G UIA prÁt Ic O p Ar A Ind Ig En Iz Ar-s E - lÉO p Im Ent El (OUt-2013)
-
Upload
independent -
Category
Documents
-
view
1 -
download
0
Transcript of G UIA prÁt Ic O p Ar A Ind Ig En Iz Ar-s E - lÉO p Im Ent El (OUt-2013)
léo pimentel souto
http://amantedaheresia.blogspot.com
guia prático para indigenizar-se – léo pimentel souto
– mba'e megua (Brasília): instituto autonomia, 2013
tupax katari: "nax jiwäwa. akat qhiparux waranq waranqanakaw kutt'anïxa"
(yo moriré pero mañana regresarán millones.)
remix das imagens para capa: léo pimentel
(bandeira wiphala, bonecas karajá e arte bakairi)
[2013]
sumário
prefácio ... p. ii
glossário para a insurgência anunciada ... p. 04
lição 01:
distopias bandeirantes ... p. 06
lição 02:
resistências índias ... p. 08
lição 03:
utopias re-existentes ... p. 16
lição 04:
avó no laço nunca mais ... p. 18
lição 05:
indigenizar-se-á ... p. 19
apêndice i:
panfleto contra civilização do estupro ... p. 23
apêndice ii:
a des-insurgência espontânea no ethos brasileiro ... p. 25
apêndice iii:
textos complementares meus ... p. 28
carta aberta ao governo brasileiro sobre os direitos dos povos
indígenas e o desenvolvimento sustentável do país - signatários: ailton
krenak | malak poppovik ... p. 30
Pág
inai
i
prefácio
tupax katari: "nax jiwäwa. akat qhiparux waranq
waranqanakaw kutt'anïxa"
(yo moriré pero mañana regresarán millones.)
igualdade é uma mediação entre “ser humano” e “etnicidade” (estares humanos), por “ser humano”
corresponder a algo tão genérico, vasto e cômodo, e “etnicidade” corresponder a uma zona crepuscular cheia
de armadilhas. a igualdade tem como propósito particularizar o “ser humano” em “pessoa” (todos/as somos
iguais) à medida que se desoculta os “estares humanos” em “etnias” (todos/as, por enquanto, somos iguais).
desocultamento que se dá enquanto técnica de visualização de “estares humanos” somente enquanto “seres
humanos” (pessoas) pertencentes, temporariamente, a uma determinada “visão de mundo” (ponto de vista -
etnia). mas ao fazê-lo torna-se técnica de violações: a igualdade passa a ser igualação. o “ser humano” ao
invés de se servir das “visões de mundo” em função de suas diferenças e se tornar “humanidades” e assim
criar condições inter-estares (interações étnicas), passa a viver em função da igualdade mesma (somente um
estar deve existir), ou seja, passa a ser técnica para instituir-se única, exclusiva e absoluta visão de mundo:
igualação por anulação e ocultamento. não identifica pontos de mediação entre “estares humanos”,
(etnicidade) enquanto significado de “humanidades” (inter-etnicidades), mas sim identifica pontos de
mediação para “ser humano” como próprio de uma única “humanidade”, ou seja, “ser humano” é uma única,
exclusiva e absoluta visão de mundo habilitada a pairar acima de qualquer “estar humano”: meta-etnicidade.
podemos identificar essa técnica como sendo a práxis que auxilia a realização da pretensão de
exclusividade do “estar humano ocidental” em “ser humano”, e assim, ser realizada como plena
“humanidade”: colonialidade. tal técnica é de extrema violação. violação esta que possui muitos modos de
acontecer. um deles é o que chamo de “êxodo étnico” forçado: “estares humanos” sendo forçados a sair de
suas particularidades (estares), diferenças (seres) e distintas visões de mundo (existires), que são mundos
em si mesmos, em busca de oportunidades (re-existência) e um “mundo melhor” (o único modo de existir é
“estar humano ocidental”), mas que terminam engrossando as zonas marginais e de depreciação da
“humanidade” – bolsões de pobreza (não conseguir acumular bens e mercadorias), de silêncio (sentir que são
se é quem fala) e de ignorância (não se sabe para onde quer ir já que se não se sabe de onde veio) nas
cidades. outro modo de acontecer dessa violação é como a história dela é contada: uma façanha prodigiosa
realizada por representantes de um “estar humano” que dominou por sua inteligência, em nome de deus, da
república e da civilização, milhares de “estares humanos” primitivos e selvagens. uma simples olhada na
Pág
inai
ii
relação entre as nações indígenas e o estado brasileiro demonstra o contrário: tal promoção é brutal e
sistemática; tal façanha não é realizada por um “estar humano” mais inteligente, mas sim um “estar humano”
que orienta sua inteligência à guerra, como se esta fosse a mais pura e verdadeira realidade das
“humanidades”.
contra isso, há uma contra-técnica orgulhosa e rebelde: indigenizar-se – insurgir-se contra o “estar
humano ocidental” que tem o absolutismo como meta e a opressão e o aniquilamento como método da vida
diária. contra-técnica que realiza o direcionamento de nossa inteligência, não mais à morte e ao ocultamento
de outros “estares humanos”, nem se impor enquanto essência do humano (ser), mas sim à auto -re-
construção descolonizada (“qhip nayr uñtasis sarnaqapxañani” – olhando ao passado para caminhar pelo
presente e pelo futuro) de nossas capacidades de pensar, criar, analisar e inventar enquanto história do
humano (estares).
léo pimentel
mba'e megua, outubro de 2013
Pág
ina4
glossário para a insurgência anunciada
brasil: espaço geográfico de administração estatal onde se separa os fins dos meios elegendo determinados
meios como sendo fins em si mesmo. por exemplo, a democracia (meio) que deveria partir de forças
políticas que não estão dentro do estado mesmo (meio), é tomada como um fim em si mesmo para a
continuidade do estado também tomado como fim em si mesmo.
desindianizar: estratégias para desligar-nos de nosso passado, atribuir-nos humildade e resignação, e
esvaziar-nos de nossa sabedoria comunitária.
estares humanos: formas ricas e complexas de humanidades, sublimes, portanto frágeis, e assim, sujeitas à
violência armada do projeto unificador da “humanidade” e condenadas à esterilidade e
ao desaparecimento.
indígena: adjetivo preferido dos/as nacionais para qualificar como vazio político as nações oprimidas.
indigenismo: indignação por estar apenas sobre a pressão de sua cultura insuficiente que, no entanto, gera
um prazer com isso, já que não se exclui dessa sua cultura insuficiente.
índios/as: num primeiro momento foi marca da sociedade atribuída a quem esta oprimiu. atualmente, marca
apropriada politicamente pelo/a oprimido/a para unir-se, continentalmente, contra o/a opressor/a.
intelectual brasileiro: ter em mãos incontáveis “ismos” estrangeiros para satisfazer sua sede e vontade por
mais colonização.
mestiço/a: índio/a a caminho de ser conquistado/a.
metaocidental: um local/regional que se quer global, cujos fragmentos é distribuído estrategicamente e
interconectados de modo que se apresente como um tudo sólido.
nacional: a apropriação do “nosso” enquanto “eu”, tornando o estado algo mais importante que as nações.
Pág
ina5
nações: ter a própria linguagem, vestimenta, comida, medicina, religiosidade e visão de mundo desde onde,
conhecendo outras culturas, podem crescer com elas.
originário/a: o “estar humano” antes da politização, cuja história é contada a partir de suas comunidades e
nações e não a partir da história das coisas desde a europa.
pacificação: pratica de exterminar, já que cadáveres não se rebelam nem se insurgem.
pardo/a: índio/a conquistado/a que não suporta a mata donde as nações indígenas foram empurradas; que
hoje é estimulado/a pela competição desde o progresso industrialmente agressivo.
produtor rural: meio usado para preservar e continuar a estrutura econômica, social, militar, jurídica colonial
do império do brasil no modo de agir da republica federativa do brasil.
ser humano: a domesticação tendo valor definitivo, fundamental, como estratégia de ocultamento de que,
como espécie, a humanidade não está em progresso, não está em constante evolução para
seus entes, “estares humanos”.
