Malevich e El Lissitzky

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Os códigos artísticos na transcendência da materialidade: A materialização da essência.

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Os códigos artísticos

na transcendência da materialidade:

A materialização da essência.

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Os códigos artísticos

na transcendência da materialidade:

A materialização da essência.

1. História da Azulejaria, Séc. XVIII

Os 4 elementos e as 4 Estações – compreensão e domínio do

pensamento sobre o mundo como reflexão religioso-filosófica.

Prof. Manuel Rocha

2. História da Arte, Cultura e Arquitetura da Época Contemporânea I,

Inglaterra Séc. XVIII - XIX

O delinear do caminho na transcendência da matéria terrena – William

Blake e o neogótico inglês.

Prof. Hugo Barreira

3. História da Arte, Cultura e Arquitetura da Época Contemporânea II,

Rússia Séc. XIX - XX

A materialização da essência – Malevich e El Lissitzky.

Profª. Leonor Soares

3

Parte 3

A materialização da essência:

Malevich e El Lissitzky.

História da Arte e Cultura da Época Contemporânea II

História da Arquitetura da Época Contemporânea II

Profª. Leonor Soares

Débora Rocha Lourenço

201306543

4

Índice Introdução .................................................................................................. 5

A forma abstrata. ........................................................................................ 8

A arte abstrata e a estética ...................................................................... 9

A arte abstrata e o subconsciente ......................................................... 12

Os dois caminhos para a abstração. O experimentalismo e o

conceptualismo. ....................................................................................... 12

Wassily Kandinsky ............................................................................... 16

Kazimir Malevich ................................................................................. 17

Da cor à cor inexistente ........................................................................... 18

O objeto .................................................................................................... 20

A afirmação de Malevich ......................................................................... 22

Nihilismo .............................................................................................. 26

A Arte como Linguagem de José Gil ................................................... 27

Kazimir Malevich e a arquitetura ............................................................ 30

Arquitetura e design para Malevich ..................................................... 33

Propostas arquitetónicas de Malevich .................................................. 34

The “arkhitektons” and “planets” of Suprematism .............................. 35

Do Unovis ao espaço Prouns................................................................ 36

A divisão entre Malevich e El Lissitzky sobre o espaço suprematista .... 44

Conclusão ................................................................................................. 46

Fontes ....................................................................................................... 48

Bibliografia .............................................................................................. 51

5

Introdução

O trabalho Os códigos artísticos na transcendência da materialidade, é

dividido em três partes, sendo que a parte aqui apresentada se trata da última. Um

trabalho que não tinha um caminho delineado, nem uma direção apontada, tinha

apenas três paragens, ou pontos artísticos que queria visitar debaixo da ótica do

grande título. Queria passar pelos elementos que compõem este nosso mundo,

William Blake e a sua crença de ter neste nosso mundo o verdadeiro caminho da

transcendência, e por Malevich que sintetiza pictoricamente uma busca pela essência

de alguma coisa que eu não sabia muito bem o quê. Sabia por onde queria passar, e

tinha uma ideia de como deveria de olhar para as obras, mas não limitei qualquer

intenção que o trabalho, ao longo do tempo em que foi processado, pudesse indicar.

Agora, que já passei pelos Quatro Elementos, as Quatro Estações e a sua

ligação com o ser humano e como este as encarava artisticamente e cientificamente

em pleno séc. XVIII através do seu estudo azulejar; e passando ainda por um

entendimento, que não total, William Blake me despertou outros pontos de vista sobre

a sua leitura mística e a sacralidade da Terra numa transcendência que não precisa de

intermediários, que no seu vocábulo artístico tão distinto este vai mais longe e cria a

sua própria mitologia. Chego, agora, a abstração de Malevich.

Para dar início ao meu trabalho, o principal objetivo era uma compreensão de

apenas uma obra de Malevich, o Quadrado Negro Sobre Fundo Branco. Apesar de

não ser uma obra que conheça online grandes variações de cor, ainda assim resolvi

adotar a imagem desta mesma obra que é fornecida online pelo museu Tate que

denomina esta obra como “Black Square” e a data de 1913. Mais do que qualquer

fonte pictórica, que com um olho destreinado e sem ter abordado o suprematismo em

aula até então, foram as obras escritas que se tornaram fontes de informação

desejáveis. As fontes escritas, apesar do artista ser estudado em escolas e noutras

instituições académicas, não existe, contudo, muito do que este nos deixou, com

tradução para o inglês, permanecendo ainda muitos dados em russo. Assim, posso

afirmar que encontrar boas traduções do russo foi uma dificuldade.

Antes de entrar diretamente no Suprematismo e no seu autor, comecei por

fazer pesquisas e iniciar leituras ligadas à forma abstrata, sendo também com este

tema que introduzo o meu trabalho. Para tal, uso o livro A arte abstrata da Dora

6

Vallier como base dos meus textos iniciais sobre a forma abstrata, a forma abstrata e a

estética e ainda sobre a forma abstrata e o subconsciente.

Depois desta introdução e reflexão da forma e da sua abstração, foi com a

leitura de um artigo online com o título de Two Paths to Abstract Art: Kandinsky and

Malevich de David W. Galenson, escrito em Julho de 2006, que aborda sobre o

experimentalismo e o conceptualismo como dois caminhos que a abstração conheceu;

assim sendo, falo de uma forma breve sobre Wassily Kandisnky e Kazimir Malevich.

Ainda neste tópico faço uma pequena reflexão sobre a cor e as influências dos artistas

contemporâneos a Malevich e como estes reagiam e faziam uso dela, através de Da

cor à cor inexistente livro escrito por Israel Pedrosa da Senac Editoras no ano de

2009.

Ainda antes de começar o meu estudo, apenas e só, sobre Malevich, não posso

deixar passar a necessidade de estudo que incide sobre o objeto nesta época e algum

tipo de debate levantado na época do artista. O escrito A arte da percepção: um

namoro entre a luz e o espaço, de Anna Barros, na FAPESP, da ANNABLUME do

ano de 1999, em cero ponto faz uma pequena reflexão sobre Irwin e a sua busca dos

conhecimentos na História da Arte com a pretensão de conseguir compreender o

porquê da incidente importância do objeto. Sem desviar o foco, também foi abordado

como poderia Malevich conceptualizar e expor a forma do objeto na sua arte, tendo

como leitura a obra de Dora Vallier intitulada de A arte abstrata, já referida.

Após estas pesquisas que a priori não sabia até que ponto me poderiam afastar

ou complementar o trabalho, resultaram por ser fundamentais para um melhor

entendimento não só teórico do que Malevich viria a escrever e a representar, mas o

seu contexto e o que o autor aspirava alcançar.

Para iniciar a análise, por fim, o estudo individual do manifesto artístico do

suprematismo, a afirmação de Malevich na arte, e o seu papel de artista, um pequeno

texto sobre nihilismo foi inevitável.

O estudo, a teoria e a leitura aqui apresentada da obra em estudo, Quadrado

Negro sobre Fundo Branco, tem como base o livro do conceituado filosofo e escritor

português José Gil através da sua obra A Linguagem da Arte de 2011. Antes de chegar

ao suprematismo um breve escrito sobre o alogismo de Malevich é parte do caminho

artístico aqui abordado. Após todo este caminho, a entrada no suprematismo que tem

7

como marco do seu nascimento a obra aqui em estudo, esta é lida de acordo com José

Gil e os escritos de Kazimir Malevich, nos seus abismos, ditos mentais mas também

pictóricos, e tensões que estes lhe despertaram.

Da pintura, o trabalho passa só agora, para a arquitetura. Assim sendo, é aqui

que as propostas de Malevich para o contexto arquitetónico são apresentadas, como é

que a arquitetura e o design são vistos e usados para Malevich. Para tal, o início tem

como base a obra de Dora Vallier já referida, A arte abstracta, e em seguida do livro

A ideia de Arquitetura de Renato de Fusco, ambos relacionados com o artista em

estudo.

Depois das ideias arquitetónicas iniciais, são, agora apresentados

sumariamente as propostas arquitetónicas que saíram do “papel” e que conheceram

um carácter tridimensional através da elaboração de maquete do próprio artista. Este

conhecimento foi adquirido através da obra escrita intitulada com o nome do pintor,

Malevich1, uma segunda obra intitulada de A Arte Moderna.

2

Um passo mais a frente nesta pesquisa arquitetónica, foi conseguida, através

do estudo da fundação do grupo Unovis por Malevich até se chegar ao espaço Proun

– uma proposta de um disciplo de Malevich, El Lissitzky, com os princípios

suprematistas. Antes do estudo deste espaço, Prouns, uma breve introdução as

influências de Malevich sobre El Lissitzky são aqui abordados.

É finalmente, após a apresentação do espaço Proun, que investigo os seus

princípios e como este espaço arquitetónico se faz apresentar ao público e pode ser

vivido, e termino como uma comparação da visão de espaço suprematista de acordo

com Malevich e El Lissitzky.

1 KOHL, João - Malevich : 1878-1935. 1ªed. Madrid: Globus, 1995. 2 ARGAN, Giulio Carlo - Arte Moderna. Do Iluminismo aos Movimentos Contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

8

A forma abstracta

O nascimento da arte abstrta dá-se no início do séc. XX, um facto que não

poderia estar mais errado. O abstracionismo não é apenas um fenómeno

contemporâneo ligado a artistas como Kandinsky, Mondrian e Malevich, sendo este

um tempo em que o artista não nomeia, exprime. Os antecedentes da abstração são

comuns nos tempos remotos, quer seja no início do Paleolítico, Neolítico, Idade do

Ferro ou noutras cronologias posteriores, embora igualmente parte da Antiguidade,

alcançando ainda os bárbaros da Idade Média. Tendo em conta a perigosa

generalização do que possa ser abstrato, a arte que assim se denomina, como por

exemplo a insígnia de bronze em forma de cabeça de pássaro (ulski) que se encontra

em Leninegrado, no Museu do Hermitage, esta abstração foi sempre resultado final da

procura da estilização ou esquematização, da contração da forma que nos é visível.

Assim sendo, a noção da realidade do objeto estilizado acompanha todo o processo

criativo, que o transforma sem o negar.3 A abstração presente nas vanguardas do séc.

