"Neoplatonismo e Religiosidade no Conto 'Super Flumina Babylonis', de Jorge de Sena: da tristeza à...

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NEOPLATONISMO E RELIGIOSIDADE NO CONTO “SUPER FLUMINA BABYLONIS”, DE JORGE DE SENA: DA TRISTEZA À ESPERANÇA 1 Adriano Tarra Betassa Tovani Cardeal (UNESP), [email protected] Orientadora: Profa. Dra. Maria Lúcia Outeiro Fernandes (UNESP) RESUMO: Jorge Cândido de Sena (1919-1978), conspícuo camonista luso-brasileiro, empe- nhou anos de sua vida aos estudos da magna produção poética de Luís Vaz de Camões (1524- 1580), a quem aquele consagrou alguns de seus escritos não só de crítica, mas também de fac- tual criação literária. Uma dessas composições foi o conto Super Flumina Babylonis, dado a lume, pela vez primeira, no livro Novas andanças do demônio (1966), após o que se republi- cou em Camões dirige-se aos seus contemporâneos e outros textos (1973). No decurso des- se conto, há aspectos correlatos ao conceito filosófico denominado Neoplatonismo, cuja influ- ência permeou muitas composições poéticas de Luís de Camões, o qual, havendo sido tomado por personagem protagonística do precitado texto de Sena, por este é apresentado qual alguém alquebrado e alijado do direito de continuar ladeando a Poesia, da qual, não obstante, o bardo lusitano insta em pretender reaproximar-se para requerer-lhe subsídio que a ele permita erigir, com “engenho e arte”, um derradeiro poema que conceda ao melancólico gênio português rea- ver seu ânimo para permanecer nas terreais veredas, algo auferido pelo sustentáculo temático da religiosidade judaico-cristã, a qual é recordada pela persona camoniana a quem é conferido, quase epifanicamente, o desafogo de seus pesares. PALAVRAS-CHAVE: Jorge de Sena; Neoplatonismo camoniano; Judaico-cristianismo. De saída, necessárias são certas considerações alusivas ao conto “Super Flumina Ba- bylonis”, que “[...] toma por base a biografia de Pedro de Mariz, impressa na edição de Os Lu- síadas, comentados pelo padre Manuel Correia em 1613 [...]” (NEVES, 2011, p. 901). É nesse conto que irrompe, “[...] ficcionalmente, um Camões doente e alquebrado, abandonado por to- dos e também pela poesia no momento de compor a paráfrase do Salmo 136 [...], paráfrase es- sa que lhe havia sido encomendada e que o poeta transforma no seu testamento poético’” (op. cit., idem, ibidem). Sobre Jorge de Sena, afirma-se que as suas histórias são “[...] narrativas nas quais se compaginam o dado imaginário, eruditivo e observado, num amálgama alegórico que [...] se cristaliza num realismo mágico ou poético” (MOISÉS, 1975, p. 29), elementos que nós observamos no decurso diegético do “Super Flumina Babylonis”, acerca de cujo protagonista, Luís de Camões, não se vê demérito algum em, ainda hodiernamente, enxergá-lo qual um dos maiores representantes do denominado homo universalis, havido como “[...] tipo modélico que o Renascimento fixou [...], figura ideal do homem no seu tempo [...]” (SPINA, 2010, p. 40) de que, notória e fartamente, o próprio Camões participava. Ademais, é preciso apresentar-se, do 1 Texto originalmente dado à estampa nos Anais do XIV Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, cuja comunicação houve aos 31.10.2013, na Faculdade de Ciências e Letras da Universi- dade Estadual Paulista (FCL-UNESP), campus de Araraquara.

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NEOPLATONISMO E RELIGIOSIDADE NO CONTO “SUPER FLUMINA

BABYLONIS”, DE JORGE DE SENA: DA TRISTEZA À ESPERANÇA1

Adriano Tarra Betassa Tovani Cardeal (UNESP), [email protected]

Orientadora: Profa. Dra. Maria Lúcia Outeiro Fernandes (UNESP)

RESUMO: Jorge Cândido de Sena (1919-1978), conspícuo camonista luso-brasileiro, empe-

nhou anos de sua vida aos estudos da magna produção poética de Luís Vaz de Camões (1524-

