Juarez Cirino dos Santos

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Juarez Cirino dos Santos

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Capa:Glaucia Andréia Mueller Pacheco

Projeto Gráfico:Aliana Cirino Simon

Santos, juarez Cirino dosDireito penal: parte geral / Juarez Cirino dos Santos.

- 3. ed. - Curitiba: ICPC ; Lumen Juris, 2008.784p.; 23cm.

ISBN 978-85-375-0182-5 Inclui índice.Bibliografia: p. 725-753.

1. Direito penal. 2. Direito penal - Brasil. I. Título.

CDD (21a ed.) 345.81

Dados internacionais de catalogação na publicação Bibliotecária responsável: Mara Rejane Vicente Teixeira

N ota d o A u t o r para a 3 a e d ição

mA 3a edição de DIREITO PENAL - PARTE GERAL aparece

com alterações indicadas por razões científicas, didáticas ou de simples atualização em face de leis penais recentes, além de acréscimos substanciais em alguns capítulos - por exemplo, sobre o conceito de bem jurídico, como critério de criminalização e objeto de proteção penal, conforme domonstra a sobrevivência da sociedade capitalista; sobre problemas de constitucionalidade dos crimes de omissão imprópria, resultantes da indeterminação legal da extensão do dever de garantia; e sobre a base estrutural e as formas ideológicas da concepção materialista da história, assumida pelo discurso crítico da teoria criminológica da pena.

O rápido esgotamento da 2a edição deste livro confirma, mais uma vez, o anseio generalizado de professores e estudantes da ciência criminal, assim como de profissionais do Sistema de Justiça Criminal, por uma teoria crítica e democrática do Direito Penal, capaz de reduzir a repressão seletiva de marginalizados sociais, penalizados pelas condições adversas de vida em sociedades desiguais.

Expresso meus especiais agradecimentos à minha secretária Glaucia Andréia Mueller Pacheco, responsável pelo esmerado trabalho de formatação final do texto, bem como à acadêmica de Direito Aliana Cirino Simon - também minha sobrinha e estagiária do Escritório de Advocacia -, co-responsável pelo árduo trabalho de revisão gráfica e ortográfica do livro.

Curitiba, novembro de 2007. J u a r e z C ír in o d o s S a n t o s

A presen tação( I a EDIÇÃO)

O processo intelectual de produção de DIREITO PENAL (Parte Geral) corresponde à cronologia do interesse científico na matéria: o interesse dogmático no conceito analítico do crime produziu o livro A. moderna teoria do fato punível\ cora 4 edições nos últimos cinco anos; depois, o interesse criminológico na pena criminal engendrou o livro Teoria da pena (fundamentos políticos e aplicaçãojudiciai'), publicado em 2005; por último, o interesse político nos objetivos e princípios do Direito Penal foi condensado na Teoria da lei penal’ apresentada na primeira parte deste livro. O sistema de Direito Penal formado pela teoria da lei penal, do fato punível e da pena pode ser assim apresentado:

A Teoria da Lei Penal destaca os objetivos diferentes atribuídos ao Direito Penal nas sociedades contemporâneas: os objetivos declarados de proteção de bens jurídicos atribuídos pelo discurso oficial e os objetivos reais de garantia das relações de propriedade e de poder atri­buídos pelo discurso criminológico. Essa perspectiva crítica define as premissas de um projeto teórico democrático, comprometido com a redução do flagelo social produzido pelo sistema penal nas sociedades capitalistas, assumindo como modelo programático as propostas do Direito Penal Mínimo. A principal influência filosófica e política sobre o tema provém de BARATTA (Criminologia crítica e crítica do direito penal, 1999) e de ALBRECHT (Kriminologie, 1999).

A Teoria do Fato Punível, pesquisada no Institut für Rechts- und Sozialphilosophie da Universidade do Saarland, ALEMANHA, descreve o estado atual de desenvolvimento da dogmática penal alemã — a matrix do pensamento científico do direito penal conti- nental-europeu e latino-americano —, com um capítulo novo sobre responsabilidade penal da pessoajurídica, tema controvertido na literatura

e jurisprudência brasileiras.

Definir o sistema de fato punível do Direito Penál brasileiro com as categorias científicas da moderna dogmática penal surgiu como tarefa de grande interesse teórico e prático. A armadura teó­rica utilizada para construir o sistema de fato punível se enraíza no conjunto da atual literatura jurídico-penal alemã, representada por autores de grande prestígio científico — como Winfried HASSEMER, Harro OTTO, Kristian KÜHL, Fritjof HAFT, entre outros —, mas a influência decisiva sobre o modelo de fato punível desenhado no texto provém de duas monumentais construções científicas da teoria penal universal: JESCHECK/WEIGEND (Lehrbuch des Strafrechts, 1996, 5a edição) e, de modo especial, ROXIN ÇStrafrecht, 1997, 3a edição).

A Teoria da Pena indica os fundamentos políticos e os proble­mas jurídicos da repressão penal nas formações sociais capitalistas, permitindo enfocar sob outra luz decisões sobre necessidade e suficiência da sanção penal em processos criminais. O discurso do texto, sob clara influência de RUSCHE/KIRCHHEIMER (Punishment and social structure, 1939), MELOSSI/PAVARINI (Carcely fabrica, 1980) e, como sempre, BARATTA (Criminologia crítica e crítica do direito penal.\ 1999), tem por objeto o conceito., funções, sistema, aplicação, substituição e extinção dapena, além das medidas de segurança, da ação penal e, agora, um capítulo sobre criminologia e política criminal.

Assim, as questões técnicas da pena criminal são inseridas em perspectiva criminológiça: em sociedades desiguais, aplicar penas criminais não significa quantificar punições, mas administrar confli­tos ideológicos e emocionais conforme parâmetros autoritários ou democráticos de controle social. Absolver ou condenar acusados criminais não são decisões neutras, regidas pela dogmática como cri­tério de racionalidade, mas exercício de poder seletivo orientado pela ideologia penal, quase sempre ativada por estereótipos, preconceitos e outras idiossincrasias pessoais, por sua vez desencadeados por in-

dicadores sociais negativos de pobreza, desemprego, marginalização etc. Conhecer as premissas ideológicas do poder punitivo é condição para reduzir a repressão seletiva do Direito Penal, mediante prática judicial comprometida com o valor superior da democracia, que começa pela gar^itia do indivíduo em face do poder repressivo do Estado, continua pela promoção dos direitos humanos da população criminalizada e se consolida com a plena realização da cidadania e da dignidade humana.

Curitiba, abril de 2006. Juarez Cirino dos Santos

S u m ário

^ Primeira P arte

T eoria da L ei P enal

C apítulo 1

D i r e i t o P e n a l .................................................................... ........ ......... .................... .3I. Conceito de Direito Penal .................................................................................. 3II. Ob j etivos do D ireito Penal..................................................................................4

1. Objetivos declarados do discurso jurídico oficial..................................52. Objetivos reais do discurso jurídico crítico.......................................... 6

2.1. Direito Penal e desigualdade social...............................................92.2. Bem jurídico: ainda um conceito necessário...........................14

Capítulo 2

P r in c íp io s d o D i r e i t o P e n a l ........................................................................... 19I. Princípio da legalidade........................................................................................20

1. Proibição de retro atividade da lei penal............................................... 212. Proibição de analoga da lei penal (in malam partem j........................ 213. Proibição do costume como fonte da lei p en a l.................................224. Proibição de indeterminação da lei penal..............................................23

II. Princípio da culpabilidade.......................................................................... 24III. Princípio da lesividade.................................................................................26IV. Princípio da proporcionalidade ............................................................... 27V. Princípio da humanidade ............................................................... .......... 30VI. Princípio da responsabilidade penal pessoal........................................32

CAPÍTULO 3

V a l id a d e d a L e i P e n a l ..........................................................................................35A ) V a lid a d e d a L e i P e n a l n o E s p a ç o ...............................................36I. O critério da territorialidade.............................................................................36

IX

,37,38.39,41.42.43.44.45.47.47.47.48.48.48

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1. Conceito de território .....................................2. Imunidades diplomáticas ................................3. Navios e aviões públicos e privados ...........4. Lugar do crim e..................................................

II. Critério da extraterritorialidade...............................1. Princípio da proteção .......................................2. Princípio da personalidade............................3. Princípio da competência universal ............

III. Extradição .....................................................................1. Condições de concessão.................................2. Compromissos do Estado requerente.........3. Exclusão da extradição ...................................4. Proibição de extradição dissimulada...........5. Um caso histórico.............................................

B ) V alid ad e d a L ei P en al n o T e m p o ........I. O critério geral: princípio da legalidade................II. O critério específico: lei penal mais benigna......

1. Leis penais em branco ....................................2. Leis penais temporárias e excepcionais.....3. Leis processuais penais ..................................4. Lei de execução penal.....................................5. Jurisprudência ..................................................

C apítulo 4

In terpretação da L ei P e n a l ...............................I. O significado de norma jurídica .............................II. A interpretação da norma p en a l...........................

1. Técnicas de interpretação...............................2. Sujeitos da interpretação.................................3. Resultados da interpretação..........................4. Analogia e interpretação..................................

III. O silogismo como lógica de subsunção jurídicaIV. Fontes da norma penal.............................................

x

Segunda Parte

T e o r i a d o F a t o P u n í v e l

C apítulo 5F ato P u n ív e l ...............................................................................................................73

I. Definições de crime............................................................................................... 73II. Os sistemas de fato punível.................................................................................75

C apítulo 6T eo ria da A ç ã o ............................................................................................................... 83

I. Introdução.................................................................................................................83II. Definições do conceito de ação......................................................................... 84

1. Modelo causai de ação................................................................................ 842. Modelo final de ação....................................................................................863. Modelo social de ação..................................................................................914. Modelo negativo de ação............................................................................955. Modelo pessoal de ação.............................................................................. 97

III. Funções do conceito de ação..............................................................................99IV. Conclusão............................................................................................................... 102

C apítulo 7T eo ria do T i p o .............................................................................................................105

I. Conceito e funções do tipo ...............................................................................105II. Desenvolvimento do conceito de tipo........................................................... 106III. Adequação social e exclusão de tipicidade................................................... 109IV. Elementos constitutivos do tipo legal: elementos objetivos,

subjetivos, descritivos e normativos................................................................110V. Modalidades de tipos........................................................................................... 111

1. Tipos de resultado e de simples atividade........................................... 1112. Tipos simples e compostos......................................................................1113. Tipos de lesão e de perigo....................................................................... 1124. Tipos instantâneos (ou de estado) e permanentes (ou duráveis)..... 1135. Tipos gerais, especiais e de mão própria..............................................1146. Tipo básico, variações do tipo básico e tipos independentes......1157. Tipos de ação e de omissão de ação....................... .............................1168. Tipos dolosos e imprudentes..................................................... ......... 117

C apítulo 8O T ipo de I n ju sto D o loso de A ç ã o .........................................................119

I. Introdução......................... ..................................................................................... 119II. Tipo objedvo......................................................................................................... 120

1. Causação do resultado...............................................................................1211.1. Teoria da equivalência das condições......................................... 1221.2. Teoria da adequação..........................................................................128

2. Imputação objetiva do resultado........................................................... 1302.1. Ausência de risco do resultado......................................................1312.2. Risco não realizado no resultado................................................. 132

III. Tipo subjetivo........................................................................................................1341. Dolo................................................................................................................134

1.1. Espécies de dolo................................................................................ 137a) dolo direto de Io grau..................................................................140b) dolo direto de 2o grau.................................................................. 141c) dolo eventual..................................................................................141

1. teorias da vontade...................................................................1452. teorias da representação.............................. *.....................1473. teorias igualitárias....................................................................150

1.2. Dolo alternativo..................................................................................1511.3. A dimensão temporal do dolo...................................... ............... 152

2. Erro de tipo................................................................................................. 1522.1. Erro de tipo e erro de subsunção................................................1532.2. A intensidade de representação das circunstâncias de

fato......................................................................................................... 1563. Atribuição subjetiva do resultado em desvios causais................... 158

1. Desvios causais regulares................................................................... 1582. Aberratio ictus.......................................................................................... 1593. Hipóteses de troca de dolo.................................................................1614. O chamado dolo geral......................................................................... 1615. Erro sobre o objeto..............................................................................163

4. Elementos subjetivos especiais..............................................................163

C apítulo 9O T ipo de I n ju st o I m pr u d e n t e ..................................................................... 169

I. Introdução........................................ ..................................................................... 169II. O tipo de'injusto de imprudência....................... ....... ........................170III. Critérios de definição da imprudência.................. ..............................1......173

xii

1. Ação lesiva do dever de cuidado ou do risco perm itido................175a) O modelo de homem prudente........................................................176b) O dever de informação sobre riscos e de abstenção de

ações perigosas.......................................................................................177c) O binômio risco/utilidade na avaliação de ações perigosas......178d) O pi^icípio da confiança.................................................................... 179

2. Resultado de lesão do bem jurídico...................................................... 1813. Imputação do resultado ao autor.......................................................... 182

3.1. Ausência de lesão do risco permitido ou do deverde cuidado.................................. ......................................................... 184

3.2. Resultados fora do âmbito de proteção do tipo......................1851. Auto-exposição a perigo............................................................ 1852. Exposição consentida a perigo criado por outrem.........1863. Perigos situados em áreas de responsabilidade alheia.....1874. Danos psíquico-emocionais sobre terceiros........................ 1885. Outras conseqüências danosas posteriores.......................... 188

3.3. Resultados iguais em condutas alternadvas conformesao direito................ .............................................................................189

3.4. Previsibilidade e previsão do resultado...................................... 190a) Imprudência inconsciente......................................................191b) Imprudência consciente................................................ ......... 192

IV. Tipo objetivo e tipo subjedvo............................................................................196V Crimes qualificados pelo resultado: combinações dolo/imprudência.. 197

CAPÍTULO 10O T ip o de I n ju s to de O m issão de A ç ã o ................................................ 201

I. Introdução................................................................................................................201II. Ação e omissão de ação...................................................................................... 201III. Omissão de ação própria e imprópria.............................................................204IV. A omissão de ação imprópria e o princípio da legalidade........................205

1. A proibição de analogia penal................................................................. 2062. A proibição de indeterminação penal....................................................... 207

V. Estrutura dos tipos de omissão de ação.........................................................2091. Elementos comuns do tipo objetivo da omissão própria e

imprópia....................................................................................................... 2101.1. Situação de perigo para o bem jurídico......................................2101.2. Poder concreto de agir..................................................................... 2111.3. Omissão da ação mandada.............................................................212

2. Elementos específicos do dpo objetivo da omissão de açãoimprópia........................................................................................................2122.1. Resultado típico.................................................................................2122.2. Posição de garantidor......................................................................213

a) Obrigação legal de cuidado, proteção ou vigilância..........215b) Assunção da responsabilidade de impedir o resultado...215c) Comportamento anterior criador do risco do

resultado..........................................................................................2163. O tipo subjetivo da omissão de ação................................................... 218

3.1. Espécies de dolo na omissão de ação .......... ...............................2193.2. Objeto do dolo na omissão de ação............................................ 2193.3. O erro de tipo na omissão de ação...............................................220

VI. Consciência do injusto e erro de mandado.................................................. 221VII. Tentativa e desistência na omissão de ação.................................................. 221VIII. A exigibilidade da ação mandada....................................................................223

CAPÍTULO 11A n t i ju r id ic id a d e e J u s t i f i c a ç ã o .....................................................................225

I. Teoria da antijuridicidade...................................................................................2251. Antijuridicidade e injusto.........................................................................2252. Fundamento das justificações................................................................2303. Conhecimento e erro nas justificações................................................2314. Efeito das justificações.................................... ....................................... 234

II. Justificações........................................................................................................... 234A) Legítima defesa........................................................................... ............... 235

1. Situação justificante...................... ...........................................................2361. Agressão a bem jurídico..................................................................... 2362. Injustiça da agressão......................................................... .................. 2373. Atualidade/iminência da agressão...................................................2374. Direito próprio ou de outrem.......................................................... 238

2. Ação justificada.......................................................... ............................... 2392.1. Elementos objetivos da legítima defesa.................................... 240

1. Necessidade dos meios de defesa..........................................2402. Moderação no emprego dos meios necessários.................241

2.2. Elementos subjetivos da legítima defesa................................... 2422.3. A Permissibilidade da legítima defesa............... ........................ 243

3. Particularidades............... ................... ...... .......... ............................... .....245a) Legítima defesa de outrem.............................................. .245

xiv

b) Extensão da justificação......................................................................246í c) Excesso de legítima defesa................................................... 247

B) Estado de Necessidade.................................................................................. 2471. Situação justificante....................................................................................248

a) Perigo para o bem jurídico.................................................................249b) Atualidade do perigo .............................................................................249c) Involuntariedade do perigo................................................................249d) Inevitabilidade do perigo....................................................................250

2. Ação justificada........................................................................................... 251t 2.1. Elementos objetivos do estado de necessidade............................... 251

1. Critério do bem jurídico.............................................................. 2522. Critério da pena............................................................................... 2533. Perigos criados pela vitima.......................................................... 2534. Ponderação de vida contra vida.................................................2545. A cláusula de razoabilidade.........................................................257

2.2. Elementos subjetivos do estado de necessidade......................2583. Posições especiais de dever...................................................................... 259

í 1. Dever de proteção ã comunidade............................................. 2592. Dever resultante da causação do perigo........................................2603. Dever da posição de garante ......................... ................2604. Dever de suportar determinados perigos.............. ....................... 261

( 4. Conflito de interesses do mesmo portador....................................... 263C) Estrito cumprimento de dever legal.............. ...... .................................... 264

1. Situação justificante...................................................................................2642. Ação justificada...........................................................................................265

■ 2.1. Ruptura dos limites do dever na aplicação da lei............................. 2652.2. Cumprimento de ordens antijurídicas........................................ 267

3. Elementos subjetivos do estrito cumprimento de dever legal....268D) Exercício regular de direito.......................................................................... 268

1. Situações justificantes................................................................................2681. Atuação pro magistratú.......................................................................... 2682. Direito de castigo..................................................................................269

2. Ação justificada...........................................................................................270' 3. Elementos subjetivos no exercício regular de direito.................... 270

E) Consentimento do titular do bem jurídico..............................................2711. Consentimento real...................................................................................272

a) Objeto do consentimento................................ ..................................273\ b) Capacidade e defeitos de consentimento......................................274

xv

c) Manifestação do consentimento..........................................2752. Consentimento presumido....................................................................277

F) Justificação nos tipos de imprudência...................................................... 2781. Legítima defesa..........................................................................................2792. Estado de necessidade.............................................................................2803. Consentimento do titular do bem jurídico........................................280

C apítulo 1 2C u lp a b il id a d e e E x c u lp a ç ã o ...........................................................................281

I. Conceito de culpabilidade..................................................................................2811. Desenvolvimento do conceito de culpabilidade.............................. 282

1.1. Conceito psicológico de culpabilidade.......................................2831.2. Conceito normativo de culpabilidade.........................................284

2. Definições materiais do conceito normativo de culpabilidade......287a) Poder de agir diferente........................................................................288b) Atitude jurídica reprovada................................................................. 289c) Responsabilidade pelo próprio caráter.......................................... 289d) Defeito de motivação jurídica.......................................................... 290e) Dirigibilidade normativa....................................................................290

3. O princípio da altetidade como base da responsabilidade social.... 292II. Estrutura do conceito de culpabilidade........................................................ 294

1. Capacidade de culpabilidade................................................................... 2941.1. Incapacidade de culpabilidade...................................................... 2951.2. Capacidade relativa de culpabilidade..........................................2991.3. Problemas político-criminais especiais.......................................300

a) Emoção e paixão......................................................................... 301b) A.ctio libera in causa ........................................................................302

2. Conhecimento do injusto e erro de proibição................................. 3052.1. Conhecimento do injusto.................................... .......................... 306

a) Teorias sobre conhecimento do injusto e erro deproibição........................................................................................ 307

b) Objeto da consciência do injusto........................................... 310c) Divisibilidade e formas de conhecimento do injusto......313d) Conhecimento condicionado do injusto..............................314

2.2. Conseqüências legais do erro de proibição..............................3152.3. Natureza evitável ou inevitável do erro de proibição.................3162.4. Meios de conhecimento do injusto ........................ ................... 3172.5. Erro de proibição na lei penal brasileira......................... ........ 320

xvi

2.6. Espécies de erro de proibição na lei penal brasileira.............3261. Erro de proibição direto.............................................................326

a) Erro sobre a existência da iei penal................................... 327b) Erro sobre a validade da lei penal......................................327c) Erro sobre o significado da lei penal................................ 328

2.«Íirro de permissão........................................................................3283. Erro de tipo permissivo.....................................................328

3. Exigibilidade de comportamento diverso (ou normalidade dasituação da ação)......................................................................................... 3303.1. Normalidade das circunstancias e exigibilidade jurídica.....3303.2. Inexigibilidade como fundamento gera l de exculpação.......... 3313.3. As situações de exculpação......... ...................................................333

3.3.1. Situações de exculpação legais...........................................334a) Coação irresistível............................................................ 335b) Obediência hierárquica....................................................336c) Excesso de legítima defesa real....................................338d) Excesso de legítima defesa putativa........................... 342

3.3.2. Situações de exculpação supralegais................................343a) Fato de consciência.......................................................... 343b) Provocação da situação de legítima defesa...............345c) Desobediência civil.......................................................... 345d) Conflito de deveres..........................................................346

CAPÍTULO 13O utras C ondições de P u n ibilid a d e ............................................................351

I. Introdução................................................... .............................................................351II. Condições objetivas de punibilidade............................................................... 352III. Fundamentos excludentes de pena..................................................................353

CAPÍTULO 14A u to ria e P articipação ..........................................................................................355

I. Introdução................................................................................................................355II. Conceito de autor...................................................................................................356

1. Teoria unitária de autor........................................ .................................... 3562. Conceito restritivo de autor................................................................... 3573. Teoria subjetiva de autor..........................................................................3584. Teoria do domínio do fato......................................................................359

III. Formas de autoria.......... .......................................................................................361

xvii

1. Autoria direta................................................................................................3612. Autoria mediata........................................................................................... 362

2.1. Hipóteses de autoria mediata.......... ............................................. 3632.2. Problemas especiais: erro, excesso, tentativa e omissão de

ação na autoria mediata...................................................................3653. Autoria coletiva, ou co-autoria.............................................................. 367

3.1. Decisão comum para o fato........................................................... 3693.2. Realização comum do fato............................................................. 3703.3. Co-autoria e tentativa........................................................................3713.4. Co-autoria e omissão de ação........................................................372

IV. Participação........................................... ............. ............................................. 3721. Instigação............ ............................... ......................................................... 375

a) O dolo do instigador e a decisão do autor............ ...............376b) O dolo do instigador e o fato do autor................................. 377c) Erro de tipo e erro de tipo permissivo do instigador................378

2. Cumplicidade............................................................................................... 379a) Natureza da ajuda material.................................................................379b) O dolo do cúmplice e o fato principal...................................380

3. Concorrência de formas de participação..........................................3814. Participação necessária..............................................................................3825. Tentativa de participação............. ............................................................383

V. Comunicabilidade das circunstâncias ou condições pessoais................. 383

CAPÍTULO 15T entativa e C o n su m a çã o .................................................................................... 385

I. Introdução...........................................................................................................385II. Teorias da tentativa.............................................................................................386

1. Teoria objetiva................................................................. .......................... 3871.1. Teoria objetiva form al.....................................................................3871.2. Teoria objetiva material...................................................................388

2. Teoria subjetiva.......................................................................................... 3893. Teoria objetivo-subjetiva (ou objetiva individual)............................ 3904. O tipo de tentativa..................................................................................... 3925. Objeto da tentativa....................................................................................3946. Punibilidade da tentativa............................ ........................ ....................3977. Tentativa inidônea ....................................... ....... ..................................... 3988. Delito de alucinação................................................................................. 400

III. Desistência da tentativa......... ................................ ......~..................................401

xviii

1. Teorias sobre desistência da tentativa...................................................4011.1. Teoria de politica criminal................................................................4011.2. Teoria da graça.................................................................................... 4021.3. Teoria dos fins da pena.....................................................................402

2. Tentativa inacabada e acabada.................................................................4023. Estrula$ra da desistência da tentativa..... :............................................. 404

3.1. Desistência voluntária.............................................................................. .......... 4043.2. Arrependimento eficaz.....................................................................405

4. Tentativa falha............................................................................... .............. 4065. Extensão dos efeitos da desistência da tentativa...............................4076. Arrependimento posterior....................................................................... 409

CAPÍTULO 16U nidade è P luralidade de F atos P u n ív e is ..........................................411

I. Introdução...................................................... ........................................................ 411II. Unidade e pluralidade de ações típicas..........................................................412III. Pluralidade material de fatos puníveis............................................................414IV. Pluralidade formal de resultados típicos........................................................416V. Unidade continuada de fatos típicos.............................................................^420VI. A pena de multa na pluralidade de fatos puníveis...................................... 424VII. Limite das penas privativas de liberdade......... ............................................. 425VIII. Pluralidade aparente de leis................................................................................426

1. Especialidade................................................................................................4262. Subsidiariedade.............................................................................................4273. Consunção.................................................................................................... 4284. Antefato e pós-fato co-punidos.............................................................429

C apítulo 17R esponsabilidade P en al da P essoa J u r íd ic a ....................................... 431

I. Introdução...............................................................................................................431II. A Constituição da República e a responsabilidade penal da pessoa

jurídica...................................... ................... ............................. ............................. 433III. A criminalização da pessoa jurídica na lei brasileira....... .......................... 437IV. Lesão do princípio da legalidade..................................................................... 439

1. Lesão da fórmula nullum crimen sine lege.................................................4392. Lesão da fórmula nullapoena sine k ge .....................................................444

V. Lesão do princípio da culpabilidade................................................................447VI. Lesão do princípio da personalidade da pena.............................................. 451VII. Lesão do princípio da punibilidade............ i..................... ............................. 453VIII. Conclusão................................................. ...................... -...................................455

xix

T erceira P arte

T e o r i a d a P e n a

C apítulo 18

P o lítica C r im in a l e D ire ito P e n a l ........................................................... 459I. O discurso oficial da teoria jurídica da pena............................................... 461

1. A pena como retribuição de culpabilidade.........................................4612. A pena como prevenção especial..........................................................4643. A pena como prevenção geral........................................................ .....4664. As teorias unificadas: a pena como retribuição e prevenção......469

II. O discurso crítico da teoria criminológica da pena..................... ........... 472A) A crítica negativa/agnóstica da pena criminal........... ........................... 472B) A crítica materialista/dialética da pena criminal...................................477

1. A pena como retribuição equivalente do crime..................................4772. A prevenção especial como garantia das relações sociais............... 4833. A prevenção gera l como afirmação da ideologia

dominante............................................................................................... 4884. As teorias unificadas como integração das funções manifestas

ou declaradas da pena criminal..........................................................4935. Conclusão................................................................................................494

C apítulo 19

P risão e C o n tro le S o c ia l .................................................................................. 499I. Introdução........................ .....................................................................................499II. A relação cárcere/fábrica............................................... ...................................... 502III. A origem da penitenciária.................................................................................503IV. O modelo filadelfiano de penitenciária.............................................................506V. O modelo auburniano de penitenciária......................................................... 507VI. Indústria do encarceramento: atualidade e perspectivas........................510VII. A privatização de presídios no Brasil........................................ ....................513

C apítulo 20

Q S iste m a P en al B rasileiro .... .... ........... .................. .................................517, I. Introdução................... ............................................................. .................... ......517

xx

II. A política penal da legislação brasileira.........................................................517III. Penas criminais.....................................................................................................520

1. Pena privativa de liberdade.......................................................................5211.1. Regimes de execução das penas privativas de liberdade......522

a) Regime fechado.............................................................................526b)íRegime semi-aberto..................................................................... 527c) Regime aberto............. ...................................................527d) Regime especial para mulheres................................................ 529

1.2. Direitos e deveres do condenado................................................ 529a) Direitos do condenado...............................................................529b) Deveres do condenado.............................................................. 530c) Trabalho do condenado..............................................................531d) Remição penal...............................................................................532

1.3. A disciplina penal..............................................................................5341.3.1. Faltas disciplinares.................................................................5351.3.2. Sanções disciplinares e regime disciplinar

diferenciado.............................................................................535a) Advertência verbal e repreensão..................................536b) Suspensão ou restrição de direitos e isolamentoó

celular.......... .........................................................................536c) Regime disciplinar diferenciado.............. ....................536

1.4. Individualização da execução: classificação e examecriminológico.....................................................................................538a) Classificação dos condenados................................................ 538b) Exame criminológico...................... ...........................................538

1.5. Detração penal................................................................................... 5401.6. Limite das penas privativas de liberdade.................................... 541

2. Penas restritivas de direitos..................................................................... 5412.1. Pressupostos de aplicação das penas restritivas de

direitos.................................................................................................. 5422.2. Espécies de penas restritivas de direitos....................................544

a) Prestação pecuniária....................................................................544b) Perda de bens e valores...............................................................545c) Prestação de serviços à comunidade ou a entidades

públicas............................................................................................546d) Interdição temporária de direitos............................................548e) Limitação de fim de sem ana.................................................... 549

XXI

3. Pena de multa..............................................................................................5493.1. Cominação da pena de m ulta....................................................... 5503.2. Aplicação da pena de multa...........................................................551

a) A quantidade de dias-multa........................................................ 551b) O valor do dia-multa................................. ...................................551

3.3. Execução da pena de multa...........................................................5524. Conversibilidade executiva das penas criminais............................... 5545. Cominação das penas criminais.............................................................556

CAPÍTULO 2 1

A p lic a ç ã o das P e n a s C r im in a is .......................................................................561I. A sentença criminal............... ..............................................................................561

1. A sentença criminal absolutória....................................................... ....5612. A sentença criminal eondenatória.........................................................563

II. O método legal de aplicação da pena............................................................5641. Definição da pena-base: circunstâncias judiciais.............................. 567

1.1. Elementos do agente.......................................................................568a) Culpabilidade.............. ...... ........................................................... 568b) Antecedentes.................................................................................571c) Conduta social............................. ................................................572d) Personalidade.................................................................... ......... 572e) Motivos............. ....................... .................. ................................... 573

1.2. Elementos do fa to ..................................... .....................................574a) Circunstâncias.............................................................................. 574b) Conseqüências....................................... ..................................... .575

1.3. Contribuição da v ítim a.................................................................. 5752. Circunstâncias agravantes e atenuantes genéricas........................... 576

2.1. Circunstâncias agravantes............... ................................................578a) Reincidência.............................................. ....................................579b) Motivo fútil ou torpe................................................................. 582c) Facilitar ou assegurar a execução, ocultação,

impunidade ou vantagem de outro crime............................582d) Traição, emboscada, dissimulação ou outro recurso

que dificulte ou impossibilite a defesa da vítima ............. 583e) Emprego de veneno, fogo, explosivo* tortura ou

outro meio insidioso ou cruel, ou de qüe possa resultar perigo comum............................................................... ............583

f) Vitimização de ascendente, descendente, irmão oucôn juge.......................................................... ................................ 584

g) Abuso de autoridade ou prevalecimento de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade,ou com violência contra a mulher na forma

*ijde lei específica ........................................................................... 584h) Abuso de poder ou violação de dever inerente a

cargo, ofício, ministério ou profissão ...................................587i) Vitimização de criança, de maior de 60 anos, de

enfermo ou de mulher grávida................................................587j) Vítima sob imediata proteção da autoridade........................ 5881) Ocasião de calamidade pública (incêndio, naufrágio,

inundação etc.) ou de desgraça particular da vítima.......... 588m) Embriaguez preordenada..........................................................589

2.2. Circunstâncias agravantes do concurso de pessoas..............590a) Promover, organizar ou dirigir a atividade

criminosa coletiva.................................................................... 590b) Coagir ou induzir à execução material de crime.............591c) Instigar ou determinar ao crime pessoa dependente

ou impunível por condição ou qualidade, pessoal......... 591d) Executar ou participar.de crime mediante

pagamento ou promessa de recompensa........................ 5922.3. Circunstâncias atenuantes.......... .................. ............................... 592

a) Agente menor de 21 (data do fato) ou maior de 70anos (data da sentença)....,......................................................... 593

b) Desconhecimento da lei............................................................ 594c) Motivo de relevante valor social ou moral............................595d) Ação espontânea, imediata e eficiente, para evitar ou

reduzir as conseqüências do crime, ou reparação dodano antes do julgamento......................................................... 596

e) Coação resistível, cumprimento de ordem de autoridade superior ou violenta emoção provocadapor ato injusto da vítima............................................................ 597

f) Confissão espontânea de autoria de crime peranteautoridade.......................................................................................598

g) Influência de multidão em tumulto não provocado.......5982.4. Circunstâncias atenuantes inominadas...................................... 599

2.5. Concurso de circunstâncias legais............................................... 5992.6. Limites de agravação e de atenuação da pena..........................600

3. Alteradores especiais da pena: causas especiais de aumento oude diminuição da pena.............................................................................602

III. Efeitos da condenação....................................................................................... 6031. Efeitos genéricos.......................................................................................604

a) Tornar certa a obrigação de indenizar o dano............................ 604b) Perda dos instrumentos e do produto do crime........................604

2. Efeitos específicos............... ............................... .....................................605a) Perda de cargo, função pública ou mandato eletivo ............... 605b) Incapacitaçao para o pátrio poder, tutela ou curatela ............. 606c) Inabilitação para dirigir veículo.............. .........................................606

IV. Reabilitação.................................................................... .......................................6071. Conceito....................... ......... .................................................................... 6072. Objeto e objetivos................................................................ .................... 6073. Requisitos.....................................................................................................6084. Revogação........................................................................................... .......609

C apítulo 2 2

S u b s t i t u t i v o s P e n a is ..................................... ..... ....................................... 611I. Teoria dos substitutivos penais................... .................................................... 611

1. Teorias tradicionais...................................................................................612a) Explicações humanitárias................................................................. 612b) Explicações científicas....................................................................... 612

2. Teorias críticas............................................................................................ 613a) Superlotação carcerária.......................... ...........................................613b) Crise fiscal........................................................... .................................. 614c) Ampliação dó controle social........................... ...............................616

3. Conclusão........... ........................................................................................617II. Os substitutivos penais da legislação brasileira..........................................618

A) Suspensão condicional da pena........................................................... 6181. Pressupostos específicos.......................................................619

a) Jaras comum......... :.........................................................................6191) Pressuposto objetivo.................................................................6192) Pressupostos subjetivos................... ........................................619

b) Sursis especial............................... ............ .....C............................ ..6201) Pressupostos objetivos ......................................................... . . . . . . . 1 ........620

xxiv

2) Pressupostos subjetivos..............................................................620c) Sursis etário..................................................................... ................... 621

1) Pressuposto objetivo..................................................................6212) Pressupostos subjetivos............................................................ 622

d) Sursis por razões de saúde..............................................................622l^Pressuposto objetivo..................................................................6222) Pressupostos subjetivos..............................................................622

2. Pressuposto geral da suspensão condicional da p ena...............6243. Condições legais de execução............................................................. 6254. Condições judicia is de execução......................................................... 6265. Modificação das condições de execução....................................... 6266. Formalidades de concessão...............................................................6277. Revogação............................................................................................... 6288. Prorrogação do prazo......................................................................... 6309. Extinção da pena .................................................................................630

B) Livramento condicional............ .............................................................. 6311. Espécies de livramento condicional.................................................631

1.1. Pressupostos gerais......................................................................6321.2. Pressupostos específicos ..........................................................634

2. Condições de execução....................................................................... 6363. Formalidades de concessão............................................................... 6374. Revogação............................................................................................... 6375. Efeitos da revogação...........................................................................6386. Extinção da pena...................................................................................639

C) Os substitutivos penais da Lei 9.099/95: a transação p ena l e asuspensão condicional do processo ..................................................................6401. Transação penal......................................................................................641

1.1. Conceito....................... ....................................... ...........................6411.2. Requisitos da transação penal...................................................641

1.2.1. Requisitos positivos......................... ............................... 6411.2.2. Requisitos negativos........................................................642

1.3. Conseqüências jurídicas da transação penal.........................6452. Suspensão condicional do processo................................................645

2.1. Conceito.........................................................................................6452.2. Pressupostos de concessão ......................................................6462.3. Condições de execução.................... ..........................................6492.4. Revogação...................................................................................... 6502.5. Extinção da pena.................................. ........ .............................. 651

xxv

M edidas de S e g u r a n ç a ................................................. ................................653I. As vias alternadvas do Direito Penal brasileiro...........................................653II. Crise das medidas de segurança....................................................................... 654III. Medidas de segurança na legislação penal brasileira.................................. 656

1. Pressupostos das medidas de segurança............................................ 6581.1. A realização de fato previsto como crime..................................6581.2. A periculosidade criminal do autor ............................................659

a) a presunção legal de periculosidade criminal ..........................660b) a determinação judicia l de periculosidade criminal ...............660

2. Objetivos das medidas de segurança........................ ...........................6613. Espécies de medidas de segurança................. ........... ......................... 662

3.1. Hospital de custódia e tratamento psiquiátrico........................6633.2. Tratamento ambulatorial.................................................................664

4. Duração das medidas de segurança..................................................... 6655. A verificação de cessação da periculosidade criminal.................... 6676. Substituição e conversão das medidas de segurança.......................6687. Prescrição das medidas de segurança................................................. 669

C apítulo 24

A ção P e n a l ................................................... ....................... .........................................671I. As limitações democráticas do poder de punir................. ......................... 671II. Os princípios constitucionais do processo penal........................................671

1. Princípios de formação do processo................ .......... ......... ........... 6721. Princípio da oficialidade..................... .................. ............................. 6722. Princípio da acusação..........................................................................6733. Princípio da legalidade........................................................................6734. Princípio da oportunidade.................................................................6745. Princípio da instrução........................................................................ 674

2. Princípios da prova processual.............. ...............................................6751. Princípio da livre valoração da prova............................................. 6752. Princípio in dubio p ro reo...................................................................... 675

III. Ação penal............................................ .................................................................6771. Ação penal pública ....... ................ ................. ...... .................................. 679

1.1. Ação penal pública incondicionada............... ............................6791.2. Ação penal pública condicionada...............................................6801.3. Ação penal pública extensiva......................................................682

C apítu lo 2 3

xxvi

2. Ação penal privada....................................................................................6832.1. Ação penal privada subsidiária da ação pública...................... 6832.2. Transmissão do direito de queixa.................................................6832.3. Exdnção do direito de queixa................................................. .....684

C apítulo 25

E xtin ção da P u n ibilid a d e ................................................................................. 689I. Morte do agen te..........................................................:.....................................689II. Anistia, graça e indulto........................... ......................................... ....... ........ 690

1. Anistia............................................................................................................6912. G raça............................................................................................................. 6913. Indulto............................................................ ....................................... .....692

III. Descriminalização do fato............................... ................................................692IV. Prescrição, decadência e perempção...............................................................693

1. Prescrição.....................................................................................................6931.1. Prescrição antes do trânsito em julgado da sentença

criminal............................................................................................... 6941.2. Prescrição depois do trânsito em julgado da sentença

condenatória.......................................................................................6951.3. Prescrição pelos níveis de concretização da pena...........................696

1.3.1. Prescrição pela pena cominada.........................................6961.3.2. Prescrição pela pena aplicada.................................. ........ 697

1.3.2.1. Prescrição intercorrente.......................................6971.3.2.2. Prescrição da pena aplicada com trânsito

em julgado da sentença condenatória............. 697a) Prescroção retroativa........................................697b) Prescrição da pretensão executória............. 698

1.3.3. Prescrição pela pena virtual (ou perspectiva)...............6981.4. Redução e aumento dos prazos de prescrição........................ 6991.5. Prescrição das penas restritivas de direito................................ 7011.6. Prescrição da pena de m ulta......................................................... 7011.7. Prescrição das medidas de segurança.........................................7021.8. Causas impeditivas da prescrição................................................ 7021.9. Causas interruptivas da prescrição.............................................. 7031.10. Prescrição das penas menos graves com as mais graves....704

xxvü

2. Decadência................................................................................................. 7053. Perempção.................................... '............................................................705

V. Renúncia e Perdão... .......................................................................................... 7061. Renúncia....................................................... .’............................................. 7062. Perdão........................................................................................................... 706

VI. Retratação do agente........................................................................................ 707IX. Perdão judicial.....................................................................................................708X. A extinção da punibilidade nos tipos complexos, nos tipos

dependentes de outros tipos, nos tipos que pressupõem outrostipos, nos tipos qualificados pelo resultado e nos tipos conexos........709

XI. A extinção dà punibilidade no concurso de crimes................................ 710

CAPÍTULO 2 6

C r im in o lo g ia e P o lítica C rim in al .......................................................711I. Política criminal alternativa..............................................................................711

1. Origens Epistemológicas........................................................................7132. Criminalidade e imagem da criminalidade.........................................715

II. Direito Penal mínimo....................................................................................... 716III. Propostas de reforma da legislação penal..................................................719

1. Propostas de redução do sistema de justiça criminal.....................7192. Propostas de humanização do sistema penal...................................722

B ib lio g r a fia ................................................................................................................... 725

Í n d ice A lfabético R e m issiv o .................................................................. 743

P rim eira P arte

T e o r ia d a L ei P e n a l

C apítu lo 1

D i r e i t o P e n a l

4h

I. Conceito de Direito Penal

1. O Direito Penal é o setor do ordenamento jurídico que define cri­mes, comina penas e prevê medidas de segurança aplicáveis aos auto­res das condutas incriminadas. A definição de crimes se realiza pela descrição das condutas proibidas; a cominação de penas e a previsão de medidas de segurança se realiza pela delimitação de escalas punitivas ou assecuratórias aplicáveis, respectivamente, aos autores imputáveis ou inimputáveis de fatos puníveis. A descrição de condutas proibidas aparece em modelos abstratos de condutas comissivas ou omissivas, com as escalas penais respectivas, na parte especial do Código Penal; as espécies e a duração das medidas de segurança são indicadas em capí­tulo próprio da parte geral do Código Penal.

2. Assim definido, o Direito Penal tem por objeto condutas humanas des­critas de forma positiva (ações) ou de forma negativa (omissão de ações) em tipos legais de condutas proibidas. O tipo legal descrito em forma positiva cria um dever jurídico de abstenção de ação — por exemplo, subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel (art. 155, CP); o tipo legal des­crito em forma negativa cria um dever jurídico de ação — por exemplo, deixar de prestar assistênàa, quando possível fa^e-lo sem risco pessoal, ã criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida... (art. 135, CP). Logo a conduta humana objeto do Direito Penal pode consisdr em ações ou em omissões de ação que constituem, por sua vez, os tipos de ação (ou dpos comissivos) e os tipos de omissão de ação (ou tipos omissivos),

3

Teoria da Lei Penal Capítulo 1

descritos na parte espeáal do Código Penal, ou em leis penais especiais. A ação ou omissão de ação dotada dos caracteres de tipo de injusto, que define o objeto de reprovação no autor (o que é reprovado), e dos caracteres da culpabilidade, que define o fundamento da reprovação do autor (por que é reprovado), realiza o conceito de fato punível, estudado na Teoria do Fato Punível\ segunda parte deste livro.

3. O Código Penal, estatuto legal que define crimes e prevê penas e medidas de segurança, é o centro do programa de política penal do Estado para controle da criminalidade. As penas criminais constituem o instrumento principal da política penal do Estado, agrupadas em três categorias no Direito Penal brasileiro: a) penas privativas de liberdade-, b) penas restritivas de direito; c) penas de multa (CP, art. 32). As medidas de segurança constituem instrumento secundário da política penal oficial, agrupadas em duas categorias: medidas de segurança detentivas e medi­das de segurança não-detentivas (CP, art. 96-99). As penas e as medidas de segurança—conceito, funções, sistema, aplicação, substituição e extinção— são estudadas na Teoria da Pena, terceira parte deste livro.

II. Objetivos do Direito Penal

O Direito Penal possui objetivos declarados (ou manifestos), destaca­dos pelo discurso oficial da teoria jurídica da pena, e objetivos reais (ou latentes), identificados pelo discurso crítico da teoria criminológica da pena, correspondentes às dimensões de ilusão e de realidade de todos os fenômenos ideológicos das sociedades capitalistas contemporâneas.

4

Capítulo 1 Direito Penal

1. Objetivos declarados do discurso jurídico oficial

1. Os objetivos declarados do Direito Penal nas sociedades contempo­râneas consistem n$ proteção de bens jurídicos - ou seja, na proteção de valores relevantes para a vida humana individual ou coletiva, sob ameaça de pena.1 Os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal são se­lecionados por critérios político-criminais fundados na Constituição, o documento fundamental do moderno Estado Democrático de Direito: realidades ou potencialidades necessárias ou úteis para a existência e desenvolvimento individual e social do ser humano2 — por exemplo, a vida, a integridade e saúde corporais, a honra, a liberdade individual, o patrimônio, a sexualidade, a família, a incolumidade, apa^ a f é e a administração públicas consdtuem os bens jurídicos protegidos contra várias formas de lesão pelo Código Penal. Como se vê, os bens jurídicos mais importantes da vida humana individual ou coledva são selecionados para proteção penal: a lesão real ou ameaçada desses bens jurídicos pode desencadear as mais graves conseqüências previstas no ordenamento jurídico, as penas criminais ou as medidas de segurança.

2. Contudo, a proteção de bens jurídicos realizada pelo Direito Pe­nal é de natureza subsidiária e fragmentária — e, por isso, se diz que o Direito Penal protege bens jurídicos apenas em ulti?na ratio: por um lado, proteção subsidiária porque supõe a atuação principal de meios de proteção mais efetivos do instrumental sócio-político e jurídico do Estado; por outro lado, proteção fragmentária porque não protege todos os bens jurídicos definidos pela Constituição da República

1 A criação do conceito de bem jurídico é atribuída a BIRNBAUM, Über das Hrfordernis einer Recbtsverlet^mg %um Begriff des Verbrechens, mii besonderer Rilcksicbt au f den Begriff der Hhrenkrãnkung in Archiv des Criminalrechts, Neue Folge, v. 15 (1834), p. 149.

2 ROXIN. Strafrecht, 1997, p. 15, n. 9.

5

Teoria da Lm Penal Capítulo 1

e protege apenas parcialmente os bens jurídicos selecionados para proteção penal.3

A proteção de ultima ratio de bens jurídicos pelo Direito Penal é limitada pelo princípio da proporcionalidade, que proíbe o emprego de sanções penais desnecessárias ou inadequadas em duas direções opostas: a) primeiro, lesões de bens jurídicos com mínimo desvalor de resultado não devem ser punidas com penas criminais, mas consti­tuir contravenções ou permanecer na área da responsabilidade civil, como pequenos furtos em lojas, indústrias ou empresas em geral;4 b) segundo, lesões de bens jurídicos com máximo desvalor de resultado não podem ser punidas com penas criminais desproporcionais ou absur­das — como ocorre com os chamados crimes hediondos, esse grotesco produto da imaginação punidva do legislador brasileiro.

2. Objetivos reais do discurso jurídico crítico

1. A definição dos objetivos reais do Direito Penal permite compreen­der o significado político desse setor do ordenamento jurídico, como centro da estratégia de controle social nas sociedades contemporâneas. Nas formações sociais capitalistas, estruturadas em classes sociais an­tagônicas diferenciadas pela posição respecdva nas relações de produção e de circulação da vida material, em que os indivíduos se relacionam como proprietários do capital ou como possuidores de força de trabalho — ou seja, na posição de capitalistas ou na posição de assalariados —, todos

3 Ver BARATTA, Prinápi del dirittopenal minimo. Ver una teoria dei diritti umani come oggettie limiti delia leggepenale, in Dei Delitti e delle Pene, 1991,-n. 1, p. 444-5; também ROXIN, Strafrecht, 1997, p. 10-11, n. 1.

4 ROXIN, Strafrecht, 1997, p. 25, n. 38-39.

6

Capítulo 1 Direito Penal

os fenômenos sociais da base econômica e das instituições de contro­le jurídico e político do Estado devem ser estudados na perspectiva dessas classes sociais fundamentais e da luta de classes correspondente, em que se manifestam as contradições e os antagonismos políticos que determinam ou condicionam o desenvolvimento da vida social?

2. Os sistemas jurídicos e políticos de controle social do Estado — as formas jurídicas e os aparelhos de poder do Estado — instituem e reproduzem as condições materiais da vida social, protegendo inte­resses e necessidades dos grupos sociais hegemônicos da formação econômico-social, com a correspondente exclusão ou redução dos interesses e necessidades dos grupos sociais subordinados. Contudo, o Direito e o Estado não se limitam às funções reais de instituição e reprodução das relações sociais, exercendo também funções ilusórias de encobrimento da natureza dessas relações sociais, em geral apre­sentadas sob forma diversa ou oposta pelo discurso jurídico oficial. Por isso, também o Direito Penal deve ser estudado do ponto de vista de seus objetivos declarados ou manifestos e de seus objetivos reais ou latentes, nos quais se manifestam as dimensões de ilusão e de realidade dos fenômenos da vida social nas sociedades contemporâneas.

3. Os objetivos declarados do Direito Penal produzem uma aparência de neutralidade do sistema de justiça criminal, promovida pela limitação da pesquisa jurídica ao nível da lei penal, única fonte formal do Direito Penal. Essa aparência de neutralidade do Direito Penal é dissolvida pelo estudo das fontes materiais do ordenamento jurídico, enraizadas no modo de produção da vida material,6 que fundamentam os interesses, necessidades e valores das classes sociais dominantes das relações de

5 MARX/ENGELS, Manifesto do partido comunista. Edições Sociais, Textos 3, p. 21.6 Ver BOURJOL, DUJARDIN, GLEIZAL, JEAMMAUD, JEANTIN, MIAILLE

e MICHEL, Pour une critique du Droit, 1978, p. 13-60; também, MIAILLE, Une introducúon critique au Droit, 1976.

7

Teoria da JLei Penal Capítulo 1

produção e hegemônicas do poder político do Estado, como indicam as teorias conflituais da Sociologia do Direito.7

4. A mudança da fonte formal (a lei) para a fonte material (o modo de produção) do Direito significa trocar a lógica formal por uma lógica material (ou lógica dialética), utilizada pela Criminologia como método de pensar o crime e o controle social nas sociedades contemporâneas, embora a dogmática jurídica permaneça sob a égide da lógica formal’ como lógica jurídica clássica.

5. O conceito de modo de produção desenvolvido pelo pensamento marxista, formado pela articulação de forças produtivas em determina­das relações de produção da vida material, permite identificar os objetivos reais do Direito, em geral — cuja existência é encoberta pelos objetivos declarados do discurso jurídico oficial —, nos quais aparece o significado político do Direito Penal como instituição de garantia e de reprodução da estrutura de classes da sociedade, da desigualdade entre as classes sociais, da exploração e da opressão das classes sociais subalternas pelas classes sociais hegemônicas nas sociedades contemporâneas— esclarecendo, complementarmente, a formação econômica das classes sociais nas relações de produção e a luta política dessas classes sociais no terreno das ideologias — por exemplo, nos sistemas jurí- dico-políticos de controle social —, rompendo, assim, a “opacidade” do real produzida pelo discurso jurídico oficial dos objetivos declarados do Direito Penal.

6. O método de análise social fundado no modo de produção da vida material permite explicar o Direito — ou seja, as formas jurídicas de disciplina da vida social — e o Estado — ou seja, a organização jurídica do poder político das classes hegemônicas da formação social — pelas

7 Ver SABADELL, Manual de sociologia jurídica (introdução a uma leitura externa do Direi­to), 2005, 3a edição, p. 139-140; também DIMOULIS, Manual de Introdução ao estudo do direito, 2003. p. 184.

Capítulo 1 Direito Penal

condições reais da sociedade civil, cuja “anatomia” é constituída pelo conjunto das relações de produção ativadas pelas forças produtivas da vida social, definíveis como a fonte material das formas jurídicas e políticas do Estado.8

7. Sem dúvida, a política de controle social instituída pelo Direito Penal e implementada pelo sistema de justiça criminal inclui o conjunto do ordenamento jurídico e político do Estado, além de outras instituições da sociedade civil, como a empresa, a família, a escola, a imprensa, a igreja, os partidos políticos, os sindicatos etc. As formas jurídicas e políticas do Estado e as organizações da sociedade civil conver­gem na tarefa de instituir e reproduzir uma determinada formação econômico-social histórica, em que os homens se relacionam como integrantes de classes ou de categorias sociais estruturais da socie­dade. O Direito Penal e o sistema de justiça criminal constituem, no contexto dessa formação econômico-social, o centro gravitacional do controle social: a pena criminal é o mais rigoroso instrumento de reação oficial contra as violações da ordem social, econômica e política institucionalizada, garantindo todos os sistemas e instituições particulares, bem como a existência e continuidade do próprio sistema social, como um todo.9

2.1. Direito Penal e desigualdade social

1. Os objetivos declarados do Direito Penal, legitimados pelo discurso jurídico da igualdade, da liberdade, do bem comum etc., consistem na proteção de valores essenciais para a existência do indivíduo e da so­ciedade organizada, definidos pelos bens jurídicos protegidos nos tipos

8 Ver MARX, Contribuição para a crítica da economia política (Prefácio), 1973.9 BARATTA, Criminologia crítica e crítica do direito penal’ 2000, 2a edição, p. 209 s.; FOU-

CAULT, Vigiar epunir, 1977, p. 244-248.

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Teoria da Tei Penal Capítulo 1

legais.10 Os pressupostos não questionados desses objetivos declarados são as noções de unidade (e não de divisão) social, de identidade (e não de contradição) de classes, de igualdade (e não de desigualdade real) entre as classes sociais, de liberdade (e não de opressão) individual, de salário equivalente ao trabalho (e não de expropriação de mais-valia, como trabalho excedente não remunerado) etc.11

2. O significado político do controle social realizado pelo Direito Penal e pelo sistema de justiça criminal aparece nas funções reais desse setor do Direito — encobertas pelas funções declaradas do discurso oficial: a criminali^ação primária realizada pelo Direito Penal (definição legal de crimes e de penas) e a criminali^açao secundária realizada pelo sistema de justiça criminal constituído pela polícia, justiça e prisão (aplicação e execução de penas criminais) garantem a existência e a reprodução da realidade social desigual das sociedades contemporâneas.12

O sistema de justiça criminal, operacionalizado nos limites das matrizes legais do Direito Penal, realiza a função declarada de garantir uma ordem social justa , protegendo bens jurídicos gerais e, assim, promovendo o bem comum. Essa função declarada é legitimada pelo dis­curso oficial da teoria jurídica do crime, como critério de racionalidade construído com base na lei penal vigente, e pelo discurso oficial da teoria jurídica da pena, fundado nas funções de retribuição, de prevenção espeáal e de prevenção geral atribuídas à pena criminal.

3. Assim, através das definições legais de crimes e de penas o legisla­dor protege interesses e necessidades das classes e categorias sociais hegemônicas, incriminando condutas lesivas das relações de produção

10 ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, vol. I, §11, I, ns. 4-6, admitem o bem jurídico como critério de criminali-^ação, mas não como objeto de proteção do Direito Penal, que constituiria somente ato político de poder do Estado.

11 CIRINO DOS SANTOS, Direito Penal (a nova parte geral), 1985, p. 23.12 BARATTA, Criminologia crítica e crítica do direito penal,\ 2000, 2a edição, p. 173-174.

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Capítulo 1 Direito Penal

e de circulação da riqueza material, concentradas na área da criminali­dade patrimonial comum, característica das classes e categorias sociais subalternas, privadas de meios materiais de subsistência animal: os tipos legais de crimes fundados em bens jurídicos próprios das elites econômicas e políticas da formação social garantem os interesses e as condições necessárias ã existência e reprodução dessas classes sociais. Nessa medida, a proteção penal seletiva de bens jurídicos das classes e grupos sociais hegemônicos pré-seleciona os sujeitos estigmatizá- veis pela sanção penal, os indivíduos pertencentes às classes e grupos sociais subalternos, especialmente os contingentes marginalizados do mercado de trabalho e do consumo social, como sujeitos privados dos bens jurídicos econômicos e sociais protegidos na lei penal.13

4. A proteção das relações de produção e de circulação materiais da vida social abrange a proteção das forças produtivas (homens, tec­nologia e natureza) e, assim, certos tipos penais parecem proteger bens jurídicos gerais, comuns a todos os homens, independente da posição social ou de classe respectiva, como a vida, a integridade física e psíquica, a liberdade individual e sexual, a honra, a ecologia etc. Entretanto, a proteção desses valores gerais é desigual,14 como demonstra qualquer pesquisa empírica: a) titulares desses bens jurí­dicos pertencentes às classes ou categorias sociais hegemônicas são protegidos como seres humanos, os verdadeiros sujeitos da formação econômico-social; b) titulares desses bens jurídicos pertencentes às classes ou grupos sociais integrados nos processos de produção/ circulação material como força de trabalho assalariada, são protegidos apenas como e enquanto objetos, ou seja, como energia necessária à ativação dos meios de produção/circulação e capaz de produzir valor superior ao seu preço de mercado: a mais-valia, extraída do

13 BARATTA, Criminologia crítica e crítica do direito penal\ 2000, 2a edição, p. 164-174.14 BARATTA, Criminologia crítica e crítica do direito penal.\ 2000, 2a edição, p. 164 s.

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Teoria da T ei Penal Capítulo 1

tempo de trabalho excedente; c) titulares desses bens jurídicos per­tencentes aos contingentes marginalizados do mercado de trabalho, sem função na reprodução do capital (a força de trabalho excedente das necessidades do mercado), não são protegidos nem como sujei­tos nem como objetos: são destruídos ou eliminados pela violência estrutural das relações de produção, ou pela violência institucional do sistema de controle social, sem conseqüências penais. Assim, se a criminalização primária (ou abstrata) parece neutra, a criminalização secundária (ou concreta) é diferenciada pela posição social dos sujeitos respectivos.15

5. Por outro lado, condutas criminosas próprias dos segmentos sociais hegemônicos, que vitimizam o conjunto da sociedade ou amplos seto­res da população, são diferenciadas ao nível da criminalização primária (tipos legais) ou da criminalização secundária (repressão penal):16ou não são definidas pelo legislador como crimes, ou são definidas de modo impreciso e vago pelo legislador — e, portanto, frustram a repressão penal —, ou a natureza irrisória das penas cominadas pelo legislador transforma essas práticas criminosas em investimentos lucrativos.17 Esse é o resultado moderno do chamado Direito Penal simbólico, representado pelos crimes contra a ordem tributária, as relações de consumo, o mercado de capitais, o meio ambiente e outras formas da criminalidade das elites econômicas e políticas da formação social— na verdade, produzido para sadsfação retórica da opinião pública, como discurso encobridor das responsabilidades do capital financeiro internacional e das elites conservadoras dos países do Terceiro Mundo, na criação das condições criminogênicas estruturais do capitalismo

15 CIRINO DOS SANTOS, Direito penal (a nova parte geral), 1985, p. 26-27.16 SUTHERLAND, White collar crime: the uncut versions, 1983, p. 240-257.17 BARATTA, Criminologia crítica e crítica do Direito Penal’ 1999, 2a edição, p. 165-167.

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Capítulo 1 Direito Venal

neoliberal contemporâneo.18

6. Seja como for, é no processo de criminalização que a posição social dos sujeitos criminalizáveis revela sua função determinante do resultado de condenação/absolvição criminal: a variável decisiva da criminali- zação secundaria é a posição social do autor, integrada por indivíduos vulneráveis selecionados por estereótipos, preconceitos e outros mecanismos ideológicos dos agentes de controle social — e não pela gravidade do crime ou pela extensão social do dano.19A criminalidade sistêmica econômica e financeira de autores pertencentes aos grupos sociais hegemônicos não produz conseqüências penais: não gera processos de criminalização, ou os processos de criminalização não geram conseqüências penais; ao contrário, a criminalidade individual violenta ou fraudulenta de autores dos segmentos sociais subalternos, especialmente dos contingentes marginalizados do mercado de traba­lho, produz conseqüências penais: gera processos de criminalização, com conseqüências penais de rigor punitivo progressivo, na relação direta das variáveis de subocupação, desocupação e marginalização do mercado de trabalho.20

7. Enfim, o sistema penal representado pela prisão e instituições conexas consome os sujeitos criminalizados mediante supressão da liberdade e outros direitos não especificados na condenação, como direitos políticos, sociais e individuais de dignidade, sexualidade, recreação, informação etc. A prisão, justificada pelo discurso penal de retribuição e de prevenção do crime, é um mecanismo expiatório que realiza a troca jurídica do crime em tempo de liberdade suprimida, acoplado

18 ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 29-30.19 BARATTA, Criminologia crítica e crítica do Direito Penal’ 1999, 2a edição, p. 165-166;

também ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, vol. I, §2, III, n. 10.

20 BARATTA, Criminologia crítica e crítica do Direito Penal, 1999, 2a edição, p. 165-166.

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Teoria da Tei Penal Capítulo 1

a um projeto técnico-corretivo de transformação individual,21 com regimes diferenciados de execução penal. O projeto técnico-correti- vo da prisão, cuja história registra 200 anos de fracasso reconhecido, marcado pela reproposição reiterada do mesmo projeto fracassado— o célebre isomorflsmo reformista de FOUCAULT —, se caracteriza por uma eficácia invertida, com a reprodução ampliada da criminalidade pela introdução de condenados em carreiras criminosas.22 O discurso crítico da teoria criminológica da pena mostra que a prisão não pode ser explicada pelos objetivos declarados de correção do criminoso e de prevenção da criminalidade, mas pelos objetivos reais do sistema penal, de gestão diferencial da criminalidade e de garanda das relações sociais desiguais da contradição capital/trabalho assalariado das sociedades contemporâneas.23

2.2. Bem jurídico: ainda um conceito necessário

1. Juristas e criminólogos críticos pesquisam um referente material de definição de crime, capaz de exprimir a negatividade social das situações conflituais da vida coletiva nas sociedades modernas24 e de indicar hi­póteses merecedoras de criminalização legal, admitindo que o Direito Penal ainda é necessário para solução de determinados conflitos.25 Nesse sentido, a pesquisa crítica identifica na contradição capital!trabalho assalariado, que fundamenta o conflito de classes das sociedades atuais, a base concreta de interesses universais cuja lesão constituiria a negatividade social capaz de configurar o referente material do conceito de crime. Mas

21 FOUCAULT, Vigiar epunir, 1977, p. 207-223.22 Ver BECKER, Outsiders (studies in the sociology o f deviance), 1973, p. 101 s.; também

FOUCAULT, Vigiar epunir, 1977, p. 239.23 FOUCAULT, Vigiar epunir, 1977, p. 228-239.24 BARATTA, Che cosa è ia criminohga critica,? in Dei Delitti e delle Pene, 1991, n. 1, p. 65 s.25 BARATTA, Criminologia crítica e crítica do direito penal, 1999, p. 260.

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Capítulo 1 Direito Penal

com uma diferença essencial em relação à teoria tradicional: na dinâmica dessa contradição fundamental, o trabalho assalariado é definido como portador de interesses comuns universali^áveis, porque sua emancipação teria o significado de conduzir, segundo a Weltanschauung marxiana, ao objetivo ainda utópico de libertação de toda humanidade.26

2. Enquanto isso, o conceito de bem jurídico continua essencial para o Estado Democrático de Direito das formações sociais fundadas na relação capital/trabalho assalariado do capitalismo neoliberal, como critério de criminalização e como objeto de proteção do Direito Penal, conforme reconhecem as teorias jurídica e criminológica mo­dernas.27

3. Não obstante, respeitáveis penalistas latino-americanos28 conside­ram o bemjurídico apenas como critério de criminalização, afirmando que toda lesão de bens jurídicos deve ser criminalizada (o que é correto) e negando que todo bem jurídico deva ser protegido por criminalização (o que também é correto), mas rejeitando o bemjurídico como objeto de pro­teção penal, porque no homicídio e no estupro, por exemplo, a pena criminal não protegeria a vida, nem a sexualidade das vítimas.29

Na verdade, o bem jurídico é critério de criminalização porque constitui objeto de proteção penal — afinal, existe um núcleo duro de bens jurídicos individuais, como a vida, o corpo, a liberdade e a sexu­alidade humanas, que configuram a base de um Direito Penal mínimo

26 Assim, BARATTA, Che cosa è la criminologia critica.? in Dei Delitti e delle Pene, 1991, n. 1, p. 66-7.

27 Em Direito Penal, por exemplo, ROXIN, Strafrecht., 1997, §2° II-XI, ns. 2-41, p. 11-27; JESCHECK/WEIGEND, hehrbucb des Strafrechts, 1966, §1° III, p. 7-8; BUSTOS RAMÍREZ, Manual de derecho penal espanol., Ariel, 1984, p. 39 e 180-183; em Criminologia, por exemplo, ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 54-55; BA­RATTA, Criminologia crítica e crítica do direito penal, 1999, p. 204.

28 ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, §11,1,6.29 ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direitopenal brasileiro, 2003, §11,1,4.

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Teoria da Lei Penal Capítulo 1

e dependem de proteção penal, ainda uma resposta legítima para certos problemas sociais.30 Assim, evitar a criminalização da vontade do poder, ou das expectativas normativas, parece insuficiente para rejeitar o bem jurídico como objeto de proteção penal31; além disso, admidr a pro­teção de bens jurídicos pela criminalização não exclui a necessidade de relevância do bem jurídico para constituir objeto de proteção penal— sempre subsidiária e fragmentária —, nem implica incluir todos os bens jurídicos como objeto de proteção penal. Mais ainda, se afonte exclusiva de bens jurídicos selecionados para proteção penal é a Constituição da República—o fundamento político do moderno Estado Democrático de Direito —, então a criminalização da vontade do poder ou de meras expectativas normativas parece remota; ao contrário, a rejeição do bem jurídico como objeto de proteção fragmentária e subsidiária da crimina­lização poderia criar um vazio legal preenchível pela vontade do poder, ou pelas expectativas normativas como objetos de criminalização — sem falar na incômoda proximidade com a teoria sistêmica de JAKOBS, que despreza o bem jurídico tanto como objeto de proteção, quanto como critério de criminalização.32

Enfim, a tese do bem jurídico como critério de criminalização e como objeto de proteção penal — ainda que a concreta lesão do bem ju­rídico indique eventual ineficácia da proteção —, explica o Direito Penal como garantia jurídico-política das formações sociais capitalistas. A demonstração de que o Direito Penal protege os valores fundamentais das sociedades contemporâneas constitui tese central da Criminologia Crítica: o Direito Penal garante a desigualdade social fundada na relação capital/trabalho assalariado das sociedades capitalistas.33 Essa tese tem

30 BARATTA, Criminologia crítica e crítica do direito penal’ 1999, 2a edição, p. 260.31 ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, §11,1,6.32 JAKOBS, Strafrecht, 1993, ns. 3-5, p. 35-38.33 BARATTA, Criminologia crítica e crítica do direito penal’ 1999, 2a edição, p. 207.

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Capítulo 1 Direito Penal

desdobramentos importantes: o Direito Penal garante a propriedade privada dos meios de produção e do produto do trabalho social (instituída pela Constituição e disciplinada pelo Direito Civil), que permite a sobrevivência do trabalhador nos limites do trabalho assalariado; portanto, garante a extração de mais-valia, como trabalho excedente não- remunerado, nos processos de produção e de circulação da riqueza material, deixando ao trabalhador a alternativa de vender a força de trabalho pelo preço do salário (legitimada pelo Direito do Trabalho), correspondente ao tempo de trabalho necessário, 3 4 Em síntese, a proteção de relações sociais desiguais, mediante garantia da relação capital/tra­balho assalariado, significa proteção dos processos sociais de produção e de circulação de bens materiais, que determinam a concentração da riqueza e do poder no pólo do capital\ e a generalização da miséria e da dependência no pólo do trabalho assalariado. Se o objetivo real do Direito Penal consiste na proteção das condições fundamentais da sociedade de produção de mercadorias, então o bem jurídico, além de critério de criminalização, constitui objeto de proteção penal.

4. Na atualidade, juristas e criminólogos críticos propõem reservar o conceito de bem jurídico para os direitos e garantias individuais do ser humano, excluindo a criminalização (a) da vontade do poder.; (b) de papéis sistêmicos, (c) do risco abstrato, (d) ou dos interesses difusos característicos de complexosfunáonais como a economia, a ecologia, o sistema tributário etc.35 Essa posição reafirma os princípios do Direito Penal do fato, como lesão do bem jurídico, e da culpabilidade, como limitação do poder de punir,36 excluindo a estabilização das expectativas normativas das

34 MARX, Crítica ao programa de Gotha, Edições Sociais, 1975.35 ALBRECHT, Knminologie, 1999, p. 54-55; ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e

SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, §11,1, 6.36 BARATTA, Integrations-Pràvention. Eine systemtheoretische Neubegründung der Strafe,

1984, p. 115; ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 54-55.

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Teoria da Lei Venal Capítulo 1

concepções autoritárias do funcionalismo de JAKOBS, por exemplo.37 Desse ponto de vista, consideradas todas as limitações e críticas, o conceito de bem jurídico, como critério de criminalização e como objeto de proteção, parece constituir garantia política irrenunciável do Direito Penal do Estado Democrático de Direito, nas formações sociais estru­turadas sobre a relação capital/trabalho assalariado, em que se articulam as classes sociais fundamentais do neoliberalismo contemporâneo.

37 Assim, ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 2-4.

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C a pítu lo 2

P r in c ípio s do D ireito P en al

O Direito Penal das sociedades contemporâneas é regido por princípios constituáonais sobre crimes, penas e medidas de segurança, nos níveis de criminalização primária e de criminalização secundária, indispen­sáveis para garandr o indivíduo em face do poder punitivo do Estado. A distinção entre regras epnnápios jurídicos, como espécies da categoria geral normas jurídicas, é a base da teoria dos direitos fundamentais e a chave para resolver problemas centrais da dogmática penal constitu­cional.1 Normas jurídicas compreendem regras e princípios jurídicos, componentes elementares do ordenamento jurídico, que determinam o que é devido no mundo real: as regras são normas de conduta realizadas ou não realizadas pelos seres humanos; os princípios são normas jurídicas de otimização (optimierungsgebote) das possibilidades de realização jurídica dos mandados, das proibições e das permissões na vida real.2

Os princípios constituáonais mais relevantes para o Direito Penal são o princípio da legalidade, o princípio da culpabilidade, o princípio da lesividade, o princípio da proporcionalidade, o princípio da huma­nidade e o princípio da responsabilidade penal pessoal.

1 ALEXY, Theorie der Grundrechte, 1994, 2a edição, p. 71 ,1 e 72 ,1, 1.2 Ver ALEXY, Theorie der Grundrechte, 1994, 2a edição, p. 75 ,1, 2.

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\

í Teoria da T ei ~Penal Capítulo 2

L Princípio da legalidade

As Constituições dos Estados americanos de Virgínia e de Maryland (1776) insdtuíram pela primeira vez o princípio da legalidade, depois repetido na Constituição americana (1787) e, mais tarde, como norma fundamental do Estado de Direito, foi inscrito na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). A primeira legislação penal a incorporar o princípio da legalidade foi o Código Penal da Bavária (1813), depois aPrússia (1851) e a Alemanha (1871),genera- lizando-se por todas as legislações penais ocidentais3 sob a fórmula latina do nullum crimen, nullapqena sine lege, inaugurada por FEUERBACH.4

O princípio da legalidade é o mais importante instrumento cons­titucional de proteção individual no moderno Estado Democrático de Direito, porque proíbe (a) a retroatividade como criminalização ou agravação da pena de fato anterior, (b) o costume como fundamento ou agravação de crimes e penas, (c) a analogia como método de crimí- naüzação ou de punição de condutas e (d) a indeterminação dos tipos legais e das sanções penais5 (art. 5o, XL, CR). O significado político do princípio da legalidade — regra principal da teoria da validade da lei penal no tempo —, expresso nas fórmulas de lexpraevia, de lex scripta, de lex stricta e de lex certa, incidentes sobre os crimes, as penas e as medidas de segurança da legislação penal,6 pode ser assim sumariado.

3 ROXIN, strafrecht, 1997, p. 99-101, ns. 14-17; ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIAe SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, §10, II, 1.

4 FEUERBACH, luehrbuch desgemánen in Deutschlandgeltenden Peinlichen Rechts, 1801, p. 20.5 ROXIN, Strafrecht, 1997, p. 98, ns. 8-11; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des

Strafrechts, 1976, p. 131-142; GROPP, Strafrecht, 2001, p. 45,.n. 2-3.6 Assim também ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito penal bra­

sileiro, 2003, §10, V, 1.

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Capítulo 2 Princípios do Direito Penal

1. Proibição de r e t r o a t i v i d a d e da lei penal

A proibição de retroatividade. da lei penal é o principal fundamento político do principio da legalidade, regido pela fórmula lex praevia, que incide sobre a norma de conduta e sobre a sanção penal do tipo legal: a) no âmbito da norma de conduta proíbe todas as mudanças dos pressu­postos de punibilidade prejudiciais ao réu, compreendendo os tipos legais, as justificações e as exculpações\ b) no âmbito da sanção penal abrange as penas (e as medidas de segurança), os efeitos da condenação, as con­dições objedvas de punibilidade, as causas de extinção da punibilidade (especialmente, os prazos prescricionais), os regimes de execução (incluindo os critérios de progressão e de regressão de regimes) e todas as hipóteses de excarceração.7

A única exceção à proibição de retroatividade da lei penal é re­presentada pelo princípio da leipenal mais benigna, igualmente previsto no art. 5o XL, da Constituição da República (ver Validade da lei penal, adiante).

2. Proibição de a n a lo g ia da lei penal ( in m a la m p a r t e m )

A analogia, como método de pensamento comparativo de gru­pos de casos, significa aplicação da lei penal a fatos não previstos, mas semelhantes aos fatos previstos.8 O processo intelectual de analogia, fundado normalmente no chamado espírito da lei, configura significa-

7 Ver STRATENWERTH, Strafrecbt, 2000, p. 49-51, n. 7-12; também ZAFFARO- NI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, §10, V, 1.

8 KELSEN, AUgemeine Theorie derNormen, 1990, p. 217.

SISBI/UFU 21244152

Teoria da T ei Penal Capítulo 2

do idiossincrático que um Juiz atribuiria e outro Juiz não atribuiria ao mesmo fato concreto. A atribuição de significados fundados no espírito da lei encobre a criação judicial de direito novo, mediante juízos de probabilidade da psicologia individual,9 assim resolvidos no Direito Penal: se o significado concreto representar prejuízo para o réu, cons­titui analogia proibida; se o significado concreto representar benefício para o réu, constitui analogia permitida.

Hoje, a analogia pode ser equacionada deste modo:10 a) a analogia in malampartem—analogiapraepter legem e analogia contra legem—, como ana­logia prejudicial ao réu, é absolutamente proibida pelo Direito Penal; b) a analogia in bonampartem—analogia intra legem—, como analogia favorável ao réu, é permitida pelo princípio da legalidade, sem nenhuma restrição: nas justificações, nas exculpações e em qualquer liipótese de extinção ou de redução da punibilidade do comportamento humano.11

3. Proibição do c o s t u m e como fonte da lei penal

O princípio da legalidade proíbe o costume como fundamento de criminalização e de punição de condutas, porque exige lex scripta para os tipos legais e as sanções penais.

Mas, assim como a analogia e a retroatividade da lei penal mais

9 CARNAP, On inductive logic: In Philosophy ofSãence. 1945, vol. XII, p. 72, apud KEL­SEN, A-llgemeine Theorie der Normen, 1990, p. 218.

10 MAYER, Der allgermeine Teil des deutschen Strafrechts, 1915, p. 27.11 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §15, III, n. 2 d, p. 136;

MAURACH/ZIPF, Strafrecht, Io v., p. 127-128, ns. 21-22; ROXIN, Strafrecht, 1997, p. 112-114, ns. 40-44; ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, §10, III, 4-6.

22

Capítulo 2 Princípios do Direito Penal

favorável são admitidas, também o costume pode ser admitido in bonam partem, para excluir ou reduzir a pena, ou para descriminali^ar o fato, nas hipóteses indicadas pela sociologia jurídica de perda de eficácia da lei penal — e, com a perda de eficácia, a perda de validade da lei penal:12 por exemplo, a existência generalizada dos motéis indica a perda de eficácia — e portanto, a invalidade como lei penal — do tipo legal do crime de casa de prostituição P

4. Proibição de i n d e t e r m in a ç ã o da lei penal

A proteção do cidadão contra o arbítrio exclui leis penais indefi­nidas ou obscuras — o maior perigo para o princípio da legalidade, segundo WELZEL14 —, porque leis penais indefinidas ou obscuras favorecem interpretações judiciais idiossincráticas e impedem ou dificultam o conhecimento da proibição, favorecendo a aplicação de penas com lesão do princípio da culpabilidade15 — outro aspecto da relação entre os princípios formadores do conceito de crime.

O problema de toda lei penal parece ser a inevitabilidade de certo nível de indefinição: as palavras da lei são objeto de interpreta­ções diferentes, porque os juízos de valor enunciados não admitem descrições neutras — e qualquer tentativa semelhante seria monótona ou ridícula: como descrever o conceito de injúria, por exemplo? Seja como for, o princípio da legalidade pressupõe um mínimo de determinação

12 Ver KELSEN, A-llgemeine Tbeorie derNormen, 1990, p. 87.13 ROXIN, Strafrecht, 1997, p. 115-117, ns. 45-50.14 WELZEL, Das deutsche Strafrecht, 1969, §5, II, n. 2, p. 23.15 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, p. 125, n. 67-68. No Brasil, no sentido do texto,

FRAGOSO, Lições de direito penal (parte geral), 16a edição, 2003, p. 114-116.

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Teoria da 'Lei Penal Capítulo 2

das proibições ou comandos da lei penal - em geral, conhecido como princípio da taxatividade, mas indissociável do princípio da legalidade, como exigência de certeza da lei —, cuja ausência inviabiliza o conhecimento das proibições e rompe a consdtucionalidade da lei penal, regida pela Fórmula lex certa.X('

II. Princípio da culpabilidade

1. A relação entre o princípio da legalidade e o princípio da culpabilidade pode ser assim definida: por um lado, se pena pressupõe culpabilidade, e culpabilidade se fundamenta no conhecimento (real ou possível) do tipo de injusto, então o princípio da culpabilidade pressupõe ou contém o princípio da legalidade, como definição escrita, prévia, estrita e certa de crimes e de penas; por outro lado, existe uma relação de dependência do princípio da culpabilidade em face do princípio da legalidade, porque a culpabilidade pressupõe tipo de injusto (princípio da legalidade) maso dpo de injusto não pressupõe culpabilidade: o juí^o de reprovação, que exprime o princípio da culpabilidade, não existe sem o tipo de injusto, de­finido pelo princípio da legalidade, mas o tipo de injusto, como objeto do juízo de reprovação, pode existir sem o juí^o de culpabilidade.

2, O princípio da culpabilidade, expresso na fórmula nullapoena sine culpa, é o segundo mais importante instrumento de proteção individual no moderno Estado Democrático de Direito, porque proíbe punir pesso­as que não preenchem o s requisitos do juí^o de reprovação, segundo o estágio atual da teoria da culpabilidade, a saber: a) pessoas incapazes de saber o que fa%em (inimputáveis); b) pessoas imputáveis que, realmen­

16 STRATENWERTH, Stajrecht, 2000, p. 58-59, ns. 28-31; ZAFFARONI, BATIS­TA, ALAGIA e SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, §10, III, 1 e IV, 1.

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Capítulo 2 Princípios do Direito Penal

te, nao sabem o que fa^em, porque estão em situação de erro de proibição inevitável; c) pessoas imputáveis, com conhecimento da proibição do fato, mas sem o poder de não fa%er o que fa%em, porque realizam o tipo de injusto em contextos de anormalidade definíveis como situações de exculpação.

2.1. O princípio da culpabilidade proíbe punir pessoas inimputáveis porque são incapazes de reconhecer a norma, mas não proíbe a aplicação de medidas de segurança fundadas na periculosidade criminal de autores inimputáveis de fatos puníveis: a relação culpabilidade/pena possui na­tureza subjedva, mas a relação periculosidade criminal/ medida de segurança possui natureza objetiva de proteção do autor (terapia) e da sociedade (neutralização), segundo o discurso oficial da teoria jurídica das me­didas de segurança.

2.2. O princípio da culpabilidade proíbe punir pessoas imputáveis em desconheámento inevitável da proibição do fato , porque o erro de proibi­ção inevitável exclui a possibilidade de motivação conforme a norma jurídica, que fundamenta o juízo de reprovação — mas não proíbe punição em situação de erro evitável sobre a proibição da norma, por insuficiente reflexão ou informação do autor.

2.3. Enfim, o princípio da culpabilidade proíbe punir pessoas imputáveis, que realizam o tipo de injusto com conhecimento da proibição do fato, mas sem o poder de nãofa%ero quefa%em, porque a realização do tipo de injusto em situações anormais exclui ou reduz a exigibilidade de compòrtamento diverso.

3. Finalmente, todos os resquícios atuais do velho versari in re illicita, como os crimes qualificados pelo resultado17 e, especialmente, as

17 ROXIN, Strafrecht, 1997, n. 111, p. 277; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1966, n. 3, p. 571.

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Teoria da L,ei Penal Capítulo 2

versões coloniais da actio libera in causa,18 são incompatíveis como princípio da culpabilidade e, por isso, devem ser banidos da legislação penal ou, pelo menos, despenalizados pela consciência democrática do Ministério Público e da Magistratura nacionais.

III. Princípio da lesividade

1. O princípio da lesividade proíbe a cominação, a aplicação e a execução de penas e de medidas de segurança em hipóteses de lesões irrelevantes, con­sumadas ou tentadas, contra bens jurídicos protegidos em tipos legais de crime. Em outras palavras, o princípio da lesividade tem por objetoo bemjurídico determinante da criminalização, em dupla dimensão: do ponto de vista qualitativo, tem por objeto a natureza do bem jurídico lesionado; do ponto de vista quantitativo, tem por objeto a extensão da lesão do bem jurídico.

2. Por um lado, do ponto de vista qualitativo da natureza do bem jurí­dico lesionado, o princípio da lesividade impede criminalização primária ou secundária excludente ou redutora das liberdades constitucionais de pensamento, de consciência e de crença, de convicções filosóficas e políticas ou de expressão da atividade intelectual\ artística, dentífica ou de comunicação, garan­tidas pela Constituição da República acima de qualquer restrição da legislação penal.19 Em outras palavras, essas liberdades constitucionais individuais devem ser objeto da maior garantia positiva como critério de criminalização e, inversamente, da menor limitação negativa como objeto de criminalização por parte do Estado.

18 ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, §12, IV, 6.19 ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, §11,1,1.

Capítulo 2 Princípios do Direito Penal

Por outro lado, do ponto de vista quantitativo da extensão da lesão do bem jurídico, o princípio da lesividade exclui a criminalização primária ou secundária de lesões irrelevantes de bens jurídicos. Nessa medida, o princípio da lesividade é a expressão positiva do princípio da insignificância em Direito Penal: lesões insignificantes de bens jurídicos protegidos, como a integridade ou saúde corporal, a honra, a liberdade, a pro­priedade, a sexualidade etc., não constituem crime.

IV. Princípio da proporcionalidade

1. O princípio da proporcionalidade, desenvolvido pela teoria constitucional germânica — o célebre Verhàltnismãssigkeitsgrundsat^ —, é constituído por três princípios parciais: o princípio da adequação (Geeignetheü% o princípio da necessidade (Erforderlichkeit) e o princípio da proporciona­lidade em sentido estrito, também chamado de princípio da avaliação (abwàgungsgebote).20 Esses princípios parciais, de aplicação sucessiva e complementar, funcionam deste modo:

a) o princípio da adequação e o princípio da necessidade têm por objeto a otimização das possibilidades da realidade, do ponto de vista da adequação e da necessidade dos meios em relação aos fins pro­postos, formulados em forma interrogativa: 1) a pena criminal é um meio adequado (entre outros) para realizar o fim de proteger um bem jurídico? 2) a pena criminal (meio adequado, entre outros) é, também, meio necessário (outros meios podem ser adequados, mas não seriam necessários) para realizar o fim de proteger um bem jurídico?

b) o princípio da proporcionalidade em sentido estrito (ou princípio da

20 ALEXY, Theorie der Grundrechte, 1994, 2a edição, p. 100-101, n. 8.

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Teoria da Lei Penal Capítulo 2

avaliação) tem por objeto a otimização das possibilidades jurídicas, ao nível da criminalização primária e da criminalização secundária, do ponto de vista da proporcionalidade dos meios (pena criminal) em relação aos fins propostos (proteção de bens jurídicos), também formulado em forma interrogativa: a pena criminal cominada e/ou aplicada (considerada meio adequado e necessário, ao nível da realidade) é proporcional em relação à natureza e extensão da lesão abstrata e/ou concreta do bem jurídico?

Em síntese, a otimização das possibilidades reais e jurídicas objeto do Verhãltnismãssigkeitsgrundsatz—para continuar empregando a termi­nologia de ALEXY — tem por objetivo integrar princípios, meios e fins em unidades jurídicas e reais coerentes21 — ou seja, harmonizar os meios e os fins da realidade com os princípios jurídicos fundamentais do povo. O princípio da proporcionalidade no Direito Penal coincide com análises da Criminologia Crítica — como Sociologia do Direito Penal —, que estuda a adequação e a necessidade da pena criminal para proteção de bens jurídicos, do ponto de vista dos princípios jurídicos do discurso punitivo.

2. Assim, o princípio da proporcionalidade — implícito no art. 5o, caput, da Constituição da República — proíbe penas excessivas ou desproporcionais em face do desvalor de ação ou do desvalor de resultado do fato punível, lesivas da função de retribuição equivalente do crime atribuída às penas criminais nas sociedades capitalistas.22 O princípio da propor­cionalidade se desdobra em uma dimensão abstrata e uma dimensão concreta, com as seguintes conseqüências:

2.1. O princípio da proporcionalidade abstrata limita a criminalização primária às liipóteses de graves violações de direitos humanos — ou

21 ALEXY, Theorie der Grundrechie, 1994, 2a edição, p. 75 s.22 CIRINO DOS SANTOS, Teoria da pena,, 2005, p. 19-24.

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Capítulo 2 Princípios do Direito Penal

seja, lesões insignificantes de bens jurídicos são excluídas, também, pelo princípio da proporcionalidade — e delimita a cominação de penas criminais conforme a natureza e extensão do dano social produzido pelo crime.23 Neste aspecto, a proposta de hierarquização da lesão de bens jurídicos é essencial para adequar as escalas penais ao princípio da proporcionalidade abstrata: por exemplo, penas por lesões contra a propriedade não podem ser superiores às penas por lesões contra a vida, como ocorre na lei penal brasileira.24

2.2. Por outro lado, o princípio da proporcionalidade concreta permite equacionar os custos individuais e sociais da criminalização secundária, em relação à aplicação e execução da pena criminal. Assim, para usar um conceito do jargão econômico, a aplicação e execução das penas criminais mostram a enorme desproporção da relação custoIbenefício entre crime e pena, além dos imensos custos sociais específicos para o condenado, para a família do condenado e para a sociedade.

A relação custo/ benefício da equação crimeIpena indica que a pena criminal, como troca jurídica do crime medida em tempo de liberdade suprimida, constitui investimento deficitário da comunidade, segundo a moderna Criminologia. Os custos sociais específicos para a pessoa e a família do condenado — assim como para a sociedade, em geral— são absurdos: primeiro, porque a criminalização secundária somente agrava o conflito social representado pelo crime — especialmente em casos de aborto, de tóxicos, de crimes patrimoniais e de toda a crimi­nalidade de bagatela (crimes de ação penal privada ou condicionados à representação, crimes punidos com detenção, crimes de menor potencial ofensivo etc.); segundo, porque os custos sociais da criminali­zação secundária são maiores para a pessoa e a família de condenados

23 BARATTA, Principi del diritto penal minimo. Per una teoria dei diritti umani come oggetti e limiti delia leggepenale, in Dei Delitti e delle Pene, 1991, n. 1, p. 452.

24 ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito penal brasikitv, 2003, §11, II, 2.

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Teoria da T ei Penal Capítulo 2

de classes e categorias sociais inferiores — a clientela preferencial do sistema de justiça criminal, selecionada por estereótipos, preconcei­tos, idiossincrasias e outros mecanismos ideológicos dos agentes de controle social, advados por indicadores sociais negativos de pobreza, marginalização do mercado de trabalho, moradia em favelas etc.25

Em face disso, o princípio da proporcionalidade concreta pode fun­damentar critérios compensatórios das desigualdades sociais da criminalização secundária, com o objetivo de neutralizar ou de reduzir a seletividade fundada em indicadores sociais negativos de pobreza, desemprego, favelização etc., aplicáveis pelo Juiz no momento de estruturação dos processos intelectuais e afetivos do juízo de repro­vação do crime e de aplicação da pena, em especial no âmbito das circunstâncias judiciais (art. 59, CP) e legais (circunstâncias agravantes e atenuantes genéricas) de aplicação da lei penal, incluindo a otimização do emprego dos substitutivos penais e dos regimes de execução da pena, com generosa ampliação das hipóteses de regime aberto etc.26

V. Princípio da humanidade

1. O principio da humanidade, deduzido da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito (art. Io, III, CR), exclui a cominação, aplicação e execução de penas (a) de morte, (b) perpétuas, (c) de trabalhos forçados, (d) de banimento, (e) cruéis, como castra-

25 CIRINO DOS SANTOS, Teoria da pena, 2005, p. 37.26 Comparar BARATTA, Prindpi del dirittopenal minimo. Per una teoria dei diritti umani come

oggetti e limiti delia leggepenale, in Dei Delitti e delle Pene, 1991, n. 1, p. 453-454.

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Capítulo 2 Princípios do Direito Penal

ções, mutilações, esterilizações, ou qualquer outra pena infamante ou degradante do ser humano (art. 5o, XLVII, CR).

2. A garanda da integridade física e moral Ao ser humano preso, implícita no princípio da dignidade da pessoa humana definido como fundamento do Estado Democrático de Direito (art. Io, III, CR), é instituída por norma específica da Constituição da República (art. 5o, XLIX, CR) e ratificada por disposições da lei penal (art. 38, CP) e da lei de execução penal (art. 40, LEP) — além de ser inferida da norma que assegura ao preso todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei (art. 3o, LEP)— ou seja, a lesão generalizada, intensa e contínua da dignidade humana e dos direitos humanos de homens e mulheres presos nas cadeias públicas e penitenciárias do sistema penal brasileiro não ocorre por falta de princípios e de regras jurídicas.

3. Entretanto, o princípio da humanidade não se limita a proibir a abstrata cominação e aplicação de penas cruéis ao cidadão livre, mas proíbe tam­bém a concreta execução cruel de penas legais ao cidadão condenado, por exemplo: a) as condições desumanas e indignas, em geral, de execução das penas na maioria absoluta das penitenciárias e cadeias públicas brasileiras;27 b) as condições desumanas e indignas, em especial, do exe­crável Regime Disciplinar Diferenciado — cuja inconstitucionalidade deve ser declarada por argüição de inconstitucionalidade da norma legal no caso concreto (controle difuso, por juizes e Tribunais), ou por ação direta de inconstitucionalidade (controle concentrado, pelo Supremo Tribunal Federal).28

27 ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, §11, III,1.28 CIRINO DOS SANTOS, Teoria da pena, 2005, p. 77-78.

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Teoria da T ei Penal Capítulo 2

VI. Princípio da responsabilidade penalpessoal

1. A definição de fato punível como tipo de injusto e culpabilidadecontém duas garantias fundamentais: primeiro, limita a responsabi­lidade penal aos autores e partícipes do fato punível, com proibição constitucional de extensão da pena além da pessoa do condenado (art. 5o, XLV, CR);29 segundo, limita a responsabilidade penal aos seres hu?nanos de carne e osso, com exclusão conceituai de pessoas jurídi­cas, incapazes de realizar o conceito de fato punível — a proteção de direitos humanos contra violações produzidas por pessoas jurídicas deve ser feita por meios administrativos e civis adequados, porque a responsabilidade penal da pessoa jurídica continua inconstitucional.

2. Além desses limites negativos, o princípio da responsabilidadepenalpessoal tem objeto e fundamento constitucionais positivos, relacionados com o princípio da legalidade e com o princípio da culpabilidade, como se indica:

a) o objeto da responsabilidade penal pessoal é o tipo de injusto, como realização concreta do princípio nullum crimen, nullapoena sine lege (art. 5o, XXXIX, CR, que define o princípio da legalidade), atribuído aos autores e partícipes do fato punível, segundo as regras da imputação objetiva e subjetiva definidas pela ciência do Direito Penal: somente o tipo de injusto pode ser objeto de responsabilidade penal;

b) o fundamento da responsabilidade penal pessoal é a culpabi­lidade, como expressão do princípio nulla poena sine culpa (derivado do art. 5o, LVII, CR, que institui apresunção de inocência), indicada pelas condições pessoais de.saber o quefa% (imputabilidade), de conheámento

29 Comparar BARATTA, Prindpi del diritto penal minimo. Per una teoria dei diritti umani come oggetti e limiti delia leggepenale, in Dei Delitti e delle Pene, 1991, n. 1, p. 459; também ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito penal brasileiro. Revan, 2003, §11,111,1.

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Capítulo 2 Princípios do Direito Penal

real do que fa% (consciência da antijuridicidade) e do poder concreto de não fa^ero quefa^ (exigibilidade de comportamento diverso), que estrutu­ram o juízo de reprovação do conceito normativo de culpabilidade: somente a culpabilidade pode fundamentar a responsabilidade penal pessoal pela realização do tipo de injusto.30

Comparar BARATTA, Principi del diritto penal minimo. Per una teoria dei dirittfumani oggetti e limiti delia leggepenale, in Dei Delitti e delle Pene, 1991, n. 1, p. 459-464.

UNIVERSIDADE FEDERAL D£ UBERLÁ&IH&P S f h l i i f t t í í/ '»

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C a pítu lo 3

V a lid ad e d a L ei P en al

O comportamento humano se realiza em determinado espaço e tempo, onde se enraízam suas condições e se projetam seus efeitos. A validade das normas jurídicas que disciplinam o comportamento humano é delimitada pelas dimensões de espaço e de tempo em que se realizam os processos sociais históricos — ou seja, a relação da norma penal com o espaço e o tempo indica o âmbito espacial e temporal de validade da lei penal.1

Nessas condições, os limites espadais e temporais de validade da lei penal são os seguintes:

a) o espaço de validade da lei penal é definido pelo princípio da territorialidade, que demarca os limites geopolíticos do território de jurisdição penal do Estado — a exceção da extraterritorialidade é repre­sentada pelos princípios da proteção, da personalidade e da compe­tência penal universal;

b) o tempo de validade da lei penal é definido pelo princípio da legalidade, que demarca os limites cronológicos de leis sucessivas do ordenamento jurídico do Estado sobre objetos iguais — a exceção é representada pela retroatividade de lei penal mais favorável.

1 Comparar KELSEN, A.tlgemeine Theorie derNormen, 1990, p. 116.

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Teoria da Lei Penal Capítulo 3

A) Validade da lei penal no espaço

A validade da lei penal no espaço é delimitada pela extensão do território do Estado, como organização jurídica do poder político soberano do povo. O Estado, pessoa jurídica de direito internacio­nal, é constituído de população, território e governo,2 elementos indispensáveis para a existência do Estado; a soberania do Estado, como poder exclusivo, autônomo e com plenitude de competências legislativa, administrativa e judicial, fundamenta o poder de decidir sobre investigação de fatos e sobre punição de pessoas nos limites do próprio território, onde detém o monopólio do emprego legítimo da força.3 A jurisdição penal dos Estados pode ser ampliada pela insti­tuição de formas de cooperação penal internacional sobre controle e repressão de fatos puníveis de interesse comum, como o tráfico de seres humanos, de armas, de drogas etc.4

O Código Penal brasileiro delimita o espaço de validade da lei penal segundo dois critérios fundamentais: o critério da territorialidade (art. 5o, CP) e o critério da extraterritorialidade (art. 7o, CP).

I. O critério da territorialidade

O critério da territorialidade — fundado no conceito de território, o elemento mais característico do Estado, existente como corporação

2 ALBUQUERQUE MELLO, Curso de direito internacionalpúblico, 2001,13a edição, p. 339.3 ALBUQUERQUE MELLO, Curso de direito internacionalpúblico, 2001, 13a edição, p.

349; comparar REZEK, Direito intemaàonalpúblico, 2000, 8a edição, p. 153.4 STRATENWERTH, Strafrecht, 2000, p. 61, n. 3.

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Capítulo 3 Validade da Lei Penal

territorial segundo o Direito Internacional Público5 - é a principal forma de delimitação do espaço geopolítico de validade da lei penal na área das relações entre Estados soberanos. A soberania do Estado, expressão do princípio da igualdade soberana de todos os membros da comunidade internacional (art. 2o, §1°, Carta da ONU), fundamenta o exercício de todas as competências sobre fatos puníveis realizados no território respectivo.

Art. 5o, CP. Aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de con­venções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional.

1. Conceito de território

O território sobre o qual o Estado exerce sua soberania política é constituído pelas áreas (a) do solo, como extensão de terra contínua ou descontínua, com os rios, lagos e mares existentes dentro do território, (b) do subsolo, compreendendo a profundidade cônica do território em relação ao centro do Planeta, (c) do mar territorial, compreendendo 12 (doze) milhas marítimas a partir do litoral brasileiro, definido pela Lei 8.617/93, (d) da plataforma continental' medindo 200 (duzentas) milhas marítimas a partir do litoral brasileiro (ou 188 milhas, deduzidas as 12 milhas do mar territorial), como %pna econômica exclusiva, igualmente instituído pela Lei 8.617/93, que incorporou a Convenção da ONU de 1982, sobre o direito do mar, (e) do espaço aéreo correspondente ao conjunto do território, ainda regido pelas Convenções de Chicago

5 ALBUQUERQUE MELLO, Curso de direito internacionalpúblico, 2001,13a edição, p. 351.

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Teoria da Lei Penal Capítulo 3

de 1944 e pela Convenção de Varsóvia de 1929, ambas sobre aviação civil internacional.6

2. Imunidades diplomáticas

As imunidades diplomáticas têm por objeto os agentes diplomá­ticos e existem sob as formas de inviolabilidades e de imunidades de jurisdição criminal, civil, administrativa e tributária perante o Estado acreditante.7 Os agentes diplomáticos são pessoas enviadas pelo Chefe de Estado para representar o seu Estado perante um governo estran­geiro.8 A inviolabilidade dos agentes diplomáticos abrange a Missão Diplomática e as residências particulares dos agentes diplomáticos, compreendendo mobiliário, arquivos, correspondência, meios de transporte e de comunicação; a imunidade de jurisdição e de execução penal, civil, administrativa e tributária incide sobre o agente diplomático e sua família, os adidos militares e o pessoal técnico e administrativo, como secretárias, criptógrafos etc.9

Os cônsules são funcionários públicos de carreira (cônsules “missi”) ou honorários (cônsules “electi”), designados para o exercício

6 Ver REZEK, Direito internacionalpúblico, 2000, 8a edição, p. 153-154, 296-301, 304-306 e 318-319; DIMOULIS. Manual de introdução ao estudo do direito, 2003, p. 221-2; FRAGOSO, Lições de direito penal (parte geral), 2003, p. 133-135, n. 103; MAYRINK DA COSTA, Direito Penal (parte geral), 2005, p. 501-504; MESTIERI, Manual de direito penal, 1999, p. 79.

7 ALBUQUERQUE MELLO, Curso de direito intemaáonalpúblico, 2001, p. 1316.8 ALBUQUERQUE MELLO, Curso de direito intemaáonal público, 2001, p. 1309.9 ALBUQUERQUE MELLO, Curso de direito intemaáonal público, 2001, p. 1317-1320;

REZEK, Direito intemaáonal público, 2000, 8a edição, p. 161-164; DIMOULIS, Ma­nual de introdução ao estudo do direito, 2003, p. 221-2. FRAGOSO, Lições de direito penal (partegeral), 2003, p. 149-154, n. 112; STRATENWERTH, Strafrecht, 2000, p. 62, 9.

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Capítulo 3 Validade da Lei Penal

de determinadas funções no exterior, com imunidades e privilégios inferiores aos dos agentes diplomáticos — por exemplo, a imunidade penal é relativa e limitada aos atos de ofício (outorga de passapor­tes falsos, expedição de falsas guias de exportação etc.), podendo ser processados e punidos por outros crimes.10

O fundamento dos privilégios e imunidades diplomáticas é ainda objeto de controvérsia: a) a teoria da extraterritorialidade afirma que o espaço físico da Embaixada seria uma extensão do território do Estado acreditado — atualmente em declínio na literatura e na jurisprudência; b) a teoria do interesse da função fundamenta os privilégios e imunidades na necessidade de garantir o desempenho eficaz das funções das Missões Diplomáticas — atualmente dominante na literatura e consagrada na ju­risprudência internacional.11

3. Navios e aviões públicos e privados

1. Os navios, definidos como engenhos construídos para navegar no mar,12 se classificam em públicos e privados: os navios públicos compreendem(a) os navios públicos de guerra, que pertencem à Marinha de um Estado, com os sinais exteriores dos navios de guerra e de sua nacionalidade, e(b) os navios públicos civis, que exercem serviços públicos como navios alfandegários, navios-faróis, navios de saúde e navios que transportam Chefes de Estado; os navios privados são os utilizados para fins comer­

10 ALBUQUERQUE MELLO, Curso de direito internacional público, 2001, p. 1337- 1340; REZEK, Direito intemaáonalpúblico, 2000, 8a edição, p. 161-164.

11 ALBUQUERQUE MELLO, Curso de direito intemaáonal público, 2001, p. 1315-1316.12 Convenção de Bruxelas de 1924 e Convenção de Genebra de 1924.

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Teoria da T ei Penal Capítulo 3

ciais ou particulares.13

Os navios públicos de guerra e civis estão sob a jurisdição exclusiva do Estado de origem, com absoluta e ilimitada imunida­de perante outros Estados, mesmo em mar territorial ou atracados em portos estrangeiros. Os navios privados, assim como os navios públicos destinados exclusivamente a fins comerciais, permanecem sob jurisdição do Estado de origem em águas territoriais respectivas ou em alto-mar, mas subordinam-se à lei penal de outros Estados— respeitado o direito de passagem inocente —, quando em águas territo­riais ou em portos estrangeiros.14

2. As aeronaves também podem ser classificadas em públicas e pri­vadas: as aeronaves públicas compreendem (a) as aeronaves públicas militares, que pertencem às Forças Armadas ou requisitadas para missões militares, e (b) as aeronaves públicas civis, que exercem serviços públicos de natureza não militar (por exemplo, serviços de fiscalização alfandegária); as aeronaves privadas ou civis são destinadas a atividades comerciais.15

As aeronaves públicas militares ou civis podem sobrevoar no espaço aéreo do território do Estado respectivo ou no espaço aéreo internacional, mas não possuem o direito de passagem inocente sobreo território de outros Estados, como ocorre com os navios — exceto mediante prévia autorização. As aeronaves privadas ou civis de tráfe­go internacional possuem a nacionalidade do Estado de registro ou de matrícula e são regidas por liberdades técnicas e comerciais, assim definidas: a) as liberdades técnicas compreendem o sobrevôo do território de outros Estados, admitida a restrição de certas áreas por razões de

13 ALBUQUERQUE MELLO, Curso de direito intemaáonalpúblico, 2001, p. 1211-1212.14 ALBUQUERQUE MELLO, Curso de direito intemaáonal público, 2001, p. 1211-

1212; REZEK, Direito intemaáonalpúblico, 2000, 8a edição, p. 295-296.15 ALBUQUERQUE MELLO, Curso de direito intemaáonalpúblico, 2001, p. 1247.

Capítulo 3 Validade da l^ei Penal

segurança, e a escala técnica nas hipóteses de pouso necessário; b) as liberdades comerciais, geralmente asseguradas em tratados bilaterais, compreendem o desembarque e o embarque de passageiros e de mercadorias provenientes do ou com destino ao Estado de matrícula, podendo-se admitir o desembarque e embarque de passageiros e de mercadorias de qualquer parte e para qualquer parte do mundo.16

(Art. 5o, CP) §1°. Para os efeitospenais consideram-se como extensão do território naáonal as embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo bra­sileiro onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, que se achem, respectivamente, no espaço aéreo correspondente ou em alto-mar.

§2°. E também aplicável a lei brasileira aos crimes praticados a bordo de aeronaves ou embarcações estrangeiras de pro­priedade privada, achando-se aquelas em pouso no território nacional ou em vôo no espaço aéreo correspondente, e estas em porto ou mar territorial do Brasil

4. Lugar do crime

A lei penal brasileira adota a teoria da ubiqüidade para definir lugar do crime: o espaço físico em que foi realizada, no todo ou em parte, a ação ou a omissão de ação, ou em que se produziu ou deveria

16 ALBUQUERQUE MELLO, Curso de direito internacional público, 2001, p. 1247-1251; REZEK, Direito internacionalpúblico, 2000, 8a edição, p. 317-321.

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Teoria da T ei Penal Capítulo 3

produzir-se o resultado.17

Art. 6o, CP. Considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produ^jr-se o resultado.

Logo as condutas definidas como crimes em leis penais brasilei­ras, realizadas no todo ou em parte no território do Estado brasileiro, ou que produzam — ou devam produzir — o resultado nesse território, são submetidas à jurisdição penal brasileira.

A necessidade de definir lugar do crime se fundamenta na hipótese de ações criminosas se realizarem no espaço territorial de dois ou mais Estados, por exemplo: a ação se realiza no Brasil, mas o resultado ocorre na Argentina ou no Uruguai, ou vice-versa.18 Nessas hipóteses, a duplici­dade de punição é evitada por norma expressa da lei penal brasileira:

Art. 8o, CP. A pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasilpelo mesmo crime, quando diversas, ou nela é computada, quando idênticas.

IL Critério da extraterritorialidade

O critério da extraterritorialidade compreende um conjunto de exceções à regra da territorialidade, definidas pelos princípios da proteção (ou da defesa), da personalidade (ou da nacionalidade) e da competência penal universal (òu da cooperação penal internaáonal).

17 MESTIERI, Manual de direito penal, 1999, p. 84.18 Ver FRAGOSO. Uções de direito penal (parte geral), 2003, p. 138-140, n. 106.

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Capítulo 3 Validade da Vei Penal

1. Princípio da proteção

O princípio da proteção (òu da defesa) permite submeter à jurisdi­ção penal brasileira fatos puníveis cometidos, no estrangeiro, lesivos de bens jurídicos pertencentes ao Estado brasileiro (art. 7o, I a, b, c, CP), compreendendo os crimes (a) contra a vida ou liberdade do Presidente da República, (b) contra o patrimônio ou a fé pública da União, Distrito Federal, Estados e Municípios, de empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia ou fundação do Poder Público,(c) contra a administração pública, por autor a serviço público.19

Art. 7o, CP. Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro:

I — os crimes:

a) contra a vida ou a liberdade do Presidente da República;

b) contra o patrimônio ou a fépública da União, do Distrito Federal\ de Estado, de Território, de Município, de empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público;

c) contra a administração pública, por quem está a seu serviço;

Nesses casos, a punição do agente pela lei brasileira independe de absolvição ou de condenação no estrangeiro.

Art. 7o §1°, CP. Nos casos do ináso I, o agente épunido segundo a lei brasileira, ainda que absolvido ou condenado no estrangeiro.

19 ALBUQUERQUE MELLO, Curso de direito intemaáonalpúblico, 2001,13a edição, p. 951.

43

Teoria da T ei Penal Capítulo 3

2. Princípio da personalidade

1. O princípio da personalidade (ou da nacionalidade) permite submeter à lei penal brasileira os fatos puníveis praticados no estrangeiro (a) por autor brasileiro (forma ativa) ou (b) contra vítima brasileira (forma passiva).20 A personalidade ou a nacionalidade brasileira pode ser ad­quirida pelo nascimento no território brasileiro, ou pela naturalização de estrangeiro, garantida a igualdade de direitos entre brasileiros natos e naturalizados, exceto para o exercício de determinados cargos e fun­ções públicas, a propriedade de meios de comunicação e a extradição, reservados a brasileiros natos:

a) são brasileiros natos (al) os nascidos no território brasileiro (ainda que de pais estrangeiros, se não estiverem a serviço de seu País), bem como (a2) os nascidos no estrangeiro, de pai ou mãe brasileiros a serviço do Brasil ou, na hipótese contrária, se vierem a residir no território nacional e optarem pela nacionalidade brasileira;

b) são brasileiros naturalizados os que adquirem a nacionali­dade brasileira mediante requerimento, preenchidas certas condições: bl) imigrantes residentes no País por 15 anos consecutivos e sem condenação penal; b2) súditos de países de língua portuguesa, com idoneidade moral e residência ininterrupta de 1 ano no Brasil; b3) demais casos, exigência de 4 anos de residência no País, idoneidade moral, boa saúde e domínio do idioma.21

2. O princípio da personalidade (ou da nacionalidade) conhece uma forma ativa e uma forma passiva, assim disciplinadas pela lei penal brasileira:

20 ALBUQUERQUE MELLO, Curso de direito internacional público, 2001, 13a edição, p. 950-951.

21 REZEK, Direito internacionalpúblico, 2000, 8a edição, p. 177-180.

44

Capítulo 3 Validade da Lei Penal

a) o princípio da personalidade ativa compreende os crimes praticados por brasileiros (art. 7o, II b, CP) e os crimes de genocídio cometidos por agentes brasileiros (art.7o, I d, primeira parte, CP) em território estrangeiro.

Art. 7o, CP. Vicam sujeitos à lei brasileira, embora cometidosno estrangeiro:

I — os crimes:

d) de genocídio, quando o agente fo r brasileiro (...);

II — os crimes:

b) praticados por brasileiro.

b) o princípio da personalidade passiva permite aplicar a lei penal brasileira a crimes cometidos por autores estrangeiros contra vítimas brasileiras, fora do País.

Art. 7o §3°, CP. A lei brasileira aplica-se também ao crimecometido por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil, se,reunidas as condições previstas no parágrafo anterior:

a) não fo i pedida ou fo i negada a extradição;

b) houve requisição do Ministro da Justiça.

As condições “previstas no parágrafo anterior” são as condições objetivas de punibilidade do art. 7o §2°, CP, adiante transcrito.

3. Princípio da competência universal

O princípio da competência penal universal é característico da coo­peração penal internacional, porque todos os Estados da comunidade internacional podem punir todos os autores de determinados crimes,

45

Teoria da Lxi Venal Capítulo 3

segundo tratados ou convenções internacionais (art. 7o, I, d e II a e c, CP) — por exemplo, o genocídio, o tráfico de drogas, o comércio de seres humanos etc.22

Art. 7o, CP. Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro:

I — os crimes:

d) de genocídio, quando o agentefor (...) domiciliado no Brasil

II — os crimes:

a) que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a re­primir.

c)praticados em aeronaves ou embarcações brasileiras, mercan­tes ou de propriedade privada, quando em território estrangeiro e aí não sejam julgados.

Nessas hipóteses, a aplicação da lei penal brasileira depende de determinadas condições objetivas de punibilidade, expressamente indicadas na lei: a) ingresso do autor no território brasileiro; b) punibilidade do fato no Brasil e no país estrangeiro respectivo; c) fato punível perten­cente à categoria dos crimes extraditáveis, segundo a lei brasileira; d) ausência de absolvição ou de cumprimento de pena no estrangeiro;e) ausência de perdão no estrangeiro, ou de extinção da punibilidade, segundo a lei mais favorável.

Art. 7o §2°, CP. Nos casos do inciso II, a aplicação da lei brasileira depende do concurso das seguintes condições:

a) entrar o agente no território nacional;

b) ser o fato punível também no país em que fo i praticado;

22 ALBUQUERQUE MELLO, Curso de direito intemaàonalpúblico, 2001,13a edição, p.951; também MAYRINK DA COSTA, Direito Penal (partegeral), 2005, p. 509-510.

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Capítulo 3 Validade da Lei Penal

c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasi­leira autoriza a extradição;

d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena;

e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, p or outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável.

III. Extradição

A extradição é o processo jurídico-político pelo qual um Estado entrega o autor de fato punível a outro Estado, competente para aplicar ou para executara pena criminal respectiva, fundado em tratado bilateral ou promessa de reciprocidade, observadas determinadas condições (art. 76, da Lei 6.815/80).23

1. Condições de concessão. A concessão da extradição exige as se­guintes condições cumulativas: a) competência jurisdicional do Estado requerente para aplicação e execução da pena; b) condenação a pena privadva de liberdade transitada em julgado, ou prisão autorizada por Juiz, Tribunal ou autoridade competente do Estado requerente (art. 78 ,1 e II, da Lei 6.815/80).

2. Compromissos do Estado requerente. A entrega do extraditando é condicionada aos seguintes compromissos do Estado requerente (art. 91, da Lei 6.815/80): a) não prender ou julgar o extraditando por fato diverso do pedido; b) computar o tempo de prisão no Bra­

23 REZEK, Direito intemaáonalpúblico, 2000, 8a edição, p. 189.

47

Teoria da T ei Penal Capítulo 3

sil, por causa da extradição (no Brasil, o extraditando aguarda preso a decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal sobre o pedido de extradição); c) comutar eventual pena de morte ou pena corporal em pena privativa de liberdade; d) não entregar o extraditando a outro Estado, exceto com consentimento do Brasil; e) excluir agravação da pena por motivos políticos.

3. Exclusão da extradição. A extradição, instituto jurídico-político reservado a estrangeiros, é excluída nas seguintes hipóteses (art. 77, Lei 6.815/80): a) autor brasileiro do fato punível, exceto brasileiro naturalizado, por fato anterior à aquisição da nacionalidade, ou por tráfico de drogas (neste caso, art. 5o LI, CR); b) fato atípico segundo a lei penal brasileira, ou do Estado requerente (observação: fato atípico do Estado requerente exclui a formulação do pedido de extradição); c) competência da justiça brasileira para julgar o fato objeto do pedido de extradição; d) fato punível com pena de prisão igual ou inferior a1 ano, pela lei penal brasileira; e) existência de processo criminal, ou de anterior condenação ou absolvição criminal da justiça brasileira, pelo fato objeto do pedido de extradição; f) extinção da punibilidade por prescrição, segundo a lei mais favorável; g) crimes políticos, ou de opinião (neste caso, art. 5o, LII, CR); g) julgamento por Tribunal ou Juízo de exceção, no Estado requerente.

4. Proibição de extradição dissimulada. A legislação brasileira também exclui a extradição dissimulada, nas hipóteses em que a depor­tação (art. 63, Lei 8.615/80) ou a expulsão (art. 75 ,1, Lei 8.615/80) de estrangeiro tenha o significado de extradição proibida, como ocorre nos casos em que a alternativa compulsória do estrangeiro deportado ou expulso seja o ingresso no Estado de sua nacionalidade, ou em outro Estado que concederia a extradição.

5. Um caso histórico. O cidadão britânico Ronald Biggs, condenado por roubo pela justiça inglesa, fugiu da prisão e ingressou no Brasil com o nome falso de Michael Haynes. No Brasil, preso por' ordem

48

Capítulo 3 Validade da Lei Penal

do Ministro da Jusdça do Governo Mülitar em 1974 e, por ausência de tratado bilateral de extradição entre Brasil e Inglaterra, submetido a processo de deportação, impetrou habeas corpus no antigo Tribunal Federal de Recursos (HC 3.345/74, TFR), sob alegação de iminente paternidade de brasileiro e de extradição dissimulada sob a forma de deportação. O Tribunal negou o habeas corpus, mas reconheceu a possibilidade de extradição dissimulada, excluindo a deportação para a Inglaterra, ou para qualquer outro Estado de onde fosse possível extradição, com o resultado da posterior libertação de Ronald Biggs, pela óbvia impossibilidade de execução da deportação. Em 1997, após formalização de tratado bilateral de extradição entre Brasil e Inglaterra, o Supremo Tribunal Federal negou pedido de extradição do governo britânico contra Ronald Biggs (Extradição 721 /97, STF), fundado na extinção da punibilidade da pretensão executória, segundo a lei penal brasileira.

B) Validade da lei penal no tempo

1. Em regra, a lei penal tem por objeto exclusivamente comportamen­tos futuros, ou seja, comportamentos realizados após a entrada em vigor da lei penal; por exceção, a lei penal pode ter efeitos retroativos a fatos anteriores à sua vigência, nas hipóteses em que, de qualquer modo, a lei penal posterior é mais favorável ao réu.24

2. A validade da lei penal no tempo pode ser esclarecida por duas pergun­tas: a) qual a lei penal vigente ao tempo do fato punível? b) existem leis penais posteriores mais favoráveis?

24 Comparar KELSEN, A.llgemeine Theorèe der Normen, 1990, p. 117; para mais deta­lhes, ver MAYRINK DA COSTA, Direito Penal (partegeral), 2005, p. 443 s.

49

Teoria da T ei Penal Capítulo 3

Assim posta a questão, a resposta é simples: o critério geral de validade da lei penal no tempo é definido pelo princípio da legalidade, como fonte exclusiva e limite intransponível do poder de punir; o critério específico de validade da lei penal no tempo é definido pela retroativi­dade da lei penal maisfavorável’ aplicável sem exceção em crimes, penas e medidas de segurança.

2.1. No Brasil, a norma fundamental do princípio da legalidade foi intro­duzida na Constituição de 1824, e hoje está inscrita no art. 5o, XXXIX, da Constituição da República:

Art. 5o, XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legai

A lei penal brasileira contém disposição idêntica, que inaugura o Código Penal:

Art. Io, CP. Não há crime sem lei anterior que o defina.Não há pena sem prévia cominação legal

2.2. A norma jurídica que institui o critério específico da lei penal mais favorável' aplicável em todas as hipóteses de crimes, penas e medidas de segurança, está definida no art. 5o, XL, da Constituição da República:

Art. 5o, XL - a kipenal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.

A aplicação combinada do princípio da legalidade e do derivado constitucional da lei penal mais favorável' ligados entre si por relação de generalidade e especificidade e enunciados como garantias fundamentais na Constituição da República, permite resolver todos os casos con­cretos.

50

Capítulo 3 Validade da Lei Penal

I. O critério geral: princípio da legalidade

O critério geral de validade, da lei penal no tempo é definido pelo princípio da legalidade, na plenitude de suas dimensões constitucionais incidentes sobre crimes, penas e medidas de segurança, definidas como (a) lexpraevia, que proíbe a retroatividade da lei penal para crimi­nalizar ou penalizar fato anterior, (b) lex scripta, que proíbe o costume como fundamento de crimes ou de penas, (c) lex stricta, que proíbe a analogia como método de criminalização ou de penalização de ações humanas e (d) lex certa, que proíbe indefinições nos dpos legais e nas sanções penais, determinantes de aplicações idiossincráticas da lei penal2" (ver Princípios do Direito Penal, acima).

II. O critério específico: lei penal mais benigna

A proibição de retroatividade tem por objeto os crimes, as penas e as medidas de segurançafuturas, mas admite uma exceção fundamental: a retroadvidade da lei penal mais benigna, inscrita na Constituição da República e na legislação ordinária.

A Constituição da República contém norma específica sobre a regra e a exceção, assim redigida:

Art. 5o, XL - a lei penal não retroagirá, salvo para benefiáar o réu.

25 ROXIN, Strafrecbt, 1997, p. 98, ns. 8-11; ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, §10, II, 1; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbu- cb des Deutscben Strafrecbtrs, 1976, p. 131-142; GROPP, Strafrecbt, 2001, p. 45, n. 2-3.

51

Teoria da Lei Penal Capítulo 3

O Código Penal contém disposição mais detalhada sobre a retroatividade de lei penal mais favorável.' nestes termos:

Art. 2o, parágrafo único. A lei posterior que, de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.

A aplicação da lei penal mais favorável resolve conflitos de leis penais no tempo, segundo os critérios de comparação de leis diferentes ou de combinação de leis sucessivas:

a) a hipótese de comparação de leis diferentes trabalha com um critério concreto, que inclui circunstâncias legais agravantes e atenuantes e causas especiais de aumento ou de diminuição de pena, mediante um método de ensaio I erro capaz de indicar o resultado mais favorável para o caso concreto, definido como lex mitior: al) pena menor; no caso de penas iguais; a2) pena menos grave, no caso de penas diferentes; a3) substitu­tivos penais com pra%o menor.; ou sob condições mais favoráveis; a4) regime de execução menos rigoroso etc.26

b) a hipótese de combinação de leis sucessivas é objeto de contro­vérsia: bl) posição tradicional rejeita a combinação de leis sucessivas, sob o argumento de construção de uma lextertia, proibida ao intérprete;27 b2) posição moderna admite a combinação de leis sucessivas, sob o argumento convincente de que a expressão “de qualquer modo” (art. 2o, parágrafo único, CP), não conhece exceções.28

26 ROXIN, Strafrecht, 1997, p. 122-24, ns. 62-65; ZAFFARONI, BATISTA, ALA­GIA e SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, §10, V, 2.

27 Nesse sentido, HUNGRIA, Comentários ao Código Penal, v. 1, p. 121; FRAGOSO, Lições de direito penal., parte geral, p. 107.

28 Assim ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, §10, V, 2, que referem decisão do ex-Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo (TACrimSP 50/392), com aplicação de pena de multa de uma lei e pena privativa de liberdade de outra lei, no conflito entre leis de tóxico anteriores (Lei 5.726/71 e Lei 6.368/76); também DOTTI, Curso de direito penal, 2001, p. 271.

52

Capítulo 3 Validade da Lei Penal

A retroatividade da lei penal mais favorável incide sobre todas as hipóteses: leis penais em branco, leis penais temporárias ou excepcio­nais, leis processuais penais, lei de execução penal e jurisprudência.

1. Leis penais em branco. As leis penais em branco são tipos legais com sanção penal determinada e preceito indeterminado, dependente de complementação por outro ato legislativo ou administrativo — como a identificação das doenças de notificação compulsória (art. 269, CP). As leis penais em branco exprimem a tendência moderna de administra- tivi%ação do Direito Penal, com transferência de poderes punitivos a funcionários do Poder Executivo, ou a modalidades inferiores de atos normativos (Decreto, Resolução etc.), com os seguintes problemas:

a) primeiro, um problema político: a transferência da compe­tência legislativa para definir a conduta proibida para o Poder Executivo, ou para níveis inferiores de atos legislativos, infringe o princípio da lega­lidade, como afirma um setor avançado da literatura penal — afinal, o emprego instrumental do Direito Penal para realizar políticas públicas emergenciais é inconstitucional.29

b) segundo, um problema prático — porque a inconstituciona­lidade da lei penal em branco não exclui sua eficácia concreta enquanto integrar a legislação penal: em cada caso é necessário definir se o complemento posterior favorável ao autor (por exemplo, a doença foi excluída do catálogo) é retroativo ao fato realizado na vigência de complemento anterior prejudicial ao autor (na época do fato, a doença constava do catálogo).j0

29 Ver ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, §10, II, 7; igualmente, PIZZA PELUSO, Retroatividade da lei penal benéfica: a causa da diminuição de pena do art. 33, §4°, da Lei n. 11.343/06 (Lei de tóxicos), in Boletim IBCCRIM, ano 15, n. 175, junho/2007, p. 2-3.

30 A favor da retroatividade do complemento maisfavorável, CIRINO DOS SANTOS, Direito penal (a nova parte geral), 1985, p. 52; contra a retroatividade do complemento mais favorável, MESTTERI, Manual de direito penal (parte geral), 1999, p. 75.

53

Teoria da Tei Penal Capítulo 3

Atualmente, a controvérsia é decidida pela retroatividade da lei penal mais benigna, porque o complemento da lei penal em branco é elemento do tipo objetivo e, portanto, integra a lei penal, segundo a seguinte lógica: se o tipo legal não existe sem o complemento legal ou administrativo — e o Poder Legislativo, independente da inconstitucionalidade da delegação de poderes, autoriza a edição do complemento da lei penal, por outra lei ou por ato administrativo —, então o complemento é elemento do tipo de injusto e, na hipótese de complemento posterior mais favorável’ retroativo.31

2. Leis penais temporárias e excepcionais. As leis penais temporárias, editadas para vigência durante tempo determinado, e as leis penais excepcionais, editadas para vigência durante acontecimento determina­do (calamidades públicas, como inundações, terremotos, epidemias etc.), estariam subtraídas da exceção de retroatividade da lei penal mais favorável, porque teriam ultratividade segundo norma específica da legislação penal:

Art. 3o, CP. A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstánáas que a de­terminaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigênáa.

Não obstante, a eficácia dessa norma específica sobre a chama­da ultratividade da lei excepcional ou temporária é controvertida, como indicam as seguintes teorias:

a) a teoria dominante admite a ultratividade das leis penais tem­porárias ou excepcionais em prejuízo do réu, sob o argumento utilitário de que inevitáveis dilações processuais excluiriam a aplicação da lei durante o tempo ou o aconteámento determinados/2 ou sob o argumen-

51 Nesse sentido, STRATENWERTH, Strafrecht, 2000, p. 50, n. 8.j2 HUNGRIA/FRAGOSO, Comentários ao Código Penal, 1977, vol. 1, p. 139, n. 30;

MAYRINK DA COSTA, Direito Penal (partegeral), 2005, p. 457-459.

54

Capítulo 3 Validade da Lei Penal

to técnico de que o tempo ou o acontecimento integrariam o dpo legal,33 excluindo, em ambas hipóteses, a retroatividade da lei penal mais favorável;

b) respeitável teoria minoritária rejeita o atributo de ultrativida- de das leis penais temporárias ou excepcionais em prejuízo do réu, sob o argumento sistemádco convincente da natureza incondicional da exceção constitucional de retroatividade da lei penal maisfavorável (art. 5o, XL), com a invalidação do art. 3o, do Código Penal, que não teria sido recepcionado pela Constituição da República de 1988.34

3. Leis processuais penais. A submissão das leis processuais penais ao princípio constitucional da proibição de retroatividade da lei penal em prejuízo do réu, também é controvertida:

a) a teoria dominante exclui as leis processuais penais da proibição de retroatividade em prejuízo do réu, porque seriam regidas pelo prin­cípio tempus regit actum, com aplicação da lei vigente no momento do ato processual respectivo, e não da lei processual vigente ao tempo do fato punível objeto do processo penal;35

b) a teoria minoritária subordina as leis processuais penais à proi­bição de retroatividade em prejuízo do réu, sob o argumento de que o princípio constitucional da leipenal maisfavorável condiciona a legalidade processual penal, sob dois pontos de vista: bl) primeiro, o primado do direito penal substanáal determina a extensão das garantias do princípio da legalidade ao subsistema de imputação (assim como aos subsistemas de indiciamento e de execução penal), porque a coerção processual é a própria realização da coação punitiva;36 b2) segundo, o gênero leipenal abrange as espécies lei penal material e lei penal processual., regidas pelo mesmo

33 MESTIERI, Manual de direito penal’ 1999, p.74.34 Nesse sentido, ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito penal brasi­

leiro, 2003, §10, V, 5; também LUISI, Os princípios constitucionais penais, 1991, p. 23.35 Por todos, MARQUES, Elementos de direito processual penal, 1961, v. I, p. 48.36 BARATTA, Principi del diritto penal minimo. Per una teoria dei diritti umani come oggetti e

limiti delia leggepenale, in Dei Delitti e delle Pene, 1991, n. 1, p. 450.

55

Teoria da JLei Venal Capítulo 3

princípio fundamental.37

4. Lei de execução penal. A lei de execução penal (Lei 7.210/84) também está submedda ao princípio constitucional da lei penal mais favorável— ou da proibição de retroatividade em prejuízo do réu, apesar de controvérsia insustentável:

a) o argumento de que a ressociali^ação do condenado prevalece sobre o princípio constitucional da lei penal mais favorável é morali- zador, repressivo e anti-científico: ninguém pode ser ressocializado segundo critérios morais alheios, a prevenção especial negativa (re­pressão neutralizadora) é incompatível com a prevenção especial positiva (execução ressocializadora) e, por último, a história do sistema penal indica o fracasso irreversível do projeto técnico- corretivo da prisão;

b) ao contrário, leis de execução penal são leis penais em sentido estrito, porque a execução da pena, como objetivo concreto da cominação e da aplicação da pena, é o centro nuclear do princípio da legalidade e seus incondicionais derivados constitucionais, como a aplicação retroativa da lei penal maisfavorável aos fatos anteriores “ainda que decididos por sen­tença condenatória transitada emjulgado” (art. 2o, parágrafo único, CP);38

c) finalmente, o primado do direito penal substancial estende as ga­rantias do princípio da legalidade ao subsistema de execução penal’ com a limitação dos poderes discricionários da prisão.39

5. Jurisprudência. A literatura penal admite a extensão do princípio da legalidade e seus derivados constitucionais à Jurisprudênáa dos Tribunais,

37 ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, §10, V, 8.

38 ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito penal brasikiro, 2003, §10, V, 9.39 BARATTA, Principi del diritto penal minimo. Per una teoria dei diritti umani come oggetti e

limiti delia kggepenale, in Dei Delitti e delle Pene, 1991, n. 1, p. 450.

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Capítulo 3 Validade da L ei Penal

embora a opinião majoritária rejeite essa extensão.40

A teoria majoritária rejeita subordinar a Jurisprudência ao princí­pio da proibição de retroatividade em prejuízo do autor., sob o argumento de que a lei penal somente agora seria corretamente conhecida — mas admite a possibilidade de erro de proibição inevitável fundado na confiança do cidadão na Jurisprudência anterior.41

Segundo a teoria minoritária, a aplicação da lei penal não é produto asséptico de regras lógicas de subsunção, mas atividade cria­dora de construção da realidade social por juízos atributivos fundados em regras legais (tipos de injusto e normas processuais) e meta-regras (estereótipos e outros mecanismos inconscientes do psiquismo do intérprete), capazes de transformar o cidadão em criminoso, com estigmatização social, mudança de status e formação de carreiras criminosas definitivas.42 A mudança de jurisprudência em prejuízo do réu — a inversão de posição absolutória para posição condenatória, por exemplo — representa lesão do princípio da confiança nas manifestações dos Tribunais (porque a Jurisprudência é a lei do caso concreto), com conseqüências para a vida real de seres humanos de carne e osso, equivalentes à retroatividade da lei penal em prejuízo do réu, proibida pela Constituição da República. Afinal, manifestações do Poder Judi­ciário não são indiferentes ao homem do povo e, portanto, a proibição de retroatividade inclui mudanças de jurisprudência firme em prejuízo do autor, sob o argumento de que a confiança na jurisprudência eqüivale

4" Ver STRATENWERTH, Strafrecbt, 2001, 4a edição, p. 58-59, ns. 28-31; também ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, §10, VII, 2-3.

41 ROXIN, Strafrecbt, 1997, p. 122, n. 61; STRATENWERTH, Strafrecbt, 2001, 4a edição, p. 58, n. 30; também ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, §10, VII, 2-3.

42 BARATTA, Criminologia crítica e crítica do direito penal, 2000, p. 104-106; ALBRE- CHT, Kríminologie, 1999, p. 41-43.

57

Teoria da T ei Penai Capítulo 3

à confiança na leP - por essa razão, a alternadva da exculpação por erro de proibição inevitável — admidda pela teoria majoritária — deve perma­necer como ratio subsidiária, somente aplicável na ausência de lesão da proibição de retroatividade penal em prejuízo do réu, por mudança de Jurisprudência absolutória para condenatória.44

43 Nesse sentido, MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1,1992, 8a edição, 12, II n. 8, p. 159: “Mas existem casos de firmejurisprudênàa superior, que tem função equivalente ou complemen­tar da lei (...); porque, em tais casos, a unitáriajurisprudênàa superior preenche a mesma função de orientação da lei, também aqui a proibição de retroatividade precisa ter lugar. ”

44 Incisivo e esclarecedor, ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, §10, VII, 2-3.

58

C a pítu lo 4

In te r pr e t a çã o d a L ei P e n al

A interpretação de normas jurídicas é um exercício de lógica como método de pensamento, cuja natureza geral (lógica formal), ou específica (lógica jurídica) é objeto de controvérsia na literatura: a) um setor da literatura afirma a existência de uma lógica jurídica específica empregada no raciocínio jurídico e prático, em geral, diferente da lógica empregada na matemática ou na filosofia, por exemplo;1 b) outro setor da literatura nega a existência de lógicas especiais (lógica matemática, filosófica, jurídica etc.), mas reconhece aplicações parti­culares das regras gerais da lógica formal: assim a lógica jurídica seria uma aplicação especial da lógica formal.' utilizada pelo operador do direito para construção de raciocínios jurídicos.2

A norma penal deve ser examinada de quatro diferentes pontos de vista, capazes de esclarecer as seguintes questões: a) o signifi­cado de norma jurídica; b) as técnicas de interpretação da norma penal; c) o silogismo de aplicação da norma jurídica; d) as fontes da norma penal.

I. O significado de norma jurídica

A etimologia da palavra norma explica sua função de unidade ele­

1 PERELMAN, Logique formelle, logiquejuridique, 1969, p. 230.2 KELSEN, Allgemeine Tbeorie derNormen, 1990, p. 216 e 220.

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Teoria da "Lei Penal Capítulo 4

mentar do Direito: em ladm, a palavra norma significa esquadro — assim como a palavra regra (em latim, regula) significa medida—, significados que exprimem a natureza do conceito de norma (ou de regra) jurídica no Direito moderno.3

Aqui, é indispensável uma distinção fundamental: a norma jurídica não descreve realidades do ser, como propriedades físicas descritas pelas ciências da natureza, ou como tendências sociais descritas pela sociologia, por exemplo; ao contrário, a norma jurídica prescreve im­perativos do dever ser, definíveis sob a forma de proibições, de mandados e de permissões de ações dirigidas aos seres humanos. Por isso, pode-se dizer que as proibições, mandados e permissões de ações prescritas pelas normas jurídicas pressupõem o poder dos seres humanos de configurar o futuro, segundo finalidades ou objetivos individuais ou co­letivos.4 Logo, como indica fCELSEN, a norma jurídica diríge-se a um ser humano, prescrevendo como devidas determinadas condutas.5

II. A. interpretação da norma penal

A interpretação da norma penal — ou da norma jurídica, em geral— designa o processo intelectual de determinação do significado da lei penal. Como a lei penal existe sob a forma de linguagem escrita, a interpretação da lei penal tem por objeto a linguagem que exprime a lei, abordada sob três pontos de vista: semântico, sintático e pragmático.

A linguagem é um instrumento de comunicação constituído de

3 DIMOULIS, Manual de introdução ao estudo do direito, 2003, p. 60-61.4 Ver WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 11a edição, 1969, §8, II, p. 37; também

EBERT, Strafrecht, 1994, p. 22-23.5 KELSEN, Algemeine Tbeorie derNormen, 1979, p. 7.

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Capítulo 4 Interpretação da Lei Penal

signos, representados por palavras ou gestos, portadores de conteúdos cujo sentido é comunicado através do discurso, que exprime o con­junto de signos da linguagem no processo de comunicação social. A abordagem semântica da linguagem jurídica tem por finalidade de­terminar o significado isolado das palavras da lei; a abordagem sintática da linguagem jurídica tem por finalidade determinar o significado conjunto das palavras correlacionadas da lei; a abordagem pragmática da linguagem jurídica tem por finalidade esclarecer a adequação prática das palavras empregadas na lei.6

1. Técnicas de interpretação

A abordagem semântica, sintática e pragmádca da linguagem jurídica não evita problemas de ambigüidades — também chamadas po- lissemias — nas palavras da lei, sendo necessário o emprego de técnicas especíjicas de interpretação da lei, conhecidas como (a) interpretação literal’ (b) interpretação sistemática, (c) interpretação histórica e (d) inter­pretação teleológica da lei, para eliminar ou reduzir esses problemas.

A interpretação literalé uma aplicação especial da abordagem semânti­ca, cujo objetivo é esclarecer o significado das palavras da lei, que podem ser empregadas em sentido comum ou em sentido técnico na norma jurídica; a interpretação sistemática tem por objetivo esclarecer o significado da norma isolada no contexto do sistema de normas respectivo, que estrutura os conceitos e os institutos jurídicos; a interpretação histórica tem por objetivo esclarecer a intenção do legislador n o processo de criação da norma jurídica, mediante análise dos debates parlamentares, dos anteprojetos de lei e das exposições

6 Ver DIMOULIS, Manual de introdução ao estudo do direito., 2003, p. 149-150; FRAGO­SO, Uções de direito penal (parte geral), 2003,16a edição, p. 100-103.

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Teoria da T ei Penal Capítulo 4

de motivos que caracterizam o processo legislativo; a interpretação teleológica tem por objetivo esclarecer a finalidade social da lei, como realização de proibições, mandados e permissões prescritas pelo legislador.7

2. Sujeitos da interpretação

A interpretação da norma jurídica pode ser realizada pelo Po­der Legislativo, pelo Poder Judiciário e por especialistas do Direito (ou Juristas), originando três segmentos principais de interpretação segundo o sujeito respectivo: interpretação autêntica, interpretação

judicial e interpretação áentífica do Direito.8

A interpretação autêntica é produzida pelo legislador em dois momentos principais: a) a interpretação autêntica contextual' como definições de conceitos empregados na lei, aparece no próprio texto da lei — por exemplo, o conceito de causa definido no art. 13, CP; b) a interpretação autêntica paralela, como esclarecimento dos motivos e indicação dos propósitos do legislador, aparece nas Exposições de Motivos que acompanham as leis penais mais importantes — por exemplo, a Exposição de Motivos do Código Penal.

A interpretação jud iáa l é produzida pelo Poder Judiciário nos processos criminais, civis e outros submetidos à sua competência ju- risdicional, em que aparecem os sentidos ou tendências das decisões dos Tribunais em casos concretos, sob a forma de Jurisprudência crimi­nal, civil etc, definíveis como decisões isoladas, como jurisprudência

7 DIMOULIS, Manual de introdução ao estudo do direito, 2003, p. 159-170. Comparar MAYRINK DA COSTA, Direito Penal (partegeral), 2005, p. 425-428.

8 Comparar MAYRINK DA COSTA, Direito Penal (parte geral), 2005, p. 424.

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Capítulo 4 Interpretação da Lei Venal

dominante, como súmulas da jurisprudência dominante e, atualmente, também como súmulas vinculantes do Supremo Tribunal Federal.

A interpretação científica é produzida pelos especialistas da ciência jurídica penal, civil etc., representados por autores de livros, artigos, conferências e aulas de Direito Penal, de Direito Civil etc., que definem ou desenvolvem categorias científicas necessárias ou úteis para conhe­cer e aplicar as normas e institutos jurídicos em casos concretos.

3. Resultados da interpretação

A aplicação das técnicas de interpretação para esclarecer o senddo da lei produz resultados (a) declarativos, (b) extensivos ou (c) restriti­vos do significado da lei, assim explicados: a) resultados declarativos definem liipóteses de significado normal da linguagem da lei, no sentido de que lex dixit quam voluit (a lei disse o que queria dizer); b) resultados extensivos definem hipóteses de ampliação do significado da linguagem da lei, no sentido de que lex dixit minus quam voluit (a lei disse menos do que queria dizer) — interpretação proibida pelo princípio da legalidade em matéria de crimes e de penas; c) resultados restritivos definem lúpóteses de redução do significado da linguagem da lei, no sentido de que lex dixitplus quam voluit (a lei disse mais do que queria dizer).9

9 DIMOULIS, Manual de introdução ao estudo do direito, 2003, p. 168-170; FRAGOSO,Lições de direito pena l (parte geral), 2003, 16a edição, p. 104.

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Teoria da T ei Penall

Capítulo 4

4. Analogia e interpretação

1. O conceito de analogia deve ser definido em comparação com o conceito de interpretação da lei penal, para diferenciar entre interpretação admissível e analogia proibida da lei penal.10

A moderna teoria da lei penal afirma a igualdade lógica entre a estrutura da interpretação e a estrutura da analogia jurídica: a interpretação consiste em idendficar grupos de casos regulados e não regulados pela lei penal — portanto, atua pela comparação de grupos de casos; a analogia consiste em aplicar a lei penal a grupos de casos não previstos, mas semelhantes aos casos previstos na lei penal — assim, também a analogia atua pela comparação de grupos de casos, como método de pensamento comparativo necessário ao trabalho jurídico.11 Mas essa igualdade lógica não permite confundir os conceitos de interpretação e de analogia da lei penal, como se demonstra.

2. O limite da interpretação da lei penal é determinado pelo significado das palavras empregadas na linguagem da lei penal, que não indicam quantidades expressas em números, medidas ou pesos, mas valores cujos sentidos devem ser determinados pelo intérprete: por um lado, o legis­lador define normas penais utilizando palavras para construir a lei penal; por outro lado, o juiz decide casos concretos fundado no significado das palavras empregadas pelo legislador para definir a lei penal.

Como indicado, as técnicas empregadas pelo intérprete para determinar o significado dos valores da lei penal (literal, sistemática, histórica e teleológica) pesquisam o significado das palavras da lei penal, a função da norma isolada no sistema de normas penais, as

10 Assim ROXIN, Strafrecbt, 1997, p. 104-5, n. 26.11 Ver HAFT, Strafrecbt, 1994, 6a edição, p. 49; STRATENWERTH, Stafrecht, 2000,'

p. 58-59, n. 31; ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, §10, III, 4-6.

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Capítulo 4 Interpretação da Lxi Penal

representações do legislador no processo legislativo de criação da lei penal e a finalidade social da lei penal.12

3. A igualdade lógica entre interpretação e analogia da lei penal coloca a questão central dos limites da interpretação permitida e da analogia proibida em Direito Penal, o que pressupõe a delimitação do objeto da interpretação e da analogia.

A delimitação do objeto da interpretação da lei penal é disputada por duas teorias: a) a primeira, propõe o critério do sentido da lei penal como objeto da interpretação: o que está conforme o sentido da lei penal, é permitido; o que discrepa do sentido da lei penal, é proibido13 — um critério problemático pela subjetividade do sentido atribuído à lei penal;b) a segunda, propõe a literalidade da lei como objeto de interpretação: o que é compatível com a literalidade da lei penal, constitui interpretação permitida', o que é incompatível com a literalidade da lei penal, constitui analogia proibidalA — um critério adequado aos princípios do Estado Democrático de Direito, porque as palavras possuem significados objetivos responsáveis pela comunicação social. Por outro lado, a teoria da literalidade como objeto de interpretação também resolve o dilema entre interpretação restritiva e interpretação extensiva da lei penal: o princípio da legalidade proíbe qualquer interpretação extensiva da lei penal, resolvendo todos os casos de dúvida conforme a interpretação restritiva da lei penal — aliás, a única compatível com o princípio in dubio pro reo, hoje de aplicação universal no Direito Penal.15

12 Ver DIMOULIS, Introdução ao estudo do direito, 2003, p. 159-170; também ROXIN, Strafrecht, 1997, p. 105-6, n. 28.

13 STRATENWERTH, Stafrecht, 2000, p. 59, n. 31; JAKOBS, Strafrecht, 1993, 4/37; SCHMIDHÀUSER, Lebrbuch, 1975, 2a edição, 2/4.

14 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, p. 159; ROXIN, Strafrecht,, 1997, §5, n. 28.15 Assim, ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito pena l brasileiro,

2003, §10, III, 8.

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Teoria da L ei Penal Capítulo 4

4. A analogia como argumento a simile significa a aplicação da lei penal a fatos diferentes dos previstos, mas semelhantes aos previstos.16 Nesse sentido, a analogia constitui um juí^o de probabilidade próprio da psicologia individual, que não pertence nem à lógica clássica/dedu­tiva, nem à lógica moderna/indutiva.17 Ao contrário, a analogia como argumento a maiori ad minus significa que a norma jurídica válida para uma classe geral de fatos é igualmente válida para fatos especiais da mesma categoria. Aqui, a teoria da igualdade lógica entre interpretação e analogia da lei penal mostra que o problema da analogia (assim como da interpretação) reside no significado da analogia (ou da interpretação) para o caso concreto: se o significado concreto representar prejuízo para o réu, constitui analogia (ou interpretação) proibida; se o signi­ficado concreto representar benefício para o réu, constitui analogia (ou interpretação) permitida.

Essa teoria remonta à distinção de MAYER,18 hoje generali­zada na literatura penal, que definiu as bases da analogia proibida e da analogia permitida em Direito Penal: a) a analogia in malampartem— compreensiva da analogia praepter legem e da analogia contra legem —,

é absolutamente proibida pelo Direito Penal: a subsunção de ações ou de omissão de ações nos tipos legais e a aplicação ou agravação de sanções penais em casos concretos excluem a analogia em todas as liipóteses; b) a analogia in bonam partem — a chamada analogia intra legem—é perm itida pelo princípio da legalidade, sem nenhuma restrição: nas justificações de ações típicas, nas exculpações de ações típicas e antijurídicas e em qualquer outra hipótese de extinção ou de redução

16 KELSEN, Allgemeine Theorie derNormen, 1990, p. 217.17 CARNAP, On inductive logic, in Philosophy o f Science, 1945, vol. XII, p. 72, apud KEL­

SEN, AJlgemeine Theorie der Normen, 1990, p. 218.18 MAYER, Der allgemeine Teil des deutschen Strafrechts, 1915, p. 27.

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Capítulo 4 Interpretação da L ei Penal

da punibilidade do comportamento humano.19

5. Não obstante — e como se sabe —, a analogia é necessária para o funcionamento do ordenamento jurídico de determinados Estados nacionais — assim como para a aplicação de alguns ramos do próprio ordenamento jurídico brasileiro: a) nos países anglo-saxônicos, as decisões dos Tribunais em processos criminais são fundadas em analogias construídas com base nos precedentes legais: o sistema do case law, vigente na Inglaterra e nos Estados Unidos, por exemplo;20 b) no ordenamento jurídico brasileiro, a analogia é expressamente admitida no Direito Civil, para solução de casos não disciplinados em lei.

III. O silogismo como lógica de subsunção jurídica

1. A subsunção jurídica é regida pelo silogismo, procedimento lógico pelo qual a conclusão é verdadeira se a premissa maior (norma) e a premissa menor (conduta) são demonstráveis.21 Ou, dito de outro modo: se as premissas são verdadeiras e se a conclusão está implícita nas premissas, então a conclusão é verdadeira.22 Ou, ainda de outro modo: o silogismo é uma seqüência de declarações em que a verdade do conteúdo da conclusão é extraída da verdade do conteúdo das premissas.23

19 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §15, III, n. 2 d, p. 136; MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, p. 127-128, ns. 21-22; ROXIN, Strafrecbt, 1997, p. 112-114, ns. .40-44; ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito pena l brasileiro, 2003, §10, III, 4-6.

20 STRATENWERTH, Strafrecbt, 2000, p. 58-59, n. 31.21 Ver HAT.DER, Philosophisches Wórterbuch, 2000, p. 280.22 Assm, SUSAN STEBBING, A. modem elementaiy logic, 1957, p. 159.23 KELSEN, A.llgemeine Theorie derNormen, 1990, p. 181-182.

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Teoria da jLei Penal Capítulo 4

1.1. Exemplo de silogismo clássico: a) todos os homens são mortais (pre­missa maior); b) Sócrates é um homem (premissa menor); c) Sócrates é mortal (conclusão).

1.2. Exemplo de silogismo jurídico: a) homicídios são punidos com pena de reclusão de 6 a 20 anos (premissa maior); b) Ypraticou homicídio contra X (premissa menor); c) a pena de reclusão de 6 a 20 anos é aplicável contra Y (conclusão). A lógica do silogismo, como lógica da subsunção jurídica, está presente em toda decisão judicial.

2. Porém, não é difícil perceber que a lógica de subsunção jurídica do silogismo pode apresentar problemas relacionados com a subjetividade do julgador, produzidos por duas espécies de erros, incidentes sobre objetos diferentes: a) o erro de interpretação das normas jurídicas;b) o erro de análise da prova processual. O erro de interpretação da norma jurídica pode ser explicado por falhas ou defeitos de co­nhecimento científico do Direito; mas o erro de análise da prova— também definido como silogismo regressivo24 — é conhecido em criminologia como meta-regras (ou basic rules, segundo a fenomenolo- gia), produzido por mecanismos psíquicos inconsáentes que determinam o significado concreto da decisão judicial: preconceitos, estereótipos, traumas e outras idiossincrasias originárias da experiência pessoal do julgador, desencadeados por indicadores sociais negativos de pobreza, desemprego, marginalização, moradia em favelas etc., constituiriam as determinações emocionais decisivas do processo de criminalização25— e não a dogmática jurídica, como critério de racionalidade.

24 Assim, BERGEL, Methodologie juridique, 2001, p 147, apud DIMOULIS, Manual de Introdução ao estudo do direito, 2003. p. 93.

25 Ver SACK, Neue Perspektiven in Kriminologie. In Krim inalsoziologie, organizado por R. Konig e F. Sack, 1968, p. 469; também, CIRINO DOS SANTOS, Teoria da pena , 2005, p. 27-28.

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Capítuh 4 Interpretação da L ei Penal

IV. Fontes da norma pena l

O Direito, em geral, possui fontes materiais e fontes formais. A definição das fontes materiais do Direito depende de pressupostos ideológicos ou políticos de abordagem do fenômeno jurídico, mas é possível classificar as definições em dois grupos: a) as teorias consensu­ais definem os interesses, necessidades ou valores gerais da sociedade como fontes materiais do Direito; b) as teorias conflituais definem os interesses, necessidades e valores de classes sociais detentoras do poder do Estado como fontes materiais do Direito.26

As fontes formais do Direito, em geral, também podem ser classificadas em dois grupos: as fontes escritas e as fontes nao-escritas do Direito. As fontes escritas compreendem a lei, a jurisprudênàa e a doutrina; as fontes não escritas compreendem os costumes, os princípios gerais do direito e o poder negociai entre cidadãos.27

Mas o Direito Penal possui uma única e exclusiva fonte: a lei penal, nas dimensões características do princípio da legalidade, como lex scripta, lex praevia, lex stricta e lex certa (ver Validade da lei penal no tempo, acima).

26 Ver SABADELL, Manual de sociologiajurídica (introdução a uma kitura externa do Direito), 2002, p. 67-69; também DIMOULIS, Manual de Introdução ao estudo do direito, 2003, p. 184.

27 Assim, DIMOULIS, Manual de Introdução ao estudo do direito, 2003, p. 184-211.

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S e g u n d a P arte

T e o r ia d o F a t o P u n ív e l

C apítu lo 5

F a t o P u n í v e l

I. Definições de crime

A teoria do fa to punível é o segmento principal da dogmática penal.’

o sistema de conceitos construído para descrever o ser do Direito Penal, esse setor do ordenamento jurídico que institui a política cri­minal — rectius, política penal — do Estado, como programa oficial de retribuição e de prevenção do crime. Nesse sentido, parece não haver contradição entre dogmática penal e política criminal.\ que se comportam como as faces de uma só e mesma moeda, integradas numa relação de recíproca complementação: (a dogmática penal é a sistematização de conceitos extraídos de um programa de política criminal formalizado em lei, e todo programa legislado de política criminal depende de uma dogmática específica para racionalizar e disciplinar sua aplicação

Uma teoria do fato punível deve começar pela definição de seu objeto de estudo, o conceito de fato punível. As definições de um conceito podem ter natureza real.’ material.\ form al ou operacional' conforme mostrem a origem, os efeitos, a natureza ou os caracteres constitutivos da realidade conceituada.2 Assim, definições reais expli­

1 Comparar ROXIN, Strafrecht, 1997, §7, I, n. 1, p. 145 e V, ns. 69-70, p. 174-175; também, GIMBERNAT ORDEIG, Hat die Strafrechtsdogmatik eine Xukunftl, ZStW 82 (1970), p. 405 s.

2 Ver SCHWENDIN GER, Defensores da ordem ou guardiães dos direitos humanos? In Crimino­logia crítica, de Ian Taylor, Paul Walton e Jock Young (editores), 1980, p. 144, (tradução de Juarez Cirino dos Santos e Sérgio Tancredo).

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Teoria do Fato Punível Capítulo 5

cariam a gênese do fato punível, importantes para delimitar o objeto de estudo da criminologia; definições materiais indicariam a gravidade do dano social produzido pelo fato punível, como lesões de bens jurídicos capazes de orientar a formulação de políticas criminais; de­finições formais revelariam a essência do fato punível, como violação da norma legal ameaçada com pena; enfim, definições operacionais identificariam os elementos constitutivos do fato punível, necessários como método analítico para determinar a existência concreta de ações criminosas! Este livro trabalha com uma definição operacional de fato punível — também denominada definição analítica de crime -[capaz de indicar os pressupostos de punibilidade das ações descritas na lei penal como crimes, de funcionar como critério de raáonalidade da jurispru­dência criminal e de contribuir para a segurança jurídica do cidadão no Estado Democrático de Direito.j'

A dogmática penal contemporânea coincide na admissão de duas categorias elementares do fato punível: o tipo de injusto e a culpabilidade.4 Essas categorias elementares concentram todos os elementos da de­finição analítica de fato punível, mas a operacionalização da definição analítica requer o desdobramento daquelas categorias gerais nas catego­rias mais simples que as constituem: a) o conceito de tipo de injusto é constituído pelos conceitos de ação, de tipicidade e de antijuridicidade; b) o conceito de culpabilidade é constituído pelos conceitos de capacidade penal' de conhedmento da antijuridicidade (real ou potencial) e de exigibi­lidade de comportamento diverso (ou normalidade das circunstâncias da ação).5

3 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §21,12, p. 195. No Brasil, verFRAGOSO, Lições de Direito Penal’ 1985, n. 119, p. 146-147.

4 Assim, por exemplo, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §39,1 1,p. 425; OT1O, Grundkurs Strafrecbt, 1996, §5, III 1, n. 23, p. 46.

5 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §39,1, p. 194-195; ROXIN, Strafrecht, 1997, §7, n. 7-8, p. 148; WESSELS/BEUKE, Strafrecht, 1998, n. 83, p. 22. No Brasil, FRAGOSO, Lições de Direito Penal.’ 1985, n. 122, p. 148-151; MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 105.

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Capítulo 5 Fato Punível

Existe evidente consenso sobre a natureza das categorias gerais do fato punível, bem como sobre as categorias mais simples resultantes de sua decomposição analítica, mas existe um ponto de discordância radical situado na área do tipo de injusto, responsável pela existência diferenciada dos sistemas bipartido e tripartido de fato punível: a relação entre os conceitos de tipo legal e de antijuridicidade.

II. Os sistemas de fa to punível

1. O sistema bipartido de fato punível afirma a unidade conceituai de tipicidade e antijuridicidade, como elementos integrantes do tipo de injusto, que admitem operacionalização analítica separada, mas não constituem categorias estruturais diferentes do fato punível.6ÍO tipo legal é a descrição da lesão de bensjurídicos e a antijuridicidade é um juí^o de valoração do comportamento descrito no tipo legal, formando o conceito de tipo de i^kfto.^jNesse sentido, também a teoria dos elementos negativos do tipo:9, tipo legal e antijuridicidade são, respectivamente, as dimensões de descrição e de valoração do conceito de tipo geral de injusto e, na verdade, as causas de justificação estariam separadas dos tipos legais apQ«as por motivos técnicos, porque todo tipo de injusto deveria ser lido assim: matar alguém, exceto em legítima defesa, em estado de neces­sidade etc\A inclusão das causas de justificação no tipo legal transforma os preceitos permissivos em características negativas Ao tipo de injusto, enquanto o tipo legal descreve as características positivas do tipo de

6 Ver OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §5°, n. 28, p: 47.7 OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §5°, n. 24, p. 46.8 Concepção originária de ADOLF MERKEL, Lehrbuch des deutschen Strafrechts, 1889, p. 82.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 5

injusto^um homicídio em legítima defesa seria uma ação atípica — e não uma ação típica justificada. Assimj^a teoria dos elementos negativos do tipo fundamenta um sistema de fato punível com duas categorias principais: o tipo de injusto (constituído de tipo legal.\ como fundamento positivo, e de ausência de justificação, como fundamento negativo do conceito) e a culpabilidade^

O sistema bipartido de fato punível tem partidários de prestígio na dogmática moderna,10 e parece lógico, porque, freqüentemente, o tipo legal exige elementos da antijuridicidade, cuja ausência exclui o próprio tipo (por exemplo, o caráter injusto do mal, na ameaça) e, além disso, existem tipos legais que não admitem causas de justificação (por exemplo, o estupro e o atentado violento ao pudor), nos quais tipicidade e antijuridicidade se confundem.11

2. O sistema tripartido de fato punível também admite os conceitos de tipo de injusto e de culpabilidade como categorias elementares do fato punível, mas afirma a autonomia do conceito da tipicidade em relação à antijuridicidade no âmbito do tipo de injusto, sob o argumento de que tipicidade e antijuridicidade não se esgotam na tarefa de constituir o tipo de injusto, mas realizam funções político-criminais independentes: o tipo legal descreve ações proibidas sob ameaça de pena e, portanto, realiza o princípio da legalidade; a antijuridicidade define preceitos permissivos que excluem a contradição da ação típica com o orde­namento jurídico — mas a permissão concreta de realizar proibições

9 ROXIN, Strafrecht, 1997, §10, n. 14, p. 231. No Brasil, ver TAVARES, Teoria do injusto penal, 2000, p. 165 s.

10 ENGISCH, Tatbestandsirrtum und Verbotsirrtum bei Rechtfertigungsgründen, ZStW 70,1958, p. 56; ARTHUR KAUFMANN, Tatbestand, Rechtfertigungsgründe und Irrtum,\L 1956, p. 353 e 393; OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §5, n. 23 s., p. 46 s.; SCHÜNEMANN, Einjuhrungin das Strafrechtliche Sjstemdenken, 1994; HERZBERG, E rlaubnistatbestandsirrtum und Deliktsaufbau, J A 1989, p. 243 s. No Brasil, MACHADO, Direito criminal:parte geral, 1987, p. 119; REALE JR., Instituições de direito penal (partegeral), 2002, p. 139-140.

11 HERZBERG, Erlaubnistatbestandsirrtum und Deliktsaujbau, JA 1989, p. 245.

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Capítulo 5 Fato Punível

abstratas do tipo legal não autoriza identificar ações atípicas com ações típicas justificadas, como ocorre no sistema bipartido: matar alguém em legítima defesa não parece o mesmo que matar um inseto.12 A validade do conceito de tipo de injusto, como unidade superior compreensiva do tipo legal e da antijuridicidade, não permite nivelar diferenças entre comportamentos justificados, que devem ser suportados, e compor­tamentos atípicos, que podem variar desde ações insignificantes até ações antijurídicas.13

O sistema tripartido de fato punível, dominante na dogmática contemporânea,14 define crime como ação típica, antijurídica e culpável.' um conceito formado por um substantivo qualificado pelos atributos da adequação ao modelo legal, da contradição aos preceitos proibitivos e permissivos e da reprovação de culpabilidade. Na linha do sistema tripar­tido de fato punível, a dogmática penal conhece três modelos sucessivos de fato punível: o modelo clássico, o modelo neo-clássico e o modelo finalista, cujos traços essenciais podem ser assim enunciados:

2.1. O modelo clássico de~fato punível, conhecido como modelo de LISZT/BELING/RADBRUCH, originário da filosofia naturalista do século XIX, parece claro e simples: a ação é um movimento corporal causador de um resultado no mundo exterior; a tipicidade é a descrição objetiva do acontecimento;15 a antijuridicidade é a valoração de um

12 Ver WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §14,1 1, p. 81.13 ROXIN, Strafrecht, 1997, §10, ns. 16-23, p. 232-236.14 BAUMANN / WEBER/MITSCH, Strafrecht, 1995, §16, n. 14,25; BOCKELMANN /

VOLK, Strafrecht, 1987, §10; DREHER/TRÕNDLE, Strafgeset^buch, 1995, nota preliminar ao §13, n. 8; JACKOBS, Strafrecht, 1993, 6/51s., p. 155 s.; JESCHEK/ WEIGEND, Strafrecht, 1996, §25,1, III, p. 244 s.; LACKNER, Strafgeset^buch, nota preliminar ao §13, n. 17; MAURACH/ZIPF, Strafrecht 1, 1992, §24, I 2, p. 333; ROXIN, Strafrecht, 1997, §10, n. 16 s., p. 232; WELZEL, D as Deutsche Strafrecht, 1969, §10, III, p. 52 s.; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 129, p. 38. No Brasil, MESTTERI, Manual de Direito P enall, 1999, p. 106-107; também, ZAFFARONI/ PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 179-189, p. 390-406.

15 BELING, DielLehre vom Verbrechen, 1906, p. 178 s.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 5

acontecimento contrário às proibições e permissões do ordenamento jurídico; a culpabilidade é um conceito psicológico, sob as formas de dolo e imprudência, que concentra todos os elementos subjetivos do fato punível.16

2.2. O modelo neo-clássico de fato punível, fundado no método neo- kantiano de observação/descrição e de compreensao/valoração é o produto da desintegração do modelo clássico de fato punível17 e, simultaneamente, de sua reorganização teleológica, conforme fins e valores do Direito Penal:18 a ação deixa de ser naturalista para assumir significado valorativo, redefinida como comportamento humano voluntário;19 a tipicidade perde a natureza descritiva e livre-de-valor para admitir ele­mentos normativos (documento, motivo torpe etc.) e subjetivos (a intenção de apropriação, no furto, por exemplo);20 a antijuridicidade troca o signifi­cado formal de infração da norma jurídica pelo significado material de danosidade social' admitindo graduação do injusto conforme a gravidade do interesse lesionado; a culpabilidade psicológica assume, também, signi­ficado normativo, com a reprovação do autor pela formação de vontade contrária ao dever: se o comportamento proibido pode ser reprovado, então pode ser atribuído à culpabilidade do autor.21

2.3. O modelo finalista de fato punível, desenvolvido por WELZEL na primeira metade do século XX, revolucionou todas as áreas do conceito de crime, com base no seguinte princípio metodológico: a ação é o conceito central do fato punível, a psicologia demonstra a

16 LISZT, Lehrbuch des Deutschen Strafrechts, 1881, p. 105 s.17 ROXIN, Strafrecht, 1997, §7, III, 14-5, p. 151-152.18 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §22, III, p. 204-208.19 Assim, MEZGER, Modeme Wege der Strafrechtsdogmatik, 1950, p. 12.20 FISCHER, Die 'Kechtsmdrigkeit mit besonderer Berücksichtigung des Privatrechts, 1911, p.

138; HEGLER, Die Merkmale des Verbrechens, ZStW 36 (1915) p. 27; MEZGER, Die subjektiven Unrechtselemente, GS 89 (1924), p. 207.

21 Nesse sentido, FRANK, Über den A.ufbau des Schuldbegrijfs, 1907, p. 11.

78

Capítulo 5 Fato Punível

estrutura fina l da ação humana e a lei penal não pode desconhecer a existência de estruturas ontológicas independentes do direito.22

A ação humana é exercido de atividade final ou, como objetivação da subjetividade, realização do propósito: o homem pode, em certos limites, por causa de seu saber causai, controlar os acontecimentos e dirigir a ação, planificadamente, para o fim proposto.23 A ação final consiste na proposição do fim , na escolha dos meios de ação necessários e na realização da ação no mundo real.24 O conceito de ação fina l introduziu o dolo (e outros elementos subjetivos) no tipo subjetivo dos delitos dolosos, com as seguintes conseqüências sistemáticas: a) separação entre dolo,

como vontade de realização do fato, e consciência da antijuridicidade, como elemento central da culpabilidade, que fundamenta a reprovação do autor pela formação defeituosa da vontade;25 b) disciplina do erro em correspondência com essas mudanças sistemáticas: na área do tipo, o erro de tipo excludente do dolo e, por extensão, excludente do tipo; na área da culpabilidade, o erro de proibição, que exclui a reprovação de culpabilidade (se inevitável), ou reduz a reprovação de culpabilidade (se evitável);26 c) subjetivação da antijuridicidade, constituída pelo desvalor de ação, como injusto pessoal representado pelo dolo e outros elementos subjetivos, e pelo desvalor de resultado, como lesão do obje­to da ação expressivo do dano social produzido; d) normativização integral da culpabilidade, como reprovação de um sujeito capaz culpabilidade, pela realização não justificada de üm tipo de crime, com consciência da antijuridicidade (real ou possível) e em situação de exigi­

22 Ver ARTHUR KAUFMANN, Die Ontologsche Begründung des Rechts, 1965; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §22, V 1, p. 210. No Brasil, MESTIERI, Manual de Direito P enall, 1999, p. 112-114; comparar, também, ZAFFARONI/PIE- RANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 198-199, p. 416-419.

