Fontes, Antecedentes e Contemporâneos de Vitrúvio
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Fontes, Antecedentes e Contemporâneos de Vitrúvio
Sábia e utilmente procuraram os nossos maiores, através de escritos, transmitir os seus
conhecimentos às gerações futuras, a fim de que se não perdessem mas chegassem, no decor-
rer dos tempos, à máxima subtileza do entendimento, sendo publicados em livros e progressi-
vamente enriquecidos em cada época. A eles, efectivamente, devem ser prestados não poucos
mas muitíssimos agradecimentos, porque não deixaram passar egoisticamente em silêncio
os seus conhecimentos, em todos os campos, mas procuraram transmiti-los por escrito1.
Fontes e Antecedentes:
Deste modo, prestando homenagem aos escritores que o antecederam, inicia-se o
Prefácio ao Livro VII do De architectura. E deve-se reparar que Vitrúvio começa por
nomear a Poesia Homérica, seguindo-se os que refere como físicos, depois os filósofos
e os que transmitiram os feitos de Creso, Alexandre, Dario e outros reis, ou seja, os
historiadores e autores de relatos histórico-geográficos. – Veja-se:
Com efeito, se assim não tivessem actuado, não teríamos podido conhecer a História de
Tróia (non potuissemus scire quae res in Troia fuissent gestae), nem o que Tales, Demócrito,
Anaxágoras, Xenófanes e outros físicos pensaram da natureza das coisas (physici sensissent
de rerum natura), nem quais as regras que Sócrates, Platão, Aristóteles, Zenão, Epicuro e
outros filósofos (philosophi) estabeleceram como norma de vida (agendae uitae terminatio-
nes finissent) para os homens, nem seriam conhecidos os feitos de Creso, Alexandre, Dario
1 Vitrúvio, Tratado de Arquitectura, VII, Preâmbulo, 1, trad. do latim, introd. e notas por M. Justino
Maciel, ilustr. de Th. N. Howe, Lisboa, 2006, p. 257; id., Vitruve, De l’architecture (De architectura),
Livre VII, Praef., 1, texte établi et trad. par B. Liou et M. Zuinghedau, commenté par M.-Th. Cam,
Paris, 1995, p. 1: Maiores cum sapienter tum etiam utiliter instituerunt per commentariorum relationes
cogitata tradere posteris, ut ea non interirent, sed singulis aetatibus crescentia uoluminibus edita grada-
tim peruenirent uetustatibus ad summam doctrinarum subtilitatem. Itaque non mediocres sed infinitae
sunt his agendae gratiae quod non inuidiose silentes praetermiserunt, sed omnium generum sensus
conscriptionibus memoriae tradendos curauerunt. – Foram estas as edições usadas confrontando-as
com as já anteriormente, nos outros capítulos, referidas em pormenor.
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e outros reis, ou porque razões actuaram, se os nossos maiores o não tivessem transmitido
à posteridade nos seus escritos (posteritatem commentariis extulissent)2.
Vitrúvio começa assim por filiar a sua doutrina num sistema cultural mais amplo de
que faziam parte destacada a Poesia Heróica, a Cosmogonia, a Filosofia, e a História,
reclamando-se dessa herança, a que presta homenagem, e exprimindo reconhecimento
do contributo das gerações anteriores3. Esse contributo torna-se mais expressivo e
pormenorizado quando Vitrúvio começa a nomear os que o tinham antecedido, escre-
vendo sobre Teoria da Arquitectura ou disciplinas afins, referindo-os,
porque prepararam abundantes dados, reunidos através dos tempos, em todos os campos,
com sagacidade e brilhante engenho, a partir dos quais nós, como que bebendo em fontes, e
levados a teses próprias mais fecundas e expeditas, encontramos a possibilidade de escrever
e, confiando em tão importantes autores procuramos ponderar novas instituições4.
E essas fontes irão começar pelas leis da perspectiva, seguindo-se os teóricos dos
estilos dórico e jónico, os escultores do mausoléu de Halicarnasso5, e ainda muitos
2 Vitrúvio, ob. cit., VII, Preâmbulo, 2 (2006), p. 257. – Citações e transcrições em português, feitas a
partir desta edição; intercalações em latim e transcrições do texto original feitas a partir da edição
crítica, bilíngue, Vitruve, ob. cit., Livre VII, Praef., 2 (1995), p. 1: Namque si non ita fecissent, non
potuissemus scire quae res in Troia fuissent gestae, nec quid Thales, Democritus, Anaxagoras, Xenopha-
nes reliquique physici sensissent de rerum natura, quasque Socrates, Platon, Aristoteles, Zenon, Epicurus
aliique philosophi hominibus agendae uitae terminationes finissent, seu Croesus, Alexander, Darius,
ceterique reges quas res aut quibus rationibus gessissent, fuissent notae, nisi maiores praeceptorum
comparationibus omnium memoriae ad posteritatem commentariis extulissent. 3 Vitrúvio, ob. cit., VII, Preâmb., 10 (2006), p. 259: título ou epígrafe do parágrafo respectivo, da
autoria do tradutor, que sintetiza não só o parágrafo mas o tema essencial deste Preâmbulo. 4 Vitrúvio, ob. cit., VII, Preâmb., 10 (2006), p. 259-260; id., Vitruve, ob. cit., Livre VII, Praef. 10
(1995), p. 5: quod egregiis ingeniorum sollertiis ex aeuo collatis abundantes alius alio genere copias
praeparauerunt, unde nos uti fontibus haurientes aquam et ad propria proposita traducentes facundio-
res et expeditiores habemus ad scribendum facultates talibusque confidentes auctoribus audemus
institutiones nouas comparare. 5 Vitrúvio, ob. cit., VII, Preâmb., 11, 12, 13 (2006), títulos ou epígrafes dos parágrafos respectivos, da
autoria do tradutor, p. 260. – Na edição crítica de Collection des Universités de France / Les Belles
Lettres, o conjunto dos parágrafos 11 a 14 é intitulado, genericamente, Les écrivains d’architecture, e
Petit nombre des romains, referente à segunda parte do § 14.
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outros menos famosos [que] escreveram sobre as proporções6. – Mas, siga-se Vitrúvio
detalhadamente, e começando, tal como ele, pelos inventores da perspectiva:
a) Sobre a perspectiva ou scaenographia
O primeiro foi Agatarco, que em Atenas levantou a cena onde Ésquilo apresentou uma
tragédia, deixando um comentário sobre ela. Inspirados nele, Demócrito e Anaxágoras
escreveram sobre o mesmo assunto, de modo a mostrar que, determinado um centro num
ponto certo, de acordo com o campo de visão e a difusão dos raios luminosos, ele corres-
ponderá a um alinhamento, segundo um comportamento natural que nos diz que imagens
variáveis de uma coisa [in]variável (uti de incerta re certae imagines) poderão dar a aparên-
cia de edifícios nas pinturas das cenas, e as coisas que sejam representadas em superfícies
verticais ou horizontais parecerão ora afastadas ora salientes7.
A referência a Agatarcos como inventor da perspectiva, a propósito de ter levantado
a cena para uma tragédia de Ésquilo, é contrariada por Aristóteles, que afirma ter
sido Sófocles a introduzir, na representação da tragédia, a cenografia8 (σκηνογρα-
φίαν), ou les décors peints9. No entanto, como a vida e actividade de Ésquilo (525-456
a.C.) se cruzam com as de Sófocles (496-406 a.C.), é bem provável que os cenários
pintados se tenham começado a usar ao tempo das últimas peças de Ésquilo e das
primeiras de Sófocles. Para mais, Agatarcos, que se pensa ter vivido entre 490/480-
420/415 a.C.10, terá colaborado nas tragédias de Ésquilo entre 468 e 456 a.C. (date de la
mort d’Eschyle), période pendant laquelle des sources divergentes créditent Sophocle
6 Vitrúvio, ob. cit., VII, Preâmb., 14 (2006), p. 261. 7
Vitrúvio, ob. cit., VII, Preâmb., 11 (2006), p. 260; id., Vitruve, ob. cit., Livre VII, Praef., 11 (1995), p. 5-
6: Namque primum Agatharchus Athenis, Aeschylo docente tragoediam, [ad] scaenam fecit et de ea
commentarium reliquit. Ex eo moniti Democritus et Anaxagoras de eadem re scripserunt, quemadmo-
dum oporteat ad aciem oculorum radiorumque extentionem certo loco centro constituto lineas naturali
respondere, uti de incerta re certae imagines aedificiorum in scaenarum picturis redderent speciem, et
quae in directis planisque frontibus sint figurata, alia abscendentia, alia prominentia esse uideantur. 8 Aristóteles, Poética, 4, 1449a, 18, trad. directa do grego, com introd. e índices por E. de Sousa, Lis-
boa, s.d., p. 73. – Para o texto grego, Aristote, Poétique, 4, 1449a, 18 (texte bilingue), trad., introd. et
notes de B. Gernez, Paris, 2008, p. 16. 9 A tradutora francesa traduz σκηνογραφίαν por décors peints, ver Aristote, ob. cit. (2008), p. 17.
10 Vitruve, ob. cit., Livre VII, Praef., 11, note 2 (1995), p. 58.
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et Eschyle des mêmes inventions décisives11. – O meio era pequeno, de sociabilidade
intensa, e as invenções marcantes rapidamente seriam utilizadas por outros e até desen-
volvidas, o que se depreende da notícia sobre Anaxágoras e Demócrito, que inspirados
nele [Agatarcos]… escreveram sobre o mesmo assunto, que, segundo a descrição apre-
sentada, será aquilo em que no essencial consiste a perspectiva cónica, tal como veio a
ser no Séc. XV iniciada na prática por Filippo Brunelleschi12, e logo teorizada por Leon
Battista Alberti13, Piero della Francesca14 e Leonardo da Vinci15, a que se seguiram, no
Séc. XVI, Sebastiano Serlio16, Daniele Barbaro17, Giacomo Barozzi da Vignola18, e
muitos outros, alguns fora de Italia, como em França, Jean Pélerin, dit Viator19 e An-
drouet du Cerceau20; na Alemanha, Albrecht Dürer21 e Wendel Jamnitzer22; nos Países-
11 Vitruve, ob. cit., Livre VII, Praef., 11, note 2 (1995), p. 59. 12
Com efeito, é a Filippo Brunelleschi que se atribui a invenção da perspectiva cónica ou renascentista,
em termos práticos, embora nada tendo escrito sobre a matéria, ver: Panofsky, E., Die Perspektive als
“symbolische Form”, Leipzig, 1927; Kubovy, M., The Psychology of Perspective and Renaissance
Art, Cambridge, 1986; Damisch, H., L’origine de la perspective, Paris, 1987. 13 Alberti, L. B., De pictura, escrita em 1435, e editada em latim em 1540, com o título De pictura
praestantissima et nuaquam satis laudata arti. Alberti escreveu, igualmente, uma versão em italiano
com o título Della Pittura, 1536, dedicada a Filippo Brunelleschi. Nesse mesmo ano escreveu Elementi
di pittura, 1536, de carácter didático, e uma versão em latim, Elementa picturae. 14
Piero della Francesca, De prospectiva pingendi, escrito entre 1460-1480, presume-se que inspirado
no De pictura de Alberti. 15
Leonardo da Vinci, Trattato della pittura, supõe-se que escrito entre 1480-1509, mas só editado em
1651, simultaneamente em Itália e em França, sendo a edição francesa ilustrada com 19 gravuras feitas
a partir de desenhos de Nicolas Poussin (1594-1665), o mais notável pintor francês desse tempo. 16 Serlio, S., Il secondo libro di perspettia / Le second livre de perspective... – Editado juntamente
com Il primo libro d’Architectura / Le premier livre d’architecture…, ed. bilingue em italiano e em
francês (trad. de Jan Martin), Paris, 1545. 17 Barbaro, D., La pratica della perspettiva, Venetia, 1569. 18 Vignola, G. B., Le due regole della prospecttiva pratica, con il comentarij del R. P. M. Egnatio
Danti…, Roma, 1582. – Livro raríssimo de que existe um exemplar na BNP, Cota RES. 708 A. 19 Pélerin, J., dit Viator, De artificial perspectiva…, Toul, 1505. 20 Androuet du Cerceau, J., Leçons de perspective positive, Paris, 1576. 21 Dürer, A., Underweysung der Messung mit dem Zirckel und Richtscheyt..., Nürnberg, 1525. 22 Jamnitzer, W., Perspectiva corporum regularium, Nürnberg, 1568.
