta insaciada para a luz – que a buscava lá embaixo? –,
com um peito que não suspira, com um lábio que esconde seu nojo, com
uma mão que apreende apenas devagar: quem é você? que fez você?
Descanse aqui: este lugar é hospitaleiro para com todos – recupere-se! E
quem quer que seja: que coisa lhe apetece agora? o que pode lhe servir de
conforto? Apenas diga; o que eu tiver, lhe ofereço! – “Conforto? Conforto?
Ó curioso, o que diz você! Mas, por favor, me dê – – O quê? O quê? Fale! –
“Mais uma máscara! Uma segunda máscara!”
FW 282. O andar. – Há maneiras do espírito que levam mesmo grandes
espíritos a trair sua origem plebéia ou semiplebéia: – é o andar e o passo dos
seus pensamentos que os trai; eles não sabem andar. Assim, também
Napoleão não soube, para profundo desgosto seu, andar de modo
principesco e “legítimo” em ocasiões que verdadeiramente o requeriam, tais
como grandiosas procissões de coroação: mesmo então ele era apenas o
líder de uma coluna – orgulhoso e apressado a um só tempo, e muito
cônscio disso. – Temos do que rir, ao ver esses autores que fazem rumorejar
ao seu redor as vestes pregueadas das frases: assim eles pretendem ocultar
os pés.
FW 364. Fala o eremita. – A arte de andar com pessoas reside
essencialmente na habilidade (que pressupõe um longo treino) de admitir,
ingerir uma refeição em cujo preparo não temos confiança. Desde que
cheguemos à mesa com uma fome de lobo, tudo corre facilmente (“a pior
companhia te faz sentir –”, como diz Mefistófeles); mas esta fome de lobo,
não a tema quando dela precisamos! Ah, como os semelhantes são difíceis
de digerir! Primeiro princípio: tal como num infortúnio, reunir toda a sua
coragem, pôr valentemente mãos à obra, admirar a si mesmo por isso, serrar
os dentes a aversão, engolir a náusea. Segundo princípio: “melhorar” o
semelhante com um elogio, por exemplo, de modo que ele comece a
transpirar a felicidade consigo mesmo; ou agarrar uma ponta de suas
características boas ou “interessantes” e puxá-la, até que toda a virtude
esteja de fora e possamos ocultar o semelhante em suas obras. Terceiro
princípio: auto-hipnotização. Fixar os olhos no objeto de relacionamento
como se ele fosse um botão de vidro, até que paramos de sentir prazer e
desprazer e adormecemos imperceptivelmente, ficamos hirtos, adquirimos
postura: um remédio caseiro que vem do matrimônio e da amizade,
amplamente testado, tido como indispensável, mas ainda não formulado
cientificamente. Seu nome popular é – paciência.
FW 365. O eremita fala novamente. – Também nós andamos com
“pessoas”, também nós vestimos modestamente a roupa com a qual (como a
qual) nos conhecem, nos estimam, nos procuram, e assim comparecemos em
sociedade, isto é, entre pessoas disfarçadas que não querem ser tidas como
tais; também nós fazemos como todas as máscaras prudentes,
desembaraçando-nos polidamente de toda curiosidade que não diga respeito
a nossa “roupa”. Mas existem outras formas e artimanhas de “nadar” com e
entre as pessoas: como fantasma, por exemplo – algo bastante aconselhável,
se queremos logo nos livrar delas e assustá-las. Faça-se a prova: alguém
ergue a mão para nos tocar e nada encontra. Isto assusta. Ou entramos por
73
uma porta fechada. Ou quando as luzes foram apagadas. Ou depois que já
morremos. Esse último é o artifício dos homens póstumos par excellence.
(“Que acham vocês?”, aconteceu de um deles perguntar impacientemente,
“teríamos ânimo para agüentar essa estranheza e frieza, essa quietude
sepulcral à nossa volta, toda essa oculta, subterrânea, indescoberta e muda
solidão, que entre nós se chama vida e bem poderia chamar-se morte, se não
soubéssemos o que de nós será – e que somente após a morte chegaremos a
nossa vida e ficaremos vivos, ah, muito vivos! Nós, seres póstumos!” –).
[cf. JGB 289]
FW 179. Pensamentos. – Pensamentos são as sombras dos nossos
sentimentos – sempre mais obscuros, mais vazios, mais simples do que
estes.
FW 287. Alegria na cegueira. – “Meus pensamentos”, disse o andarilho a
sua sombra, “devem me anunciar onde estou; não devem me revelar para
onde vou. Eu amo a ignorância a respeito do futuro e não quero perecer de
impaciência e do antegozo de coisas prometidas.”
M 249. Quem está só? – O temeroso não sabe o que é estar só: atrás de sua
cadeira há sempre um inimigo. – Oh, quem poderia nos contar a história do
fino sentimento que se chama solidão!
FW 182. Na solidão. – Quando se vive só, não se fala muito alto, também
não se escreve muito alto: pois teme-se a ressonância vazia – a crítica da
ninfa Eco. – E todas as vozes soam diferentes na solidão!
M 569. Aos solitários. – Se, nas suas conversas consigo mesmo, alguém não
poupa a honra de outras pessoas como faz em público, não é uma pessoa
decente.
FWS 33. O solitário [Der Einsame]
Para mim é odioso seguir e também guiar,
Obedecer? Não! E tampouco – governar!
Quem não é terrível para si, a ninguém inspira terror:
E somente quem inspira terror é capaz de governar.
Gosto, como os animais da floresta e do mar,
De por algum tempo me perder [verlieren],
De permanecer num amável recanto a cismar,
E enfim me chamar pela distância,
Seduzindo-me para – voltar a mim.
WS 319. Crer em si mesmo. – Em nossa época, desconfia-se de todo aquele
que acredita em si mesmo; outrora, isso bastava para fazer acreditar em si. A
receita para agora ser acreditado é: “Não poupe a si mesmo! Se quiser
colocar sua opinião numa luz digna de crédito, incendeie primeiramente sua
própria casa!”
WS 306. Perder a si mesmo [Sich selber verlieren]. – Uma vez tendo se
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encontrado, é preciso perder-se de vez em quando – e depois novamente se
encontrar: contanto que se seja um pensador. Pois para este é prejudicial
estar sempre ligado a uma só pessoa.
FW 27. O andarilho [Der Wanderer]
“Mais nenhum caminho! Apenas o abismo e silêncio!” –
Assim você quis! Sua vontade deixou o caminho!
Agora ande, andarilho! Tenha o olhar frio e claro!
Perdido [Verloren] estará, se acreditar no perigo [Gefahr].
M 443. Sobre a educação [Zur Erziehung]. – Paulatinamente esclareceu-se,
para mim, a mais comum deficiência de nosso tipo de formação e educação:
ninguém aprende, ninguém aspira, ninguém ensina – a suportar a solidão
[Einsamkeit].
75
III. NIETZSCHE E A ESCRITA
Uma coisa sou eu, outra são meus escritos.
Nietzsche, Ecce Homo, “Porque escrevo tão bons livros”.
Com essa frase, Nietzsche inicia o capítulo sobre a escrita em seu Ecce Homo.
Nela, podemos perceber a derradeira distância da escrita nietzschiana com respeito à
função comumente aceita da escrita como um processo de confissão, de identidade com
o escritor, muito utilizada pelas vertentes pedagógicas. Frente a esse uso, o filósofo
procura trabalhar com a escrita sobre a ambivalência entre biografia e educação, entre o
viver e o ensinar (NIETZSCHE, 2003, p. 52).
Entre biografia e educação, entre vida e conhecimento, podemos distinguir três
características da escrita nietzscheana, segundo ele mesmo o faz no Ecce Homo:
alcançar um certo cinismo, atitude própria de contestação dos idealismos; comunicar
“um estado, uma tensão interna, por meio de signos”; fazer as vezes de um psicólogo,
não a fim de prescrever, mas tão somente de diagnosticar erros, tolices, paixões, ideais.
Numa possível abordagem dessa ambivalência, principalmente pelos
testemunhos dessa obra, fica claro que essas características da escrita são empregadas
como uma experimentação, uma alteridade e uma superação de si mesmo: invenção de
vida. A partir desse estilo de escrita, estabelece-se uma relação de si sobre si mesmo,
sobre o que se é e o que se pensou, do que se é feito: não com o fim de confessar a outro
sobre a verdade de si mesmo, nem adequar-se a uma moral fixa ou a uma tábua de
formas e valores. Escreve-se para conhecer-se e perder-se; perceber quem se é e deixar
de acreditar que se é apenas um – “o ego não passa de um ‘embuste superior’”
(NIETZSCHE, 2003, p.58). Escreve-se para alcançar as mais intensas forças espirituais
a fim de desgarrá-las de seu rincão: deixar de ser a si mesmo – fazer rir seus valores,
dançar com os deuses (NIETZSCHE, 2009, p.73-75).
Numa outra abordagem, a escrita também é o modo que talvez Nietzsche tenha
se apoiado para relacionar educacionalmente consigo e com os outros. Nesse jogo
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mesmo de governança entre forças, o gesto educativo, se assim ainda o poderíamos
chamar, gesto exercido por um livre-pensador, por um auto-educado, se faria por um
duplo movimento, por uma dupla prática: no ocupar-se consigo, investigando o si
mesmo – as ilusões inventivas de toda a humanidade – na história; e comunicando
exatamente essa tensão interna de constituição (NIETZSCHE, 2003, p.57), esse estado
vitorioso – “a valentia e liberdade de sentimento ante um inimigo poderoso, ante uma
sublime adversidade, ante um problema que suscita horror” – o pensador, o educador, o
psicólogo, o artista, “habituado ao sofrimento, aquele que busca o sofrimento”, exaltaria
a sua existência com a tragédia, oferecendo-nos a dulcíssima crueldade (2006a: IX, 24)
do conhecimento sobre a vida.
A fim de explicitar tais características, ao passo que procuramos mostrar as
variações, deslocamentos e posturas de Nietzsche com respeito a escrita, dividimos os
aforismos selecionados da seguinte forma: 1.Escrita, exame, memórias – no qual se
apresenta uma passagem de um dos primeiros escritos de Nietzsche, ainda criança, uma
espécie de escrito retrospectivo, de memórias; 2.Escrita e autodidatismo – onde se
explora o ler e o escrever, como práticas de educação por si próprio; 3.Escrita e seus
atores – considerações críticas sobre o papel e a atividade dos autores, poetas, leitores,
explorando também as relações entre leitor-escritor e o que podem os livros; 4.Escrita e
seus modos – passagens sobre a arte e ensino da leitura e da escrita (entre metafísica e
genealogia, retórica e parrésia, etc.) ou para uma ética da escrita, explorando tanto as
questões do excesso e da prudência (item 4a) e as considerações sobre a moral dos
escritos eruditos, religiosos e pedagógicos (item 4b); por último, 5.Escrita,
experimentação, alteridade – contendo passagens sobre a superação de si mesmo e a
vitória (em oposição à identidade e à confissão).
A partir dessas 5 sendas cartográficas, procuraremos dar visão, no campo do
pensamento educacional, as relações entre o exercício da escrita em Nietzsche e esse
possível procedimento de formação que, grosso modo, abarcaria um complexo jogo de
forças entre o sujeito tomado tanto como sujeito da ação como sujeito de sua própria
ação. Complexidade de um jogo ético político de subjetivação-objetivação de si por si
mesmo: gesto crítico fundador da ética, jogo político, senão anterior, simultâneo à ação
pedagógica da sociedade. Um jogo que se manifesta, quiçá, no próprio uso exaustivo do
dispositivo da escrita que desprende movimentos de totalização, de maximização do
pensamento e da possibilidade de ação à fragmentação mesma das hierarquias teóricas e
77
morais que ordenam as ações, os hábitos, os conhecimentos de um indivíduo humano
(BLANCHOT, 1973).
Entrever esse movimento, prático e teórico, para além da formação, de um
processo em direção a uma forma, tal movimento pode nos fazer pensar, quiçá, ao final
deste nosso percurso de pesquisa, o movimento educacional de um indivíduo, de sua
subjetivação, por uma auto-objetivação, uma autopoiética: não como um processo de
formação cuja teleologia possuiria uma forma última, mas indagando a respeito da
lógica da formação institucional como uma viagem. A viagem, com sua saída, sua
chegada, sua volta à origem, cujo percurso atribulado, mas quase sempre tirunfante,
prometer-nos-ia a recompensa do conhecimento, segurança ou felicidade – promessas
de uma concepção um tanto insuspeita (NÓVOA, 2011). Dessas mudanças pelas quais o
indivíduo opera em si mesmo, dessas práticas de si, queremos burilá-las através da
escrita nietzscheana, dita e inscrita por e nela mesma.
