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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO, ARTE E HISTÓRIA DA CULTURA Maria do Carmo Lizarzaburu Abi-Sâmara O processo de criação do artista-artesão no encontro com a matéria São Paulo 2018

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO, ARTE E HISTÓRIA DA CULTURA

Maria do Carmo Lizarzaburu Abi-Sâmara

O processo de criação do artista-artesão no encontro com a

matéria

São Paulo

2018

Maria do Carmo Lizarzaburu Abi-Sâmara

O processo de criação do artista-artesão no encontro com a

matéria

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Educação, Arte e História da Cultura da Universidade

Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial à obtenção do

título de Mestre em Educação, Arte e História da Cultura.

Orientadora: Professora Doutora Regina Lara Silveira Mello

São Paulo

2018

S187p Sâmara, Maria do Carmo Lizarzaburu Abi. O processo de criação do artista-artesão no encontro com a matéria /

Maria do Carmo Lizarzaburu Abi Sâmara. 2 v. (309 p.) : il. ; 30 cm

Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2018.

Orientadora: Regina Lara Silveira Mello. Referências bibliográficas: f. 190-193.

1. Artista. 2. Artesão. 3. Gaston Bachelard. 4. Matéria. 5. Fluxo. I. Mello, Regina Lara Silveira, orientadora. II. Título.

CDD 745.5

Bibliotecária Responsável: Andrea Alves de Andrade - CRB 8/9204

AGRADECIMENTOS

É uma benção e uma alegria poder concluir um trabalho pensando em tantas

pessoas a quem devo gratidão.

Ao mundo espiritual pela oportunidade de desenvolvimento, esperando poder

retribuir por tanto que tenho recebido.

Aos meus filhos, Pedro e Júlia e a meu marido Heron, que mantêm meu

coração cheio de amor.

Aos meus pais, Tereza e Antonio, pela eterna presença.

Aos cinco profissionais maravilhosos que abriram as portas de seus ateliers

com tanta receptividade: Ana Passos, Elvira Schuartz, Guilherme Rossi, Luciana Faria

e Osni Branco.

À Melanie Guerra, pela ajuda incondicional na elaboração desta dissertação.

À Rita Alcântara e Isabel Nielsen, parceiras nos trabalhos manuais, sempre

presentes mesmo à distância.

Aos meus colegas de mestrado, que ajudaram a fazer das tardes de aula

momentos tão construtivos e agradáveis.

Aos alunos, esperando que esta pesquisa contribua para trocas sempre mais

ricas.

Um agradecimento especial à professora Regina Lara pela orientação preciosa.

As sugestões de bibliografia certamente ainda me acompanharão por muito tempo!

Assim a matéria nos revela as nossas forças. Sugere uma colocação das nossas forças em categorias dinâmicas. Dá não só uma substância duradoura à nossa vontade, mas também esquemas temporais bem definidos à nossa paciência. (BACHELARD, 2013, p. 19)

RESUMO

Através de entrevistas realizadas com artesãos em seus espaços de trabalho,

esta pesquisa investiga os processos de criação destes profissionais, da idealização

de uma obra até sua finalização, dando especial atenção aos processos: organização

de trabalho, administração do tempo, ambiente do atelier e meios de produção.

Evidencia-se com essa observação o nascimento de soluções criativas que conciliam

arte e técnica, sensibilidade e razão, trabalho como meio de vida e prazer.

A pesquisa foi assim direcionada por acreditar que, nas oficinas destes

profissionais, certas condições propiciam que produção humana aconteça de forma

prazerosa e dignificante.

Gaston Bachelard, Mihaly Csikszentmihalyi, John Dewey e Jorge Larossa

proporcionaram respaldo teórico. Larossa e Dewey trazem o conceito de experiência

como impulsionadora do desenvolvimento individual e social. Bachelard oferece um

olhar diferenciado para as experiências do indivíduo no encontro com os diferentes

materiais e Csikszentmihalyi apresenta importantes contribuições para a

compreensão dos processos de envolvimento do ser humano com o trabalho, um olhar

para as possibilidades de encontrar satisfação na atividade produtiva. A obra destes

quatro pensadores não é completamente similar, nem nascem da mesma área de

conhecimento, mas as ideias se completam e se conciliam, juntas quebrando barreiras

que separam a atividade mental da atividade manual.

PALAVRAS-CHAVE: artista; artesão; Gaston Bachelard; matéria; fluxo.

ABSTRACT

Through interviews with artisans in their work spaces, this research investigates

the processes of creation of these professionals, from the idealization of a work to its

completion, giving special attention to the processes: work organization, time

management, atelier environment and means of production. It is evident from this

observation the birth of creative solutions that reconcile art and technique, sensitivity

and reason, work as a way of life and pleasure.

The research was thus directed by believing that, in the workshops of these

professionals, certain conditions allow human production to occur in a pleasurable and

dignifying way.

Gaston Bachelard, Mihaly Csikszentmihalyi, John Dewey and Jorge Larossa

provided theoretical support. Larossa and Dewey bring the concept of experience as

a driver of individual and social development. Bachelard offers a differentiated look to

the experiences of the individual in the encounter with the different materials and

Csikszentmihalyi presents important contributions to the understanding of the

processes of human involvement with work, a look at the possibilities of finding

satisfaction in productive activity. The work of these four thinkers is not completely

similar, nor do they arise from the same area of knowledge, but ideas are completed

and reconciled, together breaking down barriers separating mental activity from

manual activity.

KEYWORDS: artist; artisan; Gaston Bachelard; material; flow.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Ana Passos na bancada ........................................................................ 33

Figura 2 – Bancada de trabalho de Ana Passos .................................................... 34

Figura 3 – Manuseio da ferramenta na feitura da joia............................................. 35

Figura 4 – Processo de trabalho da joalheria.......................................................... 36

Figura 5 – Processo de criação da coleção Tempos Urbanos................................. 41

Figura 6 – Processo de criação da coleção Tempos Urbanos................................. 42

Figura 7 – Peça realizada para a coleção Tempos Urbanos................................... 43

Figura 8 – Peça realizada para a coleção Tempos Urbanos................................... 43

Figura 9 – Peça realizada para a coleção Tempos Urbanos................................... 44

Figura 10 – Peça realizada para a coleção Tempos Urbanos................................. 44

Figura 11 – Peça da coleção Tempos Urbanos....................................................... 45

Figura 12 – Bastões – obra realizada por Elvira Schuartz....................................... 47

Figura 13 – Pigmentos granulados utilizados na vidraria........................................ 49

Figura 14 – Pigmentos em barra utilizados na vidraria........................................... 49

Figura 15 – Imagem interna do refratário................................................................ 50

Figura 16 – Forno para vidraria no atelier de Elvira Schuartz................................. 51

Figura 17 – Matéria-prima para vidraria - cacos..................................................... 52

Figura 18 – Peça realizada para a coleção Corpo Frágil........................................ 57

Figura 19 – Peça realizada por Elvira Schuartz – coleção Ninhos......................... 58

Figura 20 – Peça realizada por Elvira Schuartz – coleção Ninhos......................... 58

Figura 21 – Atelier de Guilherme Rossi.................................................................. 60

Figura 22 – Obra para Bienal/2018 em execução.................................................. 60

Figura 23 – Mesa de som executada por Guillherme Rossi................................... 61

Figura 24 – Utilização de software de design gráfico por Guilherme Rossi........... 62

Figura 25 – Guilherme Rossi e obra em execução............................................... 64

Figura 26 – O “lixo psicológico” de Leo................................................................. 65

Figura 27 – Organização das ferramentas no atelier de Guilherme Rossi........... 65

Figura 28 – Brinquedo realizado por Guilherme Rossi......................................... 67

Figura 29 – Projeto do tsuru realizado por Guilherme Rossi................................ 68

Figura 30 – Projeto realizado por Guilherme Rossi.............................................. 69

Figura 31 – Projeto realizado por Guilherme Rossi.............................................. 69

Figura 32 – Projeto realizado por Guilherme Rossi............................................. 70

Figura 33 – Atelier de Helene Perutz e Luciana Faria.......................................... 72

Figura 34 – Atelier de Helene Perutz e Luciana Faria.......................................... 72

Figura 35 – Peça realizada por Luciana Faria...................................................... 75

Figura 36 – Peça realizada por Luciana Faria...................................................... 75

Figura 37 – Organização das peças no forno....................................................... 76

Figura 38 – Peças realizadas por Luciana Faria................................................... 77

Figura 39 – Cerâmica com aplicação de cacos de vidro...................................... 79

Figura 40 – Peça realizada por Luciana Faria

– combinação do prato com a refeição................................................................ 80

Figura 41 – Peça realizada por Luciana Faria

– combinação do prato com a refeição................................................................ 80

Figura 42 – Peça realizada por Luciana Faria

– combinação do prato com a refeição................................................................ 81

Figura 43 – Porta-alianças realizado por Luciana Faria....................................... 82

Figura 44 – Peça realizada por Luciana Faria – logotipo de restaurante............. 83

Figura 45 – Peça realizada por Luciana Faria – logo do restaurante................... 83

Figura 46 – Peça realizada por Luciana Faria – logo do restaurante................... 84

Figura 47 – Peça realizada por Luciana Faria –

inspiração para a saladeira.................................................................................... 87

Figura 48 – Saladeira realizada por Luciana Faria................................................ 87

Figura 49 – Peças realizadas por Luciana Faria – múltiplas utilizações das

louças ................................................................................................................... 88

Figura 50 – Peça realizada por Luciana Faria...................................................... 88

Figura 51 – Moldes realizados por Osni Branco – Coleção Baobás..................... 89

Figura 52 – Oficina de madeira de Osni Branco................................................... 90

Figura 53 – Oficina de fundição de Osni Branco................................................... 91

Figura 54 – Oficina de fundição de Osni Branco.................................................. 91

Figura 55 – Peça realizada por Osni Branco....................................................... 92

Figura 56 – Anéis de crescimento da árvore......................................................... 94

Figura 57 – Ficus elastica .................................................................................... 98

Figura 58 – Peça realizada por Osni Branco......................................................... 99

Figura 59 – Peça realizada por Osni Branco......................................................... 99

Figura 60 – Peça realizada por Osni Branco....................................................... 100

Figura 61 – Imagem do filme Tempos Modernos.................................................116

Figura 62 – Arte gráfica elaborada por William Morris........................................ 117

Figura 63 – Peter Voulkos entre suas obras....................................................... 122

Figura 64 – Obras de Stephen de Staebler......................................................... 123

Figura 65 – Obra de Stephen de Staebler........................................................... 124

Figura 66 – “O pente do vento”, obra de Eduardo Chillida................................. 131

Figura 67 – Peça realizada por Gijs Bakker – combinação

de pedras preciosas com pedras fantasia......................................................... 135

Figura 68 – Adorno sem metais preciosos realizado

por Ana Passos para a coleção Tempos Urbanos............................................. 136

Figura 69 – Peça realizada por Osni Branco ...................................................... 137

Figura 70 – Peça realizada por Osni Branco – madeira

Com detalhe em metal........................................................................................ 138

Figura 71 – Peça realizada por Osni Branco...................................................... 139

Figura 72 – Banco realizado por Hugo França ...................................................140

Figura 73 – Cadeira realizada por Hugo França para

a coleção Canoas................................................................................................ 141

Figura 74 – Peça realizada por Elvira Schuartz –

Luminária em vidro.............................................................................................. 143

Figura 75 – Recipiente lacrado realizado por Robert Arneson............................146

Figura 76 – Tapeçarias de Anni Albers............................................................... 151

Figura 77 – Planetas na nebulosa, pratos-planeta de

Luciana Faria.......................................................................................................152

Figura 78 – Ferramentas na bancada de Ana Passos....................................... 158

Figura 79 – Atelier de Luciana Faria – no canto inferior

esquerdo, a plaqueira......................................................................................... 164

Figura 80 – Estante localizada ao lado do forno no atelier

de Luciana Faria ................................................................................................ 171

Figura 81 – Mesas de armazenamento das peças realizadas

por Osni Branco.................................................................................................. 171

Figura 82 – Peça realizada para a coleção Tempos Urbanos,

de Ana Passos.................................................................................................... 174

SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS.................................................................................... 14

1. CAMINHOS DA PESQUISA ......................................................................... 24

1.1 OBJETIVOS E MÉTODO DE TRABALHO ........................................ 25

1.2 PROFISSIONAIS ESCOLHIDOS PARA A PESQUISA...................... 27

1.3 ROTEIRO DE ENTREVISTAS............................................................ 30

1.4 CINCO ARTISTAS-ARTESÃOS E SUAS EXPERIÊNCIAS

NO ATELIER ................................................................................................ 31

1.4.1 Entrevista comentada: Ana Passos - Joalheira de

Bancada.................................................................................. 31

1.4.2 Entrevista comentada: Elvira Schuartz - Arte em

vidro.......................................................................................... 47

1.4.3 Entrevista comentada: Guilherme Rossi - Projetos e

protótipos.................................................................................. 59

1.4.4 Entrevista comentada: Luciana Faria – Arte em

cerâmica................................................................................... 70

1.4.5 Entrevista comentada Osni Branco – Arte em madeira e arte em

metal......................................................................................... 89

2. SOBRE ARTE E ARTESANATO, SOBRE OBRA E TRABALHO.......... 103

3. O ATELIER DO ARTESÃO COMO ESPAÇO PARA EXPERIÊNCIA.....110

3.1 EXPERIÊNCIAS CORPORATIVAS E EDUCATIVAS .....................115

3.2 A LIDA COM A MATÉRIA E AS EXPERIÊNCIAS DE

CONFRONTO...................................................................................121

4. CONTESTAÇÕES: ENTRE ARTE E NÃO-ARTE...................................145

4.1 SUTILEZAS NA DEFINIÇÃO ENTRE ARTE E UTILITÁRIO.......... 152

5. FERRAMENTAS E TECNOLOGIA COMO MEIO PARA

EXPERIÊNCIA....................................................................................... 157

6. TEMPO DO CORPO, TEMPO DA MATÉRIA E O

ENVOLVIMENTO NO PROCESSO CRIATIVO..................................... 168

CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................185

REFERÊNCIAS..................................................................................................... 189

14

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Entre o sim e o não, os espíritos voam para fora de sua matéria e as cabeças se destacam dos corpos. (IBN ARABI1 apud FERREIRA, 2005, p. 21).

Seja forjando uma ferramenta ou uma joia, seja talhando ornamentos delicados

para uma mesa em madeira, modelando um recipiente em argila ou um delicado

animal em vidro, seja tecendo uma manta ou bordando uma peça de enxoval, a lida

do homem com a matéria e todos os processos de transformação que dela resultam

acompanharam o desenvolvimento da humanidade e são temas que transpassam

várias áreas de conhecimento, inter-relacionando saberes técnicos, sociais e

filosóficos.

A lenda de fundação do império inca conta que o deus Sol, Inti, observava o

mundo lá do alto quando avistou um grupo de selvagens agressivos e brutais, que

vivia em buracos no solo ou pequenas grutas e andavam nus, alimentando-se apenas

do que conseguiam caçar. Apiedando-se daquelas figuras grotescas, enviou seus

filhos em ajuda. Logo que chegaram ao local, Cuzco, por conta de suas vestes

maravilhosas e adornos em ouro, os filhos do Sol foram imediatamente reconhecidos

como deuses, tornando-se líderes do grupo. Foram os filhos do Sol que ensinaram

aos homens a agricultura, a pecuária, a tecelagem e a construção de habitações,

sendo a primeira delas um templo erguido em homenagem ao próprio deus. (VEGA,

1970). Sob o olhar dessa lenda, a lida com a matéria e o domínio da técnica teriam

sido fruto da compaixão divina, não uma conquista, mas uma dádiva dada aos

homens.

Muitos outros modos de ver o encontro do homem com a matéria, bastante

diversos da lenda resumidamente trazida acima, foram identificados ao longo da

história e das diferentes culturas. Os gregos do período clássico2 provavelmente foram

os primeiros a transformar essa questão em discussão filosófica. Ocupando-se em

estabelecer relação entre inteligência e produção humana, atribuíram ao homem uma

inteligência anterior às habilidades de produção. Mãos habilidosas e versáteis não

1 Ibn Arabi (1165-1240): místico sufi, filósofo e poeta nascido na Espanha, de origem muçulmana. Os relatos de sua biografia falam de um jovem comum que se transformou após um momento de revelação. Sua obra é considerada única por unir a sabedoria trazida por Moisés, Maomé e Cristo. 2 Período clássico grego: de V a.C. a IV a.C.

15

seriam causa de inteligência, mas sim consequência. Mais do que isso, para os gregos

toda materialização de uma ideia através do processo de produção era compreendida

como algo menor. O filósofo do período clássico grego, Platão (427 a.C – 348 a.C.),

compreendia o mundo como imagem de uma matriz criadora - essa sim real. Assim,

a natureza, em todo o seu esplendor, seria o reflexo de algo imensamente maior e

qualquer criação humana, mesmo nossas obras de maior beleza, apenas reflexo do

reflexo, algo de pouco valor. Pensando em uma cultura que valorizava a busca pela

verdade como missão maior, produções materiais eram resquícios de verdades.

Platão e seu mestre, Sócrates, negavam a presença e a ação do homem no mundo

como fonte de sabedoria. Para eles, a utilização dos sentidos corpóreos enganaria o

homem em sua busca pelo conhecimento. Em continuidade com a mesma ideia, a lida

com a matéria foi compreendida como obstáculo à possibilidade que o homem tinha

de dispor de seu tempo para a mais nobre e humana das atividades, a do pensamento.

Em sua obra A República (Cf. 2000), Platão expõe sua ideia do que seria uma

sociedade ideal. Curiosamente, os filhos seriam separados de seus pais logo após o

nascimento para que, assim, todo o indivíduo tivesse igual direito. Em dado momento,

os mestres determinariam as ocupações futuras de cada jovem, de acordo com suas

aptidões. Os que melhor tivessem se saído seriam os pensadores, os filósofos.

Seguiam-se a eles os guerreiros, eleitos entre aqueles que mostrassem habilidade

física e moral para tal. Aqueles que tivessem demonstrado fraqueza de caráter, falta

de aptidão mental ou apetites físicos incontroláveis seriam destinados ao trabalho

artístico e artesão. Tais funções serviriam prioritariamente para cansar o corpo e evitar

a preguiça, o domínio da carne, a fraqueza moral.

O esforço corporal, no mundo grego, também esteve intrinsicamente

relacionado à noção de dignidade moral. Ao trabalho físico atribuía-se um

embrutecimento do corpo, com consequente embrutecimento da alma, conforme

afirmação de Platão3:

É que, seja como for e, sendo esta a sorte da filosofia, ficou-lhe uma dignidade magnificente perante as outras artes, que atrai muitas pessoas de natureza tosca, cujos corpos foram deformados pelas artes e ofícios, da mesma maneira que suas almas se encontram alquebradas e mutiladas devido às suas atividades manuais. (PLATÃO, 2000, p. 192).

3 Em A República.

16

O filósofo grego do período clássico, Aristóteles (384 a 322 a.C.), também

valora algumas atividades de acordo com a ocupação mental que elas demandam.

Assim, o comércio foi condenado à categoria de atividade menor, pelo seu grande

esforço mental em ocupações mundanas e pela perversão ao próprio objeto.

Comecemos pela seguinte observação: cada coisa que possuímos tem dois usos, dos quais nenhum repugna a sua natureza; porém, um é próprio e conforme a sua destinação, outro desviado para algum outro fim. Por exemplo, o uso próprio de um sapato é calçar; podemos também vendê-lo ou trocá-lo para obter dinheiro ou pão, ou alguma outra coisa, isto sem que ele mude de natureza; mas este não é o seu uso próprio, já que ele não foi inventado para o comércio. O mesmo acontece com as outras coisas que possuímos. A natureza não as fez para serem trocadas, mas, tendo os homens uns mais, outros menos do que precisam, foram levadas por este acaso à troca. (ARISTÓTELES, 1995, p. 21).

Em contrapartida, certas atividades artesanais foram vistas com certa

condescendência, pois permitem às mãos, enquanto trabalham, liberar a mente para

a atividade contemplativa. Assim, o pastoreio seria mais nobre que a carpintaria, e o

pintor, mais digno que o escultor, por mais bela e admirável que nos pareça hoje uma

estátua grega. A concepção grega afirma que a finalidade de toda a guerra é a paz e

que a finalidade de todo o movimento é o repouso. Nesse sentido, a ideia de

escravidão do grego clássico diverge da concepção de períodos posteriores da

história. O grego clássico achava necessário ter escravos em virtude da natureza

servil de todas as ocupações que sustentam a manutenção da vida. Esta concepção,

explica porque Aristóteles teria libertado todos os seus escravos antes de sua morte.

Eles eram apenas aqueles que, por um golpe do destino, foram submetidos ao

trabalho que, apesar de indigno, não poderia deixar de ser realizado. Em A Política,

Aristóteles afirma:

Também é necessário que os cidadãos dessas duas classes (governantes e guardiões), possuam bens de raiz, porque a abastança deve ser o privilégio dos cidadãos; ora, aqueles a têm essencialmente. O artesão não tem direito de cidadão, nem as outras classes cujas funções sejam um obstáculo à virtude. Eis uma consequência clara de nossos princípios: a felicidade é forçosamente inseparável da virtude, e não se poderá dizer de uma cidade que ela seja feliz, quando só se ocupa de uma parte, e não da totalidade dos cidadãos. Vê-se, pois, que as propriedades devem pertencer aos cidadãos, já que é necessário que os lavradores sejam escravos, bárbaros ou servos. (ARISTÓTELES, 1995, p. 146).

Ainda em A política, o filósofo completa:

17

Quanto àqueles que deverão cultivar as terras, é essencial que eles sejam escravos, não pertençam à mesma nação e não sejam muito corajosos. Serão assim úteis trabalhadores e não será preciso temer-se que se revoltem. (ARISTÓTELES, 1995, p. 21).

O estudo da filosofia grega evidencia a preocupação destes em relação às

questões do fazer e do pensar, e quantos e quão sutis foram os meandros

considerados sobre esta questão. Mais tarde, os romanos absorveram muito da

cultura grega, inclusive essas concepções, e não resta a menor dúvida de que tais

conceitos permearam a cultura ocidental, em maior ou menor intensidade.

Poderíamos dizer que cinco séculos antes de Cristo a cisão entre corpo e mente já

havia nascido.

No entanto, esse foi apenas um dos olhares.

Nem tão distante dali, separados apenas pelo Mar Mediterrâneo, os povos que

habitavam o continente africano não objetivavam as relações entre o fazer e o pensar,

mas desenvolviam outra forma de valoração destes. Nas culturas africanas mais

ancestrais parece nunca ter se estabelecido a polaridade entre o pensar e o fazer.

Assim, um pedido ou um voto não é somente desejado, mas também cantado,

dançado, transformado em oferenda, seja em alimento preparado com esmero, seja

em um conjunto de objetos oferecidos em ritual. E, vale ainda ressaltar, o objeto

elaborado, seja alimento ou composição de diferentes elementos, deve ser

acompanhado dos melhores pensamentos e, jamais, desprovido de cuidado estético.

Na mitologia africana, muitos são os deuses fazedores.4 Aliás, as mitologias, de forma

geral, são repletas de deuses artesãos.

Quanto ao povo hebreu, a relação entre a idealização e a produção de obras

artesanais e artísticas também parece ter se consolidado de forma diversa do

pensamento grego. Em seu livro Maria, a mãe de Jesus, o historiador francês Jacques

Duquesne (1930 - ) cita a seguinte fala de um rabino: “Em seu trabalho, o artesão

não precisa levantar-se perante o maior doutor.” (DUQUESNE, 2005, pg. 33).

Segundo o autor, José, a quem hoje muitos se referem como um pobre carpinteiro, na

4 O sociólogo José Beniste, autor de Mitos Yorubás – o outro lado do conhecimento, dedica um capítulo a cada um dos deuses, relatando também rituais para estabelecimento de ligação entre o mundo dos deuses e o mundo dos homens. Entre eles destaca-se a figura de Ogun, trabalhador da madeira e aquele que trouxe o ferro para o mundo dos homens, um saber que ele aprendeu do deus supremo, Obatalá. Ogun carregava sempre consigo sete ferramentas feitas do metal: a lança, a espada, a enxada, o torquês, o facão, a ponta de flecha e o enxó.

18

verdade contava com respeito e notabilidade que a própria profissão lhe conferia. José

não era um pobre carpinteiro, ele era um carpinteiro. O respeito pelos ofícios artesãos

na cultura judaica data desde muito antes do início da era cristã. Apesar de serem

conhecidos como o “povo dos livros”, os judeus também carregam uma tradição no

mundo das artes e dos artesanatos. A lei judaica disposta na Torá fala na prática do

hiddur mitzvah, que significa literalmente “praticar um mandamento de maneira bela”5.

Assim, aquele que faz coisas belas contribui para trazer ordem e harmonia ao mundo,

tornando-se, portanto, cocriador. Da observância a essa lei nasceram artefatos

carregados de adornos, não somente peças religiosas, mas tapeçarias, certidões de

casamento e objetos de uso doméstico, encontrados em sítios arqueológicos

importantes da antiga cultura hebraica. O Antigo Testamento (Êxodo 35:30) conta que

Bezalel, cujo nome significa “na sombra ou proteção de Deus”, foi escolhido

especialmente por Deus para construção do Tabernáculo6:

Moisés disse aos israelitas: “Vede, Iahweh chamou a Beseleel por seu nome, o filho de Uri, filho de Hur, da tribo de Judá, e o encheu com o espírito de Deus, de sabedoria, entendimento e conhecimento para toda espécie de trabalhos; para elaborar desenhos, para trabalhar em ouro, prata e o bronze, para lapidar pedras de engaste, para trabalhar a madeira e para realizar toda espécie de trabalho artístico. Também lhe dispôs o coração, a ele e a Ooliab, filho de Aquisamec, da tribo de Dã, para ensinar aos outros. Encheu-lhes o coração de sabedoria para executar toda espécie de trabalho, para entalhar, para desenhar, para recamar a púrpura violeta e escarlate, o carmesim e o linho fino, e para tecer; hábeis em toda espécie de trabalhos e desenhistas de projetos. (Êxodo 35:30)7.

Os capítulos 36 a 39 de Êxodo são inteiramente destinados a descrever em

detalhes a grandeza dos trabalhos artísticos e artesanais para construção do

santuário. O Antigo Testamento também se refere a uma serpente de bronze que

estaria localizada na entrada do Templo de Salomão, e que teria sido forjada pelo

próprio Moisés8. Assim, obras de arte importantes para a história dessa religião são

5 Do texto Overviewl: History & Theory of Jewish Art: Disponível em https://www.myjewishlearning.com/article/overview-history-theory-of-jewish-art/ acesso em 19/11/2018 às 20h. 6 Tabernáculo: local transportável ou não, onde se guardava a Arca da Aliança. 7 Do texto Jewish Art: A Brief History: Disponível em https://www.myjewishlearning.com/article/jewish-art-a-brief-history/ acesso em 19/11/2018 às 20h27. 8 Do texto Jewish Art in the Ancient World. Disponível em https://www.myjewishlearning.com/article/jewish-art-in-the-ancient-world/ acesso em 19/11/2018 às 21h05.

19

atribuídas a emissários do Divino. O Midrash9 também sugere que aquele que produz

algo belo glorifica o divino, mas que, por sua vez, todo aquele que sabe contemplar o

belo e o trabalho feito com cuidado torna-se, ele, belo também10. O belo embeleza e

dignifica aquele que o contempla.

Entre o povo judaico a arte e o artesanato foram utilizados como ferramenta

para o aprendizado. Tal como na Idade Média ocidental, foram encontradas narrativas

históricas dos fatos religiosos mais importantes, na forma de afrescos pintados em

pareces de antigas sinagogas.

Nos séculos que se seguiram vários outros elementos tornaram as discussões

sobre os fazeres do homem ainda mais complexas. No século XVII, a teoria empirista

fortemente defendida pelo filósofo e cientista Francis Bacon (1561-1626) procurando

negar todo o conhecimento adquirido por vias transcendentais, característica do

período medieval, apoiava a conquista do conhecimento na observação física dos

elementos, e em tudo aquilo que pudesse ser medido e controlado. A abordagem

baconiana fragmentou, segmentou, ordenou e diagramou o conhecimento,

organizando-a em partes explicáveis. Ao contrário do olhar grego, um grande valor foi

dado ao organismo sensório, negando, no entanto, todas as relações subjetivas que

nascem no encontro do sujeito com o objeto, no âmbito do conhecimento. “O

empirismo estava em busca de uma universalidade da verdade, que séculos mais

tarde pôde ser criticada como uniformidade da verdade e, para tal empreendimento,

ele rechaçou toda a perspectiva individual” (BACH, 2018, p. 24). Sutil e

gradativamente os processos internos, as experiências e os aprendizados disparados

no encontro entre o ser humano e as matérias do mundo foram considerados apenas

na perspectiva do visível, do mensurável, do útil.

Em contrapartida, o filósofo e físico Renê Descartes (1596-1650) acentua a

dualidade mente-matéria, negando o papel do corpo no caminho para o

conhecimento. O pensamento abstrato é compreendido então como única fonte

segura. Na primeira corrente, uma grande participação da interação com o mundo

para o processo de conhecimento, no entanto de forma utilitária, aceitando somente

9 O Midrash e o Mishná são livros nascidos de ensinamentos orais, com base nos conteúdos da Torá. Disponível em: https://judeu.org/2015/01/16/midrash-e-hagada-o-que-sao-e-qual-sua-importancia/ acesso em 19/11/2018 às 21:30. 10 Do texto Hiddur Mitzvah: The Case for Beautiful Ritual Objects. Disponível em https://www.myjewishlearning.com/article/holiday-art/ acesso em 19/11/2018 às 20:39

20

o experimento cujas relações se traduzem no binômio causa-consequência. Na

segunda corrente, a primazia dos processos mentais em detrimento dos processos

corpóreos, a negação do corpo no processo de conhecimento. Em ambos os casos,

corpo e mente encontram-se cindidos e a participação do mundo material no processo

de conhecimento, subvalorizada:

A relação do corpo no espaço e no tempo seria uma fonte de erros e ilusões, a racionalidade cartesiana privilegia uma abordagem sobre o objeto em sua ausência. [...] O objeto em sua presença sofreria a interferência das percepções. Cartesianismo é uma metodologia que cria distanciamento e descontextualizações ao lidar somente com as representações. (BACH, 2018, p. 29).

A ideia da participação do corpo no processo de conhecimento do mundo e

uma visão de ser humano como uma unidade corpo e mente só seria resgatada no

final do século XIX, a partir dos conceitos trazidos pela fenomenologia, notadamente

com o grande foco dado pelo filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) que

dedicou seus estudos para compreender a participação do corpo no processo de

conhecimento.11

As ciências biológicas também trouxeram contribuições para o tema em

questão. Estudos sobre a conquista da postura ereta e sobre o desenvolvimento da

humanidade após a liberação das mãos subverteram a ideia platônica e aristotélica,

colocando os membros superiores humanos como protagonistas no processo

evolutivo. A certeza platônica de que a inteligência precede a habilidade manual entra

em choque com a possibilidade de que a habilidade para produção tenha sido a

grande precursora do processo de evolução cognitiva do ser humano.

Todas essas hipóteses científicas e filosóficas caminharam lado-a-lado com as

transformações estruturais nos processos produtivos, advindos da Revolução

Industrial. A substituição das oficinas de artesãos e pequenos grupos de trabalho por

grandes corporações detentoras dos meios de produção, que passaram a produzir em

escala, estabeleceram novas formas de divisão de trabalho e organização hierárquica,

desestruturando a ordem econômica e social. Nascem inquietações de ordem

filosófica e antropológica: o que poderia acontecer com este ser humano que após

evoluir através da obra de suas mãos entrega este fazer às máquinas?

11 Em Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty preocupa-se em investigar as relações entre sujeito e objeto, na experiência, trazendo cada relação sujeito-objeto como experiência única.

21

Adicionalmente, a produção mecanizada impunha uma nova forma de conceber o

produto. Em primeiro lugar, a criação foi limitada aos recursos tecnológicos

disponíveis, promovendo a criação de uma série de objetos desprovidos de cuidado

estético. Os meios de produção definiam o produto, portanto. Em segundo lugar, a

própria criação de um produto fica limitada ao momento do planejamento, sendo em

seguida entregue à linha de produção para multiplicação. O trabalhador se vê

desprovido da criação. Em terceiro lugar, o processo, fragmentado em inúmeras

partes, destitui o trabalhador do conhecimento sobre ele. O produto do trabalho é

estranho ao próprio produtor.

Quando o pêndulo se move com muita intensidade para um lado, logo se vê o

rebote: acenderam-se luzes de alerta. No século XVIII pequenos grupos na Europa

iniciaram discussões filosóficas e econômicas criticando as cisões entre criação e

execução, arte e utilitário, fortalecidas a partir da metade do século XIX.

Com isso chega-se aos dias de hoje, onde inúmeras possibilidades estarão

postas tanto para aquele que consome um produto quanto para aquele que produz. O

consumidor certamente terá à sua disposição a louça modelada à mão, com suas

pequenas variações de uma peça para a outra, no acabamento ou na pintura, marcada

pelas mãos daquele que a fez, ou aquela louça composta por conjuntos idênticos,

destituídos ou não de cuidado estético, com acabamentos que somente a produção

industrial pode conseguir. Tapetes em padrões elaborados com o apoio do design

gráfico, produzidos em série, e outros feitos em comunidades orientais a partir de

saberes ancestrais estarão no mesmo local de venda. Para aquele que produz, por

sua vez, os meios de produção mais tradicionais estarão ao lado da mais moderna

tecnologia, para decisões que levarão em consideração não somente o melhor custo-

benefício e o resultado esperado, mas muitos outros valores de ordem subjetiva.

No que se refere à produção de obras de arte não tem sido muito diferente,

uma vez que a relação entre obra de arte e peça única já foi colocada em discussão.

A chegada do digital, por sua vez, rediscute o próprio conceito de materialidade. Se o

material era compreendido como objeto físico, hoje a materialidade incorpora todo o

manipulável, desde objetos físicos a palavras ou linguagens de computador, sendo

que, desta forma, a ideia, o conceito, voltam a exercer protagonismo sobre o processo

de criação. Em consonância com esta ideia, o sociólogo e historiador Richard Sennett

(1943 - ), em obra dedicada ao estudo das atividades do artesão, intitulada O artífice

22

(Cf. 2013) ampliou a função idealizadora e executora deste profissional, redefinindo

como tal todo aquele que se dedica à execução de qualquer trabalho bem feito,

incluindo, inclusive, um programador Linux procurando pelo eterno aperfeiçoamento

desse sistema, por exemplo.

Tanto por conceito filosófico quanto por mudanças estruturais nos meios e nos

ambientes de produção, o ato de criar e de executar um objeto foram apartadas ao

longo da história, especialmente nas sociedades ocidentais, deixando no ar, para

alguns, a dúvida: o que se transforma, tanto no âmbito da criação quanto na execução,

com tal cisão? Ou talvez a pergunta seja mais ampla: de que forma a própria

integração do homem com o mundo se transforma?

Trata-se certamente de um tema interdisciplinar, que envolve sociologia,

filosofia, psicologia, neurologia e com certeza a pedagogia, uma vez que contextos

econômicos, sociais e culturais necessariamente ignoram os muros da escola.

Transpor essas considerações para o ambiente escolar traz muitas outras

ponderações. Crianças e jovens possuem necessidades próprias e as manipulações

da matéria, os processos de transformação física dos elementos do mundo assumem

protagonismo no desenvolvimento ontogênico.

Os muitos anos de pesquisa do zoólogo, epistemólogo e filósofo suíço Jean

Piaget (1896-1980) o levaram a concluir que “a base para a “inteligência verbal

reflexiva repousa em uma inteligência sensório-motora, que por sua vez se apoia em

ações e em associações de ações adquiridas e integradas. (FONSECA, 2008, p. 80).

Para Piaget, a base da formação psíquica e de todas as habilidades cognitivas tem

origem na manipulação do mundo físico. As brincadeiras e os movimentos repetitivos,

tão comuns entre as crianças, por sua vez, são compreendidas como formas de

organizar e memorizar sequências de ações que levam a um resultado, formando

esquemas cada vez mais complexos que relacionam diferentes partes de um mesmo

processo. É nesse processo de complexificação de ações que se consolida o

conhecimento.

Para o médico, filósofo e psicólogo francês Henri Wallon (1879-1962), todas as

manipulações da matéria e construções físicas realizadas pela criança afetam

igualmente o sistema motor e o psíquico, “exatamente porque a motricidade vai

desencadear representações e noções das coisas e, consequentemente, vai

23

constituir-se como um prelúdio da atividade simbólica (FONSECA, 2008, p. 27). As

repetições são compreendidas como importante processo de eliminação de

movimentos inúteis, levando à gradativa objetivação dos gestos. Os estudos de Henri

Wallon culminaram na elaboração do Projeto Langevin-Wallon, com propostas de

reestruturação em todo o sistema de educação na França. Em suas bases, o projeto

afirma que a criança, por sua própria natureza, não pode ser compreendida de forma

fragmentada, o que certamente se faz quando se coloca,

educação intelectual para um lado, educação artística e motora para outro. A criança e o jovem, em cada idade, são um todo indissociável e original, em termos motores, afetivos e cognitivos. São seres em metamorfose, cujo potencial só se pode enriquecer e ampliar em um contexto social promotor dessa unidade dialética. (FONSECA, 2008, p. 53).

Em consonância com a mesma ideia as escolas que se utilizam da abordagem

pedagógica Waldorf, proposta pelo filósofo austríaco Rudolf Steiner12, persistem na

disponibilização de ampla possibilidade de movimentação física e liberdade para as

construções livres, especialmente ao longo dos primeiros anos de vida, convencida

da ideia de que uma ampla experiência de movimentos e a possibilidade de

manipulação de diferentes materiais resultará em uma formação psíquica propiciadora

de aprendizado cognitivo e de saúde emocional.

No entanto, já é lugar comum lembrar que valores sociais e econômicos

interferem nas práticas escolares, muitas vezes mais do que os próprios saberes

trazidos pelos estudos da pedagogia, da psicologia e da medicina. Desta forma, o

brincar livre, a disponibilização de materiais para livre manipulação e a

disponibilização de espaço e tempo para movimentações corpóreas, todos estes

elementos que de fato possibilitam a expressão de uma atividade criativa autônoma,

encontro com a diversidade do mundo e desenvolvimento da motricidade grossa e

fina, estão sendo gradativa e consistentemente substituídos por atividades cognitivas

ou atividades lúdicas direcionadas para um fim. Segundo o pedagogo e filósofo Jorge

Larossa (Cf. 2014), o foco nas experimentações que abordam diretamente as relações

causa-consequência conduzem a um saber linear. Subjetividade e singularidade, tão

amplamente explorados na pesquisa pedagógica e na psicologia, ainda ocupam

pouco espaço na prática pedagógica.

12 Rudolf Steiner (1861-1925): filósofo austríaco

24

1. CAMINHOS DA PESQUISA

A manipulação da matéria demonstra um desejo de intimar com a vida. A intimidade da matéria encontra a intimidade da criança. (PIORSKI, 2016, p. 63).

Como professora de trabalhos manuais em uma escola Waldorf, a autora desta

pesquisa vivencia a tentativa de proporcionar estes espaços, já que os alunos são

convidados a experenciar uma grande variedade de materiais em propostas artísticas

e artesanais realizadas a partir do uso de argila, metal, madeira, fios em lã e algodão.

Pinturas em diferentes técnicas e xilogravuras fazem parte das propostas artísticas,

organizadas no currículo em disciplinas obrigatórias, desde o Ensino Infantil ao último

ano do ensino médio. Outras atividades, como feitura de papel, confecção de

marionetes, entre outros, podem acontecer em sala de aula como propostas

adicionais, dependendo do tema abordado nas disciplinas teóricas. Com isso procura-

se oferecer lugares diferenciados para a criança e o jovem ocuparem, lugares em que

possam experimentar a variedade e descobrir ou despertar potencialidades. Observa-

se, então, tanto o prazer dos alunos frente a um trabalho realizado, as inclinações

naturais de cada um no encontro com alguns materiais e também a dificuldade em

lidar com certos desafios. Observa-se a alegria de alguns pais em poder proporcionar

aos seus filhos espaço para experimentação e também o pesar por não terem tido a

mesma oportunidade. Atualmente muitas escolas Waldorf oferecem vivências

artísticas e artesanais aos pais em finais de semana já previstos em calendário, um

programa que foi chamado “Escola de Pais”, com uma adesão em significativo

crescimento. Observa-se também, em contrapartida, a perplexidade de alguns pais,

que questionam se esse seria o melhor uso do tempo dos alunos na escola, em face

a grande concorrência que eles enfrentarão nos exames vestibulares. Tais

indagações começam, muitas vezes no primeiro ano escolar, intensificando-se com a

chegada dos filhos ao Ensino Médio. As demandas do mundo, incluindo valores que

cabem à vida adulta somente, invadem, em cheio, o espaço escolar.

Em contato com as escolas Waldorf no mundo, percebe-se que a grande

maioria delas vive a mesma pressão e, imagina-se, muitas outras propostas

pedagógicas que procuram uma aproximação entre o pensar, o sentir e a ação, entre

a criação e a execução, entre corpo e mente. São instituições que formam um

movimento de resistência, e o fazem por acreditar que há saberes e habilidades muito

25

específicos da prática artística e artesanal que não podem ser substituídos sem

prejuízo ao processo formativo das crianças e dos jovens.

Quanto às indagações dos pais quanto à pertinência de tais práticas, para os

professores essas dúvidas só podem ser vistas como benéficas, pois obrigam o corpo

docente a um eterno movimento de busca entre aquilo que é realizado no ambiente

escolar por tradição e aquilo que ainda é permeado de justificativa pedagógica.

Inspirada nessas considerações, a autora deste projeto procurou sair dos

espaços escolares para procurar subsídios nos espaços onde os processos artísticos

e artesanais acontecem por excelência: as oficinas e os ateliers de artesãos. Acredita-

se que esses ambientes de trabalho conciliam idealização e execução em igual valia,

desenvolvem e aprimoram técnicas na medida da necessidade da criação e

estabelecem relações especiais entre o homem e o trabalho, resultantes de uma forma

mais saudável de organização da produção. Para tanto, foram selecionados para

entrevistas profissionais produtores de utilitários em cujas obras evidenciam-se a

procura por processos criativos tanto na elaboração quanto na feitura de objetos.

Neste trabalho eles são denominados artistas-artesãos.

1.1 OBJETIVOS E MÉTODO DE TRABALHO

O objetivo geral deste estudo é promover uma investigação dos processos de

trabalho do artista-artesão, desde a concepção da obra à sua finalização, identificando

a atuação da vontade e a presença da vitalidade como constituintes do processo de

criação, pensados como elementos unificadores entre a razão e a imaginação.

Como objetivos específicos espera-se:

1) Identificar as imposições que a matéria-prima utilizada pelo artista-

artesão imprime ao processo, da criação à elaboração;

2) Descrever como se trabalha a relação de tensão entre utilidade e

estética da obra em execução;

3) Verificar os processos de mudança que ocorrem na execução da obra,

em relação ao projetado, nascidas na lida com a matéria;

4) Identificar as diferentes relações do artista-artesão com o tempo, no

processo de criação e execução da obra;

26

5) Apontar as relações que se estabelecem entre o artista-artesão e suas

ferramentas de trabalho.

Como metodologia pretendeu-se a aplicação de pesquisa qualitativa,

realizando entrevista semiestruturada, entrevistando artistas-artesãos em seus locais

de trabalho, trazendo apontamentos sobre seus fazeres, sua organização, dinâmica

do processo criativo.

Em paralelo realizou-se pesquisa bibliográfica exploratória voltada para a

descrição de uma temática, buscando desvelar seu sentido, sendo o pesquisador seu

principal instrumento. Pressupõe, assim, o contato prolongado e direto do pesquisador

com o tema em investigação.

Caracteriza-se como pesquisa bibliográfica,

aquela que se realiza a partir do registro disponível, decorrente de pesquisas anteriores, em documentos impressos como livros, artigos, teses, etc. Utiliza-se de dados ou de categorias teóricas já trabalhadas por outros pesquisadores e devidamente registrados. Os textos tornam-se fontes dos temas a serem pesquisados. O pesquisador trabalha a partir de contribuições dos autores dos estudos analíticos constantes dos textos. (SEVERINO, 2016, p.131).

Foram realizadas cinco entrevistas, sendo que os critérios para a escolha dos

profissionais foram:

• Produção como meio de vida há mais de três anos;

• Profissionais que conciliam a técnica com a arte;

• Participação do artista-artesão na obra desde a idealização até a sua

finalização.

O primeiro capítulo apresenta os caminhos que conduziram à pesquisa aqui

apresentada, objetivos e métodos de trabalho. Os profissionais entrevistados são

apresentados, assim como uma narrativa livre sobre cada um deles, visando

aproximá-los do leitor.

O segundo capítulo traz os significados etimológicos das palavras arte,

artesanato, técnica, identificando entre estas palavras as aproximações ou

distanciamentos ao longo da história, originários das transformações na cultura e nos

modos de produção.

27

No terceiro capítulo procura-se mostrar como as mudanças nos meios de

produção provocaram cisões entre a técnica e a arte, entre razão e sensibilidade e

como diferentes iniciativas sociais procuraram alternativas para o restabelecimento de

espaços voltados para a produção e o ensino mais saudáveis. Nesta perspectiva o

atelier do artesão é apresentado como espaço propício para a experiência, na

concepção de Jorge Larossa e John Dewey. A obra de Gaston Bachelard é

apresentada para mostrar as experiências de confronto entre o homem e os diferentes

materiais disponíveis para manipulação.

O quarto capítulo nasce em contraposição ao terceiro, mostrando outras formas

de entender o trabalho artístico e artesanal, conceitos que de fato afastam os dois

fazeres, mostrando também como o olhar para o atelier do artesão torna difícil a

definição de limites tão claros entre uma atividade e outra.

O quinto capítulo abordará os meios de produção disponíveis para as diferentes

experiências de manipulação da matéria. Procura-se trazer não somente os principais

conceitos relacionados às ferramentas e tecnologias, mas como os usuários

significam, valoram e fazem as escolhas destes objetos.

O sexto capítulo traz o tempo visto de diferentes formas: a vinculação do

trabalho artesão à uma narrativa temporal; a vinculação do tempo imposto pela

matéria e a organização da dinâmica de trabalho nos ateliers em respeito ao tempo

do corpo do artista-artesão; a relativização do tempo nos momentos de envolvimento

com o trabalho. O capítulo também expõe o conceito de Estado de Fluxo,

desenvolvido por Csikszentmihalyi, apresentando, através da fala dos entrevistados,

os ateliers e oficinas de artesãos como locais de desfrute nas suas relações com o

trabalho.

1.2 PROFISSIONAIS ESCOLHIDOS PARA A PESQUISA

Foram escolhidas quatro diferentes técnicas de produção, todas relacionadas,

de forma direta ou indireta, com o elemento fogo na transformação da matéria:

cerâmica, joalheria, vidraria e marcenaria. Os artistas-artesãos participantes foram:

28

Ana Passos. Joalheira de Bancada: Iniciou a prática da ourivesaria na

adolescência e tornou a joalheria seu meio de vida há dez anos. Sua apresentação

em site próprio aparece conforme abaixo:

Meu nome é Ana Passos. Sou joalheira, fotógrafa, pesquisadora e blogueira. Nasci em Salvador, fui criada no Rio de Janeiro e moro em São Paulo desde 1999. Comecei meus estudos de ourivesaria e história da joalheria em 1987. Fui aluna dos artistas e joalheiros Caio Mourão, Marcio Mattar e dos fotógrafos Monique Cabral, Inaê Coutinho e Walter Firmo, Já em São Paulo, estudei na Escola Arte Metal, no Califórnia 120 Ateliê de Joias – Com Michael Striemer e Rudolf Ruthner – e no Atelier Mirla Fernandes. Desde 2012 participo de exposições coletivas. Em 2008, inaugurei meu atelier, onde crio e executo joias, pesquiso e escrevo sobre joalheria. Em 2015, publiquei o livro As Joias de Remy Golcman e, em 2017, foi a vez do livro As Joias na Bahia dos séculos XVIII e XIX, ambos com José Terra. Sou doutora em Educação, Arte e História da Cultura pelo Mackenzie e mestre em Memória Social e Documento pela Uni-Rio. Pesquiso as relações entre joia, memória e identidade. Meu trabalho na bancada de ourivesaria inclui a criação e execução de peças autorais, peças realizadas sob encomenda e, meu trabalho preferido, renovação e conservação de joias [..]. (Site ANA PASSOS13).

Elvira Schuartz. Vidreira: tem a arte em vidro como meio de vida há trinta anos.

O site de seu atelier, Espaço Zero, assinala algumas de suas conquistas:

Elvira Schuartz já teve obra premiada no Museu de Luxemburgo (1995), exposições na Entreé Libre de Nova York (1994), Eclat de Verre no Louvre des Antiquaires em Paris (1998), Consulado Brasileiro em Frankfurt (2004), Museu Nacional do Rio de Janeiro (2013) e atualmente tem trabalhos no acervo do MAB – FAAP em São Paulo e da Anglo American Collection e Saatchi Galleryem Londres.

Em janeiro de 2013, Elvira Schuartz fundou o IVI – Instituto do Vidro – primeira instituição museológica na área do vidro no Brasil que tem como missão preservar e difundir a arte no país.

Atualmente é membro do board do ICOM-GLASS (International Council of Museums of Glass) instituição que reúne todos os museus de vidro do mundo. (Site ESPAÇO ZERO14).

Guilherme Rossi. Arte, Projetos e Maquetes: Realiza projetos em arte,

maquetes e protótipos há mais e vinte anos. No site de sua empresa, a Mata Amp,

consta a seguinte indicação:

A MATA AMP – Arte Maquete Protótipo é uma empresa que cria e desenvolve projetos nas áreas de arquitetura, artes plásticas, propaganda e marketing, produção cultural e teatro.

13 Site Ana Passos. Disponível em http://anapassos.art.br/sobre/ acesso em 24/11/2018 às 12:10 14 Site Espaço Zero. Disponível em https://www.espacozero.com.br/ acesso em 24/11/2018 às 12:25

29

Fundada em 2006 a partir de trabalhos realizados em parceria com galerias e artistas plásticos contemporâneos, utiliza a pesquisa de materiais, inovação técnica e conceitos estéticos na produção de cenários, exposições, maquetes, mock-up15 e obras de arte. Envolvida em todas as etapas do trabalho (concepção inicial, plano estético, desenho, planejamento e execução) oferece soluções integradas nas áreas em que atua e conta com equipamentos de alta tecnologia e precisão.

Em parceria com profissionais, escritórios e instituições de renome traz em seu portfólio trabalhos expostos em importantes museus, espaços culturais e Bienais, além de indicações e premiações em concursos nacionais e internacionais de arquitetura. (Site MATA AMP16).

Luciana Faria. Ceramista: Iniciou sua trajetória como ceramista na pintura,

apenas como hobby, o que o fez ao longo de mais de vinte anos. Tornou a cerâmica

seu meio de vida há quatro anos. Especializou-se em produzir louças diferenciadas

para restaurantes. Não tem um site próprio, mas alimenta intensa relação com os

clientes e apresenta suas produções através do Instagram – @lufaceramicas.

Osni Branco. Arte em ferro e arte em madeira: produz obras em madeira e

ferro como meio de vida há mais de quarenta anos. Em seu site o seu currículo é

apresentado como abaixo:

Através da American Foundrymen's Society obteve a formação para o processo de cera perdida (fundição de precisão) que possibilitou a produção das suas esculturas fundidas em bronze, alumínio e aço inox.

De 1984 a 1988 cursou cerâmica avançada em alumina translúcida (Al2o3) na Universidade de São Carlos – São Paulo - Brasil. Em Tóquio faz seus estudos de cerâmica com o professor Steve Tootell junto ao ceramic room da Sacred Heart School e nos workshops realizados por Steve em Mashiko. Em junho 2001, Branco recebe a comenda de Ética e Cidadania da Nihon Zenko Kai, no Santuário Meiji em Tóquio, das mãos do ex-governador de Tóquio Shuniti Suzuki, com a presença da representação diplomática brasileira, pelos serviços prestados a comunidade brasileira residente no Japão, através do Encontro de Arte.

Em março de 2003 em Tóquio, a revista (Educational Magazine) da NHK rádio e televisão estatal japonesa, publica matéria sobre o Encontro de Arte, sua proposta e atividade no Japão. (Site OSNI BRANCO17).

15 Mock-up ou mockup: modelo em escala ou tamanho real para um projeto. 16 Site Mata Amp. Disponível em https://mataamp.wordpress.com/ Acesso em 24/11/2018 às 12:45 17 Site Osni Branco. Disponível em http://www.osnibranco.com.br/ Acesso em 24/11/2018 às 12:58

30

1.3 ROTEIRO DE ENTREVISTAS

Identidade do artista-artesão

• Educação formal e informal;

• Fontes do repertório adquirido: interferências de outros; interferências da

própria localização geográfica em que o artista-artesão vive ou viveu; interferência de

pesquisas realizadas. no processo de formação cultural do artista-artesão;

• Portfólio e trajetória construída na carreira do artista-artesão.

Observações sobre o ambiente de trabalho e recursos

• Observação do atelier: espaço disponível, organização dos materiais,

limpeza e conservação do espaço;

• Observação das ferramentas/maquinários: guarda e conservação e

produção de ferramentas;

• Equipamentos de segurança;

• Recursos e critérios de escolha da matéria-prima;

• Uso de novas tecnologias.

Método de trabalho

• Ritmo de produção: horário de trabalho, frequência, continuidade dos

processos de trabalho; execução de um trabalho por vez ou vários;

• Ritual de trabalho;

• Metodologia de concepção de uma obra;

• Percepção do tempo no momento da produção;

• Os momentos de pausa;

• As manhas (requerimentos) impostas pela matéria;

• Os requerimentos impostos pelos elementos, especialmente as

interferências do fogo;

• Como escoa a produção?

• Parcerias internas: os assistentes no apoio à produção; a formação de

assistentes;

• Parcerias externas: constituição de parceiros para execução de parte

da obra; a formação de parcerias externas;

31

• Projetos futuros.

Observação do processo de execução de uma obra/linha de produtos

• A peça foi criada a partir de criação livre ou encomenda?

• A obra estava vinculada a algum espaço específico?

• Primeira inspiração para criação;

• Se não foi encomenda, para onde escoará a produção?

• Metodologia de elaboração do projeto;

• Alterações do projeto ao longo da execução: a incorporação do acaso e

a incorporação do erro;

• Os momentos de pausa e as reavaliações.

1.4 CINCO ARTISTAS-ARTESÃOS E SUAS EXPERIÊNCIAS NO ATELIER

No atelier do artista estão escritas em toda parte as tentativas, as experiências, as adivinhações da mão, as lembranças seculares de uma raça humana que não esqueceu o privilégio de manejar. (FOCILLON, 1983, p. 140).

Com o objetivo de aproximar o leitor dos entrevistados, segue apontamento das

entrevistas realizadas. São apresentadas em forma de narrativa livre, sem a intenção

de seguir exatamente a ordem especificada no roteiro das entrevistas, mas

procurando trazer os elementos mais importantes relatados por estes profissionais.

As entrevistas foram gravadas e a transcrição encontra-se em anexo, sendo as falas

referenciadas.

1.4.1 Entrevista comentada: Ana Passos – Joalheira de bancada

Parece que um cristal sonhado em sua ganga aconselha ao ser que saia de seus embaraços e reviva no centro de sua própria luz. (DESOILLE apud BACHELARD, 2013, p. 253).

Ana Passos tinha mais ou menos 20 anos e trabalhava como vendedora

autônoma de joias. Além da venda, prestava serviços de manutenção das peças que

comercializava, o que a levou a entrar na oficina de um de seus fornecedores para

conhecer o processo de produção. Era um prédio comercial, em uma região muito

32

perigosa no centro do Rio de Janeiro. Em um dia de calor, muito calor, operários

semivestidos, sujeira e iluminação insuficiente foi o que viu. E foi naquele ambiente

inóspito que ela pensou pela primeira vez em tornar-se ourives. Mesmo sem artistas

ou artesãos na família a mãe a apoiou e, juntas, montaram em seu quarto uma

pequena oficina. A bancada era de madeira de reciclagem, com os escritos “maçã

fuji”, lembra Ana. Ela contava com os equipamentos básicos e o maçarico conviveu

com o carpete e a “cortina de mocinha” por alguns anos. O hobby lhe proporcionava

ocasionalmente algum rendimento extra decorrente das peças que sempre vendia aos

parentes e amigos. Ao longo de alguns anos, com constância, fez aulas com joalheiros

como Márcio Mattar e Caio Mourão, pioneiro da joalheira artística no Brasil. Ocupava

suas manhãs de sábado com essas aulas, e ocuparia ainda mais de seu final de

semana se a técnica não fosse tão perigosa. Em uma oficina de ourivesaria, a falta de

cuidado ou o cansaço podem resultar na perda de uma mão ou mesmo do couro

cabeludo.

Muitas outras experiências aconteceram antes que a joalheria se tornasse um

meio de vida para a Ana. Estudou economia e formou-se em pedagogia, obteve um

mestrado em Administração de Centros Culturais, especializou-se em Hotelaria,

trabalhou em museu, hotel, consultoria empresarial, ONG, banco. Nunca abandonou

a joalheira, mas ela tornou-se ocasional. Também nunca deixou de estudar história

da joalheria. Ana Passos acumula trinta anos de estudos e considera-se, atualmente,

uma referência na área. Após alguns anos de excessivo trabalho no mundo

empresarial teve uma crise de estresse preocupante. Tirou trinta dias de férias para

experimentar como seria ter a joalheria como meio de vida, sabia que a hierarquia e

o “jogo empresarial” não poderiam durar para sempre. Ao final do mês contabilizou a

produção de mais de cem peças e uma renda equivalente ao seu salário. Feitas

algumas contas, optou por assumir a profissão de joalheira.

33

Figura 1 - Ana Passos na bancada

Fonte: Site da artista – Autorização de uso concedida pela artista18

A oficina foi montada na sua casa, em um quarto com boa luz natural. O

ambiente é claro, limpo, ferramentas em seus lugares. A bancada principal é uma

mesa xerife adaptada, daquelas com tampa. É maior do que o tamanho padrão, mas

os gestos de Ana Passos já estão totalmente ajustados ao espaço. A segunda

bancada é menor e possui um jogo de ferramentas próprio. Foi recém adquirida para

atender à demanda de casais que a procuram desejando fazer as próprias alianças

de casamento. Ana Passos explica que sua oficina não segue o padrão das oficinas

de ourivesaria mais antigas. Nelas não há qualquer glamour ao qual uma joia remete.

Muitas ainda se assemelham às antigas corporações de ofício, são sujas, quentes e

mal iluminadas. As condições de trabalho são inadequadas. Não há mulheres nesses

locais. Em contrapartida, joalherias industriais assemelham-se aos laboratórios

químicos: ambiente impecavelmente limpo, claro, funcionários de jaleco, luvas e

óculos especiais. Para Ana, é uma forma de valorizar a profissão. Considera-se

organizada por necessidade do ofício. Explica bem-humorada que o resíduo de seu

trabalho, a sujeira da sua obra, é ouro ou prata. Mostra pó de ouro e prata guardados

em pequenos recipientes, recolhidos após a finalização dos trabalhos de polimento,

18 Site de Ana Passos. Disponível em http://anapassos.art.br/sobre/ Acesso em 24/11/2018

34

contando quanto valem. Serão fundidos na próxima obra. Abaixo da bancada de

trabalho, uma gaveta muito limpa armazena os resíduos do trabalho.

Figura 2- Bancada de trabalho Ana Passos

Fonte: Acervo da artista – autorização de uso concedida

Ana Passos tem tudo de que precisa em um pequeno espaço. Pode-se pensar

que é pouca coisa, mas seria um engano. O material utilizado na ourivesaria é

pequeno. Nos armários, uma enorme quantidade de matéria-prima, pedras e

acessórios de todo o tipo, acondicionadas em potes bem organizados.

Os equipamentos de segurança são indispensáveis, já que o trabalho com

metais tem etapas bastante perigosas. Luvas e óculos são requeridos, mas não

dispensarão um manuseio cuidadoso da matéria. Ana Passos conta que nem sempre

usa todos os equipamentos, como as luvas, mas é extremamente cuidadosa no

manuseio. Já lhe aconteceu um acidente grave, uma corrente estava sendo polida e

ricocheteou, quebrando o vidro da lâmpada de apoio, cujos cacos se espalharam por

todo o corpo da artesã. Neste dia Ana Passos experimentou como um acidente pode

ser grave em um atelier onde se lida com o metal.

A joalheira dedica especial atenção às ferramentas. A maior parte delas é cara,

muitas são importadas. Seus equipamentos são antigos, vários a acompanham desde

35

o início de suas atividades, quando ainda era jovem. Suas ferramentas não são

emprestáveis. Quando há alguém querendo produzir uma peça como experiência,

Ana Passos disponibiliza a bancada menor e outros equipamentos, adquiridos para

isso. A ferramenta “ela vai tomando, digamos, a forma do seu gesto”, diz. (Notas de

entrevista, p. 22).

Figura 3- Manuseio da ferramenta na feitura da joia

Fonte: Acervo da artista

O jeito de pegar na lima determina os lugares onde ela sofrerá maior e menor

desgaste, a empunhadura da ferramenta muda ligeiramente de forma de acordo com

aquele que a manuseia. Além disso, mantém cuidados de limpeza e guarda

constantes. Nunca deixa uma ferramenta disponível na bancada se ela não estiver em

uso no exato momento, pois uma gota de ácido ou uma queda acidental pode avariá-

la permanentemente. Uma vez terminado o uso, limpa-se e guarda-se tudo.

36

Figura 4- Processo de trabalho da joalheria

Fonte: Acervo da artista

Ana Passos produziu sua própria ferramenta de cravação, procedimento

comum entre os ourives, porque esta deve ser perfeitamente adequada ao tamanho

da mão. Fazer uma ferramenta deu-lhe uma nova dimensão do seu significado. No

entanto, não aprecia produzi-las, brinca dizendo que faz joia, “ferramenta é lá na

fornitura”. (Notas de entrevista, p. 22).

Seu ritmo de trabalho é intenso, pode ser de dia ou à noite. Tem sido conhecida

no mercado como uma joalheira que trabalha rapidamente sob encomenda, o que a

força, muitas vezes, a estar na bancada aos domingos, o que lhe garante fidelidade

dos clientes. Planeja mudar essa fama, quando tiver uma carteira de pedidos um

pouco maior. O trabalho com muito barulho fica para horários apropriados do dia, em

respeito aos vizinhos e, nos últimos anos tem sentido alteração na visão, o que a leva

a deixar as etapas que exigem maior precisão pela manhã, quando a luz é favorável.

Quando começa a produzir algo, vai até o final antes de iniciar o próximo. A mistura

de materiais como prata, ouro ou bronze, é inadequada, por conta do aproveitamento

do resíduo, o que favorece a finalização de uma peça completa, limpeza do ambiente

e início de nova produção. Gosta de trabalhar com música ou com filmes, que ela

acompanha somente ouvindo. Às vezes dispersa óleos essenciais no atelier enquanto

trabalha.

37

Quanto aos equipamentos de que necessita, faltam-lhe apenas o maçarico de

maior porte - ela utiliza o pequeno - e o laminador elétrico, por conta do excesso de

ruído e de condições de segurança no atelier. Quando precisa preparar chapas e

lingotes em maior quantidade, recorre a ateliers maiores, com quem estabelece

parceria há anos. Para produções menores utiliza seu laminador manual, que requer

o uso de força.

Além desses ateliers, outros parceiros são lembrados: o profissional que lhe

vende gemas é o mesmo há muitos anos. Aos fornecedores de maquinários e

ferramentas ela é fiel, aprendeu com eles processos importantes, como galvanização

e banho de prata, por exemplo, além de orientações quanto ao manuseio e pequenos

reparos em máquinas. Ana Passos não deixou de lembrar que muito se pode aprender

com as dicas coletadas na internet e entre os fornecedores de material e maquinário.

Há também parceria com montadores de joias, pois pode vir a terceirizar pequenas

partes de um trabalho, aquelas que não exigem seu toque pessoal – mas evita fazê-

lo, pois muitas vezes percebeu diferença no resultado, suas peças costumam ser mais

robustas do que a média. Seu marido também é um grande parceiro. Sendo joalheiro

e fotógrafo de joias, é dele a responsabilidade de fotografar tudo o que vai para suas

redes sociais.

Quanto à distribuição em lojas, atualmente há apenas uma. Os canais de venda

de Ana Passos estão na internet, na divulgação que faz em seu blog, no Facebook e

no Instagram. Ela se considera uma excelente vendedora e comunicadora e é

cuidadosa em manter uma rede sempre ativa.

Questionada se gostaria de trabalhar com tecnologias modernas, em uso nas

grandes joalherias, Ana Passos afirma admirar os equipamentos de lapidação a laser

e as novas impressoras em 3D. Está certa de que em alguns anos esta tecnologia

estará à disposição dos pequenos produtores, mas afirma que prefere estar na

bancada, gosta do handmade. Tanto lhe dá prazer produzir uma peça única quanto

saber quem a está usando. Produz no máximo doze unidades de uma mesma joia,

sempre com pequenas variações, especificando a quantidade nos certificados que

fornece aos clientes. A relação de pessoalidade que se estabelece entre ela e o cliente

lhe importa, um olhar que não quer perder de vista. Ana Passos relata que um dia

comprou uma pulseira de uma colega artesã que trabalha com nós. A peça era de

difícil uso e exigiu uma aula, então há uma história que acompanha a pulseira. Ela

38

também não se agrada em produzir quando não está bem, acha que a qualidade fica

comprometida. Por trás do olhar aparentemente nostálgico destas observações se

esconde um saber mercadológico. O maquinário de uma joalheria industrial “cospe

1.000 alianças por dia” (Notas de entrevista, p. 16), mas a produção em massa

começa a provocar no consumidor mais e mais o gosto pelo manual, pela peça única,

pelas relações que podem se estabelecer entre o objeto e aquele que a utiliza. Ana

Passos conta que a demanda por esse tipo de produto tem crescido e é esse nicho

de mercado que ela conscientemente decidiu ocupar. O tema a interessa

particularmente, tanto que sua tese de doutorado, é intitulada De matéria a afeto, a

construção do significado da joia e explora as relações que se estabelecem em torno

das joias, em especial joias de família.

Foi esta valorização pelo manual, identificada nos últimos anos, que permitiu

que ela assumisse orgulhosamente o ofício de artesã. No início de sua carreira,

julgava que esta denominação denegriria sua atividade. Ana Passos acha que muito

da desvalorização do termo no Brasil nasce da própria estrutura de apoio aos

artesãos. Artesão são todos, da senhorinha que faz pano de prato ao marceneiro

(Notas de entrevista, p.20), e os critérios de segmentação não são claros para

ninguém. O órgão de apoio ao artesão no Brasil é a SUTACO, que tem o mérito de

tentar separar o que é handmade e o que é o falso handmade, apoiando os artesãos

na emissão de notas fiscais e no fornecimento de carteiras de credenciamento. No

entanto, na prática o órgão assume parâmetros incompreensíveis para caracterização

do que é ou não joia, por exemplo:

Eu só vi o resuminho de joias que me mostraram, eu não vi outro documento, mas deve ser muito interessante porque tem uns critérios muito loucos, eu falei assim: Quem conversou com um joalheiro? Alguém conversou com um joalheiro pra escrever isso? Que foi a minha primeira pergunta... com base em que vocês estabeleceram isso? [...] A explicação era essa, porque parte da joia, porque era um centro de colar e um colar, e a moça falou assim, isto e joia, isto não é joia... ele só tá entendendo o que é joalheria quando você manipula metal (...) Bom, o pessoal da arte contemporânea então se mate, porque trabalha com materiais alternativos, isso não é nem nada. (Notas de entrevista, p. 10)

Nesses processos de avaliação, até mesmo a técnica é colocada em

discussão. Ana Passos explica que para a equipe da SUTACO acordoar um colar de

pérolas não é joalheria. No entanto, esta é uma das técnicas mais difíceis de se

aprender.

39

Para fugir de toda a problemática vinculada ao termo artesão e inspirada em

outras línguas, Ana Passos intitulou-se, ainda no início de sua carreira, joalheira de

bancada. Tal denominação a identificaria como produtora de peças singulares sem

que precisasse se assumir como produtora de artesanato. Hoje se assume artesã e

gosta. Lembra que muitos são os autores e os movimentos que têm ajudado no

resgate deste ofício.

Ao longo da entrevista, uma definição foi levando à outra e, para definir o que

é joia, Ana Passos cita a teórica holandesa Marjan Unger:

Joia é todo adorno, é toda peça que você coloca no corpo com a ideia de simbolizar ou enfeitar. Ou ela significa ou ela enfeita, e está sob o corpo. Então aí você mata a questão dos materiais... acabaram as técnicas, acabou tudo. Porque você pode ter uma conchinha que você pegou na praia e enfiou num couro e que é a peça mais importante do mundo, que tem o maior valor afetivo pra você, ou você pode ter uma tiara de rainha. E aí o assunto tá encerrado. (Notas de entrevista, p. 10)

Ana Passos também explica a diferença entre joalheiro e ourives. O ourives

trabalha prioritariamente no desenho e execução da joia, o joalheiro cria, produz e

comercializa a peça. E ela se considera joalheira.

Com experiências profissionais tão variadas, reconhece que desenvolveu um

conjunto de habilidades e saberes todo próprio. Seu interesse pela pesquisa é imenso,

uma inclinação natural; agregou a ele sua experiência no mundo corporativo e seus

anos como vendedora, de onde aprendeu a observar e tirar proveito das tendências

do mercado. Trabalha com proteção nas mãos para cuidar das suas unhas: “Não

posso atender um cliente com as unhas danificadas e sujas”, diz. Tal cuidado já lhe

valeu o comentário de um ourives de que ela não é uma verdadeira joalheira, pois

suas unhas estavam pintadas. (Notas de entrevista, p. 31). Ana Passos acha que na

joalheria há muito preconceito e fala da misoginia.

Cuidadosa como vendedora, é também cuidadosa como empresária. Ela se

diverte contando que deve ser a única joalheira que tem inventário detalhado de todas

as suas gemas. Antes de produzir uma peça, ela calcula o custo de produção,

ponderando se será vendável. Cuida de combinar pedras mais caras com ouro, para

alavancar seu valor. Cuida em não colocar muitas pedras de alto valor juntas, para

que a composição final não se torne cara demais. Cuida que a peça não necessite de

40

horas demais de trabalho, pois isso deverá ser inserido no preço. Tudo acontece antes

de ir para a bancada.

Ana Passos também não deixa de lembrar que a joia é um utilitário. Se está

produzindo um brinco, cuida para que não tenha mais de 10g, de preferência abaixo

de 7g, especificação pré-definida para o conforto. A peça deve ter peso adequado,

não pode machucar, não pode embolar. Ana Passos lembra que a joalheria tem

história: se há 130 mil anos já estávamos pendurando coisas no pescoço, “porque é

que você vai inventar a roda inteira de novo”. (Notas de entrevista, p. 31).

Seu interesse pela criação, pela pesquisa e seu olhar de empresária se refletem

na segmentação de sua produção: criações que mantém a sua sobrevivência,

produtos com venda garantida; execução de consertos em geral; avaliação do valor

de joias; restauro de peças e a criação artística de linhas de joias, sendo as duas

últimas as atividades que lhe trazem verdadeira satisfação profissional.

Quanto à avaliação e restauro de joias, Ana Passos pode passar várias horas

com clientes, avaliando peças. Faz a avaliação superficial, especificando quanto

valeriam em um leilão, em um antiquário, ou somente com a venda do ouro e da pedra.

Quando faz esse tipo de trabalho, muitas vezes identifica joias diferenciadas que

seriam derretidas para produção de outras, limpa e devolve ao cliente, agora

ressignificadas. Estas podem vir a ser fotografadas e inseridas na rede social com os

dizeres “Salvo do fogo”. Ela lembra que o ouro é portador de memória e quem trabalha

com joias de família precisa ter o olhar cuidadoso para a história que está contida por

trás da peça. Ela sabe que boa parte de seu reconhecimento profissional vem desse

cuidado.

Atualmente, se tiver alguma necessidade financeira, pode produzir algo de que

não gosta, mas acha que isso poderá ser remediado com um pouco mais de

organização. A escrita da tese desestruturou um tanto a sua dinâmica de trabalho.

Clientes antigos e amigos que nunca deixaram de acompanhar seus trabalhos têm

sinalizado que existe a demanda para novas criações. Acredita que seu histórico de

joias com marca pessoal arrebanhou clientes que estão à sua espera.

Aconteceu de ter produzido peças que se encaixam no que ela chama de

“joalheria de ativismo”, peças que comunicam o grupo a que o usuário pertence.

41

Produziu joias voltadas ao movimento feminista e vendeu rapidamente tudo o que

tinha. Sabe que pode investir mais nisso e acha que combina consigo.

Ana Passos destaca que não acredita em artistas que não buscam seu próprio

sustento. Para ela, a arte deveria propiciar a realização artística conjugada à

realização econômica. Exemplificando, afirma que a vida de Van Gogh só coube a ele

e não precisa servir de modelo àqueles que queiram se dedicar à arte.

Seus planos para o futuro incluem dedicar-se mais ao restauro e à criação

artística de peças. Já lançou um livro e prepara o próximo, quase finalizado, com base

em sua tese e nas experiências com restauro e história da joalheria.

Ao relatar o processo criativo de uma joia ou de uma linha de produtos de sua

autoria Ana Passos contou que há alguns anos fez parte de um grupo composto por

seis artistas-artesãos, que se reuniam para estudar e trocar experiências. Em dado

momento o grupo decidiu promover exposições organizadas em torno de um tema.

Foi com o tema Vida Urbana que Ana Passos começou a pensar na questão do tempo,

o tempo que escapa pelos dedos nos grandes centros urbanos. Primeiramente ela

pesquisou: na mitologia, estudou Cronos, responsável pelo tempo cronológico, Kairós,

pelo tempo fugaz, Aion, pela eternidade e pelo constante e Anake, ou Ananke, pelas

forças cósmicas que determinam o destino.

Figura 5 - Processo de Criação da coleção Tempos Urbanos

Fonte: Acervo da artista

42

Então Cronos, ciclos, bolhas, porque a forma que eu mais gosto na joalheria são os cabochões redondos e ovais, comecei a juntar tudo e fui juntando coisas, fui juntando coisas [...] O que é que podia ver, e fui brincando, você vê que tá bonitinho, tá em papel legal, tá com lápis de cor... daqueles lápis de coloridos que vai mudando a cor [...] Tipo assim, brinquei muito tempo com isso, e fui pegando outras coisas que podiam fazer sentido pra uma coleção de joias, então pensando em espirais, eu botava a forma e o que é que ela trazia, entendeu? Eu explorei muito isso, conceitualmente foi bem legal, aí eu lembrei de ruínas circulares e de Borges19, é um dos textos de Borges que eu mais gosto [...] (Notas de entrevista, p. 33)

Ela procurou referências artísticas, passeou por Alice no País das Maravilhas,

coletou imagens de Santo Elói, padroeiro dos ourives e relojoeiros. Pesquisou cores

e decidiu usar quartzo e citrino como pedras, pois têm transparência e ao mesmo

tempo trazem uma nebulosidade etérea. Passeou pela pesquisa das formas,

escolhendo as circulares, as bolhas e as espirais, que marcam ciclos. Pesquisou e

brincou à vontade, aquarelou. Ana Passos conta que a beleza do trabalho foi dar

tempo para o tempo.

Figura 6- Processo de criação da Coleção Tempos Urbanos

Fonte: Acervo da artista

Finalmente ela se interessou por mostradores de relógio antigos. Foi a algumas

relojoarias pequenas, que armazenam peças soltas para utilização em pequenos

19 Referência de Ana Passos ao escritor e poeta argentino Jorge Luis Borges (1899-1986)

43

reparos e lá aconteceu um grande garimpo, que resultou na coleção Tempos Urbanos:

anéis e colares fabricados com mostradores de relógio na base e pedras

transparentes sobrepondo-os, colares de molas de relógio e/ou ponteiros de relógio

de modelos diversos. Ela diz que, com as peças que criou, encapsulou o tempo, esse

mesmo tempo que escapa pelos dedos. (Notas de entrevista, p.33)

Figura 7- Peça realizada para a coleção Tempos Urbanos

Fonte: Acervo da artista

Figura 8- Peças realizadas para a coleção Tempos Urbanos

Fonte: Acervo da artista

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Figura 9 – Peças realizadas para a coleção Tempos Urbanos

Fonte: Acervo da artista

Figura 10- Peça realizada para a coleção Tempos Urbanos

Fonte: Imagem feita durante entrevista com artista

Para Ana, a definição de um tema comum a um grupo não restringe

absolutamente o processo criativo, mas o alavanca:

Porque se você bota um tema na roda, todo mundo vai ter que elaborar a partir de um mesmo ponto de partida, e vamos ver o que é que

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acontece... foram os melhores trabalhos da minha carreira... tinha o compromisso de botar o melhor da sua bancada, de um tiro só, numa coleção. Porque normalmente é o que eu te falei, eu faço muita encomenda, eu faço renovação, eu faço um monte de coisa que não é isso. Sobra muito pouco tempo pra criar, e criar um corpo pra doze peças incríveis, pra que você se orgulhe, realmente é muito difícil. Então grupal... como grupo a gente conseguia. Tipo assim, tem uma ou outra peça que depois a gente fez que é bem boa, mas assim, as melhores criações dessas seis pessoas até o momento saíram daqueles esforços lá. E aí foram realmente três coleções incríveis. (Notas de entrevista, p. 26).

Além do tema Vida Urbana, ela lembra de um tema anterior, Semana de 22,

para o qual criou joias inspiradas nas obras de Di Cavalcanti.

Ana Passos mostrou fotografias de suas obras, peças que ainda estão em seu

acervo e inúmeros mostradores e outras peças de relógio que estão disponíveis para

futura produção. Surgiram também medalhas com dizeres sobre o tempo que fizeram

sucesso, especialmente O tempo não para e Tempo, tempo, tempo, tempo... Inspirada

em Alice no país das maravilhas usou a frase Quanto tempo dura o tempo.

Figura 11 - Peça da coleção Tempos Urbanos

Fonte: Acervo da artista

Após a exposição uma das clientes a procurou. Ela tinha apenas o mostrador

do relógio do pai, no qual Ana Passos posicionou o horário de nascimento da cliente.

A fixação do ponteiro foi feita com cobre apropriado. Em cima do mostrador foi

colocado uma pedra de quartzo fumê tcheca. A peça marca, não somente o estilo,

mas os valores da joalheira, pois reúnem criação e utilização de peças de família.

46

Muito de seu processo artístico nasce da observação da matéria-prima

disponível em seu estoque. Normalmente a obra nasce da pedra. (Notas de entrevista,

p. 34). Ao iniciar a criação de uma peça, Ana Passos retira várias pedras de alguma

caixa e as dispõe em local de boa iluminação. E observa. Alguma a inspirará, caso

contrário, guarda tudo e abre outra caixa, até que uma pedra a chame para o trabalho.

Possui mais de 5 mil pedras em estoque, fruto de trinta anos de garimpo. Não é boa

desenhista e a peça nasce da cabeça para a própria bancada. Com isso, abre um

grande espaço para o acaso. As joias vão surgindo com a experimentação.

Ana Passos se agrada das matérias que escolheu para acompanhar sua vida

profissional, a pedra e o metal. Apesar da dureza do metal, é possível dominá-lo. Há

uma precisão no trabalho com esse material. Admira o trabalho dos ceramistas ou dos

vidreiros, mas a relação que eles têm como o fogo é muito diferente da relação que

se estabelece quando se é joalheiro. O ceramista e o vidreiro entregam seus trabalhos

ao fogo e não sabem o que advirá, pode ser a destruição de um trabalho com que se

criou vínculo afetivo. Com o metal existe uma precisão e uma certeza. E se algo não

ficou a contento, simplesmente funde-se a peça e começa-se novamente.

No trabalho com o metal o belo provém do feio, até o metal mais nobre, como

o ouro, é opaco até que a peça esteja quase pronta, o brilho virá somente após o

polimento final.

Em certo momento da entrevista, Ana Passos relatou que muitos joalheiros

acreditam que a condição física do artesão interfere diretamente na obra, alterando o

deslize do metal no momento da solda, por exemplo. Ela própria não trabalha se não

estiver bem: “se eu tiver fome, se estiver zangada, não vou fazer” (Notas de entrevista,

p. 18). Questionada sobre seu interesse pela alquimia, respondeu que este seria um

campo todo novo de estudo, muito vasto, pelo qual ela decidiu não se interessar, mas

acha as considerações interessantes e conhece joalheiros que estudam o tema com

empenho.

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1.4.2 Entrevista comentada: Elvira Schuartz – Arte em vidro

O vidro é como um marido apaixonado que vê as andanças arruaceiras da mulher e fica esperando ela voltar para casa. (Elvira, Schuartz, Notas de entrevista, p. 45)

É com essa metáfora que Elvira Schuartz iniciou um artigo escrito há muitos

anos. Ela se refere à substituição do vidro pelo plástico. O plástico é sem dúvida mais

resistente à quebra, mas perde sua beleza ao longo do tempo, torna-se opaco,

manchado e irregular. O homem sempre acaba recorrendo novamente ao vidro.

Elvira Schuartz é psicóloga. Ainda jovem estudou na Escola Panamericana de

Artes. Experimentou muitas expressões artísticas: piano, ballet, teatro. Sempre gostou

de escrever poesias. A família não tinha relação com a arte e não apoiou suas

inclinações quando chegou o momento da escolha da profissão.

Após o casamento, com filhos pequenos, por prazer e conveniência tornou-se

designer de interiores.

Aproximou-se do vidro quando decidiu recuperar uma lamparina quebrada que

havia sido comprada em uma viagem. O pé da lamparina era nada mais que um

pequeno bastão, o primeiro dos muitos bastões que produziria ao longo de sua

carreira.

Figura 12- Bastões - obra realizada por Elvira Schuartz

Fonte: site Espaço Zero20 – utilização autorizada

20Imagem no site do Espaço Zero. Disponível em https://www.espacozero.com.br/: acesso em 01/12/2018.

48

Acredita que seu interesse pelo vidro recebeu influência da viagem que fez com

a família para Murano, quando tinha nove anos. A memória do assoprador de vidro,

do fogo e do ambiente permaneceram vivas.

Com aproximadamente 32 anos retornou à cidade italiana, agora para um

estágio de dois meses. Da sua estadia pouco aprendeu com seu mestre: “Os truques,

ele não ensinou nenhum... os segredinhos do vidro, o vidro tem muita coisa de

segredo” (Notas de entrevista, p. 41). Mas ela observou muito, aprendeu olhando e

voltou decidida a investir na técnica. Teve aulas na Vidraçaria Nacional. Estudou

também no Urban Glass em Nova York. Foi sem dúvida uma iniciativa pioneira no

Brasil, naquele tempo ninguém dava aulas de vidraria e não se viam mulheres

atuando. Após 30 anos, considera sua carreira consolidada.

Elvira Schuartz se define como artista e empresária. Divide seu tempo entre

criação e as atividades administrativas e comerciais. Em seu atelier são realizados

restauros, criação e execução de peças para decoração, bijuterias, troféus para

premiações. Os troféus são responsáveis pela maior parte de seu trabalho e de sua

renda, pedidos corporativos. Oficinas para adultos e crianças também são fontes de

receita, parcerias duradouras foram firmadas com várias instituições de ensino. Ao

longo dos anos de oficina, desenvolveu uma série de atividades para receber as

crianças. Bolinhas de gude fazem parte destas produções.

O Espaço Zero encontra-se em uma casa agradável no bairro do Pacaembu,

em São Paulo. A sala de exposição e atendimento ao público tem todas as janelas e

portas em vidro, com vista para o jardim. A área de produção fica no jardim, montada

na carroceria de um caminhão, todo adaptado para a função. No centro do espaço

está a panela, apelido simpático dado ao refratário onde se encontra o vidro derretido

para produção. Ao lado o forno, em um pequeno quarto isolado estão todas as

ferramentas e outros materiais: pinças, ferros de tranchar, maioches, jornais para

apoio e manuseio da peça em produção. Uma mesa dispõe os diferentes óxidos, cada

um responsável por uma cor. As cores vêm em barras, bastões, cortados com uma

serra no tamanho necessário. Para uso nas oficinas com as crianças, muitos potes

com pigmentos granulados em diferentes cores. Estes são utilizados somente nas

oficinas, pois o resultado final apresenta grânulos, a cor torna-se menos homogênea.

Quanto às ferramentas, são todas de uso comum dela e dos funcionários.

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Figura 13- Pigmentos granulados utilizados na vidraria

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

Figura 14- Pigmentos em barra utilizados na vidraria

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

Na ocasião da entrevista o refratário de Elvira Schuartz estava quebrado e

havia vários dias ela e sua assistente estavam trabalhando na construção de um novo

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equipamento, um experimento nunca feito. A vidraria gira em torno do forno e do

refratário e no Brasil uma das grandes dificuldades do artista é que todo este

equipamento é importado. Com a ajuda de vários parceiros que fabricaram sob

encomenda as partes de que necessitavam, as duas estavam planejando os últimos

detalhes para encaixe da porta do refratário antes de iniciar os testes. Sem o refratário

e o forno não há possibilidade de trabalho e, quando acontece uma quebra, Elvira

Schuartz conta com parceiros de outros ateliers, mas a produção cai drasticamente.

O retorno ao uso requer cinco dias de aquecimento do forno, e após isso é mantido

ligado. O custo de energia ligado a esta produção é, portanto, bastante alto.

Figura 15- Imagem interna do refratário

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

51

Figura 16- Forno para vidraria no atelier de Elvira Schuartz

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

Questionada sobre o uso de novas tecnologias, citas impressoras 3D para

vidros. Gosta das novas tecnologias e usaria se estivessem disponíveis a preços mais

acessíveis.

Os cacos de vidro, matéria prima básica para produção, também são

importados. Strauss e Phillips estão entre os principais fornecedores, mas cita

também a Coca Cola. Este material chega ao Brasil sob encomenda, em caixas de

125kg.

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Figura 17- Matéria-prima para vidraria - cacos

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

A execução de qualquer trabalho em vidro requer cuidados. No atelier são

utilizados protetores auriculares, máscaras para proteger do pó de vidro ou outros

tóxicos, óculos para lidar com o forno.

Sua equipe de trabalho conta com dois funcionários, um trabalhando na

administração e outro na lapidação, o último com ela há treze anos. Ambos foram

contratados sem experiência e treinados no atelier. Cita também Lisa, californiana que

passará uma temporada com Elvira Schuartz, e que está pilotando a construção do

novo refratário. Elvira Schuartz participa de tudo o que está sendo produzido no seu

atelier. Em algumas peças atua mais fortemente na produção, em outras ela é como

“a chefe de cozinha que tempera o risoto no final.” (Notas de entrevista, p. 46).

Uma pequena parte da cadeia produtiva de uma peça sua pode ser

terceirizada. Para isso conta com parceiros externos:

Eu compro vidro beneficiado, antes eu fazia tudo aqui. De cinco, seis, oito anos pra cá eu faço tudo fora, então todas as bases de troféu, tudo que é vidro plano, pé de mesa o tampo vem pronto. Algumas esculturas que tem uma parte de vidro plano, todas as bases. Então todos os beneficiamentos de vidro, cortar, lapidar e polir. Então sei lá, uma base de cristal grosso que é gravado por dentro é um parceiro. Aí tem um outro que faz corte, lapidação, é outro parceiro. Então esses parceiros, isso tudo é feito fora. Jateamento é feito fora. Gravação a laser é feita fora. (Notas de entrevista, p. 48).

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Recebe encomendas e suas criações livres ficam expostas na própria loja, não

há envio a outros lojistas.

Ao se referir ao trabalho com o vidro, Elvira Schuartz comenta que o

encantamento nasce do trabalho com a luz e do trabalho com o fogo também. Aprecia,

na vidraria, a convivência entre a história e a modernidade.

Não, vidro não tem nada de nostálgico. Você tem o vidro-arte que já não é nostálgico. Coisas de vidro incríveis, modernas. Acho que o legal do vidro é isso. Você mexe com a história e modernidade de um jeito muito… É um lá e cá com as coisas. Primeiro que você tem toda uma tecnologia em cima do vidro que é fantástica. A gente está cercado de vidros. Vidro na arquitetura é uma coisa super arrojada. Você tem vidro térmico, vidro espelhado. Sei lá, se você olhar fotos de arquitetura moderna é tudo vidro. Os prédios mais modernos, Dubai por exemplo, que tem aqueles prédios malucos, tudo é vidro. Você pega um aeroporto, tudo é vidro. Seja vidro transparente, colorido, espelhado. Tudo é vidro. Então você está com a modernidade ali o tempo todo. No Brasil não tem, eu já tentei fazer e não consegui, mas existem estruturas de rua maravilhosas... Instalações nas ruas gigantescas [...] E você tem instalações de vidro plano, acopladas, gigantescas nas ruas. As faixas de prédios. Deixa eu te mostrar a fachada da Chanel. Você já viu? [...] Eu não acho nada antigo não. Você está lidando com uma coisa que é história, tem 5 mil anos, mas é hiper contemporâneo. É eterno. A gente diz que o vidro é frágil, porém eterno. Eu falo para as crianças, você pode estar fazendo uma coisa hoje que pode durar 5 mil anos. (Notas de entrevista, p. 45).

Quando fala sobre esse tema, Elvira Schuartz amplia o olhar para o vidro,

trazendo não somente as peças decorativas que produz, mas o uso do vidro na

arquitetura e na vida cotidiana. Interessa-lhe o vidro em si.

Produzir uma peça em vidro é um ato de muita coragem, diz ela. Há muito mais

transpiração no momento da produção que o glamour aparente, mas é disso que ela

se agrada:

Acho que a bolação é a parte legal da coisa. Pode não ter glamour, mas também tem um prazer na realização. A realização é uma obra. É um trampo. E eu digo pra você, eu já pintei, fazia várias outras coisas, já fiz teatro. Você ver uma peça, o ator representar é lindo. Mas o ator para representar passa seis meses ensaiando aquela peça, repetindo mil vezes por dia o mesmo texto. Tem um trampo nas coisas. A pintura, sabe? Você vai pintar um negócio, legal, mas você tem que fazer um fundo, folha por folha. Você tem um trabalho naquilo, é um trabalho! Você arruma suas ferramentas, pincéis e coisas pra trabalhar na cerâmica, suas ferramentas de entalhe. Você tem trabalho. O vidreiro talvez tem um pouco mais de trabalho do que os outros, mas ele tem um trabalho também. A arte tem um trampo, literalmente um

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trampo. É o fazer, né? Quem não tem trampo é o designer. Ele senta na cadeira ou tem talvez o trampo do desenho, mas enfim, é operacional. O pianista performa uma peça maravilhosa, mas para chegar lá ele estudou 800 horas, tocou 800 horas de piano. É isso, não tem muita saída. São as ferramentas de trabalho. (Notas de entrevista, p. 48).

A ponta da cana guarda o vidro e, para se conseguir a forma requerida o vidreiro

deve mantê-la rodando permanentemente. O vidro mole é maleável, muito maleável,

e o vidreiro brinca com a gravidade, ampara a peça com um jornal ou a deixa curvar

na medida da sua vontade. Errado o ponto, perde-se a peça, há que começar

novamente. Peças grandes ou mais elaboradas são sempre realizadas a dois. O

parceiro de Elvira Schuartz, Fernando, torna-se mais duas de suas mãos:

Eu tenho um projeto que ainda não botei em prática, mas cheguei a fazer umas "maquetinhas". Eram umas bonecas sentadas. A ideia desses bonecos era fazer da cintura pra baixo uma gota dessas no meio e da cintura pra cima os braços e a cabeça. Para fazer esses bonecos cortados no meio e sentados, a gente treinava dez, quinze vezes sem o vidro, sem a peça. Um script de uma peça de teatro, tudo que você vai fazer, cada movimento. Super hiper controlado. Quem é que vai segurar, quem é que vai fazer o que, pra na hora de colocar o vidro aqui fica um pra puxar a perna de um lado um pra puxar a perna do outro e vai olhando pra descer as duas peças ao mesmo tempo. [...] Na hora H não dá tempo de você pensar, você vai falando e fazendo tudo o que já está decidido. Agora vamos puxar, vamos não sei o que, mas tudo combinado. Você tem todas as ferramentas na mão, tem todas as estruturas na mão. Tudo montado. Você tem um cenário montado todinho pra só "pum", porque você tem que fazer em quinze minutos aquele negócio. Se você puxou uma perna e não puxou a outra, você não consegue botar pra dentro do forno de novo porque a perna amolece. Você estragou a outra perna. Se você sentou a boneca no lugar errado, não arruma mais, joga fora. Então assim, você põe a cana e calcula, o vidro vai descer como? E a perna? Então tem que ter altura. Que altura vamos puxar? Não, vamos puxar aqui e depois a gente esquenta só as pontas e puxa de novo. O parceiro é mais do que um parceiro, é uma entidade [...] É tudo, vira uma cabeça só. (Notas de entrevista, p. 50 e 51).

Elvira Schuartz gostaria de ter mais tempo para criação livre. No entanto, isso

não a impede de sentir prazer a cada encomenda que recebe, desde que seja de fato

um desafio. Gosta de ser desafiada e sente prazer com a variação na sua produção,

qualquer que seja:

Não tem um trabalho que eu vá dizer que não gosto. Mas tem trabalhos que não me dizem nada. Eu já fiz por exemplo uns potes de azeitonas de 90 cm de altura. Era uma réplica. É um trabalho divertido? Não parece, mas é. É um desafio, sabe? Como você vai fazer aquilo? Como você vai arrumar um forno daquele tamanho? E

55

na hora que sai ficou legal. [...] O desafio é uma coisa muito prazerosa. [...] Tenho mais prazer sim (em executar criações próprias), mas não desprazer. Não tenho bode em fazer, por exemplo, eu criei uma garrafa de clericot para um restaurante. O cliente aprovou, agora ele quer 140 peças. Eu coloco uma pessoa pra fazer [...] Outro dia eu fiz um filtro para uma cliente. Era um "puta" desafio fazer um filtro. Não ficava e o filtro dançava em cima da base. Ficou lindo. Eu não gostei da parte de baixo porque ela falou que ia tirar o negócio azul, mas não tirou. O que eu acho muito gostoso do trabalho é que cada dia eu faço uma coisa diferente. Por um lado, é extremamente divertido, por outro lado é extremamente complexo, porque cada trabalho é um desafio. Então assim, às vezes fica muito bom. Olha o filtro (mostra foto): Eu fiz quatro peças para a cliente até chegar na peça final. Tomei prejuízo? Tomei, mas atendi a cliente e tenho certeza que ela ficou satisfeita. (Notas de entrevista, p. 47).

Ao produzir utilitários, é cuidadosa para que sejam realmente adequados ao

uso: “Brinco pesadão não. Brinco eu tenho um super cuidado. Aquele brinco não é

muito pesado e nem muito leve”. (Notas de entrevista, p. 48).

Um cliente parceiro ajuda muito, ela diz. Elvira Schuartz se ocupa de muitas

tarefas diferentes ao longo de um dia de trabalho e pouco se aborrece, ao não ser

quando encontra um cliente difícil de lidar.

Procura não fazer o que não gosta, o que não acha belo e o que não lhe dá

prazer, mas nem sempre isso é possível, há compromissos financeiros que devem ser

cumpridos.

Gosta mais de criar à noite, quando está tranquila. Combina desenhos de novas

obras e ideias para novas linhas de produtos com a escrita de poesias, que nunca

abandonou. Uma criação ajuda a outra, ela conta: “Às vezes eu tô fazendo alguma

coisa e não consigo sair daquilo. Tipo, o cliente quer uma mulher grávida. Aí você

desenha de um jeito e não vai dar certo. Aí uma hora eu pego um texto e começo a

escrever, tipo assim, vamos fazer outra coisa, né?” (Notas de entrevista, p. 49). Depois

a criação flui melhor. Os momentos de inspiração vêm em fluxos, pode desenhar toda

uma coleção de peças ao acordar ou escrever uma poesia no meio do dia, quando dá

uma parada entre uma atividade e outra. A presença da sua cachorra a ajuda, pois

proporciona momentos de pausa. Às vezes produz algo somente com o que imaginou,

às vezes precisar desenhar detalhadamente antes.

Como trabalha com encomendas, sente-se pressionada pelos pedidos que

recebe, mas isso também a impulsiona a criar: “Eu tenho um cliente que compra

56

troféus de fim de ano, prêmios que eles dão, há 16 anos. Só que há 16 anos eles

fazem uma peça diferente. Todo ano tenho que inventar uma peça nova para eles.”

(Notas de entrevista, p. 49).

Convidada a descrever o processo de criação de uma obra ou linha de

produtos, desde a criação à execução, Elvira Schuartz escolhe Ninho, uma peça

importante na sua trajetória, exposta no Museu Nacional do Rio de Janeiro. Ela inicia

com o relato das várias coleções que já criou:

Então assim, eu trabalhei durante uns 7 anos, todo ano eu fazia uma coleção em cima de um tema, eram vários temas. Começou com Meio do Mar… Não, primeiro foi Profana, daí depois Meio do Mar. Profana era pegar objetos clássicos e depois profaná-los, tipo, um vaso romano e puxar uma ponta. Depois teve meio do mar, que era aquela coisa que não era nem o peixinho nem a coisa, mas o nível do sonho entre uma coisa e outra. Não é nem a superfície nem o fundo, mas o meio do mar. Tinha uma instalação de várias pedras que fazia um mar mesmo, bem legal. Tiveram várias coleções. Tinha uma que era Corpo frágil, muito interessante essa coleção porque falava de uma coisa que era… nós somos frágeis, mas temos que entender nossa fragilidade como um cristal. No princípio de que tudo que não se cuida se quebra. O vidro é implacável nesse sentido. Se você não cuidar de uma roupa ela vai estragar e destruir aos poucos. Se você não cuidar de um celular ele vai estragar e destruir aos poucos. Se você não cuidar de um sapato, um livro, uma casa, uma janela. Tudo se estraga e se perde. O vidro é "pum"! Caiu e quebrou. Ainda que restaurado jamais será o mesmo. Nesse sentido eu fiz roupas de vidro. Daí eu fiz um desfile de roupas de vidro. Foi muito legal. Tinham dez trajes diferentes, todos em vidro. Uma coisa muito bacana. (Notas de entrevista, p. 50).

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Figura 18- Peça realizada para a coleção Corpo Frágil

Fonte: SCHUARTZ, 2006. P. 72

E então ela chega na peça escolhida, parte de uma de suas coleções, denominada Metamorfose:

Enfim, nessas coleções tinha uma que era a Metamorfose. [...] Como é que trabalhava com as coleções? [...] Na Metamorfose, pegava foto de metamorfoses, tinha larvas, casulo, enfim, o ninho. [...] Na verdade ele começou bem menor e aí a coisa do ninho… esse nem é o maior que eu já fiz (mostra foto). Eu já fiz um vermelho supergrande, talvez seja esse que você viu. Não foi esse que você viu no site? Um ninho vermelho bem grande, maior que esse. Esse daqui eu acho que tem 28 o outro tem 35, um ninho desse tamanho. É uma paixão. É uma das peças mais trabalhosas que eu faço. [...] São 150 fios mais ou menos, 50 fios por hora. O fio esfria, endurece. Daí ele volta. Nesse meio, você vai no forno, colhe, puxa, prepara a ponto, vem, vira. Você tem uma pessoa no forno fazendo o fio, colhendo, arrumando, maiochando, trançando o bico. Daí ele dá na minha mão. O outro tá com a peça pronta. Esse que tá com a peça pronta a cada 5, 6 colhidas ele volta no forno, se a peça esfriar ela cai da cana. Já fiz vários vidros que caíram da cana. É pura adrenalina. O que cai da cana, joga no lixo. (Notas de entrevista, p. 51).

58

Figura 19- Peça realizada por Elvira Schuartz – Coleção Ninhos

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

Figura 20- Peça realizada por Elvira Schuartz - coleção Ninhos

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

No livro que publicou, Através do vidro – objetos e poemas, Elvira Schuartz fala

sobre o trabalho com o vidro:

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Não se é vidreiro sem amor. É preciso mais do que boa vontade para se defrontar com temperatura acima de 1300° C. É preciso mais do que tolerância para conviver com sua fragilidade.

Nos últimos dez anos procuro explicar o que este insólito material desperta em mim. Respeito por sua origem secular com suspense de folhetim? Admiração pela fidelidade com que me protege e ao mesmo tempo me mostra o mundo? Ou talvez eu me renda simplesmente às milhares de frações de arco-íris que ele reflete, os únicos que minha vontade comanda e que se acendem exclusivamente para meu deleite. (SCHUARTZ, 2006, p. 86)

1.4.3 Entrevista comentada: Guilherme Rossi – Projetos e protótipos

A entrada do atelier de Guilherme Rossi passa por uma marcenaria de bairro,

despertando atenção apenas pela limpeza e organização do local. Situada em uma

rua tranquila no bairro da Pompéia, a localização satisfaz completamente seu

proprietário, que está cercado de muitos outros artistas e artesãos. Após conhecer

todo o espaço, a entrevista foi realizada na sala onde o profissional realiza seus

projetos gráficos. Em certo momento, Guilherme Rossi mostra um vídeo no Youtube

sobre o artesão japonês Masaaki Hiroi, quarta geração de fabricantes de piões:

Amo fazer coisas! [...] Estou sempre pensando em como fazer meus piões girarem um segundo mais. [...] Conquistar o equilíbrio do pião é difícil (...) é preciso ajustar muitas pequenas partes [...] passo dias e dias tentando e não desisto, acordo no meio da noite pensando nisso. [..] O tempo passa tão rápido, gostaria de poder viver duzentos anos, trabalhar mais e fazer um bom trabalho. (Masaaki Hiroi)21

Guilherme Rossi usa o vídeo para afirmar seus planos futuros:

É, esse japonês tá fazendo um por um assim, Gepeto mesmo. Eu falo assim, Leo, quando a gente ficar velho eu fico aqui com a oficina, eu fico com essa, eu abro aqui um guichezinho e você faz o que você quiser, eu vou fazer isso falei pra ele assim, eu vou ficar aqui velho barbudo fazendo brinquedo aqui pra rua, sei lá [...] É, usando os recursos todos [...] Esse é meu desejo, de chegar a ser isso aí, pronto. (Notas de entrevista, p. 64).

O atelier de Guilherme Rossi é composto por duas salas de trabalho, uma ao

lado da outra, além de uma área de armazenamento de material, ferramentas e

máquinas em um andar acima. Na primeira delas o parceiro de Guilherme Rossi, Leo,

trabalhava na montagem de uma grande estrutura, encomenda de um artista, para a

21 Entrevista com Masaaki Hiroi. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=W_-GuJSF8iU, acesso em 01/12/2018.

60

Bienal. A mesa de trabalho e parte do piso estavam tomados por uma única obra. No

chão, restos de madeira tão cuidadosamente arranjados que quase se pensava ser

uma outra obra.

Figura 21- Atelier de Guilherme Rossi

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

Figura 22- Obra para Bienal/2018 em execução

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

61

Na segunda sala, muitos equipamentos. Na bancada de trabalho, um painel

para mesa de som, inteiro em madeira, encomenda de uma casa de shows em Nova

Iorque.

Figura 23- Mesa de som executada por Guilherme Rossi

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

Parte do espaço foi fechado para isolamento do ruído das máquinas e ali

Guilherme Rossi dispôs os computadores para uso de softwares para projetos em 3D.

Essa é uma das principais características da sua forma de trabalhar: em seu atelier a

serra tico-tico convive perfeitamente bem com a máquina de corte de madeira a laser,

uma bem moderna. Serras manuais, lixadeiras e todas as típicas ferramentas de

marceneiro, algumas de ferreiro, outras de ourives, lado a lado com impressora 3D e

softwares para projetos.

62

Figura 24- Utilização de software de design gráfico por Guilherme Rossi

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

Guilherme Rossi mostrou muito cedo gosto pela criação e execução. A família

não tem relação com as artes, mas localiza um avô ourives. Lembra do pai de um

amigo, com quem gostava de conversar, artista plástico, considerando-o uma

referência. Estudante do Colégio Santa Cruz, ele e um grupo de amigos fundaram,

ainda pequenos, o Centro de Invenções Inúteis. Em uma feira da escola, Guilherme

Rossi apresentou, feita por suas próprias mãos, uma caveira em gesso, que falava,

movida a controle remoto. Aprendeu muito sobre construções com o aeromodelismo

e aproveitava os motores para novas criações. Foi aluno do atelier de tecnologia para

crianças Tempo e Espaço22 e da Escola de Marcenaria Cose di Legno23. Gostava

também do teatro e conta que sempre demonstrou um perfil empreendedor. Na

adolescência comprou uma aparelhagem de som, que alugava para festas. Cursou os

três primeiros anos de Engenharia, mas desistiu. Ainda cursando, fez estágio em uma

fábrica de produtos em ferro, que ainda estava iniciando. Conta que aproveitou muito

do estágio enquanto tudo era novo: “Aí ela (a fábrica) estava em fase de construção

e tinha que inventar muita coisa. Quando entrou pro padrão, pro dia-a-dia, eu espanei

completamente de tudo. Falei: Nossa, não é isso que eu quero fazer!” (Notas de

entrevista, p. 53). Por volta dos 20 anos começou a criar cenários para teatros. Muitos

dos projetos dos quais participou ganharam projeção na mídia e foram premiados. Em

22 Tempo e Espaço atelier de tecnologia. Disponível em http://atelietempoespaco.com.br/, acesso em 02/12/2018 às 12h32 23 Atelier de marcenaria Cose di Legno. Disponível em http://cosedilegno.com.br/, acesso em 02/12/2018 às 12h34.

63

viagem para Portugal, ao longo de um ano e meio colaborou na realização de

exposições. Iniciou o curso de Arquitetura, mas trabalhando com a cenografia e

viajando com muita frequência, encontrou dificuldades em prosseguir. Conheceu

vários países e ressalta a influência da cultura japonesa na construção de sua

identidade profissional.

O trabalho em cenografia veio ao encontro de uma necessidade pessoal:

Guilherme Rossi não gosta da repetição, seu prazer está em tentar algo novo até a

finalização da obra. Afirma que o desafio da criação é o primeiro motor do processo.

Não gosta de fazer duas vezes a mesma coisa, é movido pela novidade.

O que a gente faz assim, sofre muito, mas tem uma satisfação quando tá pronto, porque tudo é uma peça única, e nunca se repete né? Eu nunca repeti um trabalho na vida. Eu nunca, assim, a não ser assim, faz três iguais, mas de resto eu nunca repeti um trabalho. (Notas de entrevista, p. 54).

“Hoje eu ainda não sei exatamente o que a gente faz, sabe? Se tem um nome

para o que eu faço”, diz (Notas de entrevista, p. 53). Acha que suas produções

transitam entre os saberes do arquiteto e os do engenheiro: “O engenheiro, ele vai

fazer parrudo, sabe? O arquiteto vai fazer mais o miolo, a mecânica falta, então essa

junção de fazer a coisa super estreita funcionar sem barulho”. (Notas de entrevista, p.

54).

64

Figura 25- Guilherme Rossi e obra em execução

Fonte: Google – site do artista24

O material escolhido para a execução vai se adequar ao projeto idealizado.

Dessa forma, apesar de boa parte das ferramentas e equipamentos do local serem

apropriados para o trabalho em madeira, ele transita entre a resina e o metal, se o

projeto assim pedir. É importante que o resultado final seja o melhor possível e o

material utilizado deve se adequar a isso. Seu parceiro, o Leo, trabalha unicamente

com a madeira e comumente ocupa a primeira sala, adequada para a técnica.

Leo é organizadíssimo com a limpeza e cuidado das ferramentas, Guilherme

Rossi não se sente tão organizado: “Depois eu te mostro o lixo que está saindo de lá,

ele organiza numa coluna direitinho, tipo assim, aquele lixo meio psicológico sabe, eu

te mostro lá, fica bem legal.” (Notas de entrevista, p. 59).

24 Site Mata Amp. Disponível em https://mataamp.wordpress.com/ Acesso em 24/11/2018

65

Figura 26- O “lixo psicológico” de Leo

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

Os dois compartilham as mesmas ferramentas e cuidam igualmente da limpeza

e conservação dessas.

Figura 27- Organização das ferramentas no atelier de Guilherme Rossi

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

Guilherme Rossi conta que houve uma grande mudança em sua dinâmica de

trabalho nos últimos anos. Acostumado a procrastinar e varar algumas noites para

66

finalização dos trabalhos no prazo combinado com os clientes, atualmente o

planejamento resulta em um fluxo mais contínuo, com horários regulares. Apesar

disso, não é incomum passar pelo atelier aos finais de semana, realizando projetos

pessoais.

Para organizar os pedidos de clientes criou juntamente com seu parceiro um

sistema semelhante ao das cozinhas de restaurante. Os pedidos ficam organizados

em pranchetas que ficam penduradas na bancada de forma bem visível. Isso porque

pode ser necessário coordenar até cinco trabalhos ao mesmo tempo.

Não sente ser melhor trabalhar em um horário ou em outro, tanto criação quanto

execução cabem bem em qualquer hora do dia. Mas explica que a execução segue

fluxos: o envolvimento acontece com o corpo inteiro, intercalando dias com maior ou

menor disposição para o trabalho. Também não tem preferência pela criação ou pela

execução, importa-lhe ser desafiado e chegar até a finalização.

Guilherme Rossi conta com uma rede de parceiros: além do Leo, seu sócio com

quem divide a execução dos trabalhos, lembra do fornecedor de madeira, do torneiro

mecânico, do fornecedor de maquinário, não deixando de dizer que aprende muito

com eles. Prefere sempre o pequeno fornecedor, com quem consegue formar uma

rede. Estabelece laços de amizade com seus fornecedores e gosta de indicá-los a

outros: “Eu tento sempre encaixar o pequeno, sempre é assim, as pessoas precisam

me manter vivo, assim você cria um fluxo, um rio.” (Notas de entrevista, p. 64).

Atualmente toda a criação e produção de Guilherme Rossi acontece por

encomenda. Já possui uma carteira de clientes e novos clientes surgem a partir de

indicações. Ficou conhecido entre cenógrafos e artistas como aquele que soluciona

problemas difíceis.

Nesse sentido, há algo a ser modificado para o futuro: ele gostaria de dedicar

mais tempo a suas próprias criações. Entre seus vários planos está a criação e

produção de brinquedos: piões, carrinhos, karaokês, estão na sua mira. Por que

brinquedos? “Ah, é a fantástica fábrica de chocolates, é encantador assim... “ (Notas

de entrevista, p. 63). Além disso, pai de uma criança pequena, avalia que as crianças

estão sendo muito mal atendidas em suas necessidades.

67

Figura 28- Brinquedo realizado por Guilherme Rossi

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

Guilherme Rossi aponta para a uma questão que considera mal resolvida no

mundo da arte: a coautoria. Há uma dedicação imensa em, ao receber uma

encomenda, entender aquilo que o artista deseja fazer para tornar-se seu próprio

braço e executar exatamente o que foi idealizado: “A gente aqui quando vai fazer esse

tipo de coisa eu incorporo o cover, então você vai tocar uma música que não é sua,

mas você toma ela pra você [...] eu aposto no vínculo, sabe?” (Notas de entrevista, p.

58 e 59). Há prazer em fazer a correta leitura de uma criação. Às vezes a execução

exata de uma peça, tal qual idealizada, não é possível e cabe-lhe propor soluções

alternativas. Essa forma de trabalhar transforma-o em coautor daquilo que executa.

Muitos artistas reconhecem isso e lhe dão créditos de coautoria, outros não.

Guilherme Rossi ressalta como isso é um problema muito mal resolvido dentro do

mundo da criação artística, especialmente no Brasil.

Convidado a relembrar o processo de criação de uma peça, da concepção até

o resultado final, Guilherme Rossi não demorou nada para fazer sua escolha. Ele

conta que uma empresa do ramo farmacêutico japonesa solicitou a ele a execução de

uma escultura em estrutura vazada de um tsuru25. O cliente deixou-lhe a liberdade de

escolha do material, definindo apenas o tamanho da obra e o local onde esta ficaria.

A primeira ação de Guilherme Rossi foi almoçar no seu restaurante japonês

favorito, pedindo a uma das proprietárias que lhe fizesse um tsuru. Com o tsuru em

25 Tsuru: considerada uma ave sagrada no Japão, símbolo de longevidade. Podem ser elaborados com a técnica de dobradura de papel e oferecidos, desejando longevidade àquele que a recebe.

68

mãos e com a ajuda de um software de desenho, Guilherme Rossi projetou a escultura

vazada nas medidas solicitadas pelo cliente. Os vários triângulos que compunham as

partes do tsuru foram transformadas em gabaritos, no tamanho desejado. Guilherme

Rossi optou pela confecção em metal tubular. Com o projeto pronto, em apenas uma

manhã de trabalho soldou as peças, primeiramente compondo separadamente todos

os planos do tsuru com a ajuda dos gabaritos para finalmente unir todos estes na peça

final.

Guilherme Rossi escolheu descrever essa obra por alguns motivos: apesar de

ser uma encomenda bem específica, sentiu que havia liberdade na criação. Gostou

muito da ideia de ter o primeiro modelo feito por pessoas por quem tem afeto. O papel

moldado por uma amiga transformou-se em um modelo sofisticado feito com

tecnologia de ponta:

Teve essa questão do analógico e do tecnológico [...] Aí então teve essa questão de eu ir buscar uma referência real né, nesse lugar que eu gosto muito, e aí eu passei pro 3D, a parte mais moderna [...] mas teve essa questão de usar a ourivesaria, usei soldas de ourivesaria mesmo, a parte mais antiga, e ir no restaurante, pegar a referência...(Notas de entrevista, p. 65, 66).

A montagem foi desafiante, exigiu bom planejamento e pôde executar a peça

toda com suas próprias mãos. O cliente ficou muito satisfeito, a obra era exatamente

o que havia sido imaginado, tanto por ele quanto pelo seu autor.

Figura 29- Projeto do tsuru realizado por Guilherme Rossi

Fonte: Imagem cedida pelo artista

69

Figura 30- Projeto realizado por Guilherme Rossi

Fonte: Imagem cedida pelo artista

Figura 31- Projeto realizado por Guilherme Rossi

Fonte: Imagem cedida pelo artista

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Figura 32- Projeto realizado por Guilherme Rossi

Fonte: Imagem cedida pelo artista

1.4.4 Entrevista comentada: Luciana Faria – Arte em cerâmica

É na modelagem de um barro primitivo que a Gênese encontra suas convicções. Em suma, o verdadeiro modelador sente, por assim dizer, animar-se sob seus dedos, na massa, um desejo de ser modelado, de nascer para a forma. Um fogo, uma vida, um sopro é uma potência na argila fria, inerte, pesada. A argila, a cera, tem um potencial para as formas. (BACHELARD, 2013, p. 81).

A decisão de entrevistar Luciana Faria resultou na realização de uma

agradável viagem a Cambury, litoral norte de São Paulo, em um dia muito ensolarado.

Nascida na região do ABC Paulista, ainda jovem Luciana Faria teve a

oportunidade de passar alguns meses em Firenze, para estudar italiano. Sem

qualquer conhecimento de arte, encantou-se com o que o ser humano pode produzir

com a matéria. A obra de arte mudou sua forma de ver o mundo. Retornando ao Brasil,

decidiu que não queria mais a tensão da cidade e mudou-se para a cidade onde hoje

mora.

Trabalhava como auxiliar de ensino em uma escola de ensino fundamental

quando entrou em uma loja e deparou-se com peças de cerâmica produzidas por

71

Helene Perutz, que morava na cidade. Luciana Faria já havia feito pinturas em

cerâmica como hobby, mas o trabalho de Helene Perutz lhe pareceu diferenciado.

Luciana Faria procurou-a e, sem recursos para pagar aulas de pintura em

cerâmica, ofereceu-se para trocar as aulas por serviços diversos:

Eu quero aprender a fazer a cerâmica com você. Só que eu não tenho dinheiro para pagar suas aulas. Então eu proponho troca. Eu posso pagar o que eu conseguir fazer e vender, ou eu posso limpar o seu ateliê, ou eu posso passear com os seus cachorros, não sei. Você me fala o que você precisa em matéria de prestação de serviço e eu topo, porque não tenho medo de trabalhar. Ela achou uma graça, com aquele sorriso dela que você vai conhecer. (Notas de entrevista, p. 71).

Iniciou-se aí uma relação que já dura 25 anos. Atualmente as duas são sócias

na produção de louças e acessórios de mesa, tendo como principais clientes

restaurantes de todas as partes do país. Luciana Faria trabalha no atelier de Helene

Perutz e prepara um atelier em sua própria casa, onde pretende intercalar suas

atividades.

O atelier de Helene Perutz está montado em um amplo espaço rodeado por um

jardim. Bancadas de trabalho e estantes estão disponíveis para produção,

armazenando diferentes qualidades de argila, grande variedade de pigmentos e

acessórios para pintura, recipientes com testes de cores e peças em diferentes

estágios de execução. Um forno e uma plaqueira são o maquinário disponível. Para o

seu atelier, já providenciou o torno e a plaqueira, e aproveitará para adquirir um forno

mais potente.

72

Figura 33 - Atelier de Helena Perutz e Luciana Faria

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista com a artista

Figura 34- Atelier de Helena Perutz e Luciana Faria

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista com a artista

Luciana Faria é formada em pedagogia e trabalhou alguns anos em escolas de

ensino fundamental e ensino infantil, como assistente, alfabetizadora e na oficina de

artes. Trabalhou em uma ONG, onde planejava atividades artísticas de apoio às

escolas. Após a dissolução da ONG e o fim de seu casamento, há quase quatro anos,

73

viu-se em dificuldades financeiras quando, coincidentemente, recebeu de uma amiga

a doação de pilhas de cinzeiros em cerâmica para pintura. Pintou-os e surpreendeu-

se com o resultado das vendas, percebendo que tinha talento. A artesã lembra deste

evento como um ponto de virada, um momento de percepção de que os revezes têm

de ser compreendidos como situações temporárias. Decidiu então fazer da cerâmica

seu meio de vida. E deu certo, “tudo foi acontecendo organicamente” (Notas de

entrevista, p. 80).

Hoje ela conta que trabalha incansavelmente. Acorda cedo e pode produzir até

de madrugada. Normalmente prefere trabalhar à noite, mas percebe que quando tem

que modelar, produz muito melhor bem cedo, entre 7h e 11h da manhã, sem

conversar, preferencialmente com música alta. Admite que tem momentos de queda

na produção, o corpo pede para parar. Aprendeu a respeitá-lo. Percebeu que após

uma pausa na produção sucede-se uma grande recuperação e um período criativo

importante. Há pouco tempo parou toda a oficina quando havia uma grande

encomenda a ser entregue e dedicou-se a ajudar um pedreiro que contratou para fazer

um novo cômodo em sua casa, tornou-se ajudante de pedreiro. Depois retornou com

toda a força e está certa de que entregará a encomenda no prazo. Essa postura não

tem absolutamente nada a ver com desrespeito aos prazos estabelecidos com o

cliente, mas com respeito ao próprio corpo e à produção. Está convicta de que não se

deve modelar algo quando não se está bem, pois será utilizado por alguém, e, no

caso, para a alimentação desse alguém.

Quem manda é o corpo, mas também a argila. O tempo da argila e o tempo do

fogo são decisivos na dinâmica do trabalho. Há que aguardar a primeira secagem, a

queima, o resfriamento, pintura, secagem, nova queima. Adiantar o processo pode

resultar na quebra da peça. Querer adiantar o processo de secagem é um risco. “Isso

não é um “não pode” bobo. É um “não” que não pode mesmo. Porque a gente se

arrepende”. (Notas de entrevista, p. 91).

Assim, quando há muitas encomendas, o atelier se assemelha realmente a uma

linha de produção: peças recém moldadas e ainda em formas, peças fora da forma na

primeira secagem; peças em uma estante ao lado do forno, agilizando levemente a

secagem. Peças no forno, que, uma vez ligado deve ser utilizado ao máximo, devido

ao alto custo do aquecimento; peças prontas para pintura, que serão novamente

queimadas. A produção otimizada exige a articulação dessas etapas todas e a

74

exigência de espaço não é pequena. Quando os pedidos envolvem muitas peças,

providencia-se mais formas, agilizando a etapa de moldagem. As formas são em

gesso, que absorve a água e agiliza a secagem da peça.

Quando se aproximou de Helene Perutz, Luciana Faria apenas pintava, era

apaixonada pela pintura em corda seca. Quando decidiu modelar além de pintar,

optando pela criação de louças, logo eliminou a etapa que a irritava, aplainar a argila.

Acha tamanho trabalho desnecessário, já que é possível dispor de uma plaqueira.

Também guardava certa restrição à lida com o forno:

E não é que eu não gostava de modelar, eu não tava preparada, não tinha amadurecimento. Porque a modelagem exige um equilíbrio, porque ela racha, o negócio racha. Vira pedaços. Eu ficava frustrada, e tinha uma coisa do imediatismo da juventude que você fala: como assim? Eu fiz um negócio e daí quinze dias para secar, daí acabamento e tanãnãnã e rachou!”. Ficava puta. Ah puta, tem muita bolha26… Tem, tem bolha e tem que tirar uma por uma. Tem que tirar uma por uma sim, e pronto. Só que lá atrás eu não tava pronta para entender isso. Eu não tinha essa coisa, então eu não fazia. Eu fazia pouco e não gostava. Mas já gostava de umas formas diferentes, já era chatinha com qualquer coisa. Ah, não gosto desses pratos redondos. (Notas de entrevista, p. 71).

Afirma que começou a modelar por necessidade, e se no início das atividades

Luciana Faria temia a queima, aprendeu a enfrentá-la. Aliás, ao longo dos anos de

trabalho com a argila aprendeu a enfrentar cada uma de suas dificuldades e testar,

um a um, os dogmas da profissão. Como exemplo, Luciana Faria conta que produziu

uma linha de cumbucas que ela considera “um atrevimento”. Modelou-as bem mais

finas, não alisou os cantos, o que tira bastante da resistência da peça, rasgou partes

das cumbucas e depois voltou com as partes rasgadas, costurando e grudando.

Naturalmente muitas quebram durante a queima, de uma fornada de trinta peças

podem sobrar quinze. Há também o estorvo de limpar o forno, pode-se inclusive

danificar alguma resistência. Mas as peças que resistem são belas e agradáveis para

uso, ela acha um retorno ao “tempo das cavernas” (Notas de entrevista, p. 94).

Luciana Faria embute a perda no preço e continua produzindo-as, pois fazem

sucesso.

26 As bolhas de ar na peça em cerâmica são grandes responsáveis pela quebra da peça na queima, portanto devem ser retiradas no momento da modelagem.

75

Figura 35 - Peça realizada por Luciana Faria

Fonte: Instagram: Lufaceramicas – utilização autorizada pela artista

Figura 36- Peça realizada por Luciana Faria

Fonte: Instagram: Lufaceramicas – utilização autorizada pela artista

Os cacos a levam à criação a partir do acaso e pode produzir pequenos painéis

com peças quebradas e arranjadas de forma harmônica, dando uma pausa na

produção de utilitários para criação de composições artísticas livres.

O forno é um assunto por si para o ceramista, a autonomia na profissão se

conquista quando se possui um forno no atelier.

76

Figura 37- Organização das peças no forno

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista com a artista

Há fornos de várias temperaturas e muitas regras giram em torno deles. Quanto

mais alta a temperatura, mais resistente a peça fica. No entanto, há um consenso

entre os ceramistas de que o forno de alta temperatura altera a intensidade de

algumas cores, como os vermelhos, os laranjas e os amarelos, tirando-lhes a beleza.

Luciana Faria tem planos para sua pintura com cores intensas:

Todo mundo fala que não fica bom. Mas vai ficar bom. Porque o povo faz o seguinte, eles queimam biscoito na baixa, porque fica mais barato, porque é mais rápido na baixa. Você não atinge os 1.200 graus, e depois esmalta na alta. Se queima o biscoito na alta fica mais difícil de esmaltar porque ela fica menos porosa. Eu vou experimentar, vou começar a fazer teste. Eu vou queimar o biscoito na alta, deixar ele bem impermeável, e vou tacar o esmalte em seguida, e queimar ela na baixa [...] E se não der para trabalhar esse negócio da alta com as cores, eu vou começar provavelmente a ter que criar esmalte. ter que pesquisar corante, esmalte, base. (Notas de entrevista, p. 79).

Ela está certa de que seus fornecedores de esmalte saberão ajudá-la neste

processo. Luciana Faria considera o seu atelier e o de Helene Perutz um espaço de

eterna experimentação. Acha que o fato de ambas não terem feito qualquer curso de

cerâmica e modelagem as ajuda a testar, pois elas desconhecem as restrições: “Pode,

77

eu quero. E vou lá e faço. Então não tenho a técnica para tolher o meu instinto. É

barro, gente! Por que não pode? Pode o que eu quiser, o que a minha mão e o barro

resolverem que dá para fazer. Se eu quiser esticar o negócio deste tamanho na

modelagem, eu vou esticar!” (Notas de entrevista, p. 79). Questionada sobre os

possíveis dogmas na profissão, acredita que há muitos deles entre os ceramistas.

“Aqui a gente brinca”, “aqui é um playground”, ou “aqui a gente se diverte muito” são

frases que apareceram durante a entrevista.

Figura 38- Peças realizadas por Luciana Faria

Fonte: Instagram: Lufaceramica – utilização autorizada pela artista

Quando está em fase de teste tudo pode ser feito no atelier de Luciana Faria e

Helene Perutz. Este momento não é o de medir custos e pensar em todas as

restrições. Falando sobre seus testes com a tinta de ouro ela conta que ambas ficaram

tão felizes com a chegada da tinta ao atelier que nem pensaram no custo por

utilização, apenas a usaram:

No próximo (uso) a gente vai poder medir. Porque o “go for it” de fazer era tanto, dessa daí (Helene Perutz), que ela não mediu. Falei: “Lê, mas veio cheio?”, ela falou: “Não olhei”, “Mas Lê, como é que a gente vai saber quanto tinha no pote?”, perguntei. “Não sei, vai ter que ser no próximo“. Até pra fazer o preço... (Notas de entrevista, p. 89).

Mostrando os diferentes tipos de argila com os quais trabalha, Luciana Faria

cita a argila preta, a argila vermelha (terracota) e a argila branca. Ela explica que a

78

última é mais amigável ao manuseio, mais macia e a primeira a mais “esfarelenta”. As

duas primeiras frequentemente lhe dão mais trabalho. Pensando nisso, decidiu

trabalhar com elas mais frequentemente:

Eu não gosto de trabalhar com terracota, porque a terracota me dá baile. Mas baile assim, sacana de rachar na secagem. Vou fazer aquela peça, aquele prato... Aí de um dia para o outro já rachou. Rachou esse negócio? Por que? Nada a ver. E rachar no forno, explodir no forno. A terracota sempre faz isso comigo. Mas como eu não tenho mais o que fazer eu acabei de convencer um cliente, acabei de fazer um orçamento para ele de um restaurante, tudo em terracota. Porque eu vou resolver minha parada com a terracota. (Notas de entrevista, p. 83).

Luciana Faria parece preferir esteticamente a argila preta, apesar da dificuldade

no manuseio. Se a peça for pintada, muitas vezes procura deixar algo da argila preta

aparente.

Para as pinturas, no atelier de Helene Perutz e Luciana Faria se utilizam

prioritariamente pigmentos em pó, que tem melhor preço e permitem todo o tipo de

misturas. A maioria deles é nacional, alguns poucos, como os pigmentos para baixo

esmalte, são importados. A criação dos tons apropriados é uma etapa importante no

trabalho das duas artesãs. Enquanto modelam já vão imaginando que cores utilizarão

na pintura. Seu estoque de matéria-prima inclui até mesmo a tinta de ouro, que ela

afirma usar livremente se achar que combina com determinada peça que está sendo

produzida. Luciana Faria explica que a escolha da cor é uma etapa delicada. A cor

altera-se muito após a queima, o que exige uma grande abstração na hora da escolha,

especialmente se houver a necessidade de combinar diferentes cores em uma

encomenda de jogos de louças. Ela mostra um cinza antes e depois da queima, o

mesmo cinza. São completamente diferentes. Conta que, no que se refere ao trabalho

com as cores, ainda age como criança. Cada vez que precisa refazer uma cor para o

cliente, testa tudo novamente. Gosta da experimentação, mas admite que é

contraproducente e pensa em fazer ficha técnica das cores utilizadas em suas peças,

agilizando novos pedidos do mesmo cliente.

Há pouco tempo Luciana Faria tem feito uso de uma tinta cujo efeito depende da

pincelada. Ela tem preparado linhas completas para restaurante, um prato com

pinceladas diferentes do outro, o que resulta em uma mesa com muito movimento e

criação:

79

Assim, então vou dar cinco demãos de tinta. Pegar o pincel e pintar ele uma mão, duas, três, quatro, cinco, ele reage de um jeito. Ele fica um escândalo, fica xadrez. Eu sei porque ele ficou daquele jeito, foi pelo jeito que eu pincelei... Aí eu pego outro prato, mesmo verde. Aí eu pego e vou no torninho. Aí vou de fora pra dentro, faço redondo. Pincelei ele redondo, dá outro efeito. Aí eu faço ele de gota, dá outro efeito. Eu piro, né? (Notas de entrevista, p. 81).

A artesã mostra também peças cujas cores nasceram da utilização de cacos

de vidro escolhidos ao acaso. Jogados nas peças na hora da queima, derretem e

fundem-se à cerâmica, resultando em vitrificados coloridos.

Figura 39- Cerâmica com aplicação de cacos de vidro

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista com a artista

Luciana Faria conta que, estando mais segura na profissão, pôde iniciar a

prática de conversar com o chefe de cozinha quando lhe encomendam louças. Com

o chefe ela acorda cores que combinarão com os pratos ofertados pelo restaurante,

fazendo belas composições em parceira. Gosta desse diálogo. Normalmente tem

muita liberdade de criação, o cliente lhe dá linhas básicas e tudo se discute

conjuntamente. Partes do processo ainda não concebidas são discutidas

80

posteriormente, há esse gesto de confiança em grande parte de seus clientes, que

não esperam um projeto totalmente pronto para fechar uma encomenda.

Figura 40- Peça realizada por Luciana Faria - combinação do prato com a refeição

Fonte: Instagram: @lufaceramica – utilização autorizada pela artista

Figura 41- Peça realizada por Luciana Faria - combinação do prato com a refeição

Fonte: Instagram: @lufaceramica – utilização autorizada pela artista

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Figura 42- Peça realizada por Luciana Faria - combinação do prato com a refeição

Fonte: Instagram: @lufaceramica – utilização autorizada pela artista

Muitos requerimentos serão levados em consideração na criação: a cor

escolhida precisa ser adequada às máquinas de lavar louça modernas, algumas cores

ficam opacas após a lavagem; Na maioria dos restaurantes o prato precisa ser

coringa, precisa poder ser usado para atender a mais de uma situação; para muitos

restaurantes, precisa ser empilhável. “Até porque as pessoas não têm tanto espaço

de armazenamento assim, né?” (Notas de entrevista, p. 85), ela explica. O tamanho

do prato a ser elaborado ocupa um lugar no forno e isso tem um custo a ser

considerado. Há cores maravilhosas que são tóxicas, como o vermelho cádmio. São

cores que podem ser usadas para um porta-alianças, por exemplo, mas não para um

utensílio de cozinha.

