MOVIMENTO ÁGUA É VIDA E A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA EM FEIRA DE SANTANA - BA
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ARTIGO ORIGINAL
M O VIM ENTO ÁGUA É VIDA E A CO NSTRUÇÃO DACIDADANIA EM FEIRA DE SANTANA - BA
André Almeida Uzêdaa
Thereza Cristina Bahia Coelhob
Resumo
“O M ovim ento Água é Vida” é um a entidade do m ovim ento social do m unicípio de
Feira de Santana, com posto de religiosos, lideranças com unitárias, professores e técnicos, que
ganhou visibilidade no m unicípio na luta contra a privatização da Em basa, quando congregou
diversas entidades e lideranças em favor do saneam ento, da proteção ao m eio am biente e da
saúde pública. Esta pesquisa procurou analisar o processo de construção da cidadania de
determ inados segm entos da sociedade civil em relação ao poder público, seus conflitos e form as
de consensos. Realizou-se pesquisa de abordagem qualitativa, do tipo estudo de caso. Os dados
foram coletados a partir de entrevistas sem i-estruturadas, observações participantes e análise de
docum entos, tendo com o sujeitos deste estudo os m em bros representantes da entidade. Os
resultados apresentados dão conta de um a entidade extrem am ente atuante, com propostas e
intervenções no cam po das políticas públicas. Com o perspectiva, pretendem atuar cada vez m ais
na dim ensão do controle social, seja dando continuidade à representação no Conselho M unicipal
de Saúde, seja estim ulando a criação dos Conselhos Locais de Saúde. Este m esm o grupo, no
entanto, enfrenta dificuldades no que diz respeito à am pliação da participação popular, à sua
relação com o poder público nos fóruns deliberativos e ao financiam ento das suas ações.
Palavras-chave: M ovim entos Sociais, Cidadania, Participação.
aSociólogo, M estre em Saúde Coletiva, Professor Assistente do Departamento de Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Feira de Santana - Ba.bM édica, Doutora em Saúde Pública, Professora Adjunta do Departamento de Saúde da Universidade Estadual de Feira de Santana - Ba.
Correspondência para:. Correspondência para: Tânia Cristina Fernandes de Freitas Santana. NUSC/Departamento de Saúde.
Universidade Estadual de Feira de Santana. KM 03 – BR 116 – Campus Universitário
CEP: 44031-460 Cidade: Feira de Santana Telefone: (075) 3224-8096/95. E-mail: nusc@ libra.uefs.br
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“W ATER IS LIFE MOVEMENT” AND CITIZENSHIP CONSTRU CTION IN FEIRA D ESANTANA, BAHIA, BRAZIL
Abstract
The “W ater is Life Movement” is an entity associated with the social movement of
the city of Feira de Santana, formed by religious and community leaderships, teachers and technicians,
who gained visibility within the district by fighting against the privatization of EMBASA (state water
public system), gathering several entities and leaderships for the cause of sanitary improvement,
environmental protection and public health. This research aimed at analyzing the citizenship
construction process within certain segments of civil society, their conflicts and forms of consensus
with reference to public service. Q ualitative approach in the form of case study was used in this
research. D ata were collected by means of semi-structured interviews, participant interviews, and
document analysis, having entity’s representative members as subjects. Results point out to an
extremely active entity, with proposals and interventions in the area of public policies. W ithin the
frame of perspectives, they intend to act, at an increasing pace, towards the dimensions of social
control, either by means of continuing their representation at Municipal Health council, or by
stimulating the creation of Local Health Councils. This same group, however, faces several difficulties
as to the increasing of popular participation, as to its relation with the public sector in the deliberative
forums and the financing of its actions.
Keywords: Social Movements, Citizenship, Participation
INTRO DUÇÃO
A noção de que a construção da cidadania e a efetivação de políticas públicas são
produzidas a partir do surgimento e formação de sujeitos coletivos, tem sido fundamental para quem
estuda os movimentos sociais hoje. Alguns autores descrevem este processo e identificam mudanças
ocorridas no seio dos movimentos e das lutas populares, a partir do surgimento de novos atores
sociais: homossexuais, negros, mulheres, trabalhadores rurais sem terra, os sem-teto, e Organizações
Não-governamentais - ONGs. São os novos personagens de uma sociedade em transformação 1.