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Baixos, Vredeman de Vries23, e por aí fora, até quase se transformar num exercício de
virtuosismo, afectando um valor autónomo, como pura cenografia, o que acontecerá
com Andrea Pozzo24 e os Galli Bibiena25, embora também tenha dado origem a formu-
lações de pretendido rigor científico, exclusivamente, como aconteceu com Guido-
baldo del Monte26, Girard Desargues27, Brook Taylor28, até se chegar ao discípulo de
Gaspard Monge, Jean-Victor Poncelet29, que completa a obra do mestre, sobre geome-
tria descritiva, contemplando a perspectiva. – Portugal não deixou de estar representado
nesse interesse pela perspectiva através da obra de Philippe Nunes, Arte poética, e da
pintura, e symmetria, com princípios da perspectiva30, publicado em 1615, e reeditado
em 1767 com título ligeiramente alterado, contemplando apenas a 2.ª parte da obra31.
23 Vredeman de Vries, H., Perspective das ist Die Weitberuembte Khunst..., Lvgdvni (Lyon), 1605 (?).
– Houve uma primeira edição bilingue, latim-alemão, Leyden, 1604-1605, reed. New York, 1968. 24 Pozzo, A., Perspectiva Pictorum et Architectorum, Roma, 1693-1698, 2 vols.. 25 Bibiena, F. G., L’architettura civile preparata su la geometria e ridotta alle prospecttive, Parma,
1711, e Bibiena, G. G., Architetture e prospettive, Augusta (Augsburg), 1740. 26 Guidobaldo del Monte, Perspectiuae libri sex, Pisauri, 1600. – Ed. em italiano, I sei libri della per-
spettiva di Guidobaldo dei marchesi Del Monte dal latino tradotti, interpretati e commentatti da
Rocco Sinisgalli, presentazione di G. de Fiore, Roma, 1984. 27 Desargues, G., Exemple de une des manieres universelles du S. G. D. L., touchant la perspective
sans emploir aucun tiers point de distance ny d’autre nature, qui soit hors des champs de l’ouvrage,
Paris, 1636 ; idem, Brouillon projet d’une atteinte aux événements des recontres d’un cône avec un
plan, Paris, 1639. – O autor publicou também uma obra fundamental para a estereotomia, La pratique
du trait à preuves… pour la coupe des pierres en l’architecture, Paris, 1643. 28 Taylor, B., New Principles of Linear Perspective, London, 1719. 29 Poncelet, J.-V., Traité des propriétés projectives des figures, Paris, 1822. 30 Nunes, Ph., Arte poética, e da pintura, e da symmetria, com princípios da perspectiva, Lisboa, 1615,
Off. de P. Craesbeeck, Cota L. 2001 P. e RES. 202 V. (ambos exempl. microfilmados). 31 Nunes, Ph., Arte da pintura, symmetria e perspectiva, Lisboa, 1767, Off. J. B. Alvares, Cota B. A.
1604 P.; existe uma edição recente, facsimilada, com estudo introdutório de L. Ventura, Porto, 1982,
Paisagem. – No Catálogo da BNP, a obra está atribuída a Filipe das Chagas (Frei). Ora esse seria o nome
escolhido pelo autor após ter ingressado na Ordem dos Dominicanos, e embora o livro seja impresso já
depois do seu ingresso na Ordem, que terá ocorrido em 1591, a verdade é que ostenta o nome de Philippe
Nunes no frontispício, pelo que a classificação da BNP cria dificuldades a quem procura a obra.
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As referências à perspectiva, em Vitrúvio, tinham começado no Livro I, 2, 3, onde, na
definição extensiva da dispositio, e nomeando-a como scaenographia, afirma:
a cenografia (scaenographia) é o bosquejo do frontispício com as partes laterais em pers-
pectiva e a correspondência de todas as linhas em relação ao centro do círculo32, ou na
versão em castelhano, de A. Blánquez: La perspectiva (Escenografía) es el dibujo sombreado
no solo de la fachada, sino de una de las partes laterales del edifício, por el concurso de
todas las líneas visuales en un punto33.
Esta passagem não é de fácil tradução, o que se comprova pelas diferentes versões, e
ainda de mais difícil entendimento exacto. – É permitido deduzir que Vitrúvio se
refere a algo de análogo à perspectiva linear ou cónica, tal como se definiu a partir do
Renascimento? Ou referir-se-á, meramente, a um processo do tipo de representação
em escorço, para dar a profundidade e a ideia de volume, assim como que numa espécie
de axonometria imperfeita ou incipiente? – Na passagem do Livro VII, 1, 11, que se
transcreveu, traduzida, há referência explicita de o processo estar de acordo com o
campo de visão e a difusão dos raios luminosos, o que em princípio indicia ser algo
de muito parecido com a perspectiva linear, com as suas pretensões a imitação ou
reprodução exacta da fisiologia do processo perceptivo da visão humana, tal como ela
se foi paulatinamente desenvolvendo a partir dos estudos sobre Óptica, de Alhazen34,
mas de que já haveria estudos na Antiguidade Grego-Romana, designadamente, os de
Anaxágoras e Demócrito, referidos por Vitrúvio, e exemplos de aplicação prática no
campo da cenografia teatral e da pintura mural ou em cerâmica.
Note-se, todavia, que o que sobrou da pintura ou cerâmica pintada de gregos e roma-
nos (Figs. 108, 109), não permite afirmar com segurança que estes já dominariam a
32 Vitrúvio, ob. cit., I, 2, 2 (2006), p. 37; id., Vitruve, De l’architecture (De architectura), Livre I, 2, 2,
texte établi, trad. et commenté par Ph. Fleury, Paris, 1990, p. 15: Item scaenographia est frontis et
laterum abscedentium adumbratio ad circinique centrum omnium linearum responsus. 33 Vitrúvio, Los diez libros de arquitectura, I, 2, trad. directa del latín, prólogo y notas por A. Blán-
quez, Barcelona, 1991, p. 13. 34
Alhazen, Kitāb fi’l Manāzir (Tratado de Óptica), escrito entre 1015-1021, trad. em latim, Liber de
aspectiibus et vocatur prospectiva, é divulgado no Ocidente, através de Roger Bacon (1214-1292/94),
e Vitellionis ou Witelo, De perspectiva, escrito entre 1270-78, impresso no Renascimento com o título
Peri optikēs, id est de natura…quam vulgo perspectivam vocant, Nürnberg, 1535, reeditado em 1551.
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representação em perspectiva, tal como ela se veio a desenvolver no Ocidente. Com
efeito, embora na pintura haja escorço, noção da profundidade, e convergência de
linhas, nada parece sistematizado, com coerência, como obedecendo a uma teoria, e
muito menos a uma ciência. Para mais, Vitrúvio é o único autor antigo que nos dá
notícia extensa destas realizações e estudos teóricos sobre a perspectiva ou scaeno-
graphia, pelo que pouco se pode adiantar para lá do que ele próprio afirma.
b) Teóricos dos estilos dórico e jónico
Uma vasta plêiade de autores antigos teriam escrito sobre os templos dóricos e jónicos,
e as suas respectivas proporções. – Veja-se o que descreve Vitrúvio:
Sileno publicou um livro sobre as proporções dóricas; Roico e Teodoro, por sua vez, sobre o
templo jónico de Juno, que existe em Samos; Quérsifron e Metágenes sobre o templo jónico
de Diana, que está em Éfeso; Pítio, sobre o de Minerva, em Priene, também jónico; Ictino e
Cárpion sobre o de Minerva, dórico, que está na acrópole de Atenas35; Teodoro da Foceia,
acerca do tolo de Delfos (Fig. 110); Filo, sobre as proporções dos templos sagrados e sobre
o arsenal que existiu no porto do Pireu (Fig. 111); Hermógenes, sobre o templo de Diana,
jónico, pseudodíptero, que se encontra em Magnésia, e sobre o do deus Líbero em Teo,
monóptero. Igualmente Arcésio, sobre as proporções coríntias e sobre o templo jónico dedi-
cado a Esculápio, em Tales, que se diz ele próprio fez também pela sua mão36.
Desta passagem infere-se que os gregos dariam a máxima importância às proporções
arquitectónicas, e não só no referente aos edifícios sagrados, mas também abrangendo
os profanos, exemplificados pela menção do Arsenal do Pireu, da autoria de Filo 35
O editor português, Justino Maciel, em nota, refere ser o Pártenon (Partenão) e os arquitectos Ictino e
Calícrates os visados na descrição. No entanto, e atendendo ao nome usado por Vitrúvio, Carpion,
também admite que este poderia ser o nome de um teórico que tivesse escrito sobre o templo. 36
Vitrúvio, ob. cit., VII, Preâmb., 12 (2006), p. 260; id., Vitruve, ob. cit., Livre VII, Praef., 12 (1995),
p. 6: Postea Silenus de symmetriis doricorum edidit uolumen; de aede Iunonis quae est Sami dorica,
Theodorus; ionica Ephesi quae est Dianae, Chersiphron et Metagenes; de fano Mineruae dorica quae
est Athenis in arce, Ictinos et Carpion; Theodorus Phocaeus de tholo qui est Delphis; Philo de aedium
sacrarum symmetriis et de armamentario quod fuerat Piraei portu; Hermogenes de aede Dianae
ionica quae est Magnesia pseudodipteros, et Liberi Patris Teo monopteros; item Arcesius de symme-
triis corinthis et ionico Trallibus Aesculapio quod etiam ipse sua manu dicitur fecisse; de Mausoleo
Satyrus et Pytheos.
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(Philo, ou Philon). Filo é mencionado numa inscrição depositada no Museu Epigráfico
de Atenas, que contém uma descrição e especificações para a construção do Arsenal37.
Este Filo é também mencionado por Cícero, como sendo tão bom orador quanto ar-
quitecto ao dar conta aos atenienses dos seus trabalhos38, embora nada mais adiante
sobre esse discurso e os trabalhos a que se referia, pelo que pouco ou nada se pode
deduzir acerca das suas teorias sobre as proporções, mais uma vez tendo de nos ficar
pela exígua referência de Vitrúvio. – O mesmo, de certo modo, se passa com os ou-
tros autores mencionados, sendo-nos permitido, quanto muito, deduzir que para cada
género de templo, dórico, jónico, ou coríntio, haveria um determinado e específico
tipo de proporções, o que a pesquisa arqueológica e histórica confirma. – No entanto,
entre os vários arquitectos e autores mencionados há um que se avulta, Hermógenes,
reivindicado por Vitrúvio como uma das suas fontes, e dado como inventor do templo
pseudodíptero39 e do templo hexastilo40, uma variedade de templo pseudodíptero, além
de ter sido também um dos que, tendo constatado a irresolubilidade da distribuição
harmoniosa dos tríglifos e lacunários na arquitrave dórica, deixara de construir com
este género de colunas e passara a usar o estilo jónico41.
c) Escultores do Mausoléu de Halicarnasso
Na imediata sequência, a finalizar o parágrafo, são também referidos Sátiro e Pítio,
como tendo escrito sobre o Mausoléu (Figs. 112, 113), descrito nos termos seguintes:
A estes últimos (Sátiro e Pítio), com efeito, a ventura ofereceu o máximo e sumo dom, porque
a sua arte é considerada como merecendo nobilíssimos louvores, sempre florescente através
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IG, II2, 1668 = Dittenberger, Sylloge, 969. – Referidos por M.-Th. Cam, «Commentaire», in Vitruve,
ob. cit., Livre VII, Praef., 12 (ed. 1995), note 12, p. 66. – Tradução da inscrição em Kostof, S., «The
Practice of Architecture in the Ancient World: Egypt and Greece», in Kostof, S. (ed.), The Architect:
Chapters in the History of the Profession, Oxford, 1977, p. 14. 38
Cícero, De oratore, 1, 62, with an english transl. by E. W. Sutton, completed, with an introd., by H.
Rackham, London-Camb. / Mass., 1942, Loeb Classical Library, p. 46-47; idem, Cam, «ob. cit.», in
Vitruve, ob. cit., Livre VII, Praef., 12 (1995), note 12, p. 66: Philon, au dire de Cicéron (…) se mon-
tra aussi bon orateur qu’architecte quand il rendit compte au peuple athénien de ses travaux. 39 Vitrúvio, ob. cit., III, 2, 6, e III, 3, 9 (ed. 2006), p. 113 e p. 116. 40 Vitrúvio, ob. cit., III, 3, 8 (2006), p. 115-16. 41 Vitrúvio, ob. cit., IV, 3, 1 (ed. 2006), p. 148.