82

Figura 43- Porta-alianças realizado por Luciana Faria

Fonte: Instagram: @lufaceramica – utilização autorizada pela artista

Luciana Faria nunca finaliza uma entrega se o cliente porventura não tiver se

agradado do teste. Não gosta da ideia de que alguém esteja usando algo de sua

autoria sem se agradar.

A exposição acontece pela internet, blog e Instagram, onde posta fotos de suas

obras, mas também outras, bem-humoradas, que lhe garantem seguidores. Agora já

possui também uma carteira de clientes bem constituída. Produz somente por

encomenda e recusa encomendas se acha que não terão bom resultado.

Desde que começou a produzir pratos, se a encomenda é para um restaurante

ela carimba o logo no prato, o que resulta em peças únicas, que não podem ser

encaminhadas a qualquer outro cliente, caso a produção seja recusada. Às vezes ela

escolhe deixar o logo em evidência, as vezes ela o deixa no fundo do prato, de forma

que se torne uma surpresa para o cliente, visível somente ao final da refeição.

83

Figura 44- Peça realizada por Luciana Faria - logotipo do restaurante

Fonte: Instagram: @lufaceramica – utilização autorizada pela artista

Figura 45- Peça realizada por Luciana Faria - logo do restaurante

Fonte: Instagram: @lufaceramica – utilização autorizada pela artista

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Figura 46 - Peça realizada por Luciana Faria - logo do restaurante

Fonte: Instagram: @lufaceramica – utilização autorizada pela artista

Não aceita participar de feiras e bazares, decisão tomada desde o início da

profissão, pois opta por investir seu tempo no atelier. Se o seu tempo de entrega é

maior do que um cliente pode esperar ou se acha que outro profissional pode executar

melhor alguma encomenda– trabalhos em torno, por exemplo – ela mesma faz a

indicação de outro profissional de confiança. Acredita na formação de redes e na ética

do trabalho. Valoriza imensamente a ética e as parcerias:

Achei o caminho para trabalhar. Trabalhar e não prejudicar o amiguinho. Isso é condição. Não fico devendo, não enrolo, não engano cliente, não engano o outro ceramista. E a partir daí eu já acho que passo a merecer os louros todos, porque eu tô trabalhando com ética. Então as coisas funcionam. (Notas de entrevista, p. 80).

Associa o sucesso que tem tido com suas peças com o prazer na execução.

Acredita que o prazer reverbera por tudo. Tornou-se autoconfiante, percebe que seu

produto é bom, feito com cuidado estético e, ao mesmo tempo, apropriado para uso e

manuseio:

Então tem essa coisa da ética, que eu estou confiante que está dentro da minha ética esse trabalho, e que eu sou capaz de fazer. Beleza, isso é a parte racional. Energeticamente, aí eu acho que pega mais a parte que você está pesquisando. Daí vem da lida com barro, da lida com a coisa da ancestralidade mesmo, da coisa primitiva, de você mexer com uma coisa que não tem erro. É o homem, e o barro, e o amor, e a vida, e uma troca. Eu tô dando o barro aqui e ele tá me dando. Então isso tem uma força energética que não dá para dar errado. (Notas de entrevista, p. 76).

Ao falar sobre parceiros, Luciana Faria lembra de seus fornecedores e conta

que desenvolve parcerias com pessoas que a agradam. Valoriza as relações cordiais

e os produtos de boa qualidade. Não regateia preço e não faz orçamentos para troca

85

de fornecedores. Foi desenvolvendo relação com alguns fornecedores na própria

região, como o gesseiro que lhe faz as formas. A fornecedora de carimbos está

próxima, em Caraguatatuba. A argila continua sendo comprada em São Paulo, trata-

se de uma parceria valiosa. Gosta do contato e das relações de proximidade, gosta

das redes regionais. Quando precisa de uma cor específica, aí sim, pesquisa em

muitos lugares e compra sem negociar. Obter a exata cor idealizada é mais

importante.

Equipamentos de segurança, Luciana Faria aponta as luvas de amianto para

retirada das peças do forno, usadas rotineiramente, e a necessidade de uso de

máscaras de proteção para algumas resinas e pigmentos tóxicos, que ela não utiliza.

Acha que a frequência com que usa tais componentes químicos não justifica o uso de

máscaras, mas lembra de colegas que já foram intoxicadas ao trabalhar com eles.

Convidada a descrever o processo de criação de uma obra, Luciana Faria

escolhe uma saladeira esmaltada em azul cobalto. Um cliente, dono de restaurante,

encomendou uma saladeira, sem maiores detalhes. Luciana Faria pegou uma

cumbuca que muito lhe agrada e decidiu fazer uma saladeira com a mesma base,

somente bem maior, o maior possível:

Eu falei, eu quero fazer o maior anel que eu puder. Aí eu peguei aquela coisa do ventilador para cortar redondo, para ter o maior círculo que eu tivesse ali de corte, que coubesse no forno. Peguei o do ventilador. Cortei, subi, porque ia ter muita argila sobrando. Subi bem ela, acho que coloquei outra daquela e mais uma. E foi um delírio total, porque aí eu devia estar mais ou menos aqui assim, ó (mostra peça), e aí ela cai inteira. (Notas de entrevista, p. 93).

Luciana começou a utilizar várias peças que havia no seu ambiente de trabalho

para apoiar sua saladeira: “Carimbei minha assinatura, fui embora. A Helene me liga

no fim do dia e me diz assim (e ela não viu eu fazendo, eu tava sozinha): ‘Aquela coisa

gigante que você fez, rachou na bunda’. Falei: ‘Não na minha escultura!’”(Notas de

entrevista, p. 93). Luciana voltou ao atelier e iniciou o reparo da rachadura:

E comecei a amassar, amassar, amassar… Enfiei a mão por dentro… (Simula na peça). E ela falou assim: “Mas não pode, vai rachar!”, falei: “Não vai rachar, eu não quero que rache… Não tá linda?”, ela falou: “Tá linda!”, “Então não vai rachar”. A primeira fase. Enfiei no forno na primeira oportunidade, quando secou, deixei secar. (Notas de entrevista, p. 93).

86

Luciana Faria deixou a peça secando por aproximadamente vinte dias antes de

levá-la ao forno, devido ao tamanho. A saladeira saiu do forno perfeita: “Só que ela

tinha um histórico de racho, né? Então falei: Tá bom, então eu vou esmaltar ela no

azul cobalto, que é esse azul reativo, porque se tiver algum resquício de racho ele vai

fundir porque esse esmalte tem essa característica de fundir pequenos rachos.”

(Notas de entrevista, p. 93).

Para garantir que a pintura a auxiliasse na resistência da peça, a ceramista

deixou o pincel de lado:

E eu não vou esmaltar no pincel. Foi a primeira peça que eu fiz assim. Ah, antes de esmaltar eu passei uma baba de argila preta nela. Quer dizer, ela é uma peça branca, que eu passei uma baba de argila preta porque o azul cobalto na branca a gente sabia que não ia ser reativo. E aqui fora eu fiz ela esmaltada, sem a baba preta, e ela reagiu também, que a gente não sabia o que ia acontecer porque em geral ela não vai bem na (argila) branca. Aqui foi na base da pincelada, e isso aqui é cortante, tem que tomar cuidado. Porque são bolhas do vitrificado que estouraram. (Notas de entrevista, p. 93).

A peça foi queimada três vezes: “Queimei o biscoito, essa primeira queima a

gente chama de biscoito. Aí queimei o esmalte a primeira vez, segui minha intuição e

coloquei uns três pezinhos assim (mostra), portanto o escorrido não foi para a

prateleira.” (Notas de entrevista, p. 93).

O escorrido da tinta azul foi aproveitado por Helene Perutz: “Ele pingou na

prateleira que estava lotada de caulim, ela conseguiu salvar aquela bolha que foi para

a tua colher. Tá vendo? Ela pingou no caulim, o caulim não deixa grudar na prateleira,

tirei a bolha, ela (Helene Perutz) já se apossou da bolha.” (Notas de entrevista, p. 93).

Na terceira queima Luciana Faria pôde ver o resultado final: “[...] Aí eu quebrei

as bolhas e enfiei no forno de novo pra ver o que ia acontecer, mas não aconteceu

muita coisa e ela continuou embolhada. Aí eu falei que não tem problema porque ela

é minha, mesmo.” (Notas de entrevista, p. 93).

87

Figura 47- Peça realizada por Luciana Faria - Inspiração para a saladeira

Fonte: Instagram: @lufaceramica – utilização autorizada pela artista

Figura 48- Saladeira realizada por Luciana Faria

Fonte: Imagem cedida pela artista

88

A peça que deveria ter sido entregue ao cliente ficou para Luciana Faria, que

agora produzirá outra para entrega, desta vez com a base mais larga, que ela

considera mais adequada para uma saladeira.

Figura 49- Peças realizadas por Luciana Faria - múltiplas utilizações das louças

Fonte: Instagram: @lufaceramica – utilização autorizada pela artista

Figura 50- Peça realizada por Luciana Faria

Fonte: Instagram: lufaceramica – utilização autorizada pela artista

89

1.4.5 Entrevista comentada: Osni Branco – Arte em madeira e arte em

metal

É realmente a marca das imagens materiais primordiais – a dureza é

uma delas – receber sem dificuldades as formas mais diversas. A

matéria é um centro de sonhos. (BACHELARD, 2013, p. 55)

Osni Branco produz, profissionalmente, peças em madeira ou em metal. Seu

atelier ocupa grande parte de sua casa, em Itapecerica da Serra, localizado em um

grande terreno arborizado em uma rua tranquila. Logo na entrada encontra-se o

armazenamento de produtos disponíveis para venda. Mesas de todos os tamanhos e

para vários fins, pequenas estantes, peças de decoração, como vasos, suportes para

vela e cachepots. Em meio a eles uma mesa com desenho muito diverso do seu estilo:

a réplica da mesa de sua casa na infância, peça que não está à venda. Descendo as

escadas, uma segunda grande sala abriga seu escritório e atelier, onde são

elaborados os moldes para suas produções em metal. Em cima de uma das bancadas,

baobás de vários tamanhos e tipos em isopor e poliuretano expandido (que importa

do Japão e recebe pelo correio) inspiradas na obra O Pequeno Príncipe, moldes para

futuras peças em metal, uma encomenda ainda em execução.

Figura 51- Moldes realizados por Osni Branco - Coleção Baobás

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

Nas paredes, fotografias, premiações, recortes de jornal falando sobre seus

trabalhos. Nas mesas de trabalho, ferramentas de diversos tipos e protótipos diversos.

90

Uma sala ao lado funciona como depósito e as muitas estantes armazenam

ferramentas, matéria-prima e resultados de suas experiências.

Descendo uma escadaria encontram-se mais três oficinas: uma para pintura e

acabamentos finais das peças menores feitas em madeira, a segunda oficina com os

equipamentos para trabalho em madeira (tornos e lixadeira).

Figura 52- Oficina de madeira de Osni Branco

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

A terceira oficina é a de metal, com as bancadas de trabalho, ferramentas

dispostas na parede e dois fornos para fundição. A construção dessas três oficinas

foi realizada pelo próprio Osni Branco, com a ajuda de uma equipe.

91

Figura 53- Oficina de fundição de Osni Branco

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

Figura 54- Oficina de fundição de Osni Branco

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

92

As mesas e estantes que produz têm uma marca própria: bases em metal,

pranchas em madeira. A madeira com a qual ele se dispõe a trabalhar é aquela

encontrada ao acaso, a madeira da árvore que caiu, a outra encontrada na água,

madeira de demolição. Não há compra de madeira. Ao longo dos anos de trabalho

ficou conhecido pelo seu trabalho e as pessoas o procuram quando surge uma tora

de boa qualidade. Isso já lhe valeu muita aventura, como a remoção de árvores

enormes de algum jardim com a ajuda de amigos e de sua caminhonete. Osni Branco

conta que do ponto de vista legal o Brasil está atrasado no que se refere ao

aproveitamento da madeira caída dos jardins e das vias urbanas, pois elas não podem

ser utilizadas em produção. Em outros países já existe todo um cuidado para que este

tipo de material possa ser utilizado, sem risco de dano proposital à natureza.

Figura 55- Peça realizada por Osni Branco

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

Osni Branco nasceu em Araçatuba, São Paulo. Na sua família não havia

ninguém voltado para as artes, o pai veio de Santa Catarina, terra da pecuária e da

madeira e, que os artistas homens tinham, inclusive, sua sexualidade questionada.

Descobriu o seu jeito para o trabalho como artista-artesão ainda menino. Sua escola

proporcionava experiências variadas em trabalhos manuais. Osni Branco fazia os

seus trabalhos com facilidade e alguns colegas o contratavam para que fizesse os

deles. Cedo percebeu que a produção artística e artesanal poderia ser um meio de

vida e se orgulhava de suas habilidades. Estudava em uma escola para orientais,

onde sua mãe era professora. Suas revistinhas vinham do Japão e conhecia as lendas

93

japonesas mais que as lendas do Brasil. Sua mãe traduzia para ele os caracteres

japoneses. Assim, o contato com a cultura japonesa aconteceu antes do que sua

memória consegue resgatar. Ainda bem jovem casou-se com uma oriental. Morou na

Itália, Estados Unidos e Japão, onde viveu aproximadamente vinte anos. Não cursou

ensino superior, fez inúmeros cursos técnicos, sempre relacionados ao trabalho

artesão.

Osni Branco absorveu muito da cultura japonesa. Trabalhava produzindo

moldes para fundição. Naquele país onde todos os espaços precisam ser poupados,

sua oficina inteira cabia em duas pequenas malas. Pela manhã, quando a família saía,

as duas filhas para a escola e a esposa para o trabalho, Osni Branco retirava debaixo

da mesa as duas malas e montava o seu atelier. Sempre de olho no relógio, um pouco

antes do retorno da família guardava tudo novamente. “Era aquela correria”, ele

lembra. Sua casa no Japão era tão pequenina que para se espreguiçar precisava se

dirigir a um ponto específico da sala. Nos outros pontos o pé direito era baixo demais.

Isso explica porque, ao voltar para o Brasil, escolheu um lugar espaçoso para viver.

“Jesus, tudo isso de espaço, de luz, e não se faz nada com isso”, ele diz assombrado

(Notas de entrevista, p. 97).

Do Japão Osni Branco guarda experiências fundantes da sua trajetória

profissional. Os parques públicos japoneses contam com ateliers para uso da

comunidade. Osni Branco os alugava a preços excelentes para ministrar oficinas. No

colégio britânico onde a filha estudava, pôde entalhar um grande peixe no horário das

aulas, no pátio, para que pais e alunos pudessem acompanhar a execução de uma

obra. Uma vez concluída, foi colocada no jardim da escola. Conduzia workshops em

escolas e aprendeu a fazer grandes adaptações aos processos originais. Por vezes

workshops de fundição tinham que acontecer em áreas acarpetadas e então

trabalhava-se com o estanho, que funde em temperatura mais baixa. Em vista do

espaço reduzido, para aprender a fazer qualquer peça grande o japonês reduz as

escalas e as faz em miniatura. “A receita do pão já está feita, depois é só aumentar o

tamanho da massa, certo?” (Notas de entrevista, p. 99). Osni Branco aprendeu a

conviver com estas adaptações todas. Ao retornar ao Brasil, nunca abandonou a

prática de oferecer oficinas a interessados, especialmente em fundição. Ministra

cursos a comunidades carentes, workshops a executivos de empresas e oferece

parceria a escolas. Guarda uma preocupação enorme com a educação e o

94

desenvolvimento do país, comentários sobre este tema permearam a entrevista. Sua

ida ao Japão parece ter ido ao encontro de suas inclinações. Ele lembra que o japonês

gosta muito da modelagem e valoriza o trabalho com as mãos, trabalha muito com a

imagem. “Eles criam muita imagem, até a escrita no Japão é imagem” (Notas de

entrevista, p. 98).

Com a cultura japonesa Osni Branco também aprendeu a dar grande valor aos

processos de trabalho, às transformações da matéria no tempo. E a apreciar as

qualidades específicas das matérias, todas. Com entusiasmo e sem precisar ser

questionado, o artesão caracteriza os diferentes tipos de madeira. Explica também

como identificar, olhando para a fatia cortada de uma árvore e observando o seu

centro, em que lugar o sol batia mais forte enquanto esteve plantada, pois ali o anel

estará mais expandido.

Figura 56 - Anéis de crescimento da árvore

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

Explica porque uma árvore solitária tem uma madeira mais resistente – fibra

mais dura - que a de uma árvore que esteve junto a um grupo e a diferença entre a

madeira próxima da raiz e a que está no topo. Explica qual o corte ideal de uma

madeira para se produzir um instrumento musical de boa qualidade - fatias finas

espelhadas feitas de tábuas irmãs, utilizando a parte da madeira mais resistente e que

mais tomou sol, a face norte da madeira. Mostra seus trabalhos finalizados e pede

95

que observemos a diferença entre os veios de uma madeira e de outra, evidenciando

o prazer que sente em produzir peças que não escondam a matéria-prima da qual foi

feita. Mostra um tampo de mesa em que uma peça de madeira foi fatiada e colada de

forma invertida, a parte mais grossa estava próxima à terra, a mais fina mais próxima

do céu, uma peça que, para seu autor, carrega a simbologia do “yin e do yang” (Notas

de entrevista, p. 96). Mostra os veios de uma peroba, imitando “movimento de água,

de rio” (Notas de entrevista, p. 97). Conta como se assa um tronco para matar

qualquer vestígio de cupim, envolvendo a madeira no gesso e jogando na fogueira.

Se Osni Branco tem a marcenaria e a fundição como meio de vida, isso não o

impede de experimentar outras técnicas. Trabalhos em cerâmica esmaltada,

esculturas em resina, pinturas em aquarela e a óleo, sumiês e estamparias em tecido

estão distribuídas pelo escritório e apoiados em estantes. Peças de cerâmica feitas

por crianças em uma de suas oficinas estão penduradas nas paredes externas.

Considera fascinante a capacidade humana de transformar a matéria. Gosta da

execução e guarda certo descrédito pelos artistas que apenas concebem a obra,

terceirizando a execução. Considera essa forma de compreender a arte como fruto da

cultura “escravagista”, que despreza o fazer (Notas de entrevista, p. 105).

Também não valoriza o artista que não se organiza para manter-se

economicamente. Acredita que arte é uma profissão como qualquer outra e ser artista

não tem relação com o isolamento da vida prática. Esta forma de pensar levou Osni

Branco a organizar de forma bastante pragmática seu trabalho. Ele conta que possui

uma carteira de clientes e contratos fixos para execução de peças que mantém sua

vida financeira estável, geralmente com a fundição, o que lhe possibilita liberdade de

criação de outras peças, geralmente em madeira. Alguns contratos têm cerca de trinta

anos, são desenhos feitos e patenteados por ele para instituições tradicionais, como

a Bolsa de Valores de São Paulo: “Elas pagam a minha liberdade de criar” (Notas de

entrevista, p. 105). Combina trabalhos voltados para a vida prática, como produção

de peças de alumínio e ferro que vende e expõe em feiras especializadas, workshops

de caráter variado – como um em que ensinou peões a ferrar cavalos - produção de

pequenas peças com material reciclado para comunidades carentes, com a produção

de trabalhos artísticos, geralmente em madeira. Não gosta de ser tachado de artesão

ou de artista, não concorda com as etiquetas que separam os fazeres. Gosta de

expressar-se e de ver a matéria sendo transformada pela vontade do homem.

96

Acredita também que, como qualquer outro profissional, o artista nunca deve

parar de aprender. Tanto quanto desde jovem quis aprender a manusear diferentes

materiais, hoje quer inserir-se no uso de novas tecnologias, citando as impressoras

3D.

Quanto aos canais de distribuição, sua produção em fundição conta com uma

carteira sólida de clientes. Seu site expõe obras, currículo, exposições, apresentações

e premiações. As peças em madeira pouco aparecem no site de Osni Branco e são

oferecidas em feiras e exposições.

Muitas de suas encomendas em fundição ou em madeira são pedidos em

grandes quantidades, com prazos que precisam ser cumpridos rigorosamente. No

entanto, Osni Branco acredita que o artesão deve aprender a ouvir o tempo do corpo

assim como suas necessidades. Os processos de trabalho na madeira e na fundição

também possuem um tempo próprio. Essas duas condições, corpo e requerimentos

da matéria o levam a uma organização toda própria. Osni Branco levanta muito cedo

e pode começar a produzir às 7h da manhã. Trabalha um pouco em cada peça,

podendo alternar produção em madeira ou fundição. Exemplifica contando que vai ao

torno, molda cinco ou seis peças em madeira. Cansando, passa para outra peça e

depois mais uma, fazendo muitas pequenas partes de encomendas e criações

próprias ao mesmo tempo. O tamanho do atelier colabora para essas execuções

simultâneas. A pedido da entrevistadora, Osni Branco torneou uma peça em madeira,

uma das que deve produzir em grande quantidade. Enquanto produzia a peça, Osni

Branco atentava para os detalhes da lida: a tensão e o ângulo corretos no encontro

entre a madeira e o torno, o tempo correto para que a peça chegue à espessura

correta, as pequenas variações entre uma peça e outra, uma vez que são produzidas

uma a uma.

Mas quando o forno está ligado ele é o senhor do atelier e a prioridade é fundir

tudo o que for possível. Guarda um respeito todo especial ao forno de fundição, a

ponto de sempre fazer-lhe uma pequena reverência quando entra no atelier:

A hora da fundição é como a hora de chutar um pênalti [...] e o que é fundir? É desagregar o átomo e depois juntar o átomo de novo, desagregar a gente sabe botando calor, aí tira o calor e eles voltam na mesma estaca que era antes, agora isso daí ninguém sabe como nem porque aparece, só sabe que acontece. Sabe o ‘know how’ mas não o ‘know why’. Então é um negócio mágico essa coisa aí, você está sob a influência do cosmo todo porque hoje é um dia ótimo pra fundir, mas

97

se está tudo pronto e de repente vira e começa garoa, aumenta o hidrogênio no ar, a hora que você fizer assim, o metal vai e leva toda essa umidade lá pra dentro, depois fica que nem um queijo mineiro, cheio de furinho. (Notas de entrevista, p. 108).

Quando se usa um forno a vácuo esse problema se resolve, “eu saio fora do

universo” (Notas de entrevista, p. 108). Mas perde-se um pouco desta relação e desta

compreensão do ambiente.

Assim, não importa a encomenda em metal que receba, faz sempre mais de

um molde, o que lhe possibilitará nova e imediata fundição se na primeira tentativa for

malsucedido. O trabalho do artista-artesão deve prezar pelo profissionalismo e os

prazos devem ser cumpridos sem as desculpas que a técnica pode proporcionar ao

profissional. “A melhor vida que tem é aquela que não se tem que dar desculpas, eu

não dou desculpa porque ela é só pra coisa ruim, se for coisa boa você tem que se

desculpar? Não tem. Então tem que fazer assim. Dá mais trabalho? Dá.” (Notas de

entrevista, p. 110).

A cera dos moldes permite a reciclagem e é uma composição de parafina, breu

e carnaúba. A cera da abelha precisa ficar com a própria abelha. (Notas de entrevista,

p. 110), acredita ele.

Solicitado a relembrar o processo de criação de uma obra, Osni Branco mostra

um aparador feito com uma árvore de ficus elastica, espécie de grande porte – chega

a 20 metros de altura no Brasil e 60 metros em seu habitat natural, na Ásia. Ele conta

que os filodendros que nascem desta árvore são comumente usados na construção

de pontes suspensas que ligam pequenos rios.

98

Figura 57- Ficus elastica

Fonte: Google27

A árvore caiu no terreno de um grande amigo e a aventura começou no transporte,

feito pelo próprio Osni Branco, por meio de arraste. Partes da árvore foram sendo retiradas

aos poucos e resultaram em quatro anos de trabalho somente no tronco principal, cortado

tanto em blocos quanto em pranchas, havia madeira para tudo. O aparador mencionado veio

de um dos galhos desse Ficus:

[...] aí como ela tinha essa rachadura aqui e rachadura é um negócio problemático porque existe um negócio chamado tensão residual ou memória então eu fiz essa marqueteria aqui, ou marchetaria, pra fazer uma graça e segurar o prosseguimento, possível prosseguimento da cisão. Do lado de cá idem, a prancha tinha uma podridão aqui então escavamos pra fazer e aqui também. Podia fazer um quadrado, alguma coisa, mas não ligado à arte. (Notas de entrevista, p. 115).

27 Ficus Elastica - https://www.google.com.br/search?q=ficus+elastica&safe=strict&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwjNmd6Ggt_eAhUHEJAKHYxbBzIQ_AUIDigB&biw=1093&bih=501#imgrc=rrNf-gd4j9h46M: acesso em 10/09/2018 às 21h55.

99

Figura 58- Peça realizada por Osni Branco

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

Figura 59- Peça realizada por Osni Branco

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

100

Questionado quanto à interferência da matéria na execução desta obra, a

resposta de Osni Branco explicitou perfeitamente sua forma de trabalhar. Para ele, o

fazer dá conhecimento da matéria. Um tronco de árvore, sem o corte, não diz àquele

que o manuseia o que irá encontrar, mas há pistas: Sabendo a espécie da árvore

teremos as particularidades em evidência. O pé da madeira, próximo à raiz, tem

bactéria? Se sim, já se deve eliminar ao menos os primeiros três metros do tronco.

Ainda assim há o acaso, ninguém sabe o que será encontrado quando o tronco for

aberto. Essa tora, quando cortada, mostrou veios de cores diferentes:

Então é isso. É aquela lá. É uma madeira fantástica que dentro da tora assim marrom, parece um bolo inglês, marrom chocolate e aqui amarelo assim, dentro da mesma tora, o rio correndo e o rio Amazonas se encontrando assim, incrível né? Mas é a natureza, fazer o quê? (Notas de entrevista, p. 106).

Os veios são para ele a demonstração daquilo que flui pela planta e precisa ser

evidenciado nas obras. Sua função, como artista, é mostrá-los. É do olhar para a peça

que nasce a obra - que formato tem o galho, que veio merece ser mostrado.

As peças decorativas em madeira produzidas por Osni, vasos, suporte de

velas, por exemplo, são um bom exemplo. Observa-se a madeira disponível,

imaginando que partes e em que ângulo essas dariam boas peças. A operação de

torno acontece com a madeira ainda verde. Depois disso ela deverá ser armazenada

na sombra, para depois receber acabamento, pintura, polimento final. Toda a

operação pode precisa de aproximadamente sete meses.

Figura 60- Peça realizada por Osni Branco

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

101

Outros materiais pedem outras dinâmicas e cada projeto a ser executado pede

sua própria ferramenta, ou nenhuma além das mãos. Osni Branco lembra que quando

recebe encomendas de nus, em metal, para fazer o molde nunca utiliza poliuretano,

nunca talha com lâmina.

Por exemplo fazer um nu [...], se você fizer em argila é um material plástico e você pode pegar essa emoção, porque essa mão conhece um nu [...] e se eu pegar um material duro, rígido, eu tenho que usar uma lâmina. Isso aqui (mostra a mão), que já passou a mão em uma pele, um seio, está tudo aqui, faz parte da minha memória então eu vou buscar a coisa mais próxima daquilo na argila, pra depois ser fundido. Aí você tem que tomar muito cuidado num acabamento, por exemplo você faz uma escultura, ou um seio que é a coisa mais difícil que tem de fazer [...] é um acabamento, pra ele não virar uma ponta. Até o lixamento, você não pode usar uma máquina, tem que ser a cavidade da mão. Você vai pegar aquela memória e você vai ficar ali tendo aquela relação. (Notas de entrevista, p. 105).

Osni Branco lembra de um ajudante que decidiu ajudá-lo no polimento de um

busto e utilizou um disco elétrico.

Comparando madeira e metal, Osni Branco vê no metal “um símbolo de

obediência. Na madeira, um símbolo de soberania” (Notas de entrevista, p. 112).

Derretido o metal ele se torna fluido e maleável. Se algo der errado ou não agrada,

derrete-se. Ao metal se associam muitas características masculinas, a força

arquetípica do ferreiro, as ferramentas poderosas e o fabrico de ferramentas e armas.

Mas, ao fundir-se torna-se fluido e maleável, muito feminino. Quanto à madeira, quem

a manipula deve curvar-se a ela.

Osni Branco tem um ajudante, o mesmo há 14 anos. Cabe-lhe os cortes mais

grossos da madeira, o lixamento de certas peças, escovação, limpeza, a confecção

de bases que suportam esculturas, esmaltação de peças em madeira.

Também há muitos parceiros: o marmorista, que fornece bases para algumas

de suas esculturas, todos aqueles que oferecem a madeira de que precisa,

fornecedores de matéria-prima e de peças para elaboração de ferramentas.

As ferramentas são, de fato, um capítulo à parte. Osni Branco procura por elas

em qualquer parte do mundo: “Qualquer lugar em que eu vou no mundo, vou ver

antiquário e ferramentas” (Notas de entrevista, p. 111). Toda a sua ferramenta está

disponível para uso e partilha com seu ajudante, mas tudo deve ser mantido em

perfeito estado de utilização. As coisas têm que ter função na vida. Nos workshops

102

que oferece todos são instruídos sobre o correto uso da ferramenta, além de utilizarem

óculos, sapatos fechados, luvas. A ferramenta exige consciência daquele que a utiliza.

O Brasil possui pouca oferta de ferramentas de boa qualidade, especialmente

para trabalhos em madeira. Assim, boa parte do que possui é importado, outra parte

ele produz no próprio atelier, para atender a necessidades específicas, que são

muitas. Quando cria sua ferramenta, cuida para que a pega seja confortável ao

usuário. Osni Branco mostra uma ferramenta feita a partir do eixo de um amortecedor,

pois o aço da peça era de excelente qualidade, propiciando, ao mesmo tempo, uma

pega confortável ao usuário.

103

2. SOBRE ARTE E ARTESANATO, SOBRE OBRA E TRABALHO

Mesmo se toda uma civilização estiver morta duas testemunhas subsistirão para atestar a qualidade e os valores da vida que um dia houve: a arte e a técnica. (LEROI-GOURHAN, 1943, p. 7).

A definição adotada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a

Ciência e a Cultura, UNESCO, exposta no International Symposium on Crafts and

International Markets, em 1997, define como artesanato:

Produtos artesanais são aqueles confeccionados por artesãos, seja totalmente à mão, com uso de ferramentas ou até mesmo por meios eletrônicos, desde que a contribuição direta manual do artesão permaneça como componente mais substancial do produto acabado. Essas peças são produzidas sem restrição em termo de quantidade e com uso de matérias-primas de recursos sustentáveis. A natureza especial dos produtos artesanais deriva de suas características distintas, que podem ser utilitárias, estéticas, artísticas, criativas, de caráter cultural e simbólicas e significativas do ponto de vista social. (UNESCO apud HELD, 2016)

A palavra artesão é de origem latina e tem a mesma raiz da palavra arte, ars.

No seu significado original, ars significou habilidade técnica, ou habilidade natural ou

adquirida, ou capacidade de fazer alguma coisa. Posteriormente, ganhou a

significação de Arte como a compreendemos hoje. O substantivo italiano Artigiano dá

origem a artesão, aquele que exerce atividades mecânicas ou decorativas. Vê-se, na

origem da palavra, a direta associação entre o artesão e uma técnica, mas também

entre artesão e arte, usados indistintamente.

O artesanato é o produto do trabalho, a obra em si, união da técnica, da ação

do homem e dos meios – matéria-prima e utensílio. Na origem da palavra temos Ars

+ ato, ou a arte levada ao ato.

Por sua vez, as palavras tecnologia e técnica vem do grego téchne, que

significa arte e técnica, indistintamente, ou também um conjunto de procedimentos

que têm por objetivo obter um resultado. O grego clássico diferenciava téchne, práxis

e episteme. A práxis estaria associada aos saberes cotidianos e usuais e episteme,

associada aos saberes da ciência. Textos gregos pré-aristotélicos faziam uso das

palavras téchne e episteme como sinônimos. Apenas a partir de Aristóteles a distinção

foi feita, utilizando téchne para saberes de aplicação prática bem definidos e episteme

para saberes que levam a aplicações menos pragmáticas. (PUENTES, SD, p. 130).

104

Também foi Aristóteles que em Metafísica marcou uma nova forma de

denominar o artesão, em relação ao período arcaico grego28. Antes chamados

demiurgos – sendo demios = público e ergos = produtivos – em alusão a uma

produção que carrega valores e funções eminentemente sociais, passa-se a

denominá-los simplesmente cheirotechnon – trabalhador manual. (SENNETT, 2013,

p. 33).

Na língua inglesa, a palavra craft é utilizada em mais de um contexto. Além de

significar artesanato, ou mesmo arte, como verbo ela significa executar ou fazer.

Surge ainda no sentido de projetar, elaborar ou arquitetar29. Curiosamente, também

aparece para denominar embarcação ou nave espacial30, talvez por serem ambos

artefatos construídos pelo homem, ou, quem sabe, porque assim se associa a palavra

craft a um meio para se atravessar de um lugar a outro.31

Em alemão, para a palavra artesanato utiliza-se a palavra handwerk, sendo

hand para mão e werk para obra. Na tradução, obra feita pela mão. O artesão é o

handwerker, ou obreiro, aquele que produz a obra com as mãos32.

Apesar do radical das palavras arte e artesanato terem origens comuns,

distinções de diversas ordens têm sido feitas, sendo o artesanato muito mais

associado à produção de peças com utilidade específica e, a arte, associada ao

processo criativo e à exclusividade da obra produzida. Tal distinção absolutamente

não acontecia nas primeiras culturas da humanidade, quando as peças produzidas

para uso cotidiano carregavam em si belos adornos que, inclusive, identificavam a

cultura daquele que as fez. Nas sociedades que precederam a atual, beleza e

utilidade, criação e execução, andavam de mãos dadas.

28 Período arcaico grego: de VIII a VI a.C. Período clássico grego: de V a.C a IV a.C. 29 The manager crafted a plan: O gerente elaborou (ou arquitetou) um plano. The employees will craft and implement: Os empregados vão projetar e implementar. 30 The craft is crossing the river: A embarcação está atravessando o rio. The crew boarded the small aircraft: A tripulação embarcou na pequena aeronave. 31 Fonte: The American Heritage Dictionary of the English language. 32 Fonte: Google Tradutor: https://www.google.com.br/search?q=tradutor&oq=tradu&aqs=chrome.0.0j69i60j69i57j0l3.4583j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8

105

Mário de Andrade33, em O Baile das quatro artes dedica um capítulo para

discutir as relações entre o artista e o artesão. Para ele, todo bom artista é também

um artesão:

Artista que não seja ao mesmo tempo artesão, ou seja, artista que não conheça perfeitamente os processos, as exigências, os segredos do material que vai mover, não é que não possa ser artista (psicologicamente pode), mas não pode fazer obras de arte dignas desse nome. Artista que não seja bom artesão, não é que não possa ser artista: simplesmente ele não é artista bom. E desde que vá se tornando verdadeiramente artista, é porque concomitantemente está se tornando artesão. (ANDRADE, 2005, p. 12).

A definição de Andrade aproxima-se bastante da própria definição original da

palavra artesanato: arte + ato. Ele enxerga no conhecimento da matéria e da técnica

um pré-requisito para a boa criação.

O trabalho artesão remete frequentemente às corporações de ofício da idade

média, onde toda uma equipe estava reunida em função da execução de peças que

exigem técnica e material específicos. À execução de uma obra está associada uma

intenção, no projeto e na realização. No projeto vislumbra-se um objeto ainda

inexistente, em um ato de contemplação. Na execução, cada ponto da costureira no

tecido, cada martelada do marceneiro na madeira objetiva obter uma centelha daquilo

que foi vislumbrado.

O historiador de arte francês Henri Focillon (1881-1943), em seu livro Vida das

formas, ergue toda a estrutura de seu pensamento sobre os fazeres do homem em

cima da ideia de que a criação é ato de dar forma a algo. Mais tarde, a artista plástica

brasileira nascida na Polônia, Fayga Ostrower (1920-2001) ratificará esse conceito:

“Criar corresponde a um formar, um dar forma a alguma coisa. Sejam quais forem os

modos e os meios, ao se criar algo, sempre se ordena e se configura”. (OSTROWER,

2014, p. 5).

Focillon defende que as formas que vivem no espaço e na matéria, vivem antes

no espírito, sendo que aquilo que se manifesta externamente é apenas o vestígio do

processo interno (FOCILLON, 1983, p. 87). No entanto, para este autor o que define

o artista não é necessariamente o fato dele possuir um mundo imaginativo farto.

Também não são aqueles que contam com uma memória prodigiosa para resgatar

33 Mário de Andrade (1893-1945), poeta, escritor, crítico literário, museólogo, folclorista brasileiro.

106

lembranças e experiências que lhes sirvam à criação. Muitos são os indivíduos com

enorme capacidade imaginativa e memória invejável, mas em grande parte dos casos

são imaginações que se contentam com os devaneios e memórias que ficam imersas

no crepúsculo da consciência. Pode haver até uma ideia de técnica contida nesta

imaginação, mas ela surgirá como uma medida em si mesmo, poderosa apenas em

sonho. A forma do espírito que caracteriza o universo do artista, para Focillon, é

justamente aquela que quer dirigir-se à ação, quer ser externalizada: sonhadores,

idealizadores, muitos são, mas no artista a forma ultrapassa o domínio do espírito para

a vida no espaço (FOCILLON, 1983, p. 91). A partir dessa linha de pensamento, o

historiador da arte poetiza ao cogitar que talvez todos sejamos artistas sem mãos,

mas que “através delas o homem entra em contato com a solidez de seu pensamento.

Elas a liberam. Impõem-lhe uma forma, um contorno. (FOCILLON, 1983, p. 126).

Elvira Schuartz transforma essa mesma ideia em metáfora: “Criar é colocar nuvens

dentro de caixas”. (SCHUARTZ, 2006, p. 86).

Importante resgatar na frase acima que Focillon fala do objeto criado como

“vestígio do processo interno”. No mesmo livro ele afirma que no momento da

concepção o artista estará embebido de vida” (FOCILLON, 1983, p. 93). Parece haver

na concepção do historiador algo da ideia platônica, afirmando a vitalidade dos

processos enquanto ainda não materializados. No entanto, o mesmo autor pede ao

leitor que não se engane ao observar a massa característica da matéria, imaginando-

a inerte ou sem vida. Em toda matéria, afirma ele, há vida e movimento, estrutura e

ação que lhe são inerentes (FOCILLON, 1983, p. 67). A aproximação de Focillon com

as concepções gregas é apenas inicial. Não há desprezo pelos fazeres, mas ao

contrário, uma valorização da capacidade de trazer do mundo do espírito para a

matéria.

O objetivo final do artista e do artesão é sempre transformador, produzindo algo

que perdura no tempo e que deixa rastros para a história que se escreve.

Foi levando em consideração a ideia da durabilidade das criações humanas e

sua materialidade que a filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) no livro A condição

humana (Cf. 2015), lançado em 1958, segmentou as ações humanas – que ela

chamou de vida activa – em três diferentes categorias: trabalho, obra e ação.

Denominou trabalho todas as atividades voltadas para a sobrevivência, a produção

para garantia da própria existência. São produtos de vida curta - ou serão consumidos

107

pelo homem, ou perecerão por si só, retornando à natureza. Eles atendem aos

processos vitais humanos – que se organizam em ciclos – e têm, eles próprios, esse

caráter cíclico – são produzidos, consumidos, retornam à natureza e assim o processo

recomeça – o contínuo devir dos processos circulatórios. O trabalho executado pelo

homem atesta um tanto mais sobre a sua inteligência, em relação aos outros reinos

da natureza, mas não necessariamente o diferencia do animal, que luta igualmente

pela garantia de sua existência diariamente. O processo cíclico nos associa ao mundo,

à natureza, e faz do homem parte da grande estrutura natural. O que se produz traz,

em si, movimento e vida, mas não objetividade. Com esse tipo de produção o homem

não deixa legado.

A obra, na perspectiva de Arendt (Cf. 2015), nasceu na humanidade com as

primeiras ferramentas, os primeiros objetos que não são consumidos, mas que

perduram. Esses objetos criam o mundo dos homens, transformando o homo laborans

em homo faber. Essa produção o redime de sua categoria animal, definindo um

espaço de diferenciação. A obra traça a história do homem, e por si só diz sobre o que

as culturas quiseram, tiveram recursos ou foram capazes de fazer.” A obra e seu

produto, o artefato humano, conferem uma medida de permanência e durabilidade à

futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano” (ARENDT, 2015,

p.11). Enquanto o trabalho traz ao homem o eterno movimento e manutenção da

ordem do mundo natural, a obra objetiva, traz concretude, cria história.

A obra também se diferencia na sua forma de consecução. Tanto Aristóteles

(Cf. 1995) quanto Arendt lembram da diferença entre o fazer antecedido pela atividade

intencional e o fazer automático. O fazer intencional é característico do homo faber e

sua atividade envolve a contemplação clara de um produto final, assim como o silêncio

em partes importantes de sua feitura. No trabalho artesão, em algum momento é

necessário estar a sós com a ideia. Não é à toa que o economista alemão Karl Bucher

(1847-1930), um dos fundadores da economia não mercantil, aponta que há cantos

de trabalho, mas não cantos de obra. A filosofia grega clássica, mesmo em seu

desprezo pelo trabalho artesão, conseguiu perceber que ela carrega em si a vida

contemplativa – a obra surge ao artesão antes que ele a execute. No entanto, para

esse grego seria preferível que a visão tivesse quedado apenas na ideia original. Sua

transposição para o mundo material liquida a verdadeira criação, faz varrer a

verdadeira obra. Para Platão, o olho interno que visualiza a obra não está criando,

108

mas apenas recebendo algo que lhe é dado. Esta idealização estará sujeita à

deterioração logo que se materializar. Em ideia, é eterna. Deixar a obra sem execução

seria participar de sua eternidade, viva nos olhos da mente. Mais tarde, na Idade

Média, um tanto da mesma concepção platônica vigorou:

Pelo que lemos de fontes medievais sobre as alegrias e deleites da contemplação, parece que os filósofos queriam assegurar que o homo faber lhes ouvisse o apelo e arriasse os braços, percebendo afinal que o seu maior desejo, o desejo de permanência e imortalidade, não pode ser satisfeito por seus feitos, mas somente quando se compreende que o belo e o eterno não podem ser fabricados. (ARENDT, 2015, p. 376).

Há ainda a ideia de vida no mundo do pensamento, que se perde com a

materialização da obra. Em pensamento, estão presentes movimento e vitalidade. No

olhar grego, uma vez materializado, morto está.

O terceiro elemento da vida activa seria a ação. Na concepção de Hannah

Arendt (Cf. 2015) a ação é basicamente atividade sem uso da matéria, como a

linguagem falada, por exemplo. Trata-se de pura vida, puro espírito que elabora, puro

movimento interno. Se quisermos que a palavra se transforme em obra, temos que,

com a mão, escrever, documentar. E então teremos palavra morta. A ação também

se caracteriza pela sua incontrolabilidade. Temos liberdade para falar e agir, mas não

conhecemos as verdadeiras consequências de nossas ações, nem podemos remediá-

las uma vez executadas. Na ação existe liberdade, mas não soberania.

A grande discussão de Arendt em A condição humana (Cf. 2015) acontece com

a constatação de que esse caráter efêmero do trabalho e o duradouro da obra se

confundem quando o homem se torna consumidor voraz de obras, transformando obra

em trabalho. Arendt fala, portanto, da vitória do homo laborans sobre o homo faber.

Temos que consumir, devorar, por assim dizer, nossas casas, nossa mobília, nossos carros, como se esses fossem as “coisas boas” da natureza que se deteriorariam inaproveitadas se não fossem arrastadas rapidamente para o ciclo interminável do metabolismo do homem com a natureza. É como se houvéssemos rompido à força as fronteiras distintivas que protegiam o mundo, o artifício humano, da natureza, tanto o processo biológico que procede dentro dele quanto os processos naturais cíclicos que o rodeiam [...] Os ideais do homo faber, fabricante do mundo, que são a permanência, a estabilidade e a durabilidade foram sacrificadas à abundância, o ideal do animal laborans. (ARENDT, 2015, p. 155).

109

A Revolução Industrial com suas necessidades de economia de escala

transformou, para Arendt, toda a obra em trabalho, cujo destino deixa de ser o uso, e

sim, o consumo. E o trabalho diferenciado do artesão, aquele que contemplou a obra

em ideia para trazê-la ao mundo, passa a ser, então, necessário apenas na construção

dos protótipos, antes de ingressarem na produção em massa.

Para Arendt (Cf. 2015), a partir dessa massificação a única peça feita pelas

mãos humanas valorizada pela sociedade é a obra de arte, que se caracteriza

justamente pela não necessidade de utilidade. O artista assumiu para si a nobreza do

processo criativo e o artesão foi reduzido a operário, produtor em série.

Voltando à definição original da palavra artesanato, arte, artesão e artista,

percebe-se nas discussões acerca das definições de arte feitas nas últimas décadas,

a gradativa cisão que distancia técnica e arte, razão e sensibilidade, que promoveu

igual distinção entre a atividade produtiva e o prazer.

Ao longo da história, muros muito bem erguidos apartam de um lado o ofício,

do outro a satisfação, como inconciliáveis. Em lados diferentes também foram

dispostas as atividades criativas e as atividades executoras, a primeira vinculada ao

mais nobre do ser humano, a segunda associada ao fardo, o que remete à concepção

de trabalho como castigo, à “queda do Paraíso”:

Ao homem ele disse: “Porque escutaste a voz de tua mulher e comeste da árvore que eu te proibira comer, maldito é o solo por causa de ti! Com sofrimentos dele te nutrirás todos os dias de tua vida. Ele produzirá para ti espinhos e cardos, e comerás a erva dos campos. Com o suor do teu rosto comerás teu pão até que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó retornarás.” (GÊNESIS, 3, 17-19)

O olhar mais apurado certamente questionará se tais muros são reais ou

imaginários, dogmas da cultura. Pergunta-se, em consequência, que atividades

carregam em si a possibilidade da liberdade de criação? Pode-se estabelecer uma

relação tão direta entre uma atividade e prazer ou desprazer? São as atividades que

carregam essa possibilidade ou a disposição interna que a carrega?

110

3. O ATELIER DO ARTESÃO COMO ESPAÇO PARA EXPERIÊNCIA

Há coisas dentro do corpo que lhe são estranhas e há coisas fora dele que lhe pertencem de jure, se não de facto34 – coisas, portanto, de que é preciso tomar posse para que a vida continue. (DEWEY, 2010, p. 144)

Todos os entrevistados desta pesquisa foram questionados quanto à trajetória

que os conduziu às suas escolhas profissionais e, malgrado o senso comum, a

influência do fator hereditário não foi evidenciada neste grupo, não se falou em

atividades que vieram de pai para filho. No entanto, todos eles têm lembrança de

vivências significativas e transformadoras, descritas como decisivas. Elas são de

diferentes ordens: às vezes ativas, como as possibilidades de criação livre do

Guilherme Rossi ao longo da infância e os trabalhos de escola de Osni Branco, que

lhe valeram prestígio perante os amigos; às vezes contemplativas, como a lembrança

que Elvira Schuartz tem do assoprador de vidro e a apreciação que Luciana Faria fez

das obras de arte italianas em que ela descreve: “Tudo lindo. Não sabia nem direito

quem era o Michelangelo e de repente tava olhando aquela estátua e falando “meu

Deus, meu Deus, o que é isso?” Como é que alguém pode fazer isso, sabe?” (Notas

de entrevista, p. 70). Ou a primeira visita de Ana Passos a uma oficina de ourivesaria,

que em poucos segundos a fez pensar: “Cara, isso é incrível, quero fazer isso!” (Notas

de entrevista, p. 1). São momentos de impacto que provocaram registros fortes na

memória.

Exemplos como estes atendem ao que o pedagogo e filósofo espanhol Jorge

Larossa chamou de experiência. Em seu livro Tremores (Cf. 2014), para melhor expor

suas ideias, o autor faz uso de duas palavras usualmente compreendidas como

sinônimos, experimento e experiência, propondo para elas significados bastante

distintos, porém complementares. O conceito de experimento de Larossa (Cf. 2014)

poderia muito bem ser exemplificado com as vivências escolares em laboratório,

quando, por meio de uma sequência de ações chega-se a uma conclusão comum.

Experiências de química, em que misturas conduzem à combustão, ou de física, em

que uma força propulsora resulta em um movimento pré-determinado, são da ordem

do experimento. O experimentador já planejou o final e espera que ele seja cumprido

para que tudo corra bem. O experimento conduz o homem ao arcabouço universal de

34 De jure e de facto: pelo direito e pela prática.

111

saberes da humanidade. Eles uniformizam o saber, generalizam, conciliam. Estão

tradicionalmente associadas às ciências, embora essa relação não seja direta.

O conceito de experiência definido por Larossa (Cf. 2014) está relacionado à

predisposição para deixar-se invadir por um acontecimento de forma a trazer vida para

o interior do ser. Não tem relação com o binômio causa-consequência e seus efeitos

não uniformizam conhecimento, não generalizam. Ao contrário, individualizam modos

de ver o mundo. O sujeito da experiência é ativo na percepção do que lhe acomete e,

ao mesmo tempo, passivo no sentido de deixar-se tomar pelo elemento vivido; é

vulnerável, no sentido de deixar-se arrebatar, é permeável; ao mesmo tempo é forte,

no sentido da coragem de se deixar invadir pela possibilidade de um novo olhar.

Tal postura perante o mundo não pode encontrar sustento sem as condições

apropriadas. O ambiente precisa, de alguma forma, sustentar a possibilidade da

experiência. Não à toa, as experiências significativas lembradas pelos entrevistadores

trazem memórias de infância ou de férias. A infância é por natureza, ou ao menos

deveria ser, o período da experimentação por excelência. Férias proporcionam

períodos de suspensão do tempo cotidiano. Em contrapartida, na dinâmica das

grandes cidades, a sucessão de fatos e a pressa tendem a invadir e perpassar sem

significar, impossibilitando o espaço para reflexão, para o sentimento ou mesmo para

retenção na memória. Aquilo que acomete o sujeito acaba por tornar-se tão somente

uma sucessão de eventos fugazes que acontecem, mas não transformam, ou pior,

acontecem para isolar ainda mais o indivíduo do mundo:

Pois a jornada do homem contemporâneo já não contém nada que ainda se possa traduzir em experiência: nem a leitura do jornal, tão rica em notícias que o contemplam a partir de uma intransponível distância, nem os minutos passados ao volante de um carro em um congestionamento; também não a viagem aos infernos nos trens subterrâneos, nem a manifestação que de improviso bloqueia a rua, [...] O homem moderno volta à noite para a sua casa extenuado por uma imensidade de acontecimentos – divertidos ou tediosos, insólitos ou comuns, atrozes ou prazerosos – sem que nenhum deles se tenha convertido em experiência. (AGAMBEN, G., apud LAROSSA, 2014, p. 53)

O homem moderno descrito por Larossa (Cf. 2014) é tão bem-sucedido quanto

mais prontamente devolve ao mundo opiniões e respostas aos tantos eventos que não

cessam de vir. A consequência direta dessa valorização da rapidez é o risco da

padronização e da pasteurização de pensamentos e pontos de vista. O julgamento

112

tem precedido a vivência e a possibilidade de reflexão. Resumidamente, Larossa

aponta para uma tendência à valorização das certezas e respostas rápidas, embora

nem sempre estas sejam originárias de ponderações individualizadas, mas reflexo do

ambiente. A necessidade de lidar com o exato, o explicável e o prontamente

justificável esvazia a possibilidade da experiência. Experiências são vividas

justamente na isenção da necessidade do imediatismo e do julgamento apressado.

Tais requerimentos resultam de imediato na revisão do olhar sobre o erro. O

filósofo, químico, físico e educador francês Gaston Bachelard (1884-1962) terá

grandes contribuições a fazer sobre essa relação. Na concepção bachelardiana o erro

é parte do processo de conhecimento. Observando os grandes acontecimentos e as

grandes descobertas da história da humanidade, o filósofo concluiu que o

conhecimento sempre foi e sempre será somente conhecimento aproximado,

provisório, parte verdade, parte erro. E a percepção do erro já seria, por si só,

conhecimento. Pode-se dizer de estruturas de conhecimento em constante

reorganização, o que implica em uma eterna convivência com a incerteza. Se o

cientista convencional procura a unidade do saber e a sua sistematização, chegando

em uma verdade, Bachelard trata a ciência como múltipla, diversa, mutável, plástica,

dialética. Recuperando a fala de Larossa e trazendo-a para o conceito de Bachelard,

assume-se que a ciência incorpora em si tanto experiência quanto experimento.

Ao transpor essa ideia para o ambiente educacional, Bachelard defende

fortemente que o aluno seja conduzido a um aprendizado ativo, ele precisa descobrir

que pode descobrir coisas. Os processos de representação que não nascem de um

movimento interno resultam não somente na manutenção de estruturas de

conhecimento ultrapassadas como na pobreza na imaginação. Experiência e erro

caminham lado a lado e a experiência valiosa, para Bachelard, é aquela que retifica

algum erro. De que vale uma experiência que só comprova uma verdade já sabida?

Em seu livro A formação do espírito científico, Bachelard reforça a ideia da eterna

reconstrução dos saberes. No trecho abaixo refere ao ambiente educacional, mas a

ideia central pode perfeitamente aplicar-se a qualquer outro âmbito:

Os professores de ciências imaginam que o espírito começa como uma lição, que sempre se pode refazer uma cultura negligente repetindo uma aula, que se pode compreender uma demonstração repetindo-a ponto a ponto. Eles não refletiram sobre o fato de que o adolescente chega na aula de física com conhecimentos empíricos já

113

constituídos: trata-se, então, não de adquirir uma cultura experimental, mas de mudar de cultura experimental, de derrubar os obstáculos já amontoados pela vida cotidiana. (BACHELARD, apud JAPIASSÚ, 1976, p. 153).

Trata-se de uma ideia que coloca o sujeito e toda a sua bagagem pessoal no

centro do processo de conhecimento, assumindo que muitas vezes ele não nasce

necessariamente de uma evolução linear, mas de rupturas. Dessa forma, “perceber

um erro é prestar homenagem ao espírito livre e em eterno desenvolvimento. Um erro

é uma descoberta a ser recebida com alegria.” (BACHELARD, 2012, p. 147).

Nas oficinas e nos ateliers a natureza do ofício do artista-artesão, apoia por si só

a experiência e o experimento. Matérias-primas e meios de produção possuem leis de

utilização que lhe são intrínsecas e cabe ao usuário o seu domínio. Em contrapartida,

o ambiente de criação pede e abre espaço para novas possibilidades, admitindo o

erro como parte do processo de criação. Características específicas de cada um dos

materiais promovem variações nessas experiências. Luciana Faria diverte-se testando

cada um dos dogmas de sua profissão. Conta que precisa de certa coragem para

suportar a destruição de suas peças no forno quando testa diferentes formas e

trabalha diferentes tipos de argila. A peça quebrada é material perdido, a argila se

transforma na queima e não pode ser reaproveitada. No entanto, seus relatos de

irritação frente à perda de uma peça são tão intensos quanto sua sensação de que a

oficina é um ambiente lúdico. Em suas próprias palavras: “A gente aqui, a gente brinca

[...] a gente se diverte muito” (Notas de entrevista, p. 89). O material escolhido por

Elvira Schuartz, o vidro, exige o planejamento antecipado de cada um de seus

movimentos. Movimentos errados alterarão o projeto e, tal qual a argila, levarão à

perda da própria matéria-prima. Poucos segundos de variação no tempo de execução

da movimentação são suficientes para tal mas, no ambiente de atelier, a perda faz

parte do processo. Ana Passos, por sua vez, gosta de ir para a bancada com um

projeto que está somente na sua cabeça: “Porque aí faz um torto pra cá e fala assim...

gostei, gostei... aí eu acabo de entortar. Quer dizer, a peça nunca é o que eu planejei.”

(Notas de entrevista, p. 23). O que não lhe agrada pode ser derretido para recomeço,

sem perda de material. Novas possibilidades são exatamente o que Guilherme Rossi

procura em seu atelier, a ponto de abrir mão da especialização em um material

específico, o que certamente torna a estrutura de sua oficina e a execução de seus

projetos mais complexa: cada material solicita saberes e ferramentas específicas.

114

Antes de Larossa (Cf. 2014), outros pensadores haviam tocado na questão da

experiência, questionando o aprendizado relacionado somente às relações causa-

consequência. Trazer vida para o cotidiano foi justamente a grande reivindicação do

filósofo e educador americano John Dewey (1859-1952). Dewey criticou de forma

contumaz a ideia de que a arte é aquela confinada nos museus e galerias, reservada

a um pequeno e seleto grupo. Limitar o sentido da arte aos objetos de museus e

galerias é, para Dewey, não reconhecer no ser humano uma dimensão que lhe é

inerente, tornando-o cindido. Seu livro, Arte como experiência (Cf. 2010) , trata da

cisão entre arte e o cotidiano, cisão entre a arte e ciência, cisão entre aquele que

pensa, o cientista, e aquele que sente, o artista, cisão entre o espiritual e o real, cisão

entre religião e mundo material. Tais cisões, às quais o autor tanto se dedicou em

compreender, não fariam parte da natureza humana, mas seriam fruto do medo da

vida, da imensa fragmentação das tarefas a que o ser humano tem sido submetido e

à pressa com que temos sido conduzidos aos processos de percepção.

Dewey define a arte como “experiência refinada e intensificada”, apresentando

como metáfora a montanha: ela não está suspensa no céu, tampouco no nível da

terra, ela é uma elevação do mesmo fenômeno terreno, digna da exploração do

geólogo e do geógrafo (DEWEY, 2010, p. 60). Para Dewey, a experiência com a arte,

precisa, portanto, começar com o dado bruto, com o próprio cotidiano e com a

natureza:

Para compreender o estético em suas formas supremas e aprovadas, é preciso começar por ele em sua forma bruta; nos acontecimentos e cenas que prendem o olhar e o ouvido atentos do homem, despertando seu interesse e lhe proporcionando prazer ao olhar e ouvir: as visões que cativam a multidão – o caminhão do corpo de bombeiros que passa veloz, as máquinas que escavam enormes buracos na terra; a mosca humana escalando a lateral de uma torre [...] (DEWEY, 2010 p. 62).

Dewey encontra elementos para a atividade artística até mesmo no trabalho do

mecânico artisticamente engajado. Todas as experiências de graça, energia,

vitalidade e envolvimento ganharam, assim, a categoria de impulsionadoras da

possibilidade de expressão criativa genuína. Assim, para Dewey, a obra de arte “é a

construção de uma experiência integral a partir de uma interação de condições e

energias orgânicas e ambientais”. A obra de arte nasce de uma “interação prolongada

de algo proveniente do eu com as condições objetivas”. (DEWEY, 2010, p.153).

115

Dewey tornou-se uma referência na área da educação. Suas ideias estão

amalgamadas às de uma grande corrente nascida no final do século XIX e fortalecida

no século XX, na Europa, que reivindicava justamente a revisão das cisões acima

mencionadas.

3.1. EXPERIÊNCIAS CORPORATIVAS E EDUCATIVAS

A melhor educação é a nossa própria experiência. Experimentar ultrapassa o estudar. 35 (ALBERS apud ADAMSON, 2017, p. 84, tradução livre da autora).

O sociólogo italiano Domenico de Masi (1938 - ), em seu livro A emoção e a

Regra (Cf. 1999) dedicou-se ao estudo de grupos que, de certa forma, fundaram bases

para as discussões que nasceram das sociedades pós-industriais36. São discursos

que exaltam a dimensão criativa do homem, onde subjaz o desejo de apagar as linhas

que separam razão e emoção. Duas epígrafes, logo na Introdução, já afirmam esta

intenção: “Eu amo a regra que corrige a emoção”, de George Braque e “Eu amo a

emoção que corrige a regra”, de Juan Gris (MASI, 1999, p.13, tradução livre da

autora).37

O sociólogo relata como entre meados do século XIX até meados do século

XX uma forte corrente reforçava as bases da produção industrial em escala: as

atividades foram sistemática e gradativamente especializadas e fragmentadas em

inúmeros gestos repetitivos que lhe retiravam o significado intrínseco, criando-se

modelos de produção predominantemente analíticos. Planejamento era atividade

separada da execução, cabeça de um lado, corpo do outro. Produção medida em

cronômetro, resultando num ciclo contínuo e ininterrupto, absoluta linearidade no

tempo. Foi o período em que Henri Ford38, produzindo seu célebre Fort T, afirmava

orgulhoso que o “cliente pode ter a cor do carro que desejar, desde que seja preto”.

Criação e produção foram separados por um abismo, sendo a primeira submetida às

35 No texto de Adamson: The best education is one’s own experience. Experimenting surpasses studying. 36 Após as mudanças trazidas pelas sociedades industriais, outras se impuseram: aumento das indústrias prestadoras de serviços e a relevância da informação para gestão dos negócios. Ambas determinam a necessidade do uso da criatividade como elemento-chave para sucesso empresarial. 37 No livro de De Masi: J’aime la règle qui corrige l’émotion. J’aime l’émotion qui corrige la règle. 38 Henri Ford (1863-1947), empreendedor americano, fundador da Ford Motor Company.

116

especificidades impostas pela segunda. O cineasta, ator e produtor Charles Chaplin

(1889-1977) em seu filme Tempos Modernos,39 lançado em 1936, conseguiu retratar

de forma bem-humorada, poética e instigante a tentativa de adequação do ser

humano ao novo modo de produção.

Figura 61- Imagem do filme Tempos Modernos

Fonte: Google40

Enquanto isso, em alguns países da Europa, notadamente na Áustria, uma

burguesia emergente fazia nascer discussões fundantes: como os empreendimentos

e as instituições de ensino e pesquisa poderiam se organizar de forma a constituírem

ambientes onde os processos criativos poderiam florescer, ou melhor, como os

processos criativos poderiam caminhar lado a lado com os novos aparatos industriais?

Nas palavras de Larossa (Cf. 2014), como experiência e experimento poderiam

caminhar beneficiando-se mutuamente?

Na vanguarda deste movimento estava a Inglaterra. Lá, os primeiros anos pós-

revolução industrial haviam sido avassaladores do ponto de vista social,

proletarizando praticamente toda a classe dos artesãos. O crítico social John Ruskin41,

militava a favor do retorno aos modos de trabalho das oficinas de artesão, procurando

por práticas de trabalho mais dignas e prazerosas do que as que estavam sendo

39 Tempos Modernos: Escrito, dirigido e produzido por Charles Chaplin. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Z5rv1R-9mPw: acesso em 02/12/2018 às 15:35. 40 Tempos Modernos. Disponível em: https://www.google.com.br/search?q=tempos+modernos&safe=strict&hl=pt-BR&authuser=0&source=lnms&tbm=isch&sa=X&sqi=2&ved=0ahUKEwi1l_DRv4LfAhW8UhUIHQ8vD2EQ_AUIDygC&biw=1093&bih=501#imgrc=alX2kGpyvRhKrM: acesso em 02/12/2018 às 15:50

41 John Ruskin (1819-1900) escritor, crítico de arte e crítico social, produziu ensaios de arte e arquitetura.

117

oferecidas nos modos de produção industrial. Um de seus alunos, o designer têxtil e

poeta William Morris (1834-1896), não foi tão longe a ponto de pensar na dissolução

da indústria, mas impulsionou um grande movimento de conciliação entre o artístico e

industrial. Resgatando características das corporações de ofícios, fundou a Morris,

Marschall, Faulkner & Co., que logo se tornou referência nacional e definiu uma

corrente a ser chamada arts and crafts. No design têxtil, seu estilo unia o estilo oriental

com o medieval tardio, sendo que alguns padrões se assemelhavam a iluminuras.

Figura 62- Arte gráfica elaborada por William Morris

Fonte: Google 42

A proposta de Morris diferenciava-se pela tentativa de resgatar as

potencialidades das oficinas da Idade Média, adaptando-as à nova situação industrial.

(DROSTE, 2013, p. 10). Outros grupos na Inglaterra também propuseram abordagens

educacionais mais criativas para as escolas técnicas, o que promoveu uma vasta

diferenciação entre os produtos ingleses e os do restante da Europa, em design e em

qualidade.

Diferentes países da Europa miravam na experiência inglesa, o que os

despertou para a necessidade de incremento de suas próprias indústrias. Uniram-se

em uma mesma corrente necessidade econômica e anseios sociais. Intelectuais

provindos de uma burguesia emergente reuniam-se para discussão de novas ideias,

sonhos para uma sociedade renovada. Três áreas de conhecimento foram então

42 Arte gráfica elaborada por Willian Morris para indústria têxtil. Disponível em https://www.google.com.br/search?q=william+morris&sa=X&biw=1093&bih=501&tbm=isch&source=iu&ictx=1&fir=jXirMr-z4EB4uM%253A%252CSYF_TIBEXrTpPM%252C_&usg=AI4_-kSaQtMEG1fFOfGcD96V5E97Qi_Mtg&ved=2ahUKEwjj7pbHkp3eAhVEWpAKHaByCQoQ9QEwAnoECAQQBg#imgrc=jXirMr-z4EB4uM: acesso em 10/11/2018.

118

valorizadas: filosofia, estética e interdisciplinaridade. A filosofia foi percebida como

base para a consciência humana; a estética e a arte, como caminho de educação

moral e metafísica; no que diz respeito à interdisciplinaridade, grupos de trabalho que

reuniam conhecimentos de diferentes âmbitos, quebrando fronteiras, e indivíduos

interessados em múltiplas áreas de conhecimento foram considerados mais

habilitados a tratar dos problemas da vida moderna. Indivíduos dos mais diversos

saberes reuniam-se nos cafés, onde economia, filosofia, arte e ciência eram temas

comuns. De Masi traz como exemplo desta multifuncionalidade o artista Richard

Tescher que, na criação de suas obras teatrais, escrevia os textos, construía cenários,

confeccionava bonecas em madeira e vidro, fazia composições musicais. (MASI,

1999, p. 177).

De forma alguma pretendia-se negar o novo aparato industrial, mas sim

encontrar novas formas, saudáveis, dignas e criativas de trabalho. Ambiente e

qualidade das relações foram levadas em conta. Estruturas que valorizavam a

participação integral de equipes de trabalho foram estimuladas. Em várias fábricas

surgiram as escolas para operários. Pensando no aspecto econômico, almejava-se

que a união do aparato industrial moderno com o saber artesão resultasse em

excelência na utilidade e na estética dos produtos. Pensando no aspecto humano,

queria-se garantir protagonismo à ação humana, mantendo a máquina como

coadjuvante. A atividade criativa deveria ser valorizada como centro da atividade

humana.

Esses grupos também percebiam que a história vinha carregada de valores

estéticos pertencentes à antiga aristocracia e que cabia à burguesia emergente a

responsabilidade de definir uma estética própria. Aliado a isso, a indústria oferecia

uma miríade de produtos, mas ainda sem qualidade estética ou linguagem própria.

Nasceu o desejo de permear o ambiente com a arte e um estilo apropriado à nova

classe social, o que resultou em preocupação com criação de objetos diferenciados

para a uso cotidiano: louças e talheres, papéis de parede e embrulho, brinquedos. A

indústria tipográfica, por exemplo, havia dado um grande salto, democratizando o

acesso a publicações que, no entanto, eram oferecidos com uma qualidade artística

que não fazia jus a um objeto tão pleno de simbologias. Trabalhos de encadernação

foram valorizados neste período, querendo trazer arte a um objeto que une em si

sabedoria científica, filosófica e artística.

119

O cuidado com o bem-estar e com a estética invadiu os espaços de trabalho.

Grupos de trabalho criativos requereriam ambientes apropriados, dignos, limpos,

iluminados, funcionais. Os horários de trabalho, cronometrados e medidos na

produção industrial, deveriam ganhar a flexibilidade que os processos criativos

exigem, sem deixar de considerar as responsabilidades para com os clientes.

Em 1907, na Alemanha, em consequência de grande incentivo do governo, foi

criada a Liga Alemã para o Trabalho, reunindo representantes do meio artístico e

econômico. O discurso de inauguração da Liga dizia assim:

Quando a arte se envolve diretamente com o trabalho de um povo, suas consequências não são apenas de natureza estética. [...] as ações devem superar o círculo de apreciadores de arte e objetivar em primeiro lugar os criadores e os operários que produzem a obra. Quando a arte tem lugar no seu trabalho, a consciência eleva-se e, com ela, a produtividade.

A alegria no trabalho precisa ser recuperada e isso é tão importante quanto a melhoria da qualidade. Portanto, a arte não é apenas uma força estética, mas também uma força moral e ambas convergem em última instância para a mais importante das forças, que é o poder econômico. (OLIVEIRA apud SCHUMAKER, 1999, p. 146)

Em 1919, em Stuttgart, Alemanha, muito em consonância com o espírito da

época, o filósofo Rudolf Steiner43, financiado por Berta e Emil Molt, donos da fábrica

de cigarros Waldorf Astoria, inauguraria a primeira escola Waldorf do mundo, fundada

para atender os filhos de funcionários. A pedagogia, hoje difundida em todo o mundo,

já nasceu incorporando as atividades artísticas e artesanais no seu currículo

obrigatório. Foi fechada durante o governo nazista, considerada atividade subversiva,

e reaberta posteriormente. Atualmente está ainda em atuação.

No mesmo ano, em Weimar, Alemanha, é fundada a Escola de Artes e Ofícios

Bauhaus. Subsidiada parcialmente pelo governo, cobrava de seus alunos valores

bastante mais baixos que seus custos, obtendo a maior parte de seus recursos com

acordos empresariais, o que significava importante parceira escola-empresa. Seu

fundador, o arquiteto alemão Walter Gropius44, contou com a participativa atuação de

artistas e artesãos, apoiado por empresários. Seu objetivo: unir criação e execução,

artista e artesão para a criação de produtos adequados ao seu tempo; unir moderna

tecnologia à tradição do trabalho artesão; unir conhecimento artístico e arcabouço

43 Rudolf Steiner (1861-1925), filósofo e educador austríaco, criador da Antroposofia e da Pedagogia Waldorf. 44 Walter Gropius (1883-1969) arquiteto berlinense.

120

teórico à habilidade técnica e prática. Suas oficinas contavam com pintores e tecelãs,

arquitetos e ferreiros, trabalhando em igualdade de opiniões e salários, o que resultou

em produções de vanguarda que atendiam às reivindicações de um design voltado

para os novos tempos e para as classes emergentes.

Em 1933 a Bauhaus fechou suas portas, não resistindo às pressões externas,

provindas especialmente do governo nazista, que a considerava instituição subversiva

da ordem. No entanto, suas ideias trouxeram enorme impulso para o design e para a

idealização de modelos pedagógicos voltados para a experimentação artística. Ainda

em 1933, um de seus docentes, Josef Albers45, é convidado a dar aulas na Black

Mountain, North California, levando para os Estados Unidos conceitos importantes.

No novo continente Albers modificou sua forma de pensar a experiência artística e

artesanal no ambiente escolar. Se na Bauhaus o aprendizado e todas as

manipulações tinham como destino o atendimento e a renovação da indústria, na

Black Mountain Albers distanciou-se desse instrumentalismo, fazendo-se valer do

trabalho artístico e artesão como meio de expressão. Albers faria ainda passagens

em Harvard e Yale, tornando-se uma referência na arte e na educação. Seu olhar para

o elemento material é o de um recurso primeiro: na sua concepção, e na de seus

colegas da Bauhaus, a arte faz da matéria o dado originário da experiência. Ela

precisa ser conhecida e manipulada. Seu ensino era baseado no conhecimento do

material para sua futura disponibilização no processo criativo.

As ideias originárias deste período europeu certamente influenciaram as

convicções filosóficas e pedagógicas de Dewey, este mais alinhado, no entanto, às

considerações finais de Albers, que identifica a arte como experiência formadora,

valiosa em si mesma, e menos com a proposta de Gropius, que mirava também no

desenvolvimento de mão-de-obra qualificada para a produção industrial.

45 Josef Albers (1888-1976), artista plástico alemão.

121

3.2. A LIDA COM A MATÉRIA E AS EXPERIÊNCIAS DE CONFRONTO

Um embate homem-mundo fundado numa cosmologia onde natureza-

cultura não estão cindidas, onde o homem da razão e o homem da

imaginação estão intimamente vinculados (SANT’ANNA, 2010, p. 85).

Josef Albers e Walter Gropius representaram uma corrente de forte defesa da

conciliação entre a criação e execução, tanto no ambiente empresarial quanto

educacional, fortalecendo o encontro do indivíduo com as propriedades específicas

da matéria. Para eles, excelência na criação de um objeto só pode nascer

compreendendo a matéria-prima, suas potencialidades, e respeitando as suas

naturais limitações. Sobre esse tema, disse Gropius:

O verdadeiro trabalho criativo pode acontecer somente pelas mãos daqueles cujo conhecimento e maestria nas leis da estática, dinâmica, óptica, acústica, equipá-lo para dar vida e forma a um projeto idealizado. No mundo da arte as leis do mundo físico, o mundo intelectual e o mundo do espírito funcionam e são expressos simultaneamente. (GROPIUS apud ADAMSON, 2017, p. 83, tradução livre da autora)46.

Baseado nesta mesma ideia, o historiador e curador americano Glenn

Adamson47 dedicou-se a investigar as relações entre arte, artesanato e design. Em

seu livro Thinking through craft, explica as convicções de Gropius:

As qualidades físicas dos materiais e suas restrições de uso, ambas objetivamente verificáveis, foram usadas como parâmetros (ou, nas palavras de Gropius, limites pré-ordenados) dentro dos quais as práticas artísticas puderam florescer. (ADAMSON, 2017, p. 83, tradução livre da autora)48.

Pode-se admitir que, ao falar de limites pré-ordenados, Gropius define a

matéria como restritiva aos processos criativos. No entanto, ele as considera parte

intrínseca da criação. Criar seria justamente o ato de dar forma a uma matéria

considerando suas características expressivas. Gropius costumava levar os alunos

para conhecer carpinteiros, ferreiros e todo tipo de atividade artesanal avançada para

46 Em Adamson: “True creative work can be done only by the man whose knowledge and mastery of the physical laws of statics, dynamics, optics, acoustics equip him to give life and shape to his inner vision. In a work of art the laws of the physical world, the intellectual world and the world of spirit function and are expressed simultaneously.” 47 Glenn Adamson (1972 - ), historiador e curador americano, diretor do Museu of Arts and Design (MAD), Nova Iorque e ex-responsável pela área de pesquisa do Victoria and Albert Museum. 48 No texto original lê-se: The physical qualities of materials and the constraints of use, both held to be objectively verifiable, were used as parameters (or in Gropius’s words, “pre-ordained limits”) within which artistic practice could flourish.

122

que depois de compreendidas as especificidades técnicas dos materiais eles

pudessem ser utilizados na criação. Adamson corrobora esse pensamento: “O

material não pode satisfazer totalmente desenho, intenção ou ação, independente do

quão desesperadamente o artista deseje isso. Ele sempre permanecerá parcialmente

resistente.49” (ADAMSON, 2017, p. 67). Mas o jogo que promove a arte estaria

justamente no encontro entre o idealizado e o realizado.

Tal estratégia de abordagem do material viria posteriormente a ser amplamente

discutida nas escolas de arte. Nos Estados Unidos, grupos de trabalho apostaram em

uma investigação contrária: Adamson (Cf. 2017) relata a experiência feita pelo artista

americano Peter Voulkos50, professor na então Archie Bray Foundation51. Com um

grupo de alunos, usando a argila como material de pesquisa, experenciou justamente

a desconstrução de todas as regras associadas ao material: abolir o uso do torno,

escolher obras inusitadas, utilizar tintas plásticas para pintura e brigar com a gravidade

na modelagem de obras de grande porte, necessitando, portanto de apoios e cordas

na secagem das peças. Com isso Voulkos procurou neutralizar as características

intrínsecas à argila, tendo atuado sobre ela como se poderia atuar em qualquer outro

meio modelável, como as massas acrílicas ou as plasticinas.

Figura 63- Peter Voulkos entre suas obras

Fonte: Google Imagens52

49 No texto original: [...] a material cannot provide a full accounting of design, intention, or action, no matter how desperately the artist wills it. It will always remain partially resistant. 50 Peter Voulkos (1924-2002) artista americano dedicado especialmente à cerâmica. 51 Archie Bray Foundation: organização americana sem fins lucrativos dedicada às artes em cerâmica. 52 Peter Voulkos entre suas obras. Disponível em https://www.google.com.br/search?q=peter+voulkos&safe=strict&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKE

123

O escultor americano Stephen De Staebler53, um dos alunos de Voulkos,

posteriormente criticou essa “briga” com o material, afirmando: “A argila tem um

instinto para as formas [...] o que eu tenho tentado há muito tempo é descobrir o que

a argila quer fazer”54 (STAEBLER apud ADAMSON, 2017, p. 50, tradução livre da

autora). Staebler experimentava a plasticidade do material respeitando as suas

limitações naturais. Criticava, assim, a negação das características intrínsecas da

argila. Negou o uso de esmaltes que escondem a matéria básica. Também abriu mão

do uso de tornos e experimentou modelar com todo o corpo, criando uma série de

enormes sólidos, poltronas e bancos.

Figura 64- Obras de Stephen de Staebler

Fonte: Google Imagens55

wjqr7Gug9DeAhVGkpAKHXVoCXQQ_AUIDigB&biw=1093&bih=501#imgrc=PxOUY9Ut5VyaAM: acesso em 15/10/2018 às 12h20 53 Stephen De Staebler (1933-2011), escultor americano, dedicado à obras em argila e bronze. 54 Em Adamson: “The clay has an inner instinct for forms... what I have tried to do for a long time is find out what the clay wants to do” 55 https://www.google.com.br/search?q=stephen+de+staebler+sculpture&safe=strict&tbm=isch&tbs=rimg:CZygTEuWdzOnIjgJgVzeJYfRrsSOSI1LcvMC7rHK7J9Qja3XBc_1BlvxvdvtG3SX5A4xcP5igJcAi7fGnt6Ji4P8XnyoSCQmBXN4lh9GuEYysBq1EqYCsKhIJxI5IjUty8wIRPNqlt0TRTnwqEgnuscrsn1CNrREZQurKsMAOxioSCdcFz8GW_1G92EbPy-AY1RWvlKhIJ-0bdJfkDjFwR2wRa3zwb8P0qEgk_1mKAlwCLt8RHj10KbtXtCECoSCae3omLg_1xefEU4PsmZgyeIP&tbo=u&sa=X&ved=2ahUKEwjR_9LE5dTeAhWMDpAKHVpgD3MQ9C96BAgBEBg&biw=1093&bih=501&dpr=1.25#imgrc=ML7qskQc0-JM8M: acesso em 15/10/2018 às 12h35.

124

Figura 65- Obra de Stephen de Staebler

Fonte: Google Imagens56

Adamson, analisando esse caso específico, comenta que a ação incisiva de

Voulkos sobre a matéria converteu-se em inação para seu aluno e “o material manteve

sua influência sobre o criador”57. (ADAMSON, 2017, p. 51).

A negação das características da matéria é uma visão diametralmente oposta

à do historiador de arte francês Henri Focillon58 (1881-1943), professor de história da

arte. Em Vida das formas, o professor defende a matéria como meio para

manifestação do espírito, sendo que cada escolha modifica o resultado da obra,

manifestando mais ou menos a intenção daquele que a manipula. Cada matéria tem

suas propriedades como peso, densidade, volume e cor, que resultam em uma

linguagem toda própria. Assim, a pintura em aquarela terá qualidades que a pintura à

óleo não pode proporcionar e o efeito volumétrico de uma escultura é modificado se

esta for feita em madeira, em bronze ou em mármore. O efeito visual depende de

matéria e luz e a luz incide de formas diferentes de acordo com o meio escolhido. “O

56 Obra de Stephen de Staebler. Disponível em http://www.stephendestaebler.com/landform-sculpture-gallery.html: acesso em 03/12/2018 às 0h10.

57 No texto original: [...] the material held sway over the maker. 58 Henri Focillon: professor de História da Arte na Universidade de Lyon, na Sorbonne e na Universidade de Yale, diretor do Museu de Belas-Artes de Lyon.

125

volume não é o mesmo conforme esteja pintado em uma massa única ou em camadas

sobrepostas. Somos, assim, levados a ligar à noção da matéria a noção de técnica,

que na verdade, não se separa da outra de modo algum.” (FOCILLON, 1983, p. 74).

Henri Focillon atenta para as características inerentes dos materiais e alerta

que o olhar para a matéria como simples massa é reducionista. Por trás da massa

física esconde-se uma estrutura e um campo de ação. “A forma não age como

princípio superior modelando uma massa passiva, já que se pode considerar que a

matéria impõe sua própria forma à forma”. Textura, volume, dão a cada matéria uma

certa vocação formal. Apesar desta vocação, Focillon atenta para a importância de

um olhar não determinista sobre essa matéria, pois ao mesmo tempo em que ela

exerce influência sobre uma obra, ela pode ser profundamente modificada pela ação

do homem. (FOCILLON, 1983, p. 67, 68).

Por conta dessa ideia de leis intrínsecas que subjazem cada matéria, atribuiu-

se à arte valores morais: leis da matéria são extrínsecas ao homem e devem ser

respeitadas justamente por serem leis. Grande parte do incentivo ao ensino da arte e

do trabalho artesão foi impulsionada pela relação que se estabeleceu entre arte e

moral. Mário de Andrade (Cf. 2005) também afirma a importância de que a técnica

seja sistematicamente ensinada, mas que as manhas de cada artista fiquem de fora

deste ensino, para que não se ensine a fazer cópias. A técnica pura disponibiliza o

saber sobre os materiais para criação livre daquele que a experimenta. Para Mário de

Andrade (Cf. 2005), a técnica é muito mais do que uma engenhosidade da ciência, ela

é o fruto da relação do espírito com a matéria.

Voltando os olhares para os cinco entrevistados percebe-se que a fala deles

complementa as afirmações acima. O relato de Luciana Faria parece assemelhar-se

aos experimentos de Voulkos, um enfrentamento com a matéria. No entanto, esse

enfrentamento acontece de forma diferente. O que ela enfrenta sistematicamente são

os dogmas da profissão. Acha que na cerâmica há muitas regras falsas, que cada

artista deveria cuidar de testá-las. Assim, planeja testar a produção de peças com

cores fortes queimando-as em temperaturas mais altas, modela cumbucas rasgando-

as, mesmo sabendo que muitas racharão na queima. Peças rachadas são restauradas

e esmaltadas para ganharem resistência, mas ela não as vende, para poder

acompanhar a durabilidade. Para fazer sua saladeira gigante, fez uso de todos os

apoios que encontrou pela frente: “E comecei a acomodar ela em coisas. E comecei

126

a dar o acabamento. E aí eu fui esticando e pus um vidro aqui, uma garrafa aqui, uma

outra forma em cima da forma aqui [...]” (Notas de entrevista, p. 93). Luciana Faria,

que aprendeu o ofício com uma ceramista experiente, acha que o fato de não ter feito

cursos específicos na área a ajuda a vencer as barreiras.

Há poucos anos tendo a cerâmica como meio de vida, ela experimenta abrir a

maior quantidade possível de possibilidades de atuação, procurando os limites reais

da argila, além daqueles impostos pela cultura.

O discurso de Osni Branco é permeado pelo respeito aos materiais. “Pois, é,

então o fazer te dá o conhecimento da matéria e o interesse em saber”. (Notas de

entrevista, p. 105). Quando questionado sobre como o material pode interferir na

execução de uma peça idealizada, sua resposta foi imediata: para trabalhar com a

matéria é preciso conhecê-la. Os exemplos que deu foram precisos. Ao trabalhar com

a madeira, quando recebe uma tora, imediatamente observa o pé do tronco. Se houver

bactéria, já sabe que deve retirar os primeiros três metros acima, diminuindo a

probabilidade de descobrir danos quando a obra já foi iniciada. (Notas de entrevista,

p. 106). Quem conhece a madeira sabe, só de olhar para ela, onde o sol bateu mais

forte, onde há maior resistência. Para arrastar os enormes troncos de que necessita

para fazer suas peças, explica que só se insere o picão corretamente observando-se

o veio da madeira. Caso contrário a ferramenta vai desencaixar logo que o arraste

iniciar.

Mesmo assim, sabe que a matéria pode surpreender. Ao trabalhar com o metal,

quando se coloca uma peça no forno é “o vazio”, ele diz. Nunca se sabe exatamente

o que pode acontecer. Ao elaborar os moldes para fundição, usa isopor somente nas

peças maiores, pois seus buracos que aparecem no meio do material comprometem

a forma final. Então ele molda peças menores utilizando poliuretano expandido. Ao

fundir uma peça, nunca faz em dias de chuva, a probabilidade resultarem buracos é

grande: “fica que nem um queijo mineiro, cheio de furinhos” (Notas de entrevista, p.

108). Conhecer o material é condição sine qua non para o artesão. Após anos de

experiência, Osni Branco parece aceitar a natureza da matéria, tendo aprendido a

criar em cima do que ela oferece.

Sobre a lida com o vidro, Elvira Schuartz diz:

127

Eu tive aula com o João Paulo II, que foi um grande mestre mesmo, foi sensacional [...] Claro que os truques ele não ensinou nenhum [...] os "segredinhos" do vidro. O vidro tem muito essa coisa do segredo. Mas ele foi ótimo, ótimo no sentido de valorizar tudo que eu fazia. Quando eu desanimava porque não dava certo ele dizia "não, vai!” (Notas de entrevista, p. 41).

A fala da vidreira indiretamente valoriza a importância de conhecer a intimidade

do material, os “segredinhos”. Esses segredinhos ela foi descobrindo ao longo dos

seus trinta anos de atelier.

Todas as considerações apontadas neste capítulo trouxeram à tona a

importância de conhecer as características físicas, químicas ou elásticas dos materiais

de forma que eles possam contribuir da melhor forma para os processos de criação.

Trazendo um outro ponto de vista, não divergente, mas complementar, o

filósofo e educador francês Gaston Bachelard59 (1884-1962) tratará de identificar

elementos simbólicos que subjazem aos materiais, afirmando o quanto o confronto do

homem com o mundo é dinamizador da vontade e da imaginação do indivíduo.

Bachelard está, portanto, agregando ao olhar para a matéria a relação dela com o ser

humano. Sua abordagem não quer levar em conta as profissões, as valorizações

sociais, o saber científico, mas simplesmente a relação intrínseca entre aquele que

manuseia e o objeto manuseado: “O trabalho põe o trabalhador no centro de um

universo e não mais no centro de uma sociedade”. (BACHELARD, 2013, p.25).

Para ele, os manuseios são confrontos que se estabelecem entre o homem e

o mundo desde a infância. São confrontos dinamizadores da vontade humana e

dinamizadores da imaginação. Assim ele diz: “Todos esses objetos resistentes trazem

a marca das ambivalências da ajuda e do obstáculo. São seres por dominar. Dão-nos

o ser de nossa perícia, o ser de nossa energia.” (BACHELARD, 2013, p.16).

Imaginação e vontade, para Bachelard, tem a mesma origem:

59 Gaston Bachelard (1884-1962) nasceu em Bar-sur-Aube e morreu em Paris. Os pais eram donos de uma tabacaria e o avô era sapateiro. Concluiu seu bacharelado em 1903, trabalhou nos correios, quis tornar-se engenheiro, mas a guerra e as condições financeiras não permitiram. Licenciou-se em matemática e tornou-se professor de física e química em instituições do ensino secundário. Aos 35 anos começam seus estudos de filosofia. Iniciou sua carreira como docente do Ensino Superior em 1930, na Faculdade de Dijon, passando em 1940 a ministrar aulas na Sorbonne, onde conquistou público fiel. Bachelard era, antes de filósofo, educador, e suas aulas atraíam o público não somente pelo ineditismo das ideias, mas pela sua retórica. Seus estudos conciliam ciências humanas e ciências exatas, mas nota-se que as questões científicas foram disparadoras e estruturantes de seu pensamento.

128

A imaginação e a vontade, que poderiam, numa visão elementar, passar por antitéticas, são, no fundo, estreitamente interdependentes. Só gostamos daquilo que imaginamos ricamente, daquilo que cobrimos de belezas projetadas. Assim o trabalho enérgico das matérias duras e das massas amassadas pacientemente é animado por belezas prometidas. Vê-se aparecer um pancalismo60 ativo, um pancalismo que deve prometer, que deve projetar o belo além do útil, um pancalismo que deve falar. (BACHELARD, 2013, p.6).

Falando sobre esse tema, o filósofo critica a psicanálise, que coloca todas as

atenções no conflito entre os seres, mas deixa de observar os encontros entre o ser e

o mundo. Para Bachelard, cada material, com sua consistência e resistência, oferece

uma possibilidade diferente de confronto e define diferentes habilidades:

De tanto manejar matérias muito diversas e bem individualizadas, podemos adquirir tipos individualizados de flexibilidade e de decisão. Não só nos tornamos destros na feitura das formas, mas também nos tornamos materialmente hábeis ao agir no ponto de equilíbrio de nossa força e da resistência da matéria. Matéria e Mão devem estar unidas para formar o ponto essencial do dualismo energético, dualismo ativo que tem uma tonalidade bem diferente daquela do dualismo clássico do objeto e do sujeito, ambos enfraquecidos pela contemplação, um em sua inércia, outro em sua ociosidade. (BACHELARD, 2013, p. 21).

Assim, em sua obra A terra e os devaneios da vontade (Cf. 2013), descreve

características das diferentes categorias de materiais, iniciando essa descrição com a

mais simples das divisões, os duros e os moles. Entre os materiais moles, ele inclui a

argila, a areia, a massa do pão, tudo o que é naturalmente modelável. Entre os duros

estarão as madeiras, as rochas, os metais, as pedras preciosas:

Duro e mole são os primeiros qualificativos recebidos pela resistência da matéria, a primeira resistência dinâmica do mundo resistente. No conhecimento dinâmico da matéria – e correlativamente nos conhecimentos dos valores dinâmicos de nosso ser – nada fica claro se não colocamos de início os dois termos, duro e mole. Vêm em seguida experiências mais ricas, mais sutis, um imenso campo de experiências intermediárias. Mas na ordem da matéria, o sim e o não se dizem mole e duro. Não há imagens da matéria sem essa dialética de convite e de exclusão [...] (BACHELARD, 2013, p.15).

Classificações bastante mais precisas já foram feitas, das quais Bachelard fez

uso: pedras, ossos, madeira, serão chamados pelo arqueólogo e antropólogo francês

André Leroi-Gourhan (1911-1986) de sólidos estáveis. Aqueles materiais que

conquistam maleabilidade com o aquecimento, como os metais, serão chamados

sólidos semi-plásticos. Os que são maleáveis e endurecem com o cozimento, como

60 Pancalismo: doutrina desenvolvida pelo psicólogo e filósofo americano James Mark Baldwin (1861-1934) que admite o belo como valor supremo.

129

as argilas, as massas e os vernizes, estarão na categoria de plásticos. Aos materiais

flexíveis, mas não maleáveis, como os tecidos, as linhas, os couros, Leroi-Gourhan

chamará de flexíveis (LEROI-GOURHAN, 1943, p. 18). A argila, tão maleável, sofrerá

uma transformação definitiva com a queima e endurecerá. O metal sólido e frio

ganhará toda a maleabilidade e flexibilidade para, após o resfriamento, retornar ao

estágio inicial.

Em A terra e os devaneios da vontade, Bachelard caracteriza inicialmente as

matérias moles. Ele descreve sua baixa resistência, no sentido de facilidade de

manuseio, muito mais propensas ao encontro do que ao confronto; afirma a

importância das brincadeiras de criança, na areia e na terra; descreve o encontro da

terra com a água, da farinha com a água, uma contribuindo com consistência, outra

com brandura, para, quem sabe, conquistarem juntas aquela textura que convida ao

toque. (BACHELARD, 2013, p. 64). Bachelard tem muitas memórias felizes de

infância, às quais ele recorre para enriquecer seus pontos de vista. É nesse contexto

que ele lembrará das brincadeiras em que os dedos melados das crianças aproximam

e afastam o polegar e o indicador, as mãozinhas meladas que abrem e fecham, fruindo

da maciez da massa (BACHELARD, 2013, p.22). Suas memórias de infância trazem

o prazer nascido quando o tato encontra a consistência certa:

A participação é tão total que mergulhar a mão na matéria certa é mergulhar nela todo o ser. Ah! Se compreendêssemos que as fontes de nossa energia e de nossa saúde estão em nossas próprias imagens dinâmicas [...] eis o que basta para nos provar que a matéria suave suaviza as nossas cóleras. [...] Então um tipo de simpatia humana nasce do trabalho da massa perfeita. (BACHELARD, 2013, p. 67).

Ao lembrar da massa do pão ou da massa da argila, aborda também a

qualidade dos movimentos, tratando amassadura e a modelagem como antitéticas,

uma destruindo, outra construindo. Lembra também do forno, que individualiza a

matéria, posto que a transforma permanentemente. Para Bachelard, aquele que

trabalha com o fogo não é operário, não é trabalhador, é senhor. O sonho do operário

que é senhor não deve ser retirado. “Retire os sonhos e você abaterá o operário”

(BACHELARD, 2013, p. 75).

Terra e fogo, argila e fogo fazem Bachelard lembrar-se da antiga prática entre

algumas culturas de enterrar vasos depois da queima para que estes recebam de volta

130

a sua substância de origem, um simbolismo que, para ele, remete ao retorno ao útero

da mãe.

Se a matéria mole é o território do encontro e do sonho, o mundo resistente

desperta em diferentes intensidades. A madeira não deve ser percebida como uma,

mas como várias, distintas em aspecto e dureza. Para conhecê-las, somente lidando

com elas, visualmente, no tato e no talho. Elas são, assim, grandes educadoras da

percepção:

Esse gestaltismo dinâmico da imaginação material que reúne uma intensidade substancial a uma forma só será negado por aqueles que não tem o sentido do carvalho. Se a imaginação material é por vezes tão fraca, a culpa não será daqueles móveis laqueados que nos frustram devaneios em profundidade? Tantos objetos que nada mais são além de superfícies! [...] a madeira não é como o ferro, cada pedaço, é preciso julgá-lo. Se a julgamos mal, a madeira trairá. (BACHELARD, 2013, p.44).

Sobre a árvore, afirma que ela chama em nós os desejos do inabalável:

Repentinamente o sonhador que vive a dureza íntima da árvore compreende que a árvore não é dura sem razão – como são muito amiúde os corações humanos. A árvore é dura para levar ao alto a sua coroa aérea, a sua folhagem alada. Ela proporciona aos homens a grande imagem de um orgulho legítimo. Sua imagem psicanalisa toda a dureza carrancuda, toda a dureza inútil e nos devolve a paz e a solidez [...] Feliz aquele que, de manhã, para iniciar sua jornada, tem sob os olhos não somente belas imagens, mas imagens fortes. (BACHELARD, 2013, p. 57, 58).

Com a frase acima Bachelard reforça a ideia de que as formas da natureza

carregam um sentido maior, são formas plenas de significado.

Aos rochedos Bachelard (Cf. 2013) associa não somente a dureza, mas

também o inescrutável, o sentido que nunca se revelará. Os metais seriam uma fonte

de dinamismo, pelo seu grau de dureza e, por mais variados que sejam, todos

transmitem solidez e frieza, que podem ser associadas à hostilidade.

Em sua obra O Direito de Sonhar (Cf. 1985), Gaston Bachelard traz a qualidade

da lida entre os diferentes materiais a partir do percurso artístico de seu amigo, o

escultor espanhol Eduardo Chillida61. Bachelard conta que quando este se interessou

pela escultura, foi convidado ao caminho natural, iniciando, assim, a modelagem em

argila. Logo suas mãos se revoltaram pois não queriam modelar, queriam desbastar.

61 Eduardo Chilllida Juantegui (1924-2002): escultor e gravurista espanhol, ligado ao movimento modernista.

131

Então, o iniciante partiu para a experiência com o gesso, mas não ficou satisfeito com

a delicadeza que lhe foi oferecida e então passou a esculpir na rocha. Conta Bachelard

da insatisfação ainda persistente de Chillida, já que a escultura em pedra mantém

parte da matéria “inatacada”. O centro da rocha é intocado e invisível àquele que nela

trabalha. Então “Chillida larga o cinzel e o maço. Pega a tenaz e a massa forjadora. E

foi assim que um escultor se tornou ferreiro” (BACHELARD, 1985, p. 42). Em sua obra

O pente do vento, Eduardo Chillida sonhou com o metal vibrando no vento, esculpindo

assim uma enorme escultura cravada na pedra, que ele executou sem maquete

prévia, para que a forma pudesse nascer do próprio ferro. Muitas de suas obras

quiseram promover o encontro do ferro e do ar. Bachelard as apelida de “gaiolas-

pássaros, gaiolas que querem voar”. Ele acredita que com seus trabalhos em ferro

Chillida tenha encontrado “o segredo da solidez livre de toda a inércia” (BACHELARD,

1985, p. 43). Na obra de Chillida, não apenas metal encontra o ar, mas metal encontra

a pedra, metal e drusa. A obra de Chillida é uma joia talhada em plena natureza.

Bachelard encontrou nesta narrativa uma forma muito adequada de apresentar a

procura de afinidade entre o ser e a matéria.

Figura 66- “O pente do vento”, obra de Eduardo Chillida

Fonte: Google Imagens62

62 Obra de Eduardo Chillida. Disponível em https://www.google.com.br/search?q=eduardo+chillida&safe=strict&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwi4qZTQo6_eAhVEkJAKHcAVCA0Q_AUIDigB&biw=1093&bih=501#imgrc=KWh9tTEbv77beM: acesso em 18/10/2018 às 19h05.

132

Além da dureza que se transforma em maleabilidade, característica visível do

metal, sua existência também carrega simbologias que o associam à longevidade e à

permanência:

O animal traz a vida cotidiana. O vegetal, a vida anual. O mineral, a vida secular, que se conta por milênios. Assim que se sonha na vida milenar do metal, o devaneio cósmico entra em ação. Impõe-se assim uma espécie de espaço-tempo do devaneio metálico que faz com que se una à ideia da mina remotamente profunda a ideia de um passado desmesurado. O metal, para o alquimista, é uma substância-século. (BACHELARD, 2013, p.193).

Com isso, Bachelard explica a ideia do ouro como fonte da juventude, relação

tantas vezes trazida em antigas lendas e explicada na alquimia pela potente

condutibilidade que carrega, assim, princípios de vitalidade. O autor, assim prossegue:

Portanto, não é de admirar que a quintessência metálica, que produz o ouro, seja uma substância de juventude. Do homem centenário, ela faz um jovenzinho. As ervas apenas refrescam uma tez, o chifre de cervo apenas aguça um olhar. A juventude metálica é a única que proporciona rejuvenescimento em grande ritmo. É sonhada como a tenacidade de vida de um princípio encravado na substância dura e profunda. [...] Sim, por que o ouro, esse rebento do ímpeto metálico, não receberia, no fundo da mina, todos os sucos da primavera? (BACHELARD, 2013, p.193).

Tais qualidades estabelecidas por Bachelard para os minerais tiveram forte

influência da alquimia, notadamente de Paracelso63, em cuja obra constam

considerações importantes a respeito dos metais e das suas relações com os

planetas, associando assim, vida subterrânea, vida astral e organismo humano,

microcosmo e macrocosmo, terra e astros. Bachelard lamenta que os metais estejam

hoje disponíveis somente na forma mais pura, tratada. Perdem-se as nuances entre o

impuro e o puro, restando apenas o conceito. É a batida do martelo que expulsa a

impureza e que dá ao trabalho do ferreiro um caráter moral. Esse ferreiro é o próprio

Hefesto, deus feio, peludo e coxo da mitologia grega que, no entanto, é filho de Zeus

e de Hera e que transforma tudo o que chega na sua oficina em artefatos de extrema

beleza. Ou talvez os anões feios da mitologia nórdica que habitam as cavernas

subterrâneas, mas que produzem todos os objetos maravilhosos e mágicos utilizados

63 Paracelso: pseudônimo de Philipus A.T.B Hohenheim (1493-1541). Médico suíço, grande estudioso de plantas e metais e de suas relações com os planetas e com o corpo humano. Aprendeu muito do que sabia nos mosteiros, onde conhecimentos pré-científicos eram preservados. Resgatou também princípios da alquimia. Estabeleceu novas formas de tratamento de doentes com base nas suas pesquisas e foi amplamente rejeitado por seus colegas, tido como charlatão. Posteriormente suas pesquisas serviram de base para o desenvolvimento da medicina alternativa, por filósofos e profundamente estudada por Jung.

133

pelos deuses. De onde vieram essas imagens de personagens grotescos que

produzem coisas tão belas? Quem sabe Hefesto e os anões sejam a própria terra

escura e fria, de onde saem ouro e pedras preciosas? Ou quem sabe queiram trazer

as próprias virtudes humanas de transformação?

As pedras preciosas ganham significado similar, no sentido da aproximação do

microcosmo com o macrocosmo: Querendo-se ter estrelas, têm-se pedras preciosas:

As gemas são as estrelas da terra. As estrelas são os diamantes do céu. Há uma terra no firmamento; há um céu dentro da terra. Mas não compreenderemos essa correspondência se virmos nela apenas um simbolismo geral e abstrato. Como teremos oportunidade de mostrá-lo, trata-se realmente de uma correspondência material, de uma comunicação das substâncias. (BACHELARD, 2013, p. 230, 231).

Para Bachelard, assim como para aqueles que se dedicaram à alquimia, cristais

e metais carregam substância planetária e estelar. O cristal é definido como um

receptor de luz, símbolo de algo que se depura, que se purifica, simboliza a

capacidade de limpar a matéria. Aquele que a lapida deve sonhar simultaneamente

com a claridade da gema e com a claridade do firmamento. (BACHELARD, 2013,

p.242).

Nesse sentido, a joia, união de ouro e pedra preciosa, “é uma monstruosidade

psicológica da valorização” (BACHELARD, 2013, p. 9). No entanto, só se entenderá o

verdadeiro sentido dessa valorização desde que não se confunda o valor econômico

com o valor simbólico:

Cumpre, aliás, também tomar cuidado para que o inconsciente social, que acumula a avidez pecuniária, não venha contaminar o inconsciente natural e não vá desejar um diamante segundo a aritmética dos quilates. No sonho fundamental da pedra brilhante – sonho que parece ser um dos mais primitivos entre todos os povos, a ponto de a pedra preciosa poder ser colocada na classe dos arquétipos do inconsciente – o sonhador ama uma riqueza que não está à venda. (BACHELARD, 2013, p.235).

A concepção bachelardiana se mostra na fala dos entrevistados. Ana Passos

fala sobre sua escolha: “Sempre metal, meu fascínio é metal” (Notas de entrevista, p.

11). Ela descreve então o encantamento em fazer nascer algo tão belo da massa feia:

“Mágica, porque é mágica né?! E a joalheria ainda tem essa, porque alguns materiais

você vê o processo, outros não, [...] Mas assim, na joalheria, até você puxar o brilho

na peça, que é a última coisa que você faz, ela é horrorosa” (Notas de entrevista, p.

1). O ouro é fosco até o último momento da produção da joia, só ganha beleza após

134

o polimento final. Polir é trazer luz para o material, uma luz que nasce do atrito e do

calor. No olhar bachelardiano, o polimento tem um aspecto sensual. Existe uma

diferença, não somente na qualidade intrínseca dos materiais, mas também nos

movimentos do artesão. (BACHELARD, 2013, p.40). A atitude de desbastar algo é

bem diferente daquela de polir algo. Talhar a madeira, lapidar uma pedra tem um gesto

e uma intenção. Alisar, lixar, polir, são gestos e intenções de outra ordem. Há algo de

Hefesto nas percepções de Ana, e há algo de Bachelard também. Ana Passos fala

ainda da sua criação a partir da pedra:

E aí quando você vai criando você começa a tirar essas pedras e ver o que é que combina e tudo isso e vira uma cavocação de pedras [...] O que é que eu faço, [...] aqui por exemplo, eu pego essas bandejinhas aí eu boto assim, eu vou, boto um monte de pedra aqui e vou (Ana Passos mostra as pedras organizadas na bandeja em um lugar com boa luminosidade). [...] aí não vira nada, daqui a pouco eu pego três e guardo... eu tô sempre futucando, eu garimpo dentro de casa agora, mas compro, não paro. (Notas de entrevista, p. 34).

Ela se dispõe a trabalhar com aquela que a convidar, após um exercício de

contemplação.

Bachelard fala do valor intrínseco dos metais e das pedras preciosas. Ana

Passos ressalta a simbologia do eterno que o ouro traz consigo:

Porque na joia tem uma coisa interessante. O ouro é um dos metais... é um dos materiais na natureza que melhor resistem a tempo, então ele é um belo portador de memória, porque ele resiste. E é interessante como as pessoas usam isso como registro de suas afetividades. Então você dá um brochinho, dá um alfinetinho pra um bebê, você dá uma estrela de Davi num bar mitzvah, uma cruz, você dá um tercinho, um brinco de pérola, um colar de pérolas, você dá um anel de formatura, você troca alianças, você [...] então assim, os grandes momentos da vida das pessoas passam pela joia. Mesmo quando a pessoa não tem relação nenhuma com a joia, mesmo quando não tenha nenhuma joia, ela tem essa ideia da joia. E aí você tem coisas mágicas. (Notas de entrevista, p. 13).

Tal qual Bachelard, para Ana Passos o valor da peça não se mede pelos

quilates:

Tinham dois aneizinhos dos anos 40, eu botei até no Instagram, dois aneizinhos dos anos 40 muito pequenininhos, muito frágeis, tipo assim, ninguém ia dar nada... eu tava completamente apaixonada e ninguém ia dar nada por eles [...] corri aqui limpei, limpei a pedra, [...] botei numa caixa nova... ... quando eu vejo uma coisinha linda de morrer, sem valor nenhum de mercado... Eu tenho isso como uma

135

parte significativa do meu trabalho hoje em dia. (Notas de entrevista, p. 14).

Apesar de valorizar o ouro e as pedras preciosas, a definição de joia que Ana

Passos assumiu não está associada à produção de peças com metais de alto valor,

mas abarca todo o adorno, não importa o material. O conceito se aproxima mais dos

pensadores da arte moderna, como descreve De Masi, ao citar o programa de trabalho

da oficina de artesãos Wierner Werkstätte64:

Amamos a prata e amamos o ouro pelo seu brilho particular; mas do ponto de vista artístico, o cobre tem para nós o mesmo valor dos metais preciosos. Para nós, uma joia em prata pode possuir por si mesma o valor idêntico ao de uma joia em ouro ou feita com pedras preciosas. É preciso voltar a reconhecer e a apreciar o valor do trabalho artístico e de sua criatividade. O trabalho do artesão deverá ser valorizado da mesma forma que o do pintor e do escultor. (Programa de trabalho da Wiener Werkstätte 1905, apud MASI, 1999, p. 202).

Na perspectiva da Wierner Werkstätte o valor do trabalho artístico deve

sobrepor-se ao valor do material. Querendo reforçar essa tendência, Adamson (Cf.

2017) em Thinking through craft apresenta a obra do joalheiro Gijs Bakker65, um

broche que mistura pedras preciosas e metais sem qualquer valor na joalheria

tradicional. O resultado é claramente provocativo.

Figura 67- Peça realizada por Gijs Bakker - combinação de pedras preciosos com pedras fantasia

Fonte: Adamson, 2017, p. 118

64 Wierner Werkstätte: empresa austríaca fundada em 1903, com o propósito de renovação artística de objetos do dia-a-dia, conforme tendência da época, já retratada nesta pesquisa, também citada no livro de Domenico de Masi, A emoção e a Regra. 65 Gijs Bakker (1942 - ): joalheiro e designer industrial holandês.

136

Figura 68-Adorno sem metais preciosos realizado por Ana Passos para a coleção Tempos Urbanos

Fonte: Acervo de imagens da artista – concedido para utilização

Um outro aspecto trazido na entrevista com Ana Passos, abordado tanto por

Bachelard quanto por Gropius, o primeiro mais poeta, o segundo mais técnico, é o

conhecimento da especificidade dos materiais. Ela conta que nas aulas de joalheria

só se usa a prata. Assim, ao trabalhar com o ouro pela primeira vez percebeu

imediatamente a diferença: mais maleável, flexível ao molde. Somente aquele que de

fato manipula a matéria consegue compreender as suas sutilezas. Quanto a isso,

Bachelard tem a dizer que:

Buffon escreve, por exemplo: “Há alguns mármores ásperos cujo trabalho é muito difícil, os operários chamam-nos mármores altivos porque resistem muito às ferramentas e só lhes cedem estilhaçando” Um filósofo das superfícies e das cores só saberia falar da frieza e da brancura de um mármore, a dureza do mundo expressa a sua hostilidade, nunca lhe descobriria a altivez, a cor áspera, o súbito estilhaçamento. Em suma, aqui, como na maior parte dos exemplos, é por ser má vontade que a matéria é vontade. (BACHELARD, 2013, p. 72).

Osni Branco é um amante dos materiais e toda a sua entrevista foi permeada

pela caracterização desses. Sua fala carrega um tanto da concepção bachelardiana.

O metal é obediente, a madeira é soberana. Aquecido, o metal torna-se fluido e desmente todo o seu aspecto masculino, que o vincula às armas, às ferramentas, ele simplesmente se deixa modelar: sei lá, eu acho que ele tem tanto a ver, principalmente a fundição, a fluidez feminina que vai e permeia o Ying que permeia tudo. Se não fizer

137

assim, nada será transformado [...] essa fluidez, as mulheres são fluidas, o feminino é fluido. Quando as flores estão balançando ao vento e tal, penso assim. Mas o inconsciente coletivo não está nisso porque os movimentos de guerra, todas as coisas que estão lá é o bronze, a escultura. Isso cria essa imagem e depois pra desfazer, não sou eu que vou desfazer isso. (Notas de entrevista, p. 113).

O comentário de Osni Branco a respeito do metal mostra a diferença de

percepção entre aquele que manipula um material e aquele que não o manipula. Ele

percebe no metal uma feminilidade somente visível para aqueles que o manipulam.

Há um conhecimento que só pode nascer da intimidade.

Quanto à madeira, para Osni, quem trabalha com ela a ela se curva. Um bom

trabalhador da madeira é aquele que respeita suas formas, seus veios. Os veios da

madeira apresentam movimentos todos próprios. “Se eu olhar uma madeira dessa

aqui, já sei que é peroba, pela textura, tudo carcomido, é sempre assim”. (Notas de

entrevista, p. 97).

Suas obras sempre expõem a madeira. Uma rachadura receberá uma

marchetaria para fazer a contenção da cisão:

Figura 69 - Peça realizada por Osni Branco

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

138

Uma peça em madeira avariada poderá se transformar em um híbrido de

madeira e metal, uma forma de lidar com a imperfeição, criando a partir dela:

Figura 70- Peça realizada por Osni Branco - madeira com detalhe em metal

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

A história da madeira, natureza e ação humana estarão evidentes em suas

obras. Osni Branco se interessa, inclusive, pela história e pela procedência da matéria-

prima com a qual trabalha:

[...] mas eu vou te mostrar aqui num tronco [...]. Então aqui é assim, onde é que é o norte aqui? isso aqui (mostra o tronco) é uma bússola natural, onde pegou mais energia, está vendo esse crescimento? Anel de crescimento [...] abaixo do equador, aqui é o sul. Se você tivesse nos Estados Unidos era o contrário certo? É, então, o sol nasce aqui e se põe aqui. A carga de energia vem aqui ó, então por isso que ele cresce pra lá. Se você não comer, não cresce, não é? Se você não tiver energia não cresce... então, a madeira é a mesma coisa. Então essa fibra aqui, recebeu mais energia, ela é mais tensa, ela é mais compacta, ela é mais uniforme do que essa aqui, tá? Então como é que eu faço pra tirar dois pedaços de madeira que são mais semelhantes possíveis fisicamente, dentro dessa tora. O que eu faço? Aí o corte também já é diferente, né? (Notas de entrevista, p. 96).

Osni Branco também explica em que medida o conhecimento da madeira

interfere no artefato a ser elaborado, usando como exemplo a confecção de um

instrumento musical:

A fibra daqui e a fibra daqui são as mais semelhantes possíveis (mostra duas fatias da madeira cortadas paralelamente, colocadas lado a lado, em espelhamento), ...então eu tenho uma harmonia de fibras aqui [...] Então isso é colocado no fundo da viola, do violino, você vai ver que a tábua é emendada né... então a viola pra conseguir esse

139

afinamento, ela precisa dessas chapas irmãs... chapa irmã lá do norte, é o melhor da madeira... por que é o melhor da madeira? Porque recebeu mais energia e principalmente aqui ao meio dia né, porque aqui é o ponto de mais insolação. (Notas de entrevista, p. 96).

E completa falando sobre a interferência da localização de uma árvore na

dureza da madeira, perceptível somente àquele que a conhece:

A outra coisa é, se ela nasce no centro da floresta ou se ela nasce na beira do morro já muda tudo, ela (a árvore) tem as outras irmãs em volta pra protegê-la. Um irmão protegido é sempre mais frágil...Ela é mais frágil, a fibra não endurece, não é tensa, é macia. Também é mais uniforme, não levou porrada, não tem machucado. Se ela nasce na beira do morro, ela é muito mais tensa que as outras porque ela está em perigo, o vento está sempre mexendo pra lá e mexendo pra cá e ela resistindo lá na beirada. (Notas de entrevista, p. 96)

Figura 71- Peça realizada por Osni Branco

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

O estilo de Osni Branco tem afinidade com o do escultor mobiliário Hugo França

(1954 - ). Formado em engenharia de produção, Hugo França mudou-se para a

Bahia onde passou a viver de atividades diversas. Em um momento difícil de sua vida,

encontrou ocasionalmente um grande tronco de árvore e pôs-se a entalhá-lo, dando

origem a uma enorme pia, sua primeira obra. O artista-artesão conta que tudo o que

fez foi seguir os veios da madeira e o movimento que ela mesmo estava definindo. A

partir de então iniciou a produção de móveis com estilo marcante, baseado em um

tripé: resgate da madeira, mínima intervenção e atenção às propriedades e acasos

140

registrados pela matéria natural. (GRUNOW, 2007, p. 15). Normalmente suas obras

são grandes, o que lhes dá características esculturais.

Figura 72 - Banco realizado por Hugo França

Fonte: Google Imagens66

Muitos dos troncos dos quais faz uso são conseguidos em expedições que ele

mesmo protagoniza. Aproveita árvores caídas por queimadas, por raios, optando

muitas vezes pelas madeiras de baixo valor na marcenaria tradicional brasileira, como

o pequi. A madeira que ele escolhe é o material fadado ao abandono e ao

desolamento, que ganha nova vida em outro contexto. Hugo França se encarrega

inclusive do transporte da matéria-prima, encontrada frequentemente em locais de

difícil acesso a veículos de carga. Ele conta que, para decidir o que fará com cada

tora de madeira, leva em consideração até mesmo a posição em que foi encontrada.

Assim, cada peça tem uma aventura que lhe é inerente, em cada obra uma narrativa.

Além de árvores caídas, Hugo França reaproveita madeiras de outros objetos. Uma

de suas coleções foi inteiramente realizada com restos de canoas abandonadas às

margens dos rios ou submersas, cortadas e reposicionadas de forma inusitada.

66 Obra de Hugo França. Disponível em: https://www.google.com.br/search?q=hugo+fran%C3%A7a&safe=strict&tbm=isch&source=iu&ictx=1&fir=RyzkVzijN4utUM%253A%252Cfz4ljLyPFAHzPM%252C_&usg=AI4_-kRA7N6-FIOvtdz37HYh4FTRF_03pQ&sa=X&ved=2ahUKEwjL-Zzmu7HeAhVJOZAKHVDnAuIQ9QEwAXoECAQQBA#imgdii=4Q8vodxj7Gr_pM:&imgrc=RyzkVzijN4utUM: acesso em 23/10/2018 às 13h45.

141

Figura 73- Cadeira realizada por Hugo França para a coleção Canoas

Fonte: Google Imagens67

Sua trajetória profissional entrelaça a produção artística e artesanal, mas

conversa com a ecologia, sustentabilidade e mesmo a sociologia, pois foram muitas

as comunidades visitadas pelo escultor à procura de matéria-prima, muitos relatos das

condições de vida de povos das florestas e pequenos povoados no interior do Brasil.

Suas primeiras produções foram executadas em uma oficina emprestada, onde

trabalhava fora do horário comercial. Os artesãos que ali trabalhavam estranhavam a

presença daqueles troncos, pois só utilizavam os laminados de espessura padrão.

Estranhavam também o uso do serrote manual, considerado obsoleto, mas

imprescindível para sua forma de conceber a obra. (GRUNOW, 2007, p. 17). Para

Hugo França a madeira é um material que merece ser evidenciado, com uma história

que merece ser contada.

67 Cadeira Hugo França, coleção Canoas: Disponível em https://www.google.com.br/search?safe=strict&biw=1093&bih=501&tbm=isch&sa=1&ei=HTjaW5a0BoH9wATt6a04&q=hugo+fran%C3%A7a&oq=hugo+fran%C3%A7a&gs_l=img.3..0i67k1j0l4j0i30k1j0i5i30k1l4.553154.553620.0.554875.4.4.0.0.0.0.129.348.0j3.3.0....0...1c.1.64.img..1.3.348...0i24k1.0.C65Mitpt2Vs#imgrc=N_GdsTOjTQ_V7M: acesso em 17/10/2018 às 13h50.

142

No que se refere ao manuseio com a argila, Luciana Faria fala de troca. “O

barro, eu estou dando para o barro e ele está me dando... Então isso tem uma força

energética que não dá para dar errado” (Notas de entrevista, p. 76). Ela acha que lida

com um elemento que carrega em si uma ancestralidade que lhe é inerente e que, a

partir dessa lida, tornou-se mais segura de si, mais confiante. Luciana Faria acredita,

inclusive, que o sucesso de sua carreira vem do prazer pelo trabalho.

À relação que Elvira Schuartz estabeleceu com o vidro subjaz seu

encantamento com o fogo e com a luz. Textos de Paracelso falam do fogo como

elemento propulsor da vida:

Explicaremos isso com um exemplo: o fogo precisa de um combustível para arder, como a madeira, sem a qual ele não existiria. Considerem então que o fogo é a vida e que igualmente precisa de alguma madeira para existir. E lembrem-se disto, por mais grosseiro que seja o exemplo, porque acho que será suficiente e muito bom: o corpo é a madeira e a vida é o fogo, por assim dizer, a vida "vive" do corpo. (PARACELSO, Philippus Teophrastus, Opera Omnia).

A mesma definição será utilizada posteriormente por Bachelard em A

psicanálise do fogo (Cf. 2012). Nessa obra o filósofo resgata suas memórias de

infância, lembrando como em sua casa somente o pai acendia a lareira, dispondo

cuidadosamente as achas para obter um melhor resultado, em um ritual diário. Ainda

menino, sonhava em um dia conquistar o direito de acender o fogo, tornando-se então,

senhor também. Os roubos de fósforos para acender escondido pequenas fogueiras

nada mais faziam do que reviver o mito de Prometeu e as queimaduras causadas

durante essas transgressões só faziam crescer a admiração pelo pai. São resgates

do simbólico e do sagrado, fortemente presentes nas narrativas mitológicas e na

sabedoria pré-científica. Entre as narrativas que relacionam o fogo e a vida destaca-

se o mito da criação dos povos do Havaí. O deus que protagoniza a criação é Ai-laau,

aquele que come e devora árvores e florestas, o deus do fogo. A mitologia havaiana

conta que ele foi substituído por Pele, deusa do fogo. Seu complemento é sua irmã

mais nova (WESTERVELT, 2007, p. 35). Pele, quando zangada, tudo destrói e a irmã

constrói, há que destruir para fazer renascer, simbologia apropriada para um conjunto

de ilhas nascidas da lava dos vulcões. A lava que constituiu o terreno para morada

143

subitamente pode tomar conta de tudo o que há, para que anos depois a vida possa

surpreender novamente68.

Figura 74- Peça realizada por Elvira Schuartz - luminária em vidro

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

Assim, nasce a ideia do fogo como elemento de transformação e da renovação.

No caso do metal, a matéria se transforma e se refaz. Osni Branco fala sobre isso

como um enigma. Ana Passos também aborda o tema: “Você tem que trazer pro calor

sempre, o metal sempre precisa ser reaquecido, que a gente chama recozer, pra você

estar com ele maleável pra trabalhar. Porque toda vez que você bate você tá

enrijecendo, você está reestruturando o metal em termos moleculares.” (Notas de

entrevista, p. 12).

No caso do metal, mesmo após o completo derretimento a substância retoma

sua formação inicial. Ana Passos atribui a isso um dos fatores da sua afinidade com

esse material. Ela gosta da previsibilidade, da possibilidade de derreter tudo e

começar de novo sem perda de material. Essa facilidade para recomeçar a permite ir

68 O arquipélago havaiano foi formado pela intensa lava expelida por vulcões localizados no fundo do mar. Tal movimentação vulcânica ainda acontece e novas ilhas estão em formação. Em contrapartida, vulcões acima do nível do mar continuam em atividade também, e muitas vezes destroem casas e vegetação ao redor. Muitos anos depois das erupções é possível observar a vida rompendo a lava endurecida e nova vegetação começa a vir a à tona. Há nesta cultura um claro exemplo do fogo como elemento formador e transformador, em grande consonância com as lendas da região.

144

para a bancada com esboços menos claros do que pretende fazer e assim existe

espaço suficiente para criar ao longo da execução. Ela comenta:

Aqui é totalmente previsível. E eu queria discutir como muda a percepção do trabalho quando você joga no forno e reza pra ver o que é que acontece, que é o que acontece com a cerâmica e com o vidro, e com o metal, eu tenho total controle sobre o que eu tô fazendo, inclusive se der errado eu derreto e começo de novo. (Notas de entrevista, p. 17).

No caso da argila e do vidro, a matéria é modificada na sua substancialidade,

a queima e o resfriamento estão sujeitos a regras rígidas. Luciana Faria gosta de testar

dogmas inerentes à sua profissão, mas lembra que as regras de secagem da argila

não são dogmas, são leis. O forno proporciona ao artista um momento de suspense,

um vazio entre a entrada e saída da peça. Bolhas, rachaduras ou trabalhos limpos e

perfeitos são, todos, possibilidades. Osni Branco sempre faz uma pequena reverência

ao forno quando entra na oficina. Tal qual pensa Bachelard, o forno é o senhor do

local.

Levando em conta os aspectos práticos, para aqueles que trabalham com o

forno, ele é o soberano do atelier. Com custo de utilização alto, acaba por definir toda

a dinâmica da produção, o tamanho das peças que a ceramista poderá produzir, que

conjunto de peças será produzido para que a ocupação seja otimizada. Luciana Faria

conta que chega a produzir peças bem pequenas para ocupar os espaços vazios do

forno, de forma a conseguir melhor eficiência no uso.

É importante apontar que Guilherme Rossi estabelece uma relação

completamente diferente com a matéria-prima. A entrevista mostrou claramente que

a ideia é protagonista de seus processos de criação, a escolha do material está

atrelada a ela. Na sua prateleira fica disponível um livro de especificação de materiais,

consultado a cada novo projeto. Tal forma de trabalhar o destacou de todos os outros

profissionais entrevistados.

145

4. CONTESTAÇÕES: ENTRE ARTE E NÃO-ARTE

A técnica, no sentido em que a estou concebendo e me parece universal, é um fenômeno de relação entre o artista e a matéria que ele move. E se o espírito não tem limites na criação, a matéria o limita na criatura. (ANDRADE, 2005, p. 25).

Grupos de trabalho como a Bauhaus e a Wierner Werkstätte sonhavam em

riscar as linhas que separam criação e execução, idealizando uma criação enriquecida

pelo conhecimento da matéria e da técnica e uma execução permeada por melhorias

na criação. Sonhavam também com linha menos definidas entre a arte e o utilitário,

imprimindo criação e beleza aos objetos do dia-a-dia.

No entanto, outras concepções de arte direcionariam o pêndulo para uma

direção oposta. Se aquele que produz o utilitário necessariamente leva em conta a

materialidade da peça a ser criada, a arte moderna veio justamente na busca de

quebrar relações pré-estabelecidas entre a criação e a matéria.

Dessa forma, especialmente nos Estados Unidos, grupos de trabalho

investiram em conceitos e investigações contrárias àquelas propostas poucos anos

antes pela Bauhaus Schule. Querendo negar a funcionalidade das peças que

produzia, o ceramista e professor Robert Arneson (1930-2002), produziu recipientes

lacrados, chegando a escrever neles um aviso: “No deposit” (ADAMSON, 2017, p.

144).

146

Figura 75- Recipiente lacrado realizado por Robert Arneson

Fonte: Google Imagens69

O texto do poeta mexicano Octavio Paz (1914-1998), Ver e usar, arte e

artesanato, parece ter nascido em resposta à obra de Arneson:

Um pote de argila cozida: não o coloque numa vitrine, ao lado de objetos raros e preciosos. Pareceria fora de lugar. Sua beleza está relacionada ao líquido que ele contém e à sede que deve saciar. Sua beleza é corpórea, eu posso vê-la, tocá-la, sentir seu cheiro, ouvi-lo. Se estiver vazio, deve ser enchido, se estiver cheio, deve ser esvaziado. (PAZ, SD, p. 45)

À procura de separar definitivamente o utilitário da produção para

contemplação, o crítico de arte americano Clement Greenberg (1909-1994), propôs

que a arte se tornasse uma experiência puramente visual, a obra de arte sendo

idealizada como uma entidade sem corpo. Tal definição foi contestada

veementemente logo em seguida pela professora de História da Arte da Universidade

de Harvard, Caroline Jones, que considerou as ideias de Greenberg simplificadoras e

higienistas, de caráter prioritariamente excludente. Adamson ressalta como as ideias

de Greenberg espalharam-se pelo mundo da arte, acentuando polaridades entre a

arte e o utilitário. (ADAMSON, 2017, p. 40).

69 Obra de Arneson: Disponível em https://cfileonline.org/screen-robert-arneson/: acesso em 03/12/2018 às 20h22.

147

Ao discutir essa polêmica, Mário de Andrade (Cf. 2005) traz exemplos

provindos da própria história, com certeza querendo mostrar a impossibilidade dessas

linhas limitadoras. Andrade lembra das obras de arte egípcias, nenhuma delas

elaborada para fins contemplativos, todas visavam a eternização do faraó e de sua

família. O próprio estilo escolhido, obras executadas em grandes blocos sólidos,

visava essa eternização. O estilo, impessoal. Somente um verdadeiro especialista

consegue diferenciar as mãos de seus executores. A estatuária egípcia é o próprio

exemplo da arte útil. Deixaria de ser arte? John Dewey (Cf. 2010) vai ainda mais

distante na história, resgatando os utensílios de armazenamento e alimentação dos

povos antigos, decorados com ornamentos que, inclusive, ajudaram a identificar a

cultura que os concebeu. Dewey os utiliza como exemplo de um tempo em que

discussões que separam arte de não-arte nunca poderiam ter vindo à tona, pois a arte

simplesmente acompanhava a vida cotidiana, ela fazia parte:

Os padrões que eram característicos das armas, de tapetes e cobertores, de cestos e vasos eram marcas de união tribal. [...] Os rituais de luto expressavam mais do que a tristeza; as danças da guerra e da colheita eram mais do que um arrebanhamento de energia para tarefas a serem executadas; a magia era mais do que um modo de ordenar as forças da natureza para que obedecessem ao homem; os banquetes eram mais do que uma saciação da fome. Cada um desses tipos de atividade comunitária unia o prático, o social, o educativo em um todo integrado, que tinha forma estética. Eles introduziam valores sociais na experiência da maneira mais impressionante. (DEWEY, 2010, p. 553).

A polêmica entre a arte e o utilitário era intensificada pelo fato de que execução

de um utilitário esbarra necessariamente em restrições à criação livre. As obras

cenográficas de Guilherme Rossi certamente devem proporcionar o impacto visual

que valorizará todo o espetáculo. No entanto, ele conta que uma de suas primeiras

realizações cenográficas era um rio que deveria ser transportável em avião, pois iria

para o Japão e outros lugares: “Aí eu fui pro Japão com o rio de 12 metros numa mala,

eu inventei isso aí” (Notas de entrevista, p. 55). Cenários guardam restrições quanto

ao uso do espaço, circulação dos atores, transporte e montagem, mas tem uma forte

intenção visual.

Guilherme Rossi também comenta que sonha em fabricar brinquedos infantis

carregados de beleza e inovação, mas não deixa de citar os cuidados que deverá ter

para atender todas as especificações definidas pelo INMETRO.

148

Ana Passos tem opinião formada sobre as restrições de quem produz um

utilitário:

O meu brinco vai ter o peso adequado, não pode nunca passar de 10 gramas, se puder ficar abaixo de 7 é um brinco confortável [...] a gente tá pendurando coisa no pescoço a cento e trinta mil anos, a gente acabou de descer das árvores, pendurou uma concha no pescoço, isso é muito importante. O achado arqueológico datado mais antigo que a gente tem de conchas perfuradas com intenção de adornos são de 130 mil anos, isso não é bolinho [...] Por que é que você vai fazer um anel que o dedo não fecha? A não ser que você esteja, simbolicamente, questionando o próprio significado do anel e do adorno. Você pode fazer um anel de cinco quilos, uma aliança de noivado de cinco quilos, porque você tá discutindo a misoginia implícita em você obrigar uma pessoa a botar um anel no dedo pra dizer que é casada. Mas não é pra usar, tem uma outra joia que é pra usar [...] Então, a minha opção na hora que espreme é pela tradição. Eu faço coisas absurdas, [...], mas só pode comprar a pulseira se for capaz de colocar a pulseira sozinha, na minha frente. (Notas de entrevista, p. 31).

Quanto à criação de um objeto artístico, ela diz:

Então tipo assim, pode ser loucão? Pode. Eu fiz, pra essa coleção dos relógios eu fiz brincos com ponteiros de carrilhões, eles são desse tamanho, e eles são azuis... eu fiz a parte de prata e um ponteirão... ponteiro machuca, eu botei na exposição, mas eu não botei a venda...Vai que a pessoa se espeta com aquilo. Aí eu fiz uns pequenininhos que é tipo relógio de mesa, que eu falei assim, esse aqui dá pra vender. Foi divertido... (Notas de entrevista, p. 31).

Ana Passos também conta que existem restrições à criação de utilitários que

não são impostas somente pela usabilidade e conforto da peça. Uma delas é o próprio

gosto do usuário. Ela fala do mercado de joias masculino, um dos nichos mais caretas

da joalheria (Notas de entrevista, p. 25). Ousar demais pode resultar na não aceitação

de uma peça, mas oferecer mais do mesmo também não agrada: “Duro é conseguir

fazer uma coisa diferente, porque assim, não tem referência. Então você não pode

pirar muito porque não vai dar leitura”. (Notas de entrevista, p. 26).

A afirmação de Ana Passos remete às considerações pertinentes ao design:

Design é uma atividade que configura objetos de uso e sistemas de informação e, como tal, incorpora parte dos valores culturais que a cerca, ou seja, a maioria dos objetos de nosso meio são antes de mais nada a materialização dos ideais e das incoerências de nossa sociedade e de suas manifestações culturais assim como, por outro lado, anúncio de novos caminhos [...] o Design de uma comunidade expressa as contradições dessa comunidade e será tão perfeito ou imperfeito quanto ela. (COUTO, 1999, p. 150).

