FRANCISCO DE BRITO FREYRE E A REFORMA MILITAR DE PERNAMBUCO NO SÉCULO XVII

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Kalina Vanderlei Silva

C753 Conquistar e defender: Portugal, Países Baixos e Brasil.

Estudos de história militar na Idade Moderna /

Organizador

Paulo Possamai. – São Leopoldo: Oikos, 2012.

445 p.; 16 x 23cm.

ISBN 978-85-7843-252-2

1. História militar. 2. História militar – Idade Moderna.

3. História militar – Brasil. 4. História militar – Países Baixos.

5. História militar – Portugal. I. Possamai, Paulo.

CDU 355(091)

FRANCISCO DE BRITO FREYRE E A REFORMA MILITAR DE

PERNAMBUCO NO SÉCULO XVII

Kalina Vanderlei Silva

Na segunda metade do século XVII o antigo domínio particular da família

Albuquerque Coelho, a Capitania de Pernambuco, vivenciou a reformulação de suas

estruturas políticas com a fixação dos primeiros governadores da Coroa Bragança em seu

território, após o fim das guerras holandesas. A presença desses personagens geraria, ao

longo do século e meio seguinte, muitas disputas com a elite açucareira, principalmente

devido a seu esforço no sentido de incorporar Pernambuco à política geral do império. E

de fato sua ação, em interação com o cenário social em ebulição, seria responsável por

mudanças que influenciariam toda a estrutura social e política da América açucareira,

sendo a questão militar uma de suas preocupações mais prementes. Nesse contexto de

reestruturação social e política, muitas vezes interpretada pelos governadores a partir de

uma perspectiva militar, a figura de Francisco de Brito Freyre aparece de forma

emblemática, pois esse erudito cortesão que estivera intensamente envolvido com o

processo de restauração portuguesa daria uma atenção especial à questão militar na

capitania.

Fidalgo português, Brito Freyre já estivera por duas vezes em Pernambuco, junto

às forças enviadas para combater a holandesa WIC, quando por fim aportou em 1661 para

ocupar o posto de governador da capitania. E além de homem de armas – que em sua

segunda jornada americana estivera inclusive no comando de uma vasta armada quando

ainda não completara 30 anos – era também um erudito que se esmerou em transformar

suas experiências em registros, fazendo circular obras que o incluiriam no rol dos

cortesãos ibéricos que cultivavam a arte da escrita como prática política.1

No entanto, sua erudição não o distraiu dos afazeres impostos pelo cargo de

governador. Ainda mais que a década de 1660 foi de reorganização da capitania de

Doutora pela UFPE, professora da Universidade Estadual de Pernambuco, UPE. 1Para os dados biográficos de Freyre, cf. PRESTAGE, E. D. Francisco Manuel de Mello – Esboço

Biográfico. Coimbra, Imprensa da Universidade. 1914. P. 271-273. Sua obra mais famosa era, e é, sem

dúvida a Nova Lusitânia, História da Guerra Brasílica, publicada em 1675 em Lisboa. Observe-se que o

sobrenome do personagem é grafado de forma diferente em cada nova edição de suas obras. Optamos pela

manutenção da grafia original, Freyre, usada por ele em suas assinaturas. Cf. Relatório da administração

da capitania de Pernambuco, nos meados do século XVII por Francisco de Brito Freyre.

http://purl.pt/22749

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Pernambuco, quando, para além dos problemas esperados de uma região que apenas saia

de uma longa guerra, as novas autoridades precisavam lidar também com uma substancial

transformação: a mudança de status jurídico de capitania hereditária à capitania régia.

Isso significava, na prática, a implantação de uma política imperial mais centralizadora

que a vigente naquela área há muito dominada pelas elites açucareiras. Uma política na

qual os primeiros governadores desempenhavam um papel central.

