Morfogénese Urbana em Maputo_Identidades Justapostas: Narração Para Uma Epistemologia Urbana

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Morfogénese Urbana em Maputo Identidades Justapostas: Narração Para Uma Epistemologia Urbana Domingos A. Macucule Arquitecto, Mestre em Gestão do Território, Doutorando em Geografia e Planeamento Territorial, Assistente estagiário, Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico da Universidade Eduardo Mondlane, Investigador do Centro de Estudos de Geografia e Planeamento Regional – eGeo – FCSH- UNL- Lisboa 1. Introdução Morfogénese é uma palavra que vem da língua grega e significa desenvolvimento da forma. À entrada do presente século muitos estudos são desenvolvidos em semiótica do espaço com destaque para a escola francesa. Esta busca sistemática está a trazer avanços significativos na compreensão da forma quer arquitectural (micro) quer urbana (macro) no que se refere aos estímulos que ela emite ao sujeito que a percepciona bem como as reacções que daí se promovem. O sujeito da forma no espaço finito é o individuo e o urbano surge como o elemento de mediação entre a forma finita e aquele sujeito. O individuo é a dimensão mínima (micro) de uma estrutura macro que é a sociedade e as instituições representam a dimensão meso, de mediação entre as ambições do individuo e os propósitos da sociedade. Da abordagem estritamente arquitectónica e urbanística surge que o espaço, entendido aqui também como território, pressupõe uma estrutura e uma identidade (Licny, 1981). Estas duas dimensões gravitam numa questão – a vivencia, e polarizam-se na funcionalidade e na forma, respectivamente estrutura e identidade. Por outras palavras, a estrutura urbana resulta da justaposição entre vivência e funcionalidade, enquanto que a identidade urbana é função da vivência e da forma. Assim o urbanismo como disciplina científica e o planeamento urbano como acção de política publica encontram os seus pressupostos e fundamentos na busca por uma estrutura e reforço das identidades do território.

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Morfogénese Urbana em Maputo

Identidades Justapostas: Narração Para Uma Epistemologia Urbana

Domingos A. Macucule

Arquitecto, Mestre em Gestão do Território, Doutorando em Geografia e Planeamento Territorial, Assistente estagiário, Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico da Universidade Eduardo Mondlane, Investigador do Centro de Estudos de

Geografia e Planeamento Regional – eGeo – FCSH- UNL- Lisboa

1. Introdução

Morfogénese é uma palavra que vem da língua grega e significa desenvolvimento da forma. À

entrada do presente século muitos estudos são desenvolvidos em semiótica do espaço com

destaque para a escola francesa. Esta busca sistemática está a trazer avanços significativos na

compreensão da forma quer arquitectural (micro) quer urbana (macro) no que se refere aos

estímulos que ela emite ao sujeito que a percepciona bem como as reacções que daí se

promovem. O sujeito da forma no espaço finito é o individuo e o urbano surge como o elemento

de mediação entre a forma finita e aquele sujeito. O individuo é a dimensão mínima (micro) de

uma estrutura macro que é a sociedade e as instituições representam a dimensão meso, de

mediação entre as ambições do individuo e os propósitos da sociedade.

Da abordagem estritamente arquitectónica e urbanística surge que o espaço, entendido aqui

também como território, pressupõe uma estrutura e uma identidade (Licny, 1981). Estas duas

dimensões gravitam numa questão – a vivencia, e polarizam-se na funcionalidade e na forma,

respectivamente estrutura e identidade. Por outras palavras, a estrutura urbana resulta da

justaposição entre vivência e funcionalidade, enquanto que a identidade urbana é função da

vivência e da forma. Assim o urbanismo como disciplina científica e o planeamento urbano

como acção de política publica encontram os seus pressupostos e fundamentos na busca por

uma estrutura e reforço das identidades do território.

Na presente comunicação discutimos as rupturas e continuidades socio-espaciais em Maputo a

partir dos pressupostos acima referidos. O nosso discurso situa-se entre o epistémico e

ontológico. Falamos de epistemologia urbana para nos referirmos ao espaço de mediação entre

a acção de política publica e a teoria urbana, esta por sua vez vai se confundir deliberadamente

com o conhecimento1 empírico e sensitivo da cidade como artefacto sociocultural. Com a

abordagem ontológica queremos desconstruir o objecto á luz dos processos internos que nele

ocorrem e o estabilizam assim como os processos externos que o transformam. O método que

usamos é o que chamamos de arqueologia inversa, este método nos permite desconstruir o

nosso objecto, a cidade, a partir da sua essência actual para reconstrui-la num futuro que se

queira sustentável. A arqueologia inversa não deve ser confundida com futurismo mas ser vista

como um exercício de prospectiva territorial tendo como pano de fundo as identidades urbanas.