149

Outras restrições, originárias do gosto e dos valores do usuário, vieram à tona

ao longo da entrevista. Ana Passos conta que em sociedades onde a disparidade

social não é tão evidente quanto em nosso país, o brilho na joia não é tão valorizado,

mas sim o design da peça. Aqui no Brasil o gosto pela pedra conhecida, pela pedra

mais transparente, pela pedra lapidada é evidente: “porque a medida que nós vamos

construindo os nossos códigos sociais, as coisas que brilham são das camadas

dominantes e o resto é do resto... as coisas sujas são do resto. (Notas de entrevista,

p. 24).

A outra restrição importante relatada por Ana Passos no momento da criação é

o próprio valor da peça:

[...] outra coisa, eu não posso fazer uma pedra cara demais na prata, porque ninguém vai querer pagar, porque a gente tem um problema de achar que prata não é joia no Brasil. Então se você tem uma pedra muito cara você vai ter que fazer em ouro. E aí todo mundo acha que é valiosa, isso é outro problema. Então assim, eu parto sempre... tá, eu até crio, mas eu crio, boto na mesa, puxo minha tabela e pego um caderno, e assim: gente tá somando tanto, olha o custo disso aqui... o seu desenho vai levar pouco tempo, muito tempo, quantas horas?” (Notas de entrevista, p. 28).

Luciana Faria também consegue citar inúmeras restrições à criação, mas gosta

de criar a partir delas. Acha que já conquistou a possibilidade de dar palpite na estética

das mesas e procura auxiliar os clientes na escolha, na hora da encomenda: “Eu não

aconselho fazer só louça personalizada e nem só cerâmica de um único ceramista. É

legal mesclar. Uma: você não perde. Porque se você trabalha com louça mesclada

você não perde [...] Até porque senão sai caro.” (Notas de entrevista, p. 81).

Negocia peças sem que o cliente tenha clareza exata da forma e da cor, mas

pode ir criando em parceria com eles:

[...] “Ah, queria fazer uma cerâmica para meu restaurante” (pede um cliente), eu falo: “Tá bom, vamos conversar: “O que você quer servir?”, “Ah, eu quero prato principal”. Aí começa um jogo de troca de referência, de informação. Aí às vezes a pessoa gosta de coisas que são muito nada a ver uma com a outra. [...] “Então vamos trabalhar com a branca. Esquece isso aqui, você gostou, mas não vai dar. [...] Então a gente começa a afunilar esse projeto e aí chega num ponto que eu sugiro: “Ó, eu faria um prato nesse diâmetro, nesse formato, nessas cores. (Notas de entrevista, p. 85).

Muitos fatores deverão ser levados em consideração:

150

De um jeito que ele (o cliente) possa usar para mais de uma coisa. Porque se eu vender uma coisa que ele possa usar para um único prato em um restaurante, em três semanas ele vai falar: “Puta merda, só posso usar esse prato para isso”. E a minha ideia é que ele use bastante, que ele queira mais, que ele fique feliz. Então eles têm que ser versáteis [...] A gente pensa em formas que são empilháveis [...] fora os pratos que a gente fez para o Ema, eles não cabem na máquina convencional de lavar prato. [...] Agora, os restaurantes grandes têm máquina industrial. Só que a gente descobriu também que a máquina tem um secante tão poderoso, a louça em trinta segundos sai seca. Você coloca, seca. [...] Só que o detergente é poderoso, [...] acaba com o brilho do esmalte. (Notas de entrevista, p. 81, 85 e 86).

Luciana Faria ainda deve levar em conta a toxicidade da tinta e os espaços de

armazenamento do cliente.

Apesar das naturais restrições aos processos de criação de objetos para uso

serem consideradas limitadoras do processo de criação, para os entrevistados elas

parecem soar como desafios, impulsionadores do processo criativo, fontes de

importantes parcerias entre o cliente e o artista-artesão.

Demarcar arte de não arte também passa pelo olhar aos materiais que estão

sendo utilizados na execução de uma obra. Materiais trazem simbologias que lhe são

inerentes e que serão mais ou menos propensas à aceitação de acordo com o

momento histórico. Materiais são portadores de memória por si próprios. Adamson

descreve como a argila, de acordo com certos críticos da arte moderna, era

considerada antiga demais, arcaica demais, caseira demais. (ADAMSON, 2017, p.47)

Muito mais fortes são as simbologias relacionadas aos trabalhos com fios, tradicional

e incontestavelmente compreendidos como trabalho feminino, trabalho do lar, trabalho

amador. Trabalhos femininos, de forma geral, foram negados pelo mercado da arte.

Adamson cita as tecelagens, comparando as obras da professora de tecelagem da

Bauhaus Schule, Anni Albers (1899-1994) às pinturas do célebre artista plástico

francês Piet Mondrian (1872-1944). Para Adamson, a tecelagem de Anni oferece

proposta artística semelhante às obras de Mondrian, acrescidas de efeitos táteis e

tridimensionais. As tecelagens de Anni Albers nunca foram consideradas objetos

artísticos, mas peças de artesanato. Anni e as mulheres que faziam parte do corpo de

artesãs da Bauhaus dedicavam-se intensamente à pesquisa de materiais, visando o

constante incremento de resultado estético e utilidade. Uma de suas criações de

destaque foi uma tapeçaria em que cada um dos lados possuía uma propriedade

diferente: o avesso da peça absorvia o som enquanto o direito refletia a luz. A

151

tecnologia foi desenvolvida para melhorar a acústica de um auditório (DROSTE, 2013.

P.184). Tal exemplo traz com muita clareza o impulso de conciliação entre o artístico

e o utilitário.

Figura 76: Tapeçarias de Anni Albers

Fonte: Google Imagens70

Anni Albers foi professora da Bauhaus, esposa de Josef Albers, já citado nesta

pesquisa. Apesar do ambiente de vanguarda da Bauhaus, segundo Gropius, “ter sido

concebido para qualquer pessoa de bem”, houve distinção entre os sexos desde a

abertura de suas portas. Aos homens couberam a arquitetura, escultura e design

industrial, às mulheres os trabalhos com a tecelagem e cerâmica. Acreditava-se,

então, que os homens, além de mais fortes, tinham melhor percepção do

tridimensional do que as mulheres71. Poucas mulheres da Bauhaus tiveram o mesmo

70 Tapeçarias de Anni Albers. Disponível em anni+albers+bauhaus&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwjE1cvf3fTdAhXJPpAKHfCmA2AQ_AUIDigB&biw=1093&bih=462: acesso em 18/11/2018 às 14h35. 71 GARCIA, Mariangeles. As Mulheres esquecidas da Bauhaus, 2018. https://www.archdaily.com.br/br/890329/as-mulheres-esquecidas-da-bauhaus: acesso em 18/11/2018 às 14h50.

152

reconhecimento que os homens. Anni Albers mesmo, ficou mais conhecida como

esposa de Josef Albers do que como artista. Ao ingressar na escola, sua intenção era

desenvolver-se na pintura, o que lhe foi vetado, tendo, então, se dedicado à

tecelagem.

4.2 SUTILEZAS NA DEFINIÇÃO ENTRE ARTE E UTILITÁRIO

As tapeçarias de Anni Albers são objetos decorativos, os padrões atendem às

tendências da arte de seu período e chegaram a ser comparados aos de Mondrian

por Adamson (Cf. 2017). No entanto, também foram planejados para promover

melhorias no som e na acústica de um ambiente. Seriam arte ou utilitário? Objetos

cenográficos que procuram promover impacto visual, joias que devem conciliar

conforto e beleza, seriam arte ou utilitário?

A saladeira descrita por Luciana Faria é certamente um utilitário, mas, no relato

que fez sobre sua realização, quando a ceramista soube que a peça havia rachado,

teve a percepção de que sua escultura tinha sido danificada. O objeto é utilitário, mas

o sentimento no momento da criação é o de elaboração de uma escultura.

Quando algumas das peças de Luciana Faria racham no forno, ela utiliza os

cacos na composição de painéis decorativos. Em 2018, a ceramista participou de um

evento de arte na rua e inseriu seus pratos em uma nebulosa grafitada no muro, os

planetas na nebulosa. O que pensar sobre seus pratos neste contexto?

Figura 77- Planetas na nebulosa, pratos-planetas de Luciana Faria

Fonte: Instagram – Utilização concedida pela artista

153

Os móveis de Hugo França têm tais linhas e proporções que são chamadas

esculturas mobiliárias. Não à toa cunharam para ele um título todo próprio, escultor

mobiliário. Seriam arte ou utilitário?

Ana Passos deixa claro que suas joias devem ser confortáveis para uso,

assume que a joia é um utilitário, mas cuida em não produzir mais do que doze peças

de cada criação sua, aproximando-se da especificação de criações artísticas.

Gravuras, peças de fundição, obras de arte reproduzíveis tiveram número máximo de

reproduções regulamentadas, justamente para manter-se algo do conceito da peça

única.

Elvira Schuartz executa coleções em vidro baseadas em temas centrais que

ela mesma elabora, tais como Corpo frágil ou Fundo do mar. Teve obras expostas e

premiadas em museus em vários lugares do mundo. Em paralelo, relata a feitura de

filtro de água, bolinhas de gude, garrafas de bebida. Seria ela artista ou artesã? Um

filtro de água pode ser comprado em lojas de departamento comuns ou mesmo

supermercados, mas o filtro que a cliente encomendou à Elvira Schuartz tinha uma

forma abaulada, um desenho todo próprio, o efeito final era o de uma bolha de sabão

depositada em um recipiente de barro. A feitura teve que considerar o correto encaixe

e vedação da peça na base de cerâmica, sem que a peça perdesse a ideia da bolha.

Foram tantas versões da peça, tanta “bolação”, que a remuneração recebida nem

pagou o trabalho, mas deu prazer à cliente e à artista. Seria arte ou utilitário?

Pensadores da arte procuram definir os limites que separam a arte do utilitário,

a arte da não arte, mas, olhando do ponto de vista daquele que produz, estas

fronteiras se desfazem em um dia de trabalho de atelier. O dia-a-dia de um artista-

artesão mescla fazeres de diferentes ordens, alguns pouco gratificantes, outros

desafiadores e prazerosos em alguma medida. As tentativas de distinção parecem

não caber em limites tão bem traçados por algum conceito formal. Pode-se afirmar

que o útil apela prioritariamente para a razão e o artístico, para a sensibilidade, mas

estariam tais fronteiras assim tão definidas? Talvez a grande questão seja exatamente

traçar linhas onde o que se faz evidente são gradações e nuances.

Foi tentando justamente desfazer a ideia das fronteiras tão estreitas e criticando

o peso da razão em detrimento da sensibilidade que o filósofo e poeta vinculado ao

romantismo alemão, Friedrich Schiller (1759-1805), em seu livro A educação estética

154

do homem, sugere que as atividades eminentemente humanas habitam

necessariamente entre duas polaridades:72

À primeira das polaridades Schiller chama de Vida – a força vital, cuja fonte é

a própria natureza. Como bom poeta que era, explica-a como a vida abundante que

quer transbordar no rugido satisfeito do leão, ou no canto dos pássaros, mas também

no inanimado - na florada abundante das árvores, nos verdes intensos da primavera

(SCHILLER, 2015, p.130). Essa polaridade trata do homem ainda em estado

selvagem, o homem no seu “vir-a-ser”. Esse homem em processo de construção ainda

está voltado somente para o mundo sensível, para a percepção pura das coisas do

mundo, um movimento sem forma. O trabalho que pode nascer desta Vida diz respeito

somente ao atendimento das necessidades vitais do ser, como o animal em busca de

sua caça ou mesmo o simples prazer da manipulação das coisas do mundo, próprio

das crianças. A esta polaridade Schiller denominou impulso vivo ou impulso sensível.

À segunda polaridade Schiller chama de Forma. Com ela designa a força do

intelecto, do uso da razão, a força de reduzir o abrangente do mundo a um conceito

único e limitado, da lei, da ordem, da regra, da técnica, das restrições vindas do meio.

É também a força intrínseca à formação do Estado, uma força externa que leva o

homem a ceder seu impulso inicial em prol de um bem comum. Schiller designou-a

impulso formal.

Para Schiller essas forças são excludentes, para que uma prevaleça a outra

deve ceder espaço. Entre as duas se estabelece a tensão, harmonizada por uma

terceira força, denominada impulso lúdico. Trata-se do impulso que, segundo o

filósofo, pode conduzir à forma viva, à tensão que nos faz seres humanos

verdadeiramente, que concilia polaridades, que promove equilíbrio interno. Para

Schiller essa é a dimensão onde o belo pode se fazer presente. O belo, nem se

encontra na forma rígida, nem na natureza pura, ele está em algum lugar entre elas.

Mas o impulso lúdico de Schiller não seria apenas o espaço do belo, seria

também o espaço da liberdade. O impulso formal conduz à lei e à regra, às solicitações

da sociedade, à coerência e à procura do útil. O impulso vivo conduz à satisfação de

72 A Educação Estética do Homem foi escrita em 1795, na forma de 27 cartas. Elas nasceram criticando o a ciência pragmática predominante no século XVIII e em resposta aos seus estudos da obra de Kant Crítica do Juízo Estético.

155

instintos e necessidades, prazer e entrega para o mundo. A dosagem entre esses dois

elementos é dada pela individualidade humana, no espaço de liberdade de cada um.

Em nenhum momento Schiller aborda os aspectos relativos à educação ao

longo de sua obra, mas na carta XXVII, ao discorrer sobre o lugar da liberdade, fica

claro que, para o autor, a infância plena de vitalidade e criação ainda não é o espaço

da liberdade, mas sim o espaço da espontaneidade. A liberdade acontece quando a

vitalidade e a fantasia entram em acordo com a necessidade impingida pela forma.

Trata-se, portanto, do reconhecimento de que o homem faz um caminho para

realmente tornar-se homem.

Para que seja homem, a natureza não deve dominar de maneira exclusiva, nem a razão dominá-lo condicionalmente. As duas legislações devem existir com plena independência e ainda assim perfeitamente unidas. (SCHILLER, 2015, p. 118).

Ao discorrer sobre estética e arte, Schiller aponta como em algumas obras

observa-se a prevalência, ou do aspecto selvagem ou do aspecto formal, obras mais

tensas ou mais distendidas em um ou outro aspecto. Sempre há prevalência de um

impulso sobre o outro, o que prevalece de um é a privação do outro, posto que são

excludentes.

A beleza enérgica não pode guardar o homem de certos resíduos de selvageria, e dureza, assim como a beleza suavizante não o protege de um certo grau de lassidão e esmorecimento. (SCHILLER, 2015 p. 90).

A obra de Schiller pode servir de amparo para a tentativa de reiniciar as questões

entre a arte contemplativa e produção de utilitários apagando as linhas demarcatórias

e considerando as gradações. Não há dúvida de que os objetos produzidos com

finalidade de uso carregam restrições que lhe são inerentes, mas o que o realizador é

capaz de criar, mesmo a partir dessas restrições estará completamente dentro da

ampla capacidade de criação e de superação humanas.

No entanto, para que tais discussões sejam colocadas na mesa, aquele que

pensa sobre o tema deveria estar ao lado daquele que produz. Aliás, idealmente,

aquele que pensa poderia ser aquele que produz. O designer e artista Tomás

Maldonado bem aponta73 a distância entre o pensamento para a técnica e a prática

da técnica. Ele destaca a distância entre a técnica mediata, ou seja, a técnica vivida

73 Tomás Maldonado (1922 - ): pintor, designer, filósofo e professor argentino.

156

como discurso e a técnica imediata, a técnica vivida como realidade no contexto

cotidiano da produção e do uso. O designer argentino considera essa distância uma

falha dos dois lados: tanto a discussão teórica achou bastar-se, perdendo contato com

a realidade – ele cita as ideias de Heidegger em Ser e tempo como exemplo – quanto

aqueles que atuam com a técnica se recusam a legitimá-la como objeto de reflexão.

”Estou pessoalmente inclinado a pensar que, no futuro, a principal tarefa será a de

encurtar a distância que separa esses dois modos de entender a técnica.”

(MALDONADO, 2012, p. 157)

157

5. FERRAMENTAS E TECNOLOGIA COMO MEIO PARA A EXPERIÊNCIA

Entre a mão e a ferramenta estabelece-se uma relação de amizade que não terá fim. Uma comunica à outra o seu calor vivo e lhe dá forma para sempre. Nova, a ferramenta não está “feita”, é preciso que se estabeleça entre ela e os dedos que a seguram esse acordo nascido de uma aproximação progressiva, de gestos leves e combinados, de hábitos mútuos e até mesmo de um certo egoísmo. Então o instrumento se torna algo vivo. (FOCILLON, 1983, p. 135).

Ateliers são espaços para transformação, constituídos a partir das

necessidades da própria matéria com que se trabalha e daqueles que a transformam.

Idealmente, mesas, bancadas, matéria-prima e ferramentas estarão à disposição no

tamanho, quantidade e na medida da necessidade. Osni Branco, Guilherme Rossi e

Ana Passos apontam a importância de ter as ferramentas limpas e em condições para

perfeita utilização. “As coisas estão para ser úteis [...] não sou doente não, as coisas

estão para serem usadas. Agora, você usa, você sabe onde dói. Então, manter afiado,

manter limpo, manter funcionando [...] Tem que ter função na vida, até as pessoas [...]

a vida tem que ter função, a vida é isso” (Notas de entrevista, p. 111), diz Osni Branco.

Ele associa a boa conservação da ferramenta à própria saúde do corpo, que deve

estar bem cuidado para poder se expressar no mundo.

Ana Passos tem em seu atelier equipamentos e ferramentas delicados e caros.

Alguns são facilmente avariáveis, por queda ou contato com os ácidos utilizados na

joalheria, o que a leva a um cuidado especial:

[...] eu não fico com dez ferramentas aqui em cima (da bancada de trabalho) porque eu não gosto que caia uma gota de sal branqueador numa lima que custa US$ 100,00 [...] ou o arco de serra, e aí quebra a serra que é essa coisa finíssima. Ou então eu esbarro, derrubo um alicate de corte que custou cento e poucos reais e ele entorta todo, quebra a ponta e não serve pra mais nada... nem tem como afiar... Se quebra a ponta e entorta a ponta não tem conserto [...] Então você tem duas questões, o equipamento porque o equipamento é caro, e ao mesmo tempo que ele é caro, e ele é caro porque ele é bom, e ele pode durar a vida inteira, bem cuidado. É muito parecido com marcenaria, com carpintaria, porque a plaina bem cuidada é pra vida inteira, a bancada bem cuidada é pra vida inteira. Então, eu não deixo nem arranhar, eu não deixo nem na mesa. Vai que cai alguma coisa em cima. (Notas de entrevista, p. 15).

Outras ferramentas se transformam na manipulação, de acordo com a pega e

o gesto do usuário:

158

[...] você não empresta, porque a ferramenta ela toma a sua mão, né? Por exemplo, uma lima, [...], é cara, mas é normal, nem é tão cara por sinal, mas assim, tudo é pra ser bem cuidado, essa é suíça, número dois, tem uma abrasividade grande, e eu tô com ela há dezoito anos. Mas eu tenho um jeito de pegar, então ela vai gastar mais num lugar do que no outro.... então assim, ela vai tomando [...] a forma do seu gesto. Então assim, essas terras de ninguém que todo mundo usa todas as ferramentas não funciona, porque no fundo no fundo você não conhece o que você tá usando. (Notas de entrevista, p. 22).

Assim, as ferramentas de Ana Passos são de uso exclusivo, um segundo jogo

está disponível para alguém que vá fazer uma vivência em seu atelier, coerente com

a ideia de que uma ferramenta usada por todos não é uma ferramenta perfeita. Ana

Passos aborda os gestos de aproximação que resultam no estabelecimento gradativo

de uma relação entre a ferramenta e o usuário, eliminando as pequenas estranhezas

iniciais para chegar à intimidade entre o ser e o objeto.

Sua bancada é uma mesa xerife adaptada. É maior que uma bancada padrão

para joalheria, mas ela não quer outra, pois seus gestos já estão em harmonia com o

espaço de trabalho.

Figura 78- Ferramentas na bancada de Ana Passos

Fonte: Imagem cedida pela artista

159

Ao contrário da joalheria, as ferramentas usadas nas oficinas de vidraria são

maiores e mais grosseiras. As de Elvira Schuartz são armazenadas em caixas com

pouca proteção. O uso é comum, entre ela e os dois parceiros. O manuseio exclusivo

de algumas ferramentas parece estar diretamente relacionado ao seu custo e ao

quanto ela se transforma nas mãos de seu usuário.

Osni Branco acha que a ferramenta é um objeto educativo. Ela exige

consciência daquele que a utiliza. Quando oferece oficinas, cuida para que os

participantes estejam com os equipamentos de segurança completos e manuseiem

corretamente as ferramentas. Oficinas são locais de “consciência do que se está

fazendo, é pra aprender as coisas, não é pra ficar brincando, abusando”. (Notas de

entrevista, p. 112), ele diz.

Apesar do pragmatismo de Osni Branco, ao afirmar que “as coisas estão para

ser úteis”, ele mesmo afirma que tem “coleções de formões em tale suíço, tudo em

cabo de carvalho e dorme ali na minha cabeceira.” (Notas de entrevista, p. 111) Ou

seja, ainda não foram usados. O convívio com um artesão nos faz pensar que o

utensílio guarda algo mais do que simplesmente sua utilidade. O artesão,

frequentemente, guarda um apreço todo especial por suas ferramentas: o marceneiro

armazena organizadamente seus formões e mantém todo um planejamento para sua

manutenção. Pinceis limpos, óleo nas engrenagens, tesouras de uso exclusivo de seu

proprietário, almofadas delicadamente bordadas para guarda dos alfinetes da

costureira, pregos separados por tamanhos, armazenados em recipientes de tamanho

adequado, linhas organizadas por cor, não são hábitos incomuns entre os artesãos.

“Os devaneios da vontade operária amam tanto os meios quanto os fins”

(BACHELARD, 2013, p.30). Sobre isso Ana Passos tem muito a dizer. Ao falar de sua

lima - que, aliás, mora no “castelo da lima” - ela comenta: “Essa é a queridinha, minha

ferramenta favorita” (Notas de entrevista, p. 15). Ana lembra que uma ferramenta pode

ser para a vida inteira, mas completa:

[...] e pode ser que suas necessidades mudem e aí você eventualmente troque, mas a pessoas são muito apegadas, por exemplo, se algum dia eu deixar de trabalhar nessa bancada eu não vou me desfazer dela. (Notas de entrevista, p. 15).

Mais à frente, na entrevista ela comenta: “As ferramentas são parentes, filhos”.

(Notas de entrevista, p. 15). Observando-se a fala de artesãos, percebe-se que a

ferramenta guarda valores distintos: elas trazem consciência àqueles que a utilizam,

160

mas também despertam o elemento lúdico, a sensação alegre do homem bem

apetrechado citado por Bachelard (Cf. 2013), além do vínculo emocional que se

estabelece entre o indivíduo e o objeto.

Muitas vezes se faz necessário criar a própria ferramenta. Ana Passos forjou

seu próprio instrumento para cravação, pois ele precisa ter o tamanho calculado de

acordo com as mãos do usuário. Guilherme Rossi mostrou uma lixadeira que ele

mesmo criou para lixar peças de madeira arredondadas sem que elas percam o

perfeito movimento. Sua lixadeira tinha rodinhas de skate perfeitas para ondulações.

Para confeccionar um brinquedo para sua filha, uma roda gigante em miniatura, ele

inventou uma máquina para cortar o latão. Osni Branco mostra uma ferramenta para

tornear a madeira feita do eixo de um amortecedor, aproveitando a qualidade do aço.

(Notas de entrevista, p. 109).

O impulso para a criação de uma ferramenta que satisfaça uma necessidade

específica demonstra como “as ferramentas são verdadeiros temas de

intencionalidade” (MERLEAU-PONTY apud BACHELARD, 2013, p.41). Ao executar

um objeto, artesãos tem objetivos claros e ações impregnadas de sentido. A

ferramenta colabora, ela materializa um pensamento direcionado para um fim. São,

portanto, objetos plenos de intenção e significado, por sua ampla integração com os

objetivos maiores de seus usuários.

A significação do objeto pelo ser, nesse sentido, merece ser observada. Uma

chave inglesa nasce da intenção de rosquear e somente será uma chave inglesa se a

minha necessidade de rosquear algo reconhecê-la como objeto auxiliar para tal. Caso

contrário, ela não será mais que qualquer outro objeto metálico. Cabe ao sujeito a

significação de um galho de árvore em vara para colheita de uma fruta, de uma pedra

em martelo para quebrar uma noz, ou de um eixo de amortecedor que se torna uma

peça para tornear. Luciana Faria utilizou o aro de seu ventilador para cortar a argila

logo que precisou de algo de grande diâmetro como molde. Uma intenção clara resulta

em uma procura pelos melhores meios, dentro das possibilidades disponíveis.

O psicólogo húngaro Géza Révész (1878-1955), em seu livro A função

sociológica da mão humana e da mão animal, afirma:

O utensílio só existe a partir do momento em que uma matéria sólida é intencionalmente escolhida para executar um trabalho e sofre uma modificação com vista a esse trabalho [...] O instrumento do trabalho

161

deve ser ele próprio emanação do trabalho [...] A mão é, por um lado, o instrumento da vontade e da inteligência e, por outro, uma fonte da atividade criativa. (BRUN apud RÉVÉSZ, 1971, p. 118).

À ideia da ferramenta está associada, portanto, uma ideia de anterioridade, o

planejamento para uso, assim como uma posteridade, no seu armazenamento.

Observações feitas com símios mostram que muitos deles sabem planejar uma

ferramenta, desbastando galhos pequenos de um galho maior para transformá-lo em

uma vara que possa ser inserida em um orifício, por exemplo. Mas não limpam,

mantém e armazenam o galho após o uso. (NAPIER, 1983, p.120)

A obra do filósofo da tecnologia e geógrafo alemão Ernst Kapp (1808-1896),

Principles of a philosophy of technology, sugere-nos, ainda, a ampliação da ideia

acima. Kapp defendeu que os utensílios que criamos a partir do trabalho de nossas

mãos não apenas ampliam a projeção do corpo no mundo, mas que o utensílio é, ele

em si, projetado a partir do nosso corpo. Segundo o filósofo, nossos primeiros

utensílios foram criados como prolongamentos, desenhados para potencializar

refinamento motor, força ou tamanho, de acordo com uma necessidade específica.

Kapp defendeu ainda algo mais: essas criações nos servem como fonte de

autoconhecimento: primeiro o homem projeta a ferramenta conforme as funções

corpóreas e, a partir da externalização desta, ganha autoconsciência:

Esta afirmação dá um sentido ainda maior à palavra projetar, que passa a significar, também, transpor do interior para o exterior (...) À medida que o homem contempla a obra de suas mãos, desenvolve-se a tomada de consciência dos fenômenos e das leis da sua vida inconsciente, pois o mecanismo, inconscientemente formado à imagem do organismo, serve, por seu lado, a explicitação e a compreensão desse mesmo organismo que está na sua origem. “A projeção orgânica mergulha, portanto, no âmago do inconsciente”, conclui Kapp (...) “Assim, a mão e aquilo que cria são incontestavelmente a base real da tomada de consciência do homem em relação a si próprio; [...] Assim, apartando-se dos utensílios e das máquinas que criou, dos sinais que imaginou, o homem, Deus ex machina, lança-se à descoberta de si próprio.” (BRUN, 1971, p. 57,58).

Foi colocando as mãos em concha para beber a água que corre da planta após

a chuva, juntando o indicador e polegar para retirar um espinho do pé, fechando as

mãos para golpear algo, dobrando os nossos dedos para carregar um feixe, ajustando

a curvatura da mão e o afastamento entre os dedos, que o homem pôde elaborar,

respectivamente, um recipiente, uma pinça, um martelo, um gancho, uma peneira.

162

As convicções de Kapp atuam sobre dois diferentes âmbitos: no primeiro, ele

afirma um corpo inspirador de todas as criações técnicas; são as capacidades

corpóreas do homem que inspiram a projetar essas mesmas possibilidades e

aperfeiçoá-las, ampliando a atuação no mundo. Num segundo âmbito, Kapp defende

que estas criações são a possibilidade do indivíduo colocar-se frente a frente com as

leis que o regem.

A fim de compreender essa afirmação de Kapp, Richard Sennett74 fez uso do

artifício de intensificar o exemplo para torná-lo mais claro. Ele utiliza, então, o termo

ferramenta-espelho para falar de robôs e máquinas que, uma vez criadas e ativas,

carregam semelhanças com o homem que fazem pensar a respeito de sua própria

condição.

O designer e filósofo Tomás Maldonado75 discute a ferramenta como parte da

grande produção de artefatos do homem. Ele considera artefato todo o produto

concreto nascido da técnica e os considera, todos, como próteses76 que completam e

potencializam o corpo. Maldonado identifica três categorias de próteses.

Primeiramente ele relaciona as próteses motoras: tesouras, pinças, máquinas, mas

também veículos para locomoção. Em seguida ele cita as próteses sensório-

perceptuais, que ajudam a apurar nossos sentidos, como os óculos e aparelhos

auditivos. Então ele fala das próteses intelectuais, onde inclui os computadores e

mesmo a linguagem escrita - o conhecimento que estaria retido internamente pode

passar para uma memória externa. Finalmente o filósofo propõe a inclusão de uma

quarta categoria, a das próteses sincréticas, onde inclui os robôs, que não somente

poderiam nos substituir nas necessidades motoras, mas também atuar em decisões

que implicam em inteligência. Em estado avançado transformam-se em sósias.

Deixariam de ser próteses se, hipoteticamente deixassem de estar a serviço do

homem. (MALDONADO, 2012, p. 123, 124).

O conceito de prótese está imediatamente associado à ideia de inacabamento

ou imperfeição. A relação, portanto, entre o artefato e a prótese certamente remete a

certa vertente filosófica que trata o homem como ser incompleto e carente de recursos

74 Richard Sennett (1943 - ), sociólogo e historiador americano. A obra citada é O artífice. 75 Tomás Maldonado (1922 - ): pintor, designer, filósofo e professor argentino. 76 A prótese é compreendida por Maldonado como “estruturas artificiais que substituem, completam ou potencializam, em parte ou totalmente, uma determinada função do organismo.

163

físicos. Esse inacabamento é óbvio nos primeiros três anos de vida, quando o bebê

humano é incapaz de locomoção, alimentação autônoma e linguagem. Na vida adulta

se manifesta apenas de forma mais sutil, quando se compara a visão humana à visão

de um felino, as garras e a força humanas às de certos animais. Órgãos motores e

sensíveis do homem quase sempre estarão aquém em relação a alguma outra

espécie, se comparados.

Tal debilidade, no entanto, é compreendida por outros filósofos, desde os

gregos, justamente como potencialidade. Para Aristóteles, o que nos falta em aparatos

no corpo está compensado pela inteligência e habilidades manuais. Graças à

conformação física não especializada o ser humano pode dormir sem couraças,

acariciar sem garras, banhar-se sem instrumentos cortantes. Porque a mão pode

dispor de tudo, e também desimpedir-se de tudo. Para Maldonado (2012, p. 119) o

ser humano transformou as desvantagens de seu corpo em vantagens, criando

aperfeiçoamentos capazes de superar as habilidades de todas as outras espécies. Na

pedagogia Waldorf a inabilidade sensória e manual do homem é compreendida como

caminho para conquista de individualidades. A habilidade construtiva dos castores,

das abelhas e de pássaros como o joão-de-barro, as garras da águia, as presas dos

predadores definem comportamentos e ações no mundo altamente especializadas e

comuns a cada espécie. O ser humano não as possui de antemão, mas poderá

escolher ferramentas e construir aprendizados para escolher em liberdade como quer

atuar. A não existência de habilidades inatas é impulsionadora da diferenciação.

(STEINER, 1995).

Pensando especificamente na ferramenta, Gaston Bachelard completará as

ideias acima expostas, identificando-a como lugar onde se coloca a vontade

acumulada daquele que a manipula. Para o filósofo a ferramenta é uma provocadora

da necessidade de ação. Uma faca na mão é, aos olhos de Bachelard, uma

provocação (BACHELARD, 2013, p.30), um convite ao trabalho, um trabalho que,

apetrechado, poderá ser feito com precisão e elegância: o martelo potencializa a força

do golpe, poupa as dores de bater com as próprias mãos. Ao mesmo tempo, sutiliza

o gesto e imprime ritmo e movimentos próprios ao trabalho. “Uma ferramenta consome

a força ao longo de um grande gesto – outra a absorve no momento de uma

percussão. Que há de mais ridículo do que o operário esbaforido?” (BACHELARD,

2013, p. 41) Para um operário que conhece a lida, corpo e ferramenta tornam-se unos.

164

Trata-se da mesma intimidade percebida por todos aqueles que lidam com

ferramentas.

Bachelard também associa as intenções daquele que trabalha com a

ferramenta ao próprio refinamento do pensamento, o que aproxima suas ideias às de

Kapp:

[...] mas chegou o dia em que se usa o martelo de pedra para talhar outras pedras, os pensamentos indiretos, os longos pensamentos indiretos nascem no cérebro humano, a inteligência e a coragem formulam, juntas, um futuro de energia. O trabalho – o trabalho contra as coisas – torna-se imediatamente uma virtude. (BACHELARD, 2013, p.107).

A ferramenta multiplica a ação humana e produz abundância, ao mesmo tempo

que simplifica o trabalho. Foi o desenvolvimento nesse sentido que abriu caminhos

para criação de novas tecnologias e equipamentos. Retornando aos entrevistados, ao

montar seu próprio atelier, Luciana Faria não poupou esforços para obter um forno

mais potente, pois sabe que suas possibilidades de criação serão alavancadas.

Quanto à modelagem, não lhe agrada deixar a argila na mesma espessura

recorrentemente, tarefa importante na feitura de pratos: “Tem dia que eu modelo vinte

quilos, ficar abrindo vinte quilos de massa na mão, no rolo, não! [...] Comprei a

plaqueira, essa daqui. E aí eu comecei a modelar. Falei, agora sim!” (Notas de

entrevista, p. 75). A plaqueira deixa a argila na espessura planejada pela artesã para

que ela possa, a partir de então, dar a forma necessária.

Figura 79 - Atelier de Luciana Faria. No canto inferior esquerdo, a plaqueira

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

165

Ana Passos também relata a enorme variação nos meios de produção

disponíveis na joalheria:

Você tem, você pode dispor, tendo recursos, porque são muito caros, você pode dispor de equipamentos de muita precisão, equipamentos de excepcional qualidade, mas tipo assim, eu já vi vídeo de gente que faz filigrana no Uruguai usando chave de fenda e tesourinha de unha, e as joias ficam lindas. [...] ontem eu pedi pras pessoas postarem como que elas organizam uma coisa do trabalho, e teve um rapaz que mora em Viena que mandou uma foto que eu falei, “você tá gerando necessidade para gente em euro, não dá pra sonhar em ter um negócio desses” (risada). Um super equipamento, um negócio maravilhoso, que a gente usa um pedaço de pau aqui... isso aqui ó... isso aqui chama estieira, é onde a gente apoia trabalho. E eu pedi, gente, eu tô montando bancada nova e eu preciso de informações sobre estieiras, quero ver opções... e vou vender um rim (risada) pra comprar a estieira alemã. Bem interessante, bem interessante. (Notas de entrevista, p. 3).

Ela também acompanha as novas tecnologias para feitura de joias e as

considera bem interessantes:

Você tem com essa história do 3D prototipagem a possibilidade de fazer milhões em cera perdida, inclusive com micro cravação. Por que tá na moda pavê... pavê é um tipo de cravação, a gente acaba chamando a peça que tem de pavê, [...] você tem a qualidade da impressão em 3D em resina espetacular capaz de muito detalhe, já sai pronta a peça com as garrinhas todas, você tem nanotecnologia, você tem gemas, diamantinhos que eu chamo de poeira cósmica. Lapidados a laser com computador, com esse combo laser computador incrível, e você... só passa pela mão da pessoa para ela pré-cravar as gramas, ou seja, pré-cravado sai do cilindro de cera perdida, da fundição, as pedras já ficam colocadas [...]. (Notas de entrevista, p. 17).

No entanto, ela prefere o handmade e aprecia a ideia da peça única. Não sonha

em ter uma, portanto.

Muito coerente com a sua busca por projetos inovadores, Guilherme Rossi quer

toda a tecnologia disponível para suas criações. Investe nesses equipamentos de

forma consequente, calculada e eles se transformaram em uma fonte de renda

adicional, uma vez que podem ser alugados para terceiros:

[...] aqui atrás de você tem uma plota de recorte de adesivo, em cima tem mais máquina, toda vez eu compro uma maquininha nova, mas eu assim, agora já é vaidade, vaidade, vaidade. É, porque, das oficinas que eu circulo, [...] aqui é bem completo. (Notas e entrevista, p. 62).

No entanto, ele continua fazendo uso de sua serra tico-tico:

166

[...] eu tenho, é importantíssimo ter (uma serra tico-tico)... o ganho é você saber do projeto, estudar o protótipo... Têm coisas que eu faço nela, a laser eu uso muito né, mas às vezes eu não quero ter que desenhar, porque o que é que acontece, quando você vai pra laser o seu desenho tem que estar pronto. Se eu não quero, se eu quero só fazer um croqui, você perguntou do ganho, é esse na verdade, então eu faço um croquizinho e corto ali, tik, tik tik. Ai já, putz vamos nesse caminho, depois o meu caminho... a serrinha tico-tico. (Notas de entrevista, p. 62).

Osni Branco acredita que todo o profissional deve se manter atualizado, esteja

em que área estiver. Impressoras 3D e a laser são equipamentos que gostaria de

possuir, a restrição é meramente financeira. Elvira Schuartz fala de impressoras 3D

para vidro, que produzem um fio de aspecto semelhante ao que usa em seu trabalho

com os ninhos. Acompanha os novos lançamentos de equipamento e maquinário e

teria uma impressora, que simplificaria trabalhos que ela costuma fazer, liberando

tempo para criação. Reforça apenas como este tipo de máquina demora a ser

financeiramente acessível ao pequeno produtor. A vidreira ressalta que a tecnologia

do vidro traz história e antiguidade, mas não há nostalgia. Passado e futuro,

modernidade e tradição estão unidos em um só material.

Aliás, esse atravessamento entre a nostalgia e a modernidade parece ser

relevante: Guilherme Rossi sonha em ser como o senhor japonês, fabricante de piões,

mas pensa em todo o aparato tecnológico apoiando a produção. Gosta de sua

máquina de corte a laser convivendo ao lado da serra tico-tico e ficou tão satisfeito

com seu tsuru:

[...] ele (o tsuru) envolveu todos os conhecimentos, dessa questão do analógico e do tecnológico, [...] E aí eu fui entendendo o que que era plano, através do 3D, então aqui eu simulei o que eu ia fazer na realidade. Aí teve a opção do material, que tava totalmente livre, e tinha a opção também da solda, então eu fiz isso aqui como se fosse uma solda de bicicleta. [...] . Então pra mim foi o que eu mais gostei, [...] teve essa questão de usar a ourivesaria, a parte mais moderna, a parte mais antiga, ir no restaurante, pegar o tsuru. (Notas de entrevista, p. 66).

Sobre a tradição e a modernidade, Elvira Schuartz diz: “Você está lidando com

uma coisa que é história, tem cinco mil anos, mas é hiper contemporâneo. É eterno.

A gente diz que o vidro é frágil, porém eterno.” (Notas de entrevista, p. 45). Ana Passos

diz assim sobre a tradição da joalheria:

A oficina popular é isso, ela é corporação de ofícios, ela é mestre, aprendiz, ferramentas que tão aí desde sempre, os gestos essenciais da joalheria são os mesmos há uns quinhentos anos [...] Aí você tem

167

a diferença, você tinha um maçarico de fole, agora você tem um maçarico a gás. Você tinha um, você não tinha motor, era tudo no braço, hoje em dia você tem um motor que te ajuda. [...] Tendo recursos, porque são muito caros, você pode dispor de equipamentos de muita precisão, equipamentos de excepcional qualidade. (Notas de entrevista, p. 3).

A visão trazida pelos entrevistados traz, sim, a intenção de ter a tecnologia

como aliada, na medida de suas necessidades e possibilidades, mas também na

medida de seus valores pessoais, tal qual buscavam as escolas de vanguarda

europeias do início do século XX. Adamson (Cf. 2017) relata, através de uma

reportagem de revista, como a cooperativa de artesãos Wiener Werkstätte, lidava com

a incorporação de novas tecnologias:

Em meio ao barulho das fábricas, destaca-se, mais silencioso e criativo, o trabalho manual do artesão. É verdade também que na Wiener Werkstätte não faltam máquinas, aliás ela está perfeitamente equipada com todas as novidades técnicas úteis à empresa; mas aqui a máquina não é a dominadora e a tirana, mas a ajuda e a empregada prestativa, e não é ela que determina a fisionomia dos produtos, mas o espírito dos seus criadores e a precisão de mãos exercitadas na arte. (trecho da revista Deutsche Kunst und Dekoration, apud MASI, 1999, p. 189).

O valor da afirmação acima é justamente trazer uma definição clara para os

limites da interferência da tecnologia nos processos de elaboração de um produto:

idealmente quem determina a fisionomia da obra não é o meio de produção, mas o

criador.

168

6. TEMPO DO CORPO, TEMPO DA MATÉRIA E O ENVOLVIMENTO NO

PROCESSO CRIATIVO

Nós viajamos, não apenas para chegar, mas para viver enquanto viajamos. (Goethe).

A produção de uma obra conduz a uma narrativa que inclui, em si, o âmbito

afetivo. A mesa descrita por Osni Branco tem sua história iniciada com a chegada da

ficus elastica no Brasil, o arraste da tora retirada da casa de um amigo e todos os

encontros criativos com o galho escolhido que o levaram a decidir o ângulo do corte,

as inserções de marchetaria e os acabamentos finais. A história da obra em metal de

Guilherme Rossi teria começado com a comida japonesa deliciosa da dona Helena ou

quem sabe ainda antes, nas memórias que guarda de suas visitas ao Japão? Ou com

o seu avô ourives, que utilizava a mesma solda que ele utilizou na montagem de tsuru?

Elvira Schuartz conta que os bastões sempre estiveram presentes nas suas

produções. A narrativa começa trinta anos atrás, com o pezinho da lamparina

quebrada, o primeiro pequeno bastão, quando ela nada sabia sobre a arte do vidro.

Cada uma das peças da coleção Tempos Urbanos de Ana Passos tem um pouco de

Kairós e de Cronos, dos desenhos de bolhas, da pesquisa das cores e das caixas mal

organizadas e sujas do relojoeiro onde garimpou a matéria usada na produção da

coleção.

Todos os projetos constituem narrativas no tempo, não o tempo linear que

percorre o caminho mais curto, mas curvas e resgates de memória entrelaçados a

projetos futuros. Afinal, o tradicional tsuru japonês levou Guilherme Rossi a um projeto

em 3D, o pezinho da lamparina da Elvira Schuartz a levou à vitrine da Chanel, os ipês

da escola de Osni Branco o levarão a todas as árvores que ainda talhará, modelará

ou forjará.

Foi Walter Benjamin77 (Cf. 2014) quem definiu a oficina do artesão da Idade

Média como o grande berço da narrativa. Lá reuniam-se o artesão sedentário, que

guardava a história e a tradição de seu local e o artesão viajante, que trazia o mundo

e o futuro para dentro da oficina:

O mestre sedentário e os artífices viajantes trabalhavam juntos na mesma oficina e cada mestre tinha sido um artífice viajante antes de

77 Walter Benjamin (1892-1940): Ensaísta filósofo, sociólogo e crítico literário alemão.

169

se fixar em sua pátria ou no estrangeiro. Se os camponeses e os marujos foram os decanos da arte de narrar, foram os artífices a sua escola mais avançada. No sistema corporativo associavam-se o conhecimento de terras distantes, trazido para casa pelo homem viajado, ao conhecimento do passado, recolhido pelo trabalhador sedentário. (BENJAMIN, 2014, p. 215).

O resultado era a obra.

No atelier de Ana Passos, passado, presente e futuro estão entrelaçados de

diferentes formas. Como restauradora, interessa-se pela história das peças que

recebe e é reconhecida pelo respeito a elas. Sabe que as joias são portadoras de

memória, mas gosta também de pensar no futuro daquilo que produz. Quem as usará?

Qual será a sua história? Gosta de saber para quem está produzindo e em que

situação. Aprecia o contexto e a sucessão de eventos. Sua recusa a uma impressora

3D parece ter muito menos relação com a manutenção de tradições da joalheria

manual e muito mais com o apreço às narrativas únicas e aos vínculos que se

estabelecem entre aquele que utiliza e aquele que produz.

Para aquele que produz ou para o usuário, uma peça pode ter um significado

pontual ou pode guardar todo um processo, uma história. Osni Branco conta que no

Japão o processo de transformação construído no tempo é bastante valorizado.

Assim, a escola onde seus filhos estudavam o convidou para talhar um grande peixe

em madeira na própria escola, durante o horário escolar:

(A escola) traz o artista pra ficar residindo na escola, desenvolvendo trabalho para todos os alunos poderem conviver. As famílias, nossa senhora! As mães ficavam, você não conseguia nem trabalhar. Então na hora da entrada e da saída, eu deixava pra fazer esse tipo de relação, de conversar e mostrar, responder perguntas. Você imagina o que mexe com a gente? (Notas de entrevista, p. 100).

No que se refere ao envolvimento dos professores no processo, ele conta:

(O peixe foi) todo cavado na marreta...três, quatro meses de modelagem [...] Todos esses (mostra foto) são professores que ficaram num frio danado de noite, nós ficamos lá acampados, foi uma festa pra eles, né? Tomando conta da queima do tronco né, porque como era verde, tínhamos que tirar a umidade de dentro dele porque com o assado, você mata todos os ovos de cupim que tão lá dentro... encapa ele todo de gesso aí ele assa, o fogo não vai direto [...] É vivenciado, as crianças assistiram isso. Envolveu a polícia, o bombeiro, porque você não pode acender um fogo desse no centro de Tóquio, já o satélite percebe e dá o alarme. (Notas de entrevista, p. 99).

170

O artista plástico Gandhy Piorski (1971 - ), pesquisou brincadeiras infantis em

25 diferentes comunidades no nordeste brasileiro. Em seu livro Brinquedos de Chão,

ele afirma não somente o valor da manipulação da matéria, reforçando as ideias de

Bachelard – em que se inspirou para a pesquisa - mas sustenta que a observação dos

fazeres também traz aprendizados importantes. Com a observação aprende-se a

“compreender e interpretar as intenções das ações pela análise daquilo que se vê”.

(PIORSKI, 2016, p. 116). Segundo o autor, observar o movimento intencional do outro

desenvolve partes importantes do córtex pré-motor do ser humano. Piorski fala do

deslocamento do ativo sonho tátil do marceneiro para os neurônios da criança:

Quando vemos o gesto de alguém, aquela intencionalidade aplicada ao corpo é capaz de disparar em quem vê as mesmas células responsáveis pela ação motora do outro. Em si o artesão, em seu fabrico, é uma pedagogia. Um imantador de gestos. (PIORSKI, 2016, p. 116).

Nos trabalhos artesãos, o ordenamento das ideias, projeto, transforma-se

visivelmente em um ordenamento claro de processos. Processos de trabalho como o

relatado por Osni Branco na escola do Japão são ações impregnadas de sentido,

sequenciados de forma estruturada para um fim específico. São narrativas no tempo

plenas de sentido.

A história que acompanhará a peça guardará também outras relações com o

tempo: o tempo da matéria e o tempo do corpo daquele que a produziu. A oficina de

Luciana Faria tem várias mesas de trabalho: em algumas estão as peças na primeira

secagem. Em uma estante ao lado do forno, a uma distância bem calculada, peças

que ela deseja agilizar a secagem, tentativas cuidadosas de subverter o tempo

imposto pela matéria, sujeitas ao risco de uma rachadura indesejada. Tempo de

secagem, tempo de descanso após a queima, tempo de secagem da pintura, amostras

de uma produção em que a argila comanda do processo.

171

Figura 80- Estante localizada ao lado do forno, no atelier de Luciana Faria

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

Osni Branco tem um cômodo exclusivo para armazenamento de suas peças

em madeira, os vasos, cachepots, travessas. A madeira é torneada ainda verde,

quando a lida é mais fácil, mas depois disso são necessários meses de secagem antes

da pintura e acabamentos. Resulta disso que tanto Luciana Faria quanto Osni Branco

têm em seus ateliers muitas peças em diferentes etapas de execução.

Figura 81 - Mesas de armazenamento das peças realizadas por Osni Branco

Fonte: Imagem realizada durante a entrevista

172

Em contrapartida, o manuseio do ouro e da prata exige que Ana Passos

trabalhe na mesma peça do início ao fim. No caso do vidro, a execução também

acontece uma a uma. Além disso, Elvira Schuartz praticamente briga com o tempo

durante a modelagem. Movimentos adiantados ou atrasados em segundos alteram o

desenho da peça.

Há um tempo próprio do fazer, tão distante do tempo do imaginar. Na

imaginação, criação e execução podem caminhar no mesmo ritmo, selecionando

percursos e resultados ao seu prazer: “A imaginação vai, sistematicamente, rápido

demais”. (BACHELARD, 2013, p. 21). Mas o tempo do fazer é implacável.

Certos equipamentos subvertem o tempo natural da matéria, como estufas para

secagem da madeira, os fornos à vácuo, que permitem a fundição da peça em dias

de chuva sem a formação dos buracos que deixam a obra com o aspecto de “queijo

mineiro”, relatado por Osni Branco. Eles evitam o tempo de espera por um dia sem

chuva, mas desligam o homem de suas relações com o ambiente: como diz o

entrevistado, “aí eu saio fora do universo” (Notas de entrevista, p. 108). Nessas

circunstâncias a agilização na produção é substancial, assim como a garantia da

qualidade em certos aspectos. Em contrapartida, certas tradições associam o tempo

à qualidade do objeto produzido, assim como vinculam o tempo da produção ao tempo

da natureza. Bachelard relata que os chineses da antiguidade preparavam a massa

da porcelana apenas duas vezes por ano, nos equinócios, pois acreditavam que ali as

águas da chuva eram mais apropriadas para uma correta fermentação. Deixavam-na

então dormir por dezenas de anos, e assim chegavam à delicadeza da textura. Trata-

se de um tempo associado à conquista da excelência, da sutileza, um tempo de

depuração – como não lembrar do tempo dos metais e das pedras preciosas, a

substância-século sugerida por Bachelard? Com esse processo os chineses tinham

em suas habitações as porcelanas da primavera e as porcelanas de outono,

vinculando os objetos de uso cotidiano aos ciclos da natureza.

Tempo da matéria e tempo do corpo. Osni Branco, Luciana Faria e Ana Passos

de alguma forma lembraram que o tempo do corpo interfere no andamento do

trabalho. Osni Branco organiza boa parte de sua produção respeitando seus próprios

limites. Torneia cinco ou dez peças e parte para a modelagem de algum protótipo,

depois para a pintura de algumas peças em madeira, retornando finalmente ao torno.

“O negócio é o seguinte”, diz, “você tem que ouvir o corpo, tem que aprender a

173

respeitar” (Notas de entrevista, p. 109). Luciana Faria simplesmente não produz se

não está bem, acredita que a falta de bem-estar interfere na obra:

Eu me enrolei para fazer, porque eu não estava a fim de modelar. Eu fiquei uns quinze dias sem trabalhar. Para uma pessoa que é autônoma, que precisa entregar para receber, para pagar, conseguir fazer isso consciente, dizer: “Eu não vou modelar” ... Porque se eu modelar, vai rachar, vai explodir, vai dar merda, vai ficar feio. Não tá indo com uma energia boa, não posso fazer isso. Não posso botar um bode, uma preguiça, uma desvontade, no prato que o cara vai comer. Não posso fazer isso, tá errado.

Procura modelar pela manhã, quando se sente muito mais bem-disposta:

Mas aí eu venho para cá às sete da manhã, porque das sete às onze eu modelo loucamente. [...] Eu posso ficar aqui do meio dia às seis da tarde, eu não modelo o mesmo tanto que eu modelo de manhã. E para modelar eu não posso conversar. Não conversa comigo, não consigo. (Notas de entrevista, p. 76).

Ana Passos também procura não trabalhar quando não está bem, acreditando

na interferência do corpo na qualidade da obra. Além disso, ela também está

consciente de que com o metal não se deve lidar se estiver exausto, a lida com os

equipamentos pode ser perigosa. Se há necessidade de precisão, trabalha pela

manhã, quando enxerga melhor.

Luciana Faria, Elvira Schuartz e Guilherme Rossi abordam, direta ou

indiretamente, a instabilidade no fluxo de execução de suas obras. Necessidades de

pausa exigidas pelo corpo e períodos de procrastinação seguidos de um intenso fluxo

de trabalho foram apontados. “Tem dia que a gente não quer ligar a máquina, tem dia

que vai tudo” (Notas de entrevista, p. 63), diz Guilherme Rossi. Elvira Schuartz cria

melhor à noite e ao longo do dia faz algumas pausas, escrevendo poesias ou

brincando com o cachorro, ela está segura de que a pausa colabora para a criação.

Ana Passos não tocou nesse assunto, mas a medalha que produziu fala por si:

174

Figura 82- Peça realizada para a coleção Tempos Urbanos, de Ana Passos

Fonte: Acervo da artista

O respeito ao tempo do corpo exige o estabelecimento de uma outra relação

com o trabalho. Nos relatos que Domenico de Masi (Cf. 1999) sobre grupos que se

ocuparam de constituir ambientes próprios para o desenvolvimento de processos

criativos, a flexibilização dos horários de trabalho foi necessariamente considerada.

Se o ambiente de produção em escala privilegia os cartões de ponto e a medição da

produção por cronômetros, nos ambientes que estimulam processos de criação os

horários flexíveis são privilegiados, conciliando atendimento aos compromissos

assumidos com os clientes com respeito às individualidades.

Os estudos sobre percepção elaborados pelo filósofo Rudolf Steiner,78

consideram a existência de um sentido vital, uma percepção do indivíduo sobre seus

processos corpóreos. A característica curiosa desse sentido é que ele se manifesta

somente nas condições de doença e desconforto. Esquecemo-nos de nossas

cabeças, costas, ventre, pernas, que, numa situação de saúde, tornam-se um

conjunto orgânico e harmônico disponível para o que quer que o indivíduo intencione

elaborar. No entanto, uma forte dor de cabeça, em uma situação habitual, pode fazer

com que todos os pensamentos girem em torno dela própria. São condições que

interferem na possibilidade de envolvimento com o mundo exterior. Paradoxalmente,

em momentos de profundo envolvimento com alguma tarefa, o indivíduo pode vir a

78 Rudolf Steiner (1861-1925), filósofo e educador austríaco.

175

esquecer de sua cabeça ou de suas costas doloridas, sobrepondo às exigências do

corpo o cumprimento de uma meta pré-estabelecida. (STEINER, 1995, p. 100).

A conquista desse estado de envolvimento é um tema abordado em mais de

uma área de conhecimento, como a filosofia, a pedagogia e o estudo de processos

meditativos. No entanto, o psicólogo húngaro Mihaly Csikszentmihalyi (1943 - )

conseguiu confirmar qualitativa e quantitativamente conclusões importantes que já

haviam sido sugeridas em investigações qualitativas. Suas conclusões tomaram forma

a partir de pesquisas realizadas ao longo de alguns anos com centenas de voluntários.

Estas pessoas receberam agendas eletrônicas que emitiam um sinal de aviso em

intervalos aleatórios cerca de oito vezes ao dia. Então, no momento do soar do

aparelho, o sujeito da pesquisa deveria anotar sua atividade e seu estado emocional

(CSIKSZENTMIHALYI, 1990, p. 141). Além disso, centenas de entrevistas qualitativas

foram realizadas ao longo de muitos anos.

Csikszentmihalyi investigava, então, a capacidade humana de atingir

concentração profunda na atividade que está sendo executada. Poderíamos falar em

um intenso foco no momento presente durante a execução de uma tarefa. Esse

momento de envolvimento foi denominado Estado de Fluxo, mas o autor também

utiliza o termo experiência ótima.

Csikszentmihalyi trata a possibilidade de alcançar fluxo como um elemento

importante para o desenvolvimento da consciência humana. Em seu livro Fluir (Cf.

1990), afirma que as experiências de fluxo podem tornar a organização do eu mais

complexa, sendo essa complexidade do eu definida pelo autor como a união de duas

capacidades polares do homem: diferenciar-se do mundo em busca de uma

singularidade e integrar-se ao mundo, em sintonia com o ambiente e o outro.

(CSIKSZENTMIHALYI, 1990, p. 68,69).

O estado de fluxo provoca um distanciamento do indivíduo de si próprio, em

prol da atividade em si. Quando este estado chega ao fim, o incomum ordenamento

da consciência no momento do cumprimento de uma tarefa desafiadora resulta em

uma organização mais complexa da individualidade, além do evidente

desenvolvimento da autoestima frente à constatação da realização de algo.

Quando não estamos preocupados com quem somos temos mais chances de expandir o conceito de quem somos. A perda da autoconsciência pode levar à autotranscendência, ao sentimento de

176

que as fronteiras de nosso ser foram alargadas. (CSIKSZENTMIHALYI, 1990, p. 97).

O estado de fluxo pode acontecer somente quando o que se faz é aquilo que

se gostaria de estar fazendo, o que resulta na comunhão de três atividades superiores

e próprias do ser humano: o pensamento, o sentimento e a ação intencional.

John Dewey também associa a qualidade da experiência ao foco no momento

presente, convidando-nos a observar quão gracioso é o animal, simplesmente porque

ele está sempre vivendo suas próprias experiências integralmente. A unicidade da

experiência, para Dewey, ou seja, estar inteiramente nela, é o próprio “recurso para

acentuação da vitalidade”. (DEWEY, 2010, p. 83).

Csikszentmihalyi também traz o animal para a discussão sobre o foco no

momento presente: na vida animal o que deve ser feito corresponde ao que se quer

fazer. (CSIKSZENTMIHALYI, 1990, p. 304).

Em consonância com as afirmações de Dewey e Csikszentmihalyi, o biólogo

Humberto Maturana79 e a psicóloga Gerda Verden-Zoller80 (Cf. 2011) farão sérias

críticas às sociedades atuais, em que o foco está sempre no resultado final, no futuro

projetado e não no presente, apontando que essa forma de encarar os processos,

levada ao ambiente da criança, pode trazer sérias consequências a seu

desenvolvimento emocional, corporal e cognitivo:

Nessa cultura (atual, ocidental), não fazemos apenas o que fazemos, trabalhamos para alcançar um fim. Não descansamos simplesmente, nós o fazemos com o propósito de recuperar energias; não comemos simplesmente, ingerimos alimentos nutritivos; não brincamos simplesmente com nossas crianças, nós as preparamos para o futuro. [...]. Desse modo, não vemos o outro como um participante efetivo do encontro, não vemos as circunstâncias nas quais este acontece, ou não vemos a nós mesmos com o outro. (MATURANA e VERDEN-ZOLLER, 2011, p.143).

As pesquisas realizadas por Csikzentmihalyi foram mais longe, fazendo nascer

o distanciamento entre duas palavras aparentemente sinônimas, prazer e desfrute. Ao

prazer o psicólogo denomina todas as atividades que trazem a satisfação

momentânea e/ou que levam ao equilíbrio do corpo – homeostase. Comida, atividade

sexual, assistir a um bom filme, dormir, são todas atividades prazerosas, mas

79 Humberto Maturana (1928- ) biólogo chileno. 80 Gerda Verden-Zoller (?) psicóloga alemã.

177

incapazes de acrescentar complexidade ao indivíduo. (CSIKSZENTMIHALYI, 1990,

p.74).

Diferente do prazer é o desfrute, relacionado às atividades que promovem a

superação do indivíduo e que posteriormente podem ser lembradas como diversão,

justamente pela alegria da conquista. Não necessariamente foram agradáveis no

momento ocorrido, mas sim desafiadoras e engrandecedoras da autoestima. “Sem o

desfrute a vida é prazerosa apenas de forma precária”. (CSIKSZENTMIHALYI, 1990,

p.77).

Hannah Arendt (Cf. 2016) também faz considerações importantes que dizem

respeito ao desfrute, conforme definido por Csikzentmihalyi. Ela afirma que na vida

humana, as fadigas e a dor do trabalho estão tão intimamente relacionadas ao prazer

da conquista que não podem ser simplesmente eliminados sem que, com isso,

alteremos a própria vida. A vida fácil dos deuses, para o homem, seria a própria

ausência de vida. O segredo é que a vontade, a vitalidade, sejam mais fortes que a

dor. Arendt acredita que na vida dos seres humanos com alto poder aquisitivo, há uma

perda da vitalidade em prol de um ganho na sensibilidade humana. A vitalidade e a

vivacidade são garantidas pelo ônus da fadiga e das penas. (ARENDT, 2016, p.148).

As atividades de desfrute são justamente aquelas em que o indivíduo pode

conquistar fluxo. O Fluxo, portanto, não está diretamente relacionado ao prazer, mas

ao desafio. São oito os elementos principais, em uma tarefa a ser realizada, que

apoiam a possibilidade desse desfrute, segundo Csikzentmihalyi: a perspectiva ou a

possibilidade de que essa tarefa seja completada; a possibilidade de concentrar-se

nela; a confiança na própria capacidade, a coragem de falhar; a possibilidade de

definir um objetivo que pode ser cumprido; a sensação de controle na ação executada,

domínio do corpo; a possibilidade de envolvimento profundo e sem a percepção do

esforço, fazendo esquecer as preocupações da vida cotidiana; alteração na noção do

tempo, que fica muito mais vinculado à ação do que ao tempo do mundo; e finalmente,

a sensação de desaparecimento do eu no ato do fazer, seguido do reaparecimento

mais intenso após a execução da tarefa. (CSIKSZENTMIHALYI, 1990, p.78).

Com suas investigações Csikzentmihalyi une polaridades aparentemente

contraditórias: desfrute e trabalho, foco em metas bem definidas e, ao mesmo tempo,

foco no processo em si:

178

Estou subindo a montanha, a razão é o pico, mas a razão da escalada é a própria escalada e não o pico almejado. Quando há fluxo não há necessidade de reflexão a respeito da razão de realização do ato. A ação transporta-nos como magia. (CSIKSZENTMIHALYI, 1990).

Há aqui um resgate do trabalho como fonte de satisfação, o mesmo que veio à

tona nas correntes intelectuais europeias no início do século XX, já citadas neste

trabalho:

O que marca a diferença entre o que deveria ser o modo de vida do intelectual e o modo de vida do burguês é que o primeiro não reconhece a alternativa de trabalho e diversão. O trabalho [...] é prazer também na tensão mais desesperada. [...] Somente uma viva convicção íntima de trabalho e felicidade ainda é capaz de constituir – sob a pressão da sociedade – uma verdadeira experiência. (ADORNO apud MASI, p. 259).

Desmistificando o consenso de que não é possível encontrar prazer em

atividades repetitivas e excessivamente rotineiras, a obra de Csikzentmihalyi aponta

vários exemplos de indivíduos que encontram prazer em atividades cotidianas e

repetitivas, aparentemente aborrecidas ou árduas, às quais muitas vezes

identificamos como causadoras de insatisfação, tédio ou cansaço. São situações em

que o indivíduo significou a tarefa, encontrando nela o desfrute na execução. Dentre

estes encontram-se tanto moradores de pequenas comunidades, afastados do

estímulo excessivo das grandes cidades, como também trabalhadores de indústria em

grandes centros, derrubando a hipótese de que as atividades rotineiras poderiam ser

mais bem aceitas onde outros estímulos se fazem pouco presentes.

(CSIKSZENTMIHALYI, 1990, p.206).

Desfez-se também a ideia de que atividades que necessitam de grande

investimento financeiro, como viagens e jantares, sejam as mais satisfatórias, elas

foram mais vinculadas ao prazer momentâneo. (CSIKSZENTMIHALYI, 1990, p.208).

O que, afinal, pode fazer com que atividades rotineiras, repetitivas e pouco

valorizadas sejam percebidas como atividades gratificantes? À possibilidade que

alguns indivíduos possuem de encontrar desfrute e fluxo, Csikzentmihalyi denominou

personalidade autotélica (auto = eu, thélos = objetivo). Esta capacidade está

diretamente relacionada ao controle da própria energia interna e à possibilidade de

retroalimentação do processo: o prazer em fazer provoca mais vontade de fazer.

Personalidades autotélicas são capazes de significar uma tarefa, impondo-se metas

atingíveis e ao mesmo tempo desafiantes.

179

O envolvimento no trabalho nos leva a revisitar o olhar sobre a linearidade do

tempo. Csikzentmihalyi destaca que nas situações de experiência ótima o tempo não

passa como habitualmente. Aquele que está realmente envolvido em uma tarefa pode

ter a impressão de que o tempo passou rápido demais. “Nem vi o tempo passar” é

uma frase comum quando se conquista fluxo. Em contrapartida, uma atividade de

difícil execução, altamente desafiadora, parece levar um tempo muito maior do que o

marcado no relógio. Paradoxalmente, a pesquisa de Csikzentmihalyi também revela

que os profissionais que necessitam executar tarefas em um período de tempo muito

preciso desenvolvem uma incrível capacidade de medi-la em segundos. Ele

exemplifica trazendo médicos que realizam procedimentos cirúrgicos delicados e

certeiros, eles conseguem calcular exatamente o tempo do procedimento. Retornando

para os entrevistados desta pesquisa, Elvira Schuartz conta como aprendeu a

cronometrar os segundos na execução de algumas de suas obras, pois a briga com a

gravidade pode deformar uma peça se o timing da execução não acontecer a

contento. São tarefas em que é necessário dominar o tempo do relógio, o tempo linear.

Dilatações e contrações no tempo acontecem quando se está mais vinculado à

ação do que ao tempo do mundo. Csikzentmihalyi aponta para a luta do homem

moderno contra o ponteiro do relógio dizendo: “Embora não pareça que perder a

noção do tempo não constitui um dos elementos mais importantes do desfrute,

libertarmo-nos da tirania do tempo ajuda seguramente à alegria que sentimos numa

situação de envolvimento total”. (CSIKSZENTMIHALYI, 1990, p.101). Como não

lembrar da satisfação de Ana Passos? “E aí como eu trabalhei o controle sobre o

tempo, eu encapsulei, meti dentro de um anel, meti dentro de um pingente, segurei o

tempo.” (Notas de entrevista, p. 33).

Em 1905 o cientista alemão Albert Einstein (1879-1955) revolucionou o olhar

sobre o tempo, a partir de sua Teoria da Relatividade. Einstein provou, através de

experimentos simples, que a duração de um sinal de luz quando percorre certa

distância de um ponto a outro sofre variações dependendo da posição do sujeito que

observa o experimento. O tempo, na experiência de Einstein, se dilata ou se contrai

de acordo com o ponto de vista do observador (SANT’ANNA, 2010, p. 136). Esta

proposição desfez a ideia do tempo como uma continuidade horizontal, um fluxo

contínuo e linear que interliga passado, presente e futuro, um tempo universal, abrindo

espaço para a discussão sobre a existência de um tempo individual.

180

Gaston Bachelard (Cf. 2007) utilizará a física quântica para reforçar a existência

de um eixo vertical, que rompe com a continuidade linear e que nos dá a possibilidade

de uma outra perspectiva temporal. Bachelard uniu seu interesse pela física e seus

estudos sobre a criatividade para sugerir uma perspectiva de tempo que abarcasse o

ato criativo. Ele propõe então, uma abordagem na qual o tempo deixa de ser contínuo

e passa a ser uma sucessão de instantes, mas de instantes que se renovam. Passado

e futuro são projeções e reminiscências da consciência humana, o instante pertence

ao momento presente. Assim, “não é o ser que é novo num tempo uniforme, é o

instante que, renovando-se, remete o ser à liberdade ou à oportunidade inicial do

devir”. (BACHELARD, 2007, p. 31). Os poemas de Elvira Schuartz parecem ter

captado a mesma intuição:

Quantas vezes pode o mundo Acabar e recomeçar Num par de segundos? (SCHUARTZ, 2006, p. 133)

Com isso Bachelard fez uso do conceito de tempo que se dilata e se expande

trazido pela física moderna para explicar o ato criativo. O tempo de Einstein pode

alterar-se de acordo com a posição do sujeito. O tempo de Bachelard e de

Csikzentmihalyi pode alterar-se de acordo com o envolvimento do sujeito na atividade

em execução.

O tempo É um elástico Que a vontade Brinca (SCHUARTZ, 2006, p. 130)

Sob várias perspectivas o trabalho de Csikzentmihalyi merece ser visitado. Por

meio da conciliação entre a pesquisa qualitativa e quantitativa, quebrou paradigmas

importantes da cultura atual, abrindo portas para olhares mais amplos a respeito dos

fazeres do ser humano.

Transpondo as constatações de Csikszentmihalyi para o ambiente do artista-

artesão, muito se pode dizer, já que ali, como em qualquer outra atividade,

encontramos normas de valorização ou desvalorização do trabalho.

O primeiro deles diz respeito à associação da relação entre atividades rotineiras

e repetitivas e aborrecimento e tédio. Tais atividades têm sido consideradas menores,

181

diretamente associadas à atividade mecânica, ausentes de pensamento e de desafio.

Entre nossos entrevistados encontramos Guilherme Rossi afirmando a grande

satisfação que sua profissão proporciona pelo fato de nunca repetir uma obra. Ele

aprecia sobretudo a criação e o desafio de encontrar soluções para novos problemas.

Elvira Schuartz conta que quando recebe uma encomenda de várias peças,

fará a primeira, o protótipo. Sendo aprovado pelo cliente, seu funcionário fará as

restantes, enquanto ela se ocupará de outras criações. Em contrapartida, Luciana

Faria pode receber a encomenda de quarenta pratos quase idênticos e ela os realizará

um a um. A entrevista para esta pesquisa foi feita inteiramente enquanto ela

trabalhava. A ceramista observa e aprecia as pequenas diferenças que nascem entre

um prato e outro, alisando, avaliando e comentando cada pequena diferença

encontrada: Nossa, ficou bem torto hein [...] mas o jeito tá dado, ele é torto. (Notas de

entrevista, p. 74).

A argila é modelável o suficiente para proporcionar pequenas diferenças que

colaboram para que cada peça seja única e a maleabilidade do material requer

concentração:

Porque o barro entorta aqui, aí você tem que arrumar… aí é muito louco. Não dá para bater papo, exatamente. Dá, faz. Mas quando é para pegar mesmo, para fazer vários, precisa concentrar e ir. (Notas de entrevista, p. 82).

A criação é sem dúvida compreendida como a mais nobre atividade humana

sob inúmeros pontos de vista. No entanto, Walter Benjamin81 (Cf. 2014) aborda o

incômodo do indivíduo da atualidade com relação à repetição de tarefas, associando-

a ao mesmo incômodo causado quando as narrativas se repetem. Para ele uma boa

narrativa é suficiente para ser ouvida mil vezes, atentando para um novo detalhe ou

olhando sob um novo ponto de vista, sempre com uma nova compreensão. Narrativas

foram sendo gradativamente abreviadas e transformadas em short story, ou

substituídas pela informação, que deve ser sempre nova, geralmente carregadas de

explicações. Em seu texto ele relembra a fala de Goethe: “Tudo se arranjaria/Se

pudéssemos fazer duas vezes as coisas”. (GOETHE apud BENJAMIN, 2014, p. 271).

Dependendo da personalidade daquele que executa a ação, a repetição pode ser

percebida como mecanização ou pode remeter ao impulso lúdico característico da

81 Walter Benjamin (1892-1940): ensaísta filósofo, sociólogo e crítico literário alemão.

182

primeira infância, quando as mesmas brincadeiras são repetidas inúmeras vezes, com

pequenas variações, sempre carregadas de prazer.

O segundo paradigma de valorização ou desvalorização do trabalho diz

respeito à cisão que se estabelece entre a criação e a execução, sendo a criação

compreendida com a porção nobre e elevada do trabalho, fonte de prazer, e a

execução, vinculada ao puro exercício operacional, fonte de labuta apenas, sendo

terceirizada por muitos artistas. Como não pensar no olhar grego, que coloca o

pensamento como atividade superior e a execução como trabalho indigno? Sob esta

perspectiva a encomenda é percebida como inibidora do processo criativo, já que ela

é carregada de parâmetros definidos por outro, o criador. Na visão dos nossos

entrevistados, o olhar para esse tema é muito mais unificador do que fragmentador.

O amplo espaço físico de Osni Branco e a própria dinâmica de trabalho que ele

estabeleceu faz com que suas criações livres se misturem às encomendas. Criações

próprias surgem em paralelo ao atendimento de encomendas que não

necessariamente atendem a suas necessidades de criação, mas garantem seu

sustento e o liberam para a criação de outras peças. Afirma que cuida para não

trabalhar o dia inteiro, acorda pensando no que vai fazer ao longo do dia. Considera

o conjunto do seu trabalho prazeroso.

Luciana Faria só produz sob encomenda, mas acha que em todos os pedidos

que executa há espaço para expressão pessoal, simplesmente porque quando não

gosta do pedido que recebeu, não o executa. Quando lhe encomendam algo e acha

que outro profissional faria melhor, faz a indicação. Diz que prefere perder o cliente a

perder a ética. Não lhe agrada não ser a melhor opção para um cliente, não lhe agrada

que o cliente leve algo de que não tenha gostado e acha que o prazer pelo trabalho e

a postura ética “transbordam” e resultam em um negócio bem-sucedido. Acha que

depois que começou a trabalhar com a cerâmica tornou-se mais segura. Testa muito

e não tem medo. Pode trabalhar inúmeras horas ao dia. A ceramista enfrenta suas

dificuldades pessoais com a matéria. Sabe que as argilas que esteticamente mais a

agradam, a preta e a terracota, são as mais difíceis de lidar, racham mais na queima.

São essas as que ela tomou a decisão de trabalhar com mais frequência, a fim de

vencer a dificuldade. Luciana Faria já venceu muitas barreiras para tornar-se

ceramista: a dificuldade de lidar com as quebras de peças no forno, a lida com alguns

tipos de argila, a conquista da paciência com os tempos de secagem das peças. O

183

atelier é para ela o espaço da experimentação e do rompimento de barreiras. “Aqui é

um playground” (Notas de entrevista, p. 83). Seu atelier é local de desfrute, onde há

espaço para o trabalho e para o elemento lúdico.

Elvira Schuartz, Guilherme Rossi e Ana Passos afirmam que gostariam de

investir mais tempo em criações próprias, dedicam muito tempo ao atendimento de

encomendas e, no caso do Guilherme Rossi, projetos de outros artistas. No entanto,

tais execuções são, também, muito prazerosas. Elvira Schuartz diz: “tenho mais

prazer em executar produções próprias, mas não desprazer” (Notas de entrevista, p.

47). Na opinião de todos os entrevistados, o desafio na execução, a possibilidade de

fazer algo nunca feito, a descoberta, são grandes fontes de satisfação.

Assim, quando se trata da execução de uma encomenda, é fundamental a boa

relação entre o artesão e o cliente. Nos trabalhos de Guilherme Rossi, em cem por

cento dos casos suas execuções são de tal complexidade que ele se torna, de fato,

cocriador. Sente prazer em estabelecer relação com cliente, muitas vezes artista, para

que a concepção inicial se faça realmente presente na execução. Nesses casos,

intitula-se “cover”. Alguns artistas o reconhecem, e nasce uma relação de verdadeira

parceria, outros não. “A gente sofre muito pra fazer uma obra, mas tem uma satisfação

quando tá pronto” (Notas de entrevista, p. 54), ele diz, em um claro exemplo da

definição de desfrute. Elvira Schuartz relata com entusiasmo a criação de uma peça

para decoração, mas também a realização da encomenda de um filtro, de uma garrafa

de bebida para um restaurante ou de um vidro de azeitona. Ela conta que “fazer o

vidro de azeitona foi muito divertido pelo desafio. Na hora que saiu ficou legal” (Notas

de entrevista, p. 47). Desde que exista desafio e se estabeleça uma relação de

confiança entre ela e o cliente, a execução será fonte de prazer - o desfrute

caracterizado por Csikszentmihalyi. “Para produzir há mais transpiração que glamour.

É trabalho, suor. A arte tem um trampo, um trampo. É o fazer, né?” (Notas de

entrevista, p. 48), ela comenta.

O que a fala dos entrevistados leva a concluir é que a encomenda pode não

ser em si limitante, desde que exista o casamento entre uma inclinação pessoal e

aquilo que se é solicitado a fazer. Sentir-se desafiado e estabelecer boa relação com

os clientes e parceiros parecem ser grandes fontes de prazer no universo do artista-

artesão, independente de tratar-se de uma encomenda ou de uma criação livre.

184

Osni Branco tem orgulho de criar e executar, acha que o verdadeiro artista é

aquele que consegue concluir a obra, citando Michelangelo mais de uma vez ao longo

da entrevista. Ele guarda sérias restrições ao artista que concebe, mas não executa

suas obras: “[...] meu filho não é aquele que eu fecundei; é aquele que eu cuidei,

eduquei, estive presente, não deleguei pra ninguém, não terceirizei, até estar um

homem pronto pra sociedade” (Notas de entrevista, p. 105), ele diz. Como já foi

descrito no capítulo anterior, Osni Branco associa essa ruptura do artista com o mundo

material a uma cultura escravagista, o que aproxima suas ideias das de Gaston

Bachelard:

[...] por isso o projeto em execução tem, no fim de contas, uma estrutura temporal diferente daquela do projeto intelectual. O projeto intelectual, em geral, distingue-se demais da execução. É o projeto de um chefe que comanda executantes. Repete frequentemente a dialética hegeliana do senhor e do escravo, sem se beneficiar da síntese que é o domínio do trabalho que se adquire no trabalho contra a matéria. (BACHELARD, 2013, p.19).

Bachelard associa o processo de criação-execução à superação de uma

catarse. Criar é desatar uma angústia. Deixamos de respirar quando somos

convidados a um esforço novo. Há assim uma espécie de asma do trabalho no limiar

de toda aprendizagem. O desatar é a catarse, trabalho de saúde. Nessa perspectiva,

deixar de executar é deixar de viver o processo da respiração completa, inspiração e

expiração, ansiedade e liberação.

185

CONSIDERAÇÕES FINAIS

[...] queremos consagrar nossos esforços a determinar a beleza íntima das matérias; sua massa de atrativos ocultos, todo esse espaço afetivo concentrado no interior das coisas. Pretensões que não podem valer senão como atos da linguagem, empregando convicções poéticas. Tais serão, portanto, para nós, os objetos: centros de poemas. Tal será, portanto, para nós, a matéria: a intimidade da energia do trabalhador. Os objetos da terra nos devolvem o eco de nossa promessa de energia. (BACHELARD, 2013, p. 7).

Subvertendo a percepção geral, bem apontada por Octavio Paz, segundo a

qual “a oficina de um artesão nunca serviu de modelo para nenhuma das grandes

utopias do ocidente”, (PAZ, SD, p. 55) esta pesquisa nasceu da convicção de que

estes locais de trabalho guardam experiências que valem compartilhamento. Nesse

sentido, os profissionais entrevistados contribuíram para apresentar outra forma de

relação com o trabalho e com o mundo material. A pesquisadora deve a eles imensa

gratidão e espera ter conseguido tornar presentes nesta dissertação tantos elementos

importantes trazidos nas entrevistas realizadas. Tais conteúdos foram direcionadores

das análises e do referencial teórico, para que de fato a voz desses profissionais

pudesse se fazer presente.

Ao longo dos últimos séculos as abordagens filosóficas dominantes no mundo

ocidental, o racionalismo decartiano e o empirismo baconiano defenderam conceitos

opostos entre si, mas paradoxalmente conciliaram-se para ofuscar a compreensão da

imagem do homem na sua integralidade, rompendo a ideia de unidade entre corpo e

mente. Se a primeira isolou o homem do mundo, negando a participação do corpo no

processo de conhecimento, a segunda valorizou o organismo sensório na sua forma

mais simplória, fazendo valer unicamente o visível, o mensurável, o que comprova

fisicamente os fenômenos do mundo. O olhar mais delicado, que observa os encontros

entre o sujeito e o objeto, as transformações do sujeito nas interações com as coisas

do mundo, encontra-se hoje ricamente abordado na filosofia, na neurologia e

psicologia, mas ainda estão por fazer parte dos pensamentos rotineiros, das práticas

cotidianas e escolares. Desfazer lógicas incorporadas na cultura certamente não é

tarefa fácil. Elas passam a fazer parte de estruturas fundantes, atuam imperceptíveis

definindo pensamentos e atitudes que já deveriam ter sido ultrapassadas.

Os conceitos conflitantes trazidos nesta pesquisa trataram de ajudar a

compreender como o homem tem significado a cultura material. O acervo

186

arqueológico do qual dispomos mostra que o belo e o útil caminharam juntos de igual

maneira, muitas vezes indiferenciados em intenção, por longo período da nossa

história. Ferramentas, recipientes, locais para abrigo marcam a procura pela utilidade,

uma busca constante pela solução de problemas, mas os elementos decorativos e

bonitas formas nos utensílios, as pinturas e os adornos pensados para o corpo,

marcam a necessidade de expressão individual e cultural. O objeto artístico-artesanal

é justamente aquele que se dispõe ao atendimento de necessidades específicas,

típicos exemplos do uso da razão, ao mesmo tempo que convidam o organismo

sensório ao trabalho. Materiais são educadores da percepção e, para aqueles que

com eles trabalham, são ampliadores de repertório. Peso, dimensão, cor, textura,

odor, estarão em evidência no momento da utilização, favorecendo o vínculo entre o

indivíduo e o entorno. O objeto artístico-artesanal não quer desaparecer do ambiente,

ele quer fazer parte da narrativa, tanto presente no dia-a-dia quanto parte de uma

história. Sua vocação é a de permanência no tempo. Vinculam-se a ele muitas

histórias, da cultura onde foi produzido, da singularidade que o produziu.

Não à toa, correntes filosóficas e sociológicas do final do século XIX e início do

século XX acenderam luzes de alerta quando perceberam todas as possibilidades de

mudança no próprio espírito humano com a mudança nos meios de produção. Afinal,

as organizações produtivas que até então haviam dignificado a humanidade foram

desmanteladas, com vistas ao abandono. Membros ativos da sociedade daquela

época, fossem empresários, pensadores ou artistas, procuraram resgatar os valores,

os saberes e as organizações das corporações de ofício. Conscientes ou não,

estavam resgatando fontes muito mais distantes do que a Idade Média, negando

premissas filosóficas gregas para trazer à tona ideais da cultura judaica antiga e de

outras civilizações orientais primordiais. Tais iniciativas passaram longe da nostalgia,

apesar de assim parecer. Elas procuraram pensar em dignidade e alegria no trabalho,

na preservação de ambientes que possibilitam o lúdico e o eminentemente humano.

Ateliers e oficinas foram escolhidos para esta investigação por serem

ambientes próprios para observar experiências de interação e envolvimento com o

trabalho. Esse espaço físico poderá até ser pequeno em tamanho, mas será grande

em possibilidades. Ali acontece usualmente o exercício de trazer algo do mundo do

espírito para o mundo terreno através da habilidade peculiar de transformar

imaginação em ação. Para aqueles que criam objetos os objetivos são

187

necessariamente claros e as restrições à execução sempre acontecem, mas o gênio

daquele que cria mostrará que as possibilidades de transformar dificuldades em novas

possibilidades são inúmeras. Se os obstáculos e as restrições impostos serão vistos

como restritivos à criação ou impulsionadores de expressão, se serão abandonados

ou se transformarão em inovações e em atividades envolventes e geradoras de fluxo,

isso estará na liberdade e nas possibilidades de cada individualidade.

Alguns dogmas relativos à produção foram contestados ao longo deste estudo.

A possibilidade de executar projetos de autoria própria, de fato foi reconhecido como

grande fonte de prazer, mas a boa relação com o cliente e a identificação entre um

projeto e aquele que o executará poderá converter uma encomenda em trabalho

altamente prazeroso e criativo. No ambiente do artista-artesão, tanto criações próprias

como encomendas nunca nascerão da plena liberdade de atuação, mas sim em meio

às restrições colocadas pela necessidade de utilização de um produto, pela matéria,

pelos custos de produção, pelas imposições da cultura. Restrições de todas as ordens

são vistas pelos entrevistados como parâmetros que organizam o processo criativo.

No caso da encomenda, Guilherme Rossi trouxe à tona a capacidade humana de

internalizar a ideia do outro para executá-la com perfeição, certamente um exercício

que exige grande habilidade social.

Os processos criativos foram, neste estudo, confirmados como a mais nobre

atividade humana, o que foi claramente expresso nas entrevistas. Contudo,

Csikszentmihalyi contribuiu para desfazer a ideia de que as atividades repetitivas,

rotineiras, meramente executoras ou simples, no sentido de desprovidas de aparatos

luxuosos sejam inconciliáveis com a satisfação no trabalho, o que aparece fortemente

nos relatos de Luciana Faria e Osni Branco. A relevância desta conclusão é grande,

pois transfere as fontes de prazer, que estariam menos na natureza do trabalho que

na natureza do indivíduo. As falas dos entrevistados apontaram também o prazer de

fazer bem feito pelo prazer de fazer bem feito, o gosto pelo acabamento primoroso e

pelas relações éticas entre aquele que produz e o usuário.

Comparar tantos conceitos teóricos com o dia-a-dia dos ateliers e oficinas de

artistas-artesãos só fez pensar que eles nasceram muito distantes da prática. Tomás

Maldonado foi certeiro ao apontar a distância que separa o mundo dos conceitos do

mundo da prática quando se trata de investigar o universo da arte e da técnica. Uma

188

aproximação entre a teoria e a prática certamente apagaria linhas demarcatórias que

tentam separar o que nasceu unido.

Finalmente, cabe afirmar Bachelard como o grande inspirador deste trabalho.

Sua obra reconhece na lida do homem com a matéria um encontro primordial com o

mundo terreno, transformador do sujeito, dinamizador da vontade e da imaginação.

Materiais são carregados de sentido simbólico e o ser humano transforma e é

transformado nas interações sujeito-objeto. Frente a olhares que tratam da relação

indivíduo-matéria-sociedade, Bachelard surpreende trazendo relações anteriores ao

homem social, deixando de lado as profissões, os títulos, as valorações e

desvalorizações para concentrar-se no embate primordial homem-mundo e suas

consequências transformadoras. Primeiro devem vir as forças formadoras da vida,

depois devem vir as forças formadoras da cultura. (PIORSKI, 2016, p. 97). Antes de

artesão, artista, ferreiro, oleiro ou pintor, há um corpo que tem algo a dizer e que, para

isso, procura uma linguagem. Salvo os caminhos de criação de Guilherme Rossi, em

todos os entrevistados evidenciou-se a relação de afinidade entre eles e o material

que escolheram para trabalhar, reconhecendo as características físicas e simbólicas

destes. A fala de Guilherme Rossi trouxe para a pesquisadora, que trabalha com

educação, a pergunta: como organizar, nos espaços escolares, ateliers e oficinas

onde a escolha do material pode nascer a partir da criação, e não o contrário?

Como professora, a autora finaliza esta pesquisa já rastreando os planos de

aula e a organização física dos ateliers do ambiente escolar, pensando em como estes

espaços e as estruturas curriculares podem ser melhorados para tornarem-se sempre

melhores ambientes para experiências. No espaço das grandes cidades, onde as

crianças não têm mais a terra, a areia e a possibilidade das aventuras com o fogo, tão

engrandecidas pela obra de Bachelard, a responsabilidade em proporcionar tais

vivências no ambiente pedagógico parece ainda mais necessária.

Finalmente, é preciso dizer que após as pesquisas realizadas para este

trabalho, a própria prática pedagógica passa a ser significada como um trabalho

artístico-artesanal, onde técnica e arte se reúnem para respeitar o que deve nascer

singular.

189

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Anexos:

Anexo 1: Entrevista com Ana Passos

Anexo 2: Entrevista com Elvira Schuartz

Anexo 3: Entrevista com Guilherme Torres

Anexo 4: Entrevista com Luciana Faria

Anexo 5: Entrevista com Osni Branco

1

ANEXO 1 – ENTREVISTA COM ANA PASSOS (MC) EXPLICAÇÃO SOBRE A PROPOSTA DA DISSERTAÇÃO E DA ENTREVISTA. (AP) Uhum...bom ... é... vou falar, eu tenho várias carreiras em uma, meu currículo é um negócio, se você olhar meu Lattes vai fica um pouco assustada porque eu botei tudo lá (risada). É... como eu, minha formação é pedagogia, eu fiz também uma parte do curso de economia na graduação mas abandonei, e eu tenho mestrado em administração de centros culturais, que hoje se chama memória social e documento, esse nome foi alterado, ele é muito mais isso, memória social do que era administração de centros culturais e eu, bom e o doutorado você sabe, eu tô lá junto com você, e o tema dele é justamente é este: de matéria a afeto, a construção do significado da joia. Quer dizer, tem uma, é a relação entre esta matéria e este afeto, matéria é tirando de, não falo de material, falo de matéria por conta do antropólogo Tim Ingold e afeto Spinoza, o que o Spinoza entende por afeto. É... minha formação é curiosíssima, eu tenho, eu tenho 52 anos, então eu estava lá (risada) saindo da adolescência na crise econômica de 82, 83 e de repente minha família se viu numa situação que precisava todo mundo pra rua ganhar dinheiro, e aconteceu uma coisa muito curiosa. Minha mãe conheceu uma pessoa que ofereceu pra ela um mostruário com joias, com peças, e tipo assim, leva, não precisa me pagar, leva, vende, depois me paga, tipo, uma tentativa de um negócio que nunca ninguém tinha feito na minha família e nenhuma das duas nem entendia de joia, nem gostava, nem tinha nenhuma relação íntima. (MC) Você tinha quantos anos mais ou menos? (AP) Eu tinha 18 pra 19 anos. E... nos descobrimos excelentes vendedoras, comerciantes assim (risada) tem uma história de família, a família da minha mãe inteira imigrantes espanhóis, comerciantes assim, mas nunca ninguém tinha trabalhado no ramo. Nos descobrimos grandes vendedores, imagina uma virada na história família de (risada) numa velocidade assim... (MC) Você achou até que bom... (AP) ... assombrosa... junto com o comércio de joias vem, é compra uma tarraxa que foi perdida, vem colocar um anel no tamanho certo, vem sei lá, mandar soldar um pino de um brinco que caiu, vem, sei lá, cortar uma corrente, vem mil coisas, substituir uma pedra que quebrou, e agente teve que ir as oficinas. Agente vendia e...nós vendíamos, nós fazíamos o que hoje chama curadoria, a gente fazia isso nos anos 80, isso era 84, por ai. E... agente fazia isso, a gente buscava artesãos como eu, então eram peças únicas, interessantes, algumas coisas sob encomenda tudo, e alguma coisa de pequenas manufaturas, não trabalhava com fábricas, marcas, nada disso. E era muito interessante porque era uma coisa muito variada, só que aí a gente teve que voltar nessas pessoas, nessas manufaturas, nessas oficinas, nesses ateliês de artistas pra fazer esses pequenos consertos. A primeira vez que eu vi uma bancada foi na situação pior possível assim, um prédio comercial de centro de cidade, Rio de janeiro, verão, aquele povo seminu assim trabalhando nas condições mais precárias, a joalheria não... (MC) Muita gente?

(AP) muita gente. A joalheria não tem, não tinha nos anos 80 o glamour que ela adquiriu nesse século, não tinha mesmo. A minha primeira bancada de joalheria tinha escrito “maçã fuji” em baixo da gaveta, era de resto de madeira. Hoje em dia você tem lojas especializadas (risada), coisas lindas pra você comprar pronto. E... então voltando, eu entrei no prédio, um prédio perigoso, lugar perigoso da cidade, porque perigo anda junto com segurança né, uma coisa louca isso né, nos lugares mais perigosos as vezes são justo os mais seguros, ou seja, você tem mais segurança nos lugares mais perigosos. E ai esses joalheiros de um modo geral... (MC) Você tá querendo dizer que os joalheiros se posicionavam aí, nesses lugares? (AP) ... Os joalheiros se posicionavam numa situação de estarem todos muito próximos, se apoiando mutuamente, tanto em termos de trabalho, do fazer, tipo pega emprestado ferramenta, pega emprestado material, empresta peça um pro outro, não sei o que, mas também na questão da segurança, estando todos juntos, você dá um grito aparece gente pra te socorrer. Isso é uma prática que a gente tem em todas as cidades do Brasil, tem uma rua onde ficam os joalheiros. Aqui em São Paulo é a Barão de Paranapiacaba, que hoje em dia não tem mais tantos é, tantas oficinas e artesãos, mas você tem o comercio de ferramentas e de insumos, e alguma coisa de produção rápida. Bom, mas aí eu entrei, eu fiquei louca, eu vi um negócio sujo, cheio de ferramentas que eu não fazia ideia pra que serviam, e... exatamente assim como essas só que horrorosas, e, e eu falei assim, cara isso é incrível, quero fazer isso. (MC) E por que? (AP) Não sei, aí não tem explicação mesmo. (MC) ai não tem mesmo né... (AP) eu já escrevi isso... eu já escrevi um texto sobre isso, eu não... (MC) porque as vezes tem ali em cima uma peça, uma coisa que... (AP) não, acho que é muita a sensação de que daquilo ali sai uma coisa linda (MC) Tipo Hefesto (risada) (AP) tem mágica, tem, é totalmente Hefesto isso (MC) é totalmente Hefesto (AP) E...tem uma, tem um fascínio. Ontem eu dei aula para uma pessoa, a primeira aula de joalheria, eu nunca tinha feito isso aqui. E... a primeira aula de joalheria tradicionalmente é fazer uma aliança, uma aliança sem nada, supersimples. Porque é o mínimo, você lamina um lingote, serra, corta..., e.. serra, solda, dá acabamento, isso é o mínimo que você faz numa mesa de joalheria, numa bancada. E a menina, eu tirei uma foto da menina, eu botei no Instagram porque a menina tava, quando acabou, a menina olhou pra aquilo ali como se fosse um... (MC) tudo... (AP) mágica, porque é mágica né?! E a joalheria ainda tem essa, porque alguns materiais você vê o processo, outros não, o pessoal do forno, eu acho que inclusive é magico porque eu não, eu não consigo nem entender como que entrega um, como que entrega ao destino (risada) uma produção. Mas assim, na joalheria, até você puxar o brilho na peça, que é a última coisa que você, a última coisa que você faz, ela é horrorosa. (MC) ah é? Até mesmo a...

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(AP) olha aqui, isso aqui é ouro, isso aqui é ouro você acredita?! (MC) isso aqui é ouro? (AP) ouro ... (MC) nossa, eu ia te dizer que isso aqui é uma peça de latão...uma coisa assim (AP) Até a gente dar polimento é essa feiura aí. Porque tomou fogo já então tá recozida como a gente chama. Bom mas voltando porque você quer saber como eu entrei, e eu entrei assim, no susto. E ai aconteceu uma coisa muito curiosa porque eu fui procurar, e eu descobrir, e era assim que se ensinava joalheria no Rio de Janeiro nessa época. Ou você ia trabalhar numa oficina dessa como aprendiz, nas condições mais precárias. Não havia mulheres em nenhum desses espaços. Porque inclusive é um lugar perigoso, o cara puxa a faca (risada) ... (MC) Jura?! (AP) Tipo os caras brigam de soco, é uma coisa, era muito bárbaro o negócio, ainda é um pouco, mas tá bem mais civilizado. E aí eu descobri que a única solução eram os ateliês dos artistas plásticos joalheiros. E já, e haviam alguns no Rio que tinham realmente montado ateliês escola. Eram o Marcio Mattar com quem eu estudei primeiro e o Caio Mourão com quem eu estudei depois. E... e aí é um outro planeta, são super artistas plásticos de formação, que descobriram a pequena escala da joalheria e começam a fazer isso sem formação de ourives, eles vão descobrir na marra como se faz joia. Alguns vão pro exterior, outros são, aí vem muitos estrangeiros que estão no Brasil, quer dizer, isso aí a geração da Reny deixa isso muito claro, a Reny é a primeira mulher artista plástico joalheira brasileira. As outras três que começaram junto com ela, imediatamente no mesmo período na primeira metade dos anos 60, é, são todas estrangeiras, que vieram da Alemanha, que vieram da França, que vieram... então não tem, ai então você aprende, por um lado você tem um ambiente onde a questão da criação tá muito considerada, por outro lado você tem algumas fragilidades técnicas, que em alguns lugares se superou porque ai se trouxe um ourives para o trabalho e tudo, e outras não, ficou, ficou uma coisa meio, e, de improviso. (AP) E, eu fiquei, fiz joias bastante tempo no paralelo, ou seja, as peças eu continuei trabalhando no comércio até o plano Collor, porque no plano Collor ninguém comprava nem comida né?! (MC) nada (AP) nos primeiros meses (risada) (MC) nossa... (AP) agente trabalhou durante uns anos aí, então foram o que uns... de 84 até 89, uns 5 bons anos, e no paralelo eu tinha, eu montei uma bancada dentro do meu quarto, com o mínimo de equipamento possível e comecei a fazer peças, e vendia tudo... (MC) Vendia tudo? (AP) porque é o perfil da pessoa que é mais comerciante do que artista, mais comerciante do que ou... então tipo tudo que eu fazia eu vendia. Tenho muitas poucas peças dessa época, muito poucas, eu não fiquei com quase nada. Porque não tinha essa ideia de fazer. (MC) você fazia em que? (AP) em prata. A joalheria artística no Brasil é nessa época era toda em prata, pouquíssimas pessoas trabalhavam

com ouro. E, e muito assim para exposição, para encomenda, o cotidiano no atelier escola é em prata, até porque a prata como material ela é mais difícil do que o ouro. (MC) a é? (AP) e infinitamente mais barata. (AP) então é o que a gente estuda, como a gente aprende (MC) isso é super bom... quer dizer se você for pensar do ponto de vista pedagógico, super bom, mais barato, e ... (AP) mais barato, você pode errar... (MC) (AP) .. e muito mais difícil (AP) então por exemplo, quando você faz a transição pro ouro você fala meu Deus! (MC) risada (AP) porque (risada) tantos anos (risada) ... porque tão caro também. (AP) Eu comecei assim, eu comecei de uma situação absolutamente de acaso, eu não tenho na minha família, nem de pai nem de mãe, nenhum artista plástico, nenhum artesão, e... eu tenho pessoas de vida intelectual muito intensa e comerciantes, e... então não tive nada que passasse pelo trabalho manual. É... mas eu fiquei encantada com isso, depois eu parei um pouco, eu continuei fazendo durante uns anos depois parei, fui fazer mestrado, viajei, tal (MC) e as pessoas tavam trabalhando, desculpa, mas essa cena realmente é impressionante, tinha gente trabalhando, você viu trabalho? (AP) eu vi trabalho (MC) você viu naquelas bancadas, você viu trabalho? (AP) eu vi, eu comecei entrar na oficina, eu pedi licença, foi especificamente assim, eu não...chamava Sr. Antônio Assunção, ele tinha uma oficina, eu conversava muito com ele, eu perguntava muita coisa quando eu chegava pra levar os consertos e tudo pra ele, então ele viu que eu tinha um gosto pelo negócio, ele se ressentia do fato de que nenhum filho tinha... então acho que aí o olhinho dele brilhou então assim... ele parava, ele sentava comigo na mesa, botava gente pra atender e ficava me explicando tudo que eu perguntava pra ele, um dia eu falei assim, eu quero ver a oficina... e aí eu passei numa porta que não abria nunca e assim, eram um monte de bancadas, de verdade, uns homens seminus, porque assim era verão no Rio de Janeiro, os caras tavam assim, de cueca, de bermuda, era uma coisa pobre, porque não era um ambiente assim pra entrar estranho mesmo... (MC) sei... (AP) muito sujo, muito sujo, a joalheria ela é suja, ela não tem glamour nenhum na produção (risada), e... mas claro que nessa condição de uma joalheria popular né, quando você tá na condição de uma joalheria, de alta joalheria, como a gente sabe, nas oficinas de alta joalheria a pessoa tá de jaleco branco, você tem pallets de materiais diversos pra eventualmente qualquer coisa que caia não se perder e não se quebrar, quer dizer, você têm ... é hospitalar (MC) é o contrário. (AP) na alta joalheria a oficina é hospitalar. É muito interessante... porque aí a gente tem a questão da formação. A oficina popular é isso, ela é corporação de ofícios, ela é mestre, aprendiz, ferramentas que tão aí desde sempre, os gestos essenciais da joalheria tão, são os mesmos há uns 500 anos. (MC) os gestos essenciais...

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(AP) os gestos são. Aí você tem a diferença, você tinha um maçarico de fole agora você tem um maçarico a gás. Você tinha um, você não tinha motor, era tudo no braço, hoje em dia você tem um motor que te ajuda. Você tem, você pode dispor, tendo recursos, porque são muito caros, você pode dispor de equipamentos de muita precisão, equipamentos de excepcional qualidade, mas tipo assim, eu já vi vídeo de gente que faz filigrana no Uruguai usando chave de fenda e tesourinha de unha, são as ferramentas, e as joias ficam lindas. Quer dizer tem muito esse exercício do popular mesmo, do improviso. (MC) e desculpa... assim, não tem muito a ver a pergunta, mas esse jaleco branco ele tem um significado ou você interpreta como uma tentativa de diferenciação mesmo? (AP) sei... (MC) sabe assim, esse ambiente que você tá falando né, porque uma parte a gente entende... (AP) isso é muito importante... (MC)... uma coisa que cai no chão, essa parte a gente entende, mas quando a gente vê o resto da estrutura assim (AP) eu acho assim, é... pode ser que tenha essa questão da diferenciação, eu nunca entrei numa oficina, eu já vi e eu já li a respeito, ontem mesmo eu recebi uma fotografia de uma oficina de alta joalheria com lustres de cristal. Algumas das oficinas mais importantes do mundo tão na Place Vendôme no 2º andar do prédio. É..., pode ter alguma questão de diferenciação, eu acredito que não, é o contrário, é uma questão de postura profissional... não é pra aparentar, mas é pra garantir uma postura.. O bom ourives é aquele que trabalha numa condição imaculada, então ele tá de branco porque ele tá, ele tá demonstrando que ele está trabalhando numa condição imaculada. Então eu acho que não é, não é querer, uma questão que tem a ver com ... (MC) eu entendi (AP) com patamares sociais mas tem a ver com essa, e se reforça muito isso na formação na Europa. A formação de joalheria na Alemanha, na França ela traz essa ideia de que é um saber antigo, é um saber que precisa ser respeitado e valorizado... (MC) que interessante, né? (AP) ... e é muito legal (MC) muito legal... é um resgate, não uma diferenciação, é ao contrário (AP) é pra valorizar. Eu acho que, eu acho isso muito legal. E...eu tenho, eu tenho assim, eu sou pros padrões normais, que não são alta joalheria, eu sou super limpa e super organizada (risada) mas assim, você vê coisas, você vê lixos assim, você vê situações que você fala gente, perde material aqui, não é possível... eu tenho umas fotos, posso te mostrar, são chocantes... (MC) eu queria ver... (AP) é chocante. (MC) ... eu queria ver até pra entender, engraçado isso... (AP) é como se, pensa que assim, sabe aqueles... (MC) vira quase um sapateiro... (AP) é dai pra pior... é igual só que, pra você visualizar mais fácil... (MC) é, tô tentando... (AP) imagina uma oficina de sapataria, uma sapataria de bairro daquelas antígonas, nada de costura... como que é? Nada de costura...Sapataria do futuro (risada).

(MC) sim, mas acontece que o cara tá mexendo com pecinhas minúsculas, né? (AP) é ... (MC) é um trabalho de precisão né... (AP) a gente tem um grupo de ... a gente hoje em dia tem um grupo de facebook que acabou de se formar, tem muitos, muitos grupos do ramo, porque como você mesma falou não tem formação. (AP) então você cria redes de apoio pra conseguir informação. E... e aí tem um desses grupos que é um grupo fechado, que tá tentando se organizando pra de verdade ser uma comunidade de troca de informação, que o pessoal posta, eu pedi pra postarem as bancadas, ai você se diverte, porque aí quando você, como as pessoas não tão acostumadas a conviver com outros, eu convivo com alguns, não convivo com muitos, tipo a gente não tem encontros do setor, a gente tinha uma feira que deixou de existir em 2016. E... as pessoas começam a perceber, tipo assim, putz, que bancada entendeu... então a gente tem coisas mágicas, ontem eu pedi pras pessoas postarem como que elas organizam uma coisa, uma coisa do trabalho, e teve um rapaz que mora em Viena que mandou uma foto que eu falei, você tá gerando necessidade para gente em euro, não dá pra sonhar em ter um negócio desses (risada). Um super equipamento, um negócio maravilhoso, que a gente usa um pedaço de pau aqui... isso aqui ó... isso aqui chama estieira, é onde a gente apoia trabalho. É... eu pedi, gente, eu tô montando bancada nova e eu preciso de informações sobre estieiras, quero ver opções... (MC) e o cara te manda, dá até raiva não dá? (AP) ele te manda um negócio de precisão que tem mil encaixes para cada operação do trabalho... (MC) dá raiva isso (AP) alemã.... (MC) alemã porque eles são ótimos (AP) são ótimos pra ferramentas, então você fala assim então tá né, então eu acho que vou cortar aqui um pedaço dessa madeira e vou... (risada) (AP) ... e vou vender um rim (risada) pra comprar a estieira alemã. Bem interessante, bem interessante, mas .... como continua minha formação? E... aí eu saí pra fazer mestrado, parei, parei completamente, num determinado momento a gente parou com o comércio, eu parei com a bancada também, fiz mestrado, fui, voltei não sei o quê... (MC) bom mas daí você já... em que momento você tinha feito a pedagogia? Depois? (AP) nossa, no início disso... (MC) no início disso? Ah, tá bom, ali tá a Pedagogia, você tava fazendo, produzindo e tava fazendo... (AP) o tempo todo... (MC) E, vc tinha intenção de, de... (AP) de ser pedagoga ou de ser joalheira? Não, eu com 18 anos fazia o que dava vontade. Vontade não porque ninguém perguntou se eu queria trabalhar, mas não, eu não fazia reflexões sobre o futuro. O meu futuro, ele tinha sido rompido em algum momento, eu ia ser a menina que ia estudar economia, que já tinha escolhido onde ia fazer mestrado, que já tinha escolhido onde ia fazer o doutorado, (risada) que lia autores de economia com 12 anos de idade por causa do meu pai, e, e... tipo, não já tinha rompido, eu tava me jogando na vida,

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experimentando coisas. Tenho para mim do porquê da joalheria, porque bancada né, porque podia ser só comerciante, e... que foi uma certa... foi um, foi um sabe teoria da curvatura da vara, foi tipo assim, eu fui no sentido oposto da vida intelectual. Ah é... não vou poder fazer o que eu quero? Então... vou fazer o oposto. Eu tenho pra mim que foi um movimento desse tipo. Foi um movimento de ruptura com planos de família, planos meus e planos de família, já que não deu eu vou fazer qualquer outra coisa. É... então assim de fato mexer com trabalho manual pra quem queria ser um intelectual, pra mim era a maior ruptura possível. (AP) e aí era uma diversão. Eu, passados muitos anos eu vim morar em São Paulo, eu vim pra uma oferta de emprego incrível, e eu não conhecia ninguém na cidade. Eu fazia isso pra preencher o meu tempo livre. A primeira coisa que eu penso é, vou voltar a estudar joalheria. E imediatamente me matriculo, e ai começo a produzir, isso foi em 200..., demorei um pouquinho porque eu precisei de um tempo de adaptação, eu trabalhava numa empresa de consultoria e era uma vida 24 horas por dia, então não tinha, na hora que eu acomodei um pouco, quando eu completei 2 anos que tava em São Paulo, aí eu me matriculei numa escola, passei a estudar joalheria regularmente e montei bancada, e tô trabalhando direto desde 2002. Ainda fiquei no mundo coorporativo até 2008, verdade, faz... vai fazer 10 anos (MC) então 2008 você ... 2002 você voltou a fazer joalheria e você ficou de 2002 a 2008 você ficou fazendo... (AP) E... de 89 que foi quando, foi o Collor né, foi o plano Collor... De 89 até eu me mudar pra São Paulo eu fazia alguma coisa, não estava inteiramente abandonado, de vez em quando vendia algumas coisas, de vez em quando fazia... mas assim, de vez em quando mesmo. E... eu tive umas experiências de trabalho muito incríveis, muito interessante... que todas sempre, eu sou muita de entrega, então são todas muito absorventes, e, aí eu voltei de verdade a estudar em 2002, tá fazendo 16 anos. (MC) ai ficou no mundo empresarial até 2008? (AP) é, 6 anos eu fiquei fazendo... (MC) as duas coisas... (AP) dupla jornada. (MC) sim (AP) mas... e aí eu fiz uma coisa que, quer dizer, eu não sou um ponto fora da curva porque eu sou uma pessoa de formação acadêmica, e...de formação coorporativa, né, o mundo coorporativo traz uma... (MC) e você foi, do coorporativo você foi fazer o que? (AP) eu fui por acidente (risada). Foi... foi...e assim, muito resumidamente foi o seguinte, me formei em pedagogia, eu larguei...eu fazia pedagogia e economia, em determinado momento com trabalho que foi crescendo, crescendo, de repente o negócio explodiu, a gente larga o que dá mais trabalho, eu larguei a educação porque era mais distante, porque eram mais horas, porque... não que eu gostasse mais ou menos, terminei muito aos trancos e barrancos pedagogia porque chegou uma hora que eu não ia, porque tava trabalhando, e... e eu, uma hora eu falei assim, agora vamos acabar isso aqui, vamos encerrar, vamos pegar o diploma, e vamos ver o que eu vou fazer da vida... deu um vazio danado porque na verdade eu sempre quis estudar, daí deu uns 2 anos depois eu inventei de fazer mestrado, fiz mestrado e fui

trabalhar na Biblioteca Nacional, trabalhei num negócio chamado “Programa Nacional de Incentivo a Leitura”, eu coordenava um negócio chamado “Casa da Leitura”. Minha tese de mestrado foi sobre práticas e representações sociais de leitura, ela é muito parecida com o que eu faço no doutorado sobre joias... (MC) a é? (AP) é muito... tipo há paralelos, há sérios paralelos. Eu preservei alguns autores inclusive, e, eu trouxe de volta. Daí eu tinha um envolvimento muito grande com a cena cultural, com literatura, com livros, com leitura, daí e até fazia livros hoje em dia com certa facilidade... fiquei na Biblioteca Nacional um tempo, houve um problema político muito sério, e... quando cai Afonso Romano de Sant’anna da presidência da Biblioteca Nacional vai todo mundo junto, e eu falei assim, olhei pra um lado olhei pra outro e falei assim... o que é que eu vou fazer da minha vida cara? E aí eu tenho um pragmatismo que não é exatamente o pragmatismo do artista, do artesão... o que, quais são as indústrias que vão crescer no mundo? Drogas não me interessam, armas não me interessam... (MC) (risada)... que loucura (AP) e... turismo e entretenimento. (MC) turismo e entretenimento... nossa, mas aí você chutou bem longe... (AP) turismo e entretenimento e tipo, tinha isso dando dinheiro no mundo com perspectivas paralelas de 20 anos seguintes. E... aí eu falei assim, é... vou estudar hotelaria... (MC) nossa Ana, agora você me surpreendeu porque ...(Risada) eu fiquei muito chocada (AP) vou estudar hotelaria porque... foi engraçado, foi bem mais ridículo do que o que eu tô contando, isso já tá um pouco romantizado. Na verdade, eu quebrei meu pé, eu rompi os ligamentos, eu não tinha nem como procurar emprego quando eu sai da Biblioteca Nacional porque eu estava mancando... (MC) numa pindaíba desgraçada... (AP) eu estava mancando, e aí eu olhei num jornal e vi assim, nossa Pós-Graduação em Hoteleira, sei lá, em Barbacena, eu falei gente perfeito... (MC) (Risada) (AP) ... eu não tenho dinheiro, eu não posso ir longe, então eu posso estar na cidade do interior (risada) (MC) misericórdia (AP) então eu vou estudar hotelaria. Daí eu estudei hotelaria, fui parar no Cesar Park de Ipanema, responsável por eventos. Na época... (MC) era... (AP) César Park em Ipanema, era... na época era o hotel mais importante do Brasil, porque o Copacabana Palace não tinha sido comprado pelo Oriente Express ainda, não tinha sido reformado, então era o hotel mais luxuoso do Brasil. E aí eu ganhei uma experiência brutal no mercado de luxo, prestação de serviços de luxo, é... cuidando de eventos, ainda por cima, a cerejinha da hotelaria é você fazer só os eventos. Foi muito, muito importante, porque assim, todas as minhas experiências profissionais absurdas e variadas elas são forjadas, elas são forjadas com isso, elas são forjadas dessa forma. Tipo assim, as vezes a escolha é aleatória, mas assim, eu tiro o máximo proveito de cada uma delas. Biblioteca Nacional como a experiência em termos de lidar com pessoas do mundo inteiro, eu viajei o Brasil inteiro, inclusive dando aulas em

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pós-graduação, tipo formando, dando aulas para promotores de leitura, tinha... eu só não viajei de barco porque a viagem do Acre não fui eu que fiz sabe, tipo, eu só não viagem de bote... (MC) vc fez tudo... (AP) o resto eu fiz tudo. Então assim, é muito interessante, é um conhecimento de Brasil que pouca gente tem, porque a gente ia nos rincões, a gente ia em qualquer lugar. É... e eu tava assim no emprego da minha vida porque eu tinha feito uma dissertação sobre isso, era tipo assim... era administração de centros culturais sobre leitura, eu estava coordenando a casa da leitura, tipo assim (risada) era a única pessoa, no único emprego. Isso foi uma experiência formidável, sem falar na oportunidade de conviver com pessoas geniais, passar a tarde com um Eduardo Galeano, uma das tardes mais interessantes da minha vida, grandes autores nacionais, tipo assim, ficar com essas...circular com estas pessoas. Fiz isto, na hotelaria uma cancha para essa ideia de primeiro de equipe, gestão de equipe, equipe diversas, porque na hotelaria que nem na joalheria, tem gente de todas as camadas sociais, você tem todo tipo de formação, e lide com isso.... aprenda a lidar com isso. E foi muito interessante, quando eu tava lá, um dos meus clientes falou pra mim assim, bom eu não tinha pra onde crescer em determinado momento porque a cadeia foi vendida, bom tinha uma misoginia, a cadeia que comprou o hotel tinha uma misoginia enorme, tipo assim, nenhum gerente seria mulher, tipo assim, não tem pra onde ir né, não tem pra onde crescer, não tem pra onde fazer na... vou ficar aqui brincando de trabalhar, que era muito, pra mim era diversão, brincando de trabalhar indefinidamente não, não tenho possibilidade de carreira, não tem tinha outro hotel melhor no Brasil... e foi assim, bati no teto e um cliente chamou... primeiro ele achava esquisito, como que uma pessoa que sustentava o tipo de diálogo que eu sustentava, que falava um monte de línguas, que ... que é que você tá fazendo aqui?! (risada) porque era sempre uma pergunta que as .... era visível que eu tinha um certo deslocamento ali, e aí ele me convidou pra abrir um escritório em São Paulo, ele precisava de uma pessoa que ficasse responsável... (MC) esse era quem? Desculpa... eu me perdi, esse que estranhava era? (AP) era um cliente, dos eventos (MC) ah... um cliente dos eventos, tá bom (AP) Porque aí era uma coisa muito curiosa, como eu cuidava de eventos, e evento vai desde de reuniões secretas de presidências de empresa, tipo uma suíte e 5 homens conversando, até... até festas, bar mitzvah...(risada) e... e tinha, eu peguei coisas muito espetaculares... e... eu acompanhei a, eu acompanhei a privatização das teles por dentro, tipo assim, eu cuidava do conforto das pessoas que estavam participando do leilão, que ficaram um ano morando no Brasil, tipo umas coisas muito ...(som com as mãos) receber o imperador do Japão, umas coisas assim, absurdas. E o sheik do Catar, que ninguém viu, mas ele estava lá e a gente estava trabalhando pra ele (risada)... todas essas coisas muito interessantes, como experiências de lidar com o ser humano, bem fantásticas. E... e teve uma cúpula de presidentes, que agora eu não vou me lembrar mais, muito interessante, tipo assim, um monte de presidente

da república enfiado num... e você tendo que fazer, participar... aí você tem que sentar com o pessoa do cerimonial, você tem que... isso te ensina a resolver qualquer problema... (MC) com certeza. (AP) Hotelaria é uma coisa que te ensina isso, você aprende a lidar com qualquer tipo de pessoa, de verdade, porque você pode estar falando com o presidente de um pais e daí a três horas você tá falando com uma prostituta, que você tem que ser muito legal e conseguir que ela sai dali... (MC) entendi (AP) então você fica, fica muito flexível em termos de relacionamento. É.. aí eu fiz isso, quando eu bati nesse teto, ele virou e falou assim, você não quer vim pra São Paulo? A gente precisa de uma pessoa que sabe resolver qualquer coisa, porque é qualquer coisa mesmo, eu era a única pessoa, a única presença física de um escritório virtual, que tinha pessoas do mundo inteiro, então eu era a localização Brasil, São Paulo, de um escritório, de um grande escritório de consultoria. Então eu fazia tudo, eu secretariava... eu secretariava o povo, eu cuidava do financeiro, eu fazia recrutamento internacional, falava com Harvard com Berkeley , eu falava com as grandes universidades do mundo e com os alunos. É... que mais que eu fazia? Fazia research and information, eu fazia pesquisa pra esses caras, com ferramentas que ninguém tinha na época... (MC) superdivertido (AP) superdivertido, e era um escritório de tecnologia de negócios, Business Tecnology. Tipo outra experiência, experiência e assim... no topo do mundo corp... de consultoria. Era na época, acho que continua sendo, elas estão mais paralelas porque como você tem formas de difusão de conhecimento diferentes, meio que trouxe maior equivalência pras consultorias, mas na época era a maior, a mais importante empresa de consultoria do mundo. E o Brasil era um dos mercados promissores então... as cabeças que estavam aqui eram bem interessantes. E aí você trabalha com pessoas de um nível intelectual, de um nível de elaboração, de um nível de conhecimento... (MC) consultoria de negócios? (AP) de negócios, sim, fantástico. E... fiz isso... tem um limite de duração, tem um tempo que você pode, que consegue suportar esse estilo de vida, porque é um estilo de vida que é 24/7, você pode estar trabalhando às 3:00 AM de domingo pra segunda, porque tem um cara que tá em Singapura com um super pepino. Era uma coisa global no tempo em que o mundo não era global entendeu? (MC) entendi (AP) porque a gente tá falando isso de 99, 2000, 2001 e tipo assim... meu Deus, tem que preparar uma apresentação pra um cliente que vai acontecer as amanhã as 8:00 AM de amanhã, tem que preparar 150 slides de Power Point, que ninguém sabia usar na época. Aí tinha o escritório na Índia, que era 24 horas, era turno (risada) você mandava a informação escrita e os caras reproduziam e te mandavam e volta ... então era uma empresa que não fechava nunca. Não tinha essa... ah não, agora acabou o expediente, o expediente não acabava, em algum lugar do mundo tinha alguém trabalhando então o expediente nunca acabava. Como... é uma

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experiência de exaustão, de você trabalhar no limite de suas forças, de muita velocidade, intelectual inclusive, e é mágica cara, tipo assim, foi a grande escola da minha vida. E eu junto informação numa velocidade brutal hoje em dia, e eu vejo quando assim, eu voltei pro doutorado eu pensei, gente faz 20 anos que eu não boto o pé numa universidade, o que será de mim, mas eu vou passar, eu fiz, passei, terminei e tipo assim...(risada) eu fiquei apavorada, eu fiquei assustada no início, no primeiro ano eu fiquei bem assombrada, eu falei assim, isso não vai dar certo esse negócio (risada) que bobagem... mas todo mundo tem essa crise né?! (risada) (AP) e aí acontece uma coisa interessante porque, e... quando, depois disso eu... e aí eu vou salvar o mundo, eu tô sempre querendo salvar o mundo, eu queria salvar o mundo quando eu fui fazer pedagogia, eu queria salvar o mundo quando eu fui trabalhar na Biblioteca Nacional ... eu tô sempre querendo salvar o mundo nos intervalos. E... assim, quando eu fico muito apurada eu falo assim, cara, é sentido de vida né, pra que que você tá aqui... Aí quando eu dou esses piques de trabalhar sem sentido, depois eu quero trabalhar com sentido. Aí eu mudei, e não deu certo, não deu profundamente certo, eu dei um azar tremendo, e... e aí eu fui trabalhar no banco, tipo assim eu mandei um e-mail pra umas seis pessoas e falei assim, gente eu preciso de um emprego nas próximas 24 horas, tipo assim, eu me mudei, eu arrumei um apartamento, eu fiz um contrato de aluguel novo, paguei uma reforma e eu não tenho dinheiro pra comer mês que vem (Risada) (MC) me ajuda aí... (AP) me ajuda aí.... e aí eu peguei, eu fui trabalhar no banco ABN Amro real, eu fiquei lá 7 anos, que foram várias pequenas vidas também porque assim, eu não fiquei mais do que 2 anos em lugar nenhum.... (MC) interessante né? (AP) eu não fiquei mais do que 2 anos em lugar nenhum, então eu fui secretária executiva de um cara genial, um cara que tava fazendo, que tava fazendo bolsa sanduiche de doutorado na NASA quando os caras tavam inventando a internet... sabe assim, aí você fica, aí você fala assim... caramba, dá um... ele era chamado pra falar pros outros, ele era de tecnologia, pra presidentes de banco pra falar sobre como seria banco daqui a 20 anos, daqui a 30 anos, assim... ele ficava inventando (MC) um visionário (AP) um visionário, foi fascinante isso. E eu fazia muita pesquisa pra ele, eu sempre fiz pesquisa, qualquer emprego que eu tivesse na vida, se na hotelaria, precisamos de uma pesquisa, chama a Ana, tipo, precisamos organizar um conhecimento, trabalhei muito com gestão de conhecimento. E... criar portfólios de produtos e serviços, chama a Ana, tipo sempre foi assim... E... ou seja, tem um fio condutor em tudo, que é gestão de conhecimentos de alguma forma e serviço e atendimento, né. Daí eu fiquei, eu fiz várias coisas, eu fui secretária executiva, trabalhei com conteúdos de canais na internet, trabalhei com desenho de processos, e trabalhei com sustentabilidade. Eu dei muita sorte na minha carreira, eu dei muita sorte na minha carreira, eu estava no ABN Amro Real quando o banco foi considerado o banco mais sustentável do mundo, e eu trabalhava na área de .... (MC) (AP) ... de sustentabilidade

(AP) assim, eu tava inventando o que ia ser sustentabilidade entendeu? nas empresas. Sustentabilidade é um conceito mais antigo, mas a ideia que você tinha que incorporar isso no cotidiano das grades empresas, organizações não. E aí o que é que acontece, quando eu falo assim, agora chega, tipo assim, já fiz coisas... (MC) risada (AP) ... já fiz coisas incríveis ... (MC) foi muito legal gente... (AP) já morei fora, eu já fiz tudo que eu queria na vida, muitas coisas divertidas, agora, aí eu falei assim, cara o que é que eu quero, tipo assim, que é que eu quero fazer da minha vida? Porque... (MC) aí você tinha quantos anos? nessa continha do que é que eu quero? (AP) nessa continha do que é que eu quero...faz uns 10 anos.... mais, faz uns 11, 12 anos. Aí falei assim, eu quero isso aqui, aí farei uma coisa radical que vem dessa experiência corporativa que é tipo assim, eu não tenho a experiência da pessoa que é artista, eu não... eu tenho um combo de experiências muito diversas. E aí eu tento até hoje trazer isso pro meu cotidiano da oficina. E aí eu fiz uma coisa muito legal, eu falei assim, eu nunca tinha tirado 30 dias de férias, porque não existe isso no mundo real, eu tirei 30 dias de férias e falei assim, eu vou ficar 30 dias sentada na bancada. Porque uma coisa é você trabalhar de noite, sábado e domingo, outra coisa é você acordar de manhã, trabalhar o dia inteiro... e ficar o dia inteiro. Tipo assim, vamos ver se eu consigo, vamos ver se esse negócio funciona, se dá certo, se eu aguento também. Tá, eu fiz em 30 dias, tipo eu fiz 100 peças... (MC) você tá brincando?! (AP) eu cheguei... (MC) isso dá mais de 3 peças por dia... (AP) e eu cheguei faltando... tipo 15 dias pro dia das mães, tipo assim, acabaram minhas férias no mês de abril de 2005, 40 anos, aí eu estava fazendo o teste, vamos ver se isso é um sonho, se é uma coisa que nunca vai acontecer, e eu tô gastando dinheiro pra caramba montando uma oficina, ou ... se é o que eu quero fazer. Aí eu fiz isso, e nesses 15 dias que antecederam o dia das mães, que acho que foi em meados do mês desse ano, eu vendi essas peças todas e eu ganhei a mesma coisa que eu ganhava no banco. Eu falei ... bicho... (palma)... um forte abraço pra vocês (risada). Não, eu fiquei mais um tempo, porque eu tinha que, aí tava muito claro o que é que eu ia fazer, e eu tinha que acabar de montar essa oficina. (MC) mas aí você vendeu pra onde? Você vendeu pra amigos? (AP) eu vendo por ... deixava uma malinha no escritório assim, as pessoas já sabiam, a malinha tava ali tem joia... as pessoas iam lá e se serviam. (MC) tá. (AP) é... amigos, clientes da minha mãe, tipo assim... toda a rede de relações. E... no mundo do empreendedorismo isso não é estar no mercado, você só está no mercado quando você vende pra fora do seu ciclo de relações, mas, tava suficiente. Até porque tem uma coisa muito interessante, eu sou baiana criada no Rio de Janeiro. São Paulo, você tem um custo pra trabalhar... enorme. Primeiro, você tem que comer no mesmo lugar que as

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pessoas tão comendo, agora a gente tem de 10 anos pra cá a marmita, a modernidade... (MC) mas isso aí é novo. (AP) isso aí é novo. Você tinha que comer no mesmo lugar que as outras pessoas comiam. (MC) vestir ... (AP) você tem que se vestir de um jeito que não tem qualquer relação com sua renda. (MC) isso... nada, nada. (AP) nada a ver. É totalmente de ficção científica. (MC) e provavelmente não é o seu jeito porque... (AP) nem o seu gosto pessoal (Risada) (MC) porque no final de semana você ... eu tô perguntando essas coisas porque eu fui consultora né, você tem aqueles dois guarda-roupas... (AP) é, você falou, sua origem é administração... isso é um absurdo (MC) você tem aqueles dois guarda-roupas, literalmente, você tem que manter devidamente. (AP) ou você tem uma vida em empresa de consultoria que você não tenha outra vida, então você só tem ... (MC) isso, só trabalho (risada) (AP) e aí ficou muito claro que eu tinha que dar um jeito nessa história entendeu, e eu tinha tipo acabado de montar isso aqui. Então assim, e eu sabia também que eu nem precisava daquele dinheiro todo porque a vida aqui do lado de fora ela é bem mais barata. (MC) sim, ela e mesmo. A roupinha que você gosta, a... (AP) eu saía 12:00 PM do banco, eu tinha que vir de taxi, eu não tinha opção, era tipo assim, nossos custos eram todos muito altos, pra você manter, era uma vida que, é uma vida que não é sustentável, porque você gasta pra trabalhar. (MC) isso foi seu motivador? (AP) não, nunca foi dinheiro. (MC) no... eu digo assim, motivador da saída? (AP) meu motivador foi... eu não eu nasci pra estar no mundo coorporativo e eu me enfiei no mundo coorporativo por circunstâncias. Eu não tenho vocação pra, eu não tenho vocação pra cadeia de ordem.... de.... (MC) (AP) hierarquia (AP) eu não tenho vocação pra fazer a mesma coisa todos os dias, eu não tenho vocação, o ...o que me levava de um lugar pro outro, e me manteve tantos anos no mundo coorporativo foi curiosidade intelectual. Eu tava olhando, mas tava olhando meio de fora... tipo assim, eu, nos últimos 2,3 anos do banco era uma antropóloga fazendo uma pesquisa sobre misogenia no mercado financeiro sabe (risada) tipo vendo coisas medonhas. E...Então era muito mais curiosidade intelectual que me movia nesses lugares todos por onde eu passei do que qualquer outra coisa... inclusive remuneração. Então hoje... (MC) aí chegou uma hora que deu. (AP) aí deu, quando o circo acabou eu tive um stress profundo, burnout, não foi assim abraço e se despede das pessoas, não foi lindo assim. Eu tive um burnout, eu saí de licença 10 dias porque eu tava... (MC) exaurida... (AP) exaurida no osso, e... (MC) você já era casada? (AP) nós não somos casados (MC) mas você já tinha um... (AP) sim , a gente estava juntos há 1 ano.