Ao assumir esse papel Freyre foi confrontando por diferentes problemas, um dos

principais sendo o excesso de contingente que a prolongada guerra deixara nos maiores

núcleos r da região, com soldados que custavam caro à Fazenda Real e cuja

desmobilização ameaçava provocar a perda total de controle sobre uma gente treinada

para a guerra, ainda que mal armada.2

Por isso uma reforma militar era imprescindível para que a administração régia

pudesse se consolidar na antiga capitania hereditária. E foi o projeto e a implantação dessa

reforma uma das principais ações de Brito Freyre enquanto governador de Pernambuco,

apesar dele também ter se preocupado com ações fiscais, como a aplicação de impostos,

e com medidas para consolidar sua autoridade nas capitanias anexas; nesse ponto dando

continuidade à política de Francisco Barreto de Menezes, que o precedera no governo de

Pernambuco.3 De fato, suas deliberações nesses assuntos estão entre as primeiras medidas

de uma política estatal na gestão de uma das mais influentes e ricas capitanias da América

portuguesa.4

2 Para Pernambuco no pós-guerra e os governadores da nova jurisdição portuguesa, Cf. MELLO, Evaldo

C. A Fronda dos Mazombos – Nobres contra Mascates, Pernambuco 1666-1715. São Paulo: Companhia

das Letras. 1995; ACIOLI, Vera Lúcia C. Jurisdição e conflito – aspectos da administração colonial.

Recife: Ed. Universitária - UFPE/ Ed. UFAL. 1997; SILVA, Kalina Vanderlei. Nas Solidões Vastas e

Assustadoras – A Conquista do Sertão de Pernambuco pelas Vilas Açucareiras nos séculos XVII e XVIII.

Recife: CEPE. 2010. 3Barreto de Menezes, como governador de Pernambuco, procurou estender ao máximo sua jurisdição sobre

as capitanias vizinhas, criando assim o precedente das capitanias anexas, motivo de muitas disputas nas

décadas seguintes. Cf. ACIOLI. Op. cit. E para ver as ações de Brito Freyre na cobrança de impostos, cf.

Caderno da finta que se fez na Freguesia do Cabo, por ordem do governador da capitania de Pernambuco,

Francisco de Brito Freire, com nomes dos contribuintes e suas respectivas contribuições. Arquivo

Histórico Ultramarino (AHU)_ACL_CU_015, Cx. 8, D. 738; Caderno do orçamento que se fez em Olinda

por ordem do governador da capitania de Pernambuco, Francisco de Brito Freire, com os nomes dos

contribuintes e seus respectivos pagamentos para o dote da Rainha da Grã-Bretanha e Paz da Holanda.

AHU_ACL_CU_015, Cx. 8, D. 735. 4 Até 1630 a capitania era hereditária, pertencente à família Albuquerque Coelho. Com a conquista da WIC

em 1630, ela ficou sob duplo controle até 1635: por um lado, da WIC e por outro sob o governo militar de

Matias de Albuquerque, ao mesmo tempo representante do donatário, seu irmão, e da Coroa espanhola. Cf.

DUTRA, Francis. Notas sobre a Vida e Morte de Jorge de Albuquerque Coelho e a Tutela de seus filhos.

Separata da Stvdia – Revista Semestral. Lisboa, N. 37, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos,

dezembro de 1973. Para as tentativas de Brito Freyre de impor a jurisdição de Pernambuco sobre as

capitanias anexas, cf. MENEZES, Mozart Vergetti de. Jurisdição e Poder nas Capitanias do Norte (1654-

Essas ações foram transformadas também em textos, e postas em distintos ‘papéis’

enviados à Corte. Eram relatórios e cadernos que iam engrossar a cada vez mais densa

correspondência entre as diferentes instâncias da administração colonial e a Coroa.5 E

entre esses escritos estava o relatório ‘Sobre a Defesa do Brasil’, datado de 1663: uma

descrição dos planos de Freyre para a reforma do exército, e uma justificativa para as

mudanças que impôs principalmente às tropas auxiliares, que ele afirmava ter sido o

primeiro a introduzir no Brasil. 6 Em suas palavras:

“E por ser eu o primeiro que introduzi no Brasil a milícia auxiliar (como tão

bem o fui ao acrescentar ao comboio das frotas muitos navios por este modo

armando dos mercantes, aos meios que fazia da guerra, escolhendo munições

e gente dos mais pequenos) com toda a distinção e miudeza necessária,

particularizo a Vossa Majestade no Conselho Ultramarino por carta

separada e pelo papel induzido de folha 1 até 21 como este novo exército

nascido da minha indústria e diligência consta de 6503 infantes com 810

soldados de cavalo divididos nas Comarcas por Terços e nas freguesias por

companhia, procurando, para cabos e oficiais as pessoas de mais conhecida

qualidade e do mais avantajado merecimento mais bem quistas nos povos

com maior séqüito e cabedal, como se vê na relação dos serviços que faço a

Vossa Majestade em particular de cada sujeito.

