MOVIMENTO ÁGUA É VIDA E A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA EM FEIRA DE SANTANA - BA

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226 ARTIGO ORIGINAL M O VIM EN TO ÁG U A É VID A E A CO N STRU ÇÃO DA CID AD AN IA EM FEIRA D E SAN TAN A -BA André Almeida Uzêda a Thereza Crist ina Bahia Coelho b Resumo “O M ovimento Água é Vida” é uma entidade do movimento social do município de Feira de Santana, composto de religiosos, lideranças comunitárias, professores e técnicos, que ganhou visibilidade no município na luta contra a privatização da Embasa,quando congregou diversas entidades e lideranças em favor do saneam ento,da proteção ao meio ambiente e da saúde pública. Esta pesquisa procurou analisar o processo de construção da cidadania de determinados segmentos da sociedade civil em relação ao poderpúblico,seus conflitos e formas de consensos.Realizou-se pesquisa de abordagem qualitativa,do tipo estudo de caso.Os dados foram coletados a partir de entrevistas semi-estruturadas,observações participantes e análise de docum entos, tendo como sujeitos deste estudo os membros representantes da entidade. Os resultados apresentados dão conta de uma entidade extremamente atuante, com propostas e intervençõesno campo daspolíticaspúblicas.Com o perspectiva,pretendem atuarcada vez m ais na dimensão do controle social, seja dando continuidade à representação no Conselho Municipal de Saúde, seja estimulando a criação dos Conselhos Locais de Saúde. Este mesmo grupo, no entanto,enfrenta dificuldades no que diz respeito à ampliação da participação popular,à sua relação com o poderpúblico nosfórunsdeliberativose ao financiamento dassuasações. Palavras-chave: M ovimentosSociais, Cidadania, Participação. a Sociólogo,Mest re em Saúde Colet iva,Professor Ass istente do D epartamento de CiênciasH umanasda Univers idade Estadual de Feira de Santana -Ba. b M édica, D outora em Saúde Pública, Professora Adjunta do D epartamento de Saúde da Univers idade Estadual de Feira de Santana - Ba. Correspondência para: . Correspondência para: Tânia Crist ina Fernandes de Freitas Santana. N USC/D epartamento de Saúde. Univers idade Estadual de Feira de Santana. KM 03 – BR 116 – Campus Univers itário CEP:44031-460 Cidade:Feira de Santana Telefone:(075)3224-8096/95. E-mail:[email protected]

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ARTIGO ORIGINAL

M O VIM ENTO ÁGUA É VIDA E A CO NSTRUÇÃO DACIDADANIA EM FEIRA DE SANTANA - BA

André Almeida Uzêdaa

Thereza Cristina Bahia Coelhob

Resumo

“O M ovim ento Água é Vida” é um a entidade do m ovim ento social do m unicípio de

Feira de Santana, com posto de religiosos, lideranças com unitárias, professores e técnicos, que

ganhou visibilidade no m unicípio na luta contra a privatização da Em basa, quando congregou

diversas entidades e lideranças em favor do saneam ento, da proteção ao m eio am biente e da

saúde pública. Esta pesquisa procurou analisar o processo de construção da cidadania de

determ inados segm entos da sociedade civil em relação ao poder público, seus conflitos e form as

de consensos. Realizou-se pesquisa de abordagem qualitativa, do tipo estudo de caso. Os dados

foram coletados a partir de entrevistas sem i-estruturadas, observações participantes e análise de

docum entos, tendo com o sujeitos deste estudo os m em bros representantes da entidade. Os

resultados apresentados dão conta de um a entidade extrem am ente atuante, com propostas e

intervenções no cam po das políticas públicas. Com o perspectiva, pretendem atuar cada vez m ais

na dim ensão do controle social, seja dando continuidade à representação no Conselho M unicipal

de Saúde, seja estim ulando a criação dos Conselhos Locais de Saúde. Este m esm o grupo, no

entanto, enfrenta dificuldades no que diz respeito à am pliação da participação popular, à sua

relação com o poder público nos fóruns deliberativos e ao financiam ento das suas ações.

Palavras-chave: M ovim entos Sociais, Cidadania, Participação.

aSociólogo, M estre em Saúde Coletiva, Professor Assistente do Departamento de Ciências Humanas da Universidade Estadual de

Feira de Santana - Ba.bM édica, Doutora em Saúde Pública, Professora Adjunta do Departamento de Saúde da Universidade Estadual de Feira de Santana - Ba.