(AP) É... esse burnout me fez reavaliar profundamente, tipo assim... (MC) não tá dando... (AP) 42 anos pra morrer do coração, porque, eu cheguei, eu senti que eu estava tendo um ataque cardíaco, comecei a gaguejar, e eu dei uma sorte incrível porque eu tenho um amigo que é psiquiatra, e era muito perto. Eu liguei pra ele e falei assim, você tá no consultório, posso ir praí? Eu tô passando mal. Aí ele sentou, ele é psiquiatra e psicanalista, e falou assim fia... me conhece, e falou você não tá tendo um infarto, não tá tendo um colapso, não tá tendo um AVC, você não está tendo nada, você está de saco cheio, você está fisicamente esgotada, e o cid lá que ele botou no atestado foi Burnout mesmo, que agora que tá na moda, eles nem sabiam o que era Burnout, nem eu sabia o que era Burnout, e de saco cheio. Falou assim, resolvo isso, mas para pra pensar. Então vou te dar um atestado, você vai pra casa 10 dias, e aí meu pai tinha tido um problema muito grave, tinha feito uma cirurgia de coração, de vascular, então eu já tinha ficado meio assim com o problema de saúde dele eu já tinha ficado tipo assim, o que é que eu tô fazendo? Porque é que eu não tô com ele, porque é que eu não tô com a minha mãe, com meu namorado? (MC) com ninguém (AP) com ninguém... então eu falei assim... daí eu fiquei 10 dias em casa, e eu já tava assim ligando pra cara pra refazer meu site (risada), esses 10 dias não foi assim, aí fiquei de cama tomando vitaminas, não. Já foi assim... decidi! (risada) Comecei a agitar tudo, já arrumar a casa, sabe tipo assim, redistribuir coisas, e foi assim, muito, muito radical, tipo primeiro final de semana eu chamei todas as minhas amigas e eu era ... chamei todas as minhas amigas e falei assim, meu armário eu falei assim, sirvam-se, fiquem com tudo. Eu fiquei com uma bolsa, um sapato., eu fiquei com um Tailleur, que era tipo assim, pra um evento, porque eu fiquei assim, vai que acontece... (risada) de eu ir pedir dinheiro pro gerente do banco (risada). (MC) eu preciso te contar que eu fiz exatamente isso. Toquei tudo numa mala... (AP) eu to achando interessante como as pessoas revelam que roupa é a solução. Tinha uma cliente aqui agora, que ela veio falar que ia fazer um anel comemorativo da chutada de balde dela... gente eu botei essa mulher na tese... ela tipo rompeu com tudo, era jornalista há muitos anos de mundo coorporativo, rompeu com tudo, disse que pegou tudo que era muito, ela fez melhor do que eu, ela pegou tudo que era muito caro, levou num brechó de luxo, e todo o resto ela distribuiu pras colegas, eu fui na caridade, eu chamei o povo mais durão, sovino, que não tem grana pra essa coisas e falei, sirvam-se. E o resto que não levaram eu dei pra minha faxineira, distribui pro povo que tivesse procurando emprego... (AP) isso eu acho legal. Quis criar aqui, entrei em contato com meu personal stylist, quis criar nessa época no Brasil um negócio que tem nos EUA que é uma ONG que veste as pessoas que tão procurando emprego em uma situação muito limite, isso é tão bonito... (MC) ah, que legal. (AP) mas ninguém quis, só eu. Resumindo, voltando pra joalheria, pro artesanato, que a gente já ... (MC) risada

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(AP) ... foi pra um tema que isso dá um doutorado (risada). Não, e aí o que é que aconteceu, pronto cara, tipo Adiós muchachos! Tomei um baque, a gente dá um susto, eu tirei umas férias, assim, eu tirei férias de verdade, que fazia muitos anos sabe, eu fiquei na Bahia uns 15 dias com mãe, com irmão, tudo... Voltei e comecei a trabalhar. Mas aí, eu não tô só fazendo, quer dizer, eu tenho uma estrutura de como, quer dizer eu faço gestão do meu inventário, o pessoal de manufatura faz, mas sabe assim, eu trago os critérios coorporativos pra gerir o cotidiano entendeu? (MC) sim, porque não podia ser diferente. (AP) e também faço umas maluquices também sabe, compro umas coisas, faço mais relaxado porque eu acho que também tenho essa liberdade, eu não posso impor coisas pra mim que eu acho que ... Mas aí sim comecei, faz 10 anos dia 7 de outubro que eu tô aqui... (MC) e com base naqueles 2 cursos que você fez... (AP) milhares de cursos, não milhares de cursos... eu fiz com o Marcio Mattar em oitenta e... depois fiz Caio Mourão, isso é muito importante, o grande pioneiro da joalheria artística brasileira, o nome, a unanimidade, uma pessoa fabulosa. E... e ... foi criador da banca de Ipanema, foi criador da feira Hippie de Ipanema, são as grandes coisas que juntavam gente pra fazer as coisas legais aconteceram eram... ele era o cara, muito interessante. E... e ele, e aqui em São Paulo não, aqui em São Paulo eu fui pra um ateliê escola, lá em 2002 eu fui pra um ateliê escola fazer aula todo sábado de manhã, as vezes sábado de manhã e de tarde, ficava na bancada quase, sempre que eu não chegava em casa 12:00 PM, porque joalheria ao contrário de alguns poucos artesanatos, todo material que eu trabalho é perigoso... (MC) todo material... (AP) então não tem nada sem perigo. Eu tô serrando, eu tô soldando, eu tô... (MC) é o lugar do acidente de trabalho? Meu filho tem cicatriz... (AP) então não dá pra trabalhar exausto, tipo você não consegue chegar 12:00 PM e vou fazer uma coisinha, vou ver televisão, não rola. E... e então desde 2002 eu tô direto na bancada, nessa bancada aí... (MC) essa sua fiel companheira... (AP) essa minha fiel companheira, linda de morrer... que é uma adaptação, é uma mesa xerife adaptada, mas... (MC) o que é uma mesa xerife? (AP) é essa aí que desce a tampa, que é do sec. XX (MC) ah... assim (AP) que é do início do sec. XX (MC) e porque xerife? (AP) ah... por conta daqueles... é uma papeleira, é uma escrivaninha. Botei estieira que é aquele apoio central (MC) essa aqui que é o mesmo daquele ali... aquilo ali é um estieira? (AP) aquilo ali é uma estieira. E aí fui criando.... ela é grande (MC) então vamos ali de baixo ... ela é grande pra um... (AP) ela não é, porque assim normalmente as pessoas têm trabalho em superfície... aqui não, tenho gaveta, tenho nicho, tenho um monte de coisas, mas eu me acostumei a trabalhar nela. Por exemplo, um ourives senta aí e não gosta, acha muito ruim, quer dizer... (MC) o que acha dela?

(AP) acha apertada, acha estreita. Mas eu tenho gestos que a gaveta precisa estar fechada. (MC) ... você não vai querer outra (AP) eu fui sentar nela pra trabalhar outro dia e falei assim, isso não vai dar certo (MC) essa é nova? (AP) essa é novinha, semana passada, porque... dois motivos, três motivos. Eu tô, eu tenho umas demandas tipo assim, aí a gente pode ajudar a fazer as alianças? Eu falei tá, porque existe o dia dos noivos que tá começando a ter sempre nos ateliês... (MC) ah tá, eu já ouvi falar nisso... (AP) que é o próprio casal fazer suas alianças, mas é uma coisa controlada numa oficina. E...aqui não tinha como porque ficava um em pé e o outro olhando, não faz o menor sentido. Aconteceu de um amigo meu me pedir isso, e eu falei, tudo bem, eu faço junto com você, então ele sentou... é ótimo porque a pessoa sai assim, agora eu entendi porque é caro, nunca mais vou reclamar de preço, ainda mais se a pessoa não tem habilidades e não tá acostumado a fazer força... tem coisas pesadas, tem coisas de força física, o trabalho tem coisa de muita delicadeza, de manusear o instrumento... aí eu fiz com ele, e ele saiu fazendo propaganda pros amigos... que legal, que experiência incríiiiveeel. Começou a aparecer gente pedindo pros dois fazerem as alianças comigo, eu falei, gente eu só tenho uma bancada, aí pensei gente precisa de outra bancada porque tem coisas que já é, bom eu faço porque já tô acostumada mas é, numa bancada de tamanho correto ela é melhor, aí eu falei assim, tudo bem, então vamos embora. Teve isso, algumas pessoas me pedem, aí eu queria fazer uma aula com você, queria experimentar. Eu não vou montar uma estrutura de dar aula o dia inteiro, porque não. Mas, se uma pessoa quiser marcar comigo um dia e passar 4 horas aqui, uma tarde, eu te ensino fazer, vai fazer uma aliança, vai fazer um anelzinho e vai ter a experiência de ver como que é esse trabalho. E eu me proponho inclusive, dependendo da pessoa curtir, gostar, se interessar, aí eu encaminho pra escolas, eu não pretendo ser uma escola, não tenho a menor... e eu não sou uma eximia ourives, eu sou uma ourives bem mediana, bem mediana... (MC) ah... ourives é outra coisa? (AP) olha, eu decidi nomear da seguinte forma na minha tese porque eu tive que fazer este esforço, é... e aí tem a ver com o idioma e com aquilo que a gente de fato usa né, no Brasil. O ourives é a figura que trabalha com que faz joias. Nos outros idiomas ourives é o cara que trabalha com ouro, que é o Goldsmith, joaillerie, joaillier ... tem umas coisas complicadas aí, porque em tese o ouvires não é só o ouro, ele pode fazer prata, ele pode fazer qualquer coisa, mas ele tá fazendo joias. Em português de Portugal tem o ourives pratives, mas pratives não é que trabalha com prata, ele trabalha com prataria, ele faz baixelas, talheres, outra história. (MC) uma outra história (AP) uma outra história, então você tem o cara que faz o adorno e o cara que faz utilitários... (MC) entendi (AP) só que aí você traz de tradição, então fica ourives e pratives, não existe a palavra pratives no Brasil, ninguém sabe ... (MC) não, não existe

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(AP) eu achava um máximo, eu falava, e eu sou muito metida, eu ficava falando e pesquisando coisas, e você não pode inventar, você tá vivendo em sociedade (MC) não estão te entendendo... (AP) ninguém vai entender o que você tá falando... Aí, então você tem essa figura do ourives. A gente tem contemporaneamente, e é uma discussão em inglês também, eu tenho um outro grupo que eu participo só, tem uns 13 mil joalheiros norte americanos e eu tô lá direto de gaiata, tem uma meia dúzia de gaiatos internacionais... E, e eles tem essa discussão de nomenclatura, a nomenclatura da área é caótica. Depois que eu entendi que ela é no mundo inteiro eu relaxei porque eu queria organizar o negócio (MC) entendi (AP) é... cheguei a pensar, antes de fazer um projeto de doutorado, se eu não devia criar um grande glossário, serviço de maluco, dez anos de pesquisa, não. E, então quando eu entendi que era assim no mundo inteiro, tipo assim, eu não sei como é na Ásia, porque eu tenho muito pouco informação sobre joalheria asiática, mas assim, o resto é bagunçado mesmo, cada um inventa um nome novo, é uma confusão. E aí o que é que acontece, você tem a figura do joalheiro, e esse joalheiro ele acaba representando uma coisa muito comum no mercado mundial, que é a figura que é o ourives, mas que vende (MC) ah tá... (AP) mas que atende o consumidor final (MC) entendi (AP) então você tem muito nos EUA como você tem aqui no Brasil aquela loja que tem uma oficina no fundo, que faz conserto, que troca pilha de relógio, que faz todo serviço de joalheria e relojoaria. Então você tem a palavra joalheiro que dá conta, que acaba dando conta de tudo isso. Então é muito claro, quando o cara diz que ele é ourives ele tá querendo dizer assim: Eu sei muito mais técnica do que você, porque eu só faço isso, eu aprendi com o meu avó (risada) ... a palavra ourives tem muito a ver ainda com essa relação de mestre e aprendiz, de trabalho de bancada. (MC) então quando você falou que não era uma excelente ourives... (AP) é porque eu sou uma joalheira incrível (risada) (MC) ah tá... (AP) porque eu atendo cliente na etapa final, eu faço peça sob encomenda, tenho produção própria... (MC) então tá bom (AP) eu não faço só joalheria de bancada, que é inclusive o título que eu tenho...que eu dou pra mim mesma que é joalheira de bancada, porque aí fica claro que eu não sou só comerciante, não sou ourives, eu sou, eu tô no meio de campo. E faço montagem, quer dizer, tem outras categorias dentro da joalheria. Tem a pessoa que só monta, pega partes prontas e cria coisas, com artes industrializadas cria coisas, é quase como a bijuteria, só que com metais nobres (MC) parte-se por exemplo de juntar o encaixezinho (AP) de juntar a parte de cima com a parte de baixo, colocar umas pedras... (MC) e tem gente que só faz isso? (AP) tem gente que só faz isso. Você pode ser um exímio montador, tem pessoas que fazem trabalhos, porque aí

você tem duas coisas, a habilidade da parte técnica, de montar bem montado, e tem ... (MC) você me pegou agora, nunca imaginei que existisse isso (AP) tem também a coisa da combinação de cores, estética, e tem o senso estético, a produz... a criação artística. Ele pega as coisas prontas, (MC) ele é o montador (AP) o estado de São Paulo diz que isso não é joalheiro, porque acabaram de escrever um documento (MC) nossa mãe de Deus, (AP) tem uma superintendência ... você já conversou com o pessoal da Sutaco (MC) Sutaco... já li muita coisa do pessoal da Sutaco (AP) tem que sentar com o pessoal da Sutaco, você vai se divertir horrores... (MC) por que? (AP) porque Sutaco, eles criaram novas regras, eles eram uma superintendência do trabalho artesanal do governo do Estado de São Paulo. É a instituição que, com a qual você pode emitir notas fiscais sem ser uma empresa, então você é artesão, tem a carteira de trabalho de artesão, vai lá e emite notas fiscais. Ou seja, eles ordenaram, antes da MEI, antes disso tudo eles ordenaram o mercado de...São Paulo. Na Bahia tinha uma coisa parecida, no Rio nunca chegou a ter nada muito funcional, mas na Bahia era bem legal, que nem aqui em São Paulo. E... e aí que é que acontece, eles deixaram, iam acabar com a Sutaco, essas coisas de política, iam acabar com a Sutaco, ou seja, deixar um monte de gente órfão. Inventaram de colocar em baixo do desenvolvimento social, na secretaria de desenvolvimento social, umas coisas malucas... que botaram em baixo, só que aí resolveram criar regras para, pro universo, justo esse universo caótico que inclui a senhorinha que faz crochê na ponta do pano de prato. (MC) que faz crochê, isso...até... (AP) e o ourives. E o cara que constrói móveis e, tipo assim vai das coisas micro, macro, caras, baratas, é uma loucura, tem a moça que faz bonequinha de palha, é uma loucura, e chega a ser divertido. E eles decidiram inventar uma regra pra o que que eles consideravam que era artesanal e o que é que não era, porque é verdade, eles estavam tendo problema de tá emitindo nota pra gente que comprava na 25 pra vender, e não dá né... (MC) aí é muito complicado (AP) porque aí você tem uma produção chinesa, que imita o que é artesanal. Então eles estavam com muito problema com isso, foi questionado quando eles foram parar debaixo dessa secretaria, e eles inventaram por exemplo, eu cheguei, eu fui agora renovar, terminei o doutorado fui correndo renovar minha carteira, gente, eu cheguei com, o que é que você faz, eu estava morrendo de medo porque mudou tudo, regra, aquela... você vai toda apavorada, você enche uma mão, uma mala de coisa e leva, aí o pessoal começou, começa a pegar na mesa e faz assim, isso aqui é joia, isso aqui não é joia, isso aqui... (MC) das suas coisas que você tinha feito? (AP) risada. Aí eu falei assim, cara... eu fiz... tive o cuidado de levar, nem por engano, nada que fosse de montagem... né, agora curiosamente de montagem poderia ter passado, quer dizer, na cabeça deles se você monta, por exemplo, eu levei uma peça minha, que inclusive é minha,

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minha, uma peça muito legal que é um colar, aí ela falou assim, não , isto aqui não é joia, isto aqui é joia... (MC) porque? (AP) eu falei desculpa, mas montar colar de pérola... bem montados, é arte (risada) é um negócio assim, uma artesania assim, eu conheço poucas pessoas capazes de fazer isso bem feito... (MC) montar um colar de pérolas? (AP) é, porque montar todo mundo monta, montar um que vai durar 10 anos? (MC) ah, montar um que vai durar 10 anos... ah tá (AP) é outra história. E aí eu falei assim, eu fico pensando, assim, eu tô aqui usando um fio de seda, 49 ... eu disse certo, isso não é joia (risada) então você devia dar uma olhada na documentação, tem um PDF no site do Sutaco determinando o que é que é artesanato (MC) ah, vou entrar lá (AP) por área inclusive, eu só vi o resuminho de joias que me mostraram, eu não vi outro documento, mas deve ser muito interessante porque tá uns critérios muito loucos, eu falei assim quem conversou com um joalheiro... alguém conversou com um joalheiro pra escrever isso? Que foi a minha primeira pergunta... tipo base em que vocês estabeleceram isso? (MC) e ela te explicou... mas, alguém te explicou porque que a sua peça não era, você conseguiu entender porque isso... (AP) a explicação era essa, porque parte da joia, porque era um centro de colar e um colar, e a moça falou assim, isto e joia, isto não é joia... ele só tá entendendo o que é joalheria quando você manipula metal. (MC) ah, agora entendi, era isso que eu queria entender, entendi, entendi, tá bom (AP) então você pode... bom o pessoal da contemporânea então se mate porque trabalha com materiais alternativos, isso não é nem nada (MC) pois é, pois é. (AP) não é nem nada né? (MC) é coisa nenhuma (AP) agora o mais curioso é que tem tipo assim, um colar de pérolas eles não consideram joia? Mas assim... tipo encordoar um colar de pérolas é parte dos saberes da joalheria... tá errado esse negócio. Mas daí eu perguntei, eu fui muito... as pessoas estavam super gente boa, não tinha ninguém no dia, então como falo muito, e aí eu falei assim gente, vocês entrevistaram algum joalheiro, se aconselharam com algum joalheiro, porque assim... a gente já tem problema demais na área, pra na hora que deliberam sobre o que a gente faz ninguém consultar a gente fica pior ainda. Ainda tem problemas com o que é joia, o que é bijuteria, a gente tem a identidade absurda chamada semijoia... (MC) então o que é que é uma... semijoia é quando você banhou? (AP) então, mas isso é ABNT, a ABNT diz que isso chama folheado, que aliás era, quando eu era nova isso chamava folheado, quando era no tempo da minha vó chamada bijuteria em joia de fantasia, que eu acho uma expressão linda, porque é de fantasia, tipo uma fantasia, que é o bijou fantasie . Tem em todas as línguas, tinha em português as joias fantasia, que eram lindas mesmo, joias de fantasia, e isso deixou de existir (MC) isso era um folheado?

(AP) isso a gente perdeu. Era, pode ou não ser folheada, mas assim, perdeu identidade, era um metal base, folheado a ouro, a cobre, ou qualquer coisa, chama folheado. Aí inventaram no Brasil nos anos 80 a semijoia, que... (MC) mas a semijoia... (AP) isso ganhou esse nome quando surge o fenômeno das sacoleiras no Brasil, e as indústrias de joia começam a fazer essa coisa folheada, e aí inventam uma entidade abstrata chamada semijoia, que tem vezes que você olha e é cristal com prata banhada, ou é pedra, uma pedra, uma gema natural com ... aí tipo assim, é uma zona (MC) é qualquer coisa (AP) é qualquer coisa, mas aí quando você tem um bijou vagabunda mas ela é bonitinha você chama de semijoia, aí quando você apresenta uma peça incrível de prata a pessoa fala, nossa, parece joia (Risada). E... a gente tem um problema no mercado que tem a ver com formação, tudo, eu escrevi um pouquinho sobre isso na tese, e eu discuto muito isso no grupo... e, a gente não tem formação, a gente não tem uma história de legislação do setor.... (MC) o que é que você chamaria de joia? (AP) eu uso uma expressão de uma teórica holandesa, chamada Marjan Unger, que joia é todo adorno, é...toda peça que você coloca no corpo com a ideia de simbolizar ou enfeitar. Ou ela significa ou ela enfeita, e tá sob o corpo. Então aí você mata a questão dos materiais... acabaram as técnicas, acabou tudo. Porque você pode ter uma conchinha que você pegou na praia e enfiou num couro e que é a peça mais importante do mundo, que tem o maior valor afetivo pra você, ou você pode ter uma tiara de rainha. (Breve silêncio) E aí o assunto tá encerrado. (MC) você abriu... acabou a produção em série também, ou não? Né (AP) também... (MC) acabou tudo né? (AP) acabaram todas as questões ... por que é que ela construiu isso, ela fez uma tese de doutorado no ano de 200... ela defendeu a tese de doutorado dela em 2010, e ela tem duas coisas, ela é uma grande historiadora da arte e uma, talvez uma das pessoas que mais conheça joalheria no mundo. História da joalheria. E ela estudou especificamente história da joalheria na Holanda, lá tem suas peculiaridades, e tem algumas semelhanças com o Brasil bem interessantes, e ela resolveu... ela achou que tinha esse imbróglio mesmo... muita coisa é joia, se muita coisa é joia então vamos descolar e falar uma coisa, uma definição abrangente. Porque no dicionário e na vida cotidiana em São Paulo, joia é o adorno de metal nobre, acompanhado de gemas naturais ou não, realizadas com técnicas de ourivesaria. Isso é joia. (MC) isso é a definição nossa (AP) isso é joia. Só que a gente tá em 2018, isso não dá conta..., não dá conta. Por que você empobrece, ah ok... o cara decidiu usar... sei lá ... nióbio... tem que olhar na tabela... tem um monte de metal nobre, sei lá...vamo inventar, que nióbio eu fiquei na dúvida agora (risada), vamo, sei lá, deixa eu pensar em alguma coisa bem longe mesmo, plástico pet. Ele sentou numa bancada, ele usou todas a ferramentas, ele...todos as tipologias, formatos, obedeceu às regras de... relação com o corpo, de tamanho, tudo, e fez um negócio de pendurar no

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pescoço. Que é que é isso? Uma joia uma bijou pequena? Uma joia... a não ser que a gente recue tanto e chame de adorno, mas aí adorno... aí ninguém nunca mais vai saber o que é mesmo. Acessórios, sapato, bolsa, incluem outras coisas, tipo assim, a gente não avança na discussão se ficar querendo definir de uma maneira muito estreita. (MC) mas você mesmo só trabalha com a prata ou com o ouro? Ou você trabalha com outros materiais? (AP) Eu faço... eu já fiz coisas com titanium, tenho vontade de fazer coisas com... já fiz mais com outros materiais, recuei porque eu quero ser melhor ourives por exemplo, então eu tô querendo fazer coisas mais estruturadas, mas enfim, eu gosto de bancada, eu gosto de ser joalheira, eu não me chamo ourives porque eu acho que eu não tenho as competências técnicas para isso, mas tô quase lá (risada). Estou tipo... dedicada a resolver isso, ser melhor ourives. (MC) mas sempre metal? (AP) sempre metal, meu fascínio é metal. (MC) porque por exemplo você não vai ser um Sobral da vida? (AP) é, você sempre vai me ver ... Adoro o Sobral, já tive dúzias de peças dele. Passei no aeroporto comprei, é uma desgraça isso... Ele é muito bom, principalmente se você parar pra pensar que ele é filho de um cara que tinha uma indústria de coisas resinadas, e ele pegou as sobras do pai e falou, vou fazer bijuteria. E hoje em dia ele tem uma produção que é uma produção feita para, ele não tá ainda usando sobras, pelo contrário, ele praticamente encampou, a empresa é o que ele produz. A história é bem interessante, e era rejeito de indústria... (MC) rejeito de indústria, não sabia não. Sabia que era, que ele não repete né... (AP) não, isso é fantástico... ele repete o desenho com outro material ou o material com... quer dizer ele não se repete, são coisas de edições limitadas. (MC) mas o seu é metal (AP) é metal e pedra, metal e gema, eu gosto dessas duas coisas. (MC) vamos passar, tem uma parte que você já me falou, vamos tentar amarrar... (AP) vamos tentar amarrar os penduricalhos (MC) espaço, utilização dos materiais, limpeza... (AP) eu já falei um pouco... (MC) observação de ferramentas, guarda, conservação, equipamentos de seg... já foi isso aqui (AP) algumas coisas já foram (MC) recursos e critérios de escolha de matéria prima, uso de tecnologias... (AP) minha matéria prima... voltando então, o atelier é isto aqui... podia ser só uma bancada, agora são duas porque eu estou expandindo territorialmente (risada), e... eu tenho tudo que eu preciso aqui menos duas coisas, e aí é uma questão de segurança e de relacionamento com vizinhos (risada). Eu não tenho o laminador, uma máquina desse tamanho, elétrica, que faz um barulho ...desgraçado (MC) desgraçado... que eu sei qual é... (AP) de cansar, tipo pá pá pá pá pá... horrível... custa 10 mil reais (MC) laminador

(AP) laminador eu tenho o manual dele, passei óleo, tá ali vestidinho... eu tenho o manual, tem uma alavanca, ele tem um braço, eu tenho que girar isto... (MC) mas a força... (AP) a força humana. Ele tem uma redução, essa parte larga que você tá vendo aqui é um sistema de roldanas, você tem ele sem isso, aí é uma força brutal, ou você tem um sistema de roldanas que diminui vai... uns 30, 40% da força que você tem que fazer. (MC) ah, tá... (AP) E... isso dá conta do recado na escala da bancada, eu não posso por exemplo, preparar material para seis meses, trabalhar ali que eu morro. (MC) entendi, mas você recorre a algum laminador ou você... (AP) eu vou, eu vou pra um atelier escola de alguém que eu trabalho ou amigo, vou ocasionalmente e... por exemplo, semana passada eu não fui porque eu tava produzindo muito pouco, o que eu tinha tava funcionando, mas tipo assim, eu tenho que ir provavelmente semana que vem, eu vou ter que ir com muito material, passar o dia em algum lugar só preparando, chapas e lingotes. (MC) é que eu não entendi tão bem o que que esse pedaço do trabalho é... (AP) Isso é a preparação do metal. (MC) o ligar? (AP) são duas coisas que eu não tenho... e o ligar. Os maçaricos de .... (MC) o segundo é o maçarico? (AP) a outra coisa que eu não tenho é o maçarico... (MC) por uma questão de segurança (MC) faz bastante s... é razoável. (risada) (AP) mais ou menos... (MC) esse aqui é um mini... (AP) é, mas isso aqui em tese eu também não posso ter não. (MC) não? Não pode não? (AP) a legislação não permite. Mas como primeiro eu tava numa casa com carpete... (MC) risada (AP) minha mãe... outro dia eu agradeci minha mãe, no dia em que terminei de entregar a tese, liguei pra minha mãe e agradeci, porque assim, cara, minha mãe bancou, no dia que eu falei assim quero fazer isto... (MC) você foi pra sua mãe... (AP) a gente foi pro centro da cidade, botamos dentro da mala do carro uns equipamentos, uma mesa, não tinha mesa bonitinha... (MC) a sua primeira ou a segunda? Porque você teve duas fases... (AP) a minha primeira bancada, eu tenho duas vidas, na minha primeira vida, minha primeira bancada e... (MC) foi uma fofa a sua mãe... (AP) cara, minha mãe bancou eu ter um maçarico num quarto com carpete, e cortina de moça (risada) ... eu falei assim... quando você olha pra trás e pensa você fala assim.... (MC) ela é uma fofa, sua mãe (AP) meu Deus! Ainda bem que eu não botei fogo no prédio. Isso aqui, isso é muito pequenininho, normalmente seria uns negoçiões enormes, esse é um pequenininho que eu consigo fazer aqui. E... isso é uma

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chapa, embora pequena, isso é um, a gente chama de ... é quando a gente joga num, você já viu, já deve ter visto na escola como é que faz né, a gente o cadinho a gente põe isso numa temperatura, clicou e faz o metal, a construção da liga, você junta os metais, de maior ou melhor é... teor ou qualidade, conforme o gosto do freguês, faz isso, e no laminador você começa a dar forma. Então isso aqui tá no formato pra virar uma fita, isso tá no formato pra virar um fio, isso aqui maior ele vira uma chapa, passando no laminador. Isso é a preparação do metal, então há uma preparação no calor e uma preparação a frio, que é a laminação. Mas mesmo a laminação por exemplo, sistematicamente você tem que trazer de volta o calor... (MC) pois é... (AP) ...porque você tem que reorganizar essas moléculas, pra elas continuarem passando... isso é metalurgia. Aí são os princípios de metalurgia pra cada metal. Você tem que... (MC) isso seria equivalente ao martelo? (AP) é, isso ali é como se fosse o martelo (MC) isso é o martelo do ferreiro? (AP) aquilo ali é for... porque se você parar pra pensar o laminador é uma espécie de martelo, porque ele vai pressionando o metal, só que em vez dele pressionar numa pancada, ela pressiona de uma maneira diferente, ou seja, ele pressiona por pressão, mas é a mesma coisa (MC) entendi (AP) então aí você tem as duas combinações do momento calor, e do momento frio. Mas você tem que trazer pro calor sempre, o metal sempre precisa ser reaquecido, que a gente chama recozer, pra você estar com ele maleável pra trabalhar. Porque toda vez que você bate você tá enrijecendo, você tá é... é... reestruturando o metal em termos moleculares. Inclusive eu dei uma bronca aqui outro dia (risada) porque a pessoa veio e deu uma martelada e foi para o laminador... eu falei assim, tá claro que se você bateu você enrijeceu? (risada) eu tava explicando, foi um colega, mas tipo assim, muito pouco experiente, esse cara eu quase matei, eu falei assim, não vou fazer isso com meu laminador. E aí vem outra questão do cuidado com as ferramentas. Isso é clássico de todo artesão né, só que a gente tem umas ferramentas muito, muito caras. Elas são proporcionais ao produto que a gente... (risada) (MC) é verdade? (AP) É. As ferramentas de joalheria são muito... (MC) você me fala o que é caro aqui por exemplo? (AP) nossa, você tá numa semana ótima porque eu acabei de trazer coisa nova. Este motor custa R$ 2.500,00. (MC) esse aqui? R$ 2.500,00. (AP) a caneta dele, tipo assim, faltou comprar uma parte seriam mais R$ 2.000,00. (MC) você usa ele pra que? (AP) eu uso ele pra tudo de e... perfuração, ou seja brocas, frases, um motor de dentista, potente pra caramba... (MC) ah tá é o seu motor de dentista. (AP) então você usa brocas... (MC) o equivalente daquela serrinha? (AP) não serra é serra mesmo. Eu tenho uma que gira, giratória que é uma imitação de coisa de carpintaria (risada) até tenho, nunca usei, acho perigoso pra caramba porque é metal né... marcenaria também é perigoso, mas

eu tenho muito... uma vez eu experimentei e achei muito perigoso (MC) mas metal é mais perigoso (AP) é mais perigoso (MC) eu senti que era mais perigoso, eu tô te falando pelo índice de acidentes... (AP) não, é mais perigoso porque é grande... aí você tem dois problemas diferentes, aí você vai embora numa ferramenta... aqui, isso é muito perigoso, aquilo ali se for elétrico é muito perigoso, você pode perder mão, você pode perder couro cabeludo, você pode.... entendeu? as regras de segurança de um atelier têm que ser muito rigorosas, muito rigorosas. Agora tem umas coisas super irresponsáveis. E... por exemplo, tem gente que trabalha com as.... eu assisti um vídeo ontem, um amigo me mostrou, que eu chorava... a gente tava vendo, assistindo pra dar risada, mais assim, é dramático. Era um cara numa oficina, e aí você fala dessa coisa old school, do aprendiz que não tem formação, blá blá blá... o cara estava usando cianeto e não sei mais o que, para fazer polimento químico numa corrente de ouro desse tamanho, grossa, umas correntonas de ouro, o cara... e aí ele fez um vídeo pra ensinar as pessoas... ele botou cianeto no fogão com uma panela pegou um pote de sorvete na pia, e aí você vê todos os APIs necessários né... (MC) ela tava? (AP) não, ele estava de sandália havaianas, de camiseta, não tinha um óculos, não tinha uma máscara, não tinha uma luva, não tinha nada, um avental... (MC) nada (AP) não tinha nada, nada. Aí ele vira, bota a peça de ouro, ou seja, além de tudo ele está lidando com uma coisa valiosa suficiente que se a gente pegar mais estruturado, ele ganharia o suficiente para saber que aquilo que ele tá fazendo é mortal. Ou seja, você tem uma parte da mão de obra no Brasil, que é justo a que é mais artesanal, que tipo assim... (MC) ele é brasileiro? (AP) É. E aí ele pega esse cianeto quente, quase fervendo, ele joga... já dá um bafo, você já vê uma fumaça... (MC) uma nuvem... (AP) aí ele joga, não me lembro o que é que é porque realmente de química eu... coisas perigosa eu nem faço... então ele joga uma outra coisa, que faz essa fumaça ficar de um jeito que mal dá pra ver, tipo assim porque a filmagem se perde, faz assim um... um fumacê incrível, e aquele negócio ganha volume, sabe aqueles negócios de filmezinho de química que o pessoal joga um negócio e faz (som de borbulhos) vira um mostro. Aí ele fica jogando, aperta o pote de sorvete assim pra fazer pico (risada), pro monstro descer direto na água corrente, ou seja, vai voltar pra água da cidade... (MC) misericórdia... (AP) (risada) Ou seja, esse cara vai morrer de problema pulmonar... (MC) seguramente... (AP) sem sombra de dúvidas, se ele não morrer de alguma outra coisa antes. (MC) e ele ainda fez um videozinho ensinando... ele ainda vai matar uns três (AP) ele ainda fez um vídeo ensinando... vai matar vários... (MC) se ele não morrer ele vai pra cadeia...(risada)

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(AP) não, não vai né... Mas assim, é muito chocante. Eu fiquei, tipo assim, eu achava que isso tava superado, não tá, em hipótese alguma se ensina isso. (MC) e o que será que ele fazia com o produto final né? (AP) o produto final é esse, é a corrente... é uma coisa que se chama e... polimento químico. O cianeto, que é um ácido, combinado com outras coisas ele dá uma decapagem na peça que ela fica... polida, brilhante, sem politriz, sem um monte de coisa, ele queima muitas etapas do processo que são particularmente difíceis se tratando de uma corrente. Uma corrente você não pode levar pra politriz... (MC) entendi. (AP) então deve ser uma coisa super comum nas oficinas... eu que não sabia. Deve ser uma coisa muito comum fazer isso. (MC) esse tipo de trabalho você não faz? Você não faz manutenção de peças, alguém chega e aí quebrou... (AP) eu faço tudo (MC) mas nas suas? (AP) de qualquer uma... (MC) se eu chegar aqui com uma... (AP) minha especialidade são joias de família. (MC) restauro (AP) a minha tese surge disso, eu pego 10 anos de experiência recebendo joias no meu atelier, só que as joias nunca vêm sozinhas. Se você vem reformar uma joia... (MC) ai que coisa linda! (AP) ... ela vem com a história dela. (MC) a pessoa chegou pra você... (AP) e as vezes é um negocinho que, assim que não vale nada, mas é a peça... (MC) não vale nada...da sua bisavó (AP) mais importante na família. E as vezes chegam uma coisa milhionárias que falam assim, derrete aí que vamos fazer um monte de coisa nova (risada). Tipo assim, o que eu discuto é significado, o valor, tipo uma coisa ... isso não está... por isso que chama de matéria a afeto... (MC) que lindo, agora eu entendi. (AP) ... porque na joia tem uma coisa interessante. O ouro é um dos metais... é um dos materiais na natureza que melhor resistem a tempo, então ele é um belo portador de memória, porque ele resiste. E é interessante como as pessoas usam isso como registro de suas afetividades. Então você dá um brochinho, dá um alfinetinho pra um bebê, você dá uma estrela de Davi num bar mitzvah, uma cruz, você dá um tercinho, um brinco de pérola, um colar de pérolas, você dá um anel de formatura, você troca alianças, você... então assim os grandes momentos da vida das pessoas passam pela joia. Mesmo quando a pessoa não tem relação nenhuma com a joia, mesmo quando não tenha nenhuma joia, ela tem essa ideia da joia. E aí você tem coisas mágicas assim, na minha tese tem coisas mágicas que chegaram... (MC) então você foi registrando essas histórias... (AP) É, eu fui registrando essas histórias, muitas coisas com imagem, com foto... (MC) ai que coisa linda... (AP) muita coisa... quando eu não era uma pessoa mais tranquila e relaxada, eu fazia antes e depois... tem coisas que não dá tempo, eu já entreguei e... brinco de noiva, com a noiva sentada na cadeira do maquiador....

(MC) porque ela... (AP) porque ela inventou faltando três dias que precisava de um brinco. Então tem coisas que eu não tenho o registro fotográfico, eu não tenho notado... tipo assim, eu fiz o que fiz. Mas na medida do possível quando eu consigo o tempo pra fazer as coisas acontecerem aí eu fotografo antes, fotografo depois, as vezes eu fotografo... eu tenho muito assim, peças que a pessoa trouxe pra derreter, então tem um monte de anel quebrado, brinco quebrado, corrente quebrada, tudo arrumadinho, separadinho, tiro foto, porque eu peso, testo, faço um monte de coisas... eu mando pro laboratório, trago de volta e faço. Então assim, uma parte muito grande do meu trabalho é isso. Conserto é mais... só conserto é menos frequente. É que as pessoas acabam me buscando porque sabem que eu conheço a história da joalheria, então elas acham que eu vou entender a peça e a história, e vou respeitar. Porque se você vai no centro da cidade, entrega pra um ourives um anel de ouro com rubi sintético que pesa uma grama, o cara vai... se fundir não tem problema, se der errado não tem problema, tipo não valia nada mesmo... Enquanto eu fui lá pra oficina de um senhor de 85 anos que sabia tudo sobre aquele tipo de peça pra ele me ajudar a fazer a solda. Um baita de um envolvimento com as peças. Então o meu trabalho vai pra esses dois lados, eu tenho peça autoral, eu tenho peça absurdamente comercial, tipo pra dar desconto... e tenho esse trabalho, que é o que eu mais gosto, que é renovação e restauração. (MC) você tem as três linhas, as três frentes? (AP) É. E por incrível que pareça a que me exige mais e... conhecimento de ourivesaria, é justo o restauro. (MC) com certeza. Como é que você faz a avaliação do ouro, isso você faz aqui ou você tem que ir sempre pro laboratório? (AP) Eu faço....eu faço uma superficial porque você tem uma pedra de toque... você tem um ácido, e você tem uma estrela de contraste, uma estrela de teor, você testa teor, então por comparação você risca a peça, risca a estrela e por comparação você vê, você chega ao teor aproximado do ouro. E... se a pessoa vai, e aí eu abro pra pessoa todas as possibilidades. Eu falo assim, se você levar no penhor vão te oferecer tanto, se você levar num antiquário vão te pagar tanto, se você levar num leilão o lance inicial vai ser aproximadamente de tanto, se você... isso aqui só o ouro vale tanto. E aí a pessoa decide o que ela faz com a peça. E aí com algumas, tipo assim tem peças que são incríveis, eu já tive experiência por exemplo, de falar com uma pessoa que tinha dupla nacionalidade, você pega isso, vai pra Europa, põe num leilão internacional, você vai ganhar muito dinheiro... e aí você vai poder comprar as joias que você quiser (risada). Enquanto outras coisas eu reformei, e outras coisas a gente derreteu, tipo a mesma pessoa trouxe uma sacola de coisas assim, coisas da família inteira, a gente passou a tarde avaliando, porque eu não faço... a questão maior do meu trabalho não é só a avaliação, por exemplo, eu não sou gemóloga, mas eu vejo gemas há 30 anos, então tipo assim, eu consigo fazer... isso aqui chegou num ponto que eu preciso levar pra um laboratório gemológico. (MC) tá, entendi. Então você faz uma primeira triagem?

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(AP) Eu faço a triagem. A maioria... as coisas que são de até um preço razoável eu inclusive dou o valor mesmo, faço a avaliação total. Mas tem coisas que você fala assim, isso aqui pode ser uma coisa incrível, e aí leva pro laboratório gemológico, ou porque o teste, esse teste que eu falei pra você de pedra de toque, ele não é, ele não é intrusivo, ele destrói a peça... qualquer outro teste implica em tirar uma parte da peça com buril, tirar um pedaço pra mandar pra um laboratório. Porque a maioria das pessoas não... se a pessoa gosta muito da peça, é uma peça de família e ela não quer fazer isso, ela só quer entender ... Eu já tive gente que queria só entender um valor aproximado das peças porque ia distribuir pelos herdeiros, então queriam distribuir conjuntos de valores equivalentes. (MC) então isso é um trabalho seu, que você tem um preço e você fala quem vai passar a tarde aqui, vou fazer essa avaliação pra você. (AP) É. Mas assim, normalmente... por exemplo eu fiz isso essa semana eu recebi um monte de tranqueirinha, um monte de tranqueirinha de um menino que vai fazer as alianças de casamento, e tinham dois aneizinhos dos anos 40, eu botei até no Instagram, dois aneizinhos dos anos 40 muito pequenininhos, muito frágeis, tipo assim, ninguém ia dar nada... eu tava completamente apaixonada e ninguém ia dar nada por eles (risada)...e...e ele... aí eu falei assim, espera aí um minutinho, corri aqui limpei, limpei a pedra, não cheguei a dar polimento porque demora, mas assim, dei uma limpada na peça toda, botei numa caixa nova... (MC) ai meu Deus do céu! (AP) botei numa caixinha, pra ele dar um pra noiva e um pra mãe. (MC) ai... porque era da minha avó... (AP) tipo isso. Era da vó dele, a mãe dele não tem nenhum... estavam imundos, você nem via que a pedra era transparente. Sempre que eu faço isso, eu tenho uma... eu não criei uma hashtag salvo do fogo... (MC) ai que bonito... (AP) salvo do fogo ... quando eu vejo uma coisinha linda de morrer, sem valor nenhum de mercado... (MC) mas isso aqui tem valor de mercado? (AP) não. Quer dizer, se você jogar no mercado isso te dá uns 100, 200 reais (MC) mas era de ouro com uma pedrinha de... (AP) é... ouro com topázio, ouro com ametista. Mas assim, tipo, e aí uma pessoa de uma feira de antiquários vai dobrar o valor e vai vender pra alguém... Mas assim, não é.... (MC) não, mas era linda...eu usaria isso com certeza (AP) e ficou linda. O que é que eu fiz, eu peguei duas caixinhas de joia e botei em um, botei no outro e falei assim, isso aqui você vai dar pra sua mãe de volta de presente por tudo que ela te deu, e dá o azul pra noiva e eu fui lá no dia do casamento. Eu tenho isso como uma parte significativa do meu trabalho hoje em dia... (AP) é muito interessante esse trabalho porque esse livro foi isso, esse livro foi datar, porque elas são do século XIII e XIX de coleções particulares, e aí tomale saber muito de joia e saber de onde ela veio e quando foi feito. (MC) Ana, acho que eu não entendi... essas joias? (AP) são de coleções particulares... (MC) a então...

(AP)... que eu conservei, eu só limpe, fiz uma higienização, limpei, conservei, fique com um... (MC) humm, que linda (AP) e datei né, localizei...a gente fotografou tudo... (MC) você gosta de joia, você usa? (AP) muito pouco (MC) você gosta, mas você não gosta pra você? (AP) gosto, eu uso e tem dias que eu saio uma árvore de natal, mas não necessariamente para usar. Eu gosto de ver. Tipo assim, se eu for ao cinema eu vou ver as joias, se eu for num museu (risada) eu vou ver a joia no quadro, tipo assim, qualquer coisa relacionada a joia me interessa. E foi uma determinação de quando eu saí do banco, eu só vou trabalhar com coisas que tem a ver com joia. Porque, quando se tem essa formação que eu te falei, com a experiência profissional que eu te falei, roda e vira aparece alguém me chamando pra fazer alguma coisa, alguém lembra de mim e fala assim... você não quer trabalhar... e você não quer... tipo assim e aí eu tive que estabelecer critérios, porque senão eu nunca tinha virado completamente a chave. No dia em que eu saí do banco eu falei assim, só tem que ter a ver com joia. Se não eu não faço. (MC) Você...voltando pro nosso assunto, você trabalha com todo o equipamento de segurança necessário? As coisas... eu já entendi que as coisas muito perigosas você não tem... (AP) eu não tenho... não tenho porque assim tem um grau de perigo assim que eu posso explodir o prédio, isso é um grau de perigo que aí eu não tenho nada, eu tenho outro grau de perigo são coisas que assim, são perigosas, eu sou uma pessoa extremamente cuidadosa. Tipo, eu respeito muito porque eu já me machuquei, eu não me machuquei grave nenhuma vez, mas dói... (AP) A coisa mais grave que aconteceu comigo foi num momento de profunda estupidez, e com uma peça minha que é mais ridículo, e... que eu ganhei de família, é... e eu achei que eu ia conseguir polir na politriz uma corrente, claro que não. Claro que me deu um solavanco enorme no braço, ela bateu na lâmpada porque aqui a gente tem uma lâmpada para enxergar o que tá fazendo... (MC) é que dá pra você passar um susto tão desgracento... (AP) não, a lâmpada quebrou, eu fiquei toda de vidro no corpo. (MC) misericórdia! (AP) eu fiquei toda de vidro no corpo, eu fiquei em pé, peguei o telefone, liguei pro meu marido que o estúdio de fotos dele, a gente não mora juntos e o estúdio de fotos dele... eu falei assim você pega um taxi agora vem pra cá porque não dá nem pra eu sentar, eu tô toda de vidro no corpo, e esse vidro fininho de... (MC) meu Deus do céu... (AP) entendeu, eram caquinhos pequenos de vidros de lâmpada. (MC) você tava de... você usa óculos sempre? (AP) uso. (MC) sempre? (AP) não porque eu uso óculos, mas eu não estou desprotegida. Eu nunca estou desprotegida, dependendo do trabalho eu estou proteção. (MC) então você tá salva, tá bom (AP) tô. Eu uso luva, eu uso uma coisa que dizem inclusive que não é de proteção, porque o pessoal tradicional diz

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que você não pode se aproximar com luva da politriz, e eu só trabalho com luva, porque senão eu não ia ter unha pra atender cliente né, porque eu trabalho com isso, que são dedeiras, essas são novinhas... Essas são dedeiras porque quando a gente tá no motor, dando polimento, lixando uma peça, a peça esquenta muito, ela pode queimar o dedo, machucar é queimar. É... eu uso isso, dependendo do que eu estiver fazendo eu uso, na bancada não, eu uso um sistema mais comum, mais moderno não porque deve ter coisas mais mod... eu uso um sistema tradicional de trabalho, a gente trabalha aqui, a gente coloca aqui... (MC) bem gentil (AP) gentil com o ambiente e gentil com seu dinheiro porque se você espirrar você perde R$ 200,00 (MC) daí aquilo... (AP) aquela ordem de grandeza é outra entendeu... (MC) eu não estou acostumada (AP) eu vou te mostrar isso aqui você não vai acreditar... só o pó tem uns R$ 450,00 aqui... (MC) puxa... (AP) então não dá pra espirrar (MC) é muita grana né... (AP) é muita grana. Então o cuidado, são dois cuidados, tem o cuidado de dinheiro né, obviamente, aqui é pó de prata, esse pote cheio tem 100 gramas aproximadamente uns R$ 300,00, R$ 250,00 (MC) você tem aqui praticamente numa gavetinha, num cantinho... (AP) e... tipo, aliás aqui se você sentar dá pra garimpar (risada). Se sentar no chão com a lanterna dá pra garimpar...porque mesmo assim sempre cai. E a gente abaixa, tem muitas charges de joalheiros, as bancadinhas e todo mundo de joelhos, porque... você derruba um diamante no chão faz o quê? Vai ficar de quatro até achar e pode levar horas, porque se ele cair de bunda ele não brilha e não reflete. (risada) (MC) você tem a noite inteira pra isso... (AP) você tem a vida pela frente... (risada). Então você tem duas questões, o equipamento porque o equipamento é caro, e ao mesmo tempo que ele é caro, e ele é caro porque ele é bom, e ele pode durar a vida inteira, bem cuidado. É muito parecido com marcenaria, com carpintaria, porque a plaina bem cuidada é pra vida inteira, a bancada bem cuidada é pra vida inteira. E pode ser que as suas necessidades mudem e aí você eventualmente troque, mas as pessoas são muito apegadas, por exemplo, se algum dia eu deixar de trabalhar nessa bancada eu não vou me desfazer dela... (MC) eu tenho certeza que não. (AP) eu tive essa experiência, quando eu fui morar fora, eu voltei tinham jogado fora minha bancada, a minha primeirinha lá de trás, dos passados, a de resto de madeira... (MC) ah tá bom...Você ficou muito arrasada... (AP) eu fiquei muito... eu reclamo até hoje... isso faz em 94, 93... eu tô reclamando disso há 25 anos. É... porque ali no meio foi muita coisa, então eu tenho aqui um par de alicates e um martelo que tem 31 anos, o resto não, foi tudo embora (AP) tudo depois, tudo venho depois. Tudo eu tive que... eu recomprei quando eu voltei a trabalhar em São Paulo. (MC) mas você tem o vínculo com esse material, enorme?

(AP) fortíssimo, fortíssimo. As ferramentas são parentes, filhos. Tem gente que não, não é assim... aí todo mundo... (MC) interessante isso (MC) mas os que eu conversei até agora sim. (AP) e, mas aí já tem uma, mas aí você tem que fazer esse tipo de recorte, e eu tive que fazer isso na minha tese, então eu lancei uma pesquisa online, daquelas bem divertidas, então eu, aí eu falei assim toda joia tem história... pera aí... (MC) toda joia em história? (AP) toda joia que entra aqui tem história, porque a pessoa vem aqui por minha causa. (MC) é, com certeza. Já tinha o viés na sua pesquisa... (AP) então eu tive que lançar uma pesquisa online pra falar... veja bem, e era. A pesquisa revelou exatamente a mesma coisa, aí eu relaxei. A única coisa que a pesquisa solidificou pra mim e eu nem sei se, eu nem sei se eu falei isso... (MC) e você mandou essa pesquisa pra quem? (AP) eu mandei geral... marquei nas minhas redes sociais... abandonei nas minhas redes sociais. E..., porque tem de tudo nas minhas redes sociais, inclusive a maioria nem é cliente, então faz todo sentido. E... e algumas pessoas replicaram, então teve um alcance que eu nem tenho como aferir. Que é que aconteceu, que eu tava falando... eu tive que fazer essa pesquisa porque eu falei assim, tá viciado esse negócio, então pode ser... como você está escolhendo por contatos essas pessoas, tipo assim, talvez se você sentar pra conversar com um ourives no centro da cidade ou com um cara que trabalha numa marcenaria nessas fábricas mobiliárias grandes, o cara não tá nem aí pra nada, ele quer emprego entendeu. Eu vejo muitos ourives inclusive que não tem nenhuma relação com a profissão, meio por falta de opção, tipo o pai era, o tio era... eu entrevistei por exemplo uma pedrista que não tinha nada a ver com aquilo, mas que herdou as pedras... olhou pra um lado, olhou para o outro e falou é isso que temos para hoje, isso vamos fazer, e virou uma pedrista. (MC) e o que é que é uma pedrista? (AP) é o comerciante de gemas. (MC) ah... ela herdou aquele bolo todo que ela vendia? (AP) ela herdou, quando viu ela tinha, não tinha dinheiro e tinha pedras, borá lá (MC) agora bora lá vender, ela era uma vendedora como qualquer outra. (AP) ela se descobri vendedora, mas eu também era, ninguém falou que eu podia ser ... (MC) não eu digo assim, ela podia estar vendendo pedra como que podia estar vendendo qualquer coisa que passou na mão dela. (AP) ou nem vendendo, podia ter tomado qualquer outro rumo na vida dela. E... e aí tem coisas que são super valiosas. Eu tava mostrando outro dia a menina falou assim, isso aqui é o castelo da sua lima, eu falei isso aqui é o castelo da minha lima. E... não vende no Brasil, aliás a maioria das coisas são importadas. Ela mora numa casinha, ela veio assim, essa é uma lima do ano VI, quando você passa essa lima você tem que passar as lixas, a peça já tá quase acabada. Então tipo assim, eu não deixo nem arranhar, eu não deixo nem na mesa. Tipo assim, vai que cai alguma coisa em cima, vai que ... essa é a queridinha, minha ferramenta favorita.

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(MC) você lembra quanto ela custou? (AP) acho que foi uns 140,00 euros, é caro pra caramba. (MC) é caro pra caramba. Eu tô falando porque eu comparo com equipamento... tem equipamento de marcenaria que é super caro. Mas, por exemplo as minhas limas todas foram compradas em 2002, a maioria. As coisas de uso mais básico são as mesmas há 18 anos. 18? Final de 2001, são 17. (MC) Ana, ritmo de trabalho, horário de trabalho, o seu ritmo no atelier. (AP) caótico. (MC) caótico. (AP) caótico, pelo privilégio de trabalhar em casa. Eu tenho colegas por exemplo que trabalham... que tem a oficina no escritório de um prédio comercial, então tem hora pra entrar e hora para sair. Eu não tenho, o meu único ritmo é não atrapalhar a vida dos vizinhos. Então coisas barulhentas eu cumpro os horários de silêncio da cidade. (MC) a gente agradece. (AP) com rigor. Coisas não barulhentas, qualquer hora do dia, da noite, vai muito de fluxo de trabalho, de encomenda, de prazo... por exemplo, na final da copa eu tava sentada fazendo uma peça. Por que, porque uma pessoa me descobriu e precisava dar um presente, uma peça de ouro, ou seja, além de tudo lucrativa, no domingo à noite, ele me descobriu na quinta à noite, na sexta eu orcei, domingo eu fiz a peça, tipo ou, fina da copa, eu queria muito assistir... (MC) ele te trouxe um desenho? (AP) ele pediu pra desenhar (MC) ele pediu pra você desenhar... (AP) ele veio recomendado de outro cliente. E aí é bem interessante porque não tenho nenhuma regra, inclusive é o contra fluxo da vida corporativa, é qualquer hora, de qualquer jeito, é de pijama, tipo... (MC) e não tem um horário melhor... Pra você de manhã eu trabalho melhor... (AP) tem sim, aí o que é que tá acontecendo, não tinha nenhum porque eu sou um pé de boi, toda hora é hora de trabalhar, eu tô feliz trabalhando, só que tem idade batendo... a idade chega. Então você começa a perceber que tem horários que determinadas atividades são mais produtivas do que outras, aliás minha própria tese teve isso, acordar, tomar café correndo porque acabou de tomar café a cabeça tá limpa, tá livre, eu... rende que é uma maravilha... aí você dá aquele estirão, atrasa o almoço, porque de tarde já vai ser meio assim, de noite você vai estar... tá acontecendo isso com a joalheria agora. É... de uns anos pra cá por exemplo, eu faço uma peça, quando tá um mundo ideal, porque a gente não opera num mundo ideal, a gente opera com a pessoa pedindo uma peça pra ontem, né, você de olho no dia que você tá precisando pagar uma conta, o que é que acontece, eu vivo da minha bancada. Isso é super importante, eu vivo da minha bancada, o dinheiro sai todo daqui. E... que é que acontece, eu faço a peça durante o dia e cravo pedra de manhã cedo, que é quando o olho tá 100%. A vista, quando o olho tá cansa, eu trabalho com a lupa que já tá até bem forte, e... eu percebo que as atividades de maior precisão agora precisam ser feitas de manhã. Então eu meio que organizo pra começar, as vezes eu ... as pessoas morrem

de dar risada, as vezes eu começo a fazer uma peça 9 PM , vou até 12 PM ou até a hora que acabar, mas o acabamento que é barulhento eu faço de manhã, quando eu termino de dar acabamento eu cravo, então a peça começa num dia depois do almoço e termina no outro dia antes do almoço, 24 horas. Tem peças que você leva dias fazendo, tem peças que você faz em 2 minutos. (MC) e você mistura a produção? (AP) não (MC) tipo assim, eu comecei a fazer o brinco e aí...depois aquele anel (AP) hoje tá um caos, porque eu tô fazendo, eu abri tudo que eu tinha dentro de casa, tô limpando, tô revendo porque você vai sentir quando você terminar de escrever muda a vida, é tipo uma tarefa tão hercúlea que é meio que você chegou do outro lado de um portal e você (risada) uma vida nova que se abre. Então eu tô reavaliando peças, então não tem nada a ver comigo derreter, isso aqui tá muito lindo, ok, só limpar, isso aqui eu vou trocar um acabamento ou vou sei lá, tava liso vou fazer fosco, tava com uma pérola vou trocar por uma ametista, eu tô fazendo isto de ontem pra hoje. E aí acontece uma coisa interessante porque, aí dá uma bagunça porque tipo assim, tá espalhado. Isso que você tá vendo é ... (MC) isso aqui não é o seu normal? (AP) isso é o meu caos. (MC) ah. Tá... (AP) Ele tava um pouquinho pior, tava tudo bagunçado, eu dei uma enfileirada, tinha coisa ali espalhada pela estante que já tava limpa, eu guardei, e ali tinha o que eu tava olhando. Tipo assim, isso não existe, aqui inclusive são as coisas que eu tava desmanchando pra fazer outra coisa, to tirando pedra, aqui... isso aqui é o que tô fazendo, isso aqui é tudo ouro, tá aqui porque agora eu vou fazer essa pilha pra essas pedras, pra essas esmeraldas, mas assim, normalmente não, eu faço uma peça. Eu acabo... (MC) faz uma peça inteira, parou, faz a outra ... (AP) a não ser que eu esteja fazendo assim, por exemplo, eu posso fazer assim ó, tô fazendo 10 anéis simultaneamente, corto, corto, corto, soldo, soldo, soldo, jogo no ácido, cravo... mas assim, eu estou fazendo a mesma coisa só que com 10 peças. (MC) você tem o caso de 10 anéis idênticos ou não? (AP) não. (MC) você nunca tem 10 anéis idênticos? (AP) não porque no mínimo eu faço com outra pedra... eu (MC) ah tá, variações do mesmo tema (AP) eu posso fazer, eu no meu certificado eu digo que eu posso fazer até 12 peças da mesma, mas com pequenas variações por conta de acabamento, gema, lá lá lá lá lá... mas idêntica não. Mas aí é porque eu não gosto. E aí eu tô entrando numa disputa com a 25 de março. (MC) sim. Posso fazer uma pergunta... porque assim... existem trabalhos desse tipo que são de maquinário? (AP) muito (MC) tipo o quê assim? (AP) Por exemplo, o exemplo que eu sempre, é aliança. (MC) aliança é maquinário? (AP) Alianças você tem uma máquina que cospe 1000 alianças por dia. Nem precisa ser na grande que tem essa máquina, é uma máquina cara, grande, do tamanho dessa

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mesa, alta, e... que você meio que bota ali o fio de um lado, e o tubo, tem uma parte que não é feita na máquina, então tem uma parte de pré-produção, então ela recebe e ela tá computadorizada o desenhinho do acabamento que você vai dar, então ela é como se fosse um pequeno torno... ah, você entende de madeira, você entende... é como se fosse um pequeno torno pra estampar como que ele vai dar acabamento interno e externo nessa aliança. Ele cospe 1000 alianças por dia...é a que está em operação no mercado, tipo é uma máquina que eu vi há 10 anos atrás numa feira, então está normal no mercado. Você tem com essa história do 3D prototipagem a possibilidade de fazer milhões em cera perdida, inclusive com micro cravação. Por que tá na moda pavê... esses pavês assim cobertos de ... pavê é um tipo de cravação, a gente acaba chamando a peça que tem de pavê, é então, porque você essa micro ... você tem a qualidade da impressão em 3D em resina espetacular, muito, capaz de muito detalhe, já sai pronta a peça com as garrinhas todas, você tem nanotecnologia, você tem gemas, diamantinhos que eu chamo de poeira cósmica. Lapidados a laser com computador, com esse combo laser computador incrível, e você... só passa pela mão da pessoa para ela pré-cravar as gramas, ou seja, pré-cravado sai do cilindro de cera perdida, da fundição, as pedras já ficam colocadas ... (MC) ou seja, você concorre legal com a tecnologia... (AP) totalmente... Eu costumo dizer, outro dia eu dei uma palestra sobre... eu chamei de bancada e business, mas assim, a gente tem um problema sobre empreendedorismo no Brasil muito cruel. A ideia de empreendedorismo ela é reforçada na medida em que você quer retirar a legislação trabalhista. Então você insufla as pessoas a serem empreendedoras, porque vai trazer emprego. Não é porque todo ser humano... (MC) risada. É isso mesmo (AP) Tem pessoa que não quer a insegurança de empreender. (MC) isso mesmo. (AP) Só que elas estão sendo todas empurrada nessa direção ... então tem uma moda e um glamour em torno de empreender. Ninguém lembra que você fica sem dormir, que algumas vezes você fica no vermelho, que é duro, é solitário... ninguém lembra desses detalhes. E as pessoas não são preparadas pra isso, por isso que quebra. (MC) é só o glamour mesmo né? Empreendedor (AP) só glamour. Inclusive tem os caras que nem chegam a empreender e começam a dar palestras sobre empreendedorismo não é (risada). Temos vários casos. E aí que que acontece... eu tava falando de empreendedorismo, o que é que acontece, porque é que eu acho que eu não tenho, eu não sou, eu não concorro? É porque a questão da sustentabilidade traz a questão do handmade, do feito à mão, traz o conhecimento da cadeia de valor inteiro. Então hoje eu tenho pessoas que não querem comprar nas grandes joalherias um par de alianças... (AP) daqui a pouco eu tô pedindo de volta, vamo escrever um artigo... (risada) (MC) esse vai dar... (AP) a gente podia juntar com a Regina, já falei com a Regina, o negócio sobre imprevisibilidade do trabalho no forno de vidro, que aqui é totalmente previsível, e eu

queria discutir como muda a percepção do trabalho quando você joga no forno e reza pra ver o que é que acontece, que é o que acontece com a cerâmica e com o vidro, e com o metal, que eu tenho total controle sobre o que eu tô fazendo, inclusive se der errado eu derreto e começo de novo... (MC) isso, começa de novo, não tem problema nenhum. Eu acabei de falar com a ceramista me mostrando os pedaços das obras dela, despedaçado assim... (AP) que eu já tinha transformado em acessório há muito tempo. (MC) não, ela criou uns jeitos legais (risada) (AP) pega os caquitos... pega os caquitos... (MC) ela faz umas coisas muito legais com as coisas que quebraram... mas é duro (AP) e reconstrói. Mas a história é... eu acho que não tem campo igual a esse. Aliás tem uma coisa que eu falo, as pessoas ficam nervosíssimas no mercado, primeiro que eu falo da minha bancada em termos de mercado, já dá um tiut na cabeça das pessoas. É... que é o seguinte, a lava jato, no Rio de Janeiro foi mais sentida do que em São Paulo, porque no Rio a gente teve o envolvimento do Antônio Bernardo e mais umas duas joalherias pesadamente, quando fizeram as apreensões na casa do povo. (MC) sim... (AP) e aí, imediatamente o mercado se revolta, e cresce a demanda por encomendas nos ateliês. (MC) é que foi feio né... (AP) foi feio demais. Eu vivi isso na pele. A denúncia e apreensão foi em outubro, a notícia do envolvimento das joalherias nominalmente nos jornais se eu não me engano foi no final de novembro, eu fazia um evento de joias no dia 1 de dezembro no Rio de Janeiro. Era um evento que uma pessoa, uma joalheira organiza que tem uns 30 joalheiros expondo, exposição e venda. Eu peguei um taxi com uma mala, porque aí você tem que levar tudo né, mostruário, embalagens, uma mala. Eu peguei um taxi da casa da minha mãe em Copacabana até Botafogo, o cara sem a menor ideia do que eu fazia da vida, foi falando mal de joalheiro e joalheria... ele botou todo mundo no mesmo saco. Tudo ladrão! E foi super divertido porque eu cheguei no evento, eu falei assim, gente vocês não sabem o que eu acabei de ouvir...Eu ouvi um sermão, porque tava tendo um engarrafamento logo de manhã, sei lá o que é que aconteceu no trânsito, e eu fiquei uma meia hora ouvindo o cara falar mal de joalheiro e eu falei assim, pois é...tem razão... né? (MC) né... pessoal safado! (risada) (AP) tudo bandido. E aí, e aí imediatamente eu vi que aquilo tinha um impacto muito grande porque tipo 2 horas depois passa o assessor de imprensa do evento em cada estante falando gente, não consegui. Ele não conseguiu... no ano anterior a gente tinha assim, o clip do evento era um negócio muito legal, tipo assim dois tijolinhos... porque nenhum jornalista dá uma matéria pra falar de joias naquela semana... (MC) ai que tristeza... (AP) como que você vai provar que aquela joia é joia legal, é joia boa. Então você tem uma queda de credibilidade muito grande. Por outro lado, os artesãos e os artistas plásticos joalheiros se beneficiam disso, mas a gente não sabe assim... não é uma coisa que eu vou virar de uma H.

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Stern, nada disso, mas de fato eu fiz mais alianças do que eu tinha feito na minha vida inteira. E não é porque eu tava mais famosa, até porque eu tava trabalhando menos, tava terminando a tese, mas é porque as pessoas começaram a olhar pra formas alternativas de ter o que elas queriam. Que é o que a gente vê quando vai numa paralela de uma craft, alguma coisa assim, apesar de aí você ter coisas que aparentemente são artesanais, não necessariamente, tem vários problemas, mas assim, você vê que a pessoa tá interessada em comprar uma lâmpada de alguém que fez aquilo e uma forma artesanal. Ou seja, tem uma demanda... Principalmente pela autoria, saber de quem é, de quem está comprando. Não é tanto pelo fato de ser artesanal, mas eu acho que é pelo fato de saber assim, de criar uma pessoalidade na relação. Tipo assim, isso aqui é de fulano, e aí você junto, no caso do artesão você junta os dois mundos, é artesanal e ele conheceu o dono. Tanto é que o que é que acontece, no natal do ano passado, os grandes bazares de São Paulo, dos mais chiques aos mais de fundo de quintal de igreja, tipo pátio de igrejas... lotados. E os shoppings? Às moscas. O shopping só lotou na semana do natal ... ele estava às moscas, eu tava no Rio, eu fiz o evento, que esse evento eu faço todo ano e tal, eu tava no Rio, era meu aniversário, a gente foi no shopping Leblon e sem uma alma no shopping. Tinha gente assim, na praça de alimentação, no cinema, mas assim, sacola de compra, coisinhas, presentes, e aí você entra numa feira Rosenbaum, no bazar de praça, as pessoas assim se acotovelando (MC) totalmente. Agora, isso não tá vinculado ao que você tá falando... desvincula... (AP) então eu não tenho problema com o social, pode avançar a tecnologia a vontade, que de alguma forma... (MC) você usaria se ela tivesse disponível a você? (AP) de alguma forma vai ter um filter down que vai trazer essa tecnologia pra mim, uma hora eu vou poder usar ela também... (MC) você usaria feliz? (AP) (silêncio) risada... (MC) então era essa a minha pergunta... (AP) vamos responder para a gravação... não. (risada) Não, mas assim, o que eu gosto é da bancada. A minha relação com o meu trabalho e sentar a bunda ali e ralar os dedos ali. Eu não... eu não quero, eu tava falando isso ontem pra essa pessoa que veio aqui experimentar... eu não quero ter uma loja, eu não quero ter uma marca, eu não quero ter... eu quero bater a porta e ir embora, sabe, bater a porta e ir pro Rio de Janeiro ver minha mãe. Eu não quero uma estrutura tão grande que me prenda. Isso é um aspecto de personalidade. Tem um outro aspecto que, como mulher de negócios, eu não quero ter uma coisa tão grande que eu perca o controle, que não seja eu mesma produzindo. Então eu tenho que me desdobrar, eu criei essa situação da avaliação porque era um conhecimento que eu tinha e eu decidi botar isso na roda, mas assim, eu quero estar na bancada, eu quero conversar com o cliente, eu não quero vender uma joia para uma pessoa que eu não sei quem é. Tipo assim, estar numa loja e ser vendida para alguém, eu já fiz bastante isso, hoje em dia eu fico assim, aquele meu colar será que tá com quem...?

(MC) entendi, mas não é pela tecnologia? É porque você não quer produção de série na sua produção? (AP) É. (MC) não é pela tecnologia em si... (AP) não, eu adoro tecnologia. Tem coisas que seu eu pudesse apertar um botão e elas acontecerem seria ótimo, mas não, não. É... porque eu gosto dessa energia, eu gosto dessa fisicalidade do trabalho entendeu, tipo assim, eu vou fazer uma aliança eu boto uma música legal, boto uns óleos essenciais... (risada) (MC) você trabalha com música? (AP) não, não necess... eu trabalho muito com televisão, filmes... eu tenho filmes que eu sou bem adolescente assim, eu tenho filmes que eu sei todos os diálogos. (MC) risada (AP) eu tô aqui fazendo a peça e tô lá lá lá lá lá... (risada) (MC) olha só... (AP) eu vou dialogando... eu vejo mil vezes. E... eu gosto muito de cinema e eu gosto muito de.... eu gosto muito de cinema, então eu vejo filme o dia inteiro. Agora um pouco série também porque série virou um novo cinema né... mas eu não fico olhando, eu não fico olhando... eu fico com ela atuando aqui... eu fico ouvindo. Essa aí é porque quebrou, eu tinha uma pequena, tá desproporcional. (risada) tá muito desproporcional. Mas ouço música também. Quando eu preciso ficar num astral legal, eu sinto muito cuidado quando eu vou fazer uma peça que tem um significado muito grande pra pessoa... (MC) você tem uma coisa de... (AP) ... se eu tiver com fome, se eu tiver zangada eu não vou fazer. (MC) você tem uma coisa então com a energia mesmo então? (AP) tenho, tenho. (MC) não é uma produção... (AP) e não corre, a solda não corre. Eu tenho... (MC) com assim a solda não corre? (AP) eu tenho histórias de várias pessoas com relação a isso. O pessoal, tem uma fantasia grande, mas também tem uma coisa que quando você senta pra dialogar com outras pessoas apaixonadas do ramo as histórias são recorrentes. (MC) oba... (AP) coisas do tipo... eu tive essa experiência de maneira dramática e divertidíssima. Eu durante anos da minha vida, quando eu estava menstruada, a solda não corria, então não adiantava eu tentar fazer solda. (MC) o que que é a solda não corre em primeiro lugar? (AP) a solda não corre é o seguinte... A solda em primeiro lugar é, você vai fazer uma junção... então você tem uma solda que tá em outro teor, ou seja, ela tem que ter um ponto de fusão inferior a todo o resto do material, se não vai fundir tudo junto ao mesmo tempo... então a solda é uma coisa que vai fundir antes do metal... e aí o que é que acontece... correr a solda que normalmente por exemplo, sei lá, se eu estiver juntando isso com isso, a gente tem duas opções, ou a gente coloca a solda fazendo já a interface com os dois, bem no meio, bota uma fitinha aqui no meio, ou você pode botar ela aqui em cima porque ela vai correr por gravidade... (MC) ah... tá bom (AP) e o correr é isso. (MC) a solda não corre, ela fica parada

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(AP) e o correr quando é liquida ela faz, inclusive ela brilha lindo, fica um negócio muito brilhante (MC) é bonito? (AP) é bonito. Você quer ver? (MC) pôxa, se puder .... (AP) (barulho de ferramenta) aí a pessoa funde o negócio... eu vou pegar um pedacinho só de alguma coisa pra fazer pra você... desculpa ... gente, a gente tá no escuro. O negócio tá tão animado que escureceu... (MC) é, escureceu... (AP) eu fico nessa e você troca de cadeira, senão ... (MC) tá bom, e aí você tava me dizendo que na menstruação a solda não corre... (AP) não corre, impossível, eu levei anos da minha vida pra ... não sei, eu nem percebi. Quem percebeu foi o meu professor, o meu ciclo era de 28 dias, eu fazia aulas aos sábados... (MC) não acredito que ele conseguiu perceber... (AP) tinha dias que dava certo, tinha dias que dava errado. Eu nunca parei para avaliar que era a cada quatro semanas. (MC) e ele percebeu... (AP) e aí ele percebeu. Waldorf (risada) ele teve a compreensão de mundos diferentes (risada). E aí, meu ciclo era de 28 e aí, cara, tinha dias que eu começava a xingar na bancada, começava a andar pelo atelier, tipo assim, dando tudo errado, e ele era muito atento aos alunos... aí um belo dia ele falou assim, Ana, você já reparou que é uma vez por mês? (MC) risada (AP) tipo assim, porque a turma da alquimia, dos esoterismos diz que a prata e a lua têm uma relação, tal como o ouro e o sol. Então eu falei... ah é né, então melhor não insistir. Então era o dia que eu ficava laminando, ficava fazendo qualquer outra coisa, eu desisti disso, de ficar lá brigando com peça e ia fazer outras coisas. Daí depois que eu larguei tudo, que eu comecei a fazer, a trabalhar só com joalheria acabou isso. Não que, eu não estou estabelecendo relações, eu só estou falando de coincidências... (MC) não, tá certo (AP) mas assim, de tanto que dão pano pra manga dependendo das coisas em que você acreditar, entendeu? (MC) entendi. Você lê coisas da alquimia? (AP) muito pouco. Eu leio algumas coisas bastante esotéricas, mas muito pouco de alquimia. (MC) tem coisas de alquimia muito boa (AP) acho que tem um grau de alucinação que eu não chego... (MC) ah tá... (AP) tipo assim, eu não dou conta (risada). (MC) ah entendi. (AP) É... primeiro você tem que conhecer bastante para não ser enganado, né, porque tem muito charlatanismo. (MC) é, aí você tem que ler no original, pegar um trabalho antigo... (AP) aí vira mais um estudo da vida, tipo assim, não optei por ele. Eu vejo uns amigos, outro dia um amigo estava botando assim, esse é um símbolo oculto de um químico de não sei o que... eu falo caramba que lindo, que não sei o que... acabou meu interesse entendeu? (MC) pronto

(AP) esgotei aí... (MC) risada (AP) tem umas coisas que tem roupinhas são muito caras, uma coisa que não tem roupinhas é porque são baratas... (MC) é igual de dentista né, dá pra você emprestar pra alguns dentistas esses negocinhos seus. (AP) Boa parte das coisas da gente posso ser comprada em dental... (MC) é, tô vendo um negócio ali que parece igualzinho ao do meu dentista. (AP) eu vou fazer alguma coisa que a gente não demore nem sofra... um pedacinho de prata. Eu tô muito limpando, precisando de coisas esses dias... (MC) umas coisas bonitas né... (AP) risada (MC) joia pega a gente né, vamos falar... oh negócio que pega a gente... (AP) joia, joia é uma dificuldade. Não, e os apegos que a gente tem, não consegue se desfazer... (MC) ah sim, com certeza. (AP) tipo assim, e se a pessoa vive disso? (MC) é verdade né, você faz, se apaixonou, aí chega alguém e fala também me apaixonei ... tchau (AP) não, eu já fiz coisas muito horríveis, muito horríveis. Numa época de você se achar assim que tipo, você tá se sentindo super mulher, tudo que você consegue fazer e resolver... Me ligou uma pessoa que me achou na internet, que não tinha a menor ideia do que era, eu fiquei com muito medo quando eu dei endereço pra vir aqui, ou seja estava vindo um ser humano que eu não sabia quem era aqui. Aí eu fiquei assim uns 15 minutos com dor de barriga falando assim, caraca que merda, não tenho referência nenhuma, não foi recomendada por ninguém, nada. Ela estava procurando um colar de pérolas para o filho dar para a namorada, naquele dia. (MC) Naquele dia? Puxa, mas que mãezona né? (AP) e viu na internet... é, e bancando pro filho fazer o fino (MC) olha gostei de ver... (AP) achou um meu na internet e adorou, só que ela viu uma foto de um que era meu. (MC) pessoal... (AP) que eu tinha feito para mim. Umas pérolas maravilhosas. A pessoa olhou pro lado e me pergunta tá quanto? Custa quando? Aí você bota o preço assim lá em cima... (MC) lá em cima, a pessoa bancou... (AP) ... posso passar aí daqui a 15 minutos? Eu falei ... (MC) caraca! (AP) cara, eu simplesmente peguei o colar, cobri, fui pra politriz, deu o polimento no ... ficou uma peça absolutamente nova. (MC) sim, lógico. (AP) até porque ele tava recentemente encordoado. Gente, perdi... (MC) Tchau bebê... (AP) dei um beijinho e falei assim, vou fazer outro. Lá se vão uns 8 anos e eu nunca mais fiz outro porque eu não achei uma pérola igual àquela você entendeu? Não, não mas sim, eu lembro muito, eu não sou apegada, não tô aqui sofrendo, mas não consigo esquecer. Mas tenho desapego suficiente pra vender... (MC) Sim

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(AP) Porque eu tenho uma, eu tenho uma coisa muito interessante, eu não faço muita coisa pra mim. Normalmente assim, deu errado, ficou torto, ficou esquisitinho, eu pego pra mim e começo a usar. Só que eu me dei conta recentemente que veio muito forte agora quando eu terminei o doutorado que eu comecei a fazer uma arrumação na vida, eu falei assim gente, as peças que eu uso são as piores que eu faço. Como assim? Com exceção desses dois... As piores coisas que eu faço... é propaganda negativa... (MC) e é mesmo... (AP) e assim, tipo não faz sentido. Eu vou derreter tudo, peguei tudo que eu tinha, triei tudo, vou derreter tudo que eu não gosto, e agora só vou tirar pra mim uma espetacular. Tipo eu mereço. (MC) gostei de ver. E você sempre pode fazer afinal... (AP) né... por enquanto. (risada) Vamos lá então...(barulho nas ferramentas) (MC) ah tá bom, agora entendi. Eu tô demorando pra encontrar as relações entre o que eu conheço lá da oficina e o que eu tô vendo aqui, então por exemplo isso aqui é uma... (AP) por exemplo, eu vou ter que limar isso aqui pra fazer o contato... (MC) tá (AP) o contato... aí é isso, você vai chegando... (MC) precisa de uma luz legal... (AP) precisa de várias coisas... (MC) mas tá ótimo né, pensa bem... (AP) (barulho de máquina) Inclusive a Sutaco agora tá com uma novidade que vem inclusive alguém para assistir você trabalhar ... (MC) Como é que eles vão dar conta de fazer essas visitas assim, né? (AP) Não, assim, só pro caso das operações que a pessoa não pode fazer lá. Eu vi uma senhorinha no dia que eu fui fazer minha carteira, uma senhorinha chegando lá, uma máquina de costura na mala, me deu uma pena... (MC) sacanagem... (AP) Porque antigamente o que é que eles faziam... a gente, por exemplo joalheiro, joalheiro não tem como levar a bancada. A gente fazia, o que eles pediam pra gente até essa mudança de organização? Eles pediam que a gente levasse peças em cada estágio. Então eu levava o lingote, levava... (MC) sei (AP) a mesma peça em vários estágios de produção. Você levava lá e contava a história, se o cara achar que tava convincente...carteirinha (risada). (MC) E pra que serve essa carteirinha Ana? (AP) Essa carteirinha (risada), segundo um amigo meu, se você for pego pela polícia com uma joia no bolso (risada)... eu nem sei cara, isso é uma coisa de jovem né, como que é a sociedade brasileira né, a gente tem, a gente tá numa situação de privilégio, a gente não entende... tipo assim, é inalcançável a realidade dos outros de verdade... (MC) eu concordo totalmente... (AP) você pode ser a pessoa mais empática, você pode ser a pessoa mais conhecedora, mas outro dia no grupo do facebook teve a seguinte discussão. Se eu for pego... primeiro que joalheiro não esconde porque as joias nunca

vão, elas vão como os meninos mesmo confessam na cueca. Então o menino estava... se eu for pego com uma joia na cueca (risada) como que eu explico que eu não sou ladrão? Eu falei assim, cara, eu nunca pensei nisso na minha vida... e aí teve um longo debate se ele devia abrir uma MEI, se ele devia abrir uma simples, se ele devia... aí eu falei assim, você pode ter uma carteira da Sutaco porque aí além de tudo, ainda mais numa situação perigosa como esta, porque assim, contato com polícia é perigoso... você tem um documento comprovando, com número do seu RG, com número do seu CPF, que discrimina as técnicas e materiais que você utiliza. A carteirinha é bem tosca, agora tá melhorzinha mas é um negócio assim de papelão... que eles colavam sua foto assim do lado, 2x2 e tinha batido a máquina essas coisas todas. E inclusive assim, todos os materiais, eles obrigavam você a falar todos os materiais, então você ficava inventando material que você nunca usou, mas pode ser que um dia você use... (MC) sim, porque você fica já garantido. (AP) e todas as técnicas, lá lá lá, então o negócio ficava com umas duas, três linhas de descrição de material, de técnica, seu RG, seu CPF, data, tá, tá, tá e vai o número Sutaco. Então assim, é um documentinho de identificação, não é um CREA...Ele te autoriza a emitir notas fiscais pela Sutaco do seu trabalho, e ele te, acho que dá umas facilidades quando por exemplo, você tá participando de uma feira, uma coisa... é uma identificação profissional. (MC) sim, eu entendi. É um CREA mesmo... (AP) é um CREAzinho, era pra ser um CREA mas não teve força política pra isso. Até porque tem uma disparidade gigante entre a... é aquela história né, da senhorinha que faz os panos de prato crochetado e o marceneiro. (barulho de ferramenta) Bom, não tô fazendo o anel mas só pra você ver o... é muito bonito. Aqui tem o recozimento porque tá muito duro. (barulho de máquina) Tá muito duro, por isso eu vou dar essa recozidinha pra malear. E eu tô meio sem, mudei as coisas de posição... tô criativa. Isso aqui por exemplo eu tinha um outro motor e ele tinha gancho, então isso ficava aqui... o pano ficava aqui, essa corrente vinha até aqui embaixo, e ela tinha (risada) vários lugares, vários... (MC) entendi. Essa bancada ficou charmosa pra caramba né? (AP) ela é linda, e é fotogênica... eu boto foto dela as pessoas ficam loucas. (MC) imagino (AP) e o objetivo dela é porque eu tinha duas gatinhas, coparticipes aqui, muito coparticipes a ponto de quando eu comprei outra bancada eu pensar em alguma coisa que pudesse fechar. Porque eu tinha muito medo por exemplo de, sei lá.. inclusive a estrutura inicial do atelier era essa, eu tinha um gancho bem alto onde eu colocava isso ... porque era um tal de ficar pulando aqui, de sair dando volta entendeu, eu tinha medo delas queimarem numa hora dessas. Então tem várias coisinhas que tão... que eu ainda tô adaptando, porque ficou sabe... a última gatinha morreu já vai fazer 2 anos, mas eu ainda estou com as coisas do jeito que era. Tava fazendo doutorado, não ia ficar minha vida pra organizar. Bom, aqui é a solda... (barulho de ferramentas) ... se você quiser depois

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eu mando umas fotos bem bonitas pra você.... meu marido é fotógrafo e a gente tem.... (MC) ah... mas isto é muito gentil... (AP) coisas de making of, a gente tem pencas de making of... (MC) nossa, mas eu agradeço tanto, porque eu posso prestar atenção à vontade. (AP) É, e a gente nunca consegue fazer uma foto que preste nessas horas, você tem que estar muito em cima de mim... (MC) nunca fica bom... (AP) ... e é perigoso. E, eu ... aí eu boto tripé, durante muito tempo eu boto um tripé aqui e aquelas máquinas pequenininhas que pegavam a bancada inteira, então assim... eu conseguia fazer making off, tinha noiva que me pedia making of de aliança eu falava meu Deus ... (MC) Meus Deus, mas que doideira, né? (AP) as vezes eu voltava uma etapa pra trás, as vezes eu voltava uma etapa pra traz só pra fazer, porque eu tinha esquecido de fazer uma foto, eu queria morrer... tipo assim, você acabou de soldar e... (risada) (MC) risada. Cadê a foto da solda?! (AP) cadê a foto da solda! (risada) (MC) É uma coisa minúscula... (AP) Eu não sou chegada a coisas minúsculas, eu as vezes faço porque não tem jeito, mas tipo assim se eu puder minhas joias serão sempre enormes porque eu, meu talento é... eu falo que eu sou muito mais cabeça do que mão na minha joalheria. (MC) Mas é estilo? (AP) É estilo também. (MC) Porque tem isso, provavelmente seja seu estilo. (AP) porque eu sou grandona, porque as bijuterias que eu usava eram enormes, tem uma questão de estilo. Tem uma coisa interessante, que eu demorei muitos e muitos anos pra identificar, que eu tenho, eu sempre tive um pouco, eu tenho muita enxaqueca e fotofobia, que são os sintomas de uma boa enxaqueca, de uma enxaqueca profissional. E aí acabou... tive que desligar antes que esse lingote estrague meu aparelhinho... eu adoro isso aqui, isso aqui eu tô totalmente viciada... (MC) isso aqui é o quê? (AP) Isso aqui é um umidificador que é pra ser usado com óleos essenciais... (MC) ah, você tá pondo óleos essenciais (AP) e ele brinca com cores, ele vai passando as cores do arco-íris. (MC) nossa, que delícia... (AP) é que você tava de costas... quando o nível de água diminui ele interrompe a luz, então o perigo é ele queimar, então eu boto, primeiro tá super seco, quando eu mexo com ferramenta, quando eu mexo com joia antiga eu fico toda ferrada de alergia, e tá muito seco, então assim... (MC) você salvou o negócio (AP) eu deixo... ainda é bonito, fico vendo luzinha colorida, tudo na minha vida é colorido, eu sou bem... eu não sou um unicórnio porque não sou exatamente uma princesa da Disney mas... (MC) risada (AP) ... outro dia eu tava procurando uma pantufa só tinha de unicórnio.... eu falei tipo não ... como que uma mulher de 52 anos querendo comprar uma pantufa, foi naquela

semana do frio, eu queria, sabe eu tinha acabado de terminar a tese... (MC) você queria só uma pantufa... (AP) só queria enfiar meu pé numa almofada (risada) (MC) e ficar lá... (AP) aí eu comprei um cobertorzinho... primeiro que eu achei que eu ia assistir a copa no frio (risada) (MC) primeira grande mudança... (AP) Deu errado, eu comprei um cobertorzinho novo só pra assistir a copa. E eu queria a pantufa e um cobertorzinho, daqueles muito leves que tem hoje em dia, super fofo. Cara, saí pelo shopping, no primeiro lugar unicórnio, no segundo lugar unicórnio, no terceiro lugar unicórnio, aí em um lugar tinha uma de dragão, aí eu ... é essa! De criança, pequenininha... a de dragão era ótima, era verde com aquele negocinho assim, maravilhosa... (MC) não tinha uma normal assim... (AP) não, tipo um sapato né... não tinha, não existe, brasileiro não tem esses avanços não. Aí eu já desisti, botei minhas meias, minhas sandálias havaianas, me agasalhei bem... (MC) Não era o que você queria, mas o frio também ...não precisou, teve dias que fez um calor desgracento... (AP) ... eu acho que o meu gotejador está na outra bancada, vamos até a outra bancada, e eu vou fazer uma listinha do que eu tirei de lá pra repor. Vamos improvisar porque nem tudo na vida é perfeito... (MC) é muita coisinha (AP) é muita coisinha, cada ferrinho é de um jeito... (barulho de ferramenta) ... as pessoas geralmente usam pincel, isso aqui é um óleo, uma substancia que ele impede a oxidação durante a solda. E a maioria das pessoas usa pincel... que eu acho um serviço de português, porque o negócio tá quente, o local tá quente, se você precisar botar mais você vai queimar o pincel, pincel é caro... então eu tenho assim, há uns 10 anos eu comprei um gotejador, aquele negócio de dentista, que é de metal mas não derrete... (MC) Outra coisa mesmo de dentista. Você já fez alguma coisa, não? De fazer alguma coisa de improviso... (AP) De ferramenta fiz mais assim, fiz porque não tive escolha. Eu tinha... todas as ferramentas de cravação são sob medida pra o tamanho da sua mão. Então assim, se você faz um curso de cravação as primeiras aulas são de construção das suas ferramentas. E aí as suas ferramentas ganham outro significado, porque aí a importância, quando você começa a entender, quando você faz uma ferramenta que você entende o que é uma ferramenta. (MC) Então você fez suas ferramentas, algumas delas? (AP) As de cravação. Porque o que é que acontece, eu tô separando as ferramentas aqui porque se vem uma pessoa que não é joalheira... as minhas ferramentas não né... (MC) risada (AP) E ao mesmo tempo eu não vou dar isto... (MC) Essa era aquela pergunta que eu tinha te feito lá atrás... (AP) E ao mesmo tempo não vou dar uma coisa tosca... essa tá toda novinha bonitinha, não. (MC) Eu entendi. Agora a resposta daquela pergunta ficou ainda mais clara. (AP) Não, ferramenta não se empresta... (MC) então, era essa a minha pergunta...

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(AP) mas essas você não empresta porque a ferramenta ela toma a sua mão né. Por exemplo, uma lima, essa lima aqui é uma 2, é cara, mas é normal, nem é tão cara por sinal, mas assim, tudo é pra ser bem cuidado, é suíça, número 2, tem uma abrasividade grande, e eu tô com ela há 18 anos. Mas eu tenho um jeito de pegar, então ela vai gastar mais num lugar do que no outro.... (MC) sim, totalmente... (AP) então assim, ela vai tomando a sua, ela vai tomando digamos a forma do seu gesto. Então assim, essas terras de ninguém que todo mundo usa todas as ferramentas não funciona, porque no fundo no fundo você não conhece o que você tá usando. (MC) Sim, você tá certa. (AP) E se outra pessoa usou, outra pessoa usou, volta pra você, não é a mesma ferramenta. Claro que num nível muito suave, mas pra quem tá ali na ralação todo dia o impacto é enorme. (MC) percebe a diferença, tá. (silêncio) (AP) Então com isso aqui eu não corro o risco de queimar... (MC) foi aquilo que você falou... (AP) eu não preciso ficar sentindo cheiro de pelo queimado toda vez que eu vou fazer uma solda né... não entendo, não entendo essas coisas. Mas em todos os lugares que você vai você vê esses pinceizinhos no soldamento. E eu ensino pra todo mundo, o pessoal fala... aí vem o departamento mania... E aí tem uma outra coisa que eu acho muito interessante também que eu tava explicando pra menina ontem, quando ela fez a primeira peça, tem um negócio que é o seguinte... Joalheria tem tudo a ver com o ouvido. Tem professores tradicionais que não deixam música na sala, porque ... vem pra cá porque vai correr aqui... quanto tu ver um brilhinho... agora... viu que brilhou? (MC) tô vendo, vi (AP) isso é uma solda comum... (MC) ali... (AP) ela fica mais brilhante... (MC) aham fica sim (AP) Deixa eu ver se eu consigo fazer de novo... (silêncio) ... viu o brilhinho? (MC) tô vendo agora. (AP) isso a gente chama de correr a solda. (MC) ah... isso é correr a solda, entendi (AP) é muito mágico... pronto (Barulho de ferramenta) E aí, dependendo do seu grau de neurose, você vê que minha bancada tá sempre arrumada, não fica nunca nenhuma ferramenta aqui, usou, guardou. (MC) ah, você não fica com isso... (AP) eu não fico com 10 ferramentas aqui em cima porque eu não gosto que cai uma gota de sal branqueador numa lima que custa US$ 100,00 (MC) eu entendi muitíssimo... (AP) eu não posso por exemplo, sei lá... cai um negócio desse que é pesadinho, em cima dum, em cima do meu... (MC) então quer dizer, essas suas gavetinhas são... (AP) ... arco de serra, e aí quebra a serra que é essa coisa finíssima. Ou então eu esbarro derrubo um alicate de corte que custou cento e poucos reais e ele entorta todo, quebra a ponta e não serve pra mais nada... nem como afiar...

(MC) não serve pra mais nada mesmo (AP) Se quebra a ponta e entorta a ponta não tem conserto. E... tem umas pessoas que ficam inventando novas ferramentas, sei lá... pega uma ferramenta que quebrou e uso de estrutura pra criar uma ferramenta nova... não, eu prefiro fazer joia. (MC) risada (AP) meus amigos quando me dizem isso... porque você tem os artesãos cientistas né, os artesãos inventores... (MC) e é verdade... (AP) e eu falei assim ... não, eu faço joia, ferramenta é lá na fornitura. (Risada) (MC) E quem são os seus parceiros? Então já aproveita, já que você falou que ferramenta é lá... quem que você vê que são os seus parceiros? Você já falou um ali né, que é o laminador. (AP) Parceiro o que? Parceiro ferramenta? (MC) Não, parceiro de forma geral, por exemplo, você já me falou que você tem um atelier pra cortar...Você tem... (AP) sim, parceiro são... eu tenho alguns joalheiros que tem oficinas equipadas que eu posso dizer assim posso passar o dia aí preparando material, usando fundição e o laminador elétrico. Isso é o que eu não tenho. (MC) tá bom... tá. (AP) Eu considero parceiros os funcionários das fornituras, os vendedores de ferramenta, eu tenho uma fidelidade canina. Eu tenho um cara que eu compro há 16 anos, eu tenho um cara que eu compro há 18 anos, eu tenho um cara que eu compro a menos tempo, mas... (MC) suas ferramentas? (AP) minhas ferramentas. Porque é o cara que você chega lá e fala, preciso comprar um motor, e aí o cara fala assim, você tá pronta pra ter um bagulho desse preço? Não resolve teu problema um desse... Então você tem pessoas no mercado de ferramentas, de pedras e tudo que são parceiros porque eles também te ensinam... (MC) tá, muito legal (AP) ... Então tipo assim, tem algumas pessoas que ficam muitos e muitos anos nessas lojas porque eles dão aula pra gente. Eu aprendi a dar banho de prata, galvanoplastia eu aprendi com o vendedor da loja. Eu não fui fazer um curso de galvanoplastia, a gente peça um livro, pesquisa na internet e lê, o cara te explica tem que botar tantos volts, tem que fazer não sei o quê... (MC) tudo (AP) ... pronto, acabou, aprendi...Eu ligo pros caras, um dia eu liguei pra um num sábado, eu não sabia que ele não trabalhava sábado, seu Toninho (risada) aconteceu isso assim assim com o meu motor, o que eu faço? (risada) Aí Ana aperta, fez barulho assim é isto, fez barulho assado é aquilo, se fez barulho assado você vai ter que levar pra consertar, se fez barulho aqui em cima você abre aqui, vira ali... isso é parceria... (MC) com certeza, com certeza. (AP) É... e aí eu sou muito fiel, porque a única forma que eu tenho de retribuir é comprando com eles, e são bons parceiros. Eu tenho joalheiros que são bons parceiros, eu tenho ourives, eu tenho peças que eu por exemplo, perto de qualificar eu não tinha condição nenhuma de fazer todas as encomendas, então eu terceirizei uma parte do meu trabalho. As peças que não tinham autoria, ou seja, as peças normais eu pedi pra uma pessoa fazer, então eu tenho que ter essa pessoa parceiro.

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(MC) tipo o quê? (AP) ai, tipo assim, era um brinco, um brinco, era tipo assim, um brinco de pérola. Gente isso aqui não tem ciência nenhuma, não tem ciência que eu digo assim, não tem que ser artístico. Eu tenho que especificar para ele o que eu quero, a espessura do fio, a espessura da chapa, eu tenho que dizer pra ele ficar com cara de uma peça minha, mas ele, não é um desenho meu. Eu não ... porque o desenho acontece, o meu desenho particular eu não desenho as peças, eu esboço. (MC) você não desenha? Ah tá (AP) eu não tenho talento nenhum para isso... eu tenho talento pra desenho técnico, mas não faço, e não tenho talento nenhum pra desenho a mão livre. Então eu esboço as peças, mas ela acontece na bancada. Porque aí faz um torto pra cá e fala assim... (MC) ficou bom... (AP) gostei, gostei... aí eu acabo de entortar. Quer dizer, a peça nunca é o que eu planejei. E aí quando não tem nada disso envolvido, é possível terceirizar... (MC) aí você terceiriza, ótimo. (AP) é possível terceirizar. Eu não costumo fazer isto porque normalmente eu me aborreço. Por que a gente tem tradições na ourivesaria, a gente tem tradições na ourivesaria clássica que são peças do tipo, quando mais fino melhor... isso não né... (MC) risada (AP) ... eu não sou uma fábrica. As minhas peças são ricas, gordas, são pesadas... (MC) você acabou de falar né? (risada) (AP) não pode ter miséria... eu falo mesmo, não pode ter miséria entendeu, você não com.... esse brinco por acaso é da minha, é de família, então deve ter seus 70 anos por aí, dele você não vê, agora um brinco meu desse você vê ouro... (MC) evidente... você faz aparecer... (AP) eu faço aparecer tudo. (risada) (MC) entendi (AP) Então eu me aborreço as vezes porque vem... o cara fica criativo e vem uma slim, e faz uma peça slim, aí eu falo assim, desculpa, não dá. Então assim, supostamente nós temos parcerias com outras pessoas. É... quem mais que é parceiro? Lojista seriam parceiros, mas no momento eu só tô em uma loja, eu não tenho parceiro, porque em tese são as pessoas que estão apresentando o seu trabalho no mercado. Como eu sou a principal vendedora e anunciante das minhas próprias peças é uma parceria pequena. (MC) Então você praticamente não entrega pra lojas? (AP) Não, quase nada. Hoje eu tenho uma loja... (MC) Sua venda é como? (AP) Por Whatsapp (risada) (MC) por Whatsapp. Você coloca no Instagram e vai espalhando... (AP) Instagram, Whatsapp, cliente que manda... essa encomenda que eu fiz na final da copa foi isso, é uma cliente minha que estava conversando com uma pessoa que estava desesperada atrás de um ourives... Aí liga pra Ana que... e aí tem uma fama, quinta-feira pra entregar domingo... (MC) aí resolve... (AP) a Ana resolve. (MC) entendi

(AP) Então eu criei esse monstro, eu criei uma fama muito complicada pra mim mesma... (MC) entendi (AP) e eu tô com dificuldade de sair disso, que é o ... (MC) é difícil (AP) que eu quero porque a idade tá pesando... e aí entra a questão do ritmo. Eu começo a precisar ter ritmo... não dá mais pra ser aquela coisa que... (risada) eufórica. E não consigo porque aparece um negócio desse quando eu vejo tô trabalhando no domingo, eu entreguei as 6 PM de domingo essa peça. (MC) Você faz coisas que você não gosta? (AP) Dependendo das contas que eu tiver pra pagar... (risada) (MC) dependendo sim... (AP) Dependendo. Por exemplo, eu tô voltando de passar 4 meses sem trabalhar, 4 meses sem trabalhar, precisando de dinheiro. Se as pessoas vierem me pedir pra fazer um chaveiro do Flamengo eu tô fazendo, é que eu vi um amigo fazendo... se me pedir um chaveiro do Flamengo hoje eu faço. Mas não, eu não quero mais fazer isso. Porque ... é muita falta de planejamento você precisar fazer coisas que você não quer. (MC) certo, sua contingência, é verdade. A gente não faz o doutorado 2, 30 vezes... (AP) Por isso, porque assim, eu quero ter tempo pra caminhar, pra ler... então eu não posso me expor a virar uma noite fazendo um... uma coisa horrorosa... além de tudo uma coisa horrorosa que eu não posso nem por no meu portfolio, eu não posso por. (MC) E essa diferença que você faz entre isso que é do mercado, essa produção que é do mercado, e essa que é da sua linha... (AP) autoral (MC) você falou isso um pouquinho pra mim, autoral. (AP) É mais em função de ser simples ou ser complexo, de ser palatável ou menos palatável... (MC) entendi (AP) tipo assim, minhas peças são enormes com umas pedras esquisitas, e uma brilhante por exemplo, que todo mundo bota brilhante... porque assim, a gente tem coisas interessantes no mercado nacional de joias, se a pessoa fala joia ela quer brilho, mas tem joia que não brilha. Faz como? (risada). Então tipo assim acaba que as pessoas as vezes até usam umas pedras super loucas... aí bota um monte de brilhante em volta porque... aí vende. A gente tem uma coisa de mercado consumidor muito curiosa, muito esquisita na verdade... (MC) e você não põe? (AP) Então assim, as minhas peças eu não vou por nunca. Se eu estiver fazendo uma peça de vender, aí é o que eu falo de mercado, não chega a ser feia, é uma coisa que eu ainda desenhei, uma coisa que eu ainda gosto, tá isso aqui, e aqui vai uma pérola em baixo. É um desenho... é liso, é reto, eu faço. Se eu tivesse fazendo dizendo que criação minha seria só um metal sem nada e a pedra lá em baixo. Mas aí as vezes você faz um bagulho cheio de brilhantinhos porque aquilo a primeira pessoa que vê vai compar. (MC) ah, entendi. (AP) Isso dá zanga né, não precisava. Mas a gente tem essa cultura, por exemplo, aquela autora que eu falei pra você, ela foi uma colecionadora, ela acabou de falecer, ela

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foi uma colecionadora de joalheria contemporânea, joalheria artística holandesa durante a vida dela inteira, ela e o marido. E então, numa determinada altura, ela tá num diálogo com uma pessoa, num site desses internacionais em que se discute joalheria, e tem uma conversa muito interessante que é a seguinte, falando que, na sociedade onde você tem pequena disparidade, as pessoas não usam a joia como um marcador social. Ou melhor, usam, usam... (MC) nossa, mas isso... que interessante. (AP) mas de forma cultural. Então, porque ela estava tentando explicar porque que a joia contemporânea é essa joia completamente fora do esquadro, que usa materiais dos mais absurdos, com desenhos mais absurdos, ou seja, na beira das artes plásticas faz sentindo pra população holandesa. Porque sei lá, você tem três das grandes galerias do mundo tão lá, em Amsterdam ou nos arredores. E aí ela falava o seguinte, que que ela observa o mundo inteiro, que falou o mundo inteiro, que ... (MC) que linda ela, né? (AP) África, Ásia, continentes, era uma mulher iluminada, assim, a deusa da joalheria, pra todo mundo que estuda joalheria, que estuda joalheria pra valer. A maioria nem sabe que ela existe. E aí ela explicava isso, que onde você não tem disparidade cai essa necessidade do brilho, do... dessa coisa que é ostensivamente valor intrínseco... o diamante. E sobe aquela coisa que não é pra você se encaixar, é pra você se diferenciar, que aí é a joalheria artística, que não tem materiais, que não tem ostentação. Cara, tipo assim, eu sempre acreditei desde moleca, mas assim, sabe quando uma pessoa endossa o que você pensa? Aí você fala assim... Humm, já achei minha citação... já achei minha citação...(risada). Porque ela fala de maneira muito clara comparando a Holanda com outros países mesmo, e ela tá falando a realidade do país dela. É muito fantástico isso, então tipo assim, a gente tá falando de ceder pro mercado pra conseguir então, por exemplo o pessoal gosta mais de pedra transparente do que de pedra opaca, gosta mais de pedra conhecida do que de pedra desconhecida...E aí tem umas coisas ótimas, eu achei um artigo... tipo assim no finalzinho, quando já não era pra tá lendo nada... (MC) você não devia estar mais fazendo aquilo... (AP) Eu não devia estar mais fazendo aquilo... (MC) porque só piora né (risada) sei bem. (AP) Eu achei um artigo de psicologia genética, uma pesquisa de não sei quanto tempo, coisa de americano, estatística, sabe assim, aquelas coisas lindas que eles fazem, que eles tem assim, eles tem dinheiro pra fazer, você poderia fazer, se tivesse uma bolada de dinheiro pra fazer a sua tese... (MC) É isso mesmo. (AP) Podia ser feita assim, a gente não tem a condição, a epistemologia.... ajuda o povo de humanas a fazer missanga né? (MC) missanga... (risada) (AP) é a melhor página de facebook é essa. Aí ela... aí, gente vamos recuperar porque eu fui lá na ajuda ao povo de humanas, e... voltando... me perdi. Peraí, deixa eu recapitular... tava falando de joia, não sei o que, ouro, brilhante não... o artigo de psicologia genética termina falando o seguinte pra gente, eles pesquisaram pra entender por que que as pessoas gostam das coisas que

brilham, e eles chegaram a seguinte conclusão: não é uma questão de herança genética, mas é uma coisa culturalmente passada e fortalecida nas pessoas que tem, que ganham este entendimento. Então eles tão falando assim, não tá no DNA da gente mas vem... vem e vem forte. Sobreviviam os primeiros humanoides, humanos, que identificavam água potável, que e transparente e brilha. E aí eles fazem seiscentas e poucas mil pesquisas, que pra gente é invisível quando você mais os caras tão lá fazendo amarradões, é... bebê... mate, fotobrilhante, brinquedinho, brilhante ou não brilhante, tipo assim, fizeram com bebê, fizeram com adultos, fizeram com idosos, fizeram com os gêneros, eles recortaram de todas as maneiras possíveis ... (MC) e todo mundo prefere com brilho? (AP) e todos os tipo de matérias possíveis e o brilhante era sempre... pra onde o olho corria primeiro. Minha tese podia ser só sobre isso...(risada) (MC) agora você vai fazer um pós-doc... (AP) não, já falei uns três né... tem uns três pós-doc pronto, com material pronto inclusive. E é muito fantástico... aí você tem um cara que tá lá fazendo pesquisa de laboratório, justificando porque que a gente gosta de ouro, de prata, de brilho, de pedra transparente... (MC) Então não tem a ver com... por muito tempo... (AP) tem um rodapé, não, e aí tem um rodapé no final dizendo dos reforços disso... porque a medida que nós vamos construindo os nossos códigos sociais, as coisas que brilham são das camadas dominantes e o resto é do resto... as coisas sujas são do resto. (MC) sei, são da escória. (AP) são escória. E aí vem toda questão, e aí vem a legislação das indumentárias, da idade média tinha muito isso, tinham cores que não podiam ser usadas, brilho não podia ser usado, pedra não podia ser usada, tinha ... que acontece, tinha... (AP) E aí eles ainda derivam uma coisa interessante, eles ainda derivam uma coisa fantástica, quase que é um rodapé mas que eu achei genial é o seguinte... feito isso, dito isso... porque é que tem gente que gosta de coisa fosca? (MC) Adorei essa pergunta, porque eu fiquei com esse negócio na cabeça... (AP) eu só gosto de coisa fosca. Se dependesse de mim o mundo era fosco. (MC) Aham... tirava o brilho... (AP) Aí tem dois problemas, ele explica o seguinte, ainda dá um exemplo acadêmico que é de chorar de rir... Ele explica o seguinte, você tem por derivação, quando você tem a derivação social por ser diferente, diferenciação mesmo, sou diferente, você não tá tentando ser tribal, você começa a falar, então eu não gosto de cor, eu não gosto de brilho, eu gosto de fosco. Então se você parar pra pesar, sei lá, nos anos 80, Antonio Bernardo faz joia de ouro fosco no Rio de Janeiro, e é uma coisa super moderna, incrível, e ele ganha um mercado... um absurdo na zona sul do Rio de Janeiro, ele se faz naquele momento exato, e muito rapidamente, é porque você tem o contrário. É como agora você não querer ter uma bolsa Hermès porque tem cópia no camelô. (MC) isso!

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(AP) Então você quer coisa que não é maioria, aí você quer fosco. Aí ele faz uma coisa ótima que é fala de preconceito entendeu... todo mundo quer brilhante, quero fosco! E aí ele faz uma coisa ótima, e aí ele fala assim, se você apresentar um artigo, se você apresentar um texto acadêmico encadernado com papel brilhante, ele vai ser considerado menos sério do que se você entregar num papel fosco... (MC) menos sério... (AP) aí eu falei assim, verdade! E aí ele começa a fazer uma comparação de outros assuntos, por exemplo, tá na moda o quê? Quando você quer fazer de conta que aquele produto alimentício ele é sustentável você faz uma embalagem fosca você põe craft... Não, aquelas coisas que tão fazendo agora, aquelas batatinhas fritas que não são fritas, e não sei o quê... elas são num preto fosco. Aqueles sensation, sensação, sei lá que marca... que não são nada saudáveis, mas eles vendem saúde e sustentabilidade, que as embalagens são foscas, porque é o diferencial, porque a Ruffles é brilhante entendeu? (Risada) Muito, muito interessante, ou seja, tem gente que para pra pesquisar este aspecto humano, acho isso... (MC) não, achei isso legal, e bem relevante, eu gosto. (AP) não, gostei muito. Porque aí é uma explicação de verdade pra uma coisa que é necessidade. Você pensa na... a mulher brasileira está na situação mais absurda ela tá com alguma coisa pendurada... (MC) (Risada) (AP) a mulher vai pra praia com bijuteria. Não dá pra entender que aquilo vai esquentar, vai deixar marca, a gente vai com peças pra a praia. (MC) vai, a gente vai sim. Eu digo... (AP) a gente vai pra um enterro com joia, pra um enterro com joia. A gente vai pular carnaval num bloco que vai ficar imundo e suado, cheio de bijuteria, cheio de joia. Quer dizer bijuteria tem a ver com o poder aquisitivo, mas é muito... não existe a figura da... a mulher que não lavou o cabelo, que não fez a unha e que não usa uma joia no Brasil. As mulheres fazem isso, todas, indiscriminadamente. Eu tenho uma pessoa, conheço uma pessoa que enriqueceu vendendo joia em comunidade. (MC) joia, joia? (AP) Joia, joia de ouro amarelo. Em 300 prestações, as peças ticket médio baratíssimo... (MC) mas era ouro? (AP) mas aquela pessoa também tem necessidade de joia. (MC) acredito, acho que é verdade. Assim como uma pessoa, como eu tive uma pessoa que me ajudava em casa, que ela um dia gastou R$ 1.000,00 num sapato de salto rosa. (AP) mas aquilo ali era pra identidade dela. (MC) Ela precisava muito daquele sapato de salto rosa. R$ 1.000,00. É a mesma... no fundo é a mesmo... só que a joia no fundo é muito mais... (AP) simbólico (MC) é muito mais simbólico. (AP) porque é almejar algo... um negócio longe... (MC) É, ela tem um ... (AP) Que é um caso clássico, eu já falei disso num trabalho, Bling Bling, a ideia da joia na cultura Hip Hop, a ideia da joia no mundo dos traficantes, a ideia das joias nos jogadores de futebol, ou seja, três expressões,

música, futebol, crime, crime também é uma expressão, de camadas populares que tem um ascensão muito veloz, e a coisa que os caras tem mais necessidade, e curiosamente os homens é joia. (MC) é joia. Nossos bicheiros, lembra disso? (AP) lembro. Correntes de bicheiro. A gente ainda hoje chama colar de ouro grosso, corrente de bicheiro. E na Colômbia, quando você vê uma pessoa de ascensão social muito veloz, tipo um novo rico, você chama de esmeraldeiro, que é o bicheiro brasileiro né? Eu fiquei explicando pra um sociólogo um dia, olha o seu esmeraldeiro é o meu bicheiro, é o cara da contravenção, porque era a venda ilegal de esmeraldas, é o cara da contravenção, de ascensão social incorporado na sociedade, aceito socialmente. É o esmeraldeiro, o cara cheio de correntes de ouro... E os brincos de jogador de futebol, pelo amor de Deus... enormes aqueles diamantes... Eu entrei numa loja uma vez, no shopping Pátio Higienópolis, era uma joalheria, mas não era de cadeia de lojas, era uma joalheria ... porque eu vi uma peça muito interessante, eu fiquei muito a fim de olhar ela de perto. E eu entro, costumeiramente faço esse exercício para ver como as pessoas tratam dentro de joalheria, já escrevi até sobre isso. Estava comprando uma joia um rapaz do meu lado no balcão, que estava comprando o brinco do Neymar, ponto final. Podia ser de qualquer material, ele comprou de ouro, mas a pedra não era diamante, mas tinha que ser do tamanho da pedra do Neymar. (MC) que ocupa todo o lóbulo. (AP) que era espetacular, 3 quilates. Eu fiquei olhando assim, sabe quando você percebe, você olha, você assiste o jogo e vê e entende, isso faz uns anos, não foi agora na copa não, você entende, eu consigo entender o cara, ele comprou a joia, usou a joia... Nunca tinha passado pela minha cabeça o fato, tipo assim, eu achei que aquilo influenciaria outros homens e outros jovens a comprar joia, mas eu não achei que a pessoa ia chegar numa loja e falar que queria o brinco do tamanho do do Neymar. No caso das mulheres tá muito comum, nos homens eu não consigo conceber, eu nunca tinha imaginado essa possibilidade. Ela é real igual a de mulher... (MC) Igualzinho a de mulher, mudou muito, isso mudou muito entre os homens. Mas isso é a nossa geração, os jovens, os jovens homens são completamente diferentes... (AP) Não sei por quanto tempo, porque eu vejo um encaretamento muito profundo, tipo assim, na minha bolha eles são diferentes, no resto eles são piores do que jamais foram. Caretice de casando cedo, fazendo tudo ao contrário do que a nossa geração fez, do que a dos meus pais lutou pra ser. Impressionante.... tem um encaretamento da sociedade, mundial muito grande, que não se reflete nesses comportamentos. Tipo assim, sim, de forma geral a joia avançou na questão de gênero, mas ainda tá longe de ser a mesma coisa. Até porque o que eu acho é que o setor joalheiro tá atrasando essa velocidade, porque tá oferecendo coisas horrorosas pros homens. Caretas... (MC) (risada) eu não acompanho, não sei te dizer isso. (AP) Não, tudo a mesma droga de sempre... abotoadura... (MC) abotoadura...

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(AP) aquele negócio sem graça de pulseira de couro, aquele anel mais grossinho, brinco quase nunca, só sobre encomenda, crucifixo, plaquinha... (MC) Você faz coisa pra homem? (AP) Faço, bastante. Eu tenho um público masculino bem grande. Duro é conseguir fazer uma coisa diferente, porque assim, não tem referência. Então você não pode pirar muito porque não vai dar leitura. (MC) Não. (AP) Você não pode pirar de menos se não fica igual ao que você tá falando mal, então você fica... Mas a gente faz, a gente fez, eu e meu marido a gente fez juntos uma coleção masculina que vendeu tudo. (MC) Tudo? (AP) Eu nunca tive uma coleção que vendeu tudo e eu tive que parar pra fazer mais. (MC) jura?! E que é que tinha... brinco... (AP) Tinha isso mesmo, porque é o que compra né.... (MC) Bonito né.... muito bonito. Escuta... (AP) ... mas assim a gente fez tradicional, mas usando... (MC) Seu marido caprichou nessa foto em... Meu (AP) É... (MC) Mas essa foto tá bonita pra caramba... (AP) Essa aí ele deve ter passado uns dias lá brincando com isso... tipo assim a nossa tem que ser melhor do que a dos outros.... (MC) posso imaginar.... não é... Ana vamos perseguir uma peça sua? Você escolhe uma? (AP) Qual a intenção da perseguição para eu escolher a peça certa? (MC) É... a perseguição é investigar desde o processo de criação dele, daquele momento de vou fazer uma coisa assim, até como aquilo ficou de verdade na real, entendeu? E eu vou repassar aqui o que você.... (AP) pode ser duas e você escolhe uma? (MC) lógico, óbvio. (AP) Ah... peraí... (MC) tranquila (AP) ah... mas eu não tenho ela pra te mostrar. (MC) mas você tem fotos? (AP) tenho foto de tudo, lindas (MC) Então você me manda a foto. Mas você tem a foto pra me mostrar... (AP) não, eu tô pensando... (MC) senão eu vou ficar louca de curiosa.... (AP) eu tô pensando no seguinte... 3 coleções que eu desenvolvi na vida, desenvolvendo de verdade, desenvolvendo de verdade. (MC) Isso! (AP) Tipo... eu tive uma experiência, isso é interessante pra você, eu tive uma experiência de trabalho num grupo durante 5 anos. Era um grupo de estudos que se reunia durante 5 anos, se reunia uma vez por mês, que a gente falava, José era o único homem, aliás ele não tava no início depois teve que entrar ... mas ai era 6 no final, e a gente se reunia uma vez por mês no atelier de três delas que dividiam o atelier, o resto eram todos avulsos, e a gente conversava sobre qualquer coisa, como uma delas disse, sobre primer, sobre maquiagem ... até a última ferramenta que trouxeram de New York. Assim, era pra botar na roda as nossas peças, pra um dar palpite no outro, a gente tinha uns compromissos, 2 anuais, que era no primeiro semestre aquele Arte da Vila, e no segundo

semestre a gente todo ano fazia um aniversário do atelier, porque a gente via que era um legado do atelier, então a gente tinha duas exposições por ano, em que a gente se comprometia a ter coleções. No início era bem bazar mesmo, e um belo dia em uma dessas reuniões a gente falou o seguinte: Tem que ter tema, pelo desafio. Porque se você bota um tema na roda, todo mundo vai ter que elaborar a partir de um mesmo ponto de partida, e vamos ver o que é que acontece. Eu continuo acompanhando o grupo, o trabalho delas, eu saí do grupo quando eu comecei o doutorado, mas assim, foram os melhores trabalhos da carreira... (MC) Olha que lindo (AP) Porque... claro que tem erro, você tá .... mas tinha o compromisso de botar o melhor da sua bancada, de um tiro só, numa coleção. Porque normalmente é o que eu te falei, eu faço muita encomenda, eu faço renovação, eu faço um monte de coisa que não é isso. Sobra muito pouco tempo pra criar, e criar um corpo pra doze peças incríveis, pra que você se orgulhe, realmente é muito difícil. Então grupal... como grupo a gente conseguia. Tipo assim, tem uma ou outra peça que depois a gente fez que é bem boa, mas assim, as melhores criações dessas seis pessoas até o momento saíram daqueles esforços lá. E aí foram realmente três coleções incríveis. Teve uma coleção que a gente chamou de... teve uma que foi uma homenagem a semana de 22, que foi em 2012, que cada um escolheu um nome da semana de 22 pra se apropriar. (MC) ah... tá bom. (AP) Então teve a menina que pegou Vila Lobos, cada um pegou uma pessoa, eu peguei Di Cavalcanti e eu vi um quadro que... aí eu estudei Di... um quadro e trabalhei.... teve uma que fez coisas muito literais, eu peguei pedaços de quadro, fragmentos de quadro e transformei em joia. E aí eu anotava, e todo mundo tinha esse compromisso. A gente criou etiquetas pra cada peça que traziam a obra de arte. (MC) nossa que lindo... (AP) Isso foi um trabalho muito bonito. E aí eu peguei Di Cavalcanti, um quadro dele chamado Elegância, duas mulheres bem coquetes, bem anos 20 e, com umas cores absurdas, laranja, roxo, amarelo, vermelho, eram umas cores berrantes, berrantes, berrantes mesmo. Muito antes de... ele tava na virada, ele fazia a virada de coisas muito pasteis, muito nada, e ele foi pra coisa colorida. Então tem um colar dali que é pura cor, não tem rigorosamente nada a ver com o Di mas é da época, uma peça que eu fiz Art deco, um colarzão, eu vou lá buscar. Tem uma outra coleção que eu fiz... foi a última antes de ter tema, mas eu peguei um tema que foi trabalhar com geodos, que são umas pedras bruta, e eu fiz uma coleção inteira a partir disso, todas as peças ficaram muito bonitas. É... vendi todas, e fiquei com um colar pra mim. É... e a outra, que foi o trabalho mais legal que eu já fiz até hoje, quero fazer de novo, quero retomar, que ele foi de 200.. acho que 12... 2012 também. É... que a gente ia discutir o urbano, tipo São Paulo, a vida urbana. Cada um pegou um assunto, então uma pegou o verde, mas ela não usou o verde, no final trabalhava-se com concreto nas joias. (MC) Nossa... (AP) A outra trabalhou com... fez miniatura de arquitetura, então fez pingente do Copan, pingente do

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MASP, ela é muito figurativa, então cada um fez uma coisa. E eu fiz tempo, São Paulo me incomoda a velocidade, eu não tenho a velocidade de São Paulo, aderi a ela, mas não consigo, mas essa aderência, então eu queria o tempo. E aí eu comprei de relojoeiros peças antigas quebradas, pedaços de relógio, e usei nas joias... (MC) usou nas joias? (AP) Então acho que é essa que eu vou pegar pra você... (MC) eu quero ver... (AP) vou te mostrar a foto, enquanto eu... aliás, esse é o que eu não tenho, eu nunca fiz um anel desse pra mim... eu tenho umas peças enormes dessa coleção lá em cima, mas que eram peças de exposição. Por isso que elas não estão feias, tão feitas assim em papel... eu fiz um colar, deste tamanho, com mostradores de relógios antigos, parece uma máquina do tempo, sério... parece assim, parece painel de carro... (MC) aham... sei (AP) ... era uma coisa bem assim. Aqui no celular eu tenho fotos de algumas peças.... portfólio.... (silencio). Esse foi o que eu te falei, o geodo é essa pedra aqui... (MC) nossa, mas que lindo isso... (AP) é uma pedra bruta... (MC) nossa, mas que lindo que tá isso.... (AP) ela tá fixada com os dois ônix e a perola numa... num copinho de prata, e aí eu fiz com... essa é uma das pedras que eu mais gosto. (MC) é lindo esse colar... (AP) esse aqui é meu, eu fiquei...eu fiquei com duas peças... (MC) nossa, mas tá bonito demais... (AP) é um brinco que tem dois ... e aqui eu tenho ônix, labradorita, quartzo e prata. E... esse aqui eu vendi, era meu (risada) (MC) fazer o que né? (AP) Ia ficar bom pra mim, eu fiz ele do meu tamanho... foi a primeira peça que vendeu, foi a primeira peça que vendeu na exposição. Esse ficou lindo também... (MC) nossa, mas tá lindo... (AP) esse aqui é um geodo, e eu não tinha, eu não queria cravar por que ela é uma pedra muito dura e é muito frágil, se você bater ela no lugar certo ela esmigalha, vira um pó. E aí eu fiz por pressão, eu fiz este círculo e prendi entre duas camadas de prata a pedra só... (MC) ah, entendi, ela tá encaixada ali... (AP) ela tá encaixada. Nossa, nunca ia imaginar que ela tava encaixada. (AP) Esse aqui é do... do Di Cavalcanti, tinha essas cores no quadro... (MC) tinha essas cores que você falou... (AP) e aí eu fiz uma coisa Art Deco porque era de 22... (MC) é um colar? (AP) é um colar, de nove voltas. (MC) nossa senhora, mas ele ficou bem Art Deco mesmo... (AP) colar Cleópatra. Ele é um colar de Cleópatra, ele é grande aqui assim... (MC) você gosta de peça grande, entendi... (AP) ... eu gosto de coisa grande. E esses são os anéis de criação... (MC) você precisa começar a criar mais coisas... (AP) Então, eu tô querendo... (MC) Ficam lindas Ana... olha isso...

(AP) Eu tô fazendo agora esse esforço, eu não... eu vou fazer encomenda, óbvio, uma coisa que quando eu estou quebrada, ou que não remontou coisa no atelier, eu quero reduzir a quantidade de encomenda e aumentar peça pronta minha, minha mesmo, que vai vender também. Eu tive uma cliente aqui outro dia, que era do banco, ou seja, minha cliente de primeira hora, tem peça minha de 2005... Ela tá morando na Itália hoje em dia e ela passou por aqui no dia das mães, ela veio visitar a mãe e passou aqui pra comprar um presente. Pensa, a mulher mora na Itália, mas o presente de dia das mães ela compra aqui na hora que ela tá chegando no aeroporto. Super me emocionada esse tipo de coisa, porque é uma relação longa né, longeva e de reconhecimento do trabalho. E aí o que é que acontece, ela virou e falou assim... cadê aquelas coisas malucas que você fazia? Eu botava peça sua era assunto de festa, era assunto de reunião de trabalho, porque eu chegava com uma peça que as pessoas não conseguiam não falar da peça. É o que nos EUA a gente chama de conversation. É a peça que quebra gelo pra conversar, porque é tão absurda que não dá pra não falar. Ela tem uma peça dessa coleção do tempo que é uma mola de relógio pendurada no pescoço... É uma mola que pega aqui, faz assim, faz assim, ai eu botei uma corrente pra fechar o colar. Fica em pé assim, ela não para, fica em pé balançando. Ela usa aqui... oh, aqui são roldaninhas, aqui é uma caixa, uma máquina inteira... (MC) Aqui tem um vidro? (AP) Não, tem um quartzo. (MC) tem um quartzo... (AP) tem um quartzo. Isso aqui é outro relógio inteiro, e esse aqui são ponteirinhos. Eu tipo fiz um chocalho de ponteirinhos... fica um chocalho, esse aqui também. Esse não faz muito barulho porque a maioria é de plástico né? Esse aqui era um relógio da minha mãe que eu fiz isso, mas eu desmontei ... eu tenho hoje, esse relógio tá guardadinho ali. É incrível, ficou muito bonito. É um relógio de ouro que eu fiz com citrino (MC) Esse você fez pra você? (AP) Esse eu fiz pra mim... Aí eu fiz uma série de medalhas com frases de músicas, tipo MPB, que falam sobre tempo. Então tem “o tempo não para”, “tempo, tempo, tempo”... (MC) o assunto tempo era assim... (AP) o assunto era tempo...a exposição chamava Adornos Urbanos, e a minha chamava Tempos Urbanos. (MC) lindos! Você fez quantas peças? (AP) Eu fiz na época acho que umas 20, mas eu continuei fazendo, é isso que eu quero te mostrar, eu fiz uma no ano passado, que me deu vontade louca de fazer de novo, porque a pessoa simplesmente me abordou e me pediu assim, eu queria que você fizesse uma peça daquela...Porque era uma cliente, essa história tá na tese, era uma cliente, pra você ter ideia essa peça tem 20 cm, é uma peça... ela tem um palmo. (MC) e eu achava que era uma coisinha assim... (AP) As meninas da loja, a gente faz o romaneio e manda... (MC) quanto? (AP) tem 20 cm, assim... Eu uso com uma corrente, é minha, essa eu não vendi não...Se quebrar me mata né porque eu não vou achar nunca outra pedra igual a essa. Cadê, cadê.... achei (MC) Ah... mas esse tá lindo...

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(AP) Isto aqui a pessoa só tinha o mostrador, num relógio do pai, ela me pediu pra colocar a hora do nascimento dela nos ponteiros... (MC) gente que coisa mais linda! (AP) aí eu fixei isso com cobre né, com cobre profissional pra esse ponteiro não sair rodando com o tempo, e botei um quartzo fumê lapidação tcheca. Então quando você olha parece que... (MC) Onde você arranjou isso? (AP) Eu tenho mais de 5.000 pedras aqui... eu compro pedras há 30 anos. Eu compro pedras há 30 anos. (MC) Como você estabelece o valor disso? Porque não é brincadeira... (AP) Aí entra a executiva, aí entra a executiva... a vantagem da oficina pequena é que você sabe tudo onde tá... com rodinha pequena então... (risada) (MC) Então você tem pedras ali que... não é uma coisa assim que você vai lá e compra e daí você repassa... (AP) Nunca vi ninguém ter isso aqui, eu tenho. (MC) Que é que é isso aqui? (AP) A identidade da pedra, quando precisa cor pra diferenciar, a lapidação, o formato, quantos quilates peça, o preço de quilates, o preço da peça, o dia da compra, o dólar do dia, de quem eu compre. (MC) Então por exemplo, neste caso... (AP) Se eu preciso fazer um orçamento eu abro aqui e olho. (MC) você idealizou a peça, olhou a pedra, e fez o orçamento já direitinho? (AP) É. Nas minhas coleções, eu sou bastante cuidadosa em termos, digamos empresariais, o termo não é esse, é mais financeiro. Eu tenho muito cuidado porque por exemplo, é um hábito meu, meu marido é o oposto disso, ele faz joias porque ele acha bonito, ele vive de fotografia e de joias porque não chega a ser hobby, ele vende as coisas que ele faz, não é hobby, mas ele cria, depois ele vai ver quanto que deu o valor. E aí ele chega com umas coisas milionárias aqui porque ele usou as pedras mais caras, com a maior quantidade de metal, mais horas trabalhadas... (risada) (MC) vai ser complicado vender aquilo. (AP) E eu que sou encarregada de vender.... (MC) ainda bem que você é boa né.... (AP) a gente sempre briga com ele porque eu falo assim, cara não dá pra sentar, e três pedras na peça, não dá pra botar duas mais baratas, não dá pra botar uma maior e duas menores, não dá pra olhar o preço do material antes de começar a fazer a peça? Porque eu faço isso... (MC) você faz isso? (AP) Eu faço isso, porque senão você inviabiliza o negócio. Você pode fazer peças lindas, sua arte tá ... agora eu preciso vender. E se eu pego as três peças, pedras mais caras que eu tenho, outra coisa, eu não posso fazer uma pedra cara demais na prata, porque ninguém vai querer pagar, porque a gente tem um problema de achar que prata não é joia no Brasil. Então se você tem uma pedra muito cara você vai ter que fazer em ouro. E aí todo mundo acha que é valiosa, isso é outro problema. Então assim, eu parto sempre... tá, eu até crio, mas eu crio, boto na mesa, puxo minha tabela e pego um caderno, e assim gente tá somando tanto, olha o custo disso aqui... o seu desenho vai levar pouco tempo, muito tempo, quantas horas... isso não se paga. E tem uma outra coisa que é

valor percebido. Por exemplo, sei lá... pra ficar na área que você conhece... marchetaria... você pode cortar uns negocinhos desse tamanho, montar uma peça que leva 350 mil horas... que vai ficar colando 3 milhões de dias, e você não vai vender... (MC) não vai vender... (AP) A não ser que você pegue tudo isso e faça um quadro, porque aí vira obra de arte. Porque se você fizer uma caixa... (MC) uma mesinha... se ferrou, se ferrou... (AP) caixa tem um preço., caixa tem um preço até aonde as pessoas chegam. Porque tem uma percepção de valor...e madeira é madeira, ninguém tá querendo saber se você usou madeiras raras, de demolição, 50 tons diferentes... (MC) é isso mesmo. (AP) Se for R$ 3,50 pras pessoas dá na mesma, se for mais bonito ou menos bonito, mais custo, preço a pessoa vai querer pagar a mesma coisa. Então tem uma percepção aí, e tem um problema nesse mercado artesanal nosso que é justo isso, assim... como a gente como cidadão não tem formação financeira, ninguém na escola explica o valor da mesada, do salário dos pais, do professor... ninguém ensina a lidar com o dinheiro, as pessoas não lidam com dinheiro quando vão criar. Fica assim tudo lá... eu sou artista... outro dia eu vi uma conversa que terminava com Van Gogh, eu tinha uma alternativa a dizer, você tá planejando cortar a sua orelha, alguma coisa assim? Sabe, as pessoas têm umas fantasias... (MC) Eu não entendi, a pessoa tava se comparando, coisa assim? (AP) porque todo mundo chega numa hora que quando fala de Van Gogh chega numa hora de um cara que nunca vendeu nada enquanto foi vivo... e todo mundo que fala acha isso bonito e romântico... eu falei morrer de tuberculose também, os poetas brasileiros todos morreram de tuberculose...Tísicos. Aquele poeta tossindo... (MC) (risada) é outra opção de vida. (AP) É, e se der pra ser com viagens internacionais uma vez por ano melhor ainda. (MC) isso é saudável e longevo (risada) (AP) É... saudável, divertido e longevo melhor ainda. Então as pessoas vêm com essas conversas... (MC) Então você acha... você vê isso, você vê isso? (AP) Aí eu falei assim, gente... Você tá planejando cortar sua orelha, porque eu não vejo qualquer relação entre a sua vida e a do Van Gogh, (risada) entendeu? Ai... eu estou fazendo arte... eu falei bicho, século XXI, eu começo a minha tese fazendo exatamente.... como não tinha como... não tinha como introduzir o tema joia, porque ninguém entende nada de joia, eu fiz o seguinte, e eu tinha que me incluir no curso, e o curso tem uma pegada de contemporaneidade, o que é que eu fiz? Eu fiz um trabalho, que era falar sobre a arte moderna, pós-moderna e contemporânea, e aí eu pego três peças... eu pego ..Demoiselle d'Avignon do Picasso, não nessa ordem, eu começo pelo tubarão do Damien Hirst, passo pela merda de artista do Piero Manzoni, e termino no Picasso no Demoiselle d'Avignon, porque aí eu tô falando... tipo assim, eu só quero explicar o que é arte moderna, só, do contemporâneo pós moderno. E aí eu falo assim gente, a grande questão da

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contemporaneidade, aí tem uma renca de autores para ajudar, é justo a questão de que você está num sistema comunicacional. Então assim, em determinado momento era a questão da autoria, aí passou a ser a questão da ideia, do conceito, e aí a gente tem pós-modernos... aquela coisarada toda, e na contemporaneidade, e o exemplo melhor é Damien Hirst, porque ele leva as joias, as joias ô... (risada), ele leva as obras dele a leilão ele mesmo sem Marchand, ele quebra o mercado de artes inteiro porque ele fala, é o artista que super se valoriza, que não precisa de Marchand, que não precisa de galeria, ele até teve o Saatchi como galeria e tudo, mas que tipo assim deu uma banana pro mercado e criou um mercado novo, reconfigurou o mercado de obras de arte mundial. E ainda vendeu um tubarão no formol por uma quantidade de dinheiro que a gente tá sem entender até hoje. E aí ele tá vendendo uma coisa que é só conceito, que foi uma encomenda, que ele botou pra vender, tipo assim, ele rompeu com todos os limites que ele podia romper, no fundo no fundo o tubarão não é a coisa mais importante, o mais importante, e aí é o que os teóricos de arte falam, o que é mais importante não é o tubarão dentro do formol, dentro do vidro, mas como ele se relaciona com a própria criação e como ele faz o mundo se relacionar com essa criação e com ele. Aí eu fico pensando, então tá combinado que a gente não vai brincar de modernista, a gente não vai achar bonito de ser tísico, a gente não achar bonito ser pobre, a gente não vai achar bonito... e criação não tem nenhum problema de se relacionar com negócio, você pode ser criativo no seu negócio, e eu acho que eu faço um negócio de maneira absolutamente criativa. Eu tô dentro de casa, eu tô quebrando barreira, eu tô me comunicando com o mundo nas redes sociais, e eu tô pagando as contas. (MC) muito legal. (AP) E aí, eu não tô fazendo discurso de... aí, a minha criação... eu sei que eu tô numa coisa muito fronteiriça, eu falo pra todo mundo que eu não sou artista, eu sou uma artesã muito bem-intencionada e uma puta duma comerciante. (risada) E é fifty fifty, eu não posso ignorar que uma parte do meu mérito tá na maneira que eu me relaciono com as pessoas, como eu me coloco no mercado, que é a mesma história do... do que preciosidade, não é nem da minha ourivesaria, nem eu sou um gênio da joalheria, nem da ourivesaria. (MC) Ana, deixa eu te falar uma coisa, essa peça dos relógios por exemplo, ela é muito artística... (AP) Então aí... eu digo que eu tenho assim uns rompantes... (MC) Pior que se você me disser que você tem três rompantes desse assim... eu acho que você está enganada (risada) entendeu? (AP) ... estaria bom né? (risada) Então eu falo que eu tenho uns rompantes, mas eu acho que é uma postura interessante, porque eu convivo com...eu convivo de A a Z no mundo da joalheria. Tipo assim, eu troco ideia com pião de fábrica, e sento com a moça que tá em galerias internacionais. E aí são posturas, e tem uma questão nesse produzir o manual, o artesanal, o artístico que eu acho muito complicado, que eu me divirto muito, meu marido fala assim, ele vai escrever um cartão de visitas sem nada, só com nome e telefone, e vai fazer um currículo que é nada, tipo escrever assim não estudei

nada, não fiz nada, porque a gente precisa desmistificar um pouco isso, tipo assim você tem que ler o texto do curador e o currículo do artista pra você entender a obra de arte?... (MC) Esquisito... as coisas não falam..., não falam mais... (AP) as coisas não se comunicam mais com a gente? Não dá leitura então... (MC) Alguém tem que fazer alguma coisa pra você entender... é desgraçado isso né? (AP) porque se rompe com beleza, rompe com valor, rompeu com tanto que não sobrou nada? Como que a gente volta? E aí tem toda uma discussão do pessoal do artesanato que é pra discutir então se a salvação da arte não tá no artesanato. E aí eu acho que é uma discussão ferrada de interessante. (MC) E aonde tá essa discussão? (AP) Ah... minha filha, tem uns autores... tem uns autores... (MC) poxa vida menina! Estamos na hora disto... (AP) Eu não sei se tá aqui ou se tá lá dentro... tá aqui. Um tá aqui... e o outro tá lá dentro, vou pegar. Esse cara é muito famoso, porque como você começou falando do... do... como é que é o nome dele? Do ... (MC) do Bachelard (AP) do Bachelard, eu falei assim, gente, mas eu nem passei perto de Bachelard. A gente tá sempre com o rabo preso né, já reparou? (MC) né? (Silêncio) (AP) isso aqui são... (MC) Como você comprou Ana? (AP) Esse aqui é... Amazon, eu sou sócio atleta da Amazon... (MC) ah... isso foi Amazon (AP) É tudo...Minha vida é Amazon... (MC) Sua vida é Amazon... tá ótimo (AP) Minha vida é Amazon porque não existe literatura nacional sobre joalheria. Deve, deve ter... (MC) Bonita capa né... (AP) Esse cara é o cara mais importante na discussão sobre o artesanal no mundo... (MC) O... então é ele que eu vou ler, hoje eu vou comprar esse livro... (AP) ... no mundo. Ele é o cara que foi curador, se não me engano da Victoria and Albert, depois de um Metropolitan...não do...MAD em Nova York, ele é o curador de artesanal... (MC) ai que lindo... (AP) ... entre a Europa e os EUA. Então é o cara que tocas as discussões do valor do artesanal, do valor do artístico, quando é arte, quando é artesanato, quando é os dois, quando não é nada, porque ele discute que esse negócio é muito mais misturado do que as pessoas pensam. (MC) E é muito mais misturado mesmo.... (AP) Mas as pessoas...elas separam, (MC) que saco isso... (AP) ...eu sou uma pessoa há 10 anos atrás que me recusava a chamar joalheria artesanal, eu achava um desaforo chamar joalheria de artesanal, porque a percepção que a gente tem no Brasil quando se fala em artesanal, tô falando há 10 anos atrás, 15 anos atrás, é do alicatinho da feira hippie. (MC) com certeza, com certeza.