Pág
ina6
lição 01
distopias bandeirantes
pilhagem, conquista, escravidão, estupro e assassinato: que valor definitivo podem ter? ou será que
cada um destes tem algum valor definitivo?
a figura do “bandeirante” emprega grandes esforços tentando nos convencer de que tudo o que fizera
se justificou na história por seu “efeito civilizador”. pilhagem, conquista, escravidão, estupro e assassinato
tornam-se um conjunto fundamental de valor inestimável para “civilizar”. a civilização resultante, o brasil
republicano, considerada em melhores condições que outrora, por condenar e por vezes, amaldiçoar os
sertanistas do brasil colonial, nada fazem para deixar de serem coloniais, de serem bandeirantes. isso por
terem encontrado em outro lugar o seu valor fundamental: mestiçagem colonial (estratos intermediários da
pirâmide social que internalizaram a dominação), políticas assistencialistas de alívio (que não reconhecem o/a
índio/a como agentes econômicos, sociais e culturais), coisificação do/a índio/a (“minorias” exóticas presas a
um passado imemorial praticamente imutável) e as leis como violência (lógica unitária cuja unidade
pressupõe o ocultamento da pluralidade no corpo social e cultural).
o bandeirante faz da luta em torno da sobrevivência, sua grande premissa para nos convencer de seu
valor fundamental para efeitos civilizatórios. delira uma seleção natural rumo à perfeição de um único ser-no-
mundo, mais robusto e bem dotado, mediante a morte dos estares-no-mundo “mais fracos”. no entanto, este
herói civilizador não passa de um grupo de analfabetos assaltantes bem armados provindos e descendendo
de um lugar no qual, a guerra lhe ocupa desde o começo de sua memória e, sua vida ter sempre se dado
com a morte de outros povos: europa. o bandeirante oculta sua condição inculta de que nada conhece sobre
a cultura de seu próprio país de origem ou de descendência, e não tem a menor intenção de conhecer a vida
daqueles/as pilhados/as, conquistado/as, escravizados/as, estupradas e assassinados/as por ele.
o bandeirante ignora os nomes das plantas e dos animais do ambiente que invade (territorialidade
índia), ocupa (agricultura) e pilha (mineração); ignora toda sua medicina e todo seu ritmo biológico; despreza
tudo isso fazendo suas picadas na mata, incendiando tudo para criar pastos e cultivar um dois alimentos e,
Pág
ina7
desertificar solo em busca de minerais em seu subsolo; por vezes até chega a articular um sentimentalismo
falsamente romântico copiado do estrangeiro; mesmo assim, continuam a impossibilitar outra fauna que não
seja para caça por esporte ou por tráfico de animais exóticos; continuam a impossibilitar outra flora que não
seja as da agricultura e a das árvores gigantescas de madeira nobre. falta ao bandeirante o aspecto materno
da terra por onde passa. não há parentesco algum entre ele e a terra. até seu atual ecologismo é insuficiente:
visa apenas preservar aquilo que ainda não foi destruído, nem imaginam como é a ecologia dos povos índios
– enriquecer com novas espécies de flora a mata que lhe é parente. a terra para o bandeirante é um mero
campo aberto para ideologias que lhe possam encobrir.
na pretensa história evolutiva da civilização brasileira, como herói civilizador, o bandeirante foi um
ente evoluído do colono e, por conseguinte, ente primitivo antepassado aos atuais candangos, sertanistas,
indigenistas e ruralistas. pretende crer-se que houve avanço e este foi repassado adiante, manifestando-se
nos “heróis” seguintes de modo cada vez mais refinado e forte. supõe-se desenvolvimento crescente. supõe-
se progresso definitivo em relação a outros estares. supõe-se que não estão submetidos a nenhuma espécie
de décadence. mantêm-se como uma imortalidade aparente. nessa pretensa história evolutiva ter em conta o
entremesclamento seria tornar-se “selvagem” (degenerado em termos morais). e bendita é considerada sua
política pensada a partir das dinastias europeias. estas que não atacam outros povos por serem as dinastias
mais inteligentes, mas por serem as mais bélicas e mesquinhas.
na formação do brasil, violenta e sistemática, evitou-se os conhecimentos comunitários e as
sabedorias coletivas das nações índias – que todas as camadas sociais tomassem partido de uma paixão
nacionalista vazia nascida de necessidades guerreiras de ocupação permanente; jamais teve uma guerra
entre um exército invasor contra outro defensor – agressividade que hoje se cristalizou e se tornou
arrogância; até os dias de hoje choca-se contra formas de vida mais construtivas desacredito-as como
utopias irrelevantes ao desenvolvimento econômico e estratégico brasileiro – acredita-se ter necessidade de
exércitos e polícias para fins de defesa de “inimigos internos”; para, por fim, instituir-se como uma grande
distopia nacional onde caibam todas as distopias bandeirantes – “el colonialista nos estrangula usando sus
dos brazos, izquierdo y derecho” (wankar reynaga rompendo o silêncio contra a esquerda e a direita política
em seu livro tawa inti suyu1).
1 REYNAGA, Wankar. Tawa inti suyu – 5 siglos de guerra índia. Perú: edición electrónica sin fines de lucro, 2007. http://ebookbrowsee.net/ramiro-reynaga-wankar-tawa-inti-suyu-pdf-d419424679
Pág
ina8
lição 02
resistências índias
o nome brasil insinua uma sínteses amável e cordial entre o nobre conquistador português com a
índia de beleza extraordinária. no entanto, isso jamais ocorreu! estendendo essa perspectiva às dimensões
continentais, o mundo reconhece “américa latina” ou “ibero américa”, mas nunca uma “américa indígena” ou
um “continente indígena”. este não reconhecimento serve para aumentar a confusão criada para encobrir as
nações indígena, estas desumanizadas por uma sistemática inumana: desindianização, fome, história oficial,
educação obrigatória, religião, medicina, vestimenta, subemprego, desterritorialização e a não demarcação de
território. no entanto, nada mais terrível é uma pessoa que se autodeprecia oprimida pelo bloqueio dos
caminhos ao seu futuro e ao seu passado. é preciso “qhip nayr uñtasis sarnaqapxañani”2, olhar ao passado
para caminhar pelo presente e pelo futuro. para tal, apenas para começar, desobstruo o caminho para nosso
futuro, auxiliando um encaminhamento, não exaustivo, ao nosso passado, trazendo alguns exemplos dos
verdadeiros heróis libertadores, cuja libertação ainda segue em curso por mais de 500 anos.
vale lembrar que, a história da invasão e da ocupação sistemática dos territórios indígenas na
formação do brasil não é a história de agentes civilizadores cultos, cuja realização é um misto de prodígio,
destinação divina e darwinismo social. é sim a história de agentes armados com armas de fogo, montados a
cavalo e acompanhados por cães amestrados para despedaçar indígenas. é sim a história da violência e da
astúcia mescladas com as promessas de benefício da evangelização, e não da honra e da glória mesclada
com as intenções de conhecer a vida e a história ancestral daqueles e daquelas portadoras de suas culturas
que aqui habitam. parafraseando sergio bagú3 (1911 – 2002) eu diria que o brasil nasce no mito perpetuador
do “mundo ocidental quando o absolutismo torna-se a meta e a intolerância, o método na existência diária”.
isso porque ao vermos os livros de história do brasil, o protagonismo indígena jamais é considerado e quando
o é, suas ações são transformadas ao longo dos séculos em “guerra suicida”, “resistência rebelde”,
“incorporação e assimilação”, “contatados e isolados”, e mais recentemente “invasores”. há de se contar
2 CUSICANQUI, silvia rivera. oprimidos pero no vencidos. Bolivia: la mirada salvaje, 2004. [http://pt.scribd.com/doc/157355436/Oprimidos-Pero-No-Vencidos] 3 jornalista, advogado, historiador e sociólogo argentino.