XX, não são um ponto de chegada do criador mas sim um ponto de partida, onde o

espaço e o tempo são alargados a um nível que anteriormente não fora atingido. As

obras, agora, atingem formas que não contêm a imagem do mundo exterior, não são

relativizadas, cabendo ao espetador, através da reação, a apreensão da significação do

que é expresso. O nascimento de formas abstratas sem precedentes, como já referi,

apareciam em estudos preparatórios de artistas, desde desenhos a aguarelas

arquivadas, com a datação próxima ou anterior a obra de Kandinsky de 1910, que

academicamente se entende como marco no nascimento da abstração, nascimento

resultante de uma convicção profunda e sua. Este abandono voluntário da realidade

no campo artístico só tivera como semelhante a arte islâmica, por imposição da

própria religião.4 Apesar da proibição de traçar as linhas do que podem ser os corpos

do Homem, os artistas islâmicos, contudo, desenham a linha contínua onde nos seus

arabescos se podem identificar flores, pássaros e outros elementos, todos eles

estilizados. Dora Vallier chama-nos contudo a atenção para a análise do

abstracionismo islâmico quando afirma: “a realidade está presente nestas formas a

que erradamente chamamos abstractas (porque são estilizadas) – ou então

3 VALLIER, Dora – A Arte Abstracta. 1ª ed. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 9. 4 Ibidem, p. 10.

9

decorativas, o que é um segundo erro, tão instrutivo quanto grosseiro.”5 Assim

chamamos a estilizações que, erradamente, quando saltamos de civilização para outra,

associamos esta estética a implicações puramente decorativas, onde precisamos de

compreender que a antiga significação que estão empregues nas suas formas

desapareceram do nosso tempo. Somos vítimas do produto industrial que veio colocar

em risco a abstração rotineira, aliada ao design e prazer ótico sem significado, que

nada tem a ver com arte. Apesar de não podermos compreender com grande

amplitude este cuidado que fica para lá do decorativo, entendemos facilmente a

impregnação obedientemente rítmica dos traços, uma mostra facilmente nossa

conhecida já que somos capazes de compreender o ritmo como uma modalidade

particular da abstração. Em a Arte Abstracta, Dora Vallier esclarece-nos sobre esta

temática quando diz: “... a ornamentação parte sempre de um motivo realista

estilizado, perde-se depois no símbolo e conserva-se, desde a alvorada da civilização

até aos nossos dias, sob o aspecto de uma abstracção larvar, esvaziada sem

sentido.”6

A arte abstrata e a estética

“Se a arte abstracta, tal como surge no século XX, não

tem precedentes, já a sua elaboração lenta e progressiva pode

encontrar raízes nas próprias vicissitudes da forma, que

constituem o objecto da estetica.”7

Dora Vallier, explica que a ausência de figuração, uma das singularidades

temporais da história da arte, não chega para lesar a especulação estética do objeto,

quando, aqui, o objetivo da estética é “fazer luz sobre a obra de arte”, sem fazer o

foco permanecer no assunto que a obra acarreta em si.

5 Ibidem, p. 12. 6 Ibidem. 7 Ibidem, p. 16.

10

A autonomia da forma, mérito concedido ao séc. XIX, onde os artistas a

libertam do conteúdo das suas obras através da transformação da forma no conteúdo

em si, já que “a liberdade da forma iria conduzi-la à abstracção.”8

Antes do domínio do romantismo, durante todo o séc.XIX, que evolui o fazer

da forma, tivemos grandes contribuições sobre o pensar da forma no neo-clacissismo.

Wincklemann que quase impõe uma forma ideal, um modelo a seguir que,

ingenuamente, não se apercebera que se tratavam de cópias. Esta ideia de cópia,

significa apesar de tudo, uma submissão a uma determinada forma imposta.9 “Perece

o seu ideal, mas a miragem de uma forma perfeita, o formalismo que desencadeia,

sobrevive.”10

O neoclacissismo apesar nos parecer um sujeitar da sua arte, favorece a

reflexão estética. Esta reflexão é fundamental para no romantismo, de forma a evoluir

numa expressão cada vez mais subjetiva e livre, afastando-se do que era considerado

tradicional.

Os desvios do pensar que a forma propõe dão origem ao impressionismo e, ao

seu contrastante, realismo na arte. Outras possibilidades entram em contacto de ver e

representar a forma com Zola que, apesar da sua doutrina, “pede à obra de arte que

revele, acima de tudo, a personalidade do artista.” E outras perspetivas pensadas não

só como tendo a forma em foco mas a obra, quando Maurice Denis, em 1890,

escreve: “Lembremo-nos de que um quadro, antes de ser um cavalo na batalha, uma

mulher nua ou uma historieta qualquer, é essencialmente uma superfície plana,

coberta de cores, juntas segundo uma certa ordem.”11

A arte abstrata conhece o seu nascimento, apesar de, contudo, na mesma altura

ter surgimentos dispersos, e por isso, amplamente distintos.

“Se, em França, é a prática da arte que conduz à forma abstracta, na

Alemanha, pelo contrário, o factor determinante é o espírito especulativo.”12

Não podemos descuidar que a Alemanha, nesta cronologia, estava a conhecer

um variado número de filósofos, não seria de admirar esta pretensão, ou pré

8 Ibidem. 9 Ibidem, p. 17. 10 Ibidem. 11 Ibidem. 12 Ibidem.

11

disposição nesta geografia, do especulativo entrar na arte abstrata. Dora Vallier, no

seu livro A Arte Abstrata, não deixa esquecer que Lionello Venturi aponta que “a

mesma razão que levou à decomposição de um texto histórico nas suas fontes, levou

também à decomposição da obra de arte nos elementos do gosto que a define.”13

A arte abstrata, antes de tudo, tem que ser entendida como um fenómeno e não

como uma tendência.

Dora Vallier distingue, claramente, os vários períodos no desenvolvimento da

arte abstrata, do séc. XX, enumerando-os da seguinte maneira:

“...o primeiro, entre 1910 e 1920, que é o período das

origens, caracterizado por uma extraordinária vitalidade

criadora. Depois, um segundo período, entre 1920 e 1930, e

que assistimos à aplicação prática das formas abstractas – na

arquitetura, no mobiliário, nas artes gráficas (...) Por volta de

1930, começa a expansão da arte abstracta: em toda a Europa,

inúmeros artistas convertem-se à abstracção.” Mas, do ponto de

vista estético, esta fase da arte esgota-se e depressa resvala para

uma espécie de academismo. Em 1939, quando a guerra

rebenta, a arte abstracta, parece ter perdido toda a sua força

criadora. Porém, logo a seguir a 1945, ganha um novo

alento.”14

Este “novo alento” da arte abstrata, é referido pela autora, Dora Vallier,

quando esta refere o emergir de artistas americanos no abstraccionismo, apesar da

ambiguidade desse fenómeno, quando alguns artistas nos parecem abstratos são,

contudo, figurativos.15

13 Ibidem. 14 Ibidem, p. 23. 15 Ibidem.

12

A arte abstrata e o subconsciente

Apesar da ligação da palavra subconsciente e arte nos remeterem para o

surrealismo, e esta vertente artística fazer uso desse elemento “seguindo à letra” as

teorias de Freud, existe, contudo, uma ligação da arte abstrata a este termo do

subconsciente. Certo é que a priori, a arte abstracta e o subconciente não parecerem

próximos, não podemos descuidar uma possível investigação.16

Não nos mostrou nós o surrealismo que o campo do subconsciente explorado

pelos seus artistas não terá sido limitado? Verdade é que o surrealismo nos mantêm

nos limites da figuração. O que procuro mostrar é que Dora Vallier dá-me a conhecer

esta possibilidade quando escreve: “Contudo, o surrealismo mostra-se parcial, no

que diz respeito à revelação do subconsciente, precisamente porque impõe a algo que

é ilimitado e mutável os limites do consciente.”17

Isto é precisamente o contrário

daquilo que a arte abstracta tenta alcançar anteriormente a 1945, onde na mesma obra

escrita, “A forma abstracta”, a autora nos diz: “...arrancando, de todos os modos

possíveis, farrapos do subconsciente, e expondo-os ao olhar tal e qual como saem,

cruamente: é o balbuciar ainda informe de Wols, ou são as incursões de cortar a

respiração de Pollock.” A verdade, parece ser que o objetivo destas obras abstratas é

que na atração da sensibilidade na sua transferência para o campo do que não pode ser

denominado, do inominável, é possível dar forma a um possível reconhecimento. É

conseguida a queda da experiência necessária que levava a uma interpretação.18

Os dois caminhos para a abstração. O experimentalismo e o

conceptualismo

Wassily Kandinsky e Kazimir Malevich são grandes pintores russos que se

tornaram pioneiros na arte abstrata durante os anos vinte do séc. XX. Apesar de a

ambos serem atribuídas características abstraccionistas, a forma de cada um fazer

16 Ibidem, p. 26. 17 Ibidem, p. 29. 18 Ibidem.

13

representar os seus signos, são claramente distintos, tal como os seus métodos

artísticos e objetivos a alcançar por cada um.19

Kandinsky, um artista experimental, que encarava o abstraccionismo de forma

gradual, passo a passo, e com riqueza visual, onde este progressivamente concebia as

suas formas através do desenho que elaborava a partir da natureza. Contrariamente,

acontece com Malevich, um artista que explora o conceito inovando-o, entra na

abstração com a sua necessidade de criação de elementos simbólicos sem terem

qualquer fonte de origem que possa ser representada. A arte conceptual de Malevich

tiveram uma evolução considerável ainda antes do experimentalismo de Kandinsky.

Curiosamente, Wassily, aos 50 anos escreve um ensaio que claramente descreve e

identifica duas categorias de artistas, contrastando a facilidade do virtuosismo jovem

com a capacidade individual de pensarmos por nós próprios que são suficientemente

maduros para tal e que, consequentemente, são mais demorados na sua criação onde,

contudo, são altamente mais originais, autênticos. Kandinsky aparece-nos como um

inovador experimentalista, e Malevich um inovador conceptual.20

Dois artistas contemporâneos que entram pelo abstraccionismo através de dois

caminhos muito distintos, onde se evidenciam as abordagens diferentes entre estes.

Estes caminhos, como é comum na História da Arte, foram estudados aos serem

categorizados, onde os colocavam em categorias distintas, resultando em análises

isoladas e análise dos métodos artísticos como idiossincrasias dos mesmos.21

As inovações experimentais, de modo geral, tem objetivos visuais muito

pouco precisos, onde o resultado apresentado como final é produto de tentativa e erro.

As suas inovações são apresentadas ou conseguidas de forma gradual, ao longo de

períodos longos, a medidas que os artistas experimentalistas elaboram as suas teorias

e as colocam em prática de acordo com as suas descobertas e a execução das suas

obras artísticas. Em contraste, temos o que acontece com as conceptuais. É nesta

categoria que os signos apresentados são normalmente representações que visam a

exposição de ideias ou de emoções. Esta categoria permite que ainda antes da

execução da obra esta coloque de maneira clara os objetivos a alcançar com a mesma,

19 GALENSON, David W. - Two paths to abstract art: Kandinsky and Malevich. National Bureau of Economic Research, Cambridge, MA 02138, Julho, 2006. (Cpnsult. 12 Maio de 2015). Disponível em: http://www.nber.org/papers/w12403. 20 Ibidem. 21 Ibidem, p. 3.

