JOLY BRAGA SANTOS - MPMP

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glosas mpmp, movimento patrimonial pela música portuguesa revista semestral #3, maio de 2011 www.mpmp.pt 4 JOLY BRAGA SANTOS por Piedade Braga Santos, Alexandre Delgado, Sérgio Azevedo, Tomás Marco, Ruy Narval, Nadir Afonso, dentre outros BANKSTERS: entrevista a Nuno Côrte-Real, Vasco Graça Moura e João Botelho ~ ROMANCE DO GRANDE GATÃO entrevista a Lídia Jorge e Sérgio Azevedo, prémio SPA 2011 ~ glosando: uma peça inédita de Amílcar Vasques-Dias, Edição Musical no séc. XIX, Do Coreto ao Auditório, ...

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glosasmpmp, movimento patrimonial pela música portuguesa

revista semestral

#3, maio de 2011

www.mpmp.pt

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JOLY BRAGA SANTOS

por Piedade Braga Santos, Alexandre Delgado,

Sérgio Azevedo, Tomás Marco,

Ruy Narval, Nadir Afonso,

dentre outros

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O mpmp, movimento patrimonial pela música portuguesa, agradece a quem tenha contribuído para a concretização deste número da revista glosas: aos autores dos diversos textos, artigos, fotografias e ilustrações (Alexandre Andrade, André Granjo, António

Pinho Vargas, Carlos Martins Marques, João Madureira, João Vasco, Jonathan Costa, José Pedro Cardeiro, Lea Cardoso,Manuel Durão, Manuela Paraíso, Maria João Albuquerque, Maria José Borges, Mónica Brito, Nadir Afonso, Nuno M.

Cardoso, Pedro Neves, Ruy Narval, Sérgio Azevedo e Tomás Marco), aos diversos entrevistados (Piedade Braga Santos, Henrique da Luz Fernandes, Nuno Côrte-Real, Vasco Graça Moura, João Botelho, Sérgio Azevedo e Lídia Jorge), a Alice Costa,

Duarte Pereira Martins, Nuno M. Cardoso e Raquel Camarinha, pela revisão dos textos, a Amílcar Vasques-Dias, pela composição de uma peça dedicada a este número da glosas, e a Duarte Pereira Martins, Philippe Marques, Gustavo Cruz e Ana Salazar,

pela transcrição das entrevistas. Um especial agradecimento a Piedade Braga Santos pela disponibilidade e interesse com que nos cedeu e autorizou a publicação de fotografias do espólio de Joly Braga Santos, e a Maria João Franco (Teatro

Nacional de São Carlos), pela cedência de uma fotografia oficial de Banksters, de autoria de Alfredo Rocha.

glosas

Número 3, Maio de 2011 | JOLY BRAGA SANTOS

no próximo número... ANTÓNIO VICTORINO D’ALMEIDA

Direcção

Edward Luiz Ayres d’Abreu

Redacção

Ana Salazar, Duarte Pereira Martins, Gustavo Cruz, Lea Cardoso,

Manuela Paraíso, Mónica Brito, Philippe Marques

Fotografia

José Pedro Cardeiro(pp. 54-64, 68-71)

Revisão

Alice Costa, Duarte Pereira Martins, E. L. Ayres d’Abreu, Nuno M. Cardoso,

Raquel Camarinha

Depósito Legal

327498/11

ISSN

2182-1380

Tiragem

500 exemplares

Preço de Capa

€4

Periodicidade

semestral (2 números por ano)

Impressão e Acabamento

Agir, Produções Gráficas

Capa

Joly Braga Santos (1924-1988)

GLOSASuma revista de todos e para todos

em nome da música portuguesapor Edward Luiz Ayres d’Abreu, presidente do mpmp

_________________________________________

O meio é apático, mesquinho, tristinho. Mas nada disso me parece demasiadamente grave. O pior, o que nos destrói enquanto cultura e enquanto país, o que degrada e negligencia o nosso património e, claro, a nossa música, é um mal bem mais preocupante: uma terrível indiferença, ora cínica ora provinciana.

Todavia, é com canora felicidade que, sem pompas

ou circunstâncias, nem aparatos (tampouco apoios) que nos valham, assino o editorial deste terceiro número da glo-

sas. A diversidade dos conteúdos, o número crescente de excelentes voluntários e a participação de tantas persona-lidades de reconhecida idoneidade intelectual, científica, musical, em prol do mesmo fim, justificam e comprovam, cada vez mais, a urgência e o sucesso desta publicação. É sincero e emocionado o meu agradecimento a todos os que se têm juntado a nós para elevar a glosas a tão ímpar lugar na cultura portuguesa contemporânea. Sinal de que há vida, de que ainda há melómanos apaixonados, de que há cultura a fervilhar. De que há Música, dentre tanta indiferença.

Nada melhor, aliás, do que uma homenagem neste número a Joly Braga Santos, tão pródiga figura do nosso meio. Mas também vários acontecimentos recentes fize-ram com que uma homenagem a Joly Braga Santos fosse inadiável. A doação de grande parte do seu espólio à Bi-blioteca Nacional e o projecto de edição das suas obras pela AvA Edições Musicais são sem dúvida passos fundamentais para a divulgação da sua obra tanto nacional como inter-nacionalmente.

Excelentes notícias ainda para os sócios deste movimento. Uma série de pactos de amizade e colabo-ração têm sido desenvolvidos entre o mpmp e outras enti-dades. Para além de receber as glosas em casa, usufruem de novos e alargados descontos. É motivo redobrado para ler, para criar, para fazer música, para descobrir património. Motivo redobrado para celebrar.

índice

2 ~ debaixo de olho

Manuela Paraíso

7 ~agenda

JOLY BRAGA SANTOS

11 ~criar música como as árvores dão frutos Sérgio Azevedo

18 ~permanecer fiel à sua personalidade musical entrevista de Alexandre Delgado a Piedade Braga Santos

31 ~em torno de joly braga santos entrevista de E. L. Ayres d’Abreu a Henrique da Luz Fernandes

35 ~memórias e evocações Tomás Marco e Maria José Borges

38 ~do que foi publicado sobre as sinfonias Pedro Neves

44 ~a transformação estilística na obra orquestral Manuel Durão

47 ~otonifonias: sobre a música para banda André Granjo

50 ~apolo e dafne Nadir Afonso e Ruy Narval

~

52 BANKSTERS

~ à conversa com Nuno Côrte-Real, Vasco Graça Moura e João Botelho

66 Romance do Grande Gatão

~ entrevista a Sérgio Azevedo e Lídia Jorge

~

72 ~ música e poder: introdução ao livroAntónio Pinho Vargas

74 ~ a edição musical em portugal no século xixMaria João Albuquerque

77 ~ do coreto ao auditórioAlexandre Andrade et al.

82 ~ compositores a descobrir: fernando costaNuno M. Cardoso

88 ~ glosando: a convite da glosas, uma peça inéditaAmílcar Vasques-Dias

90 ~ alémfadoJoão Vasco

94 ~ cantos da voz: sobre a minha missa de pentecostesJoão Madureirawww.mpmp.pt | [email protected]

DEBAIXO DE OLHOO QUE ESTÁ A ACONTECER NA MÚSICA PORTUGUESA

porManuela Paraíso

Olhemos um pouco para trás: em Dezembro de 2010, um festival de música antiga em Espanha, o de Úbeday Baeza1, colocou Portugal no centro do mundo. Agora avancemos três meses: entre 20 e 28 de Agosto, outro festival de música antiga, o reconhecido Laus Polypho-niae, em Antuérpia, percorre Sons Portugueses, da Idade Média, Renascença e Barroco. Ao lado de agrupamentos de prestígio internacional, como o Huelgas Ensemble ou o Hespèrion XXI, actuam o Coro Casa da Música, o Lu-dovice Ensemble, o Mediae Vox Ensemble, o grupo vocal Officium e a soprano Orlanda Velez Isidro, oferecendo muito do que de melhor o património musical português do passado tem para dar a quem perante ele se quiser deter. Nessa semana, muitos serão, e não portugueses. Pergunta: as direcções artísticas destes eventos tomariam estas opções se tivessem a mais pequena suspeita de fraca adesão de público? Segunda pergunta: quantos festivais de música erudita em Portugal, em 2010 e 2011, dedicaram a maioria da sua programação à música portuguesa? Ter-ceira: quem é que, em Portugal, considera que a música portuguesa não é suficientemente interessante para justi-ficar muito maior presença nas temporadas - o público ou os programadores?

efemérides e aniversários

Entre as mais destacadas efemérides de 2011, as dos nossos reis trovadores (os 800 anos da morte de Dom Sancho I, em 26 de Março, e os 750 do nascimento de Dom Dinis, em 9 de Outubro) estão a passar quase despercebidas. A excepção é o concerto programado no âmbito do 1º Festival de Música de Setúbal, que a 27 de Maio, num concerto pelo grupo La Batalla, de Pedro Cal-deira Cabral, vai dar a ouvir música da corte de D. Dinis, incluindo poemas e cantigas dos dois monarcas portu-gueses.

Em contrapartida, por ocasião dos 70 anos de Emmanuel Nunes, o compositor é objecto de três con-certos na Casa da Música, em 4 e 14 de Junho e 22 de 1) Foi esta edição dedicada em grande parte à música portuguesa e ao papel que ela desempenhou, ao longo dos séculos, na disseminação da música de tradição europeia.

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Outubro, que incluem a estreia mundial de uma obra, da edição de um livro (cf. Livros) e de um simpósio inter-nacional organizado pelo CESEM – Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical, que decorrerá entre 5 e 6 de Novembro na Culturgest. Duas semanas antes, entre 21 e 23 de Outubro, no Museu de Aveiro, o CESEM rea-liza outro evento evocativo, o colóquio David Perez e a

música da sua época, no terceiro centenário do nascimento do compositor napolitano que viveu em Portugal, tendo sido Mestre da Capela Real no tempo de D. José I. No en-tanto, parece ser esta a única iniciativa dedicada a Perez: nem a estreia moderna, ocorrida em Janeiro no CCB, de Antígono, que tirou dos escombros a memória da Óperado Tejo, da qual ele foi director e autor da primeira ópera ali estreada, resultou na programação de concertos com obras daquela que foi uma das figuras tutelares do barroco musical português. Por outro lado, 2011 daria a oportuni-dade de se emendar a mão pelo oblívio, no ano transacto, do quarto centenário de João Lourenço Rebelo, um dos mais notáveis polifonistas portugueses, protegido de Dom João IV. Mas não há notícias de que os 350 anos da sua morte, em Julho deste ano, irão ser condignamente assinalados, exceptuando um concerto monográfico pelo Huelgas Ensemble no já referido festival Laus Polypho-niae, a 22 de Agosto, uma conferência pelo organista e musicólogo João Paulo Janeiro, que se irá realizar na

Emmanuel Nunes (fotografia de Guy Vivien)

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Biblioteca Nacional, e alguns concertos planeados pelos seus grupos Capella Joanina e Flores de Música, ainda por confirmar. Os 150 anos do nascimento do composi-tor portuense João Arroyo, em 4 de Outubro, deveriam também servir de pretexto para se conhecer melhor a sua música, mas, para além do CD com a obra para canto e piano, por Marina Pacheco e Joana David, publicado no final de 2010 pela Phonedition, não nos chegam ecos de nenhuma evocação.

Entre os contemporâneos, António Pinho Var-

gas vai ter estreada a obra resultante duma encomenda conjunta da Casa da Música, do Centro Cultural de Belém e do Teatro Nacional de São Carlos, para assinalar os seus 60 anos. Onze Cartas, para orquestra sinfónica, três nar-radores (pré-gravados) e electrónica, é apresentada a 1 de Outubro na Casa da Música e a 19 de Novembro no São Carlos, estando prevista para 2012 a sua programação em concerto no CCB. Fora do âmbito da celebração, vão ser estreadas outras obras do compositor: Quasi una sonata, para violino e piano, a ser interpretada por Gareguin Aroutiounian e Miguel Henriques no âmbito dos Con-

certos à Conversa, a 29 de Maio, no CCB; Árias de ópera, para Tuba e Grupo de Percussão, que Sérgio Carolino e o Drumming - Grupo de Percussão deverão apresentar em Junho; e Quatro Novos Fragmentos, para clarinete e pi-ano, escrita para integrar um CD comemorativo dos 50 anos do clarinetista António Saiote. A mesma idade fes-tejam os compositores Isabel Soveral, Pedro M. Rocha

e Virgílio Melo sem que, no entanto, a sua música nos seja mais dada a ouvir em concertos ou novos registos. E a mais jovem aniversariante, a OrchestrUtopica, marca o ano do seu décimo aniversário com concertos no CCB em que estreia obras de novas gerações de compositores – além de ser a formação que Alexandre Delgado vai di-rigir nas duas primeiras apresentações da sua nova ópera, A Rainha Louca, a 9 e 10 de Julho, no Pequeno Auditório do CCB.

encomendas e estreias

Não é um ano muito fecundo no que se refere a ópera contemporânea portuguesa. Depois de Banksters, de Nuno Côrte-Real, que em Março se estreou no São Carlos, e d’A Rainha Louca (a segunda das importantes encomendas a Alexandre Delgado apresentadas este ano, depois de Cinco Sonetos Quinhentistas, estreada a 2 de Abril no Festival Terras Sem Sombra), chegará Deu-La-Deu, a nova ópera de Jorge Salgueiro, com libreto de Jorge Vaz Nande (uma encomenda da Câmara Municipal de Mon-ção), cuja apresentação integral terá lugar a 12 de Agosto,

sendo o I Acto estreado antes, a 28 de Maio. O composi-tor, que tem dedicado muita da sua produção à música de cena, teve estreada em Março a música que escreveu, por encomenda da companhia O Bando, para a peça Pedro e

Inês (que em Junho subirá ao palco do Pequeno Auditório do CCB), e tem pela frente a composição de dois traba-lhos de fôlego, a encomenda de uma obra sinfónica e a sua oitava ópera. Concluídas e à espera da estreia estão as obras que lhe foram encomendadas pelo Saxacordeon e pelo FIAR, A Bailarina Electrónica, op. 170 para saxo-fone soprano e acordeão e A Fábrica Das Bolinhas De Sabão, op. 172, para 2 saxofones e gravação.

Outros dois compositores têm uma ópera em mãos: Pedro Faria Gomes trabalha presentemente num projecto de ópera encomendada pela Culturgest em co--produção com a Orquestra Metropolitana de Lisboa, para estreia em Dezembro de 2012. Além disso, está a compor uma peça para ensemble, que terá primeira audição a 15 de Novembro, em Londres, no Royal College of Music, integrado no Festival Infernal Dance, da Philharmonia Orchestra. Andreia Pinto-Correia encontra-se a es-crever a ópera O Búfalo Mágico, com libretto de Ondjaki,

uma encomenda da Ópera do Castelo e do Drumming GP, com estreia prevista para a próxima temporada. Ao longo de todo este ano, a compositora, desde há anos residente nos Estados Unidos, está a ter várias obras com primei-ras apresentações, sendo as próximas em Boston (Jordan Hall, 19 Maio), Colorado (Aspen Music Festival, entre Junho e Julho, no âmbito de uma residência artística, para a qual Pinto-Correia foi seleccionada por concurso in-ternacional), Los Angeles (Conferência Internacional de Clarinetes, 5 Agosto), no Carnegie Hall (uma encomenda da American Composers Orchestra para o Festival de Música Contemporânea de Nova Iorque, 14 de Outubro)

Andreia Pinto-Correia (fotografia de Daniel Blaufuks)

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e, em Portugal, no CCB, a 21 de Outubro, a estreia duma encomenda da OrchestrUtopica, de que é Compositora em Residência em 2011.

Luís Tinoco é outro compositor com obras a serem estreadas em salas americanas, nos próximos me-ses: a 21 de Maio, primeira audição absoluta de uma peça para erhu e orquestra (encomenda da Albany Symphony Orchestra) e entre 3 e 7 de Agosto, em Los Angeles, a es-treia americana de Três Poemas do Oriente, no Clarinetfest 2011. Para trás ficou a estreia francesa de Round Time, em Março, pela Orchestre National de Montpellier. Sérgio

Azevedo vai ter um concerto-conferência monográ-fico realizado em 26 de Maio em Washington DC, inte-grado no ciclo European Leading Composers da Phillips Collection, no qual vão tocadas várias peças pelo violi-nista Carlos Damas e a pianista Jill Lawson, algumas das quais em estreia (Songs without words e a versão para violi-no e piano de In the mists...1912). A 21 de Junho, em Viena,na Áustria, será estreada Rem.mb.r..g .r.nz Sch…rt, pela E.C.C.O. Orchestra. Ao longo da temporada várias têm sido as estreias em Portugal, como o Concerto para Pequena

Orquestra (Março, em Beja, pelo Evorensemble), 6 Peque-

nas Peças para Guitarra (Março, Porto, por Júlio Guerrei-ro), From the top of the hill (3 de Maio, CCB, por solistas do Remix Ensemble), Missa Brevis (5 de Junho, Lisboa, pelo organista António Esteireiro e o coro infantil do Instituto Gregoriano de Lisboa) e Uma Pequena Sere-nata Diurna (5 de Julho, Orquestra de Câmara de Cascais e Oeiras). Também para Fernando Lapa este está a ser um ano produtivo: além de No coração do Porto, para coro e orquestra, sobre poema de Vasco Graça Moura (enco-mendada para o concerto comemorativo do centenário da Universidade do Porto, a 22 de Março, no Coliseu, e estreada pelo Coral de Letras da UP e pela Orquestra do Norte), outras obras têm sido apresentadas – algumas em estreia – em vários eventos no Norte do país e em Lisboa. Entre eles, destaca-se o concerto monográfico que teve lugar a 30 de Abril, em Braga, do ciclo Saber Ouvir…, dedi-cado a um compositor específico, em que vários intér-pretes apresentaram obras suas.

Outros compositores com peças estreadas em 2011 são Luís Carvalho (Nise Lacrimosa, Romance para

orquestra, encomenda do Festival de Alcobaça 2011 - es-treia a 4 de Junho, pela Orquestra de Câmara Portuguesa),João Madureira (nova obra com texto de José Luís Pei-xoto, encomenda da Arte das Musas para o ensemble Sete Lágrimas, estreia 20 de Julho, no Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, inserido no 3.º Festival das Artes de Co-

imbra), João Pedro Oliveira (Angel Rock, para clarinete baixo e marimba - 29 Maio, Matrix Festival, em Frei-burg, na Alemanha), José Alberto Gomes (Vellut, para clarinete e percussão – 29 de Março, na Casa da Música), Eduardo Luís Patriarca (Ensō, encomenda do Harmos Festival – 13 de Março, Casa da Música, pela Harmos Festival Orchestra), António Chagas Rosa (Six mélodies

d’après Teiko, para mezzo soprano e ensemble - Grupo Síntese, estreia prevista para Novembro), Pedro Santos

(encomenda, pela Academia de Música Fernandes Fão, de peças obrigatórias do 8º Concurso Ibérico de Piano, Abril 2011, com posterior divulgação em instituições de ensino vocacional da música, em Portugal e Espanha) e Daniel

Schvetz (Memoria, Preludio y Gesto, Concerto para clari-

nete e cordas - 4 de Abril, Belgrado, JugoKonzert Festival, pela Belgrado Strings, com António Saiote como solista e maestro; Ludic XVII, para Banda Sinfónica – Abril, pela banda Sinfónica da PSP; Huudelf, para Violoncelo solo - 12 de Julho, Festival de Música de Caldas da Rainha, por Carolina Matos; Concierto para Bandoneón y Orquestra - Setembro/Outubro, pela Orquestra Metropolitana).

Alguns intérpretes têm dado também várias es-treias de obras portuguesas ao longo deste ano. No âmbito do festival CriaSons, o Opus Ensemble, o Duo Contra-cello e o Quarteto Lopes-Graça apresentaram programas construídos unicamente com repertório nacional, em que incluíram peças novas encomendadas a vários composi-tores para o festival e gravadas para edição em CD (cf. Discos). A 22 de Março, na Casa da Música, a clarinetista Iva Barbosa e o pianista Paulo Oliveira tocaram Fanta-

sia, de Vítor Faria (estreia mundial) e Movimento Dúbio, de Paulo Jorge Ferreira (estreia nacional). Em Lisboa, no mês de Março, a pianista Ana Telles apresentou novas obras de Christopher Bochmann (Carrolling Bach: Two

fantasies, para piano) e João Madureira (Com uma coroa

de água sobre os olhos, de que é dedicatária), e na segunda quinzena de Maio deverá ser solista de concertos com a Orquestra Filarmonia das Beiras, em que será interpre-tada, em estreia mundial, com a pianista Ana Cláudia As-sis, uma nova obra de Jean-Sébastien Béreau, para piano a quatro mãos e orquestra. Também em Lisboa, em Abril, o Grupo de Música Contemporânea de Lisboa apresen-tou o programa Jovens Maestros | Jovens Compositores, em que, sob direcção de Rui Carreira, deu a ouvir peças de Lino Guerreiro, Tomás Borralho, Fernando Lobo, Eli Camargo e também de Jorge Peixinho. No mesmo mês, mas na Guarda, o guitarrista José Mesquita Lopes estre-ou, num programa com obras portuguesas (dele próprio, de Christopher Bochmann e de Virgílio Melo), uma peça de Hugo Ribeiro, Página Esquecida. No dia 25 de Maio, o

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Performa Ensemble leva a Cosenza, em Itália, um pro-grama de música portuguesa, de Evgueni Zoudilkine, Sara Carvalho, Francisco Monteiro, Vianna da Motta, António Victorino d’Almeida e Sérgio Azevedo, com várias obras em estreia absoluta. E a 31 de Maio, no Porto, o Remix Ensemble dá a primeira audição de uma obra encomen-dada a Daniel Moreira pela Casa da Música.

Também o mpmp, para além da edição da glosas e da realização de recitais de música portuguesa, tem vindo a promover a criação musical, através do ciclo Viagens pelo Som e pela Imagem, cuja edição deste ano decorre a 24 e 31 de Maio, na Fonoteca Municipal de Lisboa, com a apresentação de obras de jovens artistas plásticos em com-plemento às de compositores (Carlos Cruz, Duarte Pereira Martins, E. L. Ayres d'Abreu, Lea Cardoso, Mário Chan, Narae Chung, Patrício da Silva, Tiago Cabrita e Tomás Borralho).

prémios

Além das encomendas, os vários concursos de composição continuam a ser os principais incentivos para os jovens compositores, contribuindo para a ampliação do repertório, especialmente para orquestra e geometrias menos comuns. É o caso do Prémio Internacional de Com-posição Machado e Cerveira (assim intitulado em home-nagem ao organeiro António Xavier Machado e Cerveira), instituído pela primeira vez este ano, pelo Ministério da Cultura e pelas Câmaras de Mafra e Cascais, com o objec-tivo de ampliar o repertório para os seis órgãos da Basílica de Mafra. O prazo de entrega das obras, 15 de Setem-bro, é o mesmo para o Prémio de Composição Fernando Lopes-Graça, este ano de âmbito internacional e dirigido a novo repertório para cravo de dois teclados. A decorrer está também o 12º Concurso de Composição Electroacús-tica Música Viva 2011, com prazo até 30 de Junho, e o desafio para a composição de miniaturas electroacústicas para apresentação no âmbito da instalação sonora “Sound Walk” durante a 17ª edição do Festival Música Viva, de 9 a 17 de Setembro, no CCB (prazo até 31 de Maio).

Em Julho, no Festival Internacional de Músicada Póvoa de Varzim, serão apresentadas obras de Gonçalo Gato e Osvaldo Fernandes, seleccionadas no respectivo Concurso de Composição, nas categorias de música para orquestra e música de câmara. E a 30 de Abril, no auditó-rio da Escola Superior de Música de Lisboa, no concerto de encerramento do festival Corolário, foram apresenta-das as duas obras distinguidas no Concurso de Composi-ção Dom Dinis, para música coral, organizado pelo Coro

da Universidade de Lisboa (Dois Poemas de Eugénio de

Andrade, de João Camacho, e Manta de Poemas, de Sílvia Mendonça).

Em Abril, o cantor, maestro e musicólogo bra-sileiro Luiz Alves da Silva, radicado na Suíça e um dos directores artísticos do Ensemble Turicum (que em 2009 publicou um CD com as Matinas de Natal de Marcos Por-tugal), foi agraciado com o Prémio Cultural Nikolaus Harnoncourt do Cantão de Zurique, entre outras razões pelo seu trabalho de divulgação do repertório históricoluso-brasileiro na Suíça. No mês anterior, Sérgio Azevedorecebeu o prémio Autor da SPA, que distinguiu o seu Con-

certo para Piano, encomendado pelo CCB e estreado em 2010 no âmbito dos Dias da Música em Belém.

encontros, simpósios

Março - na Université Paris 8, Guilherme Car-valho, Petra Bachrata, José Luís Ferreira e António de Sousa Dias intervieram numa conferência, o último fa-zendo uma exposição sobre a electrónica em tempo real na música, a partir do trabalho que realizou para Jorge Peixinho e Cândido Lima.

29 e 30 de Abril - Congresso "O Porto Român-tico", promovido e organizado pelo CITAR e pela Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, Centro Regional do Porto.

17 a 20 de Maio - 1º Fórum de Jovens Composi-tores. Organização: Sond'Ar-te Electric Ensemble e Goe-the Institut.

19 a 21 de Maio - PERFORMA’11 - Conferên-cia sobre investigação em performance, com momentos de performance e apresentações de comunicações sobre música erudita portuguesa. Universidade de Aveiro.

Julho - no âmbito da 15ª Conferência Mundial da World Association of Symphonic Bands and Ensem-bles, em Taiwan, o saxofonista e maestro Alberto Roque realiza uma palestra sobre a ligação entre a tradição e a erudição, tomando por exemplos as músicas de Fernando Lopes-Graça e Jorge Salgueiro, apresentando gravações de obras e partituras.

29 de Setembro e 1 de Outubro - 2ª Edição do Simpósio Internacional de Musicologia Histórica, sob o tema "Maria Bárbara de Bragança, Infanta de Portugal, Rainha de Espanha", Convento dos Capuchos, Caparica.

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25 a 27 Novembro - 1º Encontro Nacional de Investigação em Música, na Casa da Música, Porto. Org. Associação Portuguesa de Ciências Musicais.

Em curso - trabalhos de investigação, pelo mu-sicólogo Luís Henriques, sobre música sacra dos Açores, designadamente catalogação, estudo introdutório do Acervo Musical da Sé de Angra do Heroísmo e edição de obras, a serem publicadas pela AvA Musical Editions, bem como uma investigação sobre a prática de música religiosa na ilha do Faial na segunda metade do séc. XIX.

discos

Ao Vivo 2010 - caixa de 5 CDs (um, monográfico,de Jorge Peixinho; outro, Música Sinfónica Portuguesa dos Séculos XX e XXI, inclui obras de Fernando Lopes--Graça, Francisco de Lacerda, Luís de Freitas Branco, Clotilde Rosa, Luiz Costa, Daniel Moreira, António Pi-nho Vargas, António Chagas Rosa e Luís Tinoco). Ed. Casa da Música, Janeiro 2011.

Frei Fernando de Almeida - Responsórios de

Quinta-Feira Santa e Missa Ferial. Int. Capella Patriarchal, dir. João Vaz. Ed. Althum, Abril 2011.

Sete Lágrimas - En tus brazos una noche. Música do compositor seiscentista Manuel Machado. Ed. Arte das Musas, Maio/Junho 2011 (concertos de apresentação: 29/04, Auditório Ruy de Carvalho, Oeiras; 12/06, Escola Superior de Música de Lisboa).

João Vaz - Obras do Livro de Órgão de Frei Roque da Conceição, gravadas no órgão histórico de Longares (Espanha).

Fausto Neves (1890 - 1955) - Música dos cafés--concerto de Espinho, na primeira metade do século XX. Int. Sofia Guedes (soprano) e Fausto Neves (piano). Ed. Numérica, Maio 2011.

Saber Ouvir - Eurico Thomaz de Lima. Obras para piano. Int. João Lima. Ed. Numérica, Abril 2011.

Victor Macedo Pinto - Obras para piano solo, Sete Canções Antigas, Missa Litúrgica. Intérpretes: Rui Pi-nheiro, piano. Ana Quintans, soprano; João Rodrigues, tenor; Janete Santos, flauta transversal; José Manuel Brandão, piano. Coro de Câmara de Lisboa, dir. Teresita Gutierrez Marques. Ed. Numérica, Abril 2011.

Luís Pacheco Cunha – Violino em Portugal. Com Eurico Rosado, piano. Obras de Fernando Lopes--Graça, Joly Braga Santos, Amílcar Vasques Dias, Cláudio Carneyro, José Vianna da Motta, Daniel Schvetz, Francisco de Sá Noronha, Luís Barbosa, César Viana, Pedro Lopes Nogueira, Luís Tinoco. Ed. Numérica, Março 2011.

Orquestra Raízes Ibéricas – Geografia da Músi-ca IV. Obras de Carlos Seixas, Fernando Lopes-Graça, José Atalaya e outros. Ed. Numérica, Março 2011.

Desnudo – Joana Machado e Amílcar Vasques Dias. Canções sobre poesia feminina hispano-árabe. Ed. Numérica, Março 2011.

Clotilde Rosa – Música para Poesia portuguesa. Int. Grupo de Música Contemporânea de Lisboa (Prémio SPA/ Antena 2). Ed. La Mà de Guido, 2008 (só recente-mente disponibilizado comercialmente)

CriaSons – Tendências da Música de Câmara Por-tuguesa Contemporânea. Obras de Amílcar Vasques-Dias, Anne Victorino d’Almeida, António Victorino d’Almeida, César Viana, Jorge Costa Pinto, Paulo Jorge Ferreira e Sér-gio Azevedo. Int. Opus Ensemble, Quarteto Lopes-Graça, Duo Contracello (lançamento no Teatro da Trindade, a 5 de Maio).

Performa Ensemble – Momentum. Obras inédi-tas de Carlos Marecos, Ângela Lopes, Petra Bachratá, Rui Penha e Evgueni Zoudilkine. Ed. Phonedition.

Solistas do Sond’Ar-te Electric Ensemble – Nuno Pinto. Obras para clarinete e electrónica, de Cândido Lima, Carlos Caires, João Pedro Oliveira, Miguel Azguime, Ricardo Ribeiro, Virgílio Melo. Ed. Miso Records.

Contos Contados Com Som - Teatro Elec-troacústico (2ª série). Obras de Ângela Lopes, Isabel So-veral, José Luís Ferreira, Sérgio Pelágio e Simão Costa. Ed. Miso Records.

Smith Quartet - Portuguese String Quartets with Electronics. Obras de Carlos Caires, Miguel Azguime, Pe-dro Amaral e Pedro Rebelo. Ed. Miso Records.

em fase de preparação, gravação ou a aguardar publicação:

Fernando Lopes-Graça. Concertos para piano n.º 1 e 2. Int.

Eldar Nebolsin, Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música. Ed. Naxos.

Canções tradicionais portuguesas de Natal. Coro Gulben-

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kian, dir. Jorge Matta. Lançamento em Novembro, em simultâneo com dois concertos da tempo-

rada Gulbenkian.

Compositores Portugueses XX/XXI, 4º Volume. Coros Lisboa Cantat. Obras de

Fernando Lopes-Graça, Carlos Marecos, Sérgio Azevedo e Vasco Pearce de Azevedo.

Sete Lágrimas. Diáspora II (título provisório, continuação conceptual do projecto Di-

aspora.pt. Concertos de apresentação: Dez 2011/Jan 2012)

Volúpia. Música de Câmara de N. Côrte-Real. Int. Ensemble Darcos.

[Novos CDs também de Drumming GP, Coro Ricercare e Orquestra Filarmonia das

Beiras, com Ana Telles.]

livros

Fernando Lopes-Graça. Textos de Sérgio Azevedo, António Nuno Barreiros, Patrícia Lopes Bastos, Teresa Cascudo, José Luís Borges Coelho, Fernando Lopes-Graça, Cândido Lima e Jorge Peixinho. Ed. Atelier de Com-posição, Jan. 2011.

Eduardo Libório. Poesias, Desenhos e Correspondência. Prefácio, introdução, organização e notas de Gil Miranda. Ed. INCM, Colecção Arte e Artistas, Jan. 2011.

Casas da Música no Porto, de Rui Pereira, Ana Liberal e Sérgio C. Andrade. Ed. Casa da Música (2.º vol., Jan. 2011; 3.º vol. Jul. 2011).

Ópera & Caricatura: O Teatro de S. Carlos na obra de Rafael Bordalo Pinheiro, de Luzia Rocha. Ed. Colibri, Jan. 2011.

Música e Poder - Para uma Sociologia da Ausência da Música Portu-guesa no Contexto Europeu, de António Pinho Vargas (tese de doutoramento pela Universidade de Coimbra. Ed. Almedina, Abril 2011.

Emmanuel Nunes – Escritos. Ed. Casa da Música / CESEM, Out. 2011. Marcos Portugal - catálogo temático da música sacra, de António Jorge Marques. Ed. Biblioteca Nacional de Portugal/ CESEM, em preparação. Diários de Vianna da Motta. Organização de Elvira Archer. Ed. Bi-blioteca Nacional de Portugal/ CESEM, em preparação.

~

Entre as muitas notas de avanço que, mês após mês, a música por-tuguesa vai registando, em pequenas conquistas, há também momentos de perda. Em Dezembro, o maestro Manuel Ivo Cruz. Em Março, o flautista Carlos Franco – um ano após o desaparecimento de outro nome ligado ao Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, a harpista Andreia Marques. Artistas com um trabalho notável em prol do nosso património musical.

Estão guardados na nossa memória.~

Envie todas as informações que deseje ver publicadas no próximo número da glosas e que se

enquadrem nesta crónica, bem como na agenda que se lhe segue, para Manuela Paraíso,

[email protected]

AGENDA

MAIO

3/05, 19h30, Sala 2, Casa da Música, Porto:Solistas do Remix Ensemble. Jorge Peixinho

(Solo), Sérgio Azevedo (nova obra).

4/05, 20h00, Bruxelas, Bélgica: Musiques et

Recherches. Miso Ensemble. Itinerário do Sal.

4/05, ZKM, Karlsruhe, Alemanha:Drumming GP. Im Rauschen Rot for four drummers,

bass, electronics, de L. Antunes Pena.

5/05, 21h30, Teatro Constantino Nery, Mato-sinhos: Recital de Piano a 4 mãos. Joana Resende e Fausto Neves, piano. Obras de Lopes-Graça (Melo-

dias Rústicas Portuguesas - 3º caderno) e F. Lapa (Storyboard - Seis Miniaturas para Piano a 4 mãos).

6/05, El Corte Inglés, Lisboa:

Jovens Solistas da Metropolitana. Carlos Tomás, clarinete. Eva Mendonça, flauta. Catherine Stock-well, fagote. / Carolina Patrício, flauta. Madalena

Melo, viola. Salomé Matos, harpa. Obras de Sérgio Azevedo (Suite Campestre para Sopros, Pelos

campos fora) e César Guerra Peixe (Trio n.º 2 para Sopros).

6/05, Teatro Cine de Torres Vedras:

Ensemble Darcos. Concerto com projecção de imagens. Largo Intimíssimo, de Nuno Côrte-Real.

6/05, Águeda: Semana da Guitarra. Masterclass e Recital por Júlio Guerreiro. Programa: A. V.

d’Almeida (Fantasia Op.70), Eli Camargo Jr. (3 Texturas), Fernando Lobo (Apontamentos sobre

as Folias), Sérgio Azevedo (6 Pequenas Peças para

guitarra – estreia absoluta). Entrada livre.

6/05, 21h00, Sala Suggia, Casa da Música:Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, dir. Christian Lindberg. Sérgio Carolino, tuba.

Programa inclui Concerto para tuba e orquestra, de Paulo Perfeito. 20h15, Cibermúsica: Palestra

pré-concerto por Paulo Perfeito.

7/05, 21h30, Centro Cultural do Cartaxo: Jovens Solistas da Metropolitana. Quarteto de

Cordas. Carlota Pimenta, violino. Maria Bykova, violino. Paul Wakabayashi, viola. João Paes, vio-loncelo. Trio de Madeiras. Susana Oliveira, oboé. Marta Xavier, clarinete. Daniel Mota, fagote. Pro-grama inclui Cinco Miniaturas, de Miguel Oliveira.

7/05, 18h00, Clube Literário do Porto:

Recital de guitarra por Rui Gama. Programa: Paulo Bastos (17 Peças para Guitarra).

9/05, Escola Profissional de Música de Espinho: Recital e Masterclass de guitarra por Júlio Guer-reiro. Programa: A. V. d’Almeida (Fantasia Op.70), Eli Camargo Jr. (3 Texturas), Fernando Lobo (Apon-

tamentos sobre as Folias), Sérgio Azevedo (6 Pequenas

Peças para guitarra). Entrada Livre.

10/05, 20h00, Jordan Hall, Boston, EUA:Estreia absoluta de ...e murmurem vossas bocas, para

solo oboé, de Andreia Pinto-Correia. Solista: Amanda Hardy.

Aarhus Sinfonietta, dir. J. Kullberg. Diurne: alter

ego para 15 instrumentistas, de H. Ribeiro.

25/5, Cosenza, Itália: Performa Ensemble (Jorge Correia, flauta; Helena Marinho, piano). Obras de E. Zoudilkine (*), Sara Carvalho (*), Francisco Monteiro (*), Vianna da Motta, A. Victorino d’Almeida e Sérgio Azevedo.

* estreia absoluta

26/05, Washington DC, EUA:Concerto monográfico/conferência integrado no ciclo “European Leading Composers” 2010-11 da

Phillips Colection, dedicado a Sérgio Azevedo. Carlos Damas, violino, Jill Lawson, piano. Estreia de Seis Peças Breves**, Sonatina para Violino Solo nº

3*, Sonatina para Violino e Piano nº 1*, Piano-Borbo-

leta, Borboletas*, 12 Bagatelas: Omaggio a G. Ligeti

(selecção de 3 peças), V Mhlách...1912* (versão para violino e piano). * E. absoluta. ** E.parcial.

27/05, 21h00, Convento de Jesus, Setúbal:1.º Festival de Música de Setúbal. A música na corte de d’el-rei D. Dinis, o rei trovador (1261--1325). La Batalla, dir. Pedro Caldeira Cabral.

Programa: Poemas e música de D. Dinis (1261--1325), D. Afonso X (1221-1284), D. Sancho I

(1154-1212), D. João Peres D’Avoim (1213-1285), Joam Zorro (fl.c.1240-1270), Estevam da Guarda

(c.1280-1364) e Pero de Viviães (século XIII).

28/05, 21h00, Igreja de São Julião, Setúbal:1.º Festival de Música de Setúbal. Coro Gulben-kian, dir. Jorge Matta. António Carrilho (flauta), Helder Rodrigues (sacabuxa), Sofia Diniz (viola

da gamba), Nicholas MacNair (órgão). Programa: Música sacra brasileira (séculos XVIII e XIX),

Vilancicos do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra com influências africanas (séc. XVII). Entrada

livre mediante reserva.

29/05, 11h30, Pequeno Auditório, CCB: Concertos à Conversa, dir. Miguel Henriques. Allegro da Sonata Inacabada de António Fragoso

(int. Ana Pereira, violino; Paulo Pacheco, piano) e estreia de Quasi una sonata, de A. Pinho Vargas

(int. Gareguine Aroutiounian, violino. Miguel Henriques, piano).

29/05, 19h30, Quinta das Torres, Vila Nogueira de Azeitão:

1.º Festival de Música de Setúbal. (Re)descobertas. Pedro Carneiro (percussão), Natália Monteiro (flauta), Patricia Rozario (soprano). Programa

inclui Canções Populares Portuguesas, de Fernando Lopes-Graça (transcrição para soprano e

marimba/vibrafone, Pedro Carneiro).

29/05, Matrix Festival, Freiburg:Inclui estreia de Angel Rock, para clarinete baixo e

marimba, de João Pedro Oliveira.

30/05, 14h30, Escola Superior de Música de Lisboa: Concerto/Conferência “A Música Contem-

porânea Portuguesa para Guitarra” (Parte 1). José M. Lopes, guitarra. Obras de H. Ribeiro, José

Mesquita Lopes, C. Bochmann e V. Melo. 

31/05, 19h30, Sala Suggia, Casa da Música, Porto:Remix Ensemble Casa da Música, dir. Peter Run-del. Reinhard Latzko, violoncelo. Mário Teixeira, percussão. Inclui nova obra em estreia mundial de

Daniel Moreira (encomenda Casa da Música).

10 | glosas, #3

debaixo de olho: o que está a acontecer na música portuguesa | manuela paraíso

JUNHO

Junho (dia e hora a confirmar), Teatro da Vila-rinha, Porto: Solistas da Oficina Musical. António

Carrilho (flauta de bisel), Mafalda Nedjmedine (cravo). Programa: obras de Cândido Lima,

Ângela Lopes, Pedro Junqueira Maia, e outras.

2/06, 18h30, Sociedade Portuguesa de Autores, Lisboa: Jovens Solistas da Metropolitana. Trio

de Madeiras. Carlos Tomás, clarinete. Eva Men-donça, flauta. Catherine Stockwell, fagote. Quar-teto de Cordas. Carlota Pimenta, violino. Maria Bykova, violino. Paul Wakabayashi, viola. João

Paes, violoncelo. Programa inclui Suite Campestre

para Sopros, Pelos campos fora, de Sérgio Azevedo, e Trio n.º 2 para Sopros, de César Guerra Peixe.

3/06, 19h00, El Corte Inglês, Lisboa:

Jovens Solistas da Metropolitana. Quarteto de Cordas. Carlota Pimenta, violino. Maria Bykova, violino. Paul Wakabayashi, viola. João Paes, vio-loncelo. Trio de Madeiras. Susana Oliveira, oboé. Marta Xavier, clarinete. Daniel Mota, fagote. Pro-grama inclui Cinco Miniaturas, de Miguel Oliveira.

4/06, Alcobaça: Cistermúsica – Festival de Música. Orquestra de Câmara Portuguesa, dir. Pedro

Carneiro. Estreia de Nise Lacrimosa, Romance para

orquestra, de Luís Carvalho.

 4/06, 18h00, Sala Suggia, Casa da Música, Porto:Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, dir. Emilio Pomàrico. Anke Vondung, meio-soprano. Herbert Lippert, tenor. Rud, de Emmanuel Nunes.

5/06, 11h30, Sala Luís de Freitas Branco, CCB:Concertos à Conversa, dir. Miguel Henriques.

Programa inclui Suite para violoncelo solo, de António Pinho Vargas (int. Marco Pereira) e Canto de amor e de morte para quarteto de arcos e

piano, Op. 140, de Fernando Lopes-Graça (int. Paulo Pacheco, piano; Quarteto de Matosinhos).

5/06, Igreja das Laranjeiras, Lisboa:Coro infantil do Instituto Gregoriano de Lisboa, dir. Filipa Palhares. António Esteireiro, órgão.

Missa Brevis (estreia), de Sérgio Azevedo.

5/06, Leiria: Concerto de Beneficiência para a Culture Unite Cultures for Humanity. Ensemble

Concertante de Guitarras do OLCA, dir. José Mesquita Lopes. Programa inclui obra de Celso

Machado (arranjo de J. Mesquita Lopes).

8/06, 21h30, Museu Nogueira da Silva, Braga:Concerto mpmp.

10-11/06, Centro Cultural de Cascais:Concertos Sond’Ar-Te Electric Ensemble.

11/06, 21h30, Teatro Sá da Bandeira, Santarém:Concerto mpmp.

12/06, Capela do Rato, Lisboa: Sete Lágrimas. Missa de Pentecostes de João Madureira.

12/06, ESML, Lisboa:Sete Lágrimas. En tus brazos una noche.

 14/06, 19h30, Sala Suggia, Casa da Música, Porto:Remix Ensemble, dir. Emilio Pomàrico. Electrónica

IRCAM. Wandlungen, para grande ensemble e electrónica, de Emmanuel Nunes.

14/05, 16h00, Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva, Lisboa: Jovens Solistas da Academia Supe-rior de Orquestra. Susana Oliveira, oboé. Marta Xavier, clarinete. Daniel Mota, fagote. Programa

inclui Cinco Miniaturas, de Miguel Oliveira.

14/05, Casa da Música:Eldar Nebolsin, piano. Orquestra Sinfónica do

Porto Casa da Música. Concerto para Piano e Orques-

tra nº 2 de Lopes-Graça (gravação para a Naxos).

14/05, 21h30, Igreja Paroquial de Vilar de Andorinho, Vila Nova de Gaia: 1º Ciclo de Órgão

e Música de Câmara de Vilar de Andorinho. 4 séculos de música portuguesa para órgão.

Sérgio Silva, órgão. Programa: obras de António Carreira, Manuel Rodrigues Coelho, Diogo da

Conceição, Pedro de Araújo, Carlos de Seixas, Frei Jacinto do Sacramento e José Marques da Silva.

15/05, 11h30, Sala Luís de Freitas Branco, CCB:Concertos à Conversa, dir. Miguel Henriques.

Harpa Eólia, de C. Carneyro (I. Kuznyetsov, piano)e Mirrors, de Pinho Vargas (I. Brazhnik, piano).

19-22/05/2011, a confirmar, Locais a definir:Ana Telles, piano. Ana Cláudia Assis, piano.

Orquestra Filarmonia das Beiras. Programa inclui obras de João Pedro Oliveira (Abyssus ascendens ad

aeternum splendorem, para piano, orquestra e elec-trónica) e Jean-Sébastien Béreau (Nova obra para

piano a quatro mãos e orquestra - estreia mundial). 

19 a 21/05, Universidade de Aveiro:“Performa”. Conferência em Painel (com Paulo

Vaz de Carvalho, João Moita, Augusto Pacheco e João Pedro Duarte). José Mesquita Lopes “A

Transcrição na Música Contemporânea Portuguesa

para Guitarra”.

19/05, 20h00, Jordan Hall, Boston, EUA:Ventus Woodwind Quintet. Inclui Três Poemas,

de Andreia Pinto-Correia (estreia da versão para quinteto de sopros - Prémio Honors Ensembles).

21/05, 16h, Museu da Música, Lisboa: Concerto mpmp. Piano para a infância e a juventude.

21/05, Auditório Vita, Braga:Mi contra Fa (Magna Ferreira, Canto. Hugo Soeiro

Sanches, alaúde e viola de mão. Pedro Sousa Silva, flautas). Programa: música para as vésperas

da Beata Virgem inteiramente seleccionada de manuscritos dos séculos XVI e XVII residentes na

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra.

21/05, Experimental Media and Performing Arts Center, Troy, EUA: Betti Xiang (Erhu), Albany

Symphony Orchestra, dir. David A. Miller. Inclui estreia de obra para erhu e orquestra de L. Tinoco.

22/05, 15h00, Pequeno Auditório, CCB:Concertos à Conversa, dir. Miguel Henriques.

Camerata Musart, dir. Gareguine Aroutiounian. Programa inclui Concerto para cravo e orquestra em

Lá maior, de Carlos Seixas (int. Inês Heitor, piano).

24 e 31/05, Fonoteca Municipal de Lisboa: Projecto mpmp : «Viagens pelo Som e pela Ima-

gem». Obras de Carlos Cruz, Duarte P. Martins, E. L. Ayres d’Abreu, Lea Cardoso, Mário Chan,

Patrício da Silva e Tiago Cabrita.

24/05, 19h00, St. Peter’s Methodist Church, Can-terbury, Reino Unido: Festival Sounds New 2011.

glosas, #3 | 11

debaixo de olho: o que está a acontecer na música portuguesa | manuela paraíso

16/06, IRCAM/Festival Agora, Paris: [idem]

21/06, 20h00, sala a designar, Viena, Áustria:E.C.C.O Orchestra, direcção Jürgen Bruns.

Rem.mb.r..g .r.nz Sch…rt (estreia), de Sérgio Azevedo.

22/06, Teatro Constantino Nery, Matosinhos:Pedro Carneiro e Quarteto de Matosinhos.

Ends Meet, de Luís Tinoco.

25/06, 21h30, Festival Cistermúsica: Despontar do Barroco. Coro de Câmara da Universidade de Lisboa. Pedro Castro, Charamela. Duncan Fox,

Violone. Hélder Rodrigues, Sacabuxa. Flávia Almeida, Cravo. Obras de João Lourenço Rebelo.

26/06, 17h00, Mosteiro da Batalha: Ensemble Concertante de Guitarras, dir. José Mesquita

Lopes. Orquestra de Flautas do OLCA. Inclui obra de Celso Machado (arr. de J. Mesquita Lopes).

JULHO

1/07, 21h30, Auditório José Neto, Orfeão de Leiria: Concerto Final do IV Encontro Nacional de

Ensembles de Guitarra. Programa inclui obra de Celso Machado (arr. de J. Mesquita Lopes).

2/07, Convento dos Capuchos, Almada: Sete Lágrimas. Diaspora.pt

2/07, Porto: Coro Anonymus, dir. Fernando Lapa. Concerto de maestros compositores.

5/07, local a designar. Orquestra de Cascais e Oeiras, dir. Nikolai Lalov. Uma Pequena Serenata

Diurna (estreia), de Sérgio Azevedo.

8/07, 21h00, Sala Suggia, Casa da Música:II Prémio Internacional Fundação Casa da Música

Música / Suggia. Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, dir. M. Sanderling. Obra de Ânge-

la Ponte * (estreia; encomenda da Casa da Mú-sica). * Jovem Compositora em Residência 2011

9/07, 21h30, Teatro Sá da Bandeira, Santarém: estreia de ainda não vi-te as mãos, ópera de câmara

de E. L. Ayres d’Abreu. Solistas: Ariana Russo, Ana Atalaya, Luís Pereira e André Baleiro.

10/07, Póvoa de Varzim: Festival Internacional de Música.

Programa inclui Música Festiva nº 14 de Lopes--Graça. Piano: Raúl Peixoto da Costa.

12/07, Festival de Música de Caldas da Rainha. Carolina Matos, violoncelo. Programa inclui

estreia de Huudelf, para violoncelo, de D. Schvetz.

20/07, Mosteiro de Santa Clara-a-Velha:3.º Festival das Artes de Coimbra. Sete Lágrimas.

As vozes e as lágrimas humanas (Silêncio e estreia de Romance de Inês (título provisório), de João

Madureira e José Luís Peixoto).

23/07/2011, 21h30, Póvoa de Varzim: Festival Internacional de Música. Sond’Ar-Te Electric Ensemble. Transmutations, para piano e

electrónica, de Pedro Amaral.

24/07, Ravenna, Itália: Sete Lágrimas. Mediterrae: Devoção e amor no eixo latino

mediterrânico.

AGOSTO

3 a 7/08, Los Angeles, EUA: Clarinetfest 2011. Divan Consort. Três Poemas do

Oriente (estreia americana), de Luís Tinoco.

5/08, Conferência Internacional de Clarinetes, Los Angeles: Estreia de peça para clarinete, de

Andreia Pinto-Correia (encomenda de Derek Bermel).

 06/08, 21h00, Igreja Paroquial de Vilar de An-

dorinho, Vila Nova de Gaia: 1º Ciclo de Órgão e Música de Câmara (Concerto de Encerramento).

Capella Duriensis, direcção: Jonathan Ayerst. Obras de Frei Manuel Cardoso. Entrada livre.

20/08, Antuérpia, Bélgica: Festival “Laus Poly-phoniae”. Capilla Flaminca (com Fernando Miguel

Jalôto, órgão). Programa dedicado ao casamento da Infanta Dona Isabel de Portugal com

o Duque Filipe, o Bom da Borgonha, em 1430.

24/08, 13h00, Antuérpia, Bélgica: Festival “Laus Polyphoniae”. Ludovice Ensemble. A fine consort

and harmony for viols, virginals, and voices - Portuguese

Consort Music. Obras de Leonora Duarte (ca.1610-1678), Duarte Lobo, Filipe de Magalhães, Manuel Cardoso, Estêvão de Brito e Estêvão Lopes Morago.

25/08, Antuérpia, Bélgica: Festival “Laus Polypho-niae”. Ensembles Oltremontano, dir. Wim Becu, e La Columbina, com Miguel Jalôto. Programa

recria as Vésperas de Natal no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, no início do século XVII, com

obras de D. Pedro de Cristo.

SETEMBRO

9 e 17/09, Centro Cultural de Belém, Mosteiro dos Jerónimos e outros, Festival Música Viva 2011

29/09, 30/09, 1/10, Convento dos Capuchos, Caparica: II Simpósio Internacional de Musicolo-gia Histórica. “Maria Bárbara de Bragança: Infanta

de Portugal: Rainha de Espanha”. Prof. Dr. Gerhard Doderer (Presidente) / Prof. Dr. Begoña Lolo

(Universidade Autónoma de Madrid) / Prof. Dr. Francesc Bonastre (Universidade Autónoma de Barcelona). Direcção Artística: Jenny Silvestre.

OUTUBRO

 Out/Nov, Festivais de Outono, Aveiro:

Inclui obra de A. Chagas Rosa (A boca para fagote, em versão multimédia).

1/10, 18h00, Sala Suggia, Casa da Música:Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, dir.

Christoph König. Programa inclui Onze Cartas, para orquestra, três narradores pré-gravados e electrónica, de António Pinho Vargas (estreia,

encomenda CdM/TNSC/CCB).

7/10, Birgu, Malta: Sete Lágrimas. Mediterrae:

Devoção e amor no eixo latino mediterrânico. 

14/10, Carnegie Hall, Nova Iorque, EUA:Sessão de abertura do Festival de Música Con-temporânea de Nova Iorque. Estreia de Elegia a

Al-Mutamid, de Andreia Pinto-Correia.

21/10, Teatro Cine de Torres Vedras: Ensemble Darcos. Programa inclui 9 Canções de Eugénio de

Andrade, de Nuno Côrte-Real.

21/10, Pequeno Auditório, CCB: OrchestrUtopica. Estreia de obra de Andreia Pinto-Correia (Com-

positora em Residência da OU 2011)

22 e 23/10, Teatro Gil Vicente, Coimbra:Coro Sinfónico Lisboa Cantat. Dir. Jorge Alves. Trovas de Garcia de Resente pela morte de Inês de

Castro de Paulo Bernardino e Pedro Janela.

22/10, 18h00, Sala Suggia, Casa da Música:Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, dir. Peter Rundel. Christoph Prégardien, tenor. Obras

de Emmanuel Nunes (Seuils – estreia mundial; Musivus - estreia portuguesa da versão completa).

23/10, 18h00, Sala Suggia, Casa da Música:Coro Casa da Música, dir. Simon Carrington. Obras de Filipe de Magalhães, Duarte Lobo,

Carlos Seixas, Dias Melgás.  