1580), a quem aquele consagrou alguns de seus escritos não só de crítica, mas também de fac-

tual criação literária. Uma dessas composições foi o conto “Super Flumina Babylonis”, dado a

lume, pela vez primeira, no livro Novas andanças do demônio (1966), após o que se republi-

cou em Camões dirige-se aos seus contemporâneos e outros textos (1973). No decurso des-

se conto, há aspectos correlatos ao conceito filosófico denominado Neoplatonismo, cuja influ-

ência permeou muitas composições poéticas de Luís de Camões, o qual, havendo sido tomado

por personagem protagonística do precitado texto de Sena, por este é apresentado qual alguém

alquebrado e alijado do direito de continuar ladeando a Poesia, da qual, não obstante, o bardo

lusitano insta em pretender reaproximar-se para requerer-lhe subsídio que a ele permita erigir,

com “engenho e arte”, um derradeiro poema que conceda ao melancólico gênio português rea-

ver seu ânimo para permanecer nas terreais veredas, algo auferido pelo sustentáculo temático

da religiosidade judaico-cristã, a qual é recordada pela persona camoniana a quem é conferido,

quase epifanicamente, o desafogo de seus pesares.

PALAVRAS-CHAVE: Jorge de Sena; Neoplatonismo camoniano; Judaico-cristianismo.

De saída, necessárias são certas considerações alusivas ao conto “Super Flumina Ba-

bylonis”, que “[...] toma por base a biografia de Pedro de Mariz, impressa na edição de Os Lu-

síadas, comentados pelo padre Manuel Correia em 1613 [...]” (NEVES, 2011, p. 901). É nesse

conto que irrompe, “[...] ficcionalmente, um Camões doente e alquebrado, abandonado por to-

dos e também pela poesia no momento de compor a paráfrase do Salmo 136 [...], paráfrase es-

sa que lhe havia sido encomendada e que o poeta transforma no seu ‘testamento poético’” (op.

cit., idem, ibidem). Sobre Jorge de Sena, afirma-se que as suas histórias são “[...] narrativas nas

quais se compaginam o dado imaginário, eruditivo e observado, num amálgama alegórico que

[...] se cristaliza num realismo mágico ou poético” (MOISÉS, 1975, p. 29), elementos que nós

observamos no decurso diegético do “Super Flumina Babylonis”, acerca de cujo protagonista,

Luís de Camões, não se vê demérito algum em, ainda hodiernamente, enxergá-lo qual um dos

maiores representantes do denominado homo universalis, havido como “[...] tipo modélico que

o Renascimento fixou [...], figura ideal do homem no seu tempo [...]” (SPINA, 2010, p. 40) de

que, notória e fartamente, o próprio Camões participava. Ademais, é preciso apresentar-se, do

1 Texto originalmente dado à estampa nos “Anais do XIV Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação

em Estudos Literários”, cuja comunicação houve aos 31.10.2013, na Faculdade de Ciências e Letras da Universi-

dade Estadual Paulista (FCL-UNESP), campus de Araraquara.

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“Super Flumina Babylonis”, seu motivo, tido como “[...] todo elemento linguístico que recorre

com insistência na obra de um escritor [...]” (WEBER apud MOISÉS, 2004, p. 310). Destarte,

o motivo literário nesse conto não depende, exclusivamente, dos valores partícipes do Cristia-

nismo, ainda que a mundividência neoplatônica propicie que se lhe irmanem muitos conceitos

de que ainda se apropria o pensamento cristão: a)gaqw/n (bonum/“Bem”), demiourgo/j (crea-

tor/“criador”), a)marti/a (peccatum/“pecado”), yuxh/ (anima/“alma”), a)qanasi/a (immorta-

litas/“imortalidade”), ka/qarsij (purgatio/“purificação”), dai/mon (daemon/”demônio”) etc.

Crendo-se na asserção de que “[...] o comentário é uma espécie de tradução feita pre-

viamente à interpretação, inseparável dela essencialmente, mas teoricamente podendo consis-

tir numa operação separada”, na qual ele “[...] é tanto mais necessário quanto mais se afaste a

poesia de nós, no tempo e na estrutura semântica [...]” (CÂNDIDO, 2006, p. 27), façamo-lo, a

contento, também quanto ao “Super Flumina Babylonis”. Outrossim, em nossas elucubrações,

acompanhamos as teorias afirmadoras de que “[...] analisar é o primeiro passo ao exercício da

crítica [...]”, pois as análises se “[...] caracterizam pelo fato de constituírem uma vivência pes-

soal, que retoma ou prolonga a experiência de outro” (GUELFI, 1995, p. 7). Também, fiando-

-nos nas palavras doutro crítico literário, sabemos que “[...] a análise comporta, praticamente,

o aspecto de comentário puro e simples, que é levantamento de dados exteriores à emoção po-

ética [...]” (CÂNDIDO, op. cit., p. 29). Além disso, é imprescindível ter-se em conta que “[...]

a interpretação de um texto, quando feita por uma só pessoa, é, necessariamente, incompleta,

aberta à complementação de enriquecedoras leituras [...]” (GOLDSTEIN, 2011, p. 99).