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dos tempos, porque produziram excelentes obras com os seus projectos. De facto, cada artista
tomou a seu cargo um dos lados do monumento, em competição, para ornamentar e embe-
lezar as partes: Leócares, Briáxis, Escopas, Praxíteles e também, segundo alguns Timóteo,
escultores cuja eminente qualidade artística levou esta obra, pela sua fama, a ser conside-
rada uma das sete maravilhas (septem spectaculorum ... operis) do mundo42.
Nesta passagem do Preâmbulo ao Livro VII, livro em que trata dos acabamentos e
decoração das construções privadas, expressa-se o reconhecimento da ornamentação
para alcançar uma beleza plena, e sendo essa beleza, antes de mais, imputada à orna-
mentação escultórica, embora neste livro, esse papel apareça atribuído essencialmente
às pinturas de fresco que, Vitrúvio, trata com extensão. Assim, esta passagem, no
âmbito temático de que faz parte, parece algo deslocada, talvez visando principal-
mente chamar a atenção para o facto do Mausoléu, uma obra de arquitectura tumular,
de carácter comemorativo, sem utilidade no sentido de usufruto vivencial, poder ser
encarado como exemplo de arquitectura pura, ou plena, dados o seu objectivo, as suas
proporções – monumentais! –, e o acréscimo de beleza devido à profusão ornamen-
tal, tudo contribuindo para que tivesse sido considerado uma das sete maravilhas do
mundo. – Um similar tipo de plenitude arquitectónica e profusão ornamental se assinala
no texto do Papiro Harris I (BM 9999), comentando e comemorando a venustidade de
toda uma série de realizações arquitectónicas, feitas ao tempo e sob a égide de Ramsés
III, em que se parece perseguir uma obra de arte total, qual fulgurante prefiguração do
conceito de Gesamtkunstwerk43. Isto reforça a tese de que as fontes e antecedentes de
Vitrúvio podem e devem ser procuradas mais longinquamente, mesmo fora do âmbito
42 Vitrúvio, ob. cit., VII, Preâmb., 13 (2006), p. 260-61; id., Vitruve, ob. cit., Livre VII, Praef. 13
(1995), p. 6-7: Quibus uero felicitas maximum summumque contulit munus; quorum enim artes aeuo
perpetuo nobilissimas laudes et sempiterno florentes habere iudicantur, excogitatis egregias operas
praestiterunt. Namque singulis frontibus singuli artifices sumpserunt certatim partes ad ornandum et
probandum Leochares, Bryaxis, Scopas, Praxiteles, nonnulli etiam putant Timotheum, quorum artis
eminens excellentia coegit ad septem spectaculorum eius operis peruenire famam. 43 Ver artigo sobre «As Diversas Faces da Venustas ou Intencionalidade Estética na Arquitectura do
Antigo Egipto, segundo o Papiro Harris I (BM 9999): O Templo Egípcio como Obra de Arte Total»,
publicado in Cadmo. Revista de História Antiga. Centro de História da Universidade de Lisboa, n.º
20, 2010, p. 165-76, agora integrado neste estudo como capítulo 1.8, I.ª Parte, p. 111-122.
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da cultura e civilização grego-romana, o que é o ponto de partida, ou pressuposto, do
estudo sobre as origens da Teoria da Arquitectura, em que estes artigos e capítulos se
integrarão, ao mesmo tempo que revela a universalidade das intenções que presidem
à arquitectura e das formulações teóricas que a regem.
d) Autores gregos e romanos de livros de arquitectura
Neste parágrafo, o 14.º, que o editor português de Vitrúvio comenta com a sugestiva
epígrafe acima citada, o tratadista romano continua a sua enumeração dos autores gre-
gos que tinham escrito sobre as proporções, como Nexaris, Teocides, Pólis, Leónidas,
Silânion, Melampo, Sárnaco, Eufranor, e também os que escreveram sobre mecânica,
como Díades, Arquitas, Arquimedes, Ctesíbio, Ninfodoro, Filo de Bizâncio, Dífilo,
Démocles, Cárias, Poliido, Pirro, Agesístrato, afirmando ter recolhido, de entre os
seus comentários, o que me pareceu mais útil para estes apontamentos, havendo muitos
livros publicados pelos Gregos neste campo, sendo poucos os que existem entre
nós44. – E no prosseguimento desta passagem traz à colação os autores romanos:
É de sublinhar que Fufício foi o primeiro (entre os romanos) a publicar um livro sobre estas
coisas (mecânica, arquitectura?). Terêncio Varrão escreveu um sobre arquitectura no seu
tratado das nove disciplinas, e P. Septímio dois45.
De Fufício nada se pode dizer, sendo um perfeito desconhecido, cuja única referência
é precisamente esta, de Vitrúvio, não se percebendo bem se escreveu sobre mecânica
ou acerca da arquitectura. Terêncio Varrão (116-27 a.C.)46 é, mais coisa menos coisa,
44
Vitrúvio, ob. cit., VII, Preâmb., 14 (2006), p. 261; id., Vitruve, ob. cit., Livre VII, Praef., 14 (1995),
p. 7: Praetera minus nobiles multi praecepta symmetriarum conscripserunt, uti Nexaris, Theocydes,
Demophilos, Pollis, Leonidas, Silanion, Melampus, Sarnacus, Euphranor. Non minus de machinationi-
bus, uti Diades, Archytas, Archimedes, Ctesibios, Nymphodorus, Philo Byzantius, Diphilos, Democles,
Charias, Polyidos, Pyrrhos, Agesistratos. Quorum ex commentariis quae utilia essse his rebus anima-
duerti collecta in unum coegi corpus, et ideo maxime quod animaduerti in ea re ab Graecis uolumina
plura edita, ab nostris oppido quam pauca. Fuficius enim mirum de his rebus primus instituit edere
uolumen, item Terentius Varro de nouem disciplinis unum de architectura, P. Septimius duo. 45 Vitrúvio, ob. cit., VII, Preâmb., 14 (2006), p. 261; id., Vitruve, ob. cit., Livre VII, Praef., 14 (1995),
p. 7: Fuficius enim mirum de his rebus primus instituit edere uolumen, item Terentius Varro de nouem
disciplinis unum de architectura, P. Septimius duo. 46 Sobre Terêncio Varrão, ver: Paratore, E., Storia della Letteratura Latina, Firenze, 13.ª reimp.
13
contemporâneo de Vitrúvio (80/70-15 a.C.), apenas ligeiramente mais velho, mas do
seu tratado pouco mais se conhece do que o título, Disciplinarum libri, escrito entre 33-
31 a.C.47, e as nove disciplinas de que se ocuparia: Gramática, Dialéctica, Retórica,
Geometria, Aritmética, Astronomia, Música, Medicina e Arquitectura48. Note-se que a
integração da Arquitectura numa família onde, além das disciplinas ligadas à Língua,
estão as da Matemática, a Música (a par do corpo humano, a grande referência para as
proporções, segundo Vitrúvio) e a Medicina, tende a reconhecê-la como arte erudita,
merecedora do estatuto de arte liberal, como já o reconhecera Cícero (106-43)49, outro
dos contemporâneos de Varrão e de Vitrúvio. O último autor mencionado, P. Septímio
(Séc. I a.C.), foi um magistrado romano, questor, encarregado da administração dos
dinheiros públicos50, que, segundo Quintiliano51, publicou Libris observationum, dois
dos quais versariam a Arquitectura, o que se admite ser a fonte de Vitrúvio para as
experiências e os ensinamentos de Hermodoro52, um dos criadores do templo períptero,
segundo Vitrúvio53. – Note-se todavia que também destes autores nada é referido como
1983. – Ed. portuguesa, História da Literatura Latina, trad. de M. Losa, S. J., a partir da ed. italiana
referida, Lisboa, 1987, p. 169-78; Lehman, Y., Varron théologien et philosophe romain, Bruxelles,
1997; Baier, Th., Werk und Wirkung Varros im Spiegel seiner Zeitgenossen von Cicero bis Ovid,
Stuttgart, 1997; Cardauns, B., Marcus Terentius Varro. Einführung in sener Werk, Heidelberg, 2001. 47 Paratore, ob. cit. (13.ª ed. 1983). – (ed. portuguesa, ob. cit. (1987), p. 170). 48 Ver, M.-Th. Cam, «ob. cit.» in Vitruve, ob. cit., Livre VII, Praef., 14 (ed. 2006), note 21, p. 74. 49 Cícero, De officiis 42, 150-151, in Tatarkiewicz, W., Historia Estetyki, 1970 – Ed. espanhola, His-
tória de la estética. 1. La estética antiga, trad. del polaco, D. Kurzyca, trad. del latín y griego, R. M.ª
M. Sánchez-Elvira e F. García Romero, Madrid, 1987, p. 218-19. 50 M.-Th. Cam, «ob. cit.», in Vitruve, ob. cit., Livre VII, Praef., 14 (ed. 1995), p. 74. 51 Quintilien, Institution oratoire (De institutione oratoria), Tome III, Livre IV, 1, 19, texte établi et
trad. par J. Cousin, Paris, 1976, 2e tirage 2003, Collection des Universités de France / Les Belles Lettres,
p. 12. – A obra de P. Septímio, Libris observationum, é dada como desaparecida. 52 Gros, P., «Hermodoros et Vitruve», in MEFRA, 85, 1973, p. 137-161; agora em Gros, P., Vitruve et
la tradition des traités d’architecture: fabrica et rationatio, recueil d’études, Rome, 2002, p. 1-25. –
O autor conclui: Ainsi, sans vouloir élever Hermodoros au rang de source principale – «Haupt-
quelle» – des livres III et IV du De Architectura, peut-on lui accorder, à coté d’Hermogénès, une
place importante dans la série des auteurs auxquels Vitruve a emprunté, plus ou moins directement
ses donnés théoriques (p. 25). 53 Vitrúvio, ob. cit., III, 2, 5 (2006), p. 113.
14
tendo verdadeira importância para aferir do seu contributo à Teoria da Arquitectura,
quase nos tendo que limitar ao que sobre eles afirma Vitrúvio, e que é muito vago, pois
uma coisa é dizer que escreveram sobre Arquitectura, e outra aquilo que escreveram,
o que é omisso. Fica-se apenas com uma vaga indicação de que enquanto os autores
gregos teriam escrito sobre aspectos pontuais da Teoria da Arquitectura, designada-
mente, as proporções, a beleza e a ornamentação, além da mecânica, os romanos teriam
escrito sobre a generalidade dos aspectos teóricos da Arquitectura, segundo um enfo-
que enciclopédico, essencialmente com características compilatórias e de divulgação,
visando adaptar a Arquitectura Grega, ou a do Helenismo, às práticas romanas, ou seja,
intentando estabelecer uma relação de continuidade entre a arquitectura de origem
grega e a praticada em Roma, ao tempo do imperador Octávio César Augusto. E essa
continuidade será o assunto focado por Vitrúvio logo no parágrafo a seguir:
e) Continuidade prestada pelos romanos à Arquitectura Grega
Mas até agora não parece que alguém tenha conseguido mais neste género de literatura,
embora os antigos cidadãos fossem grandes arquitectos que poderiam com não menos
discernimento produzir textos. Na verdade, em Atenas, os arquitectos Antístates, Calaiscro,
Antimáquides e Porino estabeleceram os fundamentos para o Olimpieu, quando Pisístrato
o construía, deixando-o inacabado após a morte deste, devido à mudança de governo. E
assim, cerca de quatrocentos anos depois, como o rei Antíoco tivesse prometido custear
esta obra, o cidadão romano Cossúcio, com grande engenho e suma ciência, completou de
um modo notável a grande extensão da cela e em volta a disposição de uma dupla colunata,
arquitraves e outros ornamentos segundo as regras das proporções (ornamentorum ad
symmetriam distributionem). Na realidade, este monumento não é só famoso pela sua
magnificência entre o vulgo, também o é entre os eruditos54.
54
Vitrúvio, ob. cit., VII, Preâmb., 15 (2006), p. 261; id., Vitruve, ob. cit., Livre VII, Praef. 15 (1995), p.