Com o uso da cavalaria até agora impraticável nesta América faz aplaudir

mais a novidade de levantar tantas companhias de cavalo dos moradores que

os tinham, e costumastes sempre para seu serviço me pareceu que para Vossa

Majestade é a prevenção de maior importância porque é tão estendida a

Marinha e tão impossível conservar aos fortes necessários em todos os sítios

perigosos, como fazer no Brasil ao Muro da China assim reputo as referidas

companhias nesta província pela segurança principal de sua defensa,

servindo como de uma fortaleza portátil para observar o movimento e

impedir a desembarcação aos inimigos.” 7

1755). Saeculum - Revista de História, ano 12, n. 14 (2006). João Pessoa: PPGH-UFPB, jan./jun. 2006. pp.

11-25. P. 17. 5 Exemplo desses relatórios são os já citados cadernos que Brito Freyre escreveu relativos à cobrança de

impostos. 6Cf. SOBRE a Defesa do Brasil. Biblioteca da Ajuda, Códice 51-V-10, fl. 247/250v, lote 78. Texto quase

idêntico pode ser encontrado, em cópia manuscrita e autógrafa, na Biblioteca Nacional de Portugal,

intitulado Relatório da administração da capitania de Pernambuco, nos meados do século XVII por

Francisco de Brito Freyre. http://purl.pt/22749 7Cf. SOBRE a Defesa do Brasil. Op. cit.

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Nesse longo discurso – que não apenas seguia as fórmulas administrativas próprias

de um relatório, mas também empregava elementos da retórica cortesã – Freyre gastou

muita tinta para descrever a situação das milícias em Pernambuco, esse ‘exército

utilíssimo e sem nenhum custo’. E deu especial atenção à cavalaria cuja implantação

justificaria, em outra versão do seu relatório, pela facilidade que esta traria à defesa da

terra diante de ataques de inimigos, uma vez que esses nunca levavam essa força “a

viagens tão largas e climas tão remotos”. Para o autor a cavalaria daria uma maior

mobilidade às milícias que, assim, poderiam observar melhor o movimento dos inimigos

sem que fosse preciso que o governo construísse fortalezas em todos os “sítios perigosos”

ao longo da costa, o que seria o mesmo que tentar introduzir o Muro da China no Brasil.8

Apesar da cavalaria nunca ter chegado a ser uma unidade militar considerável na

América portuguesa – afirmação inclusive feita pelo próprio Brito Freyre – suas ligações

culturais com a nobreza lhe davam uma importância social inegável, por isso a definição

enquanto unidade miliciana, sempre mais prestigiada que a tropa burocrática. 9 Além

disso, o apreço de Freyre pelas milícias seguia uma tendência que estava se generalizando

entre as autoridades coloniais: a preferência pelas tropas irregulares em detrimento do

exército burocrático. Se essa preferência geral já era elitista em si, seu favoritismo pela

cavalaria o era ainda mais. Um favoritismo visível, por exemplo, em sua descrição das

ações promovidas em benefício da força montada: muito mais extensa do que a das

medidas tomadas em pró da artilharia, que apesar de também sempre deficitária no mundo

do açúcar recebeu bem menor atenção do governador.

Além disso, ao mencionar a seleção de comandantes para os terços milicianos que

instituiu, o governador afirmou que havia escolhido “para cabos e oficiais as pessoas de

mais conhecida qualidade e do mais avantajado merecimento mais bem quistas nos povos

com maior séqüito e cabedal.” Consolidando assim as unidades milicianas como espaços

de poder específicos da elite açucareira, diferentemente da tropa burocrática; essa, o

exército do império, deveria – ao menos em teoria – ter todos seus comandantes retirados

dos quadros demográficos reinóis.

