O Que e a Impunidade Adel El Tasse

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Esta obra sistematiza os diferentes aspectosdopensamer1t6A~A"al EI Tasse, pensamentoeste quevemsendoeXDost aulas em todo 0 terr.itorio n'ational contalia comescritos especiflcos'

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o leitor. notanl que ';~l1htirriareier~nGYabiblio9rilfiGa(nte~rao corpo do escritoda obra,jllstanlente porque oobjetivofo(extrair, paraa' criticae o debate, oessencialdopensamento do autor,sem esfor~os alongacios depesquisaS~que~JeitorclaJuruajii qbservQu emvarios . outros trabalhos 'do mesrrio'.·

Seguranlente,aJIJfLlcl tr~zao publi<;o6rasileiro u~aobJaqiJe pass a . a ser de leitura obrigatoriaededeticla pondera~ao 'para ~lu~O~d~-' gradua~ao e p6s.gradua~ao.Cabe ao leit~r desfrutar eelaboraras suas proprias imptess6es! .' ". ". . ,.... '.

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EDrrORA

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Tasse, Adel EI T212 0 que e a impunidade.l Ade1 EI Tasse

Curitiba: Jurua, 2008. 118 p.

1. Impunidade. 1. Titulo.

01"'" 0,

CDD 345(22.ed.) CDU~45

Adel EI Tasse

, o QUE'E A

IMPUNIDADE

Curitiba JurU8 Editora

2008

./

Em memoria de Luiz Luisi, q uerido amigo, humanista intrallsigente, em homenage1ll de sua

grandiosa vida (U1ll dia, seguro, ta pe/as 11 da ,wife, apos 1/1/1 dia de estudos, c01lleremos juntos novamente lim bom pedar;o "da me/hor picanha da Repliblica'').

;/

Irmiios da Lila

Somos todos irmaos da lua Moramos na mesma rua Bebemos do mesmo copo

A mesma bebida crua

o caminho ja nao e novo Por ele e quepassa 0 povo

Farinha do mesmo saco Galinha do mesmo ovo

Mas nada e melhor que a agua

E a terra e a mae de todos o ar e que toea 0 homem

E 0 homem maneja 0 fogo

E 0 homem possui a fala E a fala edifica 0 canto

E 0 canto repousa a alma Da alma depende a calma

E a calma e irma do simples E 0 simples resolve tudo

Mas tudo na vida as vezes Consiste em nao se ter nada

Rel1ato Teixeira

/'

I

Os debates em tomo da ampliayao do poder punitivo do Estado tem feito parte do dia-a-dia das sociedades, desde que se atribuiu ao soberano, no seculo XII, a possibilidade de intervir nas liberdades fundamentais para combater a conflituosidade social.

Nao se deve imaginar que a questao da impunidade se constitui em um discurso contemporiineo, inserido em uma socie­dade que experimenta crescentes ondas de violencia, em verdade, desde que 0 poder punitivo estatal se apresentou, junto a sua mani­festayao nasceu 0 discurso da impunidade, como mecanismo habi­litador da ayao punitiva estatal e de promoyao de um sentimento de concordiincia, por parte da sociedade, de continua ampliayao da possibilidade de intervenyao na vida das pessoas, pelo Estado.

Dentro dessa logica, cumpre questionar, em um momenta em que e explorado de maneira tao forte 0 discurso da impunidade nos paises latino-americanos, como nos atuais tempos, se efetiva­mente M uma noyao real do que e a impunidade, dos seus des do­bramentos e do campo em que se insere na vida das sociedades.

Tem-se associado a impunidade a uma falha no sistema ju­ridieo-penal dos paises latino-americanos, que conduziria a um. abrandamento da resposta punitiva estatal e, por via de conseqiien­cia, visualiza-se a SUperayaO da problematica com 0 agigantamento das hipoteses sancionaveis na sociedade, assim como com 0 incre­mento de medidas mais rigorosas, para contrapor a ayao tida como delituosa.

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o raciocinio e falho e centra-se em amllises reducionistas de situa~5es que sao socialmente conjunturais, ignorando por com­pleto que as soluyoes propostas somente conduzem a um agiganta­mento interventivo do Estado, em detrimento das liberdades fun­damentais.

o panico gerado na sociedade latino-americana atual de­corre do chamado discurso politico do crime, em que as condutas catalogadas pela lei penal como clelituosas sao exploradas de fonna sensacionalista pelos vefculos de comunicayao de massa, assim como por determinados setores da sociedade,. como parte da classe politica, do ministerio publico e da policia, em especial interessa­dos na apresentayao do crime de maneira monstruosa.

Mas 0 que esta por detras deste discurso? Realmente existe um descontrole social gerado pelo crime que demanda a in­terVel1yaO estatal amp Ii ada?

Nao se pode ignorar 0 dado da conflituosidade presente nas sociedades latino-americanas, bem como nao se pode imaginar, de maneira excessivamente idealista, que esta conflituosidade pode ser detida com medidas sancionatorias, que atuam nao nas causas de manifesta~ao dos fatores conflituosos, mas, como resposta pos­terior a atos especificos que decOiTem desta conflituosidade social.

A America Latina e constituida por paises que estao atre­lados historicamente 11 mesma realidade social e economica. Ainda que sejam muito comuns na regiao discursos tendentes a gerar reci­proco preconceito, em que se explora desde a rivalidade esportiva ate os dados imigratorios, 0 fato e que as diferenvas reais existentes sao minimas entre os povos latino-americanos, e este discurso do preconceito tambem encontra, assim como 0 da impunidade, sua funcionalidade.

o preconceito sustentado entre os povos latino-americanos os mantem isolados, desenvolvendo uma interminavel corrida de

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cada pais isolado para liderar os demais, como se esta lideranya representasse algo a mais do que 0 proprio retrato da arrogancia e da ignoriincia.

Os paises da America Latina viveram e vivem process os historicos muito semelhantes desde a epoca colonial, passando por processos de independencia, seguidos de govemos aristocraticos, que foram substituidos por populismos e posteriores ditaduras mi­litares,- desaguando-em.um processo--geralde democratizayao. -

o equivoco esta em imaginar que a democratizayao encer­rou a coincidencia e colocou fim 11 usurpa~ao do poder na regiao: A verdade e que a democracia surgiu nos paises latino-americanos porque era uma necessidade capitalista de um mundo globalizado qne desejava competitividade, que nao se poderia garantir com a sustentayao ultranacionalista propria das ditaduras militares.

A America Latina, como colonia, sempre serviu e ainda serve ao enriquecimento da metropole, entendida esta como 0

ponto do globo para onde afluem os detentores do capital.

Vivenciacse na atualidade, sem a meno, duvida, um claro processo de renovayao colonialista, em que os gI'andes conglome­rados empresariais precisam de mercados consumidores para seus produtos, para gerar mais riqueza, que se concentrino bem-estar das metropoles, e a America Latina se constitui em uma regiao por excelencia explorada, pois jamais se garantiu efetivodesenvolvi­mento cultural e intelectual da mesma, de maneira que sua popula­yao e sempre uma presa facil, refem dos discursos dominantes pro­duzidos pelos detentores do efetivo poder.

A conflituosidade social latino-americana e, em grande patie, herdeira dos imensos fossos sociais existentes no continente, e nao e combatida pelo poder, mas controlada, "administrada" de maneira bastante funcional a pennitir intervenyoes mais amp las

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sobre as liberdades quando estas se mostrem importantes para os interesses da metropole.

Evidente que em cada pais ha parcelas da populayao local que ambicionam uma parte do poder real de controle sobre as socie­dades, poder este que representa, intimamente, para 0 ser uma falsa tentativa de vitoria do Immano sobre a sua propria finitude, bem como de crescimento economico em meio a miseria gera!.

. A finitude humana constitui-se em um .dado .poucas-vezes analisado, quando se trata do fenomeno do poder, e que e da mais amp la importiincia, pois e um dos moveis essenciais do ser humano em seu desejo de exercer controle sobre outros.

o ser humano, assumindo, ou nao, tal quadro, nao aceita a sua propria finitude, por isso precisa crer em alguma religiao, por isso precisa imaginar 0 prolongamento de sua vida espiritual apos a sepultura e por isso precisa se sentir especial, unico, diferente dos demais, alguem a quem efetivamente sera atribuida a vida eterna e

o reino dos ceus.

Dispor de poder sobre outros seres faz com que 0 ser Im­mano sinta-se especial, como alguem que controla seu proprio des­tino a qualquer tempo, alguem que consegue superar a todos e se sobrepor a todos.

A necessidade humana de exercer controle-sobre a nature­za, sobre os astros, os animais, as plantas, a tecnologia e sobre, claro, outros seres human os, nada mais e que a necessidade intima de mostrai- a si mesmo que controla tudo e que, portanto, nao deve temer a fil1itude, pois ate a morte e controlada e psicologicamente bloqueia pensar nela e na ilusao do controle, no exercfcio do poder vai seguindo a pessoa com uma falsa sensayao de infinitude, de imortalidade. Exercer poder e, assim, mostrar-se a si mesmo como espeCial, como infinito.

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o exercicio do poder tambem garante, alem da paz intima, pela sensayao de infinitude de quem controla, capacidade economi­ca, algo de suma relevancia, notadamente dentro da logica dos pai­ses capitalistas, em especial nos mais pobres, como os inseridos na regiao latino-americana.

Assim, os interesses das metropoles, sustentados em dis­cursos bastante funcionais, enconhllm repercussao em camadas da sociedade local, que passam a repetir tais discursos e sao as difuso­rasaolIlesin6,·coni 0 objetivode garantir seu ]Jropd6exeiclch·de~ poder.

Nos paises da America Latina 0 controle do discurso da impunidade esta sob a "batuta" de tres agencias, que a cada mo­mento interagem mais intimamente; sao os veiculos de comunica­yao de massa, 0 Ministerio Publico e as policias, em uma clara ma­nipulayao da primeira pelas foryas economicas, que a dominam totalinente e de disputa pelo poder punitivo intemo dos paises pelas outras duas.

A impunidade nada mais e que 0 discurso de dominayao atual. As metropoles economicas interessa a conflituosidade social dos paises controlados, pois gera continuo desejo de acesso aos bens que somente os grandes conglomerados produzem e, assim, tem-se uma corrida em busca dos mesmos, em uma febre consu­mista sem precedentes na historia.

Alias, a principal marca do processo de globalizayao, ate 0

momento, nao foi a aproximayao dos povos ou a supera¢ao das­desigualdades, mas 0 gerar de um desejo de COllsumo castrador do ser humano, que 0 cega completamente, fazelldo-o seguirasua vida na busca permanente por bens de con sumo, produzidos coin a . explorayao de mao-de-obra escrava de paises-colonia, pata 0 con~

sumo destes mesmos, porem com 0 enriquecimento dos grandes­. conglomerados e investimentos das riquezas nas metropoles ..

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Os· paises arabes, por exemplo, foram alc;:ados it condic;:ao de inimigos da humanidade, nao pOl·que as mulheres, em sua cultu­ra, usam veu ou porque alguns participes de detel111inados movi­mentos politicos de enfrentamento explodem bombas, que, alias, em regra, sao de fabricac;:ao norte-americana, mas, porque, dentro da logica isliimica, 0 Estado esta mais proximo da proposta socia­lista que da capitalista e, assim, as pessoas nao consomem desen­freagamente, usam os mesmos modelos de roupasque os beduinos ja usavam no de,serto, alimentam-se do que estes se alimentavam e vivem os seus habitos, ou seja, nao geram riqueza para a metropole, logo precisam ser colonizados pela forc;:a das annas, para depois, assim como se coloniza diariamente a America Latina,serem re­colonizados pelo discurso.

Por outro lado, os detentores do poder interno viram-se en­fraquecidos apos os movimentos democratizantes da America Lati­na; fragilizou-se 0 exercicio do poder punitivo, que ate entaohavia sido ilimitado.

Durante a colonia, Portugal, Espanha e seus escolhidos, os detentores de titulos nobiliarios, exerciam 0 controle de fonna ple­na do poder punitivo, que se manteve assim nas primeiras republi­cas, justificac!9 como medida necessaria para nao pennitir a volta da monarquia, sendo mantido nos regimes autoritarios militares conio justificativa para deter 0 avanc;:o comunista.

A questao e que a implementac;:ao desta parcial forma de democracia, pois a real so existe com igualdade de condic;:oes dos cidadaos, i'az com que hajl! a necessidade de um novo discurso, para permitir que quem sempre exerceu 0 poder continue a fazeclo, somado it necessidade permanente da metropole de controle sobre as colonias.

. Aconflituosidade social, assim nao combatida, fortalecida pelo aprofundamento das desigualdades, pelo sucateamento· dos

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sistemas de educac;:ao e de saude, pela criac;:ao de microcosmos de poder, pela manifestac;:ao de preconceitos entre os povos, pel a fra­gilizac;:ao total dos sistemas de pacificac;:ao social, produz uma sen­sac;:ao geral de que os problemas da vida social nao encontram so­luc;:ao e que impera uma especie de lei do mais forte.

A sensac;:ao gerada recebe 0 nome de impunidade, e a vito­ria sobre a mesma e representadapela ampliac;:ao do poder punitivo, ou seja, pdos mecanismos de intervenc;:ao, por quenl detem 0 po­der, sobre as liberdades fundamentais.

Esse e 0 panorama a que se chegou na regiao; 0 cidadao comum tem uma sensac;:ao ruim, que se nomina como impunidade, e para combate-Ia necessita ceder sua liberdade em prol da maior intervenc;:ao punitiva pelos controladores do poder.

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II

Dominar pessoas e algo que OCOlTe com um discurso de "s~stentayao, par~ que 0 pr6prio dominado c~ncorde con~;sintei­

venyoes que sobre ele se impoem e, desta forma, nao apresente qualquer resistencia.

o discurso de sustentayao, alem de construir uma falsa le­gitil11idade ao poder interventivo, serve para uma interiorizayao, pelo sujeito, da necessidade de que ele mesmo seja controlado, ob­jetivaque 0 sujeito sinta como de boa-fe as ayoes que em verdade 0 limitam e deseje que elas estejam sempre presentes.

Quando na Idade Media instaurou-se 0 panico contra 0 demonio e foi desenvolvida a cayada as bruxas, a populayao sentia medo .de verdade, como se 0 demonio, figura de, ate mesmo, exis­tencia discutivel, tivesse 0 poder que Ihe atribuial11 e tivesse feito um pacto real com seres human os, em geral com as mulheres ou

.7 com os estudiosos liberais, que dispunham de impar conhecimento, para dominar a civilizayao.

A Igreja Cat61ica vivia uma crise na Idade Media, ao mesmo tempo em que os cultos europeus tradicionais se fortaleciam, ante a corrupyao 11lanifesta nas estruturas ec1esiasticas, alem de sua distancia para com 0 povo C011lU11l.

As tradiyoes europeias eral11 representadas por um culto intenso a natureza, em que as 11lulheres dispunham de uma condi­c;:ao de destaque, pela sensibilidade associ ada a pr6pria feminilida­"de para agir intuitivamente e entender as forc;:as naturais.

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Precisava-se nao mata-Ias, po is mata-Ias geraria revoltas e, talvez, as tomasse mais fOlies e as colocasse em condiyao de efeti­vas detentoras de sabedoria e que, por isso, os exploradores do po­der necessitaram que fossem caladas.

Era preciso destrui-Ias sim, mas com urn discurso que jus­tificasse 0 exterminio e que fosse interiorizado pelas pessoas, apa­gando, no intimo de cada ser, as tradiyoes e pensamentos contrarios ouperigosos para as tradiyoes eclesiasticas.

A imagem da mulher intuitiva, cultuadora da natureza, foi associada, assim; a imagem da bruxa, ou seja, da mulher que man-' tinha relac;:oes intimas com 0 demonio e, desta fomm, via-se domi­nada por este para destruir a civilizayao humana.

Com 0 discurso de cac;:ada as bruxas, como necessidade pu­nitiva da epoca, os detentores do capital puderam se manter absolutos no poder e celebraram pequenos pactos com os exercentes diretos da . puniyao, tomando-os impunes e garantindo-Ihes enriquecimento em meio a miseria dos outros e a explorac;:ao dos semelhantes.

Inquisidores criaram uma verdadeira fabr.ica de enrique­cimento, em que recebiam por cabec;:a de bruxa queimada e para manter 0 demonio longe das casas das familias mais temerosas (nao se sabe se do demonio ou da propria retaliayao dos in'quisidores,. que levavam a familia que nao pagava, para a fogueira), mais ou menos nos mesmos moldes em que funciona b -sistema de seguran-9a publica na atualidade.

Os padres conduziam as mulheres para os mosteiros para interroga-Ias e la buscavam a marca da bruxa, em geral colocada pelo

. diabo na va~ina, e a este pretexto as violentavam e depois, claro, a lingua Ihes era cortada para que nada falassem e a fogueira Ihes era 0

destino, uma especie de estupro seguido de mmie com requintes de cnieldade. -A ausencia de qualquer respoilsabilidade 1hes era assegu­rada para que satisfeita sua lascivia mantivessem 0 panico coletivo e,

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assim, 0 exercicio ilimitado do poder punitivo, com 0 controle pelos reais detentores do dominio do poder politico e clerical.

A logica do discurso era a mesma da atualidade, quando se pensa no discurso de impunidade e combate ao crime. 0 demonio dava forc;:as as bruxas, portant6 era preciso tmiura-Ias, era preciso estimula-Ias a entregar outras bruxas com um sistema de delayao premiada, era preciso intimidar as mulheres, para que nao se entre­gassem--ao·dem6nio;comcrueis execuyoes publicas das condena­das.

Os condenados, em geral, claro, perdiam seus bens em fa­vor da Igreja que Ihes havia salvo a alma das trevas.

Caso alguem desejasse pensar contrario ao sistema era imediatamente estigmatizado e tambem considerado a serviyo do demonio e conduzido para a fogueira.

o detalhe importante e que tudo isso acontecia sob os aplau­sos . da propria populac;:ao oprimida, pois a funcionalidade efetiva do discurso de poder esta em conseguir ser inteliorizado pelo proprio dominado, para que este nao reaja e 0 status quo seja mantido.

o panico serve bem ao proposito de interiolizac;:ao. 0 pa­nico do demonio serviu bem na Idade Media a consolidac;:ao da riqueza da Igreja, bem como de grupos perifericos a esta, qne mais tarde se constituiram na burguesia, e na manutenyao intocavel da opulencia de reis e nobres, em contraste com a miseria da popula­yaocomum.

Quando os nucleos perifericos aos controladores se forta­leceram economicamente, passaram a disputar 0 exercicio do poder com a monarquia e com 0 clero, nao mais servindo 0 panico do demonio para justificar a intervenyao sobre as pessoas em geral, razao por que se fomlaram novas alianyas entre os novos ricos e as grandes massas sociais e um novo discurso de justificac;:ao foi for-

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jado, agora de racionalidade exb'ema, que conduziu as pregayoes abolicionistas da monarquia e construyoes de modemas relayoes. sociais, ca1cadas na igualdade entre os homens.

Ascendendo ao poder, a burguesia do seu exercicio gos­tou, e falar em igualdade entre os hom ens nao mais Ihe servia, por isso process os revolucionarios foram freados, como a propria Re­voluyao Francesa, que nao foi concluida, estabelecendo-se uma nova classe no poder, os burgueses, que entao iniciou a prei,!;ayao

. do combate ao crime para justificar a necessidade" de'sua-ma;lufeii~ yaO no controle da sociedade.

o conteudo desse discurso de comb ate ao crime foi se al­terando ao longo da historia, pel a disputa de categorias por uma fatia do seu exercicio imediato; assim 6 que medicos desenvolve­ram 0 positivismo criminologico, para defender a necessidade da sua presenya no controle da sociedade.

Vale refletir, neste ponto, sobre movimentos como 0 fas­cismo e 0 nazismo, pois um dos mecanismos de qne os detentores do poder atualmente se valem 6 0 de caracterizar estes fenomenos como isolados e surgidos em uma especie de autocombustao.

o fascismo e 0 nazismo nada mais sao que reflexos dos ;" discursos justificadores do poder do final do seculo XIX e inkio do

seculo XX, iniciados na fisiominologia e consolidados com 0 posi­tivismo criminologico, que geraram a crenya na diferenya entre os seres humanos, com alguns, atavicamente inferiores e outros, supe­riores, estes, claro, os qne dominam.

Para que as concepyoes preconceituosas de Lombroso, Feni, Garofalo e seus seguidores, habilitadoras do massacre das populayoes colonizadas a epoca pela Inglatena e Franya, justificas­Sem a existencia de uma raya superior e .a necessidade de elimina­yaodas inferiores foi um so passo.

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Nao se imagine que grandes conglomerados economicos nao lucraram com os autoritarismos europeus e por isso deram su­porte a seus discursos. Desde a construyao de manicomios e cam­pos de concentrayao ate a industria belica, a utilizayao do ser 11U­mana como um mero objeto ao enriquecimento e tranqiiilidade de poucos se manteve. Lembre-se sempre que Mengel, 0 conhecido anj 0 da morte nazista, tinha os seus experimentos custeados pel a industria farmaceutica dos Estados Unidos.

o capital, em nieados. do s6criloXX, cOllieyouaexpetic ' mentar uma migrayao para a Norte America, razao por que apre­sentou:se os EstadosUnidos, no pos-nazisl11o, como 0 controlador global e, claro, necessitou de um discurso de justificayao para ser interiorizado pelo ser dOl11inado; anticol11unismo e guena fria, en­tao, constituel11-se nas bandeiras dos povos ocidentais.

'.'

Os outrora parceiros, Uniao Sovi6tica e. Estados Unidos, tomam-se inil11igos. A ditadura sovietica e alil11entada com 0 pani­co antiamericanista e a ditadura disfaryada dos conglomerados eco­nomic os, sediados nos Estados Unidos, com 0 anticomunismo.

o poder e 0 controle sobre a vida das pessoas mais uma vez se fazem necessarios, para impedir as ayoes e mani festayoes dos "traidores da patria", de um lado os que tem ideias capitalistas, de outro, os que tem id6ias socialistas, mas, em suma, 0 controle 6 exercido sempre sobre toda a populayao.