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(AP) Dito isso, joalheria não pode ser artesanal, porque as minhas ferramentas não são ferramentas do cara da feira hippie. Tipo assim é outra ordem, os valores você viu a história do pó, do metal, tipo assim... E aí você tem um problema, como o artesanal é extremamente desvalorizado, em vez de você alavancar o valor da joia quando chama de artesanal você derruba. (MC) É isso mesmo... (AP) E aí a minha discussão era essa, isso há 10 anos atrás porque eu tinha umas amigas que, esse grupo de estudo, todas eram artesãs, eu favava assim afff, desculpa, vocês são artesãs, eu não sou não. Eu sou joalheira, eu sou ourives, só me chame de qualquer coisa que... e aí eu inventei de me chamar, que é uma coisa normal nos EUA, joalheira de bancada, porque quando eu falo de bancada eu tô falando de artesanal, eu tô fazendo... mas não tô chamando de artesanal. Hoje em dia eu recuo fortemente, eu super chamo de... porque, porque eu tive a valorização da ideia de artesanato no Brasil, e aí quando eu assumi, eu associo joalheria com artesanal, eu tô valorizando a minha joalheria, eu não tô depreciando... (MC) exatamente. Mas esse é um movimento que a gente começou aqui no Brasil, de valorização, foi esse tempo atrás. (AP) agora.... esse cara tá escrevendo há anos sobre isto. Esse aqui ... (Sennett) (AP) eu amo esse livro. Eu li esse livro quando ele foi lançado em português... (AP) Eu fui na recomendação de um joalheiro, num dos raros joalheiros que ... ledores, a galera não é nem de ler nem de escrever... (MC) Mas ele é uma unanimidade né? (AP) Ele era uma unanimidade, porque ele foi o cara que estar lá na valorização do artesanal quando ele discute historicamente quanto que teve esse descompasso. Porque se você tinha o artesão na mais alta conta nas cooperações de oficio, nas cidades, por que que esse negócio assim... não vem me dizer que foi a revolução industrial porque não é só isso. E aí quando ele bota Hannah Arendt na história, aí fica lindo na discussão... (MC) ele arrebentou né? (AP) aí fica lindo na discussão. Isso aqui é uma coleção da Noruega, duns caras que escrevem em inglês porque sabem que a língua deles ninguém sabe ler... (MC) ninguém sabe ... (AP) Graças a Deus... eu não consegui ter todos porque eu só descobrir quando tava no três, e esgota. Tem pra vender na Amazon, as vezes eu olho a Amazon Inglaterra, a Amazon Inglaterra eu não olho nunca, é libra esquece, eu olho a Amazon França, que entrega mais barato que a EUA, o frete sai mais barato, chega mais rápido... (MC) puxa vida...como você é esperta. (AP) Mas é euro, então tem que dar aquela controlada porque assim, eu olho numa, olho noutra, faço a média... (MC) faz a continha... (AP) é a mesma conta que a gente usa, o nosso ID mesmo, quando você bota outras Amazon aparece o seu ID da Amazon original, até porque o meu é muito antigo, deve ser por isso, e é incrível... crafts exhibition, super teóricos, incluindo o Adamson falando sobre como são as exibições das coisas artesanais. Ele tá falando das exposições legais ao redor do mundo.

(MC) ah... mas isso tá uma graça... nossa mas cada dica boa demais! (AP) até pro seu trabalho. (MC) Você vai deixar eu assistir a sua defesa? (AP) Então, tem uma coisa melhor... porque a defesa você sabe que é a coisa mais chata que tem no mundo... (MC) sei, mas você vai me deixar... (AP) a defesa é a coisa mais chata porque... ainda corro esse risco que eu te falei, mas uma semana antes, dia 1º de agosto, eu vou apresentar minha tese no Museu de Arte Sacra, numa palestra de 2 horas... aí é bom (MC) nossa, o Museu de Arte Sacra é uma delícia... então eu vou lá. Museu de Arte Sacra... eles têm umas coisas boas lá né... eu já fiz uns cursos super legais... (AP) acabaram de dar um curso sobre cores que uma colega minha joalheira fez... cada aula era uma cor... (MC) Como que você concilia, falando nessa questão do artesanato e da arte, como você concilia o uso... assim, eu tenho uma peça, essa peça tem que... não vai poder amassar a orelhinha... entendeu? (AP) Olha, no mercado... (MC) Você acabou de falar assim... tem um que sai uma mola... (AP) mas eu tenho uma louca que comprou (MC) (Risada) (AP) Você só pode fazer isso quando você tem um louco que compra, ou é só uma peça de exposição. Os gigantes tão guardados lá cima, que ficaram ali os da foto, mas não dá nem pra usar, e não é pra ser usado, ele é pra fazer exposição. E aí eu... no mercado de joias, a pessoa da contemporânea que é a pessoa artística, e aí eu discuto, como que se chama de contemporâneo uma coisa que começou a 70 anos atrás... então me irritam essas nomenclaturas... (MC) (Risada) eu também não... (AP) Joalheria contemporânea o cacete. Tipo assim, chama de qualquer coisa menos de contemporânea... de artística, de... de qualquer coisa. Mas tipo assim, contemporânea... primeiro... aqui no Brasil a gente tá sempre fazendo, a gente não tem a ideia de cópia... tipo assim, canso de flagrar, as pessoas morrem de medo de mim, eu chego em uma exposição de joia, os caras ficam apavorados. Lá vem a louca que estudou tanto que sabe de quem eu copiei. E aí eu vou, e aí eu vou de vermelho, porque vai estar todo mundo vestido de preto, porque aí é o clichezão, pra você ver como eu lido com o artesanal e o artístico, tipo assim, tem o clichezão de preto, exposição e aí nesse dia a Ana veste o que? (MC) e (AP) ... vermelho (AP) Aí eu vou lá ... que é pra ver mesmo que eu tô aqui (risada). Eu não sou niilista, eu não brigo, eu não, eu fujo de briga como o diabo foge da cruz, mas eu gosto de enfrentamento a determinadas coisas. Enfrentamento não é assim, eu não vou conversar com a pessoa, verbalizar, discutir, eu não vou dizer ah, você copiou, não vou, mas eu vou de vermelho no dia do evento. Tipo assim, não vou passar despercebida. Eu faço umas pequenas... eu sinalizo, eu dou uma sinalizada. Pro pessoal de joalheria tradicional eu uma joalheria, uma ourives medíocre... essa maluca aí, porque aí você tem inclusive a misoginia... Um ourives pegou na minha mão sábado no centro da cidade, falando comigo fez assim,

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primeiro que invadindo meu espaço vital, ele invadiu meu espaço vital, fez assim e falou: você não é joalheira. (MC) Sua unha está pintada... (AP) não tá suja, bem mais grave, sua mão não tá suja. Desculpa, eu tomo banho todo dia. (risada) E aí vem a discussão de jaleco lá na alta joalheria... dá pra fazer joia sem porcaria. Então fica esse pessoal roods e nutella... o roods não é tão roods, e o nutella não é tão nutella, então tão brigando de quê né? E aí quando eu chego no pessoal do artístico, do contemporâneo, eu sou a mulher que faz colar de pérola, eu sou a tradicionalista. Então, e aí eu...porque é que eu conto isto pra você, porque o meu brinco vai ter o peso adequado, não pode nunca passar de 10 gramas, se puder ficar abaixo de 7 é um brinco confortável. Tipo assim, se a gente tem uma história, o pessoal fica nervoso quando eu falo isso, porque eu dô aula de história da joalheria né, então cara, a gente tem uma história na joalheria, a gente tá pendurando coisa no pescoço a cento e trinta mil anos, a gente acabou de descer das árvores, pendurou uma concha no pescoço, isso é muito importante. O achado arqueológico datado mais antigo que a gente tem de conchas perfuradas com intenção de adornos são de 130 mil anos, isso não é bolinho. Então tipo assim, tem gente fazendo isso antes de você, então porque é que você vai, porque é que você vai inventar a roda inteira de novo né... você pode aperfeiçoar a roda, mas inventar? Por que é que você vai fazer um anel que o dedo não fecha. A não ser que você esteja, simbolicamente, questionando o próprio significado do anel e do adorno. Você pode fazer um anel de 5 quilos, uma aliança de noivado de 5 quilos, porque você tá discutindo a misoginia implícita em você obrigar uma pessoa a botar um anel no dedo pra dizer que é casada. Mas não é pra usar, tem uma outra joia que é pra usar, e o pessoal da contemporânea não se conforma que você opte, estude tanto, e opte por fazer a joia para usar e não conceitual. E eu sempre, eu posso fazer alguma coisa... eu acho que existe algum conceito nos meus relógios, mas é um anel pra se usar, todo dia se quiser. Então a minha opção na hora que espreme a minha opção é pela tradição. Eu faço coisas absurdas, e aí minhas clientes me adoram, só pode comprar a pulseira se for capaz de colocar a pulseira sozinha, na minha frente. (MC) Sim, isso é muito legal. (AP) Porque se você não for capaz de botar a pulseira, ela vai ficar na gaveta e você vai me xingar toda vez que abrir a gaveta, e eu vou perder a cliente acima de tudo, porque vai dizer: gastei dinheiro à toa. Então se a pessoa não é capaz de botar a pulseira a pessoa não vai levar a pulseira. Eu posso estar precisando de dinheiro pra caramba, tem uns lugares que daqui eu não passo. E aí tipo isso, colar tem que saber colocar o colar, tem explicação... outro dia eu vi uma coisa linda, eu vi uma amiga de infância que eu não via há muito tempo, a gente não esteve junto a vida inteira mas a gente se conheceu na infância, e ela faz umas coisas de cordas muitos lindas, ela é bem famosa. E ela... e eu resolvi comprar porque eu falei assim puta, eu precisava ter uma peça dela, e aí eu fui comprar. E na hora que ela tá me vendendo, como ela faz com todo o cliente, ela fala, olha, para você colocar a pulseira tem que ser o lugar onde você vê quatro gomos, porque no lugar onde você vê três gomos se você colocar vai dar problema. Então você faz um curso de como usar a peça, se embolar

você faz assim que desembola... ela não tá te empurrando uma mercadoria, ela tá querendo fazer parte da sua vida, ela tá ... tem uma relação se estabelecendo. Então pra mim é fundamental que o brinco não pese, que o anel não machuque, que o anel seja confortável, e que as coisas não quebrem... tem que ser bem feito pra não quebrar. Eu dou garantia eterna... tem uma moça que veio aqui no final de semana, porque comprou um colar muito nada, muito baratinho, pra mãe há 300 anos atrás, mas que foi tentar limpar, que tá escuro, se podia trazer ... eu falei: traga, venha, em meia hora eu te entrego. E é uma cliente que eu não vou perder nunca. Porque tem um lado que vai ser a prestação de serviços, que vai ser a coisa da pessoalidade, tem um lado que é bem trabalhado, vai ser o lado comerciante... eu acho que o que vai distinguir agora é quem vai entender isso tudo, que não é só business, porque eu tô expondo, eu tô me expondo nas redes sociais, numa exposição que eu fui, num acarajé que eu comi, tipo assim, não é só business, também não é só pessoa, é sério, é adulto, maduro, e tem um produto bom. (MC) Muito legal (AP) Então tipo assim, pode ser loucão? Pode. Eu fiz, pra essa coleção dos relógios eu fiz brincos com ponteiros de carrilhões, eles são desse tamanho, e eles são azuis... eu fiz a parte de prata e um ponteirão... ponteiro machuca, eu botei na exposição, mas eu não botei a venda... (MC) Era uma brincadeira.... (AP) Vai que a pessoa se espeta com aquilo. Aí eu fiz uns pequenininhos que é tipo relógio de mesa, aí eu fiz uns pequenininhos que eu falei assim, esse aqui dá pra vender. Eu vendi um, o outro não vendi, desmanchei, pronto, encerrei o assunto. Mas tem foto, tá lá... foi divertido... (MC) E a sua fonte inspiradora nesses casos foi ... tudo bem você já contou... tem essa relação com o tempo e tá... (AP) tem a ideia desse grupo e essa relação com o tempo. Eu fui entender quem era... cara o material tá aqui... (MC) ah, agora eu gostei... (AP) Eu fiz uma faxina, eu fiz uma faxina e eu achei isso... a faxina do milênio eu fiz...foi a faxina do milênio. Isso aqui eu botei na mesa, na exposição do Di Cavalcati, mas de fato foi meu material pra chegar na... pra chegar no Di, tipo assim foi um monte de coisa que... eu fiquei com mania de Power Point na Mckinsey...uma forma de comunicação (risada). Não gosto, não gosto de fazer apresentação com Power Point, aquela coisa, tá todo mundo usando na universidade, isso me dá um nervoso... é forma de comunicação... é um negócio que já datou tem 15 anos no mundo coorporativo a gente... chegou na academia e não saí né... Eu sou do verbo... se eu não contar uma história suficientemente interessante pra pessoas... (MC) E tudo escrito né...tudo... completamente over.. (AP) não, aí é de chorar. (MC) porque quando é um chamariz tudo bem... (AP) porque cacete você vai botar um negócio pra ler... (MC) porque ...se você vai falar... porque é que você vai... (AP) os meus slides são... você vai ver no MAS meus slides são uma imagem ocupando tudo, suficientemente boa pra todo mundo enxergar, eu levo horas as vezes tratando uma imagem, com um título, texto é aqui...

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(MC) pois é né... (AP) Aquilo é ilustrativo porque as pessoas têm uma dependência de informação visual. Porque eu sustento uma palestra de 2 horas no gogó. Eu adoro... eu dó aula com textos... ah e tem outras coisas que eu fiz... (MC) (Risada) Agora você falou, você trabalhava na Mckinsey eu trabalhava na Accenture, nos trabalhávamos nas concorrentes... (AP) É que não é né... porque as pessoas acham que são concorrentes, mas não são. (MC) elas não são. (AP) Porque a Mckinsey nunca fez auditoria... (MC) Não, a Accenture também não... (AP) quem fazia era a ... e eles chamavam de autogestão porque eles só se reportavam a presidentes e a conselho né... hoje em dia eu tenho horror a esse povo, mas foi a melhor experiência profissional que eu tive na minha vida. Porque ali ou você prova que sabe o que tá falando ou você dança. Então quando você vai pro resto do mundo coorporativo é uma enganação... tanto no setor privado quanto no setor público é um.... sabe, empurra, deixa, não sei o que... e lá não, porque o preço que se cobra é muito alto. Aí eu fiz um superestudo, eu pensei em trabalhar com isso, mas eu desisti, inclusive na época eu conversei com uma mulher que tava organizando uma exposição sobre o Di e ela falou assim: A família dele é terrível com essa coisa de direitos autorais... (MC) Ah é? (AP) não coloque o nome dele na divulgação, não coloque o nome dele em nenhuma peça pelo amor de Deus, você vai se ferrar... (MC) jura? (AP) É, tem umas famílias muito interessantes. Então eu fiquei entre essas que tinham coisas... porque assim, o que eu peguei, tinham coisas de produção dele imediatamente antes da semana, porque depois é uma outra história né... (MC) Eu entendi, você vinculou a semana de 22 mesmo... (AP) Eu vinculei a data, entendeu? porque é que ele produziu aquilo que produziu, a última que eu fui foi essa. Esses quadros são maravilhosos, esses nem são dele, esse obviamente é muito famoso... (MC) Esse é muito famoso... (AP) mas, é... eu peguei... esse é absurdamente famoso, eu não sabia que ele tinha feito um peixe... (MC) lindo (AP) fantástico. Aí eu fiquei dando uma olhada tentando entender... e ele tem joias, Di fez joias, Di fez joias, acho que de 54 a 72... (MC) como você descobriu isso em? Ninguém sabe... (AP) Ah cara, mas eu estudo isso há 30 anos... (MC) pô, caramba meu... (AP) eu tenho um catálogo que tem várias peças dele... (MC) tá bonito heim?! (AP) Ele fazia... eu fui num... ele fazia, ele sentava num bar em Copacabana... (MC) que peste... (AP) qualquer bar... ele sentava num bar qualquer com Finkelsteinn que era um joalheiro de Copacabana, que tinha uma loja perto do Copacabana Palace. Finkelsteinn, era um judeu, ou francês, ou alemão... (MC) com esse nome, né?

(AP) que tinha uma loja aqui e tinha uma loja na Europa, era um puta joalheiro, muito amigo do Di Cavalcanti, e um cara apaixonado pela arte brasileira, ele é o criador do museu de arte Naif no Rio de Janeiro, é a coleção particular dele que dá início ao museu. E eles sentavam no bar... tem, eu vi uma vez numa exposição, ele pegava assim, guardanapo do boteco, papel de pão... (MC) ai que raiva... (AP) uma coisa genial, e fazia esses desenhos, o Finkelsteinn pegava e fazia as joias igual, as joias são todas maravilhosas. E aí eu fiquei procurando onde tinha joias nos quadros e são sempre essas bolotas... (MC) bolotas... (AP) são bolotas... é tipo uma perola estilizada... olha aqui, tem várias ó... Essa foto tá amarelada porque eu fiz numa exposição na vitrine, com uma máquina de fotografar há muitos anos atrás, aqui... 2011... são exemplos das joias dele. E aí eu fiz aquela coleção. O tempo foi assim, tempo, o que é que é tempo, kronos, todo mundo sabe, tem kronos, mas tem kairós, e tem Aion. E aí eu fiquei tentando entender quem eram esses caras, porque, se eu te contar como é que foi a história desse tempo... essa é.... cara aconteceu uma coisa muito louca, eu tava fazendo psicanálise ainda, logo em seguida eu tive alta, eu cheguei um dia no meu psicanalista e falei (barulho mão batendo na mesa) ... sonhei um sonho longametragem, tele color tudo estéreo ... tipo daqueles que você acha que foi a noite inteira. Eu sonhei que eu tava num lugar tipo uma torre, tipo um castelo meio cheio de escadarias, lembra um pouco aqueles S nas escadas, tinha uma vibe daquilo, mas era circular. Eu estava com uma criança, que era um menino de uns 8, 9 anos, que no lugar da cabeça ele tinha uma chama. Como se fosse uma chama assim de fósforo sabe...E a gente tava meio que a deriva, meio que correndo, numa Kombi, a gente foi parar dentro de uma Kombi, tipo pra psicanalista né... A gente foi parar dentro de uma Kombi, a gente estava nessas escadas, dentro de uma Kombi, aquelas Kombi bem velha mesmo, aqueles tipo sacolejando, e... hoje em dia eu não lembro mais, isso tem 10 anos. Eu sei que isto era assim, é o que eu continuo... tenho ainda retido na memória... Ele virou pra mim e falou assim, você conhece Kairós? Eu falei não, então, Kairós é a figura mitológica relacionada ao tempo fugaz, e o tempo que o Kronos não dá conta, porque Kronos estabelece o tempo cronológico, a ideia de linha de tempo, de antes, durante e depois, mas você tem outros tempos, e Kairós é simbolizado por um menino, com alas parecendo mercúrio, parecendo marte, com umas asinhas nos tornozelos, e uma cabeça que tem como se fosse um topete que é uma chama, e você agarra ele pelo topete... é uma coisa meio saci-pererê sabe... E você, para agarrar a oportunidade, você tem que agarrar naquela mecha... (MC) Tem uma pegada de saci mesmo... (AP) Ele é escorregadio, e você tem que pegar pelos cabelos. E aí eu falei, eu falei assim, porque todas as mitologias têm paralelos, nos índios brasileiros os caras ficam no topo de umas palmeiras, é igualzinho a arca de Noé. Então na hora eu falei assim, tem um q de saci pererê nesse negócio... Ele falou assim, cara, é isso, e era o momento que eu tava vivendo, porque eu tinha acabado de sair do banco, meu pai tava doente, morreu... soube que tava doente e morreu muito rápido, e eu tava

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com a cabeça muito nessa coisa... E ele falou assim, cara, é momento, é oportunidade, tipo assim, você tá sendo chamada pra tomar atitude e ... (MC) pra pegar pelo topete... (AP) pra pegar pelo topete da vida (risada) Lógico que ele não era tão rasteiro assim, ele era bem sofisticado, eu que sou ... (MC) Risada (AP) E aí eu fui, voltei pra casa, fui olhar, não acho... não há quase nada sobre esta criatura... (MC) sobre Kairós nada... (AP) tá na moda, o povo do empreendedorismo da sustentabilidade pegou essa palavra, tá criando empresa, tá criando ... criando tudo, mas assim, escrito, texto sobre... muito pouco. Tem uns textos sobre psicanálise que separam os três tempos... eu não me lembro mais o que é ... Aion é o tempo eternidade... (MC) ah, esse eu nunca tinha ouvido... (AP) é o tempo eterno, que não muda, que é constante. É o que fica, é o que sempre foi, e sempre será igual. É bem interessante... aí eu pirei, eu pirei tão pirado, foi uma das poucas vezes na minha vida que eu pirei tanto. Aí eu fiquei aquarelando... fiquei... (MC) ai, que delícia... (AP) Fiquei meio que entrando nas coisas muito lentamente. Eu acho que é tão interessante o final, o resultado, porque eu dei esses tempos pro próprio tempo. E eu comecei a buscar.... bom, muita internet, porque eu sou muito tecnológica, muito internet mais muito livro, aí peguei livro de mitologia, de não sei o que, e de símbolos... e comecei a brincar. Então Kronos, ciclos, bolhas, porque a forma que eu mais gosto na joalheria são os cabochões redondos e ovais, comecei a juntar tudo e fui juntando coisas, fui juntando coisas... O que é que podia ver, e fui brincando, você que tá bonitinho, tá em papel legal, tá com lápis de cor... daqueles lápis de coloridos que vai mudando a cor. Tipo assim, brinquei muito tempo com isso, e fui pegando outras coisas que podiam fazer sentido pra uma coleção de joias, então pensando em espirais, eu botava a forma e o que é que ela trazia entendeu? Eu explorei muito isso, conceitualmente foi bem legal, aí eu lembrei de ruínas circulares e de Borges, é um dos textos de Borges que eu mais gosto... (MC) Eu não conheço... (AP) eu trabalhava muito com esse texto nos anos 90, eu dava aulas com... tudo eu metia Borges no meio, eu morei na Colômbia, então literatura latinoamericana é uma coisa assim... (MC) Borges é aquele que.... (AP) Argentino que foi diretor da biblioteca da... (MC) tá eu sei quem é, mas eu não sei que texto é esse... (AP) Ruinas circulares é um texto muito interessante porque ele fala de uma estrutura de pedras como se ... e é um conto, fantástico que se passa numa situação dessa. E a própria ideia de biblioteca dele, uma biblioteca que tem todos livros que você nunca vai acabar de ler, que é infinito, não sei o que... daí eu fiquei brincando com isso, que tinha sempre a ver com circularidade, tinha sempre a ver com... aí eu pensei em Saturno, Saturno, que mais, círculos, cabochões, mnemosine que é a ideia da memória, já tava vindo a tese, a tese tava vindo, essa tese custou pra nascer.... Sagrado, carga simbólica nas coisas,

conexões, iridescência, aí eu comecei a pensar nas cores que tinham a ver com isso. Eu acabei chegando num quartzo e no citrino porque foram as pedras que eu encontrei que deixavam visíveis o relógio, e ao mesmo tempo dá uma cor meio etérea nele. E mandei fazer, mandei lapidar, coisa que eu pouco faço, o que eu não achei eu mandei fazer... (MC) você mandou lapidar? (AP) o que eu não achei eu mandei fazer, e aí eu comecei a pegar imagens que tinha a ver com essas coisas, aí misturei tudo, porque naquela hora que você libera geral... liberou tudo, tudo. E esse quadro aqui tá, esse quadro é o mais importante pro joalheiro. Isso aqui é Petrus Christus, 1492 acho, se eu não me engano, como que chama... o joalheiro e sua oficina, ou Santo Eloi, que eles gostam de atribuir essa figura a Santo Eloi, totalmente anacrônica, não é dessa época, mas... (MC) (Risada) (AP) não, e aí você vê, aí a pessoa vai no cinema, vê um filme de idade média e acha que tinha ar condicionado nos castelos e... (MC) (Risada) (AP) então aqui totalmente anacrônico porque Santo Eloi dois anos 800, final da idade antiga, idade média, e tá aqui todo bonitinho na ... no mundo flamenco. (MC) Aham... entendi (AP) E tem um casal, então toda explicação... esse quadro tá no Metropolitan, mas é a representação mais famosa de um joalheiro. E aí eles associam a Santo Eloi que é o padroeiro da ourivesaria. (MC) ah tá, Santo Eloi. (AP) Aí eu peguei de outros autores o que é que tinha, que tinha a ver com o que eu tava pensando que eram as pedras e ...eu dei uma geral bem grande na produção de joalheria que tinha a ver com o assunto... ah não, isso aqui é foto disso aqui...fotos de 2009. Aí demorou um pouco, veio a ideia do... aí quando surgiu a conversa de adornos urbanos, o que é que São Paulo é pra cada um, eu falei é tempo, é o tempo. Porque é o não lidar com a velocidade, se retirar da velocidade, com algumas coisas eu continuo sendo elétrica igual, mas só porque eu quero, então é um pouco desse controle sobre o tempo. E aí como eu trabalhei o controle sobre o tempo, eu encapsulei, meti dentro de um anel, meti dentro de um pingente, segurei o tempo. E por outro lado fiz, as coisas que apenas tinham a ver com a máquina que faz medir o tempo, os ponteiros essas coisas, e fiz aquelas peças absurdas que eu falei, que também eram mostradores que estavam falando da máquina de medir tempo, e fiz umas coisas muito legais que eu não tenho no celular porque não é uma peça comercial de jeito nenhum, eu peguei umas peças enferrujadas, de aço muito detonado... É... uns retalhos sem alterar muito o formato que eles já tinham na bancada e puncionei frases de Alice... por causa do coelho. E eram as frases mesmo dela com o coelho tipo “quanto tempo dura o tempo”, agora ficou na moda né, as pessoas fizeram um monte de... (AP) todo mundo tá filosofando em cima de Alice. Eu fiz essa, eu fiz... qual foi a outra frase? Eu peguei umas 3 frases muito importantes do livro e puncionei, pra você ler você tem que chegar perto e tal, não guardo, não é a verdade das verdades... (MC) e elas viraram o quê?

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(AP) Você sabe que deve estar aí....em algum lugar... eu não vi na arrumação (MC) mas o que é que ela virou, um colar? (AP) Virou um colar. Então eu fiz silicone... fecho de prata, silicone negro porque não machuca, porque esse negócio machuca, é... preso a placa de... (MC) Grande assim? (AP) Grande, um grande e um menorzinho, um parecia uma seta, parecia também um ponteiro, e o outro eu deixei do jeito que tava, ele é uma coisa assim meio diferente, e aí eu pendurei uns ponteiros grandes, como se fosse o pingente do centro do colar, aqueles pingentes grandes. Eu tenho foto, mas tá num HD externo, uma coisa assim... num lugar esquecido. (MC) Essa obra por exemplo, ela ... as vezes nasce do material, de você encontrar uma coisa, de você encontrar uma peça, um monte de coisa... (AP) normalmente é pedra, eu olho pra pedra e falo, o que faremos com esta pedra? (MC) não, mas por exemplo nesse colar você pegou uma... (AP) eu peguei o que tava, eu tendo a deixar as coisas do jeito que tá e criar em cima delas. A pedra é isso né, você pega a pedra do jeito que tá e cria em cima dela. No caso específico dessas coleções teve um trabalho conceitual anterior e aí eu fui selecionar material, mas na média eu sento na bancada e falo: o que vamos fazer com isto aqui em? Deixa eu ver se eu acho isso aqui pra você porque esses colares são... (MC) Esses garimpos de pedras são uma loucura né... aonde você vai garimpar pedra, você vai por tudo? (AP) Eu cheguei num momento da minha vida que as pedras vêm a mim, é pior ainda. (MC) ah... isso acontece com muitos artesãos, o marceneiro que eu conversei também falou, agora eu já não garimpo mais nada, o telefone toca todo dia, porque ele só trabalha com madeira do... ele não compra madeira. Só trabalha com madeira que vem. (AP) Impressionante né, eu cheguei num ponto da minha vida... primeiro que eu tô parando porque não faz sentido... (MC) todo esse estoque... (AP) eu vou precisar de umas 3 encarnações pra fazer tudo que eu tenho. (MC) Então chega né... (AP) então chega, mas não chega. Mês passado eu comprei uma montanha de pedra. Primeira coisa, no dia seguinte que eu entreguei a tese eu estava aqui... queria sentir o cheiro... (MC) sentir o cheiro... (AP) é tipo 4 meses antes eu falei, meu prazo pra entregar a tese é antes de 21 junho. Todo mundo que eu conheço anotou isso que eu passei 4 meses falando e dia 21 esse telefone quase aqueceu de tanto que tocou ... as pessoas botaram na agenda falar com a Ana dia 21 cara, foi muito impressionante. (MC) e aí quando você vai criando você começa a tirar essas pedras e ver o que é que combina e tudo isso e vira uma cavocação de pedras... (AP) vira, vira. O que é que eu faço, aqui tá bagunçado porque isso é o fim da arrumação, mas aqui por exemplo, eu pego essas bandejinhas aí eu boto assim, eu vou, boto um monte de pedra aqui e vou ... (MC) ali vira seu...

(AP) aí não vira nada, daqui a pouco eu pego 3 e guardo... eu tô sempre futucando, eu garimpo dentro de casa agora, mas compro, não paro. E aí eu ganhei até presente no dia do... (MC) quando você entregou? (AP) nem minha mãe, eu falo pra ela ela fica louca, meu pedrista meu amor do coração ... ele chegou aqui, mais pra me ver, mas assim, ele ligou e falou assim vou aí, eu não deixava ele vir aqui há 4 meses né, ele trouxe uma opala, ele trouxe uma opala porque ele sabe que eu gosto de coisa diferente... (MC) ai que linda peça! (AP) é uma opala da matriz... (MC) nossa, mas que linda... (AP) e não é nem uma coisa que ele venda, porque isso aqui não é nacional. Ele viu, achou que era a minha cara, e me deu de presente... Você falou de parceiro... esse aqui é meu maior parceiro... (MC) você vai ter que fazer uma coisa pra você com isso... (AP) Não, todas as coisas que eu ganho, todas as pedras que eu ganho é peça minha. Eu não... todas as pedras que eu ganho são minhas, eu não ganho faço e vendo, eu não faço, acho errado isso, a pessoa te deu com vibe, você vai quebrar o vibe? (MC) poxa vida né?. (AP) É... então acompanhamos esta peça... (MC) acompanhamos. (AP) ah... eu tava entrando aqui... no meu blog, eu tinha um blog durante muitos anos que chegou a ser um blog famoso, e... (MC) você parou por causa do doutorado? (AP) não, eu parei por causa de... história do blog é uma história muito louca... foi assim, eu sai do banco, aí eu conclui, cara, eu não sou de sociedade, eu não sou daqui de São Paulo, já não tenho uma rede de relações extensa por conta de família e de infância, eu não tenho nada disso... (MC) se eu não fizer um canal eu tô ferrada... (AP) que é que eu vou... eu tenho que chegar de algum jeito nas pessoas. Aí eu falei assim, temos que chegar via internet, não é possível que eu tenha cuidado de conteúdo de canais de internet de um banco e não saiba cuidar da minha vida... e eu sempre tive, eu tenho site desde 2005. E aí o que é que eu fiz, eu peguei e falei assim, eu preciso criar um blog, preciso falar sobre joia, mas eu vou falar qualquer bobagem. Como que eu comecei, o meu pai ficou doente, foi hospitalizado, fez duas cirurgias muito complicadas, eu tava super angustiada, e eu só assim o Rui Barbosa, eu escrevo com uma facilidade assim que é uma loucura. Eu comecei a escrever que nem uma louca, e aí meu pai morreu... todo dia eu escrevia, quando eu vi eu tava mais escrevendo do que trabalhando... e aí meu pai morreu, eu fiquei muito deprimida, eu não saia de casa, é... eu fiquei assim, pra sair de casa tinha quer ser arrastada, e aí eu escrevi que nem uma louca, eu literalmente construí a vida virtual. Eu tava em contato com gente no mundo inteiro... (MC) no blog? Você tava escrevendo no blog? (AP) É no blog. Em 2003... (MC) você se expressou... (AP) eu cheguei a ter 30 mil acessos no mês (MC) falando sobre a perda? (AP) que perda, falando sobre joia.

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(MC) é verdade? (AP) sério. (MC) também mudou muito de assunto, você tava falando que seu pai morreu e... (AP) eu fiquei escrevendo, sobre o que? Qualquer coisa... (MC) eu achei que você tava escrevendo sobre isso... (AP) Eu estava escrevendo sobre joias, red carpert, casamentos reais, sobre qualquer coisa que desse na cabeça, e ia desde a peça que eu tava fazendo, eu tinha umas coisas muito boas que eu tinha vontade de escrever e eu falava assim, assessório do dia, tava um calor danado, aí eu tirava foto de um leque, assessório do dia, no frio insuportável aquecedor, tipo assim eu não tinha nada pago, eu não monetizei nunca o blog, eu podia escrever a merda que eu quisesse, quem quisesse que lesse. E se não quisesse ler também não precisava que eu tava me divertindo escrevendo, só que isso repercutiu de uma maneira absurda, eu comecei a chegar nos eventos e todo mundo sabia quem eu era... Teve um ano que, no terceiro ano do blog, eu fui numa casa de cupcakes que tem aqui na Vila Madalena, mandei fazer cupcakes da cor ... pedi uma caixa de cupcakes, encomendei e fui pra uma feira do campo joalheiro, uma feira que acabou, deixou de existir, e saí, passei uma tarde na feira que era o evento mais legal que tinha no ano, porque estavam todos os joalheiros lá, comprando ferramentas, vendo pedras, dando palestras, a gente se divertia... (MC) e você lá com seus cupcakes... (AP) e eu lá distribuindo cupcakes... (MC) Você já se divertiu bastante né... (AP) Eu me divirto sempre, se tiver um jeito de inventar da gente se divertir eu invento. Cara eu tinha presença tão grande na internet que eu cliquei aqui e achei as peças todas pra você ver (risada)... (MC) olha só... tem umas lindas né... (AP) tem umas lindas.... (MC) você precisa começar a fazer mais coisas... (AP) Isso aqui foi um brinco, que eu achei dois mostradores iguais, e essa é a peça que eu to te falando... (MC) essa é aquela que... nossa completamente diferente do que eu tava imaginando... mas ela é linda! (AP) Ela é uma peça com a passagem do tempo bem estabelecida no metal, silicone, prata e uns ponteiros de carrilhão. (MC) Esse metal é o quê? (AP) Isso é aço... (MC) aço. (AP) um retalho de aço que eu peguei numa escola. Esses são os dois grandões... (MC) Então, você foi dando forma aleatoriamente... (AP) Eu fiz uma chapa de cobre, fui encaixando, isso as pedras não são verdadeiras elas são do ... mas a pedra de cobre ficou tão esquisita, eu botei em papel artesanal por baixo bem bonito pra dar conforto, porque eu tinha que desfilar o bagulho então... (MC) entendi. Me fala uma coisa, essa peça, esse desenho você fez ele com... esse metal você desenhou ele ou você... (AP) Não, botei em cima da mesa e arrumei... (MC) você arrumou ele... (AP) arrumei e distribui os mostradores... (MC) não, eu tô falando da peça anterior

(AP) Essa aqui? Não fiz nada com ela, só fiz o furo aqui e o furo... (MC) você não fez nada... (AP) não fiz nada com ela... (MC) mas você achou... (AP) achei. (MC) Então você trabalha muito com o acaso... (AP) muito, totalmente... (MC) foi catando... (AP) e aí eu fiz uma série, que eu te mostrei uma que era “o tempo não para” e essa é mais uma, essa é a que eu mais gostei, essa foi até pra uma pessoa famosa... (MC) o que é que tá escrito? (AP) “Meu mundo é hoje, não existe amanhã para mim” que é uma frase de um samba, Paulinho da Viola canta, e que é a frase que dá título para aquele documentário sobre ele, o “Meu tempo é hoje”. Aí José se divertiu, porque o que é que ele fez, ele pegou um monte de peças da minha caixa, botou uns pingentes, e ele faz umas fotos incríveis... (MC) Gente, mas essas fotos dele são muito boas. (AP) As fotos dele são maravilhosas! (MC) Que dupla vocês dois! Olha esse anel... (AP) Esse aqui foi incrível... esse foi um lindo também... olha os brincos que eu falei pra você... (MC) lindos... (AP) e foi assim, ah... e era assim ô... E aí eu botei numa, essas coisas... (MC) ai que lindo... (AP) Eu expus como se fosse uma caixa de relógio. (MC) Tá muito bonito, tá um absurdo isso... (AP) agora acabou, agora acabou... (MC) essa vai ser a que você vai escolher, você vai ter que me mandar essas fotos (AP) Tá, eu mando. E esse foi o cartaz da exposição... eram nós 5, ai José não tava nesse ano ainda.... (MC) Você conheceu ele aí? (AP) Não. (MC) Você que falou pra ele entrar? (AP) ... Quanto isso aqui começou a ficar estruturado, mais sério, aí ele entrou, mas quando ficava metade da conversa falando de... (MC) primer aí era demais pra ele... (AP) ... a gente tava falando de primer eu, primer pra mim é o que eu coloco pra restaurar moldura... (MC) (risada) é o vedador lá... (AP) não, ele é o rei do... José construiu um piano quando tinha vinte e poucos anos... (MC) que coisa né... (AP) construiu um piano. Ele é do tamanho... eu não entendo nada de música mas ele é... sei lá, ele é um terço de um piano, ou metade de um piano, não sei.... eu sei que ele é como se fosse um cravo. Mas ele é um piano, piano, black piano, levanta, toca, faz tudo... ele construiu. Ele ficou acho que um ano construindo sozinho. Viajando pra comprar feltro não sei aonde pra fazer o martelê, ele construiu, e toca... (MC) Isso é um artesão de verdade né, legítimo. (AP) Essa foi a exposição. (MC) muito legal Ana (AP) Essa exposição foi em 2012. (MC) Essas fotos você vai me mandar... (AP) Essas eu te mando, sem problema.

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(MC) Ou seja, você gostou muito da ideia do tema né... muito. (AP) Gente, teve uma matéria sobre ... Essa aqui é minha, eu fiz pra mim... “nossa senhora da procrastinação, agradeço o tempo recuperado”... Eu queria brincar com a ideia da medalha religiosa... (MC) Que lindo... (AP) Essa eu uso sempre, o pessoal morre de dar risada. (MC) Mas tá linda essa frase... (AP) E essa aqui era a “tempo, tempo, tempo”... ai caramba, cadê, abre filho, que isso! Abre uma coisa... Essa foi, não me lembro quantas medalhas, mas eram várias, Cazuza eu fiz mais de uma porque aí o povo pira né, “o tempo não para” eu fiz várias... (MC) E aí essas que foram as mais escolhidas, as do Cazuza, foi? (AP) Cazuza foi a mais escolhida... (MC) que coisa né... (AP) porque “o tempo não para” ficou uma frase importante na vida da nossa geração né. As músicas dele tem tendência a virar hino né... (MC) tem, tem sim... (AP) elas são narrativas da época mesmo, e pior, elas não tão datando, porque a tranqueira continua a mesma, então elas não estão datando, elas continuam atuais. (MC) verdade (AP) É... e acho que é isso. Oh, essa aqui foi o Copan da menina de cimento da outra... (MC) ficou delicado o de cimento né... (AP) É, porque ela fez a peça, ela preencheu, em vez de botar pedra ela botou cimento, enchendo os pedaços... (MC) e o tema dela é? (AP) foi a que falou de natureza, usou madeiras... (MC) tem umas coisas bem bonitas né... (AP) Então, essa exposição, eu falei pra você, essas 3 exposições com temas foram as melhores coisas que a gente fez na vida. Eu acho que aqui já parou. Como contar o tempo... As fotos no blog tão em alta, se você entrar nele... (MC) ah tá bom... (AP) ah, mais ... tem que sair procurando, eu mando pra você. (MC) tá bom. (AP) Eu tenho a pasta tempos urbanos... (MC) nossa essa tá linda... (AP) isso aqui foi uma outra história, isso aqui foi uma... teve um concurso internacional que a gente... cada pessoa tinha que produzir, como se fosse um pedaço de uma corrente, dentro do seu próprio trabalho, que correspondesse a sua linguagem, aos seus matérias, o que quer que fosse, e fotografar, e tinha as especificações... porque eles iam fazer uma foto das correntes de todo mundo, eles iam fazer um grande colar fotográfico, virtual, com as correntes de todo mundo. Eu não, misteriosamente, eu não fui aprovada, porque como eu sou uma pessoa da joalheria tradicional, eu não podia querer ocupar espaço na joalheria contemporânea... (MC) ah entendi... (AP) eu falei assim, então tá bom, nunca mais eu peço, desculpa, foi mal. (risada) (MC) Mas que inferno isso... (AP) ah, tipo assim, eu me divirto. José não gosta de certas pessoas, ele tem bode, ele vai comigo porque eu dou

faniquito e não quero ir sozinha, porque José é lenda urbana, ele é tímido calado e não vai a nada nunca. Então assim, algumas coisas muito importantes eu obrigo ele a ir porque assim, e eu que faço a clientela dele, porque quem vai, quem dá cartão, quem dá a cara a tapa, quem diz que ele é ótimo sou eu, porque ele ... Aí de vez em quando eu boto ele pra ir, mas ele se irrita tanto, tanto, tanto... porque ele acha tipo assim, cara, você tem que olhar pra peça, José acredita que você tem que olhar pra peça e gostar... (MC) Isso me parece bom, você não acha? (AP) sem você precisar discursar... Ele fala assim, eu não admito que eu vá, seja obrigado a gostar da peça, porque a pessoa estudou em Florença, fez Centrum San Martin... (MC) Risada. Acho que ele tem razão... (AP) estudou na Parson de Nova York... e.... (MC) e... eu vou colocar isso na minha mão... não vou (AP) me emociona? Não me emociona, acabou. (MC) Escuta, que tamanho que tinha aquele anel que você botou o relógio? Aquele maravilhoso... porque gente de céu, sem querer abusar, mas já abusando tanto... (AP) Deixaeu te mostrar, já que a gente vai tratar dessa peça... eu agora tô meio descoordenada, porque eu acabei de fazer a arrumação, só falta aquele rabinho... (corte na gravação) (AP) Aí eu trabalhava na Mckinsey em frente a ... só que aí eu mudei pra cá, aí fui trabalhar numa Ong que eu fiquei 45 dias, e aí eu falei assim, preciso demorar... aí eu trabalhei na Paulista 7 anos, morava na João Moura e morava na Paulista, depois vim pra cá... (MC) é super bom... (AP) porque aqui o critério era luz natural, localização, porque você não pode obrigar a pessoa a comprar joia num lugar esquisito... e agora eu tenho dificuldade, não consigo sair daqui, porque eu tô aqui há 12 anos, há 10 anos com o atelier operando 100%, e eu nunca tive uma pessoa que falasse assim, ai não dá, não vou... porque tem lugar pra estacionar, tem o quartel 011 é nesse quarteirão, então tipo assim, as pessoas podem comer, podem achar o marido pra beber, podem ... (MC) podem fazer qualquer coisa... é agradável (AP) em lugar pra parar o carro... A gente uma época quis fazer o ... chegou a fazer, a gente fez o test drive, a gente se enfiou os dois nesse apartamento, com o negócio dos dois nesse apartamento, o primeiro dia que chegou uma cliente minha e uma cliente dele, e a cliente dele joalheira que veio fazer foto, peça pra foto, e entregou um cartão de visitas pra minha cliente, eu falei acabou, acabou a brincadeira. Tem que coordenar horário... foi sem noção num grau...Vamos abrir a ...Aqui você vai ter a ordem de grandeza porque eu tenho as pedras, que inclusive tá separado porque eu vou retomar... Esses são os pequenos, deixa eu ver se tem os grandões igual o da ... achei tudo pra você ver... (MC) viu! Hoje era meu dia de sorte... (AP) sabia, tipo assim a louca, sabia que isso aqui tava em algum lugar e que eu não tinha aberto. (MC) aí mas é muito bonito isso... (AP) esse é outro que você não viu foto... Ai, será que desmontei ou tá inteiro? Gente como eu sou organizada, as vezes até eu me assusto cara. Eu sabia que estavam aqui todas as peças que eu ainda queria fazer, mas não sabia que tava...

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(MC) e como que você, como que você... isso aqui é um ... tipo de um... como que você coloca essas letras? Você teve que mandar fazer essas letras? Só pra eu entender... (AP) Ah, minha jovem, não. Pra isso a gente tem norte-americanos que sabem ganhar dinheiro... Esse acabou de chegar, nem usei... eu tenho um outro pequenininho... (letras para estampar em metal) (MC) eu falei gente será que ela mandou fazer cada coisa dessa... (AP) não, as medalhas eu mandei num gravador... (MC) as medalhas... (AP) as medalhas que tinham letra por cima foram feitas por um gravador, aquele cara que põe nome em aliança... (MC) entendi (AP) os que eu usei nessa peça são uns bem menorzinhos ali, letras, essas são bem grandonas não cabem... eu comprei agora. Eu tô fazendo muita coisa feminista, pirei no feminismo ... comecei a achar que a gente tem que ser ativista cara, começou a subir uma foto, que não dá pra não ser... E aí eu fiz um dia sem querer, eu fiz um símbolo, sabe o símbolo do feminino? (MC) sei (AP) cara, quando as pessoas ... foram as fotos mais curtidas no Instagram, foi uma coisa... aí eu estava super irritada com... lembra aquela... acho que foi 2013, aquela primeira marcha nos EUA, que ainda era... que 2013, foi em 2015.. Que teve aquele ditador Greg... , com o negócio lá do Trump que ficou agarrando a mulher ... (MC) sei, lógico. (AP) eu comecei a assistir o noticiário mostrando a véspera da marcha, e aí entrei numa reportagem mostrando que as mulheres estavam se reunindo pra fazer o tricozinho do ... os cartazes tudo... e eu comecei a ver palavras recorrentes que eram nesting woman... e aí eu fiz três pulseiras, nesting woman Cara, as pessoas enlouqueceram... aí eu fiz mulher, feminista, não sei o que... e as pessoa vinham aqui buscar, eu falei assim gente, porque de fato existe uma joalheria, que a gente chama joalheria do ativismo, que é você comunicar a que grupo você pertence, isso tá crescendo muito. Sempre existiu nas religiões, sempre existiu nas... (MC) essa combina com você... se eu fosse você eu abusava... (AP) aquele lá é mais ou menos do tamanho desse. Eu tenho uma foto dele no dedo da dona, posso te mandar... porque essa pedra, pelo formato, ela funciona como uma lente de aumento, ela deforma um pouco... (MC) pois é menina... (AP) e aí você vê a estrutura... (MC) que coisa, mas é muito bonito não é... (AP) e aí tem os relógios que é feio, mas tem uns que são bonitos... (MC) não tem nada de feio, são coisas lindas... (AP) não, mas tem uns que são muito mais detalhados, tem muito mais coisas, a maquininha dele... (MC) puxa, mas é bonito pra caramba isso! (AP) oh... eu acho assim mais bonito ó... (MC) deixa eu ver... deixa eu ver o que é que eu vou achar... é esse é mais bonito mesmo, super detalhado... (AP) é que aquela caixa estava meio tosquinha...entendeu, dependo da caixa... (MC) e onde você achou esse tanto de coisa?

(AP) eu tenho isso, foto, eu tenho foto disso no face, quando eu estava fazendo isso eu botei uma capa de face... deixa eu ver se eu acho... (MC) mas que ideia maravilhosa! Tá lindo isso... (AP) eu fui pra rua dos ourives... meu telefone vai explodir de gente querendo falar comigo... (MC) Risada (AP) quatro horas, eu fora do mundo ... é incompreensível pras pessoas... (MC) eu vou te abandonar já já... ai meu Deus do Céu...realmente eu me... A Regina falou reserve 2 horas, eu disse tá bom... (risada) (AP) ah tá... 2 horas pra conversar com uma pessoa normal né... (MC) não, na verdade eu acho que todos viu, porque todas as minhas outras entrevistas foram igualmente desse tamanho. (AP) Mas se você ... o tipo de pergunta que você tá fazendo, a pessoa vai escancarando a vida né, aí tem que aguentar... (MC) é, você veio aqui pra fazer o que né... eu realmente me apaixonei pelo seu anel, eu realmente me apaixonei. Cara você tava vendendo isso há quanto Ana? (AP) não, não é cara não... uns R$ 400,00 R$ 500,00 reais. É que acaba que ele é um anelão porque como tem a altura da máquina e depois a altura da pedra, não é um anel leve. E eu tenho que fazer ele robusto, e aí, ainda tem uma coisa né... teve uma louca que tomou, sei lá, lavou a mão... isso porque eu explico, eu explico as peças. A maioria das peças você pode usar pra tomar banho, mas esse é o tipo de peça que você não pode, porque se entrar água vai enferrujar em baixo, vai virar uma meleca... não tem só a pedra aí, tem a pedra e mais coisa... (MC) ah, entendi...Posso mandar pra minha filha? Minha filha tem 20 anos, ela ama... ele simplesmente vai amar isso. (AP) pode. As meninas mais novas adoram meu trabalho, porque minha idade mental corresponde... putz, eu tenho uma amiga trazendo material, trazendo equipamento pra mim, a mala foi extraviada, ela tá suicida ... (risada) Isto foi a foto de quanto eu comecei a fazer esta coleção, o que é que aconteceu, eu virei e falei assim, eu queria um mostrador de relógio, isso numa loja de ferramentas, o cara falou assim, ah vai... o fulano, neto de seu fulano tá se desfazendo da relojoaria... (MC) (Risada) ... assim, tipo free... (AP) aí o cara assim, então, ouvi dizer que você tá se desfazendo de umas peças aí usadas, eu queria umas coisas, mas que coisas você quer, eu não faço a menor ideia, deixa eu ver. Então tá, o cara me trouxe 3 bandejas deste tamanho, assim, tinha até barata no meio, era assim, o lixo da joalheria... (MC) não tinha barata não, né... (AP) tinha, uma morta... (MC) morta? (AP) tinha... aí eu senti muito nojo, mas eu não aguentei, aí eu mergulhei... não a mão, eu fui pra casa assim... (MC) Tipo não quero mais... (AP) eu sou nojenta, eu sou nojenta... (MC) (risada) (AP) apavorada... aí eu tinha pouco dinheiro em dinheiro, aí eu falei assim, me vende isso aqui? Tá, depois eu venho buscar o resto... alguém foi lá, tipo 2, 3 dias depois e

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comprou todos os mostradores ... e disse que era pra fazer uma roupa, um vestido de exposição... Eu tô até hoje sem descobrir quem foi... mas aí aconteceu isso. Aí eu cheguei em casa, me desinfetei ... (MC) inteira... (AP) e vivi esta situação, esta mesa, toda de... eu saí, olha isso... (MC) com uma luva... (AP) duas caixas dessas... aí foi de luva, de máscara, porque eu aí pegar... aí eu fui separando oh... eu fui separando por tipo de peça porque eu não entendo nada de relojoaria, tá vendo, mas eu fui separando por semelhança. (MC) entendi, você já tinha comprado, isso aí já era da sua compra... (AP) tipo duas caixonas dessa... (MC) E ele te vendeu isso por um bom preço? (AP) não, vendeu tipo uns R$ 200,00 (MC) o resto... (AP) é... isso era lixo, vender o lixo tá no lucro né...Aí fiquei separando... (MC) com pinça... (AP) não, eu cheguei num nível de nojo aqui que... (MC) eu posso imaginar... (AP) e aí, como eu sou maníaca obsessiva, eu tenho vários saquinhos, tá vendo, mostruários de ágata, mostruários não de ágata... (MC) ah, isso é de ágata? Nossa... (AP) isso é muito lindo, porque eles guardam essas coisas desse jeito bagunçadas, porque as vezes chego uma pessoa com relógio de 80 anos pra consertar... (MC) entendi... (AP) e ele vai mergulhar ali e achar alguma coisa pra por no lugar... (MC) no meio da barata... (AP) é porque eles não ligam pra essas coisas... (MC) não ligam? (AP) tem uma nojeira implícita no ramo, mesmo na relojoaria, a bancada do relojoeiro tem que ser muito limpa, porque não pode ficar poeira, não pode ficar pelinho, não pode ficar nada dentro da máquina se não a máquina para, vai ter uma hora que vai emperrar. Mas as pessoas são nojentas, ó, um monte de máquinas feias, um monte de coisas bonitas, relógios inteiros, eu nem lembrava desses relógios... então eu fui separando por assuntos... (MC) você vai demorar uns... você tem mais 10 anos de trabalho por esse estoque que você tem... 10 anos de trabalho... (AP) é, tem. Inclusive umas coisas que eletrônico, também tá aqui sem o que fazer, umas coisas de plástico, tipo assim, eu fiz, fiz, fiz e aí guardei, falei assim, cara não aguento mais olhar pra isso, e agora passados 5 anos eu tô louca pra fazer de novo e aí no ano passado teve esse pedido dessa mulher, ela chegou assim lembra aquela sua coleção? Eu achei o mostrador do relógio do meu pai, aí me fez essa encomenda maluca. (MC) que era pequenininho... (AP) não, ele era do tamanho desse grande que eu te mostrei... a pedra dela é um... (MC) tá você vai fazer... (AP) Aqui são uns rubis... você já viu que tem relógio que tá escrito twelve jewels, seven jewels, esses jewels são

rubizinhos, na maioria sintéticos inclusive, não precisa ser, porque o rubi ele tem a dureza imediatamente inferior à do diamante, então ele fica justo nos eixos pra não ter desgaste no metal... ele é como se fosse uma ruelazinha... (MC) entendi, entendi. E você consegue aproveitar isso? (AP) E aqui tem uns rubizinhos que tão na ruela, olha a louca, deve ter um nome pra essa peça, né... (MC) deve ter, não vai ser ruela pra esses rubis... (AP) mas eu não preciso aprender isso... (MC) (risada) você já tá fazendo uma seleção... (AP) nossa, peguei o único que não tem rubi pra te mostrar...o único que não tem rubi... ah vai olha aqui... (risada) (MC) to vendo... (AP) aí eu vou fazer chocalinho com isso aí porque eu tenho.... (MC) vai fazer o quê? (AP) chocalinhos... porque olha as pedras bonitas... (MC) são maravilhosos! (AP) esse foi aquele que você gostou, que é a corrente. (MC) muito bonito (AP) então eu tenho pedras cabochões, eu tenho pedras que são lupas, eu tenho pedras... tá vendo isso aqui eu mandei polir, isso aqui é uma lupa, ela dá aumento... (MC) Entendi... (AP) é uma... falsa. Eu fiz uns em forma de ampulheta que eu não cheguei a fazer a peça... eu fiz em forma de ampulheta pra ver se eu consigo virar... (MC) interessante né... você trabalha com coisa muito pequenininha. Quando eu entrei aqui eu falei, ah... é mais clean do que a... não é mais clean, é só menor (risada) (AP) pequeno, é só pequeno. (MC) porque eu tava lá... na marcenaria, tem um monte de pedaços de madeira desse tamanho... (AP) olha, dá, dá pra trabalhar dá pra fazer tudo com máquinas muito mais modernas e menores...só numa bancada. Uma joalheria pode ser só numa bancada... (MC) só numa bancada. (AP) eu vi uma bancada ontem que o menino postou que ele não levanta. Eu falei assim, cara só não tem a máquina de café... Eu escrevi pra ele e falei, cara só não tem a máquina de café... (MC) o resto tudo lá... olha que bonito isso heim? (AP) esse é pra usar numa dessas máquinas bonitas de... olha essa aqui que bonita, põe em cima pra você ver... (MC) maravilhosa...ai meu Deus que absurdo (AP) porque tem umas que tão muito destruídas e outras que não estão muito destruídas, então, as que tão inteiras, as que tão fechadas você não vê dentro... (MC) mas acho que eu vou te dizer viu, aquela outra pedra que não estava lapidada, que estava assim sem nada... (AP) o cabochão, o cabochão é legal porque ele amplia, ele dá tipo um jogo de espelho. (MC) é exatamente, mas essa tá muito bonita. Ana você tinha que investir mais nesses, tinha que fazer mais desses anéis... (AP) isso aqui tá tudo pra ser feito, isso aqui é material sobrante, que um dia pode ser feito pode não ser, isso aqui é tudo uma intenção de fazer... (MC) tá muito bonito mesmo. E não tem pequenininho pra fazer um brinco?

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(AP) não, mas eu teria que fazer um relógio minúsculo, não tem relógio minúsculo... O menorzinho que eu consegui foram estes mesmos né... (MC) mas como é que vai conseguir um menorzinho... (AP) é... essa ideia... oh, o menorzinho que eu consegui é esse ... (MC) tá mas não precisa ser igualzinho, não precisa ser assim... (risada) (AP) não precisa... (MC) será que não? (AP) segundo José as minhas coisas assimétricas não vendem. Ele me falou isso domingo. (MC) eu gosto muito de coisa assimétrica... mas elas tem que ter uma... uma parceria... (AP) uma referência, tipo não podem ser inimigas... (MC) é... entendeu (AP) é, não sai com meia de outra cor... (MC) aí que ia ser o problema, mas ia dar um brinco maravilhoso, ia dar um brinco maravilhoso! Eu acho que a gente acabou. (AP) eu também acho.

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ANEXO 2 - ENTREVISTA COM ELVIRA SCHWARTZ

A gravação foi iniciada 5 minutos após o início da conversa... (MC) Da Waldorf Rudolf Steiner. (ES) e ela continua vindo, né? Esse ano ele esteve vindo, vem no segundo semestre, normalmente. (MC) É porque o terceiro ano a gente pega as profissões arquetípicas. (ES) agora tá vindo a Angelin, vindo... Tá vindo uma de Campinas... tem uma de Embu. (MC) Então é assim, vou fazer… então, meu trabalho! eu comecei a fazer uma investigação dos processos do artesão do ponto de vista pedagógico. Depois eu tomei a decisão de fazer uma mudança quando eu encontrei o Bachelard. Ele fala muito do contato do ser humano com a matéria, do confronto do ser humano com a matéria, dos processos de transformação a partir da transformação com a matéria. Meu trabalho nesse momento saiu dessa carinha de trabalho da cara que ele tinha de um trabalho mais pedagógico e eu passei a entrar no universo do artesão sem preocupação com… o que eu acho que depois de toda maneira eu vou conseguir fazer um grande ganho sem precisar desse viés pedagógico nesse momento. Então é… pensando um pouco nos autores que eu escolhi a gente fez, a gente elaborou, a Regina e eu, um questionário. Ele tem quatro partes, a primeira é sua identidade então formação, os caminhos que te trouxeram até onde você chegou, enfim, as tuas interferências que você recebeu, trajetória de uma forma geral. Depois a gente vai fazer uma observação sobre a mente de trabalhos recursos então olhar um pouquinho o ateliê, as ferramentas, o equipamento de segurança e matéria prima e uso de tecnologia, enfim, recursos mesmo. Método de trabalho a terceira parte, seu ritmo de trabalho, parcerias, os projetos futuros, o ritmo que é imposto pela própria matéria ou pelo corpo, seja lá o que for. E finalmente a gente vai pegar uma peça sua e a gente vai pensar, você vai recapturar o processo de criação dessa obra. desde o primeiro estágio até ele chegar do jeitinho que ele tá. Tá bom? Então acho que a gente podia começar sobre a questão do repertório. (ES) Tá (MC) Tudo bem, né? (ES) Vamos lá, fala um pouquinho de novo. (barulho de helicóptero) (MC) Então assim, primeiro, educação formal e as interferências de outros autores, como você foi guiada para esse caminho, né? Do trabalho com vidros, da arte em vidros. Se você teve interferência de algum grupo, da localização geográfica, enfim. (ES) Então vamos lá. (MC) Essa sua história. (ES) É pra eu contar minha história? Então, eu sou formada em psicologia, eu nunca tive uma vocação exata, eu sempre fui multivocacional, tinha muitas intenções, queria fazer muitas coisas e tal. Acabei parando numa faculdade de psicologia, meio sem muita certeza do que eu tava fazendo, me formei em psicologia, gostei do curso. Eu queria ser artista plástica, mas meu pai não deixou. Em resumo, a história é essa, né? Aí fiz psicologia, fiz mestrado em administração, fui trabalhar na área de

comportamento organizacional, em recursos humanos. Saí e fui trabalhar com decoração porque eu queria ficar mais próximas dos meus filhos e decoração era uma coisa que eu fazia em casa, tipo, dava pra ficar mais com bebês que eu tinha na época e tal, optei por trabalhar com decoração. Da decoração fui desenhando peças, desenhando objetos e aí "calhou" de eu fazer uma viagem e trouxe uma lamparina que quebrou e aí um "pezinho" dessa lamparina - essa história tá no meu livro - dessa lamparina que eu fui restaurar, era um "bastãozinho" daqueles assim, enfim, esses bastões me rodeiam até hoje. Nesse momento eu to fazendo um projeto pro Museu do Amanhã, enfim, meio com essa "matéria", não dá pra chamar bem de matéria prima, mas é um elemento que eu trabalho bastante, que são os bastões. E ai, enfim, essa foi minha trajetória e, eu queria na verdade, desde a escolha de uma profissão, essa coisa de querer ser uma artista plástica, pai não deixava e tal, tinha um desejo de ser artista né? a arte era muito premiada na minha vida, sempre foi, eu já tinha feito, enfim, estudei piano muito jovem, jovem não, criança, literalmente, com 7 anos, fiz ballet, fiz teatro, escrevi um livro aos 13 anos, tenho um vínculo forte com a literatura, poesia e tal. Sempre fui multidisciplinar mesmo. E ai eu fui me encaixando dentro das coisas e daquilo que aparecia. A decoração pro vidro foi por causa da lamparina que eu fui consertar e me vi trabalhando com um material, quando eu descobri o "pezinho" da lamparina foi quando deu um start no vidro. O que eu já tinha visto de vidro, minha família não tem nada de vidreiro, ninguém é, absolutamente ninguém. O que tinha era uma lembrança de criança visitando uma vidraria em Murano e aquela imagem do vidreiro soprando e daquela massa incandescente (MC) Inesquecível, né? (ES) inesquecível. Acho que até um pouco dessa reparação que eu faço comigo mesma passa pelo trabalho que eu faço com as crianças hoje, né? (MC) você tinha quantos anos quando…? (ES) Eu tinha nove anos. (MC) nove anos! (ES) Exatos nove anos das crianças que eu trabalho, que eu mais trabalho (?) Enfim, essa lembrança tinha ficado muito marcada na minha cabeça e aí eu comecei a retomar (MC) Engraçado, né? (ES) É muito louco, né? (MC) Puxa… (ES) E ai quando eu me vi com vidro veio essa coisa de vidro, tinha esse negócio de Murano, quis ir pra Murano, fui para Murano aprender a soprar vidro, enfim, aí as coisas foram acontecendo. (MC) Aí você já tinha mais ou menos…? (ES) 30 anos! (MC) Aham… (ES) Eu tinha 30 anos, é, porque ano que vem vai fazer 30 anos, eu tinha tinha e … dois anos, porque o ano que vem eu faço 30 anos de vidro. E aí foi isso. Começou assim. Em novembro de 89. Ai isso foi no final de um ano, aí eu fiquei um ano tentando procurar mexer, mas não achava nada. No ano seguinte, quando eu fui pra Murano, fiquei dois meses, para mestre, né? Ia pra Murano todo dia, ia soprar vidro. Ai voltei com essa coisa de que "é isso que eu quero fazer", enfim. Minha vida oscila entre momentos de mais

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criação e menos administração e momentos de mais administração e menos criação, porque ter uma empresa no Brasil durante 30 anos não é uma coisa muito leve (risadas). É difícil, né? Então assim, acho uma glória ter 30 anos de empresa, muito legal, mas tem os momentos. Agora a gente está em um momento mais calmo, há dois meses atrás a gente estava em um momento péssimo, tem que se virar para procurar cliente, procurar grana, e assim, a gente tem um custo fixo, a gente tem um pessoal, um vidreiro, uma mão de obra "carésima", o custo do forno aceso é absurdamente caro, meu forno é elétrico, eu tenho gás, tenho eletricidade. Então assim, é muita paixão em tudo. Acho que a paixão prevalece e faz se passar todos os obstáculos. Já tivemos muitos altos e baixos nesses 30 anos, mas tamo aqui, né? Passado os 30 anos orgulhosamente estou aqui, feliz, com a perspectiva de um trabalho legal, que é esse que eu to fazendo agora, hoje inclusive, cada etapa que está indo, eu to desenvolvendo um projeto pro Museu do Amanhã e é uma baita instalação. Então assim, né? (MC) Que legal, né? (ES) É mais uma coisa que… tiveram várias coisas, né? Primeira exposição em Nova York foi uma vitória, primeira peça em Londres foi uma vitória, uma peça aqui no MAB foi outra vitória, a abertura do Instituto do Vidro foi outra vitória. E assim a gente vai… (MC) Vai se alimentando, né? (ES) É, a gente se alimenta bastante de ideais. (MC) Deixa eu te perguntar uma coisa, quando você desenhava peças eram peças diversas, assim? (ES) Desenhava peças de… (cachorro latiu e ela saiu para acalmá-lo). Então, eu desenhava móveis principalmente. Projetos de decoração e móveis, mesa de jantar, aparador, estantes. Uma época eu cheguei a desenhar alguns objetos (alguém entrou e ela cumprimentou, conversou a apresentou. Então eu desenhava mais móveis, trabalhava com decoração, fazia projeto de decoração, coisas que eu sempre fiz por hobbie e aí eu trabalhei com isso durante uns 5 ou 6 anos profissionalmente. Com essa ideia de ficar mais em casa, com crianças, era uma ideia que cabia bem. Foi depois que meu primeiro filho nasceu, quando meu segundo filho nasceu eu já estava trabalhando com decoração e aí fiquei mais uns 3 anos e aí depois no meio da decoração entrou essa coisa do vidro, essa vontade de desenhar. Aí comecei a desenhar objetos e aí foi. Quatro anos depois (89, 94 - pensa em voz alta), em 94 eu estava expondo …. (foi interrompida) (MC) Você começou e já resolveu ir para Murano, foi isso? (ES) No ano seguinte eu fui para Murano. (MC) No ano seguinte você já foi para Murano. E você ficou bastante tempo lá? (ES) Fiquei dois meses. (MC) Fazendo aula? Nossa, eu ia adorar fazer isso. (ES) Fazendo… eu não fazia aula, eu fazia estágio. Teoricamente tinha um vidreiro que me ensinava, que me ensinava bem pouco. O que eu aprendi foi mais olhando e não tinha nenhuma didática, assim, ele pegava vidro, botava na minha mão e falava pra eu fazer um cavalo. (risadas). Hoje, 30 anos depois, eu ainda não consigo fazer o tal do cavalo. Mas ele queria que eu fizesse o cavalo. E aí ele insistia muito, mas assim, o contato… Primeiro foi apaixonante, porque eu me via voltando no tempo,

totalmente realizada, fazendo aquilo que eu… chegando perto da matéria prima que eu queria, daquele fogo, daquela… de você brincar com a luz mesmo, como dizia meu professor. Eu tive aula com o João Paulo II, que foi um grande mestre mesmo, foi sensacional, ele fez até o prefácio do meu livro, que assim, ele foi sensacional no sentido de me incentivar a fazer vidro. Claro que os truques ele não ensinou nenhum. (MC) Aham... (ES) Os "segredinhos" do vidro. O vidro tem muito essa coisa do segredo. Mas ele foi ótimo, ótimo no sentido de valorizar tudo que eu fazia. Quando eu desanimava porque não dava certo ele dizia "não, vai!" E foi isso. O que mais? (MC) Então na verdade depois do seu estágio em vidraria, isso que eu não entendi… (ES) Eu voltei para o Brasil. Isso foi em 90. Final de 90, começo de 91. (MC) E vocês (barulho).... Você foi pra essa pessoa? (ES) Então, em 91, janeiro, eu lembro que fui no final do ano e voltei depois do carnaval. Final de 90, começo de 91. Janeiro, fevereiro de 91 eu voltei e ai comecei a procurar. Quem me ajudou muitíssimo foi um cara que chamava Gariba, que era da Vidraria Nacional. Quando a Vidraria Nacional ainda era na… Como é que chamava? Na rua Cantagalo. Ele faleceu esse senhor, já faz um tempo, ele era ótimo, era uma gracinha de pessoa. Aprendi mais com ele do que aprendi em Murano. Ele era mais didático. (MC) Entendi. (ES) Os vidreiros de Murano eram muito pouco didáticos. (MC) Você foi se vira. Foi procurar quem pudesse te ensinar. (ES) Sempre me virando… Pioneira, né? Porque tudo que eu fiz no Brasil, assim, não tinha nada. Ninguém sabia nem o que era moldar. Ninguém sabia nada. Quando eu comecei um curso, a dar aula em um curso em 92, quando eu comecei a dar aula, não tinha ninguém que dava aula de vidro no Brasil. Hoje tem, mas não tinha ninguém que dava aula de vidro. Acho que tinha o Eduardo Prado e a Jaqueline Pedra só, na época. Eduardo Prado, bom, hoje ele não está mais nem no Brasil. Enfim, era um negócio superdifícil. Tudo era muito difícil. Não tinha internet. (MC) Engraçado isso, né? (ES) Pra você procurar as coisas, você procurava as coisas nas páginas amarelas. Era uma maluquice, né? (MC) Totalmente empreendedora, né? (ES) É. E muito desbravando. Era uma coisa completamente desconhecida. (MC) E tudo isso por um encantamento daquela cena? (ES) Aí, assim, bati cabeça para aprender a lixar e cortar. Depois bati cabeça com o forno. Daí passei uns cinco anos (barulho de avião). A gente não acertava nenhum forno. Aí até que eu consegui acertar um forno. Aí uma época as coisas estavam indo muito bem, tínhamos uma produção no Sul, aí eu quis fazer uma fábrica aqui, mas não certo então fechei a fábrica e continuei com o ateliê. Foi em 2004, 2005. Aí continuei com o ateliê e depois tive que sair da casa, foi quando eu vim pra cá, porque aí teve problema na prefeitura porque ela não queria fazer as coisas pra gastar que tinha que fazer para regularizar o imóvel. Enfim, saí às pressas de lá. É uma aventura, mas enfim. (MC) Entendi.

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(ES) Muita ousadia o tempo todo, sabe? (MC) Pois é. (ES) Muita coragem, muita ousadia. (MC) Porque não é barato, né? (ES) Nada é barato e … então, aqui, hoje, se você pegar minha situação hoje, nesse momento, 8 de agosto, nós estamos tentando nacionalizar uma câmara do forno. Nós vamos ligar o forno daqui a pouco, ele ficou desligado durante três semanas, porque pra comprar, primeiro que assim, começamos a trabalhar com o forno importado e o dólar estava 1,60 ou 1,40. Hoje custa quase 4. Então assim, os custos das coisas importadas estão absurdas. Fizemos toda uma pesquisa. A mulher levava de 15 a 20 dias para fazer o forno e 2 meses pra chegar aqui de navio, porque pesa uma tonelada. Então a gente não tinha esse tempo, esse timing, assim, sabe?. E pegou super de surpresa porque quebrou uma prateleira da resistência e a gente tentou consertar, durou mais 15 dias, derreteu e grudou uma resistência na outra. (MC) E aí você parou tudo? (ES) Parou toda parte de vidro soprado. Porque a gente tem uma parte de restauração, lapidação e tal. Essas coisas estão andando. Mas a parte de vidro soprado está tudo parado. Então assim, pedindo favor em alguns amigos, em fábricas, "qual horário você me deixa ir lá fazer duas peçinhas? Então o que que era super urgente, a gente fez. Agora já era pra ter ligado na sexta, depois ontem e agora hoje de Deus quiser, logo mais estamos ligando. Já está fechando. Já colocou as resistências, já montou todo o refratário. Oremos para que segunda feira o vidro esteja na temperatura para gente poder trabalhar. (MC) Quanto tempo demora o fogo? (ES) Então, é a primeira queima desse fogo, né? Então eu vou fazer ela em 5, 6 dias. (MC) Então você junta muitas peças ou ele fica depois permanentemente? (ES) Não. Ele fica permanentemente ligado. Vidro soprado é assim. Um vidro líquido derretido dentro de um "cadinho", o que a gente chama de panela, refratado. Vidro líquido, o vidro fica refletido lá dentro o tempo todo. Temperatura baixa pra gente é 1800 fahrenheit, que dá em torno de uns 900 e poucos graus celsius. Isso é temperatura de descanso. Temperatura de trabalho é 1170 graus celsius. É hard core. Então como você vê, eu gosto de adrenalina. As pessoas dizem: "você é viciada em adrenalina!" Sem adrenalina eu não funciono, as coisas começam a ficar muito paradas. Calma e serenidade é bom para tirar nas férias, dois dias, três dias, uma semana eu já estou descansada. "Vamos inventar alguma coisa nova para fazer!" (risadas) (MC) E a gente pode olhar o ateliê? Para fazer essa segunda parte. (ES) Claro! A gente só não vai poder ver ele funcionando. (MC) Isso não tem problema nenhum. Observação de ateliê, ferramentas. (ES) Você quer terminar a parte daí e depois a gente vai lá? Ou você quer ir e voltar? (MC) Eu prefiro ir e voltar, porque eu acho que vou querer ver a "carinha" para perguntar depois. Pena que não vou ver …. Mas bom, não é tão ruim! (ES) na verdade, depois que eu agendei com você eu fiquei sem forno.

(MC) não é tão ruim porque eu já vi o forno funcionar, vi os alunos fazendo as coisas. Eu assoprei! Meu vaso está em casa, entendeu? Então não é tão ruim. (mudam de ambiente) Isso daqui está lindo! (ES) Lindo, né? (MC) Lindo! (ES) (mostra o ateliê) Olha o estado! Isso daqui é um ateliê. (outra pessoa aparece e mostra algumas peças, elogiando-as e vai embora) (MC) Ah, que legal! (ES) Aqui está a criança! Você está vendo, ela acabando de nascer (mostra a câmara de forno). Essa é a câmara que fizemos aqui e deu problema, quebrou um pedaço. (MC) Esse é o lugar onde o vidro fica ... ? (conversas paralelas com terceiras pessoas) (ES) (mostra algo) Pode pôr a mão! (MC) Eu posso mesmo? (ES) Pode! (MC) Ah, entendi. É tipo uma panela. (ES) É uma panela. (MC) Quem projetou isso daqui? (ES) Isso daqui é um forno que compramos pronto e ali projetamos essa parte de cima. Estamos refazendo um projeto que não existia aqui. A gente procurou refratários, meio baseado na capacidade desse pra fazer o mesmo modelo de resistência. Agora já estamos ligando, mandando cavar coisa no lugar e aí … acabamos de criar. A Lisa é meio vidreira meio pedreira, ela que está montando tudo. (ES) Eu fico só no planejamento. Ela está fazendo a execução maravilhosamente bem. (MC) Você veio para trabalhar com vidro? Ou você veio e aconteceu? (Lisa) Então, eu estava "mochilando" na América do Sul, estava aqui no Brasil, estava procurando brincar um pouco com vidro e me apareceu um trabalho, então eu segui viajando e voltei para o trabalho. Eu vim para o trabalho, mas não à primeira vista. (MC) Entendi! (ES) Ela veio em dezembro, voltou, aí a gente tinha um projeto e ela vinha em abril, mas tive um problema com o vidreiro que estava trabalhando e eu falei "Lisa, vem!" e ela veio. (MC) Que legal! Lisa E foi perfeito também, porque estava em um hostel na Patagônia. Estava ... (barulho) (MC) Muito legal! Nossa, que legal! (ES) Então, não sei se você vai lembrar, mas o vidro é derretido aqui, aquecido naquele forno com a chama forte e depois descansa ali. (MC) Eu estou fazendo uma entrevista para o Mestrado (afirma para Lisa) (Lisa) Mestrado de que? (MC) Arte, educação e história da cultura. (elas assistem algo) (MC) Ai, que delicia, né? (continuam assistindo) (ES) Eu nem acredito que estou vendo esse negócio inteiro fechado, tem 300 materiais diferentes. (MC) Dá para ver direitinho, tem tudo aqui. (ES) a gente foi construindo isso daqui. Como vamos fazer a porta? Como vamos fazer a tampa? Como vão entrar as

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resistências? Como vão sair? Como vai vedar? Então assim, é um pouco rígido, porque isso daqui é um negócio que vem pronto e eu já tinha trocado uma vez. Vem pronto, você tira uma e põe a outra, só que a gente não tem tempo agora. Não dá pra ficar dois meses parado. Da outra vez eu tinha dois fornos e aí um ficou ligado e nesse meio tempo eu reformei o outro. Aí eu acabei vendendo o outro forno e agora tem esse e a gente tem que trabalhar com esse. (MC) Que legal, né? Nossa, que legal de ver, né? (ES) Sim, isso é uma oportunidade rara de você ver. (MC) Pois é! Puxa vida, isso aqui não existe, né? Como que eu ia ver isso … Muito legal as resistências. (ES) Se bem que é mais bonito quando está ligado. (MC) Não, mas bastidores, né Fê? Veja bem. Muito legal. Isso daqui já vem assim? (aponta para uma panela) (ES) Ela já vem assim. Nessa foto ela é vista de cima. É toda aberta. (MC) Não tinha isso daqui aqui? (ES) Já tinha. Mas a tampa não tinha. A tampa que ela diz é essa daqui. Isso é fio por dentro, olha que legal. (MC) Muito legal. E você vai trabalhar assim? (ES) to trabalhando assim há cinco anos. Isso é um caminhão, é uma carreta. Isso sai. Eu quase levei pro Mackenzie, sabia? (MC) Jura? (ES) Mas não rolou. Rolou uma época meio tensa no Mackenzie em que todo mundo foi mandado embora. Há uns três anos atrás. (MC) Eu nem estava lá. (ES) Até a Regina queria, porque a gente ia fazer uma exposição de vidro. Íamos fazer a exposição e deixar a carreta lá. Ai não virou. Complicado mexer com essa carreta, bem complicado. Ela é muito grande, mas a gente já saiu várias vezes com ela. É bem legal. Ela sai por conta do Instituto do Vidro, que é uma coisa que eu fundei e fiz todo um trabalho do site na internet. (MC) Você ia deixar … iam acontecer atividades lá com vidro? (ES) Sim, só que para adulto. (MC) Por quanto tempo? (ES) Ia deixar um tempo, sei lá, um mês. Como foi na FAAP. Na FAAP ficou um mês. Levamos nas férias de janeiro, fevereiro acho. 25 de janeiro à 20 de fevereiro. Ficou quase um mês. Ficou acho que até antes do carnaval. O pessoal faz oficinas, ficam lá e eles fazem oficinas. Mas com o Mackenzie não virou. Eles não toparam. (MC) Isso aqui na Waldorf, nossa, ia ser um sucesso. Os pais são loucos por isso. (ES) Teve um grupo de pais que veio agora. (MC) Eles são loucos por isso! Lá nosso maior problema é conter os pais (risadas) (ES) Eles são muito empolgados. (MC) Eles falam: "não tinha isso quando eu era aluno!" (risadas) "eu não pude fazer isso quando era aluno!" Daí a gente fica proporcionando ne. (ES) Mas hoje a gente faz muito porque, assim, tem escolas que vem os carros e vem 15 crianças e 5 pais. Muito comum acontecer isso porque eles são muito empolgados. Tudo bem, pode vir acompanhar. A gente dá uma oficina para cada dez crianças. Quando é 16, 18 crianças, eu dou duas. Agora semana que vem vão ser 12

crianças. Eu já dei duas oficinas, o que já é bastante. Uma para cada dez já é 10%. Quando vão mais de três pais a gente cobra o preço que cobramos para as crianças. Mas o pessoal vem (MC) Vem, é uma festa. Valorização danada, muito bom. (ES) é muito gostoso, eu amo a Waldorf. Esse ano a gente fez uma escola nova. E esse ano a gente fez a Beacon. (ES) É uma escola nova, bilíngue, né? Meio nova, deve ter uns 5 anos. Um prédio lá na... Um prédio bacana, grande. (MC): Eles vêm em que contexto? (ES) no contexto de conhecer materiais. Descoberta de materiais (MC): Que bom. (ES) Nessa idade também, de nove anos. É diferente do conceito da Waldorf, da profissão. O deles é mais focado nos materiais, em como se faz, de onde vem, como são feitas as coisas. Os processos. Não conheço muito à fundo, mas pela conversa que tive com os professores acho que esse é mais o contexto eles. É bem bacana, classes enormes. (MC): Deve juntas duas, né? (ES) É, veio. Eu lembro que vieram no mesmo dia. Vieram das 8:00 as 10:00 e das 10:00 ao 12:00. A gente oficina de bolinha de gude agora que é bem legal. (MC): Isso é legal mesmo. (ES) Muita criança não consegue fazer. A gente fez sopro. (MC): A gente soprou, né? Um vaso cada um. (ES) E as turmas são grandes. Quando são 30 crianças e a gente leva três horas, três horas e meia para fazer. Agora estamos cheios de brincadeiras: tem periscópio, tem copo, a gente faz música com copo. Porque nessas escolas maiores com mais grupos a gente precisa de diversão. Animais. (MC): Enquanto um trabalha, né? (ES) Aqui até que é legal porque eles correm para lá e pra cá. (MC): Sim, eles ficam de boa. (ES) Eles ficam a vontade. (MC): Eu lembro que ficaram super de boa esperando (ES) Sim! eles ficam, brincam. Sei lá, eles fazem qualquer coisa. A gente tem uma pasta também com livros e giz de cera, eles pintam. Tudo bem, tudo tranquilo. Viu? (MC): Vi! Ferramentas, pigmentos e etc. (ES) Ferramentas e pigmentos, então valos lá. As ferramentas estão lá dentro, na caixa de ferramentas. (mostra as ferramentas) (ES) Ferro de tranchar, que é a coisa mais importante que a gente usa. Do inglês, conhecido por jack. Isso daqui você faz o pescoço da peça. O jornal molhado é uma coisa que a gente trabalha também (MC): Isso daqui segura? (apontando para algum objeto) (ES) Não, não segura. Você roda a cana e esmaga. (MC): Ah. Eu já lembrei. (ES) Você tem tesouras, pinças, vários tipos de tesouras, espátulas para fazer fundos. Basicamente é isso. Ferro de tranchar você tem vários: vários tamanhos e tipos. Esse é outro ferro de tranchar. E aí é o jornal molhado que a gente… (interrompe a fala para mostrar como utiliza uma das ferramentas). Aqui você coloca a mão e vai maiochando o vidro com isso. (MC): Ah… jornal! Eu não tinha percebido que era jornal. (ES) Sim, jornal mesmo. O que as crianças fizeram é jornal. E tem os maioches, que são esses tipos de coisa aqui.

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Você pode maiochar no jornal ou na madeira. Você coloca aqui e vai alisando. (MC): Nossa, a gente pode imaginar, né? (ES) Muita imaginação, né? (MC): Sim! Fala a verdade… (ES) Então esse é o maioche. E o que mais? Ferramentas eu acho que é isso. Jornal, tesouras, pinças e maioches de madeiras. (MC): E os pigmentos? (ES) Cor! A gente tem os esmaltes, que é o que usamos com crianças, mas não é o material mais nobre que temos. A gente tem as cores de bastão (mostra algo). Isso daqui vem em barra e a gente corta dependendo do tamanho da peça que a gente for fazer. Tem tamanhos diferentes que a cor. Eu vou te mostrar uma barra. Não é para ter, mas as vezes tem uns pedacinhos (procura a barra). Isso daqui. Ela vem assim grande e aí a gente corta e trabalha dependendo da quantidade. (MC): É tipo um alicate de mosaico? (ES) Não, serra. (MC): Ah. (ES) Porque isso daqui é uma barra grande, eu te mostro uma barra inteira depois. (MC): Tá. (ES) Você tem alguns que já vem com cor trabalhada dentro, que são tipo as murinas que eles falam. (MC): Então você joga isso? (ES) Não, você põe isso na cana e depois cobre com vidro em cima. Você põe isso no buraco da cana, derrete e depois mergulha dentro do forno e cobre de cristal. Quando você sopra a cor fica por dentro e o cristal por fora. (MC): Ah, tá bom. Entendi. (ES) Sobre as matérias primas, eu vou te mostrar lá na frente. (MC): Ok. (elas se locomovem de lugar e X conversa com outra pessoa sobre a ligação da cama - áudio baixo devido a distância) (ES) Nos Estados Unidos, no Museu da Cornell, quando eu fui pra lá eu vi que eles tinham um caminhão que chama (?). Era isso daqui. Exatamente isso. Eles faziam muito mais coisas do que eu gostaria de fazer, mas a gente não tem essa versatilidade com a prefeitura. Eles colocavam em praça pública e faziam festival junto com vidro, festival de jazz. (MC): Nossa, que vontade que dá, né? (ES) Que vontade…. Mas eu vou te falar, aqui você vê uma coisa e quer fazer, mas você broxa aqui e ali. Tudo muito complicado. A gente colocou a carreta uma vez no mercado da Penha. Você não sabe o que fizeram. Assaltaram nossa carreta. (MC): Você está de brincadeira? (ES) No mercado. Briga de vereadores, quem mandou você colocar? Foi o vereador Gilberto, mas ele era do PV e aqui é o vereador do PT então não falou com a pessoa certa, "aqui não pode ficar", não davam energia elétrica pra gente, não ligavam nossa luz. Roubaram nossos cabos. (MC): Nossa, isso tem palavra mesmo. Broxante. (ES) É, sabe? É um tapa na cara. (MC): Sim, você vai com muita vontade, olha que legal.

(ES) Sim… gratuito. A (...) deu uma faixa, a Abividro deu um guarda sol que a gente ia colocar no mercado para as pessoas não ficarem no sol e a gente trabalhando de graça. Vai lá e ainda por cima é roubado. Nunca mais. (MC): Tipo "Não, não quero mais. Não faço de novo." (ES) Tiramos a carreta no dia seguinte. Na primeira noite fomos roubados. Voltamos pra casa com prejuízo, ainda por cima. Três, quatro mil reais para recomprar. Roubaram todos nossos fios. Roubaram peças que a gente tinha dentro da carreta, do controlador. Levaram tudo. (MC): Sei. (ES) Então assim, a gente não anima mais. A gente bota o pé pra trás para essas coisas. Não deixamos de fazer, mas tomamos muito cuidado. (MC): Equipamento de segurança. Com o que vocês precisam trabalhar? (ES) Os funcionários trabalham com fone de ouvido, máscaras. (MC): Com que fone de ouvido? (ES) O barulho da lixadeira, né? No forno não. Então no forno é só óculos, não tem luva. Na lapidação é protetor auricular e máscara, porque o pó de vidro é extremamente tóxico. (MC): Imprescindível. (ES) Imprescindível. (MC): Existe alguma nova tecnologia de vidro? (ES) Existe, existem várias, né? Mas uma de vidro soprado, existe impressora 3D. Ela vai fazendo um fio como se fosse aquele fio que vai colocando matéria. Ela coloca um fio de vidro. É um forninho que ainda não está a venda, mas daqui a pouco vai estar. Tem uma coisa muito tecnológica que não tem a ver com a área de arte que é o vidro líquido. Inventaram, não sei se você já viu, um impermeabilizante. Uma composição do vidro um pouco modificada. É um spray que você passa num tecido e não perde a maciez. Eu nunca usei na verdade. Falando de coisas que li e estou a par de o que está acontecendo. Toma cuidado porque às vezes as pessoas olham na internet e falam que viram vidro líquido num vaso. Não, isso é resina. Mas existe o vidro líquido mesmo que é modificado e existe em spray ou líquido. Você aplica e impermeabiliza. Agora lembrei, por que eu não faço isso com meu tapete? Tenho uma cachorra que vive passando com a patas sujas de barro em cima do tapete branco. Mas então a ideia é você impermeabilizar. Você impermeabiliza chão, roupa. (MC): Mas não tem nada a ver com? (interrompida) (ES) É um vidro líquido, composição química do vidro só que com uma sílica modificada, então ela não agrega. Ela fica líquida, não solidifica. O vidro é um líquido frio, né? (MC): E uma impressora 3D, por exemplo, não é algo que está disponível, né? (ES) Eu não sei dizer, preciso dar uma pesquisada, não estou acompanhando direito. Até o ano passado não estava, hoje eu não sei te dizer. (MC): Isso é algo que te interessa? Que você olha e fala: "eu gostaria"? (ES) Sim. Eu gostaria. Posso até ver como é que está. Acho que até vi esse ano. Março ainda não estava disponível. Vou ver se eu te acho um vídeo. (MC): E em que ele é atrativo? Ele faz coisas a mais?

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(ES) Se você desenha, ele monta. Só que ele não monta liso. Sabe aquele vaso alí? Ele é todo irregular. Seria como se fosse aquilo. Fio, fio, fio. Aquele branco. Então aquilo é isso. Ela faz isso. (MC): então na verdade não é que ela faz uma coisa a mais. Ela simplifica o trabalho. (ES) Não sei, essa foi a última pesquisa. (X Procura informações na internet) (ES) Talvez esteja a venda já. Quatro mil dólares. Já está a venda. A última vez que eu vi estava para ser lançado, agora já está a venda. Vou achar um videozinho para te mostrar muito legal. (MC): Ou seja, não é nostálgico né? Porque o vidreiro tem um lado assim que tem uma … e não tem nada disso, né? Uma nova tecnologia que é super bem-vinda, ótima, facilita. (ES) Não está a venda ainda. Essas que estão são impressoras 3D. É outra coisa. (MC): É outra coisa então. (ES) Não, vidro não tem nada de nostálgico. Você tem o vidro arte que já não é nostálgico. Coisas de vidro incríveis, modernas. Acho que o legal do vidro é isso. Você mexe com a história e modernidade de um jeito muito… É uma lá e cá com as coisas. Primeiro que você tem toda uma tecnologia em cima do vidro que é fantástica. Acho que essa coisa do vidro em termos de tecnologia. A gente está cercado de vidros. Vidro na arquitetura é uma coisa super arrojada. Você tem vidro térmico, vidro espelhado. Sei lá, se você olhar fotos de arquitetura moderna é tudo vidro. Os prédios mais modernos, Dubai por exemplo que tem aqueles prédios malucos, tudo é vidro. Você pega um aeroporto, tudo é vidro. Seja vidro transparente, colorido, espelhado. Tudo é vidro. Então você está com a modernidade ali o tempo todo. No Brasil não tem, mas eu já tentei fazer e não consegui, mas existem estruturas de rua maravilhosas. (MC): Como? (ES) Instalações nas ruas gigantescas, posso até depois na hora que eu estiver com paciência separar algumas fotos para você. Eu tenho muita foto. Eu estou exatamente tentando fazer isso para colocar no site, né? Técnicas de maçarico, técnicas de casting e etc. Exemplo de artistas que trabalham e as fotos de cada um, para as pessoas se localizarem. To querendo fazer isso para o site. E você tem instalações de vidro plano, acopladas, gigantescas nas ruas. As faixas de prédios. Deixa eu te mostrar a fachada da Chanel. Você já viu? (MC): Não sei. (ES) Mandaram fazer com vidro. (MC): Onde? (ES) Paris. (MC): faz tempo? (ES) uns dois anos. (MC): deixa eu ver (pega o celular para ver a foto). Que coisa mais linda. (ES) São blocos, tem um vídeo. No vídeo mostra bem. São tijolos de vidro prensado. Maravilhoso. É só pegar o vídeo aqui. Eu vou te mandar porque é um vídeo um pouquinho mais demorado. (MC): Ok. (ES) Mostra eles fazendo bloco por bloco, tijolo por tijolo. Logo no começo em que eu comecei a trabalhar com vidro, eu fui chamada numa bienal dos arquitetos e eles

iam fazer uma matéria de capa. Eles queriam falar sobre a história do vidro. Até me pegou um pouco de surpresa porque eu não me achava a altura para escrever uma matéria. Eu lembro que pedi para o Eduardo Prado, que dava aula na escola para gente, daí ele me disse que eu tinha conhecimento suficiente para escrever e que ele não tinha paciência. Acho que ele até me deu uma recomendação para ler alguma coisa. Aí eu começava o artigo dizendo que nos anos 60 surgiu o plástico que veio com toda força para derrubar o vidro. O plástico tinha todas as qualidades de transparência do vidro, mas tinha a grande vantagem que não se quebrava. Ao longo dos anos descobrimos que o plástico não quebra, mas perde todas as propriedades. Ele deixa de brilhar, deixa de ser transparente. O vidro é como um marido apaixonado que vê as andanças arruaceiras da mulher e fica esperando ela voltar para casa. (MC): Lindo. (ES) O vidro é isso, né? Fica mais na moda, daí ele cai, acham um substituto e depois ele volta. (MC): É, mas ele volta com plástica, né? (risadas) (ES) Volta cada vez melhor. (MC): Pois é. Isso daqui é lindo. (ES) Lindo, maravilhoso. (MC): Amei essa faixada. É bárbaro. (ES) Eu não acho nada antigo não. Você está lidando com uma coisa que é história, tem 5 mil anos, mas é hiper contemporâneo. É eterno. A gente diz que o vidro é frágil, porém eterno. Eu falo para as crianças, você pode estar fazendo uma coisa hoje que pode durar 5 mil anos (MC): Eu me lembro disso, é muito legal. Eles gostam de ouvir isso, é muito legal. (ES) Gostam. (MC): Eles nem imaginem que é 5 mil anos. (ES) As vezes eu brinco com as crianças falando que vidro é muito antigo. "Quantos anos tem o vidro?" e eles respondem "50". Não... (risadas) Olha é mais velho do que eu e eu tenho 60 anos. Então já começa assim. Quer dizer que 60 é muito velho. (MC): Recursos e critérios de escolha de matéria prima? (ES) A gente não tem muita opção, sabe? A gente tem opções, mas são todas de fora do Brasil. Fabricantes de matéria prima no mundo eu acho que são quatro ou cinco. Dois, três a gente já usou. O critério de escolha é uma combinação entre preço e qualidade. Você tem algumas matérias primas que são muito baratas, mas muito ruins. Você compra cacos de Coca-Cola que são péssimos. As importadas você tem opções melhores. Existia uma americana, a Spectrum, que foi comprada então agora a gente trabalha com uma outra. Essa Spectrum deu uma mexida no mercado. Imagina um mercado com cinco competidores e um sai. Era o principal fornecedor dos Estados Unidos. A Phillips é na Alemanha e Suíça. Tinham duas na Alemanha, uma na Suíça e uma na Suécia. Da Suécia é muito pequena, Costa Boa. (MC): Costa Boa, eu tenho uma peça deles. (ES) Eles fornecem mais pro pessoal da região mesmo, né? E uma outra coisa eles importam com um prazo de importação enorme. A Phillips tem um preço altíssimo porque eles trabalham com cristal óptico. O preço deles é supercaro. Os três que brigavam saiu um. O mercado americano virou uma loucura. Dois da Alemanha e um da

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República Tcheca ficaram atendendo. Hoje temos um fornecedor da Alemanha. (MC): Mas como que vem? Desculpe a ignorância (ES) Ela vem assim ó. (mostra algo) (MC): Porque é uma coisa tão específica, né? (ES) Tudo isso é matéria prima (mostra a matéria prima) (MC): Vem assim? (ES) Isso. Vem um monte disso. Isso é uma matéria prima inteira, nem quebrada está. Eles fazem um "nózinho" e cortam. As vezes ela vem em formato de oito às vezes assim. (MC): Ela pega os que ela gosta? (ES) É, os formatinhos que ela gosta e montam. Mas elas vêm assim, essas são as típicas. Quer fotografar? (MC): Quero. Depois eu vou pegar as fotos lindas, mas essas coisas assim você não vai ter foto, né? Nossa eu nunca pude imaginar que era isso. E vem isso assim? Umas caixonas? (ES) Sim, de 125 quilos. (MC): E os pigmentos? (ES) Os pigmentos são aquela barra que eu te mostrei. (MC): Mas eles são brasileiros? (ES) Nada brasileiro. Nem os pigmentos, nem ferramenta nem o forno. (MC): É um pigmento de vidro? Acho que eu já perguntei isso, mas não me lembro (ES) É uma barra de cor. É cor de cristal. Não é um pigmento. (MC): Ah, entendi. E aqueles pozinhos que eu vi? (ES) Os pós são óxidos. Os pozinhos a gente dá mais para crianças. Dificilmente a gente usa os pozinhos. O acabamento dele não é tão bom quanto a cor do vidro. (MC): Ele fica mais opaco, né? (ES) Não, ele fica mais granulado. Ele não fica homogêneo e nem transparente. Você pode ver que dificilmente eu trabalho com vidro leitoso, é mais transparente. A maioria das minhas cores são transparentes. (MC): Aham, tá bom. Métodos de trabalho. Vamos olhar um pouco o ritmo de produção, horário de trabalho, frequência, continuidade de processos. (ES) Com vidros soprados você ter uma rotina… Você está falando do meu ritmo de trabalho ou da empresa? (MC): Seu ritmo. (ES) 40 coisas ao mesmo tempo o tempo inteiro. Meu negócio, eu sou mais do que uma artista plástica. Eu sou uma artista plástica e empresária. Hoje eu trabalho pouco no vidro, eu ponho a mão e faço, por exemplo, se você pegar uma escultura o beliscão sou eu que dou. Eu sou a chefe de cozinha que tempera o risoto no final. Experimenta, vejo se tá bom, acerta e tal. Mas não sou eu que toco a produção e trabalho no dia a dia. Tem vários projetos, como a instalação do Museu do Amanhã, sou eu que estou desenhando e fazendo toda engenharia da coisa, mas provavelmente vão ter 10 pessoas porque o negócio tem três mil e tantas peças e não vou ser eu que vou montar sozinha. Provavelmente eu vou liderar a equipe que vai montar essas coisas. Mas meu dia a dia se divide entre administradora e artista. Todas as funções de administração: cobrança, administração do pessoal. A Rafa faz a parte bem burocrática mesmo, então ela que manda pedido e organiza minha agenda. Então eu vendo, eu cuido da produção, eu cuido do forno, da parte elétrica, da conta bancária. Eu pago as coisas, negócio as

comprar. Faço um pouco de tudo. Hoje trabalhando comigo tem a Alice, estrangeira, ela tá aqui por um tempo, não sei quanto tempo. Tenho dois funcionários fixos que são o Fernando, que trabalha na lapidação e a Rafa, que trabalha no escritório comigo. Eu vendo menos esculturas que eu gostaria, mas enfim, eu não vivo de vender esculturas. Eu vivo de várias coisas: esculturas, aulas, oficinas de crianças, aulas de adulto, restaurações que eu faço e tal. No meu dia são várias coisas. Uma hora você ta fazendo orçamento para cliente outra hora você para porque o cara do Rio viu o desenho. Eu mandei um desenho para ele agora e estou super curiosa aliás, desculpe. Deixa eu ver se ele mandou um e-mail. (olha o celular). Não. Então, essa coisa do Rio: eu estou há um mês mais ou menos trabalhando nesse projeto e é uma coisa que eu mais gosto de fazer. Adoraria poder fazer só isso. Vai ser uma das salas do Museu do Amanhã. Eles tão tirando uma peça que tem lá e colocar uma peça de vidro. Tem todo o briefing da peça e eu estou fazendo. (MC): Isso é o que você mais gosta? (ES) Sim, por mim eu viveria disso. Mas enfim. (MC): Você consegue então diferenciar uma parte do seu trabalho que é o seu ganho e uma parte que é aquilo que te dá um prazer? (ES) Olha, eu não diria separado assim. Eu acho que as coisas… Eu diria que assim, tudo que é execução e fazer as coisas me dá muito prazer. Me dá muito prazer atender um cliente, me dá muito prazer olhar para esse espelho e ver que o menino está cortando, que eu falei "corta esse vidro assim", "manda lapidar assado", "desenha", às vezes eu mesma desenho. Eu tenho muito prazer eu todo trabalho que eu faço. Eu diria que algumas coisas me dão mais prazer. Toda hora que eu estou sentada no computador bolando e criando, que nem agora que eu tô criando uma peça, uma vez até a Regina me mandou uma peça que era um "troféuzinho" da Embraer. Então assim, quando o cliente vem com uma peça eu vejo muito isso com esculturas. Então por exemplo a Schindler quer fazer um troféu que seja um skyline. Eu meio que já tenho na minha cabeça o que eu vou fazer para eles, só preciso montar, desenhar. Às vezes fazer uma maquete pra mim é mais fácil do que ficar desenhando 3D, não é muito minha praia. Mas eu tenho muito prazer em tudo que eu faço. O que me enche o saco é quando você tem que correr atrás de dinheiro ou resolver problema, isso que é chato. Tudo que é trabalho ou execução, fazer, me dá prazer. (MC): E te acontece de fazer uma coisa que você não gosta? (ES) Cobrar cliente. (MC): Não, eu digo nas encomendas mesmo. (ES) Acontece, eu tento não fazer. Às vezes eu tô matando cachorro a grito e eu faço. Toda vez que eu faço eu me arrependo. Porque assim, na verdade nenhum trabalho para mim é ruim, mas alguns clientes são ruins. Algumas pessoas são difíceis de lidar. Então sempre que possível essas pessoas que são difíceis de lidar eu procuro não fazer. Eu delicadamente mando andar. (MC): Mas isso não tem relação com o trabalho né? Seria mais com as pessoas. (ES) não tem um trabalho que eu vá dizer que não gosto. Mas tem trabalhos que não me dizem nada. Eu já fiz por exemplo uns potes de azeitonas de 90 cm de altura. Era

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uma réplica. É um trabalho divertido? Não parece, mas é. É um desafio, sabe? Como você vai fazer aquilo? Como você vai arrumar um forno daquele tamanho? E na hora que saiu ficou legal. Outro dia a gente fez para uma empresa que monta estande de feira, era uma feira de cosméticos acho, a gente fez … Quer uma água? (MC): Eu trouxe água, obrigada. (ES) Eu falo muito e minha garganta fica muito seca. (MC): Deixa eu dar uma paradinha aqui. (pausou a gravação por um tempo). (ES) O desafio é uma coisa muito prazerosa. (MC): Então na verdade você não tem uma diferenciação de mais prazer em relação a uma peça que você criou do nada e em relação a peça...? (ES) (interrompeu) Mais prazer sim, mas não desprazer. Não tenho bode em fazer, por exemplo, eu criei uma garrafa de clericot para um restaurante. O cliente aprovou, agora ele quer 140 peças. Eu coloco uma pessoa pra fazer. Se der tudo certo tudo bem. O que enche o saco é quando dá problema, quando o cara faz na forma errada. (interromperam a conversa para falar sobre uma criança - neto do enteado) (ES) Então assim, o que me enche o saco muito é grosseria de cliente. Às vezes você pega uma restauração para fazer que parece muito simples, mas a mulher imaginou uma coisa que vai sair e sai outra. Aí você refaz. Outro dia eu fiz um filtro para uma cliente. Era um "puta" desafio fazer um filtro. Não ficava e o filtro dançava em cima da base. Ficou lindo. Eu não gostei da parte de baixo porque ela falou que ia tirar o negócio azul, mas não tirou. O que eu acho muito gostoso do trabalho é que cada dia eu faço uma coisa diferente. Por um lado, é extremamente divertido por outro lado é extremamente complexo porque cada trabalho é um desafio. Então assim, às vezes fica muito bom. Olha o filtro (mostra a foto do filtro citado anteriormente). (MC): Olha como é que ficou. Ficou muito legal. (ES) Então assim, quando um cliente traz uma ideia, "eu quero um filtro", eu olho pra cada do cliente e não tenho a menor ideia de como eu vou fazer, mas eu vou fazer. Você topa? topo. Vamos tentar. (MC): E ela não conseguiu tirar o azul? (ES) É uma obra de arte então deu muito problema. Ela levou uma peça, demoramos para fazer. Fizemos e não deu certo, não encaixava. Ficou muito liso e o filtro escorregava em cima. A gente fez uma forminha de jornal e uma barriga muito baixa. A barriga chegava, parceria que estava tudo bem. Daí ela chegou e disse que não funcionava, porque a barriga tava tocando na garrafa. É muito pouca água que fica dentro então não dá para encher um copo. Tinha que fazer a barriga menor. Aí a gente fez um outro molde e fizemos uma barriga menor. No fim deu certo. Levou uns três meses. A cliente é legal e entende o que eu to fazendo. (MC): Que interessante ela ter essa ideia, né? (ES) Pois é. Você já fez? não. Você já fez uma ampola? nunca fiz, mas tento. Quer? podemos tentar, vamos tentar. A gente tem toda uma condição. Uma vez uma mulher queria uma taça que tivesse um négocio. Daí foi péssimo. Ela entrou na justiça, mas não deu em nada. Mas assim, ela queria que fizesse um "L" que segurasse um copo porque ela tinha um namorado que tinha uma

fábrica de shampoo. Desenhei, fiz, a mãe dela veio aqui, desenhou comigo, fizemos. Isso não ia parar em pé. "Não, mas é pra ficar na prateleira, não vai usar". Daí eu avisei que não ia parar em pé. Você vai ter que encostar porque mesmo se eu fizer a parte larga não vai parar em pé. E também pra mim foi uma diversão fazer, no final a gente fez exatamente o desenho que eu pensei. Mas o que que aconteceu? Não parou em pé. Eu falei, tá escrito, lê as mensagens que você vai ver. Mas ela já tinha pago, né? Aí ela falou que queria o dinheiro de volta, mas eu disse que refazia para ela. "Ah, não". O problema não foi que não parou em pé. O problema foi que a mãe dela veio aqui e falou "não para em pé, vê com ela". Daí eu mandei uma mensagem pra ela falando que eu ia colocar uma base para não cair. O peso do copo sem a taça já estava caindo, com a taça não ia parar em pé. Ela tinha encomendado de uma semana para outra. Ela tava indo viajar e deixou uma mensagem falando que já tinha depositado e o irmão ia buscar tal hora. Eu falei "olha, o copo não fica em pé". Daí eu coloquei uma bolacha em baixo. "Quem mandou você colocar uma bolacha em baixo?". Mas não parava, não tinha condições. Você tem que apoiar em algum lugar, não é que ia ficar frágil, ele só não fica. Aí ela mandou devolver, xingou, esperneou, queria o dinheiro de volta. Botou uma advogada, mas não deu em nada por causa desse negócio da lei de internet. Aí a gente vai aprimorando. Agora a gente fala "Você quer fazer uma experiência? eu topo e eu vou com a sua experiência até o fim", como eu fui com esse filtro, eu fiz duas peças que não deram certo e ela uma depois que montou e não deu certo. Eu fiz quatro peças para a cliente. Tomei prejuízo? tomei, mas atendi a cliente e tenho certeza que ela ficou satisfeita. Agora não quero mais porque a hora de entregar já passou, eu sinto muito. Até falei pra ela que poderia refazer, você me deu um prazo pra fazer, não ficou do jeito que você queria então a gente refaz. Não posso devolver esse dinheiro porque ta escrito no pedido que eu não devolvo. Ela ficou nervosa. Essas coisas enchem o saco, sabe? Isso é um aborrecimento que eu tenho. De resto é só alegria. Criança é alegria, restauração. As histórias que o povo traz com a restauração. Cada peça tem uma história da mãe, do avô. (MC): maravilhoso, né? (ES) Maravilhoso. Eu não consigo me imaginar um dia não trabalhando. Eu me imagino cada vez mais fazendo menos trabalho porque eu acho que o cliente não vai… sabe, o cliente é chato. Eu tenho mais problema com o cliente do que com o trabalho em si. Trabalho em si eu tiro de letra, faço numa boa. Se eu não gosto mando alguém fazer. (MC): E na diferença entre uma peça de decoração e o utilitário? (ES) Eu não faço quase utilitário… Muito pouco. Eu faço algumas garrafas para restaurante. Eu faço copo de (?), que são peças resolvidas já. Então essas peças pra mim hoje são coisas que eu criei, desenhos meus, e hoje rendem uma grana legal porque são peças que eu tenho os direitos reservados e eu executo. Executar uma peça que tem no forno, o cara vai lá, sopra e pronto. Entrega e acabou. (MC): Agora por exemplo, um brinco. Não é um utilitário, mas é uma coisa que tem um uso. (ES) Sim. Tem um pensamento. Tem uma …

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(MC): Você faz um brinco pesadão, por exemplo? (ES) Não, brinco pesadão não. Brinco eu tenho um super cuidado. Aquele brinco não é muito pesado e nem muito leve. Eu já não usaria, mas tem gente que usa. Colares eu já faço mais pesados. Eu uso colar pesado. As vezes clientes falar "Não, mas esse colar é muito pesado". "Segura sua bolsa. Você não carrega a bolsa?". Tem cliente que ri e leva, mas tem cliente que não leva. Mas enfim, anel é uma coisa complexa. Tem que ter a medida, aneleira, medida certa, né? (MC): Tem alguns horários favoritos de trabalho e produção? (ES) O trabalho de criação é sempre a noite. Quando o telefone não toca, não chega ninguém, todo mundo fora e eu tô quietinha. Esse é o horário da criação. Todo esse trabalho do Rio que eu to fazendo é uma hora da manhã. Toda criação é feita fora do horário de expediente. Horário de expediente é isso, chega cliente, funcionário perguntando se ta bom, o que que faz. Eu acabo sendo centralizadora mais por necessidade do que por querer, porque assim, a técnica do … se é uma garrafa que eu já sei como faz entra na produção normal, mas como cada trabalho é muito diferente do outro então cada vez que um cliente vem é um "o que você vai fazer?", "como é que vai cortar?", "vai cortar em que?", "vai cortar um pedaço?". Então tudo eu tenho que passar. Eu tenho uma empresa e é um negócio que tem a minha mão. Eu acredito que o cliente confia porque ele sabe que eu vou entregar. Sou eu que faço. Por exemplo, essa peça foi ele que cortou, mas eu tô olhando. Eu olho muito a peça, vejo muito o desenho e modelo. (MC): você é que treinou ele? (ES) É, esse menino tem treze anos. (MC): Veio sem treinamento? (ES) Todo mundo aqui sem treinamento. (MC): Você prefere? Daí você mesmo treina (ES) Tem essa política mesmo. Gosto disso. (MC): E a maior parte do seu trabalho é restauro, criação própria ou encomenda? (ES) A maior parte do meu trabalho são prêmios, troféus. Isso é o maior volume de trabalho. É o corporativo. Maior volume de trabalho e de dinheiro também (MC): Isso daí já te dá uma carteira mínima? (ES) É, isso é tipo 50% do meu trabalho. Aí depois tem as aulas, escola, depois a restauração e por último escultura. 50, 30, 15 e 5. (MC): E os troféus você fica super livre para escolher? É uma escultura? (ES) Não é bem assim. O cliente te "brifa". Ele te dá um norte. Ele diz "eu quero...". Por exemplo, a Schindler agora quer um skyline. A Regina uma vez que trouxe um cliente da Embraer que queria dar um presente que... . Ele não sabe o que quer, mas queria alguma coisa pra colocar o casaco na primeira chapa de ferro do avião. Então, o que você az? Aí ele fala "faz uma bolinha e colocar o negócio dentro". Ele quer gastar 30 reais. Minha missão é convencer que o cara que compra o avião merece receber um presente melhor do que 30 reais, afinal é uma coisa que ele vai usar pro resto da vida. Ele tá gastando quantos milhões para ganhar um presente de 30 reais? Mas enfim. Depois te mostro uma foto. Transformamos isso numa árvore. Tinha os grandes e pequenos porque dava pro

dono, vendedor, outras pessoas e tal. O pequeno ficou 150, 180 reais e o grande de 400, 500 reais. (MC): Super bonito. (ES) No final do pequeno acho que ele fez 50, 60 pequenos e 20 grandes. Todo mundo queria. Ficou super bonitinho. Agora tem o prêmio (...) que é a indústria de cosméticos, perfumaria e tal. (MC): Combina para caramba, né? (ES) É. E ele dão um prêmio que é um Oscar. Entrega na Sala São Paulo, abre o envelope, daí vem aquelas deusas lindas maravilhosas todas de preto com minha escultura na mão. (MC): Nossa que legal! (ES) Já é o sexto ano que a gente faz agora. Eu fiz durante muitos anos esse …. que é um prêmio da GV, Fundação Getúlio Vargas, eles davam quatro vezes por ano. Esse prêmio acabou e me faz uma falta. Mas outros vêm! (MC): Com certeza. Parceiros? Parceiros externos. Parceiros internos você já me contou da sua equipe. O que que você conta? (ES): Conto… Eu compro vidro beneficiado, que antigamente eu fazia tudo aqui. De 5, 6, 8 anos pra cá eu faço tudo fora, então todas as bases de troféu, tudo que é vidro plano, pé de mesa o tampo vem pronto. Algumas esculturas que tem uma parte de vidro plano, todas as bases. Então todos os beneficiamentos de vidro, cortar, lapidar e polir. Então sei lá, escultura do prêmio (?) tem uma base, no caso, uma base de cristal grosso que é gravado por dentro é um parceiro. Aí tem um outro que faz corte, lapidação é tal é outro parceiro. Então esses parceiros, isso tudo é feito fora. Jateamento é feito fora. Gravação a laser é feito fora. Que mais? Acho que é basicamente isso. Tem algumas coisas de mão de obra terceirizada também. (MC): Você coloca peças em loja ou fica tudo aqui? (ES): Até tem peças e lojas, mas algumas só. Tem um cara que mexe com iluminação, daí ele tem uma peça minha na área dele. (conversa paralela sobre uma máquina) (ES): Aqui passa muito helicóptero, por isso o barulho. Então assim, eu acho que o artista não tem… acho que a bolação é a parte legal da coisa. Pode não ter glamour, mas também tem um prazer na realização. A realização é uma obra. É um tampo. E eu digo pra você, eu já pintei, fazia várias outras coisas, já fiz teatro. Você ver uma peça, o ator, o ator representar é lindo. Mas o ator para representar passa 6 meses ensaiando aquela peça, repetindo mil vezes por dia o mesmo texto. Tem um trampo nas coisas. A pintura, sabe? Você vai pintar um negócio, legal, mas você tem que fazer um fundo, folha por folha. Você tem um trabalho naquilo, é um trabalho! Você arruma suas ferramentas, pincéis e coisas pra trabalhar na cerâmica, suas ferramentas de talhe. Você tem trabalho. O vidreiro talvez tem um pouco mais de trabalho do que os outros, mas ele tem um trabalho também A arte tem um trampo, literalmente um trapo. É o fazer, né? Quem não tem trampo é o designer. Ele senta na cadeira ou tem talvez o trampo do desenho, mas enfim, é operacional. O pianista performa uma peça maravilhosa, mas para chegar lá ele estudou 800 horas, tocou 800 horas de piano. É isso, não tem muita saída. São as ferramentas de trabalho.

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(MC): Você compartilha as ferramentas? As ferramentas são coletivas? (ES): Com os funcionários sim. (MC): Com os funcionários sim, mas com quem é de fora? (ES): Com colegas, não. Com alunos, sim. As ferramentas não saem daqui. Mas aqui todo mundo usa as mesmas ferramentas. Eu tenho as minhas porque todo mundo perde tudo, por exemplo, diamante eu tenho o meu, alicate, de corte. Quando eles perdem os deles eles vão buscar os meus. A gente compartilha. (risadas) (MC): Então as suas coisas você falou que não escoa em loja, você tem as encomendas e as peças que ficam aqui. (ES): O cliente vem aqui. (MC): Muito bom, ainda mais nesse lugar. E as pausas? Os momentos de pausa, as quedas de produção? (ES): Você diz "pausa" comercial ou de descanso? (MC): Pausa sua, do seu corpo. (ES): Ah, como é que eu descanso? (MC): É. (ES): Acho que eu não descanso. (MC): Você tem necessidade de pausa? Assim, eu não tô produzindo, não consigo produzir, parei. (ES): Ah, sim! Abstinência (risadas). Você falou de pausa, eu lembrei de um negócio, já vou te mandar. É um negócio muito bonitinho. É "como é um artista?", Fulano dorme assim, Ciclano assado. Você já viu isso? (MC): Não. (risadas). Não era isso que eu perguntei, como você dorme. (ES): Eu vou te mostrar. Eu nunca sei onde estão as coisas, sou muito ruim para achar (procura a foto no celular). O dia que eu achar te mando. É uma posição de sono. Quem dorme assim é de um jeito, outra profissão dorme de barriga pra cima. Daí tem artista: não está na cama. (MC): (risadas). Gostei, que legal. (ES): Artista não dorme. A cabeça não para. Então assim, nunca pensei nisso, mas agora pensando. Eu escrevo poesia, né? Então às vezes no meio do dia eu to fazendo alguma coisa e paro, escrevo um pouco. (MC): Você consegue fazer isso? Parar no meio da confusão e escrever alguma coisa? (ES): Eu preciso fazer isso. (MC): O dia meio que te consome. (ES): Às vezes quando eu consigo pensar... acho que nem pensar, inspiração é um fluxo, né? Não é algo que você controla. Então assim, eu já acordei de madrugada e desenhei uma coleção de joia. É muito louco. As vezes vem um texto na cabeça, vem uma frase, e eu escrevo. Às vezes eu tô fazendo alguma coisa e não consigo sair daquilo. Tipo, cliente quer uma mulher grávida. Aí você desenha de um jeito e não vai dar certo. Ai uma hora eu pego um texto e começo a escrever, tipo assim, vamos fazer outra coisa, né? (MC): Super legal. Te ajuda a sair? (ES): É. As vezes ajuda a sair porque você para e faz outra coisa e depois volta. E minha cachorra, que não é essa pequena, é outra, ela vem de tanto em tanto. O que ela vem pedir carinho, você dá uma distraída. Mas são minutos. Às vezes eu faço na tarde um chá, vamos comprar um bolo, dar uma paradinha e tal. (MC): Mas você não sente que você tem épocas que não consegue produzir? (ES): Sabe o que acontece comigo? Eu não sou um artista de ateliê que cria e vai depois vai vender. Eu trabalho "on

demand". As vezes isso me pressiona, mas isso por outro lado me faz criar. Eu tenho um cliente que compra troféus de fim de ano, prêmios que eles dão, há 16 anos. Só que há 16 anos eles fazem uma peça diferente. Todo ano tenho que inventar uma peça nova para eles, entendeu? E eu tenho alguns clientes que são assim. "Já fiz isso com você, já fiz aquilo com você". Por exemplo, tô falando dessa história da grávido porque foi uma coisa que eu empaquei, mas depois saiu um negócio maravilhoso. O Einstein faz coisas comigo, uma hora eles querem alguma coisa que tem a ver com o banco de sangue, outra hora eles querem ir para cardiologia, outra hora eles querem… teve um ano que eles queriam um negócio de fertilidade, eles queriam uma mulher grávida. E assim, tem coisas que eu tenho na cabeça e faço no vidro e tem coisas que eu preciso resolver antes no papel. Essa da mulher grávida eu queria resolver antes no papel. No final a gente acabou fazendo um desenho e acabou saindo uma peça muito bonita. (MC): Você fez algum curso de desenho ou você desenha bem por natureza? (ES): Eu fiz Escola Panamericana. Sempre gostei de desenhar. (MC): Antes do vidro? (ES): Ah, muito antes! Eu fiz Panamericana quando eu tinha 14 anos. (MC): Você tinha um repertório então, né? Começou e poxa, desenhou. (ES): Eu queria arquitetura. Entrei no terceiro colegial e parei. (MC): Vamos escolher uma peça? (ES): Vamos! (MC): Escolhe uma que você adora, que você tenha criado ou por encomenda ou livre. O que você quiser. (ES): Olha, ou o ninho ou o cipó. A técnica é a mesma e são peças… (MC): o cipó é essa que você acabou de me mostrar? (ES): O cipó é aquela branquinha. A branquinha que está nesse "cubinho" de vidro aqui embaixo. O ninho é aquele que está lá em cima. O ninho é uma peça minha importante porque vai para museus, é uma peça que teve exposição no Rio, Museu Nacional do Rio de Janeiro. Posso falar das duas. (MC): A gente pode pegar? (ES): Pode. (MC): Olhar para a carinha delas. (ES): Você quer tirar foto? (MC): Eu vou tirar foto, mas eu vi umas fotos suas muito bonitas dessa peça. Eu dei uma olhada. Mas de toda maneira eu vou tirar. (ES): Tinha um conjunto. (MC): É porque eu vi uma foto sua muito bonita dessa coleção. É uma coleção, né? (ES): É. Uma série. (MC): É muito linda. (ES): Muito linda. Acho que é minha peça top. (MC): Aí então vamos começar. Vamos fazer tudo dela? (ES): Vamos. O ninho surgiu …. surgiu e ressurgiu. Ele … surgiu na… como chama essa coleção? Tem os casulos… qual é o nome dessa coleção? Não lembro o nome da coleção. (MC): Esse lugar aqui tá lindíssimo. (ES): Esse canto, né?

