Música e(m) Sintonia Somática - O Processo Composicional Como Performance No Instante Do Corpo
Transcript of Música e(m) Sintonia Somática - O Processo Composicional Como Performance No Instante Do Corpo
SILVA, Felipe A. Florentino. Musica e(m) Sintonia Somática: O Processo Composicional como
Performance no Instante do Corpo. Caderno do GIPE-CIT: Laboratório de Performance II: Princípios
Somático-Performativos. Universidade Federal da Bahia. Programa de Pós-Graduação em Artes
Cênicas. PPGAC/UFBA n, 31, 2013.
MÚSICA E(M) SINTONIA SOMÁTICA:
O PROCESSO COMPOSICIONAL COMO PERFORMANCE
NO INSTANTE DO CORPO
Felipe André Florentino Silva1
Resumo
Este artigo relata o processo de criação musical experienciado por meio da
Pesquisa Somático-Performativa. Conduzo uma reflexão sobre os
resultados que surgiram durante a criação/execução musical em correlação com os princípios de “sintonia somática”, “pulsões espaciais”, “impulsos
internos”, “movimento autêntico”, “imprevisibilidade”. Como gerar
música, na condição de um corpo que dança em ambiente natural, e um instrumento musical tocado por esse corpo dançante? Que música é gerada
ao perceber-se em conexão com paisagens internas?
Palavras-chave: Pesquisa Somático-Performativa. Sintonia Somática.
Processo Composicional. Música instantânea. Fluxo corporal-musical.
Abstract: This article describes the process of musical creation inspired by the Somatic-Performative Research. I conduct a reflection on the results
that emerged during the creation/performance musical in correlation with
the principles of "somatic attunement", "space pulsion", "internal impulses", "authentic movement", "unpredictability". How to make music,
in the condition of a body dancing in its natural environment, and a musical
instrument played by this dancing body? What music is generated to realize
in connection with internal landscapes?
Key-words: Somatic-Performative Research. Somatic Attunement.
Compositional Process. Instantly Music. Bodily-musical Flow.
1 Felipe Florentino é compositor, multi-instrumentista, diretor musical e performer.
Graduando em Composição e Regência na EMUS/UFBA. É membro do Grupo de Pesquisa Poéticas Tecnológicas Corpoaudiovisual, IAHC/UFBA e performer pesquisador do Coletivo A-FETO GDT-UFBA, Grupo de Dança-Teatro da UFBA. [email protected].
- Felipe, porque você se mexe tanto
e balança a cabeça quando toca?,
me lembra até o Ray Charles. - Hmm, é isso!
É uma vontade enorme de dançar
o que estou ouvindo.
(diálogo com minha vizinha na janela de casa no bairro do Garcia)
Introdução
Este artigo aborda a produção musical dentro da atividade Laboratório de Performance do Programa de Pós-Graduação em Artes
Cênicas – UFBA, e tem como objetivo tratar sobre como o som
tocado/criado pelo instrumentista/compositor é gerado por meio de um
impulso de movimento, em que a performance se instaura como elemento-eixo para a produção sonora. Realizada a sintonia somática, as notas não
importam, o ritmo não importa, o tocar se torna um fluxo, uma energia
sendo transferida entre um instrumento musical e a dança realizada em ambiente natural.
A condição da escuta do músico, neste caso, se desloca para
um corpo/soma, em sensibilidade no/com ambiente, a partir daí, surgiram perguntas: Quem toca são minhas mãos? elas também podem
dançar? elas dançam a medida que geram som? ou tocam/dançam
porque estão ouvindo o que foi tocado segundos antes?
Tais perguntas parecem ressoar no que Iazzeta (1997) recupera da obra de Richard Leppert:
[…] Leppert aborda o quanto se pode ver na música e que os componentes imagéticos da linguagem musical podem ser de importância fundamental no processo de compreensão de seu próprio discurso. Para o autor, música é algo notadamente corpóreo e […] apesar de sua eterealidade sonora, é uma prática corporal, como a dança ou o teatro. (IAZZETA, 1997, p. 26).
Laboratório de Performance
Os alunos da atividade Laboratório de Performance do Programa
de Pós-Graduação em Artes Cênicas PPGAC/UFBA viajaram para a cidade
de Lençois-Ba em setembro de 2011. No segundo dia, o coletivo de investigadores performers reuniu-se para realizar uma proposta simples e
aberta: “[...] ter como foco principal a conexão com estados e „impulsos
internos‟ a partir da percepção da presença no/com o ambiente.” (FERNANDES, 2012b). Nesse sentido, compartilho da Pesquisa
Somático-Performativa, tratando-se de,
[...] uma prática que tem como eixo a experiência vivida como um todo (pulsações, sensações, imagens), através da criação de conexões (entre interno-externo, mobilidade-estabilidade, função-expressão, execução-recuperação) e a integração dos níveis físico, emocional, cognitivo, espiritual, cultural e social. Portanto, nossa abordagem pode ser denominada de Pesquisa Somático-Performativa." (FERNANDES, 2012a, p. 3).