Retomemos a afirmação de que, nesse conto – gênero definido como sendo “[...] uma

narrativa unívoca, univalente: constitui unidade dramática, célula dramática, visto gravitar ao

redor de um só conflito, um só drama, uma só ação” (MOISÉS, 2012, p. 268) –, há duas temá-

ticas fulcrais a que se prende, a do Cristianismo e a do Neoplatonismo, estúltimo encetado nas

considerações postas na obra Theologia Platonica, de Marsílio Ficino (1433-1499), pensador

neoplatônico humanista de quem se diz que “[...] passou boa parte da vida adaptando Platão a

construir elaborada defesa filosófica do Cristianismo” (GREENBLATT, 2012, p. 187), assim

como “[...] seria não ver que grandes sínteses, como as de Marsílio Ficino, [...] estão todas im-

buídas de Cristianismo [...]” (FEBVRE, 2009, p. 326). Logo, no que tange ao assunto, apreci-

ado desde o capítulo inicial da Theologia Platonica, observam-se, como arcabouço, os carac-

teres anímicos encontrados por Platão de Atenas (ca. 428-347 a.C.) em seu diálogo Fédon, no

qual se esboça a chamada psicagogía, doutrina que tem, por propósito, empreender explicações

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quanto ao destino que as almas recebem post mortem, pensamento tão importante que introduz

o texto ficiniano com estes dizeres: si animus non esset immortalis, nullum animal esset infelici-

us homine, quer dizer, “se a alma não fosse imortal, nenhum animal seria mais infeliz do que o

homem”2 (FICINO, 1965, p. 76), asserção de que, direta ou indiretamente, parece ter-se servi-

do Jorge de Sena quando da criação de seu “Super Flumina Babylonis”, cujo “[...] protagonis-

ta, ninguém menos do que o próprio Camões, é colocado, em cena, em angustiante e solitária

miséria, [...] para escrever triunfantes versos de “Sôbolos rios” (FERNANDES, 2010, p. 68).

Sobre as redondilhas “Sôbolos rios que vão”, são elas uma “[...] extensa glosa ao Sal-

mo 136 da Bíblia, atribuído ao rei Davi [...]” (op. cit., idem, ibidem). Nisso, é imprescindível a-

bonar que, destacando-se os contextos neoplatônico e judaico-cristão, importa que “[...] a me-

mória não se canse de voltar a Sião, porque também simboliza [...] outra realidade nunca vista

mas presente na Ideia, não pela memória, mas pela reminiscência” (op. cit., p. 73), conceitos

(“memória”/“reminiscência”) que não apenas aparecem nos versos 204 e 205, das redondilhas

camonianas (“Não me lembras na memória, / senão na reminiscência”), mas também habitam

os saberes platônicos, em que “[...] a reminiscência, ou anamnese (anámnesis), ocupa lugar de

importância dentro do discurso sobre a alma”, em que a “anamnese quer dizer memória”, que,

por seu turno, “diz respeito a algo que se conhece e se sabe [...]” (CARDOSO, 2006, p. 140),

aspectos, assim, imiscuídos no “Super Flumina Babylonis”, ao que “[...] o platonismo fornece

os elementos na composição do personagem [...] entre lembranças do passado e sonhos imagi-

nados [...]. Herdeiro da filosofia platônica o Camões de Jorge de Sena opera um ‘concerto’ do

mundo” (FERNANDES, op. cit., p. 83). Fá-lo, primordialmente, porque pretende sua alma re-

arranje seu objetivo precípuo, a saber, o de alçar-se rumo às esferas celestiais de onde veio. E

é, nesse sentido, que se nos aparecem as preceptivas platônicas quanto à sua doutrina psicagó-

gica, da qual está, sensivelmente, impregnado o espírito do Camões de Jorge de Sena.