Na America Latina velhas oJigarquias se enfraqueceram, a regiao comeyou a migrar para fonnas de administrayao popular efetiva, razao por que 0 panico comunista se tomou tamb6m fun­cional em paises que pouco tem com a disputa "faz-de-conta" Esta­dos Unidos/Uniao Sovietica. Golpes militares, financiados e sus­tentados pelas velhas oligarquias economicas, foram aplicados, com justificayao na necessidade de deter um avanyo comunista

, desenhado com a criayao de panico coletivo.

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o· ·poder real seguiu sendo exercido, na America Latina, nao pelos militares, mas pelas oligarquias economicas de sempre, ligadas ao poder economico das metropoles.

Claro que os militares, embora nao fossem os reais con­troladores do processo, beneficiaram-se do exercicio imediato do poder na regiao, assim como dele se beneficiam as estruturas poli­ciais, ate entaD pouco consideradas na regiao, que passaram a sofrer

.umagigantamento e uma total ausencia de controle, pois se justifi­caram as "a90es de porao", ou seja, escondidas, a pretexto de im­pedir que foryas contriirias aDs interesses nacionais obtivessem in­fomlayoes vitais:

A realidade das ditaduras militares nos paises latino­americanos foi de uma fonna de colonizayao, em que dividas vo­lumosas, com taxas de juros absurdas foram assumidas com ban­queiros intemacionais; oligarquias economicas foram beneficiadas com total garantia de Iiberdade para a continuidade do seu processo de apropriayao da terra e explorayao da mao-de-obra; militares ob­tiveram especial status nos anos de ditadura, com ganhos acima da media da populayao, franquia total para as ayoes dos exercentes da funyao militar e de seus familiares, vanta gens econo11licas imorais, como as vergonhosas pensoes para fiIhas de militares nao precisa­rem jamais trabalhar; fortalecimento, sem controle, das foryas poli­ciais, que aumentaram os ganhos economicos na con·upyao aceita pela omissao da sociedade em contrapo-la.

Assi11l como 0 fascismo e 0 nazismo tiveram a11lplo apoio popular para estabelecere11l-se no poder, a verdade e que na Ameri-

. ca Latina as ditaduras militares encontraram nas vozes de enfren­tamento a minoria da populayao, pois a grande maioria interiorizou o discurso da necessidade do exercicio abusivo do poder pelo con­luiogerado por oligarquias economicas, militares e foryas policiais, para deter um imaginiirio avanyO comunista contriirio aos interesses nacionais.

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Nao por outra razao foram tantos mortos na Argentina e no Chile, por exemplo. Nao por outra razao, no Brasil, a classe me­dia ac011lpanhava empolgada, no domingo it tarde, pela televisao, "A Semana do Presidente" e aplaudia animada.

Nao por outra razao a corrupyao se alastrou de forma en­demica nas foryas policiais, passando 0 dinheiro de tais priiticas a representar a maior parte dos ganhos dos agentes, eonstmindo-se estruturascomplexas de distribuiyao dos val ores, . ainda hoje· per­sistentes, com repartiy5es que beneficiam, desde os mais novos agentes, ate governadores de Estado.

AJem do capital gerado, os exercentes do poder querem a livre disposiyao sobre a vida das pessoas, podendo intervir na sua liberdade, podendo massacrar os que nao interiorizam 0 discurso e perseguir os que nao se mostram como aliados.

o discurso do panico anticomunista pennitiu que pessoas fossem presas sem acusayao fonnal, torturadas nos poroes das de­legacias de policia e nas salas dos responsiiveis pela apura9ao de atos "contriirios it seguranya nacional", tudo contando com a omis­sao da imellsa massa da populayao, que imaginava estavam efeti­vamente impedindo algum "comedor de criancinhas" de atracar nos portos da regiao..--

A abertura democriitica nos paises latino-americanos, soma­da ao ·processo de globalizayao, estabeleceu uma aitera9ao no con­trole imediato do poder. Voltaram as anti gas oligarquias economicas, no plano intemo, a exerce-lo diretamente, e os grandes conglomera-. dos economicos manifestaram os interesses da meh·opole.

A necessidade de justificar a inamovibilidade da atual es­trutura de poder seincompatibilizou com a pregayao do anticomu­nismo, pois os paises da chamada cortina de ferro cederam ao ca­pitalismoe um novo panico precisou, entao, ser gerado e interiori­zado.

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De urn lado, os paises arabes, ainda que legitimas sejam as Suas causas, sao demonizados, por representarem 0 contraponto a cultura capitalista hegemonica, sendo nos Estados Unidos criada uma neurose completa com as ayoes tenoristas.

A verdade e que alguns movimentos de resistencia a ex­propriayao de suas terras e de sua cultura, em paises arabes, nao encontrando poderio belico que lhes permitisse lutar em iguais condiyoes com as foryas que os oprimem, valem-se do mecanismo ci'iadol~a regiaopeJas'fo;'~as sionistas,qnando for9aralTI, cOin ayoes tenoristas, 0 reconhecimento, em tenas palestinas, do Estado de Israel pelos paises europeus, desenvolvendo ayoes 'violentas contra grandes quantitativos populacionais.

Embora seja verdade a existencia de ayoes tenoristas por paises do Oriente Medio, desde a fundayao de tal expediente como meio de pres sao internacional pelos israelenses, a realidade e que nao M urn caos tenorista no mundo, a realidade e que ha serias duvidas sobre as investigayoes do ataque de 11 de Setembro nos Estados Unidos, a realidade e que 0 Iraque nao tinha armas de des­truiyao em massa e sua populayao nao estava infeliz com seu go­vemo, a realidade e que 0 panico gerado vai muito alem do verda­deiro na planificayao do problema.

Igualmente e sabido ql!e ayoeS violentas nao sao aptas a frear medidas ten"oristas, que sao facilmente contidas com a real discussao da apropriayao indevida das ten'as palestinas e medidas de freio as continuas ayoes de destmiyao da cultura arabe.

Ocone, porem, que 0 panico tenorista e muito funcional aos interesses de poder nos Estados Unidos, pois pennite 0 agiganta­mento do Estado, intervindo ern todos os aspectos das liberdades fundamentais, prendendo sem acusayao, estabelecendo escutas tele­fonicas em larga escala, contr"olando conespondencias, ou seja, mo­nitorando nao os tenoristas, mas toda sociedade, para saber quem sao

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os inimigos do status quo e que nao estao adequadamente controlados pela interiorizayao do discurso justificador do momenta e, por isso, visualizam as injustiyas e mentiras do sistema real existente.

A explorayao sensacionalista do terrorismo, contudo, nao produziu, em paises como os da America Latina, 0 imp acto deseja­do a fim de habilitar 0 poder absoluto, ainda que se tenha tentando com a criayao de uma ilusoria rede tenorista na triplice fronteira Argentina/BrasillParaguaioucom as ja denadeiras investigayoes a fimde achar umescondeiijo"de Bin Laden na regiiio"

A verdade e que a America Latina, fruto de uma miscige­nayao intensa, nao conseguiu gerar, na escala desejada, 0 precon­ceito aos arabes e, em conseqUencia, 0 panico anti telTorista, mos­trando-se necessario outro discurso mantenedor do poder pelos grandes control adores do capital, a fim de se interiorizarem de for­ma cada vez mais marc ante as necessidades mantenedoras da ri­queza destes.

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III

A conflituosidade social na America Latina se mostra bastante funcional a gerar um discurso de panico. As sociedades da regiao sao bastante desiguais, sao reflexos das explorayoes segui­das de suas riquezas pelas metropoles, e de process os excludentes da maioria da populayao da apropria9ao da ten·a e dos bens de pro­dU9ao.

Ademais, as oligarquias sempre foram habeis em gerar preconceitos nao assumidos. na America Latina. Apos 0 periodo escravagista, por exemplo, quando a mao-de-obra negra ja nao mais interessava, por ter se tornado muito custosa, pel a queda da demanda da produ9ao rural no mercado intemacional, era preciso eliminar os grandes quantitativos de negros trazidos para a regiao,

· momenta em que bem serviram e, assustadoramente, ainda tem · servido, os discursos de Lombroso, com seus retratos d~ "crimruo-· sos natos", em que fundamentalmente somente se veem hom ens negros, indios latinoCamericanos ou seus mesti90s.

o positivismo criminologico foi de suma importancia para que Inglaterra e Fratwa, entre outras na90es hegemonic as, justificassem 0 massacre de populayoes que colonizavam, sob 0 argumento de que se tratava de crimi nos os natos, confomle as qescri90es dos equivocados e preconceituosos pens adores do po­sitivismo, desaguando em seu maximo momenta no Estado na­zista aJemao.

30 Adel EI Tasse

Na America Latina as oligarquias tambem viram no posi­tivismo criminol6gico uma grande soluyao para combater as popu­layoes negras recem-libertas, que se avolumavam nas cidades em busca de trabalho e pressionavam por alguma reparayao pelos anos de explorayao escravocrata que lhes foi imposta. 0 negro virou 0

retrato do criminoso nato, assim como os indios, que em muitos paises viveram igual processo de explorayao. Comeyaram os encar­eeramentos em massa das populayoes negras e indigenas, que se­gUiram traballiando gratuitamente nos carceres, na fomentayao do trabalho foryadoao individuo submetido ao sistema penal.

Ve-se que os preconeeitos, as desigualdades, as explora­yoes continuas sao 0 genne de uma conflituosidade social de gran­de escala na America Latina, nao sendo, ademais, desenvolvida qualquer ayao real para minora-la, ao contrario, sao continuamente ampJiados os espayos de separayao, por exemplo, sueateando-se a edncayao e a saude publicas de acesso aos mais humildes e glamo­rizando-se estabelecimentos privados de ensino e grandes institui­yoes hospital ares caras;

Nao se combate a conflituosidade social, mas se a explora, para gerar 0 discurso habilitador e'mantenedor do poder, qual seja, o da impunidade. A conflituosidade social e renegada a condiyao de sinonimo de impunidade, e esta representa 0 mal que deve ser combatido, sob pena do fim da existencia humana, assim como era o demonio na Idade Media e 0 comunismo no Ocidente, nos anos de guerra fria.

Novas bruxas sao criadas nos pequenos traficantes, bate-, dores de carteira, enfim, autores de delitos facilmente localizaveis e que servem como propaganda do sistema, como as cabeyas de bru­xas queimadas serviam na inquisiyao, exibidos nunorosamente pelos veiculos de comunicayao de masSa; ja que nao se pode mais queima-los em praya publica.

o que e a Impunidade 31

Diferente do que imagina a maior parte da populayao, as cadeias estao lotadas de pequenos traficantes e autores de crimes contra 0 patrimonio, mas com pouquissimos autores de delitos gra­ves, chefes do narcotrafico ou control adores de organismos crimi­nosos. Meramente e feita uma publici dade com a parcela dos auto­res de deJitos cuja prisao e fiicil, que nao dispoe de capital para a maquina de corrupyao existente nas agencias responsaveis pelo enfi'entamento do crime.

o discurso da impunidade ebastantefuncional ao exerci­cio do poder, pois gera um panico coletivo que se alimenta diaria­mente da conflituosidade social j amais abordada e, assim, se pere­niza pela nao adoyao de qualquer conduta com 0 fim de equacionii­lao

Importa verificar que 0 discurso da impunidade serve aos detentores do poder economico, que podem trazer ao mercado todo tipo de aparato que se proponha a dar mais seguranya, vendendo almas em larga escala, oferecendo seguranya privada, enfim, abre­se campo a um novo universo de artigos a serem consumidos e, claro, a manutenyao da conflituosidade social tambem e funcional, por aumentar 0 desejo de consumo em, todas as classes, com 0 eriar de uma insaeiabilidade para com os bens de consumo, na era da globalizayao os lucros se tornam, assim, gigantescos.

Os organismos poIiciais, ademais, desde a abertura demo­criitica na America Latina, ressentiram-se da perda de poder aliada a diminuiyao dos ganhos da corrupyao, notadamente nos momentos em que se assentou de maneira mais forte a proposta de construyao de novas realidades sociais.

Com 0 discurso da impunidade tambem voltam as es­truturas de policia ao exercicio do poder politico que dispunham no periodo da ditadura militar, perdido quando da abeliura demo-

o criitiea, assim como a disporem de maior clientela (nao s6 pessoas

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32 Adel EI Tasse

de ideologia distinta da oficial, mas toda a populayao) e men or controle para 0 ganho de capital pelo emprego dos expedientes da corrupyao.

o dado novo e que com as Constituiyoes latino­americanas posteriores ao periodo militar, as instituiyoes responsa­veis pela acusayao criminal, ainda que mantidas fortemente atrela­das ao poder executivo, ganharam certo grau de autonomia, que as fez entrar em disputa direta com as agencias policiais pelo cdntrole imediato do poder punitivo.

Assim tiveram inkio as disputas entre os orgaos de acu­sayao criminal e as policias, pelo comando da investigayao cri­minal, situayao esta que na verdade e somente a sombra do que efetivamente se deseja, que e 0 controle, ainda que parcial, po­rem imediato, do poder punitivo, com todas as possibilidades que dai decorrem, possibilidades economicas e de dominayao de pessoas.

Apos muitos choques entre os organismos responsaveis pela acusayao criminal e foryas policiais na America Latina em geral, comeya a ocorrer uma aparente pacificayao, com uma celia divisao do poder exercido por ambas as estruturas, sem que uma exerya qualquep'conh·ole ou fiscalizayao real sobre a outra, ainda que a legIslayao dos paises da regiao diga diferente.

.. Convivem delegacias de policia e os orgaos oficiais de acusayao aptos a investigayao criminal. Alguns promotores agem como policia, alguns policiais agem como promotores, comeya a haver uma mistura das funyoes, ninguem investiga ninguem, per­mitindo que 0 poder punitivo seja repartido pel as agencias em questao.

A America Latina vive 0 maximo do idealismo punitivo: "As policias nao sao corruptas e nao torturam os investigados. 0 Ministerio Publico atua com imparcialidade e coibe todos os abu-

o que e a Impunidade 33

sos. Somente os malfeitores sao presos e os cidadiios de bem estao a salvo".

Com esse idealismo se interioriza, junto ao discurso de impunidade, a nOyao de que as instituiyoes responsaveis pelo com­

, bate ao crime funcionam bem; e 0 delito e os seus autores que sao ardilosos, como 0 demonio na inquisiyao, portanto, para vence-Ios se legitimam os metodos inquisitoriais.

IV

, Hi que ,se destacar, no aspecto especifico da interiorizac,:ao do discurso da impunidade pela sociedade, alguns fatores que con­tribuem, de maneira bastante acentuada, para que este processo OCOlTa.

E de se refletir sobre as reais razoes que fazem com que as pes so as em geral sintam-se completamente acuadas pela violencia urbana e, assim, aceitem facilmente 0 crescimento da intervenc,:,ao do Estado sobre sua margem de liberdade, com a aceitac,:ao da per­da continua de direitos e garantias fundamentais.

A conf1ituosidade social, a que se tem refelido no presente ellsaio, e evidentemente um fator importante no quadro de agressi­vidade da sociedade e na presenc,:a tao marcante de ac,:oes pemla­nentes de violencia nos diferentes niveis da vida social.

Claro que a conflituosidade sOc;ial na6 se freia com medi­das punitivas, senao de enfrentamellto ao conteudo que a ocasiona,

, mas, por outro lado, e certo que a sua presenc,:a produz violencia, e a violencia, medo, e sua vitima toma-se ficil receptora dos argu-. mentos de ampJiac,:ao do poder pUllitivo estatal como mecanismo de combate it violencia, nao se podendo, em definitivo, exigir da viti­ma da violencia que consiga enfrentar com racionalidade a situac,:ao

, ' que a ela se apresenta, renunciando ao seu desejo punitivo e pre­gando 0 comb ate aos problemas intrinsecos ocasionadores da con­flituosidade social.

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36 Adel EI Tasse

Nao e s6 este aspecto que atua no fomentar da sensac;ao de impunidade, a produzir a interiorizac;ao do seu discurso, que con­duz a ampliac;ao punitiva pelo Estado.

Fracassaram, de maneira evidente, os mecanismos de paci­ficac;ao social. Vale considerar que a oPC;ao par tratar de detenni­nada materia com enfrentamento pelo poder punitivo do Estado representa uma clara oPC;ao pel a sua nao resoluc;ao.

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o poder punitivo do Estado nao e, e jamais sera, por maio-res que sejam os esforc;os do pensamento garantista, ummeio habil para resolver os choques de interesses havidos na sociedade.

A oPC;ao punitiva representa uma renuncia a resoluc;ao da qucstao, e a eleic;ao de um meio de forc;a para tratar da materia, apenas com 0 sentido simb61ico de impor sofrimento a uma das partes envolvidas no conflito.

Imaginar que a pena possui alguma finalidade, sen do algo mais, no plano real, que a mera retribuiC;ao do Estado contra o autor do fato catalogado conio criminoso, e de inocencia im­pactante, djariamente desmentida pelos dados da experiencia concreta.

A 16gica real do poder punitivo do Estado nada tem a..-ver com os argumentos bem intencionados de atribuic;ao de finalidade preventiva, quer geral (positiva ou negativa), quer especial (positi­va ou negativa), que nada mais conseguem que justificar a inter­venc;ao do Estadosobre a vida das pessoas, com a conseqiiente li­mitac;ao dos direitos e garantias destas.

Com efeito, 0 que OCOlTe e que, valendo-se da boa-fe de pensadores como Feuerbach e Roxin, entre outros que tentaram dotar a pena de contelldo positivo, 0 poder punitivo segue se exer­citando de maneira brutal, somente justificado pelo pensamento bem intencionado das COlTentes lib era is.

o que e a Impunidade 37

A pena nada mais e que retribuic;ao, neste senti do, nao se imagina que 0 conteudo retribucionista a justifique, mas a ve como um pleno espelho da realidade nao assumida, tendo espac;o a 16gica kantiana em torno da materia, acrescida de uma boa dose de pen­samento hobbeseniano.

o Estado nao pune por outra razao que para reafinnar seu poderio pleno sobre as pes so as, vinga-se 0 "soberano" atingido a cada crime, pelo desrespeito as suaS leis, que este 'representa, com a

. pena.

Assumir esta realidade e, no plano te6rico penal, pattir inevitavelmente para a postura agn6stica da pena, com todas as conseqiiencias deslegitimantes do poder pnnitivo do Estado que dai advem, e, no plano empirico das relac;oes, assumir que a detenC;ao

. do poder pouco se alterou ao longo dos seculos, nada mais sendo que manifestac;ao de castigo, retribniC;ao pela of ens a a lei, sem qualquer releviincia com os danos a vitima, com 0 impacto social

.da puniC;ao, enfim, com qualquer dado alem da necessidade reafir­mativa do poder por quem 0 detem.

A verdade e que poucos estao dispostos a enfrentar esta realidade de deslegitimac;ao do sistema punitivo, assumindo a con­

. diC;ao de manipulados hist6ricos dos interesses hegemonicos.

Ocorre, contudo, que 0 bom senso, se empregado na refle­dos temas criminais, conduz a inevitavei constatac;ao de que 0

punitivo nao tem qualquer outra finalidade que retribuir 0

.desrespeito a lei do Estado, com 0 sofrimento do insubmisso.

Se, de um lado, 0 poder punitivo nao apresenta qualquer ::finalidade ou sentido positivo, sendo puro sofi'imento, os mecanis­

reais de pacificac;ao social sao desestimulados continuamente e para 0 pe1Tl1anente atendimento dos interesses das

e das classes mais bem estabelecidas nas sociedades

38 AdelEITasse

o direito civil e 0 processual civil jogam urn papel deci­sivo na interiorizac;:ao do sentimento de impul1idade, papel este muito mais relevante que 0 exercido pelo direito penal e proces­sual pena!.

Ao direito penal e ao processo penal cabe estabelecer li­mites ao poderpunitivo do Estado, que quer sempre ser ilimitado em sua irracionalidade, enquanto ao direito civil e ao processo civil eque compete conter grande parte dos casos de litigiosidade, com isso diminuindo consideravelmente a conflituosidade social e afas­tando 0 processo de interiorizac;:ao do discurso da impunidade, a permitir a sociedade enfrentar-se com seus reais problemas.

Melhor explicando, 0 poder punitivo, como acima referi­do, nao exerce qualquer func;:ao, nao reduz em nada a litigiosidade, ao contnirio, amplia-a, na medida em que produz novas vitimas nas pessoas proximas ao condenado, que muitas vezes ficam desampa­radas, e na propria vitima ou seus familiares, que sempre julgam tel' sido pequena a resposta em rela9ao ao mal que subjetivamente sentem ter sofrido.

A opc;:ao punitiva, como se vem tratando, portanto, e uma escolha por nao resolver nada, apenas por retribuir com sofrimento ao condenado 0 seu ato de of ens a a lei, bem como ampliar os pro­ble£as sociais .com novas vitimizac;:oes.

Ao direito civil e ao processo civil, por outro lado, assiste a possibilidade de pacificar pessoas que se encontrem em litigio, ofertando soluc;:oes razmiveis que sejam adequadas a encerrar con­flitos.

Ocorre que dentro da logica de ampliac;:ao do poder puniti­,,0, pouco interessa que os mecanismos de contenc;:ao da litigiosida­de cumpram seu papel, impOltando mais que instrumentos como 0

'direifo civil e processo civil sejam ruins e funcionem mal, exata­mente como ocorre nos paises da America Latina.

a que e a Impunidade 39

Como exemplo, vale observar 0 caso brasileiro, em que 0

sistema processual civil e verdadeiramente catastrofico, em nada reduzindo a litigiosidade; ao contnirio, e uma poderosissima forc;:a de propulsao dos sentimentos de abandono e desrespeito pelas pes­so as em gera!.

o sistema civil de contenc;:ao da litigiosidade brasileiro e um dos mais brilhantes exemplos de como se construir mecanismos para que tudo funcione mal, para que tudo de errado.

Um cidadao comum que busca a tutela judicial para resol­ver um quadro litigioso em que tenha se envolvido, dificilmente vai encontrar alguma satisfac;:ao, mas quase seguramente se pode afir­mar, teni ampJiado de forma enorme, os danos sofridos, os maus­tratos, a sensac;:ao de que nada mais e que um objeto sem importan­cia na estrutura suntuosa da jnstic;:a.

A estrutura civil de resoluc;:ao conflitiva latino-americana e bastante funcional em favor de devedores e de gral1des poderios economlcos, que podem atuar em prejuizo das pessoas, e estas, se tentarem obter alguma tutela, serao, provavelmente, massacradas pelo Estado, que se somani ao detentor do poder economico para humilha-Ias e expropria-Ias de seus direitos ..

