Medidas em Ciências Humanas. Reflexões e questionamentos - Roazzi, Andrade e Sampaio 2013 (Cap)

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PSICOLOGIA:CONCEITOS, TÉCNICAS E PESQUISASVOLUME i

Este primeiro volume da coletânea Psicologia. Conceitos, técni-cas e pesquisas aborda três tópicos da Psicologia: Teoria Cognitiva,Avaliação Psicológica e Humanismo/Existencialismo. A coletâneapretende, a cada volume, apresentar avanços e discussões sobre os di-versos campos teórico-práticos da Psicologia. Os capítulos procuramir mais além do que a pergunta que geralmente é feita por estudantese novos profissionais sobre "como se faz?", ampliando as discussõespara o âmbito do "por que se faz?". O leitor encontra na primeira par-te deste volume: aspectos fundamentais das terapias analítico-com-portamental e cognitivo-comportamental, bem como a proposiçãode instrumentais para utilização nestas; discussões teóricas sobreteorias do desenvolvimento envolvidas na cognição humana (teoriado apego, interação social, desenvolvimento do self, autoconsciênciae teoria da mente). Na segunda parte, reflexões e questionamentosem torno da mensuração em Psicologia; o uso da Teoria de Respos-ta ao Item na medida psicológica; assim como resultados de pesquisapsicométrica. A terceira parte envolve três importantes reflexões noespectro do Humanismo e Existencialismo: uma mais aplicada à atu-ação clínica e as demais de cunho epistemológico na relação Psicolo-gia e Filosofia. Um elenco de textos abrangente, oportuno e práticoque pode ser útil tanto à pesquisa de estudantes como ao trabalho depsicólogos ou profissionais de áreas afins interessados em avançosteórico-metodológicos e discussões epistemológicas do conhecimen-to na área. Apresenta-se útil tanto na graduação quanto na pós-gra-duação, assim como para programas de formação em geral.

l 978-85-8042-6

EDITORA CRV

PSICOLOGIA:CONCEITOS, TÉCNICASE PESQUISAS

VOLUME i

Ronald Taveira da CruzEstefânea Elida da Silva GusmãoOrganizadores

EDITORA CRV

Ronald TaveiraEstefânea Elida da Silva Gusmão

(Organizadores)

PSICOLOGIA, CONCEITOS,TÉCNICAS E PESQUISAS

VOL. I

EDITORA CRVCuritiba - Brasil

2013

Copyright © da Editora CRV Ltda.

Editor-chefe: Railson Moura

Diagramação e Capa: Editora CRV

Revisão: Os Autores

Conselho Editorial:

Prof. IV. Andreia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR - RO) Prof. Dr. Leonel Severo Rocha (URI)Prof. Dr. António Pereira Gaio Júnior (UFRRJ) Prof. Dr". Lourdes Helena da Silva (UFV)Prof. Dr. Carlos Federico Dominguez Ávila (UnB - DF) Prof. Dr". Josania Portela (UFPI)Prof. Dr". Carmen Tereza Velanga (UNIR - RO) Prof. Df. Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UNIR - RO)Prof. Dr. Celso Conti (UFSCAR - SP) Prof. Dr. Paulo Romualdo Hemandes (UNffAL - MG)Prof. Dr". Gloria Farinas León (Universidade de La Havana Prof. Dr". Maria Cristina dos Santos Bezerra (UFS)-Cuba) Prof. Dr. Sérgio Nunes de Jesus (IFRO)Prof. Dr. Francisco Carlos Duarte (PUC-PR) Prof. Dr". Solange Helena Ximenes-Rocha (UFPA)Prof. Dr. Guillermo Árias Beatón (Universidade de La Havana Prof. Dr". Sydione Santos (UEPG PR)- Cuba) Prof. Dr. Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)Prof. Dr. João Adalberto Campato Júnior (FAP - SP) Prof. Dr". Tânia Suely Azevedo Brasileiro (UNIR - RO)Prof. Dr. Jailson Alves dos Santos (UFRJ)

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÂO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

P969v. l

Psicologia: conceitos, técnicas e pesquisas: volume l / Ronald Taveira da Cruz,Estefãnea Elida da Silva Gusmão (org.). - 1. ed. - Curitiba, PR: CRV 2013268p.

Inclui bibliografiaISBN 978-85-8042-646-5

1. Psicologia 2. Psicoterapia 3. Comportamento humano. I. Cruz, RonaldTaveira da II. Gusmão, Estefãnea Elida da Silva.

13-1603. CDD: 155CDU: 159.92

13.03.13 18.03.13 043444

2013Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV

Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004.Todos os direitos desta edição reservados pela:

Editora CRVTel.: (41) 3039-6418

www.editoracrv.com.brE-mail: [email protected]

SUMARIO

PREFÁCIO.

PARTE 1Teoria Cognitiva.

CAPÍTULO 1TERAPIAANALÍTICO-COMPORTAMENTAL E COGNITIVO-COMPORTAMENTAL: aspectos fundamentais 11Melyssa Kellyane Cavalcanti Galdino, Nilse Chiapetti,Giovanna Wanderley Petrucci Toscano, Mariana Bandeira Formiga

CAPÍTULO 2ATERAPIACOGNITIVO-COMPORTAMENTAL E SEUPROCESSO DE AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA 39Estefânea Elida da Silva Gusmão, Elba Celestino do Nascimento Sá,Hysla Magalhães de Moura, Maria Irenilda Rodrigues de Souza,Thayro Andrade Carvalho

CAPÍTULO 3PROBLEMAS COMPORTAMENTAIS EM CRIANÇAS: manejo sobestratégias da psicoterapia analítico-comportamental 57Paloma Cavalcante Bezerra de Medeiros, Jandilson Avelino da Silva,Nilse Chiapetti, Ernandes Barbosa Gomes

CAPÍTULO 4PENSAMENTO E LINGUAGEM:a capacidade de "calcular" e as psicopatologias 71Ronald Taveira da Cruz, Deivison Miranda Sales

CAPÍTULO 5O SIGNIFICADO DO APEGO E DA INTERAÇÃO SOCIAL NODESENVOLVIMENTO DO SELF, AUTOCONSCIÊNCIA ETEORIA DA MENTE 109António Roazzi, Alexsand.ro Medeiros do Nascimento,Estefânea Elida da Silva Gusmão

PARTE 2Avaliação Psicológica 145

CAPÍTULO 1MEDIDA EM CIÊNCIAS HUMANAS: reflexões e questionamentos 147António Roazzi, Maria Waleska C. Lopes de Andrade,Leonardo Rodrigues Sampaio

CAPÍTULO 2PSICOMETRIA: utilização da teoria de resposta ao itemem cinco métodos diferentes de equalização 175Girlene Ribeiro de Jesus, Dalton F. Andrade,Camila Akemi Karino, Fabiana Queiroga

CAPÍTULO 3ESCALA DE ATITUDES ANTE O USO DE DROGAS (EAAUD):adaptação e evidências de validade e precisãoem estudantes piauienses 193Emerson Diógenes de Medeiros, Valdiney Veloso Gouveia,Rildésia Silva Veloso Gouveia, Renan Pereira Monteiro,Paulo Gregórío Nascimento da Silva, Tiago Jessé Souza de Lima

PARTE 3Humanismo 209

CAPÍTULO 1DO LABORATÓRIO À ELABORAÇÃO, IMPLICANDO OSABER/FAZER CLÍNICO: o cuidado, o sentido, a travessia,a oficina e a supervisão 211Dimítri Cario Gabriel

CAPÍTULO 2A PSICOLOGIA ONTOLÓGICA DE MERLEAU-PONTY 227Ronald Taveira da Cruz, Neemyas Kerr Batalha dos Santos,Jeferson Menezes de França

CAPÍTULO 3PSICOLOGIA E FILOSOFIA: consciência e liberdadena filosofia de Sartre 239Luciano Donizetíi da Silva

SOBRE OS AUTORES 257

CAPITULO l

MEDIDA EM CIÊNCIAS HUMANAS:reflexões e questionamentos

António RoazziMaria Waleska C. Lopes de Andrade

Leonardo Rodrigues Sampaio

O que mensuramos e por quê? Na atualidade, as ciências humanas preocupam--se com o comportamento humano, visam explicar suas causas e tomam como baseobservações que podem ser caracterizadas por serem mais ou menos sistemáticas.A construção de "modelos explicativos" do comportamento é um processo essen-cialmente indutivo, baseado em observações empíricas e em intuições acerca docomportamento esperado em variadas situações.

A ciência, tida como um conjunto de atividades que são essencialmente sociaise analíticas, usa, desde sua origem na modernidade, a mensuração como forma deconhecer e demonstrar o conhecimento. O presente ensaio objetiva discutir algunsproblemas gerais e implicações que dizem respeito ao processo de mensuração nasciências humanas e particularmente na Psicologia. Para tanto, procura primeiro co-nhecer como o conceito de mensuração vem se constituindo ao longo da história oucomo diversos estudiosos vêm pensando e discutindo a questão sobre a utilizaçãode medidas nas ciências humanas. Não se trata aqui de um estudo historiográfico,mas apenas da tentativa de situar a questão da mensuração em um contexto pró-prio às ciências humanas. Para tanto, será realizado um levantamento envolvendoabordagens científicas que desenvolveram teorias sobre a mensuração e/ou medidasbaseadas em teorias, ao elaborarem modelos que buscam explicar a estrutura e adireção das relações entre construtos psicológicos e suas medidas.

O conceito de medida

A questão relativa à mensuração não é nova. Uma avaliação quantitativa, mes-mo que de caráter aproximado, sempre existiu de alguma forma na historia do serhumano. Provavelmente, desde o homem pré-histórico as pessoas devem ter expres-sado de alguma forma que uma determinada coisa é maior do que outra, que isto émais leve do que aquilo etc. É difícil que expressões deste tipo não apresentem, dealguma forma, aspectos "quantificacionais".

Um avanço notável ocorreu quando as pessoas começaram a recorrer a avalia-ções mais precisas, introduzindo o conceito de medida e operando uma correspon-dência entre cada grandeza considerada como um número. A partir deste momento,

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começou-se a dizer que um determinado tecido era de tantos "côvados"18, que talproduto pesava tantas "almudes"19 etc. Isto tudo pareceu ter, sobretudo, uma utili-dade bastante prática. Mais especificamente, no dia a dia das pessoas, o numero queexpressava a medida era utilizado para fixar a quantia de dinheiro que se devia darpara adquirir algo.

Entretanto, uma primeira revolução que se pode chamar de verdadeiramentecientífica, ocorreu quando a geometria demonstrou que, entre os números que ex-pressavam determinados tamanhos e aqueles que expressavam outros, mesmo quede tipos diferentes, existiam relações matemáticas precisas, necessárias. Por exem-plo, quando passou-se a considerar as relações que existem entre comprimentos,áreas e volumes.