23 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §8, p. 33.24 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §8, p. 34.25 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §22, V 3, p. 211-212.26 JESCHECK/WEIGEND, 'Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §22, V 3b, p. 212.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 5

bilidade de comportamento diverso.21 Complementarmente, a frustração da expectativa de uma ação determinada constitui a omissão de ação,

uma construção sistemática inversa aos tipos de ação;28 a imprudência é redefinida como evitável lesão do bem jurídico pela realização de­feituosa de uma ação, com lesão do dever de cuidado ou do risco permitido no âmbito do tipo de injusto, e reprovação pessoal pela falta de cuidado, no âmbito da culpabilidade.29

O modelo finalista de fato punível se generalizou na literatura e na jurisprudência contemporâneas, com diferenças de detalhe que não afetam a estrutura do paradigma, além de influenciar diretamente algumas legislações modernas, como a reforma penal alemã (1975) e a nova parte geral do Código Penal brasileiro (1984). Por isso, o texto trabalha com um modelo de fato punível construído pelo finalismo— como, aliás, fazem todas as teorias pós-finalistas —, mas incorporando importantes contribuições científicas produzidas pela teoria posterior, como, por exemplo, a categoria da imputação objetiva do resultado e a teo­ria correlacionada da elevação do risco, desenvolvidas, basicamente, por ROXIN,30 que simplificam o método de compreensão e aprofundam o nível de conhecimento dogmático do conceito de crime.

3. O modelo de fato punível desenhado no texto é formado pelos con­ceitos de tipo de injusto e de culpabilidade, cujos elementos constitutivos são assim distribuídos:

3.1. O tipo de injusto compreende os seguintes elementos: a) a ação como realidade psicossomática do conceito de crime; b) a tipiádade como

27 Comparar ROXIN, Strafrecht,, 1997, §7, III, 17-20, p. 152-153.28 Ver ARMIN KAUFMANN, Die Dogmatik der Unterlassungsdelikte, 1959, p. 92 s.29 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §22, V 4, p. 212; MAU-

RACH/ZIPF, Strafrecht 1, 1992, §16, n. 48, p. 205.30 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, ns. 39-136, p. 310 s.; do mesmo, Gedanken %ur

Problematik derZurechnungim Strafrecht, Honig-FS, 1970; PfUchtmdrigkeitundFrfolg bei fahrlassigen Delikten, ZStW 74, 1962.

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Capítulo 5 Fato Punível

ação humana adequada ao tipo legal, nas dimensões de (1) tipo objetivo,

constituído de causação do resultado e de imputação do resultado, e de (2) tipo subjetivo, formado pelas categorias do dolo — e outros elementos subjetivos especiais — e da imprudência; c) a antijuridicidade, afirmada nas proibições e excluída nas permissões, como categoria dogmática compre­ensiva das justificações, estudadas nas dimensões correspondentes de situação justificante e de ação justificada (subjetiva e objetiva).

3.2. A culpabilidade como juízo de reprovação pela realização não justificada do tipo de injusto, compreende (1) a imputabilidade (excluída ou reduzida por menoridade ou doenças mentais), (2) a consáênáa da antiju­ridicidade (excluída ou reduzida em liipóteses de erro de proibição) e (3) a exigibilidade de comportamento diverso (excluída ou reduzida em situações de exculpação legais e supralegais).

3.3. Finalmente, a autoria eparticipação, a tentativa e consumação e a unidade e pluralidade de fatos puníveis, como desenvolvimentos da teoria do tipo, são apresentadas em capítulos independentes.

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C apítu lo 6

T e o r i a d a A ç ã o

I. Introdução

Meio século de controvérsia dos modelos causai e final sobre o conceito de ação não conseguiu reduzir a discussão da matéria. Ao contrário, com o surgimento de outras definições de ação, qualquer consenso sobre o tema parece mais distante do que nunca: o modelo social de ação, uma espécie de tentativa de conciliação dos modelos causai e final, define ação como comportamento humano socialmente relevante, o modelo negativo de ação define ação como não evitação do comportamento proibido; o modelo pessoal de ação define ação como manifestação da personalidade humana. E existem, também, o modelo lógico-analítico, que define ação como emprego de regras da experiên­cia, da lógica, da linguagem etc.,1 e o modelo de ação intenáonal' que a define como atuação decisiva para o acontecimento2 — cujo interesse científico, ainda restrito aos respectivos autores, parece não exigir imediata tomada de posição. Considerando que aqueles modelos estão vivos na doutrina e na jurisprudência contemporâneas, estru­turando diferentes sistemas de fato punível, com soluções, às vezes, divergentes, é necessário descrever a controvérsia entre as diferentes definições do conceito de ação, bem como mostrar a importância teórica e prática do conceito de ação para compreensão e aplicação do Direito Penal.3

1 Ver HRUSCHKA, Strukturen der Zurechnung, 1976, p. 13; do mesmo, Strafrecht nachlogsch-analytischer Methode, 1988.

2 KINDHÀUSER, Intentionale Handlung, 1980, p. 202 s.3 Para uma exposição crítica de alguns desses modelos, ver TAVARES, A s controvérsias

em tomo dos crimes omissivos, 1996, p. 13-30.

83

Teoria do Tato Punível Capítulo 6

II. Definições do conceito de ação

l. Modelo causai de ação

A teoria causai da ação, elaborada basicamente por LISZT, BELING e RADBRUCH — os fundadores do sistema clássico de fato punível, uma construção teórica estruturada com base nas categorias científicas do mecanicismo do século XIX —, define ação como pro­dução causai de um resultado de modificação no mundo exterior,4 hoje conhecido como modelo clássico de ação.

O modelo causai de ação possui estrutura exclusivamente objetiva: a ação humana, mutilada da vontade consciente do autor, determinaria o resultado como uma forma sem conteúdo, ou um fantasma sem sangue, conforme a expressão do próprio BELING; a voluntariedade da ação indicaria, apenas, ausência de coação física ab­soluta; o resultado de modificação no mundo exterior seria elemento constitutivo do conceito — e, assim, não existiria ação sem resultado.5 Como afirmaria, mais tarde, WELZEL, a teoria causai da ação des­conhece a função constitutiva da vontade dirigente da ação e, por isso, transforma a ação em simples processo causai desencadeado por um ato de vontade qualquer.6

O modelo clássico de ação estrutura o sistema clássico de crime, baseado na separação entre processo causai exterior (causação do

4 LISZT, Strafrecht, 1891, p. 128.5 Nesse sentido, WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §8, III 2, p. 39-42; ROXIN,

Strafrecht, 1997, §8, n. 10-16, p. 187-189.6 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §8, III 2, p. 40. No Brasil, ver a crítica de

MESTTERI, Manual de Direito Penal 1 ,1999, p. 111-112; também, ZAFFARONI/ PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 203-204, p. 421-427.

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Capítulo 6 Teoria da A.çao

resultado) e relação psíquica do autor com o resultado (conteúdo da vontade, sob as formas de dolo e imprudência), que fundamenta a concentração dos elementos causais/objetivos na antijuridicidade típica, e dos elementos psíquicos/ subjetivos na culpabilidade.7 O sistema clássico de crime se desintegra, progressivamente, a partir de descobertas científicas que revelam contradições metodológicas insanáveis: a) na teoria do tipo, a verificação da necessidade do dolo para caracterizar a tentativa de qualquer crime doloso — se presente na tentativa, não pode desaparecer no fato consumado —, mostra que o tipo de conduta proibida não contém, exclusivamente, elementos objetivos; b) na teoria da antijuridicidade, a descoberta dos elementos subjetivos do injusto (hoje, elementos subjetivos especiais do tipo e da culpabilidade, como intenções, ten­dências e atitudes especiais), revela a existência de uma dimensão subjetiva na área do injusto, então reservada aos elementos objetivos; c) na teo­ria da culpabilidade, a verificação de que a imprudência inconsciente não contém elementos psíquicos mostra um defeito da definição de culpabilidade como relação psíquica do autor com o fato, próprio do conceito psicológico de culpabilidade da teoria causai.8

A desintegração do sistema clássico de fato punível do modelo causai de ação originou o atual sistema neo-clássico de fato punível,9 um produto da reorganização teleológica do modelo causai de ação segundo fins e valores do Direito Penal:10 o conceito de ação deixa de ser apenas naturalista para ser, também, normativo, redefinido como comportamento humano voluntário'f a tipicidade perde a natureza livre-de- m/brpara incluir elementos normativos, como documento, motivo torpe

7 Ver TAVARES, Teorias do delito, 1980, n. 22, p. 20.8 Ver WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §8, III 2, p. 39-40.9 ROXIN, Strafrecht, 1997, §7, III, 14-15, p. 151-2.10 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §22, III, p. 204-208. No

Brasil, ver TAVARES, Teorias do delito, 1980, n. 42-45, p. 42-43.11 Assim, MEZGER, Modeme Wege der Strafrechtsdogmatik, 1950, p. 12.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 6

etc., e elementos subjetivos, como a intenção de apropriação no furto e, até mesmo, o dolo na tentativa;12 a antijuridicidade indica não apenas a infração formal da norma jurídica, mas o significado material de dano social' admitindo graduação do injusto conforme o valor lesionado;13 a culpabilidade, sensível a juízos de valor, se estrutura como conceito psicológico-normativo, com a reprovação do autor pela formação de vontade contrária ao dever: somente comportamentos reprováveis podem ser atribuídos à culpabilidade do autor.14

O sistema neo-clássico de fato punível está presente em comentários famosos da legislação penal, como DREHER-TRÕNDLE,15 ou em autores modernos como NAUCKE,16 por exemplo, e na jurisprudência dominante dos tribunais alemães, com resultados muito semelhantes aos dos demais modelos — o que parece demonstrar que não existiriam métodos certos ou errados, apenas métodos melhores ou piores.

2. Modelo final de ação

A teoria fina l da ação, desenvolvida por WELZEL com contri­buições de MAURACH-ZIPF,17 ARMIN KAUFMANN,18 STRA-

12 Na base dessas mudanças estão os trabalhos de FISCHER, Die Rechtsmdrigkeit mii besonderer Berücksichtigung des Privatrecbts, 1911, p. 138; HEGLER, Die Merkmale des Verbrechens, ZStW 36 (1915) p. 27; MEZGER, Die subjektiven Unrecbtselemente, GS 89 (1924), p. 207.

13 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §22, II c, p. 206-207.14 Assim, FRANK, Über den A.ufbau des Schuldbegriffs, 1907, p. 11. No Brasil, ver TA­

VARES, Teorias do delito, 1980, n. 48, p. 45-46.15 DREHER-TRÕNDLE, Strafgeset^buch und Nebengeset^e, 1995.16 NAUCKE, Strafrecht, eine einfuhrung, 2000, n. 151-161, p. 258-261.17 MAURACH/ZIPF, Strafrecht 1 ,1992, §16, n. 38-42, p. 201-203.18 ARMIN KAUFMANN, Zum Stand derLehre vom Personalen Unrecbt, Welzel-FS, 1974, p. 393.

86

Capítulo 6 Teoria da A.ção

TENWERTFi,19 HIRSCH20 e outros, surge como crítica ao modelo causai e define ação como realização de atividade final: o saber causai, adquirido pela experiência e preservado como ciência, fundamenta a capacidade humana de prever as conseqüências possíveis da ação, de propor diferentes fins e de dirigir planiíicadamente a atividade para realização do fim. Assim, na formulação clássica de WELZEL:21

‘lAção humana é exercido de atividade final. Ação é, p or isso, acontedmento final, não meramente causai. A finalidade ou o sentido fina l da ação se baseia no poder humano de prever, em deteminados limites, p or força de seu saber causai, os possíveis efeitos de sua atividade, propor-se diferentes fins e dirigir; planificadamente, sua atividadepara realização destes fins. (...) Porque a finalidade se baseia na capaddade da von­tade de prever, em determinados limites, as conseqüêndas da intervenção causai\ e através desta, dirigi-la planificadamente para a realização do fim, a vontade consdente do fim, que dirige o acontecer causai, é a espinha dorsal da ação final. ”

O ponto de partida do modelo final de ação é a distinção entre fato naturale ação humana: o fato natural é fenômeno determinado pela causalidade, um produto mecânico de relações causais cegas; a ação humana é acontecimento dirigido pela vontade consciente do fim.22 Na ação humana, a vontade é a energia produtora da ação, enquanto a consciência do fim é sua direção inteligente: a finalidade dirige a causalidade para configurar o futuro conforme o plano do autor. Na

19 STRATENWERTH, Strafrecht 1 ,1981, n. 140.20 HIRSCH, Der Streit um Handlungs- und Unrechtskhre, ZStW 93 (1981), p. 831.21 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §8 ,1, p. 33-34. No Brasil, ver a excelente

descrição do desenvolvimento do modelo final de ação, em TAVARES, Teorias do delito, 1980, n. 57-64, p. 52-60.

22 Assim, MAURACH/ZIPF, 1992, Strafrecht I, §16, n. 41, p. 202; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §8 ,1, p. 34.

Teoria do Fato Punível Capítulo 6

teoria de WELZEL a vontade consciente do fim é a espinha dorsal da ação,21 enquanto o acontecimento causai é a resultante casual de com­ponentes causais preexistentes. A. finalidade é, por isso — figurativamente falando — v id en te , a causalidade, c e g a .2A

A unidade subjetiva e objetiva da ação humana é o fundamento real da estrutura subjetiva e objetiva do tipo de injusto. A homogenia entre teoria da ação e teoria da ação típica (ação concreta adequada a um tipo legal, portanto, substantivo adjetivado) é um dos méritos do modelo final de ação. No âmbito da ação, a dimensão subjetiva da ação (ouprojeto de realização), cuja espinha dorsalé a vontade consciente do fim, compreende:

1) a proposição do fim , como conteúdo principal da vontade cons­ciente, que unifica e estrutura a ação (no tipo subjetivo, constitui o dolo direto de primeiro grau);

2) a seleção dos meios de ação para realizar o fim , determinados regressivamente pela natureza do fim proposto (no tipo subjetivo, integram o dolo direto de segundo grau, se configuram resultados típicos).

Como a utilização dos meios escolhidos pode determinar outros efeitos diversos do fim, surge o problema da relação desses efeitos colaterais ou secundários com a ação: objetivamente, em relação à natu­reza dos meios, os efeitos colaterais podem ser necessários ou possíveis; subjetivamente, em relação à vontade consciente do autor, os efeitos colaterais podem ser (a) incluídos na vontade consciente, (b) incluídos na consciência, mas excluídos da vontade, ou (c) excluídos da consci­ência e da vontade. Assim, a dimensão subjetiva da ação compreende, secundariamente:

23 Ver WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §8 ,1, p. 34; MAURACH/ZIPF, 1992, Strafrechtl, §16, n. 41, p. 202.

24 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §8 ,1, p. 33.

Capítulo 6 Teoria da Ação

3) a representação dos efeitos colaterais necessários ou possíveis ligados causalmente aos meios selecionados: o autor pode dirigir a ação para incluir ou para excluir esses efeitos colaterais, conforme as seguintes alternativas:

a) os efeitos colaterais representados como necessários integram a vontade consciente do autor, ainda que lastimados ou indesejados: se o autor os representa como necessários e realiza a ação, integram sua vontade consciente e, conseqüentemente, a ação (no tipo subjetivo constituem, também, dolo direto de segundo grau);

b) os efeitos colaterais representados como possíveis integram a consciência do autor, mas dependem da atitude pessoal deste para integrarem, também, a vontade: 1) se o autor consente na produção dos efeitos colaterais representados como possíveis (conforma-se ou concorda com eles), então, eventualmente, esses efeitos integram também a vontade do autor e, por extensão, a ação como acontecimento final (no tipo subjetivo, constituem dolo eventual, também chamado dolo condicionado); 2) se o autor não consente na produção desses efeitos colaterais representados como possíveis (não se conforma ou não concorda com eles), mas, ao contrário, confia em sua não-ocorrênçia, ou espera,

honestamente, poder evitá-los pelo modo concreto de execução da ação, então esses efeitos não integram a vontade do autor, nem a ação como fenômeno estruturado pela finalidade (podem ser atribuídos ao autor como imprudência consciente, se existir o tipo respectivo); 3) enfim, efeitos colaterais necessários ou possíveis não-representados pelo sujeito não podem integrar nenhuma vontade consciente do autor e, assim, estão excluídos da ação como realização do propósito (podem ser atribuídos ao autor como imprudência inconsciente, se existir o tipo respectivo).

Por outro lado, a dimensão objetiva da ação (ou realização do projeto) representa sua materialização no mundo real, com a utilização dos meios selecionados para realizar o fim proposto, mediatizada pela

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Teoria do Fato Punível Capítulo 6

representação (ou não) dos efeitos colaterais necessários ou possíveis25 (constitui a matéria do tipo objetivo).

A teoria final da ação contribuiu, decisivamente, para identificar o fundamento psicossomático do conceito de crime: a unidade subjetiva e objetiva da ação humana, qualificada pelos atributos axiológicos da tipicidade, da antijuridicidade e da culpabilidade, como base real do conceito de fato punível. Além disso, a estrutura final da ação seria pressuposta na função atribuída às normas penais, que se dirigem à vontade humana como proibições ou como determinações de ação: a estrutura final da ação humana seria constitutiva para o Direito Penal, cujas proibições ou mandados não se dirigem a processos causais cegos, mas a ações humanas que configuram finalisticamente o futuro.26

A validade dessa tese parece reconhecida por setores significa­tivos da doutrina moderna. MAURACH/ZIPF definem a estrutura final da ação humana como o componente antropológico da respon­sabilidade penal;27 EBERT destaca a concordância entre o conceito final de ação e afunção das normas penais, como proibições e determinações de ação dirigidas à vontade humana, acrescentando que a inclusão do conteúdo da vontade no conceito de ação permite compreender o seu significado como ação típica e como ação injusta,28

Por último, a crítica de que o modelo final — cuja capacidade ex­plicativa da ação dolosa é amplamente reconhecida — teria dificuldades para explicar a ação imprudente e a omissão de ação,29 é inconsisten­te. A ação imprudente é definível como execução defeituosa de uma ação perigosa, ou como execução de uma ação defeituosa (a ação deveria ser realizada de modo diferente): o defeito da ação (final) reside no modo

25 Assim, WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §8 ,1, p. 34-35.26 Assim, WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §8, II, p. 37.27 MAURACH/ZIPF, 1992, Strafrecht I, §16, n. 48, p. 205.28 EBERT, Strafrecht, 1994, p. 22-3.29 Nesse sentido, a crítica de JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996,

§23, m , 2 b, p. 221; também, ROXIN, Strafrecht, 1994, §8, n. 18-25, p. 185-188.

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Capítulo 6 Teoria da A.ção

concreto de sua realização, lesivo do cuidado objetivo exigido ou do risco permitido em ações socialmente perigosas, porque o autor confia na evitação de conseqüências sociais indesejáveis, ou simplesmente não pensa nelas.30 A omissão de ação, ao contrário da ação dolosa (que não deveria ter sido realizada) ou da ação imprudente (que não deveria ser realizada daquele modo), deve ser pensada a partir do conceito de ação mandada, como acontecimento social construído pela finalidade de proteger bens jurídicos em situação de perigo: a inexecução da ação mandada por um sujeito capaz de agir para impedir o resultado e proteger o bem jurídico caracteriza a omissão de ação. Nessa pers­pectiva, a teoria final da ação permite compreender as ações dolosas como execução de açõesproibidas, as ações imprudentes como execução defeituosa de ação perigosa e a omissão de ação como inexecução de ação mandada, dolosa ou imprudente.31

3. Modelo social de ação

A teoria social da ação, fundada por EBERPLARD SCHMIDT e desenvolvida por JESCHECK e WESSELS, entre outros, representa posição de compromisso entre os modelos causai e final de ação e, talvez por causa disso, parece ser a mais difundida teoria da ação humana — assim como parece ser, também, o modelo com maiores problemas de definição de conceitos e de uniformização de linguagem.

30 Ver MAURACH/ZIPF, Strafrecht I, 1992, §16, n. 40-41, n. 202; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §8, II, p. 37-38 e §18, p. 129 s. No Brasil, ver ZAFFARO- NI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 201, p. 421.

31 Ver WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §8, II, p. 38. No Brasil, também assim, CIRINO DOS SANTOS, Teoria do Crime, 1993, p. 41-42; MESTIERI, Manual de Direito Penal1 ,1999, p. 113; ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 202, p. 422.

91

Teoria do Tato Punível Capítulo 6

Nesse sentido, HAFT destaca a múltipla diversidade de definições do conceito social de ação, ora apresentada como fenômeno social.' ora como comportamento humano socialmente relevante, sem esclarecer, imediata­mente, em que consiste o fenômeno social ou a relevância social da ação;32 essa relativa imprecisão do conceito parece inevitável, porque as teorias sociais da ação seriam teorias conciliadoras, que não excluem, mas incluem as teorias causai e final da ação.33

Não é estranhável que as ênfases recaiam, variavelmente, em pólos diferentes desse conceito difuso, com resultados, às vezes, di­vergentes, como observa EBERT: a teoria social da ação seria uma moldura preenchível, às vezes, pelo conceito causai de ação, como cau- sação de resultados socialmente relevantes e, às vezes, pelo conceito fina l de ação, como fa tor formador de sentido da realidade social\ ambos incluídos na teoria social da ação.34

Essa característica permanece em definições atuais, com o acento sobre o componente final do conceito, qualificado pela relevância social da ação, como WESSELS/BEULKE, por exemplo: a ação constitui comportamento soáalmente relevante d o m in a d o o u d om in á v e lp e la vontade humana — um fator formador de sentido da realidade social, com todos os seus aspectos pessoais, finais, causais e normativos. 3 5 Por outro lado,

32 TAVARES, Teorias ão delito, 1980, n. 100, p. 92, já indicava os problemas do modelo.33 HAFT, Strafrecht, 1994, p. 31: “A teoria social da ação é, hoje, defendida p or numerosos

autores, com ênfases diferenciadas, pelas quais existem muitas definições parecidas, geralmente não muito compreensíveis, nas quais a ação, p o r exemplo, é definida como fenômeno social na sua produção de efeitos dentro da realidade social (Eb. Schmidt), ou como comportamento humano socialmente relevante (Jescheck), pelas quais não se escla­rece imediatamente o que se deve entenderpor fenômeno social ou p o r relevância social. A coisa fica mais clara quando se compreende que as teorias sociais da ação são teorias conciliadoras que, em conclusão, não excluem, mas incluem as teorias causai e fina l de ação. Por este esforço de mediação resulta inevitável uma certa impreásão de conceito. ”

34 EBERT, Strafrecht, 1994, p. 23.35 WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 91, p. 24-25 e n. 93, p. 26. No Brasil,

TAVARES, As controvérsias em tomo dos crimes omissivos, 1996, p. 30.

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Capítulo 6 'Teoria da Ação

JESCHECK/WEIGEND mostram como o modelo social de ação se origina da busca de um conceito unitário superior compreensivo da ação e da omissão de ação, que não seriam formas estruturalmente di­ferentes,36 nem formas equivalentes do comportamento humano:37

“as formas em que se realiza o intercâmbio do homem com seu meio (finalidade no atuar positivo e dirigibilidade na omissão de ação) não são unificáveis ao nível ontológico, por­que a omissão mesma não é final, pois o emprego esperado da finalidade não existe nela. Ação e omissão de ação podem, contudo, ser compreendidas em um conceito de ação unitário, se conseguirmos encontrar um ponto de vista valorativo superior, que unifique no âmbito normativo elementos não-unificáveis no âmbito do ser. Esta síntese deve serprocurada na relação do comportamento humano com seu meio. Este é o sentido do conceito social de ação. A ção é c o m p o r ta ­m e n t o h u m a n o d e r e l e v â n c ia so c ia l.

Conceitualmente, o atributo da relevância social introduzido pelo modelo social de ação não integra a realidade descritível pela observação sensorial: é uma qualidade da ação atribuível por juí^o de valor próprio dos conceitos axiológicos que qualificam a ação como crime — e, desse ponto de vista, a relevânáa social é atributo do tipo de injusto, responsável pela seleção de ações e de omissões de ação no tipo legal. Como esclarece ROXIN, o conceito de relevância social designa, apenas, uma propriedade necessária para valorar o injusto, porque exis­tiriam ações socialmente relevantes e ações socialmente não-relevantes, ou seja, a relevânáa social é uma propriedade que a ação pode ter ou pode

36 Assim, RADBRUCH, Der Handlungsbegrijf in seiner Bedeutungfur das Strafrechtssjstem, 1904, p. 131.

37 Nesse sentido, BAUMAN/WEBER, Strafrecht, 1985, p. 191; também, MEZGER, Strafrecht, 1949, p. 132.

38 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §23, VI, p. 223.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 6

não ter e, ausente essa propriedade, não desaparece a ação, mas somente sua significação social?9

Enfim, não obstante juízos complacentes de que a imprecisão do conceito social de ação deveria ser tolerada,40 ou juízos críticos de que o conceito social de ação ainda não está claramente delineado como os conceitos causai e final de ação,41 alguns autores — como, por exemplo, EBERT — são mais incisivos, afirmando a existência de somente dois sistemas de fato punível: o sistema causai e o sistema final, porque o conceito social de ação não desenvolveu um sistema próprio, vin- culando-se ora com o sistema causai, ora com o sistema final.A1 Seja como for, a única diferença entre os conceitos social e final de ação— pelo menos. em relação às definições formuladas por JESCHECK/ WEIGEND e por WESSELS/BEULKE, talvez os mais prestigiados representantes da teoria social da ação, na atualidade —, fica por conta daquela atribuída relevância social.' uma característica normativa buscada para construir um conceito superior unitário compreensivo da ação e da omissão de ação. Na verdade, não existe nenhuma razão científica para rejeitar o modelo social de ação, que utiliza as mesmas categorias conceituais e adota os mesmos princípios metodológicos do modelo final de ação para construir o conceito de fato punível: as teorias social e fina l de ação não diferem em relação à natureza e à ordenação dos elementos conceituais do fato punível, especialmente em relação à posição do dolo e da imprudência no tipo de injusto.43

39 ROXIN, Strafrecht, 1997, §8, n. 32, p. 196. No Brasil, ver a crítica de ZAFFARO- NI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 206, p. 429.

40 Nesse sentido, HAFT, Strafrecht, 1994, p. 32-33.41 Assim, NAUCKE, Strafrecht, 1995, n. 240, p. 250.42 EBERT, Strafrecht., 1994, p. 24.43 Ver, por exemplo, MAURACH/ZIPF, Strafrecht!, 1992, §16, n. 68, p. 211.

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Capítuk 6 Teoria da Ação

4. Modelo negativo de ação

A teoria negativa de ação, elaborada principalmente por HERZ- BERG44 e BEHRENDT45 — e cuja aplicação sistemática mais notável parece ser a obra de HARRO OTTO46 —, integra a categoria da ação na categoria do tipo, excluindo qualquer definição ontológica ou pré- jurídica do conceito de ação.

O modelo negativo de ação tem como núcleo fundamental o principio da evitabilidade, segundo o qual um resultado é atribuível ao autor se o direito ordena sua evitação e o autor não o evita, embora possa evitá-lo.47 Comportamentos penalmente relevantes são comportamen­tos acessíveis à direção da vontade, definidos como evitàvelnão-evitação do resultado na posição de garantidor.,48 ou como omissão da contradireção mandada,49 em que o autor realiza o que não deve realizar, ou não realiza o que deve realizar.

Fundamento do conceito negativo de ação é a possibilidade de direção da vontade em comportamentos contrários ao dever socialmente danosos: o autor deve ter a possibilidade de cumprir o dever, mediante evitação do comportamento proibido, por ação ou omissão de ação, ou seja, deve ter o poder de influir sobre o curso causai concreto de­terminante do resultado.50 A possibilidade de evitar o comportamento proibido constituiria o pressuposto da obrigatoriedade da norma penal,

44 HERZBERG, Die Unterlassung im Strafrecht und das Garantenprin^p, 1972.45 BEHRENDT, Die Unterlassung im Strafrecht, 1979.46 OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, IV, n. 32-42, p. 48-51.47 KAHRS, Das Vermeidbarkeitsprin^ip und die condicio-sine-Qua-non-Formel im Strafrecht.,

1968, p. 36.48 HERZBERG, Die Unterlassung im Strafrecht und das Garantenprin^ip, 1972, p. 174.49 BEHRENDT, Die Unterlassung im Strafrecht, 1979, p. 143.50 Ver OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §5, n. 39-40, p. 50.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 6

independente de ser norma de proibição ou norma de comandoz51 ação e omissão de ação não seriam conceitos pré-típicos, elaborados por uma teoria pré-jurídica ou ontológica da ação, mas conceitos perten­centes ao tipo de injusto. O ponto de pardda do conceito negativo de ação, portanto, seria o exame da ação dentro do tipo de injusto, para saber se o autor teria a possibilidade de influenàaro curso causai concreto conducente ao resultado, mediante conduta dirigida pela vontade.52

Do ponto de vista teórico, o modelo negativo de ação inverte o si­nal da categoria positiva da ação — na verdade, substituída pela categoria negativa da evitável não-evitação — e, do ponto de vista metodológico, o modelo negativo de ação desloca a discussão de questões específi­cas do conceito pré-jurídico de ação para a categoria jurídica da ação típica concreta. Essas inovações parecem criticáveis: conceitualmente, a existência da ação humana independe da existência do tipo legal; metodologicamente, é desaconselhável congestionar a área complexa do tipo legal com problemas ou questões de natureza extra-típica.

Uma variantepsicanalítica do modelo proposta por BEHRENDT,53 relaciona o conceito da evitãvel não-evitação do resultado com as manifesta­ções da destrutividade humana, que exprimem as pulsões instintivas do id sem o controle do superego. Não obstante a honestidade de propósitos, parece impróprio reduzir os conceitos fundamentais da psicanálise aos limites funcionais do conceito de ação (ou de ação típica): as categorias psicanalíticas contêm um potencial teórico-explicativo de natureza criminológica que transcende os limites do conceito de ação (ou de ação típica), para tentar apreender o sentido concreto das ações humanas na plenitude do significado incorporado por todos os atributos do conceito de crime.

51 Assim, OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §5, n. 39, p. 50.52 OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §5, n. 40, p. 50.53 BEHRENDT, Die Unterlassungim Strafrecht, 1979, 132.

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Capítulo 6 Teoria da Ação

Em conclusão, o princípio da evitabilidade que fundamenta o con­ceito negativo de ação, integra todas as categorias do conceito de crime, constituindo, portanto, um princípio geral de atribuição que não pode ser apresentado como característica específica do conceito de ação.54

5. Modelo pessoal de ação

A teoria pessoal de ação, que identifica o substrato material do sistema de fato punível de ROXIN, define ação como manifestação da personalidade, um conceito compreensivo de todo acontecimento atri­buível ao centro de açãopsíquico-espiritualdo homem. A definição de ação como manifestação da personalidade permitiria excluir, por um lado, todos os fenômenos somático-corporais insuscetíveis de controle do ego e, portanto, não-dominados ou não-domináveis pela vontade humana: força física absoluta, convulsões, movimentos reflexos etc., não constituem manifestação da p e r s o n a l id a d e , por outro lado, exclui pensamentos e emoções encerrados na esfera psíquico-espiritual do ser humano, porque não representam m a n i f e s ta ç ã o da personalidade,55

A ação como manifestação da personalidade constitui a mais geral e, por isso mesmo, a menos específica definição do conceito de ação, ca­paz de apreender todas as modalidades de objetivações da personalidade— para usar a fórmula semelhante de ARTHUR KAUFMANN56 —,

54 Ver a crítica de ROXIN, Strafrecht, 1997, §8, n. 40, p. 200. Outros detalhes, TAVA­RES, As controvérsias em tomo dos crimes omissivos, Rio, 1996, p. 23-26.

55 ROXIN, Strafrecht, 1997, §8, n. 44, p. 202. No Brasil, ver TAVARES, A s controvérsias em tomo dos crimes omissivos, 1996, p. 27-29.

56 ARTHUR KAUFMANN, Die ontohgische Struktur derHandtung Ski%%e einerpersonakn TLandlugnslehre, H. Mayer-FS, 1966, p. 79.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 6

mas parece excluir o traço humano especifico que distingue a ação de qualquer outro fenômeno natural ou social: a realização do propósito. Em outras palavras, a manifestação da personalidade como mera relação entre pensamentos/emoções e acontecimentos exteriores, parece negligenciar a natureza constitutiva dos atos psíquicos para a estrutura da ação humana, conhecimento já incorporado à teoria científica da ação. Além disso, os limites incertos ou difusos do conceito de personalida­de57 não permitem atribuir todos os fenômenos definíveis como suas manifestações ao controle do ego — a instância perceptiva-consciente que controla o movimento conforme exigências do superego —, porque pulsões instintuais reprimidas do id podem assaltar o ego sob a forma de obsessões, fobias e, mesmo, atos falhos ou sintomáticos, que são manifestações da personalidade independentes de controle do ego e indiferentes às conveniências do superego,58 na dinâmica das relações entre os segmentos do aparelho psíquico que constituem a persona­lidade humana.59 Em suma, nem a personalidade, cujas manifesta­ções constituem ação, se reduz ao ego, nem todas as manifestações atribuíveis à personalidade “estão sob controle do ego., a instância de governo psíquico-espiritualdo homem” como afirma ROXIN.

Não obstante, é necessário reconhecer a simpliádade da definição de ação como manifestação da personalidade, bem como a capacidade dessa definição para executar as funções atribuídas ao conceito de ação em face do conceito de fato punível.

57 Ver EYSENCK, Crime and Personality, 1977, p. 19.58 Nesse sentido, FREUD, Inibições, sintomas e ansiedade, 1976, IMAGO, vol. XX, p.

95-200.59 Ver FREUD, O Ego e o Id, 1976, IMAGO, vol. XIX, p. 23-83.60 ROXIN, Strafrecht, 1997, §8, I I I1, n. 44, p. 202.

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Capítulo 6 Teoria da A.cão

III. Funções do conceito de ação

O conceito de ação realiza, no sistema de fato punível, funções teóricas, metodológicas e práticas de unificação, de fundamentação e de delimitação das ações humanas, que não podem ser cumpridas no âmbito das categorias constitutivas do conceito de crime.61

1. A função teórica de unificação do conceito de ação refere-se à sua capacidade de compreender a ação e a omissão de ação, sob as formas dolosa e imprudente, como espécies de comportamentos humanos. Em geral, o conceito de conduta é empregado como gênero de ação e de omissão de ação, dolosa e imprudente, mas esse conceito superior— cuja busca engendrou o conceito social de ação, por exemplo — parece desnecessário: a ação realizada ou omitida é o núcleo positivo ou negativo de todos os tipos de crimes dolosos e imprudentes e, portanto, cons­titui o objeto material exclusivo da pesquisa jurídico-penal. De fato, a pesquisa no processo penal não tem por objeto verificar a existência do gênero conduta, mas a realização de uma ação proibida ou a omissão de uma ação mandada, dolosa ou imprudente.

2. A função metodológica de fundamentação do conceito de ação refere-se ao poder de constituir a base psicossomática real do con­ceito de crime, como unidade subjetiva e objetiva quaüfiçável pelos atributos de tipicidade, de antijuridicidade e de culpabilidade. A ação representa a substância capaz de portar os predicados valorativos do conceito analítico de crime, fundamentando o fato punível como adequação ao tipo legal, como contradição com o conjunto de proibições e de permissões do ordenamento jurídico e como objeto de reprovação de culpabilidade sobre um sujeito que realiza, sem justificação, um

61 Assim, JESCHECK/WEIGEND, Tehrbuch des Strafrechts, 1996, §23,1 2, p. 219.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 6

tipo de crime, com consciência real ou possível da antijuridicidade, em condições de exigibilidade de conduta diversa (ou de normalidade das circunstâncias da ação). Desse ponto de vista, a teoria da ação é a chave para compreender a teoria do fato punível, como ação dolosa ou imprudente, proibida ou mandada, descrita sob as formas positiva ou negativa do tipo legal.

3. A função prática de delimitação do conceito de ação refere-se às tarefas complementares de incluir objetivações da subjetividade hu­mana que apresentam os requisitos do conceito de ação, e de excluir fenômenos, movimentos ou comportamentos que não apresentam esses requisitos, como situações de ausênáa de ação.

A ação é fenômeno exclusivo de pessoas naturais, independente da idade ou da saúde mental, porque capacidade de ação é atributo natural de seres humanos, inconfundível com capacidade de culpa­bilidade, condição de responsabilidade penal.62 Conseqüentemente, é importante identificar hipóteses que não atingem o status de ação e, por isso, não podem ser ações típicas.

3.1. Assim, não constituem ação:

a) acontecimentos da natureza, como terremotos, inundações, tempestades, desabamentos, raios etc.;

b) ataques de animais ferozes — que podem, contudo, ser usados como instrumentos de agressão;

c) atos de pessoas jurídicas: somente as pessoas naturais, como órgãos representativos das pessoas jurídicas, podem realizar ações;

d) pensamentos, atitudes e emoções como atos psíquicos sem objetivação;

e) movimentos do corpo como massa mecânica: estados de inconsci­

62 Ver WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 94, p. 26-27.

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Capítulo 6 Teoria da Ação

ência, como desmaios, delírios ou convulsões epilépticas (a mãe sufoca ou lesiona o filho na amamentação, ao sofrer desmaio ou convulsão epiléptica); movimentos sob força física absoluta (A empurra B sobre uma vitrine, quebrando-a) — mas não sob força compulsiva, que não exclui a ação, mas permite exculpação (B quebra a vitrine sob ameaça séria de agressão de A).

3.2. A natureza de movimentos reflexos, ações automatizadas, reações instintivas de afeto e ações sob hipnose pode ser controvertida.

a) Hipótese de movimento reflexo: motorista realiza movimento manual para proteger olho atingido por inseto em curva de rodovia, perde o controle do veículo e produz acidente. Ação, segundo a teoria pessoal de ação: movimento de proteção dirigido a finalidade psiquicamente intermediada constitui manifestação da personalidadef0 não-ação, con­forme a teoria fina l da ação: movimentos reflexos desencadeados por estímulos sensoriais ou fisiológicos a partir do sistema nervoso periférico, em geral incorporados filogeneticamente como reações motoras de defesa ou auto-proteção, sem o concurso da vontade consciente do autor, não constituem ação.

b) Hipótese de ações automatizadas, ou de curto-circuito: motorista de automóvel, em velocidade aproximada de 90km/h, vê animal do ta­manho de cachorro 10 a 15 metros à frente do veículo, gira o volante, bate na proteção lateral de cimento e passageiro morre. Disposições automatizadas aprendidas constituem ação, independente de sua utilidade ou dano.64

c) Hipótese de reações instintivas de afeto: em movimento compulsivo, vendedor beija e morde seios de mulher, súbita e involuntariamente expostos próximos à sua boca, durante ajuste de medidas de vestido,

63 ROXIN, Strafrecht,, 1997, §8, n. 66, p. 211-212.64 ROXIN, Strafrecht, 1997, §8, n. 67, p. 212.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 6

na loja. A satisfação de impulsos instintivos de afeto constitui ação segundo qualquer dos modelos.

d) Hipótese de ações sob hipnose: cumprindo sugestão hipnótica, hipno­tizado realiza fato definido como crime. A teoria dominante admite ação, porque o hipnotizado não pode realizar ações reprovadas pela censura pessoal,65 mas um segmento respeitável fala em não-ação.66

IV. Conclusão

Considerando as funções teóricas, metodológicas e práticas do conceito de ação, definido causalmente como causação de resultado exterior por comportamento humano voluntário, finalisticamente como realização de atividade final, soáalmente como comportamento social­mente relevante dominado ou dominável pela vontade, negativamente como evitável não-evitação na posição de garantidor e pessoalmente como manifestação da personalidade, é possível concluir que a defi­nição capaz de identificar o traço mais específico e, ao mesmo tempo, a característica mais geral da ação humana, parece ser a definição do modelo final de ação.

A definição de ação como atividade dirigida pelo fim (nobre ou abjeto, altruísta ou egoísta, legal ou criminoso) destaca o traço que diferencia a ação de todos os demais fenômenos humanos ou naturais, e permite delimitar a base real capaz de incorporar os atributos axio- lógicos do conceito de crime, como ação típica, antijurídica e culpável.

65 Assim, MAURACH-ZIPF, Strafrecht, 1992, §16, n. 19, p. 195; também, ROXIN, Strafrecht, 1997, §8, n. 71, p. 214.

66 WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 98, p. 27.

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Capítulo 6 Teoria da A.ção

Ao contrário, a exclusão da finalidade, como propósito consciente que unifica os movimentos particulares em um conjunto significativo, des- trói a especificidade da ação como fenômeno exclusivamente humano. Os critérios da causalidade, da relevância social' da evitável não-evitação ou da manifestação da personalidade não parecem possuir o poder definidor próprio do critério da finalidade, que permite integrar qualquer seqü­ência de atos isolados na unidade psicossomática da ação humana. A causalidade é uma lei geral da natureza, a relevânáa social pode existir ou não existir na ação, a evitável não-evitação é um nó conceituai e a manifestação da personalidade parece transcender os limites do ego, como personalidade consciente, para incluir fenômenos do id e do superego, dimensões insconscientes da personalidade, cujas manifestações definem conflitos humanos incontroláveis.

C apítu lo 7

T e o r i a d o T ip o

I. Conceito e funções do tipo

O conceito de tipo, introduzido por BELING na dogmática pe­nal,1 pode ser definido de três diferentes pontos de vista: a) como tipo legal constitui a descrição do comportamento proibido, com todas suas características subjetivas, objetivas, descritivas e normativas, realizada na parte especial do CP (e leis complementares); b) como tipo de injusto representa a descrição da lesão do bem jurídico, compreendendo os fundamentos positivos da tipicidade (descrição do comportamento proibido) e os fundamentos negativos da antijuridicidade (ausência de causas de justificação); c) como tipo de garantia (tipo em sentido amplo) realiza a função político-criminal atribuída ao princípio da legalidade (art. 5o, XXXIX, CR), expressa na fórmula nullum crimen, nullapoena sine lege, e compreende todos os pressupostos da punibüidade: além dos caracteres do tipo de injusto (tipicidade e antijuridicidade), também os caracteres da culpabilidade como fundamentos de reprovação do autor pela realização do tipo de injusto, assim como as condições objetivas de punibilidade e os pressupostos processuais.2

1 BELING, Die Lebre von Verbrechen, 1906.2 OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §5, n. 20, p. 45; ROXIN, Strafrecht, 1997, §10 I,

n. 1 s., p. 225; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 117, p. 35. No Brasil, ver ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 210-220, p. 445-447; TAVARES, Teoria do injusto penal.\ 2002, p. 172 s.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 7

II. Desenvolvimento do conceito de tipo

O conceito de tipo definido por BELING como Tatbestand (situ­ação de fato), fundado no modelo causai da filosofia naturalista do sé­culo XIX, é objetivo e livre-de-valor: objetivo, porque todos os elementos subjetivos integram a culpabilidade; livre-de-valor, porque a tipicidade é neutra, e toda valoração legal pertence à antijuridicidade.3

O descobrimento de elementos subjetivos por FISCHER,4 MAYER5 e MEZGER,6 mostra que o tipo de injusto pode depender da direção de vontade do autor, como se comprovou, primeiro, em relação aos elementos subjetivos das causas de justificação, e depois, em relação ao próprio tipo legal, como a intenção de apropriação nos crimes patrimoniais, ou a tendência lasciva nos crimes sexuais.7 De­pois, com o advento da teoria final da ação, preparada por WEBER8 e GRAF ZU DOHNA9 e desenvolvida plenamente por WELZEL,10 completa-se a subjetivação do conceito de tipo: a vontade consciente de realizar os elementos objetivos do fato é retirada da culpabilidade para integrar a dimensão subjetiva do tipo legal, como dolo de tipo. Assim, embora a ação descrita no tipo constitua uma unidade inter­na e externa incindível, generaliza-se o modelo de compreensão dos

3 BELING, Die Lehre von Verbrecben, 1906, p. 112 e 147. No Brasil, ver MESTIERI, Manual de Direito Penall, 1999,p. 118-119; também, ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 227-229, p. 452-456.

4 FISCHER, Die Rechtsmdrigkeit mit besonderer Berücksichtigung des Privatrechts, 1911.5 M. E. MAYER, Strafhcht, 1915, p. 185-188.6 MEZGER, Die subjektiven Unrechtselemente, GerS 89,1924, p. 109 s.7 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, §10, n. 8, p. 228.8 WEBER, Zum A.ufbau des Strajrechtssystems, 1935.9 GRAF ZU DOHNA, DerA.ujbau de Verbrechenslehre, 1936.10 WELZEL, Das neue Bild des Strafrechtssystems, 1961, 4a. ed. No Brasil, ver MESTIERI,

Manual de Direito P enall, 1999, p. 119.

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Capítulo 7 Teoria do Tipo

tipos de ação proibida ou mandada nas correspondentes dimensões subjetiva e objetiva, sob as designações simplificadas de tipo subjetivo e tipo objetivo.

Por outro lado, a existência de elementos normativos no tipo legal, identificada por MAYER11 (por exemplo, o caráter alheio da coisa, no furto), descaracteriza a neutralidade do tipo livre-de-valor, de BELING. Os elementos normativos do tipo legal são elementos próprios da antijuridicidade, que integram a tipicidade porque de­vem constituir objeto do dolo,12 subordinados, portanto, juntamente com os elementos descritivos, às conseqüências do erro de tipo. Os elementos normativos do tipo legal são muito mais numerosos do que originalmente se supunha, como demonstrou WOLF,13 porque mesmo supostos puros conceitos descritivos, como homem ou coisa, são conceitos normativos, ou seja, exigem uma valoração jurídica orientada para a antijuridicidade: a extensão do conceito de coisa em relação aos animais e à energia, por exemplo, assim como o juízo sobre a existência (já ou ainda) de um ser humano como objetos de proteção do Direito Penal, não podem ser reduzidos a elementos meramente descritivos.14 O tipo legal é uma complexa estrutura de elementos pertencentes às categorias neokantianas do ser e do valor, conforme demonstrou MEZGER:15

“O ato de criação legislativa do tipo (...) contém imediatamente a declaração de antijuridicidade, a fundamentação do injusto como injusto espeáalmente tipificado. O legislador cria, através da formação do tipo, a antijuridicidade específica: a tipicidade

11 M. E. MAYER, Strafrecht, 1915, p. 182-185.12 ROXIN, Strafrecht, 1997, §10, n. 10, p. 229.13 WOLF, Die Tjpen derTatbestandsmãssigkeit, 1931, p. 56-61.14 ROXIN, Strafrecht, 1997, §10, n. 11, p. 229.15 MEZGER, Vom Sinn der strafrechtlichen Tatbestànde, 1926, p. 187.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 7

da ação não é, de modo algum, a mera ratio cognoscendi, mas a própria ratio essendi da (especial) antijuridicidade.A. tipicidade transforma a ação em ação antijurídica, sem dúvida não por si só, mas em vinculação com a ausência de fundamentos especiais excludentes do injusto. ”

A teoria do ripo como ratio essendi da antijuridicidade — e não simples ratio cognoscendi, predominante na literatura brasileira — é muito difundida na ciência moderna do Direito Penal e conduziu à teoria dos elementos negativos do tipo, bem como à discussão da autonomia da tipicidade em relação à antijuridicidade, como categoria sistemática do conceito de crime, com as resultantes concepções bipartida e tripartida do sistema de fato punível.16 A teoria dos elementos negativos do tipo unifica o tipo legal e a antijuridicidade, como descrição e valoração da ação humana realizada ou omitida, no conceito de tipo de injusto, porque o tipo legal descreve as características positivas Ao tipo de injus­to, enquanto os preceitos permissivos excludentes da antijuridicidade constituem características negativas do tipo de injusto, separadas dos tipos legais por motivos técnicos, porque seria impraticável ler o tipo de injusto deste modo: matar alguém, exceto em legítima defesa, em estado de necessidade etc. — ou seja, homicídio em legítima defesa seria ação atípica e não ação típicajustificada17 (ver Conceito de Fato Punível, acima).

16 Comparar ROXIN, Strafrecht, 1997, §10, n. 12, p. 230; OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §5, n. 23, p. 46. No Brasil, apenas para exemplificar, BRANDÃO, Introdução ao Direito Penal, 2002, p. 115, entende que “a tipicidade, p o r ser portadora de uma valoração inicial, condu^ à antyuridiàdade, sendo o meio através do qual ela pode ser conhecida, sua ratio cognoscendi”; também MESTIERI, Manual de Direito P enall, 1999, p. 119, admite apenas a função de ratio cognoscendi da tipicididade em relação à antijuridicidade. Em posição contrária, MACHADO, Direito criminal: parte geral, 1987, p. 90-91, considerao tipo ratio essendi da antijuridicidade, conforme a teoria dos elementos negativos do tipo-, igualmente, REALE JR., Instituições de Direito Penal (parte geral), 2002, v. 1, p. 139-140, considera que o tipo “não é apenas a ratio cognoscendi da antijuridicidade, mas a sua ratio essendi.”

17 ROXIN, Strafrecht, 1997, §10, n. 14, p. 231. ,

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Capítulo 7 Teoria do Tipo

III. Adequação social e exclusão de tipicidade

A teoria da adequação social,' formulada por WELZEL, exprime o pensamento de que ações realizadas no contexto da ordem social histórica da vida18 são ações socialmente adequadas — e, portanto, atípicas, ainda que correspondam à descrição do tipo legal.

As lesões corporais ou homicídios compreendidos nos limites do dever de cuidado ou do risco permitido na circulação de veículos, no funcionamento de indústrias, ou na prática de esportes, por exemplo, não preenchem nenhum tipo legal de lesão, por força de sua adequa­ção social. Igualmente, ações abrangidas pelo princípio da insignificânáa (Geringfugigkeitsprinzip) não são típicas: a entrega de pequenos pre­sentes de final-de-ano a empregados em serviços públicos de coleta de lixo ou de correios, em face de sua generalizada aprovação, não constituem corrupção; jogos de azar com pequenas perdas ou ganhos não são puníveis; manifestações injuriosas ou difamatórias no âmbito familiar são atípicas.19 Se o tipo legal descreve injustos penais, então, evidentemente, não pode incluir ações socialmente adequadas.

A opinião dominante compreende a adequação social como liipó- tese de exclusão de tipicidade,20 mas existem setores que a consideram como justificante,21 como exculpante,22 ou como princípio geral de interpretação da lei penal.23 Sem dúvida, a adequação socialé um princí­

18 WELZEL, Das Deutsches Strafrecht, 1969, §10, p. 56.19 ROXIN, Strafrecht, 1997, §10, n. 40, p. 243. No Brasil, comparar MESTIERI, Manual

de Direito Penal 1 ,1999, p. 138-139.20 JESCHECK/WEINGEND, Strafrecht, §25 IV, p. 251 s.; MAURACH-ZIPF, Stra­

frech t 1,1992, §17, n. 23, p. 222; HAFT, Strafrecht, 1994, p. 53.21 SCHMIDHÀUSER, Lehrbuch, 1975, p. 9-26.22 ROEDER, Die Einhaltung des so^aladàquaten Risikos, 1969.23 HIRSCH, So^iale A.dãquan^ und Unrechtslehre, ZStW 74, 1962. DÕLLING, Die

Behandlung derKorperverlet^ungim Sportim System derStrafrechtlichen So^ialkontrole, STsW 96,1984, p. 55.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 7

pio geral que orienta a criação e a interpretação da lei penal, mas sua atribuição à antijuridicidade pressupõe a ultrapassada concepção do tipo livre-de-valor, e sua compreensão como exculpante pressupõe uma inaceitável identificação entre a adequação social de determinadas ações e a natureza proibida do injusto.24

IV, Hlementos constitutivos do tipo legal: elementos obje­tivos, subjetivos, descritivos e normativos

O tipo de conduta proibida constitui uma unidade subjetiva e objetiva de elementos descritivos e normativos. O estudo do tipo legal como tipo objetivo e tipo subjetivo, integrado por componen­tes descritivos e normativos, hoje generalizado na ciência do Direito Penal, parece uma necessidade metodológica para compreensão de conceitos fundados em relações de congruência subjetiva e objetiva, como dolo e erro de tipo, por exemplo. E importante destacar que os elementos constitutivos do tipo se entrecruzam, de modo que ele­mentos objetivos podem ser descritivos (coisa), ou normativos (alheia)', igualmente, elementos subjetivos também podem ser descritivos (o dolo) ou normativos (a intenção de apropriação, na expressão para si ou para outrem, do furto). Em alguns tipos legais as dimensões subjetiva e objetiva estão entrelaçadas: assim, o artifício, ardil ou fraude, no estelio­nato (art. 17.1), referem acontecimentos externos impensáveis sem a consciência interna do engano;25 por outro lado, elementos descritivos possuem, também, componentes normativos, porque dependentes de valorações jurídicas (o mencionado conceito de coisa, por exemplo).

24 ROXIN, Strafrecht, 1997, §10, n. 36, p. 241.25 ROXIN, Strafrecht, 1997, §10, n. 53, p. 250. No Brasil, ver BRANDÃO, Introdução

ao Direito Penal, 2002, p. 112-117.

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Capítulo 7

S1SBI/UFU244152

Teoria do Tipo

V. Modalidades de tipos

Além do agrupamento dos tipos legais pela natureza do bem jurídico protegido, característica dos códigos penais, em geral, os tipos legais podem ser classificados segundo outros critérios.

1. T ip o s d e r e su l ta d o e d e s im p l e s a tiv idade. Segundo a relação entre ação e resultado, os tipos podem ser de resultado ou de simples atividade: a) os tipos de resultado compreendem uma separação espaço- temporal entre ação e resultado, ligados por uma relação de causalida­de, como o homicídio (art. 121), o furto (art. 155), o estelionato (art. 171); uma categoria especial de tipos de resultado é formada pelos tipos qualificadospelo resultado, em que a realização de um tipo-base (lesão corporal simples, roubo etc.) produz, adicionalmente, pelo menos de forma imprudente — apesar de sua inconstitucionalidade —, determi­nadas conseqüências especialmente graves, como a morte da vítima (129, §3° e 157, §3°); b) os tipos de simples atividade se completam com a realização da ação, sem qualquer resultado independente, como a violação de domicílio (art. 150), o falso testemunho (art. 342) etc. A distinção possui interesse prático, porque relação de causalidade (entre ação e resultado) somente existe nos tipos de resultado, não nos tipos de simples atividade.26

2. T ip o s s im p l e s e c o m p o s t o s . Segundo a quantidade de bens jurídicos protegidos os tipos podem ser simples e compostos: a) os tipos simples protegem apenas um bem jurídico, como o homicídio (vida), a lesão corporal (integridade ou saúde corporal), o dano (patrimônio) etc. b) os tipos compostos protegem mais de um bem jurídico, como o roubo, a extorsão mediante seqüestro etc., que protegem o patrimônio

26 OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §4, n. 8-10, p. 40; ROXIN, Strafrecht, 1997, §10, n. 102-104, p. 274; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 22-24, p. 7.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 7

e a liberdade individual, assim como a integridade corporal e a vida, nas modalidades qualificadas pelo resultado (art. 157, §3° e 159, §§2° e 3o).27

3. T ip o s d e l e s ã o e d e p e r i g o . Conforme o tipo descreva uma lesão do objeto de proteção, ou um perigo para a integridade do objeto de proteção, distingue-se entre tipos de lesão e tipos de perigo: a) os tipos de lesão — a maioria dos tipos legais — se caracterizam pela lesão real do objeto da ação, como o homicídio, a lesão corporal etc.; b) os tipos de perigo descrevem somente a produção de um perigo para o objeto de proteção, distinguindo-se, por sua vez, em tipos de perigo concreto e tipos de perigo abstrato.

Nos tipos de perigo concreto, a realização do tipo pressupõe a efetiva produção de perigo para o objeto da ação, de modo que a au­sência de lesão do bem jurídico pareça meramente acidental, como o perigo de contágio venéreo (art. 130), o perigo para a vida ou a saúde de outrem (art. 132), o incêndio (art. 250), a explosão (art. 251) etc. Segundo a moderna teoria normativa do resultado de perigo, de SCHÜ- NEMANN, o perigo concreto se caracteriza pela ausência casual do resultado, e a casualidade representa circunstância em cuja ocorrência não se pode confiar.28

Nos tipos de perigo abstrato, a presunção de perigo da ação para o objeto de proteção é suficiente para sua penaüzação, independente da produção real de perigo para o bem jurídico protegido, como o abandono de incapaz (art. 133), a difusão de doença ou praga (art. 259) etc.29 Atualmente, discute-se a constitucionaüdade dos tipos de

27 ROXIN, Strafrecht, 1997, §10, n. 125, p. 282.28 SCHÜNEMANN, Modeme Tenden^en in der Dogmatik der Fahrlãssigkeits- und Gefàhr-

dungsdelikte, JA 1975, p. 793 s.29 ROXIN, Strafrecht, 1997, §10, n. 122-123, p. 281; WESSELS/BEULKE, Strafrecht,

1998, n. 25-30, p. 7-8.

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Capítulo 7 Teoria do Tipo

perigo abstrato: JAKOBS30 afirmou a ilegitimidade da incriminação em áreas adjacentes à lesão do bem jurídico; GRAUL31 rejeita a presun­ção de perigo dos crimes de perigo abstrato; SCHRÕDER32 propôs admitir a prova da ausência de perigo; CRAMER33 pretendeu redefinir o perigo abstrato como probabilidade de perigo concreto. Por outro lado, destacando a finalidade de proteção de bens jurídicos atribuída aos tipos de perigo abstrato, aparentemente indissociáveis de políticas comprometidas com o equilíbrio ecológico, o controle das atividades econômicas e, de modo geral, a garantia do futuro da humanidade no planeta, HORN e BREHM34 propõem fundar a punibilidade do perigo abstrato na contrariedade ao dever; como um perigo de resultado (e não como um resultado de perigo) e FRISCH35 pretende compreender os delitos de perigo abstrato como delitos de aptidão (Eignungsdelikte), fundado na aptidão concreta ex ante da conduta para produzir a con­seqüência lesiva.

4. Tipos instantâneos (ou de estado) epermanentes (ou duráveis).Do ponto de vista da conclusão imediata ou da manutenção tempo­ral da situação típica, os tipos podem ser instantâneos (ou de estado) e permanentes (ou duráveis): a) os tipos instantâneos se completam com a produção de determinados estados, como o homicídio (art. 121), a lesão corporal (art. 129), o dano (art. 163); tipos como os de biga­mia (art. 235) ou contra o estado de filiação (art. 241, 242 e 243), ao contrário do que se poderia pensar, são instantâneos, porque embora o autor aproveite a situação criada, não existe nenhuma constante

30 JAKOBS, Kriminalisierungim l/orfeldeinerRechtsgutsverlet^ung, ZStW 97,1985, p. 751 s.31 GRAUL, Abstrakte Gefãhrdungsdelikte und Pràsumtionen im Strafrecht, 1991.32 SCHRÕDER, Die Gefãhrdungsdelikte im Strafrecht, ZStW 81,1969, p. 14 s.33 CRAMER, Der Vollrauschtatbestand ais abstraktes Gefãhrdungsdelikte 1962, p. 67 s.34 HORN, Konkrete Gefãhrdungsdelikte, 1973, p. 28 s.; BREHM, Zur Dogmatik des abs-

trakten Gefãhrdungsdelikts, 1973, p. 126 s.35 FRISCH, A.n den Gren^en des Strafrechts, Stree/Wessels-FS, 1993, p. 69.

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Teoria do Tato Tunível Capítulo 7

repedçao do casamento ou de falsas declarações sobre o estado das pessoas.36 b) os tipos permanentes não se completam na produção de determinados estados, porque a situação típica criada se prolonga no tempo conforme a vontade do autor, como o seqüestro ou cárcere privado (art. 148), a violação de domicílio (art. 150), em que a con­sumação já ocorre com a realização da ação típica, mas permanece em estado de consumação enquanto dura a invasão da área protegida pelo tipo legal.

O interesse prático da distinção relaciona-se à autoria e parti- cipação, assim como ao concurso de tipos: nos tipos permanentes é possível a co-autoria e a participação por cumplicidade após a consumação, porque o tipo não está, ainda, terminado ou exaurido; igualmente, durante a realização de um tipo permanente podem ser realizados tipos instantâneos, em concurso material, como, por exem­plo, estupro da vítima do seqüestro ou da violação de domicílio.37

5. T ip o s g e r a i s , e s p e c ia i s e d e m ã o p róp r ia . Do ponto de vista do círculo de autores, os tipos classificam-se cm gerais e especiais: a) os tipos gerais podem ser realizados por qualquer pessoa, como homicídio, lesão corporal, furto; b) os tipos espeáais somente podem ser realizados por sujeitos portadores de qualidades descritas ou pressupostas no tipo legal, como a qualificação de funcionário público no peculato (art. 312), na concussão (art. 316), na corrupção passiva (art. 317) etc. Complementarmente, distinguem-se os tipos especiais em próprios e impróprios: a) tipo especial próprio, se a qualidade especial do autor fun ­damenta a punibilidade, como os crimes do funcionário público contra a administração em geral; b) tipo especial impróprio, se a qualidade especial do autor apenas agrava a punibilidade, como a qualidade de

36 ROXIN, Strafrecht, 1997, §10, n. 106, p. 275.37 ROXIN, Strafrecht, 1997, n. 106-107, p. 275; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998,

n. 31-33, p. 8.

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Capítulo 7 Teoria do Tipo

funcionário público na falsificação de documento público (art. 297, §1°) ou na falsidade ideológica (art. 299, parágrafo único).38 Finalmente, tipos de mão própria somente podem ser realizados por autoria direta, como o falso testemunho (art. 342) — e, portanto, consdtuem exceção à regra de que os tipos penais podem ser realizados por autoria direta ou mediata.39

6. Tipo básico, variações do tipo básico e tipos independentes.O tipo básico representa a forma fundamental do tipo de injusto, contendo os pressupostos mínimos de punibilidade que determinam seu caráter de injusto típico, como a lesão corporal (art. 129), o furto (art. 155) etc. Freqüentemente, vinculadas ao tipo básico, aparecem variações típicas qualificadoras ou privilegiantes do tipo básico, pelo acréscimo de características ligadas ao modo de execução, ao emprego de certos meios, às relações entre autor e vítima ou a circunstâncias de tempo ou de lugar, que agravam ou atenuam a punibilidade do fato, como o homicídio qualificado (art. 121, §2°) ou privilegiado (art. 121, §1°) em relação ao homicídio simples (art. 121). A dependência das variações típicas, qualificadoras ou privilegiantes, em relação ao tipo básico, significa, por um lado, que as características do tipo bá­sico permanecem inalteradas nas formas qualificadas e privilegiadas e, por outro lado, que essas variações típicas constituem lex specialis em relação ao tipo básico, excluído como norma geral. Em caso de existência simultânea de características de formas qualificadoras e de formas privilegiantes reciprocamente excludentes, prevalecem as formas privilegiantes, como, por exemplo, o homicídio por motivo de relevante valor social ou moral (art. 121, §1°), realizado com emprego

38 OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §4, n. 19-20, p. 41; ROXIN, Strafrecht, 1997, §10, n. 129-130, p. 283; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 39-40, p. 9.

39 OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §4, n. 21, p. 41; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 40, p. 9.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 7

de veneno (art. 121, 52o).40Os tipos independentes (também chamados delictum suigeneris) não

se confundem com variações típicas qualificadoras ou privilegiantes, porque possuem seu próprio conteúdo típico: o roubo (art. 157) em relação ao furto (art. 155) e ao constrangimento ilegal (art. 146), contém as características destes últimos dois tipos, mas através da combinação dessas características constitui um tipo legal próprio e independente; igualmente, o infanticídio (art. 123) em relação ao homicídio (art. 121).41

7. T ip o s d e a ç ã o e d e o m is s ã o d e a çã o . Do ponto de vista das for­mas básicas do comportamento humano, os tipos podem ser de ação ou de omissão de ação: a) os tipos de ação correspondem a comportamentos ativos, descritos em forma positiva no tipo legal, como o furto (art. 155), o estupro (art. 213); b) os tipos de omissão de ação correspondem a comportamentos passivos que podem se apresentar como omissão própria ou como omissão ir?jprópria: a omissão própria é descrita de forma negativa no tipo legal e se caracteriza pela simples omissão da ação mandada, que infringe o dever jurídico de agir, como a omissão de socorro (art. 135), ou a omissão de notificação de doença (art. 269); a omissão imprópria (ou comissão por omissão) constitui o reverso dos tipos de ação e se caracteriza pela atribuição do resultado típico a sujeitos em posição de garantidor do bem jurídico que, com infração do dever jurídico de agir, omitem a ação mandada para impedir o re­sultado, como o pai que, podendo salvar o filho que caiu na piscina, conscientemente não impede sua morte por afogamento.42

40 ROXIN, Strafrecht, 1997, §10, n. 131-132, p. 284; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 107-109, p. 31.

41 ROXIN, Strafrecht, 1997, §10, n. 134, p. 285.42 OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §4, ns. 3-7, p. 39; WESSELS/BEULKE, Strafrecht,

1998, n. 34 s., p. 8-9.

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Capítulo 7 Teoria do Tipo

8. Tipos dolosos eimprudentes. Por outro lado, a ação e a omissão de ação podem ser classificadas em dolosas e imprudentes: a) as ações e omissões dolosas são produzidas pela vontade conciente do autor; b) as ações e omissões imprudentes são produzidas pela lesão do dever de cuidado ou do risco permitido. Esta classificação permite siste­matizar o estudo dos tipos legais em estruturas típicas diferenciadas, cada uma delas com características próprias, que compreendem todos os tipos de crimes: a) o tipo de injusto doloso de ação; b) o tipo de injusto imprudente; c) o tipo de injusto de omissão de ação (doloso e imprudente). O estudo das estruturas típicas fundamentais do Direito Penal brasileiro obedecerá esse sistema de classificação.

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C apítu lo 8

O T ipo d e In ju st o D o lo so d e A ção

Os crimes dolosos cometidos por ação representam o segmento principal da criminalidade, compreendendo a violência pessoal, sexual e patrimonial e a fraude em geral, que exprimem a imagem estereoti­pada de crime da psicologia social, pois as formas de comportamentos imprudentes e omissivos não impressionam o sentimento popular e, afinal, são punidos por exceção.

O estudo da estrutura dos tipos de injustos dolosos de ação utiliza as categorias de tipo objetivo e tipo subjetivo introduzidas pelo finalismo na moderna sistemática dos fatos puníveis. Do ponto de vista da gênese da ação típica, esse estudo deveria começar pelo tipo subjetivo, porque o dolo, constituído pela vontade consciente de realizar o tipo objetivo de um crime, representa a energia psíquica dirigida ã produção da ação incriminada e, portanto, o tipo subjetivo precede funcional e logicamente o tipo objetivo. Todavia, porque as ações típicas manifestam sua existência como realidade objetivada, cuja configuração concreta é o ponto de partida da pesquisa empírica do fato criminoso, o tipo objetivo deve constituir a base do processo analítico de (re) construção do conceito de crime.1

1 Ver JAKOBS, Strafrecht., 1993, 7/1, p. 183; também, WELZEL, Das Deutsche Stra­frecht, 1969, p. 63.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 8

II. Tipo objetivo

Nos tipos dolosos de resultado, a atribuição do tipo objetivo pressupõe dois momentos essenciais, constituídos pela causação do resultado, explicada pela lógica da determinação causai.’ e pela imputação do resultado, fundada no critério da realização do risco, examinados nesta seqüência: primeiro, verificar se existe relação de causalidade entre ação e resultado; segundo, decidir se o resultado é definível como realização do risco criado pelo autor e, assim, imputável ao autor como obra dele.2 Ao contrário, nos tipos dolosos de simples atividade, como a violação de domicílio, por exemplo, a tarefa de atribuição do tipo objetivo se esgota na subsunção da ação ao tipo legal respectivo, porque não existe um resultado exterior imputável ao autor.

Neste ponto, é preciso reconhecer o seguinte: a) não parece mais possível confundir questões de causalidade e questões de imputação do resultado, como ainda faz a dogmática tradicional: a distinção entre causação e imputação do resultado, fundada na diversidade dos processos naturais de determinação causai (causação do resultado) e dos proces­sos valorativos de atribuição típica (imputação do resultado), já está incorporada ao sistema conceituai da dogmática penal contemporânea;b) a imputação do resultado deve ser decidida pelo critério da realização do risco, formulado pela teoria da elevação do risco (Risikoerhõhungslehre) de ROXIN,3 cada vez .mais difundida na moderna literatura jurídi­

2 ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 1, p. 291; JAKOBS, Strafrecht, 1993, 7/4b, p. 185.3 ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 39-136, p. 310 s.; do mesmo, Gedanken ^urProblematik

der Zurechnung im Strafrecht, Honig-FS, 1970; Pflichtmdrigkeit und Etfolg beifahrlãssigen Delikten, ZStW 74,1962.

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Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação

co-penal como critério de atribuição do dpo objetivo:4 a relação de causalidade é o primeiro, mas não o único pressuposto de imputação objetiva do resultado típico.5

1. Causação do resultado

O conceito de causalidade encontra-se em crise desde que a física quântica demonstrou que a emissão de eletrons, no interior da estrutura atômica, não é determinada por leis causais, mas por leis estatísticas de natureza probabilística, pondo em xeque não apenas o conhecimento científico anterior sobre relações de causa e efeito dos fenômenos naturais — definidas como categorias do ser—, mas também a concepção filosófica kantiana, segundo a qual a causalidade, como pressuposto de toda experiência, não seria mera determinação empírica do ser., mas categoria apriorística do pensamento.6 Todavia, a controvérsia

4 Ver, entre outros, BURGSTALLER, Das Fahrlãssigkeítsdelikt im Strafrecht, 1974; OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §6, p. 52 s.; RUDOLPHI, Vorhersehbarkeit und Schut^weck derN orm in der strafrechtlichen Fahrlàssigkeitslehre, JuS 1969; SCHÜNE- MANN, Modeme Tenden^en in der Dogmatik der Fahrlàssigkeits und Gefãhrdungsdelikte, JA, 1975; STRATENWERTH, Bemerkungen %um Prin^ip derRisikoerhõhung, Gallas-FS, 1973; WOLTER, Objektive undpersonale Zurechnung von Verhalten, Gefahrund Verlet^ung in einem funktionalen Strafiatssystem, 1981; FRISCH, Tathestandsmàssiges Verhalten und Zurechnung des Eífolgs, 1988; no Brasil, TAVARES, A s controvérsias em tomo dos crimes omissivos, 1996, p. 57-59.

5 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 1, p. 291-292; WESSELS/BEULKE, Stra­frech t, 1998, n. 48, p. 48.

6 Ver a monografia clássica de WERNER HEISENBERG, Quantentheorie und Philoso- phie, 1979, p. 63-64; também, TAVARES, A s controvérsias em tomo dos crimes omissivos, 1996, p. 15-18.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 8

sobre leis causais ou probabilísticas da física nuclear não parece pre­judicar o poder explicativo do conceito de causalidade como categoria filosófica e científica utilizada pelo jurista para compreender os fatosda vida diária.7 No Direito Penal, as duas mais importantes teorias sobre relação de causalidade são a teoria da equivalênda das condições e a teoria da adequação, a seguir descritas.

1.1. Teoria da equivalência das condições

A teoria da equivalência das condições,8 dominante na literatura e jurisprudência contemporâneas, pode ser reduzida a dois conceitos centrais: a) todas as condições determinantes de um resultado são necessárias e, por isso, equivalentes; b) causa é a condição que não pode ser excluída hipoteticamente sem excluir o resultado.9 Nesse sentido, causa é uma condião sine qua non do resultado, ou seja, a condição sem a qual o resultado não pode existir: se um motorista embriagado dirige na contramão e provoca uma colisão, a ingestão de álcool deve ser definida como causa do acidente, porque excluída mentalmente essa condição, o motorista teria dirigido na correta mão de direção, e o acidente não teria ocorrido.

O método da teoria da equivalência das condições para determi­nar relações de causalidade sofreu críticas contundentes, mas parece ter sobrevivido a todas elas. Primeiro, o critério da exclusão hipotética seria excessivo: no exemplo acima referido também seriam definíveis

7 Instrutivo, ROXIN, Strafrecht., 1997, §11, n. 3, p. 292.8 Fundada por JULIUS GLASER, Abhandlungen aus dem Õsterreichischen Strafrecht, 1858

e desenvolvida por MAXIMILIAN VON BURI, Über Causalitàt und deren Veran- twortung, 1873. No Brasil, ver a excelente exposição de TAVARES, Teoria do injusto penal, 2002, p. 256-268.

9 Ver, por todos, KÜHL, Strafrecht, 1997, §4, n. 9, p. 25.

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Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação

como causas a vítima, os fabricantes dos veículos, os engenheiros que planejaram e construíram a rodovia, os pais dos protagonistas, a in­venção do motor a explosão, e assim por diante, porque excluídas suas contribuições, o resultado igualmente não teria ocorrido.10 Segundo, o método conduziria a erro em situações de, causalidades hipotéticas e alternativas: no caso de causalidades hipotéticas, o argumento de mé­dicos acusados de execução de doentes mentais, em cumprimento de ordens superiores do regime nazista, de que em caso de recusa pessoal de cumprir tais ordens outros médicos as cumpririam exata­mente do mesmo modo, conduziria a conclusões absurdas: excluído o comportamento dos médicos acusados, o resultado permaneceria idêntico pela ação hipotética dos médicos substitutos — logo o com­portamento daqueles não seria causa do resultado; como, por outro lado, a ação hipotética dos médicos substitutos não constitui causa de nenhum resultado, conclui-se que a morte das vítimas teria sido sem causa; no caso de causalidades alternativas, se A e B adicionam, independentemente um do outro, doses igualmente mortais de veneno na bebida de C, o resultado não desaparece com a exclusão alternativa daquelas ações: as doses individuais de veneno teriam eficácia real e, isoladamente, determinariam o resultado.11 Terceiro, a teoria seria inútil para pesquisa da causalidade, porque pressupõe precisamente o que deveria demonstrar: para saber, por exemplo, se o calmante Contergan (ou Talidomida), tomado durante a gravidez, teria causado deforma­ções no feto, de nada adiantaria excluir hipoteticamente a ingestão do medicamento, e perguntar se o resultado, então, desapareceria; para responder esta pergunta seria preciso saber se aquele medicamento é causador de deformações no feto e, se já existe esse conhecimento, a pergunta seria ociosa: assim, a fórmula da exclusão hipotética parece

10 Mais detalhes, ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 5, p. 293. No Brasil, ver TAVARES, Teoria do injusto penal, 2002, p. 23.

11 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 12, p. 296.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 8

pressupor o que somente através dela deveria ser pesquisado}2

A crítica de ser excessiva — no caso do regresso ao infinito — ou de ser insuficiente—no caso das causalidades hipotéticas — foram refutadas por SPENDEL13 e, depois, por WELZEL,14 ao mostrarem que a teoria da equivalência trabalha somente com condições concretamente reali%adas:xs o resultado é o produto concreto de condições reais, e não de condições hipotéticas possíveis ou prováveis, que não são ações reais, nem integram processos históricos concretos; além disso, a alteração de qualquer condição implicaria mudança do resultado concreto, que jamais seria igual, como observa SCHLÜCHTER16 sobre o exemplo de ENGIS- CH: B utilizaria a arma de A, se não tivesse utilizado a arma fornecida por C, para agredir D. Por outro lado, a fórmula aperfeiçoada da teoria resolve o problema das causalidades alternativas, como demonstrou também WELZEL:17 se o resultado não desaparece com a exclusão alternativa, mas desaparece com a exclusão cumulativa das condições, então ambas condições são causas do resultado. Finalmente, a crítica de ser inútil para pesquisa da causalidade é injusta: para demonstrar se determinado fator ou meio pode ser considerado causa concreta de um resultado, é indispensável prévio conhecimento abstrato da eficá­cia causai geral desse fator ou meio, pressuposto lógico da fórmula de pesquisa causai da teoria da equivalência, que não se confunde com pesquisa de propriedades físicas ou químicas de elementos naturais.

12 ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 11, p. 295-296, que, na área da causalidade, trabalha com a teoria da equivalência; TAVÀRES, -As controvérsias em tomo dos crimes omissivos, 1996, p. 53-54.

13 SPENDÉL, Die Kausaãtatsformel des Bedingungstheoriejur die Handlungsdelikte, 1948, p. 38.14 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §9, p. 44.15 SPENDEL, Die Kausaütãtsformel des Bedingungstheoriefurdie Handlungsdelikte, 1948, p. 38.16 SCHLÜCHTER, Grundfàlle %ur hehre von derKausalitàt, 1976, p. 518.17 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §9, p. 45. No Brasil, ver TAVARES, Teoria

do injusto penal, 2000, p. 211-212.

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Capítulo 8 0 Tipo de Injusto Doloso de Ação

Para evitar essas críticas JESCHECK/WEIGEND18 trabalham com o critério da relação regular entre ação e resultado: o critério da condição regular permitiria fixar relações de causalidade em hipóteses de certeza sobre sua existência, mas seria passível das mesmas críticas para identificar a causa do resultado em hipóteses de dúvida sobre os efeitos reais da condição considerada (caso do Contergan)P De qualquer modo, no Direito Penal brasileiro o critério da condição regular poderia funcionar apenas como critério auxiliar, porque o legislador adotou, no art. 13, do Código Penal, a fórmula da exclusão hipotética da con­dição para determinar a relação de causalidade — embora critérios científicos devam ser elaborados pela doutrina e pela jurisprudência, nunca pela lei.

Art. 13. O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

A moderna distinção entre causação e imputação do resultado, ex­pressões dos processos de determinação causai e de atribuição pessoal do resultado, parece ter ajudado a resolver problemas antigos da teoria da equivalência das condições, observados os seguintes princípios:

1. O resultado é o produto real de todos os fatores que o constituem: no limite, a ação do médico que protela a morte inevitável do paciente é condição do resultado de morte deste, porque influi na existência real do acontecimento concreto; contudo, como a causalidade não é o único critério de atribuição, a mera existência da condição não permite atribuir o resultado de morte ao médico.20

2. A relação de causalidade é interrompida somente por curso causai

18 JESCHECK/WEIGEND, Tehrbuch des Strafrechts, 1996, §28,1-V, p. 277-289.19 ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 14, p. 297.20 Para uma análise abrangente, ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 20, p. 301.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 8

posterior absolutamente independente, que produz diretamente o resul­tado, anulando ou destruindo os efeitos do curso causai anterior: antes de qualquer ação do veneno colocado por A na comida de B, este morre em acidente de trânsito ao sair do restaurante, ou varado pelo projétil disparado por C. Essa independência do novo curso causai deve ser absoluta, não basta independência relativa: se o acidente ocorre por causa do mal-estar produzido pela ação do veneno, então a ação de A é fator constitutivo do resultado concreto e, desse modo, causa do resultado. Essa conseqüência decorre da separação entre causação e imputação do resultado, que permite admitir, sem necessidade de disfarces ou razões artificiosas, relações causais realmente existentes— como é o caso das liipóteses da chamada independência relativa —, deixando a questão da atribuição do resultado para ser decidida por outros critérios.21 E importante notar que a lei brasileira considera a independência relativa do novo curso causai como excludente da impu­tação do resultado — e não como excludente da relação de causalidade, admitindo, portanto, a moderna distinção entre causação e imputação do resultado (art. 13, §1°).

Art. 13, §1°. A superveniência de causa relativamente in­dependente exclui a imputação quando, p or si só, produziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto, imputam-se a quem os praticou.

3. Conseqüentemente, embora o resultado ainda não possa ser imputado ao autor, não se interrompe a relação de causalidade nas seguintes situações:

a) por encadeamentos anormais ou incomuns de condições: 1) A fere B, que morre no hospital por conseqüência da anestesia, de erro médico ou intoxicado pela fumaça de incêndio no hospital; 2) A dá um murro

21 Instrutivo, ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 29, p. 305.

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Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação

em B, que morre ao bater a cabeça, fortuitamente, contra o meio-fio do passeio; 3) A produz pequeno ferimento em B, que morre por efeito de condição preexistente (como a hemofilia) ou posterior (como a gangrena, por negligência da vítima);22

b) por ações dolosas ou imprudentes de terceiros entre a ação e o resultado: 1) se o marido mata a mulher com veneno entregue pela amante, a ação dolosa daquele não interrompe a relação de causalidade entre a ação da amante e a morte da esposa, mesmo que aquela desconheça a finalidade do veneno; 2) se o hóspede entrega ao camareiro casaco com revólver no bolso, e este mata o colega de serviço ao pressionar, por brincadeira, o gatilho da arma em direção deste, a ação imprudente do camareiro não interrompe a relação de causalidade entre a ação do hóspede e a morte da vítima;23

c) por mediação do psiquismo de outrem entre ação e resultado, como indicam as hipóteses de instigação, ou de lesão patrimonial fraudulenta por erro da vítima, independente do ponto de vista so­bre determinação ou liberdade dos atos psíquicos: a possibilidade de outra decisão, que poderia ter existido mas que não existiu, não exclui a causalidade, porque a decisão concreta é sempre motivada por este ou por aquele fator.24

4. Ações que impedem ou excluem cursos causais de salvação da ví­tima são causa do resultado, se aqueles cursos causais possuem, com probabilidade próxima da certeza, eficácia (liipotética) para evitar o resultado típico: B morre porque A retém ou desvia a bóia lançada para salvá-lo, ou porque C destrói o frasco do único medicamento capaz de impedir sua morte.25 Estas são hipóteses de interrupção de

22 ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 26, p. 303-304.23 Mais exemplos, ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 27-28, p. 304.24 ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 30, p. 305.25 ENGISCH, Die Kausaãtãt ais Merkmal der strafrechtlichen Tatbestànde, 1931; ARMIN

KAUFMANN, DieDogmatik derUnterlassungsdelikte, 1959; ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 32-33, p. 306-307.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 8

causalidades dirigidas à proteção do bem jurídico: impedir a ação de processos ativados para proteção do bem jurídico tem a mesma eficácia causai que acionar processos de destruição do bem jurídico, se ocorre o resultado de lesão pela exclusão daqueles ou atuação destes. Ao contrário, inexiste relação de causalidade se a ação obstada é ineficaz para excluir o resultado: o medicamento já está estragado, a força das águas não permite que a bóia alcance a vítima etc.

Esta reformulação da teoria da equivalência das condições, à luz da distinção entre causação e imputação do resultado, conduz, na prática, a soluções semelhantes às da teoria seguida em texto anterior,26 mas sob nova linguagem e com argumentos mais convincentes.

1.2. Teoria da adequação

A teoria da adequação27 considera causa a conduta adequada para produzir o resultado típico, excluindo condutas que produzem o resultado por acidente. A condição adequada eleva a possibilidade de produção do resultado, segundo uma prognose objetiva posterior, do ponto de vista de um observador inteligente colocado antes do fato, com os conhecimentos gerais de um homem informado pertencente ao círculo social do autor, além dos conhecimentos especiais deste: persuadir alguém a uma viagem de avião, que cai no mar pela explo­são de uma bomba, não constitui condição adequada para a morte da vítima, porque um observador inteligente consideraria esse evento, antes da viagem, como inteiramente improvável — exceto se tivesse

26 Ver, por exemplo, CIRINO DOS SANTOS, Teoria do Crime, 1993, p. 31-32, que resolve esses problemas no âmbito do dolo, como é próprio do finalismo.

27 Fundada por JOHANNES VON KRIES, Die Prin^ipien der Warscbeinlichkátsrechnung, 1886, muito influente no direito civil; no Direito Penal, seguida por autores impor­tantes, como ENGISCH, Die Kausalitãt ais Merkmal der strafrechtlichen Tatbestãnde, e MAURACH /ZIPF, Strafrecht, 1992, §18, p. 240-263.

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Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação

conhecimento da existência da bomba.28

Contudo, se causa é condição adequada para produzir o resultado típico, então a teoria da adequação não seria simples teoria da causa­lidade:29 pretende resolver, simultaneamente, questões de causalidade e questões de imputação, porque identificar a causa adequada para o resultado típico é, também, identificar o fundamento da atribuição do resultado ao autor, como obra dele. Como nota ROXIN, a teoria da adequação não é apenas uma teoria específica da causalidade, mas não constitui, ainda, uma teoria da imputação típica. MEZGER30 redefiniu a teoria da adequação como teoria da relevância jurídica, com o propósito de distinguir entre causação e imputação do resultado: a causação do resultado, fundada na teoria da equivalência; a imputação do resultado, fundada na relevância jurídica da causalidade, definida por sua adequação ao tipo legal.31 Hoje, enquanto setores da doutrina consideram a teoria da relevância capaz de permitir precisa separação entre causação e imputação objetiva do resultado,32 outros a consi­deram (assim como a teoria da adequação) simples precursora de uma teoria geral da atribuição típica.33

28 ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 34-35, p. 308-309; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 169, p. 52.

29 Mais detalhes em ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 36-38, p. 309-310.30 MEZGER, Strafrecht, 1949, p. 122.31 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 38, p. 310; também, WESSELS/BEULKE,

Strafrecht, 1998, n. 172, p. 53.32 Ver, por exemplo, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §28,

III, p. 284 s.; BLEI, Strafrecht 1,1983, §28; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 173, p. 53.

33 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 38, p. 310.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 8

2. Imputação objetiva do resultado

A imputação do resultado constitui juízo de valoração realizado em dois níveis, segundo critérios distintos: primeiro, a atribuição do tipo objetivo, conforme o critério da realização do risco\ segundo, a atribuição do tipo subjetivo, conforme o critério da realização do plano, especialmente relevante em relação aos desvios causais34 (cf. Atribuição subjetiva em desvios causais, adiante).

A imputação do tipo objetivo consiste na atribuição do resultado de lesão do bem jurídico ao autor, como obra dele. A atribuição do resultado de lesão do bem jurídico pressupõe, primeiro, a criação de risco para o bem jurídico pela ação do autor e, segundo, a realização do risco criado pelo autor no resultado de lesão do bem jurídico. Em regra, a relação de causalidade entre ação e resultado representa realização do risco criado pela ação do autor e constitui fundamento suficiente para atribuir o resultado ao autor, como obra dele — mesmo na hipótese de desvios causais cuja verificação concreta amplia o risco de lesão do bem jurídico: a) a vítima é lançada do alto da ponte para se afogar nas águas do rio, mas morre ao esfacelar a cabeça na base de concreto de um dos pilares daquela; b) a vítima não morre por efeito dos disparos de arma de fogo, mas por infecção determinada pela assepsia inadequada dos ferimentos. Nessas hipóteses, o resultado não é um produto acidental,' mas a realização normal do perigo criado pelo autor e, portanto, obra dele?5

34 ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 6, p. 365-366 e §12, n. 144-145, p. 434-435; JAKOBS, Strafrecht, 1993,7/4a, p. 184. No Brasil, TAVARES, Teoria do injusto penal.\ 2002, p. 252-254.

35 ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 63, p. 321-322. No Brasil, ver TAVARES, Teoria do injusto penal.\ 2002, p. 279.

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Cursos causais hipotéticos36 também não excluem a imputação do resultado ao autor: a atribuição do tipo objetivo não é excluída porque, na hipotética falta do autor real, supostos autores substitutos teriam realizado a ação (homicídios injustificados na guerra, sob o pressuposto de que, em qualquer caso, outros, os executariam; furtos cometidos sob a alegação de que outros o realizariam e, portanto, a coisa seria subtraída ao proprietário, deste modo ou daquele). Afinal, o ordenamento jurídico não pode anular suas proibições porque hi­potéticas pessoas estariam igualmente dispostas à sua violação: nesses casos, o resultado aparece, sempre, como realização de risco criado exclusivamente pelo autor. Igualmente, não se exclui a atribuição do resultado nos casos em que o autor substituto teria agido em situação justificada (por exemplo, o particular que toma o lugar do carrasco e dispara a guilhotina, ou liga a energia da cadeira elétrica, ou libera as cápsulas de cianureto na câmara de gás, executando a pena de morte): somente as pessoas autorizadas pelo legislador podem realizar a ação típica, permanecendo a proibição em relação aos demais.37

O princípio de atribuição do tipo objetivo, definido como reali­zação de risco criado pelo autor, significa que a atribuição é excluída se a ação do autor não cria risco do resultado, ou se o risco criado pelo autor não se realiza no resultado.

2.1. Ausência de risco do resultado

A hipótese de ausênáa de risco do resultado abrange as situações em que a ação do autor não cria risco do resultado, ou reduz 0 ^sco Pre~ existente de resultado, assim exemplificadas: a) A envia B à floresta durante tempestade, na esperança de que um raio o fulmine: a casual

36 SAMSON, Hypothetische Kausakerlãufe im Strafrecht, 1972.37 ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 53, p. 316-317.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 8

ocorrência desse resultado não constitui risco criado pelo autor e, portanto, o resultado não é atribuível ao autor como obra dele (embora causalmente relacionado à sua ação), porque acontecimentos baseados na mera casualidade não criam risco juridicamente relevante de lesão do bem jurídico; b) B consegue desviar da cabeça para o ombro de A, viga que despencava da parede de uma construção: a ação do autor redu% o preexistente perigo para a vítima e, assim, o resultado não pode ser atribuído ao autor como obra dele (embora causalmente relacionado à sua ação). Situações de redução de risco também podem ser resolvidas no âmbito da antijuridicidade, justificadas pelo estado de necessidade ou pelo consentimento presumido do ofendido, mas esse critério pressupõe definir como típicas ações que melhoram a situação do bem jurídico protegido, o que parece impróprio. Hipóteses de redução do risco nos limites entre exclusão da atribuição típica e ação justificada aparecem nas situações de substituição de um perigo por outro menos danoso para a vítima: o bombeiro lança a criança da janela superior da casa em chamas, ferindo-a gravemente, mas salvando-a de morte certa pelo fogo.38

2.2. Risco não realizado no resultado

O resultado não pode ser atribuído se não constitui realização do risco criado pelo autor, embora relacionado causalmente com este: A fere B com dolo de homicídio, que morre em incêndio no hospital após bem sucedida intervenção cirúrgica. Neste caso, a ação do autor cria risco de lesão do bem jurídico, mas esse risco não se realiza no re­sultado concreto, que não pode ser atribuído ao autor como obra dele (apenas, tentativa de homicídio): afirmar a realização do risco criado

38 Mais detalhes, ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 47-48, p. 314-315.

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Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de A.ção

pelo autor no resultado de morte da vítima significaria admitir que o ferimento da vítima teria aumentado o risco de seu perecimento em incêndio, o que é absurdo.39

O resultado também não pode ser atribuído ao autor como rea­lização do risco de lesão do bem jurídico nos casos de substituição de um risco p or outro e em hipóteses de contribuição da vítima para o resultado.

No caso de substituição de um risco p or outro, o risco de ação pos­terior substitui ou desloca risco anterior: a vítima ferida pelo autor com dolo de homicídio, morre (a) com o crânio esmagado no célebre acidente de trânsito da ambulância que o transporta para o hospital, (b) por erro médico na cirurgia (hemorragia por incisão inadvertida de artéria, administração de medicamento contra-indicado, parada cardíaca determinada pela anestesia etc.). No caso de erro médico, é preciso distinguir: se o resultado é produto exclusivo do risco poste­rior, então é atribuído ao autor do risco posterior (o responsável pela falha médica, por exemplo); se o resultado é produto combinado de ambos os riscos (as lesões da vítima e a falha médica), então pode ser atribuído aos respectivos autores, embora sob rubricas diversas: dolo e imprudência.40

No caso de contribuição da vítima para o resultado, a atribuição des­se resultado obedece ao seguinte: se o resultado é realização exclusiva de risco criado pela vítima, então é atribuível à vítima (por exemplo, resultado produzido pela troca despercebida de medicamento); se o resultado é produto de transformação ou desenvolvimento do risco criado pelo autor (gangrena do ferimento, por exemplo), então é atribuível ao autor — exceto em caso de conduta inteiramente irres­ponsável da vítima (no caso da gangrena, se a vítima recusa socorro médico, apesar da evidência dos sintomas).41

39 ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, ns. 39-42, p. 310-312, e n. 60, p. 320.40 ROXIN, Strafrecht,, 1997, §11, n. 113, p. 348.41 ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, ns. 115-117, p. 349.

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III. Tipo subjetivo

O elemento subjetivo geral àos tipos dolosos é o dolo, a energia psíquica fundamental dos crimes dolosos,42 que normalmente preen­che todo o tipo subjetivo; freqüentemente, em conjunto com o dolo aparecem elementos subjetivos especiais, sob a forma de intenções ou de tendênáas especiais, ou de atitudes pessoais necessárias para precisar a imagem do crime ou para qualificar ou privilegiar certas formas básicas de comportamentos criminosos, que também integram o tipo subjetivo.43 Assim, o estudo do tipo subjetivo dos crimes dolosos tem por objeto (a) o dolo, como elemento subjetivo geral.\ excluído nas hipóteses de erro de tipo, e (b) as intenções, tendências ou atitudes pessoais, como elementos subjetivos especiais existentes em conjunto com o dolo em determinados delitos.

1. Dolo

O dolo, conforme um conceito generalizado, é a vontade cons­ciente de realizar um crime, ou, mais tecnicamente, vontade consciente de realizar o tipo objetivo de um crime, também definível como saber e q u e r e r em relação às circunstâncias de fato do tipo legal. Assim, o dolo é composto de um elemento intelectual (consciência, no sentido de representação psíquica) e de um elemento volitivo (vontade, no sentido

42 MAURACH/ZIPF, Strafrecht 1 ,1992, n. 51, p. 317.43 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §30, I-III, p. 316-321;

MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, §22, ns. 51-56, p. 317-319; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 77-80; também, CIRINO DOS SANTOS, Teoria do Crime, 1993, p. 23.

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Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação

de decisão de agir), como fatores formadores da ação típica dolosa.44

O componente intelectual do dolo consiste no conhecimento atual das circunstâncias de fato do dpo objetivo, como representação ou percepção real da ação típica: não basta uma consciência potencial.’ ca­paz de atualização, mas também não se exige uma consciência refletida, expressa pela verbalização45 (cf. A intensidade de representação das circunstâncias de fato, adiante). Esse elemento intelectual do dolo pode ser deduzido da regra sobre o erro de tipo: se o erro sobre ele­mento constitutivo do tipo legal exclui o dolo, então o conhecimento das circunstâncias do tipo legal é componente do dolo.46

O componente volitivo do dolo (indicado na definição legal de crime doloso, art. 181, CP) consiste na vontade, informada pelo conhe- ámento atual.\ de realizar o tipo objetivo de um crime. O verbo querer; empregado para exprimir a vontade humana, é um verbo auxiliar que necessita de um verbo principal para explicitar seu conteúdo; neste caso, o verbo querer deve ser completado com o verbo realizar, por­que o Direito Penal proíbe realizar crimes e, portanto, o componente volitivo do dolo define-se como querer realizar o tipo objetivo de um crime.47 A vontade, definida como querer realizar o tipo objetivo de um crime, deve apresentar duas características para constituir elemento do dolo: primeiro, a vontade deve ser incondicionada, no sentido de constituir uma decisão de ação já definida (se A pega uma arma sem saber se fere ou ameaça B, não há, ainda, vontade como querer reali-

44 Ver, como representantes da teoria dominante, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §29, II 2, p. 293; ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, n. 4, p. 364; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 64; WESSELS/BEULKE, Sfrafncht, 1998, n. 203, p. 64

45 ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, n. 111, p. 418; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 65.

46 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §29, II 2, p. 293.47 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 66.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 8

%ar o ripo objetivo de um crime); segundo, a vontade deve ser capa^ de influenciar o acontecimento real, de modo que o resultado típico possa ser definido como obra do autor., e não como mera esperança ou simples desejo deste (se A envia B à floresta, durante a formação de uma tempestade, na esperança de que um raio o fulmine, não existe vontade como elemento do dolo, ainda que, de fato, B seja fulminado por um raio, porque o acontecimento concreto situa-se além do poder de influência do autor).48

Conseqüentemente, o dolo formado pelo conhecimento e pela vontade do autor tem por objeto a realização do tipo objetivo de um crime, como lesão ou perigo de lesão do bem jurídico protegido.O conheámento atual das circunstâncias de fato do tipo objetivo deve abranger os elementos presentes (a vítima, a coisa, o documento etc.) e futuros (o curso causai e o resultado) do tipo objetivo, mas não precisa apreender as condições objetivas de punibilidade (que não são circuns­tâncias de fato), nem o resultado qualificador dos tipos qualificados pelo resultado (na hipótese de resultado qualificador imprudente).49 A delimitação do objeto do conhecimento — e, portanto, do alcance do dolo —, requer alguns esclarecimentos relacionados à natureza desse objeto: a) os elementos descritivos do tipo legal (homem, coisa etc.), como realidades concretas perceptíveis pelos sentidos, devem ser apreendidos na forma de sua existência natural; b) os elementos normativos do tipo legal (coisa alheia, documento etc.), como con­ceitos jurídicos empregados pelo legislador, devem ser apreendidos conforme seu significado comum, segundo uma valoração paralela ao nível do leigo — a célebre fórmula de MEZGER —, e não no sentido da definição jurídica respectiva, porque, então, somente juristas seriam

48 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 66.49 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 72-73. .

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capazes de dolo.50 Enfim, a vontade definida formalmente como deásão incondiáonada de realizar a ação típica representada pode ser concebida materialmente como projeção de energia psíquica lesiva de objetos protegidos no tipo legal.

1.1. Espécies de dolo

A lei penal brasileira define duas espécies de dolo, delimitando as formas possíveis de realização dos crimes dolosos: dolo direto e dolo eventual (art. 18 1, CP). A definição legal de categorias científicas é inconveniente, pelo risco de fixar conceitos em definições contro­vertidas ou defeituosas, como é o caso da lei penal brasileira: nem o dolo direto é definível pela expressão querer o resultado, porque existem resultados que o agente não quer,, ou mesmo lamenta, atribuíveis como dolo direto; nem a fórmula de assumir o risco de produzir o resultado, que reduz o conceito de dolo ao elemento volitivo, parece suficiente para definir o dolo eventual.

Art. 18. Di%-se o crime:I — doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produ%i-lo;

Para começar, a teoria penal moderna distingue três espécies de dolo: a) a intenção, também denominada dolus directus de Io grau; b) o propósito direto, também denominado dolus directus de 2o grau; c) o propósito condicionado, ou dolus eventualis.51 Em linhas gerais, a intenção designa o que o autor pretende realizar; o propósito direto abrange as

50 MEZGER, Strafrecht., 1949, p. 328; também,JESCHECK/WEIGEND, Ijehrbuch des Strafrechts, 1996, §29, II 3, p. 295; MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, §22, n. 49.

51 Nesse sentido, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §29, in , p. 297-304;-JAKOBS, Strafrecht, 1993, 8/15-32, p. 266-278; MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, §22, n. 23-40; ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, ns. 1-20, p. 366-371; STRATENWERTH, Strafrecht, 1981, n. 250; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 67-68; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, ns. 210-230, p. 66-71.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 8

conseqüências típicas previstas como certas ou necessárias; o propósito condicionado — ou dolo eventual — indica aceitação das ou conformação com conseqüências típicas previstas como possíveis,52

Algumas variações de nomenclatura não alteram a estrutura dessa sistematização: BLEY53 define intenção como propósito imediato e propósito direto como propósito mediato\ SCHONKE/SCHRODER/ CRAMER,54 somente distinguem entrzpropósito direto (ou dolo direto, compreendendo a intenção e os efeitos considerados como certos ou necessários) epropósito condicionado (ou dolo eventual), como, aliás, antes deles, WELZEL;55 enfim, SAMSON56 rejeita o termo intenção para o dolo direto de Io grau, reservando aquele conceito para indicar a chamada tendência interna transcendente, elemento subjetivo especial do tipo, diverso do dolo.

Essa tríplice configuração do dolo constitui avanço da ciência do Direito Penal, porque permite agrupar diferentes conteúdos da consciência e da vontade em distintas categorias dogmáticas, conforme variações de intensidade dos elementos intelectual e volitivo do dolo e, portanto, de comprometimento subjetivo do autor com o tipo de crime

52 Ver, por todos, ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, n. 2, p. 364. No Brasil, alguns au­tores, como JESUS, Direito P enall, 1999, p. 286, e MIRABETE, Manual de Direito Penal.\ 2000, p. 143, distinguem, por um lado, dolo direto ou indeterminado e, por outro lado, dolo indireto ou indeterminado, uma nomenclatura que pode engendrar equívo­cos, porque o dolo, mesmo como dolo eventual ou como dolo alternativo é, sempre, determinado: no dolo eventual, o autor aceita (ou se conforma com) a produção de determinado resultado representado como possível; no dolo alternativo, ambos os resultados representados pela consciência do autor são determinados, apenas sua produção é alternativa, ou seja, reciprocamente excludente (ver dolo eventual e, também, dolo alternativo, adiante).

53 BLEY, Strafrecht, 1983, p. 113.54 SCHÕNKE/SCHRÕDER/CRAMER, Strafgeset^buch, Kommentar, 1991, §15, n. 64.55 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 65-68.56 SAMSON, Absicht und direkter Vorsat^ im Strafrecht,}A 1989, p. 452.

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Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação

respectivo; além disso, representa desejável e necessária integração da teoria do tipo com a teoria da ação, cuja dimensão subjetiva compreende esses diferentes conteúdos do dolo como distintos objetos da vontade consciente do fim.5/ O fundamento metodológico dessa sistematiza­ção do dolo nos crimes comissivos parece ser o modelo fina l de ação, cuja estrutura destaca a base real daquelas categorias dogmáticas: a proposição do fim, como vontade consciente que dirige a ação; a escolha dos meios para realizar o fim, como fatores causais necessários determi­nados pelo fim; e os efeitos secundários representados como necessários ou como possíveis em face dos meios empregados ou do fim proposto58— eis o substrato ontológico das categorias do dolo direto de Io grau, dolo direto de 2o grau e dolo eventual.

Conceitos científicos incorporados na legislação devem ser interpretados de acordo com o progresso da ciência: o dolo direto indicado na expressão querer o resultado compreende as categorias de d o lo d ir e t o d e I og r a u e de d o l o d ir e t o d e 2 og r a u (expressões melhores do que intenção e propósito mediato, respectivamente); o dolo eventual indicado na fórmula assumir o risco de produzir o resultado pode ser interpretado no sentido de conformação com o (ou aceitação do) resultado típico representado como possív eis

57 Sobre a teoria da ação, ver WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §8, p. 33 s. e §13, p. 65 s.

58 CIRINO DOS SANTOS, Teoria do Crime, 1993, p. 26; do mesmo, A polêm ica atual sobre o conceito de ação, in Discursos sediciosos — crime, direito e sociedade, 1998, n. 3, p. 25 s.

59 Nesse sentido, também, ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 265, p. 502.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 8

a) dolo direto de Io grau

O dolo direto de 1ograu tem por conteúdo o fim proposto pelo autor,60 que pode ser entendido como pretensão dirigida ao fim ou ao resultado típico,61 ou como pretensão de realizar a ação ou o resultado típico.62 O fim constituído pela ação ou resultado típi­co pode ser representado pelo autor como certo ou como possíveP (acontecimentos futuros são, geralmente, somente possíveis), desde que o autor se atribua uma chance mínima de produzi-lo,64 de modo que consdtua risco juridicamente relevante,65 excluídos resultados meramente acidentais: existe dolo em disparo de arma de fogo a grande distância com intenção de homicídio, mas não existe dolo em convencer alguém a passear na tempestade na esperança de vir a ser fulminado por um raio.

O fim ou resultado típico pode, indiferentemente, constituir o motivo da ação, o fim último desta ou apenas um fim intermediário, como meio para outros fins,66 embora essas situações sejam conceitualmente distintas: alguém ateia fogo na própria casa (fim intermediário ou meio para outros fins) para receber o valor do seguro (fim últimò) e, desse modo, resguardar a credibilidade financeira e evitar boatos de insolvência (motivo).67

60 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 67.61 ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, n. 7, p. 366.62 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §29, n. 1, p. 297.63 Nesse sentido, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §29, n. 1,

p. 297; ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, ns. 7-8, p. 366-367; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 67; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 211, p. 66.

64 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 67.65 ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, n. 8, p. 367.66 Ver, por exemplo, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §29, n.

1, p. 297; ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, ns. 10-11, p. 367; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 211, p. 66.

67 Comparar WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 211, p. 66.

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Capítulo 8 0 Tipo de Injusto Doloso de Ação

b) dolo direto de 2o grau

O dolo direto de 2ograu compreende os meios de ação escolhi­dos para realizar o fim e, de modo especial, os efeitos secundários representados como certos ou necessários68 (ou as conseqüências e circunstâncias representadas como certas ou necessárias, segundo ROXIN,69 ou a existência de circunstâncias e a produção de outros resultados típicos considerados como certos ou prováveis, conforme JESCHECK/WEIGEND70) — independentemente de serem esses efeitos ou resultados desejados ou indesejados pelo autor: os efeitos secundários (conseqüências, circunstâncias ou resultados típicos) da ação reconhecidos como certos ou necessários pelo autor são atribuíveis como dolo direto de 2ograu, ainda que indesejados ou lamentados por este, como demonstram muitos exemplos (o famoso caso Thomas [Alemanha, 1875], em que Alexander Keith decidiu explodir o próprio navio com o objetivo de fraudar o seguro, apesar de representar como certa a morte da tripulação e de passageiros; ou a hipótese da morte do morador paralítico, representada como certa pelo autor do incêndio, também fraudulento, da própria casa). Como se vê, a fórmula querer o resultado não abrange todas as hipóteses de dolo direto.

c) dolo eventual

A definição do dolo eventuale sua distinção da imprudência consciente, como conceitos simultaneamente excludentes e complementares, é uma das mais controvertidas e difíceis questões do Direito Penal,71

68 Ilustrativo, WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 67.69 ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, n. 18, p. 371-372.70 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §29, III 2, p. 298.71 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 68. No Brasil, compatar a descrição das teorias

sobre dob eventuale imprudência consciente, em TAVARES, Teoria do injusíopenal, 2000, p. 272-290.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 8

porque se fundamenta na identificação de atitudes diferenciáveis, em última instância, pela situação afetiva do autor. De modo geral, o dolo eventual constitui decisão pela possível lesão do bem jurídico protegi­do no tipo, e a imprudência consciente representa leviana confiança na exclusão do resultado de lesão,72 mas a determinação das identidades e das diferenças entre dolo eventual e imprudência consciente requer a utilização de critérios mais precisos.

O setor dos efeitos secundários representados como possíveis pelo autor parece constituir a base empírica mínima de consenso das te­orias sobre dolo eventual e imprudência consciente: detalhes ou elementos particulares situados nas dimensões intelectual e emocional desses conceitos marcam a especificidade própria de cada uma dessas teorias. A controvérsia sobre a questão é a história inacabada da criação e do conflito desses critérios — cujas diferenças, na verdade, são mais ver­bais do que reais, e que representam, afinal e apenas, meras indicações da existência de uma decisão pela possível lesão do bem jurídico, na precisa formulação de ROXIN.73

Modelos úteis para discussão da matéria são as definições dos projetos ofiáal e alternativo da reforma penal alemã — definições, aliás, convenientemente não incorporadas na legislação penal germânica, incumbindo à jurisprudência e à doutrina fixar o conceito de dolo eventual e de imprudência consciente (assim como os conceitos de intenção e de propósito direto, igualmente excluídos da legislação). No projeto oficial o dolo eventual é definido como conformação do autor com a realização do tipo legal representada como possível; no projeto alternativo o dolo eventual consiste na aceitação da realização de uma situação típica representada seriamente como possívelJ4

72 ROXIN, Strafrecht,, 1997, §12, ns. 25-26, p. 374.73 ROXIN, Strafrecht,, 1997, §12, n. 29, p. 376.74 Comparar JESCHECK/WEIGEND, Tehrbuch des Strafrechts, 1996, §29, III 3, p.

300-301; ROXIN, Strafrecht,, 1997, §12, n. 29, p. 376.

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Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação

A literatura contemporânea trabalha, no setor dos efeitos secundários {colaterais ou paralelos) típicos representados como possíveis, com os seguin­tes conceitos-pares para definir dolo eventual e imprudência consciente.-1 a) o dolo eventual se caracteriza, no nível intelectual, por levar a sério a possível produção do resultado típico e, no nível da atitude emocional, por conformar-se com a eventual produção desse resultado — às vezes, com variação para as situações respectivas de contar com o resultado típico possível' cuja eventual produção o autor aceita; b) a imprudência consciente se caracteriza, no nível intelectual, pela representação da possível produção do resultado típico e, no nível da atitude emocional, pela leviana confiança na ausência ou evitação desse resultado, por força da habilidade, atenção, cuidado etc. na realização concreta da ação.

O caráter complementar-excludente desses conceitos aparece nas seguintes correlações, ao nível da atitude emocional: quem se conforma com (ou aceita) o resultado típico possível não pode, simul­taneamente, confiarem sua evitação ou ausência (dolo eventual); in­versamente, quem confia na evitação ou ausência do resultado típico possível não pode, simultaneamente, conformar-se com (ou aceitar) sua produção (imprudência consciente).76

O caso-paradigma da jurisprudência alemã sobre dolo eventual e imprudênáaconsáenteé o famoso ljederriemenfalt\ de 1955 (BGHSt 7/365), cuja discussão permite concretizar o significado daqueles conceitos: X e Y decidem praticar roubo contra Z, apertando um cinto de couro no pescoço da vítima para fazê-la desmaiar e cessar a resistência, mas a representação da possível morte de Z com o emprego desse meio leva à substituição do cinto de couro por um pequeno saco de areia,

75 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, n. 29, p. 376; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts,, 1996, §29, III 3, p. 299.

76 Representativos da opinião dom inante, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Stra­frechts, 1996, §29, m 3c, p. 301; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 68.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 8

em tecido de pano e forma cilíndrica, com que pretendem golpear a cabeça de Z, com o mesmo objedvo. Na execução do plano alterna­tivo rompe-se o saco de areia e, por isso, os autores retomam o plano original (o cinto de couro), fazendo cessar a resistência da vítima e subtraindo os valores. Então, desafivelam o cinto do pescoço da vítima e tentam reanimá-la, sem êxito: como previsto, a vítima está morta.

Do ponto de vista intelectual, X e Y levam a sério a possível pro­dução do resultado típico e, inicialmente, no nível emocional (pela alteração da forma concreta da ação), confiam na evitação do resul­tado representado como possível, o que exclui conformação com (ou aceitação de) sua eventual produção; mas, o retorno ao plano original indica mudança dessa atitude emocional, mostrando conformação com o (ou aceitação do) resultado típico previsto como possível (ainda que indesejável ou desagradável, como revela o esforço de reanimação da vítima), com lógica exclusão da atitude primitiva de confiança na evi­tação do resultado: se os autores executam o plano, apesar de levarem a sério a possibilidade do resultado típico, então conformam-se com (ou aceitam) sua eventual produção, decidindo-se pela possível lesão do bem jurídico, que marca o dolo eventual.

Esse critério de diferenciação de dolo eventual e imprudência consciente, conhecido como teoria de levar a sério (Urnstnahmetbeorie) a possível produção do resultado típico, é dominante na jurisprudência e doutrina alemã contemporâneas,77 mas não é exclusivo. Existem várias teorias diferenciadoras fundadas ou na vontade ou na representação do autor e, até mesmo, teorias unificadoras que propõem a abolição dos critérios diferenciadores. A descrição dessas teorias se justifica não só pelo interesse acadêfnico de mostrar o estado atual de discussão da matéria, mas pelo interesse científico em precisar o significado das

77 JESCHECK/WEIGEND, Uhrbuch des Strafrechts, 1996, §29, III 3a, p. 299-300; ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, ns. 27-29, p. 375-376.

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Capítulo 8 0 Tipo de Injusto Doloso de Ação

categorias desenvolvidas para pensar a questão do dolo eventual e da imprudência consciente.

1. Entre as teorias que trabalham com critérios fundados na vontade estão a teoria do consentimento (ou aprovação), a teoria da indiferença e a teoria da vontade de evitação não-comprovada.

a) A teoria do consentimento, elaborada por MEZGER,78 define dolo eventual pela atitude de aprovação do resultado típico previsto como possível, que deve agradar ao autor. Assim, não age com dolo eventual o médico que realiza intervenção cirúrgica indicada pela experiência profissional, mas leva a sério a possibilidade de morte do paciente, ou alguém que atira para salvar o amigo vítima de agressão e leva a sério a possibilidade de atingir o amigo. Mas, como demonstra a crítica, a aprovação do resultado é própria do dolo direto e não do dolo even­tual (que pode compreender, também, resultados desagradáveis ou lamentados), implicando, portanto, transformar o dolo eventual numa liipótese de dolo direto, como afirmam JESCHECK/WEIGEND79 (segundo a teoria, o~caso do cinto de couro configuraria mera impru­dência consciente); por outro lado, os exemplos citados seriam ações objetivamente conformes ao direito e, subjetivamente, realizadas sem dolo, como mostra ROXIN.80 A reelaboração moderna dessa teoria, por BAUMANN/WEBER81 e, especialmente, por MAURACH/ ZIPF,82 atribuindo à aprovação do resultado o sentido de inclusão deste na vontade do autor, parece conferir-lhe significado prático próximo à teoria dominante.83

78 MEZGER, Strafrecht, 1949, p. 347.79 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §29, III, p. 302-303.80 ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, tx. 34, p. 379.81 BAUMANN/WEBER, Strafrecht, 1985, p. 402.82 MAURACH/ZIPF, Strafncht, 1992, §22, n. 34.83 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, n. 36, p. 379-380.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 8

b) A teoria da indiferença ao bem jurídico, desenvolvida por ENGISCH,84 identifica dolo eventual na atitude de indiferença do autor quanto a possíveis resultados colaterais típicos, excluídos os resultados indese­

jados., marcados pela expectativa de ausência. Contudo, a crítica indica que a indesejabilidade do resultado não exclui o dolo eventual, como mostra o caso do cinto de couro — que a teoria da indiferença resolveria como hipótese de imprudência consciente;85 além disso, a ausência de representação do resultado, própria da imprudência inconsciente, pode indicar o mais elevado grau de indiferença em relação ao bem jurídico protegido.86

c) A teoria da não-comprovada vontade de evitação do resultado (também conhecida como teoria da objetivação da vontade de evitação do resultado), desenvolvida por ARMIN KAUFMANN87 em bases finalistas, coloca o dolo eventual e a imprudência consciente na dependência da ativa­ção de contrafatores para evitar o resultado representado como possível: imprudência consciente se o autor ativa contra-fatores, dolo eventual se não ativa contra-fatores para evitação do resultado. A crítica indica que a não-ativação de contra-fatores pode, também, ser explicada pela leviandade humana de confiar na própria estrela e, por outro lado, a ativação de contra-fatores não significa, necessariamente, confiança na evitação do resultado típico — como mostra, por exemplo, o caso do ánto de couro, em que os autores se esforçam, concretamente, para evitar o resultado.88

84 ENGISCH, Untersucbungen über Vorsat\ und ¥ahrlãssigkeit im Strafrecht., 1930.85 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §29, III, p. 303; ROXIN,

Strafrecht, 1997, §12, n. 37, p. 380.86 Ilustrativo, WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 70.87 ARMIN KAUFMANN, Der dolus eventualis im Deliktsaufbau. Die A.usmrkungen der

Handlungs- und der Schuldlehre au f die Vorsat^gren^e, ZStW 70 (1958), p. 73.88 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §29, III, p. 302-303;

também, ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, n. 48, p. 385.

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Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Amo

2. Entre as teorias que trabalham com critérios fundados na repre­sentação, hoje com prestígio crescente, podem ser referidas a teoria da possibilidade, a teoria da probabilidade, a teoria do risco e a teoria do perigo protegido.

a) A teoria da possibilidade simplifica o problema, reduzindo a dis­tinção entre dolo e imprudência ao conhecimento da possibilidade de ocorrência do resultado,89 eliminando a categoria jurídica da imprudên­cia consciente, porque toda imprudência seria imprudência inconsciente:90 a mera representação da possibilidade do resultado típico já constituiria dolo, porque uma tal representação deveria inibir a realização da ação; a não-representação dessa possibilidade constituiria imprudênáa (incons­ciente). A crítica fala do intelectualismo da teoria, que reduz o dolo ao componente intelectual, sem qualquer conteúdo volitivo, mas seus resultados práticos seriam semelhantes aos da teoria dominante,91 embora mais rigorosos, porque admite dolo eventual em situações definíveis como imprudência consciente.

b) A teoria da probabilidade define dolo eventual, variavelmente, ou pela representação de um perigo concreto para o bemjurídico (JOERDEN),92 ou pela consciência de um q u a n tu m de fatores causais produtor de sério risco do resultado (SCHUMANN),93 ou como (t€)conhecimento de um perigo qualificado para o bem jurídico (PUPPE)94 — para mencionar apenas suas formulações mais modernas. A crítica aponta o cará­ter de prognose intelectual dessas definições95 — um fenômeno de

89 Assim, SCHMIDHÀUSER, Strafrecht,, 1984,10-89 s.90 Ver SCHRÕDER, Aujbau und Gren^en des Vorsat^begriffes, Sauer-FS (1949), p. 207 s.91 Comparar ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, ns. 39-40, p. 381.92 JOERDEN, Strukturen des Strafrechtlichen Verantwortlichkeitsbegrijfes, 1980, p. 151.93 SCHUMANN, ZurWiederbelebungdes “voluntativen ” Vorsat^element durch den BGH, JZ

1989, p. 433.94 PUPPE, Der Vorstellungsinhalt des dolus eventualis, ZStW 102 (1991), 1 s.95 ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, n. 43, p. 382.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 8

reflexão raro em eventos dominados pelas emoções, como são os comportamentos criminosos —, capazes de servir como indícios da atitude pessoal de levar a sério o perigo, mas incapazes de funcionar como critério do dolo eventual.96 WELZEL — ora arrolado na teoria da probabilidade (ROXIN),97 ora incluído na teoria da possibilidade (JESCHECK/WEIGEND)98 - afirma que a teoria da probabilidade tem um aspecto positivo, porque a representação da possibilidade de influenciar o resultado permite distinguir o simples desejar do verda­deiro querer; e um aspecto negativo, porque a vontade de realização não seria simples efeito do ato psíquico de representar a probabilidade do resultado, mas de contar com a produção de resultado representado como provável (confiar na evitação desse resultado constituiria imprudência consciente).99

c) A teoria do risco de FRISCH100 (às vezes classificada como variante da teoria da possibilidade),101 define dolo pelo conhecimento da conduta típica, excluindo do objeto do dolo o resultado típico porque a ação de conhecer não pode ter por objeto realidades ainda inexistentes no momento da ação; não obstante, trabalha com o critério de tomara sério o e de confiar na evitação do resultado típico para distinguir a decisão pela possível lesão do bem jurídico (dolo eventual) da mera imprudência consciente, aproximan- do-se, por isso, da teoria dominante. A crítica à teoria se concentra na questão do objeto do dolo: a ausência do elemento volitivo tornaria artificiosa a atitude do autor; depois, seria inaceitável um dolo sem conhecimento das circunstâncias de fato, especialmente do resultado típico, definido pela teoria como mero prognóstico — embora seja nesse

96 JESCHECK/WEIGEND, Lebrbuch des Strafrechts, 1996, §29, III, p. 302.97 ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, ns. 42-44, p: 382-383.98 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §29, III, p. 302.99 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 70.100 FRISCH, VorsatzundRísíko, 1983, p. 97 s.101 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §29, III, p. 302,

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Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação

sentido que o resultado típico constitui objeto do dolo.102

d) A teoria do perigo desprotegido de HERZBERG103 (classificada, tam­bém, como variante da teoria da probabilidade)™ igualmente retira o elemento volitivo do conteúdo do dolo — a principal característica da teoria da representação — e fundamenta a distinção entre dolo eventual e imprudência consciente com base na natureza do perigo, definido como desprotegido, protegido e desprotegido distante: a) o perigo desprotegido, caracterizado pela dependência de meros fatores de sorte-a^ar.; configura dolo eventual, ainda que o autor confie na ausên­cia do resultado, como jogar roleta russa (com risco de resultado na proporção de 1:5), ou praticar sexo com meninas de idade presumível inferior a 14 anos; b) o perigo protegido, caracterizado pela evitação do possível resultado mediante cuidado ou atenção do autor; da vítima potenáal ou de terceiro, configura imprudência consciente, com homi­cídio imprudente em hipótese de resultado de morte, nos seguintes exemplos: o inexperiente servente de pedreiro cai de andaime de prédio em construção, onde subira por ordem do mestre-de-obras, sem usar qualquer dispositivo de segurança; o professor permite aos alunos nadarem em rio perigoso, apesar da placa de advertência do perigo e aluno morre afogado; c) o perigo desprotegido distante se asse­melha ao perigo protegido, excluindo o dolo: o inquilino do apartamento joga objeto pesado pela janela, consciente da possibilidade de atingir alguém; a mãe deixa medicamento tóxico no armário, consciente de que o filho poderia ingeri-lo. A noção de perigo desprotegido pretende fundamentar uma construção objetiva da teoria subjetiva de levar a sério o perigo: trata-se de reconhecer um perigo digno de ser levado a sério, e não

102 Ver, sobretudo, ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, ns. 54-55, p. 387-388.103 HERZBERG, Die Abgren^ung von Vorsat. und bewusster Fahrlãssigkeit - ein Problem des

objektiven Tatbestandes, JuS, 1986, p. 249 s.; também, Das Wollen beim Vorsat^delikt und dessen Unterscheidung vom bewussten fahrlãssigen Verhalten,)Z , 1988, p. 573 s.

104 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §29, III, p. 302.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 8

de levar a sério um perigo reconhecido}05 A crítica afirma não ser evidente que um perigo protegido exclua e um perigo desprotegido constitua dolo eventual, mas parece digno de aplauso o esforço de construir a base objetiva de critérios tradicionalmente subjetivos.

A proposta de eliminar o elemento volitivo do dolo, própria das teorias da representação, exclui o fundamento emoáonal distintivo das atitudes de levar a sério o ou de confiar na ausênáa do perigo, que marca a teoria dominante; contudo, se o dolo não exige aprovação do resultado, também não pode ser reduzido à atitude de indiferença absoluta em face desse resultado.106 A exclusão do elemento volitivo-emocionaldo dolo— que HERZBERG define como elemento deprognose irracional — reduz o dolo ao elemento intelectuale, desse modo, a desejável busca de critérios objetivos acaba por desfigurar o próprio fenômeno real.107

3. Finalmente, teorias igualitárias desenvolvidas por ESER108 e WEI- GEND,109 fundadas nas dificuldades práticas dos critérios diferen- ciadores, propõem a unificação do dolo eventual e da imprudência consciente em uma terceira categoria subjetiva (ou de culpabilida­de), situada entre o dolo e a imprudência. A crítica reconhece certas

105 Ilustrativos, HERZBERG, Die Abgren^ung von Vorsat% und bewusster Fahrlassigkeit - ein Problem des objektiven Tatbestandes, JuS, 1986, p. 262; ROXIN, Strafrecht, §12, ns. 59-63, p. 390-392.

106 Outros modernos opositores do elemento volitivo: SCHMOLLER, Das voluntative Vorsat^element, ÕJZ 1982, p. 259 s.; KINDHÀUSER, Der Vorsat^als Zurechnungskri- terium, ZStW 96 (1984), p. 1 s.; SCHUMANN, Zur Wiederbelebung des “voluntativen” Vorsat^element durch den BGH, JZ 1989, p. 427. Outros modernos defensores, do elemento volitivo: ZIEGERT, 1Sonata^ Schuld und Vorverschulden, 1987; SPENDEL, Zum Begriff des Vorsat^ Lackner-FS, 1987, p. 167 s.; PRITTWITZ, Die Ansteckun- gsgefabr beiAIDS,]A 1988, p. 427 s.; KÜPPER, Zum Verhãltnis von dolus eventualis, Gefãhrdungsvorsat^und bewusster Fahrlassigkeit, ZStW 100 (1988), p. 758; HASSEMER, Kenn^eichen des 'Vorsat^es, Arm. Kaufmann-GS, 1989, p. 289.

107 Instrutivo, ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, ns. 66-67, p. 393.108 ESER, Strafrecht 1,1980, n. 35 a.509 WEIGEND, Zmschen Vorsat^undFahrlãssigkeit, ZStW, 93 (1981), p. 657 s.

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Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de A.cão

vantagens, como a simplificação da aplicação do Direito Penal, mas destaca desvantagens, como a nivelação de diferenças qualitativas entre liipóteses de decisão contra o bem jurídico protegido (dolo eventual) e hipóteses de leviana confiança na evitação do resultado (imprudência consciente).110

1.2. Dolo alternativo

Todas as espécies de dolo podem existir sob a forma de dolo alternativo, caracterizado por uma ação com alternativas típicas exclu- dentes. Exemplos: a) A atira em B para matar ou, simplesmente, ferir;b) A atira para matar B ou, pelo menos, o cachorro de B; c) A atira para matar o cachorro de B, mas conforma-se com a possibilidade prevista de matar B, próximo do animal.111

A controvérsia sobre dolo alternativo aparece na diversidade de soluções para as situações acima exemplificadas: a) punição somente pelo tipo realizado, sob o argumento de que o autor pretende apenas um resultado típico;112 essa teoria apresenta alguns problemas inso­lúveis: se nenhum resultado é produzido, não se sabe por qual crime punir, e, no exemplo da letra c, se o autor mata o cachorro, parece inconcebível a impunidade da tentativa de homicídio só porque, com­petentemente, matou o animal; b) punição pelo tipo mais grave, ou seja, por homicídio (consumado ou tentado), em todas as hipóteses;113

110 ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, n. 68, p. 394.111 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §29, III, p. 304; WELZEL,

Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 72. No Brasil, ver MESTIERI, Manual de Direito Penal 1, 1999, p. 132.

112 Assim, MEZGER, Strafgeset^buch, 1957, §59.113 Nesse sentido, NOWAKOWSKI, Deraltemative V orsat^JBl, 1937, p. 465; OTTO,

Grundkurs Strafrecht, 1996, §7, ns. 22-26, p. 76;JOERDEN, D eraufdie Verwirklichung von %wei Tatbestànden gerichtete Vorsat^. Zugkich eine Grundlegung %um Problem des dolus altemativus, ZStW 95 (1983), p. 565.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 8

aqui, a crítica inverte o argumento: se o autor atirou no cachorro e, efetivamente, matou o cachorro, por que punir por homicídio tentado?c) punição, em concurso formal, por cada tipo alternativo tentado, ou tentado e consumado114 — uma solução que parece ser dominante na dogmática moderna.

1.3. A dimensão temporal do dolo

O dolo, como fundamento subjetivo da realização do plano delituoso, deve existir durante a realização da ação, o que não significa durante toda a realização da ação planejada, mas durante a realização da ação que desencadeia o processo causai típico (a bomba, colocada no automóvel com dolo de homicídio, somente explode quando o autor já está em casa, dormindo). Conseqüentemente, não existe dolo anterior,, nem dolo posterior à realização da ação: as situações referidas como dolus antecedens (a arma empunhada por B para ser usada contra A, depois de prévia conversação, dispara acidentalmente e mata a vítima) ou como dolus subsequens (ao reconhecer um inimigo na vítima de acidente de trânsito, o autor se alegra com o resultado) constituem meras hipóteses de fatos imprudentes.115

2. Erro de tipo

O conceito de dolo, definido como conhecer e querer as circuns­tâncias de fato do tipo legal, está exposto à relação de lógica exclusão

114 Ver, entre outros, WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 72; JAKOBS, Strafrecht, 1993,8/33, p. 278-279; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §29, III, 4, p. 304; ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, n. 85, p. 403.

115 ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, ns. 80-81, p. 401; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht,1969, §13, p. 71.

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Capítulo 8 0 Tipo de Injusto Doloso de Ação

entre conhecimento e erro: se o dolo exige conhecimento das circunstâncias de fato do tipo legal, então o erro sobre circunstâncias de fato do tipo legal exclui o dolo.116 Em qualquer caso, o erro de tipo significa defeito de conhecimento do tipo legal e, assim, exclui o dolo, porque uma repre­sentação ausente ou incompleta não pode informar qualquer dolo de tipo, mas é preciso distinguir: o erro inevitável exclui o dolo e a imprudência, enquanto o erro evitável exclui apenas o dolo, admitindo punição por imprudência.117 Essa regra está inscrita no Código Penal:

Art. 20, CP. O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de cnme exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.

Os problemas mais importantes desse setor parecem ser os seguintes: primeiro, definir o conceito de erro de tipo, diferenciando-o do simples erro de subsunção, sem relevância penal; segundo, determinar a intensidade de representação (das circunstâncias de fato) necessária para configurar o conheámento como elemento intelectual do dolo.

2.1. Erro de tipo e erro de subsunção

O objeto do erro de tipo não tem a extensão sugerida pela lei penal: o tipo legal é um conceito constituído de elementos subjetivos e objetivos, mas o erro de tipo só pode incidir sobre elemento objetivo do tipo legal — um conceito menos abrangente do que elemento cons­titutivo do tipo legal, que inclui a dimensão subjetiva do tipo. Assim delimitado o problema, pode-se dizer que o erro de tipo representa defeito na formação intelectual do dolo, que tem por objeto os ele­mentos objetivos do tipo legal, presentes ou futuros: a ação, o resultado,

1,6 ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, n. 86, p. 405.117 CIRINO DOS SANTOS, Teoria do cnme, 1993, p. 24.

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certas características de autor, às vezes alguns fenômenos subjetivos da vítima (o erro de representação, no estelionato); conseqüente­mente, os elementos subjetivos do tipo, como o próprio dolo e as intenções, tendências e atitudes especiais de ação, não podem ser objeto de erro de tipo; também não podem ser objeto de erro de tipo as condições objetivas de punibilidade, os fundamentos pesso­ais de exclusão de pena e os pressupostos processuais, que não são elementos objetivos do tipo.118

O conhecimento das circunstâncias de fato formadoras do tipo objetivo implica representação da possibilidade de realização concreta do tipo legal; o erro sobre as circunstâncias de fato do tipo objetivo exclui a representação dessa possibilidade e, por isso, configura erro de tipo. O erro de tipo pode ocorrer sob as formas de falsa representação ou de ausênáa de representação das circunstâncias de fato do tipo objetivo:a) A dispara sua arma contra o que supõe ser um espantalho, sendo, na verdade, B que fazia exercícios de tai chi chuan no meio da horta (falsa representação); b) C mantém relações sexuais com D (menor de14 anos, mas com aparência de idade superior), sem pensar na idade da moça (ausência de representação).

O erro de tipo, como defeito do dolo e, por extensão, do tipo subjetivo, pode incidir sobre elemento descritivo ou normativo do tipo objetivo. A confusão de erro de tipo (excludente do dolo) e erro de subsunção (penalmente irrelevante) é mais freqüente nos elementos normativos do tipo, porque o cidadão comum não pode conhecer todos os conceitos jurídicos empregados pelo legislador; contudo, mediante a chamada valoração paralela na esfera do leigo pode esse cida­dão identificar os significados sociais subjacentes aos conceitos jurí­dicos, porque integrantes da cultura comum que orienta as decisões da vida diária, como ocorre em relação ao conceito de documento, por

118 Com mais detalhes, ROXEN, Strafrecht, 1997, §12, ns. 119-120, p. 423 e n. 138, p. 430.

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Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação

exemplo: os traços deixados pelo garçom no suporte de papelão do chope são sinais corporificados para prova da quantidade consumida; se o consumidor apaga alguns desses traços para reduzir a conta, age com dolo de falsificação de documento particular, porque sua valoração paralela reproduz, ao nível do leigo, o conceito jurídico de documento: a opinião de que documentos seriam escritos com forma predeterminada constituiria mero erro de subsunção, sem relevância penal119 — caso a hipótese não seja abrangida pelo princípio da insig­nificância. Valorações jurídicas errôneas representam, em regra, erro de subsunção (às vezes, erro de proibição), mas podem significar, excepcionalmente, erro de tipo, como na subtração de coisa alheia suposta como própria, por errônea interpretação jurídica.120 O erro de subsunção também pode ter por objeto elementos descritivos do tipo: se A esvazia o pneu do veículo de B, convencido de que o dano exige destruição da substância da coisa, incide em simples erro de subsunção, sem prejuízo do dolo.121

Formulações modernas tentam simplificar as dificuldades do tema, redefinindo conceitos e clarificando as hipóteses de erro: DARNSTADT122 relaciona os elementos descritivos a realidades naturais, representadas por situações ou propriedades físicas, e os elementos normativos a realidades institucionais, dotadas de características sociais ou comunitárias, que a valoração paralela reconhece como realidades de relevânáa social; HAFT123 distingue entre erro sobre objeto e erro sobre conceito: o erro sobre objeto constitui erro de tipo, como na apropriação de coisa alheia tomada como própria; o erro sobre conceito constitui

119 ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, ns. 89-91, p. 407-408.120 ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, ns. 91-3, p. 408-409.121 WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 242, p. 74.122 DARNSTADT, Derlrrtum übernormaáve Tcribestandsmerkmak im Strafrecht,]^ 1978, p. 441.123 HAFT, Strafrecht, Fallrepetitorium %um Allgemeinen und Besonderen Teil, 1996, ns. 590

s., p. 113-114.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 8

erro de subsunção, como negar o conceito de coisa aos animais furtados; KUHLEN,124 enfim, propõe o retorno aos conceitos de erro de fato e erro de direito extra-penal (o caráter alheio da coisa, por exemplo), como espécies de erro de tipo excludente do dolo, e de erro de Direito Penal.’ como modalidade de erro de subsunção, penalmente irrelevante.

2.2. A intensidade de representação das circunstâncias de fato

O conhecimento de elementos objetivos do tipo legal pressu­põe certo nível de intensidade de representação, antes do qual não se constitui como componente intelectual do dolo. A dogmática penal moderna rejeita posições extremas, que ou exigem nível de consáênáa refletida, ou aceitam mera consáênáapotenáal das circunstâncias de fato do tipo objetivo:125 uma consáênáa refletida dos elementos objetivos (coisa móvel.\ por exemplo), no sentido de pensar expressamente nisso, parece contradizer a psicologia da vida cotidiana, como observa SCHEWE,126 porque as ações humanas (em especial, as ações criminosas) não são o resultado de refletida ponderação, mas expressão irracional de instin­tos e emoções; por outro lado, uma consáênáa potenáal dos elementos objetivos, no sentido de um conhecimento latente não-atualizado, parece insuficiente, como»mostra PLATZGUMMER:127 o caçador

124 KUHLEN, Die Unterscheindung von vorsat^ausschliessendem und nichtvorsat^ausschliessendem Irrtum, 1987.

125 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §29, I I 2, p. 293; RO- XIN, Strafrecht, 1997, §12, n. 111, p. 418; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 64; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, ns. 238-240, p. 73.

126 SCHEWE, Reflexbemgung Handlung Vorsat. Strafrechtsdogmatische Aspekte des Wil- lensproblems aus medi^nisch-psychologischer Sicht, 1972, p. 85.

127 PLATZGUMMER, Die Beivusstseinsfonn des Vorsat^es, 1964, p. 4 e 83.

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Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de A.cão

que dispara sua arma sobre um batedor, porque esqueceu, na emoção da caçada, comunicação anterior sobre a presença desse batedor em determinado lugar, não atua com dolo.

Hoje, admite-se que o conhecimento dos elementos objetivos do tipo pode existir como consáênáa implíáta no contexto das repre­sentações do autor, segundo a fórmula da chamada co-consáênáa: por exemplo, no furto de mercadorias em lojas comerciais, a consciência do caráter alheio da coisa permeia o conjunto das representações do autor — o que é mais do que uma consáênáa latente, mas não chega a ser uma consáênáa refletida; o advogado que trai o dever profissional, prejudicando interesse de cliente, não precisa pensar, especificamente, em sua qualidade de advogado, para agir com dolo etc. Neste ponto, parece útil a distinção de SCHMIDHÀUSER,128 a partir de pesquisas sobre psicologia da linguagem, entre pensamento em coisas e pensamento em palavras (apesar da crítica correta de ARTHUR KAUFMANN,129 de que não existe pensamento sem palavras): o conhecimento, como elemento do dolo, pode existir sob forma de pensamento em coisas — ou sob forma de linguagem reduzida, em que um sinal lingüístico evoca um complexo de significados, como prefere ROXIN130 —, sem necessidade de existir na forma de pensamento empalavras, como, por exemplo, esta coisa é alheia (no furto), ou eu atuo como advogado (no patrocínio infiel) etc.

128 SCHMIDHÀUSER, Über Aktualitãt und Potentialitãt des Unrechtsbewusstseins, H. Mayer-FS, 1966, p. 317.

129 ARTHUR KAUFMANN, Die Parallehvertungin der Laiensphãre, 1982.130 ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, nota 216, p. 419.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 8

3. Atribuição subjetiva do resultado em desvios causais

Sob o conceito de desvios causais aparecem diversas formas de alteração ou mudança no curso de acontecimentos típicos, cada qual com peculiaridades e critérios próprios, classificáveis nas rubricas es­pecíficas de desvios causais regulares, situações de aberratio ictus, hipóteses de troca de dolo, o chamado dolo geral e casos de erro sobre o objeto, assim regulados no Código Penal:

Art. 20, §3°. O erro quanto àpessoa contra a qual o crime é praticado não isenta depena. Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime.

1. D esv io s ca u sa is r e g u la r e s . O curso causai do acontecimento típico, como uma circunstância de fato, constitui elemento objeti­vo do tipo, cuja atribuição ao dolo depende da previsibilidade de seu desdobramento.131 Desvios causais previsíveis conforme a experiência geral da vida constituem, segundo a teoria dominante, cursos causais regulares atribuíveis ao dolo do autor: se A lança B da ponte para morrer afogado no rio, mas B morre durante a queda, ao esfacelar a cabeça no pilar da ponte, existe homicídio doloso consumado, porque o pre­visível resultado concreto é conseqüência do perigo criado, atribuível ao autor como obra dele; desvios causais imprevisíveis constituem cursos causais irregulares ou anormais, não atribuíveis ao dolo do autor: se B, ferido por A com dolo de homicídio, morre em incêndio do hospital após a cirurgia, o imprevisível resultado concreto não é produto do

131 Representativo da opinião dominante, WELZEL, Das Deutsche Strafrecht.; 1969, §13, p. 73.

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Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação

perigo criado, e não pode ser atribuído ao autor como obra dele}02 Na verdade, como mostra ROXIN, desvios causais previsíveis são atribuí­veis ao tipo objetivo (e, por isso, também ao dolo do autor), enquanto desvios causais imprevisíveis não são atribuíveis ao tipo objetivo (e, por isso, também nao constituem objeto do dolo do autor). Se o critério de atribuição do dpo objetivo é a realização do perigo, o critério de atribuição do tipo subjetivo é a realização do plano: no exemplo da ponte, o possível e previsível resultado concreto (realização do perigo) corresponde à realização do plano (dolo do autor), porque a morte por afogamento ou a morte por esfacelamento do crânio são resul­tados equivalentes; no caso do incêndio do hospital, o imprevisível resultado concreto não representa realização do perigo criado, nem corresponde à realização do plano do autor.133 Como se vê, a solução do problema se desloca da área do erro de tipo (onde a teoria dominante ainda o situa) para a área dos critérios de atribuição do tipo objetivo e subjetivo134 (ver Imputação objetiva do resultado, acima).

2. A berra tio i c tu s . As hipóteses de aberratio ictus constituem casos especiais de desvio causai do objeto desejado para objeto diferente: o disparo de arma de fogo contra B, atinge mortalmente C, postado atrás de B. As soluções tradicionais dos casos de aberratio ictus são representadas pela teoria da concretização e pela teoria da equivalênáa:a) para a teoria da concretização, dominante na literatura contemporâ­nea,135 o dolo deve se concretizar em objeto determinado: na hipótese,

132 ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, ns. 140-142, p. 432-434; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 73.

133 ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, n. 144, p. 434; também, WOLTER, Objektive Zure- chnung und modemes Strafrechtssystem, 1995.

134 ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, n. 148, p. 437.135 Ver, entre outros, BAUMANN/WEBER, Strafrecht, 1985, §21, n. 13; JAKOBS,

Strafrecht, 1993,8/80, p. 303; MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, §23, n. 30; OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §7, VI, ns 93s.; STRATENWERTH, Strafrecht, 1991, n. 284; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 250, p. 76.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 8

tentativa de homicídio contra B e homicídio imprudente contra C;b) para a teoria da equivalênáa,136 o dolo pode admitir resultado típico genérico: na hipótese, homicídio doloso consumado, porque B e C são igualmente seres humanos (teoria adotada pelo art. 20, §3°, CP, que engloba liipóteses de aberratio ictus e de erro sobre a pessoa).

A regra da relevância da aberratio ictus sobre objetos típicos diferentes (A joga pedra para destruir vaso de porcelana cliinesa, mas atinge o proprietário B, postado ao lado do vaso) parece incontroversa, mas a irrelevância da aberratio ictus sobre objetos típicos iguais admite exceções em situações de desvios causais anormais:137a) em caso de resultado imprevisível por força de curso causai inadequado (A erra o tiro contra B, mas o projétil ricocheteia na parede do pré­dio e, após bater no hidrômetro da calçada, fere C, que transitava em rua transversal): apenas tentativa de homicídio contra B, porque a anormalidade do desvio torna imprevisível o resultado lesivo contra C, excluindo atribuição de fato imprudente (a regra do art. 20, §3°, CP, parece excessiva);

b) em caso de objetos em situação jurídica distinta (A atira contra B em legítima defesa, mas atinge C sem justificação, situado atrás de B): tentativa justificada de homicídio contra B e homicídio imprudente contra C (igualmente, parece inadmissível a solução do art. 20, §3°, CP, porque a natureza antijurídica do excesso extensivo excluiria a justificação do homicídio imprudente);

c) em caso de resultado trágico para o autor (em briga de bar, A atira

136 Embora minoritária, tem adeptos respeitáveis: WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 72-74; KUHLEN, Die Unterscheindung von vorsat^ausschliessendem und nichtvorsat^ausschliessendem Irrtum, 1987, p. 479 s. No Brasil, ver MESTIERI, Manual de Direito Penal 1, 1999, p. 137.

137 ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, ns. 151-153, p. 438. No Brasil, comparar ZAFFA- RONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 257, p. 490-492.

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Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de A,ção

sobre B e, por infelicidade, mata o próprio filho C, que saltara sobre B para defender o pai): apenas tentativa de homicídio contra B (pa­rece cruel a regra do art. 20, §3°, CP, que pune por crime consumado porque o autor mata o próprio filho, e não o adversário).

3. Hipóteses de troca de dolo. A troca de dolo, que pode ocorrer no curso da realização do tipo, constitui geralmente situação de mudança ' de objeto do dolo (A derruba a jovem B, no parque, para roubar-lhe o relógio, mas prefere subtrair o valioso colar de pérolas, descoberto durante o fato): não há mudança no plano do fato, apenas troca de objeto do dolo, em geral irrelevante. A situação seria relevante se a troca de objeto representasse mudança no plano do fato capaz de descaracterizar o dolo (no exemplo citado, enfeitiçado pela beleza do rosto da vítima, o autor decide subtrair-lhe a carteira de identidade para admirar, depois, a fotografia dela):138 a mudança no plano do fato, como desistênáa voluntária do roubo tentado, desfaz o dolo de roubo, subsistindo, apenas, o constrangimento ilegal.

4. O chamado dolo geral. O conceito de dolo geral foi desenvolvido tendo em vista acontecimentos típicos realizados em dois atos: no primeiro, o autor supõe consumar o fato que, na verdade, só ocorre com o segundo ato, realizado para encobrir o fato (A, com dolo de homicídio, dispara o revólver contra B, que cai ao chão, inconsciente; em seguida, para ocultar o homicídio que pensa ter consumado, A lança o suposto cadáver de B no rio, determinando, então, a morte da vítima). Atualmente, um setor da doutrina resolve a hipótese como tentativa de homicídio, em concurso com homicídio imprudente, sob o argumento de que o dolo deve existir ao tempo do fato.139 A teoria dominante, contudo, define a hipótese como homicídio doloso

138 ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, n. 160, p. 441-442.139 Assim, KÜHL, Strafrecht, 1994, §13, ns. 46-48, p. 448; MAURACH/ZIPF, Strafrecht,

1992, §23, n. 33, entre outros.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 8

consumado, não mais sob o fundamento de dolo geral — um conceito ultrapassado, porque a ausência de dolo (de homicídio) no segundo fato não é suprível pela extensão do dolo de homicídio do primeiro fato —, mas sob o argumento da natureza não-essendaldo desvio causai. Contudo, é preciso distinguir: WELZEL,140 por exemplo, exige dolo unitário, abrangendo o primeiro e o segundo fato; ROXIN141 condiciona a solução à natureza do dolo do primeiro fato: a) se dolo direto, o resul­tado corresponde ao plano do autor (que, certamente, terá pensado no modo de se livrar do cadáver) e, portanto, o desvio causai é irrelevante, configurando homicídio doloso consumado: A pretendeu matar B e, de fato, matou B; b) se dolo eventual.’ o resultado não parece corresponder ao plano do autor (que, certamente, não deverá ter pensado no modo de se desfazer do cadáver) e, por isso, o desvio causai torna-se relevante, configurando, então, homicídio doloso tentado em concurso com homicídio imprudente.

Casos assemelhados, em que o autor pretende consumar o fato somente no segundo ato, mas produz o resultado já na tentativa do primeiro ato, seriam resolvidos, também, segundo as regras do desvio causai: A quer matar B somente depois de atordoá-lo com algumas pancadas na cabeça, mas o resultado já ocorre por efeito das pancadas para atordoar a vítima. A teoria resolve a hipótese como homicídio doloso consumado, porque o resultado corresponde ao plano do autor e, portanto, o desvio causai é irrelevante — desde que o resultado ocorra no âmbito da tentativa, e não como efeito de meras ações pre­paratórias, que poderia engendrar, apenas, fato imprudente: a vítima morre de disparo acidental durante operação de limpeza da arma, que o autor pretende usar, depois, contra a mesma vítima.142

140 WELZEL, jDas Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 74. No Brasil, MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 132.

141 ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, n. 165, p. 444.142 Ver MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, §23, n. 36; ROXIN, Strafrecht, 1997, §12,

n. 170, p. 446; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 74-75.

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Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação

5. E rro s o b r e o o b je to . Os casos de erro sobre o objeto [errorin objeto velpersona) constituem hipóteses de confusão ou equívoco do autor sobre o objeto do fato, cuja solução depende, também, da equivalência ou não-equivalência típica do objeto:

a) erro sobre objeto tipicamente igual é irrelevante (A, pensando atirar contra B mata C, confundido com B, na escuridão da noite): o dolo deve apreender as circunstâncias do fato em gênero e, portanto, erro sobre a identidade concreta de objeto tipicamente equivalente, é irre­levante143 (teoria adotada pelo art. 20, §3°, CP, que engloba liipóteses de erro sobre o objeto e de aberratio ictus).

b) erro sobre objeto tipicamente diferente é relevante (A, na escuridão da noite, pensando atirar contra B, mata o cão pastor deste, confundido com B porque dormia na cama do dono): a hipótese configura um erro de tipo invertido, também definível como ausência de tipo, ou situação de crime im possív e l — que representa, na verdade, erro sobre a natureza (e não sobre a identidade) do objeto (art. 17, CP).

4. Elementos subjetivos especiais

O dolo é o elemento subjetivo geral Aos fatos dolosos, o progra­ma psíquico que produz a ação típica, mas não é o único componente subjetivo dos crimes dolosos. O legislador penal contemporâneo inscreve, freqüentemente, na dimensão subjetiva dos crimes dolosos, determinadas características psíquicas complementares diferentes do

143 ROXIN, Strafrecht,, 1997, §12, n. 174, p. 448.144 ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, n. 181, p. 452; CIRINO DOS SANTOS, Teoria do

Crime, 1993, p. 25.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 8

dolo, sob a forma de intenções ou de tendênáas especiais, ou de atitudes pessoais necessárias para precisar a imagem do crime ou para qualificar ou privilegiar certas formas básicas de comportamentos criminosos.145 Assim, não há furto na subtração de coisa alheia móvel sem intenção de apropriação; não há crime sexual se a ação típica não aparece im­pregnada de libido, como tendência interna voluptuosa etc. Hoje, já não se discute a existência dessas características subjetivas especiais, mas apenas sua inserção sistemática: o debate atual é polarizado por autores que distribuem referidas características entre o tipo subjetivo e a culpabilidade, e autores que atribuem tais características exclusi­vamente ao tipo subjetivo.

JESCHECK/WEIGEND146 e ROXIN,147 por exemplo, repre­sentam a moderna corrente dogmática que insere no tipo subjetivo as características psíquicas relacionadas com o bem jurídico protegido, e na culpabilidade as características psíquicas relacionadas aos motivos, sentimentos e atitudes do autor, que qualificam o fato típico. Certas ati­tudes pessoais são ainda diferenciadas em autênticas (por exemplo, má-fé, motivo torpe etc.), que pertenceriam à culpabilidade, e não-autênticas (a crueldade, por exemplo), que pertenceriam ao tipo e à culpabilidade, simultaneamente: ao tipo, o sofrimento da vítima; à culpabilidade, o sentimento desumano do autor. A utilidade da atribuição ao tipo subjetivo e/ou à culpabilidade residiria na solução de problemas de participação: por exemplo, a intenção de apropriação, como característica psíquica especial do tipo subjetivo do furto, é atribuível ao partícipe; entretanto, a cobiça, como característica psíquica qualificadora do ho­

143 Nesse sentido, embora com diferenças, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch desStrafrechts, 1996, §30,1-III, p. 317-321; MAURACH/ZIPF, Strafrecht,, 1992, §22, ns. 51-6, p. 317-319; ROXIN, Strafrecht, 1997, §10, ns. 70-86, p. 257-260; WELZEL,Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 77-80. No Brasil, comparar ZAFFARONI/ PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, 266-268, p. 502-507.

146 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §30,1 3, p. 318.147 ROXIN, Strafrecht, 1997, §10, n. 71, p. 258.

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Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação

micídio (espécie de motivo torpe) integra a culpabilidade e, portanto, não é atribuível ao partícipe. Esse argumento não seria relevante no Direito Penal brasileiro, porque árcunstânáas ou condições de caráter pessoal (ou seja, características subjetivas) somente são atribuíveis ao partícipe se elementares do tipo (art. 30, CP).

WELZEL148 e MAURACH/ZIPF,149 entre outros, representam o segmento doutrinário que incorpora esses elementos psíquicos especiais ao tipo subjetivo, sob o argumento de que realizam funções de fundamentação ou de reforço do desvalor social do fato: as intenções e tendências especiais fundamentam o desvalor social do fato; os motivos e as atitudes do autor, como caracteres subjetivos qualificadores do dolo, reforçam o desvalor social do fato. Realmente, não parece con­veniente implantar características subjetivas relacionadas ao conteúdo ou à gravidade da lesão do bem jurídico — ou seja, ao desvalor social do fato — na culpabilidade, porque tais características devem, preci­samente, integrar o tipo de injusto para poderem constituir objeto do juízo de reprovação.

A identificação dos tipos penais portadores de características subjetivas especiais é tarefa de interpretação da parte especial do Código Penal, mas como a execução dessa tarefa deve seguir princípios fixados na parte geral, parece útil adotar um esquema originário de MEZGER,150 seguido por ROXIN151 e ampliado por JESCHECK/WEIGEND,152 que classifica os tipos penais com características subjetivas especiais em tipos penais de intenção, de tendência, de atitudes e de expressão.

Os tipos penais de intenção, também chamados crimes de tendência

148 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13, p. 77.149 MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, §22, n. 52, p. 318.150 MEZGER, Strafrecht, 1949, p. 172 s.151 ROXIN, Strafrecht, 1997, §10, ns. 83- 87, p. 263-264.152 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §30, II, p. 319-320.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 8

interna transcendente, se caracterizam por uma intenção que ultrapassa o tipo objetivo para se fixar em resultados que não precisam se rea­lizar concretamente, mas que devem existir no psiquismo do autor. Aqui, é necessário distinguir entre tipos de resultado cortado, em que o resultado pretendido não exige uma ação complementar do autor (a intenção de apropriação, no furto), e tipos i?nperfeitos de dois atos, em que o resultado pretendido exige uma ação complementar (a falsificação do documento e a circulação do documento falsificado no tráfego jurídico). A intenção, como característica psíquica especial do tipo, aparece, geralmente, nas conjunções subordinativas finais para, a fim de, com o fim de etc., indicativas de finalidades transcendentes do tipo, como ocorre com a maioria dos crimes patrimoniais.153

Os tipos penais de tendência se caracterizam por uma tendência afetiva do autor que impregna a ação típica: nos crimes sexuais, a tendência voluptuosa adere à ação típica, atribuindo o caráter sexual ao comportamento do autor, cuja ação aparece carregada de libido. A presença dessas características psíquicas especiais decide sobre a definição jurídica de ações objetivamente idênticas: agarrar com violência os seios de uma mulher no elevador pode constituir crime sexual (se com tendência lasciva), crime de injúria (se com intenção de ofender a honra) ou crime de lesões corporais (se ausente qualquer dessas características psíquicas).

Os tipos penais de atitudes se caracterizam pela existência de esta­dos anímicos que informam a dimensão subjetiva do tipo e intensificam ou agravam o conteúdo do injusto, mas não representam um desvalor social independente, como a crueldade, a má-fé, a traição etc.154

Os tipos penais de expressão se caracterizam pela existência de

153 CIRINO DOS SANTOS, Teoria do Crime, 1993, p. 29-30.154 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §30, II, n. 4, p. 320.

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Capítulo 8 O Tipo de Injusto Doloso de Ação

um processo intelectual interno do autor, como no falso testemunho: a ação incriminada não se funda na correção ou incorreção objetiva da informação, mas na desconformidade entre a informação e a convicção interna do autor.155

A descrição dos elementos subjetivos especiais, último capítulo da dimensão subjetiva do tipo, conclui o estudo do tipo dos crimes dolosos de ação, acontecimento humano real objeto das subseqüen­tes valoração de antijuridicidade e reprovação de culpabilidade, que completam o conceito jurídico de crime.

155 ROXIN, Strafrecht, 1997, §10, n. 86, p. 263-264.

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C apítu lo 9

O T ipo d e In ju st o I m p r u d e n t e *

I. Introdução

Os crimes cometidos por imprudência constituem, do ponto de vista da definição legal, exceções à regra da criminalidade dolosa, apa­recendo na lei penal como liipóteses acessórias de menor significação: se o homicídio é culposo (art. 121, §3°), se a lesão corporal é culposa (art. 129, §6°) etc. Contudo, do ponto de vista de sua freqüência real, crimes de homicídio e de lesão corporal imprudentes representam a maioria absoluta dos fatos puníveis1 e, do ponto de vista dos bens jurídicos lesionados, integram a criminalidade mais relevante, de modo que se pode dizer que a antiga exceção é, atualmente, a regra da criminalidade. De fato, as sociedades contemporâneas se caracterizam por intensa e generalizada produção de ações perigosas para a vida, .o corpo e a saúde do homem e para a integridade do meio ambiente (destruição do

* O substantivo culpa e o adjetivo culposo são inadequados por várias razões: primeiro, confundem culpa, modalidade subjetiva do tipo, com culpabilidade, elemento do conceito de crime, exigindo a distinção complementar de culpa em sentido estrito e culpa em sentido amplo, o que é anti-científico; segundo, induzem perplexidade no cidadão comum, para o qual crime culposo parece mais grave que crime doloso, ampli­ando a incompreensão de conceitos jurídicos; terceiro, o substantivo imprudência e o adjetivo imprudente exprimem a idéia de lesão do dever de cuidado ou do risco permitido com maior precisão do que os correspondentes culpa e culposo\ quarto, a dogmática alemã usa o termo Fahrlãssigkeit, que significa negligência ou imprudência, mas a natureza da maioria absoluta dos fatos lesivos do dever de cuidado ou do risco permitido, na circulação de veículos ou na indústria moderna, parece melhor definível como imprudência.

1 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 1, p. 919.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 9

solo, flora e fauna, e poluição do ar, rios e mares), com conseqüências catastróficas para o futuro da humanidade no planeta. A tecnologia moderna, especialmente na área do capital produtivo, em relação com os acidentes do trabalho, e a circulação de veículos automotores nas áreas urbanas e rurais, em relação com os acidentes de trânsito, são claros indicadores da extensão da violênáa imprudente que permeia as relações sociais.2 Por essa razão, a teoria dos crimes de imprudência se transformou, na bela comparação de SCHUNEMANN,3 de enteada em filha predileta do trabalho científico no Direito Penal.

A grande mudança na teoria da imprudência é representada pela deslocação de sua posição sistemática, de forma de culpabilidade segundo o modelo causai, para tipo de injusto conforme a concepção moderna de crime. Embora ENGISCH4 já tivesse observado que a inobservância do cuidado exigido, que define o conceito de imprudência, seria característica do tipo, o impulso decisivo da mudança viria do modelo finalista de fato punível, ao desenvolver a teoria do injusto pessoal e consolidar a tendência de situar o desvalor da ação, como dolo ou imprudência, no tipo de injusto.5

II. O tipo de injusto de imprudência

Os tipos de imprudência, devido à variabilidade das condições ou circunstâncias de sua realização, são tipos abertos que devem ser

2 Ver CIRINO DOS SANTOS, Teoria do crime, 1993, p. 35; também, Direito Venal, anova parte geral, 1985, p. 165; e ainda, A s origens dos delitos de imprudência, in Avista de Direito Penal, 23 (1977), p. 55-65.

3 SCHÜNEMANN, Modeme Tenden^en in der Dogmatik der Fahrlãssigkeits- und Gefàhr- dungsdelikte, JA 1975, p. 435 s.

4 ENGISCH, Untersuchungen über Vorsat^ und Fahrlãssigkeit im Strafrecht, 1930.5 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 4, p. 920-1; HAFT, Strafrecht, 1994, p. 162.

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Capítulo 9 O Tipo de Injusto Imprudente

preenchidos ou completados por uma valoração judicial e, por isso, não apresentam o mesmo rigor de definição legal dos dpos dolo­sos.6 Entretanto, como o tipo objedvo do injusto de imprudência é idêntico ao tipo objetivo do injusto doloso correspondente, e os cri­térios de definição da imprudência se enraízam em normas jurídicas, regras profissionais e dados da experiência, não parece haver lesão ao princípio constitucional da legalidade.7 Afinal, como observam JESCHECK/WEIGEND, o leigo é capaz de compreender melhor o comportamento imprudente do que alguns conceitos jurídicos como dolo eventual, legítima defesa etc.8

A definição de imprudência se fundamenta em critérios objetivos e pressupõe uma relação de correspondência com a capacidade indivi­dual do ser humano, em geral; entretanto, a capacidade individual do cidadão pode, concretamente, ser inferior (um motorista com visão fraca, por exemplo) ou superior (o motorista é um piloto de corridas) à medida pressuposta na definição. A variação da capacidade individual concreta em relação à medida abstrata de definição da imprudência está na origem da controvérsia sobre o momento sistemático de avaliação dessas diferenças pessoais: se as diferenças de capacidade individual devem ser consideradas somente na culpabilidade, segundo o critério da generalização, ou se devem ser consideradas já no tipo de injusto, conforme o critério da individualização.

O critério da generalização, também conhecido como critério

6 Nesse sentido, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §54,1 3, p.564; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 131; ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 87, p. 950. No Brasil, HEITOR COSTA JR., Teoria dos delitos culposos, 1988, p. 55; ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 271, p. 510-511; em posição diferente, TAVARES, Direito Penal da negligênàa, 1985, p.

i 131-133, afirma o caráter fechado do tipo de imprudência e admite sua inadequaçãoao princípio da legalidade.

7 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 87-88, p. 951; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuchdes Strafrechts, 1996, §54,1 3, p. 564.

8 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §54,1 3, p. 564; BOCKEL-MANN, Verkehrsrechtliche A.ufsàt^ und Vortrãge, 1967, p. 208 s.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 9

duplo, porque trabalha com uma combinação de tipo de imprudência e culpabilidade de imprudência, seguido por WELZEL, JESCHE­CK/WEIGEND, HAFT etc., generaliza a medida objetiva do tipo de injusto e, portanto, não considera no tipo de injusto diferenças de capacidade individual, deslocando para a culpabilidade a aprecia­ção dessas diferenças, avaliadas conforme inteligência, escolaridade, habilidades, experiência de vida e posição social do autor,9 com as seguintes conseqüências práticas: a) ao nível superior da capacidade individual (o autor é um piloto de rallj), exige menos de quem pode mais do que a medida geral do tipo (o acidente só poderia ser evitado por um piloto de rallj), porque não seria exigível de um o que não é exigível de outros; b) ao nível inferior da capacidade individual (o autor é um motorista de idade avançada ou visão fraca), exige mais de quem pode menos do que a medida geral do tipo (um motorista idoso ou com vista fraca não evitaria o acidente), porque capacidade de agir conforme ao direito é problema de culpabilidade.

O critério da individualização, representado por STRATÉNWER- TH e JAKOBS, entre outros, individualiza a medida objetiva do tipo de injusto e, portanto, considera no tipo de injusto as diferenças de capacidade individual (inteligência, escolaridade, habilidades etc.), com as seguintes conseqüências práticas: a) se a capacidade individual é superior à medida do tipo de injusto (o piloto de rallj), então exige mais de quem pode mais, aplicando pena em situações impuníveis pelo critério da generalização; b) se a capacidade individual é inferior à medida do tipo de injusto (o motorista de visão fraca), então exige menos de quem pode menos e, conseqüentemente, são impuníveis ações

9 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §18,1 , p. 131; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §54, I 2, p. 563; HAFT, Strafrecht, 1994, p. 160-161. No Brasil, ver HEITOR COSTA JR., Teoria dos delitos culposos, 1988, p. 58.

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Capítulo 9 O Tipo de Injusto Imprudente

puníveis pelo critério da generalização.10

Nessa controvérsia, a proposta alternadva de ROXIN11 com­bina o rigor dos critérios da generalização e da individualização, porque exige mais de quem pode mais e, também, de quem pode menos*, a) se a capacidade individual é inferior à exigência geral do tipo de injusto, prevalece a medida do tipo de injusto, segundo o critério da genera­lização, sob o argumento de que a incapacidade de agir diferente é um problema de culpabilidade; b) se a capacidade individual é superior à exigência geral do tipo de injusto, o autor deve empregar essa maior capacidade, segundo o princípio da individualização, sob o argumento de que outra interpretação significaria vitimização desnecessária de vidas humanas: um piloto de rally deve empregar suas habilidades especiais para evitar um atropelamento, o que seria impossível a um condutor comum; um cirurgião de competência reconhecida deve empregar sua capacidade especial para salvar uma vida, o que está além do poder de um cirurgião comum etc.

III. Critérios de definição da imprudência

A lei penal brasileira define o chamado crime culposo como resul­tado causado por imprudência, negligência ou imperícia (art. 18 II, CP) — na verdade, uma enumeração de hipóteses de comportamentos culposos herdada do modelo causai, em contradição com os fundamentos

10 JAKOBS, Strafrecht, 1993, 9/5, p. 318 s.; STRATENWERTH, Zur Individualisierung der Sorgfaltsmasstabes beimFahrlãssigkeitsdeãkte,]e.sch.eck.-VS>, 1985, p. 285. No Brasil, HEITOR COSTA JR., Teoria dos delitos culposos, 1988, p. 58-59, manifesta-se a favor do critério da individualização.

11 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 50-4, p. 937-939.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 9

metodológicos do modelo final, paradigma teórico da reforma da parte geral do Código Penal.12

Art. 18. Di^-se o crime:

II — culposoquando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligênáa ou imperíáa.