2. Uma Arqueologia Inversa da Forma

As identidades nos remetem a heranças ancestrais, sabendo de antemão que estas

ancestralidades não desempenham as mesmas funções de outrora, (Mbembe,2013). Do mesmo

modo que os tocadores de hoje em dia podem nos fazer dançar a um ritmo que se destina(va)

a acompanhar um condenado á morte antes da sua execução. Os urbanistas actuais nos

convencem cada vez mais que a alta densidade é o caminho para a sustentabilidade da cidade,

que os antigos cemitérios podem ser transformados em jardins públicos. Esta última preposição

sugere uma lógica transcendental, (Cante, 2010) do conceito da diversidade, onde se reinventa

uma dimensão sacra do espaço da morte, reapropriada pelos vivos conjecturando a morte dos

mortos ou na melhor das hipóteses a ressurreição.

1Emanuel Cante, Critica a Razão Pura.

Sugere-se uma arqueologia da forma urbana para recuperar ou perceber algumas manifestações

de identidade na cidade africana. Uma arqueologia da forma deverá ser inversa porque visa

desconstruir a significação das formas actuais da cidade em contexto africano. Poderíamos

procurar artefactos não contaminados para nos conferirem um enredo que nos ajude a

reconstruir o caminho que a espontaneidade na cidade popular seguiu para ser o que ela é

actualmente.

Mas tudo indica que a cidade popular, também rotulada como cidade informal, e em última

instância reduzida à dimensão de assentamento informal, é um espaço não menos contaminado

que á cidade cimento. A contaminação da "cidade cimento" amadureceu e se consolidou

constituindo agora um artefacto físico, na lógica da arqueologia clássica, o centro histórico

virou um produto turístico de contemplação e nostalgia de um passado colonial triunfante. A

cidade popular continua insubmissa, trava uma batalha oriunda do contexto segregacionista do

sistema colonial – que se fundava na classe dominante e dominada. Esta guerra se tornou

extemporânea e diacrónica nos tempos de hoje, mas ao mesmo tempo a luta se apresenta

sincrónica com um mercado predador e, sobretudo, perante á inércia burocrática de uma

administração pública corrompida e que teima em negligenciar uma crise sociourbanistica e

ambiental inequivocamente óbvia. Os artefactos da arqueologia inversa são a identidade

(vivencia + forma urbana) no seu contexto dinâmico – morfogénese.

Para uma arqueologia inversa da cidade africana é preciso reconhecer a priori a reciprocidade

entre a "cidade cimento" e a "cidade popular" ou, se quisermos, também a complementaridade

entre o formal e o informal. Não se trata de assumir o informal como uma fatalidade e o formal

como apanágio da modernidade, muito menos de advogar o direito á cidade negligenciando o

direito da cidade. Entendemos o direito á cidade como as possibilidades do individuo existir

na cidade respeitando as suas particularidades, portanto trata-se de direitos individuais. O

direito da cidade se consubstancia nas condições em que a vida colectiva se processa e se

transforma (dinâmica própria), isto é, a cidade como uma entidade social. As instituições e os

instrumentos surgem como o espaço de mediação entre o social e o individual. Assim o plano

(projecto urbano) como instrumento de política urbana assume o papel de mediador destas duas

dimensões. Seria absolutamente simplista e corporativista afirmar que a arquitectura lida com

o domínio individual e a urbanística com a dimensão colectiva, porém não pretendemos entrar

nesta discussão; trata-se apenas de uma chamada á atenção.

É um facto que - enquanto as forças do mercado agudizam a diferenciação social, a

desconfiança e o medo estão a cimentar a segregação espacial. Muros altos em condomínios

fechados são manifestações de uma arquitectura que abdica dos valores de estética e urbanismo

para reinventar espaços que confortam o individuo na sua relação com o colectivo – uma

convivência cada vez mais tímida. E esta desconfiança mútua já não se explica apenas pela

diferença de classes, pobre – rico, branco - preto, indígena – estrangeiro. É uma desconfiança

que compreende valores cada vez mais distantes que talvez se fundam no esbatimento dos

factores clássicos de diferenciação – em última análise estaremos perante uma diferenciação

dos poderes na cidade. Os muros altos dentro dos condomínios fechados explicam esta situação.