Pág
ina9
ainda a história dos 500 anos das lutas que ainda resistem à invasão e à conquista e, das lutas para a
preservação de suas territorialidades, culturas e modos de vida (estares-no-mundo). antes de prosseguir, faço
uma nota: nem ao menos se teve por aqui um bartolomé de las casas4 (1474 - 1566) para relatar os horrores
da invasão e da conquista e, com isso, pudesse gerar a possibilidade de alguns, ou algumas portuguesas,
pudessem ousar falar dos crimes aqui cometidos ou mesmo pudessem pensar em favor dos povos que aqui
iam sendo oprimidos. pois bem, o orgulho colonialista se deu, desde o início, de maneira intacta, seja o
colonialismo material (escravidão), seja o colonialismo espiritual (cristianização). foi sistemática a ocultação
feita pelos cronistas portugueses de suas numerosas derrotas e crueldade.
trago aqui alguns fragmentos para ensaiar uma breve história dessas lutas, já que reconstruir os fatos
beira ao impossível:
século xvi:
não houve choque cultural ou civilizacional. algumas surpresas sim houve. isso porque o contato foi
militar-religioso e não epistemológico-filosófico. contato desde já hierarquizado e unilateral, já que fora feito
pelas duas grandes formas hierárquicas do mundo ocidental: o exército e a igreja – instituições que jamais se
separaram por aqui. e sendo assim, dois traços gerais do “encontro” são possíveis de serem marcados: a
certeza de que toda pessoa encontrada pelos invasores lhes pertencia (assassinato, escravidão e estupro) e
a luta pela fé cristã (levar a bandeira da cruz) e pelos serviços à vossa majestade (impor tributos e forçar a
ser súdito). as primeiras oposições indígenas a construir vilas e missões, a se submeter aos trabalhos, a
andar vestidos/as e a forçosamente adotar os costumes alheios para serem oprimidos/as e logo
consumidos/as foram as guerras defensivas. estas em defesa da territorialidade frente à condição colonial
sistemática de ocupação de território; frente ao empreendimento da colonização de exploração latifundiária-
monocultural-escravocrata cuja base era a plantação de cana de açúcar. as guerras mais citadas e
conhecidas do período foram:
confederação dos tamuya (“tamoios”, para os portugueses) (1554 – 1567, na região hoje conhecida como o
litoral norte paulista e sul fluminense): confederação iniciada por cunhambebe
que reuniu diversas lideranças índias contra a violência portuguesas ao povo
tupinambá e aos seus aliados. as outras lideranças foram: pindobuçu, koakira,
araraí e aimberâ. na língua tupinambá, “tamuya” significa “o mais velho, o mais
antigo”. e assim a confederação do “mais antigo” foi nomeada.
4 Frade dominicano, teólogo, cronista e bispo de chiapas (México). capelão militar espanhol conhecido por, após participar de
ataques contra indígenas e os escravizar em suas plantações, passa a defender, dentro dos valores cristãos, a liberdade e a dignidade indígenas.
Pág
ina1
0
guerra dos aimorés (1555 – 1673, na região hoje conhecida como ilhéus, bahia e porto seguro): povo jê,
nomeados como “botocudos” pelos portugueses, devido ao botoque que usavam como
adornos em seus lábios e orelhas. sem chefes nem guerreiros que lutassem pessoa a
pessoa faziam uma guerra defensiva do modo guerrilha ao longo dos rios jaguaripe e
paraguaçu, onde caçavam e pescavam. em 1558 conseguem destruir a bandeira de
fernão de sá, na região conhecida hoje como espírito santo.
guerra dos potiguaras (1586 – 1599, na região hoje conhecida como paraíba e rio grande do norte):
armados pelos franceses atacaram a fortaleza portuguesa na paraíba. sob a
liderança de tijukupapo e penakama, guerreiros de mais de cinquenta aldeias
resistiram. a vitória seria certa, acaso não fossem os reforços de soldados e
aventureiros vindos de pernambuco, a aliança portuguesa com o povo tobajara,
inimigos dos potiguaras e a epidemia de varíola que assolou a região. debilitados
resolveram assinar um acordo de paz. resultado: foram traídos pelos portugueses e
massacrados por estes.
século xvii:
até então restrita ao litoral, a ocupação territorial é sistematizada rumo ao interior. patrocinada pela
coroa portuguesa, expedições de expansão territorial (exploração econômicas de riquezas naturais) são
realizadas para adentrar ainda mais no território, num processo de busca (bandeiras: pilhagem sob a
proteção do governo) de ouro e de índios/as para serem tornados/as escravos/as, ao mesmo tempo em que
jesuítas começam a fundar suas missões no interior (aldeias para a catequização de povos indígenas) e
expedições militares eram realizadas com o objetivo de expulsar estrangeiros. nesse contexto de rapina
continuada, as nações indígenas permanecem indômitas. nos manuais de história oficial, apenas duas
grandes guerras defensivas e de resistência indígenas são as mais conhecidas:
levante dos tupinambás (1617 – 1621 nas regiões hoje conhecidas como maranhão e pará): os tupinambás
volta a se levantar contra a violência colonial escravagista dos portugueses. levante
que teve início em cumã (município de guimarães no estado do maranhão), onde
foram mortos todos os não-indígenas de lá, e que se seguiu até belém, onde
atacara o forte do presépio. sua liderança foio guerreiro guaimiaba (“cabelo de
velha”). em represaria o estado central promove repressão bárbara. o levante teve
fim auxiliado por outra epidemia de varíola.
Pág
ina1
1
confederação dos cariris (1683 – 1713, na região nordeste do que hoje é conhecido como brasil): sob a
liderança de canindé do povo janduim, várias etnias tapuyas dessa região uniram-
se contra a coroa portuguesa a obrigando a assinar um tratado de paz no ano de
1692. de início as etnias aliadas foram: os janduins, paiacus, capirus, icós, caratiús
e os cariris. os ataques se davam contra vilas e fazendas, saques e destruição de
patrimônio. com a vinda dos bandeirantes paulistas outros tapuyas se juntaram a
confederação, ao anacés, jaguaribaras, acriús, canindés, jenipapos, tremembés e
ao baiacus. a confederação dos cariris somente foi extinta devido ao genocídio
indiscriminado perpetrado pela cavalaria do cel. joão de barros braga. este que
exterminava qualquer tapuya que encontrava pelo caminho, fosse homem, mulher,
idosos/as ou crianças.
levante e confederação reprimidos por procedimentos medievais. levante e confederação, mesmo
que não tenha resultado em vitória indígena definitiva, serviu e ainda serve para despertar a consciência e a
motivação das nações submetidas. o sadismo bárbaro colonial é incapaz de pacificar seus territórios
ocupados.
século xviii:
momento da descoberta das primeiras jazidas na região que mais logo viria a ser chamada “minas
gerais” (houve uma verdadeira corrida do ouro), da intensificação do comércio de índios/as escravizados/as
(índios/as sequestrados/as para o trabalho na agricultura e nas embarcações), e da criação do título
“diretores dos índios” (catequese e trabalho escravo para a incorporação do/a índio/a à sociedade colonial)
para colonos civis ou militares – tal título foi o berço do neocolonialismo (colonialismo cultural). foi um século
que quase se devastou por completo as territorialidades indígenas. devastação realiza pelos militares
portugueses e paulistas descobridores de ouro. também fora um momento de diversas revoltas de índios
aldeados e de guerras indígenas defensivas. destas as mais estudadas nos manuais de história são:
guerra dos manaus (1723 – 1728, na região hoje conhecida como belém): ajuricaba, liderança dos manaus,
inconformado com os índios traidores que voluntariamente tornavam-se cativos dos
portugueses, aliou-se ao holandeses e levantou guerra contra os invasores e contra tais
traidores. gradativamente ajuricaba foi retomando terras. feito que se deu início a mais
uma confederação indígena e alianças de luta composta por mais de trinta etnias. como
Pág
ina1
2
êxito, destruiu-se muitos núcleos de colonos que foram obrigados a se refugiarem no
forte da barra.
resistência guaicuru (1725 – 1744, nas regiões hoje conhecidas como mato grosso do sul e goiás): povo
composto por exímios cavaleiros cuja técnica era utilizada, tanto para a caça, quanto
para os ataques de resistência à ocupação sistemática do pantanal tentada por luso-
brasileiros – estes primeiros “brasileiros” chamados “paulistas”. os ataques com
cavalos variavam entre combates, emboscadas em curvas acentuadas dos rios e
apedrejamento. seus alvos principais eram os comboios de ocupação. contra o inimigo
comum fez-se aliança com o povo paiaguá. este que tinham uma aliança secreta com
os espanhóis. o povo guaicuru resistiu o quanto pôde, também deu muito trabalho para
os espanhóis aliados dos paiaguá. e por fim, chegaram a firmar um contrato de paz
com a coroa portuguesa, em 1791, como aliados para proteção de fronteira.
guerrilha dos muras (todo o século xviii – 1789 nos vales do baixo purus, amazônia): povo conhecido por
não manter relações com brancos; moravam em canoas e atacavam as embarcações
comerciais que cruzassem o rio madeira. desenvolveram uma impressionante
estratégia de guerrilha utilizando os rios como local de resistência. foi uma grande
ameaça aos interesses coloniais na região já que, em sua obstinação resistente, os
muras não desistiam da batalha mesmo sabendo que a morte lhe era inevitável. foi o
povo responsável direto por bloquear o avanço das missões jesuítas, do comércio
fluvial português e das ações militares de expansão territorial na amazônia por muito
tempo.
se finda o terceiro século de guerra de resistência indígena. momento histórico que não se apresenta
numa disposição histórica em linha reta, mas sim como ciclos. ciclos de guerra de resistência indígena.
mesmo sob a pilhagem do solo e do subsolo e sob a opção colonial do genocídio ou da escravidão, tudo sob
a proteção do governo local e da coroa portuguesa, as nações indígenas de aqui se levantavam. se
surpreendidas, fugiam para as florestas e rios, onde se reorganizavam de tal modo que logo reapareciam
mais autoconfiantes e revigoradas. diante um perigo comum, nações esqueciam antigas rivalidades. o terror
inicial dos/as índios/as diante das armas de fogo do invasor deu-se lugar à quase indiferença. a
ridicularização feita pelos cristãos aos comportamentos indígenas deu-se lugar ao cinismo. pois ao mesmo
tempo em que os cristãos desprezavam a grande sabedoria civilizacional indígena, cujas matas índias sofrem
constantemente um enriquecimento florestal, já que novas espécies para alimentação e para uso medicinal
são introduzidas de região em região, sabiam de sua dependência para com essas nações nativas. sabiam
que para sobreviverem dependiam tanto da mão-de-obra indígena na agricultura quanto da coleta alimentar e
medicinal na região.