25/10, 19h30, Sala Suggia, Casa da Música:Remix Ensemble Casa da Música, dir. Emilio

Pomàrico. Sonia Wieder-Atherton, violoncelo. António Augusto Aguiar, contrabaixo. Programa

inclui nova obra de Ângela Ponte.

 

NOVEMBRO

Novembro, Festival Hôtel des Deux Couronnes, Vevey, Suíça: Inclui Six mélodies d’après Teiko -

versão para piano e canto - de Chagas Rosa. 

7/11, Palácio Foz, Lisboa e 12/11, Museu da Música:Concerto mpmp:

Lançamento da glosas #4.

11/11, Praga: Festival Contemplus. Miso Ensemble: Itinerário do Sal de Miguel Azguime.

13/11, 18h00, Sala Suggia, Casa da Música:Rinaldo Alessandrini, cravo.

Programa inclui duas sonatas de Carlos Seixas.

19/11, Teatro Nacional de São Carlos:Orquestra Sinfónica Portuguesa. Programa inclui

Onze Cartas, para orquestra, três narradores (pré-gravados) e electrónica, de António Pinho

Vargas (estreia mundial; encomenda CdM/TNSC/CCB).

 20/11, Basílica de Nossa Senhora de Fátima:

Coro Sinfónico Lisboa Cantat, dir. Jorge Carvalho Alves. Programa inclui Cristo Rei, do Cónego

Ferreira dos Santos (estreia mundial - a confirmar).

26/11, Idanha-a-Nova: Sete Lágrimas. Mediterrae:

Devoção e amor no eixo latino mediterrânico.

27/11, Theatro Circo, Braga:ExpressOriente Duo (Carlos Lima, guitarra; Gil Magalhães, flauta); Oxana Chvets, violoncelo;

Nuno Aroso, percussão. Programa inclui 04

Linha Oriente, para flauta, guitarra, violoncelo, percussão e electrónica, de Pedro Junqueira Maia (estreia absoluta) e Yinnay, para flauta, guitarra, violoncelo, percussão e electrónica, de Rui Dias

(estreia absoluta).

(1924-1988)in memoriam

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Joly Braga Santos: criar música

como as árvores dão frutos

Sérgio Azevedo

Prelúdio

Joly Braga Santos foi um dos casos mais inequí-vocos de precocidade, originalidade e instinto musical de que há memória na música portuguesa. Podemos pensar que os restantes três compositores mais significativos da primeira metade do século XX português – Luís de Freitas Branco, Fernando Lopes-Graça e Frederico de Freitas – revelaram proezas de precocidade musical desde muito cedo, porém, exceptuando talvez Freitas Branco com o poema sinfónico Vathek, nenhum dos outros conseguiu com tamanha facilidade criar obras tão monumentais e complexas como as primeiras quatro sinfonias que Joly Braga Santos escreveu entre os 22 e os 26 anos, para já não mencionar as muitas outras obras significativas com-postas durante esse período fértil, como as primeiras duas Aberturas Sinfónicas (1946 e 1947), o 1.º Quarteto de Cordas (1945), a cantata A Conquista de Lisboa (1947), ou a Ele-

gia a Vianna da Motta (1948). Ainda antes de completar 30 anos, uma idade na qual muitos outros compositores começam tão só a descobrir o seu estilo de maturidade, Joly Braga Santos terá ainda tempo para escrever duas das suas obras mais populares e conseguidas, as Variações sobre

um Tema Alentejano e o Concerto em Ré para Cordas (ambas de 1951), a primeira ópera, Viver ou Morrer (1952), e ainda a derradeira das Aberturas Sinfónicas, a nº3 (1954). Ou seja, cerca de trinta obras nos primeiros dez anos de carreira(o opus 1 data dos seus 18 anos), muitas das quais orques-trais, e escritas nos mais diversos géneros, da sinfonia à ópera, das variações e do bailado ao concerto e à abertura sinfónica, da música de câmara aos ciclos vocais e à música de cena e de cinema.

Se insisti tanto nestas primeiras linhas na preco-cidade, abundância e variedade do catálogo de Joly Braga Santos, foi porque estas características se revelam na sua música, que é de uma generosidade ímpar na nossa história. Antes da década de 60, que trará a Joly, tal como a Lopes-Graça, dúvidas existenciais relacionadas com as novidades das vanguardas de Darmstadt, a música do compositor não mostra sinais nem de dúvidas nem de grandes hesitações estéticas. Ela é apenas aquilo que tem de ser: genuína, directa e verdadeira. Como uma árvore dá frutos, Joly escreve sinfonias e concertos uns atrás dos outros, sempre inspirado, e revela nessas obras um

talento melódico extraordinário, que atingirá o seu pico no hino final da 4.ª Sinfonia, um dos finais mais belos e empolgantes de toda a música ocidental (pesei bem a hipérbole), um final que só não é pertença de toda a hu-manidade porque, e aqui tocamos no ponto sensível de todos os compositores portugueses, a nossa música nunca logrou internacionalizar-se. O fascismo, por um lado, que isolou o país, a própria posição periférica de Portugal, por outro, e ainda um atávico e incompreensível menosprezo por tudo aquilo que é nacional, aliado a um snobismo en-tusiástico por tudo o que vem de fora – seja mau seja bom –,impediram que Joly Braga Santos atingisse o lugar que é o seu na música europeia do século XX, um lugar que poderia perfeitamente disputar com Walton, Vaughan Williams ou Sibelius, para citar apenas três dos nomes com os quais a sua música mostra parentescos estilísticos.

O caricato desta situação revela-se-nos no apreço que nos últimos anos a crítica inglesa e norte-americana tem mostrado para com as edições discográficas que têm dado a conhecer, em versões muito mais favoráveis dos que as versões da PortugalSom (imprescindíveis, ainda assim, durante quase 30 anos, para o conhecimento bási-co, mesmo que imperfeito, do compositor), – um apreço que destoa completamente da atenção oficial e das pro-gramações portuguesas, nomeadamente no que toca à música sinfónica e à ópera. Tal como todos os restantes compositores portugueses, a música de Joly Braga Santos nunca foi publicada, circulando em cópias manuscritas feitas quer a partir dos originais do compositor quer dos materiais dos copistas que realizaram os materiais orques-trais. A própria legibilidade de cópias feitas a partir de outras cópias, de fotocópias gastas e rasuradas por ensaios e outras provações chegou a um ponto tal que, muito re-centemente, os músicos da Orquestra Gulbenkian quase se recusaram a tocar a 4.ª Sinfonia por causa da má quali-dade dos materiais.

Junto do público e dos intérpretes, Joly Braga Santos foi sempre, no entanto, o compositor português mais acarinhado e tocado, se exceptuarmos o Lopes--Graça das obras corais a cappella, como as Regionais, e das obras para piano, o que também não admira, não só devido à qualidade intrínseca dessas obras, mas também à quantidade de pianistas e formações corais portuguesas,

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e ainda ao facto de Joly Braga Santos pouco ou nada ter contribuído para qualquer um desses géneros. O melhor de Joly Braga Santos está na música orquestral, e essa ainda é pouco tocada em Portugal, se exceptuarmos obras menores, como o Nocturno, ou na música para orquestra de cordas, como o Concerto em Ré, esse sim, bastante in-terpretado. Somente nos últimos anos novas versões dis-cográficas das obras orquestrais (levadas a cabo sobretudo por Álvaro Cassuto) e uma nova geração de maestros (en-tre os quais Pedro Neves, Cesário Costa, Luís Carvalho e Joana Carneiro, entre outros) têm vindo aos poucos a dar nova vida a estas obras. Está também no seu começo a publicação em partitura das obras mais significativas, em versões revistas e de boa qualidade gráfica, o que irá possibilitar nos anos vindouros um aumento da procura junto da comunidade musical internacional, uma inicia-tiva da editora AvA - Edições Musicais (até agora sem apoio algum do Estado), em conjunto com os herdeiros do compositor. Assim, dentro de pouco tempo, teremos à disposição em CDs de boa qualidade interpretativa e em excelentes gravações de etiquetas internacionais (Marco Polo, Naxos, Dux, etc.), bem como em partitura, pra-ticamente todas as obras relevantes de Joly Braga Santos, à excepção da ópera e das obras corais-sinfónicas, um domínio onde ainda há muito por fazer, e que conta com três óperas (Viver ou Morrer, Mérope, Trilogia das Barcas), várias cantatas e ainda um Requiem (1964).

As novas tecnologias (de software musical, nomea-damente) e melhores e mais baratas oportunidades de gravar CDs em boas condições técnicas e com boas or-questras, condições que Joly (e os restantes compositores portugueses) não podia desejar ter na altura, foram fun-damentais para esta mudança de paradigma, que abrange também muitos outros compositores de todas as épocas, e que me levam a pensar que, mesmo nestes tempos difí-ceis, a composição em Portugal, passada e actual, vive um momento de ouro, um momento que nunca viveu antes.

Não obstante todas as dificuldades da vida mu-sical portuguesa da época, Joly Braga Santos conseguiu, ainda assim, oportunidades únicas para trabalhar, vi-vendo quase sempre em exclusivo da composição graças às bandas sonoras para filmes e ao emprego na Emissora Nacional (devido em parte a Pedro do Prado) que consistia basicamente em compor obras orquestrais, oportunidade que, por razões óbvias, nunca foi concedida a Fernando Lopes-Graça (e que colocou por vezes Joly Braga Santos em situações embaraçosas, quando foi literalmente força-do a escrever a 5.ª Sinfonia - sob risco de perder o emprego, o único que tinha - para as comemorações do 40º aniver-

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sário da Revolução fascista de 28 de Maio de 19261). Isto possibilitou uma regularidade e um esforço direccionado para a música orquestral - género sempre pouco requi-sitado - que teria sido praticamente impossível não fora essa oportunidade que alijou o compositor de tempo per-dido para aulas ou para outras ocupações nobres, mas não criativas, e que só o iriam afastar da sua mesa de trabalho.

Fuga

Em geral, divide-se a sua vida criadora em, pelo menos, duas fases: a primeira fase, mais lírica, mais modal e mais tradicional em termos de formas e géneros, cul-minaria na 4.ª Sinfonia, escrita em 1950 (a seguinte viria somente quinze anos depois), mas prosseguiria pelos anos 50. O começo da década de 60, com obras mais densas, mais cromáticas e menos melódicas (no sentido tradicio-nal), obras como a ópera Mérope (1958) ou o Concerto para

Viola e Orquestra (1960), representaria uma fase direccio-nada para a apreensão das novidades técnicas das vanguar-das, nomeadamente o uso de cromatismo extenso, clusters, efeitos orquestrais específicos (glissandi, técnicas expan-didas, etc.), resultando num compromisso nem sempre feliz entre a natureza lírica e expansiva do compositor e a secura e agressividade de muita da música inspirada pelos gurus de Darmstadt, como Nono, Boulez e Stockhausen.

Se partilho superficialmente desta divisão básica, reconhecendo que existe claramente a partir dos anos 60 uma progressiva inflexão no sentido da exploração e ex-pansão da harmonia e do cromatismo, a qual quase nunca afasta por completo a tendência para o lirismo melódico, já não concordo com a ideia de uma divisão estanque en-tre as duas “fases”. Pelo contrário, neste particular estou inteiramente do lado de Alexandre Delgado - aluno di-lecto de Joly Braga Santos – que nos diz o seguinte: A obra

mais importante que Joly Braga Santos escreveu a seguir à 5.ª Sinfonia foi a ópera Trilogia das Barcas, baseada em Gil

Vicente e estreada em 1970. Essas duas criações radicalmente

diferentes, escritas tão próximo uma da outra, mostram como é

inexacta a divisão estanque da produção de Joly em duas fases,

1) Embora muito esteja ainda por estudar, e falte, como de costume, uma biografia completa e abrangente de Joly Braga Santos que permita reflectir sobre as posições ideológicas e políticas do compositor, nada indica que fosse um apoiante do Estado Novo. A própria 5.ª Sinfonia, uma das suas obras mais dissonantes e radicais, está a léguas da estética acarinhada pelo Estado Novo, e pode até ser interpretada como uma reflexão musical sobre a brutalidade dos tempos, não obstante o acorde de Mi maior com que termina, que dá ao final um tom aparentemente “optimista”. Joly Braga Santos tomou inclusive algumas posições cora-josas, como a de apoiar - sendo ainda um mero estudante - o seu pro-fessor e mentor Luís de Freitas Branco, quando este foi afastado do Conservatório.

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uma primeira modal e uma segunda de livre cromatismo. A

versão operática dos autos vicentinos, escrita em plena fase

«atonal», é de um modalismo radioso, retoma o diatonismo das

quatro primeiras sinfonias de uma forma que nada tem que ver

com a vanguardista explosão cromática da 5.ª Sinfonia.”2

Muitas outras obras de carácter díspar poderão ser cotejadas nestas duas décadas, de 60 e 70, pares que provam, se tal fosse necessário, que Joly Braga Santos não só nunca abandonou a sua primeira e verdadeira natureza, como fez coexistir obras mais experimentais com outras de índole contrária, tais como os pares Divertimento n.º1

/ Concerto para Viola e Orquestra (1960) ou Encruzilhada / Variações Concertantes (1967). A 6.ª Sinfonia (1971), a úl-tima de todas, mostra também, tal como já o Concerto para

Viola e Orquestra, que dentro da mesma peça são possíveis momentos cromáticos e momentos diatónicos, sem que o aparente conflito entre ambas as técnicas não possa, nas mãos de um mestre como Joly, resultar numa riqueza estética eivada daquela ambiguidade e tensão que toda a grande arte não pode deixar de conter para almejar ao universal, porque nada é simples neste mundo.

Para o grande público e para os intérpretes, não restam dúvidas, porém, que é para a primeira fase, a das primeiras quatro sinfonias, do Concerto em Ré e das Vari-

ações sobre um Tema Alentejano que vai a preferência. Neste aspecto, a obra de Joly sofre o mesmo destino que as obras mais radicais dos grandes compositores do século XX, como Bartók, Britten ou Stravinsky, de quem o grande público continua a preferir o Concerto para Orquestra à Música para Cordas, Peter Grimes a Morte em Veneza, O Pás-

saro de Fogo à Sinfonia de Salmos.

As primeiras obras de Joly caracterizam-se, pois, por um modalismo muito português, que o jovem com-positor herda não só do seu mestre Luís de Freitas Branco (nomeadamente de obras como a 2.ª Sinfonia, ou as Suites

Alentejanas), mas também da tradição gregoriana, do fol-clore alentejano, da nossa música medieval e renascen-tista, e ainda de compositores como Sibelius (6.ª Sinfonia), e dos ingleses Ralph Vaughan Williams, William Wal-ton e Frederic Delius, dos quais herdará também a sua tendência inicial para a monumentalidade expansiva (as primeiras quatro sinfonias possuem uma duração média de quase cinquenta minutos, o que à época, e só por si, já se tornara pouco habitual). As formas e géneros são tam-bém os tradicionais: forma-sonata, rondó, ABA, varia-ções, abertura, fuga, sinfonia, quarteto de cordas...

2) A Sinfonia em Portugal, Caminho, 2002, 2ª ed., p.241

Do ponto de vista da orquestração, sempre eficaz, embora numa linha menos brilhante e pormenorizada do que a de Stravinsky ou Ravel, Joly Braga Santos revela-se um manipulador original de timbres, um sinfonista e or-questrador nato, cuja expressão mais natural é claramente a grande orquestra sinfónica e a expansividade que esta permite. A escrita para os metais é particularmente arro-jada (ouçam-se por exemplo as Variações sobre um Tema

Alentejano e o andamento final da 4.ª Sinfonia), enquanto que as cordas têm em Joly alguém que as compreende e sabe como as misturar e fazer sobressair, como demons-tram duas das obras mais belas que lhes dedicou, o Con-

certo em Ré e a Sinfonietta.

Do ponto de vista do lirismo, Joly Braga Santos é também um melodista nato, possuidor de um estilo muito próprio, caracterizado pelo uso de um grupetto de appog-

giature, normalmente descendentes, no início das frases, ou perto do fim destas. O uso de ostinati e de harmonias por quartas e quintas, recusando sempre a banalidade tonal dos acordes de sétima e da sensível, e o modalismo arcaizante concluem este apanhado de características es-tilísticas, às quais se poderá ainda juntar uma facilidade para o contraponto que, sem sufocar nem “academizar” demasiado as primeiras obras, lhes aumenta o travo neo--renascentista, como é o caso do final da 3.ª Sinfonia, com as suas duas fugas, ou o último andamento do Concerto em Ré, para só mencionar estas duas obras. A fuga, uma técnica e uma textura tornadas obsoletas pelas vanguardas, mas que tinham tido uma ressurreição espantosa entre os anos 20 e 40 devido ao neoclassicismo então adoptado por muitos grandes compositores (basta lembrar as fugas da Música

para Cordas, Percussão e Celesta de Bartók, ou da Sinfonia de

Salmos de Stravinsky), caía agora, anos 50, no mais com-pleto desprezo, incompatível como era com as novas preo-cupações técnicas e estéticas de Boulez ou Stockhausen.Não obstante, Joly consegue o milagre de, nas palavras de Alexandre Delgado (uma referência incontornável no que a este compositor concerne), tornar “fresco” um tipode composição já tão esgotado: Neste último andamento [3.ª Sinfonia], Joly escreveu uma dupla fuga com uma frescura

que já não se julgaria possível nos anos 40 do século XX. A 6.ª Sinfonia de Sibelius (1923), com os seus arcaísmos e subtilezas

renascentistas, é uma das influências prováveis. Mas a influên-

cia do Alentejo, onde esta obra foi escrita, é também evidente e

produz uma simbiose invulgar.”3

Não obstante Delgado considerar a 3.ª Sinfonia

(1949) “a mais perfeita e equilibrada das sinfonias «modais»

de Joly Braga Santos”, e talvez no aspecto técnico assim seja,

3) Idem, p.219

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glosas, #3 | 15

considero que é na 4.ª Sinfonia que coexistem todas as qua-lidades do seu autor a um nível até aí nunca atingido(excepto talvez no final da 3.ª Sinfonia, final apoteótico que a nova obra leva ainda mais longe). Não é por acaso, como dissemos, que entre a 4.ª Sinfonia e a seguinte tenham pas-sado quase 16 anos sem novas obras neste género tão caro ao compositor, nem que a estreia da “Quarta” tenha sido feita pelo próprio Joly Braga Santos, à frente da Orquestra Sinfónica Nacional, enquanto que o resto do programa foi dirigido por Pedro de Freitas Branco. A 4.ª Sinfonia foi ainda composta e estreada praticamente ao mesmo tempo que as duas obras mais populares do compositor e mais fre-quentemente executadas, o Concerto em Ré (1951) e as Va-

riações sobre um Tema Alentejano (1951), e apenas um ano e meio antes da primeira ópera, Viver ou Morrer. Estes dois ou três anos, entre 1949 e 1951-52 são, pois, anos de ouro numa carreira que já produzira um número significativo de obras de grande relevo, e estabelecem definitivamente o estilo de Joly Braga Santos e a sua proeminência entre os compositores do século XX português.

a sua inesgotável veia melódica a empregar temas de ou-trem, mesmo que esse outrem fosse o tão apreciado corpo anónimo das melodias tradicionais russas. Prokofiev, não obstante a sua relutância, não evitou por completo o uso de melodias oriundas do folclore, mas em geral fê-lo por pressão dos tempos (i.e. o Realismo Socialista então vi-gente na URSS) ou por encomenda (como na Abertura so-

bre Temas Judeus). Obras como o 2.º Quarteto de Cordas ou o bailado The Stone Flower são disso bons exemplos.

No entanto, algumas obras de Braga Santos, até por essa razão, são significativas, nomeadamente o belís-simo Divertimento n.º1 (1960), para pequena orquestra, uma das obras mais felizes do compositor, que usa quatro melodias tradicionais e as combina num trabalho polifó-nico original e extremamente eficaz, em mais um daque-les momentos que provam, se necessário fosse, a con-sumada mestria contrapontística do seu autor (ver página seguinte). Contemporâneo deste Divertimento, composto no mesmo ano, 1960, e uma das melhores obras que se

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O hino final da 4.ª Sinfonia, mais tarde adaptado a final coral (sobre um poema medíocre de Vasconcelos Sobral, verdade seja dita4), coroa e fecha esta fase gloriosa, da juventude de Joly.

Não obstante o interesse pelo Alentejo, pela tradição renascentista e pelo gregoriano, Joly Braga San-tos raras vezes recorreu ao folclore autêntico. A sua cria-tividade melódica não necessitava de ajudas externas, e nesse campo ombreia com Prokofiev, que preferia usar 4)

Juventude, pura juventude / A Manhã, o Amor / Tão do fundo Pátria vertical / A crescer em esplendor. //Levemente num caminho novo / Onde o cântico é dom /

Poderoso dom de ser-se leve, / Alva flor de som. //Juventude pássaros no sangue, / Ó incêndios de luz! /

P’la distância ‘inda mais além / Que à distância conduz. //Labaredas no destino onde / Jovens ó por Amar! /

Destruindo o barro que vos esconde / Com um só vosso olhar. //Amor, ó Dom, / Indestrutível Dom, mais além /

/ Oh, no espaço Amar. //

podem incluir entre aquelas que revelam o interesse cres-cente de Joly pelo cromatismo expandido, é o Concerto para

Viola. De entre os três concertos escritos pelo compositor para instrumentos solistas (piano, viola, violoncelo), este é claramente o mais conseguido, e um dos mais notáveis (e não temo, novamente, a só aparente hipérbole) de todo o século XX. O piano nunca foi o instrumento favorito de Joly Braga Santos, que sempre se exprimiu melhor, como afirmámos, no meio orquestral, e o Concerto para Piano (1973) sofre desse desinteresse e de um pianismo pouco adequado. Já o Concerto para Violoncelo, uma das últimas obras do compositor (1987), a cuja estreia tive a oportuni-dade de assistir, na Fundação Calouste Gulbenkian, sofre um pouco dos problemas inerentes a este instrumento (o equilíbrio solista/orquestra), mas mais ainda de uma at-mosfera sombria e de um melodismo menos inspirado do que o costume, um melodismo que “quebra” mal se inicia, só revelando os seus encantos depois de audições repeti-das (em particular os primeiros dois andamentos, menos

Hino final da 4.ª Sinfonia

líricos que o terceiro), e que dificilmente conquistará a afeição do público musicalmente menos informado. É, pois, uma obra que funciona melhor em disco do que ao vivo, graças à possibilidade de a gravação equilibrar efi-cazmente o solista com a orquestra, embora não seja, de todo, uma obra negligenciável5. Não obstante, e ao con-trário do Concerto para Viola, dificilmente o Concerto para

Violoncelo poderá ombrear com as melhores obras deste género e deste período, nomeadamente com o 2.º Concerto de Shostakovich, ou mesmo, numa linha mais neoclássica e folclorista, com o fácil Concierto como un Divertimento (1981), de Joaquín Rodrigo, a cuja estreia portuguesa também tive a sorte de assistir algum tempo antes da es-treia do concerto de Joly Braga Santos.

Mas voltemos ao Concerto para Viola, o ponto alto da música concertante de Joly Braga Santos, e uma obra de charneira, que marca a passagem entre a década de 50 e os anos 60 e 70. Dedicada ao ilustre violetista François Broos, que a estreará no TNSC (com a Orquestra Sinfóni-ca da Emissora Nacional dirigida pelo autor), o Concerto

para Viola terá em Anabela Chaves a sua intérprete de

5) Questões que nada terão que ver, creio, com a idade e eventuais problemas de saúde do compositor, porquanto a derradeira obra or-questral (e a penúltima) que escreveu, o Staccato Brilhante, é uma pequena pérola de humor e musicalidade. E também não se depreenda das linhas acima que considero, pessoalmente, o Concerto para Violonce-

lo uma obra de menor qualidade. Aliás, é uma das que eu mais aprecio, na sua ambiência soturna e grave, mas reconheço que dificilmente se tornará numa das obras mais tocadas e queridas de Joly Braga Santos junto do público melómano, com muita pena minha.

eleição, sendo a interpretação da violetista a única exis-tente no mercado (em gravação de 1981). O Concerto

para Viola equilibra, a meu ver, as tendências modais e cromáticas de Joly Braga Santos, num todo coerente e muito atraente, pese embora o tom grave que, de qualquer modo, costuma ser o atribuído ao mais melancólico dos instrumentos.

O início da obra, um tema orquestral que sugere um modalismo gregoriano cromaticamente expandido, muito característico do autor nesta fase, é rapidamente desenvolvido, antes da entrada da viola (que, por uma vez, mostra alguns ecos de outro compositor especí-fico, neste caso Hindemith, o que não é de admirar) em direcção a uma pequena explosão cromática, após o que a viola pacifica as hostes e faz a música regressar a uma ambiência modalizante, também ela arrastada aos pou-cos para harmonias mais densas e cromáticas. Para além de Hindemith, ecos de Shostakovich e Holst podem ser descobertos, se para aí estivermos virados, mas trata-se apenas disso, de meros ecos, que em nada prejudicam a extraordinária originalidade de Joly Braga Santos.

Tudo isso é, no entanto, feito com mestria, nunca tendo nós, auditores, a impressão de incoerência ou de falta de controlo do resultado. A secção central, rápida, do 1.º andamento, é dominada por uma ideia quase popular, com laivos de música renascentista de dança, uma carac-terística do autor desde as primeiras obras, aqui levada a um ponto de sofisticação e integração ímpar, e que voltará

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glosas, #3 | 17

À maneira de um concerto grosso bar-

roco, alternando solistas com tutti, Joly combina

no segundo andamento os temas 2 e 3 do exemplo

à esquerda, dois temas muito distintos entre si, e

entrelaça-os numa teia de linhas contrapontísticas

que, não obstante a complexidade da textura, é sem-

pre clara, deixando cada voz perfeitamente audível,

uma preocupação que Joly nunca deixou de ter, e

que ajudará a sua música a tornar-se popular entre

o público e os intérpretes, que sentem que o composi-

tor não trabalha apenas para si próprio, mas tam-

bém para quem o ouve, e procura que a Música fale

sempre acima dos pormenores técnico-estruturais.

acima: excertos do Divertimento n.º1

acima: excerto do Concerto para Viola

a repetir-se mais tarde nessa secção, numa reprise que con-duzirá ao fim deste massivo andamento, tão longo como o terceiro (dez minutos) e que rodeia um frágil scherzo

(marcado Allegro energico) com metade desse tempo. Este andamento central, embora escrito em 1960, é mais um daqueles momentos que, tal como afirmámos atrás, podia perfeitamente pertencer à fase mais modal do compositor, só aqui e ali procurando uma maior dureza, mormente nas poucas interrupções da orquestra, rapidamente des-mentidas pela viola, que impõe a sua ancestralidade mo-dal/renascentista e a alegria da dança.

O terceiro e último andamento é como que um espelho do primeiro, fazendo ressoar logo de início, nas cordas graves, o motivo principal com que já abrira o con-certo. A indicação de Allegro lamentoso denota a ambigui-dade emocional que esta obra carrega, entre a tristeza e uma certa alegria melancólica, ambiguidade que se presta maravilhosamente a ser expressa pela viola e transforma este concerto numa das mais belas prendas concedidas aos violetistas, não se compreendendo porque é tão raramente tocado. E se me demorei tanto tempo nele foi porque o considero, não obstante tantas mais que poderia citar, uma das melhores obras não só de Joly Braga Santos como de todo o século XX no que a concertos para viola diz res-peito. Com uma geração de excelentes jovens violetistas e maestros portugueses, com boas orquestras nacionais e com o auxílio das edições que estão a ser preparadas pela AvA - Musical Editions, espero que a situação comece a mudar e que o Concerto para Viola de Joly Braga Santos ob-tenha o lugar de destaque que sempre mereceu no reper-tório nacional e - porque não? - internacional.

As décadas de 60 e 70 serão dominadas (embora não exclusivamente, como vimos) por obras mais experi-mentais, mais cromáticas, algumas das quais sofrem, não direi de uma falta de sinceridade, porque nunca ninguém obrigou naturalmente Joly Braga Santos a subscrever estéticas que não eram as suas, mas de uma tentativa de compromisso entre o seu lirismo e modalismo atávi-cos, e formas de expressão derivadas das várias linhas de vanguarda que a partir dos anos 60 imperarão por todo o mundo musical e artístico em geral. Joly Braga Santos ver-se-á um pouco na situação daqueles pintores figu-rativos que, subitamente, foram confrontados (não pelo público, mas pelas galerias e “experts”) com o abstraccio-nismo expressionista dominante. Adaptar-se ou morrer foi para muitos a solução. Outros, que mantiveram intac-tas as suas estéticas, sofreram uma longa passagem por um exílio espiritual que somente nos anos 80 se voltará novamente a seu favor. Actualmente estamos na situação

contrária: as vanguardas radicais dos anos 60 morreram, e o público, que nunca abandonou os seus gostos tradi-cionais, foi vingado, por vezes de forma injusta para com grandes criadores da modernidade, como é característico de todas as revoluções.

Recorrendo novamente ao livro de Alexandre Delgado sobre a Sinfonia em Portugal, e a respeito da 6.ª Sinfonia, subscrevo inteiramente a sua opinião sobre este assunto delicado: “Voltemos ao ano de 1972, em que Joly

Braga Santos escreveu a sua última sinfonia. Joly cumpriu esta

encomenda numa fase difícil do seu percurso, em que se exa-

cerbou o conflito entre ser moderno e ser sincero. A 6.ª Sinfonia

é uma obra que reúne essas duas pulsões de uma forma tão ex-

trema que o resultado, na sua junção de estilos musicais incom-

patíveis, pode ser visto como pós-moderno, numa altura em que

essa tendência ainda mal despertara internacionalmente.”6

Lamentavelmente, e os leitores compreenderão porquê, deixarei de parte comentários mais específicos sobre as óperas e outras obras coral-sinfónicas (como o já mencionado Requiem) nesta breve panorâmica da obra de Joly Braga Santos, dado que não existem por enquanto gravações comerciais disponíveis, e que algumas das que existem nos arquivos da RDP não são de molde, quer pela qualidade da execução quer pelas condições das gravações, a lançarem uma luz favorável sobre as obras. Sendo tam-bém este um artigo breve e não exaustivo, absolutamente nada académico (sou compositor e admirador da obra, não musicólogo), que pretende tão-só uma panorâmica do percurso de Joly Braga Santos, preferi incluir nos co-mentários detalhados apenas aquelas obras a que o públi-co tem fácil acesso.

Sendo assim, terminarei esta breve panorâmica considerando algumas obras escritas a partir dos anos 60 que considero excepcionais, tirando as acima menciona-das pelas razões expostas, deixando também agora de lado as sinfonias, dado que nesta edição da glosas estas obras já são objecto de análise, e até pelo facto de, constituindo um ciclo, todas elas serem dignas de menção.

As obras que considero, então, como das mais conseguidas nestas quase três décadas de labor criativo, desde o início dos anos 60 a 1988, ano da morte do com-positor, são a Sinfonietta para cordas (1963), o bailado En-

cruzilhada (1967), o Concerto para Violino, Violoncelo, Or-

questra de Cordas e Harpa (1968), o Divertimento n.º2 (1978), e o Staccato Brilhante (1988). Entre elas encontram-se três obras para orquestra de cordas que continuam, agora de

6) Ibid., pag.243

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forma mais complexa, a provar a mestria do compositor neste meio difícil e tão frequentemente mal aproveitado. A Sinfonietta é uma obra brilhante, cujo alucinante último andamento não deixa de provocar sempre o entusiasmo do público, com a sua mistura de modernidade e aces-sibilidade virtuosística. Tive a ocasião de a ouvir tocada ao vivo por excelentes músicos em Londres, em 1996, e é uma obra que pode ombrear com o que de melhor se escreveu para orquestra de cordas no século XX. Já o Di-

vertimento n.º2, também para cordas, uma obra mais curta, possui um carácter mais abstracto. A ambiguidade entre cromatismo e diatonicismo que já tive ocasião de relevar a respeito de outras obras tem uma interessante fusão no curioso Concerto para Violino, Violoncelo, Orquestra de Cor-

das e Harpa, uma formação rara, que hoje em dia se pode fruir num excelente CD da Naxos na série de obras de Joly Braga Santos que Álvaro Cassuto tem gravado nos últi-mos anos. Um primeiro andamento mais tenso e abstrac-to liberta a sua energia num segundo andamento rápido com algum sabor bartókiano, remetendo para obras como a Música para Cordas, Percussão e Celesta do ponto de vista da formação instrumental. Mais um tipo de concerto grosso que denota o interesse de Joly Braga Santos pelo rico pas-sado da música barroca, mesmo que, do ponto de vista puramente musical, este período não seja tão audível no neoclassicismo do compositor como o renascimento em geral, ou o maneirismo seiscentista da Escola de Évora em particular. Uma das razões que também impedem uma maior difusão destas obras prende-se com a dificuldade crescente da música. Se o Concerto em Ré pode ser facil-mente interpretado por uma boa orquestra de alunos, já qualquer outra das obras para cordas aqui citadas dificil-mente chegaria a um estado razoável de qualidade técnica, quanto mais interpretativa. Somente executantes e or-questras de topo podem tocar estas peças com qualidade, um problema comum a muita música escrita nos últimos cem anos.

Por fim, quer o bailado Encruzilhada, quer a der-radeira peça orquestral, Staccato Brilhante, se podem incluir entre aquelas obras que qualquer público, seja ele muito ou pouco informado, poderá apreciar. Pertencem àquela categoria de peças felizes, inspiradas, cujos rasgos melódi-cos e ímpeto rítmico são contagiantes. O Staccato Brilhante impressiona também por ser a penúltima obra de Joly, em plena posse das suas capacidades. Nos curtos quatro minu-tos que demora esta breve abertura (encomendada por Álvaro Cassuto precisamente para essa função), o com-positor mostra pela última vez todas as características do seu génio: facilidade melódica, ritmos ostinato e fulgor or-questral, fusão perfeita entre diatonicismo e cromatismo,

tudo apresentado aos ouvintes na forma de um estilo original e imediatamente reconhecível. Quanto ao bailado Encruzilhada, escrito em 1967, e que teve coreografia de Francis Graça, é uma obra de trinta minutos para peque-na orquestra, uma orquestra clássica mas da qual Joly Braga Santos extrai prodígios de sonoridade. O primeiro quadro, uma endiabrada tarantela, contém uma das mais memoráveis melodias do compositor, não por acaso afim do estilo de William Walton (naquele que é, talvez, o mo-mento de maior proximidade entre Joly Braga Santos e outro compositor), que amava Itália a ponto de ter aban-donado Inglaterra para ir viver num ilha do Mediterrâ-neo, pertença desse país. A tarantela, uma dança que Wal-ton escreveu por diversas vezes, como que salta do meio da orquestra após uma introdução rápida que estabelece uma atmosfera rítmica e moderadamente dissonante, com a qual a melodia dançante nos violinos vai estabelecer um contraste extremamente eficaz. Poucas vezes, mesmo no “período modal”, terá Joly Braga Santos escrito uma música tão exuberante e feliz, tão despreocupada e exaltante. Somente o Concerto

em Ré, no último andamento, consegue esta felicidade solarenga. Não esqueçamos que as sinfonias, todas elas, mantêm, em geral, uma ambiência solene, trágica ou monumental, para a qual o modalismo contribuiu com a sua aura melancólica. Uma certa gravidade impera em muitas das obras de concerto de Joly, gravidade que se tor-nará ainda mais pesada a partir dos anos 60, como vimos, pelo que estes raros momentos de felicidade completa são como que o tímido raio de sol que nos aquece o corpo, e a alma, num belo dia de Outono.

Esta breve, necessariamente incompleta pano-râmica, não podia ficar completa (passe a contradição) se não mencionasse a música de câmara, um corpo de obras não demasiado numeroso, mas que ainda assim conta com algumas páginas importantes, nomeadamente os dois quartetos de cordas (1945 e 1957), o Quarteto com Piano (1957), a Aria a Tre con Variazioni (1984), a Suite de Danças (1984), o Trio para Piano, Violino e Violoncelo (1985), ou o Sexteto (1986). Estas e outras obras do catálogo de câmara do compositor revelam uma outra faceta, mais intimista, mas que almeja quase sempre à monumentalidade e so-noridade da grande orquestra, meio privilegiado de Joly Braga Santos. Como Prokofiev, que escreveu pouca músi-ca de câmara mas de alta qualidade, a de Joly é escassa em número mas notável do ponto de vista musical, sendo que tem ficado um pouco na sombra pelas mesmas razões que a de Prokofiev ficou durante tantos anos: o brilho magní-fico, ofuscante, das obras para orquestra. •

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glosas, #3 | 19

Podíamos talvez começar pelas origens fami-

liares do teu pai...

Primeiro do lado do pai, que talvez tenha tido mais

influência na vida dele, embora tenha falecido muito cedo. O

meu avô, António Braga Santos, vinha de uma família com pos-

ses: o seu pai, Manuel Joaquim dos Santos, tinha enriquecido

no Brasil. António e as duas as irmãs tiveram uma educação

primorosa, tanto do ponto de vista literário como musical. As

duas raparigas tocavam piano e o meu avô tocava violino. Se-

gundo me disse a minha tia Leonor, irmã de meu pai, chegaram

a colaborar com a Sociedade de Concertos e com a Academia de

Amadores de Música.

De onde vinham os proventos da família?

Esse avô brasileiro emigrou muito novo, com 14 anos,

e fez fortuna na cidade de Santos, daí o ter mudado o nome de

Baltazar para Santos. Voltou para Portugal nos anos 70-80 do

século XIX, quando tinha uns 40 anos, para casar-se com uma

rapariga que tinha conhecido por um retrato que um familiar

lhe tinha enviado. Ela vinha de uma família com algumas ter-

ras na região de Santarém e foi na quinta da família que lhes

nasceram os três filhos: o meu avô, António Braga Santos, e

duas irmãs. Uma delas, a tia Santana, casará mais tarde com o

famoso médico José Bénard Guedes, fundador do IPO e dos Hos-

pitais Universitários de Lisboa, e da Radiologia em Portugal

também. A outra, a tia Aurora, terá um casamento muito jovem

com um senhor inglês, também conhecido nos meios lisboetas,

um Shirley, do qual entretanto se divorcia porque ele, pelos vis-

tos, era um doidivanas. A rapariga vai então como enfermeira

para a frente em 1917 e quando volta conhece o famoso médico

cirurgião José Paredes, de quem tem um filho, o actual cirur-

gião Fernando Paredes. Portanto, as duas irmãs do meu avô

casaram e tiveram ligações com médicos de renome na época.

Entretanto o meu avô recebe a sua herança e casa-se,

já tardiamente, por volta dos 37 anos, com a minha avó Vir-

gínia Joly. Ela vinha de uma família de comerciantes da Baixa

lisboeta, ourives de origem francesa que vieram para Portugal

em finais do século XVIII, no reinado de D. Maria I. Durante

muito tempo, por causa das raízes do lado da minha avó e por

causa do nome do meu pai achei que eram de origem cristã-no-

va, mas não! Fui à Torre do Tombo verificar isso e nem de um

lado, nem do outro. O Joly é um nome comum no Sul da Bélgica

e no Norte da França. Essa família que se estabelece na Baixa

de Lisboa em finais do século XVIII e que, felizmente, prospera,

20 | glosas, #3

Permanecer fiel

à sua personalidade musical

entrevista de Alexandre Delgado a Piedade Braga Santostranscrição de Duarte Pereira Martins e Philippe Marques

estabeleceu relações de casamento nomeadamente com a família

Batalha, dos ourives da Casa Batalha.

A minha tia conta que o meu avô e a minha avó se

terão conhecido num baile de Carnaval. Ele ficou apaixonado,

a minha avó em nova era muito bonita. Ela ofereceu alguma

resistência porque tinha tido um namorado que fora a grande

paixão da vida dela, mas tinha falecido na batalha de La Lys,

em 1918. Ficara, portanto, solteira aqueles anos todos, até ter

mais de trinta anos. Na época não era uma idade casadoira…

Pouco tempo depois de estarem casados nasce o meu

pai, em 1924, na moradia que tinham na Rua Pinheiro Chagas,

casa essa que já não existe. Sete anos depois, em 1931, nasce

uma filha, a minha tia Leonor.

Mas o meu avô teve uma desgraça na vida: tornou-se

fiador de uma pessoa que não pagou a sua dívida e todos os

rendimentos e a pequena fortuna que lhe tinham cabido por

herança foram para pagar isso (na altura 700 contos eram uma

fortuna – isto nos anos 20, mesmo a seguir ao casamento, ainda

antes de nascer o meu pai). Teve que vender a casa e o recheio

todo para pagar a dívida e teve que, obviamente, arranjar um

emprego. Conseguiu um lugar na Rua das Escadinhas de São

Cristovão, em plena Baixa, como guarda-livros e contabilista

de uma empresa. Onde é que ele passava as tardes? Num sítio

óbvio para tomar café, sobretudo um rapaz que era músico e que

também gostava de escrever os seus poemas nas horas vagas, ou

seja, no Martinho da Arcada. Terá conhecido o Fernando Pes-

soa nessa época. Eu sempre suspeitei, pela maneira como o meu

pai falava de Fernando Pessoa e do pai dele, e pela precocidade,

apesar de tudo, das primeiras canções, que teria havido alguma

relação familiar…

Que não é nada conhecida...

Não, eu descobri isso há cerca de dois meses. Eles de

facto conheciam-se perfeitamente: o meu avô chegava a casa e

contava as suas conversas com o Pessoa e com os outros… Com

o Botto, e com toda a gente que frequentava o Martinho da Ar-

cada. Eu tentei, nos papéis que a minha tia conservou, verificar

se havia alguma referência ou algum papel do Pessoa. Infeliz-

mente, não. O que restou foram só poemas do meu avô, bonitos,

enfim, uma poesia amadora, mas bem feita, rimada. Nada de

especial, mas comovente porque se refere a muitos factos famili-

ares e a outros da época, como, por exemplo, vitórias do Benfica

e coisas muito engraçadas desse género. É um documento en-

graçado sobre a época. E era realmente no Martinho da Arcada

glosas, #3 | 21

permanecer fiel à sua personalidade musical | entrevista de alexandre delgado a piedade braga santos

que ele escrevinhava os seus poemas, tal como os outros que o

frequentavam.

Por coincidência, tanto pelo lado da mãe como pelo

lado do pai os avôs do meu pai faleceram muito cedo. Deixa-

ram, portanto, filhos menores. A minha avó Virgínia é póstu-

ma, o pai dela faleceu estava a mãe grávida; o meu avô António

e as irmãs foram criados pela mãe viúva e tinham alguém para

gerir a fortuna. É um milagre que duas senhoras viúvas, em-

bora com alguns rendimentos, tenham conseguido criar de ma-

neira capaz, e com sucesso, tanto de um lado como do outro,

aquelas crianças.

A minha avó Virgínia tinha dois irmãos. Um deles

era muito conhecido em Lisboa nos anos 20 a 40: chamava-se

Augusto Joly e tornou-se falado por ter posto um processo à Câ-

mara de Alpiarça por causa da herança Relvas. Era corretor,

trabalhava na Bolsa e ele próprio conseguiu algum dinheiro.

Era uma personagem engraçada e que merecia, talvez, uma bio-

grafia.

Quando o meu avô António teve que vender a casa,

foi com a mulher e os dois filhos morar para casa da sogra, na

Rua Capitão Renato Baptista, entre os Anjos e o Campo dos

Mártires da Pátria; foi lá que o meu pai viveu até se casar em

1957.

Entretanto o meu avô sofria de dores de cabeça e de

alguns problemas de saúde e acabou por falecer precocemente

em Março de 1938. O meu pai já na altura andava no Con-

servatório, onde se inscreveu no ano lectivo de 36/37. Conta-me

a minha tia que nunca se pôs sequer a hipótese de o meu pai

continuar os estudos num sítio que não fosse o Conservatório,

porque desde muito pequeno o pai dele tinha percebido, tinha

entendido a vocação. Tinha-lhe dado aulas de violino e depois

tinha-o posto mesmo a ter aulas com um professor. Nunca se

pôs sequer a questão de ele seguir outra carreira que não fosse

a música e quando acabou a Escola Primária inscreveu-se ime-

diatamente no Conservatório. Acabou a Primária um pouco

tardiamente, não sei exactamente porquê. É verdade que as cri-

anças, na época, entravam mais tarde para a escola e também é

verdade que o meu pai tinha recordações péssimas: ele detestou

a Escola Primária! Estamos a falar do princípio dos anos 30,

ou seja, da mudança para o Estado Novo. Portanto, uma escola

duríssima do ponto de vista disciplinar. O meu pai era uma

criança irrequieta, distraída…

Deve ter levado muitas reguadas...

A personalidade que veio a adquirir mais tarde já es-

tava na infância, não é? A questão disciplinar deve ter sido para

ele um sofrimento pavoroso. Mas a verdade é que lá concluiu a

Primária com louvor e distinção e entrou para o Conservatório

sem quaisquer problemas. Ele tinha o apoio do pai, que era um

homem culto e encorajava as crianças no amor pelas artes, pela

música e pela poesia. Todas as noites se sentava ao pé deles,

antes de adormecerem, e obrigava-os a decorar um poema. Daí

que toda a gente que conheceu o meu pai se lembra dele de-

clamar estrofes d’Os Lusíadas, sonetos de Antero, vindos enfim

daquele amor pela poesia que tinha.

Isso veio então mais do lado do pai do que do

lado da mãe.

Completamente pelo lado do pai. A mãe também tinha

tido uma boa educação mas era de facto o pai que se encarre-

gava desta educação das crianças.

E a mãe tinha alguma ligação ao meio musical?

Não, não. Era uma pessoa relativamente mais simples.

A morte do pai foi um grande choque.

A morte do pai foi uma tragédia. Para já, o choque

emocional. E depois o choque financeiro. O tio Augusto Joly,

irmão da minha avó, deu-lhes uma ajuda inicialmente: pôs a

minha tia num colégio interno de freiras, onde ela fez o seu

curso e depois seguiu a carreira de assistente social. Mas o meu

pai, que já tinha 13 anos e estava no Conservatório, foi mais

ou menos entregue à sua sorte, com imensos problemas de cons-

ciência por ser ainda demasiado novo para poder trabalhar e

ajudar a mãe. A carreira dele no Conservatório foi extrema-

mente atribulada. Na época havia mais cadeiras de cultura ge-

ral do que há agora mas o que lhe interessava verdadeiramente

era aprender composição e cometeu talvez o erro, normal numa

criança de 13 anos que quer emular o pai, de se inscrever na

cadeira de violino como instrumento.

Joly Braga Santos com quatro anos, em Lisboa

22 | glosas, #3

permanecer fiel à sua personalidade musical | entrevista de alexandre delgado a piedade braga santos

Que não era uma coisa muito natural para ele...

Não… O violino para ele foi um tormento. O professor

de violino idem, que era o velho Flaviano Rodrigues, enfim,

com aquela escola de violino antiga. Entretanto, inscreveu-se

também em piano porque se apercebe que o piano é igualmente

necessário para a composição, mas vai perdendo os anos, ou por

faltas, ou por desistência.

Foi aluno de quem?

Fez o primeiro ano de piano com Virgínia Vitorino.

Entretanto faz as cadeiras de Acústica e de História da Músi-

ca com o Luís de Freitas Branco e é aí que eles se encontram

pela primeira vez, logo em 1940: foi nessas duas cadeiras que

o Freitas Branco foi professor dele, no princípio dos anos 40.

O primeiro professor de Composição que o meu pai teve foi o

Artur Santos. E eu suspeito que, além do João de Freitas Branco,

tenha sido este que tenha chamado a atenção do Luís para o

talento particular do meu pai. O João de Freitas Branco con-

ta, no seu famoso artigo publicado na revista do São Carlos

(que ainda é, obviamente, um artigo de referência), que terá

chamado a atenção do pai para o caso do Joly que, de facto,

andava a perder cadeiras e a perder um bocado o seu tempo

naquilo. Entretanto deu-se a reforma do Ivo Cruz, a chamada

“contra-reforma”. O meu pai terminou as cadeiras do Luís com

altas notas (16 e 18), portanto este já o conhecia como aluno mas

não o conheceria como compositor. E nessa altura ele já tinha

umas coisinhas escritas, que provavelmente terá mostrado ao

seu amigo João.

Dessas tentativas prévias de composição, há

coisas anteriores à ida para o Conservatório?

Não, as primeiras coisas que aparecem são já do Con-

servatório e são obviamente exercícios, no princípio dos anos

40. Há umas peças para piano que são obviamente exercícios

escolares e coisas de circunstância escritas para as primas, que

também tocavam piano. A primeira coisa mais a sério para pia-

no (instrumento para o qual o meu pai escreveu pouquíssimo)

são duas peças que fez para o Sequeira Costa, quando este ia es-

tudar para Paris: uma delas é uma adaptação duma peça coreo-

gráfica anterior, a outra é uma chamada Elegia Trágica, que

seria instrumentada pelo João Paes muitos anos mais tarde.

Mas o que eu presumo que tenha acontecido é que o

João de Freitas Branco tenha chamado a atenção do pai e que

este, muito correctamente, tenha ido perguntar a opinião do seu

ex-aluno e querido amigo Artur Santos, que tinha acabado de

entrar como professor do Conservatório com uma altíssima mé-

dia. Sei disso por causa duma conversa a que assisti entre o meu

pai e o Artur Santos num gabinete do Quelhas. Eles eram muito

amigos, começaram a falar de outros tempos e às tantas o meu

pai agradeceu-lhe: “Eu nunca mais me esqueço que o Senhor

Professor deu as maiores referências ao meu querido Mestre!”,

“Mas também foi meu Mestre!” – dizia o Artur Santos.

Isso conduziu às aulas particulares com o Frei-

tas Branco.

A aulas particulares, porque ele queria andar para a

frente e o sistema do Conservatório arrastava-o, não encaixa-

va… Por insistência do próprio Luís, lá continua matriculado, lá

vai fazendo uma cadeira ou outra, até que, em 45, surge aquela

história estúpida, que eu não vou contar agora aqui porque já

foi contada várias vezes, do processo disciplinar, por parte do

Ivo Cruz…

Aquilo que o João de Freitas Branco conta no

artigo é exactamente o que aconteceu? O teu pai

terá dito que se recusava a levantar-se ‘porque

nenhum respeito lhe merecia um perseguidor

do seu mestre’ ?

Exactamente! E o meu pai achava que, estando em São

Carlos, estava fora do domínio da autoridade do Ivo Cruz, com

toda a razão! E o Secretário-Geral dá razão ao meu pai! E diz

que a queixa do Ivo Cruz é improcedente. Só que o Ivo Cruz

passa por cima do Secretário-Geral e apesar das cartas do Artur

Santos e de outros professores do Conservatório para o Secre-

tário-Geral da Educação dizendo que aquilo era um disparate

e que não se podia pôr na rua um aluno daqueles, que era uma

vergonha para o Conservatório, vai ao Ministro, ou ao Director

Geral de Educação na época, que eram obviamente pessoas do

regime, e pronto…

O teu pai foi efectivamente expulso?

Foi efectivamente expulso.

Pode dizer-se que o percurso académico dele fi-

cou concluído a partir daí, depois teve só aulas

particulares...

Ficou concluído. Quer dizer, o percurso académico em

Portugal. Mas quero só acrescentar que estamos a falar de 45.

Nessa altura já o meu pai tinha escrito as Cinco Canções sobre

poemas de Fernando Pessoa, estava a escrever os Três Sonetos de Camões, estava a iniciar a composição da 1.ª Sinfonia,

que é terminada em 46, tinha escrito o Nocturno, que tinha

sido tocado pelo Silva Pereira e pelo João de Freitas Branco no

Conservatório. Tinha já 15 peças, portanto muita coisa escrita!

É uma das razões pelas quais o Artur Santos escreve para o

Secretário-Geral a dizer que é um escândalo que um rapaz que

vai estrear a sua primeira sinfonia em São Carlos dirigida pelo

Pedro Freitas Branco seja expulso do Conservatório! Era uma

coisa um bocado escandalosa! Mas é o que realmente acontece.

E eu suspeito que ele até terá suspirado de alívio, por ter uma

desculpa para se ver livre daquilo.

Como passou a ser a rotina dele? A relação com

o Freitas Branco era praticamente diária...

Sim. Sobretudo a partir da estreia da 2.ª Sinfonia,

glosas, #3 | 23

permanecer fiel à sua personalidade musical | entrevista de alexandre delgado a piedade braga santos

que é, digamos, a confirmação definitiva (se é que era precisa!)

do talento do discípulo. Ele fica, então, comovidíssimo e escreve-

-lhe uma carta extraordinária! Desde essa altura, a conversa

entre eles começa a ser diária até no sentido de rotina que o pró-

prio Luís de Freitas Branco tinha estabelecido para si mesmo.

Portanto, o meu pai acompanhava-o nas temporadas que ele

passava no Alentejo. Recorde-se que o Luís o convidara a es-

crever na Arte Musical logo em 1942, quando o meu pai tinha

18 anos; foi com essa idade que publicou o seu primeiro artigo,

o que diz muito, apesar de tudo, do respeito que já tinha ganho.

E as aulas particulares quando é que começa-

ram, sabes exactamente?

As aulas particulares devem ter começado logo em

42/43. São anteriores, são bastante anteriores à saída dele do

Conservatório. Mas ele era uma esponja!...

Tudo isso coincidiu com o processo contra o

Freitas Branco, essa é a relação umbilical desta

história...

Claro, evidentemente! No fundo, o Ivo Cruz armou

aquela confusão por causa do meu pai ter sido testemunha

abonatória do Luís de Freitas Branco no processo do professor,

no processo do Mestre. E portanto aquilo foi uma desculpa que

ele arranjou para pôr aquele aluno na rua.

O teu pai alguma vez sanou esse trauma em

relação ao Ivo Cruz (pai)?

No fim da vida, sim. Em grande parte devido à in-

fluência da minha mãe. Porque a minha mãe era muito amiga

do maestro Manuel Ivo Cruz, filho dele. De infância, de ado-

lescência, porque o Manuel Ivo Cruz e o meu tio João Falcão

Trigoso tinham sido colegas no Liceu e a minha mãe gostava

muito de música, o Manuel Ivo também, iam aos concertos, à

ópera, encontravam-se, eram amigos de adolescência, desde

miúdos. Por isso juntos tentaram sanar aquilo e lá conseguiram!

O meu pai, no final da vida, lá concedeu uma reconciliação.

Ainda por cima eles tinham uma casa em Cascais, sítio onde

também nós passávamos as férias. Portanto encontrávamo-nos

ali naquele meio social, que na altura era minúsculo, e era um

bocadinho aborrecido o meu pai continuar a virar-lhe as costas.

Mas voltando ainda ao impacto das primeiras

obras orquestrais, começou com a Abertura Sin-

fónica n.º 1, em 1946...