Neste processo histórico de desenvolvimento das técnicas de mensuração éimportante relembrar que aquela que hoje se denomina de revolução científica ini-ciou cinco séculos atrás, principalmente por mérito de Galileu, levando a descobrirde forma clara um novo método para estabelecer relações quantitativas necessáriasentre as coisas da natureza: o método experimental. Através do mesmo era possí-vel demonstrar que entre as mensurações das diferentes medidas que intervêm emum determinado fenómeno existem sempre determinadas relações matemáticas, asquais, em seguida, foram denominadas de leis físicas.

Desde a Antiguidade, os grandes pensadores têm tratado a mensuração comvistas a estabelecer não somente sua importância para o conhecimento, como tam-bém para oferecer um critério unívoco deste conceito. Pode-se então dizer que ahistória da busca de conhecimento converge com a questão da mensuração. Porexemplo, Héyilghen (1993) cita que já nas obras de Platão e de Aristóteles concep-ções distintas demarcariam a questão da mensuração: de um lado havendo o que sepoderia chamar de um caráter absoluto: ideias ou formas universais que existiriamindependentemente de qualquer sujeito empenhado num esforço para apreendê-las,esta seria a proposta de Platão; de outro lado, encontrava-se a ênfase nos métodoslógicos e empíricos dada por Aristóteles.

Hoje, analisando o passado, autores como Héyilghen (1993) observam queestas concepções clássicas foram retomadas no Renascimento, constituindo doisposicionamentos principais: o racionalismo que aponta o conhecimento como oproduto de uma reflexão racional e o empirismo, que prega a percepção sensóriacomo forma de conhecer.

Pode-se afirmar que atualmente as ciências experimentais fundamentam-se noempirismo e, segundo atesta Héyilghen (1993), na teoria da correspondência como reflexo. Tal teoria propõe uma espécie de mapeamento ou reflexo dos objetosexternos através dos órgãos sensórios (possivelmente com o uso de diferentes ins-trumentos de observação) para o cérebro e/ou para a mente. Dessa forma, a reali-dade não teria uma existência a priori (como em Platão), mas seria desenvolvida

18 Còvado: No Egito antigo, o côvado era uma medida retirada da distância entre o cotovelo e as pontas dos dedos. Corres-pondia a dezoito polegadas (45 centímetros).

19 Almude: Antiga medida de capacidade (cereais e líquidos) que levava 12 canadas ou 48 quartilhos equivalente a cercade 16,8 litros. No sistema métrico decimal corresponde a 25 litros.

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pela observação contínua e absoluta. Qualquer peça de conhecimento que fosseproposta, supostamente deveria corresponder a uma parte da realidade externa ouinterna à pessoa. Na prática, o conhecimento absoluto poderia nunca ser alcançado,sendo, contudo, de alguma forma concebível como o limite de reflexos sempre maisprecisos da realidade.

Entretanto, uma síntese entre o racionalismo e o empirismo foi proposta porEmmanuel Kant (1787/2002). O conhecimento, para este filósofo, seria o resultadoda organização de dados perceptivos com base em estruturas cognitivas inatas, ascategorias. No que diz respeito à mensuração, Kant distinguia as grandezas exten-sivas, susceptíveis de serem decompostas em partes e diretamente mensuráveis, dasgrandezas intensivas, determinadas por via indireta e susceptíveis de serem descri-tas por relações de ordem. A partir desta dicotomia, segue-se a exclusão tanto daoperação de contagem, que pode ser a mais antiga forma de conhecimento do mun-do, como do conceito de probabilidade de um evento, que constitui uma estratégiaracional para mensurar a incerteza dos fenómenos da natureza (SIEGEL, 2006).

As várias abordagens que se desenvolveram no início do século XX, dentro dalinha que se convencionou chamar de pragmática - o positivismo lógico, o conven-cionalismo e a interpretação de Copenhagen da mecânica quântica - geraram novasdiscussões sobre o problema da medida. O conhecimento passa a ser convenciona-do em modelos que procuram representar o meio externo sem, no entanto, chegarjamais a capturar toda a informação relevante. Aliás, um bom modelo é tido comosendo aquele que maximiza a simplificação na resolução de problemas, pois modeloscomplexos (com demasiadas informações) não seriam de fácil aplicação prática. Ummodelo deve ser escolhido conforme o critério de ser passível de produzir prediçõescorretas ou aproximadas, às quais possam ser testadas na solução de problemas.

Ainda conforme explica Héyilghen (1993), a ideia de modelos implica a exis-tência em paralelo de diferentes modelos, mesmo que estes pareçam contraditóriosentre si. O modelo a ser escolhido depende do problema a ser resolvido. O critériobásico para a escolha de um modelo tem sido o de que este seja capaz de produzirpredições corretas ou aproximadas que possam ser testadas ou ainda soluções paraproblemas. Critica-se esta linha de abordagem ao argumentar-se sobre o fato deque não se obtém uma resposta clara às perguntas: de onde vêm os modelos? Ou oconhecimento? Inclui-se nestas críticas também o fato de que tais abordagens assu-mem implicitamente que os modelos são construídos de partes de outros modelos e/ou de dados empíricos produzidos através de ensaio e erros, heurísticas ou intuições(HÉYILGHEN, 1993).

Para compreender-se como se apresenta atualmente a questão sobre a men-suração, é preciso distinguir também um conjunto mais radical de abordagens de-nominado de "construtivismo". Para este, o conhecimento é construído a partir dee pelo sujeito. Nada é dado, nem os dados empíricos objetivos ou fatos, nem ascategorias inatas ou estruturas cognitivas. Rejeita-se a ideia de correspondência oureflexão da realidade externa. Todavia, conforme destaca Héyilghen (1993), pôr emcausa a não correspondência entre o modelo e as coisas que representam, pode levara um relativismo extremo, à ideia de que qualquer modelo construído pelo sujeito é

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tão bom quanto qualquer outro. Ou seja, não há como distinguir um conhecimentoadequado ou "verdadeiro" de um "falso", o idiossincrático do consensual.

Duas abordagens tentam evitar o relativismo absoluto: o construtivismo in-dividual e o construtivismo social. A primeira quer alcançar a coerência entre di-ferentes peças de conhecimento utilizando o seguinte critério: construções que sãoinconsistentes, comparando com a maior parte de outros conhecimentos que o in-divíduo tenha, tendem a ser rejeitadas e construções que integram apropriadamentepartes que antes eram incoerentes são mantidas. O construtivismo social, por suavez, adota o consenso entre os sujeitos como o critério último para julgar o conheci-mento. A verdade e/ou a realidade são construções com as quais a maioria concorda(validação através do consenso).

Como a ideia de mensuração alcança este quadro na epistemologia contempo-rânea? Passo a passo a questão da mensuração foi se acomodando durante o períodoenfocado acima. Em sua obra Principies of mathematics (1903) o filósofo inglêsBertrand Russell, escrevia: "Denomina-se mensuração de quantidade, no sentidomais geral, qualquer método através do qual se estabeleça uma correspondênciaunívoca e recíproca entre todas ou algumas quantidades de um determinado géneroe todos e alguns números [...]"

Entretanto, tal definição de quantidade exclui as quantidades intensivas queRussell, apesar de reconhecer sua existência e sua capacidade gradativa, consideraimpossíveis de serem mensuradas. O seu conceito de mensuração, baseado em umcritério unívoco, fundamentado sobre a divisibilidade e a capacidade aditiva, não per-mite avaliar as quantidades intensivas a não ser através de alguma relação indireta.

Campbell (1920), de forma similar, afirmava que só se pode falar de umaquantidade em termos científicos se esta puder ser descrita com base em umaunidade padrão sobre a qual é possível operar em termos aditivos (como para opeso ou o comprimento), excluindo, assim, da pesquisa científica tradicional asmedidas não dotadas de capacidade aditiva, como as psicofísicas, em sua épocaaparecendo como emergentes. A posição de Campbell, claramente cautelosa emrelação às ciências comportamentais, tem estimulado estas últimas e, em particu-lar, a psicologia a refinar os procedimentos de mensuração e a estabelecer mode-los para relacionar fenómenos.

Uma das principais contribuições de Campbell seria o que se convencionouchamar de medida por teoria (ou medida byfiat). Conforme explica Pasquali (1996),comumente distinguem-se três tipos de medidas:

• A medida fundamental, na qual se pode identificar uma unidade basepadrão ("natural") específica, que possui uma representação extensiva."São dimensões (atributos mensuráveis) que permitem a concatena-ção, isto é, dois objetos podem ser associados, concatenados, formandoum terceiro objeto da mesma natureza" (PASQUALI, 1996, p. 27). Porexemplo: massa, comprimento e tempo;

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• Uma medida derivada, à qual se recorre quando atributos da realidadenão são passíveis de serem medidos extensivamente; neste caso busca-seestabelecer algum tipo de relação entre este tipo de atributo e uma me-dida extensiva. Uma prova empírica de que tal atributo pode ser afetadopor dois ou mais componentes, passíveis de serem medidos extensiva-mente, torna-se então necessária. Como exemplo ter-se-ia a massa (volu-me x densidade) e a luminosidade (candeia x distância).

Entende-se, portanto, por medida derivada de um atributo aquela cujos com-ponentes do atributo, estabelecidos por uma lei empírica, tenham finalmentedimensões extensivas. Fala-se também de medida derivada quando, emboraos componentes da função não sejam redutíveis, em última análise, a medidasfundamentais, eles apresentam, contudo uma unidade-base natural específica.(PASQUALI, 1996, p. 29),

• Uma medida por teoria (by fiai)', segundo Pasquali (1996), existiriamatributos da realidade que além de não possuírem dimensões extensivas(não podendo, portanto, serem mensurados por medidas fundamentais),não possuem uma unidade-base natural específica. Nestes casos, deve--se recorrer a leis e teorias para que a mensuração seja possível - àsleis, quando forem estabelecidas empiricamente as relações entre duasou mais variáveis; às teorias, quando não existe o estabelecimento de leis(teorias servem para construir hipóteses sobre as relações entre os atri-butos da realidade), "permitindo assim a medida indireta de um atributoatravés de fenómenos a ele relacionados via teoria" (p. 29).