Pág
ina1
3
século xix
auge do cinismo brasileiro para com os povos indígenas. as chamadas “guerras justas” (atribuição ao
índio a primeira agressão) prosseguiam sendo decretadas. povos inteiros seguiam sendo dizimados.
indígenas tornaram-se mera questão fundiária. neste período, as resistências indígenas eram tratadas
oficialmente como meras expedições vingativas contra os brancos. e para o combate contra tais expedições
eram utilizadas tanto a jagunçagem e o exército, quanto o estímulo das rivalidades entre etnias.
aos olhos brasileiros, culturas, visões de mundo, línguas, racionalidades que não europeias deveriam
ser extintas de uma vez por todas. a identidade brasileira deveria ser importada, já que, como sujeito
histórico, o brasileiro não é nativo daqui. e assim o brasil se abre à colonização de outros povos estrangeiros
que se dispusessem a se estabelecer em “terras de ninguém”. três foram as grandes fases: 1808, na qual os
colonos deveriam ser católicos; 1850, marcada pela criação de indústrias e pela construção de estradas de
ferro; e, 1888, com a concessão de auxílio e terras para o estabelecimento de colônias – período este que
somente é freado com a grande guerra de 1914.
porém, os povos indígenas seguem resistindo e re-existindo. nesse processo houve outra modalidade
de guerra índia, além das ocorridas nos séculos passados, que vale lembrar: a apropriação insurgente do
cristianismo messiânico. nesta nova modalidade de guerra de resistência e de re-existência, lideranças
indígenas evangelizadas organizavam cerimônias e rituais aliadas à pregação da libertação dos povos
indígenas da opressão econômica, política, ideológica e cultural dos brancos. por exemplo, na amazônia, tal
evangelização insurgente indígena logo se espalhou ameaçando a expulsão dos brancos da região. as duas
mais conhecidas foram:
baniwa (povo que habita o noroeste do amazonas): com seu pajé venâncio kamiko, mais conhecido como
messias baniwa venâncio christu.
arapaso (povo que habita o noroeste do amazonas): com seu pajé messias vicente christu, que anunciava
que em breve seria estabelecida uma nova ordem social. nesta os brancos seriam os escravos e os
índios seus patrões.
uma curiosidade no brasil é o fato de, ao longo do século xix, a colonização cultural foi sendo
considerada efetivada de modo que o/a índio/a se tornava um/a desaparecido/a. vários foram os documentos
de governadores endereçados ao governo central para que se extinguissem as aldeias de seus municípios, já
que para eles, os/as índios/as aldeados/as não eram mais índios/as, pois já não tinham mais etnia
diferenciada. e assim sendo, poderiam desde já “gozar dos direitos comuns” a todos/as os/as brasileiros/as.
para fechar esse ciclo, o faço mencionando a guerra de guerrilha dos kayapó do sul:
Pág
ina1
4
guerra de guerrilha dos kayapó so sul (todo o século xvii e o século xix no planalto central brasileiro –
interior da região conhecida hoje como goiás): muito mais do que
um modo improvisado de defesa, suas estratégias investidas
contra o colonizador eram minuciosamente planejadas. o que
demonstrava uma experiente atitude de ataque. jamais recuava
quando atacado pelo branco. duas de suas técnicas mais
utilizadas eram o uso do fogo e o ataque surpresa. bastavam
poucos guerreiros para eliminar toda uma expedição de brancos.
século xx
da primeira república brasileira (1889-1930), passando pela era vargas (1930-1945), pela segunda
república (1945-1964), pelo terrorismo de estado (1964-1985) e por fim, chegando à nova república (1985-
presente), as nações e povos indígenas desse território continuam tendo que guerrear para garantir seus
processos de descolonização. brasil colônia, brasil império e republica brasileira, todos já prometeram
mudanças profundas à chamada “questão indígena”. no entanto, ninguém conhece melhor e profundamente a
dor de quem sofre, senão aquele/a que sofre. basta a dor para gerar respostas dos povos oprimidos. basta a
dor para fazer-se necessária uma base organizativa que permita superá-la. basta a dor para a adoção de um
sentido de justiça e legitimidade reconhecível por outras nações sem estado e que não pretendem ter um. até
o ano de 1990, cerca de 200 povos falantes de 170 línguas diferentes, aproximadamente 250.000 pessoas
tinham 14% de suas terras regularizadas, 20% homologadas e 13% delimitadas.
no entanto menciono três nomes significativos da resistência e re-existência índia:
mário juruna: (1942 ou 1943 – 2002) primeiro deputado federal indígena. ficou muito conhecido na década
de 1970 por andar sempre com um gravador na mão “para registrar tudo o que o branco diz”
por constatar que tal, dificilmente, cumpria com a palavra.
raoni metuktire: (1930) cacique kayapó conhecido internacionalmente por sua luta de resistência étnica e
pela preservação da floresta amazônica. no ano de 1984, armado e pintado para a guerra,
se apresenta para negociar sobre a demarcação de seu território com o então ministro do
interior mário andreazza. na ocasião suas palavras ao ministro foram: “aceito ser seu amigo.
mas você tem de ouvir índio”.
Pág
ina1
5
tuíra kayapó: em 1989, durante a exposição de muniz lopes sobre a construção da usina kararaô, no 1º
congresso dos povos indígenas do xingú, a índia tuíra kayapó, num gesto de advertência,
encosta seu facão no rosto do citado diretor da estatal.
tanto a história quanto a natureza são cíclicas. as vidas que por elas transitam, avançam em espirais.
a cada volta dada nesta espiral é um ciclo. e cada um deste ciclo recorda o ciclo anterior, no entanto, sem
copiá-lo. agora terminam as guerras contra a invasão e contra suas políticas, cujas ideologias já estão mortas
há um bom tempo, para começar as guerras de retomadas; as guerras contra o monstro industrial que põe
todos/as em perigo de extinção.
século xxi
segundo os dados do censo 2010, são 800 mil índios distribuídos entre 683 terras indígenas e áreas
urbanas. também há 77 povos indígenas não-contatados e um crescente número de outros requerendo
reconhecimento. no entanto, são mais de 1470 povos indígenas extintos5. milhares e milhares de mortos
incômodos e de sobreviventes que sofrem com a desapropriação sistemática da soberania de nossa
territorialidade e de nossas identidades índias (em constante transformações) – fazer-nos esquecidos de
nossas verdadeiras raízes (capazes de se adaptar e renovar os métodos de luta) – ao mesmo tempo em que
nos é negado a dignidade enquanto estares humanos.
momento de retirar da clandestinidade cultural, tanto nossas práticas sociais e políticas internas
quanto nossas formas de vida. momento de não mais aceitar lideranças alheias; de dizer um basta aos
mandos e desmandos das mesmas castas dominantes que pensam, falam e fazem em nossos nomes; de
dizer um basta à falsa integração e à homogeneização cultural; de não mais querer partes e muito menos
reformas parciais de políticas assistenciais de alívio. momento para queremos a liberação definitiva e a
construção de uma sociedade plurinacional e pluricultural.
5 Região Sul: 33 povos / Região Sudeste: 143 povos / Região Nordeste: 344 povos / Região Centro-Oeste: 137 povos / Região
Norte: 820 povos. (Outros 500: construindo uma nova história / Conselho Indigenista Missionário – Cimi. São Paulo : Editora
Salesiana, 2001.)
