Judicialização da política e substituição tecnocrática: um réquiem para a democracia?

13
,

Transcript of Judicialização da política e substituição tecnocrática: um réquiem para a democracia?

,

~ CADERNOS DO DEPARTAMENTO DE DIREITO

05106

APRESENTAÇÃO 76 O PENSAMENTO POLÍTICODE FRANCISCO CAMPOSJorge Gomes de Souza ChaloubADIALÉTICADO ECONÔMICO E

DO POLÍTICO EM MARX: elementosda crítica marxista à democracia e aoEstado modernoAlexandre Pinto Mendes

9 O t A VIDA POLÍTICA N~ESTADO DE EXCEÇAO

Marco Gérard Skinner

14 MULTIDÃOE DIREITO:a constituição do políticona filosofia de Baruch SpinozaAna Luiza Saramago Stern

100 A CONSTRUÇÃO DOLUGAR DO NEGRO ASOCIEDADE DE CLASSES:comparações entre Brasile Estados UnidosTeresa Cristina Tschepokaitis Olsen28 A CLONAGEM HUMANA E

OS DIREITOS FUNDAMENTAISBernardo Abreu de Medeiros

110 ORDEM EENQUADRAMENTO:notas sobre a experiênciada transexualidade e seusdesdobramentos jurídicos

38 APONTAMENTOS SOBRE AEPISTEMOLOGIA CRÍTICA DE LOCKEE KANT: notas de continuidade edissonância no paradigma modernoHelena Colodetti Gonçalves Silveira

Thamis Avila Dalsenter

122 O MITO DA PUREZAMETODOLÓGICA:uma leitura a partir daproposta surrealista deLuis Alberto Warat

50 A DEMOCRACIA PARTICIPATIVADENTRO DA DEMOCRACIAREPRESENTATIVA:a participaçãodireta da população melhora a escolhados representantes?Ivanilda Figueiredo

Vivian Alves de Assis

64 JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA ESUBSTITUIÇÃO TECNOCRÁ TICA:um réquiem para a democracia?João Pedro Chaves Valladares Pádua

João Pedra Chaves Valladares Pádua *

~ jUDICIALIZAÇAO DA POLÍTICA ESUBSTITUIÇÃO TECNOCRÁTICA:um réquiem para a democracia?

Resumoo presente artigo discute o fenômeno da judicialização

da política e sua aplicação no contexto brasileiro. A partir

da reconstrução dos argumentos expostos principalmente

na obra de Werneck Vianna et ai, "Iudlciallzaçâo da Políti-

ca e das Relação Sociais no Brasil'; são feitas considerações

teórico-críticas sobre a crescente importância do Poder Ju-

diciário na dinâmica política brasileira. Tendo em vista este

cenário, um cotejo com a teoria moderna da democracia e

sua evolução para o mundo contemporâneo serve de mote

para as conclusões do trabalho sobre o enfraquecimento

democrático representado por aquele fenômeno.

Palavras-chaveJudicialização da Política - Democracia - Constituição - Po-

der Judiciário

AbstractThis essay discusses the phenomenon called «judicializatiO

of politics» and its application in the Brazilian contexto On

basis of a reconstruction of the arguments made especialJy

the work by Wemeck Vianna et al, "Judicialização da Política

das Relação Sociais no Brasil~ theoretical-critical considera'

are worked out on the ascending importance of the Judi .

Power in the Brazilian political dynamics. On this scenario,

comparison with modem democratic theory and its evol .

towards the contemporary world serves as the funda

to the conc/usions of this word, regarding the weakening

democracy brought by the above mentioned phenomenon.

• Advogado, mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, professor de direito penal tributário na pós-gradda Universidade Estácio de Sá - campus Menezes Cortes -, professor de Direito Penal da Escola de Magistratura do Estado do RioJaneiro - EMERJ. Emails:[email protected]@melaragnocpadua.com.br.

64 JULHO - DEZEMBRO 2008

1. Introdução

A democracia moderna, pensada nos cadinhos teó-

ricose práticos do liberalismo revolucionário, simboliza-

do - dir-se-ia totemizado - na revolução francesa do Séc.

XVIIIe seus desdobramentos no séc. XIX, nasceu de uma

mesclateórica interessante e implantou-se pela maior ou

menor modificação desta mescla. Temas como direito(s)

natural(is),poder, separação de poderes, soberania, estado

dedireito, indivíduo e sociedade convergiam todos no re-

púdio ao - de novo totêmico - Ancien Régime, e, na busca

pelademocracia.

Naquela altura, a idéia de democracia, embora tivesse

origem na correlata grega - e, em muitos pontos, no re-

publicanismo romano, como, principalmente, Maquiavel

foi o primeiro a sublinhar' -, calcava-se em pressupostos

extremamente diferentes. Para início de reflexão, a própria

separação liberal entre indivíduo e estado, tão bem de-

monstrada pelo dispositivo teórico do estado natural (cf

MATTEUCCI,1986, p. 686 et seq., SANTOS, 1999, p. 9-31),

impunha que o éthos e o êthos grego não mais pudessem,

compondo-se com a educação (paidéia) - e com uma brutal

exclusãosocial, diga-se de passagem -, determinar a subli-

meexperiência de uma ágora moderna'. Contra a tentativa

saudosistade Rousseau de retorno à assembléia popular,

unidaem torno da vontade geral, o modelo representativo

deLocke,aperfeiçoado por Montesquieu e, mais, tarde, por

Tocqueville,moldaram teoricamente os movimentos revo-

lucionários liberais, para unir aqueles temas prementes em

tornodo modelo que reunia estado de direito - Rechtsstaat,

alemãoque é a idéia, aproximada, contudo do Rule of Law

datradição Anglo-Americana (cf BÓCKENFÓRDE, 2000, p.

17-45,ZAGREBELSKY,1995, p. 21-27 e passim) - de um lado,

à democracia representativa calcada no sufrágio, de outro.

A esta altura, e para os objetivos deste trabalho, pare-

ce frívolo entrar na discussão histórico-materialista sobre

o modo pelo qual tais teóricos liberais, em verdade, expri-

miam um qualquer sentimento de classe - burguesa, na-

turalmente -, e, através de seus pensamentos, criavam as

bases para a posterior vitória revolucionária do ainda em-

brionário capitallsmo'.