Esta discussão sobre o problema de medir-se ou não as variáveis qualitati-vas em uma forma aditiva é, segundo Narens (2002), a fase clássica do problemada mensuração. As abordagens clássicas da medida são baseadas em operações deadição empíricas e observáveis que seriam usadas para produzir uma escala de rela-ção de funções medidas, equivalente ao procedimento desenvolvido por Helmholtz,Hõlder, Campbell, Frege e por Whitehead e Russel. Narens (2002) informa que em-bora neste período Campbell fosse o autor mais influente entre os acima citados, foiHõlder quem forneceu a apresentação mais rigorosa, completa e sistemática sobrecuja tradição a moderna teoria da medida tende a proceder.

Narens (2002) afirma que durante oito anos (de 1932 a 1940) uma comissãocriada pela Associação Britânica para o Avanço da Ciência debateu o problema clás-sico de como integrar os dois tipos de dados (intensivos e extensivos), mas não con-seguindo chegar a uma conclusão consensual. Entre outras opiniões, argumentava--se que qualquer lei propondo expressar uma relação quantitativa entre intensidadeda sensação e intensidade do estímulo, por exemplo, não seria meramente falsa,mas seria, de fato, sem sentido, pelo menos até o dia em que aos sentidos pudessemser aplicadas operações aditivas e subtrativas, assim como se faz com os estímulos.

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Hoje, a distinção entre quantidades extensivas e quantidades intensivas não temmais motivo de ser, mesmo quando ainda se possa encontrar alguém que tenda arecusar cada definição de quantidade extensiva que não respeite o requisito da capaci-dade aditiva. Tal comportamento implica deixar à margem da ciência as quantidadesintensivas, quando as mesmas já têm uma longa tradição no campo da mensuração.

Numa versão contemporânea da questão da mensuração (ver JUDD; MC-CLELLAND, 2003; SARLE, 1996, entre outros) observa-se a popularidade de umramo da matemática aplicada que se tornou útil para a medição e a análise de dados,quer sejam estes intensivos ou extensivos. Trata-se da teoria matemática da medida,que está elaborada na obra de Krantz, Luce, Suppes e Taversky (1971; apud SAR-LE, 1996): "Fundamentos da Medida" e que foi popularizada na psicologia por S. S.Stevens. Este autor deu origem à ideia de níveis de medida, em seu artigo: "Teoriadas Escalas de Medidas" (1946; apud SARLE, 1996; ver também NARENS, 2002).

Stevens considerava a medida clássica e sua proposta de construção de umaescala, através de sequências padronizadas, como limitada, embora sendo, sem dú-vida, uma forma especial da mensuração. Propôs, então, um sentido mais amplopara a medida, qual seja, o de que medir é atribuir números a objetos ou a eventosconforme regras (STEVENS, 1946, apud NARENS, 2002). Segundo Sarle (1996),a ideia fundamental da teoria da medida é a de que estas não são iguais aos atributosmedidos. Portanto, se se quer tirar conclusões sobre o atributo, deve-se levar emconta a natureza da correspondência entre o atributo e a medida. Assim, a medidade algum atributo relativo a um conjunto de coisas passa a ser o processo de atribuirnúmeros ou outros símbolos às coisas, de maneira que as relações entre os númerosou símbolos (ou suas propriedades) reflitam as relações dos atributos que estão sen-do medidos. Uma forma particular de atribuir números ou símbolos na intenção demedir é o que se chama de escala de medida.

Para Stevens (1946; citado por NARENS, 2002) o problema da mensuraçãoconsistiria simplesmente em tornar explícito: (a) as regras para a atribuição de nú-meros; (b) as propriedades matemáticas (ou estruturas) das escalas resultantes e (c)as operações estatísticas aplicáveis às medidas feitas com cada tipo de escala. Na-rens (2002) afirma que Stevens falha em não fornecer uma definição geral ou umateoria das regras e também em não compreender que as complexidades matemáticasno estabelecimento rigoroso de tipos de escala vão ser, em geral, mais complexas doque no caso simples coberto pela medida clássica. Stevens teria entendido, contudo,que a abordagem clássica era estreita demais, podendo ser aumentada ao caracteri-zar-se o processo de medida.

Como a teoria da medida adotou as proposições de Stevens? Para este autor,(ver SARLE, 1996) a mensuração se justificaria em sua relação com a estatística,com o objetivo de evitar que esta permitisse afirmações sem sentido. Quando semede algo, explica Sarle (1996), os números resultantes são usualmente, em algumgrau, arbitrários. Escolhe-se usar uma escala de l a 5 em vez de uma de -2 a 2,escolhe-se usar uma escala de graus Fahrenhreit em vez de uma escala Celsius (p.2).As conclusões de uma análise estatística não poderiam depender destas decisõesarbitrárias, porque decisões diferentes poderiam ser tomadas a cada vez.

PSICOLOGIA, CONCEITOS, TÉCNICAS E PESQUISAS VOL. l 153

Por exemplo, se algumas pessoas julgam, através de uma escala de l a 5 sobrequão bom é o sabor relativo a um grupo de alimentos, pode-se testar a hipótese deque os alimentos possuem a mesma média em sabor através de uma ANO VA20. En-tretanto, se se quer saber sobre o sabor em si, deve-se considerar como este se rela-ciona aos índices medidos para diferentes julgamentos. Idealmente, os julgamentos(índices) deveriam ser uma função linear dos sabores, com a mesma inclinação paraos vários juizes; aí se poderia usar uma ANO VA. Mas, se os juizes compõem dife-rentes curvas relacionando índices e sabores, então a ANO VA não vai permitir fazeruma inferência sobre a média de quanto um sabor é bom. Sarle (1996) esclareceque talvez a única coisa de que se pode ter certeza é de que os índices são funçõesmonótonas crescentes do sabor. Neste caso, poder-se-ia usar uma análise estatística,tal como o teste de Friedman21, que demandasse resultados invariantes.

Dois outros conceitos essenciais foram apresentados por Stevens (1946; apudSARLE, 1996): o das transformações permissíveis e o de níveis de medida. O pri-meiro trata de transformações de uma escala de medida que preservam as relaçõesrelevantes do processo de mensuração. Por exemplo: mudar a unidade de medida(de centímetros para polegadas); multiplicar as medidas por um fator constante éum procedimento que não altera a correspondência da relação "maior do que" e"mais comprido do que", nem a correspondência de adição e concatenação (SAR-LE, 1996, p. 3).

Stevens (1946 apud SARLE, 1996) estabeleceu diferentes níveis de medidasenvolvendo variadas propriedades (relações e operações) dos números e símbolosque as constituem. Cada nível de medida possui um conjunto de transformaçõespermissíveis. Os níveis hoje em dia mais considerados são:

(a) O nominal. Atribui-se um número a qualquer coisa que se considerecomo tendo o mesmo valor do atributo, por exemplo: o número dos joga-dores de futebol;

(b) O ordinal. Atribuem-se números de maneira que a ordem destes reflitauma relação de ordem definida no atributo. Se os elementos x e y têm osvalores a(x) e a(y) como atributos, atribui-se valores m(x) e m(y) tal quese m(x) > m(y) então a(x) > a(y).

(c) O intervalar. Atribuem-se números de maneira que as diferenças entreestes reflitam as diferenças entre os atributos. Se m(x) - m(y) > m(u) -m(v), então a(x) - a(y) > a(u) - a(v)22.

Na prática, uma escala de medida pode não corresponder precisamente a nenhumdestes níveis de mensuração. Pode haver, por exemplo, uma mistura de informaçõesnominais e ordinais; escalas que misturem o nível ordinal e o intervalar de maneira

20 Análises de variância: conjunto de procedimentos estatísticos paramétricos que permitem ao pesquisador fazer inferên-cias a respeito da influência de variáveis independentes sobre outras independentes, quando estas últimas são mensura-das em nível pelo menos intervalar.

21 Teste de média não paramétrico.22 Tradução baseado no artigo de Sarle (1996, p. 4).

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que se tem que assumir que a escala é uma função monótona dos atributos. Maisainda, Sarle (1996) explica que para muitas escalas subjetivas indexadas (tais comoas que trazem apreciações como: "concordo fortemente", "concordo"... "discordo for-temente") não se pode demonstrar que os intervalos entre os índices são exatamenteiguais, mas que com um cuidado e um diagnóstico razoáveis, pode ser tranquilo dizerque nenhum intervalo representa uma diferença duas ou três vezes maior do que umoutro intervalo. Este autor alerta para as situações nas quais o processo de medida émal definido demais para aplicar-se à teoria da mensuração. Nestes casos, dever-se-iaconsiderar qual as escolhas arbitrárias que foram feitas no curso da mensuração, quaisos efeitos que estas escolhas podem ter tido sobre a medida e se é possível determinaruma outra classe plausível de transformações permissíveis.

Assim, explica Sarle (1996), enquanto a estatística se preocupa com a conexãoentre a inferência e os dados, a teoria da medida quer estabelecer a relação entreos dados e a realidade. Ambas são necessárias para inferir sobre o real. A teoria damensuração mostra que alguns métodos estatísticos são inadequados para certosníveis de medida, se se quer fazer inferências significativas sobre o atributo queestá sendo medido. Por exemplo, não se poderia dizer que hoje está duas vezesmais quente do que ontem porque ontem fez 20° graus Celsius e hoje faz 40° grausCelsius, pois tal relação se aplica aos números, mas não ao atributo sendo medido,a temperatura. Como já foi mencionado, o método estatístico pede resultados inva-riantes ou equivariantes sob transformações permissíveis para a escala de medida.Se tal invariância não se mantém, então as inferências estatísticas se aplicam apenasàs medidas, mas não ao atributo.

É inegável a contribuição das ideias de Stevens ao campo da mensuração, em-bora as inúmeras críticas de que é alvo ainda hoje. Por exemplo, Judd e McClelland(2003) argumentam que nem toda medida envolve números e que as regras de atri-buição só constituem uma mensuração se os números subsequentes terminarem porrepresentar algo significativo, alguma regularidade de atributos ou comportamentoque permita a predição.

Mensurar, segundo Judd e McClelland (2003), seria então um processo peloqual os dados brutos - observações infinitamente minuciosas do comportamentoenquanto realizado e produzido por entidades e seus atributos - são reduzidos a des-crições compactas ou modelos que se supõe representar regularidades significativas(atributos ou construtos) das entidades observadas. Assim, uma escala, uma variávelou um modelo compactado é a descrição das observações construídas através damedida; o construto, por sua vez, seria o atributo significativo ou a regularidadeque se presume que a escala representa. Neste sentido, a mensuração diz respeito aregras que atribuem uma escala ou o valor de uma variável a entidades para repre-sentar os construtos que se pensa serem teoricamente significativos.