7-8: Amplius uero in id genus scripturae adhuc nemo incubuisse uidetur, cum fuissent et antiqui ciues
magni architecti, qui potuissent non minus eleganter scripta comparare. Namque Athenis Antistates et
Callaeschros et Antimachides et Porinos architecti Pisistrato aedem Ioui Olympio facienti fundamenta
constituerunt, post mortem autem eius propter interpellationem rei publicae incepta reliquerunt. Itaque
circiter annis ducentis post Antiochus rex, cum in id opus impensam esset pollicitus, cellae magnitu-
dinem et columnarum circa dipteron collocationem epistyliorumque et ceterorum ornamentorum ad
15
Este, o templo do Olimpieu (Fig. 114), em Atenas, seria o exemplo mais evidente de
obra grega continuada, quatrocentos anos depois, por romanos, respeitando a sua
tipologia de origem, a sua morfologia ou forma geral, e os ornamentos. Tudo isto
respeitando as regras das proporções que lhe estavam implícitas, e resultando que
este monumento não é só famoso pela sua magnificência entre o vulgo, também o é
entre os eruditos. – Mas outras construções enobrecidas com obras de mármore (o
sistema grego, de que o romano tradicional se diferenciava pelo uso das alvenarias e
argamassas) são nomeadas como claros exemplos de excelência e sábias disposições:
Há, efectivamente, construções enobrecidas com obras de mármore em quatro lugares onde
se levantam templos sagrados, cuja claríssima fama é continuamente nomeada e cuja exce-
lência e sábias disposições encontram a maior aceitação perante os deuses. Em primeiro
lugar, o templo de Diana em Éfeso (Figs. 115, 116), de ordem jónica (ionico genere55),
arquitectado por Quérsifron de Cnosso e por seu filho Metágenes, que posteriormente
Demétrio, servo da mesma deusa, e Paionio de Éfeso completaram, segundo se diz. O
mesmo Paiónio e Dáfnis de Mileto construíram um a Apolo, em Mileto (Fig. 117), também
segundo as proporções jónicas (ionicis symmetriis). Ictino concluiu em Elêusis a cela de
Ceres e de Prosérpina, em estilo dórico (dorico more), de gigantesca grandeza, sem colunas
exteriores (sine exterioribus columnis), para desafogo no ritual dos sacrifícios56.
Mas também este templo, cuja construção se iniciara circa 600 a.C., fora transformado
no tempo de Demétrio de Falero (350-282 a.C.), que se tornara senhor dos destinos de
Atenas, acrescentando-lhe colunas na parte da frente. Assim, aumentando o vestíbu-
symmetriam distributionem magna sollertia scientiaque summa ciuis Romanus Cossutius nobiliter est
architectatus. Id autem opus non modo uulgo, sed etiam in paucis a magnificentia nominatur. 55
Vitruve, ob. cit., Livre VII, Praef., 16 (1995), p. 8. – Todas as citações da língua original, latim, são
tiradas desta edição (CUF / Les Belles Lettres), que é uma edição crítica, bilíngue. 56
Vitrúvio, ob. cit., VII, Preâmb., 16 (2006), p. 261-262; id., Vitruve, ob. cit., Livre VII, Praef., 16 (1995),
p. 8-9: Nam quattor locis sunt aedium sacrarum marmoreis operibus ornatae dispositiones, e quibus
propriae de his nominationes clarissima fama nominantur. Quorum excellentiae prudentesque cogita-
tionum apparatus suspectus habent in deorum sessimonio. Primumque aedes Ephesi Dianae ionico
genere ab Chersiphrone Gnosio et filio eius Metagene est instituta, quam postea Demetrius, ipsius
Dianae seruus, et Paeonius Ephesius dicuntur perfecissse. Mileti Apolloni item ionicis symmetriis idem
Paeonius Daphnisque Milesius instituerunt. Eleusine Cereris et Proserpinae cellam immani magnitu-
dine Ictinos dorico more exterioribus columnis ad laxamentum usus sacrificiorum pertexit.
16
lo, acrescentou espaço para os iniciandos e suma autoridade à obra57. – Deste
modo, a continuidade que os romanos deveriam dar à arquitectura grega encontrava-
se já sancionada pelos próprios gregos, e seria uma continuidade que admitia trans-
formações, melhorando as edificações. – E de novo é trazido à colação o arquitecto
romano Cossúcio e a sua intervenção no Olimpieu, de Atenas:
Segundo a tradição, como já se disse, em Atenas, Cossúcio encarregou-se de arquitectar o
Olimpieu, completado com um amplo sistema de módulos, comensurabilidades e proporções
coríntias (amplo modulorum comparatu corinthiis symmetriis et proportionibus58), não se
encontrando dele, todavia, nenhum comentário escrito. Não é, porém, apenas de Cossúcio
que desejaríamos possuir escritos sobre essas coisas, mas também de G. Múcio, que com
grande sabedoria construiu o templo da Honra e da Virtude, dedicado por Mário, onde
aplicou as proporções da cela, colunas e arquitraves segundo os genuínos princípios da
Arte. Se, na realidade, se tratasse de um templo de mármore, de tal modo que tivesse não só
a subtileza artística (arte subtilitatem) como o crédito da magnificência e da sumptuosidade
(magnificentia et impensis auctoritatem), seria considerado entre as primeiras e mais impor-
tantes obras (in primis et summis operibus nominaretur)59.
Esta passagem serve para confirmar o lamento de Vitrúvio acerca da escassez de
fontes escritas, principalmente entre os romanos, que se preocuparam mais com a
prática do que com a teoria, tendo adoptado uma estratégia pragmática e uma postura
essencialmente empírica, na arquitectura e seus princípios, como em tudo o mais.
Adicionalmente, é das poucas passagens em que Vitrúvio se refere a uma obra feita
57
Vitrúvio, ob. cit., VII, Preâmb., 17 (2006), p. 262; id., Vitruve, ob. cit., Livre VII, Praef., 17 (1995),
p. 9: Eam autem postea, cum Demetrius Phalereus Athenis rerum potiretur,m Philo ante templum in
fronte colmnis constitutis prostylon fecit; ita aucto uestibulo laxamentum initiantibus operique summam
adiecit auctoritatem. 58 Vitruve, ob. cit., Livre VII, Praef., 17 (1995), p. 9. 59
Vitrúvio, ob. cit., VII, Preâmb., 17 (2006), p. 262; id., Vitruve, ob. cit., Liv. VII, Praef., 17 (1995), p. 9:
In asty uero [ad] Olympium amplo modulorum comparatu corinthiis symmetriis et proportionibus, uti
supra scriptum est, architectandum Cossutius suscepisse memoratur, cuius commentarium nullum est
inuentum. Nec tamen a Cossutio solum de his rebus scripta sunt desideranda sed etiam a C. Mucio, qui
magna scientia confisus aedis Honoris et Virtutis Marianae cellae columnarumque et epistyliorum sym-
metrias legitimis artis institutis perfecit. Id uero si marmoreum fuisset, ut haberet, quemadmodum ab arte
subtilitatem, sic ab magnificentia et impensis auctoritatem, in primis et summis operibus nominaretur.
17
com outro material, que não o mármore, e reconhecendo-lhe valor (feita segundo os
genuínos princípios da Arte, e com subtileza artística), embora não alcançasse a
magnificência e a sumptuosidade (…) das primeiras e mais importantes obras, devido
à ausência do mármore, expressando assim a opinião, quiçá preconceituosa, dos mate-
riais nobres terem um papel decisivo na configuração e valoração das edificações, e,
por uma extensão, talvez abusiva, na da sua Arquitectura. – Este tipo de entendimento
virá a ser agudamente questionado por Daniele Barbaro (1514-70)60 na sua edição de
Vitrúvio61, que partindo da aristotélica destrinça entre Forma e Matéria considera que
a Forma (lo bello essere) devia sobrepôr-se à Matéria (lo essere) e beneficiá-la no
sentido do bom e belo ser (a Forma)62, abrindo com isto caminho para legitimar os
fingimentos de Palladio e outros maneiristas, fingindo ser de mármore colunas de tijolo
com acabamento de stuco, ou pavimentos de argamassa acabados como marmoritos,
além doutros fingimentos acasalados com pinturas de fresco (Figs. 118, 119).
O preâmbulo de Vitrúvio acaba sintetizando a apreciação dos arquitectos romanos e
expondo as intenções dele próprio ao escrever o De architectura, além de, lembrando
ter no livro anterior tratado das disposições dos edifícios privados, anunciar o que
iria tratar no Livro VII, relativo aos acabamentos dos edifícios. – Veja-se:
Como, pois, os nossos maiores souberam, não menos que os Gregos, ser grandes
arquitectos e, segundo sabemos, foram bastantes (satis multi), apesar de poucos terem
publicado ensinamentos, julguei não dever passar em silêncio mas antes expor 60 Sobre Daniele Barbaro, ver: Wittkower, R., Architectural Principles in the Age of Humanism,
London, 1949, new ed. 1962; Forssman, E., Palladios Lehrgebäude. Studien über den Zusammenhang
von Architektur und Architekturtheorie bei Andrea Palladio, Stockholm, 1965; Tafuri, M., «Introdu-
zione» a Barbaro, ob. cit. (ed. 1997), p. XI-XL; Morresi, M., «Studio» a Barbaro, ob. cit. (ed. 1997),
p. XLI-LIII; Trebbi, G., «Daniele Barbaro and Vitruvius: the architectural theory of a Renaissance
humanist and patron», in Papers of the British School at Rome, 72, 2004, p. 293-329; Carunchio, T.,
«Introduzione» a Barbaro, ob. cit. (ed. 2006), p. III-XVII. 61 Barbaro, D., I dieci libri dell’architectura di M. Vitruvio…, Venetiis, 1567. – Ed. facsimil con in-
trod. di M. Tafuri e studio di M. Morresi, Milano, 1997, Ed. il Polifilo; idem, con ampia introd. de T.
Carunchio, Roma, 2006, Bardi. – A obra de Barbaro é acessível através de www.libcoll.mpiwg-
berlin.mpg.de/ (procurar em Vitruvius, 1567). A edição em latim, M. Vitrvvi Pollionis De Architectura
Libri Decem…, Venetiis, 1567, é acessível através de www.digi.ub.uni-heidelberg.de/diglit. 62 Barbaro, ob. cit., Lib. I, 3, p. 37.
18
ensinamentos, julguei não dever passar em silêncio mas antes expor ordenadamente cada
tema em cada livro (singulis uoluminibus de singulis exponeremus63). E assim, tendo já no
sexto livro referido as disposições dos edifícios privados, neste, que é o sétimo, tratarei
dos acabamentos, de tal modo que a sua realização possa ter beleza e solidez (quibus ratio-
nis et uenustatem et firmitatem habere possint)64.
Com este elogio da perícia dos arquitectos romanos e, ao mesmo tempo, lamento de
serem pouco dados ao registo escrito das suas experiências e à reflexão teórica – o
que Vitrúvio procuraria suprir – fina-se tudo o que de mais ordenado e sistematizado
tem o autor a dizer sobre as suas fontes e sobre os que o tinham antecedido a escrever
sobre arquitectura, alguns dos quais eram, além de seus patrícios, seus contemporâ-
neos, com ligeiras diferenças de idade, caso de Terêncio Varrão (116-27 a.C.). – Para
finalizar, resumindo e sintetizando, pode-se enumerar os autores, nomeados pelo
próprio Vitrúvio, como suas fontibus, classificando-os pelos assuntos específicos de
que trataram, no quadro seguinte:
–––– Sobre a perspectiva ou scaenographia:
Agatarcos, Demócrito, Anaxágoras (gregos, Sécs. VI-V a.C.);
–––– Sobre as proporções dos edifícios:
Sileno, Roico e Teodoro, Quérsifron e Metágenes, Pítio, Ictino e Cárpion, Teo-
doro da Foceia, Filo, Hermógenes, Arcésio (gregos, Sécs. VI-II a.C.);
–––– Sobre o Mausoléu de Halicarnasso:
Sátiro e Pítio, além de cinco escultores (gregos, Sécs. IV a.C.);
–––– Sobre as proporções (autores menos famosos):
Nexaris, Teocides, Demófilo, Pólis, Leónidas, Silânion, Melampo, Sárnaco,
Eufranor (gregos, Sécs. VI-IV a.C.); 63 Vitruve, ob. cit., Livre VII, Praef., 18 (1995), p. 10. 64 Vitrúvio, ob. cit., VII, Preâmb., 18 (2006), p. 262; id., Vitruve, ob. cit., Livre VII, Praef., 18 (1995),
p. 10: Cum ergo et antiqui nostri inueniantur non minus quam Graeci fuisse magni architecti et nostra
memoria satis muiti, et ex his pauci praecepta edidissent, non putaui silendum, sed disposite singulis
uoluminibus de singulis exponeremus. Itaque, quoniam sexto uolumine priuatorum aedificiorum rati-
ones perscripsi, in hoc, qui septimum tenet numerum, de expolitionibus, quibus rationibus et uenusta-
tem et firmitatem habere possint, exponam.