Inicialmente, reunimo-nos para escolher o caminho. Decidimos
subir a trilha até o poço Halley, sem ter premeditações para seguir,
expectativas e exigências para cumprir, apenas buscando a “Sintonia
Somática” (NAGAMOTO, 1992, p. 198), conexão com ritmos internos, e seguir as variações do fluxo de energia, vibração, pulsação, intenção, na
dinâmica entre silêncio/som, pausa/movimento. Na caminhada, cada um
procurou integrar-se, fazendo parte do ambiente. Usei um gravador digital com fones de ouvido para amplificar e gravar as paisagens sonoras que
surgiam durante a subida. Em diversas partes da trilha encontramos
pequenos poços, onde aos poucos, o coletivo, em sintonia somática com o
ambiente, revelou impulsos de conexão interna, e consciência corporal/ambiental. Abraçar a pedra e perceber seu pulsar, abraçar o pulsar
inserido na água, entregar o corpo para a pedra e para a água.
Corpo experienciado - Vibrando pelo (im)pulso de movimento
Em um dado momento da trilha, realizamos naturalmente, e, cada um em seu tempo, a prática do “Movimento Autêntico”
(PALLARO, 2007), que se trata em dançar de olhos fechados em
duplas na interação realizador-testemunha, ou sozinho em que a testemunha é o próprio self do realizador. Pude verificar a importância
da conexão com o impulso de movimento, “capaz de cessar e
transformar padrões autômatos e limitantes de comportamento e nos
surpreender com um espectro expressivo irrestrito”. (FERNANDES, no prelo). Esse princípio de se conectar com, e seguir o(s) impulso(s)
interno(s) fundamenta-se, inicialmente, no movimento do corpo:
[...] pouco a pouco, a mente segue e integra-se ao impulso do movimento, ao invés da mente estar sempre no comando da ação, pensado no passado ou no futuro […] Assim, o corpo deixa de ser um objeto passivo que segue o comando da mente e, ao invés disso, reaprendemos a ativar conexões somáticas sensíveis e sábias [...] (FERNANDES, no prelo).
Ao chegar no poço Halley, minha primeira ação, foi saudar a água
com uma improvisação tocada no instrumento Escaleta, também chamada
de Pianica, Melodion e Organeta. Saudação essa que proporcionou uma conexão sensorial no/com o ambiente, pois o som tocado procurava
celebrar, celebrar a chegada no mato e o mato me saudava com o cheiro, o
vento, a água e a vontade de ser terra, essas percepções, por sua vez,
alimentavam a criação musical. A Saudação durou aproximadamente dezoito minutos, ficando evidente o encontro do material sonoro-
improviso-composição, com os princípios somático-performativos.
Ouvindo a gravação extraí um excerto (Figura 1) de um grupos de quatro semicolcheias acentuadas no quarto tempo, em andamento Adagio.
Cada acentuação de quarto tempo possui uma qualidade de presença única,
apesar das repetições, uma aparece em stacato, outra mais legato, uma mais macia, outra mais brusca e estridente. No áudio, também encontrei
pequenas variações rítmicas, principalmente no ataque das semicolcheias
acentuadas. A meu ver, as variações de dinâmica, de ataque das notas e de
intensidade são as qualidades que proporcionam a sutileza e integração do discurso musical com o corpo e ambiente.
Ao tocar para o mato, tocar para a pedra, tocar para a água,
tocar para o coletivo, o som se tornou vivo, dinâmico, e imprevisível, forte justamente em sua efemeridade e fluxo, força essa que se
mostrava também no corpo, que balançava de um lado para o outro.
Figura 1 - Grupos de semicolcheias acentuadas no quarto tempo - Excerto extraído da improvisação de saudação, 3' 40'' a 3' 52''.
Em meio à prática em grupo de coletivizar ações, e por impulso da performer Giorgia Conceição, começamos a nos pintar e fazer desenhos
pelo corpo com argila fresca na beira do poço Halley, argila vermelha,
marrom e amarela, isso trouxe um sentimento de tornar-se parte do ambiente, tal como ele se tornava parte de nós.