Manifestado na construção teórico-formal de seus aforismos, nas retóricas e
figuras de linguagem empregadas, das tensões e temas propostos ou calados pelo seu
pensamento em sua vasta obra escrita, esse procedimento de formação, ou antes, de
transformação, de transvaloração, de superação, empreende resgatar uma moral
dinâmica de formação como um exercício ético de constituição de um sujeito de ação. É
para além e aquém das formas do artista, do gênio; é além-do-homem: formação,
constituição constante, prática cujo fim é sempre em devir, cuja forma é multívaga.
Diríamos dessa formação enquanto uma autopoética do sujeito ético? Pela
escrita possibilitar-se-ia um processo de autoformação e transvaloração? Vemos que no
Ecce homo, Nietzsche afasta qualquer possibilidade de se pensar numa identidade entre
o que escreve e o que é. Talvez, como ele mesmo afirmou dez anos antes, a relação da
escrita seja de total alteridade, de superação de si mesmo. Processo que talvez não tenha
um fim último, um si último. Ele se faz por metas, medidas, doses, mas não tende a
encontrar uma forma última, um modo derradeiro de vida ou uma moral absoluta:
“quem alcança seu ideal, vai além dele” (NIETZSCHE, 2006c: 73). Esse movimento de
autoformação e de conduzir a si mesmo, mais do que uma viagem, se pretende como
uma caminhada constante, um deambulismo estilizado, uma errância.
Em vista desses deslocamentos e operações, nossa primeira inquietação poderia
se voltar para esta hipótese: não seria esse dispositivo escritural uma das condições de
possibilidade para uma auto-educação [Selbst-Erziehung] – para a crítica e cultivo da
vontade de poder, de Grande Saúde, de experimentação e transvaloração dos valores, de
78
superação de si mesmo, todos processos fulcrais expostos nas obras nietzscheanas? Em
Nietzsche, certos usos da atividade escritural não estariam no cerne de um método ético
de autoformação, de etopoiésis, de subjetivação e dessubjetivação por si mesmo? – E de
que modo isso ocorreria?
III. 1. Modernidade, ciência experimental e escrita
Para trazermos a baila uma perspectiva contemporânea sobre a prática escritural
como um procedimento de formação e experimentação de si, evidenciando seu lastro
histórico ao longo da modernidade, o poeta e pensador Octávio Paz (1969)29
, num texto
da década de 60, escreve sobre as relações entre ciência e poesia modernas. Para o
autor, ambas são um método de trabalho e uma “atitude ante o objeto” (PAZ, 1969,
p.79).
Por um lado, para o poeta e para o cientista investigador, o labor poético e
científico são experimentos, provas de laboratório; conduzem-se na maioria das vezes
em ambientes isolados, aproveitando as propriedades da matéria em estudo na
realização de hipóteses, conexões, produções. Por outro lado, para ambos, é preciso
possuir uma atitude empírica ante o objeto: as palavras e as ideias ou os elementos e
coisas são manipuladas sem se saber “exatamente o que é que vai ocorrer”. Ambos não
pretendem confirmar uma verdade revelada como o crente; não querem definir ou
afirmar nada de antemão; possuem certa propensão à resignação, pois não
experimentam por causa de suas teorias, mas o inverso. Assim, tampouco são
doutrinários. Aquilo que, distintamente, buscam, o poema ou a verdade científica,
precisa passar pelo “ácido da prova” e o “fogo da crítica”.
Contudo, ainda segundo Paz, todas essas semelhanças não nos deve fazer
esquecer de uma “diferença decisiva”: o sujeito da experiência (p.80). De modo geral, o
cientista é um espectador e não participa dos resultados da experiência. O objeto da
experiência na ciência é geralmente outra coisa que não o próprio sujeito. No caso da
poesia moderna, o sujeito e o objeto da experiência se confundem: é o próprio poeta.
Ela se observa e se experimenta a pôr a prova suas ideias, seus pensamentos, suas
sensações: “seu corpo e sua psique, seu ser inteiro, são o campo aonde se opera toda
29
A tradução das passagens é feita livremente por nós, as quais muitas serão incorporadas à nossa
narrativa.
79
sorte de transformações”. Para Paz, a poesia moderna pode ser considerada como um
conhecimento experimental acerca do sujeito mesmo que conhece.
Se seguirmos algumas pistas de Octávio Paz, poderíamos entender a escrita
poética – aquela que faz de si mesmo uma obra em experimento – como a prática de um
saber experimental de si mesmo.
III. 2. Leonardo, escritor e inventor de si?
Leonardo da Vinci, artista e pensador de dispensável apresentação, filho
ilegítimo e protegido real ao final de sua vida, um dos predecessores do que ficou
conhecido como “ciência moderna” – inventor de tantas engenhocas assim como
realizador de façanhas pictóricas –, muito desenhou, escreveu, anotou – e quase nada
publicou em vida. A par da circulação de seus escritos nos meios científicos e místicos
da época, e até mesmo a par da indiferença com que muitas de suas invenções foram
recebidas pelos intelectuais e instituições renascentistas, poderíamos alegar que sua
impopularidade no seu tempo se deu pela ausência de um “mercado” para o que ele
“produzia”.
Espécie de mestre, no sentido estrito, da Renascença, inventor multifacetado e
um dos maiores e mais completos homens de nossa recente história ocidental, podemos
observar, no entanto, que para Da Vinci a questão talvez não fosse ser “grande”, não
fosse produzir em demasia, ser reconhecido e publicado. Isso pode ser constatado pelo
fato que pouquíssimas pinturas – um das artes que mais o consagrou – restaram para
nossa época. Talvez a questão mesma residisse na resiliência de seu espírito inventor
que, através de suas numerosas experiências e experimentos com a arte e o pensamento,
de todos os seus fracassos, esboços, delírios e presságios, ele se conduziu como um
experimentador nato.
A tese da validade de sua obra para a posteridade não se colocará em questão. A
sua contribuição para o advento da ciência também não. O que gostaríamos de
vislumbrar na pessoa de Da Vinci é que, como artista, como cientista, como pensador,
ele ocupa-se consigo como uma atitude de educação e experimentação de si mesmo.
Sobretudo, ele elabora uma ciência ou um saber experimental de si mesmo e da natureza
das coisas a partir da observação de si mesmo e das anotações de suas impressões,
80
leituras e estudos em geral. É a partir de seus inúmeros cadernos deixados que podemos
repensar a importância da escrita e da anotação como uma espécie de cuidado, tanto de
si como da produção de sua obra – ele e ela se confundindo, enquanto o vigor de um
leva a outra para além de si mesmo.30
Tão importantes como a Mona Lisa, A Última Ceia ou o Homem Vetruvianu, o
que talvez de mais valioso tenha restado para nós são seus cadernos de anotação. Longe
de ser um diário ou um simples depositário dos ofícios de seu dia-a-dia, ou mesmo
diferentemente de seus tratados sobre a pintura ou sobre o voo dos pássaros e animais
alados, os Cadernos de Da Vinci (2006) são testemunhas fáticas do incansável exercício
a que ele se propunha diariamente, ao longo de toda sua vida, para investigar a si
mesmo e o mundo. Investigação essa que, poderíamos supor, não tinha talvez intenção
de projeto pedagógico ou fama cultural, de se tornar cânone ou mesmo de postular as
futuras leis da física, da biologia, da geografia, das humanidades. Não obstante, essas
foram algumas das perspectivas que permearam suas investigações.
Talvez Leonardo seja um dos primeiros modernos andarilhos, ocupados consigo
mesmos – e com os outros. Um dos primeiros pensadores livres. Cerca de vinte anos
após a morte de Leonardo da Vinci, o rei Francisco teria falado, segundo o escultor
Benvenuto Cellini: "Nunca nasceu no mundo outro homem que soubesse tanto quanto
Leonardo, nem tanto [por seus conhecimentos] de pintura, escultura e arquitetura, mas
por ele ter sido um grande filósofo.”31
III. 3. Ler e escrever no Zaratustra
Quais seriam as práticas, as condutas, os exercícios necessários para um espírito-
livre? E de que maneira o espírito é também o corpo, e o corpo é uma confluência de
almas, de forças, que constituem a própria vontade de um corpo, tal como um espírito?
É assim que Nietzsche inicia identificando o sangue com o espírito, ao dizer que
escrevendo com sangue verás que dele é feito o espírito. Sangue e espírito, linguagem e
30
Aqui, sem dúvida, uma referência direta aos estudos de Foucault (2006a) acerca da “escrita de si” na
antiguidade. Referência essa que fica incompleta pela ausência desse estudo foucaultiano no nosso
trabalho, mas cujo conteúdo e pertinência foram basilares para nossa proposta de estudo. 31
Cf. LUCERTINI, Mario; GASCA, Ana Millan; NICOLO, Fernando. Technological Concepts and
Mathematical Models in the Evolution of Modern Engineering Systems. Birkhauser, 2004.
81
corpo. É nessas ambivalências que circulam as práticas de si – exatamente como um
exercício ético-poético, fazedor de seu modo de viver.
Escrever com sangue é escrever com forças: é escrever com riscos, com perigos,
com excrementos, nervos, com vísceras, com fluídos. É escrever com palavras assim
como com fluxos, de modo a se fazer um enorme e curto esforço de expressá-los, tal
como um gesto, um ato. É esse o tipo de escrita ético-poética de Nietzsche, isto é, é esse
seu jeito de inscrever-se no mundo pelo cultivo de hábitos breves e impulsos
imperiosos. Mas é esse também seu estilo de escrita poético-literária, aforística,
sentencial, fragmentária. Assim como Zaratustra, quer assumir e afirmar seus atos sem
que nada o faça querer voltar atrás; assim é também com seus escritos, os quais ele quer
que se aprendam por memória, pelo espírito. Ele quer provocar mudanças radicais
quando precisar. Tão somente ler é acreditar na sua superioridade pela erudição, sendo
que esta é exatamente o processo reativo das forças, voltando-se contra si próprias, num
processo decadente.
Mas Zaratustra quer inscrever-se nas alturas, quer “volver pensable todo lo que
existe”32
. Quer poder pensar o impossível, escrever o impensável. São nestas regiões
onde as idéias e o ar são “rápidos e puros” e o perigo é eminente, que o espírito se enche
de uma “alegre malícia”33
. Nesse ar, os pensamentos ganham velocidade e
periculosidade, conseguem, ao superar o gelo das alturas, adentrar a estranhas visões e
criar para si outras ilusões, agora “duendes” que afugentam os fantasmas, “os ideais
ressentidos”, fracassos sedimentados que cobram uma dívida. São os duendes que nos
fazem rir dos fantasmas, pois num ar puro e rarefeito, a claridade é outra, são as novas
ilusões, são valores superiores, pois superaram propriamente o sofrimento causado pelas
vontades dos antigos. Não se ressente, não pesam os valores que possuiu uma vez e
desiludiu-se com, descartando-os.
Neste ponto, por sua vez, opera-se uma transvaloração dos valores: Zaratustra
se vê livre do “mais pesado dos pesos”, ele não teme escolher o que deseja novamente
diferente e ri do negrume e do carregamento, dos arrependimentos e das culpas que é
essa nuvem que assola os homens – nuvem tempestuosa da história, dos valores, da
moral, uma virtualidade condenada, enclausurada. Agora ele ri “de todas las tragedias,
de las del teatro y de las de la vida” como sintoma de uma ousada leveza para com a
32
NIETZSCHE, 2009, “De la superación de si mesmo”. 33
“Una alegre maldad”. A partir de agora, quando não informado o contrário, as citações são do "Del leer
y el escribir", que colocarei na tradução espanhola de Andrés Sánchez Pascual e, quando conveniente,
traduzirei alguns fragmentos ou palavras para o português.
82
vida, que não é uma falta de seriedade, mas uma despreocupação, uma ironia, uma
violência para com ela: “así nos quiere la sabiduría” – alcança a gravidade pela qual é
impelido a, como guerreiros que sabem lutar por, elaboram e dominam modos de viver,
levando-os a uma excelência singular e inominável, mas não se apegando
definitivamente a nada. Seu único comprometimento é superar-se. Quando não mais
precisar dos velhos hábitos e modos, quando estes falharem e ele precisar mudar, nada
pesará ao abandoná-los34
. O método de Zaratustra, contra o fanatismo e atravessando
sempre o foço do niilismo, não deixa de acreditar na possibilidade de um devir melhor –
apenas por ser diferente, diria Deleuze35
.