Uma questão banal: que formas, que vivências, e que identidades queremos construir? Estudos

já clássicos sobre a forma urbana informam que as formas influenciam as vivências (Lamas,

2007 Carmona, 2001, at all) e vice-versa. Partindo deste pressuposto, podemos afirmar que

identidade urbana é algo que se constrói ou em última instancia se influencia. E os agentes

deste processo são o individuo, as organizações, a sociedade e as instituições.

3. As tensões e alianças entre os actores

Com a reclassificação da economia informal, a acelerada expansão e mudanças na estrutura

sociodemográfica, o não acompanhamento destes fenómenos por um planeamento urbano

preventivo e prospectivo – uma manifesta impotência do Estado – adivinha-se o

recrudescimento dos assentamentos informais em áreas cada vez mais distantes e segregadas

da cidade, podendo se consolidar uma extraterritorialidade urbana problemática e sem

precedentes.

Se é verdade que a cidade popular africana nasce de uma rebelião e uma corrida entre o estado

colonial e o indígena, nos nossos dias assiste-se a uma conspiração entre o Estado e os seus

novos parceiros (o sector privado) contra os populares, e estes, por sua vez, se reorganizam e

se mobilizam dentro das suas relações simbólicas de poder e de solidariedade de grupo - o

informal. O Estado, pouco a pouco, vai se rendendo ao poder do sector privado, o que em parte

explica a razão das alianças que se criam, e se operacionalizam em diversos formatos de

parcerias público - privadas. Mas, por outro lado, a disputa do Estado com os poderes

simbólicos das práticas informais parece estar longe de se apaziguar. As acções informais

desautorizam o Estado, e este também não está disposto a aceitar o agente informal dentro das

suas práticas, não obstante o reconhecer como agente crucial do processo urbano.

A aparente supremacia de um desenvolvimento orientado para o mercado (Vainio, 2012), como

prática recorrente dos governos locais e nacionais pode ser entendida como o caminho para a

derrocada da luta pelo reconhecimento dos direitos simbólicos e de solidariedade no espaço

urbano. Porém, não é incoerente afirmar que a sobrevivência e uma eventual superação dos

direitos simbólicos dos populares sobre o mercado, encontra ou encontrará o seu fundamento

nos excessos de um mercado que se suporta em estruturas de regulação frágeis. É assim que se

alimenta um mercado formal predador, que precisa, para a sua própria sobrevivência, dos

mecanismos informais de produção reprodução e distribuição. Assim, a informalidade

continuará a se multiplicar e se generalizar no espaço urbano.

Ora bem, os moradores dos bairros populares já não são apenas o servente indígena, empregado

doméstico, desempregado, pequeno operário. Eventualmente pode ter sido esta a origem da

grande maioria dos actuais moradores. Actualmente nestes mesmos assentamentos vivem

também, professores, estudantes universitários, jovens recém casados, artistas, emigrantes

nacionais e estrangeiros, altos funcionários públicos, graduados na universidade, grandes

comerciantes, deputados etc. Neste quadro mudaram também as lideranças dos bairros, o

secretário do bairro, o chefe do quarteirão o chefe das 10 casas, e por ai fora, já não são só

militantes do partido da maioria, mudaram igualmente as referências espirituais e religiosas.

Esta miscigenação de culturas, identidades, extractos sociais e poderes, constituem um

acontecimento sociocultural da cidade africana e deve ser tido em conta nos estudos urbanos,

assim como nos programas de acção para a renovação ou requalificação dos bairros informais.

Apesar de a cidade popular travar um duelo secular com a cidade do mapa, parece ser ainda

possível reconhecer um substrato (artefacto) capaz de servir de base para uma invenção da

cidade africana a partir das suas próprias raízes ou que nos permita fazer uma hibridização a

partir dos seus fragmentos - achados na cidade actual. A nova agenda de investigação da

metrópole africana deverá, mediante aplicação do já anunciada método da arqueologia inversa,

é procurar dentro dos fragmentos (que constituem a cidade actual) achar e construir um

substrato.

4. Artefactos da Tradição e Factos da cidade Contemporânea: marcos de uma

identidade urbana.