Correspondência para:. Correspondência para: Tânia Cristina Fernandes de Freitas Santana. NUSC/Departamento de Saúde.

Universidade Estadual de Feira de Santana. KM 03 – BR 116 – Campus Universitário

CEP: 44031-460 Cidade: Feira de Santana Telefone: (075) 3224-8096/95. E-mail: nusc@ libra.uefs.br

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“W ATER IS LIFE MOVEMENT” AND CITIZENSHIP CONSTRU CTION IN FEIRA D ESANTANA, BAHIA, BRAZIL

Abstract

The “W ater is Life Movement” is an entity associated with the social movement of

the city of Feira de Santana, formed by religious and community leaderships, teachers and technicians,

who gained visibility within the district by fighting against the privatization of EMBASA (state water

public system), gathering several entities and leaderships for the cause of sanitary improvement,

environmental protection and public health. This research aimed at analyzing the citizenship

construction process within certain segments of civil society, their conflicts and forms of consensus

with reference to public service. Q ualitative approach in the form of case study was used in this

research. D ata were collected by means of semi-structured interviews, participant interviews, and

document analysis, having entity’s representative members as subjects. Results point out to an

extremely active entity, with proposals and interventions in the area of public policies. W ithin the

frame of perspectives, they intend to act, at an increasing pace, towards the dimensions of social

control, either by means of continuing their representation at Municipal Health council, or by

stimulating the creation of Local Health Councils. This same group, however, faces several difficulties

as to the increasing of popular participation, as to its relation with the public sector in the deliberative

forums and the financing of its actions.

Keywords: Social Movements, Citizenship, Participation

INTRO DUÇÃO

A noção de que a construção da cidadania e a efetivação de políticas públicas são

produzidas a partir do surgimento e formação de sujeitos coletivos, tem sido fundamental para quem

estuda os movimentos sociais hoje. Alguns autores descrevem este processo e identificam mudanças

ocorridas no seio dos movimentos e das lutas populares, a partir do surgimento de novos atores

sociais: homossexuais, negros, mulheres, trabalhadores rurais sem terra, os sem-teto, e Organizações

Não-governamentais - ONGs. São os novos personagens de uma sociedade em transformação 1.

Outra referência importante para a compreensão destas mudanças diz respeito ao

processo de formalização e institucionalização da democracia, fundamentais para garantir, por

exemplo, o controle social em saúde. Este processo democratizador consolida-se com a

promulgação da Constituição Federal, em 1988, e a realização das eleições para presidente da

república, em 1989, mas estende-se em vários outros momentos com o Estatuto da Criança e do

Adolescente e o Código de D efesa do Consumidor, ambos em 1990.

No campo da Saúde, a inclusão legal da participação social tem como base o artigo

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198 da seção II da Constituição Federal que estabelece ser a participação da comunidade uma

diretriz fundamental do SUS 2. A Lei 8.142 define que o SUS contará, em cada nível administrativo

do governo, com as seguintes instâncias colegiadas: as Conferências Nacional, Estaduais e

Municipais de Saúde, com periodicidade mínima de 4 anos e os Conselhos de Saúde (Nacional,

Estaduais e Municipais)3.

O processo de elaboração das Constituições Estaduais e das Leis Orgânicas

Municipais, em 1989 e 1990, respectivamente, faculta a cada município a participação mediante a

da representação política e a alteração dos conteúdos das leis com o uso de emendas populares,

permitindo o despertar da sociedade civil para a possibilidade de decidir e intervir em espaços

anteriormente vistos como unicamente do poder público.

A participação da sociedade civil, desenvolvida por essas formas legais de controle

social, assim como os limites institucionais colocados aos usuários têm sido questionados4. As

discussões têm levado à construção de propostas para a consolidação de experiências bem-

sucedidas e o estabelecimento de estratégias para a criação de fóruns e espaços de construção de

cidadania5. Neste sentido, os avanços e obstáculos encontrados nas experiências locais têm

contribuído muito para o entendimento destas questões e abertura de novos caminhos.