14

processo que permite o planeamento preciso e execução sistemática.22

A arte

conceptual aparece na superação da necessidade de representar novas ideias. Os

longos períodos que são requeridos no uso do experimentalismo e nas suas inovações,

ocorrem em obras tardias de um artista. O contrário acontece nas obras conceptuais e

nas suas inovações que são conseguidas e usadas pelos novos artistas, que criam

novas formas ousadas sem ser necessário o grande retiro para reflexão sobre as

formas e conjugação das mesmas.23

Vemos num dos seus comentários o quanto a pintura tocou a sua rutura no seu

imaginário com a seguinte afirmação:

“I noticed with surprise and confusion that the picture not only

gripped me, but impressed itself ineradicably upon my memory... What

was... quite clear to me was the unsuspecting power of the palette,

previously concealed from me, which exceeded all my dreams.

Painting took on a fairy-tale power and splendor. And, albeit

unconsciously, objects were discredited as an essential element within

the picture.”24

Kandinsky, a cima, explica-nos o poder eficaz de uma eento visual, que no seu

caso, se refere a este ter visto uma obra de Monet que não só lhe revelou o poder da

sua arte, mas que mais tarde pôde ter levado Kandinsky a entender que a arte não

precisa de ser “representacional”.25

Adiante, na sua vida, Kandinsky vem a revelar um receio da arte de pura

abstracção degenere até atingir um estado de mera decoração, vazio de qualquer

emoção ou significado espiritual. Uma das suas soluções que foram apresentadas,

passariam pela certificação de que a arte sem qualquer intenção de representação, o

artista começaria com objetos reais que seriam “obscurecidos” pela simplificação das

suas formas conferindo ao espectador apenas o sentido da sua presença, e sentir o seu

impacto, ainda que apenas no subconsciente. As suas possibilidades foram

22 Ibidem. 23 Ibidem, p. 4. 24 Ibidem. 25 Ibidem, p. 5.

15

aumentando até ser capaz de criar uma arte implícita e explicita nas suas formas, “the

combination of the hidden and the revealed”26

Kandinsky acaba por explicar o ato de pintar como uma “struggle with the

canvas”, num processo em que ele “derived spiritual experiences from the sensations

of colors on the palette.27

“The artist “hears” how something or other tells him: “Hold it!

Where? The line is too long. It has to be shortened, but only a little

bit!” “Just a little bit, I tell you!” Or: “Do you want the red to stand out

more? Good! Then add some green. Now they will ‘clash’ a little, take

off a little. But only a little, I tell you.”28

O ato de resposta no trabalho em progresso é, para Kandinsky, essencial:

“One must have the perception to ‘listen’ when the voice sounds. Otherwise, no

art”.29

Apesar de, consequantemente, Kandinsky rejeitar o cálculo ou pré-conceções

da obra: “My advice... is to mistrust logic in art.30

Já a atitude de Malevich era bem

diferente. Ele acreditava que as formas artísticas deveriam de seguir certas regras: ”in

constructing painterly forms is essential to have a system for their construction, a law

for the constructional inter-relationships of forms”, e acrescenta ainda que este pode

não ser um processo gradual quando afirma que “in art i tis not always a case of

evolution, but sometimes also revolution.” Ainda assim, temos que denotar uma

grande diferença, o ponto de partida que, para Malevich e na sua arte abstracta,

estando ligado ao suprematismo o leva a afirmar: “I transformed myself in the zero of

formm and emerged from nothing t creation, that is to Suprematism, to the new

realism in painting – to non-objective creation.”31

Uma das grandes premissas de Malevich é a conhecida opinião de que a arte

deveria de abandonar a imitação do mundo exterior, sendo que agora o que seria

realmente necessário seria “the formation of signs instead of the repetition of

nature.”32

Para que tal fosse concretizável, Malevich escreve que estes novos

26 Ibidem, p. 6. 27 Ibidem, p.7. 28 Ibidem. 29 Ibidem, p. 13. 30 Ibidem. 31 Ibidem, p. 7. 32 Ibidem.

16

isímbolos ou signos resultantes de ideias devam ter origem “flowing from our

creative brain.”33

.

A grande afirmação e conselho de Malevich, relativamente aos seus

semelhantes, os artistas, deveriam de “abandon subject and objects if they wish to be

pure painters.”34

É aqui que o ponto de rutura do que até então se haveria de concretizado e

tendo exercicido enquanto visão artística se dá. Contrariamente ao cubismo e

futurismo, o Suprematismo não deveria de criar formas aos desmontar, desformar,

brincar, dividir a partir de objetos reais e sensíveis, mas sim uma construção

diretamente feita a partir de formas abstratas: “I tis not constructed out of the dynamic

elements of the objects, like some Futurist pictures, ... i tis a harmoniously

constructed image of abstract elements.”35

Para melhor entendimento desta característica do Suprematismo e da pura

cognição dos elementos, chamo a atenção para o uso da palavra “elemento” e não

“forma” como até então, é fundamental a leitura do ensaio que Malevich escreve em

1922 intitulado de “Suprematism as Pure Cognition”. Estes elementos,

anteriormentos referidos, podem ter existência apenas e só na obra de arte:

”Represented spaces, planes and lines exist only on the pictorial surface, but not in

reality.”36

Nesse mesmo ano, o discíplo de Malevixh, El Lissitzky explica que os

símbolos suprematistas não têm que ter, obrigatoriamente, uma ligação ou significado

imediato: “A sign is designed, much later i tis given its name, and later still its

meanisng become clear.”37

Wassily Kandinsky

A passagem por Kandinsky é fundamental na abstração. Um dos amigos mais

chegados e biógrafo do Kandinsky Will Grohmann explicou resumidamente que a

33 Ibidem. 34 Ibidem, p. 8. 35 Ibidem. 36 Ibidem. 37 Ibidem.

17

atenção e o alcance conseguido por parte do seu amigo artista, não tinha como base a

teoria mas com as tentativas de anos baseadas na sua visão:

“It is only with the greatest caution that Kandinsky made the

transition to abstract forms. Had he been guided by theory alone, he could

easily, after he wrote On the Spiritual in Art (i.e. from 1910 onward), have

completely eliminated naturalistic elements from his painting. In actual

fact it took him four years to reach that point, and he was still painting

landscapes as late as 1913. Kandinsky did not want to paint decorative

works, states of mind, or music. He consciously aimed at the pictorial, and

for this reason he had to try to retain the forms he had intuitively

discovered, but at the same time he filled them with the content of his

lived experience.”38

Kazimir Malevich

Ulrike Becks-Malorny contrasta a espontaneidade e liberdade da arte de

Kandinsky com o cálculo e predeterminação de Malevich e dos seus seguidores:

“There is... a fundamental difference between Kandinsky’s art

and that of his Suprematist compatriots. Whereas the Suprematists

gave priority to the construction of a picture, employing radically

streamlined elements and materials, precise analysis and conscious

design, Kandinsky saw the expressive, true essence of the picture

solely in its composition, namely the free combination of manifold

pictorial elements.” 39

É sem dúvida um dos mais interessantes pintores do século XX e

consequentemente, ou não, é dos que menos se sabe ainda. Pintor com duas datas de

nascimento, 1878 ou 1879, apesar de ambas se entenderem quanto a localização,

38 Ibidem. 39 Ibidem, p. 9.

18

Kiev, o seu meio familiar vem diversificar opiniões. Sabe-se, contudo, que Malevich

frequentara a Escola de Pintura de Kiev já em 1895.40

Outras datas e informações

parecem complicar-se e dividirem-se numa primeira e segunda versão dos factos,

onde apesar de tudo e de qualquer forma, encaramos Malevich a partir de 1910, como

um elemento da vanguarda russa que em pouco tempo se coloca em lugar de

destaque.41

Da cor à cor inexistente

As influências de Malevich não seriam muito diferentes de outros seus artistas

contemporâneos, tal como Delaunay, ao sofrer influências de Cézanne, do Fauvismo e

do Cubismo antes de encontrar a sua própria linguagem, que acreditará ser universal:

o Suprematismo. Do mesmo modo, Malevich, não se encontraria isolado na sua

animação da vanguarda moscovita, encontrando-se acompanhado por Gontcharova,

Larionov, Tatlin, Rodchenko e, como já referi, Kandinsky.42

Malevich, com o seu domínio da técnica figurativa, passou pelo movimento

Cubista e em 1913 alcança um dos limites mais extremos conhecidos na pintura do

séc. XX ao conceber o Quadrado preto sobre fundo branco. Malevich consegue o que

Kandisnky não conseguiu abandonar, o objeto. Foi com Malevich em que a arte se

liberta do objeto. Os fundamentos teóricos desta obra encontram-se no seu livro

publicado em 1927, intitulado de O Mundo sem Objeto, uma clara defesa do artista

face ao Suprematismo como a supremacia na arte devido a sensibilidade pura

necessária e alcançada. Apesar de criticas dirigidas a Malevich apontando-o como o

responsável de levar a pintura a um deserto, Malevich defende-se nessa obra ao

40 VALLIER, Dora – A Arte Abstracta. 1ª ed. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 108. 41 Ibidem, p. 109. 42 PEDROSA, Israel - Da cor à cor inexistente, Brasil: Senac editoras, 2009. (Consult. 21Março de 2015). Disponível em: https://books.google.pt/books?id=0BnWDhxTHsgC&lpg=PA146&ots=ykAwxlpkjS&dq=o%20suprematismo%20o%20mundo%20sem%20objeto%20malevich&hl=pt-PT&pg=PA146#v=onepage&q&f=false. P. 146.