A forma urbana, na perspectiva da morfologia urbana (Licny, 1981), desagrega-se nos

seguintes elementos; edifício, lote, rua e uso do solo. Estes elementos, quando agrupados, dão

lugar à malha urbana que pode ser regular ou irregular, o tecido urbano é uma perspectiva que

vê a malha urbana enquanto sistema dinâmico (vivo) onde os elementos são as células, e que

são mobilizados pelos processos sociais económicos e culturais. Assim a malha e o tecido

urbano, em função do contexto e ao longo do tempo, sofrem as modificações necessárias para

responderem ás exigências contextuais, é o que se subentende por transformações urbanas ou

metamorfoses urbanas se recorrermos a uma terminologia citológica. Foi assim que ao longo

da história (Benévolo, 2007), a malha clássica cuja forma era definida pelos edifícios, motivado

entre outros factores pelo carácter de proximidade das funções e de uma vida activa no espaço

publico - a civitas deu lugar á uma malha dos tempos modernos onde os edifícios são objectos

dispersos dentro de numa malha dominada pela rede de estradas hierarquizada como que a

anunciar a hegemonia do carro tal como vivemos nos dias actuais.

Aquela é a forma da cidade dos mapas, sobejamente conhecida e universalmente reconhecida.

Ao partirem dos seus pressupostos constitutivos, muitos estudiosos e fazedores de políticas

urbanas na cidade popular africana, alimentam equívocos eternos ancorados num passado que

não existiu. A cidade popular contém todos os elementos que constituem a cidade normal. Nos

assentamentos humanos da áfrica antiga (Brusch, Carrilho, Lage, 2001), á sua maneira, era

possível reconhecer os elementos morfológicos da cidade normal, mas essas evidências não

nos autorizam a forçar semelhanças e muito menos procurar diferenças entre a cidade do mapa

e a cidade popular. Porém, e no final das contas, a essência da cidade africana não está na sua

forma física, mas na forma como ela se produz se reproduz e se deixa apropriar.

O processo de produção da cidade africana confunde-se com a vivência dentro de si. Dai que

o processo da sua construção e produção reunir muitos aspectos da sua identidade, que por sua

vez se fundamentam no espírito de interajuda, solidariedade, rebelião aos cânones urbanísticos

e burocráticos de um poder hierárquico, numa acção que representa uma deliberada crítica ao

urbanismo do mapa celebrando a alegria das relações do quotidiano (Benjamin, 2001). Assim,

estudar o processo de construção da cidade deve implicar uma série de análises como, a

identificação e caracterização dos operários (pedreiros) os acordos que estes estabelecem com

os proprietários, a maneira como se constituem as equipes e se organiza o estaleiro, a maneira

como são distribuídas as tarefas, o cálculo e a maneira como são pagos os honorários.

A colonização constituiu um interregno no processo histórico de construção das identidades

africanas e o período pós-colonial surgiu como uma esperança para resgatar identidades

subjugadas ao longo dos séculos, relegadas a um plano marginal e em última instância

reduzidas ao obscurantismo. Os estudos sobre o período pós-colonial, demonstram que o

projecto político trazido pelas independências frustrou as novas existências, cheias de

possibilidades, que os africanos alimentavam inspirados no período traumático da escravatura

e colonização (Mbembe, 2013:82), este facto terá concorrido para a criação novas alianças com

os herdeiros do antigo sistema. Desde a sua génese a cidade popular foi construída à imagem

da cidade do mapa.

O contexto histórico em que se construiu grande parte da cidade popular é marcado pela

segregação. Em Maputo assume particular importância a cultura política autoritária da década

de 1930, o estatuto do indígena em 1954 e a consequente diferenciação espacial que marca o

surgimento das áreas peri-urbanas. O estado colonial adoptou uma unidade administrativa

dentro do município para controlar, exclusivamente, a cidade popular, e uma outra responsável

pela gestão da cidade cimento. Grest (1995), abordou estas questões no seu artigo sobre a

gestão urbana em Maputo com foco nas reformas dos governos locais e democracia em

Moçambique. Em relação ao período de transição, o pós-colonial, o autor chama a atenção para

um impasse não superado no que se refere á gestão dual da cidade, porque as autoridades

municipais acreditavam que com as mesmas posturas e regulamentos seria possível gerir as

duas realidades urbanas.

As actuais estratégias municipais apontam para a requalificação dos assentamentos informais.