Em Feira de Santana, o estudo de Assis6 tornou possível a compreensão da

municipalização e descentralização da gestão da saúde no município, evidenciando como este

processo se apresentou conflituoso e contraditório ao externar diferentes projetos políticos e

correspondentes forças de distintos sujeitos sociais. A municipalização na Saúde só poderia

constituir-se de forma democrática se viesse acompanhada de ampliação da participação popular e

controle social, e de um “redimensionamento da visão de saúde rumo a uma concepção positiva

por parte dos trabalhadores de saúde e da população em geral”. Do contrário, a hegemonia da

indústria da doença é que sairia fortalecida.

Os estudos sobre os movimentos sociais, apesar de identificarem novas exigências e

espaços de participação criados pelos processos de legitimação das políticas públicas 7,8,9, nem

sempre têm conseguido transformar suas indagações em objeto de pesquisa, recaindo suas

preocupações, geralmente, sobre o movimento sindical e sobre a organização dos trabalhadores

rurais e suas lutas no setor agrícola 10, 11.

Carvalho12, estudando a atuação dos movimentos sociais no Conselho Municipal de

Saúde (CMS), em Feira de Santana, entre os anos 1990-96, destaca a importância dos espaços de

participação social para a implementação do SUS, identificando a construção de um “processo de

transformação de sujeitos individuais em sujeitos coletivos e/ou atores sociais”. A

institucionalização da participação no CMS deve garantir a participação real dos sujeitos e atores

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sociais vinculando-os a uma prática concreta e efetiva no campo da política. Carvalho12 identifica

ainda, atores e bandeiras de luta defendidas por cada entidade, abordando a atuação local do

Movimento de Organização Comunitária (MOC), como uma entidade fundamental, pois esta

mobiliza, organiza e capacita os grupos da sociedade civil.

A indagação sobre os movimentos sociais em Feira de Santana e a sua atuação no

campo das políticas públicas, especialmente as de saúde, meio ambiente e saneamento básico,

pressupõe compreender a política nesta dimensão. É no processo de elaboração e implementação

das políticas públicas, com todos os limites e conflitos, que os novos e antigos grupos sociais

organizam-se e articulam-se, pela possibilidade de terem os seus interesses atendidos.

Neste mesmo município, no final dos anos 90, com forte influência da Igreja Católica,

consolidou-se uma entidade denominada “MOVIMENTO ÁGUA É VIDA: em defesa da água e da

saúde”. Esta organização composta por professores, intelectuais, técnicos e lideranças de diversos

segmentos, desde então, atua com representantes junto ao Conselho Municipal de Saúde.

Este estudo analisou a construção da cidadania e da participação da sociedade civil

nas políticas públicas, sobretudo no campo da saúde, no município de Feira de Santana, Bahia, no

ano de 2004, enfatizando especificamente o Movimento Água é Vida.

MATERIAL E MÉTODOS

Para analisar os movimentos sociais em Saúde no município de Feira de Santana na

conjuntura atual, discutiu-se inicialmente a noção de “movimento”. No estudo das organizações,

entende-se movimento como um tipo de organização não formalizada, mas com poder de instituir.

No entanto, muitos movimentos são compostos por grupos sociais formalizados, ou seja, instituições.

A cidadania foi concebida aqui, principalmente, como a relação entre o indivíduo e

o poder público 13. Esta relação é construída historicamente, devendo-se perceber as mudanças

ocorridas nos seus dois pólo s, tanto no Estado quanto na sociedade civil.

Teixeira 14 ressalta a idéia de uma “ação cidadã”, diferente das demais ações

coletivas. Por sua vez, Dagnino15 demonstra a importância, para os movimentos sociais, da

apropriação da noção de cidadania como forma de se ampliar a idéia de democracia, assumindo a

noção do direito a ter direitos, incluindo os direitos advindos das novas lutas e novos problemas.

Para garantir o direito à igualdade será preciso garantir também o direito à diferença. A “nova

cidadania” é uma estratégia dos não-cidadãos, dos excluídos. Assim, os conflitos de interesses

podem ser expostos e discutidos, consolidando os direitos como parâmetro de debate e

negociação de interesses entre os grupos e reconfigurando a dimensão ética da vida social”15, o

que requer uma reforma moral e intelectual.

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Para estudar a cidadania dentro dessa nova perspectiva, realizou-se um estudo de

caso com o “Movimento Água É Vida”. Foram feitas cinco entrevistas semi-estruturadas com

membros da coordenação, incluindo um outro membro do grupo que não desempenhava

atividade de coordenação, mas que participava dele intensamente, bem como de outros

movimentos. Para as observações participantes realizadas, não foram se priorizadas somente

conversas e/ou reuniões da coordenação, mas também seminários, conferência municipal de

saúde e reuniões do Conselho de Saúde, facilitando a coleta de dados documentais.