19

afirma: “Mas esse deserto está cheio da sensibilidade objetiva que penetra tudo.” E

vai ainda mais longe quando, na mesma obra, retrata o sentimento do homem que se

encontra diante da imposição do artista:

“Também eu fui invadido por uma espécie de timidez e

hesitei até a angústia quando se tratou de deixar o ‘mundo da

vontade e da representação’ no qual viverá e criara e em cuja

autenticidade acreditara. Mas o sentimento de satisfação que

experimentava pela libertação do objeto levou-me cada vez

mais longe no deserto até onde nada era autêntico senão a

simples sensibilidade – e foi assim que o sentimento se tornou a

essência da minha vida. O quadrado que expusera não era um

quadrado vazio, mas o sentimento da ausência do objeto.”43

Podemos, assim, não só acreditar mas também afirmar que Malevich via-se

como criador de uma pintura pura. Isto é, as aparências exteriores possíveis de ser

encontradas na natureza não apresentavam qualquer interesse maior para Malevich. A

sua pintura tinha como elemento a essência na natureza da sensibilidade e não o seu

elemento. Esta busca pela essência interior das coisas, era o mesmo local em que a

critica, contemporânea de Malevich, vira apenas um deserto, outros reconheceram a

sua visão e génio:

“...um mundo de formas de parentesco geométrico –

rectângulos, círculos, linhas esbatidas, linhas cruzadas (a cruz

teve grande papel nas composições de Malevich, que, em seu

testamento, pediu para ser enterrado com os braços assim

dispostos) – sempre conjugadas num espaço neutro e nele

criando movimento. O beco sem saída que seu quadro de 1913

aparentemente constituía dera uma possibilidade nova à pintura

– e é relativamente à sua invenção que a arte abstrata

geométrica subsequente (como o Neoplasticismo de Mondrian)

se explica e ganha sentido. Arte espiritual, e a mais espiritual

de todas, a de Malevich, que se traduz em poucas obras

conhecidas (Seuphor informa, porém, haver 60 peças guardadas

43 Ibidem.

20

em algum lugar da Alemanha), representa a extrema posição

idealista do Abstracionismo.44

Em suma, e revelando o cerne da sua teoria estética, para Malevich, afirmava

que a realidade na arte não seria mais do que o efeito da cor sobre os sentidos. Esta

percepção vem antever outras visões e obras artísticas.

O objecto

Esta procura do entendimento do que era de facto o objeto não passa apenas

por Malevich, passou e com grande importância por Irwin. Irwin irá aprofundar os

seus conhecimentos na História da Arte com a pretensão de conseguir compreender o

porquê do objeto, tentando redefinir a arte. Irwin via a arte como um potencial infinito

no seu ser e “Irwin sugere que a ‘percepção individual’ é a nossa raiz no mundo e

assim se convence que só “o objeto” não pode atualizar o conceito de arte.” Apesar

desta opinião, Irwin, sabia que na Rússia, no início do século, tinham emergido

artistas, como El Lissitzky e Malevich, que eram capazes de alcançar uma arte sem

objetos caso não tivessem sido interrupidos nos seus avanços graças a Revolução de

Outubro. Sabendo que Malevich visava à arte de ser e não a de ver, sendo que esta era

vivida no império total dos sentidos, apesar de estar ligada a princípios metafísicos,

Irwin ficou impressionado com o deserto total que Malevich apresentaria na sua

pintura, já que o figurativo e a representação desapareceram dando lugar a uma

qualquer nova possibilidade dentro de um mundo de sentimento puro. A busca dos

artistas conceptuais de atingir uma forma que aboliria o objeto sendo que a sua visão

da primazia do mundo era intelectualizada, Irwin e Turrell propõem voltar ao

momento em que o mundo foi capaz de se constituir tal como era, fazendo da arte o

44 Ibidem.

21

meio da percepção desse instante através da inversão da origem do processo cognitivo

na criação.45

Mas como chegou, Malevich, até esta concepção e exposição do objeto?

Podemos demarcar o caminho que Malevich teria percorrido anteriormente

como fundamental para esta nova direção e dimensão na arte abstrata? Sabemos que a

concepção sintética do cubismo, arte que Malevich trabalhara no passado, conduz a

uma rápida sobreposição de objetos e ou formas, que Dora Vallier classifica como

heteróclitos. Apesar desta forma de concepção e de pensar a obra, até então as

criações de Malevich expõem como prefigurações, não só do movimento Dada mas

também, ao acrescentar bocados de tecidos e rendas em algumas pinturas em que

viajamos até as obras de Merz de Schwitters.46

“Algumas das fontes de pintura de Malevich dessa

época são evidentes. Mesmo que não se tenha deslocado a

Paris, em 1912, podia confrontar-se com o cubismo, em

Moscovo, vendo a coleção de Schukine, que incluía cinquenta

obras de Picasso, anteriores a 1914, uma dezena das quais

cubistas.”47

Para além destas obras, Schukine e Morosov obteriam também um número

total de mais de quatrocentas obras, desde impressionistas a Picasso. Contudo, estas

não seriam as únicas influências artísticas que contagiaram Malevich. Por outro lado,

existem revistas que continham já reproduções a cores, e mantinham a intelligentsia

russa ao corrente do que se passava no campo artístico no ocidente. Uma das

primeiras revistas com esta finalidade denominava-se Mir isskustva (O Mundo da

Arte), fundada por Sergei Diaghilev (futuro animador dos ballets russos),

posteriormente tiveram Apolo e Zolotoe Runo (O Velocino de Ouro), que tinha

45 BARROS, Anna - A Arte da Percepção: um namoro entre a luz e o espaço. FAPESP, ANNABLUME, 1999. (Consult. 10 Abril de 2015). Disponível em: https://books.google.pt/books?id=lbWdNjq-kDMC&pg=PA150&lpg=PA150&dq=mundo+sem+objeto+malevich&source=bl&ots=rvmxAJUUgT&sig=PImFBD-kOUOcOhEjtPgCnBTfU-o&hl=pt-PT&sa=X&ei=iZ4NVfiCC8yrU7_bg_gM&ved=0CB4Q6AEwADgK#v=onepage&q=mundo%20sem%20objeto%20malevich&f=false 46 VALLIER, Dora – A Arte Abstracta. 1ª ed. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 112. 47 Ibidem.

22

organizado em 1908 uma primeira exposição de arte francesa que incluía quadros

fauvistas, e depois em 1909, uma segunda exposição, com composições já cubistas.

Ainda no mesmo ano, é de grande importância salientar, que o Manifesto Futurista

aparece na imprensa russa, a influência desta impressão não se faz demorar a fazer

sentir nos meios da vanguarda russa.48

Contemporaneamente ao cubismo, que Dora Vallier descreve como aquele

“que só se preocupa com a forma e que representa uma pura revolução plástica”

(112), temos, comparativamente a este, o futurismo que se apresenta numa linguagem

e crédito mais agressivo. Uma das figuras centrais nesta ideologia futurista é o

Marinetti, aquele que não poupa nem em polpa nem em circunstância, com os seus

ataques bem característicos à sociedade numa provocação pura a opinião pública.

Com a de revolução de 1905 para trás, não é apenas Marinette que é convicto que a

vida deve de assentar em bases novas, que “é partilhada por toda a intelectualidade,

que mostra uma curiosidade e uma disponibilidade interior únicas nessa época. Esta

abertura de espírito que até Nicolau Berdiaev caracteriza nos primórdios do séc. XX

como traços já presentes “na estrutura psíquica da camada cultivada do século XIX”,

e Dora Vallier continua dizendo, “onde constituem um índice de desenraizamento, de

rutura com o presente, e isto em todos os domínios.”

Esta disponibilidade e abertura tem como consequência a repercussão imediata

no plano artístico e de todos os movimentos da vanguarda ocidentais, que na sua

atitude convulsiva se torna um elemento de destaque na vanguarda russa

relativamente a ocidental, onde Malevich não é indiferente.

A afirmação de Malevich

“De facto, a pintura de Malevich teve muito que esperar até poder impor-se

com tanta autoridade.”, diz Dora Vallier quando expõe a incompreensão do público

face ao génio e criatividade do artista, quer nas suas obras pictóricas quer na sua obra

48 Ibidem.

23

escrita do Mundo sem Objecto, de 1927.49

Nenhuma destas manifestações artísticas

tinham permitido uma compreensão, talvez, nas obras escritas, se tivessem devido a

más traduções do original russo, levando a que na Alemanha, em 1962, é lançada uma

nova edição revista e corrigida por W. Haftmann. Esta incompreensão será, apenas e

só, produto de incompreensão fruto de barreiras linguísticas? Se tivermos em conta

que a arte abstrata, encontrava-se nesse momento em pleno crescimento, a pintura de

Malevich vem posicionar-se, numa perspetiva que aparentemente teria queimado

etapas desse mesmo crescimento, quando ela já desvendava, tão precocemente e com

sucesso, os extremos dos limites da abstracção. Dora Vallier, sobre esta perspetiva e

relativamente ao mesmo artista em questão, também escreve: “Nos seus quadros, a

abstracção foi tão longe, que conduziu a pintura – toda a pintura – para o seu

próprio fim, para o nada revelado. Este, afirma, é o ponto a que aspira chegar, pois

só neste ponto, no ‘nada revelado’, é possível ultrapassar o real e pôr a nu o que o

transcende.”50

“... em 1915, quando mostra os seus primeiros quadros

abstratos, na exposição ‘0,10’, em Petrogrado, está a dar um

salto em frente, que não pode ser explicado dentro do contexto

russo e que também não constitui um eco do que se passa na

vanguarda ocidental, pela simples razão de que Malevich atinge

subitamente a abstracção absoluta que, por essa altura, é apenas

procurada por Mondrian.”51

Como nota, temos que ter consciência de que para Mondrian a forma abstrata

tinha como missão a entrega da arte a rectidão ética. No seu ver, a pintura para

Mondrian era a ação e pensamento que o libertava dos seus demónios pessoais.

Mondrian, “nela se envolve, não só com a fé, com as convicções e com os dons, mas

também com toda a complexidade do seu ego.”52

Mondrian e a sua arte são confissões

ou afirmações teológicas, numa garantia artística que a estética se unia com a ética.

49 Ibidem, p. 108. 50 Ibidem, p. 110. 51 Ibidem, p. 114. 52 Ibidem, p. 80.

24

Para que este resultado fosse bem sucedido, a depuração para que a forma atingisse o

que o belo e o bem, num só, lhe garantissem que a beleza é um valor moral, que a

pintura só com grande esforço é que consegue ver essa meta alcançada.53

Este

caminho é traçado através da teosofia que tem tudo que é capaz para que Mondrian se

atraísse, tem a “doutrina que tem como finalidade a união com Deus, recomenda

normas de vida, garantindo o triunfo do espírito – porém, este espírito, em vez de

rejeitar a natureza, abarca-a, pois a primeira tarefa da teosofia consiste,

precisamente, na enunciação das leis secretas do universo.”54

É quando Mondrian reflete sobre teosofia, que Malevich afirma o verdadeiro

espaço das coisas. Nesta abstracção absoluta procura com precaução pelo pintor

holandês, o russo chega com rapidez. Para tal rapidez, as influências artísticas

absorvidas são fundamentais para um entendimento primário de como Malevich faz a

sua abstração. “Do cubismo reteve o essencial: a necessidade de animar o espaço,

nele inscrevendo a forma. Porque se os cubistas fragmentam o objecto, é para

fazerem viver o espaço.”55

Neste caminho, Malevich, entende que um quadro cubista

é antes de tudo mais uma afirmação do espaço.