A literatura jurídico-penal contemporânea trabalha com dois critérios principais para definir imprudência: a) o critério fundado no conceito de dever de cuidado, próprio da posição dominante desde WELZEL13 até JESCHECK/WEIGEND,14 que define imprudên­cia como lesão do dever de cuidado objetivo exigido;15 b) o critério fundado no conceito de risco permitido, relacionado à teoria da elevação do risco desenvolvida por ROXIN,16 que define imprudência como lesão do risco permitido. As abordagens do fenômeno da imprudência promovidas por esses critérios são complementares e, por isso, a divergência é mais aparente do que real: o conceito de dever de cuidado define imprudência do ponto de vista do autor individual e indica a atitude exigida para situar a conduta nos limites do risco permitido; o conceito de risco permitido define imprudência do ponto de vista do ordenamento jurídico e indica os limites objetivos que condicionam o dever de cuidado do autor individual. Assim, pode-se dizer que o risco permitido, definido pelo ordenamento jurídico, constitui a moldura típica primária de adequação do dever de cuidado, de modo que a lesão do dever de cuidado sempre aparece sob a forma de criação ou de

12 CIRINO DOS SANTOS, Teoria do crime,, 1993, p. 36.13 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §18,1 1 b, p. 134 s.14 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §55,1, p. 577 s.15 Critério dominante no Brasil: HEITOR COSTA JR., Teoria dos delitos culposos, 1988,

p. 60-64; MESTIERI, Manual de Direito P enall, 1999, p. 189-190; TAVARES, Di­reito Penal da negligênáa, 1985, p. 138-144; ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 275-276, p. 514-517.

16 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 14, p. 924.

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Capítulo 9 O Tipo de Injusto Imprudente

realização de risco não permiddo. Como se vê, esses critérios não se excluem, mas se integram em uma unidade superior, e sua utilização combinada parece contribuir para melhor compreensão do conceito de imprudência.

Sob qualquer desses critérios, o tipo de injusto de imprudência é formado por dois elementos correlacionados: a) em primeiro lugar, a lesão do dever de cuidado objetivo, como criação de risco não permitido, que define o desvalor de ação; b) em segundo lugar, o resultado de lesão do bemjurídico, como produto da violação do dever de cuidado objetivo ou realização de risco não permitido, que define o desvalor de resultado.

1. Ação lesiva do dever de cuidado ou do risco per­mitido

O dever de cuidado é delimitado principalmente por normas ju­rídicas, que definem o risco permitido em ações perigosas para bens jurídicos na circulação de veículos, na indústria, no meio ambiente, no esporte etc. A atual legislação de trânsito brasileira (Lei 9.503/97) é a mais perfeita ilustração dessa tese: primeiro, institui o dever geral de atenção e cuidado na direção de veículo (art. 28); depois, delimita esse dever de cuidado pelas normas jurídicas que definem o risco permitido na circulação de veículos (arts. 29 a 67): a circulação pelo lado direito, as distâncias de segurança, a preferência dos veículos em rotatórias ou procedentes da direita, a prioridade, livre circulação, parada e estacionamento de veículos de bombeiros, polícia e ambulâncias, o procedimento nos deslocamentos laterais, retornos, conversões à esquerda e nos cruzamentos, os limites máximos de velocidade em vias urbanas e rurais, a ultrapassagem pela esquerda, as hipóteses de proibição de ultrapassagem e o comportamento do veículo ultrapas­

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Teoria do Tato Punível Capítulo 9

sado, os sinais de trânsito e a ordem de prioridade entre eles, o uso do cinto de segurança e o lugar das crianças nos veículos, as condições de circulação e de segurança dos veículos de duas rodas, o princípio de responsabilidade decrescente de segurança no trânsito, dos veículos maiores pelos menores, dos motorizados pelos não motorizados e de todos pelo pedestre. Em todas essas situações, a definição do risco permitido delimita, concretamente, o dever de cuidado exigido para rea­lizar a ação perigosa de dirigir veículo automotor em vias urbanas e rurais, explicando o atributo de objetivo contido no conceito de dever de cuidado objetivo.

A infringência de uma norma jurídica isolada constitui, em regra, criação de risco não permitido e, assim, caracteriza lesão do dever de cuidado, mas, excepcionalmente, pode ser insuficiente para indicar lesão do risco permitido ou do dever de cuidado — assim como a observação estrita da norma não garante conduta conforme ao cuidado objetivo, ou nos limites do risco permitido, se a observância concreta da regra eleva o perigo de um acidente, por exemplo.17 Por isso, a jurisprudência e a pesquisa científica desenvolveram alguns conceitos e diretrizes úteis para caracterizar a lesão do dever de cuidado ou — o que é a mesma coisa — a criação de risco não permitido, que definem o desvalor de ação nos crimes de imprudência, como o modelo de homem prudente, o princípio da confiança, certas correlações de risco/utilidade etc.

a) O modelo de homem prudente. O conceito de homem prudente, construído como modelo para determinar lesões do dever de cuidado ou do risco permitido,18 é um referencial valioso para definir a natureza de comportamentos humanos. Um homem prudente é capaz de reconhecer e avaliar situações de perigo para bens jurídicos protegidos, mediante

17 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 15-16, p. 924; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §55,1 3d, p. 582.

18 Ver BURGSTALLER, Das Fahrlãssigkeitsdelikt im Strafrecht, 1974.

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Capítulo 9 O Tipo de Injusto Imprudente

observação das condições de realização da ação e reflexão sobre os proces­sos subjacentes de criação e de realização do perigo: por exemplo, um motorista prudente pode prever a possibilidade de crianças, pedestres desatentos ou pessoas idosas ou deficientes ingressarem, inesperada­mente, na pista de rolamento das vias urbanas, e agir em conformidade com essa previsão. Esse modelo é construído perguntando-se como agiria, na situação concreta, um homem prudente pertencente ao círculo de relações do autor e dotado dos conhecimentos especiais deste (por exemplo, sobre os perigos de determinado cruzamento, ou sobre a presença de escolares na rua, em determinados locais e horários etc.): se a construída ação do modelo divergir da ação real, existe lesão do dever de cuidado ou do risco permitido.19 O problema principal resi­de na dificuldade de definir o modelo adequado, em geral influenciado pelas experiências e distorções subjetivas do intérprete e, assim, evitar exigências excessivas, porque ações socialmente perigosas são normais dentro de determinados limites e, portanto, lesões do dever de cuidado somente são admissíveis em hipóteses de excedência do risco permiti­do:20 se, em condições normais, o motorista urbano devesse considerar, sempre, a hipótese de pedestres invadirem a pista de rolamento, o tráfego urbano seria impossível.

b) O dever de informação sobre riscos e de abstenção de ações perigosas. A realização de ações perigosas, especialmente em certas áreas ou setores especializados das atividades humanas, impõe o de­ver de informação sobre riscos para bensjurídicos,21 com a omissão da ação perigosa em hipóteses de impossibilidade de informação, ou de

19 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §55,1 2b, p. 578; ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 32, p. 931. WELZEL, Das Deutsche Strafrechts, 1969, §18 ,1 la , p. 132. No Brasil, HEITOR COSTA JR., Teoria dos delitos culposos, 1'988, p. 60; TAVARES, Direito Penal da negligênáa, 2003, p. 275-276, rejeita o conceito de homem prudente e consáenáoso porque seria equivalente ao conceito de homo medius.

20 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §55,1 2b, p. 579.21 ENGISCH, Untersuchungen über Vorsat^ undFahrlassigkeit im Strafrecht, 1930, p. 306.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 9

informação indicadora de risco excessivo, ou de incapacidade pessoal de controle do risco por defeitos físicos, habilidade insuficiente, como dirigir veículo com defeito de visão, dificuldade de movimentos, experi­ência insuficiente, em estado de cansaço excessivo ou com informação deficiente sobre regras de circulação (especialmente no estrangeiro); realizar tratamento médico de doença grave sem adequada informação sobre processos de tratamento, desenvolvimento de medicamentos etc.; aplicar anestesia total, sem prévio exame, em paciente com indicações explícitas ou implícitas de problemas cardíacos — todas essas situações configuram lesões do dever de cuidado e, portanto, hipóteses de risco não permitido, subsumíveis na chamada “culpa de empreendimento” (Übernahmeverschulden), regida pelo seguinte princípio: quem não sabe, deve se informar; quem não pode, deve se omitir}1

c) O binômio rísco/utilidade na avaliação de ações perigosas.As sociedades contemporâneas não podem sobreviver sem a reali­zação permanente de ações normalmente perigosas, como o funcio­namento de máquinas pesadas na indústria, a utilização de meios de transporte rápidos, as pistas autorizadas de alta velocidade, o uso de medicamentos tóxicos na medicina, a difusão dos defensivos agrícolas, a crescente utilização da energia nuclear etc., cujo funcionamento, produção ou emprego deve observar o necessário cuidado, controle ou vigilância para excluir ou minimizar os perigos correlacionados.23 Contudo, algumas ações extremamente perigosas são autorizadas, ainda que fora dos limites normais do risco permitido, tendo em vista sua significação social, como a prioridade de trânsito e livre cir­culação de ambulâncias, veículos de bombeiros ou carros de polícia no tráfego urbano, por exemplo, cuja necessidade e utilidade social

22 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 343-346, p. 932; também, JESCHECK/WEI­GEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §55,1 3, p. 580. No Brasil, TAVARES, Direito Penal da negügênáa, 2003, p. 280-283.

23 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §55,1 3b, p. 580.

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I

Capítulo 9 O Tipo de Injusto Imprudente

são indiscutíveis.24 A permissibilidade de ações perigosas depende do significado da correlação risco!utilidade: se o risco tem utilidade social, então o maior risco pode ser permitido; se o risco tem utilidade me­ramente individual, então o menor risco é proibido. Nesse sentido, é interessante o critério que classifica as ações perigosas em ações de luxo ou supérfluas, cuja realização pode configurar risco não permitido, e ações socialmente úteis ou necessárias, normalmente abrangidas pelo risco permitido.25

d) O princípio da confiança. A área de influência do princípio da confiança na construção dogmática do conceito de imprudência varia conforme sua definição como simples regra costumeira comple­mentar, segundo JESCHECK/WEIGEND,26 ou como princípio de orientação capaz de indicar os limites do dever de cuidado ou do risco permitido no trânsito, no trabalho cooperado e, até mesmo, em relação a possíveis fatos dolosos de terceiros, conforme ROXIN.27 E genera­lizada a noção de que o princípio da confiança significa a expectativa, por quem se conduz nos limites do risco permitido, de comportamentos alheios adequados ao cuidado objetivo, exceto indicações concretas em contrário.28

Assim, veículos com preferência de passagem em cruzamentos ou de circulação em rótulas, por exemplo, podem confiar que outros

24 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 37, p. 933.25 BURGSTALLER, Das Fahrlãssigkeitsdelikt im Strafrecht, 1974, p. 58; também, SCHÜ-

NEMANN, Modeme Tenden^en in derDogmatik derFahrlãssigkeits- und Gefàhrdungsdelikte. JA 1975, p. 575 s.

26 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §55 ,1 3d, p. 581.27 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 21-30, p. 926-930. No Brasil, TAVARES, Direito

Penal da negligência, 2003, p. 294.28 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §55,1 3d, p. 581; também,

ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 21, p. 926. WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §18,1 la ,p . 132-134.No Brasil, TAVARES, Direito Penal da negligência, 1985,p. 148; HEITOR COSTA JR., Teoria dos delitos culposos, 1988, p. 61.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 9

condutores respeitarão a preferência, sob pena de in viabilização do trá­fego por subversão das regras que disciplinam a circulação de veículos. Admite-se ação em conformidade com o princípio da confiança mesmo na hipótese de pequenas lesões do risco permitido ou do dever de cuidado: se a preferência de passagem pertence ao motorista alcoolizado A e o condutor B desrespeita essa preferência determinando um acidente de trânsito, inevitável mesmo na hipótese de A não estar alcoolizado, a punição de A somente poderia se fundar no inadmissível versari in re illi- citaP Todavia, o princípio da confiança não pode prevalecer contra crianças, idosos ou doentes, contra adolescentes com comportamentos estranhos, contra pedestres evidentemente desorientados ou outras situações de injustificável expectativa de comportamentos adequados.30

Igualmente, o princípio da confiança exerce função relevante no tra­balho cooperado ou de equipe, com distribuição de tarefas integradas na realização de obra coletiva, como nas cirurgias médicas, por exemplo: os superiores são responsáveis pela escolha, direção e supervisão dos auxiliares, os auxiliares devem observar as instruções recebidas, cada especialista pode confiar no trabalho livre-de-falhas de outro especialista e, em qualquer caso, a correção de falhas alheias é sempre limitada pela necessidade de realização correta do próprio trabalho.31

Enfim, o princípio da confiança permite definir como adequadas ao dever de cuidado ou ao risco permitido ações que podem se relacionar com fatos dolosos de terceiros, comò a venda de armas de fogo, de be­bidas alcoólicas etc., porque a exigência de omitir ações hipoteticamente relacionadas a crimes futuros teria igual efeito inviabilizador da vida

29 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 24, p. 927-928.30 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 23, p. 927. No Brasil, TAVARES, Direito Penal da

negligênáa, 2003, p. 295.31 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §55, I 3de, p. 581-582;

também, ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 25, p. 928.

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Capítulo 9 O Tipo de Injusto Imprudente

social moderna que a renúncia à circulação de veículos, por exemplo.32 Exceções seriam as hipóteses de promoção de disposição reconhecível para fato doloso, mediante contribuições causais imprudentes, como entregar faca a partícipe de briga (com a qual comete homicídio); entregar veneno, em condições suspeitas, ao amante (que envenena a esposa); emprestar espingarda a amigo, cujas intenções agressivas são reconhecíveis pela observação atenta de certas indicações (que comete homicídio); retirar- se a mãe da casa, durante parto de filha solteira, sendo previsível infan- ticídio se a parturiente for deixada sozinha (que mata o próprio filho): em todas essas hipóteses, o conceito unitário de autor de fato imprudente determina a punição por homicídio imprudente (na última hipótese, cometido por omissão) — e não por participação imprudente em fato doloso33 —, porque a ação não é coberta pelo princípio da confiança.

2. Resultado de lesão do bem jurídico

O resultado nos crimes de imprudência consiste na lesão do bem jurídico protegido no tipo legal: a vida, a integridade ou a saúde corporal do homem, o meio ambiente etc.34 A maioria absoluta dos crimes de imprudência exige resultado de dano, como o homicídio ou a lesão corporal imprudentes (arts. 121, §3° e 129, §6°, do Có­digo Penal; arts. 302 e 303, do Código de Trânsito Brasileiro), ou o incêndio culposo em mata ou floresta (art. 41, parágrafo único, da

32 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 26, p. 928-929. No Brasil, TAVARES, Direito Penal da negligência, 2003, p. 299-300.

33 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 26-30, p. 928-930; JESCHECK/WEIGEND, luehrbuch des Strafrechts, 1996, §54, IV 2, p. 573.

34 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §55, I I 1, p. 582. No Brasil, TAVARES, Direito Penal da negligênàa, 2003, p. 301.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 9

Lei 9.605/98); mas é crescente a criminalização da imprudência com resultado de perigo, em que o tipo de injusto se exaure na ação lesiva do risco permitido ou do cuidado objetivo exigido, como, por exem­plo, o crime de substâncias tóxicas à saúde humana ou meio ambiente (art. 56, §3°, da Lei 9.605/98).

O resultado nos crimes de imprudência é, para a opinião domi­nante, elemento do tipo de injusto,35 mas um segmento minoritário o define como condição objetiva de punibilidade, fora do tipo de injusto, sob o argumento de que a norma implícita no tipo legal somente pode proibir ações, nunca resultados típicos.36 JESCHECK/WEIGEND, entre outros,37 rejeitam essa teoria, mostrando a ligação entre ação e resultado nos tipos de imprudência: o dever de cuidado é projetado para evitar determinados resultados típicos; o resultado deve ser o produto específico da lesão do dever de cuidado; o resultado deve ser previsível no momento da ação; finalmente, o resultado determina se, porque e como o autor deve ser punido.

3. Imputação do resultado ao autor

A atribuição do resultado ao autor depende da verificação dos seguintes pressupostos: primeiro, o resultado deve ser o efeito causai da

35 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §55, II 1, p. 582-583; ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 7, p. 921; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §18,12, p. 135.

35 ARMIN KAUFMANN, Das Fahrlàssige Delikt, ZfRv 1964, p. 41; do mesmo, Zum Stande der Lehre vom personalen Unrecht., FS fíir WelzeL, 1974, p. 393; ZIELINSKI, Handlungs- und Jürfolgsunwert im Unrechtsbegriff, 1973, p. 128 s. e 200 s.

37 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §55, II 1, p. 583; também, ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 7, p. 921. No Brasil, TAVARES, Direito Penal da negligênáa, 2003, p. 302-303; HEITOR COSTA JR , Teoria dos delitos culposos, 1988, p. 69-70.

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iCapítulo 9 O Tipo de Injusto Imprudente

ação do autor; segundo, o resultado deve ser o produto especifico da lesão f do cuidado objetivo exigido ou—o que é a mesma coisa, de outro ângulo

— a realização concreta de risco não permitido;38 terceiro (pelo menos para o setor dominante da teoria), o resultado deve ser previsível?9

v A relação de causalidade entre ação e resultado é regida pelateoria da equivalência das condições, válida para os crimes dolosos como para os crimes imprudentes. Entretanto, a imputação do resulta­do ao autor, como obra dele, exige mais do que a simples causalidade: o resultado deve ser o produto específico da lesão do cuidado objetivo exigido40 ou a realização concreta de risco não permitido.41 Assim, o simples desaparecimento do resultado pela exclusão hipotética da

5 ação é insuficiente para imputar o resultado ao autor: é necessárioque o resultado seja o produto específico da ação contrária ao dever de cuidado e, por isso, lesiva do risco permitido.

f A questão da imputação do resultado pode ser simplificada peloexame de situações que excluem a atribuição do resultado ao autor— indicadas por ROXIN como hipóteses de exclusão da imputação do tipo objetivo, em geral42 (com exceção dos danos resultantes de traumas

x sobre terceiros e das conseqüências danosasposteriores, modalidades de resul­tados fora do âmbito de proteção do tipo, exclusivos da imprudência) e referidas por JESCHECK/WEIGEND43 como situações negativas

■ da relação de antijuridicidade — o que mostra a extensão em que o tipode imprudência existe como tipo de injusto imprudente —, definidas

38 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 5, p. 920.39 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §55, II 3, p. 586-587;

WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §18, I 2, p. 136; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 667.

40 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §55, II 2, p. 583-584. No Brasil, TAVARES, Direito Venal da negligênáa, 2003, p. 308-310; HEITOR COSTA JR., Teoria dos delitos culposos, 1988, p. 65.

41 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 5, p. 921.42 ROXIN, Strafrecht, .1997, §11, n. 47s., p. 314 s.43 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §55, II, p. 582-586.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 9

nas seguintes categorias: a) ausência de lesão do risco permitido ou do dever de cuidado; b) resultados fora do âmbito de proteção do tipo; c) resultados igualmente produzidos por condutas alternativas conformes ao direito.

3.1. Ausência de lesão do risco permitido ou do dever de cuidado

A imputação do resultado depende, primeiro, de lesão do cuidado objetivo ou de ruptura do risco permitido — que cria perigo para o bem jurídico protegido — e, segundo, da definição do resultado como realização de ação contrária ao dever de cuidado ou lesiva do risco per­mitido. Assim, se o autor excede o limite de velocidade e, após retomar a velocidade permitida, atropela pedestre que pulou, repentinamente, na frente do veículo, com resultado inevitável de lesão corporal, o argumento de que o resultado não teria ocorrido sem o excesso de velocidade anterior não permite atribuir o resultado ao autor, porque limites de velocidade não são estabelecidos para determinar o espaço que, em certa unidade de tempo, veículos e pedestres devem ocupar na circulação urbana, ou para retardar o momento do encontro de ambos em determinado lugar:44 a fatalidade da lesão do bem jurídico não permite definir o resultado como lesão do dever de cuidado ob­jetivo ou realização de risco não permitido imputàvel ao autor.

Às vezes, a lesão do dever de cuidado ou a ruptura do risco permitido pode influir no resultado, mas a natureza incomum do acon­tecimento também não permite defini-lo como produto de lesão do dever de cuidado ou realização de risco não permitido. Exemplo: a vítima morre de colapso cardíaco por causa de leve acidente de trân­

44 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §55, II 2 bb, p. 586; RO- X3N, Strafrecht, 1997, §11, n. 69, p. 324.

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Capítulo 9 O Tipo de Injusto Imprudente

sito, ou porque seu veículo foi “fechado” por outro, em manobra de ultrapassagem irregular no trânsito. O perigo de colapso cardíaco pode aumentar por tensões inesperadas, ou por sustos resultantes de ações arriscadas de terceiros, mas a elevação desse risco não parece suficiente para fundamentar a atribuição do resultado ao autor, segundo WOL- TER e ROXIN,45 ou a forma concreta do resultado estaria fora de qualquer previsibilidade, como preferem JESCHECK/WEIGEND, WELZEL e WESSELS.46

3.2. Resultados fora do âmbito de proteção do tipo

Existem algumas hipóteses de resultados fora do âmbito de proteção do tipo legal, assim agrupadas: a) auto-exposição a perigo; b) exposição consentida a perigo criado por outrem; c) perigos situados em área de responsabilidade alheia; d) danos psíquico-emocionais sobre terceiros; e) outras conseqüências danosas posteriores.

1. O resultado de auto-exposição a perigo é atribuível à vítima e não ao colaborador da ação, se aquela conhece o risco existente na ação. Exemplos:47 a) os motoqueiros A e B decidem disputar corrida de motos numa rodovia deserta, na qual A morre em acidente causado por imperícia própria; b) o dependente de drogas A, apesar de conhe­cer o perigo da ação, morre após injetar em si mesmo heroína cedida por B; c) paciente morre após ingerir superdose de remédio de ação psicotrópica para emagrecimento, receitado por médico; d) B morre ao recusar, por motivos religiosos, transfusão de sangue necessária,

45 WOLTER, Objektiveundpersonale Zurechnungvon Verhalten, Gefabrund Verletyungin einem funktionalen Straftatssystem, 1981, p. 342; ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 71, p. 325.

46 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §55, II 3, p. 586-587; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §18, I 2, p. 136; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 667.

47 ROXIN, strafrecht, 1997, §11, ns. 91-104, p. 335-342.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 9

após acidente de trânsito causado por A. No caso dos motoqueiros, a tese de atribuição de resultados previsíveis e evitáveis, causados por lesão do dever de cuidado ou do risco permitido, parece não se aplicar a hipóteses de cooperação em ações intencionais autoperigosas de vítimas conhecedoras do risco porque o resultado estaria fora da área de proteção do tipo.48 No caso da injeção de heroína, o autor só responde pelo tipo correspondente da lei de drogas, porque a auto- exposição a perigo, sob responsabilidade exclusiva da vítima, impede a atribuição do resultado a terceiro; contudo, é preciso distinguir: o resultado não é atribuível se a vítima percebe o risco na mesma medida do colaborador, mas é atribuível se a vítima não percebe o significado de sua decisão — neste caso, o colaborador cria risco não coberto pela vontade daquela.49 No caso da superdose de psicotrópico, a atribui­ção do resultado ao médico, fundada no dever de garantia da vida do paciente, é excluída pelo argumento de que o dever de proteção se limita à doença do paciente, sem incluir incontroláveis autolesões intencionais com os meios de cura prescritos.50 No caso da recusa à transfusão de sangue, o autor responde somente por lesões corporais imprudentes, porque a vítima se expõe à morte certa ou provável por decisão consciente própria.51

2. A exposição consentida a perigo criado p or outrem pode produzir resultado fora da área de proteção do tipo se corresponder à auto-exposição a perigo, observado o seguinte: o dano deve ser conseqüência do risco consentido e a vítima deve ter a mesma compreensão do e responsa­bilidade pelo perigo que o autor.52 Exemplos: a) a vítima, esclarecida pelo barqueiro sobre os perigos do mar agitado, insiste no passeio

48 ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 92, p. 336.49 ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 94, p. 337 s.50 ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 95, p. 338.51 ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 102-103, p. 341-342.52 ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 105-8, p. 342-344.

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Capítulo 9 O Tipo de Injusto Imprudente

de barco e morre afogada porque o barco emborca sob a violência das ondas; b) o passageiro morre em acidente de trânsito, porque convence o motorista a dirigir em velocidade não-permitida, sob alegação de compromisso inadiável; c) apesar de enérgica recusa sob alegação da própria alcoolização, proprietário de veículo é conven­cido por companheiro de festa a dar-lhe “carona”, o qual morre em acidente de trânsito relacionado à embriaguez do motorista. Nesses casos, a atribuição do resultado é excluída porque a vítima conhece o risco a que se expõe; o resultado seria atribuível se produzido por fatores estranhos ao risco consentido, ou se (nos exemplos referidos) o autor convence a vítima a enfrentar o mar, minimiza os perigos da velocidade no trânsito, ou disfarça o estado de embriaguez, porque, então, a vítima não poderia conhecer o perigo a que iria se expor — e as hipóteses não mais eqüivaleriam à auto-exposição a perigo.53 Atualmente, a exposição consentida a perigo criado por outrem abrange, também, casos de relações sexuais com portadores de AIDS (equivalentes à auto-exposição a perigo), se ambos parceiros conhecem o risco de contaminação e são responsáveis pela ação comum; ao contrário, o resultado de infecção por HIV pode ser atribuído ao autor, se este nega a contaminação, se convence ou força a vítima à relação sexual etc.54

3. Os perigos situados em área de responsabilidade alheia têm por objeto, em geral, funcionários públicos (bombeiros, policiais etc.) ou profissionais (médicos, por exemplo), no âmbito de suas funções ou atividades e incidem sobre cursos causais preexistentes, podendo excluir a atri­buição do resultado ao autor da anterior lesão do risco permitido ou do cuidado objetivo. Exemplo: o bombeiro morre ao tentar extinguir incêndio provocado por imprudência do proprietário da residência.

53 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, §28, IV 4, p. 288; ROXIN, Stra­frecht, 1997, §11, n. 107, p. 343-344.

54 ROXIN, Strafrecht., 1997, §11, n. 108, p. 344-345; FRISCH, Die Fahrlassigkeitsdelikt und das Verhalten des Verlet^ten, 1973.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 9

Definir se o autor do incêndio responde por homicídio imprudente do bombeiro, ou se esse resultado se situa em área de responsabilida­de alheia, é uma questão espinhosa: para a opinião dominante trata-se de homicídio imprudente atribuível ao autor do incêndio, porque o resultado realiza perigo não permiddo, compreendido no âmbito de proteção do tipo;55 para outro setor da doutrina — cujo ponto de vista interessa aqui considerar —, o resultado se situa em área de responsabi­lidade alheia, fora do âmbito de proteção do tipo, como indicam alguns argumentos: a) o risco funcional é livremente assumido com a escolha da função e o funcionário é remunerado precisamente pelo risco que assume; b) a atribuição de resultados lesivos em ações de proteção e salvamento conflita com razões de política criminal, porque o risco de novas incriminações induziria autores imprudentes de incêndios ou de outros eventos lesivos a deixar de pedir a proteção de bombeiros ou de policiais, com conseqüências danosas certamente mais graves.56

4. Os danospsíquico-emoáonais sobre terceiros, como distúrbios físicos ou mentais determinados por sofrimento ou sentimento de infelicidade resultante de morte ou lesões corporais graves de pessoa afetivamente próxima, por lesão do dever de cuidado ou do risco permitido, não podem ser atribuídos ao autor: a proteção típica do homicídio ou das lesões corporais não inclui responsabilidades penais cumulativas por distúrbios físicos ou psíquicos relacionados a abalo emocional de terceiro, ressalvado possível ressarcimento civil.57

5. As outras conseqüências danosasposteriores podem ou não ser atribuídas ao autor, dependendo de sua natureza: a) danos posteriores relacionados causalmente à ação lesiva do dever de cuidado ou do risco permitido,

55 FRISCH, Tatbestandsmãssiges Verhalten undZurechnungdesFrfolgs, 1988, p. 472; também, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, §28, IV 4, p. 288; MAURACH/ GÕSSEL, Strafrecht, 1989, §43, n. 73.

56 ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, ns. 111-114, p. 347-348.57 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 43, p. 934.

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Capítulo 9 O Tipo de Injusto Imprudente

independente do tempo decorrido, são atribuíveis ao autor, presentes outros pressupostos: por exemplo, a morte da vítima de acidente de trânsito, depois de longo período de tratamento; b) danos posteriores relacionados à redução da resistência orgânica ou da capacidade física, determinadas por ação lesiva do dever de cuidado ou do risco permi­tido, não são abrangidos pela proteção do tipo e não são atribuíveis ao autor primitivo: novo acidente relacionado à redução de movimentos pela amputação da perna de vítima de acidente anterior não pode ser atribuído ao responsável pelo primeiro fato, independente de ser a vítima co-responsável ou não pelo fato posterior.58

3.3. Resultados iguais em condutas alternativas conformes ao direito

A hipótese de produção de resultado igual por conduta alterna­tiva conforme ao direito exclui a imputação, mas admite controvérsia, como mostra este exemplo: sem observar a distância necessária, mo­torista de caminhão ultrapassa ciclista embriagado que, numa reação de curto-circuito determinada pelo álcool, puxa o guidão da bicicleta para a esquerda, sendo esmagado pelo rodado traseiro dò caminhão— um resultado igualmente provável se o motorista tivesse observado a distância adequada. JESCHECK/WEIGEND59 admitem excluir a atribuição na hipótese de provável ou possível produção do resultado por conduta alternativa adequada. ROXIN,60 ao contrário, admite excluir a atribuição na hipótese de certa produção do resultado, mas atribui o resultado ao autor na hipótese de provável ou possível produção do resultado por conduta alternativa adequada: o resultado seria atribuível

58 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 44, p. 934-5.59 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §55, II 2, p. 584-585.60 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 11, n. 76-78, p. 327-328.

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ao autor porque a lesão do risco permitido eleva a possibilidade de sua produção e, no exemplo citado, a inobservância da distância correta reduziria a chance de preservação da vida do ciclista, configurando, assim, realização de risco não permitido; igualmente, rejeita excluir a atribuição com base no princípio in dubiopro reo, porque a incerteza da realização do risco no resultado seria inconsistente: se o autor trans­cende o risco permitido, eleva o perigo tolerável pelo ordenamento jurídico, criando risco proibido realizado no resultado concreto.61

Entretanto, a posição de ROXIN parece excessiva: primeiro, a certeza é incompatível com cursos causais hipotéticos, que somente admitem resultados prováveis; segundo, o princípio in dubio pro reo é a expressão processual do princípio constitucional da presunção de inocência, que exclui toda e qualquer forma de presunção de culpa, inerente em condenações duvidosas.

3.4. Previsibilidade e previsão do resultado

A teoria dominante considera a previsibilidade do resultado con­dição para sua atribuição ao autor,62 embora exista relativa imprecisão sobre o que é ou não previsível, como demonstram estes exemplos: o resultado é previsível se a vítima, levemente ferida em acidente de trânsito, morre de embolia por causa de tendência à trombose, ou morre de derrame cerebral por causa de excitação resultante de acidente de trânsito; o resultado não éprevisível se a vítima morre de colapso cardíaco por causa de “fechada” abrupta ou de leve acidente

61 ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 78, p. 328. No Brasil, TAVARES, Direito Penal da negligênáa, 2003, p. 332-333.

62 JESCHECK/WEIGEND, 'Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §55, II 3, p. 586-587; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969,12, p. 136; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, ns. 667 e 667 s.

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Capítulo 9 O Tipo de Injusto Imprudente

de trânsito.63 ROXIN substitui a previsibilidade pelos critérios de cria­ção e de realização do perigo: se alguém manda a namorada esperá-lo em determinado lugar, onde é atingida por um raio, a atribuição do resultado é excluída porque ninguém pode criar riscos que não controla— e não porque o resultado é imprevisível; se a vítima de acidente de trânsito morre em incêndio no hospital, a atribuição do resultado é excluída porque não constitui realização do perigo criado pelo autor — e não por causa da imprevisibilidade do incêndio.64

Contudo, fundamentar a atribuição do resultado na criação ou na realização de perigo criado pelo autor não afasta a categoria da previ­sibilidade: afinal, a criação ou a realização do perigo é atribuível porque o resultado é previsível e, por isso, controlável pelo autor. A previsibi­lidade do resultado parece ser o fundamento mínimo de atribuição da imprudência, que unifica suas modalidades inconsciente e consciente: na imprudência inconsciente o autor não prevê resultado previsível; na imprudência consciente o autor prevê resultado previsível’ que confia poder evitar.65

a) A imprudência inconsciente se define pela ausência de representação da lesão do dever de cuidado ou do risco permitido — o autor não repre­senta a possibilidade de realização do tipo — e constitui a modalidade menos grave de imprudência: a lesão do risco permitido ou do dever de cuidado é objetivamente idêntica, mas a representação da possível lesão do risco permitido ou do dever de cuidado na imprudência cons­ciente, pode determinar outra atitude do autor, o que não ocorre na imprudência inconsáente; excepcionalmente, a imprudência inconsciente pode ser mais grave, no caso de grosseira desatenção do autor, enquanto a imprudência consciente pode revelar extremo cuidado para evitar lesão

63 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §55, II, p. 586-587.64 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 13, p. 923-924.65 Ver MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 191.

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de bem jurídico representada como possível.66 Alguns autores, como BOCKELMANN,67 por exemplo, propõem retirar o caráter culpável da imprudência inconsciente, porque a ausência de representação do autor exclui a possibilidade de agir diferente e, assim, impediria atribuir responsabilidades jurídicas por ações erradas. Contra a proposta ar­gumenta-se que a culpabilidade não se baseia somente no conhecimento da lesão do bem jurídico, mas, também, na possibilidade desse conheci­mento, resultante da consciência das circunstâncias fundamentadoras do perigo: soltar cachorro agressivo que fere criança constitui ação imprudente independente do autor pensar ou não no resultado lesivo; além disso, a vida social contemporânea exige cidadãos capazes de reconhecer e de controlar os perigos que criam.68

b) A imprudência consciente se configura pela representação da possibilidade de lesão do risco permitido ou do dever de cuidado e pela confiança na evitação do resultado: o autor representa a possibilidade de realização do tipo, mas confia na ausência do resultado lesivo, ou porque subestima o perigo, ou porque superestima a capacidade pessoal, ou porque acredita na sorte. Não há consenso sobre o nível de intensidade da representação da possível realização do resultado típico: representa­ção mínima, para a opinião dominante; representação de perigo concreto, para JESCHECK/WEIGEND;69 representação de perigojuridica?nente relevante (superior ao risco permitido), para ROXIN: representação mínima seria insuficiente, mas representação de perigo concreto, como probabilidade de dano, seria desnecessária.70

A definição do conceito de imprudência consciente é relevante, entre

66 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, ns. 59-61, p. 940-941.67 BOCKELMANN, Verkehrsstrafrechtliche A.ufsãt%e und Vortràge, 1967, p. 213.68 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 62, p. 942.69 JESCHECK/WEIGEND, "Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §54, II, p. 568-569.70 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 63, p. 942.

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Capítulo 9 0 Tipo de Injusto Imprudente

outras razões, para fixar a linha diferenciadora do dolo eventual: impru- dência consciente e dolo eventual são conceitos simultaneamente excluden- tes e complementares e sua distinção constitui uma das mais difíceis questões do Direito Penal,71 porque se fundamenta na identificação de atitudes diferenciáveis, em última instância, pela afetividade do autor. De modo geral, o dolo constitui decisão contra o bem jurídico protegido no tipo, e a imprudência consciente representa leviana confiança na exclusão do resultado de lesão,72 mas a determinação das identidades e das diferenças entre dolo eventuale imprudência consciente exige critérios mais precisos, como demonstrado no estudo do dolo eventual (ver O tipo dos crimes dolosos de ação, acima).

A área dos efeitos secundários representados como possíveis pelo autor parece constituir a base comum das teorias sobre imprudência cons­ciente e dolo eventual., separáveis por detalhes nas dimensões intelectual e emocional desses conceitos. A literatura contemporânea trabalha, na área dos efeitos secundários típicos representados como possíveis, com os seguintes conceitos para definir imprudência consciente e dolo eventual:13 a imprudência consciente se caracteriza, no nível intelectual, pela representação da possível produção do resultado típico e, no nível da atitude emocional, pela leviana confiança na ausência ou exclusão desse resultado, por habilidade, atenção, cuidado etc. na realização concreta da ação; o dolo eventual se caracteriza, no nível intelectual, por levar a sério a possível produção do resultado típico e, no nível da atitude emocional, por conformar-se com a eventual produção desse resultado— podendo variar para as situações respectivas de contar com o resultado típico possível,\ cuja eventual produção o autor aceita.

71 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13,1 2, p. 69.72 ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, ns. 25-27, p. 374-375.73 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §11, n. 29, p. 376; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch

des Strafrechts, 1996, §29, III 3, p. 299-230.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 9

O caráter complementar-excludente desses conceitos consiste no seguinte: quem confia na exclusão ou ausência do resultado típico possível não pode, simultaneamente, conformar-se com (ou aceitar) sua produção (imprudência consciente); quem se conforma com (ou aceita)o resultado típico possível não pode, simultaneamente, confiar em sua exclusão ou ausência (dolo eventual).74

É possível identificar, em escala gradativa de intensidade dos elementos intelectual e emocional do tipo subjetivo, todas as modali­dades subjetivas de realização de ações típicas, desde o nível de maior intensidade psíquica do dolo direto de Io grau, até o nível de menor intensidade psíquica da imprudência inconsciente, em um só e mesmo tipo objetivo: se A fere B ao responder cumprimento segurando um canivete na mão, é admissível todo o leque de atitudes subjetivas do dolo direto, dolo eventual, imprudência consciente e imprudência inconsciente, conforme exista intenção de ferir, ou conformação com a produção do resultado típico representado como possível, ou confiança na ausência do resultado típico representado como possível pelo cuidado na ação de cumprimentar, ou, simplesmente, ausência de representação desses efeitos colaterais possíveis.75 Na hipótese de dúvida sobre o tipo subjetivo respectivo, a solução é sempre indicada pelo princípio in dubio pro reo, aplicável irrestritamente.

A intensidade da lesão do risco permitido ou do dever de cuidado também pode determinar variações de gravidade da imprudência cons­ciente ou inconsciente, que oscila da leviandade, como o nível mais intenso, até a pequena imprudência, como o nível mais leve de imprudência. A

74 Representativos da opinião dominante, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §29, III 3c, p. 301; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §13,1 2, p. 68.

75 ROXIN, Strafrecht,, 1997, §24, n. 70, p. 944-945.

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Capítulo 9 O Tipo de Injusto Imprudente

leviandade é constituída pela imprudência grosseira das situações de leviana desatenção na realização de ações socialmente perigosas, ou de frívola desconsideração por bens jurídicos protegidos, ou, ainda, de lesões especialmente sérias do risco permitido ou do dever de cuidado obje­tivo.76 Por isso, a leviandade pode justificar maior rigor repressivo, mas sempre nos limites da imprudência, que não deve jamais ser confundida com nem tratada como dolo eventual — sob pena de se abolir a diferença entre dolo eventual e culpa consciente —, conforme alguns equivocados e deprimentes julgados da jurisprudência brasileira (referidos como modelos, sem qualquer ressalva, por um setor da literatura penal),77 em casos de resultados imprudentes produzidos por grave lesão do risco permitido ou do cuidado objetivo exigido.

Ao contrário, a pequena imprudência é constituída por leves descuidos presentes na vida dos cidadãos mais prudentes e, por isso, inelimináveis da experiência cotidiana, cuja descriminalização constitui exigência de política criminal antiga, sob o fundamento da inutilidade da repressão de falhas individuais relacionadas à natureza dos processos psíquicos e, portanto, ligadas à própria contingência humana, sendo suficiente a existência de mecanismos civis compensatórios.78 Propostas me­nos radicais de política criminal para a pequena imprudência sugerem despenalização em relação às atividades socialmente reconhecidas, e punição em relação às ações socialmente desaprovadas, ou nos crimes qualificados pelo resultado.79

76 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 75-76, p. 946.77 Ver, por exemplo, MIRABETE, Manual de Direito Penal, 2000, p. 141.78 Nesse senddo, ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 85, p. 950.79 Ver, por exemplo, ARZT, Teicbtfertigkeit und recklessness, Schrõder-GS, 1978, p.

119; BURGSTALLER, Das Fahrlàssigkeitsdelikt im Strafrecht, 1974, p. 201; STRA- TENWERTH, Strafrecht, 1981, n. 1.137.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 9

IV. Tipo objetivo e tipo subjetivo

Uma estrutura de ripo objedvo e tipo subjetivo nos crimes de imprudência, homogênea à estrutura dos crimes dolosos, é admissível na imprudência consciente, mas é objeto de controvérsia na imprudência inconsciente.

A imprudência consciente possui um tipo objetivo constituído pela causação e pela imputação do resultado, e um tipo subjetivo integrado pela representação das circunstâncias de fato e pela previsão do resultado, no nível intelectual, e pela confiança na ausência do resultado, no nível emocional — a contrapartida típica em relação ao dolo eventual.80 A imprudência inconsciente possui idêntico tipo objetivo, mas a questão do tipo subjetivo é controvertida: a opinião majoritária nega a existência de tipo subjetivo, pela ausência de representação do tipo objetivo; um segmento minoritário afirma a existência de tipo subjetivo, consistente na previsibilidade de realização do tipo objetivo,81 ou no conhecimento dos fatores formadores do risco82 — nunca das circunstâncias de fato do tipo objetivo. A crítica argumenta que o conhecimento dos fatores fundamentadores do risco pode ser freqüente, mas não é necessário, como nos casos comuns de inconsciência do excesso de velocidade ou da invasão de sinal vermelho, além das hipóteses de simples es­quecimento.83 Contudo, a inconsciência ou o esquecimento de ações

80 Assim, HAFT, Strafrecht, 1994, p. 155, n. 4; ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 66, p. 943. No Brasil, MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 191-192; também, ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 277, p. 517. Contra a distinção entre tipo subjetivo e tipo objetivo, TAVARES, Direito Penal da negligência, 2003, p. 278; FRAGOSO, Uções de Direito Penal, 1985, p. 231, n. 210; HEITOR COSTA JR., Teoria dos delitos culposos, 1988, p. 69-72.

81 HAFT, Strafrecht, 1994, p. 155, n. 4.82 STRUENSEE, “Objektives” Risiko und subjektiver Tatbestand, JZ 1987, p. 53 s.83 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 68, p. 944.

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Capítulo 9 0 Tipo de Injusto Imprudente

socialmente perigosas são atos psíquicos que configuram uma adtude subjetiva em face da possibilidade representável — mas não represen­tada — de lesão de bens jurídicos: essa atitude subjetiva constitui um estado psíquico necessariamente diferente da disposição psicológica e emocional do dolo e da imprudência consciente, mas suscetível de ser definido como tipo subjetivo da imprudência inconsciente.

V. Crimes qualificados pelo resultado: combinações dolo /

1. Nos crimes qualificados pelo resultado, a relação entre ação e resultado também se desdobra em causação do resultado e im­putação do resultado, como em qualquer crime de resultado: o resultado deve ser o efeito causai e o produto do risco criado pela ação dolosa do autor (ROXIN) — ou a conseqüência previsível da ação do

Entretanto, os crimes qualificados pelo resultado — cujo tipo mais caraterístico é a lesão corporal com resultado de morte (art. 129, §3° CP) — constituem resquício medieval do versari in re illicita do Direito Canônico, como responsabilidade penal sem culpa por conseqüências resultantes da realização de uma ação proibida, como

autor (JESCHECK/WEIGEND).

informa ROXIN:84

‘lAistoricamente, os delitos qualificadospelo resultado provêm da teoria da assim chamada versari in re illicita (equiva­lente a permanecer em coisa proibidaj desenvolvida no Direito Canônico, p or força da qual cada um responde,

84 ROXIN, Strafrecht, 1997, p. 281, n. 121.

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'Teoria do Tato Punível Capítulo 9

ainda que sem culpa, p or todas as conseqüêndas que se ori­ginam de sua ação proibida. ”

2. A crítica propõe a abolição pura e simples dos crimes qualificados pelo resultado, por causa de sua moldura penal excessiva, lesiva dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da culpabilidade.85 Enquanto isso, a literatura sugere limitações profundas na imputação do resultado mais grave, somente admissíveis em ações levianas altamen­te perigosas para a vida, definidas como intermediárias entre a simples imprudência e o dolo de homicídio — como indica ROXIN:86

i(Desta forma, apenas ações altamente perigosas contra a vida seriam compreendidas como tipo fundamental doloso antecedente dos delitos qualificadospelo resultado, que representam um nível intermediário entre o simples homiddio imprudente e o homiddio doloso e, assim, justificam uma moldura penal espedal. ”

Igualmente JESCHECK/WEIGEND definem os crimes qualificados pelo resultado como resíduo do v e r s a r i in r e i l l i c i ta ,, afirmando sua compatibilidade duvidosa com o princípio da cul­pabilidade, cuja pena ultrapassa os limites da culpabilidade por imprudência.87

3. Assim, se a realização da ação típica dolosa antecedente contém implícita lesão do dever de cuidado ou do risco permitido, a imprudência contida na ação típica dolosa antecedente não é suficiente para impu­tação do resultado mais grave ao autor — é necessário, ainda, a definição do resultado comoproduto do risco criado pelo autor, ou a previsibilidade

85 ROXIN, Strafrecht, 1997, p. 276, n. 110: "Os críticos, que advogam por sua abolição, censuram sobretudo a moldura penal excessivamente uelevada”, que os mostra, de certo modo, como contrários ao princípio da culpabilidade ou ao principio da igualdade e, assim, como inconstitucionais; eles consideram que o conteúdo de desvalor de tais delitos pode ser plenamente preenchido com as regras da concorrência. Esta crítica é, em parte, justificada. ”

86 ROXIN, Strafrecht, 1977, p. 277, n. 111.87 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1966, p. 571, III.

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Capítulo 9 O Tipo de Injusto Imprudente

do resultado como conseqüência provável da ação.

A literatura contemporânea sobre os crimes qualificados pelo re­sultado pode ser assim resumida: ROXIN condiciona a imputação do resultado à sua definição comoproduto específico do risco criado pela ação dolosa fundamental.88 OTTO indica o perigo específico do tipo-base como critério limitador, que permite definir o resultado como realização do perigo específico da ação dolosa precedente.89 JESCHECK/WEIGEND exigem previsibilidade do resultado mais grave, além da lesão do cuidado da ação dolosa.90 TRÒNDLE/FISCHER afirmam ser necessária a previsibilidade do resultado e, portanto, a insuficiência da mera relação de causalidade entre ação e resultado.91 Na literatura brasileira, HUN­GRIA/FRAGOSO se referem de modo semelhante sobre o art. 129, §3°, CP, afirmando a impossibilidade de atribuição de resultados

88 ROXIN, Strafrecht, 1997, § 10, n. 114, p. 278: “...porque t o d o delito (até mesmo um furto) pode conduzira conseqüências graves atípicas (por exemplo, queda mortal na perseguição), o legislador dispôs um resultado qualificador apenas em determinados delitos, p o r causa de sua tendência gera l à produção de conseqüências mais graves, correspondendo à finalidade da lei aplicar o tipo legal apenas em resultados que provêm do perigo específico do delito fundamental. Apenas tais resultados são compreendidos pela finalidade de proteção dos delitos qualificados pelo resultado. ”

89 OTTO, Grundkurs strafrecht. De Gruyter, 2000, § 11, n. 9, p. 195: “A nova ju ris­prudência desprendeu-se da exigência de “imediação ” e, agora, exige que se tenha realizado no resultado especialprecisamente um talperigo, que marca de modo específico a ação fática do tipo

fundamental ”90 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §54, III, n. 2, p. 571: “A

imprudênáa indica a especificidade, nas combinações próprias de dolo/imprudência, de que a lesão do cuidado em relação ao resultado consiste j á na ação dolosa, de modo que, em regra, deve-se apenas perguntar se o resultado de perigo era também previsível. Se, contudo, a produção do resultado permanecefora de qualquer probabilidade, pode fa ltar no caso concreto a relação de imputação entre lesão do cuidado e produção do resultado. ”

91 TRÕNDLE/FISCHER, Strafgeset^buch und Nebengeset^e, 2001, § 227, ns. 2 e 3: “2) O resultado de morte precisa ter sido causado p o r lesão corporal..., que também pode consistirem uma omissão de ação. Mas, segundo a opinião dominante, não é suficiente que exista uma relação de causalidade para o §227, ao contrário, épressuposta uma estrmta relação entre fa to e resultado mais grave. (...) 3) O resultado de morte precisa ser causado pelo menos p o r imprudênáa (§18). E porque, j á na comissão do deüto fundamental existe uma lesão do cuidado, aqui o c r i t é r io d a im p r u d ê n c ia (...) é somente a p r e v i s ib i l id a d e do resultado. ”

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Teoria do Fato Punível Capítulo 9

• ' • <5 ?imprevisíveis.

Conclusão: nos crimes qualificados pelo resultado, a imputação do resultado mais grave pressupõe — além da imprudência implícita na ação dolosa antecedente — a definição do resultado mais grave como produto específico do risco criado pela ação dolosa do autor, ou a previsibilidade do resultado mais grave como conseqüênciaprovável da ação, sob pena de absoluta inconstitucionalidade.

92 HUNGRIA/FRAGOSO, Comentários ao Código Penal, 1979, v. 5, p. 359, são enfáti­cos: se "... o resultado não fo i previsto, nem podia ter sido previsto pelo agente, constituindo, em relação a este, um mero caso fortuito, (...) o agente só responderá p o r lesão corporal si?nples ou p or outro modo qualificada. (...) Assim, via de regra, o.soco, o pontapé, a mordedura, a cabeçada, a bengalada, etc. ”

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C apítu lo 1 0

O T ipo de In ju sto d e O m issão d e A ção

Existem duas questões fundamentais nos tipos de omissão de ação: primeiro, distinguir ação e omissão de ação, conceitos aparente­mente irredutíveis a um denominador comum; segundo, no âmbito do conceito de omissão de ação, distinguir omissão de ação própria, fundada no dever jurídico geral de agir, atribuível a todas as pessoas, e omissão de ação imprópria, fundada no dever jurídico especial de agir, atribuível exclusivamente a pessoas definíveis como garantidores de determinados bens jurídicos em situação de perigo.

II. Ação e omissão de ação

Ação e omissão de ação são conceitos contraditórios que, segundo repetida lição de RAJDBRUCH, relacionam-se como A e não-A:1 se A significa realizar uma ação proibida, não-A significa omitir a realiza­ção de uma ação mandada. A contradição entre ação e omissão de ação assume forma plástica em ENGISCH,2 que define ação como emprego de energia em determinada direção, e omissão de ação como não emprego de

1 Ver HAFT, Strafrecht, 1994, p. 167; também, WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969,§26,1, p. 200.

2 ENGISCH, Tun und Unterlassen, Festschrift für Gallas, 1973, p. 170; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §58, II 1, p. 601.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 10

energia em determinada direção. Desse modo, a ação seria uma realidade empírica conhecível pelos sentidos; a omissão de ação não seria uma realidade empírica, mas uma expectativafrustrada de ação, somente co­nhecível por um juízo de valor.3 Nesse sentido, omitir uma ação não significa, simplesmente, não fazer nada, mas não fazer algo determinado pelo direito.4

Em geral, parece não haver dificuldade para diferenciar ação e omissão de ação, mas em hipóteses de simultaneidade ou de su- cessividade entre ação e omissão de ação, essa diferenciação pode ser problemática. Por isso, a teoria construiu alguns critérios para facilitar a distinção: a) o critério da causalidade, pelo qual existe ação se há determinação causai do resultado; existe omissão de ação se um juízo de valor indica que alguém deveria ter agido,5 b) o critério do risco, pelo qual existe ação se há criação ou elevação de risco para o bem jurídico; existe omissão de ação se não há criação ou elevação de risco para o bem jurídico.6

Por exemplo, nos crimes de imprudência existe simultaneidade entre ação e omissão de ação: a ação lesiva do risco permitido ou do dever de cuidado corresponde à omissão de ação adequada ao dever de cuidado ou ao risco permitido — mas a existência de determinação causai do resultado, ou de criação/ elevação de risco do resultado atribuível

3 HAFT, Strafrecht, 1994, p. 167; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, Cap. 2, p. 598.

4 WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 708, p. 225, falam em “não realizar determinadaatividade juridicamente ex i g id a No Brasil, a excelente monografia de TAVARES, As controvérsias em tomo dos crimes òmissivos, 1996, n. 19, p. 60, fundamenta a omissão de ação no critério axiológico do “dever de agir1" geral ou especial.

5 HAFT, Strafrecht, 1994, p. 167-169; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts,1996, §58, II 2, p. 603. No Brasil, ver TAVARES, As controvérsias em tomo dos crimes omissivos, 1996, n. 14, p. 44-46.

6 Ver OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §9,1 2, n. 2, p. 144-145. No Brasil, compararTAVARES, As controvérsias em tomo dos crimes omissivos, 1996, n. 18, p. 57-59.

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Capítulo 10 O Tipo de Injusto de Omissão de Ação

ao autor, indica, normalmente, uma ação imprudente. Ao contrário, existe omissão de ação nos seguintes exemplos: a) a mulher busca o marido bêbado no bar, mas por causa de uma discussão abandona o marido no meio do caminho e este morre afogado no córrego ao tentar seguir sozinho para casa; b) após servir grande quanddade de bebida alcoólica a motorista de caminhão, o proprietário do bar não impede o prosseguimento da viagem daquele, que morre em acidente ao reentrar na rodovia; c) proprietário entrega veículo a amigo bêba­do, que morre em acidente porque aquele não impediu o amigo de dirigir embriagado.7

Entretanto, hipóteses de intervenção em processos causais pre­existentes podem ser muito controvertidas: a) aparelho de respiração de paciente em estado de coma irreversível é desligado (1) pelo médico que o ligou, ou (2) por terceiro: se pelo médico, existe omissão de ação, porque a relevância não residiria na ação de desligar o aparelho, mas na omissão da ação de continuar o tratamento-, se por terceiro (por exemplo, a mulher do paciente, a pedido deste), existe ação; b) B lança corda para salvar C da areia movediça, mas solta a corda (1) antes de C agarrá-la, ou (2) depois de C agarrá-la: se antes de C agarrá-la, a ausência de criação/elevação de risco do resultado, ou a conclusão de que B deveria ter agido, caracteriza omissão de ação; se depois de C agarrá-la, a determinação causai do resultado, ou a criação/elevação de risco do resultado, caracteriza ação.8

7 Maiores detalhes, HAFT, Strafrecht, 1994, p. 168-169; JESCHECK/WEIGEND, Ijehrbuch des Strafrechts, 1996, §58, II 2, p. 603.

8 HAFT, Strafrecht,, 1994, p. 169; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §58, II 2, p. 603; OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996 §9 ,1 2, n. 6-10, p. 146.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 10

III. Omissão de ação própria e imprópria

O Direito Penal utiliza duas técnicas diferentes para proteção de bens jurídicos: em regra, a norma penal proíbe a realização de ações lesivas de bens jurídicos; por exceção, a norma penal ordena a realização de ações protetoras de bens jurídicos. A ordem de realizar ações protetoras de bens jurídicos pode aparecer explícita em tipos legais, cuja descrição negativa indica os tipos de omissão de ação própria (por exemplo, dei­xar de prestar assistência (...) à criança abandonada ou extraviada, ou àpessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo etc.), ou pode existir implícita nos tipos legais de resultado, cuja descrição positiva indica, simultaneamente, a regra da ação e a exceção da omissão de ação imprópria (por exemplo, matar alguém, ofender a integridade ou a saúde corporal de outrem etc.).9

1. A omissão de ação própria corresponde, inversamente, aos tipos de simples atividade e tem por fundamento a solidariedade humana entre os membros da comunidade social, que engendra o dever jurídico geral de agir, cuja lesão implica responsabilidade penal dolosa pela omissão da ação mandada: o dever de agir é definido no tipo legal respectivo, como a omissão de socorro (art. 135, CP), o abandono de incapa (art. 133, CP) etc.10

2. A omissão de ação imprópria corresponde, inversamente, aos tipos de resultado e tem por fundamento a posição de garantidor do bem jurídico atribuída a determinados indivíduos, que engendra o dever jurídico

9 Nesse sentido, TAVARES, As controvérsias em tomo dos crimes omissivos, 1996, n. 12, p. 36.10 Assim, por exemplo, JESCHECK/WEIGEND, lehrbuch des Strafrechts, 1996, §58,

II I1-2, p. 605-606; HAFT, Strafrecht, 1994, p. 167. No Brasil, comparar TAVARES, A s controvérsias em tomo dos crimes omissivos, 1996, n. 20, p. 63-64.

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Capítulo 10 O Tipo de Injusto de Omissão de Ação

especial de agir, cuja lesão implica responsabilidade penal pelo resul­tado (doloso ou imprudente), como se fosse comeddo por ação: se o pai não impede, mas pode impedir o afogamento do filho menor na piscina doméstica, responde pelo resultado de morte por dolo ou imprudência11 — e não por simples omissão de socorro.

IV. A omissão de ação imprópria e o princípio da legalidade

A omissão de ação imprópria parece em conflito com o princípio da legalidade, nas suas dimensões de proibição de analogia e de proibição de indeterminação penal, como indica a dogmática contemporânea.12 Um setor importante da literatura afirma a inconstitucionalidade dos crimes de omissão de ação imprópria, porque constituiriam analogia proibida pelo princípio da legalidade e, ainda mais relevante, porque violariam a proibição de indeterminação dos tipos legais que admitem comissão por omissão.13

11 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §58, III 2, p. 605-606. No Brasil, TAVARES, A s controvérsias em tomo dos crimes omissivos, 1996, n. 22, p. 66-70, corretamente, considera insuficiente a fundamentação legal “do dever de impedir o resultado” em face do princípio da legalidade.

12 Ver, por exemplo, ROXIN, Strafrecht II. Beck, 2003, p. 637-638.13 Assim, KÕHLER, Strafrecht. Springer, 1997, p. 213-214: “No Direito Venal alemão,

o delito de omissão do garantidor, após o reconhecimento de seus fundamentos na Doutrina e na Jurisprudência, f o i disciplinado de modo gera l através da 2a Lei de Reforma do Direito Venal, no §13 do Código Venal. Mas esta norma é, em sua circularidade, insuficiente­mente determinada, daí ser incompatível com o princípio da determinação constitucional (art. 103 II da Constituição) ;” (grifamos)

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Teoria do Fato Punível Capítulo 10

1. A proibição de analogia penal

Com a introdução legal do critério formal de definição da posição degarantidor (art. 13, §2°, CP), uma opção de leitura dos tipos de resultado (por exemplo, homicídio e lesão corporal) pode esclarecer a questão da constitucionalidade da omissão de ação imprópria, conforme as seguintes alternativas:

a) se os tipos de resultado são lidos como descrição de ações produtoras do resultado, então a omissão de ação imprópria configura, necessa­riamente, analogia proibida pelo princípio da legalidade, porque a lei penal não define a omissão de ação imprópria, cuja existência seria ilegalmente deduzida dos tipos legais;14

b) se os tipos de resultado são lidos como descrição simultânea de ações e de omissões de ação produtoras do resultado (por exemplo, matar alguém por ação proibida ou por omissão de ação mandada, na posição de garantidor do bem jurídico), então a produção do resultado por ação e a não evitação do resultado por omissão de ação constituiriam equivalentes lesões de bens jurídicos,15 igualmente compatíveis com o princípio da legalidade: a posição degarantidor seria característica típica geral de autoria dos tipos de resultado (art. 13, §2°, CP), que independe de repetição nas definições legais respectivas.16

14 Ver H. MAYER, Strafrecht, 1953, p. 199.15 Ver OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §9 ,1 4, n. 19-20, p. 148.16 Nesse sentido, a tese de TAVARES, A s controvérsias em tomo dos crimes omissivos,

1996, n. 12, p. 37, sobre a impossibilidade de suficiente proteção de bens jurídicos “se não considerarmos que a norma éproibitiva e mandamental ao mesmo tempâ'>, representa contribuição significativa.

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Capítulo 10 O Tipo de Injusto de Omissão de Ação

2. A proibição de indeterm inação penal

Não obstante, subsistem tensões dogmáticas na omissão de ação imprópria, referentes à extensão da responsabilidade penal e à rela­ção de causalidade, apesar da definição legal das fontes do dever de garantia:

a) a lei penal define os fundamentos do dever de evitar o re­sultado (art. 13, §2°, CP), mas não delimita os resultados de lesão de bens jurídicos atribuíveis ao garantidor sob aqueles fundamentos legais — ou seja, não indica os tipos de resultado de lesão atribuíveis ao omitente, como garantidor do bem jurídico —, o que parece in­fringir a proibição de indeterminação legal do princípio da legalidade: afinal, todos os bens jurídicos dos tipos de resultado são atribuíveis ao garantidor, ou apenas os bens jurídicos mais importantes e, nesse caso, quais e de que modo?

b) a relação de causalidade entre ação omitida e resultado típico é hipotética, portanto, fundada em juízo de probabilidade de exclusão do resultado pela realização imaginária da ação mandada17 — que pode ser um juízo próximo da certeza, rnas será apenas jui\o e, necessariamente, incerto,18

2.1. O problema da indeterminação legal dos resultados de lesão de bens jurídicos atribuíveis ao garantidor afeta também outras legislações, com críticas semelhantes. Por exemplo, idêntica lacuna do Código Penal alemão motivou ROXIN a questionar a compatibilidade do §13 com o

17 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §58, IV 3, p. 609.18 COSTA JÚNIOR, Comentários ao códigopenal\, 1989, p. 134, fala em “desrespeito aos

princípios da certeza do direito e da legalidade”, sugerindo previsão legal dos tipos que admitem comissão por omissão.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 10

princípio da determinação, com o seguinte argumento19:

“Pois a lei indica como pressupostos da punibilidade ' da omissão apenas os critérios do “dever de garantir” e da “correspondência”, sem di%er quando se “tem de ga ­rantir que o resultado não ocorra”, e quando a omissão “corresponde” a um fa%er. Que a regulação legal, sob o

ponto de vista do princípio da determinação, não é inques­tionável, é também afirmado freqüentemente na literatura. ”

No caso da lei penal brasileira, a ausência da cláusula de correspon­dência, pela qual a não evitação do resultado deve corresponder à comissão do tipo legal respectivo pelo garantidor, agrava a situação. No Brasil, após a reforma de 1984, a lei penal define os fundamentos do dever jurídico de evitar o resultado (art. 13, §2°, CP), mas não determina os resultados de lesão dos bens jurídicos atribuíveis ao garantidor, com fundamento nos deveres jurídicos definidos.

Nessas condições, a única forma de conciliar a omissão de ação imprópria com a proibição de indeterminação do princípio da legalida­de seria reduzir a responsabilidade penal do garantidor aos bens jurídicos individuais mais importantes, como a vida e o corpo do sujeito garantido: a extensão da garantia a todos os tipos de resultado de lesão, incluindo o patrimônio, a sexualidade, ou — ainda mais grave— o sistema financeiro, o meio ambiente etc., embora tecnicamente admissível, implicaria um dever jurídico indeterminável e excessivo, incompatível com a Constituição da República.20

19 ROXIN, Strafrecht. Beck, 2003, vol. II, §31, IV, n. 32, p. 637: “Denn das Geset nennt ais Vorausset^ungen der Unterlassungsstrafbarkeit nur die Kriterien des “Einstehenmüssens” und desEintsprechens”, ohne %usagen, wannman “dafúrein^ustehen hat, dassderFifolgnichteintritt”, und

wann das Unterlassen dem Tun “entspricht”. Dass die geset^liche Regelungunter dem Gesichtspunkt des Bestimmtheitsgrundsat%es nicht unbedenklich ist, mrd denn auch in der Literatur vielfacb betont. ”

20 Nesse sentido, TAVARES, As controvérsias em tomo dos crimes omissivos, 1996, p. 81-82, restringe o dever de garantia, em todas as hipóteses de omissão de ação imprópria, aos “delitos contra a vidas, a integridade corporal e a liberdade. ”

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(

Capítulo 10 O Tipo de Injusto de Omissão de A.ção

2.2. A questão da chamada probabilidadepróxima da certeza da causalidade hipotética — por isso, também denominada quase-causalidade — parece representar critério de juízo determinado pela estrutura da omissão de ação imprópria: a atribuição do resultado ao garantidor do bem jurídi­co não pode se basear em causalidade real — presente na realização concreta da ação mandada e ausente na omissão de ação —, mas em causalidade hipotética fundada em juízo de probabilidade próxima da certeza de exclusão do resultado. Se o controlador de tráfego ferrovi­ário, por exemplo, não comunica a partida do trem e o motoqueiro é atropelado porque a cancela não foi fechada, pode-se afirmar que a realização da ação mandada excluiria o resultado com probabilidade próxima da certeza, segundo a teoria dominante.21

Atualmente, uma proposta alternativa pretende substituir esse juízo de probabilidade por um juízo de possibilidade fática de evitar ou reduzir o resultado, sob o argumento de que um juízo de probabilidade próxima da certeza sobre a eficácia de cirurgia médica em vítima de acidente de trânsito, por exemplo, seria impossível ao leigo.22

V. Estrutura dos tipos de omissão de ação

A estrutura dos tipos de omissão de ação própria e imprópria é for­mada, igualmente, por dimensões objetiva e subjetiva23 e se caracteriza por uma correspondência assimétrica, definida por elementos típicos

21 Ver, entre outros, HAFT, Strafrecht, 1994, p. 172.22 OITO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §9, IV 2, n. 98-101, p. 169-70.23 Assim, MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrechtll, 1989, §46, II, ns. 28-107, p. 188-

209,eIII, n. 108-120, p.209-211; OTl'O, Grundkurs Strafrecht, 1996, §9,13, n. 13-14, p. 147; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, §16, II, n. 707-732, p. 225-233.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 10

comuns e por elementos típicos específicos da omissão de ação im­própria. O tipo objetivo comum à omissão de ação própria e imprópria compreende (a) a situação de perigo para o bem jurídico, (b) o poder concreto de agir e (c) a omissão da ação mandada; o tipo objetivo espe­cífico da omissão de ação imprópria compreende, complementarmente, (d) o resultado típico e (e) a posição de garantidor do omitente. O tipo subjetivo da omissão de ação também é assimétrico: na omissão de ação própria, somente dolo; na omissão de ação imprópria, dolo e imprudência.

1. Elementos com uns do tipo objetivo da omissão própria e imprópria

1.1. Situação de perigo para o bem jurídico. A realidade determi­nante do dever de agir é a situação de perigo para o bem jurídico — ou situação típica, conforme a teoria dominante,24 embora essa situação constitua apenas um dos componentes do tipo: a) na omissão de ação própria., a situação de perigo para o bem jurídico aparece explícita no tipo legal: deixar de prestar assistênda (...) à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ouferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo etc.; b) na omissão de ação imprópria, a situação de perigo para o bem jurídico está implíáta no resultado descrito no tipo legal: matar alguém, resultado de lesão de bem jurídico produzível por ação proibida ou por omissão de ação mandada. Por exemplo, a existência de um ciclista ferido na

24 Ver, por exemplo, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §59,1, p. 615; também, WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §27,1 1, p. 204. No Brasil, TAVARES, A s controvérsias em tomo dos crimes omissivos, 1996, p. 77; no sentido do texto, CIRINO DOS SANTOS, Teoria do crime, 1993, p. 42-45.

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Capítulo 10 O Tipo de Injusto de Omissão de Ação

rodovia indica a situação de perigo pressuposta no dever jurídico de agir da omissão de ação, em geral.

1.2. Poder concreto de agir. O poder concreto de agir exprime a ca­pacidade de realizar a ação mandada, definida pela natureza da ação e condições pessoais do autor: a) a ação mandada (esperada ou necessá­ria) é determinada pelas circunstâncias objetivas da situação de perigo: se o motorista não pode prestar auxílio direto ao ciclista ferido, pode chamar um médico ou uma ambulância, ou avisar a polícia etc.; b) a realização da ação mandada deve ser pessoalmente possível\ excluída em hipóteses de impossibilidade objetiva (se o motorista passeia em Curitiba não pode socorrer o ciclista ferido na Via Dutra) e de incapacidade individual relacionada à força física, ao conhecimento técnico e ao potencial intelectual do autor (sujeitos inconscientes, algemados ou paralíticos; incapacidade técnica de operar meios de ajuda, como barcos, extintores de incêndio, escadas automáticas; inexistência ou defeito dos meios de ajuda disponíveis etc.).25 A legislação brasileira consagra esse requisito no art. 13, §2°, CP:

Art. 13, §2°. A. omissão épenalmente relevante quando oomitente devia e podia agir para evitar o resultado.

A redação da norma é defeituosa: primeiro, o dever pressupõe o poder de agir e, portanto, a ordem dos verbos estaria invertida; segundo, o dever j urídico de agir é um conceito normativo fundado na realidade concreta do poder ou capaádade de agir e, portanto, a referência ao dever seria desnecessária.

25 HAFT, Strafrecht, 1994, p. 173, fala em “possibilidade de ação”, excluída em situações de “incapacidade geral” o u “individual”', JESCHECK/WEIGEND, Tehrbuch des Strafrechts,1996, §59, II 2, p. 616, fala em “capacidade individual de ação WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 708, p. 225, referem-se à “possibilidadefísico-real” de agir. No Brasil, TAVARES, A s controvérsias em tomo dos crimes omssivos, 1996, p. 75, fala em “realpos­sibilidade de atuar”\ ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro,1997, n. 294, p. 540, referem-se a “conduta (...) fisicamente possível”.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 10

1.3. Omissão da ação mandada. A realização da ação mandada sig­nifica o cumprimento do dever jurídico de agir e, conseqüentemente, a não-realização da ação de proteção do bem jurídico em situação de perigo, por um autor concretamente capaz de agir, significa o descum- primento do dever jurídico de agir, que define a omissão de ação, em geral.26 No exemplo citado, se o motorista não socorre diretamente o ciclista ferido, nem chama um médico ou ambulância, nem avisa a polícia, está caracterizado o dpo objetivo da omissão de ação própria (a omissão de ação imprópria exige, ainda, outros elementos), inde­pendente de o ciclista ferido vir a ser socorrido por outra pessoa, ou atropelado fatalmente por um caminhão.27

2. Elementos específicos do tipo objetivo da omissão de ação imprópria

2.1. Resultado típico. O tipo de omissão de ação imprópria exige, ainda, a produção do resultado típico como conseqüência causai da omissão da ação mandada: o ciclista ferido (coincidentemente, filho do motorista) morre porque o motorista omite a realização da ação de proteção. Nos crimes de omissão de ação imprópria, a responsabilidade penal do garantidor é circunscrita aos crimes de resultado de lesão, com exclusão dos crimes de perigo abstrato ou de perigo concreto, realizáveis por simples atividade. A relação de causalidade entre resultado e omissão da ação mandada é uma das questões problemáticas da omissão de

26 JESCHECK/WEIGEND, lehrbuch des Strafrechts, 1996, §59, I I 1, p. 616; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §27,1 2, p. 204. No Brasil, comparar TAVARES, A s controvérsias em tomo dos crimes omissivos, 1996, n. 24, p. 75.

27 Ver OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §9 ,1 3, n. 12-5, p. 147.

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Capítulo 10 O Tipo de Injusto de Omissão de Ação

ação imprópria, porque a ausência de causalidade real na omissão de ação ( “ex nihilo nihilftt”) — somente existe causalidade real na execução da ação mandada — é suprida por uma causalidade hipotética: se a re­alização da ação mandada teria evitado o resultado com probabilidade próxima da certeza, então o resultado é atribuível ao autor (do ponto de vista normativo, é suficiente um juízo de causalidade adequada); em caso contrário, o princípio in dubio pro reo impede a atribuição do resultado.28

2.2. Posição de garantidor. O Direito Penal proíbe ações lesivas de bens jurídicos, por um lado, e ordena ações protetoras de bens jurídi­cos, por outro lado, porque a produção do resultado de lesão do bem jurídico por ação proibida eqüivale à não-evítação do resultado por omissão de ação mandada. A equivalência da não-evitação do resultado por omissão de ação à produção do resultado por ação se fundamenta no dever jurídico de agir para evitar o resultado, atribuído ao garantidor do bem jurídico, nos tipos de omissão de ação imprópria. A presença real do garantidor do bem jurídico na situação de perigo tem um du­plo significado concreto: primeiro, o titular do bem ju ríd ico garantido permite-se exposições a perigos que, de outro modo, evitaria; segundo, todas as demais pessoas podem confiar na ação efetiva dó garantidor do bem jurídico, em situações de perigo — e, por isso, estão liberadas do dever jurídico de impedir o resultado.29

A posição de garantidor é elemento do tipo da omissão de ação imprópria e, por esse motivo, um critério legal de definição da posição de garantidor é exigência do princípio da legalidade.30A dogmática

28 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §59, III, p. 617-620; WES­SELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, ns. 711-712, p. 226-227. No Brasil, TAVARES, A s controvérsias em tomo dos crimes omissivos, 1996, n. 24, p. 78-79.

29 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §59, IV 1, p. 620. No Brasil, TAVARES, A s controvérsias em tomo dos crimes omissivos, 1996, n. 24, p. 78-79.

30 Comparar TAVARES, As controvérsias em tomo dos crimes omissivos, 1996, n. 22, p. 66-70.

213

Teoria do Tato Punível Capítulo 10

penal desenvolveu dois critérios para definir a posição de garantidor n os tipos de omissão de ação imprópria:

a) o critério form al ou clássico considera a lei, o contrato e a ação precedente perigosa como fontes do dever de garantia;

v b) o critério material ou moderno trabalha com duas fontes alterna­tivas do dever de garantia: 1) por um lado, garantia de proteção/guarda de pessoa determinada (ou de bem jurídico determinado) contra situações de perigo indeterminadas; 2) por outro lado, garantia de segurança/vigilância à t fontes de perigo determinadas para proteger bens jurídicos indetermi­nados (oupessoas indeterminadas).31

O critério formal oferece segurança jurídica, mas a natureza limitada e rígida das categorias formais explica seu desprestígio na literatura moderna: por exemplo, nem a lei, nem a validade do contrato determinam a posição de garantidor, mas a relação de confiança (no caso da lei) e a assunção fática da garantia (no caso do contrato); por outro lado, o critério material é abrangente e flexível — e, por isso, dominante na doutrina e jurisprudência contemporâneas —, mas a natureza difusa das categorias conceituais que o estruturam reduz a segurança jurídica.32

A legislação brasileira adotou o critério form al para definir a posição de garantidor, desde modo:

Art. 13, §2° — (...)• O dever de agir incumbe a quem:

a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;

b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir oresultado;

31 HAFT, Strafrecht, 1994, p. 176-178; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafre­chts, 1996, §59, IV 2-5, p. 621-628; OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §9, II-III, n. 48-86,154-165.

32 Ver, por exemplo, OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996,1 4, n. 25-29, p. 149-150.

214

Capítulo 10 O Tipo de Injusto de Omissão de Ação

c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrênáa do resultado.

a) Obrigação l e g a l de cuidado, proteção ou vigilância. A lei, como fonte mais geral da posição de garanüdor, abrange as liipóteses de obrigação de cuidado, proteção ou vigilância, em especial no âmbito das relações de família, entre casais, parentes em linha reta e irmãos.33 O dever jurídico de cuidado tem por objeto as relações recíprocas entre ascendentes e descendentes, cônjuges e colaterais, para excluir perigos contra a vida e o corpo, mas não inclui os perigos criados pelo pro­tegido contra terceiros (agressões) ou contra si mesmo (suicídios), se definíveis como ações livres de sujeitos capazes de compreensão; o dever jurídico de proteção e vigilânáa é atribuído aos pais ou responsáveis em relação aos filhos menores: dever de proteção contra perigos para a vida e o corpo dos filhos; dever de vigilânáa dos filhos em relação a perigos destes contra terceiros.34

Entretanto, é necessário esclarecer dois pontos: primeiro, a exi­gência de lei como fonte da obrigação de cuidado, proteção ou vigilânáa significa lei formal, como ato do Poder Legislativo de disciplina da vida civil, tributária etc., com exclusão de atos normativos inferiores (decretos, regulamentos, resoluções, instruções etc.); segundo, a lei

formal exigida deve ser de natureza penal, porque somente leis penais formais podem definir a punibilidade da omissão de ação atribuível ao garanüdor.35

b) Assunção da responsabilidade de impedir o resultado. Aresponsabilidade de impedir o resultado pode ser assumida por ato

33 Assim, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §59, IV 3a, p. 622; HAFT, Strafrecht, 1994, p. 178; O ITO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §9, I I 1, n. 48-55, p. 154-155.

34 OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §9, II 1, n. 56-60 e III 4, n. 92-93.35 ROXIN, Strafrecht, 2003, §32, n. 11 e 14 p. 714-715.

215

Teoria do Fato Punível Capítulo 10

de vontade (contratual ou extracontratual) do garantidor, em que a assunção fática da proteção é decisiva, porque a confiança na ação do garante cria relações de dependência e encoraja a exposição a riscos que, de outro modo, seriam evitados. Essa fonte do dever de agir inclui as seguintes hipóteses: a) a livre assunção da proteção do médico em relação ao paciente, do salva-vidas em relação aos banhistas, da baby-sitter em relação às crianças etc.;36 b) as relações comunitárias estreitas, sob a forma de comunidades de perigo (o guia em relação aos turistas ou participantes de expedições) ou de comunidades de vida (o dono da casa em relação às pessoas acolhidas no âmbito da residência, excluída a mera relação de coabitação em pensões ou repúblicas; os professores em relação aos alunos no âmbito e durante o funcionamento da escola etc.).37

c) Comportamento anterior criador do risco do resultado. Oconceito de comportamento compreende tanto a ação como a omissão de ação precedente perigosa, desde que o perigo criado seja adequado para produzir o resultado,38 ou que o perigo de resultado seja objeti­vamente reconhecível.39

A ação precedente perigosa, fundada na proibição geral de lesão (neminem laede), deve ser antijurídica40 ou contrária ao dever,41 segundo a opinião dominante, embora respeitável opinião minoritária admita criação de perigo conforme ao direito, porque ações nos limites do dever de cuidado ou do risco permitido não excluiriam o dever de

36 HAFT, Strafrecht, 1994, p. 178; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts,1996, §59, IV 3c, p. 623; OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §9, I I 3, n. 64-66.

37 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §59, IV 3b, p. 622-623; OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, II í , n. 48-61,154-157, e II 2, 62-63, p. 157.

38 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §59, IV 4a, p. 625-626.39 OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §9, I I I1, n. 76-84, p. 161-164.40 WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 725, p. 231.41 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §59, IV 4a, p. 625.

216

Capítulo 10 O Tipo de Injusto de Omissão de A. cão

segurança.42 A liipótese mais importante de ação precedenteperigosa, como fonte da posição de garanddor, consiste no perigo para vítimas de acidente de trânsito, causado por lesão do risco permitido ou do dever de cuidado: a morte da vítima de acidente de trânsito determinada por omissão da ação de proteção da vítima pelo autor da ação precedenteperi­gosa, com consciência da possibilidade do resultado de morte daquela, implica responsabilidade por homicídio doloso cometido por omissão, porque constitui omissão de ação fundada na posição de garantidor43— e não simples homicídio imprudente com pena agravada (art. 121, §4°, CP). Contudo, ações dentro dos limites do risco permitido ou conformes ao dever de cuidado, assim como ações justificadas (lesão corporal produzida no agressor, em situação de legítima defesa), não engendram o dever especial de garantia da omissão de ação imprópria,44 mas não excluem o dever geral de socorro da omissão de ação própria,45 observada a exigibilidade típica.

Hipótese controvertida é a venda de bebidas alcoólicas em relação aos perigos criados pelo álcool para o bêbado ou do bêbado para terceiros: a) em relação aos perigos para o bêbado, parece geral a tese de que o fornecimento de álcool cria o dever de garantia para o fornecedor (proprietários de bares ou restaurantes), se o estado de alcoolização do freguês é evidente; b) em relação aos perigos do bêbado para terceiros as opiniões variam entre excluir a posição de garante do fornecedor46 e condicionar essa exclusão ao estado de atri-

42 Assim, por exemplo, MAURACH-GÒSSEL-ZIPF, Strafrecht , 1989, §46, ns. 95-99, p. 204-206; ver OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §9, III 1, n. 79-82, p. 162-164.

43 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §67, III 4, p. 723.44 HAFT, Strafrecht, 1994, p. 177; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts,

1996, §59, IV 4, p. 626-628; outra opinião, OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §9, I I I1, n. 79-81, p. 162-163.

45 HAFT, Strafrecht, 1994, p. 177.46 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §59, IV 4, p. 626-628.

217

Teoria do Tato Punível Capítulo 10

buibilidade do bêbado.47

A omissão de ação precedenteperigosa, como fonte da posição de garan- tidor, tem por fundamento a confiança da comunidade na capacidade do garante de controlar perigos produzidos por pessoas submetidas ao seu poder, ou de controlar perigos existentes em mecanismos, engenhos ou animais em áreas submetidas ao seu domínio, como, por exemplo: a) o proprietário não ilumina escada da residência e hóspede cai e quebra a perna, ou não repara defeito do telhado e uma telha despenca sobre a cabeça de convidado; b) os perigos criados pela omissão de controle ou cuidado (1) do proprietário de animais ferozes em relação a danos sobre terceiros, (2) dos responsáveis por obstáculos físicos em ruas, rodovias e estradas em relação à sinalização de advertência respectiva, (3) do proprietário do veículo entregue a motorista não habilitado, ou colocado em circulação sem condições de segurança, em relação aos danos resultantes de acidentes de trânsito etc.48

3. O tipo subjetivo da omissão de ação

O tipo subjetivo da omissão de ação própria é o dolo, e da omissão de ação imprópria, o dolo e a imprudência. Em ambas modalidades de omissão de ação, segundo a teoria dominante, o dolo não precisa ser constituído de consciência e de vontade, como nos tipos de ação: basta deixar as coisas correrem com conhecimento da situação típica de perigo para o bem jurídico e da capaádade de agir (na omissão de ação própria),

47 OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §9, III 1, n. 82, p. 163-164.48 HAFT, Strafrecht, 1994, p. 177-178; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafre­

chts, 1996, §59, IV 4ab, p. 626-627; OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §9, III 2-3, n. 85-91, p. 165-167.

218

Capítulo 10 O Tipo de Injusto de Omissão de Ação

mais o conhecimento do resultado e da posição de garante (na omissão de ação imprópria), porque dolo como vontade consciente de omidr a ação mandada constituiria exceção rara (o médico decide recusar paciente em estado grave sob o argumento de inexistência de leito livre).49

Na legislação penal brasileira, o conteúdo do dolo nos crimes de omissão de ação não pode ser diferente do conteúdo do dolo nos crimes de ação, porque se a consáênáa é a direção típica inteligente, a vontade é a energia psíquica que produz a ação e a omissão de ação típica dolosa — aliás, a única interpretação compatível com a definição do dolo, no art. 18,1, CP.

3.1. Espécies de dolo na omissão de ação. O dolo nos crimes de omissão de ação existe sob as mesmas modalidades admitidas para os crimes de ação: a) dolo direto de Io grau, se o resultado típico coincide com o fim proposto pelo autor; b) dolo direto de 2o grau, se o resultado típico é representado como certo ou necessário pelo autor;c) dolo eventual, se o autor consente na produção de resultado típico representado como possível efeito da ação omitida.50

3.2. Objeto do dolo na omissão de ação. O dolo na omissão própria e na omissão imprópria tem por objeto comum os seguintes elementos do tipo objetivo: a) a situação de perigo para o bemjurídico (ou situação típica);b) o poder concreto de ação para proteger o bem jurídico em situação de

49 Ver, entre outros, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts,, 1996, §59, VI1, p. 630-631; também, HAFT, Strafrecht, 1994, p. 181. No Bxasil, TAVARES, As controvérsias em tomo dos crimes omissivos, 1996, p. 95-97, exige, ao lado do elemento intelectual da consáênáa, também o elemento emocional da vontade para constituiro dolo na omissão de ação.

50 ROXIN, Strafrecht II. Beck, 2003, p. 684.

219

Teoria do Fato Punível Capítulo 10

perigo; c) a omissão da ação mandada para proteção do bem jurídico.51

O dolo na omissão de ação imprópria tem por objeto específico os seguintes elementos adicionais característicos do tipo objetivo: a) o re­sultado de lesão do bem jurídico; b) a posição degarantidor Ao bem jurídico em perigo.52

3.3. O erro de tipo na omissão de ação. O dolo nos tipos de omissão de ação está exposto à mesma relação de lógica exclusão entre conhedmento e erro dos tipos dolosos de ação: se o dolo exige conhecimento (a) da situação típica de perigo para o bem jurídico, (b) do poder concreto de agir e (c) da omissão da ação mandada (na omissão de ação própria e imprópria) e, adicionalmente, (d) do resultado típico e (e) da posição de garantidor (na omissão de ação imprópria), então o erro sobre qualquer desses elementos do tipo de omissão de ação própria e imprópria (evitável ou inevitável) exclui o dolo.53

Defeitos de conheámento por ausência ou insuficiência de repre­sentação da realidade, como desconheámento dos elementos fáticos, descritivos ou normativos, do tipo legal, excluem, sempre, o dolo, na forma do art. 20, CP, mas na omissão de ação imprópria, é preciso distin­guir: o erro inevitável exclui o dolo e a imprudência; o erro evitável exclui somente o dolo, admitindo punição por imprudência, se existente o tipo legal respectivo.54

51 ROXIN, Strafrecht II. Beck, 2003, p. 685.52 ROXIN, Strafrecht II. Beck, 2003, p. 685.53 ROXIN, Strafrecht II. Beck, 2003, p. 686. No Brasil, TAVARES, As controvérsias

acerca dos crimes omissivos, 1996, p. 98.54 ROXIN, Strafrecht II. Beck, 2003, p. 687-688.

220

Capítulo 10 O Tipo de Injusto de Omissão de Ação

VI. Consáênáa do injusto e erro de mandado

A consáênáa do injusto, como elemento especial da culpabilida­de, existe como conhecimento do dever jurídico de agir, na omissão de ação própria, e como conhecimento do dever jurídico de garantidor em relação à evitação do resultado, na omissão de ação imprópria. O erro sobre o dever jurídico de realizar a ação mandada, em ambas modalidades de omissão de ação, consdtui erro sobre o dever jurídico de agir e, portanto, erro de mandado — e não erro de proibição. Nos tipos de ação, o dever de omitir a ação proibida é, geralmente, claro, mas nos tipos de omissão de ação, o dever de realizar a ação mandada é, normalmente, obscuro para o destinatário da norma penal — es­pecialmente em crimes omissivos próprios contra a ordem econômica, o meio ambiente, ou outros setores do Direito Penal especial — e, por isso, a evitabilidade do erro é menor,55 com conseqüente redução do nível de reprovação. Esse problema está na origem de propostas de tratar o erro de mandado sobre deveres tributários, por exemplo, como erro de tipo, excludente do dolo.56

VII. Tentativa e desistência na omissão de ação

O argumento de que a tentativa de omissão de ação, segundo WELZEL e ARMIN KAUFMANN, só pode ser concebida como omissão da tentativa de realizar a ação mandada,57 parece incontestável;

55 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §60 ,1, p. 636.56 Nesse senddo, TAVARES, As controvérsias acerca dos crimes omissivos, 1996, p. 99.57 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §27, IV, p. 206; também, ARMIN KAU­

FMANN, Unterlassungsdelikte, p. 204.

221

Teoria do Fato Punível Capítulo 10

contudo, a opinião dominante afirma o seguinte: na omissão de ação própria a tentativa é, sempre, inidônea; na omissão de ação imprópria, o problema é caracterizar o começo da tentativa, porque o critério legal refere-se à ação — e não à omissão de ação. A moderna dogmática alemã identifica a tentativa de omissão de ação imprópria na criação ou ampliação de perigo para o objeto protegido,58 consistente na perda da primeira possibilidade para realizar a ação mandada,59 ou na perda do último momento para excluir o resultado, que marca a independência do processo causai em relação ao autor.60 Ao contrário, a desistência da tentativa de omitir a ação mandada somente se configura mediante uma atividade positiva: o motorista retorna da fuga do local do aci­dente e conduz o ferido para o hospital.61

Na legislação brasileira, o critério objetivo do início de execução da definição legal de tentativa (art. 14 II, CP) tem por objeto, ex­clusivamente, os crimes de ação: o início de execução somente poderia existir na realização da ação mandada — e, portanto, no cumprimento do dever jurídico de agir —, nunca na omissão de ação, caracterizada pela ausência de qualquer processo executivo. Assim, do ponto de vista conceituai, a tentativa de omissão de ação é impossível; do ponto de vista do princípio da legalidade, a punição da tentativa de omissão de ação, própria ou imprópria, é inconstitucional — e qualquer solução diferente passa, necessariamente, pela mudança da definição legal.62

58 JAKOBS, Strafrecht, 1993,29/116-118, p. 853-854; MAURACH-GÕSSEL-ZIPF, Strafrecht II, 1989, §40, n. 106, p. 34; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 741, p. 237.

59 HERZBERG, Der Versuch beim unecheten Unterlassungsdelikt, MDR 1973, p. 89.60 ARMIN KAUFMANN, Unterlassungsdelikte, p. 210; WELZEL, D as Deutsche Strafrecht,

1969, §28, IV, p. 221.61 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §60, II 3, p. 639.62 TAVARES, A s controvérsias em tomo dos crimes omissivos, 1996, p. 93-94, rejeita tentativa

na omissão própria, mas admite tentativa na omissão imprópria, fundado na perda da última ou da primára oportunidade de realizar a ação mandada, segundo o caso concreto.

222

Capítulo 10 O Tipo de Injusto de Omissão de Acão

VTIL A. exigibilidade da ação mandada

A exigibilidade da ação mandada é uma característica do tipo de omissão de ação própria, indicada pela possibilidade de realização da ação mandada. A questão subseqüente é a seguinte: a) essa característica da omissão de ação própria é transferível para os tipos de omissão de ação imprópria? b) em caso positivo, a inexigibilidade da ação mandada exclui o dever de agir?

Não existe consenso na dogmática penal sobre a conseqüência jurídica da inexigibilidade da ação mandada na omissão de ação im­própria: ou exclui o tipo,63 ou exclui a antijuridicidade64 ou, finalmente, exclui a culpabilidade.65 A questão poderia ser assim formulada: se o ordenamento jurídico impõe ao garante comportamento conforme ao dever jurídico, então a inexigibilidade exclui o próprio tipo de injusto; se o ordenamento jurídico impõe ao garante comportamento adequado às suas condições pessoais, então a inexigibilidade exclui apenas a culpabilidade,66

63 LACKNER, Strafgeset^buch, §13, n. 5.64 SCHMIDHÀUSER, Strafrecht,, §16, n. 84.65 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §59, VIII 3, p. 635.66 Ver OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §9, IV 3, n. 102-103, p. 170. No Brasil,

TAVARES, A s controvérsias acerca dos crimes omissivos, 1996, p. 100-103, considera a inexigibilidade como cláusula geral de exculpação nos delitos de omissão de ação.

223

CAPÍTULO 1 1

A n t iju r id ic id a d e e J u s t if ic a ç ã o

I. Teoria da antijuridicidade

1. Antijuridicidade e injusto

Juridicidade e antijuridicidade são os conceitos mais gerais do ordenamento jurídico, porque indicam conformidade e contradição ao Direito, respectivamente. Em Direito Penal, a antijuridicidade é uma contradição entre a ação humana (realizada ou omitida) e o ordenamento jurídico no conjunto de suas proibições e permissões: as proibições são os tipos legais, como descrição de ações realizadas ou omitidas; as permissões são as justificações legais e supralegais, como situações especiais que excluem as proibições. O conceito de antijuridicidade deve ser examinado em relação com os conceitos de tipicidade e de injusto, no quadro teórico do sistema tripartido de fato punível.

1. A relação entre antijuridicidade e tipicidade depende da natureza bipartida ou tripartida do conceito de fato punível: na concepção bi­partida de fato punível, tipicidade e antijuridicidade representam uma unidade conceituai, em que o tipo reune os elementos positivos e as justificações os elementos negativos do tipo de injusto; na concepção tripartida de fato punível, tipicidade e antijuridicidade são conceitos autônomos no âmbito do tipo de injusto e, portanto, a relação funciona como regra e exceção: se a tipicidade da ação indica a antijuridicidade

225

Teoria do Fato Punível Capítulo 11

e as causas de justificação excluem a antijuridicidade,1 então toda ação típica é antijurídica, exceto as ações típicas justificadas. Km re­gra, o legislador descreve nos tipos legais ações realizadas ou omitidas contrárias ao direito, ou seja, ações ou omissões de ação antijurídicas, excepcionalmente permitidas nas situações concretas denominadas

justificações, como a legítima defesa, o estado de necessidade etc. Logo a tipicidade não seria simples ratio cognoscendi, mas a própria ratio essendi da antijuridicidade. Por essa razão, a antijuridicidade da ação típica é determinada por um critério negativo: ausência de justificação. A praticidade desse critério explica sua adoção generalizada: inexistente justificação, está caracterizada a antijuridicidade; presente justificação, está excluída a antijuridicidade.2

2. A relação da antijuridicidade com o injusto é uma relação de diferenciação no mesmo estágio do fato punível: a antijuridicidade representa uma qualidade invariável da ação típica, expressa na contradição entre a ação ou omissão de ação e o conjunto das proibições e permissões do ordenamento jurídico; ao contrário, o injusto não designa uma qualidade invariável da ação típica, mas a própria ação típica e antijurídica concreta, como realização não justificada de comportamentos típicos de grandezas variáveis. Essas noções de antijuridicidade e de injusto estão na base da distinção entre antijuridicidade formal e material: a antijuridiádade formal expri­me a contradição do comportamento concreto com o conjunto das proibições e permissões do ordenamento jurídico, como qualidade invariável de toda ação típica e antijurídica; a antijuridicidade material exprime a lesão injusta do bem jurídico, como dimensão graduável do conteúdo de injusto das ações típicas e antijurídicas. Por exemplo, furto de coisa de pequeno valor possui a mesma antijuridicidade

1 Ver, entre outros, HAFT, Strafrecht, 1994, p. 69.2 CIRINO DOS SANTOS, Teorca do Crime, 1993, p. 49.

226

Capítulo 11 Antijuridicidade e Justificação

formal de furto de coisa de grande valor, assim como a realização do dpo básico de um crime tem a mesma antijuridicidade formal de suas variações privilegiadas ou qualificadas, porque são ações igualmente contrárias ao direito; mas a extensão variável da lesão de bens jurídicos em cada uma dessas hipóteses, determina diferentes conteúdos de injusto e, portanto, diversas antijuridicidades materiais: por exemplo, furto de coisa de grande valor tem maior conteúdo de injusto que furto de coisa de pequeno valor; tipos qualificados possuem conteúdo de injusto maior que tipos básicos etc. A distin­ção é importante por várias razões: primeiro, indica diferença entre antijuridicidade, como qualidade invariável que existe ou não existe na ação típica, e injusto, como substância graduável do conceito de fato punível;3 segundo, em situações específicas, permite descaracterizar a antijuridicidade formal determinada pela mera literalidade da lei, quer com base na ausência ou insuficiência do conteúdo de injusto de ações socialmente adequadas, quer fundado no principio da insignificância próprio de fatos como a injúria no âmbito familiar, os jogos de azar de pequeno valor, pequenos presentes de final-de-ano a funcionários públicos, como carteiros, lixeiros etc.4

Por outro lado, modernas pesquisas de vitimologia, que es­tuda a contribuição ou influência da vítima para o fato criminoso, mostram como o comportamento da vítima pode descaracterizar a tipicidade ou, no setor da antijuridicidade, reduzir o conteúdo de injusto da antijuridicidade material, ou excluir a própria antijuridici­dade formal da ação típica.5 Nessa linha, SCHÜNEMANN6 destaca

3 Assim, HAFT, Strafrecht, 1994, p. 70.4 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, §14, n. 4-8, p. 503-504.5 Ver HASSEMER, Rücksichten au f das ]/erbrechensopfer, Klug-FS 1983, p. 217.6 SCHÜNEMANN, Der Strafrechtliche Schutii von Privatgeheimnissen, ZStW 90 (1978),

p. 11; do mesmo, Methodologische Prolegomena %ur Rechtsfindung im Besonderen Teil des Strafrechts, Bockelmann-FS, 1979, p. 117.

227

Teoria do Fato Punível Capítulo 11

a perspectiva vitimológica do legislador e da jurisprudência para definir e interpretar tipos legais e hipóteses de redução do injusto ou de exclusão da antijuridicidade do fato típico: por exemplo, a tipicidade da falsificação de moeda exige fabricação de dinheiro com aparência de verdadeiro e, portanto, com potencial de vitimização na circulação financeira, inexistente em casos de falsificações grosseiras; o consentimento real do ofendido exclui a própria necessidade de proteção do bem jurídico, como é o caso de crimes patrimoniais não-violentos e de lesões corporais em cirurgias, esportes etc. (ver Consentimento do titular do bem jurídico, adiante); a auto-exposição a perigo ou a exposição consentida a perigo de outrem impedem a atribuição do tipo objetivo (ver 0 tipo dos crimes de imprudência, aci­ma); enfim, a provocação do agredido pode excluir ou, de qualquer modo, influenciar a legítima defesa contra o agressor (ver Ilegítima defesa, adiante) etc.7

3. Finalmente, os conceitos opostos de juridicidade e de antijuri­dicidade relacionam-se a alguns temas gerais, como a questão da unidade do ordenamento jurídico e o problema da existência de áreas livres ou neutras no Direito. A unidade do ordenamento ju­rídico parece constituir axioma do pensamento jurídico moderno, e a regra de que a juridicidade ou antijuridicidade de qualquer ação é válida para o direito em geral, exclui a hipótese de antijuridicidades específicas, eliminando, assim, a possibilidade de contradições no Direito. Entretanto, autores mais antigos, como ENGISCH,8 indi­cam que essa tese não estaria definitivamente demonstrada, e auto­res contemporâneos, como GÜNTHER,9 por exemplo, mostram a coexistência contraditória de juridicidade e de antijuridicidade na mesma ação: o consentimento presumido de adolescente relativa­

7 ROXIN, Strafrecht, 1997, §14, n. 17, p. 508.8 ENGISCH, Die Finheit der R£chtsordnung, 1935.9 GÜNTHER, Strafrechtsmdrigkeit und Strafunrechtsausschluss, 1983.

228

Capítulo 11 Antijuridicidade e justificação

mente incapaz na realização de dano em objeto de sua propriedade não exclui a antijuridicidade civil e, portanto, obriga a indenizar, mas pode justificar a ação típica de dano e, portanto, excluir a anti­juridicidade penal.10

A existência de áreas livres ou neutras em relação à juridicidade ou antijuridicidade também é controvertida: a teoria dominante nega a existência de áreas jurídicas livres, porque todo comportamento típico é ou antijurídico ou justificado, mas estudos recentes indicam a possibili­dade de uma terceira hipótese, em conflitos relacionados com situações de perigo comum ou de colisão de deveres,11 por exemplo: o alpinista da parte superior corta a extensão inferior da corda, precipitando o companheiro no abismo, porque a mesma é incapaz de sustentar ambos ao mesmo tempo; o pai somente pode salvar um dos dois filhos que, simultaneamente, estão se afogando, morrendo o outro.

A teoria de áreas livres ou neutras no Direito teria como funda­mento o modelo de democracia parlamentar, em que a liberdade do cidadão é originária, e não concessão do Estado: o povo é o poder constituinte do Estado, estruturado para o exercício das funções de proteção e de garantia da liberdade, da paz e do bem-estar geral.12 Em conclusão, pode-se reconhecer que certas áreas pré-típicas constitui­riam espaços jurídicos livres, mas no âmbito do injusto não existem áreas jurídicas livres, porque o comportamento típico é valorado, alternativamente, (a) ou como justificado, (b) ou como antijurídico mas exculpado, (c) ou finalmente como antijurídico e culpável.13

10 Ver, para mais detalhes, ROXIN, Strafrecbt, 1997, §14, n. 30-36, p. 513-516.11 Nesse sentido ARTHUR KAUFMANN, Ikechtsfreier Raum und eigenverantwortliche

Entscbeidung — Dargestellt am Problem des Schwangerschaftsabbruchs, Maurach-FS, 1972, p. 327. No Brasil, ver MAYRINK DA COSTA, Direito Penal (parte geral), 1998, v. I, t. II, p. 877-878.

12 Assim HIRSCH, Strafrecht und rechttfreierRaum, Bockelmann-FS, 1979, p. 89; ROXIN, Strafrecbt, 1997, §14, n. 26, p. 511.

13 ROXIN, Strafrecht, 1997, §14, n. 27-29, p. 512-513.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 11

2. Fundamento das justificações

A sistematização das justificações é dificultada por dois pro­blemas correlacionados: primeiro, a multiplicidade dos fundamentos justificantes, representada por justificações escritas e não-escritas; segundo, a diversidade dos setores do ordenamento jurídico de ori­gem das justificações, não limitadas pelo Direito Penal. Não obstante, existem dois grupos principais de teorias sobre o fundamento das justificações: as teorias monistas e as teorias pluralistas.

As teorias monistas destacam a finalidade como princípio unitário fundamentador das justificações, sob diversas modalidades: a) a teoria do meio adequadapara fins reconhecidos como justos pelo legislador, de LISZT;14 b) a teoria da maior utilidade do que dano, de SAUER;15 c) a teoria da ponderação do valor.; de NOLL;16 d) a teoria do interesse preponderante, de MEZGER.17 As teorias pluralistas, hoje predominantes, identificam em certos prin­cípios sociais subjacentes o fundamento das justificações: na legítima defesa, o princípio da proteção individual garante a possibilidade de fazer a defesa necessária, e o princípio da afirmação do direito autoriza a defesa mesmo na hipótese de meios alternativos de proteção, como desviar a agressão ou chamar a polícia;18 no estado de necessidade defensivo, os princípios da proteção e da proporcionalidade, e no estado de neces­sidade agressivo, os princípios da avaliação de bens e da autonomia;19 no consentimento do titular do bem jurídico, o princípio da ausência de interesse na proteção do bem jurídico20 etc.

14 LISZT, Strafrecht, 1919, §3°.15 SAUER, Allgemeine Strafrechtlehre, 1955.16 NOLL, Tatbestand und Rechtsuidrigkeit: die Wertabwãgung ais Prin^jp der Rechtfertigung,

ZstW 77 (1965), p. 1.17 MEZGER, Strafrecht, 1949, p. 240 s.18 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §14, n. 41, p. 518.19 ROXIN, Strafrecht, 1997, §14, n. 41, p. 518-519.20 HAFT, Strafrecht, 1994, p. 79.

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Capítulo 11 Antijuridicidade e Justificação

3. Conhecimento e erro nas justificações

A necessidade de elementos subjetivos nas justificações de ações típicas dolosas (e na imprudência consciente), negada pela dogmática causai e seu conceito objetivo de injusto da primeira metade do século XX — e, ainda hoje, por alguns autores isolados, como SPENDEL21 —, é reconhecida pela literatura e jurisprudência contemporâneas, que discute apenas a natureza desses elementos.22 As ações justificadas são constituídas de elementos subjetivos e objetivos como qualquer outra ação típica: se a unidade subjetiva e objetiva da ação determina a estrutura subjetiva e objetiva da ação típica, então a ação típica justificada contém, necessariamente, elementos subjetivos e obje­tivos.23 Existe, assim, como refere HAFT,24 uma relação de simetria entre tipos legais, ou tipos de proibição, e justificações, ou tipos de permissão. Como as justificações excluem não somente o desvalordo resultado, mas o próprio desvalor da ação típica, a ausência de elementos subjetivos nas justificações significa dolo não justificado de realização do injusto:25 a mulher que, pensando atirar no marido que retornava da orgia no­turna, atinge o ladrão armado tentando entrar na casa, age com dolo não justificado de homicídio — no caso, impunível por ausência de desvalor de resultado, segundo formulações modernas.

Os elementos subjetivos nas justificações têm por objeto a situação justificante (por exemplo, a agressão atual e injusta a bem

21 SPENDEL, Gegenden Verteidigungsmllen ais Notwehrerfordemis, Bockelmann-FS, 1979,p. 245.

22 Ver, por exemplo, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §31, IV, p. 328-331; também, ROXIN, Strafrecht, 1997, §14, n. 94-100, p. 539-542.

23 CIRINO DOS SANTOS, Teoria do Crime, 1993, p. 50.24 HAFT, Strafrecht, 1994, p. 77.25 Ver, entre outros, ROXIN, Strafrecht, 1997, §14, n. 93, p. 539.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 11

jurídico, na legítima defesa), e toda discussão consiste em saber se é suficiente o conhecimento da situação justificante, ou se é necessária também a vontade de defesa, de proteção etc., em conjunto com ou­tros estados psíquicos, para a ação justificada: autores como KÜHL, OTTO e ROXIN, por exemplo, afirmam ser suficiente o conheci­mento da situação justificante, embora com sentimentos de medo, raiva ou vingança contra o agressor;26 ao contrário, autores como WELZEL,JESCHECK/WEIGEND e MAURACH/ZIPF exigem, além do conhecimento da situação justificante, a vontade de defesa ou de proteção, também com sentimentos de raiva ou vingança contra o agressor.27 E possível admitir a suficiência do conhecimento (ou consciência) da situaçãojustificante, como limiar subjetivo mínimo das ações justificadas, mas a vontade (de defesa, de proteção etc.) é, sempre, a energia emocional que mobiliza a ação de defesa ou de proteção, informada pela esfera cognitiva do psiquismo individual.

Por outro lado, o erro constitui fenômeno psíquico em oposição diametral ao conhecimento, como sua antítese negativa e, nas justifi­cações, igualmente tem por objeto a situação justificante, também definida como pressuposto objetivo das justificações: se a situação justificante é objeto do conhecimento nas justificações, então é, necessariamente, objeto do erro respectivo, porque conheámento e erro são fenômenos psíquicos contrários e excludentes. As principais teorias do erro sobre a situação justificante são a teoria limitada da culpabilidade, a teoria rigorosa da culpabilidade e a teoria das características negativas do tipo, a seguir descritas.

A teoria limitada da culpabilidade, amplamente majoritária na

26 KÜHL, Strafrecht, 1997, §6, n. 11, p. 123; OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §8, n. 52, p. 107; ROXIN, Strafrecht, 1997, §14, n. 93, p. 539.

27 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §14,13, p. 83-4; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, §31, n. IV, p. 328-331; MAURACH/ZIPF, Strafrecht1,1992, §25, V, ns. 24-29, p. 348.

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Capítulo 11

Biblioteca

Antijuridiádade e Justificação

dogmática contemporânea e incorporada na vigente legislação penal brasileira (art. 20 §1°, CP), distingue entre erro de proibição, incidente sobre a natureza proibida ou permitida do fato, que pode excluir ou reduzir a culpabilidade, e erro de tipo permissivo, incidente sobre a verdade do fato, excludente do dolo. A crítica destaca a clareza poKtico-criminal da teoria limitada da culpabilidade, que equipara o erro de tipo permissivo ao erro de tipo, sob o argumento de que o autor quer agir conforme a norma jurídica — e, nessa medida, a representação do autor coincide com a representação do legislador —, mas erra sobre a verdade do fato: a representação da existência de situação justificante exclui o dolo, que existiria como conhecimento da existência das circunstâncias do tipo legal e da inexistência de circunstâncias justificantes, cuja errônea admissão significa que o autor não sabe o que fa%— ao contrário do erro de permis­são, em que o autor sabe o que fa%.28 A teoria rigorosa (ou extrema) da culpabilidade considera o erro sobre a situação justificante (ou sobre pressupostos objetivos de uma causa de justificação) como erro de proi­bição, que exclui ou reduz a culpabilidade conforme seja inevitável ou evitável, respectivamente — e, assim, equipara erro sobre a realidade a erro sobre a juridicidade do fato.29 Finalmente, a excitante teoria das características negativas do tipo30 resolve o problema do erro sobre a situação justificante como a teoria limitada da culpabilidade, mas com fundamentos diferentes: considera os caracteres do tipo legal como elementos positivos e as justificações como elementos negativos do tipo de injusto e, por conseqüência, define o erro sobre a situação jus-

28 Nesse sentido ROXIN, Strafrecht, 1997, §14, n. 62-68, p. 526-529.29 Comparar WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, III f, p. 168 s.; ROXIN, Strafrecht,

1997, §14, n. 63, p. 527.30 Ver, entre outros, SCHROTH, Die A.nnahme und das “Für-Mõg/ich-Ha/ten ” von Ums-

tàndem, die einen anerkannten Rechfertigungsgrund begründen, Arthur Kaufmann-FS,1993, p. 595; SCHÜNEMANN, Die deutschsprachige Strafrechtsmssenschaft nach derStrafrechtsreform im Spiegel des Yjeip^iger Kommentars und des Wiener Kommentars, 1. Teil:Tatbestands- und Unrechtslehere, GA 1985, p. 341.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 11

1. Situação justificante

A situação justificante da legítima defesa se caracteriza pela existên­cia de agressão injusta, atual ou iminente, a direito próprio ou alheio, assim definida na lei penal:

Art. 25. Entende-se em legítima defesa quem, usando mode­radamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

O significado dos componentes elementares do conceito de legítima defesa pode ser assim explicado:1. Agressão é toda ação humana de violência real ou ameaçada di­rigida contra bens jurídicos do agredido ou de terceiro.36 O conceito de agressão não abrange as chamadas não-ações, no caso de lesão de bens jurídicos relacionada a ataques epilépticos ou estados de incons­ciência, como sono, desmaio ou embriaguez comatosa — que podem, todavia, fundamentar o estado de necessidade —, porque movimen­tos corporais meramente causais não constituem ações humanas;37 mas o conceito de agressão abrange a omissão de ação, porque não há exigência conceituai de um fa^er ativo: se a criança está ameaçada de morrer de fome por omissão de ação atribuível à mãe, as alternativas são ou alimentar a criança, ou obrigar a mãe a alimentar a criança;38 abrange, igualmente, a imprudência, porque o conceito de agressão não é restrito à violência dolosa:39 o motorista que insiste em manobras imprudentes do veículo em parque repleto de crianças deve suportar

36 CIRINO DOS SANTOS, Teoria do Crime,, 1993, p. 50.37 Assim ROXIN, Strafrecht, 1997, §15, n. 8, p. 553-554, n. 8; em posição contrária,

DREHER/TRÕNDLE, Strafgeset^buch und Nebengeset^e, 1995, §32, n. 4; também WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §14, II 1, p. 84-85.

38 Nesse sentido ROXIN, Strafrecht, 1997, §15, n. 6-11, p. 553-555.39 Assim, por exemplo, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §32,

II, 1 a, p. 338. No Brasil, no mesmo sentido, MESTIERI, Manual de Direito Pendi, 1999, p. 147; em posição contrária, mas inconvincente, ZAFFARONI/PIERANGEL^MantWakDsEitoPefôz/ brasileiro, 1997,n. 330,p. 583,exigem‘ agressão intmdonal”,exdumdoa“agtessãocz^6iíd’,porque seria “absurdo (...) causar um dano sem proporção alguma com a magnitude do mal”

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Capítulo 11 Antijuridicidade e Justificação

a legítima intervenção de terceiro para impedir as manobras e, se for o caso, tomar, temporariamente, a chave do veículo.

2. Injusta ou antijurídica é a agressão imodvada ou não provocada pelo agredido e, nesse sentido, marcada por desvalor de ação e de re­sultado,40 o que exclui ações justificadas (não há legítima defesa contra legítima defesa, estado de necessidade ou outras justificações) e ações conformes ao cuidado objetivo exigido.41

3. Atual é a agressão em realização ou em continuação, e iminente é a agressão imediata, ou seja, a legítima defesa pressupõe agressão em realização, em continuação ou imediata.42 A definição desse conceito requer a delimitação de seus extremos, representados pela imediação e pela continuação da agressão, porque o conceito de agressão em realização, situado entre aqueles limites temporais, não apresenta problemas de definição.43 O conceito de iminênáa é definido por dois critérios tradicionais, a teoria do começo da tentativa de JAKOBS,44 e a teoria dafasepreparatória (ou da solução eficiente), defendida por SCHMID- HAUSER,45 cujos problemas principais parecem ser os seguintes: a) a teoria do começo da tentativa pressupõe a maior proximidade possível da consumação, o que pode tornar a defesa ineficaz (muito tarde), ou a eficácia da defesa pode implicar lesões mais graves do agressor;b) a teoria da fase preparatória apresenta problemas na direção contrá­ria: uma agressão anunciada para o dia seguinte pode estar em fase preparatória, mas não é iminente (muito menos, atual), nem constitui

40 MAURACH/ZIPF, Strafrecht 1, 1992, §26, n. 8-21, p. 355-360.41 Assim, HAFT, Strafrecht, 1994, p. 84; ROXIN, Strafrecht, 1997, §15, n. 14, p. 556-557.42 Ver, entre outros, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §32, II,

1, p. 338; também, WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, §8, p. 97, n. 328.43 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §15, n. 21, p. 560.44 JAKOBS, Strafrecht, 1993,12/23, p. 389-390.45 SCHMIDHÀUSER, Strafrecht, Studienbuch, 1984, 6/61.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 11

agressão.46 Um terceiro critério proposto por KÜHL e ROXIN47 situa o conceito de iminência em posição intermediária, como momento fina l da preparação, cujo mérito principal parece ser integrar o critério da defesa efica% inseparável do conceito de legítima defesa, com o cri­tério do desencadeamento imediato, inerente ao conceito de tentativa: a aproximação do agressor com um porrete na mão para agredir, ou o movimento da mão do agressor em direção à arma, não configuram, ainda, tentativa, mas o último momento da fase preparatória, suficiente para caracterizar a iminênáa da agressão e, assim, justificar a defesa.

O conceito de agressão em continuação é menos problemático: a continuação da agressão ocorre no intervalo entre a consumação for­mal e a consumação material da ação típica e antijurídica, como nos crimes de duração ou permanência (seqüestro, violação de domicílio etc.) ou de estado (o furto, por exemplo, enquanto o ladrão foge com a coisa).48

4. Direito próprio ou de outrem são os bens jurídicos, as necessi­dades ou interesses individuais ou sociais que recebem proteção do Direito. O bem jurídico se distingue do objeto da ação precisamente como o conceito de interesse (ou necessidade) se distingue da coisa con­creta em que se realiza: por exemplo, a vida e a propriedade são bens jurídicos, enquanto o homem concreto e a coisa respectiva constituem objetos de ação.49 Todos os bens jurídicos individuais são suscetíveis de legítima defesa (vida, saúde, liberdade, honra, propriedade etc.), mas existe controvérsia quanto aos bens jurídicos sociais, a) bens jurídicos da comunidade (ordem pública, paz social, regularidade do tráfego de

46 Para a crítica dessas teorias, ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §15, n. 22-23, p. 560-561.47 KÜHL, Strafrecht, 1997, §7, n. 41; ROXIN, Strafrecht, 1997, §15, n. 24-25, p.

561-562.48 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §15, n. 28, p. 563.49 Nesse sentido HAFT, Strafrecht, 1994, p. 12-1 A.

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Capítulo 11 Antijuridicidade e Justificação

veículos etc.) são insuscetíveis de legítima defesa, porque a ação vio­lenta do particular produziria maior dano que utilidade e, afinal, parece inconveniente atribuir ao povo tarefas próprias da polícia,50 embora alguns autores admitam a defesa do ser social ou comunitário pelo indivíduo;51 b) bens jurídicos do Estado, como o patrimônio público, por exemplo (destruição de cabines telefônicas, danos em trens de metrô etc.), admitem legítima defesa do particular — não, porém, a pessoa jurídica do Estado, porque parece inadequado transformar o cidadão em lutador contra inimigos do Estado (espiões ou traidores, por exemplo).52

2. Ação justificada

A ação de defesa do agredido é a mesma unidade objetiva e subjetiva examinada como ação, em seguida como ação típica e ago­ra como ação típica justificada. Assim, a ação justificada de legítima defesa contém elementos objetivos e subjetivos e, nos casos especiais de legítima defesa com limitações ético-sociais, também o elemento normativo da permissibilidade da defesa.

50 Assim ROXIN, Strafrecht, 1997, §15, n. 36-39, p. 566-568. No Brasil, ZAFFARO- NI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 334, p. 588.

51 Por exemplo, MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, §26, n. 12-13, p. 357; SCHMI- DHÀUSER, Strafrecht, Studienbuch, 1984, 6/80.

52 Ver BLEI, Strafrecht, 1983, §39, II, 4; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §32, II, lb , p. 339-340; ROXIN, Strafrecht, 1997, §15, n. 40-41, p. 568-569.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 11

2.1. Elementos objetivos da legítima defesa

Os elementos objedvos da ação justificada consistem no empre­go moderado de meios de defesa necessários contra o agressor, eventual­mente examinados do ponto de vista da permissibilidade da defesa.

1. A necessidade dos meios de defesa é definida pelo poder de excluir a agressão com o menor dano possível no agressor: defesa protetiva, antes que agressiva; ameaça de violência, de preferência à violência; ferir, em vez de matar.53 Assim, a necessidade da defesa pode ser redefinida, do ponto de vista estático, como necessidade dos meios de defesa em face dos meios de agressão, e do ponto de vista dinâmico, como emprego moderado dos meios de defesa necessários. A definição da defesa necessária naquela dupla direção utiliza um critério objetivo ex ante, conforme o juízo de um observador prudente:54 não atirar contra o agressor, se é suficiente empurrá-lo ou fechar a porta para fazer cessar a agressão, por exemplo. Erros inevitáveis sobre a necessidade ou a moderação dos meios de defesa não afetam esse juízo objetivo anterior e, segundo difundida orientação poKtico-criminal, devem ser interpretados contra o agressor: existe legítima defesa real— e não meramenteputativa — no disparo da vítima contra seqüestrador que empunha arma descar­regada, porque o juízo objetivo ex ante de um observador prudente representaria a arma carregada.55

Entretanto, a defesa necessária não exige proporcionalidade entre meios de defesa e meios de agressão — a proporcionalidade na legítima defesa não tem por objeto bens jurídicos ou correlações de dano ameaçado e produzido —, excluída pelo princípio da afirmação do direito: é legítimo

53 HAFT, Strafrecht, 1994, p. 84-85; ROXIN, Strafrecht, 1997, §15, n. 42-43, p. 569-570.54 Comparar JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §32, II, 2b, p.

343; ROXIN, Strafrecht, 1997, §15, n. 46, p. 572; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §14, II 2, p. 86.

55 ROXIN, Strafrecht, 1997, §15, n. 46, p. 572.

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Capítulo 11 Antijuridicidade e Justificação

apunhalar agressor para evitar uma surra violenta — até porque o direito não precisa ceder ao injusto; mas a idéia de proporcionalidade entre meios de defesa e meios de agressão não pode ser inteiramente descartada, porque desproporcionalidades extremas são incompatíveis com o conceito de neces­sidade da defesa: não é legídmo adrar em meninos que furtam laranjas no quintal da casa.56 Assim, BERNSMANN,57 fundado no dever do Estado de proteger a vida, limita o direito de matar em legítima defesa às hipóteses de agressões contra a vida, o corpo (incluídas a tortura e as privações de liberdade duradouras) e a sexualidade, com exclusão de todas as outras hipóteses: atirar no ladrão, por exemplo, mesmo que seja o único meio de evitar o furto — como ainda admite a opinião dominante — não pode ser justificado pela legítima defesa.

A defesa necessária pode determinar alguns efeitos indesejados, cuja justificação depende de sua adequação aos meios necessários: efeitos indesejados adequados ao meio necessário são justificados (um soco necessário pode quebrar alguns dentes do agressor); efeitos indese­jados inadequados ao meio necessário não são justificados (a morte do agressor com um tiro de advertência descuidado).58 Efeitos indeseja­dos de dispositivos de proteção — por exemplo, a lesão de inocentes em armadilhas, cercas eletrificadas etc. — são sempre atribuíveis ao autor e, em qualquer hipótese, o emprego de mecanismos de proteção mortais é injustificável.59

2. A moderação no emprego de meios necessários é delimitada pela ex­tensão da agressão: enquanto persistir a agressão é moderado o uso dos meios necessários; após cessada a agressão, a continuidade do uso

56 Assim HAFT, Strafrecht, 1994, p. 84-86; ROXIN, Strafrecht, 1997, §15, n. 47, p. 572- 573. No Brasil, comparar MESTIERI, Manual de Direito P enall, 1999, p. 148.

57 BERSMANN, Überlegungen %ur tódlichen Notivehr bei nicht lebensbedrohlichen Angrijfen, ZStW 104 (1992), p. 326.

58 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §15, n. 45, p. 571-572.59 Assim também ROXIN, Strafrecht, 1997, §15, n. 51, p. 575.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 11

de meios definidos como necessários torna-se imoderada, configurando excesso de legítima defesa.

2.2. Elementos subjetivos da legítima defesa

Os elementos subjetivos da legítima defesa têm por objeto a situação justificante (agressão injusta, atual ou iminente, a bem jurídico próprio ou de terceiro) e consistem no conhecimento da situação justificante, para a teoria dominante,60 representada por KÜHL, OTTO e ROXIN, ou no conhecimento da situação justificante e na vontade de defesa, para respeitável opinião mino­ritária61 representada por WELZEL, JESCHECK/WEIGEND e MAURACH/ZIPF — em qualquer hipótese, com outros compo­nentes psíquicos e emocionais, como medo, raiva, vingança etc. O conhecimento (ou consciência) da situação justificante, como limiar subjetivo mínimo da legítima defesa, pode ser suficiente, mas a vontade de defesa, informada pelo conhecimento e condicionada pelas emoções do autor, é a energia psíquica que mobiliza a ação de defesa.

A ausência do elemento subjetivo significa dolo não justificado de realização do injusto e reduz a legítima defesa à existência objetiva da situação justificante (a mulher pensa atirar no marido de retorno da orgia noturna, mas atinge o ladrão armado tentando entrar na casa), com os seguintes desdobramentos: a) a ação típica dolosa não-justi-

60 KÜHL, Strafrecht, 1997, §6, n. 11, p. 123; OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §8, n. 52, p. 107; ROXIN, Strafrecht, 1997, §15, n. 111-112, p. 604-605.

61 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §14, I I 3, p. 83-84, n. 3;JESCHECK/WEI- GEND, Lehrbuch des Strafrechts, §31, n. IV, p. 328-331; MAURACH/ZIPF, Strafrecht 1,1992, §25, V, ns. 24-29, p. 3487349. No Brasü, FRAGOSO, U fões de Direito Penal, 1985, n. 164, p. 193; MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 145; ZAFFA- RONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 335, p. 588..

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Capítulo 11 Antijuridicidade e Justificação

ficada representa desvalor de ação atribuível à mulher, mas a existência da situação justificante elimina o desvalor do resultado e, porque o desvalor de ação não pode se converter em desvalor de resultado, a hipótese é definível como tentativa inidônea (na legislação alemã, punível); b) o desvalor de ação do comportamento típico doloso injustificado da mulher não permite ação justificada do agressor, porque o comportamento do agressor constitui a situação justificante que exclui o desvalor do resultado na ação daquela.62

2.3. A p erm is s ib i l id a .d e da legítim a defesa

O conceito de permissibilidade da defesa define limitações ético- sociais excludentes ou restritivas do princípio social da afirmação do direito que — com o princípio individual da proteção de bens ou interesses— fundamenta a legítima defesa. A literatura contemporânea confunde, às vezes, os conceitos de necessidade e de permissibilidade da defesa, mas parece inegável a existência de defesas necessárias não-permitidas por limitações ético-sociais relacionadas ao autor da agressão, às relações de garantia entre agressor e agredido, ao comportamento do agredido e à natureza da agressão.63

1. Agressões de incapazes, como crianças, adolescentes, doentes mentais ou, mesmo, bêbados sem sentido, criam para o agredido um leque de atitudes alternativas prévias, nas quais se concretizam as limitações ético-sociais da legítima defesa, válidas para os demais casos: primeiro, desviar a agressão, ou empregar defesas não-danosas; segundo, pedir socorro aos pais, professores, polícia etc.; terceiro, assumir o risco de pequenos danos; quarto, se impossíveis ou ineficazes as alternati­vas, então — e somente então — a defesa necessária pode, também, ser

62 ROXIN, Strafrecht,, 1997, §15, n. 111-112, p. 604-605.63 Conforme ROXIN, Strafrecht, 1997, §15, n. 53-90, p. 575-594.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 11

permitida.64

2. Agressões entre pessoas ligadas por relações de garantia fundadas na afetividade, no parentesco ou na convivência, como marido e mulher, pais e filhos etc., subordinam a legítima defesa às mesmas limitações ético-sociais mencionadas e, em regra, excluem resulta­dos de morte ou de lesões graves, exceto no caso de risco de lesões sérias (a mulher usa faca para defesa contra agressão do marido com objeto contundente) ou de maus tratos físicos duradouros ou continuados (a repetição de agressões e surras do marido contra a mulher, por exemplo).65

3. Agressão provocadapelo agredido para agredir o agressor constitui agressão dolosa injustificada contra o agressor e, portanto, exclui a legítima defesa, mas para respeitável opinião minoritária não exclui a legíti­ma defesa, ou porque não afeta a antijuridicidade da agressão,66 ou porque o direito não pode criar situações sem-saída, de renúncia à vida ou integridade corporal, por um lado, e de punição, por outro lado;67 entretanto, agressão provocada pelo agredido sem finalidade de agredir o agressor condiciona a legítima defesa às limitações ético-so- ciaís indicadas, mas é preciso distinguir a qualidade da provocação: se constitui comportamento antijurídico, como ocorre na maioria das situações de injúria, vias-de-fato, violação de domicílio, dano etc., a legítima defesa é, em princípio, excluída; se constitui comportamento situado ainda no terreno jurídico, como ocorre com gozações, troças

64 ROXIN, Strafrecht, 1997, §15, n. 57-58, p. 578.65 Assim GEILEN, TLingeschrankte Notwehr unter Lhegatten.?, JR 1976, p. 314; MARXEN, Die

“sosgakthischen” Gren^en derNotmhr, 1979; ROXIN, Strafrecht, 1997, §15, n. 83-84, p. 591.66 Assim BOCKELMANN, Notwehrgegen verschuldete Angnjfe, Honig-FS, 1970, p. 19;

HILLENKAMP, 1Yorsat^tat und Opferverhalten, 1981.67 Nesse sentido JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §32, III 2a,

p. 346-347; também SCHÕNCKE/SCHRÕDER/LENCKNER, Strafgeset^buch, Kommentar, 1991, §32, n. 57.

244

Capítulo 11 A ntijuridicidade e Justificação

ou pilhérias lesivas de valores ético-sociais, mas de antijuridicidade menor, indefinida ou inexistente, subsiste a legítima defesa com as referidas limitações ético-sociais.68

4. Agressões irrelevantes caracterizadas por contravenções, delitos de bagatela, crimes de ação privada ou lesões de bens jurídicos sem proteção penal, também condicionam a legítima defesa às limitações ético-sociais referidas, especialmente em relação à exclusão da morte ou de lesões graves no agressor, corolário da necessidade de proteção da vida e de rejeição de desproporções ex trem ai na justificação. A legítima defesa em relação a coisas mostra a extensão do dissenso ideológico na dogmática penal: para teóricos conservadores, como SCHMIDHAU- SER,70 unenhuma avaliação materialista de bens exclui a legítima defesa”, justificando a morte mesmo para proteger bagatelas; por outro lado, SCHROEDER71 afirma que a idéia de proporáonalidade na legítima defesa exclui a morte ou lesões graves na defesa de bagatelas ou de outras agressões irrelevantes.

3. Particularidades

a) Legítima defesa de outrem

68 Ver MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, §26, n. 46, p. 368-369; OTTO, Rechtsver- teidigung und Rechtsmissbrauch im Strafrecht, Würtemberger-FS, 1977, p. 129; ROXIN, Strafrecht, 1997, §15, n. 69, p. 584. No Brasil, nesse sentido, FRAGOSO, Lições de Direito Penal.' 1985, n. 164, p. 192; comparar, também, MESTIERI, Manual de Direito Penall, 1999, p. 147; ZAFFARONI / PIERAN GELI, Manual de Direito Penal brasileiro,1997, n. 331, p. 584-585.

69 ROXIN, Strafrecht, 1997, §15, n. 79, p. 589.70 SCHMIDHÀUSER, Strafrecht, Studienbuch, 1984, 6/75.71 SCHROEDER, Die Notwehr ais Indikatorpolitischer Grundanschauungen, Maurach-FS,

1972, p. 139.

245

Teoria do Fato Punível Capítulo 11

A legítima defesa de outrem, também definida como ajuda necessária, depende da vontade de defesa do agredido: só é possível legítima defesa de outrem, se existe vontade de defesa do agredido. A impossibilidade de defesa contra a vontade do agredido resulta do princípio da proteção individual' porque o agredido pode, por exemplo, ou não querer o uso de arma de fogo contra o ladrão, ou temer re­presálias na hipótese de intervenção de terceiro, como no caso de seqüestro, ou, simplesmente, não desejar a intromissão de terceiro, como em brigas de casais para resolver problemas de relacionamento e reencontrar a harmonia afetiva etc.72 Contudo, a vontade presumida do agredido autoriza a defesa de outrem, independente da verificação negativa posterior, que não ilegitima a ação de defesa já realizada, como indica exemplo terrível de JAKOBS:73 atua legitimamente quem salva vítima já inconsciente de tentativa de homicídio matan­do o agressor, embora se esclareça depois que a vítima reconhecera seu filho como agressor, e antes suportaria a própria morte do que a morte do filho.

b) Extensão da justificação

A justificação da legítima defesa alcança exclusivamente os bens jurídicos do agressor, porque o princípio da proteção individual se baseia na correlação agressão/defesa, e o princípio da afirmação do direito se realiza sobre o agressor, e não sobre terceiro estranho à agressão. A literatura delimita a justificação aos bens jurídicos do agressor, mas a exemplificação parece criticável: atirar contra as pernas do ladrão em fuga seria justificável (para a opinião dominante), mas atingir terceiro com dolo eventual não é justificável, nem exculpável; atirar contra

72 Nesse sentido, ROXIN, Strafrecht, 1997, §15, n. 99, p. 599.73 JAKOBS, Strafrecht, 1993,12/63, p. 408.

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Capítulo 11 Antijuridicidade e Justificação

assaltante em defesa de assalto é justificável, mas atingir terceiro com igual dolo eventual é injustificável, embora exculpável. Exceções são as liipóteses de destruição de objetos alheios utilizados para agressão ou pelo agressor.74

c) Excesso de legítima defesa

O excesso intensivo de legítima defesa (uso de meio desnecessá­rio) e o excesso extensivo de legítima defesa (uso imoderado de meio necessário), bem como a legítima defesaputativa, não configuram situ­ações de justificação, mas ou hipótese de exculpação legal’ ou hipótese de erro de tipo permissivo, pertencentes à categoria da culpabilidade (ver Culpabilidade e exculpação, adiante).

B) Estado de Necessidade

Historicamente, o estado de necessidade tem sido pensado a partir de três diferentes pontos de vista: primeiro, como espaço livre do direito, fundado na impossibilidade do ordenamento jurídico dis­ciplinar conflitos insolúveis; segundo, como justificação de conduta típica, fundada na preponderância ou equivalência do bem jurídico protegido; terceiro, como exculpação de conduta antijurídica, fundada na inexigibilidade de comportamento conforme ao direito, em hipó­teses de bens jurídicos equivalentes.75

Atualmente, esses argumentos estão na base da controvérsia

74 ROXIN, Strafrecht, 1997, §15, n. 106-109, p. 602-603.75 Ver HAFT, Strafrecht, 1994, p. 88.

247

Teoria do Tato Punível Capítulo 11

entre as duas teorias que pretendem definir a natureza jurídica do estado de necessidade: a) a teoria diferenciadora, que disciplina o estado de necessidade, simultaneamente, como justificação (na hipótese de bem jurídico protegido superior) e como exculpação (na hipótese de bens jurídicos equivalentes) — teoria adotada pela legislação penal alemã, por exemplo, que define expressamente o estado de necessidade justificante e o estado de necessidade exculpante; b) a teoria unitária, que disciplina o estado de necessidade exclusivamente ou como justificação, ou como exculpação, independente de ser o bem jurídico protegido superior ou equivalente— teoria adotada pela lei penal brasileira, que define o estado de necessidade exclusivamente como justificação, como indica o art.23 ,1, CP.76

1. Situação justificante

A situação justificante do estado de necessidade se caracteriza pela existência de perigo para o bem jurídico, que deve ser atual, involuntário e inevitável de outro modo, ou seja, sem lesão de outro bem jurídico, assim definida na lei penal:

Art. 24. Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.

76 Nesse sentido, FRAGOSO, UcÕes de Direito Penal, 1985, n. 167, p. 195-196; HEITOR COSTA JR., Teoria dos delitos culposos, 1988, p. 81; MESTIERI, Manual de Direito Penal 1 ,1999, p. 149; TAVARES, Direito Penal da negligência, 2003, p. 363; ZAFFARONI/ PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 337, p. 591.

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Capítulo 11 A.ntijuriãiádade e Justificação

a) O conceito de perigo é definido pela probabilidade ou possibilidade de lesão do bem jurídico ameaçado,” segundo um juízo objedvo ex ante de um observador inteligente, com bin ado , eventualmente, com o juízo do especialista na área,78 como propõe HIRSCH: o observador inteligente é representado por cidadão do círculo social do autor, com os conhecimentos e informações especiais deste; o especialista sobre perigos, por exemplo, de fogo é o bombeiro, de construções o en­genheiro, de doenças o médico etc. O perigo pode ser determinado por acontecimentos naturais, como naufrágios, incêndios, inundações, por fenômenos sociais como distúrbios civis, acidentes e, também, por outros comportamentos humanos, desde que não consdtuam a agressão antijurídica da legídma defesa.79

b) A atualidade do perigo no estado de necessidade não se confun­de com a atualidade da agressão na legítima defesa: define-se pela necessidade de proteção imediata — e não pelo dano imediato —, porque o adiamento da proteção ou seria impossível, ou determinaria maior risco ou dano, como no aborto necessário, por exemplo, realizado no terceiro mês de gestação para evitar dano na época do parto; igual­mente, pode ocorrer em perigos contínuos ou duráveis, atualizáveis em dano a qualquer momento segundo aquele juízo objetivo ex ante, como edifícios em ruína, doentes mentais perigosos para a comunidade (neste caso, aguardar agressões antijurídicas para proteção justificada pela legítima defesa pode ser ineficaz, ou implicar lesão maior na área dos bens jurídicos sacrificados) etc.80

c) O perigo deve ser involuntário, ou seja, não pode ser provocado

77 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, §16, n. 13, p. 615; também, JAKOBS, Strafrecht, 1993, 13/12, p. 415; SCHÕNCKE/SCHRÒDER/LENCKNER, Strafgeset^buch, Kommentar, 1991, §34, n. 15.

78 HIRSCH, Gefahr und Gefahrlichkeit, Arthur Kaufmann-FS, 1993, p. 553.79 Nesse sentido* ROXIN, Strafrecht, 1997, §16, n. 13, p. 615 e §19, n. 16, p. 833.80 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §16, n. 17, p. 617.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 11

intencionalmente pelo autor para proteção pessoal a custa do outro, mas admite produção imprudente, porque a limitação legal se restringe à vontade própria,01 e a antiga sentença “quem cria perigo, morra p or isso” *2 está ultrapassada: o barqueiro não pode impedir salvação de suicida arrependido em seu barco, sob argumento de culpa na produção da situação de necessidade; o motorista causador do acidente pode, justi- ficadamente, fugir do local do fato para evitar perigo real de agressão das vitimas.83

d) Enfim, o perigo deve ser inevitável de outro modo, o que signi­fica que o perigo não pode ser evitado conforme ao direito, ou que o perigo não pode ser superado sem lesão do bem jurídico sacrificado, ou, ainda melhor, que a lesão do bem jurídico é necessária para evitar o perigo84 — o que indica a natureza do outro componente do estado de necessidade, a ação necessária de proteção. A necessidade da lesão do bem jurídico para evitar o perigo não exclui — ao contrário, exige— que o meio utilizado (ou, o que é a mesma coisa, o fato pradcado) deva ser apropriado para evitar o perigo, excluindo agressões inúteis a bens jurídicos alheios, porque se o estado de necessidade é constituído pela existência de perigo (atual, involuntário e inevitável sem lesão), então a justificação consiste na eliminação desse perigo, podendo e devendo o autor (ao contrário da legítima defesa) considerar todas as alternativas possíveis para evitar o perigo, inclusive a ajuda de tercei­ros e, na hipótese de intervenção em bens jurídicos alheios, utilizar os meios menos danosos; entretanto, o autor pode usar uma opção

81 CIRINO DOS SANTOS, Teoria do crime, 1993, p. 53; nesse sentido, também, FRA­GOSO, Uções de Direito Penal.’ 1985, n. 168, p. 196; MESTIERI, Manual de Direito Penal, 1999, p. 149; com restrições, HEITOR COSTA JR., Teoria dos delitos culposos, 1988, p. 83-84; também, TAVARES, Direito Penal da negligência, 1985, p. 163.

82 BINDING, Handbuch des Strafrecht l, 1885, p. 775.83 Assim, KÜPER, Der “verschuldete” rechtfertigende Notstand, 1983, p. 32 s.84 LENCKNER, Das Merkmal der “Nicht-anders-A.bwndbarkeit” der Gefahr in den §§34,

35 StGB, Lackner-FS, 1987, p. 95; ROXIN, Strafrecht, 1997, §19, n. 18, p. 834.

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Capítulo 11 Antijuridicidade e justificação

entre várias possíveis, como invadir o domicílio de B (e não o de C ou de D) para chamar médico por telefone para atender ferido grave em acidente — exceto se estes tiverem oferecido o telefone.85

O conceito de inevitabilidade de outro modo abrange as situações de estado de necessidade defensivo e agressivo: no estado de necessidade defensivo, bens jurídicos do ameaçado prevalecem sobre o interesse do titular do bem jurídico criador do perigo (A mata/danifica o ca­chorro de B para evitar mordida); no estado de necessidade agressivo bens jurídicos do ameaçado prevalecem sobre o interesse do titular de bens jurídicos sem relação com o perigo, cuja destruição/dano é necessária para evitar o perigo (A destrói o valioso guarda-chuva de B, para evitar a mordida do cachorro de C).86

2. Ação justificada

A ação de proteção necessária também constitui a mesma unidade objetiva e subjetiva estudada como ação, depois como ação típica e agora como ação típiça justificada.

2.1. Elementos objetivos do estado de necessidade

A ação de proteção do bem jurídico deve ser (a) necessária para afas­tar ou excluir o perigo — como se deduz da exigência de constituir o único modo de evitar o perigo — e (b) apropriada para proteger o bem jurídico com a menor lesão em bens jurídicos alheios. Em síntese, a

85 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §16, n. 19, p. 617-8 e §19, n. 21, p. 835.86 WESSELS/BEULKE, Strafrecht, C.F. Müller, 2000, n. 293 e 295, p. 95.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 11

evitação do perigo exige determinada ação e a ação de evitação do perigo deve ser apropriada para proteger o direito ameaçado, sem lesões inúteis em bens jurídicos alheios. A teoria desenvolveu alguns critérios para indicar a natureza necessária e apropriada da ação de proteção, como a teoria do fim, a teoria da ponderação de bens e a moderna teoria da ponderação de interesses.

A teoria do fim, de LISZT e EBERHARD SCHMIDT, afir­ma serem justificadas ações realizadas para proteger bens jurídicos ameaçados, definidas como meio adequado para fin s reconhecidos pelo Estado.87 A teoria da ponderação de bens, desenvolvida por MEZGER no âmbito da teoria diferenciadora, considera justificadas ações lesivas de bens jurídicos de valor inferior para proteger bens jurídicos de valor superior.88 A teoria da ponderação de interesses é expressão contem­porânea da transformação da teoria do fim e da teoria da ponderação de bens: relativiza o caráter absoluto dos critérios anteriores e condiciona a juridicidade da ação de proteção à consideração de todas as cir­cunstâncias concretas do fato, relacionadas aos bens jurídicos em conflito, à natureza do perigo, à gravidade da pena etc.89 — embora o significado específico atribuído a circunstâncias reais do fato con­creto dependa da subjetividade do intérprete, como em qualquer decisão valorativa.

1. Assim, o critério do bem jurídico permite fixar a preponderância de certos valores em relação a outros, por exemplo: a) a preponde­rância do perigo concreto em relação ao perigo abstrato, ou mesmo em relação a outro perigo concreto: transportar ferido grave para hospital, com velocidade excessiva produtora de perigo concreto de dano (art.

87 EBERHARD SCHMIDT, Das Reichsgericht und der “übergeset^licbe Notstand”, ZStW 49,1929, p. 350.

88 MEZGER, Strafrecht, 1932, p. 239.89 Nesse sentido, ROXIN, Strafrecht, 1997, §16, n. 7, p. 611-612 e n. 22, p. 619-620.

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Capítulo 11 A.ntijundiádade e justificação

311, CTB), ou sob a influência do álcool (art. 306, CTB), se subsiste condição pessoal de dirigir veículo; b) a preponderância de valores da personalidade em relação a valores materiais: tomar chave de motorista para evitar que dirija embriagado; c) enfim, a preponderância de bens jurídicos reladvos ao corpo e à vida, em face de todos os demais: quebra de sigilo médico para evitar infecção por HIV por relações sexuais, ou por uso da mesma seringa entre dependentes de droga. Complemen- tarmente, a intensidade da lesão pode ser determinante em caso de bens jurídicos iguais, e importante em hipótese de bens jurídicos desiguais: pequena lesão à liberdade para evitar um grande prejuízo financeiro, por exemplo.90 Não obstante, existem situações controvertidas, como a extração forçada de sangue do único portador do tipo sangüíneo adequado para salvar uma vida humana: para um setor da doutrina, constitui injustificável lesão da dignidade humana; para outro setor, a salvação da vida exclui esse argumento, especialmente em agressões corporais pequenas e não-perigosas.91

2. Igualmente, o critério da pena — determinante na teoria da ponderação de bens—pode ser importante em certas situações,92 como na extração não consentida de órgãos de cadáver para salvar vida humana, ou na violação de domicílio para evitar estupro etc.

3. Certos perigos criados pela vítima podem engendrar situações de estado de necessidade defensivo: a) hipóteses de perigo criado por não-ação da vítima: lesão corporal leve em vítima sob ataque epiléptico para evitar destruição de vaso valioso (mas não lesão corporal grave, como fratura, ou comoção cerebral); lesão grave ou morte para proteger a vida ou saúde, como a morte da criança no ventre materno para salvar

90 Comparar ROXIN, Strafrecht, 1997, §16, n. 25-8, p. 621-622.91 Assim, BAUMANN/MITSCH, Strafrecht, 1995, §17, n. 78; também, JAKOBS, Stra­

frecht, 1993,13/25, p. 422-423; ROXIN, Strafrecht, 1997, §16, n. 43-45, p. 629-630.92 ROXIN, Strafrecht, 1997, §16, n. 23, p. 620.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 11

a vida da mãe — porque se ninguém é obrigado a suportar lesões sérias, e não é possível desviar ou pedir ajuda, abre-se aquele espaço livre do direito que admite ponderação de vida contra vida;93 b) hipóteses de legítima defesa preventiva, proprietário de bar coloca narcótico na be­bida de fregueses que ouvira combinarem assalto ao estabelecimento— porque existe perigo atual (mas não existe agressão iminente para permitir legítima defesa), cuja proteção posterior ou seria impossível, ou implicaria maior risco de morte ou lesão grave dos agressores.94

4. A questão crucial de todas as teorias refere-se à ponderação de vida contra vida, que parece não caber em fórmulas comuns porque, entre vidas em conflito, não existem diferenças de valor ou de quantidade:a) não existe diferença de valor entre vidas diferentes que autorize desligar aparelho de respiração de paciente com menores chances de sobrevivência, para ligá-lo em outro com maiores chances; ou que per­mita matar paciente de pequeno tempo de sobrevivência para assegurar vida maior de outro com órgãos do cadáver daquele; ou que justifique sacrificar vidas de valor inferior (as chamadas vidas sem valor vital) em proveito de vida de maior valor: o doente mental em favor do prêmio Nobel, o ancião em favor do jovem, o criminoso anti-social em favor do cidadão socialmente útil;95 b) não existe diferença de quantidade que permita, no conhecido exemplo de WELZEL, desviar um trem desgovernado da linha principal, evitando a morte de muitos, para uma linha secundária, determinando a morte de poucos;96 ou admitir a morte de uma pessoa, como exigência de quadrilha para evitar a morte de vários reféns.97

93 Comparar ROXIN, Strafrecht, 1997, §16, n. 68-70, p. 642-643.94 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §16, n. 73-6, p. 644-645.95 ROXIN, Strafrecht, 1997, §16, n. 29, p. 622-623.96 WELZEL, Zum Notstandsproblem, ZStW 63 (1951), p. 51.97 ROXIN, Strafrecht, 1997, §16, n. 30, p. 623.

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Capítulo 11 Antijuridiádade e Justificação

Algumas situações de perigo comum extraídas da literatura podem esclarecer a controvérsia entre as teorias: a) dois alpinistas ficam pen­durados em corda capaz de sustentar apenas um deles — e o alpinista da posição superior corta a corda abaixo dele, precipitando o com­panheiro no abismo;98 b) dois homens em balão defeituoso capaz de sustentar apenas um deles — e um lança o outro no espaço;99 c) barco com crianças em corredeira, sob perigo de afundar por excesso de peso — e o barqueiro joga algumas crianças na água para salvar a vida das demais;100 d) após 20 dias de fome e sede em jangada com pedaços de tronco do barco naufragado, o capitão e seu imediato sacrificam a vida do já enfraquecido grumete para sobreviver com seu sangue (o famoso caso do iate inglês Mignonette);m e) eutanásia de alguns doentes mentais, em cumprimento de ordens superiores do governo nazista, por médicos de instituições psiquiátricas para salvar a vida de todos os demais, que seriam sacrificados por médicos substitutos fiéis ao regime, em caso de recusa.102

A teoria diferenciadora, que distingue entre estado de necessidade justificante e estado de necessidade exculpante, admite apenas exculpação nas situações descritas, afirmando ser injustificável qualquer ponde­ração entre vidas humanas, com os seguintes argumentos: a) uma ética de valor raáonal exclui cálculos avaliativos ou critérios ligados a finalidades racionais em relação à vida humana, segundo WELZEL;103b) valores jurídicos não seriam simples valores utilitários, mas fusão de

98 MERKEL, Die Kollision rechtmãssigerlnteressen und die Schadenersat^pflicht bei rechtmàssigen Handlungen, 1895.

99 NEUBECKER, Zwang und Notstand in rechtsvergleichenderDarstellung, Bd. 1,1910.100 KLEFISCH, Die nationalso^alistiscbe Euthanasie im Blickfeld der Rechtsprechung und

Rechtslehre, MDR 1950, p. 261.101 PRÕCHEL, Die Vàlle des Notstands nach anglo-amerikanischem Strafrecht, 1975, p. 61.102 Bundesgerichtshof NJW 1953, p. 513; ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §16, n. 31, p. 624.103 WELZEL, M onatsschrftfur Deutsches V echt 1949, p. 375.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 11

convicções morais fundamentais da cultura contemporânea, conforme GALLAS;104 c) matar quem morrerá de qualquer modo representa, do ponto de vista prático, uma arbitrária redução da vida humana, segundo KÜPER105 e, do ponto de vista teórico, a morte matematicamente certa seria mera construção do pensamento, porque ninguém pode conhecer, com certeza, acontecimentos futuros, conforme ROXIN.106

Entretanto, respeitável opinião minoritária da própria teoria diferenciadora considera justificado reduzir um mal inevitável, com ar­gumentos poderosos: a) o direito não pode proibir salvar uma vida humana, se impossível salvar duas, como dizia WEBER;107 b) o prin­cípio da “usurpação de chance”, desenvolvido por OTTO para casos semelhantes, proíbe aniquilar as chances de sobrevivência de vítimas escolhidas em grupo maior, mas não se aplicaria a vítimas sem chance de sobrevivência, previamente escolhidas pelo destino, como no caso da corda dos alpinistas;108 c) enfim, a irracionalidade de certas situações existenciais pode qualificar todo comportamento, simultaneamente, como certo e errado, nos quais a decisão cabe à consáênáa de cada um, como propõe MANGAKIS.109

A teoria unitária da lei penal brasileira, que define estado de necessidade exclusivamente como justificação, admite todos os argu­mentos da posição minoritária da teoria diferenciadora, com os seguin­tes acréscimos: a) estudos recentes admitem áreas livres do direito em conflitos relacionados com situações de perigo comum ou de colisão

104 GALLAS, Pflichtenkollision ais Schuldausschliessungsgrund., Mezger-FS, 1954, p. 327.105 KÜPER, Grund- und Grm^fragen der mhferügendmPfüchlenkoUision im Strafrecht, 1979, p. 57.106 ROXIN, Strafrecht, 1997, §16, n. 34-35, p. 625.107 WEBER, Das JSJotstandsproblem und seine Losungen in den deutschen Strafgeset%entwürfen

von 1919 und 1925,1925, p. 30.108 OTTO, Pflichtenkollision und Recktsmdrigkãtsurteil.\ 1978, p. 29.109 MANGAKIS, Die Pflichtenkollision ais Gren^situation des Strafrechts, ZStW 84

(1972), p. 475.

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Capítulo 11 Antijuridicidade e Justificação

de deveres — portanto, não podem ser injustas ações que estariam fora da disciplina jurídica (vez Antijuridicidade e injusto, acima); b) admitir, na legislação brasileira, a hipótese supralegal de estado de necessidade exculpante, nos moldes da teoria diferenciadora incorporada na lei penal alemã, significaria mutilar a hipótese legal do estado de necessidade

justificante, adotado na linha da teoria unitária, reduzindo o alcance de justificação legal em favor de hipotética exculpação supralegal.’ em prejuízo do acusado.110

5. Finalmente, a ação de proteção necessária e apropriada de bem jurídico em perigo depende de condição definível como cláusula de razoabilida- de: a não-razoável exigência — ou a razoável exigibilidade — de sacrifício do bem jurídico protegido, nas circunstâncias (art. 24, CP).

O conteúdo da cláusula de ra^pabilidade da lei penal brasileira não se confunde com o conteúdo da cláusula de adequabilidade da legislação alemã, mas é equivalente: a não-ra^oável exigência refere-se ao sacrifício do bem jurídico protegido e a adequação do fato refere-se à capacidade da ação para excluir o perigo, mas os dois casos representam critérios gerais de valoração para definir a juridicidade da ação, porque existem ações necessárias e apropriadas para proteção do bem jurídico que são injustas, como a extração forçada de rim para transplante, por exemplo, em que seria razoável exigir o sacrifício do bem jurídico ameaçado, ou em que o fato praticado constitui meio inadequado para excluir o perigo. A contrapartida da cláusula da irrazpável exigência de sacrifício do bem jurídico ameaçado, para a justificação do estado de necessidade, é a razoável exigência de sacrifício do bem jurídico ameaçado, para a

110 No sentido do texto, COSTA JÚNIOR, Comentários ao código penal I, 1989, p. 205; também, MESTIERI, Manual de Direito Penall, 1999, p. 149-150 e 187; em posição contrária, reduzindo a justificação legal à hipótese de simples exculpação supralegal.’ na linha da teoria diferenciadora da lei penal alemã, FRAGOSO, Lições de Direito Penal.’ 1985, n. 168, p. 196; ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro,1997, n. 340, p. 594 e n. 382-383, p. 654-657.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 11

simples redução de pena:

Aj:t. 24, §2°. Embora seja razoável exigir-se o sacrijicio do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços.

A crítica de que tais cláusulas seriam ociosas,111 ou de que reali­zariam mera função de controle112 não parece prejudicar sua utilidade, embora alguns critérios alternativos ofereçam maior precisão, como a exigência de não lesionar a dignidade humana, por exemplo, um valor absoluto vinculante de todos os critérios.113

2.2. Elementos subjetivos do estado de necessidade

Os elementos subjetivos do estado de necessidade têm por ob­jeto a situação justificante (perigo atual, involuntário e inevitável de outro modo) e consistem no conhecimento da situação justificante, segundo a teoria dominante, ou no conhecimento da situação justi­ficante e vontade de proteção do bem jurídico, conforme a opinião minoritária, mas, em qualquer hipótese, admitem outros componentes psíquicos e emocionais como ambição, pagamento, busca da glória, etc.114 Assim como na legítima defesa, o conhecimento (ou consciên­cia) da situação justificante, como limiar subjetivo mínimo do estado de necessidade, pode ser suficiente, mas a vontade de proteção, infor­

111 Assim, SCHÕNKE/SCHRÕDER/LENCKNER, Strafgeset^buch, Kommentar, 1991, §34, n. 45.

112 Ver ESER/BURKHARDT, Strafrecht I, 1992, n. 39-46.113 Nesse sentido, ROXIN, Strafrecht, 1997, §16, n. 83-86, p. 650-651.114 Ver, entre outros, KÜHL, Strafrecht, 1997, §8, n. 183-184, p. 303; também, ROXIN,

Strafrecht\ 1997, §16, n. 91, p. 654. No Brasil, pela necessidade de consáênáa e vontade de proteção, FRAGOSO, Lições de Direito Penal' 1985, n. 169, p. 197; MESTIERI, Manual de Direito Penal 1, 1999, p. 149; ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 342, p. 597.

258

Capítulo 11 Antijuridicidade e justificação

mada pelo conhecimento e condicionada pelas emoções do autor, é a energia psíquica que mobiliza a ação de proteção necessária.

3. Posições especiais de dever

Algumas situações configuram posições especiais de dever que obri­gam a assumir ou suportar o perigo, como (a) o dever jurídico especial de proteção da comunidade, (b) o dever jurídico resultante da causação do perigo, (c) o dever jurídico da posição de garante e (d) o dever de suportar perigos somente evitáveis com danos desproporcionais a terceiros.

Art. 24, §1°. Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo.

1. O dever jurídico especial de proteção à comunidade incumbe a soldados, bombeiros, policiais, mas também a médicos e juizes, por exemplo: um médico não pode deixar de atender um doente sob alegação de perigo de contágio; um juiz não estaria justificado a decidir de um certo modo sob alegação de ameaça de morte.115

Os deveres de proteção à comunidade estão limitados aos perigos específicos da profissão: por exemplo, o policial em relação aos perigos da perseguição do autor de um crime, o médico em relação ao perigo de contágio de doenças etc. Não obstante, esse dever pode se estender à família do obrigado: numa catástrofe, o policial não pode deixar de proteger a comunidade para salvar a mulher ou filhos, por exemplo.116

115 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, §16, n. 56-57, 636-637 e §19, n. 40, p. 843. No Brasil, ver MESTIERI, Manual de Direito Penal 1, 1999, p. 150.

116 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §22, n. 41-43, p. 843-844 e n. 52, p. 848.

259

Teoria do Fato Punível Capítulo 11

2. O dever jurídico fundado na causação do perigo é controverddo:117 a produção da situação de necessidade deve ser objetivamente contrária ao dever, segundo a opinião dominante,118 ou objetiva e subjetivamente contrária ao dever, segundo a minoria.119 Contudo, ambas posições parecem cddcáveis, porque o dever de suportar o perigo dependeria da previsibilidade da situação de necessidade produzida com a causação do perigo — afinal, a simples auto-exposição a perigo não pode ser proibida:120 o autor convida companheiro para passeio perigoso de barco, que morre em naufrágio porque aquele se apodera da única bóia do barco.

Problemas ocorrem em situações em que a determinação e a expo­sição ao perigo relacionam-se a pessoas diferentes (o marido coloca a família em perigo e, para proteger a família, produz dano em tercei­ro) ou em que a pessoa protegida determina o perigo (a mulher do autor produz o perigo, e este a salva com dano a terceiro): em ambas hipóteses a literatura reconhece a inexigibilidade do autor suportar o perigo e, nesse aspecto, o dever resultante da causação do perigo difere dos deveres legais especiais, que exigem suportar o perigo.121

3. Os deveres jurídicos da posição de garante existem em relação às co­munidades de vida e de perigo: a) em comunidades de vida, a posição de garante do pai/marido, em catástrofes como incêndio, naufrágio, ou em acidentes de trânsito, por exemplo, exige suportar pessoalmente o perigo para proteger mulher e filhos, ou seja, o pai/marido não pode

117 ROXIN, Strafrecht, 1997, §22, n. 45-46, p. 845.118 Assim, MAURACH/ZIPF, Strafrecht \, 1992, §34, n. 5; também, WESSELS/BEU­

LKE, Strafrecht, 1998, p. 126, n. 441.1,9 Assim, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §44, III 2 a, p.

485-486; também, SCHÕNKE/SCHRÕDER/LENCKNER, Strafgeset^buch, Kommentar, 1991, §35, n. 20.

120 ROXIN, Strafrecht, 1997, §22, n. 45-46, p. 845-846; também BAUMANN/WEBER, Strafrecht, 1995, §23, n. 27; HRUSCHKA, Strafrecht nach logisch-analytischer Methoãe, 1988, 286.

121 ROXIN, Strafrecht, 1997, §22, n. 50-51, p. 847-848.

260

Capítulo 11 A.ntijuridiádade e Justificação

deixar de salvar membro da família sob alegação de perigo para a saúde ou integridade corporal próprias;122 b) em comunidades de perigo, os deveres de cuidado ou vigilância do guia de expedição na selva ou nas montanhas em relação ao grupo, ou do professor em relação aos alunos, exigem proteger membro do grupo ou da turma, suportando, pessoalmente, o perigo.123

4. O dever jurídico de suportar perigos somente evitáveis com danos despro­porcionais contra terceiros pode ser assim equacionado: a) o autor não pode produzir a morte ou dano grave em inocente para evitar dano corporal reparável — contudo, é admissível a morte de terceiro para evitar dano corporal grave, ou a morte de vários para evitar a própria morte; b) situações de perigo para o corpo, como ameaça de quebrar um braço ou sofrer uma contusão séria, admitem evitação mediante dano equivalente, mas excluem matar ou aleijar; c) situações de peri­go consistentes em pequena probabilidade de perder a vida, podem admitir lesão, mas não a morte de terceiros.124

Entretanto, os limites do dever jurídico ligado às posições especiais de dever podem ser esclarecidos por alguns parâmetros gerais:

a) primeiro, o dever legal de enfrentar o perigo não é absoluto, ces­sando em face de certeza ou de probabilidade de morte ou de lesão grave, porque o direito não pode exigir renúncia à vida ou aceitação de graves lesões à saúde ou ao corpo;125

b) segundo, conflitos de deveres de ação podem constituir, conforme a

122 SCHÕNKE/SCHRÕDER/LENCKNER, Strafgeset^buch, Kommentar, 1991, §34, n. 34.

123 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §22, n. 54, p. 849.124 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, §22, n. 54-55, p. 849-850.125 ROXIN, Strafrecht, 1997, §16, n. 56, p. 636-637. No Brasil, ver MESTIERI, Manual

de Direito Penal I, 1999, p. 150-151.

261

Teoria do Fato Punível Capítulo 11

teoria dominante, hipóteses de justificação:126 o pai só pode salvar um dos dois filhos em perigo simultâneo de afogamento, com pere- cimento do outro; o médico só pode atender um de dois pacientes em simultâneo perigo de vida, com morte do outro. A opinião de que constituiriam meros casos de exculpação,127 sob o argumento de que escolhas pessoais representariam arbitrário abandono de vidas huma­nas, parece insubsistente: a antijuridicidade supõe a possibilidade de comportamento jurídico alternativo e, afinal, existe diferença entre o esforço para salvar um e nenhum esforço para salvar nenhum.128

c) terceiro, alguns critérios de justificação, como a relação entre os deveres, o valor do bemjurídico, a gravidade do perigo etc., podem ser decisivos: 1) a relação entre os deveres: se os deveres são desiguais, prevalece o maior; se iguais, qualquer deles; 2) o valor do bem jurídico: em incêndio de museu, a salvação da criança, não do quadro valioso; 3) a gravidade do perigo: proteger a vítima de lesão grave, não a vítima de lesão leve; 4) relações entre dever especial de garantia e dever geral de solidariedade: o pai deve salvar o filho, e não a criança alheia, na hipótese de perigo simultâneo de afogamento, pela precedência do dever de garantia; o pai deve salvar a criança alheia ferida gravemente, e não o filho ferido levemente, pela precedência do valor do bem jurídico ameaçado em relação ao dever de garantia;129 5) hipóteses de culpa na produção da situação de necessidade, supondo igualdade do perigo, são polêmicas: o médico pode atender primeiro o culpado e, depois, a vítima, ou vice-

126 JAKOBS, Strafrecht, 1993, 15/6-15, p. 445-449; ROXIN, Strafrecht, 1997, §16, n. 101-105,. p. 658-660; SCHÕNKE/SCHRÕDER/LENCKNER, Strafgeset^buch, Kommentar, 1991, §32, n. 7; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, §16, p. 234- 235, ns. 735-737.

127 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, §33, V, p. 365-368; HAFT, Strafrecht, 1994, p. 101.

128 ROXIN, Strafrecht, 1997, §16, n. 105-106, p. 660.129 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §16, n. 109-111, p. 661-662.

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Capítulo 11 Antijuridicidade e Justificação

versa, indiferentemente;130 o médico deve atender primeiro a vítima, depois o culpado.131 Em qualquer caso, não há diferença qualitativa (bom/mau, novo/velho, inteligente/bobo) ou quantitativa (salvar um na direção sul, salvar dois na direção norte) entre vidas humanas.

A lesão do deverjurídico de suportar o perigo determina redução da pena, em todas as hipóteses mencionadas, embora alguns autores exclu­am liipóteses de lesão de deveres jurídicos especiais, por razões de prevenção geraP2 ou por ser incompatível com o principio da culpabilidade.133

4. Conflito de interesses do mesmo portador

Situações de conflito de interesses diversos do mesmo portador podem ser decididas de modo diferente, dependendo da capacidade de consen­timento e da disponibilidade do bem jurídico respectivo: a) abrir corres­pondência alheia para informações necessárias ao destinatário em viagem, ou realizar cirurgia urgente em acidentado inconsciente, são ações justificadas pelo consentimento presumido do titular do bem jurídico, com fundamento em juízo hipotético de provável decisão igual, se fosse perguntado;134 b) lançar criança pela janela com risco de ferimento grave para salvar de morte certa no prédio em chamas, ou impedir suicídio contra a vontade do suicida, podem ser ações justificadas pelo estado de necessidade — porque os portadores dos bens jurídicos não têm capacidade de consentimento, ou não têm

130 SCHÕNKE/SCHRÕDER/LENCKNER, Strafeeset^bucb, Kommentar, 1991, §32, n. 74.131 BLEI, Strafrecht, 1983, §88,1 4 a.132 É a opinião de ROXIN, Strafrecht., 1997, §19, n. 56, p. 850.133 Nesse sentido, JESCHECK/WEIGEND, "Lehrbuch des Strajmhts, 1996, §44, IV 2, p. 488.134 JAKOBS, Strafrecht, 1993,13/34, p. 426; ROXIN, Strafrecht, 1997, §16, n. 87-88, p. 652.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 11

disponibilidade do bem jurídico135—, mas constituem ações atípicas por redução ou ausênda de risco de lesão do bem jurídico.

C) Estrito cumprimento de dever legal

O estrito cumprimento de dever legal constitui justificação exclusiva do funcionário público: compreende hipóteses de intervenção do funcionário público na esfera privada para assegurar o cumprimento da lei ou de ordens superiores da administração pública, que podem determinar a realização justificada de tipos legais, como coação, pri­vação de liberdade, violação de domicílio, lesão corporal etc.

1. Situação justificante

A situação justificante do estrito cumprimento de dever legal é constituída pela existência de lei em sentido amplo (lei, decreto, regu­lamento etc.), ou de ordem de superior hierárquico, determinantes de dever vinculante da conduta do funcionário público ou assemelhado.136

O estrito cumprimento de dever legal exclui lesão de direitos humanos fundamentais — também chamados direitos suprapositivos, porque representam exigências elementares de justiça da humanidade civili­

135 Assim, WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §14, IV, p. 91-92; também WES­SELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, §8, p. 95, n. 322.

136 Comparar CIRINO DOS SANTOS, Teoria do Crime, 1993, p. 55; também, MES- TIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, 151-152.

264

Capítulo 11 Antijuridicidade e Justificação

zada, definidos em tratados e convenções internacionais —, como, por exemplo, homicídios dolosos para impedir fuga de presos.