A análise de conteúdo se iniciou com a leitura extensa do material coletado,

registrado no do Diário de Campo, nos documentos e nas transcrições das entrevistas. No segundo

momento, a leitura procurou captar as categorias empíricas em função dos objetivos e das

categorias operacionais, seguindo-se a produção de sínteses e a interpretação do texto pelas

dotações de sentido que emergiam das situações descritas. Estes sentidos oriundos das

interpretações de primeiro nível foram contextualizados social e historicamente para a produção de

novos sentidos 16.

RESULTADOS

O “Movimento Água é Vida” (MAV) foi construído num espaço de tempo

relativamente curto, a partir de um fato ocorrido em 1997. Uma pessoa veio a óbito, sem

atendimento, na fila do Hospital Clériston Andrade, gerando uma reação comunitária. Foram feitas

algumas reuniões e organizada uma missa campal celebrada pelo arcebispo de Feira de Santana,

como forma de criar uma pressão sobre o governo. Em conseqüência, foi criado o que se chamava

Movimento Popular em Defesa da Saúde Pública. Por mais de três anos, o movimento manteve sua

dinâmica de realizar reuniões e seminários anuais discutindo problemas da saúde e de saneamento

básico, despontando como um grupo da sociedade civil importante, no qual se podia discutir e

buscar alternativas para os problemas ligados diretamente à saúde.

No que diz respeito às demandas assistenciais, era preciso lutar por melhorias, pelo

atendimento de qualidade, sendo necessário pensar a saúde de forma complexa, de modo que o

controle social e uma efetiva participação permitissem maior e melhor acesso aos serviços. Através

dos depoimentos, nota-se que estas eram as principais tarefas do movimento popular, embrião do

atual “Movimento Água é Vida”.

Em sua trajetória histórica, destaca-se a luta contra a privatização da Empresa Baiana

de Saneamento (Embasa), em 2001, que contribuiu muito para o fortalecimento do MAV, pois, a

partir dali, o grupo percebeu, de maneira muito mais clara, o quanto a questão da água envolvia a

saúde e um conjunto de outros problemas, e que deveria, além de evitar a privatização, envolver-

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se nas ações mais amplas para o cuidado com a água, o saneamento e o meio ambiente em geral.

Para realizar essa nova tarefa, foi necessário assumir uma postura mais atuante no

que diz respeito às políticas públicas municipais, especialmente àquelas relativas à saúde. À luz dos

novos interesses, o grupo centrou suas ações na participação. Tal participação pressupõe uma

crença muito grande no poder da “comunidade”, do “povo”, na organização e na capacidade de

articular outros grupos e pessoas: “Eu acho que o que mudou mesmo,foi conseguir que o povo se

unisse [...] Por isso que eu penso que a gente tem sempre que encontrar caminhos de diálogo,

caminhos de conversa, mas às vezes o povo, quando é capaz de pressionar forte, é o que faz que o

político mude”.

A importância da ampla participação, principalmente em situações de conflito de

interesses, foi destacada por outro entrevistado: “E quando o objetivo é manter interesses, então aí,

o diálogo não interessa. Pode ao nível de imagem ficar bonito, que queremos dialogar, mas não se

queria dialogar, se queria fazer isso. Então é claro que, nessas situações, é bom que o povo esteja

consciente [...] Então quando o povo tem uma idéia muito clara e uma união grande, aí é muito

difícil que o poder público diga que não[...]”.

Entretanto é preciso encontrar caminhos que mobilizem essa sociedade, que a

estimule a se comprometer com sua própria história: “Por que nós temos certeza disso, convicção

disso, a partir da própria história, de que êxitos só virão se a comunidade se mobilizar e assumir suas

bandeiras”.

Quando a sociedade civil “finca o pé” e reivindica, ela consegue o que quer, desde

que haja organização, pois, quando se está organizado, a reivindicação recebe outro atendimento:

“Meu pai sempre dizia assim ‘o político, ele tem medo do povo’ e na realidade é isso”.