Outra referência importante para a compreensão destas mudanças diz respeito ao
processo de formalização e institucionalização da democracia, fundamentais para garantir, por
exemplo, o controle social em saúde. Este processo democratizador consolida-se com a
promulgação da Constituição Federal, em 1988, e a realização das eleições para presidente da
república, em 1989, mas estende-se em vários outros momentos com o Estatuto da Criança e do
Adolescente e o Código de D efesa do Consumidor, ambos em 1990.
No campo da Saúde, a inclusão legal da participação social tem como base o artigo
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198 da seção II da Constituição Federal que estabelece ser a participação da comunidade uma
diretriz fundamental do SUS 2. A Lei 8.142 define que o SUS contará, em cada nível administrativo
do governo, com as seguintes instâncias colegiadas: as Conferências Nacional, Estaduais e
Municipais de Saúde, com periodicidade mínima de 4 anos e os Conselhos de Saúde (Nacional,
Estaduais e Municipais)3.
O processo de elaboração das Constituições Estaduais e das Leis Orgânicas
Municipais, em 1989 e 1990, respectivamente, faculta a cada município a participação mediante a
da representação política e a alteração dos conteúdos das leis com o uso de emendas populares,
permitindo o despertar da sociedade civil para a possibilidade de decidir e intervir em espaços
anteriormente vistos como unicamente do poder público.
A participação da sociedade civil, desenvolvida por essas formas legais de controle
social, assim como os limites institucionais colocados aos usuários têm sido questionados4. As
discussões têm levado à construção de propostas para a consolidação de experiências bem-
sucedidas e o estabelecimento de estratégias para a criação de fóruns e espaços de construção de
cidadania5. Neste sentido, os avanços e obstáculos encontrados nas experiências locais têm
contribuído muito para o entendimento destas questões e abertura de novos caminhos.
Em Feira de Santana, o estudo de Assis6 tornou possível a compreensão da
municipalização e descentralização da gestão da saúde no município, evidenciando como este
processo se apresentou conflituoso e contraditório ao externar diferentes projetos políticos e
correspondentes forças de distintos sujeitos sociais. A municipalização na Saúde só poderia
constituir-se de forma democrática se viesse acompanhada de ampliação da participação popular e
controle social, e de um “redimensionamento da visão de saúde rumo a uma concepção positiva
por parte dos trabalhadores de saúde e da população em geral”. Do contrário, a hegemonia da
indústria da doença é que sairia fortalecida.
Os estudos sobre os movimentos sociais, apesar de identificarem novas exigências e
espaços de participação criados pelos processos de legitimação das políticas públicas 7,8,9, nem
sempre têm conseguido transformar suas indagações em objeto de pesquisa, recaindo suas
preocupações, geralmente, sobre o movimento sindical e sobre a organização dos trabalhadores
rurais e suas lutas no setor agrícola 10, 11.
Carvalho12, estudando a atuação dos movimentos sociais no Conselho Municipal de
Saúde (CMS), em Feira de Santana, entre os anos 1990-96, destaca a importância dos espaços de
participação social para a implementação do SUS, identificando a construção de um “processo de
transformação de sujeitos individuais em sujeitos coletivos e/ou atores sociais”. A
institucionalização da participação no CMS deve garantir a participação real dos sujeitos e atores
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sociais vinculando-os a uma prática concreta e efetiva no campo da política. Carvalho12 identifica
ainda, atores e bandeiras de luta defendidas por cada entidade, abordando a atuação local do
Movimento de Organização Comunitária (MOC), como uma entidade fundamental, pois esta
mobiliza, organiza e capacita os grupos da sociedade civil.