O seu melhoramento e integração estão no centro das políticas urbanas. A integração, entendida

como uma atitude para o aperfeiçoamento da cidade como um todo, é algo indubitavelmente

correcto, mas parece pouco razoável a perspectiva etnocêntrica da integração – advoga-se que

a cidade popular deve se integrar, incondicionalmente, à cidade do mapa. Só há uma maneira

de fazer tal integração, o ajustamento da forma ou malha urbana aos cânones de um

racionalismo modernista, mediante, o ortogonalidade nos lotes, alinhamento das habitações

área mínima de afectação e ocupação do lote, dimensão mínima do lote, etc. Uma interrogação

pertinente sobre a atitude de integração: como a maioria se integra na minoria e porque não o

contrário? O que é que se pretende integrar, as pessoas ou o espaço? As pessoas parecem

naturalmente integradas e o espaço carece de uma integração ao nível da macro estrutura urbana

em busca da funcionalidade urbana, nomeadamente a mobilidade e acessibilidades às mais

diversas facilidades urbanas. Porque as atitudes na microescala têm contribuído para destruir

as relações simbólicas de identidades que se manifestam na vivência e não muito na forma, não

obstante as formas desempenharem um papel, conforme referimos acima, sobre a construção

das mesmas identidades.

O melhoramento é, também, irrecusavelmente fundamental, quando visto na perspectiva da

melhoria da qualidade de vida dos moradores, constantemente perigada e que se consubstancia

em um problema de saúde pública promovido por via de um urbanismo desinteressado. Mas

não é muito razoável a perspectiva do intelectual pequeno burguês que encara os bairros

populares como algo desprezível sem carácter nem identidade. É evidente que é preciso evitar

cair no altruísmo romântico que vê estas mesmas áreas como uma relíquia de um modos

vivendus primitivo, que devem ser preservadas como artefactos arqueológicos de contemplação

e admiração. Este dilema entre a modernidade e o popular constitui o ponto nevrálgico da

concepção das estratégias de intervenção nos bairros informais. As politicas urbanas devem

continuar a aprofundar as estratégias para resolver os problemas ligados à qualidade de vida,

enquanto que a teoria urbana se ocupa de perceber os modos de vida, cabendo à epistemologia

urbana fazer a mediação entre ambos.

Continuando nesta incursão ideológica, importa referir que as atitudes unilaterais do poder

público, que se propõe melhorar algo construído em anos de poupanças, solidariedades,

sacrifícios e disputas, fazem do estado uma orquestra sem plateia, porque os moradores não

actuam no mesmo palco, porque o timing da propaganda eleitoralista não coincide com os

timings da construção popular da cidade. O privado é dos actores que, recorrentemente, se junta

á orquestra, porém junta-se não para viver a festa mas sim impor o ritmo que lhe é favorável.

É assim que os planos de requalificação urbana vão representar os interesses do mercado,

apostando na maximização do uso do solo, densificação, indeminização, gentrificação e

reassentamento tudo em nome de uma modernidade inoportuna.

Perante esta atitude elitista do planeamento urbano, o desiderato da cidade popular só será

viabilizado quando os próprios moradores assumiram, decididamente e de forma ideológica, a

direcção do processo de afirmação da cidade. Trata-se da elevação da consciência cívica do

cidadão, de uma abertura consciente por parte do sector público, para que de forma articulada

possa orientar o processo de integração e melhoramento sustentável da cidade popular.

5. Epistemologia do Plano em Maputo

Os princípios institucionalizados: O processo de elaboração dos planos urbanos está mais ou

menos estabelecido, não obstante estar ainda pouco legislado. Nesta tentativa de definir o

âmbito e o processo de elaboração do plano, destacamos um documento ainda não oficial mas

muito difundido entre os fazedores de planos urbanísticos no pais: Guião Metodológico Para

a Elaboração dos Planos Parciais de Urbanização. Se os princípios gerais e universais já

definem o planeamento urbano como acção e prerrogativa do estado, o arcaboiço legal sobre o

planeamento e ordenamento do território em Moçambique, deixa claro que o Plano é

promovido, elaborado e monitorado igualmente pelo Estado, devendo, porém, envolver em

todo o ciclo todos os actores interessados e directa ou indiretamente abrangidos.