Para o que aqui importa, impende afirmar que a maneira

de implementação da democracia moderna, sobre as bases

teóricas acima citadas, e em torno de uma progressiva dife-

renciação social que tocava tanto a vida material da socieda-

de, como as formas simbólicas de socialização e reprodução

social, ditou uma idéia-mestra de democracia como poder

do povo e revolução permanente" na política. E,conquanto

seja incontestável a primeira tradução desta idéia-mestra em

termos da democracia representativa que unia os separados

pólos do estado e da sociedade civil, também não se pode

sem mais afirmar que democracia seconfunde com a sua con-

juntura de formação no séc. XVIII-XIX.

Como revolução permanente, a maneira de operação

da democracia, por certo, conheceu vicissitudes históricas

importantes, algumas das quais culminaram com a sua

temporária derrocada, mesmo naquele núcleo mínimo que

unia estado de direito e representação. Pois foi provavel-

mente este trauma histórico de contrademocracia que en-

controu no nazismo seu marco simbólico que voltou, ven-

cido o ano de 1945, a política contra si mesma, para buscar

encontrar em outra instituição social uma salvaguarda con-

tra outros arroubos autoritários (cf CRUZ, 2005).

Com o ano de 1948 e a Declaração de Direitos Huma-

nos da ONU, completado em 1949 pela Grundgesetz (Lei

Fundamental alemã-ocidental) de Bonn, estava armado o

cenário teórico para o centrar de forças no direito e em seu

predomínio sobre a instável e traiçoeira política (et.WERNE-

CADERNOS DO DEPARTAMENTO DE DlRElTO 65

1(f., por todos, Buttle (2001) e Bobbio e Viroli (2002).

2Sobrea ética grega e a função da educação na sua formação, d. Jaffro (2001, p. 115 et seq.)

3 Paraesta discussão, tomada, entretanto, por uma busca desenfreada pela denúncia contra-ideológica - o que, em muitos pontos,compromete a análise =, cf Losurdo (2004).

40termo é cunhado por Habermas (1997) e sua análise serve de modelo para a que aqui se empreende. Outros autores, especialmente dodireitoe da filosofia polftica, no entanto, enfatizam a importância simbólica da revolução francesa - e do movimento revolucionário liberalcomoum todo - para o assentamento da noção de democracia moderna e dos direitos fundamentais que a sustentam. Cf. p. ex., CattonideOliveira(2006) e, com uma leitura parcialmente diversa, Ferry e Renault (1997).

~ JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E SUBSTITUIÇÃO TECNOCRÁTICA:um réquiem para a democracia?

CKVIANNA et aI., 1999, p. 21-24). Como correlato do predo-

mínio da idéia do jurídico, era natural que o antes "neutro"

e "quase-nulo" poder judiciário passasse a despertar a aten-

ção dos atores político-sociais, arrogando-se o salvacionis-

mo do "núcleo ético fundamental" (d. PIOVESAN, 2004) de

proteção ao ser humano, à dignidade humana.

Eis,então, que a política ganha entreposto - ou mesmo

matriz, em muitos casos - no poder judiciário. Ou, para in-

troduzir o nosso termo de análise, a política judicializa-se. A

política tem o direito a tolher-lhe os excessos; o direito tem

no poder judiciário, seu ator, seu dominus)

Tratar singelamente desta problemática e de sua in-

fluência na concepção moderna de democracia, até então

euforicamente partilhada pelos sujeitos políticos, é o es-

copo deste artigo. De início, reconstruir-se-á parcialmente

o argumento e a análise contida no marco brasileiro de

tratamento da judicialização da política (cap. 2). Em se-

guida, o efeito disto sobre a democracia (brasileira) será

analisado (cap. 3).

2. A judicialização da política no Brasil

Em NAjudicialização da política e das relações sociais no

Brasil" Werneck Vianna et ai (1999) procuram, dando segui-

mento a pesquisa iniciada anteriormente (d. Idem, 1997,

p. ex.), criar uma base teórica de análise de dados empíri-

cos sobre o funcionamento do Poder Judiciário brasileiro

a partir da nova ordem legal inaugurada pela Constituição

Federal de 05.10.1988. A premissa é a de que, em evolução

de tendência já vista mais acentuadamente desde o início

do processo de redemocratização do Estado Brasileiro na

década de 80, o Poder Judiciário, como local de aplicação

e discussão do direito, passe a ocupar lugar de destaque

no cenário sócio-político brasileiro, chamado à ação pelos

próprios envolvidos no seu novo local de influência, ou seja:

pelo Legislativo e pela sociedade em geral.

Na introdução de sua obra, Werneck Vianna et ai (1999,

p. 15-44), através da comparação entre dois marcos te-

óricos - um a favor ("procedimentalista") e outro contra

("substancialista") -, reconstroem a trajetória de afirmação

da judicialização da política no mundo. Na origem remota

do fenômeno, a partir dos reflexos da vida social na mudan-

ça de paradigmas do direito, buscam estes autores a fixa-

ção, em germe, da sua plena aceitação, só vislumbrada, na

segunda metade do séc. xx.Por toda parte, o que se constata é que a vocação expansi·

va do princípio democrático tem implicado uma crescente

institucionalização do direito na vida social, invadindo

espaços até há pouco inacessfveis a ele, como certasdi·

mensões da esfera privada. Foi a emergência de novosde·

tentores de direitos, especialmente o movimento operário

em meados do século passado, que deu fim à rigorosa se·

paração entre o Estado e a sociedade civil, nos termos da

tópica liberal da liberdade negativa. (WERNECKVIANNA et

aI, 7999, p. 75)

Ao localizar tais origens no advento mais consolidado

do direito do trabalho, como um misto de direito privado edireito público, e na modificação dos cânones da economia

liberal, cujo símbolo é o New Deal norte-americano, acom-

panham os autores expressamente a análise habermasiana

de mudança de paradigmas jurídicos a partir de uma pers-

pectiva que combine a história e a sociologia do direito (d.HABERMAS, 2001, p. 388-391). Daí que, nos marcos sociais

referidos, o paradigma do direito formal-liberal dê lugar

ao paradigma material do estado do bem-estar, no que se

acompanha da mudança teórica de concepção do direito

mencionada acima na introdução.