Em muitos momentos, essa confiança não assume as mesmas proporções quando se

trata do poder público. Os motivos desta descrença remetem a uma experiência histórica, já

descrita pelos autores que estudaram a ação do poder público em Feira de Santana na sua tentativa

de evitar que o controle social se torne efetivo: “Os prefeitos, a regra é não querer, é evitar

qualquer forma de controle social. A regra dos prefeitos tradicionais, não é? Eles querem estar ali

sozinhos mandando naquilo que não é dele, que o poder público não é um bem privado, é um bem

público [...]. Apesar de você estar com o estatuto legal, a má vontade da administração municipal

não fez avançar; pelo contrário, os gestores municipais dificultaram o que puderam pra os conselhos

locais de saúde não nascerem”.

Ou seja, existiria, na perspectiva dos sujeitos entrevistados, uma resistência dos

responsáveis pela gestão municipal em permitir a participação da sociedade civil organizada,

porque isto poderia “contrariar interesses”, principalmente nos casos em que a população

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identificasse problemas, como o mal uso do poder público ou corrupção. Uma das formas, então,

de o gestor driblar esta participação seria comprometer, na prática, a paridade prevista em lei:

“Você tem que saber com quem você está fazendo parcerias, não é verdade? Você tem que saber

com quem, que você não vai fazer parceria com o poder público corrupto, não é? Com o poder

público que não respeita a paritariedade. Ele é poder e tem os interesses dele. Ele quer defender o

peixe dele que ele está vendendo enganosamente pra população, não é? E a paritariedade também a

gente não sabe, mesmo que seja paritário assim, na vitrine, não é?”

O que se evidencia a partir desses depoimentos diz respeito ao problema da

permanência do estilo autoritário de gestão dentro do setor público17, que entra em contradição

com a democracia proposta pelo SUS, e a dificuldade que isto coloca para o exercício do controle

social. A submissão ao poder público e político instituído impede a autonomia e a atuação crítica

de muitos conselheiros. Nestas circunstâncias, também a própria representatividade de muitos

deles é colocada em questão: “Nós temos conselhos “prefeiturais”, não é?”

Para manter o controle, a gestão municipal utilizaria diversas estratégias. Para um dos

entrevistados, o Conselho Municipal de Saúde de Feira de Santana não conseguia deliberar

absolutamente nada que não fosse do interesse do governo municipal, porque este estaria

articulado com representantes do conselho, tendo sempre maioria na hora das deliberações.

O MAV, então, empenhou-se pela implantação dos Conselhos Locais de Saúde,

conseguindo aprovação de uma Lei, que não foi efetivada na prática. Em 2000, foi publicada uma

cartilha informando à população sobre o SUS. O grupo também realizou seminários anuais,

exposição de fotos, palestras, caminhadas, panfletagem, romarias, apresentações em escolas,

igrejas, realizou reuniões de mobilização, sempre defendendo a saúde pública e as políticas

públicas de saneamento e meio ambiente.

Para o MAV, a instalação dos Conselhos Locais dificultaria o processo de cooptação

dos representantes dos usuários pela gestão municipal: “A nossa dificuldade é que a maioria segue a

cartilha de quem está no poder[...] Dentro do processo como eu via, não são representantes do

povo, são representantes de si próprios e de um grupo específico, né?

A manipulação ocorre de várias formas. Na questão dos conselhos locais de

saúde, o MAV havia capacitado vários bairros, mas foi surpreendido pelo veto do conselho municipal:

“Q uer dizer, é o retrocesso de uma luta de muito tempo: uma lei pronta, capacitação pronta, e de

repente foi vetado [...] Eu posso contar um episódio que aconteceu uns três meses atrás. [...] na hora

de fazer o quorum a pessoa tinha sumido e aí depois que foi suspensa a assembléia por falta de

quorum, a conselheira apareceu e disse que tinha chegado naquele momento, né? Não foi ninguém

que me contou, eu mesmo presenciei isso, e aí levantei o quê? Q ue realmente existe aquela tendência:

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Se for conveniente, acontece. Se não for conveniente, não acontece”.

A possibilidade de participação efetiva da sociedade civil tem tido entendimentos

bastante distintos. Cortes18, ao avaliar esta questão, discorda de alguns autores que desacreditam

plenamente na participação por julgá-la inconsistente para países em desenvolvimento pois, a

participação, sob esta perspectiva, tende para a manipulação dos usuários. A autora, mesmo

reconhecendo alguns limites para a participação efetiva nos conselhos de saúde, resalta alguns

determinantes positivos, entre eles, as mudanças recentes na estrutura institucional do SUS e a

organização dos movimentos popular e sindical locais, além das novas posições dos gestores em

relação à dinâmica dos conselhos.