Um dos recursos mais importantes e utilizados na literatura contemporânea condiz à

intertextualidade, conceito que, entre outros, abarca “[...] uma noção poética e a análise está aí

mais estreitamente limitada à retomada de enunciados literários (por meio de citação, alusão,

desvio etc.) [...]” (SAMOYAULT, 2008, p. 13), compreensão essa sem a qual é impossível al-

cançar, por meio de uma anagnórise, o conhecimento onomástico da personagem sobre a qual

incide toda a narrativa disposta no “Super Flumina Babylonis”, já que, em nenhum momento,

se apresenta o nome de Luís de Camões nesse conto, o que, por conseguinte, somente permite

2 Tradução feita por nós com base na versão italiana do mencionado texto de Marsílio Ficino.

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ao leitor razoavelmente familiarizado com a produção camoniana a percepção de que aqueles

prosaicos escritos têm o maior poeta quinhentista lusitano como protagonista. É por isso, mor-

mente, que o conhecimento correlato aos elementos intertextuais é de inegável importância no

“Super Flumina Babylonis”, a fim de que, principalmente, seja possível não só comentar, mas

também analisar e interpretar essa prosa de ficção por intermédio duma associação que a colo-

que nos patamares filosófico-teológicos correlatos ao Neoplatonismo e ao Cristianismo.

No conto “Super Flumina Babylonis”, existe um trecho em que, quase imperceptivel-

mente, ocorre uma intertextualidade stricto sensu, na proporção em que, imersa na narrativa do

solilóquio de Luís de Camões, aparece, de súbito, a sentença “Erros meus, má fortuna, amor

ardente em minha perdição se conjuraram, os erros e a fortuna sobejaram, que, para mim, bas-

tava Amor somente”, a qual, portanto, configura-se como um diálogo intertextual por meio de

citação, que é a “[...] retomada explícita de um fragmento de texto no corpo de outro texto

[...]”, recurso que, na literatura contemporânea, apresenta um “[...] modo novo de citar sem os

usos de marcações explícitas, prática que já vem se tornando comum. A percepção da cultura

como mosaico permite a criação de textos de natureza citacional” (PAULINO et. al., 1995, p.

28). Ora, seria estranho aceitar que, em se referindo ao conto de Jorge de Sena em discussão,

apesar de ser a “[...] citação imediatamente identificável graças ao uso de marcas tipográficas

específicas [...]”, por ele não o fazer conforme as convenções da escrita, “[...] a ausência total

de tipografia própria transforma a citação em plágio, cuja definição mínima poderia ser a cita-

ção sem aspas, a citação não marcada [...]” (SAMOYAULT, 2008, p. 49). Não há, obviamen-

te, atitude plagiária na prosa seniana, mas sim de criação literária afeita ao Zeitgeist da hodier-

nidade. Noutro passo, novamente se faz diálogo intertextual desprovido de sinais tipográficos

da citação direta, algo notável nas derradeiras linhas do conto: “[...] Sobre os rios que vão por

Babilônia me achei onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei...”, do que

logo se percebe, e com bastante clareza, a procedência dessa passagem, a qual foi, ipsis litteris,

transcrita do poema “Sôbolos rios que vão”, mais especificamente, da inicial quintilha heptas-

silábica de que se compõem os camonianos versos dessa religiosa poesia. Nesse ponto, obser-

va-se a intencionalidade do narrador do conto seniano, qual seja, a de possibilitar que, ao mes-

mo tempo, tanto a vida quanto a obra de Luís de Camões sejam postas, à maneira de um “ma-

nuscrito autógrafo”, ou mesmo de um “legado poético-teológico”, num documento o qual pre-

tenda, conquanto ficcionalmente, fazer-se sentir, autenticamente, feito pelas mãos de Camões.

Esse efeito de suposta “autenticidade” contribui para que as emoções poéticas suscitadas pelas

letras de Jorge de Sena concebam, no imaginário do público ledor de seus escritos, sensações

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as quais se associem, nalgum patamar, a percepções patético-racionais derivadas dos pesares e

dos profundos padecimentos anímico-corpóreos captados por aquela já decrépita personagem.