Para Zaratustra reclamar da vida não é digno de quem a ama. Por mais que
soframos, isto não é desculpa para não saber amá-la. Pois amamos a vida não porque
estamos habituados a viver, mas a amar. Amar, aqui, é como uma configuração
afirmativa e criadora, que quer ir além de si, alterar-se por, pois “siempre hay algo de
demencia en el amor. Pero siempre hay también algo de razón en la demencia”. O amor
tem esta potência louca, de ir além de uma ordenação lógica, da moral, das ações, dos
acontecimentos. Amor pode ser também essa vontade de superar-se e dilacerar-se,
destituir-se de sua própria forma, uma vontade que se eleva à força e rompe com o
corpo, alteração radical, vontade de morte: “Amar y hundirse en su ocaso: estas cosas
van juntas desde la eternidad. Voluntad de amor: esto es aceptar de buen grado incluso
la muerte. ¡Esto es lo que yo os digo, cobardes!”36
. Mas a loucura, este desgoverno
volitivo tem suas razões de ser. É esta loucura que propicia o próprio movimento do
eterno retorno. E assim, é um corpo-espírito que está livre – de seu próprio fardo e
34
É possível encontrar uma instigante relação prática entre a obra de Nietzsche e a do escritor Carlos
Castañeda, nas suas configurações até mesmo socráticas-fabulatórias-aforísticas, bem como nas
configurações éticas e conceituais dos pensamentos-ensinamentos de cada autor. A ver, neste ponto sobre
uma ética que transvalora e afirma, Castañeda escreve em Uma estranha realidade: “Eu tinha deixado de
pensar na dureza da minha vida antes de começar a ver.” Sem me alongar muito neste ponto, o “trabalho
de ver”, no livro de Castañeda, consistiria em aprender a realidade de uma maneira amoral, como que de
certa maneira destreinando o olhar para perceber e ver outras as forças e formas agindo e com isso, ser
interferido e tendo o poder de interferir nelas. Em outra passagem, Dom Juan, o mestre de Castañeda, lhe
diz: “um homem desprendido, que sabe que não tem possibilidade de evitar sua morte, só tem uma coisa
em que se apoiar: o poder de suas decisões (...) sua opção é sua responsabilidade, e uma vez feita, não há
mais tempo para remorsos ou recriminações. Suas decisões são finais, simplesmente porque sua morte
não lhe permite tempo para se agarrar a nada”. É um trabalho do ver, do olhar, que Nietzsche muitas
vezes estipula para se lançar criativa e criticamente sobre a realidade, o conhecimento, sobre si mesmo. 35
Aqui, cabe outra menção à obra de Castañeda. Em Uma estranha realidade, poder-se-ia entender esse
exercício para a grande saúde como o termo “loucura controlada”: “É possível insistir, insistir realmente,
mesmo sabendo que o que se está fazendo é inútil – disse ele, sorrindo. – Mas primeiro temos de saber
que nossos atos são inúteis, e, no entanto, temos de proceder como se não soubéssemos [já que é a única
coisa que temos]. É esta a loucura controlada de um feiticeiro [aprendiz das práticas xamãnicas]”. 36
NIETZSCHE, 2009, “Del inmaculado conocimiento”.
83
segue sua própria sombra, esconde-se e revela-se nas suas próprias voracidades37
. Uma
configuração de “almitas ligeras, locas, encantadoras, volubles” que fazem o corpo-
espírito correr, voar, e fazem Zaratustra chorar e cantar. E logo afirma: "yo no creería
más que en un Díos que supiese bailar". Um deus – uma meta, um ideal, uma ilusão, um
além –, um mais que necessariamente haveria de dançar e alterar-se conforme a música
do confrontamento entre fluxos. Nada mais profano que uma educação de si que está
além da formação para algo.
III. 4. Passagens sobre escrita nas obras selecionadas de Friedrich Nietzsche
A maneira do capítulo anterior (Capítulo II), dentro do período das obras
nietzscheanas já delimitado por nós38
, fizemos aqui uma cartografia dos termos
“escrita”, “escrever”, “escritor/es” e seus correlatos, como “livro/s”, “literatura”, “ler”,
bem como “autor/es”, “poeta/s” e “criador/es”. Os temas em destaque, bem como a
ordem dos aforismos, tentam respeitar exatamente a mesma intenção da primeira
cartografia sobre a educação: uma conexão entre temas similares pela qual se possa
vislumbrar a noção de um processo em movimento.
Essas duas cartografias, separadas esquematicamente, como dissemos, pela
praticidade da exposição, não excluem de maneira alguma a mútua correlação entre os
temas da prática ascética, da investigação histórico-científica e da escrita. Desta feita, a
partir dessa seleção de aforismos, tentaremos burilar acerca da hipótese comumente
atribuída ao professor Oswaldo Giacoia Jr., sobre a maneira como a filosofia
nietzscheana possuiria no exercício escritural seu alicerce.
* * *
1. Escrita, exame, memórias: diário e confissão
37
A morte do "espírito do pesadelo", da “pesadez”. 38
Com exceção do primeiro tema, “Diário”, que é anterior a 1878. Cf. NIETZSCHE, 2010, p.3.
84
De mi vida. “Los años de niñez”, 18 de agosto a 1 de setembro de 1858.
Cuando somos adultos solemos acordarnos únicamente de los momentos
más sobresalientes de nuestra primera infancia. Aunque todavía no soy
adulto y apenas sí he dejado atrás los años de infancia y pubertad, he
olvidado ya muchas cosas de aquel tiempo, y lo poco que sé, probablemente
sólo lo retengo porque lo he oído contar. Las hileras de años pasan volando
ante mi vista como si se tratase de un confuso sueño. Por eso me resulta del
todo imposible remitirme a alguna fecha concreta de los diez primeros años
de mi vida. Con todo, aún poseo algo claro y vivo en mi alma, y eso es
cuanto desearía, uniendo luces y sombras, plasmar en un cuadro. Pues ¡qué
instructivo es poder observar lo diverso del desarrollo de la inteligencia y el
corazón y la omnipotencia de la Providencia Divina que los guía!
2. Escrita e autodidatismo: o ler e o escrever (e suas consequências)
WS 324. Tornar-se pensador. – Como pode alguém se tornar um pensador,
se não passar ao menos um terço de cada dia sem paixões, pessoas e livros?
WS 180. Os mestres na época dos livros. – Como o autodidatismo e a
educação em grupo se generalizam, o mestre, em sua forma costumeira,
deve se tornar praticamente supérfluo. Amigos sequiosos de aprender, que
querem juntos apropriar-se de um saber, encontram, em nossa época dos
livros, uma via mais curta e mais natural do que a da “escola” e do
“professor”.
MA 206. Livros que ensinam a dançar. – Há escritores que, por
apresentarem o impossível como possível e falarem do moral e do genial
como se ambos fossem apenas um capricho, um gosto, provocam um
sentimento de liberdade exuberante, como se o homem se colocasse na
ponta dos pés e tivesse absolutamente que dançar por prazer interior.
FW 248. Livros. – De que vale um livro que não nos transporte além dos
livros?
3. Escrita e seus atores: autor, poeta, leitor; relações leitor-escritor; livros
MA 180. Espírito coletivo. – Um bom escritor não tem apenas o seu próprio
espírito, mas também o espírito de seus amigos.
MA 186. Espirituosidade. – Os autores mais espirituosos provocam o
sorriso mais imperceptível.
MA 192. O melhor autor. – O melhor autor será aquele que tem vergonha
de se tornar escritor.
85
MA 185. Paradoxos do autor. – Os chamados paradoxos do autor, aos quais
o leitor faz objeção, frequentemente não estão no livro do autor, mas na
cabeça do leitor.
VM 140. Calando a boca. – O autor tem de calar a boca, quando sua obra
fala.
WS 101. Autores espírito-de-vinho. – Muitos escritores não são espírito
nem vinho, mas espírito de vinho: podem se inflamar, e então oferecem
calor.
WS 108. Festa rara. – Concisão medular, tranqüilidade e madureza – onde
você achar essas características num autor, pare e celebre uma demorada
festa em meio ao deserto: passará muito tempo até sentir-se tão bem
novamente.
VM 153. “Livro bom pede tempo”. – Todo livro bom tem gosto acre
quando surge: tem o defeito da novidade. Além disso, é prejudicado pelo
autor vivo, se ele for conhecido e muito se falar dele: pois existe o hábito de
se confundir o autor com sua obra. O que nesta houve de espírito, brilho e
doçura tem que se desenvolver com os anos, aos cuidados da veneração
crescente, depois antiga, e por fim tradicional. Muitas horas terão de passar
sobre ela, muitas aranhas terão de nela tecer sua teia. Bons leitores tornam
um livro cada vez melhor, e bons adversários o depuram.
VM 142. Livros frios. – O bom pensador tem expectativa de leitores que
sintam como ele a felicidade que há em pensar bem; de modo que um livro
de ar frio e sóbrio, visto com os olhos certos, pode aparecer rodeado do sol
da serenidade espiritual e como um verdadeiro consolo para a alma. [cf. MA
185, 190, 193, 206, VM 137]
WS 92. Livros proibidos. – Nunca ler algo do que escrevem os arrogantes
sabichões e confusos que têm o mais abominável costume, o do paradoxo
lógico: eles empregam as formas lógicas justamente ali onde tudo, no fundo,
é insolentemente improvisado e construído no ar. (“Portanto” deve
significar, com eles, “leitor imbecil, para você não há ‘portanto’ – mas para
mim, sim” – e a resposta a isso é: “autor imbecil, para que escreve você
então?”.)
VM 145. Valor dos livros sinceros. – Livros sinceros tornam o leitor
sincero, ao menos enquanto o fazem mostrar seu ódio e sua aversão, que, de
outro lado, a ladina prudência sabe ocultar bem. Mas com um livro nós nos
deixamos levar, por mais que nos contenhamos com as pessoas.
MA 208. O livro quase tornado gente. – Para todo escritor é sempre uma
surpresa o fato de que o livro tenha uma vida própria, quando se desprende
dele; é como se parte de um inseto se destacasse e tomasse um caminho
próprio. Talvez ele se esqueça do livro quase totalmente, talvez se eleve
acima das opiniões que nele registrou, talvez até não o compreenda mais, e
86
tenha perdido as asas em que voava ao concebê-lo: enquanto isso o livro
busca seus leitores, inflama vidas, alegra, assusta, engendra novas obras,
torna-se a alma de projetos e ações – em suma: vive como um ser dotado de
espírito e alma, e contudo não é humano. – A sorte maior será a do autor
que, na velhice, puder dizer que tudo o que nele eram pensamentos e
sentimentos fecundantes, animadores, edificantes, esclarecedores, continua
a viver em seus escritos, e que ele próprio já não representa senão a cinza,
enquanto o fogo se salvou e em toda parte é levado adiante. – Se
considerarmos que toda ação de um homem, não apenas um livro, de
alguma maneira vai ocasionar outras ações, decisões e pensamentos, que
tudo o que ocorre se liga indissoluvelmente ao que vai ocorrer,
perceberemos a verdadeira imortalidade, que é a do movimento: o que uma
vez se moveu está encerrado e eternizado na cadeia total do que existe,
como um inseto no âmbar.
VM 158. Pouco e sem amor. – Todo bom livro é escrito para um
determinado leitor e os de sua espécie, e, justamente por isso, não é visto de
modo favorável por todos os demais leitores, a grande maioria: motivo pelo
qual sua reputação se fundamenta numa base estreita e apenas lentamente
pode ser construída. O livro medíocre e ruim o é justamente porque busca
agradar e agrada a muitos.
MA 181. Duas espécies de conhecimento. – O infortúnio dos escritores
agudos e claros é que os consideramos rasos, e por isso não lhes
dispensamos maior esforço; e a sorte dos escritores obscuros é que o leitor
se ocupa bastante deles e lhes credita o prazer que tem com sua própria
diligência.
MA 190. O pecado contra o espírito do leitor. – Quando o autor nega seu
talento para se equiparar ao leitor, comete o único pecado mortal que este
jamais lhe perdoa; caso o perceba, naturalmente. Pode-se dizer tudo quanto
é ruim de um homem; mas na maneira de dizê-lo devemos saber restaurar
sua vaidade. [cf. VM 137, 142]
MA 202. Perto demais e longe demais. – É freqüente o leitor e o autor não
se entenderem porque o autor conhece bem demais o seu tema e o acha
quase enfadonho, dispensando os exemplos que conhece às dúzias; mas o
leitor é estranho à matéria, e a considerada mal fundamentada se os
exemplos lhe são negados.
MA 197. Os escritos de nossos conhecidos e seus leitores. – Lemos de
maneira dupla o que escrevem os conhecidos (amigos e inimigos), na
medida em que nosso conhecimento nos sussurra permanentemente: “Isso é
dele, é uma marca de sua natureza interior, de suas vivências, de seu
talento”, enquanto uma outra espécie de conhecimento busca verificar que
proveito tem essa obra, que estima ela merece independentemente do autor,
que enriquecimento traz para o saber. Essas duas espécies de leitura e de
consideração se chocam, está claro. Mesmo a conversa com um amigo só
produzirá bons frutos de conhecimento quando ambos pensarem apenas na
questão e esquecerem que são amigos.