Em sintonia somática com a terra, os princípios de movimento emergiram de forma somático-performativa, isto é, sem uma
antecipação conceitual cognitiva imposta de fora para dentro. “Cada
princípio é parte de uma multiplicidade de inteligências sensíveis que
nascem e geram novas configurações espaço temporais de existência” (FERNANDES, no prelo) sendo assim, dando continuidade à prática
exploratória e “Movimento Autêntico”, começo um processo de
sintonia com as mãos, ao massagear e convocar os músculos por meio da argila (Figura 2).
Desse evento, surgiu uma sequência de “paisagens internas”,
que por sua vez, na sua maioria, apareciam em forma de perguntas: Como soa o corpo? A dança tem som? Porque tenho vontade de
dançar quando ouço música? Ouvimos com a orelha, ouvido interno e
ouvido externo, ou com o corpo todo? Possuímos um sistema
perceptual específico para detectar informações disponíveis em estímulos do ambiente? O som vibra? O corpo vibra com o som? Qual
a minha condição de escuta? Quem toca são minhas mãos? Elas se
movimentam e também podem dançar? Elas dançam a medida que tocam? ou tocam/dançam porque estão ouvindo o que foi tocado
segundos antes?
Figura 2 – Felipe Florentino em conexão com argila e mãos, no Poço Halley. Setembro de 2011. Foto: Frank Handeler.
O desejo de tocar a escaleta surge, enquanto compositor e
instrumentista, como a necessidade de vibrar em simbiose com o
instrumento e ambiente. Podemos verificar nos músicos, que pelos gestos das mãos, braços, pés, a depender do instrumento, são
controlados uma série de parâmetros musicais, tais como: articulação,
timbre, dinâmica, fraseado, etc; existe também, o movimento do resto do corpo, um gesto físico que não produz, mas acompanha o som. Um
instrumentista produz música e se expressa pelo corpo todo, corpo
esse, que é também a condição de desenvolvimento do conhecimento
musical: Os instrumentos eram o meio pelo qual o conhecimento musical era adquirido e desenvolvido, esse conhecimento vem atado ao corpo, do instrumento e do instrumentista, e é
moldado pela teia de relações estabelecidas entre músculos, nervos e a matéria vibrante que compõe as fontes sonoras. Quer dizer, tradicionalmente o instrumento funciona como o meio pelo qual se adquire conhecimento musical. ( IAZZETTA, 1997, p. 35).
1.3 Tocar no/com/para o ambiente natural
Habitar o meio ambiente natural, pintado com argila, podendo
saltar por entre as pedras e banhar-se em água proporciona a experiência de vivenciar a percepção que o movimento provoca no
espaço interno do corpo que, consequentemente, produz uma sensação
que se expande para o espaço externo através do fluxo das ações, ações estas que geram música, música que é percebida pelo corpo, que
dança, que vira e que toca, e ao tocar água, cria ritmos percussivos.
Ao percutir água (Figura 3), percebo a conexão com “impulsos
internos” e surge um motivo rítmico que se transfere e repete para os outros performers, esse motivo remete claramente ao fluxo de
semicolcheias com acentuações de quatro em quatro tempos como na
Figura 1 citada acima.
Figura 3 - Felipe Florentino, Morgana Gomes, Lenine Guevara em produção rítmica na água - Poço Halley. Setembro de 2011. Foto: Frank Handeler.
Partindo de que, na Abordagem Somático-Performativa, “pulsões espaciais” compõem não apenas o movimento do individuo, mas todas
as formas e as relações entre elas, então, a partir do momento que se
propõe criar música em prática experimental, o tocar se torna mais
uma potência a se relacionar com o movimento, uma condição dinâmica de natureza somática (viva, integrada e experiencial) e
performativa (realizadora no espaço tempo da ação em interação),
desta forma, objeto passivo vira sujeito ativo de sua própria história, revertendo relações de poder (FERNANDES, no prelo). É
praticamente uma urgência do indivíduo, avançar sobre a inércia da
mesmice, e compartilhar do sentimento de totalidade, além de ser guiado pela imprevisível sensação de soprar e ouvir os impulsos
internos. Nessa linha de raciocínio, e considerando, ainda que faço a
constatação, enquanto performer/aprendiz, de que, quando sou guiado
pelo impulso de movimento, surge nas minhas ações, uma fluidez palpável do tempo presente, além de “paisagens internas” propondo
som para a escaleta, som esse que é ouvido e dançando por (im)pulso
sonoro, dança essa que novamente movimenta os dedos e os fazem tocar (Figura 4).
Figura 4 - Felipe Florentino em performance/improvisação na Escaleta - Poço Halley. Setembro de 2011. Foto: Ednilson Mota Pará.