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(MC): Esse canto está muito bonito. (ES): Isso também é novidade. Que que é isso daqui? O que que são? É um bicho, que bicho é? (MC): É um cisne. (ES): É um cisne ou um rato? (MC): Ah, agora você me pegou, né? (ES): Você pode ver o lado rato da vida ou o cisne. (risadas) (ES): É isso aí. A gente é poeta e vidreira. (MC): Mas tá tão bonito isso. (ES): Metamorfose! (MC): Depois eu fotografo pra gente não perder o fluxo. Isso daqui também estão… Essa cachorra vai ficar tão feliz aqui! Nossa senhora! Isso daqui está muito legal. (ES): Isso é um estudo para uma coisa que eu tô fazendo pro Museu do Amanhã. É fogo. (MC): É verdade isso? A gente pode escolher isso também? Não tem perigo desse cachorro quebrar algumas coisas, não? Mas isso tá muito legal, nossa hein! Teremos que fotografar, misericórdia! (ES): Esse é ruim de fotografar… (MC): Acho que ficou boa, olha. (ES): Achei linda! Mas essa não é a que vai ser usada, mas talvez seja usada. Não essa abertura, mas essa textura. Olha aqui. (MC): Ah meu deus. Está muito lindo isso daqui. (ES) Isso daqui é uma peça de uma coleção que chamava Bahia. Eram colares da Bahia. Eu tinha que fazer um forro, (MC): Nossa senhora, ficou muito legal. Que bonita. Muito bonita. (ES) Eu vou por ela pra você pegar mais iluminado que vai ficar interessante, olha. Se você subir um pouco mais a máquina. (MC): Bom, vamos lá. Você estava na metamorfose. (ES) Então assim, eu trabalhei durante uns 7 anos. Todo ano eu fazia uma coleção em cima de um tema, eram vários temas. Começou com Meio do Mar… Não, primeiro foi Profana, daí depois Meio do Mar. Profana era pegar objetos clássicos e depois profaná-los, tipo, um vaso romano e puxar uma ponta. Depois teve meio do mar, que era aquela coisa que não era nem o peixinho nem a coisa, mas o nível do sonho entre uma coisa e outra. Não é nem a superfície nem o fundo, mas o meio do mar. Tinha uma instalação de várias pedras que fazia um mar mesmo, bem legal. Tiveram várias coleções. Tinha uma que era Corpo Frágil, muito interessante essa coleção porque falava de uma coisa que era… nós somos frágeis, mas temos que entender nossa fragilidade como um cristal. No princípio de que tudo que não se cuida se quebra. O vidro é implacável nesse sentido. Se você não cuidar de uma roupa ela vai estragar e destruir aos poucos. Se você não cuidar de um celular ele vai estragar e destruir aos poucos. Se você não cuidar de um sapato, um livro, uma casa, uma janela. Tudo se estraga e se perde. O vidro é "pum", caiu e quebrou. Ainda que restaurado jamais será o mesmo. Nesse sentido eu fiz roupas de vidro. Daí eu fiz um desfile de roupas de vidro. Foi muito legal. Tinham dez trajes diferentes, todos em vidro. Uma coisa muito bacana. Enfim, nessas coleções tinha uma coleção que era a Metamorfose. Nessa coleção era a metamorfose da larva e tinha um ninho. Como é que trabalhava com as coleções? Eu tinha as imagens das coleções, tinha uma que era Gaudí e (?) que chamava…

não lembro de nada. Mas era assim: Gaudi profanou os planos e (?) profanou as linhas. Nada dele é reto, aquelas curvas. Nas coisas do Gaudí são os planos curvos e vi uma que chama assimetria. São assimetrias de plano e assimetrias de linhas. Eram as duas coisas: Gaudi e (?). Pega fotos referências do trabalho deles e saia as peças. Na Metamorfose a mesma coisa. Pega foto de metamorfoses, tinha larvas, casulo, enfim, o ninho. (MC): Mas de onde veio a ideia da metamorfose? (ES) Metamorfose em particular eu não sei te dizer. Na verdade ficava uma coisa… eu tinha algumas coisas pré-planejadas. Eu lembro que em 2001 foi Odisseia. (Alguém interrompe) (MC): Você pagou no Odisseia. (ES) Aí foram várias coleções. Acho que foram 9, não sei. No livro tem. Aí eu comecei com as séries. Série de gelo, tinha uma série que eram velas, tenho uma das folhas. Enfim, daí começaram as séries. Eu tô na série do polvo agora. Isso daqui é meu último trabalho. Esse é meu último trabalho. Eu te falei, né? Essas são as degelos, uma coisa que eu faço bastante, muito legal. Então vamos lá, o ninho. Tinha uma foto de um ninho. Eu trabalhei muito assim, pegava uma foto e como é que eu posso traduzir isso em vidro? Aí foi esse caminho do fio e trabalhar o fio. Uma edição anterior eu já tinha trabalhado o fio no cipó. O cipó era do Brasil 500 anos que foi em 2000 essa coleção. Eu já tinha trabalhado essa coisa do fio no cipó, foi uma coisa de afinar. (MC): Deixa eu pegar ela, bem bonita. Apesar de que essa eu também vi uma foto bem legal sua. (ES) É, tem. E aí o ninho foi... Na verdade ele começou bem menor e aí a coisa do ninho… esse nem é o maior que eu já fiz. Eu já fiz um vermelho supergrande, talvez seja esse que você viu. Não foi esse que você viu no site? Um ninho vermelho bem grande, maior que esse. Esse daqui eu acho que tem 28 o outro tem 35, um ninho desse tamanho. É uma paixão. É uma das peças mais trabalhosas que eu faço. (MC): Essa é toda sua? Você faz com parceria ou vai de cabo a rabo nela? (ES) Não, nenhuma peça é feita… não, aqui nenhum vidreiro trabalha sozinho. Você sempre trabalha com o que a gente chama de praça, no mínimo duas pessoas. Você não consegue trabalhar sozinha, porque um vidreiro segura a cana, o outro coloca o fio. Então no caso dessa peça sou eu que guio o fio. Sou eu que vou controlando o fio. Eu tenho a cana no fio e vou segurando a peça. Eu tenho outro vidreiro que é o que tá carregando a peça e fazendo o trabalho mais duro, mais pesado. Mas degelos por exemplo sou eu que faço todo o trabalho da cor que você tá vendo por dentro. O vidreiro é o que vai no tanque, colhe a camada final, ela entra com 4 quilos dentro do forno e sai com 8, 9 quilos. (MC): Sempre parceria. (ES) é o braço dele que tá fazendo. "A massa aqui.". Às vezes eu ponho o jornal também. (MC): Nossa, precisa ter uma sintonia. Caramba, você pensar que você tá produzindo… (ES) Tudo pensado antes. (MC): Tudo pensado antes. (ES) Eu tenho um projeto que ainda não botei em prática, mas cheguei a fazer umas "maquetinhas". Eram umas bonecas sentadas. Eu bolei umas mesas aí. Tenho um

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monte de projeto engavetado. E aí a gente começou a fazer umas … (cachorros interrompem). Esses bonecos... nossa a gente fez um … danados. Vamos sentar? (MC): Vamos. A ideia desses bonecos era fazer da cintura pra baixo uma gota dessas no meio e da cintura pra cima os braços e a cabeça. Para fazer esses bonecos cortados no meio e sentados, a gente treinava 10, 15 vezes sem o vidro, a mesma a peça. Um script de uma peça de teatro, tudo que você vai fazer, cada movimento. Super hiper controlado. Quem é que vai segurar, quem é que vai fazer o que pra na hora de colocar o vidro aqui fica um pra puxar a perna de um lado um pra puxar a perna do outro e vai olhando pra descer as duas peças ao mesmo tempo. (MC): Eu nunca tinha imaginado que era assim. (ES) É uma bolação antes. (MC): Ou seja, é uma coreografia. (ES) É uma coreografia! (MC): Ele é ação. (ES) É, não dá tempo de você pensar. (MC): E na "hora H" você vai falando ou é silencioso? (ES) Na hora H você vai falando tudo que já está decidido. Agora vamos puxar, vamos não sei o que, mas tudo combinado. Você tem todas as ferramentas na mão, tem todas as estruturas na mão. (MC): É tudo montado? (ES) Tudo montado. (MC): Agora eu to enxergando. (ES) Você tem um cenário montado todinho pra só "pum", porque você tem que fazer em 15 minutos aquele negócio. Se você puxou uma perna e não puxou a outra, você não consegue botar pra dentro do forno de novo porque a perna amolece. Você estragou a outra perna. (MC): E quanto tempo por exemplo esse…? (ES) (interrompeu). Se você sentou a boneca no lugar errado, não arruma mais, joga fora. Então assim, você tem que por, você põe a cana e calcula, o vidro vai descer como? E a perna? Então tem que ter altura. Que altura vamos puxar? Não, vamos puxar aqui e depois a gente esquenta só as pontas e puxa de novo. (MC): Meu deus (ES) Tem um script inteirinho feito pra na hora "pá pá pá". E é uma adrenalina só. (MC): Mas então se você não tiver seu parceiro estava frita. (ES) É mais do que um parceiro, é uma entidade. (MC): É praticamente seu braço. (ES) É tudo, vira uma cabeça só. (MC): Gente, mas isso é tão interessante. Eu nunca imaginei. Quanto tempo demorou pra fazer aquele ninho? Uma peça. (ES) Três horas. (MC): Três horas assim? Porque você vai indo… (ES) são 150 fios mais ou menos. 50 fios por hora. (MC): Isso significa fazer uma camadinha? (ES) colhe e põe, colhe e põe, colhe e põe. (MC): Colhe, põe, seca e faz de novo? É isso? (ES) Não é que seca, esfria, endurece. Daí ele volta. Nesse meio, você vai no forno, colhe, puxa, prepara a ponto, vem, vira. Você tem uma pessoa no forno fazendo o fio, colhendo, arrumando, maiochando, trançando o bico. Daí ele dá na minha mão. O outro tá com a peça pronta. Esse que tá com a peça pronta a cada 5, 6 colhidas ele volta no

forno, se a peça esfriar ela cai da cana. Já fiz vários vidros que caíram da cana. (MC): Já? Já fez vários vidros. Você pode derreter de novo, né? Você não perde material? (ES) É pura adrenalina. Joga no lixo. (MC): Ah porque tá com cor, que coisa! (ES) O cristal você reaproveita, mas o vidro você joga no lixo. É muita adrenalina. (MC): Eu nunca imaginei… (ES) Na hora que você faz, você comemora. E eu faço pouco. Aqui, perto do que os caras fazem. Vê na internet quando você tiver tempo um tal de skyriver. Como é que ele chama? Não sei o que Skyriver. Ele faz umas coisas do mar. Como é o primeiro nome? Jeff… Skyriver. Ele é primo de um brasileiro. Como é que é? FIM DA GRAVAÇÃO

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ANEXO 3 – ENTREVISTA COM GUILHERME ROSSI GRAVAÇÃO INICIADA 20 MINUTOS APÓS O INÍCIO DA CONVERSA. (GR) A primeira impressora 3D que se ouviu dizer tá em baixo da cortina vermelha ali... (MC) A sua primeira? (GR) não, a primeira que saiu há 15 anos atrás, eu fiz uma... eu montei... (MC) Você montou? (GR) E, então tem umas coisas bem primitivas...tenho muita coisa assim, eu faço isso minha vida inteira, eu nunca mudei de área sabe? (MC) Então, vamos então começar... (GR) vamos (MC) porque eu acho que aí você já começa onde eu quero começar... (GR) pega... quer trazer a sua bolsa... (MC) sim, sim... sim, sim (GR) ... vou só te mostrar um pouco a oficina, só te mostrar um pouco como é que é... Sabe... A gente desenvolve coisas pra ele, é um mercado de luxo extremo assim que a gente trabalha, que é assim, estar em Nova York (MC) sim, dá pra perceber... (GR) é pra a Bienal, esse cara mesmo, ele tá pedindo pra ele uns expositores, aí eu fiz umas peças indígenas e tal... (MC) Devem ter ficado lindas... (GR) isso aí eu fiz pra minha filha, é uma caveira que fala e canta (MC) (Risada) ... que é que ela achou? (GR) nossa, ela adorou, levei na escola dela. Essa caveira eu fiz quando eu tinha 14 anos... (MC) Ela é de quê? (GR) Ela é de gesso, eu esculpi só a caveira pra uma feira de ciências, eu estudei no Santa Cruz ... (MC) ah, você estudou no Santa Cruz... (GR) ...aí tinha uma feira de ciências lá, e o nosso caiu esqueleto. Meu vô era ortopedista, se você perguntar pra Regina, ele foi assim um cientista de marca maior assim, doutor, ele fez um dout... ele era, foi uma figura assim bem importante, mesmo como ortopedista assim. E aí caiu esqueleto, já tinha isso da família, e aí falei assim, vou fazer uma caveira de controle remoto, era feira então a gente tinha que chamar atenção, eu fiz essa caveira aí. E aí ela ficou lá, o meu pai não deixou jogar fora e tal, e.. sobreviveu aos anos, aí eu trouxe pra cá uma vez e falei, ah... falei, vou robotizar, ela já tinha as coisinhas, mas eu falei vou robotizar... (MC) Que é que ela fazia naquela época? (GR) Mexia com controle remoto, já era o modelo... (MC) ah... você já inventava... (GR) E... aí ela, ai eu falei na escola, tem escola que todo mundo tira sarro assim, porque na escola dela no dia das crianças tem a semana que os pais vão se apresentar com alguma coisa, com as habilidades... (MC) ah, que legal. O pai que tem que ir? (GR) E... não que tem, mas eles pedem que vá né... (MC) Ah tá...Que escola é essa Guilherme? (GR) Espaço Brincar. Sabe qual é? (MC) Já ouvi falar né... não conheço a escola... (GR) Ela é legal, bem maneira assim....eu tava entre a Teia, antes a gente era casado e eu separei, ai era na Grande

Chão, aí foi na Teia que é bem antroposófica, aí tinha uma outra que não era nada antroposófica, e esse espaço brincar foi no meio assim sabe... (MC) sei... (GR) Se o pai não quiser não precisa, se não quiser comer açúcar...o bolo é com açúcar... sabe? (MC) aham, legal, ficou no meio de campinho bem legal (GR) Isso. E aí é um lugar, é tão incrível assim que, primeiro que é construído... (MC) Aonde fica em? (GR) Na Vila Beatriz (MC) Eu gosto de conhecer esses lugares... (GR) nossa, essa é maravilhosa assim. Bem assim, a dona dá um chute no peito assim sabe, que eu já ouvi dizer de quem vai lá que ela é super durona assim... (MC) Do Espaço Brincar? (GR) ...tanto é que eu levei um amigo meu... não, não, pra pessoas assim, ela é aberta, mas não sei o quanto ela é aberta assim, porque já tá há muitos anos, ela tem o esquemão dela lá. Eu é, adoro ela, mas já ouvi dizer isso. Aí ela foi construída pra ser escola né, assim então não é uma casa adaptada, e aí ela tem uma...E, como é que fala... ah, aí quando eu fui na entrevista, você já assistiu aquele filme (?) E eu tava com isso na cabeça e tal, não é que eu tava, sei lá, talvez ali me chamou atenção porque eu tava lá esperando assim... é linda a escola... E aí desceu um toco assim, uma criancinha procurando água... aí veio uma outra criança e pegou na mão e falou assim, o que é que você quer, é agua, ah não é aqui ô, e levou embora assim... então tem a questão dos mais velhos cuidando dos mais novos, eu falei nossa, é aqui. (MC) Cuidando... (GR) Aí consegui vaga lá e tal. Aí eles fazem isto, aí até uma professora falou, o que é que você vai fazer com um pai que é advogado? Eu levo essas coisas que eu faço, eu conto histórias de mim, cada vez uma história nova assim... (MC) ah, você conta história... você vai e faz uma... (GR) não, é que eu me apresento, eu tenho que apresentar, a exposição eu vou me apresentar assim, ou é em auditório, tem várias situações né, e então o que precisar, estamos aí (MC) Legal, legal, que legal. (GR) Vamos pra cá só por causa do barulho... (MC) ah tá, até porque eu tô com medo de não aparecer, que eu já tô gravando. (GR) tá, eu vou desligar esse som aqui (MC) tá bom. Isto aqui parece uma cabine de som mesmo né, aquelas coisas de estúdio. (GR) E, E porque tem... (MC) Você fez isolamento? (GR) Não, aqui foi tudo... (MC) não tá com isolamento? Tá isolando bem... (GR) E, porque a gente fez aquela porta e essa, e pra cá precisa ter porque assim, em momentos que eu tô tipo isso, barulho e tudo mais, é muita loucura, muita loucura. (MC) Isso te exigiu o que Guiherme? ... isso te exigiu um curso especial? (GR) Fiz, eu fiz engenharia e arquitetura, eu não sou formado, nem um nem outro... (MC) Nem um nem outro?

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(GR) E... a minha história um pouco ela é assim, eu, então assim, essa coisa do aeromodelo já tinha né, do meu vô, meu bisavô era ourives, essas coisas... (MC) ah, seu bisavô era ou... ah, você é do mesmo bisavô da Regina então... não ele era do vitral, o bisavô da... (GR) Eles eram amigos sempre, eu tive de já duas ou três gerações são amigos assim... (MC) Ele era ourives... (GR) E a sobrinha da Regina é muito amiga minha, sabe foi calhando assim... (MC) sei, aham... 7:16 (GR) Aí... eu... eu tô pensando no fio da meada pra poder falar, mas é mais ou menos isso, eu tinha essa, essa habilidade já pra fazer isso, aí eu fui fazer engenharia. Sai da escola tal... (MC) Então de infância o que você lembra da sua memória é o aeromodelismo? (GR) É, que já é uma coisa que você tem que inventar muitas coisas pra dar certo. E tinha também na infância, eu fazia isso, tinha um negócio que era tempo e espaço, sabe tempo e espaço? (MC) Não. (GR) Tempo e Espaço é um atelier de tecnologia pra criança. E ai eu fui aluno dele, meus pais incentivavam muito assim. Aí eu fiz várias coisinhas né, de trabalho mesmo eu tinha, teve uma época que eu comprei som, tinha essa coisa do empreendedorismo assim né, tinha som pra, eu comprei com um amigo meu equipamento de som pra alugar, essas coisas assim, quase como fazer pipoca e vender no isopor, mas isso sempre teve. Pegava assim, pegava dinheiro e transformava esse dinheiro em outra coisa pra ganhar mais, sempre, sempre, paralelo a tudo que eu já fiz assim. Aí... (MC) Interessante, né? (GR) E aí então eu fui fazer engenharia mecânica, e a linha de produção mecânica, e aí eu comecei a fazer, paralelo a isso eu tinha uns amigos do teatro, de pessoal de teatro mesmo assim, atores, eu era muito amigo de um deles lá, que eu ia muito na casa deles, era o Osmar, também artista plástico, tal. Então, paralelo ao curso de engenharia eu fazia algumas, algumas coisas pra teatro, isso com 20 anos assim, 18, entre 18 e 20, e... eu era muito amigo mesmo do pai deles assim, tinha uma ligação com o pai desses meus amigos, ele era artista plástico, e a gente conversava, era uma pessoa que todo mundo adorava mas assim, tinha uma ligação ali. E aí ele... eu tava fazendo esse curso e fui trabalhar numa fábrica de ferros assim, que fazem tubos, E... (MC) No meio da faculdade, fazendo esse curso... 10:10 (GR) Isso, eu fui fazer o estágio de engenharia, e mesmo assim eu fazia cenário pra teatro, eu já tava ficando mais profissional de cenário assim. E aí, assim, eu nem dava bola, teve um que saiu na capa da Folha, que eu tinha feito, mas pra mim não era absolutamente nada assim... não tinha nenhum valor. (MC) (Risada) Como todo jovem... (GR) E... a gente não sabe...essa coisa não... (MC) quase uma brincadeira... (GR) É, e assim, várias, tiveram umas 3 ou 4 cenários que eu fiz que saíram na capa da Folha, da Ilustrada, e teve um que ganhou prêmio Shell, e eu nem aí pra hora do Brasil assim... (MC) coisa muito legal né...

(GR) E prêmio de iluminação, aí... (MC) você ganhou? (GR) A equipe ganhou né... mas eu que fiz o... era uma peça que chamava “Raptada pelo Raio”, e trabalhei, e assim, eu já tô um pouco misturando o canal, porque isso já foi mais adiante né... Aí eu sai, que é que aconteceu, essa fábrica era de uma pessoa conhecida, quando ela entrou, ai ela tava sendo adaptada ainda, tava na fase de construção então tinha que inventar muita coisa. Quando entrou pro padrão, pro dia a dia, eu espanei completamente de tudo, falei, nossa não é isso que eu quero fazer nem à pau assim. Isso aí eu tô falando, ou você quer... (MC) Não, super de boa, eu tô gravando, mas me ajuda quando eu anoto entendeu, então pode ficar tranquilo (GR) Mas você quer perguntar as coisas ou eu posso ir falando? (MC) eu te interrompo, eu interrompo, pode ficar tranquilo. (GR) Ah tá bom, tá tudo bem assim? (MC) tá ótimo. (GR) Tá bom. Ai.... ah... e aí quando entrou no dia a dia assim que era o repetitivo eu pulei fora, isso é um ponto assim. (MC) Você já descobriu uma coisa né? (GR) É, que eu não queria fazer coisas que se repetissem... (MC) rotineiras... (GR) Rotineiras, isso. E isso eu devia ter... E vinte e poucos, tudo na faixa dos 20, 24 anos. E aí eu fui fazer curso de marcenaria, fiquei meio perdidão, e trabalhando ainda fazendo esses cenários assim... (MC) Tem curso de marcenaria legal em São Paulo? (GR) Tem, tem, chama “Cose di Legno”, é assim, é um curso, você pode escolher, optar por fazer o curso, ou você pode querer ir lá só fazer um aparador assim sabe. Você tem que falar com ele, como eu escolhi cursos saía mais caro até, cobrava outro preço tal, com consultoria, porque eu queria abrir essa, o que eu faço hoje, mas eu não sabia ainda o que é que era. Hoje eu ainda não sei exatamente o que a gente faz sabe, se tem um nome para o que eu faço... (MC) Não vai ter talvez... (GR) não vai ter, E... (MC) Porque daí é uma especialização que talvez nem seja a sua cara... (GR) Isso (MC) acho que ele é assim. (GR) É, não tem uma coisa assim, eu faço tal... então, voltando né, eu fui pra... eu comecei a entrar mais nesse mundo das artes... (MC) O curso de marcenaria durou quanto Guilherme? (GR) Ah, uns 6 meses só, mas foi o suficiente assim... (MC) Te deu o básico, te deu as noções... (GR) Isso, deu a base pra fazer várias outras coisas assim, aprender sobre madeira e tal. E nessa hora eu já tinha acabado de abandonar a engenharia. E aí eu fui pra... (MC) Com quantos anos de engenharia? (GR) Eu fiz 3 anos. Eu fui até o terceiro ano em quatro anos vai, coisa assim, tomando pau... (MC) Aham... não era sua praia (GR) É. (MC) Interessante, porque engenharia tem uma pegada né, de mecânica...

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(GR) Não, pra mim serviu pra muitas coisas. Tem até uma mulher escrevendo ... (MC) Porque combina com você, não descombina não... (GR) Tem uma pessoa escrevendo agora pra um trabalho que eu fiz lá no pivô, sabe pivô? (MC) Eu não conheço essa área. Têm coisas que a gente já ouviu falar, mas aí você vai me falando... (GR) E... eu fiz uma coluna se mexer assim, então tem uns desenhos técnicos de engenharia pesados assim, e justamente o engenheiro dela não conseguiu, porque tem um problema muito grande entre o engenheiro e o arquiteto nesse trabalho, e o artista, que é talvez onde eu me encaixe, porque as pessoas gostam, sei lá se gostam ou não, mas enfim, eles chamam muito né, a gente tá lotado de trabalho acho que por conta disso. Porque essa questão da coisa que o engenheiro ele vai fazer parrudo sabe, o arquiteto vai fazer mais o miolo, a mecânica falta, então essa junção assim de fazer a coisa super estreita funcionar sem barulho, então assim, a engenharia me deu bastante base pra isso também, muita base. Até porque eu não fiquei só no teórico né, o que me pós na prática foi o estágio assim, e foi pesado assim, era um estágio de uma fábrica... (MC) Essa da fábrica de ferro né? (GR) Isso, fabricava peças pra trator, pra caminhão, pra... e aí tinha muita a questão mecânica, tinha muitos processos que eu aprendi muita coisa nessa fábrica aí. A engenharia na verdade era uma coisa que... (MC) Mas você era esperto né, porque nessa idade eu vejo que, porque eu trabalho com jovens dessa idade, eu sou professora, as vezes parece que o jovem não tem a pegada de pegar o negócio e aprender sabe, fica um pouquinho superficial, você já levava jeito pra coisa se você conseguiu aprender tanto assim... (GR) E, sim, é uma coisa, é minha praia. Eu pulei uma coisa que nessa época que eu fiz essa caveira eu tinha um quartinho lá em casa que meu primo pôs o nome e virou, que era o “centro de invenções inúteis”... (MC) (Risada) (GR) Então isso correu a infância toda assim, a adolescência e a infância correu com isso assim. Você quer uma água? (MC) Não, obrigada, eu sempre trago a minha água na bolsa, daqui a pouco eu pego. (GR) Se quiser também tem ar condicionado, você pode ligar... (MC) Você pode escolher, eu tô de boa... (GR) Se tiver com calor você avisa... (MC) Eu te aviso, mas eu tô bem. Centro de Invenções Inúteis... (GR) E, C I.I., ele até pixou lá... (MC) Você transitou da brincadeira pro trabalho de boa né Guilherme... (GR) É, foi bem... (MC) Você foi de boinha transitando da sua brincadeira de infância pra sua vida profissional... (GR) E... tem pessoas que falam que a gente brinca aqui ainda, mas não é né... (MC) E, lógico que não é (Risada) mas eu digo assim... (GR) Lógico, não é... (MC) Mas a transição que você fez é a transição que o ser humano deveria fazer, é isso.

(GR) E... de novo, pra mim isso, eu não penso assim, eu sei que eu tenho muito satisfatório o que a gente faz assim, sofre muito, mas tem uma satisfação quando tá pronto, porque tudo é uma peça única, e nunca se repete né, eu nunca repeti um trabalho na vida. Eu nunca, assim, a não ser assim, faz três iguais, mas de resto eu nunca repeti um trabalho. Ai, enfim... aí eu fui pra galeria da mãe desses meus amigos né, que são pessoas que assim, agora a gente tá meio distanciado, mas a gente se fala, liga as vezes sabe, irmão quase, cada um no seu tempo assim, e ai a mãe dele tinha, tem uma galeria, que é a galeria Virgílio, já ouviu falar? Tem o barco... (MC) E fica aonde? Na rua Virgílio mesmo... (GR) E tem um barco lá que é esse curso, tem várias histórias assim, meio de tudo que eu tô falando, tem várias histórias, todas foram acontecendo, coisas que realmente me deram alguns bons por exemplo, ela tinha essa galeria, e eu tava nesse meio que tava sem trabalho, fazendo uns free assim, não sabia muito o que ia acontecer da minha vida, se ia ser marceneiro, porque pra abrir marcenaria precisava de uma grana que eu não tinha também. Existia lá umas promessas assim, mas não dava pra abrir. Aí... (MC) Isso quando você já tinha abandonado a engenharia? (GR) Isso. E aí eu tava lá tal, e eu ficava nessa conversa sempre com o pai desse amigo. Ele foi me passando uma, eles tavam começando a formar esse lugar que era o barco Virgílio, Brasil arte contemporânea, um lugar de dar aulas tal, e aí ele tava falando, tava formando essas ideias todas, arrumando uma pessoa com grana pra bancar, que era bem grande, uma escola né. E aí toda a reforma do lugar ele não desenhou, porque ele também era um arquiteto que nem eu assim, foi, fez mas não se formou, artista, bem assim. A família inteira lá é esse mesmo jeitão assim, e aí ... e ai me passou tudo, ela era boemião, eu ia lá de madrugada, chegava lá as vezes 3 da manhã, não dormia em casa, eles eram vizinhos, assim, meio perto. Eu não dormia assim, aí e vou lá, ai chegava lá tinha gente assim, bem legal. E aí ele me passou toda essa reforma que ele gostaria de fazer... (MC) Nesse lugar? (GR) É, nesse lugar. E aí ele morreu e não tinha nada registrado, aí os irmãos falaram, meu, só você que sabe, e aí eu falei, quer saber, eu vou fazer uma terapia, meio coaching assim, na época acho que nem tinha muito assim... (MC) Era orientação vocacional... (GR) Isso. Aí eu falei, vou fazer isso porque eu precisava duma grana, então vou pedir a grana da terapia. E ai eu fiz um mês só, tempo que eu ia escrever, vou fazer e vamo aí. E aí foi onde tudo foi... minha vida... (MC) Olha só... mas você não precisava nem do coaching.... (GR) Não, foi com ela também... (MC) ajudou? (GR) Ajudou bastante. E ela era junguiana, uma pessoa bem legal, mas assim, não era nada tão profundo, era mais assim da forma as forças assim. Eu saí de casa também, dei um surto, falei vamos dar um jeito. Tipo me larguei.... (MC) (Risada)

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(GR) Isso eu tinha 24. Aí eu falei vai dar certo, vamo lá. E aí deu, até hoje... agora eu voltei com a minha filha por uma questão que eu tô cumprindo aqui né, é diferente, mas lá atrás eu tinha uma máquina tico-tico, era o que eu tinha. (MC) Você tinha uma máquina tico-tico? (GR) E, e aí tal... eu fiquei lá na galeria, eles me pediram pra trabalhar lá, com um salário mesmo e tal, aí eu fiquei lá. Eu fiquei tipo um ano e meio assim... (MC) Esse lugar ainda tá lá? (GR) Tá, tá... (MC) Exatamente como ele era... e ele ainda é isso ou virou outra coisa? (GR) É, ele ainda é isso. Mudou um pouco assim, as configurações dessa obra mudaram, mas ainda tá lá tudo. Eu tenho 37, faz mais de 10 anos, então não é tão antigo assim. E... e aí, e aí eu conheci umas pessoas, não... teve uma época que eu fui, tinha uma residência lá em Portugal, também fui largado assim. Um ano e meio depois disso eu fui pra um lugar chamado “Maus Hábitos” no porto... (MC) Você escolheu de propósito? (GR) Não, é que... ah, esses portugueses vieram, como vieram, quase num clube das, nessa turma das artes assim, porque você sai pra beber nesse mundo das artes, sempre com artista né, e ai tinha esse português e eu falei, nossa eu adoraria ir pra lá, ele falou, pois bem, vai, eu falei, mais eu não tenho nem como, ele, não, vai, vai, vai. Ah, é? eu comprei uma passagem de ida pra porto, pra Portugal, pro porto, e 3 meses depois uma voltando pela Espanha, também assim sem nenhum puto, nem cartão de crédito nem nada assim... Tô falando pra você entender... (MC) Um dia por vez... (GR) Eu fui lá, ia ter a feira de arte contemporânea na Espanha que é uma feira importante. Aí eu ligado nisso chamei os galeristas e falei vô tá lá, posso montar pra vocês lá os estandes né, pôr os quadros... E aí eu levantei uma grana assim, mas foi pouco, porque lá eles iam pagar o resto. Então eu falei assim, oh, me dá 100 euros aí cada um, com isso aqui, sei lá, eu consegui uns 1.000 euros, era o que eu tinha, então a gente se encontra lá. A gente fala, tá bom, eles já me conheciam né, e aí eu.... (MC) Como sua família reagia a isso? Isso não é bem uma pergunta, mas... eles ficavam bem? (GR) E, eu nunca contei pra eles assim... (MC) Ah, você foi indo... (GR) Também eu, com um amigo, o Luis, a gente tinha 14 anos, a gente foi pra Buenos Aires sozinhos... (MC) (Risada) (GR) Então sempre foi bem largado assim... as mães ficavam preocupadas, as outras, mas meus pais são mais novos né... (MC) do que a média... (GR) Eles me tiveram com 20 anos. Na época era isso que... (MC) Eles eram muito novos... (GR) É. E aí então, vai que vai, vai que vai. Eles são assim, absolutamente normais assim, são amigos da família da Regina, você vê ela falando que eles foram hippies uma época, eles eram normais assim, meu pai tinha grana, uma casa no Alto de Pinheiros grande sabe, essas coisas tá tudo lá, então não tem tanta porra louquice, mas é que

é assim né, assim foi, é assim que foi. Aí... isso tudo quando eu tinha 20 anos eu arrumei uma namorada que é essa mãe da minha filha assim, até hoje a gente separou, mas... então, enfim. Aí eu fui pra Portugal, passei 3 meses lá, e aí tinha uma pessoa, eu falei puta, vou voltar, vou fazer arquitetura, eu cheguei focado em fazer arquitetura e fui fazer arquitetura. E lá fazia a mesma coisa que aqui, montei obra de arte lá tal, sempre voltado pra isso. E aí eu voltei e fiz, comecei arquitetura, e aí logo de cara eu arrumei um emprego com o Mario Segal... Ah, lá do Mackenzie né... E logo de cara o professor falou assim, vai lá que você vai se dar bem lá com ele. E eu fui, eu não queria ter ido mas eu fui, era pra fazer maquete, mesma coisa, coisa que se repete e tal, aí eu pedi pra sair, e aí nessa fase eu já tava completamente morando sozinho, alugando apartamento, e ai fiquei desempregado, e falei não, assim, na primeira semana, na verdade eu tinha mudado, enfim, uns rolos ai. E aí, e ai uma tia me ligou, eu tenho uma tia que ela é bem boemia, mas só uma, o resto todo mundo careta tá, até eu mesmo assim, eu tomo cerveja mas assim, não sou... Ai ela doidona me ligou de madrugada assim, 5 da manhã, vem pra cá, vem pra cá, tem uma pessoa... eu falei assim, nossa, não dá, eu tô dormindo já... (MC) (Risada) (GR) Enfim, ela me deu uns 10 telefones, que ela não conseguia nem anotar de tão bêbada. (MC) (Risada) (GR) Aí esse foi outro caminho, um divisor de águas assim pra mim. Assim, vinha fazendo cenários enfim, e aí fiz o... era um lugar, era uma produtora que precisava fazer, que precisava restaurar umas maquetes, e tinha... nossa eu tô precisando desse trabalho aí. Aí fui lá, e lá eram pessoas muito, era grande a coisa assim, era uma exposição enorme da Amazônia, enorme, enorme assim, milhões. E aí pessoas envolvidas que na hora que eu levei fiquei até em choque assim, Gringo Cardia que é um grande (?) você já ouviu falar? (MC) Não... (GR) E assim, um grande cenógrafo, faz cenógrafo, faz carnaval, faz museus no Brasil e não sei o que, e essa produtora era na Berrini, uma produtora na Berrini normalmente é uma pequena casinha, falei nossa, enorme o negócio. Aí eu falei tal, ela tava numa conferência, em inglês até, porque essa exposição tava indo pra Nova York e pro Japão, isso foi em 2008 já, aí ela, aí ela falou assim, que tinha um, que tinha um rio que não cabia, e isso tava inviabilizando a exposição inteira... (MC) Tinha um o quê? (GR) Tinha um cenário... que era o rio Amazonas inteiro, o encontro das águas... (MC) E ele não cabia no... (GR) Não cabia no contêiner, tava vazando, não sei o que, aí eu falei pra ela assim, me desculpa mas eu vi que vocês tão num apuro ai, eu posso, eu tive uma ideia. Aí ela desligou, falou assim peraí, desligou, falou assim, já te chamo aí. Aí eu falei a ideia, ela falou assim, tem uma pessoa que vai com a gente pro Japão, eu tinha acabado de conhecer ela, como a gente aqui assim. (MC) Nossa senhora, caramba, que história Guilherme! (GR) Aí eu fui pro Japão com o rio de 12 metros numa mala, eu inventei isso aí... (MC) Você inventou isso...

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(GR) E, isso também, aí pronto, essa exposição o Gringo passou pra mim a bola como cenógrafo, aí que assim, aí eu rodei o mundo, depois assim, aí abriu né, foi bem legal. Essa exposição rodou 10 anos, a gente foi pra Singapura, Coreia... (MC) Que é que você fez pra caber em uma mala, desculpa, mas eu não vou aguentar (GR) Ah, era um rio de fibra, é lógico, era rio ele tinha 12 metros assim por 1 de largura, e aí como que se faz, se pegar essa Lu Grecco, sabe essa Lu que fez o Castelo Ratimbum, ela dá curso e o curso é super engessado, as vezes eu quero falar com ela, a gente é amigo assim, colega né, ela faz curso de cenografia e você vê a galera lá lixando isopor sabe, eles são super engessados nos materiais, ai eu falei não, porque tava todo mundo nessa, isopor com fibra, isopor com fibra, mas não cabia, ai eu falei assim, vou fazer igual uma piscina infantil, aquela de lona antiga, já nem usa mais isso também que hoje é de encher. E aí ela falou assim, como assim? Aí a gente vai imprimir a mesma imagem do rio, eu vou tratar essa imagem, ai eu peguei esses tabletzinhos assim, aí eu pintava, que você pode fazer pincel, eu desenhei o encontro das águas tal bonitinho, e aí eu enchi de água, aí fiz uma armação, mandei fazer uma armação, hoje eu tô super, poderia ser melhor, na época foi meio precário, aí eu fiz, mandei soldar a lona, aí encaixou o rio, encheram de água lá, deu certo. Ele pesava, ainda não podia passar de 32 quilos, aí foi no limite ali.... (MC) Olha só... (GR) Aí levei pro Japão essa, aí fui pra Tóquio, foi super legal. Até aquele quadro ali Amazônia Brasil que tá atrás da laser ali é da exposição... (MC) Ah, tá bom. (GR) Eu guardei, mandei até emoldurar por que... (MC) É um marco né, esse é um marco. (GR) E aí, e aí lá eles não tinham ainda passado a bola pra mim, aí cheguei lá e falei assim, não, tá faltando, pra ajudar né, falei tá faltando coisa aqui tal, aí eu refiz toda a exposição assim, não isso aqui vocês vão por aqui, que tava faltando uma direção de arte assim, e aí eu fui lá e falei vamos por assim, e aí, a partir daí essa produtora foi vendendo e eu era o cenógrafo mesmo assim. Fazia... então a gente foi pra Singapura, pra Coreia, foi pra Cancún, itinerando, né, em Cancún foi a sede do governo numa (?)... , e aí a gente propôs aqui pra São Paulo, pra encerrar esta exposição, essa trajetória toda, no SESC, SESC Itaquera, então foi uma exposição que durou quase um ano e meio.... vou pegar pra você aqui... olha lá, eles compraram foto assim, foi bem legal, mas tudo no meu portfólio assim eu tô falando. Sempre com equipe e tudo mais, eu não costumo falar sempre assim, ó aqui foi 2013, 2015, que era uma foto na Amazônia assim, já tinha ido pra lá, também era um pré-requisito que eu preenchia pra tudo dar certo assim. (MC) Você era o cara certo no lugar certo né? (GR) O SESC mesmo, eles escolheram, essa foto é minha, essa também, essa aqui, enfim, eu fiz todo um projeto né... (MC) Tá linda né? (GR) E, muito legal, foi muito legal essa exposição. E... quer ver, tá tudo aqui quer ver... (MC) E aonde tava a arquitetura nessa hora? (GR) Pois é, eu tava fazendo...

(MC) Você tava fazendo... (GR) Mas, tinha um problema muito grande, por exemplo, quando eu fui pro Japão, eu entreguei um projeto, tenho ele... ah se bobear não tá aqui, tá num outro arquivo, eu entreguei um projeto pro Japão, antes de ir pro Japão, na verdade esse é o projeto tá vendo, eu que fiz todo o projeto, lógico assim, tinham seis arquitetos que eu contratei nessa época, então foi grande assim ... Hoje mudou né, hoje eles iam lá, não é que hoje mudou tanto assim, mas não precisa mais, daria pra enxugar mas, enfim. E, na arquitetura tive problemas sérios assim, eu entreguei, eu lembro que eu entreguei um trabalho, primeiro trabalho de projeto e fui pro Japão, e eu não falei pra ninguém que eu ia pro Japão, ficar lá assim, falei pros meus amigos eu vou faltar por uns vinte dias, assim assado, e os professores souberam assim, pra onde ele vai? Pro Japão. Eu lembro que esse foi o primeiro baque assim, ele falou assim, ah não, então você não tá aqui levando a sério, não sei o que, ele devolveu o meu projeto e falou assim, quando você voltar você refaz essa matéria, são professores do Mackenzie até... (MC) Você fazia lá? (GR) Não, na Anhembi. Aí, aí eu falei assim, pô que sacanagem né, mas eu preferi seguir assim com o que eu tô fazendo. E aí quando eu voltei também fui dar aula no Tempo e o Espaço pra criança, e aí quando eu voltei do Japão eu abri um escritorinho, e aí comecei. Mas assim, foram esses divisores de águas assim, que eu te contei, foram os momentos que as coisas foram mudando assim de, foram me encaminhando assim. Agora aqui eu acho que dificilmente vai mudar, talvez, talvez a gente pegue menos trabalhos assim de artistas e faça mais coisas nossas, a gente tá numa fase que não tá tão legal pra gente assim sabe... (MC) Mas por que, por exemplo isso aqui, esse aqui, é um artista que veio e falou executa isso aqui... (GR) Isso. Executa isso aqui. (MC) Ah, tá bom. (GR) E, em contrapartida na Bienal passada a gente fez um que o artista não sabia nem fazer o croqui, então é um outro tipo de, de... só que é crise... (MC) O que é que ele tinha? O que é que ele tinha pra te dar, entendeu? (GR) E, ele tinha assim, na Bienal, ainda mais na Bienal, como o curador, ele tava super esmagado assim, eu senti que ele tava esmagado o artista, porque o curador tava lá e aí eles falaram assim, a gente quer escutar essa palmeira... fim. De alguma maneira, analógica, não tipo de alguma maneira analógica... (MC) Na última Bienal? (GR) Sim. Você esteve já última Bienal? (MC) Sim. (GR) Aí eu falei assim, só tem um jeito, colocando um cone na palmeira e um fone de ouvido aqui, mas tem que ser totalmente analógico, tá bom, aí eu fiz o croqui pra ele, ele falou é isso aí. Então foi assim, esse foi até um outro contato que eles fazem que é uma cocriação... (MC) Sim, com certeza (GR) Aquela corneta, lembra que tinha uma corneta enorme lá, a gente fez inteirinha aqui. Oh, tá até aqui, quer ver? E... aqui... vai estar no nome do Eduardo... deixa eu ver se tem aqui... aqui, tem até um passo a passo assim dá.... se você achar melhor de ver assim...

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(MC) Por quê? (GR) Ah, não sei, acho que quem tá aqui não... (MC) Mas tá bom assim... (GR) Olha lá...esses foram os primeiros desenhos dela... olha ela aí...oh, oficialmente ela é isso aqui... tinha esse tudo e aí ele descia pra Bienal... (MC) Entendi, e ela foi feita em? (GR) Em latão, eu fiz uma estrutura... (MC) Engraçado né... (GR) Oh, essa aqui era a estrutura interna dela que era de alumínio, ela pesava 40 quilos, era isso aqui a estrutura dela. (MC) Oh Guilherme, mas então você não trabalha só com madeira? (GR) Não. (MC) Olha aí, isso já me pegou tá vendo... (GR) Ah é? (MC) É, eu cheguei a uma sensação de que tudo era, que tudo que você fazia tinha uma relação com a madeira, olha aó ô... aí não tem... na verdade isso... (GR) Isso não tem absolutamente nada de madeira.... (MC) É o material que precisar... (GR) Qualquer coisa. (MC) O que precisar... legal. (GR) E, a maquete dela é aquela ali em cima, tá vendo? Em cima do negócio da minha filha... (MC) Tô vendo, tô vendo (GR) Eu fiz um protótipo... (MC) E eu achei que era, mas tá fazendo parte da caixa né? (GR) Faz, faz. Eu pus pra brincar só, pra eternizar que senão ia perder. Então na verdade assim, tanto é que aqui é uma marcenaria, mas a gente faz o que precisar fazer assim, porque tem muita coisa que não pode ser só de madeira. O Leo, se depender do Leo, ele faria tudo só de madeira, ele prefere porque ele não tem conhecimento dos outros materiais. Por que o seu é só por madeira? (MC) Não, de jeito nenhum. É só porque, não, de jeito nenhum... (GR) Ah tá... (MC) Eu é que me surpreendi, eu achei que você tinha essa pegada com a madeira entendeu... (GR) Não. O Leo se deixar, o Leo que fez isso aqui ó, tudo dele é só de madeira, aqui ele fez isso aqui, e ao contrário de mim, se deixar eu vou usar qualquer coisa que vir pela frente. (MC) Entendi, legal. (GR) Qualquer uma assim, então eu tenho um livro aqui só de materiais, e ele fala várias coisas sobre vários materiais, as vezes eu pesquiso nele. (MC) Aham, tá, legal, bem legal. (GR) E aí ... (MC) É interessante isso, da pessoa que trabalha com matéria né, tem aqueles que são focados no projeto, eu foquei nesse projeto, qual que é o melhor material pro projeto, a pessoa vai indo assim, a cabeça dela tá no projeto, tem, e tem uma outra frente que é assim, eu sou do vidro, do vidro qualquer que seja, e ele vai circulando em torno daquela matéria né? (GR) É, exatamente. (MC) E eu tô vendo as duas coisas nas pessoas que eu tô entrevistando.

(GR) No nosso é assim, eu aqui, tanto é que quando eu vou mexer em outra coisa eu entro em pa... porque o Leo ele vive ai assim, meu braço direito e vice e versa, então, E... quando eu vou mexer em outro material ele começa a entrar em parafuso assim... (MC) Tá bagunçando a minha marcenaria (Risada) (GR) É, exatamente, porque .... (MC) Porque inclusive tem uma outra exigência as vezes né... diferente da marcenaria, enfim (GR) É, e cada, e aí essa loucura, cada vez assim, eu fiz... na época tinha uma amiga junto, era meio uma namorada e tal, numa dessas confusões da vida, e aí ela falou assim, faz de alumínio. Ela tava, olha isso aqui também, e eu falei assim, nossa, vou fazer de alumínio, acho que o Leo quase desmaiou... (MC) De tristeza (Risada) (GR) De desespero, porque ele falou meu alumínio, aí eu falei assim, eu bati o martelo que ia ser de alumínio, aí falei, puta vou ter que soldar esse alumínio, soldar alumínio é uma encrenca, então eu tive que entrar no mundo do alumínio tal, e aí nessas coisas tal, cada figura, um deles é o Carlos, o cara parece um andarilho assim. Aí eu ligo pra ele direto, falo, Carlos, tô com uma encrenca aqui, preciso é, soldar alumínio, aí ele aparece com uma coisa assim barata, soluções baratas assim, então ele é um consultor meu assim, ele fala assim, 14 reais, eu dô 50 sabe, já é o pouco do pouco, mas esse dia eu comprei bastante. E aí ele fica lá vendendo, meio maluco esse cara, aí mas enfim, a gente, a gente se ajeita assim. Aí eu tenho uns consultores de algumas coisas assim, porque na verdade eu faço qualquer coisa assim, a gente faz qualquer tipo de objeto, com luz... Você chegou ver um portfólio assim... (MC) Cheguei, cheguei, muito legal, tem muita coisa com luz... (GR) Programação, E... o que tiver pela frente, o que vier, essa mulher que tá vindo do Rio, ela quer que eu faça pra ela um negócio e tal, mas a gente tá muito nesse momento, essa parte de, eu tô propondo uma exposição nova e não tô tendo tempo porque a gente tá resolvendo muita coisa dos outros, isso eu não quero mais, eu quero focar um pouco mais no nosso potencial aqui... (MC) Então você não tem uma criação que seja 100% tua nesse momento? De tanto que você tem encomenda? (GR) Agora tamo, nesses anos sim. (MC) E você tem encomenda já... (GR) É, ah por exemplo, agora, ah por exemplo, não é bem assim né, na verdade agora eu vou fazer um museu do Amazonas, entendeu, lá em Manaus, e aí a área que me deram eu que crio entendeu? (MC) Ah tá, mas então não é bem assim... Aham.. (GR) Mas eu ainda não fico tão contente assim, porque, o que a gente, eu tô propondo agora uma exposição de índios na... porque tem essa história toda que eu não quero deixar morrer com os índios na Amazônia e tal, aí me chamaram porque eu tenho isso no meu currículo, bastante coisas da Amazônia... (MC) Porque você ficou um tempo lá? (GR) Eu fui pra lá várias vezes, o meu vô era de lá... ah, eu fiz isso durante 10 anos essa exposição então... (MC) Ah tá... (GR) Então, achar alguém que faça isso assim, E... e já é amigo também quem me chamou, então... Mas a gente

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tá propondo uma outra que é um totem de cultura indígena pras escolas infantis assim, escolas entre no máximo até 7 anos, 8 anos, ai o SESC já deu um apoio... (MC) Aí vai ser sua ideia mesmo? (GR) É, totalmente minha ideia assim, também que eu não falo minha, minha quando eu falo é... (MC) Sim, sim... (GR) O Leo ajuda, eu chamo pessoas, eu nunca faço... (MC) Uma iniciativa daqui, que não é uma encomenda, que não é... não é nada disso. (GR) Isso, é. Mas isso é muito normal, E... nesse meio, a pessoa fala, uma hora você é o... vamos supor, numa revista, o Marcelo é o diretor, outra hora sabe... é bem assim, a vida é um pouco assim. Então.... e a gente tem, cada vez tem uma coisa assim, e é bem difícil de explicar assim. Teve um lá em Brasília que, e aí eles deram uma, olha se você fez isso aí mesmo, uma cocriação de um trabalho, é bem assim mesmo. (MC) Entendi. Às vezes você sente que não recebeu o crédito, ou que... (GR) 99% das vezes, é. (MC) Pois é, isso é uma questão né... São poucos os que dão crédito pra pessoa que na verdade... (GR) Sim, e o cara que deu crédito é um desses que a gente fala que é o artista Hit... como que é o termo, eu esqueci o nome... E, estrela sabe. O cara que deu crédito é o maior estrela assim, o Rirkrit Tiravanija que é um cara assim, e aí eles puseram special thanks não sei o que, pra quem fez a cocriação, porque eu mandei croqui... Então a partir do momento que você faz o croqui de uma coisa junto, assim, o cara tem lá uma coisa então... (MC) No momento você fica por trás dos bastidores? (GR) Isso (MC) interessante... (GR) E as pessoas tem uns, assim, o pivô é um que eu faço muita coisa, eles põem o meu nome em tudo, mesmo a contragosto do artista, mas... (MC) E as vezes é a contragosto do artista? (GR) É. (MC) Você vê normalmente isso? (GR) Normalmente os brasileiros, quando é gringo não, o cara é de fora, eles gostam de compartilhar, quando é brasileiro eles ainda tão muito engessados assim... (MC) Assim, a coisa da arte eu que criei e o que executou não fez nada... (GR) É, é. (MC) Essa é uma questão mesmo? (GR) Super. E isso desgasta... (MC) Isso que te dá vontade de entrar num... (GR) É, assim, então tá, igual esse aqui da Bienal que o cara, ele é portenho mas mora, bla bla bla, na Espanha, aí ele começou a falar pra gente, ele assim, é uma pessoa que, tá bom eu falei pra ele, então eu sou uma pessoa que só vai executar o seu trabalho, se tiver uma vírgula fora, ela vai ficar fora tá... (MC) Você falou pra ele? (GR) Falei, falei. (MC) E aí... (GR) E aí... ô, ele acabou de... (MC) que legal Guilherme... (GR) Eu falo, porque... eu acabei de falar com ela... (MC) Ah, também é até bom, a pessoa tem que... (GR) É assim ô...

(MC) Trazer um pouco de consciência... (GR) Ô, chamei ele de que, corujeiro eu chamei corujão, aí tá dando certo, falou, diz pra eles que estou contente com o trabalho deles, depois que eu falei isso... Foi agora, sete e cinco da tarde, porque eu falei, falei ô... se, ele assim, falei amigo, primeiro que eu não sou o cara que tá fazendo o seu trabalho, a gente aqui quando vai fazer esse tipo de coisa eu incorporo o cover, então você vai tocar uma música que não é sua, mas você toma ela pra você, foi assim que eu falei pra ele, meu tomei... o Leo tava solando de guitarra e ai você mandou parar... que é que é isso que você fez com o seu próprio trabalho? Falei assim pra ele. E ele é mais velho, tudo... (MC) Nada como a maturidade né Guilherme... (GR) Não, e ele é bem mais velho... (MC) Não, eu digo assim, sua né, agora você já consegue fazer uma fala assim... (GR) Ah sim, sim. (MC) Provavelmente você não fazia isso antes? (GR) Não, não, não. (MC) Legal. (GR) E aí eu falei pô meu, e ainda usei esse exemplo, falei assim meu a gente tava aqui no maior cover, tocando legal, você manda parar? Não é assim que... (MC) Por que é que ele mandou parar? Só pra entender o contexto... (GR) Porque ele não queria que a peça fosse dividida em duas partes, ele queria que a peça fosse inteira. Então é um pouco isso sabe, assim, uma música é um bom exemplo, às vezes você começa, você faz um trabalho autoral, as vezes você toca o trabalho de outro, é assim que a gente vive assim sabe, uma coisa que é bem, bem nesse, uma boa metáfora, acho que é isso assim. E eu usei pela primeira vez assim, as vezes eu falo, quando a pessoa vai falar, nesse caso eu usei assim... (MC) e funcionou... (GR) E teve resultado, é... Só que é super broxante né, de qualquer forma o Leo já não quer mais ir lá, eu também já tô super assim, porque, e eu tô fazendo mais e mais coisas pra esse cara, que é isso aqui né, isso aqui é uma loucura, isso aqui é uma loucura. São umas linhas de cobre, uns, isso aqui é uma linha de cobre que vai no chão, tudo isso aqui... (MC) Isso foi, isso foi você que fez? (GR) Não, isso veio do arquiteto (MC) Isso foi o que veio dele? (GR) É. (MC) Tá, só pra entender. (GR) Nesse caso a gente tá fazendo, por isso que eu falei, como a gente é só o que vai executar vai ficar, e aí nessa hora esse desenho ele tava todo lapidadinho assim, ele não tava lisinho assim, ele tava todo facetado assim. Aí eu falei assim, ô, vou começar a fazer, ai ele me mandou de novo tal, mas mesmo assim, o que ele me mandou eu tenho que fazer esse processo todo aqui que é de abrir o desenho, pra isso aqui virar isso, encaixar na máquina, entendeu, tem que saber a leitura da máquina, não sei o que... Mesmo assim, por isso é bem um cover, tentando tocar ali, tem a nossa leitura de qualquer forma sabe? (MC) Sei. E você tem muito o caso da... da leitura não ser exata? Do artista dizer, mas não era isso... (GR) Não, porque aí existe uma coisa assim, a gente vai interpretar as coisas do trabalho, então agora é o

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momento de eu interpretar o seu trabalho. Esse do... esse aqui do, tem que ficar do jeito que ele desenhou, E... da maneira do possível né, é lógico. E o da corneta por exemplo, eu não tinha nem fechado o contrato, a produtora da Bienal me ligava, não Guilherme, não faça isso, porque eu falei ele vai passar uma semana comigo no escritório, era outro lugar, mais gostosas as salas assim. Na verdade, era uma sala, essa sala era uma mesa que a pessoa sentava com uma mesa de frente assim... (MC) Assim, tá bom... (GR) E o computador ficava meio de lado, então ela tinha, tinha uma coisa menos, então eu falei não senta aí e vamô trocar ideia, aí eu aposto no vínculo, quando tem que interpretar o trabalho da pessoa entendeu? Então eu faço como o professor faz com o aluno, ou com a criança, sei lá, o aluno, adulto ou criança, enfim... (MC) Você tem que virar a mão dele... (GR) Apostar no vínculo que você, nesse caso que o cara ia embora pra Coreia, e o cara era meio esquizofrênico, a produtora falou, meu mas a gente não pode pagar por isso, eu falei, não não, ou é isso ou vai dar um cataclisma no final. Aí a gente assim, foi almoçar fora, foi jantar fora... (MC) ... era muito difícil? Era complexa a peça? (GR) Não, a corneta... (MC) Ah, o da corneta... (GR) Era pra saber o que fazer do, pra eu saber se ia usar madeira, cobre, latão... e aí eu fui falando com o cara, e a gente foi almoçar, eu falei vamo ficar junto agora, não precisa criar, vamo ficar junto que... e aí foi, e ai eu aposto no vínculo sabe. Na hora que o cara chegou a corneta tava pronta, ele não viu nada... (MC) Mas você tinha entendido tudo. (GR) É, e ai existia uma assistente de curador, porque a Bienal tem uma assistente, a mulher era com a produtora nossa, então ela vinha falar um monte e coisa...não sei o que, não era nada disso, aí começou né, isso é normal também, aí eu falei assim, agora vocês vieram tarde demais, tava lá fazendo durante dois meses a gente ficou fazendo, vocês não foram lá porque não quiseram. Aí nesse caso eu não falei de seu, não tem mais como voltar atrás, e aí terminou, esse cara teve a festa da abertura, ele me viu na festa assim e me abraçou e falou assim, ah, desculpa o drama, então é bem normal ter drama. Mas assim, vale se impor assim, nesse caso de fazer coisas como as que eles tão fazendo tal. Então é bem assim, é isso, é o que a gente faz hoje, já tá né, já ficou, é isso, e com o tempo a gente vai fazer esse novo projeto nosso aí. (MC) As duas coisas, as duas coisas. Olha, vamos dar uma olhadinha aqui... a segunda parte da nossa conversa é uma observação do ambiente de trabalho e recursos, você já me mostrou um pouquinho, mas falar um pouquinho sobre a organização dos materiais, limpeza, conservação de espaço, ferramentas, maquinário, guarda e conservação de ferramentas, equipamentos de segurança, escolha de matéria prima, uso de tecnologia. Mas essa coisa bem (GR) Sim, bem técnicas assim... (MC) Sim. (GR) Então, o Leo ele é obcecado por organização, ele varre todo todo santo dia, e eu sou, foi uma sorte, eu juro que eu não arrumei pra você chegar... (MC) Risada

(GR) porque tem muito disso, as coisas vão tomando assim os meus lugares assim... Mas agora eu tô tentando me esforçar pra não fazer mais isso, já melhorou muito, tanto é que eu coloquei aquele organizador e tal. O Leo é a pessoa que mantem isso aqui um brinco assim, é porque bem ou mal tá bem arrumado né... normalmente isso aqui pode deitar no chão assim, mas pode estar no momento saindo quilos e quilos de pó... Depois eu te mostrou o lixo de que saindo lá, ele organiza numa coluna direitinho, tipo assim, até aquele lixo meio psicológico sabe, eu te mostro lá, fica bem legal. E... (MC) Tá aonde? Na entrada, aquele todo bonito? (GR) É, um negócio assim cheio de detalhe no chão... é o lixo. (MC) Tá tão bonitinho, eu pensei que aquilo era alguma coisa... (GR) É, o lixo tá mais legal que o trabalho... é o lixo dele. (MC) Porque quando eu cheguei eu tinha que procurar um lugar pra estacionar e eu vi ele arrumando aquilo... (GR) É o lixo (MC) Tá lindo, tem uma coisa de estética nele né... (GR) Tem. Ele é formado em artes plásticas na FAAP, ele é bem... então assim, na verdade eu, vamo dizer assim, outro dia falaram assim, mas qual o regime de trabalho que vocês têm? É desorganizado, essa questão burocrática ele tem empresa e ele certamente daria nota, mas assim, aqui é tão... E na verdade não tem muito isso, ele tem na verdade como se fosse uma renda mínima, mas tem sabe, tudo daqui sai com nota, a empresa funciona há mais de 8 anos, a gente paga um bomba de imposto, essas coisas todas... (GR) Tanto é que a gente só tá na Bienal porque tem contrato de empresa mesmo e tudo mais, e a nossa tá tudo... (MC) Se a gente quer realmente ter como meio de vida, e fazer crescer, você tem que passar por isso. Você ainda fica na produção também? Você vai pro pesado? (GR) Fico, muito. Muito, muito, muito. (MC) As ferramentas são todas compartilhadas? (GR) Sim, então, o que é que aconteceu, o Leo tinha um pouco de ferramentas e eu tinha o grosso assim, basicamente tudo que você tá vendo eu fui comprando um a um. Essa foi a última máquina que eu comprei, essa laser aí... (MC) Essa lindíssima... (GR) É, o preço de um carro zero assim. Até isso né, então tem coisas que assim, isso aqui, esse escritório assim é muito car... tudo aqui é muito caro assim. E aí eu fiz assim, eu basicamente, eu estudei os outros, o Carlos Mota, eu fui perguntando muito né... (MC) Ah é? (GR) É e ai eu fico, pergunto muito assim, e aí eu entendi que os funcionários, assim que a melhor maneira é você ter tudo e arrendar vamos dizer assim, mas eu não arrendo pro Leo, eu falo assim, já é tudo nosso sabe, eu abri mão de ser o dono das coisas, porque não faz sentido assim. (MC) Ele é seu sócio, e você entrou com o capital... (GR) Isso e trabalho também assim. E aí eu ponho muito a mão na massa assim, tem muitas coisas que saiu aqui que só eu que fiz, tem outras coisas que só o Leo... sabe.... (MC) Mas a peça que ele começa ele termina ou vocês compartilham a mesma peça?

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(GR) Compartilho, porque como eu tô muito na administração e tudo mais, eu tenho que sair um pouco, tenho que buscar a minha filha, não sei o que... Então muitas vezes ele termina, ele faz uma parte, ah... mas assim, basicamente o Leo põe a mão em todas, 99% ele põe a mão, ah... e outras assim, tem coisas... essa divisão ela é bem orgânica assim. Não tem muito uma coisa... ah, essa aqui eu que vou fazer, não existe muito assim, você vê um perrengue lá o outro vem, ajuda. Eu abro todos os orçamentos pro Leo, mesmo aquele que eu preciso tirar mais grana pra mim, sei que você vai ficar com tanto, a gente tem esse acordo, não tem o menor problema assim, já faz tempo que eu abro, totalmente assim... (MC) Então é seu sócio mesmo. (GR) É. E... e é isso sabe, só que fui eu que comprei absolutamente tudo aqui, essas... (MC) O nome vem de onde? (GR) E, veio de uma... você viu isso aqui oh, é... (MC) Tá lindo isso. (Risada). Caramba, tá muito legal. Você que fez isso? (GR) Foi. (MC) Eu vou, peraí, dá aí, isso é muito legal, peraí, deixa eu pegar... (GR) Eu queria por uma florzinha aqui... (MC) Caramba, peraí que eu fui pro lugar errado... (GR) Depois de milhares e milhares de centenas de a, b, c. ... ah, agora acho que eu não vou achar, as vezes dá unas perdidas no mundo. É então, eu fiz aqui nesse... e esse nome ele veio por conta de um assim... no começo... (GR) Vamos ver se agora vai abrir, tô achando isso aqui...agora abre, deve estar procurando. Ah não é tá vendo, então, esse programa... Tudo tem um historinha bem louca assim, esse programa que gera essas engrenagens é de um cara lá do Canadá, que eu conversei com ele, esse guia Generation tá vendo, eu conversei com ele, você compra, paga pelo cartão, todos os programas tem mas o dele é focado pra engrenagens de madeira, então eu comprei dele, olha lá, e aí você vai calibrando as engrenagens tal... (MC) Que legal, muito legal. (GR) E ele põe aqui, deixa eu ver esse aqui, ele não abriu ainda, enfim. E esse nome veio por conta da empresa do meu avô, meu vô já tinha morrido e tal, e era uma empresa de prestação de serviço, e aí chamava, porque ela era uma incorporadora, não tinha nada a ver, e aí chamava Mata, que era Mathias e tal, só que tinha um talão de notas e eu precisei, e aí eu atendia o (?) sabe, e aí tinha essas empresas que já tinha, eu falei, olha eu tô montando a minha ainda, na na na, vai mudar já já. E ai eu mantive o Mata assim, só pelo... (MC) Ah entendi, muito bom... tem uma história dele né... (GR) Já tinha o cadastro e tal, vi o mata, na época tinha uns mata por ai, e ai eu falei, ah vou manter o mata e vou por arte maquete protótipo né, e ai eu tenho assim, tem um karaokê, deixa eu te mostrar que eu fiz também, esse aqui oh, esse aqui são totalmente interno, isso teve até laser e tal... que eu chamo ali é o amp brinquedos, um dia na vida vai fabricar brinquedos... (MC) Tá aí uma coisa que tá precisando em... tá muito ruim de brinquedo... (GR) Olha esse aqui que legal, essa era outra sala lá, eu tenho o som, cadê o som deixa eu ver, deixa eu por o som interno aqui, é isso aí... (silêncio).

(Gravação voz Guilherme) Esse karaokê eu fiz pra minha filha, começou com a necessidade de ... ela era muito nova...e eu muito curioso, gosto de fazer os brinquedos dela, acabei fazendo esse karaokê, fiz todo o desenho da caixinha, e pesquisei um pouco mais, fiz a parte elétrica dele também, alguns amigos me ajudaram, então ele é 100% feito aqui. A gente fez do zero, cortado numa máquina a laser, foi se aprimorando... essa tela eu encontrei uma tela antiga que vasa, o som, pra ficar meio retrô... você pode levar no parque também... (GR) Essa era a outra oficina... isso eu falei de improviso, assim que eu mandei... (MC) Você mandou pra onde isso? (GR) Pras amigas só. (MC) É couro que você pôs? Ah mas que coisa linda Guilherme, nossa tá linda. Esse furador você achou no Brasil? (GR) O quê? (MC) Esse furador que você tá usando aí (Risada)... porque tem uns que são tão ruins e o seu tá com uma cara boa... (GR) Eu fiz uns desenhos do circuito, mas todos eles eu personalizo, esses vazadores aí... (MC) Tá lindo isso! (GR) Tem um microfone junto... aí eu chamo, é minha a... que eu plugo. É o karaokê, a gente vai, eu ainda vou fazer brinquedo, eu quero muito... (MC) Você devia fazer brinquedo, você devia fazer brinquedo, os brinquedos tão muito ruins Guilherme... os brinquedos são muito ruins, (GR) Só que eu não sou construtor ... são porcaria né, nivelados por baixo (MC) Nivelados por baixo, as cores são desagradáveis, são feias, são inadequadas, minha opinião agora você sabe, eu sou professora assim, pô eu fico chateada, vou comprar um brinquedo você não tem o que comprar pra um sobrinho, de tão ruim que é. (GR) Esse karaokê... Não terrível. Eu fui comprar, eu fui na loja, no meu Instagram tem todos que eu fiz pra minha filha. Eu fiz um tico-tico você quer ver... (MC) Você fez um tico-tico... (GR) Ah, essa é uma linha que eu tô fazendo de piões... (MC) Que coisa linda! (GR) Eu quero participar de uma feira, olha que bonitinho... (MC) É que você é muito eclético né... (GR) É, piões de madeira que não tem... (MC) Esses piões são muito da hora né, são muito legais... (GR) tem desenhadinho, minha filhota... (MC) Ela é linda. E como você pinta, essa pintura você mandou fazer? (GR) Com caneta (MC) Foi você que pintou? (GR) É. (MC) Não tem coisa que você manda pra fora pra fazer um pedaço, não? A maioria você consegue fazer aqui dentro... (GR) Ah tem ô, esse cara aqui, e o Seneval... (MC) O que é que ele faz? (GR) Esse é o Seneval, ele é um torneiro mecânico de oficina, de fundo de oficina, aí eu escrevi aqui oh, postei ele, põe carro velho pra funcionar e todas as traquitâneas ... um mestre...

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(MC) Esse é seu parceiro (GR) Eu terceirizo várias coisas com ele, tem um filme... (MC) Coisas de funilaria vamos dizer assim... (GR) Essa cadeira... aqui eu fazia, isso aqui eu vou voltar a fazer, oficina aberta, que é toda terça e quarta à noite... (MC) E pra... pra adulto? (GR) Qualquer pessoa (MC) Pra qualquer pessoa (GR) Mas ainda não... (MC) E você propõe uma coisa que todo mundo faz ou ... (GR) Não, cada um faz o que quiser sem fins de custo assim, não é, não quero dar curso, a pessoa aluga a oficina, paga o horário, porque tinha muita gente que... desculpa, tinha muita gente que queria, que pedia coisas pra mim, E... e pô, você não faz, é caro? ... Aí eu inventei essa oficina aberta, a pessoa faz o que quiser aqui e paga só o custo da oficina. É, acho que cento e poucos por noite assim, tipo das 6 às 10. E aí com a minha consultoria, eu fico aí, e aí se precisar, ah não quero lixar isso tudo, aí paga o extra do Leo por exemplo... (MC) Sim (GR) Ele cobra, sei lá, não sei exatamente, a gente fala, mais 70 reais a hora do Leo (MC) E você vai abrir, você vai abrir de novo isso? (GR) Vou, vou. Eu vou te mandar... (MC) Você manda porque o meu marido vai querer fazer isso, tenho certeza que... (GR) Esse aqui foi o aniversário da minha filha testando uma... (MC) Você fez isso ali? (GR) Não, essa é de latão, não dava pra... (MC) Essa é de latão, não dá pra ver aqui, dá a impressão de que é de madeira... (GR) É que eu fiz, tava testando umas coisas de latão e... (MC) E você que fez isso? Do latão? Essa peça você cortou aqui? (GR) É. Inventei a máquina pra cortar aqui e fiz. (MC) Você tem a máquina aqui... (GR) É, eu inventei a máquina, eu criei uma máquina que corta latão, que não tinha. O processo químico, eu inventei um negócio que tá meio desmontado ali, mas quando precisa... (MC) Ela é linda, tem um carinha de brinquedo antigo né... (GR) A roda gigante? (MC) É, muito linda. (GR) Ai eu pus motor né, tá lá em casa (MC) Pôs motor? Tá muito bonita (GR) Quer ver, esse foi uma coisa que eu fiz, esse aqui, quer ver, ah, esse carrinho foi um sucesso assim... (MC) Tá lindo, tá lindo... (GR) Esse é um dos ... (MC) Carrinho muito Waldorf né? (GR) É, eu montei ele inteiro, inteiro, inteiro de madeira. Não tem um parafuso nele, nada, só madeira encaixada... (MC) Ah, só madeira encaixada... (GR) Ela vem do do karaokê, da corneta... (MC) Mas ela é muito bonita né (GR) Tão bonitinha... (MC) Nossa senhora, é uma gracinha. (GR) É o que tem do outro lado tá vendo, esse é o karaokê, aí ele tem preto, vermelho e azul. Oh lá a gente fabricando na época... (MC) Mas vocês venderam isso

(GR) É, vou voltar a vender... (MC) Aonde vocês venderam? (GR) Não, só pros amigos, era a primeira prova (MC) Pôxa (GR) Eu vou voltar a vender, vou participar de uma feira (Som de Gravação criança cantando) Isso era a prova, só que o primeiro, eu fiz o de couro laranja, ficou super pesado, ela reclamou do peso e tal... (MC) Ah, ela fez o teste (GR) Esse era o dia do teste. (Som da gravação criança cantando) O microfone era com resto de lata, ô lá... (Som da gravação criança cantando) (MC) Risada. Mas acho que ela gostou viu? (GR) É. Quer ver oh, o microfone era ... (MC) Tô vendo, tô vendo (GR) Quer ver o que mais... fiz então aquele lá... fiz, esse é aquele lá (MC) Tá lindo né, esse tá lindo. (GR) É. E esse aqui ô... (MC) Interessante né, que você vai de objeto cenográfico a brinquedo, você vai indo embora né, Guilherme... (GR) É, cada hora é um, quando a oficina pegou fogo, a outra lá pegou fogo inteira. (MC) E como que é o seu negócio né, o que tá por trás disso, é qualquer material, ô, veja bem, é qualquer material, é qualquer tipo de produto, é pela criação... (GR) Isso, é, não tem... é não repetir (MC) É não repetir (GR) É, talvez seja isso (MC) É pela inovação... (GR) Olha ela aí no carrinho desde pequenininha... (MC) Linda, tá lindo esse carrinho (GR) E eu fiz esse tico-tico, olha que legalzinho... (MC) Tá lindo, tá lindo, esse tico-tico tá lindo. (GR) E eu fiz de peleguinho assim (MC) Tô vendo o peleguinho... (GR) Tudo eu que fiz, todo, todo, fica em exposição essas coisas... (MC) Qual que é o teu maquinário lá? (GR) Ahm..? (MC) Você tem a serra e mais o torno... (GR) O torno fica aqui, é só a moto aí... serra a gente tem mais de 7 tipos de serra... deixa eu ver se tem mais... E, por aí assim... (MC) E quando você comprou isso aqui você teve que fazer um curso? (GR) A laser, não, não, eu já tinha a outra. (MC) Ah, porque você já tinha outra... (GR) Eu tinha comprado, a que tá no filme até era outra. (MC) Aham, mas te exigiu um primeiro curso de todas? (GR) Não, não. (MC) Não? (GR) O que me ajuda, impulsiona assim, que foi a arquitetura mesmo. A arquitetura pra saber mexer no vetor e tal... (MC) Ah, você usou isso na verdade, aham (GR) Ah, aqui eu já não acho que tem mais brinquedos, mas eu fiz um monte já pra ela, vivo fazendo, hoje, ontem eu fiz um monte de anel, eu fiz pra escola dela, pra prenda da festa junina, só que ela pintou, eu guardei esse que ele pintou. (MC) Tá uma graça, uma graça. (GR) Duas piranhas de pesque-pague.

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(MC) Tá linda... (GR) Que era prenda né, então eu fiz com a varinha e tal... (MC) Quanto tempo você demorou pra fazer, por exemplo, pega um lote disso, foi nessa máquina né? (GR) É. (MC) Quanto tempo demora pra fazer, sei lá, um número x aí, só pra eu entender a produção dela (GR) Ah, da máquina (MC) É, da máquina (GR) Nossa, essa máquina é rápida, ela é pesada, ela é de produção. Ela fez, ah ela fez em 10 min... (MC) Quantos? (GR) Ah, 30. (MC) 30 em 10 min. Ela substitui... (GR) 30 jogos, joguinhos (MC) 30 joguinhos? (GR) É. (MC) Ela é substituta de que, com quê que se fazia isso antes de... (GR) Tem a máquina que era usada pra, aquela tico-tico de bancada (MC) Aquela tico-tico bem fininha... (GR) Isso. (MC) Sim, a gente tem ela na escola (GR) Só que é insano assim, eu acho importantíssimo, sempre falo, pra que é que você tem isso aí, mas eu tenho, é importantíssimo ter... (MC) A serrinha? (GR) Isso... (MC) Essa do tico-tico? (GR) É. (MC) Ah, ele acha que não precisa mais, é isso? (GR) Ele não usa, eu uso. Mas... (MC) Pra que que você usa? (GR) Eu uso porque, às vezes, as vezes antes de ir pra laser eu passo nela assim... (MC) É verdade? (GR) É. (MC) E qual é o seu ganho nisso? (GR) Ah, você saber do projeto, estudar o protótipo... (MC) Primeiro você faz nela... (GR) É, algumas vezes assim... (MC) Legal (GR) Tem coisas que eu faço nela, a laser eu uso muito né, mas ela, às vezes eu não quero ter que desenhar, porque o que é que acontece, quando você vai pra laser o seu desenho tem que estar pronto. Se eu não quero, se eu quero só fazer um croqui, você perguntou do ganho, é esse na verdade, então eu faço um croquizinho e corto ali, tik, tik tik. Ai já, putz vamos nesse caminho, depois o meu caminho... (MC) Ah entendi, é protótipo mesmo. (GR) É! (MC) Entendi, você precisa ver ela pronta, mas não vai fazer o desenho... é quando você quer primeiro ver o material pronto e depois o desenho... (GR) Isso. (MC) Tá, entendi, era isso mesmo que eu queria saber... (GR) Pra... é quase o croqui... (MC) É isso mesmo... (GR) Você faz o croqui da peça, porque quando vai, oh, deu pau aqui... mas quando vai pra... ainda bem que eu salvei a outra... quando vai pra, quando vai pros

finalmente assim, quando vai pra desenho, então você tem que parar e desenhar, então isso custa o desenho sabe, tem que ser ori... peça por peça assim eu desenho super rápido aqui, mas tem coisas que é melhor ir lá... (MC) Aham, entendi, pra ver o ... (GR) Eu considero aqui uma oficina quase completa assim... (MC) Você investiu pra caramba né? (GR) Muito. Aqui atrás de você tem uma plota de recorde de adesivo, que também usa, então eu considero assim, em cima tem mais máquina, não sei o quê, eu lógico, toda vez eu compro uma maquininha nova, mas eu assim, agora já é vaidade assim, vaidade, vaidade. É, porque, das oficinas que eu circulo, hoje em dia eu já não vou mais tanto, mas circulo, aqui é bem completo assim. Lógico, não é uma marcenaria... (MC) Aqui é bem completo... (GR) Mas também não, também essa questão que você perguntou dos recursos, organização e tudo mais, isso, eu não vejo, ali é a bancada de ourivesaria, essa aqui é uma bancada que, tá tudo escondido aí, mas tem todos os tipos de solda. Então a gente faz peças pra ourives... (MC) Essa não é a bancada da sua família não né? Essa é outra... (GR) Essa eu fiz aqui, tinha outra, só que quando pegou fogo, pegou na bancada, ela pegou fogo a outra oficina, ela ficou completamente preta quer ver... (MC) Nossa senhora... (GR) E aí eu até fiz uma brincadeira, isso aqui foi um cenário, ele... pra globo até, que iam duas mulheres montar... (MC) Tá lindo... (GR) E era enorme, aí eu falei, meu tem que ser leve e tinha que caber em um carro, isso aqui é enorme, é da altura de uma pessoa, e acende e tudo mais, então ele é inteiro desmontável e dobrável, e cabia num carro.... quer ver, isso é quando pegou fogo, ah esse foi no dia que pegou fogo eu postei essa explosão só pra lembrar... (MC) Por que que pegou fogo? (GR) Ah, uma conjuntura de loucuras e pegou fogo... (MC) Nossa que coisa... isso era sua marcenaria? (GR) O fogo é só uma brincadeira, mas olha com que ficou, essa porta aí o bombeiro teve que cortar no meio... (MC) Putz, que tristeza, mas você perdeu um equipamento legal? (GR) Ah, perdi bastante coisa, mas aí eu, o pessoal começou a chorar, na época tinha mais gente comigo, aí eles começaram a chorar, e não sei o quê, olhando, aí eu falei oh, pera ai, ai fui num bar, peguei um monte de cerveja, cigarro, falei vamos beber hoje, viver o luto... (MC) Risada (GR) Porque amanhã a gente vai refazer tudo. Ah, mas não tem oficina... a gente vai refazer tudo. Aí a gente bebeu, e no dia seguinte... foi tudo refeito, acho que durou 10 dias, a gente refez tudo, tudo... o Leo, aí que o Leo entrou mas, ficou mais comigo e tal, foi nesse momento assim. (MC) Vamos passar pra outra parte, método de trabalho, ritmo de produção, horários, frequência, processos de trabalho, execução de trabalho por vários, rituais, E...pausas... (GR) Aqui a gente faz assim, tinha essa lousa antes, mas eu nunca me organizei pela lousa, tanto é que tá aí no

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primeira coisa que aconteceu e a gente não usou mais. E, o que eu tenho assim, montei um esquema de restaurante, a gente põe ali embaixo, depois eu te mostro, que em alguns momentos a gente usa, outros não, mas usa. As pranchetas têm 5, a gente não tem mais que 5 trabalhos quase nunca ao mesmo tempo, então ficam as pranchetas com todo o histórico do trabalho ali na oficina, então sai a comanda, vai ali pra cozinha, eu adotei o esquema da cozinha. E aí tem as demandas de material, não sei o quê, e fica trocando, e tudo que sobra vai pra aquele escaninho ali, eu pego, então tem isso, eu vou mandando desenho, vou colocando as coisas e ficam ali nas pranchetas, cada uma representa um trabalho. Isso foi um método também que a gente inven... E, copiou da cozinha assim, que é bem parecido com a cozinha isso aqui. Aí o horário, depende, cada vez é uma situação, a gente virava, eu virava muito a noite porque eu procrastinava, e tudo deixava pro final, então agora a gente nunca mais trabalhou nem no final de semana, trabalha sábado quando nesse caso, mas assim o normal é sexta-feira, volta segunda, aqui também tem a coisa estratégica, que aqui eu coloquei um relógio lá longe, justamente pra reuniões, pra você ver oh, só eu consigo, então daqui a gente colocou proposital assim, pra essa coisa do ritmo, a gente olha aquele, olha lá, tá bem no ponto... então tem essas coisas assim bem... A gente tem um calendário ali, e hoje tá meio fraco, é um pequenininho mas foi o que deu, e a gente fica lá se organizando com isso assim, olhando o calendários, pranchetas... e eu vou escrevendo tudo, assim esses papeis que vão ficando aqui eles vão pra cá, vão pra lá, e as vezes correm por ai. E é um pouco isso assim, acho que é... (MC) Mas não tem... a sua produção mesmo lá na madeira, ela não tem um horário favorito... (GR) Ah, é assim... (MC) quando você tem que fazer... (GR) Tem... não muito, as vezes eu chego e já ligo a máquina, as vezes não dá, porque você se envolve com o corpo inteiro nesse momento assim, então não... é livre demanda. (MC) Livre demanda... (GR) É, livre demanda assim, tem dias que, tem dias que a gente não quer nem ligar uma máquina, tem dias que vai assim, mas ultimamente tem, assim tá atolado não tem muito dessa... a gente tem que fazer... (MC) E você consegue tocar 5 trabalhos de uma vez, um pouquinho de cada um... (GR) É, aí vira o equilibrista do pratinho né... (MC) Sim, faz um pedaço, para, faz outro pedaço... (GR) Isso, e aí, e aí por exemplo, você falou, ah quando que você cria essas coisas, aí sábado eu fiquei fazendo uma coisa, resolvendo e tal, o Leo foi embora, eu continuei aqui, acho que o Leo nem tinha vindo, ah ele veio, aí eu continuei, o meu amigo que tava junto foi embora, aí eu fechei o que eu tinha que fazer, sentei aqui, minha namorada, agora eu tenho uma namorada, ela falou assim, ah vamos fazer tal coisa, eu falei olha eu tô aqui, ela falou ah vou aí junto, ai a gente ficou fazendo anel sabe, ela veio curtir um pouco também. A gente fez um monte de anel pra criança, ela tem filha também, mesma idade que a minha... E aí a gente ficou fazendo anel de bichinho tal, e foi embora jantar, então tem

dessas coisas que tem a parte da recreação aqui dentro né... (MC) Ah, já é o seu hobby mesmo né... (GR) É. Imagina se um dia eu tiver uma casa aqui né... aí... (MC) Aí você, pronto... faz parte muito da tua vida né? (GR) É, não, muito... (MC) Já incorporou demais né, assim, não é mais exatamente um trabalho, engraçado isso. Lógico que é trabalho, eu não tô ... acho que você entendeu o que eu quero dizer... (GR) Sim, sim, é. É uma coisa que assim, já não tem como vo... assim, primeiro que não tem outra... o que eu posso é circular aqui dentro, e essa história do brinquedo faz tempo que eu quero, faz tempo, e comecei... Eu já fabriquei brinquedo, mas foi só uma encomenda e parou, isso aí eu pulei, um amigo que trabalhava na fábrica que é lá na Vila Madalena na Aspicuelta... (MC) Sei... (GR) E aí ela me encomendou... (MC) Não da trenzinho, que da trenzinho é a loja... (GR) Não, tem a trenzinho, tem a Pindorama e tem a fábrica que chama... (MC) Sei... (GR) Que é do lado do Carlos Mota, na Aspicuelta ali, é uma loja que chama “Fábrica, ideias para Criança”. E aí eu fiz um lote de brinquedos para o natal uma vez lá tal... (MC) E que é que era? (GR) Era um críquete sabe, só que de madeirinha assim, bem bonitinho assim, bem. E aí eu fiz isso, sempre gostei muito, é muito gostoso fazer brinquedo assim, é uma coisa muito legal. Quando a gente faz, o Leo falou assim... (MC) Por que que é legal? (GR) Ah, porque... ah, é a fantástica fábrica de chocolates, é encantador assim, tem um monte de ideias, eu paguei um consultor uma vez, tem protótipos, aí tem um cineminha que eu fiz, tá tudo desenhado aqui, já já eu te, aquele de manivela que vai passando assim... (MC) Sei, sei... (GR) Pra criança desenhar, e é super bem feitinho assim. Só que aí no ano passado eu ainda não tinha a laser, essa aqui tava queimada, então tava, e a laser pra esses casos ajuda muito assim. Porque senão você entra numas de ter de prototipar e demora, vou esperar mais uma pouco, e agora a gente vai se inscrever numa feira pra... (MC) A gente, você e o Leo? (GR) Ah, eu né. Eu só uso a gente, aprendi isso no estágio da engenharia lá, nunca falei... e aí a gente, então eu tô procurando, falando eu mesmo né, eu vou me escrever nessa feira, não sei qual ainda, vou pedir pra minha namorada me ajudar. (MC) Ela vai pesquisar... (GR) Ela já começou a mandar umas aí, e aí eu vou tentar me escrever e mandar uns brinquedos, esses piões aí... (MC) Vai ser muito legal (GR) E, só que aí tem o INMETRO, tem umas coisinhas aí (MC) É qualidade de tinta, um monte de coisas né... (GR) É, não pode ter chumbo... (GR) É, e aí sei lá, a ideia é que isso aqui um dia vire, deixa eu ver se tem aqui, vou mostrar um vídeo, tá tudo bem com o tempo? (MC) Tá, eu tô preocupada com você que você falou que... você perguntou quanto tempo e tal...

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(GR) Não, era só pra... Eu brinco que eu vou me aposentar aqui, eu falo que quando eu for velho vou ser esse cara aqui ô, uma janelinha... (MC) (Risada) que bonitinho que ele é... (GR) É maravilhoso. (MC) Os japoneses são muito bons, eles são muito bons, muito bons... (GR) São incríveis, muito louco né... (Áudio de um vídeo em inglês) (MC) Eles são demais, olha o cara... (GR) Eu falo que sou eu quando for velho... (MC) Olha só o que ele falou... (GR) O que ele falou, eu não ouvi... (MC) Que é o destino dele... (Áudio de um vídeo em inglês) (MC) Olha o que ele tá falando, esse é você... (Áudio de um vídeo em inglês) (GR) Olha isso... (MC) Muito foto... (GR) Esse é o meu desejo, de chegar a ser isso aí, pronto. (Áudio de um vídeo em inglês) (MC) Mas é a sua cara mesmo Guilherme, é a sua cara. Mas você vê como ainda tem o desafio, eu quero que ele vá um segundo mais... (GR) Ah sim... (MC) Ele tá ali se desafiando né, não tá fazendo só... danado né, dele ter 125 anos e tá lá ainda... (Áudio de um vídeo em inglês) (MC) Mas ele é um artista né... (GR) É. (MC) Deixa eu ver qual que... deixa eu ver como que eu acho isso aí... (GR) Ah, tá aqui ô... (MC) Deixa eu ver o que é que você pôs aí... (GR) Japanese ... (MC) Nem vou me dar ao trabalho, vou tirar uma foto aqui, quando chegar em casa eu vou olhar isso aqui, isso aqui vale ouro né... (GR) Nossa, esse é o... (MC) Os alemães também são muito fortes né, aqueles... (GR) São... (MC) Aqueles brinquedinhos que um vai fazendo uma coisa, o outro vai fazendo outra, aqueles de madeira...tem uma engenharia fantástica. (GR) Tem uma questão também dos alemães que eu vejo muito em industrial sabe, nesse ponto eles conseguem desenvolver uma peça industrial assim muito próxima do handmade assim, que vai um pouco de desencontro com o que esse japonês faz assim, sozinho fazendo peças únicas, é isso que é um... (MC) Então o que você tá dizendo que é uma peça daquela, dessas que eu tô me referindo, ela é uma peça industrial, só que ela tem uma cara handmade, é isso? (GR) É, que é nisso eles são muito bons assim...eu vejo (MC) Eles lutaram por isso né, a Bauhaus foi isso né, no fundo, eles lutaram por isso. E você tá falando que é ao contrário disso aqui... (GR) É, esse japonês tá fazendo um por um assim, Gepeto mesmo. Eu falo assim, Leo, quando a gente ficar velho eu fico aqui com a oficina, eu fico com essa, eu abro aqui um guinchezinho e você faz o que você quiser, eu vou fazer isso falei pra ele assim, eu vou ficar aqui velho barbudo fazendo brinquedo aqui pra rua, sei lá...

(MC) Muito legal... (GR) Isso é, se perguntar o que eu quero ... (MC) Só que vai ter uma máquina assim nos bastidores... (GR) É, vai todo mundo fazer ... (MC) Pra dizer pra todo mundo, tem uma modernidade, não é uma nostalgia... (GR) É, usando os recursos todos... (MC) Todos... (GR) É assim, bem por aí (MC) te interessa, você gosta? (GR) Eu gosto. Achar uma maneira né, a questão do processo que vai assim e tem um método que, quando tem peças repetitivas que vai, tem um trabalho agora bem grande na laser e eu chamei uma pessoa só pra operar a laser, pra ficar fazendo, e aí essa questão organizacional fica, eu monto e deixo tudo pronto pra pessoa, eu monto isso, isso e isso, monto o movimento assim... (MC) Então você tem esses parceiros, você me falou... (GR) Tem, tem (MC) O Leo, lógico, e tem mais, tem seus parceiros que você chama pra pequenos trabalhos e tal. Matéria prima? Você tem assim um lugar de comprar cada coisa... (GR) Ah sim... (MC) A madeira naquele lugar... (GR) O Nelson eu compro madeira há... tem um que eu fiquei amigo, amigo, laminados e tal o Christin e o pai dele, eu nem posso ir, as vezes eu falo Leo, ferrou, vou conversar 1h30 e depois vou comprar a madeira. Então eu sou super fiel ao ponto de comprar assim... (MC) E não fica fazendo orçamento e trocando de fornecedor e nada disso... (GR) Não, é uma questão muito grave no Brasil que eu fico bravo assim, abre muita gente, é muito flutuante, é horrível assim, eu tento... (MC) É uma tristeza isso... (GR) Olha só, outro dia eu fui na Aerobrás, a Aerobrás você conhece... (MC) Sim, eu comprava coisas pros meus filhos lá (GR) E lá é um... vish, eu chego lá, não dá nem pra ir embora, eu vô lá as vezes pra não comprar nada, se tô passando entro lá só porque, e aí falei pra eles lá, putz se eu fosse vereador aqui sei lá se é isso que seria, eu ia inventar uma lei que, um comércio aberto, eles tem 75 anos, tem um comércio aberto tanto tempo, tem que ter a mesma isenção do começa assim, volta a ter, porque o cara já tá com uma bagagem trabalhista assim, que ele não vai conseguir fechar a loja tem que ficar fazendo mutreta, e meu o cara é 75 anos, eu falei, eu vou, se um dia eu encontrar, falei pra eles, vai então que a gente vota em você, aí, mas assim, teria que ter uma proteção... (MC) Os funcionários são antigos né... (GR) Você consegue ter uma identidade que, aquela sapataria, vários restaurantes que fecham, falo pô, dá uma tristeza assim, mas fecham porque não tem como aguentar assim, então, e aí eu brinco que seria uma... (MC) Ficam sendo devorados né... (GR) É, e então assim, óbvio que eu pesquiso preço até um certo ponto, mas assim, quando eu compro em grandes lojas algumas coisas eu compro mais barato assim, nas grandes redes eu não me interesso, mas eu tento sempre encaixar o pequeno, sempre. Então, tem alguns lugares que, eu fui ontem na madeireira lá num

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lugar que os caras mudaram e não sei o quê, aí mando um whatsapp antes, então assim, existe uma fidelização grande assim, até mesmo pra você conseguir o que você quer assim. No começo era bem sofrido assim, porque você não é conhecido, o cara não sabe se você vai comprar, nem sempre te atende, isso com o tempo vai ficando cada vez mais, tem compras de matérias caríssimos, tem nada, então quando você se fideliza com o cara ... (MC) Ajuda você também a encontrar material... (GR) Ajuda em todos os sentidos... (MC) Você aprende, você sente que aprende com esse pessoal? Assim, te dá uma dica... (GR) Sim, sim. Não, eles falam, porque eles tão no meio atendendo um monte de outras pessoas, profissionais, e às vezes vem assim, tem uma máquina lá, vai lá ver, achei isso aqui te interessa... (MC) Faz uma rede... (GR) Tem uma rede, e ai as máquinas eu compro só com um cara também, tento comprar só com uma pessoa, o seu Pedro... ah, tento ser bem, a gente tenta ser bem, pra eles justamente, eu brinco assim, uma outra coisa que eu falo, que não é muito, é um pensamento comum, é assim, as pessoas precisam me manter vivo, você gosta do meu trabalho, então me mantenha vivo, isso serve pra qualquer um. Uma amiga uma vez que tava fazendo brinquedos até, eu falei assim, olha eu descolei um cara animal que faz isso tal, e é até aqui pertinho. Aí ela, nossa que demais e tal, aí indiquei pra ela, aí ela, uma vez eu peguei ela no telefone e falei, fala do cara lá, ela falou não, agora que tá assim deixa porque eu quero manter ele assim, eu falei não, não, não, você tem que manter o cara vivo, você tem que ind... Então essa questão de compartilhar é o que eu mais prego porque isso adiantou pra mim... (MC) Adianta mesmo... (GR) Porque uma vez que você se desprende de uma ideia você é obrigado a ter outra, então... (MC) Exatamente isso, você faz o movimento todo. (GR) É, você cria um fluxo, um rio... (MC) Você não fica com nada parado (GR) É isso que eu faço, eu tô sempre... (MC) É isso que você tá fazendo (GR) Ou pensando assim, o máximo que der, sem apegos assim (MC) Aí vem também né... (GR) É, porque exatamente porque, isso assim, quando você se desprende de uma ideia vem outra, então... (MC) Muito legal (GR) E sem julgamento também, que isso volta, voltando bate aquela coisa do, da pessoa que a questão dos créditos e tudo mais né, então como isso pra mim tudo bem se for ou se não for, então sabe pra não sofrer, se não ia ficar sofrendo, tendo drama e tal... (MC) Quer dizer, o cara tem o contrário do seu pensamento, mas o que você tá tentando me dizer é que você mantém, mantém o seu fluxo assim mesmo... (GR) É, a pessoa fala assim, aqui é assim, não tem segredo, não tem fórmula assim... a questão é isso, é você saber recursos e tentar lidar com essas coisas... (MC) Mas nasce da confiança né Guilherme... (GR) Que nasce... (MC) Nasce de uma autoconfiança né Guilherme, eu acho

(GR) É, pode ser... (MC) Acho que seus anos de trabalho de deram muita autoconfiança, assim de eu vou me manter, não preciso me preocupar, né... não precisa do muro né (GR) Sim. Mesmo porque isso aqui é uma montanha russa né, um dia tem projeto, outro dia não tem... (MC) E é assim mesmo? (GR) É. (MC) Às vezes tem um monte, às vezes tem pouco... (GR) É. Então a gente vive assim... (MC) E você nunca tem aquele que te mantém né, quase todas as pessoas que eu entrevistei tem, é interessante, tem aqueles contratos bobinhos de coisas desagradáveis, mas você paga as contas com eles e depois vem o resto... (GR) É, o nosso é radical... (MC) O seu não tem... (GR) Não. (MC) Não, interessante isso. (GR) É, mas é isso, a gente vai... (MC) Não, você vai embora. Você vai escolher agora, eu queria que você pensasse, que é que você vai escolher de uma criação sua pra, uma criação qualquer, um trabalho que você fez, que vá desde o momento da concepção, seja uma encomenda ou não, e as variações da concepção até o final, fazer esse caminho. (GR) Pra eu te falar assim... (MC) É isso, você vai me contar um processo de criação, mesmo que não tenha sido, mesmo que tenha sido uma encomenda, olha recebi isso aqui assim, tá, e aí você vai me contar. É a última coisa, aí acabou... (GR) Do começo ao fim assim... (MC) Do começo ao fim... pode escolher qualquer coisa... (GR) Do processo né... (MC) Não tem problema se não estiver aqui, se tiver uma foto pra me mostrar já tá ótimo. (GR) E, tem uma, bom, pelo que a gente faz tem vários exemplos assim né, mas tem um que eu acho que é interessante assim porque ele não é, não tem nenhum valor glamouroso assim das artes, nem assim de um presente, é uma coisa bem simples, mas acho que foi tão legal que eu acho que vale a pena. É uma encomenda assim, mas é uma encomenda, esse foi legal porque eu acho que exemplifica bem assim né, porque quando você vai fazer uma exposição grande, você é lapidado, não tem jeito. Quando você faz um projeto de cocriação é cocriação, esse foi uma encomenda que veio assim, o Guilherme sabe fazer isso, então a pessoa me pediu. Era uma indústria farmacêutica, que queria fazer um tsuru, e a agencia dessa indústria queria que fosse uma escultura grande de tsuru feito em, feito só as arestas assim, o air frame, aquela coisa de arame assim, e grandão, ele tá aqui ô, vou te mostrar uma foto aqui oh...Olha ele ai... (MC) Ah, tá lindo (GR) Esse foi o seguinte, a pessoa me encomendou, ele envolveu coisas legais, primeiro que é um Tsuru que eu tenho essa paixão pelo Japão e tudo mais. E aí ele envolveu todos os conhecimentos assim, dessa questão do analógico e do tecnológico, e aí foi assim, eles me pediram, a gente acerta o orçamento, primeiro eu pergunto, pergunto, pergunto, eles falam, falam, falam, chega num certo orçamento. Esse o Leo nem pôs a mão, ninguém pôs a mão, esse eu fiz inteiro sozinho...

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(MC) Até porque o Leo não é muito chegado nesses de metal, você falou... (GR) Exatamente, e eu fui num restaurante, que é o que eu fui hoje inclusive, que é a dona Helena, ela é amada lá em Pinheiros, que é aonde tinha um escritório lá, e o nome da minha filha é uma certa homenagem a ela, que são três Helenas que eu conheço que trabalham muito, são grandes mulheres, eu falei assim vou chamar Helena assim. (MC) Ah, sua filha é Helena. Helena é um nome bom, você tem razão, Helena é um nome bom (GR) Nossa, é né... (MC) É. (GR) Eu coloquei, minha ex esposa fez o teste de gravidez, eu falei é uma menina e vai chamar Helena. (MC) (Risada) (GR) Ela falou quê? E foi né. Ai então eu fui nesse restaurante, então já tinha uma coisa né, eu falei olha eu recebi uma encomenda muito legal, aí ela chamou a filha dela, eu pedi pra elas fazerem uma dobradura do Tsuru, porque eu precisava saber essas medidas, e não ia dar se não tivesse a dobradura. Aí então teve essa questão de eu ir buscar uma referência real né, nesse lugar que eu gosto muito, e ai eu passei pro 3D, ele tá até aqui em algum lugar... (MC) O material também eles definiram que era metal? (GR) Não, só que ... (MC) que ia ser vazado... (GR) É, que iam ter linhas. (MC) Ah tá, podia ser madeira. (GR) Vamos ver se eu consegui me organizar, chama antídoto. (MC) Você consegue me mandar essa foto depois? (GR) Consigo, deixa eu ver se tem aqui o Tsuru, não sei se ele perdeu.... aí outro... tem umas bagunças aí no meio... (MC) Não tem jeito de evitar, o meu também eu tento, mas não consigo... (GR) Deixa eu ver se tem aqui um Tsuru... não vai ter, mas tudo bem, ele era uma... (GR) Ele tem um MAC mas eu abro ele em modo Windows porque precisa ser... deixa eu ver isso aqui.... ah ele! (MC) Pronto, achou. (GR) Olha, Tsuru referência para confecção ... (MC) Que bonito né... (GR) O 3D ficou bem legal, é ele tá vendo, olha lá... (MC) Nossa, muito legal, mas isso aí é totalmente da sua engenharia né... (GR) É, olha lá... (MC) Totalmente. Tá lindo isso. Isso você não consegue me mandar não né... tão lindo (GR) Consigo. (MC) Bonito de ver (GR) É legal né... (MC) Tá na proporção né... (GR) E aí esse eu fiz inteiro, tem aqui os gabaritos, fui entendendo como eram as peças, as peças eram chapadas, o que era 3D sabe, o que saia do plano, e aí... (MC) Chapadas? (GR) Chapadas é o que eu digo assim, isso aqui forma um plano né, não essa, peraí, essa peça aqui formava um plano... (MC) Ah tá bom, entendi

(GR) Essa peça, é que tá abrindo errado, esse C aqui, é esse, desce e vem pra cá, eles formam um plano, tá vendo se você olhar em planta (MC) Tô entendendo, sim (GR) E aí eu fui entendendo o que que era plano, através do 3D, então aqui eu simulei o que eu ia fazer na realidade. Aí teve a opção do material, que tava totalmente livre, e tinha a opção também da solda, então eu fiz isso aqui como se fosse uma solda de bicicleta. Então ele buscou todos os recursos mesmo, então nesse meio era umas peças planificadas eu acabei soldando com solda normal, então ele, assim virou uma escultura mesmo assim né, não tinha nenhum buraquinho, nenhuma falha assim, não tinha nada, uma solda assim bem feita. Então pra mim foi o que eu mais gostei, você perguntou dele, não tinha nenhum valor desses que eu te passei, mas teve essa questão de usar a ourivesaria, a parte mais moderna, a parte mais antiga, ir no restaurante, pegar... (MC) Fazer toda essa volta pra ir em alguém que você gosta muito, e ela que fez o primeiro desenho, tem tudo isso... (GR) Exatamente, ela fez a dobradura e da dobradura eu fiz isso e... (MC) E ele ficou exatamente como você tinha planejado assim, você abriu mão de alguma coisa, entendeu ... (GR) Eu planejei isso, não... (MC) Não abriu mão de nada? (GR) Não. Esse foi exatamente, oh ele aí ô, talvez a carinha dele tenha ficado mais pra baixo um pouco, não sei se é o ângulo da foto... (MC) Talvez seja o ângulo da foto mesmo... (GR) É quase isso que você tá vendo, oh ele aí, igualzinho (MC) E como que saiu disso, só assim, ignorância completa, como é que você saiu do papelzinho da dona Helena pra isso aí que você fez? (GR) Eu peguei a régua e ia medindo, aí eu fiz um, fiz aqui... (MC) Você foi indo coisica por coisica... (GR) Eu fui fazendo justamente os planificados, que você vai fazendo assim, você, sabe, tá aqui o Tsuru e você pega, eu medi o pescoço e fui fazendo os pontos, eu fui montando ele aqui no 3D... (MC) Quanto tempo você demorou pra fazer isso? (GR) Então ainda tem mais essa, porque até então, na Páscoa, eu lembro direitinho que foi na Páscoa, isso foi tão legal que... (MC) Ainda na Páscoa né... (GR) Na Páscoa passada, lembro porque o que é que aconteceu, a minha filha ia passar comigo a Páscoa, e uma delas eu procrastinei o trabalho e me enrolei, perdi um almoço, e ai depois tinha o fogo, e veio esse aqui, eu falei assim esse, ai eu fiz assim, esse 3D eu fiz numa noite,... (MC) Hum, passou a noite inteira... (GR) Não, não. Eu tenho, terça e quarta ela fica com a mãe, a minha filha, e aí era uma dessas terças ou quartas, e ai eu fui jantar lá 18h30, 19h que ela fez, ai eu voltei, 22h tava desenhado já... (MC) Nossa, que rápido...super rápido (GR) É rápido. E aí eu abri de novo, as medidas, aí fui comprar o ferro, aí eu liguei pro cara da solda, pro meu... (MC) Ferro? (GR) É, o metal, que ele é feito de metal...

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(MC) Então, mas qual é o metal nele... (GR) Então eu vou te mostrar, ele tá ali, é um tubo de aço assim... (MC) Ah, um tubo de aço, tá bom... (GR) Não é tudo, ele é maciço, ele é um taruguinho de aço, e ai eu fui lá comprar, comprei, sei lá, custou vinte e tantos reais assim, e comprei os disquinhos, liguei pro cara da solda, ele me apareceu com a solda que eu falei, oh, preciso fazer isso e tal, ai ele veio, então eu usei também essa rede desse, do Carlos, e ai eu fiz, quinta-feira que era feriado de Páscoa já tava pronto. Então começo na segunda, terminou tipo na quinta... (MC) Então você teve uma crise de trabalho, você teve uma crise de trabalho, você trabalhou pra caramba... (GR) Não. (MC) Ele não foi assim demorado? (GR) Não. (MC) Interessante que isso aqui parece que foi um trabalho desgraçado... (GR) Não... (MC) Porque pra quem olha assim de fora parece que foi um trabalho danado sabe, pra colocar isso no... (GR) Pra mim tá assim sabe, tá muito inserido na minha memória, não sei... (MC) Você foi montando os planos e depois foi encaixando os planos, ah entendi, então entendi. (GR) E aí eu fiz gabaritos, foi exatamente isso, eu comecei numa segunda-feira, e o Leo tava fazendo uma outra, um outro trabalho, ele falou esse aqui eu não posso te ajudar, eu falei não precisa, ele foi soldando e tal... (MC) E o que é que o cliente achou? (GR) Ah, o cara me, o cliente mandar foto em alta é raro né, (MC) É? (GR) Mandou porque ficou muito feliz (MC) Que legal né, tão legal, você deve ficar muito feliz (GR) E valor, esse eu vou falar tá, tudo bem falar? (MC) Não, tudo bem. Eu não vou usar, mas é gostoso saber né (GR) Assim, sei lá, eu gastei 100 reais e entrou, a verba que eles tinham era R$ 6.000, então por isso que, pra mim tudo bem falar porque assim, muitas vezes o material não implica em nada, com isso tudo entendeu... (MC) Com certeza, e material é humano né, é material humano, porque não é brincadeira fazer isso (GR) É, então foi isso assim. Foi uma coisa, lógico tinha não sei o que, aí eu precisei entregar numa segunda-feira, tava tudo certo, tudo belezinha, aí eu faço romaneio, faço uma listinha das coisas que entrega, tudo bem... (MC) Organizadinho né... (GR) É, porque foi por transportadora, vai com nota fiscal, vai com registro de recibo... (MC) Ah, ele não era aqui de São Paulo? (GR) Não, que às vezes vai por transportadora, muitas vezes vem transportadora buscar coisas, então a gente faz um romaneio tal... (MC) Bonitinho (GR) Então foi super... (MC) Muito legal (GR) É, foi um trabalho assim que... (MC) Ou seja, a encomenda não é impeditiva de nada na criação né, a encomenda quando ela não é ...

(GR) Oh, nessa nossa reunião aqui vieram uns 4 pedidos no meu celular... (MC) Jura?! (GR) Quer ver, um deve ter vindo agora, deixa eu ver... (MC) O que é que você vai fazer, você vai crescer? Você vai ter mais uma pessoa pra te ajudar? Ou vai administrar isso? (GR) A gente, olha esse aqui que eu não posso, falei que eu não podia. Aí ele deve ter pedido. Então esse aqui, o tempo inteiro, ele pediu ontem, o tempo inteiro ele pede coisas e... (MC) Pedaços de um trabalho assim... (GR) É. (MC) Precisa de uma impressão... (GR) Esse aqui pra gente é um amigo ... (MC) Então você também tem essa frente de produção, pequenas partes de trabalho que vem pro teu maquinário e você...legal. (GR) Isso, isso. Esse é amigão do Santa Cruz até, de escola... (MC) Santa Cruz tem isso né, faz uma rede de amigos assim, pra sempre né? (GR) Super, é. (GR) Esse ficou uma semaninha, não precisou muita coisa, e usei todas as artimanhas assim... (MC) E altamente prazeroso (GR) É, eu brinco que essa aí foi uma ourivesaria gigante, porque foi mesmo, usei soldas de ourivesaria mesmo, técnicas da ourivesaria só que com o desenho. Outro que também tá, que uma apresentação do (?) por exemplo, esse é totalmente criação aqui, é um modelo que acho que só pra finalizar... (MC) Ah, eu quero sim, é que eu não tô querendo te pegar mais do que o tempo que a gente combinou, mas é gostoso de ver, é muito gostoso isso. (GR) Esse aqui aconteceu o seguinte, eles estavam precisando fazer uns expositores, e ainda tá, eles me chamaram ontem até, e ai o, e ai essa é minha maneira de apresentar assim, ele queria fazer uns expositores, isso aqui é tudo em 3D, vou te explicar, a loja dele é assim, e aí ele falou, ah todos os produtor que eu faço são relacionados a mim, ao meu estilo de vida, então tudo está em torno do estilo de vida dele. Então eu peguei uma foto da loja dele, peguei essas coluninhas, esses riscos... (MC) O que é que isso da loja dele? (GR) É uma parede toda ripada, torta assim... (MC) Esse material é o quê? (GR) Concreto (MC) Ah, tá bom (GR) E aí ele pôs, ele falou é isso e tal, eu falei tá bom. Aí eu apresentei isso pra ele, ele gostou tanto que ele quer, ele não podia fazer mas agora ele ligou, ontem eles pediram de volta, aí eu juntei os dois, aí eu peguei um objeto indígena que tá ali até, que é esse tro.. isso aqui... (MC) Nossa, como é lindo isso né... (GR) Porque na reunião eu falei assim oh, precisa transformar a sua obra em algo sagrado, precisa estar num pedestal sagrado, e aí eu encontrei isso, que ele era do batizado indígena, eles colocam a comida aqui pro sagrado, eu falei pô, é isso aí, e ai eu fiz um fundo tá vendo, pra poder... (MC) Tá lindo, pra apresentar né... (GR) É, e aí eu fiz as peças, um pescoço, um porta colar...

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(MC) Isso vai ser... (GR) O expositor dele, esse rodou, esse aqui eu fiz... (MC) Ah tá, nossa que lindo né... Isso aqui é madeira? (GR) É, porque quando eu apresento, quando é muito preliminar, eu não ponho material, eu ponho só assim meio cinza pra não, pra não também, porque isso aí ele não ia pagar nada e por isso... deixa eu ver se tem foto disso... (MC) Tá muito lindo... (GR) Eu andei apagando foto... (MC) Ah tá ali o seu, documento (GR) Ah, quer ver uma coisa, deixa eu ver se eu salvei...ah salvei. Vai em bora, pode abrir aí... (GR) Deixa eu ver se aparece aqui, ah, acho que eu não salvei, ai que droga, perdi eu acho. Ele ficou de jacarandá... (MC) A sua fica salpicando pra lá e pra cá né... (GR) É, ela tá sempre... E, não tenho, mas nesse caso o que é que aconteceu, ele pediu de jacarandá, eu falei pô meu, não tinha um... (MC) (Risada) (GR) negócio melhor né... Deixa eu ver se aparece aqui, aí eu fiz, quer ver, não tá, deve tá, não tá aqui, será que tá pra cima, E, enfim eu falei, jacarandá, ferrou né... não tem, deixa eu ver se tá aqui ... (MC) Aquela obra ele pediu em Jacarandá? (GR) Ele falou assim, vamô estudar, ele é bem, imagina, o cara é um estrelão, aí eu falei assim (MC) (Risada) (GR) Ai eu falei, pô, Jacarandá, eu vou te mostrar aqui, ai eu fiz isso aqui... (MC) Você passa... passou (GR) Eu fiz essa, eu laminei, eu inventei um jacarandá, isso aqui era da peça até, isso aqui você põe madeira, madeira, madeira, jacarandá e joga folha... (MC) Tá, você folheou... (GR) É, aí eu falei você pode ir que você não vai preso nunca mais com isso ai, senão é crime (MC) É. (GR) Aí eu inventei, tá vendo, então tem toda essa... (MC) Isso aqui é de jacarandá? (GR) É. (MC) Engraçado né, eu achei que ela era mais clarinha... (GR) Não, Jacarandá ele tem essa... (MC) Faz tanto tempo que eu não vejo Jacarandá, não pode mais de jeito nenhum (GR) É, eu usei dessa aqui... (MC) Isso aqui tá com cara de coisa da sua namorada. Ela se divertiu (GR) É. Olha, tá vendo, ela é super firme assim, e a folha só de Jacarandá (MC) Então aquilo lá vai ser feito assim? (GR) É, com essas hastes de latão assim... deu certo, tá lá com ele um, até ele ligou aí... (MC) Muito legal, muito legal (GR) E aí pra isso eu faço gabaritos na laser, a gente vai usando as coisas que tem de, de, os recursos das máquinas e tal, isso aqui oh, essa peça aqui é linda... (MC) Não tem um material que te agrada mais que o outro não? (GR) Não. (MC) Não, seu negócio é o projeto (GR) É.

(MC) E não te dá mais prazer assim, nem na troca, nem no material especial, nem nada, você tá totalmente focado no projeto? (GR) É, exatamente. (MC) Muito legal, entendi (GR) É bem, é bem isso. (MC) Interessante né, os caminhos de criação, porque faz tempo que eu tô conversando com... você é a minha última entrevista... (GR) Ah tá... (MC) E aí assim, você vê claramente alguém que tá focado no objeto, você vê alguém que trabalha com vários materiais, mas o cara ama madeira, entendeu... (GR) Ah tá... (MC) Você vai vendo como é que a pessoa vai fazendo o caminho dela, mas tem uma coisa que é o básico né, e um é o material, o outro, enfim, o seu não, o seu é uma ideia. (GR) Pode ser, nunca tinha pensado nisso (MC) Não, mas eu também nunca tinha pensado nisso, é que eu tô fazendo sequencialmente, você é o meu sétimo né... (GR) Interessante ver essas pessoas (MC) E aí você vai vendo as variações assim, e aí eu vou perguntando, mas qual que é o seu barato né, o que que você gostou aqui... (GR) Tanto é, acho que se medir o tempo que eu fico aqui, ali ou ali dá igual... (MC) Dá igual né (GR) É, porque, a gente fala direito, o escritório tem o mesmo valor dali, assim, de importância né, então tá super, super diluído nessa questão. É viagem mesmo... (MC) Muito legal, muito legal Guilherme, gostei demais... você faz, você vai fazer assim pra mim, se você puder me mandar essa obra, seria muito legal. Se você for abrir essas oficinas eu acho que o meu marido ia curtir pra caramba vir um dia assim sabe... (GR) Ah tá bom. Você quer uma foto dessa aqui assim... (MC) Eu quero, não tá legal, tá linda (GR) Deixa eu ver como é que faz... tem um jeito de fazer um print screen ... ah não lembrei aqui oh, tem no teclado um jeito que você faz um print de tela assim, ah posso fazer assim, mais fácil, print mesmo, ai eu ponho aqui no... (MC) Ah vai ficar linda... (GR) Assim bem do jeito que tá né (MC) Tá linda (GR) Tem um outro jeito que, vê o que você prefere, eu uso muito esse, vê o que você prefere, tem aquele tecnicão assim... (MC) Eu gostei do técnicão porque eu tô falando do caminho, e aí ele tá bem, bem do jeitão né... (GR) Pronto (MC) Esse é o mesmo equipamento que um arquiteto usa? (GR) É, esse, nesse caso, deve ter usando um outro, mas pra mim esse aqui é muito bom, é tudo de tudo, então esse aqui é o mais hibrido de todos esse programa, então pra mim, é o que chama Rihnoceres, pra mim foi o que ficou mais, foi o que mais... (MC) Ele tem relação direta com o 3D, com ele e com a máquina impressora... (GR) É, tudo, tudo nele eu faço 3D, aqui alias (MC) Não, com a máquina eu digo, pra você mandar um comando pra máquina ele sai desse... você entendeu?

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(GR) Ah não, não. (MC) É isso que eu não tô entendendo, a passagem... (GR) Ele sai de ... (MC) Porque esse faz o projeto entendeu, mas depois começo o... (GR) O que o ... ah, então, uma parte do processo é, primeiro desenhar em, primeiro croqui, primeiro é o croqui que é o desenho assim, já tem a ideia tal, então vem o croqui, aí eu faço os protótipos que é a dobradura, vamos supor, vai fazer a dobradura né, na verdade a primeira coisa, eu brinco assim, vou reinventar a roda ou não, então primeiro eu vejo se existe pronto. Como é que, primeira coisa que eu faço é ver se existe pronto pra não reinventar a roda, aí não tem, quando me pedem já pesquisaram, mas aí eu vou de novo ver, e aí, vou me organizar né, vou por nos soltos... é Maria do Carmo é... (MC) Primeiro dia você perguntou pra mim (GR) Ah eu já tinha, deixa só eu abrir meu e-mail, vou mandar pra você. Como que é... (MC) Meu e-mail? [email protected] (GR) Aquela foto eu vou te mandar por outro tá (MC) Tá bom (GR) Será que ele tá com algum... pode ser esse? (MC) Pode ser esse assim (GR) Pode ser esse, igual aquele lá... Tsuru, referência... vou por mais um (MC) Ele tá quase nessa proporção, é grande? (GR) Quase 2 metros... (MC) Né, grande pra caramba! (GR) Eu vou por o meu nome... (MC) O pedestal você também teve que cuidar ou não? (GR) Não. Pronto, porque eu abro aqui e já mando aquele final.

FIM DO ÁUDIO E DA ENTREVISTA.

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ANEXO 4 - ENTREVISTA LUCIANA FARIA

A gravação começou 5 minutos após o início da conversa.

Lu: O sucesso, que as pessoas adoram, acham lindo, e vende e eu nunca fico sem pedido, eu nunca fico sem encomenda, eu nunca fico sem trabalho. É porque não é esse o objetivo, não é ganhar o dinheiro, pagar as contas, isso é o que acontece, é a consequência. Mas eu tenho tesão! MC: Você gosta de fazer o negócio… Lu: É! Exatamente. Eu gosto de fazer o negócio e aí isso fica reverberando na foto, na pessoa que vem visitar… MC: Não tem jeito, Luciana. Isso é tudo na vida, não é? Em tudo, qualquer profissão. Qualquer coisa, dar aula… Lu: Dar aula, ser enfermeiro, ser médico, ser coletor... MC: Você tem que gostar e o resto é consequência, senão é meleca na certa Lu: Eu acho MC: Então olha, é o seguinte. Vou te contar um pouquinho do projeto, até pra te ajudar na hora de você conversar comigo.Não sou ceramista, eu sou professora...e aí é assim, eu fui fazer meu mestrado Lu: No Mackenzie? MC: No Mackenzie, eu tô com a Regina. E quando eu cheguei lá eu comecei a pensar o que era o meu tema dentro deste grande tema que eu trabalho com os professores de trabalhos manuais, de pequenininhos Lu: Na Waldorf, que já é super livre,né MC:! Dentro desse tema artesão, mas eu não queria entrar na pedagogia waldorf porque eu queria justamente conhecer o que é diferente daquilo que a gente faz. E aí nessa história toda, eu me encantei com a obra do Bachelard, porque ele fala muito sobre o ofício do artesão mas o foco dele não é se é arte, se é artesanato… Nada dessa coisa do comércio, do mercado… Nada dessa coisa da imposição social, o que ele se interessa é pelo encontro com a matéria, é pela relação do homem com a matéria, o resto ele ignora. Ele ignora a convenção social, não está interessado na convenção social, no nome que você dá… Ele tá interessado no que acontece com o ser humano quando ele encontra com a matéria prima mais bruta possível, assim, ele fala da matéria bruta mesmo, sabe? Lu: Que o barro é… MC: Então a gente entra no barro, ele entra no ferro. Então aí ele tem um capítulo, ele tem um livro que é “A terra e os devaneios da vontade”, que ele vai entrando Lu: Eu vi uns… Como você me mandou, eu vi umas resenhas. Não me aprofundei porque não é minha área de interesse e tals, mas eu dei uma entendida no que era, né MC: É, ele vai falar do barro, vai falar da massa do pão, vai falar da madeira, vai falar do ferro, vai falar de tudo isso que é bem primordial, vamos dizer assim. E desse encontro do homem e das diferenças do encontro. Então aí, eu encontrei um lugar que me agradava. Entendeu? No meu trabalho. Que é uma coisa que tá dentro desse olhar do artesão mas que vai me ajudar muito na escolha das minhas coisas com meus alunos pequeninos na sala de aula

MC: A primeira parte do trabalho… (pega uma peça) Tá tão bonito isso aqui que eu não sei o que vou fazer (risadas) (UMA COLHER DE PORCELANA, CABO DE BAMBU, DETALHE EM TINTA DOURADA) Lu: (risadas) Como eu vou me despedir disso? MC: E agora? Lu: Ela acabou de começar a trabalhar com ouro, tá apaixonada pelo ouro… MC: Mas isso é um absurdo! Ela tá vendendo isso? Vou querer isso… Lu: Vai vender! Precisa ainda botar preço nisso, mas isso a gente resolve. MC: Tá lindo de morrer! Então Luciana, olha só. São três partes de entrevistas. Desculpa, ela tá dividida em quatro partes. Primeira, um pouco da sua identidade, da sua formação. Então, caminho percorrido, influências, então vou te perguntar assim sobre isso. Depois uma observação sobre seu ambiente de trabalho, recursos. Depois método de trabalho, ritmo, horários, organizações. E por último, a gente olhar para uma peça que você ame muito e fazer o processo de construção, ta? Desde o processo criativo, assim, desde a concepção, enfim, daí eu vou te perguntando Lu: Tá bom ,combinado MC: Aí como você já começou, então ótimo. Aí a gente vai falar um pouquinho da parte de formação. Lu: Da formação. Então vamos lá. Eu tenho quarenta e oito anos, então lá em noventa e dois, aos vinte e dois eu fui para Firenze para estudar italiano, encontrar uns amigos que estavam lá, aquela fase sem grana para estudar em São Paulo, tinha prestado vestibular em uma faculdade que eu não ia ter grana para pagar… MC: Você tinha prestado o que? Lu: Cara, sabe que eu não lembro? Eu lembro que era Faap e eu não tinha grana para pagar MC: Também, era Faap, né Lu: É! Mas acho que foi a única que eu passei, sabe assim? Pô, não tenho dinheiro para estudar. Já tinha feito magistério, então já dava aula numa escola privada de educação infantil como assistente. Adorava. Comecei a juntar grana e fiz essa viagem para Firenze. Só que eu não tinha nenhuma formação artístico-cultural. Não tinha, não sabia quem eram os… Não sabia nada, nada, zero. Não tinha essa formação, da família, né? Porque normalmente vem da família, do ambiente se você estuda em uma escola legal… Mas não tinha nada disso, então eu era bem crua. Mas eu fiquei quatro meses em Firenze. E Firenze é Firenze. Então lá eu andava, andava, andava de bicicleta. Eu tinha quebrado a perna antes de ir então tinha que me exercitar. Cheguei lá achei uma bicicleta, não sei o que, então andava de bike. Sem grana, porque era estudante, mas super feliz, numa boa andando de bicicleta loucamente por aquela cidade. E sem um background, não tinha uma coisa. Então cada vez fui ficando mais apaixonada, achava tudo lindo. Tudo lindo. Não sabia nem direito quem era o Michelangelo e de repente tava olhando aquela estátua e falando “Meu Deus, meu Deus, o que é isso?”. Como que pode alguém fazer isso, sabe? Foi alguém que fez isso. E Roma a mesma coisa, o Vaticano. Não sabia nada, e fiquei chocada com a capacidade do homem de pegar uma pedra e transformar em uma coisa, de pegar uma tela e… Eu acho que chocada é mais a palavra. Beleza, aí fui embora. Porque resolvi que

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não queria ficar lá, queria vir para o Brasil, não queria mais morar… Morava em Santo André, que é uma cidade industrial, que já tinha essa formação do punk rock dos anos oitenta, que era a minha formação, da minha geração… Não queria mais aquilo, aquela coisa tensa da cidade, do subúrbio, não queria. E vim para a praia MC: Ah, você veio então faz muito tempo Lu: Muito, vinte e seis anos. Vim para a praia atrás de pensar. Falei, vou pensar. Vou para Maresias, porque tinha uma amiga que morava lá, e vou pensar o que eu vou fazer, o que eu vou fazer. Tô fudida, o que eu vou fazer? Vim para a praia passar uma semana, sei lá, e acabei ficando quinze dias. MC: Nossa, uma semana! Lu: Vim passar uns dias e passei duas semanas. E nessas duas semanas eu arrumei trabalho, ´para imediatamente. Arrumei trabalho para começar no ano seguinte numa escola construtivista, que era um grupo de pais que mantinha. Quer dizer, já era uma coisa super legal, sair de uma escola particular em Santo André para vir para uma escola construtivista no litoral. Falei: “Mas é para agora”, já saí da casa do meu pai que eu não queria ficar mais… Não a casa do meu pai, mas aquele ambiente da cidade. E vim para cá em um setembro, outubro, sei lá. E não fui embora nunca mais. E aí, pouco tempo depois eu conheci o trabalho da Helene, o trabalho dela. Alguma coisa dela em corda seca que eu é aquela história que vou te mostrar jajá. A especialidade dela desde sempre tinha sido a corda seca, que é você desenhar com grafite, na peça já biscoitada. Então pode ser uma peça já comprada, que é muito mais barata do que você modelar uma peça, mas também pode se modelar e fazer a corda seca, claro. Mas o que ela mais fazia era comprar as peças nas olarias e fazer a corda seca. E eu me apaixonei pelo negócio dela, e pedi para a menina que era a dona da loja me apresentar. Falei: “Lê, me apresenta essa mulher, eu quero que ela me ensine a fazer isso porque isso é muito lindo”, “Ah, tá bom”. E eu ainda dura para caramba, bem novinha. Trabalhava na escola, trabalhava ali e tal mas era duranga, né. E aí eu bati na porta dela, na maior cara de pau do mundo, ela morava do outro lado da rua ainda, aqui. Nos apresentamos e tal, e falei para ela: “eu quero aprender a fazer a cerâmica com você. Só que eu não tenho dinheiro para pagar suas aulas. Então eu proponho troca. Eu posso pagar o que eu conseguir fazer e vender, ou eu posso limpar o seu ateliê, ou eu posso passear com os seus cachorros, não sei. Você me fala o que você precisa em matéria de prestação de serviço e eu topo, por que não tenho medo de trabalhar. Ela achou uma graça, com aquele sorriso dela que você vai conhecer… MC: Achou uma mocinha adorável… Lu: Adorou. E nós nos apaixonamos… MC: Que coisa engraçada! Lu: Então, ela é a minha mãe, a minha mãe. Assim, de consideração e de amor e aquela que eu penso. Eu tenho minha mãe, querida, tudo bem, problemas de relacionamento normal igual mãe e filha, até bem esperado, né. Mas eu tenho essa relação materna com a Helene que é o preenchimento do meu afeto. A gente se adora, se eu for cuidar de alguma mamãe velhinha, é dela. A minha não, porque a minha tá lá em Santo André e meus irmãos cuidam. MC: Entendi, você vai cuidar dela

Lu: Vou cuidar dela, já avisei até. Não dá pra cuidar de duas, tá? Então vocês vão cuidar da mamãe e eu vou cuidar da Helene, que não tem filhos naturais MC:Ah, ela não tem filhos… Lu: Ela tem a mim! Então a gente já se grudou. Aí ela me ensinou, daí deixei a escola um tempo… Porque a educação também foi uma coisa bem sazonal na minha vida. Eu dei aula e parei de dar aula muitas vezes nesses trinta anos de magistério. Dei aula como assistente, dei aula como alfabetizadora, dei aula de oficina de arte, que é aquela história que você tava me falando, que eu achei super interessante, porque eu fazia a mesma coisa. Eu botava as figuras em contato com o material, e nada mais. E brigava com a coordenadora que queria que ficasse bonito. Eu dizia, não, mas não vai dar porque eles só têm quatro anos. Então tá feio para você, mas tá bonito para eles. Sabe essa linha de quatro anos? MC: Não sei porque que faz isso, né? Por que? Lu: Eu perguntava assim para ela: “Mas Vera, você não achou bonito?”, (imita coordenadora) “Não, sabe? Porque o cara tá pintando a árvore de preto”, e eu falei “Mas a árvore dele é preta. E daqui você não vai mexer. Porque ele fez preto e vai ser preto, e a mãe dela vai achar lindo. Porque ele fez, tá?”. Porque ela falava, o argumento que ela falava. Ah, mas os pais querem, eles querem ver, sim. Eles gostam de ver a verdade, eles não querem ver o que você fez Vera, eu não vou botar a mão. Não durei, né. Óbvio. Mas tudo bem também, daí foram vários ciclos dando aula. Dando aula, trabalhando com produção, ou trabalhando na cerâmica, isso sempre foi girando na minha vida. Trabalhando em casa noturna, que meu ex marido era da noite. Mas a educação e a cerâmica elas sempre estiveram no revezamento da atividade do momento. E a Helene nunca mais saiu, mesmo quando eu parava de fazer cerâmica, continuava. Aí bom, eu tinha um problema com modelagem, não gostava de modelar. Ah, puta que pariu, porque racha, porque… MC: O que você gostava de fazer daí? Lu: Pintar, eu pintava MC: Pintar! Você chegou pela pintura, por aquela… Lu: Por ela! Exatamente! a corda seca, comecei com a corda seca. E não é que eu não gostava de modelar. Eu não tava preparada, não tinha amadurecimento. Porque a modelagem exige um puta de um equilíbrio, porque ela racha, o negócio racha. Vira pedaços MC: Vira pedaços, que eu sei sim Lu: Vira pedaços! E tudo bem! Então, mas agora tudo bem MC: Você ficava muito nervosa… Lu: Ficava frustrada, e tinha uma coisa do imediatismo da juventude que você fala: “Porra, como assim? Eu fiz negócio e daí quinze dias para secar, daí acabamento e tanãnãnã e rachou essa bosta”. Ficava puta. Ah puta, tem muita bolha… Tem, tem bolha e tem que tirar uma por uma. Tem que tirar uma por uma sim, e pronto. Só que lá atrás eu não tava pronta para entender isso. Eu não tinha essa coisa, então eu não fazia. Eu fazia pouco e não gostava. Mas já gostava de umas formas diferentes, já era chatinha com qualquer coisa. Ah não gosto desses pratos redondos… Não gostava de nada, era um inferno, tinha que ficar correndo atrás de… Ah, porque antes, também tem outra coisa da pintura. Porque antes de eu começar a pintar nessa técnica eu já pintava a frio. Eu trabalhei um tempão pintando a frio. Na cerâmica.