87
MA 193. Lei draconiana para os escritores. – Deveríamos considerar o
escritor como um malfeitor que apenas em raríssimos casos merece a
absolvição ou a graça: isto seria um remédio contra a proliferação de livros
VM 308. Escritores de partido. – As batidas de tambor, em que se
comprazem os jovens escritores a serviço de um partido, soam como
estrondo de cadeias para quem não é do partido, e suscitam antes compaixão
do que admiração.
MA 201. Necessidade de maus escritores. – Sempre deverão existir maus
escritores, pois eles atendem ao gosto das faixas de idade não
desenvolvidas, imaturas; estas têm suas necessidades, tanto como as
maduras. Se a vida humana fosse mais longa, o número de indivíduos
amadurecidos seria maior ou, no mínimo, tão grande quanto o de imaturos;
ocorre que a imensa maioria morre cedo demais, isto é, há sempre bem mais
intelectos não desenvolvidos e com mau gosto. Além disso, eles desejam,
com a enorme veemência da juventude, a satisfação daquilo de que
necessitam, e forçam o surgimento de maus autores.
VM 137. Os piores leitores. – Os piores leitores são os que agem como
soldados saqueadores: retiram alguma coisa de que podem necessitar, sujam
e desarranjam o resto e difamam todo o conjunto.
WS 104. Leitores indesejados. – Como atormentam o autor esses honrados
leitores com alma pesada e canhestra, que sempre, ao se bater em algo,
caem e se ferem.
FWS 54. Ao meu leitor
Bons dentes e bom estômago –
Eis o que lhe desejo!
Se der conta de meu livro,
Certamente se dará comigo!
4. Escrita e seus modos: arte e ensino da leitura e da escrita (entre metafísica e
genealogia, retórica e parrésia, etc.) ou para uma ética da escrita
VM 19. O quadro da vida. – A tarefa de pintar o quadro da vida, por mais
que tenha sido proposta pelos escritores e filósofos, é absurda: mesmo pelas
mãos dos maiores pintores-pensadores sempre surgiram apenas quadros e
miniaturas de uma vida, isto é, de sua vida – e outra coisa também não seria
possível. Naquilo que está em devir, um ser em devir não pode se refletir
como algo firme e duradouro, como um “o”.
FW 244. Pensamentos e palavras. – Também os próprios pensamentos [a
nós] não se podem reproduzir inteiramente em palavras.
88
WS 55. Perigo da linguagem para a liberdade espiritual. – Toda palavra é
um pré-conceito [Vorurteil].
M 47. As palavras estão em nosso caminho! – Onde os antigos homens
colocavam uma palavra, acreditavam ter feito uma descoberta. Como era
diferente, na verdade! – eles haviam tocado num problema e, supondo tê-lo
resolvido, haviam criado um obstáculo para a solução. Agora, a cada
conhecimento tropeçamos em palavras eternizadas, duras como pedras, e é
mais fácil quebrarmos uma perna do que uma palavra.
WS 119. O cheiro das palavras. – Cada palavra tem seu cheiro: há uma
harmonia e uma desarmonia dos cheiros e, portanto, das palavras.
JGB 289. Nos escritos de um eremita se ouve também um quê do eco do
deserto, um quê do sussurro e do tímido olhar em torno que é próprio da
solidão; em suas mais fortes palavras, em seu grito mesmo ainda ressoa uma
espécie nova e mais perigosa de silêncio e mudez. Quem através dos anos e
a cada dia se entrevistou com a sua alma, num íntimo diálogo e disputa,
quem em sua caverna – que pode ser um labirinto, mas também uma mina
de ouro – tornou-se urso, caçador de tesouros ou guardião e dragão: suas
idéias acabam adquirindo elas mesmas um tom crepuscular, um odor tanto
de profundeza como de mofo, algo incomunicável e repugnante, cujo sopro
frio atinge quem passa. Um eremita não crê que um filósofo – supondo que
todo filósofo tenha sido antes um eremita – alguma vez tenha expresso num
livro suas opiniões genuínas e últimas: não se escrevem livros para esconder
precisamente, o que se traz dentro de si? – ele duvidará inclusive que um
filósofo possa ter opiniões “verdadeiras e últimas”, e que nele não haja, não
tenha de haver, uma caverna ainda mais profunda por trás de cada caverna –
um mundo mais amplo, mais rico, mais estranho além da superfície, um
abismo atrás de cada chão, cada razão, por baixo de toda “fundamentação”.
Toda filosofia é uma filosofia-de-fachada – eis um juízo-de-eremita: “Existe
algo de arbitrário no fato de ele se deter aqui, de olhar para trás e em volta,
de não cavar mais fundo aqui e pôr de lado a pá – há também algo de
suspeito nisso”. Toda filosofia também esconde uma filosofia, toda opinião
é também um esconderijo, toda palavra também uma máscara. [cf. M,
Prólogo, 1]
WS 87. Aprender a escrever bem. – O tempo do falar bem passou, porque o
tempo das culturas citadinas passou. O limite extremo que Aristóteles
permitiu à grande cidade – toda a comunidade reunida devia poder ainda
escutar o arauto –, esse limite nos interessa tão pouco quanto as
comunidades citadinas mesmas, a nós, que queremos ser entendidos além
dos povos inclusive. É por isso que, agora, todo aquele que pensar como um
bom europeu terá de aprender a escrever bem e cada vez melhor: não há
jeito, ainda que ele tenha nascido na Alemanha, onde escrever mal é tido
como privilégio nacional. Mas escrever melhor significa também pensar
melhor; encontrar sempre coisas mais dignas de serem transmitidas e
realmente poder transmiti-las; tornar-se traduzível para os idiomas dos
vizinhos; fazer-se acessível à compreensão dos estrangeiros que aprendem
89
nosso idioma; cuidar para que tudo de bom se torne bem comum e tudo
esteja à livre disposição de quem é livre; por fim, preparar aquele estado de
coisas, ainda tão distante, em que os bons europeus recebam nas mãos a sua
grande tarefa: a direção e supervisão de toda a cultura terrestre. – Quem
prega o contrário, não se interessar por escrever bem e ler bem – as duas
virtudes crescem juntas e decrescem juntas –, esse realmente indica aos
povos o caminho de tornar-se cada vez mais nacionais: agrava a doença
deste século e é inimigo dos bons europeus, inimigo dos espíritos livres.
MA 188. Pensadores como estilistas. – A maioria dos pensadores escreve
mal, porque nos comunica não apenas seus pensamentos, mas também o
pensar dos pensamentos.
WS 110. Estilo escrito e estilo falado. – A arte de escrever exige,
principalmente, substitutos para as formas de expressão que apenas quem
fala tem; ou seja, para gestos, acentos, tons, olhares. Por isso o estilo escrito
é muito diferente do estilo falado, e algo bem mais difícil: – quer-se fazer
entender tanto quanto este, mas com menos meios. Demóstenes proferia
seus discursos de modo diferente de como os lemos; ele os reelaborou para
serem lidos. – Os discursos de Cícero deveriam ser “demostenizados” para o
mesmo fim: há muito mais fórum romano neles do que o leitor pode
agüentar. [cf. FW 364, 365]
VM 144. O estilo barroco. – Quem, como pensador e escritor, sabe não
haver nascido nem ter se educado para a dialética e o desenvolvimento das
idéias, recorrerá involuntariamente à retórica e à dramaticidade: pois lhe
interessa, enfim, fazer-se compreendido e assim ganhar força, não
importando se atrai o sentimento por uma trilha plana ou se
inadvertidamente cai sobre ele – se age como pastor ou como salteador. Isso
vale também nas artes plásticas e poéticas; onde o sentimento de falta de
dialética ou de insuficiência na expressão e na narrativa, combinado com
um instinto da forma bastante rico e premente, produz esse gênero de estilo
chamado barroco. – Apenas os mal informados e presunçosos, aliás,
sentirão essa palavra como depreciativa. O estilo barroco surge no
desflorescer de toda grande arte, quando as exigências se tornam grandes
demais na arte da expressão clássica, como um evento natural que se
presencia com tristeza – porque prenuncia a noite –, mas também com
admiração pelos sucedâneos artísticos que lhe são próprios, na expressão e
na narrativa. Entre eles está a escolha de materiais e temas de elevada tensão
dramática, com os quais mesmo sem arte o coração treme, já que céu e
inferno do sentimento se acham muito próximos; depois a eloqüência dos
afetos e gestos fortes, do feio-sublime, das grandes massas, da quantidade
mesma em si – tal como já se anuncia em Michelangelo, o pai ou avô dos
artistas barrocos italianos –: as luzes de crepúsculo, de transfiguração ou de
incêndio em formas tão acentuadas; e sempre novas ousadias nos meios e
intenções, vigorosamente sublinhadas para os artistas pelo artista, enquanto
o leigo não pode senão imaginar que enxerga o contínuo e involuntário
transbordar das cornucópias de uma primordial arte da natureza: essas
características todas, que constituem a grandeza desse estilo, não são
90
possíveis, não são toleradas nas épocas anteriores, pré-clássicas e clássicas,
de uma modalidade artística; tais delícias ficam por um longo tempo na
árvore, como frutos proibidos. – Justamente agora, quando a música entra
nessa última fase, podemos tomar conhecimento do fenômeno do estilo
barroco em particular esplendor e aprender muito sobre o passado mediante
a comparação: pois desde a época dos gregos houve frequentemente um
estilo barroco, na poesia, na eloqüência, na prosa, na escultura e, como bem
se sabe, na arquitetura – e esse estilo, embora carecendo da última nobreza,
de uma inocente, inconsciente, vitoriosa perfeição, sempre beneficiou
muitos dos melhores e mais sérios de seu tempo: – motivo pelo qual, como
disse, é presunçoso logo julgá-lo depreciativamente, embora possa
considerar-se feliz aquele cuja sensibilidade não foi por ele embotada para o
estilo mais puro e maior.
MA 203. Uma preparação para a arte que desapareceu. – De tudo o que se
fazia no ginásio, o mais valioso era a prática do estilo latino: pois ela era um
exercício de arte, enquanto as demais ocupações tinham apenas o saber por
objetivo. Dar primazia à composição alemã é barbarismo, pois não temos
estilo alemão exemplar, que se tenha nutrido da eloqüência pública; mas, se
quisermos promover o exercício do pensamento através da composição
alemã, será sem dúvida melhor ignorar momentaneamente o estilo, ou seja,
distinguir entre o exercício do pensamento e o da exposição. Este último
deveria se aplicar às várias formulações de um dado conteúdo, e não à
invenção independente de um conteúdo. A simples exposição de um dado
conteúdo era a tarefa do estilo latino, para o qual os velhos mestres
possuíam uma finura de ouvido que há muito se perdeu. Quem antes
aprendia a escrever bem numa língua moderna, devia tal habilidade a esse
exercício (hoje temos que obrigatoriamente freqüentar os antigos franceses);
mais ainda: esse alguém obtinha noção da majestade e dificuldade da forma,
e preparava-se para a arte pela única via correta – a prática.
MA 200. Cautela no escrever e no ensinar. – Quem já escreveu, e sente em
si a paixão de escrever, quase só aprende, de tudo o que faz e vive, aquilo
que é literariamente comunicável. Já não pensa em si, mas no escritor e seu
público; ele quer compreender, mas não para uso próprio. Quem é professor,
geralmente é incapaz de ainda fazer algo para o próprio bem, está sempre
pensando no bem de seus alunos, e cada conhecimento só o alegra na
medida em que pode ensiná-lo. Acaba por considerar-se uma via de
passagem para o saber, um simples meio, de modo que perde a seriedade
para consigo.
MA 270. A arte de ler. – Toda orientação forte é unilateral; assemelha-se à
direção da linha reta e é exclusiva como esta, ou seja, não toca em muitas
outras direções, como fazem os partidos e naturezas fracas em seu ir-e-vir
ondulatório: portanto, também aos filólogos devemos perdoar que sejam
unilaterais. O estabelecimento e a preservação dos textos, ao lado de sua
exegese, realizados numa corporação durante séculos, fizeram com que
agora se chegasse enfim aos métodos corretos: toda a Idade Média foi
incapaz de uma exegese estritamente filológica, isto é, de simplesmente
querer entender o que diz o autor – não foi pouco encontrar esses métodos,
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não subestimemos esse fato! A ciência inteira ganhou continuidade e
estabilidade apenas quando a arte da boa leitura, isto é, a filologia, atingiu
seu apogeu.
MA 344. Lendo em voz alta. – Quem lê criações dramáticas em voz alta faz
descobertas sobre o seu próprio caráter: para certos momentos e estados de
espírito, para o que for patético ou burlesco, digamos, acha sua voz mais
natural do que para outros, enquanto na vida cotidiana talvez só não tenha
tido oportunidade de mostrar pathos ou comicidade.