A indagação sobre os movimentos sociais em Feira de Santana e a sua atuação no
campo das políticas públicas, especialmente as de saúde, meio ambiente e saneamento básico,
pressupõe compreender a política nesta dimensão. É no processo de elaboração e implementação
das políticas públicas, com todos os limites e conflitos, que os novos e antigos grupos sociais
organizam-se e articulam-se, pela possibilidade de terem os seus interesses atendidos.
Neste mesmo município, no final dos anos 90, com forte influência da Igreja Católica,
consolidou-se uma entidade denominada “MOVIMENTO ÁGUA É VIDA: em defesa da água e da
saúde”. Esta organização composta por professores, intelectuais, técnicos e lideranças de diversos
segmentos, desde então, atua com representantes junto ao Conselho Municipal de Saúde.
Este estudo analisou a construção da cidadania e da participação da sociedade civil
nas políticas públicas, sobretudo no campo da saúde, no município de Feira de Santana, Bahia, no
ano de 2004, enfatizando especificamente o Movimento Água é Vida.
MATERIAL E MÉTODOS
Para analisar os movimentos sociais em Saúde no município de Feira de Santana na
conjuntura atual, discutiu-se inicialmente a noção de “movimento”. No estudo das organizações,
entende-se movimento como um tipo de organização não formalizada, mas com poder de instituir.
No entanto, muitos movimentos são compostos por grupos sociais formalizados, ou seja, instituições.
A cidadania foi concebida aqui, principalmente, como a relação entre o indivíduo e
o poder público 13. Esta relação é construída historicamente, devendo-se perceber as mudanças
ocorridas nos seus dois pólo s, tanto no Estado quanto na sociedade civil.
Teixeira 14 ressalta a idéia de uma “ação cidadã”, diferente das demais ações
coletivas. Por sua vez, Dagnino15 demonstra a importância, para os movimentos sociais, da
apropriação da noção de cidadania como forma de se ampliar a idéia de democracia, assumindo a
noção do direito a ter direitos, incluindo os direitos advindos das novas lutas e novos problemas.
Para garantir o direito à igualdade será preciso garantir também o direito à diferença. A “nova
cidadania” é uma estratégia dos não-cidadãos, dos excluídos. Assim, os conflitos de interesses
podem ser expostos e discutidos, consolidando os direitos como parâmetro de debate e
negociação de interesses entre os grupos e reconfigurando a dimensão ética da vida social”15, o
que requer uma reforma moral e intelectual.
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Para estudar a cidadania dentro dessa nova perspectiva, realizou-se um estudo de
caso com o “Movimento Água É Vida”. Foram feitas cinco entrevistas semi-estruturadas com
membros da coordenação, incluindo um outro membro do grupo que não desempenhava
atividade de coordenação, mas que participava dele intensamente, bem como de outros
movimentos. Para as observações participantes realizadas, não foram se priorizadas somente
conversas e/ou reuniões da coordenação, mas também seminários, conferência municipal de
saúde e reuniões do Conselho de Saúde, facilitando a coleta de dados documentais.
A análise de conteúdo se iniciou com a leitura extensa do material coletado,
registrado no do Diário de Campo, nos documentos e nas transcrições das entrevistas. No segundo
momento, a leitura procurou captar as categorias empíricas em função dos objetivos e das
categorias operacionais, seguindo-se a produção de sínteses e a interpretação do texto pelas
dotações de sentido que emergiam das situações descritas. Estes sentidos oriundos das
interpretações de primeiro nível foram contextualizados social e historicamente para a produção de
novos sentidos 16.
RESULTADOS
O “Movimento Água é Vida” (MAV) foi construído num espaço de tempo
relativamente curto, a partir de um fato ocorrido em 1997. Uma pessoa veio a óbito, sem
atendimento, na fila do Hospital Clériston Andrade, gerando uma reação comunitária. Foram feitas
algumas reuniões e organizada uma missa campal celebrada pelo arcebispo de Feira de Santana,
como forma de criar uma pressão sobre o governo. Em conseqüência, foi criado o que se chamava
Movimento Popular em Defesa da Saúde Pública. Por mais de três anos, o movimento manteve sua
dinâmica de realizar reuniões e seminários anuais discutindo problemas da saúde e de saneamento
básico, despontando como um grupo da sociedade civil importante, no qual se podia discutir e
buscar alternativas para os problemas ligados diretamente à saúde.