Sim. Mas, obviamente, a 1.ª Sinfonia teve maior im-

pacto, um grande impacto. As pessoas, segundo me contam teste-

munhas da época que presenciaram essa estreia (porque, como é

evidente, eu não assisti) nem queriam acreditar que o meu pai,

que tinha 22 anos (ia fazer 23) e parecia um miúdo, magrinho,

com aqueles óculos redondos, tinha escrito aquela obra. Há foto-

grafias da época que o comprovam, a aparecer no palco do São

Carlos ao lado do Pedro de Freitas Branco. Uma estreia daque-

las! E podemos dizer que foi mesmo um estrondo, um choque na

sociedade lisboeta da época, porque desde as estreias do próprio

Luís que não aparecia um sinfonista comparável, é evidente.

Nem comparável, nem sem ser comparável...

Sim, embora as críticas sejam muito engraçadas,

porque quem as vai ler agora, à distância de décadas, vê que

há alguns críticos (pelo menos um) que dizem que a música é

difícil de ouvir, e que é algo estranha, e que é algo dissonante, e

que é diferente do habitual, e que ele não gostou nada… O que

é extraordinário, porque aquela primeira sinfonia do meu pai

é do mais convencional que se pode fazer. Muito inventiva do

ponto de vista melódico, com todas as qualidades que ele reve-

laria mais tarde, mas muito ingénua e o mais convencional pos-

sível! Do ponto de vista formal, acho…

Ainda que a linguagem não seja tão retrógrada

quanto isso para a época, um pouco na linha

dos sinfonistas ingleses...

Sim, sim. Se posso fazer aqui um parêntesis, a con-

vivência mais próxima com os papéis e com a obra que tenho

tido nos últimos anos tem-me feito reflectir sobre algumas coi-

sas. Eu não sou musicóloga, só sou uma testemunha privilegia-

da de tudo o que aconteceu nas últimas quatro ou cinco décadas

no meio da música em Portugal. Não sou musicóloga, de ma-

neira nenhuma! Mas isso não quer dizer que não possa reflectir

sobre alguns aspectos da composição do meu pai, do seu modo

de compor e das soluções que encontrou para exprimir a sua

vontade criativa e o que ele queria dizer. E penso que, sobretudo

no início, o equilíbrio formal que tanta gente admira na obra

de Joly Braga Santos tem a ver por um lado com os ensinamen-

tos do Luís de Freitas Branco (parece-me evidente) e por outro

lado com a necessidade de conter a explosão melódica e o jorro

melódico que saía daquela cabeça dentro duma ordem clara e

equilibrada. Essa necessidade de contenção duma criatividade

exacerbada pela juventude justifica o equilíbrio formal das

primeiras obras. É evidente que depois esse equilíbrio formal

há-de manter-se, de outras maneiras e por outras formas, ao

longo de toda a sua carreira. Independentemente das formas

muito mais livres que passou a cultivar a partir de meados da

carreira, essa noção de fundações que nós temos em toda a obra

do meu pai (sabemos sempre onde estamos!) é inerente à sua

escrita criativa.

Há reflexos clássicos de forma-sonata, mesmo

quando a linguagem se torna quase atonal.

Exactamente. Mas penso que no início isso foi a ten-

tativa de contenção do jorro melódico. Basta ouvir a 3.ª e a 4.ª Sinfonias, aquilo são melodias, melodias e mais melodias. Ele

de alguma maneira tinha de pôr ordem nelas, não é? Estava no

outro dia a pensar nisso e achei que tinha de dizer isso hoje, aqui.

24 | glosas, #3

E quanto às peças para canto e piano do início

da carreira?

Se olharmos para o catálogo do meu pai, logo na

primeira metade dos anos 40 encontramos uma extraordinária

quantidade de obras para canto e piano, nomeadamente para

meio-soprano ou barítono e piano, algumas das quais foram

orquestradas mais tarde. Há duas razões para isso. Uma delas

é a Carmélia [Âmbar], evidentemente. Outra é o facto de, na

época, o Luís de Freitas Branco, para além da 4.ª Sinfonia e de

outras obras, estar a trabalhar em motetes e muita coisa para

canto e piano; isso terá encorajado o meu pai a explorar esse

meio. Por um lado era um tipo de obra que podia ser facilmente

executado. Por outro, ele de facto tinha amigas cantoras no Con-

servatório e teve uma paixão por uma meio-soprano muito co-

nhecida chamada Carmélia Âmbar, que ainda hoje é viva e teve

a enorme generosidade de me ceder a sua correspondência com

o meu pai. Nela fui recolher imensos elementos da sua rotina

diária e do seu modo de composição, que agora conto nesta en-

trevista. Para além de ter havido uma paixão, infelizmente não

correspondida…

Foi a primeira grande paixão dele?

Foi a primeira grande paixão dele, infelizmente não

correspondida porque a Carmélia, na época, estava apaixonada

por outra pessoa. Mas ele escreveu realmente aquela quantidade

enorme de canções que agora fazem as delícias das cantoras da

actualidade e que têm essa razão curiosa.

Coincidiram também com a criação da Juven-

tude Musical Portuguesa...

Sim, de cujo núcleo fundador ele fez parte com o Luís

de Freitas Branco, o João de Freitas Branco, o Nuno Barreiros,

o Humberto de Ávila, todo aquele grupo a que depois se juntou

a Carmélia Âmbar, o José Carlos Gonçalves…

Uma coisa que o teu pai viveu intensamente...

Intensamente! E que lhe deu um trabalhão e cuja or-

ganização o ocupava todos os dias. Isso vê-se na correspondência

com a Carmélia: todos os dias ele ia lá, trabalhava, organizava,

fazia telefonemas, arranjava pianos… fazia tudo! (risos) Com

aquele entusiasmo da juventude.

Entretanto que é que fazia para ganhar a vida?

Nesta fase deu-se uma coisa muito importante, que foi

a sua entrada para o Gabinete de Estudos Musicais [da Emis-sora Nacional]. Na altura já ele trabalhava na rádio, na parte

clássica, com o João de Freitas Branco, a pôr discos de música

clássica, sentados numa sala com um gravador e um microfone.

Foram os inícios da Antena 2: eles os dois sentados no chão, só

a pôr discos, sem locução! Mas a entrada para o Gabinete de Es-

tudos Musicais permitiu ao meu pai e aos outros ter um salário

para compor. Os outros eram Artur Santos, o Armando José

permanecer fiel à sua personalidade musical | entrevista de alexandre delgado a piedade braga santos

Fernandes, o Croner de Vasconcellos... o único que não entrou

foi o Graça, por razões que toda a gente conhece. A partir daí o

meu pai tem um ordenado mensal, coisa que nunca tinha tido

antes. Até então vivia de lições esporádicas de composição, que

dava a quem lhe aparecia à frente: o João Paes foi aluno do meu

pai durante anos, o António Victorino d’Almeida, o Atalaya…

alunos particulares que o Luís encaminhava para o meu pai

porque sabia das dificuldades que ele tinha.

O Freitas Branco também o ajudou financeira-

mente...

Sim. As temporadas que ele passava em Reguengos!

Mas não foi só o Freitas Branco. Havia um amigo dele, médico,

que também o ajudava e que ele conheceu através do primo Fer-

nando Paredes. É uma das razões pelas quais há tantos alunos

de Medicina no início da Juventude Musical: com dois primos

direitos médicos ou a formarem-se para médicos, o que o meu

pai mais tinha era amigos na Faculdade de Medicina e ia lá

frequentemente fazer conferências, porque eles gostavam de

música, através da Juventude Musical; ele recrutou dezenas de

estudantes de Medicina para a Juventude Musical Portuguesa

através dos dois primos direitos. Outras pessoas que o ajuda-

ram financeiramente foram o tio Augusto Joly, o José Carlos

d’Almeida Gonçalves, em casa de quem ele passava uma parte

do Verão, a tia Aurora Braga Santos, que morava a cinco minu-

tos da casa dele e onde ele ia almoçar todos os dias e ficava para

trabalhar no piano, porque ele não tinha piano em casa.

Joly Braga Santos com senhora não identificada, Sequeira Costa, Grazi Barbosa e João Paes, em Reguengos

Nessa altura ele vivia com a mãe.

A avó entretanto falecera e a mãe não tinha rendimen-

tos. Para sobreviver, como a filha tinha saído de casa para um

colégio e a casa era grande, alugou o quarto a uns hóspedes e fa-

zia bordados e comida para fora. Era o meu pai que a ajudava,

o tio Augusto Joly e pouco mais. O meu pai tentava tornar-se o

menos pesado possível indo almoçar ou jantar, à vez, a casa de

glosas, #3 | 25

permanecer fiel à sua personalidade musical | entrevista de alexandre delgado a piedade braga santos

um primo, de um tio ou de um amigo. O José Carlos Gonçalves

conta isso com alguma comoção ainda hoje porque ele de facto,

um dia, declarou aos amigos: “Não tenho dinheiro para comer,

não posso sobrecarregar a minha mãe, vamos combinar um dia

para eu ir almoçar ou jantar.”. E eles combinaram, organiza-

ram-se e ele ia almoçar e jantar a casa de um amigo diferente

ou de um primo cada dia da semana. Andava a pé, logo não

gastava em transportes, e o tio Augusto Joly dava-lhe roupa que

a minha avó cuidadosamente costurava à medida dele.

Freitas Branco, que continuava a fazer todas as suas estreias; o

meu pai ia assistir a praticamente todos os ensaios da orquestra

da Emissora Nacional e portanto muito aprendeu com o Pedro

de Freitas Branco. Mas esse curso do Scherchen foi para ele uma

revelação.

A Abertura Sinfónica n.º 3, de 1954, foi dedicada a

Elisa de Sousa Pedroso.

Sim, uma mecenas das artes que, durante décadas, fez

o papel que seria também o da Marquesa de Cadaval. Foi uma

grande apoiante e promotora do Círculo de Cultura Musical e

da Juventude Musical Portuguesa. O meu pai conheceu a Sr.ª

D.ª Elisa (como a tratavam na época) através do Luís de Freitas

Branco, passou a frequentar o círculo que ela tinha e que se

reunia periodicamente em sua casa. Ele acabou por lhe dedicar

essa Abertura Sinfónica, como gratidão pelo apoio da Elisa de

Sousa Pedroso ao 1.º Congresso da Juventude Musical, que pas-

sou por várias vicissitudes, incluindo as dificuldades em ter au-

torização do Governo (coisa que aliás se repetiria curiosamente

em 68 e terá sido a Marquesa de Cadaval a fazer a mesma

diligência...). A Elisa de Sousa Pedroso tinha obviamente con-

tactos junto do Governo, diz-se aliás que era amiga e visita de

casa de Salazar; e portanto conseguiu isso. Ainda por cima essa

Abertura Sinfónica toca-se imenso e é minha favorita das três.

Ela, com certeza, terá ficado grata. Eu não cheguei a conhecê-la,

infelizmente.

Entretanto em 1955 morre o Luís de Freitas

Branco...

Na altura o meu pai já estava director da Sinfónica do

Porto e foi para Lisboa disparado, foi uma tragédia. Mas pelo

meio deram-se coisas curiosas. Em 1951/52 é extinto o Gabinete

de Estudos Musicais; o meu pai entra em pânico porque vai per-

der o ordenado mensal que lhe permitia, evidentemente, pagar

as suas despesas. O que lhe vale é que, entretanto (já agora conto

isto aqui pela primeira vez, é uma história que ninguém sabe),

nesse interregno do fim do Gabinete de Estudos Musicais, que

acaba por se verificar só a partir de 1952/53 (eles já anunciam

em 51, mas aquilo vai-se prolongando), ele tinha recebido uma

encomenda, através da Emissora Nacional, ligada ao Plano

Marshall. E o que era? O Plano Marshall tinha instituído uma

organização cultural, sediada em Paris, chamada a Telecine

France, que estava encarregue, digamos assim, do restauro e

da reanimação da vida cultural europeia, e sobretudo da coope-

ração europeia. Fazia tudo, desde filmes de propaganda, que

ainda hoje podemos ir ver na Cinemateca (encomendava-os

a realizadores europeus), até a encomendas directas a artis-

tas, pintores, escultores, poetas, músicos, de toda a qualidade.

A Amália teve uma encomenda do plano Marshall! E quando

chega o pedido à Emissora Nacional, o Pedro do Prado indica

o nome do meu pai, que faz um contrato com esta organização,

que lhe paga algo como 15 mil dólares.

Joly Braga Santos montando, em Santarém, 1949

Em 1948 o teu pai foi estudar com Scherchen.

Foi a primeira saída dele ao estrangeiro, com uma

bolsa do Instituto de Alta Cultura, no Verão de 48. Esteve três

meses em Veneza a frequentar o curso do Herman Scherchen

e mais tarde teve aulas particulares com ele em Lugano. Esse

foi realmente o seu primeiro contacto com a música europeia

e com um grande professor e grande maestro. E foi a primeira

saída ao estrangeiro, considerando que ele tinha passado toda

a sua juventude e adolescência primeiro com a guerra de Es-

panha, depois com a 2.ª Guerra Mundial. Em 48 já havia com-

boios. As linhas tinham começado a ser reconstruídas e ele foi

de comboio para Veneza, uma viagem longa e complicada, mas

lá conseguiu chegar. E foi lá que conheceu uma personalidade

que se viria a tornar importante na sua vida que é o Bruno Ma-

derna, para além do próprio Scherchen, com quem estabeleceu

uma imediata empatia. Esse curso, para ele, foi uma abertura de

horizontes, muito profícuo e uma grande felicidade. Coincidiu,

aliás, curiosamente, com a composição da 3.ª Sinfonia, que ele

interrompeu para ir para Veneza e que só terminaria no Verão

seguinte, em 49. Antes disso tinha tido o magistério do Pedro de

permanecer fiel à sua personalidade musical | entrevista de alexandre delgado a piedade braga santos

26 | glosas, #3

Era bastante para a altura.

Era! Ele refere-se na sua correspondência a esse di-

nheiro como “os dólares da América”. Tinha perfeita noção que

se tratava de dinheiro americano, embora não tivesse sido pago

em dólares, presumo que deve ter sido em francos e que o con-

trato tivesse vindo em francês (está lá em casa, esse contrato

sobreviveu).

E qual era a obra?

A obra desapareceu! Desapareceu tal como os arquivos

da dita organização. Eu procurei em todo o lado, incluindo o

arquivo Marshall, a Biblioteca do Congresso, a Biblioteca Jean

Monet e o arquivo Jean Monet, porque, como se sabe, o plano

Marshall deu origem à Comunidade Económica Europeia e

podia ser que o arquivo Jean Monet tivesse ficado com estes

arquivos, visto que estavam sediados em Paris. A Biblioteca

Nacional de França também não tem nada, foram eles que

mandaram para a Library of Congress. Do arquivo Marshall,

sabem da organização mas não têm nada nos arquivos nem

sabem onde estão.

Até parece uma coisa portuguesa...

Pois! E imaginas o trabalhão que isto me deu. A obra

era uma abertura sinfónica para uma orquestra até relativa-

mente pequena, para ser executada (e terá sido) em Paris num

grande concerto em que foram executadas obras do Bruno Ma-

derna e de gente nova daquela época. Estamos a falar de 49, a en-

comenda é desse ano. E será esse dinheiro que ele recebe em finais

de 49 que lhe permite sobreviver ao susto do encerramento do

Gabinete de Estudos Musicais, antes de ir para o Porto em 54-55.

Como é que surgiu essa oportunidade?

O meu pai tinha já uma preparação muito boa quando

foi convidado, através dos bons ofícios de um senhor muito in-

fluente na altura, no Porto, chamado Rebelo Bonito, junto do

Ino Savini, para se tornar primeiro Maestro Assistente e depois,

com a saída do Savini, Maestro da Orquestra do Conservatório.

Durante esse anos no Porto, que para ele foram felizes e em

que ele se sentiu realizado, teve a oportunidade de dirigir não

só os clássicos (os compositores do cânone, como se diz agora),

mas também os contemporâneos e os colegas. Promove concertos

de música moderna (então não se dizia de vanguarda) mas de

música portuguesa, com obras do Graça, do Artur Santos, do

Croner de Vasconcellos e de todos os outros. Do Luís de Freitas

Branco também, evidentemente: dirige imenso Freitas Branco,

muitas coisas que o Pedro dirigia. Para ele foram anos, por um

lado, felizes e realizados e, por outro, de encomendas, muito

trabalho. Outro aspecto da ida para o Porto foram os contactos

com algumas personalidades da vida musical portuguesa que

eram influentes na época e que viriam a continuar a ser influ-

entes e com quem ele travou uma amizade até ao fim dos seus

dias, nomeadamente as irmãs Helena e Madalena Sá e Costa, a

Guilhermina Suggia, que ele conheceu lá, e os compositores do

Porto, mais novos, que ele não conhecia. Foram anos, para ele,

muito felizes.

Ele morava sozinho?

Morava em casa de uns senhores, terá sido o Rebelo

Bonito que lhe arranjou um quarto em casa de uns amigos que

tratavam dele. Entretanto, no âmbito das actividades da Juven-

tude Musical Portuguesa, vinha constantemente a Lisboa, tinha

sempre cá trabalho. E é num desses concertos da Juventude Mu-

sical Portuguesa que conhece a minha mãe, que estava na altura

a estudar canto com o Tomás Alcaide e piano com o Lourenço

Varella Cid. Adorava música, não quis terminar o liceu, não

quis prosseguir os estudos na faculdade e o avô, José Falcão

Trigoso, que era um pintor conhecido em Lisboa e no Porto e

que foi quem a criou, tinha-a, de facto, encorajado a seguir essa

via dos estudos musicais. Nesse âmbito ia aos concertos, foi lá

conheceu o meu pai no princípio de 56 e apaixonaram-se.

Joly Braga Santos, cumprimentando o concertino Vasco Barbosa e recebendo os aplausos do público, no final da

estreia da ópera Mérope, no Teatro Nacional de São Carlos em Lisboa, em Maio de 1959

permanecer fiel à sua personalidade musical | entrevista de alexandre delgado a piedade braga santos

glosas, #3 | 27

Em que ano nascera a tua mãe?

Em 1935, portanto faziam uma diferença considerá-

vel, 11 anos. Casaram em Janeiro de 57, os dois de luto ainda,

porque entretanto aconteceu uma tragédia: o meu bisavô adoe-

ceu e acabou por falecer em Dezembro de 56. A minha mãe ficou

desesperada porque, para ela, o avô tinha tido exactamente a

mesma função, no fundo, de pai que o Luís de Freitas Branco

tinha tido para Joly. Era essa realmente a relação que eles ti-

nham, a de pai e filho. Tudo aquilo foi uma tragédia e a minha

avó encorajou-os a casar o mais depressa possível. Alugaram

uma casa em Gondomar e foram viver para o Porto. O meu

pai tinha reiteradamente solicitado ao Instituto de Alta Cultura,

após a viagem de 48, uma nova bolsa de estudo para voltar a

Itália, para estudar. Foi sempre recusada, por uma razão ou

por outra, sempre com informações negativas da PIDE, pro-

vavelmente porque ele terá andado metido naquela história do

MUD juvenil na época. Alguns amigos da Juventude Musical

Portuguesa tê-lo-ão incitado a assinar um papel ou outro. Ele

detestava política e era a última pessoa a meter-se em coisas

políticas, mas enfim…

Assinou?

Assinou. Resumindo e concluindo, as bolsas foram-

-lhe constantemente negadas. Até que houve uma intervenção de

uma amiga da minha avó, muito amiga da irmã do Marcello

Caetano, que na altura era Ministro do Ultramar, acho eu. Para

grande surpresa dos meus pais, que não sabiam absolutamente

de nada, parece que o Marcello terá ido assistir a um concerto

com uma obra do meu pai e estava sentado ao lado do Direc-

tor do Instituto de Alta Cultura (isto foi contado posteriormente

pelo próprio Director), perguntando-lhe: “Mas afinal este ra-

paz está cá? Já o mandaram estudar para fora?” E o Director

do Instituto de Alta Cultura, que acabara de recusar mais um

pedido, ficou muito atrapalhado e resolveu mandar o meu pai

para fora rapidamente. Resultado: recebem um telefonema no

dia 1 de Abril de 57, julgando obviamente que era uma brinca-

deira de algum amigo mais brincalhão, a dizer que lhes tinha

sido concedida a bolsa. De facto, recebem a carta a 15 de Abril.

A minha mãe desmancha a casa rapidamente e viajam de barco

para Roma. O meu pai começa as aulas no Conservatório e a

minha mãe decide inscrever-se também, uma vez que estava ali

sem fazer nada… fez lá o exame de admissão ao Conservatório,

passou e entrou logo para o 4.º ou 5.º grau. Viveram aqueles

anos em Roma, com viagens. Aproveitaram para ir ao Festi-

val de Siena, aos festivais todos, viajaram, foram a concertos.

Em 57-58 estiveram em Lugano durante uns meses, enquanto

o meu pai fez um curso com o Scherchen. Entretanto eu nasço

em Outubro de 58, no intervalo entre duas bolsas; os meus pais

voltam a Itália em Março de 59 e levam-me com eles para Roma.

Em 1960 aparece lá o Peixinho, já com uma bolsa da Fundação

Gulbenkian (tinham acabado de abrir as primeiras bolsas); eles

conhecem-se através da Embaixada e travam amizade. Foram

anos de abertura, de aprendizagem, de descoberta de novas

músicas. Conheceram Malipiero por causa do Festival de Siena,

assim como conheceram o Luigi Nono, que o meu pai já tinha

conhecido em Veneza, mas retomaram o contacto em Roma. O

meu pai continua a compor furiosamente. Compõe Viver ou Morrer, o Divertimento I, o Concerto para Viola, digamos

que são as grandes obras desta fase. O Divertimento é estreado

num concerto de música portuguesa que o meu pai é convidado a

dirigir em Nápoles, em 61. A Mérope é estreada em São Carlos

com um sucesso estrondoso, em 1959. Logo a seguir vêm o Con-certo para Viola e o Divertimento I, perto de 61. O Concerto de Viola é estreado pelo François Broos, para quem o meu pai

o escreve, em 1960, em São Carlos, mais uma vez dirigido pelo

Pedro de Freitas Branco. O meu pai dirige a Mérope e depois

dirige este concerto em 61, já pouco antes de voltar para Portu-

gal definitivamente. Foi um concerto transmitido pela RAI, só

de música portuguesa, em que se estreia uma obra do Peixinho,

outra do Cassuto e esta do meu Pai. Mais algumas obras de

compositores portugueses dos séculos XVII e XVIII compõem o

resto do programa.

Com a sua mulher e Pedro de Freitas Branco durante a “Semana de Música Portuguesa” em Wurtzburg, onde foram

executadas várias obras suas. Palácio dos Schönborn em Wisentheid, Alemanha, 1957

Dos vários professores que teve lá fora, qual foi

o que mais o marcou?

O Scherchen, sem dúvida, tanto como professor de

Composição, quanto como Director de Orquestra.

Mais do que o Virgilio Mortari?

Mais do que o Mortari, sim. O Mortari foi profes-

sor de Composição, mas a verdade é que, depois do Luís, tinha

pouco para lhe ensinar.

permanecer fiel à sua personalidade musical | entrevista de alexandre delgado a piedade braga santos

Talvez em novas técnicas de composição...

Ele sobretudo aprendeu muito ouvindo, indo a muitos

espectáculos, indo a muitos concertos, lendo muitas partituras,

comprando partituras assim que chegavam… Era como ele

gastava o dinheiro da bolsa!

Daí nasceu a grande viragem de estilo, sendo

talvez os Três Esboços Sinfónicos a obra que mar-

ca essa viragem...

A viragem começou, curiosamente, com a Mérope e

por influência da minha mãe. Quando ela ouviu pela primeira

vez a Mérope achou que aquilo não era música do seu tempo

e que o meu pai tinha de, pouco a pouco, libertar-se da influên-

cia do Luís de Freitas Branco. Portanto, foi ela que o empurrou

e encorajou, para além da curiosidade natural do meu pai, a

dar uma volta ao estilo, a tornar-se mais contemporâneo e a

absorver tudo aquilo que eles estavam a ouvir todos os dias nos

espectáculos a que iam. O Concerto para Viola foi mais um

passo, digamos que ele foi progredindo passo a passo. O Diver-timento I é uma obra muito específica em que ele decide fazer,

exactamente, um divertimento e usar a sua linguagem habitual.

Os Três Esboços Sinfónicos foram realmente a primeira ten-

tativa. Ele não escrevia sinfonias desde a 4.ª, não imaginava

escrever outra sinfonia usando a mesma linguagem. Isso é reve-

lador de que ele achava que já era uma linguagem esgotada,

pelo menos do ponto de vista da forma sinfonia. E a verdade é

que só escreve uma nova sinfonia dezasseis anos depois, e é a

5.ª, que é uma revolução. Ele quis ir aprendendo, a par e passo,

o que é que se coadunava melhor com as suas características

intrínsecas, fala muito disso nas entrevistas que dá. Quer per-

manecer fiel à sua personalidade musical.

Uma coisa que ele nunca perdeu é o élan meló-

dico, mesmo nas suas fases mais abstractas.

A prova disso é a 5.ª Sinfonia ou, por exemplo, uma

obra como o Divertimento II, em que a melodia está lá - é

difícil, é dura, angustiada e pungente, mas está lá. E, mesmo na

5.ª Sinfonia, há sempre melodia.

Mas é muito interessante que essa viragem

tenha sido em grande parte por influência da

tua mãe, é sinal de que não era para aí que ele

naturalmente pendia...

Não, e os amigos reconhecem. O Cassuto, por exem-

plo, que assistiu a todas as conversas e discussões (das quais,

aliás, era parte integrante porque foi aluno do meu pai e além

disso aparecia lá em casa para lhe mostrar as partituras de tudo

o que escrevia), foi testemunha privilegiada de todos os anos 60.

Hoje, olhando para trás, tornou-se muito conservador (as pes-

soas quando envelhecem, se calhar acontece-lhes isso) e disse-me

no outro dia, com um ar um bocado indignado: «o teu pai nunca

devia ter deixado de escrever à maneira antiga, porque é isso

28 | glosas, #3

que faz sucesso, é isso que atrai as plateias». Eu fiquei um boca-

do indignada com esta afirmação (risos), achei um pouco extre-

mista. E falei-lhe da 5.ª Sinfonia e de outras obras fabulosas…

E da Sinfonietta que lhe é dedicada, que ele tem dirigido magis-

tralmente e que é uma obra fantástica. O meu pai queria absor-

ver uma parte das novas linguagens mas queria permanecer

fiel à sua personalidade musical. Há um episódio curioso que

é absolutamente demonstrativo dessa dualidade que se instala

na obra dele que é a composição da 6.ª Sinfonia. Depois da 5.ª ele compôs coisas várias, entre elas a Trilogia das Barcas que

é uma obra que no fundo é uma espécie de súmula de todos os

estilos porque é uma obra ultra-contemporânea, ultra-moderna,

com música concreta inclusive, mas estão lá os modos medievais

todos porque o libreto isso pede e a isso obriga. Depois disso, en-

tusiasmado com os modos medievais (que era uma coisa de que

ele falava desde novo e de que o próprio Luís de Freitas Branco

falava muito), escreveu o D. Garcia, com o poema da Natália

[Correia] baseado na poesia medieval e trovadoresca. Depois

quis escrever outra sinfonia mas chegou a meio, não sabia como

havia de descalçar a bota e parou durante largos meses. Eu lem-

bro-me dele correr o corredor da casa da Av. dos Estados Unidos

da América de um lado para o outro, era um corredor enorme…

Nessa altura tinhas 13 ou 14 anos...

Sim, foi em 71-72. Lembro-me de vir da escola e ver o

meu pai de um lado para o outro, numa angústia tremenda, sem

saber o que fazer. E eu perguntava: «Ó pai, o que é que se pas-

sa?», «Não sei o que hei-de fazer com a 6.ª Sinfonia…», «Então

se não sabe ponha-a lá num canto, deixe-a lá pousada em cima

da secretária e daqui a uns meses!»... Mas o facto de não con-

seguir terminar uma obra provocava-lhe uma angústia criativa

muito grande. Entretanto houve duas ou três viagens a Espanha

porque ele era júri do Prémio Manuel de Falla e convidavam-

-no regularmente para as conferências dos festivais, e quando

veio de uma dessas viagens, talvez mais refrescado e com uma

colectânea de poemas em castelhano de Camões que não se en-

contravam em Portugal, ficou entusiasmadíssimo. Um dia chego

a casa e ele está a tocar aquele final da 6.ª Sinfonia, com aque-

las redondilhas maravilhosas do “Irme quiero, madre...”. Per-

guntei-lhe se era uma obra nova e ele volta-se para mim com um

sorriso maroto e diz-me: «Não, isto é o final da 6.ª Sinfonia».

Eu fiquei um bocado intrigada. E depois pediu à minha mãe

para ir ao escritório: «Maria José, vem cá e experimenta cantar

isto», que era uma coisa que ele fazia sempre que escrevia para

voz, pedia à minha mãe para cantar. E a minha mãe, claro, fi-

cou deliciada com aquela maravilhosa música. O que aconteceu

foi que a segunda parte da 6.ª Sinfonia ficou pronta. Entre as

duas há aquela transição que é muito bem feita porque (e aí vê-

-se a mestria orquestral do meu pai), embora sendo um bocado

incómoda, está tão bem escrita que, se for bem dirigida, nem se

dá por ela. E eu pedi-lhe para ele me dedicar a sinfonia porque

fiquei absolutamente encantada com aquele maravilhoso tema.

permanecer fiel à sua personalidade musical | entrevista de alexandre delgado a piedade braga santos

glosas, #3 | 29

Mas é verdade que passou de um mundo para

outro completamente diferente; de tal modo

que depois já não voltou a escrever sinfonias...

Não, aquela foi onde pôs o ponto final. Ele viu que

esta nova linguagem que ele tinha criado resultava muito bem,

por exemplo, em obras corais-sinfónicas. Se formos ver o ca-

tálogo há o Babel e Sião e a obra sobre os poemas de Teixeira

de Pascoaes, As Sombras. Para obras corais-sinfónicas, que ele

adorava escrever, resultava muito bem. Aliás escreve também

em 74-75 muito para coro. Nessa época escreve as Composições Corais sobre Clássicos Castelhanos para coro a capella, que

é uma obra maravilhosa. Desse ciclo, há uma parte que está

gravada em disco, as Quatro Canciones.

Voltando atrás, como surgiu a 5.ª Sinfonia?

A 5.ª Sinfonia foi um drama. Foi uma encomenda do

governo, através da Emissora Nacional, para a comemoração

do 40.º aniversário da Revolução Nacional. Quando o Pedro do

Prado falou pela primeira vez ao meu pai, falou-lhe na hipótese

de ir a África, a Angola e Moçambique, fazer uma espécie de

viagem de estudo para incluir temas africanos na referida sin-

fonia. O meu pai ficou entusiasmado com essa hipótese mas não

ficou entusiasmado com a origem do pedido. E, de facto, quando

chegou a casa e contou à minha mãe com um ar algo atrapa-

lhado, ela ia tendo um ataque, e teve mesmo um ataque de fúria.

Tentou demovê-lo de todas as maneiras e feitios de aceitar a en-

comenda. O problema é que a Emissora Nacional pô-lo entre a

espada e a parede, pura e simplesmente chantageou-o.

Joly também não estaria à larga de dinheiro...

Não, ele precisava daquele ordenado, como é evidente.

Ele tinha um ordenado na altura como Maestro Assistente de

Captação, que era uma coisa ridícula, simbólica, mas dava para

pagar a renda, a água e luz, e depois tinha de sustentar a mu-

lher e as filhas o resto do mês. Portanto, em primeiro lugar,

ele precisava do dinheiro das encomendas, não podia viver sem

ele, e em segundo lugar não podia ficar sem o lugar na rádio.

A alternativa era emigrar, pura e simplesmente. Coisa que ele

não queria fazer porque desde miúdo que era um patriota, ele

admirava o Pedro de Freitas Branco por ter voltado e fundado a

orquestra da Emissora Nacional e não ter aceitado naturalizar-

-se francês. Fosse qual fosse o regime, ele nunca viraria as costas

à Pátria. É uma coisa que ainda há pouco tempo a minha tia me

confirmou, ele gostava verdadeiramente do seu país num sen-

tido antigo, num sentido de amor à Pátria que nós agora já não

sabemos muito bem o que é, a verdade é essa. E, portanto, não

queria emigrar. E dizia que se era músico e se era artista tinha

direito de o ser na sua terra, fosse de que maneira fosse. Toda a

gente passou dificuldades naquela época, a verdade é essa.

E acabou por aceitar a encomenda...

Acabou por aceitar porque o Pedro do Prado disse-lhe

muito claramente: «Se você não aceita, amanhã está na rua».

Ele tinha ido ao Brasil no ano anterior. A minha mãe ainda

telefonou para dois ou três amigos brasileiros através até do

Manuel Ivo Cruz, que era um grande amigo, mas o meu pai

recusou-se terminantemente a ser obrigado a fugir daqui por

causa de uma encomenda, dizia ele que «daqui a 50 anos nin-

guém quer saber da encomenda e a obra está cá».

E teve razão. Mas ‘passou as passas do Algarve’

por causa dessa sinfonia...

Sim, porque, como se sabe, a crítica musical, sendo um

dos poucos domínios em que o regime não interferia, estava nas

mãos de gente de esquerda e, nomeadamente, gente do Partido

Comunista. E mesmo gente de esquerda ficou indignadíssima

por um homem com a integridade do meu pai ter aceitado aque-

la encomenda infame. Portanto, toda a crítica lhe caiu em cima.

Havia pateadas sempre que se tocava uma obra dele, fosse ela

qual fosse, até a 4.ª Sinfonia foi pateada no Tivoli.

Tudo isso antes do 25 de Abril, numa altura

que coincidia já com a fase da vanguarda.

Sim, estamos a falar em 66-68. Portanto ele tinha sido

chantageado pelo regime e levava pateadas da oposição. Não era

que ele se preocupasse demasiado com isso, aquilo a ele não o

incomodava particularmente, mas como é evidente incomodava

a família.

E não lhe criou dificuldades a nível de enco-

mendas?

Não, não. Na altura a Gulbenkian encomendava-lhe

praticamente uma obra por ano, portanto ninguém ligou a isso,

excepto, obviamente, a oposição. O que, aliás, me parece uma

coisa natural. Um tipo que escreve uma sinfonia a comemorar o

40.º aniversário da Revolução Nacional deve estar à espera que

No restaurante “Cozinha Velha”, em Queluz, com o compo-sitor brasileiro Camargo Guarnieri. No sentido dos pontei-ros do relógio, Maria de Freitas Branco (mulher de João de Freitas Branco), Maria José Braga Santos, João de Freitas Branco Paes e Helena de Freitas Branco Paes, Joly Braga Santos e Camargo Guarnieri. Meados dos anos sessenta.

30 | glosas, #3

permanecer fiel à sua personalidade musical | entrevista de alexandre delgado a piedade braga santos

o pessoal de esquerda lhe caia em cima, que foi exactamente

o que aconteceu. O meu pai não se preocupava com isso, mas

para a família era um bocado desagradável. Para a minha mãe,

coitada, que era uma pessoa liberal e democrata, e que detestava

o regime, aquela contemporização foi uma coisa que lhe custou

a engolir, quase se divorciaram por causa disso. Mas a verdade

é que a obra ficou e é das mais importantes.

É marcante e foi premiada...

Não recebeu o prémio mas ficou entre as 10 melhores

classificadas dos prémios da UNESCO desse ano, ficou em

quinto ou sexto lugar. Os jornais puseram isso em parangonas

e fizeram-nos entrevistas aos quatro, tiraram-nos fotografias, e

a minha mãe cada vez mais furiosa com o chinfrim.

Quando é que foi a classificação pela UNESCO?

Foi logo em 66, porque o Pedro do Prado, sem o meu

pai saber, enviou para o concurso. E de repente aparecem aque-

las parangonas nos jornais e o meu pai chega à Emissora e diz:

«Mas o que é que aconteceu? Eu não percebo nada. Eu não entrei

neste concurso…», «Ah, eu mandei a obra!». (risos)

E se passássemos ao 25 de Abril?

O 25 de Abril foi uma grande alegria para todos, in-

cluindo para o meu pai. Levou algum tempo para que todos nós

percebêssemos se aquilo era um movimento que teria algum fu-

turo em termos de construção do estado democrático (estou a

falar do PREC), portanto, toda a gente sofreu e teve angústias e

não sabia como aquilo ia acabar. Houve lutas e conflitos, no caso

do meu pai na Sociedade de Autores, na Emissora, saneamentos,

enfim, situações de conflito normais nestes períodos de insta-

bilidade e revolucionários, mas que foram todos ultrapassados.

Ele não foi propriamente perseguido?

Não. Foi alvo de mais críticas do que o habitual porque,

como o país era livre, o Partido Comunista podia-lhe bater à

vontade, mas não foi uma coisa que o incomodasse particular-

mente. Excepto a situação da Sociedade de Autores, que de facto

foi complicada, mas que se resolveu porque houve um grupo

de democratas, no verdadeiro sentido do termo: o meu pai, a

Natália Correia, o David Mourão-Ferreira e até o Urbano Ta-

vares Rodrigues (de quem aliás o meu pai era muito amigo)

que acabaram por pôr termo àquele disparate. E no próprio Luís

Francisco Rebello, às tantas, o bom senso acabou por imperar.

Que tipo de coisas eram?

Sanearam funcionários, houve lutas entre eles, expul-

saram a Direcção.

O teu pai exercia alguma função?

Pertencia ao concelho fiscal ou a uma coisa qualquer

na Direcção. E além disso era uma personalidade respeitável

porque ele estava lá desde o início, não da SPA propriamente

dita, mas de toda a formulação dos anos 40. A partir do momen-

to em que ele se inscreve, no princípio dos anos 50 (ele e o Luís

Francisco Rebello, que eram muito amigos, conheciam-se da

Juventude Musical, imagino eu), o meu pai apoiou-o sempre na

defesa do Direito de Autor, porque era das pessoas que achava

que os autores tinham o direito de viver do seu trabalho. Ele

lutou por isso desde os anos 40. Teve um conflito grave com o

Lopes-Graça, porque este recusava-se a cobrar direitos de autor

ou bens materiais por qualquer peça que fizesse. Achava que

era do povo, portanto se era do povo ele não tinha que cobrar

nada, mas enfim, ele tinha outros apoios e alguém o sustentava,

porque senão não seria possível. Além disso sempre dava aulas

aqui e acolá com grandes dificuldades, como é evidente, mas

isso todos eles. Portanto teve um grande conflito com o Graça e

chatearam-se; eles até se respeitavam e tinham uma esplêndida

relação, mas tiveram um grande conflito por causa disso. De-

pois aquilo lá passou, até porque o próprio Luís Freitas Branco

ainda era vivo e resolveu a disputa. Mas pronto, o meu pai es-

tava na SPA desde o início e era uma personagem respeitadís-

sima, mesmo pelos compositores da música ligeira. É curioso

que, quando ele decidiu por razões financeiras compor umas

cançonetas (teria os seus 20 anos) foi mostrá-las ao José Ga-

lhardo e ao Frederico Valério, que acharam que ele não tinha

jeito nenhum e disseram-lhe: «Ó Joly, vá lá compor sinfonias

que para cançonetas temos jeito nós!». Portanto, era uma pessoa

respeitada, lá organizou um grupo e fez com que todos aqueles

conflitos, felizmente, acabassem.

Foi um período difícil, ele na altura ficou só com o

ordenado da rádio e as encomendas, eu estava a entrar para a

faculdade e a minha irmã foi para a Alemanha estudar violino

logo em 78. A coisa estava complicada porque havia menos en-

comendas e eu tentei até arranjar um emprego mas os meus pais

chegaram à conclusão de que se eu arranjasse um emprego nun-

ca mais acabava o curso e obrigaram-me a acabá-lo. As coisas

lá correram o seu curso normal, com as dificuldades habituais

em famílias daquela época: prescindimos das coisas acessórias,

concentrámo-nos no essencial e passámos perfeitamente aqueles

anos conturbados, que foram anos também muito excitantes.

O meu pai continuava a viajar muito e a ter muitas

solicitações, nomeadamente por causa do Prémio UNESCO. Às

tantas é convidado, por esta altura, a seguir ao 25 de Abril, para

integrar o júri do Prémio UNESCO, passa a ir a Paris todas as

Primaveras. Os festivais de Espanha continuam a acontecer.

Ela vai aceitando cada vez menos encomendas por

razões de saúde. No final dos anos 70 passou por tudo, teve um

esgotamento grave, é-lhe detectado um problema de circulação

cerebral no lobo esquerdo do cérebro (faz uma das primeiras

TACs em Portugal, no Porto) e começa a ser medicado mas está,

de facto, dois ou três anos sem compor nada de novo, pratica-

mente a acabar obras de encomendas já feitas em anos ante-

riores.

glosas, #3 | 31

permanecer fiel à sua personalidade musical | entrevista de alexandre delgado a piedade braga santos

Isso coincide com a altura em que comecei a ter

aulas com ele, que foi em Abril de 81. Lembro-

-me que sofria horrivelmente dos olhos.

Exactamente. E porque a vista lhe começa a falhar,

toma uma decisão drástica que é não compor praticamente mais

obras sinfónicas, que exigem partituras de 35 pautas, portanto

exigem muito mais da vista, e passa a compor obras de câmara.

Nos últimos anos da vida, praticamente o que faz é compor

obras de câmara.

Lembro-me de ele estar a compor os Cantares

Gallegos e a cantata As Sombras, de que me ia

mostrando acordes.

Os Cantares Gallegos são de 83, mas se vires a or-

questração, não é uma grande orquestra e ele quis realmente

fazer isso. Ainda bem que escreveu a obra, apesar da atribu-

lação que foi a estreia. Só a conhecemos agora, mas ainda bem

que a conhecemos, que está aí e que está gravada! Entretanto

ele recuperou e até retomou o seu lugar de professor no Con-

servatório, que tinha iniciado em 71 e mantivera até 76, ano em

que houve uma alteração da lei que dificultava as acumulações

e ele foi obrigado a sair, porque o ordenado não cobria sequer o

passe! Em 82 retoma o lugar de professor do Conservatório, que

mantém até Julho de 88, até ao dia da morte. Portanto, as coisas

estavam a correr francamente melhor. Compôs bastante. Tinha-

-lhe sido encomendada uma ópera para o Lisboa 94 [Capital Europeia da Cultura].

Uma ópera?

Uma ópera, sim senhor, sobre a “Ilha dos Amores”. Foi

ele que sugeriu o tema.

Para Lisboa 94? Com tanta antecedência?

Sim, eles estavam na altura a preparar… Na altura a

Câmara era gerida como deve ser. Não sei quem lá estava, se era

o Sampaio ou o Abecassis, mas ele assinou o contrato em Abril

de 88. Porque disse logo que precisava de dois ou três anos para

compor uma ópera.

E não existe nada disso?

Não, porque o meu pai faleceu em Julho. Ele propôs o

tema e propôs o libretista, que era o Vasco Graça Moura; sobre

a “Ilha dos Amores” era uma escolha evidente. Mas acabou por

falecer em Julho, de repente.

E quanto ao reencontro tonal dessa fase final...

Digamos que ele sofre um desencanto com a Democra-

cia que é um pouco mais precoce que o nosso. Não sei se o PREC

o marcou um pouco mais porque era mais velho, nós somos de

outra geração. Não sei o que terá acontecido, mas ele deve ter ima-

ginado que a Democracia, do ponto de vista cultural, ia trazer

muita coisa que não trouxe e muita abertura que não trouxe. As

ideias, as mentalidades e os hábitos no domínio da cultura são

muito lentos a mudar, quando mudam! Portanto, ele talvez não

tivesse visto as mudanças que antecipava, nomeadamente em

relação ao ensino, ao Conservatório, às escolas… Continuava a

batalhar pelas mesmas coisas, continuava a ter que exigir que

lhe pagassem os direitos de autor, continuavam as orquestras

a fazer fotocópias e a aldrabar. Continuava tudo na mesma! E

em 88, com 14 anos de Democracia, ele se calhar desencantou-se

mais cedo do que nós.

Continuava a não haver edição musical, e ele

conheceu muito poucos discos com a obra

dele...

Não conheceu! Quer dizer, só conheceu o da 5.ª Sinfo-nia e o dos Três Esboços Sinfónicos dirigido pelo Cassuto.

Foi inesperada a sua morte?

Foi, porque ele estava a recuperar. Aliás, em 85 e 86

fartou-se de escrever. Em 88 recebeu um prémio pelo maior

número de obras estreadas, um prémio do Festival do Estoril,

daquelas galas que o Estoril fazia em que davam prémios aos

artistas portugueses. Isto antes da SIC e dessas coisas, o Casino

Estoril tinha uns mecenas.

Em 88 há Aquella tarde, poema dramático estrea-

do nos Encontros de Música Contemporânea,

o Staccato Brilhante, o Improviso para Clarinete e

Piano, que é a última obra...

Sim, tudo isso em 88. Ele escreve muito nos últimos

anos. São é obras mais do tipo música de câmara. Mas estava

perfeitamente. Foi um embolismo cerebral, daqueles que pode

acontecer a qualquer um de nós, em qualquer altura.

Um embolismo rebentou uma veia no cérebro.

Exactamente, um coágulo que rebentou com a veia. Foi

fulminante. Foi a dormir, aliás. Tomou um comprimido para

as dores de cabeça, foi-se deitar e não acordou. Só quando lhe le-

vantámos a cabeça é que percebemos o que lhe tinha acontecido,

porque estava toda negra atrás. Mas não sofreu, coitadinho. O

meu pai era uma ternura não era? A bondade em pessoa.

O melhor do Joly vinha ao de cima na sua

relação com as filhas.

Nós adorávamos o meu pai. Era uma coisa mesmo es-

pecial. Um misto de amor filial com amor maternal, porque

tínhamos um sentido de protecção muito grande que nos tinha

sido incutido pela minha mãe quando éramos pequenas, porque

o meu pai era muito distraído. E portanto, cada vez que saí-

mos com ele a minha mãe ficava um bocado assustada e dizia:

«Tomem bem conta do pai!». Portanto, para além de tomarmos

conta de nós próprias, tínhamos de tomar conta do pai. E isso

deu-nos um sentido de carinho e de protecção muito especial.

E como é que vocês lidavam com a proverbial

distracção?

Ríamos também! Ele era o primeiro a rir-se de si pró-

prio, não tinha importância nenhuma. Contava-nos imensas

histórias, brincava connosco, escrevia coisas para nós. Fartou-se

de escrever pecinhas para nós e para os amigos, quando está-

vamos a estudar os vários instrumentos. Depois, estudávamos

em conjunto, a minha mãe fazia uns lanches e nós tocávamos

para os amigos ouvirem. Ajudava-nos a fazer os trabalhos de

Composição, por vezes com resultados hilariantes porque o que

ele escrevia nem sempre estava conforme as regras (as regras

do Vincent d’Indy, que ainda era o que se dava no Conser-

vatório, na época). E, portanto, as professoras, que conheciam

muito bem a obra do meu pai e eram amigas dele, por exemplo a

Constança Capdeville, que foi minha professora de composição,

ou a Maria de Lurdes Martins, que foi professora da minha

irmã, davam imediatamente por ela que aquilo não tinha sido

feito por nós, porque quando perguntavam como é que tínhamos

resolvido tal acorde, nós, que tínhamos copiado aquilo à pressa

no metro para ir para o Conservatório ficávamos sem saber o

que responder. E uma vez a Maria de Lurdes Martins zangou-

-se muito com a Leonor porque ela usou quintas paralelas, que

era uma coisa que era um pecado capital em composição. Disse-

-lhe que aquilo estava errado, ela tinha-se fartado de explicar

que aquilo estava errado. E a minha irmã, sem pensar no que

estava a dizer nem onde estava: «Errado? Isso não pode estar

errado porque foi o meu pai que fez!» (risos). No dia seguinte,

quando o meu pai chegou ao Conservatório, os colegas olhavam

para ele e riam a bandeiras despregadas e o meu pai não perce-

bia (não era Carnaval, não tinha a cara farruscada...). Até que

houve uma boa alma que lá lhe contou da saída da minha irmã

na aula de Composição porque as pessoas choravam a rir em

todo o Conservatório.

Uma história fantástica...

E levava-nos a passear ao jardim zoológico todos os

fins-de-semana, adorava os animais. Os animais vinham ter

com ele. Os tratadores ficavam doidos porque os cães, crianças e

animais eram atraídos pelo meu pai.

O teu pai tinha qualquer coisa de criança den-

tro dele...

Exactamente. E os tratadores ficavam desesperados: os

elefantes viam-no a aproximar-se da porta, começavam logo a

puxar aquela corrente e vinham-lhe enrolar a tromba à volta da

cintura. Cumprimentavam-no sempre, a Rita e já não me lem-

bro do nome do outro. Os macacos ficavam doidos. Ele ia para

a aldeia dos macacos e os tratadores ficavam malucos, para já

porque ele fazia uma coisa que não se deve fazer, que é dar-

-lhes amendoins, e às tantas tinha 50 macacos ao pé dele a pedir

permanecer fiel à sua personalidade musical | entrevista de alexandre delgado a piedade braga santos

32 | glosas, #3

amendoins. Era muito divertido, adorávamos sair com ele. A

minha mãe, coitada, é que ficava um bocado assustada.

Havia idas ao cinema?

Imensas. Íamos muito, adorávamos cinema e desde que

começámos a ficar mais cresciditas e a poder entrar, a minha

mãe até nos fazia penteados especiais que nos punham mais ve-

lhas porque havia aquela história dos maiores de doze. E havia

cinemas que tinham porteiros que faziam uma perninha mas

que eram porteiros do S. Carlos ou do Trindade e que, portanto,

eram conhecidos e nos deixavam passar.

De que tipo de cinema é que ele gostava mais?

Luis Buñuel. De todos os italianos – Fellini, Ettore Sco-

la, o Vittorio De Sica (adorava o Milagre de Milão e os Ladrões de Bicicletas); era um apaixonado do Lucchino Visconti; e tam-

bém cinema francês – o Claude Chabrol; também algum cinema

espanhol que aparecia muito cá na época (agora praticamente

não aparece, tirando o Almodóvar) – o Carlos Saura, o Buñuel,

todos esses. Ele adorava cinema e íamos ver tudo e mais alguma

coisa, nos antigos cinemas de reprise que agora já não exis-

tem mas que passavam aquelas cópias muito antigas dos anos

40 e 50. Às vezes íamos a pedido nosso, meu e da minha irmã

- eu lembro-me que a minha irmã, quando estreou o Músicano Coração, foi ver duas ou três vezes e depois no verão era

sistematicamente reposto. Pois ela, como já não tinha ninguém

que tivesse cabeça para a acompanhar ao Música no Coração,

pediu ao meu pai. A minha mãe ficou assim um bocadinho in-

dignada mas o meu pai disse logo que sim, claro. E adorou o

filme! Os meninos a cantar muito afinadinhos aquela música

que é muito bem feita, que aqueles americanos sabem compor –

ficou encantado! Chegaram a casa os dois todos contentes depois

de ver o espectáculo. E dizia a minha irmã para a minha mãe:

«Está a ver que o pai gostou, eu disse que o pai ia gostar!»... •

Passeando com a família em Sevilha, durante o Festival de Música de Sevilha, em Outubro de 1973

glosas, #3 | 33

em torno de Joly Braga Santos

entrevista de E. L. Ayres d’Abreu a Henrique da Luz Fernandestranscrição de Gustavo Cruz e Ana Salazar

Quando e como conheceu Joly Braga Santos?

Conheci o Joly nos anos de 36, 37. Éramos alunos do

Conservatório. Ele andava um ou dois anos mais avançado do

que eu. Já nessa altura era um elemento que não passava desper-

cebido no corpo discente, pela sua maneira de estar. Mas para

além das suas singularidades e de um certo desalinhamento,

que era próprio do comportamento dele, o Joly era uma pessoa

intelectualmente interessante e estudiosa.

Antes de o conhecer pessoalmente já sabia

quem era o Joly?

Não, quando eu fui para o conservatório, em 36, 37,

tinha dez anos e o Joly tinha treze. Ele nasceu em 24, eu nasci em

27. Ele já andava uns anos à minha frente, mas depois fomo-

-nos encontrar com mais regularidade e mais proximidade na

aula de Violino do professor Flaviano Rodrigues, onde ele es-

tava colocado à mesma hora que eu. Era meia hora para cada

um, como era próprio do tempo, sobretudo no caso daqueles

que estavam a principiar, como era o nosso. E o Joly também

fez com alguma irregularidade os anos de estudo de violino e,

mais tarde, acabou por desistir. E foi aí que nos aproximámos

mais. O professor interessou-se em particular pelo Joly, porque

ele na altura já escrevia umas coisas, e o professor, que tinha

uma formação pianística, acompanhava-nos ao piano, coisa que

não é vulgar para alunos dos níveis iniciais, improvisando os

acompanhamentos, se as peças estivessem suficientemente bem

estudadas para isso – ajudava-o muito. O professor dominava

bem não só o piano, mas também a harmonia e o contraponto.

Terão essas improvisações despertado em Joly

o desejo de compor?

É provável que sim, era interessante, nós gostávamos e

esforçávamo-nos por levar os estudos o melhor possível para que

ele se sentasse ao piano e fizesse o acompanhamento. Portanto,

foi aí que uma vez o Joly apareceu com uma pequena peça que

tinha um ritmo obsessivo - eu nunca me esqueci disso porque o

professor disse “Isto tem alguma coisa a ver com o Bolero de

Ravel”, coisa que o Joly tomou como uma acusação de plágio, e

o professor esclareceu que não o estava a acusar de ter copiado,

mas apenas a dizer que o ritmo teria ficado no seu subconsci-

ente e, subsequentemente, transparecido para a peça. O que é

certo é que, passada uma ou duas aulas, ele apareceu com aquele

reflexo do Bolero transformado já noutra coisa. O professor

Flaviano Rodrigues encorajava-o muito, e a relação entre eles

continuou mesmo depois do Joly abandonar as aulas de Violino

para fazer estudos mais aprofundados de Composição. Passada

meia-dúzia de anos, em 46, já estava a escrever uma sinfonia...

Entretanto, estudou com o professor Luís de Freitas Branco com

quem teve uma relação excelente, não só em termos de absorção

de conhecimentos, mas também no sentido em que houve algo

da personalidade criativa do Luís de Freitas Branco que o in-

fluenciou, o que é natural...

Joly assistia também aos ensaios da Orquestra da

Emissora Nacional, mesmo que não estivessem a ser tocadas

obras dele, porque tinha gosto de estar, e assistindo aos ensaios

tomava contacto com o processo técnico de orquestração dos

compositores. Era dirigida pelo Pedro de Freitas Branco, irmão

do Luís, que também encontrava no Joly condições de criativi-

dade e de interesse para que ele lhe fizesse as obras, não só nas

estreias, mas programando-as ao longo da temporada. Há que

ressalvar que o Pedro de Freitas Branco era um maestro que

tinha como preocupação fundamental dar a ouvir música con-

temporânea. A Orquestra da Emissora tocava os ingleses, como

Vaughan Williams e o Britten, os franceses contemporâneos, e

outros.