MA 198. Sacrifício do ritmo. – Bons escritores mudam o ritmo de alguns
períodos, apenas por não reconhecerem no leitor comum a capacidade de
apreender a cadência do período na sua primeira versão: por isso facilitam
as coisas para ele, dando preferência a ritmos mais conhecidos. – Essa
consideração pela incapacidade rítmica dos leitores atuais já arrancou alguns
suspiros, pois muito já lhe foi sacrificado. Não acontece algo semelhante
com os bons músicos?
WS 97. Desviando. – Não sabemos onde se acha, nos espíritos notáveis, o
refinamento da expressão, da locução, até que possamos dizer a que palavra
chegaria inevitavelmente um escritor mediano, para expressar a mesma
coisa. Todo grande artista mostra tendência, na condução do seu veículo, a
desviar, a sair da pista – mas não a virar.
WS 128. Os autores tristes e os sérios. – Quem coloca no papel o que sofre,
torna-se um autor triste: mas um autor sério, quando nos diz o que sofreu e
por que agora descansa na alegria.
MA 191. O limite da honestidade. – Também o escritor mais honesto deixa
escapar uma palavra a mais, quando quer arredondar um período.
VM 138. Características do bom escritor. – Os bons escritores têm duas
coisas em comum: preferem ser compreendidos a ser admirados, e não
escrevem para os leitores mordazes e muito agudos.
WS 106. Escrevam de modo simples e útil. – Transições, desenvolvimentos,
matizes do afeto – de todas essas coisas dispensamos o autor, porque as
trazemos conosco e com elas beneficiamos seu livro, caso ele mesmo nos
beneficie em algo.
FWS 52. Escrevendo com o pé
Não escreve somente com a mão:
O pé também dá sua contribuição.
Firme, livre e valente ele vai
Pelos campos e pela página.
WS 131. Melhorar o pensamento. – Melhorar o estilo – significa melhorar o
pensamento, e nada senão isso! – Quem não o admite imediatamente,
também jamais se convencerá disso.
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FW 376. Nossos tempos lentos. – Assim sentem todos os artistas e seres de
“obras”, o tipo materno de ser humano: sempre crêem, a cada período de sua
vida – que é fechado por uma obra –, ter alcançado o objetivo dela, sempre
encarariam pacientemente a morte, com o sentimento que diz: “Estamos
maduros para isso.” Isto não é expressão de cansaço – mas antes de uma
certa luminosidade e brandura outonal, que a obra mesma, o fato de ela
haver amadurecido, deixa no seu autor. Então fica mais lento o andamento
da vida, torna-se espesso como o mel – e chega a longas fermatas, à crença
na longa fermata...
JGB 290. Todo pensador profundo tem mais receio de ser compreendido de
que ser mal compreendido. Neste caso talvez sofra sua vaidade; mas
naquele sofrerá seu coração, sua simpatia, que sempre diz: “Oh, por que
desejam passar também por essas coisas?”
FW 381. A questão da compreensibilidade. – Não queremos apenar ser
compreendidos ao escrever, mas igualmente não ser compreendidos. De
forma nenhuma constitui objeção a um livro o fato de uma pessoa achá-lo
incompreensível: talvez isso estivesse justamente na intenção do autor – ele
não queria ser compreendido por “uma pessoa”. Todo espírito e gosto mais
nobre, quando deseja comunicar-se, escolhe também os seus ouvintes; ao
escolhê-los, traça de igual modo a sua barreira contra “os outros”. Todas as
mais sutis leis de um estilo têm aí sua procedência: elas afastam, criam
distância, proíbem “a entrada”, a compreensão, como disse – enquanto
abrem os ouvidos àqueles que nos são aparentados pelo ouvido. E, falando
cá entre nós, sobre o meu próprio caso – não desejo que minha ignorância e
a vivacidade de meu temperamento impeçam que eu lhes seja
compreensível, meus amigos: não a vivacidade, por mais que ela me obrigue
a lidar velozmente com algo, se chego a lidar com ele. Pois encaro os
problemas profundos como um banho frio – entrando rapidamente e saindo
rapidamente. Que assim não possamos chegar à profundidade, descer o
suficiente, é uma superstição dos que temem a água, dos inimigos da água
fria; eles falam sem experiência. Oh! o frio intenso torna veloz! – E
pergunto de passagem: uma coisa permanece de fato incompreendida e não
conhecida por ser apenas em vôo tocada, avistada, relampejada? É preciso
absolutamente ficar sobre ela? chocá-la como a um ovo? Diu noctuque
incubando [incubando-a dia e noite], como falou Newton a si mesmo? Pelo
menos existem verdades de particular timidez e melindre, que não podem
ser apanhadas senão de repente – que é preciso surpreender ou deixar de
lado... Por fim, minha brevidade tem ainda outro valor: dadas as questões
que me ocupam, tenho de dizer muita coisa brevemente, para que seja ainda
mais brevemente ouvida. Pois, sendo imoralista, deve-se prevenir a
corrupção da inocência, quero dizer, dos asnos e solteironas de ambos os
sexos, que nada têm da vida senão a própria inocência; mais até, meus
escritos devem arrebatá-los, elevá-los, encorajá-los a serem virtuosos. Eu
não saberia de nada mais jocoso neste mundo do que ver arrebatados velhos
asnos e solteironas, quando agitados pelos doces sentimentos da virtude: e
“isto eu vi” – assim falou Zaratustra. Isso quanto à brevidade; a coisa é pior
no que toca à minha ignorância, da qual a mim mesmo não faço segredo. Há
93
momentos em que dela me envergonho; é certo que também há momentos
em que me envergonho dessa vergonha. Talvez todos nós, filósofos,
estejamos atualmente mal colocados em relação ao saber: a ciência cresce,
os mais eruditos entre nós estão quase a descobrir que sabem muito pouco.
Mas seria ainda pior se fosse diferente – se soubéssemos demais; nossa
tarefa é e continua sendo, antes de tudo, não nos confundirmos com outros.
Nós somos algo diferente de eruditos: embora seja inevitável que, entre
outras coisas, também sejamos eruditos. Temos outras necessidades, outro
crescimento, outra digestão: precisamos de mais, também precisamos de
menos. Não existe fórmula para o quanto um espírito necessita para a sua
nutrição; mas, se tem o gosto orientado para a independência, para o rápido
ir e vir, para andanças, talvez para aventuras, de que somente os mais
velozes são capazes, então prefere viver livre e com pouco alimento, do que
preso e empanturrado. Não é gordura, mas maior flexibilidade e força,
aquilo que um bom dançarino requer da alimentação – e eu não saberia o
que o espírito de um filósofo mais poderia desejar ser, senão um bom
dançarino. Pois a dança é o seu ideal, também a sua arte, e afinal sua única
devoção também, seu “culto divino”... [cf. MA 206]
FWS 59. A pena rabisca
A pena rabisca: que inferno!
Estarei condenado a garatujar? –
Então recorro audacioso ao tinteiro
E escrevo sinuosos rios de tinta.
Como tudo flui, tão largo e tão pleno!
Como me sai bem tudo o que faço!
É verdade que a escrita não é legível –
Que importa? Quem lê o que escrevo, enfim?
4a. Ainda para uma ética da escrita:
questões de excesso e prudência
MA 195. Tal como os gregos. – Nos dias de hoje é um grande obstáculo
para o conhecimento o fato de, graças a uma exacerbação do sentimento que
já dura um século, as palavras terem se tornado vaporosas e infladas. O grau
superior da cultura, que se coloca sob o domínio (se não sob a tirania) do
conhecimento, tem necessidade de uma grande sobriedade do sentimento e
forte concentração de palavras; nisso os gregos da época de Demóstenes nos
precederam. O exagero caracteriza os textos modernos; e mesmo quando
são escritos de maneira simples, as palavras que contêm são sentidas muito
excentricamente. Reflexão severa, concisão, frieza, simplicidade
deliberadamente levada ao extremo; em suma, restrição do sentimento e
laconismo – só isso pode ajudar. – Aliás, esse modo frio de escrever e sentir
é agora, por contraste, muito sedutor: e aí está um novo perigo, certamente.
Pois o frio agudo é um estimulante tão bom quanto o calor elevado. [cf. MA
204, 343, VM 141, WS 106, 148]
94
WS 148. O estilo grandioso e o que é superior. – Aprende-se mais
rapidamente a escrever de modo grandioso do que a escrever de maneira
leve e simples. As razões para isso se perdem no âmbito moral.
WS 120. O estilo rebuscado. – O estilo bem achado é uma ofensa para o
amigo do estilo rebuscado.
VM 141. Marca de distinção. – Todos os poetas e escritores apaixonados
pelo superlativo querem mais do que podem.
MA 204. O escuro e o muito claro bem próximos. – Escritores que em geral
não sabem dar clareza a suas idéias preferirão, em casos particulares, os
termos e superlativos mais fortes, mais exagerados: o que produz um efeito
semelhante à luz de archotes em emaranhados caminhos da floresta.
FW 97. A loquacidade dos escritores. – Existe uma loquacidade da ira –
freqüente em Lutero, assim como em Schopenhauer. Uma loquacidade
devida a uma provisão demasiado grande de fórmulas conceituais, como
sucede em Kant. Uma loquacidade pelo prazer em facetamentos sempre
novos da mesma coisa: encontrada em Montaigne. Uma loquacidade de
naturezas pérfidas: quem lê escritos atuais se lembrará de dois escritores
desse tipo. Uma loquacidade por prazer com palavras e formas de
linguagem boas: não é rara na prosa de Goethe. Uma loquacidade por íntimo
deleite com o ruído e desordem das emoções: em Carlyle, por exemplo.
MA 194. Os bufões da cultura moderna. – Os bufões das cortes medievais
correspondem aos nossos folhetinistas; é o mesmo tipo de homens, semi-
racionais, espirituosos, exagerados, tolos, às vezes presentes tão-só para
amenizar o pathos de um estado de espírito através de repentes e de
tagarelice, e para abafar com seu alarido o toque de sino pesado e solene dos
grandes eventos; outrora a serviço de príncipes e nobres, agora a serviço dos
partidos (tanto que no espírito e na disciplina do partido sobrevive hoje uma
boa parte da antiga submissão do povo no relacionamento com o príncipe).
Mas toda a classe dos literatos modernos está muito próxima dos
folhetinistas, são os “bufões da cultura moderna”, que julgamos mais
suavemente, ao não tomá-los como inteiramente responsáveis. Tomar a
atividade de escrever como uma profissão da vida inteira deveria
razoavelmente ser considerado uma espécie de loucura.
VM 114. A realidade seleta. – Assim como o bom prosador usa apenas
palavras da linguagem corrente, mas de maneira nenhuma todas as palavras
dela – é justamente assim que nasce o estilo seleto –, o bom escritor do
futuro apresentará somente coisas reais, prescindindo totalmente dos
assuntos fantásticos, supersticiosos, quase honestos, desbotados, nos quais
os escritores de antes mostravam a sua força. Apenas realidade, mas de
maneira nenhuma toda realidade! – e sim uma realidade seleta!
WS 127. Contra os inovadores da linguagem. – Inovar ou arcaizar na
linguagem, dar preferência ao raro e estranho, buscar a riqueza do
vocabulário, em vez da restrição, é sempre um indício de gosto imaturo ou
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estragado. Uma nobre pobreza, mas uma liberdade magistral no interior da
propriedade singela é o que distingue os artistas gregos do discurso: eles
querem ter menos que o povo – pois esse é o mais rico, no antigo e no novo
–, mas querem ter esse menos melhor. Podemos rapidamente enumerar seus
arcaísmo e estranhezas, mas não tem fim a nossa admiração, quando
sabemos enxergar a forma delicada e ligeira do seu trato com o que há de
cotidiano e aparentemente gasto nas palavras e locuções.
4b. Escrita, moral, história:
sobre literatura erudita, religiosa e de formação (Bildungsromans)
WS 114. Literatura e moralidade explicando uma a outra. – Pode-se
mostrar, com a literatura grega, que forças fizeram o espírito grego se
desenvolver, como ele encetou caminhos diversos e o que o enfraqueceu.
Tudo isso produz um quadro do que, no fundo, sucedeu também à
moralidade grega e sucederá a toda moralidade: como primeiro foi coação,
primeiro mostrou dureza, depois gradualmente se tornou branda, como
finalmente houve prazer com determinadas ações, determinadas formas e
convenções, e a partir disso uma tendência à prática e à posse delas
exclusivamente: como o caminho se enche e transborda de competidores,
como sobrevém a saciedade, novos objetos de luta e de ambição são
buscados e objetos envelhecidos são chamados à vida, como o espetáculo se
repete e os espectadores se cansam de olhar, pois então o círculo todo
parece percorrido – e vem um repouso, uma última respiração: os riachos se
perdem na areia. É o fim, ao menos um fim.