O modelo do bem-estar social emergiu da crftica refor·

madora do direito burguês formal. De acordo com este

modelo, uma sociedade-economia (an economic society),

institucionalizada na forma do direito privado (sobretudo

através de direitos de propriedade e liberdades contratual)

era separada da esfera do bem comum, do Estado e deixa·

da aos acertamentos espontâneos (spontaneous workin·

gs) dos mecanismos de mercado. Esta 'sociedade do di·

reito privado' era moldada para a autonomia dos sujeitos

de direitos (legal subjects), os quais, primariamente como

participantes do mercado, encontrariam sua felicidade

5 Ct.já para uma reconstrução histórica de uma perspectiva já crítica, Habermas, 2001,238 et seq., 388 et seq. e passim.

66 JULHO - DEZEMBRO 2008

pela busca de seus interesses particulares tão racional-

mentequanto possível. [...] No entanto, a expectativa de

justiça social {...] estava implicitamente ligada à demar-

caçãode condições não-discriminatórias para o efetivo

exercíciodas liberdades garantidas pela lei. (HABERMAS,

2001,p. 401-402)

Onovo paradigma do direito, no entanto, vai fomentar,

inicialmente,apenas um aparelhamento e fortalecimento

doPoderExecutivo, negligenciado, no liberalismo político

clássico,em prol do protagonismo do Legislativo, como

autênticorepresentante eleitoral do povo", e do absente-

fsmodo estado com relação às atividades privadas, cujo

/ocusera,essencialmente, o mercado. Dotado de maior ca-

pacidadede execução de ações políticas - daí o nome - o

PoderExecutivo, no exercício da Administração Pública, vai

acumularmais e mais poderes, mais e mais atribuições; vai

concentrarem suas mãos, atividade normativa e adminis-

trativa,a fim de que possa, mercê do conhecimento técni-

coedos meios mais abundantes que possui, efetivamente

comandara economia - e a sociedade - e corrigir as falhas

demercado'.

Somente quando, na análise de Habermas adotada por

WerneckVianna et ai (1999, p. 19 et seq.), o poder adminis-

trativocomeça, por imperativos funcionais de seu sistema,

acolonizara própria esfera públicas, e converter em clientes

oscidadãosque reclamavam sua atuação corretiva e em "ti-

raniada maioria" seu predomínio sobre a formulação par-

lamentarde políticas públicas, o Poder Judiciário passa a

serprocurado com a pretensão, justamente, de, sem aban-

donar a atuação estatal incrementada - sendo ele também

um poder de estado -, vale dizer: sem o escopo de retomar

ao arranjo liberal inicial, corrigir os desvios do Poder Execu-

tivo, em nome dos direitos fundamentais dos cidadãos, re-

vitalizados pelo (neo)constitucionalismo que renasce após

a derrota do nazi-fascismo, no segundo meado do séc. xx.{...] a democratização social, tal como se apresenta no

Welfare State, e a nova institucionalidade da democra-

cia política que se afirmou, primeiro, após a derrota do

nazi-fascismo e depois, nos anos 70, com o desmonte dos

regimes autoritário-corporativos do mundo ibérico {...l.trazendo à luz Constituições informadas pelo princípio da

positivação dos direitos fundamentais, estariam no cerne

do processo de redefinição das relações entre os três Pode-

res,ensejando a inclusão do Poder Judiciário no espaço da

política. O Welfare State lhe facultou o acesso à adminis-

tração do futuro, e o constitucionalismo moderno, a partir

da experiência negativa do nazi-fascismo pela vontade da

maioria, lhe confiou a guarda da vontade geral, encerrada

de modo permanente nos princípios fundamentais positi-

vados na ordem jurídica .. (WERNECKVIANNA et aI, 1999,p.

22, grifos do autor)

A experiência internacional encontra eco na brasileira,

segundo os autores. Nos anos 30, a Era Vargas, por meio do

fortalecimento agigantador do Poder Executivo, cujo cume

é a ditadura iniciada no Estado Novo de 1937, também se

fiou na intervenção estatal na sociedade, e também tem

seu principal ponto de intervenção no direito do trabalho.

Com efeito, foi no período Vargas que as leis trabalhistas de

6 ~ importante ressaltar que o próprio liberalismo, conforme notado na introdução, nasceu, quer como movimento teórico, quer comomovimento social, principalmente, da contrariedade ao Absolutismo Monárquico. Como nas monarquias constitucionais resultantes dasrevoluçõesliberais do séc. XVIII-XIX continuasse a ser o rei o chefe do Poder Executivo, é natural que se procurasse estabelecer umaprevalênciado o Poder Legislativo na correlação de forçar políticas. Outro aspecto interessante a sublinhar é que a Inglaterra, de ondetirou Montesquieu a doutrina do Livro XI do Espírito das Leis, ela mesma, teve sua história política marcada, mais do que os países daEuropaContinental, pelo conflito Rei-Parlamento, de onde, entre outras instituições, nasceu a famosa Magna Carta Libertarum,no séc, XIII,e,finalmente, a doutrina -até hoje mencionada - do Parliamentary Sovereignty (Soberania Parlamentar). O Poder Judiciário, naquele país,emboraoperasse como que auto-referencialmente, para usar termos luhmannianos, não se imiscuía, como, de resto, ainda parece emgrandemedida fazer, nos grandes assuntos de Estado, mantido o sistema de common law como um modo de resolução de conflitos denaturezaprivada segundo a tradição social.

7Sobrea relação entre intervenção estatal na economia e falhas de mercado, d. Santos, 1999, p, 32 et seq.8O tema da diferenciação entre mundo-da-vida e sistemas e das inter-relações entre eles, com a conseqüente caracterização da relaçãopatológica entre eles em termos de colonização é uma das grande genial idades da teoria social habermasiana. Não há espaço para umaconsideração mais aprofundada sobre isto aqui. Mas, como adiante se argumentará, a não-consideração destas dinâmica complexa estánabaseda principal falha do argumento de Werneck Vianna et ai (1999). Cf. Habermas (1987), e um desenvolvimento em Pádua (2007).