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MC: Então não tinha sido a sua primeira experiência? Lu: Não. Eu comecei pintando a frio, mas era uma coisa que eu não tinha muito tesão MC: Era lá em Santo André? Lu; Não, aqui já. Tudo aqui MC: Tudo aqui. Tudo aqui e tudo com a Helene? Lu: Não, o frio não. O frio foi antes. O frio foi um pouco antes de conhecer o trabalho dela. Falei, esse é o caminho porque eu já pintava a frio a cerâmica. Eu comprava aqueles vasões e pintava, mas era uma coisa que eu tava começando a buscar, meio sem… Não tinha esse tesão MC: Tá Lu: Aí quando eu conheci o trabalho dela eu falei: não, é isso que eu quero fazer. Pintar cerâmica assim MC: Eu vou poder ver um? Porque agora eu tô muito curiosa Lu: É porque é muito louco. É muito louco isso (pega peça), como é que você não se apaixona? MC: É, você se apaixona mesmo… Lu: Não dá! E ainda mais quando você pinta a frio, você vai lá, pega o látex, pega as tintas plásticas, faz um desenho, pinta, legal. Vai descascar, amanhã não tem mais. Tá, tudo bem. Aí você viu o trabalho dessa pessoa, olha! (mostra uma peça) MC: É maravilhoso, né? Lu: É maravilhoso! É chocante. Isso aqui é um híbrido, uma coisa que eu modelei e ela esmaltou MC: Isso tá tão bonito! Lu: E isso aqui tinha um racho, ele não foi para o cliente porque ele tinha um racho. Tanto que ele é fofo, né? (dá batidas na peça) É outra batida. Fofo é ótimo, né? Mas é fofo MC: Mas tá muito bonito, né? Lu: (dá batidas em outra peça) Ó... MC: Esses estão à venda? Lu: Tão! Esse aqui acho que não, não sei, é dela, isso aqui tem que perguntar pra ela. Porque eu modelei… MC: Vocês fizeram de amigas Lu: É, na verdade eu modelei… Era uma peça que tinha dono. Mas ela rachou, aí ela veio e a gente tacou… Eu tenho uma dessa em casa também. A gente tacou um azul cobalto em cima para ver se ia fechar o buraco, e fechou. Porque aqui é uma eterna experiência, a gente vive de fazer experiência. Porque nem ela tem curso. Ela também nunca fez um curso de cerâmica MC: Ela também nunca fez? Ah, mas tá tão bonito! Lu: É uma loucura assim, uma loucura completa. E aí a gente fica inventando moda. Isso daí (pega peça), acho que vai virar também uma colher, deixa eu ver se ela tem buraquinho… Ah, não tem… MC: Ah nossa, eu fiquei muito apaixonada. Sabe que eu pensei que era de incenso? Lu: É, mas daí não tem buraquinho MC: É não tem, né. Mas daí eu fiquei procurando um buraquinho porque eu achei que era. Tá lindo, né? Lu: A gente inventa o tempo todo. Agora ela tá nessas peças aqui, ó. Essa gamela e aquela ali que ela tá brincando com as texturas. Eu adoro né, a gente fica cutucando. “Ah, eu queria fazer não sei o que…”, (imita Helene) “Faz! Faz! Isso, faz, faz!”. As doidas MC: Mas continua, tô te ouvindo Lu: Onde eu tava? Nem lembro

MC: Então, você falou que não tava preparada para a cerâmica… Lu: Eu não tava preparada para a modelagem, só que aí aconteceu de eu… Nesse meio tempo eu larguei, parei de fazer, me casei com o Guilherme que é pai da minha filha. E aí entra naquela fase da vida dos vinte e cinco, vinte e seis anos, muito assim… Sabe? Muito assim… Eu parei de fazer a cerâmica, de pintar, de qualquer coisa. Parei inclusive de ser eu mesma, que acontece nas melhores famílias. Fiquei vivendo aquela vida de parceira, daquela figura, que foi ótimo, tudo bem, não estou me queixando. Só constatando. E quando a Isadora nasceu em 2004… Foi em 2003, antes de eu me engravidar, meses antes de eu engravidar, eu quis voltar a pintar, e voltei. Aí vim para cá, eu já tinha dado todo o… Não ainda não tinha. Voltei a pintar, beleza. Aí fiz um monte de coisas em corda seca, pintei um monte de coisas, pintava uns cinzeiros, comprei umas coisas e tal, beleza. Ah, ela tá me perguntando se você está aqui. (Pausa) MC: Fala pra ela que estou me divertindo Lu: Mandei ela vir. Ah, você vai se apaixonar por ela, porque não tem como. Não tem como… MC: Não tem como. Só de ver isso… Lu: Não é? Você olha o trabalho da pessoa… As mandalas ela que faz. Enfim, aí eu fui, pintei umas coisas numa boa e engravidei da Isa. Tive uma gravidez antes, que eu perdi e quando eu engravidei da Isadora, eu entendo isso como uma coisa que eu já tava querendo buscar a minha identidade de novo, porque já tinha dez anos de casada… Dez anos trabalhando na noite, aquela coisa da produção, de fazer funcionar a night. Tava de saco cheio daquele casamento, de tudo MC: No fim você tava em Santo André de novo Lu: Exatamente, um monte de junk na minha volta. Um monte de gente cheirando, bebendo, enlouquecendo, e a night, a manhã e aquela coisa, aquelas putas… Eu tava de saco cheio, voltei a pintar, e fui bem inconsciente assim… Meio “Ah,vou lá, vou fazer lá…”, voltei a pintar e logo engravidei. No que engravidei, os esmaltes são super tóxicos, não é uma coisa muito legal de você ficar respirando na gravidez. Aí parei, e quando descobri que estava grávida eu tinha feito uma série de umas vinte fadas, fadinhas. MC: Você estava chamando ela? Lu: Eu já estava grávida e nem sabia. Fadinha no lago, fadinha voando, fadinha ruiva, fadinha morenas… Fadinhas e fadinhas e fadinhas MC: Que fofo! Mas pintando? Lu: Pintando em corda seca, você vai ver lá em casa. Vou te mostrar lá em casa. Porque ainda bem que eu não vendi as fadas, elas estão lá comigo. Tem uma parte que eu fui dando e tal, mas a maioria tá lá. Que são as Isadorinhas pela minha casa MC: Sua filha deve achar muito legal Lu: Ela nem liga, se você quer saber MC: Você que pensa que ela não liga (risadas) Lu: É, porque é a idade. Eu sei, eu sei. Ela viaja junto, fala “Nossa, ficou bem legal!”. Eu fecho um negócio e falo pra ela “Meu, fechei um negocião”, ela fala “Uau!”. então eu sei que ela curte, mas ela foge um pouco, porque ela vai acabar fazendo MC: Você acha que ela vai? Lu: Ela tem mão

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MC: Ela tem mão! Ai que beleza Lu: Ela tem mão, só que agora ela tá na fase da negação né, Nina? Ela não quer ser nada que eu seja. Não é hora dela ser o que eu sou, é hora dela ser o que ela é. Deixa ela. A única coisa que eu acho que eu tenho que insistir é o seguinte: se ela for estudar fora, ela tem que aprender, fazer um intensivinho em casa, porque aí ela vai para qualquer lugar do mundo com um ofício onde ela pode trabalhar, em vez de ela trabalhar em um restaurante ela trabalha em um ateliê. Mas aí é uma questão prática. A gente pode pegar por aí. Parei a história de pintar e fui gerar. Foi ótimo, tudo bem. Logo depois que ela nasceu… Minha gravidez foi muito ruim, fisicamente não tinha nada, tava tudo maravilhoso, mas afetivamente foi bem ruim, bem pesada, bem solitária, bem ruim. E também não tinha nada a ver com o bebê, porque o bebê eu queria, não me sentia culpada por estar me sentindo mal. Não tinha aquela coisa “Ah, estou deprimida…”. Não, com o bebê estava ótimo. Ai tá ótimo, né? Tá tudo bem. Tem bastante líquido, tem nutriente, então eu posso ficar aqui na minha depressão em paz? Meu médico era ótimo, falava “Pode, pode sim, fica a vontade”, até a hora que ele falou “Não, agora não pode mais. Agora quero que você se… Porque daqui a pouco o seu nenê vai nascer e você precisa ficar esperta. Porque vai dar bastante trabalho”. E foi bem isso que aconteceu MC: Nossa, que médico legal que você arranjou né, Luciana? Lu: Maravilhoso! Ele é meu gineco até hoje. Ele é o gineco dela! MC: Daqui? Lu: De São Paulo. Porque aqui é maravilhoso, mas tem muita coisa que não dá. Aí tudo bem, Isadora nasceu, aí eu voltei para a educação. Aí eu fui fazer a faculdade de pedagogia, e aí eu dei aula na prefeitura. Rolou um negócio muito louco porque eu entrei na prefeitura, tava com um aninho, um ano e pouco, por um edital que abriram para um projeto. Eu fiz o projeto bem meia boca, mas fiz, escrevi lá… E peguei uma sala como substituta lá perto de casa no sertão, e tal. E tinha um figura daqui que é político que é amigo do meu ex marido, e ele falou “Ah, eu amei você dar aula no sertão, etc”, eu falei “Ah que bom, né”, meio incomodada porque eu sou meio pentelhinha com a coisa do favorecimento. Eu sou meio caxias, não gosto muito da corrupção em nenhum nível. Então fiquei mini incomodada e falei “Putz…” MC: Por indicação… Lu: É, fiquei chateada, mas fui. Mas bem incomodadinha. Aí passaram dois anos que eu fiquei com esse cargo de substituta por indicação e fui fazer uma prova, porque abriu edital para uma prova. Fiz a prova e passei em terceiro lugar MC: Aí você já não se sentiu mais Lu: Nada! Falei: que bom! Ainda até me deu uma aliviadinha. Falei “que bom”, eu sei que tenho capacidade. Mas fiquei meio incomodada, porque e se tem uma pessoa que merece mais que eu? Fiquei meio cabreirinha. Aí quando fui fazer a inscrição escolhi a mesma escola que eu já estava, que eu adorava. Peguei uma sala de quarto ano, escolhi a sala… MC: Você estava feliz Lu: Estava feliz como professora sim. Até porque eu estava muito feliz com a maternidade. E também já tinha

me resolvido no meu casamento, falei “meu, esse cara aqui foi uma questão de tempo. Não quero mais ficar com esse cara” MC: Mas você ainda tava com ele? Lu: Tava, mas eu tava porque não tava prestando atenção nele. Então não tava nem me incomodando. Sabe quando você presta tão pouca atenção no cara que nem te incomoda? MC: Sei, tava fácil… Lu: Então eu tava lá, ele era um paizão legal com ela pequenininha. Então tá bom. E muitos anos juntos, né? Aí já eram doze anos, treze anos juntos. Muito tempo, né. Aí quando fui fazer a inscrição lá no centro a figura do centro de educação falou para mim “Ah, eu lembro de você. Foi você que teve o melhor projeto né? No edital passado?”. Falei “como assim?”. Ela falou “ah, seu projeto foi o melhor”, falei “Como assim?”, ela falou “é, é como um concurso, só que por projeto. Tem classificação, o seu tirou o primeiro lugar, por isso que você escolheu a escola” MC: Você nem sabia? Lu: Eu não sabia, eu achei que tinha sido por indicação. Quer dizer, o cara pegou o meu mérito… MC: Não acredito Luciana, não acredito… Lu: Juro por Deus. Dois anos eu fiquei acreditando que eu tinha entrado por indicação MC: Cara de pau… Lu: Eu fiquei arrasada. Falei “puta que pariu, aquela bosta de projeto…” MC: Foi o primeiro Lu: Eu tenho consciência. Eu sei que eu tenho capacidade de fazer um puta projeto se eu quiser. Tá, mas não foi o caso. Fiquei bem arrasada. Falei “nossa, a educação tá mal…” MC: Mas a educação tá mal Lu: Tá mal! Fudeu, como o município lida com esse monte de gente ruim? Tá, fui e dei mais um ano do regular na sala e aí fui para a escola da Isadora… Saí da prefeitura, não quis mais a prefeitura, fui para a escola da Isadora e logo em seguida fui convidada para tocar um projeto sócio educativo. Aí foi a minha realização na educação. Porque aí eu era coordenadora pedagógica do projeto, então era do jeito que eu achava que tinha que ser. Não tinha cadeiras, é… “Ah eu preciso de alguém para dar aula de música”, não era assim que funcionava. Esse projeto eu fiquei quatro anos nele. Nesse projeto sempre funcionava assim: “Ah, tem uma figura que é um puta professor de música, vamos conhecer ele?” “Vamo.”, ai eu conhecia o cara, achava que podia ser legal, vamo encaixar ele na grade. Então era assim que funcionava MC: Ah, podia fazer isso… Lu: Podia porque era o nosso projeto. Era meu e da Giorgeta que era minha grande amiga parceira MC: Mas você trabalhava no Estado? Lu: Não, saí da prefeitura, sai do particular e fui pra prefeitura. Aí fui para o particular e aí fui para o projeto, esse do terceiro setor. MC: Ah, entendi. Era do terceiro setor… Lu: Ong. MC: Ong, você podia escolher… Lu: E eu coordenava

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MC: Porque você não poderia fazer isso no Estado nunca nessa vida de meu Deus, por isso que eu não tava entendendo Lu: Nunca! Já tava no terceiro setor. Foi uma escadinha, foi da prefeitura como substituta, aí como titular de sala, aí fui para particular que foi quando a Isadora começou a frequentar a escolinha. Aí eu fui para a escola dela porque tinha bolsa, e já comecei na ong, foi meio concomitante com a escola dela. E aí tive que sair da escola dela porque a Ong cresceu. A Ong deu muito certo MC: Ainda tem essa Ong, Lu? Lu: Não. Tinha um patrocinador que era um construtor, era uma contrapartida. Ele oferecia esse projeto. Era uma capacitação dos funcionários, que não tinha nada a ver comigo. Eram cursos de eletrônica, de elétrica aliás. De hidráulica, pintura, enfim. Ele capacitava os caras da obra que tivessem interesse, alfabetizava adultos que também não tinha nada a ver comigo, tinha outra figura que tocava essa parte que era muito legal. E eu com os filhos de funcionários e crianças privilegiadas, porque aí não era fechado para os filhos de funcionários. Que foi uma das coisas que a gente botou lá no projeto. Falou “tá, a gente faz o projeto infantil, mas a gente tem que ter autonomia pedagógica 100%, nenhum pitaco, zero. E abrir para a comunidade, não pode ser só para a obra” MC: Ele deve ter gostado para caramba Lu: Para caramba, e eles bancaram. E era um projeto barato porque a gente pagava hora-aula do educador, mais do que a prefeitura que é quem melhor paga. Porque a gente entende que precisa estar feliz, e precisa ter um tempo para criar fora da escola, ou da Ong, ou de onde quer que seja. Então ele tinha essa grana, a gente pagava além da hora-aula a hora de estudo e o transporte, tudo. A hora- aula era limpa, bem paga. Então tipo, se a prefeitura pagava… E a gente se pagava muito bem também. As coordenadoras, eu como coordenadora pedagógica e a coordenadora administrativa que era a minha parceira que concebeu comigo essa história. Enfim, era o sonho de qualquer educador. Foram quatro anos maravilhosos e nesse meio tempo eu me separei. Tudo bem MC: Não cabia mais… LU: Não… Porque você vai evoluindo e não… Não tinha nada a ver comigo mesmo, não criticando, mas é verdade. Porque eu sou libertária, eu sou esquerdinha, ele é um reacinha completo. Então tinham muitas divergências que não estavam incomodando e quando eu voltei a ser eu mesma mesmo aí não nada mais, aí fica difícil, não vou tolerar. Enfim, o cíclo que tinha que acontecer aconteceu. A gente se separou, que agora já faz dez anos e aí o projeto fechou porque a obra acabou e a gente não conseguiu patrocínio. Tudo bem. Me dei super mal na questão financeira porque aí eu já não tinha mais o respaldo do marido, da família… Não dá pra ficar sem trabalho. E fiquei perdida, não queria ir para escola formal nunca mais. Como é que você sai de uma Ong que você coordena para ir pra uma escola formal? Só se for pra arrumar encrenca, e aí não vai dar... Mulher: Lu, tô indo! Lu: Tchau mi amor! Mulher: Tchau querida. Entrega para mim por favor? Lu: Entrego. Se eu me lembrar eu já trago os seus acessórios amanhã. Amanhã é sexta

Mulher: Tá, se você se lembrar você me avisa e eu venho ver, e aí a gente vê juntas Lu: Tá! Tchau Pati, obrigada, viu? Mulher: Oi? Lu: Obrigada! (pausa) Aí tá, não dava mais para escola, e eu tava sem trampo, e não sabia o que fazer, tava meio fodida com essa fase de bosta. Fui trabalhar em um escritório de imobiliária de uma amiga que me deu uma puta força, mas também não ia dar porque como é que eu ia ficar vendendo coisa micada. Porque ser corretor é você fuder a vida do outro (risadas) É! Porque o cara vai, junta aquela grana da família inteira e você vai lá e vende um imóvel micado, nossa não! Para mim era isso, eu fiquei lá trabalhando um ano e meio na imobiliária e não vendi nada, porque não tinha coragem. Falava assim: “Mas jô, é o FGTS da mulher, do marido… Como é que eu vou vender aquela casa, a casa vai cair…”, (imita amiga) “Mas é a única casa de quatrocentos paus que têm Luciana, você vai vender a casa para eles”, “Não vou, vende você”. Aí ela ia lá e vendia a porra da casa, mas eu não tinha coragem, não consigo! Você consegue? Não dá! Não tem como! Eu fui um fracasso como corretora! (risadas). Ai gente, foi um horror. Aí o Guilherme, que é esse meu ex marido abençoado… Nossa, ficou bem torto ein… Puta que o pariu… (falando sobre peça) MC: É, mas aí você vai dar um jeito Lu: Não, o jeito tá dado, ele é torto MC: Então, mas aqui vai ficar interessante, deixa quieto… Lu: Não, vou deixar ele torto. E se o cliente reclamar muito eu entrego outro. MC: Esse é encomenda? Depois você vai me contar a história Lu: É. Encomenda de um cliente que eu amo, que é o Badauê, que também me deixa livre para criar! Aí o Guilherme nesse meio tempo, ele me deu uma rasteira de grana. Porque ele tava trabalhando no Galeão, tava duro, não suportava mais a ideia de ficar na imobiliária… E aí ele me fez uma proposta, a gente fazia guarda compartilhada, era uma semana cada um, desde o começo da separação, disse assim ó: “Fica com a Isadora no verão para mim direto e eu pago as suas contas do verão. Porque aí eu posso trabalhar em paz, não preciso ficar pegando babá para ela ficar com a babá e eu ir para o Galeão trabalhar, eu vou bancar o cartão que é combustível e alimentação e aí depois a gente vê o que faz… O que você vai fazer…”, porque eu tava bem perdidinha. Falei: “Beleza Gui, eu topo”, e já comecei a pensar o que eu vou fazer depois do verão. Aí chegou em fevereiro, ele não me deu a grana nem da fatura de janeiro e nem de fevereiro. Me deu um cambau. Porque ele é ruim. Não é porque não tinha grana, não. Pura ruindade, que também não me surpreendeu, porque conheço a figura. Eu fiquei com tanta raiva, de ter sido trouxa. Raiva de mim, e dele, de tudo. E aí no meio desse ódio mortal, de eu não saber como é que eu ia fazer para sair desse buraco do cartão eu fui encontrar uma amiga em Santos, que mora em Dublin, família de Santos e a (MC) dela, uma mulher trilouca, tinha um carro, um Uno, que ela já tava com esse carro de cerâmica branca, essas coisas assim ó (mostra peça). Ela falou: “Minha mãe mandou eu me livrar disso aqui, porque senão ela vai jogar tudo fora”. Então eu falei; “Então vamo se livrar no meu carro”, ela falou: “Quer levar?”, falei: “Agora, tudo”

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MC: Era branquinho, prontinho para você trabalhar? Lu: Pronto para eu pintar, umas pilhas de cinzeiro, assim, uma coisa que vende na hora MC: Não tô acreditando! Deus fecha uma porta e abre duas janelas… Lu: Mas ele falou assim: “Você acha que você levou um tombo? Tombo nenhum, olha só!”. Aquele carro, eu vim com o carro assim… MC: Não acredito, Luciana! Lu: Juro… E eu tinha parado, quando eu engravidei falei: “Realmente agora não vou mais pintar…” No meio dessa história… MC: Você deu suas tintas… Lu: Dei tudo para a Helene, tudo! Com um puta amor. Falei: “Helene, eu não vou mais…”, ela falou: “Tá, tá, deixa aí e o dia que você quiser voltar a pintar você pinta”, falei: “Tá, tá bom”. E não deu outra, em dois meses eu pintei tudo aquilo, todo o lote que ela tinha me dado, vendi tudo e paguei minha dívida do cartão. Era sei lá, uns quatro paus que eu tava devendo no cartão. MC: Pagou tudo Lu: Paguei tudo. Vendi assim, colocando no Facebook, que eu nem tenho mais Facebook. No Facebook as pessoas falaram: “Nossa, você voltou, você voltou!”, falei: “Gente, as pessoas ainda lembravam que eu fazia isso”. Só que aí, voltei a modelar… MC: Você devia ter um talento mesmo! Lu: Tinha! E nem sabia! MC: Porque veja, você fazia isso de brincadeira,fazia isso de hobbie… Lu: Exatamente! E não tinha autoconfiança, de falar: “Olha, puta, isso é legal”. Achava que era legal, mas eu ficava surpresa quando as pessoas achavam aquilo tão legal. Não tinha, hoje eu tenho! Mas acho que isso veio com a maturidade, com a separação, com a maternidade… Que tudo isso vai ensinando a gente um monte de coisas. O fato é que aí eu engatei uma segunda, terceira, quarta e quinta, e aí eu comecei a modelar. MC: E aí você tava modelando, ou pintando? Lu: Primeiro pintei tudo que ela me deu. Mas aí eu falei que eu não vou comprar, não vou ficar comprando. MC: Então na verdade você começou a modelar por necessidade, vamos dizer assim Lu: Por necessidade! Só que uma das coisas que me incomodava no lance da modelagem era o lance de abrir as placas com rolo de macarrão. Tem dia que eu modelo vinte quilos, ficar abrindo vinte quilos de massa na mão, no rolo, não! Mas pintou uma plaqueira baratíssima, essa maravilhosa que eu comprei outra zerada agora que vai lá para casa. Comprei a plaqueira, essa daqui (aponta plaqueira). E aí eu comecei a modelar. Falei, agora sim! MC: Tirou o bode da sala Lu: Exatamente, tirei o bode da sala e mandei passear. Ele vai comer outros pés. Comecei a modelar e aí não parei mais. O meu primeiro cliente grande de modelagem foi o Ema, da Renata Vanzetto, que é amiga dos filhos dos meus amigos, que é aquele povo lá das antigas da Ilhabela, sabe aquela coisa? Vi ela crescer, e ela cresceu, virou um mulherão. Dona da porra toda. Quando ela viu minhas cerâmicas falou: “Lu, não sabia que você fazia isso!”, falei: “Pois é Rê, to voltando”, “Vamos fazer uns pratos para o Ema”. Mas aí eu já comecei acelerada, falei

“Tá bom”. Fiz uma leva, já fiz outra… Que eu voltei a trabalhar com isso faz três anos e meio! MC: Esse tempo, só para eu me localizar, esse monte de coisa que você colocou no seu porta malas faz quanto tempo? Lu: Três anos e meio MC: Três anos e meio! Lu: Mas aí esse monte de coisas foram muito rápidas e já comecei a modelar. Entre essa coisa da imobiliária trabalhei com produção de casamento, na empresa de uma amiga que era decoradora… Tava fazendo qualquer freela. Depois trabalhei com assessora de casamento também, já trabalhando com a cerâmica pesado, mas aí esse ano, ano passado, eu decidi que não, eu sou ceramista e não posso ficar fazendo casamento de final de semana porque na minha idade eu demoro três dias para me recuperar de uma produção de vinte horas. Não sou nova, vou fazer cinquenta anos. Meu corpo não dá conta. MC: Não dá. Engraçado a diferença, né? Lu: É, não dá! Porque é outro metabolismo, é mais lento… Não rola MC: Eu fazia qualquer coisa até meus trinta, você faz qualquer coisa. Vara a noite… Lu: É, faz tudo e ainda trabalha a semana inteira. Só que não dá, então eu priorizei a cerâmica, fazer a cerâmica. Saí das produções meio na coragem porque e a grana? E a grana vai entrar. Tô nem aí, não me preocupo. MC: Você não se preocupa? Lu: Outra coisa que eu aprendi que eu nunca tive. Eu sempre tive aquela figura, que eu acho que é da formação de mãe e pai assalariado… A mãe nem era assalariada, ela era dona de casa. Meu pai era executivo, mas de metalúrgica, executivo baixo né, não alto executivo. Trabalhava no escritório, mas da metalúrgica. Então ficava aquela coisa do salário, da CLT, ficava sempre meio preocupada, mas eu entendi perfeitamente que isso era cultural, isso não tava na minha natureza, eu não tenho esse medo. Não quero saber de salário, vou pagar minhas contas, não tenho dúvida. As vezes eu tô entregando um monte de pedidos e eu falo: “Nossa, eu vou entregar o Badauê, vou entregar outro, vou entregar o Ema… Não tem nenhum pedido fechado agora, preciso fechar algum pedido”. Daqui a pouco o meu telefone “plim”, “Lu, lembra aquele orçamento que você fez para o meu restaurante mês passado? Então, vamos fechar?”, falo: “Vamos!”. É com essa naturalidade. MC: Você não está fazendo venda. Você não fica vendendo… Lu: Não! Algumas coisas que eu achei que foram bem emblemáticas nessa minha volta, que eu fiz algumas afirmações tão categoricamente que grudou. Verdade, uma delas foi: “Eu nunca vou procurar um cliente. Meu trabalho é esse, quem quiser vai me procurar. Não vou fazer bazar, não vou fazer feira, não vou fazer…” MC: Jura? Lu: Não faço. Não faço. Só trabalho sob encomenda. Eu falei isso para a Helene aqui. Eu aqui e ela aí. Eu falei: “Helene…” MC: As minhas condições são essas. Lu: São essas! Como se ela fosse meu patrão. Aí ela falou: “Tá ótimo, eu concordo”

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MC: Mas ela é sua mãe mesmo! Honestamente, isso foi de mãe Lu: Total. Aí ela: “Tá bom, pode ser”, aí eu falei: “tá bom, se você me apoia então pronto, só preciso disso”. Não deu outra. Eu nem produzo pronta entrega para colocar em feira. Uma porque não dá tempo, porque é um pedido atrás do outro. Às vezes eu falo para um cliente: “Você tem pressa? Porque eu não posso te entregar isso agora. Não vou poder, eu preciso de noventa dias para te entregar. Porque eu tenho cinco pedidos fechados com prazo de quarenta e cinco, sessenta, setenta e cinco dias, você pode esperar?”. As vezes pode, as vezes não, e eu indico. Eu falo: “Você sabe então com quem você vai fazer? Faz com a fulana, que é bom…”. Às vezes eu indico mesmo eu podendo fazer, dependendo do trampo... MC: Por que? Lu: Porque eu acho que vai ser melhor, por exemplo se alguém me pede: “Puta, vou precisar de trinta cumbucas”, eu falo: “Putz, a minha cumbuca é cara, porque é modelada. Se você tem um restaurante que serve em cumbuca vai fazer com alguém que faça torno. Porque aí você vai conseguir um preço melhor, uma uniformidade no modelo, vai ser melhor para você”. Não tem o menor problema fazer isso. MC: Você não engana cliente, né? Lu: Não,nem fudendo. Imagina, se eu não engano o da imobiliária vou enganar o da cerâmica? Entendeu? Não, não, não. Não é da minha índole isso, não rola mesmo. Agora, essa coisa de feira… Não vou, não vou ficar esperando vender para pagar conta. Não dá, não vou funcionar. E fazendo dessa forma eu aprendi a não ficar mais tensa. O cartão vence dia dez, eu tenho um cartão de crédito. Tá tudo nele, até o dia dez eu tenho que fazer a grana. Pronto, simples. E se eu não fizer a grana, que poucas vezes aconteceu, eu ponho no rotativo que daí eu dou uma corridinha atrás e pago mês que vem. Nunca mais perdi o sono por causa de dinheiro. Coisa mais louca MC: Luciana, mas que coisa mais maluca Lu: Nunca mais, e eu perdia o sono MC: Mas você já pensou sobre isso? Mas por que? Por que a mudança, entendeu? Lu: Eu acho que tudo vem, no nível mental, da autoconfiança. Não, eu já entendi que eu posso produzir, que eu posso vender, que eu posso entregar, que o produto é bom. Então já tem essa coisa da índole de não estar enganando ninguém. Não sou um embuste. O prato é lindo, sua comida vai ficar linda. Se não ficar linda eu vou fazer outro, porque eu não vou entregar um negócio mais ou menos. Então tem essa coisa da ética, que eu estou confiante que está dentro da minha ética esse trabalho, e que eu sou capaz de fazer. Beleza, isso a parte racional. Energeticamente, aí eu acho que pega mais a parte que você está pesquisando. Daí vem da lida com barro, da lida com a coisa da ancestralidade mesmo, da coisa primitiva, de você mexer com uma coisa que não tem erro. É o homem, e o barro, e o amor, e a vida, e uma troca. Eu tô dando o barro aqui que ela tá me dando… Então isso tem uma força energética que não dá para dar errado. E tem épocas, aconteceu isso agora, eu tenho um pedido de sessenta e poucas peças de um restaurante, que é isso que eu tô dando acabamento. Eu me enrolei para fazer, porque eu não estava a fim de modelar. Eu fiquei uns quinze dias sem trabalhar, Nina. Para uma

pessoa que é autônoma, que precisa entregar para receber, para pagar, conseguir fazer isso consciente, dizer: “Eu não vou modelar” MC: Não tô podendo Lu: Porque se eu modelar, vai rachar, vai explodir, vai dar merda, vai ficar feio. Não tá indo com uma energia boa, não posso fazer isso. Não posso botar um bode, uma preguiça, uma desvontade, no prato que o cara vai comer. Não posso fazer isso, tá errado. Volta lá para aquela bendita daquela ética, que é pessoal, é só comigo, ninguém sabe. É questão pessoal mesmo, é comigo o negócio. Então, puta, não vou, não vou modelar hoje. E não é dizer: “Ah, eu tava com preguiça de trabalhar”, porque nesses vinte dias eu construí um cômodo em cima do meio paiol, como ajudante de carpinteiro. Que o carpinteiro foi lá, fez orçamento, eu falei: “Vamo fazer?”, “Vamo”, e eu lá de ajudante, serra, varre, separa viga. Trabalhando, trabalhando, trabalhando, em casa, de peão. E não vim para o ateliêr trabalhar, porque eu não estava podendo. Aí em compensação, a hora que deu cinco minutos… MC: Você saiu igual uma louca, fez um monte… Lu: Eu tô assim, ó. Tô enfiando uma fornada atrás da outra. Aí eu levo o que eu biscoito para casa, esmalto lá, porque lá tá perfeito para esmaltar. E a minha plaqueira ainda não chegou. Que a plaqueira a Helene ainda nem sabe que eu comprei outra plaqueira, porque eu não quero que ela fique ansiosa. Eu tenho que sair daqui devagar, porque ela precisa de mim MC: Você comprou uma plaqueira para ela? LU: Para mim, vou deixar essa aqui MC: Agora você vai deixar para ela Lu: É, porque essa a gente comprou juntas. Agora comprei uma nova para mim, e vou deixar essa para ela obviamente, isso nem tem um outro jeito de pensar. Bobagem, na real. Mas eu não contei para ela porque cada coisa que eu compro e coloco lá eu vou falando devagar, assim: “Ah, comprei uma cadeira…”, “É? Que legal…”. Porque ela sabe que eu vou trabalhar lá, e sabe, e tá me apoiando, e vai ser difícil para ela. Eu tô dando umas cutucadas nela, porque outro dia ela falou assim: “Ah, você não tava aqui e eu não fiz nada…”, aí eu falei assim: “Ah é? Você trabalha com a minha mão agora?”, “Não, mas é que eu não gosto…”, falei: “Mas você vai ter que começar a gostar”. Esses pratos aqui do Ema, eu falei que não quero modelar o Ema, porque sempre que a gente faz o Ema, que é uma das coisas que a gente tem em sociedade, sou eu que fecho os negócios porque ela tem outra idade. Algumas coisas eu passo para ela ser minha sócia se ela topar, ela sempre topa. O Ema foi um, lá atrás, falei assim: “A minha amiga Renata pediu para fazer umas coisas para ela, quer ser minha sócia?”, “Quero”, “Vamo fazer juntas?”, “Vamo”. Então quando eu passo sociedade para ela é sociedade eterna. Tem mais lugares que a gente é sócia, agora nem lembro… Mas sei lá, se o Azul Maria vai pedir e a gente é sócia, então vai fazer nós duas. Não importa se é um pedido de seis peças ou de duzentas, vamo fazer juntas MC: Mas aí como é que vocês dividem trabalho que é assim? Lu: Por habilidade…Geralmente eu modelo, porque eu sou mais forte, e tenho mais essa pegada de workaholic de pegar pesado e de trabalhar oito, dez horas em um dia.

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E ela tem setenta, eu tenho quarenta e oito. Então eu fico na modelagem… MC: Ela tem setenta e você tem quarenta e oito… Lu: É, a gente tem vinte e poucos de diferença. E a esmaltação fica com ela. E as vezes eu faço o pedido inteiro. Dependendo do meu momento eu faço o pedido inteiro e racho com ela. As vezes eu falo assim: “Lê, vou fazer tudo com a sua argila” MC: Eu faço e você me dá a argila Lu: Isso, eu faço a divisão. Normalmente eu faço a divisão e ela topa. Porque ela sabe que eu tenho uma pegada justa. Que sempre vai ser uma coisa que eu vou achar justo. E pronto. Esse Ema, como sou geralmente eu que modelo, eu falei para ela: “Eu não vou modelar o Ema, você que vai modelar”, ela falou: “Eu?”, falei: “É, você”. Porque ela tá com problemas com esse marido ficando senil… MC: Que é um senhor Lu: É… MC: Ele é bem mais velho que ela? Lu: É, ele é vinte anos mais velho que ela. Tem noventa e pouco MC: Ai, meu Deus do céu, entendi. Porque prova de vida já é assim né Lu: Pois é, só que esse degringolar de saúde é novidade. Tá acontecendo assim ladeira abaixo faz um ano. E vem junto com o meu desejo de trabalhar em casa. Então tem uma coisa acontecendo aí que a gente vai ter que lidar com ela. Que é eu sair daqui diariamente, vou parar de vir aqui, não tem como. Até porque a gente discute. Tudo o que eu vou fazer discute, eu pergunto o que ela acha, ela fala, e enfim. Não vai acontecer mais, a minha pegada vai ser trabalhar em casa, não vou ficar aqui desse jeito. E eu tô desmamando ela. Aí eu tenho feito ela fazer as coisas sozinha, falo: “eu vou para a casa, vou pintar, e aí eu vou liberar a plaqueira e você faz o Ema”, “Ah mas…”, “Ah Lê, por favor, vai fazer, porque eu não tô a fim de fazer. Não tô a fim , e eu sempre faço, e você que vai fazer”, “Ai, tá bom”, aí eu cheguei aqui no outro dia e tava tudo modeladinho. Aí, tão lindo… MC: Mas é igualzinho, como se fosse mãe e filha. Eu tô muito impressionada Lu: É! E mãe e filha que se dão bem, né. Que é mais maravilhoso MC: (risadas) É, pode ser bem diferente… Lu: Podia. Não, é muito legal a nossa relação. Muito, muito, muito, muito. É maravilhosa. Aí ela fez, ficou lindo. Fiquei toda feliz. Teve um outro trampo que acabei de entregar que tinha umas casquinhas para modelar, pro restaurante do Villa Bebek, que é um puta hotel em Cambury. Eu falei: “Lê, você modela as casquinhas para mim?” MC: O que é casquinha, que eu não sei? Lu: Casquinha de siri. Então a gente faz umas casquinhas de siri personalizadas porque eu gosto de imprimir o logo do cara… Foi uma brincadeira que eu que comecei. A maioria dos meus clientes a gente que faz. Vamo fazer o logo, que fica mais legal, fica diferente, personalizado. Nada muito chamativo, depende do prato eu não ponho, falo: “Não, vai ficar cafona, não vamos por”, “Ah, mas será que não?”, “Não, não vou por”. Eu que mando, e eles adoram MC: Melhor coisa

Lu: É, porque tem que ficar lindo. Aí botei ela para fazer as casquinhas. Ela enrolou, enrolou, enrolou, enrolou. Um dia falei assim: “Eu vou levar a argila para casa e vou fazer as casquinhas”, mas com uma cara de brava. Ela falou: “Não, vou fazer!”, eu falei: “Então tem que fazer hoje. Se você não fizer hoje, amanhã eu vou levar a argila para casa e vou fazer em casa”, porque como é modelado não preciso de plaqueira para fazer. Cheguei no dia seguinte... MC: Você modela a casquinha? Lu: Modela a casquinha na mão MC: Quantas casquinhas? Lu: Eram dezesseis. Tem uma. Essa aí em questão, tem uma. Falei: “eu vou te contratar, mas tem que botar o meu carimbo porque é o meu cliente”, não temos uma coisa de ego. Essa é a casquinha (mostra casquinha). Concebi o modelo, falei: “eu quero ela com espaldar, pra colocar o lótus do cliente…”. Aí cheguei no dia seguinte ela tinha feito sei lá, umas quatro. Tava reclamando, insegura, falando: “Não ficou bom”, falei: “Ficou bom, era isso que eu queria, tá contratada, pode fazer o resto”, “Mas, não sei o que”, “Não, não Lê. É isso que eu quero. Foi isso que eu pedi para você fazer,é isso que eu pedi. Tá maravilhoso”. Aí ela fez o resto, mas é muito louco porque foi tão catártico para ela que ela não fez acabamento. E eu deixei, ficou muito lindo. Isso aqui ó (mostra casquinha). A Helene deixar isso aqui? MC: Ela não deixa? Lu: Nunca! MC: E porque você acha que ela deixou, ein? Lu: Porque ela tava assim… Ela precisava… Você viu aquele filme da Nise da Silveira? MC: Não! Lu: Ah, mentira! MC: Não sei quem filme é esse Lu; Você conhece a história dela? Uma psiquiatra… Ah, é a próxima coisa que você vai fazer. Ela é uma psiquiatra do começo do século passado… Não, do começo não, do meio. Que pegou a ala psiquiátrica de um hospital… MC: É Nise? Lu: Nise (soletra), da Silveira. No Rio de Janeiro, ela e o marido, os dois psiquiatras, ou o marido era outra coisa mas nessa linha também. E ela trabalhava arte terapia com os caras, com os mais loucos. Ela tem uns artistas… Umas coisas que saíram daquele barracão dela que é de chorar. Você vai se emocionar com esse filme, e com a história dessa figura, ela é maravilhosa. E isso é uma coisa que é sabida por quem faz arteterapia, que é o lance da argila ser surtativa. Então se você dá uma argila para uma pessoa que tem problema psiquiátrico, você não pode começar com a terracota, com a preta porque eles não conseguem nem tocar, porque é o cocô, é o dejeto, é o barro escuro. Se for bem louco mesmo, a figura, você tem que começar com a branca… MC: Mais com cara de farinha do que cara de cocô... Lu: Entendeu? Aí vai para um creme… A terracota é mais complicada é a preta, surta as pessoas. Eu fiz ela fazer dezesseis casquinhas com a argila preta, e ela sabia que eu tava fazendo isso, e ela sabia que não ia ser fácil e ela fez. E ficaram maravilhosas MC: Tá lindo, né… Lu: Por isso que tá esquisito assim. Mas esse que é o barato dessa casquinha. Ela é o que ela é. Depois que eu

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já tinha esmaltado e queimado eu falei para ela: “Lê, dá uma olhada nas casquinhas que você fez. E ela mudou, ela saiu de fase. Ela já tá entendendo essa história de outro jeito, foi ótimo. Aí a gente riu tanto, ela falou: “Luciana, que serviço porco é esse?” MC: Ela falou isso? Lu: Falei: “Menina, mas não é?”, ela falou: “Por que você não avisou?”, falei: “Ah não. O negócio tá lindo” MC: Jura? Achei que ela tinha feito de propósito, ainda não peguei o espírito da coisa Lu: Olha essas dedadas MC: Achei que ela tinha feito Lu: Eu faço isso muito, mas não foi isso que aconteceu. Poderia ter sido, mas não foi, ela surtou mesmo MC: Isso aqui é o logo do restaurante? Tá muito lindo. O que que te lembra? Lu: Sinceramente, me parece uma cama MC: Te parece uma cama? Lu: Uma cama de dossel MC: Sabe o que parece para mim? Uma pia batismal Lu: Pode ser também, olha só. Porque eu sempre penso nesse levantadinho como um espaldar de cama. Acho que é por isso que vem cama para mim. Porque a origem dessa casquinha é outra casquinha que a gente fez para um outro restaurante. Eu não gosto de fazer a mesma coisa para clientes diferentes. É “xoxo”. Mas a função da casquinha de siri é muito específica, então foi a partir dessa que a gente fez essa. Só que eu queria o logo dentro, eu queria esse modelo. O Ema também usa casquinha, mas a casquinha do Ema tem outro modelo. Ela é como uma gota, assim, com uma boa de uma pegada. Ela tem uma pega aqui onde cabe direitinho o carimbo do Ema. Então ela tem um outro modelo MC: Linda, né? Lu: Ela é linda. Essa do Ema é a que eu mais gosto MC: Você não tem aí? Lu: Não MC: Você não guarda um de cada um? Lu: Não. Tô começando MC: Tem que guardar Lu: Tô começando até para poder fazer o próximo MC: Porque fica ali o portfólio, né Lu: Agora eu vou entrar em uma fase, indo para minha casa eu tenho uma tarefa que eu dei para mim. E vou começar a fazer uma ficha técnica decente. Porque eu falo: “Que cor que a gente pintou mesmo?”, ela fala: “Não lembro, acho que foi verde cítrico será? Vamo fazer teste?”, “Vamo”. Porque é gostosa essa brincadeira, mesmo. Só que ela é meio contraproducente. Eu posso brincar a vontade com outra coisa, só que eu tenho que ter o padrão das cores, mais facilitado. Porque cada vez que eu vou fazer uma nova leva vai ter que ficar testando? MC: Você testa tudo de novo, entendi… Lu: Porque eu gosto. Mas é infantil fazer isso. Entendeu? Não preciso fazer isso. Não preciso ser infantil MC: Não sei se é infantil. Sabe o que é? Se você for pensar bem, Luciana, faz pouco tempo que você começou. E essa fase inicial ela pede um pouco isso antes de você começar a se por nas caixinhas. Porque você vai perceber que quando você começar a fazer essas coisas você vai começar a se por um pouco mais na caixinha, né. Então não sei, acho que faz parte do processo natural Lu: Não precisa ter pressa, eu acho também.

MC: É que lógico, você vai produzir, né. Tem hora que é muita coisa e tal, vai pedindo um tipo de organização Lu: É, eu acho que vai ser na hora que eu for para casa. Hora que eu tiver com o ateliê montado em casa. E também tem uma coisa da liberdade de trabalho, de organização espacial. Que eu tenho toda aqui. Mas tenho toda, vírgula. Aqui não é a minha casa. A gente já falou mil vezes sobre isso que é o lance por exemplo, ontem eu fiquei trabalhando até quase uma hora da manhã. Lá em casa. Aqui não. “Mas Lú, não muda nada”, “Claro que muda! Claro que muda, Lê. Não posso ficar aqui até a uma hora da manhã. Não. Não dá. É sua casa. O Alcir também não é obrigado, que também me adora, não tem problema nenhum. Ele não é obrigado. Ele estar passando ali e eu aqui. E se ele quiser ficar sem dentadura? Não é? Não dá, não é assim. “Ah então tá bom. Mas pode”. Quando precisa eu venho. E aí ela nem vai, ela fica comigo, porque ela é noturna que nem eu, puxei dela. Porque não dá, se deixar eu fico trabalhando até às quatro da manhã e acordo meio dia. MC: É, é mais gostoso. Mas é mais gostoso, né. Lu: Mas eu não posso fazer isso. tem coisas que sim, coisas que não. Modelar, para mim, é de manhã. Se eu tiver que modelar, que é o que eu vou ter que fazer, esses que eu tô esvaziando, essas formas eu vou ter que modelar amanhã de manhã. Mas aí eu venho para cá às sete da manhã, porque das sete às onze eu modelo loucamente. O que eu não modelo é a tarde inteira se eu vier. Eu posso ficar aqui do meio dia às seis da tarde, eu não modelo o mesmo tanto que eu modelo de manhã. E para modelar eu não posso conversar. Não conversa comigo, não consigo. Eu ponho fone MC: Você põe fone? Lu: Ponho fone, fico na música e aí eu modelo MC: E a música ajuda? Lu: Ajuda. É outra coisa que eu quero lá em casa, porque eu tenho uma caixa maravilhosa, quero ter um som no grau. Não tenho vizinho, moro no mato. Uma puta caixa, meu spotify que tem tudo o que eu amo ali. Entendeu? Então eu preciso entrar nessa nova fase, mas ela só vai ser quando ela tiver que ser. Agora vai ser com a plaqueira, mas eu preciso comprar o forno. Eu já tenho um torno lá em casa… MC: Ô Lu, deixa eu te fazer uma pergunta. Um forno é uma coisa muito cara, né? Quanto custa um forno? Lu: É. Um forno elétrico custa dez paus no mínimo MC: Dez mil reais um forno Lu: Pequeno. Um forno a gás custa vinte MC: Isso é um forno pequeno? Lu: Isso é um forno pequeno. MC: Um desse custa dez mil reais? Lu; Não, um desse custa mais porque ele é abertura frontal. Um forno que é o que eu pretendo porque ele é mais barato, mais moderno, que é em cima. Custa dez paus deste tamanho aí, nessa dimensão. Só que a abertura é em cima. MC: E todo mundo usa elétrico? Lu: Não, um monte de gente usa a gás. Mas aí tem o lance da temperatura. É outro upgrade. Eu quero. Tem uma coisa técnica que é o seguinte… Tem uma outra coisa técnica que é assim: eu não sei o que não pode. Porque eu nunca fiz um curso. Então tem muita coisa que às vezes a Helene fala assim: “Nossa meu, não pode”, “Não

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pode?”, “Você vai fazer isso?”, “Vou!”, “Não, mas não pode, vai rachar”, eu falo: “Porque vai rachar? Porque você ficou sabendo que não podia? Não vai rachar, não quero que rache” MC: Você fica brigando Lu: Fico brigando. Eu falo: “Não? Por que?”, “Ah, porque não…”, “Mas porque? Qual é o fundamento desse “não pode”, eu quero saber agora”. Aí ela me fala: “Aí porque não, vai secar…”, eu falo: “Eu molho por fora então. Se for esse problema eu molho por fora. Então vou fazer”. E faço. “Ah, não pode por dentro”. Pode, eu quero. E vou lá e faço. Então não tenho a técnica para me tolher o meu instinto. É barro, gente! Por que não pode? Pode o que eu quiser, o que a minha mão e o barro resolverem que dá para fazer. Se eu quiser esticar o negócio deste tamanho na modelagem, eu vou esticar! MC: Mas você tem a sensação de dogma? De uma coisa que é cheia de dogma? Lu: Tenho! Tenho. E os ceramistas todos são muito dogmáticos. E eu não tenho, não sou a fim. Credo, sai de mim com essa cagação de regra! E aí o que rola? Que entra no negócio que eu ia te falar inicialmente. A baixa temperatura, que é o que eu faço, queima novecentos e oitenta, mil e setenta graus… Uma variação de baixa para média, eu tenho as cores, que é o que eu quero. Eu quero colorir a mesa, não quero mesa… MC: Tristonha Lu: Não. eu quero colorir, eu quero amarelo, eu quero laranja, eu quero roxo, eu quero verde, quero manchado. A minha brincadeira é essa. A alta temperatura não tem essas cores, é mais difícil, só esmalte importado, e tá começando agora… Então eu faço baixo. Só que a alta é mais utilitário, ela é mais resistente. Ela é mais resistente. Mais nada que isso para mim. Então eu vou comprar o forno, depois que eu pagar a plaqueira eu vou comprar o forno. Quando eu comprar o forno eu vou comprar um forno que alcance alta. Porque eu vou colorir na alta. MC: Você vai colorir na alta. Vai ver o que acontece Lu: Vou. MC: Você leu que não vai ficar bom? Lu: Todo mundo fala que não fica bom. Mas vai ficar bom. Porque o povo faz o seguinte, eles queimam biscoito na baixa, porque fica mais barato, porque é mais rápido na baixa. Você não atinge os mil e duzentos graus, e depois esmalta na alta. Se queima o biscoito na alta fica mais difícil de esmaltar porque ela fica mais porosa. Eu vou experimentar, vou começar a fazer teste. Eu vou queimar o biscoito na alta, deixar ela bem impermeável, e vou tacar o esmalte em seguida, e queimar ela na baixa. MC: Você vai queimar duas vezes? Lu: Sempre queima duas vezes MC: Você já ia queimar duas vezes. Você queima duas vezes, uma na alta e uma na baixa Lu: Uma na alta e uma na baixa. MC: vai dar certo. Tá com cara de que vai dar certo Lu: Vai. E outra, se não der todas as cores eu vou começar a buscar esmaltes que segurem a onda. Que entrem nessa minha brincadeira, vou começar a fazer teste. Eu vou queimar argila de baixa em alta. Porque tem um cartel aí também. MC: Você vai transgredir, para ver o que acontece Lu: Vou, vou. Rachou, rachou. Estourou, estourou. Já sei que isso não dá. Vou. Vou começar meus testes. Mas isso

vai ser no meu forno. Porque quando explode uma peça no forno você tem que limpar o forno inteiro, pode ser que estrague sua resistência… Não posso ficar fazendo isso no forno alheio, entendeu? MC: Ah, é isso. Agora que eu entendi. Lu:Não posso. Ela tem os limites dela, e eu tô trabalhando no forno dela. Então não posso chegar para a Helene e falar que eu vou fazer isso. Não. vamo respeitar o espaço alheio. Então a hora que eu for para o meu forno eu acho que o negócio vai ficar louco. MC: legal, né? Lu: E se não der para trabalhar esse negócio da alta com as cores, eu vou começar provavelmente a ter que criar esmalte. ter que pesquisar corante, esmalte, base… MC: Então vamos aproveitar e você entra nessa sessão materiais? Compras, fornecedores… Lu: Vamo. São Paulo, eu busco argila, eu gosto da argila da Pascoal. Que é um velhinho lindo. Já começa que ele é lindo. MC: Que é importante Lu: Não é? Ele é um lindo. O braço direito dele, que é Carlinhos, é um lindo. Que me ensina tudo o que eu quero aprender, que me tira todas as dúvidas. então eu trabalho com a Pascoal. Não faço pesquisa de preço, de matéria prima. Meu critério de comprar matéria prima não é o preço. É o Pascoal ser bonitinho, querido. É o jeito que eles me atendem, é o resultado do barro. Porque não adianta. Esmalte é a mesma coisa. eu descobri uma boqueta no Rio de Janeiro, num bairro chamado Higienópolis, no Rio de Janeiro. Que minha amiga, minha parça, minha “partner in crime”, a Cecília, que é carioca, do lado da casa dela, na Tijuca. Do Alto da Boa Vista, que é o fabricante, a gente ficou uma hora e meia no busão, no subúrbio. Sabe aquele busão que vai lá na puta que o pariu? Falei, vamo! E o cara tem uma portinha assim, num prédio daqueles que lá dentro… Vou entrar lá um dia. Não me convidou, mas das próximas vezes vou perguntar se eu posso entrar. É uma fábrica de esmalte, ele fornece para São Paulo, fornece para o interior… MC: Então não é importado, eu pensava que era Lu: Eu só uso esmalte nacional. Tem alguma coisa que é importada, que é baixo esmalte… MC: Não faz diferença nenhuma. Lu: Até faz. Mas eu não vou… MC: Ele deve saber te ajudar nessa história dos… Lu: De criar. Mas ele vai me ajudar certeza. Na hora que eu falar: “Will, eu quero fazer isso, brincar desse jeito”, ele vai fazer. MC: Ele vai te ajudar direitinho Lu: Vai. então faço essas coisas. Eu compro esmalte de Curitiba, porque só tem lá. Aí eu falo: “Ah, mas eu quero esse cinza aqui dessa manhã”, aí eu começo a perguntar para os meus fabricantes: “Will, você tem esse cinza?”, “Eu não tenho”. Na Casa do Ceramista em Curitiba: “Você tem esse cinza?”, “Não tenho”. Até achar quem tem. Aí falo: “Puta, quanto custa?”, “Ah, ele custa noventa”, só achei na Casa do Ceramista que cobra noventa paus no quilo do esmalte. Foda-se. Eu quero o cinza. Vou comprar o de noventa. Lá na WR, custa trinta e cinco. Mas não é aquele cinza, não adianta. Então tem um monte de coisas que eu compro lá, outras eu compro lá… Os preços variam, a Arte Brasil vende o esmalte do Will, da WR. Só que custa noventa na Arte Brasil, porque óbvio, eles estão

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revendendo. E o Will vende a massa cerâmica da Pascoal, que custa o dobro no Rio. Óbvio, tem que ir até o Rio. Eu não discuto preço. Eu não discuto preço. Você tá me cobrando, você tem suas razões. Nem que seja sua vontade. Não vou discutir preço. Eu compro se eu quiser, se eu não quiser eu não compro. Então a minha busca por matéria prima, o único critério é eu querer, aquele lugar, aquela cor, aquele revendedor… Eu não fico buscando… É aquele lance da grana que eu tava te falando no começo, sabe? A grana é só consequência na minha empresa. Eu não preciso mais ficar preocupada com essas coisas, eu quero ser feliz. E aí quando eu descobri que poderia trabalhar desse jeito, e nunca mais fiquei com a conta negativa, e nunca fiquei sem trabalho, então o caminho é esse mesmo. Pronto MC: Você achou o caminho das pedras Lu: Achei o caminho para trabalhar. Trabalhar e não prejudicar o amiguinho. Isso é condição. Não fico devendo, não enrolo, não engano cliente, não engano o outro ceramista. E a partir daí eu já acho que passo a merecer os louros todos, porque eu tô trabalhando com ética. Então as coisas funcionam MC: Me parece muito bom Lu: Eu acho que é por aí sim, sabe? Não tem muito segredo. Faz, faz o que você gosta, confia. Fica feliz quando o cliente fica feliz, sabe? Aconteceu um lance esse mês mais ou menos começou. Uma figura me procurou, uma estudante de gastronomia lá de Santa Catarina, um lugar que eu nunca ouvi falar. Queria um prato para a sobremesa dela, para apresentar para a banca examinadora. A gente começou a discutir o que ela queria, que ela não queria. Não dava tempo de produzir porque ela tinha data para apresentar. Então tá bom, deixa eu ver o que tenho aqui porque tô fazendo um pedido e às vezes sobra um “Ah esse aqui não vou entregar para o cliente, mas já fica uma coisa de pronta entrega”, então mostrei um que achei que ia ser legal. Mandei a foto na minha mão, porque achei que ela ia saber a dimensão. Só que ela tinha em algum momento da troca de e mails falado da dimensão. E passou batido, eu não vi aquela informação. E ela me pediu um prato de vinte e dois de boca e eu mandei um de quinze. Puta diferença! Aí ela me mandou um e mail falando que o prato era muito lindo, mas ela tava muito decepcionada com o tamanho, porque ela tinha me falado que precisava de vinte e dois centímetros. Eu fiquei passada, falei “Meu, como é que nós vamos resolver isso? E agora?”, ela falou: “E agora não sei, porque tô vendo se eu consigo alguém me enviar alguma coisa rápido por Sedex porque eu já mandei o prato para a banca, como referência de imagem”. Eu fiquei desesperada, falei: “Meu, temos que resolver isso. Primeira coisa, eu vou devolver sua grana. Não vou ficar com essa grana…”, ela falou: “Ah, tudo bem. Mas não vou ficar com seu prato…”, falei: “Nem precisa. Fica com o prato de presente, a questão não é essa. Eu quero ver como é que você vai resolver essa história, eu tô arrasada”. Fiquei mesmo. Aí comecei a fuçar lá nas minhas coisas, achei um prato deste (mostra prato) MC: Esse tem vinte e dois? Lu: Vinte. Mandei para ela. O que tava lá em casa tava mais aberto, tinha vinte e um e meio, vinte e meio, não lembro. Mandei uma foto, falei: “Você acha que isso cabe na linguagem visual do que você mandou?”, porque ele

tinha outro modelo. Ela falou: “Cabe”, eu falei: porque ele tem vinte e um e meio, ou vinte e meio, não lembro. Você quer que te envie esse prato por Sedex?”, ela falou: “Quero!”. Meu, mandei por Sedex. Paguei cinquenta paus no Sedex por um prato que custa oitenta. Não tava preocupada, como é que a gente vai resolver a parte da grana depois a gente vê. Ela tem que apresentar o prato na banca examinadora do TCC dela. É sacanagem um vacilo meu prejudicar ela. Eu sei que a gente conseguiu que o prato chegasse a tempo. Ela me escreveu um email lindo… MC: Ficou bonito? Ficou legal? Lu: Não vi ainda. Ela não me mandou foto ainda. Mas ela fala no e mail que eu ajudei ela a não desanimar, que o profissionalismo foi surpreendente, que é difícil encontrar pessoas que pensem dessa forma. Mandou o prato de volta, deve estar a caminho no correio, o outro. Não vou cobrar diferença de Sedex, porque é cinquenta conto, não dá, não é verdade? MC: É muito engraçado a mesquinharia, né? Por tão pouco no final das contas, pensa bem. É uma pizza Lu: É,eu tive um puta trampo. Mandei dois pratos, ela mandou de volta, tive que buscar no correio… Para ganhar trinta reais. Porque eu vendi um de oitenta, gastei cinquenta de Sedex, ganhei trinta. Tudo ótimo MC: Tudo bem. Você tem lá na frente um amigo, uma companheira, uma referência… Lu: Vai que ela se torna uma puta chefe de cozinha… MC: Acontece tanto isso na vida Lu: Falei para ela: “Olha minha querida, eu quero que você tire dez, porque o que a gente se estressou com esse prato você merece um dez”. E eu acho que é essa pegada para lidar com essa coisa da grana. A grana é consequência… Gente, é trinta conto. Não vou ficar...Se eu tivesse lido o email eu tinha conseguido. Então pronto. Então manda e não reclama. E no fim das contas eu tive um feedback muito legal dessa figura, que ficou super feliz e que vai tirar dez, espero. MC: Putz, fiquei curiosa Lu: Ah, eu te mando depois. Quando ela mandar a foto com o resultado, porque acho que é agora esses dias que ela vai apresentar. Aí eu te conto MC: Mas aí Lú, você se especializou em prato de restaurante. Você encontrou o seu lugar. Lu: Um nicho que eu… MC: Nem imaginava Lu: Não. Tudo foi acontecendo organicamente. MC: As pessoas tão fazendo assim direto? Só servem em prato assim? Só servem assim os pratos? Lu: Não, mescla-se muito, né. Muito. E eu sou a primeira… Porque agora eu já aprendi, já tenho uma visão da mesa do restaurante, que eu posso dar palpite da estética dessa mesa. Eu não aconselho fazer só louça personalizada e nem só cerâmica de um único ceramista. É legal mesclar. Uma: você não perde. Porque se você trabalha com louça mesclada você não perde. MC: Não, você não perde. Porque senão você perde o jogo inteiro na hora que você não consegue substituir. Igual em casa, né Lu: Exatamente. Então falei: “Vamos mesclar”, principalmente esses restaurantes contemporâneos, ou restaurante de praia, de montanha, que são mais descontraídos. Se você tem um puta restaurante, sei lá,

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um Fasano da vida que é um super clássico, então vai na louça branca, é isso aí. Senão mistura, compra as cumbucas da Camicado com as canecas da Tok Stock, com as cerâmicas do… Até porque senão sai caro para cacete. MC: Por exemplo esse aqui (mostra peça). Só para eu entender, como é que esse cara vai jogar isso na mesa. Só para eu entender um pouquinho Lu: A Renata é uma dessas pessoas do contemporâneo que mistura tudo. Ela abre a mesa do Ema com um pratinho de apoio que sou eu que faço, que eu imprimi uma pegadinha de Ema. Uma patinha, que é essa aqui. MC: Ah, é uma pegadinha de Ema, de Ema mesmo Lu: É. O ema é porque ela é apaixonada por emas. MC: Nossa, que coisa mais curiosa a pessoa se apaixonar por emas. Tá aí uma coisa muito bizarra, né? Lu: Pois é. Ela ama, ela pinta quadros de emas. Não sei onde estão as patinhas… MC: Por que será que ela ama? Você manda fazer? Lu: Mando fazer. Arrumei uma carimbeira que faz o carimbo especial para a cerâmica, perfeito. MC: Com o logo? Então é um logo, não é você que faz mesmo? Bem bonitinho Lu: É, exatamente. Gente, será que eu levei as patinhas embora? É possível. Mas é isso aqui, ó (mostra peça). Isso aqui é um loguinho. Então faz o baixo relevo na peça ainda molhada… Então ela abre a mesa com esses quatro pratinhos, se for uma mesa de quatro, claro. Apoio de talher, de cerâmica. Que ela tem dois tipos, um meu e um de outro atelier. Os talheres aqui no apoio, o guarda napinho do Ema, as taças. Porque aí isso veio da necessidade de dividir entradas. Então tem lá uma mesa de quadro, eles pedem várias entradas, são snacks. E eles vão dividindo nesse pratinho minúsculo. Beleza. Aí depois vem os pratos individuais. Daí se o cara pediu uma costela com purê de mandioquinha, que é nesse prato que ela serve, a costela vem nesse prato… Aí o outro pede um risoto em um prato que vem neste tamanho, o outro vem num pratão… É mesclado MC: Que legal! E esse prato da costelinha com outro que vem o risotão, ele pode ter vindo de ateliê diferente, com outras cores… Lu: Vidro, prato branco, cerâmica… MC: Tudo misturado? Lu: Tudo misturado. Você tem que ir lá, esse restaurante é foda MC: Mas onde ele fica? Lu: Na Bela Cintra MC: Na Bela Cintra. Tá, nem é longe de casa Lu: É fácil. Vai, vai. Porque a cozinha é extraordinária, o serviço é informal, o bar é uma delícia, é um puta restaurante. Não é à toa que ela faz o sucesso que ela faz, ela é uma chefe renomada porque ela tem a manha, ela sabe o que ela tá fazendo MC: E qual a sua liberdade de criação nessa situação? Por exemplo, no Ema. Ela vai te dizer as cores… Lu: Ela fala: “Lu, eu quero um prato rosa”, que é caso deste (mostra prato), ela me mandou uma foto de uma travessa rosa e falou: “Lu, eu quero pratos rosa”, falei: “Tá, mas que tamanho?”, “Não sei, quanto custa?”, aí eu falei o preço desse prato gigante. Falei “Meu, eu tô fazendo esse prato agora, que é gigantesco, para o Badauê, mas ele custa acho que cento e quarenta paus, não lembro agora”, ela falou: “Não dá, porque eu vou

querer uns oito, dez. Não vou poder investir agora essa quantia. Quanto custa um prato de vinte?”, falei: “Pô Helena, o que você quer por no prato rosa cabe no prato de vinte? Você já pensou nisso?”, ela falou: “Não sei, manda uma foto do prato de vinte”, aí eu mandei uma foto desse prato, mas é outro modelo. É o mesmo modelo, mas com outro recorte na borda. Falei: “Esse é um prato de vinte. É um prato de criança comer. Aqueles pratinhos de criança”. Mandei com a régua em cima, ela falou: “Ah, pode ser. Mas pode ser esse aí”. Porque também o chefe, ele pode apresentar um ceviche, que tem esse volume, em um prato desse tamanho se ele quiser. Ou socar esse prato aqui, vai depender da apresentação que ele quiser dar. Ela falou: “Não, pode ser o pequeno então, por causa do preço”. Falou: “Tá, mas e os rosas que você tem? Me manda foto dos rosas”. Falei: “Os rosas depois eu te mando, agora a gente vai pensar em modelar. Demora ainda para chegar na cor”, “Ah, então tá bom”. Então agora em um próximo momento eu tenho que começar a fazer teste de rosa. MC: Ou seja, tem uma relação de confiança imensa, né? Lu: Imensa. E aí às vezes eu falo para ela: “Rê, eu quero fazer pratos nesse verde para você”. Que é bem o caso que aconteceu, eu fui na WR lá no Rio e me apaixonei por um esmalte verde reativo que dependendo da pincelada… Assim, então vou dar cinco demãos de tinta. Pegar o pincel e pintar ele uma mão, duas, três, quatro, cinco, ele reage de um jeito. Ele fica um escândalo, fica xadrez. Eu sei porque ele ficou daquele jeito, foi pelo jeito que eu pincelei. MC: Ele mostra rajado, é isso? Lu: Absurdo. Aí eu pego outro prato, mesmo verde. Aí eu pego e vou no torninho. Aí vou de fora pra dentro, faço redondo. Pincelei ele redondo, dá outro efeito. Aí eu faço ele de gota, dá outro efeito. Eu piro, né? MC: Ela te deixaria fazer um de cada jeito? Lu: Já fiz isso! Me libera para criar, e se apaixona cada vez. “Caralho, o que é esse verde!”, “Rê, posso fazer prato roxo?”, “Não Lú, porque agora não tem nada roxo…”. Então é assim, a gente vai discutindo. Mas ela compra, ela abraça a ideia. Eu sempre lanço moda com ela MC: O que ela é do restaurante? Lu: Dona e chefe. E ela tem vinte e oito anos e tem oito negócios. Ela tem buffet de casamento, na Ilhabela e em São Paulo. Tem casa de casamento em São Paulo, tem restaurante à la carte, dois Marakhutai em São Paulo. Tem o Ema, que é um piso superior do lugar, que embaixo é o Me Gusta, que é uma outra casa. E ela abriu outra já, que é o Matilda, que é lanche. Tudo junto, tudo no mesmo prédio só que cada um é um restaurante. A mulher é um trator. Ela é um trator. E eu adoro ela, porque é uma menina que é revolucionária. Acabou de se casar com um cara que também é meu amigo, um ano vai, que ela casou. E ele é super caseiro, sossegado, tiveram um bebê agora então o Cassiano fica com o bebê e ela vai trabalhar. É maravilhoso, e todo mundo feliz. Porque ela é workaholic, ela nunca vai ser aquela mãe que larga tudo para ficar com o bebê. Não, ela vai trabalhar e o Cassiano vai ficar com o bebê, e vai ser maravilhoso, sabe? MC: Sei. Tá todo mundo bem, ele já sabia disso. Ele topou então tá tudo bem. Ninguém enganou ninguém, tá tudo bem.

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Lu. Sabia, todo mundo feliz. Então eu tenho essa relação de trabalho com ela maravilhosa que eu aprendi e venho fazendo com meus outros clientes também. “Ah eu queria…”, “Putz, isso não vou fazer”, “Por que?”, “Porque vai ficar cafona. Não é legal, não vai combinar. Não vai dar contraste”. MC: Então você recusa? Você fala: “Não vou fazer” Lu: Não vou fazer. “Posso falar com o seu chefe?”, “Ah, mas o chefe…”, “É, o chefe. Quem vai botar comida no prato é ele. Você tem que valorizar seu chefe, quem tá criando é ele. Se ele trabalhar de mal humor ou se ele não gostar do prato vai ficar uma bosta, então você pode chamar seu chefe para a gente conversar?”. E eu sou mais velha que todos os meus clientes, sabe assim? MC: Então já tem uma coisa de autoridade. Lu: Exatamente! Eu sei o que eu tô falando. E essa coisa que você lembrou, que eu recomecei agora, né? Só que eu entendi rápido como funciona o negócio MC: Isso aí é a proximidade dos cinquenta anos né, Lú? Lu: Exatamente! Eu já sei como é que é. Peguei rápido. Escuta o que eu tô te falando, não vou prejudicar você. Então eles pegam essa confiança e falam; “Putz, eu vou na dela”. E se não gostar não leva. E nunca aconteceu. Não, aconteceu sim. Teve um cara, eu já tinha dado o sinal, eu não devolvo o sinal obviamente. Mas para esse cara, que eu tinha feito o logo dele, que ele não gostou, começou a encher o saco, a mãe dele começou a encher o saco… Falei: “Não vou mais trabalhar para você. Então vou te entregar o que já tem pronto, equivalente ao seu sinal”. Eu tinha sessenta pratos de apoio prontos com um “F” carimbado, tá meu bem? Eu chamei de linha limonada, porque daí eu fiz incensário aplicando coisa em cima… MC: Ah, porque você tinha que cobrir o logo Lu: Cobrir o “F”. Escrevi vários “Fuck you”, dei para os amigos… Ó um pratinho de “Fuck you” para você. Para fazer a catarse também. Aí eu colocava em cima do “F” o negócio do incensário, vários elementinhos e foi tudo. Foram sessenta pratinhos pequenos, do grande ainda tem. Vou te mostrar lá em casa. Desse tamanho assim. Que já tinha vinte. Vinte. Puta trampo. Puta trampo. Tudo bem. Eu não quero que o cara fique com oitenta peças minhas sem gostar. (pausa) Ah, a Helene saiu de lá tem meia hora, tá vindo. Aí a gente conversa com ela aqui e depois vai para casa. Porque aí já é Cambury, você vai para Cambury também… MC: Ô Lu, cada modelo de prato você tem que fazer um desse assim? Lu: Eu trabalho com forma. Eu gosto de trabalhar com forma de gesso. Tem coisa que eu subo a mão a borda, mas aí eu preciso de agilidade. Então isso aqui agiliza. MC: Agiliza muito na verdade, né? Dá uma uniformidade e tal Lu: Muito. Comecei a investir em forma. Arrumei uma… Essa coisa também do network também é muito louca porque eu fazia as minhas formas de gesso. Dá um puta trabalho também, enchia o saco, não sou gesseira. Mas eu fazia. E aí eu comecei a querer encontrar um lugar que fizesse as formas para mim. Aí fui num lugar, fui no outro, fui no outro… Aí conheci um casal de gesseiros. O cara é gesseiro, a mulher dele sabe mexer também. E eles fazem as minhas formas. Eu levo qualquer coisa. Sei lá, peguei um prato, esse modelo de prato que acaba aqui

obviamente, para fazer por dentro. E aí ensinei para ela. Ó, eu usava aqui chapa de radiografia para fazer prato. Então você pega uma bordinha a mais com a chapa da radiografia, prende com o adesivo e enche ele. Aí ele fica com uma borda. Então eu posso parar ele aqui, posso parar ele aqui… Posso passar ele, que ele pode dar uma deitadinha, tem um babadinho… Ela faz as minhas formas, a gente vai criando junto, super barato. Porque o gesso é super barato MC: E ela é daqui? Lu: Ela é daqui. Uma família super simples. Queridíssissimos, adoro ir lá e trabalhar com eles. A carimbeira a mesma coisa. Fazia em São Paulo… Aí fazia com uma figura daqui que era um inferno, não gostava, não ficava bom, e tinha que dar acabamento na massa, um puta saco… Tá bom, conheci uma carimbeira de São Sebastião. Ah tá bom, vou lá. Ela tava começando, aí ela falou: “Não, eu vou te passar quem me ensinou a fazer carimbo, que é lá de Caraguá”, na mesma pegada de não ter o egoísmo. “Não, vou te passar uma pessoa que vai fazer melhor para você”. Me passou a carimbeira, agora eu tenho uma puta carimbeira MC: De Caraguá! Lu: De Caraguá, exatamente. Mas eu não preciso mandar para São Paulo, não preciso mandar por Sedex… MC: Pô, muito perto. Lu: As coisas tão acontecendo de uma forma tão fácil, que eu só posso entender que eu tô no caminho certo. Porque quando tem muita trava, você fala: “Putz, tem alguma coisa errada”. Não tem nada de errado, tá tudo dando certo. MC: Ô Lu, e por exemplo esses aqui. Isso aqui não tem jeito não, né? Isso aqui ó Lu: Isso esmaltei ontem. Tem que ir pro forno para queimar o esmalte. Não tem jeito o que? MC: Não, a modelagem dele. Lu: Eu faço ele emborcado, nessa forma aqui ó (pausa). Eu pego essa forma, ponho algo mais alto aqui para ela não ficar encostada. Abro uma placa redonda que alcance tudo isso. Modelo… MC: Ah, você faz assim! Entendi Lu: Aí deixo essas ondas. Aí é que é a loucura da modelagem que eu te falei. Não dá para estar… Porque o barro entorta aqui, aí você tem que arrumar… Aí, é muito louco. Muito louco. Não dá para bater papo, exatamente. Dá, faz. Mas quando é para pegar mesmo, para fazer vários, precisa concentrar e ir. MC: E uma peça daquelas, por exemplo. Uma peça dessas aqui, ó. Você fez em quantidade, isso aqui? Lu: Fiz! MC: Aí não fica igual de jeito nenhum. Mas aí que tá o legal, né? Lu: Aí que tá o legal. Mas mesmo aqueles. Mesmo aqueles doze. MC: Não, não era essa minha pergunta. É porque achei que você tinha moldado eles na mão, totalmente na mão. Entendeu? Lu: Não, eu usei a forma. Tem que ter uma forma base MC: E ele não parece, né? Lu: Que foi feito em forma? É. MC: Aí é legal. Ela ficou linda Lu: São seis, essa última leva. É do Badauê, tem o logo impresso. Tem um logo maravilhoso

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MC: E eles ficam assim? Lu: Você deu sorte. Porque esse prato aí, esse escubador, eu nunca fiz MC: Ah, você nunca fez? Lu: Eu não sei o que é que vai acontecer, não sei como é que eu vou recortar, como é que vai ser, como é que o logo vai ficar lá embaixo… (pausa) Que isso amor? Ah, você tá machucado? Não tinha visto isso em você… (pausa). E eu tô sem cachorro lá em casa, e aqui é tão casa de mãe que os cachorros dela são os meus cachorros MC: É, eles tão te olhando com cara de pessoa da família Lu: E eles falam alemão, os cachorros. Eles levam bronca em alemão, porque ela é alemã. Alemã, mas veio para o Brasil pequena… Ah ela é uma figura. Você vai achar pouco tempo para falar com ela, isso sim. MC: Eu vou… Eu tô tão apaixonada por isso aqui que eu não tô acreditando nisso aqui (A COLHER DE CERÂMICA COM CABO DE BAMBÚ) Lu: Ah, é muito lindo isso. Tá vendo esse negócio aí no meio, esse azul? Foi uma gota de uma peça que você vai ver lá em casa. Que escorreu de uma peça, caiu em uma prateleira do forno, ficou uma bola de esmalte, assim. Aí ela tá fazendo essas experiências com a porcelana e botou a gota aí no meio. Aqui é um playground MC: É uma brincadeira né? Só que acontece que é uma delícia porque primeiro que é linda a peça. Aí depois você fica assim: “Tem que tomar cuidado porque tá molhado”. Lu: E não tá MC: Aí você dá uma esbarradinha e o troço não se mexe da posição. Aí você fala: “Será que tá molhado?”. Entendeu? Aconteceu uma coisa Lu: Parece que tem um líquido aí MC: Parece. Parece. Eu tava tomando cuidado quando cheguei. Aí dei uma esbarradinha e não aconteceu nada… Lu: Eu acho que ela vai fixar esse bambu aí, com cola. Não sei se ela já fixou... MC: Eu acho que ela já fixou Lu: Aí ela faz essa brincadeira com ouro. E aí o que eu vou fazer... Eu faço direto, tenho um monte de cliente disso... Porta aliança. Para ir para o altar. Eu faço personalizado. MC: Ah, então não é só prato, tá vendo? Lu: Não, eu faço outras coisas. Mas tudo meio nessa linha de prato. Eu faço lembrancinha de casamento também, mas são pratos MC: Deixa eu ver... Ah, variações do tema, né? Lu: Exatamente. Isso aqui, ó. Um monte de teste MC: Esse tá lindo de morrer. Lu: Entendeu? Aí a noiva embala isso aqui e os convidados levam MC: Aqui você tem vários tons de rosa Lu: Eram testes. Ela acabou fechando uma cor perolada MC: Perolada? Lu: É. Não fez o rosa. MC: Qual você mais gostou? Porque isso aqui tá muito maravilhoso, né? Lu: Eu gosto de todos na verdade. Eu gosto demais disso aqui que é mate. Isso aqui é uma cor brilhante, isso aqui é uma cor mate. É que a mistura de tinta que a gente faz, também... “ Aí, isso aqui não pode misturar...”. Vamos misturar então? MC: Porque falam que não pode misturar? Tem bastante dogma, né?

Lu: Aí a gente fala: “É né? Não pode misturar. Vamo misturar? Vamo!” MC: Isso não é da natureza humana, né? Porque o lugar da arte não é o lugar do dogma. E, no entanto, não tem um lugar onde a gente entra dentro do ambiente artístico que não tem dogma Lu: Gente, não é? É, eu acho que hoje você conseguiu um. A Helene ainda tem um pouco mais do que eu, mas ela também é bem chegadinha no quebrar. Então já que não pode acho melhor a gente fazer. Para ver por que não pode? MC: Seu estoque você consegue manter tudo aqui? Lu: Não, eu tenho levado coisas para a minha casa direto. Eu tô fazendo essa mudança devagar. Agora eu tô com pouca argila, mas por exemplo, quando eu venho de São Paulo com cem, cento e cinquenta quilos de argila, deixo tudo em casa. Essas coisas que ficavam aqui, levei para casa. Porque eu tô transferindo as coisas para lá devagar MC: E você não tem nenhuma preferência de um tipo de argila em relação a outro? Lu: Tenho. Eu não gosto de trabalhar com terracota, porque a terracota me dá baile. Mas baile assim sacana de rachar na secagem. Vou fazer aquela peça, aquele prato... Aí de um dia para o outro já rachou. Rachou esse negócio? Porque? Nada a ver. E rachar no forno, explodir no forno. A terracota sempre faz isso comigo. Mas como eu não tenho mais o que fazer eu acabei de convencer um cliente, de fazer um orçamento para ele de um restaurante, tudo em terracota. Porque eu vou resolver minha parada com a terracota MC: Você fez isso? Você vai fechar tudo em terracota, é muita coisa? Lu: Não, são quarenta peças MC: Que Deus te proteja. Lu: Não, ele há de me proteger, porque eu não posso ficar com esse... Não, terracota. Eu amo trabalhar com a preta mas ela tá chata porque o fabricante não tá conseguindo ter uma... Ah, ela tem mudado de cor, tá difícil. A creme e a marfim são Zé da Silva, sabe? MC: Zé da Silva? Lu: Infalíveis elas são. Não tem erro. Às vezes elas tem bolha e não estouram. Elas são tão... Eu não sei nem como expressar, uma coisa fácil sabe? Café com leite mesmo. As vezes eu olho e falo assim: “Nossa, mas deu uma bolha aqui”, depois de queimado que a bolha aparece assim ó. E não explode. Muito louco. Mas não dá para ficar trabalhando só com o que é fácil porque o resultado é outro, né. É diferente. MC: Muda o resultado, Lu? Lu: É, assim, preta. MC: Ah sim, o resultado na cor. Porque às vezes você vai esmaltar, quando você vai esmaltar não... Lu: Mas cada argila você pode esmaltar com um tipo de cor também. Porque por exemplo, precisa ver como vai ficar em foto. MC: Essa aqui por exemplo é qual? Isso aqui, ó. Esse material aqui, essa corzinha aqui. Lu: Terracota. MC: Terracota. Essa é terracota? E ela racha mais? Lu: Para mim, né. Comigo. Então sei lá MC: Esse está lindo de morrer.

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Lu: De morrer. Isso aqui tá em uma argila preta, que é essa cor. A mesma cor, o mesmo esmalte em uma argila branca. MC: Entendi tudo. Não é impermeável a cor de baixo não. Lu: Não MC: Porque a gente tem uma impressão de uma coisa que impermeabiliza, que isola mesmo a cor Lu: Não. Em alguns ele até fecha a cor. Mas aí por exemplo, não tem sentido eu usar uma argila preta, que já é linda, e não deixar ela aparente. Eu poderia aqui, por exemplo, ter esmaltado até o pé. Mas que graça tem? E ela não vai aparecer? Se for esconder usa uma creme que é xoxa. Sei lá MC: Os valores são iguais, Lú? Lu: Não. Muda, varia. Deixa só eu responder um cliente aqui que é justo o do Badauê. (Pausa longa) (Latidos) MC: Ele tá conversando com você, esse cachorro Lu: Tá conversando com a Helene, acho que deve ter chegado. (Pausa longa). Falei, a própria. Nina, vou colocar para cá, tá? (Arrumam sala) Lu: Heleninha! (Latidos) Lu: Lê, esse é a Nina Helena: Essa é a Nina? Nina! Igual a amiga nossa! Prazer! Lu: Eu falei: “Essa é a Nina”, ela falou: “Ah, eu também sou Nina” Helene: Só que ela é Nina de menina MC: Então, mas eu também sou de menina. Porque meu nome não é Nina. É Nina de menina. É igualzinho! Helene: Ah gostei! Seja bem vinda ao nosso humilde atelier MC: É tão gostoso aqui Lu: Le! Eu vou dedar você. Ela está… MC: Completamente apaixonada Lu: Por essa colher. Ela faz carinho na colher, ela gira a colher… MC: Desde que eu cheguei! Helene: Ela não está pronta… MC: Tô cobiçando a colher. Primeiro eu achei que tava molhada a tinta Helene: Não, não, não… MC: Eu observo a colher, uma hora eu mexo ela um pouquinho… (Chega alguém) (Risadas) MC: Você tá bom? Prazer! Lu: Tudo bem? Senhor: Super e ótimo! Lu: Você provou para eles que você estava vivo? Provou a vida? Senhor: Não provei… Lu: Não conseguiu? Por que? Senhor: Não consegui. Eles acharam que eu era uma alma… Lu: Ah, até parece! Só se você desse um murro eles iam sentir que você tava vivo Senhor: É… Não, mas eu dei o recado para eles. É que o meu negócio é mais… Lu: Na ladra! (Batidas na argila)

Lu: Agora esse prato aí, eu vou fazer para o Badauê o teste. A gente nunca fez esse prato. E aí eu vou entregar essas peças aí que o Carlão, que é o chefe de cozinha que já tá desesperado, pediu para o secretário mandar mensagem: “Ah, o Carlão tá querendo saber quando você vai entregar”, falei: “Tenho reunião dia três, vou levar. Calma”. Porque aí eu dei uma acelerada MC: Você deu uma corridona. Mas tem que levar já tudo pintado, tudo prontinho até o dia três? Lu: Não, porque falta aqueles vinte e quatro ali ó. Aquele modelo ali, eu tenho que fazer vinte e quatro deles. Nem vou esquentar minha cabeça. Vou fazer os dez, aí depois de dois dias eu tiro da forma e faço mais dez. Aí depois faço os quatro. Eu vou levar o que eu já tenho, que são todos as saladeiras. E esses pratos aqui, essa dúzia, só vão terminar de secar hoje. Aqui do lado do forno. Amanhã eu já ponho eles no forno. MC: Como é parecido com cozinheiro né, Lú? Trabalho de cozinheiro é igualzinho, né? Desenforna, esfria, tal... Lu: Espera… Confeiteiro, né? Igual! (Batidas na argila) Helene: Nossa, que sede! Lu: Eu também! Gente, você acredita que eu não ofereci nem uma água… MC: Não, eu tô ótima Helene: Não ofereceu? Mas essa água é uma água especialésima MC: Por que? Helene: Porque ela é daqui Lu: E da bica! Helene: É do subsolo daqui, vou trazer MC: Ah, eu quero se for assim. Mas eu tinha almoçado agorinha, eu fiz tudo direitinho. Almocei, tomei cafézinho… Lu: Eu nem almocei, você acredita? MC: Você não almoçou? Lu: Não porque eu cheguei super tarde, perdi meu treino… MC: Você quer parar? Você quer comer alguma coisa? Lu: Não, porque senão eu já tinha falado: “Preciso comer, Nina”. Então aí ele veio com essa história dos pratos. E eu vou levar para ele então, no dia três. Os que tiverem prontos, porque o coiso já tá ansioso. O chefe. E foi a primeira vez que eu falei com o chefe desse restaurante. Eu sempre falei com o dono. Dessa vez eu falei: “Quero falar com o chefe”. Aí ele ficou meio assim mas ele deixou eu conversar. Aí eu fui lá no Carlão lá do Badauê. E ele tá todo feliz que ele foi finalmente escutado. E eu estou fazendo esses pratos aqui nas cores que ele escolheu MC; Ai, nossa. Que delícia, né? Porque você imagina. O cara tem a cor da comida dele, não é? Lu: E ele falou uma coisa super importante. Foi bom que o dono do restaurante escutou, porque ele falou assim: “Eu não quero mais os pratos amarelos para porção, porque as porções já são amarelas. Tudo fica amarelo”. MC: Que delícia! Lu: Entendeu? Exatamente! MC: Lógico que agora tudo vai ficar bom! (Helene entra) Lu: E aí como foi lá? Helene: Tudo certo, nada resolvido. Lógico, nós não levamos o documento certo daqui Lu: Não adiantou nada ter ido?

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Helene: Adiantou porque eu fui no supermercado… Lu: Mas não provou que tá vivo? Helene: Provou nada Lu: Puta que o pariu… MC: Gente, mas tem que ser mais simples a pessoa provar que tá viva, não tem? Lu: Não era só ir lá? Eu falei para o Alcir que se ele desse um murrão na cara do cara assim, ele ia acreditar que ele tava vivo Helene: É, tem que provar que tá vivo. Lu: É, mas tem que provar porque tá cheio de gente estranha que engana os outros Helene: Não, e eu tenho que renovar também minha carteira de idosa, para estacionar Lu: Que bosta Helene: Eu falei: “E se eu fiquei mais moça, como é que fica?” Lu: Querido, olha para a minha cara. Vê se eu tenho cara de idosa? Aí Lê, tá bom… Eu achei que você não tinha que ir, sabia? Ainda bem que não falei nada Helene: Não, eu fui num pau e voltei em outro MC: Mas vocês tem que ir para onde para fazer isso? Helene: São Sebastião MC: São Sebastião. Lu: Para o centro, que é o que? Quarenta quilômetros daqui Helene: É quarenta e cinco minutos, uma hora daqui Lu: Lê, eu tive dor de cabeça de madrugada de novo, não fui treinar de manhã… Não consegui acordar, passei mal. Não foi legal. Aí eu vim, a Pati tava aqui… Helene: É, a Pati foi embora mais cedo, com o Lipinho. Não tem ninguém para coisar… Lu: É, mas acho que ela já tinha feito tudo que ela tinha se programado para fazer Helene: E o que acabei fazendo, acabei fazendo um terminal para essas colheres. Aqui MC: Ah é? Lu: É, eu vi esses caras aqui! MC: Essa colher vai ser um sucesso! Ela é linda de morrer Helene: Ela vai para você, então MC: Amei, quero muito! Helene: Já que você veio então… MC: Nossa Senhora, mas ela é muito bonita Helene: Ela é linda, né? Esse lance das colheres me fascina MC: É? A colher? Helene: A colher em si. Ela é um objeto muito interessante. Eu tinha quando eu era pequena uma colher torta. Aquelas colheres que a gente dá para a criança aprender a comer com a mão direita MC: Sei. Helene: E eu tinha uma birra com ela. Eu experimentava comer com a mão esquerda e não dava. Eu tinha ódio daquela colher MC: Você é canhota? Helene: Não sei! Eu só sei que eu funciono bem com as duas mãos MC: Ah, você é ambidestra… Lu: E aí os caras queriam que ela comesse só com a direita, sacanagem! Até canhoto tinha que comer com a direita Helene: É, então as colheres eram tortas Lu: Alcir, você já bebeu água? Alcir: Não, tomei Itubaína

Lu: Toma água então. Sabia que a Isadora tá com pedra nos dois rins? Alcir: O que ela falou? Lu: Que a Isadora, a minha filha, tá com pedra nos dois rins Helene: Eu vi ela passando aqui agora Alcir: Tá com pedra nos dois rins? Lu: Nos dois. Então vai lá tomar água, por favor Helene: Tem que tomar muita água Alcir: Itubaina não conta? Lu: Não. Lots of água! Helene: Água, água, água. Alcir: Sem gelo? Lu: Pode ser com gelo Helene: No Coca-Cola. No Itubaína MC: Só água Alcir: Eu tomei Itubaína agora, um copão assim Helene: É, eu sei. Tudo que é doce para ele é… MC: Irresistivelmente bom. Sei bem! Helene: Exatamente Alcir: Sou ligadão no doce. Quem diria né? Lu: Quem diria, né? Helene: Quem diria. MC: Então ele já sai no formato redondinho, é? Lu: Não, a gente vai colocar depois. Depende da placa que você colocar aqui MC: Porque você já colocou ela ali no jeitinho, né? Lu: É, mas eu vou cortar. Esse vou cortar, e vou fazer menor Helene: Ele quer para que? Lu: Nem sabe. Helene: Ah, porque as vezes é para sobremesa e às vezes é para risoto Lu: Então, por isso vou fazer ele menor, que é para ver se ele já pode ficar versátil. Porque outra coisa que eu sempre falo para os caras quando vai fazer pedido é… “Ah, queria fazer uma cerâmica para meu restaurante…”, eu falo: “Tá bom, vamo conversar”. Tanto pode ser virtualmente quanto presencialmente, mas é sempre assim: “O que você quer servir? Para começar”, “Ah, eu quero prato principal”. Aí começa um jogo de troca de referência, de informação. Aí às vezes a pessoa gosta de coisas que são muito nada a ver uma com a outra. Aí eu começo a afunilar nesse projeto. “Então vamos trabalhar com a branca. Esquece isso aqui, você gostou, mas não vai dar. Isso aqui é argila preta, a gente não vai fazer com ela, outra hora. Vamos trabalhar com essas coisas aqui porque as cores que você quer vai na branca. As cores que você gosta não vão na preta”. Ou contrário. Então a gente começa a afunilar esse projeto e aí chega num ponto que eu sugiro: “Ó, eu faria um prato nesse diâmetro, nesse formato, nessas cores…”. De um jeito que ele possa usar para mais de uma coisa. Porque se eu vender uma coisa que ele possa usar para um único prato em um restaurante, em três semanas ele vai falar: “Puta merda, só posso usar esse prato para isso”. E a minha ideia é que ele use bastante, que ele queira mais, que ele fique feliz. Então eles têm que ser versáteis. MC: Até porque as pessoas não têm tanto espaço de armazenamento assim, né? Essa é uma questão da atualidade. Tudo é menor. Os lugares grandes tão diminuindo também, então não adianta a gente pensar

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que ele vai ter um espaço de armazenamento imenso, porque ele não vai ter Lu: Exatamente. A gente pensa em formas que são empilháveis. Tem coisas que não são, mas geralmente tem que ser MC: Então, por exemplo, aquele ali vão ser poucas peças? Lu: Ele é empilhável. Mas usa bastante espaço. Quando é para casa, que foi a história do Cassio e da Layla, eu falo assim: “Tudo bem. Mas vocês têm espaço para guardar essa louça que vocês estão pedindo?” Helene: Ah sim , fora os pratos que a gente fez para o Ema, eles não cabem na máquina convencional de lavar prato. Da Paula não cabe, tem que lavar tudo na mão Lu: Agora, os restaurantes grandes têm máquina industrial. Só que a gente descobriu também que a máquina tem um secante tão poderoso, a louça em trinta segundos sai seca. Você coloca, seca. A lavagem e secagem dura trinta segundos, esterilizado. Só que o detergente é poderoso, a temperatura é bombada, é quente para cacete a água… Helene: A temperatura não deve ser tanto, eu acho que é o abrasivo do detergente Lu: As duas coisas, eu acho Helene:É porque não vai mais a mil graus… Lu: Exatamente. Mas isso com o abrasivo fudido do detergente e o secante, acaba com o brilho do esmalte. Então eu tenho que dar preferência para o esmalte mate, que é uma coisa que eu vou falar para esses pratos novos aí na hora que for definir o rosa. Eu vou querer fazer mate rosa, não brilhante. A menos que ela tope ficar com aquela porra que fica opaca da máquina MC: Ah, daí ele perde o brilho? Ah, ele perde o brilho… Lu: Perde. Daí se for uma cor que nem essa aqui não tem brilho para perder MC: Então isso tudo é combinado antes? Helene: Pêssego Lu: Pêssego mate. Eu acho que é isso aqui que a gente vai fazer para ela. MC: Para o rosa que você tinha falado? Helene: Tem que mostrar. Tem que mostrar porque a referência dela é bem escura Lu: Eu vou mostrar. MC: Ou seja, isso tudo tem que acertar na hora de fechar o pedido? Lu: Vai acontecendo. Vai indo. Porque aí tá, que nem ela, eu não fechei rosa ainda. Falei: “Deixa eu fazer primeiro e depois a gente vê o rosa”. Agora já tá tudo modelado secando, eu já quero começar a falar de cor com ela. Já quero falar do rosa, já to começando a pensar no rosa, sabe? MC: Sei Lu: Acho que é até bom pegar esses carinhas daí. Vamos pensar no rosa da Renata MC: De quanto em quanto você produz deste? Lu: Como assim? MC: Porque olha, você tem que produzir, você falou, vinte e quatro. Aí você vai fazendo... Lu: Aqueles ali eu vou fazer, que é uma plaquinha de vinte e pouco centímetros… Helene: Vinte e três Lu: Eu vou fazer provavelmente placas de três ou de dois Helene: Duas

Lu: Às vezes eu consigo fazer de três, se eu tiver animada. Fazer uns blocões assim, ó. Consigo fazer um placão e ponho três MC: Tá. Não, mas o que eu quero dizer é assim, esse corte que você tá fazendo aqui, você vai modelar… Isso daí você vai fazendo de remessa de quanto em quanto? De um em um? Lu: Uma a uma. Aí claro, eu tenho dez formas? Eu procuro fazer as dez. Eu tenho que fazer vinte e quatro daqueles. Eu vou fazer os dez, depois os dez e depois mais quatro. Aí se eu recebo um pedido desse pratinho, por exemplo. O cara chega para mim e fala: “Eu quero cem peças”. Obviamente eu vou fazer mais vinte formas. Vou investir em formas MC: Senão você não tem opção. Você vai demorar… Lu: Vou demorar vinte dias só para modelar para o cara? Não, faço mais vinte formas com trinta. Porque aí eu faço em três levas MC: Eu vou ver você fazer isso agora? Lu: Esse aqui não. Vou fazer esse aqui. MC: Não, esse aí. Tá bom, é para eu entender Lu: Só tenho uma forma. O logo é grande mas eu vou colocando o log completo MC: O logo já tá aí? Lu: É esse aqui, ó Helene: Ela já viu uma peça pronta? Lu: Ela viu assim… O logo do Badauê é isso aqui. Eu mandei fazer em duas partes porque tem peça que eu aplico só esse. MC: Isso, aquela ali no prato Lu: No prato. Não faz sentido botar tudo. Nas travessas de salada a primeira leva eu fiz só com esse, a segunda eu já fiz do logo inteiro. E nesse prato aqui, que é a primeira vez que eu tô fazendo, a minha vontade mesmo era colocar o logo inteiro aqui embaixo. Na verdade, eu tenho que fazer testes porque o logo inteiro não cabe. Dá para colocar por dentro, que ela só vai ver a hora que ela acabar de comer. MC: O que vai de comida? Lu: Não sei ainda. A gente não sabe se é sobremesa, se é massa, se é ceviche… Mas eu tô com muita vontade de colocar só o grafismo no fundo. Só vai ver se comer tudo. Só vai ganhar a arte se comer tudo. MC: É uma coisa bem educativa, né? É uma coisa bem educativa, a gente vê que ela é mãe. Lu: E professora MC: E professora. Lu: Eu vou fazer isso. É o tipo de coisa que a gente faz aqui, sabe Nina? Mas aí ninguém põe o negócio no fundo porque a pessoa vai ter que comer para ver? É verdade, então eu vou fazer. MC: Então é isso que eu quero mesmo! Lu: Que eu falei para ela que a gente gosta de saber o que não pode para poder fazer Helene: Sim, o lance de falar “Não pode”, é a pior viagem Lu: Vou dar uma martelada aqui (Barulho de martelo) Helene: Esse carimbo é meio pentelho para ficar todo marcadinho MC: Lu, com toda essa sua liberdade de criação, tem peça que você faz só para viver ainda? Lu: Como assim?

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MC: Pelo jeito não. Porque tem artistas que falam: “Eu tenho uma linha assim, ó. Isso aqui eu faço para ganhar o mínimo para poder criar o resto”. Entendeu? Lu: Não, eu só trabalho para vender. Eu não tenho tempo sobrando para... MC: Não, não. Mas tudo bem que você só trabalha para vender, mas você tem uma parcela de criação… Lu: Não, eu tenho toda. Eu crio o tempo todo. Porque de uma leva para a outra já faz diferente. Porque não vou fazer igual, vou fazer diferente. MC: Então, mas não tem aquela peça que você faz só para sobrevivência, né? Lu: De chegar para o chefe e falar assim: “Ah, eu faço xícara...”? Não, eu só trabalho sob encomenda. Então não tem como ter essa coisa aí. Que é isso que eu não queria quando eu voltei. Eu falei que isso não faz bem para a minha saúde. MC: Então você não vai fazer. Lu: Não quero. Não vou fazer. A menos que, sei lá, eu tenha uma oficina que eu possa trazer oleiro... E deixa lá, ele pode fazer. Pode até ser, pode ser. Mas não sou eu que vou fazer provavelmente. Ou até vou dar acabamento, não sei muito bem. Helene: É como o carro chefe da Sílvia. Lu: Que só tem cinzeiro, aquelas coisas... Helene: Ela faz imã. Imâzinho escrito Ilhabela. Mas faz toneladas. MC: Toneladas! Lu: Mas isso eu não tenho vontade de fazer não. MC: É uma delícia né? Uma delícia. Helene: Esse cara é aqueles rachativos, sabe Lê? Mas tudo bem. Lu: Eu vou socar ele, vou meter baba aqui embaixo. Helene: Eu tenho que por baba na minha também. Lu: Consertar o racho. Ah, então já tem que fazer isso antes que seque, né? Isso aqui vai ficar bonito, sabia? MC: É muito delicioso né? A forma dele, né? Ele deve ficar maravilhoso na sobremesa. Lu: Eu acho. Ou ceviche, ou massa... Aquelas coisas que requerem molhos separados, que os chefes tão com mania de usar molho em bisnaga. De bisnagar os molhos na borda do prato. Helene: Esse é essencial. Dá para fazer... Esse prato é lindo. Lu: É o prato da Lia, que eles não quiseram. Porque eles foram mão de vaca na verdade. Viagem. Mas agora eu acho que eles vão querer o resto do pedido. Lê, você viu a foto que eu mandei o recadinho lá para a minha amiga? Helene: Pois é, eu quase que escrevi: “É, ainda bem que você não pôs endereço”. Quase! Mas eu não escrevi. Eu falo para ela. Lu: Aí o meu irmão falou assim... Porque a gente foi discutir, falei: “Mas e aí, você acha que comercialmente é um problema?”, ele falou: “Eu não acho que é um problema, mas acho que se você não quer ser ativista da liberdade de expressão no seu negócio, então você pode evitar e publicar isso no seu perfil pessoal...”, falei: “Ah, então tudo certo porque eu quero ser ativista da liberdade de expressão no meu trabalho e o cliente reacionário chato, que não gosta de ver bunda, é melhor não ser nem meu cliente. Então tá bom, então mandei bem”. Porque eu postei uma foto ontem no Instagram, eu vou te mostrar...

Helene: Chocante, eu vou mostrar para você. Lu: A Helene te mostra. Helene: Chocante! Lu: Mas não tá bonita? Helene: Tá linda! Lu: Não tem nada de ofensivo! Helene: Não, não tem. Lu: Só que esse povo... Helene: Só tem se pusesse o endereço para WC, ou CW... Lu: Tem uma menina que, eu não sei se dá pra perceber, mas a gente não tem nenhum problema em criar junto, em passar informação, não tem essa. De guardar conhecimento, nada! Pelo contrário, se quiser aprender vem pra cá, daqui a pouco você vai ser artista. E se depender da gente você vai vir e vai aprender. Mas tem uma figura que ela é meio stalker, ela me persegue, ela imita. E ela tá mandando mensagem para os meus clientes, porque os meus clientes me contam. Helene: Antiético! MC: Mas mensagem fazendo o que? Lu: Mensagem tipo: “Sirva comida na minha louça personalizada, exclusiva, feita por mim, ficaria lindo...” MC: Para o seu cliente... Lu: Para os meus clientes no plural. MC: Ela tá literalmente te caçando. Helene: Sim, sim, sim. É uma perseguição. MC: Putz grila, ela vai rastreando a pessoa. Lu: Isso em um momento me fez muito mal. Porque eu vi que ela tinha fechado com um cliente meu do Rio Grande do Norte. Eu liguei para a cliente, falei: “Pri, o que aconteceu? Por que você fechou com essa figura?”, ela falou: “Ah, porque ela me procurou...”. Enfim, falei: “Não, então pera lá”. É diferente, a figura foi até meu cliente. Aí fui em um outro restaurante, a chefe que é minha amiga falou: “Lu, eu recebi mensagem de uma ceramista, essa daqui...”. Falei, puta, ela tá me perseguindo. Tá querendo roubar meus clientes? Não quero. Já basta imitar minhas peças, que já é chato. MC: E ela imita? Imita? Você sente que é imitação? Que coisa mais absurda. Lu: Exato, é assustador. Helene: É bizarro. Lu: Aflitivo. MC: É aflitivo mesmo... Lu: Exatamente, tudo bem. Primeiro fiquei muito aflita, falei: “O que eu faço?”. Quase liguei para ela, falar: “Menina, não faz isso que é feio, é chato. Tá pegando mal”. Mas aí eu resolvi que eu ia fazer diferente. Vou achar no meu, Lê. Que acho que vai ser mais fácil. MC: Sabe por quê? Não vai adiantar nada. Lu: Não vai adiantar nada. Para quem não entende... MC: Porque a pessoa que tem esse tipo de... Ela não vai ter o mínimo para entender. Ela não vai entender... Helene: Ela é uma criatura sem ética. (Mostra foto do Instagram) MC: Mas ficou bonitinho... Lu: Não é? Porque não tem nada... Não é sexy, não é pra ser ofensivo... É meu cu para ela. Aí eu escrevi: “Meu olho” MC: Pronto. Helene: Olha, tem papel aqui. Lu: Tem endereço a foto. Helene: Tem endereço, a foto?

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Lu: Tem. É subjetivo. MC: Ah, é você mesma? Lu: Sou eu! MC: Tá bonito! Lu: Não é? Helene: Lógico que tá bonito. MC: Especialmente porque é ela mesma, daí fica bonito, né? Helene: Tá bonito. Era algo com endereço certo. Lu: E ela imita as minhas fotos. Porque eu tenho mania de pegar cerâmica e colocar na cara... MC: Eu vi, igual tá no seu Whats, que tá bem bonitinho! Lu: É, ó. Eu faço isso, eu tenho essa mania. De morder... MC: Isso aí? Assim? Lu: Isso aí é uma cerâmica. Mas não parece um doce? Então eu mordo, eu faço essas fotos assim meio... E ela me imita, até nas minhas fotos, que é minha pira, minha criação, minha expressão, né? MC: Nossa, que chato isso... Lu: Porra, que chato. Que coisa chata. Ela precisa arrumar um marido bonito, o marido dela é muito feio. Eu tenho impressão de que o problema dela é aquele marido ser horrível. Helene: Não, ela é horrível também. Deixa ela para lá. Lu: Eu deixo, já deixei. Helene: Não, esquece. É morta! Morta! Lu: Lê, coisa importante, importantíssima, da maior importância: eu ajustei. Eu ajustei. Então, mais tarde... Helene: Bem mais tarde... Lu: É. Você olha. A hora que descolar você já solta, pelo menos. Mesmo que ele fique aí, mas desgrudado. MC: Quanto tempo? Lu: De hoje para amanhã, como ele tá no gesso ele já vai dar uma boa secada. Helene: O gesso chupa a água rapidinho e a cerâmica encolhe e trinca. MC: Ah, então o gesso é ideal para esse tipo de coisa. Lu: Só que com o prato feito de bunda, assim. Por exemplo, a gamela a Helene fez por dentro. Então ela encolhe, encolhe, encolhe à vontade. Aqui se ela começar a encolher com o gesso como resistência, ela vai rachar. MC: Ah, entendi tudo! É fácil de entender. Lu: O que eu tô pedindo, é quando ela já estiver solta, ela já soltar. Helene: Mais tarde, à noite. Lu: Exatamente. Já dá uma soltadinha para ela desgrudar, beleza. Se for o caso, já tira daqui. Já deixa ela secar ao contrário. Porque senão ela vai agarrar e vai rachar. Helene: Tudo bem. Lu: Amanhã eu mandei trazer mais três dessa, já tem quatro. Helene: Oba! Lu: Eu vou trazer as outras e vou fazer outros testes nessa coisa aqui. De logo até. Até para ter uma variação de logo. Mas eu gosto muito disso aí, do logo estar lá no fundo, sem nome. Helene: É, vamos ver como é que vai ficar. (Pausa) Lu: Ah, Lê. Dentro do forno tem as três saladeiras... Você deu banho de cola de novo. Deu né? Eu não vou nem dar bronca porque tem visita. MC: Por que? Qual o problema? Lu: Mas escorreu para fora, Lê?

Helene: Não, quase. Isso aqui dentro... MC: Vai espirrar para fora... Lu: Espirra aqui, e faz o contrário. Isso Lê, isso amor. Pronto. MC: Foi tudo muito rápido. Lu: Mas você não vai poder levar hoje porque a ponteira da sua colher tá aqui, ó. Helene: A ponteira tá aí... MC: Isso é uma tristeza. Lu: Depois a gente tira esse excesso aí. Agora é melhor. Quer pano? Ah, esse aqui, Lê. É maravilhoso, ó! Para tirar. Helene: Isso aí... Lu: O que vai acontecer? Helene: Pode não ser. Lu: Você acha que vai grudar ele ali? Helene: Vai. Lu: E água? Helene: Não! Deixa secar. Ele tem que dar a química dele, a reação química. MC: A reação química? Você diz dentro? Helene: Sim. Para ele endurecer, ele reage com bambu e fica duro para caramba, não sai mais. MC: Ah, é? Então você já fez o teste. Não é teste mais isso. Helene: Já. Não, não é teste. Não, isso é sabido. Eu sei o que vai acontecer aqui. I know. MC: Tá muito charmoso. Helene: Isso aqui foi um teste. O ouro foi um teste. MC: Ela me falou. Que você tá trabalhando com ouro. Tá muito lindo! Helene: Né? As colheres são criaturas muito interessantes. Lu: E você sabe que você falando das colheres agora, conversando com a Nina eu percebi uma coisa. Você gosta das colheres e das canecas, e eu gosto dos pratos e das travessas. Então a gente faz a mesa inteira. MC: É verdade, vocês juntas fazem a mesa inteira. Lu: Eu não gosto de fazer caneca. MC: Não? E ela faz caneca? Lu: Ela faz umas canecas, cara... MC: Eu vi uma caneca ali. Tem caneca ali. Helene: Tem caneca ali! MC: Linda! Lu: Ela faz umas canecas... MC: Maravilhosas. Lu: Maravilhosas! Helene: Caneca, xicrinha... Umas coisas assim que, como eu gosto de fazer isso... Lu: Na mãozinha. Helene: Na mão. MC: A caneca tem que ser feita toda na mãozinha? Helene: Não. Ela pode ser na mão. A caneca grande eu não faço na mão, eu faço em placas. Mas xicrinha de cafezinho... MC: Faz na mão! Helene: Na mão. Micro cafezinho. MC: Ai, que lindo...

Lu: Missão cumprida. Eu não pintei de branco as coisas do caiçara. Porque não ia caber no forno hoje. Por que pintar se eu podia pôr o teste? Então eu pus o teste, eu fiz um pedaço dele com quatro demãos, a caneletinha só com três e aqui duas, em cima. Tem um degradê de quantidade de mãos também, para a gente entender. E aí

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eu vou pintar amanhã. E aí eles vêm junto com esses aqui que são três peças. E um outro teste que eu tô fazendo ali... E eu queria ver se eu conseguia colocar esses pratos do André em um forno amanhã. Você acha que sim ou que não? Helene: Pode ser. Por que não? Lu: Por que tem que biscoitar. Você acha que eles estão secos o suficiente para amanhã? Que eles estarão? Helene: Sim, mas já ligou o forno? Lu: Setecentos e oitenta e cinco graus. Eles já estão acabamentados, inclusive os Emas. Helene: Ótimo! Lu: Será que eu vou ter que queimar um em cada prateleira ou vou poder botar de dois? Bota de dois, né? Puta que o pariu. Helene: Sim! Não, eles encaixaram direitinho, secaram direitinho. Não vai acontecer nada. Lu: Também acho. Tá bom. O que é isso aqui? Helene: Isso aí provavelmente é ouro. Lu: É. Lambuzado. MC: É ouro? Lu: A gente é rica! Que as coisas têm ouro lambuzado, assim. MC: Mas é ouro mesmo? Lu: Ouro! Ouro! Ó lá, ó! MC: Que material é esse? Helene: Isso aqui, cento e cinquenta reais. MC: Cento e cinquenta reais! Helene: Exatamente! Lu: Cento e sessenta, né! Helene: E setenta, lá em Valinhos. MC: Ouro líquido. E isso aqui dá para fazer quanto de coisa? Helene: Não fiz tanto. Lu: A gente esqueceu de fazer a conta também. Helene: Não sei, não sei. Lu: No próximo a gente vai poder medir. Porque o “go for it” de fazer era tanto, dessa daí, que ela não mediu. Falei: “Lê, mas veio cheio?”, ela falou: “Não olhei”, “Mas Lê, como é que a gente vai saber quanto que tinha no pote?”, “Não sei, vai ter que ser no próximo“. Até para fazer o preço... MC: É! Para fazer o preço, porque Nossa Senhora! Helene: É muita grana... MC: É porque também você faz detalhes, né? Você não vai fazer uma peça pintada de ouro. São detalhes. Helene: Tem gente que faz! Lu: Eu seria uma! Eu seria uma que iria fazer. MC: Ia fazer todo de ouro? Lu: Se eu resolvesse que tinha que ser... Helene: Por dentro, por exemplo, valia... MC: Por dentro? Lu: É, dependendo da peça. Se a forma dela ficasse incrivelmente maravilhosa merecendo receber um banho de ouro, e achasse que tinha que ser e custar dois pau... Helene: Tem umas colheres no Instagram, que elas são todas de argila, da maneira mais rústica possível, assim retorcidas. Umas colheres deste tamanho, menores que essa. A parte de dentro delas é toda em ouro. Lu: É muito lindo. MC: Tá de brincadeira! A coisa mais linda do mundo! Helene: É lindo, lindo! Eu fico pensando, isso é coisa de bruxa.

MC: É coisa de bruxa! Lu: E a gente nem gosta de bruxa. MC: Mas você não acha que é por isso que a gente gosta? Lu: Lógico! É tudo de bruxa. MC: É por isso que a gente gosta! Porque remete a uma coisa da bruxa... Lu: Ela fez para mim outro dia um negócio de porcelana. Ela falou: “Ah, olha. É uma lasquinha de um chifre de unicórnio”. Menina, quase morri, assim: “Aí, eu quero!”. Todo retorcido assim, com a basezinha, que parece que foi tirado... Helene: É uma colherinha! MC: Uma colherinha? Lu: Mas deste tamanho! Helene: Micro colherinha toda retorcida. Lu: Toda retorcida, assim, deste tamanhico. Tá lá na minha caixinha de tesouros preciosos. MC: É uma farrinha que vocês fazem aqui! Isso sim, uma farrinha. Lu: Eu falei para ela. A gente aqui, a gente brinca. Helene: A gente se diverte muito. Lu: Olha, e quando a gente não se diverte mais ainda! Helene: E faz, e trabalha. E sai coisa daqui. E caixa, e caixa, e caixa... Delícia! Lu: É assim! MC: Os pedidos vão de quantas a quantas peças, assim? Lu: Puta, varia tanto... MC: Pedido pequeno... Lu: Não, eu faço. Eu faço... MC: Não, mas só para ter uma ideia de produção mesmo. Um pedido pequenininho, seis peças você falou esses dias. Lu: Não tem padrão. Faço! O que você quer saber? MC: Quando alguém faz um pedido grande, é de quanto? Só para eu ter uma noção do tamanho do trabalho. Lu: Puta, é tão variável. Por exemplo, eu tenho agora o pedido da Layla e do Cassio. Da Layla é o que? Seis, dois, oito, dezenove peças. Para uma casa. Ok. Outro dia entreguei cem peças para uma noiva. Helene: Sim. Já foram trezentas pecinhas. MC: Já foram trezentas! É variado mesmo... Lu: E o Badauê, por exemplo, que são peças grandes, esse pedido que tá em andamento são vinte e quatro, mais vinte e quatro que dá quarenta e oito, mais seis... MC: Quarenta e oito mais seis é cinquenta e quatro. Lu: Cinquenta e quatro. Cinquenta e quatro então. Então tem um pedido de peças grandes, de cinquenta e quatro peças. Quer dizer, varia absurdamente. E tem pedido de uma peça, um porta-aliança. E tem pedido de um prato para apresentação... MC: O porta-aliança você faz um pratinho? Lu: Deste tamanho. Que eu ia começar a te contar do ouro. A Helene vai fazer agora uns porta alianças desses de ir para altar com ouro. Que eu vou vender para as minhas amigas assessoras. Helene: A gente já fez porta aliança de... Lu: Estrela do mar, de concha... Helene: Estrela do mar, concha... Uma peça única com dois furinhos para amarrar as alianças. Lu: Coloco as iniciais dos noivos em baixo relevo... Bastante coisa. Você usa o Instagram? Então depois você vai no lufa, e aí você vai achar o da Helene também. Lá tem tudo, você vai ver que é muito variável. Muito

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variável, os pedidos variam mesmo. Agora o André do Badauê perguntou quando eu vou lá porque ele tem um pedido grande para fazer para mim... Não sei o que ele chama de um pedido grande depois de ele fazer um pedido de cinquenta peças. Quer dizer, ele vai me pedir mais o que? Duzentas? E ele falou: “Mas eu vou ter prazo. Meu prazo para receber elas vai ser curto”. Falei: “Quanto, André?”, ele falou: “Acho que vou precisar das peças em dois meses e meio”. Falei: “Tudo bem, se a gente fechar um pedido grande do Badauê para entregar em dois meses e meio eu não pego mais nenhum pedido, e eu faço o teu, não se preocupe. Porque eu tenho vários orçamentos enviados e nenhum fechado. Só os que estão em andamento como o seu. Então eu quero te encontrar antes de viajar, porque se for o caso eu já vou garantir a minha entrega”. Então no dia três... Por isso que eu te perguntei isso aqui, porque eu escolhi ontem. Porque isso aqui se eu já puder levar... Porque coincidentemente o Leandro, que é o secretário do Badauê, me mandou uma mensagem que o chefe perguntou: “Quando você vai entregar?”, porque deve estar em uma ansiedade da porra. Então no dia três eu vou encontrar o André e já vou levar tudo que tiver pronto do Badauê, só vai faltar as petisqueiras. Mas petisqueira não é novidade, então ele não tá ansioso para a petisqueira. Eu levo depois. É bom que eu já recebo. Helene: Eu não lembro da petisqueira dele... Lu: Aquela que tem um recorte que eu pedi para você fazer antes do Ema. Só que são vários do Badauê, faço cinco recortes. São vinte e quatro, vou fazer com pé nas costas, mas tem que fazer. Vou começar amanhã. Porque só dá para fazer dez. Amanhã vou fazer dez e os seis do tapa, de manhã. E aí eu só vou voltar aqui na segunda, porque daí vem a família buscar. Helene: A Paulinha vem amanhã. Lu: Jesus amado, é sessão família. Eu vou precisar falar com a Paulinha. Aquela história do telefone. Mas eu venho aqui uma hora, eu vou escapulir. Vai vir minha mãe e meus dois irmãos. Mais a minha filha e o namorado. MC: Vem visitar? Lu: É. MC: Mas a sua filha não é... Lu: Exatamente. A Isadora vai estar, porque ela vai vir da casa do pai dela que vai estar todo mundo. Aí tem o namorado que é o agregado, também fica junto. Aí vem a minha mãe e meus dois irmãos. Eu vou começar a tomar o Passiflora hoje. MC: Você pode injetar também! (Risadas) Lu: Mas tá bom, eu tô brincando! MC: É lógico que você tá brincando! É isso aí mesmo... Lu: Fui eu que convidei! Posso nem falar que saco. Não é que saco, eu que quis. Helene: Aí, que bonitinho... Lu: Mas tá bom... E que pé que a gente tá? MC: A gente tá no pé que eu acho que a gente fez tudo exceto pegar uma obra e percorrer uma obra. Desde a criação, alterações... Eu queria pegar uma obra, uma sua bem legal, bem bonita. Lu: Eu já sei qual. Vai ser aquela travessa gigantesca que foi uma loucura fazer ela. Que tá lá em casa. Ela mesma! Porque é dessa aqui que eu te falei que sobrou essa gota. MC: Ah, é dela! Helene: É que a gota caiu...

Lu: Daquela que tá lá em casa. MC: Essa gota tá o máximo! Helene: É. E aí eu pus essa gota aqui, passei o transparente... Foi o que aconteceu. Lu: E é da origem dessa gota aí que tá lá em casa que a gente vai fazer o... MC: Ótimo! O resto foi. Equipamento de segurança você não precisa né Lú? Lu: Luvas! MC: Usa? Lu: Luvas para não queimar no forno... Luvas de amianto. Helene: Luva de amianto e eles recomendam que a gente use máscara para esmaltar e para misturar tinta. Mas tá sabendo que a gente não faz isso. Lu: Porque as composições são tóxicas. MC: Você falou que são super tóxicas, tal... Você não dá conta de usar? Helene: São metais pesados. Lu: Eles se depositam no seu pulmão. Você respira ele. MC: Você fica de boa? Lu: Mas assim, é pouca... MC: É pouquinha. Helene: E depois, a gente não fica com o nariz ali, a gente põe a água e tampa. E deixa a coisa... Lu: É. Você é um pouco mais precavida que eu nesse ponto aí. Helene: Sim, porque a minha amiga Silvia já foi parar no pronto socorro algumas vezes. MC: É verdade? De ingestão de... Helene: De aspirar coisas, e ela é uma pessoa sensível, ela teve alergia. Ela foi duas vezes até o pronto socorro, até ela aprender que misturar tinta é assim. Ou põe uma máscara... MC: Põe uma máscara. Helene: Se você trabalha de pistola, que as pessoas fazer com aerógrafo, tipo aerógrafo. Aí tem que usar máscara. Lu: Tipo um compressorzinho né? Helene: É. Tem que usar máscara ou pelo menos um lenço. Porque as partículas ficam no ar e você respira. A gente usava antigamente um vermelho de cádmio. Esse vermelho de cádmio é altamente tóxico. MC: Não se usa mais? Helene: Raro, raro. É uma cor rara de ser usada. Mas ele existe, quer dizer, se fabrica isso. Existe vermelho de cádmio. Então a restrição é usar coisas com vinagre em uma peça pintada com vermelho de cádmio. MC: Eu não entendi, você usa o vinagre em que momento? Helene: Se você servir uma salada. Lu: Você não vende um utilitário, uma saladeira por exemplo, como é que você vai explicar para uma pessoa que ela não pode usar? Então você não vende uma saladeira esmaltada em vermelho de cádmio porque a pessoa vai botar vinagre na salada. E a toxidade vai soltar no vinagre, é uma reação química. Helene: Ele reage. MC: Agora entendi. Helene: Fora isso, essas tintas tóxicas perdem a toxicidade à medida que elas são queimadas, elas se fundem. Lu: Mas a gente, antes de fundir... Helene: A gente que trabalha com a matéria prima acaba...

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MC: Então uma vez queimado você pode usar para colocar comida tranquilamente? Helene: Lógico! Lu: São utilitários. E a gente evita esses que possam reagir com limão, com vinagre... Helene: Nos Estados Unidos eles trabalham muito com tinta pronta. Mas você compra tinta pronta, você compra mais água do que outra coisa. MC: E é verdade. Helene: Aí você sai no preju. MC: Vocês compram preparado? Helene: Não, a gente compra o pó. Compra o pó e prepara, e faz a cola... A cola deixa mais encorpada e consistente, aí você pinta por cima e por baixo, por dentro e por fora. MC: O preço é muito melhor? Helene: Sim, é melhor. Lu: Bem melhor. MC: Em São Paulo as ceramistas que eu conheço compram pronto já, a tinta. Helene: É mais fácil você trabalhar com a tinta pronta. Mas a gente tem a cara de pau de modificar a tinta. Lu: Lê, você tem o telefone da Tina? MC: Ah, porque aí vocês podem mexer na cor, lógico! Helene: Exatamente. Lu: Ficar brincando. Você tem o telefone da Tina, professora de yoga? Helene: Acho que sim Lu: Deixa que eu fuço, dá! Helene: Tá no whatsapp. MC: Deixa eu dar uma olhadinha aqui... (Silêncio) Lu: Tem! Ô caceta. MC: Delícia, né? Helene: Você fica em algum lugar aqui? Tem casa aqui? MC: Não, eu tô numa pousadinha. Eu cheguei hoje de manhã, de manhã não, já era hora do almoço. Procurei uma pousadinha, larguei minhas coisas lá e vim. Almocei e vim. Amanhã de manhã eu saio depois do café porque eu não queria pegar estrada depois de já ter pego estrada de manhã, né? Lu: Pegar de noite não precisa. MC: É, não precisa não. Helene: Mas você vai deixar seu endereço e aí... MC: Eu vou! Eu vou! Eu vou! Isso aqui é uma novidade? Isso aqui tá muito bonito! Helene: Isso aqui é baixo esmalte esponjado. Lu: Baixo esmalte é, quando você me perguntou se a gente usava tudo tinta nacional, eu falei: “Não, alguma coisa a gente usa importada”, é o baixo esmalte. Helene: É. Ele existe nacional, mas eu tenho ainda do importado. Então eu uso do importado, é feito com esponja para depois passar o transparente em cima, e o transparente fixa. Porque daí isso aqui vira algo que sai. MC: Tá. Entendi. Helene: Então tem que ter o brilhante, e o ouro só funciona em cima do esmalte brilhante. MC: Ah, porque ele é chique! Helene: Ele é brilhante! Lu: Porque afinal de contas ele é ouro, gente! Helene: Ele é ouro! Lu: Se ouro não fosse ouro, não era ouro!

Helene: Pois é! Isso deveria virar uma colher. Eu estou matutando se eu faço encaixe aqui. Como eu amarro esta colher aqui. MC: Se tivesse dois furinhos dava brincando para fazer, né? Helene: É. Ou podia abrir uma fresta aqui e encaixar ela assim e depois fazer um furinho. Mas eu ainda tenho que namorar essa peça. Mas eu já fiz a ponteira dela porque eu não consigo cortar o bambu direito. MC: Ah, porque não dá para cortar. Ele não fica tão bom. Helene: É. Ele fica lascado. Então aqui ele lascou, eu fiz uma ponteira. Falei, como é que eu resolvo? Amei esse bambu aqui. MC: É lindo. Essa ideia nasceu do bambu? Helene: Como? MC: A sua ideia nasceu de onde? Ela nasceu do esmalte, ela nasceu do bambu? Como nasceu essa ideia do bambu com a colher? Helene: Ah, sim. Ela nasceu de ter visto outras colheres estranhas por aí. Então eu vi colheres de bronze com cabo de pedra, cristais, um furo no meio. Falei: “Uau!” MC: Uau! Chiquérrimo! Helene: Que ideia! Então você fica viajando nessa maionese. Que outras possibilidades têm? Que outros tem por aí? Vi coisas... Chaleiras com cabo de galhos secos... MC: Lindos! Helene: E as chaleiras já, né... Olha, o que tem aqui? Bambu! Não tem nenhuma árvore tão forte quanto o... Lu: Bambu daqui! Helene: Quanto as árvores do norte. As árvores do norte, as frutíferas, as pereiras e tudo mais. Dá para fazer coisas assim. Aqui não. MC: A goiabeira deve dar né? A jabuticabeira e a goiabeira. Helene: A goiabeira dá. Mas ela também bicha. O bambu não... Lu: Puta merda, eu podia ter posto as ponteiras, mas eu não sabia... Ponho amanhã. Helene: Mas não ia dar para pintar. Lu: Não, tudo bem. Mas elas não tão pintadas, elas tão só modeladas? Ah então tudo bem, elas precisam secar, vou colocar em cima do forno. Pode? MC: Vocês põem umas coisinhas para secar assim em cima do forno? Helene: Para secar no susto. MC: Eu vi que você falou. É tipo secar tênis atrás da geladeira. Lu: É. Mas não pode. Helene: Não pode. Não é para fazer isso. Lu: Isso não é um não pode bobo. É um não pode mesmo. Porque a gente se arrepende. MC: Por que? Lu: Porque se secar no susto demais ela pode rachar. A gente já sabe. Mas as vezes faz! No desespero, no esquecimento. Fala: “Puta merda, mas eu sabia que não era para fazer isso! Por que...?” Mas eu tô falando dos pratos que amanhã eu quero colocar no forno, mas eu não sei se eles vão estar prontos para ir pro forno amanhã. A gente acha que vão. MC: Aí você vai modelando, modelando, modelando, e a hora que seca colocando, ele que vai mandando. Lu: É.

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MC: Ele vai mandando. Né? Não secou, não secou. Lu: É, pior que é. MC: E você tá na praia, ainda por cima, que é mais úmido. Lu: Exatamente! Helene: Exatamente: Helene: E a gente tem que otimizar a utilização do forno. Lu: Espaço. Helene: O espaço. Então às vezes eu faço peças pequenininhas de propósito, colherinhas assim, porque ela cabe ali. MC: No cantinho... Lu: É mas então, eu pus duas chaves. Helene: Pôs duas chaves? Lu: Duas chaves. Helene: Tá bom. Lu: Comecei a esmaltar essas chaves. Eu tô fazendo elas de mergulho. Ô Nina, a gente podia ir indo né? MC: Podemos! Podemos para a gente ir olhar essa obra. Porque aqui a gente finalizou. Lu: Tá! E você conheceu a Helene que era uma coisa que eu queria muito! MC: Que eu também queria muito conhecer! Helene: A louca mãe! MC: Porque ela falou tanto! Lu: A louca mãe! Aqui tem a louca mãe, a louca filha e a louca neta, né? Puta que o pariu. Ah, deixa eu te contar, eu tenho que contar hoje. Eu liguei para o Guilherme hoje. Gente, pode me dar... (interrompe áudio) (Volta o áudio no segundo atelier, localizado na casa da Luciana) LU: Então, esses aqui são pratos de entrada, cumbucas multiuso, pratos principais, saladeira, guacamole, fruteira, o que quiser. Beleza! Então na hora de compor esse jogo, esse cinza é dessa cor (mostra a peça). Eu pinto assim e ele só fica assim depois que sai do forno. Então tem que abstrair! Tem que ter um p*** poder de abstração para falar “pera lá, se eu botar o cinza..”.Daí tem que ver o cinza, porque tem isso, aqui tem as minhas amostras. Aí vê um prato, ou vê uma cumbuca.. Aí você tem que escolher se quer o cinza na sua cumbuca ou no prato MC: E esse rosa aqui para aquele rosa, daquela mulher? LU: Esse rosa aqui…É, ele também pode ser. Ele tá naquelas que eu pintei que tão do lado de fora. É esse rosa aí. MC: Esse você usa para que? LU: As saladeiras que são desse modelo que você falou. Essas aí que você falou que não dá para empilhar já estão esmaltadas desse rosa! MC: Não, mas eu tô falando dessa peça (mostra a peça), porque esse rosa aqui, ele é lindo! LU: Para aquele pratinho do Ema, né? Eu vou oferecer também, mas eu não queria brilhante. Porque ela vai naquela lava-louça destruidora de brilho, entendeu? MC: E o brilhante que está bonito, né… LU: Exatamente. E aí é aquela amostrinha que eu te mostrei da noiva, que foi… Pode ser essa! Que é mate, chega perto desse rosa, mas não é brilhante! MC: Lu, quanto é uma peça dessa? LU: Tem que olhar. Eu não sei… MC: Ai, essa peça tá muito bonita! LU: Tá! E é um jogo. Esse jogo eu adoro porque compõe! São três pratos de salada de entrada verdes, e três rosas!

MC: Muito lindo! Muito bonito! E a pessoa come nesse prato? Porque não tem borda… LU: Come...Esse é o de entrada, né! Salada… Não dá pra colocar alguma coisa com molho! Aí esse vai para o prato grande. MC: E esse é aquele que você estava fazendo lá! LU: É! Mas são outras duas cores! MC: Gostei desse rosa também! LU: Ele é lindo também. Vai ser um outro prato desse, outra meia dúzia turquesa, e outra meia dúzia eu não lembro. MC: Nossa, mas está tão bonito… A saladeira também está linda! LU: Esse jogo (mostra jogo), é esse aqui. Cinza. Eu fiz preço de restaurante para ele. Cento e nove, que é o grande. Esses aqui (mostra peças), sessenta cada. Se fosse preço para casa seria mais caro, porque é menos. É que esses aqui são meus amigos e eu faço isso direto também. Tem uma coisa, tem que ter uma tabela mais ou menos. Mas eu fujo dela também. E esse aqui também eu cobrei quarenta, esses “bowlzinhos”. Só que não era para ser dessa altura… O pedido foi feito deste bowl aqui (mostra bowl), não é nem desse, é um menor que esse. é um pouquinho menor que esse. Tudo bem, vai ser esse aqui. Quarenta “paus”, só que na hora que eu comecei a fazer, que eu descentralizei o “bowlzinho” da forma, eu falei “ah não, mas eu vou aumentar essa borda, porque eu vou fazer eles cada um… (mostra peça). Olha, eles têm cada uma… (mostra peça) MC: Sim! Eles estão cortados assim, né… LU: É. E aí não dava para fazer isso nele muito baixo. Quer dizer, isso aqui provavelmente o preço ia subir pelo menos uns quarenta por cento. MC: Se ele fosse mais altinho? LU: É, por causa da altura no forno. Espaço de forno também conta. Então isso entra no preço. Então eu teria que cobrar uns sessenta “paus” um “bowlzinho” desse. Mas eu já tinha cobrado quarenta então eu resolvi que eu ia fazer um lindo. Por isso que eu te falei que o lance da grana comigo, ela não vem primeiro. Ela vem como consequência. MC: Como é bonito quando está pronto, né? Dá vontade de fazer uma mesa inteira assim. LU: É, dá! Mas aí, é difícil. Por isso que eu gosto que mescle. Acho que tem que ir mesclando. Uma mesa de casa ainda isso aqui, tudo bem, beleza. Mas só isso enjoa. MC: Ah, enjoa! Mas se você misturar isso com branco, daí fica legal. LU: Daí sim! E mesmo com borda colorida! Você “bota” uma saladeira dessa verde com um jogo que tenha uma borda colorida. Sei lá, um treco assim, ó (mostra peça). Se eu tenho um jogo desse eu peço uma saladeira daquela fácil! MC: É, essa aí já deu! Esse que você tá aí já deu. LU: Pronto! Já tem um jogo. E um valoriza o outro. Já é outra coisa do que botar o prato de cerâmica verde…Tem que mesclar, porque aí todo mundo ganha. A peça que eu quero te mostrar é essa aqui (mostra peça). MC: É, essa daí não vai sair nunca daqui mesmo. Você não é boba. LU: Eu quero trabalhar lá, eu quero trabalhar aqui. Eu quero ir lá, não quero trabalhar lá, entendeu? Quero trabalhar aqui em casa.

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MC: Ai, Deus, coisa linda… Sabe o que ela parece? Ela parece quando a estrela do mar tem aquela parte que sai assim do meio para a borda… LU: Um ser, né? Parece um ser. MC: Ela parece um ser do mar. Tá muito bonita! LU: Eu amo essa peça! Eu amo ela. E ela foi um dia… MC: É ela que você vai me contar? Então você começa desde o começo! LU: O André, que é meu cliente do Badauê, pediu uma saladeira para a casa dele. Falei “Tá”. Tinha que ser uma saladeira grande, maior do que aquelas que ele comprou para o restaurante. Tenho essa forma… Falei, eu quero fazer uma saladeira grande com a base da saladeira pequena. Quer dizer, usar a minha forma e crescer ela nas bordas! MC: Isso ele pediu? LU: Ele pediu uma saladeira, apenas. Ponto. Maior do que aquela. Aí o meu processo de pensar essa saladeira começou a partir desse pedido. E aí, eu peguei aquela base, aquela forma da saladeira pequena e falei, eu quero fazer o maior anel que eu puder. Aí eu peguei aquela coisa do ventilador para cortar redondo… Para ter o maior círculo que eu tivesse ali de corte, que coubesse no forno. Peguei o do ventilador. Cortei, subi, porque ia ter muita argila sobrando. Subi bem ela, acho que coloquei outra daquela e mais uma. E foi um delírio total, porque aí eu devia estar mais ou menos aqui assim, ó (mostra peça), e aí ela cai inteira. Aí eu comecei a levantar ela e apoiar em coisas. E comecei a acomodar ela em coisas. E comecei a dar o acabamento. E aí eu fui esticando e pus um vidro aqui, uma garrafa aqui, uma outra forma aqui, aí uma outra forma em cima da forma aqui… E aí comecei a fazer uma escultura de formas, e por baixo dela para apoiar. Carimbei minha assinatura, fui embora. A Helene me liga no fim do dia e me diz assim, e ela não viu eu fazendo, eu tava sozinha, falou: “Aquela coisa gigante que você fez, rachou na bunda”, falei: “Mentira”, ela falou: “Rachou na sua assinatura”, falei: “Beleza, tô indo aí. Isadora, já volto”. Peguei o carro e fui embora. Eu nunca tinha feito isso. Às vezes falava: “Paciência, foda-se, depois eu faço”. Falei: “Não, na minha escultura!”. Cheguei lá ela perguntou o que eu ia fazer e falei assim, “Vou consertar”. E comecei a amassar, amassar, amassar… Enfiei a mão por dentro… (Simula na peça). E ela falou assim: “Mas não pode, vai rachar!”, falei: “Não vai rachar, eu não quero que rache… Não tá linda?”, ela falou: “Tá linda!”, “Então não vai rachar”. A primeira fase. Enfiei no forno na primeira oportunidade, quando secou, deixei secar. Acho que ela ficou secando uns vinte dias. Porque era grande, e tinha que estar sequinha inteirinha por igual para ir no forno. Botei ela no forno, saiu inteira linda. Só que ela tinha um histórico de racho, né? Então falei: “Tá bom, então eu vou esmaltar ela no azul cobalto, que é esse azul reativo, porque se tiver algum resquício de racho ele vai fundir porque esse esmalte tem essa característica de fundir pequenos rachos. Porque é aquele que eu te mostrei que eu fiz e ela… Tá. E eu falei: “E eu não vou esmaltar no pincel”. Foi a primeira peça que eu fiz assim. Ah, antes de esmaltar eu passei uma baba de argila preta nela. Quer dizer, ela é uma peça branca, que eu passei uma baba de argila preta porque o azul cobalto na branca a gente sabia que não ia ser reativo. MC: O que é não ser reativo?