O processo de elaboração do plano começa com a decisão do município de o fazer, tendo em

conta o aperfeiçoamento do processo de gestão do território municipal bem como responder de

forma sustentável os aspetos das especificidades de uma dada unidade ou um conjunto de

unidades territoriais de um dado município. É no termo de referência que a autoridade

promotora do plano define todos os princípios e objetivos que pretende alcançar com a sua

realização. Tendo como ponto de partida os objetivos em conformidade com o estabelecido no

regulamento da lei de ordenamento do território, o termo de referência estabelece o rumo

específico que o plano deve seguir para salvaguardar aqueles objetivos no contexto territorial

em causa. Assim, a elaboração do termo de referência constitui um momento decisivo para o

plano, é aqui onde se expressa a ideologia ou em última instância a visão da autoridade em

relação ao território em causa, cabendo ao plano mediante os seus mecanismos participativos

aperfeiçoar esta ideologia acomodando nele os interesses de outros actores, sobretudo pelo

facto de serem estes os responsáveis incontornáveis da operacionalização e do usufruto das

orientações contidas no plano.

A equipe técnica que realiza os planos é constituída e dominada pelos quadros da autoridade

pública de modo que desde o princípio estes assumem o plano como seu instrumento de gestão

e administração do território. A contratação de um consultor independente, externo, visa

garantir a eficiência da execução material do plano, isto é, a elaboração dos desenhos, dos

documentos escritos, etc. e outros dentro dos timings, da qualidade e de inovação próprios do

sector privado, dado que o pessoal técnico administrativo, nomeadamente do município, em

simultâneo está envolvido nas actividades de rotina quotidiana da gestão urbanística.

A instituição da figura Comissão de Acompanhamento (CA), é para que o plano salvaguarde a

integridade política, entenda-se política no seu sentido latu. Isto é, para além dos partidos

políticos, política como a acção cívica, isto é uma prática intrínseca ao exercício pleno de

cidadania. Assim, a CA inclui desde os mais altos dirigentes municipais, (vereadores,

directores, etc.) aos dirigentes municipais de base local (vereador do distrito, secretários do

bairro) como forma de garantir a subsidiariedade, isto é, proximidade das decisões. O sector

privado interessado integra a CA, como forma de garantir os seus interesses a todos níveis, o

mesmo acontece com as organizações da sociedade civil que se fazem representar desde a base

para garantir e salvaguardar os interesses do cidadão comum. O envolvimento dos partidos

políticos visa garantir a pluralidade ideológica no plano. E por fim o envolvimento das

autoridades do poder central é de modo a se garantir a constitucionalidade do plano.

O Desencadeamento do Plano está estabelecido como o momento de legitimação, da

elaboração do plano, junto de toda a sociedade. É um acto público participado pelos mais

diversos sectores da sociedade e o cidadão individualmente. O desencadeamento constitui um

acto solene presidido pela mais alta liderança da autoridade administrativa responsável pelo

plano, nomeadamente o presidente do conselho municipal. Durante as distintas fases de

elaboração do plano, a saber, a inventariação da situação actual, o diagnóstico, a geração de

cenários e alternativas, até a proposta final do plano, são realizadas reuniões onde a equipa

técnica do plano apresenta e discute as propostas, primeiro com a comissão de

acompanhamento, podendo ser feita por grupos temáticos ou em conjunto, depois em audiência

publica onde podem participar todos os cidadãos organizados e de forma individual.

A prática de facto: Moçambique e a cidade de Maputo em particular, beneficiam de ajuda

externa e donativos, mobilizados por agências de cooperação uni e bilateral, doadores,

instituições de apoio ao desenvolvimento, numa acção de altruísmo ou de endividamento do

sistema financeiro local. Esta ajuda é crucial para o desenvolvimento do país e das autarquias

locais. Porém, os objectivos, os timings os propósitos e as motivações dos financiamentos

externos nem sempre estão em harmonia com as locais. Por isso deve constituir desafio da

gestão pública a maximização destes recursos para o desenvolvimento dos seus territórios. Não

seria pretensioso afirmar que os fundos globais visam ajustamentos estruturais, e que às vezes

estão desajustados com os Objectivos Locais Reais. Entendam-se os Objectivos Locais Reais

não como o que realmente se precisa, mas sim como aquilo que os gestores querem que

aconteça.