CADERNOS DO DEPARTAMENTO DE DlREITO 67----------------------------------------------~

~ JUDICIALlZAÇÃO DA POLÍTICA E SUBSTITUIÇÃO TECNOCRÁTICA:um réquiem para a democracia?

proteção ao empregado - urbano, bem entendido - come-

çaram a aparecer no ordenamento jurídico brasileiro, afinal

reunidas na ainda vigente Consolidação das leis do Traba-

lho de 1942 (d.WERNECKVIANNA et. ai, 1999, p. 65, 71-73,

259 e passim). Obviamente, e isto não escapou aos autores

comentados, a diferença fundamental da história brasilei-

ra em relação à comparada, para além da multiplicidade

de ciclos autoritários, é o fato de que o direito do trabalho,

aqui, assim como os demais direitos, não foi conquistado,

propriamente, mas, como bem exemplifica o caso da legis-

lação trabalhista na Era Vargas, foi outorgado aos seus des-

tinatários, que, nesta qualidade, se firmaram como clientes

ou sujeitos passivos de seu próprio direito.

No caso brasileiro, a completude estrutural das institui-

ções fomentadoras da judicialização da política veio com

a Constituição Federal de 05.10.1988, logo caracterizada

como uma "constituição aberta" que se pretende construir

com base em "valores" derivados da "diqnidade humana"

os quais valores, por sua vez, viriam emanando do texto na

concretude de sua interpretação dinâmica (d. WERNECK

VIANNA et. ai, 1999, p.38 et. seq.)9.Como modus operandi

desta abertura, o aumento dos atores legitimados pela

constituição para provocar a atuação do Poder Judiciário,

na sua competência de uguardião da constituiçâo" Estes

atores do processo judicial de controle de constituciona-

lidade, nos dizeres de Werneck Vianna et. ai (1999) cons-

tituiriam a comunidade de intérpretes de que falava Peter

Hâberle (2002).

Com base nesse quadro interpretativo, os citados au-

tores prosseguem em coligir e interpretar interessantes

dados sobre a atuação do Poder Judiciário brasileiro, quer

no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade

(ADlns) pelo Supremo Tribunal Federal (sTF), quer na insta-

lação e funcionamento dos Juizados Especiais Cíveis e Cri-

minais no âmbito da Justiça Estadual - do Rio de Janeiro,

nomeadamente. Para o que interessa a este trabalho, aju-

dicialização da política diz respeito, principalmente, como

corretamente propõem tais autores, ao exercício do con-

trole de constitucionalidade das leis e atos normativos pelo

Poder Judiciário, embora não se circunscreva à atuação do

sTF como órgão de cúpula deste poder, senão, sendo o

modelo brasileiro de controle de constitucionalidade mis-

to (d. MENDES, 2003 e FAVOREU, 1996, p. 123), se espraie

também para o chamado controle de constitucionalidade

difuso, oriundo do Direito Norte-Americano".

O que para nós mais interessa, todavia, é a questão de

como caracterizar esta judicialização da política em termos

de teoria e prática democrática, o que será decisivo para a

interpretação que se der da atuação do Poder Judiciário no

exercício desta atividade. Werneck Vianna et ai (1999, p.68),

analisando os dados que coligiram, principiam por definir

um caráter dúplice da judicialização da política brasileira,

tendo em vista o processo na política comparada:

Daí o caráter dúplice da judicialização da política no Bra-

sil, que, de um lado, apresenta um perfil que se identificG

com oproduzido pela bibliografia sobre o assunto - asminorias parlamentares demandam a intervenção do Judici

ário contra a vontade da maioria [e os sujeitos de direitc

contra a violação dos seus direitos fundamentais, acres

centamos] - mas, de outro, se afasta dele, singularizando

se pela ação dos Executivos estaduais e da Procuradon

da República contra a representação parlamentar, er

sua esmagadora maioria de âmbito estadual. (WERNEC

VIANNA et. al, 7999, p.68J

O que poderia ser interpretado com uma anomalia pE

rigosa, nada obstante, compõe, à luz do diagnóstico de

ditos autores, a importância e eficiência da [udlciallzaçêda política como corretora principal e como cornponen

fundamental do quadro complexo não de resgate, senêde autêntica fundação da democracia no Brasil, com apo

9 Compare-se esta compreensão comunitarista da abertura constitucional aos supostos "valores" da digmidade humana, com a idéia,Habermas (2001, p. 383-384 e passim) de uma compreensão dinâmica da constituição, que, em vez de confiar ao judiciário a guarda dest·valores~ confia à esfera pública democrática, a discussão em torno da vontade política enfeixadora não s6 de valores, mas de princípimorais e questões pragmáticas.10 Vale notar, aliás, de passagem que a supostamente ampla judicialização da política que se atribui aos EUA,desde o famoso caso Marblv.Madison encontra interessante contestado em Griffin (1998). Este autor procura argüir que, posto seja um importante ator na polítamericana, nos principias momentos políticos daquele país, mesmo chamada a participara, a Suprema Corte retraiu-se e foi sobrepujapelos demais poderes.

68 JULHO - DEZEMBRO 2008

1Aalopoiese pela qual tenta Marcelo Neves (2001) explicar o mesmo fenômeno com o salvamento do núcleo teórico luhmanniano,boranão nos pareça plausfvel por negligenciar a emancipação subjetiva indissociável do núcleo democrático, chega, no entanto, ao

o resultado defendido neste texto, posto que outra seja a via metodológica. Sobre a necessidade de emancipação do sujeito para a. uiçãoda democracia, d. Pádua (2007).

nopotencial de cidadania inscrito na Constituição Federal

de05.10.1988- do qual, naturalmente, a judicialização da

políticafaz parte importantíssima:

[...]opresente trabalho não endossa a compreensão de que

a presençado direito na política e nas relações sociais possa

reduzir-se a um sinal de patologia republicana e de decom-

posição do tecido da sociabilidade. Tal presença denota,

mais precisamente, um movimento propiciador da criação

da república onde ela, de fato, inexiste, e da construção de

uma agenda cívica, favorecendo-se [...] a tradução em di-

reitos dos interesses e das expectativas dos que não conhe-

ciam qualquer arena pública para deliberar e apresentar

suas razões. O Judiciário, nessa circunstância particular, e

porque regulado pela lei e livremente aberto à exposição da

controvérsia entre as partes, pode-se apresentar à falta de

um outro, como um espaço republicano para o homem co-

mum brasileiro, ainda sujeito ao estatuto da dependência

pessoal. (WERNECK VIANNA et. aI, 7999, p.258)

Semdúvida, esta interpretação revela, de um lado, uma

percepçãootimista da judicialização da política - e das re-

laçõessociais - no Brasil, como um particular mecanismo

defomento republicano em uma sociedade que não co-

nhecianenhum. De outro lado, contudo, e malgrado a boa

intençãodo prognóstico otimista, a mesma interpretação

padecede duas fundamentais ingenuidades, responsáveis

portrazer-lhea incoerência histórica e lógica. Em primeiro

lugar,negligencia a particular história político-institucional

darepública- e, antes, mesmo da monarquia - brasileira, e

seusdesdobramentos para a construção de um arena pú-

blicadesde cima, ou a partir do estado, qualquer que seja o

poderqueo represente.