A autora ressalta ainda que o padrão de organização dos movimentos sociais urbanos

influencia o modo como os usuários se envolvem nas atividades do conselho: “Se o padrão de

organização for mais descentralizado, os representantes dos usuários chegam ao conselho municipal

através de organizações locais”.

Em consonância com essa perspectiva, o grupo Água é Vida aceitou representar a

Arquidiocese de Feira de Santana no Conselho Municipal de Saúde, a partir de 2001. Hoje, o MAV

constrói a sua interferência neste espaço de definição de políticas públicas, pelo segundo mandato,

com dois representantes, um titular e um suplente.

A descrição e análise feitas pelos entrevistados conselheiros tornaram mais claro o

tipo de dificuldade a ser enfrentado na consolidação da participação social nos conselhos de gestão

e demais encontros definidores de políticas: “Pra gente tem sido uma experiência muito boa. Pena

que.. [....lá no conselho só se aprova o que a secretaria quer, né? E às vezes a gente sai até

como, eu não diria brigões, como chatos, porque a gente questiona, a gente tenta formar comissões

pra acompanhar, tenta...colocar propostas que venham melhorar a informação do público, ou então

tenta fiscalizar”.

A questão é que o acompanhamento e a fiscalização, papéis centrais do conselho,

ficam dificultados pelos obstáculos criados no acesso às informações. Comissões são sugeridas,

mas barreiras são colocadas,, sucessivamente: “Por que que eu estou contando esta história? Pra

justificar a dificuldade que os movimentos sociais ainda têm pra poder conseguir informação. Pra que

realmente o tal do controle social seja efetivo no município, a gente tem que derrubar várias

barreiras. Se a gente que faz parte do conselho teve essa dificuldade, imagine o cidadão comum [...]

A nossa participação é angustiante”.

A questão da desinformação ocorre de várias formas, seja pela agenda que não

permite um estudo melhor da matéria a ser apreciada pelos conselheiros, quer seja pela

capacitação deficiente: “Fora que ás vezes a gente recebe projeto de última hora que não dá tempo

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ler pra avaliar pra ver realmente se vai ser bom ou não pro município. Por exemplo, a capacitação

dos conselheiros até hoje pros novos não saiu, a gente recebe aquela pasta com um monte de conta

e não sabe identificar ainda muita coisa, então tem essa dificuldade. Como é que você vai aprovar

uma coisa que você não conhece, não é?”

Então o grupo observa que a manipulação das votações, por exemplo, segue, muitas

vezes, outras racionalidades, como as oriundas da prática político-partidária, onde a informação é

um recurso de poder que não deve ser compartilhado, sob pena de desacúmulo e instabilidade

nos grupos já instituídos. Observou-se que o MAV entendia que a participação só será plena à

medida que permita a interferência junto às instâncias decisórias do poder público. Assim, a

participação é considerada “uma experiência muito boa” naquilo que ela tem de vivência e de

aprendizado, mas “angustiante”, e, de certa forma, desencantadora, no que tange à falta de

empenho por parte do poder público em debater e aprovar os temas que o gestor não considera

importantes para a administração. Desta forma, a atuação dos conselheiros, no sentido de buscar

esclarecimentos sobre as matérias de votação, era vista como uma ação política de obstrução:

“Pensamos uma coisa e foi outra. Porque pensou que a gente estava querendo fazer jogo político.

Mas a gente não tem jogo político nenhum. [...] A princípio, foi tanta dificuldade que, no início,

ninguém queria a participação nossa lá no conselho, devido que a gente incomodava muito [...].

Mas a gente continuou e hoje a gente já tem outra conscientização do que é um conselho municipal

de saúde”.

Essa conscientização fortalece a posição de não abandonar a ação militante, atitude

comum nos movimentos sociais de caráter reivindicatório, nos anos 70-80. Ao contrário, o

“Movimento Água é Vida” tem procurado organizar os grupos com os quais trabalha para

potencializar esta participação, levando-os para dentro das reuniões do CMS, como forma de

emponderar as posições dos conselheiros representantes da sociedade civil.