19
–––– Sobre Hidráulica, Gnomónica e Mecânica65:
Díades, Arquitas, Arquimedes, Ctesíbio, Ninfodoro, Filo de Bizâncio, Dífilo,
Démocles, Cárias, Poliido, Pirro, Agesístrato (gregos, Sécs. V-I a.C.);
–––– Autores romanos:
Fufício, Terêncio Varrão, P. Septímio (romanos, Sécs. I a.C.).
São referidos, ainda, como tendo estabelecido os fundamentos para o Olimpieu66,
Antístates, Calaiscro, Antimáquides e Porino, quando Pisístrato o construía, e o cida-
dão romano, Cossúcio, que o acabara, quatrocentos anos depois, e Paiónio e Dáfnis
de Mileto, construtores de um templo a Apolo, em Mileto, além de G. Múcio, que
com grande sabedoria construiu o templo da Honra e da Virtude… onde aplicou as
proporções da cela, colunas e arquitraves, segundo os genuínos princípios da arte67.
No total são cinquenta e quatro (54) os nomes referidos por Vitrúvio, na maior parte
de arquitectos e teóricos gregos (49), em larga maioria situados entre os Sécs. VI-III
a.C., a que havia de acrescentar cinco (5) romanos (embora destes apenas três (3)
tivessem escrito sobre arquitectura ou temas afins), mais ou menos seus contemporâ-
neos, ou que o teriam precedido por pouco. É este conjunto de arquitectos, escultores,
mecânicos e escritores, que reconhece como as fontes (fontibus), donde bebera os
princípios que no seu tratado pretenderia sistematizar, pois Vitrúvio, embora se declare
devedor, e preste homenagem aos que o tinham antecedido, não deixa de expressar
aquilo que considera a sua diferença, porque todos os outros que o haviam precedido
tinham escrito somente sobre aspectos parciais da arquitectura, propondo-se ele tratar,
não apenas dos aspectos parciais, mas ordená-los, criando todo um corpus (palavra
que repete, quase obsessivamente) da arquitectura. – Veja-se, ao longo da obra:
65 Vitrúvio refere-se apenas à Mecânica (machinationibus), mas pelos autores referidos deduz-se que
inclui os que trataram de Hidráulica e Gnomónica, também. 66
Vitrúvio, ob. cit., VII, Preâmb., 15 (2006), p. 261; id., Vitruve, ob. cit., Livre VII, Praef., 15 (1995),
p. 8: Ioui Olympio facienti fundamenta constituerunt... 67 Vitrúvio, ob. cit., VII, Preâmb., 17 (2006), p. 262; id., Vitruve, ob. cit., Livre VII, Praef., 17 (1995),
p. 9: qui magna scientia confisus aedis Honoris et Virtutis Marianae cellae columnarumque et
epistyliorum symmetrias legitimis artis institutis perfecit.
20
Redigi normas pormenorizadas, de modo que, tendo-as presentes, possas por ti (Augusto)
ter conhecimento perante obras já construídas ou futuras, quaisquer que sejam. Com efeito,
nestes livros expliquei todos os preceitos da Arquitectura68. – Sublinha-se a negrito.
Tendo reparado, ó Imperador, que muitos deixaram dispersos preceitos e livros de comen-
tários sobre arquitectura, como partículas não ordenadas e apenas principiadas, julguei
que seria coisa digna e utilíssima ordenar antes de mais nada o corpus desta disciplina
segundo uma metodologia equilibrada e expor pormenorizadamente em cada um dos livros
as características de cada um dos temas69. – Sublinha-se a negrito.
Julguei que deveria escrever com diligência um corpus de arquitectura com explanação
dos seus preceitos, pensando que será acolhido com agrado ao serviço de toda a gente70.
Tratei de modo pormenorizado e o mais claramente que pude dos métodos e técnicas que se
aplicam aos traçados dos relógios, a fim de se tornarem mais expeditos para uso. Falta ago-
ra pensar nas máquinas e nos seus princípios. Assim, pois, começarei a escrever sobre estas
coisas no livro que se segue, a fim de se instruir um corpus perfeito de arquitectura71.
Estas declarações das intenções que animaram Vitrúvio a escrever o De architectura,
ou De architectura libri decem, terão a sua culminância quando, no final da obra, a
concluí-la, diz de um modo claro, sem tibieza, e quase jactansiosamente:
68
Vitrúvio, ob. cit., I, Preâmb., 3 (2006), p. 30; id., Vitruve, ob. cit., Livre I, Praef., 3 (1990), p. 3:
conscripsi praescriptiones terminatas ut eas adtendens et ante facta et futura qualia sint opera per te
psses nota habere; namque his uoluminibus aperui omnes disciplinae rationes. 69
Vitrúvio, ob. cit., IV, Preâmb., 1 (2006), p. 141; id., Vitruve, De l’architecture (De architectura),
Livre IV, Praef., 1, texte établi, trad. et commenté par P. Gros, Paris, 1992, p. 1: Cum animaduertissem,
Imperator, plures de architectura praecepta uoluminaque commentariorum non ordinata sed incepta
uti particulas errabundas reliquisse, dinam et utilissimam rem putati tantae disciplinae corpus ad
perfectam ordinationem perducere et praescriptas in singulis uoluminibus singolorum generum quali-
tates explicare. – Sublinhou-se a negrito a expressão corpus. 70
Vitrúvio, ob. cit., VI, Preâmb., 7 (2006), p. 221; id., Vitruve, De l’architecture (De architectura),
Livre VI, Praef., 7, texte établi, trad. et commenté par L. Callebat, Paris, 2004, p. 5: Quas ob res corpus
architecturae rationesque eius putati diligentissime conscribendas, opinans id munus omnibus gentibus
non ingratum futurum. – Sublinhado a negrito. 71 Vitrúvio, ob. cit., IX, 8, 15 (2006), p. 351; id., Vitruve, ob. cit., Livre IX, Praef., 15 (1969), p. 36:
Quae sunt horologiorum descriptionibus rationes et apparatus, ut sint ad usum expeditiores, quam
apertissime potui perscripsi. Restat nunc de machinationibus et de earum principiis ratiocinari. Itaque
de his, ut corpus emendatum architecturae perficiatur, insequenti uolumine incipiam scribere.
21
Neste livro completei como pude a exposição das tecnologias mecânicas que me parece-
ram mais úteis para tempos de paz e de guerra. Nos anteriores nove, tratei um tema de
cada vez nas respectivas secções, de modo a apresentar todas as partes da arquitectura
(totum corpus omnia architecturae membra), bem esclarecidas em dez livros72.
É a auto-apoteose duma obra que, embora tida como de fraca recepção no seu tempo,
e durante a Idade Média, teve uma enorme importância, a partir de 1416, na elaboração
da Teoria da Arquitectura da Idade Moderna, dando origem ao fenómeno do vitruvia-
nisme73, conjunto de princípios e regras que animaram e instruíram a Arquitectura do
Ocidente desde o Séc. XV até fins do Séc. XIX, e que ainda hoje ressoarão, de modo
invío, distorcidos, nas actuais prática(s) e teoria(s) da arquitectura74.
Durante muito tempo, visto como solo anticho scrittore di quest’arte75, e considera-
do o conjunto dos seus preceitos como la dottrina di Vitrvvio76, é propósito deste
estudo mostrar que as noções de base da Teoria da Arquitectura, tal como aparecem
formuladas no De architectura, já se prefiguravam em vários dos Mitos e das Ideias
Primordiais da mais remota Antiguidade, desde a Mesopotâmia e Antigo Egipto, até
à Grécia, o que se constata pela sua manifestação, ainda que de forma mais implícita
do que explicitados, em textos dessas culturas. Tudo isto bem mais remoto e, decerto,
bem mais esclarecedor do que as fontibus, que Vitrúvio nomeia, mas sem adiantar as 72
Vitrúvio, ob. cit., X, 16, 12 (2006), p. 399; id., Vitruve, De l’architecture (De architectura), Livre X,
16, 12, texte établi, trad. et commenté par L. Callebat, avec la collaboration, pour le commentaire de
Ph. Fleury, Paris, 1986, p. 56: Quas potui de machinis expedire rationes pacis bellique temporibus et
utilissimas putaui in hoc uolumine perfeci. In prioribus uero nouem de singulis generibus et partibus
conparaui, uti totum corpus omnia architecturae membra in decem voluminibus haberet explicata. 73
Germann, G., Einführung in die Geschichte der Architekturtheorie, Darmstadt, 1980 – ed. em francês:
Vitruve et le vitruvianisme: Introduction à l’histoire de la théorie architecturale, trad. de M. Zaugg et J.
Gubler, préf. de J. Gluber, Lausanne, 1991, p. 10: toute la théorie de l’architecture, de la Renaissance
jusqu’au néoclassicisme, représente une confrontation continue au texte de Vitruve: ainsi parle-t-on
souvent de la théorie vitruviene à l’âge moderne ou, plus simplement, de Vitruvianisme. 74 Arnau Amo, J., La teoría de la arquitectura en los tratados, Madrid, 1987-1988, 3 vols. – ver, Vol.
III: Filarete, Di Giorgio, Serlio, Palladio, 1988, p. 211. 75 Palladio, A., I quattro libri dell’Architettura, Venetia, 1570, Proemio, p. 5. 76 Serlio, S., Regole generali di architettura… che per la magior parte concordano con la dottrina di
Vitrvvio, Venetis, 1537, Frontispício.
22
características das águas bebidas nessas fontes, ou seja, dizendo que escreveram sobre
vários aspectos da arquitectura, ou até sobre o seu conjunto (caso dos romanos, Fufício
(?), Terêncio Varrão e P. Septímio), mas pouco ou nada adiantando sobre o conteúdo
e características daquilo que escreveram.
No entanto, é significativo que comece por nomear os teóricos da perspectiva ou
scaenographia, a fazer lembrar que, também nos alvores da Idade Moderna, os primei-
ros escritos teóricos sobre arte são os de Alberti, já referidos (p. 462, n. 1202), que
começou por tratar a perspectiva, e a tese que conexiona os estilos de arquitectura
com os conceitos e formas de representação espacial77. – Depois, seguem-se os que
escreveram sobre as proporções, que dominam em número; os que escreveram sobre o
Mausoléu de Halicarnaso, obra maravilhosa pela sua ornamentação; os que escreveram
sobre hidráulica, gnomónica e mecânica, também em número considerável; e por fim,
os romanos, que teriam resumido e sintetizado as teorias gregas, intentando dar conti-
nuidade a essas teorias e à arquitectura, de que as teorias seriam o quod significat78. –
Assim, expressa-se claramente que o mais importante, para a Teoria da Arquitectura,
seriam: 1) a perspectiva, ou seja, o desenho ou sistema de representação; 2) as propor-
ções; 3) a ornamentação; 4) a hidráulica, gnomónica e mecânica; 5) os continuadores
romanos, de que Vitrúvio seria a culminância. – E é tudo o que se oferece para dizer
das fontes e antecedentes referidos pelo próprio Vitrúvio.