2. Ação justificada

A ação justificada pressupõe atuação do funcionário público nos estritos limites do dever, excluindo, portanto, rupturas dos limites do dever (a) na aplicação da lei ou (b) no cumprimento de ordens superiores.

2.1. Ruptura dos limites do dever na aplicação da lei

A ruptura dos limites do dever na aplicação da lei pelo funcio­nário público, no emprego de coação ou na privação de liberdade, por exemplo, é freqüente e inevitável do ponto de vista estatístico, e pode determinar duas conseqüências imediatas: primeiro, excluir a justificação da conduta; segundo, permitir a legítima defesa do particular agredido.137 Por isso, a dogmática moderna desenvolveu o conceito de uma antijuridicidade especial para o funcionário público, cujos limites ampliados poderiam justificar ações que, dentro dos limites comuns do conceito, seriam antijurídicas.138 A antijuridicidade especial d o funcionário público teria alguns pressupostos objetivos: a) competên­cia material e territorial para a ação, com exclusão de ações fora das atribuições ou fora do território respectivo; b) forma prescrita em lei (por exemplo, prisão com ordem escrita e fundamentada de autoridade

137 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §17, n. 1-2, p. 667-668.138 Assim, LENZ, Die Dimsthandkmg und íhre Rechtmãsúgkâtin §113 StGB, Diss. Bonn, 1987.

265

Teoria do Fato Punível Capítulo 11

judiciária competente); c) observância dos princípios da necessidade e da proporcionalidade.139 A juridicidade da ação não seria excluída por erros normais sobre os pressupostos objetivos, ocorridos em exame da situação conforme ao dever — por exemplo, o oficial de jusdça entra na casa errada — ou seja, somente erros graves indicadores de culpa grosseira seriam capazes de deslegidmar a ação.140

Entretanto, a teoria de uma antijuridicidade especial parece criticá- vel: primeiro, o conceito de antijuridicidade especial está em contradição com a dogmática penal, que não trabalha com dupla n o çã o de antijuri­dicidade, uma normal para o comum dos mortais, outra especial para o funcionário público; segundo, intervenções oficiais sem observância dos pressupostos legais não geram dever de tolerância; terceiro, a boaje do funcionário público pode excluir o dolo, mas não exclui a antijuridicidade da ação e, assim, não faz o injusto virar justo;141 quarto, o sentimento de imunidade do funcionário público ampliaria práticas ilegais ou arbitrárias do poder;142 quinto, o Estado Democrá­tico de Direito garante respeito às liberdades do cidadão, exige estrita observância da legalidade pelo funcionário público, e não atribui ao funcionário público o privilégio de errar.143

Em conclusão, pode-se dizer o seguinte: o erro inevitável do funcionário público, ocorrido em exame da situação conforme ao dever, ou seja, com o emprego do cuidado devido, exclui o dolo e a imprudência e, por conseqüência, o desvalor da ação, impedindo o exercício da legítima defesa; mas o erro evitável do funcionário público

139 Nesse sentido, HAFT, Strafrecht; 1994, p. 113.140 LACKNER, Strafgesete^buch mitFLrlãuterungen, 1995, 21a ed., §113, n. 12.141 ROXIN, Strafrecht, 1997, §17, n. 9, p. 671.142 Ver THIELE, Zum Ikechtmãssigkeitsbegriff bei §113, Abs. 3 StGB, JR 1975, p. 353.143 Assim pensava JELLINEK, Verwaltungsrecht, 1931, p. 373.

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Capítulo 11 Antijuridicidade e justificação

não exclui o desvalor da ação e autoriza o exercício da legítima defesa, embora com as necessárias limitações ético-sociais.144

2.2. Cumprimento de ordens antijurídicas

O cumprimento de ordens superiores antijurídicas é resolvido conforme a evidência de sua natureza típica: a) ordens superiores antiju­rídicas de evidente natureza típica não são obrigatórias para o subordina­do, que responde pelo injusto praticado: delegado ordena subordinado espancar suspeito para obter confissão; superior determina motorista embriagado dirigir veículo etc.; b) ao contrário, ordens superiores antijurídicas de natureza típica oculta ou duvidosa são obrigatórias para o subordinado, que não responde pelo injusto praticado: prisões pro­cessualmente admissíveis; disparo sobre seqüestradores para libertar reféns; prisão de inocente fundado em forte suspeita etc.145

O cumprimento de ordens superiores antijurídicas obrigatórias, ou seja, de ordens antijurídicas de natureza típica oculta ou duvidosa, é objeto de controvérsia na literatura, resolvendo-se como justificação ou como exculpação: a) justificação sob o argumento de que’a obrigação de cumprir a ordem é incompatível com a exposição do subordinado à legítima defesa;146 b) exculpação, porque o injusto não se transforma em justo e o que o superior não pode, o inferior também não pode:147 solução adotada pela lei penal brasileira (art. 22, CP), que pune so­mente o autor da ordem (ver Culpabilidade e exculpação, adiante).

144 Nesse sentido, ROXIN, Strafrecht, 1997, §17, n. 13-14, p. 673-674.145 HAFT, Strafrecht, 1994, p. 113.146 JAKOBS, Strafrecht, 1993,16/14, p. 458-459;JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch

des Strafrechts, §35, II 3, p. 394-395.147 MAURACH/ZIPF, Strafrecht 1, 1992, §29, n. 7, p. 408.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 11

3. Elementos subjetivos do estrito cumprimento de dever legal

Os elementos subjetivos do estrito cumprimento de dever l^a/consistem no conhecimento da situação justificante (a existência de dever legal), ou no conhecimento da situação justificante e vontade de cumprir o dever legal, como prender, coagir etc. — em qualquer hipótese, com outros componentes psíquicos e emocionais, como medo etc.

D) Exercício regular de direito

O exercido regular de direito justifica ações do cidadão comum definidas como direito e exercidas de modo regular pelo titular.

1. Situações justificantes

A dogmática moderna reconhece dois grupos de hipóteses como situações justificantes do exercício regular de direito: a) a atuação pro magistratu\ b) o direito de castigo.1. A atuação p r o m a g is t r a tu compreende situações em que o par­ticular é autorizado a agir porque a autoridade não pode atuar em tempo, como a prisão em flagrante e a auto-ajuda.

A prisão em flagrante realizada pelo particular requer (a) certeza148 ou, pelo menos, forte suspeita149 de autoria, (b) fato típico e antiju-

148 JAKOBS, Strafrecht, 1993, 16/16, p. 459; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, §35, IV 2, p. 398.

149 ROXIN, Strafrecht, 1997, §17, n. 24, p. 679.

268

Capítulo 11 Antijuridicidade e justificação

rídico — excluídas, portanto, ações preparatórias e justificadas, e (c) suspeita de fuga (juízo de probabilidade muito limitado no caso con­creto, mas normal em liipóteses de crimes graves e clandestinos) ou impossibilidade de identificação, como falta ou recusa de apresentação de documento — exceto hipóteses de conhecimento da identidade pessoal ou do endereço do autor.150

A auto-ajuda compreende ações diretas sobre pessoas (prender, eliminar a resistência) ou coisas (tomar, destruir), que não constituem hipóteses de legítima defesa, nem de prisão em flagrante: após o furto, o proprietário encontra, por acaso, o ladrão de posse da coisa furtada, prende-o, elimina a resistência e recupera a posse da coisa.151 No Direito Penal brasileiro, a auto-ajuda pode ser considerada hipó­tese de exercício regular de direito, ou constituir causa supralegal de justificação, com as mesmas conseqüências.

2. O direito de castigo tem por objeto a educação de crianças no âmbito da família, compete originalmente aos pais em relação aos filhos, mas não se estende aos filhos alheios — embora possa ser exercido por professores e educadores no âmbito da escola, com o consentimento expresso ou presumido dos responsáveis.

Alguns autores consideram que o direito de castigo com fins educativos exclui o próprio tipo,152 mas para a opinião dominante constitui justificação,153 embora o castigo corporal como método de educação familiar não mereça aplausos.

150 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, §17, n. 27, p. 681.151 ROXIN, Strafrecht, 1997, §17, n. 29, p. 682.152 EB. SCHMIDT, Bemerkungen %ur Rechtsprechung des Bundesgerichtshofs %ur Frage des

Züchtígungsrechtes derLebrer, 1959, p. 519; também, KIENAPFEL, Kórperliche Züchtigung und so^iale Adãquan^im Strafrecht, 1961, p. 101.

153 ROXIN, Strafrecht, 1997, §17, n. 34, p. 684.

269

Teoria do Fato Punível Capítulo 11

2. Ação justificada

A ação justificada na prisão em flagrante e na auto-ajuda se limita às condutas típicas indispensáveis para conduzir o preso à autoridade, ou para recuperar a posse da coisa furtada, como lesão corporal leve, privação da liberdade etc., excluindo lesão corporal grave e emprego de armas.154 A ação justificada no direito de castigo compreende, igualmente, ações típicas como lesões leves, privação da liberdade, coações etc., excluindo sangramento, fratura ou violências indignificantes, como dar pontapés, deixar nu, chicotear, acorrentar etc., que constituem, em face da intangibilidade do direito à dignidade e à integridade corporal, abuso não justificado do direito de castigo.155

3. Elementos subjetivos no exercício regular de direito

O elemento subjetivo do exercício regular de direito consiste no co­nhecimento da situação justificante (prisão em flagrante, auto-ajuda e direito de castigo), ou no conhecimento da situação justificante e vontade de prender, de recuperar a coisa ou de corrigir — em qualquer hipótese, com outros componentes psíquicos e emocionais, como raiva, desgosto etc.

154 Ver MESTIERI, Manual de Direito Venal I, 1999, p. 152.155 HAFT, Strafrecht, 1994, p. 115; também, ROXIN, Strafrecht, 1997, §17, n. 35, p.

684-685.

270

Capítulo 11 Antijuridicidade e justijicação

E) Consentimento do titular do bem jurídico

O consentimento do titular do bem jurídico — ou consentimento do ofendido— constitui causa supralegalde exclusão da antijuridicidade ou da própria tipicidade e consiste na renúncia à proteção penal de bens jurídicos disponíveis156 — ou seja, todos os bens jurídicos individuais, exceto a vida. O consentimento do titular do bem jurídico pode ser real ou presumido, mas a dogmática contemporânea diverge nos efeitos atribuídos ao con­sentimento real’ embora haja consenso sobre a natureza justificante do consentimento presumido. A opinião dominante, representada por JESCHE­CK/WEIGEND, MAURACH/ZIPF e outros, baseada em distinção de GEERDS, define o consentimento real ou como destipificante, ou como justificante:. o consentimento real sob forma de concordânáa (Einverstand- nis) teria efeito excludente do tipo e o consentimento real sob forma de consentimento (Einwilligung), teria efeito excludente da antijuridicidade.157 A opinião minoritária, representada por ROXIN, atribui ao consentimento real somente efeito excludente do tipo, porque configuraria exercício de liberdade constitucional de ação do portador do bem jurídico:158 se o consentimento real do portador do bem jurídico significa exercício de liberdade constitucional de ação, então não pode significar ação típica, com suas funções de ratio essendi ou de ratio cognoscendi da antijuridicidade, excluída pela justificação do consentimento do ofendido.

Outros argumentos favoráveis à concepção do consentimento real como excludente do tipo seriam os seguintes: a) o consentimento

156 MAURACH/ZIPF, Strafrecht 1,1992, §17, III, 1, n. 36, p. 227.157 Ver GEERDS, Linmlligung undEinverstándnis des Verlet^ten im Strafrecht, in: GA, Gol-

tdammers Archiv fiir Strafrecht, 1954, p. 262; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, §34 ,1, p. 372-376; MAURACH/ZIPF, Strafrecht 1, 1992, §17, III, 1, n. 32, p. 225.

158 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §13, n. 12, p. 462.

271

Teoria do Tato Vunível Capítulo 11

real, como renúncia à proteção penal de bens jurídicos disponíveis, exclui o desvalor de resultado e, por conseqüência, a ação consentida não representa desvalor de ação, descaracterizando o próprio tipo de crime; b) o consentimento real exprime desinteresse na proteção do bem jurídico e, portanto, indica situação de ausência de conflito— ao contrário do sistema de justificações, fundado na existência de situações de conflito; c) finalmente, o argumento de que não existe diferença semântica entre concordância excludente do tipo e consentimento excludente da antijuridicidade — por exemplo, na injúria, na privação de liberdade, na revelação de segredos etc., parece decisivo.159 Do ponto de vista prático, não há diferença entre efeito destipificante e efeito justificante do consentimento real, por duas razões: primeiro, o fundamento jurídico necessário para destipificar é o mesmo exigido para justificar a ação; segundo, a conseqüência jurídica da exclusão do tipo é idêntica à da exclusão da antijuridicidade, variando apenas o nome do instituto jurídico respectivo. Mas, além dos argumentos teóricos, a própria economia dogmática aconselha atribuir ao consen­timento real efeito excludente da tipicidade,160 embora nada impeça atribuir-lhe efeito de exclusão da antijuridicidade, como causa supralegal de justificação.

1. Consentimento real

O consentimento real do ofendido, no caso de bem jurídico disponí­vel' tem eficácia excludente da tipicidade da ação, porque o tipo legal protege a vontade do portador do bem jurídico, cuja renúncia repre­

159 ROXIN, Strafrecht, 1997, §13, n. 17-22, p. 464-467.160 Outra posição, aqui modificada, em CIRINO DOS SANTOS, Teoria do Crime, p. 57.

272

Capítulo 11 Antijuridicidade e Justificação

senta exercício de liberdade constitucional de ação.161 Com exceção da vida, todos os bens jurídicos individuais, inclusive a integridade e saúde corporais — mesmo no caso de lesões graves, como mostra a prática de esportes marciais —, são disponíveis.

a) Objeto do consentimentoO consentimento do titular de bem jurídico individual disponível

pode ter por objeto a liberdade pessoal' no caso de seqüestro ou cárcere privado consentido; a liberdade sexual.’ nas relações sexuais consentidas— exceto hipóteses de absoluta incapacidade de decisão válida; a pro­priedade privada, em subtrações ou apropriações consentidas de coisa alheia móvel etc.162

O poder de disposição de determinados bens jurídicos, como a saúde ou integridade corporal, pode depender da extensão, da fina­lidade ou da adequação social da lesão respectiva: o consentimento real não exclui a tipicidade de lesões corporais graves em brigas de rua, mas exclui a tipicidade de lesões corporais graves em esportes mar­ciais regulamentados, como boxe, caratê, judô etc., especialmente no gênero conhecido como vale-tudo; igualmente, pode-se admitir efeito excludente da tipicidade em lesões sado-masoquistas consentidas entre adultos e sem dano social, realizadas na esfera inviolável da vida privada da pessoa humana (art. 5o, X, CR e 21, CC).

A proibição legal (art. 15, CC) de tratamento médico e de inter­venções cirúrgicas contrárias à vontade do paáente, mesmo em casos de risco de vida, institui o consentimento real do titular do bem jurídico

161 MAURACH/ZIPF, Strafrecht 1,1992, §17, III, 1, n. 36, p. 227; ROXIN, Strafrecht,1997, §13, n. 11-14, p. 461-462.

162 CIRINO DOS SANTOS, Teoria do crime, 1993, p. 57; comparar FRAGOSO, Lições de Direito Venal, 1985, n. 176, p. 199-100; MESTIERI, Manual de Direito Venall, 1999, p. 152-153.

273

Teoria do Tato Punível Capítulo 11

fundamento excludente da tipicidade nas cirurgias médicas, em geral, incluindo esterilizações, extração de órgãos em pessoas vivas para transplante, cirurgias corretivas de anomalias sexuais em indivíduos transexuais etc., que constituem lesões corporais graves.163 A nova lei civil brasileira proíbe a disposição do corpo com redução permanente da integridade física ou contrária aos bons costumes (art. 13, CC), mas permite a extração em vida de órgão duplo, de parte de tecido ou partes do corpo para transplante em cônjuge ou parente consangüíneo até 4o grau, obedecidos os requisitos da legislação especial (JLei 9.434/97) sobre capacidade do doador, gratuidade da remoção, necessidade terapêutica comprovada do receptor, ausência de risco ou de mutila­ções ou deformações inaceitáveis para o doador e prévia autorização judicial (exceto no caso de medula óssea).

Finalmente, o consentimento real é ineficaz em relação à vida humana, bem jurídico individual indisponível — tabu só quebrado pela legítima defesa e por certas situações do estado de necessidade —, valendo o consentimento real apenas como redução de pena (a eutanásia, por exemplo); igualmente, o consentimento real é ineficaz em relação a bens jurídicos da comunidade, como a falsificação de documento, que fere a credibilidade da circulação jurídica etc.164

b) Capacidade e defeito de consentimento

A capacidade de consentimento depende da capacidade concreta de compreensão ou de juízo do titular do bem jurídico afetado, deter- minável como questão de fato independente da idade do portador do

163 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §13, n. 38, p. 475; também, SCHÕNKE/SCHRÕ- DER/STREE, Strafgeset^buch, Kommentar, 1991, 24a ed., §226 a, n. 6.

164 Nesse sentido, também FRAGOSO, Uções de Direito Penal, 1985, n. 176, p. 199-100; MESTIERI, Manual de Direito P enall, 1999, p. 152-153.

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Capítulo 11 Antijuridicidade e justificação

bem jurídico,165 ou do critério civilístico de capacidade relativa; não obstante, como parecem sugerir os crimes sexuais, a idade é o primeiro indicador de capacidade de consentimento destipificante ou justifi­cante em Direito Penal: até 14 anos, incapacidade de consentimento; entre 14 e 18 anos,possível capacidade de consentimento; a partir de 18 anos, capacidade de consentimento.

A capacidade de consentimento deve existir como capacidade concreta de compreensão do significado e da extensão do ato consentido, ou seja, da natureza e das conseqüências da renúncia ao bem jurídico respectivo;166 por outro lado, o consentimento deve ser expressão de vontade livre do titular do bem jurídico e, assim, pode ser excluído por defeitos de vontade determinados por engano, erro ou violência. O engano exclui o consentimento se determinar erro do ofendido sobre espécie e extensão do dano ao bem jurídico ou sobre intensidade do perigo para o bem jurídico: B aplica injeção de tranqüilizante em A, omitindo informação sobre efeito prejudicial à saúde; conseqüen­temente, o erro exclui o consentimento sempre que ocorrer como expressão de equívoco pessoal ou de engano provocado por terceiro; enfim, a violênáa real ou ameaçada exclui o consentimento porque bloqueia a vontade do titular do bem jurídico.167

c) Manifestação do consentimento

A principal teoria sobre manifestação do consentimento é a cha­mada teoria da mediação psíquica, segundo a qual o consentimento deve

165 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strajrecbts, §34, IV 4, p. 382; ROXIN, Strafrecht, 1997, §13, n. 51, p. 480.

166 HAFT, Strafrecht, 1994, p. 102-105.167 HAFT, Strafrecht, 1994, p. 107-108; ROXIN, Strafrecht, 1997, §13, n. 68-72, p.

488-495.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 11

ser comunicado ao autor;168 a teoria minoritária da direção da vontade exige apenas a existência psíquica da vontade no ofendido, indepen­dente de comunicação exterior169 — mas pensamento não-expresso não constitui manifestação de vontade e, conseqüentemente, não pode produzir efeitos jurídicos.170 A comunicação do consentimento é decisiva, porque o autor deve agir dentro dos limites do consentimento171 e, para isso, o consentimento deve ser anterior ao fato — consentimento posterior é irrelevante (a vítima presenteia o ladrão com a coisa furtada, após o furto); por outro lado, assim como o consentimento pode ser manifestado, pode também ser revogado a qualquer momento. Não obs­tante, o consentimento pode ser expresso ou tácito, dispensando o uso de palavras: na relação sexual, o consentimento pode ser manifestado de qualquer modo, como, por exemplo, a reação do portador do bem jurídico protegido.172

Se o portador do bem jurídico é incapaz, o consentimento pode ser manifestado pelos pais ou responsáveis, como nas cirurgias em filhos menores: na liipótese de recusa abusiva de consentimento dos pais em cirurgia necessária, o consentimento pode ser suprido pelo Curador de Menores ou, se impossível, o próprio médico pode agir justificado pelo estado de necessidade; na hipótese de conflito entre representante legal e adolescente capaz de consentimento, prevalece a vontade do adolescente — que, também, deve ser a referência para a hipótese de consentimento presumido. Mas o representante legal não pode consentir pelo portador do bem jurídico nas chamadas decisões existenciais,

168 Nesse sentido, entre outros, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, §34, IV 2, p. 382; SCHÕNKE/SCHRÕDER/LENCKNER Strafgeset^buch, Kommentar, 1991, §32, n. 43.

169 MEZGER, Strafrecht, 1949, p. 209; JAKOBS, Strafrecht, 1993, 7/115, p. 245.170 ROXIN, Strafrecht, 1997, §13, n. 44, p. 478.171 HAFT, Strafrecht, 1994, p. 102-105.172 ROXIN, Strafrecht, 1997, §13, n. 45-50, p. 478-480.

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Capítulo 11 Antijuridicidade e Justificação

como extração de órgãos para transplante, ou relacionadas ao núcleo da personalidade, como autorização para injúrias, lesões corporais etc.11 7 3

2. Consentimento presumido

O consentimento real constitui expressão de liberdade de ação do portador de bem jurídico disponível, que exclui a tipicidade da ação, mas o consentimento presumido é construção normativa do psiquismo do autor sobre a existência objetiva de consentimento do titular do bem jurídico, que funciona como causa supralegal de justificação da ação típica.174 Não há consenso sobre a natureza dessa construção norma­tiva: situa-se entre o consentimento real e o estado de necessidade,175 constitui subespécie do estado de necessidade,176 ou uma combinação do estado de necessidade, do consentimento real e da gestão de negó­cios.177 O consentimento presumido é subsidiário em relação ao consentimento real: se o consentimento real é manifestado pelo portador do bem jurídico, então não há o que presumir; se não existe consentimento real manifestado, então a existência objetiva de consentimento pode ser presumida. A ação com base no consentimento presumido do portador do bem jurídico é, normalmente, ação no interesse alheio; a hipótese de consentimento presumido justificador de ação no inte­

173 Ver ROXIN, Strrfrecht, 1997, §13, n. 633-636, p. 486-488.174 Comparar JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, §34 VII, p. 385-6;

ROXIN, Strafrecht, 1997, §18, n. 3-4, p. 697.175 ROXIN, Strafrecht, 1997, §18, n. 4, p. 697.176 WELZEL, Strafrecht, 1969, §14, V, p. 92.177 JAKOBS, Strafrecht, 1993,15/17, p. 451.

277

Teoria do Fato Punível Capítulo 11

resse próprio (por exemplo, colher frutas que apodrecem no quintal do vizinho, que viajou em férias) é admitida pela opinião dominante,178 mas rejeitada como risco excessivo pela minoria.179

Enfim, o consentimento presumido pode ocorrer em dois gru­pos de casos, como mostra HAFT:180 a) o consentimento não foi obtido, mas o titular do bem jurídico consentiria, se perguntado: por exemplo, cirurgia urgente em vítima inconsciente de acidente (o consentimento não deve ser presumido, se a manifestação de vontade do paciente pode, sem prejuízo, ser esperada); b) o consentimento do titular do bem jurídico pode ser obtido, mas é desnecessário: por exemplo, en­trar na casa alheia para apagar incêndio (o consentimento não pode ser presumido se o autor conhece vontade contrária do portador do bem jurídico: o proprietário não aceitaria, de modo algum, a entrada do autor na casa).

F) Justificação nos tipos de imprudência

O problema da justificação nos tipos de imprudência resulta da combinação de duas ordens de fatores: primeiro, o entrelaçamento ou interpenetração entre tipo e antijuridicidade é maior nos tipos de imprudência do que nos tipos dolosos; segundo, a construção judicial dos tipos abertos de imprudência leva em consideração a situação con­creta que fundamenta as justificações.181 Mas a literatura reconhece

178 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, §34 VII, 1 b, 386-387; ROXIN, Strafrecht, 1997, §18, n. 17, p. 703.

179 JAKOBS, Strafrecht, 1993, 15/18, p. 451-452.180 HAFT, Strafrecht, 1994, p. 106.181 Ver DONATSCH, Sorgfaltsbemessung und Erfolg beim Fahrlassigkdtsdelikt, 1987, ,p. 76.

Capítulo 11 A.ntijuridicidade e Justificação

algumas justificações, como a legítima defesa, o estado de necessidade e o consentimento do titular do bem jurídico ofendido.

1. A legítim a defesa nos tipos de imprudência tem por objeto efeitos não dolosos produzidos como riscos típicos dos meios empregados na legítima defesa dolosa. Exemplos: a) o agressor é ferido por disparo acidental de pistola utilizada pelo agredido como objeto contundente contra o agressor; b) soco de defesa contra o braço atinge, não inten­cionalmente, o queixo do agressor, determinando lesão cerebral; c) o agressor é ferido acidentalmente por disparo de arma do agredido com finalidade de intimidação. O fundamento da legítima defesa, nessas hipóteses, é indiscutível: se o resultado não doloso da situação de legítima defesa seria justificado por dolo,, então, com maior razão, é justificado por imprudência}*2

A questão dos elementos subjetivos na legítima defesa impru­dente não é clara: segundo HAFT, se o tipo de imprudência não tem elementos subjetivos, então, por relação de simetria, as justificações (e a antijuridicidade) também não têm elementos subjetivos;183 para ROXIN, o elemento subjetivo da legítima defesa imprudente consis­te na consciência da situação de legítima defesa e da necessidade da ação de defesa — mas não do resultado indesejado, porque excluiria a legítima defesa da imprudência inconsciente,184 em que não há re­presentação do resultado possível. Um problema sério relàciona-se à ação imprudente objetivamente justa, mas sem consciência da situação de legítima defesa: a) disparo em manejo imprudente de arma fere o agressor no momento da agressão, sem consciência do agredido sobre a situação de agressão; b) em manobra lesiva do cuidado, e sem cons­

182 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 93-94, p. 951-952. No Brasil, no mesmo sentido, TAVARES, Direito Penal da negligênáa, 2003, p. 363; comparar HEITOR COSTA JR-, Teoria dos delitos culposos, 1988, p. 78-80.

183 HAFT, Strafrecht, 1994, p. 78.184 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 95, p. 953.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 11

ciência da situação de legítima defesa, motorista atropela assaltante que simulava acidente de trânsito para realizar assalto. A teoria dominante diz o seguinte: a ação imprudente não é justificada, mas também não é punível, porque não existe desvalor do resultado, apenas o insufi­ciente desvalor de ação.185

2. O estado de necessidade nos tipos de imprudência pode ocorrer em ações de proteção que lesionam proibição de perigo abstrato ou concreto: a) bêbado atropela pedestre ao conduzir acidentado grave para hospital, evitando morte certa deste; b) ciclista desvia para o pas­seio, ao perceber aproximação perigosa de carro no sentido contrário da ciclovia, ferindo pedestre.186

3. O consentimento do titular do bem jurídico nos fatos de impru­dência também pode ser real ou presumido. O consentimento real do ofendido em fatos de imprudência é raro, porque não deve se limitar ao perigo criado pelo autor, mas abranger o próprio resultado lesivo representado como possível, e não exclui somente a antijuridicidade— como afirma a opinião dominante —, mas a própria tipicidade da ação imprudente, nos casos de exposição consentida a perigo criado por outrem: a vítima, esclarecida pelo barqueiro sobre os perigos do mar agitado, insiste no passeio de barco e morre afogada porque, de fato, o barco emborca sob a violência das ondas (ver O tipo dos crimes de imprudência, acima). O consentimento presumido do ofendido exclui a antijuridi­cidade da ação: operação urgente no local do acidente, necessária para salvar a vida de vítima inconsciente, mas com instrumental inadequado e medidas de cuidado insuficientes, em que a concreta violação da lex artis determina danos à saúde do paciente.187

185 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 96, p. 953-954; SCHÕNKE/SCHRÕDER/ LENCKNER Strafgeset^buch, Kommentar, 1991, §32, n. 99; STRATENWERTH, Strafrecht, 1981, n. 1121.

186 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 97-99, p. 954.187 ROXIN, Strafrecht, 1997, §24, n. 100-101, p. 955.

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C apítu lo 1 2

C u l p a b il id a d e e E x c u l p a ç ã o

I. conceito de culpabilidade

A dogmática penal contemporânea edifica o conceito de fato punível com base nas categorias elementares do tipo de injusto e da culpabilidade, que concentram todos os elementos da definição analítica de crime.1 Essas categorias elementares do fato punível se relacionam como objeto de valoração e juí%o de valor ação, segundo a co­nhecida fórmula de GRAF ZU DOHNA:2 o injusto como objeto de valoração, a culpabilidade como juízo de valoração.3

O juízo de reprovação de culpabilidade tem por objeto a re­alização não justificada do tipo de injusto e por fundamento (a) a imputabilidade, como conjunto de condições pessoais mínimas que capacitam o sujeito a saber o que fa % excluída ou reduzida em hipóteses de menoridade ou de doenças e anomalias mentais incapacitantes, (b)

1 Ver, por exemplo, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §39,1 1,p. 425; OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §5, III 1, n. 23, p. 46.

2 GRAF ZU DOHNA, Zum neuesten Stande der Schuldlehre, ZStW 32, 1911, p. 323.3 No Brasil, JESUS, Direito Penal 1, 1999, p. 454, bem como DOTTI, Curso de Direito

Penal:parte geral, 2001, p. 336, não consideram a culpabilidade como elemento do crime, mas como “pressuposto da p ena”. Esse conceito é incomum na dogmática contemporânea: primeiro, todos os “requisitos” ou “elementos” do crime são pressupostos da pena, desde a ação típica até as condições objetivas de punibi- üdade, e não parece existir qualquer razão para isolar a culpabilidade como único pressuposto da pena; segundo, a proposição confunde crime com tipo de injusto que, em conjunto com a culpabilidade, constitui o conceito de fato punível, na moderna teoria do Direito Penal.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 12

a consciência da antijuridicidade, como conhecimento concreto do valor que permite ao autor imputável saber, realmente, o que fa excluída ou reduzida em casos de erro de proibição e (c) a exigibi­lidade de conduta diversa, como expressão de normalidade das circunstâncias do fato e indicação de que o autor tinha o poder de não fa%er o que f e ^ excluído ou reduzido nas situações de exculpação.

O conceito de culpabilidade como juízo de valor negativo ou reprovação do autor pela realização não-justificada de um crime, fundado na imputabilidade como capacidade penal geral do autor, na consciência da antijuridicidade como conhecimento real ou possível do injusto concreto do fato e na exigibilidade de con­duta diversa determinada pela normalidade das circunstâncias do fato, parece constituir a expressão contemporânea dominante do conceito normativo de culpabilidade: um juízo de reprovação sobre o sujeito (quem é reprovado), que tem por objeto a realização do tipo de injusto (o que é reprovado) e por fundamento (a) a capacidade ge­ral de saber o que fa ^ (b) o conhecimento concreto que permite ao sujeito saber realmente o quefa%e (c) a normalidade das circunstâncias do fato que confere ao sujeito o poder de não fa^er o que f a % (porque é reprovado).

1. Desenvolvimento do conceito de culpabilidade

O atual conceito normativo de culpabilidade é o produto inacabado de mais de um século de controvérsia sobre sua estrutura, que começa com o conceito psicológico de culpabilidade do século XIX, evolui para o conceito psicológico-normativo no início do século XX, transforma-se em conceito exclusivamente normativo durante o século XX e, na passagem para o século XXI, parece imerso em crise insuperável. Indicações, dessa

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Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

crise são, por exemplo, algumas propostas conceituais novas, como a teoria da responsabilidade normativa de ROXIN,4 que procura integrar o conceito de culpabilidade, reduzido às categorias da capacidade de cul­pabilidade e do conhecimento real ou possível do injusto, com o con­ceito de prevenção — ou de necessidade preventiva de pena —, como categoria capaz de dar conta das situações de exculpação, que supõem a culpabilidade— porque somente autores culpados podem ser ex- ou desculpados —, mas que são discutidas dentro do conceito de culpabilidade.

1.1. Conceito psicológico de culpabilidade

A atribuição dos elementos objetivos do fato punível à antiju­ridicidade típica, como lesão causai do bem jurídico, e a atribuição dos elementos subjetivos do fato punível à culpabilidade, como relação psíquica do autor com o fato, próprio do modelo causai de LISZT, BELING e RADBRUCH,5 dominante na primeira metade do século XX, indica as duas bases do conceito de fato punível, as­sim correlacionadas: primeiro, injusto e culpabilidade se relacionam como dimensões objetiva e subjetiva do fato punível;6 segundo, a culpabilidade como relação psíquica do autor com o fato existe sob as formas psicológicas do dolo e da imprudência e tem por objeto o tipo de injusto.7 O conceito psicológico de culpabilidade é constituído por dois elementos: a) a capacidade de culpabilidade (ou

4 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §19, n. 1-9, p. 724-727; assim, também, SCHÜNE­MANN, Grundfragen desmodemen Strafrechtssystems, 1984, p. 169; LACKNER, Práven- tion und Schuldunfàhigkeit, Kleinknecht-FS, 1985, p. 262.

5 LISZT, Strafrechtliche Vortrãge und A.ufsát%e, 1905; BELING, Die Lebre von Verbrechen,1906, p. 112 s.; RADBRUCH, Überden Schuldbegnff, ZStW 24 (1904), p. 333.

6 BELING, Die Lebre von Verbrechen, 1906, p. 112 s.7 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §19, n. 10, p. 728; WESSELS/BEULKE, Strafrecht,

1998, n. 406, p. 117.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 12

imputabilidade), como capacidade geral ou abstrata de compreender o valor do fato e de querer conforme a compreensão do valor do fato, excluída ou reduzida em situações de imperfeição (imaturidade) ou de defecção (doença mental) do aparelho psíquico; b) a relação psicológica do autor com o fato, existente como consciência e vontade de realizar o fato típico, ou como causação de um resultado típico por imprudência, imperícia ou negligência.

Os defeitos do conceito psicológico de culpabilidade determi­naram seu abandono: a culpabilidade como relação psíquica entre autor e fato, por um lado, é incapaz de abranger a imprudência inconsáente, em que não existe qualquer relação psicológica entre autor e resulta­do; por outro.lado, a estrutura meramente psicológica do conceito é insuficiente para compreender e valorar situações de anormal moti­vação da vontade, hoje definidas como hipóteses de inexigibilidade de comportamento diverso.8

1.2. Conceito normativo de culpabilidade

A redefinição de culpabilidade como reprovabilidade, proposta por FRANK em 1907, introduz um componente normativo no conceito de culpabilidade, sob o argumento de que “um comportamento proibido só pode ser atribuído ã culpabilidade de alguém se êpossível reprovar-lhe sua realização”? Em seguida, GOLDSCHMIDT aprimora o conceito, distinguindo entre norma de direito (Rechtsnorm), como exigência objetiva de comportamen­to exterior, e norma de dever (Pflichtnorm), como exigência subjetiva de

8 Nesse sentido, CIRINO DOS SANTOS, Teoria do crime, 1993, p. 59; também, FRAGOSO, Lições de Direito Penal.’ 1985, n. 177, p. 201-203; MACHADO, Direito criminal: parte geral, 1987, p. 138-139; MEST1ERL, Manual de Direito P enall, 1999, p. 157-158; RODRIGUES, Teoria da culpabilidade, 2004, p. 31-37.

9 FRANK, Über den yíujbau des Schuldbegriffs, 1907, p. 14.

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Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

atitude pessoal conforme a norma de direito}0 A distinção entre norma de direito e norma de dever permite, por um lado, fundamentar a reprovação do autor na consáênáa da antijuridicidade do tipo de injusto realizado (excluída ou reduzida nas situações de erro de proibição) e, por outro lado, fundar a exigibilidade de motivação conforme a norma de dever na normalidade das circunstâncias do fato (excluída ou reduzida nas situações de exculpação). Pouco depois, FREUDENTHAL concebe o conceito de inexigibilidade como fundamento geral supralegal de exculpação, sob um argumento poderoso: se evitar um fato punível pressupõe capacidade de resistência inexigível do homem do povo, então a incapaádade de agir conforme a norma de dever exclui a exigibilidade de comportamento diverso e, conseqüentemente, a culpabilidade.n Hoje, a inexigibilidade como fundamento geral supralegal de exculpação é amplamente admitida nos crimes de imprudência e de omissão de ação,12 mas ainda excluída dos crimes dolosos de ação, sob alegação de criar insegurança jurídica.13

A introdução do componente normativo no conceito de culpabilida­de produziu o conceito psicológico-normativo de culpabilidade, dominante na primeira metade do século XX, assim constituído: a) capacidade de culpabilidade; b) relação psicológica concreta do autor com o fato, sob as formas de dolo ou de imprudência; c) exigibilidade de comportamento diverso, fundada na normalidade das circunstâncias do fato.14

10 GOLDSCHMIDT, NormativerSchuldbegriff, Frank-FS, vol. 1,1930, p. 442; do mesmo, Der Notstand, ein Schuldprobkm, ÕstZStr, 1913, p. 129.

11 FREUDENTHAL, Schuld und Vorwurfimgeltenden Strafrecht, 1922, p. 7.12 ROXIN, Strafrecht, 1997, §19, n. 13, p. 730.13 Nesse sentido, por exemplo, SCHAFFSTEIN, Die Nicht^umutbarkeit ais allgemãner

iibergeset^licher Schuldausschliessungsgrund, 1933.14 Ver FRANK, Über den Aufbau des Schuldbegriffs, 1907, p. 14. No Brasil, o conceito

psicológico-normativo da culpabilidade, dominante até a reforma da parte geral do Código Penal, ainda possui defensores, como, por exemplo, COSTA JUNIOR, Comentários ao código p en a l1, 1989, p. 170.

285

Teoria do Fato Punível Capítulo 12

Entretanto, a teoria finalista e o conceito pessoal de injusto de WELZEL15 revolucionariam, simultaneamente, a teoria do tipo e a teoria da culpabilidade, pela deslocação do dolo, como consciência e vontade do fato, e da imprudência, como lesão do cuidado objetivo exigido, da culpabilidade para o tipo subjetivo de injusto, excluindo os componentes psicológicos da culpabilidade, reduzida, enfim, a mero juí%o de valor?6 expresso pelo critério da reprovabilidade que informa a natureza normativa da culpabilidade. Assim, o conceito normativo de culpabilidade inaugurado pela teoria finalista da ação se caracteriza pela seguinte estrutura: a) capacidade de culpabilidade; b) conheci­mento real ou possível do injusto; c) exigibilidade de comportamento conforme a norma17 — a presença eventual de características especiais de determinados delitos (intenções, tendências etc.), ou a simples indicação de formas de culpabilidade (dolo e imprudência), como pro­põe a teoria social da ação,18 não alteram a substância do conceito. A universalidade dessa estrutura do conceito não é gratuita: define culpabilidade como reprovação de um sujeito imputável (o sujeito pode saber o que fa%) que realiza, com consciência da antijuridicidade (o sujeito sabe, realmente, o que f a %) e em condições de normalidade de circunstâncias (o sujeito tem o poder de não fa^ ero que fa%), um tipo de injusto.

Todavia, a redefinição de culpabilidade como reprovabilidade tem a natureza de uma definição formal, ou seja, de substituição de uma pala­

15 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 140.16 MAURACH/ZIPF, Strafrecht 1,1992, §30, ns. 22-23, p. 421-422.17 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §19, n. 13-14, p. 729-730. No Brasil, BRANDÃO,

Introdução ao Direito Penal, 2002, p. 141-149; FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 177, p. 201-203; MACHADO, Direito criminal:parte geral, 1987, p. 140; MESTIERI, Manual de Direito Pena/l, 1999, p. 157-159; RODRIGUES, Teoria da culpabilidade, 2004, p. 37-47; comparar ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 345-348, p. 605-608.

18 Assim, WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 408, p. 117.

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Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

vra por outra palavra que, como ocorre com toda definição formal, não explica porque o sujeito é culpável, ou porque o sujeito é reprovável. Explicar porque o sujeito é culpável, ou porque é reprovável - ou seja, mostrar a gênese real do juízo de reprovação — produz a necessidade de uma definição material do conceito de culpabilidade.

2. Definições m ateriais do conceito normativo de culpabilidade

O problema central da culpabilidade é o problema do seu fundamento — o chamado fundamento ontológico da culpabilidade —, acentuado pela redefinição de culpabilidade como reprovabilidade: a capacidade de livre decisão do sujeito. A tese da liberdade de vontade do conceito de culpabilidade e, por extensão, do conceito de punição, é indemonstrável.19 Se a pena criminal pressupõe culpabilidade e se a reprovação de culpabilidade tem por fundamento um dado indemons­trável, então a culpabilidade não pode servir de fundamento da pena. Por essa razão, o juízo de culpabilidade deixou de ser um conceito ontológico, que descreveria uma qualidade do sujeito, para constituir um conceito normativo, que atribui uma qualidade ao sujeito.20 Hoje, a tese da culpabilidade como fundamento da pena foi substituída pela tese da culpabilidade como limitação do poder de punir, com a troca de uma função metafísica de legitimação da punição por uma função

19 Ver BARATTA, Imputaáón de responsabiãdad enprocesopenal\ Capítulo Criminológico, n. 16, p. 69; CIRINO DOS SANTOS, Direito Penal, 1985, p. 161; ver, também, MESTIERI, Manual de Direito Penall, 1999, p. 161-162; TAVARES, y4s controvérsias em tomo dos crimes omissivos, 1996, p. 100.

29 SACK, Neue Perspektiven in der Kriminologie, in KÕNIG, R/SACK, F., Krimindlso^o- logie, 1968, p. 469-470.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 12

política de garanda da liberdade individual.21 Como se pode observar, essa substituição não representa simples variação terminológica, mas verdadeira mudança de sinal do conceito de culpabilidade, com conseqüências político-criminais relevantes: a culpabilidade como fundamento da pena legitima o poder do Estado contra o indivíduo; a culpabilidade como limitação da pena garante a liberdade do cidadão contra o poder do Estado, porque se não existe culpabilidade não pode existir pena, nem pode existir qualquer intervenção estatal com fins exclusivamente preventivos.22 Enfim, a noção de culpabilidade como limitação do poder de punir parece contribuir para a redefinição da dogmática penal como sistema de garantias do indivíduo em face do poder repressivo do Estado, capaz de excluir ou de reduzira intervenção estatal na esfera de liberdade do cidadão.

As principais teorias construídas para definir o conteúdo material da culpabilidade são as seguintes: a) teoria do poder de agir diferente;b) teoria da atitude jurídica reprovada ou defeituosa; c) teoria da res­ponsabilidade pelo próprio caráter; d) teoria do defeito de motivação jurídica; e) teoria da dirigibilidade normativa.

a) A teoria do poder de agir diferente (andershandelnkõnnen) de WEL­ZEL, ARTHUR KAUFMANN e outros, dominante na literatura e na jurisprudência alemã, fundamenta a reprovação de culpabilidade no poder atribuído ao sujeito de agir de outro modo:23 o autor é pes­soalmente reprovado porque se decidiu pelo injusto, tendo o poder de se decidir pelo direito. A base interna do poder do autor é a capacidade atribuída de livre decisão, que assume como verdade a hipótese inde-

21 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §19, n. 9, p. 727; também, WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 397, p. 114.

22 Comparar ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 49-50.23 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 138; ARTHUR KAUFMANN, Das

Schuldprin^ip, 1976, p. 279.

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Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

monstrável da liberdade de vontade,24 de início em perspectiva concreta, depois em perspectiva abstrata: a) na variante concreta, o poder de agir diferente atribuído ao autor individual é, simplesmente, indemonstrável; b) na variante abstrata, em que o poder de agir diferente é atribuído a qualquer outra pessoa no lugar do autor, a reprovação não incide sobre o autor, mas sobre uma pessoa imaginária no lugar do autor.25

b) A teoria da atitude jurídica reprovada (rechtlich missbilligte Gesinnung) de JESCHECK/WEIGEND,26 ou da atitude defeituosa (fehlerhafte Einstellung) de WESSELS/BEULKE,27 por exemplo, fundamenta a reprovação de culpabilidade na livre autodeterminação de uma atitude reprovável ou defeituosa do autor ao realizar o tipo de injusto. Esse crité­rio, uma espécie de variante da teoria do poder de agir diferente, também assume como verdade a hipótese indemonstrável da liberdade de vontade e, igualmente, não mostra a gênese real do juízo de reprova­ção — ou seja, porque o autor é reprovado, parecendo outra definição formal de reprovabilidade mediante simples substituição de palavras: atitudes defeituosas ou atitudes reprováveis podem descrever mas não conseguem explicar o conteúdo do juízo de culpabilidade.28

c) A teoria da responsabilidade pelo próprio caráter (Einstehenmüssen für den eigenen Charakter), cujas bases deterministas remontam a SCHO- PENHAUER,29 fundamenta a responsabilidade pelo comportamento em

24 Ver, entre outros, a crítica de ROXIN, Strafrecht, 1997, §19, n. 20-22, p. 732-734; também instrutivo, HASSEMER, Einfúhrung in die Grundlagen des Strafrechts, 1990, p. 226-234.

25 ROXIN, Strafrecht, 1997, §19, n. 22, p. 733-734; também, CEREZO MIR, Der materiele Schuldbegrijf, ZStW 108 (1996), 9.

26 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §39, II, p. 426-427.27 WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 397, p. 114, e n. 401, p. 115-116.28 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §19, n. 23-24, p. 734.29 SCHOPENHAUER, Über die Freibeit des Willens, 1839.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 12

características da personalidade: para DOHNA,30 todos são responsáveis pelo que fa%em como expressão da personalidade; segundo ENGISCH,31 a responsabilidade pelo caráter implica o dever de tolerara pena; enfim, conforme HEINITZ,32 todos respondem pelo que são, independentemente da multiplicidade defatores condicionantes. O propósito louvável de excluir a base metafísica do juízo de reprovação não evita problemas em face do princípio da culpabilidade: primeiro, culpabilidadepelo caráter é culpabilidade sem culpa; segundo, culpabilidade pelo caráter parece supor um Direito Penal com finalidades preventivas; terceiro, punição com finalidades preventivas anula o significado político de garantia individual (limitação do poder de punir) atribuído ao princípio da culpabilidade.33

d) A teoria da culpabilidade como defeito de motivação jurídica (Manko an rechdich Motivierung) de JAKOBS,34 vinculada ao sistema funcional de LUHMANN, atribui à culpabilidade a tarefa de assinalar a ausênáa de motivação jurídica do autor e fundamenta o Direito Penal da culpabi­lidade na idéia de prevenção geralpositiva, consistente na estabilização das expectativas normativas da comunidade, obtida pela punição exemplar de fatos puníveis. O conceito de defeito de motivação parece semelhante à teoria da atitude defeituosa de WESSELS/BEULKE, ou próximo da teoria do poder de agir diferente de WELZEL, além de fundamentar a culpabilidade — e a pena — em circunstâncias externas ao autor, sem explicar a gênese real do juízo de reprovação.35

e) A teoria da dirigibilidade normativa (normative Ansprechbarkeit),

30 GRAF ZU DOHNA, Fin unausrottbares Missverstàndnis, ZStW 66 (1954), 505.31 ENGISCH, Die Lebre von der Willensfreiheit in der strafrechtsphilosophischen Doktrin der

Gegenwart, 1965, p. 54.32 HEINITZ, Strafçumessung und Persõnlichkeit, ZStW 63 (1951), 74.33 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, §19, n. 29-32, p. 736-737.34 JAKOBS, Strafrecht, 1993, 17/18, p. 480-481.35 Sobre esse aspecto, ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §19, n. 34-35, p. 739-740..

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Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

cunhada originalmente por NOLL,36 fundamenta a reprovação de culpabilidade na normal determinabilidade através de motivos, segundo LISZT,37 ou no estado psíquico disponível ao apelo da norma existente na maioria dos adultos saudáveis, conforme a fórmula moderna de AL- BRECHT,38 ou, simplesmente, na capacidade de comportamento conforme a norma, de acordo com a redefinição de ROXIN39 — situações que constituiriam dados da experiência científica independentes da hipó- tese indemonstrável da liberdade e, em princípio, aceitáveis tanto por indeterministas quanto por deterministas. A culpabilidade seria um conceito formado pelo elemento empírico da capacidade de autodireção e pelo elemento normativo da possibilidade de comportamento con­forme ao direito, cumprindo as tarefas simultâneas de fundamento da responsabilidade pelo comportamento anti-social e de garantia política de limitação do poder punitivo, no moderno Estado Demo­crático de Direito. Não obstante, existe crítica de ambas direções: de deterministas, sobre a identidade entre dirigibilidade normativa e liberdade de vontade;m de indeterministas, porque a liberdade de vontade, definida como capacidade de autodeterminação espiritual.\ pode ser concretamente indemonstrável, mas seria elemento de reconstrução comunitária da re­alidade41 acima de qualquer questionamento.42 Apesar das críticas, a

36 NOLL, Schuld und Prãvention unter dem Gesichtspunkt der Rationalisierung des Strafrechts,H. Mayer-FS, 1966, 219.

37 LISZT, Strafrechtliche Vortràge und Aufsãt^e, 1905, 43 s.38 ALBRECHT, Unsicherheits^onen des Schuldstmfrechts, GA 1983, p. 193.39 ROXIN, Strafrecht, 1997, §19, n. 36-46, p. 740-745. No Brasil, TAVARES, A s con­

trovérsias em tomo dos crimes omissivos, 1996, p. 100: “Na verdade, o fundamento dojuí^o de censura da culpabilidade deve residir na capacidade de motivação do agente conforme às exigências da ordem jurídica e não no seu a priori indemonstrável poder agir de outro modo. ”

40 FRISTER, Die Struktur des “voluntativen schuldelements”, 1993, p. 99 s.41 SCHUNEMANN, Die Funktion des Schuldprin^ips im Prãventionsstrafrecht, in: Schüne-

mann (Hrsg.) Grundfragen des modemen Strafrechtssystems, 1984, 163-166.42 ARTHUR KAUFMANN, Un-^eitgemãsse Betrachtungen %um Schuldgrundsat^im Strafrecht,

Jura 1986, p. 226.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 12

definição de culpabilidade como dirigibilidade normativa parece digna de registro: preservaria a função de garantia política do princípio da culpabilidade, como limitação do poder de punir, e indicaria a gênese da responsabilidade pessoal pelo comportamento anti-social, sem necessidade de pressupostos metafísicos indemonstráveis.

3. O princíp io da alterídade como base da respon­sabilidade social

A responsabilidade pelo comportamento anti-social — assim como o reconhecimento do mérito por ações socialmente úteis — pa­rece imprescindível à sobrevivência da sociedade contemporânea, mas juízos de culpabilidade ou de reprovação fundados na liberdade de vontade perderam toda e qualquer base científica: a idéia de livre arbítrio como expressão de absoluto indeterminismo foi excluída da Psicologia e da Sociologia modernas e representaria, na melhor das hipóteses, um sentimento pessoal.' segundo a Psicanálise.43 Por outro lado, é indiscutível que a responsabilidade pelo próprio comportamento não pode ser uma questão metafísica, dependente de pressupostos indemonstráveis, mas um problema prático ligado à realidade da vida social.

Na verdade, o homem é responsável por suas ações porque vive em sociedade,44 um lugar marcado pela existência do outro, em que o sujeito é, ao mesmo tempo, ego e alter,, de modo que a sobrevivência do ego só é possível pelo respeito ao alter e não por causa do atributo

43 Ver, por todos, POTHAST, Die Un^ulãnglichkeit derFreiheitsbemise, 1987, p. 321 s.44 Assim, FERJRI, Das Verbrechen ais sociale FLrscheinung 1896, p. 297.

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da liberdade de vontade: o princípio da alteridade — e não a presunção de liberdade — deve ser o fundamento material da responsabilidade social45 e, portanto, de qualquer juízo de reprovação pessoal pelo comporta­mento and-social.

O princípio da alteridade permitiria fundamentar a responsabili­dade pelo comportamento anti-social na normalidade de formação da vontade do autor de um tipo de injusto concreto: em condições normaiso sujeito imputável sabe o que fa % (conhecimento do injusto) e, em princípio, tem o poder de não fa%er o que fa% (exigibilidade de compor­tamento diverso); logo, condições anormais de formação da vontade concretizada no tipo de injusto podem excluir a consciência da anti­juridicidade (erro de proibição) ou a exigibilidade de comportamento diverso (situações de exculpação). Em última instância, o estudo da culpabilidade consiste na pesquisa de defeitos na formação da vontade antijurídica: a) na área da capacidade de vontade, a pesquisa de defeitos orgânicos ou funcionais do aparelho psíquico; b) na área do co­nhecimento do injusto, a pesquisa de condições internas negativas do conhecimento real do que faz, expressas no erro de proibição; c) na área da exigibilidade, a pesquisa de condições externas negativas do poder de não fa^er o que fa%: as situações de exculpação, determinantes de conflitos, pressões, perturbações, medos etc.46

45 Ver a feliz intuição de BATISTA, Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro I, 2000, p. 22: “Relações jurídicas são sempre relações entre mais de um sujeito. A categoria da alteri­dade mereceria ter-se deslocado da metafísica de Aristóteles para um bairro central da filosofia do direito, levando consigo a diferença (que não a constitui mas a assimila) e a diversidade (que, ao romper a identidade a inaugura), até porque essa filosofia se construiu muito sobre o solo sempre intersubjetivo do direito privado; um filosofar que principiava pelo Meu e pelo Teu, como em Kant. ”

46 Ver CIRINO DOS SANTOS, Teoria do Crime, 1993, p. 66-67.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 12

II. Estrutura do conceito de culpabilidade

A estrutura do conceito de culpabilidade é constituída por um conjunto de elementos capazes de explicar porque o sujeito é repro­vado: primeiro, a capacidade de culpabilidade (ou imputabilidade), excluída ou reduzida pela menoridade ou por doenças e anomalias mentais; segundo, o conhecimento do injusto, excluído ou reduzido pelo erro de proibição; e terceiro, a exigibilidade de conduta diversa, excluída ou reduzida por anormalidades configuradas nas situações de exculpação.

1. Capacidade de culpabilidade

O estudo do conceito de capacidade de culpabilidade é necessário para esclarecer as situações de incapacidade de culpabilidade ou de capacidade relativa de culpabilidade, bem como os problemas político- criminais da emoção e da paixão e da chamada actio libera in causa.

A capaádade de culpabilidade é atributo jurídico de indivíduos com determinados níveis de desenvolvimento biológico e de normalidade psíquica, necessários para compreender a natureza proibida de suas ações e orientar o comportamento de acordo com essa compreensão. A lei penal brasileira exige a idade de 18 anos como marco de desenvol­vimento biológico mínimo para atribuir capacidade de culpabilidade (art. 27, CP) — um critério cronológico empírico, mas preciso; com- plementarmente, a lei penal pressupõe indivíduo portador de aparelho psíquico livre de defeitos funcionais ou constitucionais, capazes de excluir ou de reduzir a capacidade de compreender a natureza proibida de suas ações, ou de orientar o comportamento de acordo com essa

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Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

compreensão (arts. 26 e parágrafo único, CP) — um critério científico controvertido, por causa do conflito da psiquiatria sobre o conceito de doença mental.47

Por esses critérios, indivíduos com 18 anos de idade completos, em condições de normalidade psíquica, são portadores da capacidade geral ou abstrata de culpabilidade, também conhecida como impu­tabilidade; a capacidade penal é excluída ou reduzida em indivíduos portadores de psicopatologias constitucionais ou adquiridas deter­minantes da exclusão ou da redução da capacidade de compreender a proibição de ações ou de orientar o comportamento de acordo com essa compreensão. Em conclusão: a capacidade de culpabilidade é presumida em indivíduos com 18 anos de idade e excluída ou reduzida em indivíduos portadores de psicopatologias excludentes ou redutoras da capacidade de compreensão da proibição ou de orientação cor­respondente. Assim, o critério legal para determinar a capacidade de culpabilidade é negativo, funcionando como regra/exceção: o Estado presume a capacidade de culpabilidade de indivíduos maiores de 18 anos (regra), excluída ou reduzida em hipóteses de psicopatologias constitucionais ou adquiridas (exceção).

1.1. Incapacidade de culpabilidade

A incapacidade de culpabilidade (ou inimputabilidade penal), como ausência das condições pessoais mínimas de desenvolvimento biológico e de sanidade psíquica, ocorre nas seguintes hipóteses:

1. Indivíduos menores de 18 anos não possuem o desenvolvimento biopsicológico e social necessário para compreender a natureza cri-

47 Ver THOMAS S. SZASZ, The myth o f mental illness, Paladin, 1975, p. 37. No Brasil, MESTIERI, Manual de Direito Penal 1, 1999, p. 169-173, sobre limitações e insufi­ciências do conceito de doença mental.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 12

minosa de suas ações ou para orientar o comportamento de acordo com essa compreensão:

Art. 27. Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial

l O legislador define um critério correto de política criminal: ado­lescentes menores de 18 anos podem compreender o injusto de alguns crimes graves, como homicídio, lesões corporais, roubo e furto, por exemplo, mas não são capazes de compreender o injusto da maioria dos crimes comuns e, praticamente, de nenhum dos crimes definidos em leis especiais (crimes contra o meio ambiente, a ordem econômica e tributária, as relações de consumo, o sistema financeiro etc.) e, em todas as hipóteses aáma referidas, não são capazes de comportamento conforme a eventual compreensão do injusto, por insuficiente desenvolvimento do poder de controle dos instintos, impulsos ou emoções.48

2. Igualmente, a doença mental e o desenvolvimento mental incompleto ou retardado determinantes de incapacidade de compreender o injusto do fato, ou de agir conforme essa compreensão, constituem hipóteses de exclusão da capacidade de culpabilidade:

Art. 26. E isento de pena o agente que, p or doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapa de en­tender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

A doença mental compreende as hipóteses de patologias consti­tucionais ou adquiridas do aparelho psíquico, definidas como psicoses exógenas e endógenas: a) as psicoses exógenas compreendem (1) as psicoses produzidas por traumas (lesões) e por tumores ou inflamações

48 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §20, n. 52, p. 780.

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Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

do órgão cerebral, (2) a epilepsia e (3) a desagregação da personali­dade por arteriosclerose ou atrofia cerebral; b) as psicoses endógenas compreendem, fundamentalmente, a esquizofrenia e a paranóia.49

3. O desenvolvimento mental incompleto ou retardado compreende todas as hipóteses de oligofrenias, como defeitos constitucionais do órgão cere­bral: as debilidades mentais, que admitem freqüência a escolas especiais, ou realização de atividades práticas, mas não o exercício de profissões; as imbecilidades, com exigência de cuidados especiais da família ou de instituições, mas sem possibilidade de vida independente; as idiotias, marcadas pela necessidade de custódia e, freqüentemente, pela inca­pacidade de falar.50

Complementarmente, a embriague% completa por caso fortuito ou força maior, pelo álcool ou substâncias análogas, também constitui es­tado psíquico patológico excludente da capacidade de culpabilidade.

Art. 28, §1 °.E isento de pena o agente que, por embriague^ completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapa% de en­tender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Enfim, a atual lei de drogas também considera o efeito fortuito ou de força maior de droga sobre o aparelho psíquico, e a dependência de droga (estados psíquicos de angústia pela privação da droga, com profundas mudanças da personalidade) como situações patológicas agudas ou crônicas excludentes da capacidade de culpabilidade.

Art. 45 (Lei 11.343/06). E isento de pena o agente que,

49 Ver WITTER, Handbuch derforensischen Psychiatrie, editado por Gõppinger e Witter, 1972, vol. I, p. 477 s. e vol. II, p. 1.039.

50 Assim, NEDOPIL, Forensische Psychiatrie, 1996, p. 60 s. No Brasil, ver MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 173.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 12

em ra%ão da dependênáa, ou sob o efeito, proveniente de caso fortuito ou força maior, de droga, era, ao tempo da ação ou da omissão, qualquer que tenha sido a infração penalpraticada, inteiramente incapaz de entender o caráter ilíáto do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Parágrafo único. Quando absolver o agente, reconhecendo, por força periáal, que este apresentava, ã época dofato previsto neste artigo, as condições referidas no caput deste artigo, poderá determinar o ju i% na sentença, o seu encaminhamento para tratamento médico adequado.

A exclusão da capacidade de culpabilidade nas hipóteses (a) de doença mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado, (b) de embriague completa por caso fortuito ou força maior, (c) de efeito fortuito ou por força maior de droga sobre o aparelho psíquico e (d) de dependênáa de droga, pressupõe, necessariamente, dois momentos: primeiro, identificação da patologia constitucional ou adquirida do aparelho psíquico, ou de outro estado patológico, crônico ou agudo, produzido pelo álcool, pela droga, ou pela dependência da droga; segundo, verificação do efeito excludente da capacidade de com­preender o injusto do fato, ou de agir conforme essa compreensão, produzido pela patologia constitucional ou adquirida respectiva, pelo álcool, pela droga, ou pela dependência da droga. Em teoria, ocorre divisão de trabalho entre peritos e juizes, em que os primeiros iden­tificam a patologia psíquica e verificam seu efeito sobre as funções de representação e de vontade do aparelho psíquico, e os segundos formulam um juízo definitivo sobre a capacidade de compreensão do injusto e de controle do comportamento conforme essa com­preensão;51 na prática, os peritos são verdadeiros ju izes paralelos, cujo

51 ROXIN, Strafrecht, 1997, §20, n. 27, p. 768.

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Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

poder reside no exercício de um saber especializado, imune à crítica de leigos?2

4. A conseqüência legal da incapacidade de culpabilidade por doença mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado é a aplicação de medida de segurança de internação em casa de custódia e de trata­mento psiquiátrico ou de tratamento ambulatorial (arts. 96, I-II, e 97, CP); no caso de incapacidade de culpabilidade por dependência de droga, a conseqüência legal é o tratamento em regime de internação hospitalar ou em regime extra-hospitalar (art. 52, parágrafo único, da Lei 11.343/06); enfim, na hipótese de incapacidade de culpabilidade por efeito do álcool ou de droga, fortuito ou de força maior, não há aplicação de nenhuma medida de segurança.

1.2. Capacidade relativa de culpabilidade

A capacidade relativa de culpabilidade (ou imputabilidade redu­zida) supõe a graduabilidade da capacidade de compreender o injusto ou de agir conforme essa compreensão, caracterizada pela maior ou menor dificuldade de dirigibilidade normativa, e determinada (a) por perturbação da saúde mental (art. 26, parágrafo único, CP) e (b) por todas as demais hipóteses descritas no item 1.1, acima: desenvolvi­mento mental incompleto ou retardado, restrito aos casos leves de debilidade mental (art. 26, parágrafo único, CP); embriaguez pelo álcool ou análogos, fortuita ou de força maior (art. 28, §2°, CP); efeito de droga, fortuito ou de força maior, e dependência de droga (art. 46, da Lei 11.343/06), cuja reprodução é desnecessária.

52 FOUCAULT, Vigiar e punir, 1977, p. 21-25. No Brasil, ver o estudo crítico de GOMES DA SILVA, Transtornos mentais e crime: reflexões sobre o complexo diálogo entre a Psiquiatria e o Direito Penal, in Direito e Sociedade (Revista do Ministério Público - do Estado do Paraná), v. 2, n. 2, Julho/Dezembro 2001, p. 81-121.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 12

1. O conceito de perturbação da saúde mental designa psicopatologias diferentes da doença mental apenas na graduabilidade inferior, como estados patológicos do aparelho psíquico consdtuídos por defeitos esquizofrênicos, manifestações de demência senil, arteriosclerose ou atrofia cerebral, formas leves de epilepsia, traumas cerebrais de efeitos psíquicos mínimos, formas leves de debilidade mental, psicopadas e neuroses.53

2. A conseqüência legal da capacidade relativa de culpabilidade por perturbação da saúde mental, ou por outros estados patológicos, transi­tórios ou permanentes, do aparelho psíquico, é a redução da pena de um a dois terços: a redução da pena é obrigatória, porque se a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, então a redução da capacidade de culpabilidade determina, necessariamente, a redução da pena.54 Argumentos contrários à redução da pena são inconvincentes: a) a reduzida sensibilidade à pena de psicopatas e débeis mentais aconselharia aplicação de pena integral; b) a reduzida capacidade de autocontrole de psicopatas e débeis mentais deveria ser compensada com circunstâncias de elevação da culpabilidade, em casos de cruel­dade, por exemplo. A lógica do argumento é circular e contraditória, porque o mesmo fator determinaria, simultaneamente, a redução da culpabilidade (psicopadas ou debilidades mentais explicariam a crueldade) e a agravação da culpabilidade (a crueldade do psicopata ou débil mental como fator de agravação da pena).55

1.3. Problemas político-criminais especiais

A disciplina jurídica da legislação penal brasileira sobre duas

53 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §20, n. 32, p. 771.54 Ver BAUMANN/WEBER, Strafrecht, 1995, §19, n. 25; também, ROXIN, Strafrecht,

1997, §20, n. 36, p. 773; STRATENWERTH, Strafrecht, 1981, n. 546.55 ROXIN, Strafrecht, 1997, §20, n. 38-42, p. 774-776.

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Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

situações psíquicas anormais ligadas à capacidade de culpabilidade está, para dizer o menos, em relação de tensão com o princípio da culpabilidade.

Art. 28. Não excluem a imputabilidade penal:

I — a emoção e a paixão;

II — a embriague% voluntária ou culposa, pelo álcool ousubstância de efeitos análogos.

a) Emoção e paixão. A emoção ou a paixão, na lei penal brasileira, não excluem a capacidade de culpabilidade, podendo, somente, privilegiar o dpo de injusto ou atenuar a pena. Entretanto, a emoção, como gênero, e a paixão, como espécie do gênero — ou seja, emoção extremada —, são forças primárias das ações humanas, determinantes menos ou mais inconscientes das ações individuais,56 cuja inevitável influência nos atos psíquicos e sociais do ser humano precisa ser compatibilizada com o princípio da culpabilidade, em futuros projetos político-cri- minais brasileiros.

Na verdade, a dinâmica de formação, agravação e descarga agressiva de emoções ou afetos representa grave perturbação psíquica não-patológica que, assim como outras situações extremas de esgota­mento ou fadiga, pode excluir ou reduzir a capacidade de culpabilidade, como prevê, por exemplo, a legislação penal alemã.57 Atitudes de repressão intransigente às pulsões fundamentais do homem pare­cem inadequadas: as manifestações da afetividade humana devem ser avaliadas no contexto das aquisições da moderna psicologia, que

56 Ver FREUD, O ego e o id, Imago, vol. XIX, p. 25-83, esp. 80-83; do mesmo, Além do princípio do prazer, Imago, vol. XVIII, p. 17-85.

57 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §20, n. 13-18, p. 761-764; também, WESSELS/BEU­LKE, Strafrecht, 1998, n. 410, p. 117-118.

301

Teoria do Fato Punível Capítulo 12

o sistema de justiça criminal não pode ignorar.58 Por exemplo, não é possível confundir afetos fortes (ou estênicos), fundados no instinto de destruição, como ira ou ódio, por um lado, e afetos fracos (ou astênicos), fundados no instinto de sobrevivência, como medo, susto ou perturbação psíquica, por outro lado, cujo poder determinante das ações humanas não pode ser desconsiderado pelo Direito Penal.

b) Actio libera in causa. O conceito de actio libera in causa pres­supõe capacidade de culpabilidade na ação precedente, em que o autor se coloca em estado de incapacidade de culpabilidade, com intenção de realizar (dolo) ou sendo previsível a possibilidade de realizar (im­prudência) fato típico posterior determinado: no caso de dolo, o autor ingere grande quantidade de álcool para superar inibições e agredir a vítima; no caso de imprudência, o autor ingere grande quantidade de álcool sem representar a possibilidade de agredir alguém, ou confian­do levianamente na hipótese de não agredir ninguém.59 Assim, a actio libera in causa consiste na auto-incapacitação temporária com o pro­pósito de praticar crime determinado ou em situação de previsibilidade de praticar crime determinado (ação anterior), realmente praticado no estado subseqüente de incapacitação temporária (ação posterior).60

Existem duas teorias sobre a actio libera in causa: a) a teoria da exceção considera a actio libera in causa, simplesmente, uma

58 Ver, especialmente, a crítica de MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 178-179, com esta magnífica conclusão: “Ora, o problema, como é bem de ver, não se resolve pela simples desconsideração da emoção e da paixão, negando-se-lhes eficácia no plano da imputabilidade; se há dificuldades em estabelecer, com maior precisão, o conteúdo e natureza desses estados aprimore-se a ciência. Se, p o r outro lado, a pesquisa empírica judiciária é defiáente ou superfiáal, permitindo absolvições inaceitáveis, aprimore-se o sistema, a técnica judiciária. Mas, simplesmente, negar efeitos a realidades tão importantes como a emoção e a paixão é comportar-se como o avestru^ diante de uma situação de perigo. Aqui, o perigo ê a nossa ainda superlativa ignorânáa dos fenômenos da alma humana. ”

59 Comparar ROXIN, Strafrecht, 1997, §20, n. 55, p. 781.60 WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 415, p. 119-120.

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Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

exceção ao princípio da capacidade de culpabilidade no momento do Jato, justificada com base no direito costumeiro:61 essa teoria parece incompatível com o principio da legalidade, que exclui o direito costumei­ro como incriminação de condutas, e com o princípio da culpabilidade, porque dolo e imprudência não determinam o fato, nem fundamen­tam a reprovação de culpabilidade;62 b) a teoria do tipo fundamenta a atribuição do resultado típico ao autor no momento de capacidade de culpabilidade anterior ao fato, como determinação de resultado típico doloso ou imprudente — e não no momento posterior (de incapacidade de culpabilidade) do fato — e, assim, não abre exceção ao princípio da coincidência entre capacidade de culpabilidade e realização dolosa ou imprudente de um tipo de injusto.63

1. O conceito de actio libera in causa não encontra dificuldade em relação aos fatos imprudentes, pela existência de identidade estrutural entre ambos: a lesão do dever de cuidado ou do risco permitido na imprudência é, sempre, anterior em relação à produção do resultado típico.64 Por exemplo: se o marido, encolerizado contra a mulher, embriaga-se e a agride, mas sem ter pensado previamente em agredir a mulher em estado de incapacidade de culpabilidade, então o ato de embriagar-se representaria simples criação de risco não permitido contra a integridade física da mulher — e, nesse caso, a agressão à mu­lher seria a realização do risco criado, caracterizando o tipo de lesão corporal imprudente,65 Aqui, é necessário um esclarecimento da maior significação prática: se o autor, na ação precedente, não tem o propósito (dolo direto) ou não admite a possibilidade (dolo eventual) de realizar

61 HRUSCHKA, Strafrecht nach logisch-analytischer Methode, 1988, p. 39 s.62 Assim, PUPPE, Grund^üge der actio libera in causa, JuS 1980, p. 346.63 ROXIN, Strafrecht, 1997, §20, n. 56, p. 782; para uma visão geral dos modelos,

NEUMANN, Zurechnungund ‘Vorverschulden”, 1985, p. 24 s.64 HORN, Actio libera in causa — eine mtwendige, eine %ulassige Rechstfigur?, GA 1969, p. 289 s.65 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §20, n. 58, p. 783.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 12

determinado tipo de crime em estado de incapacidade de culpabilida­de, então o resultado típico produzido na ação posterior não pode ser atribuído por dolo, independentemente de ser intencional (o sujeito quer se embriagar) ou imprudente (o sujeito se embriaga, progressiva mas inadvertidamente) o ato de se embriagar. Por isso, o principio da culpabilidade determina a seguinte interpretação do art. 28, II, do Código Penal: a embriaguez, voluntária ou culposa, não exclui a imputabilidade penal, mas a imputação do resultado por dolo ou por imprudência depende, necessariamente, da existência real (nunca presumida) dos elementos do tipo subjetivo respetivo no comportamento do autor.

2. Não obstante, a actio libera in causa enfrenta problemas em rela­ção aos fatos dolosos, porque se o marido se embriaga para agredir a mulher (dolo direto), ou admitindo a possibilidade de agredir a mulher em estado de embriaguez (dolo eventual), a controvérsia se estabelece: a) por um lado, o argumento de que a dolosa colocação de causas para o resultado não se confunde com a realização concreta do resultado típico;66 b) por outro lado, o argumento da desnecessidade de existir capacidade de culpabilidade durante toda realização do tipo:67 a ação de autocolocação temporária em estado de incapacidade de culpabili­dade, com dolo de tipo, encontraria paralelos equivalentes na tentativa, com a liberação do processo causai do âmbito de controle do autor, e na autoria mediata, em que o erro transforma o autor imediato em instrumento não-responsável ou sem controle sobre o curso causai posterior (assim, crimes que não admitem autoria mediata também não admitiriam a actio libera in causa, como os delitos de mão- própria, por exemplo).

66 Nesse sentido, NEUMANN, Zurechnung und ‘Vorverschulden ”, 1985, p. 26 s; do mes-mlo, Konstruktzon und Argument in der neueren Diskussion ^ur actio libera in causa, Arthur Kaufmann-FS, 1993, p. 583.

67 ROXIN, Strafrecht, 1997, §20, n. 61, p. 785.

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Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

Hoje, a teoria dominante da actio libera in causa em fatos dolosos diz o seguinte: o elemento intelectual do dolo deve representara carac­terísticas de um tipo de crime determinado, cujo resultado deve ser produzido em estado de incapacidade de culpabilidade (embriaguez); o elemento emocional do dolo deve quererá realização (ou conformar-se com a realização) desse crime determinado no estado posterior de embriaguez, como autocolocação em estado de incapacidade tempo­rária de culpabilidade. Desse modo, na ação precedente o dolo tem por objeto a autocolocação em estado de incapacidade de culpabilidade e, nesse estado, a realização de fato determinado; na ação posterior; o autor realiza, em estado de incapacidade de culpabilidade, o fato de­terminado objeto do dolo.68 Outra interpretação é incompatível com o princípio da culpabilidade.

2. Conhecimento do injusto e erro de proibição

A correlação conhecimento do injusto e erro de proibição, na teoria da culpabilidade, corresponde à correlação conhecimento do fato e erro de tipo, na teoria do tipo, porque conhecimento e erro constituem estados psíquicos em relação de lógica exclusão: o conhecimento exclui o erro e o erro indica desconhecimento sobre qualquer objeto. No Direito Penal existem duas espécies principais de erro: o erro de tipo, incidente sobre circunstâncias ou elementos objetivos, fáticos ou normativos, do tipo legal; o erro de proibição, incidente sobre a proibição do tipo de injusto, no sentido de valoração jurídica geral. Entretanto, a moder­

68 Assim, JAKOBS, Strafrecht, 1993, 17/65-66, p. 507-508; também ROXIN, Strafre­cht, 1997, §20, n. 65-67, p. 786-788; SCHÕNCKE/SCHRÕDER/LENCKNER, Strafgeset^buch, Kommentar, 1991, §20, n. 36; WESSELS/BEULKE, Strcfrecht, 1998, n. 417-418, p. 120-121.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 12

na dogmática identifica uma terceira espécie de erro, que participa, simultaneamente, da natureza do erro de tipo e do erro de proibição-, o chamado erro de tipo permissivo, incidente sobre pressupostos objetivos de causa de justificação, consistente em errônea representação da situação justificante.69

O estudo da matéria do conhedmento do injusto (ou da consáênáa da antijuridiádade) tem por fim identificar as situações negativas desse conhecimento, representadas pelo erro de proibição direto, pelo erro de proibição indireto e pelo erro de tipo permissivo, segundo a teoria limitada da culpabilidade adotada pelo Legislador.

2.1. Conhecimento do injusto

A legislação anterior à reforma penal de 1984, em conformidade com o modelo causai de crime, distinguia entre erro defato excludente do dolo e erro de direito sem relevância penal, generalizado sob o brocardo errorjuris nocet. A rigidez do critério seria atenuada por outra distinção no âmbito do erro de direito, entre erro de direito penal.’ igualmente irre­levante, e erro de direito extrapenal (por exemplo, coisa alheia, no furto), com efeito excludente do dolo.70 Os principais problemas desse sis­tema eram os seguintes: primeiro, dificuldades de diferenciação entre erro de direito penal e extra penal.\ porque o conceito de coisa alheia, por exemplo, é igualmente de direito penal e de direito extra penal; segundo, a relevância do erro de direito (penal ou extra penal) dependeria de um fator acidental: a posição do conceito respectivo dentro ou fora do Direito Penal;71 terceiro, a tensão dogmática entre o caráter irrelevante do erro de direito penal inevitável e o princípio da culpabilidade.72

69 Comparar ROXIN, Strafrecht, 1997, §21, n. 1-2, p. 793; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 457, p. 133.

70 Assim, KOHLRAUSCH, Irrtum und Schuldbegrijf im Strafrecht, 1903, p. 118.71 FRANK, Das Strafgeset^buch fu rd a s Deutsche Reich, 1931, §59, III 2.72 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §21, n. 5, p. 794.

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Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

a) Teorias sobre conhecimento do injusto e erro de proibiçãoA posição sistemática do conheámento do injusto (ou da consáênáa da

antijuridiádadè) como integrante do conceito de dolo ou como elemento do conceito de culpabilidade está na base, respectivamente, da teoria do dolo e da teoria da culpabilidade. A teoria do dolo considera o conheámento do injusto elemento do dolo, constituído, portanto, pela consciência (e vontade) do ja to e pela consciência (e vontade) do desvalor do fato , com as seguintes conseqüências principais: primeiro, a consciência e vontade do fato e do desvalor do fato configura o chamado dolus ma- lus, que fundamenta a definição do crime doloso como rebeldia contra o direito; segundo, todo e qualquer erro exclui o dolo e, portanto, não existe a correlação dicotômica (a) erro defato/erro de direito e (b) erro de tipo/erro de proibiçãoP

A teoria da culpabilidade, vinculada à teoria finalista da ação, separa conheámento dofato e conheámento da antijuridiádadè do fato: a consá­ênáa e vontade do fato constituem o dolo, como elemento subjetivo geral dos crimes dolosos; a consáênáa da antijuridiádadè é o elemento especial da culpabilidade, como fundamento concreto do juízo de reprovação. A separação entre consáênáa do fato e consáênáa da antijuridiádadè do fato determina a distinção entre erro sobre o tipo, que exclui o dolo, e erro sobre a proibição, que exclui ou reduz a reprovação, uma necessidade lógica da estrutura dos conceitos de dolo e de culpabilidade.74 O erro de proibição, como erro sobre a antijuridicidade do fato, tem por objeto a natureza proibida ou permitida da ação típica: o autor sabe o que faz, mas pensa, erroneamente, que é permitido, ou por crença positi­va na permissão do fato, ou por falta de representação da valoração

73 Partidários da teoria do do/o, BINDING, Die Normen undihre Übertretung, vol. II, 1916, §125; BAUMANN/WEBER, Strafrecht, 1985, p. 424; SCHMIDHÀUSER, Strafrecht, Studienbuch, 1984, 7/89 s., o grande defensor da teoria do dolo na atualidade.

74 Ver JESCHECK/WEIGEND, lehrbuch des Strafrechts, 1996, §41,1 1-2, p. 452-453.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 12

jurídica do fato.75

A teoria da culpabilidade existe em duas variantes, a teoria rigorosa (ou extrema) da culpabilidade e a teoria limitada da culpabili­dade. A teoria rigorosa da culpabilidade, desenvolvida por WELZEL e predominante entre finalistas, atribui as mesmas conseqüências a todas as modalidades de erro de proibição: o erro de proibição inevitável exclui a reprovação de culpabilidade; o erro de proibição evitável reduz a reprovação de culpabilidade, na medida da evitabilidade do erro.76

A teoria limitada da culpabilidade, dominante na literatura e jurisprudência contemporâneas, atribui conseqüências diferentes ao erro de proibição: a) o erro de proibição direto, que tem por objeto a lei penal\ considerada do ponto de vista da existência, da validade e do significado da norma, exclui ou reduz a reprovação de culpabilidade; b) o erro de proibição indireto (ou erro de permissão), que tem por objeto os limites jurídicos de causa de justificação legal, ou a existênáa de causa de justificação não prevista em lei, também exclui ou reduz a reprovação de culpabilidade; c) o erro de tipo permissivo, que tem por objeto os pressu­postos objetivos de justificação legal e, portanto, existe como errônea representação da situação justificante, incide sobre a realidade do fato e, por isso, exclui o dolo — e não, apenas, a reprovação de culpabilidade —, funcionando como verdadeiro erro de tipo, com punição alternativa por imprudência, se existir o tipo respectivo.77

75 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §41, II 1, p. 456.76 Assim, WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 168;MAURACH/GÒSSEL/ZIPF,

Strafrecht 2, §44, n. 61, p. 165; comparar ROXIN, Strafrecht, 1997, §21, n. 63-64, p. 527. No Brasil, ver RODRIGUES, Teoria da culpabilidade, 2004, p. 95-102.

77 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §41, II-IV, p. 456-467; ROXIN, Strafrecht, 1997, §14, n. 54-55, p. 523 e §21, n. 20-24, p. 802-804; também, WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 469-470, p. 137-138 e n. 482 e 484, p. 142- 143. No Brasil, ver RODRIGUES, Teoria da culpabilidade, 2004, p. 102-112.

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Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

A equiparação do erro de tipo permissivo ao erro de tipo, como característica da teoria limitada da culpabilidade, se baseia no argu­mento de que o autor quer agir conforme a norma jurídica — e, nessa medida, a representação do autor coincide com a representação do legislador, ou com o direito objetivo existente78 —, mas erra sobre a verdade do fato: a representação errônea da existência de situação justificante exclui o dolo, como decisão fundada no conhecimento das circunstâncias do tipo legal, mas no desconhecimento da inexistência da situação justificante, cuja errônea admissão significa que o au­tor não sabe o que fa % — ao contrário das outras espécies de erro de proibição, em que o autor sabe o que f a mas erra sobre a juridici­dade do fato.79 Esse tratamento diferencial do erro de proibição é explicado por critérios objetivos de valoração do comportamento:a) se o comportamento real do autor é orientado por critérios iguais aos do legislador, os defeitos de representação daquele podem ter por objeto ou a situação típica (erro de tipo) ou a situação justificante (erro de tipo permissivo): ambas hipóteses excluem o dolo e admitem a possibilidade de punição por imprudência; b) se o comportamento real do autor é orientado por critérios desiguais aos do legislador, os defeitos de representação daquele somente podem ter por objeto a valoração jurídica geral do fato (erro de proibição), com o efeito de excluir ou de reduzir a reprovação de culpabilidade, conforme a natureza inevitável ou evitável do erro.80

Como esclarecimento complementar, a sugestiva teoria das

78 Comparar JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §41, IV 1 d, p. 464.79 Nesse sentido ROXIN, Strafrecht, 1997, §14, n. 62-68, p. 526-529.80 Nesse sentido, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafhchts, 1996, §41,1-IV, p.

452-467; ROXIN, Strafrecht, 1997, §21, n. 8, p. 796; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 471, p. 138.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 12

características negativas do tipo81 — contra a qual, na verdade, não existe nenhum argumento sério — resolve o problema do erro sobre a situação justificante do mesmo modo que a teoria limitada da cul­pabilidade, mas com fundamentos diferentes: considera os compo­nentes do tipo legal como elementos positivos e as justificações como elementos negativos do tipo de injusto e, por conseqüência, define o erro sobre a situação justificante como erro de tipo, excludente do dolo — e, por extensão, do tipo de injusto —, se inevitável, admitindo imprudência, se evitável.82

A legislação brasileira disciplina o erro de tipo (art. 20, CP), o erro de tipo permissivo (art. 20, §1°, CP) e o erro de proibição (art. 21, CP) segundo os critérios da teoria limitada da culpabilidade (ver Urro de proibição na lei penal brasileira, adiante).

b) Objeto da consciência do injustoO estudo do objeto da consciência do injusto é importante para

responder a seguinte pergunta: o que o autor deve saber para ter co­nhecimento do injusto do fato? Sem definir o objeto da consciência do injusto qualquer pesquisa sobre erro de proibição é inútil.

A definição do objeto da consciência do injusto — ou seja, do substrato psíquico mínimo de conhecimento do injusto necessário para configurar a consáênáa da antijuridiádade do fato — é controvertida na literatura penal contemporânea, distinguindo-se, pelo menos, três

81 Ver, entre outros, SCHROTH, Die Annabme und das ‘Für-Mõglich-Halten” von Ums- tàndem, die einen anerkannten Rechlfertigungsgrund begründen, Arthur Kaufmann-FS, 1993, p. 595; SCHÜNEMANN, Die deutschsprachige Strafrechtsmssenschafi nacb der Strafrechtsreform im Spiegel des Leip^iger Kommentars und des Wiener Kommentars, 1. Teil: Tatbestands- und Unrechtslehere, GA 1985, p. 341.

82 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §41, IV lc , p. 464; ROXIN, Strafrecht, 1997, §14, n. 70, p. 529.

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Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

posições principais:

a) a teoria tradicional, representada por JESCHECK/WEIGEND,83 define a antijuridiádade material como objeto da consciência do injusto, consistente no conhecimento da contradição entre comportamento real e ordem comunitária, que permitiria ao leigo saber que seu comportamento infringe o ordenamento jurídico (público, civil, penal etc.) ou moral, independente de conhecer o bem jurídico lesionado ou a punibilidade do fato;

b) a teoria moderna, representada por OTTO,84 apresenta apunibilidade dofato como objeto do conhecimento do injusto, ou seja, consciência do injusto significa “conhecimento da punibilidade do comportamento através de uma norma legalpenalpositiva” e, portanto, consciência “de infringir uma prescrição penal”, embora não exija “conhecimento preciso dos parágrafos da lei” infringidos;

c) a teoria talvez dominante, representada por ROXIN,85 situa-se em

83 JESCHECK/WEIGEND, Eehrbuch des Strafrechts, 1996, §41,1 3a, p. 453-454: cons­ciência do injusto significa conhecer que “o comportamento contradigas exigências da ordem comunitária e, p o r esse motivo, é juridicamente proibido”, ou seja, é suficiente conhecer “a antijuridiádade material”, como conhecimento leigo “de lesionaruma norma jurídicapenal, ávil ou pública ’, sem necessidade de consciência “da normajurídica lesionada ou da punibilidade do fato”; no mesmo sentido, WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 17.

84 OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §13, IV lb , n. 41, p. 203: “conhecimento do injusto, no sentido de conhecimento da antijuridicidade, éconhecimento da punibilidade do comportamento através de uma norma legalpenal positiva ”em que “não é necessário o conheámento preáso dos parágrafos da lei, mas o conheámento de infringir uma prescrição pena l” (grifado no original); no mesmo sentido, GROTHE- GUT, Norrn- und Verbots(un)kenntnis, 1993, §17, p. 111; também, NEUMANN, Der Verbotsirrtum (§17 SíGB), JuS, 1993, p. 795.

85 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §21, n. 12-16, p. 798-800, esp. n. 16, p. 800: “a anti- juridiádade é objeto da consáênáa do injusto (...) não como proibição abstrata, mas apenas em relação com o injusto concreto do tipo respectivo. Existe consáênáa do injusto se o autor conhece como injusto a espetífica lesão do bem jurídico compreendida no tipo legal considerado ”, no mesmo sentido, RUDOLPHI, XJnrechtsbewusstsein, Verbotsirrtum und Vermeidbarkeit des Verbotsirrtums, 1969, p. 56.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 12

posição intermediária, sob o argumento de que conhecer a danosidade social ou a imoralidade do comportamento, segundo a teoria tradicional, seria insufiáente, e conhecer a punibilidade do ja to , conforme a teoria moderna, seria desnecessário: objeto da consciência do injusto seria a chamada antijuridicidade concreta, como conhecimento da específlca lesão do bem jurídico compreendido no tipo legal respectivo, ou seja, o conhecimento da proibição concreta do tipo de injusto. Na verdade, a teoria dominante se aproxima da teoria moderna, porque conhecer a específica lesão do bem jurídico compreendido no tipo legal eqüivale ao conhecimento da puni­bilidade dofato e, assim, a teoria tradicional aparece em posição isolada e oposta em relação àquelas.

A literatura brasileira, em geral, não menciona a controvérsia sobre o objeto da consciência do injusto, limitando-se à difusão exclusiva da teoria tradicional,86 cuja amplitude excede os limites do objeto do conhecimento do injusto: assim, não apresenta a teoria dominante, do conhecimento da lesão específica do bem jurídico compreendido no tipo legal.\ e ignora a teoria moderna do conhecimento da punibilidade do comportamento através de norma legal penalpositiva, ou seja, do conheámento de infringir uma prescrição penal e, portanto, do conhecimento da punibilidade dofato — na verdade, o conceito mais compatível com o prinápio da culpabilidade que caracteriza o Direito Penal no moderno Estado Democrático de Direito.

c) Divisibilidade e formas de conhecimento do injustoA consciência do injusto pode ser divisível em tipos que pro­

tegem diferentes bens jurídicos: no roubo, por exemplo, o autor toma com violência coisa própria em poder do devedor em mora,

86 Ver, por exemplo, JESUS, Direito Penal I, 1999, p. 485; MIRABETE, Manual de Direito Penal.’ 2000, p. 202.

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Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

com conhecimento do injusto relativo à violência do constrangi­mento ilegal, mas em erro de proibição em relação ao furto; em tipos qualificados, o autor pode conhecer o injusto do tipo básico, mas encontrar-se em erro de proibição quanto à circunstância qua- lificadora87 — o problema subsistente é definir a natureza evitável ou inevitável do erro.

Por outro lado, reflexão específica sobre a antijuridicidade do comportamento durante a realização do fato punível é incomum, porque autores de fatos puníveis raramente são atormentados por escrúpulos ou outros sentimentos altruístas. Não obstante, a consci­ência ou conhecimento do injusto deve ser atual.’ sendo insuficiente conhecimento atuali%ável, embora esse conhecimento possa existir na forma da chamada co-consciênáa, que também é suficiente para a consciência atual do dolo, cuja defecção produz o erro de tipo. As­sim, em crimes patrimoniais, a consciência do autor pode não estar na proibição do furto ou do roubo, por exemplo, mas no sucesso da ação, ou nas vantagens dela resultantes: a chamada co-consciênáa con­siste, precisamente, na influência desse conteúdo sobre a realização da ação, através de cuidados ou precauções para evitar suspeitas ou, especialmente, a prisão.88

d) Conhecimento condicionado do injusto

O conceito de conheámento condiáonado do injusto adquiriu sta­tus científico na dogmática da culpabilidade porque, em situação de dúvida sobre a antijuridicidade do comportamento, o autor pode

87 Assim, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §41 ,1 3d, p. 455; também, ROXIN, Strafrecht, 1997, §21, n. 16, p. 800-801; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 428, p. 124.

88 Nesse sentido, PLATZGRUMMER, Die Bewusstseinsform des Vorsafcçes, 1964; também, SCHEWE, Bewusstsein und Vorsat% 1967.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 12

representar a permissão como provável e, também, admitir a proibição como possível. Por exemplo, adrar sobre o ladrão em fuga é autori­zado pela legítima defesa? Se existe dúvida sobre os limites jurídicos de causa de justificação, então existe conhecimento condicionado do injusto concreto do tipo respectivo, considerado suficiente para motivar o comportamento segundo a norma.89 Curto e grosso: a dúvida sobre a permissibilidade da ação é incompatível com o erro de proibição— portanto, no exemplo acima, a vítima deve deixar o ladrão fugir. A literatura tem procurado suavizar esse ponto de vista, especialmente na área do Direito Penal especial, condicionando a rejeição do erro de proibição à possibilidade de resolver a dúvida por consulta a advogado ou leitura de um comentário de legislação etc.

Hipótese diferente é a necessidade de escolha entre dois com­portamentos igualmente puníveis: o policial não sabe se deve ou não deve atirar sobre autor de crime prestes a cruzar a fronteira de outro país, porque atirar significaria lesão corporal dolosa, e não atirar poderia significar favoreámento pessoal. Neste caso, o princípio da culpabilida­de impede reprovar pela escolha da alternativa errada, porque uma necessária consciência condicionada do injusto representaria hipótese de inevitável erro de proibição.90

Critérios complementares para avaliar casos de conhecimento condicionado do injusto seriam os seguintes: probabilidade de maior juridicidade da alternativa escolhida, consideração dos interesses em jogo na situação, danos resultantes da contemporização ou adiamento da decisão etc.91

89 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §21, n. 28-33, p. 806-809.90 Assim, ARMIN KAUFMANN, Lebendiges und Totes in Bindings Normentheorie, 1954,

p. 221; ROXIN, Strafrecht, 1997, §21, n. 30, p. 806; RUDOLPHI, Unrechtsbewusstsein, Verbotsirrtum und Vermeidbarkeit des 1/erbotsirrtums, 1969, p. 139.

91 Ver STRATENWERTH, Strafrecht, 1981, n. 586.

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Capítulo 12 Culpabilidade e 'Exculpação

2.2. Conseqüências legais do erro de proibição

As conseqüências legais do erro de proibição, segundo o cri­tério legislado da teoria limitada da culpabilidade, são diferenciadas conforme a categoria do erro de proibição, por sua vez determinada pelo objeto do erro respectivo:

1) o erro de proibição direto,, que tem por objeto a lei penal, e o erro de proibição indireto (ou erro de permissão), que tem porobjeto a existência de justificação inexistente, ou os limites jurídicos de justificação existente, excluem ou reduzem a reprovação de culpabi­lidade, porque o comportamento real do autor é orientado por crité­rios desiguais aos do legislador: o erro inevitável exclui e o erro evitável reduz a reprovação de culpabilidade (neste caso, possibilidade significa obrigatoriedade de redução, segundo o principio da culpabilidade).92

2) o erro de tipo permissivo., que tem por objeto a situação justifi­cante, constitui exceção à regra: o erro inevitável {plenamente justificado pelas circunstâncias) exclui o dolo e, por extensão, o crime e a pena; o erro evitável exclui o dolo, mas admite a atribuição por imprudência, se prevista em lei (art. 20 §1°) —, em ambos os casos, porque o comportamento real do autor é orientado por critérios iguais aos do legislador.

Art. 20, §1°. E isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas árcunstânáas, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato épunível como crime culposo.

92 ROXIN, Strafrecht, 1997, §21, n. 69-70, p. 824.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 12

2.3. Natureza evitável ow inevitável do erro de proibição

O erro de proibição evitável reduz a reprovação de culpabilidade no erro de proibição direto e no erro de permissão, e pode conduzir à punição por imprudênáa no erro de tipo permissivo, porque se existe possibilidade de conhecer o injusto do fato, mediante reflexão ou informação, então o autor é alcançável pela determinação da norma e, conseqüentemente, seria capaz de dirigibilidade normativa.

O erro de proibição inevitável exclui a reprovação de culpabilidade no erro de proibição direto e no erro de permissão, e exclui o dolo e a impru­dência no erro de tipo permissivo, porque se não existe possibilidade de conhecer o injusto do fato, mediante reflexão ou informação, então o autor não é alcançável pela determinação da norma e, conseqüen­temente, não seria capaz de dirigibilidade normativa.93

A possibilidade de conhecimento do injusto, que indica a evitabi- lidade do erro de proibição, depende de múltiplas variáveis, como a posição social, a capacidade individual, as representações de valor do autor94 etc. e deve ser medida por critérios normais de reflexão ou de informação, e não por critérios rigorosos, incompatíveis com a vida so­cial.95 A certeza ou, até mesmo, a existência de fundamentos razoáveis sobre a permissibilidade do fato seriam argumentos suficientes para a inevitabilidade do erro de proibição, porque ninguém pode conhecer a infinidade das proibições da lei penal: se o dolo de tipo, em grande parte dos crimes dolosos do Direito Penal comum, e na maioria dos

93 Assim, ARMIN KAUFMANN, Die Dogmatik der Unterlassungsdelikte, 1959, p. 144 e seguintes; HORN, 1/erbotsirrtum und Vorwerfbarkeit, 1969, p. 60; RUDOLPHI, Unrechtsbewusstsein, Verbotsirrtum und Vermeidbarkeit des Verbotsirrtums, 1969, p. 19.6, e seguintes.

94 WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 466, p. 136.95 Ver JAKOBS, Strafrecht, 1993, 19/35, p. 557-558; também, MAURACH/ZIPF,

Strafrecht., 1992, §38,'n. 37, p. 549.

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Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

crimes dolosos do Direito Penal especial, aparece desacompanhado da consciência da antijuridicidade, então a maioria dos casos de erro de proibição deve ser considerada inevitávele, assim, excluir a reprovação de culpabilidade.96

Art. 21, Parágrafo único. Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consáênáa da iliátude do fato, quando lhe era possível, nas árcunstânáas, ter ou atingir essa consáênáa.

2.4. Meios de conhecimento do injusto

O método primitivo do esforço de consáênáa empregado para co­nhecer o injusto do fato poderia, na melhor das hipóteses, permitir o conhecimento de violações morais, mas era inadequado para conhecer o injusto de tipos penais — aliás, outro entendimento significaria reconhecer a inutilidade do estudo jurídico.97 O método atual para conhecer o injusto de tipos penais é o da reflexão e informação: a evita- bilidade ou inevitabilidade do erro de proibição dependem do nível de reflexão e de informação do autor sobre o injusto específico do tipo legal.98 Esse método corresponde à exigência da lei, que define o erro evitável pela possibilidade de ter (reflexão) ou de atingir (informação) o conhecimento do injusto (art. 21, CP).

Em regra, a reflexão do autor n o momento do fato é suficiente para conhecer a antijuridiádade concreta do injusto específico: a lesão corporal grave produzida pelo pai no filho, sob a convicção errônea de exercer direito de educação, poderia ser evitada pela reflexão; excepcionalmente,

95 Nesse sentido, ROXIN, Strafrecht, 1997, §21, n. 37-44, p. 810-812; assim, também,JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §41, II 2c, p. 459-460.

97 Ver BAUMANN/WEBER, Strafrecht, 1995, §21, n. 60.98 ROXIN, Strafrecht, 1997, §21, n. 45-51, p. 813-815.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 12

o conhecimento do injusto do fato pode depender de informações es­pecializadas, que devem ser obtidas anteriormente, como as regras de tráfego, por exemplo: produzir acidente no tráfego urbano, por falta de conhecimento anterior da regra de circulação violada, configura erro de proibição evitável, como reprovabilidade do fato ligada à lesão anterior do cuidado."

Algumas teorias sobre o exame da juridicidade da ação sustentam posições extremas: ou são rigorosas demais, exigindo exame antecipa­do da juridicidade de cada ação100 — uma exigência irrealista capaz de paralisar a vida social; ou são muito tolerantes, ao admitir a impossi­bilidade prática de informação no caso de ausência de dúvida sobre a proibição no psiquismo do autor.101 Um critério intermediário parece razoável: existiria motivo para exame da juridicidade da ação nas hipó­teses (a) de dúvida sobre sua juridicidade concreta, (b) de consciência de atuação em área regida por normas espeáais e (c) de consciência da possibilidade de dano individual ou coletivo.102 Na hipótese de dúvida sobre a juridicidade, a atitude de não levar a sério a dúvida, ou de leviana admissão da juridicidade da ação, é suficiente para configurar erro evitável; na hipótese de atuação em áreas regidas p or normas espeáais (crimes contra o meio ambiente, o consumidor etc.), o erro de profissionais ou de empresários da área é, normalmente, evitável, mas o erro do cidadão comum seria, normalmente, inevitável; na hipótese de consciência da possibilidade de dano individual ou coletivo (por exemplo, a consciência de que determinada ação na esfera negociai poderá prejudicar número indeterminado de pessoas), qualquer lesão a normas sociais elemen­

99 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, §21, n. 46-48, p. 813-814.100 E a posição do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal) alemão.101 Assim HORN, Verbotsirrtum und Vorwerfbarkeit, 1969, p. 105; também, ZACZYK,

Der Verschuldete Verbotsirrtum, JuS, 1990, p. 893.102 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, §21, n. 53, p. 816; também, STRATENWERTH,

Strafrecht, 1981, n. 585.

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Capítulo 12 Culpabilidade e 'Exculpação

tares configura erro evitável™

É importante destacar que o erro de proibição inevitável é mais provável no Direito Penal especial, em que o cidadão comum tem maior dificuldade de reconhecer o injusto concreto do tipo respectivo e, além disso, os próprios operadores jurídicos especializados não co­nhecem a totalidade das incriminações respectivas; por outro lado, o erro de proibição evitável é mais freqüente no Direito Penal comum, exceto quando não há motivo para exame da juridicidade da ação, como m o s t r a um C aso da jurisprudência a le m ã : dois t r a b a lh a d o r e s

rurais fo r a m absolvidos da acusação de relações sexuais consentidas com mulher doente mental, por erro de proibição inevitável., porque não tinham dúvida sobre a juridicidade da ação, não tinham consciência de dano contra a mulher e, finalmente, o consentimento da mulher a fa s ta v a qualquer motivo de preocupação sobre a juridicidade do comportamento.104

Enfim, a confiança em informações de jurisprudência, ou de profis­sionais da área jurídica (advogados, professores de direito e operadores jurídicos, em geral), pode ser decisiva: erro de proibição inevitável no caso de tipo de injusto realizado com base em jurisprudência unânime ou dominante dos tribunais e erro de proibição evitável no caso de divergência de tribunais de igual jurisdição; igualmente, a confiança na orientação de advogados, ou outros profissionais do direito, pode fundamentar erro de proibição inevitável: primeiro, porque são profis­sionais legalmente habilitados para o exercício da profissão; segundo, porque o leigo não tem condição de avaliar a capacidade geral, os conhecimentos específicos e a correção ou não das informações.

Entretanto, a reflexão do cidadão comum não oferece o mesmo

103 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §41, II, 2 b, p. 458; ROXIN, Strafrecht, 1997, §21, n. 53-57, p. 816-818.

104 ROXIN, Strafrecht, 1997, n. 59, p. 818.

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nível de confiabilidade, por causa de uma contradição aparentemente insolúvel: por um lado, o leigo é incapaz de resolver questões jurídi­cas que não conhece; por outro, a lei penal não pode ser inacessível à compreensão do homem do povo.105 Por isso, em sociedades com elevadas taxas de exclusão do mercado de trabalho e do sistema escolar— ou seja, marcadas pela pobreza e pela ignorância, como é o caso da sociedade brasileira —, a freqüência do erro de proibição e a impreci­são dos critérios de evitabilidade/inevitabilidade respectiva reclamam atitudes democráticas na sua avaliação: bitola larga para a inevitabilidade, bitola estreita para a evitabilidade do erro de proibição.

2.5. Erro de proibição na lei penal brasileira

A lei penal brasileira (art. 21, CP) permite identificar as seguintes modalidades de erro de proibição, segundo o critério da teoria limitada da culpabilidade: a) erro de proibição direto, incidente sobre a existên­cia, validade e significado da lei penal; b) erro de permissão (ou erro de proibição indireto), incidente sobre justificação inexistente ou sobre limites jurídicos de justificação existente; c) erro de tipo permissivo, incidente sobre a situação justificante (ou pressupostos objetivos de justificação legal).

Essa sistematização do erro de proibição na lei penal brasileira se baseia na premissa de que a regra da inescusabilidade do desconhe­cimento da lei (art. 21, CP, primeira parte) é limitada pelas exceções representadas pelo erro de proibição inevitável (art. 21, CP, segunda parte) — o erro de proibição evitável apenas gradua a reprovação. A interpretação de que a regra da inescusabilidade do desconhecimento da lei não prevalece sobre as exceções do erro de proibição inevitável

105 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, §21, n. 61-65, p. 818-821.

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pode exünguir a tensão entre política criminal e princípio da culpabilidade, em matéria de erro deproibição direto, sob a modalidade de desconhecimento da lei penal.’ na literatura e jurisprudência brasileiras. Ora, se o Direito Penal do moderno Estado Democrático de Direito assenta no princípio da legalidade, expresso na fórmula nullum crimen sine. lege, que fundamenta a incriminação de condutas, e no princípio da culpabilidade, expresso na fór­mula nullum crimen sine culpa, que fundamenta a responsabilidade e a criminalização individual, então a lei ordinária não pode, em nenhuma hipótese, contrariar esses princípios — e, portanto, o princípio da culpabilidade não pode ser cancelado para garantir a eficááa da lei penal, como pretende um setor da literatura penal brasileira.106 Não é o princípio da culpabilidade que deve se adequar à lei, mas a lei que deve se adequar ao princípio da culpabilidade, sob quaisquer critérios de interpretação.107

106 Assim, por exemplo, JESUS, Direito Penal, 1999, p. 485, considera inescusável o des­conhecimento da lei — que, segundo diz, “não se confunde com a falta de consáênáa da iliátude do fato atribuindo-lhe natureza de atenuante genérica e função de garantir a “eficááa”do sistema legaL, com implicito cancelamento do princípio da culpabilidade; MIRABETE, Manual de Direito Penal, 2000, p. 202, afirma que o desconheámento da lei “é árcunstânáa atenuante”, que “não coinádeperfeitamente com a ignorânáa da iliátude”', REGIS PRADO, Curso de Direito Penal brasileiro, 1999, p. 242, reproduz o conceito de que o desconhecimento da lei “não se confunde com a falta de consáênáa da iliátude”, sendo simples atenuante genérica e, assim, reduz a extensão do erro de proibição direto; FLÁVIO GOMES, Erro de tipo e erro de proibição, 1999, p. 134, afirma que “a ignorânáa ou a má compreensão da lei” não se confunde com “erro de proibição”, constituindo, no máximo, “árcunstânáa atenuante” (p. 132 e nota 147).

107 Em posição de resistência teórica, MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 182, deplora a orientação dominante, “em franca oposição ao moderno prinápio da culpabilidade, o qual exige (...) não apenas o conhecimento da regra como a estruturação da vontade de maneira reprovável”', igualmente incisivo, FRAGOSO, U ções de Direito Penal, 1985, n. 193, p. 212, reconhece a tendência de “atribuir eficááa ” ao desconhecimento da lei, “tendo em vista que a solução adotada viola o princípio da culpabilidade, à base de ficção in to lerá v e lMUNHOZ NETO, A. ignorânáa da antijuridicidade em matéria penal, 1978, p. 21, ainda na vigência da lei anterior, já admitia que “desconhecer a lei possa itnplicar em não saber da existência da norma que impõe ou proíbe determinado comportamento ” e “se o autor não possuir conheámento de que, pela vontade do Direito Penal, a conduta não poderia ter lugar, este erro, se invenrível, deverá revestir-se de eficááa. ”

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Art. 2 1 .0 desconheámento da lei é inescusável O erro sobre a iliátude do jato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço.

O equívoco da literatura penal doméstica sobre erro de proibição direto, na modalidade de ignorância da lei, nasce de arbitrária oposição dos conceitos de desconheámento do injusto e de desconheámento da lá — que não se recobrem reciprocamente, mas também não se excluem inteira­mente, porque a ignorânáa da lei pode fundamentar a ignorânáa do injusto em tipos penais não coincidentes com direitos humanos fundamentais. A pretensa oposição entre desconheámento do injusto e desconheámento da lei é assim formulada por TOLEDO:108 o desconheámento do injusto, definido como conheámento jalso do injusto, poderia constituir erro de proibição escusável; o desconheámento da lei, como ignorânáa total dn lei, não constituiria erro deproibição, nem seria escusável, mas simples árcunstânáa atenuante, por causa da obrigatoriedade/generalidade da lei penal, como norma do poder legislativo do Estado.109 Esse equívoco da literatura dominante pode ser demonstrado como segue.

1. A obrigatoriedade/generalidade da lei penal nada tem a ver com o erro de proibição direto: a lei penal é geral e obrigatória em qualquer ordenamento jurídico, e tais caracteres não impedem que a inevitável ignorânáa da lei penal, ou representação da invalidade da lei penal, ou interpretação ja lsa j errada da lei penal constituam modalidades de erro de proibição direto plenamente escusáveis na Alemanha e na Itália, por exemplo— donde se conclui que brocardos do tipo ignorancia legis neminem ex- cusat,n0 perderam todo prestígio em face do prinápio da culpabilidade e

108 Nesse sentido, TOLEDO, Urro de tipo e erro de proibição no projeto de reforma penal, RT 578/291:. “Só uma enorme confusão poderia identificar duas coisas diferentes como estas — o desconheámento do injusto e o desconheámento da norma legal” (também citado por MIRABETE, Manual de Direito Penal’ 2000, p. 202).

109 Ver, por exemplo, MIRABETE, Manual de Direito Penal, 2000, p. 201-202, utilizado como modelo da análise subseqüente, porque representativo da opinião dominante.

110 Assim, MIRABETE, Manual de Direito Penal, 2000, p. 201; também, JESUS, Direito Penal I, 1999, p. 485.

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não valem mais como economia de análise.

2. Não é a ignorância total ou pardal da lei, ou a representação falsa ou equivocada do injusto que determina a relevânda ou irrelevânda do erro de proibição, mas sua natureza evitável ou inevitável: erro de proibição inevitável exclui a reprovação, erro de proibição evitável pode reduzir a reprovação, em todas as hipóteses — exceto no erro de tipo permissivo, em que pode transformar o fato doloso em fato imprudente, segundo a teoria limitada da culpabilidade (art. 20, §1°). Logo, seria erro de proibição evitável a ridícula alegação de não saber que é “ilidto matar, subtrair coisa alheia, falsificar documento etc. ”,m cuja proibiçãojurídica todos conhecem, como mostram JESCHECK/WEIGEND;112 entretanto, em crimes contra o meio ambiente, ou outro setor do vasto Direito Penal especial, o erro de proibição direto do cidadão comum, na modalidade de ignorânda da lei, é normal e, freqüentemente, inevitável: por exemplo, quem poderia saber que é crime terem depósito ou guardar madeira, lenha, carvão e outros produtos de origem vegetal, sem licença da auto­ridade competente? (art. 46, parágrafo único, da Lei 9.605/98).

3. Diferenciar conhecimento do injusto e conhecimento da lei para atribuir relevância ao desconhecimento do injusto penal e irrelevância ao desconhecimento da lei penal, é ignorar que o injusto penal só pode existir como injusto tipificado na lei, hoje generalizado sob o conceito de tipo de injusto que, por força do príndpio da legalidade aparece na lei penal sob a forma de tipo legal (ôu tipo penai), como descrição do comportamento proibido. Mais: precisamente porque injusto penal e lei penal representam, respectivamente, as dimensões concreta e abstrata das proibições ou comandos do Direito Penal é possível, no Direito Penal comum, ter ou atingir o conhecimento da lei através do conhecimento do injusto, mas no Direito Penal especial é, freqüentemente, impossível ter ou atingir o

111 Ver MIRABETE, Manual de Direito Penal, 2000, p. 202.112 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §41,1 3b, p. 454.

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conhecimento do injusto, exceto através do conhecimento da kipenal.

4. Alguns autores,113 para mostrar que ignorância da lei não constitui modalidade de erro de proibição direto, referem opinião de JESCHECK sobre o objeto da consciência do injusto — um conceito de natureza diversa, definido pelo mínimo de consciência da antijuridicidade material necessário para indicar a contradição do comportamento com a ordem comunitária — e extraem da posição de JESCHECK sobre o conteúdo mínimo de conhecimento necessário para caracterizar a consáênáa do injusto o disparate lógico de que a ignorânáa da lei não seria modalidade de inconsáênáa do injusto e, portanto, não poderia constituir espécie de erro de proibição direto (ver Objeto da consáênáa do injusto, acima). Ao contrário, em vez desse óbvio equívoco de interpretação, o insigne jurista alemão afirma que “este erro (de proibição direto) pode se basear no seguinte, que a norma, deproibição não é conhecida pelo autor, ou que, na verdade, o autor a conhece, mas a considera inválida, ou a interpreta erronea­mente e, p or isso, não a considera aplicáver.nA Como se vê, não é possível extrair da tese de JESCHECK sobre o conteúdo mínimo necessário para positivo conhecimento do injusto (consciência da contradição entre comportamento e ordem comunitária), a tese diferente de que o ine­vitável desconhecimento da lei é inescusável’ sendo apenas árcunstânáa atenuante. Afinal, se não é possível ter ou obter o conheámento da lei— especialmente em áreas de descoincidência entre tipos penais e ordem moral.' nas quais o conhecimento do injusto passa, necessariamente,

113 Por exemplo, MIRABETE, Manual de Direito Penal, 2000, p. 202: “nãopode escusar- se o agente com a simples alegação form a l de que não sabia haver lei estabelecendo punição para o fa to

114 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §41, I I 1 a, p. 456: “Beruhen kann dieser Irrtum darauf d a s s d i e V erbotsnorrn d e m T ã ter n i c h t b ek a n n t i s t oder dass ersie %war kennt, aber ais ungültig ansieht, oder dass ersiefalsch ausgelegt hat und desmgen nicht juranm ndbar hãlt” (grifei).

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Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

pelo conhecimento da lei115 —, então existe erro de proibição direto, na modalidade de inevitável desconhecimento da lei, que exclui a re­provação de culpabilidade.

5. Se o legislador pretendia excluir o erro de proibição direto, na moda­lidade de ignorância da lei, do quadro do erro de proibição da teoria limitada da culpabilidade, inserindo a regra da eficácia da lei penal ao lado das exceções do erro de proibição determinadas pelo princípio da culpabilidade, então disse menos do que queria, ou disse coisa diversa, porque os conceitos correlacionados na lei penal se comportam como regra/exceção, apesar da intenção do legislador. Em conclusão, a regra da inescusabilidade do desconhecimento da lei, como expressão da natureza geral e obrigatória da lei penal, não tem o poder de suspender o princípio da culpabilidade expresso na exceção do erro de proibição direto, na modalidade de desconhecimento inevitável sobre a existência da lei penal.116

6. Em avaliação geral, a literatura dominante no Brasil parece utilizar critérios relativos ao conteúdo da consciência do injusto — ou seja, cri­térios que definem o que é necessário e suficiente conhecer para existir conhecimento do injusto, representado por aquele limiar mínimo de co­nhecimento da danosidade social da ação, ou da punibilidade dofato, ou da

115 MIRABETE, Manual de Direito Penal, 2000, p. 202, afirma que a “in tu i çã o d o q u e é p r o i b i d o ”, existente no indivíduo como “membro da sociedade”, pode evitar crimes ou “violações da ordemjurídica”, até na hipótese de descoincidência entre “tipospenais” e “ordem moral”, por causa da exigência de informação sobre a “regularidadejurídica” dos próprios atos (grifei).

1,6 COSTA JÚNIOR, Comentários ao código penalY, 1989, p. 187, ainda admite que o desconheámento da lei é atenuante, mas reforça a interpretação do texto ao informar (p. 191) que a Corte Constitucional da Itália, na sentença n. 364, de 24 de março de 1988, sob fundamento de inconstitucionalidade, alterou a norma que instituía a inescusabilidade da ignorânáa da lei penal, atribuindo-lhe a seguinte redação, em vigor: “a ignorânáa da lei p ena l não escusa, a m e n o s q u e s e t r a t e d e i g n o r â n c ia i n e v i tá v e l” (grifei).

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antijuridicidade concreta do ripo de injusto —, para afirmar a irrelevância do fenômeno psíquico contrário de inconsciência do injusto por ignorância da lei, ou seja, de desconhecimento do injusto em situações em que o conhecimento do injusto depende do conhecimento da lei, ou em que o desconhecimento da lei determina o desconhecimento do injusto. As situações de ignorânáa da lei determinantes de inevitável ignorânáa do injusto — próprias do Direito Penal especial, em face da freqüente descoinádênáa entre tipos legais e ordem moral ou, melhor, direitos humanos fundamentais —, não podem ser obscurecidas com situações próprias do Direito Penal comum, caracterizadas pela coinádênáa entre tipos legais e direitos humanos fundamentais (por exemplo, matar alguém, furtar, falsificar documento etc.). O artifício generalizado na literatura penal doméstica, de utilizar situações de necessário conhecimento do injusto (a proibição de matar alguém, por exemplo) para encobrir situações em que o conheci­mento do injusto depende de conhecimento da lei penal (a proibição de guardar lenha ou carvão, sem licença da autoridade competente., por exemplo), criou um buraco negro no prinápio da culpabilidade do Direito Penal brasileiro, no qual estão desaparecendo todos os casos de condena­ção criminal em situação de ignorânáa da lei determinante de inevitável desconhecimento do injusto.

2.6. Espécies de erro de proibição na lei penal brasileira

1. E rro d e p r o i b i ç ã o d ireto . O erro de proibição direto tem por objeto a lei penal, e pode existir tanto em forma positiva, de representação da juridiádade (sexo consentido com débil mental representado como jurídico), como em forma negativa, de não-representação da antij uridiádade do comportamento (o cidadão ingênuo que não pensa na juridicidade da ação).117 O erro de proibição direto pode incidir sobre a

117 Nesse preciso sentido, entre outros, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §41, II 1 a, p. 456; ROXIN, Strafrecht, 1997, §21, n. 20, p. 802; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 461, p. 134.

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existência, sobre a validade e sobre o significado da lei penal:

a) O erro sobre a existência da lei penal é a modalidade mais comum de erro de proibição, cuja freqüência é inversamente proporcional ao nível cultural do povo: quanto menor o nível de escolarização, maior a freqüência do erro (caboclo da região do cerrado é preso em flagrante pela autoridade florestal ao retirar pedaços de casca de árvore em mata ciliar, para preparar remédio para a esposa; o estudante holandês, viaja em férias pelas praias brasileiras, trazendo na mochila pequena provi­são de cannabis sativa, adquirida para uso próprio no mercado regular de Amsterdã, desconhecendo a proibição legal no Brasil; ignorando a incriminação do estupro presumido, o jovem roceiro e sua bela caipi­rinha de 13 anos de idade se unem em apaixonada relação sexual, na véspera da partida daquele para o serviço militar, sendo surpreendidos e levados à autoridade policial pelo padrasto da menina).

b) O erro sobre a validade da lei penal supõe o conhecimento da proibi­ção, considerada inválida ou nula por contrariar direitos fundamentais, o princípio da legalidade ou outros princípios jurídicos superiores: a invalidade da lei deve se basear em fundamentos reconhecidos pelo ordenamento jurídico, e não em convicções pessoais, políticas ou re­ligiosas do autor118 (o estudante de direito, convencido por opiniões doutrinárias ou manifestações da jurisprudência da invalidade da incri­minação da posse de drogas para uso próprio, porque fere a garantia constitucional de privacidade e, também, o princípio da legalidade, por ausência de lesão a bem jurídico — o perigo de autolesão é impunível —, não pode ser reprovado pelo consumo de cannabis sativa na esfera privada da vida).119

118 Assim, por exemplo, ROXIN, Strafrecht, 1997, §21, n. 24, p. 804.119 Ver KARAM, Penas, delitos e fantasias, 1991, p. 121-137.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 12

c) O erro sobre o significado da lei penal (também chamado erro de subsunção), igualmente supõe o conhecimento da proibição, mas incide sobre a interpretação do tipo legal, freqüente no caso de leis tributárias, ou de dpos legais com conceitos normativos complica­dos (na tergiversação ou patrocínio infiel, o advogado interpreta erroneamente a existência de causas distintas — e não da mesma cau­sa). Nessas hipóteses, a confiança em informações especializadas, ou em decisões judiciais, pode ser decisiva, ainda que, mais tarde, revelem-se erradas.120

2. E rro d e p e r m i s s ã o (ou e r r o d e p r o i b i ç ã o in d ir etó ) . O erro de permissão, ou erro de proibição indireto, tem por objeto a existência de causa de justificação inexistente, ou os limites jurídicos de causa de justificação existente: no erro sobre a existência de justificação inexistente, o autor supõe existir causa de justificação não reconhecida na lei (castigar crianças alheias por grosserias, no suposto exercício de direito de correção); no erro sobre limites jurídicos de justificação existente, o autor atribui à justificação limites diferentes dos atribuídos pelo legislador — nesse aspecto, corresponde ao erro sobre a existência de justificação inexis­tente: ao realizar prisão em flagrante, o cidadão comum produz lesão corporal grave na pessoa do preso.121

3. E rro d e t íp o p e rm is s i v o . O erro de tipo permissivo tem por objeto a situação justificante, porque consiste em representação errônea dos pressupostos objetivos de justificação legal, como ocorre na hipóte­se de legítima defesa putativa (o autor toma por assaltante o transeunte apressado que pretende perguntar as horas, e o derruba com violento golpe de caratê). O erro de tipo permissivo constitui erro sobre a verdade do fato, em que o autor não abandona a posição de fidelidade ao di­

120 ROXIN, Strafrecht, 1997, §21, n. 22-23, p. 803-804.121 ROXIN, Strafrecht, 1997, §21, n. 21, p. 803; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998,

n. 482-483, p. 142.

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reito; ao contrário, quer agir segundo a determinação da norma, mas erra sobre os pressupostos fáticos respectivos.122

Por outro lado, situações de excesso de legítima defesa podem se fundar tanto em defeito da dimensão intelectual quanto em defeito da dimensão emocional das ações humanas. O excesso de legítima defesa por defeito na dimensão intelectual da conduta constitui erro de representação, pelo qual o sujeito representa como existente realidade inexistente (por exemplo, a continuação de agressão cessa­da), configurando erro de tipo permissivo, com imediata exclusão do dolo (independente de ser evitável ou inevitável) — excluindo, também, a imprudência, se “plenamente justificado pelas árcunstâncias” (art. 20, § lb, CP) —, e pode ter por objeto tanto a legítima defesa real como a legítima defesa putativa.

a) O excesso de legítima defesa real por erro de representação pode ser intensivo ou extensivo: no excesso intensivo de legítima defesa real o autor erra sobre a intensidade da agressão e, por isso, utiliza meio de defesa superior ao necessário (disparo sobre o peito do agressor, quando bastava atirar nas pernas); no excesso extensivo de legítima defesa real o autor erra sobre a atualidade da agressão, que ainda não é atual (disparo sobre o agressor que se preparava para a agressão), ou j á não é mais atual (pontapés em agressor caído e inconsciente).

b) O excesso de legítima defesa putativa constitui hipótese de duplo erro: o autor utiliza meio de defesa desnecessário por erro (1) sobre a atualidade da agressão e (2) sobre a intensidade da agressão, se realmen­te existente: logo após violenta discussão, mulher atira no peito do marido (intensidade da agressão) ao vê-lo entrar no quarto com um taco de beisebol na mão, supondo que seria agredida (atualidade da

122 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §41, IV, 1 d, p. 464. No Brasil, ver RODRIGUES, Teoria da culpabilidade, 2004, p. 147-162.

329

Teoria do Fato Punível Capítulo 12

agressão).123

Ao contrário, excessos de legítima defesa real ou putativa por defeitos na dimensão emoáonal das ações humanas, produzidos por perturbação, medo ou susto (os chamados afetos astênicos, ou fracos), determinantes de descontrole psicomotor do sujeito, não constituem hipóteses de erro de proibição, mas podem configurar situações de ex­culpação legais, por inexigibilidade de comportamento diverso (ver 3.3.1. Situações de exculpação legais, adiante).

3. Exigibilidade de comportamento diverso (ou normalidade da situação da ação)

3.1. Normalidade das circunstâncias e exigibilidade jurí­dica

A normalidade das circunstâncias do fato é o fundamento concreto da exigibilidade de comportamento conforme ao direito, como terceiro estágio do juízo de reprovação de culpabilidade, realizado conforme o seguinte procedimento seqüencial:

a) no momento do exame da normalidade das circunstancias da ação (ou da exigibilidade jurídica) se pressupõe a existência de um sujeito normal,’ portador dos atributos pessoais de maturidade e sanidadepsíquica necessários à constituição da capacidade de culpabilidade, que permitem atribuir ao autor as conseqüências penais de suas ações;

b) além disso, nesse nível também está demonstrado que o sujeito

123 Comparar, entre outros, HAFT, Strafrecht, 1994, p. 135-137; ROXIN, Strafrecht, 1997, §21, n. 54-60, p. 823-825; WESSELS/BEULKE, Strafrecht,, 1998, n. 484-485, p. 143-144.

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Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

portador da capacidade de culpabilidade (portanto, atribuível ou imputávei) conhecia concretamente o injusto do fato ou teve a possibilidade de conhecer concretamente o injusto do fato: o conhecimento concreto da proibição elimina a hipótese do erro de proibição inevitável.' excludente da repro­vação de culpabilidade; a alternativa do desconhecimento da proibição por erro de proibição evitável não exclui a reprovação de culpabilidade por causa da possibilidade de conhecimento do injusto por reflexão ou informação — exceto na hipótese de erro de tipo permissivo;

c) finalmente, o último estágio da pesquisa consiste no exame da normalidade/anormalidade das circunstâncias de realização do tipo de injusto por um autor capa^ de culpabilidade, com conhecimento real ou possível da proibição concreta: circunstâncias normais fundamentam o juízo de exigibilidade de comportamento conforme ao direito; ao contrário, circunstâncias anormais podem constituir situações de exculpação que excluem ou reduzem o juízo de exigibilidade de comportamento conforme ao direito: o autor reprovável pela realização não-justificada de um tipo de crime, com conhecimento real ou possível da proibição concreta, é exculpado pela anormalidade das circunstâncias do fato, que excluem ou reduzem a exigibilidade de conduta diversa.

3.2. Inexigibilidade como fundamento geral de exculpa­ção

A inexigibilidade de comportamento diverso surge na dogmática jurí- dico-penal por proposta de FREUDENTHAL,124 correlacionada ao conceito normativo de culpabilidade do início do século XX, produz grande impacto e discussões acaloradas durante décadas, mas antes da Segunda Guerra mundial é rejeitada pela literatura dominante como fundamento supralegal de exculpação. Não obstante, EBERHARD

124 FREUDENTHAL, Schuld und Vorwurfim geltenden Strafrecht., 1922, p. 7.

331

Teoria do Fato Punível Capítulo 12

SCHMIDT sugere, em 1949, a necessidade de despertar o problema da in ex i- g ib i t id a d ed o sono de bela adormecida125 e, mais recentemente, aparecem propostas de retomada do conceito de inexigibilidade como cláusula geral de exculpação supralegal.’ ora deduzida do princípio da culpabilidade,126 ora do princípio de justiça do Estado de Direito.127 A crítica assinala, todavia, que o conceito de culpabilidade não pode abrigar a questão da renúnáa à punição, manifestada apesar da existência da reprovação de culpabilidade.128

A rejeição do conceito representa o repúdio da idéia de inexi­gibilidade como fundamento geral supralegal de exculpação, que seria desnecessário ao princípio da culpabilidade, porque se não existe culpabi­lidade o autor deve ser absolvido, independente de qualquer exculpa­ção; e se a exigibilidade tem por objeto hipóteses de possível evitação do injusto típico sem perigo para a vida ou o corpo do autor, então essa não seria uma questão de culpabilidade, mas de responsabilidade penal: assim, não se trata de discutir se o autor poderia agir diferente, mas se a ação antijurídica e culpável do autor mereceria ou não pena — afinal, uma decisão que não seria do juiz, mas do legislador. Na linha desse argu­mento, o conceito de inexigibilidade seria, apenas, uma fórmula vazia sem fundamento legal, admissível somente para hipóteses delimitadas fundadas no direito positivo vigente.129

Entretanto, o reconhecimento progressivo de novas situações de exculpação fundadas na anormalidade das circunstâncias do fato e,

125 EBERHARD SCHMIDT, Süddeutsche Juristische Xeitung, 1949, seção 568.126 Assim, WITTTG, Der übergeset^liche Schuldausschãessungsgrund der XJn^umutbarkeit in

verfassungsrechtlicher Sicht, JZ 1969, p. 546. No Brasil, MACHADO, Direito Criminal: parte geral, 1987, p. 146-148.

127 Nesse sentido, LÜCKE, Der A.llgemeine Schuldausschãessungsgrund der Un^umutbarkeit ais methodisches und verfassungsrechtliches Problem, JR 1975, p. 55.

128 ROXIN, Strafrecht, 1997, §22, n. 143, p. 886.129 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, §22, n. 144, p. 887; no mesmo sentido, WES­

SELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 451, p. 130.

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Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

conseqüentemente, no princípio geral de inexigibilidade de comporta­mento diverso, parece tornar cada vez mais difícil negar à exigibilidade a natureza geral de fundamento supralegal de exculpação, como categoria jurídica necessária ao direito positivo vigente. Seja como for, mesmo na perspectiva da teoria dominante, a inexigibilidade de comportamento diverso, determinada pela anormalidade das árcunstânàas do ja to , incide sobre situações de exculpação concretas, nas quais atua um autor culpável ou reprovável que, contudo, deve ser ex- ou desculpado, porque o limite da exigibilidade jurídica é definido pelo limiar mínimo de dirigibilidade normativa, ou de motivação conforme a norma, excluída ou reduzida em situações de exculpação legais ou supralegais.

A simples verificação da existência de situações de exculpação de um autor culpável parece indicar a insuficiênáa do conceito de culpabilidade para dar conta das condições de anormalidade que fundamentam o juízo de inexigibilidade concretizado naquelas situações; o reconhecimento dessa insufiãência desencadeou o esforço teórico contemporâneo de reestruturação do conceito normativo de culpabilidade, como a teoria da responsabilidade normativa de ROXIN,130 por exemplo, um conceito superior integrado pela culpabilidade e pela desnecessidade preventiva de pena, própria das situações de exculpação. Na verdade, todas as situações de exculpação definidas como situações de desnecessidade preventiva de punição, segundo a teoria de ROXIN, ocorrem em contextos de anormalidade que fundamentam a idéia de inexigibilidade de comportamento diverso, ainda estudada no âmbito do conceito de culpabilidade.

3.3. As situações de exculpação

Primeiro, as situações de exculpação constituem hipóteses concretas de inexigibilidade de comportamento diverso porque podem excluir ou reduzir

130 ROXIN, Strafrecht, 1997, §19, n. 3-5, p. 725-726 e n. 15, p. 730-731.

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Teoria do Fato Punível Capítuh 12

a dirigibilidade normativa, como demonstram múltiplos argumentos indicados por WELZEL: a) circunstâncias externas podem impedir a livre determinação da vontade (a coação irresistível, por exemplo); b) o instinto de conservação pode afetara capacidade de agir conforme ao direito (o excesso de legítima defesa por medo, susto ou perturbação, por exemplo); c) pressões psíquicas excepcionais podem limitar o po­der de motivação jurídica (a obediência hierárquica, por exemplo).131 Segundo, as situações de exculpação constituem hipóteses de dupla redução da culpabilidade e do injusto, na linha de JESCHECK/WEIGEND: s redução da culpabilidade por força da pressão psíquica do acontecimen­to concreto; redução do injusto, porque a lesão de um bem jurídico tem por objetivo proteger outro bem jurídico.132 Terceiro, as situações de exculpação configuram casos de desnecessidade de prevenção geral ou especial, segundo a teoria dos fins da pena de ROXIN.133

Assim, a idéia de inexigibilidade de comportamento diverso pode fun­damentar situações de exculpação legais e supralegais, conforme previsão explíáta ou implíáta no ordenamento jurídico.

3.3.1. Situações de exculpação legais

As situações de exculpação legais compreendem (a) a coação irresistível’ (b) a obediência hierárquica e (c) o excesso de legítima defesa real e o excesso de legítima defesaputativa — ambos determinados por medo, susto ou perturbação.

131 Ver WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 178-179.132 Comparar JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §43, III, 2 b,

p. 478; ROXIN, Strafrecht, 1997, §22, ns. 7-9, p. 829-830.133 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §22, ns. 7-11, p. 829-830.

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Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

a) Coação irresistível

A situação de exculpação denominada coação irresistível se carac­teriza pelo emprego de força ou de ameaça irresistível contra o coagido para realizar fato definido como crime. O emprego de forçay também conhecida como vis compulsiva, não se confunde com a chamada força absoluta (ou vis absoluta) que exclui a vontade e, portanto, a própria ação: representa violência física capaz de influenciar o psiquismo da vítima, como surras, espancamentos, torturas etc., com o fim de obrigar à realização de um fato criminoso. A ameaça é o anúncio de um mal para a vida ou o corpo do coagido ou de terceiro: ameaça de morte contra o coagido, parente, amigo ou pessoa afetivamente próxima deste, se não prestar fa lso testemunho em favor do coator, por exemplo. O perigo representado pelo emprego de força ou pela realização da ameaça deve ser irresistível’ ou seja, deve significar certo grau de dano temível: alguns empurrões ou ameaça de simples maus-tratos são insuficientes. A avaliação da irresistibilidade da coação deve ser realizada do ponto de vista objetivo e subjetivo, capaz de medir o potencial lesivo do emprego de força ou da ameaça e de sua repercussão no psiquismo do coagido.134

Além disso, a coação irresistível pressupõe perigo atual e inevitável de outro modo: perigo atual compreende perigo imediato, assim como perigo durável' atualizável em dano a qualquer momento, dentro de certo prazo; perigo inevitável de outro modo significa ausência de proteção alternativa razoável, como, por exemplo, requerer proteção judicial contra a ameaça, ou pedir proteção da polícia contra os espancamentos etc135

134 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 181. No Brasil, ver FRAGOSO, Uções de Direito Penal, 1985, n. 201, p. 218; MIRABETE, Manual de Direito Penal, 2000, p. 206-7. Ao contrário, JESUS, Direito P enall, 1999, p. 491-492, exclui o emprego de força, admitindo apenas ameaça como fundamento da coação irresistível.

135 Assim, ROXIN, Strcfrecht, 1997, §22, n. 7-11, p. 829-830 e n. 18, p. 832-833.

335

Teoria do Fato Punível Capítulo 12

Art. 22. Se o fato é cometido sob coação irresistível (...) só é punível o autor da coação (..).

O fato punível praticado sob coação irresistível é antijurídico, mas o autor pode ser exculpado por se encontrar em situação de inexigibili­dade de comportamento diverso, capaz de excluir ou reduzir a dirigibilidade normativa; ao contrário, o fato é atribuível objetiva e subjetivamente ao coator, como autor mediato que domina a realização do fato através do controle da vontade do coagido, que atua sem liberdade.136

b) Obediência hierárquica

A obediência hierárquica pode constituir situação de exculpação se configurar estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal,, de superior hierárquico. Como se vê, o fundamento dessa situação de exculpação é a relação de subordinação de direito público, que institui competências ativas configuradas no poder de ordenar do funcionário público em po­sição de superior hierárquico e competências passivas expressas no dever de obedecer do funcionário público subordinado. Nesse sentido, a ordem de superior hierárquico constitui manifestação de vontade expressa dirigida ao subordinado, através de instruções, ofícios, ordens de serviço, despachos, decisões, sentenças etc., para realizar tarefas de interesse público.137

Em regra, ordens de superior liierárquico são legais, emanam de autoridade competente, têm forma adequada e objetivos lícitos — e a execução dessas ordens pelo subordinado é justificada como estrito cumprimento de dever legal; por exceção, ordens de superior hierárquico

136 Ver WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 181. No Brasil, ver MESTIERI, Manual de Direito Venal I, 1999, p. 185-186; MIRABETE, Manual de Direito Venal, 2000, p. 206-7; também, MACHADO, Direito Criminal:parte geral, 1987, p. 143 s.

137 Ver KOERNER JR., Obediênáa hierárquica, 2003, p. 97; também, MIRABETE, Manual de Direito Venal, 2000, p. 209.

336

Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

podem ser ilegais, quando têm por objeto a prática de fato definido como crime, criando uma situação de conflito no subordinado, pres­sionado entre dois deveres: o dever de obedecer ordens superiores e o dever de omitir ações típicas não justificadas.138

Nos casos excepcionais de ordem ilegal de superior hierárquico, a questão decisiva é a natureza aparente ou oculta da ilegalidade da ordem, como conduta típica e antijurídica: a) se a conduta típica e antijurídica que caracteriza a ilegalidade da ordem é aparente — ou manifesta, como diz a lei —, então a ordem de superior hierárquico não é obrigatória para o subordinado e, no caso de cumprimento, o subordinado não é exculpado pela obediênáa hierárquica: delegado ordena subordinado espancar suspeito para obter confissão; superior determina motorista embriagado dirigir veículo etc.; b) se a conduta típica e antijurídica que informa a ilegalidade da ordem é oculta, ou mesmo se existe dúvida sobre a legalidade da ordem, então a ordem é obrigatória e o cumprimento da ordem pelo subordinado é exculpado pela obedi­ência hierárquica: prisões processualmente admissíveis; disparo sobre seqüestradores para libertar reféns; prisão de inocente fundado em forte suspeita etc.139

Em qualquer caso, a obediência devida pelo funcionário público é circunscrita aos estritos limites da ordem e, por isso, o subordinado responde por excesso doloso ou imprudente. O dever de obediência nos limites estritos da ordem, de um lado, e a responsabilidade por excesso doloso ou imprudente, de outro, fundamenta um restrito, mas ne­cessário direito de avaliação da legalidade da ordem pelo funcionário público subordinado. O exercício desse direito, sempre condicionado

138 Ver FRAGOSO, Uções de Direito P en a ll, 1985, n. 204, p. 221-222; MACHADO, Direito criminal: parte geral, 1987, p. 143; MESTIERI, Manual de Direito Penall, 1999, p. 186.

139 KOERNER JR., Obediência hierárquica, 2003, p. 98-100; também HAFT, Strafrecht, 1994, p. 113.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 12

à preservação do princípio da autoridade, não pode ter por objeto ques­tões materiais de oportunidade, de conveniênáa ou de justiça da ordem superior, mas exclusivamente a contradição formal entre o fa to concreto e o conjunto das proibições (tipos legais) e permissões (justificações) do ordenamento jurídico, levando em conta a capaãdade intelectual do subordinado, delimitada pelo nível de inteligência e de cultura

1 4 0respectivos.

Art. 22. Se o fato é cometido (...) em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só épunível o autor (...) da ordem.

O fato punível praticado na situação de exculpação de obediência hierárquica é antijurídico — porque o injusto não se transforma em justo, e o que o superior não pode, o inferior também não pode141 —, mas o subordinado pode ser exculpado por se encontrar em situação de inexigibilidade de conduta diversa, determinada pelo conflito entre sofrer um mal’ representado por sanções administrativas e penais, e causar um mal’ representado pelo fato punível objeto da ordem;142 nesse caso, o fato é atribuível objetiva e subjetivamente ao superior liierárquico autor da ordem, que domina a realização do fato pelo controle da vontade do subordinado, que também atua sem liberdade.

c) Excesso de legítim a defesa real

O excesso de kgítima defesa pode constituir situação de exculpação, por defeito na dimensão emocional do tipo de injusto, determinado

140 Assim KOERNER JR., Obediência hierárquica, 2003, p. 102 e 106.141 MAURACH/ZIPF, Strafrecht 1,1992, §29, n. 7, p. 408.142 Assim, FRAGOSO, Uções de Direito Penal, 1985, n. 204, p. 221 -222; também, MES­

TIERI, Manual de Direito P enall, 1999, p. 186. Ao contrário, JESUS, Direito Penal I, 1999, p. 496, fundamenta a exclusão da culpabilidade em erro deproibição-, no mesmo senrido, MIRABETE, Manual de Direito Penal, 2000, p. 208.

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Capítulo 12 Culpabiãdade e Exculpação

por medo, susto ou perturbação na pessoa do autor (afetos astênicos, ou fracos) — mas não por ódio ou ira (afetos estênicos, ou fortes), segundo várias teorias: a teoria da redução do controle da vontade de MAYER;143 a teoria da situação psicológica excepcional de BLEY;144 a teoria atualmente dominante da dupla redução do injusto e da culpabilidade (defesa contra agressão antijurídica e presença de afetos astênicos, respectivamen­te), de JESCHEK/WEIGEND e outros;145 finalmente, a teoria da desnecessidade de prevenção especial e geral (autor socialmente integrado e ausência de estímulo à imitação) de ROXIN.146 Admite-se coexistência, em igualdade de condições, de afetos astênicos e estênicos,147 mas a opinião dominante exige superioridade dos afetos astênicos.148 Na verdade, os estados afetivos de medo, susto ou perturbação podem ex­plicar a redução dos controles, a anormalidade psicológica, a redução da culpabilidade ou a desnecessidade de prevenção indicadas pelas diferentes teorias e, assim, como emoções insuscetíveis de controle consciente, fundamentam a exculpação do excesso de legítima defesa, independente de previsão legal.149

1. Excesso consciente e inconsciente. O excesso de legítima defesa, do ponto de vista subjetivo, pode ser inconsáente ou consáente: a teoria

143 H. MAYER, Strafrecht, 1967, p. 101.144 BLEY, Strafrecht, 1983, §62.145 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §45, II 2, p. 491; WES­

SELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 446, p. 128.146 ROXIN, Strafrecht, 1997, §22, n. 68, p. 855.147 Ver OTTO, Gren^en derstraflosen überschreitung der Notwehr, §33, StGB, Jura 1987, p.

606.148 Nesse sentido, DREHER/TRÕNDLE, Strafgeset^buch undNebengesete^e, 1995, §33,

n. 3; também, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §45, I I2, p. 491; MAURACH/ZIPF, Strafrecht 1, 1992, §34, n. 30, p. 466; ROXIN, Strafrecht,1997, §22, n. 80, p. 860.

149 O §33 do CP alemão dispõe: “Não épunível o autor que exceda os limites da legítima defesa p o r perturbação, medo ou susto. ’’ (Überschreitet der Táter die Grenzen der Notwehr aus Verwirrung, Furcht oder Schrecken, so wird er nicht bestraft).

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Teoria do Tato Punível Capítulo 12

dominante admite tanto o excesso inconsciente como o consciente, sob o argumento convincente da dificuldade de distinção entre dolo e imprudência em situações de necessidade de ação rápida, em que a presença de emoções como medo, susto ou perturbação pode excluir ou reduzir a capacidade de compreensão e de controle e, portanto, pode determinar excesso doloso ou imprudente;130 a teoria minoritária só admite excesso inconsáente e, portanto, imprudente.151

2. Excesso intensivo e extensivo. Por outro lado, o excesso de legí­tima defesa, do ponto de vista objetivo, pode ser intensivo ou extensivo. O excesso intensivo se caracteriza pela utilização de meio de defesa desnecessário: por exemplo, o emprego dos punhos representa a defesa necessária, mas o agredido utiliza arma de fogo contra o agressor. No excesso intensivo de legítima defesa podem ocorrer as seguintes alternativas: a) o excesso inconsáente determinado por afetos astênicos de medo, susto ou perturbação (isolados ou em conjunto com afetos es- tênicos de ira ou ódio) é exculpável; b) o excesso consciente produzido por afetos astênicos e estênicos é, igualmente, exculpável; c) o excesso consciente ou inconsáente produzido somente por afetos estênicos de ira ou ódio é punível; d) o excesso consáente produzido pela crença errônea na necessidade de defesa caracteriza hipótese de legitima defesaputativa (a imprudência remanescente é punível, se prevista em lei).152

O excesso extensivo se caracteriza pelo uso imoderado de meio neces­sário., configurado na descoincidência temporal entre defesa e agressão, nas seguintes situações: defesa posterior à agressão (novo disparo sobre o agressor caído, incapaz de continuar a agressão); defesa anterior à agressão (disparo sobre pugilista na fase preparatória de aquecimen­

150 Assim, SCHMIDHÀUSER, Strafrecht, 1984, §8, n. 31; SCHÕNCKE/SCHRÕ- DER/LENCKNER, Strafgeset^buch, Kommentar, 1991, §33, n. 6.

151 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §14, II 5.132 ROXIN, Strafrecht, 1997, §22, n. 84, p. 862.

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Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

to dos músculos para agressão).153 O excesso extensivo de legítima defesa, objeto de grande controvérsia na dogmática contemporânea, é rejeitado pela opinião majoritária, sob os seguintes argumentos: a) conceitualmente, a inexistência da situação justificante de legítima defesa exclui a possibilidade de excesso; b) agressões acabadas não produzem a pressão psicológica própria das situações traumáticas;154 c) agressões inexistentes (ainda ou jã ) não produzem a dupla redução do injusto e da culpabilidade.155 Contudo, respeitável opinião minoritária admite o excesso extensivo de legítima defesa, afirmando inexistir diferença entre excesso intensivo e extensivo: não há diferença entre dar um golpe duas ve%es superior ao necessário (excesso intensivo) e dar outro golpe normal após cessada a agressão (excesso extensivo). Assim, o mesmo fundamento do excesso intensivo seria válido para o excesso extensivo, sob duas condições: dano exclusivo contra o agressor; igual influência dos afetos astênicos.156 A lei penal brasileira, ao exigir uso moderado dos meios necessários (art 25, CP), admite o excesso extensivo de legítima defesa, caracterizado pelo uso imoderado de meio necessário, especialmente claro no excesso extensivo posterior.

Entretanto, o excesso crasso de legítima defesa, caracterizado pela desproporção absoluta entre defesa e agressão, é punível: o agredido mata o agressor com um tiro, em defesa de um tapa. Embora alguns autores admitam exculpação em hipótese de desproporção absoluta,157

153 Ver JAKOBS, Strcfmht, 1991,20/31, p. 584; ROXIN, Strtfrecht, 1997, §22, n. 84, p. 862.154 Assim, GEILEN, Notwehr und Notwehrex^ess, ] u i 2 L 1981.155 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §45, II 4, p. 493; MAU­

RACH/ZIPF, Strafrecht \, 1992, §34, n. 27, p. 465; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 447, p. 129; STRATENWERTH, Strafrecht, 1981, n. 448.

156 Assim, BAUMANN/WEBER, Strafrecht, 1995, §23, n. 42; JAKOBS, Strafrecht, 1991, 20/31, p. 584; OTTO, Strafrecht, 1996, §14, II 2a, p. 209 (somente o excesso extensivo posterior); ROXIN, Strafrecht, 1997, §22, n. 88-89, p. 863; SCHÕNCKE/ SCHRÕDER/LENCKNER, Strafgeset^buch, Kommentar, 1991, §33, ri. 7.

157 Assim, DREHER/TRÕNDLE, Strafgeset^buch und Nebengeset^e, 1995, §33, n. 3.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 12

a opinião dominante a rejeita, porque a desproporcionalidade absoluta exclui igualmente a justificação e a exculpação.158

d) Excesso de legítima defesa putativa

Na legítima defesa putativa não existe agressão real, mas agressão imaginária determinada por erro de representação: o autor representa a existência de agressão inexistente, atual ou iminente, a bem jurídico próprio ou de terceiro. No excesso de legítima defesa putativa, o autor re­presenta a existência de agressão inexistente e, determinado por afetos astênicos de medo, susto ou perturbação utiliza meio de defesa desnecessário, se existente a agressão (uso de arma, sendo suficiente defesa com os !braços, se real a agressão), ou, alternativamente, utiliza de forma imo- derada meio de defesa necessário (novo disparo sobre agressor caído, incapaz de continuar a agressão, se realmente existente).159 i

A opinião dominante rejeita o excesso de legítima defesa putativa com o seguinte argumento: se não existe a situação justificante de legítima defesa real, então não existem limites suscetíveis de serem ex- \cedidos. Essa posição é criticada por setores importantes da doutrina, porque representação errônea de agressão inexistente produz efeitos psíquicos iguais à representação correta de agressão existente:160 se ,a vítima simula agressão contra o autor, a representação errônea de agressão inexistente não impede a exculpação do excesso contra o falso agressor (nunca, porém, contra terceiro), porque agressão aparente eqüivale à agressão real no psiquismo do suposto agredido. '

158 Nesse sentido, JAKOBS, Strafrecht, 1991, 20/29, p. 583; ROXIN, Strafrecht, 1997, §22, n. 79, p. 860.

159 ROXIN, Strafrecht, 1997, §22, n. 94, p. 866.160 JAKOBS, Strafrecht, 1991, 20/33, p. 585; ROXIN, Strafrecht, 1997, §22, n. 95-96,

p. 866.

342

Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

3.3.2. Situações de exculpação supralegais

As situações de exculpação supralegais compreendem (a) o fato de consáênáa, (b) a provocação da situação de legítima defesa, (c) a desobediênáa ávil e (d) o conflito de deveres.

a) Fato de consciência

A situação de exculpação do fa to de consciência tem por objeto decisões morais ou religiosas sentidas como deveres incondicionais vinculantes da conduta,161 asseguradas pela garantia constitucional de liberdade de crença e de consáênáa (art. 5o, VI, CR). A norma consti­tucional protege a liberdade de formação e de manifestação de crença e de consáênáa, limitadas, apenas, por outros direitos fundamentais individuais (vida, liberdade, integridade corporal etc.) ou coletivos (paz interna, existência do Estado etc.), mas não pela lei penal.162 Assim, o fato de consáênáa constitui a experiência existencial de um sentimento interior de obrigação incondicional, cuja proteção constitucional impede sua valoração como certo ou errado e, portanto, o julgamento do fa to de consáênáa deve se reduzir à correspondência entre conduta e mandamentos morais ou religiosos da personalidade, limitados exclusi­vamente por outros direitos fundamentais e coletivos.

Logo, no caso de tipos penais que protegem direitos humanos fundamentais, a exculpação do fato de consáênáa é condicionada à prote­ção do bem jurídico por uma alternativa neutra: por exemplo, a recusa

161 ROXIN, Strafrecht, 1997, §22, n. 100, p. 869. No Brasil, no sentido do texto, ver DOTIT, Curso de Direito Venal:parte geral, 2001, p. 427-428.

162 Ver BÕCKENFÕRDE, Das Grundrecht der Gemssensfreiheit, W D StRL 28 (1970), p. 64; também, RUDOLPHI, Die Bedeutung eines Gewissensentscheidesfür das Strafrecht, Welzel-FS, 1974, p. 628; EBERT, Der Übençeugungstãterin derneueren Rechtsentmcklung, 1975,19 s.

343

Teoria âo Tato Punível Capítulo 12

do pai à necessária transfusão de sangue no filho menor, por motivos religiosos, é suprida por determinação do Curador de Menores, ou pela ação do médico, sob estado de necessidade; a recusa do médico, por motivo de consciência, de realizar aborto necessário, é suprida pela ação de outro médico etc. Em nenhuma hipótese o fato de consá­ênáa exculpa a efetiva lesão de bens jurídicos individuais fundamentais— como a vida, por exemplo —, porque a omissão da ação salvadora privaria a vítima de todos os direitos: os pais deixam morrer o filho menor, porque sua consciência religiosa impede transfusão de sangue; o médico deixa morrer a paciente, porque sua consciência pessoal não permite realizar aborto. Exceções seriam as chamadas lesões periféricas de bens jurídicos, que preservam a livre decisão da vítima: o marido desaconselha a esposa, por motivos religiosos, a realizar transfusão de sangue.163 Igualmente, o fato de consáênáa não exculpa ações con­trárias à existência e segurança do Estado, como a traição à pátria e o terrorismo, por exemplo.

A isenção de pena do fato de consáênáa é controvertida: por um lado, exclui a tipiádade, se existe alternativa neutra de proteção do bem jurídico, ou exclui a antijuridiádade, porque o exercício de direito fundamental não pode ser antijurídico;164 por outro lado, não exclui a antijuridicidade, porque decisões de consciência contrárias ao direito não podem ser jurídicas.165 Na dogmática contemporânea, atitudes contrárias ao direito — expressão do princípio democrático da maioria— não são autorizadas, mas podem ser exculpadas por situações anor­mais excludentes ou redutoras da dirigibilidade normativa.166

163 ROXIN, Strafrecht, 1997, §22, n. 109-111, p. 872-873 e n. 115-116, p. 874-875.164 Assim, PETERS, Bemerkungen tçur Rechtsprechung der Oberlandesgerichte %ur Wehrersat-

%dienstverweigerung aus Gemissensgründen, 1966, p. 276; também, RANFT, Hilfspfücht und Glaubensfreiheit in strafrechtlicber Sicht, Schwinge-FS, 1973, p. 115.

165 EBERT, Der Übençeugungstàterin derneueren Rechtsentmcklung, 1975, p. 49 s.; ROXIN, Strafrecht, 1997, §22, n. 121, p. 877.

166 EBERT, Der Über^eugungstãter in derneueren REchtsentwicklung, 1975, p. 63; RUDOL- PHI, Die Bedeutung eines Gewissensentscheidesfür das Strafrecht, Welzel-FS, 1974, p. 630; ROXIN, Strafrecht, 1997, §22, n. 123, p. 877-878.

344

Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

b) Provocação da situação de legítima defesaA provocação da situação de legítima defesa exclui, em princípio, a

exculpação, por razões evidentes. Contudo, a moderna dogmática tem procurado flexibilizar esse ponto de vista, argumentando com a possibilidade de desvio da ação de defesa provocada: se o provocador pode desviar a ação de defesa do agredido (por exemplo, fugindo do local), não há exculpação; se o provocador não pode desviar a ação de defesa provocada, então seria possível admitir a exculpação do agressor por ações inevitáveis de defesa, porque o Estado não pode exigir de ninguém a renúncia ao direito de viver,167 nem criar situações sem saída, em que as alternativas são ou deixar-se matar ou sofrer pena rigorosa.168

c) Desobediência civil

A situação de exculpação definida como desobediência áviltem por objeto ações ou demonstrações públicas de bloqueios, ocupações etc., reali­zadas em defesa do bem comum, ou de questões vitais da população, ou mesmo em lutas coletivas por direitos humanos fundamentais, como greves de trabalhadores, protestos de presos e, no Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), desde que não constituam ações ou manifestações violentas ou de resistência ativa contra a ordem vigente — exceto obstruções e danos limitados no tempo — e apresentem relação reconhecível com os destinatários respectivos.169

Autores de fatos qualificados como desobediência civil são possui­dores de dirigibilidade normativa e, portanto, capazes de âgir conforme

167 Nesse sentido, ROXIN, Strafrecht, 1997, §22, n. 93, p. 865. No Brasil, ver DOTTI, Curso de Direito Venal:parte geral, 2001, p. 427-428.

168 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §32, E l 2 a, p. 346-347.169 Ver DOTTI, Curso de Direito Venal: parte geral, 2001, p. 428.

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Teoria do Fato Punível\

Capítulo 72

ao direito, mas a exculpação se baseia na existência objedva de injusto mínimo, e na existência subjedva de modvação pública ou coletiva relevante, ou, alternativamente, na desnecessidade de punição, por­que os autores não são criminosos — portanto, a pena não pode ser retributiva e, além disso, a solução de conflitos sociais não pode ser obtida pelas funções de prevenção especial e geral atribuídas à pena criminal.170

d) Conflito de deveres

O exemplo clássico de inexigibilidade por conflito de deveres é o caso da eutanásia de doentes mentais durante o regime nazista: sacrifício de minoria selecionada de doentes mentais graves para salvar a maioria dos doentes mentais, porque a recusa radical de cumprir a ordem superior determinaria a morte de todos por médicos substitutos fi­éis ao regime. Nessas hipóteses, o argumento da escolha do mal menor pode fundamentar igualmente a justificação do estado de necessidade e a exculpação supralegal do conflito de deveres: no primeiro caso, se a lei não pode proibir a redução de um mal maior, então a ação dos médicos seria justificada pelo estado de necessidade, segundo a opi­nião minoritária;171 no segundo caso, se qualquer pessoa no lugar dos médicos escolheria o mal menor, então a ação dos autores teria ocorrido em situação de exculpação supralegal por conflito de deveres, conforme a opinião dominante.172

Hipóteses mais controvertidas aparecem nos seguintes exemplos:a) para evitar colisão com trem de passageiros, determinando a morte de muitos, funcionário da ferrovia desvia trem de carga desgovernado

170 Comparar ROXIN, Strafrecht,, 1997, §22, n. 130-133, p. 880-881.171 Assim, OTTO, Pflichtenkollision und Rechtsmdrigkeitsurteil.’ 1978.172 WELZEL, Strafrecht, 1969, p. 184.

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Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

para trilho diferente, causando a morte certa de alguns trabalhadores;b) médico substitui paciente com menores chances de sobrevivência por paciente com maiores chances de sobrevivência em máquina de respiração/circulação artificial. A escolha do mal menor constitui situação de exculpação, para a opinião dominante: se qualquer pessoa agiria igual ao autor, então seria inexigível comportamento diverso;173 entretanto, opinião minoritária considera indesculpável corrigir o destino com vitimização de inocentes, porque o sentimento de segurança jurídica da comunidade supõe a confiança na proteção do direito contra lesões à vida e ao corpo de inocentes ou de terceiros estranhos ao perigo.174

Situações de conflito de deveres ainda mais relevantes são comuns no contexto de condições soáais adversas — a máxima negação da norma­lidade da situação defato pressuposta no juí^o de exigibilidade —, nas quais trabalhadores marginalizados do mercado de trabalho, especialmente por efeito de políticas econômicas recessivas das áreas periféricas, impostas pelos interesses hegemônicos da globalização do capital, são constrangidos a romper vínculos normativos comunitários (ou seja, de­veres jurídicos de omissão de ações proibidas) para preservar valores concretamente superiores175 (por exemplo, o dever jurídico de garantir a vida, saúde, moradia, alimentação e escolarização dos filhòs), como indicam estatísticas crescentes de crimes patrimoniais cometidos por ex-empregados da indústria, do comércio e da agricultura, para impe­dir a desintegração da família, a prostituição das filhas e a piveti^ação dos filhos, depois de anos de frustradas tentativas de reinserção no

173 KÜHL, Strafrecht, 1997, n. 104, p. 409; SCHÕNCKE/SCHRÕDER/LENCKNER, Strafgeset^buch, Kommentar, 1991, §32, n. 117; STRATENWERTH, Strafrecht, 1981, n. 627; SCHMIDHÀUSER, Strafrecht, Studienbuch, 1984, 8/45; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §23, III, p. 185. No Brasil, ver DOTTI, Curso de Direito Penal:parte geral, 2001, p. 427-428.

174 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, §22, n. 157-60, p. 892-893.175 SYKES and MATZA, Techniques o f neutrali^ation: a theory o f delinquency, in American

Sociological Review, 22 (1957), p. 664.

347

Teoria do Fato Punível Capítulo 12

mercado de trabalho, sob a tortura da fome, da doença, da insegu­rança, da angústia, do desespero.1'6 Quando condições de existência social adversas deixam de ser a exceção transitória para ser a regra constante da vida das massas miserabiüzadas, então o crime pode constituir resposta normal de sujeitos em situação social anormal. Nessas condições, os critérios normais de valoração do comportamento individual devem mudar, utilizando pautas excepcionais de inexigibili­dade para fundamentar hipóteses supralegais de exculpação por conflito de deveres, porque, afinal, o direito é regra da vida.177 O ser humano concreto, expressão bio-psíquico-emocional deformada de relações sociais desumanas, reage contra a violência da estrutura econômica da sociedade, instituída pelo Direito e garantida pelo poder do Estado, utilizando a única alternativa real de sobrevivência animal disponível, a violência individual. A abertura do conceito de inexigibilidade para as condições reais de vida do povo parece alternativa capaz de contribuir para democratizar o Direito Penal, reduzindo a injusta criminalização de sujeitos penalizados pelas condições de vida social. Neste ponto, direito justo é direito desigual’ porque considera desigualmente sujeitos concretamente desiguais.178

Hoje, como valoração compensatória da responsabilidade de indiví­duos inferiori%ados por condições sociais adversas,179 é admissível a tese da co-culpabilidade da sociedade organizada,180 responsável pela injustiça

176 Ver CIRINO DOS SANTOS, As raízes do crime (um estudo sobre as estruturas e as instituições da violência), 1984, p. 86-96.

177 Ver CIRINO DOS SANTOS, Teoria do crime, 1993, p. 71.178 MARX, Crítica ao programa de Gotha, in Textos 1, Edições Sociais, 1975.179 Ver BARATTA, Ta viday el laboratório del derecho: a proposito de la imputaàon de respon-

sabilidad en elprocesopenal' in Capitulo Criminologico, n. 16, 1988, p. 69-92.180 Assim, ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1996, n.

353, p. 613; BUSTOS RAMIREZ, Manual de derecho penal espanol.\ Axiel, 1984, p. 40; BATISTA, Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro, 1999, p. 105; RODRIGUES, Teoria da culpabilidade, 2004, p. 26-29.

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Capítulo 12 Culpabilidade e Exculpação

das condições sociais desfavoráveis da população marginalizada, de­terminantes de anormal motivação da vontade nas decisões da vida. Em sociedades pluralistas, as alternativas de comportamento individual seriam diretamente dependentes do status social de cada indivíduo, com distribuição desigual das cotas pessoais de liberdade e determinação conforme a respectiva posição de classe na escala social: indivíduos de status social superior, maior liberdade; indivíduos de status social inferior, maior determinação. Em conclusão, se a motivação anormal da vontade em condições sociais adversas, insuportáveis e insuperá­veis pelos meios convencionais pode configurar situação de conflito de deveres jurídicos, então o conceito de inexigibilidade de comportamento diverso encontra, no flagelo real das condições sociais adversas que carac­teriza a vida do povo das favelas e bairros pobres das áreas urbanas, a base de uma nova hipótese de exculpação supralegal, igualmente definível como escolha do mal menor — até porque, em situações sem alternativas, não existe espaço para a culpabilidade.181

181 LANG-HINRICHSEN, Epoché und Schuld. Über den von strafrechtlicher Schuld ausges- chlossenen Raum, Bármann-FS, 1975, p. 600.

C apítu lo 1 3

O u t r a s C o n d iç õ e s d e P u n ib ilid a d e

I. introdução

O conceito de fato punível é constituído pelas categorias gerais da ação, da tipicidade, da antijuridicidade e da culpabilidade e, em regra, a presença dessas categorias é suficiente para determinar a punibilidade respectiva; por exceção, a punibilidade pode depender da existência de outros pressupostos ou circunstâncias, conhecidos como condições objetivas de punibilidade e fundamentos excludentes de pena.

As condições objetivas depunibilidade e osfundamentos excludentes de pena são características que pertencem ao fato, de modo que o autor pode decidir realizar ou não realizar a ação típica conforme a existência ou inexistência objetiva dessas características; ao contrário dos chamados pressupostos processuais (por exemplo, a representação, a prescrição, a anistia, o indulto, etc.), que não pertencem ao fato e, portanto, não permitem ao autor confiar na ausência de punição fundado na exis­tência ou inexistência dessas características.1

1 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, §23, n. 52-53, p. 912-913; também, SCHMIDHÀU- SER, Objektive Strajbarkeitsbedingungen, ZStW 71 (1959), p. 558; STRATENWER- TH, Objektive Strajbarkeitsbedingungen im Hntwurf eines Strafgeset^buchs, 1959, ZStW 71 (1959), p. 558. No Brasil, ver o excelente SÁNCHEZ RIOS, Das causas de extinção da punibilidade nos delitos econômicos, 2003, p. 92 e seguintes.

351

Teoria do Fato Punível Capítulo 13

II. Condições objetivas de punibilidade

As chamadas condições objetivas de punibilidade consistem em de­terminados requisitos ou certos resultados cuja existência objetiva condiciona a punibilidade da ação típica, antijurídica e culpável. A dife­rença fundamental entre os requisitos ou resultados objetivos definidos como condições objetivas de punibilidade e os elementos objetivos do tipo de injusto é a seguinte: as condições objetivas de punibilidade não precisam ser apreendidas pelo dolo ou se relacionar com a imprudência do autor, enquanto os elementos objetivos do tipo de injusto devem ser apreendidos pelo dolo ou se relacionar com a imprudência do autor.2 São condições objetivas de punibilidade, por exemplo: a sentença declaratória de falência, em relação aos crimes falimentares (art. 180 da Lei 11.101/05); o resultado de morte ou de lesão corporal grave no indu%imento, instigação ou auxílio ao suicídio (art. 122, CP)3e, de modo geral, o ingresso do autor no território brasileiro, nas hipó­teses de crimes que, .por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir, ou de crimes praticados por brasileiro no exterior (art. T II a e b, CP).

2 Ver KRAUSE, Die Objektiven Bedingungen der Strajbarkeit, Jura, 1980, p. 449; ROXIN,Strafrecht, 1997, §23, n. 1-2, p. 895-896 e n. 22, p. 902. No Brasil, FRAGOSO, Lições de Direito Penal.’ 1985, n. 206, p. 223-226.

3 FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 206, p. 225-226, não considera o resul­tado de morte ou de lesão corporal grave como condição objetiva de punibilidade, sob o argumento de que esses resultados devem ser apreendidos pelo dolo.

352

Capítulo 13 Outras Condições de Punibilidade

III. ¥undamentos excludentes de pena

Os fundamentos excludentes de pena (também chamados de escusas absolutórias), ao contrário das condições objetivas de punibilidade, consdtuem circunstâncias cuja presença exclui a punibilidade já caracterizada de ações típicas, antijurídicas e culpáveis. Os fundamentos excludentes de pena podem existir sob duas categorias: a) fundamentos ou circunstâncias de isenção de pena; b) fundamentos ou circunstâncias de suspensão de pena.