Pág
ina1
6
lição 03
utopias re-existentes
o que significa dizer “nossa cultura”? o que significa dizer “sou brasileiro/a”? é fácil tal identificação?
mas, como fazê-lo? dar significado e/ou identificar? o que está em jogo para tais? sendo um sujeito pode-se
vê-lo de fora e de dentro. “de fora” seria significar e identificar “nossa cultura” e “ser brasileiro/a” desde o
ponto de vista do invasor português, da concessão de terras para colônias europeias, sírio-libanesas e
japonesas, de imigração voluntária de pessoas e famílias estrangeiras por melhores condições de vida e, por
fim, desde o ponto de vista de africanos e africanas sequestrados/as e tragas para o brasil na condição de
escravos/as. “de dentro” seria significar e identificar “nossa cultura” e “ser brasileiro/a” desde o ponto de vista
das agressões recebidas pelas diversas nações que aqui já existiam.
“nossa cultura”? invasores, colônias estrangeiras e famílias imigrantes tem o brasil como um
horizonte para realizar aquilo que trouxeram em suas bagagens em terras apropriadas militarmente, por
concessão ou por comprar de ambos recém proprietários. deste ponto de vista, “sou brasileiro/a”, além de
fixar moradia por estas terras, significaria aceitar pontos de vista europeus desde os horizontes econômicos
(uso do solo e exploração do subsolo), políticos (forma de governo e meios de organização e administração)
e culturais (a não aceitação dos valores nativos). todas elas, distopias bandeirantes.
do ponto de vista da imigração africana forçada para fins de escravidão, “nossa cultura” é a colcha de
retalhos das memórias culturais e afetivas carregadas de traumas devido as violações e as humilhações
sofridas. “sou brasileiro/a”, além do processo de pauperização e desumanização, significaria fugir para o mais
distante possível dos centros de escravização e se organizar na construção de quilombos. estes seriam o
primeiro horizonte utópico realizado desde fora por nestas terras. em tal abria-se a possibilidade de uma
efetiva alternativa de re-existência: existencial, econômica, política e cultural.
desde o ponto de vista das agressões recebidas pelas diversas nações que aqui já existiam, “nossa
cultura” em decadência e em vias de extinção tem uma única causa: a agressão do “homem branco”. isto
porque índios/as e africanos/as lutam juntos contra o mesmo “amo”. nunca tiveram problemas entre si.
Pág
ina1
7
nenhum desses estares pretendeu impor seus costumes ao outro. “nossa cultura”, mesmo em entropia, é
plural, clandestina, perseguida e de uma “maioria oprimida” reconhecida como “minoria vulnerável”. “ser
brasileiro/a” significa construir para não-índio usar e gozar-lo; produzir para não-índio distribuir; custear sua
própria desindianização; ser negócio permanente para não-índios; quando não se é negócio, suas verdades,
orgulho de si e rebeldias lhes prejudicam por serem danosos ao mercado; sua fome é produto originário vindo
desde a europa; é ser considerado “invasor” de “terras produtivas”. no entanto, já que não há dinheiro na
natureza e nem trabalho, tanto há tudo o que é necessário para se viver, quanto a possibilidade de “sonhar”
(“peuma” para os mapuches), e deste nasce a sabedoria comunitária – eis o originário horizonte utópico
realizado desde dentro por estas terras.
pois bem, e agora? o que fazer? salvar o mundo? não! muito menos preservá-lo tal como está. o que
fazer? reconstruir o presente e colocá-lo para funcionar desde nossas autoridades em rebeldia e nos
autogovernarmos. mesmo que sejamos inventivos/as nas manifestações de nossas rebeldias, ricos
dominarão, porque milhares de pobres sonham enriquecer-se. assim, ainda a produção de riquezas seguirá
levando montantes de dinheiro e crédito aos cofres de poucos que seguirão financiando as ações dos
“poderosos”. como também os indicadores socioeconômicos continuarão apontando para degradantes
condições de vida da grande maioria descendentes das utopias re-existentes. pois bem, o que fazer? simples!
indigenizarmos! ou seja, reconstruir nosso presente a partir de baixo e seguir fazendo laços de apoio mútuo e
solidariedade. mas é bom lembrarmos para que não sejamos pegos/as por certas armadilhas da
intelectualidade: tudo o que é trago à existência é frágil, necessita de cuidados e paciência até sua
maturidade. enquanto isso, temos mais o que fazer do que entrar em intermináveis debates de “até ponto
que...”: nos descolonizar; nos liberar sem entregas cegas; interagir plenamente com outras culturas; interagir
com todas as rebeldias índias que há em cada cultura indígena. ou seja, nos indigenizar! deixemos que a
“intelectualidade brasileira” siga polemizando as teorias, ideologias, metodologias e distopias que as
invadiram e que fizeram delas suas heranças. são muitas as distrações desde fora para satisfazer sua
vontade de mais colonização.
Pág
ina1
8
lição 04
avó no laço nunca mais
se os índios são vistos de cima para baixo, as mulheres índias são vistas mais a baixo ainda, quase
que desaparecidas em meio a toda obscuridade lançada sobre nossa condição re-existencial. oprimidas entre
os oprimidos. quando lembradas, são meras personagens de anedotas jocosas ocultadoras do acontecimento
histórico da formação do “povo brasileiro”: civilização pelo estupro6. quantas vezes já escutamos alguém
dizer? (ou mesmo já foi dito por nós): “a minha avó era índia braba. ela foi pega no laço para se casar com
meu avô”. e dito isto, ninguém pensa o que significa “índia braba”, “pega no laço” e “casar com meu avô”.
respectivamente significa: “jovem virgem, adolescente, em resistência”, “sequestrada e afastada de sua
cultura e família estendida” e “estuprada, para fins de conversão cristã e pacificação, devido à imigração
masculina de ocupação do território”.
em anedota tão “jocosa” e “inocente” podemos desvendar toda uma práxis de dominação individual
(adolescente índia) e coletiva (sua família estendida, seu povo e etnia): o incentivo imigratório realizado após
a primeira invasão associa os territórios indígenas à “terra de ninguém”, tal quais os corpos indígenas como
“corpos de ninguém”. ambos, território e corpos, passados automaticamente a quem investisse dinheiro e
esforço (em todos os casos, esforço violento – as ditas “guerra justas”) para ocupar e explorá-los. aqui cabe
um bom exemplo histórico dessa relação entre território e corpo, a lei das terras de 1850 e a mestiçagem
colonial. essa lei legitimou a posse dos invasores às terras invadidas (propriedade privada) e considerou
devolutas as terras (propriedade pública) para os povos indígenas. no entanto, muitos governadores ora
informavam que não existiam mais índios/as em suas províncias (habitantes originários assassinados ou em
fuga), ora informavam que seus aldeamentos eram ocupados por “índios fictícios” (caboclos /as e cafuzos/as –
mestiçagem entre indígenas de povos diferentes e entre indígenas e negros/as) e “mestiços civilizados”
(mamelucos/as e pardos/as – filhos e filhas de pai branco cristão com mãe indígena e seus/suas
descendentes secundários/as).
6 Ideia que desenvolvi em meu texto “colonização fálica ou a civilização pelo estupro” (2013).
Pág
ina1
9
sendo o brasil um país mestiço, tal jamais se realizou pelo amor interétnico. se isso ocorreu alguma
vez, foi exceção e raridade insuficientes para se constituir uma nação, ou um estado plurinacional.
insuficiência garantida pela violência e pelo ocultamento. em cada região ocupada pelo território brasileiro há
de se visualizar, sentir, desenvolver e desocultar afetos e conhecimentos ao modo como se deu essa
ocupação. qual(is) a(s) etnia(s) original(is) que ali ocupavam? o que aconteceu com sua(s) cultura(s)? o que
aconteceu com suas pessoas? sendo alguma delas partícipe de sua árvore genealógica, quais foram os
modos dessa participação? tal pessoa foi índio ou índia? o que foi passado, de geração em geração, por tal
pessoa indígena? é muito pobre e miserável pensar que a cultura que ficou dessa participação se reduz a um
ato folclórico aqui, um artesanato ali, uma comida “típica” acolá, etc.