8 Relatório da administração da capitania de Pernambuco, nos meados do século XVII por Francisco de

Brito Freyre. http://purl.pt/22749. 9 Mello fala dos problemas encontrados pela administração ao tentar implantar a cavalaria no mundo do

açúcar. MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada – Guerra e Açúcar no Nordeste, 1630-1654. Rio

de Janeiro: Topbooks. 1998. p 329-330.

Por outro lado, a retórica cortesã pululava no relatório de Freyre em sua insistência

por justificar e valorizar suas ações. Razão pela qual ele afirmava ter sido o primeiro a

introduzir as milícias no mundo do açúcar, apesar dessas terem sido instituídas, de fato,

por Matias de Albuquerque durante sua temporada como governador a serviço da Coroa

Habsbúrguica na primeira metade do século XVII. Albuquerque fora inclusive o

responsável por oficializar a tropa de milicianos pretos, os Henriques, que seria, pelo

menos até o último quartel do XVIII, a mais prestigiada das forças auxiliares do mundo

do açúcar.10 Fato que não impediu Freyre de reivindicar a autoria desses terços:

“Havendo-me com igual advertência em alistar os índios, e os pretos (que

passam de dez mil com os crioulos, e mais escolhidos dentre outros muitos),

para quando se necessitar de seu préstimo, que o tem grande nestas partes,

pelo conhecimento e natural manejo das coisas delas”.11

Tal prática, de se autocreditar criações alheias, era corrente na cultura política

cortesã, onde as fórmulas discursivas empregadas na correspondência administrativa

deveriam enfatizar os serviços prestados pelo autor à Coroa, uma vez que eram esses que

garantiam a boa reputação do remetente na Corte.12 E Brito Freyre, como cortesão

experimentado que era, não se furtava a essas práticas, sempre que possível destacando

seus feitos administrativos em seus relatórios. Por isso, em seus textos, a reforma do

exército surgiu como a criação de um novo exército, deixando esquecidas as contribuições

dos governadores anteriores.

Mas se ele encontrou uma estrutura bélica na qual as milícias já não eram uma

novidade, por outro lado sua reforma teria o mérito principal de organizar essa estrutura,

alistando os milicianos nos livros da Coroa. Isso porque até então as milícias se

10 Para a implantação de milícias por Matias de Albuquerque, cf. SILVA, Kalina Vanderlei. O Miserável

Soldo & a Boa Ordem da Sociedade Colonial. Recife: FCCR, 2000, p. 63-64; 73-74. 11 SOBRE a Defesa do Brasil. Op. cit. 12 Para a ênfase na autoapologia expressa nas cartas enviadas para a Coroa, cf. LUZ, Guilherme Amaral.

Produção da concórdia a poética do poder na América portuguesa (sécs. XVI-XVIII). Varia Historia, Belo

Horizonte, vol. 23, nº 38: p.543-560, Jul/Dez 2007. Para a cultura política cortesã, cf. ALVARÉZ, Fernando

Bouza. Corte es Decepción: D. Juan de Silva, Conde de Portalegre. In MILLAN, José Martínez (dir.). La

Corte de Felipe II. Madrid: Alianza, 1999, pp. 451-502. E para a relação entre as mercês por serviços

prestados e a correspondência com o rei, cf. RAMINELLI, Ronald. Viagens Ultramarinas – Monarcas,

Vassalos e Governo a distância. São Paulo: Alameda. 2008. P. 17-60; e MEGIANI, Ana Paula. Política e

Letras no Tempo dos Filipes: O Império Português e as Conexões de Manoel Severim de Faria e Luís

Mendes de Vasconcelos. In BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lucia Amaral. Modos de

Governar: Idéias e Práticas no Império Português, séculos XVI a XIX. São Paulo: Alameda. 2005. PP. 239-

256.

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apresentavam como um tipo de tropa bastante confuso: Institucionais, não eram

burocráticas, não recebiam soldo e nem eram aquarteladas, devendo realizar apenas

exercícios esporádicos, arcar com seus próprios custos de fardamento e armamento e

serem mobilizadas apenas em apoio ao exército regular português.13

Essa era a teoria, mas a situação complicada das tropas burocráticas, principalmente

a tendência à insubordinação que seus soldados começavam a esboçar, fazia com que

crescesse a preferência das autoridades pelas milícias.