Teses as mais absurdas sao sustentadas com ares de inte­lectualidade e que, em verdade, so servem a garantir a ausencia de responsabilizac;:ao dos grandes conglomerados pelos atos lesivos que ocasionam aos cidadaos comuns.

Assim sao construidas vergonhosas sustentac;:oes, como· a existencia de um enriquecimento sem causa de quem e vitima de danos morais ou de descumprimento de ordens judiciais, lnuitas vezes por anos, para reduzir os val ores indenizatorios e de multas acumuladas para patamares aviltantes, que so servem de estimulo aos possuidores de grande capital para que persistam elTI suas praticas lesivas, bem como para produzir uma humilhac;:ao

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40 Adel EI Tasse

nova ao cidadao que ousou discordar dos maus-tratos que os possuidores da riqueza Ihe impuseram.

Ridiculos sao os procedimentos, os mecanismos recursais e os dispositivos de execuyao do sistema civil de resoluyao da liti­giosidade, um lindo edificio para debates em congressos e simp6-sios, construindo a fama de te6ricosda inutilidade, mas um porao imundo sob os olhos realistas de sua efetividade e condiyao para auxiliar na paz social.

Devedores~ empresas inadimplentes, grandes agentes eco­nomicos agressivos do cidadao, sao beneficiados permanentemente com um sem-numero de expedientes de protelayao de dfvidas, de obstiiculos para sua falencia ou intervenyao e de teses redutoras de responsabilidade.

Quando sao concebidos mecanismos que teoricamente poderiam tornar mais efetiva a prestayao jurisdicional em favor do sujeito comum, rapidamente sao "adotadas medidas para sua corro­sao, para que tudo cumpra sua real funyao dentro da l6gica do poder, ou seja, nao sirva para minorar a litigiosidade social.

Assim "passou com" os juizados especiais civeis no Brasil, concebidos para permitir um mais fiicil e iigil acesso aos meios de pacificayao e que, ante sua aptidao para funcionar, foram rapida­mente destruidos, com a reduyao de investimentos na mesma medi­da em que a demanda cresceu.

o resultado final 6 que os juizados especiais civeis bra­sileiros, concebidos dentro das id6ias de celeridade e informali­dade, privilegiando a conciliayao, em outras palavras, dotados de todos os aspectos necessiirios para trabalhar na pacificayao social, tornaram-se um dos mais pesados e ineficazes 6rgaosdo judiciii­no.

o quee a Impunidade 41

A tudo isso, soma-se a corrupyao, que apresenta nfveis inimaginiiveis na estrutura judicial latino-americana, controlada, claro, por quem possui mais recursos economicos.

Recentes ayoes de combate it corrupyao, como as defla­gradas na Argentina e no Brasil, apenas "mostram a ponta de um iceberg, pois, se OCOlTer um aprofundal11ento efetivo dos levanta­mentos, se chegarii it chocante constatayao de que exceyoes existem sim,"masessas· nllosao" dos que se corrompem, mas, dos que nao sao corrompidos.

Ignorar a corrupyao estrutural do Poder Judiciiirio tamb6m e algo altamente funcional aos detentores do poder, pois dela po­dem se beneficiar sempre que necessitem e se garante a preserva­yao dos interesses economicos da metr6pole, ampliando a litigiosi­dade social pela reiterada vitimizayao da gente comum que, nao conseguindo refletir muito bem sobre a realidade que a circunda, imediatamente grita que 0 problema 6 penal, porque as leis sao brandas, e a soluyao 6 ampliar 0 poder punitivo que, em realidade, continua controlado pelas mesmas estruturas corrofdas e l11anipula­doras do discurso que.lhes garante 0 contt'ole sobre a sociedade e legitima a dOl11inayao plena das pessoas.

As pessoas vivencial11 situayoes de litigiosidade, buscando a tutela do judiciiiri6 pelos mecanismos conciliatorios, ou seja, pe­los instrumentos: disponibilizados pelo direito civil e processual civil, que nao conseguem produzir qualquer efeito positivo, quer

. pela via transacional, quer por sentenya judicial, que acaba nao "tendo eficiicia executiva real e, se a tem, 6 em val ores infimos e ap6s anos de processo.

o sujeito sente-se, enta~, desrespeitado e objetivizado, vi­sualizando a total ausencia de qualquer possibilidade de que seus "direitos sejam preservados.

42 Adel EI Tasse

A questao e que 0 sujeito nao racionaliza adequadamente sua amargura e nao entende as estrutnras juridicas, esquecendo 0

direito civil e 0 processo civil e canalizando sua revolta para 0 di­reito penal, que nada tem a ver com 0 seu drama, mas que e de pro­ximidade maior ao corpo social, interiorizando rapidamente 0 dis­curso de que a culpa e da impunidade.

o discurso de impunidade passa a ser repetido e gera um .. piinic.o.coletivo de dificil combate, pois a abstrac,:ao. do initn,ilS,()

(impunidade) impede 0 seu enJientamento com bases empiricas ou raCIOnalS.

Alias, a abstrac;:ao do inimigo e muito importante, assim como 0 demonio, 0 comunismo e 0 terrorismo, a ideia de impnni­dade permite nma propagac;:ao discursiva ampla, pois a ausencia de qualquer concrec;:ao fi·agiliza 0 seu enfrentamento.

Dessa maneira vai sendo gerada a celieza de que todas as mazelas das sociedades latino-americanas deconem da impunida­de, e este discurso assume postnra de verdade absoluta, em moldes que qualquer um que tente questionar suas bases·ou a realidade dos dados a ele atrelados sofre hostilizac;:ao ..

Os ctiticos, assim, que no tema da impunidade tentam en­xergar um pouco mais alern das brumas, sao cata!ogados como loucos ou condescendentes e comparsas do-crime, interditando-se por completo 0 seu pensamento, que pass<i, entao, a ser marginal e, como toda reflexao marginalizada, observado com menos caso e preconceito.

Sem a dialetica deconente da critica, com caracteres de verdade absoluta, 0 discurso que espalha 0 medo em toda sociedade pennite sua retro-alimentac;:ao, pois garante. a ampliac;:ao do poder punitivo do Estado em pro! das metropoles e das oligarquias regio­nais, nao enfrentando os reais fatores geradores da conflituosidade social, que se desenvolve cada vez mais, produzindo mais ataques

o que e a Impunidade 43

aos aspectos relevantes da vida das pessoas e fortalecimento, por conseqiiencia, da ideia de impunidade, 0 que garante mais al11plia­c;:ao do poder punitivo que segue controlado pelos l11eSl11OS domi­nadores.

Eis a realidade do ser humano objetivizado, funcionaliza­do, transformado nnm l11ero l11icrossistema para a manipulayao pelo poder metropolitano e de rescaldo pe!as oligarquias hegemonicas intemas de cada pais .

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A imprensa atua de maneira eficaz na propagayao do dis­curso oficial que conduz Ii ampliayao do poder punitivo, pois, se de um lado, encontra-se em grande escala controlada por seus interes­ses financeiros imediatos, pelos conglomerados economicos que Ihe ditam as informayoes validas e as que tem vedada a divulgayao, par outro, estimulam sobremaneira a ocorrencia delitiva nas socie­dades mais pobres.

. Sao continuas as manifestayoes dos meios de comunicayao de massa repetindo 0 discurso legitiniante do permanente cresci­

. mento da invasao na vida das pessoas, insistentemente tagarelando sobre a impunidade e colocando as mais diferentes posiyoes dos "~pin610gos"oficiais ..

as "opin610gos" se constituem em pessoas que adquiriram prestigio em alguma area Ii qual se dedicaram, COlTIO, por exemplo, jogar futebol, atuar em telenovela, participar do "Big Brother'~

comercial de cerveja, apresentar telejomal; pousar nu em. re­ter filho com gente famosa; prestigio este que os habilita a se

tnanifestarem nos meios de comunicayao de massa sobre qualquer. assunto que esteja na pauta do momento.

Assim, manifestam-se sobre· culinaria, estetica, viagem, sistema juridico-penal, problemas de criminalidade, soluyoes para a

.illlpunidade etc. e, alem de se manifestarern, temem suas posiyoes ...• opoder da verdade plena, po is amplamente divulgada pelos meios

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46 AdelEITasse

de comunicayiio de mass a e alardeada par ser perfeita como regra, aos interesses da c1asse dominante.

Enquanto isso, lembre-se, 0 discurso critico segue na mar­ginalidade, com poucos que por ele se interessam e sem nenhum veiculo de comunicayao de massa para propaga-lo, pois e altamente desagradavel, na medida em que obriga a pensar e desfaz a pauta oficial estabelecida no release elaborado pelos controladores do poder.

Assim, propaga-se 0 discurso oficial e mais, como acima dito, produz-se tim estimulo a ocorrencia criminal na sociedade, pois a continua repetiyao do dominio da impunidade faz com que as pessoas desesperadas, pessoas que se sentem injustiyadas, pessoas inseridas na febre do consumo sem recursos para aquisiyao dos bens que desejam, vejam no crime uma soluyaopara os seus males, afinal todos dizem que ninguem e punido.

Os veiculos de comunicayao agem em varios sentidos em relayao ao problema da criminalidade, em um aspecto somente apresentam 0 lado sensacional do crime e explaram-no de forma nefasta, 0 que produz, como efeito, a sensayao de que ha uma total dominayao da sociedade pelos que atuam Ii margem do sistema, cometendo delitos.

Essa apresentayao sensacional dos problemas da crimina­lidade e seguida de manifestayoes dos "opinologos", sempre no sentido de referendar 0 di.scurso dominante, 0 que promove apoio popular com as medidas provenientes do nuc1eo de poder, pois in­sistentemente sao apresentadas como as mais viaveis a deter 0 cri­me e sempre referendadas pOl' exercentes de influencia social, no caso os "opin610gos".

Outro aspecto que tambem se deve ter em conta, e que a ayao continua de repetiyao do discurso da impunidade produz 0 contra-efeito imaginado. Como as soluyoes propostas, em geral,

o que e a Impunidade 47

pelos meios de comunicayao de massa, para deter a propalada im­punidade, sao absolutamente inefetivas, 0 que se faz e uma mera repetiyao de que a impunidade e a marca presente na manifestayao criminal nos Estados latino-americanos.

Com isso, nada de positivo se produz, eis que, conforme apontado acima, as soluyoes sao vazias, parem se tem 0 gerar de incentivo ao cometimento do crime.

As soci.edades conflitivas e desiguais dos paises latinoc. americanos geram desespero c·ontinuo nas pessoas, que recebem atualmente uma forte carga discursiva favonlvel ao delito, na medi­da em que a divulgayao das hipoteses criminais ocorridas e sempre seguida do discurso da impunidade, 0 que faz gerar a imagem de que 0 crime compensa, pois ninguem e par ele punido.

Assim, ao mesmo tempo em que nada de positivo e produ­zido, com a postura em geral as sumida por setores importantes dos meios de comunicayao de massa, desperta-se um sentimento con­traditorio, em que 0 cidadao desesperado, com necessidades as mais variadas e cego pelo desejo de consumo, ve no crime, ainda que abandonando todos os seus valores pessoais etico-morais, uma soluyao viavel, pois ha uma afirmayao permanenfe de que ninguem e punido e ele tambemnao 0 sera, pensa.

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Acresce observar que 0 discurso da impunidade conduz 0 individuo que nao pens a em cometer delitos a sentir-se como isola­do· e vitimado na sociedade, po is vive em um meio em que todos, ou grande parte, delinqilem e nada lhes acontece, enquanto ele e

'. sempre a vitima que nao sera protegida, melhor entao cometer seus crimes tambem, para obter vantagens ao inves de ficar eternamente como a vitima de situayoes em que e 0 autar de crimes quem sem­

. pre se da bem.

o que se observa, pOlianto, e que 0 discurso da impunida­de, propagado de maneira muito forte na atualidade, atende em

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cheio aos il'lteresses dos dominadores do poder e tem uma capaci­dade enorme de sobrevivencia, eis que e capaz de gerar 0 mal que propaga, pois que impulsiona, em real ida des conflituosas e desi­guais, pessoas em desespero ao caminho do crime, na crenc,:a de que verdadeiro seja 0 discurso oficial e de que elas estarao impu­nes.

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Importa, no presente ensaio, retomar ao tema da sociedade de consumo, para refletir sobre as bases em que este modelo se assenta e os efeitos que produz nos varios grupos humanos.

A logica das sociedades consumistas e a infelicidade. So­mente a infelicidade pode produzir 0 atendimento aos interesses dos grandes conglomerados economicos, pois 0 sujeito feliz nao sente necessidade continua de novas aquisic,:oes de bens de consu­mo, ao contrario, deseja seguir sua vida tal qual ela esta, ja que e feliz na forma como esta estlUturada sua existencia, nao consumin­do mais que 0 necessaria.

Sob a otica dos detentores dos grandes capitais, e funda­. mental que haja U1mi continua cobic,:a e insatisfac,:ao das pessoas com 0 que sao e possuem, pais so' assim estarao continuamente

. consumindo mais e mais.

A partir do momenta em que as pesscias consideram-se fe­lizes e satisfeitas, freia-se imediatamente a logica consumista; pen­

para que um caITo novo se 0 que se tem esta bam e se e feliz ele? Para que roupas novas se nao se necessita delas?

Assim, a conflituosidade e a desigualdade sociais sao o~ caminhos crueis do atendimento aos interesses da metropole e. das 6ligarquias regionais, pais a existencia da desigualdade faz coni

'" 'que haja sujeitos que sempre tenham maior acesso aos bens de COll- .

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50 AdelEITasse

pela ausenCia de tal acesso, 0 que gera conflitos e, muitas vezes, violencia para atingir um status que permita respeitabilidade social, a partir do que se e capaz de ostentar.

A grande armadilha e que jamais alguem, na 16gica das sociedades de consumo, atinge 0 nivel suficiente a frear 0 seu de­sejo de mais bens, pois sao sempre apresentadas inovayoes, novi­dades, enfim, sempre lui algo rec6n-criado ou, na maior parte das vezes, "reciclado" como 0 bem habil a garantir que quem 0 possui e diferente dos demais, esta acima dos demais, e, assim, a corrida consumista nao para jamais.

A infelicidade e 0 mecanismo utilizado. 0 sujeito nao pode se sentir feliz e realizado, pois a visao do mesmo pode conta­giar outros e gerar uma onda de tranqUilizayao dos desejos de con­sumo, produzindo um choque contrario aos interesses do capital dominante.

Por tal razao, a imagem da pessoa feliz, sem desejo con­sumista, e associada, no mais das vezes, como a do cidadao ao qual se deve reprovar pela ausencia de ambiyao e pelo seu "comodis­m~", quando a verdade e que este justamente rompe com 0 como­dismo de assumir 0 pensamento pronto, que the desejam interiori­zar os exercentes do dominio.

Acomodados estao os que sem reflexao seguem 0 fluxo da mare consumista, sem pensar sobre 0 que este caminho representa para as suas pr6prias vidas, para a sua satisfayao, para a qualidade do seu viver e justamente 0 que desenvolve tais reflexoes e rompe com a 16gica do consumismo, e 0 que rompe com 0 destino que Ihe foi imposto antes de seu pr6prio nascimento, de ser .um objeto ge­rador de riquezas para os controladores do poder.

o encontro da felicidade representa a ruptura com toda a logica consumista e, assim, com a necessidade de enxergar os ou-

o que e a Impunidade 51

tros como inferiores e sustentar desta f0D11a a desigualdade e, por via de conseqiiencia, dar vazao a conflituosidade social.

A ruptura em questao apenas nao interessa a quem manej a o discurso hegemonico, pois e justamente este quadro de atritos da coletividade, de desigualdades, que gera a ambiyao, que fomenta a maquina do consumo em niveis cada vez mais elevados.

Nao sem razao as sociedades mais desiguais sao as em que a logica do consnmo e mais intensa, e as em que ha maior niveI de confrontos entre as pessoas em busca de acesso aos mais variados bens de consumo.

Realmente e paradoxal que jamais se atinja· a satisfayao em tais sociedades, pois tao logo 0 sujeito ascende a detenninado bem de consumo por ele desejado, um novo Ihe e apresentado como 0 lugar em que esta a verdadeira felicidade, entao, a infelici­dade ate atingi-Io passa a ser a tonica, em uma espiral intenninavel em que a satisfayao verdadeira nunc a e vivida e a busca desespera­da por satisfayao em objetos que sao oferecidos pelos detentores do capital faz com que, a pessoa nada mais seja que um objeto dos in­teresses destes.

o ser humane funcionalizado, objetivizado, e 0 que busca as metropoles e, de maneira reflexa, as oligarquias regi?Pais, pois este e incapaz de romper 0 sistema de amarrasque 0 aprisiona, continuamente agindo tal qual nm escravo, embora fonnahnente livre, para atender os interesses dos que 0 domiriam.

Varios fatores alimentam a cegueira do individuo COI11UI11,

entre os quais a ja h'atada necessidade de se sentiI' especial, unico, infinito e superior aos del11ais, que 0 faz nao medir esforyos para atingir bens que, nas sociedades estruturadas no consumo, sao a l11arca da pessoa respeitavel e, entao, e a cayada destes bens por todos um dos fatores geradores do alto indice de conflitos na socie-

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52 AdelEITasse

dade, aumentando estes pelos, tambem ja referidos, ineficazes pro­cessos institucionais de contensao da litigiosidade social.

Na America Latina ha uma evidente bomba-relogio, pois se' constitui em um gigantesco quantitativo populacional qne sofre um agressivo processo de difusao do discurso oficial da impunida­de, como mecanismo de interiorizayao de um panico coletivo, pa­nico este que realmente encontra repercussao na sensayao de aban­dono que a conflituosidade e a desigualdade sociais prodnzem, sem mecanismos formais de minorayao da litigiosidade, tudo alimenta­do pelos proprios difusores do discurso oficial.

Muito lucram os controladores do processo com essa bomba-relogio, pois muito se consome para tentar obter uma sensa­yao de felicidade, para se sentir unico, apesar das agruras diarias da vida,

A problematica da interiorizayao do discurso da impuni­dade, que acaba fortalecido pelas referencias que encontra na infe­licidade-16gica da sociedade consumista, e que se abre uma fran­quia para a retirada de direitos e garantias fundamentais do cidac

dao, para uma ampla' quebra do conjunto de proteyoes contra 0 po-.. der punitivo. 0 Estado punitivo pode agigantar-se,desenhando-se 0

quadro do controle absoluto sobre 0 ser e a total objetivizayao das pessoas em prol dos interesses da metropole e das oligarqulas regionais.

VII

o caso brasileiro fomece um interessante e desesperador quadro exemplificativo do agigantamento que 0 poder punitivo vem assumindo na America Latina, controlado pelas agencias poli­ciais e responsaveis pela acusayao criminal, com a manipulayao continua dos meios de comunicayao de massa e 0 aval permanente das metropoles.

Uma analise do processo legislativo latino-americano em geral e brasileiro em especial, como campo de exemplo, nos anos posteriores a abeltura democratica da decada de 1980, faz verificar que apos um inicialmomento de legislayoes liberalizantes e amp li­adoras de garantias ao cidadao, impulsionadas pelos proprios dis­cursos de combate aos regimes ditatoriais militares ate entao exis­tentes, seguiu-se um processo continuo de intervenyao punitiva e invasao sobre a esfera privada das pessoas, gerando uma maquina

, ,de controle fisico e psi qui co dos sujeitoS.

Os discursos de "re" -educayao, "re" -socializayao e "re"­"inseryao sao funcionalmente utilizados para justificar tudo, em

especial as legislayoes brutais de cerceamento da liberdade (con-o " 0 __ fisico) e transfonnayao da personalidade (controle psiquico)

de detemlinados grupos seletivamente criminalizados na sociedade.

o discurso da impunidade tem feito surgir proficuo debate tomo do tema da criminalidade organizada, que vem sendo

apontada, pelos veiculos de comunicayao de massa e tambem por

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54 Adel EI Tasse

muitos especialistas, como a principal responsavel pelo quadro de panico que tomou conta da sociedade.

A verdade e que a simples referencia a criminalidade or­ganizada merece reflexao importante, pois 0 que se faz e criar um conceito extremamente amplo e de abstrayao total que pennite, em. casos concretos, englobar as mais diferentes condutas em nm cam­po legislativo mais rigoroso, na medida em que sao ofertadas nor­mas especificas mais severas para tratar de tal hipotese incom­preensivel e sem definiyao juridica possivel, pois 0 objetivo nao e 0

de criar um conceito que atenda ideias como as extemadas nos princfpios da legalidade e da maxima taxatividade, mas que possi­bilite inserir di ferentes hipoteses, sem qualquer relayao umas com as outras, na mesma conceituayao.

o que se criminaliza, com esta estrutura e com extremada agressividade, nao e uma conduta, pois impossivel preencher de fomla objetivao conceito de crime organizado, mas sim, pessoas.

A seletividade do sistema opera com perversao plena, pois sera sempre considerada criminalidade organizada as ayoes de de­terminados grupos sociais nao pertencentes as elites, de maneira que a estes se habilite formalmente, ainda que de maneira ilegitima, a legislayao de terror propria para tratar da: criminalidade organiza" da e, quantfo ha uma disfunyao, em que integrantes da elite possam ser enquadrados, rapidamente surgem contrateses tao ficciosas quanta a tese da criminalidade organizada para retirar-lhes qualquer responsabilizayao.

Tenha-se claro que um integrante das oligarquias regionais somente e punido na hipotese de nao mais ser aceito, por passar a estar, em razao de interesses das mesmas, em conflito com estas, como, por exemplo, na hipotese de apropriador dos bens coletivos que.nao os divide com a elite ou por haver uma pressao muito forte da coletividade, que faz com que, em caso delTadeiro, puna-se, de

o que e a Impunidade 55

maneira muito mais leve que 0 geral da populayl'io, alguem da elite e, inobstante a puniyl'io mais branda, explora-se de fonna sensacio­nalista a hipotese, no discurso mantenedor do status, com 0 argu­mento que este ou aquele integrante de camada abastada da socie­dade foi sancionado, quando, em verdade, 0 que houve foi a mera

. retirada funcional de apoio desta ao sujeito punido.