No que diz respeito às demandas assistenciais, era preciso lutar por melhorias, pelo
atendimento de qualidade, sendo necessário pensar a saúde de forma complexa, de modo que o
controle social e uma efetiva participação permitissem maior e melhor acesso aos serviços. Através
dos depoimentos, nota-se que estas eram as principais tarefas do movimento popular, embrião do
atual “Movimento Água é Vida”.
Em sua trajetória histórica, destaca-se a luta contra a privatização da Empresa Baiana
de Saneamento (Embasa), em 2001, que contribuiu muito para o fortalecimento do MAV, pois, a
partir dali, o grupo percebeu, de maneira muito mais clara, o quanto a questão da água envolvia a
saúde e um conjunto de outros problemas, e que deveria, além de evitar a privatização, envolver-
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se nas ações mais amplas para o cuidado com a água, o saneamento e o meio ambiente em geral.
Para realizar essa nova tarefa, foi necessário assumir uma postura mais atuante no
que diz respeito às políticas públicas municipais, especialmente àquelas relativas à saúde. À luz dos
novos interesses, o grupo centrou suas ações na participação. Tal participação pressupõe uma
crença muito grande no poder da “comunidade”, do “povo”, na organização e na capacidade de
articular outros grupos e pessoas: “Eu acho que o que mudou mesmo,foi conseguir que o povo se
unisse [...] Por isso que eu penso que a gente tem sempre que encontrar caminhos de diálogo,
caminhos de conversa, mas às vezes o povo, quando é capaz de pressionar forte, é o que faz que o
político mude”.
A importância da ampla participação, principalmente em situações de conflito de
interesses, foi destacada por outro entrevistado: “E quando o objetivo é manter interesses, então aí,
o diálogo não interessa. Pode ao nível de imagem ficar bonito, que queremos dialogar, mas não se
queria dialogar, se queria fazer isso. Então é claro que, nessas situações, é bom que o povo esteja
consciente [...] Então quando o povo tem uma idéia muito clara e uma união grande, aí é muito
difícil que o poder público diga que não[...]”.
Entretanto é preciso encontrar caminhos que mobilizem essa sociedade, que a
estimule a se comprometer com sua própria história: “Por que nós temos certeza disso, convicção
disso, a partir da própria história, de que êxitos só virão se a comunidade se mobilizar e assumir suas
bandeiras”.
Quando a sociedade civil “finca o pé” e reivindica, ela consegue o que quer, desde
que haja organização, pois, quando se está organizado, a reivindicação recebe outro atendimento:
“Meu pai sempre dizia assim ‘o político, ele tem medo do povo’ e na realidade é isso”.
Em muitos momentos, essa confiança não assume as mesmas proporções quando se
trata do poder público. Os motivos desta descrença remetem a uma experiência histórica, já
descrita pelos autores que estudaram a ação do poder público em Feira de Santana na sua tentativa
de evitar que o controle social se torne efetivo: “Os prefeitos, a regra é não querer, é evitar
qualquer forma de controle social. A regra dos prefeitos tradicionais, não é? Eles querem estar ali
sozinhos mandando naquilo que não é dele, que o poder público não é um bem privado, é um bem
público [...]. Apesar de você estar com o estatuto legal, a má vontade da administração municipal
não fez avançar; pelo contrário, os gestores municipais dificultaram o que puderam pra os conselhos
locais de saúde não nascerem”.