FW 92. Prosa e poesia. – Observe-se que os grandes mestres da prosa
foram quase sempre poetas também, seja publicamente ou apenas em
segredo e “para íntimos”; e, de fato, apenas em vista da poesia se escreve
boa prosa! Pois esta é uma ininterrupta e amável guerra com a poesia: todo
o seu charme consiste em que a poesia é sempre evitada e contrariada; toda
abstração quer ser expressa com voz zombeteira, digamos, como esperteza
em relação a esta; toda secura e frieza deve impelir a suave deusa a um
suave desespero; com freqüência há aproximações, conciliações do
momento, e logo um súbito recuo e gargalhada; com freqüência é levantada
a cortina e deixa-se entrar a luz crua, no preciso instante em que a deusa está
fruindo a penumbra e as cores baças; com freqüência lhe é tirada a palavra
da boca e cantada numa melodia que a faz cobrir os delicados ouvidos com
as delicadas mãos – e assim há muitos e muitos prazeres nesta guerra,
incluindo as derrotas, das quais os homens não poéticos, os chamados
homens prosaicos, nada entendem: - eles escrevem e falam somente prosa
ruim! A guerra é a mãe de todas as coisas boas, ela é também a mãe da boa
prosa! – Houve, neste século, quatros homens bastante singulares e
verdadeiramente poéticos que alcançaram mestria na prosa, para a qual o
século não foi feito, aliás – por falta de poesia, como indiquei. Não
considerando Goethe, justamente reivindicado pelo século que o produziu,
vejo apenas Giacomo Leopardi, Prosper Mérimée, Ralph Waldo Emerson e
Walter Savage Landor, o autor das Imaginary conversations, como dignos
de serem chamados mestres da prosa.
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FW 366. Diante de um livro erudito. – Não somos daqueles que só em meio
aos livros, estimulados por livros, vêm a ter pensamentos – é nosso hábito
pensar ao ar livre, andando, saltando, subindo, dançando, preferivelmente
em montes solitários ou próximo ao mar, onde mesmo as trilhas se tornam
pensativas. Nossas primeiras perguntas, quanto ao valor de um livro, uma
pessoa, uma composição musical, são: “É capaz de andar? Mais ainda, é
capaz de dançar?”... Nós lemos pouco, mas por isso não lemos pior – oh,
como rapidamente adivinhamos de que modo alguém chegou a seus
pensamentos, se o fez sentado em frente ao tinteiro, com o estômago
apertado, a cabeça curvada sobre o papel: oh, como também rapidamente
acabamos seu livro! As vísceras contraídas se revelam, pode-se apostar, e
igualmente o ar abafado, o teto do quarto, a estreiteza do quarto. – Estes
foram agora meus sentimentos, quando fechei um honesto livro erudito,
grato, muito grato, mas também aliviado... No livro de um erudito há quase
sempre algo opressivo, oprimido: em algum lugar, vem à luz o
“especialista”, seu zelo, sua gravidade, sua ira, sua sobrestimação do canto
no qual fica e tece, sua corcunda – todo especialista tem sua corcunda. Um
livro erudito sempre espelha igualmente uma alma entortada: todo ofício
entorta. Veja-se novamente os amigos que se teve na juventude, depois que
tomaram posse de sua ciência: ah, como sempre ocorre também o oposto!
Ah, como eles mesmos ficam sempre tomados e possuídos por ela!
Arraigados em seu canto, irreconhecíveis, de tão enrugados, sem liberdade,
privados de seu equilíbrio, emagrecidos e em toda parte angulosos, apenas
num ponto completamente redondos – ficamos impressionados e
silenciosos, ao reencontrá-los assim. Todo ofício, mesmo tendo uma base de
ouro, tem também sobre si um teto de chumbo, que pressiona e comprime a
alma até que ela fique estranha e torta. Nada se pode fazer quanto a isso.
Não se pense que é possível contornar esta deformação com alguma arte da
educação. Toda espécie de mestria tem um alto preço neste mundo, onde
tudo talvez saia muito caro; quem é senhor do seu mister paga o preço de ser
também sua vítima. Mas vocês querem que isto seja diferente – “mais justo”
[billiger], sobretudo mais cômodo – não é verdade, caros contemporâneos?
Muito bem! Mas então vocês logo obtêm outra coisa, ou seja, em vez do
artesão e mestre o literato, o hábil e “polidestro” literato, que certamente
não tem corcunda – salvo aquela que ele faz antes vocês, como balconista
do espírito e “portador” da cultura –, o literato que nada é propriamente,
mas “representa” quase tudo, que faz o papel do conhecedor e o “substitui”,
que em toda a modéstia também cuida de fazer-se pago, respeitado e
festejado no lugar daquele. – Não, meus eruditos amigos! Eu os abençôo até
mesmo por sua corcunda! E por desprezarem, como eu, os literatos e
parasitas da cultura! E por não saberem mercadejar com o espírito! E terem
opiniões que não se expressam em valor monetário! E por não
representarem o que não são! Pelo fato de que sua única vontade é ser
mestre de seu ofício, com respeito por toda espécie de mestria e
competência e implacável rejeição de tudo o que é aparente, semigenuíno,
enfeitado, virtuosístico, demagógico e histriônico in litteir er artibus [nas
letras e artes] – de tudo aquilo que não possa apresentar-se ante vocês com
absoluta probidade de disciplina e aprendizado! (Mesmo o gênio não leva a
compensar tal deficiência, por mais que saiba induzir a ignorá-la: isso
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compreendemos ao observar de perto os nossos mais talentosos pintores e
compositores – que, quase sem exceção, com astuciosa engenhosidade de
maneiras, de expedientes, mesmo de princípios, sabem adquirir depois,
artificialmente, a aparência desta probidade, desta solidez de educação e
cultura, por certo que sem enganar a si mesmo, sem calar permanentemente
sua própria má consciência. Pois, vocês sabem, todos os grandes artistas
modernos sofrem de má consciência...)
MA 196. Bons narradores, maus explicadores. – Nos bons narradores há
frequentemente uma segurança e coerência psicológica admirável, na
medida em que ela se mostra nos atos de seus personagens, num contraste
francamente ridículo com a ineptidão do seu pensamento psicológico: de
modo que sua cultura parece, num dado instante, excelente e elevada, e
lamentavelmente baixa no instante seguinte. Acontece com muita freqüência
que eles expliquem seus heróis e as ações destes de maneira visivelmente
errada – quanto a isso não há dúvida, embora pareça improvável. Talvez o
maior dos pianistas tenha refletido pouco sobre as condições técnicas e a
especial virtude, falha, utilidade e educabilidade de cada dedo (ética
dactílica), cometendo erros grosseiros ao falar dessas coisas.
MA 343. O narrador. – Quem narra alguma coisa, logo deixa perceber se
narra porque o fato lhe interessa ou por querer despertar o interesse
mediante a narrativa. Neste caso ele exagera, usa superlativos e faz outras
coisas assim. Então ele geralmente não narra tão bem, porque pensa mais
em si do que no assunto. [cf. sessão anterior, “Questão do excesso e da
prudência”]
VM 32. A suposta “realidade real”. – Ao retratar as diferentes profissões –
por exemplo, as de general, tecelão, marinheiro –, o escritor faz como se
conhecesse profundamente essas coisas e fosse alguém que sabe, mais
ainda, na exposição dos atos e destinos humanos ele age como se tivesse
presenciado o tecer da trama do mundo: nisso ele é um enganador. Engana
aqueles que não sabem – por isso tem êxito: esses lhe elogiam o autêntico e
profundo saber, e enfim o induzem à ilusão de que realmente sabe as coisas
tão bem quanto aqueles que as conhecem e fazem, até mesmo como a
grande aranha tecedora do mundo. Por fim, o enganador se torna sincero e
acredita na sua veracidade. Sim, os homens sensíveis chegam a lhe dizer
claramente que ele tem a superior verdade e veracidade – pois estão
momentaneamente cansados da realidade e tomam o sonho poético como
uma benéfica distração e noite para a cabeça e o coração. O que este sonho
lhes mostra parece ter mais valor então, porque, como dissemos, eles o
sentem como algo mais benéfico: e os homens sempre acharam que o que
parece mais valioso é o mais verdadeiro, o mais real. Os escritores, que são
cônscios desse poder, procuram intencionalmente difamar o que
habitualmente se chama realidade e convertê-la no incerto, aparente,
inautêntico, pleno de pecado, engano e sofrimento; utilizam todas as
dúvidas quanto aos limites do conhecimento, todos os exageros do
ceticismo, para estender sobre as coisas os pregueados véus da incerteza:
para que então, após esse escurecimento, seus sortilégios e a magia que
98
exercem sejam entendidos, muito irrefletidamente, como caminho para a
“verdadeira verdade”, para a “realidade real”.
VM 250. Motivo de aversão. – Tornamo-nos hostis a vários artistas e
escritores, não porque finalmente notamos que eles nos enganaram, mas
porque não julgaram necessário usar meios mais sutis para nos prender.
WS 79. Palavras e escritos dos religiosos. – Quando o estilo e a expressão
geral do sacerdote, falando e escrevendo, não anunciam já o homem
religioso, então nem é preciso levar a sério suas opiniões sobre religião e em
favor dela. Elas se tornaram sem força para o possuidor mesmo, quando ele,
como revela seu estilo, tem ironia, presunção, malícia, ódio e todas as
reviravoltas do ânimo, exatamente como o mais irreligioso dos homens; – e
tanto menos fortes serão elas para seus ouvintes e leitores! Em suma, ele
contribuirá para torná-los menos religiosos.
WS 100. Poder saborear também o contrário. – Para fruir uma obra do
passado como seus contemporâneos a percebiam, é preciso ter no paladar o
gosto então vigente, em relação ao qual ela se destacou.
5. Escrita, experimentação, alteridade: superação de si mesmo, vitória (em
oposição à identidade e à confissão)39
VM 163. Todo começo é um perigo. – O poeta tem a escolha: ou fazer subir
o sentimento de um degrau ao outro, finalmente erguendo-o bastante alto,
ou experimentar um ataque de surpresa, puxando já de início com toda a
força a corda do sino. As duas opções têm seus perigos: no primeiro caso, o
tédio talvez afugente o espectador: no segundo, o medo.
JGB 161. Os poetas não têm pudor em relação às próprias experiências: eles
as exploram.
VM 166. Querer vencer. – Um artista que, em tudo o que empreende, vai
além de suas forças, acaba por arrastar a multidão, com o espetáculo da
poderosa luta que proporciona: pois nem sempre o êxito se acha apenas na
vitória; às vezes já está no querer vencer.
VM 152. Escrever e querer vencer. – Escrever deveria sempre indicar uma
vitória, uma superação de si mesmo, que deve ser comunicada para
benefício dos outros; mas há autores dispépticos, que escrevem apenas
quando não conseguem digerir algo, e mesmo quando esse algo lhes ficou
nos dentes: involuntariamente procuram aborrecer também o leitor com seu
desgosto, e assim exercer algum poder sobre ele, isto é: também eles
querem triunfar, mas sobre os outros.
39
Cf. NIETZSCHE, 2009, “De la superación de si mismo”.
99
WS 344. Como é preciso vencer. - Não se deve querer vencer, quando se
tem somente a perspectiva de superar o adversário por um fio de cabelo. A
boa vitória precisa deixar o vencido com disposição alegre, ela precisa ter
algo de divino, que evita a humilhação.
FW 93. Mas por que você escreve? – A: Eu não sou daqueles que pensam
tendo na mão a pena molhada; tampouco daqueles que diante do tinteiro
aberto se abandonam as suas paixões, sentados na cadeira e olhando
fixamente para o papel. Eu me irrito ou me envergonho do ato de escrever;
escrever é para mim uma necessidade imperiosa – falar disso, mesmo por
imagens, é algo que me desgosta. B: Mas por que você escreve então? A: Cá
entre nós, meu caro, eu não descobri ainda outra maneira de me livrar de
meus pensamentos. B: E por que você quer se livrar deles? A: Por que eu
quero? E eu quero? Eu preciso. – B: Basta! Basta!
100
IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não o prazer, não a glória, não o poder: a liberdade, unicamente
a liberdade.
Passar dos fantasmas da fé para os espectros da razão é somente
ser mudado de cela. A arte, se nos liberta dos manipansos
assentes e abstratos, também nos liberta das ideias generosas e
das preocupações sociais – manipansos também.
Encontrar a personalidade na perda dela a mesma fé abona esse
sentido de destino.
Fernando Pessoa, Livro do desassossego, 34.
Nosso trabalho, como se procurou entendê-lo e apresentá-lo, se deu a tarefa de
reintroduzir alguns temas nietzscheanos no seu contexto histórico-filosófico, trazendo
novas possibilidades de leituras sobre a própria obra do filósofo alemão, principalmente
no que concerne a alguns temas do pensamento educacional contemporâneo. Essa
tarefa, por ora, se traduziu na cartografia de alguns aforismos e passagens que, muito
embora ainda desorganizadas e sem uma minuciosa interpretação, cumprem com seu
papel: esboçar uma espécie de ética da auto-educação ou educação por si próprio – e
para aí, então, perguntar: no que a escrita contribuiria para a educação, ou mesmo, para
a auto-educação em Nietzsche? Pergunta que talvez sempre tenha estado sob a espreita
de outra: é possível uma educação para a emancipação, para a autonomia, para a
liberdade? De qual liberdade está se falando?