Nao se po de ignorar, ademais, que a estrutura de poder apresenta tambem uma contradiyao interna, que a infesta e leva, em situayoes extremas, ao rompimento dos el()s que a sustentam.

Uma hipotese em que se manifesta a contradiyao intema da estrutura de poder e a das disputas peJo monopolio imediato do poder nas sociedades, em que diferentes agencias executivas po­dem se contrapor e produzir uma verdadeira cayada por uns aos integrantes das outras.

Esse processo decorre da propria disputa de hegemonia pelo poder, em que as oligarquias interessadas em exerce-Io passam . a se atingir mutuamente, gerando uma demonstrayao publica de puniyao a alguns dos seus membros, mas, atenyao, nao porque a estrutura de poder esteja funcionando adequadamente e de maneira . imparcial, mas, porque ha uma contradiyao intema manifestando extemamente os choques em andamento.

Claro que nos momentos de transiyao da hegemonia do poder entre oligarquias regionais, as metropoles investem nos dis-­cursos de novos grupos, onde seu interesse no momenta encontra­se maior, desabilitando quem ate entao exercia controle e, nest,;:

.. choque, muitas vezes, produz uma "guerra" nao declarada entre a: . velha estrutura oligarquica e a nova.

Voltando a questao especffica do crime or~anizado~d~v~:'. ._"'" se ter clara a ideia de que, quando, nos paises lat1110-a111encano~, . pensa-se em crime organizado, 0 que existe de fato eumpr0i¥n<l()- .

56 AdelEITasse

empenho criminalizador e repressor, ampliando 0 poder punitivo do Estado e diminuindo os direitos e garantias fundamentais.

Assim surgiu, fruto do terror que se implantou na socieda­de, uma continua exigencia de abordagem juridica sempre nova para a problematica da criminalidade organizada, qne, repita-se, nada mais e, sob 0 ponto de vista juridico, que um conceito abstrato e impreciso, que permite as elites intervir de forma brutal em pes­soas que nao estao catalogadas como membros seus, produzindo, ainda, um ematanhado legislativo dentro do fenomeno da ediyao hipetirofiada de leis penais experimentado pela sociedade modema, funcionalmente redigidas de maneira a penllitir que sejam objeto do jogo do poder.

Dessa forma, no plano legislativo, 0 discurso da impuni­dade produz, entre outros efeitos, 0 criar da abstrayao da ideia de criminalidade organizada e a esta se aborda com todo um conjunto nonllativo constituido tanto por leis de direito material quanta de direito processual, sempre produtoras da diminuiyao das garantias.

As afirmayoes acima sao empiricamente demonstradas quando se constatao esforyo dos ultimos vinte anos do setor niais conservador da doutrina e da jurisprudencia penal para conceituar crime organizado, apresentando os mais diferentes criterios e ja­mais, em qualquer parte do mundo, ·conseguindo chegar a algum lugar.

Nao se chega a lugar algum porque este e um esforyo im­possivel, pois, a bem da verdade, deve-se afinllar que nao lUI uma unica pessoa que tenha a menor ideia do que se quer dizer com a expressao crime organizado. Todo doutrinarismo em torno da ma­teria nada mais e que uma cOliina de. fumaya para a realidade de que se temmanejado com urn conceito juridico que nenhum advo­gado, promotor ou jniz sabe 0 que quer dizer e mais, 0 que e pior, nao tern a menor ideia do que poderia significar.

o qUE> e a Impunidade 57

Assim, cada U111 faz a sua interpretayao, sempre atingindo o objetivo seletivo do sistema, pois jamais quem atua na estrutura do poder ve alguem da sua classe social ou nivel como participante do crime organizado, a lei volta-se sempre, em seu rigor, para 0 diferente.

o legislador latino-americano tem, sob 0 rotulo de ataque a esta abstrayao seletiva nominada criminalidade organizada, ape­nas editado reiteradamente legislayao sacrificadora de- direitos- e .­garantias fundamentais.

Ha um rebaixamento daquele que delinqiie da sua condi-9ao humana, pois nao sao utilizadas penas proporcionais quando se fala de criminalidade organizada, assim como, nesta hipotese, abandonam-se os mais singelos princfpios garantistas.

A condiyao hnmana do sujeito, pOltanto, condenado como autor de crime organizado, e ignorada e e como se as regras do Estado Democratico de Direito nao lhes fossem aplicaveis, pois, mais on menos dentro de uma logica nazista em que se era ariano ou nao se era humano, agora nao se comete crime organ i­zado ou nao se e humano; porem, como ja dito, ninguem sabe 0 -que e crime organizado e quem dispoe do poder manipula 0 con­ceito COill0 quer para atendel-...aos objetivos proprios de desagiie dos seus preconceitos .. -

Ao mesmo tempo em que 0 discurso da impunidade, gera­dor de panico, e sustentado e produz, como um dos seus efeitos,a .

. n09ao de que existe urn indefinivel crime organizado que deve ser • combatido com a ampliayao do poder punitivo do Estado e a dimi­

nuiyao das garantias, nada e feito para alterar as estruturas sociais, econ6micas e de solidariedade da sociedade, de maneira que a sllll conflituosidade persiste, com mais pessoas seduzidas pelo critTlee; .. se um destes e integrante das oligarquias, salvo se for disfuncion~l .

Oft mesma, elaboram-se os discursos de perdao ou cai na-cifhi negra

58 Adel EI Tasse

do sistema; em que a corrupyao e bastante util para apagar os ras­tros do fato, por outro lado, caso seja 0 autor do delito um inte­grante das camadas historicamente selecionadas, e punido sem qualquer direito.

Assim, 0 equilibrio social vai se mantendo. Quem tem 0 controle do poder utiliza-o para ter sempre mais poder e riqueza, se alguem de outro meio tenta tirar-Ihe algo, decai da condiyao huma­na, cataloga-se a sua conduta como criminalidade organizada, e a llUnic;:iioe a il1ais brutal que se consegue praticar, pm;a nao chamar a atenyao de alguns poucos e fragilizados, quando nao ridiculariza­dos, organismos de proteyao dos direitos human os.

Na America Latina, tendo como justificativa 0 enfrenta­mento da impunidade, desde 0 final da decada de 1980 e inicio da de 1990, exatamente quando comeya a ganhar COIPO 0 discurso antiterrorista no resto do mundo, tem produyao umadesenfreada legislayao cerceadora dos direitos fundamentais, valendo-se, em muito, da abstrayao da ideia de crime organizado.

Apenas como representativo do desenvolvimento historico do sistema positivo ampliador do poder punitivo e da habilitayao das agencias policiais e de acusayao a ampliayao de seu poderio sobre a vida das pessoas, sem esgotar 0 estoque de nonnas em tal linha editadas, vale estabelecer alguns mOlnentos ~arcantes no Brasil, que correspondem a semelhantes processos legislativos na America Latina como um todo.

Na linha de ampliayao do poder punitivo foi editada, no . Brasil, a Lei 7.960/89, que criou a chamada prisao temporiria.

Com patente e total desrespeito aos principios garantistas, valendo-se do vazio argumento do clima de panico nas cidades, estabeleceu no sistema juridico, a privayao da Iiberdade das pessoas processadas, com a utilizayao de requisitos absolutamente subjeti­vos e desprovidos de sustentaculo logico algum, como, por exem-

o que e a Impunidade 59

plo, a regra do inc. I do art. 10 da Lei em questao, que simples­mente refere: "quando imprescindivel para as investigar;oes do inquerito policial".

Embora a evidencia de que nao hi possibilidade alguma de persistir a Lei 7.960/89 ou outras a ela semelhantes em um Esta­do cuja Constituiyao estabe\ece ser democratico, e 0 aprisiona­mento processual sem requisitos um dos mecanismos mais utiliza­dos na America Latina na atualidade, como f0TI11a de controle das classes se\ecicmadas peio sistema, conforme ji hii muitos anos tem insistentemente denunciado Zaffaroni.

A ausencia de requisitos para a decretayao da prisao tem­poriiria e tao gritante que na priitica policial brasileira ji vigora uma regra, com feiyao tipicamente autoritaria, no senti do de que, se nao existem pressupostos para a decretayao da prisao preventiva, com mais requisitos que a prisao temporiria, mas de emprego tambem absolutamente abusivo, pede-se, desde logo, a decretas;ao da tem- . poraria, pois nao hii a exigencia de maiores requisitos a impedir que seja cerceada a liberdade da pessoa que se encontra ainda com es­tado constitucional de inocente e conh'a quem existem apenas, nos

. termos da lei, "fundadas razoes, de acordo com qualquer prova

. admitida pela legislar;iio penal, de autoria au participar;iio ", no ilicito investigado.

A amplitude legislativa que se ofertou foi tao grande que . os detentores do poder apaixonara111-sepela prisao temporaria e a

"cada nova alterayao legislativa, a111plia111 os prazos de cabimento da. . mesma, claro, para as indefinidas hipoteses de crime organizado, permanecendo a douh'ina e a jurisprudencia atonitas e refens do seu conteudo, notoriamente pela formayao neokantiana que dispoem,

impede a visualizayao das coisas um pouco mais alcSm das ar­madilhas do direito positivo.

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60 Adel EI Tasse

Em 25.07.1990 editou-se, no Brasil, a Lei 8.072, chamada de Lei dos Crimes Hediondos, destinada a selecionar determinadas condutas e a elas ofertar tratamento juridico mais rigoroso; em ou­tras palavras, ampliar 0 poder punitivo do Estado.

Essa legislas;ao merece destaque na presente al1iilise, na medida em que v8xias das hip6teses que receberam a adjetivas;ao de crimes hediondos inserem-se justamentenos ilicitos mais comu­mente praticados pelos sujeitos historicamente selecionados pelo sistema, como sao exemplos os pequenos traficantes, eis que os gran des sao sempre impunes.

Na Lei dos Crimes Hediondos ha vfcios insuperaveis; 0 primeiro deles no que tange a teoria da lesividade ao bern juridico e a proporcionalidade que deve a pena, e 0 pr6prio rigor processual, guardar em relas;ao ao bemjuridico protegido pela norum.

Ocorre que a Lei 8.072/90 ofertou tratamento juridico mais rigoroso a determinadas infras;oes sem ter em conta as carac­teristicas do bern juridico pelas mesmas tutelado e da lesao efeti­vamente por este sofrido na conduta do agente, gerando desorgani­zas;ao no sistema penal com a oferta de maior rigorismo para infra­s;oes que nao necessariamente atingem os bens juridicos mais rele­vantes.

Ademais, o§ ,2° do art. 2° da Lei dos Crimes Hediondos estabelece regra absolutamente inconstitucional, aviitantemente contraria aos principios e garantias individuais, ao detenninar que "em caso de sentenr;a condenat6ria, a juiz decidira fundamenta­damente se 0 niu podera apelar em liberdade".

Criou-se uma inversao a regra deCotTente do estado cons­titucional de inocilncia, em que a privas;ao da liberdade do acusado antes da sentens;a penal condenat6ria transitada em julgado e medi­da excepcional, devendo ser adequadamente fundamentada, de­monstrando sua necessidade processual.

o que e a Impunidade 61

Por celto, 0 mencionado § 2° do art. 2° da Lei dos Crimes Hediondos confronta C0111 0 texto constitucional, pOitanto, e letra marta, parem, demonstra a vontade legislativa de uma amplias;ao do poder punitivo ese, em nm detemlinado momento, embalados pelo discurso da impunidade, os operadores do direito se descui­dam, ja esta uma nova e abusiva limitas;ao as garantias ulIldamen­tais enraizada.

o § 3° do art. 2° da legislas;ao em comento aumenta opra­zo da, por si s6, absurd a prisao temporaria de 05 (cinco) para 30 (t1;nta) dias, estabelecendo um mais aprofundado ataque ao Estado Democnltico de Direito, na medida em que, se a lei que trata da prisao temporaria par 05 (cinco) dias ja e uma 1110nstillosidade, 0 que se dira da mesma situas;ao prorrogada por 30 (trinta) dias?

o que se tem na Lei dos Crimes Hediondos e ciaramente 0 panico coletivo gerado pelo discurso da impunidade, admitindo escaramus;as legislativas para a intervehs;ao ilimitada do Estado.

Argumentando-se com a necessidade de crias;ao da uma legislas;ao especifica para 0 combate ao crime organizado, foi edi­tada, no Brasil, a Lei'9 .034/95 (Lei de Combate ao Crime Organi­zado).

A Lei 9.034, de 03.05.1995, outra coisa nao fez que ca_ racterizar a impossibilidade de definir-se crime organizado, pois regula situas;oes diversas relativas a este, sem uma lmica linha ao menos tentando conceitua-Io.

Assim, ja se constata na redas;ao do art. lOa ausencia"de descris;ao legal do que deve se entender por organizas;ao ou asso_ cias;ao criminosa, numa omissao ate hoje nao corrigida, pela razao. evidente de que nao ha como corrigi-Ia, alem de que, nemcoJ?o

; desenvolver uma real tentativa neste senti do, pois a abstras;ao COll--.

ceitual e muito util aos exercentes do poder.

62 Adel EI Tasse

o inc. III" do art. 2° da Lei de Combate ao Crime Organi­zado pennite, na investiga9ao dos crimes de que trata, 0 acesso a dados, hipotese que pode confrontar com a regra do art. 5°, inc. XII, da Constitui9ao Federal do Brasil.

Ocorre que a Lei Maior brasileira so admite a viola9ao das liga90es telefOnicas, apresentando veda9ao absoluta no que diz respeito a comunica9ao de dados.

'.Jssoocorre pOl·quea Carta Politica do Brasil estabeleceu uma {mica exce9ao, no art. 5°, inc. XII, a regra da inviolabilidade das comunica90es, qual seja, a comunica9ao telefOnica, evidente­mente precedida de ordem judicial fundamentada nas hipoteses de efetiva necessidade.

Assim, fica impedido 0 acesso as transmissoes de dados, de sorte que a primeira parte do inc. III do art. 2° da Lei de Com­bate ao Crime Organizado e de aplica9ao limitada aos dados fisi­camente armazenados, mas jamais, as transmissoes de dados cujo aces so e absolutamente vedado; isto e bastante evidente, pOl·em, ja de outra maneira solidificou-se a interpreta9ao jurisprudencial, com os mais variados e frageis argumentos no sentido de permitir toda invasffo preceituada pela lei, anipliando 0 poder punitivo, com sustentaculo de fun do no discurso da deten9ao da impunida­de.

Absurdo ainda maior contra os principios fundamentais praticou 0 capitulo II da Lei 9.034/95, ao instituir expressamente a figura repugnante de um juiz inquisidor.

o capitulo II da Lei de Combate ao Crime Organizado es­tabeleceu a possibilidade de 0 juiz diretamente produzir a prova e mais, consta no § 3° do art. 3° que "0 auto de diligencia sera con­servado fora dos autos do processo, em fugar seguro, sem inter­velU;iio de cartorio ou servidor, somente podendo a ele ter acesso, na presenr;a do juiz (. .)", determinando que, aJem de produzir a

o quee a Impunidade 63

prova, 0 juiz seja 0 seu guardiao, a ela sequer podendo 0 cartorario ter acesso. Realmente nao poderia ter sido mais bem-sucedido 0 legislador na reafirma9ao do que efetivamente se quer com todo 0

discurso da impunidade, 0 controle total pelo Estado das pessoas, com 0 seu representante, 0 juiz, produzindo as provas contra elas, guardando-as e valorando-as como queira.

Desejou mais 0 Poder com a edi9ao da Lei 9.034/95, afrontosa ao Estado Democratico de Direito, atingiu a dignidade 'humana,aoestabeiecer iio a'1+. SOda referidli nOlmatiza9ao que "a identifica9ao climinal de pessoas envolvidas com a9ao praticada por organiza90es criminosas sera tealizada independentemente da identifica9ao civil" eriou, assim, um fator para 0 aviltamento da pessoa submetida a a9ao estatal nas hipoteses em que sejam, pelos agentes executivos, consideradas como de criminalidade organiza­da e uma nova abertura para argumenta90es do tipo positivista­criminologica, ante a manifesta seletividade do sistema, em que os punidos tem sempre caracteristicas proximas, qual seja, a de pesso­as que nao se confundem com as oligarquias.

Outra barbarie juridica foi desenvolvida no art. 7° da Lei de Combate ao Crime Organizado, pois, em conftonto com 0 prin­cipio constitucional do estado de inocencia do acusado, fixou que "n50 sera concedida lieerdade provisoria, com ou sem fianr;a, aos agentes que tenliam tido intensa e efetiva participar;iio na organi­zar;iio criminosa", salientando-se que tudo isto pregado sem que se tenha a l11enor id6ia do que deve se entender por organiza9ao cri­I11l110sa.

A regra que veda a liberdade provisoria na Lei de COI11-bate ao Crime Organizado encontra-se, des sa fonna, el11 absoluto confronto com 0 principio garantista, no Brasil expressamente pre­visto no texto constituciol1al, do estado de inocencia, razao por que a exemplo das anteriores regras e il1aplicavel 0 comando do art. 7° da Lei 9.034/95.

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64 Adel EI Tasse

o que se tem na Lei 9.034, de 03.05.1995, e que nova­mente 0 desejo punitivo gera um continuo reclUdescimento legisla­tivo, sob 0 argumento de que e necessario para deter a impunidade e 0 panico coletivo gerado pela interioriza<;ao do discurso oficial, encontra apoio nas proprias pessoas que serao controladas.

Outro aspecto legislativo de interessante analise e a ten­dencia de, nos paises em que 0 discurso quanta ao tenorismo se­duz, estabelecer criterios de dela<;ao -premiada para os envolvidos neste, enquanto ha America Latina tambem ha espa<;o as regras de dela<;ao premiada, pOl'em 0 enfoque e a impunidade que deve ser detida.

o terna da dela<;ao prerniada, como tendencia legislativa geral, insere-se com perfei<;ao na questao da amplia<;ao do poder punitivo pela gera<;ao de panico, pelo ten'orismo ou pel a impunida­de, pois, se, de um lado, ha a ideia de trazer 0 individuo acusado de um crime a atuar como auxiliar da justi<;a na puni<;ao dos co­autores, por ontro, ha um ataque _ aos principios fundamentais sobre os quais estlUtnra-se 0 Estado Democratico de Direito.

Utilizando, novarnente a\egisla<;ao brasileira atnal como parametro, guiada pelo discurso politico do crime, ha a produ<;ao de um cenario penal proprio de ineficieneia e simbolismo. Ao largo dos anos foi produzida umaavilanche legislativa tratando as mais diferentes _ e mesmo banais hip6teses como delitnosas, avan<;ando 0

poder punitivo do Estado desmesuradamente sobre as liberdades individuais.

Igualmente as respostas penais sofreram agravamento, como acirna demonstrado com a categoriza<;ao de alguns crimes como hediondos.

Embora tal processo nao tenha passado de todo desperce­bido pel a doutrina penal brasileira, e verdadeiro afirmar que ocor­reu um certo afastamento de alguns setores do Poder iudiciario da

o que e a Impunidade 65

prega<;ao dogmatic a do Direito Penal, calcado nas estlUtnras logi­co-reais de Welzel e nos aspectos garantistas que esta traz em seu bojo, optando-se por uma racionaliza<;ao utilitario-funcionalista do Direito Penal.

Assim, entre 0 respeito a no<;ao de conduta da dogmatica penal, opta-se pelo utilitarismo da puni<;ao de pessoas juridicas; entre 0 respeito ao principio da culpabilidade, opta-se pelapuni<;ao em razaoda-simpleseondiyaodeadministrador-de-empresas; en- -fim, opta-se sempre pela puni<;ao, sem preocupa<;ao maior com 0

aspecto dogmatico, principiologico ou garantista que seja atacado.

Efetivamente, a promessa de um alargamento punitivo conta com 0 apoio popular, nao ha como negar tal dado verificavel no dia-a-dia das rela<;6es sociais, assim como', com 0 apoio popular gozava a implementa<;ao do III Reich e a matan<;a de deficientes fisicos pelo regime nazista. Igualmente, apoio popular detinham os Tribunais do Santo Oficio.

A historia do homem encontra, nos auges da violencia e do ataque ao ser humano em sua essencia, os momentos de maior apoio popular a um detenninado governo ou campo de exercicio do poder. E inegavel que as pessoas em geral encontram uma falsa _ sensa<;ao de seguran<;a nos espetaculos de violencia e agressao.

A verdade e que a coletividade tem dificuldade em en­frentar os problemas que a afligem pelo combate efetivo as suas causas, preferindo discursos sensacionais. E que discurso po-de ser­-mais sensacional que aquele que prega superpuni<;oes? Qne discur~

- so pode ser mais sensacional que aqueleque apregoa a agressao aos taxados como inimigos da sociedade?

Assim surgem leis que nada tem a ver com as estrutnra_s ctemocniticas, forjadas pelo sofrirnento de milhares de seres hUJ,llll- _'

especiais, que entregarani suas vidas para salvaro homenld() mito da necessidade e eficacia da abusiva interven<;ao estatal.

66 Adel EI Tasse

A ·delayao premiada insere-se com perfeiyao na promessa de maior pnniyao em troca da renuncia, pela sociedade, de parte de seus direitos. Nao sem razao, nos ultimos anos, em que houve 0

agigantar do discurso da impunidade, ocon-eu um incremento em numero expressivo de legislayoes.

o instituto da delayao premiada, no Brasil, encontra-se previsto em viirios dispositivos legais, como, por exemplo, 0 § 4° do art. 159 do Codigo Penal, com a redayao dada pel a Lei

···-ii.269/<)6;a 'Lei7 .492/86, em seu art. 25, § 2°; a Lei 8:072/90, no ...

art. 8°, pariigrafo unico; a Lei 8.137/90, em seu art. 16, pariigrafo unico; a Lei 9.034/95, no art. 6°; a Lei 9.613/98, no art. 1°, § 5°; a Lei 9.807/99, pelo disposto no art. 14; a Lei 10.409/02, na fonna do

art. 32, § 2°.

A defesa do mecanismo utilitiirio da delayao premiada tem produzido argumentos representativos de absurdo tao expres­sivo que somente podem se pautar pela mii-f6 daqueles que sa­bem as violencias que praticam, mas tentam justificii-Ias sob iiu­rea angelical, como 0 demonio, que na tradiyao sempre faz ques­tao de lembrar que nada mais 6 que um anjo, ainda que caido,

mas um anjo.