A capitania de Pernambuco abrigava, quando Freyre assumiu o governo, três terços

pagos, sustentados pela Fazenda Real. Na realidade, era a Câmara de Olinda – a mais

importante da região – a responsável pela manutenção desses terços e das companhias de

presídio espalhadas até as capitanias anexas. Mas, com problemas com a destruição

causada pela guerra, a câmara atrasava os pagamentos, fazendo com que esse complexo

militar burocrático acumulasse homens armados e mal pagos nos núcleos urbanos

açucareiros, o que contribuía para o aumento da criminalidade. Segundo Evaldo Cabral

de Mello:

“Ao encerrar seu governo, Francisco de Brito Freyre assinalava que as

perdas de vidas impostas aos moradores pela onda de crime não haviam sido

menores que as provocadas pela guerra. Após vangloriar-se de que apenas

um único homicídio ocorrera durante seu triênio administrativo, o autor da

‘Nova Lusitânia’ recordava que no período de 1654-1660 se haviam

acumulado devassas relativas a nada menos de 437 delitos praticados com

armas de fogo, sem falar nos cometidos com armas brancas ou nos

numerosos crimes que não haviam sido investigados.”14

É provável que esse aumento dos crimes com armas de fogo adviesse justamente

do grande número de soldados sem soldo na capitania.15 Assim a preocupação de Brito

Freyre com esse problema social estava em consonância com suas estratégias de controle

13 Para a tipologia e organização das tropas coloniais. Cf. SILVA. O Miserável Soldo & a Boa Ordem da

Sociedade Colonial. Op. cit. E Evaldo Cabral descreve a complexidade das tropas em Pernambuco antes

de Brito Freyre. MELLO. Olinda Restaurada. Op. cit. p.231. 14 Mello cita como fonte o manuscrito existente na Biblioteca da Ajuda, intitulando-o ‘Francisco de Brito

Freyre a d. Afonso VI’, mas dando-lhe a mesma referência do relatório ‘sobre a defesa do Brasil’. MELLO.

Olinda Restaurada. Op. cit. p 214. 15 Para maiores dados sobre os problemas de pagamento das tropas regulares em Pernambuco, e sua

incursão na criminalidade, cf. SILVA. O Miserável Soldo & a Boa Ordem da Sociedade Colonial. Op. cit.

do número de soldados do rei na região. E se, para isso, uma estratégia óbvia era a

desmobilização das tropas, essa medida poderia causar insatisfações, levando inclusive à

perda total da autoridade sobre os militares. Principalmente porque as recompensas

prometidas durante a guerra nem sempre eram pagas, e as promessas nem sempre

honradas. E se a Coroa Bragança honrou muitos dos compromissos firmados durante a

guerra – muitas vezes compromissos firmados entre a gente do açúcar e os Habsburgo –

ainda assim as demoras continuavam frequentes, e o próprio Brito Freyre não deixou de

se queixar disso.16

Nesse contexto, ao pensar uma reforma militar ele tentou evitar a todo custo que a

desmobilização degringolasse em revolta. E, em perfeita consonância com os valores do

Antigo Regime, segundo os quais as ‘pessoas de melhor qualidade’ eram sempre

consideradas à parte dos peões, sua preocupação inicial foi para com os oficiais, gente

oriunda das camadas de senhores do açúcar.

“Mas como quase todos esses oficiais, criando se em uma guerra tão

arriscada lhe deram um fim tão milagroso, com o tempo que serviram,

fazenda que despenderam, e sangue que derramaram, obrigam justiçamente

a seu favor a grandeza de Vossa Majestade não tendo muitos outro modo de

vida que a profissão de soldado, sem mais cabedal que o de suas pagas, (...)

pareciam deixar Vossa Majestade à eleição de todos que se reformassem

nessa Praça quererem passara a servir ao Reino com os mesmos postos, e

soldos deles, (...) Os que necessitarem de suas presenças em suas fazendas, e

em suas casas Vossa Majestade pelo não desacomodar lhes concedia o

assentir nelas.