A grande maioria dos planos realizados na área de estudo, no período pós-colonial até á

actualidade, foram promovidos por entidades extra governamentais, e muitas das vezes

visavam justificar ou garantir o acesso a financiamentos posteriores. O Plano de Estrutura da

Área Metropolitana de Maputo, de 1999, foi promovido e financiado pela Agência Japonesa

de Cooperação Internacional (JICA). O Plano de Estrutura Urbana da Cidade de Maputo 2008

foi promovido e financiada pelo Banco Mundial no âmbito do PROMAPUTO I. O Plano de

Estrutura Urbana da Matola 2010, foi promovido e financiado pela Agencia de Cooperação

Espanhola. Em 2010 foi abortado um Plano Distrital de Uso da Terra de Maracuene, que tinha

promoção e financiamento estrangeiro. Para além destes planos de carácter estrutural municipal

e supramunicipal, grande parte dos planos Parciais de Urbanização sobretudo os realizados no

Município de Maputo, têm estado a ter financiamento e promovidos pelo Banco Mundial. Aliás,

este é um dos objectivos plasmados no PROMAPUTO I e II sobre a capacitação institucional

que passa pela dotação do município de instrumentos de gestão do território. O Plano Parcial

de Urbanização de Inhaka foi promovido e financiado por um grupo empresarial sul africano

com interesses na exploração das potencialidades turísticas da Ilha. Os Planos Parciais da Baixa,

da Costa do Sol, agora da Marginal e dos cinco bairros da periferia da cidade de Maputo se

enquadram no esforço que está a ser desenvolvido pelo Banco Mundial no sentido de

aperfeiçoar a gestão urbanística local. Existem, não muito frequentes, planos que são

financiados e promovidos por entidades externas (ONGs) elaborados sem o conhecimento do

município, mas depois são reconhecidos e legitimados.

Pela maneira como são promovidos os planos em Maputo, o fraco envolvimento do município

é sintomático. O não engajamento do município, pode nos sugerir alguns questionamentos:

Será que o plano (tal como é concebido) constitui prioridade para o município? Como é que é

feita a gestão urbanística quotidiana de facto?

Nas entrevistas semiestruturas que realizamos2 junto dos dirigentes municipais e dos técnicos

municipais, fizemos um conjunto de perguntas que nos permitem perceber que o Plano é visto

pelos dirigentes municipais como um instrumento que vale pela sua existência, ou seja,

encaram o processo de realização do plano como uma oportunidade para criar um entusiasmo

junto dos munícipes ou cidadãos no sentido de mostrar que algo está para ser feito. O momento

da elaboração do plano constitui um momento de propaganda político ideológico e de

mobilização e engajamento dos cidadãos. Assim para os dirigentes o Plano vale pela sua

realização. Uma vez terminado o entusiasmo desvanece e o plano é esquecido. Por outro lado,

os técnicos sentem a falta do plano para justificar as suas decisões do dia-a-dia; contudo, a

ausência do plano em certas circunstâncias abre espaço para uma indisciplina administrativa

colectiva e uma falta de responsabilização nas decisões individuais, e em última instância

alimenta a corrupção administrativa. No processo de elaboração do plano os técnicos não se

2 Entrevistas realizadas âmbito na investigação para a Tese de Doutoramento e Geografia e Planeamento Territorial, em curso desde 2011. A tese esta a ser desenvolvida no Departamento de Geografia e Planeamento Regional da Universidade Nova de Lisboa, e tem como Titulo: Processo Forma Urbana: Restruturação Urbana e Governança no Grande Maputo

engajam, nomeadamente no debate pluralista, porque estão ocupados com as suas tarefas do

dia-a-dia, mas sobretudo porque acham que os outros intervenientes pouco têm a contribuir no

processo; os técnicos, na sua perspectiva tecnocrática veem o plano como um instrumento

burocrático de imposição, ao qual os particulares devem se sujeitar incondicionalmente.

Na audiência pública, o discurso dos dirigentes é triunfalista, o plano é promovido como a

solução para os problemas do bairro, do distrito ou da cidade e os populares assim o assumem.

Dai a sua frustração posterior, dado que o tempo passa e não se vislumbra o momento para a

implementação das soluções propostas no plano.

Na melhor das hipóteses, os técnicos municipais querem um instrumento de apoio a gestão,

não lhes interessa o processo de elaboração do plano, basta-lhes um instrumento na mesa para

orientar as suas decisões do dia a dia da gestão urbana. No final de contas, os técnicos não se

guiam pela eficácia, leia-se coerência ou sustentabilidade das decisões emanadas dos

instrumentos de gestão do território, mas sim pela eficiência do seu trabalho diário na

perspectiva de fazer cumprir a lei. Assim, os consultores são abandonados à sua sorte para

realizarem o plano segundo as suas convicções mais ou menos bem intencionadas, se não

imbuídos por uma atitude elitista. Produzem-se mapas de uma cosmética arrojada e conteúdo

real, mas desprovidas de significado face aos objectivos e o âmbito de um plano territorial.