E, em segundo lugar, não percebe não só que o Poder

Judiciáriofoi formado e instalado no Brasil com esteio na

mesmahistória de domínio e patrimonialismo de que pade-

ceram os demais poderes do estado, mas também que, à

'diferençados outros poderes, foi concebido - e isto não já

Brasil:na cultura ocidental como um todo -, já na sua

eseteórica,como um poder técnico, não político, o qual,

por isso,não recebe, senão muito indiretamente, o in-

fluxo democrático da investidura e do controle público de

suas decisões vinculantes.

Convém, agora, considerar estas duas questões, na afe-

rição do potencial democrático da judicialização da políti-

ca, nomeadamente no Brasil.

3. A república democrática como obrado Judiciário

A interpretação otimista de Werneck Vianna et ai (1999)

a respeito do poder judiciário, com efeito, parte, parado-

xalmente de uma análise comumente feita acerca da in-

capacidade da atividade política brasileira de constituir

bases efetivamente republicanas de exercício democrático.

Resumida na célebre sentença de Sérgio Buarque de Ho-

landa (2003, p. 160), Nademocracia no Brasil foi sempre um

lamentável mal-entendido" toda uma geração de intérpre-

tes da história brasileira, em torno das décadas de 1930 e

1940, buscavam, justamente, sobre a influência ou sobre

os escombros do Estado Novo, entender por que o Brasil

era incapaz consolidar não só uma democracia estável - o

que era difícil em todo o mundo naquele momento =, mas,

sobretudo, bases cívicas para a implantação da democracia

em algum momento de sua história.

Na melhor e mais influente destas interpretações, Ray-

mundo Faoro (2001) vai buscar na centralização de poder

no estado, centralização originária da própria administra-

ção pública portuguesa pré-colonial, a razão remota para

o estadocentrismo brasileiro. No conceito weberiano de

patrimonialismo - outrora já usado, com mais pureza pelo

próprio Buarque de Holanda (2003, p. 145-46) -, e amol-

dando-o a trajetória teórica própria, Faoro vai desvendar o

mecanismo de poder que, centralizado em uma categoria

sistêmico-funcional, o estamento burocrático, determinará

a eterna colonização da esfera pública de cidadãos pelas

benesses ora privadas - como na corte imperial, ou na do-

ação de sesmarias -, ora públicas - como na legislação tra-

balhista -, de um poder auto-referente operando a partir

de si mesmo".

CADERNOS DO DEPARTAMENTO DE DIREITO 69

~JUDICIALlZAÇÃO DA POLÍTICA E SUBSTITUIÇÃO TECNOCRÁTICA:um réquiem para a democracia?

Como demonstra, portanto, Faoro, o mecanismo cen-

tralizador de poder no estamento burocrático gera, no Bra-

sil já desde sua colonização, o mesmo excesso tecnocrático

que a evolução do paradigma do estado do bem-estar vai

gerar na civilização ocidental no século xx. O fato de, na

Europa Ocidental e nos Estados-Unidos, ser a transição pa-

radigmática do direito um fenõmeno de lutas políticas, cer-

tamente, ajuda a explicar a percepção mais acentuada de

seu desvio em termos de colonização do mundo-da-vida

pelo - no caso do paradigma do bem-estar - sistema admi-

nistrativo e sua concentração crescente do meio do poder

(d. HABERMAS, 1987).

No Brasil, no entanto, a própria inserção do direito

como adjunto do projeto onímodo do poder do estamento

burocrático, não só deslegitima a idéia de uma autêntica

mudança paradigmática, já que ausente, precisamente, sua

base sóclo-política, mas também faz com que o advento do

direito do trabalho e da planificação mais forte da economia

venha antes consolidar - e não conceber - a influência colo-

nizatória do nosso sistema administrativo, via poder, sobre

uma cidadania nunca propriamente autonomizada."

Sob este ponto de vista, a aposta no Poder Judiciário

como um suposto "novo modo" de constituir cidadania, ou

pior, como um mecanismo para uma qualquer "pedagogia

civica" (d. WERNECK VIANNA et ai, 1999, passim) no Brasil,

não passa, no plano sócio-político, da constituição de uma

nova rede tecnocrática, que compita com e se sobrepo-

nha - em muitos casos - à tecnocracia já clássica ligada ao

desempenho técnico da administração pública; e, no plano,

relação sujeito-sociedade, não passa da constituição de u

novo superego social (d. MAUS, 2000), uma figura difusa pé

substituir o totem do pai protetor, quando em descrédito SI

identificação com um líder de massas no Poder Executivo.

Afinal, mesmo Werneck Vianna et ai (1999), como vis

acima, admitiram a necessidade da mudança de paradign

jurídico do liberal para o do estado do bem-estar e a cons

qüente concentração de poder no Executivo como um (

pressupostos históricos para a judicialização da política,

qual, justamente, se insere no vácuo deixado pelo desv

autoritário daquele poder. Está claro, portanto, que, ou

vê capacidades especiais do Poder Judiciário para fomenl

a democracia, vindos, talvez, da especial virtude dos juiz

em contra posição aos (demais) políticos, ou bem, mais I

alisticamente, se vê na substituição ou compartilhamen

de poder entre o Executivo decadente e o Judiciário asce

dente uma substituição, ou ainda uma complementaçde tecnocracias: uma administrativa, e a outra jurídica; es