Sendo desse modo escolha sua, e não ordem de Vossa Majestade uns ficariam

satisfeitos, e outros não ficariam queixosos aliviando-se as extraordinárias e

escusadas despesas que se fazem nessa capitania (...).”17

Ou seja, Freyre sugeria que a Coroa desse a esses oficiais a opção de se reformarem

na capitania ou de passarem a ir servir no Reino. E vários optaram por continuarem no

serviço do outro lado do Atlântico.18 Já aqueles que preferiram a reforma receberam o

16 Para as reclamações de Freyre, cf. MELLO. Olinda Restaurada. Op. cit. p 444. 17 SOBRE a Defesa do Brasil. Op. cit. 18 Segundo MELLO. Olinda Restaurada. Op. cit. p 322.

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apoio do próprio governador que justificou os pedidos de baixa acusando a situação

catastrófica dos engenhos, que necessitavam de seus senhores para serem restaurados.

E essa não foi a única medida tomada por Freyre para justificar as ações dos

senhores de engenho: quase sempre apresentando a destruição dos engenhos como

desculpa, em diferentes ocasiões ele discorreu sobre esses oficiais que haviam dado ‘um

fim tão milagroso’ à guerra, chegando mesmo a mencionar sua ‘pobreza’.19 Assim, ao

sugerir a dispensa daqueles que tinham propriedades a gerir, o governador deixava

transparecer o quanto sua proposta de reforma estava levando em consideração as

necessidades de reconstrução econômica da capitania, e já indicava o caminho que seria

tomado pela política régia portuguesa nas décadas seguintes, que seria de, em geral,

contemporizar com os senhores de engenho de Pernambuco.

Entretanto, como seu discurso estava bem afinado com os valores da cultura

hierárquica e estamental que então vigorava na Corte e em menor escala também em

Pernambuco, enquanto seus planos de reconstrução projetavam a dispensa de senhores de

engenho dos postos militares, os soldados, gente de ‘menor qualidade’, foram tratados de

forma bem diferente.

“No tocante aos oficiais tomei este caminho (...) E o que dei aos soldados,

(...) foi que assistissem em suas companhias com promessa de que lhes faria

pagar os socorros, todos os meses, como o tenho observado pontualmente,

(...) extinguindo o que se havia introduzido no tempo antecedente, (...)que

com nome mais ordinário que militar chamavam folga de licença: a maior

parte dos soldados, para irem estar em suas casas três meses. Acabando esse

tempo vinham uns e voltavam outros. (...) A que segui foi extinguir totalmente

esta forma de mudas por muitas maneiras perniciosas, e que os soldados

assistissem em suas companhias. Mas a alguns que faltando de suas casas

seria em evidente dano de suas fazendas mandei-os tratar delas.”20

19 Cf. Caderno da finta que se fez na Freguesia do Cabo, por ordem do governador da capitania de

Pernambuco, Francisco de Brito Freire, com nomes dos contribuintes e suas respectivas contribuições.

Arquivo Histórico Ultramarino (AHU)_ACL_CU_015, Cx. 8, D. 738; Caderno do orçamento que se fez

em Olinda por ordem do governador da capitania de Pernambuco, Francisco de Brito Freire, com os

nomes dos contribuintes e seus respectivos pagamentos para o dote da Rainha da Grã-Bretanha e Paz da

Holanda. AHU_ACL_CU_015, Cx. 8, D. 735. 20 SOBRE a Defesa do Brasil. Op. cit.

Aqui, ao criticar as licenças que degringolavam não poucas vezes em deserção, a

ação de Freyre para com os soldados aparece como bem mais rigorosa que aquela usada

para com os oficiais: ele cancelou as licenças dos soldados, mas prometendo o pagamento

regular dos soldos. E isso em si era uma promessa incrível, considerando as práticas

costumeiras de atrasos no pagamento das tropas burocráticas. Além disso, sua afirmação

de que sua gestão conseguira regularizar os soldos é, no mínimo, controversa, visto que

diversos são os registros posteriores a 1664 que indicam a continuidade da prática de

atrasar esses pagamentos. 21

Mas, consciente de que esses atrasos estavam na origem da deserção, Freyre chegou

a flexibilizar sua ação para com os soldados: percebeu que em alguns casos era mais

interessante autorizar que aqueles com fazendas a sustentar abandonassem seus postos.

Até porque o costume era que esses soldados aproveitassem suas folgas de três meses

para fugir.