E o Flaviano Rodrigues era primeiro-violino da Or-

questra. Aliás, quando eu entrei para a Orquestra, ele ainda era

frequentemente o concertino, mas soube retirar-se a tempo ocu-

pando outras estantes, e cedendo o lugar de concertino a músicos

mais novos.

O Sr. Henrique contactou com Luís de Freitas

Branco?

Conheci-o nos tempos do lançamento da Juventude

Musical Portuguesa, porque ele foi um dos elementos que muito

contribuiu para que esse projecto se tornasse uma realidade.

Não só pela sua presença e influência artística, pessoal e cívica,

mas porque acompanhava muito as primeiras reuniões, dando

conselhos, e depois interessando-se por esta efabulação de uma

sociedade de jovens que se pretendia federar nas juventudes in-

ternacionais, interessando também a Srª D. Elisa Sousa Pedroso,

que era uma outra personalidade importante no meio musical.

Conheceu-a?

Conheci-a também… Havia as reuniões da comissão,

que não era uma direcção ainda, era um grupo, que tinha a

comissão já formada e depois outra gente que se interessava e

que se juntava. Foi um movimento que dinamizou gente nova

não só do Conservatório, mas talvez principalmente gente nova

das escolas superiores, do ensino liceal. Quando a Juventude

Musical começou, já com os seus estatutos aprovados - porque a

dificuldade foi a aprovação dos estatutos…

em torno de joly braga santos | entrevista de e. l. ayres d’abreu a henrique da luz fernandes

34 | glosas, #3

Dr. Oliveira Salazar. E, portanto, em vez de pedir aos anjos,

foi pedir a Deus. Procurou-o, e explicou-lhe que os fins eram os

mais apolíticos que se pudesse imaginar, que as juventudes mu-

sicais se tinham desenvolvido no final da guerra como forma

de fazer os jovens esquecer aquele cortejo terrível de atrocidades

que se tinha passado…

E então Salazar acabou por facilitar?

Sim, isso depois soube-se pela boca da Sr.ª D. Elisa.

Ele perguntou-lhe “V. Exa. fica como fiadora?” ao que ela res-

pondeu que sim. “Então muito bem, amanhã vou dar ordens

para que sejam aprovados os estatutos.” E assim foi, em 49 já

estava a funcionar a Juventude Musical Portuguesa.

E Joly Braga Santos foi um dos fundadores...

Sim, o Joly foi quem trouxe a ideia de Itália, veio com-

pletamente deslumbrado; tinha ouvido um concerto com as ju-

ventudes italianas... E falou do projecto a um grupo que se reu-

nia num café da Av. de Roma, de que faziam parte o Humberto

de Ávila, o Joly Braga Santos, às vezes o João Freitas Branco...

O Ávila, que era um homem muito organizado, que quando

metia ombros a uma coisa a levava por diante, foi talvez o prin-

cipal elemento motor. E a Juventude mobilizou muitos jovens,

faziam-se concertos em vários lugares, sessões de divulgação

fonográfica, primeiro na casa da Itália, na Rua do Salitre, e

depois na sede, na Rua Rosa Araújo. O Joly fez muitas destas

apresentações, e o Luís de Freitas Branco também chegou a fazer

algumas e, portanto, o meu conhecimento com o Luís de Freitas

Branco vem daí e, posteriormente, de ele vir assistir aos ensaios

das suas obras com a orquestra. Ele era uma pessoa deliciosa.

Albino André, Humberto de Ávila, Emílio Guerra, Joly Braga Santos, Filipe de Sousa, Nuno Barreiros, Manuela Taveira, Carmélia Âmbar, Alice Gentil Martins. Um grupo de fundadores da Juventude Musical Portuguesa. Lisboa, 1949

Havia ideias divergentes?

Não havia muitas divergências, a questão era com

os organismos oficiais. Porque depois de os estatutos estarem

elaborados, era necessária a aprovação do Ministério da Edu-

cação, e também do Ministério do Interior, por causa da questão

política. E aquilo andava de Herodes para Pilatos, a Direcção

Geral do Ministério da Educação mandava não se sabe para

onde, e outros para outro sítio, porque também não queriam

rejeitar abertamente, e aquilo estava num impasse.

Como acontece ainda hoje com muitos outros

assuntos...

Sim, mas não era uma mera questão burocrática. Na

altura as motivações para o impasse eram políticas, porque uma

federação internacional de jovens era uma coisa que perturbava

o conceito de dar à juventude meios de entretenimento, ou de

dar à juventude meios para se associar em questões que inicial-

mente seriam culturais mas, depois, podiam passar a ser tam-

bém outra coisa…

Adiante, a Sr.ª D. Elisa Sousa Pedroso, que era vis-

condessa, aristocrata por parte do pai, era uma pessoa de es-

pírito aberto, e teve uma influência importante na vida musical

portuguesa. Foi fundadora e presidente, até à morte, do Círculo

de Cultura Musical, que era uma sociedade de concertos com

largas centenas de sócios, que promovia concertos mensais ou

bimensais com excelentes músicos portugueses e estrelas de nível

internacional como o Kempff e outros.

Mas como eu estava a dizer, as reuniões faziam-se

em casa da D. Elisa Pedroso, e ela venceu todas as dificulda-

des, porque, segundo se dizia, tinha alguma intimidade com o

glosas, #3 | 35

Que impressão tem de Luís de Freitas Branco?

Para já era uma pessoa que tinha uma cultura vastís-

sima. E depois era um comunicador, como é próprio das pessoas

que têm muito para dizer. Qualquer conversa que se começasse,

ele começava a desenvolvê-la e depois modulava para outras e

outras e outras, com toda a naturalidade. Aprendia-se, a ver-

dade é essa, aprendia-se muito com ele. Eu tinha muito gosto

em ouvi-lo. Nesse tempo - estamos a falar de 48, 49 - o jor-

nal O Século promovia umas conferências no salão que tinha

na Rua do Século, quinzenais ou semanais, com um enorme

estatuto cultural, pedagógico e intelectual, e com uma muito

grande afluência. Acolhiam nomes como Jaime Cortesão, Ma-

nuel Mendes...

E Joly Braga Santos, como orador?

O Joly era um despistado, evidentemente, mas no que

se refere às sessões de divulgação da Juventude Musical, levava

as suas coisas preparadas e desembaraçava-se muito bem, com

interesse também, sobretudo se estava a falar de coisas sobre as

quais tinha bom conhecimento e das quais gostava.

Como eram recebidas as obras dele pelo públi-

co da altura?

Eram muito bem recebidas. A sua música é intui-

tiva na sua génese e é pela sua própria natureza rapidamente

apreensível, apreende-se com facilidade.

Mesmo a 5.ª Sinfonia, por exemplo?

Mesmo a 5.ª Sinfonia. Aquele andamento dos ma-

rimbeiros de Zavala é um achado. É um comunicativo, a música

dele é muito comunicativa. A mim dava-me muito gosto execu-

tar música dele porque tem conteúdo, tem sentido, tem lógica.

É um compositor que veio contribuir para que houvesse sinfo-

nismo em Portugal, que era algo já praticamente perdido. É o

Luís de Freitas Branco que inicia essa recuperação, após o caso

singular do Mestre Vianna da Motta, que escreveu uma sinfo-

nia em 1894.

Também Frederico de Freitas...

Sim, escreveu uma que se chama Jerónimos.

Como é que reagia o meio musical da altura?

Com que curiosidade se viviam essas estreias?

Pergunto isto porque sabemos que hoje em dia

a maior parte dos músicos não tem interesse

pela produção contemporânea.

O Joly é um compositor que tem uma linguagem, uma

sonoridade, um vocabulário artístico ao qual se adere com faci-

lidade, dadas as suas características e tendência estética. Pode-

mos ouvir obras de compositores contemporâneos de Joly que

eram acolhidas com indiferença e algumas até com resistência.

Não é o caso do Joly. A sua maneira de se manifestar era aquela,

em torno de joly braga santos | entrevista de e. l. ayres d’abreu a henrique da luz fernandes

era a música que estava dentro da sua própria personalidade,

dos seus genes. E vou-lhe dizer mais uma coisa: quando o Joly

sai disso, ele sai porque tem um desejo de se alinhar com outras

correntes estéticas mais vanguardistas, mas essa não é a na-

tureza do Joly. Ele fá-lo e sabe fazer, mas não tem a mesma

espontaneidade que têm as obras anteriores, onde as coisas jor-

ram, caminham, têm soluções. O que eu julgo que é natural.

Cada pessoa tem a sua sensibilidade e age de acordo com ela,

há pessoas que têm um processo criativo mais cerebral. O Joly

tinha a sua idiossincrasia e isso era muito nítido e resultava

em música muito agradável de tocar. Ah, mas estava a falar da

aceitação... Não havia um concerto anunciado para fazer uma

primeira audição do Joly. A Orquestra tinha uma vida regular,

um calendário feito ao longo do ano, por exemplo de Outubro

a Dezembro estava no Tivoli aos Sábados à tarde a fazer os

concertos de Outono, durante três meses.

E as pessoas iam, independentemente do pro-

grama...

As pessoas iam assistir ao concerto, e se estava uma

sinfonia de Joly, estava uma sinfonia de Joly, pronto. Estava

integrada no programa, a obra fazia-se e era bem acolhida. De-

pois havia, por exemplo, os concertos promovidos pela Juven-

tude Musical Portuguesa, e aí sim poderia haver várias obras

suas incluídas no programa, faziam-se inclusivamente concer-

tos só com compositores contemporâneos, como Artur Santos,

Jorge Croner de Vasconcellos, Cláudio Carneyro, Frederico de

Freitas, que é uma grande figura - também merecia que lhe

dedicassem uma revista - ...

Depois havia também o Lopes-Graça...

Ah, claro, o Lopes-Graça. Não citei agora o nome

Lopes-Graça porque é incontornável. Eu também tive a oportu-

nidade de lidar com o Graça com alguma regularidade, primei-

ro porque nos conhecíamos do meio musical, e segundo porque

frequentávamos a mesma linha de eléctrico, o 28, às mesmas

horas. Depois deixámos de ter o mesmo percurso, mas continuá-

vamos a encontrar-nos quase todos os dias porque eu tinha um

irmão que, na altura, era chefe de relações públicas da Valentim

de Carvalho, na Rua Nova do Almada. Ia geralmente dar dois

dedos de conversa com o meu irmão lá na Valentim. E também

havia um grupo de pessoas com as quais era agradável passar

ali um bocadinho do fim-de-tarde.

Tem alguma obra preferida de Braga Santos?

Tenho várias. Por exemplo, as Variações Sobre um Tema Alentejano, que eu acho que é uma obra excelentíssima,

a Abertura n.º 3. Em todas as sinfonias reconheço grande qua-

lidade. O Concerto para Viola e, enfim, outras obras que ago-

ra não me ocorrem. Eu fiz praticamente as primeiras audições

de todas as obras dele… A Trilogia das Barcas também é uma

boa obra. O Joly tinha, para além de um sentido de equilíbrio

em torno de joly braga santos | entrevista de e. l. ayres d’abreu a henrique da luz fernandes

espantoso na escrita, a característica de ser um excelente or-

questrador. Utilizava muito bem quer os efeitos tímbricos, quer

as alternâncias de ritmo. Do campo modal também já falámos.

Uma certa tendência para um revivalismo da polifonia dos mes-

tres das escolas claustrais, que se encontra, por exemplo, nal-

guns andamentos lentos. É uma identidade importante no nosso

meio musical, sem dúvida nenhuma.

Evidentemente que havia coisas no Joly que eram

completamente desconcertantes. Às vezes, saíamos do Con-

servatório, ainda alunos, e ele descia pela Av. da Liberdade.

Atravessávamos o Bairro Alto e descíamos para o Rossio. Ele,

de repente, começava a olhar para o ar, virava costas e ia-

-se embora a correr sem dizer nada. Atravessava as ruas sem

olhar para os lados, foi atropelado várias vezes. Uma vez suce-

deu que estávamos nos Restauradores, ali ao pé do Éden, e ele

resolveu atravessar sem dizer nada, com os automóveis e tudo,

e foi-se pôr a cantar com os braços no ar ao pé do monumento.

E que cantou?

Não sei o que cantou, eu fiquei do outro lado, não fui

atravessar. Passou-lhe uma coisa qualquer pela cabeça, pronto,

era assim. Por fim, essas reacções atenuaram-se. Depois casou

e a mulher foi uma influência benéfica na vida dele. Aliás, a

mulher e as filhas. Ele tinha uma adoração pelas filhas. As suas

meninas, como ele dizia.

Depois esteve durante uns anos a trabalhar para aqui-

lo a que se chamava o Gabinete dos Estudos Musicais, para onde

ele escreveu as primeiras sinfonias. Tinha sido uma iniciati-

va do Pedro do Prado, com o apoio do Director da Emissora.

Quando o Gabinete acabou, o Joly já se tinha casado, passou a

viver com algumas dificuldades. O Pedro do Prado, e muito bem,

entendeu que tinha condições de o poder ajudar, e colocou-o no

Porto como segundo maestro. Foi um desastre. Depois acabou

por o tirar de lá e criou um lugar que era “maestro de captação”.

O Pedro do Prado era também um dos compo-

sitores do Grupo dos Quatro...

Os “Quatro de Portugal”... Que eram Pedro do Prado,

Lopes-Graça, Croner de Vasconcellos e Armando José Fer-

nandes… Mantiveram uma polémica com o Ruy Coelho.

Curiosamente, hoje não se conhecem obras e

acho que não há gravação alguma de obras do

Pedro do Prado.

Eu acho que o Pedro estaria alinhado com eles mais

pelo seu intelecto que pela sua capacidade de escrever música.

Em todo o caso, acho que o Pedro não concluiu o curso de piano,

mas tinha estado a estudar piano e composição no curso normal.

Não sei se foi no Conservatório, se foi em Coimbra.

Mas não terá deixado algumas partituras?

Não, eu acho que ele escreveu umas coisas, mas que eu

saiba nunca se ouviram. O Armando não, o Armando teve uma

carreira, embora depois com uma produção um tanto reduzida.

Tal como o Croner. Ambos se dedicaram principalmente ao en-

sino. Era uma época um bocado complicada, um e outro estive-

ram em França em simultâneo, com a Nadia Boulanger, com

Stravinsky. Receberam várias influências, algumas delas con-

traditórias, num meio musical riquíssimo e efervescente, onde

havia o “Grupo dos Seis”, de onde eles inclusivamente tiraram o

nome “Grupo dos Quatro”.

Há quem diga, eu não gosto de fazer juízos destes, que

Vasconcellos era um pouco indolente. No fundo, eu acho que o

artista, o criador, se tem dento de si uma força criadora, deve

ter necessidade de a expressar. Portanto, eles eram “composi-

tores” porque dominavam a maneira de fazer música, mas não

é o caso do Graça. O Graça escrevia, pelo menos, duas obras por

dia. (risos)

E porque razão foi um desastre quando Pedro

do Prado o colocou como segundo maestro?

Pela falta de capacidade técnica para dirigir?

O Joly, quando dirigia sabia o que fazia, chegou a

fazer alguns concertos. Não lhe vou dizer que era um maestro

excepcional, mas sabia pôr-se em frente a uma orquestra, ler a

partitura, e fazer os gestos correspondentes àquilo que lá estava

escrito. Só que, evidentemente, depois havia a sua maneira de

ser e de estar, a maneira de falar com as pessoas, de impor o tra-

balho que está a fazer, de convencer as pessoas de que a opinião

que está a dar deve ser aceite. Afinal de contas, era um maes-

tro, não era só passar a música e marcar o compasso. Há uma

história do Joly que revela bem a sua maneira de ser. Ele estava

a ensaiar e deu por falta do segundo clarinete. Parou o ensaio

e perguntou “Então o Sr. Não-sei-quantos não está cá?”, ao que

o outro clarinetista respondeu: “Ainda bem!”, “Então você está-

-me a dizer que ainda bem!?”, “Ó Maestro, ainda bem!” - e o Joly

reagiu de forma intempestiva, começou a gritar com o homem:

“Então ele não está cá e está-me a dizer ainda bem?! Isso é forma

de falar com um maestro?”, sem entender que este lhe estava a

falar com pronúncia do Norte, repetindo a frase na esperança

de que o maestro entendesse que queria dizer “Ainda vem!”...

Nessa altura, o Joly descarrilou, foi um escândalo. Fazia coisas

do arco da velha... Começava os ensaios, ele usava o relógio de

bolso, punha o relógio em cima da estante. E se se virava para a

esquerda para fazer alguma observação, o que estava à direita

pegava no relógio e adiantava-lho. Continuavam a ensaiar e

alguém lhe dizia “Ó Maestro, está na hora do intervalo!”... E ele

não dava pelo tempo passar e assumia que era, de facto, hora do

intervalo.

De maneira que depois se tornou maestro de captação.

Ele tinha bom ouvido, portanto, sabia ver se o que estava a ser

captado estava com boa qualidade de som. Agora também não

sei como eram os diálogos dele com os técnicos… (risos) mas é

provável que corressem melhor. •

36 | glosas, #3

glosas, #3 | 37

Memórias e Evocações

de Tomás Marco e Maria José Borges

A convite da glosas, memórias e

evocações de personalidades próximas

de Joly Braga Santos. As palavras de

Tomás Marco, distinto compositor

espanhol, e de Maria José Borges,

musicóloga e professora no

Conservatório Nacional.

~

Se a memória não me engana, conheci Joly Braga Santos em inícios dos anos sessenta e desde logo se esta-beleceu uma ligação de simpatia e amizade que se desen-volveria durante um quarto de século, até ao momento da sua súbita morte. Eu era então um compositor principi-ante e ele uma figura reconhecida que se encontrava na consolidação da sua maturidade criativa, uma vez que a nossa diferença de idades era de vinte e dois anos.

Curiosamente, os nossos primeiros encontros realizaram-se enquanto críticos, pois eu já então escrevia crónicas para diversas publicações musicais ou generalis-tas e ele era, sem dúvida, naquele momento, o mais emi-nente crítico português. E realmente a crítica era a razão de muitos dos nossos encontros, pois ele frequentava pontualmente os festivais espanhóis para tomar conheci-

Joly Braga Santos no Lago di Garda (fotografia não datada)

mento do que ali se passava e encontrávamo-nos por esse motivo. Naturalmente, ambos conhecíamos a condição de compositor do outro, mas no princípio, na verdade, desconhecíamos por completo as respectivas obras, ain-da que pouco a pouco as fôssemos conhecendo até com bastante profundidade. De qualquer modo, os festivais de música e o trabalho crítico não impediam que falássemos muito de música e, desde logo, de composição.

Creio que, para além de admirar o músico, a primeira coisa que aprendi a admirar foi o ser humano. Joly Braga Santos era uma pessoa calorosa e afectuosa, de uma grande bondade e, para além disso, um homem mui-to culto, com o qual se podia conversar e reflectir sobre os mais variados assuntos. Recordo muitas noitadas de conversa animada no final dos concertos, especialmente nas Semanas de Música Religiosa de Cuenca, a que assistia todos os anos e onde, à parte os concertos, o tempo livre era abundante. Ainda assim, desde logo, não nos víamos somente nos festivais, mas também, outras vezes, em Lis-boa ou noutra cidade europeia em que coincidisse estar-mos ambos, devido aos nossos respectivos compromissos musicais. E não foi apenas de música que falámos.

Também conheci e apreciei no seu grande valor a sua esposa, Maria José, uma mulher culta, discreta, ele-gante e bela, que foi a pessoa que melhor soube entender e conduzir Joly. Porque, seguramente, conviver com Joly não era nada fácil. Não porque não fosse uma óptima pes-soa, que o era, mas sim porque vivia absorto na sua músi-ca e vida interior e, por vezes, se desligava do mundo real em que vivia. Era muito capaz de batalhar diariamente com mil trabalhos musicais para sustentar a sua família, mas vivia o resto do tempo imerso no seu mundo cria-tivo e não estava nada dotado para a vida prática diária. A sua mulher tratava dessas coisas, cuidava dele, e creio que foram um dos casais mais unidos e mais complementares que conheci.

Como compositor, Joly Braga Santos era um homem da sua geração, que nunca traiu os princípios es-téticos em que se formou, mas que soube evoluir de uma forma muito clara. Conhecia muito bem a música e o am-plo reportório do passado e a criação das pessoas da sua geração, mas estava igualmente muito bem informado de tudo o que faziam as vanguardas da sua época e apreciava--o independentemente de o praticar ou não. Um caso claro

memórias e evocações | tomás marco e maria josé borges

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era a sua amizade e colaboração com aquele que era então o máximo representante da vanguarda portuguesa, Jorge Peixinho, e com quem se entendia muito bem. O mesmo apreço mútuo que eu e ele sentíamos um pelo outro. Joly Braga Santos conhecia a fundo a música portuguesa e esta interessava-lhe desde Freitas Branco, de quem foi aluno, até ao último jovem que surgisse ao seu redor. Contudo, isto não o impedia de percorrer o seu caminho musical a partir das suas próprias ideias e na sua própria linha. O seu pensamento sobre a teoria da composição e o es-tudo da mesma era muito rigoroso. Tive oportunidade de a ouvir detalhadamente numas Jornadas Musicais Luso--Espanholas que tiveram lugar em Lisboa nos anos se-tenta, baseando-se nalgumas premissas do pensamento de um compositor da vanguarda espanhola, Cristóbal Halffter, o qual Joly admirava incondicionalmente.

A música de Joly Braga Santos é, dentro das co-ordenadas estéticas em que se insere, bastante pessoal e original. Mais interessado numa posição neo-clássica que num nacionalismo radical, ainda que os motivos de inspiração portugueses não tenham faltado na sua obra, a maior parte da sua produção de um primeiro e am-plo período preocupa-se sobretudo com uma linguagem modal na qual a arquitectura formal é importante e está solidamente construída. Esta é a linguagem da Abertura Sinfónica ou da Sinfonietta; mais tarde, porém, o material expressivo do autor evolui até lugares onde o cromatismo tem uma importância maior e as técnicas se abrem a ou-tras perspectivas, num trabalho que poderíamos chamar de síntese. Talvez o ponto culminante de tudo isto, e a obra de maior esforço sintético da sua carreira, seja a Sin-

fonia n.º 5, Virtus Lusitaniæ, que foi igualmente uma das obras mais bem recebidas do Maestro, pois não só foi dis-tinguida pela UNESCO na sua Tribuna Internacional de Compositores, mas também se constituiu como uma das obras mais comentadas e apreciadas do compositor.

Joly Braga Santos soube também cultivar a música vocal, na qual procurou a nobreza da linha melódica e a in-teligibilidade dos textos. A linguagem era importante para o discurso musical, como o demonstra o tratamento dos distintos poetas que abordou tanto em português (Camões, Pessoa), como em espanhol (Garcilaso de la Vega), e isto nota-se particularmente nas suas óperas. Compôs três, mas a mais notória de todas foi sem dúvida a Trilogia das Bar-

cas, uma obra muito original, já que assume musicalmente a particular estrutura dramática da obra de Gil Vicente, que pouco tem a ver com os libretos operáticos habituais. Graças a este facto, a obra distancia-se tanto da ópera tradicional como dos modelos operáticos habituais do séc. XX, convertendo-se numa interessante singularidade.

Na altura do falecimento de Joly Braga Santos, eu dirigia o Festival Internacional de Música Contem-porânea de Alicante, onde se lhe dedicou uma sessão de homenagem. Interpretou-se o seu Concerto para vio-

loncelo e orquestra, que tinha sido estreado pouco tempo antes em Lisboa. Foi um momento de grande emoção. Não só porque recordávamos o amigo que acabáramos de perder, mas também porque a nova obra se impu-nha pela sua própria magnitude, pela sua própria beleza e pela sua importância. Era o Joly de sempre e, ao mesmo tempo, um Joly novo, um passo à frente numa evolução que se desenvolvia tranquila, segura, sem correr mas tam-bém sem se deter. Este concerto é seguramente uma das maiores obras que nos deixou o compositor. Joly Braga Santos deixou-nos num grande momento de maturidade da sua carreira. Deixou-nos, para além disso, e consi-derando as estatísticas de hoje em dia, cedo, pois tinha apenas sessenta e quatro anos, quatro a menos do que te-nho eu próprio, no momento em que redijo estas linhas. Creio que se encontrava num momento criativo cheio de plenitude e pode-se especular sobre o que poderia ter composto se tivesse continuado vivo. Estou certo de que teria escrito grandes obras, mas trata-se de pura conjectu-ra, uma vez que as coisas aconteceram de outra maneira. Devemos concentrar-nos no Joly Braga Santos que existiu e que conhecemos: um homem bom, um ser humano de grande cultura, um professor valioso e um compositor de elevada categoria. Não choremos pelas obras que poderia ter escrito, antes usufruamos das que realmente escreveu. Ao longo da sua carreira, o nosso compositor deixou-nos uma série de obras valiosas. Recordemo-las e desfrutemos delas.

Diz-se que o ser humano só morre quando é es-quecido. Joly Braga Santos não será nunca esquecido e viverá sempre entre nós. Nós que o conhecemos, porque conservamos a sua recordação valiosa; aqueles que vieram depois e não o conheceram, porque possuem o legado das suas obras, obras essas que pertencerão para sempre ao acervo musical e cultural de Portugal e do Mundo. •

Tomás Marco

Tradução do castelhano

por Raquel Camarinha

~

No tempo em que eu privei com o compositor e maestro José Manuel (Joly) Braga Santos, por ser mui-to jovem, não tinha uma verdadeira consciência da im-portância da sua obra, ou da sua envergadura enquanto compositor, maestro, pedagogo e musicógrafo, como te-nho hoje. Consequentemente, as minhas memórias e evo-

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memórias e evocações | tomás marco e maria josé borges

cações são fundamentalmente da pessoa e não tanto do profissional da música. E, passados já bastos anos, poderá o tempo as ter já atraiçoado um pouco… mas pretendo mantê-las tal como as recordo, sem recorrer aos estudos e biografias entretanto feitos sobre ele. O meu conhecimento com o maestro e composi-tor Joly Braga Santos fez-se em de 1975, era eu adoles-cente, recentemente chegada, como aluna interna, ao Conservatório Nacional. Nessa altura ele era simples-mente o “pai da Leonor”, sua filha mais nova, que era minha colega de turma no 3.º Ano de Educação Musical (actual Formação Musical) na Classe da Prof. Maria Amé-lia Abreu. Com efeito, como já referi atrás, só algum tem-po mais tarde soube que se tratava não apenas de outro Professor do Conservatório Nacional, mas de um vulto já então importante da nossa música.

E o nosso relacionamento começou por ser mui-to curioso porque, por qualquer inexplicável motivo, (ou por alguma razão de que me não lembro agora), entre vários outros colegas da filha que, à saída das aulas tam-bém faziam o percurso do Conservatório para o “Metro” (na altura, para a estação dos Restauradores), foi a mim que ele incumbiu de “tomar conta da Leonorzinha”. De-verão aqui ser feitos dois importantes reparos: por um lado, o facto de o percurso para o referido Metro ser um pouco complexo para duas jovens adolescentes de 14 e 13 anos (eu e ela, respectivamente), recentemente saídas das “saias da mãe”, pois constava de um percurso a pé desde o Conservatório até à Rua da Rosa, daí descendo-se a Travessa da Boa Hora em direcção ao elevador da Glória, que seria tomado até à Praça dos Restauradores, onde apanharíamos o Metro até casa, saindo eu na Alameda e ela, depois de mim, em Roma. Por bastante pueril que possa parecer, nesses tempos quase “pré-históricos” de 70, e para duas jovens da nossa idade, era algo temerário, de facto, um percurso por aquelas bandas do Bairro Alto, bairro não propriamente “recomendável” pelos motivos sabidos de todos. Feito este reparo, deverá ser acrescen-tado que a Leonorzinha era nessa altura tímida em dema-sia, o que fazia sentir no pai uma necessidade de protecção que ele decidiu delegar, de certa forma, em mim. Lembro--me nitidamente das primeiras vezes em que ele vinha ter comigo, entregando-me solenemente o bilhete de Metro da Leonor, dizendo-me “Aqui está o bilhete da Leonor, tome conta dela, está bem?” ao que eu, também solene-mente, respondia que sim. Comecei, então, a sentir-me, de certa forma, algo responsável por ela, eu que só tinha apenas mais um ano do que ela… E, por “inerência de car-go” fomos fomentando uma amizade, que continuou pe-los anos fora em que nos mantivemos colegas, chegando

inclusive a tocar juntas (ela ao violino, eu ao piano), emesmo depois já na idade adulta. Recordo essa amizade com saudade, pois, apesar de não estarmos longe (ela é hoje violetista da orquestra Gulbenkian), não nos temos encontrado muito nestes últimos anos, mas revemo-nos sempre com prazer. Presente na medida do possível, e embora tenha deixado pouco tempo depois de ser docente no Con-servatório, o maestro ia acompanhando como figura tute-lar, não apenas como músico, mas sobretudo como pai, as nossas incursões conjuntas pelo mundo da música. De tal forma, que não poucas vezes dava algumas “mãozinhas” nos trabalhos-de-casa de Educação Musical que exigiam alguma criação, como vim a saber anos mais tarde pela própria Leonor. Com efeito, entre outras, recordo certa vez que nos apresentámos numa audição de finalistas de Educação Musical (1979) na F.I.L (na altura à Junqueira), da Classe, novamente, da Prof. Maria Amélia Abreu, em que, entre alguns exercícios feitos por nós, se destacou sobremaneira um muito interessante, da Leonor…(!). E, segundo sei, esse hábito continuou, um pouco, inocente-mente, pelas aulas de Harmonia. Era, com efeito, quase impossível não recorrer a pequenas ajudas caseiras quan-do se tinha um compositor em casa…

O meu contacto com o referido maestro iria intensificar-se, novamente como figura paterna, quando fui colega da sua outra filha mais velha, Piedade (Piúcha, como era chamada), na Licenciatura em História da Uni-versidade Nova. Fizemos um trabalho em conjunto (a transcrição paleográfica da Crónica de D. Duarte, do Rui de Pina), para o também saudoso Prof. Doutor Oliveira Marques, trabalho que, na fase final, nos levou muitas horas de sessões de conjunto em casa dela. Foi assim que pude privar mais intimamente com o maestro Joly Braga Santos, conhecendo-o no seu ambiente familiar. Recordo o homem íntegro, carinhoso, solícito e simples, e as con-versas com ele e sua mulher (D. Maria José) que, fora dos momentos de trabalho, vinham por vezes ter connosco, contando às vezes episódios familiares ou da sua vivência artística e profissional. Recordo muito o que contavam: a forma como ambos se conheceram, como passaram algumas vicissitudes nas suas vidas artísticas (a D. Ma-ria José fora cantora), e como algumas vezes, sobretudo em Itália, se me não falha a memória, o maestro se viu na necessidade de fazer algumas composições “a metro”, como eles diziam (ora, quem as não tem?), para satisfazer encomendas prementes e necessárias em momentos mais atribulados da sua vida no estrangeiro; recordo episódios acerca da criação de algumas peças para puro entreteni-mento doméstico, como algumas obras singelas e, even-

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memórias e evocações | tomás marco e maria josé borges

Joly Braga Santos destaca-se no panorama musicalportuguês pela diversidade e profundidade da sua obra. A característica que melhor o descreve como compositor é revelada pelas suas palavras: “...desde sempre entendi que

tinha de criar o meu próprio estilo e a minha música devia ser

o resultado dessa criação”.

Como sinfonista, foi o compositor português que mais longe levou a linguagem orquestral, tanto a nível de dimensão como do tratamento que dá aos vários naipes, na orquestração da sua obra. Trabalhou intensamente a forma (como por exemplo a forma sonata, a forma-cançãoABA, a forma Scherzo, etc.), a textura e as diferençastímbricas para dar o carácter pretendido às suas compo-sições, de forma a que o resultado final fosse ao mesmo tempo organizado e surpreendente.

Viveu numa época em que proliferaram por toda a Europa várias correntes artísticas e estéticas como o ponti-lhismo, o abstraccionismo, o dodecafonismo e o serialismo,às quais não foi indiferente, mas nunca se restringindo cegamente a nenhuma linguagem específica. Segundo as suas palavras, o seu ideal foi sempre a construção de obras que, “não desdenhando as conquistas do século XX, falassem

ao homem comum com simplicidade e clareza”. A sua obra demonstra que, como artista, absorveu as ideias vigentes na época sobre as várias opções estéticas, construindo a sua própria linguagem. No seu percurso como composi-tor, as influências mais relevantes para a sua evolução são predominantemente as de compositores sinfonistas como Luís de Freitas Branco (seu mestre), que foi sobretudo res-ponsável pelos ideais neo-clássicos cultivados por Braga Santos na sua primeira fase de criação, William Walton e Vaughan Williams, que foram na altura uma grande revelação para o jovem compositor, e outros autores que referia como apelativos à sua sensibilidade, tais como Si-belius (duplicação da pulsação - 2.ª Sinfonia), Dvořák (Trio do Scherzo - 1.ª Sinfonia), ou César Franck (forma cíclica). Na sua formação profissional, a audição e o es-tudo de partituras de grandes autores desempenharam um papel não menos importante que as lições directamente recebidas dos seus professores, permitindo-lhe estabelecercontacto com realidades musicais passadas e actuais. É de

Do que foi

publicado sobre

as Sinfonias

Pedro Neves

tualmente, menos conhecidas, que escreveu para conjun-tos instrumentais que envolvessem violino, viola e flauta transversal, para condizerem com os instrumentos toca-dos por suas filhas e um amigo delas (o Diogo Paes, creio, que seria flautista), e assim poderem brincar um pouco com a música. Desses momentos domésticos recordo, também, divertida, a odisseia da compra de um frango assado para o jantar inesperado, face ao adiantado da hora de uma das tais sessões de trabalho, que o maestro foi incumbido de ir comprar à Pastelaria “Suprema”, creio, mesmo ali ao lado, com mil recomendações para não se esquecer “disto e daquilo”… Era, aliás, proverbial a distracção frequente do maestro para as coisas mais comezinhas (que não para as importantes), sendo por isso natural tantas reco-mendações; mas, apesar de tudo, ele lá se desenvencilhou muito bem com o dito frango e demais compras. Recordo, também, a propósito, diversas histórias familiares acerca de alguns seus acidentes, felizmente não fatais, por vezes no atravessar de uma rua, por ir distraído com alguma composição sua na cabeça, só voltando à realidade para acenar aflito ao carro, antes de ser atropelado… E, recor-do, ainda, o facto de ter visto “ao vivo” as capas dos discos das suas obras, na sua maioria ilustrados com quadros do pintor Falcão Trigoso (avô paterno de sua mulher), que amplamente adornavam as paredes de sua casa…

Finalmente, mais tarde, no ano lectivo de 1987/1988, viríamos ambos a ser colegas, pese embora por pouco tempo, quando ele regressou ao Conservatório como docente, já eu aí sendo professora de Instrumento de Tecla. Lembro-me do caloroso reencontro e de alguns mo-mentos de conversa que então estabelecíamos por vezes.

E aproximo-me do momento mais doloroso de recordar, que foi a sua demasiado inesperada e prematura morte, em finais desse ano lectivo. São, pois, o espanto e o sofrimento causados pelo seu desaparecimento físico, e os inevitáveis e tristes cerimoniais fúnebres, que natural-mente acompanhei junto da família, as últimas memórias que tenho deste excelente músico e compositor que, no final de contas, não tive oportunidade de, então, apreciar cabalmente. E, ao rebuscar no baú das recordações estas memórias um tanto adormecidas, sinto-me a um tempo dolorida e saudosa, mas também grata e orgulhosa por ter privado bastante de perto com este grande músico que não tem sido tão divulgado quanto merecia. •

Maria José Borges

glosas, #3 | 41

notar que foi JBS que introduziu a disciplina de Análise Musical no Conservatório Nacional de Lisboa, nos anos 70, por acreditar ser vital o contacto com partituras de grandes compositores na aprendizagem de um músico, principalmente na de um compositor. A todas estas influências junta-se a natureza psíquica e moral do compositor: “Natureza nervosa, facil-

mente excitável, aberta a muito do que se dizia e fazia na sua

circunstância cultural, mas alheando-se por vezes dela, ne-

cessitada de afectividade e ansiosa de a retribuir, propensa a

enamorar-se e portanto, atreita a padecimentos sentimentais

que confidenciava aos amigos íntimos. Por outro lado, era o

impor-se de uma ética artística sem mácula, cultora da elevação

de ideias e sentimentos, incompatível com práticas tendentes a

baixar o nível mental do auditório destinatário ou a satisfazer-

-lhe os seus gostos rotineiros.”, in entrevista a O País em 1984. JBS dizia que “a partir dos 38 anos a evolução do seu

estilo se deu no sentido de um livre cromatismo, até à aceitação

da completa dissolução tonal”, sendo a 5.ª Sinfonia a obra em que essa evolução toma mais corpo.

Na altura em que JBS terminou a sua 1.ª Sinfonia, a sua linguagem identificava-se com algumas das mais po-derosas correntes da música europeia (neo-classicismo), mas bastaram poucos anos para o dodecafonismo serial e o pontilhismo se generalizarem por toda a parte, com as ino-vações de Boulez, Stockausen, Luigi Nono (colega de JBS na bienal de Veneza em 1948), entre outros. A linguagem de JBS, não estando ligada à linguagem dos três composi-tores atrás referidos, teve, contudo, uma evolução natural (a sua 5.ª Sinfonia é realmente muito distante da primeira), mas mais ao nível da diferenciação de grupos rítmicos, se-quências melódicas e tratamento harmónico, sem perder a “fórmula” das estruturas grandes.

Leia-se uma citação de JBS, presente nas notas de programa do concerto de 22 de Outubro de 1966 pela Or-questra Sinfónica da Emissora Nacional: “Há muitos anos

que em Portugal o domínio da cultura francesa é uma reali-

dade. O facto em si não chegaria a ser um mal, se não fossem os

excessos. São estes que o prejudicam, porque importamos tudo

de França: os aspectos tanto positivos como negativos das suas

manifestações culturais. Ora precisamente no citado período

histórico entre as duas guerras a França ocupou um lugar rele-

vante no panorama musical europeu. Assim, a música francesa

da época predominava em Portugal e uma das suas caracterís-

ticas foi a tendência para a miniatura assim como um certo

aligeiramento de estilo. A esta concepção reagimos nós [Luís de Freitas Branco e JBS] com a adopção das grandes formas sin-

fónicas e da clássica construção sonática, harmónica e orques-

tralmente modernizada, opondo à expressão dum sentimento

alegre da vida, um sentimento trágico da vida, como diria Una-

muno. Considerávamos, sim, esta atitude mais própria para in-

terpretar o drama que a humanidade então vivia”.

As seis sinfonias de JBS representam, pois, a parte mais importante e substancial da sua obra e através delas pode-se acompanhar a evolução do seu estilo musi-cal durante toda a sua vida. Dividem-se em dois grupos que se distinguem pela evolução da linguagem estilística.No primeiro grupo incluem-se as quatro primeiras. Neste período o compositor assume uma linguagem neo--clássica, dando particular ênfase à forma, à harmonia baseada no tonalismo e no modalismo e à melodia. No segundo grupo reúnem-se as duas últimas, que se carac-terizam pela utilização de elementos estéticos como oatonalismo, o livre cromatismo e mesmo o dodecafonis-mo, assim como as alterações aos instrumentos usados na orquestração, com especial destaque para as percussões. A transição entre estas duas fases não é repentina nem exacta. Obras como Mérope (1959) e o Concerto para Viola

e Orquestra de 1960 reflectem uma mudança progressiva, sendo Três Esboços Sinfónicos (1962) considerada a peça de “viragem”. No entanto, a coexistência estilística das duas fases é-nos demonstrada, por exemplo, pela Trilogia das

Barcas, estreada em 1970. De seguida são apresentados alguns excertos e re-flexões, retirados de artigos de crítica musical, entrevistas e cartas recebidas por Joly Braga Santos, principalmente relacionados com as suas Sinfonias:

~

Carta de Luís Freitas Branco de 15/02/1948

Esta carta foi escrita após a estreia da 2.ª Sinfo-

nia em Lisboa, no Teatro de S. Carlos, pela Orquestra da Emissora Nacional e direcção de Pedro de Freitas Bran-co. O caminho do compositor é aqui elogiado pelo seu crescimento: “num caminho que tem saída, ao contrário da

maioria dos compositores portugueses contemporâneos que an-

dam à roda num estilo sem possibilidades de futuro.” Refere ainda que a música de JBS tem um estilo próprio, “apoia-

do no conhecimento vivo da história da evolução da música”.Na carta, Freitas Branco refere que o Till de Strauss to-cado a seguir à sinfonia de Joly não fez diferença, subli-nhando que “já não há entre a música dos meus jovens colegas

portugueses e a grande música mundial aquele abismo que se

notava nas produções de Freitas Gazul ou Keil e a verdadeira

música.” É referido ainda, que a sinfonia teve muito suces-so, sendo o compositor alvo “das mais apoteóticas ovações

que jamais acolheram uma estreia sinfónica em Portugal.”

do que foi publicado sobre as sinfonias de joly braga santos | pedro neves

do que foi publicado sobre as sinfonias de joly braga santos | pedro neves

A 07/02/1947 no Diário de Notícias, por A. Joyce:

O autor do artigo escreve que a data da estreia da 1.ª Sinfonia ficará gravada na história, no que respeita à contribuição desta para o florescimento da música portu-guesa: “obra luminosa e dramática, concisa e opulenta de idei-

as, nascida de astro que vai dar que falar... Vê-se que o autor

pretende oferecer visão do mundo actual, no seu aspecto trágico,

sentimental, não nos pormenores narrativos, anedóticos ou

pitorescos. Como particular curiosidade nota-se a utilização do

silêncio na sua função de elemento expressivo.” Nesta crítica descreve-se o 1.º Andamento da seguinte forma: “de assombrosa felicidade, bem conseguido

em termos de construção, com linhas amplas e modernas.” O 2.º andamento, Andante é aqui descrito como o apogeu dramá-tico da obra, “atingindo o paroxismo nos torturados acordes

dissonantes que soam como pungente interrogação, a calma

resposta do regresso do coral marca um dos melhores momen-

tos da partitura, prenhe de comovidas intenções.” Quanto ao Allegro final diz-se que “domina a esperança redentora”.

Artigo publicado a 29/11/1956, no Porto, depois da 1.ª

audição nesta cidade da 1.ª Sinfonia, pela Orquestra Sin-

fónica do Porto, dirigida pelo compositor:

A obra é muito elogiada e descrita como “obra

de juventude, em que já está impresso o critério artístico que

sempre presidiu à sua mensagem, na concepção particular em

que as suas construções se têm levantado, com a base sólida e a

atmosfera de grandiosidade que as envolve.”

Artigo publicado por altura dos 20 anos da 1.ª Sinfonia:

A 1.º Sinfonia é considerada um bom exemplo da obra de juventude do autor e é sugerida pelo crítico uma revisão da mesma de modo a “evitar a repetição um pouco

demasiada de certos efeitos de sentido dramático, obtidos em

grande parte através de silêncio e surgindo várias vezes ao lon-

go de toda a sinfonia, como se fosse um leitmotiv... Por outro

lado o andamento final ganharia certamente com maior con-

cisão no seu discurso musical, aligeirado por ventura de certas

reexposições um pouco fatigantes.”

2.ª Sinfonia

A Sinfonia n.º 2 foi estreada no Teatro de S. Car-los pela Orquestra da Emissora Nacional, com direcção de Pedro de Freitas Branco a 15 de Fevereiro de 1948. Foi muito aplaudida, na sua estreia, como se testemunha pela análise de vários artigos.

Artigo publicado a 16/02/1948 após a estreia:

“no final da execução, o público rendeu a Braga Santos

uma homenagem como nunca vimos em Portugal ser prestada a

um compositor. O autor viu-se obrigado a ir ao palco agradecer

42 | glosas, #3

Homenagem a JBS, pelos Amigos do S. Carlos em 1989

Dizem as notas de programa de João de Freitas Branco: “Nos seus mais de 45 anos de carreira de compositor,

José Manuel Joly Braga Santos ganhou fama principalmente

nos domínios da música sinfónica. (...) Com efeito, não só a

secção da música sinfónica é, no catálogo das obras, a de maior

envergadura, como avultam nela seis sinfonias, mais do que

as de qualquer dos outros, poucos, sinfonistas portugueses do

sec XX. Seis partituras marcantes, já com lugar destacado na

história do nosso sinfonismo, as duas últimas, op. 39 e 45, no-

tavelmente representativas da estatura de quem as concebeu e

realizou”. João de Freitas Branco compara JBS a Strauss, Berlioz, Mahler e Wagner, por também ele ser composi-tor e maestro e por ser “próprio do autor-maestro, a estu-

penda arte de instrumentar.”

~

1.ª Sinfonia

Artigo publicado a 06/02/1947 por Rui Medina

A 1.ª Sinfonia (1945-46) foi estreada em Lisboa pela Orquestra da Emissora Nacional, dirigida por Pedrode Freitas Branco. É dedicada aos “Heróis e Mártires da

última Guerra Mundial”. O autor do artigo refere a sua estreia como um acontecimento de grande importân-cia no meio cultural lisboeta. O ambiente da sinfonia é assim descrito: “a poderosa entrada de violoncelos, a que se

juntam as violas, os violinos e os contrabaixos, numa súplica

plena de poder dramático, acentuada por dois pizzicatti vigo-

rosos que abrem a continuação dos instrumentos de sopro e de

viola. (...) depois, numa entrada grandiosa, em que há todo o

pungente e solene de uma marcha fúnebre, que cresce em apote-

ose, esmorece e morre, ecoando nos violoncelos e clarinete, até

ficar tremulada, sustentada apenas nos violinos. Finalmente o

Allegro, um ritmo triunfal de vida num crescendo vigoroso que

se ergue, esmorece e cai para surgir em crescendos lancinantes

de luta.” JBS disse a respeito da sua 1.ª Sinfonia: “Quero que

esta obra seja a expressão dramatizada e interior do mundo

moderno, do nosso mundo.”

Artigo publicado a 08/02/1947 por T.:

O autor deste artigo é de opinião de que a 1.ª Sin-

fonia não é motivo de louvor nem de aplauso, pois trata-se de “um conjunto de dissonâncias acrobáticas de um modernismo

musical epiléptico, de uma fuga alucinante para extremismos

doentios, que pareceu apenas revelar carência de sólida e lím-

pida inspiração, e pretendeu fazer escala por entre coros de hos-

sanas que tantas vezes só não têm a coragem de expressar aquilo

que os comparsas desses coros ou seus dirigentes pensam a sós.”

glosas, #3 | 43

as intermináveis palmas e chamadas a que também a orquestra

e o maestro se associaram (...) Em nossa opinião, o mais impor-

tante progresso desta sinfonia , em relação à anterior, reside no

desenvolvimento construtivo. (...) a forma não é menos sólida

e introduz inovações felizes, como a estrutura do último anda-

mento (...). Como realização o primeiro andamento pareceu-

-nos superior. O pequeno Allegretto Pastorale, um rondó mui-

to simples, desempenha admiravelmente o papel do scherzo.

Artigo publicado a 16/02/1948 no Diário Popular:

“A sinfonia (...) obteve enorme êxito; (...) a avaliar

pelas manifestações do público, da orquestra e do maestro

- o seu autor, jovem ainda, mostrou já ser um compositor de

grande futuro e fecundo labor. Poucas vezes temos presencia-

do tanto entusiasmo por uma sinfonia. (...) Pessoalmente, se

exceptuarmos o 3.º Andamento, que julgamos o mais equili-

brado, não nos interessou grandemente a linguagem musical

(...). Mas não queremos parecer derrotistas e portanto escreva-

-se claramente: para o público de ontem do S. Carlos, para a

orquestra e para o maestro, [JBS] obteve um grande triunfo.”

Artigo por Fernanda Cidrais (1.ª audição no Porto, pela

Orquestra Sinfónica do Conservatório do Porto):

“uma obra prima, não da música portuguesa, o que

já seria bastante, mas da Música com letra grande, da Música-

-arte, independentemente da nacionalidade, de época e de es-

tilo. Nesta sinfonia (...) não se encontram amadorismos nem

lugares-comuns, nem sequer promessas. Ela afirma-se como

uma realidade, pujante de vida e de paixão, umas vezes som-

bria, outras cheia de luz, rica em ritmos, em ideias melódicas e

recheios harmónicos, elementos estes brotando vigorosa e espon-

taneamente impelidos pela força da sua vida interior.”

Publicado por ocasião de um concerto na Estufa Fria

pela Orquestra da Emissora Nacional, dirigida por Joly

Braga Santos, em Agosto de 1950:

“A 2.ª Sinfonia [de JBS] é uma das suas mais signifi-

cativas produções (...). O processo empregado na mudança de

planos tonais dá resultados surpreendentes, como no final do 1.º

Andamento, uma das melhores e mais grandiosas terminações

que conhecemos. Impossível esquecer também essa bela melodia

de estribilho do Allegretto inicial, e a maneira espontânea e

natural como decorre esse andamento. Há muitas passagens,

sobretudo no Allegro inicial que são autênticas novidades de

ambiente e processos na música de hoje indicam bem muitos

caminhos que a arte dos sons deve trilhar no futuro.”

3.ª Sinfonia

A 3ª Sinfonia é dedicada a Luís de Freitas Branco. Foi escrita entre a Primavera de 1948 e o Outono de 1949, e estreada a 11 de Dezembro de 1949 no S. Carlos, pela Or-

do que foi publicado sobre as sinfonias de joly braga santos | pedro neves

questra Sinfónica Nacional, dirigida por Pedro de Freitas Branco, num concerto do Gabinete de Estudos Musicais da Emissora Nacional.

Notas de programa do concerto de 15/10/1958 pela Or-

questra do Conservatório do Porto, dirigida por Silva

Pereira:

“A 3.ª Sinfonia (...) constitui uma evocação sinfónica

da paisagem alentejana, mas o seu material temático é todo

original, embora composto segundo os modelos melódico-

-harmónicos das canções populares daquela região do sul de

Portugal (na opinião de Bartok, a que melhor conserva um fol-

clore inteiramente original).”

Artigo publicado em 12/12/1949, por João de Freitas

Branco (J.F.B.):

“A 3.ª Sinfonia de JBS marca um nítido progresso so-

bre as anteriores, aliás já de mui notável qualidade. (...) a mais

justa adaptação dos meios técnicos à intenção expressiva acusa

o amadurecimento da personalidade do jovem artista. O equilí-

brio da forma é tão perfeito como nas obras anteriores, pois que

este aspecto da criação musical tem merecido desde sempre ao

autor um cuidado muito particular. O carácter dominante da

sinfonia inclina-se mais para o dramático do que para o lírico.

A deliciosa sugestão medieval que nos dá o Trio do Scherzo estabelece um contraste felicíssimo, que de forma alguma preju-

dica a unidade da obra, antes a põe em evidência. A execução

foi coroada de um êxito triunfal, [JBS] teve que vir ao palco

agradecer os aplausos, que pareciam não mais acabar.”

Artigo publicado no jornal O Século, por J.F.B.:

“O empolgante final desta obra admirável desencade-

ou uma verdadeira tempestade de aplausos e chamadas, com o

público de pé a reclamar o autor. A vibração da plateia pareceu

ainda aumentar quando o Maestro Pedro de Freitas Branco fez

Joly Braga Santos subir ao estrado para receber a justíssima ho-

menagem que assim era prestada ao seu talento e ao seu saber.”

4.ª Sinfonia

A 4.ª Sinfonia é dedicada à Juventude Musical Por-tuguesa. Foi composta, na sua maior parte, no Alentejo, no Monte dos Perdigões, em casa de Luís de Freitas Branco,onde JBS permanecia largas temporadas. Assim como na 3ª Sinfonia (também escrita no Monte dos Perdigões) é notória a influência das canções alentejanas entoadas por trabalhadores, impregnando assim um certo “sabor” popular à sua obra. Contudo, não se trata de uma obra folclórica, até porque os temas são todos originais. Tem uma construção cíclica e divide-se em quatro andamentos terminando com o Hino à Juventude (inicialmente apenas com orquestra, mais tarde, após uma revisão, com coro).

Diz o próprio compositor a respeito da sinfonia: “Esta sinfonia fecha um ciclo na minha produção dominado

principalmente por duas preocupações: a implementação de

um sinfonismo moderno na música portuguesa continuando o

exemplo dado por Luís de Freitas Branco, tentativa de construir

uma música que, visando o geral, mas não desdenhando as con-

quistas do sec. XX, pudesse falar ao Homem comum com simpli-

cidade e clareza. (...) a Sinfonia n.º 4 não é propriamente uma

obra de expressão folclórica e a influência da canção alenteja-

na reflecte-se aqui numa certa maneira de tratar a construção

modal e os recortes melódicos, que tal como na música popular

do Alentejo se desenvolvem independentemente da quadratura

rítmica. (...) O Hino à Juventude simboliza a união dos jovens

de todo o mundo, através da música.”

Artigo publicado a 09(02/1951 na revista Flama, redigi-

do por M. Duarte Alves, sobre o concerto de estreia, a

28/01/1951 pela Orquestra da Emisora Nacional dirigi-

da pelo compositor.

“Esta sinfonia, com 4 andamentos e bastante extensa,

demonstra grande e aturado trabalho do autor. Se é certo que

o compositor quis fazer uma obra de volume e grandiosidade,

usou para tal meios que resultaram, principalmente, num abuso

dos metais, tanto mais prejudicado pela má execução nos ins-

trumentos de sopro. A parte temática pareceu-nos bem cuidada

e de real valor. O desenvolvimento dos temas (...) está muito

prejudicado (...) pelo abuso dos metais. A escrita para os instru-

mentos de arco demonstra muito mais cuidado e tem inegável

valor. O segundo andamento, Andante, destoa da composição

e mais nos pareceu uma marcha fúnebre. Parece-nos que este

andamento deveria ser modificado ou mesmo suprimido. (...) Gostaríamos de ver [JBS] trabalhar sozinho, sem as influências

ideológicas de determinados compositores e de sua música mo-

derna.”

Em artigo publicado a 15 de Novembro de 1978, por ocasião da “Quinzena da Música Portuguesa em cinco cidades da Roménia”, sobre o concerto em Bucareste com a Orquestra e coro da Radiodifusão Romena e direcção de Silva Pereira, este refere-se à partitura da 4.ª Sinfonia de JBS como uma “página” de grande importância na história da música portuguesa: “Embora esta obra esteja construída

com base no espírito português - e esse espírito é verdadeira-

mente superior - significa que o nacionalismo posto neste nível

o transcende para entrar no campo do internacionalismo. O que

significa a verdadeira concepção da obra de arte”.