Numa clara atitude de intelectual pequeno burguês, empenha-se em mapear os gostos

gastronómicos dos funcionários públicos que residem no bairro do Chamanculo, por exemplo.

Que caminhos? O planeamento como um ciclo virtuoso parece constituir a palavra chave para

engajar todos os interessados num processo em que o Plano já não deve ser visto nem como

ponto de partida muito menos o fim do planeamento. Ao plano, como um momento

intermediário do processo de planeamento, se exige afirmação enquanto instrumento de

mediação das vontades, ambições e dos anseios, no tempo e no espaço, de todos os actores

envolvidos no fenómeno urbano. Assim, o plano deve se reforçar na sua flexibilidade e geração

de consensos, isto é, um plano que ao mesmo tempo que disciplina e limita os excessos deve

permitir as possibilidades que se criam na estratégia de actuação, nos objectivos dos actores e

nas reconfigurações que se queiram sustentáveis.

Ora bem, as lógicas do planeamento, nomeadamente o estratégico, dependendo de como são

encaradas, podem alimentar resultados perversos, por via da hesitação e indefinição que

promovem no processo de decisão. É verdade que o plano é um instrumento de apoio a decisão,

mas antes de ser um instrumento de apoio á decisão é em si só uma decisão.

Vezes sem conta nos deparamos com abordagens equivocadas, que confundem, cenários com

alternativas, opções com possibilidades. Os limites semânticos de significação destas palavras

são muito ténues; porém na sua operacionalização, em planeamento, ao se confundirem podem

inviabilizar todo um processo de elaboração de plano e doravante do planeamento. As

possibilidades são eventos (possíveis) que podem acontecer independentemente da nossa

vontade ou da nossa acção, são o resultado do entrelaçamento de eventos espontâneos oriundos

da acção de diferentes actores e fenómenos; por seu turno, as opções são acontecimentos

induzidos por um conjunto de actores conhecidos controlados e que actuam à luz de uma

concertação prévia. Assim, os cenários são possibilidades e as alternativas são opções. Por

outras palavras, a construção de cenários é uma acção anterior à geração de alternativas.

Voltemos ao plano.

Referimos acima que o plano antes de ser um instrumento de apoio a decisão é uma decisão.

Assim sendo, o plano é, á priori um conjunto de alternativas viáveis, ou seja, uma opção dentro

de várias possibilidades.

O Plano de Estrutura Urbana de Maputo, de 1985, tinha identificado um conjunto de cenários,

a saber: intensificação da guerra civil e o consequente incremento do êxodo rural que iria

estimular o aumento da população da cidade de Maputo, gerando uma demanda por espaços

urbanizados superior à capacidade de oferta instalada; outros cenários estavam ligados à

possibilidade de chegada a Maputo de um significativo volume de investimento estrangeiro

decorrente do programa de ajustamento económico, que já estava em curso, e do sector dos

transportes resultantes de reactivação do corredor de Maputo para escoamento de mercadorias

dos países do hinterland e vice-versa, através do porto de Maputo.

Tendo em conta aqueles e outros cenários, o PEUM 85, definiu duas alternativas de

estruturação do território (Modelo territorial) da cidade para os 10 anos subsequentes. A

primeira alternativa apregoava o desenvolvimento espontâneo da cidade para responder a

demanda induzida pelo êxodo rural, e a segunda alternativa defendia um planeamento

estruturado ancorado às grandes infraestruturas e centralidades que se iriam dinamizar fruto da

implantação de grandes equipamentos, serviços e centros produtivos que se previa construir. O

plano apesar de reconhecer que a primeira alternativa era a mais provável do ponto de vista dos

cenários e das possibilidades sócio politicas e económicas, apontava para a segunda alternativa

como a mais desejável. O plano não foi aprovado e o primeiro cenário vingou.

Contudo, o plano como instrumento de apoio à decisão deve dar várias possibilidades de

decisão, como uma decisão deve tomar uma decisão. O plano como instrumento de mediação

deve encontrar a decisão intermédia mas não menos estável que uma decisão.

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