sabemos que a mulher indígena idosa sempre foi uma pessoa inacessível tanto ao primeiro invasor
quanto às suas crias invasoras imigrantes. primeiro por que não lhes interessarem sexualmente, segundo por
ser ela a guardiã máxima de suas respectivas culturas. todo padre lhe acusa de “velha feiticeira comedora de
carne humana” impossível de ser catequizada. todo bandeirante lhe acusa de “estorvo inútil sem serventia ao
trabalho, ou seja, impossível de ser escravizada. já a mulher indígena jovem sempre lhes foi pessoa
acessível. acesso garantido pela violência, seja corporal (pela força), seja afetivo (pela barganha, cinismo e
chantagem), seja “espiritual” (pelo amedrontamento e evangelização). quando corpo jovem, a índia é vista
como moeda de troca, como “destruidora da ordem de deus” e como objeto gratuito destinado ao prazer
masculino. o choro foi sua expressão mais comum, por ser afastada de sua comunidade, por ser violada, por
ser oferecida em troca de dote, por ser levada à casa do noivo ou ao altar ou porque não querem ou por que
não gostam dele. para a jovem mulher índia tornada nossas avós jamais houve noivado ou relações pré-
matrimoniais. jamais foram fundadoras de famílias. jamais tiveram sua respectiva etnia incorporada ao
sobrenome de seus e de suas descendentes. sua incorporação à história nacional é indigna, já que foi
reduzida à uma anedota generalizadora e imbecilizante, cujo papel foi programado para permanecer na
sombra, gerando e criando filhos e filhas de modo a se tornar alheia à vida pública.
se minha avó é índia, é preciso desatar o laço e não mais trazê-la, mas sim, ir até ela. envolver-se
com seu sentimento de que não quer mais voltar a sentir-se como desaparecida. envolver-se com o modo de
como ela se torna princípio de mudança do ponto de vista social e cultural na medida em que ela é a própria
luta contra a opressão colonial e de gênero. envolver-se com o modo de como ela se torna princípio de
continuidade na medida em que ela é a própria transmissora de cultura e de identidade, mesmo que ambas
não sejam nem duas substâncias nem duas coisas imutáveis. portanto, “avó no lanço nunca mais” significa
libertá-la do processo de desindigenização, e reconduzi-la, dentro de nós, ao processo de indigenizar-se, em
sua memória e história como suporte do pensamento comunitário, como garantia da permanência re-existente
do passado e da identidade cultural e garantia de transformação do futuro – utopias re-existentes.
Pág
ina2
0
lição 05
indigenizar-se-á
um toré para começar:
“pisa ligeiro, pisa ligeiro / se não pode com a
formiga, / não assanha o formigueiro”.
recorrer à invenção de um termo como este, “indigenizar-se”, é apontar e encaminhar um processo de
autoconstrução do presente ao futuro onde o passado é dado com acréscimo, como enriquecimento.
processo este que visa combater as estratégias de desindianização e do viver oficial nacional como eterna
ausência de outros modos de vida – ou de levar a vida. somente falar que se tem sangue indígena correndo
pelas veias não é suficiente. pois sempre que se faz tal afirmação, sem se comprometer vital e mortalmente
com o ônus de ser índio ou índia, é aumentar a confusão criada para encobrir a agressividade e a arrogância
da postura ocidental de enriquecer mediante o massacre de outras civilizações. portanto “indigenizar-se” não
é substantivo, nem adjetivo, é sim verbo conjugado, cuja conjugação é um círculo em espiral; é uma tomada
de posição diante do mundo que, ao mesmo tempo, atua individual, comunitária, ecológica e
cosmologicamente. é um agir que atua em todas as esferas da existência cotidiana; é um agir sobre a
cotidianeidade contra o vazio e o esvaziamento civilizatório que é o estado-nação que se pretende
protagonista dessas esferas. o estado-nação é sim protagonista, no entanto, da destruição demográfica,
religiosa, cultural, econômica e biológica das nações indígenas, ao mesmo tempo em que, adverte
cinicamente que aquele/a que procura impedir tal destruição se torna agente de sua própria aniquilação; é
sim protagonista do êxodo étnico rumo à nacionalidade, fazendo desta, um destino e, de todo o mais,
aparências insensatas ou falsamente sensatas.
pois bem, pelas utopias re-existentes índias basta começar por aqui:
olhar: capacidade de identificar e registrar as formas de relevo; de reconhecer a fauna e a flora da região e a
fauna e flora acrescentadas para o enriquecimento ecológico, ou tragas para o seu empobrecimento;
de reconhecer quais plantas servem para alimento e para medicina e sua época sazonal de
florescimento e coleta.
Pág
ina2
1
dica: há disponíveis gratuitamente maravilhosas revistas, catálogos, impressos e eletrônicos, e vídeos
sobre o assunto por aí – em bibliotecas públicas, por exemplo. também indígenas urbanos/as e
raizeiros e raizeiras pelas pensões e feiras públicas das cidades e em torno, que adorariam bons
momentos de conversas não predatórias sobre seus respectivos conhecimentos.
estar-no-mundo: a história humana não é a história de um universo contada a partir das coisas que a
cercam; a história humana é um conjunto de histórias de um pluriverso contado a partir das
comunidades humanas (estares-humanos). por isso a necessidade de reconstruir nosso
passado; de abandonar a educação que nos insulta; de desapropriar a verdade divina da
evangelização branca; de combater toda a política nascida das entranhas da revolução
industrial; de descentralizar a “revolução francesa” como fonte de discursos sobre a
liberdade; de não mais conformar o agir e a conduta pelo sistema jurídico invasor.
dica: há tantos avôs e avós por aí, em casas de repouso, clínicas geriátricas e ancionatos.
há tantas comunidades indígenas, quilombolas, cidades pequenas e bairros
populares para se visitar. há tantos relatos, histórias, lendas e causos para se ouvir e
aprender com eles.
falar e escutar: romper com o monolingüismo. cada língua é uma forma de pensar e de sentir. língua oficial é
língua imposta pelo invasor. temos atualmente, no cercadinho chamado brasil, a
possibilidade de acessar 180 pensares e agires distintos. se ocupar e se fazer liberto/a em
pelo menos uma dessas línguas já é um ótimo começo.
dica: juntando as dicas para “olhar” e para “estar-no-mundo” aos cursos oferecidos ao
público pelas universidades e por alguns grupos de estudos independentes, há muito
para se envolver e se entregar para a liberdade.
coexistir: viver de modo urbanocêntrico é se dar valor apenas pela quantidade de coisas que se pode
comprar; é suspeitar de todo mundo; é estar esvaziado/a de qualquer sabedoria comunitária; é
estar pronto e pronta para a domesticação moral, estética e epistêmica. o urbanocentrismo é
indústria de passividades, tristezas e dominações; é indústria do esvaziamento cultural. contra tal
é preciso comunidades autossustentáveis; comunidades de intercâmbio rural-urbano;
comunidades estendidas cujas obras comunitárias não são meras valorizações de propriedades
privadas.
dica: há muita gente, tanto deixando as cidades para se viver de modo mais simples e em
comunidades, quanto inventando e realizando comunidades híbridas urbano-rurais. no
primeiro caso, faz-se a opção pelo abandono quase que completo da urbes, já no segundo,
Pág
ina2
2
há grupos urbanos que fizeram a opção pela troca do manufaturado industrialmente pelo
comércio de quem faz e produz. assim, o lazer também se resignifica. casas nas cidades
servindo como locais de pouso, de descanso e/ou locais de acesso à internet, e casas no
meio rural servindo como bibliotecas, videotecas e locais para experimentos coletivos como
estudos, espiritualidade e de tecnologias sustentáveis.
ciências do ócio: a chamada “questão indígena” ou “problema indígena” é o modo oficial de tratar os povos
sobreviventes a quem se tentou destruir como nações, personalidades e culturas. a luta
pela sobrevivência nos exige quase que todo o tempo de cada dia sobrevivido. no entanto,
nos restam alguns momentos de ócio. por vezes no trajeto de casa para o trabalho, por
vezes, na hora do almoço, ou entre o jantar e o dormir, por vezes por algumas horas nos
finais de semana, etc. são nestes momentos que “indigenizar-se” nos assalta para que
redefinamos a luta mesma pela sobrevivência.
dica: o recurso da oralidade é o meio mais à mão, ou melhor, aos ouvidos e ao pensar.
para tal, acervos orais já estão sendo produzidos e disponibilizados para se ouvir
em aparelhos celulares. rádios bilíngues também estão disponíveis pela internet. o
ócio é o espaço privilegiado para o exercício da sexualidade e do raciocínio livres,
da realização e da experiência de e com as artes, como também o local para se
dedicar à vestimenta e ao corpo, de modo mais próprio.