Ou seja, existiria, na perspectiva dos sujeitos entrevistados, uma resistência dos
responsáveis pela gestão municipal em permitir a participação da sociedade civil organizada,
porque isto poderia “contrariar interesses”, principalmente nos casos em que a população
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identificasse problemas, como o mal uso do poder público ou corrupção. Uma das formas, então,
de o gestor driblar esta participação seria comprometer, na prática, a paridade prevista em lei:
“Você tem que saber com quem você está fazendo parcerias, não é verdade? Você tem que saber
com quem, que você não vai fazer parceria com o poder público corrupto, não é? Com o poder
público que não respeita a paritariedade. Ele é poder e tem os interesses dele. Ele quer defender o
peixe dele que ele está vendendo enganosamente pra população, não é? E a paritariedade também a
gente não sabe, mesmo que seja paritário assim, na vitrine, não é?”
O que se evidencia a partir desses depoimentos diz respeito ao problema da
permanência do estilo autoritário de gestão dentro do setor público17, que entra em contradição
com a democracia proposta pelo SUS, e a dificuldade que isto coloca para o exercício do controle
social. A submissão ao poder público e político instituído impede a autonomia e a atuação crítica
de muitos conselheiros. Nestas circunstâncias, também a própria representatividade de muitos
deles é colocada em questão: “Nós temos conselhos “prefeiturais”, não é?”
Para manter o controle, a gestão municipal utilizaria diversas estratégias. Para um dos
entrevistados, o Conselho Municipal de Saúde de Feira de Santana não conseguia deliberar
absolutamente nada que não fosse do interesse do governo municipal, porque este estaria
articulado com representantes do conselho, tendo sempre maioria na hora das deliberações.
O MAV, então, empenhou-se pela implantação dos Conselhos Locais de Saúde,
conseguindo aprovação de uma Lei, que não foi efetivada na prática. Em 2000, foi publicada uma
cartilha informando à população sobre o SUS. O grupo também realizou seminários anuais,
exposição de fotos, palestras, caminhadas, panfletagem, romarias, apresentações em escolas,
igrejas, realizou reuniões de mobilização, sempre defendendo a saúde pública e as políticas
públicas de saneamento e meio ambiente.
Para o MAV, a instalação dos Conselhos Locais dificultaria o processo de cooptação
dos representantes dos usuários pela gestão municipal: “A nossa dificuldade é que a maioria segue a
cartilha de quem está no poder[...] Dentro do processo como eu via, não são representantes do
povo, são representantes de si próprios e de um grupo específico, né?
A manipulação ocorre de várias formas. Na questão dos conselhos locais de
saúde, o MAV havia capacitado vários bairros, mas foi surpreendido pelo veto do conselho municipal:
“Q uer dizer, é o retrocesso de uma luta de muito tempo: uma lei pronta, capacitação pronta, e de
repente foi vetado [...] Eu posso contar um episódio que aconteceu uns três meses atrás. [...] na hora
de fazer o quorum a pessoa tinha sumido e aí depois que foi suspensa a assembléia por falta de
quorum, a conselheira apareceu e disse que tinha chegado naquele momento, né? Não foi ninguém
que me contou, eu mesmo presenciei isso, e aí levantei o quê? Q ue realmente existe aquela tendência:
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Se for conveniente, acontece. Se não for conveniente, não acontece”.
A possibilidade de participação efetiva da sociedade civil tem tido entendimentos
bastante distintos. Cortes18, ao avaliar esta questão, discorda de alguns autores que desacreditam
plenamente na participação por julgá-la inconsistente para países em desenvolvimento pois, a
participação, sob esta perspectiva, tende para a manipulação dos usuários. A autora, mesmo
reconhecendo alguns limites para a participação efetiva nos conselhos de saúde, resalta alguns
determinantes positivos, entre eles, as mudanças recentes na estrutura institucional do SUS e a
organização dos movimentos popular e sindical locais, além das novas posições dos gestores em
relação à dinâmica dos conselhos.
A autora ressalta ainda que o padrão de organização dos movimentos sociais urbanos
influencia o modo como os usuários se envolvem nas atividades do conselho: “Se o padrão de
organização for mais descentralizado, os representantes dos usuários chegam ao conselho municipal
através de organizações locais”.
Em consonância com essa perspectiva, o grupo Água é Vida aceitou representar a
Arquidiocese de Feira de Santana no Conselho Municipal de Saúde, a partir de 2001. Hoje, o MAV
constrói a sua interferência neste espaço de definição de políticas públicas, pelo segundo mandato,
com dois representantes, um titular e um suplente.