1. Os fundamentos ou circunstâncias de isenção de pena podem ser, por sua vez, de natureza pessoal ou objetiva.4 A lei penal prevê como fundamentos ou circunstâncias pessoais de isenção de pena, por exemplo, a imunidade parlamentar por opiniões palavras e votos (art. 53, CR), a relação de parentesco no favorecimento pessoal (art. 348, §2° CP); a relação de casamento, ascendência ou descendência natural ou civil, em face dos crimes contra o patrimônio (art. 181, CP). Por outro lado, circunstância objetiva de isenção de pena seria, por exemplo, a prova da verdade, na calúnia ou difamação (arts. 138, §3° e art. 139, parágrafo único, CP).5

2. Finalmente, fundamentos ou circunstâncias pessoais de suspensão de pena são, por exemplo, a desistência voluntária e o arrependimento efica (ver Tentativa e consumação, adiante).

4 Assim, ROXIN, Strafrecht, 1997, §23, n. 4-5, p. 896-897; também, WESSELS/BEU­LKE, Strafrecht, 1998, n. 494, p. 146-147.

3 Comparar FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 207, p. 226.

353

I

i

(

C apítu lo 1 4

A u t o r ia e P a r t ic ipação

I. introdução

A relação do sujeito ativo com a conduta descrita no tipo legal pelo legislador pode existir sob as formas de autoria ou de participa­ção, como categorias gerais que abrangem todas as modalidades de contribuições pessoais para o fato criminoso. A definição do com­portamento humano como autoria do ou como participação no tipo de injusto parece decorrer das próprias estruturas básicas de orga­nização das atividades humanas na produção da existência social e, desse modo, constituiriam formas estruturais de ação individual ou coletiva, independentes da vontade do legislador ou do juiz.1 Assim, por exemplo, a autoria do fato típico pode ser individual’ se o autor realiza pessoalmente todas as características do tipo legal; pode ser mediata, se o autor realiza o fato típico utilizando outra pessoa como instrumento; pode ser coletiva (ou co-autoria), se vários autores reali­zam em comum o fato típico. Por outro lado, a participação no fato típico do(s) autor (es) pode ocorrer sob as formas de instigação, como determinação dolosa a fato doloso de outrem, e de cumplicidade, como ajuda dolosa a fato doloso de outrem.2 Excepcionalmente, a autoria pode ser colateral' se vários autores realizam independentemente um do outro o mesmo fato típico.

1 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §61,1 3, p. 644.2 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §61,1, p. 643-644; CIRINO

DOS SANTOS, Teoria do crime, 1993, p. 74-76.

355

Teoria do Fato Punível Capítulo 14

II. Conceito de autor

A síntese esquemática de compreensão da matéria como au­toria (individual, mediata e coletiva) e participação (instigação e cumplicidade) representa o produto histórico do desenvolvimento de sucessivas teorias sobre a experiência judicial de imputação pessoal de fatos criminosos: a teoria unitária de autor, fundada na contribuição causai para o fato; o conceito restritivo de autor, que distingue autor de partícipe com base na realização da ação típica; a teoria subjetiva de autor, que diferencia autor e partícipe pelo critério do animus de autor ou de partícipe; finalmente, a moderna teoria do domínio do fato , que conjuga critérios objetivos e subjetivos para definir autor e partícipe do fato punível.

1. Teoria unitária de autor

O conceito unitário de autor representa a mais antiga teoria sobre a relação do sujeito com o fato: autor é quem produz qualquer contribuição causai para a realização do tipo legal. Em sua formula­ção original, o conceito unitário de autor não distingue entre autor e partícipe: as diferenças de contribuição objetiva ou subjetiva entre os autores não constituem problema do tipo de injusto, mas matéria da aplicação da pena, como medida da culpabilidade individual.

As vantagens da teoria unitária de autor explicam sua influência residual na legislação contemporânea3 — como na lei penal brasileira,

3 O conceito unitário de autor ainda prevalece na Itália (arL 110, Código Penal de 1935), na Áustria §12, Código Penal de 1975) e, pelo menos de modo formal, no Brasil (art. 29, Código Penal de 1985), por exemplo. Ver, entre outros, BITENCOURT, Lições de Direito Penal.’ 1995, p. 92; FRAGOSO, Lições de Direito Penai\ 1985, n. 241, p. 263; MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 199-200.

356

Capítulo 14 Autoria e Participação

por exemplo (art. 29, CP): se toda contribuição causai para o resultado típico significa autoria, então não existem lacunas de punibilidade; se as diferenças de contribuição subjetiva e objetiva são consideradas na pena como expressão da culpabilidade pessoal, então a sanção penal aparece em íntima correlação com a personalidade do autor; enfim, se não existe diferença entre autores e partícipes, então a aplicação do Direito Penal no caso concreto é bastante simplificada.

Entretanto, as desvantagens da teoria unitária de autor parecem mais relevantes: se qualquer contribuição causai significa autoria, então (a) todos os sujeitos envolvidos na ação típica são nivelados, desapa­recendo diferenças específicas de contribuições objetivas e subjetivas para a lesão do bem jurídico e (b) sujeitos não qualificados podem ser autores de delitos especiais (por exemplo, a qualidade de funcionário público, no peculato) ou de delitos de mão-própria (o falso testemu­nho), o que representa um contra-senso. Assim, a natureza grosseira do critério original utilizado pela teoria unitária de autor explica, tam­bém, sua rejeição na dogmática moderna, mesmo naquelas legislações— como a brasileira, por exemplo — que, por inércia ou comodismo, ainda a adotam.4

2. Conceito restritivo de autor

O conceito restritivo de autor é a primeira tentativa científica de distinguir autor e partícipe, com base no critério objetivo-formalda ação típica: o autor realiza a ação do tipo (a ação de matar, no homicídio; a ação de subtrair, no furto etc.); o participe realiza ação de instigação ou de ajuda extratípica para a realização do tipo, punível por extensão

4 Ver, por exemplo, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §61, II, p. 645-646; ROXIN, Tãterschaftund Tatherrschaft, 1994, p. 451; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 506, p. 150.

357

Teoria do Fato Punível Capítulo 14

da punibilidade da ação típica.5

O conceito restritivo de autor tem o mérito de fundamentar a distinção entre autor e partícipe na relação com a ação típica - um critério formal rigoroso em todas as hipóteses de autoria direta ou de mão-própria—, mas tem o defeito de não explicar as hipóteses de autoria mediata (o herdeiro entrega bombom envenenado à tia rica, através do filho menor, para apressar o recebimento da herança) e de co-autoria (B distrai a atenção da tia rica para que A possa colocar veneno no café dela).6

3. Teoria subjetiva de autor

A teoria subjetiva distingue autor e partícipe pelo critério da vontade: a) a autoria pressupõe contribuição causai realizada com vontade de autor e, portanto, o autor quer o fato como próprio, ou seja, age com o chamado animus auctoris, mesmo sem realizar ação típica (se A garante a segurança de B com ânimo de autor, no homicídio de C, são ambos co-autores); b) a participação pressupõe contribuição causai realizada com vontade de partícipe e, portanto, o partícipe quer o fato como alheio, ou seja, age com o chamado animus socii, apesar de realizar ação típica (homicídio realizado por incumbência da máfia,

5 Ver KÜHL, Stnfiecht, 1997, §20, a 24, p. 670; também, MEZGER, Strajkèt, 1949, p. 444.6 Nesse sentido a crítica, por exemplo, de JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des

Strafrechts, 1996, §61, III, p. 648-649; KÜHL, Strafrecht, 1997, §20, n. 24, p. 670. No Brasil, ver a excelente monografia de BATISTA, Concurso de agentes, 2004, 2a edição, n. 10, p. 31; também, ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 392, p. 668; ao contrário, MIRABETE, Manual de Direito Penai, 2000, p. 231, adota o critério objetivo formal do conceito restritivo de autor para todas as hipóteses de autoria e participação.

358

Capítulo 14 Autoria e Participação

ou do serviço secreto, por exemplo).7

A crítica aponta dois problemas principais da teoria subjetiva de autor: critérios baseados em fenômenos psíquicos, como vontade ou ânimo de autor ou de partícipe, não são determináveis diretamente e, portanto, são imprecisos; em tipos que excluem autoria mediata (delitos de mão-própria, por exemplo), sujeitos não-qualificados não podem ser autores e sujeitos qualificados não podem ser apenaspartíà- pes, por mais que queiram o fato como próprio ou como alheio, respecti­vamente.8 Apesar da crítica científica, a teoria subjetiva do autor parece indicar estados psíquicos característicos de autores e de partícipes e, por isso, ainda hoje é dominante na jurisprudência alemã.9

4. Teoria do domínio do fato

A teoria do domínio do ja to , também chamada teoria objetiva ma­terial,' ou teoria objetivo-subjetiva, desenvolvida essencialmente por RO- XIN10 - embora, anteriormente, WELZEL tivesse falado em domínio final do faton —, parte da premissa de que teorias somente objetivas ou somente subjetivas não oferecem critérios seguros para identificar autor

7 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §61, IV, p. 649-650; KÜHL, Strafrecht, 1997, §20, n. 22-23, p. 669-670; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 512, p. 152. No Brasil, comparar BATISTA, Concurso de agentes, 2004, 2a edição, n. 27, p. 67.

8 Comparar JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §61, n. IV 3, p. 651; KÜHL, Strafrecht, 1997, §20, n. 23, p. 670; ROXIN, Táterschaft und Tatherrschaft, 1994, p. 51; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 513, p. 152. No Brasil, ver BATISTA, Concurso de agentes, 2004, 2a edição, n. 28, p. 68.

9 Ver, por todos, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §61, IV 2, p. 650.10 Ver, sobretudo, ROXIN, Táterschaft und Tatherrschaft, 1994, p. 60 s.11 WELZEL, Studien %um System des Strafrechts, ZStW 58 (1939), p. 491.

359

Teoria do Fato Punível Capítulo 14

e participe do fato punível. As raízes da teoria do domínio dofato — hoje dominante na dogmática penal — remontam, por um lado, ao conceito restritivo de autor, porque vincula o conceito de autor à ação do tipo legal e, por outro lado, à teoria subjetiva de autor, porque incorpora a vontade como energia produtora do acontecimento típico, mas supera os limites daquelas teorias porque considera a ação na sua estrutura subjetiva e objetiva, pressuposta no controle do fato típico e necessária para m ostrar o fa to como obra do autor: subjetivamente, a vontade criadora do fato típico; objetivamente, a magnitude da contribuição concreta do sujeito para o fato típico.12 A idéia básica da teoria do domínio do fato pode ser assim enunciada: o autor domina a realização do fato típico, controlando a continuidade ou a paralisação da ação típica; o partícipe não domina a realização do fato típico, não tem controle sobre a continuidade ou paralisação da ação típica.13

A teoria do domínio do fato parece adequada para definir todas as formas de realização ou de contribuição para realização do fato típico, compreendidas sob as categorias de autoria e de participação: 1) autoria (a) direta, como realização pessoal do fato típico, (b) mediata, como utilização de outrem para realizar o fato típico e (c) coletiva, como decisão comum e realização comum do fato típico; 2) partici­pação como contribuição acessória dolosa em fato principal doloso de outrem, sob as formas (a) de instigação, como determinação dolosa a fato principal doloso de outrem e (b) de cumplicidade, como ajuda dolosa a fato principal doloso de outrem.

12 Ver JESCHECK/WEIGEND, 'Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §61, V 1, p. 651-2. No Brasil, ver BATISTA, Concurso de agentes, 2004,2a edição, n. 29-30, p. 69-71; também, BITENCOURT, Lições de Direito Penal, 1995, p. 98-99; FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 243, p. 263-264; JESUS, Direito P enall, 1999, p. 405-6; MESTIERI, Manual de Direito Penall, 1999, p. 202-203; ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 394, p. 670.

13 Assim, CIRINO DOS SANTOS, Teoria do crime, 1993, p. 74.

360

Capítulo 14 Autoria e Participação

A lei penal brasileira adota, em princípio, a teoria unitária de autor, mas a introdução legal de critérios de distinção entre autor e partícipe transforma, na prática judicial, o paradigma monístico da teoria unitária em paradigma diferenciador, admitindo o emprego de teorias modernas sobre autoria e participação, como, por exemplo, a teoria do domínio dofato, cujos postulados são inteiramente compatíveis com a disciplina legal de autoria e participação no Código Penal — aliás, a Exposição de Motivos reconhece que o legislador decidiu “optar, na parte final do art. 29, e em seus dois parágrafos, p or regras precisas que distin­guem a a u to r ia da p a r t i c i p a ç ã o ”, reclamada pela doutrina por causa de decisões injustas.14

Por essa razão, autoria e participação devem ser estudadas se­gundo os postulados da teoria do domínio do fa to , generalizados na literatura contemporânea como critérios de definição de autor e de partícipe.

III. Formas de autoria

1. Autoria direta

A autoria direta define a realização pessoal do tipo de injusto pelo autor, que detém, com exclusividade, o domínio do fato: realização individual da ação de matar, de ofender a integridade ou a saúde cor­poral de outrem etc. Os tipos legais descrevem, em geral, ações ou

14 Por isso, MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 200, fala, com razão, em “teoria unitária temperada”.

361

Teoria do Fato Punível Capítulo 14

omissão de ações individuais — algumas das quais somente podem ser cometidas pelo indivíduo isolado, como o falso testemunho, por exemplo — e, na hipótese de realização individual do tipo de injusto a questão da autoria se reduz ao problema criminalístico de identifica­ção da pessoa física do autor, resolvida integralmente pelo conceito restritivo de autor, absorvido pela teoria do domínio do fato}5

2. Autoria mediata

A autoria mediata define a realização do tipo de injusto com utilização de terceiro como instrumento, que realiza o fato típico em posição subordinada ao controle do autor mediato. Logo, não existe autoria mediata (a) se o terceiro não é instrumento, mas autor plenamente responsável, (b) nos tipos de mão-própria, que exigem realização corporal da ação típica pelo autor, (c) nos tipos especiais próprios, que exigem autores com qualificação especial e (d) nos tipos de imprudência, por ausência de vontade construtora do aconteci­mento e, portanto, de domínio do fato.16

15 Comparar JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §61, V 1-2, p. 651-652. No Brasil, ver BATISTA, Concurso de agentes, 2004, 2a edição, n. 31, p. 77, 78; também, MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 202; ZAFFARONI/ PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasikiro, 1997, n. 395, p. 670-671.

16 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §62,12, p. 664; também, JAKOBS, Strafrecht, 1993, 21/78, p. 637; MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht II, 1989, §48,1 2, p. 258. No Brasil, comparar BATISTA, Concurso de agentes, 2004, 2a edição, n. 53-55, p. 129-133; BITENCOURT, Lições de Direito Penal, 1995, p. 109; FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 246, p. 265-266; ZAFFARONI/PIE- RANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 395, p. 371-374.

362

Capítulo 14 Autoria e Participação

2.1. Hipóteses de autoria mediata

As principais situações de autoria mediata aparecem nas hipóteses em que o instrumento atua em erro, ou sem dolo, ou conforme ao direito, ou sem capacidade de culpabilidade, ou em erro de proibição inevitável, ou sem liberdade por força de coação ou de obediência liierárquica, ou sem intenção especial. Nas situações de autoria me­diata, a pena do autor mediato é agravada e o instrumento é impunível, como se demonstra:

a) o instrumento realiza ação atípica por erro provocado pelo autor me­diato: o poder do líder de seita religiosa conduz o adepto ao suicídio voluntário, pela ilusão de alcançar vida nova no paraíso, induzida pela confiança cega do crente no mentor espiritual17 (definido no art. 122, CP, como indu^imento, instigação ou auxílio a suicídio);

b) o instrumento realiza ação típica sem dolo, por erro de tipo induzido ou mantido pelo autor mediato: o médico mata o paciente utilizando a inocente enfermeira como instrumento sem dolo para aplicar injeção mortal previamente preparada18 (punição agravada do autor mediato, conforme art. 62, II, CP);

c) o instrumento realiza ação justificada por situação de justificação criada artificialmente pelo autor mediato: o autor mediato induz do­

17 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts,, 1996, §62, II 2, p. 666; MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht 11, 1989, §48, II 60, p. 272; ROXIN, Tàterschaft und Tatherrschaft, 1994, p. 225; do mesmo, LK(Roxin), 1992, §25, n. 106; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 537, p. 160.

18 Assim, WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, §15, p. 102; KÜHL, Strafrecht, 1997, §20, n. 52, p. 683; também, ROXIN, Tãterschaft und Tatherrschaft, 1994, p. 170; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 537, p. 160. Ao contrário, MIRABETE, Manual de Direito Penal, 2000, p. 233, define a situação exemplificada como autoria mediata “por meio de pessoa que atua sem culpabilidadê\

363

Teoria do Fato Punível Capítulo 14

ente mental a agredir o instrumento, que mata o doente mental em legítima defesa, como planejado pelo autor mediato;19

d) o psiquismo defeituoso ou subdesenvolvido de instrumento incapa de culpabilidade é utilizado pelo autor mediato: doente mental produz incêndio por incumbência do autor mediato20 (punição agravada do autor mediato, conforme art. 62, III, CP);

e) o instrumento atua em erro de proibição inevitável induzido ou man­tido pelo autor mediato: policial comete crime em cumprimento de ordem de superior hierárquico, sem possibilidade de conhecimento da ilegalidade da ordem21 (punição agravada do autor mediato, con­forme art. 62, III, CP);

f) o instrumento atua sem liberdade em situações (a) de coação irresis­tível (sob ameaça de morte o autor mediato obriga o instrumento a praticar falso testemunho)22 e (b) de obediência hierárquica (disparo sobre seqüestrador para libertar refém, ou prisão de inocente fundado em forte suspeita etc.):23 em ambas hipóteses, punição agravada do autor mediato, conforme art. 62, II, CP;

g) o instrumento atua sem a intenção especial exigida pelo tipo legal, por

19 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §62, II 3, p. 667-668; MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Stra frechtll, 1989, §48, n. 68,73, p. 274-275; RO- XIN, in LK(Roxin), 1992, §25, n. 69, 80; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 537, p. 160.

20 MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht II, 1989, §48, n. 79, p. 276; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 193; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 537, p. 160.

21 JAKOBS, Strafrecht, 1993, 21/96, p. 645-646; MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Stra­fr e ch t ll , 1989, §48, n. 81, p. 277; ROXIN, LK(Roxin), 1992, §25, n. 71; LACKNER, Strafgesetzbuch, §25, n. 4.

22 JAKOBS, Strafrecht, 1993, 21/96, p. 645-646; ROXIN, in LX(Koxin), 1992, §25, n. 65; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 102.

23 KOERNERJK, Obediência hierárquica, 2003, p. 94-97; HAFT, Strafrecht, 1994, p. 113.

364

Capítulo 14 A.utoria e Participação

erro provocado pelo autor mediato: o autor mediato se apropria de objeto alheio subtraído, erroneamente, pelo instrumento.24

2.2. Problemas especiais: erro, excesso, tentativa e omissão de ação na autoria mediata

O erro na autoria mediata pode ocorrer ou na pessoa do autor mediato, ou na pessoa do instrumento. O erro do autor mediato sobre características que fazem do autor imediato um instrumento nas mãos daquele, exclui o domínio do fato e transforma o autor mediato em instigador: o autor pensa incumbir doente mental de produzir incêndio, mas o autor imediato é capaz de culpabilidade e, portanto, responsável pelo fato típico como autor direto. A hipótese inversa, de erro sobre a capacidade de culpabilidade de pistoleiro contratado para realizar homicídio, que, sem conhecimento do contratante, é doente mental, constitui, objetivamente, autoria mediata, mas o des­conhecimento do domínio do fato pelo autor mediato mantém sua posição de instigador.25 Por outro lado, o erro do instrumento sobre o objeto da ação representa aberratio ictus para o autor mediato, porque o instrumento é equiparado a simples mecanismo, como uma arma que erra o alvo: coagido sob ameaça de morte ao homicídio de Y, o instrumento mata Z, confundido com Y na escuridão da noite.26

O excesso do instrumento, por iniciativa própria ou por erro

24 DREHER-TRÕNDLE, §25, n. 3; MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht 11,1989, §48, n. 59 s., p. 272; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 537, p. 160.

25 Assim, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §62, III 1, p. 671; LACKNER, Strafgeset^buch, §25; ROXIN, Táterschaft und Tatherrschaft, 1994, p. 267; do mesmo, JLK(Roxin), 1992, §25, n. 145.

26 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §62, III 1, p. 671-672; ROXIN, TáterschaftundTatherrschaft, 1994,p. 215; do mesmo, LK(Roxin), 1992, §25, n. 149; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 550, p. 165.

365

Teoria do Fato Punível Capítulo 14

sobre as tarefas ou finalidades respecdvas, ao contrário, não é atribu­ível ao autor mediato, por ausência de controle sobre o excesso do instrumento.27

A tentativa na autoria mediata, caracterizada pelo início de reali­zação do tipo segundo o plano do fato, é controvertida: para alguns autores, a tentativa já ocorre no instante da liberação do instrumento para, sob controle do autor mediato, realizar o fato típico28 — uma te­oria que inclui, claramente, atos preparatórios; para outros, a tentativa somente ocorre no instante em que o instrumento inicia a realização da ação típica29 — uma interpretação mais compatível com o Direito Penal do tipo, porque enquanto o instrumento, como mecanismo submetido ao poder do autor mediato, não cria perigo direto para o bem jurídico com o início da realização do tipo, não pode haver tentativa.

A autoria mediata por omissão de ação é, também, controvertida: responsável por instituição de tratamento psiquiátrico não impede agressão de doente mental sobre outro interno. Um setor da teoria con­sidera o garante autor mediato por omissão de ação;30 outro setor rejeita autoria mediata por omissão de ação e, na hipótese acima, considera o garante autor direto por omissão de ação31 — uma solução inteiramente conforme à lógica da dogmática da omissão de ação imprópria.

27 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §62, III 3, p. 672; MAU- RACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht II, 1989, §48, n. 45, p. 268-269; WESSELS/ BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 545, p. 163.

28 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §62, IV 1, p. 672-673; ROXIN, LK(Roxin), 1992, §25, n. 152.

29 KÜHL, Strafrecht, 1997, §20, n. 97, p. 702; MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht11,1989, §48, n. 115, p. 284.

30 MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht II, 1989, §48, n. 95, p. 280.31 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §62, IV 2, p. 673; ROXIN,

Tàterschaft und Tatherrschaft, 1994, p. 471.

366

Capítulo 14 Autoria e Participação

3. Autoria coletiva, ou co-autoria

A autoria coletiva, ou co-autoria, é definida pelo domínio comum do tipo de injusto mediante divisão do trabalho entre os co-autores: subjetivamente, decisão comum de realizar fato típico determinado, que fundamenta a responsabilidade de cada co-autor pelo fato típico comum integral — o que exclui a possibilidade de co-autoria em cri­mes de imprudência,32 apenas autoria colateral independente; obje­tivamente, realização comum do fato típico mediante contribuições parciais necessárias para existência do fato como um todo e, portanto, mediante domínio comum do fato típico.33 A convergência subjetiva e objetiva dos co-autores exprime acordo de vontades, expresso ou tácito, para realizar fato típico determinado.

A divisão funcional do trabalho na co-autoria, como em qual­quer empreendimento coletivo, implica contribuições mais ou menos diferenciadas para a obra comum, a nível de planejamento ou de execução da ação típica, o que coloca o problema da distribuição da responsabilidade penal entre os co-autores. A distribuição da responsa­bilidade penal depende da contribuição de cada co-autor para o fato

32 No Brasil, JESUS, Direito Penal 1, 1999, p. 408 e 419, apesar de falar em “vontade comum de cometimento do fa to ” e de considerar “imprescindível o elemento subjetivo, pelo qual cada concorrente tem consáênáa de contribuir para a obra comum” admite co-autoria em crimes de imprudência; igualmente, MIRABETE, Manual de Direito Penal, 2000, p. 235.

33 Assim, a opinião dominante: JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §63 ,1 1, p. 674-675; ROXIN, Tàterschaft und Tatherrschaft, 1994, p. 277; do mesmo, LK(Roxin), 1992, §25, n. 154; KÜHL, Strafrecht, 1997, §20, n. 98-99, p. 703; MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrechtll,, 1989, §49, n. 5, p. 288; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht,, 1969, p. 107; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 526-8, p.156-157. No Brasil, ver BATISTA, Concurso de agentes, 2004, 2a edição, n. 37-38, p. 101-106; BITENCOURT, Lições de Direito Penal, 1995, p. 99-100; MESTIERI, Manual de Direito Penal I, p. 202-203; ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 396, p. 674-675.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 14

comum e, portanto, a atribuição conjunta do fâto integral, fundada na decisão comum e realização comum de fato típico determinado, não pode ser igualitária, mas diferenciada pela natureza das contribuições respectivas para o tipo de injusto, como objeto de valoração do juízo de culpabilidade.

Art. 29. Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpa­bilidade.

Esse princípio geral, aplicável tanto à co-autoria como à parti- cipação, tem flexibilidade suficiente para abranger a diversidade de contribuições subjetivas e objetivas, bem como as hipóteses de excesso de contribuição ou de contribuições de menor importânáa para o tipo de injusto comum, como se demonstra.

a) Em regra, o excesso em relação ao fato típico objeto da decisão comum só é atribuível ao seu autor; por exceção, pode ser atribuído aos demais — co-autores ou partícipes —, na hipótese de previsibilidade do resultado mais grave, que aumenta até metade a pena do crime menos grave —, conforme a seguinte regra complementar, igualmente aplicável à co-autoria e à participação:

Art. 29, §2°. Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena

í. será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave.

A distinção entre excesso quantitativo e excesso qualitativo é essen­cial para aplicação da regra: a) o excesso quantitativo é previsível e, por isso, aumenta a pena do crime menos grave objeto do dolo do co-autor: em decisão comum de lesão corporal, o homicídio da vítima constitui excesso quantitativo atribuível ao autor do excesso, mas a previsibilidade desse excesso aumenta a pena da lesão corporal imputável ao co-autor;b) o excesso qualitativo é imprevisível e, portanto, não é imputável ao

368

Capítulo 14 Autoria e Participação

co-autor: em decisão comum de furto, o estupro da vítima constitui excesso qualitativo imputável exclusivamente ao autor do excesso.34

b) Em tipos qualificados pelo resultado, a atribuição do resultado mais grave pressupõe, no mínimo, imprudência do co-autor35 (ou do partícipe) — uma resultante do princípio da culpabilidade, que exclui qualquer responsabilidade penal objetiva.

c) Em tipos que exigem qualidades especiais do autor, a atribuição típica pressupõe co-autor qualificado: não existe co-autoria em deli­tos de mão-própria, sem realização pessoal da ação típica; não existe co-autoria em delitos especiais próprios, sem co-autores com as qua­lidades necessárias; não existe op-auto^a de crimes patrimoniais, em geral, sem a intenção especial de apropriação etc.36 — uma conseqüência do princípio da tipicidade que fundamenta a teoria do autor.

3.1. Decisão comum para o fato

A decisão comum para o fato significa convergência de consáênáa e de vontade dos co-autores para fato típico determinado, que fundamen­ta a atribuição conjunta do fato integral: a deásão comum desencadeia a distribuição de tarefas individuais necessárias à produção do resultado comum — por isso, nos crimes de imprudência, do ponto de vista con­ceituai, a co-autoria é impossívele, do ponto de vista prático, desnecessária, porque na hipótese de comportamentos imprudentes simultâneos cada lesão do dever de cuidado ou do risco permitido fundamenta a

34 DREHER-TRÕNDLE, Strafgeset^buch, §25, n. 5,82; MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht II, 1989, §49, n. 58, p. 299-300; ROXIN, LK(Roxin), 1992, §25, n. 175; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 531, p. 158-159.

35 JAKOBS, Strafrecht, 1993, 21/46, p. 619; MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, StrafrechtII, 1989, §49, n. 61, p. 300; ROXIN, LKfRexin), 1992, §25, n. 176.

36 DREHER-TRÕNDLE, Strafgeset^buch, §25, n. 6; ROXIN, LK(Roxtn), 1992, §25, n. 168; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 530, p. 158.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 14

atribuição do resultado como autoria colateral independente.

O momento da decisão comum deve ocorrer antes da realização do fato, mas, excepcionalmente, pode ocorrer durante a realização até a terminação do fato típico, com responsabilidade penal do co-autor pelos fatos anteriores conhecidos, desde que a contribuição do co- autor promova sua realização posterior — por exemplo, na extorsão mediante seqüestro - , com exceção de tipos independentes já con­cluídos.37

3.2. Realização comum do fato

A realização comum do fato é constituída pelas contribuições ob­jetivas de cada co-autor para o acontecimento total, que explicam o domínio funáonal do tipo de injusto. As contribuições objetivas para o fato comum podem consistir na realização integral das característi­cas do tipo, na realização parcial dessas características ou, mesmo, na ausência de realização de qualquer característica do tipo, desde que a ação atípica realizada pelo co-autor seja necessária para realizar o fato típico: por exemplo, na co-autoria de roubo, um co-autor espera no carro com motor ligado para a fuga, outro co-autor desliga o alarme, um terceiro co-autor garante a retirada, um quarto co-autor controla as vítimas com a arma, um quinto co-autor apanha o dinheiro e, ainda, um sexto co-autor pode ter planejado, organizado ou dirigido a coo­peração no fato comum38 — cuja punição será agravada, conforme o art. 62,1, CP. A contribuição objetiva do co-autor deve ser necessária para promover o fato típico comum, mas é suficiente contribuir para

37 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §63, II, p. 678; ROXIN, LK(Roxin), 1992, §25, n. 192; KÜHL, Strafrecht, 1997, §20, n. 126, p. 716.

38 Assim, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §63, II 1, p. 679; ROXIN, Tàterschaft und Tatherrschaft, 1994, p. 277; WESSELS/BEULKE, Strafrecht,1998, n. 529, p. 157.

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Capítulo 14 Autoria e Participação

desenvolver o plano criminoso, independente da presença física no local do crime, embora a entrega de armas ou instrumentos para o fato seja, por si só, insuficiente para a co-autoria.39

3.3. Co-autoria e tentativa

A tentativa de fatos puníveis realizados em co-autoria é definida por duas teorias contrárias: a teoria dominante (Gesamtlosung) propõe uma definição de tentativa de natureza geral, caracterizada pelo início de realização do programa típico comum por qualquer dos co-autores;40 a teoria minoritária (Ein%el/osun£) propõe uma definição de tentativa de natureza individual' caracterizada pelo início de realização da contribui­ção típica de cada co-autor respectivo.41 Os argumentos dessas teorias parecem igualmente relevantes: se dois co-autores projetam roubo em residência alheia, a tentativa começa para ambos no momento em que qualquer deles soa a campainha da casa, ou força a abertura da porta (Gesamtlõsung); mas se um co-autor deve falsificar um documento, que outro co-autor deverá colocar em circulação, posteriormente, o início da falsificação do documento configura tentativa apenas para o primeiro co-autor, sendo mero ato preparatório para o segundo (ELin%ellosung) — o que parece mostrar a necessidade de subordinar a solução do problema da tentativa à natureza da ação descrita no tipo legal (ver Tentativa e consumação, adiante).

39 Ver JAKOBS, Strafrecht, 1993, 21/52, p. 622; MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Stra­frech t II, 1989, §49, n. 34-35, p. 295.

40 JAKOBS, Strafrecht, 1993, 21/61, p. 629; JESCHECK/WEIGEND, l^ehrbuch des Strafrechts, 1996, §63, IV 1, p. 681; KÜHL, Strafrecht, 1997, §20, n. 123, p. 713-714; MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrechtll, 1989, §49, n. 100, p. 308.

41 Assim, ROXIN, LK(Roxin), 1992, §25, n. 199.

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Teoria do Fato Punível Capítuh 14

3.4. Co-autoria e omissão de ação

A possibilidade de co-autoria por omissão de ação é rejeitada por um setor minoritário,42 mas admitida pelo setor dominante da literatura.43 Exemplos: omissão de ação comum do pai e da mãe em relação aos cuidados do filho recém nascido; vários dirigentes de empresa omitem a retirada do mercado de produto nocivo à saúde da população. Segundo a teoria dos delitos de dever.; na omissão de cuidados do pai e da mãe, cada garante seria autor independente por omissão de ação — e não co-autor por omissão de ação; entretanto, no caso dos dirigentes de empresa, atribuições estatutárias comuns poderiam caracterizar co-autoria por omissão de ação.44 Por outro lado, hipóteses dé atuação positiva de um co-autor, enquanto o outro, de modo contrário ao dever, omite a ação de impedir a atuação positiva do primeiro, não seriam casos de co-autoria, mas de autoria e de par­ticipação, pela posição subordinada do omitente em relação ao autor (o vigia não impede o furto no estabelecimento vigiado).45

IV. Participação

A participação, como contribuição dolosa a fato principal doloso, depende da existência do fato principal, assim como a parte depende do todo. A dependência da participação em face do fato principal refere-se

42 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 206.43 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §63, IV 1, p. 682; MAU­

RACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrechtll, 1989, §49, n. 86 s., p. 306; ROXIN, Táterschaft und Tatherrschaft, 1994, p. 469.

44 Nesse sentido, ROXIN, LK(Roxin), 1992, §25, n. 206.45 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §63, IV 2, p. 682.

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Capítulo 14 A.utoiia e Participação

ao conteúdo de injusto respectivo: a participação não tem conteúdo de injusto próprio e, por isso, assume o conteúdo de injusto do fato principal; por outro lado, a dependência da participação é limitada à tipicidade e antijuridicidade do fato principal, ou seja, ao tipo de injusto do fato principal. A dependência da participação limitada ao tipo de injusto do fato principal constitui a chamada acessoriedade limitada da participação (a antiga acessoriedade extrema, hoje abandonada, exigia, também, culpabilidade do fato principal).46

A definição da participação como contribuição acessória de fato principal doloso exclui a possibilidade de participação em crimes de imprudência: na imprudência inconsciente não há previsão do resultado, nem possibilidade de domínio do fato para distinguir entre autoria e participação; na imprudência consdente existe previsão do resultado e pode ocorrer domínio do fato, mas a punição não se fundamenta na distinção entre autor e partícipe, e sim na lesão individual do dever de cuidado ou do risco permitido.47 A hipótese da morte de pedestre por viga lançada na rua pela ação conjunta de dois operários de construção constitui autoria colateral independente de homicídio imprudente:48

46 Nesse sentido, JAKOBS, Strafrecht, 1993, 22/10-8, p. 661-664; JESCHECK/ WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §63, VII 1-2, p. 655-656; MAURACH/ GÕSSEL/ZIPF, Strafrechtll, 1989, §53, n. 854-859, p. 380; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 551-554, p. 165-166. No Brasil, BATISTA, Concurso de agentes, 2004, 2a edição, n. 67, p. 161-165; BITENCOURT, Lições de Direito Penal, 1995, p. 104; FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 247, p. 266-267; MESTIERI, Manual de Direito P ena ll, 1999, p. 203; ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 403, p. 685-686; curiosamente, MIRABETE, Manual de Direito Penal, 2000, p. 232-233, não menciona a natureza acessória da participação; JESUS, Direito P ena ll, 1999, p. 413-414, além da acessoriedade limitada e extrema, distingue, ainda, uma acessoriedade mínima e uma hiperacessoriedade, sem significação dogmática no moderno Direito Penal.

47 Comparar JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §63, VI, p. 654- 655; MAURACH/GOSSEL/ZIPF, Strafrechtll, 1989, §47, n. 102, p. 251; ROXIN, LK(Koxin), 1992, §25, n. 217; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 99.

48 Assim, atualmente JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §61, VI, p. 655.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 14

os operários cooperam na ação de lançar a viga, mas a lesão do dever de cuidado oü'do risco permiddo é realizada individualmente por cada operário.49

A dependência da participação, expressa na natureza acessória da participação em face do fato principal, explica a ausência de domínio do fato do partícipe, com duas conseqüências importantes: a) o partícipe não pode cometer excesso em relação ao fato objeto do dolo comum, porque excesso pressupõe domínio comum do fato e, portanto, co-autoria;b) a participação delimita a área das contribuições de menor importânáa, necessariamente incompatíveis com a existência do domínio do fato®— embora nem toda participação seja de menor importânáa e, às vezes, a participação seja tão importante quanto a autoria, como ocorre em algumas situações de instigação (homicídio mediante recompensa, por exemplo).

Art 29, §1°. Se aparticipação for de menor importânáa, apena pode ser diminuída de um sexto a um terço.

A natureza dependente da participação condiciona sua punibili­dade à existência de fato principal antijurídico doloso, consumado ou tentado:

Art. 3 1 .0 ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado.

Enfim, a participação pode contribuir para o fato principal antijurídico doloso de dois modos: primeiro, mediante provocação do dolo do fato principal no autor; segundo, mediante apoio material para

49 MIRABETE, Manual de Direito Penal’ 2000, p. 235, define essa hipótese como co-au­toria de crime culposo, apesar de exigir para a co-autoria (p. 229) “um liamepsicológico entre os vários autores, ou seja, a consáênáa de que cooperam numa ação comum ’ — portanto, um conceito aplicável exclusivamente aos crimes dolosos.

50 Assim, CIRINO DOS SANTOS, Teoria do crime, 1993, p. 76-77.

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Capítulo 14 Autoria e Participação

realização do fato principal doloso pelo autor.51 Em suma, a participação pode existir sob as formas de instigação para e de cumplicidade em fato principal doloso.

1. Instigação

A instigação significa determinação dolosa do autor a realizar fato típico e antijurídico doloso: o instigador provoca a decisão do fato mediante influência psíquica sobre o autor, mas não tem controle sobre a realização do fato, reservado exclusivamente ao autor.52 Os meios de influência do instigador no psiquismo do autor são inúmeros: persuasão, pedidos, presentes, ameaças, promessas de recompensa, pagamentos, até simples expressões de desejo podem constituir ins­tigação (o pagamento e a promessa de recompensa agravam a pena do instigador e do autor, na forma do art. 62, IV, CP). A influência sobre o psiquismo do autor para determinar decisão de realizar fato definido como crime parece pressupor ação, excluindo a hipótese de instigação por omissão de ação.53

O dolo do instigador se caracteriza por um duplo objeto: ime­diatamente, tem por objeto engendrar a decisão de fato doloso no

51 Assim JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §64, I 2, p. 685; KÜHL, Strafrecht, 1997, §20, n. 132, p. 718-719; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 552, p. 165.

52 ROXIN, LK(Roxin), 1992, §25, n. 4; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 567- 570, p. 169-170. No Brasil, ver BATISTA, Concurso de agentes, 2004, 2a edição, n. 76, p. 181-183; BITENCOURT, Lições de Direito Penal, 1995, p. 106; FRAGOSO, Lições de Direito Penal.’ 1985, n. 248, p. 267-268; MESTIERI, Manual de Direito Penal 1 ,1999, p. 203-204; ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 412, p. 695.

53 ROXIN, Tãterschaft und Tatherrschaft, 1994, p. 484; do mesmo, LK(Roxin), 1992, §25, n. 71.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 14

psiquismo do autor; mediatamente, tem por objeto a realização do fato principal doloso pelo autor.54

a) O dolo do instigador e a decisão do autor

Sobre a relação entre dolo do insdgador e decisão do fato no psiquismo do autor é preciso esclarecer alguns pontos:

a) o objedvo do instigador é a consumação do fato principal — e não, apenas, tentativa: se a instigação é realizada por agente provocador., que quer a tentativa, mas exclui a consumação do fato principal, ou quer a própria consumação formal, mas exclui a lesão material do bem jurídico, então a instigação é impunível — assim como o fato principal — por absoluta impossibilidade de lesão do bem jurídico: no flagrante preparado, a hipótese de permanência da droga fornecida pelo traficante em poder do consumidor, está excluída.55

b) o dolo do instigador, direto ou eventual, deve ser concreto, no sentido de ter por objeto autor determinado e fato determinado: um autor indeterminado para realizar o fato principal, ou um fato indetermina­do para ser realizado pelo autor (com exceção de detalhes de tempo, lugar, ou outros dependentes do desenvolvimento posterior do fato), não são compatíveis com a instigação.56

c) a ação dè instigação deve determinar a decisão do autor para o

54 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §64, II 2b, p. 687; também, MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrechtll, 1989, §51, n. 19, p. 346.

55 Assim, por exemplo, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §64, II 2b, p. 688; MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrechtll, 1989, §51, n. 35, p. 349-350. No Brasil, a favor da punição do agente provocador, na hipótese de crime impossível, sob o argumento de identidade entre “o dolo do delito e o dolo da tentativa”, ZAFFA- RONI/PIERANGELI, Manual de Direito Venal brasileiro, 1997, n. 414, p. 697.

56 Comparar JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §64, II 2b, p. 688; ROXIN, LK(Roxin), 1992, §25, n. 46.

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Capítulo 14 Autoria e Participação

fato: autores inclinados para o fato podem ainda ser instigados, mas auto­resj á decididos não podem mais ser instigados, admitindo-se, entretanto, cumplicidade psíquica, como reforço de decisão já existente.57

b) O dolo do instigador e o fato do autor

Sobre a relação entre dolo do instigador e fato realizado pelo autor é preciso, também, esclarecer alguns pontos:

a) a punibilidade da instigação também pressupõe fato principal consumado ou tentado (art. 31, CP);

b) fundamento de punibilidade da instigação é a correspondência entre dolo do instigador e fato principal consumado ou tentado, exceto detalhes de tempo, lugar, meio ou modo de execução, necessariamente deixados por conta do autor;

c) o instigador não pode ser punido pelo excesso do autor, confor­me a regra do art. 29, §2°: no excesso qualitativo, o fato principal diferente é atribuído exclusivamente ao autor (instigado ao furto, o autor realiza estupro contra a proprietária que dormia sozinha na residência); no excesso quantitativo, o fato principal maior é atribuído ao autor, e o fato menor da instigação é atribuído ao instigador58 (instigado ao furto, o autor realiza roubo): a exceção da regra é representada pela hipótese de previsibilidade do resultado mais grave, que admite aumento até metade da pena do crime menos grave (art. 29, §2°, segunda parte);

d) nos delitos qualificados pelo resultado, a atribuição do resul­

57 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §64, II 2c, p. 689.58 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §64, II 3 e 4, p. 689;

MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, StrrfecbtTL, 1989, §51, n. 44-58, p. 351-354; ROXIN, LK(Roxin), 1992, §25, n. 89.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 14

tado mais grave ao instigador pressupõe, no mínimo, imprudência deste, fundada no critério de autoria colateral.59

c) Erro de tipo e erro de tipo permissivo do instigador

A exigência de dolo condiciona a possibilidade de erro de tipo e de erro de tipo permissivo na pessoa do instigador: o erro de tipo do instigador exclui o dolo, como qualquer erro de tipo (acreditando na palavra do parceiro de caça, que confudira um corpo escuro na floresta com um javali, o caçador desfere certeiro tiro no pároco da vila, que sentara na relva para descansar, no seu passeio vespertino); o erro de tipo permissivo do instigador incide sobre a existência dos pressupostos objetivos de causa de justificação para o autor: para um setor da literatura, seria mero problema de culpabilidade do instigador;60 para outro setor, resolve-se pelas mesmas regras do erro de tipo, como qualquer erro de tipo permissivo.61

O erro do autor sobre o objeto da ação instigada (A mata B, confundido com C, na escuridão) resolve-se pelas regras da aberratio ictus para o autor e para o instigador: segundo a teoria da concretização, dominante na literatura, tentativa de homicídio contra C, em concurso com homicídio imprudente de B;62 segundo a teoria da equivalência genérica do resultado típico da lei brasileira, homicídio consumado (art. 20, §3°, CP).

59 JAKOBS, Strafrecbt, 1993,22/29, p. 669-70; ROXIN, LK(Roxin), 1992, §25, n. 99; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 122.

60 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §64, II 2b, p. 687; também, WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 117.

61 SCHÕNCKE/SCHRÕDER/CRAMER, §26, n. 15; ROXIN, LK(Roxín), 1992, §25, n. 66.

62 Comparar JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §64, I I4, p. 691; MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrechtll, 1989, §51, n. 57, p. 353-354; WELZEL, D as Deutsche Strafrecht, 1969, p. 75; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 579, p. 173; KÜHL, Strafrecht, 1997, §20, n. 209, p. 748; ROXIN, Tãterschaft und Tatherrschaft, 1994, p. 288; do mesmo, LK(Rnxin), 1992, §25, n. 92.

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Capítulo 14 A.utoria e Participação

2. Cumplicidade

A cumplicidade significa ajuda dolosa do cúmplice para fato tí­pico e andjurídico doloso do autor: o cúmplice presta ajuda material para realização de fato principal doloso e, assim como o instigador, também não controla a realização do fato punível, poder exercido exclusivamente pelo autor.63

a) Natureza da ajuda m aterial

A ajuda material dolosa do cúmplice assume, em geral, forma física ou técnica, como a entrega de ferramentas, o mapeamento do local, a segurança do autor etc.; contudo, pode admitir forma intelec­tual ou psíquica, como reforço do dolo do autor (o autor não utiliza a ferramenta entregue pelo cúmplice porque a porta da casa já estava aberta, mas a oferta do instrumento fortalece a decisão daquele).64 Os meios de ajuda material são ilimitados: toda e qualquer contribuição para promoção ou realização de fato principal doloso constitui cum­plicidade.65 O momento da cumplicidade é extremamente dilatado: pode ocorrer desde a preparação do fato (entrega de chave da casa, para o furto) até a consumação material (obtenção da vantagem, na

63 Assim, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §64, III 1, p. 691. No Brasil, ver BATISTA, Concurso de agentes, 2004, 2a edição, n. 80, p. 186; BITENCOURT, Lições de Direito Penal, 1995, p. 106-107; FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 249, p. 268-269; MESTIERI, Manual de Direito Penal I, p. 203-204; ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 416, p. 698.

64 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §64, III1, p. 691; ROXIN, LK(Roxin), 1992, §25, n. 66.

65 Ver, por exemplo, JESCHECK/WTEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §64, III l ,p . 691.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 14

extorsão mediante seqüestro).66

A possibilidade de ajuda dolosa por omissão de ação é con­trovertida: um setor da literatura rejeita cumplicidade por omissão de ação;67 outro setor admite cumplicidade por omissão de ação se o cúmplice é garantidor do bem jurídico;68 finalmente, uma terceira posição parece melhor, porque considera o garante autor por omis­são de ação imprópria - e não simplesmente cúmplice (funcionário responsável pelo trabalho externo de presos, tolera a realização de furto; proprietário de bar permite lesão corporal de freguês dentro do estabelecimento).69

A ação de ajuda material deve promover o fato principal, no sentido de representar contribuição causai para o resultado,70 ou de elevar o risco de produção do resultado71 (entrega de instrumento não utilizado pelo autor, mas recebido como apoio psíquico; venda de chave de parafuso por lojista, sabendo de seu emprego para cometer determinado furto etc.).

b) O dolo do cúmplice e o fato principal

Assim como o dolo do instigador, o dolo do cúmplice se ca­racteriza por um duplo objeto: o objeto imediato é a própria ação de ajuda ao autor, o objeto mediato é a realização do fato principal

66 Assim, DREHER/TRÕNDLE, Strafgeset^buch, §27, n. 3; ROXIN, Tàterschaft und Tatherrschaft,, 1994, p. 291; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 583, p. 175.

67 É a posição de WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 222.68 Por exemplo, DREHER/TRÕNDLE, Strafgeset^buch, §27, n. 7.69 ROXIN, Tàterschaft und Tatherrschaft, 1994, p. 476; do mesmo, JLKfKoxin), 1992,

§25, n. 43.70 Ver WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 582, p. 174.71 Assim ROXIN, LK(Roxm), 1992, §25, n. 5 e 17.

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Capítulo 14 Autoria e Participação

doloso pelo autor.72 Nesse sentido, tem por objetivo a consumação do fato principal — não, apenas, a tentativa — e precisa ser concreto, referindo-se a autor determinado e fato determinado (exceto detalhes, também deixados por conta do autor); igualmente, a punibilidade do cúmplice depende de fato principal consumado ou tentado (art. 31, CP), pressupõe correspondência entre o conteúdo do dolo do cúm­plice e o fato principal consumado ou tentado do autor, e não abrange excessos qualitativos (fato principal diferente) ou quantitativos (fato principal mais grave) do autor,73 valendo também para o cúmplice a regra do art. 29, §2°, CP.

O erro de tipo e o erro de tipo permissivo do cúmplice são resolvidos como no caso do instigador: o erro de tipo exclui o dolo; o erro de tipo permissivo (incidente sobre pressupostos objetivos de justificação para o autor), na linha da controvérsia em relação à instigação, ou exclui a culpabilidade, ou exclui o tipo.74

3. Concorrência de formas de participação

E possível a concorrência de várias formas de participação, for­mando as chamadas cadeias de instigação ou de cumplicidade, compre­endidas no conceito de cumpliddade mediata ao fato principal. A cadeia de instigação é formada pela instigação à instigação ao fato principal;75 a

72 Assim, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §64, III 2d, p. 695; também, MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht, 1989, §52, n. 31-32, p. 361.

73 Ver, por todos, IESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §64, III 2-4, p. 695-696.

74 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §64, III 2d, p. 695.75 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §64, II 2a, p. 687. ROXIN,

LFfRoxm), 1992, §25, n. 64; MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Stnfmht, 1989, §51, n. 13, p. 345.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 14

cadeia de cumplicidade é formada pela instigação à ajuda ao fato princi­pal, pela ajuda à instigação ao fato principal e pela ajuda à ajuda ao fato principal. 16

A reunião das posições de autor e de partícipe do fato princi­pal na mesma pessoa é freqüente: o autor do fato principal instiga terceiro à co-autoria ou à participação no tipo de injusto — e, neste caso, a forma superior absorve a forma inferior: instigação absorve cumplicidade e autoria absorve instigação ou cumplicidade.77

4. Participação necessária

A participação necessária aparece em tipos legais cuja realização exige o concurso de várias pessoas, como o homicídio piedoso, a usura, o favorecimento pessoal, a receptação etc. Os tipos legais nos quais a participação é, conceitualmente, necessária, são agrupados em tipos de convergênáa e tipos de encontro-, a) nos tipos de convergência a atividade dos partícipes necessários se alinha do mesmo lado e se orienta para o mesmo fim (o motim de presos, o furto em concurso de pessoas etc.): todos os partícipes necessários são co-autores; b) nos tipos de encontro a atividade dos partícipes necessários se desenvolve a partir de posições diferentes, mas orientada para o mesmo fim (o favorecimento pessoal, o rufianismo etc.): em todas as hipóteses, a punição incide sobre o autor, nunca sobre o partícipe necessário, ou

76 Ver, entre outros, ROXIN, LKfRoxin), 1992, §25, n. 71; SCHÕNCKE/SCHRÕ- DER/CRAMER, §27, n. 18. No Brasil, BATISTA, Concurso de agentes, 2004, 2a edição, n. 73, p. 187.

77 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §64, IV 1-2, p. 697.

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Capítulo 14 Autoria e Participação

porque o tipo protege o partícipe necessário (rufianismo), ou porqueo partícipe necessário se encontra em posição de motivação compre­ensível (favorecimento pessoal).78

5. Tentativa de participação

Na legislação penal brasileira, a tentativa de participação não é punível, sob o seguinte fundamento: o conteúdo de injusto da participação não é próprio, mas dependente do fato principal, que o partícipe deve, concretamente, provocar ou ajudar, mas na tentativa de participação não existe nenhuma promoção do fato principal, nem por instigação, nem por cumplicidade.79

V. Comunicabilidade das árcunstâncias ou condições pessoais

A distribuição da responsabilidade penal na co-autoria e na partici­pação depende, segundo o princípio da culpabilidade (art. 29, CP), das contribuições subjetivas e objetivas de cada co-autor para a obra comum, ou de cada partícipe para o fato principal,80 mas a individualização da

78 Ver MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrechtll, 1989, §50, n. 7 s., p. 315-318;RO- XIN, LK(Roxin), 1992, §25, n. 38; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 507; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 587, p. 176.

79 Assim, BATISTA, Concurso de agentes, 2004,2a edição, n. 71, p. 175; também, FRA­GOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 247, p. 266.

80 MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht II, 1989, §49, n. 112, p. 310; ROXIN, Tàterschaft und Tatherrschaft, 1994, p. 288; do mesmo, LK(Roxin), 1992, §25, n. 171.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 14

responsabilidade penal admite diferenciações complementares pela comunicação ou não-comunicação de circunstâncias ou condições de caráter pessoal.

Art. 30. Não se comunicam as circunstânáas e as condições de caráter pessoal\ salvo quando elementares do crime.

As chamadas circunstâncias ou condições de caráter pessoal são ca­racterísticas pessoais especiais cuja presença pode agravar a pena (motivo futil, motivo torpe etc.), reduzir a pena (primariedade, motivo de rele­vante valor social ou moral) ou excluir a pena (desistência voluntária, arrependimento eficaz etc.) no co-autor ou partícipe respectivo.81

A comunicabilidade de circunstâncias ou condições pessoais a outros co-autores ou partícipes é regida pela seguinte regra: características pes­soais agravantes, redutoras ou excludentes de pena somente se aplicam ao co-autor ou partícipe respectivo e, portanto, não se comunicam aos demais82 — de outro modo, a responsabilidade penal não seria regida pelo princípio da culpabilidade; a exceção dessa regra é representada por características pessoais que são, simultaneamente, circunstâncias ou condições elementares do tipo de crime ( “...salvo quando elementares do crimef% as quais se comunicam a todos os co-autores ou partícipes (por exemplo, o estado puerperal no infanticídio).83

81 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §63, VII 4, p. 657-659.82 MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrechtll, 1989, §49, n. 112, p. 310.83 Comparar, BITENCOURT, Lições de Direito Penal.', 1995, p. 115-116; FRAGOSO,

Lições de Direito Penal, 1985, n. 252, p. 272-273; JESUS, Direito P enall, 1999, p. 437; MESTIERI, Manual de Direito Penall, 1999, p. 204; ZAFFARONI/PIERAN GELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 411, p. 694-695.

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C apítu lo 1 5

T e n t at iv a e C o n su m a ç ã o

I. Introdução

Os tipos legais descrevem crimes em estado de consumação, caracterizados pela presença de todos os elementos constitutivos do fato criminoso, mas a punibilidade das ações típicas dolosas pode ocorrer também sob forma tentada e, portanto, antes do resultado típico exigido para consumação. Todo o problema consiste em identi­ficar, no processo de realização da ação típica, demarcado pelas fases de decisão, preparação, começo de execução e produção do resulta­do, o momento de início da punibilidade.1 A determinação legal do momento inicial de incidência de pena, no processo de realização da ação típica, é exigência do princípio da legalidade, definida pelo critério do início de execução, na lei penal brasileira:

Art. 14. Di^se o crime: (...) I I— tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma p or circunstâncias alheias ã vontade do agente.

A teoria da tentativa tem por objetivo esclarecer o significado do conceito de início de execução, que marca o começo da punibilidade da ação típica e indica a separação entre ações preparatórias, ainda impuní­veis por causa da indefinição de seu significado típico, e ações executivas, já puníveis pela definição de seu significado típico como tentativa de

1 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996,3, p. 509; WESSELS/ BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 590, p. 177.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 15

crime. Assim como outras teorias sobre a ação humana, as teorias construídas para distinguir açõespreparatórias impuníveis e ações executivas puníveis podem ser classificadas em teorias objetivas, teorias subjetivas e teorias objetivo-subjetivas (ou mistas).

II. Teorias da tentativa

O paradigma finalista da parte geral do Código Penal brasileiro, com sua característica estrutura objetiva e subjetiva do tipo de injusto, pressupõe conceitos capazes de apreender as dimensões psíquica e fática da ação humana típica, tentada ou consumada. Do ponto de vista subjetivo, se o dolo (a) é essencial para caracterizar a tentativa de qualquer delito, (b) é necessário para identificar o tipo de delito ten­tado, (c) indica se algum delito foi, de fato, tentado e (d) deve existir, em conjunto com outros elementos subjetivos especiais, formando o tipo subjetivo integral da tentativa, sem qualquer diferença dos de­litos consumados, então qualquer teoria da tentativa deve ser integrada por elementos subjetivos, compreendidos na categoria da representação do fato ou do plano do fato. Por outro lado, do ponto de vista objetivo, se a tentativa de qualquer delito doloso se caracteriza (a) pelo iníáo de execução da ação típica e (b) pela ausênáa do resultado independente da vontade do autor, então qualquer teoria da tentativa deve, igualmente, ser integrada pelos mesmos elementos objetivos dos delitos consumados, menos o resultado.

Assim como a teoria causai da ação e o correspondente modelo objetivo de tipo de injusto engendraram as teorias objetivas da tentativa, a teoria fina l da ação e o correspondente modelo objetivo e subjetivo de tipo de injusto originaram as teorias objetivo-subjetivas da tentativa. O conceito de início de execução, que caracteriza a tentativa de um delito

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Capítulo 15 Tentativa e Consumação

doloso e separa ações preparatórias impuníveis e ações executivas puníveis, antigamente definido pela pauta objetiva do modelo causai de crime, hoje deve ser definido pelo critério objetivo-subjetivo do modelo fina l de crime da lei penal.2 Em conclusão, uma teoria moderna da tentativa deve partir da representação do fato pelo autor e mostrar (a) que o plano do autor se manifesta no início de execução da ação típica e (b) que a ausência do resultado é independente da vontade do autor.

1. Teoria objetiva

A teoria objetiva da tentativa parte do seguinte pressuposto: se o dolo é igual em todas as fases do fato punível (decisão, preparação, começo de execução e consumação), então ações preparatórias e ações executivas não podem ser distingüidas por critérios subjetivos, mas por critérios objetivos. Logo, o conceito de início de execução seria esclarecido pela pergunta: início de execução do quê? As respostas à pergunta engendram a variante formal e a variante material da teoria objetiva, cujos critérios reaparecerão nas modernas orientações da teoria objetivo-subjetiva da tentativa.

1.1. Teoria objetiva formal. A teoria objetiva formal define tentativa pelo início de execução da ação do tipo: ações anteriores são prepara­tórias; ações posteriores são executivas. Assim, no homicídio com arma de fogo, a ação de matar começa no acionamento do gatilho da arma carregada apontada para a vítima; no furto com destreza, a ação

2 O texto marca mudança em relação à posição anterior, ainda favorável à teoria objetiva form al para caracterizar a tentativa, cf. CIRINO DOS SANTOS, Teoria do crime, 1993, p. 80-82.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 15

de furtar começa na introdução da mão no bolso da vídma etc.3 O problema fundamental da teoria objetiva formal é a exclusão do dolo para caracterizar a tentativa: o dolo pode ser igual em todas as fases do fato punível, mas sem o dolo é impossível distinguir ações de fo r ­ma igual com conteúdos diferentes — por exemplo, somente o conteúdo da vontade do autor indica se o ferimento produzido na vítima constitui lesão corporal consumada ou homicídio tentado.4

1.2. Teoria objetiva material. A teoria objetiva material define ten­tativa na realização de ação imediata ao tipo legal, integrante da ação típica segundo um juí%o natural e produtora de perigo direto para o bem jurídico protegido no tipo.5 Assim, no homicídio com arma de fogo a ação de matar já começa no ato de apontar a arma carregada para a vítima ou, mesmo, na ação de empunhar a arma carregada e travada com o propósito imediato de atirar na vítima — e não, apenas, na ação de disparar a arma contra a vítima.6 Além de excluir o dolo, essencial para identificar o respectivo tipo doloso tentado ou consumado, o critério do perigo direto para o bem jurídico, criado por atividade ime­diatamente anterior à ação típica, parece exposto às seguintes objeçÕes: primeiro, antecipa o momento de punibilidade da tentativa, recuando a linha de demarcação entre ações preparatórias e ações executivas, para incluir ações exteriores ao tipo legal, que seriam excluídas pelo critério da teoria objetiva formal;1 segundo, ações exteriores ou anterio­

3 WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 597, p. 180.4 Ver MESTIERI, Manual de Direito Penall, 1999, p. 212; em posição de crítica à teoria,

ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 422, n. 705-706.

5 Assim, FRANK, Strafgeset^buch, 1931, §43. No Brasil, BITENCOURT, Lições de Direito Penal, 1995, p. 76, adota a teoria.

6 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §49, II, 1, p. 513.7 Ver CIRINO DOS SANTOS, Teoria do crime, 1963, p. 81.

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Capítulo 15 Tentativa e Consumação

res ao dpo legal não possuem potencialidade lesiva do bem jurídico: no exemplo referido, a potencialidade lesiva do bem jurídico depende, ainda, de um ato de vontade do autor — a ação de acionar o gatilho— e, portanto, a ausência do resultado não é explicável por circunstâncias alheias à vontade do agente (art. 14, II, CP); terceiro, pretender suprir a falta de lesividade concreta da ação pelo perigo direto para o bem jurídico significa incluir na área de punibilidade ações que o legislador excluiu do dpo legal, com lesão do princípio da legalidade.

2. Teoria subjetiva

A teoria subjetiva define tentativa pela representação do autor:8 ações representadas como executivas no plano do autor caracterizam tentativa porque seriam portadoras de vontade hostil ao direito;9 ações representadas como preparatórias no plano do autor não caracterizam tentativa. E óbvio que a natureza preparatória ou executiva das ações realizadas depende do plano do fato e, portanto, da representação do autor., mas a ausência de parâmetros objetivos para identificar a representação do autor cria problemas insuperáveis: amplia a tentativa punível na direção da tentativa inidônea e reduz o espaço das ações preparatórias, permitindo, por exemplo, a punição da tentativa de aborto com meio inefica^ em mulher não-grávida, suficiente para a vontade hostil ao direito contida na representação do autor.10

8 Comparar WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 597, p. 180.9 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §49, II, 2, p. 513.10 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §49, II, 2, p. 513.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 15

3. Teoria objetivo-subjetiva (ou objetiva individual)

A teoria objetivo-subjetiva fundamenta a definição de tentativa na realização de vontade antijurídica (a) produtora de perigo para o bemjurídico, segundo a teoria do autor11 — cujo conteúdo destaca o papel de proteção de bens jurídicos atribuído ao Direito Penal no Estado Democrático de Direito —, ou (b) produtora de abalo da confiança comunitária no Direito, segundo a teoria da impressão12 — cujas raízes remontam à função de estabilizar as expectativas normativas atribuída ao Direito Penal pelas teorias funcionalistas.

A formulação moderna da teoria objetivo-subjetiva da tentativa, conhecida como t e o r ia o b je t iv a in d iv id u a l} 1' possui uma dimensão subjetiva consensual e uma dimensão objetiva controvertida. Por um lado, a dimensão subjetiva da estrutura do conceito de tentativa, constituída pela representação do fato (ou plano do autor), como elemento intelectual do dolo, é o aspecto incontroverso da teoria objetiva individual. Por outro lado, a dimensão objetiva dessa estrutura, constituída pela ação que define o começo da tentativa., contém uma controvérsia que engendra duas variantes da teoria objetiva individual:

a) a variante dominante exige posição de imediata realização do

11 Assim, ENGISCH, Der Unrechtstatbestandim Strafrecbt.; DJT-Festschrift, 1960, p. 435.12 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §49, II, 2, p. 513;

também, MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht, 1989, §40, n. 40, p. 22; WES­SELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 594, p. 179.

13 A teoria objetiva individual exprime o conceito legal de tentativa do Código Penal alemão (§22), assim traduzível: Tenta um fato punível quem, segundo sua representação do fato, se posiciona imediatamente para realização do tipo. (Eine Straftat versucht, wer nach seiner Vorstellung von der Tat zur Verwirklichung des Tatbestandes unmittelbar ansetzt). Assim, adotar a teoria objetiva individual, na variante dominante na dogmática alemã, como critério para definir tentativa na lei penal brasileira, significa disciplinar a tentativa no Brasil segundo o §22 do Strafgeset^buch alemão, e não pelo art. 14, II, do Código Penal brasileiro, que exige início de execução do programa típico..

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tipo (“... zur Verwiddichung des Tatbestandes unmittelbar ansetzt”),14 manifestada em atividade atípica ligada diretamente à ação do tipo, se­gundo o plano do autor15 — um critério que parece conjugar a teoria subjetiva com a teoria objetiva material;

b) a variante minoritária exige comportamento típico manifestado em ação de execução específica do tipo (“tatbestandsspezifische Ausführun- gshandlung”), segundo o plano do autor16 — um critério que acopla a teoria subjetiva com a teoria objetiva formal.

A variante dominante da teoria objetiva individual admite as mesmas críticas da teoria objetiva material: antecipa a punibilidade da tentativa pelo recuo da delimitação entre preparação e execução, incluindo ações exteriores ou anteriores ao tipo legal, com lesão do princípio da legalidade; além disso, ações exteriores ou anteriores ao tipo legal não têmpotenáalidade lesiva do bem jurídico, cuja colocação em perigo depende de ação típica específica do autor: se o resultado típico depende, ainda, da vontade do autor — no exemplo, a ação de pressionar o gatilho —, então a ausência do resultado não decorre de drcunstânáas alheias àquela vontade etc.17

Ao contrário, a variante minoritária da teoria objetiva individual retoma o Direito Venal do tipo, que limita a punibilidade pela legalidade e

14 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §49, IV, 1-3, p. 519.15 Nesse sentido, WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 598, p. 180-181.16 Assim, VOGLER, Der beginn des Versuchs, Festschrift fur W. Stree und J. Wessels,

1993, p. 285; do mesmo, LK(Voglerj, 1985, §22, n. 60.17 No Brasil, JESUS, Direito P enall, 1999, p. 329, comunica ter abandonado “as teorias

material e formal-objetiva”, assumindo a teoria “objetiva individual.\ defendida p o r Wel^el e Zaffaroni”, embora reconheça que, na lei penal brasileira (p. 332), foi “aceita a teoria objetiva, exigindo um inído típico de execução MIRABETE, Manual de Direito Penal, 2000, p. 157-158, combina os critérios heterogêneos da teoria objetiva form al e da teoria objetiva material na variante dominante da teoria objetiva individual; REGIS PRADO, Curso de Direito Penal brasileiro, 1999, p. 253-254, trabalha com a variante dominante da teoria objetiva individual; assim, também ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 422, p. 706-707.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 15

oferece um critério que permite definir tentativa como initio de execução do tipo objetivo, segundo o plano do autor; ou seja, como início de execução do programa típico manifestado em ação de execução específica do tipo, como propõe VOGLER.18 Assim, constitui tentativa de homicídio, anestesiar criança para cortar as veias do pulso; tentativa de roubo, dar o sinal de luz que inicia o assalto ao veículo de transporte de valores; tentativa de furto, subir no estribo do caminhão para furtá- lo, se não possuir travas contra furto etc.; entretanto, constituem meras ações preparatórias, dirigir-se para o local do furto, ainda que portando armas; montar o mecanismo de arrombamento no local do furto qualificado; procurar médico para realizar aborto etc.

4. O tipo de tentativa

A tentativa é, sempre, comportamento concreto relacionado a tipos penais específicos, existente como tentativa de homicídio, de furto, de estupro etc. Mas é possível falar de um tipo de tentativa, como generalização de características existentes em toda e qualquer tentativa, constituído de três elementos: a) dedsão de realizar o crime (elemento subjetivo); b) ação de execução específica do tipo (elemento objetivo); c) ausência de resultado (elemento negativo).19

1. A dedsão de realizar o crime — também definível como plano do fato , ou programa típico — é o elemento subjetivo da tentativa, constituído

18 VOGLER, Derbegnn des Versuchs, Festschrift fur W. Stree und J. Wessels, 1993, p. 285.19 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §49, III, p. 515; WES­

SELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 595, p. 179. No Brasil, ver BITENCOURT, Uções de Direito Penal, 1995, p. 77-78; FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 231, p. 250; MESTIERI, Manual de Direito P enall, 1999, p. 211-213.

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Capítulo 15 Tentativa e Consumação

pelo dolo e, se for o caso, por outros elementos subjetivos especiais do ripo, exatamente igual a qualquer delito consumado. O dolo tem por obje­to necessário as características do tipo objetivo, e pode ser direto ou eventual — neste caso, se suficiente para o tipo de injusto respectivo, porque decisão de ação típica dependente da ocorrência de condi­ção é, também, dolo (entrar na casa alheia com intenção de subtrair alguma coisa, se encontrar algo de valor, é tentativa de furto).20 Os elementos subjetivos especiais previstos no tipo legal de determinados fa­tos puníveis também integram o tipo subjetivo da tentativa, porque são tão importantes quanto o dolo para construção do tipo de crime respectivo (por exemplo, a intenção de apropriação no furto).21

2. A ação de execução específica do tipo tem por objeto o comportamento típico, segundo o plano do fato , como concreta representação do acon­tecimento típico pelo autor.22 Ações estreitamente ligadas à ação típica,23 ainda que imediatamente anteriores às características do tipo objetivo, como propõe a versão dominate da teoria objetiva individual,24 são insuficientes. Em tipos qualificados pelo resultado, a tentativa pode começar pela característica qualificadora (a administração do veneno, ou a asfixia da vítima, na tentativa de homicídio qualificado pelo meio utilizado, por exemplo).25

3. Finalmente, a tentativa se caracteriza pela ausência do resultado típico por fatores independentes da vontade do autor. A consumação do fato punível representa a transformação da tentativa de lesão do bem jurí­dico, como situação de perigo concreto, em resultado de lesão do bem

20 MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht, 1989, §40, n. 71, p. 28.21 Assim, JESCHECK/WEIGEND, Uhrhuch des Strafhchts, 1996, §49, III, 1, p. 515-516.22 VOGLER, Derbegnn des Versuchs, Festschrift fur W. Stree undJ. Wessels, 1993, p. 285.23 WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 598, p. 180-181.24 BOCKELMANN-VOLK, Strafrecht, 1987, p. 208.25 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §49, III, 2, p. 516.

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'Teoria do Fato Punível Capítulo 15

jurídico. A consumação pode serform ale material: a consumaçãoformal do fato punível, suficiente para aplicação da pena integral, ocorre com a realização de todos os elementos de sua definição legal (art. 14 I, CP); a consumação material do fato punível (conhecida, também, como término ou exaurimento do fato) coincide, normalmente, com a consumação formal,' mas pode ocorrer em momento posterior: por exemplo, na extorsão mediante seqüestro, a privação da liberdade da vítima com o fim de obter vantagem, constitui consumação formal; a obtenção da vantagem pretendida como intenção especial do tipo constitui consuma­ção material— ou seja, a consumação formal ocorre com a produção do resultado típico, mas permanece em estado de consumação material enquanto dura a invasão da área protegida pelo tipo legal, até a reali­zação da intenção espeáalque informa a ação do autor. A distinção tem interesse prático em relação à participação, ao concurso de crimes e à atribuição de características qualificantes, possíveis no interregno entre a consumação form al e o término da consumação material,, bem como em relação à prescrição e à decadência, cujo prazo começa a fluir a partir da consumação material’.26

5. Objeto da tentativa

A definição de tentativa como início de execução do comporta­mento típico, manifestado em ação de execução específica do tipo, segundo o plano do fato , tem por objeto exclusivo os tipos dolosos de ação, excluídos os tipos de imprudência e os tipos de omissão de ação.

1. O resultado, nos crimes de imprudência, é elemento essencial do tipo:

26 Assim, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §49, III, 3, p'. 518.

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Capítulo 15 Tentativa e Consumação

a lesão do dever de cuidado ou do risco permitido, ou produz o resultado típico — e o tipo de imprudência está consumado —, ou não produz o resultado típico — e o tipo de imprudência não se caracteriza.27

2. O argumento de que a tentativa de omissão (de ação) só pode ser concebida como omissão da tentativa de realizar a ação mandada ou de impedir o resultado28 ainda não encontrou refutação convincente. A teoria dominante sobre tentativa nos tipos de omissão de ação, afirma o seguinte: primeiro, a tentativa de omissão de ação própria é, sempre, tentativa inidônea — que, como qualquer tentativa inidônea no Direi­to Penal brasileiro, é impunível (art. 17, CP); segundo, a tentativa de omissão de ação imprópria esbarra no problema de caracterizar o começo da tentativa., porque o critério legal refere-se à ação, e não à omissão de ação.29 Por exemplo, a literatura alemã dominante, apesar da maior flexibilidade da definição legal de tentativa, precisa reinterpretaro crité­rio legal para caracterizar a tentativa de omissão de ação: a tentativa de omissão de ação se configuraria no momento da criação ou da elevação do perigo para o objeto protegido,30 consistente na perda da primeira pos­sibilidade para realizar a ação mandada,31 ou na perda do último momento para impedir o resultado, que marcaria a independência do processo causai em relação ao autor.32

27 Nesse sentido, BITENCOURT, Lições de Direito Penal, 1995, p. 80; FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 237, p. 254; JESUS, Direito Penal 1, 1999, p. 334; MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 216.

28 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 206; também, ARMIN KAUFMANN, Unterlassungsdelikte, p. 204.

29 Assim, também em relação à lei penal alemã, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §49, IV, 5, p. 521.

30 JAKOBS, Strafrecht, 1993,29/118, p. 854-855; MAURACH-GOSSEL-ZIPF, Strafrecht,1989, §40, n. 106, p. 34; 654; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 741, p. 237.

31 HERZBERG, Der Versuch beim unechten Unterlassungsdelikt, MDR 1973, p. 89.32 ARMIN KAUFMANN, Die Dogmatik der Unterlassungsdelikte, 1959, p. 210; WELZEL,

Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 221.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 15

Na legislação brasileira, o critério do início de execução do programa típico (art. 14 II, CP) tem por objeto, exclusivamente, os tipos dolosos de ação: os tipos de omissão de ação, caracterizados pela ausência de qualquer processo executivo, somente podem admitir início de execução da ação mandada, que significa cumprimento do dever jurídico de agir. Em conclusão, do ponto de vista conceituai, a tentativa de omissão de ação é impossível; do ponto de vista da legalidade, a punição da tentativa de omissão de ação é inconstitucional — e qualquer solução diferente passa, necessariamente, pela prévia mudança da definição legal.33

3. Por outro lado, os tipos qualificados pelo resultado admitem tentativa nas seguintes situações: a) se o resultado qualificador imprudente é determinado pela realização da ação típica dolosa: tentativa de estu­pro determinante de resultado de morte da vítima, sem realização da conjunção carnal (art. 213 e 223, parágrafo único); b) se o resultado qualificador doloso não é determinado pela realização da ação típica dolosa: lesão corporal grave com o objetivo frustrado de inutilizar sentido ou função da vítima (art. 129, §2°, III).34

4. Em tipos de simples atividade, a tentativa parece excluída: por exemplo, no falso testemunho, a variante dominante da teoria objetiva individual admite tentativa no começo do depoimento, se a execução da atividade não determina a consumação,35 mas a variante minoritária não poderia

33 No sentido do texto, MESTIERI, Manual de Direito Penall, 1999, p. 217; TAVARES, A.s controvérsias em tomo dos crimes omissivos, 1996, p. 93-94, admite tentativa de omissão imprópria pelaperda da primeira ou da última chance; também, BITENCOURT, Lições de Direito Penal, 1996, p. 81; JESUS, Direito Penall, 1999, p. 335; FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 237, p. 254; outra posição, ZAFFARONI/PIERANGE- LI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 414, p. 707-708, admitem tentativa na omissão de ação, sem restrições.

34 Assim, BAUMANN/WEBER, Strafrecht, 1985, p. 486-487; DREHER/TRÔND- LE, Strafgeset^buch, 1995, 47a ed., §18, n. 2; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §49, VII 2b, p. 525.

35 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §49, VII 1, p. 524.

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Capítulo 15 Tentativa e Consumação

admitir tentativa, porque ou o comportamento típico ocorre na ação de execução específica da declaração falsa, ou nada ocorre.

6. Punibilidade da tentativa

O fundamento da punibilidade da tentativa depende dos objetivos atribuídos ao Direito Penal: a) se o Direito Penal tem por objetivo a proteção de bens jurídicos, então a punibilidade da tentativa tem por funda­mento o perigo para o bemjurídico protegido no tipo penal, segundo a teoria do autor, 3 6 b) se o Direito Penal tem por tarefa estabilizar as expectativas normativas da população, então o fundamento da punibilidade da tenta­tiva seria o abalo da confiança jurídica da comunidade, segundo a teoria da impressão?1 A pena da tentativa é igual à pena do crime consumado, reduzida de um a dois terços:

Art. 14, parágrafo único. Salvo disposição em contrárío, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime con­sumado, diminuída de um a dois terços.

As ações preparatórias são impuníveis porque a distância entre preparação e consumação não permite identificar o perigo para bens jurídicos protegidos na lei penal. Entretanto, por razões político- criminais especiais ações preparatórias podem ser punidas como tipos independentes, como o crime de petrechos para fabricação de moeda (art. 291) ou de títulos e papéis públicos (art. 294).38

36 Assim, ENGISCH, Der Unrechtstatbestand im Strafrecht, DJT-Festschrift, 1960, p. 435.37 Comparar JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §49, V, p. 521.38 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §49, VI, p. 523.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 15

7. Tentativa inidônea

A tentativa, como início de execução do tipo objetivo de um crime doloso, supõe meio eficaz e objeto próprio para produção do resultado típico. Ação com meio ineficaz ou sobre objeto impróprio para produzir o resultado configura a chamada tentativa inidônea (ou crime impossível), cuja disciplina legal varia conforme a teoria incorporada na legislação. Na lei penal brasileira, a tentativa idônea se distingue da inidônea pelo perigo objetivo para o bem jurídico, sob o seguinte argumento: se o resultado de lesão do bem jurídico é o fundamento da punibilidade do fato, então a punibilidade da tentativa exige ação capaz de produzir o resultado típico.39 A exigência de perigo objetivo de lesão do bem jurídico (teoria do autor) — sem o qual não pode existir início de execução do tipo objetivo —, representa correta decisão poKtico-criminal do legislador e, por outro lado, é compatível com a variante minoritária da teoria objetiva individual\ que exige comportamento típico manifestado em ação de execução específica do tipo.

Art. 17. Não se pune a tentativa quando, p or ineficácia absoluta do meio ou p or absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime.

A tentativa inidônea por ineficácia absoluta do meio ocorre, por exemplo, nas seguintes hipóteses: tentativa de aborto com analgésicos; tentativa de homicídio com arma descarregada etc. Por outro lado, a tentativa inidônea por impropriedade absoluta do objeto, ocorreria nas seguintes situações: tentativa de homicídio sobre cadáver; tentativa de

39 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §50,1, 2, p. 530. No Brasil, ver BITENCOURT, Lições de Direito Penal.’ 1995, p. 85-86; JESUS, Direito Pena/I, 1999, p. 349, fala em teoria objetiva temperada:, MESTTERI, Manual de Direito Penal, 1999, p. 222-223, critica as teorias subjetivas; MIRABETE, Manual de Direito Penal\ 2000, p. 167, fala em teoria objetiva pura.

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Capítulo 15 Tentativa e Consumação

furto, sem conhecimento do prévio consentimento do proprietário na subtração da coisa etc.40 E possível a concorrência simultânea de ineficácia absoluta do meio e de impropriedade absoluta do objeto no mesmo fato: tentativa de aborto com analgésicos em mulher não-grá- vida. Admite-se, também, tentativa inidônea por ausência da qualidade de autor exigida no tipo legal, erroneamente auto-atribuída: realização de delito funcional sem conhecimento da nulidade do ato de nomeação como funcionário público.41 Entretanto, a tentativa é punível em caso de relativa ineficácia do meio ou de relativa impropriedade do objeto, por causa da potencial eficácia do meio ou potencial propriedade do objeto para produção do resultado típico: veneno em quantidade inferior à necessária; vítima de homicídio com vida meramente vegetativa.42

A teoria da impressão, ligada à variante dominante da teoria obje­tivo-subjetiva, fundamenta a punibilidade da tentativa inidônea na ma­nifestação de vontade hostil ao direito, suficiente para abalara confiança da comunidade no ordenamento jurídico. Entretanto, mesmo para a teoria da impressão, a tentativa absolutamente inidônea é impunível em caso de grosseira insensate% do autor (não por falsa representação da realidade, mas por representações despropositadas de relações causais normalmente conhecidas por todos), ou de tentativas inteiramente irreais: no pri­meiro caso, derrubar um avião com um tiro de pistola, ou praticar aborto com chá de camomila; no segundo caso, matar o inimigo com métodos mágicos, ou mediante imaginários pactos com o demônio etc.43 Nessas hipóteses, a tentativa inidônea não abalaria a confiança na inquebrantabilidade do direito, porque indivíduos normalmente instruídos não tomariam o fato a sério.44

40 Ver CIRINO DOS SANTOS, Teoria do Crime, 1993, p. 83.41 DREHER/TRÕNDLE, Strafgeset^buch, 1995, §22, n. 28; JESCHECK/WEIGEND,

ljehrbuch des Strafrechts, 1996, §50,1, p. 529-530, e III, 1, p. 534.42 CIRINO DOS SANTOS, Teoria do Crime, 1993, p. 83.43 Ver MAURACH-GÒSSEL-ZIPF, Strafrecht, 1989, §40, n. 91, p. 31.44 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §50,1 5, p. 531.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 15

8. Delito de alucinação

Denomina-se delito de alucinação a hipótese de representação errônea da punibilidade do comportamento, ou seja, a hipótese de realização de comportamento atípico representado erroneamente como criminoso:45 favorecimento pessoal no auxilio à fuga de autor de contravenção penal; crime em relações homossexuais consentidas etc. Na tentativa inidônea, é impossível a típica lesão de bem jurídico definida na lei penal como crime, por inexistência de característica objetiva do tipo representada erroneamente como existente (erro de tipo ao contrário); no delito de alucinação, o sujeito imagina realizar comportamento criminoso não definido na lei penal como típica lesão de bem jurídico (erro de proibição ao contrário).46

O delito de alucinação pode consistir em erro sobre a existênáa da proibição (acusado considera crime declaração falsa no interrogatório), ou em erro sobre a justificação (médico considera crime aborto para sal­var a vida da gestante).47 O delito de alucinação (também chamado delito de loucura) não é punível porque a determinação da punibilidade não depende da representação do autor, mas da lei.48

45 Assim, JESCHECK/WEIGEND, "Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §50, II 1, p. 532; também, WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 621, p. 188. No Brasil, ver MESTIERI, Manual de Direito Penal, 1999, p. 223-224.

46 MAURACH-GÕSSEL-ZIPF, Strafrecht, 1989, §40, n. 143, p. 44.47 Comparar JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §50, II 1, p.

532-533; também, WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 622, p. 188-189.48 Assim, MAURACH-GÕSSEI^ZIPF, Strafrecht, 1989, §40, n. 151, p. 45; WELZEL,

Strafrecht, 1969, p. 194.

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Capítulo 15 Tentativa e Consumação

III. Desistência da tentativa

A categoria geral de desistência da tentativa parece útil como concei­to compreensivo das espécies da desistência voluntária e do arrependimento efica% causas pessoais de extinção de pena no direito brasileiro.

1. Teorias sobre desistência da tentativa

Existem várias teorias para explicar a exclusão de pena da de­sistência da tentativa, como a teoria de política criminal.’ a teoria da graça (ou prêmio) e a teoria dos fins da pena, as duas últimas em relação de recíproca complementação.

1.1. A teoria de política criminal formulada por FEUERBACH,49 define a exclusão de pena da desistência da tentativa como ponte de ouro construída pelo legislador para retorno do autor à esfera do direito: a promessa de exclusão de pena seria um estímulo ao autor para desistir da tentativa ou evitar o resultado. A crítica tem várias objeções contra a teoria: a) a promessa de exclusão de pena não exerceria influência sobre a decisão do autor e, em geral, seria desconhecida da população;50 b) a prática judicial parece indicar que a desistência da tentativa pode ter todos os motivos possíveis, menos suprimir uma pena já efetiva.51

49 FEUERBACH, Kritik des Kleinschrodischen Entwurfs %u einem peinãchen Geset^buche fú r die Chur-Pfal^Bayerischen Staaten, II, 1804, p. 102. No Brasil, BITENCOURT, Lições de Direito Penal' 1995, p. 82; FRAGOSO, Lições de Direito Penal.' 1985, n. 238, p. 256; MESTIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 219-221.

50 M. E. MAYER, Der Allgemeine Teil des deutscben Strafrechts, 1915, nota 7, p. 370.51 Assim, ULSENHETMER, Grundfh^desVJkldrittsvom Versuchusw., 1976,p. 69,103; WELZEL,

Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 196; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 626, p. 190.

401

Teoria do Fato Punível Capítulo 15

1.2. A teoria da graça considera a exclusão de pena da desistência da ten­tativa uma recompensa ao autor por suspender a execução ou evitar o resultado (ou, pelo menos, se esforçar seriamente para evitá-lo): a supressão do perigo para o bem jurídico produzido pela tentativa justificaria a indulgência sobre o autor, ou, de outra forma, a atitude do autor na realização do injusto típico da tentativa seria compensa­da pelo mérito da desistência ou da evitação do resultado, desde que voluntária, mas independente de motivos de valor ético.52

1.3. A teoria dos fins da pena reconhece na desistência da tentativa uma insuficiente vontade antijurídica para prosseguir na execução do fato ou permitir a produção do resultado; conseqüentemente, a pena não se justificaria por motivo de prevenção geral ou espedal, nem por qual­quer outra exigência de justiça.53

2. Tentativa inacabada e acabada

A distinção entre tentativa inacabada e tentativa acabada é essencial para distinguir os conceitos correspondentes de desistênda voluntária e de arrependimento e f i c a Na tentativa inacabada o autor ainda não realizou todo o necessário para produção do resultado, sendo suficiente a desistência voluntária das ações futuras; na tentativa acabada o autor j á realizou todo o necessário para produção do resultado — cuja ocor­rência depende, apenas, da ação normal dos fatores causais postos

52 Ver DREHER/TRÕNDLE, Strafgeset^buch, 1995, §24, n. 3; JESCHECK/WEI­GEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §51, I 3, p. 539; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 196; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 626, p. 190.

53 Assim, KÜHL, Strafrecht, 1997, §16, n. 5, p. 517.

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Capítulo 15 Tentativa e Consumação

pelo autor sendo necessária nova atividade para evitar o resultado, igualmente voluntária.54

Art 15. O agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados.

O critério para diferenciar entre tentativa inacabada e tentativa acabada é subjetivo: o plano do fato. A representação do curso causai formulada pelo autor decide sobre a necessidade ou não de mais ações para consumar o fato. Na tentativa inacabada o autor represen­ta as ações realizadas como insuficientes para o resultado: facada no pescoço, com dolo de homicídio, reconhecida como sem perigo para a vida da vítima; na tentativa acabada o autor representa as ações realizadas como suficientes para o resultado: o autor cessa a ação de estrangulamento porque acredita que a vítima morrerá em conse­qüência da ação.55

Podem ocorrer problemas de definição em hipóteses de varia­ção da representação do autor entre os momentos do plano do fato e da execução do fato: a) no momento do plano do fato o autor representa a necessidade de apenas um golpe contra a vítima, mas no momento da execução do fato verifica a necessidade de vários golpes: facada no peito da vítima considerada, no momento da execução do fato, insu­ficiente pelo autor; b) no momento do plano do fato o autor representa a necessidade de várias ações, mas no momento da execução do fato

54 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §51, II, 1, p. 540; também, WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 631, p. 193. No Brasil, ver ZA- FFARONI/PIERANGELL-MaW de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 429, p. 713.

55 Assim, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §51, II, 2, p. 541; KÜHL, Strafrecht, 1997, §16, ns. 24,27, p. 525-526; MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht, 1989, §41, ns. 22, p. 59 e n. 81, p. 77; WELZEL, Das Deutsche Strcfrecht, 1969, p. 196; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 631, p. 193.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 15

interrompe a ação sem exaurir as possibilidades planejadas: tiro na cabeça do inimigo abandonado no local para morrer. Nessas hipóteses, o critério deve mudar do plano do fato para o da representação do autor no momento da execução do fato: se a produção do resultado depende de outras ações, então tentativa inacabada, permitindo desistência voluntária; se a produção do resultado independe de outras ações, então tentativa acabada exigindo evitação do resultado pelo arrependimento efica^f6

3. Estrutura da desistência da tentativa

A desistência da tentativa inacabada deve existir como desistência voluntária de continuar a execução do fato (art. 15, primeira parte). A desis­tência da tentativa acabada deve existir como arrependimento efica^ mediante evitação voluntária da consumação do fato (art 15, segunda parte).

3.1. A desistência voluntária possui componentes objetivos e subjetivos:a) do ponto de vista objetivo, o autor deve paralisar a execução do fato; b) do ponto de vista subjetivo, a desistênáa do autor deve ser voluntária.

Objetivamente, existe controvérsia se a desistência deve ser definitiva,57 ou se deve ser apenas concreta.•58 por um lado, se a lei exige

56 Assim, BAUMANN/WEBER, Strafrecht, 1985, p. 489;JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §51, II, 3, p. 541-542.

57 Nesse sentido, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §51, III, 1, p. 543; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 198. No Brasil, também assim, FRAGOSO, Lições de Direito Penal.’ 1985, n. 238, p. 256.

58 Nesse sentido, a literatura mais recente: KÕHLER, Strafrecht, 1997, p. 475; KÜHL, Strafrecht, 1997, §16, n. 43, p. 533; MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht, 1989, §41, n. 47, p. 67; com alguma restrição, WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 641, p. 196.

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Capítulo 15 Tentativa e Consumação

apenas a atitude concreta da desistência, parece excessivo exigir desis­tência definitiva, colocando condição não prevista em lei para excluir a pena; por outro lado, a desistência concreta é um fato real suscetível de prova, enquanto a desistência definitiva é uma hipótese futura in­suscetível de prova.

Subjetivamente, o conceito de voluntariedade é representado por motivos autônomos, em que o autor aparece como dono da decisão (embora sem necessidade de apresentar conteúdo de valor ético reconhecido), excluindo, portanto, motivos heterônomos ou causas obrigatórias de impedimento de prosseguir na execução, em que o autor diz: posso, mas não quero, conforme a célebre fórmula de FRANK.59 Todavia, segundo a representação do autor, se a consumação é impossível, se perdeu significado, ou se representa desvantagem excessiva (por exemplo, o autor desiste do estupro porque a vítima o reconheceu), não existe desistência voluntária, mas simples tentativafalha; não obstante, admite-se a desistência voluntária de matar uma vítima, para matar outra vítima no lugar da primeira. Em suma, a desistência é voluntária se fundada em dó ou piedade, em motivo de consciência, sentimento de vergonha, medo da pena etc.; a desistência é involuntária se para evitar o flagrante, ou por receio de bloqueio das vias de fuga, ou porque o fato foi descoberto etc.60

3.2. O arrependimento efica possui, também, componentes objetivos e subjetivos: a) do ponto de vista objetivo, o autor deve ativar uma nova cadeia causai sufiáente para excluir o resultado de lesão do bem jurídico; b) do ponto de vista subjetivo, o arrependimento efica^ também deve ser voluntário.

Objetivamente, o arrependimento deve ser efica^ para excluir o resultado, neutralizando os efeitos da ação realizada, o que significa

59 FRANK, Strafgeset^buch, 1931, §46, II.60 JESCHECK/WEIGEND, Uhrbuch des Strafrechts, 1996, §51, III, 2, p. 544. No Brasil,

ver SÁNCHEZ RIOS, Das causas de extinção da punibilidade nos delitos econômicos, 2003, p. 57 e seguintes.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 15

ser insuficiente deixar a vítima em situação dependente da sorte ou do concurso de circunstâncias favoráveis,61 por exemplo: o autor deixa a vítima ferida com dolo de homicídio na entrada lateral de hospi­tal, onde é encontrada desfalecida, socorrida e salva; o autor chama médico de urgência para atender vítima de envenenamento, sem in­formar sobre a administração do veneno. Subjetivamente, o conceito de voluntarieda.de no arrependimento eficaz é menos problemático do que na desistência voluntária, por causa do papel ativo do autor para evitar o resultado: somente a descoberta do fato pode descaracterizar a voluntariedade do arrependimento eficaz por nova ação do autor para evitar o resultado; mas essa regra tem exceções, nas hipóteses de crimes violentos, em que o descobrimento do fato pela vítima é necessário, bem como nos casos em que o autor ignora ter sido descoberto.62

Finalmente, o resultado deve ser excluído pelo próprio autor, diretamente ou com ajuda de terceiro: a) resultados evitados pela ação exclusiva da vítima ou de terceiro, não isentam de pena — exceto hipóteses de sério e intenso esforço do autor para evitar o resultado;b) se, apesar da atividade do autor, ocorre o resultado, não há isenção de pena: o arrependimento, apesar de voluntário, não é efica£63

4. Tentativa falha

A desistência da tentativa pressupõe a representação da possibilidade de consumação do fato; a representação da impossibilidade de consu­

61 Nesse sentido, DREHER/TRÕNDLE, Strafgeset^buch, 1995, §24, n. 7; WESSELS/ BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 647, p. 198-199. No Brasü, MESTIERI, Manual de Direito Penal 1, 1999, p. 218.

62 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §51, IV 1-3, p. 546-547.63 Comparar JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §51, IV L p. 546.

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Capítulo 15 Tentativa e Consumação

mação do fato indica a tentativa falha , porque se obstáculos impedem o autor de concluir a realização do dolo, então a desistência de rea­lizar o dolo não é voluntária:64 o autor quer roubar uma fortuna, mas encontra quantidade mínima de dinheiro em poder da vítima; o autor percebe a insuficiência do veneno administrado na vítima, mas não possui outros meios para realizar o dolo de homicídio.

O critério para definir tentativafalha é o conhecimento do autor sobre obstáculos objetivos ou subjetivos para consumação do fato, no final da ação executiva: a arma nega fogo, na tentativa de homicídio; o autor perde o poder de ereção, no esforço físico da tentativa de es­tupro.65 Contudo, existe controvérsia sobre existência de tentativafalha ou de fato atípico na hipótese de alteração dos fundamentos jurídicos do fato típico respectivo: o procedimento da vítima de tentativa de estupro convence o autor da existência de consentimento na relação sexual.66

5. Extensão dos efeitos da desistência da tentativa

A desistência da tentativa, sob as formas de desistência voluntária ou de arrependimento eficaz, tem por efeito imediato a exclusão de pena. A discussão tem por objeto a natureza jurídica dessa exclusão de pena: para a teoria dominante, seria causa pessoal de suspensão ou de

64 Assim, KÜHL, Strafrecht, 1997, §16, n. 22, p. 524.65 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §51, II 6, p. 542-543.66 Ver BOTTKE, Misslungener oderfehlgeschlagener Vergewaltigungsversuch bei irrig angenom-

menem Einverstãndnis? JZ 1994, p. 75; também, ULSENHEIMER, Grundfragen des RJicktritts vom Versuch usa>., 1976, p. 328.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 15

extinção da pena, como recompensa ao mérito do autor;67 para respeitável teoria minoritária, seria causa de exculpação68 — na verdade, a pena é suspensa porque o mérito da desistência compensa o injusto da tentativa e, assim, fundamenta a exculpação do autor.

Os efeitos da desistência da tentativa alcançam o tipo objeto da tentativa desistida, mas não alcançam os fatos típicos consumados (art. 15, parte final): não podem ser desfeitos fatos típicos consumados na tentativa de realizar outro delito maior.69 Assim, por exemplo: na tentativa de furto qualificado por destruição ou rompimento de obstáculo, punição somente por dano e, eventualmente, violação de domicílio; na tentativa de estupro, punição pelas lesões corporais produzidas; na tentativa de homicídio por envenenamento, punição por lesão corporal grave etc. Os tipos de perigo abstrato produzidos dentro da tentativa desistida se consumam pela simples realização da ação perigosa e, por isso, não são abrangidos pela suspensão de pena; ao contrário, os tipos de perigo concreto produzidos dentro da tentativa desistida são abrangidos pela suspensão de pena, porque constituem fase anterior necessária do delito de lesão respectivo.70

No concurso de pessoas é preciso distinguir a posição do partícipe e do co-autor: a) no caso de participação, caracterizada pela ausência de domínio do fato, a suspensão de pena só beneficia o partícipe que, voluntariamente, omite sua contribuição para o fato e demove o autor do propósito de realizá-lo, ou, alternativamente, impede a produção

67 Assim, DREHER/TRÕNDLE, Strafgeset^buch, 1995, §24, n. 3;JESCHECK/WEI­GEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §51, V I1, p. 548; LACKNER, Strafgeset^buch, 1995, §24, n. 1; MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht, 1989, §41, n. 130, p. 88; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 626, p. 190.

68 Assim, ROXIN, Überden Rücktrittvom unbeendeten 1/ersuch, Festschrift für E. Heinitz, 1972, p. 273; ULSENHEIMER, Grundfragen des Rücktritts vom Versuch usw., 1976, p. 90.

69 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §51, VI 2, p. 549.70 Assim, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §51, VI 2, p. 549;

também, MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht, 1989, §41, n. 132, p. 88-89.

Capítulo 15 Tentativa e Consumação

do resultado, gerando situação de tentativa inidônea ou falha; não há suspensão de pena se o partícipe não demove o autor do propósito de realizar o fato, exceto na hipótese de sério esforço para evitar o resultado, desde que omita sua contribuição para o fato, de modo que o fato concreto apareça como obra exclusiva do autor; b) no caso de co- autoriar, caracterizada pelo domínio comum do fato, a suspensão de pena só beneficia o co-autor que, voluntariamente, impede o resultado, ou, alternativamente, omite sua contribuição causai para o fato comum, comunica a desistência ao(s) outro(s) co-autor(es) antes da realização do fato comum e se esforça, seriamente, para evitar o fato.71

6. Arrependimento posterior

O arrependimento posterior constitui causa de redução de pena criada com o propósito de estimular a voluntária reparação do dano ou a restituição da coisa nos crimes dolosos não violentos, realizada até o recebimento da denúncia ou da queixa.

Art. 16. Nos crimes cometidos sem violência oü grave ame­aça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, p or ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços.

Essa causa suigeneris de redução de pena é aplicável a qualquer crime sem violência real ou ameaçada, mas seu objeto privilegiado são os crimes patrimoniais dolosos não violentos.72 O legislador afirma

71 Ver DREHER/TRÕNDLE, Strafgeset^buch, 1995, §24, n. 16; JESCHECK/WEI­GEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §51, VI 3, p. 549; LACKNER, Strafgeset^buch, 1995, §24, n. 26.

72 Ver FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 238-A, p. 257-260; também, MES- TIERI, Manual de Direito Penal I, 1999, p. 221-222.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 15

que a medida teria sido instituída menos em favor do agente do crime do que da vítima,73 mas a exigência de voluntariedade indica criação de privilégio ao autor, definível como símile anã do arrependimento eficaz, abrangível pela teoria da graça,, como recompensa ao autor pelo mérito de arre­pendimento posterior concretizado em reparação do dano ou restituição da coisa, ou, alternativamente, como espécie de “ponte dejuncos” para o regresso pardal do autor à legalidade, reduzindo a reprovação de culpabilidade e, conseqüentemente, a medida da pena.74

73 Exposição de Motivos da Lei n. 7.209/84 (n. 15).74 Comparar ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997,

n. 430, p. 714.

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C apítu lo 1 6

U n id a d e e P lu r a l id a d e d e F a t o s P u n ív e is

O problema da unidade e da pluralidade de fatos puníveis no mesmo processo requer a operacionalização de variáveis descritivas e de variáveis normativas para determinar a quantidade e a natureza da pena aplicável ao autor. A literatura e a jurisprudência desenvolveram alguns princípios para atribuição de pluralidade de fatos puníveis ao autor no mesmo processo, como os princípios da cumulação de penas, da exaspe­ração da pena mais grave, da absorção da pena menor pela pena maior e da combinação de várias penas diferentes em uma pena comum.1

No Direito Penal moderno predominam três sistemas de atri­buição de pluralidade de fatos ou de resultados típicos: a) a pluralidade sucessiva de fatos típicos, iguais ou distintos, produzida por sucessivas ações típicas independentes, regida pelo princípio da cumulação das penas; b) a pluralidade simultânea de dois ou mais resultados típicos, iguais ou distintos, produzida por uma ação típica isolada,, regida pelo princípio da exasperação da pena; c) a pluralidade continuada de ações típicas, em que uma seqü­ência de fatos típicos de mesma espécie aparece como unidade de ação

1 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafmhts, 1996, Cap. 5, p. 707. No Brasil, comparar BITENCOURT, Lições de Direito Penal' 1995, p. 216; REGIS PRADO, Curso de Direito Penal brasileiro, 1999, p. 279.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 16

típica, também regida pelo princípio da exasperação da pena.2

No Direito Penal brasileiro, a pluralidade sucessiva de fatos pu­níveis chama-se concurso material (art. 69, CP), a pluralidade simultânea de resultados típicos denomina-se concurso form al (art. 70, CP) e a plu­ralidade continuada de ações típicas aparece sob a designação de crime continuado (art. 71, CP).

II. Unidade e pluralidade de ações típicas

O comportamento humano pode ser representado como um con- tinuum de atividades e de passividades psicossomáticas, cuja delimitação em unidades de ações típicas pressupõe, simultaneamente, o conceito de ação e o conceito de tipo legal. Assim, o tema da unidade e da pluralidade de ações típicas deve ser estudado a partir de seus elementos estruturantes: a correlação entre ação como conteúdo determinante e tipo legal como forma determinada, na formação do conceito de ação típica?

1. A literatura dominante trabalha apenas com o conceito de ação, sob o argumento respeitável de que a unidade de decisão do conceito de ação unificaria a pluralidade de partes exteriormente separáveis de um acontecimento, constituindo uma unidade espaço-temporal significa­tiva.4 Assim, existiria unidade de ação em situações (a) de pluralidade de ações sexuais violentas contra a vítima na mesma oportunidade, (b) de pluralidade de disparos de arma de fogo sobre um grupo de pessoas na mesma ocasião, (c) de pluralidade de ações de homicídio contra a

2 Ver JESCHECK/WEIGEND, luehrbuch des Strafrechts, 1996, §66, p. 709.3 Assim, CIRINO DOS SANTOS, Teoria do crime, 1993, p. 87.4 Nesse sentido, BAUMANN/WEBER, Strafrecht, 1985, p. 653; também, DREHER/

TRÕNDLE, Strafgeset^buch, 1995, nota preliminar 2, §52.

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Capítulo 16 Unidade e Pluralidade de Fatos Puníveis

mesma vítima, apesar de relativo espaçamento temporal, (d) de plura­lidade de meios de ação em crimes violentos, se a substituição de um meio por outro ocorre na seqüência da falha do meio substituído etc.; ao contrário, existiria pluralidade de ação em situações (a) de pluralidade de ações de aborto na mesma mulher, em momentos diferentes, (b) de instigação ao furto e posterior receptação da coisa furtada, (c) de roubo e estupro da vítima do crime patrimonial etc.

2. A crítica ao uso exclusivo do conceito de ação parece consistente: primeiro, não existiriam unidades prejurídicas de ação como objetos preconstituídos de referência jurídica; segundo, o critério da unidade de decisão não excluiria pluralidade de ações (furtar a arma, matar a vítima e roubar um carro para a fuga, por exemplo) — portanto, seria ne­cessário o conceito complementar do tipo legal para delimitar ações e omissões de ação no continuum do comportamento humano.5 Assim, a fórmula adequada estaria na fusão dos conceitos de ação e de tipo legal.’ integrados na unidade do conceito de ação típica: a divisão ou delimitação daquele continuum em unidades significativas de ações ou de omissões de ação, não pode ser realizada, isoladamente, nem pelo conceito de ação, nem pelo conceito de tipo legal.' mas pelo conceito de ação típica, em que a ação aparece como portadora do e contida no tipo legal6 — ou seja, a ação como conteúdo e o tipo legal como forma do conteúdo para existência como ação típica em pluralidade material, formal ou continuada no Direito Penal.

Desse ponto de vista, existe unidade de ação típica (a) em tipos legais divisíveis em pluralidade de atos, como o aborto,7 (b) em tipos legais que pressupõem pluralidade de atos, como o estupro (violência e

5 Assim, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §66, I 3, p. 711. MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht, II, 1989, §54, n. 38, p. 411.

6 Nesse preciso sentido, MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strcfkcht, 13,1989, §54, n. 39, p. 4127 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §66, II 1, p. 711.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 16

conjunção carnal) e o roubo (violência e subtração),8 (c) em tipos legais de duração, caracterizados pela criação ou manutenção de situações antijurídicas, como violação de domicílio, ou dirigir veículo automotor em via pública sem habilitação, ou em estado de embriaguez9 etc.; por outro lado, existe também unidade de ação típica em sentido amplo (d) em situações de repetição da ação típica em rápida seqüência temporal prevista no tipo (moeda falsa, rixa etc.) ou não prevista no tipo (remessa de escrito com várias injúrias, furto mediante pluralidade de ações de subtração etc.), desde que a repetição constitua simples aumento quantitativo do tipo de injusto (injusto unitário), realizada em situação de motivação unitária (culpabilidade unitária) — mas independente da natureza do bem jurídico, podendo atingir bens jurídicos persona­líssimos de diferentes portadores,10 assim como, finalmente, (e) em situações de contínua realização da ação típica por atos seqüenciais de aproximação progressiva do resultado, como o tráfico de drogas, por exemplo.11

III. Pluralidade material de fa tos puníveis

A pluralidade material de fatos puníveis existe em situações de suces- sividade de fatos típicos independentes, iguais ou desiguais, julgados no

8 MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht, II, 1989, §54, n. 47, p. 416; WESSELS/ BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 760, p. 243.

9 DREHER/TRÕNDLE, Strafgeset^buch, 1995, nota preliminar 41, §52; MAURA­CH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht, II, 1989, §54, n. 55, p. 418.

10 DREHER/TRÕNDLE, Strafgeset^buch, 1995, nota preliminar 2, §52; STRA- TENWERTH, Strafrecht, II, 1981, n. 1214.

11 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §66, III 2, p. 713. ■

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Capítulo 16 Unidade e Pluralidade de Fatos Puníveis

mesmo processo:12 furto de veículo e lesão corporal imprudente; dirigir embriagado e fugir do local do acidente etc. Como se vê, a pluralidade material defatos puníveis tem os seguintes pressupostos: a) pluralidade de ações ou de omissões de ação típicas determinantes de pluralidade de resultados típicos; b) julgamento de vários fatos puníveis inde­pendentes no mesmo processo. A conseqüência penal é regida pelo princípio da cumulação, assim aplicado: soma das penas privativas de liberdade; simultaneidade ou sucessividade das penas restritivas de direito, dependendo de sua compatibilidade ou não — exceto se aplicada pena privativa de liberdade não suspensa a um dos crimes do concurso, hipótese que impede a substituição da privação de liberdade por res­trição de direitos.13

Art. 69. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, apli­cam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela.

§1° Na hipótese deste artigo, quando ao agente tiver sido aplicada pena privativa de liberdade, não suspensa, p or um dos crimes, para os demais será incabível a substituição de que trata o art. 44 deste Código.

§2° Quando forem aplicadas penas restritivas de direitos, o condenado cumprirá simultaneamente as que forem compatí­veis entre si e sucessivamente as demais.

12 Comparar JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §68, I 1, p. 726.

13 Ver FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 355, p. 365-366.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 16

IV. Pluralidade form al de resultados típicos

A pluralidade formal de resultados típicos ocorre em situações de unidade de ação com pluralidade de resultados típicos iguais ou desiguais, de lesão ou de simples atividade.14

Art. 70. Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade.A.spenas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de de­sígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.

1. As teorias sobre a pluralidade formal de resultados típicos afirmam teses semelhantes de perspectivas diferentes: segundo a teoria unitária, uma única ação pode produzir apenas um fato punível, apesar da plurali­dade de resultados típicos;15 segundo a teoria pluralista, a realização de vários resultados típicos conduz ã admissão de vários fatos puníveis, apesar da existência exterior de uma única ação.16 De qualquer ponto de vista, os pressupostos do chamado concurso formal são os seguin­tes: a) unidade de ação típica; b) pluralidade de resultados típicos; c) identidade parcial da ação executiva dos tipos objetivos respectivos (por exemplo, roubo e extorsão, com violência para subtrair valores e para constranger a vítima a entregar valores; lesão corporal e resistência, em agressão contra oficial de justiça em cumprimento de mandado

14 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §67, II 1, p. 719-720.15 Assim, MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht, II, 1989, §54, n. 23-24, p. 407-408.16 Nesse sentido, DREHER/TRÕNDLE, Strafgesetybuch, 1995, nota preliminar 4, §52;

JAKOBS, Strafrecht, 1993, 32/15, p. 892.

416

Capítulo 16 Unidade e Pluralidade de Fatos Puníveis

judicial etc.).17

2. A pluralidade formal de resultados típicos aparece de duas maneiras: a) uma ação produz uma pluralidade de resultados típicos iguais, podendo adngir bens jurídicos personalíssimos (corpo, vida, liberdade etc.), comunitários (segurança no tráfego) ou patrimoniais: um só disparo de arma de fogo produz morte e lesão corporal em pessoas diferentes; uma só ofensa verbal constitui injúria contra duas pessoas; b) uma ação produz uma pluralidade de resultados típicos desiguais: um disparo de arma de fogo determina os resultados típicos de homicídio e de dano; as declarações constitutivas de falso testemunho representam, também, calúnia.18

A literatura destaca alguns casos especiais de unidade de ação com pluralidade de resultados típicos: a) unidade de ação simultaneamente dolosa e imprudente: realização de dano doloso com simultânea lesão corporal imprudente19 (ver n. 5, abaixo); b) unidade de omissão de ação dolosa e imprudente: guardião participa, por omissão de ação dolosa, de roubo de banco deixando de fechar a porta dos fundos do estabelecimento, sem representar a possibilidade do incêndio imprudente ocorrido por causa do material e procedimentos utilizados para abertura do cofre;20 mas a opinião dominante exclui concurso formal entre tipos de ação e de omissão de ação, porque atividade e passividade não se recobrem parcialmente:21 por exemplo, fuga do local do acidente e homicídio

17 É a opinião dominante: MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht, II, 1989, §55, n. 72, p. 447; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 231; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 777, p. 248. No Brasil, comparar BITENCOURT, Lições de Direito Penal, 1995, p. 217; FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 356-357, p. 366-367; REGIS PRADO, Curso de Direito Penal brasileiro, 1999, p. 280.

18 Ver, entre outros, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §67, II1, p. 720.19 Assim,JAKOBS, Strafmcht, 1993,33/6, p. 910; LACKNER, Strafgesefc(buch, 1995, §52, n. 7.20 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §67, III 4, p. 723.21 Assim, LACKNER, Strafgeset^buch, 1995, §52, n. 7; STRATENWERTH, Strafrecht

II, 1981, n. 1245.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 16

doloso cometido por omissão da ação de proteção da vítima pelo autor do acidente, na posição de garantidor do bem jurídico fundada na ação precedente perigosa.22

3. A conseqüência penal é regida pelo princípio da exasperação, com agravação da pena comum, ou da pena mais grave, de um sexto até metade; a exceção é representada pelo falso concurso formal' em que a pluralidade de resultados típicos é produzida por desígnios autônomos (pluralidade de fins), mas em unidade de ação dolosa, resolvida como concurso material (art. 70, segunda parte): movida pelo ciúme, C lança substância corrosiva para atingir, simultaneamente, os rostos de A e de B, produzindo dano estético permanente em ambas vítimas.23

4. A majoração da pena determinada pelo princípio menos rigoroso da exasperação não pode exceder a que resultaria do princípio mais rigoroso da cumulação, para evitar a seguinte conseqüência penal ab­surda: no concurso de homicídio simples e lesão corporal, o princípio da exasperação do concurso formal determinaria pena mínima de 7 anos (ou seja, 6 anos pelo homicídio, mais 1/6 pela lesão corporal), enquanto o princípio da cumulação do concurso material determinaria pena de 6,3 anos.24

Art. 70. Parágrafo único. Não poderá a pena exceder aque seria cabívelpela regra do art. 69 deste Código.

5. Hipóteses de aberratio ictus sobre objetos típicos iguais, com desvio causai da pessoa visada para pessoa diferente (erro sobre a pessoa), são

22 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §67, III 4, p. 723.23 Comparar BITENCOURT, Lições de Direito Penal’ 1995, p. 217; também, REGIS

PRADO, Curso de Direito Penal brasileiro, 1999, p. 280.24 V er FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 153; FRAGOSO, Lições de Direito Penal,

1985, n. 357, p. 267.

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Capítulo 16 Unidade e Pluralidade de Fatos Puníveis

resolvidas como se não tivesse existido erro (art. 20 §3°, CP): homi­cídio doloso consumado no disparo de revólver contra B, que atinge mortalmente C, postado atrás daquele; se a pessoa visada também é atingida, configura-se concurso formal de homicídio doloso (tentado ou consumado) e homicídio imprudente, (ver A.tribuição subjetiva do resultado em desvios causais, acima).

Art. 73. Quando, p or acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde como se tivesse prati­cado o crime contra aquela, atendendo-se ao disposto no §3° do art. 20 deste Código. No caso de ser também atingida a pessoa que o agente pretendia ofender, aplica-se a regra do art. 70 deste Código.

Casos de aberratio ictus sobre objetos típicos diferentes, com desvio causai do objeto visado para objeto diferente, são atribuídos como crime imprudente, se previsto em lei: B atira pedra para destruir o vaso de porcelana chinesa pertencente a C, mas erra o alvo e fere o proprietário atrás do vaso; se o objeto visado também é atingido, configura-se concurso formal de dano doloso e lesão corporal imprudente. (ver Atribuição subjetiva do resultado em desvios causais, acima).

Art. 74. Fora dos casos do artigo anterior, quando, por aádente ou erro na execução do crime, sobrevêm resultado diverso do pretendido, o agente responde p or culpa, se o fato éprevisto como crime culposo; se ocorre também o resultado pretendido, aplica-se a regra do art. 70 deste Código.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 16

V. Unidade continuada de fa tos típicos

1. Situações de pluralidade de fatos típicos de igual espécie, produzi­dos por pluralidade de ações ou de omissões de ação, realizadas em condições de tempo, lugar, modo de execução e outras indicadoras de que os fatos típicos posteriores são continuação do primeiro, configu­ram unidade continuada de ações típicas (ou crime continuado), regida pelo princípio de exasperação da pena.

Art. 71. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.

O legislador penal brasileiro instituiu, também, a possibilidade de continuação em tipos dolosos violentos contra vítimas diferentes.

Art. 71. Parágrafo único. Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça ã pessoa, poderá o jui% considerando a culpabilidade, os an­tecedentes, a conduta soáal e a personalidade do agente, bem como os motivos e as árcunstânáas, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.

Como se vê, existem apenas dois requisitos legais para a unidade continuada de fatos típicos: primeiro, pluralidade de crimes de igual espécie; segundo, relação de continuação entre a primeira e as subseqüen­tes ações típicas, indicada por condições de tempo, lugar, modo de execução e outras. Em suma, qualquer tipo de crime doloso, por ação

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Capítulo 16 Unidade e Pluralidade de Fatos Puníveis

ou omissão de ação clandestina, fraudulenta ou violenta, lesivo de qualquer bem jurídico protegido na lei penal, inclusive contra portadores diferentes, pode integrar a categoria dogmádca definida como crime continuado, preencliidos os requisitos legais e observada a diversidade de pena. A diferença entre as duas regras sobre crime continuado é a seguinte: o art. 71, caput, abrange todas as hipóteses de crime continuado, menos a hipótese de crimes dolosos violentos contra vítimas diferentes; o pa rágrafo único do art. 71 regula, exclusivamente, a relação de continuação em crimes dolosos violentos contra vítimas diferentes.

2. Sob a égide do antigo paradigma causai de fato punível, o critério do Legislador para determinar relação de continuidade delitiva deveria ser, necessariamente, objetivo e, por isso, a relação de continuação de ações típicas devia ser interpretada de um ponto de vista objetivo. Mas adotado pelo legislador o sistema finalista como paradigma da parte geral do Código Penal, a estrutura das ações típicas continuadas— como, aliás, a estrutura de qualquer ação típica, inclusive das ações típicas em concorrência material e formal — é constituída de elementos objetivos e subjetivos, cujo exame é necessário para determinar não só a existência de crimes da mesma espécie, mas também para verificar a existência da relação de continuação da ação típica anterior através das ações típicas posteriores. Em conclusão: o novo modelo de estrutura do fato punível e, portanto, o novo paradigma objetivo-subjetivo de construção e de interpretação do sistema legal requer nova leitura do critério do legislador, capaz de integrar as dimensões objetiva e sub­jetiva do fato punível no conceito de fato punível continuado — indepen­dente da opinião do legislador, em interpretação paralela obviamente equivocada, sobre ausência de maiores inconvenientes da teoria objetiva do crime continuado.25

3. Nessa perspectiva — que rompe com o inexplicável objetivismo do­

25 Ver n. 59, da Exposição de Motivos da Lei n. 7.209/84.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 16

minante na literatura penal finalista brasileira em matéria de crime con- tinuado26 —, crimes de igual espécie são fatos típicos equivalentes tanto do ponto de vista do ripo objetivo como do tipo subjetivo. A equivalência de tipo objetivo é indicada pelas seguintes correlações: a) lesão de igual bem jurídico, embora em diversos estágios de realização (tentativa e consumação), ou níveis distintos de proteção (furto simples e qua­lificado)', ou, mesmo, protegido por diferentes tipos legais (injúria e difamação, furto e apropriação indébita), definido como unidade de resultado injusto?1 b) ação típica igual por caracteres comuns de tempo (durante a noite, em determinados horários diurnos etc.), de lugar (na residência ou no local de trabalho da vítima, em estacionamento de veículos, em supermercados etc.), de modo de execução (ação ou omissão de ação, métodos de fraude, de violência ou de clandestinida­de da ação etc.), indicadores de continuidade objetiva da primeira através das posteriores ações típicas, definidas em conjunto como unidade de ação injusta,28

A equivalência de tipo subjetivo é indicada, necessariamente, por um dolo unitário abrangente do conjunto das ações típicas em continuação, com suas características comuns de tempo, lugar, modo de execução e outras semelhantes, indispensável para integrar a pluralidade das ações típicas na unidade do crime continuado, definido pela literatura como unidade de injusto pessoalP Dificuldades de configuração de um dolo

26 Assim, por exemplo, BITTENCOURT, Uções de Direito Penal, 1995, p. 220, afirma que a teoria objetiva “é adotada pelo nosso Código penal”; também REGIS PRADO, Curso de Direito Penal brasileiro, 1999, p. 282, admite a despropositada interpretação paralela do legislador, ao repetir que “o critério da teoria puramente objetiva não revelou na prática maiores inconvenientes”', ao contrário, ZAFFARONI/PIERANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 439, p. 726-729, exigem dolo unitário, como “fa to r psicológico oufatorfinal”, no crime continuado.

27 Comparar JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §66, V 3b, p. 716.28 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §66, V 3 e 3b, p. 715-716.29 Assim, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §66, V 3c, p. 716.

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Capítulo 16 Unidade e Pluralidade de Fatos Puníveis

geral conduziram à formulação de um dolo de continuação em sentido criminológico, como alternativa para representar a mesma falha psí­quica do autor na mesma situação de fato:30 haveria dolo de continuação no programa de realizar uma série mais ou menos determinável de estelionatos — não, porém, no programa de realizar o maior número possível de estelionatos de determinado modo; contudo, haveria dolo de continuação em programar o furto do maior número possível de bici­cletas no estacionamento de uma fábrica, por exemplo — não, porém, no plano de furtar várias bicicletas em circunstâncias desconhecidas de tempo, lugar, modo de execução etc.31

A necessidade de um dolo geral ou de continuação é determinada pela própria natureza do crime continuado: a relação de continuação só pode existir no contexto de um programa ou projeto de realizar deter­minadas ações típicas em condições comuns de tempo, lugar, modo de execução etc. A tese de que a relação de continuação supõe um projeto anterior — que é, evidentemente, representado pelo dolo — implica excluir a imprudência da área do crime continuado: se a relação de continu­ação supõe um projeto anterior, então a imprudência é, conceitualmente, incompatível com a categoria do crime continuada52 — apesar de algumas opiniões importantes em contrário.33

4. A unidade da ação continuada implica unidade de pena, também regi­da pelo princípio da exasperação, mas com as seguintes diferenças: no crime continuado comum (art. 71, CP), agravação de um sexto a dois

30 Assim, MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecbtll, 1989, §55, n. 72, p. 447; WEL­ZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 229.

31 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §66, V 3c, p. 717.32 Nesse sentido, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §66, V 3d,

p. 717; LACKNER, Strafgeset^buch, 1995, nota preliminar n. 15, §52.33 Assim, MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht, II, 1989, §54, n. 81, p. 426.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 16

terços da pena comum, se idêntica, ou da mais grave, se diversas; no crime continuado especial (art. 71, parágrafo único), agravação até o triplo da pena comum, se idêntica, ou da pena mais grave, se diversas, observada a culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos e circunstâncias do crime continuado.

5. A unidade continuada de fatos puníveis produz, também, conseqü­ências penais e processuais específicas: cada ação típica específica da relação de continuação deve ser provada, porque influencia o juízo de reprovação medido pela pena; a sentença abrange todas as ações típicas da continuação, conhecidas ou desconhecidas; a prescrição, contudo, segundo correta jurisprudência brasileira, inicia em e incide sobre a pena de cada ação típica isolada da relação de continuação.34

VI. A pena de multa na pluralidade de fa tos puníveis

A aplicação da pena de multa em qualquer hipótese de pluralidade de crimes (material, formal ou continuada) é regida pelo princípio da cumulação: aplicação integral.

Art. 72. No concurso de crimes, as penas de multa são apli­cadas distinta e integralmente.

34 TRÕNDLE/FISCHER, Strafgeset^buch, 2000, §78a, nota 10, afirma que, na uni­dade de fato “corre para cada delito o pra^o de prescrição previsto para o mesmo”. OTTO, Grundkurs Strafrecht, 2000, §23, p. 333, n. 20, afirma que, no crime continuado, “a prescrição começa, em geral, com o último ato pardal”.

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Capítulo 16 Unidade e Pluralidade de Fatos Puníveis

VIL Umite das penas privativas de liberdade

A lei penal fixa em 30 (trinta) anos o limite máximo das penas privativas de liberdade.

Art. 75. O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 30 (trinta) anos.

§10—Quando o agente fo r condenado a penas privativas de liberdade cuja soma seja superiora 30 (trinta) anos, devem elas ser unificadas para atender ao limite máximo deste artigo.

§2° — Sobrevindo condenação p or fato posterior ao início do cumprimento da pena, far-se-á nova unificação, despre^ando- se, para esse fim, o período de pena j á cumprido.

A aplicação de penas privativas de liberdade pode exceder o limite legal, mas a execução das penas privativas de liberdade aplicadas não pode exceder o limite legal. Em caso de pluralidade de penas, a adequação ao limite máximo permitido se faz pelo processo de unificação das penas. A única exceção pardal dessa regra, para desestimular outras infrações após atingido o limite máximo,35 aparece na hipótese de condenação por fato punível posterior ao início de execução da pena já aplicada: a (re)unificação para nova adequação ao limite legal exclui o tempo anterior de cumprimento de pena (art. 75, §2°, CP).36

Finalmente, no caso de pluralidade de condenações, a execução das penas mais graves antecede as menos graves.

Art. 76. No concurso de infrações, executar-se-á primeira­mente a pena mais grave.

35 Ver n. 61, da Exposição de Motivos da Lei 7.209/84.36 Assim, CIRINO DOS SANTOS, Teoria do crime, 1993, p. 92.

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Teoria ão Fato Punível Capítulo 16

VIII. Pluralidade aparente de leis

Ao lado da autêntica concorrência material.’ form al e continuada de fatos puníveis, caracterizada por uma pluralidade real de resultados típicos, existe uma concorrência aparente de leis penais, caracterizada por uma pluralidade de tipos legais aparentemente aplicáveis à mesma ação concreta. A solução desse aparente conflito de leis é conduzida pela seguinte idéia fundamental: o conteúdo de injusto de um tipo legal compreende o conteúdo de injusto de outro tipo legal e, assim, o tipo legal primário exclui o tipo legal secundário, que não contribui para o injusto típico, nem para a aplicação da pena.37 Apesar de grande con­trovérsia na literatura contemporânea, a opinião dominante coincide na utilização de alguns critérios para realizar a idéia daquele princípio geral e determinar o tipo legal adequável à ação concreta: os critérios da especiaãdade, da subsidiariedade e, com restrições, da consunção.38

1. Especialidade

O critério da especialidade resolve o conflito aparente entre tipo especial e tipo geral em favor do tipo especial: o tipo especial contém

37 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §69,1, p. 732.38 Nesse sentido, DREHER/TRÕNDLE, Strafgesetybuch, 1995, nota preliminar 18,

§52; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §69, I I 1-3, p. 733-737; LACKNER, Strafgesefcçbuch, 1995, nota preliminar n. 25, §52; WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 234; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 787-791, p. 251-253. JAKOBS, Strafrecht, 1993, 31/16-37, p. 869-80, embora admita esses critérios, acaba absolutizando o critério da especialidade. Contra o critério da consunção, MAURACH/ GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht, II, 1989, §55, n. 51, p. 442. No Brasil, ver BITENCOURT, Lições de Direito Penai.' 1995, p. 62; REGIS PRADO, Curso de Direito Penal brasileiro, 1999, p. 119; FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 367, p. 374; ZAFFARONI/PIE- RANGELI, Manual de Direito Penal brasileiro, 1997, n. 416, p. 736-739.

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Capítulo 16 Unidade e Pluralidade de Fatos Puníveis

todos os caracteres do tipo geral e mais alguns caracteres espeáais. O tipo especial exclui o tipo geral por uma relação lógica entre continente e conteúdo: o tipo especial contém o tipo geral, mas o tipo geral não contém o tipo especial (lex specialis derogat legi generali)?9

As variações qualificantes e privilegiantes são especiais em relação ao tipo básico respectivo: o homicídio qualificado ou privilegiado exclui o homicídio simples; o furto qualificado exclui o furto simples etc.; igualmente, os tipos independentes (também chamados delictum suigeneris) são especiais em relação aos tipos elementares: o roubo em relação ao furto e ao constrangimento ilegal; o infanticídio em relação ao homicídio etc.40

2. Subsidiariedade

O critério da subsidiariedade resolve o conflito aparente entre tipo subsidiário e tipo principal em favor do tipo principal: a aplicação do tipo subsidiário depende da não-apücação do tipo principal. O tipo principal exclui o tipo subsidiário por uma relação de interferênáa lógi­ca ou de entrecru^amento estrutural, porque diferentes normas penais protegem iguais bens jurídicos em diferentes estágios de agressão41 (lex primaria derogat legi subsidiariaè).

A relação de subsidiariedade pode serformal ou material: a sub­sidiariedade formal é expressa no texto da lei, com expressões como

39 Ver JAKOBS, Strafrecht, 1993, 31/16, p. 869; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §69, I I 1, p. 733.

40 Comparar JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §69, II 1, p. 733-734; MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht, II, 1989, §55, n. 20, p. 436; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 788, p. 251 -252.

41 HONIG, Straflose ]/or- und Nachtat, 1927, p. 113.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 16

“se o fato não constitui elemento de crime mais grave” etc. (por exemplo, arts. 238,239,337, CP); a subsidiariedade material é extraída da relação de sentido entre tipos legais, como os tipos de passagem, que constituem estágios preliminares necessários da realização de tipos mais graves: os tipos de perigo concreto são subsidiários dos tipos de lesão; a tentativa é subsidiária da consumação; a lesão corporal é subsidiária do homicídio,42

Além disso, existe relação de subsidiariedade entre formas de autoria e de participação: a cumplicidade é subsidiária da instigação (ins­tigador que ajuda a realização material do fato continua instigador), assim como a instigação é subsidiária da autoria (autor que instiga outrem a participar do fato, continua autor ou co-autor).43 Mais importante ainda: o fato típico imprudente (o atropelamento de um pedestre, por exemplo) é subsidiário do fato típico doloso (o pedestre atropelado morre por falta de socorro do autor do atropelamento, responsável pela evitação do resultado na qualidade degarante do bem jurídico em perigo, conforme o tipo de omissão de ação imprópria).44

3. Consunção

O critério da consunção resolve o conflito aparente entre tipo consumidor e tipo consumido: o conteúdo de injusto do tipo princi­pal consome o conteúdo de injusto do tipo secundário, porque o tipo

42 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §69, II 2, p. 734-735; MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht, II, 1989, §55, n. 18, p. 435; WESSELS/ BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 790, p. 252.

43 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §69, II 2a, p. 735; MAURA­CH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht, II, 1989, §55, n. 18, p. 435; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 790, p. 252.

44 Assim, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §69, II 2a, p. 735.

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Capítulo 16 Unidade e Pluralidade de Fatos Puníveis

consumido constitui meio regular (não, porém, necessário) de realização do tipo consumidor (lex consumens derogat legi consumptaè) .45

A consunção por relação regular do tipo consumido com o tipo consumidor ocorre, por exemplo, no dano ou na violação de domicílio, como tipos consumidos, em relação ao furto qualificado por destruição ou rompimento de obstáculo, ou emprego de chave falsa etc., como tipo consumidor.

Não obstante, a controvérsia atual sobre o critério da consunção é irreversível e a tendência parece ser sua própria consunção por outros critérios, especialmente pelo critério da especialidade e pelo antefato e pós-fato co-punidos: a literatura contemporânea oscila entre posições de aceitação reticente46 e de rejeição absoluta47 do critério da consunção, no conflito aparente de leis penais.

4. Antefato e pós-fato co-punidos

O antefato e o pós-fato co-punidos estão, geralmente, em relação de consunção com o fato principal:48 são punidos em conjunto com o fato principal. Assim, o porte ilegal de arma constitui antefato punido em conjunto com o homicídio praticado; a apropriação, o consumo ou a destruição da coisa furtada não constitui apropriação indébita ou dano,

45 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §69, II 3a, p. 736.46 Nesse sentido, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §69, II 3a,

p. 735; KÜHL, Strafrecht, 1997, §21, n. 60, p. 795; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 791, p. 253.

47 Assim, MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht, II, 1989, §55, n. 51, p. 442, para quem “a chamada consunção não pode mais ser reconhecida ”.

48 O texto representa mudança em relação à posição anterior, cf. CIRINO DOS SANTOS, Teoria do crime, 1993, p. 93.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 16

mas pós-fato punido no furto, porque representa realização da vanta­gem objeto do elemento subjetivo especial do furto, tipo consumidor;49 igualmente, a venda da coisa furtada a terceiro de boa-fé não constitui estelionato punível, — mas fa to posterior punido em conjunto com o furto — ainda que lesione novo bem jurídico:50 a pena do furto abrange os atos próprios de apropriação, inclusive a venda da coisa furtada e, portanto, punir pela realização da intenção especial do furto, elemento subjetivo determinante do tipo de injusto, significaria dupla punição pelo mesmo fato.51

49 Assim, por exemplo, WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 795, p. 254.50 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §69, II 3a, p. 736.51 Assim, FRAGOSO, Lições de Direito Penal, 1985, n. 371, p. 377.

C apítu lo 1 7R e s p o n s a b il id a d e P e n a l d a P e s s o a J u r íd ic a

A responsabilidade penal da pessoa jurídica é, talvez, o tema de política criminal e de Direito Penal mais controvertido da atu­alidade. Para começar, na área internacional existem duas posições diametralmente opostas: de um lado, os países regidos pelo sistema da common law, como Inglaterra e Estados Unidos, por exemplo, admitem a responsabilidade penal da pessoa jurídica, porque seus sistemas de justiça criminal, fundados em precedentes legais, não criam obstáculos dogmáticos; de outro lado, os países regidos por sistemas legais codifi­cados, como os da Europa continental e da América Latina, rejeitam a responsabilidade penal da pessoa jurídica, porque seus sistemas de justiça criminal, fundados na unidade interna de instituições e normas jurídi­cas, criam obstáculos dogmáticos insuperáveis.1 Em ambos os casos, existem exceções: nem todos os Estados norte-americanos adotam a responsabilidade penal da pessoa jurídica, e dúvidas sobre a culpabilidade da pessoa jurídica parecem restringir a aplicação de penas às empresas, segundo a exposição de motivos do Model Penal Code,2 nem todos os

1 Ver, por exemplo, TIEDEMANN, Kesponsabilidadpenal depersonas jurídicasy empresasen el derecho comparado, in Responsabilidade penal da pessoa jurídica e Medidas pro­visórias e Direito Penal, 1999, p. 27-28, cuja enumeração de modelos parece diluir o antagonismo entre sistemas que admitem e sistemas que rejeitam a responsabilidade penal da pessoa jurídica.

2 SHECAIRA, Responsabilidade penal da pessoajurídica, 1999, p. 51.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 17

países de sistemas legais codificados rejeitam a responsabilidade penal da pessoa jurídica: a França instituiu a responsabilidade penal da pes­soa jurídica em 1994 (arts. 121-2, do Código Penal Francês); o Brasil adotou o modelo francês de responsabilidade penal da pessoa jurídica em crimes contra o meio ambiente, definidos pela Lei 9.605/98.

Sem dúvida, o direito do povo ao meio ambiente ecologicamente equilibrado3 deve ser protegido por todos os meios jurídicos, inclusive penais — observados os princípios de intervenção mínima e de última ratio da repressão criminal no Estado Democrático de Direito. Contudo, criminalizar a pessoa jurídica para proteger o meio ambiente pare­ce inadequado, ou porque a pena é o instrumento menos eficaz de política social, ou porque as determinações do ser (a organização psi- cossomática do ser humano) constituem o limite intransponível das proposições do dever ser (a criminalização da pessoa jurídica, como simples criação legal).

II. 4 Constituição da República e a responsabilidade penal da pessoa jurídica

No Brasil, a questão da responsabilidade penal da pessoa jurídica tem origem em duas normas constitucionais, sobre as quais existe grande controvérsia.

1. Em primeiro lugar, a norma do art. 173, §5° determina ao legislador ordinário instituir a responsabilidade da pessoa jurídica, assim como a responsabilidade individual de seus dirigentes, por atos contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular; nestes termos:

3 Art. 225, Constituição da República.

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Capítulo 17 A Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica

Art. 173, §5°, CR: “A. lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoajurídica, estabelecerá a res­ponsabilidade desta, sujeitando-a àspunições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular. ”

Constitucionalistas4 afirmam que onde a Constituição fala de responsabilidade quer dizer, na verdade, responsabilidade penal da pessoa jurídica, por causa da referência sobre “punições compatíveis com sua natureza'. Não obstante, especialistas em Direito Penal5 afirmam que se a Constituição fala de responsabilidade quer dizer, simplesmente, responsabilidade, sem adjetivos: a) a atribuição de responsabilidade, como conceito jurídico geral, não significa atribuição de responsabilidade penal, como conceito jurídico espedal, b) o conceito jurídico de punição não é exclusivo do Direito Penal: abrange, também, sanções administrativas, com fins retributivos e preventivos semelhantes às sanções penais e, às vezes — como no caso das multas administrativas da Lei 9.605/98 —, com poder aflitivo e, portanto, retributivo muito superior ao de penas criminais substituídas por penas restritivas de direito, ou com inicio de execução em regime aberto, por exemplo.

Enfim, de acordo com a norma constitucional, a responsabilidade (sempre sem adjetivos) da pessoa jurídica — e das pessoas físicas diri­

4 Assim, por exemplo, RIBEIRO BASTOS e GANDRA MARTINS, Comentários àConstituição do Brasil\ 1990, v. 7, p. 103 s; também, AFONSO DA SILVA, Curso de direito constitucionalpositivo, 1994, p. 718.

5 Nesse sentido, CERNICCHIARO, Direito penal na Constituição, 1995, p. 155; BITEN-COURT, Reflexões sobre a responsabilidade penal da pessoajurídica, in Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica e Medidas Provisórias, RT, 1999, p. 51-71, esp. p. 68; DOTTI, A incapacidade criminal da pessoa jurídica (uma perspectiva do direito brasileiro), RBCCRIM. 11,1995, p. 184 s; PRADO, Crimes contra o ambiente, RT, 1998, p. 20-23; REALEJR, A lei de crimes ambientais, RF n. 345, p. 121; SIRVINSKAS, Tutela penal do meio ambiente, 1998, p. 23. Exceções, entre penalistas, seriam ARAÚJO JR , Societas delinquere potest, in Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica e Medidas Provisórias, RT, 1999, p. 72-94; e SHECAIRA, Responsabilidade penal da pessoajurídica, 1999.

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gentes da pessoa jurídica — tem por objeto, exclusivamente, atos contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular: a norma do art. 173, §5°, da Constituição da República, não inclui o meio ambiente. O argumento de alguns constitucionalistas6 de que a norma incluiria o meio ambiente porque a defesa do meio ambiente constitui um princípio geral da atividade econômica (art. 170, VI, CR), é equivocado: se a norma constitucional devesse incluir o meio ambiente por causa de sua natureza de princípio geral da atividade econômica, então deveria incluir, também— e com mais razão — a propriedadeprivada, a livre concorrência, a defesa do con­sumidor etc., igualmente princípiosgerais da atividade econômica (art. 170, III, IV, V, da Constituição da República), o que seria absurdo.

Curto e grosso: nenhum legislador aboliria o princípio consti­tucional da responsabilidade penal pessoal de modo tão camuflado ou hermético, como se a Carta Constitucional fosse uma carta enigmática decifrável somente por iluminados. Ao contrário, se o constituinte tivesse pretendido instituir exceções à regra da responsabilidade penal pessoal teria utilizado linguagem clara e inequívoca, tanto sobre a natu­reza penal dessa responsabilidade, quanto sobre as áreas de incidência dessa excepcional responsabilidade penal, como abaixo sugerido:

Art. 173, §5°. lei, sem prejuízo da responsabilidade penal individual dos dirigentes da pessoajurídica, estabele­cerá a responsabilidade penal desta, sujeitando-a àspunições compatíveis com sua natureza, nos crimes praticados contra a ordem econômica e financeira, contra a economia popular e contra o meio am bientei

Todavia, esse não é o texto da norma constitucional: a Cons­tituição fala em responsabilidade — e não em responsabilidade penal, a

6 Nesse sentido, AFONSO DA SILVA, Curso de direito constitucionalpositivo, 1992, p. 718.7 Observação: as palavras em negrito foram acrescentadas ao texto legal, com exceção

da palavra crimes, que substitui a palavra atos.

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Capítulo 17 A Responsabilidade Venal da Pessoa Jurídica

Constituição fala de atos — e não de crimes; finalmente, a Constituição delimita as áreas de incidência da responsabilidade pela prática desses atos, exclusivamente, à ordem econômica e financeira e à economia popular, sem incluir o meio ambiente.

Em síntese: a) se a Constituição fala em responsabilidade, então o intérprete não pode ler responsabilidadepenal’ nem o legislador ordinário está autorizado a estabelecer responsabilidadespenais da pessoa jurídica; b) se a constituição fala em atos, então nem o intérprete, nem o legislador ordinário podem ler crimes; c) se a Constituição circunscreve as exce­ções às áreas da ordem econômica e financeira e da economia popular, então nem o intérprete, nem o legislador ordinário podem incluir outras exceções, como, por exemplo, o meio ambiente — afinal, o argumento de que sua defesa constitui princípio geral da atividade econômica justificaria a inclusão de outros princípios gerais dessa atividade, como a propriedade privada, a livre concorrênáa, a defesa do consumidor etc.

2. Em segundo lugar, a norma do art. 225, §3°, da Constituição, estru­turada em conceitos pares claramente correlacionados, prevê sanções penais e administrativas contra pessoas físicas ou jurídicas por condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.

Art. 225, §3°, CR: “As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas oujurídicas, a sanções penais e administrativas, independen­temente da obrigação de reparar os danos causados”.

De novo, constitucionalistas e ambientalistas8 proclamam a ruptura do princípio constitucional da responsabilidade penal pessoal.' mediante interpretação que suprime as diferenças semânticas das

8 Exceção notável é CRETELLA JR., Comentários à Constituição de 1988,1993, v. 8, p. 4045, cuja opinião, neste aspecto, coincide com a dos penalistas.

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palavras condutas e atividades,9 arbitrariamente consideradas sinônimos aplicáveis indiferentemente às pessoas físicas e jurídicas,10 que seriam igualmente passíveis de sanções penais e administrativas. Ao contrá­rio, especialistas em Direito Penal11 rejeitam a pretendida ruptura do princípio constitucional da responsabilidade penal pessoal' destacando as diferenças semânticas das palavras condutas e atividades, empregadas no texto como bases de correlações distintas, assim estruturadas: a) as condutas de pessoas físicas sujeitarão os infratores a sanções penais, b) as atividades àe. pessoas jurídicas sujeitarão os infratores a sanções administrativas. Afinal, a lei não contém palavras inúteis, e o uso de sinônimos na lei seria uma inutilidade, incompatível com a técnica legislativa e com 'a inteligência do legislador.

A análise do texto constitucional parece mostrar que a respon­sabilidade penal continua pessoal.\ porque a Constituição não instituiu a exceção da responsabilidade penal impessoal da pessoa jurídica.12 Assim, a tese da responsabilidade penal da pessoa jurídica se fundamentaria em leitura apressada das normas constitucionais, ou constituiria, talvez, fenômeno psíquico de projeção da vontade pessoal do intérprete do texto constitucional.

JLogo a criminali%ação da pessoa jurídica, como forma de responsa­bilidade penal impessoal.\ é inconstitucional: as normas do art. 173, §5° e do art. 225, §3°, da Constituição, não instituíram — nem autorizaram o legislador ordinário a instituir — a exceção da responsabilidade pe­

9 Por exemplo, PINTO FERREIRA, Comentários à Constituição Brasileira, 1995, v. 7, p. 302.10 Assim, SHECAIRA, Responsabilidade penal da pessoajurídica, 1999, p. 119, para quem

“os vocábulos conduta e atividade foram empregados como sinônimos.”11 Exceções, novamente, entre penalistas: ARAÚJO JR., Societas delinquere potest, in

Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica e Medidas Provisórias, RT, São Paulo, 1999, p. 72-94; SHECAIRA, Responsabilidade penal da pessoajurídica, 1999.

12 Assim, também, CERNICCHIARO, Direito penal na Constituição, 1995, p. 144; DOT- TT, A. incapacidade ctiminaldapessoajurídica, in Revista brasileira de ciências criminais,1995, n. 11, p. 187.

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Capítulo 17 A Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica

nal da pessoa jurídica. Afinal, o limite das proposições do dever ser é constituído pelas determinações do ser: a estrutura legal impessoal da pessoa jurídica não suporta as categorias conceituais da responsabi­lidade penal pessoal de seres humanos.

Finalmente, a hipótese da responsabilidade penal impessoal da pessoa jurídica colidiria, por um lado, com os princípios constitucio­nais da legalidade e da culpabilidade, que definem o conceito de crime, e por outro lado, com os princípios constitucionais da personalidade da pena e da punibilidade, que delimitam o conceito de pena, como se demonstra.

III. A criminali^ação da pessoa jurídica na lei brasileira

1. O art. 3o da Lei 9605/98 permite imputar à pessoa jurídica infração realizada por decisão de representante legal ou de órgão colegiado, no interesse ou beneficio da pessoa jurídica:

Art. 3o. As pessoasjurídicas serão responsabilizadas admi­nistrativa, ávil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a in fr a çã o seja cometida p or d e c i s ã o de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no i n t e r e s s e ou b e n e f í c i o da sua entidade.

Assim, a infração atribuível à pessoa jurídica deve ser reali­zada por decisão de representante legal ou contratual, ou de órgão colegiado da pessoa jurídica, e deve ter por conteúdo o interesse ou o benefício da pessoa jurídica.

2. A lei brasileira não indica se a pessoa jurídica teria v o n ta d e real.\ resultante do encontro de vontades individuais, segundo a teoria da rea­lidade, de GIERKE, ou teria uma simples v o n ta d e re flex a , formada

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no aparelho psíquico de pessoas físicas e imputada à pessoa jurídica como responsabilidade subseqüente, segundo a teoria da ficção, de SA- VIGNY.13 Esse ponto é crucial, porque indicaria a sede do dolo e da imprudênáa como fundamento subjetivo da responsabilidade penal das empresas: a sede do dolo e da imprudênáa seria a pessoa jurídica (teoria da realidade) ou seria a pessoa física (teoria da ficção)?

2.1. Segundo a teoria da ficção — que teria sido substituída pela teoria da realidade na literatura francesa —, as dimensões subjetivas do dolo ou da imprudênáa não podem existir na estrutura incorpórea da pessoa jurídica, uma criação legal incomparável com a estrutura biológica e psíquica do ser humano e, portanto, incapaz da vontade consciente característica da ação humana.14

2.2. Segundo a teoria da realidade, a pessoa jurídica teria uma vontade coletiva produzida em reuniões, deliberações ou votos, uma espécie de vontade pragmática que dirigiria a ação da empresa.15 Assim, a capaádade de ação da pessoa jurídica teria por fundamento a vontade coletiva sedimentada em reuniões e deliberações, que produziria a chamada ação instituáonal— um conceito de natureza soáológica, com o qual se pretende inaugu­rar uma perspectiva dicotômica de dupla imputação no Direito Penal: a) imputação de ação humana às pessoas físicas; b) imputação de ação instituáonal às pessoas jurídicas.16

Entretanto, a chamada vontade coletiva ou pragmática — simulacro de espinha dorsal da ação instituáonal da pessoa jurídica — não pode ser confundida com a v o n ta d e c o n s c i e n t e do conceito de ação da

13 Ver ZAFFARONI, in Parecer para o Mandado de Segurança n. 2001.02.01.046636-8, do Tribunal Regional Federal da 2a Região, impetrado por PETRÓLEO BRASI­LEIRO S/A - PETROBRAS.

14 Ver CONTE e CHAMBOM, Droitpénalgénéral, 2000, p. 198, n. 369.15 SHECAIRA, in Responsabilidade penal da pessoajurídica, 1999, p. 95.16 Assim, os conceitos e a linguagem de SHECAIRA, in Responsabilidade penal da pessoa

jurídica, 1999, p. 95.

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Capítulo 17 A Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica

pessoa física: a vontade coletiva da ação institucional não contém os requisitos internos da a çã o hum ana , como base psicossomática do conceito de cri­me, que fundamentam a natureza pessoal da responsabilidade penal.17

IV. Lesão do princípio da legalidade

O principio da legalidade, sintetizado na fórmula latina nullum crimen, nulla poena sine lege, se realiza no conceito dogmático de tipo de injusto, como descrição legal da ação proibida ou mandada — as técnicas legais tradicionais utilizadas pelo legislador para proteção de bens jurídicos.

Em primeiro lugar, a criminalização da pessoa jurídica lesiona a proibição material do princípio da legalidade, expresso na fórmula nullum crimen sine lege; em segundo lugar, a instituição da responsabili­dade penal da pessoa jurídica lesiona a proibição formal do princípio da legalidade, expresso na fórmula nulla poena sine lege.

1. Lesão da fórmula nullum crim en sine lege

1. O conceito de ação, como fundamento psicossomático do concei­to de crime, ou substantivo qualificado pelos adjetivos da tipicidade, da antijuridicidade e da culpabilidade, representa fenômeno exclusivamente humano, inconfundível com o conceito de ação institucional atribuído

17 No mesmo sentido, DOTTT, A incapacidade criminal da pessoa jurídica, in Revista brasileira de ciências criminais, 1995, n. 11, p. 191.

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à pessoa jurídica, segundo qualquer teoria: a) para o modelo causai, a ação seria comportamento humano voluntário;18 b) para o modelo final, a ação é acontedmento dirigido pela vontade consciente do fim ;19 c) para o mo­delo social, a ação representa comportamento humano de relevância sodal dominado ou dominávelpela vontade?0 d) para o modelo pessoal, a ação constitui manifestação da personalidade etc.

Em poucas palavras, se a ação como fundamento psicossomá- tico do conceito de crime é fenômeno ex c lu s iv a m en te humano\ então a pessoa jurídica, ente jurídico constituído por seres humanos, mas inconfundível com o ser humano constituinte da pessoa jurídica, é in­capaz de ação: por esse motivo, qualquer manual de Direito Penal define os atos (ou a atividade) das pessoas jurídicas como situações de ausênda de ação?1 Em conclusão: o conceito de ação — no sentido de ação realizada ou de ação omitida, as modalidades concretas das proibições ou comandos instituídos pela norma penal para proteção de bens jurídicos — é o primeiro obstáculo insuperável da proposta de criminalização da pessoa jurídica.

2. Na seqüência da definição operacional de crime, o conceito de tipo legal., concebido como descrição legal do comportamento proibido e estudado nas dimensões de tipo objetivo e de tipo subjetivo, representa o segundo obstáculo insuperável da proposta de criminalização da pessoa jurídica.

A atribuição do tipo objetivo, fundada na idéia de realização do risco, e a atribuição do tipo subjetivo, fundada na idéia de realização

18 MEZGER, Modeme Wege der Strafrechtsdogmatik, 1950, p. 12.19 Ver MAURACH/ZIPF, Strafrecht 1 ,1992, §16, n. 41, p. 202; também, WELZEL,

Das Deutsche Strafrecht, 1969, §8 ,1, p. 34.20 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §23, VI, p. 223.21 ROXIN, Strafrecht, 1997, §8, n. 44, p. 202.22 Ver, por exemplo, CIRINO DOS SANTOS, A. moderna teoria dofato punível\ 2005, p. 28.

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Capítulo 17 A Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica

do plano,23 são incompatíveis com a pessoa jurídica. Na verdade, os graves problemas do tipo objetivo — a questão da relação de causalidade ou da imputação do resultado — parecem pequenos perto dos problemas do tipo subjetivo.

3. Nessa perspectiva, a atribuição do tipo subjetivo dos delitos dolo­sos, fundada na realização do plano formado no aparelho psíquico do autor, é incompatível com a pessoa jurídica, como indicam alguns obstáculos dogmáticos insuperáveis.

O tipo subjetivo dos crimes dolosos é constituído por funções do aparelho psíquico do ser humano, um órgão dotado de consciência e de vontade reais, inexistentes na pessoa jurídica. Por exemplo, a teoria da realidade não pode explicar de que modo a vontade coletiva da pessoa jurídica, manifestada em reuniões, deliberações ou votos, produziria os fenômenos psíquicos da consciência e da vontade próprios do aparelho psíquico da pessoa física.

Primeiro, a chamada vontade coletiva da pessoa jurídica é incapaz de dolo, como vontade consciente de realizar um crime.2A se vontade é energia psíquica individual produtora da ação típica, e consáênáa é direção inte­ligente daquela energia psíquica individual, então esses componentes não podem existir no vazio psíquico da impessoal vontade coletiva da pessoa jurídica.25 Em correlação com a incapacidade de dolo, a vontade coletiva da pessoa jurídica é, igualmente, incapaz de erro de tipo, fe­nômeno psíquico negativo do dolo, como defeito de representação de elementos ou circunstâncias objetivas do tipo legal.

Como se vê, a incapacidade de dolo — e, por extensão, de erro

23 ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, n. 144-148, p. 434-437.24 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §29, II 2, p. 293; RO-

XIN, Strafrecht, 1997, §12, n. 4, p. 364; WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 203, p. 64.

25 CIRINO DOS SANTOS, A modema teoria do fa to punível, 2005, p. 15.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 17

de tipo — da vontade coletiva ou pragmática da pessoa jurídica decorre do mesmo defeito de consdtuição: o aparelho psíquico produtor do dolo e, portanto, passível de erro de tipo (defeito intelectual na formação do dolo),26 não é órgão da pessoa jurídica, mas da pessoa física. A necessidade de existência real de aparelho psíquico como sede do dolo e contexto do erro de tipo é determinada, entre outras razões, pelo princípio da coincidência temporal entre formação do dolo (ou do erro de tipo) e realização da ação típica27 — uma relação ini­maginável na vontade coletiva atribuída à pessoa jurídica, definida em reuniões, deliberações e votos, ou de qualquer outro modo imaginável.

Segundo, a vontade coletiva ou pragmática da pessoa jurídica também é incapaz de imprudência, fenômeno fundado na capacidade indi­vidual (pelo sistema da generalização de JESCHECK/WEIGEND,28 ou pelo sistema da individualização de JAKOBS):29 o critério da capacidade individual utilizado para definir o tipo dos crimes de imprudência é inaplicável à pessoa jurídica — e não pode ser substi­tuído por critérios análogos, como o da capacidade em presarial (?), por exemplo.

Mais: a lesão do dever de cuidado — ou do risco permitido — supõe o modelo de homem prudente, capaz de observação da e reflexão sobre criação/realização do perigo:30 o modelo do homem prudente, parâmetro indispensável para definir o comportamento imprudente, é ina-

26 ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, n. 86, p. 405; também, CIRINO DOS SANTOS, A moderna teoria do fa to punível, 2005, p. 81-82; em posição semelhante, DOTTI, A incapacidade criminal da pessoajurídica, in Revista brasileira de ciências criminais, 1995, n. 11, p. 194.

27 ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, n. 80-81, p. 401 e §20, n. 56, p. 782 ; também, CIRI- NO DOS SANTOS, A moderna teoria do fa to punível.’ 2005, p. 80-83 e 224.

28 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §54 ,1 2, p. 563.29 JAKOBS, Strafrecht, 1993, 9/5, p. 318.30 CIRINO DOS SANTOS, A moderna teoria do fa to punível, 2005, p. 102-103.'

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plicável à pessoa jurídica — e igualmente insubstituível por modelos análogos, como o de empresa prudente (?), por exemplo.

Enfim, a previsibilidade do resultado, limiar mínimo de imputação do resultado nos crimes de imprudência, é fenômeno exclu­sivo do aparelho psíquico individual, quer como imprudência inconsciente (imprevisão de resultado previsível), quer como imprudência consciente (confiança de evitar resultado previsto).31

Terceiro, a vontade coletiva ou pragmática da mencionada ação insti­tucional é incapaz de omissão de ação: se a pessoa jurídica é incapa^de ação, como fundamento psicossomático do conceito de crime, então é, necessariamente, incapa^de omissão de ação, cujo pressuposto lógico é a capacidade concreta de ação, definida na literatura como capacidade individual de ação?2 ou como possibilidadefísico-real de agir,33 inexistente na ação instituáonal produzida pela indefinível vontade pragmática da pessoa jurídica: se a pessoa jurídica não pode realizar ação, então também não pode omitir ação.

Quarto e por último, um argumento freqüente para refutar a incapacidade de ação — e, portanto, para refutar a incapacidade de ação típica— da pessoa jurídica, difundido na literatura pela autoridade de TIE- DEMANN,34 e assumido como axioma por adeptos da criminalização

31 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts,, 1996, §55, II 3, p. 586-587; WESSELS/BEULKE, Strafrecht,, 1998, n. 667; comparar CIRINO DOS SANTOS, A modema teoria do fa to punível, 2005, p. 116-121; no sentido do texto, DOTTI, A incapacidade criminal dapessoajurídica, in Revista brasileira de ciências criminais, 1995, n. 11, p. 195.

32 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §59, I I2, p. 616.33 WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 1998, n. 708, p. 225.34 Assim, TTEDEMANN, Responsabilidadpenal depersonas jurídicasy empresas en e l derecho

comparado, in Responsabilidade penal da pessoa jurídica e Medidas provisórias e Direito Penal, 1999, p. 36-37.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 77

da pessoa jurídica,35 é capcioso: se a pessoa jurídica pode realizar a ação de contratar (por exemplo, um contrato de compra e venda), então poderia, também, realizar uma ação criminosa — diz o argumento. O equívoco desse argumento reside em equiparar os fundamentos jurí­dicos da responsabilidade civil — que podem ser somente objetivos —, com os fundamentos jurídicos necessariamente objetivos e subjetivos da responsabilidade penal, em que a atribuição do tipo objetivo se funda­menta na realização do risco e a atribuição do tipo subjetivo se fundamenta na realização do plano,36 Portanto, a ação de contratar de natureza civil, e a ação criminosa de natureza penal, são conceitos que não se recobrem. Na verdade, o sofisma da capacidade da pessoa jurídica para a ação de contratar.; como demonstração de capacidade para ações criminosas, mos­tra que a tese da responsabilidade penal impessoal da pessoa jurídica racha de alto-a-baixo o conceito de crime, mutilado dos componentes psíquico-fenomenológicos da estrutura do tipo de injusto e da cul­pabilidade: suprime o componente psicológico do Direito Penal, em suas dimensões de representação e de vontade do fato e do desvalor do fato, necessário em todas as categorias do fato punível.

Conclusão: se a pessoa jurídica é incapazde realizar ações típicas então a criminalização da pessoa jurídica infringe a dimensão mate­rial do princípio da legalidade, expresso na fórmula nullum crimen sine lege, definido no art. 5o, XXXIX, da Constituição da República.

2. Lesão da fórmula nulla poena sine lege

Além dos problemas relativos à ação e ao tipo dos crimes

35 Ver, por exemplo, ARAÚJO JR., Sodetas delinquerepotest, in Responsabilidade penal da pessoa jurídica e Medidas provisórias e Direito Penal, 1999, p. 89; também, SHECAIRA, Responsabilidade penal da pessoajurídica, 1999, p. 88 s.

36 ROXIN, Strafrecht, 1997, §12, n. 144, p. 434.

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Capítulo 17 A Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica

dolosos, dos crimes imprudentes e dos crimes omissivos referidos, a téc­nica legislativa utilizada pelo legislador brasileiro para criminalizar a pessoa jurídica é defeituosa. Como se sabe, a lei penal é constituída de dois elementos necessários, de modo que a ausência de qualquer deles descaracteriza a produção legislativa como lei penal: a) o tipo legal, como proibição ou comando (nullum crimen sine legê); b) a sanção penal, como conseqüência jurídica da realização do tipo legal (nulla poena sine lege).371. As normas legais criminalizadoras da pessoa jurídica (Lei 9605/98) não possuem o status de lei penal: são perfeitas para pessoas físicas porque contêm preceito e sanção dirigidos a seres humanos, como toda lei penal; são imperfeitas para pessoas jurídicas porque possuem preceito, mas não possuem sanção aplicável às pessoas jurídicas. Logo não são leis penais para pessoas jurídicas.

Essa falha pode ser assim demonstrada: a referência às penas de multa, de restrição de direitos e de prestação de serviços à comunidade, no art. 21 da Lei 9605/98, não supre o defeito dos tipos legais da citada lei, porque essas penas são genéricas e indeterminadas: a) são penas genéricas porque a lei não especifica os t ip o s l e g a i s de cominação das penas respectivas, de modo que ninguém sabe qual pena se aplica a qual tipo penal; b) são penas indeterminadas porque a lei não determina os limites mínimos e máximos de aplicação das penas cominadas.

2. Nesse aspecto, a diferença entre a lei francesa (modelo do legislador brasileiro) e a lei brasileira, é imensa.

Por exemplo, o Código Penal francês (a) instituiu a respon­sabilidade penal das pessoas jurídicas no art. 121-2, (b) indicou as penas criminais, correcionais e contravencionais aplicáveis às pessoas jurídicas no art. 131-37 a 49, (c) especificou os tipos legais aplicáveis

37 Ver, entre outros, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, AUgemeiner Teil,1996, 5a edição, § 7 ,1 , p. 49.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 17

às pessoas jurídicas e (d) cominou, em cada tipo legal, os limites mí­nimos e máximos das penas aplicáveis às pessoas jurídicas.

Ao contrário, a lei brasileira (a) instituiu a responsabilidade penal das pessoas jurídicas no art. 3o e (b) indicou as penas de multa, de restrição de direitos e de prestação de serviços à comunidade aplicáveis às pessoas jurídicas no art. 21, e nada mais — exceto indicar as espécies das penas restritivas de direitos no art. 22 e as hipóteses de prestação de serviços à comunidade no art. 23, além da inútil referência à aplicação subsidiária do Código Penal no art. 79, deste modo:

Art. 21. Aspenas aplicáveis isolada, cumulativa ou alterna­tivamente àspessoas jurídicas, de acordo com o disposto no art.3o, são: I — multa; II — restritivas de direitos; III — prestação de serviços à comunidade.

3. Como se vê, o legislador brasileiro mutilou o modelo adotado, omitindo duas determinações essenciais: primeiro, não especificou os tipos legais aplicáveis às pessoas jurídicas, com faz a lei francesa; segundo, não cominou os limites mínimos e máximos das penas aplicáveis às pessoas jurídicas, nos tipos legais respectivos, como também faz a lei francesa.

Essa não é uma questão formal, mas um problema político real vinculado às garantias constitucionais do Estado Democrático de Direito: a e s p e c i f i c a ç ã o dos tipos legais nos quais são cominadas penas criminais e a d e t e rm in a çã o d o s limites mínimos e máximos das penas cominadas em cada tipo legal são tarefas constitucionais do legislador — o juiz não pode espedjicar os tipos legais de aplicação das penas cominadas, nem determinar os limites mínimos e máximos da cominação legal, sem violentar o sistema constitucional de separação de poderes do Estado.38

A generalidade e a indeterminação das penas cominadas infringe

38 Comparar SIRVINKAS, Tutela penal do meio ambiente, 1998, p. 23-26.

446

Capítulo 17 A. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica

o princípio da legalidade, expresso na fórmula nulla poena sine lege: afinal, se a lei atribui responsabilidade penal à pessoa jurídica, então a pessoa jurídica teria o direito constitucional de conhecer a natureza e a quantidade das penas cominadas pela violação do preceito — um conhecimento impossibilitado pela generalidade e indeterminação dessas penas criminais.4. Finalmente, o defeito da lei não pode ser corrigido pela aplicação subsidiária às pessoas jurídicas, com fundamento no art. 79 da Lei 9605/98, das regras do Código Penal instituídas para pessoas físicas, por uma razão simples: o artifício da aplicação subsidiária das regras do Código Penal ultrapassa os limites da interpretação da lei penal, para constituir integração analógicapraeter legem in malam partem, que transforma o juiz em legislador.39

Conclusão: a aplicação de sanção penal às pessoas jurídicas pelo emprego subsidiário de princípios gerais exclusivos das pessoas físicas representa integração analógica praeter legem in malam par­tem, com infração do princípio da legalidade.

V. l^esão do princípio da culpabilidade

O princípio da culpabilidade, expresso na fórmula nullum crimen sine culpa, é um conceito complexo fundado na presença dos seguintes elementos: a) capacidade de culpabilidade (também conhecido como im­putabilidade ou capaádadepenal)\ b) conheámento da antijuridiádade (real ou possível); c) exigibilidade de comportamento diverso, fundado na normalidade das árcunstânáas da ação.

39 Assim, ZAFFARONI, in Parecerpara o Mandado de Segurança n. 2001.02.01.046636- 8, do Tribunal Regional Federal da 2a Região, impetrado por PETRÓLEO BRA­SILEIRO S/A - PETROBRAS.

447

Teoria do Fato Punível Capítulo 17

A universalidade dessa estrutura do conceito não é gratuita: os componentes da capacidade de culpabilidade e do conhecimento da antiju­ridicidade são necessários para indicar se o sujeito sabe o que fa % que fundamenta o juí%o de reprovação; o componente da exigibilidade de com­portamento diverso, fundado na normalidade das circunstâncias da ação, é necessário para indicar se o sujeito teria o poder de não fa%er o quefe^ característico do conceito normativo de culpabilidade, como poder de agir de outro modo, excluído em situações de exculpação específicas. Esse conceito de culpabilidade, como juízo de reprovação de um sujeito imputável (o sujeito pode saber o que fa%), que realiza, com consciência da antijuridicidade (o sujeito sabe o quefa%), em condições de normalidade de circunstâncias (o sujeito tem o poder de não fa%er o que fa ), um tipo de injusto, não pode ter por objeto a pessoa jurídica.

1. Em primeiro lugar, a pessoa jurídica não tem capacidade penal (ou capacidade de culpabilidade), porque os requisitos de maturidade e de sani­dade mental que fundamentam a capacidade penal de seres humanos são inaplicáveis à entidade incorpórea da pessoa jurídica, com sua vontade coletiva ou pragmática produzida em reuniões, deliberações e votos: a capacidade penal não pode ser suprida pelo registro do contrato social da pessoa jurídica na Junta Comercial, por exemplo.