Pág
ina2
3
apêndice i
panfleto contra civilização do estupro
“danem-se! eu não sou um índio, sou um aymara!
mas você me fez índio e como índio lutarei pela
libetação!” – fausto reinaga (aymara)
sendo pelo estupro, a gênesis do povo brasileiro, nós, bastardos e bastardas, trazemos um problema
irreversível aos dias de hoje: somos responsável (aos nossos cuidados) pelo como fruímos a mestiçagem.
todo o sistema cultural brasileiro não gira em torno da guerra nem da vingança contra os violadores. como
também, em seu momento de independência, o sistema cultural brasileiro não levou em consideração,
indígenas, negros e negras africanas, como participantes ativos e ativas na constituição de um projeto
nacional. jamais atualizamos tais memórias. o sistema cultural brasileiro prefere o cinismo e o ocultamento.
uns usam ambas como estratégias de manutenção de privilégios. outros e outras as usam como um levar a
vida como se nada de negativo tivesse acontecido. ou mesmo, como um levar a vida da perspectiva de que o
passado já tivesse, pomposamente, sido superado pelos ideais de civilidade, ordem e progresso.
o mesmo cinismo e ocultamento que, atualmente, trabalhadores e trabalhadoras mantêm em relação
a seus patrões e patroas. o mesmo cinismo e ocultamento de escravos e escravas que tiveram a
oportunidade de fugir para quilombos, mas preferiram dedurar a existência dos mesmos para seus senhores.
o mesmo cinismo e ocultamento dos capitães do mato escravo-descendentes. o mesmo cinismo e
ocultamento dos bandeirantes com ascendência indígena. o mesmo cinismo e ocultamento de ativistas de
esquerda que brigam entre si na ambição pelos postos de donos da causa. quantos revolucionários e
revolucionárias desejam revoluções sem nada revolucionar? mas voltemos ao caso de nós, bastardos e
bastardas, ou melhor, de nós, mamelucos/mulatos e mamelucas/mulatas: descendentes dos colonos
estupradores com as indígenas e negras estupradas. nossa responsabilidade, ou melhor, os nossos cuidados
para com o fruir a mestiçagem se dá, na medida em que, temos a função de mediadores culturais! por um
lado, realizamos práticas indígenas e africanas e, por outro, realizamos práticas europeias. o problema é que
nesta realização sempre faz-se a opção por guiar as tropas de colonos à caça de indígenas escravizáveis e
por comandar guerras contra indígenas hostis e contra escravos e escravas fugidas. tais realizações cínicas e
ocultantes servem para destruir toda nossa memória negativa ancestral (o pessimismo estrutural de povos
invadidos, desterrados e sacrificados em nome de uma nova ordem) e aniquilar qualquer foco de resistência.
Pág
ina2
4
sendo estes parágrafos um panfleto, evoco as consciências para o modo como fruímos nossa
mestiçagem! que tal darmos uma chance aos nossos antigos congressos noturnos? onde ali estavam anciões
e anciãs não sensíveis à concessão de honraria por parte dos estupradores! tal abandonarmos o sonho
milenarista de refundar o mundo a partir de bases cristãs? principalmente desocultando que seu fundamento
é a misoginia. por exemplo, a velha indígena era a figura social que mais incomodava os missionários
jesuítas. isto por que elas carregavam a cultura dentro de si, especialmente na condição de serem
proficientes no uso das matérias-primas de seu mundo e na condição de serem as responsáveis pela
condução cerimonial. que tal darmos uma chance ao nosso vácuo simbólico (representações, imaginário,
sonhos e pensamentos) e assumirmos a desconfiança pelas promessas de desenvolvimento onde temos que
abrir mão de nossa memória violada? ser mameluco/mulato/bastardo e mameluca/mulata/bastarda não é
paradigma nem de inferioridade, nem de superioridade. é paradigma de mediação. mediação insurgente e
arcáica. insurgente por revolucionar a tristeza dos “vencidos” tornando-a contramemória (auto-arqueologia).
arcaica por negar o orgulho dos “vencedores” tornado memória oficial.
Pág
ina2
5
apêndice ii
a des-insurgência espontânea no ethos brasileiro
antes de tudo, uma obviedade: o brasil é uma farsa. por aqui não há estado democrático de direito,
aqui há, como bem nomeia paulo arantes, um “estado oligárquico de direito”. por aqui não há democracia
racial, como podemos constatar no genocídio, sistemático e continuado (“higienização étnica” e tutelamento e
isolacionismo indigenista) dos povos indígenas, e na não-realização da reforma agrária no ato de
promulgação da lei áurea. e que por aqui também não houve independência cultural alguma, como podemos
ver que a condição histórica da emancipação brasileira de portugal se deu na plena transferência da coroa
portuguesa para cá, em sua fuga da invasão de napoleão ao território português.
o brasil enquanto farsa é o seu próprio projeto nacional. este que visa encerrar dentro de um mesmo
território, uma constelação de experiências e distintas nações irredutíveis umas às outras, em um mesmo
luso-cristão-pseudo-laico, cinicamente, tolerante e alegre. e para tal, o brasil é o eterno país do futuro,
“deitado eternamente” como diz em seu hino, e o país do grande esquecimento, como vemos na insistente
propagação da ideia oficial de que a organização atual das coisas carregam em suas costas uma formação
histórica tranquila e pactuada. este encerramento e redução de irredutíveis gera o que eu já escrevi em uma
texto intitulado “brasil: um país odiosamente governável”. geração que constitui um ethos oficial do ser
brasileiro: o ethos da des-insurgência.
o que significa um ethos des-insurgente? vamos passo-a-passo, por uso, por contraste e por desocultação:
1. por uso: enrique dussel tem uma definição de ethos que aqui me serve: é a peculiaridade de atuar “assim”
ante “isto”; é a atitude ante algo que não pode ser uma obra objetivada; é um modo mesmo de
comportamento que permanece sempre no horizonte do incomunicável de quem assim atua. interessante
notar que um ethos somente pode ser transmissível dentro de um horizonte de mesma intersubjetividade
(complexo existencial).
2. por contraste, insurgência e contra-insurgência:
Pág
ina2
6
2.1. como expressão histórica, insurgência é a organização em rebeldia, que não se organiza mediante
um exército regular, instituída contra uma autoridade constituída.
2.1.1. o ato de africanos e africanas, presas/os e sequestradas/os para serem escravizadas/os
em outro território e que, chegando neste, fogem para dentro de terras desconhecidas, se juntam
a outras e outros em fuga, e se organizam de modo a refazer suas vidas por meio de fragmentos
de memória de suas respectivas culturas originais, é um ato insurgente.
2.1.2. o ato de indígenas, assim chamadas em bloco indiferenciado uma multiplicidade de
culturas por quem invadiu seus territórios, que violentou suas mulheres e subjugou seus homens
e humilharam suas crianças e pessoas idosas, que resistiram a tal, cujos sobreviventes
“desapareceram” e reorganizaram e perpetuaram suas cosmovisões originais, é um ato
insurgente.
2.1.3. o ato de surgimento de canudos, realizado pela comunidade de belo monte, instituindo o
sertanejo e a sertaneja, oprimidos/as pelo latifúndio, pelo estado e pela igreja distante e ausente,
como agentes históricos, é um ato insurgente.
2.2. contra-insurgência é a organização beligerante organizada para validar a autoridade constituída
que pode operar tanto em um nível evidente, como nas operações militares, quanto em um nível mais
sutil, a “naturalização” como nas operações de propaganda/propagação.
2.2.1. atos de capitão do mato, encarregado por reprimir “delitos” dentro das fazendas
escravagistas e por capturar escravos e escravas fugitivos/as, são atos contra-insurgentes.
2.2.2. atos de bandeirantismo, como a marcha para o oeste iniciada por getúlio vargas e
consagrada por juscelino kubistchek com a construção de brasília, visando a ocupação do
centro-oeste, ou mesmo as atuais investidas genocidas de trabalhadores e trabalhadoras do
campo em jagunçagem contra demarcações de terras indígenas, são atos contra-insurgentes.
2.2.3. atos das campanhas militares organizadas pelo estado republicano, com auxílio do
latifúndio e a benção da igreja, contra a comunidade de belo montes (canudos) e livros como “os
sertões” de euclides da cunha, são atos contra-insurgentes.
2.3. por desocultação, eis a des-insurgência: é um estranho e paradoxal ato onde se internalizou a
contra-insurgência, sempre ocorrida como repressão – algo que vem sempre depois e não antes –
naturalizando-a de modo que tal se torna condição fundante de uma experiência ocorrida por “geração
espontânea”. no caso brasileiro, é a internalização do processo histórico da pedagogia do
esquecimento e da ocultação dos atos insurgentes de emancipação e rebeldia contra a autoridade
Pág
ina2
7
constituída, tornada ethos identificado, objetivamente, com os projetos nacionais pactuados e
propagados por pacificações: o que chamo de “inconsciência histórica voluntária”.