A descrição e análise feitas pelos entrevistados conselheiros tornaram mais claro o
tipo de dificuldade a ser enfrentado na consolidação da participação social nos conselhos de gestão
e demais encontros definidores de políticas: “Pra gente tem sido uma experiência muito boa. Pena
que.. [....lá no conselho só se aprova o que a secretaria quer, né? E às vezes a gente sai até
como, eu não diria brigões, como chatos, porque a gente questiona, a gente tenta formar comissões
pra acompanhar, tenta...colocar propostas que venham melhorar a informação do público, ou então
tenta fiscalizar”.
A questão é que o acompanhamento e a fiscalização, papéis centrais do conselho,
ficam dificultados pelos obstáculos criados no acesso às informações. Comissões são sugeridas,
mas barreiras são colocadas,, sucessivamente: “Por que que eu estou contando esta história? Pra
justificar a dificuldade que os movimentos sociais ainda têm pra poder conseguir informação. Pra que
realmente o tal do controle social seja efetivo no município, a gente tem que derrubar várias
barreiras. Se a gente que faz parte do conselho teve essa dificuldade, imagine o cidadão comum [...]
A nossa participação é angustiante”.
A questão da desinformação ocorre de várias formas, seja pela agenda que não
permite um estudo melhor da matéria a ser apreciada pelos conselheiros, quer seja pela
capacitação deficiente: “Fora que ás vezes a gente recebe projeto de última hora que não dá tempo
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ler pra avaliar pra ver realmente se vai ser bom ou não pro município. Por exemplo, a capacitação
dos conselheiros até hoje pros novos não saiu, a gente recebe aquela pasta com um monte de conta
e não sabe identificar ainda muita coisa, então tem essa dificuldade. Como é que você vai aprovar
uma coisa que você não conhece, não é?”
Então o grupo observa que a manipulação das votações, por exemplo, segue, muitas
vezes, outras racionalidades, como as oriundas da prática político-partidária, onde a informação é
um recurso de poder que não deve ser compartilhado, sob pena de desacúmulo e instabilidade
nos grupos já instituídos. Observou-se que o MAV entendia que a participação só será plena à
medida que permita a interferência junto às instâncias decisórias do poder público. Assim, a
participação é considerada “uma experiência muito boa” naquilo que ela tem de vivência e de
aprendizado, mas “angustiante”, e, de certa forma, desencantadora, no que tange à falta de
empenho por parte do poder público em debater e aprovar os temas que o gestor não considera
importantes para a administração. Desta forma, a atuação dos conselheiros, no sentido de buscar
esclarecimentos sobre as matérias de votação, era vista como uma ação política de obstrução:
“Pensamos uma coisa e foi outra. Porque pensou que a gente estava querendo fazer jogo político.
Mas a gente não tem jogo político nenhum. [...] A princípio, foi tanta dificuldade que, no início,
ninguém queria a participação nossa lá no conselho, devido que a gente incomodava muito [...].
Mas a gente continuou e hoje a gente já tem outra conscientização do que é um conselho municipal
de saúde”.
Essa conscientização fortalece a posição de não abandonar a ação militante, atitude
comum nos movimentos sociais de caráter reivindicatório, nos anos 70-80. Ao contrário, o
“Movimento Água é Vida” tem procurado organizar os grupos com os quais trabalha para
potencializar esta participação, levando-os para dentro das reuniões do CMS, como forma de
emponderar as posições dos conselheiros representantes da sociedade civil.
O objetivo do MAV de “apoiar as comunidades na formação e atuação de conselhos
locais de saúde” consta do seu estatuto e foi identificado como uma maneira de reconhecer o
problema “lá na ponta”, para fazer chegar até a secretaria, até o conselho. Para alcançar este
objetivo eles utilizam uma estratégia de “lobby”, criando “equipes de saúde nos bairros”,
“estudando o que é um Conselho Local de Saúde e o porquê do CLS”.