Contudo, afirmam Judd e McClelland (2003), só a regra não é suficiente. Paraque uma escala ou variável seja uma medida válida é preciso que se assemelhe àdisposição verdadeira, embora desconhecida, das entidades com os construtos queinteressam teoricamente, ou seja, devem ter uma "validade de construto". Seria esta

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uma condição que indicaria fortemente a necessidade de uma ligação inextricávelentre mensuração e teoria. Neste caso, a mensuração pressuporia uma teoria quedefina os construtos importantes a serem medidos e que forneça uma motivaçãopara a regra de atribuir valores da escala às entidades. A seu turno, a teoria dependeda mensuração para estabelecer a confiança num conjunto de hipóteses teóricaspelo acréscimo da demonstração das relações empíricas entre as medidas. Uma boamensuração poderia então levar à desconfirmação das expectativas teóricas de duasformas: demonstrando sua inconsistência, ao verificar as relações empíricas, e poruma falha no próprio modelo de medida. A questão da validade da medida seráretomada mais adiante.

Maurin (1997) propõe o uso da teoria da mensuração como resposta à falta deuma capacidade analítica típica das ciências humanas. Tal ponto de vista, explicaeste autor, vem do mero relato em formas gerais de observações ai (relacionadascom conceitos claramente definidos) e seu conjunto A = {az} de checagens de algu-ma relação, por exemplo: relações binárias R, tais como preferências, ou operaçõesinternas I, tal como a combinação interna de duas medidas de maneira a obter-seuma medida nova, comparada a outras medidas que possuam a mesma relação R.Todas estas formas devem ser vistas como conjuntos estruturais algébricos (A, Rh,_ h,) (com suas possíveis muitas relações e operações) os quais constituem o que seconvencionou chamar de sistemas de relações empíricas.

O propósito da teoria da mensuração seria então, segundo explica Maurin(1997), fazer gravações adequadas ou aplicações de sistemas de relações empíri-cas em estruturas matemáticas (M, Sh, Th,) checando relações análogas ou homo-morfas, as quais são chamadas de sistemas de relações numéricas. O mapeamentoé o resultado de uma aplicação/de A em M e o tripé {(A, Rh, Ih,), (M, Sh, Th,),/} é uma escala de medida. Sendo que M é essencialmente um conjunto matemá-tico de números reais (Re ou o espaço vetorial Re). Nesse caso, comenta Maurin,a teoria da mensuração é mais relevante e adequada, devido a suas precauçõesrelacionais, do que os métodos de escalamento, multidimensionais ou não, "boni-tinhos e convenientes" (p. 2).

Ainda segundo esclarece Maurin, a teoria da mensuração intentaria lidar com ima-gens numéricas J(ai) preservando as relações algébricas empiricamente observadas Rhe _h. Maurin apresenta as características principais da teoria da mensuração em umalinguagem mais formal. Seus principais passos seriam então (Maurin, 1997, p. 2 ):

1) Passo representacionah lida com a existência de um sistema representa-cional numérico e sua aplicação/associada, ponto que deve ser rigorosa-mente demonstrado (necessidade de teoremas).

2) Passo específico: muitas aplicações/são soluções adequadas para o pas-so anterior e fornecem uma classe de soluções; este segundo passo lidacom a caracterização matemática da classe. Muitas vezes (uma situaçãoregular) existem transformações internas \|/ em M (transformações ad-

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missíveis) tais que y continua sendo uma representação e o conjunto {yde transformações admissíveis é um subgrupo Ga do automorfismo Reinterno. Por exemplo, alguns Ga clássicos seriam:

3) Passo significativo: diz respeito a toda afirmação numérica envolvendoimagens numéricas; por exemplo, J(aí) eÃaJ) são numericamente dife-rentes? É a afirmação _f(ai) >j[aj) significativa? Uma afirmação é ditasignificativa (ou sem sentido) se e somente se sua verdade permaneceestável (ou não) sob transmissões admissíveis consideradas durante opasso da especificidade.

4) Passo escalar. Existem muitas considerações práticas e importantes re-sultados sobre afirmações estatísticas. Os passos anteriores são os maisusuais e um resultado específico pode ser o suficiente. Entretanto, quan-do é necessário lidar com valores numéricos, às vezes as demonstraçõesdo primeiro passo são construtivas podendo-se usar então técnicas deconstrução de escalas.

De início, as relações binárias Rh e as operações h,...aplicadas a ais... são ob-servadas empiricamente. Quando são formuladas corretamente, ganham um statusaxiomático, sendo então chamadas de axiomas ou condições em teoremas represen-tacionais e, para validar firmemente cada representação relacionada, têm que ser che-cadas identicamente por observações quando se quer aplicar os teoremas em dadosobservados. Assim, transformam-se também em condições testáveis (Maurin, 1997).

Além destes aspectos favoráveis ao emprego de medidas axiomáticas, Maurin(1997, p. 3) destaca outros aspectos consideráveis:

a) Pode-se fazer distinções: as medidas fundamentais lidariam com os pas-sos l, 2 e 3 acima e com algumas condições algébricas que são limitadasa observações fenomenológicas. Em contrapartida, tem-se uma medidaderivada quando alguma velha medida prévia está envolvida nas condi-ções para o passo representacional.

b) As relações R^ e as operações Ih, ou axiomas, ou condições relaciona-das são essencialmente de natureza algébrica. Mas, de uma forma bemgeral, os dados observados e os fenómenos são normalmente contami-nados por alguma "dispersão de ruídos", então as condições algébricassão violadas e a medida representacional pode não ser viável. Contudo,

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isto é tipicamente o procedimento probabilístico de procurar uma es-trutura fundamental adequada mesmo que ocorram variações erráticase randômicas (uma tendência geral na ciência experimental). A versãoprobabilística da medida teria sido desenvolvida alguns anos depoisda primeira versão, determinística, próxima ao ajustamento dos testes,relativa a um modelo estrutural.

c) Os primeiros exames foram desenvolvidos para variáveis isoladas ouestímulos, mas esta abordagem geral, o respeito às regras algébricas tes-táveis para uma representação numérica, está também disponível paramuitas variáveis, fornecendo o padrão de "medida conjunta" de acordocom seus axiomas (a versão randômica sendo aqui mais incómoda).

A mensuração conjunta é a medida representativa mais importante. A ideia bási-ca é medir uma variável contra a outra e vice-versa. Judd e McClelland (2003) esclare-cem, através de um exemplo, como se estabelece tal medida. Supondo que se consigaestabelecer que uma pessoa se sinta tão desconfortável quando a temperatura é de 80°F com 93% de umidade quanto quando esta é de 90° e 75% de umidade. Pode-se entãoinferir que aumentar a temperatura de 80° para 90° é compensado psicologicamentede forma exata por uma baixa na umidade de 93% para 75%. Uma variação na escalade valores para temperaturas deve corresponder exatamente a variações na escala dosníveis de umidade. Isto implica que se se observa que uma pessoa se sente igualmentedesconfortável nas combinações (80° - 75%) como em (90° - 51%) então se pode sa-ber que variações de 80° para 90° são exatamente compensadas por reduções de 75%para 51% na umidade. Isto estabelece que a diferença nos valores da escala entre 75%e 93% de umidade é a mesma da variação nos valores da escala de 51 % e 75%. Dessamaneira, pode-se construir intervalos entre duas escalas e estabelecer relações entreestes intervalos e variações no atributo mensurado.

A escala intervalar é aquela na qual o raio entre os intervalos permanece cons-tante sob qualquer transformação permissível nos valores das escalas. Se se somarou multiplicar uma constante para cada termo da equação não se altera o raio. Noexemplo acima, a construção da escala continuaria até que se achasse as tempe-raturas que fizessem a equivalência entre (80°, 93%) e (90°, 75%) em termos dedesconforto. A medida conjunta especifica as condições que devem ser satisfeitaspara um ordenamento de todos os pares (a, p) a serem representados pela adição dosrespectivos valores na escala.

Toda quantificação precisa de uma classificação que lhe preceda, afirma He-genberg (1976), no sentido de que os conceitos formulados a prior i é que devemdeterminar o tipo de associação simbólica a ser utilizada. Para este autor, medir éatribuir valores concretos a variáveis numéricas, sendo tais valores associados aconceitos que provêm das observações resultantes da pesquisa. Tal ponto de vistaé compartilhado por Besson (1995, p. 46), que afirma: "a contagem pressupõe umadefinição e o quanto pressupõe um como: o estatístico não se limita a contar; eledefine (ou retoma definições) e conta o que classificou".

Considerando estas proposições, pode-se definir o conceito de mensuraçãocomo um procedimento de classificação que possibilita atribuir um objeto a uma

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determinada classe e a construir no interior da classe uma relação de ordem, mesmoque não quantitativa; por exemplo "maior do quê... ", "igual a... ". Antes de cadaverdadeira mensuração, cria-se, assim, uma representação do mundo em categoriasfenomênicas conexas, por um conjunto de relações que podem ser traduzidas emuma linguagem numérica. Esta definição deveria eliminar o risco, sempre presente,de antepor a mensuração ao fenómeno, atribuindo o status de quantidade a tudo queé susceptível de avaliação numérica, sem ter-se uma adequada teoria de referência.

As ciências humanas, a teoria psicológica e a mensuração

A observação e a mensuração de características mentais e comportamentais écertamente um dos problemas delicados no âmbito das ciências humanas. Apesar deexistir um consenso sobre o fato de que os indivíduos diferem entre si a respeito decaracterísticas pessoais, habilidades, comportamentos, entre outros, o problema a res-peito da possibilidade de mensuração de variáveis tipicamente psicológicas persiste.

De fato, a tarefa mais difícil no momento da coleta de dados é o da quantifica-ção das observações que se faz sobre os comportamentos que são objeto de estudo.Esta passagem de observações para dados numéricos constitui um dos problemascentrais da mensuração. A questão que se põe, neste sentido, é a seguinte: como sejustifica e legitima a passagem de procedimentos e operações empíricas (as obser-vações) para representações de caráter numérico destes procedimentos?

Até os dias de hoje existe uma dupla tendência entre os pesquisadores a favorou contra a mensuração. Um primeiro grupo, a favor da quantificação, consideraque, com os devidos cuidados e adaptações, é possível utilizar métodos quantita-tivos para o estudo da mente e do comportamento. Um segundo grupo, pelo con-trário, céptico quanto à quantificação, considera que os fenómenos psíquicos sãopeculiares e que as mensurações que podem ser obtidas são, de qualquer maneira,somente pseudomensurações e que, consequentemente, pouco têm a contribuir parao desenvolvimento teórico.