.
Na performance em cima das pedras, o grupo de semicolcheias
(re)aparece aos treze minutos de discurso musical e com o andamento
um pouco mais rápido, entendo isso como uma revisitação do motivo musical extraído anteriormente, e curiosamente um intervalo de oitava
no terceiro compasso aparece (Figura 5), combinação essa, que nunca
fora apresentada antes. Portanto, facilmente podemos conectar a
“sabedoria somática” com o processo de revisitação do material sonoro, além de também, perceber o registro (memória) na pele, na
superfície, nos dedos, nos músculos, nos nervos. É o instante cartográfico
do espaço-tempo.
Figura 05 - Revisitação do grupos de semicolcheias acentuadas no quarto tempo. Excerto extraído da improvisação após pintura corporal com argila.
1.4 Colocações reflexivas e finais
A priori, esboço reflexões, para estudo e correlação entre arte
sonora (composição e execução) e os princípios contextuais no âmbito
da Pesquisa Somático-Performativa, (corpo experienciado). Praticamente todos os princípios dessa abordagem, (processos de
constituição viva e integrada), emergiram sem uma antecipação
conceitual cognitiva imposta de fora para dentro, e foram encontrados e estudados posteriormente com auxilio de todo material de registro
(fotos, vídeos, áudios, anotações, desenhos), “cada princípio é parte de
uma multiplicidade de inteligências sensíveis que nascem e geram
novas configurações espaçotemporais de existência” (FERNANDES, no prelo).
A música tocada em performance em ambiente natural conecta-se
com todas as partes do corpo, relatando paisagens internas em forma de som significante, ao mesmo tempo em que essa música é ressignificada e
encorporadas na dança daquele agora.
O pensamento composicional e a atitude composicional propõem
ao material sonoro gerado, uma integração direta com o movimento do corpo, no instante presente, que por sua fluidez devolve em troca, o
movimento das mãos e a dança do corpo ao gerar nota musical e desenhar
no tempo sonoro com o instrumento musical. Para haver conexão com o instante presente da ação, é necessário
se desconectar da sensação de estar no passado, com pensamentos fora do
que está fazendo, ou no futuro, executando ações para tentar alcançar expectativas que estavam premeditadas e para isso, “[...]deve-se
desenvolver primeiramente a „atentividade‟, um „estar atento‟ para que se
possa captar as presenças que vagam pelo espaço-tempo dentro e fora do
corpo” (SILVA, 2012. p. 305).
Não há como separar o mundo do sujeito, são uma troca de energia, uma interação constante com o universo, que exige um ato de extrema
generosidade do homem enquanto artista-performer, pois requisita que ele
esteja criando sempre novas maneiras de perceber o mundo e pensar a
experiência humana - experiência de recuperação material do ato de existir. Movimentar este corpo milenar, um corpo aberto, onde não existe nem o
dentro e nem o fora, ele deixa de ser instrumento e passa a ser canal.
REFERÊNCIAS
FERNANDES, Ciane. Movimento e memória: manifesto da Pesquisa
Somático-Performativa. In: Anais do VII Congresso da ABRACE, Porto
Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012a.
___________. Sintonia somática e meio ambiente. Repertório Teatro &
Dança, v. 15, p. 175-183, 2012b.
___________. Princípios Somático-Performativos no Ensino e Pesquisa
em Criação.In: Livro em cooperação entre PPGAC/UFBA e UQUAM
(Canadá). No prelo.
IAZZETTA, Fernando. A música, o corpo e as máquinas. Opus (Belo Horiz.
Online), São Paulo, v. 4, n.4, p. 24-47, 1997.
LEPPERT, Richard. The Sight of Sound: Music, Representation, and the
History of the Body. Berkeley: University of California Press, 1993.
NAGAMOTO, Shigenori. Attunement through the body. New York: State
University of New York, 1992.
OLIVEIRA, Luis Felipe. As contribuições da ciência cognitiva à
composição musical/ Marília, 2003. Dissertação (Mestrado em Filosofia)
– Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista,
2003.
PALLARO, Pattrizia, org. Authentic Movement. Vol. II. Londres: Jessica
Kingsley. 2007
SILVA, Felipe André. Música telemática – latência, atitude composicional e
presentidade. In: Anais do IV Seminário Internacional Fronteiras e Rupturas -
Sonologia – ECA/USP – São Paulo, 2012.
*Versão Impressa, publicada em 09/12/2013, em Salvador - BA, ISSN 1516-0173
*Versão Online, revista, publicada em 21/12/2013, em https://ufba.academia.edu/FelipeAndr%C3%A9Florentino