“É possível que Malevich tenha sido atraído pelas

primeirs tentativas abstractas (as pesquisas de Kandinsky já

eram conhecidas pelos seus compatriotas) a abstracção vem,

precisamente, confirmar no seu espírito as lições do cubismo:

ao pintar as suas primeira telas abstractas, Malevich visa já a

expressão pura do espaço.”56

A composição destas mesmas formas são vistas por Malevich como

composições que se regem por acordos entre os ritmos que se fazem concretizar no

espaço da tela, da mesma maneira que “uma frase musical se realiza no tempo.”57

Talvez, se assim o é, não seria de nos admirar a concretização de um único acordo na

53 Ibidem. 54 Ibidem, p. 85. 55 Ibidem, p. 114. 56 Ibidem. 57 Ibidem.

25

sua obra Quadrado preto sobre fundo branco, o quadrado num espaço quadrado. Ao

entender a relação da forma e o espaço em que esta se faz presente que se manifesta

através do intervalo destes dois elementos, temos a base para o entendimento da arte

abstrata de Malevich. A forma está ligada ao espaço, caso esta seja isolada

eliminando-a do espaço, esta forma nada mais nos pareceria do que um plano, já se a

posicionar-mos no espaço pensado pelo artista ela ganha de novo o seu significado,

vida e sentido.

Ainda sem o conhecimento do que texto escrito por Malevich poderá conter,

de 1916 que se intitulava Do Cubismo e do Futurismo ao Suprematismo, resta-nos

poder seguir as suas obras e a sua evolução para uma melhor compreensão do

percurso e visão do artista.

O Quadrado preto sobre fundo branco é uma afirmação perante todos os

outros quadros em que as suas cores são vivas, variante e vibrantes. Nesta obra, a

lógica é conscientemente e racionalmente aplicada salientando o carácter radical da

composição que nela se emprega. É com este quadro que Malevich consegue reunir os

dois pólos opostos da cor, o seu fim e o seu principio: o preto e o branco. Este é um

pensamento do qual Malevich está consciente e não pretende de maneira alguma

disfarçar, muito pelo contrario, é a característica que faz questão de que seja

salientada. Malevich “classifica os seus quadros abstractos de suprematistas, dando

a entender claramente, que aquilo que procura exprimir é um estado supremo da

pintura.”58

Posteriormente, em 1918, no Segundo Salão do Estado, Malevich tem presente

cerca de 15 obras onde, entre elas, consta o Quadrado branco sobre fundo branco.

Mia do que um quadro, é uma realidade matérica que até então nunca tinha sido

apresentada. Após a sua execução, Malevich descobre o contraste, que então era

preto-branco, que poderia ser “na oposição entre o mesmo e o mesmo, entre o branco

e o branco, tal como a oposição entre o ego e a própria pessoa, e que este contraste

suprime finalmente a realidade objectiva e se afirma como uma nova realidade,

58 Ibidem, p. 115.

26

idêntica à que destrói.”59

É uma afirmação onde a fragrante ausência de objeto torna-

se, através deste processo e linguagem, pura presença da abstração.60

No catálogo desta exposição podemos ler as palavras do criador e do seu

entusiasmo:

“Actualmente, o caminho do homem é através do

espaço. O Suprematismo é o semáforo da cor no ilimitado. Abri

a clarabóia azul dos limites da cor, penetrei no branco; navegai

a meu lado, camaradas pilotos, neste espaço sem fim. O livre

mar branco estende-se aos vossos pés.”61

O quadro branco é o reflexo da chegada do artista a um limite na pintura, ou

aquele limite que a pintura consegue consentir. O branco conseguido, é a observação

de um precipício que, ao ser atingido, deixa-o de ser. É então que Malevich comenta a

sua pintura como incapaz com os meus que lhe são insuficientes, atacando-a. O que

fica e permanece para além do branco é o novo ponto que Malevich anseia,

descobrindo assim a finalidade da pintura. Esta vontade é sublinhada na sua obra

escrita de O mundo sem objeto. 62

Nihilismo

“Ao lado do espiritualismo fim-de-século de Kandinsky

e da teosofia de Mondrian, encontramos, por intermédio de

Malevich, uma terceira fonte da arte abstracta: esse fenómeno

tipicamente russo que foi o nihilismo.”63

A atividade intelectual de Malevich assentava ideologicamente nesta corrente.

O nihilismo primitivo, de acordo com a observação de Berdianev constitui na sua

59 Ibidem, p. 116. 60 Ibidem. 61 Ibidem. 62 Ibidem, p. 116. 63 Ibidem, p. 119.

27

essência “a procura da verdade”. Nas suas fontes profundas e sob a forma mais pura,

é um ascentismo sem a graça. Não pode admitir a injustiça e o sofrimento do mundo,

deseja o fim deste mundo que é mau, a sua destruição e o aparecimento de um mundo

novo”.64

É um dado mais do que certo que o nihilismo preparou terreno para a

Revolução, contudo, no Ocidente, apenas Albert Camus se mostrou sensível ao

aspecto da forte influência psicológica do nihilismo. Apesar de tudo é de ter em

atenção “foi e vão que o nihilista Pissarev decretou que a arte é contraria às reais

necessidades da humanidade: “apesar desta posição de princípio, muito clara a nível

social, Malevich abraçará profundamente as ideias nihilistas.”65

Apesar de pintor,

Malevich, comporta-se como um russo do seu tempo e como tal a arte abstracta dele

que, bruscamente, anula a pintura – ou a transcende como Malevich crê – está

enquadrada no contexto psicológico russo.66

O nihilismo na arte é o despojamento, a

rejeição de tudo, acreditando que no “nada” (no “nihil”) está inscrita a verdade.

“A audácia de tal atitude, para Berdiaev, dever-se-ia a

esse extremismo característico da consciência russa, que tende

a negar a importância do relativo e a transportar o relativo para

o absoluto. É, em suma, a impotência da sociedade para impor

regras à vida (base nihilismo militante) que, transferida para o

plano da arte, significa, no espírito de Malevich, a insuficiência

dos meios de expressão da pintura e, por isso mesmo, a

urgência de uma mudança radical.”67

A Arte como Linguagem de José Gil

A pintura abstrata é apenas umas consequência de uma procura maior, de uma

linguagem abstracta, universal. Após a proposta de alogismo de Malevich e da sua

intensa sobrecarga de figuras e de formas, faz aparecer o Quadrado Negro sobre

Fundo Branco, onde tal como os seus posteriores exprimiam a mesma simplicidade

64 Ibidem. 65 Ibidem. 66 Ibidem, p. 121. 67 Ibidem.

28

na forma. Simplifica-se, começa-se a partir do zero, estado descrito pelo próprio

artista quando diz: “Atingi o zero das formas e fui até ao abismo branco.”68

O

quadrado negro não é apenas uma representação separada do representado, do

referente, para Malevich esse quadrado levantava muitas questões que não sabe muito

bem nominar: “A representação figurativa traz para o quadro qualquer coisa do

referente, não é simplesmente uma imitação, uma cópia, não, há qualquer coisa da

própria natureza do objecto real que passa para o quadro.”69

As questões levantas

perturbam Malevich, e por este elas não são ignoradas. A representação do negro vai

tornar impossível qualquer outra forma, José Gil pondera se esse facto é resultante de

que o negro contem em si “qualquer coisa da forma real” que “passou para a

representação.”70

Com esta linha de pensamento, compreendemos a vertigem que o

Negro suscita no artista e a sua crise consequente, onde “qualquer coisa de imanente à

natureza, surge na representação.”71

Antes de compreender a imanência presente no negro, já nos apercebemos do

perigo desta representação, do Quadrado Negro, que seria naquele tempo uma

impossibilidade de toda a representação e até mesmo da pintura para o seu autor.

Apesar desta ideia de impossibilidade, José Gil, traz até nós uma outra perspetiva

sobre a obra, o feito de Malevich em ter criado “uma linguagem a partir deste

quadrado que começa por ser uma espécie de buraco negro que engole e absorve

todas as formas da natureza.”72

Esta pode não ter sido apenas uma ideia ou conceito

ou até mesmo símbolo, mas sim a realidade que levaria a perturbação de Malevich.

Apesar do conflito é possível analisar duas ideias que vão contra o ideal e

prática do mimetismo, de uma figuração ou de um figurativismo. Em primeiro lugar

temos a mudança do ponto de vista do pintor, ou melhor, uma abolição na orientação

da representação – alto que não era novidade se tivermos em mente o que se passou

com Kandisnky ao encontrar um quadro seu virado a 90º. E, em segundo lugar, o peso

desaparece da obra. Isto é, a gravidade que se relaciona também com coordenadas ou

elementos espaciais que permite o mimetismo, não está presente no Quadrado Negro,

68 GIL, José – A Arte como Linguagem. 1ªed. Lisboa: Relógio Água Editores, 2010, p. 13. 69 Ibidem, p. 16. 70 Ibidem. 71 Ibidem. 72 Ibidem, p. 17.

29

que pode ser também consequência da abolição da linha de terra, ou horizonte, ou até

mesmo a nível perspético abordado em primeiro lugar.

“Destruí o anel do horizonte e saí do círculo no qual

estão incluídos o pintor e as formas da natureza”, e aqui

Malevich nos diz que o pintor se encontra na natureza: “saí

para o branco, segui-me e vogai, camaradas aviadores no

abismo, estabeleci os semáforos do suprematismo. (...) Vogai!

O abismo branco, o infinito estão diante de vós.”73

José Gil, muito rapidamente, nos clarifica quanto a este texto, onde, para ele, o

anel do horizonte é a linha da terra; “voguei” é o levantar voou de Malevich de todas

as influências artísticas suas contemporâneas, do futurismo e da sua máquina de

eleição, o avião; e com ele malevich levanta voou, distanciando-se, para um espaço

aéreo do seu ponto de vista que passa a ser visto de cima, um ponto de vista

atmosférico. É neste novo ponto de vista que entendemos que cada elemento pintado

dos seus outros quadros suprematistas, cada triangulo, cada rectângulo, é uma unidade

sem peso nem orientação.74

Este espaço, infinito, o Branco, aquele que envolve o Quadrado Negro, como

uma espécie de moldura, “será o espaço produto da transformação que vai sofrer o

quadrado negro e que constituirá o abismo onde desaparecerão as formas que, numa

primeira fase, foram engolidas pelo negro do quadrado.” Para este pensamento

relembro a descrição de Malevich ao se referir ao branco como ‘abismo branco’,

reforçando a ideia temos o pintor que diz que “diante de nós, camaradas aviadores, o

infinito branco está aí.”75

Agora que o foco passa pela cor, o Negro como ausência de cor de forma e da

luz do sol, este apaga toda a representação possível, apesar de na obra restarem duas

cores, o preto e o branco. Esta permanência dual, que na cor quer na sua

representação, no Quadrado Negro é inevitável uma ligação entre estas. O Negro que

73 Ibidem. 74 Ibidem, p. 18. 75 Ibidem, p.19.

30

representa o nada, que absorve o mundo e, por outro lado, a sua representação que se

faz presente com um branco e um negro, talvez cores que não se saibam o que são.