Que dizer, então, do título “Super Flumina Babylonis”? Ele também demonstra inter-

textualidade citacional, mas, nesse caso, havendo-se inspirado na primeira versão latina da Bí-

blia Sagrada, a Vulgata Editio, vertida por Eusébio Sofrônio Jerônimo (347-420) entre os a-

nos 382 e 405, compilação que, após, recebeu acedência, em 1545, no Concílio de Trento, co-

mo a versão autorizada da Bíblia a ser utilizada pela Igreja Católica que, em 1598, concluiu a

publicação da revisão da Vulgata, a qual se passou a chamar de Vulgata Clementina, de ma-

neira que a segunda versão memorável das Escrituras Sagradas é a Bíblia de Gutenberg, pri-

meiro livro impresso no Ocidente por Johannes Gutenberg (1398-1468), entre os anos 1452 e

1455, provinda da vertida ao Latim por Jerônimo. Logo, é graças ao “Salmo 136”, posto nesse

compêndio, que Jorge de Sena chamou seu conto de “Super Flumina Babylonis”, porque, ipsis

verbis, esse é o sintagma que abre aquele salmo, excerto que ora mostramos na tradução latina:

Super flumina Babylonis illic sedimus et flevimus, cum recordaremur Sion (BIBLIA VULGATA

LATINA, 1999, p. 352), que, transposta à língua portuguesa, lê-se: “Junto aos rios de Babilô-

nia nos assentamos e choramos, lembrando-nos de Sião” (BÍBLIA SAGRADA, 2008, p. 773).

Demais, isso explica por que Jorge de Sena denominou seu texto com uma frase em língua la-

tina. Fê-lo também porque, decerto, sabia aonde chegaria o desenlace do padecimento sentido

e suplantado pela sua dileta personagem Luís de Camões. Tampouco é descabida a escolha do

nome “Babilônia”, uma vez que esse termo toponímico, ainda que tenha sido extraído do con-

texto histórico judaico da Bíblia Sagrada, mercê do já referido “Salmo 136”, apresenta signi-

ficado metafórico que transcende o parco valor da semântica toponímica na qual se assenta o

precitado termo, o qual é figurativizado, então, qual um “[...] lugar de perdição” (SENA apud

FERNANDES, 1980, p. 113), de onde as almas devem-se distanciar o mais que puderem, por-

que, em o não fazendo, serão aniquiladas pela malignidade da “[...] grande Babilônia, mãe das

prostituições e abominações da terra” (BÍBLIA SAGRADA, op. cit., p. 361), em que o aposto

descreve, sucinta e horrendamente, todos os perigos de que quaisquer almas precisam manter-

-se distantes com o fito de não perecerem.

Chamou-nos a atenção o estudo dum outro camonista que, num capítulo de seu livro,

aponta-nos não uma probabilidade tradutória da Bíblia em língua portuguesa, mas em línguas

hebraica e latina, nas quais Luís de Camões se haveria embasado para compor os seus poemas

religiosos, já que aquele crítico crê que “[...] três pistas se abrem à nossa frente, todas relacio-

nadas com a Bíblia Hebraica, pois Camões conhece e cita várias vezes o ‘Antigo Testamento’,

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grande corpus da literatura hebraica clássica” (CARREIRA, 1982, p. 118). Em seguida diz que

“[...] onde a base de confronto é mais segura, como no ‘Salmo 137’,3 é a Vulgata que Camões

lê [...]” (op. cit., p. 119). Adiante, comenta que “[...] a melhor prova de que Camões lia o ‘An-

tigo Testamento’ pela Vulgata vem do aduzido ‘Sôbolos rios’. A adesão ao texto latino é tão

firme que algumas adaptações roçam pelo latinismo” (idem, p. 121). Sustém suas ideias ao di-

zer que, “por ignorar o ‘Antigo Testamento’ hebraico, e manejar, cândida e familiarmente, a

Vulgata latina, é que Camões chegou mesmo a saltar do cânone [...]” (idem, p. 124). E, enfim,

assevera que Camões “[...] em latim lia sua Bíblia. À luz do ‘Novo’ entendia seu ‘Antigo Tes-

tamento’, alargado a limites canônicos dos cristãos [...]” (idem, p. 131).