Muitos trabalhos talvez já tenham se desdobrado sobre o problema da educação
e da liberdade – em diferentes tempos, por diferentes ideologias, com diferentes
abordagens. Contudo, o tema está longe de ser definido e, acima de tudo, cremos ainda
que esse é um problema e ser posto e reposto continuamente. Por que, o que mais
corresponderia a liberdade do que essa inquietação mesma com respeito aos nossos
ideias, nossos valores, nossas práticas, enfim, nossa própria educação? Tal
questionamento não só põe em questão o “ideal” de sujeito como questiona se também
haveria a possibilidade de que nos tornemos a imagem que fazemos de nós mesmos.
101
Iniciamos estas breves notas a partir de uma questão que, de antemão, não
pretendíamos responder. Nossas perguntas nos serviram como uma provocação, como
uma profanação do que hoje entendemos como educação. Não pretendemos, todavia,
fazer de nossas abordagens um motivo de engajamento e militância, ou mesmo um
estandarte ideológico. Essas interrogações, tais como as usufruímos, talvez pairassem
ora insinuante ora forçosamente constrangedoras, como uma ameaça e uma certeza, da
impotência e da exigência da educação para a sobrevivência. É a partir desta questão
que tentamos aproximar-nos das diferentes práticas e iniciativas, dos projetos e
discursos que versam acerca da educação contemporânea.
De fato, não nos detivemos, minuciosamente, sobre os aforismos selecionados.
Uma primeira razão para isso se deve à necessidade de traçar e observar um panorama o
mais amplo e em perspectiva possível de um só furo da agulha na história: Nietzsche, a
escrita e a educação. Um primeiro contato com o objeto. Se pudermos dizer, ainda, para
nós, intacto. Nosso trabalho se apresentou como uma aproximação a um problema de
pesquisa que surgiria no contato com essa fonte, esses documentos, com os recortes e
com a construção especulativa de suas relações e contextos histórico filosóficos que
emergissem da leitura e anotação. Uma outra razão pode ser a simples questão
metodológico de fazer seu caminho de pesquisa em partes, com seu devido tempo de
fruição e análise. Contudo, algumas considerações podem ser retiradas deste nosso
primeiro empreendimento.
Desta feita, diferentemente de uma doutrina teórica e técnica ou mesmo uma
pedagogia do exercício escritural, a partir dos diversos usos que fez da escrita, das
funções a ela atribuídas, dos deslocamentos e dos estilos que praticou com e sobre ela,
opondo-se mesmo a um projeto formativo ou uma literatura para a formação, queremos
crer que nos foi possível vislumbrar, de modo geral, uma ética da escrita na obra
nietzschiana. A escrita em Nietzsche estaria vinculada mais a um jogo ético instável,
arriscado e sem uma hierarquia de valores fixos, sem metas formativas muito explícitas
ou definitivas. Diversamente de uma viagem com um destino pré-determinado e até
mesmo esperado, imutável, a escrita estaria disposta no cerne de um complexo e errante
processo de constituição ética de si mesmo.
Entendendo ética como o campo do possível tanto para a liberdade quanto para o
poder, bem como um exercício de si sobre si (Foucault, 2006a), tal ética da escrita em
Nietzsche reconfigurou as hierarquias tradicionais das práticas pedagógicas modernas,
102
operando múltiplos deslocamentos nas relações e funções desempenhadas, por exemplo,
na relação entre mestre e discípulo ou na relação entre sujeito, escrita e verdade.
Com efeito, compartilhando da hipótese foucaultiana, cremos que Nietzsche de fato
realocou uma série de preceitos e práticas da antiguidade filosófica em sua própria
filosofia – por exemplo, o incessante exercício escritural e sua vida errante permeada
por caminhadas. Não obstante, Nietzsche também abriu novos horizontes ao processo
de formação e autogoverno da antiguidade, ao introduzir entre suas práticas a
investigação histórico-genealógica que, segundo ele, concedia ao investigador uma
felicidade de “não abrigar em si ‘uma alma imortal’, mas muitas almas mortais”
(Nietzsche, 2008b, p.22).
É nesse sentido também que o filósofo alemão dialoga e destoa de seus
contemporâneos, não só destituindo a credibilidade da função de educador como
salvador, mas indicando, ao invés de um projeto pedagógico definitivo, um processo
errático de formação. Partindo de um instinto que nele quer a vida e por isso conhece,
tal tarefa de tornar-se inclui exatamente todos os desvios que lhe são possíveis
apresentar. Da soma desses desvios e fragmentos, os remédios para seus estados de
fraqueza e sofrimento. Processo de educação por si mesmo ou de autoeducação pelo
qual não se buscaria uma identidade previamente determinada, um poder e controle total
sobre si e seu devir – mas, sim, um exercício contínuo de alteridade, propiciada pela
genealogia e pelo ascetismo, principalmente escritural, cujo fim talvez fosse o cultivo
de uma vitalidade, de uma vontade de saúde e de vida, processo de superar a si mesmo,
ir além do homem, tornar-se o que se pode ser.
A partir dessas primeiras conclusões, nosso problema de pesquisa poderia se
concentrar em quais são as práticas pelas quais um tipo de exercício de pensamento se
faz predominante – a ver, o exercício de pensamento das racionalidades pedagógicas.
Tais racionalidades de cunho pedagógico, no seu complexo enredo ético-moral,
procuram estabelecer uma norma de conduta para o indivíduo, por uma série de
pressuposições científicas e de senso comum (das aspirações a uma vida melhor por
qualquer que seja o meio às bases neuroquímicas do cérebro), ao mesmo tempo em que
exploram, nessa conduta, o valor da autoeducação como salvação – estar continuamente
atento a si mesmo, conhecendo-se, aprimorando-se, empreendendo em si mesmo todas
as práticas que nos são oferecidas como o único meio de alcançar uma vida “descente” e
“feliz” (termos tão universais quanto vagos).
103
Procuraremos, a seguir, como um posfácio ao nosso trabalho, fazer algumas
elucubrações sobre essa racionalidade pedagógica – e apontar certas suspeitas, cuidados
e perdições que deveremos encarar.
* * *
A contemporaneidade pedagógica, tal como a apreendemos em seus discursos e
práticas, defende, quase em uníssono, uma neutralidade a-ideológica das práticas
educacionais. Essas, por sua vez, são entendidas como um processo evolutivo que se
estende por toda a vida. No entanto, pressente-se e até se assume uma finalidade muito
clara nos valores explícitos e implícitos dos diferentes discursos científico-pedagógicos:
uma educação para a formação de um ser humano – formação esta para liberdade, para
a emancipação do ser humano. Nessa ideia de formação, como procuraremos ver,
datada de um idealismo/romantismo alemão, atribui-se um caráter formativo à
experiência humana, através de um movimento em direção a uma meta, uma forma.
Forma esta determinada por um conhecimento sobre a natureza humana. Forma esta
desenhada, projetada e praticada conforme a crença na excelência moral dessa natureza
humana. Por meio de uma esperada capacidade de conhecimento e de uma insolente
virtude de determinação de uma condição, idealiza-se um modo de vida.
Cremos que nesse esboço de um modo de pensamento pedagógico, dessa
caricatura de uma visão da pedagogia iluminista e romântica, Kant mesmo teria se
anteposto diante dessas pretensões e teria esclarecido que a posição crítica de todo
pensamento é determinar até onde o conhecimento é capaz de conhecer40
e a devida
coragem para se delimitar isso.
Posto isso, a pergunta a qual propomos poderia, enfim, se escrever desta
maneira: há – é possível – uma educação para emancipação do ser humano? – O que se
diz quando se diz “educação para a emancipação”? O que se faz em nome de? Do que o
ser humano se emancipa? – Estas perguntas, demasiado gerais, porém, expõem
questionamentos pertinentes às práticas educativas atuais. Expõem, de fato, um
questionamento “intrometido” a um dos conceitos mais caros à moderna civilização
ocidental – o conceito de liberdade.
40
Cf. KANT, I. O que é o esclarecimento?. Sobre este assunto, demasiado complexo e pouco conveniente
para ser tratado aqui, também cf. FOUCAULT, Michel. O que é a crítica? Crítica e Aufklärung.
(Conferência proferida em 27 de maio de 1978). “Qu'est-ce que la critique?” Critique et Aufklärung.
Bulletin de la Société française de philosophie, Vol. 82, nº 2, pp. 35 - 63, avr/juin 1990.
104
Após estas advertências, deixamos que esta primeira pergunta nos derive a
outras41
: o que pode ser uma educação – enquanto uma preparação, enquanto um
cuidado – que não visaria nem uma origem ou um destino, que não visaria nem mesmo
uma salvação (um homem de natureza livre, uma vida liberta)? Como pensar e quiçá
praticar uma educação, uma preparação, um cuidado que, em última instância, não
partindo de um princípio a priori, e prescindindo de um projeto formativo, se voltaria
para o que, se fundamentaria em que? Esses questionamentos não nos ensejam uma
projeção racional de como realmente pode ser uma educação dessas. Contudo, através
desses questionamentos, queremos analisar como racionalidades e práticas educativas
escolhem, constroem e projetam, arbitraria e negligentemente, noções de homem pelas
quais produzem processos formativos, enquadram populações em instituições
formativas, determinam fins políticos e morais para a vida.
Apesar de parecerem questões respondidas anteriormente por diversos
especialistas e vieses ideológicos, o que nos interessaria nessa pergunta sobre a
educação como emancipação é sua força para abalar um apelo teleológico pedagógico.
Com isso, queremos designar uma espécie de pulsão, uma espécie de exigência da
educação a qual, abalada no seu pressuposto teleológico, não estaria subordinada, a
priori, a nada. Não estaria subordinada a um deus, uma transcendentalidade,
conceito/pulsão desde há muito questionado, problematizado. Não estaria subordinada a
uma definição de homem, à ideia de uma vida humana social e biologicamente
entendida, forma esta cooptada pelo humanismo o qual, ao longo de uma história
recente, alimentou práticas deveras antilibertárias42
. Uma exigência da educação que
41
Menos radicais e mais pontuais, certamente, outras perguntas pertinentes poderiam ser as de Amélie
Oksenberg Rorty (1998), em seu ensaio intitulado The Ruling History of Education: “Discussões fecundas
e responsáveis da política educativa remetem inevitavelmente para questões filosóficas mais amplas, que
as sugerem e enquadram: essas questões são articuladas e examinadas de maneira mais precisa na teoria
moral e política, na epistemologia e na filosofia da mente. Quais são as finalidades próprias da
educação? (Preservar a harmonia da vida cívica? Salvação individual? Criatividade artística? Progresso
científico? Capacitar indivíduos para que façam escolhas sábias? Preparar cidadãos para entrar numa
força de trabalho produtiva?). Quem deve deter a responsabilidade primordial de formular a política
educativa? (Filósofos, autoridades religiosas, governantes, uma elite científica, psicólogos, pais ou
autarquias locais?). Quem deve ser educado? (Todos por igual? Cada um segundo o seu potencial? Cada
um segundo as suas necessidades?). Como é que a estrutura do conhecimento afecta a estruturação e a
sucessão das aprendizagens? (Será que é a experiência prática, ou a matemática, ou a história, que deve
fornecer o modelo de aprendizagem?). Que interesses devem guiar a escolha de um currículo? (A
obtenção de uma vantagem competitiva no mercado econômico internacional? A representatividade
religiosa, política ou étnica? A formação de uma sensibilidade cosmopolita?). Como devem as dimensões
intelectual, espiritual, cívica, moral, artística, psicológica e técnica da educação estarem relacionadas
entre si?” (p. 2) 42
Sobre este assunto, podemos recorrer às recentes investidas ocidentais “para libertar povos” sob
ditaduras, ao passo que eram antes, estas mesmas nações ocidentais, que promoviam e financiavam estes
governos totalitários. Não obstante, num viés contrário, na defesa de uma violência com um fim racional,
105
não estaria fundamentada nem na necessidade de uma razão e finalidade únicas (homem
racional ocidental, liberdade do indivíduo, etc.), nem numa técnica perfeita
(disciplinadora, construtivista, autoformadora, etc.), nem na crença em um estado, numa
amanhã, enfim, “livre”.
Todavia, como não cair num relativismo educacional? Como não cair num
niilismo pedagógico?
* * *
(...) Mas bem que ele quer ver e ter os olhos abertos para tudo o
que propriamente se passa no mundo; por isso não pode prender
seu coração com demasiada firmeza a nada de singular; tem de
haver nele próprio algo de errante, que encontra sua alegria na
mudança e na transitoriedade. (...)