A expectativa sobre os CLS, em vários momentos, aparece como extremamente
positiva, demonstrando, a nosso ver, uma compreensão ampliada sobre o controle social e
sobre o real significado das instâncias decisórias das políticas de saúde: “O s Conselhos Locais
de Saúde, eles vão fiscalizar a unidade de saúde com o PSF [...]. Aí você vai fortalecer. Por que
fortalecer o Conselho Municipal de Saúde? Por que você vai ter respaldo da comunidade e, além
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disso, conhecer o processo de saúde, conhecer os direitos dele, com seus deveres e conhecer
como é o trabalho nas unidades de saúde. Porque falta medicamento? Qual a cota que é pra
cada Unidade de Saúde? Aí a comunidade vai-se interessar e vai participar do Conselho
Municipal de Saúde”.
Em documento assinado e distribuído aos presentes, na reunião ordinária do
conselho municipal, um conselheiro procurou iniciar uma discussão sobre o controle social a
partir da revisão da resolução 333/03. Segundo ele, o Ministério da Saúde tem uma política de
fomentar o controle social “muito mais no discurso”. Então, no documento, foi proposto que
o MS incorpore na sua relação com os municípios esta orientação de criação dos CLS, como
instrumento importante de controle social, tornando a descentralização não apenas
administrativa, mas política, sendo levandas para o conselho municipal apenas aquelas
demandas que não forem resolvidas no nível local.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O “Movimento Água é Vida” surge em meio a demandas populares por saúde bem
específicas no final da década de 90, quando, a partir daí, passa a assumir nesta área de atuação,
uma liderança inquestionável. Em 2003, o grupo institucionalizou-se, tornando-se uma Organização
Não-governamental (ONG), que representa a diocese de Feira de Santana no Conselho Municipal
de Saúde e realiza seminários, debates, além de cursos de capacitação para conselheiros,
lideranças comunitárias e agentes comunitários de saúde, inclusive em parceria com a
universidade.
Na sua trajetória histórica, o movimento se fortaleceu por ocasião da luta contra a
privatização da EMBASA. Neste episódio mostrou capacidade de articulação e arregimentação,
conseguindo apresentar um Projeto de Lei de Iniciativa Popular, com mais de 24 mil assinaturas,
inédito em Feira de Santana e, com certeza, também para a maioria das cidades, contribuindo em
grande parte para o recuo na decisão de tornar efetiva a privatização, por parte do governo
municipal.
Com a retirada do projeto de privatização por parte do executivo municipal, o grupo
continuou trabalhando fortemente nas áreas de saúde, saneamento e meio ambiente.
Essa construção da cidadania se faz através da sensibilização e mobilização da
sociedade civil no sentido de cobrar e exigir seus direitos: direito à saúde e água potável de
qualidade, direito ao saneamento básico e também direito de participação social nas políticas
públicas.
No que diz respeito às dificuldades enfrentadas, ressaltam aquelas que qualquer
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entidade ou movimento social, ou até mesmo sindicatos e partidos políticos enfrentam, ou seja, a
ampliação da participação popular, bem como dificuldades de recursos para empreender projetos e
ações mais amplos.
Destacou-se também algum dilema em relação aos vínculos no que diz respeito à sua
relação com o poder público nos fóruns deliberativos, em parte por sua ação de denunciar a
sonegação da informação e manipulação na votação das matérias no Conselho Municipal de Saúde.
O “Movimento Água é Vida” tem projetado, como uma das perspectivas futuras,
uma atuação no campo do controle social, com a criação e efetivação dos Conselhos Locais de
Saúde, como forma de melhorar a participação no Conselho Municipal de Saúde. O grupo planeja
também uma atuação mais intensa nas escolas públicas, procurando sensibilizar os mais jovens e
criar, desde cedo, uma consciência para os problemas que envolvam a saúde no município,
constituindo-se, desta forma, em exemplo paradigmático de resistência social e possibilidade de
políticas redistributivas mais consistentes com os princípios do SUS.
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Recebido e aceito em 03/07/2005
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