Pode-se afirmar que o desenvolvimento histórico da pesquisa em ciênciashumanas não tem gerado um complexo integrado de teorias sobre os váriosaspectos do comportamento humano, mas uma série de teorias desconexas e,sobretudo, baseadas em afirmações de tipo verbal, muitas vezes independentesumas das outras. A teoria da mensuração, por sua vez, tem se desenvolvido in-dependentemente da teoria psicológica, à qual deveria necessariamente ter feitoreferência. A situação, de fato, atual, é a de que nas ciências humanas, no geral,não existe uma teoria unificada em relação à mensuração, mas duas distintastradições de pesquisa que correspondem, respectivamente, a uma abordagemformal e axiomática, que diz respeito aos modelos da psicologia matemática(SUPPES; ZINNES, 1963; SUPPES et ai. 1971, 1989, 1990) e a uma abor-dagem prática, capaz de produzir soluções aplicáveis a problemas empíricosconcretos, a qual segue a linha iniciada por Thurstone e Guilford e que estáligada à tradição teórica da avaliação psicológica clássica e ao que se costumadenominar como abordagens psicométricas (PASQUALI, 1996).

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A separação entre estas duas linhas de pesquisa tem se tornado cada vez maisevidente com o desenvolvimento de "softwares" estatísticos bastante elaborados,que têm facilitado a aplicação de técnicas estatísticas sofisticadas a dados das maisdiferentes ordens, os quais tomam como base modelos implícitos de mensuraçãoque, na maioria das vezes, não estão em sintonia com as próprias técnicas.

O material empírico que fundamenta os trabalhos no campo experimental ouaplicado é, na maioria dos casos, um conjunto de dados relativos a julgamentos devalores, que devem ser transformados com base em modelos espaciais afins, atra-vés de um sistema relacional empírico. Nem sempre o pesquisador é consciente daoperação que está fazendo ao atribuir um número a uma resposta obtida dos sujei-tos. Como já foi salientado, a teoria da mensuração e a sua prática seguem estradasparalelas ainda hoje.

A exigência de quantificar as observações tem se tornado cada vez mais pre-sente na maioria das áreas das ciências humanas e o uso de conceitos e técnicas es-tatísticas é bastante frequente. Entretanto, paralelamente, a análise bibliográfica nãoencontra análogo interesse para problemas conexos ao de como se mede e, algumasvezes, nem ao que se mede. As áreas nas quais é necessária uma maior integraçãoentre teoria e praxe são substancialmente três, não necessariamente independentes:o tipo de mensuração, a amostragem e as técnicas de análise dos dados.

O problema básico reside no fato de que as características mentais não são dire-tamente mensuráveis, isto é, são quantidades intensivas ou medidas derivadas, comojá foi dito. Trata-se, portanto, de variáveis latentes, inferidas na base de alguma teoria,a partir do comportamento do indivíduo. A margem de incerteza não está, portanto, sóno "como" se mede, mas também e, com mais veemência, no "o quê" se mede, afinal.

Discutindo as relações entre medidas e construtos, Edwards e Bagozzi (2000)referem-se a amplos debates no meio científico sobre a natureza e a direção das rela-ções que podem ser estabelecidas entre o "o quê" e o "como" se mede. Usualmente,os construtos são vistos como causas de suas medidas e, quando se estabelece taltipo de relação, a medida é denominada de reflexiva porque representa a manifes-tação de um construto. Por outro lado, existem situações nas quais as medidas sãovistas como causas de seus construtos. Neste caso, são denominadas de formativas,pois formam ou induzem a criação de um construto.

Análises de covariâncias são usadas na diferenciação entre medidas reflexivase formativas, uma vez que, no caso das primeiras, as covariâncias seguem modelospreditivos, enquanto que para as medidas formativas, os modelos de covariânciassão indeterminados. Porém, Edwards e Bagozzi (2000) alertam para o fato de quea análise de covariância serve apenas para que se tenha uma ideia acerca do tipo demedida utilizada, pois ela não distinguiria exatamente os dois tipos de medidas. Ouseja, há situações em que as medidas reflexivas podem covariar de uma maneiraque não corresponde ao modelo preditivo esperado. Ao mesmo tempo, encontram--se casos nos quais as medidas formativas podem seguir modelos de covariânciaque seriam os esperados para as medidas reflexivas. A pouca importância que, emgeral, se dá a critérios que buscam especificar as relações causais entre construtos

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e medidas, constitui uma falha metodológica, tendo em vista que se tal causalidadefor incorretamente especificada, as relações entre construtos e medidas não podemser testadas significativamente (EDWARDS; BAGOZZI, 2000).

A literatura epistemológica sugere que uma análise sobre a relação de causa-lidade entre medidas e construtos deve levar em consideração quatro fatores prin-cipais: a) a distinção (a causa e o efeito devem ser considerados como entidadesdistintas); b) a associação entre as duas entidades (é necessário que a medida eseu construto estejam relacionados, de maneira que possam covariar paralelamen-te); c) a precedência temporal (a causa deve ocorrer antes do efeito); d) a elimi-nação de teorias conflitantes (garantir a inexistência de explicações antagónicasou contraditórias para relação de causalidade entre as variáveis avaliadas). Destesquatro fatores, afirmam Edwards e Bagozzi (2000), o mais difícil de ser cumpridonas ciências humanas e sociais é o último, porque as pesquisas nessa área apontampara a existência de uma gama de variáveis exógenas não explicadas, que podemafetar as relações de causa e efeito. Tal ideia reforça o fato de que as relações entreconstrutos e medidas não podem ser estudadas sem que se faça referência ao quadroteórico conceptual que está por trás destas entidades.

Com base nos fatores que determinam a causalidade entre duas variáveis, qua-tro modelos formais explicariam o tipo de estrutura das relações entre construtos emedidas (ver EDWARDS; BAGOZZI, 2000; JUDD; MCCLELLAND, 2002). Taismodelos são derivados de regras que estipulam que a correlação estabelecida entreduas variáveis pode ser decomposta em quatro componentes: a) um efeito direto(uma variável afeta diretamente outra), b) um efeito indireto (o efeito de uma variá-vel sobre a outra é mediado por uma ou mais variáveis), c) um componente espúrio(decorrente de causas desconhecidas) e d) um componente não analisado (resultantede variáveis exógenas ou pré-determinadas).

Variadas soluções são possíveis, utilizando-se como base estas regras. Edwar-ds e Bagozzi (2000), por exemplo, sugerem que os modelos de relação causal entreconstrutos e variáveis podem ser de quatro tipos:

1. Modelo reflexivo direto: estipula que um construto exerce efeito diretosobre uma medida.

2. Modelo formativo direto: especifica que as medidas são causas diretasde um construto. Nos casos em que: (1) cria-se uma variável latente "in-duzida", que represente um grupo de variáveis observadas; (2) criam-seblocos que reunam os efeitos de diversas variáveis ou ainda (3) se seanalisa o efeito de uma manipulação em uma variável latente, está-seincorrendo neste tipo de relação causal.

3. Modelo reflexivo indireto: propõe que os efeitos de um construto so-bre suas medidas são mediados por uma ou mais variáveis latentes. Estemodelo ocorre quando as medidas são consideradas não como derivadasdiretas do construto, mas como indicadores deste, representando um oumais de seus efeitos.

4. Modelo formativo indireto: sugere que os efeitos de uma medida sobreum construto são mediados por uma ou mais variáveis. Em outras pala-vras, uma medida formativa representa não a causa única do construto,mas apenas uma de suas causas.

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Edwards e Bagozzi (2000) afirmam que há no meio científico, em geral, umaampla utilização de explicações que propõem a existência de efeitos causais diretos.Por outro lado, afirmam que uma análise mais detalhada sobre os quatro mode-los poderia ajudar o pesquisador a especificar com mais precisão a direção (quemcausa quem) e a estrutura (direta, indireta, espúria ou não analisada) das relaçõesestabelecidas entre construtos e medidas, o que garantiria uma maior consistência econfiança na adoção de um modelo teórico.

Uma abordagem bastante frutífera - no sentido de tentar solucionar a ques-tão da teoria da mensuração na psicologia - nasce em 1964 com a publicação dofamoso livro de Coombs, A theory ofdata. Neste livro, o autor, pela primeira vez,enfrenta de maneira sistemática e axiomática a questão da estrutura dos dados. Fazuso de uma linguagem geométrica para descrever os modelos mentais dos dadosem contraposição com os modelos métricos mais utilizados. De fato, Coombs é daopinião de que um modelo de mensuração é na realidade uma teoria, e que os fatossão inferências, assim como os dados e as mensurações.

Os dados são definidos como relações entre pontos no espaço que têm que sercapazes de permitir a representação de propriedades mentais não diretamente mé-tricas. O modelo possibilita representar todas as relações definidas sobre as obser-vações com base em somente duas relações: a de ordem e a de distância. Nas rela-ções geométricas de ordem e distância, Coombs (1964) faz corresponder as relaçõesmentais de dominância e proximidade. Quer-se estudar as respostas de um sujeito aum dado conjunto de estímulos (ou itens), representando em um segmento de retaos pontos correspondentes aos estímulos e um ponto correspondente ao sujeito, detal forma que, com operações adequadas, possa-se transformar a ordenação de do-minância em ordenação de proximidade entre os pontos estímulos e os do sujeito.

Em outras palavras, o Modelo de Desdobramento de Coombs acrescenta aoescalonamento de itens, um valor para um "ponto ideal" relativo a cada indivíduo,na mesma escala dos itens. A noção que está por trás é a de que quando confronta-dos por escolhas entre dois itens, os sujeitos preferem o item que está mais perto deseu ponto ideal. Formalmente, ter-se-ia: a i b <-» s(a) - s(z) <_s(b) - s(í), ou seja, oindivíduo i prefere a à è se e somente se os valores escalares para a e o ponto idealde i estiverem mais próximos do que os valores escalares para è e o ponto ideal de i.

O mesmo se aplica quando se têm dimensões múltiplas. Qualquer pessoa cujoponto ideal está numa mesma região deve ter a mesma ordem de preferência, ouseja, vai preferir aquelas entidades que estão mais próximas de seus pontos ideais.Na prática, programas de escalonamento multidimensionais, os quais conduzemprocuras interativas para maximizar alguma medida de ajustamento adequado, sãousados para achar a configuração multidimensional.

As impostações de Coombs não têm sido substancialmente modificadas,mesmo que se tenha substituído classificações dicotômicas por classificações maiscomplexas. Por exemplo, Shepard (1969) acrescenta aos dados de dominância e deproximidade, os de perfil e de mensuração conjunta; Carrol e Arabie (1980) suge-

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rem considerar modelos multidimensionais. Entretanto, a aplicação concreta destesmodelos não tem encontrado uma grande aceitação, principalmente devido a umdesconhecimento das vantagens que os modelos multidimensionais possibilitam aopesquisador. Como consequência, os pesquisadores continuam utilizando a teoriaclássica dos testes, apesar de se tornarem cada vez mais conscientes de que seriamnecessários modelos que estejam mais em sintonia com a real complexidade dosconstrutos objetos de estudo.