Por ocasião da interpretação da 4.ª Sinfonia no Tivoli

pela Orquestra da Emissora Nacional e o Coro Gulben-

kian, com o maestro Piero Bellugi:

“Abriu o programa a 4.ª Sinfonia, e logo nos seus

do que foi publicado sobre as sinfonias de joly braga santos | pedro neves

primeiros momentos se sentiu a forma como iria ser modelada,

erguida do interior para o exterior a sua construção linear e

volumétrica e definidas e desenvolvidas as linhas mestras do

seu ideário estético e musical. Segura artisticamente, a obra foi

surgindo, caminhando até atingir o clímax final onde se situa

a juventude e se amalgamam forças e intensidades, conteúdo

musical e poético, grandiosidade.”

5.ª Sinfonia (Virtus Lusitanæ)

A 5.ª Sinfonia foi composta durante o ano de 1966 e estreada a 28 de Dezembro do mesmo ano, no S. Carlos, pela Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, dirigida pelo próprio compositor. Surge quinze anos depois da 4ª

Sinfonia. A palavras de JBS sobre a sua 5ª Sinfonia são es-clarecedoras sobre esta questão: “a forma afasta-se da sonata

ditemática, embora não se verifique o sistema do atematismo,

tão caro à maioria dos compositores que partiram de Webern

para a conquista de um novo mundo musical”. Diz ainda: “A

obra não é dodecafónica, nem pontilhística, antes livremente

cromática em todos os andamentos”.

Artigo publicado no Diário de Lisboa por ocasião da reu-

nião do Conselho Internacional da Música (UNESCO)

em Paris1

:

“dado que as dez obras mais votadas beneficiam nos

termos regulamentares, de uma larga difusão através de deze-

nas de países, considera-se que este êxito da representação por-

tuguesa confiada à Emissora Nacional, assegurará ao composi-

tor uma imediata e muito ampla projecção mundial. Entre os

países que mais se interessaram pela próxima audição pública

da 5ª Sinfonia figuram a França, Itália, Polónia e Rússia. (...)”.

Artigo publicado a 11/12/1970 em Espanha depois da

apresentação da 5ª Sinfonia de JBS interpretada pela

Orquestra Nacional de Espanha dirigida pelo maestro

Silva Pereira, por ocasião das I Jornadas Hispano-Portu-

guesas de Música Contemporânea:

“A Sinfonia nº 5 mostra um compositor feito, conhe-

cedor dos segredos sinfónicos, dos quais se serve para desen-

volver as suas ideias definidas. (...) O público aplaudiu o autor,

que se encontrava entre o público”.

Publicado a 11/12/1970 em Espanha, no jornal Arriba:

“Longe de ser sistemática, seja tradicional, neo-clássi-

ca, popularista ou serial, a 5ª Sinfonia tem efectivos orquestrais

de grande amplitude, onde as percussões estão representadas em

1) Estiveram representados trinta países que apresentaram 81 obras de várias tendências estéticas. A 5ª Sinfonia de JBS ficou classificada em 8º lugar, o que garantiu a sua projecção internacional, assim como a sua gravação para a etiqueta Decca em colaboração com a Valentim de Carvalho.

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glosas, #3 | 45

contextualização estética das seis sinfonias | pedro neves

grande quantidade. Se é verdade que a dialéctica se apega a

princípios tradicionais, não é menos certo que ao longo dos qua-

tro andamentos, violentos às vezes, líricos em algumas ocasiões,

sugestivos e plásticos outras vezes, Braga Santos sabe cami-

nhar por trilhos pessoais. Neste seu caminho acolhe inovações

de qualquer época, mesmo quando o factor dominante é um cro-

matismo vigoroso que dá à obra um sentido único e expressão

dramática. (...) Eu diria que a 5ª Sinfonia é uma criação na-

cionalista, não por qualquer detalhe, mas pela tipificação da

ideologia como um aceso cano das virtudes da raça. Na linha

de alguma corrente europeia que conta com alguns valores posi-

tivos actuais, é o caso de um Dutilleux na França, a 5ª Sinfonia

incorpora a música portuguesa num grande sinfonismo, aquele

que sobre os seus projectos cheios de coerência, firmes de textura,

possui capacidade de mensagem para os auditórios normais.”

6.ª Sinfonia

A 6.ª Sinfonia de JBS foi composta em 1972 em resposta a uma encomenda do Gabinete de Estudos da Emissora Nacional, e foi estreada em Lisboa a 25 de No-vembro de 1972 pela Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional dirigida pelo maestro Álvaro Cassuto.

Diz o próprio compositor: “A 6.ª Sinfonia foi con-

cebida e estruturada num todo indivisível. Episódios musicais

sucedem-se, ininterruptamente, em movimentos, ora lentos,

ora rápidos. Uma constante da obra é a renovação temática;

outra, a variação amplificadora, afastando-se, pouco a pouco,

das clássicas reexposições e desenvolvimentos, pelo que a forma

sonata, apenas esboçada, é diluída. A sinfonia é constituida por

três células: uma rítmica, outra melódica e outra harmónica. As

primeiras duas (rítmica e melódica) têm origem nas primeiras

palavras do soneto “Ondas que por el mundo” e nas do mote

das redondilhas “Irme quiero”. Muitas variantes, progressões

e sobreposições de elementos temáticos durante a larga parte

instrumental, que precede a entrada do coro, correspondem

ritmicamente às palavras do texto. O acorde por sobreposição

de quartas, que constitui a terceira célula, é utilizado tanto no

sentido dodecafónico como no sentido modal.

A escolha dos belos textos castelhanos de Camões teve

sobretudo como fim aproveitar sinfonisticamente as grandes

virtudes musicais do castelhano antigo, pondo também em re-

levo uma parte, embora pequena, da obra em língua estrangeira

do maior poeta português.” 2

Em 21/09/1997 no Público, por Alexandre Delgado:

“(...) JBS escreveu esta obra, numa fase difícil do seu

2) in notas de programa redigidas por Nuno Barreiros para o concerto da Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional e do Coro do Teatro de S. Carlos, realizado a 25 de Novembro de 1972.

percurso - em que se exacerbou o conflito entre ser moderno

e ser sincero. A 6.ª Sinfonia é uma obra que reúne essas duas

pulsões de uma forma tão extrema que o resultado, na sua jun-

ção de estilos musicais “incompatíveis”, pode ser visto como pós-

-moderno - numa altura em que esse movimento ainda mal se

esboçara no estrangeiro. Mas a interpretação agora ouvida mos-

trou a coerência do percurso psicológico da obra. Esta sinfonia,

que dura cerca de meia hora e decorre de um só fôlego, divide-

-se claramente em duas partes: na primeira, Joly deu vazão a

um cromatismo e uma acumulação de dissonâncias que são um

caso extremo no contexto da sua fase atonal, que nessa altura se

aproximava do fim. Há uma acumulação gradual e maciça de

linhas, em que até o melodismo que nunca abandonava o com-

positor se dissolve numa congestionada massa orquestral. Como

que exprimindo até “onde” se pode ir. Depois de uma última

contorção, a atmosfera torna-se subitamente mais límpida: a en-

trada do coro prenuncia um novo diatonismo com os versos de

Camões “ Ondas que por el mundo caminando...”. Quando o so-

prano entoa a redondilha “ Irme quiero, madre, aquella galera,

con el marinero, à ser marinera”, é como se entrássemos num

mundo ao mesmo tempo novo e ancestral. É como se o composi-

tor se libertasse de quaisquer pruridos e escrevesse exactamente

o que mais lhe apetecia escrever: o anseio expresso nos versos é

o mesmo anseio da música.” •

Bibliografia

~DELGADO, Alexandre, Sinfonia em Portugal, Lisboa, Editorial Caminho.

~FREITAS BRANCO, João de, Carta a JBS, 1947, Setembro.

~FREITAS BRANCO, João de, História da Música Portuguesa, Publicações Europa – América.

~SIMÕES, Anabela de Sousa Bravo, Joly Braga Santos (1924-1988): Estudos analíticos e estilís-

ticos a partir das principais obras instrumentais, Aveiro, Universidade de Aveiro - Departa-

mento de Comunicação e Arte.

Artigos de imprensa consultados:

~AGUIAR, João, “Maestro Joly Braga Santos Louco? Não, distraído!”, in O País, 4 de Abril de 1982.

~“Uma distinção internacional para a 5ª Sinfonia de Joly Braga Santos”, in Diário de Lisboa.

~ALVES, M. Duarte, “No Tivoli Concertos da Emissora Nacional”, in Flama, 9 de Fevereiro de 1951.

~“Quinzena da Música Portuguesa”, 15 de Novembro de 1978.

~CIDRAIS, Fernanda. A Semana Musical, 1950.

~DELGADO, Alexandre, “A magna surpresa”, in Público, 21 de Setembro de 1997.

~F.B., “Concerto Sinfónico em S. Carlos”, 1948.

~FRANCO, Enrique, “Silva Pereira y la Orquesta Nacional en las jornadas Hispano-Portuguesas. Obras de Braga

Santos, Alvaro Cassuto y Felipe Pires”, in Arriba, 11 de Dezembro de 1970.

~FRANCO, J. M., “La orquesta Nacional y los compositores portugueses contemporáneos”, 11 de Dezembro

de 1979.

~FREITAS, Maria Helena, “O regresso de Joly Braga Santos”, 1978.

~FREITAS BRANCO, João, “Música”, in O Século, 1949.

~FREITAS BRANCO, João, “O concerto do Gabinete de Estudos Musicais”, 12 de Dezembro de 1949.

~J.C.P., “Os vinte anos da 1ª Sinfonia de Joly Braga Santos”, 1956.

~JOYCE, A., “Espectáculos”, in Diário de Notícias, 7 de Fevereiro de 1947.

~”Luís de Freitas Branco fala-nos do seu poema sinfónico que esta noite será executado no concerto da Estufa Fria”,

in Diário de Lisboa, 2 de Agosto de 1950.

~M.B., “Concerto da Orquestra Sinfónica do Porto, sob a direcção do maestro Joly Braga Santos, no Clube Fenianos

Portuenses”, in Diário do Norte, 29 de Novembro de 1956.

~MEDINA, Rui, “A 1ª Sinfonia de Braga Santos”, 6 de Fevereiro de 1947.

~N., “Tivoli - Concerto Coral - Sinfónico”.

~S.F., “Concerto pela Orquestra da Emissora”, in Diário Popular, 16 de Fevereiro de 1948.

~T., “S.Carlos - Concerto pela Orquestra Sinfónica Nacional”, in Novidades, 8 de Fevereiro de 1947.

A transformação estilística

na obra orquestral de Joly Braga Santos

Manuel Durão

Parece ser unânime que a música orquestral é o fulcro da produção de Joly Braga Santos. Rui Vieira Nery, num artigo publicado aquando da morte do compositor em 1988, considera-o “sem qualquer dúvida” o “maior or-

questrador” da Música Portuguesa do século XX. Para além dos conhecimentos que adquiriu do seu mestre Luís de Freitas Branco, Joly Braga Santos confessava ter lido com proveito os tratados de Orquestração dos grandes mes-tres. A sua formação e actividade profissional na área de Direcção de Orquestra completaram a sensibilidade que fez dele um grande orquestrador: o conhecimento da prática de orquestra e das grandes obras do repertório sinfónico.

Na obra de Joly Braga Santos, a orquestração e a estrutura musical distinguem-se claramente, consti-tuindo dois níveis diferentes de criação: a orquestração adiciona pouco à estrutura musical primária e transmite-a de forma eficaz. A sua linguagem percorreu, a par da sua sólida técnica de orquestração, um caminho de buscas e convicções que pode ser divido em três fases.

A primeira fase compreende os seus anos de estu-do no Conservatório Nacional em Lisboa e os ensinamen-tos que recebeu de Luís de Freitas Branco. Dele obteve os princípios fundamentais da sua linguagem: o eclectismo à partida, onde técnicas do modernismo convivem com possibilidades de um tonalismo expandido, com recurso a modos eclesiásticos e a outros modos sintéticos; no plano formal, denota-se o neoclassicismo, fundado na obra de Beethoven e Camões, onde, à semelhança do que se observa na música de César Franck, o material temático é deduzido por afinidade ou conflito. Joly conseguiu o seu cunho pessoal através do uso frequente de ostinatos, das extensas frases melódicas de amplo âmbito e da orques-

tração monumental. Na sua 1.ª Sinfonia, em Ré, Op. 9 (1947), dedicada às vítimas da 2.ª Guerra Mundial, as carac-terísticas da sua linguagem são já bem vincadas: depois de uma introdução lenta do primeiro andamento surge o tema principal, uma melodia incisiva e sincopada, que se impõe sobre a malha obstinada do acompanhamento.

A linguagem musical da primeira fase criativa do compositor concilia princípios cromáticos com contextos modais. A estrutura musical comporta-se de forma modal no interior de cada campo harmónico, mas os encadea-mentos são frequentemente cromáticos e não funcionais. Veja-se o exemplo dado do Allegro energetico da 1.ª Sinfo-

nia: a progressão por terceiras menores evita as funções do tonalismo clássico, tradicionalmente baseadas no ciclo de quintas, e no interior de cada acorde é possível ouvir a cor dórica do campo harmónico. Apesar do modalismo apelar a referências ao folclore, Braga Santos só muito raramente parafraseou ou se inspirou em melodias tradi-cionais. Entre os poucos exemplos dessa prática estão as Variações sobre um Tema Aletejano, Op. 18 (1951) e a 3.ª

Sinfonia, em Dó Maior, Op. 15 (1949).

Na Elegia a Vianna da Motta, Op. 14 (1948), com-posta depois da sua primeira importante estada na Bienal de Viena, onde, nesse ano, se ouviram obras de composi-tores como Schoenberg e Copland, o contraponto e o de-senvolvimento temático tendem a tornar-se mais livres e densos e as melodias cromáticas mais expostas. O en-cadeamento de trítono, neste caso Sib-Mi (compassos 57--58), toma a função de assinalar o clímax do plano formal. Dois dos trabalhos mais importantes de análise da obra de Joly Braga Santos são da autoria do seu aluno Alexandre Delgado, no seu livro A Sinfonia em Portugal,

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Allegro energico do primeiro andamento da 1.ª Sinfonia, em Ré, Op. 9

glosas, #3 | 47

a transformação estilística na obra orquestral de joly braga santos | manuel durão

excerto da Elegia a Vianna da Motta, Op. 14

Segundo tema do primeiro andamento de Três Esboços Sinfónicos Op. 38.

2002, e de João Paes (A transformação do Estilo de

Joly Braga Santos, 2005, incluído na antologia “Dez

Compositores Portugueses” sob coordenação de Ma-nuel Pedro Faria). Ambos assinalam obras com-postas no início da década de 60 – Três Esboços Sin-

fónicos, Op. 38 (1962) e Sinfonietta para Orquestra

de Arcos, Op. 39 (1963) – como ponto de viragem do seu estilo musical. Nesta segunda fase criativa de Joly Braga Santos nota-se uma preocupação em repensar a interacção das relações cromáticas e das relações acústicas no âmbito do pantonalismo. O meio-tom e os intervalos aparentados, como a 7.ª maior e a 9.ª menor, adquirem uma importância crescente nos campos harmónicos e orientam a proliferação das ideias musicais. Por outro lado, as combinações sonoras oriundas da série dos harmónicos – em que a quinta e a quarta perfeitas têm o papel predominante – continuam a marcar a cor modal de algumas passagens.

A 5.ª Sinfonia, Op. 45 (1966) foi o apogeu da segunda fase criativa de Joly Braga Santos, mar-cada pelas influências colhidas durante as suas via-gens a Itália, onde estudou composição com Vir-gilio Mortari (1902-1993) – co-autor com Alfredo Casella do tratado A técnica de orquestração con-

temporânea (1950) – e direcção de orquestra com Hermann Scherchen (1891-1966). A sinfonia, composta dezasseis anos depois da 4.ª, surpreende pela instrumentação megalómana, requerendo ao todo um mínimo de 105 instrumentistas. O mate-rial temático é completamente assimétrico e inde-pendente de qualquer envolvente modal, naquilo a que Joly Braga Santos chamou de “expandir ao

máximo o espaço físico em que o elemento musical se

insere”. O desenvolvimento é conseguido através de decisões aparentemente intuitivas combinadas com recursos técnicos típicos do dodecafonismo (inversão, retrogradação e transposição). Clusters, acordes de 12 sons, acordes simétricos passam a fazer parte da paleta harmónica do compositor. Em alguns momentos a influência do modernismo não podia ser mais evidente: compare-se o iní-cio do terceiro da andamento desta sinfonia com início da sexta peça de Sechs kleine Klavierstücke de Schoenberg (ver página seguinte).

Na orquestração, a percussão ganha uma importância especial e a polifonia torna-se muito mais densa: oiça-se o segundo andamento, um dos poucos exemplos da influência africana na música erudita portuguesa, onde se pode ouvir uma trans-

a transformação estilística na obra orquestral de joly braga santos | manuel durão

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figuração metálica das timbilas moçambicanas. A forma, caracterizada pela evolução da massa sonora, parece ser influenciada pela música electroacústica, numa época em que compositores como Ligeti ou Stockhausen produziam algumas das suas obras mais emblemáticas. Em suma, a 5.ª Sinfonia, composta para as comemorações dos 40 anos do Estado Novo, é uma obra de significado paradoxal: ao mesmo tempo que serve a propaganda, apela ao progresso e à inovação, agita as almas. O último acorde da obra, um surpreendente e inaudito acorde de Fá Maior, explode como que anunciando uma mudança. Estaria Joly Braga Santos a antever uma mudança radical na sua música e na sociedade?

Na verdade, a terceira fase criativa de Joly Braga Santos foi mais uma busca de conciliação entre as lingua-gens antagónicas das duas fases anteriores do que uma verdadeira mudança ou revolução. Depois de compor a sua 6.ª Sinfonia, Op. 51 (1972) a sua produção orquestral abrandou significativamente. A obra foi composta com avanços e recuos no contexto de agravamento do seu grande conflito interior: “ser moderno ou ser honesto”.

Em toda a sua criação Joly Braga Santos soube conservar a autenticidade que se traduz no seu exacerbado lirismo e na sua inconfundível actividade rítmica. Com-positor contemporâneo de Jorge Peixinho ou de Emma-nuel Nunes, Braga Santos nunca olhou com desdém o ex-perimentalismo, mas também nunca se atrelou cegamente às novas tendências. A sua música espelha a tensão entre a música que queria compor e a música que a sua época lhe exigia (DELGADO, 2002, p. 241). Foi a nova música para um país numa época em que o concerto sinfónico se instituía progressivamente como parte da vida cultural das grandes cidades. Simultaneamente pode ser vista no panorama in-ternacional como uma música conservadora e passadista.

Grande parte da obra orquestral de Joly Braga Santos permanece desconhecida tanto do público meló-mano como do meio musical. Para isso contribui a falta de edições de partituras e o difícil acesso ao espólio do compositor. A obra de Joly Braga Santos é, pela sua enver-gadura, sensibilidade e imponência, a legítima represen-tante da música orquestral portuguesa do séc. XX. Só falta levá-la às salas de concertos do mundo.

Bibliografia

~BRANCO, João de Freitas, “A Ópera Mérope de Joly Braga Santos”,

in Colóquio, n.º 4, pp. 53-56, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1959.

~DELGADO, Alexandre, A Sinfonia em Portugal, Lisboa, Caminho, 2002.

~FERREIRA, Manuel Pedro, “Conhecer é preciso”, Prefácio do livro Dez Compositores

Portugueses (dir. Manuel Pedro Ferreira), pp. 13-21, Lisboa, Dom Quixote, 2005.

~LATINO, Adriana, “Santos, Joly Braga”, in The new Grove dictionary of music and musicians,

Vol. 22, pp. 263-264, Londres, Macmillan Publishers Limited, 2001.

~NERY, Rui Vieira, “Na Morte de Joly Braga Santos”, in Colóquio, n.º 78, Ano 30.º, p. 69,

Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1988.

~NERY, Rui Vieira, “Da Propaganda à Resistência”, in História da Música, pp. 165-176.

Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1991.

~PAES, João, “A Transformação do Estilo de Joly Braga Santos, analisada a partir de duas com-

posições para orquestra de arcos”, in Dez Compositores Portugueses (dir. Manuel Pedro Ferreira),

pp. 201-237, Lisboa, Dom Quixote, 2005.

~SANTOS, Joly Braga, “Luiz de Freitas Branco, o compositor e a sua mensagem renovadora”,

in Colóquio, n.º 23, Ano 17.º. pp. 54-56, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1975.

~SANTOS, Joly Braga, Nota de Programa no folheto do CD da 5.ª Sinfonia.

Paço d’Arcos, Portugalsom-Strauss, 1986.

~SANTOS, Joly Braga, in Die Musik in Geschichte und Gegenwart, dir. Andreas Jaschinsky,

Vol. 14, pp. 949, Kassel, Bärenreiter-Metzler, 2005.

Comparação entre o início do 3.º andamento (Largo) da 5.ª Sinfonia de Joly Braga Santos e a última das Sechs kleine Stücke para piano de Arnold Schönberg.

O resultado foi uma obra de cerca de meia hora em que se tentam combinar as técnicas do modalismo da sua ju-ventude com o avant-garde dos anos sessenta: uma das primeiras obras do pós-modernismo na cena europeia e o fim simbólico da sinfonia em Portugal.

As Variações para Orquestra, Op. 55 (1976) foram compostas durante um período de grande instabilidade política, que de alguma forma se espelha na natureza as-sistemática da obra. Não é fácil reconhecer os elementos que são sujeitos a variação: as transformações parecem suceder-se sem critério em vários parâmetros. Acordes maiores e menores convivem com frases dodecafónicas; o modalismo irrompe em progressões harmónicas pan-tonais. A sensação de desorientação seria incomportável não fosse a clara estrutura formal lento-rápido-lento. O eclectismo desta última fase veio a atingir mais tarde re-sultados mais consistentes como no Divertimento II, Op. 58(1978), para orquestra de cordas ou no Concerto para Vio-

loncelo, Op. 66. (1987).

glosas, #3 | 49

Otonifonias

sobre a música para banda de Joly Braga Santos

por André Granjo

O que seria hoje a música portuguesa para sopros se Joly Braga Santos tivesse conseguido terminar Otonifo-

nias? O que seria das nossas bandas amadoras se tivessem podido aproveitar o seu génio criativo em prol da implan-tação de um repertório de maior qualidade, nomeada-mente através das versões para sopros de algumas das suas obras?

Mas voltemos ao princípio. Quando Joly nasceu em 1924, as bandas portuguesas atravessavam um dos seus mais resplendorosos momentos desde o período das guer-ras liberais no séc. XIX. Artigos publicados na Arte Musi-

cal entre 1931 e 1932 referem a existência no país de 3000 bandas ou “pelo menos 2500”. Embora haja a consciên-cia de que estes números são demasiado elevados, dão--nos todavia uma ideia de quão abrangente era esta prática em Portugal durante o período da infância de Joly Braga Santos. A redução brutal do número de bandas militares em Portugal operada em 1937, de 36 (32 do exército, 2 da GNR, 1 da Marinha e uma não oficial na Escola Prática de Infantaria de Mafra) para 12 (8 no exército, 2 na GNR, 1 na Marinha e a não oficial em Mafra), veio mudar com-pletamente o potencial musical instalado no país e obrigar as bandas militares a circunscreverem muito mais a sua acção a actividades oficiais do Exército e menos às apre-sentações em concertos nos jardins e parques das cidades, para entretenimento da população.

Se, por um lado, esta diminuição de bandas mili-tares deixou um espaço de mercado para as bandas civis, por outro lado, diminuiu o número de músicos disponíveis nas regiões interiores e que geralmente exerciam funções vitais em muitas bandas civis do país. É de notar que é exactamente no período em que Luís de Freitas Branco foi director da Arte Musical que encontramos a maior quanti-dade de notícias quer sobre a actividade das bandas mili-tares quer sobre a actividade das bandas civis. Este período de grande actividade e mudança nas bandas em Portugal manter-se-ia, grosso modo, até ao final da década de 40. No entanto, já em 1946 o musicógrafo Pedro de Freitas, no seu livro História da Música Popular em Portugal, alertava para a quebra que se estava a verificar nas bandas portuguesas, apontando como 735 o número de bandas existentes nes-sa época. O mesmo autor descreve, contudo, exemplos debandas amadoras com uma constituição instrumental que rivalizava com as bandas militares em termos de número de instrumentistas e diversidade de instrumentos.

A interrogação que sempre se coloca a todos quantos estudam o fenómeno da música para sopros no nosso país é o porquê da quase absoluta negligência a que os nossos mais importantes compositores do séc. XX votaram as bandas (a mais disseminada forma de prática musical no nosso país). As respostas que emergem apon-tam sempre o carácter popular das bandas como um dos principais obstáculos à sua utilização como veículo artís-tico ou então o carácter utilitário e amador das mesmas.Outros referem a falta de uma instrumentação estável e universal como entrave ao desenvolvimento de um reper-tório para banda em Portugal. Acrescentam-se aqui mais três: a falta de bandas nas nossas escolas oficiais de música até à última década do séc. XX; o desconhecimento dos compositores sobre o real valor da banda; a falta de inte-resse da maioria das bandas pela música dos nossos mais respeitados compositores, seja por força dos espaços per-formativos que a banda ocupa seja por ignorância ou falta de cultura musical dos regentes dessas bandas. Foi por uma feliz conjugação de elementos pessoais, culturais e políticos que hoje podemos falar em obras para conjuntos instrumentais de sopros de Braga Santos.

Quando, em 1946, Joly escreve a sua Abertura Sin-

fónica, estaria porventura longe de pensar que Manuel da Silva Dionísio (1912-2000), na época sargento-ajudante da banda da Guarda Nacional Republicana (GNR), viria a fazer, três anos depois, uma transcrição para banda desta obra. Qual é a importância ou a relevância desta trans-crição para o repertório de banda português? Em que é que esta ou outras que Silva Dionísio viria a fazer, não só de obras de Joly mas de Frederico de Freitas, Fernando Lopes-Graça, Álvaro Cassuto, etc., diferem das tradicio-nais transcrições que as bandas sempre executaram?

A diferença essencial está na atitude dos compo-sitores perante estas transcrições. As versões de uma obra para uma instrumentação diferente, fosse para piano, dois pianos, piano a quatro mãos, pequenos agrupamentos instrumentais, ou para banda, sempre tiveram um papel duplo do ponto de vista dos compositores: permitir uma maior difusão da sua música e/ou veicular o seu discurso artístico através de mais do que um meio. Do primeiro exemplo temos as bem conhecidas versões para piano das sinfonias de Beethoven; do segundo temos por exemplo An Outdoor Overture de Aaron Copland ou, no sentido in-verso, de banda para orquestra, Suite Française de Darius

otonifonias | andré granjo

Milhaud. Não sabemos, infelizmente, quando começou a relação de amizade e de parceria artística entre Silva Di-onísio e Joly Braga Santos, mas o facto inegável é que am-bos se relacionaram de forma muito construtiva e foi, sem dúvida, desta relação que nasceu o interesse de Joly pelo mundo das bandas. Data do dia 1 de Abril de 1963 a versão para ban-da das Variações sobre um Tema Alentejano, Op.18 que ha-viam sido escritas em 1951. Silva Dionísio termina o seu trabalho com o seguinte “desabafo” no final da partitura: “Dia de São Macário, 1 de Abril de 1963 e é verdade…acabei”. Acontece que o seu trabalho ainda não estava acabado pois o compositor, que aparecia com regularidade nos ensaios matinais da Banda da GNR (hábito quase diário segundo as memórias dos familiares), viria a introduzir algumas alterações à transcrição, a mais evidente das quais foi o corte dos seis primeiros compassos da obra, que ele já teria entretanto apagado da versão de orquestra. Silva Dionísio fará mais uma versão para banda, desta feita a Sinfonia n.º 3 em Dó – cujo trabalho termina no “Domingo

de Carnaval de 1970 (que alívio)”.

Dado o estreito acompanhamento de Joly dos trabalhos de transcrição, as 3 versões acima mencionadas podem, em boa verdade, ser incluídas no repertório para sopros de autores portugueses, uma vez que resultam de uma vontade e parceria do compositor, da mesma forma que muitas versões de obras de Copland são tidas como obras de sopros ou a Rhapsody in Blue de Gershwin é tida como obra orquestral quando, na realidade, foi escrita para big band.

A influência particular da Banda da GNR na música em Portugal viria uma vez mais a ser decisiva na produção da imponente cantata cénica D. Garcia, Op. 50, para recitantes, dois sopranos, alto, tenor, baixo, coro e banda, que é sem dúvida um marco histórico na música de banda portuguesa. Desde 1965 que crescia em Vilar de Mouros, pela mão do médico António Augusto Barge, um evento musical que hoje é conhecido como “Festival de Vilar de Mouros”. A edição de 1968 do festival con-tou com a participação da Banda da GNR. Terá sido por indicação de Silva Dionísio que o Dr. Barge viria a enco-mendar a Joly Braga Santos e à escritora Natália Correia a cantata D. Garcia para celebrar o IX centenário da doação de Vilar de Mouros por D. Garcia à Sé de Tuy. A estreia realizar-se-ia a 31 de Julho de 1971, sob a direcção de Silva Dionísio e com a participação de Catarina Avelar, Elisa Lisboa, Maria Germana Tânger, Álvaro Benamor, Santos Manuel, Maria Manuel Lobo Silveira, Elisette Bayan, Joana Silva, Maria Ramos, Fernando Serafim,

Coral Polifónico de Viana do Castelo e Banda da GNR.A obra não teve um nascimento fácil. Logo de princípio os textos seriam fruto de uma parceria entre David Mourão Ferreira e Natália Correia mas, por razões não apuradas, Mourão Ferreira afastou-se do projecto, o que terá colo-cado alguns problemas a Joly Braga Santos. Numa carta de 31 de Maio desse ano dirigida a Silva Dionísio, é possí-vel perceber que, a dois meses da estreia, a obra ainda não estava concluída1. Em termos estilísticos a obra encontra-se muito assente no modalismo, com um medievalismo melódico omnipresente. No entanto, a mudança para uma lingua-gem mais cromática é aqui evidente com exemplos de me-lodias que mais não são do que escalas cromáticas descen-dentes, interrompidas por saltos de 7.ª maior ascendente, ou frases melódicas compostas por 11 notas diferentes.

A estreia da obra foi, no entanto, uma desilusão para todos em termos da afluência de público ao primeiro fim-de-semana do Festival. Contabilizaram-se cerca de 1500 espectadores, o que se traduziu num prejuízo para a família Barge. Os principais jornais da época dão eco desse prejuízo e colocam imediatamente em causa a capacidade do mecenas de garantir futuras edições do Festival. Numa pequena crónica intitulada “Música Séria”: Défice de 700

Contos, o Jornal de Notícias de 8 de Agosto de 1971 dá conta da decisão de todos os autores e intérpretes envolvi-dos nos concertos de 31 de Julho e de 1 de Agosto de pro-moverem concertos em Lisboa e no Porto da obra D. Gar-

cia revertendo os proveitos “para aquilo que for julgado con-

veniente”. Não há, de facto, notícia que estes concertos se tenham realizado, provavelmente porque os outros dois fins-de-semana do Festival acabaram por equilibrar um pouco as contas2.

A outra obra original para banda escrita por Joly começou por chamar-se Música para Instrumentos de Sopro

e Percussão3. Foi terminada a 21 de Outubro de 1977, e

resultou de uma encomenda da Secretaria de Estado da

1) Podemos também ver que Joly pretendia dedicar a sua primeira obra escrita originalmente para banda ao seu amigo Silva Dionísio.2) D. Garcia viria, no entanto, a ser novamente interpretada no Minho, na Praça da República de Viana do Castelo, pelo mesmo elenco, du-rante as festas em honra da Sra. da Agonia de 1973. Para tentar renta-bilizar a obra, Silva Dionísio faz um arranjo de partes da cantata por forma a poderem ser interpretadas unicamente pela banda, asseguran-do, assim, a sua interpretação regular pela Banda da GNR.3) A instrumentação espelha bem o que era frequente haver nas ban-das amadoras portuguesas da década de 1970: flautim, flauta, requinta (clarinete sopranino em Mib), clarinetes em Sib 1, 2 e 3, saxofone so-prano em Sib, saxofone alto em Mib, saxofone tenor em Sib, saxofone barítono em Mib, fliscornes em Sib 1 e 2, trompetes em Sib 1 e 2, sax-trompas em Mib 1 e 2, trombones em Dó 1, 2 e 3, bombardinos 1 e 2 em Dó, baixos em Mib, tuba em Sib e percussão.

50 | glosas, #3

otonifonias | andré granjo

Cultura. Esta suite em 4 andamentos (Prelúdio, Ronda In-

fantil, Canção e Dança Popular) enquadra-se num conjunto de encomendas feitas a vários compositores portugueses reconhecidos, para serem distribuídas pelas bandas ama-doras, com o objectivo de melhorar a qualidade do reper-tório destas formações e alargar os horizontes culturais e artísticos dos seus públicos. O nome Otonifonias aparecerá pouco tempo depois para designar uma colecção de 6 suites de 4 andamentos cada, com graus de dificuldade técnica progressivos, que Joly se propõe realizar para a SEC. Menos de um mês depois termina um Nocturno para banda cuja orquestração difere um pouco daquela usada em Música para Instrumentos de Sopro e Percussão

4, tendo al-gumas particularidades que nos remetem para um maior grau de elaboração: passagens melódicas cromáticas, pre-sença de acordes com trítonos; uso mais regular de linhas contrapontísticas resultando num aumento da densidade da escrita (embora estas nunca se imponham à hegemo-nia das melodias principais, asseguradas frequentemente por um conjunto grande de instrumentos em uníssono). Ficamos com a impressão de que este Nocturno seria já um andamento para uma segunda suite, de maior dificuldade e elaboração técnica, sendo que a mudança de instrumen-tação é o argumento mais forte que suporta essa tese, uma vez que seriam muito poucas as bandas amadoras da altu-ra a dispor de oboés, fagotes e clarinete baixo.

Em termos gerais, todos os andamentos obe-decem a uma forma ABA, em que B é uma nova secção com temas novos e não um desenvolvimento de A. Toda a obra está escrita num estilo modal e alguns dos anda-mentos remetem para um contexto de música popular. É ainda curioso o facto de três dos cinco andamentos se iniciarem com solos de saxofone alto, sendo que o Prelúdio

se inicia com um coral escrito apenas para o quarteto de saxofones, que é, sem dúvida, uma das mais interessantes intervenções do naipe de saxofones de toda a literatura musical portuguesa! Esta insistência no uso do saxofone é apenas relevante uma vez que não é de todo um instru-mento usado regularmente por Joly Braga Santos. Uma das razões que terá levado à pouca difusão desta obra, e da totalidade das outras obras escritas por outros compositores para o projecto da SEC, entre as nossas bandas amadoras, é a forma como Joly aborda a banda. Ao longo de Otonifonias percebemos que a banda é entendida e trabalhada como conjuntos de instrumentos de câmara um pouco à maneira do uso dos sopros no seio da orquestra sinfónica que formam, frequentemente, gru-

4) Acrescenta oboé, fagote, clarinete baixo em Sib, mais dois trompetes e duas saxtrompas, divisi na parte de bombardino 1 e de baixo em Mib e instrumentos de percussão de altura definida (tímpanos e sistro).

glosas, #3 | 51

pos de solistas. Esta delicadeza do tratamento instrumen-tal não estava de acordo com os espaços performativos da maioria das bandas portuguesas da época que actuavam sobretudo ao ar livre. Por outro lado, a quase inexistência de duplicação de partes deixava expostas todas as deficiên-cias técnicas dos instrumentistas amadores. De facto, em-bora nenhum dos andamentos de Otonifonias fosse, nem de perto nem de longe, mais exigente tecnicamente do que a maioria dos pasodoble ou aberturas de ópera inter-pretados pelas bandas amadoras, a forma como estavam estruturados e orquestrados fazia com que cada músico da banda fosse entendido como um solista. Infelizmente, Joly nunca terminaria as suas Otonifonias.

Comporia ainda, em 1985 e por encomenda da Secretaria de Estado da Cultura, a Suite para Instrumentos

de Metal dedicada ao Grupo de Metais de Lisboa, sobre a qual o próprio Joly escreveu: “Compõe-se de três breves an-

damentos, Moderato, Allegro e Andante, de forma livre e

livremente cromáticos na sua construção essencialmente linear,

a qual procura, sobretudo, os timbres puros e uma grande sim-

plicidade e clareza de expressão”.

Fazem falta hoje as outras cinco suites que deve-riam compor o total de Otonifonias. Fazem falta porque as nossas bandas amadoras estão hoje muitíssimo mais desenvolvidas e “contaminadas” com alguns repertórios que se aproximam muito mais da escrita musical usada por Joly. Persiste ainda um défice grande de música para sopros de qualidade escrita por autores portugueses. Num país onde os professores de composição só agora, muitas vezes por impulso dos seus alunos oriundos muitos deles das bandas, começam a olhar a banda como um veículo artístico, é porventura útil pensar as versões para banda de obras de compositores portugueses, produzidas no seio da Banda Sinfónica da GNR e de outras que eventualmente existam, como repertório em que se pode cimentar uma nova prática bandística enquanto aguardamos mais e me-lhor repertório. Para este efeito muito contribuirá certa-mente a nova chefia da Banda Sinfónica da GNR, na pes-soa do seu Capitão João Afonso Cerqueira, ao promover a edição de algumas destas versões como forma de celebrar os 175 anos da Banda, que se festejarão em 2013, hon-rando a memória e o trabalho de antigos chefes da Banda, dos quais Silva Dionísio, até pelo que representou para o movimento das bandas amadoras, é um impressionante exemplo. Com esta oportunidade se pode antever umanova vida para a música de Joly Braga Santos e de outroscompositores portugueses, uma vez que as centenas de bandas do nosso país nutrirão de certeza mais carinho pela sua música do que aquele que a maioria das nossas orques-tras sinfónicas tem, por razões várias, demonstrado. •

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desde o torso em tornodo teu ombro eu faço eu construo o meu país o meu irmão de areia e arcercado perseguido pelos teus braços de âmbarentre a terra e o perfume do mar eu faço algo fluvial para os pássarosalgo de água pura para os teus lábios -pela tua anca nacarada - eu faço os rios algo azul como este sanguee as vertentes viradas expostas ao peso desta mãodadas à clave do vento à melopeia das searas eu façoporque nas veias tenho este país este sanguecinzelando a raiz submersa das paisagens construindo as casas:o cereal moído a orla marítima deste coração: eu escrevo sempre por cima deste cárcere o declive lírico a raiz do sol dentro da pedra, e esta, aa agrária paixão deste sangue revolto: e que timbre às mãos isto faza força a vergar a erguer os homens nos navios em meio da águae nos aquedutos a tua fome a vergar o meu sangue lusoa vergar a minha mão fluvial diante do teu rostoa vergar o que eu quero: este nome do meu sangue erguidoa dizer a pôr a mão o poema cor de ouro sobre o meu ombrose só tu és este nascimento esta raiz de ouro que é como um esquecimento do espaço

Apolo e Dafne

a partir da música de Joly Braga Santos

imagem de Nadir Afonso

poema de Ruy Narval

BANKSTERS

à conversa com Nuno Côrte-Real,

Vasco Graça Moura e João Botelho

entrevista conduzida por Mónica Brito

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56 | glosas, #3

Permita-me que comece por uma suave provo-

cação. A ópera é tão elitista quanto se diz?

Se é elitista agora, é porque a fizeram elitista. Há

umas centenas de anos era muito popular, sobretudo em Itália

e no século XIX. Tinha uma enorme infuência na vida social,

política e humana. Um peso fortíssimo. Depois começou a dete-

riorar-se. Mas é exactamente pela falta da produção contem-

porânea que a ópera perdeu peso. As coisas, para mim, só vivem

e sobrevivem quanto mais actuais, mais contemporâneas forem,

em termos de produção. No século XIX, um grande aconteci-

mento era a nova ópera do Verdi ou do Rossini. Hoje em dia,

um grande acontecimento em Portugal é a recriação da ópera

Antígona. Para mim não tem interesse, peço desculpa...

O que desperta o seu interesse numa ópera?

Tem de ser forte, muito forte... Tem de ser inquietante.

Tem de me deixar mudo.

O seu encontro com Vasco Graça Moura e João

Botelho é a prova de uma certa versatilidade que

a ópera pode ter, de uma capacidade para atrair

novos públicos?

Sim, embora não pense muito nesses termos. (pausa) Não se recria o rock de há 50 anos, são apresentados trabalhos

de agora. Aqui a mesma coisa. Tem que ver com a linguagem

musical. A música contemporânea geralmente tem uma lin-

guagem muito dura, inacessível. Em relação ao Vasco Graça

Moura, para aquilo que eu queria, acho que não há melhor pes-

soa no país para fazer esta linguagem vicentina, com rima.

Uma linguagem mais mordaz.

Sim, mas muito musical. A ópera, a meu ver, tem uma

linguagem muito intuitiva. Tem de o ser. ‘Sim’, ‘Não’, ‘Vamos’,

‘Deixa-me’, ‘Vai’. Não pode haver muito barroco, muita com-

plexidade. Estou a falar do Português, de como se diz e não do

conteúdo. Falo de verso a verso, palavra a palavra, a maneira

como as coisas são ditas. Isso também tem muita importância.

“Há coisas que ultrapassam a justiça, ó fraudulento gosto que se

atiça”, diz o magistrado para o banqueiro, no terceiro acto. Há

aqui algo que depois se repete em toda a ópera.

O facto de se ter abordado temas tão actuais,

e de quase proliferarem estados de alma entre

as personagens, tornou este desafio particular-

mente difícil?

A peça do Régio passa-se numa corte, com um Rei.

Depois, houve a ideia da parte do Vasco Graça Moura de a

transpor para o mundo actual: a figura do Rei é a figura do

Banqueiro, que está tão na moda. E aí começou o processo. Ao

princípio hesitei um pouco... por uma questão técnica, de libreto,

BANKSTERSentrevista conduzida por Mónica Brito

fotografias de José Pedro Cardeiro

a propósito da estreia mundial no

Teatro Nacional de São Carlos

Direcção Musical | Lawrence Renes

Encenador | João Botelho

Cenografia e Figurinos | Sílvia Grabowski

Vídeo | Edgar Alberto

Desenho de Luz | Pedro Martins

Orquestra Sinfónica Portuguesa

Coro do Teatro Nacional de São Carlos

Santiago Malpago | Jorge Vaz de Carvalho

Angelino Rigoletto | Musa Nkuna

Mimi Kitsch | Sara Braga Simões

Accionista | Diogo Oliveira

Porta Voz | Chelsey Schill

Presidente da AG | Nuno Dias

Magistrado | José Lourenço

Médico | Ana Ferro

Advogado | José Corvelo

Segurança 1 | Bruno Almeida

Segurança 2 | Christian Lujan

Março

de 2011

nuno côrte-real

glosas, #3 | 57

banksters | à conversa com nuno côrte-real, vasco graça moura e joão botelho

de equivalência de personagens, do Anjo/Bobo. Mas hoje não a

concebo sem ser neste mundo da alta finança. É muito mordaz.

O Vasco Graça Moura colocou aspectos actualíssimos. O proble-

ma com os recibos verdes, os offshores e o IRS estão cá. Se for-

mos ver óperas antigas, como Mozart, estão cheias de menções à

época. O Don Giovanni refere um vinho que só havia na época.

O título Banksters foi escolhido por si. Por al-

gum motivo em particular?

É uma provocação. Ouvi isso uma vez. Beppe Grillo,

um comediante italiano, usou essa palavra ao mostrar quatro

indivíduos mundialmente famosos. Disse que deviam chamar-

-se Banksters. Até pensei que o termo era dele, mas não. É

uma palavra que não existe, que junta bankers e gangsters,

mas que é usada na América. Acho que é um bom termo.

Como se transpõe para a música a ironia das

palavras?

Isso é o mais difícil...

Há elementos específicos?

Sim, mas não há regras. Por exemplo, o Presidente

da Assembleia Geral e o Magistrado têm ‘tratamentos’ diferen-

tes. É muito difícil explicar. São coisas pequeninas. No caso do

primeiro, é uma música muito estúpida, bruta, com instrumen-

tos muito graves, como a tuba, os contrabaixos e o contra-fagote.

É uma caricatura grotesca, muito ridícula.

Se for possível quantificar, quanto tempo de-

morou a ser desenvolvido todo este trabalho?

Com certeza um ano. Com a maturação do projecto,

antes ainda da fase do libreto, cerca de um ano e meio. É um

bom prazo. O Verdi fazia duas óperas por ano. E havia outros

que faziam mais, se calhar. Isso mete medo, mas... (risos)

A quem se dirige Banksters?

A todas as pessoas... (pausa) A música vale mais do

que mil palavras. Eu sei que é música contemporânea. É muito

injusto falar de música contemporânea, porque é muita coisa,

cada vez é mais plural, mais diversa. O público em geral pensa

em música contemporânea, enfim, como um estigma. E o Teatro

Nacional de São Carlos sofre desse estigma. Há três anos foi

estreada uma ópera de Emmanuel Nunes. Ele faz música con-

temporânea, eu também, mas aquilo que faço está a anos-luz do

que Emmanuel Nunes faz.

Será devido ao que algumas pessoas conside-

ram ser «preços proibitivos»?

As sete récitas de Carmen, agora a seguir, já estão es-

gotadas... Não estou à espera que se compare, mas aquilo que

eu disse é verdade: isto é para todas as pessoas. Em relação ao

preço dos bilhetes, isso é um pouco falacioso. As pessoas vão ver

a Madonna e pagam cem euros ou mais para vê-la a quinhen-

tos metros e num ecrã! Entendo que sejam caros, sobretudo se

vai uma família, mas há que ter prioridades. Os bilhetes são 40

euros, mas há livros que custam 35.

Faria sentido que Banksters fosse beber ins-

piração a outro texto que não o de José Régio?

Banksters é Banksters por causa do Régio. Isso foi uma

escolha minha, por dois aspectos fundamentais e o primeiro é a

questão da morte. O problema da morte para mim é uma coisa

recorrente. Para muitas pessoas é uma coisa tenebrosa. Para

mim também, mas eu tento pelo menos fazer uma aprendi-

zagem, e isso só se faz quando nos confrontamos com a ideia,

não de fuga, mas de ir ao encontro. Portanto, há aqui uma ten-

tativa de “enternecer” a morte. No final da ópera, no epílogo,

o desejo é de a tornar uma coisa bela. Depois outro aspecto é

a descoberta do ‘eu’, um percurso do Banqueiro em que ele se

vai descobrindo, quem realmente é ou quem realmente não foi.

Isso é quase Pessoa. E é através do sofrimento - que é uma ideia

bastante cristã, não católica, mas de Cristo ele próprio. No fim,

há o que eu chamo de redenção, mas é mais uma descoberta:

finalmente, a paz surge. Para que entre aquilo que nós somos

interiormente e exteriormente não haja intervalo nenhum. Às

vezes os conflitos existem porque não somos para fora aquilo

que somos para dentro. E depois há esse conflito que ninguém

ouve. O Banqueiro, no fim, liberta-se e essa libertação vem com

a morte. Nesse aspecto, para mim, isto é quase um Romeu e Julieta ou um Tristão e Isolda.

Como uma desmistificação da ideia de perda.

A Vida é Morte e a Morte é Vida. Não podemos reti-

rar a morte, é absurdo pensar nisso. É impossível e é uma visão

errada; nesse sentido temos de integrá-la. O Ocidente não a in-

tegra, acho que as outras culturas vão mais além.

Como me descreveria a noite da estreia?

Em termos de trabalho foi neutra porque estava muito

sereno. Aliás, na última semana disse à Orquestra e ao Coro

que, para mim, já tinha sido um sucesso. Acho que ficou bem

feito, modéstia à parte. O João Botelho fez um trabalho ex-

traordinário, o Maestro também. E portanto, desse ponto de

vista, estava muito sereno. A reacção que as pessoas tiveram,

isso sim, foi surpreendente. Sem exagero, estavam maravilha-

das, sobretudo com o Português. Foi o mais importante.

Foi a primeira vez que se fez algo do género?

Se calhar. Não tenho a certeza disso, mas é raro. Mas

havia muita surpresa. Para mim o momento mais especial foi

nos agradecimentos, em que eu e Vasco Graça Moura entrámos.

É inesquecível, porque achei que foi um triunfo não só da músi-

58 | glosas, #3

banksters | à conversa com nuno côrte-real, vasco graça moura e joão botelho

ca portuguesa mas também da Língua Portuguesa na ópera. De

facto, eu só poderia estar ali com ele. Era a celebração das duas

coisas: da Música e do Português.

O convite a João Botelho foi uma tentativa de

trazer alguma cinematografia a um espectácu-

lo deste género?

Não... Eu na minha música busco muito a Poesia. Não

sei explicar isto melhor. Acho que, imageticamente, o João Bo-

telho também tenta fazer isso, é muito poético. Claro que foi

também pelo facto de ser um cineasta. É bom trabalhar com ou-

tras pessoas doutros meios, trazem coisas novas. E acho que ele

trouxe.

E o que é que esta ópera trouxe, daqui para a

frente, para o panorama nacional?

O primeiro aspecto, como já foi dito, é ser totalmente

portuguesa. Não sei se é bom ou mau, mas acho que “agarra” as

pessoas à cadeira, sobretudo na segunda parte do terceiro acto. E

há coisas muito fortes. O prólogo acho que é assustador, mesmo!

Assusta-me. (risos)

Pela linguagem que é usada?

Pela violência. Por tudo. O preto que é usado. A or-

questra, o coro, as luzes. O segundo acto é volúpia, é “sexo,

drogas e música contemporânea”. Há uma explosão de cor, de

sedução, sensualidade, intriga, Broadway. Depois a linguagem

geral desta ópera é simples, bastante acessível. Não é uma arte

conceptual. Há coisas no enredo que são estranhas, um pouco

transcendentes, mas são pormenores. O presidente da Assem-

bleia Geral diz: “Ai, parte-se este coração que eu tinha entregue

à finança para fugir ao IRS”. As pessoas entendem, é uma

história normal, que se percebe, e isso é muito importante. Há -

ou pelo menos na estreia houve - muitos sorrisos audíveis.

Que espaço a ópera ocupa na sua carreira?

Um espaço muito importante. Acho que sou bastante

privilegiado. Com estas dimensões é a minha primeira ópera,

mas é a terceira que faço, depois d’O Rapaz de Bronze e A Montanha. É um espaço que me é muito querido. Sinto-me um

“peixe na água”. Também gosto muito do Teatro, mas tenho

trabalhado sempre, desde 2001, noutras óperas, a fazer diver-

sas coisas: direcção de cena, assistência de encenação, traduções.

Gostava de poder continuar, mas isso é sempre muito difícil. Até

podia dizer, em jeito de conclusão, que nasci para fazer ópera.

Mas não sei se continuarei a fazê-la...

De todos os seus trabalhos qual destacaria?

Podia ser este. Mas O Rapaz de Bronze também foi

muito importante. Porque são coisas que envolvem tudo. Faço mui-

ta música de câmara, alguma com orquestra, ensembles contem-

porâneos, com 15, 16 instrumentos, alguma sinfónica, canções...

mas, de facto, a ópera abarca tudo. Há, em Banksters, um entre-

-acto que é uma peça sinfónica, que dura quatro minutos, como

se fosse uma abertura. Há partes que são quartetos vocais. Há um

assassinato que é também um prelúdio orquestral. Abarca tudo.

Nesse aspecto, a ópera é mesmo a obra de arte total. É fascinante.

Sempre soube que queria ser compositor?

(pausa) A partir de uma determinada altura sim... na

adolescência. Compositor de quê? Isso é preciso definir. Come-

cei com guitarra clássica, num grupo... não de rock, enfim, de

baladas. Mais do que saber “Vou ser compositor”, houve sempre

um desejo de criação. Isso é de sempre, não consigo estar quieto

em termos criativos, mentais. É impossível, tenho de estar sem-

pre a fazer qualquer coisa. A certa altura do meu crescimento,

a música surgiu fortíssima. Comecei a fazer canções, coisas

pequenas, com letra, depois foi o percurso mais ou menos nor-

mal - ou mais ou menos anormal, não sei. Começou a ser tudo

mais técnico e chegou aqui à música contemporânea. (pausa) Eu deveria arranjar outro nome... é absolutamente falacioso. Há

trinta anos não era, mas neste momento é uma mentira.

É susceptível de confundir as pessoas?

Absolutamente. As pessoas pensam mesmo que é

outra coisa. Que é insuportável, um “sofrimento”, porque já

tiveram essa experiência. E não é, é mesmo o contrário. Não

estou a falar de qualidade, de valor. Não estou a dizer que a

outra música é má e esta é que é boa, não é isso. É diferente.

Julga que tem a ver com a formação, académi-

ca e não só, dos dias de hoje?

Isto é uma coisa mundial, universal, não é portuguesa.

Tem a ver com o coração dos compositores. Neste momento,

vivemos numa altura de liberdade, com toda a comunicação que

há. Os compositores, os criadores, têm que seguir o coração. E

se há uns que estão bem dentro de uma estética, dos anos 50,

60, 70 – que a mim já me “cheira a mofo” – então que a sigam,

tudo bem. Mas acabaram as legitimidades, já há bastante tempo.

Não estou a dizer mal de nenhum músico, só estou a dizer que

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banksters | à conversa com nuno côrte-real, vasco graça moura e joão botelho

isso acabou, vivemos numa época em que o pluralismo reina.

Essa é a grande valia da música contemporânea neste momen-

to. Eu tenho seguido o meu coração. Sinceramente tenho. Esta

ópera é sinal disso. As questões técnicas e estéticas que estão na

ópera posso defini-las todas: seguem um desejo de dramaturgia,

plural, de síntese. Não tenho pudor absolutamente nenhum em

ter muitas partes que são verdadeiras árias, por exemplo, com

acompanhamento. Há uma melodia e há acompanhamento. Po-

dia ser baixo de Alberti, mas é uma outra coisa. E outras partes

que são cânones, polifonias. Portanto, nos dias de hoje, essa

posição estética morreu. Mas há “fantasmas”... que infelizmente

ainda têm bastante poder.

Uma espécie de Banksters?