constituída pelos técnicos do direito que, junto ao Poc

Judiciário, formam um autêntico arremedo de "comunic

de aberta de intérpretes'; já que, em verdade, fechada ett

mesma, em torno de sua própria linguagem técnica ína«sível ao lelqo",

Noutro giro, e conseqüentemente, a deslegitimação ,

Poder Judiciário para assumir as funções de construtor

democracia no Brasil, onde os outros supostamente falt

ram, deriva de duas frentes: de um lado, porque o Poc

12 Em Pádua (2006), discutimos a crítica que Jessé Souza (2000) dirige à linha de interpretação oriunda de Faoro, Buarque de HolanDamatta e, em certo sentido, Gilberto Freyre. Segundo Souza, a criação de uma ·sociologia da inautenticidade· no Brasil, além de mineauto-estima do próprio cidadão brasileiro, num movimento circular de efetivação posterior das previsões pessimistas que veicula, aindesconsidera a importância da fixação do mercado e do estado modernos no Brasil como forma de fixar, opaca mente, um padrãoconduta social que divide os brasileiros em cidadãos plenos - que se adequam a tal padrão -, e subcidadãos - que não o fazem. A Ixteórica de Souza é vasta e heterogênea e sobre a complexa obra deste autor não há espaço para aprofundamentos neste local. Por (apenas se diga que qualquer que seja a análise e a metodologia aplicada, o próprio autor em questão sente a necessidade de situarzona da subcidadania uma gama amplíssima de brasileiros, que são suficientes para tornar a nossa história singular quanto à falhaconstituição de uma rede de cidadãos que sustente o ideal democrático.

13 Aliás, é justamente este fechamento em sua própria linguagem o que caracteriza os sistemas luhmannianos, por oposição éparsonianos, que se instituem em torno de meios de ação. Como, em Luhmann, todos os sistemas sociais se estruturam em torno do m,da comunicação, o que os diferencia entre si, e, portanto, os torna fechados na sua auto-referência é o tipo especifico de linguagem,código, com o qual se reproduzem e lêem os estímulos e irritações vindos do ambiente. r: curioso que, sob o signo da sociedade abetqueiram muitos teóricos pós-positivstas do direito, justamente, transformar uma atuação restrita de um círculo de técnicos, em tornoum código no qual só eles são treinados, na salvação da democracia brasileira. Para isso, antes de tudo, seria necessária uma releitura (relações entre direito e democracia, nos termos da reconstrução da tensão histórica entre soberania popular e direitos humanos. Cf.,sola teoria de Luhmann, por todos, Neves (2001) e Lennertz (2004). Sobre Parsons, d. Habermas (1987, p. 199-299), e, sobre a reconstruçdemocrática do direito tal como dito acima, primeiro Habermas (2001), depois Idem (2003).

70 JULHO - DEZEMBRO 2008

14Obviamente a implicação aqui não é que o Poder Judiciário seja intrinsecamente anti-republicano, muito menos que o seja emcomparaçãocom outros poderes. O que aqui vai, sim, implicado, é que, pertencente o Poder Judiciário, como instituição, e seus membros,comosujeitos, ao mesmo desenvolvimento socializatório patológico que fez sempre malograr a democracia real no Brasil, não há pensar,pornenhum motivo que não seja messiãnico, que este Poder seja em si diferente da lógica de poder e usurpação de poder comum emtodaa história brasileira. Lógica na qual, como se sustenta, formou-se o ego de milhões de brasileiros desde que por aqui aportaram osportugueses.15Emboraalguns episódios narrados na observação etnográfica de Werneck Vianna et ai (1999, p. 216 et seq.) nos Juízados Especiais CfveiseCriminaisdo Riode Janeiro já sugiram, ao contrário do prognóstico otimista dos próprios autores, no atuar dos juízes e quadros auxiliaresomesmo tipo de patologia patrimonialista anti-republicana e antidemocrática que domina o atuar dos sujeitos em outros poderes.Especialmenteinstrutiva é a história da imposição de conciliação por meio de jufzes automáticos e impassfveis narradas, principalmente,nap.224e 238, ou a mentalidade de acúmulo de poder dos conciliadores observados e entrevistados pelos pesquisadores. Atualmente,noBrasil,também arranhou a imagem republicana do Poder Judiciário a briga - inclusive por Ações Diretas de Inconstitucionalidade epromessasde desobediência - que órgãos da Justiça estadual travaram contra decisões do Conselho Nacional de Justiça que determinavamaexoneraçãode parentes de magistrados nomeados para cargos de confiança nos respectivos tribunais. Estes exemplos, por si, e maismuitosoutros que se poderiam coligir parecem desmerecer os apelos quase-teológicos de grande parte doutrina constitucional brasileirapor,sob a premissa de que " o processo político majoritário se movo por interesses, ao passo que a lógica democrática se inspira emvalores~dar ao Judiciário, suposto novo guardião da democracia, a última palavra na política brasileira. Cf.Barroso (2006).16 Sobrea distinção entre discursos de aplicação e de justificação de normas e suas implicações para a separação de poderes, para omecanismodemocrático-racional de formação da opinião e da vontade política e para a crítica à constituição como uma ordem de valores,d.Habermas(2001, p. 151 et seq., p.253 et seq. e passim). Cf.,também, Cittadino (2001) e Idem (2003).

Judiciário, constituído por homens e mulheres brasileiros,

tem sua gênese e o preenchimento de seus quadros oriun-

dosdesta mesma construção social que nunca conseguiu fo-

mentar as bases para uma democracia mais republicana no

Brasil.Neste sentido - e neste sentido somente" -, é razoável

pensar que só não se contesta - ainda - da mentalidade re-

publicana dos membros deste poder, porquanto não foi ele

aindatestado publicamente no centro da arena política 15.