Ponhamos em relevo a figura do filósofo medieval Anício Mânlio Torquato Severino

Boécio (ca. 480-525), de quem, embora não se saiba se era “[...] cristão ou, simplesmente, um

neoplatônico cristianizado”4 (CLOTA, 1989, p. 104), é bastante conhecido o tratado Consola-

ção da filosofia, em cujas páginas iniciais o autor-personagem deparou-se com uma “[...] mu-

lher que inspirava respeito pelo seu porte: os seus olhos estavam em flamas e revelavam clari-

vidência sobre-humana; suas feições tinham cores vívidas e delas emanava uma força inexau-

rível. [...] Quando viu as Musas da poesia junto a mim [...] ficou perturbada” (BOÉCIO, 1998,

p. 4-5). Depois desse passo do texto boeciano, revela-se quem era a misteriosa mulher, graças

a quem o pensador, aliviado, ponderou: “[...] foram dissipadas as nuvens da tristeza; fui ilumi-

nado pela luz celeste e recebi o discernimento para contemplar aquela face. Mal dirigi o olhar

a ela, reconheci minha antiga nutriz [...]: era a Filosofia” (op. cit., 1998, p. 8). Essa descrição é

significativa para entendermos o que, muito semelhantemente – porém, num diverso nível –, a

caracterização prosopográfica da personagem Luís de Camões nos faz notar em suas melanco-

lias, as quais, após mitigadas por ímpetos, a um só tempo, filosóficos e cristãos, deixaram que

o alquebrado poeta levantasse, reanimado, com a determinada intenção de reaver sua alegria.

Pondo em causa outros componentes do conto enquanto gênero, há de aceitar-se que,

“[...] por seu estofo dramático, deve ser, tanto quanto possível, dialogado. [...] Conflitos e dra-

mas residem mais na fala, nas palavras proferidas [...] do que nos atos ou gestos [...]. Sem diá-

logo, não há discórdia, desavença ou mal-entendido, portanto, não há enredo [...]” (MOISÉS,

2012, p. 280). Sendo assim, em se tratando dessas massaudianas palavras, aplicadas ao “Super

3 Existe, por motivos sobre os quais não nos debruçaremos aqui, uma confusão em torno da numeração dos sal-

mos, de modo que ora há estudiosos que se referem, por exemplo, ao “Salmo 136”, chamando-o de “Salmo 137”,

na medida mesma em que outros há que fazem o percurso contrário, isto é, referindo-se ao “Salmo 137”, deno-

minando-o “Salmo 136”. Muito provavelmente, esse problema começou na tradução bíblica da Septuaginta. No

entanto, como não se trata de nosso escopo presente, discorreremos sobre isso, com mais vagar, alhures. 4 Tradução nossa feita a partir do texto original em língua espanhola.

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Flumina Babylonis”, vemos que essa obra prosística poucamente a elas se adéqua, porque está

em evidência, ao contrário do que se suporia, o processo de criação literária, que, ao menos no

Zeitgeist de que ora participamos, mostra-se quase nada afeita a agrilhoamentos decorrentes de

quaisquer padronizações que se proponham como “artes poéticas”.5 Aliás, a pós-modernidade,

em sua multifacetada e fragmentária manifestação, parece não permitir surjam tratados que se

imponham qual reguladores das confecções prosaico-poéticas. É parte do legado modernista.

Entretanto, tornando à questão dialógica quanto ao “Super Flumina Babylonis”, ela é

pouco explorada materialmente, ou seja, mediada por efetiva manifestação oral de interlocuto-

res, numa natural conversação, na medida em que ela “[...] é a primeira das formas de lingua-

gem a que estamos expostos, e provavelmente a única da qual não abdicamos pela vida afora”

(MARCUSCHI, 2003, p. 14), pois “[...] é o gênero básico da interação humana” (op. cit., idem

ibidem). Porém, levantando-se contra essa naturalidade conversacional, Camões deixa que sua

progenitora teça um copioso monólogo, ignorando-se-lhe as essências de tudo o que, paciente

e instantemente, ela se esforçava por incutir na mente do melancólico “barão assinalado”, cujo

sinal – se ainda havia algum – equiparar-se-ia ao recebido por Caim, em que se sentiria incal-

culável fardo provocado pelo “desconcerto do mundo”, de que, conscientemente, aquele arrui-

nado Camões se via, sobejamente, culpado. Mas isso não era suficiente para dissuadir sua mãe

da missão de que ela se autoincumbira. Ao contrário, ela procedeu à maneira de outra genitora

cujo filho relutava em singrar em direção à fé concedida por Jesus Cristo. Essa mãe se chama-

va Mônica. Seu rebento, Aurélio Agostinho. O mesmo que, após três decênios de existência,

pôs seu espírito em estado de rendição, havendo-se convertido ao Cristianismo. Esse filósofo

recém-cristianizado, nas suas Confissões, falou com Deus: “Mas, vós, lá do alto, estendestes a

mão e arrancastes minha alma dessa voragem tenebrosa, enquanto minha mãe, vossa serva fi-

el, junto de vós chorava por mim, mais do que as outras mães choram sobre os cadáveres dos

filhos. Ela [...] via a morte da minha alma” (AGOSTINHO, 1999, p. 94). Da mesma maneira,

pois, que Agostinho teve seus olhos abertos para as verdades divinais a partir das súplicas ma-

ternais, sucedeu outro tanto a Camões. Na narrativa sobre a hora do ocaso camoniano, porém,