(risos) Tinha de arranjar outro nome. Esta ópera, por

exemplo, tem inúmeras técnicas. No segundo acto, a parte central

da Habanera é dodecafónica. Deve ser a primeira Habanera do-

decafónica que já se fez. Isto dá o exemplo daquilo que quero di-

zer. É preciso usar a imaginação, é infinito. Acho que hoje em dia

é muito difícil, senão impossível, criar coisas novas, originais,

a posteriori. Antigamente, eu tinha duas sintonias mentais

para ouvir música: a que é a minha, aquilo que eu quero ouvir;

e depois tinha outra que aprendi para a música contemporânea,

desenvolvi essa segunda sintonia, diferente. Eu tenho uma ad-

miração por Beethoven e ouço-o na tal sintonia pura, na minha;

mas quando ouço Berio tenho de ouvir noutra. Numa determi-

nada altura em que estava a estudar na Holanda, disse a mim

próprio que isto era injusto. Não é só injusto, é falso. É como

gostar de pessoas, mas um “gostar de maneira diferente”, é um

bocado hipócrita. E isso fez-me mudar muito, para perceber - ou

tentar perceber - o que é que eu realmente queria ouvir também

do que faço. Os compositores também ouvem o que fazem e têm

de gostar. É absurdo, senão mesmo esquizofrénico, se fizermos

uma coisa de que não gostamos nada. Isto fez-me procurar

aquilo que eu quero e não tanto o que o público quer. Os Deo-

linda são muito engraçados mas eu não quero fazer “aquilo”.

Também escrevi um fado para esta ópera. Verdi, Beethoven,

Mozart, escreviam canções, valsas, mazurcas... Porque é que os

compositores contemporâneos não podem fazer nada? Parece

que estamos com um “colete de forças”. Estou a dizer isto porque

apresento esta ópera, não estou a ser demagógico.

É um facto.

É um facto. Vejam, ouçam, “batam-me”, chamem-me

“vendido”, sei lá... (risos) A música tradicional portuguesa também tem

um lugar de destaque no seu percurso. 

Para mim é um absurdo não olhar para a riqueza ab-

solutamente extraordinária da música tradicional portuguesa.

Muitos países não têm sequer um quarto. A última coisa que

fiz foi, em Novembro, a Oratória Popular, com gaita-de-foles.

Nesta ópera há elementos popularíssimos e que são absoluta-

mente estruturais. Há um tema rítmico que é explícito e que se

inspira nos Zés Pereiras, só que está vestido com a harmonia

do Banqueiro, que é das mais dissonantes da ópera. Também

o canto tradicional, que é muito português, tentei utilizar. Para

mim uma melodia é uma coisa que tem de ser cantada. Nós

cantamos. O ser humano tem de cantar. Nunca cantará – isto é

uma convicção minha - as melodias atonais do Schoenberg. Mas

o canto é uma coisa orgânica, do corpo.

A criação do Ensemble Darcos, do qual é tam-

bém director artístico, é fruto do seu empenho

para trazer novos caminhos para a música em

Portugal?

É um desejo. O Ensemble toca sobretudo música clás-

sica, dos grandes compositores - Beethoven, Brahms, Shubert,

Mozart -, a minha música, e às vezes novas obras que enco-

mendamos a compositores portugueses. Mas é mais um desejo

de poder trabalhar essas obras clássicas, de câmara. Porque eu

aprendo muito e é importante nesse sentido. Não há um desejo

nunca antes ouvidas. Nesse aspecto, a atitude do compositor tem

de ser de opção e a opção, em arte, só pode vir do coração. Pelo

menos deveria vir. Não vem com racionalismos, porque tudo

é legítimo. Optar por uma estética serialista, ou pós-serialista,

não é “o novo”, se calhar pensam que é, mas já é antigo. Neste

aspecto, escolher música tonal ou escolher Debussy ou Bartok,

ou Boulez, é indiferente. Mas não estou a desvalorizar! O novo

só pode surgir se houver esta síntese, este “cozinhado”. É o que

pretendo fazer.

Quando compõe pensa em particular no músi-

co que vai executar, no público que vai escutar

ou em nenhum de ambos?

Penso em mim. (risos)

No seu coração, portanto.

Sim. Penso em surpreender-me... O público é uma coisa

de o grupo ser um “pórtico” da nova música portuguesa, isso

não. Embora também o seja: Sérgio Azevedo, Eurico Carrapa-

toso, Pinho Vargas, Vitorino d’ Almeida... lentamente aumenta-

mos o nosso espólio, de uma forma muito humilde. É sobretudo

isso: a confrontação dos grandes clássicos com a nova música

portuguesa. Este ano vai ser importante porque vamos gravar o

primeiro disco. Não sei quando vai sair, mas vamos gravar só

com a minha música de câmara.

Imagina Banksters a seguir um caminho itine-

rante?

Isso era o que se devia fazer, mas não se faz. (pausa) Não tenho palavras. É uma crítica muito negativa. Em Portu-

gal as coisas morrem à nascença. Eu já tenho muita sorte de

Banksters poder estar cinco vezes em cena, é uma excepção

até. O Rapaz de Bronze, que apresentei no Porto, esteve uma.

É quase inglório depois de todo o processo de

criação. É horrível. Nunca mais se falou de O Rapaz de Bronze,

e acho que merecia. É português. A música, o libreto (de José

Maria Vieira Mendes), o texto (de uma das maiores poetisas de

sempre, a Sophia). Fiz eu próprio uma edição não comercial em

DVD (a Casa da Música não me apoiou), pedi a umas pessoas, e

estou contente com o resultado. Mas agora é impossível eu fazer

uma coisa semelhante. Faço uma crítica, por exemplo, à RTP.

A Antena 2 vai transmitir em directo Banksters, mas a RTP

tinha a obrigação - não é o interesse, é a obrigação - de gravar

esta ópera e de tê-la nos seus arquivos. Posso dizer que houve

contactos e houve conhecimento, sobretudo da parte da RTP2, de

que a ópera ia acontecer. Perante isto, a RTP resolveu apoiar a

gravação da Antígono. Acho que Banksters é um milhão de ve-

zes mais importante, por todas as razões possíveis e imaginárias.

Em jeito de síntese de tudo o que falámos, que

mensagem pode transmitir ao mpmp?

Que continuem. É muito importante. E que sejam ver-

dadeiramente livres, que não escolham partidos, porque isso

acabou. Que tratem todos os estilos e todas as estéticas da mesma

maneira. Claro que há compositores que têm um peso histórico,

mas hoje temos de viver no presente. Senão isto acaba. As coisas

nascem, vivem e depois morrem, não há excepções. A ópera é

uma coisa maravilhosa mas, se não seguir para a frente, morre

também; outras coisas nascerão, mas ela morrerá. Agora vive-

mos muito, por exemplo, da ópera romântica. A ópera barroca,

e há centenas ou milhares delas, cada vez se ouve menos nos

teatros de ópera. Podem tirar daqui as conclusões que quiserem,

mas a que eu tiro é exactamente que já tem 300 anos! Não sei se

vamos continuar a ouvir o Rigoletto daqui a 200 anos. Se não

houver outros “Rigolettos” diferentes, não haverá nenhum. •

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A Ópera não vive sem a Literatura?

A ópera não vive sem o libreto. Não vive sem uma acção

dramática que se polariza entre personagens. Embora haja pelo

menos uma ópera só com uma personagem, La Voix Humaine,

de Francis Poulenc. Em todo o caso, essa personagem é única em

cena, mas está a falar ao telefone durante todo o tempo com o

namorado, de algum modo presente. Mas a ópera implica uma

acção. Fundamentalmente implica sempre um texto com carac-

terísticas para ser utilizado musicalmente, para ser cantado.

Quando aceitou o convite de Nuno Côrte-Real

e do São Carlos concebia a ideia de este ser um

projecto inovador?

Nunca me tinha passado pela cabeça... (risos) Eu estava

nessa altura em Bruxelas, a terminar o meu segundo mandato

como deputado europeu, e um dia recebi um mail do director do São

Carlos a propor uma encomenda para escrever o libreto. Fiquei

um pouco surpreendido. Em Lisboa, conversei com o Nuno Côrte-

-Real e assim as coisas começaram. Foi uma experiência curiosa

porque nunca me tinha ocorrido que viria a escrever um libreto.

Não era um sonho ou projecto?

Não... nem sequer um projecto. Ouvir, ver ópera é uma

prática a que há muitos anos me dedico. Daí a colocar-me na

situação de co-autor vai uma distância enorme. Por outro lado,

as relações entre a palavra e a música têm-me preocupado a

um nível completamente diferente, que é o do Fado. Escrevi

bastantes letras para fados.

Cristina Branco, por exemplo.

A Cristina, Mísia, Mariza, Carlos do Carmo, Cristina

Nóbrega, Joana Amendoeira, uma série de cantores têm gra-

60 | glosas, #3

graça moura

vasco

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vado coisas minhas. E aí é um pouco diferente. Põe-se o proble-

ma de escrever uma letra de fado cujo autor seja chamado de

“poeta cultivado”, um poeta não popular; de respeitar um certo

tipo de tradição e atmosfera ligados ao Fado. Não perder as

características da escrita “cultivada”, embora com “piscadelas de

olho” à tradição popular. E põe-se o problema de encontrar um

certo tipo de conforto para o intérprete, ou seja, evitar cacófa-

tos, frases um pouco rebuscadas ou difíceis, que podem não só

ser extremamente desconfortáveis no canto mas até tornarem

difícil a compreensão da letra. Portanto, esta experiência eu já

a tinha feito. Tinha feito outra e, é muito curioso, só vim a con-

hecer o resultado há dois dias. Pediram-me, para o Centenário

da Universidade do Porto, um poema para ser objecto de uma

composição. Eu estive na estreia mas aí foi uma experiência só

auditiva. Era uma peça com uma grande massa coral e sinfóni-

ca. Foi uma experiência quase simultânea na produção da sua

materialidade sonora, embora tivesse sido distante no tempo.

A relação da Música com os seus textos resume-

-se a essas experiências que mencionou?

Não. Há uma enorme relação da Música com os meus

textos, mas aí é na perspectiva do escritor, não de uma coisa que

vai ser encenada. Acho que a relação da Música com a Literatu-

ra se pode situar, na perspectiva do escritor - e falo sobretudo da

poesia mais do que da ficção - fundamentalmente em três planos:

um plano descritivo, em que o autor tenta descrever o sentido do

que está a escutar; um plano metafórico, em que se procuram

equivalentes por metáforas; e um plano estrutural, em que cer-

tos princípios de composição musical podem ser estruturantes de

um certo tipo de escrita. Para lhe dar um exemplo, há um capítu-

lo de Ulisses, chamado “As Sereias”, que é, segundo James Joyce,

baseado na construção de uma fuga canónica. Também já tentei

nalguns poemas, sobretudo em aspectos contrapontísticos. Mas

tudo isto, evidentemente, são aproximações abusivas, porque,

na verdade, não é bem a mesma coisa. Pode haver um elemento

qualquer da escrita musical que suscite num autor um determi-

nado tipo de reacção textual, e isso é importante. Pode haver, sem

qualquer referência explícita, um papel indutor de atmosferas

e de registos de escrita numa composição musical. Mas relações

directas são sempre de entender com alguma reserva. Outra

pessoa estabeleceria essa relação em termos muito diferentes.

Mas defende que essa relação seja sempre sus-

ceptível de existir?

Sim, acho que existiu sempre. Não só num aspecto an-

tropológico da relação entre o canto e a palavra, como no as-

pecto da preocupação da Literatura em muitas vezes se modelar

a partir de paradigmas musicais. Ou da preocupação da Música

em utilizar a Literatura como material para a sua própria com-

posição. Isso aconteceu desde sempre, desde o tempo dos Jograis,

provavelmente desde os Gregos, até Bob Dylan.

A Língua Portuguesa pode e deve ser cantada?

Qualquer língua pode e deve ser cantada. É possível que

nem todos os resultados sejam os mais interessantes, mas isso de-

pende muito também do tipo de música, do estilo de composição.

No que a esta ópera diz respeito, o seu trabalho

em Banksters teria sido completamente difer-

ente noutra língua?

Não sei. Estamos numa época em que essas relações

entre a Língua e a Música são mais livres. A capacidade de pôr

em cena uma determinada ideia é muito mais livre hoje do que

era, com certeza, no tempo de Verdi ou de Donizetti. As con-

venções funcionavam com muito mais rigor e exigência. Por

exemplo, salvo erro, na ópera de Paris, no século XIX, não era

concebível uma ópera sem bailado. Fazia parte daquele código

operático. Hoje é relativamente indiferente. A liberdade é total

nesse aspecto. Acho eu, que não sou compositor.

Como apresentaria a história de Jacob e o Anjo

a alguém que a desconheça?

Primeiro teria de dizer que se trata de um texto que se

inspirou numa peça de José Régio, Jacob e o Anjo, que é extrema-

mente expressionista, pesada, com uma grande violência verbal.

Provavelmente inspira-se no caso do rei D. Afonso VI, que foi

deposto pelo irmão, que além de lhe ter tirado o trono lhe tirou a

mulher e veio a casar com ela. Este núcleo da intriga é completa-

mente transportado pelo Régio para a sua peça, embora com uma

dimensão ligada ao remorso, à expiação. Um dimensão também

metafísica, que é importante na peça. Eu devo dizer que não pro-

curei manter nada disso, o que me interessou foi fazer uma coisa

tipo Dallas, a série de televisão em que membros de uma famí-

lia financeiramente muito poderosa se agridem uns aos outros.

Uma abordagem novelística?

Para mim, a abordagem foi um pouco um episódio de

loucura e de morte de um financeiro, passando por essas peripé-

cias de traição da parte dos familiares mais chegados, o irmão

e a própria mulher. Para dar notas mais actuais, transformei o

Anjo num emissário de um paraíso fiscal e o Rei no presidente de

um banco. Claro que isso implicou a utilização de terminologia

ligada ao funcionamento da banca, que toda a gente hoje conhece

ou, pelo menos, ouviu. E implicou também passar do grotesto ex-

pressionista da peça do Régio para um grotesto caricatural, num

registo que chamaria mais vicentino. Os insultos são também da

peça do Régio, mas procurei que soassem mais a Gil Vicente.

Não receou alguma censura?

Não. Recear hoje em dia? Dizem-se as maiores enor-

midades sem censura, porque é que havia de funcionar no plano

da Literatura? Não tinha nada que funcionar. A censura que

tem de existir é do próprio autor em relação àquilo que está a

glosas, #3 | 61

banksters | à conversa com nuno côrte-real, vasco graça moura e joão botelho

fazer, seja ele pintor, poeta, cineasta ou músico. É um disposi-

tivo de auto-exigência de qualidade, faz parte da estratégia do

próprio autor. Procurei um vocabulário muito directo, que de

algum modo pudesse dar mais vivacidade àquilo que se está a

passar em cena. A figura da mulher é uma figura com quem o

marido ja não tem condições para ter relações, no plano sexual,

e ela di-lo em cena. Também o diz na peça do Régio, no meu

libreto diz de uma maneira mais directa (risos).

Foi imediato para si olhar para as palavras de

Régio e ver a luta que o Homem trava hoje com

o poder?

Não. Digamos que no Régio a questão tem a ver com

o poder político e com uma dimensão metafísica, mas numa

relação muito especial com a intimidade dos poderosos. Aqui

passei para o poder financeiro, pura e simplesmente, não me

preocupei muito com o político. Os comparsas palacianos que

figuram na peça do Régio, que dão graxa ao Rei, que fazem

vénias e muitos cumprimentos numa total hipocrisia, aqui essas

personagens foram reduzidas. Há duas ou três que sintetizam

esse conjunto de pessoas que estão sempre a dizer maravilhas do

seu interlocutor desde que seja poderoso. Houve simplificações

necessárias. O processo de escrita teve que ver, primeiro, com

o que o Nuno Côrte-Real entendia que podia ser cortado na

peça; sobre essa parte remanescente comecei a trabalhar e depois

ele ainda propôs mais alterações, quer no sentido de corte quer

no de acrescentamento. Mais uns elementos de que precisava

conforme o efeito dramático que pretendia obter. Depois foram

retoques, não foi um trabalho de exclusiva concentração.

No cômputo geral, pode ser considerado um

trabalho solitário?

Completamente. As coisas não funcionaram na bidi-

reccionalidade, eu não estive a ouvir música do Nuno Côrte-

-Real para trabalhar no que estava a escrever. Fui entregando

os vários materiais e, depois, conforme a reacção dele, alterava-

-se aqui e ali. Depois tratava-se de dar um nome às personagens,

que tinha de ser diferente. Santiago quer dizer Jacob. Convém

notar este aspecto. Santiago deriva do latim Sancti e de Jacob.

Assim como Rigoletto remete para o Bobo.

Exactamente. O Anjo, na peça do Régio, é muito tra-

tado como o Bobo. Remete para o Bobo e por isso, aqui, para a

tradição da ópera.

Mas temos também expressões como recibos

verdes e off-shores.

Pareceu-me que seria uma maneira de dar algum

realismo a uma situação ligada à presença do banco. Embora,

para mim, aquilo não passe de uma espécie de um acesso de lou-

cura do próprio presidente do banco, tem os seus fantasmas, um

deles o Anjo, o Angelino Rigoletto. Angelino é uma brincadeira

com a língua italiana. No fundo, é um problema de demência,

embora grotesco com todo esse aspecto caricatural que procurei

imprimir ao texto, mas a partir de um aspecto altamente ex-

pressionista e violento que já estava na peça do Régio.

Imprimir esse tom satírico é especialmente

complexo?

Eu nunca tinha experimentado, assim, durante um li-

breto inteiro. (risos) Não me dei mal com o processo porque me

deixei levar ao sabor de cada cena. Houve aspectos que foram

engendrados por esse processo de velocidade de escrita acom-

panhado de remissões para outros textos. Quase automatica-

mente apareceu na minha cabeça a hipótese de remissão. Aquela

parte da Gertrude Stein, “a rose is a rose is a rose”, apareceu de

repente e entrou. Há um verso de Camões, do Velho do Restelo.

Há um verso de António Nobre, um de Camilo Pessanha. Há

várias coisas que ou são desmontadas no próprio texto ou são

tão evidentes que não precisam de desmontagem.

A música de Dante, no final, foi uma ideia sua?

Não, aí foi o Nuno Côrte-Real que resolveu ir a La Vita Nuova, porque quis dar uma atmosfera de redenção. E

está no seu pleníssimo direito.

Mas não é a sua opinião.

Não é a minha opinião. Já aquela ideia do poema do

imperador Adriano, Animula Vagula Blandula, fui eu que a

dei, achei que era interessante. Uma alma que está a abandonar

o corpo... Situava um pouco o prólogo, o que se iria passar. Foi

uma experiência conduzida com muito empenhamento mas sem

ideias feitas, sem preconceitos, sem esquemas antecipados. Foi

correndo naturalmente.

Então presumo que não se tenha inspirado em

alguém ou alguma situação em especial.

Não. Inspirei-me foi, muitas vezes, na chamada crise

do subprime porque isso dava-me um vocabulário divertido

para ilustrar as situações. Dava-me uma maneira sugestiva de

o espectador – pelo menos o espectador de hoje – identificar

coisas, achar que há ali um coeficiente de realidade.

Qual foi a sensação de subir ao palco na noite

de estreia para os agradecimentos?

Não tinha pensado nisso, nem tive tempo sequer de

pensar em sensações... mas foi evidentemente agradável. Foi um

momento de forte aplauso, mas partilhado com o compositor

e com os restantes intervenientes. Para mim foi uma sensação

diferente, nesse aspecto. Embora já tenha enfrentado públicos

em várias situações, aqui é a sensação de se fazer parte de uma

equipa, que nos transcende em muitos aspectos.

62 | glosas, #3

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Há uma certa intencionalidade de trazer mais

pessoas à ópera e de torná-la uma arte menos

“minoritária”?

Penso que a ópera teve sempre um enorme público. Em

Lisboa tem a tradição do Coliseu. Os grandes conhecedores de

ópera iam ouvir ao Coliseu, mais do que ao São Carlos. O pro-

blema da ópera é que é um espectáculo caríssimo. Provavelmente

hoje tem muito mais público do que jamais teve, mas dilui-se

quando vemos, por exemplo, um cantor encher um estádio. Em-

bora já tenha havido situações desse género, é mais complicado

levar a ópera à cena num espaço muito grande. E, portanto, há

sempre essa dificuldade de promoção da ópera. Sobretudo pro-

moção com qualidade, porque se exige cada vez mais qualidade

nos intérpretes. Com as novas tecnologias de registo das inter-

pretações não há fífias admitidas, não pode haver falhas. Tudo

isso requer uma grande sofisticação de meios. Mas é um espec-

táculo altamente popular, sobretudo quando entre a ópera e o

melodrama há uma fronteira ambígua. Com todo o lado kitsch

Gostaria de escrever um libreto exclusiva-

mente da sua autoria?

Com certeza. Não estou a pensar nisso agora... (risos) mas podia ser uma experiência curiosa. Obrigaria a pensar nas

peripécias de certo tipo de acção, de caracterização das perso-

nagens. Aí teria de discutir com o compositor em termos com-

pletamente diferentes. Falo de uma negociação artística. Seriam

protocolos de criação que permitissem provavelmente outro tipo

de produto.

Nesta obra, ou noutras, como se ganha a sensi-

bilidade – sua ou das outras pessoas - para sepa-

rar a sua veia literária da militância política?

Acho que é completamente natural. Não tem a ver

uma coisa com a outra. A minha militância política procura uti-

lizar a Língua Portuguesa em termos de eficácia. É natural que

a minha experiência literária tenha um papel, mas não há con-

taminação do meu trabalho como escritor na minha actividade

glosas, #3 | 63

e melodramático que tem - meninas que morriam tuberculosas,

mas a cantar coisas lindíssimas - isso atraía as pessoas. Um bo-

cado como hoje a novela. Essa projecção das frustações do dia-

-a-dia no plano da arte foi muito importante, a partir de certa

altura, pelo menos na cultura europeia. A partir do século XIX

foi importantíssimo, seja como divertimento seja como drama,

tragédia. E vemos isso, sobretudo na ópera italiana, com toda a

evidência.

De toda a execução do libreto, realça algum

momento?

Gostei bastante da parte da terminologia bancária.

Gostei também daquelas frustrações da Mimi Kitsch. Mas devo

dizer que surgiu tudo muito naturalmente, à medida que a

personagem se desenhava no meu espírito, as palavras acom-

panhavam esse desenho. Não “penei” para chegar lá. Tendo um

texto de referência na frente, também havia um fio condutor,

essa relação não devia ser perdida. Mesmo que seja estabelecida

em termos discutíveis, a relação está lá.

ligada à análise e intervenção política. Historicamente, as ou-

tras pessoas distinguiram sempre a minha produção poética do

meu comportamento político. Já não é tão nítido que o façam em

relação à minha obra de ficcionista. Não sei porquê... A nossa

imagem passa para o público com algumas marcas de origem.

Como comecei a escrever poesia há muitos anos, e a ficção veio

mais tarde, a imagem que se fixou tem mais a ver com a do poeta.

A crítica é-lhe indiferente?

Não. Acho que devemos ter sempre uma certa humil-

dade em relação às reacções e posições críticas. Como qualquer

autor que se preze, se uma crítica diz bem de mim fico muito

satisfeito; se diz mal depende dos termos em que o faça. Pode ha-

ver casos que não reconheça que tenha fundamento e discorde,

em que ache que as observações passaram ao lado. Faz parte do

trabalho do autor sujeitar-se à crítica, quer à genérica do públi-

co quer à especializada. Tem de conviver com isso e aproveitar

essa situação. Desde que não seja uma prima donna com um

ego do tamanho da Torre dos Clérigos, isso é outra questão...

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Suponho que ainda tivesse algumas interro-

gações sobre a simbiose entre o seu libreto, a

música e a encenação.

Eu não fazia a mínima ideia nem do tipo de música

que iria ser escrita nem do tipo de encenação. E resulta bem.

Acho que o João Botelho pegou muito bem nas personagens e na

história e, por outro lado, a própria cenografia é sóbria, mas

muito eficaz. Gostei bastante. Como não tenho grande experiên-

cia de teatro – a que tive teve mais a ver com a tradução de

grandes peças do teatro clássico francês – fiquei surpreendido

com a maneira como foi posto o texto em cena. A vivacidade

decorre muito desses processos a que o encenador recorreu.

É também isso que faz da ópera um espectáculo

tão especial?

Repare, na ópera tudo é esquemático e assegurado. Podemos

achar que certas obras, como as do Wagner e do Strauss, são

mais analíticas mas, na tradição da ópera italiana, que está na

origem das restantes, as cenas são esquemáticas, os sentimentos

são extremos, as coisas sucedem-se com uma grande aceleração.

E tudo isso tem que ser percebido pelo público nesses termos. Tem

que se perceber que a mulher que está a morrer, mas que canta

deslumbrantemente, é uma convenção. A ópera é o domínio por

excelência das convenções. E às vezes essas convenções acabam

por ter uma dose de realismo muito grande. Aliás, o Verismo na

ópera tem a ver com isso. Quando a Traviata, que é no fundo a

Dama das Camélias do Alexandre Dumas, é posta em ópera é

a contemporaneidade que está ali em frente ao espectador. Em

vez de ser uma coisa passada na Idade Média, em frente aos

Romanos ou nas Cruzadas, é imediato. Aquilo está a acontecer,

é como uma notícia de jornal, passou-se ontem ou há bocado.

Isso também criou hábitos diferentes da parte do público, o real

quotidiano tem sempre um aspecto forte. Agora, acho que hoje

a questão da ópera tem a ver com a sua capacidade melódica.

Quando eu canto “La donna è mobile” ou assobio “Va Pensiero”

isso quer dizer que me ficou no ouvido. Há muita ópera em que

isso é impossivel, as dodecafónicas e mesmo nalgumas tonais.

É dificil entoar ou trautear um bocado de Wagner, ou mesmo

do Verdi do Falstaff. Essa relação com a musicalidade, essa ca-

pacidade de uma peça ser retida no ouvido, foi extremamente

importante para a ópera. Provavelmente hoje ainda é.

Felicito-o pela sua última distinção atribuída

pela Fundação Inês de Castro. Este ano volta

ainda a presidir aos Prémios Literários Agusti-

na Bessa-Luís e Fernando Namora. Estas acções

de reconhecimento são ainda importantes para

a vitalidade artística em Portugal?

Bom, é importante que um autor, ou artista, se sinta

reconhecido, consagrado, sinta que o seu esforço é aplaudido, de

alguma maneira. Por isso os prémios literários também são im-

portantes. Por outro lado, há nisso tudo uma chamada de aten-

ção. Promove uma obra de criação cultural que, em princípio,

aspira a um estatuto mais importante na condição humana do

que o futebol ou os meniscos magoados dos jogadores... Uma dis-

tinção a um artista reforça a presença e a importância daquilo

que ele faz numa sociedade que está muito distorcida em maté-

ria de valores culturais; pelas novas tecnologias, pela comuni-

cação social, pela banalização das práticas quotidianas... Tudo

o que possa ajudar a marcar essa diferença parece-me que é

importante.

Mas mostra algumas reservas quanto aos sub-

sídios, dizendo que a criação cultural tem que

se debater com algumas dificuldades.

Eu não vivo de subsídios, não sou “subsídio-depen-

dente”, nem de perto nem de longe. Penso que, de um modo geral,

os subsídios à criação têm tido como resultado a má qualidade

da criação. Veja em França: há 40 ou 50 anos que a criação

francesa não tem nada de notável, a não ser que recebeu subsí-

dios. O Estado tem de assegurar, por exemplo, que haja teatros

nacionais onde se represente o património universal. Provavel-

mente, tem de assegurar que haja um teatro de ópera, embora

possa ser discutível. Mas o Estado tem de assegurar, sobretudo, a

defesa do património que já é reconhecido como tal pela comu-

nidade. O que eu escrevo hoje, ou o que você escreve, não sabe-

mos se daqui a 20 ou 50 anos ainda lá está. Mas o que nós hoje

temos como reconhecido no património cultural e imaterial, na

cultura e língua portuguesas, já tem uma parte consolidada ina-

balável. E quem diz a cultura escrita pode falar em monumentos

e em muitos outros aspectos. Como o dinheiro não chega para

tudo, é evidente que há que fazer opções, que têm de ser feitas

para acorrer àquilo que é indiscutivelmente património, porque

a outra grande opção é o investimento na Educação. Ou seja, a

criação de públicos tem a ver com dar às pessoas a capacidade de

apreciarem e fruírem determinado tipo de criação cultural. Ora,

subsidiar uma companhia de teatro, um agrupamento musical

ou um filme com dinheiro do Estado é completamente discutí-

vel. Não tenho nada contra o mecenato privado, acho óptimo, e

quanto mais existir melhor. De resto, penso que tem de haver

aí uma restrição muito grande por parte do Estado. Eu conheço

bem essa área, estive à frente da Comissão para as Comemo-

rações dos Descobrimentos Portugueses. Recebi meios para uma

determinada incumbência. Simplesmente, nas políticas gerais

penso que as opções fundamentais não passam por subsidiar

todos os jovens génios que aparecem. Uma coisa é haver uma

encomenda. Outra coisa é haver pessoas ou entidades que vivem

a partir de subsídios e são sustentadas dessa maneira.

Alguma mensagem de optimismo para os jo-

vens criadores?... (risos)

Os jovens portugueses criarão tanto melhor quanto

mais à margem dos subsídios do Estado se colocarem. Disso não

tenha dúvida.

64 | glosas, #3

banksters | à conversa com nuno côrte-real, vasco graça moura e joão botelho

Ouve música enquanto escreve?

Posso ouvir... Trabalho com música ou sem ela, mas é

muito frequente ouvir. Enquanto conduzo também. Enquanto

faço os meus 6 km por dia na passadeira, também. Tenho um

ipod com 13 mil peças gravadas, tenho também uma razoável

colecção de cd’s. Quando estou em casa a trabalhar, sim, ouço.

Quais os seus gostos musicais?

Sou muito cerebral quando ouço Bach… emotivo

quando ouço Beethoven e Schubert… e posiciono-me entre estes

dois quando ouço Mozart. Sobretudo tenho uma grande prefe-

rência por Bach, pela construção das suas peças, pela maneira

como a palavra se relaciona com a música, pelo lado especula-

tivo e contrapontístico das suas obras teóricas. A Arte da Fuga,

a Oferenda Musical, o Cravo Bem Temperado... são monu-

mentos do espírito humano que não me canso de ouvir.

Pode revelar alguns dos seus próximos projec-

tos?

Posso. Tenho um livro de ensaios que sairá em Junho

- textos sobre literatura, ensaio, poesia - que se vai chamar Dis-

cursos Vários Poéticos. E tenho agora dois projectos: um de en-

saios sobre a Europa e outro o terceiro volume de uma trilogia.

Queria aproveitar para informá-lo que este

terceiro número da Glosas não vai aderir ao

acordo ortográfico. Suponho que não esteja em

(des)acordo.

Não, estou completamente de acordo. Acho que é uma

barbaridade que descaracteriza a nossa língua. E não tem a ver

com o lado gráfico, é descaracterizar em aspectos que se vão

pagar muito caro, porque vai alterar a pronúncia de inúmeras

palavras portuguesas, de Portugal. No fim, as escolas não vão

conseguir aplicar. Estamos a cair num plano em que a ortogra-

fia deixa de o ser para ser um conjunto de regras para a escrita.

Vamos entrar num plano de escrita selvagem.

É irremediável?

Não sei se o é. Já viu o que é em África, em que o Portu-

guês é menos sólido como língua, de repente alterarem-se os actos

de escrita e os documentos passarem a ter uma grafia diferente?

É muito complicado. De qualquer maneira, o acordo ortográ-

fico não está em vigor, é um abuso das autoridades portugue-

sas, um abuso criminoso. Não foi ratificado por todos os países.

Ouvi-o há dias descrever o actual cenário

político como uma opereta.

Repare, neste momento acho que já nem é uma opere-

ta, é uma espécie de opera buffa. O problema português é que a

política se perverteu e degradou de tal maneira que os cidadãos

acabaram a não acreditar nela. Quando devia ser uma activi-

dade extremamente nobre, em que as opções, em presença, fos-

sem discutidas a fundo e o eleitorado se movesse fundamen-

talmente por um juízo sobre essas opções. O eleitorado tem-se

norteado por quem lhe promete mais sem perceber que estão a

prometer puras fantasias, insusceptíveis de serem cumpridas. Se

continuarmos assim então Portugal acabou como país. Se souber-

mos dar um “golpe de rins”... talvez as coisas se possam compor. •

glosas, #3 | 65

“A Ópera morre

se a tratamos como um Museu“

Uma aventura com cunho nacional subiu ao palco do Teatro Nacional de São Carlos. A ascensão e a decadência do banqueiro Santiago Malpago desenharam a caricatura das convulsões sociais e financeiras do século XXI e trouxeram a este mundo lírico uma invulgar actua-lidade.

O realizador João Botelho recebeu o convite e aceitou entrar nestas areias movediças com aquela ousadia que a vida traz. “Há uns anos, quando fiz a adaptação de Frei

Luís de Sousa, Quem És Tu, Paolo Pinamonti era ainda direc-

tor artístico do São Carlos e desafiou-me a encenar uma ópera.

Mas achei que não estava preparado... Hoje já tenho idade para

não ter vergonha. Para ter muita lata.”

Em 1994, no âmbito da Lisboa - Capital da Cultu-

ra, já se tinha atrevido a filmar uma pequena ópera de António Victorino d’Almeida. Ficou adormecida uma vontade de explorar. “No Filme do Desassossego, encomendei

ao Eurico Carrapatoso uma ópera com cerca de dez minutos,

que filmei ao ar livre na Serra de Sintra. A Morte de Luís II

da Baviera é um texto maravilhoso, muito romântico. Queria

provar que a língua portuguesa não é só fado, é também canto

lírico.” A construção de raíz de Banksters, tomando como suporte o idioma de Camões, colocou-o ainda mais dis-ponível para o desafio. “Nós temos vogais fechadas e mui-

tas consoantes, mas isso não é um problema, é uma grandeza.

A língua portuguesa é muito melhor do que se pensa e pode ser

cantada. Pode e deve.”

joão

botelho

banksters | à conversa com nuno côrte-real, vasco graça moura e joão botelho

A tela satírica foi inspirada em Jacob e o Anjo, texto dramático da autoria de José Régio. O libreto de Vasco Graça Moura provoca e contagia. Nele cantam--se fugas ao IRS, offshores pecaminosos e almas tributadas que gravitam em torno dos mistérios da Vida e da Morte. Mergulhado na ironia, o que remanesce do texto são mais interrogações do que certezas; convictos estaremos de que tudo pode não passar de uma imensa ilusão. “Na ópera o

artifício está instalado desde o início”, explica. “Podemos ver

uma pessoa muito velha e gorda a fazer de uma criança de doze

anos. Se cantar e representar bem, as pessoas comovem-se. Não

há desilusão, porque a ilusão já lá está.” É sabido que estamos perante o irreal mas, na sua óptica, a ópera tem uma au-tenticidade própria que emociona e totaliza. “O cinema

atira para o realismo, impõe a reprodução da vida. A ópera, por

seu lado, é um espectáculo mais impressionante, mais global,

tem muitas variáveis. Os sentimentos são mais abstractos.”

O conceito de verdade vive, pois, mais do que se sente do que propriamente do que se vê. Ainda assim, a passagem de um membro da equipa interrompe a nossa conversa. O pano estava quase a subir para a terceira ré-cita e o encenador, com gentil pragmatismo, deixa im-portantes recados à cenografia e figurinos. “Vejam-me lá

aquilo... arregaçaram as calças dos anjos, parecem pescadores...

É só subir um bocadinho, uma dobrinha, mais nada. Senão,

quando entra toda a luz, parece que estão de cuecas...” Perante comprometedores detalhes para a glosas, não sobre o sexo mas a indumentária dos anjos, regressa à superfície com a mesma naturalidade, prossegue mais um cigarro e es-clarece: “Estão à vontade, isto é trabalho.”

Um trabalho de três intensas semanas que teima em não ter fim e que deixou uma ou duas borboletas no estômago. “Já estou velho para nervos. Mas confesso que es-

tava muito nervoso no ensaio geral. Havia ainda falhas, coisas

que não estavam bem conseguidas. Estava com algum receio.” Neste que talvez se afigure como o projecto mais difícil da sua carreira, os dias de ensaios correram a uma velocidade vertiginosa. Tecnicamente, o cineasta sentiu nos om-bros o peso hierárquico de uma estrutura como a do São Carlos. “Tentei ‘baralhar’ um bocado as regras... mas é preciso

obedecer a algumas.” E contou com a preciosa assistência do compositor Nuno Côrte-Real, que, ao piano, já lhe tinha apresentado a música e convocado o espírito de Banksters.

Inicialmente surpreendido por algum vocabu-lário, depressa viu a coerência das palavras de Graça Moura enquanto tudo se edificava. “A figura do Bobo, do

Régio, também estava a brincar com a ditadura portuguesa.

A ideia, acho eu, era a de que Salazar se fosse embora, que

pedisse perdão e que talvez tivesse direito ao céu. E hoje é sobre

os banqueiros, que deviam estar todos presos e não estão.” João Botelho não poupa elogios a todos os parceiros nesta odis-seia, incluindo o desempenho “extraordinário” do jovem maestro Lawrence Renes. “É um miúdo com grande talento”. Esta cómica tragédia vive de um núcleo de prota-gonistas eficazes na execução, com relevo para Sara Braga Simões, que veste com firmeza a voluptuosa mundivivên-cia de Mimi Kitsch, mulher do presidente do banco. “É uma

experiência muito exigente. Tenho umas centenas largas de

marcações.” Todos vagueiam num movimento agitado, dentro dos limites impostos numa ópera. Foi suplementar a tarefa de dirigir actores que, ali, não podem deixar de ser cantores. “Eles são julgados pelo canto, pela pose, só que isto

tem muita acção e representação. Pude potenciar a grandeza

que têm para poderem estar à vontade. Mas eu sou pelo lema

dos fuzileiros: se fosse fácil estariam cá outros.”

Podia ser a história de um filme, mas não é. O palco, com a sua finitude, transforma-se num espaço enorme, “sem rede”, como se de um plano geral se tratasse, em que não é possível repetir, fazer takes, voltar atrás, edi-tar. O encenador não se coibiu, contudo, de brincar com toda esta coisa séria, trazendo a lume a sua própria e ine-vitável identidade. “O meu filho Francisco foi meu assistente

e, a certa altura, disse-me: «Isto parece um filme teu»... Se uma

pessoa está cá é para fazer o que sabe.”

A luz é direccionada. “O escuro no meio é uma ten-

tativa de criar profundidade”. Em cima da secretária, uma vigorosa abóbora simboliza o poder e universo do ban-queiro. O sexo e a traição da mulher assumem a forma de uma melancia. Sombras chinesas que definem atmos-feras de escritório dão lugar a centenas de pares de sapatos femininos - construídos em papelão e coloridos individu-almente. “O cinema é uma arte de vampiros”, diz o cineasta sobre uma certa impureza e falsidade da Sétima Arte, que

66 | glosas, #3

banksters | à conversa com nuno côrte-real, vasco graça moura e joão botelho

suga elementos a outras para poder existir. Para Banksters recorre ao seu Caravaggio, que tanto aprecia, e a vários ele-mentos pictóricos. “Fui ‘roubar’ ao Goya o Voo das Bruxas,

ao Richter os vitrais de Colónia, brinquei com Méliès, com o iní-

cio do cinema, Darth Vader, Máscara-de-Ferro... A minha

ideia não é ilustrar, é criar situações em que aquilo possa ser

possível.”

Assente na premissa do combate espiritual, Angelino Rigoletto é o Anjo, o enviado divino que despe a ostentação e evidencia uma miséria rica. A complexi-dade da condição humana faz oscilar entre o absurdo e o sublime, o que permitiu pincelar ao sabor da narrativa, do negro à candura. “Há pessoas que são maravilhosas mas que,

em meia hora, são uns bandidos”, afirma. “E há pessoas que são

uns bandidos e que, depois, são de uma generosidade atroz...

E isto convenceu-me a acabar em branco e não em vermelho”. Não significa que concorde com a ideia de redenção, porque, se dependesse de si, não havia um final feliz. “Por

mim mandava o banqueiro para o inferno. Mas não pode haver

uma leitura única, têm de existir leituras abertas. Gosto que

as pessoas se interessem pelo Angelino, outras pelo Santiago,

outras pela Mimi, e outras ainda pelos anjos. Que leiam como

lhes apetecer. Caso contrário, isto não é Arte, é propaganda”. O mestre universal do suspense é exemplo desta aplicação de matizes. “Hitchcock é o cineasta mais abstracto que conheço.

Tem uma leitura muito primária para entreter as pessoas, tem

outra psicanalítica, depois outra por cima, e talvez ainda outra.

É o maior pintor no cinema.”

Entre a dissonância e a harmonia, Nuno Côrte--Real pulverizou a ópera com referências criativas e es-pecíficas que vão do Fado à Valsa, passando pela Haba-nera e pelo Funk. O encenador respondeu ao repto com recurso a casais de bailarinos que surpreendem visual-mente o espectador para evocar o que se ouve. Quando questionado sobre a Música enquanto ampla expressão artística, não encontra uma definição. “É qualquer coisa

vinda de Deus ou do Diabo... não tem explicação.” E exempli-fica. “O Coro é formado por pessoas normais. Lêem jornais des-

portivos, fazem barulho, falam uns com os outros. De repente,

quando começam a cantar, parecem anjos... É inacreditável o

poder que a Música exerce sobre as pessoas. Não tem a ver com

o humano, são forças estranhas.” Gosta de Velvet Under-ground e Lou Reed mas também é fã de Bach, de Mozart e muito de Schoenberg. “Quando ouço a Noite Transfigurada passo-me... já o ‘roubei’ umas três vezes. Gosto muito da Gubaidulina, também a utilizei em alguns filmes.”

Seria um sonho que Banksters conhecesse a itine-rância nacional que teve a sua ode a Fernando Pessoa, mas

talvez toque levemente a utopia. “É um dos erros da ópera.

Neste momento, temos um grave problema em Portugal, que

não tem a ver com a Cultura nem com as Artes mas sim com

a Educação.” O realizador de O Fatalista defende que umacriança de seis anos pode e deve descobrir a música clássi-ca, assim lhe seja dada a oportunidade. “Nos liceus de França,

tornaram obrigatório o visionamento de 50 filmes por ano,

para dizer aos miúdos que o Cinema não começou com Taran-

tino. Há uma história da Música e há uma história do Cinema.” Nesta e noutras áreas, os estímulos para a aquisição de competências assumem clara relevância nas camadas mais jovens. “Eu noto, pelos meus filhos, que o ensino está cada vez

mais degradado. Houve um nivelamento por baixo, em nome

da democracia. Mas, quando levei o Filme do Desassossego

aos cineteatros do país, encontrei turmas notáveis e descobri que

tudo dependia dos professores. Os professores são o mais impor-

tante no mundo.”

O regresso de João Botelho ao universo operático está previsto para 2012 com As Meninas Exemplares, em parceria com a Casa das Histórias – Paula Rego. “Quando

faço uma adaptação, seja de que obra for, tento não a alterar,

mas sim dar-lhe uma nova interpretação”. O livro da Con-dessa de Ségur, recorda, foi o primeiro que leu. A partir dele chegou a escrever um guião para cinema que talvez um dia ganhe voz(es). “A maneira de filmar, de encenar, de

compor; isso, sim, é que manda. Senão era tudo igual. Eu dou-

-lhe um guião a si e teremos pontos de vista diferentes sobre esse

mesmo guião, de certeza. A ópera, assim como o cinema, é um

ponto de vista.”

Esta inerente subjectividade deve chegar através de uma nova e regular produção; não basta reciclar en-cenações e engrossar um repertório já existente, porque “a

Ópera morre se a tratamos como um Museu”. E recusa os pre-conceitos associados a esta arte. “Transformaram-na numa

coisa de elites e de ricos. É caro, sim, mas duas horas antes do

início custa um terço do preço. Há descontos para escolas. Acho

uma estupidez esta ideia de que somos todos iguais e de que to-

dos temos o mesmo acesso à cultura geral. Nas salas de cinema,

se eu ganhar 10 dos 200 mil espectadores é maravilhoso! Aqui é

a mesma coisa.”

A simetria, essa, estará sempre patente. Apesar de todas as diferenças, o Cinema e a Ópera coexistem e procuram algo em comum: tirar o espectador da sua zona de conforto. “Gostava que as pessoas saíssem do Banksters e

fossem fazer qualquer coisa diferente do normal. Dançar, es-

crever, pintar um quadro... o que for. Que apele a algo que não

tenha a ver com o rasteiro quotidiano. É essa a função da Arte:

inquietar.” •

glosas, #3 | 67

68 | glosas, #3

Romance do Grande Gatão

entrevista a Sérgio Azevedo e Lídia Jorge

por Lea Brooklyn Cardoso e Mónica Brito

Sei que o seu doutoramento trata da pro-

blemática da música para crianças no séc. XX.

Gostaria que me falasse um pouco sobre isso.

O meu doutoramento veio na sequência da minha ac-

tividade com música para crianças, que já tem alguns anos. É,

basicamente, uma reflexão sobre o que é a música para crianças

e o papel que ela tem desempenhado, nomeadamente no século

XX, altura em que começa a ser encarada como um género es-

pecífico.

Eu encaro a música para crianças como um género

que está muito ligado a questões da política no século XX

porque, precisamente por serem crianças, houve uma tentativa

dos poderes totalitários e de algumas democracias em períodos

mais socialistas (como o caso dos EUA, de Roosevelt) no sentido

de criarem uma espécie de arte para as massas. Dentro dessa

arte para as massas, que tinha alguns intuitos demagógicos e

outros de formatação das pessoas, é evidente que a música para

crianças teve um papel de relevo até do ponto de vista negativo.

As crianças eram encaradas como os “cidadãos de amanhã”.

Reflicto sobre essa problemática porque a música para

crianças no séc. XX está longe de ser inocente. A maior parte dos

compositores não compuseram música para crianças simples-

mente porque achavam que era importante criar reportório. Há,

digamos, intuitos políticos, quer positivos quer negativos. Por

exemplo, no caso do Copland e do Roosevelt há uma intenção

positiva de esclarecimento das massas, no caso da Rússia de Sta-

line é evidente que há uma tentativa de formatação das mentes.

Lopes-Graça foi um compositor muito importante

nesse sentido. Apesar de ser comunista e politicamente empe-

nhado, na música para crianças é, talvez, no século XX, aquele

cujas músicas estão mais isentas de intuito político. Na escolha

dos textos e no tipo de música ele está muito longe dos outros

compositores que escreveram para crianças. A primeira parte

da minha tese reflecte sobre todas estas questões e a segunda

parte é a minha conclusão e a minha resposta ao que eu aprendi

sobre isso. É a minha posição enquanto compositor em relação a

essa problemática, muitas vezes perigosa.

A escassez de reportório musical para crianças

continua a ser um problema. Tem noção do seu

contributo positivo?

Bom, esta situação tem vindo a mudar. Sim, tenho

noção do meu contributo, pelo menos em termos de quantidade…

A qualidade pode, é evidente, ser discutível, mas a quantidade

não. Felizmente não sou o único. Quer dizer, o Lopes-Graça é

claramente o compositor português que mais se dedicou às cri-

anças, quer a nível de qualidade, quer a nível de quantidade,

mas actualmente temos peças (sobretudo ao nível do conto musi-

cal) de Luís Tinoco, Fernando Lapa, Eurico Carrapatoso, Pedro

Faria Gomes... Ou seja, há uma série de jovens compositores - e

de não tão jovens, entre os quais me incluo eu - que têm escrito

muitos contos narrados. Há outros, como o Carlos Garcia ou o

António Victorino d’Almeida, que têm escrito canções. Começa,

de facto, a criar-se um reportório mais interessante e há vários

compositores que não mencionei, mas nos últimos dez anos tem

havido um crescimento.

Este seu interesse surgiu há muito tempo?

Sim, já fazia música para crianças há muitos anos.

Não fazia era com a mesma quantidade. Lá está, depende dos

pedidos, depende da procura. Eu, por exemplo, comecei a es-

crever música para crianças para piano, que era o que se pedia

mais. Comecei a escrever em 1987 o Caleidoscópio, que é uma

obra in progress… Vou juntando peças ao longo dos anos.

Depois escrevi umas canções que me pediram, para

coro, isto já em 1996, mas esse coro acabou e deixou de haver

pedidos; por isso, entretanto não escrevi mais nada. Ultima-

mente tem havido encomendas e pedidos e a procura é cada vez

maior. Os organismos, os coros e as escolas começaram também

a ter uma acção activa. Ultimamente, independentemente dos

pedidos, comecei a ter consciência de que era preciso começar a

escrever, porque é importante. É o nosso público de amanhã.

Falávamos de Lopes-Graça, há pouco, e no de-

senvolvimento que ele teve na música para

crianças. Não acha que o facto de ter estudado

com ele durante muitos anos o pode ter influ-

enciado nesse sentido?

Claro, é evidente. O Lopes-Graça influenciou-me em

muitos sentidos. Não tanto em termos musicais, não é uma

grande referência enquanto compositor, mas sim enquanto

ouvinte, pela sua ética, como compositor empenhado, no bom

sentido, e atento aos problemas da música na sociedade. Aliás,

eu já admirava Lopes-Graça, quer a sua música, quer os seus

escritos (já tinha os livros dele antes de o conhecer), quer a sua

posição no mundo.

Eu não acredito na posição de um compositor que está

numa torre de marfim e não quer saber nem de público, nem

de intérpretes, nem nada disso. E o Lopes-Graça não tinha essa

posição, ele preocupava-se com os músicos e com os intérpretes

glosas, #3 | 69

romance do grande gatão | entrevista a sérgio azevedo e a lídia jorge

sem comprometer a sua própria linguagem. É que, na 2ª metade

do séc XX, sobretudo com algumas vanguardas, principalmente

as pós-seriais, criou-se um bocado a ideia de que, se o composi-

tor se preocupar com o público e com os intérpretes, assume um

compromisso estético inevitável e a sua música perde qualidade.

Houve uma certa resistência, por parte dos

compositores, em escrever para crianças. Ago-

ra que têm surgido mais trabalhos isso tem sido

uma mais-valia para os professores de música e

para os próprios alunos.

Não é fácil escrever para crianças, eu sei. Mas, aten-

ção, as minhas peças não são didácticas, pelo menos até agora.

Eu nunca escrevi um manual ou um conjunto de peças para

piano progressivas, a pensar nos graus, por exemplo, como o

Mikrokosmos de Bartok.

não se prestavam a ser tocados por orquestra pequena. Portanto,

preferi escrever um novo conto narrado e ele sugeriu-me a Lídia

Jorge, porque este ano estavam a comemorar-se os trinta anos

do primeiro romance dela. Por sorte minha, ela tinha dois con-

tos para crianças, tendo-me interessado mais o segundo, porque

o primeiro já tinha alguma ligação com uma obra que eu já

tinha feito (em termos de história).

A obra que escolhi, sobre um gato, é muito interes-

sante porque lida com o racismo. Existe uma tensão entre uma

família africana e uma família portuguesa que depois se resolve

em nome da tolerância. Foi um assunto que me interessou.

Como é que foi a adaptação do texto original,

de modo a que todo o conto musical fosse pas-

sível de ser imediatamente entendido?

A Lídia Jorge, que assistiu à estreia, é uma pessoa sim-

patiquíssima e deu-me autorização para adaptar e reduzir o

conto. Foi de uma generosidade impressionante. Eu acho que a

adaptação resulta bem e a Lídia teve muita consciência de que

uma coisa adaptada à música não funciona da mesma maneira

que uma coisa feita para ler. A música tem os seus imperativos

e as crianças têm de perceber tudo à primeira, não é possível

repetir. Tive mesmo de simplificar algumas expressões, porque

a linguagem da Lídia é muito rica e uma criança que leia pode

perguntar ao pai o significado de determinada palavra, mas

durante o espectáculo não há tempo nem capacidade para isso.

Como caracteriza a obra a nível instrumental?

É uma orquestra normal, clássica, mas com duas per-

cussões. Tem um percussionista que toca bateria e tem marimba.

O gato é um clarinete. Quando os dois gatos andam à luta no

meio da peça, são dois clarinetes que quase se digladiam na

orquestra: levantam-se e tocam de pé. A família africana é sim-

bolizada pela marimba. Não há propriamente temas, embora

existam algumas ideias que se repetem. O gato não tem um

tema mas sim um timbre, que é o clarinete. Por exemplo, de vez

em quando o gato tem valsas porque anda por lá a explorar o

mundo e eu acho que este tipo de música tem uma certa leveza. É

uma obra complexa mas que se adequa ao texto e a reacção das

crianças foi boa. A música para crianças deve ser entendida por

elas, mas não deve cair no simplismo da banalidade só porque

é para crianças. Enfim, pode é haver complexidade associada a

uma imagética. Eu não nego que há uma influência de música

para cinema nos meus contos narrados. Aliás, o meu primei-

ro conto narrado é quase uma banda sonora, nesse sentido.

Gostaria que me falasse sobre o prémio SPA,

relativo ao Concerto para Piano e Orquestra.

A peça foi escrita em 2010 por encomenda do CCB

para os Dias da Música. Foi tocada pelo António Rosado e pela

Orquestra do Algarve. Escrevi a peça, foi estreada no Grande

Auditório e tive a sorte de a RTP e a RDP gravarem o concerto.

Pretende dar continuidade a este tipo de com-

posição, para crianças?

Sim, sim. Fiz há pouco tempo mais dois ciclos de can-

ções. Tenho trabalhado com a Joana Raposo, que estreou as mi-

nhas cantatas de Natal, e com outros coros. E eu gosto de escre-

ver para crianças. Até é bom para descansar de peças maiores.

Às vezes digo aos meus alunos que estar sem compor durante

muito tempo não é bom e escrever peças mais simples é, por ve-

zes, uma maneira de relaxar sem parar o mecanismo da criação.

Estreou agora há pouco tempo o Romance do

Grande Gatão. Como é que nasceu esta ideia?

Foi um pedido do maestro Osvaldo Ferreira, da Or-

questra do Algarve. Pediu-me ajuda para programar cinco con-

tos narrados, que seriam feitos várias vezes durante dois ou três

meses. Eu sugeri-lhe o que havia para orquestra pequena, um

conto do Eurico Carrapatoso, outro do Pedro Faria Gomes, ou-

tro do Lopes-Graça e um quarto conto de Prokofiev que é muito

pouco conhecido em Portugal. Finalmente, haveria um quinto

conto, que seria o meu, mas os dois contos que eu tinha feito

Isso foi bom não só porque passou na televisão em diferido, mas

porque foi certamente importante para as nomeações. Impor-

tante porque é uma coisa que fica mais exposta publicamente.

Se não houvesse essa gravação, não sei se teria sido nomeado.

Este ano telefonaram-me da SPA a dizer que eu era

nomeado e, de facto, qualquer um de nós podia ter sido vence-

dor. A obra de Pedro Amaral é excelente e o trabalho de Álvaro

Cassuto também é fantástico, pois incide na gravação de Luís de

Freitas Branco (um trabalho que já devia estar feito há muitos

anos em Portugal).