De resto, e deslocando-nos para os contemporâneos de Vitrúvio, também estes terão
contribuído com quota-parte importante na formação das noções e princípios que o
tratadista romano ordenará no seu tratado. – E é sobre os contemporâneos de Vitrúvio,
mesmo que nada tenham escrito especificamente sobre arquitectura, que este estudo
77 Ver, Zevi, B., Sapere vedere l’architettura: Saggio sull’interpretazione spaziale dell’architettura,
Torino, 1948, ed. 1993, em especial, Cap. II: Lo spazio protagonista dell’architettura, p. 21-32; Cap. III:
La rappresentazione dello spazio, p. 33-48, e Cap. IV: Le diverse età dello spazio, p. 49-99. – A tese de
Zevi, la storia dell’architettura è anzitutto e prevalentemente la storia delle concezioni spaziale (p. 31),
dá prioridade aos meios de representação espacial. 78 Vitruve, ob. cit., Livre I, 1, 3 (1990), p. 4-5: Cum in omnibus enim rebus tum maxime etiam in ar-
chitectura haec duo instant: quod significatur et quod significat. Significatur proposita res de qua
dicitur; hanc autem significat demonstratio rationibus doctrinarum explicata. – Sublinha-se a negrito.
23
vai enveredar a seguir, pois muitos dos conceitos e preceitos de que Vitrúvio faz uso
terão sido formulados nessa época, no seio dos escritores seus contemporâneos:
2. Contemporâneos de Vitrúvio:
Vitrúvio é uma personalidade romana do Séc. I a.C. – Um século decisivo para o des-
tino e a História de Roma, assim, para toda a sua cultura e civilização, marcado pela
emergência de duas personalidades, César e Augusto, que deram nome e características
a duas épocas contíguas mas diferentes: A Época de César, e A Época de Augusto79.
E com efeito, é a cavalo destas épocas, de fim da República e instauração do Império,
que viveram autores e personalidades tão importantes como Terêncio Varrão, Cícero,
Júlio César, também notável escritor, Lucrécio, Salústio, Catulo, Virgílio, Horácio,
Tito Lívio, Ovídio, e outros que não cabe nomear, devido, quer ao conhecimento
limitado que deles se tem, quer pela necessidade de balizar este estudo, sob pena de
incorrer no risco de o tornar demasiado extenso e fastidioso.
Assim, vai-se procurar, entre os contemporâneos de Vitrúvio, aquilo em que o poderão
ter influenciado, ora com conceitos filosóficos (é a época dos estóicos, dos cépticos e
dos eclécticos), ora com conceitos ético-estéticos (é a época de Cícero, onde Vitrúvio
terá ido buscar o conceito de venustas e o de decorum, além dos de utilitas e firmitas,
que por vezes se casam com os anteriores), ora com conceitos e procedimentos da
Retórica, de que Cícero foi também um destacado cultivador. De resto, certos aspectos
do pensamento de Cícero, que poderão ter influenciado Vitrúvio, foram já objecto de
consideração na III.ª Parte deste estudo, a propósito dos estóicos80.
É na condição de retórico que Vitrúvio se refere a Cícero, no Preâmbulo ao Livro IX,
onde tratará da Gnomónica, dando-o como exemplo de perito na arte da retórica81
79 É com estas designações, A Época de César, e A Época de Augusto, que são intituladas dois dos
capítulos correspondentes a épocas da Storia della Literatura Italiana de E. Paratore; ver, ob. cit. (ed.
portuguesa de 1987), p. 163-344 e 345-536. – De resto, é de lembrar que ambos, além da sua importância
como políticos, militares, e mecenas, foram também notáveis escritores. 80 Ver, neste estudo, III.ª Parte, Cap. 3.7 – Os Estóicos: a sua Doutrina do Significado, do Decoro, e da
Cidade Ideal, p. 455-474. 81 Vitrúvio, ob. cit., IX, Preâmb., 17 (2006), p. 329.
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(de arte uero rhetorica82), como se refere a Lucrécio (99-55 a.C.)83 e à sua dissertação
sobre a natureza das coisas (De rerum natura)84, onde se terá inspirado para a narra-
tiva sobre os homens primitivos, a descoberta do fogo, e as origens das construções85,
como se referirá a Júlio César (100-44 a.C.) e a Octávio César Augusto (63 a.C.-14
d.C.), sendo omissas referências aos grandes poetas latinos, Virgílio (70-19 a.C.) e
Horácio (65-8 a.C.), seus contemporâneos, assim como a Salústio (86-34 a.C.), Catulo
(87/84-57/54 a.C.), ou ainda, Tito Lívio (43 a.C.-17 d.C.) e Ovídio (59 a.C.-17 d.C.),
embora mais compreensíveis, dadas as diferenças de idade. – No conjunto, referências
e omissões, parecem revelar que Vitrúvio estava voltado para o glorioso passado
helénico, mais do que para o passado ou a contemporaneidade dos romanos, seus
patrícios, embora na(s) época(s) em que viveu essa atitude seja largamente partilhada,
nomeadamente nas esferas do Poder, que procurariam legitimação e dignificação, in-
tentando enxertar-se ou, em termos vitruvianos, dar continuidade a uma herança e tra-
dição cultural que sentiriam como superior à romana. – De certo modo, o Império Ro-
mano assume-se como continuidade ou restauração do Império de Alexandre, logo, era
natural que a Cultura e Civilização que o Poder Romano pretendia desenvolver procu-
rasse enraízar-se nessa tradição. E na arquitectura isso foi evidente: a Arquitectura de
Augusto ou Arquitectura Imperial é uma arquitectura voltada para os helénicos, bem
mais do que para as tradições romanas ou as etruscas86. 82 Vitruve, De l’architecture (De architectura), Livre IX, Praef., 17, texte établi, trad. et commenté
par J. Soubiran, Paris, 1969, p. 8. 83 Sobre Lucrécio, ver: Alfieri, V. E., Lucrezio, Firenze, 1929; Bonelli, G., I motivi profondi della poe-
sia lucreziana, Bruxelles, 1984; Segal, Ch., Lucretius on Death and Anxiety: Poetry and Philosophy
in De rerum natura, New Jersey / Princeton, 1990; Gale, M. R., Myth and Poetry in Lucretius, Cam-
bridge / UK, 2007; Gale, M. R. (ed.), Lucretius, Oxford / UK, 2007; Comte-Sponville, A., Le miel et
l’absinthe: Poésie et philosophie chez Lucréce, Paris, 2008. 84 Lucréce, De la nature (De rerum natura), Livre I-III, texte établi, trad. et annoté par A. Ernout,
Paris, 1920, 4e tirage de la 6e ed. revue et corrigé par C. Rambaux, 2002, Collection des Universités de
France / Les Belles Lettres, Tome I; idem, Livres IV-VI, texte établi, trad. et annoté par A. Ernout,
Paris, 1921, 2e ed. 1964, 8e tirage 2003, Tome II. – Há ed. em português, Lucrécio, Da Natureza (De
rerum natura), trad. de Agostinho da Silva, S. Paulo, 1975, Abril Cultural. 85 Vitrúvio, ob. cit., II, 1, 1-8 (2006), p. 71-74. 86 Ver, Boëthius, A., and Ward-Perkins, J. B., Etruscan and Roman Architecture, Baltimore, 1970;
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O que acontece com a Arquitectura vai acontecer com as formas de pensamento e de
expressão literária mais prestigiadas na Antiguidade, como a Filosofia, a Retórica, e a
Poesia, voltadas para a Hélade, derivadas das suas escolas e dos seus autores. – No
entanto, os romanos conseguiram sínteses geniais, como sucede com Cícero, onde
confluem, além das tradições retóricas, a filosofia de Platão, o aristotelismo, o estoi-
cismo e o cepticismo, dando como resultado um eclectismo prolixo, mas profícuo,
que abarca vastos domínios da expressão cultural, nomeadamente os éticos e estéticos,
de que se sente o ressoamento em Vitrúvio, pela utilização que faz dos conceitos de
venustas e decorum, termos caracteristicamente ciceronianos. – Senão, veja-se:
Pero de la elocuencia, como de las demás cosas, el fundamento es el buen sentido. Pues
en un discurso, como en la vida, nada hay más difícil que ver qué es lo apropriado.
Πρέπον llamam a esto los griegos, llamémoslo muy bien nosotros decoro87.
O bom sentido, como fundamento da eloquência, uma das muitas formas de expressão,
logo implicando relação estreita com a significação, revela que a vitruviana categoria
consistencial do decore, antes de mais, é o significado da arquitectura que visa. E o
significado não podia deixar de atender, 1) ao tema; 2) ao costume; 3) à natureza,
incluindo o lugar e circunstâncias, e a natureza ou estatuto social do destinatário,
proprietário ou utilizador da edificação arquitectada, como se explicita na segunda
parte da definição da distributio88. São estas as três (ou quatro) espécies de decoro,
teorizadas por Vitrúvio, mas que já se anunciam em Cícero, como no prosseguimento
desta passagem se pode ver, pois siempre en todas las partes del discurso, como de
la vida, hay que considerar qué es decoroso; lo cual está fundado tanto nel assunto
Ward-Perkins, J. B., Roman Architecture (History of World Architecture), Milano, 1972 – (ed. espan-
hola, Arquitectura romana (Historia universal de la arquitectura), trad. L. Escobar Bareño, Madrid,
1976); id., Roman Imperial Architecture, New York, 1981; Gros, P., L’Architecture romaine, I. Les
monuments publics; II. Maisons, villas, palais et tombeaux, Paris, 1996-1999, 2e éd. 2007. 87
Cicerón, El orador (Orator), 21, 70, texto rev. y trad. por A. Tovar y A. R. Bujaldón, Madrid, 1992, p.
[28]: Sed est eloquentiae sicut reliquarum rerum fundamentum sapientia. Vt enim in uita sic in oratione
nihil est difficilius quam quid deceat uidere. Πρέπον appellant hoc Graeci, nos dicamus sane decorum. 88
Vitrúvio, ob. cit., I, 2, 9 (2006), p. 40: em geral, as disposições dos edifícios deverão ser adequadas a
cada tipo de pessoas. – No original latino: et omnino faciendae sunt aptae omnibus personis aedificiorum
distributiones, in Vitruve, ob. cit, Livre I, 2, 9 (1990), p. 19.
26
de que se trata (o tema ou θεµατισµώ, de Vitrúvio89) como en las personas de los
que hablam y de los que oyen90 (a natureza ou estatuto dos intervenientes), além de
que tampoco todo lugar o tiempo (as circunstâncias)… deben tratarse com la misma
clase de palabras o de pensamientos91. E que isto não se limitava às regras e praxes
da retórica explicita-se quando Cícero lembra que aunque cada cosa tiene su medida,
más ofende sin embargo lo mucho que lo poco92. Y respecto a esto decía Apeles que
pecabam también los pintores que no percibían qué era lo suficiente93. – Estas analogi-
as, tornam óbvio que as artes visuais, logo, a arquitectura (admitindo-se que já ao
tempo faria parte desse domínio), eram também abrangidas pela noção de decoro,
que, à luz dos textos de Cícero, se revela como uma noção de carácter eminentemente
estético, ou de natureza ético-estética, se se preferir, dada a sua dimensão sociabili-
zante, intrincada em todo um amplo e complexo contexto cultural.
De resto, a beleza, tema essencial de toda a estética, ocupa parte relevante no pensa-
mento de Cícero. Partindo do legado helénico, em que a beleza consistia na ordem
(τάξις), na medida (µέτρον), na proporção adequada (ἀναλογία e συµµετρία) e na
concordância das partes (εύρυθµία), Cícero definirá a beleza como ordo e convenien-
tia partium, assim, latinizando os conceitos gregos, mas acrescentando que a beleza
comove com o seu aspecto (sua specie commovet), atrai o olhar (movet oculos) – onde
se fundará o venustates enim persequitur uisus, de Vitrúvio94 – e depende de um belo
89 Vitruve, ob. cit., Livre I, 2, 5 (1990), p. 16. 90 Cícero, ob. cit., 21, 71-72 (1992), p. [29]: semperque in omni parte orationis ut uitae quid deceat
est considerandum; quod et in re, de qua agitur, positum est, et in personis et eorum qui dicunt et
eorum qui audiunt. 91 Cícero, ob. cit., 21, 71 (1992), p. [29]: nec vero locus aut tempus aut auditor omnis eodem aut uer-
borum genere tractandus est aut sententiarum. 92
Cícero, ob. cit., 22, 73 (1992), p. [29]: etsi enim suus cuique modus est, tamen magis offendit nimium
quam parum. – Este raciocínio tem curiosa e significativa similitude com o que virá a ser a divisa de
Mies van der Rohe, Less is More, uma das bandeiras do Movimento Moderno em Arquitectura. 93 Cícero, ob. cit., 22, 73 (1992), p. [29]: in quo Apeles pictores quoque eos peccare dicebat qui non
sentirent quid esset satis. 94 Vitruve, De l’architecture (De architectura), Livre III, 3, 13, texte établi, trad. et commenté par Ph.