Esta é uma ideia de Anna Leporskaia quando disse: “Malevich não sabia e não

compreendia o que continha o Quadrado Negro”. (Cit in Jean-Claude Marcadet,

Kasimir Malévitch, Nouvelles Editions Françaises, 1990, p. 134.) Isto é, talvez

Malevich não saberia o desaparecimento de todas as formas levariam a sua

impossibilidade de pintura, onde esse quando era pintura, ainda e apesar de tudo. É

uma oscilação sem tendência onde a sua vertigem não se decidia entre a possibilidade

de pintura e a sua abolição. É nesta oscilação que se dá o nascimento da pintura

suprematista.76

Na busca de uma linguagem nova e universal, tal não fora possível para

Malevich, até este fazer nascer uma nova pintura.

“A tarefa do suprematismo é a de exprimir as sensações das forças que se

desenvolvem nos domínios psicofisiológicos da existência humana.”77

Kazimir Malevich e a arquitectura

O obstáculo para Malevich não é a afirmação do “nada revelado”, mas sim a

indivisibilidade e o inexprimível, “o irredutível núcleo da arte, o ‘nada’ que engendra

o todo. O facto de após a execução do Quadrado branco sobre fundo branco e a

consequente “não comunicação” proveniente dessa obra possa ser um dos motivos

pelo qual Malevich volta para a arte figurativa. Malevich, na sua abstracção e

suprematismo reclamado, confronta-se com a impossibilidade de a consciência ser

capaz de abarcar o todo. Blanchot diz-nos que que Malevich luta “por tornar

manifesta uma experiência, por apreender, na sua origem, não o que torna a obra

real, mas sim o que nela é a realidade impersonificada.” Esta afirmação leva-nos a

entender que para o artista, a existência humana é o corpo que assiste a luta entre o

consciente e o inconsciente, sendo a arte o caminho para a resolução desta antinomia.

76 Ibidem, p. 20. 77 Ibidem.

31

A arte deve de ser o palco onde “o alto e o baixo, o perto e o longe, deixam de

existir”. A arte manifesta, sem se conseguir voltar a trás, aquilo onde, de acordo com

Malevich, “não são as seis cores e as suas combinações que podem restituir o que

existe.”

Dora Vallier, no seu livro, consegue ir mais além e explica que na visão do

artista:

“A arte, que ‘é uma convenção entre tantas outras’, só ganha sentido a partir

do momento em que revela a verdade do mundo sem objecto, a verdade do ‘nada’.

Essa é a região do ‘sagrado’, que nada do que é apreensível pode conter.”78

É com a solidão do homem aqui na terra, sendo esta possível com a negação

dos objectos, condenando-o. É este o factor que leve de levar o homem a rejeitar o

mundo: “As belezas da natureza que admiramos, as colinas, os rios, o pôr do sol, não

serão resultado de catástrofes, de grandes mudanças, mais do que a expressão das

leis da beleza que preocupam o artista?”79

A natureza, para Malevich, nada mais é do

que manifestações práticas de especulação, onde “apenas o suprematismo representa

‘o nada em resposta à totalidade feita interrogação.’”80

O que pode ser descrito como um desprezo ou insignificância pelo

conhecimento é manifesto em Malevich na sua “nostalgia inconsciente da fé”, onde

na qual, a arte seja a ferramenta para o alcance de uma resposta, através da abtracção.

Malevich escreve que: “No vasto espaço de repouso cósmico atingi o mundo branco

da ausência dos objectos, que é manifestação do nada revelado.” Esta posição é

comparativa também a quando, o artista, também afirma, que o erro do homem

começo quando este acreditou “que, dando um nome a cada coisa, conseguiria

dominar a natureza.”81

Numa pequena conclusão, ainda através de escritos do artista, apercebemo-nos

da sua utopia:

78 VALLIER, Dora – A Arte Abstracta. 1ª ed. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 122. 79 Ibidem. 80 Ibidem, p. 123. 81 Ibidem.

32

“A experiência pura do mundo sem objecto”, “o homem devolvido à unidade

original em comunhão com o todo”, “a arte libertada do peso dos objectos”.82

Apesar da aparente complexidade deste pensamento, Dora Vallier chama a

atenção da inteiramente impossibilidade no caso de Malevich já que, “’as coisas

práticas insuficientemente pensadas’ seriam anuladas. Só então o homem abarcaria

toda a sua existência, o que corresponderia ao nascimento do mundo sem objecto.”83

O mais importante nesta busca é a percepção do próprio artista quando nos dá a

conhecer que: “a cristalização do mundo sem objecto começa precisamente onde o

mundo objectivo perde a sua significação. Na pintura e na escultura diz – esta

cristalização começou com o cubismo.”84

Apesar de não termos uma data precisa para o nascimento do suprematismo, já

que Malevich não datava nenhuma das suas obras, sabemos, graças ao seu manifesto

publicado em 1924, que este declara que “o suprematismo desloca o seu centro de

gravidade para a frente de arquitectura.”85

Esta declaração pode integrar um duplo

significado, o primeiro, de que o indivíduo se coloca ao serviço da colectividade e, em

segundo, de que o artista abandona consequentemente o espaço fictício da pintura

entregando-se agora ao espaço físico e concreto, para o espaço da arquitetura.86

Dora Vallier escreve no seu livro de olhando para as maquetas que Malevich

nos deixou:

“Não encontraremos nada de mais impressionante e

significativo que esta tentativa, pois os edifícios imaginários de

que traça os projectos e executa as maquetas parecem apontar

os próprios princípios da arquitectura moderna. Ao mesmo

tempo, pensa na função da cor na cidade do futuro e escreve

uma Sociologia da Cor. Porque a sua inteligência se

movimenta facilmente na extrapolação, depois de ter realizado

82 Ibidem. 83 Ibidem. 84 Ibidem, p. 124. 85 Ibidem, p. 127. 86 Ibidem.

33

a obra, procura definir a mensagem. E, quando aborda a

arquitetura, tem uma visão acertada.”87

Arquitetura e design para Malevich

A importância do famoso Quadrado preto sobre fundo branco e Quadrado

branco sobre fundo branco é notória, e de igual modo toda a obra teórica do artista. Se

para Malevich existe um nítida e fundamental noção separatista entre a actividade

prática e a atividade artística, quais os valores que o artista designa parte da

supremacia da sensibilidade pura das artes, estando a arte ao serviço de uma ideia ou

de um objetivo?

Malevich escreve que:

“A arte não deseja mais estar ao serviço da religião ou

do Estado, não deseja mais ilustrar a história dos costumes, não

deseja mais tomar o objecto enquanto tal e acredita poder

afirmar-se sem a ‘coisa’ (portanto sem ‘a fonte válida e

experimentada da vida’) mas ‘em si e por si’”.88

Esta maneira de viver e perceber a arte, passa para o “concreto” através de

referencias ao pensamento de Worringer. Malevich compara as formas geométricas

por ele utilizadas, parte dos elementos suprematistas, parte daqueles elementos por si

considerados enquanto sinais do homem primitivo, que “no seu conjunto não queriam

ilustrar mas sim representar a sensibilidade do ‘ritmo’”.89

Nesta distisnção entre o campo artístico e o prático (arquitetura e design),

sabemos já que Malevich nega “um valor constante no tempo às coisas práticas”.

Vejamos:

“Tudo aquilo que se pode ver no museu exprime de

maneira inequívoca o facto de que nenhuma ‘coisa’ é

87 Ibidem. 88 FUSCO, Renato de - A ideia de Arquitetura. 1ªed, Lisboa: Edições 70, 1984, p. 138. 89 Ibidem, p. 140.

34

verdadeiramente conforme ao objectivo, isto é, conveniente. Se

o fosse, jamais repousaria num museu, pois que apenas os

valores artísticos resistem ao fluxo e refluxo da contingência. A

beleza de um templo antigo não resulta do facto de ele ter

servido de abrigo a um determinado estilo de vida ou à religião

que lhe correspondeu, mas porque a sua forma deriva de uma

percepção pura de relações plásticas. Tal percepção artística

(que na construção do templo se tornou forma) é preciosa e

existe para nós em todos os tempos, enquanto o sistema de vida

do qual o templo foi edificado está já morto.”90

Propostas arquitetónicas de Malevich

Apesar do suprematismo ter como caminho o suporte pictórico, em 1918

Malevich proclama “o esgotamento da pintura de cavalete” e com o radicalismo da

experiência e possibilidades que se abriram na vanguarda russa Malevich pensa em

“recriar o mundo num molde suprematista”. Esta decisão levou a que Malevich, nos

anos de 1922 a 1924, desenvolve-se a ideia do suprematismo com aplicação no

Unovis de Vitebsk. As primeiras ideias são desenvolvidas só a partir de 1924, no

Ginchuk de Moscovo, dando corpo aos planites e arquitectones. Os primeiros

modelos ganharam forma em desenhos de papel, passaram para maquetes de gesso.

Estas propostas de Malevich não são, contudo, encaradas como projetos

arquitetónicos mas sim como propostas experimentais, ao desenvolver em três

dimensões a linguagem suprematista, agora, com vocação arquitetónica e implantação

urbanística.91

Beta, antes de 1926.

90 Ibidem. 91 KOHL, João - Malevich : 1878-1935. 1ªed. Madrid: Globus, 1995 p.22.

35

“De todas as correntes de vanguarda, animadas por

propósitos revolucionários, a que se desenvolve na Rússia nos

primeiros trinta anos do século com o Raísmo, o Suprematismo

e o Construtivismo é a única a se inserir numa tensão e, a

seguir, numa realidade revolucionária concreta, e a colocas

explicitamente a função social da arte como uma questão

politica.”92

Ao encararmos Malevich como um teórico mais do que um artista, não

estamos errados. Sabemos que o seu Suprematismo e o Construtivismo de Tatlin são

duas das grandes correntes russas ligadas a vanguarda inseridas em campos

ideológicos e revolucionários. Malevich, ao não se preocupar com a exaltação ou

propaganda dos ideias revolucionários, mas sim da formação intelectual de maneira

rigorosa das gerações que farão parte da construção do socialismo. Socialismo.