Fico contente por ter ganhado o prémio, mas ter sido

nomeado já é bom. Enfim, eu não ligo muito a prémios – os

prémios são o que são, somos humanos, é saboroso – mas tenho

consciência de que um prémio não faz a qualidade de uma obra.

Felizmente, é evidente que abre algumas portas, há

pessoas que vieram falar comigo pela primeira vez porque me

viram na televisão… Infelizmente, isso também mostra o des-

prezo a que a música erudita é votada. Basta nós aparecermos

um pouco na televisão, uma vez, e de repente temos quase mais

notoriedade do que em vinte anos de carreira.

• Lea Cardoso ~

romance do grande gatão | entrevista a sérgio azevedo e a lídia jorge

que eram pequenos na altura em que escrevi o primeiro. Pus-me

ao nível deles. E resultou naturalmente.

É preciso conhecer bem as crianças para lhes

escrever uma história?

O conhecimento é sempre muito difícil, exige uma re-

flexão. Talvez me interesse mais que nos deixemos contaminar

com a sua linguagem, sobretudo com o seu estado de pré-ciência,

em que têm a ideia de que “a Lua é a mãe do Sol”... As crianças

têm relações antropomórficas muito primitivas, em que todo

o mundo é interpretado em termos de sentimentos, de afectos,

de relações à semelhança de uma família. O que é o mundo da

Poesia? É isso mesmo, esse traço pueril. Há uma teoria bastante

interessante que é a de que nós vamos deixando sempre activas

várias camadas sobrepostas: o espírito mágico da infância; o es-

pírito romântico do adolescente; o espírito filosófico próprio do

pré-adulto; e, finalmente, aquilo que faz o nosso mundo adulto,

em que criamos um envolvimento protector para não nos sentir-

mos penetrados pela dureza da realidade, não deixarmos que o

afecto nos destrua. Segundo essa teoria, quando queremos vol-

tar para trás, podemos fazê-lo e manter novamente esses vários

percursos. É como se pudéssemos escavar na nossa arqueologia.

Tenho pena de não ter mais tempo para escrever para crianças...

Mas está nos seus planos?

Sim, já escrevi várias pequenas histórias. Gosto

bastante de imaginar para as crianças.

Pelo que disse, concluo que aconselha esta

leitura a qualquer adulto.

Sim, acho que faz bem aos adultos lerem as histórias

infantis. Permite regressos e, ao mesmo tempo, permite vibrar

com a alegria perante as coisas. Podem ser situações muito pue-

ris, mas imaginá-las como que nos “lava” os olhos. Renascemos.

O concerto em sua homenagem assinalou os

trinta anos da sua carreira literária e coinci-

diu com o convite para colaborar com Sérgio

Azevedo na adaptação d’O Romance do Grande

Gatão. Como surgiu esse convite?

Foi muito curioso. Encomendaram um Concerto de

Comemoração ao maestro Osvaldo Ferreira e ele fez uma coisa

muito bonita. Escolheu o Concerto para Violino e Orquestra em mi menor, do Mendelssohn - com interpretação do jovem vio-

linista André Pereira. Por outro lado, utilizou uma peça muito

importante de Lopes-Graça, a Sinfonietta, com a intenção de

fazer uma homenagem ao Dia dos Prodígios, livro em que

fui buscar traços rurais ancestrais e fiz com eles uma espécie de

canto, de louvor, àquelas figuras. O maestro escolheu este meu

livro para mostrar que tudo “renascia”, tudo voltava ao início. O

Sérgio Azevedo fez uma peça muito curiosa e engraçada. Colo-

cou muito bem aquele diálogo entre as duas etnias, os grupos

70 | glosas, #3

Esta não é a sua primeira incursão pelo uni-

verso infantil, já tinha escrito O Grande Voo do

Pardal. Teve de encontrar um código diferente?

Eu sou espontânea nessa área, não tenho um saber

acumulado, mas devo dizer que não me pareceu difícil. A su-

posição de que se está a falar para crianças pressupõe que se

regresse a um olhar primitivo que temos dentro de nós, como se

descobríssemos a vida pela primeira vez. Acho que todos temos

essa capacidade de ficar desprevenidos perante a realidade, de

dar valor a detalhes que se perdem, mais tarde, quando somos

adultos. O adulto tem um mundo pragmático, em que as trocas

têm bastante de comércio, fazem-se no domínio da utilidade,

sempre com uma finalidade própria. Se nos imaginarmos de

novo desprendidos dessa espécie de ciência sobre o mundo prag-

mático do adulto, torna-se simples. Só escrevi dois livros para

crianças, mas o que fiz foi, pura e simplesmente, imaginar que

me sentava a contar uma história para os meus dois afilhados,

romance do grande gatão | entrevista a sérgio azevedo e a lídia jorge

excerto da partitura de Romance do Grande Gatão, gentilmente cedido pelo compositor

glosas, #3 | 71

72 | glosas, #3

romance do grande gatão | entrevista a sérgio azevedo e a lídia jorge

humanos que estão em causa na história. O diálogo entre os

clarinetes é lindíssimo. Estive na estreia e foi muito bonito. A

peça é muito bem feita, com muita alegria e entendimento do

espírito do Gato.

Acompanhou a adaptação musical da sua obra?

Só acompanhei a síntese do texto. O resto fui sabendo,

o Sérgio Azevedo foi explicando a sua intenção, quais os anda-

mentos que ia usar e seus significados.

Falamos de um pequeno grande”protagonista.

É mesmo. É um gato normal, mas chamam-lhe

“Grande Gatão”, porque foi capaz de fazer a Paz entre os ini-

migos. E essa tensão que havia entre as famílias está muito bem

na adaptação musical. Há um momento divino que é o da fuga

do gato para os telhados e o contacto com a Lua. É lindíssimo...

Aparecem os violinos, há toda uma colocação do lado romântico

e contemplativo do gato, a parte sensual... Está muitíssimo bem.

Viu a sua obra Costa dos Murmúrios recriada no

cinema, em 2004. Na perspectiva que já tem

hoje, a adaptação de uma obra literária para o

mundo musical tem algum paralelismo com a

que é feita para o grande ecrã?

O paralelismo é este: são objectos completamente dife-

rentes. É um erro querer que uma coisa coincida com a outra, o

que se pode pedir que coincida é o espírito. Nesse campo, tenho

tido sorte. Já tive também uma adaptação ao teatro – o Dia dos Prodígios, no Teatro da Trindade, pela Cucha Carvalheiro - e

agora esta para o mundo da Música. Sempre me pareceu, fe-

lizmente, que as pessoas que utilizaram os meus textos fossem

de grande nível, porque criaram outro objecto completamente

diferente, mas equivalente na intenção, na dramaticidade. E

agora são objectos deles, com o seu cunho muito pessoal. Sempre

dei a todos liberdade absoluta, desde que não traíssem o espírito,

e resultou. Em relação ao Sérgio Azevedo, não o conhecia pro-

priamente, mas achei que a proposta que fazia era tão sólida,

tão avançada, e o currículo dele tão bom, que seria ridículo estar

a fazer qualquer exigência.

Já tinha tido alguma outra experiência com

compositores?

Não. Mas tenho assistido muitas vezes a adaptação de

contos para teatro, a leituras acompanhadas de música.

A música acompanha-a enquanto escreve?

Não. Para escrever preciso de silêncio. Mas a música

esta cá dentro...

Quais as suas preferências musicais?

Gosto de jazz. E gosto dos simbolistas, dos barrocos.

A música é tão vasta... Gosto muito das experiências que são

étnicas e eruditas ao mesmo tempo. Por exemplo, a mistura do

tango com a música erudita, aquilo que o Yo-Yo Ma faz com

o violoncelo. Gosto da ligação da música africana com Bach, o

caso da Lambarena.

Agrada-lhe a fusão entre a Palavra e a Música?

Acho que há todo um campo de experimentalismo que

se pode fazer, sobretudo neste momento em que os géneros se

confundem e que as palavras muitas vezes ocupam novos lugares

na nossa vida, ao longo do dia. Há um tempo atrás fiz uma ex-

periência dessas com o maestro Cesário Costa, sobre a perspec-

tiva feminina, chamada Palavras Cantadas. Escolhi árias com

vozes de mulheres e pus em relevo as palavras, para fazer vibrar

outra vez o poema, porque muitas vezes ele “desaparece”. Quando

se ouve, por exemplo, a ária de Carmen «L’amour est un oiseau

rebelle... »nós conhecemos a música, mas a verdade é que não

temos bem a noção da letra, não absorvemos a sua mensagem.

As referências musicais percorrem, de alguma

maneira, as páginas dos seus livros?

Percorrem. Muitas vezes não são só as eruditas. No

meu último livro, A Noite das Mulheres Cantoras, Mahler

está muito mais presente do que aparece no livro. Eu gosto mui-

to do Mahler, acho extraordinário. Talvez as pessoas da minha

geração gostem muito daquela sua melancolia, e talvez também

de toda a sua história, a situação de incompreensão que houve

em torno dele. Mas este livro está cheio de referências ao Mahler,

mesmo quando ele não está lá. Sobretudo determinados anda-

mentos d’A Canção da Terra estão muito presentes. Pelo menos

na minha cabeça, ainda que possa não estar muito claro no livro.

Terão sido algumas personagens suas contami-

nadas pelos seus gostos musicais?

Claro. Num outro livro, Combateremos a Sombra,

tem muito a música da Diana Ross e do grupo inicial que ela

formou. Para trás há um outro, O Vento Assobiando nas Gruas, que tem muito de música pop contemporânea. E este

último tem imenso da música dos anos 80. Porque eu gosto de

escrever sobre figuras arrancadas da sociedade comum. Gosto

de transfigurar o contemporâneo, as figuras comuns, do quo-

tidiano, acho encanto nessa proximidade. Gosto de escrever

em torno daquilo que é a alegria dos jovens, e a sua decepção

também. E, naturalmente, todo esse tipo de música acompanha

os sonhos destas gerações, que me são também contemporâneas.

Os Pink Floyd e os Rolling Stones estão muito presentes. Mui-

tas das minhas personagens ouvem a minha música, ouvem a

música que eu ouvi ou que estou ouvindo. Acho que acontece

um pouco com todos os escritores, que acabam por transferir

para as personagens aquilo que é a sua própria vida. Nós tam-

bém escrevemos para... (pausa) ... para não nos contarmos a nós

próprios... Mas deixamos elementos, “gatos escondidos com os

rabos de fora”...

romance do grande gatão | entrevista a sérgio azevedo e a lídia jorge

O Romance do Grande Gatão pode trazer-lhe

novos e diferentes leitores?

Traz jovens leitores. E que crescem muito rapidamente...

E que irão ler outros livros seus.

A minha ideia é a de que este tipo de livros, para já, é

para um outro público. Mas é possível que depois ao crescerem -

e crescem tão rápido... - pensem que podem ler outros livros. Mas

na vida do escritor nada é calculado, pelo menos para mim. O

que acho curioso é que há adultos que leram pela primeira vez

os meus livros às crianças, aos seus filhos, e depois interessa-

ram-se pelo que escrevo, por aquele que é, de facto, o meu cam-

po. E até há pessoas que acham que existe um fio condutor.

O seu coração balança entre a poesia e a ficção? (risos) Balança. Só que tenho “vergonha” da poesia...

(risos) De certa forma, quando escrevemos romances, há uma

parte que é poética nos livros, senão não existem como tal. Mas

em Portugal existem grandes poetas, e grandes mulheres poetas.

Se, ou quando, eu tiver consciência de que vale a pena publicar

o que tenho escrito em poesia, de que há alguma coisa que tem

uma voz própria, publicarei. Senão, ficarei pelas narrativas e

deixo o campo aos outros que são grandes poetas.

Está para breve um novo livro?

Está a aparecer agora um. Vou começar a escrever

outro, que já devia ter começado antes.

Não será de poesia...

Nunca se sabe... (risos) Eu acho que isto é muito im-

portante: não dissipar o que se ama. Nós amamos o livro so-

bretudo enquanto o estamos a construir. Nisso há um grande

paralelo com o Amor. A Rosa Montero diz que escrever é exac-

tamente como estar enamorado, fala da relação com o livro

como uma paixão. Eu concordo. Quando as pessoas se apaixo-

nam há um desejo muito grande de contar ao mundo mas,

ao mesmo tempo, há um movimento contraditório. A palavra

parece que desencanta. Assim que pronunciamos a palavra, o

amor fica finito e isso não queremos... Até que o tempo passa

e nos dá a certeza de que pode passar para o social. Já há uma

relação sólida, é suficientemente forte para enfrentar o público.

Com os livros é a mesma coisa. Se começamos a falar demasiado

cedo como que se esvai a energia que lá está, esvai o sonho. E nós

escrevemos com sonho.

Pelas suas palavras, o Romance do Grande Gatão

não podia ser outra coisa que não fosse uma

história de amor...

(risos) E é uma história de amor, de muitos por um

gato e de um gato por muitos... Sabe que essa história é inventada

a partir de um gato real, o mais lindo que vi na minha vida. O

meu vizinho, no Algarve, tinha um gato listado, cinzento e cor-

-de-laranja, com uma cara redonda, redonda, redonda, parecia

uma boneca, era lindíssimo! Mais tarde, fiquei a saber que o

gato tinha fugido e que tinham desaparecido todas as suas foto-

grafias. Foi um desgosto enorme. Mas reconstituí de memória.

Se está morto fi-lo ressuscitar; se foi para fora fi-lo regressar...

E depois coloquei-o naquela vizinhança conturbada - uma outra

história que conhecia de duas famílias, uma africana e outra

portuguesa. A isto tudo juntei as romanzeiras da minha mãe. E

assim criei um espaço por inteiro. Com os desenhos da Danuta,

que são maravilhosos, há um território e uma atmosfera que, a

partir de agora, existem. Isso é que é bom nas histórias.

• Mónica Brito

O Doutoramento Honoris Causa, que lhe foi

atribuído em Dezembro pela Universidade

do Algarve, pode ser considerado o momento

mais marcante da sua carreira?

Foi um momento muito marcante. Por um lado, foi um

reconhecimento que fizeram aos meus livros, atribuindo-lhes

uma determinada importância que eu nunca lhes tinha dado,

de repente fiquei a pensar se não será mesmo verdade... (risos) Talvez, pela primeira vez, eu tenha feito uma espécie de balanço,

talvez tenha sido o momento que me obrigou a tomar mais a sério

o meu próprio trabalho. Por outro lado, foi uma universidade do

sítio onde nasci, que é sempre o mais difícil de conquistar. É pre-

ciso fazer uma grande volta para chegar à terra onde nascemos...

Foi um gesto de gratidão da sua terra.

É verdade. Eu sinto isso e, portanto, veio com uma car-

ga emotiva adicional. Foi dos dias mais bonitos da minha vida.

Foi um dia maravilhoso. Foi um momento em que defendi a

ideia de que tudo isto aconteceu por mim, é verdade, mas tam-

bém porque houve uma sucessão de bons acasos na minha vida.

E expliquei-os. O primeiro foi o facto de ter nascido numa

família de camponeses que amava livros, o que naqueles anos

não era assim tão natural. Tive essa sorte.

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Este livro decorre da dissertação de Doutora-mento em Sociologia da Cultura, apresentada na Univer-sidade de Coimbra, e centra-se essencialmente na análise do carácter subalterno da música portuguesa de tradição erudita no contexto europeu. O facto empírico em si – a ausência, a subalternidade – não carecia de investigação. Faz parte daquilo que é geralmente aceite como verdadei-ro e, nesse sentido, não seria necessário levar a cabo uma investigação para comprovar aquilo que já se sabe, embo-ra não seja propriamente do conhecimento comum nem a extensão nem o grau que a ausência atinge. Pude verificar casos de grande desconhecimento sobre o assunto, dado o carácter de pequena tribo isolada que constitui o meio musical português. No entanto, as abordagens do pro-blema que existem circunscreveram-se, na maior parte dos casos, à constatação do facto e a várias formas de lamento ou protesto sobre a invisibilidade. Para além de um estabelecimento documentado dos dados da ausên-cia, tratava-se antes de levantar novas hipóteses sobre os mecanismos que a produzem, sobre os discursos que a re-produzem e, acima de tudo, sobre as relações de poder de âmbito trans-nacional que a sustentam.

Tendo em conta, de acordo com Quivy, a im-portância da ruptura, que consiste precisamente em romper com os preconceitos e as falsas evidências, consi-dera-se, nesse sentido, e seguindo o mesmo autor, que “essa

ruptura só pode ser efectuada a partir de um sistema conceptual

organizado, susceptível de exprimir a lógica que o investigador

supõe estar na base do fenómeno” (Quivy e Campenhoudt, 2003). Essa parte do trabalho, construir um sistema con-ceptual, constitui os seis primeiros capítulos.

A problemática que nos propusemos investigar e analisar – a ausência da música portuguesa erudita no contexto europeu – transporta consigo todo um discurso lamentoso, que, aliás, e como veremos, não é de modo ne-nhum exclusivo do campo musical, mas comum às diver-sas artes e, de certo modo, à cultura portuguesa no seu todo. Importava, por isso, em primeiro lugar, descrever e interpretar esses discursos, detectar os seus vários mati-zes, tentando avançar para uma outra espécie de questiona-mento mais amplo, capaz de vir a produzir outro tipo de resposta. Aquilo que Quivy designa como preconceito e

Música e Poder: para uma sociologia da ausência

da música portuguesa no contexto europeu

introdução ao livro por António Pinho Vargas

como falsa evidência consiste, neste caso, num conjunto de ideias feitas, num discurso recorrente que, não obstante ter a sua base e o seu fundamento inscritos na realidade, não parecia capaz de fornecer uma análise nova, eventual-mente mais profunda, da problemática antiga. Para ten-tar chegar a tal desígnio, o passo fundamental, de facto, consistia na organização de um sistema conceptual muito diverso do usual na musicologia tradicional e mesmo nas outras ciências sociais e humanas instituídas.

Esta temática está presente de várias formas nos textos dedicados à História da Música Portuguesa, em de-clarações de compositores, em entrevistas feitas a músi-cos tanto portugueses como estrangeiros, em declarações programáticas de instituições e ainda nas intenções ins-critas nos programas dos sucessivos governos sob o lema da internacionalização da cultura portuguesa abarcando--a no seu todo. No entanto, apesar e para além destes enunciados gerais, parecia-me que os discursos sobre essa ausência, sobre essas dificuldades nunca vencidas, não forneciam todas as respostas possíveis a uma problemáti-ca com algumas zonas de obscuridade que desafiavam o desejo analítico.

O objectivo era então ensaiar um estudo amplo do problema em articulação tanto com as visões inter-nas da questão, muitas vezes inseridas em visões globais das relações de Portugal com a Europa, ou seja, com a sua posição geocultural em relação aos países centrais da Europa, como igualmente em articulação com o próprio modo de funcionamento do campo musical da música eu-ropeia de tradição erudita que interessava precisar. Uma das maiores dificuldades da abordagem desta problemáti-ca radicava na própria noção corrente da música como “linguagem universal”, facto que, a ser verdadeiro, lançava uma maior perplexidade sobre o assunto. Seria a música portuguesa, na verdade, uma expressão artística inferior? Seria na sua falta de qualidade genérica que residiria a ex-plicação para o facto de nenhuma peça portuguesa ter algu-ma vez integrado o cânone musical europeu ou, mais sim-plesmente, ter sido alguma vez cooptada pelo reportório corrente das salas de concertos do mundo ocidental, ou das partes do mundo onde a tradição da música “clássica”, como é vulgarmente designada, está presente regularmente?

Esta hipótese, que creio ser perfilhada, à partida, por aqueles que exprimem quotidianamente o complexo de inferioridade dos portugueses ou defendem a existência de um atraso irrecuperável de Portugal de praticamente todos os pontos de vista não me parecia suficientemente afastada dos lugares-comuns aceites e não interrogados para poder ser considerada – excepto igualmente como objecto de análise – num trabalho de carácter científico. Este tipo de discurso exprime-se muitas vezes de um modo surdo e só por vezes assume a forma escrita tal como sucedeu em grande escala, por exemplo, no século XIX e em certos momentos do século XX.

No entanto, talvez o facto de eu próprio ser músi-co e compositor me impedisse de aceitar, de ânimo leve, uma explicação que atribuía, com a segurança antecipada que as ideias feitas sempre conferem, o estatuto de infe-rior ou subalterno não só a tudo aquilo que já foi feito, como àquilo que ainda está por fazer. Nesse sentido, esta explicação aproximava-se de uma condenação, de uma fatalidade, de um destino ao qual não seria possível es-capar. Gradualmente foi-se tornando uma evidência que os factores que eu tinha começado por sentir individual e subjectivamente como artista afectavam toda uma comu-nidade de artistas e, assim sendo, era imperativo ir mais além no questionamento das suas razões profundas.

Nesse sentido emergia uma pergunta fundamen-tal: quem declarava essa presumível falta de qualidade, essa inferioridade atávica, essa irrelevância insuperável? Qual foi o Grande Júri que, ao longo dos séculos, decidiu o que incluir e o que excluir? Ou, ainda com mais pro-priedade, qual é o Grande Juiz que, ainda hoje, continua a deter o poder de o declarar?

A procura de uma resposta plausível a estas questões obrigava, por si só, a lançar vários tipos de sus-peitas e novas interrogações. Qual é a forma que reveste o funcionamento do campo musical ocidental? De que for-ma se constituiu historicamente o cânone musical? Que estruturas institucionais, que conjuntos de valores inte-riorizados produzem e reproduzem determinadas formas de regulação da vida musical na Europa, no mundo oci-dental e em Portugal?

O facto de se estar perante uma questão que en-volvia, com toda a probabilidade, relações de poder, tanto no interior de campos nacionais como nas relações cul-turais transnacionais, mas também ideologias, no sentido que Luc Boltanski dá ao termo, ou seja, “um conjunto de

crenças partilhadas, inscritas nas instituições, comprometidas

música e poder: introdução ao livro | antónio pinho vargas

nas acções e, por isso, ancoradas no real” (Boltanski e Chia-pello, 1999) obrigava a um esforço teórico de problema-tização muito para além dos recursos habituais usados na musicologia tradicional, ela própria, de resto, já debaixo de críticas, suspeições e revisões levadas a cabo especial-mente nos países de língua inglesa desde as últimas duas décadas do século findo.

Para além disso, parecia-me importante proceder a uma investigação empírica suficientemente exaustiva que permitisse estabelecer qual era a real dimensão da au-sência nos textos considerados de referência no campo musical, particularmente considerando que, a partir do ano 2000, foram sendo publicadas várias Histórias da Música do Século XX que pretendiam colocar-se num ponto de observação já privilegiado pelo facto de o século ter terminado.

Qual era realmente a presença/ausência da música portuguesa nas Histórias da Música publicadas nas línguas da Europa central – inglês, francês, alemão1 – e de que forma se colocavam, face a esta problemática, as próprias narrativas sobre a História da Música Portuguesa? Que tipo de discursos eram produzidos sobre música portu-guesa e, em particular, qual era a abordagem dos musicó-logos portugueses e dos agentes activos na programação das instituições culturais em relação à subalternidade da música que, supostamente, deveriam estudar, apoiar e programar?

A partir destas várias perguntas fui construindo o meu objecto de investigação e, simultaneamente, a teoria ou o conjunto de conceitos teóricos de várias proveniên-cias capazes de melhor fornecer hipóteses explicativas, in-terpretações e respostas mais sólidas do que as ideias feitas que uma espécie de senso comum interiorizado e sobretu-do naturalizado nos próprios agentes da vida musical foi fornecendo2. •

1) Os textos publicados em língua alemã não têm impacto directo em Portugal excepto quando existem traduções. Por isso, neste trabalho só esses serão considerados, com excepção da mera verificação das en-tradas na enciclopédia Musik Geschiste und Gegenwart, dada a sua im-portância simbólica. 2) Se me é permitido um conselho ao leitor, proponho que não se deixe cair na tentação de passar por cima das páginas das duas primei-ras partes e avançar imediatamente para a Parte III que trata a pro-blemática do campo musical português. Esse salto corresponde a “uma

nefasta e mórbida curiosidade” ligada à dificuldade para distinguir aquilo que é uma análise e não uma crítica. A parte teórica, aliás com muitas referências à temática central, não foi escrita apenas para preencher os requisitos de cientificidade, mas constitui em si a chave para fazer uma tal distinção.

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A edição musical em Portugal no século XIX

Maria João Albuquerque

Pode dizer-se que a idade de ouro da edição musical em Portugal se situa no século XIX. Para este facto terá contribuído a consolidação da monarquia liberal e a crescente importância da burguesia na sociedade portu-guesa. Este novo grupo em ascensão privilegia as novas práticas laicas de sociabilidade, onde domina o gosto pela música e pela dança. Para além destes factores, também temos a considerar os aspectos tecnológicos, onde se inscreve o desenvolvimento da litografia1, processo bastante mais económico e que permitia uma maior produção.

1) A Litografia é um sistema inventado por Alois Senefelder em 1796, que se baseia no princípio de que a gordura repele a água. Numa primeira fase escrevia-se sobre uma pedra calcária utilizando uma tinta especial preparada com cera, sabão e tinta negra, à qual se aplicava posteriormente água-forte. Este ácido corroía a pedra onde não estava a tinta, ficando aquilo que se escrevera elevado cerca de 2 mm na pedra que permitia depois a sua impressão. Numa segunda fase (depois de 1798), deixou de se gravar em relevo e passou-se a modificar quimica-mente a superfície da pedra, de modo que a tinta de impressão cobrisse umas partes e não cobrisse outras. Este segundo processo, considerado o verdadeiro processo litográfico, permitia imprimir utilizando uma matriz plana. Desde o início da sua invenção foi imediatamente apli-cado à música devido à sociedade estabelecida entre o seu inventor e o compositor Franz Gleissner que o utilizou para imprimir as suas próprias composições. (KRUMMEL; SADIE 1990)

KEIL, Alfredo - A Portugueza. Ed. grátis. [Lisboa : Neuparth & C.ª, 1890]

(Imagem retirada de BNP Biblioteca Digital)

Surgem, deste modo, ao longo do século XIX, várias empresas de edição de música, cuja produção já visava um consumo mais alargado. Estas editoras, para além de uma maior produção, comparativamente com aquelas que as precederam no século anterior2, apresen-tam também uma maior longevidade, passando algumas por várias gerações, como é o caso da empresa Sassetti, ou da Neuparth.

No entanto, verificamos que o repertório publi-cado continua a ser o que se destina ao consumo doméstico e não aquele que é procurado pelos músicos profissionais, pois o predomínio das edições vai para as reduções para piano, ou para canto e piano, de excertos de óperas ou de teatro musicado3. Com menos frequência se encontra a música para guitarra, para viola ou flauta. Continuam, porém, a publicar-se inúmeros manuais destinados ao ensino destes instrumentos, alguns deles dirigidos à aprendizagem autodidáctica4. A partir da segunda metade de oitocentos, predominam as edições de música popular urbana, como o fado ou o fado canção, e também trans-crições de canções de teatro de revista em voga no final do século. Encontramos, igualmente, uma produção abundante de hinos alusivos a monarcas ou a aconteci-mentos históricos nacionais, destinados a agrupamentos musicais como as bandas, fenómeno que assume grandeimportância no último quartel do século XIX.

Para além desta produção de cunho nacional, verificamos o gosto pela música italiana, principalmente pelas óperas de Rossini e de Verdi, nos inícios do século, passando gradualmente as preferências para a música de

2) É nos finais de setecentos que se situa a génese da edição musical especializada em Portugal, através de pequenas empresas de reduzidosmeios técnicos e financeiros, fundadas por um grupo de editores estrangeiros, apoiados pelo Estado Português. No entanto, todas elas apresentam um carácter bastante efémero e uma produção com índices de quantidade e de qualidade muito inferiores aos das suas congéneres europeias. (ALBUQUERQUE, 2006)3) A edição musical nos finais do Antigo Regime apresenta num primeiro momento um predomínio das edições de música litúr-gica, designadamente de repertórios de cantochão, mas a publicação de música profana começa a desenvolver-se a partir do reinado de D. Maria I, na qual se destaca a música vocal como as modinhas e as reduções de excertos de óperas, bem como a música de tecla, cujos géneros principais são a música de dança. A partir de 1820 desenvolve--se o gosto pelos hinos sobre temas patrióticos ou acontecimentosnacionais. (ALBUQUERQUE, 2006)4) É frequente encontrarmos títulos como este: Methodo para aprender

guitarra sem auxílio de mestre offerecido à Mocidade Elegante da capital por

um amador. Lisboa: Typ. de Christovão Augusto Rodrigues, 1875 - 28, [1] p. : il. ; 15 cm + 3 desdobr. (P-Ln M. 350//3 P.)

a edição musical em portugal no século XIX | maria joão albuquerque

autores franceses e alemães, a partir da segunda metade de oitocentos. Também os periódicos musicais atingem o seu auge na segunda metade do século XIX, embora a grande maioria apresente durações bastante efémeras, à excepção do periódico Amphion editado pela firma Neuparth, que publicou música e variadíssimos artigos sobre música e músicos, entre 1881 e 1898.

Fazendo uma análise cronológica do movi-mento editorial de música em Portugal, verifica-se que, até meados do século XIX, a produção continua ainda muito pequena, quer em número de empresas, quer em obras editadas. No entanto, a partir de 1850, esta activi-dade ganha um crescente interesse, surgindo um número razoável de editores de música, que já apresentam uma produção regular. Tal se deve, em parte, à estabilidade política e económica conseguida com a Regeneração, que só se irá alterar a partir de finais dos anos 80, devido às sucessivas crises da monarquia, período em que se verifica uma diminuição na produção editorial musical.

Nos finais do século, surgem algumas edições portuguesas impressas na Alemanha e muitos autores portugueses prescindem das editoras nacionais, prefe-rindo editar no estrangeiro. No entanto, é nas últimas décadas do século XIX que as edições portuguesas apre-sentam índices de melhor qualidade técnica.

Graficamente as primeiras edições são ainda muito pobres, verificando-se a partir da segunda metade do século um maior investimento na decoração, surgindo partituras amplamente decoradas com gravuras a cores.

Os editores

Os principais editores de música portugueses do século XIX estão estabelecidos em Lisboa e, de uma maneira geral, são estrangeiros, oriundos principalmente da Alemanha. Na segunda metade do século XIX, alguns estendem o seu negócio ao Brasil, optando por este país para exercer a sua actividade.

Durante as três primeiras décadas do século XIX, mantém-se a tendência do século anterior relativamente ao comércio e edição musical, ou seja, pequenas empresascom uma fraca produção. Assim, quando chegamos a 1834, apenas encontramos duas editoras, Bartolomeu José Gomes, cuja produção terminaria pouco tempo depois (em 1836), e Valentim Ziegler, músico alemão, que fundara um armazém de música em Lisboa em 1824, e que passou, em 1828, a dedicar-se à impressão e edição

de música pelo processo da litografia. É com este editor, cuja actividade se vai prolongar na segunda metade do século XIX, que a edição musical ganha outra dimensão, e é produzida em maior escala. Após a sua morte, em 1848, é o filho João Pedro Ziegler que fica à frente do negócio, associando-se a José Adrião Figueiredo. Procurando novos mercados, desloca-se para o Brasil onde funda novo estabelecimento editorial, nunca mais voltando a Portugal.

Outro editor da primeira metade do século XIX foi Joaquim Inácio Canongia, neto de um fabricante de sedas catalão que se estabeleceu em Oeiras, onde desenvolveu esta indústria. Começando como copista no teatro de ópera de São Carlos, estabeleceu em 1850 um armazém de música e, mais tarde, uma litografia, associando-se a João Cyriaco Lence, que tinha um estabelecimento idênticodesde 1836. Após a morte de Joaquim Inácio Canongia,em 1857, a firma continua em laboração com a designação «Lence e Viúva Canongia» e, mais tarde, «Serrano & Viúva Canongia», que se manteve em actividade até 1887, data em que a firma declara falência.

No Rio de Janeiro existiu uma firma que apre-sentou uma razão social semelhante, fundada por Tiago Canongia, que, segundo Mercedes Pequeno (2009, I: 355), teria chegado ao Rio de Janeiro em 1859 como profes-sor de violino, fagote e piano, e que publicou prioritaria-mente música de salão.

Encontrámos ainda mais duas editoras neste período mas com menor produção; tratam-se da Livraria de Plantier, que edita música a partir de 1838, embora não ultrapasse os anos 1850, e da Lithographia da Imprensa Nacional, que imprime algumas partituras pouco signifi-cativas.

A partir da segunda metade de oitocentos, assis-timos a um desenvolvimento da indústria editorial de música em Portugal, revelado pelo aumento do número de editores, que passa de 7 para 18, surgindo empresas na cidade do Porto, até aqui arredada desta actividade.

Só na cidade do Porto surgem sete estabeleci-mentos, alguns mantendo actividade até ao século XX. Entre eles, conta-se a editora de Eduardo da Fonseca, a casa Moreira de Sá e o editor Costa Mesquita. No entanto,a empresa com maior expressão nesta cidade, foi, sem dúvida, a de Carmine Alario Villa Nova, continuadadepois pela viúva até finais do século XIX. Mas o maior centro produtor continua a ser Lisboa, cidade onde se

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a edição musical em portugal no século XIX | maria joão albuquerque

localizam as duas editoras mais importantes do século: a editora Neuparth e a casa Sassetti. A casa Neuparth fora fundada por Eduardo Neuparth, músico das Reaes Cavalhariças de D. João VI, que iniciara o negócio no Brasilem sociedade com Valentim Ziegler, já aqui referido,vindo depois para Lisboa após a independência deste país em 1822 (Vieira, II: 413-414).

Poucos anos depois, em 1825, desfaz a socie-dade com Ziegler e estabelece um armazém de música em nome individual, a partir de 1828. Após a sua morte em 1871, é o filho Augusto Neuparth que dará continuidade à empresa, elevando-a a um nível de grande produção. A grande maioria de partituras portuguesas encontradas na Biblioteca do Rio Janeiro saiu do prelo deste editor, prova de que a sua produção visava a exportação para o Brasil. Mais tarde, o neto do fundador, Júlio Neuparth, continuará o negócio, associando-se em 1891 a José da Costa Carneiro, passando a firma a denominar-se “Neu-parth, Carneiro e C.ª”.

Foi sob a direcção de Júlio Neuparth que a em-presa editou, em 1890, a célebre marcha A Portugueza, im-pressa na Alemanha, que conheceu várias tiragens «para

piano, piano e canto, grande e pequena orquestra, banda mar-

cial ou fanfarra e estudantina ou sol e dó»5. Sobre esta publi-cação é o próprio editor que nos diz que «atingiu a meta da

sua gloria esta producção popular de Alfredo Keil […] no curto

espaço de três meses incompletos, executada por quasi todas a

philarmonicas do paiz e assobiada e cantarolada pelo rapazio

que percorre as ruas da capital.»6

Já no século XX, esta editora será adquirida pela firma Valentim de Carvalho7, tomando a denominação desta última (Borba; Lopes Graça, 1958: 657).

No entanto, a casa mais importante do panorama editorial português foi a editora fundada por João Baptista Sassetti em 1848. Oriundo de uma família italiana insta-lada em Sintra e excelente pianista, este editor investiu na expansão do negócio, atingindo níveis de excelente produção. Ao contrário de Neuparth, que se socorreu de empresas de litografia alemãs para produzir as matrizesdas partituras, a firma Sassetti utilizava o processo calcográfico, com matrizes gravadas por calcógrafos musicais portugueses. Nas partituras editadas por esta firma verificamos que os rostos e as capas se realizavamem oficinas litográficas, algumas litografias elaboradas

5) Amphion. N.º 11 (1 Junho 1890), p. 86) Amphion, N.º 9 (1 Maio 1890), p. 37) Outro editor de música, que fora funcionário da empresa Neuparth e que fundara um estabelecimento de música em 1914.

DADDI, João Guilherme – Grande marcha

triumphal dedicada a S. M. El-Rei D. Pedro V. Lisboa: Sassetti, [entre 1855 e 1858], Litografia. Capa da partitura. Soares,

E. – Dic. icon., nº 2340 R(Imagem retirada de BNP Biblioteca Digital)

por artistas da época, decoradas geralmente por mo-tivos figurativos e adornadas por elegantes caligrafias de influência inglesa, sendo o interior musical gravado pelo processo calcográfico em oficina da própria firma.

Das inúmeras colecções publicadas por esta firma destacam-se as reduções para piano, ou para canto e piano, de óperas em voga, algumas colectâneas de fados e transcrições para piano, ou para banda, de hinos e de marchas evocativas de acontecimentos históricos ou de-dicadas a monarcas.

Já nos finais do século XIX surgem algumas editoras como a Empresa Monteiro de Carvalho, a Morais Editores, a de Raul Venâncio e a de Custódio Cardoso Pereira, mas apenas esta última se mantém em actividade nos nossos dias.

De referir ainda que, nas últimas décadas deoitocentos, surgem algumas editoras de música utilizando o método tipográfico, como a Empreza Musicotypo-graphica em Lisboa e, na cidade do Porto, a Typographia Musical e a Typographia Occidental, mas com uma pro-

dução muito reduzida, desaparecendo todas antes do fim do século XIX.

Deste breve panorama que descrevemos, verifi-camos que, embora numa escala mais reduzida, a edição musical portuguesa do século XIX segue as tendências que se verificavam ao nível da Europa Ocidental. Aqui também se utilizou, tal como no resto da Europa, o número de chapa e também se fizeram tipos de ediçãocaracterísticos, como as colecções periódicas por subs-crição, os suplementos musicais de revistas e as par-tituras para banda filarmónica. Foram igualmente constantes as peças de música para uso doméstico, degénero lírico, religioso e didáctico e, principalmente, verifica-se o predomínio evidente da música para piano, instrumento preferencial do século XIX.

Torna-se, deste modo, necessário o estudo apro-fundado desta actividade, ao nível do repertório editado, das preferências por compositores, das características físicas, para podermos elaborar uma caracterização deste movimento editorial, ainda tão desconhecido, mas que pode contribuir para um melhor conhecimento da cultura portuguesa do século XIX, nas suas principais práticas e representações teóricas. •

a edição musical em portugal no século XIX | maria joão albuquerque

Distribuição cronológica dos principais editores de música do século XIX em Portugal

Bibliografia

~ALBUQUERQUE, Maria João Durães, A Edição Musical em Portugal (1750-1834), Lisboa,

F.C.G., I.N.- C.M., 2006

~BORBA, Tomás, LOPES-GRAÇA, Fernando, Dicionário de Música: ilustrado. Lisboa,

Cosmos, 1958

~GOSÁLVEZ LARA, Carlos José, La edición musical española hasta 1936: Guia para la

datación de partituras, Madrid, Asociación Española de Documentación Musical, 1995

~KRUMMEL, Donald William, SADIE, Stanley (ed.), Music Printing and Publishing.

London, Macmillan, 1990

~LENNEBERG, Hans, On the Publishing and Dissemination of Music: 1500-1850,

Hillsdale, NY, Pendragon Press, 2003

~VIEIRA, Ernesto, Diccionario biographico de musicos portuguezes: História e Bibliographia da

Música em Portugal, Lisboa, Typographia Mattos Moreira & Pinheiro, 1900. 2 vol.

Do Coreto ao Auditório

(evolução do paradigma

estético e performativo das

Bandas Filarmónicas Portuguesas)

por Alexandre Andrade, André Granjo, Carlos Martins Marques, Jonathan Costa

Projecto de Investigação, NIEMUS UI2 do CIIERT, Instituto Piaget

É fundamental realizar uma breve incursão his-toriográfica em torno das bandas militares para podermos compreender e contextualizar o surgimento das bandas civis em Portugal, país em que a música como compo-nente militar parece-nos existir desde o início da nacio-nalidade. Em 1147, na tomada de Lisboa aos mouros, são convocados os guerreiros ao som das trombetas e chara-melas. Ao longo dos séculos, os instrumentos musicais de sopros e percussão marcaram presença nas unidades mili-tares, intervindo nos mais diversos tipo de cerimónias e acontecimentos.

Em 1762, o antigo Terço da Junta do Comércio foi dividido em dois Regimentos, sendo um comandadopor D. José de Portugal e o outro pelo Visconde de Mes-quitela, dotado este de uma Música Marcial composta por: 2 trombetas, 1 corneta, 2 pífaros, 1 trombão e 2 ata-bales. Na segunda metade de setecentos, com a utilização de clarinetes, oboés, cornetas, clarins, trompas, fagotes, serpentões, pífaros, flautas e tambores, apesar da diver-sidade de instrumentos apresentada, segundo escritores da época, não se consideravam «bandas, mas sim Fanfarras

Regimentais»1. Em 1793, é criada a figura de Mestre Direc-tor de Música do exército, integrado na Divisão auxiliar portuguesa à Campanha do Rossilhão2. Em 27 de Novem-bro de 1807, D. João VI vai para o Brasil, levando consigo a Banda da Brigada Real, juntamente com o corpo militar que o acompanha. E, por decreto de 27 de Março de 1810, no Rio de Janeiro, em Dezembro desse ano, sucedendo o mesmo em Portugal, o monarca aceitou que os músicos passassem a fazer parte dos quadros regimentais, sendo pagos pelo erário régio. A partir de 1814, com o regresso das tropas portuguesas da guerra peninsular, as bandas militares começaram a ser organizadas em Portugal, à semelhança do que já acontecia noutros países, nomea-damente em Inglaterra, França, Itália, Espanha e Ale-manha. A 29 de Outubro de 1814, as bandas dos regimen-

1) LAPA, A., Subsídios para história das bandas militares portuguesas, Edi-tora Revista Alma Nacional, Lisboa, 1941, p. 7.2) Idem, pp. 7-8.

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tos de infantaria passaram a ser compostas de mestre e oito músicos, sendo mesmo necessário recorrer a músi-cos estrangeiros3. Assim, nas décadas seguintes, estavam reunidas as condições para proporcionar um crescente número de efectivos da banda militar de forma gradual.

Durante as primeiras décadas de oitocentos, im-pulsionada pelos ideais da Revolução Francesa, a música democratiza-se através de formações musicais populares, surgindo assim, por toda a Europa, as BAC4, numa lógica da imitação das bandas militares, apesar das finalidades serem diferentes. A vulgar designação de Filarmónica vem definida na Grande Enciclopédia Portuguesa e Bra-sileira5 como um agrupamento instrumental, mais ou menos do tipo da banda militar, isto é, composta apenas de instrumentos de sopro e percussão. As primeiras ban-das filarmónicas amadoras formalmente organizadas terão, assim, começado a surgir em Portugal a partir de 1822, num contexto de lutas políticas e modificações só-cio-económicas reflexo dos ideais da Revolução Francesa e do início da Industrialização, e na sequência do apareci-mento da Sociedade Filarmónica de Lisboa, fundada pelo compositor J. Domingos Bomtempo (1755-1842), com características semelhantes à de Londres. Em 1838, ano da I Exposição de Produtos da Indústria Portuguesa, em Lisboa, onde surgem pela primeira vez em exposição os instrumentos de sopros das fábricas HAUPT e SILVA6, são fundadas a Academia Filarmónica e a Assembleia Filarmónica sob a égide do Conde de Farrobo (1801--1869). As décadas seguintes foram de grande expansão para as bandas amadoras, impulsionadas pelas lutas políti-cas, desenvolvimento industrial e pelo reforço do fabri-co industrial de instrumentos de sopro com as fábricas Custódio Cardoso Pereira & Castanheira e Casa Guima-rães. A conjugação de todos estes factores virá pois fo-mentar a multiplicação destas instituições por todo o país.

Distrito de Aveiro: Banda Amizade, Banda de

Música Flôr da Mocidade Junqueirense e Banda

Recreativa União Pinheirense.

O distrito de Aveiro, tendo por sede de distrito a cidade com o mesmo nome, a qual foi fundada em 1759, por D. José I, conta actualmente com 51 Bandas Amado-ras Comunitárias registadas7. É, assim, um dos distritos do país com maior número de bandas em actividade. 3) Ibidem, p. 114) Bandas Amadoras Comunitárias, vulgo Filarmónicas.5) CORREIA, A. Mendes, Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Coordenação A. Correia, Editorial Enciclopédia, Lisboa, 1981, vol. 11.6) ANDRADE, Alexandre, A Presença da Flauta Traversa em Portugal

de 1750 a 1850, Tese de Doutoramento em Música, Departamento de Comunicação e Artes, Universidade de Aveiro, 2005, pp. 64-65.7) Informação disponibilizada pela Federação de Associações Musicais do Distrito de Aveiro.

Banda Amizade

Cronologicamente, a Banda Amizade é a mais antiga das três formações em estudo. No que respeita à sua história, vários autores consultados têm opiniões por vezes contraditórias e, no entanto, complementares. O principal investigador foi o Pe. João Gonçalves Gaspar, que publicou em 1984, em Aveiro e seu Distrito, um ar-tigo intitulado “Nos 150 anos da Banda Amizade – Aveiro”. A fundação da Banda Amizade está envolta de várias in-certezas. Segundo João Calisto Grilo, citado por Gaspar, a Banda iniciou a sua marcha histórica em Novembro de 18348. Nesta altura a Banda era denominada “Filarmónica Amizade”, alterando-se o nome para “Banda Amizade” segundo a Alteração dos seus Estatutos de 1989. Se-gundo Gaspar, a Banda esteve incorporada na Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Aveiro, “Bombeiros Velhos”, desde 1890 até 1918. Entre 1930 e 1940, a Banda atravessou um período complicado devido à falta de verbas e de músicos. Para fazer face a esta situ-ação, lançou-se um projecto denominado “Pró Banda Ami-

zade”, que contava com a colaboração de uma companhia de teatro de Lisboa e que consistiu na apresentação de es-pectáculos de ópera e de outras peças na cidade de Aveiro9.

Inaugurada em 1961, a nova sede oferecia me-lhores condições de trabalho, reforçando o nível artístico e associativo. Assim, a Banda começa a apresentar obras com nível musical elevado e melhora a sua apresentação em público devido à aquisição de novo fardamento e ins-trumentos. Com a entrada do maestro António Lima, a Banda sofreu melhorias graças sobretudo à entrada nos seus quadros de novos elementos oriundos da Banda Nova de Aveiro, que entretanto havia cessado a sua actividade, e ao facto de começar a participar com maior frequência em festivais e aniversários de outras associações similares. De acordo com Silva, no período do 25 de Abril de 1974, a Banda atravessa um momento de menor prosperidade. A revolução de Abril provocou um decréscimo na assi-duidade dos músicos aos ensaios e as solicitações para as festividades tendiam a ser cada vez menos frequentes. Em 1981, com a entrada do maestro António Duarte Neves, a Banda volta a reorganizar-se e recuperará a vitalidade artística de outros tempos. Com Neves, a banda começou a ser requisitada pelas comissões de festas, muito aplau-dida tanto em concertos como em festas do meio rural, bem como em actuações em vários países, tais como Es-panha, França, Alemanha (1984), Dinamarca, Holanda e

8) GASPAR, João Gonçalves, “Nos 150 anos da Banda Amizade – Aveiro” in Aveiro e o seu Distrito, nº 33, 1984, pp. 13-26.9) SILVA, Manuel Cerveira da, Curriculum ao serviço da Banda Amizade

- História da Banda Amizade, em 30-01-2011, http://www.bandasfilar-

monicas.com/personalidades_cerveira_da_silva.pdf

Suécia (1990). Depois da passagem de dois maestros por esta instituição, António Campos e Armando Matos, tendo este último sido o responsável pela fundação da or-questra ligeira, surge no ano de 2000 o maestro Carlos Martins Marques10, que permanece em funções até hoje. Com Carlos Marques verificou-se um crescimento da es-cola de música e um desenvolvimento colectivo da Banda, que passou a integrar entre 55 a 60 elementos. A Banda tem vindo a participar, desde 2005, em vários concursos e festivais a nível internacional, nomeadamente em Es-panha e Itália.

A Banda Amizade é uma instituição muito pres-tigiada não só na cidade e região de Aveiro, mas também no norte do país, onde a actividade das bandas é mais intensa. Possui sede própria, escola de música, organiza bailes, comemorações e outras actividades sociais. Possui ainda um coro e uma orquestra ligeira (big band). A ban-da de música, propriamente dita, tem um invejável cur-rículo de actuações por todo o país e estrangeiro, e CDs gravados. Organiza, anualmente, um estágio para jovens músicos (o “Verão Amizade”) que nos últimos anos se tem expandido a nível internacional, contando com a presença de executantes estrangeiros11.

Banda Flor da Mocidade Junqueirense

A 11 de Setembro de 1898, é fundada a Banda Flor da Mocidade Junqueirense12 por escritura pública no cartório Notarial de Macieira de Cambra. Foi edifi-cada a sua primeira sede no lugar da Calvela, freguesia de Junqueira. Assim começou a sua actividade, com dúzia e meia de elementos, sabendo-se que fez a sua primeira actuação pública na Páscoa de 1899. Com o decorrer dos anos, esta filarmónica foi progredindo em marcha lenta com as suas crises profundas, devendo-se isso, em parte, ao baixo nível de vida dos elementos que a cons-tituíam, provenientes na sua quase totalidade do meio rural. Em 1935, resolveu a sua direcção alterar a sua de-nominação para BFMJ, denominação essa que ainda hoje utiliza e que foi oficializada através de escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Vale de Cambra. Durante 106 anos de existência, muitos foram os maestros

10) Da sua vasta actividade profissional e artística, inclui a sua colabo-ração no Instituto Piaget como docente e investigador no Núcleo de Investigação em Estudos Musicais da UI:2 do CIIERT. No ano lectivo de 2010-11, está a finalizar o seu mestrado em Direcção na Universi-dade de Aveiro.11) Espólio do Arquivo Histórico da Banda.12) A informação recolhida, em torno desta banda de música, face à quase inexistência de registos documentais, foi essencialmente fruto do trabalho de campo, metodologicamente implementado junto de ele-mentos da própria banda e seus arquivos. No entanto, destacamos, um prospecto informativo elaborado por ocasião das comemorações do seu 1º centenário, em 1998.

do coreto ao auditório | alexandre andrade et al.

que passaram pela direcção artística da BFMJ, destacando--se Manuel Marques, Fernando Batista, Manuel Joaquim Almeida e, actualmente, Paulo Almeida13. Com mais de um século de existência, sempre foi e continuará a ser o único baluarte do índice cultural de Junqueira, pequena localidade do interior, mas com uma forte identidademusical, associada à banda filarmónica e sua actividade. Para além da gravação dos seus primeiros CDs em 2001, 2003 e em Julho de 2004, a BFMJ realizou mais recente-mente um concerto na Galiza, a Convite do Ministério da Cultura e da Junta da Galiza (Espanha). Actualmente, é constituída por 64 elementos, na sua maioria jovens que fizeram a sua formação na própria Escola de Música.

Banda Recreativa União Pinheirense

Por último, surge a Banda Recreativa União Pi-nheirense, fundada em 1948. A Banda surgiu sob inicia-tiva de algumas pessoas do lugar de Pinheiro que deram muito de si a esta colectividade para que ela desse os primeiros passos. Inicialmente, foi composta por vários elementos ensinados pelo Sr. Mário Correia de Miranda, aos quais se juntaram outros elementos de outra Banda existente na mesma freguesia. Apesar da colectividade já existir há algum tempo e dos elementos já terem actuado em arruada (ainda sem fardamento), a primeira actuação de que temos conhecimento foi em Maio de 1948 nos fes-tejos de N.ª Sr.ª de Fátima, no Lugar de Pinheiro. Em 26 de Novembro desse mesmo ano, foram publicados os Es-tatutos do Governo Civil de Aveiro ficando, nesta data, oficializada a constituição da Banda Recreativa União Pinheirense. Actualmente composta de um efectivo de cerca de 60 elementos, tem vindo a remodelar e a ampliar a sua sede com vista a uma maior expansão, cujo objectivo prioritário é a dinamização da Escola de Música, não só no sentido de garantir a continuidade da Banda mas também de oferecer aos jovens um meio de ocupação dos tempos livres. O seu primeiro Maestro foi o Professor Joaquim Marques Baeta, natural do lugar de Pinheiro, tendo-se se-guido outros que se mantiveram no cargo durante muitos anos, sempre com o objectivo de elevar o nível artístico da Banda. A partir de 2002 é dirigida pelo Maestro Prof. Jonathan Costa14. A Banda União Pinheirense interpreta obras que abrangem vários estilos musicais, do erudito ao ligeiro, passando pelas marchas e as obras tradicio-nais de cariz mais popular. Realiza também concertos com cantores, coros e solistas de relevo, dando assim a conhecer outras formas de apresentação em Concertos de Bandas Filarmónicas. Apresenta-se regularmente em

13) No ano lectivo de 2010-11, é aluno finalista do Mestrado em Peda-gogia do Instrumento (Música) no ISEIT/Viseu do Instituto Piaget.14) Mestrando em Direcção de Orquestra de Sopros no ISEIT/Viseu do Instituto Piaget de Viseu no ano lectivo de 2010-11.

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actividades culturais como concertos, festas populares e religiosas, desfiles e comemorações, e gravou 4 CDs nos últimos 10 anos. Sob orientação e iniciativa do maestro Jonathan Costa, a banda aposta também noutras vertentes musicais, nomeadamente numa Orquestra Juvenil, Or-questra Ligeira e, mais recentemente, num Coro Juvenil. É ainda de referir que a convite da comissão organizadora das Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, na Cidade de Newark, nos Estados Unidos da América, esta teve a sua primeira actua-ção no estrangeiro, em Junho de 200615. Em 2008, deslo-cou-se a Espanha e, em Junho de 2011, ao Luxemburgo.

Indicadores da evolução performativa destes casos Durante a primeira metade do século XIX, os pro-gressos técnicos registados ao nível da construção dos ins-trumentos de sopro, com a criação do sistema de válvulas (pistões) nos instrumentos de metal e as chaves nos ins-trumentos de madeira, vieram determinar uma nova fase na organização e desenvolvimento da música na sua gene-ralidade e, por conseguinte, neste tipo de agrupamentos musicais, assistindo-se assim, em todos os países, a um au-mento do número de músicos e a uma grande variedade ins-trumental. Em Portugal, essa influência denota-se sobre-tudo nas bandas militares durante o século XIX que vão registar uma contínua evolução ao nível do número de músicos e na diversidade de instrumentos. Assim, através dos tempos, a BAC foi sofrendo grandes alterações, de certa forma acompanhando as transformações ocorridas na sociedade e no meio musical. As três bandas em estudo, apesar de localizadas numa mesma área distrital, são ori-undas de meios diferenciados: a Banda Amizade, a mais antiga, surge e desenvolve-se num meio urbano de grande potencial cultural e social; a Banda Recreativa União Pi-nheirense, apesar de localizada muito próximo do litoral e circundada por grandes vias terrestres, surge num meio rural, com menor capacidade de absorção cultural, menos desenvolvido social e economicamente, quando compara-da com a Banda Amizade. Quanto à BFMJ, esta situa-se numa região de interior, caracterizada pela sua ruralidade social, economicamente dependente do sustento da terra, onde o tecido industrial é residual e onde a actividade cul-tural não é considerada relevante.