No entanto, se Brito Freyre demonstrou alguma margem de flexibilidade para com

os soldados essa foi limitada, e seu foco realmente parece ter caído mesmo na criação de

novos postos de comando milicianos. Uma ênfase, todavia, que não receberia o apoio

unânime das autoridades coloniais, pois se ainda em 1663 o Vice-Rei, o Conde de Óbidos,

defendeu a proposta de diminuição de três pra dois terços da capitania,22 o aumento das

milícias seria mais criticado. E poucos meses depois o Conselho Ultramarino escreveria

ao sucessor de Freyre no governo de Pernambuco, Jerônimo de Mendonça Furtado,

solicitando uma prestação de contas relativa ao funcionamento daquelas milícias. Nessa

ocasião os registros do ‘exército volante’ de Freyre nomeavam sete terços de infantaria e

dezoito companhias de cavalo organizadas territorialmente, e que incluía as capitanias

anexas, de Itamaracá ao Rio Grande do Norte.23 Alguns anos depois, em 1677, o próprio

Conde de Óbidos, dessa vez apoiado pelos oficiais da Câmara de Olinda, reclamaria do

grande número de postos de oficialato – especificamente o posto de coronel – criados pela

reforma, e solicitaria que fossem mantidos apenas dois postos para coronéis milicianos,

21 Para os pagamentos e atrasos de soldos, cf. SILVA. O Miserável Soldo & a Boa Ordem da Sociedade

Colonial. Op. cit. 22CONSULTA do Conselho Ultramarino. 27/09/1663. A.H.U. Cód. 16. Fl. 89/89v. 23Eram esses terços o da Praça do Recife, Vila de Olinda e Freguesia da Várzea; o da Freguesia de São

Lourenço, Santo Amaro e Muribeca; o da Vila de Serinhaém, Freguesias de Ipojuca e Santo Antônio do

Cabo; o das Vilas de Porto Calvo, Alagoas e Freguesia do Una; o das vilas de Itamaracá, Igarassu e

Freguesia de Goiana; o da Capitania da Paraíba; e o terço da Capitania do Rio Grande do Norte.

CONSULTA do Conselho Ultramarino. 27/09/1663. A.H.U. Cód. 16. Fl. 89/89v.

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um para a infantaria e outro para a cavalaria; e que as ordenanças fossem controladas,

como era costume antes de Brito Freyre, pelos capitães-mores de cada vila.24

Essa insatisfação do Governo Geral se devia a que se Freyre havia se esmerado em

diminuir as tropas burocráticas, ele não tivera pudores em aumentar o número de oficiais

milicianos, todos eles originários da elite açucareira. Criara assim mais espaços de

prestígio e poder para os senhores do açúcar, então envolvidos em uma busca intensa por

mercês e honrarias que em mais de uma ocasião se chocaria com as tentativas

centralizadoras do governo da Bahia.

Conflitos políticos à parte, Brito Freyre conseguira, com sua reforma, deixar o

inchado exército das guerras holandesas sob o controle da administração colonial e pronto

para ser empregado nos diferentes conflitos de fronteira que seriam patrocinados pela

capitania de Pernambuco a partir de fins do século XVII: da guerra contra Palmares à

guerra contra os grupos indígenas levantados do sertão. E nesse sentido sua reforma

marcou a passagem das volumosas, semiespontâneas e confusas tropas das guerras

holandesas para os terços regulamentados pela Coroa no Pernambuco do pós-guerra.

Além disso, seu relatório, ‘Sobre a Defesa do Brasil’, desenha não apenas as

complexidades políticas e sociais da estrutura militar da América açucareira, mas também

o imaginário cortesão, principalmente seus elementos retóricos, que os governadores

fidalgos traziam para sua gestão colonial. Um papel que delineia seu autor tanto como

uma ilustração da presença cortesã no mundo colonial – e nesse sentido ele agia ainda

como fruto da tradição cortesã dos Habsburgo; uma tradição de nobres escritores como

Duarte de Albuquerque Coelho e D. Francisco Manuel de Melo – quanto como um

executor pragmático das ações da nova Coroa Bragança no controle da turbulenta

América açucareira.

24 Sobre se reformarem os postos milicianos que novamente se tinhão introduzidos em Pernambuco. A H.

U. Cód. 265, FLS. 19V/20