Agora, o “mundo sem objeto”, faz sentido no tempo e no espaço. Este mundo de

Malevich é de uma concepção proletária, onde a não-propriedade das coisas e noções

são facilmente perceptíveis. Ao pensar de modo socialista e conceber a teoria

artística, a sua utopia urbanista e arquitetónica também se inspiram nesses princípios:

“a ordem da sociedade futura será a de uma cidade onde ‘objectos’ e ’sujeitos’ se

exprimem numa única forma.”93

The “arkhitektons” and “planets” of Suprematism

Durante os últimos anos, Malevich tem trabalhado exclusivamente no campo

das composições suprematistas volumétricos, sobre os problemas das formas

volumétricas e espaciais das massas materiais. As suas propostas visam o

relacionamento compositivo e formal de outros criadores da arquitetura moderna, seus

contemporâneos. O modo de trabalho de Malevich é racional mas também intuitivo,

92 ARGAN, Giulio Carlo - Arte Moderna. Do Iluminismo aos Movimentos Contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 324. 93 Ibidem, p. 325.

36

na medida em que a sua experiência não é contaminada pela sua consciência. Apesar

dos seus esforços, sabemos que o Suprematismo enquanto manifestação volumétrica

não é capaz de produzir objetos de utilidade social concreta. Um dos elementos a ser

pensado a quando da elaboração desta visão para a arquitetura não se liga ao

racionalismo nem ao construtivismo, levando Malevich na perseguição do seu próprio

caminho, “the primacy of volumetric masses and their spatial solution in

consideration of weight, speed, and direction of movement.”94

Em resultado final e material, com toda a intelectualidade e matafísica do

pensamento de Malevich, não é percorrido um grande caminho, apesar de delinear

novas visões e outros trechos possíveis de serem estudados. Estes, foram

beneficamente introduzidos no Curso Básico da VKhUTEMAS. Mais do que

volumetria aplicada, a novidade e originalidade do suprematismo promove uma

psicologia da percepção como nunca antes.

Do Unovis ao espaço Prouns

“Apesar de nessa época Lissitzky estar bastante

próximo do construtivismo russo, o seu trabalho permanece de

alguma forma mais idiossincrático, privilegiando a vertente

estética sobre a utilitária. Numa conferencia sobre arte russa

proferida em 1922 resumiu estas diferenças do seguinte modo:

‘Dois grupos reivindicam o construtivismo: o Obmokhu (os

irmãos Stenberg, Medunestkii, Ioganson, e outros) e o Unovis

(Senkin, Klutsis, Ermolaeva, e outros, liderados por Malevich e

Lissitzky).’”95

94 GAN, Aleksei - The “arkhitektons” and “planets” of Suprematism. (Consult. 8 de Abril de 2015). Disponível em: http://thecharnelhouse.org/2012/11/22/the-arkhitektons-and-planets-of-kazimir-malevich-and-his-students-nikolai-suetin-and-iakov-chashnik-mid-1920s-with-commentary-by-aleksei-gan/ 95 TUPITSYN, Margarita – El Lissitzky: Para além da Abstracção. 1ª ed. Museu Serralves, p. 10.

37

Lissitzky sob a influência de Malevich, professor na Faculdade de Vitebsk que

meses depois fundara Unovis (os Afirmadores da Nova Arte), inicia um projeto a que

posteriormente irá denominar por Prouns (Projeto para a Afirmação do Novo).96

Prouns era a ferramenta de Lissitzky para uma pesquisa das propriedades

formais e transparência, opacidade, cor, forma e linha, levanto a uma reflexão sobre o

desdobramento destes mesmos elementos no espaço social, que através do

construtivismo aliado, apenas com um sistema vocabular reduzido, a arte e a vida

através da produção em massa e industrial.97

Este caminho de Lissitzky surge aquando este se muda para Moscovo no

inicio de 1921 para leccionar pintura e arquitetura nas Vkhutemas, um politécnico

russo equivalente à Bauhaus alemã. Foi neste ambiente, onde mais do que

multidisciplinar é interdisciplinar, que sendo representação prática do corte referente

ao ensino das Academias, refletindo aqui a nova personalidade do artista como

trabalhador ou técnico, que delineou as possibilidades de Lissitzky.98

“A arte é o instrumento do progresso universal” El Lissitzky, 1922.

A influência de Tatlin e o seu Monumento à Terceira Internacional, tornava a

Alemanha no símbolo da revolução artística russa. Sem grande demora, Lissitzky

torna bem clara a sua convicção de que o “objecto defenderá a arte construtiva, cuja

missão não é, afinal de contas, decorar a vida, mas sim organizá-la.”99

Assim, a

relação entre as ideias expressas através das formas abstractas e o mundo concreto e

habitado, é aproximada. Apesar de tal convicção, antes de chegar a arquitetura,

Lissitzky passaria por outras fases e processos artísticos para o bom sucesso da sua

concretização, através da fotografia e de outros campos artísticos aliados ao design.100

A importância deste processo que, inicialmente pode ser lido como um desvio para a

arquitetura, conseguimos, ainda assim, identificar grande importância a sua inclusão

fotográfica em espaços abstratos, levando a transição iminente desse espaço abstrato

para o espaço real. O resultado conseguido dos Prouns é exemplo dessa sua

preocupação: “O ‘proun’ começa ao nível da superfície, torna-se um modelo de

96 Ibidem, p .9. 97 Ibidem. 98 Ibidem. 99 Ibidem, p. 11. 100 Ibidem.

38

espaço tridimensional e prossegue para a construção de todos os objectos do

quotidiano.”101

O espaço Proun é mais do que uma composição arquitetónica, é uma

composição ainda muito marcada pelo suprematismo onde as suas formas abstractas

estão antropomorfizadas.102

Num ensaio onde este seu projeto é explicado numa revista construtiva

holandesa G, Lissitsky afirma que:

“O novo espaço espaço não deseja nem precisa de

quadros – não se trata de um quadro que foi transposto para

várias superfícies planas. (...) O equilíbrio que procuro atingir

neste espaço tem de ser elementar e mutável, para não ser

perturbado por um telefone ou uma peça de mobiliário de

escritório. O espaço existe para o ser humano – e não o ser

humano para o espaço.”103

Apesar de tal afirmação se encontrar originalmente presente na “Proun Room,

Great Berlin Art Exhibition (1923), o espaço Proun é a oportunidade de Lissitzky de

converter as suas idealizações num espaço real.104

«De fato ninguém pode imaginar ou projetar algo

moderno. Por definição existe uma contradição essencial entre

os termos “projeto” e “moderno”. Projetar significa

literalmente lançar adiante. Porém, de modo a lançar algo

adiante, ambos atirador e projétil devem estar atrás. Todo

projeto é um emissário do passado.» — Josep Quetglas

101 Ibidem, p. 12. 102 Ibidem, p. 14. 103 Ibidem. 104 Ibidem.

39

Em 1925, El Lissitzky escreveu:

“No período entre 1918 e 1921 um monte de antigas futilidades foram

destruídas. Na Russia também nós arrancamos a A. [arte] do seu sagrado pedestal

‘enquanto cuspíamos no seu altar’”.105

Para os artistas revolucionários desse tempo, a representação não poderia ser

capaz de oprimir a inovação contínua. Para Lissitzky, ferramenta que torna as suas

visões abstratas no concreto é a geometria, mais precisamente a axonometria. “A

perspectiva”, explicava Lissitzky, “limita o espaço; ela o fez finito, fechado”. O

mundo é posto numa caixa cúbica, que cria uma estática “vista de fachada” do

mundo. “O suprematismo” por outro lado, “estendeu o ápice do cone visual finito da

perspectiva ao infinito. (...) Ele rompeu a azul pantalha dos céus”.106

A possibilidade da extensão em profundidade poder levar com a suspensão do

privilégio de auto-localização do sujeito é procurada. O sujeito que vê em conjunto

com o objeto da representação habitam, ambos, no mesmo campo que fora estendido.

Esta projeção opera com a finalidade da procura de prolongação e compressão das

distancias as distâncias: “O espaço suprematista pode ser formado em frente à

superfície bem como em profundidade. (...) O suprematismo varreu a ilusão do

espaço tridimensional em um plano, substituindo-o pela máxima ilusão do espaço

irracional com atributos de extensibilidade infinita em profundidade e primeiro

plano”.107

A perspectiva e a anamorfose que desta resulta, apesar das suas naturezas de

carácter construtivo, são ainda essencialmente pictóricas, logo a sua força opera no

registo simbólico. A perspectiva, enquanto aspira a ser científica e generalizável,

esteve sempre vinculada a um ponto de vista fixo. Ao estender o ponto de fuga ao

infinito, as construções da perspectiva são reproduzidas a um mesmo e único tempo

mais flexível desde um ponto de vista instrumental, e mais universal desde um ponto

de vista filosófico. Para tal a projeção axonométrica é a escolha de eleição de El

Lissitzky. A axonométrica, que poderia transmitir informações abstratas, sem deixar

105 FRACALOSSI, Igor - Projeção axonométrica: novas geometrias e antigas origens. (Consult. 9 Abril de 2015). Disponível em: http://www.archdaily.com.br/br/601374/projecao-axonometrica-novas-geometrias-e-antigas-origens-stan-allen 106 Ibidem. 107107 Ibidem.

40

de ser mensurável e altamente precisa, sendo a ferramenta ideal para o delinear da

visão vanguardista destes artistas.

“A perspectiva regista o que já existe, enquanto que a projeção axonométrica

constrói aquilo que ainda não.”108

A objetividade e a matemática contestam o tradicional conceito do artista: o

novo artista constrói uma nova realidade com conceitos científicos, em vez de

representar a realidade existente com convenções existentes.

“Por outro lado, Lissitzky preserva para a arte sua

capacidade de fazer o infinito e o imensurável visíveis e

concretos. Para esses artistas, a abstração visual dessas técnicas

– a indeterminação do campo espacial representado – torna-se

primordial.”109

Este instrumento pode, sem querer, operar contra o simbólico, onde contudo,

com esta nova abordagem metafísica do espaço infinito a sua aplicação, opera contra

o instrumental resultando numa possibilidade de se verificar uma dimensão simbólica

nessas mesmas práticas técnicas. Uma maneira de descrever esta nova condição

artística matematicamente, é verificando que o ponto de fuga está presente no infinito,

sendo esta solução de grande atracção para artistas abstratos como Lissitzky: “a

capacidade de fazer o infinito visível no contexto de uma construção “quase-

científica”, onde a geometria e a sua idealização ser possível de ser aplicável num

contexto universal.

Apesar de todo o esforço técnico e intelectual a arquitetura como uma

construção matemática pura permanece como um sonho utópico.

Mesmo no caso de um artista abstrato do artista em estudo, o suave espaço da

projeção axonométrica trabalha contra múltiplas resistências quando este se vê

traduzido para três dimensões.