O modelo mais frequentemente utilizado é aquele que aplica a correspondên-cia entre as respostas dos sujeitos e a escala dos números naturais, sem uma pre-ocupação em aprofundar, nem as características do sistema de medidas utilizado,nem sua correspondência com o fenómeno estudado, como se a utilização dos nú-meros, de qualquer maneira, tornasse mais objetiva e, deste modo, melhor a inves-tigação. Em âmbitos diferentes de estudo do comportamento e dos estados mentais,podem ser encontrados modos e modelos diferentes de quantificação dos dados.Por exemplo, em estudos sobre a percepção, tradicionalmente mais relacionadoscom a psicofísica, existe uma maior propensão ao uso de escalas obtidas através decomparações emparelhadas ou similares. Estudos sobre atitudes, opiniões e perso-nalidades tendem geralmente a utilizar escalas "tipo Likert", isto é, transformam-seas respostas em escalas intervalares; estudos sobre a memória tendem a utilizar ostempos de reação frente a um estímulo; enfim, estudos do comportamento animal,desenvolvimentais e na área da psicologia social e clínica tendem a fazer uso degrades de observação do comportamento.

O que é medido, os instrumentos de medição e seu uso

A maioria das medidas na área das ciências humanas se fundamenta na obser-vação do comportamento. A partir desta observação, são inferidas as característicasque se quer mensurar, mas como o comportamento é complexo, torna-se mais difícilinferir e isolar tais características. Portanto, por mensuração pode-se entender cadatentativa de quantificar o comportamento dos indivíduos observados de alguma for-ma. Esta definição é bastante geral e abrange tanto os dados obtidos através de umexperimento, como os dados obtidos a partir de uma observação naturalística. Entre-tanto, é importante sublinhar que em ciências humanas e especialmente em Psicolo-gia, geralmente objetiva-se mensurar não somente uma simples coleção de eventosobserváveis, mas um construto abstrato que explica e organiza tais eventos: apego,linguagem, inteligência, personalidade, entre outros. De um lado temos o construtoteórico, com as suas, às vezes, contrastantes definições, e do outro temos as obser-vações empíricas. Uma boa medida é a que entre todos os eventos possíveis observaempiricamente aqueles que se aproxima o máximo possível do construto investigado.Consequentemente pode-se dizer que o ato de mensurar é um processo seletivo.

Assim, a relação entre a teoria e o construto, traço ou habilidade que se quermensurar deve ser muito estreita. Por exemplo, suponha-se que se quer medir ahabilidade numérica de um grupo de indivíduos. Para tanto, submete-se tais indi-

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víduos a uma prova baseada em operações numéricas e observa-se que alguns semostram mais aptos na resolução destas do que outros. Conclui-se, então, que taisindivíduos possuem uma habilidade numérica maior. Ou seja, infere-se tal habilida-de a partir de um comportamento: as respostas à prova. Agora, é bastante fácil intuirque a capacidade de resolver operações com números esteja ligada a uma habilidadenumérica não diretamente observável. Porém, nem sempre é fácil estabelecer umaligação clara entre comportamento e o construto ou traço.

Na realidade, todos os construtos psicológicos representam a síntese de umasérie de comportamentos diretamente observáveis. Neste sentido, um exemplo é ainteligência. Uma questão que se põe é: "Existe o construto inteligência? " ou "Esteé a síntese de certo número de comportamentos inteligentes? ". Trata-se, no caso dasegunda opção, de decidir como selecionar estes comportamentos de maneira queeles sejam representativos para descrever satisfatoriamente a inteligência.

Apesar de não ser o objetivo principal do presente trabalho discutir estetipo de questão teórica, é importante ressaltar a estreita ligação existente entreteoria e prática, uma vez que o uso de instrumentos deve sempre derivar deuma teoria. De qualquer maneira, os instrumentos de mensuração se pautam naobservação, em situações ou contextos mais ou menos controlados, das reaçõesdos indivíduos a estímulos mais ou menos estandardizados (padronizados), en-tendendo por estandardizados aqueles estímulos pelos quais já foram previstasas modalidades de respostas.

Neste sentido, podemos ter diferentes tipos de instrumentos em função do tipode contexto ou situação no qual o exame é realizado (controlado versus não con-trolado) e do tipo de estimulo utilizado pelo pesquisador (estandardizados versusnão estandardizados). Assim, em um extremo temos as observações livres e as en-trevistas abertas (instrumentos caracterizados por estímulos não estandardizados econtexto não controlado) e no outro extremo temos as escalas de atitudes, os testesde personalidades e os testes cognitivos (instrumentos caracterizados por conjuntosde estímulos estandardizados os quais são apresentados em contextos controlados).Em um nível intermediário entre estes dois extremos, se situam as entrevistas se-miestruturadas, as observações sistemáticas (instrumentos caracterizados por estí-mulos estandardizados e contextos não controlados) e os testes projetivos (estímu-los não estandardizados em contextos controlados).

Atrelado à questão dos instrumentos é importante ressaltar a diferença queexiste entre testes e avaliação. De fato, no interior dos processos de mensuraçãoexistem os testes que se caracterizam por uma série organizada de estímulos aosquais os indivíduos deveriam reagir de maneira diferenciada, de forma que se evi-denciem as características peculiares de cada indivíduo. Esta forma de mensuraçãoatravés dos testes se diferencia da avaliação. Por exemplo, ocorre avaliação do de-senvolvimento quando o pesquisador faz uso de um processo de mensuração capazde ressaltar diferenças de desenvolvimento entre uma criança e outra. Assim o ter-mo avaliação é mais abrangente do que o termo teste.

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Outro aspecto relativo ao processo de mensuração diz respeito ao uso que éfeito do instrumento. Isto significa que antes de se medir algo é importante, sobretu-do, ter à disposição um bom instrumento23. É também importante saber utilizá-lo e,sobretudo, é essencial usar o instrumento de avaliação com os indivíduos "certos".Por exemplo, não será de muita utilidade utilizar um teste de leitura com uma crian-ça de dois anos, pois cada instrumento e método de avaliação possui suas caracterís-ticas e os seus limites de aplicabilidade. Como de forma muito apropriada alertavaCronbach (1971), não é o teste que precisa ser válido, mas o seu uso.

Para melhor compreendermos a distinção entre estes vários aspectos é pos-sível tomar como exemplo o uso de um instrumento musical como a harpa. Paraque o concerto seja agradável, precisa-se de um bom harpista que toque a músicaapropriada, em um ambiente adequado. Se uma destas condições não for atendidao concerto irá deixar a desejar. De nada servirá termos um ótimo harpista tocandouma música apropriada para harpa se o instrumento não estiver com todas as cordasafinadas. O efeito será também provavelmente desagradável se tivermos uma harpaafinada e uma partitura apropriada para harpa, em um ambiente apropriado se quemirá tocar não tiver experiência com o instrumento musical. De forma similar parauma execução musical, cada mensuração deve ser válida por si mesma.

Tipos de mensurações

As diferentes características do comportamento de um indivíduo ou de umgrupo podem ser estudadas através de instrumentos diversos, com um distinto graude controle por parte do observador. Entretanto, pode-se afirmar que algumas carac-terísticas só são possíveis de serem coletadas através de instrumentos específicos.Por exemplo, o nível de conhecimento em um campo especializado pode ser ava-liado mais eficazmente através de instrumentos que utilizam estímulos estandar-dizados, do que através de observações livres ou testes projetivos. Seria, portanto,desejável o desenvolvimento de formas adequadas de construção de instrumentosem relação às diferentes áreas nas ciências humanas. Todavia, as observações decomportamento apontam, fundamentalmente, quatro tipos de mensurações: a latên-cia, a frequência, a duração e a intensidade.

A latência é em geral medida em unidades de tempo e concerne o intervalo detempo que intercorre entre o estímulo e o acontecer de um evento específico. Porexemplo, o tempo que intercorre entre a apresentação de uma palavra e uma rimarelativa a esta palavra-estímulo; o tempo que intercorre entre a apresentação de umaprancha do teste projetivo de Rorschach e a primeira resposta do sujeito; ou o tempoque intercorre entre a apresentação de um estímulo dicótico aos dois hemisférios ce-rebrais e a resposta do sujeito ao apertar um botão (esquerdo ou direito) com o dedo.

A frequência diz respeito ao número de vezes que se apresenta um determinadoevento. Provavelmente, esta é a forma mais comum de medir o comportamento: mesmotratando-se de uma prova estandardizada, normalmente a pontuação final é calculada

23 O que também não é suf ciente, por si só, para garantir uma boa mensuração.

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baseando-se no número de respostas corretas fornecidas pelo sujeito. Se a observaçãoocorre em uma situação não controlada, a frequência do comportamento observadodeve estar relacionada à duração da observação. Por exemplo, ao observar-se o compor-tamento de apontar em crianças muito pequenas é necessário relacionar o número de taiscomportamentos com a quantidade de tempo na qual é efetuada a observação.

A duração é também mensurada em unidades temporais e concerne mais es-pecificamente à quantidade de tempo na qual um único comportamento acontece.É necessário que seja sempre relatada a duração total da observação porque é ob-viamente diferente se um determinado comportamento é mantido por três minutosem um total de 12 minutos de observação ou por três minutos em um total de 40minutos de observação. Por exemplo, se se quer mensurar o comportamento de jogodas crianças, pode-se verificar por quanto tempo uma criança brinca sozinha ou emcompanhia de outras em um determinado período de tempo. Mesmo tratando-se dedados coletados através de um eletroencefalograma, pode-se fazer corresponder aduração à amplitude de uma onda cerebral.

A intensidade é a característica do comportamento mais difícil a ser definidae, portanto, de ser mensurada, muitas vezes sendo confundida com a frequência.Se, por exemplo, quer-se medir o comportamento agressivo, interessa não somentea frequência deste comportamento, mas também sua intensidade. E provavelmentediferente mostrar agressividades de tipos verbal e físico. Em outros casos, a frequ-ência do comportamento é considerada como indicador de intensidade da caracte-rística a ser medida. É o caso da maioria dos testes psicológicos. Por exemplo, emum teste de inteligência, considera-se geralmente o número de respostas corretasàs questões do teste. Quem se comporta mais frequentemente de forma inteligente,isto é, responde mais vezes corretamente às perguntas, terá uma inteligência maior.