Fleury, Paris, 1990, p. 21.
27
aspecto (aspectus)95. Com isto, o reconhecimento da aparência, Cícero introduz o
fenoménico no campo da indagação e teorização sobre a beleza, fazendo-a incidir
sobre o aspecto e a aparência, ou seja, reconhecendo o carácter subjectivo da beleza,
ou de um determinado tipo de beleza, de características corporais e natureza física, que,
no entanto, não invalidaria a outra e superior espécie de beleza ligada ao espiritual,
logo à ordem e conveniência, ou seja, ao decoro, chegando a estabelecer uma compa-
ração entre os dois tipos de beleza – Veja-se:
Pois como a beleza do corpo com uma bem proporcionada composição dos membros atrai
o olhar e agrada (movet oculos et delectat) por isso mesmo, porque todas as partes har-
monizam entre si com uma certa beleza, assim este decoro que brilha na vida, obtém a
aprovação daqueles com quem se vive pela ordem, a firmeza e a moderação (ordine et
constantia et moderatione) de todas as palavras e acções96.
A beleza, que surge aqui nomeada pulchritudo (um termo muito usado por Alberti no
De re aedificatoria97), aparecerá noutras passagens de Cícero designada por dignitas e
venustas, o termo de eleição de Vitrúvio, para a definição da beleza arquitectónica,
mas também nestes termos operando uma destrinça: a primeira, dignitas, seria uma
beleza masculina, forte e viril, e a segunda, venustas, um tipo de beleza feminina,
elegante e graciosa ou delicada, alternando estes termos com os de gravitas para a
beleza masculina e suavitas para a feminina. – De resto, veja-se:
Agora bem, como há duas classes de beleza (pulchritudo), numa das quais está a graça
(venustas) e na outra a dignidade (dignitas), devemos considerar a graça (venustatem)
como própria da mulher, a dignidade (dignitatem) como própria do homem98.
95 Tatarkiewicz, ob. cit. (1970, ed. espanhola 1987), p. 210. 96 Cícero, De officiis I, 28, 98, in Tatarkiewicz, ob. cit. (1970, ed. espanhola 1987), p. 217: Ut enim
pulchritudo corporis apta compositione membrorum movet oculos et delectat hoc ipso, quod inter se
omnes partes cum quodam lepore consentiunt, sic hoc decorum, quod elucet in vita, movet adprobatio-
nem eorum, quibuscum vivitur, ordine et constantia et moderatione dictorum omnium atque factorum. 97 Alberti, L. B., L’architettura (De re aedificatoria, 1485), VI, 2, 93, texto latino e trad. a cura di G.
Orlandi, introd. e note di P. Portoghesi, Milano, 1966, Vol. 2, p. 445. 98 Cícero, De officiis I, 36, 130, in Tatarkiewicz, ob. cit. (1970, ed. esp. 1987), p. 218: Cum autem
pulchritudinis duo genera sint, quorum in altero venustas sit, in altero dignitas, venustatem muliebrem
ducere debemus, dignitatem virilem.
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Nos aspectos estéticos, e não só, a obra de Cícero será devedora da de Panecio de
Rodes (185-112 a.C.)99, filósofo do estoicismo médio ou segunda vaga do estoicismo,
que intentou conciliar a doutrina estóica com o platonismo, e de quem Cícero afirma
ter incluído os seus escritos Sobre a Providência (Παναιτίου περὶ προνοίας) no De
natura deorum, e Sobre o Conveniente (Περὶ τοῦ καθήκοντος)100 em De officiis101,
tendo também escrito, Περί εύθυµίας (Da tranquilidade da alma), que terá influen-
ciado Séneca e Plutarco102. – Mas, cingindo-nos às suas ideias estéticas, veja-se
como as transcreve Cícero, traduzindo-as para o latim:
É um efeito singular da natureza e do logos que, entre todos os animais, só o homem sinta o
que significa ordem, o que é conveniente, o que significa observar medida nas palavras e
nos actos. O homem é o único ser vivo que até nas formas sensíveis pode conceber a beleza,
a graça, a harmonia das partes numa figura103.
A harmonia surge aqui como tradução de convenientiam, ou seja, conveniência, que
é um sinónimo de decoro, muito usado, a partir do Renascimento, em traduções de
Vitrúvio, como a francesa de Claude Perrault, Paris, 1673, que usa o termo bienséan-
ce104, que tem o significado de conveniência105, mas que também se pode entender, com
99 Sobre Panecio de Rodes, ver: Tatakis, B., Panétius de Rhodes, Paris, 1931; Van Straaten, M., Pané-
tius, sa vie, ses écrits, sa doctrine, avec une édition des fragments, Amsterdam, 1946; Pohlenz, M.,
Die Stoa: Geschichte einer geistigen Bewegung, Göttingen, 1970; Schuhl, J.-P. (dir.), Les Stoïciens,
textes trad. par É. Bréhier, éd. sous la direction de…, Paris, 1962, p. XXXIX-XLIII. – Para uma antologia
de fragmentos, ver: Van Straaten, M., Panaetii Rhodii Fragmenta. Editio Amplificata (Philosophia Anti-
qua V), Leiden, 1962; id., Alesse, F., Panezio di Rodi. Testimonianze, ed., trad., e commento di..., Napoli,
1997. – As melhores fontes para Panecio são os textos de Cícero, De rerum natura, De officiis, e Epist.
ad Atticum; em geral, para as ideias estéticas, Tatarkiewicz, ob. cit. (1970, ed. espanhola 1987), p. 194-
209 e 209-226 (Sobre Cícero) e De Bruyne, E., Historia de la Estética: I. Antigüedad griega y romana,
trad. de A. Suarez, O.P., Madrid, 1963, BAC, p. 193-200 e 241-271 (Cap. Sobre Cícero). 100 Cicero, Ep. Ad Att. XIII, 8, e XVI, II 4, ed. L. C. Purser, rec. in Van Straaten, ob. cit. (1962), p. 11. 101 De Bruyne, ob. cit. (1963), p. 193. 102 Schuhl, ob. cit. (1962), p. XL. 103 Cícero, De officiis I, 4: Unum hoc animal sensit quid sit ordo, quid sit quod deceat, qui modus…
Itaque eorum ipsorum quae aspectu sentiuntur nullum aliud animal pulchritudinem, venustatem, conve-
nientiam partium sensit. – Extraído de De Bruyne, ob. cit. (1963), p. 194. 104 Ver, Perrault, C., Les dix livres d’architecture de Vitruve…, I, 2, 1, Paris, 1673, p. 9.
29
François Blondel, 1683, como la beauté reglant avec justesse l’aspect d’un Ouvrage,
& le composant des parties que luy conviennent, luy donnent de la gravité & et de la
majesté106. De resto, análogo a este seria o entendimento de Jean Martin, 1547, que
traduz o decore vitruviano por decoration que est la belle apparence de l’oeuvre,
composée de choses bien approuvées & avec bonne authorité107, ou ainda o de Miguel
de Urrea, 1582, que traduz decore por hermosura, e o define como sendo una vista, e
aspecto de la obra enmendado y aprovado con cosas compuestas con auctoridad108.
De resto, e como argumento definitivo sobre o carácter estético do decore, é de notar
que já no Séc. III d.C., Cetius Faventinus, nomeando de principiis artis architectonicae
(os princípios da arte arquitectónica), agrupa uenustatem et decorem, considerando-
os partes ou sinónimos da εύρυθµίαν. – Senão, veja-se:
Les Grecs ont enseigné que l’étude de l’architecture se faisait sous les cinq vocables sui-
vants: ils appelèrent l’ordonance τάξις, la disposition διάθεσις, l’élégance et l’harmonie
εύρυθµίαν, les mesures des modules συµµετρία, la distribution οϊκονοµίαν109. – Numa
edição renascentista da obra, em latim, a passagem em causa, relativa às consistências da
arquitectura, tem a seguinte redacção: venustatem & decorem, κοσµίαν 110.
105
Ver, Dicionário de Francês-Português, bienséance, s. f. a) decência; decoro; b) conveniência; 2) s. f.
pl. as conveniências, os usos, os costumes…, Porto, 1979; id., Dicionário Francês-Português, acessível
in www.infopedia.pt, bienséance, s. f., decência, conveniência, conformidade às regras sociais. 106 Ver, Blondel, F., Cours d’architecture enseigné dans l’Académie Royale d’Architecture…, Partie
V, Livre V, Chap. 1, Paris, 1683, p. 727. 107
Martin, J., Architecture ou Art de bien bastir de Marc Vitruue Pollion…, Paris, 1547, Liv. I, 4, p. n.n. 108
Urrea, M. de, M. Vitruvvio Pollion De Architectvra, dividido en diez libros…, I, 2, Alcala de Hena-
res, 1582, f. 9 e f. 10v: El architectura consta, y esta compuesta de orden. La qual acerca de los griegos
se dize Taxis. Componese assi mismo de disposicion. A esta llaman los griegos Diathesin, y Euryth-
mia, Symmetria y hermosura, y distribucion (f. 9); Assi mismo es hallada la platica de las medidas en
los miembros de todas las otras obras decoro, que es hermosura, es una vista, e aspecto de la obra
enmendado y aprovado com cosas compuestas com auctoridad (f. 10v.) – Sublinhou-se a negrito. 109
Cetius Faventinus, Abrégé d’architecture privée (Artis architectonicae privatis vsibvs adbreviatvs
liber), I, 1, texte établi, trad. et commenté par M.-Th. Cam, Paris, 2001, p. 5: Ex his Graeci quinque uoca-
bulis studium architecturae esse docuerunt. Nam ordinationem τάξις, dispositionem διάθεσις, uenusta-
tem et decorem εύρυθµίαν, modulorum mensuras συµµετρία, distributionem οϊκονοµίαν appelauerunt. 110 Cetius Faventinus, De diversis fabricis Architectonicae, 1, in Aurelij Cassiodori Senatoris cos.,
30
O “velho” e polissémico conceito grego de cosmos, aqui grafado κοσµίαν, surge assim
como equivalendo, conjuntamente, a venustas e decore (que seriam as suas versões ou
traduções para latim), o que dá um testemunho, próximo no tempo, do significado com
que, quer Cícero quer Vitrúvio, usam os termos, ou seja, do seu significado, como
dizendo respeito a aspectos do fenómeno estético na arquitectura, embora diferencia-
dos: o decoro mais ligado ao significado, conteúdo, ou carácter111 da arquitectura (logo,
decorum e distributio), a venustas à pura forma, expressa em ordenação, disposição,
ritmo e proporções (ordinatio, dispositio, eurytmia, symmetria), completando, assim,
o leque das seis categorias consistenciais contempladas por Vitrúvio112.
Mas, veja-se agora como começa a definição extensiva de decoro, ou aquilo em que
consistiria (architectura autem constat113), nas palavras de Vitrúvio:
O decoro é o aspecto irrepreensível das obras, dispostas com autoridade através de coisas
provadas114, ou na versão em castelhano de A. Blánquez: El decoro es el aspecto correcto
de la obra, que resulta de la perfecta adecuación del edifício en el que no haya nada que
no esté fundado en alguna razón115, e, ainda a francesa de Ph. Fleury: La convenance est
l’aspect soigné d’un ouvrage réalisé avec qualité au moyen d’éléments éprouvés116.
A moderna tradução francesa de decore por convenance aproxima-se da expressão
ciceroniana de convenientiam, bem mais do que as anteriores traduções de Jean Martin
Qve Romani de Qvator Mathematicis disciplinis Compendivm…de Architectura compendiosissime
tractans…, Paris, 1540, f. 10. – Acessível in www.cesr.univ-tours.fr/traite. 111
A este respeito é esclarecedora a teorização operada pelos franceses do Iluminismo, acerca do con-
ceito de caractère, que seria um aspecto da distribution, pois, les différents Edifices par leur structure,
par la manière dont ils sont décorés doivent annoncer au spectateur leur destination, ver: Boffrand,
G., Livre d’architecture contenant les principes generaux de cet art, Paris, 1745, p. 11 e p. 16. 112 Vitrúvio, ob. cit., I, 2, 1-9 (2006), p. 37-40; id., Vitruve, ob. cit., Livre I, 2, 1-9 (1990), p. 14-19. 113
Vitruve, ob. cit., Livre I, 2, 1 (1990), p. 14: Architectura autem constat ex ordinatione, quae graece
τάξις dicitur, et ex dispositione – hanc autem Graeci διάθεσιν, uocitant – et eurythmia et symmetria et
decore et distributione, quae graece οϊκονοµία dicitur. 114 Vitrúvio, ob. cit., I, 2, 5 (2006), p. 38. 115 Vitrúvio, ob. cit., I, 2 (1991), p. 14. 116 Vitruve, ob. cit., I, 2, 5 (1990), p. 16: Décor autem est emendatus operis aspectus probatis rebus
conpositi cum autoritate.