O objetivo do MAV de “apoiar as comunidades na formação e atuação de conselhos

locais de saúde” consta do seu estatuto e foi identificado como uma maneira de reconhecer o

problema “lá na ponta”, para fazer chegar até a secretaria, até o conselho. Para alcançar este

objetivo eles utilizam uma estratégia de “lobby”, criando “equipes de saúde nos bairros”,

“estudando o que é um Conselho Local de Saúde e o porquê do CLS”.

A expectativa sobre os CLS, em vários momentos, aparece como extremamente

positiva, demonstrando, a nosso ver, uma compreensão ampliada sobre o controle social e

sobre o real significado das instâncias decisórias das políticas de saúde: “O s Conselhos Locais

de Saúde, eles vão fiscalizar a unidade de saúde com o PSF [...]. Aí você vai fortalecer. Por que

fortalecer o Conselho Municipal de Saúde? Por que você vai ter respaldo da comunidade e, além

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disso, conhecer o processo de saúde, conhecer os direitos dele, com seus deveres e conhecer

como é o trabalho nas unidades de saúde. Porque falta medicamento? Qual a cota que é pra

cada Unidade de Saúde? Aí a comunidade vai-se interessar e vai participar do Conselho

Municipal de Saúde”.

Em documento assinado e distribuído aos presentes, na reunião ordinária do

conselho municipal, um conselheiro procurou iniciar uma discussão sobre o controle social a

partir da revisão da resolução 333/03. Segundo ele, o Ministério da Saúde tem uma política de

fomentar o controle social “muito mais no discurso”. Então, no documento, foi proposto que

o MS incorpore na sua relação com os municípios esta orientação de criação dos CLS, como

instrumento importante de controle social, tornando a descentralização não apenas

administrativa, mas política, sendo levandas para o conselho municipal apenas aquelas

demandas que não forem resolvidas no nível local.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O “Movimento Água é Vida” surge em meio a demandas populares por saúde bem

específicas no final da década de 90, quando, a partir daí, passa a assumir nesta área de atuação,

uma liderança inquestionável. Em 2003, o grupo institucionalizou-se, tornando-se uma Organização

Não-governamental (ONG), que representa a diocese de Feira de Santana no Conselho Municipal

de Saúde e realiza seminários, debates, além de cursos de capacitação para conselheiros,

lideranças comunitárias e agentes comunitários de saúde, inclusive em parceria com a

universidade.

Na sua trajetória histórica, o movimento se fortaleceu por ocasião da luta contra a

privatização da EMBASA. Neste episódio mostrou capacidade de articulação e arregimentação,

conseguindo apresentar um Projeto de Lei de Iniciativa Popular, com mais de 24 mil assinaturas,

inédito em Feira de Santana e, com certeza, também para a maioria das cidades, contribuindo em

grande parte para o recuo na decisão de tornar efetiva a privatização, por parte do governo

municipal.

Com a retirada do projeto de privatização por parte do executivo municipal, o grupo

continuou trabalhando fortemente nas áreas de saúde, saneamento e meio ambiente.

Essa construção da cidadania se faz através da sensibilização e mobilização da

sociedade civil no sentido de cobrar e exigir seus direitos: direito à saúde e água potável de

qualidade, direito ao saneamento básico e também direito de participação social nas políticas

públicas.

No que diz respeito às dificuldades enfrentadas, ressaltam aquelas que qualquer

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entidade ou movimento social, ou até mesmo sindicatos e partidos políticos enfrentam, ou seja, a

ampliação da participação popular, bem como dificuldades de recursos para empreender projetos e

ações mais amplos.

Destacou-se também algum dilema em relação aos vínculos no que diz respeito à sua

relação com o poder público nos fóruns deliberativos, em parte por sua ação de denunciar a

sonegação da informação e manipulação na votação das matérias no Conselho Municipal de Saúde.

O “Movimento Água é Vida” tem projetado, como uma das perspectivas futuras,

uma atuação no campo do controle social, com a criação e efetivação dos Conselhos Locais de

Saúde, como forma de melhorar a participação no Conselho Municipal de Saúde. O grupo planeja

também uma atuação mais intensa nas escolas públicas, procurando sensibilizar os mais jovens e

criar, desde cedo, uma consciência para os problemas que envolvam a saúde no município,

constituindo-se, desta forma, em exemplo paradigmático de resistência social e possibilidade de

políticas redistributivas mais consistentes com os princípios do SUS.

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Revista Baianade Saúde Pública

v.29 n.2, p.226-237jul./dez. 2005

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Recebido e aceito em 03/07/2005

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