A delayao premiada nao se constitui em um recurso mo­demo do processo penal, assim como nao se apresenta como reper­cussao de nenhum avanyo especial na persecuyao criminaL Em verdade, a delayao premiada sempre representou, juntamente com a priitica da tortura, uma das fen-amentas fundamentais dos process os arbitriirios; em especial os medievos, de indole inquisitoriaL

Para que se visualize com c1areza, 6 de observar que a primeira previsao de delayao premiada no ten-itorio brasileiro nao decon-eu de nenhuma legislayao ultramodema e avanyadissima, como muitas vezes se tenta fazer crer, mas das vetustas Ordenayoes do Rei. 0 C6digo Filipino, no Titulo CXVI, estabelecia expressa-

o que e a Impunidade 67

mente as regras de "como se perdoarii aos malfeitores, que derem outros a prisao".

Efetivamente 0 procedimento de indole inquisitorial, com apego as id6ias fundamentais desenvolvidas pelo Tribnnal do Santo Oficio, tem na delayao praticada pelo acusado um dos elementos essenciais de prova, al6m, evidentemente, de constituir medida investigatoria fundamentaL

.O.'(mtoritarismo na investigayao sempre teve em alta conta· o exercicio de pressao sobre 0 individuo acusado, para que este promova a entrega, a autoridade responsiivel pel a puniyao, de ou­tras pessoas que entende serem envolvidas em atividades crimino­sas.

o makartismo americana tamb6m fez uso pennanente da delayao premiada. No momenta em que 0 pensamento arbitnirio, calcado na busca de puniyoes as pessoas pelas suas ideias mais sociais, ganhou espayo nos Estados Unidos, 0 m6todo fundamental de investigayao foi a delayao, com 0 perdao oferecido a quem de­nunciasse outros, criando uma espiral de perseguiyoes e mentiras, em que pessoas afirmavam atividades "perigosas" como tendo sido praticadas por cidadaos que sequer conheciam, como forma de Ji­

vrar-se de puniyoes.

Assim, nada mais se tem que a nova encenayao deuma velha peya, carcomida pelo tempo e rejeitada pelo seu historico de

. abusos e opressoes.

Sob 0 enfoque 6tico, a delayao nada mais e que a traiyao, a . falta de lealdade. E certo que em circunstancia alguma pode ser

considerado 0 ato de traiyao algo positivo, prestigiado, objeto de aplausos.

o emprego do instituto da delayao premiada traz, na estei­rade uma visao utilitarista de justiya, em que os fins justificam os

./

68 Adel EI Tasse

meios, 0 abandono relativamente tranqiiilo de balTeiras eticas im­portantes, chegando mesmo a soar estranho que se afinne 0 grava­me 6tico-moral que a ad09ao de medidas de apoio it dela9ao provo­cam.

Com efeito, mesmo nao estando a atual estrutura judicial circunscrevendo seu nivel de analise totalmente apegada aos con­ceitos 6tico e morais, a reflexao cientifica da dela9ao premiada nao podeignorar0 sentimento dedesrespeito a tais valores que produz, gerando a ideia de que a trai9ao e a deslealdade sao hipoteses posi­tivas e que devem ser premiadas.

Nao e, a proposito, outra a realidade experimentada pelo instrumental da dela9ao premiada. 0 que ocon·e e um premio ofer­tado pelo Estado ao agente que, al6m de criminoso, e traidor e des­leal.

o tao nefasto espirito patrimonialista, denunciado por Weber, que produz, entre outros reflexos, 0 desejo desmedido de sempre obter vantagens pessoais sem nenhuma barreira etica, mos­tra-se em toda a sua complei9ao no instrumental da dela9ao pre­miada.

Ao individuo criminalmente acusado acena-se com. a me­Ihora das condi90es penais em troca da sua colabora9ao. Ocorre que a colabora¢ao desejada nao e como a colabora9ao de Rei Ar­thur ao povo de Camelot, mas um gesto real de trai9ao, como 0 de Lancelote Guinevere.

o desenvolvimento logico-regular faz vel;ficar que a socie-. dade assiste com normalidade ao Estado afirmar que a trai9ao e algo positivo,. bom, digno de premio. 0 torpor, que a explora9ao sensacionalista dos problemas da delinqiiencia produ:z:, gera efeitos ainda mais dnisticos, pois as pessoas verdadeiramente aplaudem a entrega do premio ao traidor, como aplaudem 0 capitao do seu time levan tar a ta9a de campeao.

o quee a Impunidade 69

o comprometimento de val ores relevantes para futuras ge­ra90es e evidente. Os paises latino-americanos, em regra, tem ne­cessidade de combate severo a alguns males que Ihes sao estrutu­rantes, como 0 que se convencionou chamar no Brasil de "Lei de Gerson", fOljadora de um caldo de cultura nefasto, desenvolvimen­tista da corrup9ao e da ausencia de f011na9ao de uma n09ao efetiva de Na9ao, baseada na busca de interesses comuns de todos os cida­daos.

Pouco se tem acompanhado em tennos de desenvolvi­mento de a90es s6rias e reais que visem atacar esses males, ao con­tnirio, os mesmos sao refor9ados com 0 estabelecimento nOl1nativo de que a deslealdade, desde que para levar vantagem, 6 boa, 6 pre­miiivel, goza de prestigio junto ao Estado e a seus representantes.

As pessoas das novas gera90es constroem suas personal i­dades com a visao de que a fatidica "Lei de Gerson" so lei nao 6, como incentivada pelo Estado e aplaudida pela sociedade e, assim, a obten9ao da vantagem, nas mais diferentes situa90es, traindo ou produzindo prejuizos a terceiros, estii justificada, pois 0 que im­porta 6 conseguir mdhoras pessoais ..

Embora a moral e 0 direito nao se confundam, 6 correto .-afinnar que; quando se constroi 0 sistema juridico, nao pode este servir ao desenvolvimento de. uma moral contriiria aos postulados 6ticos, que permitem a prosperi dade de toda a comunidade.

Com a dela9ao premiada, 0 otdenamento juridico traz ao ceniirio 0 apoio ao expediente anti6tico, em defesa do desenvolvi­mento da solU9ao moralmente comprometida para a resolu9ao dos problemas pessoais do acusado e de uma falsa perspectiva de faci­lita9ao da tarefa de investiga9ao criminal.

Nao 6 realmente aceitiivel que, pressionada pel a publici­dade do crime, hem desenvolvida pelos meios de comunica9ao de massa, a popu\a9ao comum tenha fOljado valor moral distorcido e

I I I

I ! ,

70 Adel EI Tasse

experimente 0 desenvolvimento da etica da malandragem e da deslealdade.

A delayao premiada gera, ademais, seno comprometi­mento Ii garantia de defesa do acusado, pois este se posiciona, no ambito da cooperayao com 0 Poder Judiciiirio, sem possibilidade, em conseqiiencia, de desenvolver efetivo trabalho de defesa.

A promessa de que a colaborayao com 0 Judiciiirio possa conduzi-lo Ii obtenyao de beneficios penais, faz com que.oaPllsado._ posicione-se em situayao contraditoria de acusador de si mesmo, ficando impedida nao so a sua. defesa pessoal, mas ate mesmo a defesa tecnica, pois os interesses de colaborador chocam-se com as ayoes proprias de alguem que se defende e busca a absolviyao em um processo criminal.

Nao hii melhor imagem da delayao premiada que os tao cmeis, e a sua epoca tao bem vistos, atos penitenciais do Santo Ofi­cio, em que 0 individuo confessava a sua culpa, antoflagelava-se e com isso sonhava em obter 0 reino dos ceus. Mudou pouco; antes as chaves das portas do paraiso estavam nas maos do padre, agora, nas do juiz.

A ampla defesa, constitucionalmente assegurada, repre­sellta uma das fun<j;lmentais colunas de sustentayao da estmtura democriitica de processo. Todos os momentos em que a historia humana acompanbou experiencias processuais autoritarias, 0 ata­que mais evidente se deu ao exercicio da defesa do individuo acu­sado, completamente retirado, ou limitado a mera garantia formal.

o processo em que estii presente 0 instrumental da delayao premiada faz transparecer mera formalidade defensiva, sem qual­quer possibilidade de que a mesma seja efetiva. A necessidade de que 0 agente, para obter os favores do julgador, colabore efetiva­mente, revelando a sua participayao, a palticipayao de terceiros, os

o que e a Impunidade 71

detalhes da ayao criminosa etc., estmtura a ampla defesa como mera promessa va do texto politico.

o advogado, quando 0 acusado adere ao premio pela trai­yao, que e pelo Estado oferecido, e 0 espantalho na plantayao de milho, pois qnem de longe olha pensa que defesa existe, mas os olhares que se aproximam veem que nao passa de um boneco.

Em senti do geral, realmente se tem trabalhado na gera­yaO deum preconceitopara com a defesae em Telayaoa quem a exercita no processo criminal,· quando, em verda de, a relevancia que se confere ao campo da efetiva defesa do acusado no proces­so penal e de magnitude impar para a democracia, ante a certeza, consoli dada ao largo dos seculos de historia humana, de que so­mente 0 processo em que haja concreto trabalho defensive per­mite ao judiciario proferir uma decisao equilibrada sobre a causa em julgamento.

Uma preocupayao especial surge nos m0111entos de grande comoyao social, como 0 atualmente vivido na America Latina, com o imperio funcional do discurso da impunidade, pois ha uma ten­dencia a que as pessoas conduzam-se ao irracionalismo total e atuem tao qual avestniz escondendo-se atriis de aumentos desnecessarios da sanyao penal e do sacrificio de garantias e direitos fundamentais, para que os problemas efetivos da sociedade que levam a sua con­flituosidade e desigualdade nao sejam enfrentados.

Ocorre, pm'em, que a construyao de uma real civilizayao pass a necessariamente por enfrentar os momentos de maior clamor social, nas mais gravosas acusayoes, sem admitir 0 desrespeito aos direitos e garantias sobre os quais estrutura-se a Democracia.

Justamente a garantia da defesa efetiva e um dos campos em que a tendencia a hostilidade, nos momentos de irracionalidade social gerado pelo discurso -oficial de combate Ii impunidade, e maior.

72 Adel EI Tasse

A defesa deve ser sempre amp la, e nao meramente formal, b que abrange 0 direito a defesa tecnica real e tambem ao exercicio de autodefesa.

Expedientes muito utilizados na pnitica dos tribunais fe­rem, por exemplo, a ampla defesa e sao reiteradamente justificados com argumentos de ordem funcional, como a nomeac,;ao de defen­sor dativo pelo juiz ao acusado que possua outro de sua escolha,

. 'quando ocorrem impedimentos justificados ao comparecimento deste ao ato processual. Havendo eleic,;ao de patrono pelo acusado, nao pode 0 magistrado, em utilitarismo odioso, a pretexto de confe­rir celeridade, nom ear outro defensor para a pessoa se 0 que ela escolheu nao pode, por motivo justificado, comparecer ao ato pro­cessual.

A invocayao da celelidade, em tal exemplo, e a invocayaO as avessas do principio, pois ninguem dele se beneficia, na medida em que limitou-se a capacidade defensiva do acusado, a pretexto de solucionar 0 seu problema mais rapido. A verdade e que soluyoes como esta representam 0 abandonar do acusado a propria sorte, pessoas sao condenadas sem efetiva defesa para que 0 agenda­mento do cartorio judicial seja preservado. Sem duvida a infelici­dade de tal utilitaria soluyao e gritante.

A garantia defensiva e um principio fundamental em que se assenta a propria existencia das sociedades, nao ha, pOl·tanto, possibilidlide de convivio com decisoes condenatorias, mesmo nas mais gravosas acusayoes, construidas a partir de processos em que nao houve defesa real e efetiva desenvolvida em favor do acusa-do.

Ocorre que os desejos arbitrarios tem colocado 0 exercicio da defesa, nos paises latino-americanos, em situayao delicada, com o gerar de preconceitos variados com a figura do advogado e 0 as­sociar de sua imagem com a da pessoa que atua em favor da impu-

o que e a Impunidade 73

nidade e, pOitanto, que deve ser mal-vista e cerceada, quando a verdade e que cercear a defesa e essencial para a logica do poder, pois 0 advogado e um dos elementos que pode desmascarar 0 dis­curso oficial e retratar os dados da seletividade e da manipulayao ofertada pelo Estado.

Retomando a questao especifica da delac,;ao premiada, tem-se que, nao bastasse 0 ja dito, a mesma produz 0 vicio da exi-

. genciajudicial·ao·acusadoparaqueconfesse, colabore'e atue"em ... facilitayao das investigayoes criminais, sob pena de imposic,;ao de onus processuais.

Sao cada vez mais freqiientes os decretos prisionais ile­galmente baseados na desculpa de que "0 acusado nao quis colabo­rar".

Igualmente, afloram as medidas processuais hostis ao in­dividuo que faz uso do silencio ou que nao vira acusador de' si mesmo, em manifesto ataque ao principio do estado de inocencia.

A estrutura processual caminha a passos largos para 0 ca­otico desenho de um sistema em que as pessoas processadas nao resta altemativa a dizer 0 que 0 acusador quer ouvir, verdade ou nao, mas 0 que 0 acusador quer ouvir.

./

No sentido acima, reflitacse: a) a traiyao, para ficar bem aos olhos do acusador,e estimulada; b) 0 Estado-juiz oferece pre­mio a quem se auto-aclisa e sanciona quem decide se defender; c) 0 ".'

ataque constante que vem se desenvolvendo ao advogado 110 .exerc

cicio da defesa dos cidadaos acusados. . . ...•..• \'

A conclusao final do somatorio das verificayoes supi~'" destacadas e a mesma a que haviam chegado Torquemada~~'~(!~S " seguidores: "ninguem precisa de defosa, se 0 individucieinC?pentfP,.>j. Deus prova sua inocencia; se e culpado,e alo de indlgnidacif'alct.;.: . guem de!ende-lo".'}.; , "c:

74 Adel EI Tasse

Nab ba fuga. Delayao premiada e apenas um passo, para, dentro da logica utilitarista, afastar por completo a defesa e, entao, surgir tambem a tortura como meio valido de prova, os processos secretos (e observe-se que ja ha juizes praticando-os), pena de morte ... fogueira. Tudo velho com discurso de moderno.

Tambem vale refletir sobre a valorayao que as palavras do acusado assumem no processo, a partir do momento em que 0

mesmo adere ao programa de delayao premiada. Passam suas in­fonnayoese versoes a serenltidas como verdictesabsolutas,pois por ninguem contrapostas.

De um lado, a defesa do acusado, meramente fonnal, nada pode contradizer; de outro, a acusayao se satisfaz com os informes fornecidos, e 0 contraditorio, elemento tao precioso ao processo democratico, resta abandonado. Defesa e acusayao somam-se para condenar, para ratificar a dem'mcia. 0 magistrado simplesmente espera 0 momento opOliuno de condenar 0 acusado, na fmma em que defesa e acusayao, juntas, somaram esforyos, sem qualquer debate probatorio.

Ademais, a ausencia do contraditorio faz 0 processo penal recriar a figura medieval da "rainlm das provas", como prova in­contrastavel e geradora da certeza absoluta no espirito do julgador, no passado, a tortura, desta vez, a delayao premiada.

Bem pesando, nos crimes cometidos em concurso de agentes ou em quadrilha, feliz do que for capturado por primeiro, pois pode fornecer a versao que desejar sobre os fatos e esta sera a verdade absoluta, responsabilizando desafetos e protegendo os mais

proximos.

E real que nao e por ser 0 primeiro afalar ou porque nego­ciou com a acusayao a prestayao de auxilio, que 0 acusado efetiva­mente esclarecera os fatos tais quais eles ocorreram e apresentara

o que e a Impunidade 75

em juizo os nomes dos efetivos responsaveis pela infrayao penal, como tem desenvolvido 0 imaginario nas situayoes concretas.

A situayao e tao deploravel que comeyam a eclodir denun­cias da existencia de um novo tipo de quadrilha, a da delayao pre­miada, em que a pessoa presa negocia com os co-reus, mediante paga de altas somas, quais serao os delatados e quais serao os es­quecidos e 0 pior, com a conivencia de advogados, agentes do Mi­nisterio Publico e, ate mesmo, juizes.

Nao ha defesa. Ha afronta ao estado de inocencia por se criar obstaculos processuais aos acusados que nao colaboram. Ha 0

gerar de prova com 0 peso da certeza absoluta. Ha comprometi­mento do contraditorio. Ha manipulayao do processo por razoes economicas e absolutamente nada de positivo se produz, e mero sentimento de que esta sendo modeminho, surrealisticamente utili­zando recursos da Santa Inquisiyao.

Cabe verificar, ademais, que em varias das oportunidades em que as legislayoes tem admitido a utilizayao da delayao premia­da, fazem-no desenvolvendo uma promessa incerta quanta ao seu cumprimento.

Diversas hipoteses previstas de delayao premiada estabe­lecem-na como uma faculdade do juiz, que pode, ou nao, aplica-Ia ao caso concreto, com base em criterios puramente pessoais e sub­jetivos.

E de ver, nesse sentido, previsoes como as contidas nas le­gislayoes que tratam da delayao premiada nos moldes "0 juiz pode" e que tem sido interpretadas pela jurispmdencia como efetiva con- . cessao de faculdade ao magistrado. Igualmente, hi oportullidades em que a legislayao tem cOllcedido uma margem discricionaria

.. extremamellte amp la, varialldo desde 0 perdao ate sutis reduy5es·d~ pena.

76 AdelEITasse

Acrescendo a gravidade da problematica ja pontuada, e patente a verificayao de que nao ha garantia real ao acusado que aceita auxiliar as autoridades na persecuyao do fato delituoso, po­dendo ser 0 beneficio efetivamente obtido muito pequeno, quase nulo ou mesmo nenhum e tera 0 acusado deixado de se defender, portanto, sera condenado com "migalhas" de colaborayao do Esta­do, sem a possibilidade de exercer regular atividade defensiva.

. Omagistrado tem absoluta liberdade, decorrente da here· meneutica que se realiza sobre a normatividade existente, em mui­tas hipoteses, de optar se concede, ou nao, a delayao premiada, mesmo que 0 acusado tenha auxiliado na investigayao dos fatos. Em optando por concede-la, tem ainda uma margem absolutamente espetacular de discricionariedade, que permite aplicar beneficios efetivos ou meramente conceder melhoras insignificantes na condi­yaO da pessoa entao condenada.

Mesmo diante de leis em que ocorre uma diminuiyao na margem de liberdade do julgador, 0 mesmo pennanece com um campo absolutamente amplo de atuayao discricionaria, quanta ao ambito do beneficio a conceder.

Dessa forma, a negociayao realizada entre a policia ou 0 Ministerio Publico e 0 acusado, com promessas variadas para que este colabore com as investigayoes, nada mais representa que pro­messas, que poderao nao se cumprir, e, em geral, efetivamente nao tem se cumprido.

Aregra da experiencia judiciaria brasileira, por exemplo, tem sido a do descumprimento dos acordos de delayao premiada. Na medida em que 0 juiz sente-se livre, dentro do tratamento que e ofertado pela legislayao, para conceder, ou nao, beneficios e, se· concedidos, em parametros que the confirani efetividade ou mera­mente ilusionismo, nao se sente atrelado ao compromisso havido com 0 acusado.

o que e a Impunidade 77

Lamentavelmente, 0 mesmo Estado que ensina, pelos seus representantes, que trair e bom, ensina que menth' e melhor ainda.

Realmente, policiais, acusadores, enfim, qualquer agente publico, quando propoe beneficios pela delayao ao individuo in­vestigado, atuam tal qual atuavam os inquisidores medievais, que prometiam 0 reino dos ceus, mesmo sabedores que nao detinham 0 controle sobre quem la deveIia entrar ou nao .

A tell1eridade, portanto, do sistema de delayao premiada e, sob qualquer enfoque em que se analise 0 tema, totalmente gritante, nao se visualizando aspecto que faya haver sustentayao plausivel, em um Estado Democratico de Direito, para tal mecanismo abso­lutamente falacioso e que so selve a pennitir a sensayao falsa de que a impunidade ou 0 terrorismo, para os que acreditam na exis­tencia devastadora do mesmo, desta vez, vai acabar.

Ao fortalecer val ores morais distorcidos, prometendo be­neficios ao acusado que para obte-los atira ao caminho da condena­yaO 0 seu companheiro de ayao criminal, nao so se mascaram os reais problemas sociais, como ainda se os fortalecem, fazendo com que 0 impeIio da malandragem seja abs6luto.

o que se percebe, acresce observar, e que cada vez mais tenta-se, na esteira do discurso da impunidade, associar a imagem do autor da hipotese descrita na lei penale selecionado pelo siste­ma, com a de um doente, alguem diferente, fora do padrao de nor­malidade da sociedade, 0 que, por um lado, justifica sua objetiviza­yao, por outro, pem1ite que 0 poder punitivo cada vez avance mais com a politica do tratamento, cinicamente sustentada para a justific

cayao das medidas de seguranya.

A medida de seguranya, e de se ver, apresenta-se •. col110 uma conseqiiencia juridico-penal, a qual se afirma ser guiad(l.p~r:· criterios preventivos especiais, ou seja, afasta-se discursivatpep:~e

.de qualquer conteudo retributivo,para afirmar seu canitei:~~ tr~~

78 Adel EI Tasse

tamento, que 0 "Estado bem-intencionado" oferta ao "criminoso doente".

A medida de seguran<;a e afimlada, assim, como uma res­posta do sistema criminal ao cometimento do injusto penal, desti­tuida, porem, de qualquer carater retributivo, ou seja, nao objetiva punir 0 agente, tem atua<;ao exclusivamente preventivo-especial; em outras palavras, e a medida de seguran<;a destinada a tratar do autor dofato, recuperalldo~o para que nao pratique, n()vamente, fatos que representem hipoteses descritas pela lei penal, atuando, assim, em defesa da plena organiza<;ao da sociedade.

o maior nome da teoria preventivo-especial, com os con­tomos que Ihes sao atribuidos na atualidade, e 0 de Franz von Liszt, importante autor do positivismo criminologico alemao, que, no final do seculo XIX, desenvolveu os postulados fundamentais que conferem a atual estrutura desta concep<;ao, com base em todo 0

preconceito proprio, desde a funda<;ao por Lombroso da conente que abra<;ava, afirmando que a principal preocupa<;ao e deter a re­incidencia, fazendo a resposta penal incidir sobre a propria perso­nalidade do agente, para afasta-lo do impeto ao cometimento de novos delitos.