Assim, a hipótese de uma vontade coletiva ou pragmática deliberada em reunião de pessoa jurídica constituída por 2 sócios inimputáveis por doença mental (digamos, paranóia e esquizofrenia), conduziria a situa­ções de delírio jurídico: a) se,a capacidade penal da pessoa jurídica é independente da capacidade penal das pessoas físicas dos sócios (art. 3°, parágrafo único, Lei 9605/98), então é preciso explicar de que modo pessoas físicas inimputáveis podem produzir uma vontade coletiva impu­tável 2. pessoa jurídica; b) ao contrário, se a capacidade penal da pessoa jurídica depende da capacidade penal da pessoa física dos sócios, então a lei não poderia dizer que a responsabilidade penal da pessoa jurídica é independente da responsabilidade penal da pessoa física dos sócios.

2. Em segundo lugar,: a consáênáa do injusto, como conhecimento da

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Capítulo 17 A Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica

antijuridicidade concreta segundo a teoria dominante,40 ou da punibilidade do fato conforme uma teoria moderna,41 que permite dizer que o su­jeito sabe o quefa% só pode exisdr no aparelho psíquico individual de pessoas físicas, porque a psique coletiva formadora da vontade pragmática das reuniões, deliberações e votos é uma ficção inçorpórea sem existência real, incapaz de representar a natureza proibida da ação típica.

Neste nível, os problemas são parecidos com os do dolo e do erro de tipo: a) a fragmentada psique coletiva produtora da vontade pragmática da pessoa jurídica não existe como aparelho psíquico capaz de empregar reflexão ou utilizar informações para conhecer o injusto do fato concreto; b) a impossibilidade da psique coletiva funcionar como unidade orgânica capaz de reflexão e de informação exclui, também, a possibilidade de erro de proibição, como fenômeno psíquico negativo da consáênáa da antijuridicidade, consistente em defeito de representação da natureza proibida do fato. Igualmente, a falta de um aparelho psíquico como órgão da consáênáa da antjuridiádade e do erro de proibição, exclui o prin­cípio da coinádênáa entre a formação da consáênáa da antijuridiádade (ou a ocorrência do erro de proibição) e a realização do tipo de injusto — um fenômeno psíquico impossível na chamada vontade coletiva ou pragmática, definida em reuniões, deliberações e. votos etc. Pior ainda: impossibilita decidir sobre a natureza evitável ou inevitável do erro de proibição — o reverso da consciência do injusto — na inçorpórea psique coletiva dessa vontade pragmática da pessoa jurídica. Por exemplo, no caso de vontade coletiva deliberada em reunião de pessoa jurídica constituída por 2 sócios, em situação individual de erro de proibição inevitável (transporte de lenha sem licença da autoridade competente: art. 46, da Lei 9.605/98), teríamos outra situação delirante: se a exclusão da reprovação das

40 Assim, ROXIN, Strcfrecht, 1997, §21, n. 12-16, p. 798-800; CIRINO DOS SANTOS, A modema teoria do fa to punível, 2005, p. 228.

41 Ver OTTO, Grundkurs Strafrecht, 1996, §13, IV, lb , n. 41, p. 203; também, CIRINO DOS SANTOS, A modema teoria do fa to punível, 2005, p. 229.

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Teoria do Tato Punível Capítulo 17

pessoas físicas exclui a reprovação da pessoa jurídica, seria necessário explicar porque a responsabilidade penal da pessoa jurídica é indepen­dente da responsabilidade penal das pessoas físicas dos sócios; b) se a exclusão da reprovação das pessoas físicas não exclui a reprovação da pessoa jurídica, seria necessário explicar de que modo um erro de proibição inevitável dos sócios pode produzir uma vontade coletiva repro­vável da pessoa jurídica, que pressupõe conheámento real ou possível da antijuridiádade.

3. Enfim, as situações de exculpação, fundadas na anormalidade das circuns­tâncias do fato, que realizam a idéia de inexigibilidade de comportamento diverso — o traço característico do conceito normativo de culpabilidade —, são inaplicáveis à pessoa jurídica: a psique coletiva portadora da von­tade pragmática da pessoa jurídica é imune ou insensível a pressões ou perturbações emocionais excludentes ou redutoras da dirigibilidade normativa (como se denomina, hoje, a capaádade de agir conforme ao direito), próprias das situações de exculpação l e g a i s (coação irresistível, obedi­ência hierárquica, excesso intensivo ou extensivo de legítima defesa real ou putativa), ou s u p r a le g a i s (fato de consciência, provocação de situação de legítima defesa, desobediência civil e, especialmente, conflito de deveres).

Esses argumentos parecem indicar que o chamado modelo analógico de culpabilidade, proposto por TIEDEMAN para a pessoa jurídica,42 é pura ficção: afinal, os defeitos ou falhas de organização, que fundamen­tariam a culpabilidade de empresa, não sedam atribuíveis à pessoa jurídica (como pretende o modelo), mas às pessoas físicas dirigentes desta.43 Em conclusão: o conceito de culpabilidade é incompatível com o conceito de pessoa jurídica.

42 TIEDEMANN, Strafrecht in derMarktwirtschaft, 1993, p. 527; ver, também, Responsa- hilidadpenal depersonas juríd icasy empresas en el derecho comparado, in Responsabilidade penal da pessoa jurídica e Medidas provisórias e Direito Penal, 1999, p. 38-41.

43 Nesse sentido, ROXIN, Strafrecht, 1997, §8, n. 62, p. 209; também JESCHECK/ WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, p. 227.

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Capítulo 17 A Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica

VI. Lesão do princípio da personalidade da pena

1. O princípio constitucional da personalidade da pena, segundo o qual nenhuma pena passará da pessoa do condenado (art. 5°, XLV, Constituição da República), se realiza no processo penal através dos conceitos de autoria e de participação: somente autores epartícipes do fato punível podem ser sujeitos da pena criminal. Assim, em relação ao princípio da personalidade da pena, a questão consiste em saber se a pessoa jurídica pode ser a u to r ou p a r t í c i p e de fatos puníveis.

Exceto casos aberrantes de punição de animais na Antigüidade, o princípio constitucional da personalidade da pena, concretizado nos conceitos de autor e de partícipe do fato punível, nunca foi problemá­tico: objeto da pena criminal é o ser humano. O conceito de pessoa

jurídica, pela teoria da ficção, de SAVIGNY, ou pela teoria da realidade, de GIERKE, não se confunde com o conceito de pessoa física — portanto, não preenche o conceito de personalidade do princípio constitucional— e, conseqüentemente, não pode realizar o conceito de autor ou de partícipe do processo penal: pessoas jurídicas não podem realizar fatos puníveis por autoria direta, mediata ou coletiva, nem por participação, mediante instigação ou cumplicidade.44

2. O princípio da personalidade da pena — garantia individual contra a extensão do poder punitivo do Estado a pessoas diversas do autor ou dopartíápe do fato punível (art. 5o, XLV, da Constituição da República) ou, inversamente, garantia política de exercício do poder punitivo do Estado exclusivamente sobre autores e partíápes de fatos puníveis —, pressupõe seres humanos de carne e osso e se realiza no processo penal através dos conceitos de autoria e de participação, estruturados com base no comportamento de pessoas naturais, ou seja, de indivíduos

44 Não obstante, SHECAIRA, Responsabilidade penal da pessoajurídica, 1999, p. 130, for­mula o conceito híbrido de co-autoria necessária por autoria mediata, em que a empresa seria o autor mediato e a pessoa natural o instrumento.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 17

portadores dos caracteres psicossomáticos do homem. Afinal, o pro­nome indefinido “q u e m ” do art. 29, do Código Penal (e do art. 2o, da Lei 9605/98), designa exclusivamente seres humanos:

Q uem , de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.

2.1. Em suma: se o conceito de pessoa jurídica não se confunde com o conceito de pessoa natural., nem preenche o conceito de personalidade do princípio constitucional e, assim, não realiza o conceito de autor ou de partícipe do processo penal, e n tã o pessoas jurídicas não podem realizar fatos puníveis nem por au to r ia (em qualquer de suas formas), nem por p a r t i c ip a çã o , como demonstrado.

2.2. Por outro lado, o conceito de culpabilidade não pode funcionar como medida da pena criminal da pessoa jurídica, instituição despro­vida de aparelho psíquico capaz de suportar os atributos de capacidade de culpabilidade, de consáênáa da antijuridiádadè e de exigibilidade de compor­tamento diverso, que definem o conceito normativo de culpabilidade.

Mais: se os dois únicos modos de concorrerpara o crime são defini­dos pela ação e pela omissão de ação — o que recoloca a problemática da incapaádade de ação da pessoa jurídica —, então a pessoa jurídica não pode, de nenhum modo, concorrer para crime, pela razão elementar de que não é capaz de ação, nem de omissão de ação — fenômenos exclusi­vamente humanos.

3. A incapacidade de ação e de culpabilidade da pessoa jurídica determina lesão do princípio da personalidade da pena na hipótese de aplicação de pena criminal a pessoa jurídica: acionistas minoritários vencidos em assembléias gerais, ou sócios que não participaram da decisão no âmbito da pessoa jurídica, são atingidos pela pena criminal do mes­mo modo que acionistas majoritários ou sócios que participaram da decisão.

Os partidários da criminalização da pessoa jurídica costumam

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Capítulo 17 A Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica

banalizar o argumento, alegando que penas criminais também atingem terceiros, como a família ou dependentes do réu.45 Essa alegação confunde aplicação ou execução de pena criminal com efeitos sócio-eco- nômicos de penas criminais sobre a família do condenado. A pena de privação de liberdade do réu não significa privação de liberdade da família ou de dependentes do condenado, assim como restrições de direitos do réu não significam penas restridvas de direitos da família ou de dependentes do condenado etc.46 Os efeitos sóáo-econômicos da privação de liberdade sobre a família e dependentes do réu seriam os mesmos no caso de desemprego, doença ou morte do pai/marido e, portanto, não representam exceções ao princípio da personalidade da pena, presente em todas as constituições modernas.

VIL Lesão do princípio da punibilidade

Os fins racionais atribuídos à pena criminal pelo discurso oficial da teoria jurídica da pena, de reprovação da culpabilidade e de prevenção geral e especial da criminalidade (art. 59, CP), sintetizados no que poderíamos chamar de princípio da punibilidade, são inapücáveis à pes­soa jurídica, incapaz das emoções ou dos sentimentos humanos que fundamentam os fins atribuídos à pena criminal.

45 Assim, SHECAIRA, Responsabilidadepenal da pessoajurídica, 1999, p. 89-90: ‘Podem-se analisar esses argumentos iniciando pelo prinàpio da personalidade das penas. ( - )A Parte Geral do Código Penalprevê penas privativas de liberdade, restritivas de direitos e multa. Nenhuma delas deixa de, ao menos indiretamente, atingir terceiros. Quando há uma privação de liberdade de um chefe de família, sua mulher e filhos se vêem privados daquele que mais contribui no sustento do lar. (...) Idêntico inconveniente ocorreria se a penafosse de interdição de direitos (...). O mesmo argumento é válido para a multa. ”

46 Nesse sentido, também, DOTl'1, A incapacidade criminal da pessoajurídica, in Revista brasileira de ciências criminais, 1995, n. 11, p. 189.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 17

Primeiro, a reprovação de culpabilidade expressa na pena retribu- tiva de crime não pode incidir sobre a vontade coletiva ou pragmática da pessoa jurídica, porque a psique impessoale inçorpórea da pessoa jurídica é incapaz de arrependimento, estado afetivo exclusivo do ser humano pressuposto na pena retributiva.

Segundo, a prevenção geral negativa consistente em desestimular a criminalidade pela intimidação do futuro criminoso,47 não pode atuar sobre a empresa pela razão elementar de que a vontade coletiva transpsíquica ou interpessoal da pessoa jurídica não é intimidável. Por causa disso, os partidários da criminalização da pessoa jurídica se fixam, exclusivamente, na função de prevenção geral positiva da pena criminal, consistente no reforço dos valores comunitários, ou na es­tabilização das expectativas normativas:48 a rejeição da prevenção geral negativa parece ignorar que a dimensão positiva (reforço de valores, ou estabilização de expectativas) não pode existir sem a dimensão negativa (intimidação do criminoso) da prevenção geral — e, portanto, a proposta é irrealizável.

Terceiro, a prevenção especial negativa consistente em neutralizar o condenado mediante privação da liberdade pessoal, é impensável na pessoa jurídica, pela razão elementar de que a empresa não pode ser encarcerada. Por causa disso, os partidários da criminalização da pessoa jurídica se fixam na chamada prevenção especial positiva,, consistente na ressocialização do criminoso — igualmente parecendo ignorar que a dimensão positiva da prevenção especial, de ressocializar o condenado pela execução da pena,49 constitui programa pedagógico jamais realizado na pessoa física, e impossível de ser realizado na

47 ROXIN, Strafrecht, 1997, §3, n. 25, p. 50.48 ROXIN, Strafrecht., 1997, §3, n. 26, p. 50; JAKOBS, Strafrecht, 1993, n. 1, p. 35.49 ROXIN, Strafrecht, 1997, §3, n. 11, p. 44-45.

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Capítulo 17 A. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica

pessoa jurídica.50

Assim, se os objedvos atribuídos à pena criminal são incompa­tíveis com a pessoa jurídica, parece Jícito perguntar: por que instituir a responsabilidade penal da pessoa jurídica?

VIII. Conclusão

A conclusão do estudo sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica pode ser assim formulada:

1. O conceito de crime, representado pelas categorias de tipo de injusto e de culpabilidade, desenvolvido exclusivamente para o ser humano, capaz de representação e de vontade do fato (dolo) — excluído pelo erro de tipo — e do valor do fato (consciência do injusto) — excluída ou reduzida pelo erro de proibição —, não pode ser (re)construído com base na indefinível vontade coletiva ou pragmática produtora da ação instituáonal da pessoa jurídica.

2. O conceito de lei penal, estruturado pelo tipo legal (nullum crimen sine legè) e pela sanção penal (nulla poena sine lege), não se caracteriza para as pessoas jurídicas: a generalidade e a indeterminação das penas cominadas não pode ser suprida pela aplicação subsidiária das re­gras para pessoas físicas (art. 79, da Lei 9605/98), porque constituiria integração analógica praeter legem in malam partem, com infração

50 O discurso de SHECAIRA (Responsabilidade pena l da pessoajurídica, 1999, p. 107), de que “a pena sejustijica (...) como retribuição (...) com objetivospreventivos’\ ignora a diferença irredutível entre retribuição e prevenção; por outro lado, a proposta de combinar “prevenção gera lpositiva ’ com “prevenção especial não marcada pelo retributivismo’’ é irreal: a prevenção geral p o s i t i v a depende da n e g a t iv a , e nenhuma retórica consegue encobrir o fracasso histórico da prevenção especial.

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Teoria do Fato Punível Capítulo 17

do princípio da legalidade.

3. O conceito de pena, representado pelos objetivos de retribuição da culpabilidade e de prevenção da criminalidade, segundo o dis­curso oficial da teoria jurídica da pena desenvolvido para atuar sobre o complexo de afetos, emoções ou sentimentos da psique humana, capaz de arrependimento, de intimidação e de aprendizagem, não pode inci­dir sobre a psique impessoale incorpórea da pessoa jurídica, insuscetível de produzir qualquer das atitudes, dos estados ou dos sentimentos humanos pressupostos no discurso jurídico da pena criminal.

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T erceira P arte

T e o r ia d a P e n a

C apítu lo 1 8

P o l ít ic a C r im in a l e D ir e it o P e n a l

A Política Criminal constitui o programa oficial de controle social do crime e da criminalidade — uma definição comum em tex­tos contemporâneos de Criminologia1 —, enquanto o Direito Penal representa o sistema de normas que define crimes, comina penas e estabelece os princípios de sua aplicação — um conceito gene­ralizado em textos de Direito Penal.2 No Brasil e, de modo geral, nos países periféricos, a política criminal do Estado exclui políticas públicas de emprego, salário digno, escolarização, moradia, saúde e outras medidas complementares, como programas oficiais capazes de alterar ou de reduzir as condições sociais adversas da população marginalizada do mercado de trabalho e dos direitos de cidadania, definíveis como determinações estruturais do crime e da criminali­dade; por isso, o que deveria ser a política criminal do Estado existe, de fato, como simples política penal instituída pelo Código Penal e leis complementares — em última instância, a formulação legal do programa oficial de controle social do crime e da criminalidade: a definição de crimes, a aplicação de penas e a execução penal, como níveis sucessivos da política penal do Estado, representam a única resposta oficial para a questão criminal.3 Logo, se a política penal constitui o programa oficial para enfrentar o problema social do cri­me e da criminalidade, então o Direito Penal, como formulação legal desse programa oficial (descrição de crimes, cominação de penas e definição de princípios de execução penal), realiza o programa de

1 KAISER, Kriminologie, 1993, p. 642-643.2 Comparar ROXIN, Strafrecht, 1997, § 1, ns. 1-2, p. 1.3 Nesse sentido, BARATTA, Criminologia crítica e crítica do Direito Penal, 1999,2a edição,

p. 203-204.

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Teoria da Pena Capítulo 18

controle social do crime e da criminalidade.Como se sabe, a política penal realizada pelo Direito Penal é legi­

timada pela teoria da pena, estruturada pelos discursos de retribuição do crime e de prevenção geral e especial da criminalidade — as funções atribuídas à pena criminal pela ideologia penal oficial.4 Nessa pers­pectiva, a compreensão da Política Criminal — rectius, política penal— vigente pressupõe o estudo das funções atribuídas à pena criminal, como instrumento principal do programa oficial de controle do crime e da criminalidade.

Mas é preciso esclarecer: a análise da pena criminal não pode se limitar ao estudo das funções atribuídas pelo discurso oficial, definidas como funções declaradas ou manifestas da pena criminal; ao contrário, esse estudo deve rasgar o véu da aparênáa das funções declaradas ou manifestas da ideologia jurídica oficial, para identificar as funções reais ou latentes da pena criminal, que podem explicar sua existência, aplicação e execução nas sociedades divididas em classes sociais antagônicas, fundadas na relação capital/trabalho assalariado, que define a separação

força de trabalho/meios deprodução das sociedades capitalistas contempo­râneas. De um modo geral, as formas ideológicas de controle social possuem uma dimensão real pela qual cumprem a função de reproduzir a realidade, e uma dimensão ilusória pela qual ocultam ou encobrem a natureza da realidade reproduzida.5 No caso da pena criminal, as

4 Ver BARATTA, Criminologia crítica e crítica do Direito Penal,’ 1999, 2a edição, p. 191; comparar ROXIN, Strafrecht., 1997, §3, ns. 1-32, p. 41-54.

5 CIRINO DOS SANTOS, A. criminologia radical.' 2006, p. 99-100: “O Direito — ou a circulação — é intermediário necessário da produção capitalista, no qual nada ocorre, mas pelo qual tudo ocorre: a ideologia jurídica da proteção geral de sujeitos livres e iguais, vigente na esfera do Direito-árculação-mercado, oculta a desigualdade das relações coletivas de produção (relações de classes), a coação das relações econômicas sobre o trabalhador e a exploração do trabalho pela apropriação de mais-valia, como trabalho não-remunerado. Essa relação entre aparência (ãberdade e igualdade na esfera do Direito-circulação) e realidade (coação e exploração das relações de produção) explica asfunções de mistificação (ou de representação ilusória) e de reprodução das relações sociais realizadapela ideologia: a aparência de igualdade e de ãberdade do Direito-circulação reprodu^ a realidade da coação e exploração das relações de produção, que produzem aquela aparênáa. ”

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Capítulo 18 Política Criminal e Direito Penal

funções declaradas ou manifestas constituem o discurso oficial da teoria jurídica da pena; ao contrário, as funções reais ou latentes encobertas pelas funções aparentes da pena criminal, constituem o objeto de pes­quisa da teoria criminológica da pena.6

Além disso, o estudo da relação entre Política Criminal e Direito Penal, na perspectiva das funções declaradas ou manifestas e das funções reais ou latentes da pena criminal, pode explicar a esquizofrenia do programa oficial de Política Criminal realizado pelo Direito Penal nas sociedades contemporâneas, marcado pela contradição entre discurso penal e realidade da pena, que seguem direções diametralmente opostas.7

I. O discurso oficial da teoria jurídica da pena

1. A pena eomo retribuição de culpabilidade

1. A pena como retribuição do crime, no sentido religioso de expiação ou no sentido jurídico de compensação da culpabilidade, característica do Direito Penal clássico, representa a imposição de um mal justo contra o mal injusto do crime, necessário para realizar justiça ou restabelecer o Direito,8 segundo a conhecida fórmula de SENECA: punitur, quia

6 CIRINO DOS SANTOS, A. criminologia radical.\ 2006, p. 128.7 CIRINO DOS SANTOS, Política criminal: realidades e ilusões do discurso penal. In: Dis­

cursos sediciosos (crime, direito e sociedade), 2002, n. 12, p. 53-57.8 Ver ALBRECHT, Kriminologie,, 1999, p. 48; GROPP, Strafrecht, 2001, p. 32, n. 101-

102; ROXIN, Strafrecht, 1997, §3, n. 2, p. 41. No Brasil, ver BRANDAO, Introdução ao direito penal, 2002, p. 152-156.

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Teoria da Pena Capítulo 18

peccatum est? A sobrevivência liistórica da pena retributiva — a mais an­tiga e, de certo modo, a mais popular função atribuída à pena criminal— parece inexplicável: a pena como expiação de culpabilidade lembra suplícios e fogueiras medievais, concebidos para purificar a alma do condenado; a pena como compensação de culpabilidade atualiza o im­pulso de vingança do ser humano, tão velho quanto o mundo.10

2. A literatura penal possui várias explicações para a sobrevivência histórica da função retributiva da pena criminal. Primeiro, a psicologia popular, evidentemente regida pelo talião, parece constituir a base antropológica da pena retributiva: a retaliação expressa no olho p or olho, dentepor dente constitui mecanismo comum dos seres ^oo lógicos e, por isso, atitude generalizada do homem, esse %oonpolitikon.n Segundo, a tradição religiosa judaico-cristã ocidental apresenta uma imagem retributivo-vin- gativa da justiça divina, que talvez constitua a influência cultural mais poderosa sobre a disposição psíquica retributiva da psicologia popular— portanto, de origem mais social do que biológica.12 Terceiro, a filoso­fia idealista ocidental é retributiva-}3 KANT (1724-1804) define a justiça retributiva como lei inviolável' um imperativo categórico pelo qual todo aquele que mata deve morrer; para que cada um receba o valor de seu fato e a culpa do sangue não recaia sobre o povo que não puniu seus culpados;14 HEGEL

9 SENECA, De ira, Livro 1, 16, 21 (punido, porque pecou); ver NAUCKE, Strafrecht, 2000, n. 139, p. 32.

10 BRANDÃO, Introdução ao direito penal 2002, p. 21 a 29.11 ROXIN, Strafrecht, 1997, §3, n. 2, p. 41.12 Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, §3, n. 5, p. 43.13 Nesse sentido, BRANDÃO, Introdução ao direito penal, 2002, p. 156-159; também,

BUSATO/HUAPAYA, Introdução ao direito penal (fundamentos para um sistema penal democrático), 2003, p. 207-209.

14 KANT, Methaphysik der Sitten (1797), p. 331. Nessa passagem, a célebre hipótese da dissolução da sociedade: “Mesmo se a comunidade de ãdadãos, com a concordância de todos os membros, se dissolvesse, o último assassino encontrado na prisão deveria ser previamente executado, para que cada um receba o valor de seu fa to e a culpa do sangue não pese sobre o povo que não insistiu na punição. ”

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Capítulo 18 Política Criminal e Direito Penal

(1770-1831) define crime como negação do direito e pena como negação da negação e, portanto, como reafirmação do direito — uma antecipação de dois séculos da prevenção geral positiva de JAKOBS, da pena como afirmação da validade da normax5 —, considera a justiça retributiva a única digna do ser humano: criticou a teoria da coação psicológica de FEUER- BACH (1775-1833), porque não tratava o homem como ser “dotado de honra e liberdade”, mas como um cão ameaçado com um bastão.16 Quarto, o discurso retributivo se baseia na lei penal, que consagra o princípio da retribuição: o legislador determina ao juiz aplicar a pena conforme necessário e suficiente para reprovação do crime (art. 59, CP) — e, por essa via, o discurso retributivo também alcança a jurisprudência criminal, para a qual a pena criminal é, por natureza, retribuição através da imposição de um mal.17

3. A crítica jurídica do discurso retributivo da pena criminal, produzida por adeptos da prevenção especial e geral, tem por objeto a natureza expiatória ou compensatória da retribuição penal: retribuir, como mé­todo de expiar ou de compensar um mal (o crime) com outro mal (a pena), pode corresponder a uma crença — e, nessa medida, constituir um ato d efé —, mas não é democrático, nem científico.18 Não é demo­crático porque no Estado Democrático de Direito o poder é exerci­do em nome do povo — e não em nome de Deus — e, além disso, o Direito Penal não tem por objetivo realizar vinganças, mas proteger bens jurídicos. Por outro lado, não é científico porque a retribuição do crime pressupõe um dado indemonstrável: a liberdade de vontade do ser humano, pressuposta no juí%o de culpabilidade — e presente em

15 JAKOBS, Strafrecbt, 1993, n. 5, p. 36-37.16 HEGEL, Rechtspbilosophie (1821), §99.17 Nesse sentido, também o Tribunal Federal Constitucional alemão (22, 132): “'toda

pena criminal é, p o r natureza, retribuição através da imposição de um mal”, in ROXIN, Strafrecht, 1997, §3, n. 6, p. 43.

18 ROXIN, Strafrecht, 1993, §3, n. 8, p. 43-44.

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fórmulas famosas como, por exemplo, o poder de agir de outro modo de WELZEL,19 ou a falha de motivação jurídica de JAKOBS,20 ou mesmo a moderna dirigibilidade normativa de ROXIN21 —, não admite prova empírica. Assim, a pena como retribuição do crime se fundamenta num dado indemonstrável: o mito de liberdade pressuposto na culpabilidade do autor. A impossibilidade de demonstrar a liberdade pressuposta na culpabilidade determinou uma mudança na função atribuída à cul­pabilidade no moderno Direito Penal: a culpabilidade perde a antiga função de fundamento da pena, que legitima o poder punitivo do Estado em face do indivíduo, para assumir a função atual de limitação da pena, que garante o indivíduo contra o poder punitivo do Estado — uma mudança de sinal dotada de óbvio significado político.22

2. A pena como prevenção especial

1. A função de prevenção especial da pena criminal, dominante no Di­reito Penal dos séculos XIX e XX, é atribuição legal dos sujeitos da aplicação e da execução penal: primeiro, o programa de prevenção especial é definido pelo juiz no momento de aplicação da pena, através da sentença criminal, individualizada conforme necessário e sufiáente para prevenir o crime (art. 59, CP); segundo, o programa de prevenção especial definido na sentença criminal é realizado pelos técnicos da execução

19 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, p. 138.20 JAKOBS, Strafrecht, 1993, p. 480 s.21 ROXIN, Strafrecht, 1997, §19, p. 740. No Brasil, CIRINO DOS SANTOS, A moderna

teoria do fa to punível. Fórum, 2004, p. 209-215.22 ALBRECHT, Kriminologe, 1999, p. 49-50. No Brasü, CIRINO DOS SANTOS, A

moderna teoria dofato punível, 2004, p. 209-215; BUSATO/HUAPAYA, Introdução ao direito penal (fundamentos para um sistema penal democrático), 2003, p. 210-215.

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Capítulo 18 Política Criminal e Direito Venal

da pena criminal — os chamados ortopedistas da moral.\ na concepção de FOUCAULT23 —, com o objetivo de promover a harmônica integração social do condenado (art. Io, LEP).

2. A execução do programa de prevenção especial ocorreria em duas dimensões simultâneas, pelas quais o Estado. espera evitar crimes futuros do criminoso: por um lado, a prevenção especial negativa de segurança social através da neutralização (ou da inocuização) do crimino­so, consistente na incapacitação do preso para praticar novos crimes contra a coletividade social durante a execução da pena;24 por outro lado, a prevenção especial positiva de correção (ou de ressodalizçlção, ou de reeducação etc.) do criminoso, realizada pelo trabalho de psicólo­gos, sociólogos, assistentes sociais e outros funcionários da ortopedia moral do estabelecimento penitenciário, durante a execução da pena— segundo outra fórmula antiga: punitur, nepeccetur?5

3. A prevenção especial negativa de neutralização do criminoso, baseada na premissa de que a privação de liberdade do condenado produz segu­rança social, parece óbvia: a chamada incapacitação seletiva de indivíduos considerados perigosos constitui efeito evidente da execução da pena, porque impede a prática de crimes fora dos limites da prisão26 — e, assim, a neutralização do condenado seria uma das funções manifestas ou declaradas cumpridas pela pena criminal.

23 FOUCAULT, V igarepunir, 1977, p. 15.24 Ver NAUCKE, Strafrecbt, 2000, p. 33-34, n. 141; ROXIN, Strafrecht, 1997, §3, n. 7,

p. 43; ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 51-52 e 56 s.; GROPP, Strafrecht, 2001, p. 104-105, n. 106. No Brasil, comparar BUSATO/HUAPAYA, Introdução ao direito penal fundamentos para um sistema penal democrático), 2003, p. 220-224.

25 SENECA, De ira, Livro I, XIX-7 {punido, para que não peque), referindo PLATÃO (427-347 a.C) que, por sua vez, invocava PROTÁGORAS (485-415 a.C): “Nam, ut Vlato ait, nemo prudens punit quia peccatum est, sed ne p e c c e t u r V er ROXIN, Strafrecht, 1997, n. 11, p. 44-45; também ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 51-52 e 56 s.; GROPP, Strafrecht, 2001, n. 106, p. 34.

26 Ver KUNZ, Kriminologie, 1994, n. 19, p. 286.

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4. A crítica jurídica da prevenção especial positiva, fundada na premissa de que a pena criminal preserva todos os direitos não atingidos pela privação de liberdade, afirma que programas de ressocialização devem respeitar a autonomia do preso e, por isso, deveriam ser limitados a casos individuais voluntários, de ajuda à disposição de auto-ajuda do encarcerado: afinal, o condenado não pode ser compelido ao trata­mento penitenciário, o Estado não tem o direito de melhorar pessoas segundo critérios morais próprios e, enfim, prender pessoas fundado na necessidade de melhoria terapêutica é injustificável.27

5. Finalmente, o generalizado reconhecimento da ineficácia corretiva e dos efeitos nocivos da pena privativa de liberdade é disfarçado ou encoberto, como observam PILGRAM/STEINERT,28 por freqüentes declarações simplistas de que ainda não temos nada melhor Ao que a prisão.29

3. A pena como prevenção geral

A função de prevenção geral atribuída à pena criminal igualmente tem por objetivo evitar crimes futuros mediante uma forma negativa

27 KUNZ, Kriminologie, 1994, n. 40, p. 294. “Com isto, a execução ressociali^adora contém um novo fundamento, além da finalidade de evitação da criminalidade através da “melhoria’Ydo condenado). Por um lado, fica claro que o pensamento de ressoáali^ação ligado ã compensação dos danos colaterais da execução da pena não justifica — como sempre se verifica — manter pessoas presas fundado na necessidade de tratamento. Por outro ládo, um tratamento custodiai conforme uma terapia pseudo-médica de melhoramento, é excluída; a execução terapêutica deve respeitar a autonomia pessoal do preso e se limitará oferta deprogramas de ajuda com base em reivindicações voluntárias. ”

28 PILGRAM/STEINERT, Plãdoyerfur bessere Gründefiir die Abschaffung der Gefangnisse. In: H. Ortner (editor), Freiheit statt Strafe. Frankfurt a. M. (1981), p. 133-154.

29 MAIR, What works: nothing or everything? Measuring the effectiveness o f sentencing. In: Re­search Bulletin 30 (1991), p. 3-8.

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Capítulo 18 'Política Criminal e Direito Penal

antiga e uma forma positiva pós-moderna.

1. A forma tradicional de intimidação penal, expressa na célebre teoria da coação psicológica de FEUERBACH (1775-1833),30 representa a dimensão negativa da prevenção geral: o Estado espera desestimular pessoas de praticarem crimes pela ameaça da pena.31

1.1. A crítica jurídica da prevenção geral negativa destaca a ineficácia inibidora de comportamentos anti-sociais da ameaça penal.’ como indica a inutilidade das cruéis penas corporais medievais e das nocivas penas privativas de liberdade do Direito Penal moderno. Nesse sentido, é comum o argumento de que não seria a gravidade da pena — ou o rigor da execução penal —, mas a certeza (ou a probabilidade, ou o risco) da punição que desestimularia o autor de praticar crimes — na verdade, uma velha teoria já enunciada por BECCARIA (1738-1794),32 sempre retomada como teoria moderna pelo discurso de intelectuais e políticos do controle.

1.2. Além disso, a crítica jurídica destaca dois obstáculos insuperáveis da prevenção geral negativa fundada na ameaça penal: primeiro, a falta de critério limitador da pena transforma a prevenção geral negativa em verdadeiro terrorismo estatal33 — como indica, por exemplo, a lei de crimes hediondos, essa frustrada inovação do legislador brasileiro; segun­do, a natureza exemplar da pena como prevenção geral negativa viola a dignidade humana, porque acusados reais são punidos de forma exemplar para influenciar a conduta de acusados potenciais, ou seja, aumenta-se injustamente o sofrimento de acusados reais para desestimular o

30 FEUERBACH, Lehrbuch des gemeinen in Deutschland geltenden peinücben Rechts, 1801 (1966, p. 38).

31 Ver BRANDÃO, Introdução ao áreitopenal, 2002, p. 160; BUSATO/HUAPAYA, In­trodução ao direito penal (fundamentospara um sistema penal democrático), 2003, p. 216-217.

32 BECCARIA, Dei deãtti e dellepene (1764), 1973 (reimpressão), p. 73.33 ROXIN, Strafrecht, 1997, §3, n. 32, p. 52-53.

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comportamento criminoso de acusados potenciais.34

2. No final do século XX, a função de prevenção geral adquiriu uma forma positiva pós-moderna — geralmente definida como integração/ prevenção — cuja natureza polídco-criminal precisa ser esclarecida. Na verdade, existem pelo menos duas posições principais sobre prevenção geral positiva na literatura contemporânea, com proposições semelhan­tes mas com pressupostos e objetivos político-criminais diferentes.

2.1. Por exemplo, autores como ROXIN35 assumem a natureza relativa da prevenção geral positiva, concebida como uma junção no contexto de outras funções declaradas ou manifestas atribuídas à pena criminal, cuja legitimação consiste no objetivo de proteção de bens jurídicos, de natureza subsidiária porque existem outros meios mais efetivos de proteção, e de natureza fragmentária porque realiza proteção parcial dos bens jurídicos selecionados. Nesse sentido, ROXIN define a chamada integração/prevenção como demonstração da inviolabilidade do Direito, necessária para preservar a confiança na ordem jurídica e reforçar a fidelidade jurídica do povo,36 destacando uma tríplice superposição de efeitos político-criminais: primeiro, o efeito sócio-pedagógico de exercício em fidelidadejurídica, produzido pela atividade da justiça penal; segundo, o efeito de aumento da confiança do cidadão no ordenamento jurídico pela percepção da imposição do Direito; terceiro, o efeito de paáficação soáal pela punição da violação do Direito e, portanto, solução do conflito com o autor.37

2.2. Ao contrário, JAKOBS absoluti^a a função de prevenção geral positiva, concebida como teoria totali^adora da pena criminal, que con­centra as funções declaradas ou manifestas de intimidação, de correção, de

34 ROXIN, Strafrecht, 1997, §3, n. 32, p. 52-53.35 ROXIN, Strafrecht, 1997, §2, n. 38-39, p. 25.36 ROXIN, Strafrecht, 1997, §3, n. 26, p. 50.37 ROXIN, Strafrecht, 1997, §3, n. 27, p. 5CL51.

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neutralização e de retribuição atribuídas à pena criminal pelo discurso punitivo. Nesse sentido, a pena criminal definida como prevenção geral positiva realiza a função de afirmara validade da norma penal violada; por outro lado, a norma penal reafirmada pela pena criminal, é definida como bem jurídico-penai88— um conceito que substitui o conceito de bem

jurídico, considerado inútil pelo autor.39 Assim, define prevenção geral positiva como demonstração da validade da norma, manifestada através de reação contra a violação da norma realizada às custas do competente/respon­sável,40 necessária para reafirmar as expectativas normativas frustradas pelo comportamento criminoso.41 A função positiva de prevenção geral seria dirigida a todos os seres humanos, como exercício (a) de confiança na norma., necessário para saber o que esperar na interação social, (b) de fidelidade jurídica pelo reconhecimento da pena como efeito da contradição da norma e, finalmente, (c) de aceitação das conseqüências respectivas, pela conexão do comportamento criminoso com o dever de suportar a pena42 — na verdade, postulados do contrato social do século XVIII, com aceitação das normas sociais na qualidade de membro da sociedade e aceitação da punição na qualidade de infrator das normas sociais 43

4. As teorias unificadas: a pena como retribuição e prevenção

1. Finalmente, as modernas teorias unificadas da pena criminal repre­sentam uma combinação das teorias isoladas, realizada com o objetivo

38 JAKOBS, Strafrecht, 1993, n. 5, p. 36-37.39 JAKOBS, Strafrecht., 1993, ns. 3-4, p. 35-36s. ns. 7-8, p. 37-38.40 JAKOBS, Strafrecht, 1993, ns. 1-2, p. 5, n. 3, p. 6.41 JAKOBS, Strafrecht., 1993, n. 6, p. 7.42 JAKOBS, Strafrecht, 1993, ns. 15 e 16, p. 13.43 FOUCAULT, 1Vigiar epunir, 1977, p. 69-76.

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de superar as deficiências individuais de cada teoria, mediante fusão das funções declaradas ou manifestas de retribuição, de prevenção geral e de prevenção especial da pena criminal.44 Assim, a pena representaria (a) retribuição do injusto realizado, mediante compensação ou expiação da culpabilidade, (b) prevenção especial positiva mediante correção do autor pela ação pedagógica da execução penal, além de prevenção especial negativa como segurança social pela neutralização do autor e, finalmente, (c) prevenção geral negativa através da intimidação de crimi­nosos potenciais pela ameaça penal e prevenção geral positiva como manutenção/reforço da confiança na ordem jurídica etc.45

2. Atualmente, as teorias unificadas predominam na legislação, na ju­risprudência e na literatura penal ocidental — embora não passem da síntese moderna de uma antiga posição de compromisso entre partidários das teorias da retribuição, como BINDING (1841-1920)46 e defensores das teorias da prevenção, como LISZT (1851-1919),47 que encerrou a famosa controvérsia entre as Escolas Penais clássica e positivista do primeiro quarto do Século XX.

Assim, por exemplo, o Código Penal alemão adota as teorias unificadas da pena criminal, porque o §46 do Strafigeset^buch define culpabilidade como fundamento da pena (retribuição), determinada conforme os efeitos esperados para a vida futura do autor na comunidade (prevenção especial), enquanto o §47 menciona o objetivo de defesa da ordem jurídica (prevenção geral)48 — nesse sentido, o Tribunal Constitu-

44 EBERT, Strafrecht, 2001, p. 235.45 HASSEMER, Einfuhrung in die Grundlagen des Strafrechts, 1990, p. 325; NAUCKE,

Strafrecht, 2000, n. 142, p. 34 e ns. 33-43, p. 53-57, ns. 33-43; EBERT, Strafrecht, 2001, p. 235.

46 BINDING, Grundriss des Deutschen Strafrechts, 1907, p. 226.47 LISZT, Der Zmckgedanke im Strafrecht, 1905, vol. 1, p. 126.48 Ver WESSELS/BEULKE, Strafrecht, 2000, 30a edição, §1 I 4, n. 12, p. 4. .

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cional alemão atribui ã pena criminal a função absoluta de retribuição da culpabilidade, assim como as funções relativas de prevenção do crime e de ressocialização do delinqüente.49 No Brasil, o Código Penal con­sagra as teorias unificadas ao determinar a aplicação da pena “conforme seja necessário e suficiente para r ep r o v a çã o e p r e v e n ç ã o do crime” (art. 59, CP): a reprovação exprime a idéia de retribuição da culpabilidade; a prevenção do crime abrange as modalidades de prevenção especial (neutralização e cor­reção do autor) e de prevenção geral (intimidação e manutenção/reforço da confiança na ordem jurídica) atribuídas à pena criminal.

3. A adoção das teorias unificadas na literatura penal não exclui ênfases ora sobre uma, ora sobre outra teoria particular: por exemplo, JES­CHECK/WEIGEND colocam a ênfase na retribuição, porque a unidade das funções repressivas e preventivas da pena cumpre o objetivo de prevenir futuras violações do Direito fundado na ameaça, aplicação e execução da pena ju sta ;’° por outro lado, ROXIN adota as teoriaspreven­tivas unidas — porque as normas penais protegem a liberdade individual e a ordem social —, mas integradas pelo princípio da culpabilidade da teoria da retribuição, como critério limitador da pena.51

4. Em outra perspectiva, essa tríplice função da pena corresponderia aos três níveis de realização do Direito Penal: a função de prevenção geral negativa corresponde à cominação da ameaça penal no tipo legal; a função de retribuição e a função de prevenção geral positiva cor­respondem à aplicação judicial da pena; a função de prevenção especial positiva e negativa corresponde à execução penal.52

49 BUNDESVERFASSUNGSGERICHT, Decisão 45,187,253.50 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §1 II, p. 4.51 ROXIN, Strafrecht, 1997, §3, ns. 34-55, p. 54-62.52 Ver, por exemplo, EBERT, Strafrecht, 2001, p. 236.

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II. O discurso critico da teoria criminológica da pena

O discurso crítico da teoria criminológica da pena é produzido por duas teorias principais, com propósitos comuns, mas métodos diferen­tes: a) a teoria negativa/ agnóstica da pena, fundada na dicotomia estado de direito/estado de polida, elaborada pelo trabalho coletivo de RAUL ZA- FFARONI e NILO BATISTA53 (com a contribuição atual de A. ALA­GIA e A. SLOKAR); b) a teoria materialista/dialética da pena, fundada na distinção entre funções reais e funções ilusórias da ideologia penal nas sociedades capitalistas,54 desenvolvida pela tradição marxista em crimi­nologia, formada por PASUKANIS,55 RUSCHE/KIRCHHEIMER,56 MELOSSI/PAVARINI57 e BARATTA58—para citar os mais conhecidos —, com a contribuição relevante do estruturalista FOUCAULT.59

A) A crítica negativa/agnóstica da pena criminal

1. A teoria negativa jagnóstica da pena criminal tem por fundamento modelos ideais de estado de polida e de estado de direito, coexistentes

53 ZAFFARONI/BATISTA/ALAGIA/SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003.54 Ver CIRINO DOS SANTOS, A criminologia radical' 2006, p. 128: ‘M Criminologia

Radical distingue objetivos ideológicos aparentes do sistema punitivo (repressão da crimina­lidade, controle e redução do crime e ressociali^ação do criminoso) e objetivos reais ocultos do sistema punitivo (reprodução das relações de produção e da massa criminalizada), demonstrando que o fracasso histórico do sistema penal limita-se aos objetivos ideológicos aparentes, por­que os objetivos reais ocultos do sistema punitivo representam êxito histórico absoluto desse aparelho de reprodução do poder econômico e político da sociedade capitalista. ”

55 PASUKANIS, Teoria gera l do direito e o marxismo, 1972.56 RUSCHE/KIRCHHEIMER, Punishment and social structure, 1939.57 MELOSSI/PAVARINI, Cárcelyfábrica, 1980.58 BARATTA, Criminologia crítica e crítica do Direito Penal, 1999.59 FOUCAULT, Vigiar epunir, 1977.

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no interior do Estado moderno em relação de exclusão recíproca,60 assim sintetizados:

a) o modelo ideal de estado de polida se caracteriza pelo exercício de poder verticale autoritário e pela distribuição de justiça substandalista de grupos ou classes sociais, expressiva de direitos meta-humanos paternalistas, que suprime os conflitos humanos mediante as funções mani­festas positivas de retribuição e de prevenção da pena criminal, conforme a vontade hegemônica do grupo ou classe social no poder;61

b) o modelo ideal de estado de direito se caracteriza pelo exercício de poder horizontal/ democrático e pela distribuição de justiça procedimen­tal da maioria, expressiva de direitos humanos fraternos, que resolve os conflitos humanos conforme regras democráticas estabelecidas, com redução ou limitação do poder punitivo do estado de polida .62

2. Do ponto de vista científico, a teoria negativa j agnóstica da pena criminal é, antes e acima de tudo, uma teoria negativa das funções declaradas ou manifestas da pena criminal, expressas no discurso oficial de retribuição e de prevenção geral e especial (positivas e negativas), rejeitadas como falsas pelos autores63 — que recuperam conceito de TOBIAS BARRETO para definir pena criminal como ato de poder polí­tico correspondente ao fundamentojurídico daguerra;64 em segundo lugar, é uma teoria agnóstica das funções reais ou latentes da pena criminal, porque renuncia à cognição dos objetivos ocultos da pena criminal,

60 ZAFFARONI/BATISTA/ALAGIA/SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, p. 94-95.61 ZAFFARONI/BATISTA/ALAGIA/SLOKAR, Direito p ena l brasileiro, 2003,

p. 94 e 99.62 ZAFFARONI/BATISTA/ALAGIA/SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, p.

94-95 e 100.63 ZAFFARONI/BATISTA/ALAGIA/SLOKAR, Direito penal brasileiro,, 2003, p.

99 e 108-109.64 ZAFFARONI/BATISTA/ALAGIA/SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, p. 109.

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Teoria da Pena Capítulo 18

que seriam múltiplos e heterogêneos.65

3. Do ponto de vista político-criminal, a teoria negativa/agnóstica da pena tem por objetivo ampliar a segurança jurídica de todos os habitantes mediante redução do poder punitivo do estado de polida e correspon­dente ampliação do estado de direito, pelo reforço do poder de decisão das agendasjurídica/6 — fundado em conceito ôntico limitador Ao sistema punitivo —, capazes de limitar, mas incapazes de suprimir o estado de polida, cujo poder maior transcenderia a pena criminal para vigiar, registrar e controlar idéias, movimentos e dissidências.67

4. O objetivo de conter o poder punitivo do estado de polida intrínseco em todo estado de direito, proposto pela teoria negativa/agnóstica da pena criminal — produzida pela inteligência criativa de EUGENIO RAÚL ZAFFARONI e de NILO BATISTA, comprometidos com a democra­tização do sistema punitivo na periferia do sistema político-econômico globalizado —, justifica a teoria negativa jagnóstica da pena criminal como teoria crítica, humanista e democrática do Direito Penal, credenciada para influenciar projetos de política criminal e a prática jurídico-penal na América Latina. Afinal, definir pena como ato depoder político, atribuir à pena o mesmo fundamento jurídico àz. guerra e rejeitar como falsas as funções manifestas ou declaradas da pena criminal significa ruptura radical e definitiva com o discurso de lei e ordem do poder punitivo.68

5. Assim, (a) considerando o humanismo filosófico e os objetivos

65 ZAFFARONI/BATISTA/ALAGIA/SLOKAR, Direito pena l brasileiro, 2003, p.99-100: 'Trata-se de um conceito de pena que é negativo p o r duas ratões: a) não concede qualquerfunção positiva à pena;~b) é obtido p o r exclusão É agnóstico quanto à suafunção,pois confessa não conhecê-la. ”

66 ZAFFARONI/BATISTA/ALAGIA/SLOKAR, Direito pena l brasileiro, 2003, p. 108-109 e 110-112.

67 ZAFFARONI/BATISTA/ALAGIA/SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, p. 99-103 e 108.

68 ZAFFARONI/BATTSTA/ALAGIA/SLOKAR, Dmtopenal bmsilàD, 2003, p. 98-100 e 108-109.

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polídco-criminais democráticos da teoria negativa j agnóstica da pena criminal, (b) agindo com a perspectiva declarada de ampliar a con­vergência teórica e metodológica entre a teoria negativa/agnóstica e a teoria materialista/dialética da pena criminal e (c) levando em conta que nenhuma teoria científica nasce acabada do cérebro humano, mas ad­quire status científico pelo debate crítico coletivo, parece recomendável fazer os seguintes comentários complementares:

5.1. Do ponto de vista conceituai, o componente negativo da teoria negativa/agnóstica da pena criminal, como rejeição das funções decla­radas ou manifestas atribuídas à pena pelo discurso oficial, poderia ser assumido pela teoria materialista/dialética da pena — que pesquisa as dimensões de realidade e de ilusão da ideologia penal nas sociedades capitalistas —, porque tem por objeto a dimensão ilusória da ideologia penal; mas o componente agnóstico do conceito, como renúncia de cognição das funções reais ou latentes do sistema penal, na medida em que indica desinteresse científico sobre realidades ocultas por detrás da aparênáa de instituições sociais, parece romper com a tradição histórica da Criminologia Crítica — nesse caso, em contraste com a inegável natureza crítica do trabalho intelectual dos autores, que explicam a repressão penal pela seletividade fundada em estereótipos desencadeados por indicadores sociais negativos de pobreza, marginalização etc.

5.2. Do ponto de vista metodológico, a teoria negativa/agnóstica da pena criminal descarta o conceito de modo de produção da vida social — que define a articulação de forças produtivas materiais (homens e tecnolo­gia) em determinadas relações de produção históricas (no caso, a relação capital/trabalho assalariado), nas quais se manifesta a luta de classes da formação social — como método de análise dos fenômenos sociais, o que explicaria a relativa abstração dos conceitos de Estado, de poder político e de pena criminal’ carentes de determinações históricas concre­

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tas: o Estado parece independente da estrutura de classes da sociedade civil (mais no original argentino do que na versão brasileira, em queo conceito de classe social é introduzido por NILO BATISTA); o poder político do Estado parece isolado da luta de classes na estrutura econô­mica da relação capitalj trabalho assalariado — aliás, o conceito de luta de classes seria o melhor argumento para a analogia entre pena e guerra, assumida pelos autores; e a pena criminal parece diluída na coerção oficial mediante privação de direitos ou dor, sem identificar a prisão como modalidade específica de punição das sociedades capitalistas.

5.3. Finalmente, do ponto de vista das formas jurídicas do poder po­lítico da relação capital/ trabalho assalariado, a pura e simples negação das funções declaradas ou manifestas e a atitude agnóstica em face das funções reais ou latentes da pena criminal — que definem a teoria negativa jagnós­tica da pena criminal —, parecem cancelar as dimensões de realidade e de ilusão das formas ideológicas de controle social das sociedades de classes sociais antagônicas, com o abandono da crítica crimínológica fundada na dialética das funções declaradas ou manifestas da ideologia penal — que legitimam o discurso oficial sobre crime e controle social— e das funções reais ou latentes do sistema penal — que garantem as relações sociais fundadas na separação força de trabalho/meios de produção das sociedades capitalistas.69

69 CIRINO DOS SANTOS, A criminologia radical.\ 2006, p. 129: aA categoria gera l expli­cativa do Direito, capa% de esclarecer as relações entre a aparênáa e a realidade de suas funções, é o conceito de modo de produção da vida material: a proteção da igualdade na esfera de circulação esconde a dominação política e a exploração econômica de classe na esfera de pro­dução. O Direito, como relação social objetiva, realizafunções ideológicas aparentes de proteção da igualdade e da liberdade e funções reais ocultas de instituição e reprodução das relações sociais deprodução: a desigualdade das relações de classes (exploração) e a coação das relações econômicas (dominação) é o conteúdo instituído e reproduzido pela forma livre e igual do Direito. ”

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B) A crítica m aterialista/dialética da pena criminal

1. A pena como retribuição equivalente do crime1. O discurso crítico da teoria materialista/dialética da pena criminal pretende revelar a natureza real da retribuição penal nas sociedades con­temporâneas — que não representa resquício metafísico de expiação do mal injusto do crime pelo mal justo da pena, como pretendem teóricos da prevenção positiva geral e especial, nem se reduz ao argumento antropológico de sobrevivência da vingança retaliatória no psiquismo humano, nem pode ser explicada por argumentos filosóficos do tipo imperativo categórico ou dignidade do ser humano, assim como não se confina aos argumentos legais da pena necessária e suficiente para reprovação do crime. Ao contrário, a teoria criminológica materialis­ta ! dialética introduz uma explicação política da emergência histórica da retribuição equivalente, como fenômeno sócio-estrutural específico das sociedades capitalistas: a função de retribuição equivalente da pena criminal corresponde aos fundamentos materiais e ideológicos das so­ciedades fundadas na relação capital/trabalho assalariado, porque existe como forma de “equivalência jurídica” fundada nas relações de produção das sociedades capitalistas contemporâneas.70

2. A teoria materialista/dialética da história parte do princípio de que a produção e a árculação de mercadorias é o fundamento material da ordem social capitalista.71 A síntese do materialismo histórico foi formulada por MARX no célebre Prefácio de 1859, que apresenta o método de estudo das formações sociais modernas. Segundo essa concepção, o Direito e o Estado não podem ser compreendidos por si mesmos, mas pelas

70 PASUKANIS, Teoria gera l do direito e o marxismo, 1972, p. 203.71 MARX, Anti-Dühring, 1876, p. 78.

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relações da vida material da sociedade civil, cuja anatomia é representada pela economia política. Na produção da vida social, os homens en­tram em relações de produção determinadas e necessárias, cujo conjunto constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se elevam superestruturas jurídicas e políticas, e a que correspondem de­terminadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona os processos da vida social, política e intelectual, em geral: não é a consciência dos homens que determina o ser, mas o ser social que determina a consciência. O conceito de modo de produção compreende a dialética entre forças produtivas e relações de produção: em princípio, as relações sociais de produção - ou relações de propriedade- correspondem às forças produtivas materiais (homens, tecnologia e natureza), mas em determinado estágio de desenvolvimento as forças produtivas entram em contradição com as relações de produção, que se transformam em entraves ao seu desenvolvimento, abrindo um período histórico de revolução social. Nesses períodos de transfor­mação histórica deve-se distinguir a mudança das condições econômicas de produção, que permitem verificação científica rigorosa, por um lado, e a alteração das formas ideológicas Jurídicas e políticas pelas quais os homens definem e disciplinam os conflitos sociais, por outro lado. Essas épo­cas históricas não podem ser avaliadas por sua consciência jurídica, política ou filosófica, mas pelas contradições da vida material’ constituídas pelo conflito entre forças produtivas e relações de produção.72

3. A explicação materialista da retribuição equivalente da pena criminal, com o emprego de categorias científicas desenvolvidas para explicar a relação capitaljtrabalho assalariado das sociedades capitalistas, foi inaugurada por PASUKANIS em A. teoria geral do direito e o marxismo (1924) e inicia uma tradição de pensamento crítico em teoria jurídica e criminológica, na qual se inserem contribuições fundamentais da

72 MARX, Contribuição para a crítica da economia política (Prefácio), 1973.

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Capítulo 18 Política Criminal e Direito Penal

teoria marxista sobre crime e controle social.

Nessa tradição crítica, RUSCHE/KIRCHHEIMER em Punish- ment and social structure (1939)73 formulam a tese de que todo sistema de produção tende a descobrir punições que correspondem às suas relaçõesprodutivas, demonstrando a relação mercado de trabalho/sistema de punição: o traba­lhador integrado no mercado de trabalho é controlado pela disciplina da fábrica, enquanto o trabalhador fora do mercado de trabalho é con­trolado pela disciplina da prisão. Em complemento, a relação mercado de trabalho/sistema de punição é regida pela seguinte lógica: se a força de trabalho é insufiáente para as necessidades do mercado, os métodos punitivos do sistema penal preservam a força de trabalho; se a força de trabalho excede as necessidades do mercado, os métodos punitivos do sistema penal destróem a força de trabalho. Igualmente, FOUCAULT em Surveiller etpunir (1975) — apesar da posição estruturalista — define o sistema punitivo como fenômeno social concreto ligado ao processo de produção, menos pelos efeitos negativos de repressão e mais pelos efei­tos políticos positivos de dominação/exploração, uma economia política do corpo programada para produzir corpos dóceis e úteis como disciplina da força de trabalho74 — cujo êxito histórico aparece no controle diferen­cial da criminalidade, com repressão das camadas sociais subalternas e imunidade das elites de poder econômico e político da sociedade capitalista.75 Pouco depois, MELOSSI/PAVARINI em Cárcere efábrica (1977)76 definem a relação cárcere /fábrica como a matriz histórica do capitalismo, demonstrando que as relações de trabalho da fábrica, principal instituição da estrutura social, dependem da disciplina do sis­tema penal, principal instituição de controle social do capitalismo, para

73 RUSCHE/KIRCHHEIMER, Punishment and social structure, 2003, p. 5: “Every system ofproduction tends to discoverpunishments mch correspond to itsproductive relationsbips”.

74 FOUCAULT, Vigiar epunir, 1977, p. 26-32 e 125-152.75 FOUCAULT, Vigiar epunir, 1977, p. 244-248.16 MELOSSI/PAVARINI, C árcelj fábrica (los orígenes del sistema penitenciário), 1980.

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manter e reproduzir as relações sociais de dominação/exploração de classe: a origem da prisão seria a produção de um novo dpo humano, o chamado capital variável, representado pelo trabalho assalariado.762 Finalmente, BARATTA em Criminologia crítica e crítica do direito penal (1986)77 integra as contribuições da tradição materialista/dialética em uma concepção unitária de Criminologia Crítica para a sociedade capi­talista: mostra a função de reprodução social do sistema penal e propõe uma política criminal alternativa de redução do Direito Penal desigual e de ampliação da democracia real, cujo significado político aparece na perspectiva de abolição do sistema penal, condicionada à superação do capitalismo como modo de produção de classes.

4. A estrutura material das relações econômicas do capitalismo se baseia no princípio da retribuição equivalente em todos os níveis da vida social: do trabalho pelo salário na produção social de bens ou serviços— apesar da expropriação de mais-valia; da mercadoria pelo preço na distribuição social de bens ou serviços — não obstante o lucro etc. Logo as formas jurídicas da formação social capitalista instituem a retribuição equivalente, no âmbito da responsabilidade civil, por exemplo, sob a forma do contrato, da indenização etc; no âmbito da responsabili­dade penal, a retribuição equivalente é instituída sob a forma da pena privativa de liberdade, como valor de troca do crime medido pelo tempo de liberdade suprimida.78 A retribuição equivalente, como valor de troca do crime nas sociedades capitalistas, está ligada ao critério geral do valor da mercadoria, determinado pela quantidade de trabalho social

76a MELOSSI, Punishment and soáal structure, in Crime and social justice, 9, p. 73-85.77 BARATTA, Criminologia crítica e crítica do Direito Penal, 1999, 2a edição.78 PASUKANIS, Teoria geral do direito e o marxismo, 1972, p. 202: “A. pena proporáonada

à culpabilidade representa fundamentalmente a mesma forma que a reparação proporcionada ao dano. (...) Esta forma está inconscientemente, mas profundamente, ligada à representação do homem abstrato e do trabalho humano abstrato mensurável pelo tempo. ”

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necessário para sua produção: o tempo médio de dispêndio de energia produtiva, segundo MARX.79 A importância da teoria de PASUKANIS está em situar a retribuição equivalente no fecho da transição histórica do “sujeito zoológico” da vingança de sangue para o “sujeito jurídico” da pena proporcional: a troca igual exclui a vingança posterior, primeiro pelo talião, mais tarde pela composição e, finalmente, se consolida como retribuição equivalente medida pelo tempo de liberdade suprimida — con­forme o critério de valor da sociedade capitalista.80

5. A concepção de pena como retribuição equivalente da sociedade ca­pitalista, no sentido de valor de troca que realiza o princípio da igualdade do Direito, corresponde à lógica da troca de força de trabalho pelo equi­valente salarial no mercado, que reduz toda riqueza social ao trabalho abstrato medido pelo tempo, o critério geral do valor na economia e no Direito.81 Por um lado, a pena como retribuição equivalente representa o momento jurídico da igualdade formal' que oculta a submissão total da instituição carcerária, como aparelho disciplinar exaustivo para produzir sujeitos dóceis e úteis, que configura o cárcere como fábrica

79 Ver CIRINO DOS SANTOS, A crimnohga radical, 2006, p. 87: “A definição dapena como ‘forma salário” da privação de liberdade, baseadam “valor de troca” do tempo,formuladaporFoucault— e, antes dele, porRusche e Kirchheimer—, aparece ainda mais claramente em Vasukams, aoinãcara “medida de tempo” como critério comumpara determinar o valor do trabalho na economia e a privação de liberdade no Direito. ”

80 PASUKANIS, A teoria gera l do direito e o marxismo, 1972, p. 202: ‘Vara que a idéia da possibilidade de reparar o delito através de um quantum de liberdade tenha podido nascer f o i preciso que todas as formas concretas da riqueza social tivessem sido redundas à mais abstrata e mais simples das formas, ao trabalho humano medido pelo tempo. ”

81 Essa correlação foi observada por teóricos tradicionais, como KELSEN, Algemeine Theorie derNormen, 1990, p. 109-110: “a instituição de sanções é conseqüência do emprego do deásivo princípio da retribuição para a vida comunitária. Vode ser assimformulado: se um membro da comunidade se comporta de modo lesivo a interesses da comunidade, deve ser punido, ou seja, deve ser-lhe imposto um mal; se ele se comporta de modo a promover interesses da comunidade, deve ser recompensado, ou seja, deve ser-lhe atribuído um bem. O princípio da retribuição exprime o princípio dejustiça da igualdade: igual p o r igual, bem p o r bem, malpor mal. Como o princípio do talião: olho p o r olho, dente p o r dente. ”

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de proletários; por outro lado, o salário como retribuição equivalente do trabalho, na relação jurídica entre sujeitos “livres” e “iguais” no mer­cado, oculta a desigualdade real do processo de produção, em que a expropriação de mais-valia significa retribuição desiguale a subordinação do trabalhador ao capitalista significa dependência real.\ determinada pela coação das necessidades econômicas, que configuram a fábrica como cárcere do operário.82

6. A analogia da pena criminal com a mercadoria na sociedade capitalista pode ser ampliada para abranger, também, a dimensão de valor de uso da mercadoria: o valor de troca da pena criminal existe, segundo a fórmula de PASUKANIS, como retribuição equivalente do crime; ao contrário, o valor de uso da pena criminal consistiria nas funções de prevenção especial e de prevenção geral, no sentido de funções utilitárias manifestas ou declaradas atribuídas pela ideologia penal ao valor de troca da pena criminal, medido pelo tempo de liberdade suprimida do condenado:

a) a prevenção especial negativa de neutralização do condenado e a prevenção especial positiva de correção do condenado, vinculam a retribuição equivalente da pena criminal às funções reais/latentes de disciplina da classe trabalhadora;

b) a prevenção geral negativa de intimidação de criminosos po­tenciais e a prevenção geral positiva de integração/prevenção da pena criminal, como afirmação da validade da norma, na linha de JAKOBS, ou como afirmação dos valores comunitários, na Jinha de ROXIN, vinculam a retribuição equivalente da pena criminal às funções reais /latentes de pre­servação da ordem social fundada na relação capital/ trabalho assalariado das sociedades contemporâneas.

Entretanto, se o valor de troca da pena criminal se realiza na retribuição equivalente — que caracteriza a função real ou latente da pena criminal no capitalismo —, o valor de uso da pena criminal constitui utilidade atribuída

82 PASUKANIS, Teoria gera l do direito e o marxismo, 1972, p. 163-183.

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ao valor de troca da pena criminal, sob as formas de prevenção especial e geral, cujas funções declaradas ou manifestas são ineficazes, mas cujas funções reais ou latentes de garantia das condições fundamentais da sociedade capitalista, são eficazes: garantem a separação força de trabalho/meios de produção, sobre a qual assenta o modo de produção fundado na contradição capital/trabalho assalariado — ou seja, o valor de uso atribuído à pena criminal, inútil do ponto de vista das funções declaradas ou manifestas do sistema penal, é útil do ponto de vista das funções políticas reais ou latentes da pena criminal, precisamente porque a desigualdade social e a opressão de classe do capitalismo é garantida pelo discurso penal da correção/ neutralização individual e da intimidação/ reforço da fidelidade jurídica do povo.83

Conclusão: se a pena constitui retribuição equivalente do crime, medida pelo tempo de liberdade suprimida segundo a gravidade do crime realizado, determinada pela conjunção de desvalor de ação e de desvalor de resultado, então a pena como retribuição equivalente representa a forma de punição específica e característica da sociedade capitalista, que deve perdurar enquanto subsistir a sociedade de produtores de mercadorias84 — gostemos ou não gostemos disso.

2. A prevenção especialcomo garantia das relações sociais

1. A prevenção especial negativa de neutralização do condenado me­diante privação de liberdade — a chamada incapacitação seletiva de indi­

83 PASUKANIS, A. teoria gera l do direito e o marxismo, 1972, p. 185 s.84 PASUKANIS, Teoria gera l do direito e o marxismo, \912, p. 207: “Enquanto a fórmula

mercantil e a forma jurídica que dela resulta, continuarem a imprimir à sociedade a sua marca, a idéia de que a gravidade de cada delito pode ser calculada e expressa em meses ou anos de prisão (...) conservará, na práticajudiciária, a suaforça e a sua significação reais. ”

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víduos considerados perigosos —, em princípio incontestável porque impede a prática de crimes fora dos limites da prisão, igualmente possui aspectos contraditórios, como demonstra a moderna crítica criminológica:85

a) a privação de liberdade produz maior reincidência — e, portanto, maior criminalidade —, ou pelos reais efeitos nocivos da prisão, ou pelo controle seletivo fundado na prognose negativa da condenação anterior;

b) a privação de liberdade exerce influência negativa na vida real do condenado, mediante desclassificação social objetiva, com redução das chances de futuro comportamento legal e formação subjetiva de uma auto-imagem de criminoso — portanto, habituado à punição;

c) a execução da pena privativa de liberdade representa a máxima desintegração social do condenado, com a perda do lugar de trabalho, a dissolução dos laços familiares, afetivos e sociais, a formação pessoal de atitudes de dependência determinadas pela regulamentação da vida prisional, além do estigma social de ex-condenado;

d) a subcultura da prisão produz deformações psíquicas e emo­cionais no condenado, que excluem a reintegração social e realizam a chamada self fulfillingprophecy, como disposição aparentemente ine­vitável de carreiras criminosas;

e) prognoses negativas fundadas em indicadores sociais desfavo­ráveis, como pobreza, desemprego, escolarização precária, moradia em favelas etc., desencadeiam estereótipos justificadores de criminalização para correção individual por penas privativas de liberdade, cuja execu­ção significa experiência subcultural de prisionalização, deformação pessoal e ampliação da prognose negativa de futuras reinserções no sistema de controle;

85 KUNZ, Kriminologie, 1994, ns. 21-24, p. 286-287 e ns. 42-46, p. 295-296; também, ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 41-47 e 60-62.

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f) finalmente, o grau de periculosidade criminal do condenado é proporcional à duração da pena privativa de liberdade, porque quanto maior a experiência do preso com a subcultura da prisão, maior a rein­cidência e, portanto, a formação de carreiras criminosas, conforme demonstra o labeling approach.86

2. A crítica criminológica da função de prevenção especial positiva da pena criminal — como se sabe, baseada na noção de crime como problema individuale na concepção de pena como tratamento curativo87 —, demonstra o fracasso histórico do projeto técnico-corretivo da prisão,88 caracteri­zado pelo reconhecimento continuado do fracasso e pela reproposição reiterada do mesmo projeto fracassado — segundo o célebre isomorfismo reformista de FOUCAULT.89 A crise do projeto de reconstrução do condenado como força de trabalho útil, sintetizada no famoso “nothing works” de MARTINSON,90 está na origem da atual transformação da prisão em instrumento de pura deterrence, reduzido à prevenção especial negativa de segurança e de incapacitação do preso.

As distorções do projeto técnico-corretivo de prevenção especial positiva abrange os momentos de aplicação e de execução da pena crimi­nal. A crise da aplicação da pena reside na contradição entre o discurso do processo legal devido e a realidade do exercício seletivo do poder de punir: a) por um lado, o discurso do processo legal devido, regido pela dogmática como critério de racionalidade, vê o crime como realidade ontológicapreconstituída, que o sistema de justiça criminal identifica e processa;91 b) por outro lado, a realidade do exercido seletivo do poder

86 ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 41-47 e 60-62; também, KUNZ, Kriminologie, 1994, ns. 21-24, p. 286-287.

87 KUNZ, Kriminologie, 1994,1, 39, p. 294.88 BARATTA, Criminologia crítica e crítica do Direito Penal, 1999, 2a edição, p. 205.89 FOUCAULT, Vigiar e punir, 1977, p. 239.90 MARTINSON, What Works? Questions and answer aboutprison reform, 1974, p. 22-54.91 Ver BARATTA, Criminologia crítica e crítica do Direito Penal 1999,2a edição, p. 104-109;

ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 82-83.

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de punir, encoberta pelo discurso do processo legal devido, permite (a) compreender o crime como realidade soáalconstruída pelo sistema de controle social, (b) definir criminalização como um bem soáal negativo distribuído desigualmente pela posição social do autor e (c) identificar o sistema de justiça criminal como instituição ativa na transformação do cidadão emcriminoso.92 O crime como realidade soáal construída, a criminalização como bem soáal negativo e o sistema de justiça criminal como instituição ativa na distribuição social da criminalização podem ser explicados pela lógica menos ou mais inconsciente das chamadas meta-regras — ou basic rules, segundo CICOUREL93 —, mecanismos psíquicos de natureza emocional atuantes no cérebro do operador do Direito, constituídos de estereótipos, preconceitos, idiossincra­sias e outras deformações ideológicas do intérprete94 — definidos por SACK como o momento deásivo do processo de criminalização95 —, capazes de esclarecer a concentração da repressão penal em setores sociais

92 Comparar ZAFFARONI/BATISTA/ALAGIA/SLOKAR, Direito penal brasileiro, 1993, p. 49-53.

93 CICOUREL, Basic and normative rules in negoüation o f status and roles. In: DREITZEL (editor), 1970, p. 4-45.

94 Ver LOPES JR., Introdução crítica ao processo penal.’ 2004, p. 74-83, especialmente p. 76-78, com o seguinte trecho antológico: “Aqui está um outro grave problema: ojui^que assume “uma cultura subjacente, de forte conotação de defesa soáal, incrementada pela ação persistente dos meios de comunicação, reclamando menos impunidade e maior rigor penal (...). E aquele ju i^que absorve esse discurso de limpeza social e assim passa a atuar, colocando-se no papel de defensor da lei e da ordem, verdadeiro guardião da segurança pública e da p a% soáal. (...) Essejui% representa uma das maiores ameaças ao processo penal e ã própria administração da justiça, pois ép resa fáá ld os juízos apriorísticos de inverossimilitude das teses defensivas; (...) introjeta com faálidade os discursos de “combate ao crime” (...) e transforma o processo numa encenação inútil, pois desde o iníáo j á tem definida a hipótese acusatória como verdadeira. Logo, invocando uma ve^mais CORDERO, essejui% ao eleger de iníáo a hipótese verdadeira, nãofa^ no processo mais do que uma encenação, destinada a mascarar a hábil alquimia de transformar os fatos em suporte da escolha iniáal. Ou seja, não deáde apartir dosfatos apresentados no processo, senão da hipótese iniáalmente eleita como verdadeira. A. deásão não f o i construída a partir da prova, pois ela já fo i tomada de iníáo. E o prejuízo que decorre do pré-juí^o. ”

95 SACK, Neue Perspektiven in derKriminologie. In: Kriminalsoziologie, organizado por R. Konig e F. Sack, 1968, p. 469.

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marginalizados ou subalternos, ou na área das drogas, ou do patri­mônio, por exemplo — e não nos crimes contra a economia, a ordem tributária, a ecologia etc., próprios das elites de poder econômico e político da sociedade.96

3. Enfim, a crise da execução da pena, como realização do projeto técnico-corretivo da prisão, é irreversível. E a explicação da crise é simples: a prisão introduz o condenado em duplo processo de trans­formação pessoal, de desculturação pelo desaprendizado dos valores e normas de convivência social, e de aculturação pelo aprendizado de valores e normas de sobrevivência na prisão,97 a violênáa e a corrupção— ou seja, a prisão só ensina a viver na prisão. Em poucas palavras, a prisão prisionali%a o preso que, depois de aprender a viver na prisão, retorna para as mesmas condições sociais adversas que determinaram a criminalização anterior.

Em síntese, o processo simultâneo de desculturação e de aculturação descrito por BARATTA, designa aqueles mecanismos de adaptação pessoal à cultura da prisão desencadeados pela rotulação oficial do cidadão como criminoso, que transformam a auto-imagem e deformam a personalidade do condenado, recondicionada como produto de nova (re)construção social' orientada pelos valores e normas de sobrevivência na prisão, como indica o labeling approach.98 Cumprida a pena, o retor­no do condenado prisionalizado para as mesmas condições sociais adversas determinantes da criminalização anterior encontra um novo componente: a atitude dos outros. A expectativa da comunidade de que o

96 Ver BARATTA, Criminologia crítica e crítica do direito penal’ 1999,2a edição, p. 104-109; ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 82-83. ZAFFARONI/BATISTA/ALAGIA/ SLOKAR, Direito pena l brasileiro, 1993, p. 46-47.

97 Ver BARATTA, Criminologia crítica e crítica do direito penal, 1999, 2a edição, p. 184.98 BECKER, Outsiders: Studies in the Sociology o f Deviance, 1963, p. 8-14; análise

ampla em BERGALLI, La recaída en e l delito: modos de reaccionar contra ella, 1980, p. 215-243.

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rotulado se comporte como rotulado, ou seja, que assuma o papel de criminoso pradcando novos crimes, fecha as supostas possibilidades de reinserção social e completa o modelo seqüencial de formação de carreiras criminosas, realizando a chamada self fulflllingprophecy, em que o condenado assume as características do rótulo, concretizando a previsão de auto-realização" e confirmando a teoria da construção da personalidade no processo de interação social.

4. Como se vê, o fracasso histórico da prisão tem por objeto a fun­ção declarada ou manifesta de correção (de ressociali^ação, de reeducação etc.— em suma, do que é definido como ideologia r é )m do condenado, atribuída à pena criminal pela ideologia do sistema punitivo, porque a função real ou latente de controle seletivo da criminalidade, fundado em indicadores sociais negativos, e garantia de relações sociais desiguais,fundadas na relação capital/trabalho assalariado, representa incontestável êxito histórico, como assinala FOUCAULT.101

3. A p r e v e n ç ã o g e r a l c o m o afirmação da ideologia domi­nante

1. A pesquisa criminológica admite que a prevenção geral negativa da ameaça penal poderia ter efeito desestimulante em crimes de reflexão (crimes econômicos, ecológicos, tributários etc.), característicos do Direito Penal simbólico, mas não teria qualquer efeito em crimes impulsivos (violência pessoal ou sexual, por exemplo),102 próprios da criminalidade

99 LEMERT, Human Deviance, Social Problems and Social Control, 1972, p. 62-92.100 Ver ZAFFARONI/BATTSTA/ALAGIA/SLOKAR, Direitopenal brasilàrü, 2003, p. 116.101 FOUCAULT, Vigiar epunir, 1977, p. 244-248.102 ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 64-65.

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comum estampada diariamente nos meios de comunicação de massa. Logo a inibição de impulsos anti-sociais pela ameaça penal somente seria relevante no Direito Penal simbólico, destituído de eficácia instrumentais instituído para legitimação retórica do poder punitivo do Estado — me­diante criação/difusão de imagens ilusórias de eficiência repressiva na psicologia do povo —, mas é absolutamente irrelevante no Direito Penal instrumental.’ cujo objeto é delimitado pela criminalidade comum, área de incidência exclusiva da repressão penal seletiva.103

Seja como for, a função de intimidação da prevenção geral ne­gativa depende diretamente da função de neutralização da prevenção especial negativa que, por sua vez, realiza concretamente a função de retribuição equivalente da pena criminal, porque não existe intimidação sem aplicação e execução concreta da pena criminal — ou seja, não são funções independentes ou autônomas, mas aspectos diferentes do mesmo fenômeno.

2. Por outro lado, análises críticas da prevenção geral positiva devem distinguir posições liberais representadas por ROXIN e outros, de po­sições autoritárias representadas por JAKOBS, por exemplo: a) a teoria da prevenção geral positiva de ROXIN é liberal.' porque define crime como lesão de bens jurídicos e atribui à pena o objetivo de proteção de bens jurídicos (contra lesões dolosas ou imprudentes), definidos pela lei penal com base na Constituição104 — o documento fundamental das democracias modernas; b) a teoria da prevenção geral positiva de JAKOBS é autoritária por várias razões: primeiro, porque definir crime como violação da norma105 significa reduzir crime à lesão da vontade do poder — conforme indica o conceito de frustração das expectativas nor­

103 ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 74-75.104 ROXIN, Strafrecht, 1997, §2, ns. 1 e 2, p. 10-11 e n. 9, p. 15.105 JAKOBS, Strafrecht, 1993, n. 9, p. 9.

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mativas106 —, que prescinde da lesão de bens jurídicos como fundamen­to constitucional de punibilidade;107 segundo, porque definir pena como reação contra a violação da norma — ou seja, como contradição con­tra a contradição da norma, que afirma e estabiliza a validade da norma violada às custas do competente/responsável108 — parece ter por objetivo garantir a fidelidade do cidadão à vontade do poder — e não proteger bens jurídicos contra lesões dolosas ou imprudentes;109 terceiro, se a punição do criminoso aumenta a confiança no Direito, reforçando a fidelidade jurídica do povo e, ao contrário, a não-punição do criminoso diminui a confiança no Direito, reduzindo a fidelidade jurídica do povo, então a tarefa do Direito Penal seria satisfazer os impulsos puni­tivos da população — um objetivo irracional substitutivo da proteção de bens jurídicos, que atrela o Direito Penal à barbárie primitiva; quarto, a definição de crime como frustração das expectativas normativas110 e da pena como demonstração da validade da norma concentra todas as fun­ções da pena criminal: pressupõe a ameaça penal, implica a aplicação e execução da pena como neutralização e correção do condenado e existe, de fato, como exercício comunitário de retribuição,nx definida como necessária para restabelecer a confiança na norma e reforçar a fidelidade

jurídica do cidadão.112

3. Na verdade, a função de prevenção geral positiva é fenômeno contemporâneo ao Direito Penal simbólico, produzido pela pressão corporativista de sindicatos, associações de classes, partidos políticos,

106 JAKOBS, Strafrecht, 1993, n. 1, p. 35.107 JAKOBS, Strafrecht, 1993,.ns. 3-5, p. 35-37.108 JAKOBS, Strafrecht, 1993, n. 9, p. 9-10.109 JAKOBS, Strafrecht, 1993, ns. 6-8, p. 37-38.110 JAKOBS, Strafrecht, 1993, n. 1, p. 35.111 Assim, também FÕPPEL EL HIRECHE, A função da pena na visão de Claus Roxin,

2004, p. 43.112 JAKOBS, Strafrecht, 1993, ns. 15-16, p. 13-14, em especial n. 22-25, p. 44-46.

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organizações não-governamentais etc., representado pela criminaliza­ção de situações sociais problemáticas nas áreas da economia, da ecologia, da genética e outras, em que o Estado não parece interessado em so­luções sociais reais, mas em soluções penais simbólicas., com freqüente subordinação de direitos humanos a exigências de funcionalidade do sistema econômico, ecológico etc., como denunciava BARATTA.113

Como se sabe, o Direito Penal realiza funções instrumentais de efetiva aplicação prática e funções simbólicas de projeção de imagens na psicologia popular, mas o segmento legal conhecido como Direi­to Penal simbólico, caracterizado pela criminalização do risco em áreas cada vez mais distantes do bem jurídico — a pós-moderna criminaliza­ção do perigo abstrato —, não tem função instrumental, apenas função simbólica de legitimação do poder político. Na área das situações sociais problemáticas o Direito Penal parece reduzido ao papel ideológico de criação de símbolos no imaginário popular, com o objetivo oculto de legitimar o poder político do Estado e o próprio Direito Penal como instrumento de política social.114 A legitimação do poder político do Estado ocorre pela criação de uma aparência de eficiência repressiva na chamada luta contra o crime — definido como inimigo comum —, que garante a lealdade do eleitorado e, de quebra, reproduz o poder po­lítico115 — por exemplo, o lastimável apoio de partidos populares a projetos de leis repressivas no Brasil é explicável exclusivamente por sua conversibilidade em votos, ou seja, por seus efeitos políticos de conservação/reprodução do poder.

1,3 BARATTA, Integrations-Pràvention. Eine Sjstemtheoretische Neubegründung der Strafe. In: Krirninologisches Journal, 1984, p. 135; ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 66-67.

114 BATISTA, Prezada senhora Viégas: o anteprojeto de reforma no sistema de penas; fala da "constatada incapacidade do sistema penal para resolver conflitos que lhe são atiradospor um legislador que oferece aopúblico uma solução simbólica (a criminalizaçãoprimária do conflito) como se fora uma solução real. ” In: Discursos sediciosos, n. 9-10, p. 105.

115 BARATTA, Criminologia crítica e crítica do direito penal.’ 1999, 2a edição, p. 207; AL­BRECHT, Kriminologie, 1999, p. 74-75.

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Por último, a legitimação do Direito Penal pelo papel ideológico de criação de símbolos no imaginário popular é simbólica, mas com evidente efeito instrumental: é simbólica, porque a penalização das chamadas situaçõesproblemáticas não significa solução soáal do problema, mas simples solução penal produzida para efeito de satisfação retórica da opinião pública116 —, ou seja, nenhuma solução; mas possui efeito instrumental invertido, porque legitima o Direito Penal como progra­ma desigual de controle social, agora revigorado para a repressão seletiva contra favelas e bairros pobres das periferias urbanas, especialmente contra a força de trabalho marginalizada do mercado, sem função na reprodução do capital — porque, pelo menos ao nível simbólico, o Direito Penal seria igual para todos.117 Aliás, o discurso eficientista da prevenção geral positiva permite justificar a redução ou exclusão de garantias constitucionais de liberdade, igualdade, presunção de inocência e outras garantias do processo penal civilizado118 — cuja sistemática supressão ameaça reduzir o Estado de Direito no estado de políáa contido em seu interior, conforme a teoria de ZAFFARO- NI/BATISTA/ALAGIA/SLOKAR119 - , além de escamotear ou disfarçar a relação da criminalidade com a estrutura de desigualdade da sociedade contemporânea, instituída pelo Direito e garantida pelo poder do Estado.

4. Igualmente, a função declarada ou manifesta de prevenção geral ne­gativa mediante intimidação pela ameaça penal, ou de prevenção geral positiva mediante (a) proteção dos valores sociais fundamentais ou (b)

116 ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 74-75.117 ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 69-70.1,8 ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 68-80.119 ZAFFARONI/BATISTA/ALAGIA/SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003, p. 41:

‘Não há nenhum estado de direito puro; o estado de direito não passa de umabarreira a represaro estado de políáa que invariavelmente sobrevive em seu interior. (...) O estado de direito é concebido como o que submete todos os habitantes à lei e opõe-se ao estado de policia, onde todos os habitantes estão subordinados ao poder daqueles que mandam.”

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Capítulo 18 Política Criminal e Direito Penal

afirmação da validade da norma, atribuídas pela ideologia do sistema penal à pena criminal, é o discurso encobridor da função real ou latente da pena criminal, de garantia da ordem social capitalista, fundada na separação força de trabalho /meios de produção, que institui e reproduz relações sociais desiguais e opressivas.

4. As teorias unificadas como integração das funções ma­nifestas ou declaradas da pena criminal

A crítica jurídica e criminológica sobre as teorias unificadas da pena criminal afirma que os defeitos das teorias isoladas não desaparecem com a reunião das funções (a) de compensar ou expiara culpabilidade, (b) de corrigir e neutralizar o criminoso e (c) de intimidar autores potenciais e de manter/ reforçar a confiança no Direito. Por exemplo, completar a função de retribuição com a função de prevenção especial ou geral, signi­fica admitir a insuficiênáa da retribuição e, de fato, disfarçara retribuição sob forma de prevenção etc.120 Além disso, a admissão de diferentes funções da pena criminal, determinada pela cumulação de teorias contraditórias e reciprocamente excludentes, significa adotar uma pluralidade de discursos legitimantes capazes de racionalizar qualquer punição pela escolha da teoria mais adequada para o caso concreto.121

O argumento da crítica pode ser sintetizado em duas razões principais: primeiro, o feixe de funções conflitantes das teorias unifi­cadas não permite superar as debilidades específicas de cada função declarada ou manifesta da pena criminal — ao contrário, as teorias unificadas significam a soma dos defeitos das teorias particulares; segundo, não

120 Nesse sentido, por todos, JAKOBS, Strafrecht, 1993, 1, V n. 49, p. 27.121 ZAFFARONI/BATISTA/ALAGIA/SLOKAR, Direito penal brasikiro, 2003, p. 114.

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Teoria da Pena Capítulo 18

existe nenhum fundamento filosófico ou científico capaz de unificar concepções penais fundadas em teorias contraditórias, com finalidades prádcas reciprocamente excludentes.122

5. Conclusão

1. Em síntese, o discurso crítico da teoria criminológica da pena define o Direito Penal como sistema dinâmico desigual em todos os níveis de suas funções: a) ao nível da definição de crimes constitui proteção seletiva de bens jurídicos representativos das necessidades e interesses das classes hegemônicas nas relações de produção/circulação econômica e de poder político das sociedades capitalistas; b) ao nível da aplicação de penas constitui estigmatização seletiva de indivíduos excluídos das relações de produção e de poder político da formação social; c) ao nível da execução penal constitui repressão seletiva de marginalizados sociais do mercado de trabalho e, portanto, de sujeitos sem utilidade real nas relações de produção/distribuição material — embora com utilidade simbólica no processo de reprodução das condições sociais desiguais e opressivas do capitalismo.123

Esse modo de ver mostra o significado de conservação e de reprodução social realizado pelo programa desiguais seletivo do Direito Penal, cujas sanções estigmatizantes realizam dupla função: de um lado, a função política de garantir e reproduzir a escala social vertical, como função real da ideologia penal; de outro lado, a função ideológica de encobrir/imunizar comportamentos danosos das elites de poder

122 ROXIN, Strafrecht, 1997, §3, n. 35, p. 54; comparar EBERT, Strafrecht, 2001, p. 235.123 Ver BARATTA, Criminologia crítica e crítica do direito penal.’ 1999, 2a edição, p. 161;

também, ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 44-45.

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Capítulo 18 Política Criminal e Direito Penal

econômico e político da sociedade, c o m o função ilusória da ideologia penal.124

2. Nesse contexto, a desigualdade do Direito Penal exprime a relação dos mecanismos seletivos do processo de criminalização com as leis de desenvolvimento histórico da formação econômica capitalista: a) ao nível da criminalização primária, a ideologia da proteção de bens jurídicos oculta a realidade da proteção seletiva de interesses e privilégios das classes sociais hegemônicas, em duas direções: criminalização de comportamentos típicos das classes sociais subalternas (especialmente, marginalizados sociais) e exclusão dos comportamentos socialmente danosos das classes hegemônicas da formação social; b) ao nível da criminalização secundária, a posição social do acusado — encoberta pela posição processual de autor ou de partícipe do fato punível — represen­ta a variável decisiva do processo penal, também em duas direções: concentração das chances de criminalização nos marginalizados sociais e no subproletariado — com a posição precária no mercado de trabalho (desocupação, subocupação e trabalho não-qualificado) como variável interveniente — e imunização penal das elites de poder econômico e político.125

3. Em linhas gerais, pode-se dizer o seguinte: a) por um lado, a pena criminal realiza a função fundamental de retribuição equivalente da so­ciedade burguesa, executada mediante a função de neutralização de condenados reais — eventualmente, com a função complementar de intimidação de autores potenciais; b) por outro lado, a função de prevenção especial positiva de correção individual através da execução penal — destruída pela experiência histórica e arquivada pelo labeling approach —, assim como a função de prevenção geral positiva de afir­mação da validade da norma — desmantelada pela demonstração mate­

124 BARATTA, Criminologia crítica e crítica do direito penal,\ 1999, 2a edição, p. 167.125 BARATTA, Criminologia crítica e crítica do direito penal\ 1999, 2a edição, p. 165-167.

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Teoria da Pena Capítulo 18

rialista/dialética da correlação sistema penal/ mercado de trabalho, porque os sistemas de produção descobrem a punição correspondente às suas relações produtivas (RUSCHE/KIRCHHEIMER)126 e porque a dis­ciplina do sistema punitivo, como mecanismo de poder para produzir indivíduos dóceis e úteis, constitui instrumento de controle diferencial das ilegalidades (FOUCAULT),127 com o objetivo de adequar a força de trabalho às necessidades do capital, determinada pela correlação cárcere/fábrica (MELOSSI/PAVARINI)128 — constituem discurso oficial legitimador das funções reais ou latentes da pena criminal, que garantem a desigualdade e a opressão social da relação capital/trabalho assalariado das sociedades contemporâneas.

4. Assim, a pena criminal significa retribuição equivalente do crime nas sociedades capitalistas — fundadas no valor de troca medido pelo tempo (a) de trabalho social necessário, na economia e, por isso, (b) de liberdade pessoal suprimida, no Direito —, que não pode ser justificada pelas teorias preventivas isoladas ou unificadas da pena criminal, como valores de uso atribuídos à retribuição equivalente da pena criminal. Porém, não é possível ignorar: a pena como retribuição equivalente do crime exprime um Direito Penal desigual’ como programa de criminalização seletiva de marginalizados sociais do mercado de trabalho, orientado por indicado­res sociais negativos (pobreza, desemprego etc.) que ativam estereótipos, preconceitos, idiossincrasias pessoais e todo o sistema ideológico internalizado dos agentes de controle social, cuja natureza emocional menos ou mais inconsciente contribui para deformar os mecanismos psíquicos dos protagonistas do sistema penal, excluindo ou reduzindo a função de critério de racionalidade atribuído à dogmática penal.129

126 RUSCHE/KIRCHHEIMER, Punishment and soáal structure, 2003, p. 5.127 FOUCAULT, Vigiar epunir, 1977, p. 125-152 e 244-248.128 MELOSSI/PAVARINI, Cárcelj fábrica (los orígenes del sistemapenitenáário), 1980.129 Nesse sentido, também ZAFFARONI/BATISTA/ALAGIA/SLOKAR, Direito

penal brasileiro, 2003, p. 44 s.

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Capítulo 18 Política Criminal e Direito Venal

5. Então, parece inevitável a pergunta: por que fazer dogmádca penal? E a resposta: a dogmática penal depende do critério que informa o trabalho cientifico em Direito Penal. Logo fazer dogmática penal como critério de racionalidade do sistema punitivo significa assumir o ponto de vista do poder repressivo do Estado no processo de criminalização de marginalizados do mercado de trabalho e da pobreza social, em geral; ao contrário, fazer dogmática penal como sistema de garantias do indivíduo em face do poder punitivo do Estado,130 no sentido de construir um conjunto de conceitos capazes de excluir ou de reduzir o poder de intervenção do Estado na esfera da liberdade individual— e, portanto, capazes de impedir ou de amenizar o sofrimento hu­mano produzido pela desigualdade e pela seletividade do sistema penal— constitui tarefa científica de significado democrático nas sociedades contemporâneas.131

130 Comparar GIMBERNAT ORDEIG, Hat die Strafrechtsdogmatik eine Zukunft?, ZStW82 (1970), p. 405 s.

131 Ver CIRINO DOS SANTOS, Novas hipóteses de criminalização. In: ANAIS da XVIII Conferência Nacional dos Advogados, 2002, vol. I, p. 937-946.

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C a pít u lo 19

P r isã o e C o n t r o l e S o c ia l

L Introdução

A prisão é o aparelho disciplinar exaustivo da sociedade capitalis­ta, constituído para exercício do poder de punir mediante privação de liberdade, em que o tempo exprime a relação crime/punição: o tempo é o critério geral e abstrato do valor da mercadoria na economia, assim como a medida de retribuição equivalente do crime no Direito.1 Portanto, esse dispositivo do poder disciplinar funciona como aparelho jurídico econômico, que cobra a dívida do crime em tempo de liberdade supri­mida, e como aparelho técnico disciplinar, programado para realizar a transformação individual do condenado.2

O método de transformação individual da prisão é a disciplina, a política de coerção exercida para dissociar a energia dò corpo da vontade pessoal do condenado, com o objetivo de construir indivíduos dóceis e úteis, que obedecem e produzem.3 Os recursos de adestramento do poder disciplinar são a vigilância hierárquica,, a sanção normali^adora e o exame, conforme a célebre formulação de FOUCAULT: a vigilânáa hierárquica,, pela qual técnicas de ver produzem efeitos de poder, é exer­cida por dispositivos que obrigam pelo olhar, representados por redes verticais de relações de controle; a sanção normali%adora é constituída

1 PASUKANIS, A. teoria gera l do direito e o marxismo, 1972, p. 163.2 FOUCAULT, Vigiar epunir, 1977, p. 207.3 FOUCAULT, Vigiar epunir, 1977, p. 127; ver CIRINO DOS SANTOS, 4 criminologia

radical.’ 2006, p. 77-78.

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Teoria da Pena Capítulo 19

por uma ordem artificial de punições e recompensas disciplinares, em que a identidade do modelo produz sujeitos homogêneos; o exame, como controle normalizante e ritualizado fundado na vigilância e na sanção, é uma tecnologia de dominação que constitui o indivíduo como objeto de saber e efeito de relações de poder.4 O dispositivo do poder disciplinar é opanótico, utilizado para controlar coletividades humanas em instituições de custódia, instrução e trabalho, caracteri­zado pelo funcionamento automático do poder, porque a consciência da vigilância gera a desnecessidade objetiva da vigilância.5

Entretanto, nem a disáplina como método de reconstrução de indivíduos, nem a prisão como dispositivo do poder disciplinar, podem ser explicadas por si mesmas, ou como produtos do desenvolvimento da imaginação punitiva do ser humano; ao contrário, a disáplina nasce da administração capitalista do trabalho na fábrica, onde os trabalhado­res são submetidos à autoridade do capitalista — e se estende da fábrica para a sociedade, onde funciona como núcleo ideológico das instituições de controle social da sociedade civil, responsáveis pela formação de um novo tipo humano: a força de trabalho dócil e útil' à disposição do ca­pital no mercado de trabalho;6 igualmente, a prisão nasce de exigências do mercado de trabalho — o espaço social em que a força de trabalho existe à disposição do capital — e funciona como dispositivo do poder disciplinar instituído para adequar a força de trabalho às necessidades do capital, segundo o princípio de RUSCHE/KIRCHHEIMER de que todo sistema de produção tende a descobrir punições que correspondem às suas relações produtivas? Nesse sentido, a disáplina como método e o

4 FOUCAULT, Vigiar epunir, 1977, p. 153 s; ver CIRINO DOS SANTOS, crimi- nofogia radical, 2006, p. 78-79.

5 FOUCAULT, Vigiar epunir, 1977, p. 173.6 MELOSSI, Institutions o f social control and capitalist organi^ation o f mrk. In: B. Fine et alii

(Editores), C ap ita lism a n d t h e m i e o f la w , 1979, p. 91.7 RUSCHE/KIRCHHEIMER, Punishment and social structure, 2003, p. 5.

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Capítulo 19 Prisão e Controle Social

panótico como dispositivo do poder disciplinar, caracterizam a prisão como a principal instituição auxiliar da fábrica no interior da sociedade política — portanto, dentro do Estado, por sua vez o mais poderoso veículo de controle social8 - , enquanto na sociedade civil funcionam outras instituições auxiliares do capital, responsáveis pela constituição psico-física e ideológica da força de trabalho, como a família, a escola, a igreja, os sindicatos, os meios de comunicação etc.9

Assim, depois de Punishment and social structure de RUSCHE e KIRCHHEIMER,10 que descobre a relação mercado de trabalho/prisão na gênese histórica da sociedade capitalista; depois de Vigiar e Punir de FOUCAULT,11 que mostra a disáplina como mecanismo de poder na produção de sujeitos dóceis e úteis na economia e no controle social; depois de Cárcere efábrica de MELOSSI e PAVARINI,12 que descobre as raízes da disáplina na contradição capitalj trabalho assalariado materiali­zada nas relações de produção da fábrica\ enfim, depois de Criminologia crítica e crítica do direito penal de BARATTA,13 que demonstra a função de reprodução soáal do sistema penal e unifica as contribuições críticas em uma concepção de política criminal alternativa fundada na amplia­ção da democracia real e na redução do poder penal — depois desses momentos decisivos da história do Direito Penal e da Criminologia, não é mais possível explicar a prisão pela ideologia penal, expressa na teoria polifuncional da pena criminal como retribuição, prevenção

8 Ver CIRINO DOS SANTOS, A criminologia radical, 2006, p. 111 s.; também, ME­LOSSI, Institutions o f social control and capitalist organi^ation o f ivork. In: B. Fine et alii (Editores), C ap ita lism a n d t h e r u l e o f la w , 1979, p. 99.

9 Comparar CIRINO DOS SANTOS, A. criminologia radical, 2006, p. 111-113; ME­LOSSI, Institutions o f soáal control and capitalist organi^ation o f work. In: B. Fine et alii (Editores), C ap ita lism a n d t h e r u l e o f la w , 1979, p. 92-94.

10 RUSCHE/KIRCHHEIMER, Punishment and soáal structure, 1939.11 FOUCAULT, Vigiar epunir, 1977.12 MELOSSI/PAVARINI, Cárcelyfábrica (los orígenes del sistema penitenciário), 1980.13 BARATTA, Criminologia crítica e crítica do dimto penal, 1999.

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Teoria da Pena Capítulo 19

especial e prevenção geral do crime;14 igualmente, não é mais possí­vel explicar a pena criminal pelo comportamento criminoso, porque exprime a criminalização seletiva de marginalizados sociais, excluídos dos processos de trabalho e de consumo social, realizada pelo sistema de justiça criminal (polícia, justiça e prisão); enfim, também não é possível explicar o crime pela simples lesão de bens jurídicos, porque exprime a proteção seletiva de valores do sistema de poder econô­mico e político da formação social. Ao contrário, somente a lógica contraditória da relação social fundamental capital/trabalho assalariado pode explicar a proteção seletiva de bens jurídicos pelo legislador, a criminalização seletiva de sujeitos com indicadores sociais negativos e, finalmente, a prisão como instituição central de controle social formal da sociedade capitalista.

II. A relação cárcereIfábrica

A prisão, aparelho de privação de liberdade do sistema de controle social, e afábrica, aparelho de produção econômica da estrutura social, são as instituições básicas das sociedades capitalistas contemporâne­as,15 em relação de dependência recíproca: as relações de produção materiais, fundadas na separação trabalhador/meios de produção, e a disciplina do trabalho na fábrica, organizada com objetivo de lucro, dependem diretamente da prisão, principal instituição de controle social; inversamente, os fins retributivos e preventivos da prisão garantem as relações sociais baseadas na contradição capital/trabalho

14 BARATTA, Criminologia crítica e crítica do direito penal, 1999, p. 193.15 MELOSSI, Institutions o f soúal control and capitalist organi^ation o f work. In: Bob Fine

e t a l i i (Ed.), Capitalism and the ruk o f law, 1979, p. 9-99.

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Capítulo 19 Prisão e Controle Social

assalariado, enquanto o método punitivo da prisão objetiva transformar o sujeito real (condenado) em sujeito ideal (trabalhador), adaptado à disciplina do trabalho na fábrica, principal instituição da estrutura social.16 A correlação fábrica/ cárcere — ou, de modo mais geral, a cor­relação capital (estrutura social) e prisão (controle social) — é a matriz histórica da sociedade capitalista,17 que explica o aparecimento do aparelho carcerário nas primeiras sociedades industriais (Holanda, Inglaterra, Estados Unidos e França), além de permitir explicar a origem e decadência dos múltiplos sistemas de exploração da força de trabalho carcerária.

III. A origem da penitenciária

A relação capital/ trabalho assalariado é a clave para compreender a instituição carcerária: expropriados dos meios de produção e expul­sos do campo — o violento processo de acumulação primitiva do capital nos séculos XV e XVI —, os camponeses se concentram nas cidades, onde a insuficiente absorção de mão-de-obra pela manufatura e a inadaptação à disciplina do trabalho assalariado originam a formação de massas de desocupados urbanos.18 Essa massa de desocupados forçados, convertida numa população de mendigos, vagabundos, ladrões e outros delinqüentes dos centros urbanos — um produto de determinações estruturais interpretado como expressão de atitudes

16 FOUCAULT, Vigiar epunir, 1977, p. 207-211, 266; também, BARATTA, Crimino­logia crítica e crítica do direito pena l (introdução à sociologia do direito penal), 1999, 2a edição, p. 173.

17 BARATTA, Criminologia crítica e crítica do direito penal (introdução ã sociologia do direito penal), 1999,2a edição, p. 190-196.

18 MELOSSI/PAVARINI, Cárcely fábrica (los orígenes del sistemapenitenãário), 1980, p. 29-30.

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Teoria da Pena Capítulo 19

individuais defeituosas19 — é tangida para as workhouses, uma invenção do século XVI para resolver problemas de exclusão social do capi­talismo: casas de trabalho forçado de camponeses expropriados dos meios de subsistência material, com a finalidade de disciplina e ade­quação pessoal para o trabalho assalariado. A penitenciária moderna começa nas workhouses, instituições de trabalho forçado do período de germinação do capitalismo — carente de mão-de-obra disposta ao trabalho assalariado20 —, criadas para a tarefa de disciplina da força de trabalho da manufatura e, depois, da indústria, reforçando o papel da família, da escola e de outras instituições sociais 21

A estrutura celular de Rasphuis, casa de trabalho forçado fundada em Amsterdam, no início do século XVII, seria o modelo de apare­lho carcerário para disáplina da força de trabalho ociosa da Europa continental:22 o modelo de Rasphuis — cujo nome provém da ação de raspar madeira (proveniente da América do Sul, provavelmente o pau-brasil') para produzir tintura —, institui o trabalho obrigatório como método pedagógico para reconstruir o homo oeconomicus, com exclusão de penas breves, pela aprendizagem insuficiente, e de penas perpétuas, pelo desinteresse de aprender — inaugurando as teorias da prevenção especial\ em que o objetivo de correção determina a duração das penas criminais.23

O desenvolvimento de formações sociais capitalistas multiplica o modelo de Rasphuis na Europa, mas os modelos clássicos de prisão somente surgirão nos Estados Unidos da América, a formação social

19 MARX, O Capital.’ 2005,20a edição, Livro 1, vol. 2, p. 848; ver MELOSSI/PAVA- RINI, Cárcely fábrica (los orígenes del sistema penitenciário), 1980, p. 31.

20 MELOSSI/PAVARINI, Cárcely fábrica (los orígenes del sistema penitenciário), 1980, p. 165-166.

21 MELOSSI/PAVARINI, Cárcelyfábrica (bs orígenes del sistema penitenciário), 1980, p. 36-43.22 MELOSSI/PAVARINI, Cárcelyfábrica (bs origines del sistema penitenciário), 1980, p. 32-33.23 FOUCAULT, Vigiar epunir, 1977, p. 107.

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Capítulo 19 Prisão e Controle Soáal

capitalista mais desenvolvida da modernidade: o modelo de Filadélfia, insdtuído na famosa prisão de Walnut Street (1790) e o modelo de Auburn, em Nova York (1819).24 A instituição penitenáária moderna se caracteriza por dois aspectos principais: economia de custos e orientação para o trabalho produtivo. A estrutura arquitetônica do estabelecimento penitenciário adota o modelo panótico, o dispositivo ideal do poder disciplinar, constituído de torre central e anel periférico, com distribuição dos corpos conforme exigências de separação e vi­sibilidade, que reduzem a força política e aumentam a força útil dos condenados.25 A prisão, aparelho de punição por privação de liber­dade característico das sociedades capitalistas, se baseia no princípio de menor elegibilidade para desestimular comportamentos criminosos: o nível de vida na prisão deve estar abaixo do nível de vida da classe trabalhadora mais inferior da população livre.26

Na sociedade de produção de mercadorias, a reprodução am­pliada do capital pela expropriação de mais-valia da força de trabalho— a energia produtiva capaz de produzir valor superior ao seu valor de troca (salário) —, exige o controle da classe trabalhadora: na fábrica, a coação das necessidades econômicas submete a força de trabalho à autoridade do capitalista; fora da fábrica, os trabalhadores marginali­zados do mercado de trabalho — a chamada superpopulação relativa., sem função direta na reprodução do capital, mas necessária para manter os salários em níveis adequados à máxima valorização do capital —, são controlados pelo cárcere, que funciona como instituição auxiliar da fábri­

24 FOUCAULT, Vigiar epunir, 1977, p. 107 e 110; MELOSSI/PAVARINI, C árcelj fábrica (los orígenes del sistemapenitenáário), 1980, p. 179.

25 FOUCAULT, Vigiar epunir, p. 173-199; comparar CIRINO DOS SANTOS, Direito penal: a nova parte geral, 1985, p. 279.

26 RUSCHE/KIRCHHEIMER, Punishment and soáal structure, 2003, p. 108: ‘"The upper margin f o r the maintenance o f the prisoners was thus determined by de necessity o f keeping the prisoners’ living standard beloiv the living standard o f the lom st classes o f the fr e e population. ”

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Teoria da Venai

Capítulo 19

ca.27 Logo a disciplina como política de coerção do aparelho carcerário para produzir sujeitos dóceis e úteis, na formulação de FOUCAULT, descobre suas determinações materiais na relação capital/trabalho as­salariado, porque existe como adestramento da força de trabalho para reproduzir o capital e, portanto, como fenômeno de economia política, na definição de MELOSSI/PAVARINI.28

IV O modelo jiladelfiano de penitenciária

O modelo jiladelfiano de instituição penitenciária do final do século XVIII, inspirado na concepção religiosaQuaker, foi a alternativa para o trabalho carcerário no período da produção manufatureira: de um lado, o panótico de Bentham, como arquitetura disciplinar da instituição penal; de outro, o confinamento em celas individuais para oração e trabalho, como a nova pedagogia da correção. A funcionalidade do panótico para instituições de controle — logo também para escolas, hospitais e fábricas — e a redução de custos administrativos explica a rápida difusão do modelo filadelfiano de prisão no capitalismo primitivo, de pequeno capital fixo e reduzida produtividade.29

Os sistemas de trabalho carcerário do modelo de Filadélfia, em que o Estado organiza e controla os processos produtivos e exerce o poder disciplinar na instituição carcerária, podem ser assim sumariados:30

a) o state-use, com emprego da força de trabalho na produção

27 MELOSSI/PAVARINI, Cárceljfábrica (los orígenes del sistemapenitenciário), 1980, p. 66-70.28 MELOSSI/PAVARINI, Cárceljfábrica (los orígenes del sistema penitenciário), 1980, p. 70.29 MELOSSI/PAVARINI, Cárcelj fábrica (bs orígnes del sistema penitenciário), 1980, p. 167-169.30 Ver MELOSSI/PAVARINI, Cárceljfábrica (los orígenes del sistema penitenciário), 1980,

p. 176-177.

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Capítulo 19 Prisão e Controle Soáal

de manufaturas na prisão, consumidas pela própria administração penitenciária e estatal, com produtividade reduzida em relação ao mercado livre, mas sem oposição de sindicatos ou moralistas — na verdade, o sistema hoje predominante de trabalho carcerário na América Latina;

b) o pubíic work, em que a força de trabalho é empregada em obras públicas, na construção de estradas, ferrovias, prisões etc, com eventual oposição de sindicatos pela concorrência no mercado de trabalho livre;

c) o public account, em que o sistema carcerário se converte em empresa pública: o Estado compra a matéria-prima, organiza os processos produtivos e vende os produtos a preços competitivos no mercado, com todas as vantagens do trabalho carcerário — mas os reduzidos custos de produção, determinados por salários inferiores e pela ausência de tributos, desestimulam a concorrência externa e geram a oposição de entidades sociais e partidos políticos.

Finalmente, o modelo de Filadélfia entra em decadência na era da industrialização, porque a sociedade industrial exige uma política de controle baseada no trabalho produtivo do encarcerado. O trabalho isolado em celas individuais, justificado como instrumento terapêutico, impede o trabalho coletivo necessário para industrializar a prisão, com duas conseqüências negativas: é antieconômico e priva o mercado de força de trabalho útil.31

V. O modelo auburniano de penitenciária

A solução dos problemas econômicos do modelo de Filadélfia surge

31 MELOSSI/PAVARINI, Cárrelyfábrica (los orígmes ddsistemapenitenáãrio), 1980, p. 170-172

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Teoria da Pena Capítulo 19

com o modelo deAuburn, baseado no isolamento celular durante a noite e no trabalho comum durante o dia, sob o sistema do silêndo (silent sjstem)?2 O modelo auburniano de penitenciária, conhecido como o sistema penal americano, introduz a exploração capitalista da força de trabalho encar­cerada e organiza o trabalho na prisão igual ao trabalho na fábrica: a) durante o dia, o trabalho coletivo em máquinas na prisão, com a lei do silêndo para garantir a disciplina do trabalho em comum; b) durante a noite, confinamentò celular. A dependência do sistema penitenciário em relação aos processos econômicos do mercado de trabalho deter­mina novos parâmetros de execução penal, que orientam o modelo de Auburn menos para a correção pessoal e mais para o trabalho produ­tivo. Assim, se a manufatura determina o confinamento solitário do modelo de Filadélfia, a indústria produz o trabalho comum do modelo de Auburn, com o silent sjstem garantindo a disciplina da fábrica dentro do cárcere e permitindo a introdução de máquinas para o trabalho coletivo na prisão, abrindo novas possibilidades de exploração do trabalho carcerário por empresários privados.33

Os principais sistemas de exploração do trabalho carcerário inventados pelo conluio entre capital privado e repressão pública, próprios do modelo de Auburn, são os seguintes:

a) o contract— considerado o sistema mais adequado —, submete a força de trabalho carcerária a duas autoridades: o capitalista organiza a produção, disdplina os processos de trabalho e vende a mercadoria no mercado livre a preços altamente competitivos, pela desenfreada e destruidora exploração da força de trabalho carcerária, remunerada em níveis inferiores aos do mercado; o Estado concede a exploração da força de trabalho carcerária e administra a instituição penitenciária, garantindo a segurança e disciplina internas, em troca de lucro sem risco econômico.34

32 MELOSSI/PAVARINI, Cárcelyfábrica (los orígmes del sistemapenitenciário), 1980, p. 172-173.33 MELOSSI/PAVARINI, Cárcelyfábrica (los orígenes del sistema penitenciário), 1980, p. 179.34 MELOSSI/ PAVARINI, Cárcelyfáfoica (los orígmes del sistema penitenciário), 1980 p. 177-178.

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Capítulo 19 Prisão e Controle Soáal

b) o leasing submete a instituição penitenciária à autoridade ex­clusiva do capitalista, que dirige a prisão, organiza a produção e garante a disciplina da força de trabalho durante tempo determinado, mediante pagamento de um preço fixo ao Estado, livre de quaisquer custos: os problemas são a redução do preso à condição de escravo, os brutais castigos corporais por questões de disciplina ou de ritmo de trabalho e — last but not least — os acordos tácitos entre empresários da indústria carcerária e Poder Judiciário para transformar penas curtas em penas longas de prisão, permitindo exploração mais lucrativa da força de trabalho encarcerada.35

Mas a privatização de prisões inspirada no modelo de Auburn igualmente entra em crise: dificuldades de renovação tecnológica dos processos industriais na prisão, oposição crescente de sindicatos e organizações operárias contra a concorrência do trabalho carcerário, exploração predatória da força de trabalho cativo para ampliar a taxa de mais-valia, castigos desumanos por motivos disciplinares ou econô­micos etc., impediram a transformação da penitenciária em empresa produtiva. Nos Estados Unidos da América, o sistema de privatização de prisões foi banido em 1925, após o escândalo dos maus-tratos da força de trabalho cativa nos estados sulinos, com a reassunção pelo Estado das responsabilidades constitucionais de execução da pena cri­minal.36 Afinal, como diz PAVARINI, a penitenciária não é uma célula produtiva, mas uma fábrica de homens instituída para transformar condenados em proletários, uma máquina de mutação antropológica de sujeitos reais, agressivos e violentos, em sujeitos ideais, disciplinados e mecânicos.37 Em outras palavras, o criminoso encarcerado representa o nãoproprietário encarcerado, mostrando o cárcere como instituição coercitiva para transformar o criminoso não-proprietário no proletário

35 MELOSSI/PAVARINI, Cárcely fábrica (los orígenes del sistemapenitenáário), 1980, p. 179.36 WACQUANT, A ascensão do Estado penal nos EUA. Discursos sediciosos (crime,

direito e sociedade), 2002, n. 11, p. 30.37 MELOSSI/PAVARINI, Cãnelyfábrica (bs orígenes del sistemapenitenciário), 1980, p. 188-190.

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Teoria da Pena Capitub 19

não-perigoso, aquele sujeito de necessidades reais adaptado à disciplina do trabalho assalariado.38

VI. Indústria do encarceramento: atualidade e perspectivas

A reconstrução histórica do sistema penitenciário e seus modelos de exploração da força de trabalho carcerária mostra algumas coisas importantes: a) primeiro, o fracasso da penitenciária como célula produtiva no modelo da fábrica: a prisão pode propor-se, segundo a ideologia oficial, como mecanismo de produção de sujeitos ideais, mas não é um aparelho de produção de mercadorias; b) segundo, a relação existente entre os modelos de trabalho na prisão e o nível de desenvolvimento dos processos de produção econômica do merca­do livre: a manufatura produziu o confinamento solitário do modelo de Filadélfia, representado pelo public account; a indústria engendrou o trabalho em comum do modelo deAuburn, representado pelo contract e pelo leasing.39

Os extremos do emprego da força de trabalho carcerária podem ser assim definidos: a) os sistemas de organização e disciplina do trabalho carcerário pela administração penitenciária se caracterizam por pro­dutividade reduzida, mas preservam a força de trabalho encarcerada— ou seja, os presos continuam seres humanos; b) os sistemas de organização e disáplina do trabalho carcerário pelo empresário privado aumentam a mais-valia pelo incremento da produtividade, com destruição dos seres humanos encarcerados — os presos são redefinidos como

38 MELOSSI/PAVARINI, Cárçelyfábrica (los orígenes del sistema penitenciário), 1980, p. 232.39 MELOSSI/PAVARINI, Cárcelyfábrica (los orígenes del sistema penitenciário), 1980, p. 179.

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Capítulo 19 Prisão e Controle Soáal

simples força de trabalho.40

A questão da exploração do trabalho carcerário por empresas privadas parece clara: nenhuma empresa privada é constituída com fins humanitários, mas com objetivos de lucro. Existe uma contradição entre prisão pública e empresa privada: todos os sistemas de exploração capitalista do trabalho carcerário produzem mudanças nos programas de educação e disáplina da prisão, cancelando os parâmetros legais de execução penal. A prioridade do trabalho produtivo origina pressões sobre o Poder Judiciário para aplicação de penas longas e introduz critérios econômicos para decisões judiciais sobre livramento con­dicional, progressão de regimes, comutação ou redução de penas e outros direitos do preso. Em poucas palavras, a prisão, instituição de controle social, não pode se transformar em empresa, instituição econômica da estrutura social.

Mas o desastre histórico da exploração privada do trabalho carcerário não extinguiu projetos empresariais de valorização ace­lerada do capital, aproveitando a chance de extrair gordas taxas de mais-valia da força de trabalho concentrada nas prisões, repetindo o mesmo discurso utilitário para encobrir o objetivo real de lucro puro e simples.

Na atualidade, a política americana de criminalização da pobreza, determinada pelo desmonte do estado soáale sua substituição progres­siva pelo estado penal, quintupücou a população carcerária daquele País no período de vinte anos: de 500 mil presos em 1980 para 2,5 milhões de presos em 2000, aproximadamente.41 Por outro lado, o eleitorado americano, em geral entusiasmado com programas oficiais de “guerra contra o crime” — e apesar de não encarar com simpatia os custos

40 CIRINO DOS SANTOS, Direito penal: a nova parte geral, 1985, p. 283.41 WACQUANT, A ascensão do Estado penal nos EUA. Discursos sediciosos (crime,

direito e sociedade), 2002, n. 11, p. 14.

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Teoria da Pena Capítulo 19

carcerários da crescente criminalização da pobreza no País, que exigem a construção de uma nova prisão com 1.000 vagas a cada 6 dias —, igno­rou o fracasso histórico da exploração lucradva do trabalho carcerário, e paradoxalmente parece apoiar o programa oficial de prisões/ empre­sas, retomado em 1983 por novo conluio de governo e empresários americanos. A indústria do encarceramento privado cresceu de 3.100 presos em 1987 para 85.000 presos em 1996 (em 25 dos 50 estados america­nos), atingindo 276.000 presos em 2001, nos EUA.42 Atualmente, as empresas desse recuperado ramo do mercado trabalham no sistema de full-scale management — ou seja, de gestão total do estabelecimento penitenciário — e, ampliando a área de reprodução do capital, cons­tróem as próprias prisões, a exemplo das empresas privadas Correction Corporation o f America (com 68 prisões e 50 mil presos) e a Wackenhut (com 32 prisões e 22 mil presos)43 — aliás, ambas cotadas no índice NASDAQ da Bolsa de Valores americana. Também a Inglaterra, hoje decidida imitadora das práticas políticas e penais americanas, aderiu às prisões com fins lucrativos, com quatro penitenciárias privadas em funcionamento e muitas outras em construção.44

Em suma, o desmonte do estado social produziu o estado penal com sua criminalização da pobreza e o indefectível sistema de full-scale management das prisões, nos EUA e na Inglaterra. E o mais inquietan­te: a relação cárcereIfábrica de MELOSSI/PAVARINI evoluiu para a simbiose fábrica/cárcere, em que a fábrica é construída sob a forma de cárcere, ou inversamente, o cárcere assume a forma da fábrica, configurando o ideal de exploração capitalista do trabalho humano,

42 WACQUANT, A ascensão do Estado penal nos EUA. Discursos sediciosos (crime, direito e sociedade), 2002, n. 11, p. 30.

43 WACQUANT, A ascensão do Estado penal nos EUA. Discursos sediciosos (crime, direito e sociedade), 2002, n. 11, p. 30-31.

44 WACQU ANT, A tentação pena l na Europa. Discursos sediciosos (crime, direito e sociedade), 2002, n. 11, p. 9.

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Capítulo 19 Prisão e Controle Soáa l

que realiza o trágico vadcínio de PAVARINI: o s detidos devem ser trabalhadores; os trabalhadores devem ser detidos.45

VII. A. privatização de presídios no Brasil

1. A Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal) define o trabalho do condenado como dever social e condição de dignidade humana (art. 28 e §§, LEP), realizado sob gerência de fundação ou empresa pública e com o objetivo de formação profissional do condenado (art. 34, LEP)— o que parece excluir a privatização do trabalho carcerário, porque se a gerência do trabalho carcerário é exclusividade de fundação ou empresa pública e está condicionado ao objetivo de formação profis­sional do condenado, então nem empresários privados podem gerenciar o trabalho carcerário, nem a força de trabalho encarcerada pode ser objeto de exploração lucrativa por empresas privadas. Esse re­gime prevaleceu até dezembro de 2003, quando a Lei 10.792/03 acrescentou o atual §2° do art. 34 da Lei de Execução Penal, que admite convênios do poder público com a iniciativa privada para implantação de oficinas de trabalho em instituições penais, permitindo a privatização de presídios no Brasil.

Não obstante, o Poder Público brasileiro se antecipou à mu­dança da legislação para implantar o sistema de prisões privadas no País, mediante terceirização dos processos produtivos e da disciplina carcerária, ao inaugurar a Penitenciária Industrial de Guarapuava, no Estado do Paraná, em 12 de novembro de 1999, com capacidade para 240 (duzentos e quarenta) condenados em regime fechado,

45 MELOSSI/PAVARINI, Cárcelj fábrica (los orígenes del sistemapemtenáário), 1980, p. 232.

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Teoria da Pena Capítulo 19

assim estruturada: a) a exploração da força de trabalho encarcerada é atribuída a empresa privada da área econômica; b) a segurança interna da prisão é atribuída a empresa privada da área de seguran­ça; c) apenas a direção e a fiscalização da segurança é exercida por funcionários públicos estaduais. Atualmente existem 12 peniten­ciárias privatizadas no Brasil, assim distribuídas: 6 penitenciárias no Paraná, 3 no Ceará, 2 no Amazonas e 1 na Bahia.

2. Entretanto, a possibilidade de convênio com capitais privados para implantar oficinas de trabalho em instituições penais (art. 34, §2°, LEP) não inclui a terceirização da disciplina carcerária, porque o poder disciplinar no sistema penitenciário continua monopólio exclusivo do Estado: no caso de faltas disciplinares médias ou leves, a lei atribui o poder disciplinar à autoridade administrativa da prisão— ou seja, ao Poder Execudvo (art. 47, LEP); no caso de faltas disciplinares graves, a lei atribui o poder de aplicar determinadas sanções ao Jui^da execução p ena l— ou seja, ao Poder Judiciário (art. 48, parágrafo único, LEP).

Logo sistemas de trabalho carcerário que submetam a força de trabalho encarcerada ao poder disciplinar de qualquer outra auto­ridade diferente do Estado — por exemplo, empresas privadas de segurança prisional — são ilegais. Além disso, a própria privadzação do trabalho carcerário por convênio com empresas privadas parece infringir o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. Io, CR), por uma razão elementar: a força de trabalho encarcerada não tem o direito de rescindir o contrato de trabalho, ou seja, não possui a única liberdade real do trabalhador na relação de emprego e, por isso, a compulsória subordinação de seres humanos encar­cerados a empresários privados não representa, apenas, simples dominação do homem pelo homem, mas a própria institucionalização do trabalho escravo na prisão, como a história da ascensão, queda e ressurreição da privatização de presídios demonstra. Se o progra­

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Capítulo 19 Prisão e Controle Soáal

ma de retribuição e de prevenção do crime é definido pelo Estado na aplicação da pena criminal pelo Poder Judiciário (art. 59, CP), então a realização desse programa político-criminal consdtui dever indelegável do Poder Executivo, vinculado ao objetivo de harmônica integração social d o condenado (art. Io, LEP), com exclusão de toda e qualquer forma de privatização da execução penal.

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C apítu lo 2 0

O S ist e m a P e n a l B r a sil e ir o

1. Introdução

As medidas repressivas constituem a dimensão punitiva do Direito Penal, como ato de poder político cuja aplicação e execução pressupõe a garantia do sistema de conceitos que constitui a dimensão jurídica do Direito Penal, capaz de excluir ou reduzir o poder punitivo do Estado: sem pena criminal não seria necessária nenhuma teoria da lei penal.' nem teoria do crime ou da pena. A pena criminal, seus regimes de execução e substitutivos penais, explicam a teoria do Direito Penal e, conse­qüentemente, a dogmática penal: como a existência da pena pressupõe a existência do crime, segundo as definições do poder constituído em determinada sociedade, é necessário saber se existe crime para decidir quando e contra quem ap/tVarpena; inversamente, a aplicação da pena no caso concreto pressupõe a existência de uma teoria do crime, capaz de definir as situações reais de aplicação de pena, e de uma teoria da lei penal fundada nos princípios constitucionais sobre crime e pena do Estado Democrático de Direito.1

II. A política p ena l da legislação brasileira

O sistema de medidas repressivas da lei penal brasileira é estruturado

1 CIRINO DOS SANTOS, Direito penal (a nova parte geral), 1985, p. 221.

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Teoria da Pena Capítulo 20

pelo critério dualista alternativo, expresso em dois binômios exclu­dentes: a) culpabilidade — pena; b) periculosidade criminal — medida de segurança.2 O critério dualista alternativo, introduzido no Direito Penal brasileiro pela reforma penal de 1984, se caracteriza pela apli­cação alternativa de pena criminal ou de medida de segurança contra autores de fatos definidos como crimes: ou pena criminal' fundada na culpabilidade; ou medida de segurança, fundada na periculosidade criminal — excluída qualquer aplicação simultânea de pena criminal e de medida de segurança. A legislação anterior adotava o critério dualista cumulativo — também conhecido como sistema do duplo binário— caracterizado pela cumulatividade ou pela alternatividade de aplicação de penas criminais e/ou de medidas de segurança contra autores de fatos definidos como crimes — critério abandonado por problemas insuperáveis na dimensão de aplicação cumulativa de penas e de medidas de segurança.

As penas criminais e as medidas de segurança possuem um fundamento comum e um fundamento específico: a) o fundamento co­mum é representado pelo tipo de injusto, como ação típica e antijurídica concreta; b) o fundamento específico da pena criminal, como medida de culpabilidade do autor, consiste no juízo de reprovação pessoal pela realização não justificada de um tipo de crime; o fundamento especí­fico da medida de segurança, como providência de proteção pessoal e social, reside na periculosidade criminal de sujeitos inimputáveis autores de ações típicas não justificadas.3

1. O sistema de medidas anticriminais do Direito Penal brasileiro, constituído de penas criminais e de medidas de segurança, foi o principal

2 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §77,1, p. 802-803; NAUCKE,Strafrecht, 2000, 9a edição, p. 96, n. 26 III; também GROPP, Strafrecht, 2001, p. 61, n. 53; também WELZEL, Strafrecht., 1969, 11a edição, §32, III, p. 244.

3 EBERT, Strafrecht, 2001, p. 246-247. No Brasü, CIRINO DOS SANTOS, Direito penal (a nova parte geral), 1985, p. 222.

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Capítulo 20 O Sistema Venal Brasileiro

objeto da reforma penal de 1984, com mudanças nas penas, nas me­didas de segurança e nas relações entre ambas.

A política penal da legislação brasileira utiliza um instrumental repressivo constituído de três categorias de penas criminais (art. 32,1, II e III, CP), assim definidas:

a) penas privativas de liberdade, representadas pela reclusão e pela detenção (art. 33, CP);

b) penas restritivas de direito, nas modalidades (1) de prestação pecuni­ária., (2) de perda de bens e valores, (3) de prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, (4) de interdição temporária de direitos e (5) de limitação de fim de semana (art. 43 ,1-VI, CP);

c) penas de multa, com quantidades entre 10 e 360 dias-multa e valores entre 1 (um) trigésimo do salário mínimo e 5 (cinco) salários mínimos por dia-multa (art. 49 e §1°, CP).

2. Nesse sistema repressivo, as penas privativas de liberdade constituem o centro da política penal e a forma principal de punição; as penas restritivas de direitos funcionam, simultaneamente, como substitutivas da privação de liberdade e impeditivas da ação criminógena do cárcere; as penas de multa são, em regra, cominadas em forma cumulativa ou alternativa à privação de liberdade, mas podem ser aplicadas, por exceção, em caráter substitutivo das penas privativas de liberdade (art 60, §2°, CP).

A natureza substitutiva das penas restritivas de direitos exclui a execução das penas privativas de liberdade substituídas, mas esse efeito não reduz a função de retribuição equivalente ou as funções de prevenção geral e especial atribuídas às penas privativas de liberdade. Na verda­de, o propósito explícito da nova política penal é o aperfeiçoamento da pena privativa de liberdade, mediante duplo revigoramento: por um lado, a nova política penal legitima o rigor retributivo da pena privativa

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Teoria da Pena Capítulo 20

de liberdade para os “casos de necessidade”;4 por outro lado, atribui eficácia coativa às penas restritivas de direitos, pela conversibilidade em pena privativa de liberdade (art. 44, §4°, CP). Assim, as penas restritivas de direitos diversificaram as alternativas repressivas do Direito Penal brasileiro, preservando sua eficácia coativa por causa da conversibili­dade em penas privativas de liberdade. Como se pode ver, a pena privativa de liberdade é o centro de gravidade da nova política penal brasileira, como ponto de convergência repressiva e núcleo de irradiação da eficácia coativa das penas restritivas de direitos.5

A flexibilização do sistema punitivo brasileiro, com a introdu­ção das penas restritivas de direitos, é produto da assimilação de críticas irrefutáveis sobre as inconveniências da prisão, que destacam os efeitos prejudiciais da pena privativa de liberdade sobre condenados primários ou ocasionais, ou sobre autores de crimes irrelevantes, pela exposição a práticas de corrupção, sevícias e degradação pessoal e moral, sintetizadas no conceito de prisionalização.6

III. Penas criminais

A pena criminal é definida como conseqüência jurídica do crime, e representa, pela natureza e intensidade, a medida da reprovação de sujeitos imputáveis, pela realização não justificada de um tipo de cri­me, em situação de consciência da antijuridicidade (real ou possível) e de exigibilidade de conduta diversa, que definem o conceito de fato punível.7

4 Ver Exposição de Motivos do Código Penal, ns. 26 e 29.5 CIRINO DOS SANTOS, Direito penal (a nova parte geral), 1985, p. 222-223.6 Exposição de Motivos do Código Penal, n. 37. . :7 CIRINO DOS SANTOS, Direito penal (a nova parte geral), 1985, p. 223.

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Capítulo 20 O Sistema Penal Brasileiro

1. Pena privativa de liberdade

A pena privativa de liberdade, modulada qualitativamente pelos regimes de execução, é a espinha dorsal do sistema penal,8 existente em duas formas: a pena de reclusão e a pena de detenção. A principal diferença entre reclusão e detenção, como formas de privação de liberdade, refere-se aos regimes de execução: a pena de reclusão, cominada pelo legislador em crimes mais graves, é executada nos regimes fechado, semi-aberto e aberto; a pena de detenção, cominada pelo legislador em crimes menos graves, é executada nos regimes semi-aberto e aberto — o regime fechado é exceção determinada pela necessidade (art. 33, caput, CP). Por outro lado, existem diferenças secundárias significativas entre ambas modalidades de privação de liberdade, por exemplo: a) a medida de segurança aplicada em crimes de reclusão é a de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico; em crimes de detenção, é a de tratamento ambulatorial; b) a fiança em crimes de reclusão somente pode ser concedida pelo Juiz; em crimes de detenção, pode ser concedida também pela autoridade policial etc.9

Art. 33. A pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semi-aberto ou aberto. A. de detenção, em regime semi-aberto, ou aberto, salvo necessidade de transferência a regime fechado.

A execução da pena privativa de liberdade no sistema penal, sob forma de reclusão ou de detenção, nos regimes fechado, semi-aberto ou aberto, exige definição dos regimes de execução e das formas àcprogressão e de regressão entre os regimes de execução, que marcam a passagem

8 JESCHECK, Einfiihrung, in Beck (Strafgesetzbuch), 2001, 36a edição, p. XX.9 Ver BITENCOURT, Tratado de direito penal.\ 2003, 8a edição, p. 421-422.

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Teoria da Pena Capítulo 20

do condenado pelo sistema penal, instituído pela Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84), que implantou o modelojurisdiáonalde execução penal no Brasil.10

Art. 33, §1°. Considera-se:

a) regime fechado a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou média;

b) regime semi-aberto a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabeleámento similar;

c) regime aberto a execução da pena em casa de albergado ou estabeleámento adequado.

Transitada em julgado a sentença criminal condenatória e expe­dida a competente guia de recolhimento (art. 105-7, LEP), o condenado à privação de liberdade é submetido ao regime iniáal de execução, fixado, provisoriamente, na sentença judicial (art. 33, §3°, CP e art. 110, LEP). Na hipótese de condenação por dois ou mais crimes, o regime respectivo é determinado pela soma ou unificação das penas, observada a detração e a remição penal, se for o caso; na superveniência de condenação no curso da execução, prevalece o critério da soma da nova pena com a pena restante (art. 111 e parágrafo único, LEP).

1.1. Regimes de execução das penas privativas de liber­dade

Os regimes de execução da pena privativa de liberdade são estru­turados conforme critérios de progressividade (regra) ou de regressividade (exceção), instituídos com o objetivo explícito de “humanizar a pena” privativa de liberdade, segundo duas variáveis: o mérito do condenado

10 CARVALHO, Pena e garantias, 2003, 2a edição, p. 170.

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Capítulo 20 O Sistema Penal brasileiro

e o tempo de execução da pena (art. 33, §§2°, 3o e 4o, CP). O regime inidal de execução da pena privativa de liberdade é determinado na sentença criminal condenatória (art. 59, III, CP): o regime fechado depende exclusivamente da quantidade da pena aplicada; o regime semi-aberto e o regime aberto dependem da quantidade da pena aplicada e da primariedade do condenado.11

Art. 33, §2°. As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferênda a regime mais rigoroso.

a) o condenado a pena superiora 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado;

b) o condenado não reinddente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito), poderá, desde oprindpio, cumpri-la em regime semi-aberto;

c) o condenado não reinddente, cuja pena seja igual ou infe­rior a 4 (quatro) anos, poderá, desde o inído, cumpri-la em regime aberto;

§3°. A determinação do regime inidal de cumprimento da pena far-se-á com observânda dos critérios previstos no art.59 deste Código.

O movimento de progressão ou de regressão do preso através dos regimes de execução pressupõe a verificação de condições espedficas e depen­de de dedsão judidalmotivada,, precedida de manifestação do Ministério Público e da Defesa.

A progressão significa a transferência do preso de regime de maior rigor para regime de menor rigor punitivo, após cumprimento mínimo

11 Comparar BITENCOURT, Tratado de direito penal.’ 2003, 8a edição, p. 422-423.

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Teoria da Pena Capítulo 20

de 1/6 (um sexto) da pena no regime anterior e bom comportamento carcerário comprovado pelo Diretor do estabelecimento (art. 112, LEP), mediante decisão judicial motivada precedida de manifestação do Ministério Público e da Defesa (art. 112, §1°, LEP).

Art 112, LEP. Apenaprivativa de ãberdade será executada em formaprogressiva com a transferênáapara regime menos rigoroso, a ser determinado p eb ju i quando o preso tiver curtzprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom com­portamento carcerário, comprovadopelo diretor do estabeleámento, respeitadas as normas que vedam a progressão.

§1°. A decisão será sempre motivada e precedida de mani­festação do Ministério Público e do defensor.

Contudo, a regra da progressividade fundada no tempo de execução e no comportamento do condenado admite restrições e exceções definidas em lei. As restrições legais referem-se aos condenados por crimes contra a administração pública (art. 33, §4°, CP), em que a progressão de regime depende da condição complementar de reparação do dano ou de devolução do produto do crime realizado.

Art. 33, §4°. O condenado por crime contra a administração pública terá a progressão de regime do cumprimento da pena condicionada à reparação do dano que causou, ou ã devolução do produto do ilíáto praticado, com os acrésámos legais.

As exceções legais têm por objeto condenados por crime hedion­do,12 tortura, tráfico ilícito de drogas e terrorismo, que cumprem pena em regime fechado integral (art. 2o §1°, da Lei 8.072/90) — uma violação do princípio constitucional da igualdade perante a lei (art 5o I, CR) —, mas com direito ao livramento condicional.

12 Em 23 de fevereiro de 2006, o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL reconheceu a inconstitucionalidade da proibição de progressão de regimes em crimes hediondos (HC 82.959, Rel. Min. MARCO AURÉLIO).

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Capítulo 20 O Sistema Penal Brasileiro

A regressão significa transferência ou retorno do preso para regime de maior rigor punidvo, e pode ocorrer nas hipóteses (a) de prática de fato definido como crime doloso ou de falta grave e (b) de nova pena por crime anterior, cuja soma determine incompatibilidade com o regime atual (art. 118,1 e II, §§1° e 2o, LEP).

Art 118, LEP. A. execução dapenaprivativa de liberdadeficará sujáta à forma regressiva, com a transferencia para qualquer dos regimes mais rigorosos, quando o condenado:

I —praticar fato definido como crime doloso ou falta grave;

II — sofrer condenação, por crime anterior, cuja pena, somada ao restante da pena em execução, tome incabível o regime (art. 111).

§1°. O condenado será transferido do regime aberto se, além das hipóteses referidas nos incisos anteriores, frustrar osfins da execu­ção ou não pagar, podendo, a multa cumulativamente imposta.

§2°. Nas hipóteses do inciso I e do parágrafo anterior, deverá ser ouvido, previamente, o condenado.

Aqui, é importante esclarecer duas coisas: primeiro, a falta de pagamento da multa cumulativa (art. 118, §1°, LEP) não determina a regressão de regime, mas resolve-se em dívida de valor, regida pelas normas da dívida ativa da Fazenda Pública (art. 51, CP, com a redação da Lei 9.268/96); segundo, se a progressão de regime exige decisão judicial motivada, precedida de manifestação do Ministério Público e da Defesa (art. 112, §1°, LEP), então — e com maior razão ainda— a regressão de regime também deve ser determinada por decisão judicial motivada, com prévia manifestação do Ministério Público e da Defesa, sendo insuficiente a simples audiência do condenado (art. 118, §2°, LEP, acima).13

13 Nesse sentido, decisão do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (HC 37.164/SC, 6a Turma, DJ 22/11/2004), Rel. Min. NILSON NAVES.

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Teoria da Pena Capítulo 20

Como se vê, os regimes de execução das penas privativas de liber­dade foram concebidos para cumprir várias funções: a) condicionam a recuperação de cotas de liberdade suprimida, segundo duas variá­veis: o tempo de prisão como variável quantitativa e o esforço do condenado como variável qualitativa (art. 33, §2°, CP); b) reforçam a justificação da privação de liberdade sob o argumento de maior adequação aos objetivos preventivos da pena criminal; c) finalmente, revalorizam a atividade judicial, vinculando o regime iniciai de execução à sentença criminal condenatória, erigida em prognóstico de ressocialização (art. 33, §3°, CP).

a) Regime fechado. O regime fechado é o modo mais rigoroso de execução da pena privativa de liberdade: cumprido em estabeleci­mento de segurança máxima ou média, destina-se aos condenados a penas superiores a 8 (oito) anos (art. 33, §2°, a, CP), e se caracteriza pelo trabalho comum interno (regra) ou em obras públicas externas (exceção) durante o dia, e pelo isolamento durante o repouso noturno (art. 34, §§1°, 2o e 3o, CP).

Art. 34. 0 condenado será submetido, no início do cumpri­mento da pena, a exame criminológico de classificação para individualização da execução.

§1°. O condenado fica sujeito a trabalho no período diurno e a isolamento durante o repouso noturno.§2°. O trabalho será em comum dentro do estabeleámento, na conformidade das aptidões ou ocupações anteriores do condenado, desde que compatíveis com a execução da pena.

§3°. O trabalho externo é admissível, no regime fechado, em serviços ou obras públicas.

Entretanto, a realidade carcerária do regime fechado constitui ne­gação absoluta do programa do legislador: o trabalho interno comum é privilégio de poucos condenados, o trabalho externo em serviços ou obras públicas é raríssimo e o isolamento durante o repouso noturno é

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Capítulo 20 O Sistema Penal Brasileiro

excluído pela superpopulação carcerária.14

b) Regime semi-aberto. O regime semi-aberto de execução da pena privativa de liberdade possui rigor intermediário, entre os regimes fechado e aberto, é cumprido em colônia agrícola, industrial ou similar e destina-se, imediatamente, aos condenados primários a penas privati­vas de liberdade superiores a 4 (quatro) e inferiores a 8 (oito) anos, e mediatamente aos condenados submetidos ao regime fechado (art. 33, §2°, b, CP), pelo critério de progressividade dos regimes de execução. O regime semi-aberto caracteriza-se pelo trabalho comum interno ou externo durante o dia e pelo recolhimento noturno, permitindo a freqüência a cursos supletivos profissionalizantes, de instrução de segundo grau ou superior (art. 35, §§1° e 2o, CP).

Art. 35. Aplica-se a norma do art. 34 deste Código, caput, ao condenado que inicie o cumprimento da pena em regime semi-aberto.

§1°. O condenado fica sujeito a trabalho em comum durante o período diurno, em colônia agrícola, industrial ou estabele­cimento similar.

§2°. O trabalho externo é admissível, bem como afreqüência a cursos supletivos profissionalizantes, de instrução de segundo grau ou superior.

c) Regime aberto. O regime aberto é o modo menos rigoroso de execução da pena privativa de liberdade, deve ser cumprido em casa de albergado e destina-se, imediatamente, aos condenados primários a penas iguais ou inferiores a 4 (quatro) anos, e mediatamente, aos con­denados submetidos a outros regimes (art. 33, §2°, e, CP), segundo o critério da progressividade. O regime aberto tem por fundamento a autodisciplina e o senso de responsabilidade do condenado (art. 36,

14 Ver BITENCOURT, Tratado de direito penal\ 2003, 8a edição, p. 423.

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Teoria da Pena Capítulo 20

CP) e se caracteriza pela liberdade sem restrições para o trabalho exter­no, freqüência a cursos e outras atividades autorizadas durante o dia e pela liberdade restringida durante a noite e dias de folga, mediante recolhimento em casa de albergado—ou na própria residência do conde­nado (art. 36, §1°, CP).15 A permissão de recolhimento noturno e nos dias de folga na própria casa do condenado aparece como alternativa prática, necessária e justa para evitar os efeitos nocivos da prisão sobre a personalidade do preso, em face da ausência generalizada de casas de albergado no Brasil.

Art. 36. 0 regime aberto baseia-se na autodisáplina e senso de responsabilidade do condenado.

§1°. O condenado deverá, fora do estabelecimento e sem vigi­lância, trabalhar, freqüentar curso ou exercer outra atividade autorizada, permanecendo recolhido durante o período noturno e nos dias de folga.

§2°. O condenado será tranferido do regime aberto, se praticar fato definido como crime doloso, sefrustrar os fins da execução ou se, podendo, não pagar a multa cumulativamente aplicada.

O ingresso no regime aberto pressupõe (a) condenado traba­lhando (ou em condições de trabalho imediato), (b) possibilidade de ajustamento ao regime e (c) aceitação do programa e das condições impostas pelo juiz (arts. 113-114, LEP). As condições do regime aberto podem ser especiais (determinadas pelo juiz) e gerais (obrigatórias), que são as seguintes: a) permanência no local designado, durante o repouso noturno e dias de folga; b) observância dos horários de saída e de retorno ao estabelecimento; c) não se ausentar da cidade sem autorização judicial; d) comparecimento em Juízo para informar e jus­tificar atividades (art. 115, LEP). Finalmente, o condenado poderá ser

15 Comparar BITENCOURT, Tratado de direito p ena l.2003, 8a edição, p. 424-425.

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Capítulo 20 O Sistema Penal Brasileiro

transferido do regime aberto para regime mais rigoroso se (a) praticar fato definido como crime doloso, ou (b) frustrar os fins da execução (art. 36, §2°, CP) - excluída a hipótese de não pagamento da pena de multa cumulativa ã privação de liberdade aplicada por condenado solvente, que agora se converte em dívida de valor e não em privação de liberdade (art. 51, CP, modificado pela Lei 9.268/96).

d) Regime especial para mulheres. As mulheres cumprem pena pri­vativa de liberdade em estabelecimento próprio, com direitos e deveres adequados à sua condição pessoal, aplicando-se as regras gerais dos regimes de execução, na medida de sua compatibilidade (art 37, CP).

Art. 37. A.s mulheres cumprem pena em estabeleámento pró­prio, observando-se os deveres e direitos inerentes à sua condição pessoal, bem como, no que couber, o disposto neste Capítulo.

1.2. Direitos e deveres do condenado

a) Direitos do condenado. A lei penal brasileira assegura ao preso, formalmente, todos os direitos humanos não atingidos pela privação de liberdade, especialmente o respeito à integridade física e moral do condenado (art. 38, CP) — embora continue imensa a distância entre lei e realidade na execução penal brasileira.16

Art. 38. O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral.

A lei delimita a extensão do rigor da execução penal: fixa para o Estado os limites da punição e assegura para o condenado a garantia de

16 Ver CARVALHO, Pena egarantias, 2003, 2a edição, p. 170; “Muito embora introdução normativamente, não se pode afirmar tenha ocorrido o câmbio esperado no que dh£ à concepção doutrinária e jurisprudencial quanto ã natureza jurídica da execução penal, ”

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Teoria da Pena Capítulo 20

não ser punido além dos direitos cancelados pela sentença.17 Assim, além da igualdade racial, social, política e religiosa (art. 3o, LEP), a lei reconhece ao condenado os seguintes direitos: a) alimentação su­ficiente; b) vestuário; c) trabalho remunerado; d) previdência social;e) constituição de pecúlio; f) distribuição proporcional do tempo em trabalho, descanso e recreação; g) exercício de atividades anteriores: profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas; h) assistência mate­rial, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa; i) proteção contra sensacionalismos; j) entrevista pessoal e reservada com advogado; 1) visita de cônjuge, companheira, parentes e amigos; m) chamamento nominal; n) igualdade de tratamento (exceto exigências de individu­alização da pena); o) audiência com o Diretor do estabelecimento; p) representação e petição às autoridades competentes; q) relações com o mundo exterior, por correspondência, leitura e outros meios de comunicação (art. 41, LEP).

Por outro lado, são previstas recompensas por bom comporta­mento, colaboração com a disciplina e dedicação ao trabalho, como o elogio e a concessão de regalias (art. 55, LEP).

b) Deveres do condenado. O condenado é submetido ao dever geral de obediência pessoal às normas de execução penal (art. 38, LEP), especificado nos seguintes deveres particulares (art. 39, LEP): a) compor­tamento disciplinado; b) cumprimento fiel da sentença; c) obediência ao servidor público; d) respeito e urbanidade nas relações com outros condenados ou com qualquer pessoa; e) oposição pessoal a movimentos de fuga (individual ou coletiva) ou de subversão à ordem ou à disciplina; f) realização dos trabalhos, tarefas e ordens; g) higiene e asseio pessoal e da cela ou alojamento; h) conservação de objetos de uso pessoal.

17 Assim, FRAGOSO, Direitos dos presos: os problemas de um mundo sem lei, 1980, p. 3, que acrescenta: “Que direitos são esses? E.m princípio, apenas a perda da liberdade e a dos direitos necessariamente afetados p o r ela. ”

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Capítulo 20 O Sistema Penal Brasileiro

c) Trabalho do condenado. O trabalho do condenado (art. 39, CP), definido como dever soáal e condição de dignidade humana e realizado com objetivos educativos eprodutivos (art. 28, LEP), não é regido pelas normas da CLT, mas a organização e os métodos de trabalho subordinam-se às regras gerais de higiene e de segurança no trabalho.

Art. 39. O trabalho do preso será sempre remunerado, sendo- Ihe garantidos os benejíáos da previdênáa soáal

Art. 28, LEP. O trabalho do condenado, como dever soáal e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva.

A remuneração do trabalho carcerário (art. 29, LEP), obrigató­ria e não inferior a 3/4(três quartos) do salário mínimo, é distribuída pelos seguintes itens: a) indenização do dano resultante do crime; b) assistência à família do preso; c) pequenas despesas pessoais; d) res­sarcimento ao Estado por despesas de manutenção; e) constituição de pecúlio, com depósito em Caderneta de Poupança, entregue ao condenado no momento da liberação (art. 29 e parágrafos, LEP). So­bre a remuneração do trabalho carcerário deve ser dito o seguinte: se o salário mínimo é determinação legal delimitada pela quantidade de bens ou serviços que o trabalhador e sua família necessitam consumir para sobreviver, então a previsão legal de remuneração equivalente a 3/4 (três quartos) do salário mínimo, parece inconstitucional.

O trabalho interno é obrigatório para condenados à privação de liberdade (exceto presos provisórios e políticos) e atribuído conforme a habilitação e condições pessoais, necessidades futuras e oportuni­dades do mercado de trabalho, com jornadas de 6 a 8 horas e des­canso aos domingos e feriados (arts. 31 a 33, LEP). A organização e funcionamento dos processos produtivos são geridas por fundação ou empresa pública, dotadas de autonomia administrativa: controlam a produção, realizam a comercialização, arcam com os custos e se

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Teoria da Pena Capítulo 20

apropriam dos lucros, devendo orientar as advidades empresariais conforme objetivos de formação profissional do condenado (art. 34, LEP) — mas admite-se convênios do poder público com a iniáativa privada para implantação de oficinas de trabalho em instituições penais (art. 34, §2°, LEP).

O trabalho externo é normal no regime aberto, eventual no regime semi-aberto e excepcional no regime fechado; em qualquer caso, limita­do a 10% (dez por cento) da força de trabalho empregada na obra respectiva, com remuneração por conta da entidade empregadora (art 36, e §§1° e 2o, LEP). A autorização para trabalho externo exige aptidão, disciplina e senso de responsabilidade do condenado, além de cumprimento mínimo de 1/6 (um sexto) da pena; pode ser revogada em caso de prática de fato definido como crime, de punição por falta grave ou de comportamento contrário aos requisitos exigidos (art. 37 e parágrafo único, LEP).18

d) Remição penal. A remição, como ato ou efeito de resgatar uma dívida, no âmbito da execução penal significa o direito do condenado de reduzir a pena privativa de liberdade, em regime fechado ou semi- aberto, pelo trabalho prisional (art. 126 e §§, LEP), na proporção de3 (três) dias de trabalho por 1 (um) dia de pena.

Art. 126. O condenado que cumpre a pena em regimefechado ou semi-aberto poderá remir, pelo trabalho, parte do tempo de execução da pena.

§1°. A contagem do tempo para o fim deste artigo seráfeita à rareio de 1 (um) dia de pena por 3 (três) dias de trabalho.

§2°. O preso impossibilitado de prosseguir no trabalho, por

18 Ver BITENCOURT, Tratado de direito penal,’ 2003, 8a edição, p. 441.

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Capítulo 20 0 Sistema Penal Brasileiro

aádente, continuará a beneficiar-se com a remição.

§3°. A remição será declarada pelo ju i^ da execução, ouvido o Ministério Público.

A Jurisprudência mais recente tem admitido a remição parcial da pena privativa de liberdade pela freqüência a cursos supletivos pro­fissionalizantes, de instrução de segundo grau ou superior (art. 35, §2°, CP), mesmo sob a forma de telecurso, fundada na analogia entre trabalho e estudo e sob o argumento de que a educação é a mais efica forma de integração do indivíduo à sociedade — aliás, a finalidade do instituto da remição, segundo interpretação teleológica da norma legal.19

Por outro lado, idêntica analogia deve existir entre trabalho produtivo e trabalho artesanal para efeito de remição parcial da pena pri­vativa de liberdade, na hipótese de inexistência de trabalho produtivo na instituição penal: afinal, o direito ao trabalho não constitui simples faculdade ou privilégio do condenado, mas dever soáal e condição de dig­nidade humana, nos termos da definição legal (art. 28, LEP). Logo, se o condenado pretende cumprir o dever soáal de trabalhar e, assim, pro­mover a própria dignidade humana, então o direito de remir parcialmente a pena privativa de liberdade pela prestação de trabalho não pode ser cassado ou denegado pela administração penitenciária, sob alegação de inexistência de trabalho produtivo no estabelecimento penal. Nessa hipótese, parece suficiente a comprovação substitutiva de trabalho artesanal para remição de 1 (um) dia de pena, a cada seqüência de 3 (três) dias em que o condenado se apresentar para o trabalho produtivo— porque a dignidade humana não é simples garantia legal\ mas um dos

19 Nesse sentido, o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, no HC 30.623/SP (Quinta Turma, acórdão unânime de 15 de abril de 2004), relator o Min. GILSON DIPP; igualmente, no RESP 595858/SP (Sexta Turma, acórdão unânime de 21 de outubro de 2004), relator o Min. HAMILTON CARVALHIDO.

«ÜSlVERSiDADE FEDERAL DE UBERLÁNDft533

Teoria da Pena Capítulo 20

fundamentos do Estado Democrático de Direito.20

Finalmente, admite-se a remição da pena para antecipar a pro­gressão para regime menos rigoroso, sob o seguinte argumento: se o condenado pode antecipar a liberdade definitiva ou condicional pela remição parcial da pena, então pode acelerar a progressão para regime menos rigoroso, desde que comprovado o requisito subjetivo do bom comportamento carcerário necessário para a progressão (art. 112, LEP).21

1.3. A disciplina penal

A disciplina penal é definida como dever geral do preso provisório e do condenado à pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos, consistente nas seguintes obrigações: colaboração com a ordem, obedi­ência às determinações e desempenho no trabalho (art. 44 e parágrafo único, LEP). O princípio da legalidade exige prévia e expressa definição legal das faltas e das sanções disciplinares (art. 45, LEP), com proibição específica de (a) sanções coletivas, (b) celas escuras e (c) expor a perigo a integridade física e moral do condenado (art. 45, §§1°, 2o e 3o, LEP).

20 Ver MESTIERI, Manual de direito penal, 1999, v. 1, p. 269: “Sendo o trabalho carcerário direito e dever do condenado, e reconhecendo-se legalmente o efeito da remição da pena, o fa to deo Estado mostrar-se cronicamente desaparelhado para atender à demanda de trabalho interno ou externo dos presos não pode e não deve redundarem prejuízo do interno e do reconhecimento da remição.” Nesse sentido, a jurisprudência majoritária, cf. Boletim do IBCCRIM, n. 53 (1997), p. 189, in KUEHNE, Eei de Execução Penal Anotada. Juruá, 2003, 3a edição, vol. I, p. 88-89. Em posição contrária, mas inconvincente, BITENCOURT, Tratado de direito penal’ 2003, p. 442: “Concluindo, somente terão direito ã remição os conde­nados que efetivamente realizarem o trabalho prisional, nos termos estabelecidos na legislação esperífica. ”

21 Assim, a decisão do TARS, Ag. 296.005.044, relator Juiz JOSÉ ANTÔNIO PA- GANELLA BOSCHI, in RT, 729/648.

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Capítulo 20 O Sistema Penal Brasileiro

1.3.1. Faltas disciplinares

As faltas disciplinares são classificadas nas categorias de faltas leves, médias e.graves (art. 49, LEP): as faltas leves e médias são definidas pela legislação estadual; as faltas graves são definidas pela lei de execução penal (art. 50, LEP), conforme a natureza restritiva de direitos ou privativa de liberdade da pena aplicada.

1. As faltas^razw das penas restritivas de direito são as seguintes (art. 51, LEP): a) descumprir sem justificação a restrição de direitos aplicada;b) retardar sem justificação o cumprimento de obrigação imposta; c) violar os deveres de obediência ao servidor e respeito a outras pessoas;d) inexecução dos trabalhos, tarefas e ordens recebidas.

2. As faltas graves das penas privativas de liberdade são as seguintes (art. 50, LEP): a) incitar ou participar de movimentos de subversão à ordem ou à disciplina; b) fugir; c) posse indevida de instrumento capaz de ferir a integridade corporal de outrem; d) provocar acidente de trabalho; e) violar os deveres de obediência ao servidor e respeito a outras pessoas e de execução dos trabalhos, tarefas e ordens.

3. A prática de fato definido como crime doloso constitui, igualmente, falta grave — contudo, se produzir o resultado de subversão da ordem ou da disáplina internas determina, sem prejuízo da sanção penal corres­pondente, a mais grave sanção disciplinar da Lei de Execução Penal brasileira: a aplicação do regime disáplinar diferenciado, instituído pela Lei 10.792/2003 (art. 52, LEP).

1.3.2. Sanções disciplinares e regime disciplinar diferenciado

Em geral, as sanções disciplinares são aplicadas considerando (a) a na­tureza, os motivos, as circunstâncias e conseqüências do fato, (b) a pessoa do condenado e (c) o tempo de prisão (art. 57, LEP), com garantia do

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Teoria da Pena Capítulo 20

direito de defesa e decisão motivada no procedimento disáplinar por falta grave, durante o qual se admite isolamento celular preventivo, no interesse da disciplina e da apuração do fato (arts. 59 e 60, LEP). O poder disciplinar, delimitado pela definição legal das faltas e das sanções disciplinares, é exer­cido pelo Diretor do estabelecimento respectivo em processo disciplinar contraditório (art 47 e 54, LEP),22 exceto em hipóteses específicas de falta grave e no regime disciplinar diferenciado, submetidos à decisão judicial fundamentada e prévia, com manifestação do Ministério Público e da defesa do condenado (art 54, §§1° e 2o, LEP).

O poder disciplinar — definido como ontologicamente inquisitorialpor CARVALHO23 — controla a população carcerária mediante aplicação de sanções disciplinares consistentes em advertência verbal, repreensão, suspensão ou restrição de direitos, isolamento celular e, finalmente, esse novo produto da imaginação repressiva do legislador, o regime disciplinar diferenciado (art. 53, LEP), a seguir sumariados.

a) Advertência verbal e repreensão. A advertência verbale a repreensão são sanções disciplinares aplicáveis em faltas leves e médias, respectiva­mente, definidas pela legislação estadual.

b) Suspensão ou restrição de direitos e isolamento celular. A sus­pensão ou restrição de direitos e o isolamento celular são sanções disciplinares aplicáveis no caso de faltas graves, observados o limite máximo de 30 (trinta) dias e, no caso do isolamento celular., a imediata comunicação ao Juiz da Execução (art. 58 e parágrafo único, LEP).

c) Regime disciplinar diferenciado. O regime disáplinar diferenáado é aplicável a presos provisórios ou condenados, nas hipóteses (a) de

22 CARVALHO, Pena e garantias, 2003, 2a edição, p. 192, diz o seguinte: “Apesar de a LEP assegurar taxativamente algumas garantias no procedimento — devido processo, reserva legal, direito de defesa, motivação da decisão —, (...) a lógica do sistema não corresponde à estruturaprin- cipiológica conformadora de um direito democrático, gerando focos de ilegalidades (toleradas). ”

23 CARVALHO, Pena e garantias, 2003, 2a edição, p. 184.

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Capítulo 20 O Sistema Venal Brasileiro

crime doloso que determine subversão da ordem ou da disciplina internas, (b) de alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade e (c) de fundadas suspeitas de envolvimento ou par­ticipação em organizações criminosas, quadrilha ou bando (art. 52 §§1° e 2o, LEP).

As características do regime disciplinar diferenciado são as seguintes:a) duração máxima de 360 (trezentos e sessenta) dias — sem prejuízo de repetição da sanção disciplinar, no caso de falta grave de mesma es­pécie, até o limite de 1/6 (um sexto) da pena aplicada; b) cumprimento da sanção disciplinar em cela individual; c) visitas semanais de 2 (duas) pessoas (mais crianças), com duração de 2 (duas) horas; d) saída para banho de sol, por 2 (duas) horas diárias (art. 52 I-IV, LEP).

O regime disáplinar diferenciado é aplicado em procedimento disáplinar instaurado por requerimento circunstanciado do Diretor do estabele­cimento (ou outra autoridade administrativa), com manifestação do Ministério Público e garantia do direito de defesa, mediante decisão fundamentada e prévia do Juiz competente, no prazo de 15 (quinze) dias (art. 54, §§1° e 2o e art. 59, LEP). Por exceção, a autoridade ad­ministrativa pode decretar, até o máximo de 10 (dez) dias, o isolamento preventivo do preso, mas a inclusão do preso no regime disciplinar diferen­ciado depende de despacho do Juiz competente, fundado no interesse da disciplina e da averiguação do fa to , garantido o cômputo do tempo de isolamento preventivo no período de cumprimento da sanção disciplinar definitiva (art. 60, parágrafo único, LEP).

O regime disáplinar diferenáado de isolamento em cela individual até 1 (um) ano — renovável por mais 1 (um) ano, até o limite de 1/6 (um sexto) da pena — é inconstitucional, por várias razões: a) constitui violação da dignidade dapessoa humana, um dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, definido no art. Io da Constituição da República; b) representa instituição de pena cruel,’ expressamente excluída pelo art. 5o, XLVII, letra “e” da Constituição da República; c)

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Teoria da Pena Capítulo 20

a indeterminação das hipóteses de aplicação do regime disciplinar diferen- áado infringe o princípio da legalidade (art 5o, XXXIX, da Constituição da República), porque subordina a aplicação da sanção disciplinar a cri­térios judiciais subjetivos e idiossincráticos: primeiro, é indeterminável a quantidade de alteração necessária para configurar o conceito de subversão da ordem ou da disciplina (art. 52, LEP); segundo, é indeterminável a quantidade de risco definível como alto para a ordem e segurança da prisão ou da sociedade (art. 52, §1°, LEP); terceiro, é indefinível o conceito de fundadas suspeitas de envolvimento ou participação em organizações criminosas, quadrilha ou bando (art. 52, §2°, LEP).

1.4. Individualização da execução: classificação e exame criminológico

A formulação do programa individuali^ador da execução penal (art. 6°, LEP) compete à Comissão Técnica de Classificação, órgão presidido pelo Diretor do estabelecimento e integrado por dois chefes de serviço, um psiquiatra, um psicólogo e um assistente social (art. 7o, LEP).24

a) Classificação dos condenados. Os condenados a penas privativas de ãberdade são classificados de acordo com os seguintes critérios: primeiro, com base nos antecedentes e na personalidade do condenado, para orientar a individualização da execução penal (art 5o, LEP); segundo, com base em exame criminológico do condenado, realizado para adequar a classificação e a individualização da execução (art. 8o, LEP).

b) Exame criminológico. O exame criminológico compreende o conjunto de exames clínicos, morfológicos, neurológicos, psicológicos, psiquiátricos e sociais do condenado,25 realizados para adequar a classificação do conde-

24 Ver CARVALHO, Pena egarantias, 2003, 2a edição, p. 185.25 PITOMBO, Os regimes de cumprimento de pena e o exame criminológico. In: Revista dos

Tribunais, n. 583, p. 315.

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Capítulo 20 O Sistema Penal brasileiro

nado e precisar a individualização da execução penal (art 8o, LEP). Nesse sentido, o exame criminológico é a operadonalização de procedimentos técnicos da criminologia etiológica individual para testar a capacidade criminogênica de condenados a penas privativas de liberdade. O exame criminológico, como diagnóstico para formular prognósticos comportamentais, representa juí%o de probabilidade refratário ã verificação científica e, por isso, constitui avaliação inquisitiva insuscetível de refutação jurídica no contraditório processual.26

Após o advento da Lei 10.712/2003, o exame criminológico para progressão de regime foi substituído por atestado de bom compor­tamento carcerário expedido pelo Diretor da instituição, reduzindo a psiquiatri%ação da execução penal?1 pela qual a decisão do Juiz de exe­cução acabava transferida para alguns junáonários da ortopedia moral— psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais do sistema penal—, cujos prognósticos moralistas e segregadores28 ressuscitavam excrescências positivistas do tipo “personalidade voltada para o crime”, cujo primitivismo lombrosiano ainda depõe contra a ciência penal brasileira.

Apesar da inconfiabilidade científica dos prognósticos sobre comportamentos futuros29 — afinal, nenhum método científico permite prever o comportamento futuro de ninguém —, o exame criminológico continua obrigatório para classificar e individualizar a execução penal de condenados em regime fechado, facultativo para condenados em regime semi-aberto — a norma geral do art. 35, CP, que indica exame obrigatório, é excluída pela norma especial do art. 8o, parágrafo único,

26 CARVALHO, Pena egarantias, 2003, 2a edição, p. 187.27 Ver CARVALHO, Pena egarantias, 2003, 2a edição, p. 190.28 - MALAGUTTI BATISTA, O proclamado e o escondido: a violência da neutralidade técnica”.

In: Discursos Sediciosos, n. 3 (1997), p. 77-86.29 Ver JESCHECK/WEIGEND, Ljehrbuch des Strafrechts, 1996, §77,1, p. 805; também,

FRISCH, Prognoseentscheidungen in der strafrechtlichem Praxis. 1994, p. 34 s.; KAISER, Befinden sich die knminalrechtüchen Massregeln in derKrise? 1990, p. 16; do mesmo, Kri- minologie, 1993, 9a edição, 71, p. 555-570.

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Teoria da Pena Capítulo 20

LEP, que indica exame facultativo — e desnecessário para condenados em regime aberto (art. 8o e parágrafo único, LEP).30

1.5. Detração penal

A detração penal (art. 42, CP) significa o ato judicial (a) de reduzir da pena privativa de liberdade aplicada, o tempo de prisão provisória (prisão em flagrante, temporária, preventiva, por sentença de pronún­cia e por sentença condenatória recorrível) ou de prisão administrativa cumprida pelo condenado, ou (b) de reduzir da medida de segurança, o tempo de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, ou em outro estabelecimento adequado (art. 41, CP).31

Art. 42. Computam-se, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo deprisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de internação em qualquer dos estabelecimentos referidos no artigo anterior.