é aparente que o protagonista achou-se arrebatado, “[...] impelido por uma ânsia que lhe corta-

va a respiração, tontura que multiplicava a pequenina luz da candeia” (SENA, 1982, p. 226), e

sendo esse, então, o esperado momento epifânico, que independeu da conversação em prol da

elucubração. Não obstante, pode-se classificar o analisando conto segundo alguma espécie di-

5 Principalmente, em que pesem os conceitos de decorum e pre/pon, propostos, respectivamente, por Quinto Ho-

rácio Flacco (8-65 a.C.), na Epistula ad Pisones, e Aristóteles de Estagira (384-322 a.C.) , no seu Perí Poietikés.

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alógica, que, nesse caso, parece estar ligada ao “[...] diálogo direto (ou discurso direto), quando

o contista põe as personagens a falar diretamente, e representa a fala com o travessão ou as as-

pas (no conto moderno, em geral, dispensam-se os sinais gráficos)” e ao “[...] diálogo interior

(ou monólogo interior), aquele que se passa na mente da personagem; ela fala consigo mesma,

antes de se dirigir a outrem [...]” (MOISÉS, 2012, p. 282).

Nas derradeiras linhas do “Super Flumina Babylonis”, vê-se que, quando Camões en-

cetou a composição dos versos do que viria a tornar-se o poema “Sôbolos rios que vão”, aque-

les que se colocou a esboçar, “Sobre os rios que vão de Babilônia a Sião assentado me achei”,

se lhe déssemos um hemistíquio logo após o substantivo “Babilônia”, teríamos dois versos de-

cassilábicos, a saber, “Sobre os rios que vão de Babilônia” e “a Sião assentado me achei”, nos

quais Camões estaria a apor o estilo estrutural épico. Dada a reação, no entanto, revelada pelo

narrador do “Super Flumina Babylonis” acerca de sua protagonística personagem, sabe-se que

“engenho e arte” nela não mais operam a serviço de cânticos beligerantes. Isso é ora pretérito.

O neo-homem renascido “[...] começou a escrever... Sobre os rios que vão da Babilônia a Sião

assentado me achei. Riscou desesperado. Recomeçou. Sobre os rios que vão por Babilônia me

achei onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei” (SENA, 1982, p. 227),

prova cabal de que não mais esse poeta buscava falar de questiúnculas mundanais, mas sim de

assuntos eternais. É nisso que repousa o fulcro do Neoplatonismo cristianizado presente nesse

conto através da persona camoniana, na qual se nota um movimento rumo ao contemptus mun-

di (“desprezo do mundo”), “[...] conflitos entre tempo e eternidade, multiplicidade e unidade,

exterioridade e interioridade, vacuidade e verdade, terra e céu, corpo e alma, prazer e virtude,

carne e espírito [...]”, de modo que “[...] o mundo é vão porque é passageiro” (DELUMEAU,

2003, p. 25). Estaria em Camões, nesse comenos epifânico, a alma sobrepujando o corpo, pre-

parando-se, definitivamente, para tornar quer ao platônico “mundo das Ideias”, quer ao cristão

Reino dos Céus. Em suma, as vicissitudes sofridas lograram êxito culminante quando da tópi-

ca da “recusa da epopeia”, em cujas características não mais convinha que aquele poeta se ba-

seasse para alcançar patamares correlativos aos cantares líricos, nos quais somente os elemen-

tos anímicos estão contidos. Porque “[...] o tema do orador cristão é sempre a revelação cristã,

[...] temas cristãos devem ser tratados em estilo médio ou baixo [...]” (AUERBACH, 2007, p.

38-39). Também, “[...] a partir do significado de grau ou nível inferior, humilis tornou-se uma

das designações mais usuais para o estilo baixo: sermo humilis” (op. cit., p. 44), do que provém

a transição do Camões de Jorge de Sena da mera existência à vida em abundância.

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