Mais simples é definir a intensidade ao se tratar de respostas eletroencefalográficasou mesmo físicas do indivíduo. A altura dos picos das ondas eletroencefalográficas, porexemplo, pode ser interpretada como intensidade da reação comportamental. Em outroscasos, como nas escalas de atitude, pede-se diretamente ao sujeito que indique o seugrau de acordo ou desacordo com uma afirmação, procurando, assim, obter uma estima-tiva da intensidade da atitude. Enfim, em alguns casos, é possível decompor o comporta-mento em componentes quantificáveis. Por exemplo, em psicologia animal se interessamensurar a intensidade do comportamento de alimentação, o pesquisador pode não sóbasear-se na quantidade de comida ingerida (nem sempre facilmente quantificável), mastambém no número de unidades ingeridas em um determinado tempo.

Em resumo, pode-se dizer que, de uma maneira geral, o que se quer medirsão os atributos de um conjunto de objetos, os quais podem ser sujeitos, ou gruposde sujeitos. Tal conjunto de atributos incluiria: traços, disposições, atitudes, prefe-rências, aptidões, desempenhos, entre outros. O objetivo da coleta de dados seriaentão o de "ordenar" sujeitos em variáveis medidas, de maneira que tais ordenaçõesobservadas sejam similares às ordenações desconhecidas do verdadeiro construtolatente que se quer medir (JUDD; MCCLELLAND, 2003; PASQUALI, 1996). Esteé o procedimento básico da psicometria, conjunto de abordagens derivadas direta-mente da psicofísica.

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A mensuração psicométrica

A mensuração psicométrica desenvolveu-se paralelamente à mensuraçãoaxiomática ou de representações, aquela que tem sido derivada da matemáticaaplicada, como já foi narrado. Como já foi visto também, a mensuração repre-sentacional examina a qualidade da medida, ou de sua capacidade em constituiruma escala, através de uma espécie de checagem da consistência interna, ou seja,as propriedades dos números devem coincidir com a das relações estudadas. Apsicometria, cujos princípios são os que de fato vêm sendo mais empregados paraa mensuração em psicologia, consiste de medidas observacionais e questionários,cuja validade é estabelecida não por um conjunto de testes de consistência axio-mática, mas pelos padrões observados de variâncias e covariâncias que apresen-tam (JUDD; MCCLELLAND, 2003).

Na psicometria, os dados usados para ordenar os sujeitos em variáveis vêmde fontes que fazem diferentes suposições sobre os sujeitos. Tipicamente, pede-separa que os sujeitos relatem sobre eles mesmos. A medida é direta quando se supõeque os sujeitos têm acesso às propriedades psíquicas que se quer medir e queremrelatá-las. Menos diretamente, assume-se que os sujeitos têm acesso ao que se quermedir, mas talvez não queiram fornecer autorrelatos precisos. Neste caso, é precisominimizar ou suplantar estas preocupações com as autoapresentações. Os sujeitospodem ser levados a crer que devem responder de forma verdadeira, uma vez queo pesquisador teria um acesso direto à sua resposta emocional ao estímulo. Alter-nativamente, seria possível usar um procedimento randomizado de respostas, nasquais os sujeitos saberiam que o pesquisador não conhece o conteúdo das respostasàs questões específicas que estão sendo perguntadas, mas que este é capaz de inferirsuas atitudes a partir dos padrões de respostas ao longo de variadas questões.

Uma variedade de abordagens assume que existem atributos psíquicos a seremmedidos, mas que os sujeitos podem não ter acesso ou não serem capazes de forne-cer um autorrelato apurado, por qualquer razão que seja. Neste caso, observam ges-tos não verbais, comportamentos em face de estímulos, produtos de comportamen-tos, efeitos corporais, como movimentos dos músculos, das pupilas etc. Nesta coletade dados, os sujeitos não têm controle sobre os resultados e o pesquisador assumeque tais respostas são indicadoras de atributos psíquicos ou estados fundamentais.

A despeito de qual seja a suposição sobre o querer ou a habilidade do sujeitoem prover autorrelatos exatos, a validade das medidas devem ser demonstradas pelaconfirmação de padrões de variância esperados. Judd e McClelland (2003) che-gam a afirmar que a questão central na mensuração é a validade de construto dasmedidas. Considerando-se o que foi visto no início deste ensaio sobre as questõesepistemológicas, não se pode negar a força de tal afirmação. Verificar-se-á a seguircomo estes autores reproduziram esta questão, procurando associar as abordagensmatemática e estatística da mensuração no que pode ser considerado como o quemais modernamente vem se constatando a respeito.

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Como já se viu na questão relativa à causalidade da medida, é comum assumir--se que cada variável é apenas um indicador imperfeito do constrato teórico que lheestá por trás e que se quer medir. Segundo a teoria tradicional dos testes, as medidasseriam imperfeitas porque conteriam, necessariamente, algum grau de erro ou deimprecisão. Para as abordagens mais contemporâneas, contudo, as medidas seriamindicadores imperfeitos dos construtos, não apenas porque contêm erros randômi-cos de medida, mas também porque medem construtos não esperados, erros siste-máticos ou construtos que não interessam. A realidade latente de qualquer medidaseria então a de que os escores refletem três coisas potencialmente distinguiveis:

- O construto que se gostaria de medir;- Uma variedade de construtos que não interessam e que se preferiria não

estar medindo e;- Erros randômicos ou imprecisões.A validade de construto então mostraria evidências de três categorias da rea-

lidade latente por trás de uma variável, através de suas covariâncias e correlaçõescom outras variáveis. Quais sejam, as validades: convergente e discriminante e aconfiança ou precisão da medida. A validade convergente é a demonstração de quea variável reflete o construto que interessa; a validade discriminante demonstrariaque os construtos que não interessam não estão sendo medidos e a precisão é ademonstração de que os erros randômicos da medida não são grandes. Outros tiposde critérios tais como: as validades de conteúdo, preditiva e concorrente, tambémestariam inclusos na validade de construto.

A questão fundamental ficaria então: a variável mede o que se quer que elameça e não mede o que não se quer medir? Como já se viu, é preciso que o cons-truto esteja definido teoricamente, pois é a partir desta teoria que se derivam asexpectativas sobre os padrões de variâncias e covariâncias observados, os quais asvariáveis de cada medida devem exibir. Citando Cronbach e Mechl (1955), Judd eMcClelland (2003) esclarecem que o construto que está sendo medido está embebi-do numa "rede nomológica24" definida teoricamente e o padrão de covariância quese espera encontrar com outras medidas é a manifestação desta rede.

A abordagem psicométrica fia-se em padrões de associações lineares entre asvariáveis. As transformações não lineares de variáveis (e.g., logarítmicas ou inver-sas) podem afetar os padrões de covariâncias observados. Assume-se, contudo, quetransferências não lineares que sejam monotônicas tendem a ter pouco efeito nascorrelações observadas.

Na estimativa da precisão, a teoria clássica dos testes supõe que cada variávelobservada tem dois componentes fundamentais: os escores verdadeiros e os errosrandômicos. Formalmente ter-se-ia então: Xi = Ti + Ei. Este modelo é depois expan-dido para incluir o erro sistemático ou os construtos que não interessam. A precisãotem a ver com a quantidade relativa de erros randômicos da medida, pois quanto

24 A nomologia diz respeito ao estudo das leis que presidem aos fenómenos naturais [Bueno, Francisco Oliveira (1983).Dicionário Escolar da Língua Portuguesa. MEC: Rio de Janeiro]

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mais houver destes erros, mais existem escores verdadeiros não correlacionados. Aprecisão de uma medida é, pois, a proporção da variância do escore verdadeiro emrelação à variância total. Uma vez que os erros de cada medida são randômicos, elestendem a cancelarem-se uns aos outros quando se forma uma única medida soman-do os escores de um conjunto de K medidas.

Pode-se, em vez de calcular o coeficiente alfa para um escore composto, fazeruma análise de fatores ou dos componentes principais, para se formar um compostoou soma das medidas pesadas pelas cargas de seus fatores. Isto implica supor que asmedidas individuais devem ser pesadas computando-se sua soma, não igualmenteou de acordo com a sua variância, mas conforme a magnitude de suas relações comos escores verdadeiros.

À sua vez, em geral, a informação sobre as validades convergente e discrimi-nante de uma medida particular está contida no conjunto de covariâncias e correla-ções entre esta medida e outras que dão acesso ao mesmo e a diferentes construtos.O princípio básico é a constatação de que duas medidas devem covariar, na propor-ção em que medem o mesmo construto ou construtos correlatos. A correlação refleteapenas a extensão pela qual as duas medidas medem o construto de interesse. Ouseja, medidas múltiplas de um mesmo construto deveriam ser altamente relaciona-das umas com as outras.

Contudo, isto não é suficiente para dizer-se que existe uma validade conver-gente. Deve-se ainda confiar que as múltiplas medidas são o mais diferente possívelem termos de suas irrelevâncias ou fontes de erros sistemáticos. Os pesquisadores,explicam Judd e McClelland (2003), tenderiam a usar itens redundantes, convenci-dos pela alta intercorrelação entre eles (alto coeficiente alfa). Todavia, uma consis-tência interna alta só é uma validade convergente se a medida não partilha demasia-dos componentes de erros sistemáticos.

É preciso, portanto, estabelecer-se a validade discriminante. Esta é demonstra-da ao se verificar se as medidas do construto de interesse se intercorrelacionam maisaltamente umas com as outras do que com as medidas que acessam os construtosque não interessam. Numa situação extrema em que os construtos não se relacionas-sem não haveria correlação entre as medidas.

As validades convergentes e discriminantes podem ser verificadas simultane-amente através da matriz de correlação multitraço e multimétodo. Em 1959, Camp-bell e Fiske apresentaram a lógica formal para estas matrizes. Estas se centram emvalores de três tipos, quais sejam, as correlações: (a) entre medidas de mesmo traçousando diferentes métodos (bem maiores do que 0); (b) entre medidas de diferentestraços usando os mesmos métodos (menores do que as primeiras) e (c) medidas dediferentes traços e diferentes métodos (menores do que as primeiras, o que implicaque a contribuição do traço para a medida é maior do que a do método).

O insight fundamental que foi permitido por este tipo de abordagem (demons-trado em Cronbach e cols., 1963, 1972 e 1983; citados por Judd e McClelland,2003) é o de que qualquer escore tem potencialmente muitos fatores que contribuem

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para eles (tais como: a pessoa que está sendo medida, a medida que está sendo usa-da, o experimentador que está aplicando a medida, a situação, a estação do ano, ahora do dia etc.). Trata-se de "facetas" que afetam a magnitude do erro no escore eo grau pelo qual se pode generalizar a partir deste.