A teoria preventivo-especial elabora, em resumo, seu su­pOlte teorico na ideia fundamental de que 0 sistema penal deve ter como finalidade a recupera<;ao do agente, ou seja, 0 restabeleci~

mento das condi<;oes de convivio social da pessoa que praticou a hipotese tipica, inserindo 0 discurso justificador da medida de segu­ran<;a na preven<;ao especial, por se estruturar a visao tradicional

. em tomo da mesma, na ideia que representa a sua ado<;ao a inci­dencia de uma consequencia destituida de todo e qualquer conteudo rehibutivo, voltada exc\usivamente para a propria recupera<;ao do individuo que, inimputavel, cometeu um injusto penal, portanto, satisfazendo as finalidades essenciais do Estado, qual seja, a garan­tia do convivio harmonico entre a sua popula<;ao.

o que e a Impunidade 79

Orienta a medida de seguran<;a a concep<;ao de periculosi­dade, ou seja, havendo a a<;ao contraria it lei penal, ainda que prati­cada por individuo inimputavel, esta caracterizado 0 nivel cons is­tente de perigo a justificar a interven<;1io do Estado. A interven<;ao, na hipotese da medida de seguran<;a, teria a essencial fun<;ao de impedir novas manifesta<;oes deste grau de perigo.

A no<;1io inaugural da periculosidade ocorreu ainda na fase juridica da mesma escola positiva acima referida, por obra de Rafael Garofalo,iiltegranteda escola positlva ltaHana; que, com indisfar<;avel indole autoritaria, ofertou tratamento tecnico­juridico aos estudos da me sma, desenvolvendo a ideia da existen­cia de perigo em algumas pessoas que 0 teriam como verdadeira patologia.

Para Garofalo, 0 criminoso tem a propria natureza degene­rada, apresenta deturpa<;ao psicologica, a qual nominou anomalia moral.

Fundamental, e inserido na ideia de anomalia moral, e 0

fato de 0 criterio para a fixa<;ao da pena ser proposto com a nomen­clatura de temibilidade. A temibilidade constitui justamente 0 grau de perversidade ou mal existente no criminoso. E de observar que a concep<;ao, que demanda a considera<;ao do estado de perigo apre­sentado pelo delinquente, influenciou 0 Direito Penal contempora­neo com 0 nome de pedculosidade.

Os estudos da escola positiva, ressalte-se, possuem pro­funda indole intervencionista e estigmatizante, desaguando na justi­ficayao dos Estados autoritarios do seculo pass ado, po is atuam so­bre as pessoas, nao em raz1io da pratica efetiva de atos sanciOJla­veis, mas na perspectiva do perigo representado pelas mesmas e,

. com isso, na visualiza<;ao de um imaginario risco da pnitica de atos danosos, cuja oconencia nao ha qualquer seguranya de que efeti-yamente possa se dar.

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80 AdelEITasse

Amedida de seguranya atua, na linha do discurso domi­i1ante que a fundamenta, para fazer cessar a periculosidade do agente inimputavel, por esta razao 0 posicionamento tradicional justificativa-a exclusiva nas construyoes teoricas dos postulados preventivo-especiais.

Embora haja simpatia geral, ate de liberais bem­intencionados e incautos, pelas concepyoes preventivo-especiais, ante a insinuante aurea de humanizayao da sanyao penal que suge­rem, tem-se deixado de observar que apresenta um conjunto teorico eivado de falhas estruturais e garantidor do sustentaculo ao poder interventivo desmedido pelo Estado, pois justifica a permanente manifestayao do poder punitivo incidente sobre 0 sujeito, enquanto este nao estiver "curado", e, ademais, os dados empiricos demons­tram que 0 poder punitivo jamais conseguin melhorar quem quer que seja.

E de verificar que a teoria da prevenyao especial deixa 0

cidadao totalmente ao alvedrio do poder punitivo, na medida em que 0 sentenciado e submetido ao tratamento ressocializatorio con­siderado adequado pelo Estado, enquanto este julgar necessario, inclusive e previsivei imaginar que possa submeter a "tratamento" penal, na qualidade de socialmente inadaptado:> os inimigos politi­cos, por exemplo.

A simples relayao com a prevenyao especial faz com que nao haja qualquer limitayao a intervenyao estatal, vez que seus cri­terios de validade e legitimidade estariam na necessidade preventi­va de 0 individuo ser submetido ao sistema enquanto apresentar trayos de periculosidade.

Ha, por evidente, uma total ausencia de limites na inter­venyao estatal quando se fala de conseqiiericias jurfdicas concebi­das com base preventivo-especial.

o que e a Impunidade 81

Ocorre que, alem da medida de seguranya, verdadeiro me­canismo de forya autoritario, de que ainda se valem os Estados contemporaneos, 0 discurso da manifestayao de uma imagem de desviante ou de "lou co", do criminoso, como largamente apregoado na America Latina, passando igual com os acusados de terrorismo em cemirio intemacional, mais que qualquer outra coisa, tenta ha­bilitar 0 poder punitivo a aplicar-Ihes medidas, ou seja, respostas calcadas no falacioso argumento. preventivocespeciaie,. portanto, .. ilimitadas.

Tem-se claro, por conseguinte, que 0 poder punitivo vern ampliando-se continuamente. Embora muito se diga que a evoluyao estatal e no sentido apontado pelo liberalismo, a verdade e que a cad a garantia obtida, ou a cada momenta historico de conquista, os controladores do poder imediatamente desenvolvem um discurso para tornar tais garantias ou conquistas nulas e permanecer exer­cendo 0 controle pleno sobre os sujeitos, obj etivando-os para 0

atendimento dos seus interesses.

Vale observar que, ainda que alguns conteudos normativos entre os varios acima destacados e tratados neste capitulo, sejam afastados pelo judiciario de um ou outro pais, 0 conjunto estrutural pem1anece inalterado, qual seja, a orientayao interpretativa com base no discurso da detenyao da impunidade, que demanda a am­pliayao do poder punitivo do Estado.

Algumas regras eventualmente perdem eficacia, mas a ampliayao da intervenyao em garantias fundamentais dos seres l1U­manos segue em niveis acelerados, de maneira continua, deixando a maioria a merce do controle pel as metropoles e pelas oligarquias regionais.

VIII

As oli&arquias latino-americanas sempre se preqcuparam " com a manutenyao intocavel do seu poderio economico e controle regional das estruturas estatais, para tantojamais faram sensiveis a qualquer proposta de distribuiyao de renda, de revisao de processos de apropriayao dos bens de produyao historicamente distorcidos ou de desenvolvimento de medidas de beneficio coletivo.

A questao da distribuiyao de renda nada mais e que Uln

panfleto nos paises dominados, nao compreendida par quem dela"se beneficiaria e nao desejada por quem poderia desenvolve-la.

Nao ha distribuiyao de renda possivel sem diminuiyao do campo que separa ricos e pobres, de maneira que os ricos diminuam seu poderio aquisitivo e os pobres obtenham acrescimo do mesmo; ha como uma troca, uma compensayao.

Ocon·e, parem, que os maiores panfletarios da distribuiyao de renda costumam ser, nos paises da America Latina, pessoas com alto poder aquisitivo e que,· em hip6tese alguma, imaginam sua. diminuiyao, portanto, falam em distribuiyao de renda por falar, pois "imaginam que os recurs os para promove-la possam nascer em ba-" naneiras ou em coqueiros, sem visualizar que a distribuiyao e apro­ximayao, ou seja, ter mais quem tem men os e ter um pouco menos quem tem muito.

As medidas promotoras da distribuiyao de renda, assim, que demorariam anos, talvez gerayoes, para produzir efeitos sao

84 Adel EI Tasse

impedidas }a em seu nascedouro, pois todos querem sempre mais, jamais um pouco menos.

Tambem vale observar, embora nao seja usual que os es­tudiosos da materia fayam esta afirmayao de maneira expressa, ante o mal-estar que ocasiona, que as pessoas que encontram-se nas sociedades latino-americanas em condiyao avantajada gostam do imenso fossa que as separa dos demais.

Olhando a maioria da populayao desde um pedestal de ri­queza, 0 sujeitosente-se realizado por sentir-se mais poderoso que os demais, por sentir-se melhor que os demais, por imaginar poder controlar os demais, enfim, por esquecer a sua propria pequenez finita no universo.

A forma como se deu a apropriayao dos bens nos paises latino-americanos, em grande escala no periodo colonial, pelo po­derio da forya ou por titulo nobiliario, solidificada pela explorayao da mao-de-obra escrava, e tema que os controladores do poder nao aceitam sequer comentar.

Assim, injustiyas e explorayoes historicas solidificaram-se e construiram a paisagem produtiva de toda a regiao. Herdeiros de colonizadores, de detentores de titulos nobiliarios, de pistoleiros que garantiram a posse da terra a forya sao em grande escala os que dispoem dos bens de produyao, que sempre foram controlados por suas familias, sendo que estas enriqueceram e tornaram-se mais fortes ainda com a utilizayao de escravos, jamais reparados, de sorte que para seus herdeiros nao sobraram terras, recursos ou qualquer condiyao de bem-estar social.

A cultura, a educayao, a saude, enfim, os aspectos da vida humana que garantem bem-estar sempre foram patrimonio das oli­garquias, que nunca e ate hoje nao admitem comparti-Ios com 0

grande quantitativo da populayao.

o que e a Impunidade 85

Nao ha qualquer desenvolvimento cultural mais intenso que permita 0 crescimento intelectual do cidadao comum nos pai­ses latino-americanos, condenando-o ao estado de pennanente pe­quellez intelectual, que 0 toma mais facilmellte manipulavel pelos discursos oficiais.

Urn exemplo ilustrativo pode ser coletado lla construyao do belfssimo e suntuoso Teatro Nacional, em San Jose, Costa Rica.

Ocone que desejavam os ricos cafeicultores costarrique­nhos construir, no inicio do seculo XIX, 0 mais bela teatro do con­tinente. Constatal1do ja na aquisiyao dos primeiros tijolos que 0

pagamento pela obra que desejavam, para fazer frente aos teatros europeus, diminuiria a margem dos lucros que possuiam a epoca, estabeleceram um imposto incidente sobre 0 alTOZ e 0 feijao, ou seja, sobre a alimentayao do cidadao comum, que, por fim, via im­posiyao tributaria, acabou sendo quem pagou pela obra.

Apos pronto 0 teatro, construido com os impostos cobra­dos do cidadao comum, foi estabelecida, imediatamente, a necessi­dade de uma renda minima para que nele se pudesse entrar, de sorte que so os cafeicultores puderam.

o exemplo e emblematico; na America Latina 0 povo pag_a e peJlnanece aprisionado na ignorancia, para que as oligar­quias tenham cultura.

Os processos de aces so a educayao nos diferentes paises latino-americanos sao dos mais arcaicos e limitadores jamais imll~ ginados, ainda que haja paises na regiao, e bem verdade, comO,a Argentina, 0 Chile e 0 Mexico, que deram passos signifieativ()s para a sua democratizayao e que, curiosamente, tem 0 seu sistellla_ educacional preconceituosamente abordado por outros paises,j,!~~,~!i;~ tamellte por promover alguma tentativa de democratiza9aC., em~9~~"'~'- 'l

sejam dos melhores, se nao os melhores do continente a11lericanc.:/c,:i: o ';,'," • ':,~

86 Adel EI Tasse

Aregra estabelecida pelos que controlam e que as portas das escolas, na America Latina, devem estar fechadas para a pessoa comum.

Inicialmente, as escolas publicas na America Latina eram aitamente qualificadas e permitiam 0 desenvolvimento satisfatario das capacidades intelectuais dos sujeitos, inspirando-se, em grande parte, nos desenvolvimentos havidos no sistema educacional euro­peu, para onde,11a etapa colonial, afluiam os filhos dos ricos pro­prietlirios rurais latino-americanos para estudar.

o que pas sou e que inicialmente os detentores do capital na America Latina encaminhavam os seus filhos para estudar na Europa, mas, com 0 tempo, desenvolveram-se escolas publicas de alto nivel na regiao, pois, sob a atica daqueles, era mais economico usar os recnrsos do Estado para qualificar seus filhos do que mante­los na Europa, com diminuiyoes em suas fortunas pessoais e, ainda, com 0 afastamento dos mesmos da gestao das propriedades da fa­milia e, assim, longe do preparo para, no futuro, assumirem 0 con­trole sobre sua a heranya.

o sistema era bastante funcional, pois os filhos dos escra­vos eram escravos tamb6n e nao iam para a escola. Os filhos dos imigrantes, nao nobiliariamente distinguidos pelas coroas portu­guesa e espanhola, Jinhamqlle traoalhar para ajudar na garantia do snstento da familia e nao iam para a escola, de maneira que a escola era lugar para os filhos das elites, 0 que fazia com que, nao dese­jando gastar, 0 sistema publico de ensino fosse alvo de concretos e impOliantes investimentos.

Com 0 passar do tempo teve espayo 0 processo de abo li­yaO da escravidao, familias de imigrantes, nao peliencentes as oli­garquias regionais, apas anos, decadas de trabalho quase desuma­no, conseguiram alguma estabilidade economica, 0 que fez os fi-

o que €I a Impunidade 87

Ihos de ex-escravos e de imigrantes manifestarem interesse por estudar.

Realmente comeyaram a buscar espayo nas escolas publi­cas. Para bloquea-Ios, nao se aumentaram as vagas para atender a natural crescente demanda, mas sao estabelecidos testes seletivos, em que se acreditava que os filhos dos detentores do poder iriam sempre obter exito, pois, dentro da lagica que orientou 0 pensa­mento em tal etapa histarica, de forte conteudo preconceituoso de indole positivista-criminolagica, sao mais inteligentes que os filhos de negros e imigrantes nao inseridos, considerados inferiores ..

Errados estavam em seu nao assumido raciocinio nazista de superioridade racial e 0 esforyo pessoal das novas gerayoes de estrangeiros e negros fez com que comeyassem a obter sucesso nos testes seletivos, em detrimento dos filhos das camadas dominantes.

Por certo, 0 sistema pllblico, neste momento, deixou de interessar aos que controlavam 0 poder e pas sou a ser 0 investi­mento no mesmo, alem de desnecessario, contrafuncional, pois estava qualificando as camadas dominadas, de maneira que um dia poderiam, culturalrnente preparadas, rebelar-se contra a dominai;ao que Ihes era imposta.

o ensino publico nao interessou mais, porque, de urn lado, nao mais atendia aos filhos da elite, mas os de imigrantes rnarginac dos e ex-escravos e, de ~Utro, se tomou contrafuncional, porque investir no mesmo passou a ser investir no crescil'nento cultural de . pessoas marginalizadas, que poderiam, entao, lutar em igualdade de .. condiyoes pela revisao das estruturas sociais latino-americanas,

Assim, 0 Estado comeyou a garantir recursospara ajudar na fOTInayaO e manutenyao de estabelecimentos privados de ensino, . em parcerias realizadas fundamentalmente com 0 poderclericaI, que tinha interesse em manter 0 controle religioso na regiao relo

. en sino dogmatico nas escolas, ao pas so que se desinteressou total-

88 Adel EI Tasge

mente do ellsino publico; exceyao ao en sino universihirio, que con­tinuava de acesso das oligarquias e, assim, nao necessitava de Hlpi­da privatizayao, ante a necessidade das camadas marginalizadas de migrarem mais jovens ao mercado de h'abalho,

Ao longo do tempo, esta inversao de interesses, em qne 0

capital publico passou a financiar os interesses privados e abando­nar os publicos, fez com qne as escolas privadas se tomassem as detentoras do capital intelectual-- da sociedade e -as publicas,que foram totalmente abandonadas, passaram a ser marginalizadas, como fonnadoras de pessoas de baixo conhecimento.

Para nao con'er riscos, mesmo com a inicial pequena de­manda, foram muito cedo estabelecidos testes seletivos nas univer­sidades publicas, no Brasil, por exemplo, 0 nominado vestibular. Com 0 tempo, a partir do momento em que as camadas marginais passaram a bus car 0 ensino universitario, os testes para 0 ingresso nas nniversidades publicas passaram a exigir fundamentalmente os conhecimentos apostilados, obtidos exclusivamente nas escolas privadas, nao se desenvolvendo qualquer adaptayao nas escolas publicas, de sorte que os aprovados nos testes seletivos nao deve­riam ser, eis a logica, os mais esforyados, os mais preparados ou inteligentes, mas sim, os que estudaram em escolas privadas, ou seja: os filhos das camadas oligarquicas dominantes.

Esta realidade manteve-se ate come~arem os processos de democratizayao do ensino, com a ampliayao da oferta de vagas nas universidades e a admissao da livre-iniciativa no setor, rompendo os monopolios das poucas instituiyoes publicas e privadas contro­ladas, processo este proprio dos primeiros anos de redemocratiza­yao dos paises latino-americanos, em que a constatayao da necessi­dade de qualificayao da mao-de-obra interna, por imperativo do processo de globalizac;ao gerou, em ummomento de rara preocupa­yao social efetiva na regiao, 0 alavancar do en sino superior.

o que e a Impunidade 89

Com a nova oferta de vagas, as camadas marginalizadas da sociedade passaram a ter aces so ate ao ensino universitario, po­dendo melhor se qualificar e competir no mercado de trabalho com os filhos das classes dominantes. Imediatamente, quem nunca se preocupou com qualidade de ensino, discursivamente passou a se preocupar e a recJamar da abeliura de vagas em cursos universitari­os e do credenciamento de faculdades novas em todo 0 telTitorio nacional, sem admitir que 0 seu protesto nada mais representava que a revoltape1Oroinpimento d~ elitiza'yflo' do' ensino', Clalnando por controle e fiscaliza~ao; claro, procedimentos estes sempre a cargo de representantes das oligarquias regionais, a fim de ratifica: rem as instituiyoes de ensino sob 0 seu controle e de aces so de seus filhos e taxarem as demais com a nodoa de Preconceitos, a produzir a insustentabilidade das mesmas para que deixem de existir e 0

aces so Ii educayao universitaria volte a ser somente para as oligar-. --qUlas reglOnals,

A dificuldade em conter 0 processo de democratizayao universitaria criou a nova tentativa de estabelecer um campo dis­cursivo de conhecimento a mais para os filhos das oligarquias regionais, vive-seo tempo da elitiza~ao doensino de pos­graduayao.

./ Os cursos de mestrado e doutorado .sofrem atualmente

uma supervalorizay1io, nao pelo conhecimento disponibilizado, mas, como maneira de vincula-los ao acesso facilitado ao mercado, profissionaI, bem como desenvolver uma falsa ideia de que quell1' os realiza apresenta uma especie de "sinal aparente de capacidadee inteligencia".

Com isso habilitaram-se somente os curs os depos-' gradua91io controlados pelas oligarquias, bloqueando-se 0 reconhe> cimento dos demais, ainda que de qualidade notoriamente sup'eriar aos oficialmente aceitos.

90 Adel EI Tasse

As discrepancias comeyam a atillgir niveis absurdos, em que cursos de altissima qualidade de paises da America Latina nao sao reconhecidos por outros paises latino-americanos.

o quadro mais grave talvez esteja concentrado no Brasil, em que se tem 0 maior controle, pelas elites, sobre 0 processo edu­cacional, com 0 desenvolvimento de varios microcosmos de poder, a fim de chancelarem as estruturas que lhes sao funcionais e rejeita­rem as que nao atendem aos seus interesses de poder e economicos it~1ecliatos. .. .

Dessa fonna, a fim de manter 0 controle absoluto, nao sao, como regra, aceitos estudos que nao sej am realizados nas institui­yoes conh'oladas que, claro, sao as credenciadas com base em crite­rios discutiveis e nebulosos.

Por mais elevado que seja 0 nivel intelectual dos estudos desenvolvidos, a capacitayao das pessoas que 0 ministraram ou 0

reconhecimento intemacional da illstituiyao que os ditou, os reco­llhecimentos de cursos sao rejeitados, pois 0 que importa e se aten­dem aos interesses.das oligarquias controladoras ou nao.

Absurdos verdadeiros sao praticados, como rejeitar, por exemplo, a convalidayao de estudos de mestrado ou doutorado para pessoas que 0 realizaram na mesma instituiyao em que realizaram os analistas que manifestaram-se contra seu reconhecimento ou reconhecer os mesmos estudos .em uma mesma instituiyao para algumas pessoas e rejeita-los para outras, em atenyao ao sobrenome que ostenkm.

o discurso da qualidade de ensino, em tal estado de coisas, nada mais e que uma grande melltira, so bre a qual se constroi um novo mecanismo de elitizayao do ellsillo e, 'por via de conseqiHln­cia, do acesso ao mercado de trabalho, alem de manter uma separa­yaosocial clara entre uma elite ilustrada, destinada a comandar e uma grande populayao inculta, destinada a ser comandada.

o que e a Impunidade 91

Nos cursos de pos-graduayao das instituiyoes controladas somellte illgressa quem os contro ladores desej am e somente os es­tudos destes sao reconhecidos, estabelecendo-se regras que tentam taxar tais estudos como obrigatotios para 0 acesso ao mercado de trabalho. 0 que se tem, diga-se 0 que se tentar dizer no plano reto­rico, e, na realidade, 0 mais descarado e gritallte processo de eliti­zayao do ensino.

Talvez taodescarado e gritante pelo desespero das oligar­. quias, po is -atingit'am 0 ultimo patamar, 0 das p6s-graduayoes e se nao controlarem 0 esforyo de pessoas l11arginalizadas, elas irao, como em todas as etapas anteriores, acessa-lo, e a alterayao das estruturas de poder se toma eminente.

A l6gica oficial e que nao il11pOlia que a pessoa que busca o reconhecimento pelos seus estudos seja a de intelectualidade mais rasa ou a que desenvolveu os mais l11ediocres estudos, desde que sejam integrantes das oligarquias e oriundas das instituiyoes con­troladas.

o desejo de controle e tao grande e funcionalmente neces­sano que, sob a falsa construyao ret6rica de indices valorativos, muitos paises restabelecem um processo de censura. A cellsura e inversa, ou seja, nao se proibe nada, mas os 6rgaos oficiais somente reconhecem as publicayoes, as ideias e as teorizayoes se publicadas em detenllinados veiculos, ou seja, os controlados.