Nietzsche, Humano, demasiado humano, 638.
(...) [a] atitude crítica não impede (...) que a crítica ponha
também (...) essa questão: o que o uso da razão, qual uso da
razão pode trazer efeitos quanto aos abusos do exercício de
poder e, por conseqüência, ao destino concreto da liberdade?
Michel Foucault, O que é crítica?
Destarte, tampouco nos interessou a perspectiva marxista ou a perspectiva neo-
liberalista como paradigmas de uma situação geral da educação. A nosso ver, ambas as
tendências político-econômicas ensejam as mesmas ambições pedagógicas: educar o ser
humano segundo uma definição de sua natureza, formando-o para um tipo específico de
sociedade, de “futuro”.
Como disse Rorty, todos os filósofos, todas as filosofias, mesmo não-
intencionalmente, se pretenderam pedagógicas, aspiraram “corrigir” o ser humano. Este
tipo de pensamento acerca da educação, de uma racionalidade pedagógica que nos torne
algo melhor do que somos, essa projeção de um outro homem segundo a imagem de um
homem ideal, diferente do que a autora afirma ser uma tradição filosófica de
o filósofo Maurice Merleau-Ponty (1968) faz uma contundente afirmação em seu livro Humanismo e
Terror: “A revolução assume e dirige uma violência que a sociedade burguesa tolera no desemprego e na
guerra e disfarça sob o nome da fatalidade. Mas todas as revoluções reunidas não derramaram mais
sangue que os impérios. Só há violências e a violência revolucionária deve ser preferida porque ela tem
um futuro de humanismo”.
106
governantes43
, essa “nova” tradição filosófica, tradição essencialmente iluminista,
cremos ser oriunda de toda essa problemática em torno da Bildung, da formação geral,
formação universal, ao mesmo tempo de uma formação individual, uma formação
pessoal, não obstante, uniforme, apoiada na idéia de um homem essencialmente livre,
de escolha e com uma capacidade, uma aptidão, um conhecimento racional capaz de
organizar, projetar, calcular e deliberar os melhores valores morais, as melhores ações
políticas. A noção de formação da Bildung é de que a vida transcorre num processo
evolutivo e progressista, na alcunha da melhora da vida do indivíduo. Intrigantemente,
cremos que é desta verve pedagógica que ambas as di ou tricotomias discursivas –
capitalista, marxista, totalitária – alimentam suas ambições de formação social para a
autonomia do indivíduo, para seu engajamento de maneira voluntária a uma forma de
vida, uma concepção de homem e de mundo, a fim de que seja possível o governo de si
e dos outros por discursos e práticas sociais constituídas dentro de um regime de
verdade, dentro de um sistema de valores aceito por um modo de vida vigente, num
dispositivo técnico-cultural dentro de um grupo político-social ou mesmo uma nação.
Nesse sentido, nossos primeiros questionamentos sobre as práticas e saberes
pedagógicos que emergiam no século XVIII e XIX, sobre a possibilidade e a finalidade
de uma educação para a autonomia e a emancipação, nos foram – e serão ainda – úteis
para pensar de que forma também é possível, longe de qualquer acosso civilizatório ou
evolucionista, longe de qualquer projeto completo ou por se fazer, evitando qualquer
essência idealista, pensar e praticar uma educação a partir de uma ética, quiçá, da
liberdade.
Porquanto, digamos então que foi esta hipotética ausência de finalidades últimas
para a educação que talvez nos aguilhoou o pensamento e nos fez estranhar e pensar as
práticas educativas coevas. Vislumbrar a aceitação da educação nos moldes
disciplinares modernos desde o ocidente ao oriente, por fascistas e capitalistas,
comunistas e religiosos é estranhar essa aceitação – talvez permissiva – de algo tão
arbitrário quanto necessário. A educação, entendida desde o século XVIII por Kant
como algo indispensável, não necessariamente precisaria ser pensada e fundamentada
por ciências absolutas do conhecimento sobre o homem e aplicada por meio de projetos
tecnocráticos de uma eficácia delirante.
43
“(...) daqueles que se presume preservarem e transmitirem — ou redirecionarem e transformarem — a
cultura da sociedade, o seu conhecimento e os seus valores” (RORTY, 1998, p. 1), com o intuito de que
fosse o governante o único instruído para perpetuar e regular uma cultura ou um modo de vida.
107
Com esse pensamento estrangeiro, errante, procuramos trazer outro olhar, talvez
ainda incerto, mas vital, acerca de possíveis rumos para a investigação e a prática
educativas contemporâneas.
* * *
Bem pode ser que [tudo] isso aconteça às vezes ao andarilho;
mas então vêm, como recompensa, as deliciosas manhãs de
outras regiões e dias, em que já no alvorecer da luz ele vê, na
névoa da montanha, os enxames das musas passarem dançando
perto de si, em que mais tarde, quando ele tranqüilo, no
equilíbrio da alma de antes do meio-dia, passeia entre árvores,
lhe são atiradas de suas frondes e dos recessos da folhagem
somente coisas boas e claras, os presentes de todos aqueles
espíritos livres, que na montanha, floresta e solidão estão em
casa e que, iguais a ele, em sua maneira ora gaiata, ora
meditativa, são andarilhos e filósofos.
Nietzsche, Humano, demasiado humano, 638.
Assim, lançamo-nos novamente à pergunta: será possível – existe a possibilidade
de uma educação para a liberdade, para a emancipação? Emancipação de que? De
algum estado de consciência? De alguma manipulação governamental ou econômica?
Não se vê que a sociedade que se produz é fruto de nossos processos educativos? Se
somos livres, como nos tornamos livres? Livres para fazer o que? Contradições
inveteradas.
Alastremos, então, a pergunta nietzscheana, que escancara a dimensão ética do
conhecimento e da verdade: até que ponto a verdade suporta sua incorporação?
(NIETZSCHE, 2007: 110) 44
. Ao assumirmos, ao incorporarmos uma verdade, o que ela
44
Cf. NIETZSCHE, 2007, aforismo 110: “(...) Pouco a pouco encheu-se o cérebro humano de tais juízos
e convicções, surgiu nesse emaranhado fermentação, combate e apetite de potência. Não somente
utilidade e prazer, mas toda espécie de impulsos tomava seu partido no combate pelas ‘verdades’; o
combate intelectual tornou-se ocupação, estímulo, vocação, dever, dignidade –: o conhecer e o esforço em
direção ao verdadeiro acabaram por entrar, como uma necessidade, na ordem das outras necessidades.
Desde então não somente a crença e a convicção, mas também o exame, a negação, a desconfiança, a
contradição, eram uma potência, todos os ‘maus’ instintos foram subordinados ao conhecimento e postos
a seu serviço e adquiriram o esplendor do permitido, honrado, útil e, por último, o olho e a inocência do
bom. O conhecimento tornou-se, pois, um pedaço da própria vida e como vida uma potência em constante
crescimento; até que, enfim, o conhecimento e aqueles antiqüíssimos erros fundamentais entraram em
choque, ambos como vida, ambos como potência, ambos no mesmo homem. O pensador: este é agora o
ser em que o impulso à verdade e aqueles erros conservadores da vida combatem seu primeiro combate,
depois que o impulso à verdade se demonstrou como uma potência conservadora da vida. Em proporção
com a importância desse combate, tudo o mais é indiferente: a pergunta última pela condição da vida é
108
nos faz fazer e dizer? Ao que ou a quem servimos quando de algo fazemos nossa
verdade? Será que ao incorporarmos a verdade, ela mesma não se vê na contradição ou
na sua impossibilidade entre seus desígnios e sua prática? A verdade da liberdade
resistirá a sua incorporação? Será possível “sermos” livres? A questão talvez não seja
chutar cachorro morto, mas nos livrar-nos de vez de certos hábitos do pensamento e da
ação.
Talvez a evidência e o esclarecimento não sejam mais do que névoa, musas e
folhagens de outras regiões e dias. E a filosofia, a prática filosófica de uma ética da
liberdade, mais do que ensinar e aprender, mais do que corrigir a miopia do passado e
do instante, abdicando da performatividade do futuro e da clareza, do “meio-dia” da
convicção e do fascínio, se faça sem destino, meditando os acontecimentos e ocupando-
se com sua loucura de inventar caminhos e mundos. Errando meticulosamente.
* * *
Ingênua e quiçá corajosamente, fizemo-nos pensar, com a força de outra
imagem, o movimento da educação ao longo de sua história, cheia de caminhos e
desvios, ao longo não tão de seus fracassos, como de suas errâncias. Com este sentido
de um processo educativo, buscamos passar por fora do regime de inteligibilidade da
razão projetista, do conhecimento sob a crença de uma eficácia pragmática e universal.
Usando desse recurso de imagem em movimento – demasiado retórico, admitamos –, a
errância nos permitiu destituir-nos do desejo de pensarmos num projeto ideal,
definitivo, com um destino talvez ainda mais glorioso, ainda mais semelhante à nossa
imaginação desse futuro.
A errância como um gesto, uma disposição – diferente de uma forma, uma
tékhné – de transtornar a viagem, de transtornar o processo pedagógico. Assumir os
desvios, coincidências e delírios como artifício de um método caótico e volitivo. Errar
não significa estar à deriva, como um estulto, a mercê dos ventos e das marés. Não
significa improviso; tampouco recorrer a um currículo pré-definido, estático. Errar,
nesse sentido, não é tão somente estar em contínua formação, formação por toda a vida,
uma etapa após a outra, num constructo ad infinitum evolutivo. Não é como maneira de
feita aqui, e aqui é feito o primeiro ensaio, com o experimento de responder a essa pergunta. Até que
ponto a verdade suporta sua incorporação? – eis a pergunta, eis o experimento”.
109
se vincular indefinidamente a uma viagem sem fim nem começo, mas de exatamente
transtornar o fim e o começo. Errar é reinventar sua chegada, acolher reinícios.
Em última instância, não há evolução, mas justaposições, transvalorações. É
pensar para além de um processo formativo racionalmente encadeado, desapegar-se da
lógica inevitável de uma forma projetada ou mesmo desligar-se da associação da vida
humana – de seus desejos, de seus pensamentos – a uma explicação, a uma forma. Esta,
se tal como um sonho delirante, uma ilusão verdadeira que alimenta demo-nos como
uma medida insensata, oportunamente prudente para o instante, porém convicta de seu
nonsense (ou melhor, de sua insignificância), pode permitir-nos, para além de uma força
de verdade e aquém de uma renúncia de si, entreolharmos, com frieza e curiosidade, a
proliferação volitiva de numerosas formas de vida humana: fonte pedagógica vital para
a sobrevivência da própria humanidade.
Porquanto, encontrar aquilo que nos vitaliza não é questão de especialidade, de
competência ou diploma, até porque as questões quando o são, são vitais e, porque o
são, pervertem a sensibilidade escolar que nos quer a todos participantes “de uma
sociedade-escola em que o governo não é mais do que a autoridade dos melhores da
turma”45
. Isto, em qualquer discursividade racional moderna. Os “melhores da turma”
constituem, então, uma moral redentora, uma moral apologética de um método ou
processo formativo eficaz, através do saber e da técnica, para tornar o ser humano livre.
E, consequentemente, constituem também uma moral – um medo, um embaraço – frente
à experimentação e à errância pedagógicas46
.
Cheguemos a pensar, enfim, com Kafka, que talvez toda precaução, todo
cuidado para com a construção de si mesmo, exige precisamente um risco de vida. Para
conhecer-se talvez seja preciso perder-se. Para formar-se talvez seja preciso errar, sem
um fim último – a não ser, tornar-se o que se é. E, apesar de não nos salvarmos nunca,
talvez não seja possível viver sem uma tal meta, uma tal esperança.
– Mas o que importa tudo isto?
O que importa, então? O que pode ensinar-nos a obra de arte acerca
das relações humanas em geral? Que espécie de exigência nela se
anuncia, de modo que não possa ser captada por nenhuma das formas
morais em curso, sem tornar culpado quem a ignora, nem inocente
45
Cf. GODOY, 2011. 46
Nascidos dos segredos da manhã, [andarilhos e filósofos] meditam sobre como pode o dia, entre a
décima e décima segunda badalada, ter um rosto tão puro, translúcido, transfiguradamente sereno: –
buscam a filosofia de antes do meio-dia. (NIETZSCHE, 2006b, 638.)
110
quem pensa realizá-la, livrando-nos de todas as injunções do “Eu
devo”, de todas as pretensões do “Eu quero”, para nos deixar livres?
Entretanto, nem livres, nem privados de liberdade, como se ela nos
atraísse a um ponto onde, esgotado o ar do possível, oferece-se a
relação nua que não é um poder, que precede até mesmo a toda
possibilidade de relação. (BLANCHOT, 2005)
111
V. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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