Por outro lado, nada impede a detração penal na hipótese de pena privativa de liberdade aplicada em novo processo, mediante subtração do tempo de prisão provisória decretada em processo anterior de que resultou absolvição do acusado.32

30 O conflito entre a norma geral do CP (art. 35), que indica exame criminológico obrigatório, e a norma especial da LEP (art. 8o, parágrafo único), que indica exame criminológico facultativo, é resolvido pelo princípio da especialidade: a norma especial prevalece sobrè a norma geral. Em posição contrária, BITENCOURT, Tratado de direitopenal, 2003,8a edição, p. 438-440, que considera obrigatório o exame criminológico em condenados sob regime semi-aberto.

31 Comparar BITENCOURT, Tratado de direito penal, 2003, 8a edição, p. 440-441; MESTIERI, Manual de direito penal, 1999, p. 269.

32 Ver FRAGOSO, Uções de direito penal, 2003,16a edição, 76, p. 3; também, BITEN­COURT, Tratado de direito penal, 2003, 8a edição, p. 441.

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Capítulo 20 O Sistema Venal brasileiro

1.6. Limite das penas privativas de liberdade

A aplicação de penas privativas de liberdade é limitada exclusivamente pela qualidade e quantidade de fatos puníveis realizados, mas a execução de penas privativas de liberdade é limitada a 30 (trinta) anos. Assim, na hi­pótese de aplicação de penas privativas de liberdade cuja soma ultrapasseo limite legal, as penas aplicadas são unificadas em 30 (trinta) anos, como tempo máximo de execução de penas privativas de liberdade.

Art. 75. O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 30 (trinta) anos.

§1°. Quando o agente fo r condenado a penas privativas de liberdade cuja soma seja superiora 30 (trinta) anos, devem elas ser unificadas para atender ao limite máximo deste artigo.

O limite máximo de 30 (trinta) anos decorre da proibição cons­titucional de penas perpétuas (art. 5o XLVII, b, CR). A única exceção ocorre na hipótese de condenação por fato punível cometido após o início da execução da pena, em que a reunificação determinada pela nova pena aplicada desconsidera o tempo de pena já cumprido.

Art. 75 §2°. Sobrevindo condenação p or fato posterior ao início do cumprimento da pena, far-se-á nova unificação, des- pre%ando-se, para esse fim, o período de pena já cumprido.

2. Penas restritivas de direitos

A maior inovação da reforma penal de 1984 foi a introdução das penas restritivas de direitos, reduzindo o poder de disposição parcial do tempo livre de réus condenados a pena privativa de liberdade: as penas restritivas de direitos criam obrigações, limitam direitos e reduzem

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Teoria da Pena Capítuh 20

a liberdade do condenado, temporariamente.

As penas restritivas de direitos possuem tríplice caráter (arts. 44, incisos e parágrafos, e 54, CP): a) são a u tô n om a s .; como espécie inde­pendente de pena, existente ao lado das penas privativas de liberdade e da pena de multa, cuja execução extingue a pena privativa de liberdade;b) são su b s t itu t iv a s ; porque aplicáveis como alternativas da pena pri­vativa de liberdade aplicada (a única exceção é a interdição de direitos nos crimes com violação de deveres de profissão, atividade, ofício, cargo ou função, em que a pena restritiva de direitos atua como autêntica pena acessória); c) são r e v e r s ív e i s ., porque admitem, em determinadas hipóteses, reaplicação da pena privativa de liberdade substituída, como garantia de eficácia da pena restritiva de direitos aplicada.

2.1. Pressupostos de aplicação das penas restritivas de di­reitos

Após o advento da ILei n. 9.714/98, a substituição das penas priva­tivas de liberdade por penas restritivas de direitos é determinada pela natureza do crime cometido e pela duração da pena aplicada, assim equacionados:

1. Quanto à natureza do crime:

a) em crimes dolosos cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, a pena privativa de liberdade até 4 (quatro) anos pode ser substituída por pena restritiva de direitos (art. 44 ,1, CP);

b) em crimes imprudentes, a pena privativa de liberdade aplicada, independente da duração, pode ser substituída por pena restritiva de direitos (art. 44 ,1, CP).

Art. 44. -As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando:

I — aplicada pena privativa de liberdade não superior a 4 (quatro) anos e o crime nãofor cometido com violênda ou grave

542

Capítulo 20 O Sistema Penal brasileiro

ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime fo r culposo.

II — o réu não fo r reincidente em crime doloso;

III — a culpabilidade, os antecedentes, a conduta soáal e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as árcuns- tânáas indicarem que essa substituição seja sufiáente.

c) em crimes dolosos cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, a pena privativa de liberdade inferior a 1 (um) ano pode ser substituída por pena restritiva de direitos (art. 54, CP);

Art. 54. A.spenas restritivas de direitos são aplicáveis, inde­pendentemente de cominação na parte espeáal, em substituição ã pena privativa de liberdade, fixada em quantidade inferior a 1 (um) ano, ou nos crimes culposos.

2. Quanto à duração da pena:

a) no caso de pena privativa de liberdade igual ou inferior a 1 (um) ano, possibilidade de substituição por multa ou por uma pena restritiva de direitos (art. 44, §2°, CP);

b) no caso de pena privativa de liberdade superior a 1 (um) ano, possibilidade de substituição por pena restritiva de direitos e multa, ou por duas penas restritivas de direitos (art. 44, §2°, CP).

Art. 44, §2°. Na condenação igual ou inferior a 1 (um) ano, a substituição pode ser feita p or multa ou p or uma pena res­tritiva de direitos; se superiora 1 (um) ano, a pena privativa de liberdade pode ser substituída p or uma pena restritiva de direitos e multa ou p or duas restritivas de direitos.

3. Complementarmente, a substituição das penas privativas de liberdade por penas restritivas de direitos depende da primariedade do agente e de outros indicadores judiciais de suficiência:

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Teoria da Pena Capítulo 20

a) a reinádênáa em crime doloso impede a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos (art. 44, II, CP), exceto em hipótese de reinádênáa genérica e de substituição soáalmente recomendável da pena privativa de liberdade por pena restritiva de di­reitos (art. 44, §3°, CP);

b) outros indicadores judiáais de sufiáênáa para a substituição da privação de liberdade pela restrição de direitos são a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade e os motivos do agente e, finalmente, as circunstâncias do fato (art. 44, III, CP).

Art 44, §3°. Se o condenado fo r reinádente, o jui^poderá aplicara substituição, desde que, em face de condenação anterior, a medida seja soáalmente recomendável e a reinádênáa não se tenha operado em virtude da prática do mesmo crime.

4. O tráfico de drogas e crimes assemelhados (arts. 33, caput e §1°, e 34 a 37, da lei 11.343/06) não admitem penas restritivas de direitos.

2.2. Espécies de penas restritivas de direitos

A atual legislação penal brasileira prevê 5 (cinco) espécies de penas restritivas de direitos, a saber: a) prestação pecuniária; b) perda de bens e valores; c) prestação de serviços à comunidade ou entidades públicas; d) interdição temporária de direitos; e) limitação de fim de semana (art. 43 ,1-II-III, CP).

a) P res ta çã op ecu n iá r ia . A prestação pecuniária consiste no pagamen­to em dinheiro, à vítima ou descendentes, ou a entidade pública ou privada com destinação social, de um valor fixado pelo Juiz, entre o mínimo de 1 (um) e o máximo de 360 (trezentos e sessenta) salários mínimos, como reparação do dano resultante do crime (art 45, §§1° e 2o, CP).

Art. 45, §1°. A prestação pecuniária consiste no pagamento

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Capítulo 20 O Sistema Venal Brasileiro

em dinheiro à vítima, a seus dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação soáal, de importânáa fixada pelo

ju iz não inferior a 1 (um) salário mínimo nem superior a 360 (trezentos e sessenta) salários mínimos. O valor pago será deduzjdo do montante de eventual condenação em ação de reparação ávil, se coinádentes os benefiáários.

A lei prevê a possibilidade de reparação do dano de outra forma— como, por exemplo, a dação em pagamento (art. 356, CC) —, se o bene­ficiário consentir e, obviamente, o condenado requerer. Prestações de outra natureza não ferem o princípio da legalidade das penas — como afirma um setor da literatura33 —, por duas razões principais: primeiro, porque substituem a pena privativa de liberdade aplicada — regida pelo princípio nulla poena sine lege; segundo, porque benefiáam o condenado— logo não podem ser excluídas pelo princípio da legalidade, instituído para proteção do acusado.

§2°. No caso do parágrafo anterior, se houver aceitação do benefiáário, aprestação pecuniária pode consistiremprestação de outra natureza.

b) P erd a d e b e n s e va lores. A perda de bens e valores tem por ob­jeto o patrimônio do condenado, tem por limite o valor maior, ou do prejuízo causado ou do provento obtido com a prática do crime, e se destina ao Fundo Penitenciário Nacional, exceto disposição legal em contrário (art. 45, §3°, CP).

A rt 45, §3°. A perda de bens e valores pertencentes aos condenados dar-se-á, ressalvada a legislação espeáal, em favor

33 Por exemplo, BITENCOURT, Tratado de direito penal, 2003, 8a edição, p. 464: “Essa prestação de outra natureza é, na verdade, uma pena inominada, e pena inominada é pena indeterminada, que viola o princípio da reserva legal”; igualmente, REGIS PRADO, Curso de direito penal brasileiro (parte geral), 2004, 4a edição, p. 569: “A. denominada prestação pecuniária inominada é exemplo de inconteste violação ao princípio da legalidade dos delitos e das penas. ”

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Teoria da Pena Capítulo 20

do Fundo Penitenciário Nacional, e seu valor terá como teto— o que fo r maior — o montante do prejuízo causado ou do provento obtido pelo agente ou por terceiro, em conseqüênáa da prática do crime.

A literatura dominante define a perda de bens e valores como simples pena de confisco, banida do moderno Direito Penal,34 mas é necessário disdnguir as hipóteses respectivas: a perda de bens e valores até o limite do prejuízo causado com o crime, em favor do Fundo Penitenciário Nacional, constitui realmente confisco de bens e valores do condenado, porque não possui natureza de indenização ou ressarcimento da vítima; mas a perda de bens e valores até o limite do provento obtido com o crime não significa confisco, porque bens e valores obtidos mediante prática de crime não integram o patrimônio do condenado e, portanto, não podem ser objeto de confisco.

c) P re s ta çã o d e s e r v i ç o s à c o m u n id a d e o u a en t id a d e s p ú b li ca s .A prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas é aplicável em condenações superiores a 6 (seis) meses de privação de liberdade (art. 46, CP) e consiste em tarefas gratuitas atribuídas confor­me as aptidões do condenado e distribuídas à razão de 1 (uma) hora de trabalho por dia de condenação, sem prejuízo da jornada normal de trabalho, em entidades assistenciais, hospitais., escolas, orfanatos e instituições congêneres, em programas comunitários ou estatais (art.46 e §§1°, 2o e 3o, CP). Na hipótese de condenação superior a 1 (um) ano, a pena substitutiva pode ser cumprida em tempo menor do que a pena substituída, respeitada a metade da pena privativa de liberdade aplicada (art. 46, §4°, CP).

Art. 46. A-prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas é aplicável às condenações superiores a 6 (seis) meses

j4 Nesse sentido, BITENCOURT, Tratado de direito penal.\ 2003,8a edição, p. 462-463; RE- GIS PRADO, Curso de direito penal brasileiro (parte geral), 2004, 4a edição, p. 569-570.

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Capítiilo 20 O Sistema Penal brasileiro

de privação de libe?~dade.

§ 1 °. Aprestação de serviços à comunidade ou a entidadespúbli­cas consiste na atribuição de tarefas gratuitas ao condenado.

§2°. A prestação de serviços ã comunidade dar-se-á em entidades assistenciais, hospitais, escolas, orfanatos e outros estabeleámen- tos congêneres, em programas comunitários ou estatais.

§3°. As tarefas a que se refere o § 1o, serão atribuídas conforme as aptidões do condenado, devendo ser cumpridas à ra^ão de 1 (uma) hora de tarefa p or dia de condenação, fixadas de modo a não prejudicar a jornada normal de trabalho.

§4°. Se a pena substituída fo r superior a 1 (um) ano, é fa ­cultado ao condenado cumprir a pena substitutiva em menor tempo (art. 55), nunca inferior à metade da pena privativa de liberdade aplicada.

Compete ao juiz designar a instituição de trabalho gratuito do condenado, comunicando-lhe dias e horários de cumprimento da pena, cuja execução se inicia no dia do primeiro comparecimento (art. 149 e parágrafos, LEP). As entidades beneficiárias apresentarão relatórios mensais das atividades e comunicarão ausências ou faltas disciplinares ao juízo da execução (art. 153, LEP).

A prestação de serviços ã comunidade ou a entidades públicas representa a mais adequada e generosa modalidade de pena restritiva de direitos con­cebida para substituirá pena privativa de liberdade, mas sua aplicação é dificultada por obstáculos comunitários ou oficiais: nem a comunidade, representada por entidades assistenciais, hospitais, escolas, orfanatos etc., nem as entidades públicas, representadas pelos órgãos dos poderes da União, dos Estados e dos Municípios, parecem receptivos à idéia de admitir a prestação de serviços substitutiva da privação da liberdade de indivíduos estigmatizados por sentenças condenatórias do sistema de justiça criminal.

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Teoria da Pena Capítulo 20

d) I n t e r d i ç ã o tem p o rá r ia d e d ir e ito s . A interdição temporária de direitos consiste nas seguintes proibições: 1) proibição do exercício de cargo, função ou atividade pública, bem como de mandato eletivo (art. 4 7 ,1, CP); 2) proibição do exercício de profissão, atividade ou ofício que dependam de habilitação especial, de licença ou autorização do poder público (art. 47, II, CP); 3) suspensão de autorização ou de habilitação para dirigir veículo (art. 47, III); 4) proibição de freqüentar determinados lugares (art. 47, IV, CP).

Art. 47. -Aspenas de interdição temporária de direitos são:

I — proibição do exercício de cargo, função ou atividade pública, bem como de mandato eletivo;

II—proibição do exercício de profissão, atividade ou ofício que dependam de habilitação especial, de licença ou autorização do poderpúblico;

III — suspensão de autorização ou de habilitação para dirigir veículo;

IV —proibição de freqüentar determinados lugares.

Na hipótese (a) de proibição do exercício de cargo, função, atividade pública ou mandato eletivo (art. 47, I, CP), a autoridade judicial comunicará a pena aplicada à autoridade competente, que baixará ato iniciando a execução (art. 154, §1°, LEP); na hipótese (b) de proibição do exercício de profissão, atividade ou ofício de­pendentes de habilitação, licença ou autorização do poder público, ou de suspensão de autorização para dirigir veículo (art. 47, II e III, CP), a autoridade judicial determina a apreensão dos documentos relativos ao exercício do direito interditado (art. 154, §2°, LEP). As autoridades administrativas deverão, e qualquer prejudicado poderá, comunicar ao juízo da execução o descumprimento da pena aplicada (art. 155, LEP).

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Capítulo 20 O Sistema Venal brasileiro

e) L im ita çã o d e f im d e sem a n a . A limitação de fim de semana se assemelha, parcialmente, ao regime aberto de execução da pena privativa de liberdade, e consiste na obrigação de permanência, aos sábados e domingos, durante 5 (cinco) horas diárias, em casa de albergado — se não houver casa de albergado, então na própria residência, segundo a jurisprudência —, com possibilidade de participar de cursos, palestras e outras atividades educativas (art. 48, parágrafo único, CP).

Art 48. A limitação de fim de semana consistente na obrigação depermanecer, aos sábados e domingos, por 5 (cinco) horas diárias, em casa de albergado ou outro estabeleámento adequado.

Parágrafo único. Durante a permanência poderão ser ministrados ao condenado cursos e palestras ou atribuídas atividades educativas.

O juízo da execução cientificará ao condenado local, dias e horários de cumprimento da pena, cuja execução se inicia, também, no primeiro comparecimento (art. 151, LEP). O estabelecimento designado apresentará relatórios mensais e comunicará ausências ou faltas disciplinares ao juízo da execução (art. 153, LEP).

3. Pena de multa

A pena de multa, instituída para impedir penas privativas de liberdade de curta duração — ou seja, aplicável à criminalidade média e leve —, é a sanção penal mais freqüente dos sistemas punitivos mo dernos.35 O quantum da pena de multa é determinado pelo sistema de

35 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, 5a edição, §73, I 1, p. 767-768: “No ano de 1991 foram apãcadaspenas de multa em 84% de todos os condenados”-, também, KÕHLER, S tra frecht1997, p. 626.

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Teoria da Pena Capítulo 20

dias-multa - uma criação original do Código Criminal do Império do Brasil (1830)36 —, hoje generalizado nas legislações penais.

As vantagens da pena de multa são evidentes: a) do ponto de vista do condenado, preserva os contatos familiares e sociais, garante a condnuidade das relações de trabalho e evita os efeitos nocivos da prisão; b) do ponto de vista do Estado, possui eficácia retributiva e preventiva, economiza custos de execução penal e garante recursos financeiros para o sistema penitenciário.37 As desvantagens parecem pequenas: eventual redução da capacidade de indenizar a vítima pelo dano do crime e incerteza sobre a identidade real do pagador.38

3.1. Cominação da pena de multa

Na legislação penal brasileira, a pena de multa é cominada de modo indeterminado nos tipos legais de crime, para aplicação alternativa ou cumu­lativa com penas privativas de liberdade, conforme critérios definidos na parte geral do Código Penal e se destina ao fundo penitenciário (art 49, CP). Existem duas exceções de aplicação de pena de multa independente de cominação na parte especial (art 58, parágrafo único, CP): a hipótese de pena de multa isolada substitutiva de pena privativa de liberdade igual ou inferior a 1 (um) ano (art 44, §2°, CP, primeira parte — e não art 44, parágrafo único, como erroneamente diz a lei), ou de pena de multa cumulada com pena restritiva de direitos, substitutiva de pena privativa de liberdade superiora 1 (um) ano (art. 44, §2°, CP, segunda parte).39

36 ZAFFARONI, Derechopenàl (partegeneral), 2002,2a edição, 63, n. 2, p. 974, §63, n. 2. No Brasil, ver REGIS PRADO, Multapenal, 1993,2a edição, p. 72; BITENCOURT, Tratado de direito penal, 2003, 8a edição, p. 533.

37 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strqfmhts, 1996, 5a edição, §73,14, p. 769.38 Comparar JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, 5a edição, §73,

I 4, p. 769.39 Comparar BITENCOURT, Tratado de direito penal, 2003, 8a edição, p. 458.,

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Capítulo 20 O Sistema Penal Brasileiro

3.2. Aplicação da pena de multa

A aplicação da pena de multa se realiza em dois momentos distintos: primeiro, a determinação da quantidade de dias-multa, de­finida conforme o tipo de injusto e a culpabilidade do autor; segundo, a determinação do valor do dia-multa, definido conforme a capacidade econômico-financeira do autor.40 A pena de multa é o produto aritmético da multiplicação da quantidade de dias-multa (art. 49, CP) pelo valor do dia-multa (art. 49, §1°, CP), atualizável pelos índices de correção monetária, na época da execução (art. 49, §2°, CP).

a) A q u a n tid a d e de dias-multa. A quantidade de dias-multa varia entre o mínimo de 10 (dez) e o máximo de 360 (trezentos e sessenta) dias- multa, conforme o tipo de injusto e a culpabilidade do autor, medida pelas árcunstânáas judiciais (art. 59, CP), circunstâncias legais (arts. 61, 62 e 65, CP) e causas especiais de aumento ou de diminuição de pena, que compõem o processo trifásico de aplicação da pena.41

Art. 49. A pena de multa consiste no pagamento ao fundo penitenciário da quantia fixada na sentença e calculada em dias-multa. Será, no mínimo, de 10 (dez) e> no máximo, de 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.

b) O va lo r do dia-multa. O valor do dia-multa é calculado com base no maior salário mínimo da época do fato, dentro dos seguintes limites: mínimo de 1/30 (um trigésimo) do maior salário mínimo e máximo de5 (cinco) vezes o maior salário mínimo da época do fato, segundo a capacidade econômico-financeira do condenado.42

40 Assim, também no sistema alemão, cf. EBERT, Strafrecht, 2000, 3a edição, p. 241; KÕHLER, Strafrecht, 1997, p. 626-627.

41 Ver BITENCOURT, Tratado de direito penal, 2003, 8a edição, p. 537-538; também, REGIS PRADO, Curso de direito penal brasileiro (parte geral), 2004, 4a edição, p. 632.

42 BITENCOURT, Tratado de direito penal, 2003, 8a edição, p. 538; REGIS PRADO, Curso de direito penal brasileiro (parte geral), 2004, 4a edição, p. 632.

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Teoria ãa Pena Capítulo 20

Art. 49, §1°. O valor do dia-multa será fixado peloju i% não podendo ser inferior a um trigésimo do maior salário mínimo mensal vigente ao tempo do fato, nem superior a 5 (cinco) ve^es esse salário.

A situação econômica do réu (art. 60, CP) autoriza ampliar a pena de multa até o triplo da cominação máxima, se parecer ineficaz a aplicação do máximo da pena de multa cominada (art. 60, §1°, CP).43 Nesse sentido, a pena de multa seria modalidade punitiva definível como pena igual,’ porque considera desigualmente indivíduos concretamente desiguais; na prática, a seletividade do processo de criminalização, con­centrada na população pobre e excluída do mercado de trabalho e do sistema de consumo, frustra a aplicação igualitária da pena de multa.

Art. 60. Na fixação da pena de multa oju i deve atender, principalmente, ã situação econômica do réu.

§1°. v4 multa pode ser aumentada até o triplo, se o ju i considerar que, em virtude da situação econômica do réu, é ineficaz embora aplicada no máximo.

3.3. Execução da pena de multa

A execução da pena de multa ocorre pelo pagamento respectivo, realizável no prazo de 10 (dez) dias do trânsito em julgado da sen­tença condenatória (art. 50, primeira parte, CP) — ou em qualquer tempo depois desse prazo. Esse pagamento pode ser feito em parce­las mensais, se o condenado requerer e as circunstâncias indicarem sua conveniência (art. 50, segunda parte, CP). Igualmente, admite-se desconto sobre vencimentos ou salários do condenado, se a pena de

43 BITENCOURT, Tratado de direito penal.' 2003, 8a edição, p. 538; REGIS PRADO, Curso de direito penal brasileiro (parte geral), 2004, 4a edição, p. 633.

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Capítulo 20 O Sistema Penal Brasileiro

multa é aplicada isoladamente, ou cumulativamente com pena restri­tiva de direitos ou com pena privativa de liberdade suspensa condi­cionalmente (art. 50, §1° e alíneas, CP): nessas hipóteses o desconto é limitado pela necessidade de preservar recursos indispensáveis ao sustento do condenado e de sua família (art. 50., §2°, CP); na hipótese de aplicação cumulativa com pena privativa de liberdade não suspensa condicionalmente, o juiz poderá determinar o desconto proporcional sobre os salários do condenado (art. 170, LEP).44

A pena de multa, após o trânsito em julgado da sentença condenatória, transforma-se em dívida de valor, aplicadas as normas sobre dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive quanto ã suspensão e interrupção da prescrição (art. 51, CP), e constitui título executivo judicial (art. 164, LEP).

Art. 51. Transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será considerada dívida de valor; aplicando-se-lhe as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição.

Em caso de mora no pagamento da pena de multa, a Fazenda Pública pode requerer a citação do condenado para pagar o valor da multa ou nomear bens apenhora, no prazo de 10 (dez) dias, admitindo-se o pagamento parcelado, em prestações mensais, iguais e sucessivas; se o condenado não pagar a pena de multa ou não nomear bens à penhora, no prazo legal, serão penhorados bens do condenado sufi­cientes para garantir a execução, prosseguindo-se na ação conforme a legislação processual civil (art. 164, §2°, LEP).45

44 BITENCOURT, Tratado de direito penal, 2003, 8a edição, p. 540-542.45 A Jurisprudência dominante atribui à Fazenda Pública—ao contrário do art 164, LEP,

que atribui ao Ministério Público — a legitimidade para cobrança da pena de multa (STJ, REsp. 397.985/SP, 5a Turma, DJ 07/04/2003, Rel. Min. FELIX FISCHER).

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Teoria da Pena Capítulo 20

Art. 50. A multa deve ser paga dentro de 10 (de%) dias de­pois de transitada em julgado a sentença. A requerimento do condenado e conforme as circunstâncias, o jui^pode permitir que o pagamento se realize em parcelas mensais.

§1°. A cobrança da multa pode efetuar-se mediante desconto no venámento ou salário do condenado quando:

a) aplicada isoladamente;

b) aplicada cumulativamente com pena restritiva de direitos;

c) concedida a suspensão condicional da pena.

§2°. O desconto não deve incidir sobre os recursos indispen­sáveis ao sustento do condenado e de sua família.

4. Conversibilidade executiva das penas criminais

A conversão de penas criminais é o processo judicial de trans­formação de uma espécie de pena em outra espécie de pena, em condições determinadas, durante a execução respectiva (art. 44, §4°, CP). Assim como as penas privativas de liberdade são substituídas por penas restritivas de direitos, as penas restritivas de direitos podem ser convertidas em penas privativas de liberdade, na hipótese de descumpri- mento injustificado da restrição imposta.

Art. 44, §4°. A pena restritiva de direitos converte-se em privativa de liberdade quando ocorrer o descumprimento in­justificado da restrição imposta. No cálculo da pena privativa de liberdade a executar será deduzido o tempo cumprido da pena restritiva de direitos, respeitado o saldo mínimo de 30 (trinta) dias de detenção ou de reclusão.

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Capítulo 20 O Sistema Penal brasileiro

O critério legal da dedução do tempo cumprido da pena restritiva de direitos, assim como da observação do saldo mínimo de 30 (trinta) dias de detenção ou de reclusão, na conversão da pena restritiva de direitos em pena privativa de liberdade, somente é aplicável nos casos de penas restritivas de direitos determinadas por tempo (como a prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, a limitação de fim de semana e a interdição temporária de direitos), mas não pode ser aplicado nos casos de penas restritivas de direitos definidas por valores (como a prestação pecuniária e a perda de bens e valores, instituídos pela Lei 9.714/98), sem lesão ao princípio da legalidade.

Na hipótese de descumprimento injustificado de penas restritivas de direitos definidas por valores, como a prestação pecuniária e a perda de bens e valores, parece excluída a possibilidade de conversão em penas privativas de liberdade, devendo ser aplicado o mesmo critério da inadimplência da pena de multa, por analogia in bonam partem: a pena restritiva de direitos definida em valores, após o trânsito em julgado da sentença condenatória, transforma-se igualmente em dívida de valor, com aplicação das normas sobre dívida ativa da Fazenda Pública (art. 51, CP), legitimada para a ação de execução civil competente.

Assim, o descumprimento injustificado da pena restritiva de direitos aplicada somente admite conversão na pena privativa de liberdade substituída, nas hipóteses de prestação de serviços à comunidade ou a entidadespúblicas, ou de limitação de fim de semana, ou de interdição temporária de direitos, como penas restritivas de direitos determinadas por tempo, as únicas que admitem o critério de conversão legal do art. 44, §4°, do Código Penal.

1) A prestação de serviços ã comunidade ou a entidades públicas se converte em pena privativa de liberdade se o condenado (a) não for encontrado, (b) não comparecer, injustificadamente, à entidade ou programa do serviço, (c) recusar-se, injustificadamente, à prestação do serviço, (d) praticar falta grave, ou (e) sofrer nova condenação criminal à privação

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Teoria da Pena Capítulo 20

de liberdade não suspensa (art. 181, §1°, LEP).

2) A limitação de fim de semana se converte em pena privativa de liberdade se o condenado (a) não for encontrado, (b) injustificadamente não comparecer ao estabelecimento designado, (c) injustificadamente recusar-se ao exercício de atividades determinadas pelo juízo, (d) praticar falta grave, ou (e) sofrer nova condenação criminal à privação de liberdade não suspensa (art. 181, §2°, LEP).

3) A interdição temporária de direitos se converte em pena privativa de liberdade se o condenado (a) não for encontrado, (b) exercer, injustifi­cadamente, o direito interditado, e (c) sofrer nova condenação criminal à privação de liberdade não suspensa (art. 181, §3°, LEP).

Por último, a pena de multa não pode ser convertida em pena privativa de liberdade (art. 51, CP): a Lei 9.268/96 revogou os pará­grafos Io e 2o do art. 51, CP, que permitiam a conversão da pena de multa em pena privativa de liberdade, na proporção de 1 (um) dia de detenção por dia-multa, até o máximo de 360 (trezentos e sessenta) dias de privação de liberdade.

5. Cominação das penas criminais

As penas privativas de liberdade, cominadas nos limites mínimo e máximo pelo legislador, independem de regras de cominação (art. 53, CP) e, por isso, a referência a seus limites legais é ociosa.

Art. 53. Aspenasprivativas de liberdade têm seus limites esta­belecidos na sanção correspondente a cada tipo legal de crime.

Entretanto, a função substitutiva atribuída às penas restritivas de

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Capítuh 20 O Sistema Venal Brasileiro

direitos e a cominação indeterminada das penas de multa podem explicar a introdução de regras de cominação, evitando repetição em cada tipo legal.4*5

5.1. As regras de cominação das penas restritivas de direitos são as se­guintes:

a) a aplicação judicial de pena restritiva de direitos independe de cominação específica ao lado de cada tipo de crime (art. 54, CP);

b) a eficácia substitutiva da pena restritiva de direitos é delimitada pela pena privativa de liberdade aplicada, conforme os seguintes cri­térios: b l) se a pena privativa de liberdade aplicada é inferior a 1 (um) ano, então a pena restritiva de direitos possui eficácia substitutiva isolada, tanto em crimes dolosos como em crimes imprudentes (art. 44, §2°, CP, acima); b2) se a pena privativa de liberdade aplicada é igual ou superior a 1 (um) ano, então a pena restritiva de direitos pos­sui eficácia substitutiva reduzida aos crimes imprudentes, mas exige aplicação cumulativa de pena de multa, ou de outra pena restritiva de direitos (art. 54, CP);

Art. 54. Aspenas restritivas de direitos são aplicáveis, inde­pendentemente de cominação na parte especial, em substituição à pena privativa de liberdade, fixada em quantidade inferior a 1 (um) ano, ou nos crimes culposos.

c) a duração das penas restritivas de direitos é igualà duração das penas privativas de liberdade substituídas, nas hipóteses referidas de penas restritivas de direitos determinadas por tempo (incisos IV, V e VI, do art. 43 — o inciso III, referido na lei, foi vetado), com exceção do art. 46, §4°, CP (art. 55, CP);

46 Nesse sentido, BITENCOURT, Tratado de direito penal\ 2003, 8a edição, p. 549-552.

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Teoria da Pena Capítulo 20

Art. 55. Aspenas restritivas de direitos referidas nos incisos IIIIV, V e VI do art. 43 terão a mesma duração da pena privativa de liberdade substituída, ressalvado o disposto no §4° do art. 46.

d) finalmente, a aplicação da pena de interdição temporária de direitos (art. 47 ,1-III, CP) é obrigatória nas hipóteses (a) de violação de deveres em crimes cometidos no exercício de profissão, atividade, ofício, cargo ou função — em que pode funcionar como pena acessória (art. 56, CP) e (b) de crimes culposos de trânsito (art. 57, CP).

Art. 56. Aspenas de interdição, previstas nos incisos I e II do art. 47 deste Código, aplicam-se para todo o crime cometido no exercício deprofissão, atividade, ofício, cargo ou função, sempre que houver violação dos deveres que lhes são inerentes.

Art. 57. Apena de interdição, prevista no inciso III do art.47 deste Código, aplica-se aos crimes culposos de trânsito.

5.2. As penas de multa, cujos limites legais são fixados em lei (art. 49, §§1° e 2o, CP), são cominadas de modo indeterminado nos tipos legais respectivos.

Art. 58. A multa, prevista em cada tipo legal de crime, tem os limites fixados no art. 49 e seus parágrafos deste Código.

Parágrafo único. A multa prevista no parágrafo único do art. 44 e no§2° do art. 60 deste Código aplica-se indepen­dentemente de cominação na parte especial.

Exceções à regra de cominação indeterminada da pena de multa nos tipos legais da parte especial aparecem nos seguintes casos: aplica­ção da pena de multa substitutiva da pena privativa de liberdade (art. 58, parágrafo único, CP), de forma isolada, no caso de aplicação de pena privativa de liberdade igual ou inferior a 1 (um) ano (art. 44, §2°, CP, primeira parte — e não art. 44, parágrafo único, como erroneamente

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Capítulo 20 O Sistema Penal Brasileiro

diz a lei), ou de forma cumulada com pena restritiva de direitos, no caso de aplicação de pena privativa de liberdade superior a 1 (um) ano (art. 44, §2°, CP, segunda parte).47

Portanto, a norma do art. 60, §2°, que prevê substituição de pena privativa de liberdade igual ou inferior a 6 (seis) meses por pena de multa, está derrogada pela norma do art. 44, §2°, CP, primeira parte (introduzida pela Lei 9.714/98), como disposição posterior mais fa ­vorável ao acusado: atualmente, a pena de multa pode substituir pena privativa de liberdade igual ou inferior a 1 (um) ano, sem necessidade dos requisitos deprimariedade e dos indicadores de suficiência retributiva e preventiva da pena, exigidos pela disposição derrogada.48

47 Comparar BITENCOURT, Tratado de direito penal\ 2003, 8a edição, p. 458.48 Ver BITENCOURT, Tratado de direito penal, 2003, 8a edição, p. 458-459; REGIS

PRADO, Curso de direito penal brasileiro (parte geral), 2004, 4a edição, p. 610-611.

C apítu lo 2 1

A p l ic a ç ã o d a s P e n a s C r im in a is

I. A sentença criminal

A sentença criminal pode absolver o acusado da imputação de fato criminoso, ou condenar o acusado às sanções penais aplicáveis ao fato imputado. Em regra, a sentença criminal absolutória se fundamenta na exclusão do conceito de crime, por ausência de tipo de injusto ou por ausência de culpabilidade; como exceção, a sentença criminal ab­solutória pode ter por fundamento pressupostos relativos ao fato , ou pressupostos relativos ao processo. A sentença criminal condenatória se fundamenta na existência de crime, observados os pressupostos do fato e do processo.

1. A sentença criminal absolutória

1. A sentença criminal absolutória por exclusão do conceito de crime pode ter qualquer um dos seguintes fundamentos:

a) a ação realizada ou omitida não é típica, porque (1) no âmbito do tipo objetivo, não há causação do resultado, como relação de causalidade entre a ação realizada ou omitida e o resultado, ou não há imputação do resultado, como criação ou realização do risco criado, ou porque (2) no âmbito do tipo subjetivo, (a) não existe dolo, por defeito de consáênáa (erro de tipo), ou por ausência

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Teoria da Pena Capítulo 21

de vontade (exceto em caso de incriminação legal da imprudência), ou (b) não existem elementos subjetivos especiais (intenções, tendências ou atitudes especiais).

b) a ação típica realizada ou omitida é justificada por legíti­ma defesa, estado de necessidade, exercício regular de direito, estrito cumprimento de dever legal, ou consentimento do ofendido.

c) a ação típica e antijurídica realizada ou omitida não é culpável, porque realizada por agente inimputável (menoridade ou anormalidade psíquica), ou por agente em situação de erro de proibição inevitável,' excludente do conhecimento do injusto, ou por agente em situação de inexigibilidade de comportamento diverso, configurada nas hi­póteses legais e supralegais de exculpação.

2. A sentença criminal absolutória fundada em pressupostos relativos ao fato ou ao processo pode ter os seguintes fundamentos:

a) a ação típica, antijurídica e culpável não é punível por pressupostos relacionados ao fato., assim sistematizados: 1) exis­tência de fundamentos excludentes de pena, nas hipóteses (a) de isenções p e s s o a i s de pena (imunidades parlamentares, relações naturais ou civis de casamento, ascendência ou descendência, em crimes patri­moniais), (b) de isenções o b je t iv a s de pena (prova da verdade, na calúnia e na difamação) e (c) de suspensão de pena, na hipótese de desistência da tentativa (desistência voluntária e arrependimento eficaz); 2) ausência de condições objetivas de punibilidade (o ingresso do autor no território nacional, por exemplo).

b) a ação típica, antijurídica e culpável não é punível por pressupostos relacionados ao p ro c e s s o \ em hipóteses de neces­sidade de representação para a ação penal pública condicionada, ou de ocorrência de prescrição, decadência ou perempção do direito de ação penal privada.

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Capítulo 21 Aplicação das Penas Criminais

2. A sentença criminal condenatória

A sentença criminal condenatória deve, do ponto de vista do Di­reito Penal, ter por fundamento a existência de crime na ação realizada ou omidda pelo acusado, como conceito constituído de tipo de injusto e de culpabilidade, além dos pressupostos relativos ao fato e ao processo penal.\ acima indicados. Esse fundamento material é necessário, mas não é suficiente para condenação criminal, porque inúmeras ilegalidades ou nulidades ligadas ao processo legal devido, como violações de garantias constitucionais e legais do acusado no processo penal, podem impe­dir a condenação criminal. A natureza subsidiária do Direito Penal, concebido como instrumento de ultima ratio da política social, mostra que a sentença criminal condenatória deve ser o produto da exclusão de todas as hipóteses (a) de absolvição do acusado, por não se caracterizar o conceito de crime, por inexistência dos pressupostos relativos ao fato e ao processo, ou por ausência de prova suficiente para condenação, ou (b) de invalidação do processo penal, por ilegalidades ou nulidades vinculadas ao princípio do processo legal devido.

No momento de formação da sentença criminal condenatória, anterior ao processo intelectual de aplicação da pena criminal, apareceo seguinte quadro no aparelho psíquico do julgador: a) o tipo de injusto, como ação típica e antijurídica concreta, constitui conceito demons­trado; b) ao contrário, a culpabilidade existe somente como qualidade do fato punível, isto é, como reprovação do autor pela realização do tipo de injusto, mas ainda não existe como quantidade de reprovação, isto é, como medida da pena criminal,1 apenas determinável no proces­so intelectual trifásico de aplicação da pena, com base nas circunstâncias

judiciais, nas circunstâncias legais e nas causas especiais de aumento ou de redução da pena.

1 TRÕNDLE/FISCHER, Strafgeset^buch undNebengeset^e, 2001, 50a edição, §46, n. 5.

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Teoria da Pena Capítulo 21

II. O método legal de aplicação da pena

A aplicação da pena criminal é ato judicial de determinação das conseqüências jurídicas do fato punível, compreendendo a escolha da pena aplicável, a quantificação da pena escolhida2 e (em caso de pena privativa de liberdade) a decisão sobre regime iniáalde execução, ou a substituição da pena aplicada por pena restritiva de direitos (art. 59, CP), ou, alter­nativamente, a suspensão condicional da execução da pena aplicada.

Art. 59. O ju i^ atendendo ã culpabilidade, aos antecedentes, à conduta soáal, à personalidade do agente, aos motivos, às árcunstânáas e conseqüênáas do crime, bem como ao com­portamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e sufiáente para reprovação e prevenção do crime:

I — as penas aplicáveis dentre as cominadas;

II — a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;

III — o regime iniáal de cumprimento da pena privativa de liberdade;

IV — a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espéáe de pena, se cabível.

Essa norma exprime a concepção político-criminal fundamental do Direito Penal brasileiro, implementada pelo Juiz através da sentença criminal condenatória, que define a necessidade e a sufiáênáa da pena como retribuição equivalente da culpabilidade e como prevenção espeáal e geral do crime e da criminalidade.

1. A atividade intelectual de aplicação da pena criminal tem por objeti-

2 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafkchts, 1996, 5a edição, §82,1, p. 871.

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Capítulo 21 Aplicação das Penas Criminais

vo estabelecer a pena necessária e sujiáente para reprovação e prevenção do crime, conforme a seguinte seqüência metodológica (art. 68, CP): a) definição da pena-base, fundada nas chamadas circunstâncias judiciais (art. 59, CP); b) agravação ou atenuação da pena-base, fundada nas chamadas circunstâncias legais (arts. 61, 62 e 65, CP); c) fixação da pena definitiva, fundada nas causas espeáais de diminuição e/ou de aumento da pena, da parte geral e da parte especial à o Código Penal.3

Nesse quadro, o jui^o qualitativo da culpabilidade como cate­goria do crime se transforma no jui^o quantitativo da culpabilidade como medida da pena — garantia individual excludente de excessos punitivos fundados em prevenção geral ou especial.4

2. Os objetivos de reprovar e de prevenir o crime atribuídos à pena criminal são delimitados por dois adjetivos correlacionados: a necessidade e a suficiência da pena para cumprir aqueles objetivos. Antes de definir os objetivos de reprovação e de prevenção do crime deve ser explicado o significado dessas duas grandezas: a) a necessidade da pena refere-se à natureza da pena aplicada: pena privativa de liberdade, pena restritiva de direitos ou pena de multa;b) a suficiência da pena refere-se à extensão da pena considerada necessária: a duração da pena privativa de liberdade, com substituição ou não por uma pena restritiva de direitos, e o valor da pena de multa.

3. Estabelecido o conceito de pena necessária e de suficiência da pena necessária, é possível definir os objetivos de reprovar e de prevenir o crime atribuídos pelo Ixgislador ao Juiz criminal (art. 59, CP). Os objetivos de reprovar e de prevenir o crime são realizados pelas funções de retribuição da culpabilidade e de prevenção da criminalidade atribuídas à pena criminal — logo especulações judiciais sobre teorias penais estão

3 TRÒNDLE/FISCHER, Strafgeset%buch und Nebengeset^e, 2001, 50a edição, §46, n. 13.4 MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1989, 7/27; JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des

Strafrechts, 1996, §82, IV 6; TRÕNDLE/FISCHER, Strafgesefobuch und Nebengesefce, 2001, 50a edição, §46, n. 16.

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Teoria da Pena Capítulo 21

excluídas da sentença criminal: a lei penal assume explicitamente as teorias unificadas da pena criminal, porque a reprovação seria medida pela retribuição equivalente, por um lado, e a prevenção abrangeria a prevenção especial\ nas dimensões de ressociali^ação e de neutralização do condenado, além da prevenção geral,’ nas dimensões de intimidação e de reforço da ordem jurídica, por outro lado.5

3.1. A primeira indicação legal para o Juiz aplicar a pena necessária e su­ficiente para reprovar e prevenir o crime é a moldurapenal do tipo de injusto realizado: o mínimo e o máximo da pena cominada são limites legais de uma escala contínua de gravidade predefinida pelo Legislador.6

. 3.2. A segunda indicação legal para o Juiz aplicar a pena necessária e suficiente para reprovar eprevenir o crime refere-se ao conteúdo da moldura legal do tipò de injusto: as árcunstânáas judiciais, as circunstâncias legais e as causas especiais de aumento e de diminuição de pena.

Art. 68. A- pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as árcunstânáas atenuantes e agravantes;por último, as causas de diminuição e de aumento.

Parágrafo único. No concurso de causas de aumento ou de diminuição previstas na parte espeáal, pode o ju i% limitar- se a um só aumento ou a uma só diminuição, prevalecendo, todavia, a causa que mais aumente ou diminua.

4. Contudo, a simples delimitação da moldura penal e a indicação do método legal de preenchimento da moldura penal não podem determinar a pena necessária e sufiáente para reprovar e prevenir o crime, segundo a

5 Em relação ao Direito Penal alemão, ver KAISER, LencknerFS, 1988, p. 781.6 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §82, II, n. 1, p. 872; tam­

bém, TRÕNDLE/FISCHER, Strafgeset^uch und Nebengeset%e, 2001, 50a edição, §46, n. 16.

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Capítulo 21 Aplicação das Penas Criminais

ideologia penal — nem existem fórmulas matemáticas para determinar a pena criminal. Somente os processos intelectuais e emocionais do Juiz criminal podem empregar o método legal para definir o conteúdo criminal da moldura penal do tipo de injusto, determinando a pena necessária e su­ficiente para reprovar eprevenir o crime, conforme o programa oficial:

a) em primeiro lugar, a reprovação do crime é realizada pela retribuição de culpabilidade medida pela pena criminal aplicada;

b) em segundo lugar, a prevenção do crime deve ser realizada pela função de correção e de neutralização atribuída à prevenção especial e, secundariamente, pela função de intimidação e de estabilização normativa atribuída à prevenção geral.7

Esse é o discurso oficial da teoria jurídica da pena. Contudo, a técnica de aplicação da pena não pode obscurecer o conflito en­tre objetivos declarados e objetivos reais do sistema penal nas sociedades contemporâneas.8 Afinal, o discurso de prevenção da criminalidade é refutado pela experiência histórica da prisão e a pena criminal é simples retribuição equivalente, sem qualquer finalidade útil.

1. Definição da pena-base: circunstâncias judiciais

A definição da pena-base, como produto de operacionaüzação das árcunstândasjudidais do art. 59, CP, começa com a fixação do ponto de partida do processo intelectual de determinação da pena criminal. A questão àoponto departida para determinar a pena-base é assim definí­

7 Ilustrativo, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts,, 1996, §82, II, III, IV,p. 872-882.

8 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §82, IV 4, p. 878-879.

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Teoria da Pena Capítulo 21

vel: a) critério antigo propõe a média entre o mínimo e o máximo da pena cominada, fundada em lógica matemática;9 b) critério moderno propõe a pena mínima, fundada em razões humanitárias. 10A solução da controvérsia é simples: se o critério antigo determina aplicação de pena maior e, inversamente, o critério moderno determina aplicação de pena menor, então o argumento humanitário prevalece sobre o argumento lógico — aliás, contrário ao princípio da culpabilidade, que proíbe aplicação ou agravação de penas sem fundamento empírico concreto.11 Conclusão: o ponto de partida para fixação da pena-base deve ser o mínimo legal da pena cominada, conforme generalizada prática judicial contemporânea.

As árcunstâncias judiciais do art. 59, CP, são objeto de arbítrio ex­clusivo do Juiz12 e compreendem elementos pertencentes ao agente (culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade e motivos), ao fato (circunstâncias e conseqüências do crime) e à vítima (com­portamento da vítima), como se demonstra.

1.1. Elementos do agente

Os elementos pertencentes ao agente são os componentes mais importantes das árcunstâncias judiáais (art. 59, CP), definindo quase toda a pena-base, como se demonstra:

a) Culpabilidade

A culpabilidade como árcunstânáa judicial.' introduzida pela reforma

9 HUNGRIA, Aplicação da pena, in Revista Forense, 90/525.10 FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 64.11 FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 65: “Com tal demonstração fica claro que o método

do termo médio, embora racional, prejudica o réu. E como a lei em momento algum disse qual seria o método a ser adotado, penso que o ju i^ não pode fa%er uma interpretação extensiva escolhendo um método que venha prejudicar o réu, embora até mais lógico e raáonal. ”

12 Nesse sentido, FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 70; também JESCHECK/ WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §82, II 1, p. 871.

Capítulo 21 Aplicação das Penas Criminais

penal de 1984 em substituição ao critério da “intensidade do dolo ou grau de culpa”da lei anterior, aparece em posição incômoda: a culpabilidade do autor pela realização do tipo de injusto não é mero elemento informador do juízo de reprovação, mas o próprio juí^o de reprovação pela realização do tipo de injusto (o que é reprovado), cujos fundamentos são a imputabi­lidade, a consciência da antijuridicidade e a exigibiãdade de comportamento diverso (porque é reprovado). 13A definição da culpabilidade como circunstância

judicial de formulação dojuí%o de reprovação constitui impropriedade me­todológica, porque o juí%o de culpabilidade, como elemento do conceito de crime, não pode ser, ao mesmo tempo, simples árcunstânáa judiáal de informação do juízo de culpabilidade.14

Além disso, o truísmo do legislador (EM, n. 50) de que “graduávelé a censura”parece desconhecer que objeto da censura é a atitude do agente, definível em dois momentos: a) no tipo de injusto, como dolo (energia psíquica produtora do tipo de injusto) ou como imprudênáa (atitude defei­tuosa em ações socialmente perigosas), integrantes do objeto de reprovação (o que é reprovado); b) na culpabilidade, como imputabilidade (o autor é capa^de saber o que faz), como consáênáa do injusto (o autor sabe realmente o que faz) e como exigênáa de comportamento diverso (o autor tinha o poder de nãofa^er o que fez), integrantes do juí^o de reprovação (porque o autor é reprovado), cuja conjugada intensidade variável determina o nível de reprovação pessoal do autor — ou seja, a graduabilidade da censura. A crítica é válida para todas as situações em que o conceito de culpabilidade funciona como elemento de orientação de decisões judiciais: no concurso de pessoas (art 29, CP), nas penas restritivas de dirátos (art. 43, III, CP), no crime continuado (art 71, parágrafo único, CP), na suspensão condiáonal da pena (art 77, §2°, CP) etc.

Mas a transformação da culpabilidade, ainda existente como

13 CIRINO DOS SANTOS, Direito penal (a nova parte geral), 1985, p. 239.14 Ver FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 79-80.

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Teoria da Pena Capítulo 21

qualidade do fato punível, isto é, como reprovação do autor pela rea­lização do tipo de injusto, em culpabilidade como quantidade de reprovação, isto é, como medida da pena criminal,15 pressupõe as determinações psíquicas e emocionais do cérebro do Juiz, conforme os seguintes parâmetros:

a) o nível de consáênáa do injusto no psiquismo do autor varia numa escala graduável entre o pólo de pleno conheámento do injusto (que define plena reprovabilidade) e o pólo de erro de proibição inevitável (que define ausência de reprovabilidade), passando pelos níveis intermediários de todas as gradações de evitabilidade do erro de proibição, necessariamente mensuradas na reprovabilidade do autor e expressas na medida da pena;16

b) o grau de exigibilidade de comportamento diverso de autor consciente do tipo de injusto, varia numa escala graduável entre o pólo de plena normalidade das circunstâncias do tipo de injusto (que define a plena dirigibilidade normativa), como máximo poder pessoal de nãofa%er o quefa^ e o pólo de plena anormalidade das circunstâncias do tipo de injusto (que define ausência de dirigibilidade normativa), como inexistência do poder pessoal de não fa^er o que fa ^ expressa nas situações de exculpação legais e supralegais, passando pelos graus intermediários de todas as gradações de normalidade/anormalidade do tipo de injusto, que reduzem o poder pessoal de nãofa^ero quefa% necessariamente mensuradas na exigibilidade de comportamento diverso e, portanto, expressas na medida da pena.17

Esse conceito de culpabilidade constitui, em conjunto com o con­ceito de tipo de injusto., o conceito de fato punível — e, por essa razão, não é redutível a simples árcunstânáa judiáal' equivalente a outros elemen­tos informadores da pena-base, como os antecedentes, a conduta soáal’ a personalidade e os motivos do autor, ou como árcunstânáas ou conseqüênáas

15 TRÕNDLE/FISCHER, Strafgeselzbuch und Nebengeset^e, 2001,50a edição, §46, n. 5.16 CIRINO DOS SANTOS, A modema teoria do fa to punível, 2004, p. 227-229.17 CIRINO DOS SANTOS, A modema teoria dofato punível’ 2004, p. 202-204 e 248-250.

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Capítulo 21 Aplicação das Penas Criminais

do fato, ou, ainda, como o comportamento da vítima, de valor evidente­mente inferior.18

b) Antecedentes

Os antecedentes são acontecimentos anteriores ao fato, relevan­tes como indicadores de aspectos positivos ou negativos da vida do autor e capazes de influenciar a aplicação da pena — com exceção da rein­cidência criminal, definida como árcunstânáa agravante. Nessa matéria, é possível identificar duas posições na prática judicial brasileira: 1) a posição tradicional considera maus antecedentes a existência de in­quéritos instaurados, de processos criminais em curso, de absolvições por insuficiência de provas, de extinção do processo por prescrição abstrata, retroativa ou intercorrente e de condenação criminal sem trânsito em julgado ou que não constitui reincidência;19 2) a posição crítica considera maus antecedentes somente condenações criminais definitivas anteriores que não configuram reincidência, excluindo todas as outras hipóteses — na verdade, a única teoria compatível com o princípio constitucional da presunção de inocência, como observa SUANNES.20 Em posição semelhante, a moderna teoria alemã orienta- se no sentido de considerar maus antecedentes somente a existência de penas criminais anteriores — e, portanto, ausência de penas criminais significaria bons antecedentes, com efeito redutor da pena, especialmente no caso de condenações dolosas de autores com passado meritório, ou de condenações por imprudência de autores sem registro de acidentes

18 Outra posição, aqui reformulada, em CIRINO DOS SANTOS, Direito pena l (a nova parte geral), 1985, p. 238-239.

19 Ver FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 83-85.20 SUANNES, Os fundamentos éticos do devido processo legal, 1999, p. 235; igualmente,

BUENO DE CARVALHO e CARVALHO, Aplicação da pena e garantismo, 2002, 2a edição, p. 49-50.

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Teoria da Pena Capítulo 21

de trânsito na direção de veículos.21 Em qualquer hipótese, a teoria e a jurisprudência modernas condicionam a validade dos antecedentes ao prazo de 5 (cinco) anos, por aplicação analógica do prazo de validade da reincidência (art. 64 ,1, CP).22

c) Conduta social

O conceito de conduta soáal.' como conjunto de comportamentos relevantes e/ou significativos da vida do autor, parece em conflito com o conceito tradicional de antecedentes, compreensivo de inquéritos policiais, de processos criminais, de absolvições por insuficiência de provas23 etc., mas não com o conceito crítico restrito a condenações criminais definitivas. A jurisprudência brasileira resolveu o conflito atribuindo ao conceito de conduta soáal o significado de comporta­mento do autor nos papéis de pai/mãe, marido/esposa, filho, aluno, membro da comunidade, profissional, cidadão etc.24

d) Personalidade

O conceito de personalidade é objeto de enorme controvérsia em Psicologia ou Psiquiatria modernas, por causa de seus limites im­precisos ou difusos.25Não há consenso sobre as seguintes questões: a personalidade (a) seria delimitada pelo ego, como o percepüvo-cons- ciente responsável pelas decisões e ações da vida diária? (b) abrangeria o superego como instância de controle ou censura pessoal? (c) enfim,

21 TRÕNDLE/FISCHER, Strafgeset%buch unãNebengeset^e, 2001,50a edição, §46, n. 37.22 Assim, BOSCHI, Daspenas e seus critérios de aplicação, 2000, p. 208; BUENO DE CAR­

VALHO e CARVALHO, Aplicação da pena e garantismo, 2002, 2a edição, p. 49-50.23 CIRINO DOS SANTOS, Direito Penal, a nova parte geral, 1985, p. 240.24 FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 85-86.25 CIRINO DOS SANTOS, A moderna teoria do fa to punívèl.' 2004, p. 25-26.

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Capítulo 21 Aplicação das Penas Criminais

incluiria as pulsões instintuais do id, como fonte inconsciente da energia psíquica, regida pelo princípio do prazer?

Os operadores do sistema de justiça criminal não possuem formação acadêmica em Psicologia ou Psiquiatria para decidir sobre o complexo conteúdo do conceito de personalidade e, por essa razão, a jurisprudência brasileira tem atribuído um significado leigo ao con­ceito, como conjunto de sentimentos/emoções pessoais distribuídos entre os pólos de emotividade/estabilidade, ou de atitudes/reações individuais na escala sociabilidade/ agressividade, que pouco indicam sobre a personalidade do condenado — um resultado agravado pela ausência do princípio da identidade física do Juiz no processo penal, com o interrogatório realizado por um e a sentença proferida por outro Juiz criminal.26 A legislação e jurisprudência alemãs destacam a atitude concreta do autor na realização do fato punível, indicadora de rudeza ou de brutalidade, de má-fé ou de perfídia, de infâmia ou de abjeção, de desconsideração ou de crueldade, por exemplo, capazes de revelar traços significativos da personalidade, indetermináveis pelo emprego direto da categoria abstrata representada pelo conceito de personalidade.27

Finalmente, a personalidade como natureza concreta de sujeitos reais é um produto liistórico em processo de constante formação, transformação e deformação, de modo que eventuais traços de caráter constituem cortes simplificados, imprecisos e transitórios da natureza humana, como produto bio-psíquico-social do conjunto das relações históricas concretas do indivíduo.

e) MotivosO motivo, no sentido de móbilòo crime, designa o aspecto dinâmico

26 FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 88-90.21 Ver TRÕNDLE/FISCHER, Strafgesefc(buch und Nebengeset^e, 2001,50a edição, §46, n. 28.

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Teoria da Pena!

Capítulo 21

de pulsões insdntuais do id, atualizadas em estímulos internos determina- dos28 de egoísmo, cólera, prepotência, luxúria, ganância, avidez, cobiça, vingança etc, que conferem qualidades negativas à conduta, ou, alter­nativamente, de gratidão, sentimento de honra, revolta contra injustiças etc., que indicam qualidades positivas da conduta, relevantes para a fixação da pena-base.29 Os motivos, como raízes psíquico-afetivas do fato, também podem constituir circunstâncias agravantes ou atenuantes genéricas, ou fundamentos qualificadores ou privilegiantes do tipo básico de crime: motivo torpe, motivo fútil.' motivo de relevante valor soáal ou moral etc. Nessas hipóteses, são regidos pela proibição de dupla valoração: motivos que integram as características do tipo de injusto, ou que são previstos como circunstâncias agravantes ou atenuantes genéricas, não podem ser considerados para fixação da pena-base.30

1.2. Elementos do fato

Os elementos de orientação judicial relativos ao fato são pre­vistos, normalmente, como circunstâncias agravantes ou atenuantes genéricas, mas o juízo de reprovação pode ser informado por outras parti­cularidades do fato não previstas legalmente como árcunstânáas agravantes ou atenuantes, mas importantes para formação da pena-base.

a) Circunstâncias

A incorporação legal do critério trifásico de aplicação da pena (art. 68, CP) resolveu a controvérsia sobre o conteúdo desse elemento de orientação judicial: as árcunstânáas referidas como árcunstânáas judiáais

28 LAPLANCHE/PONTALIS, Vocabulário da psicanálise, 1986, p. 363-364.29 FERREIRA, Aplicação da pena , 1995, p. 91.30 TRÕNDLE/FISCHER, Strafgeset%bucb und Nebengeset^e, 2001, 50a edição, §46,'n. 77.

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Capítulo 21 Aplicação das Penas Criminais

do art. 59, CP, são circunstâncias diversas das genéricas circunstâncias agravantes ou árcunstândas atenuantes (arts. 61 e 65, CP), como, por exem­plo, o lugar do fato, o modo de execução do fato, as relações do autor com a vítima etc, que podem influir na formação da pena-base.31

b) Conseqüências

As conseqüências do fato designam outros resultados de natu­reza pessoal, afetiva, moral, social, econômica ou política produzidos pelo crime, dotados de significação para o juízo de reprovação, mas inconfundíveis com o resultado do próprio tipo de crime: o efeito de penúria da vítima em crimes patrimoniais, o sofrimento material e moral da vítima ou de seus dependentes em crimes violentos, a extensão social dos danos pessoais ou patrimoniais da criminalidade estrutural ou sistêmica etc.32 Todavia, o princípio da culpabilidade exige previsão ou, pelo menos,previsibilidade do autor, para considerar as conseqüências extra-típicas do fato na medida da pena — em outras palavras, a atribuição por imprudênáa constitui condição mínima de inclusão de conseqüências extra-típicas na medida da pena.33

1.3. Contribuição da vítima

A vítima, como titular do bem jurídico lesionado, contribui necessariamente para a existência do crime: afinal, o fato punível é re­alizado por um sujeito ativo (autor) contra um sujeito passivo (vítima).

31 No sentido do texto, FERREIRA, A plicação da pena, 1995, p. 92.32 TRÕNDLE/FISCHER, Strafgeset%buch und Nebengeset^e, 2001, 50a edição, §46, n.

34. No Brasil, ver FERREIRA, Aplicação da pena , 1995, p. 92-94.33 MAURACH/GÕSSEL/ZIPF, Strafrecht, 1989, T edição, §63 I, n. 37: “Umapura

responsabilização p elas conseqüênáas no âmbito da medição da pena pertence definitivamente ao passado, desde a decisão legislativa de considerar somente efeitos culpãveis do ja to. ”

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Teoria da Pena Capítulo 21

Contudo, o elemento de orientação judicial relativo ao comportamento da vítima limita-se às hipóteses de contribuições efetivas (conscientes ou inconscientes) da vítima para a realização do crime, reduzindo ou excluindo o tipo de injusto ou a reprovação do autor, mediante provocação, estimulo, negligência, facilitação etc.

A contribuição da vítima para o crime pode ser nenhuma, no caso de vítimas inocentes; pode ser parcial, no caso de vítimas in­gênuas (em crimes sexuais), ou de vítimas descuidadas (em crimes patrimoniais); pode ser equivalente à contribuição do autor, no caso de provocação em crimes violentos; e pode, finalmente, ser total ou absoluta, no caso da situação justificante da legítima defesa, por exem­plo.34 A inclusão do comportamento da vítima entre as circunstânáas judiciais formaliza legalmente um elemento de orientação judicial incorporado à prática judiciária (nos crimes sexuais, por exemplo) e reconhecido expressamente em hipóteses de crimes privilegiados (violenta emoção provocada por ato injusto da vítima) ou de situações justificantes ou exculpantes.

2. Circunstâncias agravantes e atenuantes genéricas

O processo intelectual de individualização da pena aplicável, in­formado pelas circunstâncias judiciais acima estudadas e com o objetivo de estabelecer a pena necessária e suficiente para prevenção e reprovação do crime (art. 59, parte final, CP), constitui o eixo principal da política criminal instituída pelo sistema de penas da lei brasileira (EM, n. 50).

Como vimos, a atividade judicial realizada sob esses critérios e com esse objetivo, representa a primeirafase do processo intelectual de

34 Ver FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 99.

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Capítulo 21 Aplicação das Penas Criminais

aplicação da pena criminal: a fixação da pena-base (art. 68, primeira par­te, CP). A conclusão do processo judicial de individualização da pena, encerrada com a determinação da pena definitiva aplicável, depende da operacionalização das fases seguintes, influentes na mensuração da pena: a segundafase, representada pela identificação das circunstâncias agravantes e atenuantes genéricas (art. 68, segunda parte, CP) e a terceira fase, representada pela identificação das causas especiais de diminuição ou de aumento de pena (art. 68, parte final, CP).

As circunstâncias agravantes (arts. 61 e 62, CP) e atenuantes (arts.65 e 66, CP) previstas na parte geral, possuem duas características fundamentais: a) são genéricas, porque aplicáveis a todos os fatos pu­níveis; b) são obrigatórias, porque devem agravar ou atenuar a pena, se verificadas concretamente — exceto se constituem, qualificam ou privilegiam o tipo de injusto, hipóteses em que o próprio legislador prevê a ampliação ou redução da pena no tipo legal de crime.

Assim, as circunstâncias agravantes ou atenuantes genéricas — conhe­cidas como árcunstânáas legais —, constituem aspectos particulares que caracterizam a especificidade concreta do fato como acontecimento histórico, ampliando ou reduzindo o conteúdo do tipo de injusto e/ou a reprovação de culpabilidade do autor, expressos na pena criminal.

Finalmente, é necessário esclarecer o valor atribuído às árcuns­tânáas legais no cálculo da pena: o valor das árcunstânáas legais do fato punível, consistente em quantidades de agravação ou de atenuação da pena-base já definida pelas árcunstânáas judiáais, é determinado exclusi­vamente pelo arbítrio do Juiz — a prática judicial atribui valor entre 1/5 (um quinto) e 1/6 (um sexto) da pena-base —, mas depende de funda­mentação concreta, como toda decisão judicial (art. 93, IX, CR).35

35 FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 101-102.

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Teoria da Pena Capítulo 21

2.1. Circunstâncias agravantes

A lei penal brasileira define as árcunstânáas agravantes genéricas (art. 61, CP) deste modo:

Art. 61. São árcunstânáas que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime:

I — a reinádênáa;

II — ter o agente cometido o crime:

a) p or motivo fú til ou torpe;

b) para faálitar ou assegurar a execução, a ocultação, a im­punidade ou vantagem de outro crime;

c) â traição, de emboscada, ou mediante dissimulação, ou outro recurso que dificultou ou tornou impossível a defesa do ofendido;

d) com emprego de veneno, fogo, explosivo, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que podia resultarperigo comum;

e) contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge;

j ) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações do­mésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violênáa contra a mulher na forma da lei espeáfica;

g) com abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo, ofíáo, ministério ou profissão;

h) contra criança, maior de 60 (sessenta) anos, enfermo ou mulher grávida;

i) quando o ofendido estava sob a imediata proteção da autoridade;

j ) em ocasião de incêndio, naufrágio, inundação, ou qualquer

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calamidade pública, ou de desgraça particular do ofendido;

l) em estado de embriague^preordenada.

a) Reincidência

A reincidência significa prádca de novo crime depois do trânsito em julgado de sentença criminal condenatória anterior (art. 63, CP). Assim, a reincidência pressupõe: a) condenação por crime anterior— portanto, qualquer pena aplicada, excluída a contravenção; b) trânsito em julgado da condenação anterior— portanto, imutabilidade da decisão por esgotamento ou preclusão de recursos; c) prática de novo crime após transitar em julgado a condenação anterior— portanto, a nova conduta criminosa deve ser posterior ao trânsito em julgado da condenação criminal anterior.

Art. 63. Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no Pais ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior.

Art. 64. Para efeito de reincidência:

I — não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos, computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorre revogação;

II — não se consideram os crimes militares próprios e políticos.

1. A definição legal de reincidência descreve iiipótese formal irrelevante e escamoteia situação real relevante: a) primeiro, descreve a hipótese formal irrelevante da reinádência ficta, porque o trânsito em julgado de condenação anterior indicaria presunção de periculosidade, um conceito carente de conteúdo científico; b) segundo, escamoteia a experiência concreta relevante da reincidência real„ porque o novo crime é produto da ação deformadora da prisão sobre o condenado, através da exe­

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cução da pena do crime anterior.

O reconhecimento oficial da “ação criminógena” do cárcere (EM, n. 26), demonstrada pela pesquisa criminológica universal, exige redefinição do conceito de reincidência criminal.\ excluindo a hipótese formal irrelevante da reincidência ficta, incapaz de indicar a indefinível presunção de periculosidade, e definindo a situação concreta relevante da reincidência real como produto da ação criminógena da pena (e do processo de criminalização) sobre o condenado, por falha do projeto têcnico-corretivo da prisão. A questão é simples: se a prevenção especial po­sitiva de correção do condenado é ineficaz, e se a prevenção especial negativa de neutralização do condenado funciona, realmente, como prisionali%ação deformadora da personalidade do condenado, então a reinádênáa real não pode constituir árcunstânáa agravante.36

E necessário reconhecer: a) se novo crime é cometido após a passagem do agente pelo sistema formal de controle social, com efetivo cumprimento da pena criminal, o processo de deformação e embrute- cimento pessoal do sistema penitenciário deveria induzir o legislador a incluir a reinádênáa real entre as árcunstânáas atenuantes, como produto específico da atuação defiáente e predatória do Estado sobre sujeitos criminalizados; b) se novo crime é cometido após simples formalidade do trânsito em julgado de condenação anterior, a reinádênáa ficta não indica qualquer presunção de periculosidade capaz de fundamentar árcuns­tânáa agravante. Em conclusão, nenhuma das liipóteses de reinádênáa real ou de reinádênáa ficta indica situação de rebeldia contra a ordem social garantida pelo Direito Penal: a reinádênáa real deveria ser árcunstânáa atenuante e a reinádênáa ficta é, de fato, um indiferente penal.

2. Além disso, a reinádênáa (ficta ou real) significa dupla punição do cri­me anterior: a primeira punição é a pena aplicada ao crime anterior;

36 CIRINO DOS SANTOS, Direito Penal, a nova parte geral, 1985, p. 244-246.

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a segunda punição é o quantum de acréscimo obrigatório da pena do crime posterior, por força da reincidência.37

3. A influência irracional da reinádênáa criminal exclui, reduz ou afeta de modo inconstitucional ou ilegal muitos direitos individuais: a) constitui árcunstânáa agravante obrigatória (art. 61 ,1, CP); b) determina regime inicial fechado para execução da pena privativa de liberdade agravada (art. 33, §2°); c) exclui a suspensão condicional da pena em crimes dolosos (art. 77 ,1); d) impede a substituição de pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos ou multa (art. 44, II e 62, §2°); e) constitui árcunstânáapreponderante, na concorrência de circunstâncias agravantes e atenuantes (art. 67); f) amplia os prazos do livramento condiáonal (art. 83) e da prescrição da pretensão executória (art. 110); g) interrompe o prazo da prescrição (art. 117, VI); g) determina a revogação da reabilitação;h) exclui privilégios legais especiais (art. 155, §2°); i) exclui o perdãojudiáal na receptação culposa (art. 180, §3°); j) cancela o direito de apelar em liberdade (art. 594, CPP); k) exclui a fiança, em crimes dolosos (art. 323, III, CPP); k) exclui a transação penal e a suspensão condiáonal do processo da Lei 9.099/95.

4. A reincidência é demonstrada por certidão de trânsito em julgado da condenação anterior e se extingue pelo decurso do prazo de 5 (cinco) anos entre o cumprimento ou extinção da pena do crime anterior e o novo crime, incluído o prazo de suspensão ou livramento condicional não revogados (art. 64,1, CP). Finalmente, são desconsiderados para efeito de reincidência, os crimes militares próprios (definidos no Có­digo Penal Militar) e os crimes políticos (art. 64, II, CP).

5. A literatura e jurisprudência brasileira dominante, apesar de reco­nhecer a maioria desses problemas, agrava a pena com base na reinci­dência, considerando alguns pressupostos para determinar o quantum

37 FERREIRA, A plicação da pena , 1995, p. 107.

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da agravação: a execução da pena anterior, o espaço de tempo entre o crime anterior e o novo crime (respeitada a prescrição da reincidência), a relação de gravidade entre os crimes etc.38

b) Motivo fútil ou torpe

Os motivos do fato punível, como estímulos internos que realizam o aspecto dinâmico das pulsões do idy são destacados pelo legislador nos extremos de irrelevância absoluta e de reprovação máxima: 1) o motivo fú til designa o móbil insignificante do crime, de natureza irrelevante para explicar o fato criminoso, equiparável à ausência de motivo (homicídio ou lesão corporal grave determinado por pilhérias, ou pequenas ofensas) ;392) o motivo torpe indica o móbil mais reprovável do fato criminoso, caracterizado pela natureza repugnante, repulsiva ou abjeta do estímulo ao crime, capaz de produzir repúdio generalizado (o homicídio mercenário, ou praticado para satisfação de taras sexuais etc.).40 Igualmente, por força da proibição de dupla valoração, motivos previstos como circunstâncias agravantes ou atenuantes não podem ser considerados na fixação da pena-base.41

c) Facilitar ou assegurar a execução, ocultação, impunidade ou vantagem de outro crime

A árcunstânáa agravante designa a prática de um crime com a finalidade de faálitar ou assegurar (a) a execução de outro crime, como

38 Ver FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 110-111.39 Assim, FRAGOSO, U ções de direito penal (parte geral), 2003, p. 419-420, n. 324; também,

MESTIERI, M anual de direito p ena l (parte geral), 1999, vol. I, p. 286-287.40 Nesse sentido, FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 111-112; também, FRAGO­

SO, U ções de direito pena l (parte geral), 2003, p. 420, n. 324.41 TRÕNDLE/FISCHER, Strafgeset%buch und Nebengeset^e, 2001,50a edição, §46, n. 77.

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ameaça ou constrangimento ilegal sobre terceiros em certos crimes sexuais, (b) a ocultação de outro crime, como ameaças contra testemu­nhas, (c) a impunidade de outro crime, como alteração, falsificação ou destruição de provas, ou coação sobre testemunhas etc. e (d) a vantagem de outro crime, como ameaças contra testemunhas.42

d) Traição, emboscada, dissimulação ou outro recurso que di­ficulte ou impossibilite a defesa da vítima

As situações indicadas como árcunstânáa agravante designam modos de execução de fatos puníveis que excluem ou reduzem as pos­sibilidades de defesa da vítima, como exprime a referência a outro recurso que dificulte ou impossibilite a defesa da vítima: a) a traição significa toda forma de violação da confiança, como a deslealdade, a perfídia, a aleivosia etc.; b) a emboscada designa a ação de ocultação do autor em determinados locais para surpreender a vítima; c) a dissimulação define comportamentos marcados pelo disfarce ou encobrimento das intenções reais.43

e) Emprego de veneno, fogo, explosivo, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum

A árcunstânáa agravante destaca determinados meios de ação es­colhidos pelo autor para realizar o fato punível, definíveis como (a) insidiosos, caracterizados por ação imperceptível ou inevitável—o veneno, por exemplo, (b) cruéis, caracterizados pela produção de sofrimento intenso, excessivo ou desnecessário à vítima — o fogo, os explosivos, a

42 FERREIRA, Aplicação da pena , 1995, p. 112; FRAGOSO, Lições de direitopenal (parte gerair), 2003, p. 420, n. 325.

43 Comparar FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 112-114; MESTIERI, M anual de direito pena l (parte geral), 1999, vol. I, p. 287; FRAGOSO, Lições de direito p ena l (parte geral), 2003, p. 420-421, n. 326.

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tortura etc. e, finalmente, (c) capazes de produzir perigo comum, definido pela possibilidade de dano generalizado a bens jurídicos coletivos ou sociais indeterminados.44

f) Vitimização de ascendente, descendente, irmão ou cônjuge

A circunstância agravante tem por objeto a relação de parentesco natural entre ascendentes/ descendentes e irmãos, por um lado, e a relação de casamento civil entre os cônjuges, por outro lado: a) a relação de paren­tesco natural entre ascendentes, descendentes e irmãos se fundamenta na con­sangüinidade, com exclusão de outras formas de parentesco civil — como a adoção, por exemplo —, porque a legalidade penal proíbe a analogia m malam partenrf* b) os vínculos afetivos entre cônjuges se fundamentam no casamento civil, ou com efeitos civis, enquanto durar a sociedade conjugal, com exclusão de outras formas de união estável’ como com­panheiros, amásios, concubinos etc., igualmente porque a legalidade penal exclui a analogia in malam partem ,46

g) Abuso de autoridade ou prevalecimento de relações domésti­cas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher, na forma da lei específica.

O conceito de autoridade responsável pelo abuso, ou a natureza das relações objeto de prevaleámento, pertencem ao Direito Civil: a autoridade produtora do abuso e as relações referidas são de natureza

44 Ver FERREIRA, A plicação da pena, 1995, p. 114; FRAGOSO, U ções de direito pena l (partegeral), 2003, p. 421-422, n. 327.

45 Contra, FERREIRA, A plicação dapena, 1995, p. 115-116; FRAGOSO, Lições de direito pena l (parte geral), 2003, p. 422-423, n. 329.

46 Nesse sentido, FRAGOSO, U ções de direito pena l (parte geral), 2003, p. 422, n. 328; FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 115-116; REGIS PRADO, Curso de direito pena l brasileiro, 2004, 4a edição, p. 492.

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privada, circunscritas ao âmbito domiciliar ou residencial, como local de intercâmbio regido pelo Direito de Família, pelo Direito do Tra­balho ou outros ramos do direito privado, como locais de moradia conjunta (coabitação), ou espaços físicos caracterizados por certos poderes/deveres nas relações de hospitalidade (residência), de traba­lho (empresa) ou de vida (escola), como empregadores, professores, tutores, curadores etc.47

A Lei n. 11.340/06, que instituiu os Juizados de Violência Do­méstica e Familiar contra a Mulher, editada nos termos do art. 226, §8°, CR, da Convenção sobre Eliminação da Discriminação contra Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, introduziu no Direito Penal um amplo conceito de violência, com algumas hipóteses de difícil ou impossível determinação.

1. O conceito de violência contra a mulher compreende ações e omissões de ação determinantes de morte, lesão corporal, sofri­mento físico, sexual e psicológico, dano moral e patrimonial (art. 5o)— apesar da norma, o dano patrimonial clandestino ou fraudulento, ou produzido sem constrangimento pessoal, não pode integrar o conceito de violência.

2. O âmbito de violência contra a mulher compreende os espaços (a) doméstico, como local de convívio permanente de pessoas com ou sem vínculo familiar, incluindo agregados, (b) familiar, como ambiente formado por comunidades de indivíduos aparentados — ou assim considerados — por laços naturais, de afinidade ou de vontade expressa e (c) de relações íntimas de afeto com convívio atual ou anterior, independente de coabitação (art. 5o, I-III).

47 Nesse sentido, FERREIRA, Aplicação da pena , 1995, p. 116; também, FRAGOSO,Lições de direito pena l (parte geral), 2003, p. 422, n. 328.

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3. A violência contra a mulher pode assumir forma física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, assim definidas:

a) a violência física compreende toda ofensa à integridade ou saúde corporal (art. 7o, I);

b) a violência psicológica compreende os seguintes comportamentos: produzir dano emocional, com redução da auto-estima; prejudicar ou perturbar o pleno desenvolvimento; degradar ou controlar ações, comportamentos, crenças ou decisões mediante ameaça de constran­gimento, humilhações, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração, limitação do direito de locomoção, ou qualquer meio determinante de prejuízo à saúde psicológica e à auto-determinação (art 7o, II);

c) a violência sexual compreende as seguintes condutas: constranger a presenciar, manter ou participar de relação sexual indesejada, me­diante intimidação, ameaça ou uso de força; induzir a comercializar ou a utilizar de qualquer modo a sexualidade; impedir a utilização de qualquer método contraceptivo; forçar ao matrimônio, gravidez, aborto ou prostituição mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; limitar ou anular o exercício de direitos sexuais ou reprodutivos (art. 7o, III);

d) a violência patrimonial compreende as condutas de reter, subtrair ou destruir total ou parcialmente objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores, direitos e recursos econômicos, incluindo os destinados à satisfação de necessidades (art. 7o, TV)— como é óbvio, a violência dessas condutas pressupõe sua natureza dolosa;

e) a violência moral compreende as condutas definidas como calúnia, difamação e injúria (art. 7o, V).

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h) Abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo, ofício, ministério ou profissão

O conceito de poder (objeto de abuso) e de dever (objeto de violação) dependem da natureza jurídica das atividades descritas: o cargo e o ofício definem atividades ou funções públicas exercidas mediante concurso público, regidas pelo Direito Administrativo e/ou pelo Direito Consti­tucional, com poderes e deveres oficiais cujo abuso ou violação constituem árcunstânáa agravante, se não constituírem ou qualificarem o crime; o ministério designa atividades religiosas profissionais, com poderes e deveres de natureza mística atribuídos pela religiosidade popular a padres, pastores e guias espirituais, em geral, como a confissão, a pe­nitência e o perdão dos pecados, a unção de enfermos etc.; a profissão designa atividades legalmente reconhecidas, cujo exercício depende de habilitação especial, ou de licença ou de autorização do poder público, como advogados, médicos, engenheiros, enfermeiros etc.48

i) Vitimização de criança, de maior de 60 anos, de enfermo ou de mulher grávida

A árcunstânáa agravante se fundamenta na maior vulnerabilidade, fragilidade ou incapacidade de resistência ou de defesa de criança, de pessoa maior de 60 (sessenta) anos, de enfermo ou de mulher grávida, assim definidos: a) criança é todo ser humano até a idade de 12 (doze) anos incompletos, nos termos do art. 2o, da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente); b) maior de 60 (sessenta) anos indica o marco cronológico que define a pessoa considerada idosa., na forma do art. Io, da Lei n. 10.741 /03 (Estatuto do Idoso) que determinou o piso etário

48 TRÕNDLE/FISCHER, Strajgeset^buch undNebengeset^e, 2001,50a edição, §46, n. 29.No Brasil, FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 117; igualmente, FRAGOSO,U ções de direito penal (parte geral) 2003, p. 423, n. 330.

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da árcunstânáa agravante no Código Penal; c) enfermos são indivíduos portadores de patologias orgânicas ou psíquicas, crônicas ou agudas, temporárias ou permanentes, determinantes de sofrimento físico ou psíquico, ou de redução/cessação de funções orgânicas, fisiológicas ou psicológicas, em geral; d) mulher grávida designa o estado de prenheii da mulher durante a gestação, iniciada com a nidificação ou fixação do ovo ou zigoto no útero materno e encerrada com a ruptura da bolsa amniódca, que marca o início do processo de parto.49

j) Vítima sob imediata proteção da autoridade

A árcunstânáa agravante tem por objeto a violação de garantias legais, explícitas ou implícitas, de agentes do poder público, a pes­soas sob imediata proteção da autoridade pública, mediante guarda (por exemplo, o cidadão sob prisão temporada ou definitiva), ou custódia (o doente mental internado em hospitais públicos), ou outras formas de proteção que ampliam ou reforçam a confiança da vítima na in­violabilidade de direitos protegidos pela lei penal.50

1) Ocasião de calamidade pública (incêndio, naufrágio, inunda­ção etc.) ou de desgraça particular da vítima

Situações de calamidade pública, como incêndios, inundações, ou mesmo naufrágios, ou de desgraça particular, como aádentes de trânsito, representam condições concretas adversas que reduzem ou excluem a capacidade de proteção pessoal ou patrimonial das vítimas, aumen-

49 Comparar FERREIRA, Aplicação da pena , 1995, p. 117-119; FRAGOSO, Lições de direito pena l (parte geral), 2003, p. 424, n. 331.

50 No sentido do texto, FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 119; FRAGOSO, Lições de direito pena l (parte geral), 2003, p. 419-420, n. 324.

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tando a reprovabilidade de ações lesivas de bens jurídicos penalmente protegidos.51

m) Embriaguez preordenada

A embriaguez preordenada define hipóteses de embriague^pro­positada ou intencional para realizar crime doloso determinado (dolo)— a hipótese principal da actio libera in causa —, porque inibe a censura pessoal do superego, liberando impulsos agressivos ou destruidores do id, por um lado, e amplia a sensação de coragem pessoal do ego, capaz de superar os debilitados bloqueios paralisadores do superego, por outro lado. Esses efeitos resultam da ação inibidora do álcool ou substância equivalente sobre os mecanismos psíquicos de autocontrole e de censura pessoal, liberando a agressividade contida ou sublimada pela socialização individual.

Além disso, a embriague^preordenada se distingue da embriague vo­luntária ou culposa e da embriague^Jortuita ou resultante de força maior., pelo seguinte: a) a embriaguez voluntária ou culposa consiste na progressiva intoxicação pelo álcool, ou substância equivalente, sem propósitos agressivos ou destruidores: não exclui a responsabilidade penal, preservando a imputabilidade pelo artifício da “actio libera in causa” (art. 28, II, CP), que desloca a inimputabilidade do momento posterior de prática do crime para o momento anterior ao processo de embria­guez, ainda caracterizado pelo poder dè livre disposição da vontade consciente, em relação a ações criminosas futuras não previstas, mas previsíveis e, nesse caso, somente puníveis por imprudência, segun­do o princípio da culpabilidade; b) a embriague^fortuita (ou acidental), assim como a proveniente de força maior pode isentar de pena o autor de

51 FERREIRA, A plicação dapena, 1995, p. 119-120; FRAGOSO, Lições de direito pena l (parte geral), 2003, p. 424-425, n. 333.

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fatos puníveis (art, 28, §1°, CP), ou reduzir a pena aplicada (art. 28, §2°, CP), conforme exclua ou reduza (a) a capacidade de compreender o caráter ilícito do fato ou (b) de determinar-se de acordo com essa compreensão, que definem a imputabilidade.52

2.2. Circunstâncias agravantes do concurso de pessoas

A lei penal prevê, também, árcunstânáas agravantes no concurso de pessoas (art. 62, CP), relacionadas às hipóteses de co-autoria, departiá- pação e de autoria mediata, porque as contribuições individuais em fatos puníveis coletivos são diferenciadas, quer no nível do tipo de injusto, quer no nível da culpabilidade e, conseqüentemente, a sentença criminal deve distribuir a responsabilidade penal conforme a extensão e o significado das contribuições individuais subjetivas e objetivas para o fato comum:a) no tipo de injusto, o domínio comum do fato típico é diferenciado pela natureza dos papéis individuais na divisão do trabalho coletivo; b) no juí^o de culpabilidade, a responsabilidade individual é diferenciada no nível da imputabilidade, como capacidade de saber o que faz, excluído ou reduzido nas situações de inimputabilidade ou de semi-imputabilidade; no nível da consáênáa da antijuridiádade, como conhecimento real do que faz, excluído ou reduzido no erro de proibição; no nível da exigibilidade de comportamento diverso, como poder de não fazer o que faz, excluído ou reduzido nas situações de exculpação legais e supralegais.

As árcunstânáas agravantes do concurso de pessoas na lei penal bra­sileira são as seguintes:

a) Promover, organizar ou dirigir a atividade criminosa coletiva

O legislador destaca o papel de liderança no concurso de pes­

52 Ver CIRINO DOS SANTOS, A modema teoria do fa to punível, 2004, p. 219-222;ilustrativo, FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 120-126; comparar FRAGOSO,U ções de direito penal (parte geral), 2003, p. 425, n. 334.

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soas, exercido através da ação de promover.; de organizar ou de dirigir a atividade coletiva na realização de fatos puníveis: 1) promover significa causar, gerar, fomentar ou impulsionar o fato punível; 2) organizar significa constituir ou integrar as funções dos indivíduos na atividade coletiva; 3) dirigir significa governar, comandar ou coordenar a ativi­dade coletiva no fato punível.53

b) Coagir ou induzir à execução material de crime

A coação, como ação de constranger ou forçar alguém à realização material de um crime, indica o poder de pressão física ou psicológica do coator sobre o coagido, mas as conseqüências penais são diferencia­das pela natureza da coação: a) a hipótese de coação resistíveldetermina distribuição diferenciada da responsabilidade penal, maior para o coator e menor para o coagido; b) a hipótese de coação irresistível configura a situação de exculpação legal do art. 22, CP, em que é punido somente o coator, sob forma de autoria mediata, porque o autor imediato atua sem liberdade.54 A indução., como ação de instigar, incitar ou persuadir alguém à realização material de um crime, indica o poder de conven­cimento do indutor sobre o induzido, mediante pedidos, conselhos ou promessas, com distribuição diferenciada da responsabilidade penal, maior para o indutor e menor para o induzido.

c) Instigar ou determinar ao crime pessoa dependente ou im- punível por condição ou qualidade pessoal

A ação de instigar significa incitar, estimular ou induzir, enquanto a ação de determinar significa causar ou ordenar a realização de fato

53 Ver FRAGOSO, U ções de direito penal, 2003,16a edição, p. 321; MESTIERI, M anual de direito pena l (parte geral), 1999, vol. I, p. 289-290.

54 Nesse sentido, FRAGOSO, U ções de direito penal, 2003,16a edição, p. 321.

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punível por pessoa submetida à autoridade de quem instiga ou determina (por exemplo, fatos puníveis realizados por filhos menores, instigados ou determinados pelos pais), ou por pessoa impunível por condição ou qualidade pessoal (por exemplo, instigar ou determinar a realização de crimes patrimoniais contra ascendente, descendente ou cônjuge, na constância da sociedade conjugal, na forma do art. 181, CP).55

d) Executar ou participar de crime mediante pagamento ou promessa de recompensa

A autoria de fato punível, por instigação de partícipe mediante pagamento ou promessa de recompensa, caracteriza a torpeza do motivo mercenário — disposição ociosa, em face do disposto no art. 61 II, a, segunda parte, CP;56 por outro lado, a participação no fato punível do autor, por instigação ou cumpliádade, caracteriza a pusilanimidade de quem se acoberta na ação de outrem.

2.3. Circunstâncias atenuantes

As circunstâncias atenuantes genéricas podem ser expressas (art. 65, CP) e não-expressas (art. 66, CP). A lei penal brasileira define as circunstâncias atenuantes expressas deste modo:

Art. 65. São circunstâncias que sempre atenuam a pena:I —ser o agente menor de 21 (vinte e um), na data do fato,ou maior de 70 (setenta) anos, na data da sentença;II — o desconheámento da lei;III — ter o agente:

55 FERREIRA, A plicação da pena, 1995, p. 128.56 Assim, FERREIRA, A plicação da pena, 1995, p. 128.

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a) cometido o crime por motivo de relevante valor soáal ou moral;b) procurado, p or sua espontânea vontade e com efiáênáa, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüênáas, ou ter, antes do julgamento, reparado o dano;c) cometido o crime sob coação a que podia resistir, ou em cum­primento de ordem de autoridade superior, ou sob a influênáa de violenta emoção, provocada p or ato injusto da vítima;d) confessado espontaneamente, perante a autoridade, a au­toria do crime;e) cometido o crime sob a influênáa de multidão em tumulto, se não o provocou.

a) Agente menor de 21 (data do fato) ou maior de 70 anos (data da sentença)

O fundamento da árcunstânáa atenuante é o insuficiente desenvol­vimento psicossocial de agente menor de 21 anos, na data do fato, ou a degeneração psíquica de agente maior de 70 anos, na data da sentença. Mas existem duas questões novas relativas às faixas etárias referidas na árcunstânáa atenuante, que exigem esclarecimento adequado.

Primeiro, a definição legal da capacidade civil aos 18 anos (art. 5o, caput, Código Civil), não exclui a árcunstânáa atenuante para agentes menores de 21 anos: a atenuação da pena tem por fundamento idade inferior a 21 anos, não a (antiga) incapaádade ávildo agente.57 Além disso, decisões do legislador civil não podem invalidar critérios do legislador penal. Igualmente é irrelevante a antecipação da maioridade civil por emancipação, casamento, exercício de emprego público, conclusão

57 Em posição contrária, REGIS PRADO, Curso de direito p ena l brasileiro, 2004, 4a edição, p. 498, para quem o “marco etário (18 anos) da responsabilidade á v il” exclui a circunstância atenuante para o menor de 21 anos; no sentido do texto, FRAGOSO, U ções de d irá topena l (parte geral), 2003, 16a edição, p. 428, n. 339.

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de curso superior, estabelecimento civil ou comercial ou relação de emprego (art. 5o, I-VI, Código Civil): não excluem a circunstância ate­nuante do menor de 21 anos, nem antecipam a imputabilidade penal para idade inferior a 18 (dezoito) anos.

Segundo, o fundamento legal que determinou a adoção da idade de 60 (sessenta) anos, definida no art. Io, da Lei n. 10.741/03 (Estatuto do Idoso), para caracterizar a circunstância agravante do art. 61, II, h, do Código Penal, com maior razão permite considerar a idade de 60 (sessen­ta) anos—e. não a idade de 70 anos, referida na lei — para caracterizar a árcunstânáa atenuante do art. 65,1, CP, porque a analogia in bonampartem é inteiramente compatível com o prinápio da legalidade penal.

b) Desconhecimento da lei

A atenuante do desconheámento da lei é um remanescente escle- rosado do sistema causai do Código Penal de 1940, ainda fundado na dicotomia erro de fato/erro de direito e regido pelo princípio ignorantia legis neminem excusat: se o erro de direito é irrelevante, então o desconheá­mento da lei seria atenuante. Mas o sistema finalista da reforma de 1984 introduziu a dicotomia erro de tipo/erro de proibição., regido pelo priná­pio da culpabilidade e fundado na relevânáa do erro de proibição direto (existência, validade e significado da lei penal), indireto (existência de justificação inexistente e limites jurídicos de justificação existente) e de tipo permissivo (representação errônea de situação justificante), com os seguintes efeitos: se inevitável\ exclui a culpabilidade — e a pena; se evitável.’ pode reduzir a culpabilidade em todas hipóteses, exceto no erro de tipo permissivo, em que o erro evitável exclui a forma dolosa e permite punição por imprudênáa, se previsto em lei — segundo a teoria da culpabilidade limitada., adotada pelo legislador.58

58 Ver CIRINO DOS SANTOS, A moderna teoria do fa to punível.\ 2004, 3a edição, p. 237-246.

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Logo o princípio da culpabilidade determina a seguinte disciplina do erro de proibição direto, na modalidade de desconheámento da lei: a) se ine­vitável, isenta de pena — apesar do inconvincente discurso repressivo sobre eficááa da lei penal;59 b) se evitável, reduz a pena — nesta hipótese poderia constituir árcunstânáa atenuante, mas razões metodológicas exi­gem sua valoração como causa espeáal de diminuição de pena. Afinal, não é o princípio da culpabilidade que deve se adaptar à norma isolada do desconheámento da lei, mas esse resíduo esclerosado do sistema causai que deve se adaptar aoprinápio da culpabilidade, como indica qualquer interpretação sistemática — com as contribuições da interpretação histórica e teleológica — da lei penal. A literatura brasileira mais escla­recida, ainda sob influência de brocardos antigos do tipo ignoranáa legis neminem excusat, admite a racionalidade do argumento, mas não ousa romper com a irracional tradição repressiva, sacrificando o prinápio da culpabilidade a supostas exigências de eficááa da lei penal.60

c) Motivo de relevante valor social ou moral

A circunstância atenuante do motivo de relevante valor soáal ou moral,' como aspecto dinâmico de pulsões instintuais do id, tem por objeto determinações primárias da conduta humana, fundadas em interesses de significação objetiva para a vida da comunidade ou do Estado — por exemplo, danificar experimento rural de produção de

59 Por exemplo, JESUS, Direito penal’ 1999, p. 485; igualmente, MIRABETE, M anual de diráto penal.’ 2000, p. 202.

60 Por exemplo, FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 132: ‘Quando o erro se dápor ignorânáa da lá essa ármnstânáa também não deveria exxhára culpabilidade? A prinápio, a reposta sópoderia ser positiva. Entretanto, a adoção de um entmdimentD assimpoderiatratysérias conseqüênàasã existência doEstado.Avida social depende da observância das regras de conduta, sendo necessário para eslabiR ação das relações sociais que as nm?ms jurídicas sejam rigorosamente cumpridas. Daí quase todas as legislações terem adotado oprinápio nemo consentur ignorare legem ou ignorantia legis non excusat, isto é, a lá se aplica aos que a conhecem e aos queaignoram;aignorânáadalã não escusa. ”\]gpakn^t^MESY]ERl MMualdeditritopenal(jpartegeraI), 1999,voLI,p.290: ‘EstudamosserodesconheámeniodaláinescusávelnaatmlsistemálicadoCóãg)(art21 , CP),mmtoemboratalposturaestgaemcontrasteamumamátorealmmtenormaãvofinaRstadacu^>abiMade,\também, FRAGOSO, Uções de direitopenal (partegend), 2003,16a edição, p. 429-430, n. 340.

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sementes transgênicas capazes de danos indiscriminados à ecologia e à saúde humana, configura ação por modvo de relevante valor social, se não consdtuir ação justificada (estado de necessidade) ou situação de exculpação supralegal (fato de consciência); ou ações fundadas em sentimentos de nobreza, de altruísmo, ou de indignação pessoal, de significação subjetiva para o indivíduo — por exemplo, o seqüestro do estuprador, pelo pai da vítima da ação de estupro, configura ação por motivo de relevante valor moral.61

d) Ação espontânea, imediata e eficiente, para evitar ou redu­zir as conseqüências do crime, ou reparação do dano antes do julgamento

A circunstância atenuante tem por objeto duas situações distintas relacionadas à vítima:

a) ação de natureza espontânea do autor do fato (ou seja, ação fundada em motivo autônomo, de iniciativa própria ou não forçada do agente), imediata (ação realizada sem intervalo, ou logo após o crime) e efiàente (ação realmente eficaz) de proteção da vítima, realizada com o objetivo de evitar ou de reduzir o s efeitos de crime consumado — a área de incidência da atenuante, que a distingue do arrependimento eficai§ causa de isenção de pena da tentativa acabada, em que o crime ainda não está consumado;62

b) reparação do dano, pelo pagamento ou qualquer outra forma de indenização, antes da sentença — exceto nos crimes de menor potencial ofensivo da Lei 9.099/95, com pena máxima abstrata privativa de liberdade até 2 (dois) anos (após a Lei 10.259/01), em que a reparação do dano possui eficácia maior: a composição civil dos danos da c o n c i l ia ç ã o

61 Ver FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 133; FRAGOSO, Lições de direito pena l(parte geral), 2003,16a edição, p. 430, n. 341.

62 TRÕNDLE/FISCHER, Strajgesetzbuck und Nebengeset^e, 2001,50a edição, §46, ns. 46-48.

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judicial extingue a punibilidade,; a reparação dos danos da t r a n sa çã o p en a Jcn tx s Ministério Público e autor, constitui substitutivo penal' cujo cumprimento também extingue a punibilidade.63

e) Coação resistível, cumprimento de ordem de autoridade su­perior ou violenta emoção provocada por ato injusto da vítima

A lei descreve três hipóteses distintas de árcunstânáas atenuantes, analisadas isoladamente:

a) a coação resistível representa, em relação ã situação de exculpação legal da coação irresistível.’ nível inferior de potenáalidade lesiva e menor intensidade de repercussão psíquica sobre o coagido: a natureza resistível da coação, determinável concretamente pelas condições objetivas da violência real (surras, espancamentos etc.) ou ameaçada (anúncio de mal injusto e grave) e pelas condições subjetivas de coatore coagido, decidem sobre sua eficácia exculpante ou meramente atenuante;64

b) o cumprimento de ordem de autoridade superior descreve nível inferior de obediência devida em face da situação de exculpação da obediênáa hierárquica (art. 22, CP): a natureza evidente ou oculta da ilegali­dade da ordem de superior hierárquico decide sobre a eficácia exculpante ou simplesmente atenuante da obediência hierárquica, no âmbito das relações de subordinação funcional do Direito Administrativo;65

c) a emoção violenta constitui alteração intensa da estabilidade afetiva do autor, como impulso agressivo produzido por ato injusto (não motivado, sem explicação razoável etc.) da vítima, situado em nível inferior ao da agressão injusta da legítima defesa: a natureza da ação da vítima, como

63 Assim, FRAGOSO, Lições de direitopenal (partegeral), 2003,16a edição, p. 430-431, n. 342.64 No sentido do texto, FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 135.65 Ver FERREIRA, A plicação dapena, 1995, p. 135; também KOERNERJR., Obediência

hierárquica, 2003, p. 139 s.

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simples ato injusto ou como agressão injusta e atual (ou iminente) a bem jurídico, decide sobre sua eficácia justificante ou atenuante.66

f) Confissão espontânea de autoria de crime perante autoridadeA confissão espontânea de autoria de crime, ou de participação em

crime, realizada perante autoridade, constitui árcunstânáa atenuante por­que indica admissão de responsabilidade pelo fato, aceitação de suas conseqüências jurídicas e, eventualmente, arrependimento do autor ou partícipe. A lei exige apenas duas condições: a) a confissão deve ser espontânea, ou seja, fundada em decisão autônoma do autor, independente da natureza da motivação (egoísmo, altruísmo, nobreza etc) — o que exclui determinações heterônomas, como confissões obtidas por pressão, ou em face de provas irrefutáveis, mas admite-se confissão espontânea em caso de prisão em flagrante;67 b) a confissão deve ocorrer perante autoridade, em sentido amplo, incluindo, além da autoridade judicial e policial, também o Ministério Público.68

g) Influência de multidão em tumulto não provocadoSituações de multidão em tumulto podem liberar instintos agres­

sivos individuais — normalmente contidos pela ação controladora do superego —, estimulados pela pressão da massa e pelo anonimato pessoal, que reduzem o poder de controle sobre o comportamento e, por isso, funcionam como árcunstânáa atenuante, se o agente não provocou o tumulto.69

66 Assim, FRAGOSO, Lições de direitopenal (partegeral), 2003,16a edição, p. 432, n. 344.67 Ver FRAGOSO, Lições de direito penal (parte geral), 2003,16a edição, p. 432-433, n. 345.68 Comparar FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 136-137; contra, FRAGOSO,

Lições de direito pena l (parte geral), 2003, 16a edição, p. 432-433, n. 345, para quem autoridade significa “autoridade policia l

69 No sentido do texto, FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 137-138; FRAGOSO, Lições de direito p ena l (parte geral), 2003,16a edição, p. 433, n. 346.

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2.4. Circunstâncias atenuantes inominadas

Finalmente, as circunstâncias atenuantes não-expressas admitidas textualmente no art 66, CP, constituem outras características relevantes do fato, anteriores ou posteriores ao crime, não previstas legalmente mas capazes de influir no juízo de reprovação do autor pela realização do tipo de injusto. Assim, crimes realizados no contexto de condições sociais adversas, por sujeitos marginalizados do mercado de trabalho e do processo de consumo, insuficientes para configurar o conflito de deveres como situação de exculpação, podem caracterizar a árcunstânáa atenuante inominada do art. 66, porque exprimiriam hipóteses de co-culpa- bilidade da sociedade organizada no poder do Estado, pela sonegação de iguais oportunidades sociais.70

Art. 66. A. pena poderá ser ainda atenuada em ra%ão de árcunstânáa relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei.

2.5. Concurso de circunstâncias legais

O fato punível pode conter várias árcunstânáas legais, agravantes ou atenuantes, configurando um concurso de árcunstânáas legais (art. 67, CP), com as seguintes conseqüências: a) se as circunstâncias le­

70 Nesse senüdo, propõem os excelentes BUENO DE CARVALHO e CARVALHO, A p lica çã o d a p en a eg a ia n tism o , 2002, p. 74 s.: ‘Pelos motivos expostos até o momento, ob­jetivaremos nossa hipótese de trabalho na seguinte afirmação: a precária situação econômica do imputado deve serpriori^ada como árcunstânáa atenuante obrigatória no momento da cominação dapena. Apesar de não estar prevista no rol das árcunstânáas atenuantes do art. 65 do Código Penal brasileiro, a norma do art. 66 (atenuantes inominadas)possibilita a recepção doprincípio da co-culpabilidade, pois demonstra o caráter não taxativo das causas de atenuação. O Código Penal, ao perm itir a diminuição da pena em ra^ão de “árcunstânáa relevante” anterior ouposterior ao crime, embora nãoprevista em lá,jáfornece um mecanismo para a implementação deste instrumento de iguah^ação ejustiça soáal”. Igualmente, RO­DRIGUES, Teorias da culpabilidade, 2004, p. 27-29: “Epossível visualizara tese da co-culpabilidade dentro da nossaprópria legislação através da utilização de aspectos supralegais na fixação dapena, como o presente no Artigo 66 do Código Penal, que instituiu a árcunstânáa atenuante genérica... ”

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gais agravantes e atenuantes são de igual natureza objetiva ou de igual natureza subjetiva, as circunstâncias agravantes são compensadas com as circunstâncias atenuantes; b) se as circunstâncias legais agravantes e atenuantes são de natureza desigual, preponderam as circunstâncias subjetivas sobre as objetivas, assim consideradas as circunstâncias relacionadas aos motivos do crime, à personalidade do agente e à reincidência.

Art. 67. No concurso de agravantes e atenuantes; a pena deve aproximar-se do limite indicado pelas árcunstânáas preponderantes, entendendo-se como tais as que resultam dos motivos determinantes do crime, da personalidade do agente e da reinádênáa.

Na hipótese de várias circunstâncias qualificadoras relacionadas aos motivos, aos meios, aos modos ou aos fins do fato punível (por exemplo, homiádio qualificado, art. 121, §2°, I-V, CP), igualmente definidas como árcunstânáas agravantes, apenas uma das circunstâncias qualificadoras é considerada para efeito de qualificar o crime, enquanto as restantes funcionam como circunstâncias agravantes genéricas.71

2.6. Limites de agravação e de atenuação da pena

A dogmática penal e a jurisprudência dos tribunais têm a se­guinte posição sobre limites de agravação e de atenuação da pena: as árcunstânáas legais, agravantes ou atenuantes, não podem exceder os limites máximo e mínimo da pena cominada ao tipo legal.72 Entre­

71 FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 139; FRAGOSO, Lições de direito pena l (parte geral), 2003,16a edição, p. 435, n. 349.

72 Ver, por exemplo, FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 103: “Resumindo, em ra%ão de árcunstânáas legais o ju i^ não pode diminuir a pena aquém do mínimo ou aumentá-la além do máximo legal, porque com isto estaria burlando o princípio da legalidade. ”

Capítulo 21 Aplicação das Penas Criminais

tanto, qualquer posição sobre o tema pressupõe o esclarecimento de algumas questões.

1. O limite de agravação da pena por circunstâncias legais é incontroverso: o principio da legalidade proíbe que as árcunstânáas agravantes excedam o limite máximo da pena cominada no tipo legal;

2. O limite de atenuação da pena por árcunstânáas legais é controvertido, porque existem duas posições diferentes: a) a posição dominante na lite­ratura e na jurisprudência brasileira (condensada em súmula do STJ),73 adota como limite de atenuação da pena o mínimo da pena privativa de liberdade cominada no tipo legal;74 b) não obstante, crescente posição minoritária admite atenuação da pena abaixo do mínimo da pena cominada, por duas razões principais: primeiro, não existe nenhuma proibição legal contra atenuar a pena abaixo do mínimo legal, porque o princípio da legalidade garante a liberdade do indivíduo contra o poder punitivo do Estado — e não o poder punitivo do Estado contra a liber­dade do indivíduo;75 segundo, o critério dominante quebra o princípio da igualdade legal (no concurso de pessoas, o co-réu menor de 21 anos é prejudicado pela fixação da pena no mínimo legal, com base nas árcunstânáas judiáais), porque direitos definidos em lei não podem ser suprimidos por aplicação invertida do princípio da legalidade.76 Aliás, a proibição de reduzir a pena abaixo do limite mínimo cominado, na liipótese de árcunstânáas atenuantes obrigatórias, constitui analogia in

73 Superior Tribunal de Justiça: “A incidência de circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo lega l” (Súmula 231).

74 Na linha da posição dominante, contra atenuação da pena abaixo do mínimo legal, FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 102-104.

75 Na posição minoritária, a favor de atenuação da pena abaixo do mínimo legal, Acórdão da 5a Câmara Criminal do TJRS, Apelação-crime 70010735181/2005, ReL Des. AMELTON BUENO DE CARVALHO; no mesmo sentido, com análise da jurisprudência, GERAR- DO DE OLIVEIRA, “Pena aquém do mínimo legal — árcunstânáa atenuante”. In: Revista da Ordem dos Advogados do Brasil, n. 72/2001, p. 37-49.

76 Nesse sentido, TUBENCHLAK, Atenuantes — pena abaixo do mínimo. In: James Tu- benchlak, Tribunal do Jú ri (contradições e soluções), 1990, p. 285-289.

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malam partem, fundada na proibição de árcunstânáas agravantes excede­rem o limite máximo da pena cominada — precisamente aquele processo de integração do Direito Penal proibido pelo princípio da legalidade. Mais não é preciso dizer.

3. Alteradores especiais da pena: causas especiais de aumento ou de diminuição da pena

Além das árcunstânáas legais agravantes e atenuantes, existem ou­tras situações especiais de alteração da pena, chamadas causas espeáais de aumento ou de diminuição da pena, previstas na parte geral e na parte espeáal do Código Penal, cuja computação no cálculo da pena representa a terceira e úldma fase da aplicação da pena.

As causas especiais de aumento ou de diminuição de pena da parte geral do Código Penal são aplicáveis a todos os crimes, como se indica: a) a tentativa (art. 14, II, CP); b) o arrependimento posterior (art. 16, CP); c) o erro evitável sobre a iliátude do fato (art. 21, parte final, CP); d)o estado de necessidade exculpante (art. 24, §2°, CP); e) a semi-imputabilidade (art. 26, parágrafo único, CP); f) a semi-imputabilidadefortuita ouforçada (art. 28, §2°, CP); g) apartiápação de menor importânáa (art. 29, §1°, CP);h) a previsibilidade do resultado mais grave, na partiápação em crime menos grave (art. 29, §2°, CP); i) a situação econômica do réu, na aplicação da pena de multa (art. 60 e §1°, CP); j) o concurso material (art. 69, CP); 1) o concurso formal (art. 70, CP); m) o crime continuado (art. 71, CP).77

77 Comparar FERREIRA, Aplicação da pena , 1995, p. 141-143; FRAGOSO, Lições de direito penal (parte geral), 2003, 16a edição, p. 435-437, n. 350.

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As causas especiais de aumento ou de diminuição de pena previstas na parte espeáal do Código Penal possuem caráter de especificidade e estão previstas ao lado dos tipos penais respectivos: art. 121, §§1° e 4o, art. 122, parágrafo único, art. 127, art. 129, §§4° e 7o, art. 155, §§1° e 2o, art. 157, §2°, art. 158, §1° e outras hipóteses menores.

As causas especiais de aumento ou de redução da pena, naparte geral e na parte especial do Código Penal, são identificadas por aumentos ou reduções em quantidades fixas (por exemplo, um sexto da pena, um terço da pena ou metade da pena) ou variáveis (por exemplo, de um a dois terços da pena, de um sexto até metade da pena). O aumento ou a redução da pena determinado por essas causas especiais deve ser fundamentado concretamente: alusões genéricas são inconstitucionais (art. 93, IX, CR). Por outro lado, os aumentos ou reduções da pena pre­vistos nessas causas especiais são obrigatórios, apesar do legislador utilizaro verbo “poderá”, em relação às tiipóteses de redução da pena, e utilizaro verbo <(será”, em relação às hipóteses de aumento da pena.78

Os limites mínimo e máximo da pena cominada no tipo legal podem ser excedidos pelas causas especiais de aumento ou de diminuição da pena. A verificação da existência dessas causas conclui o processo de aplicação da pena criminal.

III. Efeitos da condenação

A sentença criminal condenatória produz, além dos efeitos penais específicos, outros efeitos de natureza civil ou administrativa,

78 Ver FERREIRA, A plicação da pena, 1995, p. 143.

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chamados efeitos da condenação. Esses efeitos da condenação se distribuem em duas categorias legais: a) efeitos genéricos independentes de decla­ração judicial (ou automáticos); b) efeitos específicos dependentes de declaração judicial (ou motivados na sentença).

1. E fe i to s g e n é r i c o s . Os efeitos genéricos da sentença condenatória independem de declaração judicial (art. 91, CP), resultando diretamente da condenação criminal:

a) Obrigação de indenizar o dano produzido. A lesão do bem jurídi­co protegido na lei penal produz, geralmente, danos materiais e/ou morais, cuja reparação exige indenização. A condenação criminal transitada em julgado torna certa a obrigação de indenizar o dano re­sultante do crime, limitando a controvérsia, exclusivamente, à liquide^ do valor do dano indenizável (art. 91 ,1, CP).

b) Perda dos instrumentos do crime cuja fabricação, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito (art. 91, II, a, CP) e do produto do crime, ou outros bens ou valores que constituam vantagens resultantes da prática do crime, em favor da União (art. 91, II, b, CP) — a exceção é representada pelos direitos do lesado ou de terceiro de boa fé, cuja proteção é prioritária (art. 91, II, segunda parte, CP).

Art. 91. São efeitos da condenação:

I — tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime;

II—a perda emfavor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé:

a) dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constituamfato ilícito;

b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso.

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Capítulo 21 A.plicação das Penas Criminais

2. E fe i to s e s p e c í f i c o s . Os efeitos específicos da sentença condenatória dependem de declaração judicial (art. 92, CP), devendo ser modvados na decisão judicial. São dependentes de declaração judicial os seguintes efeitos:

a) Perda de cargo, função pública ou mandato eletivo. Os efeitos de perda de cargo, função pública ou mandato eletivo podem ocorrer em duas situações previstas em lei:

a l) na hipótese de aplicação de pena privativa de liberdade igual ou superior a 1 (um) ano, em crimes contra a Administração Pública praticados com abuso depoder ou violação de dever inerente a cargo, função pública ou mandato eletivo (art. 92 ,1, a, CP);

a2) na hipótese de aplicação de pena privativa de liberdade supe­rior a 4 (quatro) anos, em todos os outros casos (art. 92 ,1, b, CP).

O conceito de funcionário público, definido no art. 327, CP, possui sentido amplo: toda pessoa que exerce cargo, emprego ou função pública., independente de transitoriedade ou remuneração:

Art. 327. Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.

A lei equipara a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, ou trabalha em empresa contratada ou conveniada para execução de atividade típica da administração pú­blica (art. 327,§1°, CP). A perda de cargo, função pública ou mandato eletivo, como efeito secundário da sentença condenatória, admite reabilitação do condenado (art. 93, CP), preenchidos os requisitos legais, somente para futuros cargo, emprego ou função pública, sem reintegração na situação anterior (art. 93, parágrafo único, CP).79

79 Assim, também, BITENCOURT, Tratado de direito p ena l (parte geral), 2003, 8a edição, p. 674; FERREIRA, A plicação da pena, 1995, p. 220-221.

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Teoria da Pena Capítulo 21

b) Incapadtaçãopara o pátrio poder, tutela ou curatela. Os efeitos de incapa- citação para o exercício do pátrio poder — hoje redefinido como poder familiar pelo Código Civil—, tutela ou curatela dependem dos requisitos cumulativos de (a) crime doloso, (b) pena de reclusão cominada no tipo legal e (c) contra vítima filho, tutelado ou curatelado do autor (art. 92, II, CP). A incapadtação para exercer opoderfamiliar,; a tutela ou a curatela admite reabilitação do condenado (art. 93, CP), preencliidos os requisitos legais, mas somente para filhos, tutelados ou curatelados futuros, igualmente sem reintegração na situação anterior (art. 93, parágrafo único, CP).80

c) Inabilitação para dirigir veículo. O efeito de inabilitação para dirigir veículo ocorre nas hipóteses de utilização de veículo automotor como meio para realizar crime doloso (art. 92, III, CP). A inabilitação para dirigir veículo, como efeito específico declarado na sentença condenatória, é definitiva, mas pode ser restabelecida pela reabilitação do condenado (art. 93, CP), preenchidos os requisitos legais do instituto e realizados novos exames técnicos e psicotécnicos.81

Finalmente, a declaração desses efeitos na sentença criminal condenatória depende, para prevenir direitos e garantias individuais, de específica e concreta motivação judicial (art. 92, parágrafo único, CP).

Art. 92. São também efeitos da condenação:

I — a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo;

a) quando aplicada pena privativa de liberdade p or tempo igual ou superior a 1 (um) ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Adminis­tração Pública;

80 Ver BITENCOURT, Tratado de direito p ena l (parte geral), 2003, 8a edição, p. 674.81 Comparar FERREIRA, Aplicação da pena, 1995, p. 222-223.

606

Capítulo 21 Aplicação das Penas Criminais

b) quandofor aplicada pena privativa de liberdade p or tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos.

I I - a incapacidade para o exercido do pátrio poder, tutela ou curatela, nos crimes dolosos, sujeitos à pena de reclusão, cometidos contra filho, tutelado ou curatelado;

III — a inabilitação para dirigir veículo, quando utilizado como meio para a prática de crime doloso.

Parágrafo único. Os efdtos de que trata este artigo não são au­tomáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença.

IV Reabilitação

1. C on ce ito . A reabilitação é providência judicial suspensiva de determi­nados efeitos da sentença condenatória — que podem, eventualmente, ser restabelecidos —, e não causa de extinção desses efeitos, como as causas de exdnção da punibilidade (entre as quais constava, na legis­lação penal anterior), que produzem efeitos irreversíveis.

2. O b fe to e o b je t iv o s . A reabilitação tem por objeto qualquer pena aplicada em sentença definitiva (art. 93, CP), mas incide, exclusivamente, sobre alguns de seus efeitos secundários ou acessórios. Nesse sentido,o objetivo da reabilitação é garantir o sigilo dos registros do processo e da condenação criminal, restabelecer determinados direitos do conde­nado e, desse modo, contribuir para sua reintegração na vida social;82 complementarmente, o objetivo pode ser cancelar o efeito de inabilitação para direção de veículo (art. 93, parágrafo único, CP), quando utilizado

82 JESCHECK/WEIGEND, Strafrecht, 1996, 5a edição, §86, n. 6, p. 918.

607

Teoria da Pena Capítulo 21

para prática de crime doloso.83

Art. 93. A reabilitação alcança quaisquer penas aplicadas em sentença definitiva, assegurando ao condenado o sigilo dos registros sobre seu processo e condenação.

Parágrafo único. A reabilitação poderá, também, atingir os efeitos da condenação, previstos no art. 92 deste Código, vedada reintegração na situação anterior, nos casos dos incisosI e II do mesmo artigo.

3. R eq u is ito s . O pedido de reabilitação pressupõe reparação do dano, ou comprovação de impossibilidade absoluta de reparação, ou renúncia da vítima, ou novação da dívida (art. 94,1-III, CP) e, além disso, exige decur­so de 2 (dois) anos em relação a cada uma das seguintes hipóteses: a) de extinção da pena (por qualquer causa), ou do término de sua execução, computado o tempo de suspensão ou de livramento condicional não revogados; b) de efetivo domicílio no país; c) de efetiva demonstração permanente de bom comportamento público e privado.

Em caso de indeferimento da reabilitação, o pedido pode ser renovado em qualquer tempo, comprovados os requisitos exigidos.

Art. 94. A reabilitação poderá ser requerida, decorridos 2 (dois) anos do dia em que fo r extinta, de qualquer modo, a pena ou terminar sua execução, computando-se o período de prova da suspensão e do livramento condiáonal, se não sobrevier revogação, desde que o condenado:

I — tenha tido domicílio no País no pra^o aáma referido;

II — tenha dado, durante esse tempo, demonstração efetiva e constante de bom comportamento público e privado;

III — tenha ressarcido o dano causado pelo crime ou demons-

83 Ver BITENCOURT, Tratado de Direito Penal (partegeral), 2003, 8a edição, p. 674-677.

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Capítulo 21 Aplicação das Penas Criminais

tre absoluta impossibilidade de o fa%er, até o dia do pedido, ou exiba documento que comprove a renúncia da vítima ou novação da dívida.

Parágrafo único. Negada a reabilitação, poderá ser reque­rida, a qualquer tempo, desde que o pedido seja instruído com novos elementos comprobatórios dos requisitos necessários.

Assim, a reabilitação significa declaração judicial de cumpri­mento ou de execução da pena aplicada, de bom comportamento do reabilitando pelo período de 2 (dois) anos, de ressarcimento do dano ou de desobrigação do reabilitando, por impossibilidade de pagamento, por renúncia da vítima ou por novação da dívida, cuja eficácia social consiste na eliminação de restrições ao exercício pleno de direitos individuais.

4. R ev o g a çã o . A revogação da reabilitação resulta de condenação definitiva, como reincidente, à pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos (art. 95, CP), e pode ocorrer por iniciativa do Juiz ou do Ministério Público.

Art. 95. A. reabilitação será revogada, de ofício ou a reque­rimento do Ministério Público, se o reabilitado fo r condenado, como reinddente, por dedsão definitiva, a pena que não seja de multa.

Revogada a reabilitação, a suspensão dos efeitos da sentença condenatória é cancelada, restabelecendo-se todos os registros ante­riormente suspensos.

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C apítu lo 2 2

S u b s t i t u t i v o s P e n a is

Os substitutivos penais — ou mecanismos de diversão — consdtuem estratégias de política criminal estabelecidas com o objetivo de evitar ou reduzir os efeitos negativos do processo ou da execução penal, mediante substituição de processos formais por processos informais de co ntrole social de fatos criminosos de leve ou média gravidade — a exceção é o livramento condicional extraordinário — realizados por autores considerados não perigosos, sob o argumento de que a intervenção judicial produz maior dano do que utilidade.1

I. Teoria dos substitutivos penais

As teorias sobre substitutivos penais podem ser agrupadas em teorias tradicionais, ligadas às funções manifestas ou declaradas das penas criminais, e teorias críticas vinculadas às funções latentes ou reais das penas criminais, cada uma delas compreendendo abordagens específicas, fundadas em argumentos distintos.

1 KAISER, Diversion. In: Kleines Kriminologisches Wõrterbuch, KAISER, KERNER, SACK, SCHELLHOSS (Editores), 1993, p. 88-89.

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Teoria da Pena Capítulo 22

1. Teorias tradicionais

As teorias tradicionais, desenvolvidas nos limites da ideologia jurídica dominante nos Estados ocidentais, compreendem explicações humanitárias e explicações áentíficas dos substitutivos penais.

a) E x p lica çõ e s hum an itá ria s. As explicações humanitárias destacam sentimentos de piedade “natural” do ser humano, propenso a perdoar e esquecer, que deplora a desumanidade da prisão e suas conseqüências para o preso, sujeito a violências, humilhações e degradação humana, em geral, e para a família do preso, submetida a privações materiais e afetivas, prostituição, marginalização e delinqüência — em suma, um conjunto de efeitos danosos evitados ou reduzidos pelos substitutivos penais, que poderiam explicar sua adoção generalizada nas legislações contemporâneas.2

b) E x p lica çõ e s c i en t i f i ca s . As explicações áentíficas sintetizam críticas de penalistas liberais sobre as inconveniênáas práticas, morais, sociais e jurídicas da execução de penas privativas de liberdade, sensibilizando políticos e legisladores para a necessidade de métodos alternativos ou substitutivos da prisão. Assim, os substitutivos penais seriam conseqüência do trabalho científico de penalistas e criminólogos em congressos, conferências e textos, indicando os malefícios da pena carcerária, como (a) siipressão de direitos não compreendidos na privação da liberdade, (b) instituição da ociosidade programada — o trabalho, apesar de obrigação legal, é privilégio pessoal com remuneração irrisória, (c) efeitos embrutecedores do isolamento celular, (d) violências contra a dignidade e sexualidade do preso em celas coletivas superlotadas, (e) privação dos direitos à intimidade e à vida sexual regular, (f) suspen­são dos direitos políticos de votar e ser votado, (g) precariedade de

2 Ver CIRINO DOS SANTOS, Direito pena l (a nova parte geral), 1985, p. 294.

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Capítulo 22 Os Substitutivos Penais

assistência médica, jurídica e social etc.3

As explicações humanitárias, provenientes do coração humano, e as explicações científicas, provenientes de pesquisas empíricas, não podem ser descartadas como ideologia ilusória, porque refletem rea­lidades subjetivas (razões humanitárias) e objetivas (razões científicas) incontestáveis, mas existem outras explicações, fundadas em outros argumentos, que parecem constituir a explicação real (oculta ou latente) dos substitutivos penais.

2. Teorias críticas

As teorias críticas, desenvolvidas pela moderna teoria jurídica e criminológica sobre crime e pena, produziram abordagens fundadas em outros argumentos, por exemplo, as explicações dos substitutivos penais baseadas em (a) superlotação carcerária, (b) crise fiscal e (c) ampliação do controle soàal.

a) S u p e r lo ta çã o ca rcerá r ia . A tese da superlotação carcerária explica os substitutivos penais com base em argumento óbvio: o excesso de presos nos estabelecimentos prisionais e penitenciários dos países ocidentais. No Brasil, a população carcerária excede o dobro da capacidade de penitenciárias e prisões públicas: a segunda maior população carcerária do continente americano, com 401.236 presos em regime fechado, semi-aberto e em prisão provisória, no sistema penal e nas Delegacias de Polícia.4 A superlotação carcerária agrava todos os inconvenientes indi­

3 SCULL, Decarceration, 1977; CIRINO DOS SANTOS, Direito p ena l (a nova parte geral),1985, p. 294-295.

4 Dados do DEPEN, Departamento Penitenciário Nacional, relativos a dezem- bro/2006.

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Teoria da Pena Capítulo 22

cados pela explicação áentífica dos substitutivos penais, especialmente os problemas de disciplina, de vigilância e de violência interna dos guardas contra os presos e dos presos entre si?

De fato, as condições insuportavelmente desumanas da super­lotação carcerária parecem legitimar a violência ilegal das rotineiras e inevitáveis revoltas de presos nas prisões e penitenciárias públicas— uma forma desesperada e extrema de correção de distorções do processo de criminalização e de penalização seletiva de marginalizados do mercado de trabalho e da sociedade de consumidores, funcionando como válvula de alívio das tensões crescentes da superpopulação encarce­rada nas instituições oficiais. Por outro lado, a soma da superpopulação carcerária com a superpopulação encarcerável no Brasil, representada por centenas de milhares de mandados de prisão expedidos e não cumpridos por inexistência de vagas em Delegacias de Polícia, Prisões e Peniten­ciárias do Estado, produz números absurdos que reforçam a tese da superlotação carcerária como origem dos substitutivos penais.

b) C rise f is ca l. A tese da crise fiscal explica os substitutivos penais por relações de custo/benefício, fundada no argumento da incapacidade financeira do Estado para arcar com o custo do preso durante a execução penal. Na verdade, o custo do preso inclui, além das despesas de consu­mo individual (alimentação, vestuário, alojamento, higiene etc.) e de serviços pessoais (assistência médica, dentária, jurídica etc.), também o conjunto dos salários do pessoal técnico-administrativo, assistencial e de segurança interna dos estabelecimentos penais, mais a verba consumida com reformas, ampliações, reconstruções e construções

5 Ver CARVALHO, Pena egarantias, 2003, 2a edição, p. 245-258, esp. p. 250: “Motins, rebeliões e fugas, realizados conscientemente contra situações injustas como superlotação, fa lta de assistência material e atraso injustificado da prestação jurisdiúonal (que inviabilizam o gozp de direitos públicos subjetivos), não podem ser qualificados como delitos em decorrência da causa supralegal da resistência à opressãof...). Na atual situação dos presídios brasileiros, os conflitos prisionais adquirem feição de ato político reivindicatório e, assim como foram as greves na década de setenta, adquirem a característica da licitude... ”

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Capitulo 22 Os Substitutivos Penais

de novas prisões, cuja soma consdtui a dotação orçamentária do sistema penitenciário, obtendo-se o custo do preso mediante divisão desse valor pela quanddade total de encarcerados do sistema penal.

Mas, somadas as despesas do Sistema de Justiça Criminal, com as despesas do Legislador penal e da Justiça Criminal em primeiro plano, das Polícias estaduais e federal e do conjunto dos serviços de assistência ao egresso, o custo do preso é ainda maior. Em situações con­junturais de recessão econômica, com retração do capital produtivo e queda na receita tributária, aumentam os cortes orçamentários nos setores ligados às atividades não-produtivas — como o sistema de justiça criminal formado pela Polícia, Justiça e Prisão —, privados de poder político para influenciar nas decisões orçamentárias do Estado.

A tese da crise fisca l chama atenção para as transformações dos mecanismos repressivos do Estado na era da internacionalização do ca­pital financeiro e das relações econômicas e comerciais entre países centrais e países periféricos do sistema econômico-financeiro globa­lizado, mostrando duas tendências sucessivas: primeiro, o deslocamento do controle social de setores não-produtivos do Estado para setores produtivos da indústria e do comércio, expandindo a área do controle social não-institucionalizado, com a utilização intensiva de penas alter­nativas e de hipóteses legais de execução penal desinstitucionalizada, a ampliação da descriminalização e da despenalização de condutas, que marcou a política criminal do estágio final do welfare state nos países centrais do capitalismo contemporâneo, e ainda caracteriza a política criminal dos países periféricos do sistema econômico-finan­ceiro globalizado;6 segundo, o abandono das penas alternativas e da política de desinstitucionalização, descriminalização e despenalização do Estado do bem-estar soáal’ substituída pela política de tolerânáa %ero do Estado penal dos países centrais do capitalismo contemporâneo,

6 SCULL, Decarceration, 1977.

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Teoria da Pena Capítulo 22

com seu complemento empresarial-penal estruturado para absorver os contingentes humanos provenientes da desenfreada criminalização da pobreza, o sistema penal privatizado — uma tendência que começa a contaminar os países periféricos do sistema de poder econômico e político do neoliberalismo contemporâneo.c) A m p lia çã o d o c o n t r o l e s o c ia l . A tese da ampliação do controle soáal fundamenta a explicação dos substitutivos penais em aspectos contradi­tórios encobertos pelas explicações tradicionais:

1) primeiro, a necessidade de supervisão da conduta do con­denado benefiáário do substitutivo penal expande os mecanismos de controle institucionais do Estado para áreas do mercado de trabalho — e, portanto, de setores não-produtivos para setores produtivos, como indica a tese da crise fisca l do capitalismo monopolista;

2) segundo, a redução do tempo de passagem de sujeitos crimi­nalizados pelo sistema penitenciário abre novos espaços no sistema de controle, cujo imediato preenchimento — sempre em regime de superlotação carcerária — coloca maior quantidade de pessoas em contato com a prisão, o núcleo do sistemaformal de controle: a redução dos malefícios da privação da liberdade em relação ao beneficiário do substitutivo penal significa a ampliação dos malefícios da prisão em relação aos novos encarcerados.

Logo a aceleração da passagem pelo sistema formal de controle, como maior rapidez na substituição de indivíduos presos, representa uma expansão (a) do controle social carcerário, com maior quantidade de encarcerados no mesmo espaço de tempo, e (b) do controle social extracarcerário, com maior quantidade de desencarcerados sob controle das instituições anexas do sistema penitenciário (patronatos, serviço social etc.), ampliando e diversificando â rede formal e informal de con­troles — o fenômeno conhecido como “net-mdening”zfeito —, cujo entro continua sendo a prisão.7

' SCULL, Decarceration, 1977; também KAISER, Diversion. In: Kleines Kximinologis- ches Wõrterbuch, KAISER, KERNER, SACK, SCHELLHOSS (Editores), 1993, p. 90-91.

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Capítulo 22 Os Substitutivos Penais

3. Conclusão

A concentração dos substitutivos penais em crimes de menor gravidade, parece revigorar a instituição da prisão em duas direções principais: a) a prisão como “último recurso” para os chamados “casos mais duros”: o sistema de controle social ampliado (mais pessoas controladas) e diversificado (maior quantidade de instituições auxiliares de controle) é reforçado pela possibilidade de reconversão dos substitu­tivos penais em futuros reencarceramentos; b) a prisão como instituição indispensável à eficácia dos substitutivos penais, legitimada como centro do “arquipélago carcerário”, com novas estratégias e métodos que controlam, de forma mais intensa e mais generalizada, a população marginalizada do mercado de trabalho e do consumo social.

Assim, os substitutivos penais não enfraquecem a prisão, mas a revigoram; não diminuem sua necessidade, mas a reforçam; não anulam sua legitimidade, mas a ratificam: são instituições tentaculares cuja eficácia depende da existência revigorada da prisão, o centro nevrálgico que estende o poder de controle sobre as massas miserabilizadas do capitalismo neolibe­ral contemporâneo, com possibilidades de novos reencarceramentos se a expectativa comportamental em relação aos controlados não confirmar o prognóstico dos controladores do sistema penal.

O aparelho carcerário, instituição central de controle social nas sociedades contemporâneas, responsável pela gênese e reprodução his­tórica do capitalismo como relação social dominante nas sociedades ocidentais, permite explicar os substitutivos penais como mecanismos de reforço da prisão e de legitimação do rigor carcerário, porque cede aos substitutivos penais as finalidades chamadas terapêuticas ou pe- dagógicas da pena, mas preserva-se como instrumento de terror pata. o s “casos mais duros”, encerrados em instituições de segurança máxima do sistema penal.

I

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Teoria da Pena Capítulo 22

II. Os substitutivos penais da legislação brasileira

A legislação brasileira prevê dois substitutivos penais tradicionais, a suspensão condicional da pena e o livramento condicional' ambos disciplina­dos no Código Penal e na Lei de Execução Penal, e dois substitutivos penais novos, a transação penal e a suspensão condiãonal doprocesso, criados pela Lei 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais Criminais.

A) Suspensão condicional da pena

A suspensão condiãonal da pena é substitutivo penal constituído para- impedir a execução institucionalizada da pena privativa de liberdade

e, após expirado o prazo de suspensão, extinguir a pena privativa de liberdade aplicada.8 De fato, o instituto jurídico da suspensão condicional da pena vincula a força simbólica da sentença condenatória com a desistência de execução da pena privativa de liberdade aplicada, “fre- qüentemente dessociali^adora", como dizem JESCHECK/WEIGEND.9 A lei penal brasileira instituiu quatro modalidades diferentes de suspen­são condiãonal da pena-, comum, especial, etária e humanitária.10 A concessão judicial de qualquer dessas espécies de suspensão condiãonal da pena,, ou sursis, tem por objetivo específico evitar os malefícios da prisão — por essa razão, as penas restritivas de direitos e as penas de multa não podem ser objeto de suspensão condicional (art. 80, CP).

8 CIRINO DOS SANTOS, Direito pena l (a nova parte geral), 1985, p. 295-296.9 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1997, §79,1, p. 833.10 No sentido do texto, BITENCOURT, Tratado de direito pena l (parte geral), 2003, S1

edição, p. 629-631.

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Capítulo 22 Os Substitutivos Penais

Art. 80. A. suspensão não se estende às penas restritivas de direitos nem à multa.

A concessão judicial do sursis, em cada uma das modalidades referidas, requer a presença de certos pressupostos de concessão, exige o cumprimento de determinadas condições de execução — cujo descumprimento pode causar a revogação obrigatória ou facultativa do benefício —, o período de prova pode ser, eventualmente, prorrogado até o máximo e, finalmente, o cumprimento normal do substitutivo penal exringue a pena.

1. Pressupostos específicos

Os pressupostos de concessão da suspensão condicional da pena são objetivos e subjetivos, com pequenas variações conforme a modalidade do s u r s i s considerado.a) S u rs is comum. A suspensão condicional comum da pena, caracteri­zada pelo cumprimento cumulativo de pena restritiva de direitos duranteo período de suspensão, constitui a modalidade mais rigorosa de sursis, com os seguintes pressupostos específicos:

1) pressuposto objetivo: pena aplicada igual ou inferior a 2 (dois) anos de privação de liberdade — em correspondência com a extensão da pena aplicada, o prazo da suspensão condicional pode variar entre2 (dois) a 4 (quatro) anos (art. 77, CP; 156, LEP);

2) pressupostos subjetivos: a) primariedade do agente em crime doloso (art. 77, I, CP) — exceto se a condenação anterior for somente à pena de multa (art. 77, §1°, CP); b) a culpabilidade, os an­tecedentes, a conduta social, a personalidade e os motivos do agente, bem como as circunstâncias do fato, devem indicar a conveniência da medida (art. 77, II, CP) — neste caso, a chamada prognose favorável sobre os efeitos político-criminais do sursis é decidida pelo princípio

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Teoria da Pena Capítulo 22

in dubiopro reo, que autoriza a concessão do benefício mesmo em face de incerteza sobre o comportamento futuro do beneficiário, porque a execução da pena seria alternativa certamente pior.11

Art. 77. A execução da pena privativa de liberdade, não superior a 2 (dois) anos, poderá ser suspensa, p or 2 (dois) a 4 (quatro) anos; desde que:I — o condenado não seja reincidente em crime doloso;II — a culpabilidade, os antecedentes, a conduta soáal e per­sonalidade do agente, bem como os motivos e as árcunstânáas autorizem a concessão do benefíáo;III — não seja indicada ou cabível a substituição prevista no art. 44 deste Código.§1°. A condenação anterior a pena de multa não impede a concessão do benefíáo.

b) S u rs isespecial. A suspensão condicional espeáalda pena, caracte­rizada pela desobrigação do cumprimento cumulativo de pena restritiva de direitos durante o prazo da suspensão, constitui a modalidade menos rigorosa de sursis, com os seguintes pressupostos específicos:

1) pressupostos objetivos: a) pena aplicada igual ou inferior a2 (dois) anos de privação de liberdade — em correspondência com a extensão da pena aplicada, o prazo da suspensão condicional pode variar entre 2 (dois) a 4 (quatro) anos (art. 77, CP; 156, LEP); b) re­paração do dano resultante do crime, exceto impossibilidade material (art. 78, 2o, CP);

2) pressupostos subjetivos: a) primariedade em crime doloso (art. 77 ,1, CP); b) indicadores do art. 77, II, CP, inteiramentefavoráveis,

11 Nesse sentido, FRISCH, Prognoseentscheidungen im Strafrecht, 1983, p. 49-53; JESCHE­CK/WEIGEND, leh rbu ch des Strafrechts, 1997, §79,1, n. 4 c, p. 836-837.

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Capítulo 22 Os Substitutivos Penais

sob a seguinte interpretação autêntica paralela:12 culpabilidade mínima, antecedentes irretocáveis (incluída a conduta social), personalidade de boa índole, motivos relevantes e circunstâncias (do fato) favoráveis, capazes de permitir a substituição da pena restritiva de direitos pela aplicação cumulativa de (a) proibição de freqüentar determinados lugares, (b) proibição de ausentar-se da comarca sem autorização judicial e (c) obrigação pessoal de comparecimento mensal em Juízo para informar e justificar as atividades realizadas (art. 78, §2°, CP).13

Art. 78, §2°. Se o condenado houver reparado o dano, salvo impossibilidade de fa^e-lo, e se as árcunstânáas do art. 59 deste Código lhe forem inteiramente favoráveis, o jui^poderá substituir a exigênáa do parágrafo anterior pelas seguintes condições, aplicadas cumulativamente:

a) proibição de freqüentar determinados lugares;

b) proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do jui^j

c) compareámentopessoal e obrigatório a juí^o, mensalmente, para informar e justificar suas atividades.

c) S u rsis etário. A suspensão condicional etária da pena, caracterizada pela maior extensão da pena aplicada e do pra^o de suspensão, é concedida a condenado maior de 70 anos de idade, com os seguintes pressupostos específicos:

1) pressuposto objetivo: pena privativa de liberdade aplicada até 4 (quatro) anos — em correspondência com a extensão da pena aplicada, o prazo da suspensão condicional é ampliado para prazo

12 Exposição de Motivos do Código Penal, n. 66.13 Ver BITENCOURT, Tratado de direito pena l (parte geral), 2003, 8a edição, p. 630.

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Teoria da Pena Capítulo 22

variável entre 4 (quatro) e 6 (seis) anos (art. 77, §2°, CP).

2) pressupostos subjetivos: a) primariedade em crimes dolosos (art. 77 ,1, CP); b) culpabilidade, antecedentes, conduta social, perso­nalidade e motivos do agente, bem como as circunstâncias do fato, indicarem a conveniência da medida (art. 77, II, CP); c) condenado maior de 70 (setenta) anos.

No caso do sursis etário parece indispensável fazer o seguinte comentário: na forma do art. Io, da Lei n. 10.741/03 (Estatuto do Idoso), o limite etário de 70 (setenta) anos deve ser reduzido para 60 (sessenta) anos, pela mesma razão que determinou a fixação desse marco etário para definir o ser humano como idoso, alterando expressamente a árcunstânáa agravante do art. 61, 4 CP, na hipótese de ser vítima de crime e, por extensão, a árcunstânáa atenuante do art. 65 ,1, CP, na hi­pótese de ser autor de crime: a analogia in bonam partem é autorizada pelo prinápio da legalidade penal e, portanto, constitui direito do réu.14

d) S u rsis por razões de saúde. A suspensão condicional da pena por ratões de saúde — também chamado sursis humanitário —, igualmente caracterizada pela maior extensão da pena aplicada e do pra^o de suspensão, possui os seguintes pressupostos específicos:

1) pressuposto objetivo: pena privativa de liberdade aplicada até 4 (quatro) anos — em correspondência com a extensão da pena aplicada, o prazo da suspensão condicional é ampliado para prazo variável entre 4 (quatro) e 6 (seis) anos (art. 77, §2°, CP).

2) pressupostos subjetivos: a) primariedade em crimes do­losos (art. 77 ,1, CP); b) culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade e motivos do agente, bem como as circunstâncias do

14 A literatura brasileira ainda persiste no critério antigo do “maior de 70 (setenta) anos”, como, por exemplo, REGIS PRADO, Curso de D ireito Penal Brasileiro, 2004, 4a edição, vol. 1, p. 645.

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Capítulo 22 Os Substitutivos Penais

fato, indicarem a conveniência da medida (art. 77, II, CP); c) razões de saúde justificantes do substitutivo penal.15

No caso do sursis por razões de saúde parece igualmente necessá­rio fazer o seguinte comentário: a concessão da suspensão condicional da pena por ratões de saúde depende do exame do conceito de saúde, definido como “completo estado de bem-estar físico, psíquico e soáal” pela Organização Mundial da Saúde.16 Essa definição de saúde permite alguns desdobramentos importantes: a) o bem-estar físico é alterado por doenças corporais, em geral, sendo suficiente o efeito de reduziro estado de completude da saúde corporal, segundo critério judicial de avaliação direta ou mediante perícia médica facultativa — porque a lei não exige sérios problemas de saúde,17 não diz ser necessário constituir doençagravè% e, menos ainda, doença terminaP e, finalmente, não exige perícia médica,20 como afirmam setores da literatura; b) o bem estar psíquico é alterado, imediatamente, por perturbações mentais ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado determinantes do estado de semi-impu- tabilidade penal do condenado, com redução de um a dois terços da pena aplicada (art. 22, parágrafo único, CP), e mediatamente, por qualquer alteração funcional ou orgânica do aparelho psíquico capaz de reduzir o estado de completude da saúde mental; c) o bem estar soáal

15 Assim, em linhas gerais, BITENCOURT, Tratado de direito pena l (parte geral), 2003, 8a edição, p. 631.

16 Ver PEREIRA GOMES, Reflexões relativas à suspensão condiãonal da pena — alterações introduzidas pela L ei 9.714/98”. In: Boletim do IBCCRIM n. 75, encarte especial, p. IV; também, SILVA FRANCO, Código pena l e sua interpretação jurisprudencial, 2001, 7a edição, p. 1435.

17 Sobre isso, de modo correto, BITENCOURT, Tratado de direito pena l (parte geral), 2003, 8a edição, p. 631: “Contudo, condenação superior a quatro anos, ainda que o condenado apresente sérios problemas de saúde, não seráfundamento suficiente, p o r essa previsão legal, para concessão de sursis p o r essa razão. ”

18 Em senddo contrário, DOTTI, Curso de direito pena l (parte geral), 2001, p. 585.19 CAPEZ, Curso de direito penal, 2002, v. 1, p. 420, fala em “doença term inal”.20 DOTTI, Curso de direito pena l (parte geral), 2001, p. 585, exige 'perícia m édica”.

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Teoria da Pena Capítulo 22

é afetado por condições sociais adversas de existência do condenado: em liipóteses extremas, as condições sociais adversas podem excluir ou reduzir a dirigibilidade normativa, funcionando como situações de exculpação; em outras hipóteses podem ser consideradas para efeito de concessão do sursis humanitário, como expressão de patologia social.

Art. 77, §2°. A execução da pena privativa de liberdade, não superior a 4 (quatro) anos, poderá ser suspensa, por 4 (quatro) a 6 (seis) anos, desde que o condenado seja maior de 70 (setenta) anos de idade, ou ratões de saúde justifiquem a suspensão.

2. Pressuposto geral da suspensão condicional da pena

A lei estabelece como pressuposto geral de concessão da sus­pensão condicional da pena, a impossibilidade de substituição da pena privativa de liberdade aplicada por penas restritivas de direitos, con­sideradas penas substitutivas de menor rigor repressivo e, portanto, de aplicação preferencial (art. 77, III, CP).

Por outro lado, caracterizados os pressupostos de concessão da suspensão condicional da pena, Juizes e Tribunais são obrigados a se pronunciar, motivadamente, sobre a concessão ou denegação do benefício (art. 93, IX, CR e art. 157, LEP) — porque o sursis constitui direito subjetivo público do condenado21 —, sem ignorar a influência do princípio in dubio pro reo, porque a certeza dos efeitos danosos da exe­cução da pena prevalece sobre a incerteza do comportamento futuro

21 Assim, BITENCOURT, Tratado de direito pena l (parte geral), 2003, 8a edição, p. 622; também, FRAGOSO, U ções de direito pena l (parte geral), 2003, p. 459, n. 377.

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Capítulo 22 Os Substitutivos Penais

do beneficiário.22 Exceções são as hipóteses de tráfico de drogas e crimes assemelhados (arts. 33, capute §1°, e 34 a 37, da lei 11.343/06), que não admitem sursis.

3. Condições l e g a i s de execução

As condições de execução da suspensão condicional da pena são especificadas na sentença criminal concessiva da medida (art. 78, CP) e dependem da natureza do benefício concedido.

a) No s u r s i s comum, o beneficiário deve cumprir, durante o primeiro ano de execução, alternativamente, ou a restrição de direitos de prestação de serviços à comunidade ou a de limitação de fim de semana (art. 78, §1°, CP; art. 158, §1°, LEP).

Art. 78. Durante o pra^o da suspensão o condenado ficará sujeito ã observação e ao cumprimento das condições estabe­lecidas pelojui^:

§1°. No primeiro ano do pra^o deverá o condenado prestar serviços ã comunidade (art. 46), ou submeter-se ã limitação de fim de semana (art. 48).

b) No s u r s i s especial, em substituição da prestação de serviços à comu­nidade ou da limitação de fim de semana do sursis comum, o beneficiário deve cumprir as obrigações cumulativas (a) de proibição de freqüentar determinados lugares, (b) de proibição de ausentar-se da comarca sem

22 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1997, §79 ,1, n. 4 c, p. 836-837; FRISCH, Prognoseentscheidungen im Strafrecht, 1983, p. 49-53.

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Teoria da Pena Capítulo 22

autorização judicial e (c) de comparecimento mensal em Juízo para informar e jusdficar as atividades realizadas (art. 78, §2°, CP).

c) No s u r s i s etário e no s u r s i s por razões de saúde o beneficiário também está sujeito às condições obrigatórias do s u r s i s c o m u m (art.78, §1°, CP) ou, alternativamente, do s u r s i s e s p e c ia l , se presentes os pressupostos legais (art. 78, §2°, CP), além das condições facultativas determinadas pelo Juiz (art. 79, CP), obviamente adequadas à situação pessoal do condenado.

4. Condições j u d i c i a i s de execução

A suspensão condicional da pena admite condições judiciais de execução, determinadas pelo prudente arbítrio do juiz, considerando as finalidades poKtico-criminais do substitutivo penal e a adequação das condições à natureza do ja to e à situação pessoal do condenado (art.79, CP).

Art. 79. A sentença poderá especificar outras condições a que fica subordinada a suspensão, desde que adequadas ao ja to e ã situação pessoal do condenado.

5. Modificação das condições de execução

As condições de execução da suspensão condicional da pena po­dem ser modificadas pelo Juiz da execução (de ofício, a requerimento

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Capítulo 22 Os Substitutivos Penais

do Ministério Público ou por proposta do Conselho Penitenciário), com prévia audiência do condenado (art. 158, §2°, LEP). A fiscalização do cumprimento das condições da suspensão condicional da pena é atribuição do Serviço Social Penitenciário, de Patronatos ou de Con­selhos de Comunidade — ou, ainda, das instituições de cumprimento das restrições de direitos, no caso de aplicação concreta (art. 158, §3°, LEP). O beneficiário deverá comparecer à entidade fiscalizadora para comprovar o cumprimento das condições, a ocupação e os salários ou proventos de subsistência e, por seu turno, a entidade fiscaliza­dora comunicará ao Juízo da execução todo ato capaz de determinar revogação, prorrogação ou modificação das condições da suspensão condicional da pena (art. 158, §§4° e 5o, LEP).

Na hipótese de concessão da suspensão condicional da pena (ou de modificação das condições anteriores) pelo Tribunal, as condições respectivas (ou as novas condições) serão fixadas pelo próprio Tribu­nal, que poderá atribuir sua fixação ao Juízo da execução, responsável pela realização, em qualquer hipótese, da audiênáa admonitória do be­neficiário (art. 159, e parágrafos, LEP).

6. Formalidades de concessão

Transitada em julgado a sentença criminal condenatória conces­siva da suspensão da pena, realiza-se a chamada audiênáa admonitória, com a leitura da sentença condenatória ao condenado, a especificação das condições de suspensão da execução da pena e a advertência do beneficiário sobre as conseqüências de nova infração penal ou de des- cumprimento das condições de execução do substitutivo penal. Além disso, a sentença condenatória, com nota específica sobre a suspensão da pena, será registrada em livro especial do Juízo da execução, com

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Teoria da Pena Capítulo 22

averbações marginais sobre revogação do substitutivo ou extinção da pena substituída, observado o sigilo do registro e das averbações (art. 163, LEP).

Finalmente, a eficácia da suspensão condicional da pena depende de aceitação das condições obrigatórias e facultativas da sentença judicial, pelo beneficiário do substitutivo penal. Por isso, se o condenado, regularmente intimado, injustificadamente deixar de comparecer à audiência admonitória, a suspensão condicional da pena ficará sem efeito e a pena privativa de liberdade será executada (art. 161, LEP).

7. Revogação

A revogação da suspensão condicional da pena pode ser obriga­tória ou facultativa, dependendo do motivo da revogação.

1. A revogação obrigatória da suspensão condicional da pena (art. 81, CP) é decretada nas hipóteses (a) de condenação irrecorrível por crime doloso, (b) de injustificada frustação da pena de multa ou da repara­ção do dano e (c) de descumprimento das obrigações alternativas de prestação de serviços ã comunidade ou de limitação de fim de semana:

Art. 81. A. suspensão será revogada se, no curso do pra^o,0 beneficiário:

1 — é condenado, em sentença irrecorrível, p or crime doloso;

II—frustra, embora solvente, a execução de pena de multa ou não efetua, sem motivo justificado, a reparação do dano;

III — descumpre a condição do § 1o do art. 78 deste Código.

As hipóteses referidas nos incisos I e II, do art. 81, CP, requerem

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Capítulo 22 Os Substitutivos Venais

alguns esclarecimentos:

a) no caso do inciso I, a condenação do beneficiário à pena de multa — ainda que irrecorrível e por crime doloso — não determina a revogação do sursis, porque se a condenação à pena de multa não exclui a concessão, então não pode determinar a revogação da suspensão condicional da pena;23

b) no caso do inciso II, apenas a injustificada fa lta de reparação do dano por beneficiário solvente determina a revogação obrigatória do sursis, porque a pena de multa, após o trânsito em julgado da senten­ça condenatória, transforma-se em dívida de valor (art. 51, CP, com a redação da Lei 9268/96) e, como tal, é objeto exclusivo de ação de execução civil: a pena de multa perdeu a anterior capacidade direta de conversão em privação de liberdade e, portanto, não pode ter o efeito indireto de conversão em prisão por revogação obrigatória da suspensão condicional da pena.24

2. A revogação facultativa da suspensão condicional da pena (art. 81, §1°, CP) pode ocorrer nas hipóteses (a) de descumprimento de outras condições especificadas na sentença condenatória concessiva do sur­sis e (b) de condenação irrecorrível a pena privativa de liberdade, ou restritiva de direitos, por crime imprudente ou por contravenção.

Art. 81, §1°.^4 suspensão poderá ser revogada se o condenado descumpre qualquer outra condição imposta ou é irrecorrivel- mente condenado, p o r crime culposo ou p or contravenção, a pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos.

23 Assim, também BITENCOURT, Tratado de direito p ena l (parte geral), 2003, 8a edição, p. 634.

24 Nesse sentido, também FRAGOSO, U ções de direito p ena l (parte gera l), 2003, p. 465, n. 381; BITENCOURT, Tratado de direito p en a l (parte gera l), 2003, 8a edição, p. 634.

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Teoria da Pena Capítulo 22

8. Prorrogação do prazo

O prazo de execução da suspensão condicional da pena éprorroga­do, obrigatodamente, até decisão final definitiva, na hipótese de processo criminal ou contravencional contra o beneficiário (art. 81, §2°, CP).

Art. 81, §2°. Se o beneficiário está sendo processado por outro crime ou contravenção, considera-se prorrogado o pra^o da suspensão até o julgamento definitivo.

Alternativamente, a prorrogação do prazo de execução até o máximo — se não fixado anteriormente — pode evitar a revogação fa­cultativa da suspensão condicional da pena.

Art. 81, §3°. Quando facultativa a revogação, o jui^pode, ao invés de decretá-la, prorrogar o período de prova até o máximo, se este não fo i o fixado.

9. Extinção da pena

A extinção da pena privativa de liberdade substituída é a conseqü­ência do cumprimento da suspensão condicional da pena, nas condições especificadas e dentro do prazo determinado, com a realização dos objetivos poHtico-criminais esperados, de excluir os efeitos negativos da prisão e contribuir para a integração social do condenado (art. 82, CP).

Art. 82. Expirado opra^o sem que tenha havido revogação, considera-se extinta a pena privativa de liberdade.

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Capítulo 22 Os Substitutivos Penais

B) Livramento condicional

O livramento condiáonal constitui a fase final desinstitucionalizada de execução da pena privativa de liberdade igual ou superior a 2 (dois) anos, com o objetivo de reduzir os malefícios da prisão e promover a reinserção social do condenado, concedido pelo Juiz da execução penal em decisão motivada, precedida de manifestação do Ministério Público e da Defesa (art. 81, CP e art. 112, §1°, LEP).25 Assim, o livra­mento condiáonal introduz mudanças na execução da pena, consistentes na transição da execução institucionalizada para a execução em liberdade da pena privativa de liberdade aplicada.26

1. Espécies de livramento condicional

A lei penal brasileira prevê três modalidades de livramento con­dicional, determinadas pelo tempo de execução da pena privativa de liberdade aplicada (art. 83,1, II e V, CP): a) o livramento condicional espeáal' após execução de um terço da pena aplicada; b) o livramento condicional ordinário, após execução de metade da pena aplicada; c)o livramento condicional extraordinário, após execução de dois terços da pena aplicada.

Art. 83. 0 ju i^ poderá conceder livramento condiáonal ao condenado a pena privativa de liberdade igual ou superior a2 (dois) anos, desde que:

25 Ver BITENCOURT, Tratado de direito penal (parte geral), 2003, 8a edição, p. 641; CIRINO DOS SANTOS, Direito Penal (a nova parte geral), 1985, p. 258.

26 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1997, §79, II, n. 1, p. 849.

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Teoria da Pena Capítulo 22

I — cumprida mais de um terço da pena se o condenado não f o r reincidente em crime doloso e tiver bons antecedentes;

II — cumprida mais da metade se o condenado fo r reinddente em crime doloso;

III — comprovado comportamento satisfatório durante a execução da pena, bom desempenho no trabalho que lhe f o i atribuído e aptidão para própria subsistênda mediante trabalho honesto;

IV — tenha reparado, salvo efetiva impossibilidade de fa^ê-lo, o dano causado pela infração.

Vc umpr i d o mais de dois terços da pena, nos casos de con­denação p or crime hediondo, prática da tortura, tráfico ilídto de entorpecentes e drogas afins, e terrorismo, se o apenado não fo r reinddente específico em crimes dessa natureza.

Parágrafo único. Para o condenado p or crime doloso, co­metido com violênda ou grave ameaça à pessoa, a concessão do livramento ficará também subordinada ã constatação de condições pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a delinqiiir.

Como se vê, a concessão do livramento condicional depende de pressupostos gerais e de pressupostos espedficos definidos na lei penal.

1.1. Pressupostos gerais

Os pressupostos gerais do livramento condicional podem ser objetivos e subjetivos, como se indica:

a) os pressupostos gerais objetivos são os seguintes: 1) aplicação de pena privativa de liberdade igual ou superior a 2 (dois) anos (art. 83, CP); 2) reparação do dano produzido pelo crime — exceto impos­

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Capítulo 22 Os Substitutivos Penais

sibilidade pessoal (art. 83, IV, CP);

b) os pressupostos gerais subjetivos são os seguintes: 1) compor­tamento satisfatório durante a execução institucionalizada da pena;2) bom desempenho no trabalho atribuído; 3) capacidade de subsis­tência em atividade lícita no mercado de trabalho (art. 83, III, CP); 4) no caso de condenado por crime realizado com violência pessoal real ou ameaçada, comprovação complementar de condições pessoais justiíicadoras da presunção negativa de reincidência.

O comportamento satisfatório e o bom desempenho no trabalho durante a execução institucionalizada da pena são duplamente subjeti­vos: subjetivos em relação ao beneficiário — sujeito do comportamento e do desempenho no trabalho — e subjetivos em relação à autoridade da prisão, sujeito da avaliação do comportamento satisfatório e do bom desempenho no trabalho durante a execução da pena — na prática, uma fonte de arbítrio incontrolável.

No caso de condenados por crime realizado com violência pesso­al, real ou ameaçada, a concessão do livramento condicional depende de prognose de comportamento legal futuro do beneficiário, como presunção negativa de reincidência criminal. Mas é preciso lembrar: a prognose de comportamento legal não significa nenhum juízo de elevada probabilidade de comportamento futuro livre de crimes — nem exige exame criminológico, hoje mera faculdade judicial;27 ao contrário, a doutrina atual aconselha a concessão do benefício fundada em razões de prevenção especial' mesmo na hipótese de dúvida sobre a possibilidade de reincidência—, com plena aplicação do princípio in dubiopro reo, porque a certeza dos efeitos danosos da prisão prevalece sobre inevitáveis dúvidas em relação ao comportamento futuro do beneficiário.28

27 Assim, decisão do Superior Tribunal de Justiça (RHC 15.263/PR, 5a Turma, DJ 07/06/2004), ReL Min. FELIX FISCHER.

28 JESCHECKt^WEIGEND, Lehrbuch âesStrajrechts, 1997, §79,I,n.4c,p. 836-837 e II, n. 4,p. 851;FRISCH, Dogpiaáscbe Grundlqgen derbeãngen LLntkssung ZStW 102 (1990), p. 721 e 736-739.

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Teoria da Pena Capítulo 22

1.2. Pressupostos específicos

Os pressupostos específicos do livramento condicional têm por objeto as espécies de livramento condicional, assim indicados:

a) o livramento condicional espeáal pressupõe (1) execução de um terço da pena privativa de liberdade aplicada, (2) primariedade em crime doloso e (3) bons antecedentes;

b) o livramento condicional ordinário pressupõe (1) execução de metade da pena privativa de liberdade aplicada e (2) reincidência em crime doloso;

c) o livramento condicional extraordinário pressupõe (1) execução de dois terços da pena, (2) condenação por crime hediondo, prática de tortura, tráfico de drogas e terrorismo e (3) ausência de reincidência específica nesses crimes.

1. Os conceitos de primariedade e de reinádênáa possuem estrutura técnica precisa, mas o conceito de bons antecedentes do livramento con­dicional espeáal.' também precisa ser analisado na ótica das alternativas da prática judicial: a) a posição tradicional considera maus antecedentes a existência de inquéritos, de processos criminais, de absolvições por falta de provas, de extinção do processo por prescrição abstrata, retroativa ou intercorrente e de condenação criminal sem trânsito em julgado;29 b) a posição crítica considera maus antecedentes somente condenações criminais definitivas anteriores que não configurem reincidência, excluindo outras hipóteses — a teoria mais compatível com o princípio da presunção de inocênáa (art. 5o, LVII, CR).30

2. Por outro lado, a literatura é imprecisa sobre o momento de existênáa dos bons antecedentes exigidos pela lei: a) deveriam ser contemporâneos

29 Comparar FERREIRA, Aplicação da pena , 1995, p. 83-85.30 Nesse sentido, BOSCHI, Das penas e seus critérios de aplicação, 2000, p. 208; BUENO

DE CARVALHO e CARVALHO, Aplicação da pena e garantismo, 2002, 2a edição, p. 49-50.

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Capítulo 22 Os Substitutivos Venais

ao crime e reconhecidos na sentença, segundo FRAGOSO;31 b) poderiam ser posteriores ao crime, mas anteriores ao início da pena, segundo BITEN­COURT.32 Ambas posições parecem cridcáveis, porque o conceito de antecedentes tem por objeto de referência o fato punível e, portanto, segundo o Direito Penal do fato, designa exclusivamente aconteci­mentos anteriores ao crime.

3. A validade de maus antecedentes é limitada ao prazo de 5 (cinco) anos, por aplicação analógica do prazo de validade da reinádênáa (art. 64 ,1, CP) : afinal, seria inconcebível limitar o prazo de validade da reinádênáa e atribuir validade ilimitada aos maus antecedentes.33

4. Na hipótese de penas privativas de liberdade por infrações penais diversas, admite-se a soma das penas para concessão do benefício.

Art. 84. -As penas que correspondem a infrações diversas devem somar-se para efeito do livramento.

5. O livramento condiáonal também constitui direito subjetivo público do condenado, obrigando o Juiz da execução penal a se pronunciar, mo- tivadamente, sobre a concessão ou denegação do benefício, caracteriza­dos seus pressupostos legais34 —, igualmente sem ignorar a influência decisiva do princípio in dubio p ro reo, porque nenhuma incerteza sobre o comportamento futuro do beneficiário pode prevalecer sobre a certeza dos efeitos danosos da prisão.35

31 FRAGOSO, Lições de direito penal (parte geral), 2003,16a edição, p. 477, n. 389: “Os bons ante­cedentes que a lá exige devem ter ocorrido na época do crime e devem estar reconhecidos pela sentença ”,

32 BITENCOURT, Tratado de direito penal (parte geral), 2003, 8a edição, p. 649: “Devem ser considerados antecedentes, para essa finalidade, aqueles fatos ocorridos antes do início do cumprimento da pena, mesmo que tenham ocorrido após o fa to delituoso que deu origem à prisão... ”

33 Assim, BOSCHI, Daspenas e seus critérios de aplicação, 2000, p. 208; BUENO DE CAR­VALHO e CARVALHO, Aplicação da pena egarantismo, 2002, 2a edição, p. 49-50.

34 Nesse sentido, também FRAGOSO, Lições de direito penal (parte geral), 2003, 16a edição, p. 481, n. 391.

35 FRISCH, Dogmatische Grundlagen der bedingten Entlassung. In: ZStW 102 (1990), p. 721 e 736- 739; JESCHECK/WEIGEND, Uhrbuch des Strafrechts, 1997, §79,1, n. 4 c, p. 836-837.

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Teoria da Pena Capítulo 22

2. Condições de execução

As condições de execução do livramento condicional são fi­xadas pelo Juiz da execução na decisão concessiva do benefício (art. 85, CP e art. 132, LEP) e podem ser classificadas em obrigatórias e

facultativas., assim definidas:

1. As condições obrigatórias do livramento condicional são as seguintes:a) obter, em prazo razoável, ocupação licita; b) comunicar ao Juiz da execução, periodicamente, a ocupação; c) não mudar do território da comarca da execução do livramento condicional sem autorização judicial (art, 132, §1°, LEP).

2. As condições facultativas do livramento condicional são as seguintes:a) não mudar de residência sem comunicação ao Juiz da execução e à autoridade responsável pela observação cautelar e proteção; b) re­colhimento à habitação em horário fixado; c) não freqüentar lugares determinados na decisão concessiva (art. 132, §2.°, LEP).

Art. 85. A. sentença especificará as condições a que ficasubordinado o livramento.

As condições de execução do livramento condicional podem ser modificadas pelo Juiz da execução (de ofício, a requerimento do Mi­nistério Público ou representação do Conselho Penitenciário), ouvido o liberado (art 144, LEP). Durante o prazo do livramento condicional o condenado é submetido à observação cautelar e proteção do Serviço Social Penitenciário, de Patronatos ou de Conselhos de Comunidade, com a finalidade explícita de garantir o cumprimento das condições e de proteger o liberado através de orientação e auxílio (art. 139, LEP).

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Capítulo 22 Os Substitutivos Penais

3. Formalidades de concessão

A concessão do livramento condicional ocorre em solenidade no estabelecimento de execução da pena, com a leitura da sentença concessiva perante o liberando e demais condenados, enfatizando-se as condições de execução especificadas na sentença, que deverão ser formalmente aceitas pelo beneficiário, lavrando-se termo em livro próprio, subscrito pelo presidente da cerimônia e pelo liberando, com a expedição final da carta de livramento, com cópia integral da sentença respectiva (arts. 136 e 137, LEP). Em seguida, o liberando recebe o sal­do do pecúlio, seus pertences pessoais e a caderneta de liberado condiáonal' com sua identificação, o texto impresso do capítulo sobre o livramento condicional, as condições impostas na sentença concessiva e espaço para registro do cumprimento das condições (art. 138, LEP).

4. Revogação

O livramento condicional pode ser revogado pelo Juiz da execu­ção (de ofício, a requerimento do Ministério Público ou representação do Conselho Penitenciário), ouvido o liberado (art. 143, LEP). A lei penal define condutas ou fatos determinantes de revogação obrigatória ou facultativa do benefício, dependendo da natureza do fundamento da revogação.