Desde o início da sua actividade, as bandas têm mantido um repertório rico em marchas e peças de carácter marcial (hinos e obras adequadas a cerimóni-as e recepções a entidades oficiais), bem como obras de carácter popular (não podemos esquecer que estamos 15) Fundação Bernardino Coutinho, Encontro Dia de Portugal, Ano XII, Nº 12, 2006, p. 40.

perante formações de forte ligação a práticas populares). Imutável permanece a presença de repertório de índole religiosa nas bandas para dar resposta a uma das maiores atribuições destas formações musicais, a qual consiste em acompanhar festas de carácter religioso.

Também a influência da música clássica marcou, e marca, os repertórios das filarmónicas, sobretudo através de transcrições feitas para estas formações, mas igual-mente através da aquisição de obras específicas para banda, provenientes de uma nova geração de compositores que se dedicam à escrita original para estas formações, remeten-do as transcrições para um segundo plano performativo.

Actualmente, assiste-se a uma mudança no paradigma performativo no que concerne o repertório praticado. As bandas abordam vários domínios musicais,desde arranjos de música tradicional, transcrições de música erudita, assim como arranjos de temas modernos provenientes da música pop-rock e até mesmo do jazz.

Podemos dizer que se vai esbatendo, paulati-namente, a diferença existente entre os repertórios das bandas portuguesas e as dos países vizinhos que, já desde a segunda metade do séc. XX, vinham mantendo uma evolução de repertório. Factor importante, uma vez que reside em grande parte na escolha dos repertórios a acei-tação da banda filarmónica, nomeadamente por parte das gerações mais novas. Trabalhos interessantes têm sido feitos pela Europa fora, com resultados muito válidos na recuperação de temas do folclore e sua adequação a formas musicais modernas. Assiste-se, pois, a uma certa reconversão da fórmula tradicional da Banda Filarmóni-ca, ainda que o fenómeno não seja universal e algumas filarmónicas não mostrem ensejo ou capacidade para en-cetar essa conversão.  

Tomando como exemplo o estudo implementado junto da Banda Amizade, verifica-se uma opção clara no que concerne a escolha de um programa inteiramente vo-cacionado para concerto. Esta profunda alteração deve--se à entrada do Maestro Carlos Marques, em 2000, um músico com gosto e visão estética, implementando novos desafios e objectivos para a actividade artística da banda. Um exemplo da inovação que implementou é a execução de obras contemporâneas originais para banda, com re-curso a uma paleta instrumental mais alargada, como, por exemplo, The Seven Wonders of the Ancient World (1ª Sinfo-

nia) de Alex Poelman e The Divine Comedy de Robert W. Smith.

Mudança estética : Do Coreto ao Auditório

Em cidades, vilas e pequenas aldeias, é ainda fre-quente encontrar um coreto16 nas suas praças. Associado directamente à performance das bandas de música, o coreto foi um espaço privilegiado e central na actividade da banda, chegando até nós através de uma importação do modelo francês, por sua vez influenciado pelas formas e estruturas orientais (Turquia, China, Índia…) e o gosto pelo exotismo. Tratava-se de uma estrutura adequada e suficiente, em tempos, para albergar todos os elementos da banda e e instrumentos: a sua área coberta comportava de quinze a vinte músicos, mais instrumental (conside-rando um diâmetro entre seis a nove metros).

Ao longo da história da arquitectura urbana, e para melhor enquadramento desta temática, devemos considerar duas tipologias de coretos: coreto volante, cuja utilização era esporádica, ocasional, sendo desmantelado após o final do evento, e coreto fixo.

O coreto volante conhece três especificações: tosco, cuidado e de aparato. O primeiro estava associado, maiori-tariamente, a festas religiosas, festas populares e feiras. Em Portugal, surgem as primeiras referências a estruturas móveis que se armavam para determinada festividade nos finais do século XVII. Como mencionam Relvas e Braga, foi construído um por ocasião da Procissão dos Senhor dos Passos em Belém e quatro para o Torneio Real no Terreiro do Paço17. O cuidado era utilizado em aniversári-os da República e exposições nacionais, e o de aparato era utilizado em festejos militares, actos solenes, casamentos reais, visitas de estado. Em 1808, com o reconhecimento da derrota da França, na batalha do Vimieiro, parte do Tejo o último contingente de tropas francesas, sendo tal facto celebrado por todo o país. A estas festividades não faltavam bandas de música, como referem Relvas e Braga citando Cabral: rompia logo uma grande banda de música

tangida por mui destros tangedores, que accomodados em hum

coreto armado com toda a aptencia, executavão de entervallo

em entrevallo bem ajustados, e muito melodiosos concertos18.

Outra manifestação, em que foi erguido um core-to de aparato, foi por ocasião do acto solene da entrada, em

16) “Quiosques, pavilhões, palanques e coretos para festividades e paradas,

são pertences da família de móveis urbanos, efémeros ou fixos para sucessivos

e regulares utilizações. No que respeita ao coreto, “pequeno coro feito para

alguma função” tende a fixar um uso e um gosto citadino não consequente

da festa, mas sim motor desta”, citado em RELVAS, Eunice, BRAGA, P. Bebiano, Coretos em Lisboa, Editorial Fragmento, 1991, p. 917) RELVAS, Eunice, BRAGA, P. Bebiano, Coretos em Lisboa, Editorial Fragmento, 1991, p. 918) CABRAL, Bernardo. J. O. Teixeira, Descripção da celebre illuminação

feita no Largo do Poço Novo, Imprensa Régia, Lisboa, 1808.

do coreto ao auditório | alexandre andrade et al.

Lisboa, da nau que trazia D. João VI, a 4 de Julho de 1821, vindo do Brasil. O rei dirigiu-se para a Sé de Lisboa, sendo recebido com música. O coreto para este efeito foi de ele-vado investimento, como menciona Relvas e Braga19.

No entanto, é no decorrer de oitocentos que surgem os coretos fixos desenhados e projectados por ilus-tres desenhistas e arquitectos portugueses. O seu período de maior esplendor é em finais do séc. XIX, início do séc. XX. O coreto passa a integrar com regularidade a paisa-gem urbana, sendo que a sua utilização é indispensável em qualquer festa ao ar livre, como por exemplo as festi-vidades do Casamento Real de D. Carlos I, a 22 de Maio de 1886, que duraram uma semana. Para o efeito, foram projectados e construídos dois coretos fixos, um deles na Praça do Comércio, e muitos outros coretos volantes, um pouco por toda a cidade de Lisboa.

Como constatamos, o coreto volante não deixa de ser um recurso eficaz para determinadas ocasiões e funções, face ao aparecimento do coreto fixo. Estes coa-bitam e complementam-se no meio urbano e rural du-rante o séc. XIX e XX.

Porém, as grandes mutações verificadas nas ban-das filarmónicas, em Portugal, partindo dos anos 90, são em parte responsáveis pela cada vez menor utilização do coreto como palco para as suas performances artísticas, nomeadamente nas cidades. Os principais factores são o aumento do número de instrumentistas, passando para números médios entre 45 a 50 elementos, por vezes até mais, o que inviabiliza a utilização destes coretos de re-duzidas dimensões. Outro factor determinante é, como consequência, a utilização de um instrumental cada vez mais numeroso, como verificamos nas bandas em estudo, e em particular uma secção de percussão mais completa e diversificada. Esta mudança de paradigma performativo está também associada a um outro fenómeno sociológico que é a menor referência às romarias, em prol do con-

certo. Como mencionamos no início deste artigo, a ban-da filarmónica deixa gradualmente de se apresentar nos coretos das localidades e passa agora a ocupar um espaço na programação das grandes salas, quer em Portugal, quer nos concursos e festivais estrangeiros. Merece destaque a primeira actuação de uma banda civil na Casa da Música no Porto, no seu principal espaço, a sala Guilhermina Suggia, em 2007, pela Banda Marcial de Fermentelos. Mais recentemente, em 2010, a Banda Filarmónica de Montemor-o-Novo associa-se à dança contemporânea, sob a direcção artística do coreógrafo Rui Horta. •

19) RELVAS e BRAGA, p. 48.

glosas, #3 | 83

COMPOSITORES A DESCOBRIR

Fernando Costa

Nuno M. Cardoso

É uma música com alma, com uma autenticidade

que muitos compositores com o melhor dos apetrechos

técnicos não conseguem. Música sensível e intuitiva,

que define o artista e o homem sem o mais pequeno

vislumbre de pose, e por isso mesmo diz algo tão especial.

Alexandre Delgado, a propósito do Quarteto em Lá menor

Le mépris de la gloriole et du gain est la première

marche pour atteindre au Beau, la morale n’étant

qu’une partie de l’Esthétique, mais sa condition foncière.

Gustave Flaubert, in Lettres à sa nièce Caroline

Figura ímpar no panorama musical da Capital Lusa, sobretudo dos segundo e terceiro quartéis do Século XX, Fernando Costa pertence, a par de tantas outras per-sonalidades marcantes – não só do domínio das Artes –, a um grupo de, muito injustamente, olvidadas personagens. É, pois, para de alguma forma tentar colmatar a iniquidade que a memória – mais dos Homens do que muitas vezes de uma Nação – não raras vezes comete, que nos pro-pusemos trazer à luz da lembrança os passos-chave deste Artista integral que tanto ilustrou a Música Portuguesa.

~

Acercava-se do seu final o ano de 1896 quando, a 10 de Novembro, nascia em Lisboa Fernando Avelino Ferreira da Costa, terceiro filho de João A. da Costa (em-pregado da contadoria do Hospital de São José, e antigo trompista amador), e de Júlia Ferreira da Costa que, pou-cos anos volvidos, viria a falecer na sequência do parto do seu quinto filho (o qual, de resto, pouco lhe sobreviveria).

Assim, subitamente, vendo-se João da Costa a braços com quatro rapazes a seu inteiro encargo, acedeu a que os dois filhos do meio – Mário e Fernando – rumassem à Beira, acompanhando a avó materna, com quem, desde então, começaram a viver, bem como com seu marido, de um segundo consórcio, e padrinho de Fernando.

Foi, pois, em Canas de Senhorim, que Fernando desfrutou de tão benéfico período no alvorecer de sua vida, que, mercê do ambiente de carinhoso afecto, haveria de marcar, de modo indelével, a sua personalidade.

Pelo Verão de 1903, Fernando é levado de volta à capital por seu pai, com o intuito de aí iniciar a frequência da escola primária. Nas suas Memórias, escritas em vários períodos da vida, anota a esse respeito: “No regresso a Lis-

boa, vida nova e os deveres que a vida nos impõe, principal-

mente quando se é pobre como nós éramos.”. Esta evocação, em jeito de desabafo, é bem ilustrativa da inteireza moral que seria, para toda a vida, traço marcante do seu carácter.

Ainda a propósito destes primeiros tempos de retorno à casa paterna, escreve: “Meu Pae, [além] do seu

extenuante trabalho profissional, [tinha] outro não menos es-

gotante, [que era o de ser] mamã, cozinheiro, empregado de

limpeza, etc. Eu sei lá até onde terá chegado o amor paternal

deste Homem excepcional, João A. da Costa, meu chorado e que-

rido Pae”. E prossegue: “Meus irmãos, três garotos traquinas,

três diabos – comigo passam a quatro… Meu Pae trabalhava de

manhã até às 17 horas, não podendo estar presente tomando

conta [de nós]. Dias inteiros sozinhos, inventando diabruras.”.

Fernando Costa em Paris, 1926/7

84 | glosas, #3

compositores a descobrir: fernando costa | nuno m. cardoso

Finalmente, a partir de Outubro de 1903, Fer-nando passa a frequentar um colégio. Como as aulas decorressem somente à tarde, e para que os tempos dos filhos fossem sempre bem aplicados, João da Costa fez com que Mário e Fernando ingressassem na Sé Patriarcal de Lisboa como Meninos de Coro: “Na Sé, existia a Aula de

Canto Coral que era frequentada por todos os alunos do coro.

A Aula de Música destinava-se apenas àqueles que queriam

aprender música. Logo, aprendiam todos a cantar (mesmo que

fosse de ouvido) e a saber música aqueles que estavam na Aula

de Música, como eu.” – sublinha. Desta maneira, foi, pois, na Aula de Música da Sé Catedral que Fernando Costa ad-quiriu os primeiros rudimentos musicais, que tão provei-tosos se revelariam, sob a égide de notáveis professores. Em 1907, é o aludido Coro Infantil convidado para integrar as récitas da Carmen e de La Bohème na tem-porada lírica do “Real Theatro de Sam Carlos”, sendo que o pequeno solo “Vo’la tromba, il cavalin”, da ópera de Puccini, foi confiado ao pequeno Fernando, graças à facilidade musical que já então evidenciava. Acerca de tal episódio, anotaria: “Esta foi a minha estreia como músico e

a minha entrada nesse fantástico S. Carlos, em Lisboa, onde

o meu violoncelo se fez ouvir nos principais solos das grandes

óperas de Wagner, Verdi, Bellini, Puccini e tantos mais. Quem

me diria a mim, filho de um simples funcionário do Hospital

de S. José, que, de pequeno cantor, haveria de ocupar durante

décadas o lugar de 1º violoncelo dos vários naipes que, entre

1921 até, pelo menos, 1960, actuariam nesse fabuloso Teatro.

[…] S. Carlos, na época, era um verdadeiro templo do Bel Can-

to, requesitado pelos maiores artistas líricos e onde se faziam e

desfaziam reputações em matéria operática… Só me lembro que

fiquei deslumbrado com o interior daquele templo de lumes e

sons.”.

Entretanto, em Outubro desse mesmo ano, ini-ciou a frequência do curso secundário no Liceu de S. Do-mingos, paredes-meias com o Palácio da Independência, para, no ano seguinte, encetar os seus estudos musicais no Real Conservatório de Lisboa, na classe de Rudimentos – que, mais tardiamente, viria a designar-se por Solfejo. O estudo de Violoncelo, iniciá-lo-ia sob orientação de um violoncelista amador, amigo de seu pai. Todavia, em 1910, com cerca de 14 anos, e visando um estudo mais sistematizado e metódico do instrumento, matriculou-se na classe do Prof. Cunha e Silva.

Porém, e tendo em vista auxiliar o orçamento fa-miliar, integrou, de início, um Trio que se apresentava com regularidade no extinto Café Londres e, mais tarde, um Quarteto, que actuava no Theatro Gymnasio, ao Chiado.

Decorria o ano de 1913 quando, em Lisboa, apareceu uma figura cimeira do panorama epocal da música portuguesa, e que viria a ter sobre Fernando Costa uma indizível, marcante e decisiva influência: o violon-celista e Chefe de Orquestra David de Souza, que em Leipzig estudara Violoncelo com o eminentíssimo pe-dagogo Julius Klengel e, a essa data, jornadeara já pela Europa, nomeadamente pela Rússia. Logo em 1914, Fer-nando é apresentado ao afamado Maestro que, vendo neste jovem de cerca de dezoito anos um imenso talento, de imediato o convida a integrar o naipe de violoncelos da Orquestra que dirige no Teatro Politeama.

Penosos serão, todavia, para o jovem violoncelis-ta, os anos de 1917 e de 1918, por efeito das mortes de seu pai, de seu Mestre David de Souza (de quem, entrementes, começara a receber preciosos ensinamentos de Música de Câmara e de Violoncelo) e de seu amigo António Frago-so (que, à semelhança do referido Maestro, sucumbira à gripe pneumónica) e, ainda, do assassinato do “Presi-dente-Rei”, Dr. Sidónio Pais, com cujo trágico desfecho viu soçobrar a concessão, a seu favor, de uma bolsa que lhe possibilitaria estudar em Leipzig, conforme o defun-to Chefe de Estado prometera ao Maestro D. de Souza.

Finalmente, em 1920, realizou no Conservatório Nacional de Lisboa o exame final do Curso de Violoncelo, sob orientação do Prof. João Passos, obtendo a classifi-cação máxima.

Os anos seguintes passá-los-ia, pois, trabalhando na Ópera em S. Carlos, no Porto e no Coliseu de Lisboa; também continuará a colaborar na Sinfónica do Politea-ma – onde era 1º Violoncelo-Solista – e, nos Verões, no Palace Hotel do Bussaco e nos Casinos da Figueira da Foz e de Sintra. Em virtude da sua uniforme e brilhante prestação como executante, foi justamente o proprietário do Casino de Sintra, o Sr. Adriano Coelho, quem se dis-ponibilizou para financiar, integralmente, a Fernando Costa, um curso de aperfeiçoamento violoncelístico no estrangeiro. Aconselhado por Guilhermina Suggia, com quem viria a estabelecer uma duradoura amizade, op-tou, então, por estudar com o Mestre Joseph Salmon, em Paris, para onde partiu em Janeiro de 1926.

Durante os cerca de dezasseis meses que estudará em Paris, além das aulas de instrumento com Salmon, re-ceberá, em paralelo, lições de Música de Câmara de Paul Bazelaire, professor na Schola Cantorum da capital fran-cesa. Beneficiará, ainda, de inúmeros concertos, óperas e recitais a que terá oportunidade de assistir, todos eles

glosas, #3 | 85

compositores a descobrir: fernando costa | nuno m. cardoso

com intérpretes de excepção e da mais reputada craveira artística mundial – Cortot, Rubinstein, Thibaud, Ysaÿe, Enescu, Piatigorsky, Casals, d’Indy ou Koussevitsky, entre muitos outros.

Em Maio de 1927 apresentar-se-á na famosa Salle Érard, repleta de críticos, jornalistas e diplomatas, acom-panhado ao Piano por Eugène Wagner, com um ecléctico e variadíssimo programa, resultado do frutífero período de aperfeiçoamento com Mestre Salmon. A partir deste ano, deparamo-nos com uma deplorável lacuna patentea-da pelo longo hiato de escassez de dados autobiográficos legados por Fernando Costa, dado todo o material de apoio e de consulta que nos chegou se estear em excer-tos de memórias que muito excepcionalmente se referem

outras obras de grande plano da consagrada bibliografia violoncelística, as seguintes: um dos ciclos de Variações

sobre um tema de Mozart de Beethoven, a Sonata, op.8, de Dohnányi, a Elégie de Fauré, a virtuosística peça La Source

de Davidoff e ainda a Berceuse do seu querido e saudoso Mestre David de Souza, obra que, de resto, viria a consti-tuir-se como uma quase infalível rubrica dos seus recitais.

A mero pretexto de curiosidade e ilustrando a ti-pificação do acúmulo de críticas que diariamente, à época, inseriam as páginas da especialidade dos jornais portu-gueses, importa transcrever o excerto seguinte, referente a um dos recitais efectuados no Conservatório Nacional de Lisboa, subscrita pela conceituada e “temida” crítica musical Francine Benoît: “Raro temperamento artístico,

ao ciclo do pós-regresso à capital. Eis a razão pela qual a maioria dos registos que doravante biografaremos serão compulsados essencialmente a partir de nótulas de pro-gramas e de textos críticos, atinentes a recitais e concertos realizados. Desta maneira, óbvio será inferir a febrici-tante e preenchidíssima actividade artística que Fernando Costa protagonizou nos anos que se seguiram ao seu re-gresso a Portugal, designadamente em Lisboa e no Porto.

É, em Abril de 1928, distinguido na Invicta Ci-dade com o “Prémio Moreira de Sá”, que lhe é conferido pelo Orpheon Portuense, e para cujo acto simbólico foi criteriosamente seleccionado um brilhante programa. Desse memorável recital, em que foi acompanhado pelo pianista e professor Campos Coelho, citaremos, entre

qualidade de som, pureza de processos, jogo de mão do arco de

maravilhosa flexibilidade. Pertence à mais elevada categoria de

artista, a emoção concentrada que confessa, magia da doçura

feminina que acaricia e envolve, ritmos viris, raro condão de

poder ser sincero com riqueza.”1.

No ano de 1929 é empreendida a criação do “Trio Vianna da Motta”, constituído pelo insigne pianista que lhe origina a designação, pelo violinista Paulo Manso e pelo violoncelista Fernando Costa. A este celebrado agru-pamento camerístico caberá, por inspiração do discípulo de Liszt, levar a cabo uma brilhante e hercúlea empresa, jamais experimentada em Portugal – executar a integral de música de câmara para instrumentos de arco e piano

1) in Diário de Lisboa, 29-V-1928.

O “Trio Vianna da Motta”, em 1929. Paulo Manso (ao Violino),Mestre Vianna da Motta (ao Piano), Fernando Costa (ao Violoncelo).

86 | glosas, #3

compositores a descobrir: fernando costa | nuno m. cardoso

(trios e sonatas) do Mestre de Bona, inserida no Ciclo Beethoven. Assim, continuará este Trio a apresentar--se regularmente por alguns anos, interpretando um di-versificado reportório e privilegiando, ainda, Schubert, Smetana, Mendelssohn e Brahms.

Em 1938, na sequência de um recital em parceria com a pianista Regina Cascaes, e em que interpretaram a Sonata para Violoncelo e Piano, op.117, de Fauré, sai, na edição de 25 de Fevereiro, do Diário da Manhã, assinada por Malhôa Miguéis, a seguinte crítica, na parte que con-cerne o nosso biografado: “Fernando Costa, Violoncelista

de raça, e um dos primeiros de Portugal, foi o admirável criador,

entre nós, desta obra, executando-a com todas as modalidades

artísticas do seu talento, da sua Arte […]. É ter a convicção

Quixote (para orquestra com violoncelo e viola solistas) de Richard Strauss. Assinala-se, a propósito, ter sido Fer-nando Costa o primeiro violoncelista português a inter-pretar esta última obra, a qual seria, sem margem de dú-vida, o seu “cavalo de batalha”, chegando a apresentá-la por cinco vezes com reconhecido sucesso. Ainda sobre esta mesma obra, viria a elaborar um curioso “Estudo

Tematico-Literário”.

Muito mais tarde, já nos finais de 1951, inter-pretará, também sob a direcção do Maestro Freitas Bran-co, a Elégie de Fauré, por ocasião das solenes exéquias fúnebres da Rainha a Senhora Dona Amélia, na Igreja de São Vicente de Fora – facto este, aliás, assaz curioso, que parece fechar um elo criado com o ramo reinante da

de estar na presença de um grande artista e de um “virtuose”

do Violoncelo.”.

A esta data, Fernando Costa assumira já a posição de 1º Violoncelo-Solista na recém-criada Orquestra Sin-fónica da Emissora Nacional de Radiodifusão Portuguesa, lugar de que seria titular ininterrupto por cerca de vinte e dois anos.

Em Dezembro de 1939 tem lugar em Lisboa um concerto da supracitada orquestra, sob a direcção do emi-nente Maestro Pedro de Freitas Branco, no qual FernandoCosta interpreta duas obras consideradas de elevado quilate do reportório violoncelístico concertante: o Con-

certo em Lá menor de Schumann e o poema sinfónico Don

Família de Bragança, uma vez que, cerca de quarenta e três anos antes, em 1908, houvera participado igualmente nas cerimónias fúnebres de El-Rei o Senhor D. Carlos I e do Príncipe Real D. Luiz Filipe, vítimas do Regicídio; dessa vez, porém, enquanto Menino de Coro da Sé Patri-arcal de Lisboa.

O final do Estio de 1948, passá-lo-á na Serra da Estrela em companhia de sua noiva, a violoncelista e peda-goga musical luso-italiana Adriana de Vecchi e de alguns amigos – um grupo a que apodava de “Os Serranos” e de que faziam parte, entre outros, o Maestro Frederico de Freitas. Nessa “belíssima Beira-Alta dos” seus “amores”, como usava dizer, onde gozara felizes anos da sua meni-nice, bebia agora toda a frescura dessas empolgantes

No Bussaco, em 1924. Da esquerda: Regina Cascaes, Fernando Costa,Guilhermina Suggia, Augusto Suggia, Carlos Quilez.

glosas, #3 | 87

incluía, entre outros, o violoncelista e afamado professor germano-americano Maurice Eisenberg – que constituía o júri do Concurso Internacional da Costa do Sol.

Por esse ano, o seu quadro de saúde experimenta um progressivo agravamento: dores intoleráveis, no rasto do reumatismo gotoso, e a bronquite asmática, a que se associava, agora, um edema pulmonar. Todavia, malgrado esta situação de múltiplas patologias, registava, por chiste: “Nunca julguei chegar aos 75 anos que perfiz no passado dia 10

de Novembro [1971], prestes a findar. […] Apesar de tudo, sou

o teimoso da família!”.

Fernando Costa viria a expirar a 5 de Março de 1973, ficando em câmara ardente na Capela do Senhor dos Passos, na Basílica da Estrela. Para acompanhar a celebração da Missa de Corpo Presente – que precedeu o préstito fúnebre para o Cemitério dos Prazeres, em Lis-boa – foi organizada, pelo Maestro Leonardo de Barros e pelo Violinista Carlos Passos, uma orquestra constituída por antigos alunos, dirigida pelo Maestro Silva Pereira.

FERNANDO COSTA, O COMPOSITOR

Uma advertência se impõe facultar, antecipada-mente, ao leitor, como forma de precaver um juízo menos apurado sobre o quilate intrínseco de Fernando Costa – compositor. Desta maneira, ter-se-á de interpretar o Mestre - Compositor como produto exclusivo da sua mu-sicalidade espontânea, modelada pela perícia da praxis de música de câmara – e de que não anda arredia, também, a influência do seu círculo de amizades e a convivência diária com renovadas figuras de cimeiro plano da música europeia.

A primeira composição de que há registo está da-tada de Abril de 1915. É uma original obra para orquestra de cordas, intitulada O Sonho de um Jovem Músico. Dedi-cado à pianista Irene Gomes Teixeira, escreve, em 1917, um comovido Andante Lamento para violoncelo e piano, obra que tudo deve à estética romântica.

Somente em 1948 volta a pegar na pena para compor, em Setembro, No Alto dos Hermínios – Rêverie – obra que, sem sombra de dúvida, encontrou inspiração nos felizes dias passados, nesse Verão, na Serra da Estrela, na companhia da sua “querida Adriana”, a quem faz dedi-catória.

Poderemos, com toda a segurança, asseverar que a FMAC foi a motivação que emprestou novo fôlego à sua

paisagens, ao mesmo tempo que procurava retemperar os seus pulmões combalidos pela bronquite asmática que o atormentava.

Em meados de 1953, Adriana de Vecchi, então já sua esposa, decide-se pela criação, com o apoio de várias personalidades ilustres do quadro intelectual e social de Lisboa, de uma instituição que patrocinasse e difundisse o ensino da arte dos sons aos mais pequenos, a partir de novos conceitos pedagógicos. Desta maneira, nasceu a FMAC – Fundação Musical dos Amigos das Crianças. Não tardou, contudo, que Fernando Costa se associasse com todo o carinho e desvelo a este notabilíssimo projecto sem paralelo em Portugal, emprestando-lhe entusiasmo e avisado conselho, contribuindo, deste modo, para que se corporizasse o sonho embrionariamente quase visionário de sua mulher.

Indelével é, pois, a sua decisiva adesão a este pro-jecto que tanto impacto gerou, sob o ponto de vista peda-gógico, na vida musical portuguesa de há cerca de seis de-cénios. Não só das suas classes, como igualmente da idios-sincrasia que lhe era subjacente e que soube impregnar como um cabal Mestre, nasceu, afinal, desse alfobre, um numeroso escol de artistas de inconcussa valia e indes-mentível talento que os habilitou a ocupar, por real mere-cimento, as mais diversas estantes, desde a de regência até às de tutti, de arco e de sopro, em orquestras quer por-tuguesas, quer estrangeiras, de reconhecido gabarito in-ternacional, não olvidando ainda os que fizeram percurso ascensional em piano.

O mês de Outubro do ano de 1955 ficará, con-tudo, marcado pela derradeira interpretação pública que fará da já citada obra sinfónica Don Quixote, desta feita com o Prof. François Broos na Viola-Solo e outra vez ainda sob a batuta de Pedro de Freitas Branco.

Depois, os restantes anos da sua caminhada de vida, consumi-los-á, Fernando Costa, votado, como sem-pre, ao ministério supremo da arte dos sons: dirigindo a Orquestra d’Arcos da FMAC e leccionando ainda, aí, a classe de Música da Câmara. Em simultâneo com estas ac-tividades, vinha exercendo, também, as que decorriam do vinculamento oficial do seu cargo na Sinfónica da Emisso-ra Nacional – onde começa a ver chegar, com júbilo, quais “promessas de renovação”, vários dos seus discípulos.

Começará, então, a ser notório o gradual esba-timento da sua aparição em recitais, quer em duo, quer em trio. Em Setembro de 1971 integraria a parceria – que

compositores a descobrir: fernando costa | nuno m. cardoso

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¶ na próxima rubrica COMPOSITORES A DESCOBRIR

Adivinhe quem é o compositor a descobrir da

próxima edição da glosas e ganhe um CD com

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Envie as suas sugestões para:

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compositores a descobrir: fernando costa | nuno m. cardoso

Também para a orquestra da FMAC realizou, com irrefutável mestria e conhecimento, inúmeras trans-crições para cordas de obras do grande reportório sin-fónico, de que se destacam, a título de curiosidade, Danças

Romenas de Béla Bartók, a Romanza em Fá de Beethoven ou ainda Rapsódia Eslava de David de Souza.

~

Impõe-se-nos, como indeclinável imperativo de consciência, fazer público agradecimento, quer ao Maestro

Leonardo de Barros, ao confiar-nos, para consulta, o grosso dos elementos coligidos, fruto da pesquisa biográfica que vem

empreendendo sobre o Professor Fernando Costa, quer ao Prof. e Violinista Carlos Passos, Presidente da Direcção da FMAC,

que nos franqueou para análise, e sem restrições, todo o espólio bibliográfico do ilustre Mestre – incluindo todo o material

documental ora inserto – e de que a instituição é depositária.

Não obstante tais gestos de lhaneza e de estima revelarem – para nós, desde sempre e sem surpresa – traços estruturantes

de generoso carácter, é imperioso, pois, nesta circunstância, que lhes patenteemos manifesta amizade e reconhecimento.

veia criativa. Assim nascerá, em 1954, a sua “Berceuse- Can-

ção de Embalar”, obra de uma beleza e de uma simplicidade quasi tocantes, que traz a seguinte nota num dos exem-plares autografados: “Esta pequenina peça violoncelística foi

composta para o Luizinho, mas, depois, tem servido para todos

os miúdos da Fundação.”. Duas outras obras para a Orques-tra d’Arcos FMAC surgem: Conversa para Quatro ou Quem

Canta Seus Males Espanta (1955), e Estudo Melódico (1956). Mas, se houver o propósito de eleger uma “obra--prima” na sua reduzida produção musical, será, sem hesi-tação nem receio, o Quarteto em Lá menor para Cordas,dito Quarteto Miniatura, onde se inscreve a dedicatória “À minha querida Adriana, alma e vida da Fundação Musi-

cal dos Amigos das Crianças”, e que data de 1957. Editado em 1998 pela casa Real Musical, sediada em Madrid, conta, nesta edição, com uma nota crítica do compositor e violetista português Alexandre Delgado, da qual trans-crevemos as seguintes passagens que permitirão, cremos, despertar a curiosidade certa no leitor: “Ao chamar ao seu

quarteto em lá menor Quarteto Miniatura, Fernando Costa

talvez não se referisse apenas à sua duração. A obra é uma mi-

niatura no sentido mais intimista, em que se tomam os objectos

com um misto de intuição e de afecto capaz de inventar a sua

própria técnica de composição. Fernando Costa reflecte o idioma

romântico em que se movia como intérprete. […] Característica

insólita, nos antípodas dos esquemas básicos tanto do classicis-

mo como do romantismo, Fernando Costa usa o idioma tonal

prescindindo do seu principal eixo dramático, que é a deslo-

cação para outra tonalidade. As mesmas harmonias enredam-se

em huis clos, uma teia singela que nos embala pondo de parte

as regras do contraponto, da harmonia e da construção formal:

é uma utilização inesperada de um vocabulário tradicional, com

o mesmo tipo de encanto da pintura naïve. É uma música com

alma, com uma autenticidade que muitos compositores com o

melhor dos apetrechos técnicos não conseguem. Música sensível

e intuitiva, que define o artista e o homem sem o mais peque-

no vislumbre de pose, e por isso mesmo diz algo tão especial.”.

Facto natural na carreira de um conceituado ins-trumentista, viu, também, serem-lhe reverentemente dedicadas algumas obras, como por exemplo o Nocturno

sobre um Soneto de Antero de Quental do Maestro Frederico de Freitas. Igualmente, no seu espólio, aparece um exem-plar da Sonata para Violoncelo e Piano de Luiz de Freitas Branco, obra de 1913, com a seguinte dedicatória, datada de Janeiro de 1928: “Ao notável artista/ e querido discípulo

Fernando Costa/ Com admiração e estima Off.ce o autor”. Esta obra, incluída no seu reportório, foi interpretada múlti-plas vezes, em parceria quer com Vianna da Motta, quer com Regina Cascaes.

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para a GLOSAS 3(Março 2011)

Amílcar Vasques-Dias

O passeio da rã negra

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90 | glosas, #3

Glosando: a convite da glosas, uma peça inédita

O Passeio da Rã Negra | Amílcar Vasques-Dias

glosas, #3 | 91

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O passeio da rã negra - Pg.2 - Amílcar Vasques-Dias

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92 | glosas, #3

ALÉMFADO Encomenda do pianista João Vasco, com o apoio do Museu do Fado,a oito músicos do universo do Jazz

e da música contemporânea.

O desafio lançado foi o de recriar um conjuntode fados do grande repertório deste género e duas obras para guitarra portuguesa de Carlos Paredes. A Mário Laginha propôs-se ainda a criação de uma obra original. Na géneseestá presente o desejo de redescoberta de umestilo bem como dos conceitos de metamorfose, transversalidade e inovação estilística.

Imprescindível, portanto, mostrar aos leitoresda glosas um pouco da música de ALÉMFADO, cujo CD já se encontra à venda nas lojas habituais.

glosas, #3 | 93

O projecto ALÉMFADO surge no meu trajecto

como uma inevitabilidade. Por ter iniciado o meu percursomusical precisamente pelo Fado, tocando viola acompa-nhando o meu pai à guitarra portuguesa, e também pela vontade sempre presente de interpretar música portuguesa,idealmente inédita. Para além do interesse e pertinência que este “olhar contemporâneo” sobre o Fado proporciona, creio que a (porventura) ousadia de recriar obras musicais de estilo tão forte e vincado, dotando-as de um carácter conceptual, processual e interpretativo próprio dos universos do jazz e da música erudita contemporânea, poderá representar mais um passo no sentido da transversalidade artística plena em que acredito e que, a meu ver, é uma valência maior no desenvolvimento cultural das próximas décadas.

João Vasco, Março de 2011

alémfado | apresentação

fig. 1 – Homem Na Cidade, cc. 11 a 15

VASCO MENDONÇA | O desafio deste projecto residiu sobretudo na procura do equilíbrio entre uma dinâmica de criação – o que me é pedido como compositor/criador - e a manutenção do que considero ser o carácter essencial das canções. Quer no caso de Homem na Cidade, quer no caso de Tendinha, a solução foi sublinhar (e até extremar) o desenho formal – harmónico, numa delas, e de carácter, na outra. As-sim, as primeiras partes de Homem Na

Cidade foram alvo de um tratamento harmónico particular: inicialmente, a utili-zação de uma nota pedal e a migração do tema no registo (fig. 1), seguidas de um dispositivo de tipo quase mecânico, um mecanismo de alturas do qual o tema vai sendo extraído (fig. 2). As últimas secções da canção tiveram uma manipulação de natureza mais linear (com apenas alguns pormenores de transformação harmónica) (fig. 3). No caso de Tendinha, o carácter melancólico dos versos originais foi mantido, apesar da re-harmonização da melodia original (fig. 4). O carácter enérgico e lúdico do refrão serviu de inspiração à pas-sagem menos reverencial de todo o trabalho: aqui, numa espécie de estranho ‘scherzo’, o intérprete vai, ao longo da sua interpretação, aproximando-se progressivamente da músi-ca original – como se estivesse a fazer uma primeira leitura da mesma – só a alcançando, helás, no acorde final (fig. 5).

fig. 2 – Homem Na Cidade, cc. 32 e 33

fig. 3– Homem Na Cidade, cc. 54 e 55

fig. 4– Fado da Tendinha, cc. 6 a 8

fig. 5– Fado da Tendinha, cc. 32 a 36

94 | glosas, #1

excerto de Os meus lindos olhos

alémfado | apresentação

IAN MIKIRTOUMOV | Sinto o tema Gaivota como o voo solitário de um pássaro livre sobre o mar. Como o mar muda a sua aparência também a música se transforma. Deste modo, na introdução, as ondas acariciam pacificamente a praia, o mar é tranquilo. O tema não é claramente reconhecível devido à reconstruída harmonização e ao ritmo diferente do original. De seguida, as águas agitam-se e o tema transforma-se numa valsa ao estilo de Chopin. Finalmente, o mar, bramindo, abraça o estilo de Rachmaninov e a tempestade sonora faz surgir o refrão, perto da sua versão original. Por fim, as ondas perdem a sua força e restará apenas o mo-tivo do refrão evocando o Fado, imitando a guitarra portuguesa. O mar volta ao seu estado inicial e os gritosda gaivota desaparecem no sussurro das ondas. JOÃO MADUREIRA | Escrevo uma breve nota sobre os fados por mim arranjados ou… recompostos! Dois fados – Verdes Anos e Barco Negro – que reflectemduas atitudes distintas e complementares: Verdes

Anos, partindo do texto original e integrando a sua presença na contemporaneidade; Barco Negro, num movimento oposto, partindo dessa contemporanei-dade para abraçar a tradição do Fado. Dois caminhos. Dois irmãos!

PEDRO FARIA GOMES | O desafio principal em Sede e Morte – peça de Carlos Paredes originalmente instrumental, apenas para guitarra portuguesa – consistiu na sua transposição para um universo pianístico. Através das propriedades originais de dança ternária, forma tripartida simples “ABA” e referência a um contexto regional no timbre da guitarra portuguesa, estabeleci uma ponte com o reportório de Chopin que partilha destas caracterís-ticas, em particular as valsas e as mazurkas. Esta relação é sobretudo notória nas secções principais “A”; a secção central descola da versão original, numa direcção divergente, não utilizando mesmo qualquer material de Carlos Paredes; mantém, no entanto, a função de contraste. Já em Talvez se Chame Saudade, o contexto original de voz acompanhada levou-me a optar por uma amplificação da distância entre versão original e adaptação para piano solo, por oposição à criação de pontes. Foi mantido o esqueleto formal, melódico e de acontecimentos harmónicos-chave (uma espécie de Ursatz Schenkeriano), mas modifi-cando estes e outros aspectos a nível de superfície de tal modo que a criação deste novo contexto se tor-nasse o elemento mais definidor.

excerto de Gaivota

excerto de Barco Negro

excerto de Sede e Morte

glosas, #1 | 95

alémfado | apresentação

EDUARDO JORDÃO | Na origem  do arranjo que fiz de Os meus lindos olhos esteve a intenção de uti-lizar dois movimentos melódicos proeminentes neste fado, revestido-os de um ambiente que remete para alguns dos estilos/compositores que mais aprecio.A ideia foi compor “7 quadros sobre um fado” criando alusões a Rachmaninov, Liszt, Tom Jobim, John Wil-liams, entre outros, sem nunca me afastar muito da melo-dia original. O último dos quadros, que fecha o arranjo, é relativo a mim enquanto apreciador e pensador de música. Foi um trabalho envolvente onde a escrita fluiu sem dúvi-das. Uma experiência que repetiria de muito bom grado. Quem sabe, um dia...

RUBEN ALVES | Ao compor Maria Lisboa procurei não estabelecer uma conexão forte com a harmonia original e encontrar em alguns pontos uma ligação forte com a melo-dia. Desenvolvi também um novo motivo introdutório que penso adequar-se ao carácter do tema original. De for-ma aleatória, alternei modos maiores e menores e utilizei algumas referências da escala espânica. Acrescentei uma parte B e parte C que se desenvolvem de forma progressiva, com um carácter de improviso. Em Meu amor, Meu amor, procurei ser mais denso harmonicamente, devidoà sonoridade intimista que este texto propõe. Da mesma forma, vou recitando excertos separa-dos da melodia original.  Existe claramente uma parte introdutória que se separa da estrutura da canção.  Pelo mesmo processo, também a composição evolui de uma forma progressiva, mas,  em alguns momentos, como se congelasse a progressão num acorde, ficamos em com-posição modal. Procurei também evocar a ornamentação vocal utilizada no fado. Em traços gerais, esta composição utiliza acordes tensos, complexos e dissonantes (por-ventura uma inspiração de Satie).

PAULO PACHECO | Ao debruçar-me sobre a letra do fado Alfama e, também, sobre o carácter da composição musical do Alain Oulman, uma ideia surgiu de forma pro-gressiva: a de uma melancolia acentuada pelas palavras “solidão”, “desencanto”, “saudade” e “silêncio” e, ademais, a de um passo lento no ritmo e na tonalidade menor que enfatizavam este quadro de aparente tristeza em redor de um bairro lisboeta visto à noite. Neste sentido, o ambiente remeteu-me para um dos géneros musicais abordados de forma genial por Astor Piazzolla: a milonga (dança tradi-cional que deriva do tango). Este estilo musical, de carácter lento e melancólico, tão retratado por um compositor que abraçou o tango como se de uma música nacional se tratasse - e, na verdade, era - assemelhava-se ao “quadro” do fado “Alfama” e, quiçá, do Fado como música nacional

excerto de Meu amor, Meu amor

portuguesa. Assim se desenvolveu a minha recomposição do tema com o uso da milonga (mantendo basicamente o percurso original da harmonia e tonalidade), com ênfase no ritmo do baixo e vozes intermédias a acompanhar a voz superior, como se se tratasse de um acompanhamento de guitarras a “seguir” a dicção do canto.

TIAGO FIGUEIREDO, realizador dos telediscos

promocionais Gaivota e Um Homem na Cidade | Os videoclips do ALÉMFADO foram filmados, como sempre faço com o João Vasco, numa frutuosa colabo-ração e partilha de ideias. Quisemos evocar uma Lisboa lúgubre, entre o boémio e o decadente, aproveitando os bastidores do Salão Nobre do Conservatório Nacional. Os jogos de luz, aumentados pelo contraste do preto e branco dos filmes, aproximam ainda mais as estéticas sonoras e visuais dos videoclips e do fado lisboeta. •

ALINHAMENTO

UM HOMEM NA CIDADE

Vasco Mendonça (José Luís Tinoco/Ary dos Santos)GAIVOTA

Ian Mikirtoumov (Alain Oulman/Alexandre O’Neill)VERDES ANOS

João Madureira (Carlos Paredes)SEDE E MORTE

Pedro Faria (Carlos Paredes) QUASEUMFADO (obra original) Mário Laginha

OS MEUS LINDOS OLHOS

Eduardo Jordão (Mafalda Arnauth)A TENDINHA

Vasco Mendonça (Raul Ferrão/Pedro Bandeira)MARIA LISBOA

Ruben Alves (Alain Oulman/David Mourão-Ferreira)ALFAMA

Paulo Pacheco (Alain Oulman/Ary dos Santos)MEU AMOR, MEU AMOR

Ruben Alves (Alain Oulman/Ary dos Santos)BARCO NEGRO

João Madureira (David Mourão-Ferreira/Caco Velho/Piratini)TALVEZ SE CHAME SAUDADE

Pedro Faria Gomes (Francisco Viana Filho/João Gil)

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Cantos da voz:

sobre a minha

Missa de Pentecostes

João Madureira

vários entre a minha expressão musical e os materiais que citei. Este cruzamento de linguagens tem dois sentidos: a tradição é interrogada pelas técnicas contemporâneas nas peças do Ordinário da missa, enquanto que nos outros números são as práticas da música contemporânea que são encaradas a partir da tradição medieval.

A citação (presente no que Martha Hyde iden-tifica como reverential, eclectic, heuristic e dialectical imita-

tion2) representa um aspecto fundamental desta obra. Mas

desenganem-se aqueles que vêem na presença de citações um gesto conservador. O que guia a obra é, pelo con-trário, a ousadia de juntar o diverso, de confrontar técni-cas aparentemente pertencentes a mundos distintos. Não há, por outro lado, qualquer limitação auto-imposta, que implique o emprego de certos materiais tradicionais, mas sim um gesto de expansão do espaço habitual da música contemporânea, que é, aliás, prática comum a tantos au-tores do nosso tempo, gesto que visa a criação de um lugar musical que não tema interditos estéticos ou académicos. E, ao mesmo tempo, o desejo de revelar a obra no todo cultural em que se insere, por contraponto à constituição de um todo isolado, coerente consigo mesmo e imediata-mente classificável como música contemporânea.

Esta missa não representa uma excepção na mi-nha obra, mas uma face, talvez mais explícita, da minha relação com a tradição. Encaro a música contemporânea como parte integrante de toda uma evolução da música ocidental, e penso que muito habitualmente é exagerada a importância dos momentos de ruptura e diminuído o papel dos momentos de integração dessas rupturas num todo mais vasto. É, assim, realçada a violência da eman-cipação da dissonância verificada no início do século XX nos compositores dodecafónicos ou o lado mais revolu-cionário da música de Stravinsky. Como também é de-masiado enfatizada a importância do serialismo integral dos anos 50. Ou do espectralismo nos anos 70. Estes são momentos que emergem num todo fortemente marcado por linhas de continuidade com o passado e que são rapi-damente assimilados por compositores que nos vêm mais uma vez lembrar a pertença desses momentos, aparente-mente inusitados, a um contínuo histórico que os integra e que, naturalmente, deles se alimenta e neles se reinventa. A cada momento de ruptura corresponde, quase invaria-velmente, um momento de reintegração: como contra-ponto a Webern, temos Alban Berg; ao Stravinsky da Sagração da Primavera, o próprio Stravinsky neoclássico; em relação a Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen o contraponto seria Luciano Berio e György Ligeti; e em relação a Gérard Grisey e Tristan Murail, podemos apon-

2) in Neoclassic and Anachronistic Impulses in Twentieth-Century Mu-

sic, Music Theory Spectrum, Vol. 18, No. 2 (Autumn, 1996), p.200.

os cantos da voz são duplos

a escuta

infinita:

basta que o corpo tocado

seja outro

ou que o mesmo se desloque

Paulo Sarmento1

A ideia de composição da Missa de Pentecostes surgiu de um convite do Pe. José Tolentino Mendonça para compor uma missa integrada no projecto “Diálogo Arte

contemporânea e Sagrado”, um projecto com intervençãode artistas de diferentes áreas, a decorrer na Capela do Rato desde 2009. Em conjunto, pensámos imediatamente em associar o Consort de Música Antiga e Contemporânea Sete Lágrimas a este projecto e abraçámos, desde logo, a possibilidade de inclusão de poesia portuguesa entre os textos em latim do Ordinário da missa. A partir deste todo vincadamente heterogéneo, o desafio que me coube foi o de garantir a unidade do mesmo e, simultaneamente, não desvirtuar cada um dos seus elementos. Esta missa é, portanto, um repositório de diferentes expressões e cita-ções musicais e, mais do que isso, o fruto de cruzamentos

1) In vento.corpo.ressonâncias, a propósito do CD Vento, com a gravação da Missa de Pentecostes pelos Sete Lágrimas (MU0108, MU Records / Arte das Musas).

96 | glosas, #3

tar Kaija Saariaho, Magnus Lindberg e Ivan Fedele. Dois movimentos complementares, que não poderiam existir isoladamente.

Acontece que, academicamente, os momentos de ruptura são habitualmente valorizados, como se fossem os únicos responsáveis pela construção do devir musical. Esta valorização é, por outro lado, fruto de uma visão ten-dencialmente algébrica da produção musical, que, numa espécie de fascínio por uma narrativa que se quer una por vício académico, não pode compreender qualquer obra onde duas ou mais lógicas distintas se confrontem ou complementem. E é esta visão puramente algébrica da produção musical que tende a encarar as novas técnicasignorando o que se poderia designar como elementos a priori do discurso musical, ou, mais grave ainda, es-quecendo a sua pertença ao devir histórico das artes e das mentalidades — e, portanto, idolatrando o compositor cientista em detrimento do compositor artista, por mo-tivos puramente académicos. Porque é também o com-positor cientista que é capaz de dar a resposta "certa" e única a qualquer dúvida que possa surgir na sua praxis musical. Como se a arte (e a sua história) não fosse um la-birinto múltiplo de caminhos que se bifurcam! Um com-positor cientista que tantas vezes privilegia como superior a composição de obras unas, internamente coerentes, sem momentos claramente distintos entre si. Como se não fosse o princípio do contraste e da diferença interna o grande catalizador de grandes obras da música ocidental. Penso na enorme dualidade — feita por um lado de princí-pios harmónicos e por outro de práticas contrapontísticas — comum a Mozart, Monteverdi, Bach ou Beethoven e a tantos outros nomes maiores da nossa História musical. Como se essa uniformidade, tão ardentemente desejada, fosse a única hipótese de garantir a coerência do todo. E como se essa coerência tão duramente almejada fosse o garante de qualidade e de pertinência culturais.

Neste contexto de hipervalorização dos mo-mentos de ruptura que descrevi acima, todo e qualquer procedimento intertextual é, naturalmente, olhado com desconfiança. E, por mais que a presença da citação seja abundante em obras tão frequentemente citadas pelo seu carácter inovador, esta relação intertextual com a tradição é sempre encarada como a outra face da moeda, cuida-dosamente escondida por aqueles que duvidam que um todo possa resultar da reunião do diverso. É assim que em compositores como Alban Berg, Luciano Berio, György Ligeti, Magnus Lindberg, realçamos sempre a inovação de algumas técnicas e nunca "o encontro inesperado do diverso"3 e o momento profundamente revolucionário 3) Maria Gabriela Llansol, Lisboaleipzig.

cantos da voz: sobre a minha missa de pentecostes | joão madureira

que este gesto constitui. Um gesto que ousa juntar práti-cas distintas que ganham na vivência da heterogeneidade em que se inserem a força da revelação da sua identidade mais íntima.

Esta Missa de Pentecostes é feita de números fran-camente diversos entre si, mas é também feita da sobre-posição de linguagens que se ousam comentar. É uma Missa de contemporaneidade medieval e de tonalismo atonal. É um lugar de encontro. E é uma obra que se as-sume simultaneamente enquanto fragmento e todo uno. Uma obra que assume a sua heterogeneidade "linguística" ao mesmo tempo que reflecte um impulso criativo unifi-cador. Uma missa em que a presença da citação permitiu a constituição de uma obra aberta, não hierarquizável e de características multilineares, permitindo, desde logo, a subversão de qualquer sequência cronológica. E assu-mindo a pluralidade do nosso presente estético.

Não poderia terminar sem realçar a enorme im-portância que o Consort de Música Antiga e Contem-porânea Sete Lágrimas teve na execução deste projecto, pela enorme qualidade dos seus intérpretes e pela atitude de grande colaboração desde o início do projecto. Final-mente, a propósito da edição da Missa em CD, o trabalho excepcional da produtora Arte das Musas é algo que não quero deixar de elogiar. •

+info em www.setelagrimas.com

glosas, #3 | 97

98 | glosas, #3

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NUM 1204 – Fernando Lopes-Graça - Música Coral a Cappella – Volume I / Coros Lisboa Cantat

Dando início à colecção que disponibilizará a obra integral para coro a cappella de Fernando Lopes--Graça, a Associação Musical Lisboa Cantat e os seus coros lançam este ano em parceria com a editora Numé-rica o 1º Volume deste ambicioso projecto. A colecção será composta por 7 volumes duplos e contará no fu-turo com colaborações de agrupamentos convidados para além dos coros da AMLC. Na vasta obra coral de Fernando Lopes-Graça, destacam-se as mais de 230 Canções Regionais Portuguesas recolhidas por todo o ter-ritório nacional e que o compositor harmonizou ao longo da sua vida. Este património importantíssimo e a sua divulgação que agora se inicia, revelará ao grande público não só a mestria do maior vulto da composição coral  nacional do séc. XX,  mas também a  diversidade e riqueza da  criação musical popular  portuguesa.

NUM 1208 – Geografia da Música IV – Maestro José Atalaya

Este é o quarto disco da série “Geografia da Música”, CDs comentados pelo Maestro José Ata-laya. Acompanha o CD um livreto com os comentários do Maestro, andamento a andamento, sobre as 71 indexações incluídas, permitindo ao ouvinte ler os comentários ao mesmo tempo que segue a minuta-gem. Interpretado pela Orquestra Raízes Ibéricas e com a participação dos solistas Bruno Belthoise (piano), Christina Margotto (piano), Jed Barahal (violoncelo) e Marta Eufrázio (violino). A direção da Orquestra está cargo do Maestro Piero Bellugi (na peça de Luigi Boccherini) e Paulo Martins (nas peças de Carlos Seixas; Béla Bartók; W. A. Mozart). Um CD com caraterísticas únicas que permite ao ouvintes uma relação mais próxima com a música.

NUM 1211 – DESNUDO - Amílcar Vasques-Dias – Joana Machado Desnudo é a mais recente CD do compositor Amílcar Vasques-Dias, em que o compositor é tam-bém intérprete, acompanhando ao piano a cantora Joana Machado. Amílcar Vasques Dias e Joana Machado conseguem transcender barreiras com a música que apresentam neste CD. Há sonoridades profundamente jazzísticas que se fundem com texturas contemporâneas e com improvisações de uma fascinante imprevisi-bilidade harmónica, rítmica e melódica. É um disco de uma generosidade incrível - completamente despido de artificialismos - é uma obra notável e inovadora que revela apenas um objectivo: a música na sua forma mais pura. E esse objectivo é completamente cumprido.

NUM 1214 – Violino em Portugal - Luís Pacheco Cunha – Eurico Rosado – Pedro Wallenstein

A produção de música para violino é, em Portugal, esparsa e irregular, revelando da parte dos criadores (e do público) uma relação difícil com um instrumento quase que “estrangeirado” (é revelador o facto de, na nomenclatura oficial, ter permanecido, até meados do século XX, a “rabeca”). Ainda hoje são o piano e a voz quem enchem as salas de concerto. Se já anteriormente encontramos algumas obras interessantes, é, sem dúvida, no séc. XX, que se revela a grande viragem no terreno da criação musical. As obras que preenchem este CD são exemplos de boa escrita para o instrumento ao nível das melhores produções europeias. Um idiomatismo fluído que acompanha as tendências do seu tempo, no barroco, romantismo, impressionismo, neo-classicismo ou na expressão da mais recente contemporaneidade.

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