Dessa maneira, nao e qualquer ideia que consegue ser di­vulgada, pois a censura invertida produz uma busca natural so­mente pelos veiculos reconhecidos pelos 6rgaos oficiais, de manei­ra que as ideias desenvolvidas em outros documentos sao muito pouco lidas e debatidas, pennanecendo na peri feria, embora bem possam representar algo fundamental para a superayao dos proble­mas especificos da populayao latino-americana.

92 Adel EI Tasse

Ha algo a mais, contudo, na logica do bloqueio da popula­o;:ao aos mecanismos efetivos de distribuio;:ao de renda, na imposi­o;:ao da manuteno;:ao da propriedade intocavel dos meios produtivos, independente de como se deu seu 0 acesso, bem como 0 bloqueio cultural. Ocorre que geram a fOJlnao;:ao de uma populao;:ao nao soli­daria e de extremada competitividade intema.

A perda da solidariedade, aliada a uma competitividade extrema, acaba por tel' como objetivo os meios 'de consumo of ere­cidos pel a estrutura consumista que fazem com que nao existauma real preocupao;:ao dos cidadaos uns com os outros, contrariamente ocorre a perda do sentido de construo;:ao con junta ou auxilio mu­tuo.

E facil perceber que a conjugao;:ao dos fatores acima desta­cados produz uma sociedade extremamente agressiva, em que os valores fundamentais it existencia pacifica sao continuamente atin­gidos, em que ate mesmo a vida humana, se pertencente ao outro, deixa de tel' importancia.

Justamente 0 que se estabelece e uma segmentao;:ao do universo'dos sujeitos em proprio e dos demais, sendo que so­mente 0 universo pessoal tem alguma importiincia, de forma que tudo 0 que estiver no campo do outro seja dispensavel, inclusive a sua Vida yOS valores que 0 auxiliam na construo;:ao de sua feli­cidade.

Bem pes ada a questao, 0 sujeito que e gerado na soc ie­dade latino-americana atual e um sujeito egoista, para quem so­

. mente tem importiincia os seus proprios interesses e os aspectos que sao capazes de produzir alguma sensao;:ao de prazer imediato a si mesmo.

Nao ha possibilidade de que a .renda seja racionalmente distribuida, a aquisio;:ao historica dos meios de produo;:ao e perene,.o

. acesso it cultura e it educao;:ao sao elitizados, como fOJl11a de preser-

o que e a Impunidade 93

vao;:ao do poder e controle, assim, todos os que estao fora das elites controladoras so veem 0 aces so aos bens apresentados com gla­mour pela logica consumista com a tom ada dos mesmos e, como 0

sentimento de solidariedade nao mais existe, a violencia conflitiva se instal a e, para ter aces so aos objetos materiais de desejo, 0 su­jeito massacra qualquer outro valor ou bem, des de que pertencente ao outro.

'. A compulsao porpoderdas'oligarquiasdaAmerica Latina sempre foi tao grande que a forma como OCOlTeu e ainda ocorre a sua apropriao;:ao e um poderoso gerador de egoismo e de conflituo­sidade violenta, que produz reflexos que atingem, muitas vezes, os proprios detentores do poder, mas que, em geral, e verdade, Ihes sao funcionais, pois determinam um enfrentamento inte1110 conti­nuo da populayao control ada que, assim, se separa cada vez mais e vive em um estado de piinico e infelicidades, que os faz desejarem o fortalecimento das estruturas de poder, em Ulnclaro interiorizar do discurso oficial.

Quando ocorre uma situayao desviante, em que um inte­grante das oligarquias control antes do poder e atingido, imediata­mente atua 0 sistema de justiya como 0 modelo ideal que todos sonham, com investigayoes l'apidas; julgamentos celeres e, ao final, mais uma vez manifestando-se 0 poder dominante,com condena­o;:oes crueis, brutais, muitas vezes desproporcionais com a agressao praticada, mas tambem como uma mensagem a ser interiorizada, a de que a impunidade pode ser garantida, desde que nao se atinjam deteJlninadas classes da sociedade, que, se of en did as, transfol1nar-' se-ao em deuses na terra e imporao as mais poderosas vingano;:as em nome do Estado.

Ha uma utilizao;:ao funcional continua da conflituosidade gerada. Atingindo quem deve ser atingido, ou seja, a populayao comum, nao ha qualquer problema; ao contrario, na logica do poder e altamente saudavel que ocorra, pois, com isso, fortalece-se 0 pii-

94 AdelEITasse

nico sociale com ele, a interiorizayao do discurso da impunidade, que legitima 0 aumento do poder punitivo e a diminuiyao das liber­

dades.

Por outro lado, quando ha desvios e alguem da propria es­tlUtura de poder e atingido, a reayao e imediata, violenta e despro­porcional, como uma forma de fortalecer a imagem psicologica de que a sociedade e dividida em um grande quantitativo de pessoas passiveis de serem vitimas e uma pequena parcela intocavei, for-

.. n~ada peiosqu~ manuseiam as estlUturas de poder. .......... .

IX

o.poder punitivo e a imagem de algo mais amplo, repre­sentado pela intervenyao das metropoles e, em parcelas men ores, das oligarquias regionais, na vida das pessoas, ou seja, dentro da pennissao que se conquista para 0 exercicio do poder punitivo ili­mitado, como 0 enfrentamento do demonio em um determinado momenta historico, a construyao de uma nayao racialmente pura em outro, 0 bloqueio ao comunismo, enfrentamento ao terrorismo ou a impunidade, 0 que se conquista e a possibilidade de intervir, de controlar e de dominar.

A manipulayao dos mecanismos associ ados ao poder pu­nitivo, tais como os aspectos da investigayao criminal e da admi­nistrayao da justiya, permite que, em verdade, a legitimayao do poder punitivo crescente, com a intel;orizayao dos discursos oficiais, garanta a mutayao continua das ay~es, pennitindo tudo 0 que seja funcional aos interesses hegemonicos.._./ '.. .'

Como se gera 0 panico coletivo com 0 discursooficiai)~c. ..\ tedodzado, tudo passa a ser legitimo p'ara combater 0 mal iI11agina" ...•... c"

do para cada periodo historico, ate mesmo institniyoes que serViriaill". de barreira it intervenyao excessiva, como 0 judiciario,pass,am-~,._.';'i construir teses justificativas da propria negativa de suas iUll¢i5e~1;Q2ji

.-,' '- _' ;',';-'U-'. ,'-",," .... v-"'::":y:-::_:,;.t"~;

pois tambem junto a estes conjuntos sociais houve amtefl?r~,zaY~?.:j,:··{l.\·

discursiv~essa forma, toda estlUtura serve a queniC6nt;~I~·;0~~~'·'~;'~ 'der efetivo, 0 da formulayao discursiva, no caso latlno",,' "

96 Adel EI Tasse

americano, aos detentores dos grandes capitais da metropole a as oligarquias regionais.

Por tal razao refonnas estruturais da sociedade jamais sao produzidas, posto que representariam a perda de controle pelos dominadores do poder; exemplo claro sao as estruturas judiciais da America Latina, muito semelhantes em seu modelo ao quadro bu­rocnitico concebido para 0 controle pela estrutura politica ou para

, . vigorarememEstados totalitarios.'

Iniciahnente desenharam-se modelos empiricos primitivos para a estrutura judicial latino-americana, que, em certa medida, ainda constituem-se no tipo estrutural basico adotado nos paises latino-americanos, sendo certo ainda, que a fonte inspiradora e 0

quadro construfdo nos Estados Unidos da America.

Nesse modelo 0 judiciario esta inserido no jogo do poder politico, de maneira que adapta-se de forma assumida as camadas dominantes, que exercem 0 controle direto sobre a estrutura judi­cial.

o Poder Judiciario, assim delineado, nao, apresenta yfetiva independencia, pois, profundamente atrelado aos interesses diretos da camada detentora do Poder Politico.

,­Ha, ainda, uma verticalizayao do Judiciario, os' poderes

retirados dos orgaos descentralizados sao direcionados para a cu­pula judiciaria.

A, concentrayao da carga decisoria nas cupulas judiciais , atinge os interesses dominatorios dos detentores do poder politico, posto que nao' necessitam cumprir os comandos nonnativos ou in­teragirem com os Magistrados espalhados por todo 0 telTitorio na­cional, pois basta que atendam aos reclamos e desejos dos orgaos centrais do judiciario para que os seus illteresses sejam sempre pre-servados.

o que e a Impunidade 97

Resumidamente, no modelo empirico primitivo ha a es­truturayao do judiciario de tal maneira que os exercentes do poder politico possam controlar diretamente 0 judiciario, atraves da verti­calizayao e do aumento da carga de poder decisorio das cupulas, marcando a caracteristica do dtnl1fnio pleno e'direto do judiciario pelo politico. Neste pas so, e de verificar que ate mesmo 0 ingresso na calTeira da magistratura OCOlTe atraves do exercicio da vontade

,politic~qu~, ell~ ~~pl!esc:olht:[lguelesC]ue constituirao os quadros do judiciario. 0 que M e uma nomeayao politic a, de forma arbitra­ria, para 0 exercicio da funyao judicante.

A evoluyao ocolTida em alguns paises da America Latina os separou da fonnulayao empfrica primitiva, sem, contudo, ter conseguido in gressar em uma eshutura efetivamente democratica e livre de justiya, pemlanecendo atrelada ao quadro delineado para vigorar nos Estados antoritarios do seculo XX na Europa.

o Poder Judiciario brasileiro foi 0 primeiro a snperar, na America Latina, a estrutura empirico-primitiva, adentrando 0 mo­delo tecnoburocratico.

Observe-se que os paises da America Latina encontram-se, em grande parte, inseridos, ou com pelo menos alguns tiayos, no modelo empirico-primitivo, fazendo-se presentes alguns linea­l11entos deste l11eSI11O nos paises que se encontram com a estrutura­yao tecno-burocratica.

Confonne ja visto, as estruhlras empirico-primitivas condu­zem a escravizayao direta e plena do Poder Judiciario, que deixa de' possuir capacidade de solucionar, eqiiitativamente e com neutraIida­de, os conflitos de interesses que sao levados ao seu conl1ecimento. '

As nomeayoes politicas fazem com qne 0 juiz se tomeUln , devedor de favores. Alem disso, quando objetiva maior sncesso na calTeira, maiores sao os atrelamentos politicos que deve construir, tomando-se, assim, cada dia mais servil aos detentores do poder. '

98 Adel EI Tasse

E evidente qne a estrutnra empilico-primitiva, constrnida no favorecimento arbitnirio de apadrinhados politicos, torna 0 judi­ciario um mero orgao chancelador do desejo da camada dominante.

No chamado Estado Novo houve 0 rompimento, no Brasil, do modelo empirico-primitivo, adentrando a etapa da estrutnra tec-110burocratica, muito prestigiada pelos regimes totalitarios euro­peus, justamente em um momenta em que 0 Brasil vivia um mo-

.. delo administrativo afinado com 0 pensamento fascista italiano.

o modelo tecnoburocratico hoje nao se encontra limitado a experiencia brasileira na America Latina, pois cresceu a sua ado­~ao, ate mesmo em razao de que, comparando-o com a estrutnra empirico-primitiva, apresenta melhoras, sem que, contndo, consiga produzir uma efetiva libera~ao do judiciario, em relayao ao controle politico.

A caracteristica essencial do modelo tecnoburocratico re­side na rigorosa sele~ao realizada para 0 ingresso nos quadros da magistratnra, seguida de escolas ou estagios de fOlnla~ao, passiveis de manipula~ao ideol6gica e construyao do pensamento na linha dos interesses dominantes.

o concurso publico para 0 ingresso representa um aspecto fundamental do modelo tecnoburocratico, sendo indiscutivelmente

- 0 ponto positivo mais relevante, pois 0 concurso publico garante a democracia no processo de sele~ao para a jlldicatura.

E verdade que ha crfticas ao concurso publico, com base na argumentayaorealistica de ocorrencia de fi·audes e atos de cor­rnpyao na realizayao das provas. Os dados da realidade sao essell­ciais, porem neste caso nao demonstram necessaliamente a falba do metodo de ingresso via concurso publico, ate mesmo ante a dificil verificayao de outra fOlma garantidora de igualdade de condiyoes e

. livre aces so aos cargos e empregos publicos, sem recair no proces­so de escolha politicado modelo empirico-primitivo.

o que e a Impunidade 99

o essencial e que os dados da realidade demonstram fa­lhas na conduyao do processo de sele~ao, que demanda a criayao de mecanismos de controle pel a sociedade sobre a realizayao das pro­vas, para coibir eventnais ntilizayoes de mecanismos inid6neos na realizayao dos concursos que selecionarao os candidatos ao cargo de juiz.

o aces so inicial, no modelo tecnoburocratico, e positivo, porem a armadilha gerada pelo poder e justamentea de estabelecer

. a aparente garantia de neutralidade na esc()lha das pessoas para () exercicio da judicatnra, mantendo celia distancia no momenta do ingresso do sujeito, para depois controlar com a il11posi~ao da regra do "carreirismo", ao fazer surgir a figura de um juiz conservador que na~ deseja contrariar interesses, para nao ser prejudicado ao longo da sua carreira.

No modelo tecnoburocratico,. 0 acesso inicial a carreira depende de concurso publico, porem, depois, na atna~ao interna, 0 juiz fica atrelado as orientayoes dos detentores do poder, tanto sob o ponto de vista internacional, quanto sob 0 ponto de vista interno, posto que a can·eira da magistratnra nao mais apresenta, para as

. suas promo~oes, 0 criterio do concurso publico, mas sim, 6 meca­nismo da alian~a politica.

Mui~o difundido, 0 criterio do merecimento, no ambito da magistratnra, na~ e outra coisa que a nao assumida amarra~ao do juiz as brientayoes daqueles que estao na cupula do judiciario e que, em grande numero,· por sua vez, acham-se atrelados aos inte­resses dos canais centralizadores do poder politico.

Assim, embora pareya legftima a sistematica, outra coisa na~ e que 0 demonstrador do dominio exercido pelos pequenos grupos detentores de condiyao mais elevada no corposocial sobre 0

poder judiciario .

100 Adel EI Tasse

Tentando minorar 0 impacto do criterio do merecimento e da sua evidente manipulaC;ao politica, criou-se conjuntamente 0

criterio da antigiiidade, outra discrepiincia do modelo tecnoburo- . cratico.

o desenvolvimento do magistrado, com base no criterio da antigiiidade, enfeixa 0 absurdo da afirmativa de que 0 mero passar dos anos toma a pessoa mais culta, proba e preparada juridicamente.

Hii, entao, 0 ingresso inicial na judicatura elogiiivel, des­de que fraudes .nao ocon-am, mediante concurso publico, para, posterionnente, 0 juiz tornar-se escravo dos desejos dos detentores do poder politico, manifestados atraves dos comandos dos DrgaOS de cupula.

o jniz se transfonna sem perceber, em conservador, repe­tidor de fonnulas prontas e deduzidas antes mesmo da sua chegada ao cargo que exercita, porque e 0 que interessa ao establishment, que nao pennite qualquer ameac;a ao exercicio do seu controle so­bre a sociedade.

Muitas vezes 0 drama psicologico que 0 sujeito juiz vive e intenso, naa tendo como defender a sua nova posiC;ab de cidadao conservador, po is nao de acordo com 0 que intimamente pens a, fecha-se, afasta-se da sociedade e toma-se 0 estereotipo do "pai severo", contriirio a tudo e a todos, somente preocupado em impar, com rigarismo, a sua verdade, que na realidade e a verdade que politicamente deve defender.

Oiltra problemiitica presente no modelo tecno-burocratico e a ausencia de preocupaC;ao com a fonna como 0 juiz prestarii 0

seu servic;o i comunidade, desde que nao haja nenhum confronto com os interesses dos grupos dominantes.

Assim, acaba 0 julgador atuando sem qualquer aporte es­trutural, com um volume excessivo de trabalho, que nao the per-

o que e a Impunidade 101

mite analisar cada caso com calma e tomar decisoes com elevado grau de preocupaC;ao e visao social.

Os recursos materiais colocados a disposic;ao do magistra­do sao obsoletos. Raros sao os momentos de reciclagem e de desen­volvimento do conhecimento experimentados pelo juiz, que nao dispoe de uma estmtura que the pennita atuar com as necessiirias velocidade e eficiicia na prestac;ao jurisdicional.

Nao dispondo de tempo para proferir as suas decisoes, acaba 0 juiz par delegar integniImente as suas func;oes aos funcio­niirios secundiirios do judiciiirio, que transfonnam-se nos verdadei­ros exercentes da magistratura.

Ingressa-se, entao, num curioso mundo imaginiirio, no qual as partes debatem nas audiencias para convencer 0 juiz de suas razoes, quando, em verdade, nao serii este quem decidirii, mas um funcioniirio inferior na hierarquia.

o modeIo tecnoburocriitico torna 0 juiz prisioneiro de urn mundo imaginiirio ideal e das cllpuIas, peIo processo de "can-eiri­zaC;ao", que the retira qualquer possibilidade de ser efetivamente livre.

o espirito deJ)locnitico que nOlieia 0 ingresso na judicatu­ra acaba por diIuir-se em sua estmtura interna, construida com 0

unico objetivo de manter inatacados os interesses do establishment, pennitindo aos mecanismos intemos e extern os de controle do po­der a tranqiiiIidade de saber que os seus atos raramente serao ques­tionados de fonna eficaz, posto que, com habilidade, foi constrnida uma "teia", aprisionando nela 0 judiciiirio.

Outra caracteristica desse modeIo e afastar 0 miiximo pos­siveI 0 cidadao comUl11 da administrac;ao da justic;a, de maneira que as hipoteses de julgamentos populares e arbitragem sao limitadis­simas e severamente combatidas, sob 0 argumento de ausencia de

102 Adel EI Tasse

tecnicismo 'nestas fornmlayoes, pois 0 que se desej a e a remessa integral das questoes ao orgao tido como tecnico para a soluyao de conflitos, nao pOl'que seja tecnico, mas porque e mais facil contro­la-Io.

Verifica-se, des sa maneira, que ha uma complexa teia que impede qualquer ayao efetiva que sirva a desconstituir 0 discurso oficial de impunidade.

Ao mesmo tempo em que osmecanismos resolutivos de conflituosidade social na America Latina sao puramente imaginari­os e ineficazes, a estrutura judiciaria e aprisionada, quer pelo COI1-

trole politico direto, proprio do modelo empirico-primitivo, quer pel a amarrayao interna que se produz na estrutura tecnoburocratica.

o fato claro e que todo esse conjunto e desenvolvido para servir de meio de propagayao do discurso oficial, fator que contri­bui em sua interiorizayao, servindo, ademais, para garantir a total intocabilidade dos que fazem parte da estrutura de controle, que efetivamente reinam sem coroa.

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x

A estrutura. de poder atua .no comb ate ·aos· disfuncionais,.. representados pelos que conseguem observar a manipulayao discur­siva, assim como por sujeitos que participam dos beneficios do poder, mas que acabam por praticar atos que os tornam inoperantes para a logica dominante ou que deixam de ter impOliancia para a manutenyao do status.

Uma das questoes fundamentais da construyao discursiva e 0 estabelecimento de mecanismos de interdiyao contradiscursiva, ouseja, que ideias em sentido contrario ao discurso oficial ou que sirvam para provocar 0 despertar para a falsi dade das verdades ab­solutas deste, sejam impedidas de produzir efeitos.

Um primeiro aspecto importante nesse campo e a censura direta, que contro la a produyao intelectual, impedindo e, quando na~ consegue, dificultando que os sujeitos que apresentam linha de pensamento diversa da oficial tenham acesso aos meios de divulgaC

yaO do pensamento.

Esse controle pode se dar de maneira direta, pelo bloqueio da divulgayao das ideias de detenninados sujeitos, bem como pela. maneira indireta, aproximadamente como no modelo quehojes,~; .'. tenta construir no Brasil, acima referido ao tratar do tema.da eliti-.· zayao cultural e educacional, em que se estabelece umavalorayao' oficial dos veiculos de publicayao intelectual, gerando desprestigio . para os que nao sao controlados pelas estrutunis de'jJodere?' as~iin;

. conduzindo-os ao desaparecimento, de maneira que persistam', eln .

104 Adel EI Tasse

medio prazo, apenas os canais controlados, no qnal somente ideias simpaticas ao establishment sao divulgadas.

Tambem se trabalha com a marginaIiza9ao do pensa­mento oposto. Gera-se, assim, um saber marginal, que tenta des­mistificar 0 discurso oficial que, porem, fica circunscrito a peque­nos circulos, sem conseguir produzir, senao a Ion go espa90 de tempo, com a sua, ainda que limitada, repeti9ao, impactos sensi-

. veis na estrutura social.

Esse saber marginal 6 aItamente estigmatizado e associ ado com id6ias perigosas ou desprovidas de espa90 na realidade exis­tente, 0 que faz com que os seus divulgadores sejam tidos como pessoas perigosas ou idealistas, no sentido de utopicas, distanciadas da realidade.

Dessa maneil·a, os poslclOnamentos criticos raramente conseguem furar os bloqueios impostos pel a estrutura discursiva oficial e, quando conseguem, nao produzem maior impacto pela limita9ao da sua divulga9aO.

A id6ia da impunidade, construida como discurso oficial de amplia9aO do espa90 interventivo, em detrimento das I1berdades individuais e das garantias do ser humano, tamb6m e funcional ao bloqueio que produz as id6ias qne Ihes sao, de alguma forma, insa­tisfatorias, por mostrar a fragilidade das bases em que se estrutura 0 discurso oficial.

Todos os que de alguma maneira tentam combater 0 pani­co coletivo gerado pela id6ia de impunidade tem sido interditados, pelo bloqueio direto da produ9ao de suas id6ias ou pela estigmati­za9ao,em geral rotulando-os de pessoas complacentes com 0 crime e com a violencia.

Assim se tem impedido que a questao da impunidade seja abordada em sua verdadeira estrutura, a de um discurso funcional

o qlle e a Impunidade 105

para gerar 0 panico coletivo e pem1itir a interven9ao sempre maior sobre os sujeitos, com a clara fonna9ao de uma postura funcional para tratar dos problemas da violencia urbana, que tende a objetivar a pessoa.