3. o ser-brasileiro é algo identificado, tão somente, com a farsa “brasil” antes descrita (“estado oligárquico de
direito”, “tirania racial”, “luso-cristianismo-militar”, etc.); não se constitui histórico oficialmente desde as
diversas cosmovisões, autóctones indígenas e estrangeiras africanas, nem mesmo por utopias regionais
como a de canudos – neste sentido, não possui insurgências na constituição de seu ethos. o ser-brasileiro é
um modo de agir des-insurgente: não tenta se instituir a partir do que lhe é mais fundante.
Pág
ina2
8
apêndice iii
textos complementares meus
[1] colonização fálica - ou a civilização pelo estupro
o estupro foi a primeira prática do processo europeu de civilização por estas terras. práxis erótico-pedagógica
violenta de modernização pelo domínio dos corpos. subsumir sexualmente a indígena. invasores espanhóis e
portugueses abandonaram a europa “civilizada” para viver aqui em poligamia perversa: sexualidade
puramente masculina, opressora, alienante e injusta. sob a cruz e a espada trouxeram para cá a colonização
fálica do conquistador: símbolos da racionalidade cujos usos são a própria violência sacrificadora: morte e
desolação por ouro, prata e pedras preciosas. o indivíduo que chega com as caravelas, chega violento,
guerreiro moderno, de moral dupla: dominação sexual da indígena (considerada primitiva, rústica e inferior) e
aparente respeito à mulher da europa (considerada moderna, civilizada e temente à deus). frei manuel calado
(1584 - 1654) foi o primeiro a mencionar em seus textos, no brasil, essa moralidade dupla do macho
colonizador: “os estupros e o adultério eram moedas correntes...”. outro testemunho, uma coletânea
minuciosa dessa poligamia perversa colonizatória e práxis erótico-pedagógica violenta são os arquivos da
primeira visitação do santo ofício ao brasil, entre os anos de 1591 e 1592. os estupros “civilizatórios” eram tão
comuns, que eram considerados pelos colonizadores algo corriqueiro, banal e até jocoso. como podemos ver,
por exemplo, nos próprios relatos de viagens e de um tal viajante francês jean moucquet (1575), ou mesmo
de um tal bandeirante paulista sebastião pinheiro raposo (1640).
texto disponível na íntegra em: http://amantedaheresia.blogspot.com.br/2011/10/colonizacao-falica-ou-civilizacao-
pelo.html
[2] invasores, colônias e suas crias ou brasil, a violência dos sobrenomes
antes de qualquer coisa, começo aqui com três lições históricas da invasão e da condição sistemática da
ocupação do território hoje chamado república federativa do brasil:
Pág
ina2
9
1. o brasil ainda não tem história por optar contar a historieta da saga estatal militar, cuja minoria
opressora, em auto-homenagem, vêm empreendendo sua invasão e colonização;
2. a única causa da miséria indígena e da miséria negra é a violência arcaica do estado colonial
e seu discurso desenvolvimentista de tecnocratas e seus ideólogos;
3. os povos indígenas jamais foram e são vistos como protagonistas centrais de suas lutas pela
liberação.
texto disponível na íntegra em: http://pt.scribd.com/doc/155531957/invasores-colonias-e-suas-crias-leo-pimentel
[3] por uma contramemória histórica numa cidade desmemoriada: brasília - uma arqueologia política
para fazer uma arqueologia política de brasília é preciso a capacidade de se desprender da brasília
atual e adotar pontos de vistas distintos e distantes dela. desprendimento, de alguma maneira estranha a seu
tempo próximo como condição necessária desse tipo de arqueologia. sendo assim, podemos nos desprender
de brasília e retroceder até o início do século xviii, onde temos registro da primeira menção a uma possível
capital brasileira no interior do país. essa escavação política na história nos permitirá uma avaliação filosófica
sobre a invenção desta cidade, considerada, ao mesmo tempo, tanto paraíso pós-histórico do
desenvolvimento e de bem estar, quanto incubadora de descontentamento, e inferno de violência arcaica e
repressiva.
este é um olhar para trás, pelo mirante da história, que acompanha uma visão adiante, até outro
futuro social. mas até lá, as demandas e os ocultamentos deste tempo, deste atual que pertence à brasília,
têm, como pano de fundo, os anseios de elites conservadoras que se apropriam de identidades, que não lhes
são próprias, como por exemplo, a de protagonismo social, para destituí-las como representação política e,
para encobrir as práticas de exclusão mais sutis e implacáveis de uma cidade idealizada, planejada e
construída conforme os ideais políticos da invasão colonial militar-religiosa-industrial: cultura política
profundamente excludente, monocultural, monolinguista e urbanocêntrica.
[texto disponível na íntegra em: http://pt.scribd.com/doc/149191477/brasilia-por-uma-consciencia-historica-numa-
cidade-deshistoricizada-leo-pimentel-2013]
Pág
ina3
0
carta aberta ao governo brasileiro sobre os direitos dos povos
indígenas e o desenvolvimento sustentável do país
- considerando os avanços alcançados no país desde a redemocratização para a consolidação
do estado democrático de direito e da prevalência dos direitos humanos;
- considerando os grandes potenciais que o brasil possui para ser líder global no caminho do
desenvolvimento sustentável, com a promoção do desenvolvimento econômico atrelado ao
desenvolvimento social, fazendo escolhas que avaliem os impactos sociais, ambientais e éticos,
com respeito aos direitos humanos e em equilíbrio com a natureza;
- considerando que a sociodiversidade, tão rica em nosso país, é elemento crucial para
garantirmos o desenvolvimento sustentável e que o respeito aos direitos dos povos indígenas é
imperativo, segundo os direitos humanos estabelecidos internacionalmente e internalizados pelo
país por meio da constituição federal;
as empresas, organizações e indivíduos signatários desta carta, participantes do seminário “direitos
humanos e mecanismos de reclamação e diálogo”, realizado no dia 11 de junho de 2013, em são paulo, vêm
por meio desta solicitar ao governo brasileiro que implemente ações de curto prazo para cessar a violência
que vem ocorrendo em todo o país contra os povos indígenas e para ouvi-los nos casos de projetos que os
afetem. pedimos também medidas de médio e longo prazo no sentido de consolidar mecanismos de consulta
prévia, efetivos e regulamentados.
tais mecanismos devem de fato seguir o ordenamento jurídico nacional e internacional, realizando-se
consultas prévias, livres e consentidas, com tempo necessário para serem feitas de forma adequada,
apresentação em linguagem acessível e efetivo acesso dos povos indígenas à informação sobre projetos que
os atinjam. as consultas não devem ser meros espaços informativos, mas efetivamente ouvir e dar condições
para que os povos indígenas possam participar dos processos que influem diretamente na manutenção de
sua existência, física e cultural, e na integridade de seus territórios.
Pág
ina3
1
nesse sentido, é imperativa a manutenção das atribuições da funai e seu fortalecimento, na condição
de órgão do executivo federal, responsável pelo estabelecimento e execução da política indigenista brasileira,
em cumprimento ao que determina a constituição federal de 1988, avançando no processo de
reconhecimento, demarcação e proteção das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e dos recursos
naturais nela existentes.
os signatários ainda ressaltam que os direitos dos povos indígenas não são empecilho para o
desenvolvimento do país. ao contrário, são condição fundamental e oportunidade inestimável para o brasil de
fato promover o desenvolvimento econômico, social e cultural para toda a população. os modos de vida dos
povos indígenas podem contribuir muito para trilharmos o caminho que temos pela frente. a proteção das
florestas promovida quando estes povos têm seus direitos assegurados é fator fundamental para garantirmos
o equilíbrio ambiental necessário para mantermos uma agricultura nacional produtiva. essa proteção
ambiental é estratégica para o combate às mudanças climáticas em níveis regionais e globais, mitigando os
grandes riscos já observados em nosso país. seus saberes tradicionais também podem trazer contribuições
importantes em relação à biodiversidade.
ressaltamos, por fim, que somente conseguiremos garantir o respeito aos direitos humanos de toda a
população, bem como o desenvolvimento sustentável do país, num ambiente de forte diálogo com todas as
comunidades e grupos sociais, todos igualmente detentores de direitos e deveres.
signatários: ailton krenak | malak poppovik