LU: Ele não ia ficar com essas reações dele! Ele não ia reagir, ia ficar um azul “xoxo”. Não dá esse efeito na branca. Então eu coloquei… MC (Interrompe): Uma baba é uma camadinha? LU: Exatamente! E a hora que secou eu queimei… Tirou do forno eu joguei o azul cobalto e ele foi escorrendo… MC: Você foi untando! LU: Exatamente! Joguei umas quatro vezes, aí ele foi escorrendo. Tanto que deu essas bolhas. MC: Mas desde aqui? (aponta para peça) LU: A mesma tinha que está aqui é a que está aqui MC: Então você não passou pincel? Você só foi fazendo assim na peça inteira? LU: Exatamente! Aí foi escorrendo pelos vãos, devolvendo no baldinho, devolvendo no baldinho… Por isso que ela tem acúmulo de tinta aqui (indica), acúmulo de tinta embaixo, porque obviamente ela escorreu lá pro fundo. Que era o que tinha que acontecer mesmo para fechar um possível racho. E aqui fora eu fiz ela esmaltada, sem a baba preta, e ela reagiu também, que a gente não sabia o que ia acontecer porque em geral ela não vai bem na branca. Aqui foi na base da pincelada, e isso aqui (indica) é cortante, tem que tomar cuidado. Porque são bolhas do vitrificado que estouraram. Eu queimei ela duas vezes. Três vezes na verdade, porque queimei o biscoito, essa primeira queima a gente chama de biscoito. Ai queimei o esmalte a primeira vez, segui minha intuição e coloquei uns três pezinhos assim (mostra), portanto o escorrido não foi para a prateleira. Ele pingou na prateleira que estava lotada de caulim, ela conseguiu salvar aquela bolha que foi para a tua colher. Tá vendo? Ela pingou no caulim, o caulim não deixa grudar na prateleira, tirei a bolha, ela já se apossou da bolha. Aí eu quebrei as bolhas e enfiei no forno de novo pra ver o que ia acontecer, mas não aconteceu muita coisa e ela continuou embolhada. Aí eu falei que não tem problema porque ela é minha mesmo. MC: Dai você nem deu pra ele? Porque essa peça não era a saladeira do moço? LU: Não, era mais não é mais. Agora é minha e nem fiz a saladeira dele. Não fiz até hoje, porque já já ele vai me cobrar de novo. Vou fazer a saladeira dele. Mas vou fazer um pouco menor, ou talvez eu aumente a base. Vou fazer ela com uma base um pouco mais larga porque aí eu entendi também que ela não é muito funcional como saladeira. Essa base pequena com essa aba desse tamanho. Eu preciso de uma base maior, posso até ter bastante borda, mas eu preciso de uma base maior para uma saladeira de casa. MC: É, depende da salada que ele vai colocar, se ele colocar um tabule fica lindo. LU: É, mas eu vou aumentar a base e não vou mais fazer esse negócio empilhado porque dá um p*** trabalho, adrenalina total. E ai tive que assinar em cima do esmalte, porque não tinha mais assinatura. Assinei com essa tinta que é um baixo esmalte. MC: Aonde está a assinatura original? LU: Aqui carimbada. Ela rachou no carimbo. Ela começou o rachou no carimbo. E eu consertei. MC: Você não tem vontade de fazer uma série? inclui. LU: Pode até ser, com essa tinta. Você fala da forma? MC: É, eu gosto da forma

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LU: Ah ela é maravilhosa, eu vou fazer outras com certeza. Mas eu preciso criar recursos para ela não ficar me dando trabalho e ficar rachando. MC: É verdade, você tem razão. Uma é muito engraçado, mas oito não tem graça nenhuma. LU: Não, nenhuma. É que nem aquelas peças que eu tinha que fazer trinta. Eu fiz as trinta e quinze quebraram. Aquelas que viraram olhos. Aí eu fiz mais quinze. Ao todo eu fiz muito mais. Foi “punk” esse negócio, mas saíram. E elas são umas das peças que mais fazem sucesso. As pessoas suspiram e falam: “Meu, o que é isso?”. Porque é uma daquelas coisas que não pode, não vai dar certo. Mas aí eu embuto no preço. MC: Mas não entendi, Luciana. O que não pode nela? Luciana: Tem várias coisas que são atrevidas aí (pega a peça). Aqui, o que é atrevido nessa peça? Eu uso uma forma assim, de gesso (mostra forma). Eu faço ela por dentro. Aí eu abro aquela placa que você me viu abrindo, só que eu não dou acabamento. Isso aqui já é um atrevimento. Porque quando você dá o acabamento e passa a esponjinha, você sela possíveis fissuras e garante uma menor probabilidade de rachadura. A espessura dela, outro atrevimento. MC: Finíssima. Isso é a única coisa que eu percebi. LU: Quanto mais fina mais fácil para rachar. Além de fazer ela fina, não dar acabamento, eu rasgo aquela placa em vários pedaços… MC: Você está de brincadeira comigo. Tudo o que todo mundo manda a gente não fazer. Mesmo eu, que não sou ceramista, sei que não pode fazer. LU: É, não pode fazer. Aí eu pego cada rasgo e vou colocando dentro da forma, costuro aonde ele fica… (demonstra na peça). Aqui vai ter uma intersecção, eu marco a intersecção, levanto, costuro, grudo. Aí venho com outro pedaço e vou fazendo assim, ó (mostra na peça). Aí às vezes eu rasgo aqui porque sobrou demais, já na forma. Então eu vou fazendo essa brincadeira, só que o que acontece? Às vezes a costura não dá certo, fica bolha de ar, explode, racha. Vai acontecendo cagadas. Que não são cagadas, é isso aí, cara. É consequência do atrevido. Só que um bowl desse para comer, é maravilhoso. Imagina? Você senta, pega o bowl e ele não tem forma. Parece que você voltou para o tempo das cavernas. É maravilhoso, eu comi em dois restaurantes. Lá no Sul, em Floripa, desse aqui dos trinta. MC: Aí você foi lá comer no seu próprio bowl? LU: Comi no meu bowl. E no Ema também, porque a Renata também tem desse aí. Comi no Ema MC: Então ele é mais caro e pronto! LU: Mais caro e pronto! Um bowl que poderia custar, sei lá. Em tese um bowl simples, fácil, ok, como esse aqui (mostra outro bowl), que tem mesmo volume, parece que não mas é. Beleza, vai custar quanto? Sessenta reais? Foi isso que eu falei né, mais ou menos? Sessenta, setenta paus. Tá, beleza. Esse aqui custa cento e cinquenta, é o dobro. Quer ele? A gente faz, mas ele custa o dobro. A primeira leva custou sessenta, se fosse hoje né. Oitenta, não lembro agora, uma coisa mais ou menos assim. MC: Você já viu o tamanho da perda, você LU: Exatamente! E é a mesma coisa desses pratos aqui, do mesmo restaurante. Porque eles racham, e eles vão todos virar quadros. Eu tenho uma leva disso aqui, que eu esmaltei depois. Rachou porque é fino, porque é

beliscado aqui para ficar com isso aqui (mostra peça), quer dizer, ele racha mesmo. E aí eu vou esmaltando eles depois do jeito que eu bem entender, e depois eu vou fazer umas peças de madeira… Por exemplo, aquele lá, mais esse aqui (mostra as peças) MC: Ai, que bonito que tá isso… LU: Eu vou colocar uma base que pode ser de cimento, aquele dry wall, de madeira, de qualquer coisa. A concepção desse é o seguinte: vão esses dois pratos fixos na parede, fixo nele também vela derretida que eu vou ter que derreter aqui no coisa, então uma coisa assim meio jantar a luz de velas, e as cadeiras vão sair… O quadro pequeno, tá? Bem pequenininho, como se os pratos ocupassem a mesa inteira. E pra fora, cadeirinhas de fio de cobre deste tamanho, pra fora do quadro assim, ó! Então bastante borra de vela, só, sem talher sem nada. Esses dois pratos e esse casal absolutamente… Uma coisa bem desproporcional. Então já tem esse aqui, esse é um quadro (mostra peça). Aí tem esse cara (mostra peça), com este cara (mostra peça). Segura aqui pra mim. MC: É amigo do... LU: Exatamente! Aí tem esse aqui, que são os deformados. Olha isso aqui (mostra peças). MC: O forno fez isso? LU: O forno fez isso, eu coloquei ele numa base de biscoito e aí já era, derreteu em cima. Coloquei numa base pequena, né MC: Você fez de propósito, né? LU: Não, não, não. Aprendi fazendo, porque a base era bem menor do que eu deveria ter posto. Por isso que eu falei, eu aprendo as coisas fazendo! MC: Entendi! Daí você viu o efeito e falou: “Ai, que legal!” LU: Eu vi quanto que ele deforma no biscoito. Entendeu? É muito, não é pouco. Então se eu quiser fazer um negócio assim eu posso colocar dentro do forno, jogar ali e ficar… exatamente! Então esse aqui é outra parte, que tem dois assim, ó (mostra peças). Então eles são todos… Têm dois desses e vão esses dois, na outra mesa que provavelmente não vai ter mais nada. MC: Entendi… LU: Esse aqui… (Mostra peça) MC: Ai, esse tá tão lindo! LU: Não é? Que eu também não sei ainda com é que ele vai ser. MC: Mas isso foi ao acaso? LU: Rachou… MC: Rachou no lugar do veio da planta, parece uma folha LU: Não… A esmaltação veio depois. Eu esmaltei esses pratos depois que o biscoito deu errado MC: Ah, você já tinha me falado disso, é que na hora eu… LU: Entendeu? Então eu peguei, por exemplo, esses daqui eu joguei a tinta dourada e a Helene: “Não, não”. Porque você perguntou: “Alguém faz uma peça toda de ouro?” Que eu falei: “Eu faria”, porque não tem essa coisa. Essa aqui é uma tinta que custa cento e poucos reais, um trequinho assim pronto MC: E ela é bonita… Lu: Carésima! Ela é linda! Ela falou: “Você não vai usar esse dourado, Luciana, nas peças quebradas!”, eu falei: “Vou, vou sim”, “Mas pelo amor de Deus, ela é muito cara!”, eu falei “Foda-se, depois eu compro outra, não sei, não quero nem saber, vai dourado aqui”, e arrasou. E eu joguei assim depois.

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MC: Você só jogou assim? Despreocupadamente? Lu: Despreocupadamente! Esquecendo o quanto eu tinha pago na tinta. Mas Nina, fiz… MC: Tá lindo! Lu: Agora eu vou fazer o quadro do jeito que eu estou te falando. Quanto eu posso vender esse quadro? O quanto eu quiser! Posso pedir o quanto eu quiser, posso pedir cinco pau no quadro. Lu: E ele tá na parede, você quer levar? Ele custa cinco mil. Se você não quer você deixa ele aí, porque ele tá na minha parede. Tá tudo certo. (Mexe nas peças) Ó, esse é um porta alianças. MC: Agora Lu, dá vontade de fazer um assim pra vender mesmo assim ele, pra comer. Porque ele tá muito bonito Lu: Então, mas tem, esse aqui, ó (mostra peça). Esse aqui é o produto final da mina. MC: Ah então, isso que eu quero ver, que ele não… Lu: Só que esse rachou MC: Mas o que eu quero te dizer é que eu gostei dessa mistura aqui, ó (mostra peça) Lu: Então, mas isso aqui ele não é utilitário. Não dá, porque isso aqui é poroso, vai ficar uma mancha de óleo, não dá pra lavar. Você precisa vitrificar para ele ficar utilitário, e esse é o resultado, é isso que ela usa na mesa. Esse aqui rachou na esmaltação. Que é o lance que eu te falei daquela peça lá, da tal da peça da história, que eu falei: “Bom, eu vou esmaltar com cobalto porque não rachou na primeira queima, mas pode rachar na segunda. Então usei um esmalte que poderia fundir o racho. Aqui eu não sabia que tava rachado, aí eu esmaltei… Porque ela recebeu os outros trinta pratos dela assim, que fica lindo. Tem um hotel em Florianópolis que é escandaloso, nossa. E eu não sabia, ela entrou em contato, uma coisa bem despretensiosa, fiz o orçamento como eu faço pra todo mundo e depois eu descobri que tinha um puta figura que é um diretor de arte que é o Felipe Morozini fazendo toda a identidade do hotel, ele que escolheu minhas peças, eu projetei, ela topou. Falei que eram peças frágeis, ela falou “Não tem problema, porque o fluxo de restaurante do hotel é só dos hóspedes, eu tenho cinco suítes”, ela tem um hotel com cinco suítes MC: Ai, é aquele super mega vip LU: Entendeu? Então eu fiz noventa peças para ela começar, agora acabei de entregar mais uma cara, que é quando fui conhecer o hotel, que eu fui entregar a segunda remessa eu fui levar. Eu falei: “Ai, preciso sair daqui”, daí fui pra Floripa curtir. Ó, essa aqui é aquela que está na foto MC: É linda Lu: Não é? MC: Mas escuta...Ai, que delícia… Lu: Isso aqui são as coisas que eu vou fazendo de experiência. Essa pegadinha que tem a casquinha do Ema, que eu te falei que tem uma pegada… MC: Então, eu achava que era essa, daí eu vi que não era porque você falou que isso não é casquinha… LU: Não, é preta… (pega peça) Ó, isso aqui é um pedaço de vidro, num prato que ficou muito torto, eu tive que refazer pra cliente, que teve outro que quebrou lá a borda. MC: Nossa, mas essa tá tão bonita… Lu: Olha esse vidro, que arraso… MC: É um vidro? É um vidro qualquer que você escolheu?

Lu: Peguei uns cacos que tinha aqui, uns cacos de vidro azul, que ficou uma coisa mais linda. Quer dizer, você fala “Ah tá, mas pra que serve esse prato?”, ele não precisa servir pra nada, ele é lindo. Entendeu? Você pode ter, você pode colocar ali com as suas chaves, ou não. Pra mim só de ele ser ele já tá ótimo, não é? MC: Aham… Não, mas ele ficaria lindo usado né, Lú? Porque dá pra fazer uma coisa bem charmosa Lu: Dá. Dá pra servir nele também. Isso aqui são as rosinhas que a nossa amiga Lulita faz, olha isso aqui. A cerâmica ela é uma coisa… MC: Helene você chama de Lulita? Lu: Não, Lulita é outra. Uma outra querida, que ela é contemporânea da Helene, assim ela deve ter seus setenta e cinco anos… Minhas amigas são tudo… Eu tenho amiga de vinte e de setenta MC: Nossa é tão bonito… Se fosse um prato, né? Lu: Eu pus um prato rachado, lascado aliás. O prato lascou. O prato do Badauê, o Badauê tá escrito aqui embaixo. Aí coloquei as rosinhas em cima. Isso aqui é um porta qualquer coisa. Porta chaves, você pode colocar aqueles potpourris de cheirinho, flor seca… Lindo, romântico! MC: Delicioso! Romântico! Lu: ( Pega peça) Esse aqui é o “F” do figura lá que eu te falei, que ele não gostou MC: Que ele não gostou! Que tá tão bonito, né? Lu: Tá lindo.. Mas não gostou, não gostou. Eu ainda tenho esses aqui grandões para refazer, ó, que eu vou ter que dar uma finalidade para eles… (mostra peças) MC: Que também são dele? Lu: Que são dele também. MC: Muita coisa legal Lu: Paciência. Não gostou, não gostou. Não vai ficar com coisa minha pra depois ficar amaldiçoando e falando: “Essa bosta desse prato horrível”, entendeu? Não, ou você gosta ou a gente dá outro jeito. (mostra peças). Isso aqui também é daquela leva de experiência daquela saladeira só que é uma bem rasa, mas é também experiência de cor, ó... MC: Mas isso também dá para comer direitinho, esse é um prato charmoso Lu: É, eu acho que ela é meio alta pra prato de… eu usaria para servir. Botar o arroz, botar a salada. Acho que ela é grande pra prato, essa altura dela. Não sei, pode até ser também, não sei. MC: Eu acho que ela ficaria linda com um macarrão Lu: É, né? Porção individual, pode ser também, mas aí eu teria que fazer mais. MC: Muito lindo, muito lindo!

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ANEXO 5 - ENTREVISTA COM OSNI BRANCO

A conversa com Osni iniciou imediatamente após a chegada da entrevistadora, na sala onde os produtos finalizados estão dispostos. Ele pôs-se a mostrar suas obras e a gravação começou dez minutos após o início. (MC) pronto, pode falar (OS) então...é... (MC) isso aqui era? você estava falando disso daqui (OS) isso aqui era um tronco, então o que a gente faz, quando a gente serra o tronco, a base, aqui é a terra, daqui pra cá é o tronco. Aqui é a terra então mais largo, lá o céu então mais estreito e aqui cresce mais, teve mais tempo de crescimento, então a gente corta ao meio e inverte. (MC) estou vendo direitinho (OS) pega essa placa aqui, gira assim (MC) aham, encaixou (OS) isso aqui era o tronco então nós cortamos e invertemos (barulho) pra dar essa compensação, o largo terra e Yang com Ying que vai pro céu, então os dois juntam aqui ó, fica um retângulo (MC) está linda (OS) um compensa o outro, certo? Então são as chamadas pranchas irmãs ou tábuas irmãs que é muito considerada pelo luthier, porque se não, não afina o instrumento (MC) ah, é assim que faz o violino? (OS) é, violino, viola, tudo (MC) na mesma prancha então (OS) chama tábua irmã (MC) naquela parte assim do violino, metade é para um lado e metade (OS) é, mas eu vou te mostrar aqui num tronco (passos), tem que ser um tronco pra você entender como é que funciona o negócio (barulho de tronco sendo apoiado). Então aqui é assim, onde é que é o norte aqui? isso aqui é uma bússola natural (barulho), onde pegou mais energia, está vendo esse crescimento? anel de crescimento (MC) estou vendo (OS) é pequeno, certo? aqui é o centro da madeira (MC) estou vendo direitinho (OS) - tá, então aqui é o sul (MC) tá bom (OS) abaixo do equador, aqui é o sul. Se você tivesse nos Estados Unidos (MC) caramba (OS) era o contrário certo? Porque o sol passa pra baixo. Bom, pra baixo... (risada) não tem nem pra baixo nem pra cima. É.. então, o sol nasce aqui e se põe aqui. A carga de energia vem aqui ó, então por isso que ele cresce pra lá (barulho). Se você não comer, não cresce, não é? Se você não tiver energia não cresce... então, a madeira é a mesma coisa. Então essa fibra aqui, recebeu mais energia, ela é mais tensa, ela é mais compacta, ela é mais uniforme do que essa aqui, tá?. Então como é que eu faço pra... dentro desse corpo, como eu faço pra tirar dois pedaços de madeira que são mais semelhantes possíveis fisicamente, dentro dessa tora. O que eu faço? Aí o corte também já é diferente né. O cara pega e corta aqui como...aqui...imagina que...aí temos que inverter. A tora está assim, certo? Então eu tenho que tirar aqui, então tenho que tirar lá, tirar aqui ó assim, menos inclinada.

Vamos dizer 4 aqui, pra terminar com 3 embaixo. Então duas tábuas, 8, certo? (MC) você está fazendo uma tábua né? (OS) certo, aí eu tiro esse sarrafão de 8 e depois vou pegar esse sarrafão de 8 e vou abri-lo assim, vou ficar com 4 e 4 aqui (MC) tá (OS) então o que que eu fiz? A fibra daqui e a fibra daqui são as mais semelhantes possíveis (MC) elas são irmãzinhas (OS)isso, então eu tenho uma harmonia de fibras aqui ó, nesse fundo (MC) completamente (OS) se eu pegar uma outra madeira (MC) uma espelha a outra no final né? (OS) oi? (MC) dá um espelhamento (OS) exatamente isso. Então isso é colocado no fundo da viola, do violino, você vai ver que a tábua é emendada né (MC) ah...entendi. Aí nesse caso Osni, ele não fez assim (OS) não (MC) ele só fez assim. (OS) ele só fez assim. Ali eu faço por uma compensação de forma, não tem comprometimento com o afinamento nem som. Mas no caso do violino, da viola não, aí ele só abre (MC) então a viola pra conseguir esse afinamento, ela precisa dessas chapas irmãs. (OS) chapa irmã lá do norte, é o melhor da madeira (MC) olha só (OS) por que é o melhor da madeira? Porque recebeu mais energia e principalmente aqui ao meio dia né, porque aqui é o ponto de mais insolação (MC) se eu fizer algum tipo de sei lá, de medição, de experimento...isso aqui é mais denso que isso aqui? (OS) pode fazer (MC) essa daqui é mais frágil? (OS) isso (MC) inacreditável né? (OS) você sabe que quando você corta (MC) ah, só de cortar já dá pra saber (OS) quando você corta você já fala, ah opa esse aqui já é o outro lado (MC)entendi (OS) a outra coisa é, se ela nasce no centro da floresta ou se ela nasce na beira do morro já muda tudo (MC) mas aí você me fala? (OS) falo (MC) porque senão depois não vou lembrar (risadas), não vou conseguir explicar. Tá, se ela nasceu no centro da floresta (OS) ela tem as outras irmãs em volta pra protegê-la. Um irmão protegido é sempre mais frágil. (MC) é verdade? (OS) é lógico. Ela é mais frágil, a fibra não endurece, não é tensa, é macia. Também é mais uniforme, não levou porrada, não tem machucado. Se ela nasce na beira do morro, ela é muito mais tensa que as outras porque ela está em perigo, o vento está sempre mexendo pra lá e mexendo pra cá e ela resistindo lá na beirada. Nossa, outro dia eu estava assistindo um vídeo lá americano, o cara cortando um cedro vermelho americano, devia ter

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uns 5 metros de diâmetro, o cara tinha que fazer uma cunha assim e andar naquela cunha na beira do abismo. (MC) ele estava cortando? (OS) cortando. O Estados Unidos é predador desgraçado. Aquele norte, Washington sei lá o que vive de coleta, a gente não acredita. Os caçadores de tronco, de toras assim... vale 10 mil dólares uma raiz daquelas. Aí o cara investe, vai no Alaska, naquela região fria e são aventureiros mesmo e tem poder, tem mercado e tem maquinário. Maquinário lá é barato, não é como aqui que é tudo caro. Eles não pensam muito, acham que tem bastante, que não vai acabar. E tem o outro lado que compra, aqui ainda não compra né. Mas essa compreensão holística da coisa que interessa né, porque tudo está aí à nossa disposição, mas se você não tiver consciência é que nem tomar cachaça, é muito bom aquele copinho com os amigos, pum, ah... que cheiro da minha terra, da minha fazenda onde eu morava desde criança, aroma do café, da cachaça é a minha mãe, perfume da minha terra, né? se eu tomar um copinho. Se eu tomar uma garrafa, aí a garrafa que me engoliu (risadas). Não é? então a natureza é a mesma coisa, se está aí é pra ser o desfrute agora se você... (MC) marreta nela... (OS) ... ela estava aí antes de nós chegarmos aqui. Se nós desaparecermos, ela continua aí. Agora, se ela desaparecer, nós vamos juntos. Então essa coisa com a natureza é que nós ainda não percebemos, não sabemos, não sentimos. Então você trabalhar com essa proposta, está mostrando...podia rafiar aqui, alinhar tudo 90 graus, não interessa. Ali tem 90 graus, mas tem a história da madeira, tem mais 40 anos essa peroba aqui do lado (MC) ah, é peroba? (OS) peroba. Essa textura só ela dá. Se eu olhar uma madeira dessa daqui, já sei que é peroba, pela textura, tudo carcomido, é sempre assim. Movimento de água, de rio. (MC) movimento de água (OS) não é? Maravilhosa (MC) mas essa peroba é qual? (OS) peroba rosa (MC) engraçado, ela está com uma cor mais escura né? (OS) por causa do ultravioleta (MC) ah, tá bom (OS) agora aqui, como eu tenho que fazer um acerto pra poder juntar, então você vê que aqui foi lixado, então a cor é diferente (barulho). Agora aqui não, aqui quis deixar a cor com o tempo, porque só o tempo dá essa cor por causa do ultravioleta. Que nem a gente, quando eu nasci eu era branquinho, agora já está tudo ó...(risadas) (MC) você nasceu aqui Osni? (OS) Araçatuba (MC) é verdade! (OS) um privilégio de poucos, um ovo assim (MC) deixa eu tirar uma foto dessa aqui que está tão linda! Agora por exemplo Osni...só pra eu entender, essas madeiras que estão aqui, como é que você conseguiu isso? Essas assim você tem que comprar não tem? (OS) Tudo aqui é ganhado. Exceto aquela ali eu comprei ó, aquele Cipreste Lusitânica, o tampo só. (MC) aquela que está aqui embaixo (OS) é, fui lá numa serraria, o cara tinha serrado uma tora enorme assim

(MC) mas você fez essa mesa? (OS) foi (MC) engraçado Osni, você tem estilos totalmente diferentes né? (OS) é, essa mesa era minha mesa de infância, na minha fazenda (MC) ah...você reproduziu (OS) a memória de infância, onde tomava café da manhã. Minha mãe fazia tigelinha, punha o pãozinho dentro e a sopinha pra tomar (MC) aí você quis sua mesa de volta (OS) é, voltar pro útero materno, quem não quer? (MC) é verdade. Essa madeira dessa mesa você comprou. (OS) não, só o tampo. As outras são de outra árvore, quer dizer, da mesa espécie, é tudo Cipreste Lusitânica originário das montanhas do México e da Guatemala que foram levados pelos portugueses pra Portugal. Os jesuítas plantaram lá, se deu muito bem lá. A Revolução Industrial Inglesa propiciou a expansão da indústria moveleira, usando a mão de obra portuguesa e plantaram em Portugal que se deu muito bem. Aí passou a se chamar Cipreste Lusitânica, mas a origem é América do Sul. É, quase tudo que salva o mundo saiu daqui né? A Europa teria morrido de fome se não fosse a batata que saiu dos Andes, o cacau, o milho... (MC) tudo ali, América Latina (OS) os coreanos ficam bestas de saber que a pimenta que eles tanto comem e adoram saiu daqui. Todo mundo pensa que é da Ásia e a pimenta vermelha saiu daqui né. Então a gente tem dado uma contribuição imensa. Hoje, 60% do ouro que está no mundo em giro, ainda saiu de Sabará (MC) só pra gente ver como foi avassalador né? (OS) só pra saber que nós temos Deus na mão e jogamos pela janela. Pura simples ignorância. (MC) é verdade (OS) e só tem uma salvação, cultura, escola. Só tem esse jeito de sair disso, daqui uns 3...4 séculos, quem sabe... Eu quando era jovem achava que ia fazer uma revolução, mas eu já estou me despedindo, sabendo que vai durar muito mais. Meio chateado né (risadas) porque... (MC) mas todo jovem né... 15 minutos (OS) aí você mora 20 anos no Japão, o meu ateliê eram duas malas. Aí quando eu vinha pra cá eu falava “Jesus, tudo isso de espaço, de luz e não se faz nada com isso” (MC) um mundo de recurso né? (OS) você não tem nem noção do valor. Um bem-estar ó (pausa com respiro, levanta os braços), que maravilha! Se eu fizesse isso lá, eu furava o teto da minha casa. É, a casa lá era assim, eu tinha que ir no oitão da casa para vestir a camisa (MC) inacreditável isso né? (OS) agora prepare-se, o banheiro da minha casa, lá é tudo separado né, você toma banho aqui, faz coco aqui, lava a roupa aqui, tudo um do lado do outro... entrava na privada e “pem!” a porta ficava assim aberta segurando o trinco porque se eu ficasse mais pra trás eu estava em cima da tampa lá, não tinha jeito, eu ia ficar assim, eu não sentaria no vaso. Pra mim me acomodar no vaso... (MC) mas isso é mal planejado ou é por que eles são pequenos?

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(OS) porque eles são pequenos. Cabia neles, eles fechavam a porta, tem as pernas mais curtas do que o tronco, a proporção de corpo é diferente. Se você olha um japonês e um branco sentado (MC) é verdade, a perninha deles é mais curta (OS) então sentado é tudo igual, quando levanta é que tem a diferença por causa dessa proporção do corpo. Agora, eles são ótimos pra pequenos espaços, os banheiros de aviões no mundo, são todos projetado pelo Japão, eles sabem aproveitar os espaços. É inacreditável, e nós temos tanto e não sabemos o que fazer. (MC) e seu ateliê eram duas malas? (OS) eram duas malas. Aí minha mulher ia trabalhar, meus filhos iam pra escola e eu pegava as malas, tirava de baixo da mesa (MC) botava na mesa da casa (OS) isso e de olho no relógio, daqui a pouco o pessoal vai voltar, aquela luta (MC) mas o que você conseguia fazer assim nessas condições? (OS) modelava, fazia esculturas e trazia pra fundir no Brasil (MC) ah! Eram os moldes que você usava pra...você já trabalhava em parceria aqui (OS) eu fazia workshop pras escolas, vamos descer? (MC) vamos (OS) nas escolas, aí era esquema japonês né, lá como não tem espaço, as coisas grandes são aprendidas em miniatura (porta batendo), em escala reduzida e depois é só aumentar, a receita do pão já está feita, e depois é só aumentar o tamanho da massa certo? (MC) aham, bobos eles não são, aprenderam a se virar (OS) então a gente fazia isso nas escolas, fazia fundição lá, adaptava né, com estanho baixa temperatura. Bom dia! tudo bem? OUTRA VOZ- tudo bom (OS) Bom dia! (passos). Aqui são as árvores que a gente planta, tem um monte de muda aqui, lá embaixo tem mais e a proposta é pagar taxa de carbono então as pessoas que compram as esculturas e tal, levam a árvore pra plantar. Então tem que plantar uma lá na escola, na Waldorf (MC) ah! se quiser eu já levo, viu? (OS) é (pausa) envolver as crianças nisso aqui (MC) aaah! tá bom! (OS) na escultura, taxa de carbono, então é isso, então veio lá de Itapecerica, vamos fazer uma cerimônia, se tirar a cerimônia da vida o que que resta? Então é isso (MC) nossa, que legal! Você já tinha falado isso pra Melanie? (OS) não (MC) ah então tá bom, a Melanie teria lembrado, se eu conheço a Melanie, ela não teria esquecido disso (passos) (OS) bom aqui é onde eu crio, onde eu começo a modelar as peças menores (MC) mas ó, precisa focar em algum lugar porque como está gravando (OS) hm, está gravando? (MC) eu estou gravando, aí eu vou precisar (pausa) (OS) você quer sentar? veja o que você quer fazer, você é diretora de arte (MC) eu quero sentar. Aqui é seu escritório e o lugar de criação certo?

(OS) é. Então basicamente aqui é onde a gente cria as peças quando são muito grandes (MC) isso daqui foi você? (OS) é, foi. Isso aqui é uma réplica de um pessoal de colecionadores que trouxeram uma foto de uma... que era da Segunda Guerra mundial, aquelas coisas todas e queriam que eu fizesse ... Aqui é uma naja, uma cobra (MC) dá pra ver bastante bem e a caveira do outro lado (OS) e uma caveira, são coisas assim bem americana (MC) e como você faz isso? (OS) com poliuretano expandido, modernamente nesse material. Isso aqui é um expandido japonês né, nós temos vários ó (barulho seguido de pausa) (MC) hm, isso você compra aonde? (OS) Japão. Importa né, compra lá e o pessoal manda pra cá (MC) então isso aqui você modela qualquer coisa que você quiser, todos as peças são modeladas aqui (OS) não todas, mas a maioria, as vezes isopor, porque nós não temos boa qualidade de material esse é o problema. Esse aqui é um isopor de alta densidade aqui (barulho, batendo no isopor) é o número um, mas aí você tá modelando, de repente chega no meio e tem um buraco (MC) ai que droga, aí você faz um enxerto? (OS) daí tem que fazer enxerto e tal mas isso é trabalho inseguro. Esse aqui não, esse não é bolinha, é uma esponja (MC) é verdade (OS) é produzida dentro de uma autoclave (MC) mas isso é feito pra isso ou você adaptou? (OS) feito pra isso (MC) caro, Osni? (OS) e pra isolamento térmico eles usam no Japão (MC) tem cara de ser, por isso te perguntei (OS) mas usa pra modelação também porque eles usam muita modelação, eles criam muita imagem, tem muita imagem, até a escrita no Japão é imagem. Imagem no Japão é um negócio muito forte. Então pra você modelar peças com detalhes minúsculos, você tem que ter a bolha cada vez menor pra te dar a estrutura. (MC) com certeza (OS) então aqui ó, esses aqui são coleção de Baobá que vão ser fundidos agora. Eu queria fundir pelos 70 anos do Pequeno Príncipe. (MC) do Pequeno Príncipe, que coisa linda! (OS) que tem o Baobá que vai engolir a Terra e tal, que tem a ver comigo, a árvore né? (MC) isso daqui é esse material aqui? (OS) o azul é esse material aqui. Eu economizei aqui né, pão duro (MC) não, mas você está certo (OS) (ruídos) tem que fazer oco né, porque senão além de dar problemas na fundição por causa de muita massa, depois fica muito pesado pra quem transporta, pra quem usa então eu fiz os galhos com poliuretano expandido e aqui o tronco em isopor (MC) e é caro esse material japonês? (OS) o problema é imposto, quando chega no correio eu paguei mais imposto do que o preço da coisa né (MC) com as minhas coisas acontece a mesma coisa, é desanimador

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(OS) agora aprendi, tem que importar com menos de 300 dólares por pacote (MC) aí você vai fazendo pacotinho (risadas) ou vai lá em Brasília né (OS) (ruídos seguidos de pausa) aqui o workshop no Japão, esse aqui eu fiz com uma árvore que caiu na escola, então nós aproveitamos pra fazer (MC) em qual escola Osni? (OS) Sacred Heart em Tóquio, que é a única que é em língua inglesa. Aí então nós preparamos a tora pra fazer o pirarucu, fizemos o peixe gigante pra colocar no parque das crianças. Isso daqui é no pátio da escola. (MC) pôxa vida, mas que luxo hein Osni (OS) maravilhoso. Isso daqui era da família Mitsubishi, da princesa do Japão, hoje imperatriz que doou pro Sacred Heart (MC) o lugar da escola (OS) maravilhoso, no centro da cidade uma floresta (MC) ah, vocês modelaram o peixe (OS) tudo cavado na marreta (MC) quanto tempo? (OS) 3, 4 meses de modelagem (MC) e você ficava trabalhando assim, na escola (OS) então, foi uma coisa que aqui no Brasil já ofereci, mas aqui o medo impera, é um horror, não entendem uma coisa dessas se você falar. Todos esses são professores que ficaram num frio danado de noite, nós ficamos lá acampados, foi uma festa pra eles, né? Tomando conta da queima do tronco né, porque como era verde, tínhamos que tirar a umidade de dentro dele porque com o assado, você mata todos os ovos de cupim que tão lá dentro (MC) mas como você bota fogo nisso? (OS) encapa ele todo de gesso aí ele assa, o fogo não vai direto. Fizemos um carvãozão, aí assou de um lado e depois do outro (MC) aham (OS) aqui é o histórico que eles fizeram pra apresentar na escola pras crianças e eu trouxe (MC) e eram professores de várias áreas Osni? (OS) de várias áreas, todos os professores da escola aqui ó, participando (MC) interessante, essa escola é no Japão, mas é uma escola americana? (OS) Sacre Coeur, origem francesa (MC) sabe por que? porque não estou vendo olhinho puxado dos professores (OS) pois é, mas a maioria ó, essa daqui é americana, professora de arte. Esse é inglês, que é o professor chefe lá, o principal (pausa). Depois ele foi tirado daí e o acabamento foi feito em uma tenda na entrada da escola, aí vinham as mães, os pais, o envolvimento da escola todinha (MC) quantos alunos tinham nessa escola? (OS) olha eu não sei, talvez uns 900 (MC) o tamanho da Steiner (OS) Na época que minha filha Yasmin estudou lá, tinham crianças de 52 países. Como? por causa de ser em Tóquio. Como a escola é feminina, as filhas dos embaixadores, de todos os corpos diplomáticos, dos bancos, das indústrias que estavam servindo no Japão, onde que iam colocar suas filhas pra estudar? em uma escola japonesa? era meu problema, minha filha estudou 4 anos em uma

escola japonesa mas e daí? depois sai de lá e volta pro Brasil vai fazer o que com o japonês? (MC) supercomplicado (OS) não tem aplicação aqui, já chega o conflito de comportamento né. Quando volta aqui, pra se adaptar novamente é... (MC) difícil pra caramba 30 minutos (OS) tudo aqui é mais ou menos, até hoje não se achou. Aí pegou mais 6 anos de uma escola, de regime inglês (MC) aí, depois ela foi pra uma escola... (OS) é, pro Sacred Heart, escola é a língua inglesa, uma opcional, mas a influência do meio é muito mais forte. O tensor social predomina em qualquer lugar, com japonês no pátio, não tem jeito. Todo mundo falando japonês, acaba falando japonês, que é a língua comum né (MC) lógico (OS) e também tem muitas filhas de japoneses estudando lá. Principalmente famílias que acontece o inverso, saem fora do Japão pra servir e depois quando voltam pro Japão (MC) o filho já estava adaptado (OS) não consegue mais entrar e lá fora não tinha escola japonesa pra estudar, então teve que estudar em uma internacional, acaba virando uma sociedade internacional. (MC) e por que a escolha do peixe? O que era o peixe? (OS) eu sou signo de peixe, pescador, cozinhador de peixe, gosto de comer peixe. O peixe tem o símbolo da resistência, a carpa no Japão é aquela que fura o açude (MC) isso (OS) é (pausa) o peixe remete ao cristianismo, dar o peixe não ensina à pescar, o resgate da dignidade. Não dá esmola, mas dá o conhecimento. Dar esmola é uma forma de você aprisionar, uma pena ... então tem todo esse símbolo aí, então por isso o peixe. Toda criança gosta de bichinho certo? (MC) muito (OS) e se você fizer um cavalo é complicado pra modelar, mas um peixinho não. (MC) ah, então o peixe nasceu desse contexto (OS) antes já tinha o peixe, porque eu fazia esse workshop para os brasileiros lá que estavam no fundo das fábricas trabalhando. Essa história começou assim, porque nós tínhamos muitos problemas, muitos eu não digo porque eram 360 mil brasileiros. Se você vai com um grupo pra Miami, pra Disney World de 30 ou 60, vai ter problema não vai? vai acontecer problema (MC) aham (OS) agora com um grupo de 360 mil, sempre vai ter algum problema, mas a mídia lá “vum!”, então nós éramos ladrões e violentos (MC) ah! entendi (OS) a imagem brasileira. Aí conversando com um jornalista, falou ó “ por que você não abre seu ateliê e tal” e de repente podia ser um canal pra esses jovens ao invés de sair do container da fábrica aonde eles moram pra ir pro boteco encher a cara em tudo que não presta, porque gueto só dá o que não presta, a maioria ali está tudo desajustado. Inverno, inverno conduz ao que? Inverno não tem energia. Ó, põe energia que dá direto, onde é o maior índice de alcoolismo? (MC) nos países frios, na Rússia

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(OS) não é? Falei ah ótimo, será que eles vão se interessar? Aí abri, vieram 12. Aí depois de um ano tinha mais de 100. (MC) na fábrica (OS) acontece que é um país socializado, então toda cidade tem seus quarteirões, blocos de quarteirões que tem um centro comunitário (MC) ah, no centro comunitário (OS) que você pode alugar a sala de tudo que você quiser. Se você quiser ir com as suas amigas lá fazer culinária, tem sala para culinária com fogões, com tudo. Aí de arte, tem lá com forno, com tudo (MC) inacreditável Osni (OS) sabe quanto? tipo, se fosse aqui no Brasil, 20 reais o final de semana (MC) jura Osni? (OS) só simbólico. Só que você tem morar no lugar (MC) você tem que morar no bairro (OS) no bairro. Na sua carteira de identidade tem o seu endereço (MC) aham, tá bom (OS) toda carteira de identidade, se você mudar, eles põe outro endereço. Tem todo histórico seu na carteira de identidade, de onde você veio, pra onde você está indo. Então os meninos telefonavam, “ah eu vi lá na televisão o workshop assim que vocês estão fazendo, queria fazer, onde vocês estão?” Ah eu estou em Hokkaido, Kanagawa, Okinawa. Você está em que cidade? tal tal tal. Então é o seguinte, você reúne 10 pessoas né, porque eu tenho que ir aí, pra fazer pra 2,3 não dá, não paga o custo. Então você reúne 10 pessoas no mínimo, aluga a sala de artes do centro comunitário, como ele mora lá ele pode, eu não posso. Então ele alugava lá e aí eu ia com a minha mala (MC) com sua super mala (OS) é, ia pra lá pra fazer o workshop para essa turma e aí já deixava tudo engatilhado pra eles tocarem aquela escultura deles. Aí depois de um mês (MC) eles faziam em que? (OS) tudo em poliuretano. Aí retornava e continuava o trabalho, quando tinha uma coleção, eu falava olha, nós vamos fazer a exposição, então vocês escolham 3 peças no máximo, as que vocês acharem melhor pra gente fundir, porque aí eu vou ao Brasil, fundo e trago de volta. (MC) mas era coisa grande? (OS) a gente segurava (MC) ai, porque pelo amor de Deus (OS) brasileiro é megalomaníaco. Uma vez eu fiz um workshop aqui e deixei os blocos (MC) (risadas) (OS) quando eu vi as madames estavam pegando os blocos desse tamanho assim, carregando, falei gente! Sabe o que é, não tem ideia do trabalho que dá. (MC) ah, com certeza (OS) maior área, você tem que cavar mais, então era no máximo isso aqui. (MC) ah, tá bom. Está bonita essa hein (OS) então trazia aquele monte de coisa, fundia e depois levava aquele monte de escultura fundida pro Japão. Chegava lá, entrava tudo numa boa. O que é isso? Ah, isso é uma obra de arte. Uma vez em 20 anos, a polícia federal na hora de entrar lá com caixas assim ó, o senhor pode abrir uma? Falei posso. O senhor quer escolher uma? Não! Pode abrir a que o senhor quiser. Abri assim

(MC) passou (OS) passou. Então assim, é outro mundo. Bom, aqui no Brasil se eu falar um negócio desse, o professor de arte da escola já vai ficar com medo de perder o emprego. O professor de arte, Steve Tutol, é que me convidou, falou: eu quero você artista em residência. Traz o artista pra ficar residindo na escola, desenvolvendo trabalho para todos os alunos poderem conviver com o trabalho, as famílias, nossa senhora! As mães ficavam, você não conseguia nem trabalhar. Então na hora da entrada e da saída, eu deixava pra fazer esse tipo de relação, de conversar e mostrar, responder perguntas. Você imagina o que mexe com a gente? É vivenciado, as crianças assistiram isso. Envolveu a polícia, o bombeiro, porque você não pode acender um fogo desse no centro de Tóquio, já o satélite percebe e dá o alarme. (MC) gente, que coisa. Cadê a obra no finalzinho? (OS) aqui acho que não tem o final (barulho de fotos viradas) (MC) fiquei curiosa pra ver o finalzinho dela (OS) não tem foto dela acabada aqui (MC) você tem que colocar o processo aí (tosse) (OS) aqui (MC) aí está quase (OS) quase, mas não tem ela acabada. Porque quando essas fotos foram feitas, ela não estava acabada (MC) e ela ficou aonde no final? (OS) ficou no parque de diversão das crianças (MC) ah, que lindo! (OS) das crianças. Aí brincavam no peixe, Pirarucu da Amazônia né (MC) aham, muito legal (OS) aqui são meus alunos lá, a entrega (MC) esses dessa oficina que você fez (OS) não, aqui é fora da escola, são todos trabalhadores brasileiros nas fábricas japonesas (pausa). Aqui são as cartas na embaixada, na embaixadora à respeito do trabalho. (MC) Osni, como que essa história começou hein? Por que que você foi? (OS) ih caramba, eu vou responder a milésima vez que me fazem essa pergunta (MC) ah não, então não precisa (OS) vou responder né! (risadas) ninguém mandou (MC) então não precisa não! (OS) olha aqui, essa empresa aqui queria vir pro Brasil, abriu a fábrica pra nós fazermos nossas esculturas, é uma indústria de fundição do alumínio, Atinagai (?) esse é o dono japonês. Um final de semana com quarto lá, tudo, comida, tudo, em uma sessão de diretoria que recebe nas fábricas, por que? Porque aí anos depois, comprou a fábrica aqui no Brasil, já tinha feito o link com todo esse pessoal. (MC) espertíssimo, né? (OS) é. Mas você perguntou por que Japão? Japão começa antes do útero, na imigração japonesa pro Brasil. Chegou aqui tinha muito problema com exploração aos senhores do Café. O filme da Tisuka Yamasaki, pois é... (MC) pois é... (OS) então precisava educar as crianças que vinham com as suas famílias. Os italianos vinham de uma revolução, então já sabiam fazer greve, anarquista e tudo o mais. Os japoneses de uma revolução de obediência, chegaram

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aqui não sabiam como lidar com essa exploração então se suicidavam porque a pressão e o... (MC) e eles tem esse histórico né, de se suicidar (OS) é, porque o suicídio no Japão é diferente do daqui, o conceito. Lá é assim, como é uma sociedade guerreira, impera que você seja o vencedor porque só existe o vencedor e o morto, não é? (MC) aham (OS) e se eu tiver em uma situação que eu perca o controle, que eu não saiba controlar, eu sou um perdedor e se eu me matar eu saio daqui vencedor de mim mesmo. Então em última instância eu venci a mim mesmo, eu me matei. É esse o significado do suicídio. Salvo a honra da minha família, minha família pode voltar pro Japão porque eu já paguei o preço então a sociedade lá não vai apontar o dedo. O suicídio paga todas as cobranças sociais. Então tinha esse problema, o governo japonês com o governo brasileiro, se falaram, e o governo brasileiro resolveu vender terras para o governo japonês que retalhava de 10 em 10 alqueires e já sedia às famílias dos imigrantes (MC) isso em que ano? (OS) 1936, antes já começou isso, mas minha mãe entra na história em 1936. Quando eles fizeram esses grupos, esses chamados assentamentos, lá na região de Mirandópolis, Pereira, Barretos, chamaram primeira aliança, segunda aliança e terceira aliança, pra dividir tudo em lote de 10 alqueires; cada família ia trabalhar na sua própria terra e pagar pro governo japonês, certo? Então estavam colonizando, produzindo café que era o interesse do governo brasileiro, porém criou um problema, vinham famílias cheias de criança, como que faz com as crianças? Japonês sempre primou pela educação, então o governo brasileiro abriu uma pista de avião, uma escola, uma igreja e um posto de saúde, pra cuidar de cada gleba dessa e a minha mãe foi escalada, sei lá que termo usar, como professora primária de uma dessas glebas. Aí eu só fui saber depois no Japão porque as coisas japonesas estavam sempre na minha casa, tinha japonês saindo pela janela e todo mundo me perguntava porque tanto japonês. A única pessoa pra quem o imperador no Japão se curva, faz esse gesto (pausa) é para professora primária. 45 minutos (OS) não é? Mas por que pra professorinha primária? É ela que cuida da semente, se a semente não for bem cuidada e boa, não vai dar boa árvore e nem bom fruto depois. Tudo começa na base ou não? (MC) sim! (OS) simples né? (MC) simples! (OS) e tem um outro negócio no Japão chamado guirí (?), favor. Japonês não pede nada emprestado, fica devendo guirí, fica devendo favor. Favor é impagável, seu filho vai ficar devendo, seu neto (MC) olha! (OS) todos depois de ti, vão ficar devendo o tal do favor. Como que faz pra pagar o favor? Não paga, mas você tem que reconhecer sempre aquela pessoa, aquele descendente dele, com uma palavra “a minha família deve guirí pra vocês” ponto, morreu aí. (pausa) (MC) hm

(OS) mas é um trabalho de atenção, de estar atento à vida, está tudo ali, você tem que passar pro seu filho isso, seu filho não pode esquecer (MC) que a família deve (OS) é, dessa coisa que você tem. Bom, então os japoneses têm um guirí comigo, porque eu sou filho daquela que cuidou das crianças japonesas. Entendeu? Porque se ela tivesse feito coisa ruim pras crianças, eu iria carregar. Então essas coisas também, você está indo, sendo levado sem saber. Então essas famílias ganharam dinheiro e queriam mandar os filhos pra uma escola, e o melhor lugar era Araçatuba. Aí os japoneses construíram uma escola, com dormitório e tudo, escola japonesa e os meninos eram mandados pra lá, moravam e estudavam no colégio que era ao lado, voltavam, dormiam e ainda tinham aula de português (MC) nossa! (OS) quando os japoneses perceberam que não conseguiam mais voltar para o Japão, falaram “então nós vamos ficar por aqui mesmo, nossos descendentes são o único jeito de entrarmos na sociedade” por que enquanto não pensavam assim, eram fechadíssimos. Então só tem um jeito, temos que estudar, graças a esse pensamento, tem descendente japonês em todos os escalões sociais da sociedade brasileira. Não por causa do sobrenome nem por conta bancária, mas porque estudaram, então é a força da educação. Então minha mãe, esses filhos, ex-alunos da minha mãe, tudo que era casamento, batizado, tudo que era coisa (MC) sua mãe era uma pessoa ilustre (OS) era o arroz de festa, tudo que era festa estava lá e eu não sabia por que era criança, não sabia. Outra coisa, os meus livros infantis, que eu tomava conta, vinha tudo do Japão, aqueles livros de pinta, com historinha como tem aqui Saci-Pererê, A mula sem cabeça, Curupira e por aí vai, o japonês também tem. Eu recebia esses então (MC) você estava imerso na cultura (OS) imerso. Aí pedia pra minha mãe ler os caracteres que eu não sabia. Era pra criança então os caracteres eram simples, ela lia e contava historinha que eu achava muita graça, minha mãe falando e lendo em japonês e eu pintava. Aí chegava na escola, minha classe tinha 40% de descendência japonesa. Aí ia pro judô, karatê, tudo era japonês (MC) que coisa né? (OS) Aí quando eu comecei a fazer arte, na escola eu era péssimo nas outras matérias e bom em arte. Meus amigos vinham falando que iam bombar porque não conseguiam fazer o trabalho e falavam faz pra mim, aí eu fazia. Aí ia vender goiaba na feira pra ganhar dinheiro pra comprar uma rapadura. Falei pro meu amigo, ó, se você me der cincão, eu faço. Eu nunca me esqueci, fazia a lição, tinha escultura, tinha um monte de coisa. A escola pública era ótima (MC) era uma escola pública que tinha um monte de atividades (OS) e era ótima, porque quem estudava em escola particular é porque era mau aluno (MC) aham, e era assim mesmo antes. É igual hoje ainda na universidade né

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(OS) aí eu descobri que a minha arte podia virar dinheiro (pausa), aí eu comecei a largar de vender goiaba na feira, porque meu pai não dava dinheiro, falava não e brigava com a minha mãe se ela desse, “criança não precisa de dinheiro, pra que que criança precisa de dinheiro? Você quer dinheiro, pomar está cheio de fruta, vai vender que vira dinheiro “. Eu ia com um japonesinho assim, 8 anos mais novo que eu e a gente gritava “olha a goiaba”. Ficou um tempo falando, você foi meu maior mestre de marketing, ele tem um hospital com mais de 150 leitos (risadas) (MC) nossa que legal! Começou assim, vendendo goiaba (OS) começou assim, vendendo goiaba (MC) então na verdade você não veio de uma família de artistas (OS) nada, minha família é completamente diferente, não tinha artista, era olhado com maus olhos. Do lado do meu pai tudo barriga verde, lá de Lages, o alto da serra, lugar mais atrasado do Estado de Santa Catarina. Era boi, cavalo, ovelha e ponto. Só homem, aquela relação gaúcho machista, fechada. Minha tia conta que quando chegava um cavaleiro na fazenda, os caras abriam a janela pra olhar assim, se tivesse no terreiro, corria todo mundo pra dentro de casa. (MC) olha só (OS) aí meu avô chamou, aquele lá (MC) aquele lá de cima é seu avô? (OS) chamou, falou “fulana, vem cá, desce aí”, era tudo sobrado né, de tábua “desce aí, ó, estou falando com esse homem aqui, estou arranjando pra casar com você, vou combinar pra daqui uns 2 meses, fazer uma festa, convidar o povo e vocês vão casar ”. O único homem que ela tinha chegado mais próximo de servir a comida era o pai dela e os irmãos. (MC) a gente não consegue nem imaginar isso né Osni (OS) mas pera um pouco, “casou, fez a festa e agora vocês podem subir lá pra cima, o quarto de vocês é ali do lado” já deixou o quarto arrumado. Ela contando pra nós, eu não sabia se eu ria ou se eu chorava, já era velhinha, toda de preto, aquele horror meu Deus do céu. “Meu filho, eu entrei pra dentro daquele quarto, eu tremia” (MC) tadinha, não posso nem pensar... (OS) “aí entrou aquele homem e foi tirando a roupa e eu de costas pra ele, aí ele me virou, quando eu vi aquilo, jesus, aquele bicho peludo, aquele trem assim armado, eu comecei a chorar, eu gritava “. Eu não sei por que eles chamavam de padrinho ao invés de falar meu pai, “ João de Oliveira! chamei padrinho Joãozinho e ele veio e bateu na porta, mandou abrir e me deu uns bofete, me mandou calar a boca e ficar quieta e servir o seu marido e voltou pro quarto dele, foi a minha primeira relação, além de eu sozinha”. (MC) mas então Osni, a questão da arte ela nasceu na escola pra você (OS) nasceu na escola e essa visão de eu posso me viver disso, que é a coisa que eu gosto de fazer, nasceu na escola porque eu percebi que dava mais do que vender goiaba e me deixava mais feliz e preenchia meu ego porque as pessoas corriam atrás de mim pedindo por favor pra eu fazer. Quem eram as pessoas? eram meus colegas de classe e até o professor Madri, quando vinha assim olhar falava “meu, foi você que fez isso mesmo?” pros outros né, porque era minha mão... começou a

aparecer cerâmica assim, muito parecida. A gente modelava, não tinha isopor naquela época, era caixa de maçã que vinha da Argentina (MC) aquela madeira molinha (OS) bem molinha. Então a gente caçava aquelas caixas de maçã, principalmente as pontas (MC) que eram mais grossas (OS) pra fazer, modelagem, esculturas (MC) com faquinha normal de cozinha (OS) a gente fazia com serra, faz até hoje né, tem aí a serrinha de aço pra cortar isopor, quanto mais fininha assim a lâmina, mais fácil pra cortar isopor. Tira uma parte pra ir modelando e fazendo ... então a gente usava caco de vidro pra lixar (MC) caco de vidro pra lixar? nossa isso eu não sabia (OS) tenho até hoje aqui a marca, quebrou lá e ficou aqui ... lixa bem, raspa bem, tem que tomar cuidado (MC) e era de tudo que você fazia? ou era mais madeira e cerâmica? (OS) madeira, cerâmica, caixinha, tetraedro, hexagonal, poliedro; essas formas de caixinha a gente fazia tudo, em papel cartolina porque aí depois você transferia, você tinha compensação do espacial e transferia pra madeira o que me ajudou a fazer mobília o que me ajuda por exemplo a fazer escultura. Tudo que é escultura tem uma caixa, é o que ensino pras crianças, marcenaria, lá no Capão Redondo. Vem cá (passos). Aqui ó, são os alunos do Capão Redondo, eu fiz durante um ano lá (MC) quantos tinham? (OS) 40, 40 e poucos alunos. Aqui eram as crianças do meu entorno, já faz tempo, já estão adultos. Aqui no Japão, itinerantes na copa do mundo, patrocinados pela Adidas, nós fizemos Tóquio, (mencionou mais 3 cidades) fizemos 4 workshops pra crianças japonesas. Aqui é Brasil, aqui em casa. Aqui é no Capão Redondo, as meninas ali e aqui é trabalho, com os peixes com as latinhas, aquela turma ali é o primeiro grupo de brasileiros lá no Japão que fizeram comigo. Mas então, o porquê da gente ter vindo aqui... (MC) porque você falou que dá aula e fala pros seus alunos (OS) ah! pois é. Então, nós levamos a marcenaria pra lá e as meninas se interessaram mais do que os meninos pela marcenaria. Todas queriam fazer um baú, todas queriam fazer cadeira pra sentar no quarto delas aí ensinei a fazer a caixa banca, que usa muito na Itália, é uma cadeira que você senta, uma caixa com encosto mas dá pra abrir a tampa e guardar as coisas dentro, depois fecha, põe uma almofada e é uma poltrona. Aí enfeitaram, furaram, colocaram lua, estrela enfim. Homem já queira fazer carrinho de rolimã (MC) mas eles são mais velhos (OS) oi? (MC) mais velhos, não eram crianças (OS) não, isso aqui tudo adolescente de 17 pra 18 anos (MC) ah! Adolescentes...ainda dá pra gostar de um carrinho de rolimã, dá pra entender (OS) aqui são as apresentações em feira de metalurgia, então leva as pecinhas fundidas e oferece pro público que queira fazer o acabamento pra levar porque todo mundo quer ganhar de presente, faz fila pra ganhar uma canetinha. Então o trabalho tem que ser pago, se você quiser levar o peixinho faz o acabamento pra levar, aí foi

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tudo mundo pra fábrica pra saber quanto é o valor. Aqui é aqui em casa e aqui lá no Mackenzie porque eu fiz esse workshop primeiro pros professores do Mackenzie aqui em casa e depois pros alunos de engenharia de materiais. Aqui pras crianças da escola primária de Itapecerica, é isso. (MC) Osni, você acabou fazendo formação em artes ou não? (OS) não (MC) você foi indo embora sozinho (OS) fui indo embora (MC) foi autodidata mesmo (OS) o que eu fiz foi, ah! Tem um curso de cerâmica avançada na Universidade de São Carlos, fundação parcial da tecnologia, aí fui pra lá. Depois de 4 anos consegui fazer a cerâmica avançada, aquela alumina translúcida que você acende a lâmpada dentro e a luz sai fora do bulbo. Isso daqui é Óxido de Alumina (plim! barulho de dedo batendo em algo). Ela não sai daí de dentro. (MC) óxido de alumina (OS) é, óxido de alumina que eles usam nos foguetes e tal, então eu quis transferir pra paz né. Então trabalhei 4 anos em cima desse projeto porque gosto de desafios, coisa simples não quero. Aí conseguimos fazer isso. Aí eu vou em tudo que é negócio, tô sempre buscando. No Japão estudei na Unesco Art League também. Estamparia de tecidos, fiz muito isso antes de parar porque eu fiquei ... a escultura porque aí eu viajava com a família, filho nascendo, eu empurrando carrinho, aquele horror (pausa). Como que vou carregar a escultura? Como vou ter um ateliê de escultura? É pesado, precisa de máquina. Então o que eu fazia? Na Itália eu praticamente vivi de sumiê, que aqui não tem valor porque o cara pergunta quanto tempo leva pra você fazer esse bambu? Uma respiração (MC) (risos) (OS) Pô! Você quer tudo isso de dinheiro! Isso aqui eu faço 200 respirações e vai sair uma que presta. Não é? É como uma assinatura (MC) engraçado né Osni, porque você se interessa por muitos materiais diferentes, muitas técnicas diferentes (OS) eu tenho uma visão holística da vida e eu sou assim, revolucionário e suicida; eu acho que tem que ser, senão você não vai pra frente. A coisa que eu mais odeio é o medo porque é o que barra a evolução do homem. Medo do que? Se a única certeza que você tem é a morte, o resto tudo é incógnita (MC) mas isso tem algum fundo, assim, você tem ligação com alguma religião? (OS) nada (MC) isso é você com você (OS) comigo mesmo, porque eu fui criado, pior do que aquilo só FEBEM e jesuíta. Aí foi indo até chegar em uma idade que eu era muito diferente da massa, você imagina, eu tinha cabelo cumprido até aqui, usava camisa de flores, sapato branco em Araçatuba (MC) era diferente, você era um cara diferente (OS) Jesus! Mas depois eu fui fazer terapia lá. Um grupo de... um era de 15 e o outro de 17 pessoas em sua maioria mulheres, o que foi ótimo pra mim porque tinha jovens, senhoras, grávidas e falando de mim! Quando eu que era o cara lá. Com admiração “fulaninha da minha classe quando sabia que você ia passar, sabia a hora e a gente

corria no portão pra ver porque você usava aquela camisa” e eu nunca soube disso, fui saber com 39 anos, na terapia, porque era só tido como o não, o cara que não vai ser nada na vida, o cara que é doido. Não usava droga, nada. Sempre cuidei muito do meu corpo, nunca deixei furar, botar nada. Vou devolver a ferramenta do jeito que eu recebi. Tenho isso com tudo, com meu corpo, com qualquer coisa. Me deu, me emprestou, vai receber do jeito bonitinho. Isso é meu, sou muito religioso, não tenho igreja, entende? Porque religiosidade é como sexo, já nasce com você, ninguém precisa te ensinar. (MC) aham, eu concordo (OS) entendeu? Igreja é a exploração disso, como a prostituição é exploração do sexo. Que pai que quer botar medo no seu filho? Eu não quero por medo no meu filho de jeito nenhum (MC) sim, só trava né? (OS) como ele se liberta? Libertar do que? Do medo! Tira o medo da sociedade, por que põe o medo? Porque se não, acaba Brasília (MC) é verdade, você tem razão (OS) se tirar o medo das pessoas acabou o domínio. Agora, você não pode falar muito isso porque senão você é subversivo, como que uma sociedade é dominada? Num tripé assim ó: arma, política e igreja, não religião e sim, igreja; porque pra você ser religioso você não precisa ter igreja (MC) Osni, de todas essas técnicas que você já me numerou, o que você trabalha mesmo é com o metal e com a madeira? (OS) metal, madeira, cerâmica (MC) cerâmica (OS) é, tem muita coisa guardada, muita coisa embrulhada (barulho de porta abrindo seguido de latidos) (MC) ali né? Não, não é... mas tinha lá na frente, não tinha Osni? (OS) modelo de cera pronto pra ser fundido. Pera um pouquinho só que eu tenho... original... tem uma cerâmica que eu fiz no Japão (pausa seguida de passos) LI- Bom dia! (MC) Bom dia! Tudo bom? LI- Tudo bem? (MC) Tudo joia! LI- prazer Lidia (MC) prazer meu! Estou aqui entrevistando seu marido LI- ah é? Que legal! Da escola né? Da Waldorf (MC) da escola, da Waldorf LI- você trabalha lá? (MC) eu trabalho lá, sou professora de trabalhos manuais, mas estou fazendo mestrado LI- que bacana! (MC) aí estou fazendo entrevista com alguns artistas LI- brigada! Seja bem-vinda! Fica à vontade (MC) eu que agradeço! (OS) pera um pouquinho, eu tenho que, vem aqui pra fora que eu vou ter que botar um banco aqui pra dentro pra chegar lá naquela, achei ali LI- o que você está procurando? (OS) aquela escultura LI- nossa, mas você vai botar esse bancão? Não tinha nenhum menorzinho por aí? (barulho de banco sendo arrastado) (OS) eu quero mostrar essa aqui ó

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LI- essa é cerâmica (OS) cuidado hein. Aí não tem nenhuma cerâmica aberta? (MC) ah! Você guarda assim no isopor (pausa seguida de ruídos). Mas é bonita hein! (OS) se você falasse que era feia, eu ia quebrar essa porcaria (MC) ah não! É linda! Está bem linda (OS) (risos) ô meu pai do céu (MC) mas você faz isso usualmente, não né? Você vende? (OS) eu tenho que pagar conta (MC) então você vai fazendo um pouco de cada coisa? (OS) tendo coisa pra fazer é o que dá dinheiro mais rápido ou fácil. Tem que ser que nem japonês, pragmático (MC) (risos) LI- você aceita um cafezinho? (MC) não, obrigada! (OS) eu achei! (MC) ah, está bonito! (OS) tinha até esquecido dessa hein? (MC) deixa eu fotografar LI- essa eu nem conhecia, estava escondida (MC) está bonita hein! E ela fica aí guardada? Por que você não expõe ela? (OS) é muita coisa! Não tem onde por mais (MC) já não tem mais nem onde por (OS) não tem ó, esses caixotes aí, quase todos tem escultura dentro, lá embaixo tem mais e lá na garagem tem mais baú. Você percebeu aí o... (pausa) (MC) aqui ó e aqui (pausa). Quando eu vi assim a primeira impressão era de um peixe (OS) peixe, peixe (MC) é né? Tá. (OS) dois peixes-espada (MC) isso mesmo. Está muito bonita! (OS) aí a proposta do Ying Yang, porque está virado (MC) mas ela está muito bonita! (OS) tem outra mas acho que está lá pra baixo. Isso daqui ó, é tudo do workshop lá do Capão Redondo, produto das crianças e aí veio tudo pra cá e eu marquei um final de semana pra eles retirarem. Aí a maioria veio e retirou e alguns não retiraram aí eu coloquei alguns como decoração (MC) mas tem que ter uma área imensa porque meu Deus do céu, vai colocando (pausa) (OS) aí tem moldada, tem torneada. Pintar workshop de escultura é ingrato. Deixa eu só tomar uma água, você quer? (MC) não! Muito obrigada! LI- chá de frutas você aceita? (MC) pode ser LI- então vamos tomar um chazinho (OS) sente-se! Limpei aí hoje (pausa) (MC) deixa eu pegar minhas coisas aqui (pausa) (OS) lá embaixo tem a fundição, lá a marcenaria (MC) Bom...depois de você ter sua oficina em duas malas, você decidiu que nunca mais ia ter problema de espaço né? (OS) tem 2 mil metros aqui! (MC) pois é! É enorme (OS) e é pequeno, agora eu quero já ir pra um lugar plano porque cadeira de rodas não sobe escada (MC) você já está fazendo planos pra velhice

(OS) é lógico! Festa se prepara antes. Parar eu não consigo, ao acordar meu cérebro já começa, eu tenho que dar ordem pra ele “Para! Hoje você não vai sair da cama! Você vai ficar aqui até as 8 horas da manhã” (MC) porque normalmente você acorda muito cedo (OS) muito cedo, 7 horas (MC) e você produz todo dia? qual é o seu ritmo de produção? (OS) é sempre, porque tudo que eu vejo eu já estou linkando, aquela forma, aquela coisa... Tenho a memória fotográfica fortíssima. Vejo você e nunca mais vou esquecer. Uma paisagem eu vejo e depois desenho em casa, reproduzo o que eu vi. Por isso eu digo que o ritmo é sempre, eu estou sempre ligado nisso. Eu não tenho disciplina, tantas horas isso, tantas horas aquilo. Por exemplo, eu tenho um trabalho ali que só eu consigo fazer, não posso depender do ajudante. Limpar escultura, lixar, pode me ajudar. Agora modelar não pode me ajudar porque aí depende de mim. Lá tem umas pecinhas que vai fazer o martelo da Bolsa de Valores de São Paulo. É um compromisso, uma carteira de trabalho que eu tenho que me rende uma boa grana e todo ano tem pedido. Como várias obras aí de premiações, porque todo ano eu vinha do Japão pra fazer. O executivo de finanças do ano, o equilibrista, homem nu se equilibrando em cima de uma moeda, tem foto ali. (MC) quero ver depois (OS) então existem algumas peças dessas que todo ano eu preciso fazer né? (MC) e ela não é uma peça que você reproduz quantas você quiser, você faz uma por uma? Aí no caso desse, já é a minha ignorância quanto à essa técnica, a gente imagina que você tenha um molde que vira 10, vira 20, não é esse o caso? (OS) é esse o caso. É assim, você faz uma escultura, se ela não for cera ou em um material queimável como o isopor e o poliuretano, não tem jeito de você incluir com o material refratário, botar no forno pra queimar, tirar tudo lá de dentro e ficar cavidade pra encher de metal (MC) isso (OS) certo? Então foi esculpido em argila, por exemplo. Agora, o processo é cera perdida, eu tenho que transformar essa argila em cera, como? Milagre não se faz, então hoje, usa-se um molde de silicone sobre essa peça, abre o molde, tira essa peça e vai pro arquivo morto. O original fica no arquivo morto, quem manda é o molde. Vou pegar esse molde que é a réplica daquela forma, primeira que esculpi a mão e vou preenchê-la com cera derretida até a boca. Aí eu faço isso aqui ó, como se tivesse fazendo um ovo de páscoa. Aí eu percebo que a beirada resfriou, tem uma casca assim de 2, 3 milímetros; aí eu pego e vazo a cera restante fora e deixo resfriar a que sobrou dentro (pausa). No momento que ela resfriou, está pronto pra abrir o molde. Abro o molde e o que acontece? Eu tiro um modelo, é uma confusão danada que o pessoal faz entre modelo e molde. Abro o molde e tiro um modelo em cera, semelhante à escultura que eu tinha feito. O molde é a reprodução do original. Então, esse modelo em cera é a ferramenta que vai me possibilitar fazer aquela forma que eu esculpi à mão, vamos dizer que fosse esse copo, fiz o molde, abri o molde, esse é o original e vai pro arquivo, pego o modelo

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em cera e vou colocar os canais nele por onde vai entrar o bronze (MC) ah, são os canais (OS) certo? não dá pra jogar o bronze em cima da escultura. Depois nós vamos aqui, vou te mostrar ali embaixo pra você ter maior compreensão disso (pausa para dar um gole). (MC) mas então você trabalha em mais de uma obra ao mesmo tempo (OS) pera aí. É o executivo de finanças, é o equilibrista, então eu tenho que fazer uma pro Ceará, uma pra Belo Horizonte, 8 ao ano. Uma pra São Paulo, pro Rio Grande do Sul, pra Campinas, pro Rio de Janeiro e outra pro Espírito Santo. Então o que eu vou fazer, vou tirar 10 modelos em cera, mas você não vai fundir só 8? Não, margem de segurança. Aquelas duas que tão ali em cima da mesa são margem de segurança, me pediram 5, eu fiz 5 mais 2 que são margem de segurança e saíram muito boas então se o cliente quiser levar beleza, se não, volta pro forno (pausa para gole). (MC) volta pro forno, você derrete aqui de novo (OS) exato, porque como é premiação, não tem o que fazer. Por exemplo, o equilibrista é direito de uso exclusivo de imagem cedido, contrato anualmente registrado, Escola Nacional de Belas Artes e tudo o mais, então eu só posso fazer pra eles e eles só podem fazer comigo. (MC) entendi. (OS) fica uma carteira de negócios, que me garante. Bom, então se você tem que entregar 8 peças, você funde 10 peças, 2 de margem de segurança, porque nunca se sabe (pausa). (MC) entendi completamente (OS) pois é, a origem dela é minha, eu criei a arte, a forma e aí estou sempre responsável de manter essa obra, são 35 anos que estou fazendo isso (MC) então você no fundo tem uma combinação de obras que são...é...você já as tem, elas fazem parte de uma carteira, elas são uma encomenda e tem uma outra frente que é de criação e isso tudo em vários materiais diferentes (OS) elas pagam a minha liberdade de criar, porque eu não gosto daquelas pessoas que acham que a vida é fácil “queimando minha maconha, tomo um porre” e está sempre na merda entendeu? Não é assim não, ser artista é uma profissão igual qualquer outra, mas você tem que aprender a ser artista como qualquer outra profissão. Dentista, você tem que aprender. O cara quer ah! Que caia do céu, não é assim não. E o pior é que acham que artista é isso, aquele cara bonitinho, cheirosinho que está lá, com copinho de prosecco na mão e a vida do artista é aquilo. Aí invejam, acham que o cara é o fresco que só está lá. Vem cá! Vem aqui ó! Eu sou um artista completo, meu filho não é aquele que eu fecundei; é aquele que eu cuidei, eduquei, estive presente (batidas com a mão na mesa) não deleguei pra ninguém, não terceirizei, até estar um homem pronto pra sociedade, esse é meu filho. Minha obra é a mesma coisa, por isso fui aprender a fundir, a marcenaria, cerâmica e quero aprender mais. Quero aprender tridimensão, plano eletrônico, tem que aprender isso tudo. (MC) então na verdade, no seu conceito de artista, ele é aquele que planeja e que executa.

OS- holístico (MC) mas uma boa parte do mundo artístico planeja e não executa (OS) é preconceito, escravagista. Quem executa é o escravo, já me falaram isso, escreveram que no Egito antigo quem fazia as esculturas eram os escravos. Pois é, escravagismo, tem preconceito contra o fazer, o hands on, botar a mão na massa, não tem coragem de enfrentar a barra que é isso daqui. O Flávio fez o vídeo da fundição que está lá. A escola tem que ter esse vídeo, trazer o que aconteceu antes, até aquela peça estar lá na escola. (MC) você tem a filmagem disso? (OS) está tudo feito! (MC) ah! Que lindo! (OS) é lógico, toda minha vida tem imagem, eu trabalho com imagem (pausa) (MC) e da hora que você cria, agora a gente vai entrar muito mais naquilo que é o meu objetivo mesmo. Como que você sente a interferência da matéria, da hora que você planeja a obra à execução final? (OS) pois é, então o fazer, te dá o conhecimento da matéria e o interesse em saber. Já tive perguntas assim que... “mas você é o que? Você faz o que?” eles querem por um rótulo, querem jogar pra baixo, ninguém quer levantar né “você é escultor ou você é um fundidor?”. Eu respondo sabe com o que? Leonardo da Vinci era o que hein? (MC) que coisa né? (OS) pronto! me responda, entende? Eu sou fã de Leonardo da Vinci porque ele cagava um monte pra igreja católica em primeiro lugar (MC) (risada) é verdade (OS) e segunda coisa, eu não posso falar pro mundo o que eu sei da medicina, da anatomia, porque se não vou ser queimado na fogueira, mas não tem importância, eu sei. Já é um grande conforto, eu sei, eu tenho conhecimento, sou o senhor de si, ponto. Não é? Acho que é bem por aí. Respondi sua pergunta? 1 hora e 30 minutos (MC) Não, eu queria que, talvez, a gente pudesse depois pegar uma obra que seja uma criação sua, lógico, e tentar pensar do momento do planejamento até a execução, as transformações ao longo do processo de execução. As transformações naquilo que você tinha planejado, entende? (OS) é assim, se você faz as coisas, você tem interesse em saber, você passa a conhecer os materiais. Então antes de você fazer o projeto, você já sabe...vou usar aquilo porque com aquele outro eu consigo...tá? Por exemplo fazer um nu, um nu é muito mais expressivo se você o fizer pra fundir, certo? Vai ser terminado em uma obra fundida, se você fizer em argila é um material plástico e você pode pegar essa emoção, porque essa mão conhece um nu. (MC) ah, entendi, muito melhor do que um material sintético. Ah que interessante, gostei disso (OS) e se eu pegar um material duro, rígido, eu tenho que usar uma lâmina. Isso aqui, que já passou a mão em uma pele, um seio, está tudo aqui, faz parte da minha memória então eu vou buscar a coisa mais próxima daquilo na argila, pra depois ser fundido. Aí você tem que tomar muito cuidado num acabamento, por exemplo você faz uma escultura, ou um seio que é a coisa mais difícil que tem de fazer.

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(MC) é difícil? (OS) é um acabamento, pra ele não virar uma ponta. Até o lixamento, você não pode usar uma máquina, tem que ser a cavidade da mão. Você vai pegar aquela memória e você vai ficar ali tendo aquela relação. Quando alguém olhar aquilo, não vai ver faceta porque não tem. Então nunca esqueço isso, um telefonema de São Paulo, ao invés de deixar o cara esperando, deixei a obra que já estava lixando e o meu ajudante pegou e com a boa vontade... (MC) ... resolveu te ajudar (OS) exatamente isso, botou na maquininha o disco e ó (MC) ai, que tristeza... (OS) quando eu cheguei ele “olha já dei uma adiantada naquela escultura lá, acabei o serviço” aí eu travei (MC) ai, que tristeza... (OS) mas acontece, então são essas as transformações que você percebe né? (MC) mas por exemplo a madeira, quando a gente abre uma madeira, não sabemos o que vamos achar dentro dela, não é? A madeira a gente lida muito com o acaso (OS) bom, primeiro tem que conhecer de madeira, certo? Aí tem que olhar o pé da madeira, a tora cortada pra ver se tem bactéria. Pelo ângulo da bactéria dá pra imaginar o quanto que ela já andou dentro da madeira, então essa primeira tora aqui já vai ter uma série de imperfeições dentro (MC) então você já pega de um tanto pra frente (OS) pra cima. Primeira tora, segunda tora, de baixo pra cima geralmente 3 metros, 3 metros e meio que é o padrão brasileiro de corte (MC) então quando você falou, o primeiro pedaço você já ignora, você ignorou 3 metros (OS) é (MC) uau! Um monte de coisa (OS) agora depende, de 3 metros o que eu vá querer tirar se é uma viga, um sarrafo, um sarrafinho, um bloco, entendeu? E o tamanho da tora, o braço que eu vou precisar... (MC) então vamos escolher uma obra. Eu queria madeira, vim pensando nas suas obras de madeira pois acho elas lindíssimas. Aquela mesona que eu fiquei apaixonada, vamos fazer o caminho dela? Você me fala o caminho dela exatamente? (OS) falo! (MC) pronto. (OS) então ela veio, onde é que eu vou ter foto disso... (MC) se não tiver foto não tem problema (OS) então é o seguinte, aquele que você vê ali, tem a do meio e a do lado, aquela é a irmã, ela estava em cima da outra e embaixo tinha mais outra (MC) você está falando de qual? Daquela que estava irregular e você fez assim? Ou a grandona? (OS) a grandona. Aquela que está ao lado, estava em cima, é a prancha irmã, foi cortada e colocada pra cá. Antes tinha mais uma, que é a costaneira, certo? Embaixo tinha mais uma e mais uma (MC) que madeira que é aquela? (OS) aquela é fícus elastica, ela é da família da seringueira que está de Madagascar até o Vietnã, principalmente na região da Índia ela aparece constantemente em algum lugar, tem até ponte feita só com os filodendros que descem da árvore. Eles vão amarrando, puxando, então

tem aquela ponte suspensa assim, uma árvore de um lado do riacho e a outra do outro lado e aquela rede assim, que eles fazem naturalmente pro povo passar. Aqui tem seringueira de Índia, falsa seringueira, eu não gosto desse nome falso entende? Então é isso. É aquela lá. É uma madeira fantástica que dentro da tora assim marrom, parece um bolo inglês, marrom chocolate e aqui amarelo assim, dentro da mesma tora, o rio correndo e o rio Amazonas se encontrando assim, incrível né? Mas é a natureza, fazer o que. Ela veio de Taboão da Serra. (MC) alguém te avisou? Você procura? (OS) as pessoas vem até aqui “ó seu Osni, caiu lá a árvore na chuva e tal, dá pra ir lá com a motosserra? ” porque sabem que a gente trabalha com a motosserra e tal. Aí vai lá, as vezes a árvore é um pino velhote que não presta pro nosso trabalho, então a gente vai lá e corta no tamanho que eles possam remover e pronto, vem embora, não faço o serviço de motosserra. (MC) sei (OS) as vezes é madeira boa, isso aqui é carvalho seda, australiano. Tinha 3 árvores caídas lá, então fizemos 3 peças maravilhosas (MC) eles também te procuraram, te avisaram (OS) me procuraram (MC) então você já tem uma rede (OS) pessoas ficam sabendo e outro dia a senhora lá no Ibirapuera me ligou pra ir lá e eu achei tão estranho que eu falei “eu tenho que ir lá, só pra conhecer essa pessoa” “eu conheci seu trabalho maravilhoso lá no Paineiras e aqui na frente da minha casa derrubaram um ipê” ali no Ibirapuera do lado do quartel “eu briguei com os homens aqui mas consegui umas rodelas aqui pro senhor, está guardado aqui na minha loja”. Agora pra carregar tudo isso vou preso né, se me pegarem com essas rodelas de ipê não tem justificativa... fui lá e estava lá na loja dela. Coloquei na caminhonete, fechei e bora pra Itapecerica. A esquina está aqui, o ipê estava aqui. Um ipê de uns 50 anos, os caras iam botar um ponto de ônibus aqui, eles cortaram a árvore (MC) você está de brincadeira (OS) pois é (MC) mas então, você estava me falando do caminho daquela tora (OS) então, o senhor Paulo, que já faleceu, era um japonês velho que tem uma história fantástica também. Era o japonês mais fanático assim, que não conhecia o Japão porque veio pra cá com um ano de idade (MC) mas mantém a cultura (OS) dentro do mato, o cara fazia parte dos Catiguni, sabe essa história? Não conhece essa história né? (MC) Não, não conheço (OS) ish, então você vai ter que conversar comigo um ano (risadas). Bom, simplificando, a gente tinha muita história assim porque eu era um japonês branco que vivi no Japão 20 anos, e ele era um japonês fanático que nunca viveu no Japão porque chegou aqui com um ano de idade (MC) que coisa né (OS) é, e ele falava e escrevia japonês. Ele tinha uma marmoraria, ele que fazia as bases das minhas esculturas, ele que fazia tudo e a gente tinha um diálogo muito bom. Tinha esse Fícus Elástica lá no terreno da marmoraria, era um terreno de 1500 metros quadrados lá no Taboão. Quando ele comprou aquilo, já estava lá, então pelo

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tamanho eu calculo que ele tenha uns 150 anos. Aí ele falou “ah Osni, está velho já, vou vender aqui e comprar mais longe porque a prefeitura fica enchendo o saco por causa do resíduo de pó do mármore, toda vez fica pedindo dinheiro “, então eu falei “acho que o senhor está certo mesmo, vende aqui, compra mais um apartamento aí, tem só um filho, já dá o apartamento pro filho, põe no nome dele e compra outro terreno lá, mais distante onde pode fazer a marmoraria sossegado e tal”. Aí um dia ele telefonou “ah seu Osni, tem um homem interessado aqui mas falou que só compra o terreno se arrancar a árvore, será que tem problema?” então eu falei que ela era exótica, um problema a menos, mas sabe como é aqui, você tem que evitar qualquer problema porque arrumou problema, é uma dimensão que você não sabe onde vai parar, então vai na prefeitura, defesa civil, pede remoção e tudo mais. Mas cortar não dava, ela era muito imensa e ele foi encostando retalho de mármore no pé dela e essa árvore engole (MC) ela engole? (OS) vai engolindo tudo (MC) entendi! (OS) então não tem como entrar com a motosserra porque você vai cortar, tem um pedaço de mármore lá dentro. Então o que você vai fazer? Começar a cortar os galhos e tal, aí ele falou “o senhor quer a árvore?”, respondi “é claro que eu quero! mas como é que eu ia trazer essa árvore pra cá?” “vai levando de pouquinho!”. Aí ia cortando os galhos e eu ia lá com a caminhonete trazendo 5, 6 pedaços (MC) de galho (OS) só de galho (MC) meu Deus do céu (OS) e a segunda tora, porque a primeira não dava. Bom ele teve que destruir a casa que tinha, o escritório, teve que tirar tudo, tirar todos os retalhos e limpar em volta pra entrar um trator de esteira. Trator entrou e empurrou assim (pausa), fez uma cava aqui, outra cava aqui, foi comendo em volta pra puxar pra cá. Aí veio a reto escavadeira, até quando podia arrebentar as raízes pra tirar em volta. Aí entraram com um machado e foram picando a raiz em volta, puseram cabo de aço (MC) você estava acompanhando? (OS) fui lá acompanhar. Aí cortaram, tiraram todos os galhos e ficou só o tocão maior, falei “ó senhor Paulo, não pode cortar hein, senão você perde a alavanca pra puxar ela” eu conheço porque se corta aqui, aí depois não tem como puxar entendeu? Você tem que amarrar o cabo lá em cima com ângulo, aí a esteira puxa pra trás. Os cabos contraem e vão fazendo essa tensão, ou ela estoura ou estoura raiz né. Bom, aí conseguiram tirar, tombar, arrebentaram as raízes, ficou aquela cratera enorme no terreno. Aí deitada, cortaram duas toras e o galhões que é a mesa, esse galhão. “ Osni não posso mais esperar” “senhor Paulo não tenho como, essa tora é muito grande, não tem como levar” , teria que contratar caminhão que custa uma fortuna (MC) (risadas) ai meu Deus do céu que coisa OS- ele ligou pra mim e “Osni, o senhor quer falar com o chofer do caminhão que vai carregar?”, falei “falo!”. “Onde o senhor está?” “Estou aqui em Itapecerica da serra” “Quanto dá até aí?” “16 km” eu falei. Tudo em asfalto e tal, não tem subida nem nada. “Tem lugar pra

descarregar aí?” eu falei: tem. “ Então o senhor me paga e eu levo aí” “ então não quero, não tenho dinheiro pra pagar não” “o senhor está aí em casa?” eu falei: estou. “Então eu vou levar aí” porque já estava pago. Aí ele trouxe, lá no terreno lá atrás (MC) está lá? (OS) não, nós transformamos, já faz vários anos (MC) ah, porque faz muito tempo (OS) é. Bom, nós trabalhamos 4 anos só nessa tora (MC) nossa senhora, 4 anos (OS) é, madeira pra burro (MC) você e o ajudante, você sempre está com um ajudante? (OS) tenho um ajudante direto comigo, já há 14 anos e (pausa) ficou lá. Nós íamos lá e programávamos os cortes pra tirar os blocos e depois tornear e fazer a peças. Vou mostrar pra você, torneada ali embaixo. Aí veio a prefeitura encher o saco que estava no passeio, que passeio? Lá era um matagal danado, ninguém passava lá, não tem calçada, era uma estradinha secundária. “Estou com idade, estou sozinho, não tem como fazer isso. Estou produzindo empregos e pagando imposto pra prefeitura. Tenho firma e tal, você tem que ter paciência, vou fazer e tal”. Aí vieram outra vez, então falei “meu, não tem mais jeito, nós temos que rachar a tora”. Rachamos ela em pranchões, aí na caminhonete tem o gancho de puxar trailer, colocamos um picão na cabeça de cada pranchão desses, aí saiu arrastando (MC) arrastou! (OS) arrastei, minha vida é um arrasto. Pusemos nessa lateral aí ó, porque é largo, então deu pra por em pé, encostado ali e aí ficou. Fomos trabalhando aqui. Essa oficina aqui, vou te mostrar depois, eu ganhei as toras pra fazer o barracão, lá na Capelinha do Chico. “ó, estamos tendo que cortar uns eucaliptos lá, você pode trazer e fazer seu barracão aí”, tinha motosserra então eu falei “opa! Vou lá”. Cortava lá, o picão na cabeça, isso aqui é uma tecnologia de arrastar tora, ainda mais primitiva funciona que é uma maravilha e arrastei tora por tora, eu e meu filho Cristiano que estudou na Waldorf, ele era dessa tamanhinho (MC) era pequeninho (OS) uma vez mordeu a motosserra aí eu “vai lá na ponta! Isso! Balança aí, balança pra fazer o galeio, mais! Vai mais na ponta! Você é muito leve!” “eu estou com medo” “balança!”, aí saiu a motosserra (MC) olha só (OS) você quer ver lá? (MC) eu quero (OS) venha (ruídos). Então aqui (passos) (MC) super agradável (OS) aqui é o lugar (áudio com muitos ruídos). Aqui, calcina pra tirar a cera de dentro, aí pega o molde aqui a 500, 400 graus e coloca dentro desse cocho de areia e enche em volta. Quando o molde é longo, a gente reveste e enche de areia em volta. Essa é um reforço de segurança porque se houver uma trinca no molde, a hora que colocar o metal é pesado e quente então pode haver uma expansão, ele começa a vazar e você pode perder a escultura. Então aí não, ele fica todinho cercado de areia, se ainda rachar ele vai na areia, fria, ele para, condensa e para; então talvez na escultura vai ficar uma rebarba como uma alga assim que é fácil de tirar e de limpar.

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Então é isso. Esse aqui é o forno de fusão e esse aqui é o segundo, que é um forno maior (MC) mas é ou um ou outro né? (OS) é, porque eu comecei a ter problemas lá (pausa, mexe em algumas peças, barulho). Sobe aqui (MC) pode subir? (OS) um privilégio, pouca gente sobe aqui (MC) (risadas) gostoso né? Muito gostoso (OS) então, esse aqui foi aquecido lá no chão, está vendo isso aqui? É um maçarico gigante que a gente forra o chão, faz uma chaminé, coloca isso dentro, avermelhando lá. Ele é colocado aqui (pausa). Esse aqui é o tira resíduo, porque lá dentro fica um medalhão porque a concha não consegue tirar tudo, então a gente põe esse ferro, aí condensa segurando o ferro você puxa o ferro pra sair o medalhão que ficou lá dentro certo? Bom, aí com essa concha que é bastante leve, pega (MC) ó o tamanho da concha! (OS) aí ela cheia pesa mais 6 kg (MC) posso imaginar (OS) então ela pesa 12 kg cheia. Você vai enfiar lá, 1...2...3... até encher (MC) o fogo a gente não vê né? (OS) vish (MC) vê? Jura? (OS) vê, nossa é uma espira aqui, botei isso aqui pra não pegar fogo (MC) ah que pena que eu não vi isso! (OS) aqui ó, vai o ajudante lá e eu aqui, o que sobra volta no forno, entendeu?. Quando a escultura é pequena, porque a da Waldorf a gente tinha que fundir em 25 kg cada vez, por isso ela foi cortada. Quando é uma pequena, dá pra fundir com uma conchada só, aí pega uma conchada (pausa com ruídos) (MC) agora isso ali, é um prazer não é? Essa hora de fogo assim (OS) é, nossa é chutar um pênalti porque ali é a decisão de um processo que você começou lá atrás e tal, chegou ali e começa a trabalhar com o tal, o que é o tal? É o vazio. O que é o vazio? É o desconhecido. Lá dentro da forma é o vazio, você não sabe (MC) você não sabe, verdade, já pensei nisso (OS) e o que é fundir? É desagregar o átomo e depois juntar o átomo de novo, desagregar a gente sabe botando calor, aí tira o calor e eles voltam na mesma estaca que era antes, agora isso daí ninguém sabe como nem porque aparece, só sabe que acontece. Sabe o ‘know how’ mas não o ‘know why’. Então é um negócio mágico essa coisa aí, você está sob a influência do cosmo todo porque hoje é um dia ótimo pra fundir mas se está tudo pronto e de repente vira e começa garoa, aumenta o hidrogênio no ar, a hora que você fizer assim, o metal vai e leva toda essa umidade lá pra dentro, depois fica que nem um queijo mineiro, cheio de furinho. (MC) então se tiver chovendo nem pensar? (OS) não deve. Só se você comprar um forno à vácuo e tal, aí beleza, aí eu saio fora do universo (MC) interessante isso né, porque um forno a vácuo, nesse sentido é uma super coisa legal mas por outro lado te tira essa relação (OS) o risco, tira essa relação. Olha isso aqui são moldes, isso é uma árvore, aqui é o pé dela (MC) ah, é uma árvore

OS- é um Cipreste. Bom, então aqui a parte do acabamento, então você corta, você escova, lixa, dá polimento, esmerilha (MC) o seu ajudante, ele faz a parte mais ajuda física ele faz as lixadas as... (OS) é, tem pontos que pode e pontos que não pode. Então, lixar a base aqui (MC) quanto tempo ele está com você? (OS) 14 anos. Isso ele pode: furar aqui, por o parafuso pra depois fixar na base, ela vai ser furada também né, aí coloca a massa e cola na base de pedra, então essa preparação aqui pode ser feita porque é um negócio muito simples né (pausa com barulho) (MC) ah que lindo! Tudo bom? Prazer AJUDANTE- tudo bom (OS) então, essa aqui são as peças que vão pros bazares, inclusive da Waldorf (MC) que aliás está chegando né Osni, essa deve ser a produção já (OS) a produção desse como é, a madeira você pega verde, torneia verde, porque é melhor do que tornear seca. Aí ela é guardada, estocada pra esperar secar. Depois que ela seca, meses de secagem, aí começa a fazer a parte de laqueação aqui. Então começa assim, depois do natal que não tem mais bazares, começa a tornear pra vender no final de ano (MC) o ano inteiro? (OS) tem que ir esperando então tem que ir intercalando os trabalhos. Esse timing de intercalação (MC) é o material que está te dando (OS) exatamente e a compreensão disso né? Então aqui tem um monte de tipo de madeira (MC) o que é isso aqui? (OS) é ... (MC) está linda! (OS) então olha, olha isso aqui, aquarela linda (MC) está muito bonito (OS) esse aqui, Guapuruvu nosso, esse aqui é Cinamomo (MC) e de onde você foi coletando isso aqui tudo? (OS) esse daqui foi num bazar, o cara estava vendendo o trabalho dele e falou “Pô, você trabalha com madeira e tal, eu tenho um terreno lá com ferro velho, caiu uma árvore grande e eu tenho que tirar, será que serve pra você?” aí eu perguntei se ele tinha foto e ele tinha. Aí fomos buscar lá perto do aeroporto de Guarulhos (MC) e é qualquer pedaço da madeira que faz uma peça dessas? (OS) a gente escolhe né, pega aqui porque assim vai dar pra conseguir as formas né? (MC) quanto tempo de trabalho pra uma peça dessa? Da hora que ela chegou (OS) pelo menos 6, 7 meses porque você vai cortar os pedaços, cortar os cantos e tal, tirar o fundo pra placa do torno poder segurar (MC) essa daqui era assim né? Ela era assim e você cortou (OS) aí vai tornear, vai pra secagem (MC) essa está muuuuuito bonita! (OS) essa é desaforo né? (MC) gente, mas ela está muito bonita! Por quanto você vai vender isso aqui Osni? E essa parte de dentro? Você que faz ou ele? (OS) vira pó (MC) como assim vira pó?

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(OS) vira pó porque vem cá, vou te explicar aqui (pausa) (MC) mas que lindo que está isso! (OS) vira pó e vira aqui dentro também ó. Ó lá, ali está secando então elas vêm tudo pra essas prateleiras e a gente cobre pra elas irem secando lentamente porque se puser no sol racha tudo. Então essa secagem, é o mesmo processo da cerâmica, você embrulha e põe pra secar certo? Mais frágil. Aí ela vai lá, o torno vai fazer isso daqui ó, tirar essa placa daqui, essa foi feita pra fazer isso daqui. O que é isso daqui? Estou fazendo essa peça que eu faço todo ano (MC) ah, esse é o martelinho que você falou (OS) é, então tem que fazer os cabinhos (pausa), isso aqui me permite fazer a outra coisa né. Tem dois tipos de torneado, aquilo entra aqui e essa peça tem outras várias formas (pausa, mexe objetos, barulho) aí a gente vai fundindo as peças conforme vai precisando, vai construindo as ferramentas (MC) então você constrói as ferramentas (OS) ah, tem que construir. Ó, pra ela entrar lá, isso aqui vai estar girando e eu vou apoiar a faca aqui é ó (barulho agudo) pra ela poder girar contra a faca, vai virando tudo pó de serra (MC) entendi. Osni, ferramenta assim legal, isso aqui você acha aqui no Brasil? (OS) não acha, tudo isso é feito (MC) tudo isso você fez? (OS) isso aqui eu comprei há 40 anos atrás e nunca tive coragem de usar (MC) não usou? (OS) agora que está usando... (MC) mas Osni, espera, isso aqui você fez ou você mandou fazer? (OS) eu que faço! (MC) você que faz suas ferramentas? (OS) esse cabo foi feito aqui, certo? Isso aqui é um amortecedor. Aí no esmeril ali ó, corta essa cava e faz o corte aqui, pro tornear aquilo lá... peça grande, entendeu? Então conforme a peça, tem que ter alavanca pra você segurar ó (pausa) vou pegar aqui pra você ver. Essa aqui, isso é tecnologia de ponta viu? Ó (barulho de máquina) (MC) ah, que legal! (barulho de máquina). Mas que delícia de fazer isso! (barulho de máquina sendo utilizada durante uns 3 minutos) (OS) tudo alta tecnologia aqui viu (barulho de máquina sendo utilizada por mais uns 2 minutos). Aí eu vou torneando aqui e depois o vai fazendo o acabamento da ponta e desse corte final aqui (MC) então esse é o seu pedaço? (OS) oi? (MC) essa é a sua parte (OS) é (MC) quantos desse você faz? (OS) tenho que fazer todos que estão aí, 150. (barulho de máquina sendo utilizada). Tem que ensinar o pessoal a usar, é importantíssimo (MC) é muito olho né? Muita sutileza (OS) ângulo da faca, porque ela está girando ó, 1200 giros, então se você der uma bobeada (MC) então, e uma coisa que parece, você tem o tempo certo de deixar a faca pra não rodar demais ou não? (OS) tem a pressão

(MC) a pressão com certeza, mas e o tempo? (OS) ângulo, isso aqui ó, se eu entrar assim... assim e assim (MC) dá pra quebrar uma peça rapidinho (OS) tum! Você nem vê. Não só na faca, mas depois tem outros momentos também que dá pra quebrar, por isso sempre tem que trabalhar com margem de segurança. Se tenho que entregar 150, já cortei 175 porque em cada passo tem possibilidade e probabilidade de quebra. Aquele negócio que te falei, certeza só a morte, o resto tudo é provável. Provável que a gente vai ser feliz, provável que a gente vá ficar rico. Ali já é mais fina (MC) é sempre prazeroso pra você? (OS) é, isso aqui eu faço, aí estou fazendo outra coisa, aí canso e venho aqui fazer 5,6,10 depois volto, vou fazer a outra coisa (MC) entendi. Você passa o dia inteiro assim, vai fazendo um pouquinho daqui, um pouquinho dali (OS) o negócio é o seguinte, você tem que ouvir o corpo, aprender a respeitar (MC) tem que ouvir o corpo e a peça né. Se a madeira está verde tem que para com ela. Pena que eu não filmei isso hein (OS) eu tenho o filme (MC) ah eu quero! (barulho de máquina sessando e depois aumentando) (MC) ah, já vai assim? Por isso que ele fica tão direitinho. Que legal Osni, muito legal! É muito legal não é? (OS) (risada) é legal sim (MC) pô, é legal pra caramba isso aí. O que é que você está passando aqui, só seladora? (OS) Só, depois atrito (MC) aham, está muito linda! Mas não fica exatamente igual uma da outra né? (OS) nenhuma (MC) ah, graças a Deus. Aí você vai planejando, você pode ir mudando de uma pra outra ou você tenta deixar igual e não fica? (OS) não, não tem que ficar igual, é uma produção artesanal, não é produção de massa (MC) é que eu não estou perguntando direito. Você pode pegar e decidir por isso aqui, aqui? (OS) oi? (MC) eles deixariam você pegar esse pedaço aqui e por aqui? Ou não? (OS) não porque isso aqui é um ícone né (MC) ah, entendi! Era isso que eu queria saber (OS) então eu não posso mais estar mexendo. Eu faço isso aqui há 25 anos (MC) 25 anos você faz esses martelinhos? (OS) quando eles inauguraram o novo prédio da Bovespa porque antes era tudo (?) depois passou a ser eletrônico certo? (MC) ah!!! Descobri como escurece! Finalmente! (OS) está fazendo o workshop hein? Está fazendo a entrevista e ganhando um workshop (MC) finalmente descobri como escurece esse negócio, fica legal pra caramba né? Você queima ela, é isso. (OS) ué, tudo que é preto é carvão. Pronto, está feito (MC) muito legal! (barulho de máquina sessou) (OS) essa ferramenta aqui eu tive que fazer pra facilitar a produção

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(MC) isso daqui é tão bonito que juro por Deus que eu pensei que isso daqui era uma peça de abajur que você estava produzindo, está bonito pra caramba! (OS) mas põe a mão aqui pra brecar também (MC) então quer dizer, ela não pode te machucar né (OS) isso daqui é um registro. Todo mundo tem o pesinho preto, então é só pegar ali e puf fechou ó aí (MC) está linda, quentinha, saindo do forninho né Osni. Legal pra caramba isso! Mas relaxa né, na hora que você está fazendo isso daqui dá uma relaxada (OS) aqui ó, tem pedaços quebrados, elas eram tudo retangulares né (MC) isso você faz com resto ou você tem material específico? (OS) tudo com resto (MC) tem madeiras diferentes? Não né? (OS) não, é tudo peroba (MC) você escolhe uma única madeira (OS) tudo peroba rosa. Aqui tem uma outra serra gigante que é pra fazer o desdobro, mas é loucura porque é muita coisa e aqui é pra cortar o cabinho. Eu poderia fazer isso lá, mas eu corro o risco de ele bater e quebrar porque é muito sutil. (MC) ótimo, então na verdade esses dois aqui são só seu apoio né (OS) é, são ferramentas porque o que vai ficar mesmo é isso aqui que tem que ter né, essa encaixa lá e tem que ter isso aqui porque se você deixar muito pequenininho, racha, não suporta o atrito então tem que ter mais madeira. Isso aqui são Cedros que estão aí esperando, isso aqui é forno. Esse forno tem que dar um jeito nele, sei lá, doar pra uma escola... Entendeu? Essas coisas permitem você ir, é isso que eu fico desesperado né porque pô, está falando que eu aprendi na escola, quem é que ensina isso hoje, ninguém mais ensina. Fazia minha cinta, fazia o cabresto do cavalo, tudo aprendido na escola. Fazia macramê, rede pra ir pescar, rede pra dormir, uma coisa leva à outra, cada aprendizado te possibilita um passo à frente e ir indo (MC) mas a característica do seu trabalho é justo essa lida com as diferenças dos materiais (OS) é um desafio né, não é sentar e ficar chocando. Aprendi esse, agora qual o próximo? What is the next? (MC) entendi (OS) isso aqui ó, temos que dar o jeito de levar pra uma escola e montar lá, é maior do que aquele, é um forno cúpula, sobe, você arruma as peças cerâmica dentro, no mobiliário, ele fecha e aí acende o fogo (MC) você quer doar? Você já perguntou lá na nossa? (OS) não. Isso aqui é um laminador que eu fiz pra fazer lâmina de argila, pra cerâmica, está aí ó, encostado. Bota os pés nele, vira uma mesa, aí você vira a manivela, ela corre pra lá e pra cá (MC) pra fazer uma placa por exemplo Osni? (OS) pra fazer cerâmica moldada. Está vendo aqui? Um molde de silicone que foi construído, aqui é o original. Por que fez isso aqui? Esse excesso com essa dobra, pra quando você fazer a cera, olha aqui ó. Isso daqui foi preparado, é uma margem de segurança, se não desse certo aquilo lá, já estava pronto pra entrar na linha de produção, entendeu? E aqui ó, essa dobra é tecnologia, ela não contrai, está vendo que aqui contrai e perde a forma? Mas na dobra não, então ela solda bonitinho.

Então tudo isso aqui, é trabalho que está embutido naquele trabalho e ninguém sabe disso, entendeu? Mas isso é profissionalismo, se o cara não tem esse profissionalismo, ele faz um só “ai, Deus não quis que desse certo, vamos ter que fazer outro, vai atrasar”. A melhor vida que tem, é aquela que você não tem que dar desculpa, eu não dou desculpa porque ela é só pra coisa ruim, se for coisa boa você tem que desculpar? Não tem. Então tem que fazer assim, dá mais trabalho? Dá. (MC) isso é reaproveitável? (OS) reaproveitável, mas e todo... (MC) lógico! Só estou te perguntando por curiosidade mesmo. E olha, você tinha bastante a mais né (OS) tudo isso é cera (MC) de onde vem esse tanto de cera? Você traz donde? (OS) isso daqui a gente compra reciclado, é cera reciclada isso aí. Quer ver? (MC) aqui está tão bonito! Olha que legal! Ó o tanto de coisa que tem aqui Osni! (OS) ó aqui, essa é de primeiro uso (MC) totalmente desnecessário pra... (OS) não contém cera de abelha (MC) é de que? (OS) nós já substituímos a cera de abelha porque ela precisa ser utilizada pra fazer mel, então nós não podemos queimar, então nós substituímos por parafina (MC) então isso é parafina? (OS) não, é uma receita, contém parafina, breu e carnaúba. Então olha, teve que ser construído isso, teve que ser modelado isso (pausa). Teve que ser construído isso, daqui saíram aquelas ceras, depois as ceras foram montadas e colocadas dentro daqueles blocos que você viu, aquilo é gesso com cristobalita, é um pó de quartzo. E agora... (MC) dia de sol aqui deve ser uma delícia né (OS) nossa, no verão aqui, trabalha só de bermuda e de chinelo (MC) superquente? (OS) quente, porque entra luz né (pausa) (MC) porque você pensa em sair daqui? Ah, por causa das escadas né (OS) deixa eu só tirar essa capa feia daqui. Aqui era horta, galinheiro, quando as crianças eram pequenas, produzia a comida tudo aqui em baixo (MC) produzia a comida toda? (OS) haha, eu era hippie né? (MC) você era hippie Osni? (OS) eu era hippie nesse sentido de ser natureba e tal. Olha aqui a tora que eu te falei... está vendo? Essas toras foram todas arrastadas no gancho, verde, aí nós assamos ela na rua (MC) assaram? (OS) colocava elas na rua, pegava o pó de serra e cobria elas, colocava fogo, aí no outro dia de manhã estava tudo “pffffff” , vê se tem cupim (MC) geeente.... (OS) Bom, estava na laje ali né (MC) mas onde você aprendeu a fazer isso Osni? (OS) tem aquela laje lá né, aí lá, eu e mais 4 baianos que trabalhavam aqui em uma construção, vinham de noite me ajudar, depois das 18:00, aí a gente ficava aqui até as 21:00. Aí rolava, virava o bico, aí vinha a tora de lá, tinha

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um bico ia segurando e empurrando, tinha um rolete. Uma vez ela escapou lá e “pum!” bateu na parede (MC) derrubou tudo (OS) Bom, aí ela ficava aqui assim, pusemos as toras aqui, na sequência certa, virou uma lá, virou a outra. Construímos isso aqui e fomos trazendo às terças (MC) então foi você e mais 6 (OS) eu e mais 4, pra rolar e pôr as plantas no lugar. (MC) muito legal (OS) então isso era aqui, era só isso. Aí cresceu e precisou ir pra lá (MC) no galinheiro (OS) é (MC) os meninos já tinham crescido (OS) aí fizemos lá, mas não tinha como, tinha um degrauzão. Degrau em fundição não presta. Enchi de terra, levantou o nível, aí cimentamos e fez um nível só. Aí pra fazer o telhado era um problema né, ia ficar muito baixo, então fiz essa lanterninha assim 2 horas e 30 minutos (MC) aham (OS) porque daí o calor (assovio) (MC) ah! isso é pro calor (OS) é, o calor também, há um movimento de ar né, você abre lá (MC) você junta tudo pra poder fazer (OS) e tem aquilo lá né, não pode entrar vento fino (MC) não (OS) aí você fecha tudo, na hora de vazamento tem que fechar tudo. As vezes se tem ventania, a gente põe compensado e faz biombo, pra não ter vento dentro (MC) como é a agilidade de ligar esses fornos? (OS) é rapidíssimo, ligou ali é pá pum (MC) faz aquela fogueira toda (OS) faz uma língua de fogo de um metro, tem uma ventoinha lá fora de 90 cm. Ó, tem dois maçaricos aqui. Um com ar forçado e um atmosférico que é de segurança. Entendeu? Porque o ar forçado, ele pode acabar a luz, aí o gás fica bobão, bum!, não sabe o que fazer. O atmosférico não, ele acende com a pressão atmosférica e ponto, ele não vai apagar. Aí ele mantém queimando o outro porque o GLP, ele não volatiza, ele é mais pesado que o ar e fica aqui embaixo aí dá um tiro que ó aqui a alimentação (pausa com ruídos) (MC) ah, não é pouca coisa não. Isso aí dá pro meu ano inteiro de comida (OS) dá pra cozinhar um bocado (MC) agora, você é apaixonado por isso né? Pelo equipamento (OS) eu gosto de ferramenta, de antiquário, gosto de loja de ferramenta. Qualquer lugar que eu vou no mundo, vou ver antiquário e ferramentas. Tenho coleção de formões em tale suíço, tudo em cabo de carvalho e dorme ali na minha cabeceira assim (MC) agora deixa eu falar uma coisa, você tem um cuidado especial com ferramenta assim, qual é o cuidado de manuseio? Porque tem gente que gosta e gente que gosta e fica com aquele cuidado. Eu guardo assim, eu arrumo assim, eu arrumo todo dia, eu não arrumo nada (OS) não sou doente não, as coisas estão aí pra serem usadas. Agora, se você usa, você sabe onde dói, entende? Então manter afiado, manter limpo, manter funcionando, entendeu? Eu tenho um amigo que tem uma

caminhonete, eu também tenho, só que a caminhonete dele é pra ter, a minha é pra ser. O que é uma caminhonete? É um utilitário, se é utilitário (MC) tem que ser útil (OS) tem que ter função. Em poucas palavras, as coisas têm que ter função na vida, até as pessoas, se não tem função comigo, por que eu ando com essa coisa aí? Não adianta nada. A vida tem que ter função! A vida é isso. (MC) as pessoas usam seus equipamentos? (OS) usam (MC) alguém pode chegar e tudo bem usar seu equipamento (OS) esse alguém é limitado né (MC) seu filho, usa seu equipamento? (OS) eu sou crica (MC) é, isso que eu queria saber (OS) mas crica assim, tem duas razões de ser. Chega o cara aqui deslumbrado “ai me empresta essa motosserra!” Não! Aí chega o cara aqui “eu posso fumar?” “não! ” . Pô, uma tabuleta desse tamanho “proibido fumar” e o cara teve a ousadia de perguntar se pode fumar, você é idiota seu analfabeto, quer que eu desenhe? É... quer dizer, quando você fica velho, você fica chato porque você adquire direitos, liguei o ff... entendeu? (MC) aham (OS) mas é isso, eu sou criterioso. O cara chega aqui, vem no workshop aí fica conversando, não, pode parar, cadê os óculos, cadê a luva (MC) lugar de trabalho né? (OS) educação, se eu não educar assim, ele veio aqui aprender o que? Em um lugar de trabalho você tem que trabalhar com equipamento... (MC) e você precisa de um monte de coisa? (OS) tem (MC) luva, tudo... (OS) é um pra cada (MC) tudo, tudo (OS) tem tudo, 50 alicates, aqui esses joguinhos, não pode ser Brasil não, tem que ser Japão. As crianças japonesas todas voltando do treino de futebol e eu ficava olhando, era febre quando eu estava lá né, Zico e tal (MC) ele era o cara né (OS) aí uma rede assim, com o tirante de fechamento nas costas com 3, 4 bolas dentro, cada criança daquelas (pausa) entendeu? (MC) entendi, isso você aprendeu... (OS) tudo, eles têm de tudo mas tudo no conforme. Aí eu fiquei pensando, se fosse no Brasil, tinha 10 crianças e uma bola aí os caras já iam batendo, já vinham na calçada pum pá... (MC) ah, jogava pro outro (OS) correndo o risco da bola cair na rua e o carro passar por cima. Essas coisas com a vida, nós não temos aqui, a vida não vale nada, você não ensina isso pra criança porque o único valor que ela tem é a vida que o corpo dela carrega e o que é o corpo? A embalagem que carrega sua vida, então cuide da sua embalagem bem porque se não escapa a vida daí de dentro “hahahaha”, ah é? Pera um pouquinho, vou fazer um furo aqui em você (MC) (risadas) não precisa demonstrar (OS) vamos ver se a vida não sai fora dessa embalagem aí, entendeu? Bem pragmático né, bem japonês (pausa). Pronto, então é assim, então esse negócio de pega/usa,

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pode mas tem que ter consciência do que você está fazendo, é para aprender as coisas, não é para ficar brincando, abusando, correndo risco desnecessário, a vida já é um risco aí você ainda aumenta, então você não gosta de você, não é aqui (pausa) (MC) muito bom. Osni, você sempre vai pra bazares e essas coisas, loja não, né? (OS) nunca tive acesso (MC) ah tá. Aí você já tem seus canais de bazares (OS) é... nós estamos vivendo basicamente disso, por que? Não tenho nenhum preconceito contra nada, vou lá onde for, pra vender meu trabalho, ganhar meu dinheiro, pagar minhas contas e comer ponto. (MC) aham, mas você tem um trabalho desses todos que é o seu favorito? Porque metal é muito diferente da madeira né (OS) é, completamente (MC) e aí? (OS) metal é o símbolo da obediência e a madeira é o símbolo da soberania; ela é soberana. Muitas vezes é mais difícil trabalhar com madeira do que com metal (MC) é, metal você bem ou mal, você bate nele, você molda (OS) chega pra lá, ele molda, ele vai, dobra né. Madeira não, ela já está lá e é aquilo, ou você a conhece profundamente (MC) e a madeira é... são as madeiras né? Porque uma madeira mole é uma coisa, dura é outra coisa (OS) é, cada madeira é uma, o lado norte é um, o sul é outro, a primeira tora é uma, a segunda é outra, a resistência... vai indo pra cima, é mais jovem, tem menos tempo de vida porque o pé nasceu primeiro ou não? (MC) aham (OS) se essa árvore tem 50 anos, isso aqui tudo foi eu que plantei, tudo Ipê Branco, tudo filho da árvore da minha escola primária (MC) ah! Que legal (OS) e aqueles ali são os netos que eu levo pra plantar lá em Araçatuba (MC) muito legal (OS) um desse aí eu quero plantar lá na Waldorf pra deixar minha marca lá, um Ipê Branco. Então preparar esse negócio aí, um dia com as crianças ir lá e... (MC) tem que avisar, vou avisar a Melanie e a gente organiza de você ir lá (OS) isso é uma proposta (MC) mas acho bem legal (OS) se a escola achar que vale, vamos fazer né. Tem setembro, dia da árvore e por aí vai. Mas é isso, então madeira... tem coisas que o pessoal não acredita, por exemplo, como é que chama o cara que trabalha com agricultura, formado em... (MC) agrônomo?

(OS) agrônomo! Eu tinha um amigo agrônomo, então perguntava isso, falava olha eu não acredito, nunca ouvi falar nada disso na escola, mas eu já fiz um teste uma vez, trabalhava em área de reflorestamento (pausa), plantei um canteiro de muda segundo as luas e eu vi que ficou diferente (MC) ah, você fez esse experimento? (OS) eu não, ele (MC) ele

(OS) porque eu não, eu recebia através de conhecimento familiar, minha família é de Santa Catarina, então madeira está na veia e naquele tempo a tecnologia era tudo madeira (MC) sim (OS) esse negócio de cortar tora, de arrastar, o picão (MC) isso você aprendeu lá, em Santa Catarina (OS) meu pai. Então hoje eu vejo, o cara põe assim 60 cm de chapa de inox e liga, cortou 20 mil facas e uma faca custa 8 reais com cabo de madeira e 3 arrebites (MC) jura? (OS) como é que pode? E já afiada, cortou 20 mil facas em um dia, ela já entra na esteira e pá pá pá uma cruza pra lá e outro pra cá, perdeu o valor. Tinha um formão, tudo inglês, pendurado lá em cima, a gente só podia olhar, não podia (MC) (risadas) era seu sonho de consumo. Você olhava com desejo para aquele facão (OS) com desejo! Aí eles trabalhavam fazendo porteira e lá em cima (MC) olhando aquilo (OS) “o que o moleque quer aqui? Aqui não é lugar de criança não! Vai lá pra dentro!” e não podia fazer nada... Esse aqui é o picão que a gente faz com uma enxada leve. Aí você pega a cabeça da tora, põe no centro assim ó, aí com a marreta você pam pam pam (barulho acompanhado com ferramenta) e ela tuf. É só amarrar no gancho e ela vem quicando no chão, arrancando, um horror. Aqui não tem erro, o picão velho, tudo isso aí foi arrastado com isso. Eu desconfio que a marca do picão está em uma daquelas pranchas lá, onde ele entrou (pausa). Enxadinha velha (pausa) ah! Agora o segredo, mas você botou lá na tora, mas e agora pra tirar? Assim ele não sai, agora assim pem pem pem pem (MC) ah tá (OS) por causa da forma e por causa da pressão que existe entre as fibras aí meu amigo engenheiro “porque eu pus as portas lá e caiu tudo” mas como? Fomos lá ver, um parafusão assim caiu, falei ah, no topo da madeira não põe parafuso porque ele não segura, parafuso só segura no lado da madeira. Prego segura, no topo se você puser pra arrancar é dose, porque? A pressão é assim, certo? Se eu fizer um furo pro parafuso, já perdeu a pressão, pro prego não usa furo... aumentei a pressão, se a pressão era 10 e eu ponho um parafuso, aumentou pra 12, pra 15 e agarrou o corpo do parafuso inteirinho, a mesma pressão. Outra coisa (pausa com passos) (OS) estou desenhando pra você entender. A fibra da madeira está aqui certo? Aí eu enfio um parafuso aqui, estou cego sem óculos, aqui chama aba da rosca (pausa) certo? A aba da rosca que vai rosqueando, tem de um lado e do outro do parafuso e aqui pode ter até uma sessão reta pra economizar e aqui está a cabeça do parafuso (MC) certo (OS) então ele ao entrar, o que ele fez? As fibras estão aqui ó, num é? (MC) sim (OS) ele cortou essas fibras, cortou essa, essa... cada aba de rosca vai cortando as fibras, então o que eu provoquei? Provoquei uma sessão com as fibras todas cortadinhas, ficou que nem uma rolha, se eu puxar

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(MC) então não é o efeito que a gente imagina porque a gente imagina que ele vai entrar e agarrar dentro das fibras, mas não agarra (OS) ó, aqui está assim. A fibra está assim, certo? (MC) certo (OS) se eu colocar aqui o que eu fiz? Vou fazer em grande aqui. Aqui é a aba da rosca do parafuso, certo? Se eu parafusar aqui assim, eu coloquei as fibras aqui dentro (MC) está claro (OS) como se eu fizesse assim, atravessando o tronco. Se eu parafusar de topo, o que eu fiz? (MC) aí pronto, rompeu (OS) as fibras estão assim, eu fiz aquela rolha porque cortei as fibras todas no parafuso aí se puxar ele sai (MC) tem tudo a ver com o lugar onde você colocou (OS) pois é, aqui é o topo e aqui é a lateral, então se eu colocar na lateral vou estar fazendo isso, vou estar colocando as fibras dentro de cada aba de rosca, né? (MC) aham (OS) minha mão assim ó, coloquei um monte de fibra de madeira então não cortei a fibra da madeira porque ela entrou aqui, agora de topo ela vai cortar a fibra, no entorno do parafuso as fibras foram todas cortadas; se você puxar ela sai. O prego não, ele fez aquele efeito do picão, ele entrou (MC) entendi muito bem. Você está com algum projeto? (OS) tenho o pessoal da BAU (?), estamos traçando esse projeto agora, vai ter a casa do alumínio, vários anos eu tenho recebido os estandes pra fazer apresentação de workshop, só você entrar no youtube, tem vídeo meu lá, chama Abifa 40 anos, foi o maior que nós fizemos porque eu botei os presidentes das associações de fundições do mundo que vieram, da China, da Alemanha, tudo pra fundir o peixinho (MC) ai que legal (OS) tirei a criança de dentro deles, os caras felizes com o peixinho (MC) ficaram super felizes. Você sente isso, que tira a criança de dentro da pessoa (OS) pois é, isso aí é o uso fundamental de psicologia que eu aprendi. Uso isso e repasso isso junto com o outro conhecimento. Aí chegou um senhor lá em Joinville, na terceira maior feira de metalurgia do Brasil, primeira é São Paulo, segunda Belo Horizonte. Chegou um alemãozão lá “ pode trazer minha netinho pra fazer peixinho?” Aí trouxe o netinho dele. Pera aí, eu já na hora saquei essa conversa né, põe avental no carro, tudo aquilo pra fazer o peixinho aí o cara lá, o velho “eu pode fazer também?” ele foi buscar o passaporte, a autorização. Aí o neto entrou e ele se autorizou a pedir se ele podia também, aí ele fez. A hierarquia, aquela coisa toda não deixou ele chegar pra mim e falar “posso fazer?” (MC) que coisa né, que interessante (OS) nós temos isso, principalmente os homens, são mais sofredores que as mulheres né?... E ninguém é obrigado a nada, absolutamente nada. A vida é espontânea, se não for espontânea é antivida, é morte. Já pensou comer sem fome? Beber sem ter sede? Ah não. Eu queria ter 20 anos hoje e ter esse conhecimento e essa autorização perante a vida de: não. (MC) mas pra pessoa que vai chegando na meia idade com uma maturidade e pensar “ ai nossa queria ter 20 anos hoje e aproveitar”

(OS) eu digo pra você, depois é que eu fiquei sabendo como é que eu era visto no passado porque eu me via muito mal por causa de certas cobranças e familiares também, até por fazer arte. Eu hoje, tenho familiar que me apresenta “esse é meu filho, meu filho famoso, mas não é viado não” (MC) ah falam assim? (OS) fala (MC) engraçado porque o metal é muito masculino, a gente não tem a impressão (OS) ah se eu falar que eu pinto, estão lá meus quadros, as pinturas todas (MC) ah tá, entendi (OS) agora, ah você é artista, o que você faz? Ah, eu faço escultura fundida em bronze (MC) aí isso é coisa de homem (OS) ah que faz canhão, arma pra matar, que faz revolver, então o cara é fudido (MC) é isso mesmo, é assim (OS) ligado à violência, força (MC) mas ele é um arquétipo masculino né Osni, o metal ele traz uma coisa masculina. Ele começa com a ferramenta, com a arma (OS) sei lá, eu acho que ele tem tanto a ver, principalmente a fundição, a fluidez feminina que vai e permeia o Ying que permeia tudo. Se não fizer assim, nada será transformado... (MC) maleabilidade (OS) essa fluidez, as mulheres são fluidas, o feminino é fluido. Quando as flores estão balançando ao vento e tal, penso assim. Mas o inconsciente coletivo não está nisso porque os movimentos de guerra, todas as coisas que estão lá é o bronze, a escultura. Isso cria essa imagem e depois pra desfazer, não sou eu que vou desfazer isso. Já a pintura, poxa, são os caras muito mais feras, durões, que aguentaram a barra ó o Van Gogh, não vendeu nenhum quadro na vida (MC) nada (OS) e teve lá, a pintura dele, com pincel delicadinho e tal. Mas é que ó, nós estamos aqui né, eu fiz workshop lá em Mashiko pra professores de artes, das escolas internacionais, foi a primeira vez que eu me senti valorizado como artista (MC) faz quanto tempo? (OS) uns 10, 20 anos atrás, acho que 2000, por aí (pausa) ish Maria... olha aqui, o que eu estava falando? (MC) você falou que foi a primeira vez que se sentiu valorizado (OS) quero te mostrar a foto de um workshop no Japão, mas antes disso quero te mostrar, olha aqui, pau terra maravilhoso (OS) (?)... escola católica no Japão. Pera aí que você está ainda lá no outro negócio, pera aí (pausa) não enxergo mais, aqui fazendo cerâmica lá no Japão, aqui é o workshop aqui em casa, workshop de cerâmica e metal. Aqui é aquele negócio Art Scape, 1997. Então, inaugurando o Art Scape que era a reunião dos trabalhos feitos pelas cinco escolas internacionais do Japão, a gente fazia uma exposição todos os anos com mais de 500 obras, produzidas por esses adolescentes, essas crianças. Eu não vejo isso aqui no Brasil (MC) não, não tem isso falam “ah o cara é doido”

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((MC) Osni, o seu processo de criação na madeira, ele nasce de olhar a peça? (OS) a madeira que vai mandar (MC) a madeira que manda. Você pode falar um pouquinho? (OS) posso. (fala chiada) Aqui são as madeiras, as mesas, aqui são as joias. Ai, vou te mostrar as joias aqui, está tudo em cera já pra fundir. O processo é cera perdida certo? Ou você funde uma escultura, ou uma joia, só muda o tamanho do pão (MC) você tem que colocar isso numa galeria, no seu site (OS) eu não consigo fazer tudo (MC) (risadas) (OS) agora eu arrumei uns amigos (MC) porque tem tanta coisa bonita e não está no seu site (OS) vender pra escola, não sei mais o que. Vai vender workshop, obras para premiações. Eu falei “cara é isso que eu quero” então você só vai se obrigar a fornecer o subsídio que a gente precisa pra falar de você. Já comecei a mandar (MC) e eles vão colocar? (OS) vão. Aí falaram “ó, você vai estar no Instagram, vai estar não sei aonde, você não está em lugar nenhum cara, como é que você vende?” falei “ah, não sei, as vezes aparece um povo pra comprar”. Ó, isso aqui é o workshop de fazer isso ó (MC) ah, isso é muito legal (OS) ferrar cavalo. Você fala que um artista faz isso, MC) e com quem? (OS) até eu não sei, tem uma turma aí de ferrador (MC) mas isso é pra ensinar ou é (OS) pra ensinar, ferrando a quente (MC) a cor desse cavalo é linda (OS) é, ferramos a quente, isso é uma coisa que o povo já não faz mais ó (MC) mas isso é uma experiência, pra que grupo? (OS) de jovens ferradores, porque? (MC) ah, o grupo de jovens ferradores (OS) porque não tem mais essa profissão (MC) ah, entendi (OS) e cavalo não pode andar sem ferradura (MC) olha só (OS) cada 30, 40 dias tem que trocar o sapato, se não começa a mancar então tem que ir repassando esse conhecimento (MC) quantos tinham? (OS) uns 20 e tanto, está vendo? Ferramos o casco, aí faz a cavidade, a ferradura senta (MC) dói? (OS) não, tem um limite. Não pode chegar na chamada linha d’água porque o casco tem mole por dentro, duro por fora e tem uma membrana branquinha, que nem a unha aqui ó (MC) igualzinho (OS) aí eu fiz lá pra minha neta ó (MC) ficou bonito (OS) aqui é o banheiro da minha filha, isso tudo daquela prancha lá (MC) tudo daquela prancha (OS) fiz a casa toda, lavabo, banheiro, banheiro da criança. Falei “não dei nada pra vocês no casamento, vou dar isso aí, ponto.

(MC) eu queria que você falasse do processo de criação na madeira (OS) então é assim, as peças torneadas, a gente primeiro olha a madeira, a forma e (MC) está bonito esse, está lindo. Você está cheio de fotos legais, tem que me mandar umas fotos (OS) vish, tem foto hein (MC) você vai mandando, eu seleciono (OS) eu perdi umas 10, 12 caixas de foto (MC) olha isso aqui ó, você precisa me mandar essas coisas porque vai ficar lindo no trabalho (OS) será que eu tenho aquela cortando lá fora. Ah! ó aqui você aí, você tem que passar um oi pra mim aí eu te mando (MC) você já tem meu whatsapp (OS) eu tenho? (MC) sim! Porque a gente está se mandando (OS) ah tá, entendi. Ó na escola lá no Japão, na escola nova, igualzinho no Brasil, tudo com calça furada (OS) aí eu fiz esse aí, esse é o Ipê, foram feitos para os 12 ex diretores, presidentes da BAU (?), isso aqui todos os anos a (? Television) promovia um concurso de desenhos infantis mundiais (MC) ah, que graça (OS) veja bem, Brasil, 302 inscritos, aí tinha Sri Lanka que me chamou atenção, 14 mil (MC) 14 mil (sussurrando) (OS) Isabela Junqueira, esse desenho, tinha 8 anos na época, de Presidente Prudente, um dia eu quero conhecer essa criança (MC) ela ganhou? (OS) ela ficou em segundo lugar... eu participava convidado como juiz, na seleção final (MC) muito legal (OS) entendeu? (pausa) mas Brasil, um país desse tamanho… (MC) tinha 300 e o outro com 2 mil não sei quanto (OS) não, mas Sri Lanka com 14 mil, cara, foram todas as crianças participar (MC) país inteiro (OS) o nível de atender, participar (pausa) (MC) sabe o que a gente podia fazer? (OS) diga (MC) a gente podia ir lá naquela prancha, naquelas madeiras e você me fala um pouquinho sobre o processo de criação (OS) onde? (MC) lá em cima, daí de lá eu já vou, não é uma boa? Aí a gente encerra (OS) quer tomar uma água, alguma coisa? (MC) não, estou ótima, tomei um chazinho, estava muito bom. Deixa só eu pegar aqui minha sacola (pausa e ruídos). Que raça que esse cachorro é? (OS) eu caçava quando era adolescente, não caço mais, mas, o cachorro (MC) ele é um cachorro tão de boa né? (OS) só… territorialista, né (MC) esse aqui era muito bonito né, vamos combinar, essa peça aqui é muito bonita. Ela já está a venda? Ou você está acabando ela ainda (OS) está acabada

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(MC) já está acabada. Agora isso assim, como você faz pra vender uma coisa dessas? Só para as pessoas que conhecem (OS) só (MC) você não vai expor (OS) eu falo que só não vai vender o que eu não fizer. Tudo que eu fizer, um dia vende, agora se não existir, como é que vende? Minha mulher “mas, você vai fazer tudo isso?” Falo “ vou “, meu negócio é fazer, depois daí não é mais comigo (MC) está muito bonito. Processo de criação Osni, me fala um pouquinho (OS) Bom, então aqui, essas são duas pranchas irmãs, certo? Essa se você virar assim, encaixa lá 3 horas e 15 minutos MC) e dá pra ver perfeitamente (OS) é, o desenho. Aí sobre ela tinha outra, então eram 3 aqui e outra embaixo, as outras nós já vendemos, foram feitas mesas, foram feitos os banheiros da casa da minha filha, lavabo e tudo o mais. Aí essas aqui eu falei bom, essa aqui era mais central porque era um galho, vou fazer uma mesa, aí como ela tinha essa rachadura aqui e rachadura é um negócio problemático porque existe um negócio chamado tensão residual ou memória então eu fiz essa (MC) marchetaria (OS) essa marqueteria aqui ou marchetaria, pra fazer uma graça e segurar o prosseguimento, possível prosseguimento da cisão. Do lado de cá (pausa) idem, a prancha tinha uma podridão aqui então escavamos pra fazer e aqui também. Podia fazer um quadrado, alguma coisa, mas não ligado a arte (MC) fica muito mais legal assim. Osni, tem alguma peça aqui que você tem em memória, que você fala assim “aqui eu errei e desse erro fiz tal coisa”, tem alguma? (OS) tem uma improvisada (MC) sabe aquele do erro, que nasce uma coisa (OS) quem será... ah! Pode ser isso aqui ó (MC) deixa eu pegar uma foto (OS) aqui, ao cortar, pegou aqui a outra ponta e tivemos que fazer essa restauração e essa outra aqui (MC) ficou super legal né, deixa eu fotografar. A madeira também permite né? (OS) é, tudo permite né (pausa com barulho). E ali é a forma mais orgânica, podia ter cortado um quadrado e puf né, aí não tem arte, então sempre levando em conta isso, buscar da forma orgânica... (MC) aqui, ela era então assim, será? (OS) oi? (MC) aqui, teve um corte né? Ela era (OS) ela era irmã dessa aqui (MC) ah, era irmã. Nossa Osni, essa aqui está legal hein (OS) era irmã dessa (MC) ficou bem interessante (OS) essa fundi e coloquei aí, pra ter uma parte metálica né, puxa pra lá (MC) vou puxar, pode puxar? (OS) pera aí, não sei se você vai aguentar, talvez está travada a porta (MC) está superleve (OS) tá, então empurra pra trás. (MC) nossa que rodinha boa essa daqui hein? (OS) tudo aqui é bom, o pior sou eu

(MC) porque tem umas rodinhas que pelo amor de Deus, que coisa mais irritante, umas de silicone (barulho) (OS) não tem pobreza de alma não. Tem pobreza bancária, mas de espírito... (MC) mas essas fotos minhas aqui, não estão chegando aos pés das que você tem no seu celular (OS) (risadas) (MC) por favor, porque daí eu faço uma coisa bem bonita né, não precisa ficar feio (pausa) (OS) então Maria do Carmo, esse negócio do workshop que eu tinha no Japão, eu desisti aqui (MC) posso jogar isso aqui pra lá? (OS) leva a outra que é mais fácil. Agora esse pessoal que está fazendo essa montagem da história minha e tal e vai botar pra vender, primeira coisa, eles já fundaram o Centro Cultural do Alumínio na BAU (?) falaram: “olha a gente está programando de fazer assim anual, o seu workshop direto lá, na BAU (?)” (MC) nossa que legal! (OS) falei “beleza” quero ver também se eu tenho interesse em uma coisa tão... aí eu tenho que pensar e ir pra São Paulo, como é que eu vou fazer? Viajar todo dia pra São Paulo? Num dá. Então, muda pra lá, arruma um lugar lá e fazer um projeto com tudo dentro: espaço, terreno, barracão. Tem que ser dentro do conforme, nada de... não tenho 20 anos, então tem que ser tudo, eu não tenho que ficar preocupado com coisa, minha preocupação é dar aula, ponto. (MC) você está muito certo (OS) esse negócio brasileiro (MC) tudo mais ou menos (OS) não tem essa. Ah! Caro. Não existe caro, existe custo benefício, ponto. Essas coisas têm que acordar pra vida pô, então eu quero repassar meu conhecimento, já estou cheio de falar isso e agora apareceram esses caras que me conhecem do mundo da metalurgia, um deles trabalhava na BAU (?), é jornalista, e o outro estudou computação gráfica digital, sabe fazer essas coisas muito bem. Aí falaram “poxa, você é um material muito incrível pra nós, precisamos de você porque nós precisamos de produto pra ganhar dinheiro. Não vamos te cobrar nada, vamos a hora que nós começamos a vender, aí nós vamos cobrar nossa porcentagem normal de qualquer agência e tal” aí eu falei “beleza então vamos embora” (MC) parece bom (OS) não é? A vida é um risco (MC) o risco é baixo nesse caso, se tiver a estrutura toda (OS) e no ambiente que eles vão vender, todo mundo me conhece então não tem jeito de ficar com enrolação e tem a Expo Alumínio em setembro que vai ser a casa do alumínio. Uma casa montada, uma exposição com todas as possibilidades do alumínio dentro da casa, pra divulgar o alumínio né, porque o brasileiro ainda pensa na panela e janela. (MC) é verdade (OS) eu já fiz várias, ano retrasado que foi a Bienal, eles me deram cento e tanto metros quadrados, eu fiz a exposição lá com 60 e tantas obras de alumínio (MC) nossa, eles que arrumam tudo? Você entrega a obra e eles fazem? (OS) não, eu faço, monto tudo. Claro, tem ajudante, mas eu que decido tudo (MC) você que decide

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(OS) é, vou lá, pego, carrego, descarrego e por aí vai, fotografa, grava. Depois fica lá todo dia porque você tem que atender o público, você é o melhor vendedor do seu produto, e é a hora da minha relação social, senão eu fico nesse buraco aqui, silencioso. Então a hora que eu abro a boca, Jesus! (MC) vai falando né? (OS) necessidade de interação né? (MC) está certo (OS) mas então, voltando aquele negócio, isso é bom porque? Vai abrir, vai aparecer mais trabalho, vai aparecer os workshops porque não tem só os de fundição, você viu os peixes feitos de latinha? Aquilo eu fiz no Capão Redondo por que? As famílias vendem as latinhas, 75 latinhas da 1 kg, vende a R$3,50 falei “meu querido, se você pegar 75 latinhas, você faz duas piranhas dessa aqui, quanto você acha que vai vender cada piranha se você sair na rua assim?” entendeu? Vai vender a R$3,50 uma piranha dessas? Você é louco né! O cara vai te pagar no mínimo, dependendo da rua que você tiver andando, R$50,00 pra uma piranha dessa. Então você multiplica o ganho da latinha que vocês catam, pelo menos 100x (MC) você ensinou (OS) é, e outra, você envolve a tia, a avó desempregada, você dá função pra todo mundo... isso aí foi exposto até em Brasília em um Congresso Nacional. A coleção que tem aí foi exposta no MAM, foi pro Congresso Nacional, tinha um negócio, aquele de ecologia lá, Gabeira estava lá, ficou doido, fotografava tudo e depois saiu nos jornais aí e tal, não sei quem mandou falou “ó, vi o seu negócio lá” (MC) então é isso (OS) então espero que você tenha conseguido (MC) eu consegui quase tudo FIM DO ÁUDIO