Se houver intenção de generalizar as medidas, então as variações devidas àsfacetas precisam ser incluídas como componentes do erro e se se quer generalizar osexperimentos ou arranjos, então estes também precisam ser tratados da mesma forma.Existem múltiplas facetas que contribuem para cada escore e se estas são consideradasou não, como componentes do erro, depende da situação para a qual se quer generali-zar. Facetas são assim variações sistemáticas nos componentes do erro e não nos su-jeitos. A estimativa dos componentes relevantes da variância depende de se as facetassão cruzadas umas com as outras, se são isoladas, ou se seus níveis são consideradosfixos ou randômicos. Em geral, os sujeitos são considerados um efeito randômico ecruzados com as facetas. Estas são consideradas randômicas por que se quer generali-zar para situações envolvendo outras medidas, ocasiões, experimentadores etc.

A vantagem da abordagem que considera os componentes da variância é queatravés da manipulação experimental de múltiplas facetas pode-se estimar a contri-buição de várias fontes de erros sistemáticos para a variável medida. É possível tam-bém fazê-lo sem manipular sistematicamente os componentes do erro. Dependendoda natureza do modelo hipotético do construto latente que fundamenta cada variávelmedida e do número de medidas, é às vezes possível realizar estimativas diretasatravés do uso de análise fatorial confirmatória. Trata-se de um procedimento paraestimar os parâmetros de certa classe de modelos de equações estruturais, nos quaisquer-se estimar as cargas dos coeficientes das variáveis observadas em construtoslatentes ou hipotéticos e as variâncias e covariâncias destes.

Além de estimar os parâmetros de equações dos construtos (suas cargas, va-riâncias e covariâncias), a análise fatorial confirmatória pode também, em algunscasos, testar a consistência do modelo do construto hipotético com os dados obser-vados. Portanto, como nas abordagens representacionais, o uso de análises fatoriaisconfirmatórias na avaliação da validade de construto fornece a possibilidade de tes-tar um modelo de medida hipotético.

Assim, embora até hoje as abordagens matemáticas e psicométricas tenhamseguido caminhos paralelos, seria interessante para os programas de pesquisas pro-curar obter os frutos de uma união entre as duas. Judd e McClelland (1997) apontaminicialmente o que seria a diferença básica entre estas duas formas de uso da medidana teoria psicológica e seus enfoques.

As abordagens axiomáticas focam a relação entre observações individuais(como por exemplo: julgar um item como mais ou menos liberal, preferido, ou o quequer que se esteja medindo, do que um outro item). Estes modelos usariam relaçõesempíricas observadas para fazer previsões sobre observações específicas (usando asimilaridade com as propriedades dos números), focalizando quase que exclusiva-mente a consistência interna dentro de um conjunto de tais relações empíricas.

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As abordagens psicométricas se centrariam na relação entre duas variáveis(por exemplo: a variância entre itens acessando o preconceito de diferentes formas).Neste caso as observações individuais não são importantes, o foco está no padrãode relação entre as variáveis. Os modelos psicométricos fazem previsão sobre co-variâncias específicas ou sobre as relações entre as variáveis, ou seja, focalizam aconsistência externa.

Uma ponte entre os dois tipos de abordagens seria considerar como as abor-dagens axiomáticas poderiam examinar de maneira proveitosa as covariâncias entremedidas representacionais; isto implicaria em poder fazer afirmações sobre a preci-são e a consistência externa. Judd e McClelland (2003) também examinam a relaçãoentre as abordagens matemática e estatística sobre outros critérios. Por exemplo, aquestão da falsificação e da verificação.

Os modelos axiomáticos, que fazem poderosas predições sobre observaçõesespecíficas, são facilmente falsificáveis. Uma única observação pode falsificar omodelo e frustrar a construção da escala, principalmente se não existir uma teoriado erro adequada25. A vantagem seria que tais rejeições ao modelo promoveriam aidentificação de efeitos de contextos, os quais revelariam processos psicológicospor trás das respostas a estímulos sociais. Uma desvantagem seria que a facilidadeem falsificar torna tais modelos tão frágeis que em geral é difícil demais construirescalas a serem usadas para fazer predições sobre outros construtos psicológicos.

Os modelos psicométricos, por sua vez, são difíceis de falsificar e relativa-mente fáceis de verificar. Uma única observação não falsifica o modelo, mas podemexistir itens problemáticos cuja variância com outros itens pode não ser consistente.É comum descartá-los. Se a análise fatorial confirmatória revelar um mau ajusta-mento, este poderia ser devido a uma incorreção do modelo ou a uma não linearida-de na escala de respostas, o que são considerados como falsificações fracas.

Um terceiro critério usado por Judd e McClelland (2003) para contrapor po-sitivamente as duas abordagens da mensuração chamadas aqui de matemáticas eestatísticas é a dificuldade das tarefas adotadas por cada uma destas. Nas medidasrepresentacionais as tarefas são simples. Os indivíduos indicam qual a alternativaque preferem ou o item que acham que tem mais de uma propriedade específica. Astarefas de julgamento são quase sempre de comparação relativa. As medidas psi-cométricas, a seu turno, requerem, às vezes, implicitamente, que sejam os própriossujeitos que atribuam os números representativos de suas respostas aos itens, isto é,são estes que medem e não os cientistas que os estão estudando.

Os procedimentos próprios das medidas psicométricas requerem julgamentosabsolutos dos itens individuais, em vez de comparações relativas (entre itens). Estessão em geral mais difíceis psicologicamente do que os julgamentos relativos. Paratanto, é preciso que se assuma que os sujeitos são usuários sofisticados de escalasseriadas e que sejam capazes de manter um uso consistente de escalas de respostasao longo de muitos itens. Como consequência destas pressuposições restringe-se o

25 Um exemplo seria uma falha na transitividade que faria rejeitar definitivamente mesmo uma escala ordinal. Judd e Mc-Clelland explicam que o modelo não se salvaria nem com uma transformação monotônica, nem com uma mudança nadistribuição de probabilidade, nem com modificações nas suposições de base.

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grupo de possíveis usuários. Em particular, toma-se difícil utilizar tais medidas compessoas muito idosas ou muito jovens, em culturas em que a exposição a escalasseriadas é um fato raro, e com animais.

Finalizando esta seção, pretende-se chamar a atenção do leitor para uma dasprincipais características que fundamentam o presente trabalho: a demonstração su-til de um aumento na complexidade que envolve esta atividade cognitiva humana,seu empenho em mensurar e estabelecer relações para lidar de forma prática e aomesmo tempo sofisticada com o mundo material, esforço este que as ideias apon-tadas no corpo do presente trabalho vieram a realçar. Ninguém mais teria tanto in-teresse no que está aqui expresso do que aquelas pessoas empenhadas em construirum conhecimento científico em benefício de todos.

Conclusão: Mensurar e o fazer da Ciência

O objetivo deste trabalho foi introduzir o conceito de medida na investigação emciências humanas e suas implicações e dificuldades. Vimos como a medida nestas ci-ências apresenta problemas mais complexos do que em outras áreas de conhecimentos,como as ciências da natureza, que lidam principalmente com medidas de tipo físico.

Mensuração não se limita somente à atribuição de quantidades numéricas aeventos ou objetos de acordo com uma regra. O ato de mensurar é algo complexoque envolve uma série de dimensões que precisam ser consideradas no momento doplanejamento de uma investigação. Antes de tudo é preciso explicitar de forma clarao tipo de linguagem na qual os resultados serão expressos. Em seguida, é necessárioespecificar o tipo de objetos aos quais esta linguagem se refere. É de fundamentalimportância, também, que se defina claramente como estes resultados serão utili-zados (a questão da estandardização). Por fim, é imprescindível informar como épossível avaliar o uso destes resultados (a questão do controle e da precisão). Talprocedimento metodológico além de servir para lidar com a questão metodológicageral, alerta o pesquisador para o fato de que a aplicação de um método quantitativocomo técnica de mensuração no campo das ciências humanas requer o uso de pro-cedimentos críticos atentos às especificidade da área investigada.

O problema não é simples e demanda do pesquisador que deixe de considerara ideia de que uma vez que se obtenha a mensuração de um fenómeno, a escolha dastécnicas de análises seja quase automática. A escolha de um tipo de análise ou ummodelo estatístico apropriado para o uso de uma determinada técnica de investiga-ção, ou procedimento operacional, requer que o pesquisador tome algumas decisõesimportantes, como por exemplo, a distinção entre os diferentes níveis de mensura-ção e encontrar os modelos estatísticos adequados, a escolha do tipo de análise a sercomputada, unidimensional versus multidimensional, entre outros.

Três pontos gostaríamos de ressaltar para reflexão:

1) Apesar das vantagens que a caracterizam, a mensuração em ciências hu-manas não pode ser considerada uma "varinha mágica" através da qual amaioria dos problemas do conhecimento da realidade é resolvida;

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2) A necessidade de existência de uma estreita relação de dependência entrea medida e uma teoria mais abrangente, que torne mais compreensíveisas escolhas operacionais no momento do planejamento de uma inves-tigação. Mais especificamente, o que se precisa sempre considerar é adefinição operacional do construto objeto de mensuração, definição ge-ralmente fundamentada em uma série de comportamentos derivados deuma teoria da qual são as manifestações operacionais.

3) O tipo de medida pode mudar em função da área ou das característicasque são do interesse do pesquisador. Neste sentido é importante que opesquisador não se habitue em: (a) aceitar acriticamente o procedimentoda mensuração, (b) tomar como necessário e ditado pela natureza algoque é somente uma convenção, e (c) acreditar que exista um sistema demedidas "justas", encontradas e adotadas definitivamente.

Enfim, o pesquisador na área das ciências humanas precisa, atrelado aos cui-dados com o processo de mensuração, buscar uma dimensão crítica e genuinamentequestionadora dos problemas investigados, tendo ainda uma consciência clara domomento teórico. Isto nos remete a uma recusa de uma ciência concebida comoadiáfora, essencialmente intercambiável, adequada para todos os usos e indiferentea respeito dos fins. O que não significa uma indiferença e recusa de um debate me-todológico. O que se enfatiza é a não aceitação da separação entre o debate metodo-lógico e a análise crítica de situações específicas e de problemas reais.

A partir de uma perspectiva desta natureza o momento analítico (tanto quanti-tativo como qualitativo) de fenómenos psicológicos, sociais e culturais se enrique-ce, visto que se atrela a um discurso epistemológico atualizado e a um questiona-mento metodológico reforçado por uma revisão histórico-crítica do fazer ciência.Assim, este fazer ciência na área das ciências humanas precisa reavaliar de formasistemática sua práxis investigativa e os problemas inerentes às diferentes formasde pesquisar, tornando-se assim uma ciência rigorosa, fundamentada em uma sólidaconsciência histórica e em um olhar atento para o presente em relação a situaçõesproblemáticas, politicamente maduras e cientificamente relevantes.

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