Porém, além disso, de outro lado, o Poder Judiciário,

concebido como um compositor de conflitos interpesso-

aisna clássica divisão sistematizada por Montesquieu, não

pode assumir novas funções políticas sem a cautela de não

dominar a discussão político-democrática pela imposição

de vontades particulares dos magistrados sob a justifica-

tiva de uma demiúrgica capacidade de interpretação dos

valores compartilhados por toda a sociedade. O cuidado re-

clamado deriva não só da particularidade da concepção do

processo judicial para a formação da decisão judicial coerci-

tiva,que não se amolda à formação de vontade política pri-

mária- discursosdejustificação de normas -, senão também

da circunstância de que, o arrogar da arena política para a

discussão da lide processual - por natureza um conflito de

interesses - fecha a porta ao comportamento dos cidadãos

comoautênticos criadores das normas das quais serão des-

tinatários, função essa, que, na falta de crença no Poder Le-

gislativo e no Executivo, passam, ainda heteronomamente,

ao Poder Judiciário. Com a especificidade ainda mais perni-

ciosa de que a linguagem do processo judicial, dominam-

na poucos, dotados de treinamento para o exercício dos

discursos de aplicação de normas". O resultado disso é que

a judicialização da política, ao invés de abrir, circunscreve a

comunidade de intérpretes nos poucos legitimados - jurí-

dica e faticamente - a suscitar a jurisdição constitucional,

com o concurso técnico necessário de advogados - em senti-

do amplo -, membros do ministério público, e, finalmente,

dos juízes, todos não eleitos e ainda pouco dependentes do

escrutínio de uma esfera pública que possa deter soberania

sobre sua investidura no cargo.

Com estas assertivas, obviamente, não se procura co-locar o Judiciário como vilão da história política brasileira,

nem desconsiderar a circunstância inafastável de que, no

atual desenvolvimento do direito, não há negligenciar uma

importância bem maior deste poder na dinâmica da relação

entre os Poderes. O que, ao revés, precisa ser considerado é

que, tendo em vista a particular história institucional da po-

lítica brasileira, estranha ao desenvolvimento do liberalis-

mo e de sua revolução permanente, bem como à formação

de uma esfera pública com algum campo de autonomia,

penetrada desde o início por uma esfera privada expansi-

va e, ao mesmo tempo, paternalista (d. FAORO, 2001); mas,

principalmente, e logo por tudo isso, uma história política

alheia ao desenvolvimento progressivo dos direitos de um

CADERNOS DO DEPARTAMENTO DE DlRElTO 71

--7JUDICIALlZAÇÃO DA POLÍTICA E SUBSTITUIÇÃO TECNOCRÁTICA:um réquiem para a democracia?

sujeito autonomizado e diferenciado a partir da diferencia-

ção e reprodução das estruturas linguisticamente media-

das do mundo-da-vida (d. HABERMAS, 1979); tendo tudo

isso em linha de conta, a aposta em uma salvação vinda do

estado, ainda que por um poder antes apequenado, renova

a lógica de colonização sistemática da esfera pública políti-

ca brasileira pelo sistema de poder estatal.

Ademais, a crença no esgotamento democrático no Po-

der Legislativo - e em sua conjugação com o Poder Executi-

vo -, no Brasil, tem pouca razão de ser, presentes as relações

institucionais que regem a atuação deste poder por aqui.

Amorim Neto e Santos (2003: 91 e s.) bem sublinham que,

historicamente, o Poder Legislativo no Brasil - de novo ao

contrário da experiência de países centrais - nunca conhe-

ceu um autêntico protagonismo no jogo político. Por outro

lado, a dinâmica de competências delineada pela Constitui-

ção Federal de 05.10.1988, feita com base nesta desconfian-

ça do Legislador (d. WERNECKVIANNA et ai, 1999: 38 e s.),

em verdade repetiu a lógica histórica, haja vista que concen-

trou enorme capacidade de controle de agenda legislativa

no Poder Executivo, e de revisão desta atividade no Poder

Judiciário. Refém das medidas provisórias e do pedido de ur-

gência de um lado (d. PILATII, 1999); e do controle de cons-

titucionalidade, de outro, o Poder Legislativo, antes mario-

nete de ditaduras sucessivas no Brasil, continua a ter enorme

desprestígio, malgrado o fato de ser, dos três, o mais poroso

poder em relação aos discursos de formação de vontade

democrática oriundos da esfera pública política informal (d.HABERMAS,2001: 354 e 355)17.

Como não cumpriu a dinâmica inicial de unir estado de

direito com democracia representativa, a evolução tenta-

da no Brasil para uma democracia "participativa" a partir de

uma arena pública "judicializada" (d. BONAVIDES, 1996) não

pode senão reproduzir, neste nível, as patologias democrá-

ticas que o caracterizam desde sempre. Não há salvadores

messiânicos. Como bem pontua Gisele Cittadino (2003,

39), para que se constitua uma democracia contemporâne

no Brasil, dado o pluralismo social que o caracteriza, é pre-

ciso notar que

Sea Constituição brasileira não pode ser tomada comUI7IQ

ordem particular de valores, é preciso, portanto, imple-mentar e inscrever os seusprincípios em nossa históriap0-

lítica. Para isso, o processo de "judiciaJização da política'não precisa invocar o domínio dos tribunais, nem defellder uma ação paternaJista por parte do PoderJudiciário.J

própria Constituição de 1988 institui diversos mecanismo.processuais que buscam dar eficácia aos seusprincípio5,1

essa tarefa é de responsabilidade da uma cidadania jundica mente participativa que depende, é verdade, da atll

ação dos tribunais, mas sobretudo do nível de pressãomobilização política que, sobre eles,se fizer.

Só assim - também no Brasil - pode medrar o projet

de autonomia que faz do cidadão. autor e destinatário dGnormas sociais - e jurídicas, especialmente -, com apoio er

uma alimentação circular entre sua autonomia privada esu

autonomia pública (d. HABERMAS, 2001: 287 e s.).E,a fir

de que isso ocorra, é necessário que direitos fundamenta

e soberania popular se pressuponham construtivamenl

(d. HABERMAS, 2003), com o Judiciário somente garantil

do esta relação, guardadas as decisões substantivas sobre

vida político-social para a dinâmica dos discursos polltío

assim estabelecida. E isto, no Brasil, como fora dele, só px

ser adquirido pela educação cívica lenta, gradual e dirigic

justamente à autonomia público-privada dos sujeitos I

direito; logo, dos cidadãos (d. HABERMAS, 1997). O estal

foi o obstáculo histórico na formação desta autonomia. N;é ele quem vai, agora, conseguir fomentá-Ia, segundo ur

nova eleição do pai da sociedade. ~ hora, definitivamerr

de matar o nosso pai primordial e estabelecer a esfera~

blica brasileira.

17 Aliás, Ingeborg Maus (2000) é especialmente feliz em "eximir" o legislativo de "culpa" no advento da crise democrática alemã, padvento do nazismo, antes apoiada na época, pelo Poder Judiciário.