A verifica9ao de que a violencia urbana nao 6 gerada por uma hipot6tica impul1idade, mas pela conflituosidade e desigualda­des sociais, que acabam por ser ampliadas com 0 incremento de

.. maior·poder· punitivo,que se apresenta como resposta ao discui'so oficial contra a impunidade, mais que pennitir a abordagem dos problemas das sociedades latino-americanas em sUas estruturas reais, fragiliza 0 controle exercido pel as metropoles e pelas oligar­quias regionais, razao por que jamais se pennite qualquer espa90 para a critica.

Dessa forum, aqueles que conseguem superar a logica dis­curs iva oficial e enxergar, ainda que apenas alguns tra90s da reali­dade por detriis existente, sao cOl1siderados disfuncionais, no senti­do de que nao cumprem nenhuma fun9ao dentro da estrutura social, quando se considera que esta serve a manutenyao das estruturas de poder de maneira inelie.

Por tal razao 0 combate a esses disfuncionais 6 continuo, nao se abrindo qualquer margem para 0 debate e utilizando-se todo""­o poderio existente para estigmatizii-Ios e, com is so, fazer com que os demais sujeitos sequer queiram ouvir 0 que eles tem a c!.lzer.

Na estrutura de poder, algumas vezes um participe da mesma tenta obter beneficios al6m dos que Ihes sao reservados ou descnmpre as regras de partilha das vantagens com os demais con­troladores da estrutura, tomando-se desta fonna disfuncional, dis­funcionalidade esta entendida como 0 nao cumprimento das fun­y5es que Ihes sao fixadas dentro da estrutura de poder.

Desenvolve-se, entao, um processo de exemplificayao e 0

. agente disfuncional passa a ter uma nova e importante funyao, a de

106 AdelEITasse

mostrar que 0 sistema funciona, pois pune "poderosos", quando, em verdade, atinge so os que se tornaram antes disfuncionais, por desejarem obter alem de sua parcela fixa de beneficios.

Na ideia de impunidade atuahnente vigorante na America Latina, eventualmente alguns participantes da estrutura de poder sao punidos e apresentados para a opiniao publica, pelos veiculos de co­munica9ao de massa, como um trofeu, em sinal da adequa9ao do sis­tema imperante no combate aos atos conu·arios a organiza9ao social.

A ilusao e evidente, pois nao ha qualquer a9ao real de ata­que aos que se beneficiaram indevidamente das estrnturas de poder, apenas esta se depurou eliminando os disfuncionais e fazendo desta auto-limpeza um espetaculo midilitico, para a manuten9ao sem l11uta9ao das estruturas de poder, quando nao apresentam tais situa-90es como justificadoras do implemento de maior poder punitivo, ao cinico argumento de que isto e necessario para combater os chamados "peixes grandes".

o disfuncional pass a a cumprir uma nova fun9ao, a de "bode expiatorio" para 0 refor90 da cren9a no sistema existente e na sua adequa9ao para enfrentar os problemas da vioIencia.

Podem, ainda, as estrnturas maiores de poder, provenien­tes das metropoles, efetivamente exercentes do contra Ie, deixar de ter interesse na participa9ao de dete~·minadas oligarquias regionais, ante a necessidade de que haja muta9ao destas para a adapta9ao ao novo discurso oficial, em prove ito do atingimento dos interesses majores dos efetivos dominadores.

A adequa9ao da estrntura oligarquica local ao discurso oficial e essencial para a garantia de credibilidade a este, por tal ra­zao militares protegidos em um determinado perfodo, em que era necessario snstentar uma verdadeira guelTa armada contra 0 comu­nisrrto, perderam 0 apoio em prol de novos grnpos, como as corpora-90es atuais, com fala popular altamente acessivel as pessoas em geral

o que e a Impunidade 107

e com 0 desejo manifesto de ganhos financeiros rapidos, propicios para manter 0 controle sobre as grandes mass as e nao produzir ne­nhumenfi"entamento real aos problemas de desigualdade e agressivi- . dade da sociedade, para nao alterar os seus proprios ganhos.

Essa fonnula recriou 0 populismo latino-americano da atualidade, sendo que apos a nipida existencia de govern os tecnicos no pos-abertura democratica, com vocayao ao efetivo enfrenta­mento dos problemas sociais, as estrnturas centrais de poder verifi­caram conio impOltantes para it interioriia9ao do discllrso·daii11pu­nidade, a identifica9ao direta da popula9ao com os exercentes do poder regional, desde que estes fossem absolutamente inaptos a produzir qualquer mudan9a nas bases esu·uturantes da sociedade e se apresentassem como facilmente seduziveis pelo exercicio do poder e ganhos financeiros rapidos.

Dessa fornla, grnpos oligarquicos regionais podem perder o apoio metropolitano em um determinado momento, havendo, pOl·em, integrantes daqueles que sempre estarao mudando a sua propria imagem, para se adaptarem as novas exigencias discursivas e, assim, amo Idat'em-se pennanentemente ao campo dos que coh­trolam.

A impunidade, como discurso oficial latino-americano do mome~to, e dfsseminada com impressionante velocidade e dimen­sao pelas caracteristicas populistas que adquirirammuitos governos regionilis, em que a pratica de a90es assistencialistas constitui-se na . principal, qnando nao unica, estrategia de governo.

Nao se enfrentam as causas reais da conflituosidade social, que se mantem alta, com a continua produ9ao de vitimas entre os integrantes dos diferentes grupos da sociedade, 0 que e funcional a conservar forte a ideia de inseguran9a e impullidade e, claro, por via de conseqiiencia, pernlitir a diminui9ao de garantias e a amplia-

.yao das possibilidades de invasao do sujeito e de sua objetiviza9ao

108 AdelEITasse

como um demento para a produyao da satisfayao na lmiquina de consumo.

o sistema de funcionalidade/disfuncionalidade, em relayao ao discurso oficial, opera continuamente, garantindo a pennanencia no exercicio do controle das metropoles sobre as grandes popula­yoes latino-americanas, independente das questoes e sensayoes imediatas que estas estejam experimentando.

Ha nm permanente mecanismo de controle que tem como objetivo final claro fazer com que 0 ser humano deixe de ser sujeito e passe a ser funcionalizado, ou seja, passe a ser um objeto, atuan­do, tal qual entende 0 controle, para a satisfayao de suas necessida­des e desejos.

Para que 0 descrito no paragrafo anterior ocorra, 0 con­trole deve ser 0 maior possivel e 0 crescimento deste, necessaria­mente importa na diminuiyao das mal·gens de resistencia ao mes­mo, por tal razao, nao sao adequadas as ayoes violentas para exer­ce-lo, po is sao aptas a gerar reayoes tambem violentas; sendo as­sim, 0 metoda mais eficaz e 0 da interiorizayao da necessidade de controle por discursos paralelos geradores de panico.

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XI

Como sempre ocorre no discurso oficial ampliador do po­der punitivo, a logica da impunidade atual deve demonizar algumas pessoas que serao identificadas com 0 mal que a estrutura de poder combate.

As bruxas e as suas relayoes com 0.dem6nio eram a ima­gem do mal a ser combatido no periodo da inquisiyao; como os comunistas no Ocidente, sempre retratados como a imagem de pes­soas mas e antip<iticas, durante a guerra fria; como os muyulmanos, nos paises que aceitaram a ideia dantesca de um combate antiterro­rista para limitar as garantias dos cidadaos, sao de maneira tao evi­dentemente falsa, que raia 0 campo do hilario, retratados como atrasados e violentos.

A impunidade, por sua parte, na identificayao dos sujeitos a serem demonizados, faz com que alguns agentes de condutas ca­pituladas pela legislayao como delitos sejam retratados como a imagem do mal.

Claramente os pequenos traficantes e os autores de dditos sem vitimas (0 terrno delitos sem vitimas aqui e empregado para tratar de tudo 0 que se convencionou chamar de macrocriminalida­de, em que os sujeitos passivos seriam 0 proprio Estado, a coletivi­dade, a sociedade etc.) assumiram a imagem de "bruxas contempo­raneas", associados continuamente comas causasde todas as ma-

. zelas das sociedades latino-americanas, de. maneira que, a partir da

110 AdelEITasse

cOllcessao de um retrato ao mal a se temer, ampliou-se 0 poder pu­llitivo para todos.

Para 0 poder pUllitivo lla atualidade, os delitos sem vitima sao otimos universos de trabalho para a explora9ao do panico cole­tivo e a funcional capta9ao de recursos para as oligarquias regionais corruptas.

Uma das importantes constata90es do poder punitivo foi que a ausenciade vitima real mais. facilmente perrnite que uma a9ao sej a associada com 0 mal absoluto e garanta a mais livre atua-9ao dos mecanisinos de conuP9ao.

Assim, tnifico de drogas, jogo proibido, delitos econ6mi­cos, delitos contra as rela90es de consumo, delitos contra 0 meio ambiente, enfim toda uma gama de a90es passiveis de adequado tratamento por metodos de direito conciliatorio sao criminalizadas, permitindo a difusao da ideia de delito, em um universo imagimirio que ninguem ve, mas que esta presente em todas as rela90es sociais, ampliando a SenSa9ao de impunidade ante 0 somatorio da difusao da ideia de crime sobre todos os aspectos da vida e pela obvia inaptidao do metodo eleito, 0 punitivo, para dar U111a solu9aO satis­fatoria para a problemitica apresentada.

Ademais, a inexistencia de vitima visivel nestes delitos re­presenta um magnifico 111ecanismo para a garantia da conuP9ao. Nao sem razao as delegacias de policia especializadas nos crimes acima referidos sao disputadas pelos delegados e agentes policiais como os piratas disputavam as ilhas em que enterravam os tesouros conseguidos com os saques.

Os mecanismos da corrupc,:ao nos paises da America Lati­na, quando se fala de criminalidade sem vitima, nao sao apenas evidentes, como tambem praticamente assumidos pelas oligarquias regionais, que continuamente emitem mensagens subliminares e, algumas vezes, expressas, de que, pagan do, h3 cegueira das autori-

o que e a Impunidade 111

dades para estes crimes, nao pagan do, serao os delitos, por outro lado, fortemente atacados.

Mais que qualquer outra fun9ao, as forc,:as policiais cum­prem na America Latina a tarefa de pressionar a sociedade para a pritica da COlTUP9ao em detenninadas hipoteses, garantindo 0 be­neficio economico imediato das proprias corporac,:oes policiais e a distribui9ao da riqueza obtida com esta modalidade de moderna pirataria entre os illtegrantes da estrutura de poder, em todos os seiis niveis.~·· -'-

Consegue-se, dessa fonna, visualizar que, assim como 0

proprio poder punitivo, as estruturas montadas para garanti-Io nao cumprem qualquer fUll9ao positiva na sociedade, servindo, em ver­dade, como processo de nao solu9ao de conflitos, incremento da violencia social e comprometimento etico profundo do Estado.

Os conflitos, conforme ja tratado no presente ensaio, ja­mais sao passiveis de solu9ao com metodos punitivos, em que as vitimas, quando existentes, sao esquecidas e os agentes dos delitos sao massacrados, caso nao fa9am parte da estrutura de poder, nao existindo absolutamente nada de efetivo para juridicamellte conci­liar as pessoas e reparar os danos decorrentes da a9ao criminosa.

Como nada se soluciona; difunde-se a violencia, vitu;ni­za-se varias vezes ao longo da investiga9ao e do processo 0 sujeito passivo do delito e as pessoas que lhes sao proximas, criminaliza-se nao so 0 agente como tambem a sua familia. A conflituosidade so­cial somente e ampliada e vai se manifestalldo em a90es cada vez. mais violentas, decorrelltes da continua amplia9aO da litigiosidade e sensa9ao de desamparo da sociedade, bem como da propria in­sensibilidade e egocelltrismo gerados pela crescente logica consu­mista.

o Estado, absolutamente cOlTUptor e corrompido, perde a sua etica minima e passa a representar e servir somellte ao enrique-

112 Adel EI Tasse

cimento dos que de sua estrutura fazem patte, sem qualquer reali­zayao que sirva a concreta melhora das condiyoes de vida em so­ciedade, ampliando as desigualdades e, por via de consequencia, 0

conflito.

Em resumo, trata-se de uma bem formulada engrenagem criada e estruturada para nao funcionar, ou seja, para funcionar muito bem sob a otica das metropoles e das oligarquias regio­nais, pois absolutamenteapta a garantia de·imutabilidade 'estru-' tura! da sociedade e habilitadora da continua ampliayao de poder sobre 0 sujeito, 0 que permite transforIml-lo gradualmente em objeto, para 0 cumprimento dos interesses dos cOlltroladores da estrutura.

Nesse sentido, e de ver que muitas teorias penais geradas nas l11etropoles ja falam, na atualidade, de atribuiyao de rol as pes­soas, de estabelecil11ento dos sujeitos como microssistemas funcio­nais; em outras palavras, gera-se sob a falsa imagem de novas construyoes tecnicas, profundas alterayoes filosoficas, condutoras da objetivayao do ser humano.

Falar de atribuiyao'de rol aos seres humanos, de que sejam eles micros sistemas, tirada toda a plumagem que recobre 0 discur­so, e 0 mesmo que dizer que estao transformando-os eli1 robos, ou seja, objetos d~ interesses controlados.

No que diz respeito ao processo de demonizayao de al­guns, hi a apresentayao destes como efetivos moristrengos, por­tanto, diferentes dos demais integrantes da sociedade, quando a realidade e que 0 autor do delito nas sociedades latino-americanas atuais, mesmo os que cometem os mais brutais atos, que mais in­tensamente chocam a opiniao publica, sao exh'emamente seme­lhantes a todo 0 restante da sociedade.

o egoismo gerado pela rede consumista faz com que 0

linico mundo que importa seja 0 proprio, de fOrIlla q~e 0 ouh:o e

o que e a Impunidade 113

sempre 0 outro, ou seja, alguem que esti distante, com 0 qual nao hi identificayao, que em verdade e um competidor pelo controle dos bens de consumo garantidores de prazer.

o outro e 0 diferente, nao possui os mesmos direitos, se­quer a mesma humanidade do "proprio", de maneil'a que qualquer ayao contraria ao outro serve a garantia de satisfayao pessoal.

A relayao entre 0 mundo proprio e 0 mUlldoAo .diferellte, acil11a delineada; 11ao epatdnloilioexCi~~i~o d~~ que transgridem as leis e praticam atos que sao sensacionalmente apresentados pelos vefculos de comunicayao de massa, e, lamentavelmente, a imagem do grande universo populacionallatino-americano. '

Com isso, qualquer um que se sente vitima pode ser tatll­bem 0 algoz, basta estar em condiyoes para tal e sofrer as provoca­yoes necessarias para que os seus atos sejam maisou menos vio­lentos.

Todos sao iguais em seu egoismo e 0 nao enfrentamento do mesmo mantem e amplia as falsas noyoes de nacionalidade, de solidariedade e de afetuosidade muito propagadas entre os povos latino-americanos, quando imperam, em verdade, a infelicidade eo egoismo da logica consumista.

Assim, a estrutura da sociedade e guiada para 0 conflito e " ' para a litigiosidade, enquanto os canais que serviriam para cOl1te~ las ou apresentar soluyoes razmiveis nas hipoteses mais severassllo ineficazes e estruturados para nao possuirem COi1diyoes de efetiv'i-'

&&. .,~ •• o terreno e absolutamente fertil para que as id6ias"de.·

exclusao do outro, baseadas em discursos de pallico,. poss\ln1. frutificar, fortalecendo 0 poder de quemo exercee habilitallP?{f\:' intervenyao ,crescente nas liberdades e nas garantiasfun,d!lm.eIi~·"

, ta is. , . ,..f4,~,'~I:.:;' , . </.!-I-~·

114 AdelEITasse

Somente uma politica criminal totalizante, emprestando aqui esta tenuinologia usada por David Baiglm, pode apresentar alguma eficacia na contensao da violencia social.

Tenha-se claro que por politica criminal, no presente en­saio, nao se emprega a expressao com 0 sentido que normalmente a ela e atribuido, qual seja, 0 de mecanismos de aumento da gravida­de da resposta punitiva para 0 enfrentamento ao crime, mas, como () ,conjunto de ayOes col1jngadas que objetivem conter a conflituosi­dade social, carno fator essencial da violencia, enfrentando, desta fomla, as questoes estruturais da sociedade propulsoras do motor de confronto entre os seres humanos.

Nesse sentido, somente a politica criminal que aborde toda a problematica da conflituosidade em sociedade, e nao somente a sua manifestayao final, representada por atos agressivos de pessoas contra as outras, e passivel de racionalizar de forma adequada os atritos continuos entre sujeitos, manifestados nos paises latino­americanos.

A id6ia de politica criminal totalizadora representa, den­tro da significayao que aqui se atribui, uma abordagem seria e racional da questao do egoismo e do egocentrismo gerados pel a logica consumista, bem como da inexistencia real, na regiao lati­no-americana;·de juecanJSmos conciliatorios para a soluyao da litigiosidade social.

Sem mecanismos eficazes de resoluyao de conflitos soci­ais, jamais se conseguira evitar que a agressividade deixe de se desenvolver em niveis crescentes.

A questao passa, des sa forma, pela estrnturayao dos orgaos de justiya na America Latina, bem como da .Iegislayao civil e pro­cessual civil a fim de toma-Ias eficazes na apresentayao de razoa­veis soluyoes para a litigiosidade, em um retrato bastante distante do hoje experimentado, em qne este conteudo juridico somente 6

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Oque e a Impunidade 115

uti! aos detentores de poderio economico e politico, que conseguem estar sempre protegidos pela ineficacia sistemica.

A politica criminal totalizadora, que ora se propoe, tam­bem enfrenta a interiorizayao do discurso do poder, propugnando por uma olhada intima da sociedade consigo mesma, para que constate que 0 ser agressivo, violento, cruel e egoista, que muitas vezes invade a midi a, nada mais e que um cidadao comum da socie­dade, que se guia pelos seus proprios val ares conflitivos e egocentri­cos enl que 0 outro nao impoiia. ' .

o que se propoe neste momento, 6 fazer presentes as transformayoes com que Niestzsche inaugura 0 seu "Assim falou Zaratustra", ou seja; que cada um se transfonne em um camelo e carregue a carga de todos os seus val ores herdados da sociedade atual e das logicas discursivas reinantes, em que a infelicidade 6 impulso ao consumo, em que a ausencia de solid31;edade e cons­tante, em que somente 0 microuniverso pessoal importa, e se dis­tancie a umlonginquo deserto.

No deserto, importa transformar-se em leaD e como leaD destroyar por completo todos esses valores, para so entao,ql\ando nada deles res tar; volta!' a ser crianya, ou seja, comeyar a apren­def.

Somente esse procedimento mental permite que 0 egocen­trismo em que se funda a sociedade ocidental contemparanea, no desenvolvimento prolongado e continuo que sofreram as ideias individualistas do modernismo, seja efetivamente enxergado; nao como algo do outro, do diferente, mas proprio, que esta na raiz do comportamento do povo latino-americano, desde 0 momenta em que um simples transpor de sinal fechado no trans ito e celebrado como uma vitoria, pois ha a sensayao de que se levou algum tipo de vantagem sobre a coletividade, ate mesmo quando se desagua nas mais agressivas ay~es, como ados jovens do Rio de Janeiro, no

116 Adel EI Tasse

Brasil, que' alTastaram por quil6metros, atrelado ao caiTO que rou­bavam, 0 corpo de uma crians:a.

A realidade e a mesma, 0 egocentrismo da sociedade con­sumista contemporanea, que produz violencia con stante, maior ou menor nao em razao do sujeito, pois todos sao iguais em seu egois­mo e ausencia de bases solidarias, mas das necessidades que 0 in­dividuo sente no caso concreto, para que possa atingir os seus ime­diatos objetivosde satisfas:ao propria.

Nada nlais ilusorio que a visao tradicional que confunde 0

poder punitivo com 0 direito penal e misturando-os habilita as in­tervens:oes nas garantias e liberdades fundamentais, como meca­nismo para deter a impunidade, quando esta nao passa do discurso oficial fomentado e fortalecido pela conflihlOsidade social, que jamais e racionalizada.

Ja se disse, no presente ensaio, que a violencia existe, e real e pode vitimar qualquer um, 0 que nao implica dizer que esta violencia possa ser enfrentada pelos mecanismos apresentados no discurso oficial, que se reh'oalimenta desta violencia, essencial para a sua propria p'reservas:ao e 0 crescimento do poder por quem dele dispoe.

A realidade e como a imagem de um anciao que caminha enquanto <mtros dele riem e gracejam pela forma com que a senili­dade 0 faz caminhar, ate que se lhes apresente um espelho e, entao, veem que caminham igual ao velho de quem riam. Ninguem 1:rope­s:a em umcaminho, senao porque uma pedra foi nele deixada por

. outro.

Nao ha 0 mundo do diferente, ha uma realidade unica na qual estao imersas todas as pessoas da America Latina, inclusive aquelas que se julgam as mais especiais, e somente a consciencia desta realidade pelmite romper a separas:ao do universo proprio para 0 universo do outro, do diferente. .

o que e a Impunidade 11

Esse rompimento faz a sociedade poder ver sem as barrei ras impostas pelo controle oficial do poder e assim reacionar contr os problemas sociais efetivos, desta forma, encontrar condis:oes d um dia veneer as suas grandes mazelas nascidas da desigualdade da conflituosidade social.

Inverno de 20m

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rJJlI!l!J!l EDITORA

Esta obra foi impressa em oficinas proprias, utilizando moderno sistema de impressao.

Ela e fmto do trabalho das seguintes pessoas:

Professor revisor: Dagoberto Grohs Drechsel

Editora,<ao: Elisabeth Padilha Emanuelle Milek

indices: Emilio Sabatovski lara P. Fontoura Tania Saiki

Impressao: Dorival Carvalho Marcelo Schwb Willian A. Rodrigues

Acabamento: Afonso P. T. Neto Anderson A. Marques Bibiane A. Rodrigues Carlos A. P. Teixeira Emerson L. dos Santos Estela R. Oliveira Francielen F. de Oliveira Luana S. Oliveira Lucia H. Rodrigues Luciana de Melo Luzia Gomes Pereira Maria Jose V. Rocha Mauricio Micalichechen Nadia Sabatovski.. ./ Ralden C. da Luz Sueli de Oliveira Terezinha F. Oliveira

"Seja a mudanr;a que voce quer ver no mundo." Mahatma Gandhi

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