108 Ibidem. 109 Ibidem.

41

“Se compararmos o espaço subentendido dos desenhos do ‘Proun’ com a

construção ‘Proun Spac’e de 1923, torna-se evidente que a extensão infinita do

campo visual é mais presente como representação do que como experiência.”110

Concretamente, o ideal da "metafísica do infinito" só pode ser

incompletamente realizado.

O Proun é ainda um instrumento de representação, uma construção sugerindo

algo além de si mesma, apesar da dupla identidade metafísica do modernismo inicial

– espaço infinito e tempo simultâneo – estar disponível apenas como uma mera

metáfora que não consegue ser completamente realizada.111

A obra, quer seja pensada ou construída, permanece bloqueada já que se

encontra limitada, onde, apesar do esforço, tirando vantagem da capacidade

instrumental da projeção arquitetónica para transformar a realidade, não consegue,

necessariamente, envolver o elemento social procurado.

A sua arquitetura, a nível da arte, é um “espaço total” que se apresenta com

todas as expressões artísticas. Fisicamente, este espaço é uma divisória relativamente

pequena, de forma quase cúbica. A proposta é de grande interesse artístico e pode sem

dúvida ser relacionado com neoplasticismo de Mondrian – relembro que o seu próprio

edifício tem todos os valores plásticos, é o resultado de uma obra de arte em projeto

para a sociedade, uma configuração de uma carga simbólica mas também de uma

série de valores plásticos que corresponderiam a dinâmica da vida. É um espaço

vivido na configuração que o artista idealizava como sendo a mais verdadeira.112

Espacialmente é uma realização que é capaz de apelar a todos os nossos

sentidos, mas leva-nos a perguntar, hoje, o que fazemos nos ali, como podemos

colocar lá as nossas coisas sem perturbar o espaço. A sua luz difusa e os elementos

que fazem o nosso olhar percorrer uma direção com sobreposições faz-nos sentir

facilmente a ideia de planos, levando, posteriormente, o olhar a percorrer um espaço

enquanto estudo de um cérebro ativo e ao mesmo tempo com serenidade e

tranquilidade. O espaço consegue encontrar-se num estado completo que se torna tão

110 Ibidem. 111 Ibidem. 112 Análise feita em sala de aula.

42

subjetivo levando a que o concreto, o objeto, e a sua possibilidade de presença nesse

mesmo espaço seja perturbador.113

O proun é um espaço que é pensado como uma nova arte; a união da arte e a

vida, que se integra nos projetos de transformação social. A projeção do indivíduo é

motivo da identidade do indivíduo, parte social e valores de ligação entre tudo, e aqui

se a ideia é habitar o espaço, que é tão coevo, como pode haver lugar para o

contributo pessoal, quando nos parece quase uma instalação e não uma arquitetura?114

113 Análise feita em sala de aula. 114 Análise feita em sala de aula.

43

A ideia aqui de plano e volume não é simétrico, estando presentes num mesmo

espaço que faz coexistir pintura, escultura, design e arquitetura, este é para ser vivido

em resultado do que a vida exige para muitas pessoas que não se conseguem

manifestar enquanto indivíduo. A esta necessidade de ser alguém, que produz e

44

trabalha sem paragem para ser outra coisa, agora, este é um espaço que pode ser tido

para baixar o ritmo de ansiedade e de stress, sem ter a necessidade de criação de uma

ligação com o espaço, desfrutando-o apenas.

Tal como El Lissitzky nos escreve:

“We no longer want the room to be a painted coffin for our living bodies.”

A divisão entre Malevich e El Lissitzky sobre o espaço suprematista

Sem querer perder a visão e propostas suprematistas destes dois artistas para

um espaço físico que transmitisse os seus princípios da realidade suprematista, este é

um ponto fundamental para os colocar lado a lado.

Em contraste de El Lissitzky, o Suprematismo, para Malevich seria

genericamente uma “construção espiritual” num período revolucionário, o final e

supremo alcance para longe da representação estilizada, por outras palavras,

“rediscovery of the essence of creativity that had been forgotten for a long time.”115

Leah Dickerman, por outro lado, afirma que para El Lissitzky e a sua

contribuição, em contraste com o seu tutor, foi este conceber o Suprematismo como

um “estado intermédio”, nível ou degrau; talvez, mais como um método ou falando

arquitetónicamente e usando uma metáfora espacial, um laboratório de investigação,

do que propriamente um resultado final. Este pensamento, levaria a que Lissitzky

encara-se este espaço como uma forma de libertação do processo da geração de forma

de todos os objetos práticos da vida diária e das suas restrições tradicionais no espaço

físico. Com isto, eu quero dizer que o espaço Prouns pode ser considerado como um

ponto de partida para uma nova tentativa, para Lissitzky, onde é possível a

reintrodução da habilidade artística individual e ou artesanato, ao encarar a arquitetura

assim como uma forma generativa que até então tinha sido saturada por limitações

técnicas de mecanização e do conceito de coletividade.116

115 KAVAS, Kemal Reha - Architectural form generation in suprematist painterly space: the significance of El Lissitzky’s Prouns. (Consult. 10 Abril de 2015). Disponível em: http://etd.lib.metu.edu.tr/upload/12605911/index.pdf p. 24. 116 Ibidem.

45

Este papel individual e a habilidade do Homem para tal coexiste de tal

maneira com o design arquitetónico para Lissitzky que este chega a afirmar o

seguinte:

“The painter’s canvas was too limited for me. The

connoisseur’s range of colour harmonies was too restricted; and

I created the PROUN as an intermidiary station on the road

between painting and architecture. I have treated canvas and

wood panel as a building site which placed the fewest

restrictions on my constructional ideas.” (El Lissitzky cited

Sophie Lissitzky-Kuppers, El Lissitzky, Londres, 1980, p.325)

O espaço PROUN acaba por ser quase como um artefacto arquitetónico e não

uma arquitetura. Este espaço é colocado por Lissitzky como uma representação

arquitetónica que indicava um estado intermediário entre a fase de conceptualização e

a de realização.

46

Conclusão

A necessidade de conseguir entender se cada forma criado por Malevich teria

origem na necessidade de um novo vocábulo na arte como uma linguagem universal

foi uma necessidade que não pode, contudo, ficar distanciada do conceito inicial de

abstração. Um início que ao apagar a representação apagou também,

consequentemente, o seu referente. Esta abstração que foi o marco do nascimento do

suprematismo na pintura, que quase que a anula o ato de pintar mas que, ainda,

depende dela para se representar, o Quadrado Negro sobre Fundo Branco tratava-se

de uma abstração que então não se tinha feito apresentar. Um entendimento inicial

sobre a presença deste conceito artístico do abstrato que se fez apresentar numa longa

cronologia, foi fundamental para entender que, agora e aqui, neste trabalho, que o

próprio conceito que é amplamente atribuído, nas vanguardas, este chega a um ponto

que até então não teria sido pensado nem feito em matéria.

Esta verdade que, com Malevich, finalmente se torna visível, e possível de

tirar do abstrato e se fazer parte da matéria do quadro no qual suporta esta realidade,

acontece. A verdade presente nesta obra precede o próprio quadro. É aqui que o título

atribuído a esta parte do trabalho deste semestre ganha sentido: a Materialização da

essência. O que esta pintura desperta no autor, é-lhe quase transcendente, levando

Malevich a refletir sobre ela, e os seus abismos representados, durante vários anos.

Mais do que entender esta realidade que se faz de abismos, onde contudo contem

dentro de si todas as formas, entendi a visão sobre a matéria que Malevich abordara.

Quando este trabalho foi iniciado, não foram levantandas muitas questões da

minha parte porque não havia qualquer saber mínimo sobre o tema. Não sabia muito

bem que caminhos eram possíveis, nem como e se eles poderiam ser trilhados. Uma

das maiores dificuldades iniciais foi exatamente o traçar de um plano de trabalho e

fazê-lo apresentar a docente da cadeira. Tal só me foi, mentalmente, possível quando

consegui acabar o trabalho. Sinto que este não pode ser apresentado como aqui é

descrito, como um trabalho, mas sim como uma introdução. Este pensamento é viável

sendo que só agora na conclusão é que consigo levantar questões que me parecem

válidas:

a. Como consegue Malevich elaborar outras obras suprematistas

depois de um Black Square?

47

b. Como é possível a representação de um nada, ainda mais radical,

como é a representação do Quadrado Branco sobre Fundo Branco?

c. Que implicação é que o nada do Quadrado Branco sobre Fundo

Branco representado tem na arte e na visão artística do pintor?

d. Será a representação Black Square parte do caminho para atingir o

extremo que nos parece ser a sua outra obra do Quadrado Branco

sobre Fundo Branco?

Após, e só após, “ultrapassado” o estudo das obras pictóricas suprematistas é

que me foi possível iniciar uma leituras das propostas arquitetónicas suprematistas da

parte de Malevich. Este foi um tópico onde, por não existir muita informação

traduzida do russo para o inglês, não foi de fácil estudo e reflexão. Este, para mim foi

um tópico de caminhos limitados, sem grande exploração da minha parte. A

apresentação teórica das obras criadas por Malevich são parte fundamental para a sua

compreensão sendo que a sua abstração a priori é “radical”, e tal acontece igualmente

na apresentação das suas propostas arquitetónicas.

Apesar da falta de informação na vertente arquitetónica no lado de Malevich,

o estudo de uma das propostas de El Lissitzky foi mais facilitada pelo maior número

de informação disponível. Só consegui inicial verdadeiramente o estudo deste espaço

PROUN, após este ser de maneira breve falado em aula. Depois da pequena

apresentação deste espaço numa realidade académica é que consegui definir pontos a

serem abordados em relação ao espaço:

a. Como é que o PROUNS se denomina uma arquietura suprematista e quais

os seus princípios.

b. Até que ponto é que o Suprematismo de Malevich é entendido e

influência o seu discípulo El Lissitzky.

c. Qual a leitura suprematista do espaço PROUN.

Estas foram questões às quais eu conheci resposta, mas uma outra, agora no

final, levanto e com esta termino:

a. Poderemos considerar o espaço PROUN como um espaço suprematista na

sua totalidade, no conceito e realização ou já é algo mais, ou algo

diferente?

48

Fontes

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El

Lissitzky Prounenraum 1923, reconstrução 1971 Madeira pintada, 320 x 364 x 364 cm © DACS 2007 Fonte: http://www.tate.org.uk/research/publications/tate-papers/replicas-and-reconstructions-twentieth-century-art

49

50

El Lissitzky (Russian, 1890–1941). Prounenraum (Proun Room). 1923; reconstruction 2010 Reconstruction for the exhibition, 118 1/8 x 118 1/8 x 102 3/8" (300 x 300 x 260 cm). © 2010 Artists Rights Society (ARS), New York / VG Bild-Kunst, Bonn Fonte: http://www.moma.org/interactives/exhibitions/2010/online/#works/01/22

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