72 JULHO .. DEZEMBRO 2l)08

Bibliografia

BARROSO,Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitu-

cionalização do direito: O triunfo tardio do direito consti-

tucional no Brasil. Disponível em: <http://www.migalhas.

com.br>. Acesso em: 05 jan. 2006

BÓCKENFÓRDE,Ernst Wolfgang. Origen e Cambio dei con-

ceptode Estado de Derecho. In: . Estudios sobre

elEstadode Derecho y Ia democracia. Trad. Rafael Agapito

Serrano.Madrid: Trotta, 2000. p. 17-45.

BONAVIDES,Paulo. Curso de direito constitucional. 6.ed. São

Paulo:Malheiros, 1996.

BUTTLE,Nicholas. Republican constitutionalism: A roman

ideal.In: TheJournal of Political Philosophy. Oxford, v. 9, n. 3,

2001.p. 331-349.

CATIONIDE OUVERA, Marcelo Andrade. Minorias e demo-

craciano Brasil.Direito, Estado e Democracia: entre a (in)efeti-

vidadee o imaginário social (Revista do Instituto de Herme-

nêuticaJurídica). Porto Alegre, v. 1, n. 4, 2006. p, 307-322.

CITIADINO,Gisele. Princípios constitucionais, direitos fun-

damentaise história. In: PEIXINHO, M. M.; GUERRA, Isabella

Franco;NASCIMENTOFILHO, F.Osprincípios na constituição

de 1988.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 101-108.

_____ ..Judicialização da política, constitucionalismo

democráticoe separação de poderes. In: WERNECKVlANNA,

Luiz(org.).A democracia e os três poderes no Brasil. Rio de Ja-

neiro:IUPERJe Belo Horizonte: UFMG, 2003. p. 17-42.

CRUZ,LuisM. La constitución como orden de valores: Proble-

masjurídicos e políticos: Um estudio sobre Ias orígenes dei

neoconstitucionalismo.Madrid: Colmares, 2005.

FERRY,Luc; RENAULT,Alain. Filosofía política: De los dere-

chosdei hombre a Ia idea republicana. México: Fondo de

CulturaEconómica, 1997.

FAVOREU,Louis. Les cours constitutionelles. 3.ed. Paris: PUF,

1996. (collection Que sais-je?).

GRIFFIN, Stephen M. American constitucionalism: From

theory to politics. Princeton: Princeton University, 1996.

HABERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade

aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a

interpretação pluralista e "procedi mental" da constituição.

Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio

Fabris, 2002

HABERMAS, Jürqen, Moral development and ego identity.

In: . Communication and the evolution of society.

Trad. Thomas McCarthy. Boston: Beacon, 1979. p. 69-94.

______ . The theory of communicative action. Life-

world and the systems: a critique of functionalist reason.

Trad. Thomas McCarthy. Boston: Beacon, 1987. v. 2.

______ . Between facts and norms: Contributions to

a discourse theory of law and democracy. 4.ed. Trad. William

Rehg. Cambridge: MIT, 2001.

______ . Sobre a legitimação pelos direitos huma-

nos. In: MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz. Direito e

legitimidade. São Paulo: Landy, p. 67-82.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26.ed.

17.reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

JAFFRO, Laurent. ttica e moral. In: BOYER, Alain et aI. En-

saios de filosofia política. Trad. Fulvia Moretto. São Leopoldo:

Unisinos, 2001. p. 115-176.

LENNERTZ, Marcelo Rangel. Legitimação pelo procedimento

em Luhmann e Habermas. 2004. Monografia de Conclusão de

Curso (Bacharelado em Direito) - Faculdade de Direito, Ponti-

fícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

CADERNOS DO DEPARTAMENTO DE DIREITO 73

~ JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E SUBSTITUIÇÃO TECNOCRÁTICA:um réquiem para a democracia?

LOSURDO, Domenico. Democracia ou Bonapartismo. Rio de

Janeiro: UFRJ;São Paulo: UNESp,2004.

MATTEUCCI, Nicola. Liberalismo. In: BOBBIO, Norberto et

ai (coords.). Dicionário de Política. Brasília: Universidade de

Brasília, 1986. p. 686-705.

MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade: o

papel da atividade jurisprudencial na "sociedade órfã" Novos

estudos CfBRAP. São Paulo, n.O58, p. 183-202, novo2000.

MENDES, Gilmar Ferreira. Ação direta de inconstitucionali-

dade e ação declaratória de constitucionalidade. In: MEIRE-

LES, Hely Lopes. Mandado de segurança. 25a ed. atual. São

Paulo: Malheiros, 2003. p. 297-391.

NEVES,Marcelo. From the autopoiesis to the allopoiesis of

law. Journal of Law and Society. Oxford, v. 28, n.O2, p. 242-

264, jun. 2006.

PÁDUA,João Pedro Chaves Valladares. Atualidade de Raymun-

do Faoro e a crítica à "socioloqia da inautentlddade" Cadernos

PEr-Jur.Rio de Janeiro, 1°semestre de 2006. (no prelo)

______ ,.Aprisionamento do sujeito e possibilidade

democrática: algumas considerações sobre o pós-modernis-

mo. Disponível na Internet: http://www.mundojuridico.

adv.br. Acesso em 09 out. 2007.

PILATTI, Adriano. O processo legislativo na Constituiçã(

1988.ln: CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. 1988-1.

uma década de constituição. Rio de Janeiro: Renovar, I!

p.75-92.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos, o princípio da di~

dade da pessoa humana e a Constituição Brasileira de 19

(Neo)constitucionalismo: ontem, os códigos; hoje, as con

tuiçôes. Porto Alegre, v. 1, n.O2, p. 79-100, 2004 (Revista

Instituto de Hermenêutica Jurídica).

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Paradoxos do libera

mo: teoria e história. 3a ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999.

SOUZA, Jessé.A modernização seletiva: uma reínterpretaç

do dilema brasileiro. Brasília: UNB, 2000

WERNECK VIANNA, Luiz et aI. Corpo e alma da magistratL

brasileira. Rio de Janeiro: Reyan, 1997.

_____ . A judicialização da polftica e das relações!

ciais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.

ZAGREBELSKY, Gustavo. fI derecho ductile: Lei, deredu

justicia. Trad. Marina Gascón. Madrid: Trotta, 1995.

74 JULHO - DEZEMBRO 2008