1. A revogação obrigatória do livramento condicional ocorre na hi­pótese de condenação irrecorrível à pena privativa de liberdade por crime cometido durante ou anterior ao livramento condicional, com as seguintes conseqüências (art. 86,1-II, CP):

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Teoria da Pena Capítulo 22

a) se por crime anterior ao livramento condicional, o período de prova é computado no tempo de cumprimento da pena, com a possibilidade de soma das penas para nova concessão do benefício (art. 141, LEP);

b) se por crime cometido durante o livramento condicional, o período de prova não é computado no tempo de cumprimento da pena privativa de liberdade, e não é possível nova concessão do benefício pela mesma pena (art. 142, LEP).

Art. 86. Revoga-se o livramento, se o liberado vem a ser conde­nado a pena privativa de liberdade, em sentença irrecorrível:

I —por crime cometido durante a vigênáa do beneficio;

II — p or crime anterior, observado o disposto no art. 84, deste Código.

2. A revogação facultativa do livramento condicional pode ocorrer nas hipóteses (a) de descumprimento de condições da sentença concessiva do livramento e (b) de condenação irrecorrível a pena não privativa de liberdade, por crime ou contravenção (art. 87, CP). Nesses casos, se o Juiz da execução não revogar o livramento condicional, poderá advertir o liberado, ou agravar as condições do livramento condicional (art. 140, parágrafo único, LEP).

Art. 87. Ojui^poàerà, também, revogar o livramento, se o liberado deixar de cumprir qualquer das obrigações constantes da sentença, ou fo r irrecorrivelmente condenado, p or crime ou contravenção, a pena que não seja privativa de liberdade.

5. Efeitos da revogação

A revogação obrigatória ou facultativa do livramento condicional

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Capitulo 22 Os Substitutivos Penais

— com exceção de revogação por crime anterior ã concessão do bene­fício (art. 86, II, CP) — exclui nova concessão do subsdtutivo penal e impede a computação do período de prova no tempo de cumprimento da pena aplicada, com a conseqüência de execução institucionalizada integral da pena privativa de liberdade (art. 88, CP).

Art. 88. Revogado o livramento, não poderá ser novamente concedido, e, salvo quando a revogação resulta de condenação p or outro crime anterior àquele benefício, não se desconta na pena o tempo em que esteve solto o condenado.

Contudo, na hipótese de infração penal cometida durante o perí­odo de execução do livramento condicional, admite-se a suspensão do benefício, ouvido o Conselho Penitenciário e o Ministério Público, com a revogação subordinada ao trânsito em julgado da decisão final no processo respectivo, antes da qual não poderá ser declarada extinta a pena (art. 89, CP; art. 145, LEP).

Art. 89. Ojui^não poderá declarar extinta a pena, enquanto não passar em julgado a sentença em processo a que responde o liberado, p or crime cometido durante a vigência do livramento.

6. Extinção da pena

Expirado, sem revogação, o prazo do livramento condicional, extingue-se a pena privativa de liberdade aplicada, cumprindo-se os objetivos poKtico-criminais explícitos do substitutivo penal. A declara­ção judicial de extinção da pena é de competência do Juiz da execução, de ofício, ou por iniciativa do interessado, do Ministério Público ou do Conselho Penitenciário (art. 90, CP; art. 146, LEP).

Art. 90. Se até o seu término o livramento não é revogado, considera-se extinta a pena privativa de liberdade.

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Teoria da Pena Capítulo 22

C) Os substitutivos penais da Lei 9.099/95: a transa­ção p en al e a suspensão condicional do processo

A Lei 9.099/95 instituiu os Juizados Especiais Criminais, com competência para julgar contravenções e crimes com pena máxima abstrata privativa de liberdade até 2 (dois) anos (após o advento da Lei 10.259/01), criando uma causa de extinção da punibilidade e dois substitutivos penais, assim definidos:

a) a conciliação judicial entre autor e vítima, nas hipóteses de ação penal privada ou de ação penal pública condicionada à repre­sentação, constitui causa de extinção da punibilidade do fato (arts. 12-1 A, da Lei 9.099/95);

b) a transaçãopenalentre Ministério Público e autor, nas hipó­teses de ação penal pública condicionada ou incondicionada, constitui substitutivo penal (art. 76 e parágrafos, da Lei 9.099/95);

c) a suspensão condicional doprocesso., em crimes com pena minima cominada até 1 (um) ano de privação de liberdade, dentro ou fora da competência dos Juizados Especiais Criminais, também constitui substitutivo penal (art. 89 e parágrafos, da Lei 9.099/95).

Assim, a conáliação entre autor e vítima em ações penais priva­das ou ações penais públicas condicionadas à representação, com composição dos danos civis homologada pelo Juiz, não é simples substitutivo penal, mas sentença irrecorrível, com eficácia de título executável no juízo cível (art. 74, da Lei 9.099/95), determinando renúncia ao direito de queixa ou de representação (art 74, parágrafo único, da Lei 9.099/95) — logo extingue a punibilidade da infração penal. Entretanto, a transação penal e a suspensão condiáonal do processo constituem verdadeiros substitutivos penais, a seguir estudados.

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Capítulo 22 Os Substitutivos Penais

1. Transação penal

1.1. Conceito

A transação penal é o ato jurídico processual pelo qual o Ministé­rio Público, em hipóteses de ação penal pública condicionada (após frustrada a conciliação), ou de ação penal pública incondicionada — e se não for caso de arquivamento —, propõe ao autor da infração (e seu defensor) a imediata aplicação de pena restritiva de direitos ou multa, de natureza substitutiva da pena privativa de liberdade abstrata até 2 (dois) anos (art. 76 e parágrafos, da Lei 9.099/95).

Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplica­ção imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.

1.2. Requisitos da transação penal

Os requisitos exigidos para a transação penal são de natureza penal e processual penal e podem ser classificados em positivos e negativos, conforme admitam ou excluam o substitutivo penal.

1.2.1. Requisitos positivos

Os requisitos positivos da transação penal têm por objeto a extensão da pena privativa de liberdade cominada ao crime e a natureza da ação penal, assim definidos: a) pena máxima cominada até 2 (dois) anos de privação de liberdade; b) crime de ação penalpública condicionada ou incondicionada.

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Teoria da Pena Capítulo 22

a) Pena máxima cominada até 2 (dois) anos de privação de li­berdade. A pena máxima cominada igual ou inferior a 2 (dois) anos de privação de liberdade define as infrações de menor potenáal ofensivo, de competência dos Juizados Especiais Criminais, instituídos pela Lei 9.099/95 e ampliados pela Lei 10.259/01, que podem ser objeto de transação penal.

b) Crime de ação penalpública. O crime objeto da transação penal deve ser de natureza pública incondicionada ou condicionada — neste caso, com a necessária representação da vítima ou representante legal. Não obstante, a jurisprudência tem admitido transação penal em ações penais privadas.

1.2.2. Requisitos negativos

Os requisitos negativos da transação penal determinam a exclusão do substitutivo penal, com imediata proposição da ação penal, e estão expressamente definidos em lei:

a) Condenação definitiva do autora pena privativa de liberdade por crime. A exigência legal se desdobra em três aspectos principais:1) a sentença condenatória anterior deve ser definitiva, ou seja, não pode mais ser modificada por meio de recursos; 2) a condenação deve ser a pena privativa de liberdade, ou seja, a pena de multa ou a substituição da pena privativa de liberdade aplicada por pena restritiva de direitos não exclui a transação penal; 3) a condenação anterior deve ser por crime e, portanto, condenação por contravenção não exclui a transação penal. Em qualquer caso, a condenação definitiva anterior a pena privativa de liberdade por crime não exclui o benefício após o decurso do prazo de 5 (cinco) anos entre o cumprimento ou extinção da pena e o crime objeto de transação, porque se a reincidência prescreve em 5 (cinco) anos (art. 64,1, CP), então obstáculo fundado na reincidência não pode prevalecer após esse prazo.

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Capítulo 22 Os Substitutivos Penais

b) Obtenção de igual benefício nos últimos 5 (cinco) anospelo acusado. O prazo de 5 (cinco) anos, definido pelo legislador como prazo de prescrição da reincidência criminal (art. 64, CP), também exclui os efeitos impeditivos da transação penal anterior.

c) Os antecedentes, a conduta social e apersonalidade do autor, além dos motivos e circunstâncias do fato, contra-indicarem a necessidade e suficiência da medida. A transação penal não exige que os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, os motivos e circunstâncias do fato indiquem a necessidade e sufiáênáa da medida, no sentido de fundamentarem uma prognose favorável à transação penal; ao contrário, basta a neutralidade desses elementos, de modo que a exclusão da transação penal pressupõe prognose desfavorável fundada naqueles elementos — ou seja, aqueles elementos devem contra-indicar a necessidade e a sufiáência da medida para excluir a transação penal.

Por outro lado, o conteúdo desses conceitos deve ser definido na ótica crítica descrita no capítulo sobre aplicação da pena: por exem­plo, somente podem ser considerados maus antecedentes as condenações criminais definitivas anteriores que não configurem reincidência, porqueo princípio da presunção de inocênáa exclui todas as outras hipóteses (art. 5o, LVII, CR).36

Finalmente — e de novo contrariando tendência repressiva da literatura penal brasileira37—, a avaliação dos antecedentes, da conduta social, da personalidade do agente, dos motivos e das circunstâncias do fato na transação penal\ que devem fundamentar prognose desfa­vorável para excluir o substitutivo penal, é decidida pelo princípio in

36 Assim, BOSCHI, Daspenas e seus critérios de aplicação, 2000, p. 208; BUENO DE CAR­VALHO e CARVALHO, Aplicação da pena e garantismo, 2002, 2a edição, p. 49-50.

37 Ver, por exemplo, BITENCOURT, Tratado de direito penal (parte geral), 2003,8a edição, p. 586: “No entanto, considerando o grande alcance desse novo instituto, deve-se agir com mais cautela na análise desse requisito; como aconselha Jescheck, o risco a assumir; nessas hipóteses, deve ser prudencial, e, diante de sérias dúvidas, recomenda sua não-concessão. ”

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Teoria da Pena Capítulo 22

dubiopro reo, que autoriza a transação penal mesmo em face de incerteza sobre o comportamento futuro do acusado — com maior razão ainda do que no sursis, benefício fundado em prognose favorável daquelas circunstâncias.38d) Rejeição da transação pelo acusado ou defensor. A transação penal constitui ato jurídico processual de negociação entre o Ministério Público e o autor da infração penal, cuja validade é excluída por quais­quer vícios ou defeitos que determinam nulidade ou anulabilidade dos atos jurídicos, em geral. O ato consensual da transação penal pressupõe a aceitação do acusado e do defensor do acusado, como manifestação de vontade livre e consciente de ambos, no sentido de vontade não viciada por erro, dolo, coação, simulação ou fraude.

§2° (art 76). Não se admitirá a proposta se ficar comprovado:I — ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime, ã pena privativa de liberdade, p or sentença definitiva;II — ter sido o agente beneficiado anteriormente, no pra^o de5 (ánco) anos, pela aplicação de pena restritiva ou multa, nos termos deste artigo;III— não indicarem os antecedentes, a conduta soáal e a per­sonalidade do agente, bem com os motivos e as árcunstânáas, ser necessária e sufiáente a adoção da medida.§3°. Aceita a proposta pelo autor da infração e seu defensor, será submetida ã apreáação do juifç.§4°. Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo autor da infração, o ju i1.£ aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em ránádênáa, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefiáo no pra^o de 5 (ánco) anos.

38 Nesse sentido, FRISCH, Prognoseentscheidungenim Strafrecht, 1983, p. 49-53; JESCHE­CK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1997, §79,1, n. 4 c, p. 836-837.

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Capítulo 22 Os Substitutivos Penais

1.3. Conseqüências jurídicas da transação penal

Cumprida a pena restritiva de direitos ou paga a pena de multa aplicadas na transação, em substituição da pena privativa de liberdade abstrata até 2 (doisj anos., extingue-se a punibilidade da infração penal. Entretanto, existe controvérsia sobre as conseqüências do descumpri- mento da pena restritiva de direitos ou da falta de pagamento da pena de multa aplicadas na transação, com duas posições na prática forense:

a) a posição dominante opta pela revogação do benefício e ofere­cimento de denúncia, em atenção ao princípio do devido processo legal’ em especial aos princípios do contraditório e da ampla defesa, conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal;

b) a posição minoritária opta pela imediata conversão em privação de liberdade — orientação inconstitucional, porque não existe pena privativa de liberdade aplicada segundo o processo legal devido, ou seja, com observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa; além disso, na hipótese de revogação por falta de pagamento da pena de multa, o art. 51, CP (com a redação da Lei 9.268/96) considera a pena de multa, após trânsito em julgado da sentença condenatória, mera dívida de valor,, excluindo a antiga conversão legal em privação da liberdade e, portanto, revogando o art. 85, da Lei 9.099/95.

2. Suspensão condicional do processo

2.1. Conceito

A suspensão condiáonal do processo é o ato jurídico processual pelo qual o Ministério Público — no momento de oferecimento da denún­cia (segundo a literalidade da lei), ou até a publicação da sentença

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Teoria da Pena Capítulo 22

(segundo a prática forense generalizada), após frustradas a tentativa de conciliação extintiva da punibilidade e a tentativa de transação substi­tutiva da pena — propõe a suspensão condiáonal do processo pelo prazo de2 (dois) a 4 (quatro) anos, em crimes com pena mínima cominada até 1 (um) ano, dentro ou fora da competência dos Juizados Especiais Criminais (art. 89, da Lei 9.099/95).39

A suspensão condiáonal do processo tem pressupostos de concessão, condições de execução e causas de revogação obrigatórias e faculta­tivas.

2.2. Pressupostos de concessão

Os pressupostos de concessão da suspensão condiáonal do processo, examinados isoladamente a seguir, são definidos pela lei (art. 89 e parágrafo único, da Lei 9.099/95): a) crimes com pena mínima comi­nada igual ou inferior a 1 (um) ano; b) ausência de processo criminal ou de condenação por outro crime; c) requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena; d) aceitação da suspensão condiáonal do processo pelo acusado e seu defensor (art. 89, da Lei 9.099/95).

a) Crimes compena mínima cominada igual ou inferior a 1 (um)ano. O substitutivo penal é generoso, porque abrange a maioria dos fatos puníveis definidos na lei penal, cuja pena mínima abstrata é igual ou inferior a 1 (um) ano, incluindo homicídio culposo (exceto na direção de veículo automotor, definido no CTB), lesões corporais graves, omissão de socorro, furto simples, estelionato, apropriação indébita, falsidade ideológica, prevaricação etc. Mais ainda: no caso de tentativa, pode atingir crimes com pena mínima superior a 1 (um) ano, se a redução máxima de2/3 (dois terços) permitida pela tentativa determinar pena

39 Ver MESTIERI, Manual de direito penal (parte geral), 1999, v. 1, p. 297-298.

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Capítulo 22 Os Substitutivos Penais

mínima abstrata dentro do limite legal de 1 (um) ano.

A suspensão condicional do processo constitui instrumento redutor da predação social inútil promovida pela pena criminal, beneficiando especialmente segmentos subalternos e humildes da população bra­sileira; valoriza a constatação criminológica de que as vítimas dessa criminalidade miúda estão mais interessadas em ressarcimento do dano do que em punições; resolve conflitos humanos pela técnica civilizada do consenso, evitando a repressão institucional de sujeitos punidos por condições sociais adversas; contribui para despenalizar conflitos sociais através da desprocessuali^ação de litígios humanos; enfim, realiza parcialmente o ideal do Direito Penal mínimo mediante necessária despenalização — que deve ser estimulada, e não temida40 —, na senda utópica de descobrir qualquer coisa melhor do que o Direito Penal; segundo RADBRUCH.41

b) Ausência de processo criminal ou de condenação por outro crime contra o acusado. Aqui é preciso esclarecer o seguinte: pri­meiro, a condição legal não fere a presunção de inocência, porque ser acusado ou condenado não é idêntico a ser considerado culpado, vedado pelo princípio; segundo, o verbo no particípio passado “não. esteja sendo processado” contém implícito o adjetivo criminal' pela vinculação por conjunção alternativa com a segunda parte da oração “ou não tenha sido condenado p or outro crime” (art. 89, da Lei 9.099/95); terceiro, a eficácia da condenação “por outro crime” não pode ultrapassar o prazo de 5 (cinco) anos de prescrição da reincidência criminal. Logo, dúvidas da literatura sobre essas questões parecem inconsistentes.42

40 É injustificada a preocupação com “despenalização maciça” expressa por penalistas de incontestável orientação democrática, como BITENCOURT, Tratado de direito penal (partegeral), 2003, 8a edição, p. 600-601.

41 RADBRUCH, Filosofia do direito. Coimbra, Armênio Amado Editor, 1961, v. H, p. 97.42 Comparar BITENCOURT, Tratado de direito penal (parte geral), 2003, 8a edição, p.

601-603.

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Teoria da Pena Capítulo 22

c) Requisitos que autorizariam a suspensão condicional dapena.A maioria dos requisitos que autorizariam a suspensão condiãonal da pena é inaplicável à suspensão condiãonal do processo, por contradição direta com seus pressupostos43 — e, portanto, deve ser desconsiderada, como se demonstra:

1) a suspensão condicional da pena tem por objeto penas privativas de liberdade aplicadas até 2 (dois) anos — enquanto a suspensão condi­ãonal do processo tem por objeto crimes com pena mínima privativa de liberdade cominada até 1 (um) ano;

2) a exigência de beneficiário não reincidente em crime doloso da suspensão condiãonal da pena é menor do que o pressuposto de ausência de processo criminal ou de condenação por outro crime da suspensão condiãonal do processo;

3) a possibilidade de aplicação de pena restritiva de direitos exclui a suspensão condiãonal da pena porque é mais favorável ao condenado, mas constitui pena criminal mais grave do que a suspensão condiãonal do processo, que exclui a aplicação de qualquer pena;

4) finalmente, o único requisito da suspensão condiãonal da pena aplicável à suspensão condiãonal do processo: a culpabilidade, os antecedentes, a personalidade, a conduta soãal' os motivos e as ãrcunstânãas do fato — mas o conteúdo desses conceitos deve ser definido na perspectiva crítica desenhada no estudo das ãrcunstânãas judiãais, no processo de aplica­ção da pena (ver Aplicação da pena, acima). A questão dos antecedentes, especialmente, precisa ser examinada na ótica das alternativas da prática judicial: a) a posição tradicional considera maus antecedentes a existência de inquéritos, de processos criminais, de absolvições por falta de provas, de extinção do processo por prescrição abstrata, retroativa ou intercor-

43 Ver a crítica de BITENCOURT, Tratado de direito penal (parte geral), 2003, 8a edição, p. 605-608.

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Capítulo 22 Os Substitutivos Penais

rente e de condenação criminal sem trânsito em julgado; b) a posição crítica considera maus antecedentes somente condenações criminais definitivas anteriores que não configurem reincidência, excluindo outras tiipóteses— a teoria mais compatível com o princípio da presunção de inocência (art. 5o, LVII, CR), que informa todas as situações processuais anteriores ao trânsito em julgado de sentença criminal condenatória.44

Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada fo r igual ou inferior a 1 (um) ano, abrangidas ou não p or esta "Lei, o Ministério Público, ao oferecera denúncia, poderá proporá suspensão do processo, p o r 2 (dois) a 4 (quatro) anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condiáonal da pena (art. 77 do Código Penal).

§7°. Se o acusado não aceitar a propostaprevista neste artigo,o processo prosseguirá em seus ulteriores termos.

2.3. Condições de execução

As condições de execução da suspensão condiáonal do processo po­dem ser legais e judiciais, conforme sejam determinadas pela lei ou especificadas pelo Juiz.

a) As condições de execução legais são as seguintes: a) reparação do dano resultante do crime, salvo impossibilidade; b) proibição de freqüentar determinados lugares; c) proibição de ausentar-se da comarca de residência sem autorização judicial; d) informação e jus­

44 Nesse sentido, BOSCHI, Das penas e seus critérios de aplicação, 2000, p. 208; também, BUENO DE CARVALHO e CARVALHO, Aplicação da pena e garantismo, 2002, 2a edição, p. 49-50.

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Teoria da Pena Capítulo 22

tificação pessoal e mensal das atividades, em Juízo (art. 89, §1°, da Lei 9.099/95).

Art. 89, §1°. Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor; na presença do juh$ este, recebendo a denúncia, poderá sus­pender o processo, submetendo o acusado a período de prova, sob as seguintes condições:

I — reparação do dano, salvo impossibilidade de fa^ê-lo;

I I—proibição de freqüentar determinados lugares;

III — proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do jui%

IV — compareámento pessoal e obrigatório a juí^o, mensal­mente, para informar e justificar suas atividades.

b) As condições de execução judiciais são especificadas pelo Juiz na suspensão condiãonal do processo e devem ser adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado (art. 89, §2°, da Lei 9.099/95)

Art. 89, §2°. O jui^poderá especificar outras condições a que fica subordinada a suspensão, desde que adequadas ao fa to e ã situação pessoal do acusado.

2.4. Revogação

A revogação da suspensão condiãonal do processo, assim como ocorre com outros substitutivos penais, pode ser obrigatória ou facultativa.

1. A revogação obrigatória ocorre nas hipóteses (a) de processo por outro crime no curso do prazo de execução e (b) de injustificada falta de re­paração do dano resultante do crime (art. 89, §3°, da Lei 9.099/95):

Art. 89, §3°. A suspensão será revogada se, no curso do pra^o, o benefiáário vier a serprocessado p or outro crime ou

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Capítulo 22 Os Substitutivos Penais

não efetuar, sem motivo justificado, a reparação do dano.

2. A revogação facultativa pode ocorrer nas hipóteses (a) de processo por contravenção no curso do prazo de execução e (b) de descumprimento de qualquer outra condição de execução imposta (art. 89, §4°, da Lei 9.099/95).

Art. 89, §4°. A. suspensão poderá ser revogada se o acusado vier a ser processado, no curso do pra%o, p or contravenção, ou descumprir qualquer outra condição imposta.

2.5. Extinção da pena

A extinção da punibilidade por suspensão condicional do proces­so ocorre pelo decurso do período de prova, sem revogação do substitutivo penal, mediante declaração judicial (art. 89, §5°, da Lei 9.099/95).

Art. 89, §5°. Expirado o pra%o sem revogação, o ju i\ de­clarará extinta a punibilidade.

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C apítu lo 2 3

M e d id a s d e S e g u r a n ç a

I. A s vias alternativas do Direito Venal brasileiro

O Estado pretende cumprir a tarefa de proteger a comunida­de e o cidadão contra fatos puníveis utilizando instrumentos legais alternadvos: a) penas criminais, fundadas na culpabilidade do autor; b) medidas de segurança, fundadas na periculosidade do autor.1 A utilização alternadva de penas criminais ou de medidas de segurança para controle social de fatos definidos como crimes constitui o sistema dualista alter­nativo do Direito Penal:2 ou penas criminais, ou medidas de segurança— excluída a aplicação simultânea de penas criminais e de medidas de segurança própria do sistema dualista cumulativo, também conhecido como sistema do duplo binário, vigente na lei penal anterior.3

Ao contrário da natureza retributiva das penas criminais, funda­das na culpabilidade do fato passado, as medidas de segurança, concebidas como instrumentos de proteção social e de terapia individual — ou como medidas de natureza preventiva e assistenciais segundo a interpretação paralela do Legislador4 —, são fundadas na periculosidade de autores inim- putáveis de fatos definidos como crimes, com o objetivo de prevenira

1 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §77,1, p. 802-803; tambémWELZEL, Strafrecht, 1969,11a edição, §32, III, p. 244.

2 Ver NAUCKE, Strafrecht, 2000,9a edição, p. 96, n. 26III; também GROPP, Strafrecht,2001, n. 53, p. 61.

3 Comparar FÒPPEL EL HIRECHE, Ajunção dapena na visão de Claus Roxin, 2004, p. 91 -94.4 Ver Exposição de Motivos do Código Penal, n. 87.

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Teoria da Pena Capítulo 23

prática de fatos puníveis futuros.5 Assim, a estrutura dualista alternativa do Direito Penal se erige sobre duas correlações: a) a correlação culpa­bilidade/pena, fundada no passado; b) a correlaçãopericulosidade!medida de segurança, dirigida para o futuro.6

Entretanto, os sistemas dualistas alternativos e cumulativos parecem imersos em crise irremediável — e não somente, nem prin­cipalmente, por causa da correlação culpabilidade!pena do conceito de fato punível.

II. Crise das medidas de segurança

As medidas de segurança detentivas (ou estacionárias) e restritivas (ou ambulantes) possuem idênticos fundamentos metodológicos: a) previsão de crimes futuros, fundada na periculosidade do autor; b) eficácia das medidas de segurança para evitar crimes futuros.

A crise das medidas de segurança decorre da inconsistência desses fundamentos: primeiro, nenhum método científico permite prever o comportamento futuro de ninguém; segundo, a capacidade da medida de segurança para transformar condutas anti-sociais de inimputáveis em condutas ajustadas de imputáveis não está demonstrada.7

O problema começa com a falta de credibilidade do prognóstico de periculosidade criminal: se a medida de segurança pressupõe prognose

5 WELZEL, Strafrecht, 1969,11a edição, §32, III, p. 263.6 NAUCKE, Strafrecht, 2000, 9a edição, n. 26 III, p. 96.7 Nesse sentido, JESCHECK/WTEIGEND, Lxhrbuch des Strafrechts, 1996, §77 ,1, p.

805; também, FRISCH, Prognoseentscheidungen in der strafrechtlichem Praxís, 1994, p. 34 s.; KAISER, Befinden sich die kriminalrechtlichen Massregeln in derKrise? 1990, p. 16; do mesmo, Kriminologie, 1993, 9a edição, p. 555-570.

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Capítulo 23 Medidas de Segurança

de comportamento criminoso futuro, então inconfiáveis prognósticos psiquiátricos produzem conseqüências destruidoras, porque podem determinar internações perpétuas — em condições gerais ainda piores do que as da execução penal.8 Na verdade, parece comprovada a tendência de supervalorização da periculosidade criminal no exame psiquiátrico, com inevitável prognose negativa do inimputável9 —, assim como, por outro lado, parece óbvia a confiança ingênua dos operadores jurídi­cos na capacidade do psiquiatra de prever comportamentos futuros de pessoas consideradas inimputáveis, ou de determinar e quantificar a periculosidade de seres humanos.10

Em resumo, a crise das medidas de segurança estacionárias é a crise da prognose de periculosidade e da eficácia da internação para transformar condutas ilegais de inimputáveis em condutas legais de imputáveis. A inconsistência desses pressupostos explica a convicção generalizada sobre a necessidade de redução radical das medidas de segurança estacionárias.n Assim, por exemplo, a prognose de crimes de bagatela, ou de crimes patrimoniais não violentos não justificaria a aplicação de medida de segurança privativa de liberdade,*12 igualmente, a prognose de crimes futuros indeterminados ou de crimes futuros possíveis não legitimaria a internação compulsória em instituições psiquiátri­cas.13 Em todos esses casos, a aplicação de medida de segurança esta­cionária infringe o princípio da proporcionalidade, porque não têm relação nem com o tipo de injusto realizado, nem com a objetividade da prognose

8 KAISER, Kriminologie, 1993, 9a edição, p. 569.9 KAISER, Kriminologie, 1993, 9a edição, p. 569.10 KAISER, Kriminologie, 1993,9a edição, p. 569.11 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §77,1, p. 805.12 Nesse sentido, a jurisprudência atual dos Tribunais alemães, cf. JESCHECK/WEI­

GEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §77,1, nota 16, p. 805.13 DREHER/TRÕNDLE, Strajgeset%buch und Nebengeset^e, 1995,47a edição, §61,3.

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Teoria da Pena Capítulo 23

de fatos criminosos futuros;14 ao contrário, somente a probabilidade de fatos puníveis relevantes, caracterizados por violência ou ameaça de violência contra a pessoa, poderia justificar a aplicação de medidas de segurança privativas de liberdade contra inimputáveis.15

III. Medidas de segurança na legislação pena l brasileira

No Direito Penal contemporâneo, a subordinação das medidas de segurança ao princípio da legalidade é parcial, porque apenas as di­mensões de lexscripta (proibição do costume), de lexstricta (proibição de analogia) e de lex certa (proibição de indeterminação) são admitidas, mas parece geral a exclusão da dimensão de lexpraevia (proibição de retroatividade). Na Alemanha, por exemplo, as medidas de segurança são regidas pelo princípio da proporcionalidade, com subordinação limi­tada às dimensões de lei escrita, de lei estrita e de lei certa do princípio da legalidade — excluída a dimensão de lei prévia, característica do tipo de injusto.16

No Brasil, a literatura dominante rejeita essa submissão parda l e propõe a subordinação integral das medidas de segurança ao prindpio da legalidade, para reduzir lesões de direitos individuais vinculadas à sua aplicação.17 O argumento geral pode ser assim resumido: o prindpio da

14 Ver WELZEL, Strafrecht, 1969, 1 Ia edição, §35, p. 263.15 Nesse sentido, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §77,1, nota

16, p. 805, afirma que os Tribunais alemães, desde muito tempo, deixaram de aplicar medidas de segurança detentiva por delitos de bagatela.

16 Ver JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §77,15, p. 804; STRA- TENWERTH, Strafrecht, 2000, n. 12, p. 51.

17 Assim, FLAVIO GOMES, Duração das medidas de segurança. Im Revista dos Tribunais, 701/268;também BITENCOURT, Tratado de ámtopenal (partegeral),2003, p. 681-682; DOT1T, Dimto penal parte gral), 2003, p. 627, a 15; MESTTERL, Manual de dimtopenal (partegeral), 1999, voL 1, p. 310; REGIS PRADO, Curso de dimtopenal brasileiro, 2004, v. 1, p. 691.

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Capítulo 23 Medidas de Segurança

legalidade (a) como lexpraevia, proíbe aplicação retroativa de medida de segurança contra autores inimputáveis de tipos de injusto, (b) como lex scripta, proíbe aplicação de medida de segurança fundada no costume, (c) como lex stricta, proíbe aplicação de medida de segurança fundada em analogia prejudicial ao autor e (d) como lex certa, proíbe a existência de medidas de segurança indeterminadas ou indefinidas.

Não há dúvida, a legalidade das medidas de segurança, como conse­qüência jurídica da prognose de periculosidade criminal de autor inimputá- vel, é tão importante quanto a legalidade das penas, como conseqüência jurídica da realização de tipo de injusto por autor imputável; por outro lado, a legalidade do pressuposto de tipo de injusto para aplicação de medidas de segurança a autores inimputáveis, é idêntica à legalidade do pressuposto do tipo de injusto para aplicação de penas a autores imputáveis, ou seja, a realização de ação típica e antijurídica concreta.

Mas a posição da literatura brasileira constitui, na melhor das hipóteses, a expressão de sentimentos pessoais dos autores: não existe nenhuma norma que vincule as medidas de segurança ao princípio da legalidade na lei penal brasileira, como existe em relação a crimes e penas, por exemplo. Mais do que isso, a disciplina legal das medidas de segurança na lei penal brasileira é deficiente: a) primeiro, as medi­das de segurança não são formalmente subordinadas ao princípio da legalidade; b) segundo, os pressupostos de aplicação das medidas de segurança não são definidos em lei: a realização do tipo de injusto e a periculosidade criminal do autor. Por exemplo, sabe-se que pressuposto da medida de segurança é fa to previsto como crime por dedução do teor do art. 97, segunda parte (“se, todavia, o fa t o p r e v i s t o c o m o c r im e fo r punível com detenção, poderá o ju i% e sabe-se que periculosidade éoutro pressuposto da medida de segurança por inferência do art. 97, §1° ( “A. internação, ou tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto nãofor averiguada, mediante perícia médica, a c e s s a ç ã o d a p e r i c u lo s id a d e . ”).

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Teoria da Pena Capítulo 23

Não obstante — e por óbvias e indiscutíveis razões políticas e práticas —, parece indispensável pressupor a plena regência do princípio da legalidade sobre as medidas de segurança, tomando como modelo os crimes e as penas, na linha proposta pela literatura dominante.

1. Pressupostos das medidas de segurança

A aplicação de medidas de segurança depende da existência de dois pressupostos legais, cuja existência simultânea constitui garantia individual: a) a realização de fato previsto como crime,; b) a periculosidade criminal do autor, por inimputabilidade penal.18

1.1. A realização de fato previsto como crime

O pressuposto de fa to previsto como crime significa tipo de injusto, como ação típica e antyurídica concreta que, em conjunto com o conceito de culpabilidade, integra o conceito de fato punível.19 Parece necessário identificar o significado defato previsto como crime com o conceito de tipo de injusto, porque o inimputãvel pode realizar ações típicas justificadas por legítima defesa, estado de necessidade ou outra causa de exclu­são da antijuridicidade, cuja presença descaracteriza o tipo de injusto e, assim, exclui o pressuposto das medidas de segurança.20 Sobre essa questão, existe controvérsia: um segmento da literatura brasileira

18 Ver BUSATO/HUAPAYA, Introdução ao direito penal (fundamentos para um sistema penal democrático), 2003, p. 258: “A s mais modernas legislações jurídico penais estabelecem sua referenda à realização de um “injusto típico ” e à “periculosidade criminal”, respectivamente, como pressupostos e como fundamentos das medidas de segurança. ”

19 CIRINO DOS SANTOS, A moderna teoria do fa to punível.’ 2004, p. 199.20 Comparar BUSATO/HUAPAYA, Introdução ao direito penal (fundamentos para um

sistema penal democrático), 2003, p. 258-260.

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Capítulo 23 Medidas de Segurança

exclui medidas de segurança em hipóteses de erro de proibição inevitá­vel ou de inexigibilidade de comportamento diverso de autores inimputáveis, sob o mesmo argumento de isenção de pena de autores imputáveis21 Não obstante, a pergunta sobre a capacidade de autor inimputável atuar em erro de proibição ou em situações de exculpação parece ter resposta negativa: se o defeito do aparelho psíquico do inimputável significa incapacidade intelectual de “entender o caráter ilíáto do fa to” ou incapacidade volitiva de “determinar-se de acordo com esse entendimento ”, então o inimputável não pode ter conheámento da proibição, ou não pode determinar-se pelo conhecimento da proibição—estados psíquicos pressupostos no erro deproibição —, nem pode possuir dirigibiãdade normativa—estado psíquico pressuposto na exigibilida­de de comportamento diverso, excluído ou reduzido nas situações de exculpação. Logo autores inimputáveis por incapaádade penal determinada por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, não podem atuar em erro de proibição excludente ou redutor da culpabilidade, nem agir em situações de exculpação, excludentes ou redutoras da dirigibilidade normativa, que fundamenta a exigibilidade de comportamento diverso.22

1.2. A periculosidade criminal do autor

A periculosidade criminal do autor, como fundamento das medidas

21 Nesse sentido, BITENCOURT, Tratado de direito p ena l (parte geral), 2003, 8a edição, p. 682: “E indispensável que o sujeito tenha praticado um ilícito típico. Assim, deixará de existir esseprimeiro requisito se houver, p o r exemplo, excludentes de criminalidade, excludentes de culpabilidade (como èrro de proibição invencível, coação irresistível e obediência hierárquica, embriague£ completa fortuita ou p o r força maior) — com exceção da imputabilidade —, ou ainda se não houver prova do crime ou da autoria etc. Resumindo, a presença de excludentes de criminalidade ou de culpabilidade e a ausência de prova impedem a aplicação de medida de segurança ”

22 Ver CIRINO DOS SANTOS, A moderna teoria do fa to punível\ 2004, p. 213-216.

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Teoria da Pena Capítulo 23

de segurança,23 pode ser o resultado de presunção legal (arts. 26 e 97, CP) ou de determinaçãojudiáal (arts. 26, parágrafo único, e 98, CP).

a) A p r e s u n ç ã o l e g a lde periculosidade criminal. A presunção legal de periculosidade criminal de autores inimputáveis de tipo de injusto exprime a prognose de futura realização de fa to previsto como crime, por indivíduos portadores de doença mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado, excludente da capacidade de conhecer o caráter ilícito do fato ou de determinar-se conforme esse conhecimento (art. 26, CP).

Art. 26. E isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de en­tender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

b) A d e t e rm in a çã o ju d i c i a l de periculosidade criminal. A deter­minaçãojudiáal de periculosidade criminal exprime a prognose de futura realização de fatos previstos como crimes por autores semi-imputáveis de tipos de injusto, portadores de perturbação da saúde mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, condicionante de incapaádade paráal de conhecer o caráter ilícito do fato ou de determinar-se conforme esse conhecimento (art. 26, parágrafo único, CP), considerados como necessitados de “especial tratamento curativo ” (art. 98, CP).

Art. 26, parágrafo único. A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capa^ de entender o caráter ilíáto do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Em regra, os semi-imputáveis possuem capaádadepenal’ são pe­

23 Nesse sentido, BUSATO/HUAPAYA, Introdução ao direito pena l (fundamentospara um sistema pena l democráticoj, 2003, p. 260-261.

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Capítulo 23 Medidas de Segurança

nalmente responsáveis e puníveis com redução de um a dois terços da pena; por exceção, na hipótese de necessidade de especial tratamento curativo (art. 98, CP), a pena privadva de liberdade pode ser substituída por medida de segurança — hipótese de aplicação do sistema vicariante no direito brasileiro, caracterizado pela substituição recíproca entre penas e medidas de segurança.

Art. 98. Na hipótese do parágrafo único do art. 26 deste Código e necessitando o condenado de especial tratamento curativo, a pena privativa de liberdade pode ser substituída pela internação, ou tratamento ambulatorial, pelo pra%o mí­nimo de 1 (um) a 3 (três) anos, nos termos do artigo anterior e respectivos §§1°a 4o.

2. Objetivos das medidas de segurança

As medidas de segurança são instituídas para realizar os objetivos explícitos (a) de tratamento psiquiátrico compulsório de autores inimputá- veis de tipos de injusto, portadores de periculosidade criminal presumida (art. 26 e parágrafo-único, CP) — com exceção da hipótese de determinação

jud iáa l (art. 98, CP) — e (b) de segurança soáal de natureza estaáonária (internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico) ou ambulante (tratamento ambulatorial) desses autores.

Assim, as medidas de segurança teriam por objetivo possibilitar ações ou intervenções psiquiátricas ao nível do sistema límbico da personalidade de autores inimputáveis, como centro das emoções e da vida afetiva individual,-segundo a Psiquiatria, ou ao nível do ego e do superego do apa­relho psíquico, segundo a Psicanálise, (a) no interesse do autor,; para ampliaro controle das pulsões instintuais do id, como energia psíquica regida

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661

Teoria da Pena Capítulo 23

pelo princípio do prazer, e (b) no interesse da sociedade, para impedir ações anti-sociais de autores inimputáveis de fato previsto como crime, mediante internação hospitalar ou tratamento ambulatorial compulsórios.

3. Espécies de medidas de segurança

A legislação penal brasileira define duas espécies de medidas de segurança, aplicáveis aos autores inimputáveis de tipos de injusto, porta­dores de periculosidade criminal presumida (regra), ou aos semi-impu­táveis considerados perigosos por determinação jud iáa l (exceção): a) a medida de segurança estaáonária de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico (art. 96, I, CP); b) a medida de segurança ambulante de tratamento ambulatorial (art. 96, II, CP).

Art. 96. A.s medidas de segurança são:

I — internação em hospital de custódia e tratamento psiquiá­trico ou, a falta, em outro estabeleámento adequado;

II— sujeição a tratamento ambulatorial.

A distribuição de autores inimputáveis (ou semi-imputáveis, necessi­tados de tratamento curativo) de fato previsto como crime pelas duas espécies de medidas de segurança depende da natureza da pena cominada no dpo de injusto realizado, conforme as seguintes correlações legais (art. 97, CP): a) reclusão determina internação; b) detenção determina tratamento ambulatorial.

Art. 97. Se o agente fo r inimputável, o ju i determinará sua internação (art. 26). Se, todavia, o fato previsto como crime fo r punível com detenção, poderá o ju i^ submetê-lo a tratamento ambulatorial.

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Capítulo 23 Medidas de Segurança

3.1. Hospital de custódia e tratamento psiquiátrico

A internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico tem por objetivo (a) proteger a sociedade contra ações anti-sociais futuras de doentes mentais graves, autores de ja to previsto como crime., e (b) submeter o portador de doença mental internado a tratamento psiquiátrico compulsório.24

Entretanto, a medida de segurança estaáonária de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico deve se fundar em prognose de fatos puníveis com violência grave ou ameaça de violência: é in­suficiente a cominação de pena de reclusão no tipo de injusto realizado, porque a prognose de crimes de bagatela ou de crimes patrimoniais como furto e estelionato, por exemplo, não justifica aplicação de medida de segurança estacionária, na linha da melhor doutrina contemporânea.25 Na verdade, a crise da medida de segurança estaáonária não se limita à inconsistência da prognose de comportamentos anti-sociais futuros, nem à ineficácia do tratamento psiquiátrico para transformar o compor­tamento anti-social futuro de inimputáveis em comportamento ajusta­do, mas envolve o próprio conceito de doença mental que engendrou a Psiquiatria como especialidade científica: existe profundo dissenso na Psiquiatria sobre o conceito de doença mental, ou sobre os estados de anormalidade psíquica definíveis como doença mental.26

Além disso, o problema dos direitos humanos nas instituições psiquiátricas — ainda mais grave do que nas instituições penitenciárias —, explica a angústia da literatura penal contemporânea, expressa na

24 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §77, II, n 1, p. 806.25 Assim, FRISCH, Die Massregeln der Besserung und Sicherung im strafrechtlichen Rzchtjòl-

gensystem. In: ZStW 102 (1990), p. 384-386; também JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §77,1, n. 5 b, p. 805.

26 Ver SZASZ, The myth o f menthalillnéss, 1975, p. 12.

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Teoria da Pena Capítulo 23

questão de JESCHECK/WEIGEND:27 se a internação de autores defatos puníveis portadores de doença mental ou de anormalidade psíquica em instituições apropnadas— pense-se espeáalmente nos psicopatas, que integram o conceito de “outras graves anomalias psíquicas” —, não produziria melhores resultados do que a internação em hospitais psiquiátricos ?

3.2. Tratamento ambulatorial

A medida de segurança de tratamento ambulatorial também tem por objedvo (a) proteger a sociedade contra ações anti-sociais futuras de autores inimputáveis de fato previsto como crime, mas com a diferença essencial (b) de realizar tratamento psiquiátrico ambulante do portador de doença mental — com óbvias vantagens para o interessado e para a sociedade.

Aqui, é preciso enfatizar: a cominação legal de pena de detenção no tipo de injusto realizado é fundamento sufláente para aplicar medida de segurança ambulante ao portador de doença mental, por todas as razões indicadas. Afinal, a cominação de pena de detenção indica pre­cisamente aquela criminalidade de bagatela, cuja prognose não autoriza a aplicação de medida de segurança estacionária, conforme a doutrina mais autorizada. Além disso, nenhuma disposição legal impõe critérios subjetivos adicionais para aplicar a medida de segurança de tratamento ambulatorial’ como “condições pessoais” ou prévia “compatibilidade” do agente etc., sugeridos por prestigiados penaüstas.28

27 JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, §77,1, p. 807.28 Assim, pòr exemplo, BITENCOURT, Tratado de direito penal, 2003,8a edição, p. 683-

684: “O tratamento ambulatorial é apenas umapossibilidáê&^te as circunstâncias pessoais e fáticas indicarão ou não a sua conveniência. A. punibilidade com pena de detenção, p o r si só, não é sufiáente para determinar a conversão da internação em tratamento ambulatorial. E necessário examinar as condições pessoais do agente para constatar a sua compatibilidade ou incompatibilidade com-a medida mais liberal. Claro, se tais condições forem favoráveis, a substituição se impõe. ”

664

Capítulo 23 Medidas de Segurança

A questão é simples: a pena de detenção determina o tratamento ambulatorial (art. 97, CP); depois, durante a execução do tratamento ambu­latorial.' poderá o juiz determinar a internação, se necessário para fins curativos (Art. 97, §4°, CP), ou em caso de incompatibilidade com a medida (art. 184, LEP).

4. Duração das medidas de segurança

O prazo de duração mínimo das medidas de segurança de in­ternação ou de tratamento ambulatorial é de 1 (um) a 3 (três) anos (art.97, §1°, CP): a desinternação, na medida de segurança estacionária, ou a liberação, na medida de segurança ambulante, dependem da cessação do estado de periculosidade criminal.' verificado por perícia médica (art. 97,§2°, CP) — um acontecimento futuro e imprevisível. Por essa razão, o prazo de duração máximo das medidas de segurança estacionária ou ambulante é indeterminado.

Art 97, §1 °. A. internação ou tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto não fo r averi­guada, medianteperíáa médica, a cessação de periculosidade.O pra%o mínimo deverá ser de 1 (um) a 3 (três) anos.

A duração indeterminada das medidas de segurança estacionárias significa, freqüentemente, privação de liberdade perpétua de seres humanos, o que representa violação da dignidade humana e lesão do princípio da proporcionalidade, porque não existe correlação possível entre aperpetuidade da internação e a inconfiabilidade do prognóstico de peri- V ^ culosidade criminal do exame psiquiátrico. Esse problema é geral: na Alemanha, por exemplo, a principal medida de segurança estaáonária— precisamente, a internação em hospitalpsiquiátrico (§63, CP alemão) —,

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Teoria da Penat

Capítulo 23

tem prazo ilimitado de duração. Hoje, a lesão de direitos e garantias individuais resultante da indeterminação das medidas de segurança esta­cionárias é reconhecida até mesmo pela Criminologia etiológica — por exemplo, KAISER:29 ‘Assim como a medida da pena é limitada pelo princípio da culpabilidade, a imposição de medida de segurança somente é permitida na proporção em que o sofrimento ligado a ela n ã o e s t á fo r a d e r e la ç ã o com a periculosidade do autor. ”

No Brasil, a literatura especializada,30 bem como projetos de reforma da legislação penal,31 fundados nos princípios constitucionais da dignidade humana e da proporcionalidade, vinculam a duração máxima das medidas de segurança aplicadas ao máximo da pena privativa de liberdade cominada ao fato punível praticado. Contudo, jurisprudência recente adota critério melhor: o limite máximo da medida de segurança aplicada deve coincidir com a pena criminal aplicável no caso concreto, se o autor fosse imputável.32 Afinal, é preciso arrancar do portal do manicômio judiciário, hoje com a denominação eufemística de hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, o aviso colocado por Dante na entrada do Inferno: lasciate ogni speran^a, voi ch’entrate..33

A verificação de existência da periculosidade criminal' como fun­damento de aplicação da medida de segurança — ou de persistência da pe­riculosidade criminal, como condição de continuidade, ou de cessação da periculosidade criminal, como condição de extinção da medida de

29 KAISER, Kriminologie, 1993, 9a edição, p. 611.30 FLÁVIO GOMES, Duração das medidas de segurança. In: Revista dos Tribunais,

701/268; BUSATO/HUAPAYA, Introdução ao direito pena l (fundamentos para um sistema penal democrático), 2003, p. 262.

31 Assim, o Projeto de reforma da parte geral do Código Penal: “A rt 98. O tempo de duração da medida de segurança não será superior ã pena máxima cominada ao tipo legal de crime.

32 Assim, a 5a Câmara Criminal do TJRS, Apelação-crime 70010817724/2005, Rel. Des. AMILTON BUENO DE CARVALHO.

33 ALIGHIERI, La Divina Commedia (Canto Ter%o, 9). Milano, Ulrico Hoepli, Editore— Libraio.

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Capítulo 23 Medidas de Segurança

segurança —, é realizada por perícia médica (art. 97, §1°, CP), em três momentos disdntos: primeiro, no curso do processo criminal, para determinar a inimputabilidade penal; depois, no final do prazo mínimo (de 1 a 3 anos); enfim, anualmente, na hipótese normal de persistência da periculosidade, ou em qualquer tempo, se determinada pelo juiz (art. 97, §2°, CP).

Art. 97, §2°. A. perícia médica realizar-se-á ao termo do pra^p mínimo fixado e deverá ser repetida de ano em ano, ou a qualquer tempo, se o determinar o ju iz da execução.

5. A verificação de cessação da periculosidade cri­minal

Em regra, o exame de verificação de cessação da periculosidade cri­minal realizado no final do prazo mínimo, observa o seguinte procedi­mento: a) a autoridade administrativa remete ao Juiz da execução, com antecedência de 1 (um) mês da expiração do prazo, relatório instruído com laudo psiquiátrico, para decisão sobre revogação ou permanência da medida de segurança; b) a decisão judicial, precedida de audiência do Ministério Público e do curador ou defensor do interessado, deve ser proferida dentro de 15 dias (art. 175,1-VT, LEP).

Por exceção, o exame de periculosidade criminal pode ser reali­zado durante o prazo mínimo, mediante requerimento fundamentado do Ministério Público ou do interessado, observado idêntico procedi­mento, também válido para exames sucessivos (arts. 176-177, LEP).

Finalmente, a desinternação hospitalar ou a liberação do tratamento ambulatorial, por cessação do estado de periculosidade criminal determi­nante da medida de segurança, é condiãonal durante o prazo de 1 (um) ano após a desinternação hospitalar ou a liberação ambulatorial: a reali­

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Teoria da Pena Capítulo 23

zação de fato indicativo da persistência da periculosidade criminal durante esse prazo, determina a reaplicação da medida de segurança exdnta (art. 97, §3°, CP), com restabelecimento da situação anterior.

Art. 97, §3°. A desinternação, ou a liberação, será sempre condicional devendo ser restabelecida a situação anterior se o agente, antes do decurso de 1 (um) ano, pratica fato indicativo de persistência de sua periculosidade.

6. Substituição e conversão das medidas de segu­rança

As penas privativas de liberdade podem ser substituídas por medidas de segurança, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou de autoridade administrativa, na hipótese de superveniência de doença mental ou de perturbação da saúde mental do condenado (art. 41, CP; art. 183, LEP).

Art. 41. 0 condenado a quem sobrevêm doença mental deve ser recolhido a hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, a outro estabelecimento adequado.

A medida de segurança de tratamento ambulatorial pode ser con­vertida em internação institucional, pelo prazo mínimo de 1 (um) ano, se necessário para fins curativos (art. 97, §4°), ou se o agente revelar incompatibilidade com a medida (art. 184, LEP).

Art. 97, §4°. Em qualquerfase do tratamento ambulato­rial, poderá o ju i^ determinar a internação do agente, se essa providência fo r necessária para fins curativos.

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Capítulo 23 Medidas de Segurança

7. Prescrição das medidas de segurança

A exdnção da punibilidade do fato previsto como crime realizado pelo inimputável (ou pelo semi-imputável.’ no caso do art. 98, CP), exclui a aplicação de medida de segurança, ou extingue a medida de segurança aplicada (art. 96, parágrafo único), independente da causa de extinção respectiva: anistia, graça, indulto, descriminaüzação, prescrição etc.

Art. 96, parágrafo único. Extinta a punibilidade, não se impõe medida de segurança nem subsiste a que tenha sido imposta.

Na liipótese de extinção da punibilidade por prescrição., a regra é a prescrição pela pena abstrata, regida pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime (art. 109, CP), porque o inimputável autor de fato descrito como crime não é condenado, mas absolvido com aplicação de medida de segurança; a exceção ocorre com o semi-im­putável necessitado de especial tratamento curativo (art. 98, CP), porque a prescrição é regida pela pena aplicada (art. 110, §1°, CP), substituída por medida de segurança estacionária ou ambulante pelo prazo mínimo de 1 a 3 anos.34

34 Comparax BITENCOURT, Tratado de direito penal (parte geral), 2003, 8a edição, p. 685.

C apítu lo 2 4

AçÃo P e n a l

I. A s limitações democráticas do poder de punir

O monopólio do poder de punir do Estado, com a proibição da vingança privada nas sociedades modernas, implica desdobramen­tos necessários. Primeiro, o monopólio do poder de punir cria para o Estado o dever de proteger os cidadãos contra fatos criminosos, mediante normas legais materiais e processuais de definição de crimes e de punição dos autores. Segundo, o monopólio do poder punitivo do Estado reduz a insegurança social mas aumenta o risco de conde­nar acusados inocentes ou adversários políticos do poder. Terceiro, a proteção de inocentes contra abusos do poder punitivo pressupõe a criação de garantias constitucionais e legais, sintetizadas no conceito de processo legal devido do moderno Estado Democrático de Direito— também expressas no princípio nullapoena sine culpa}

II. Os princípios constituáonais do processo penal

O processo penal não constitui processo de partes livres e iguais— como o processo civil, por exemplo, dominado pela liberdade de partes, em situação de igualdade processual —, mas uma relação de

1 ROXIN, Strafverfahrensrecht., 1995, 24a edição, §1° B I, n. 2, p. 2.

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Teoria da Pena Capítulo 24

poder instituída pelo Estado com a finalidade de descobrir a verdade de fatos criminosos e punir os autores considerados culpados.2 Como a chamada verdade material não pode ser obtida a qualquer preço pelo Estado (por exemplo, confissões mediante tortura, uso de prova ilícita etc.), mas deve ser demonstrada em conformidade com princípios ga- rantidores da liberdade e da dignidade do ser humano, o processo penal do Estado Democrático de Direito é regido por alguns princípios constitucionais expressos em ou deduzidos de normas específicas, por exemplo: princípio da oficialidade, princípio da acusação, princípio da legalidade, princípio da oportunidade, princípio da investigação (ou da verdade material), princípio da livre valoração da prova, princípio in dubio pro reo etc.3

A natureza dos princípios do processo penal permite sua siste­matização em dois grupos principais: a) princípios de formação do processo: princípio da oficialidade, princípio da acusação, princípio da legalidade, princípio da oportunidade e princípio da investigação;b) princípios da prova processual: princípio da livre valoração da prova e princípio in dubio pro reo.A

1. Princípios de formação do processo

1. Princípio da oficialidade. O prindpio da oficialidade exprime a regra do monopólio estatal na perseguição penal, exercida através do Mi­nistério Público dos Estados e da União — por oposição ao principio da acusação privada. Mas a regra do monopólio da perseguição penal

2 PFEIFFER, Grund%üge des Straperfahrensrechts, 1991, 2a edição, n. 1, p. 2.3 ROXIN, Strafverfahrensrecht, 1995, 24a edição, §1° B I, n. 4, p. 3.4 Comparar ROXIN, Strajverfahrensrecht, 1995, 24a edição, §11,1, p. 67.

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Capítulo 24 Ação Penal

oficial admite exceções em crimes de menor importância:5 primeiro, a representação da vítima ou representante legal, nas ações penais públi­cas condicionadas, sem a qual o Ministério Público não pode propor ação penal; segundo, a ação penal privada, promovida pela vítima ou representante legal, através de advogado com poderes especiais.6

2. Princípio da acusação. O princípio da acusação, expresso na fórmula nemo judex sine actore, determina a separação das tarefas de acusar e de julgar, atribuindo a tarefa de acusar a um órgão do Estado (Ministé­rio Público) — por exceção, ao ofendido ou representante legal, nos crimes de ação penal privada —, e a tarefa de ju lgar a outro órgão do Estado (Poder Judiciário), separando as funções de acusação e de julgamento, concentradas na pessoa do Juiz pelo princípio inquisitório do processo medieval.7

3. Princípio da legalidade. O princípio da legalidade no processo penal define o dever do Ministério Público de apresentar acusação formal em caso de prova de existência de fato punível e de indicações suficientes de autoria, em inquéritos policiais ou outros documentos recebidos8 — e, portanto, cumpre a função constitucional de excluir a arbitrariedade no processo penal.9 Hoje, por força da freqüência das exceções ao princípio da legalidade, no âmbito da pequena e da média criminalidade predomina o princípio da oportunidade, examinado a seguir— denominações, aliás, inadequadas, porque o princípio da legalidade

5 Ver SCHROEDER, Strafpro%essrecht, 1993, §8°, n. 60, p. 35.6 ROXIN, Strafverfahrensrecht, 1995, 24a edição, §13, n. 6, p. 72; SCHROEDER, Straf

pro^essrecht, 1993, §44, p. 225, n. 344; PFEIFFER, Grund%üge des Strcfverfahrensrechts, 1991, 2a edição, II 1, p. 2.

7 ROXIN, Strafverfahrensrecht, 1995, 24a edição, §13, n. 1-9, p. 75-76; SCHROEDER,Strafpro%essrecht, 1993, §8°, n. 57, p. 32-33 e §44, n. 344, p. 225. No Brasil, ver LOPES JR., Introdução crítica ao processo penal.’ 2004, p. 150-174, esp. p. 154.

8 ROXIN, Strafverfahrensrecht, 1995,24a edição, §13, A 1, p. 78 e B 1, p. 79; PFEIFFER,Grund%üge des Strafverfahrensrechts, 1991, 2a edição, I 3, p. 3.

9 SCHROEDER, Strafpro%essrecht, 1993, §9°, n. 62, p. 36.

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Teoria da Pena Capítulo 24

é confundido com o princípio nullum crimen, nulla poena sine lege, e o principio da oportunidade., embora aplicado em hipóteses legais estritas, parece exprimir critério discricionário.10

4. Princípio da oportunidade. O princípio da oportunidade define exceções à regra do princípio da legalidade, com renúncia do Ministério Público de apresentar acusações formais em hipóteses concretas na área da pequena ou da média criminalidade,11 fundadas no princípio da insignificância., ou na ausência de interesse público na perseguição penal (por razões de prevenção geral ou espeáal)?2 ou em políticas criminais esperífi- cas para a criminalidade de menor potencial ofensivo (por exemplo, a transação penal., ou a suspensão condiáonal do processo). A freqüência crescente de hipóteses submetidas ao princípio da oportunidade, como exceções ao princípio da legalidade, reduz o âmbito de obrigatoriedade da acusação penal pública.13

5. Princípio da instrução. O prinápio da instrução, também denomi­nado prinápio da verdade material do processo penal — por oposição ao princípio da verdade formal do processo civil —, exprime o poder judicial de investigação pessoal do objeto da imputação processual, sem vin­culação às afirmações de acusação e de defesa, à confissão do acusado ou aos meios de prova propostos.14

10 SCHROEDER, Strajpro%essrecht, 1993, §9°, n. 63, p. 36-37.11 PFEIFFER, Grund^üge des Strafverfahrensrechts, 1991, 2a edição, II 4, p. 2-3.12 SCHROEDER, Strajpro^essrecht, 1993, §9°, n. 63, p. 37.13 ROXIN, Strafverfahrensrecht, 1995,24a edição, §13, n. 6, p. 79; PFEIFFER, Grund^üge

des Strafverfahrensrechts, 1991, 2a edição, II 4, p. 2-3.14 ROXIN, Strafverfahrensrecht, 1995,24a edição, §15, A 1, p. 88; PFEIFFER, Grund^üge

des Strafverfahrensrechts, 1991, 2a edição, II 5, p. 4; SCHROEDER, Strajpro^essrecht, 1993, §27, n. 237, p. 144 e §44, n. 345, p. 225.

674

Capítulo 24 Ação Venal

2. Princípios da prova processual

1. Princípio da livre valoração da prova. O prindpio da livre valoração da prova significa avaliação da prova segundo a convicção subjetiva do Juiz — por oposição à regra das provas legais —, mas condicionada a parâmetros objetivos: a convicção judicial é sufidente para a sentença criminal, mas pressupõe a necessidade de correspondência com as in­dicações objetivas da prova.15 A correspondência entre a convicção subjetiva do Juiz e as indicações objetivas da prova define a objeti­vidade da livre valoração da prova — determinada, entre outras razões, pelo princípio in dubio pro reo, que seria cancelado pelo subjetivismo da livre convicção judicial.

2. Princípio in d u b io p r o r e o . O prindpio in dubio pro reo, deduzido da garantia constitucional da presunção de inocênda (art. 5o, LVII, CR) — por rejeição à presunção de culpa — indica a regra fundamental da prova no processo penal: a dúvida sobre a realidade do fato determina a absolvi­ção do acusado. O princípio in dubio pro reo contém desdobramentos importantes no Estado Democrático de Direito, assim definidos:

a) primeiro, o acusado não precisa provar o alibi apresentado— ou seja, que não estava no lugar do crime, ou que não participou do fato imputado; ao contrário, a acusação deve provar que o acusado realizou ou partidpou do fato imputado, com a dúvida determinando absolvição;

b) segundo, dúvidas sobre justificações (legítima defesa, estado de necessidade etc.), sobre exculpações (erro de proibição, obediência liierárquica, conflito de deveres etc.) ou sobre outras isenções de pena

15 ROXIN, Strajverfahrensrecht, 1995, 24a edição, §15, A 1, p. 90-91, n. 13; SCHROE- DER, Strafpro%essrecht, 1993, §30, n. 270, p. 167 s. e §44, n. 345, p. 225.

675

Teoria da Pena Capítulo 24

(desistência da tentativa, por exemplo) não podem fundamentar con­denações, ou seja, também determinam absolvição;16

c) terceiro, dúvidas sobre a natureza do fato, como tipo básico ou qualificado, tentativa ou consumação, autoria ou participação, tipo doloso ou imprudente, devem ser decididas em favor do acusado — ou seja, segundo a hipótese menos grave.17

A orientação ainda dominante na jurisprudência e literatura brasileiras, pela qual a prova da tipicidade do fato incumbe à acusação, enquanto a prova das excludentes de antijuridicidade e de culpabilidade incumbe à defesa, é uma conseqüência desastrosa da indevida extensão ao processo penal dos princípios do processo civil, em que a prova do fato constitutivo (do direito) incumbe ao autor, enquanto a prova de fato impeditivo, modificativo ou extintivo (do direito) incumbe ao réu (art. 333, CPC).

Mas é preciso esclarecer: o princípio in dubio pro reo é limitado à prova defatos, sem influência na interpretação da lei, regida pelos princípios de interpretação definidos pelas técnicas literal, sistemática, histórica, teleológica e, excepcionalmente, pela analogia in bonampartem.x%

16 ROXIN, Strafverfahrensrecht, 1995, 24a edição, §15, n. 32, p. 97-98. No Brasil, ver o excelente LOPES JR., Introdução crítica ao processo penal\ 2004, p. 179-180, que diz: “Ao lado da presunção de inocência, como critério pragmático de solução de incerteza (dúvida)

judicial, o princípio in dubio pro reo corrobora a atribuição da carga probatória ao acusador. (...) Isso significa que incumbe ao acusador provar a presença de todos os elementos que integram a tipicidade, a iliátude e a culpabilidade e, logicamente, a inexistênáa das causas de justificação. ” Assim também, TAVARES, Teoria do injusto penal.’ 2002, p. 116 e 310, destacando os efeitos processuais do princípio da presunção de inocênáa.

1' ! Assim, SCHROEDER, Strafprozessrecht, 1993, §30, n. 274, p. 170.18 ROXIN, Strajverfahrensrecht, 1995, 24a edição, §15, n. 41, p. 100; SCHROEDER,

Strafpro%essrecht, 1993, §30, n. 274, p. 170 e §44, n. 345, p. 225.

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Capítulo 24 A.ção Venal

III. Ação penal

A ação penal consdtui a forma específica de manifestação do poder punitivo do Estado, classificada em duas categorias relaciona­das como regra e exceção: a) a ação penal pública é a regra aplicada à maioria absoluta dos crimes; b) a ação penal privada é a exceção aplicada a uma pequena minoria de crimes., em que oJistado delega ao particular o exercício do poder punitivo, em hipóteses expressamente indicadas na lei penal.

Art. 100. A ação penal é pública, salvo quando a lei ex­pressamente a declara privativa do ofendido.

O exercício da ação penal, definido como direito abstrato de agir— ou seja, como direito à jurisdição penal —, pressupõe a existência de determinadas condições de ação, tema controvertido no processo penal contemporâneo:

a) a teoria tradicional, fundada na premissa de uma teoria geral do processo, propõe para o processo penal as mesmas condições de ação do processo civil: interesse de agir, legitimação para a causa e possibilidade jurídica do pedido;

b) a teoria moderna, fundada na especificidade do processo penal, em que não existe liberdade de partes (o MP é vinculado pelo princípio da legalidade e o acusado não pode subtrair-se, por ato de vontade, ao processo penal) e não existe igualdade entre as partes (o MP representa o poder punitivo do Estado em face do impotente acusado, submetido ao poder do Estado, queira ou não queka), propõe condições de ação específicas, deduzidas do art 43 do CPP, definidas como (1) tipicidade aparente, (2) punibilidade concreta, (3) legitimidade de

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Teoria da Pena Capítulo 24

parte e (4) justa causa.19

Nesse conceito, a tipicidade aparente designa o tipo de injusto, excluindo ações atípicas e justificadas;20 a legitimidade de parte tem por objeto a divisão entre ações públicas e privadas; a punibilidade concreta exclui as hipóteses de extinção da punibilidade; e a justa causa tem por fundamento a prova da materialidade do fato e indícios suficientes de autoria.

A óbvia superioridade dessa teoria não evita conflitos — que só o debate crítico coletivo pode resolver —, como por exemplo entre tipicidade aparente e justa causa: por um lado, situações de ausência de tipo de injusto são também situações de falta de justa causa; por outro lado, a justa causa como categoria compreensiva da materialidade e dos indícios de autoria, tem por objeto elementos do tipo de injusto: a prova da materialidade indica o resultado típico e os indícios de autoria indicam o sujeito ativo produtor do dolo e da imprudência materializados no resultado típico — e assim a justa causa parece uma condição desnecessária, porque seus elementos já estariam contidos no (aparente) tipo de injusto.

19 No Brasil, ver a posição pioneira de MIRANDA COUTTNHO, A lide e o conteúdo do processo penal, 1989, p. 142-146, desenvolvida a partir dos trabalhos dos juristas paranaenses FOWLER, Anotações em tomo da ação penalpública no projeto de reforma, in Revista do Ministério Público do Paraná, n. 7 (1977) e BREDA, Efeitos da declaração de nulidade no processo penal, in Revista do Ministério Público do Paraná, n. 9 (1980). Para maiores detalhes, NUNES DA SILVEIRA, A tipicidade e o juí^o de admissibilidade da acusação, 2005, p. 55 s.

20 NUNES DA SILVEIRA, A tipiádade e o juí^o de admissibilidade da acusação, 2005, p. 67-73.

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Capítulo 24 Ação Venal

1. Ação penal pública

A ação penal de natureza pública é promovida pelo órgão do Ministério Público dos Estados ou da União (princípio da oficiali­dade), sob a forma de denúncia dirigida ao Poder Judiciário estadual ou federal (princípio da acusação), segundo critérios de competência jurisdicional definidos em lei. A denúncia é o ato formal de acusação em crimes de ação penal pública, com identificação do autor, descrição do fato criminoso, indicação do tipo de crime realizado e pedido de condenação do autor às penas criminais cominadas (art. 41, CPP). A ação penal pública se caracteriza pela indisponibilidade da ação penal pelo Ministério Público, no sentido de obrigatoriedade do exercício da pretensão punitiva, presentes as condições de ação respectivas (princípio da legalidade).21

A ação penalpública compreende três categorias diferentes: a ação penal pública incondicionada, a ação penal pública condicionada e a ação penal pública extensiva.

1.1. Ação penal pública incondicionada

A ação penal pública incondicionada é a regra da categoria geral de crimes de ação penal pública, porque a proposição da denúncia pelo Ministério Público contra o autor de fato criminoso independe de qualquer condição (art. 100, primeira parte, CP): a verificação da existência de crime de ação pública e de indícios suficientes de autoria determina a necessidade de promoção da ação penal (princípio da legalidade), como ocorre na maioria dos crimes dolosos violentos

21 BITENCOURT, Tratado de direito penal, 2003, 8a edição, v. 1, p. 692-693; também RÉGIS PRADO, Curso de direito penal brasileiro, 2004, 4a edição, v. 1, p. 753.

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Teoria da Pena Capítulo 24

contra a pessoa, na maioria dos crimes patrimoniais, nos crimes contra a administração, a paz e a fé públicas etc.

Art. 100, §1°. A ação penalpública épromovida pelo Minis­tério Público, dependendo, quando a lei o exige, de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça.

1.2. Ação penal pública condicionada

A ação penal pública pode subordinar-se a determinadas con­dições estabelecidas expressamente pelo legislador no interesse do ofendido, ou do titular do bem jurídico lesionado: é a ação penal pú­blica condicionada referida na parte final do dispositivo acima citado (art. 100, §1°, segunda parte, CP). A condição exigida pela lei para exercício da ação penal pública pode consistir (a) em representação do ofendido ou (b) em requisição do Ministro da Justiça (exceções ao princípio da oficialidade).1. A representação do ofendido (ou de quem tenha qualidade para repre- sentá-lo) constitui ato formal de manifestação de vontade do titular do bem jurídico lesionado, autorizando a proposição da ação penal pública condicionada pelo Ministério Público. A representação, como manifestação formal de vontade do titular do bem jurídico lesionado, depende do interesse do ofendido, podendo ser apresentada ou re­tirada conforme conveniências exclusivas daquele. Mas a retirada da representação pelo titular do bem jurídico lesionado, definida como retratação do ofendido, tem um limite processual intransponível, depois do qual a representação é irretratável: o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público (art. 102, CP).22

Art. 102. A representação será irretratável depois de oferecida a denúncia.

O critério do oferecimento da denúncia — e não o do recebimento da

22 Comparar REGIS PRADO, Curso de direito penal brasileiro, 2004, 4a edição, v. 1, p. 754-758.

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Capítulo 24 Ação Penal

denúncia pelo Juiz, adotado no sistema anterior à reforma de 1984 —, como limite processual da retratação da representação, é impreciso: é impossível saber se significa (a) entrega da denúncia em cartório, ou (b) apresentação da denúncia ao Juiz, para recebimento ou rejeição— além disso, a hipótese de rejeição de denúncia inepta gera outras controvérsias.23

Por outro lado, o exercício do direito de representação pelo ofendi­do ou representante legal, como formalidade condicionante da ação penal pública, é limitado no tempo: o direito de representação deve ser exercido no prazo de 6 (seis) meses, a partir da data de conhecimento da identidade do autor do crime pelo ofendido ou representante legal, sob pena de decadência do direito de representação — ou seja, de perda definitiva do direito de representação, porque os prazos decadenáais são contínuos e fatais, fluindo sem interrupção ou suspensão.

Art. 103. Salvo disposição expressa em contrário, o ofendido decai do direito de queixa ou de representação se não o exerce dentro do pra^o de 6 (seis) meses, contado do dia em que veio a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do §3° do art. 100 deste Código, do dia em que se esgota o pra%o para oferecimento da denúncia.

No caso dos crimes de imprensa definidos na Lei 5.250/67, o prazo decadencial do direito de representação (ou do direito de queixa) do ofendido ou representante legal é de 3 (três) meses, a partir da data da publicação ou transmissão respectiva (art. 41, §1°, da Lei 5.250/67).

2. A requisição do Ministro da Justiça constitui ato formal de autoriza­ção do Poder Executivo Federal dirigida ao Ministério Público para exercício da ação penal pública condicionada, em hipóteses específicas (art. 7o, Ic , e §3°, CP). Em Direito Administrativo o verbo requisitar

23 Ver BITENCOURT, Tratado de direito penal, 2003, 8a edição, v. 1, p. 696.

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Teoria da Pena Capítulo 24

significa exigir, mas neste caso possui o significado de pedir, porque o Ministério Público preserva a exclusiva titularidade da ação penal pública, cujo exercício depende da presença da referida condição legal de procedibilidade.24 A requisição do Ministro da Justiça — ao contrário da representação do ofendido — não está sujeita à decadência, podendo ser apresentada enquanto não extinta a punibilidade do crime.25

1.3. Ação penal pública extensiva

A ação penal pública extensiva ocorre em hipóteses de crimes de ação penal privada compostos de elementos ou circunstâncias típicas que constituem, independentemente, crimes de ação penal pública (art 101, CP). A ação penal pública do crime elementar constitutivo do tipo de crime de ação penal privada fundamenta a extensão da ação penal pú­blica ao tipo de crime de ação penal privada: por exemplo, os resul­tados qualificadores de lesão corporal grave ou de morte no estupro, determinam a extensão da ação penal pública ao tipo de estupro, crime de ação penal privada.

Art. 101. Quando a lei considera como elemento ou circuns­tâncias do tipo legal fatos que, por si mesmos, constituem crimes, cabe ação penalpública em relação àquele, desde que, em relação a qualquer destes, se deva proceder p or iniciativa do Ministério Público.

24 BITENCOURT, Tratado de direito penal\ 2003, 8a edição, v. 1, p. 696.25 RÉGIS PRADO, Curso de direito penal brasileiro, 2004, 4a edição, v. 1, p. 758'.

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Capítulo 24 A.ção Penal

2. Ação penal privada

A ação penal de natureza privada é promovida pelo ofendido ou representante legal, nos casos expressamente previstos em lei (art. 100, segunda parte, CP), sob a forma de queixa (art. 100, §2°, CP). A queixa é o ato formal de acusação em crimes de ação penal priva­da., com os mesmos requisitos da denúncia: identificação do autor, descrição do fato criminoso, indicação do tipo de crime realizado e pedido de condenação às penas cominadas. A ação penal privada, ao contrário da ação penal pública, caracteriza-se pela disponibilidade de seu exercício pelo ofendido ou representante legal, subordinando-se a regras especiais (exceção ao princípio da oficialidade).26

2.1. Ação penal privada subsidiária da ação pública

A ação penal privada pode ser exercida em caráter subsidiário da ação penal pública, na liipótese de não ter sido oferecida denúncia pelo Ministério Público, no prazo legal.

Art. 100, §3°. ação de iniciativa privada pode intentar-senos crimes de ação pública, se o Ministério Público não oferece denúncia no pra%o legal

2.2. Transmissão do direito de queixa

O direito de quáxa pode ser transmitido ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão, nas hipóteses de morte ou de declaração judicial

26 Ver BITENCOURT, Tratado de direito penal, 2003,8a edição, v. 1, p. 693-694; RÉGISPRADO, Curso de direito penal brasileiro, 2004, 4a edição, v. 1, p. 759-761.

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Teoria da Pena Capítulo 24

de ausência do ofendido ou de seu representante legal: é a chamada subs­tituição processual da titularidade para o exercício da ação penal privada.

Art. 100, §4°. No caso de morte do ofendido ou de ter sido declarado ausente p or declaraçãojudicial, o direito de oferecer queixa ou de prosseguir na ação passa ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão.

2.3. Extinção do direito de queixa

O direito de queixa pode ser extinto pela ocorrência de vários fatos especificados em lei, como a decadência do direito de queixa, a renúncia ao exercício da ação penal e o perdão do ofendido, inexisten­tes nos crimes de ação penal pública — exceto a decadência, que pode ocorrer em crimes de ação penal pública condicionada à representação do ofendido.27

1. A decadência do direito de queixa (ou de representação) significa perda do direito de ação pelo decurso do prazo legal de 6 (seis) meses (ou de3 (três) meses, nos crimes da Lei de Imprensa), de natureza contínua e peremptória, excluindo suspensão ou interrupção (art. 103, CP), contado (a) da data do conhecimento do autor do fato criminoso (ou da publi­cação da matéria, ou da transmissão, nos crimes da Lei de Imprensa), ou (b) da expiração do prazo para oferecimento da denúncia, no caso de ação penal privada subsidiária da ação penal pública.28

Art. 103, CP. Salvo disposição expressa em contrário, o ofendido decai do direito de queixa ou de representação se não o exerce dentro do pra%o de 6 (seis) meses, contado do dia em que veio a saber quem é o autor do crime, ou, no caso

27 Ver BITENCOURT, Tratado de direito penal, 2003, 8a edição, v. 1, p. 697.28 BITENCOURT, Tratado de direito penal’ 2003, 8a edição, v. 1, p. 697.

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Capítulo 24 A cão Penal

do §3° do art. 100 deste Código, do dia em que se esgota o pra^o para oferecimento da denúncia.

2. A renúncia ao exercício do direito de queixa significa desistência do ofendido ou representante legal de exercer a pretensão punitiva contra o autor de crimes de ação penal privada — portanto, deve ser exercida antes do início da ação penal29 — e pode ser expressa ou tácita (art. 104, parágrafo único, CP):

a) a renúncia expressa é a declaração formal e válida de recusa ao exercício do direito de queixa, independente dos motivos do ofendido ou de seu representante legal — excluída a renúncia obtida mediante violência ou fraude;

b) a renúncia tádta significa a prática de ato incompatível com a vontade de exercer o direito de queixa, como a manutenção de relações de amizade, de convívio ou de coabitação consentida entre autor e vítima — mas o recebimento de indenização não significa re­núncia tácita ao direito de queixa. A renúncia (expressa ou tácita) é, necessariamente, anterior ao exercício do direito de queixa.

Art. 104. O direito de queixa não pode ser exerddo quando renundado expressa ou tacitamente.

Parágrafo único. Importa renúnda tãdta ao direito de queixa a prática de ato incompatível com a vontade de exer­cê-lo; não a implica, todavia, o fato de receber o ofendido a indenização do dano causado pelo crime.

3. O perdão do ofendido é ato de magnanimidade pessoal do querelante que extingue a ação penal privada, se aceito pelo querelado (art. 105, CP) — ou seja, a recusa do perdão pelo querelado impede a extinção da

29 Assim, também BITENCOURT, Tratado de dirátopenal, 2003, 8a edição, v. l,«p. 698.

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Teoria da Pena Capítulo 24

ação penal privada (art. 106, III, CP),30 por duas razões: primeiro, a aceitação do perdão implica admissão de prática do crime; segundo, constitui direito de todo acusado demonstrar sua inocência no pro­cesso penal.

Art. 105. O perdão do ofendido, nos crimes em que somente se procede mediante queixa, obsta ao prosseguimento da ação.

O perdão do ofendido, assim como a renúncia ao direito de queixa, pode ser expresso ou tácito (arts. 105 e 106, CP): a) o perdão expresso é a declaração formal e válida do ofendido, exculpando o ofensor e declinando do direito de prosseguir n o exercício da ação penal privada iniciada; b) o perdão tááto é representado pela prática de ato incom­patível com o prosseguimento da ação penal (relações de amizade, de convívio etc.).

Na hipótese de vários ofensores, o perdão concedido a um deles aproveita a todos (art. 106,1, CP); na hipótese de vários ofendidos,o perdão concedido por um deles não prejudica o direito dos demais de prosseguir na ação penal (artigo 106, II, CP).

Finalmente, o limite processual de admissibilidade do perdão é indicado pelo trânsito em julgado da sentença penal condenató­ria (art. 106, §2°, CP): até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, é possível o perdão; depois desse momento, o perdão perde o poder extintivo da ação penal privada, porque o Estado se reincorpora na titularidade do poder repressivo, cujo exercício, por exceção, em consideração a especiais razões de natureza pessoal, foi atribuído ao particular ofendido.31

30 Ver BITENCOURT, Tratado de direito penal’ 2003, 8a edição, v. 1, p. 702.31 No mesmo sentido, BITENCOURT, Tratado de direito penal’ 2003, 8a edição, v. 1,

p. 702-703.

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Capítulo 24 Ação Penal

Art. 106. O perdão, no processo ou fora dele, expresso ou tácito:

I — se concedido a qualquer dos querelados, a todos aproveita;

I I— se concedido por um dos ofendidos, não prejudica o direito dos outros;

III — se o querelado o recusa, não produ% efeito.

§1° Perdão táãto é o que resulta daprática de ato incompatível com a vontade de prosseguir na ação.

§2° Não é admissível o perdão depois que passa em julgado a sentença condenatória.

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C a pítu lo 2 5

E x t in ç ã o d a P u n ib il id a d e

A extinção da punibilidade significa o desaparecimento do poder de punir do Estado em relação a fatos definidos como crimes, pela ocorrência de eventos, situações ou acontecimentos determinados na lei como causas de extinção da punibilidade (art. 107, CP).

Art. 107. Extingue-se a punibilidade:

I —pela morte do agente;I I—pela anistia, graça ou indulto;

III —pela retroatividade de lei que não mais considera o fato criminoso;IV —pela prescrição, decadência ou perempção;

V—pela renúncia do direito de queixa, ou pelo perdão aceito nos crimes de açao privada;

VI—pela retratação do agente, nos casos em que a Ida admite;

VII — (Revogado pela Lei 11.106/05)

VIII — (Revogado pela Lei 11.106/05)

IX —pelo perdão judicial, nos casos previstos em lei.

I. Morte do agente

A morte do agente extingue a punibilidade de fatos puníveis (art. 107, I, CP), por força do princípio constitucional da personalidade da

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Teoria da Pena Capítulo 25

pena (art. 5o, XLV, CR), segundo o qual nenhuma pena passará da pessoa do condenado, mas a natureza pessoal dessa causa de extinção da punibilidade não altera a punibilidade de co-autores ou de partícipes. Provada a morte do agente por certidão de óbito (art. 62, CPP), extingue-se a pretensão punitiva ou a pretensão executória, conforme ocorra antes ou depois do trânsito em julgado da sentença criminal condenatória. A morte presumida por declaração judicial em casos de ausência (art. 6o, CC), ou de extrema probabilidade de morte de pessoas em perigo de vida (art. 7o, I, CC), ou de prisioneiros ou desaparecidos em campanha não encontrados até 2 (dois) anos após o término da guerra (art. 7o,II, CC), produz o mesmo efeito extintivo da punibilidade.1

O término comprovado ou declarado da existência da pessoa natural extingue todas as penas criminais cominadas, aplicadas ou em exe­cução, independente de sua natureza: penas privativas de liberdade, penas restritivas de direitos ou penas de multa. Mas não extingue a obrigação civil de reparar o dano causado pelo crime, nem exclui o perdimento de bens, transmissíveis aos sucessores até o limite do valor do patrimônio transferido (art. 5o, XLV, CR).

II. Anistia, graça e indulto

A anistia, a graça e o indulto são estudados sob o conceito de direito de graça, compreensivo de atos de competência do Poder Le­gislativo — no caso da anistia —, ou do Poder Executivo — no caso do indulto e da graça —, dotados de eficácia extintiva da punibilidade de

1 Ver FRAGOSO, Uções de direito pena l 2003,16a edição, n. 416, p. 5096. Em posição contrária^ REGIS PRADO, Curso de direito penal brasileiro, 2004, 4a edição, vol. 1, p. 719: “A. presunção legal de morte (art. 6% CC) é inadmissível na esfera penal. ”

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Capítulo 25 Extinção da Punibilidade

fatos criminosos (art. 107, II, CP). Na hipótese de anistia, o poder político criminalizador descriminaliza o fato e, assim, não existe lesão do princípio constitucional da separação de poderes; nas hipóteses de indulto e d e graça, o cancelamento concreto da criminalização secundária do Poder Judiciário — e, por extensão, da criminalização primária do Poder Legislativo —, realizada por ato do Poder Executivo, é permitido pelo art. 84, XII, da Constituição Federal da República, excluindo lesão do princípio de separação de poderes.

1. A a n is t ia — do grego amnestía, que significa esquecimento, ou am­nésia — constitui ato de competência do Poder Legislativo, tem por objeto fatos definidos como crimes políticos, militares ou eleitorais — por­tanto, não abrange fatos definidos como crimes comuns—, e por objetivo beneficiar uma coletividade de autores desses fatos, sendo concedida sob forma de lei descriminalizadora, anulando todos os efeitos penais da criminalização2 (exceto os efeitos civis). A anistia pode ser geral ou parcial, conforme compreenda ou não todos os fatos e autores respectivos, e independe de consentimento dos anistiados — exceto no caso de anistia condicional. A significação jurídico-constitucional e política da anistia aparece em tempos de crise social aguda, como revoluções, guerras civis, ou outros conflitos políticos internos, em que funciona como elemento indispensável de pacificação social,3 mediante correção de injustiças produzidas pela criminalização ou punição de determinados fatos.4

2. A g r a ç a constitui ato de competência do Presidente da República, tem por objeto crimes comuns com sentença condenatória transitada

2 Nesse sentido, JESCHECK/WEIGEND, Lehrbuch des Strafrechts, 1996, 5a edição, §88,1, p. 923.

3 Ver KÕHLER, Strafrecht, 1997, p. 693; também, DIMOULIS, Die Begnadigung in verglei-chender Perspektive. Kechtsphihsophische, vefassungs- und strafrechtliche Probleme, 1996.

4 Ver SWENSON JR., Problemas de validade da lei de anistia brasileira (lei n. 6683/79), UNIMEP (dissertação de mestrado), 2006, especialmente p. 87 s.

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Teoria da Pena Capítulo 25

em julgado, e por objetivo beneficiar pessoa determinada mediante a extinção ou a comutação da pena aplicada, corrigindo injustiças ou o rigor excessivo na aplicação da lei.5

3. O in d u lto constitui igualmente ato de competência do Presidente da República, tem por objeto crimes comuns e por objetivo beneficiar uma coletividade de condenados, selecionados pela natureza do crime realizado ou pela quantidade da pena aplicada, com exigências com­plementares facultativas, geralmente relacionadas ao cumprimento parcial da pena; finalmente, também tem por efeito extinguirou. comutar a pena aplicada — exceto no indulto sob condições, que podem ser recusadas pelo indultado.

O indulto pode, excepcionalmente, ser individual, mas depende de petição do condenado (ou do Ministério Público ou de autoridade administrativa da execução penal), devidamente instruída e encaminha­da ao Ministério da Justiça para despacho do Presidente da República (arts. 188-192, LEP).

III. Descriminali^ação do fa to

O advento de lei descriminali%adora do fato extingue a punibilidade independente da fase do processo de criminalização ou do trânsito em julgado da sentença criminal condenatória; igualmente, o adven­to de lei penal mais favorável’ segundo o critério concreto da aplicação da pena, incluindo árcunstâncias legais, agravantes e atenuantes, bem

5 JESCHECK/WEIGEND, Tehrbuch des Strafrechts, 1996, 5a edição, §88 ,1, p. 923; também WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, 11a edição, p. 263.

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Capítulo 25 Extinção da Punibilidade

como causas espeáais de aumento ou de diminuição de pena, aplica-se retroativamente aos fatos anteriores, inclusive com decisão transitada em julgado (art. 5o, XL, CR).6

IV. Prescrição, decadência eperempção

1. Prescrição

A prescrição determina a perda do direito de exercer a ação penal por fatos puníveis, ou de executar a pena criminal aplicada contra au­tores de fatos puníveis, pelo decurso do tempo: a) a perda do direito de exercer a ação penal significa a prescrição da pretensão punitiva do Estado; b) a perda do direito de executara, pena criminal concretamen­te aplicada significa a prescrição da pretensão executória do Estado. O fundamento jurídico da prescrição reside na dificuldade de prova do fato imputado (no caso de prescrição da ação penal), ou na progressiva dissolução da necessidade de pena contra o autor (no caso de prescrição da pena criminal aplicada), o que confere à prescrição natureza processual (impedimento de persecução) e material (extinção da pena).7

A legislação brasileira sistematiza a complexa matéria da pres­crição tomando como referência a sentença criminal.’ considerada nas seguintes perspectivas: a) a prescrição antes do trânsito em julgado da sentença criminal; b) a prescrição depois do trânsito em julgado da sentença criminal condenatória. Fundada nesse critério, a prescrição está assim regulada na lei penal brasileira:

6 ROXIN, Strafrecht, 1997, §5, n. 62-65, p. 122-124.7 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, 11a edição, p. 261-262.

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Teoria da Pena Capítulo 25

1.1. Prescrição antes do trânsito em julgado da sentença criminal

A prescrição antes do trânsito em julgado da sentença criminal representa a prescrição da ação penal ou da pretensão punitiva e regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, nos seguintes prazos:

Art. 109. A prescrição, antes de transitar em julgado a sen­tença final, salvo o disposto nos §§1° e 2o do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo dapena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se:

I — em 20 (vinte) anos, se o máximo da pena é superior a12 (do%e);

II — em 16 (dezesseis) anos, se o máximo da pena é superior a 8 (oito) e não excede a 12 (do^e);

III — em 12 (do^e) anos, se o máximo da pena é superior a4 (quatro) e não excede a 8 (oito);

IV — em 8 (oito) anos, se o máximo da pena é superior a 2 (dois) e não excede a 4 (quatro);

V — em 4 (quatro) anos, se o máximo da pena é superior a1 (um) ano ou, sendo superior, não excede a 2 (dois);

VI — em 2 (dois) anos, se o máximo da pena é inferior a 1 (um) ano.

O prazo de prescrição antes do trânsito em julgado da sentença criminal, como prescrição da ação penal ou da pretensão punitiva, começa a fluir no dia (a) da consumação do crime, (b) da cessação da tenta­tiva, (c) da cessação da permanência nos crimes de duração, (d) do conhecimento do fato, nos crimes de bigamia, de falsificação ou de

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Capítulo 25 Extinção da Punibilidade

alteração de registro civil.

Art. 111. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr:

I — do dia em que o crime se consumou;

II — no caso de tentativa, do dia em que cessou a atividade criminosa;

III — nos crimes permanentes, do dia em que cessou a per­manência.

Como se vê, o prazo de prescrição da pretensão punitiva começa a fluir no momento do resultado form al ou material do fato punível, com a exceção óbvia da liipótese de tentativa, em que flui a partir do término da ação criminosa, porque na tentativa existe tudo o que existe no crime consumado, menos o resultado.

1.2. Prescrição depois do trânsito em julgado da sentença condenatória

A prescrição depois do trânsito em julgado da sentença penal condenatória representa a prescrição da pretensão executória e regula-se nos mesmos prazos da prescrição pela pena abstrata (art. 109, CP), aumentado de um terço para condenados reincidentes.

Art. 110. A prescrição depois de transitar em julgado a sentença condenatória regula-se pela pena aplicada e verifica-se nos prados fixados no artigo anterior, os quais se aumentam de um terço, se o condenado é reincidente.

O prazo de prescrição depois do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, como prescrição da pretensão executória, começa a fluir do dia (a) do trânsito em julgado da sentença condenatória para a acusação, ou para a acusação e defesa, (b) da revogação da suspen­

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Teoria da Pena Capítulo 25

são condicional da pena ou do livramento condicional — no caso do livramento condicional, o prazo é regulado pelo tempo restante da pena, (c) da interrupção da execução da pena, exceto se computável na pena, nos casos de doença mental superveniente (arts. 41 e 42, CP) e (d) da evasão do condenado, também regulado pelo tempo restante da pena (arts. 112 e 113, CP).

Art. 112. No caso do art. 110 deste Código, a prescrição começa a correr:

I—do dia em que transita em julgado a sentença condenatória, para a acusação, ou a que revoga a suspensão condicional da pena ou o livramento condicional;

II — do dia em que se interrompe a execução, salvo quando o tempo da interrupção deva computar-se na pena.

Art. 113. No caso de evadir-se o condenado ou de revogar-se o livramento condicional, a prescrição é regulada pelo tempo que resta da pena.

1.3. Prescrição pelos níveis de concretização da pena

A disciplina legal da prescrição, baseada no critério antes e depois do trânsito em julgado da sentença criminal, parece limitado para sistemadzar todas as hipóteses de prescrição, cuja variedade requer critério mais compreensivo. O critério baseado nos níveis de concreti­zação da pena parece mais adequado, porque permite sistematizar a prescrição conforme a pena cominada, a pena aplicada e a pena virtual (ou pena perspectiva).

1.3.1. Prescrição pela pena cominada. A prescrição pela pena cominada define a p r e s c r i ç ã o d a a çã o p e n a l — ou p r e s c r i ç ã o da p r e t e n s ã o p u n i t iv a —, regida pelo máximo da pena abstrata do tipo legal (art 109, CP).

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Capítulo 25 Extinção da Punibilidade

1.3.2. Prescrição pela pena aplicada. A prescrição pela pena aplicada é diferenciada segundo o trânsito em julgado da sentença condenatória, com as seguintes alternadvas:

1.3.2.1. Prescrição intercorrente. A hipótese de pena aplicada s e m trânsito em julgado da sentença condenatória fundamenta a p r e s c r i ç ã o i n t e r c o r r e n t e , regida pela pena concretizada na sentença criminal.

1.3.2.2. Prescrição da pena aplicada c o m trânsito em julgado da sentença condenatória. A hipótese de pena aplicada c o m trânsito em

julgado da sentença condenatória engendra duas situações distintas: a) a prescrição retroativa; b) a prescrição da pretensão executória.

a) Prescrição retroativa. A hipótese de pena aplicada c o m trânsito emjulgado para a acusação, ou depois de improvido seu recurso, fundamenta a p r e s c r i ç ã o r e tro a tiv a — uma criação original da ju­risprudência brasileira —, regida pela pena concretizada na sentença e contada retrospectivamente até a causa de interrupção anterior: da sentença à denúncia, ou da denúncia à data do fato — segundo a jurisprudência dominante.

Art. 110, §1°. A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação, ou depois de impro­vido seu recurso, regula-se pela pena aplicada.

Aqui se situa a mais importante inovação em matéria de pres­crição da lei penal brasileira, que modificou o projeto original (art. 110, §2°, CP): a possibilidade do termo iniáal da p r e s c r i ç ã o r e tro a tiv a recair em data anterior ao recebimento da denúncia ou da queixa.

Art. 110, §2°. A. prescrição, de que trata o parágrafo ante­rior, pode terpor termo iniáal data anterior ã do recebimento da denúnáa ou da queixa.

O projeto original dizia que “a prescrição ... n ã o p o d e t e r por termo iniáal data anterior ã do recebimento da denúnáa”, conforme ainda

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Teoria da Pena Capítulo 25

exprime a Exposição de Modvos (n. 100),8 mas o legislador alterou o projeto original, optando por uma atitude generosa em lugar da atitude repressiva daquele, determinando, expressamente: “aprescrição, de que trata o parágrafo anterior, pode ter p or termo inidal data anterior à do recebimento da denúnda ou da queixa. ”

O enunciado da lei é lógico: afinal, causas de interrupção daprescrição só podem existir em prazos que fluem no fluxo do tempo real — isto é, para o futuro —, nunca em processos mentais retrospectivos baseados no fluxo do tempo imaginário — isto é, para o passado, em direção contrária do tempo.9 Não obstante a clareza do texto legal, a posição repressiva dominante na literatura e na jurisprudênda penal brasileira ainda preva­lece: ignora a lei, mantendo na prisão milhares de condenados com pena prescrita, segundo a prescrição retroativa do art. 110, §2°, CP.

b) Prescrição da pretensão executória. A hipótese de pena aplicada com trânsito em julgado para acusação e defesa fundamenta a prescrição da pretensão executória,, igualmente regida pela pena concretizada na sentença.

1.3.3. Prescrição pela pena virtual (ou perspectiva). A hipótese de pena virtual — ou pena perspectiva —, fundamenta a prescrição re­troativa antecipada,, regida pela previsão perspectiva ou virtual — no momento da denúncia ou das alegações finais — do máximo da pena

8 Exposição de Motivos, n. 100. “Norma apropriada itnpede que a prescrição pela pena apli­cada tenha p o r termo inicial data anterior a do recebimento da denúncia (§2° do art. 110). A inovação, introduzida no Código Penalpela Lei n. 6.416, de 24 de maio de 1977, vem suscitando controvérsias doutrinárias. Pesou, todavia, em p ro l de sua manutenção, o ja to de que, sendo o recebimento da denúncia causa interruptiva da prescrição (art. 117, I), uma vez interrompida esta o pra^o recomeça a correrpor inteiro (art. 117, §2°). ”

9 Ver CIRINO DOS SANTOS, Direito Penal (a nova parte geral), 1985, p. 320: “A maisimportante inovação em matéria de prescrição, modificando o projeto original que mantinha o critério da legislação anterior (EM, n. 100), consiste na expressa admissão da possibilidade do termo inicial da prescrição retroativa recair em data anterior ao recebimento da denúncia ou da queixa (art. 110, §2. °, CP). Em síntese: a prescrição retroativa não conhece causas interruptivas anteriores ã sentença criminal condenatória. ”

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Capítulo 25 Extinção da Punibilidade

aplicável na sentença criminal, válido como pena concretizada para contagem retroativa antecipada, com o pedido de arquivamento do inquérito policial ou de declaração judicial da exdnção da punibilidade por p r e s c r i ç ã o r e tro a tiv a a n te c ip a d a ., formulado pela acusação ou pela defesa — outra generosa invenção da jurisprudência brasileira, amplamente empregada por segmentos liberais do Ministério Público e da Magistratura nacionais.

1.4. Redução e aumento dos prazos de prescrição

Os prazos de prescrição são reduzidos de metade, no caso de autor menor de 21 (vinte e um) anos, na época do fato, ou maior de 70 (setenta) anos, na data da sentença.

Art. 115. São reduzidos de metade os prados de prescrição quando o criminoso era, ao tempo do crime, menor de 21 (vinte e um) anos, ou, na data da sentença, maior de 70 (setenta) anos.

1.4.1. Aqui, continuam válidos os argumentos sobre os conceitos (a) de menor de 21 anos e (b) de cidadão idoso: o fundamento da redução dos prazos de prescrição é o insuficiente desenvolvimento psicossocial de agente menor de 21 anos, na data do fato, ou a degeneração psíquica de agente maior de 70 anos, na data da sentença. Mas é necessário retomar a argumentação para evitar a generalização de tendências repressivas da literatura penal brasileira.

Primeiro, a definição legal da capacidade civil aos 18 anos (art. 5o, caput, Código Civil), não exclui a redução dos prados de prescrição para agentes menores de 21 anos: a redução dos prazos prescricionais tem por fundamento idade inferior a 21 anos — não a incapacidade ávil

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Teoria da Pena Capítulo 25

do agente na data do fato.10 Além disso, decisões do legislador civil não podem invalidar critérios do legislador penal — e qualquer outra interpretação representaria analogia in malam partem , proibida pelo principio da legalidade penal.

Segundo, na forma do art. Io, da L>ei n. 10.741/03 (Estatuto do Idoso), o limite etário de 70 (setenta) anos (na data da sentença), como fundamento para redução dos prados prescricionais, deve ser alterado para 60 (sessenta) anos, pela mesma razão que determinou a fixação desse marco etário para definir o cidadão idoso, alterando expressamente a circunstância agravante do art. 61, h, CP, na hipótese de ser vítima de crime: a analogia in bonampartem é autorizada pelo princípio da legalidade penal e, portanto, constitui direito do réu.11

1.4.2. Na hipótese de reincidência, o prazo da prescrição depois do trânsito em julgado da sentença condenatória (art. 110, final, CP) é ampliado em 1/3 (um terço).

Art. 110. A prescrição depois de transitar em julgado a sentença condenatória regula-se pela pena aplicada e verifica-se nos prados fixados no artigo anterior, os quais se aumentam de um terço, se o condenado é reincidente.

Ainda outra vez, os argumentos contra a reincidência como circunstância agravante na aplicação da pena, também são válidos contra a reincidência como ampliação dos prazos prescricionais, na extinção da punibilidade.

10 Em posição contrária, REGIS PRADO, Curso de direito penal brasileiro, 2004,4a edi­ção, p. 731: ‘T)e conformidade com o art. 5o do Código Civil, não tem mais sentido a redução do pra%o prescriàonalpara o menor de 21 anos. ”

11 No sentido do texto, REGIS PRADO, Curso de direito penal brasileiro, 2004, 4a edição, p. 731: “No que se refere ao marco etário de 70 (setenta) anos (...) passa ele a ser de 60 (sessenta) anos, para efeitos de prescrição da pretensão punitiva...”

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Capítulo 25 Extinção da Punibilidade

a) primeiro, a lei não esclarece se considera a hipótese irrelevante da reincidência ficta, trabalhando com a idéia positivista de presunção de p e ­riculosidade, ou a hipótese da reincidência real, admitindo a idéia da ação de formadora do cárcere sobre o condenado, na linha da Exposição de Motivos do Código Penal (n. 26);

b) segundo — excluída a reinádênáa ficta, pela inadmissível presunção de periculosidade —, o reconhecimento oficial da “ação criminógena” do cárcere (EM, n. 26) exige redefinição do conceito de reincidência real, como produto da ação criminógena da pena e como falha do projeto técnico- corretivo da prisão: se a prevenção espeáal positiva de correção do condenado é ineficaz, e se a prevenção espeáal negativa de neutralização do condenado existe, de fato, como prisionali^ação deformadora da personalidade do con­denado, então a reinádênáa real não pode agravar penas criminais, nem ampliar prazos prescricionais.

1.5. Prescrição das penas restritivas de direito

A prescrição das penas restritivas de direito verifica-se nos mesmosprazos das penas privativas de liberdade substituídas.

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Art. 109, parágrafo único. Aplicam-se às penas restritivas de direito os mesmos prados previstos para as privativas de liberdade.

1.6. Prescrição da pena de multa

A pena de multa pode prescrever empra^o fixo oupra^o variável, dependendo de sua cominação ou aplicação isolada, alternativa ou cumu­lativa com penas privativas de liberdade: a) prazo fixo de 2 (dois) anos,

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Teoria da Pena Capítulo 25

se cominada ou aplicada de forma isolada; b) prazo Variável conformeo prazo de prescrição da pena privativa de liberdade, se cominada de forma alternativa ou cumulativa com pena privativa de liberdade, ou se aplicada de forma cumulativa com pena privativa de liberdade.

Art. 114. A prescrição da pena de multa ocorrerá:

I — em 2 (dois) anos, quando a multa fo r a única cominada ou aplicada;

II — no mesmo pra%o estabelecido para prescrição da pena privativa de liberdade, quando a multa fo r alternativa ou cumulativamente cominada ou cumulativamente aplicada.

1.7. Prescrição das medidas de segurança

A aplicação ou execução de medidas de segurança prescreve com a prescrição da pretensão punitiva ou da pretensão executória do Estado em relação ao tipo de injusto pressuposto na medida de segurança.12

1.8. Causas impeditivas da prescrição

As causas impeditivas da prescrição são constituídas por pressu­postos ou acontecimentos necessários para decidir sobre a existência do crime ou sobre a aplicação da pena, cuja existência impede o curso do prazo prescricional. As causas impeditivas da prescrição são classificadas com base no trânsito em julgado da sentença criminal:

a) causas impeditivas da prescrição antes do trânsito em julgado da sentença criminal são (a) as questões prejudiciais (por exemplo,

12 WELZEL, Das Deutsche Strafrecht, 1969, 11a edição, p. 262.

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Capítulo 25 Extinção da Punibilidade

decisão sobre a validade do casamento anterior, em processo por biga­mia) e (b) o cumprimento de pena no estrangeiro;

b) causa impeditiva da prescrição depois do trânsito em julgado da sentença condenatória é uma só: a prisão do condenado por outro motivo.

Art. 116. Antes de transitar emjulgado a sentença final, a prescrição não corre:I — enquanto não resolvida, em outro processo, questão de que dependa o reconhecimento da existênáa do crime;

II — enquanto o agente cumpre pena no estrangeiro.Parágrafo único. Depois de passada emjulgado a sentença condenatória, a prescrição não corre durante o tempo em que o condenado está preso p o r outro motivo.

1.9. Causas interruptivas da prescrição

As causas interruptivas da prescrição são representadas por acon­tecimentos processuais ou pessoais que interrompem o curso do prazo prescricional iniciado, cancelam o prazo de prescrição decorrido e de­terminam o início de novo prazo prescricional integral a partir do dia da interrupção — exceto na hipótese de continuação do cumprimento de pena (art. 117, Y, CP, segunda hipótese), em que a prescrição é regulada pelo tempo restante da pena (arts. 113 e 117, §2°, CP).

As causas interruptivas da prescrição são expressamente indicadas na lei (art 117,1-VI, CP): a) recebimento da denúncia ou queixa; b) pronúncia; c) confirmação da pronúncia; d) sentença condenatória recorrível; e) início ou continuação do cumprimento da pena; f) reincidência.

Enfim, nos crimes conexos objeto do mesmo processo (por exemplo, em caso de concurso formal) a interrupção da prescrição em relação a um deles, generaliza-se a todos os demais (art. 117, §1°,

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Teoria da Pena Capítulo 25

segunda parte, CP).Art. 117. O curso da prescrição interrompe-se:I —pelo recebimento da denúncia ou da queixa;II — pela pronúncia;III — pela decisão confirmatória da pronúncia;

IV —pela sentença condenatória recorrível;

V—pelo iníáo ou continuação do cumprimento da pena;

VI—pela reincidência.

§1° Excetuados os casos dos incisos V e VI deste artigo, a interrupção da prescrição produ^ efeitos relativamente a todos os autores do crime. Nos crimes conexos, que sejam objeto do mesmo processo, estende-se ao demais a interrupção relativa a qualquer deles.

§2° Interrompida a prescrição, salvo a hipótese do inciso V deste artigo, todo o pra^o começa a correr, novamente, do dia da interrupção.

1.10. Prescrição das penas menos graves com as mais graves

A regra de que as penas mais leves prescrevem com as mais graves parece supérflua (art. 118, CP): se pretensões punitivas ou executórias de penas mais graves estão prescritas por decurso de tempo maior, então pretensões punitivas ou executórias de penas mais leves estão necessariamente prescritas por prévio decurso de tempo menor.

Art 118. As penas mais leves prescrevem com as mais graves.

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Capítulo 25 Extinção da Punibilidade

2. Decadência

A decadência, significa perda do direito de ação penal privada pelo decurso do prazo contínuo e peremptório de 6 (seis) meses — ou de3 (três) meses, na Lei de Imprensa —, contado (a) da data do conheci­mento do autor do fato criminoso (ou da publicação, ou transmissão da matéria, na Lei de Imprensa), ou (b) da expiração do prazo para oferecimento da denúncia, no caso de ação penal privada subsidiária da pública (art. 103, CP).

3. Perempção

A perempção constitui fenômeno processual extintivo da pu­nibilidade em ações penais de iniciativa privada, caracterizado pela inatividade, pela omissão ou pela negligência do autor na realização de atos processuais específicos, enumerados no art. 60, do Código de Processo Penal: a) deixar de promover o andamento de ação penal privada iniciada, durante 30 (trinta) dias; b) ausência de substituição processual, no prazo de 60 (sessenta) dias, na hipótese de falecimento ou incapacitação do querelante; c) ausência injustificada a ato pro­cessual a que deva comparecer; d) deixar de pedir a condenação do querelado, nas alegações finais.13

13 Ver MF.SnTTF.RT, Manual de direito penal (parte geral), 1999, p. 324-325.

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Teoria da Pena Capítulo 25

V. Renúncia e Perdão

1. Renúncia. A renúncia do direito de queixa significa a desistênáa do ofendido ou representante legal de exercer a pretensão punitiva contra o autor de crimes de ação penal privada, e pode ser expressa ou tááta (art. 104, parágrafo único, CP):

a) a renúncia expressa é a declaração formal de recusa ao exercício do direito de queixa, independente dos motivos do ofendido ou de seu representante legal;

b) a renúncia tácita significa a prática de ato incompatível com a vontade de exercer o direito de queixa, como a manutenção de relações de amizade, de convívio ou de coabitação consentida entre autor e vítima.

2. Perdão. O perdão significa ato de magnanimidade pessoal do ofendido, de exculpação do autor de crimes de ação penal privada, cuja aceitação pelo ofensor extingue a punibilidade do fato, igualmente podendo ser expresso ou tácito: a) o perdão expresso é a declaração for­mal do ofendido exculpando o ofensor pela prática de crime de ação penal privada; b) o perdão tãáto é representado pela prática de ato incompatível com o prosseguimento da ação penal, como a continu­ação de relações de amizade, de convívio etc.

O perdão é admissível até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (art. 106, §2°, CP), quando o Estado se reincor- pora na titularidade do poder repressivo e o perdão perde o poder extintivo da punibilidade.

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Capítulo 25 Extinção da Punibilidade

T/T Retratação do agente

A retratação é o ato pelo qual o autor de declaração incriminada desdt\ o que disse, por escrito próprio ou termo nos autos, com o objetivo de desfazer lesões típicas de bens jurídicos: o autor retifica o conteúdo ou corrige o significado de declaração constitutiva de crime— portanto, cometido pela palavra falada ou escrita —, cuja formaliza­ção processual, até a publicação da sentença condenatória, extingue a punibilidade do fato.

Os crimes contra a honra são casos específicos de admissibilida­de da retratação extintiva da punibilidade, mas com extensões diferentes na legislação comum e na especial: a) no Código Penal, a retratação extingue a punibilidade da calúnia e da difamação, porque pode desfa­zer o dano à imagem pública ou ao conceito social do ofendido, mas não é admitida na injúria, porque a ofensa ao sentimento da própria dignidade ou decoro da vítima é irretratável (art. 143, CP); b) na Lei de Imprensa, a natureza social dos meios de comunicação de massa (rádio, jornal, televisão) parece explicar a atribuição de efeito extintivo da punibilidade à retratação em todas as modalidades de crimes contra a honra (art. 26, da Lei 5.250/67).

Alguns crimes comuns cometidos através da palavra falada ou escrita, como o falso testemunho ou a falsa perícia, também admitem a retratação do agente, até a publicação da sentença condenatória (art. 342, §3°, CP).14

14 Comparar MESTIERI, Manual de direito penal (parte geral), 1999, p. 326; BITEN­COURT, Tratado de direito penal, 2003, 8a edição, v. 1, p. 708.

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Teoria da Pena Capítulo 25

VII. (Revogado pela Lei 11.106/05)

VIII. (Revogado pela Lei 11.106/05)

IX. Perdão judicial

O perdão judicial tem por objeto hipóteses legais de exclusão ju - dicial da pena, determinada por circunstâncias, condições, resultados ou conseqüências especiais do fato. Assim, por exemplo, a gravidade das conseqüências para o autor, no homicídio e na lesão corporal imprudentes (art. 121, §5° e 129, §6°, CP); a provocação reprovável da injúria e a injúria como retorsão imediata de outra injúria (art. 140, §1°, CP); a primariedade do agente na receptação presumida (art. 180, §3° e §5°, CP) etc.

A sentença concessiva do perdão não produz nenhum dos efeitos da sentença condenatória, como a reincidência e a certeza da obrigação de indenizar (art. 120, CP).15

Art. 120. A. sentença que conceder perdão judicial não será considerada para efeitos de reinádênáa.

15 Ver BITENCOURT, Tratado de direito penal’ 2003, 8a edição, v. 1, p. 711.

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Capítulo 25 Extinção âa Punibilidade

X. A extinção da punibilidade nos tipos complexos, nos tipos dependentes de outros tipos, nos tipos que pressu­põem outros tipos, nos tipos qualificados pelo resultado e nos tipos conexosNos tipos complexos, como tipos compostos de outros tipos (o

roubo, constituído pelo constrangimento ilegal e pelo furto), nos tipos dependentes de outros tipos ou que pressupõem outros tipos (a receptação, em relação ao furto ou ao roubo) e nos tipos qualificados p or outros tipos (o furto qualificado pelo dano na subtração da coisa) — em todos esses casos, a extinção da punibilidade do tipo elementar (nos tipos comple­xos), do tipo pressuposto em outro tipo, ou do tipo qualificador de outro tipo, não extingue a punibilidade do tipo complexo, do tipo que pressupõe outro tipo ou do tipo qualificado p or outro tipo, segundo a regra da primeira parte do art. 108, CP.

Nos tipos conexos, como tipos vinculados por certas relações ou fins (por exemplo, o homicídio da testemunha para ocultar outro crime), a extinção da punibilidade de um deles não impede a agrava- ção da pena dos demais tipos relacionados por conexão, na forma da segunda parte do art. 108, CP.16

Art. 108. A. extinção da punibilidade de crime que épres­suposto, elemento constitutivo ou circunstância agravante de outro não se estende a este. Nos crimes conexos, a extinção da punibilidade de um deles não impede, quanto aos outros, a agravação da pena resultante da conexão.

16 MESTIERI, Manual de direito penal (parte geral), 1999, p. 327.

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Teoria da Pena Capítulo 25

XI. A. extinção da punibilidade no concurso de crimes

Nas hipóteses de concurso formal, material ou continuado de fatos puníveis, a exdnção da punibilidade incide sobre cada fato punível isolado da relação de pluralidade formal, material ou continuada (art. 119, CP).

Art. 119. No caso de concurso de crimes, a extinção da pu ­nibilidade incidirá sobre a pena de cada um, isoladamente.

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C apítu lo 2 6

C r im in o l o g ia e P o l ít ic a C r im in a l

A formulação de programas de política criminal nas sociedades contemporâneas pressupõe assunção, consciente ou inconsciente, dos fundamentos políticos da Criminologia etio lógica, por um lado, ou da Criminologia crítica, por outro lado, cujos postulados filosóficos e méto­dos científicos são diametralmente opostos. A Criminologia etiológica é a ciência oficial de explicação do crime e do comportamento criminoso, cujos programas de política criminal consistem em indicações técnicas de mudanças da legislação penal para corrigir disjunções identificadas por critérios de eficiência ou de efetividade do controle do crime e da criminalidade — com os desastrosos resultados práticos conhecidos; ao contrário, a Criminologia crítica é a ciência dialética alternativa de expli­cação do crime e do comportamento criminoso, cujos programas de política criminal propõem um Direito Venal mínimo, orientado pela idéia de abolição do sistema penal, como objetivo estratégico final.1

I. Política criminal alternativa

1. A Criminologia etiológica tem por objeto de estudo o criminoso e a criminalidade, concebidos como realidades ontológicas preexistentes ao sistema de justiça criminal e explicados pelo método positivista de

1 BARATTA, Criminologia crítica e crítica do direito penal’ 2000, 2a edição, p. 208-209.

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Teoria da Pena Capitulo 26

causas biológicas, psicológicas e ambientais.

A Criminologia crítica se caracteriza pela mudança do objeto de estudo e do método de estudo do objeto:

a) o objeto de estudo é deslocado do criminoso e da criminalidade, como dados ontológicos preexistentes, para o processo de criminalização de sujeitos e de fatos, como realidades construídas pelo sistema de controle social, capaz de mostrar o crime como qualidade atribuída a comportamentos ou pessoas pelo sistema de justiça criminal, que constitui a criminalidade por processos seletivos fundados em este­reótipos, preconceitos, idiossincrasias e outros mecanismos ideoló­gicos dos agentes de controle social, desencadeados por indicadores sociais negativos de marginalização, desemprego, pobreza, moradia em favelas etc.;2

b) a abordagem do objeto descarta o método etiológico das determi­nações causais de objetos naturais empregado pela Criminologia tradiáonal.\ substituído por um método adaptado à natureza de objetos sociais— como são os fenômenos criminais, por exemplo —, assim constituído: a) ao nível do caso concreto, o método interadonista de construção social do crime e da criminalidade, responsável pela mudança de foco do indivíduo para o sistema de justiça criminal;3 b) ao nível do sistema sócio-político, o método dialético que insere a construção social do crime e da crimina­lidade no contexto da contradição capital/trabalho assalariado, que define as instituições básicas das sociedades capitalistas.4

2 Ver ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 27 s.; BARATTA, Che cosa e la criminologia critica?, in Dei Delitti e delle Pene, 1985, n. 3, p. 53; HASSEMER, Einführung in die Grundlagen des Strafrechts, 1990, p. 60 s.

3 BECKER, Outsiders: Studies in the Sociology ofDeviance, 1963.4 ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 44-45; também CIRINO DOS SANTOS, A

criminologia radical’ 2006, p. 100.

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Capítulo 26 Criminologia e Política Criminal

1. Origens epistemológicas

1. O paradigma do labeling approach, originário da criminologia fenome- nológica americana de meados do século XX, estuda a criminalidade como fenômeno social produzido por normas e valores — e não como coisa explicável por etiologias causais —, dirigindo a atenção para de­finições institucionais e formas de comunicação intersubjetivas no processo de construção social do crime e da criminalidade.5 Esse novo paradigma, considerado uma revolução áentifica em teoria criminoló- gica, (a) define comportamento criminoso como qualidade atribuída por agências de controle social a determinadas condutas, mediante aplicação de regras e sanções, e (b) define criminoso como “o sujeito ao qual se aplica com sucesso o rótulo de criminoso ”, segundo a célebre defi­nição de BECKER.6

2. O labeling approach representa uma condição necessária, mas ainda insuficiente para formação da Criminologia crítica, como dizia BARAT­TA: condição necessária porque mostra o crime e o comportamento criminoso como conseqüência da aplicação de regras e de sanções pelo sistema de justiça criminal — e não como qualidade da ação ou característica do autor, segundo a etiologia positivista; mas condição insuficiente porque não mostra os mecanismos de distribuição social da criminalidade, identificáveis pela inserção do processo de criminalização no contexto das instituições fundamentais das sociedades modernas — a relação capital/trabalho assalariado —, capaz de revelar que o poder de definir crimes e de atribuíra qualidade de criminoso a comportamentos

5 BECKER, Outsiders: Studies in the Sociology ofDeviance, 1963; BARATTA, Che cosa è lacriminologia critica? in Dei Delitti e delle Pene, 1985, n. 3, p. 54

6 BECKER, Outsiders: Studies in the Sociology ofDeviance, 1963, p. 8; para detalhes, BER-GALLI, La recaída en el delito: modos de reacdonar contra ella, 1980, p. 215-243; ANIYAR DE C., Criminohgia de la reacáon social.' 1977, p. 111-172; ANDRADE, Sistema penal máximo x ádadania mínima, 2003, p. 45-49.

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Teoria da Pena Capítulo 26

e pessoas corresponde às desigualdades soáais em propriedade e poder das sociedades contemporâneas.7

3. A integração dos processos subjedvos de construção soáal da crimi­nalidade, estudados pelo labeling approach, com os processos objetivos estruturais e ideológicos das relações sociais de produção da vida mate­rial, definidos pela teoria marxista — especialmente nas interpretações modernas de GRAMSCI e de HABERMAS, por exemplo —, lançou as bases de formação da Criminologia crítica na Europa e, depois, na América Latina.8

Nesse processo de integração científica e metodológica, a media­ção de uma teoria estrutural (marxismo) por uma teoria da linguagem (labeling) parece ter projetado nova luz sobre a complexa relação sujeito/objeto, porque nem o real pode ser reduzido à subjetividade, nem o subjetivo pode ser dissolvido na realidade — aliás, em outro contexto, a subjetividade foi definida como momento do processo objetivo,9 com a permanente internalização do objeto pelo sujeito, que trans­forma o mundo real pela constante objetivação da subjetividade — ou seja, pela contínua realização de projetos. A integração do marxismo com o interaáonismo permitiu unificar a pesquisa dos processos subje­tivos de representação da realidade com a pesquisa da base objetiva da negatividade soáal como novo fundamento do conceito de crime.

7 Ver ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 44-45; também BARATTA, Che cosa è la criminologia crítica?, in Dei Delitti e delle Pene, 1991, n. 1, p. 55; igualmente, CI- RINO DOS SANTOS, Teoria da pena , 2005, p. 2 s.

8 BARATTA, Che cosa è la criminologia critica? in Dei Delitti e delle Pene, 1991, n. 1,p. 60-61.

9 BARATTA, Che cosa e la criminologia critica? in Dei Delitti e delle Pene, 1991, n. 1,p. 62, que atribui a defnição a SARTRE.

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Capítulo 26 Criminologia e Política Criminal

2. Criminalidade e imagem da criminalidade

1. A teoria da linguagem permidu descobrir o significado da projeção de imagens ou símbolos na psicologia do povo pelos meios de comu­nicação de massa, segundo o célebre teorema de THOMAS, assim formulado: situações definidas como reais produzem efeitos reais}® Logo se imagens da realidade produzem efeitos reais, então seria desnecessário agir sobre a realidade para produzir resultados concretos, porque ações sobre a imagem da realidade seriam suficientes para criar efeitos reais na opinião pública — por exemplo, ações sobre a imagem da criminalidade têm sido suficientes para criar efeitos reais de alarme soáal., necessário para campanhas de lei e ordem desencadeadas com o objedvo de ampliar o poder polídco e legitimar a repressão penal, em épocas de crise social —, como a história da América Latina e do Brasil demonstram.11

2. Assim, o estudo de percepções e atitudes projetadas na opinião pública permitiu descobrir os efeitos reais de imagens da criminalidade difundidas pelos meios de comunicação de massa, que disseminam representações ideológicas unitárias de luta contra o crime, apresentado na mídia como inimigo comum de todas as classes sociais — e, desse modo, introduzem divisões nas camadas sociais subalternas, infundindo na força de tra­balho ativa atitudes de repúdio agressivo contra a população marginali­zada do mercado de trabalho, por causa de potencialidades criminosas estruturais interpretadas como expressão de defeitos pessoais.12 No Brasil, exemplo de efeitos reais resultantes da ação do poder político sobre a imagem da criminalidade através dos meios de comunicação de massa sobre a opinião pública, é a legislação penal de emergênáa dos anos

10 Ver BARATTA, Che cosa è la crmúnologa critica? in Dei Dditti e delle Pene, 1991, n 1, p. 63.11 BARATTA, Che cosa è la criminologia critica? in Dei Delittí e delle Pene, 1991, n. 1, p. 65.12 Ver BARATTA, Che cosa e la criminologia critica? in Dei Delitti e delle Pene, 1991,

n. 1, p. 64-65.

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Teoria da Pena Capítulo 26

90, que introduziu os conceitos de crime organizado, de delação premiada, de agente infiltrado e outras, com a conseqüente supressão ou redução de direitos e garandas democráticas do processo penal.13

II. Direito Venal mínimo

1. O discurso crítico sobre o sistema de jusdça criminal fundado na prisão é muito claro: as funções declaradas de prevenção da crimi­nalidade e de ressocialização do criminoso — cujo fracasso histórico é representado pelo célebre isomorfismo reformista de FOUCAULT, de reconhecimento do fracasso e de reproposição reiterada do mesmo projeto fracassado14 — consdtuem retórica legitimadora da repressão seletiva de indivíduos das camadas sociais inferiores, fundada em in­dicadores sociais negativos de marginalização, desemprego, pobreza etc., que marca a criminalização das massas excluídas da cidadania no capitalismo;15 ao contrário, as funções reais do sistema penal fundado na prisão constituem absoluto sucesso histórico, porque a gestão diferenáal da criminalidade garante as desigualdades sociais em riqueza e poder das sociedades fundadas na relação capitalj trabalho assalariado,16 Em suma, o discurso crítico fundado na moderna teoria criminológica atribui “o fracasso histórico do sistema penal aos o b j e t i v o s i d e o l ó g i c o s (funções aparentes) e identifica nos o b j e t i v o s r e a i s (funções ocultas) o

13 CIRINO DOS SANTOS, Crime organizado, in Revista de Brasileira de Ciências Criminais (publicação oficial do IBCCRIM), n. 42, 2003, p. 214-224.

14 FOUCAULT, Vigiar epunir, 1977, p. 239.15 Ver ZAFFARONI/BATISTA/ALAGIA/SLOKAR, Direito penal brasileiro, 2003,

p. 98-109.16 CIRINO DOS SANTOS, Teoria da pena, 2005, p. 2-3 e 19-38; do mesmo, A. crimi­

nologia radical, 1981, p. 88.

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Capítulo 26 Criminologia e Política Criminal

êxito histórico do sistema punitivo, como aparelho de garantia e de reprodução do poder social”}1

Por esse motivo, a proposta de Direito Penal mínimo do programa alternativo de política criminal tem por objetivo reduzir o Direito Penal e humanizar o sistema penal, como procedimentos táticos necessários ao objetivo estratégico final de abolição do sistema penal — o que diferencia o discurso crítico de quaisquer outros projetos reformistas e, em especial, do discurso oficial sobre crime e controle social inspirado na Criminologia etiológica tradicional.

2. O sistema penal — constituído de lei penal, polícia, justiça e prisão— é o aparelho repressivo do moderno Estado capitalista, garantidor de relações sociais desiguais de produção/distribuição material, respon­sáveis pela violência estrutural da marginalização, do desemprego, dos baixos salários, da falta de moradia, do ensino precário, da mortalidade precoce, do menor abandonado etc., que flagelam a pobreza social.18 De fato, a ordem social desigualé assegurada pela seletividade do sistema de justiça criminal nos níveis de definição legal.' de aplicação judiáa l e de execução penal\ assim estruturado:

a) em primeiro lugar, a definição legal seletiva de bens jurídicos próprios das relações de propriedade e de poder das elites econômicas e políticas da formação social (lei penal);

b) em segundo lugar, a estigmati^açãojudicial seletiva de indivídu­os das classes sociais subalternas, em especial dos marginalizados do mercado de trabalho e das relações de consumo da sociedade (justiça penal);

17 CIRINO DOS SANTOS, A. criminologia radical, 2006, p. 128; do mesmo, Teoria da pena, 2005, p. 2-3.

18 BARATTA, Principi del diritto penal minimo. Per una teoria dei diritti umani come oggetti e limiti delia leggepenale, in Dei Delitti e delle Pene, 1991, n. 1, p. 444-445.

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Teoria da Pena Capítulo 26

c ) em terceiro lugar, a repressão penal seletiva de indivíduos sem utilidade no processo de produção de mais-valia e de reprodução am­pliada do capital (prisão).19

3. As distorções do sistema de justiça criminal em cada um dos níveis de sua existência institucional definem as linhas de um programa alternativo de reforma da legislação penal. É importante destacar o seguinte: o conhecimento de que o cárcere é incapaz de ressocializar — ao contrário, é capaz de inserção definitiva em carreiras criminosas, segundo o labeling approach —, não implica fechar os olhos para os problemas do sistema carcerário. Diferente de variantes críticas de esquerda — como o neo- realismo., que admite a neutralização e a retribuição justa, ou o idealismo, que repropõe a ressocialização para evitar a retribuição20 —, o discurso jurídico-penal fundado na Criminologia crítica considera indispensável a reintegração soáal do condenado, não a tra v é s do cárcere — o que é impossível —, mas a p e s a r Ao cárcere — e a mudança semântica de res- sociali^ação para reintegração soáal,’ ao deslocar a atenção d o condenado p a r a a relação sujeito/comunidade, não é gratuita: significa reintegrar o condenado em sua classe e nas condições de luta de classes das sociedades contemporâneas.21

Na base dessa proposta está a consciência de que cárceres melhores não existem — daí, a proposta de abolição do sistema carcerário22 —, mas também a consciência de outras coisas: que toda melhora das condições de vida do cárcere deve ser estimulada, que é necessário distinguir entre cárceres melhores epiores, que não é possível apostar na hipótese de quanto pior; melhor etc. Por tudo isso, o objetivo imediato é menos melhor cárcere

19 CIRINO DOS SANTOS, Teoria da pena, 2005, p. 35.20 RUGGIERO, Quando la criminologia evade i l reale (una critica del realismo criminologico),

in Dei Delitti e delle Pene, 1992, n. 1, p. 95-113.21 BARATTA, Criminologia crítica e crítica do direito penal, 1999, p. 204.22 Ver PAVARINI, II sistema delia giusti^apenale tra ridu^ionismo e abolicionismo, in Dei

Delitti e delle Pene, 1991, n. 1, p. 525-553.

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Capítulo 26 Criminologia e Política Criminal

e mais menos cárcere., com a maximização dos substitutivos penais, das hipóteses de regime aberto, dos mecanismos de diversão e de todas as indispensáveis mudanças humanistas do cárcere.23

III. Propostas de reforma da legislação pena l

O Direito Venal mínimo é expressão de princípios políticos e de princípios jurídicos que definem os fundamentos do programa de política criminal da Criminologia crítica para as sociedades capitalis­tas.24 Considerando esses princípios, o programa de reforma penal da Criminologia crítica propõe mudanças em duas direções principais: a) no sistema de justiça criminal, um programa de descriminalizçação e de despenali^ação radicais, como alternativa necessária para reduzir o Direito Penal ao mínimo possível; b) no sistema carcerário, um programa de descarceri^ação radical, como alternativa necessária para humanizar as condições de vida no cárcere ao máximo possível.

1. Propostas de redução do sistema de justiça cri­minal

As propostas de redução do Direito Penal têm por objeto progra­mas radicais de descriminali^ação e de despenali^ação, assim formulados:1.1. Descriminalização. O programa de descriminali^ação da Crimino­logia crítica está estruturado nas seguintes linhas:

23 Assim BARATTA, Che cosa è la criminologia critica? in Dei Delitti e delle Pene, 1985, n. 3, p. 70-73.

24 Ver, para todos os princípios a seguir indicados, BARATTA, Principi deldirittopenal minimo. Per una teoria dei diritti umani come oggetti e limiti delia leggepenale, in Dei Delitti e delle Pene, 1991, n. 1, p. 444-467.

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Teoria da Pena Capítulo 26

Em primeiro lugar, a descriminalização é indicada em todas as hipóteses (a) de crimes punidos com detenção, (b) de crimes de ação penal privada, (c) de crimes de ação penal pública condicionada à representação e (d) de crimes de perigo abstrato — sob os seguintes fundamentos: a) violação do princípio de insignificância, por conteúdo de injusto mínimo, desprezível ou inexistente; b) violação do princípio de subsidiariedade da intervenção penal, como ultima ratio da política social, excluída no caso de suficiência de meios não penais; c) viola­ção do princípio de idoneidade da pena, que pressupõe demonstração empírica de efeitos sociais úteis, com exclusão da punição no caso de efeitos superiores ou iguais de normas jurídicas não penais; d) violação do primado da vítima, que viabilizaria soluções restitutivas ou indeni^atórias em lugar da punição.

Em segundo lugar, a descriminalização é indicada nos crimes sem vítima, como o auto-aborto (art. 124, CP), o aborto consentido (art. 125, CP) e outros crimes da categoria mala quiaprohibita, sob os se­guintes fundamentos: a) violação do princípio de criminalização ex­clusiva da lesão de bens jurídicos individuais definíveis como direitos humanos fundamentais; b) violação do princípio de proporcionalidade concreta da pena, porque a punição agrava o problema social, ou produz custos sociais excessivos, especialmente em condenados das classes sociais subalternas, objeto preferencial da repressão penal.

Em terceiro lugar, a descriminalização é indicada nas hipóteses de crimes qualificados pelo resultado, como a lesão corporal qualificada pelo resultado de morte (art. 129, § 3o, CP), sob o fundamento de viola­ção do princípio de responsabilidade penal subjetiva., como imputação de responsabilidade penal objetiva originária do velho versari in re illicita do direito penal canônico, incompatível com o Estado Democrático de Direito.

Em quarto lugar, a descriminalização é indicada nas hipóteses do denominado direito penal simbólico, produzido pela crescente adminis-

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Capítulo 26 Criminologia e Política Criminal

trativização do Direito Penal, como uso indiscriminado do poder punidvo para reforçar o cumprimento de obrigações públicas, em especial nas áreas tributária, societária e ecológica, substituídos por ilíátos administrativos e civis dotados de superior eficácia instrumental e social.

1.2. Despenalização. O programa de despenali^ação da Criminologia crítica está estruturado nas seguintes linhas:

Em primeiro lugar, extinguir o arcaico sistema de penas mínimas previsto em todos os tipos legais de crimes da legislação penal brasi­leira, abolido em legislações penais modernas, pelas seguintes razões:a) viola o princípio da culpabilidade em casos de necessária fixação de pena abaixo do mínimo legal — por circunstâncias judiciais ou legais —, hipóteses em que a pena não constitui medida da culpabilidade e, portanto, é ilegal; b) impede políticas criminais humanistas concebidas para reduzir os efeitos desintegradores, dessocializadores e crimino- gênicos da prisão.

Em segundo lugar, reduzir a pena máxima de todos os tipos legais de crimes subsistentes da legislação penal brasileira, inspirados em concepção de política criminal troglodita já criticada pelo humanismo esclarecido de BECCARIA, que atribuía poder desestimulante do cri­me à certeza da punição — e não à gravidade da pena, ou ao rigor da punição, como ainda pensam o legislador e os meios de comunicação de massa brasileiros.

Em terceiro lugar, redefinir as hipóteses de substitutivos penais e de extinção da punibilidade para permitir a mais ampla despenalização concreta, com o objetivo de evitar os efeitos negativos do cárcere, priorizando os seguintes institutos jurídicos: a) o perdão judiáal; b) a conáliação; c) a transação penal; d) a suspensão condiáonal da pena; e) a pres­

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Teoria da Pena Capítulo 26

crição penal., considerada de três pontos de vista: redução dos prazos arbitrários da prescrição da pretensão punitiva., desconsideração das causas de interrupção da prescrição retroativa (impossíveis em processos mentais retrospectivos baseados no fluxo imaginário do tempo) e instituciona­lização legal da prescrição retroativa antecipada (por econojnia processual e pacificação social); f) extensão legal aos crimes patrimoniais comuns não-violentos, por interpretação analógica in bonampartem, da extinção da punibilidade pelo pagamento dos crimes tributários, nos casos de ressarcimento do dano ou de restituição da coisa.

Em quarto lugar, a despenalização pardal na hipótese dos crimes hediondos (Lei 8.072/90), mediante cancelamento da ilegal agravação dos limites penais mínimo e máximo dos crimes respectivos, sob os seguintes fundamentos: a) violação do princípio da resposta penal não contingente, pelo qual a lei penal deve ser resposta solene a conflitos so­ciais fundamentais, gerais e duradouros, com debates exaustivos do Poder Legislativo, mas também dos partidos políticos, dos sindicatos e outras organizações da sociedade civil; b) violação do princípio de propordonalidade abstrata, pelo qual a pena deve ser proporcional ao dano social do crime.

2. Propostas de humanização do sistema penal

As propostas de humanização do sistema penal têm por objeto programas radicais de descarcerização — a superpopulação carcerária no Brasil excede o dobro da capacidade física de penitenciárias e prisões

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Capítulo 26 Criminologia e Política Criminal

públicas, com 401.236 presos25 — e de garantia dos direitos legais e constituáonais do condenado, assim formuladas:

2.1. Em primeiro lugar, é indispensável e urgente despovoar o sistema carcerário mediante radical descarceri^ação realizada por ampliação das hipóteses de extinção, de redução ou de desinstituáonali^ação da execução penal, em especial nos seguintes casos:

a) no livramento condiáonal’ reduzir o tempo de cumprimento de pena para concessão do benefício, pela natureza arbitrária dos prazos legais, assim como extinguir os pressupostos gerais subjetivos de com­portamento satisfatório e de bom desempenho no trabalho, também exigidos para concessão do benefício, por sua óbvia natureza idiossincrática e arbitrária;

b) na remição penal (1) reduzir a equação legal de 3 diasI trabalho por 1 diajpena, substituída por nova equação legal de 1 dia! trabalho por 1 dia/pena, pela natureza arbitrária e carente de fundamento cien­tífico do critério legal vigente, e (2) admitir equivalência entre trabalho produtivo e trabalho artesanal para efeito de remição da pena, no caso de inexistência de trabalho produtivo ou equivalente na instituição penal respectiva (art. 126 e §§, LEP);

c) no regime aberto, ampliar o limite da pena aplicada paraconcessão do benefício — por exemplo, ampliar o limite atual de 4 (quatro) anos para 6 (seis) ou 8 (oito) anos —, com correspondentes alterações nos regimes semi-aberto e fechado (art 33, §2°, a, b, c, CP), para evitar os reco­nhecidos efeitos negativos da prisão, além da economia de custos;

d) na progressão de regimes da execução da pena, (1) acelerar a pas­sagem de regime mais grave para regime menos grave, mediante redução do tempo mínimo de cumprimento de pena no regime anterior— por exemplo, reduzir o tempo mínimo atual de 1 /6 (um sexto) de

25 DEPEN, Departamento Penitenciário Nacional (dezembro de 2006).

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Teoria da Pena Capítulo 26

cumprimento de pena para 1/10 (um décimo) ou 1/12 (um doze avos) da pena —, tendo em vista a natureza arbitrária desses limites mínimos e a necessidade de reduzir os efeitos negativos da prisão, e (2) exdnguir o requisito subjedvo de bom desempenho no trabalho para progressão de regime (art. 112, LEP), igualmente por sua natureza arbitrária e idiossincrática.

2.2. Em segundo lugar, é essencial garantir o exercício de direitos le­gais e constitucionais do condenado, como forma de compensação oficial pela injustiça das condições sociais adversas, insuportáveis e insuperáveis da maioria absoluta dos sujeitos selecionados para criminalização pelo sistema penal, mediante prestação dos seguintes serviços públicos: a) instrução geral e profissional, como condição de promoção humana; b) trabalho interno e externo, como condição de dignidade humana; c) serviços médicos, odontológicos e psicológicos especializados, como condição de existência humana.

2.3. Em terceiro lugar, é urgente revogar o execrável regime disciplinar diferenáado da Lei 7.210/84, com a redação da Lei 10.792/03, que viola o princípio de humanidade e o princípio de proporcionalidade do Direito Penal.

Essas propostas podem servir de base para um projeto democrático de reforma da legislação penal brasileira, com imediata e necessária redução do genocídio social produzido pelo sistema penal, instituído para garantir uma ordem social desigual e opressiva fundada na relação capital/trabalho assalariado. Mas é impossível concluir sem dizer o seguinte: juristas e criminólogos críticos também sabem que a única resposta para o problema da criminalidade é a democracia real\ porque nenhuma política criminal substitui políticas públicas de emprego, de salário digno, de moradia, de saúde e, especialmente, de escolarização em massa da população, a única riqueza do Estado, como organização política do poder soberano do povo.

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742

Ín d ic e A l f a b é t ic o R e m iss iv o

Os algarismos arábicos em negrito indicam capítulos, os algarismos romanos indicam seções e os algarismos arábicos normais indicam itens.

AÇÃO PENAL 24 ação penal 24 III

- ação penal privada 24 III 2- ação penal privada subsidiária 24

III 2.1- extinção do direito de queixa 24

III 2.3- transmissão do direito de queixa

24 III 2.2- ação penal pública 24 III 1

- ação penal pública condicionada 24 III 1.2

- ação penal pública extensiva 2 4 III1.3

- ação penal pública incondicionada 24 III 1.1

limitações democráticas do poder de punir 24 Iprincípios constitucionais do proces­so penal 2 4 II

- princípios da prova processual 24 II2- princípio da livre valoração da

prova 24 II 2 a- princípio in dubio p ro reo 24 II 2 b

- princípios de formação do processo24 III- princípio da acusação 24 II 1 b- princípio da instrução 24 I I 1 e- princípio da legalidade 24 I I 1 c- princípio da oficialidade 24 I I 1 a- princípio da oportunidade 24 I I 1 d

ANTIJURIDICIDADE E JUSTIFI­CAÇÃO 11

justificações 11IIconsentimento do titular do bem ju­rídico 11II E

- consentimento presumido 11II E 2- consentimento real 11II E 1

- capacidade e defeito do consenti­mento 11II E 1 b

- manifestação do consentimento 11II E 1 c

- objeto do conhecimento 11IIE 1 a estado de necessidade 11II B

- ação justificada 11II B 2- conflito de interesses do mesmo

portador 11II B 4- elementos objetivos do estado de

necessidade 1III B 2.1- elementos subjetivos do estado de

necessidade 11II B 2,2- posições especiais de dever 11IIB 3- situação justificante 11II B 1

estrito cum primento de dever lega l 11II C

- ação justificada 11II C 2- cumprimento de ordens antijurídi-

cas 11II C 2.2- ruptura dos limites do dever 11II

C 2.1- elementos subjetivos 11II C 3- situação justificante 11II C 1

exercício regular de direito 11II D- ação justificada 11II D 2- elementos subjetivos 11II D 3- situação justificante 11II D 1

- atuação pro magistratu 11II D 1

743

índice Alfabético Remissivo

- direito de castigo 11II D 1 2 justificações em tipos de imprudência 11II F

- consentimento do titular do bem jurídico 11II F 3

- estado de necessidade 11II F 2- legítima defesa 11II F 1

legítim a defesa 11II A- ação justificada 11II A 2

- elementos objetivos 11IIA 2.1- moderação no emprego dos meios necessários A 2.1 2- necessidade dos meios de defesa 11

ü A 2.1.1- permissibilidade da legítma de­

fesa 11II A 2.3- elementos subjetivos 11II A 2.2

- particularidades 11II A 3- excesso de legítima defesa 11 II A

3 c- extensão da justificação 11 II A 3

b- legítima defesa de outrem 11 II A

3 a- situação justificante 11II A 1

teoria da antijuridicidade 111- antijuridicidade e injusto 111 1- conhecimento e erro nas justificações

1113- efeito das justificações 111 4- fundamento das justificações 111 2

APLICAÇÃO DAS PENAS CRIMI­NAIS 21efeitos da condenação 21III

- efeitos específicos 2 1 III 2- inabilitação para dirigir veículo 21

III 2 c- incapacitação para pátrio poder,

tutela ou curatela 21 III 2 b- perda de cargo, função pública ou

mandato eletivo 21III 2 a- efeitos genéricos 21III 1

método legal de aplicação da pena 21II

- causas especiais de aumento ou de diminuição da pena 21II 3

- circunstâncias agravantes e atenuan­tes 2 1 II 2- circunstâncias agravantes 21II 2.1

- abuso de autoridade ou prevale- cimento de relações domésticas etc. 21 II 2.1 g

- abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo, oficio etc. 21 II 2.1 h

- embriaguez preordenada 21 II2.1 m

- emprego de veneno, fogo etc. ou outro meio insidioso ou cruel 21II 2.1 e

- facilitar ou assegurar a execução, ocultação etc. de outro crime 21II 2.1 c

- motivo fútil ou torpe 21II 2.1 b- ocasião de calamidade pública

ou de desgraça da vítima 21 II2.1 1

- reincidência 21 II 2.1 a- traição, emboscada, dissimulação

ou outro recurso que dificulte/ impossibilite defesa da vítima 21II 2.1 d

- vítima sob imediata proteção da autoridade 21 II 2.1 j

- vitimização de ascendente, des­cendente, irmão ou cônjuge 21II 2.1 f

- vitimização de criança, maior de 60 anos, enfermo ou mulher grávida 21II 2.1 i

- circunstâncias agravantes do con­

744

índice Alfabético Kemissivo

curso de pessoas 2 1 II 2.2- coagir ou induzir à execução de

crime 21 II 2.2 b- executar ou participar de crime

mediante pagamento etc. 21 II2.2 d

- instigar ou determinar ao crime pessoa dependente ou impunível 21II 2.2 c

- promover, organizar ou dirigir a atividade criminosa coletiva 21II 2.2 a

- circunstâncias atenuantes 21II 2.3- ação espontânea para evitar/re­

duzir conseqüências do crime etc. 21 II 2.3 d

- agente menor de 21 ou maior de 70 anos 21 II 2.3 a

- coação resistível, cumprimento de ordem ou violenta emoção etc. 21II 2.3 e

- confissão de autoria de crime perante autoridade 21II 2.3 f

- desconhecimento da lei 21II 2.3 b- in fluênc ia de m ultidão em

tumulto não provocado 21 II2.3 g

- motivo de relevante valor social ou moral 21II 2.3 c

- circunstâncias atenuantes inomina-das 21 II 2.4

- concurso de circunstâncias legais21 II 2.5

- limites de agravação e de atenuaçãoda pena 21 II 2.6

- pena base: circunstâncias judiciais 21II 1- contribuição da vítima 21II 1.3- elementos do agente 21 II 1.1

- antecedentes 21 II 1.1 b- conduta social 2 1 II 1.1 c- culpabilidade 21 II 1.1 a

- motivos 2 1 II 1.1 e- personalidade 21 II 1.1 d

- elementos do fato 21II 1.2- circunstâncias 21 II 1.2 a- conseqüências 21II 1.2 b

reabilitação 2 1 IV- conceito 21 IV 1- objeto e objetivos 21 IV 2- requisitos 21 IV 3- revogação 21 IV 4

sentença crim inal 211- sentença criminal absolutória 21 1 1- sentença criminal condenatória 211 2

AUTORIA E PARTICIPAÇÃO 14 com unicabilidade das circunstâncias ou condições pessoais 14 5 conceito de autor 14 II

- conceito restritivo 14 II 2- teoria do domínio do fato 14 II 4- teoria subjetiva 14 II 3- teoria unitária 14 II 1

formas de autoria 14 III- autoria direta 14 I I I1- autoria coletiva (ou co-autoria) 14III3

- co-autoria e omissão de ação 14III 3.4

- co-autoria e tentativa 14III 3.3- decisão comum 14 III 3.1- realização comum 14 III 3.2

- autoria mediata 14 III 2- hipóteses 14 III 2.1- problemas especiais 14III 2.2

participação 14 IV- concorrência de formas de participa­

ção 14 IV 3- cumplicidade 14 IV 2

- dolo do cúmplice e fato principal 14IV 2 b

- natureza da ajuda material 14 IV 2 a

- instigação 14 IV 1

745

índice Alfabético Remssivo

- dolo do instigador e decisão do autor 14 IV 1 a

- dolo do instigador e fato do autor 14 IV 1 b

- erro de tipo e erro de tipo permis­sivo 14 IV 1 c

- participação necessária 14 IV 4- tentativa de participação 14 IV

CRIM IN O LO G IA E PO LÍT IC A CRIMINAL 26 direito penal mínimo 26 II política crim inal alternativa 26 I

- criminalidade e imagem da crimina­lidade 26 I 2

- origens epistemológicas 26 I 1 propostas de reforma penal 26 III

- propostas de humanização do siste­ma penal 26 III 2

- propostas de redução do sistema de justiça criminal 26 III 1- descriminalização 26 III 1.1- despenalização 26 III 1.2

CULPABILIDADE E EXCULPA­ÇÃO 12 conceito 12 I

- desenvolvimento 12 I 1- conceito psicológico 12 I 1.1- conceito normativo 12 I 1.2

- definições materiais 12 I 2- princípio da alteridade 12 I 3

estrutura 12 II- capacidade de culpabilidade 12 II 1

- capacidade relativa de culpabilidade12 II 1.2

- incapacidade de culpabilidade 12II 1.1

- problemas politico-criminais 12 II1.3- actio libera in causa 12 II 1.3 b

- emoção e paixão 12 II 1.3 a- conhecimento do injusto e erro de

proibição 12 II 2- conhecimento do injusto 12 II 2.1

- conhecimento condicionado 12II 2.1 d

- divisibilidade e formas de conhe­cimento 12 II 2.1 c

- objeto 12 II 2.1 b- teorias 12 II 2.1 a

- conseqüências legais do erro de proibição 12 II 2.2

- erro de proibição evitável e inevi­tável 12 II 2.3

- erro de proibição na lei penai bra­sileira 12 II 2.5

- espécies de erro de proibição 12II 2.6- erro de permissão (ou erro de

proibição indireto) 12 II 2.6 2- erro de proibição direto 12 II

2.6 1- erro de tipo permissivo 12II 2.6 3

- meios de conhecimento 12 II 2.4- exigibilidade de comportamento

diverso 12 II 3- inexigibilidade como fundamento

geral de exculpação 12 II 3.2- normalidade das circunstâncias 12

II 3.1- situações de exculpação 12 II 3.3

- situações de exculpação legais 12II 3.3.1- coação irresistível 12 II 3.3.1 a- excesso de legítima defesa

putativa 12 II 3.3.1 d- excesso de legitima defesa real

12 II 3.3.1 c- obediência hierárquica 12 II

3.3.1 b- situações de exculpação suprale-

746

índice Alfabético Ikemissivo

gais 12 II 3.3.2 • - conflito de deveres 12II 3.3.2 d

- desobediência civil 12II 3.3.2 c- fato de consciência 12II 3.3.2 a- provocação da legítima defesa

12 II 3.3.2 bDIREITO PENAL 1 bem jurídico 1 II 2.1

- e conceito necessário 1 II 2.3- e visão crítica 1 II 2.1

conceito 111 objetivos 1 IIobjetivos declarados 1 II 1 objetivos reais 1 II 2 referente m aterial 1 II 2.2

- e negadvidade social 1 II 2.2

EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE 25 anistia, graça e indulto 25 II crim es complexos, dependentes de outros crimes etc. 25 X descrim inalização do fato 25 III extinção da punibilidade no concurso de crimes 25 XI morte do agente 25 I perdão judicial 25 IX prescrição, decadência e perempção25 IV

- decadência 25 IV 2- perempção 25 IV 3- prescrição 25 IV 1

- antes do trânsito em julgado 2 5 IV1.1- causas impeditivas 25 IV 1.8- causas interruptivas 25 IV 1.9

- depois do trânsito em julgado 25IV 1.2

- pelos níveis de concretização da pena 25 IV 1.3

- medidas de segurança 25 IV 1.7- pena de multa 25 IV 1.6

- penas menos graves 25 IV 1.10- penas restritivas de direito 25 IV

L5- redução e aumento dos prazos 25

IV 1.4renúncia e perdão 25 V

- perdão 25 V 2- renúncia 25 V 1

retratação do agente 25 VI

FATO PUNÍVEL 5 definições 5 I sistem as 5 II sistem a bipartido 5 II 1 sistem a tripartido 5 II 2 modelo clássico 5 II 2.1 modelo finalista 5 II 2.3 modelo neoclássico 5 II 2.2

LEI PENAL 1-4

MEDIDAS DE SEGURANÇA 23 crise das medidas de segurança 23 II medidas de segurança na legislação brasileira 23 III

- duração 23 III 4- espécies 23 III 3

- hospital de custódia e tratamento psiquiátrico 23 III 3.1

- tratamento ambulatorial 23 III 3.2- objetivos 23 III 2- prescrição 23 III 7- pressupostos 23 III 1

- periculosidade criminal do autor23 III 1.2- determinação judicial 23 III

1.2 b- presunção legal 23 III 1.2 a

- realização de fato previsto como crime 23 III 1.1

- substituição e conversão 23 III 6

747

índice Alfabético Remissivo

- verificação de cessação da periculo­sidade criminal 23 III 5

vias alternativas 23 I

OUTRAS CONDIÇÕES DE PUNI- BILIDADE 13condições objetivas de punibilidade13 IIfundamento excludentes de penas 13 TTT

POLÍTICA CRIMINAL E DIREITO PENAL 18discurso crítico da teoria criminológi­ca da pena 18 II

- crítica materialista dialética 18 II B- pena como retribuição equivalente

18 II B 1- prevenção especial como garantia

das relações sociais 18 II B 2- prevenção geral como afirmação

da ideologia dominante 18 II B 3- teorias unificadas como integração

das funções manifestas ou declara­das 18 IIB 4

- crítica negativa/agnóstica 18 II A discurso oficial da teoria jurídica da pena 18 I

- prevenção especial 18 I 2- prevenção geral 18 I 3- retribuição de culpabilidade 18 I 1- teorias unificadas: pena como retri­

buição e prevenção 18 14

PRINCÍPIOS DO DIREITO PENAL 2 princípio da culpabilidade 2 II princípio da humanidade 2 V princípio da legalidade 2 I

- e proibição de analogia 2 1 2- e proibição do costume 2 1 3- e proibição de indeterminação 2 1 4- e proibição de retroatividade 211

princípio da lesividade 2 III

princípio da proporcionalidade 2 IV princípio da responsabilidade penal pessoal 2 VI

PRISÃO E CONTROLE SOCIAL 19 indústria do encarceramento 19 VI modelo auburniano de penitenciária19 Vmodelo filadelfiano de penitenciária19 IVorigem da penitenciária 19 III privatização de presídios no Brasil19 VIIrelação cárcere/fábrica 19 II

RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA 17'Constituição e responsabilidade penal da pessoa jurídica 17 II criminalização da pessoa jurídica na lei brasileira 17 III introdução 17 Ilesão do princípio da culpabilidade 17 Vlesão do princípio da legalidade 17 IV

- lesão da forma nulla poena sine lege 17IV 2

- lesão da forma nullum crimen sine lege 17 IV 1

lesão do princípio da personalidade da pena 17 VIlesão do princípio da punibilidade 17 VII

SISTEMA PENAL BRASILEIRO 20 penas criminais 20 III

- cominação das penas criminais 20III 5

- conversibilidade executiva das penas criminais 20 III 4

- pena de multa 20 III 3- aplicação 20 III 3-2

748

índice Alfabético Hemissivo

- quantidade de dias-multa 20 III. 3.2 a- valor do dia-multa 20 III 3.2 b

- cominação 20 III 3.1- execução 20 III 3.3

- pena privativa de liberdade 20 III 1- detração penal 20 III 1.5- direitos e deveres do condenado

20 III 1.2- deveres do condenado 20 Dl 12 b- direitos do condenado 20 III1.2 a- remição penal 20 III 1.2 d- trabalho do condenado 20 III

1.2 c- disciplina penal 20 III 1.3

- faltas disciplinares 20 III 1.3.1- sanções disciplinares e regime

disciplinar diferenciado 20 III1.3.2- advertência verbal e repreen­

são 20 III 1.3.2 a- regime disciplinar diferenciado

20 III 1.3.2 c- suspensão ou restrição de di­

reitos e isolamento celular 20III 1.3.2 b

- individualização da execução 20III1.4- classificação dos condenados 20

III 1.4 a- exame criminológico 20 III 1.4 b

- limite das penas privativas de liber­dade 20 III 1.6

- regimes de execução 20 III 1.1- regime aberto 20 III 1.1 c- regime especial para mulheres 20

III 1.1 d- regime fechado 20 III 1.1 a- regime semi-aberto 20 III 1.1 b

- penas restritivas de direito 20 III 2- espécies 20 III 2.2

*

- interdição temporária de direitos20 III 2.2 d

- limitação de fim de semana 20III 2.2 e

- perda de bens e valores 20 III2.2 b

- prestação de serviços à comu­nidade ou entidades publicas 20III 2.2 c

- prestação pecuniária 20 III 2.2 a- pressupostos de aplicação 20 III

2.1política penal brasileira 20 II

SUBSTITUTIVOS PENAIS 22 substitu tivos pen a is da leg is lação brasileira 22 II

- livramento condicional 22 II B- condições de execução 22 II B 2- efeitos da revogação 22 II B 5- espécies 22 II B 1

- pressupostos específicos 2 2 IIB1.2

- pressupostos gerais 22 II B 1.1- extinção da pena 22 II B 6- formalidades de concessão 22 II

B 3- revogação 22 II B 4

- substitutivos penais da Lei 9.099/95 22 II C- suspensão condicional do processo

2 2 I IC 2- conceito 22 II C 2.1- condições de execução 22 II C

2.3- extinção da pena 22 II C 2.5- pressupostos de concessão 2 2 II

C 2.2- ausência de processo ou de

condenação por outro crime 22 II C 2.2 b

749

índice Alfabético Remissivo

- crimes com pena mínima co­minada igual/inferior a 1 ano 22 II C 2.2 a

- requisitos exigidos para sus­pensão condicional da pena 22 II C 2.2 c

- revogação 22 II C 2.4- transação penal 22 II C 1

- conceito 22 II C 1.1- conseqüências jurídicas 22 II C

1.3- requisitos 22 II C 1.2

- requisitos negadvos 22 II C1.2.2- condenação definitiva a pri­

vação de liberdade por crime 22 II C 1.2.2 a

- contra-indicação dos antece­dentes, conduta social etc. 22 II C 1.2.2 c

- obtenção de igual benefício nos últimos 5 anos 22 II C1.2.2 b

- rejeição pelo acusado ou defensor 22 II C 1.2.2 d

- requisitos positivos 22 II C1.2.1- crime de ação penal pública

22 II C 1.2.1 b- pena máxima cominada até

2 anos 22 II C 1.2.1 a- suspensão condicional da pena 22IIA

- condições judiciais 22 II A 4- condições legais de execução 22

II A 3- extinção da pena 22 II A 9- formalidades de concessão 22 II

A 6- modificação das condições de exe­

cução 22 II A 5- pressupostos específico 22 II A 1

- sursis comum 22 II A 1 a- sursis especial 22 II A 1 b- sursis etário 22 II A 1 c- sursis por razões de saúde 22 II

A id- pressuposto geral 22 II A 2- prorrogação do prazo 22 II A 8- revogação 22 II A 7

teoria 22 I- conclusão 22 I 3- teorias críticas 22 I 2

- ampliação do controle social 22 I2 c

- crise fiscal 22 12 b- superlotação carcerária 22 I 2 a

- teorias tradicionais 22 I 1- explicações científicas 22 I 1 b- explicações humanitárias 22 I 1 a

TENTATIVA E CONSUMAÇÃO 15 desistência da tentativa 15 III

- arrependimento posterior 15 III 6- estrutura 15 III 3

- arrependimento eficaz 15 III 3 3.2- desistência voluntária 15 III 3 3.1

- extensão dos efeitos 15 III 5- tentativa falha 15 III 4- tentativa inacabada e acabada 15 III 2- teorias 15 III 1

introdução 15 I teorias da tentativa 15 II

- delito de alucinação 15 II 8- objeto da tentativa 15 II 5- punibilidade da tentativa 15 II 6- tentativa inidônea 15 II 7- teoria objetiva 15 I I 1

- teoria objetiva formal 15 II 1.1- teoria objetiva material 15 II 1.2

- teoria objetivo-subjetiva (ou objetiva individual) 15 II 3

- teoria subjetiva 15 II 2

750

índice Alfabético Remissivo

- tipo de tentativa 15 II 4

TEORIA DA AÇÃO 6 conclusões 6 IV definições de ação 6 II

- modelo causai 6 II 1- modelo final 6 II 2- modelo negativo 6 II 4- modelo pessoal 6 II 5- modelo social 6 II 3

funções da ação 6 III- delimitação 6 III 3- fundamentação 6 III 2- unificação 6 III 1

introdução 6 I

TEORIA DO TIPO 7 adequação social 7 III conceito 7 I desenvolvimento 7 II elementos constitutivos 7 IV

- elementos descritivos 7 IV- elementos normativos 7 IV- elementos objetivos 7 IV- elementos subjetivos 7 IV

funções 7 Imodalidades de tipos 7 V

- tipo básico, variações do tipo básico e tipos independentes 7 V 6

- tipos de ação e dè omissão de ação 7 V 7

- tipos de resultado e de simples ativi­dade 7 V 1

- tipos dolosos e imprudentes 7 V 8- tipos gerais especial e de mão-própria

7 V 5- tipos instantâneos e permanentes 7

V 4- tipos simples e compostos 7 V 2

TIPOS DE INJUSTO DOLOSOS

DE AÇÃO 8 introdução 8 I tipo objetivo 8 II

- causação do resultado 8 II 1- adequação 811 1.2- equivalência das condições 8 II 1.1

- imputação do resultado 8 II 2- ausência de risco do resultado 8

II 2.1- risco não realizado no resultado 8

II 2.2tipo subjetivo 8 III

- dolo 8 III 1- dimensão temporal do dolo 8 III

1.3- dolo alternativo 8 III 1.2- dolo direto de Io grau 8 III 1.1 a- dolo direto de 2o grau 8 III 1.1 b- dolo eventual 8 III 1.1 c- espécies de dolo 8 III 1.1

- erro de tipo 8 III 2- e erro de subsunção 8 III 2.1- e intensidade de representação 8

III 2.2- desvios causais 8 III 3.

- aberratio ictus 8 III 3 2- desvios regulares 8 III 3 1- dolo geral 8 III 3 4- erro sobre objeto 8 III 3 5- troca de dolo 8 III 3 3

- elementos subjetivos especiais 8 III4

TIPO DE INJUSTO IMPRUDEN­TE 9combinações dolo imprudência: cri­mes qualificados pelo resultado 9 V critérios de definição 9 III

- imputação do resultado 9 III 3- ausência de lesão do risco permi­

tido ou do dever de cuidado 9 III3.1

751

índice Alfabético Remissivo

- resultados fora da proteção do tipo9 III 3.2- auto exposição a perigo 9 III 3.2 1- conseqüências danosas posterio­

res 9 III 3.2 5- danos psíquico-emocionais so­

bre terceiros 9 III 3.2 4- exposição consentida a perigo de

outrem 9 III 3.2 2- perigos em áreas de responsabi­

lidade alheia 9 III 3.2 3- previsibilidade e previsão do resul­

tado 9 III 3.4- imprudência consciente 9 III 3.4 b- imprudência inconsciente 9 III

3.4 a- resultados iguais em condutas

conformes ao direito 9 III 3.3- ação lesiva do dever de cuidado ou

do risco permitido 9 III 1- binômio risco/utilidade 9 III 1 c- dever de informação sobre riscos

9 III 1 b- modelo de homem prudente 9 III

1 a- princípio da confiança 9 III 1 d

- resultado de lesão do bem jurídico 9III 2

tipo de injusto de im prudência 9 II tipo objetivo e subjetivo 9 IV

TIPO DE INJUSTO DE OMISSÃO DE AÇÃO 10ação e omissão de ação 10 II consciência do injusto e erro de man­dado 10 Vestrutura dos tipos de om issão de ação 10 IV

- elementos comuns do tipo objetivo 10IV1- omissão de ação mandada 10 IV

1.3- poder concreto de agir 10 IV 1.2- situação de perigo para o bem

jurídico 10 IV 1.1- elementos específicos da omissão de

ação imprópria 10 IV 2- posição de garantidor 10 IV 2.2

- assunção da responsabilidade de impedir o resultado 10 IV 2 b

- comportamento anterior criador do risco do resultado 10 IV 2 c

- obrigação legal de cuidado, pro­teção e vigilância 10 IV 2 a

- resultado típico 10 IV 2.1- tipo subjetivo da omissão de ação

10 IV 3exigibilidade da ação mandada 10VIIomissão de ação própria e imprópria10 IIItentativa e desistência 10 VI

UNIDADE E PLURALIDADE DE FATOS PUNÍVEIS 16 limite das penas privativas de liber­dade 16 VIImulta na pluralidade de fatos puní­veis 16 VIpluralidade aparente de leis 16 VIII

- antefato e pós-fato co-punidos 16 VIII 4

- consunção 16 VIII 3- especialidade 16 VIII 1- subsidiariedade 16 VIII 2

pluralidade formal de resultados tí­picos 16 IVpluralidade material de fatos puní­veis 16 IIIunidade continuada de fatos típi­cos 16 Vunidade e pluralidade de ações típi-

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índice Alfabético Remissivo

cas 16 II

VALIDADE DA LEI PENAL 3 Validade da Lei Penal no Espaço 3 A

- extradição 3 A III- extraterritorialidade 3 A II- ímunidades diplomádcas 3 A I 2- lugar do crime 3 A I 4- navios e aviões públicos e privados 3

A I 3- princípio da competência universal

3 A II 2- princípio da personalidade 3 A II 2- princípio da proteção 3 A II 1- territorialidade 3 A I- território 3 A I 1

Validade da Lei Penal no Tempo 3 B- lei penal mais benigna: critério espe­

cífico 3 B II- e comparação de leis diferentes 3

B II a- e combinação de leis sucessivas 3

B II b- e jurisprudência 3 B II 5- e lei de execução penal 3 B II 4- e leis penais em branco 3 B II 1- e leis penais temporárias e excep­

cionais 3 B II 2- e leis processuais penais 3 B II 3

- princípio da legalidade: critério geral3 B I

Interpretação da Lei Penal 4- analogia e interpretação 4 2.4- fontes da norma penal 4 4- interpretação da norma penal 4 2- resultados da interpretação 4 2.3- significado de norma jurídica 4 I- silogismo como lógica de subsunção

4 3- sujeitos da interpretação 4 2.2- técnicas de interpretação 4 2.1

753

Este compêndio de DIREITO PENAL (Parte Geral), escrito para estudantes, professores e profissionais do sistema de justiça criminal, possui características exclusivas.

A Teoria da Lei Penal, desenvolvida a partir da distinção entre objetivos declarados de proteção de bens jurídicos do discurso oficial e objetivos reais de garantia das relações de propriedade e de poder político do discurso crítico, descreve os princípios fundamentais, os critérios de validade e as técnicas de interpretação da lei penal em perspectiva nova e criativa.

A Teoria do Fato Punível, construída com as categorias científicas da moderna dogmática penal, descreve o estado de desenvolvimento atual do conceito de crime, nas dimensões fundamentais de tipo de injusto e de culpabilidade, complementadas pela teoria do autor, da tentativa e do concurso de crimes, além de um capítulo sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica, tema controvertido na atualidade.

A Teoria da Pena indica os fundamentos políticos e os problemas jurídicos da repressão penal nas formações sociais capitalistas, permitindo enfocar sob outra luz decisões sobre conceito, funções, sistema, aplicação, substituição e extinção da pena e das medidas de segurança. Em sociedades desiguais, absolver ou condenar acusados criminais não são decisões neutras, mas exercício de poder seletivo orientado pela ideologia penal, em geral ativada por estereótipos, preconceitos e outras idiossincrasias pessoais, por sua vez desencadeados por indicadores sociais negativos de pobreza, desemprego, marginalização etc.

Conhecer as premissas ideológicas do poder punitivo é condição para reduzir a repressão seletiva do Direito Penal, mediante prática judicial comprometida com a democracia, que começa pela garantia do indivíduo em face do poder repressivo do Estado, continua pela promoção dos direitos humanos da população criminalizada e se consolida com a plena realização da dignidade humana.