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ou de Claude Perrault. Philippe Fleury, na sua edição do Livre I, que tem servido de
base a este estudo, faz acompanhar a expressão de uma nota chamando a atenção
para um conceituado estudo de F. E. Brown, 1963, que considera o decoro vitruviano
como l’aspect architectural du decorum cicéronien, continuando:
la «convenance» manifeste l’harmonie de l’architecture avec des choses telles qu’elles
sont à chaque niveau, que ce soit pour une peinture par rapport a son sujet, le style d’un
temple par rapport à son dieu, d’une maison par rapport à son propriétaire, les matériaux
de construction par rapport aux disponibilités de la nature, la construction par rapport à
son site, ses parties par rapport au tout117.
Esta interpretação afirma com veemência que o decore vitruviano, inspirado no deco-
rum de Cícero, é um conceito estético, ligado ao significado das edificações. Conside-
rando a tradicional e diferenciadora oposição forma-conteúdo, poder-se-á considerar
que a ordinatio, a dispositio, a eurythmia e a symmetria estariam ligadas aos procedi-
mentos de concepção (projecto) e aos aspectos mais estrictamente formais, enquanto
o decore, visando a significação da arquitectura, estaria ligado ao conteúdo, ou seja,
àquilo que o edifício, melhor ou pior proporcionado, construído com materiais mais
nobres ou menos, muito ornamentado ou não, teria que expressar, o mesmo é dizer,
que revelar inequivocamente: 1) a sua natureza ou estatuto; 2) o costume em que se
fundamentava; 3) aquilo e a quem se destinava, assim como a sua relação com o lugar,
o tempo e as circunstâncias. – E é isto, conjuntamente, que singulariza as obras arqui-
tectónicas e lhes confere a dignidade e venustidade de obras de arte, para que também
as categorias da utilitas e da firmitas contribuiriam. – Senão, veja-se:
E como há uma certa figura do corpo bem proporcionada nos seus membros com um certo
encanto de cor e se lhe chama beleza, assim na alma se chama beleza à invariabilidade e
constância das opiniões e juízos, com uma certa firmeza (firmitate) e estabilidade (stabili-
tate) que acompanha a virtude ou contém a mesma essência da virtude118.
117
Fleury, Ph., «Commentaire» in Vitruve, ob. cit., I, 2, 6 (1990), note 1, p. 116, sintetizando o expresso in
Brown, F. E., «Vitruvius and the Liberal Art of Architecture», in Bucknell Rewiew 11, 4, 1963, p. 99-107. 118 Cícero, Tusculan Disputations, IV, 13, 30, in Tatarkiewicz, ob. cit. (1970, ed. 1987), p. 216-217: Et
ut corporis est quaedam apta figura membrorum cum coloris quadam suavitate eaque dicitur pulchri-
tudo, sic in animo opiniorum iudiciorum que aequabilitas et constantia cum firmitate quadam et stabi-
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A firmeza (firmitas) e a estabilidade (stabilitas119) aparecem como constituintes da
beleza, e abrangendo quer os aspectos materiais quer os espirituais. – Similar raciocínio
se expressa em Vitrúvio quando, no contexto do Livro VI, a propósito dos edifícios
privados, expressa a necessidade de tratar a firmitas ou solidez (firmitate), de modo que
esses edifícios sejam construídos permanecendo sem vícios por muito tempo120. A
má construção, a falta de firmeza ou solidez, é assim vista como algo de vicioso, uma
espécie de doença, logo, algo que afectaria irremediavelmente a beleza do edifício, e
impediria a sua plena utilização, sendo que a utilitas, redutoramente traduzida, por
vezes, por funcionalidade (à la moderne), seria outra das indispensáveis condições da
venustas, pois que embora esta não se esgotasse na utilidade, nada de inútil se poderia
considerar, verdadeiramente, belo. Embora, muitas vezes, não se perseguindo mais do
que a utilidade, se encontrasse a dignidade e venustidade. – Para mais, veja-se:
A beleza do templo do Capitólio, diz Cícero, está determinada pela simetria da cobertura;
porém esta simetria não foi perseguida com intenções puramente decorativas; a forma da
cobertura foi concebida para receber e desviar a água: “non venustas sed necessitas ipsa
fabricata est”121, ou ainda quando afirma: Num templo todas as colunas são belas; não
obstante, e em primeiro lugar, são úteis ao edifício; mas de tal maneira, que parecem estar
ali não tanto pela utilidade como pela majestade: “non plus utilitatis quam dignitatis”122.
De resto, era tipicamente romana esta postura de considerar um fundamento utilitário
para a beleza. Não é por acaso que algumas das suas obras com maior empenho esté-
tico são essencialmente obras utilitárias, como pontes (Figs. 120, 121), aquedutos123
litate virtutem subsquens aut virtutis vim ipsam continens pulchritudo vocatur. 119
Ver, Ferreira, A. G., Dicionário de Latim-Português, stabilitas, f. 1. Firmeza, solidez, consistência,
imobilidade. 2. Constância, perenidade, firmeza, Porto, 1997. 120 Vitrúvio, ob. cit., VI, 7, 7 (ed. 2006), p. 238: nunc exponemus de firmitate, quemadmodum ea sine
uitiis permanentia ad uetustatem conlocentur. 121 De Bruyne, ob. cit. (1963), p. 242. 122 De Bruyne, ob. cit. (1963), p. 242. 123 Sabe-se que os romanos, dominando a técnica de elevação da água em condutas através de sifões,
poderiam conduzir a água sem necessidade de recorrer a aquedutos em elevação, bem mais dispendiosos
que os subterrâneos. As grandes estruturas porticadas, em pedra, dos aquedutos de Segóvia ou de Pont
du Gard devem-se, essencialmente, a intenções estéticas, talvez pensando deslumbrar ou intimidar
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(Figs. 122, 123) cisternas e até cloacas, como a máxima, de Roma (Figs. 124, 125),
ilustrada e comentada por Giovanni Battista Piranesi124, precisamente por isso.
Assim, também não é por acaso que a tríade vitruviana enlaça tão estreitamente firmi-
tas, utilitas e venustas, ou seja, a firmeza, a utilidade e a beleza, como os imprescin-
díveis objectivos ou irredutíveis finalidades da arquitectura das edificações e, embora
isso não esteja explicitado, apresenta-as e refere-as de uma maneira que revela impli-
citamente a noção da sua estreita unidade e indissociabilidade. Assim, não podendo
considerar-se belo o que não tinha utilidade ou carecia de firmeza. E a indissociabili-
dade desta tríade manteve-se até à mais recente contemporaneidade, quando ela terá
sido posta em causa, tal como se denuncia na crítica de Ludovico Quaroni125, agora,
trinta e cinco anos depois, mais actual ainda do que quando foi enunciada.
(Hoje, que se vive no culto do frágil (muito frequentado!), do evanescente e do vazio;
do inútil, supérfluo e incómodo, sem preocupação de maior com a funcionalidade e,
ainda menos, com a comodidade126; e em que a beleza não se percebe bem o que
seja, ninguém arriscando uma definição, de tal modo se encontra subjectivizada e
relativizada, quando não mesmo ridicularizada, tudo o que se pode dizer é que a tríade
com o espectáculo de uma beleza esmagadora, além de demonstração da capacidade técnica e potência
edificatória dos romanos, os povos da Hispania e da Galia, recentemente colonizados. 124 Piranesi, G. B., Della magnificenza ed architettura de Romani, XXIX, Roma, 1761, p. 41-42: Os
romanos tiveram suficiente arte (…) para prover à utilidade e ao decoro público… [como na] cloaca
máxima, a propósito da qual se deve observar que ali onde menos necessidade de magnificência pare-
cia existir por tratar-se de obra oculta à vista, foi precisamente onde em maior medida quizeram
mostrá-la. – A outra obra verdadeiramente admirável e que mais aumentou a magnificência romana
são os aquedutos (id., XXXI, p. 45). 125 Quaroni, L., Progettare un edificio. Otto lezioni di architettura, Milano, 1977. – Nesta obra, o
autor, a propósito do que designa de falta de uma concepção «unitária» da arquitectura, que caracteri-
zaria, nos tempos actuais, a prática e a teoria da arquitectura, invoca a universalidade, carácter unitário
e necessidade de reactualização da tríade vitruviana da utilitas, da firmitas e da venustas (p. 8). 126
A este respeito é esclarecedora uma visita ao recentemente inaugurado MUDE (Museu do Design e
da Moda), de Lisboa, onde uma boa parte dos objectos expostos primam pela incomodidade e desfun-
cionalidade, assim, configurando-se como objectos onde a intencionalidade estética, talvez sob a
forma de reacção ao an-estético da funcionalidade e comodidade, predomina por completo.
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vitruviana de firmitas, utilitas e venustas, e o mundo que a concebeu, e do qual seria
uma representação, estão encerrados, e talvez definitivamente...).
Resta, como conclusão, a esta busca das fontes, antecedentes e contemporâneos de
Vitrúvio, reafirmar o que se julga evidenciado pelo exposto: Vitrúvio é herdeiro e conti-
nuador de toda uma cultura pré-existente, a que se refere amiúde, remontando aos seus
protagonistas maiores: os poetas, Homero, Énio, Ácio, Lucrécio; os filósofos, Tales,
Pitágoras, Heraclito, Anaxágoras, Empédocles, Sócrates, Platão, Aristóteles, Zenão,
Demócrito, Epicuro; o historiador Heródoto; o médico Hipócrates; trágicos e comedió-
grafos, Esquilo, Eurípedes, Aristófanes; físicos e mecânicos, Ctesíbio, Arquimedes,
Eratóstenes, Arquitas de Tarento, Filo de Bizâncio; pintores, escultores e arquitectos,
Apeles, Calímaco, Policleto, Fídias, Praxíteles, Sileno, Filo, Quérsifron, Ictino, Hermo-
doro, Hermógenes; filólogos, enciclopedistas e retóricos, Terêncio Varrão e Cícero; e
muitos outros, matemáticos, astrónomos, geógrafos, músicos, etc., mais conhecidos ou
menos. – E mesmo fora do quadro grego-romano, acrescido da Etrúria, há várias refe-
rências ao Antigo Egipto (nomeado seis vezes), Mesopotamia, Babilónia, os rios Tigre
e Eufrates, e o Ganges, a Síria, Arábia, Índia, Ásia. Assim, as fontes e antecedentes de
Vitrúvio pode-se considerar como não estando restringidas às da cultura e civilização
grego-romana, mas abarcando as culturas e civilizações da mais remota Antiguidade.
E todas essas configurações culturais e civilizacionais, desde a Antiga Mesopotâmia
e Antigo Egipto, à Grécia e Roma, tiveram elaborada expressão na arquitectura, sobre
a qual teceram várias considerações, quer marginalmente, no contexto de obras inten-
cio-nadas para outros assuntos, quer assumidamente, como reflexões e formulações
teóricas sobre a arquitectura. No entanto, das últimas, nada sobrou para a Idade Moder-
na, quando de novo desperta a reflexão sobre a arquitectura, e assim tudo o que restou
foi o tratado de Vitrúvio, De architectura ou De architectura libri decem, um número
com bastante significado no mundo antigo, e também perante aqueles que pretendiam
fazer renascer os aspectos mais prestigiados desse mundo, designadamente, a sua
arquitectura. – Se Vitrúvio foi o instaurador da Teoria da Arquitectura, enquanto tal,
como disciplina com um corpus e um scopus específico, ou se foi um mero compilador
de fórmulas e preceitos do passado, será o tema do próximo capítulo deste estudo.
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FIGURAS
108 – Pintura cerâmica e mural grega: vaso, fins do Séc. VI a.C. (cerâmica vermelha) e mural
numa tumba em Paestum, Séc. V a.C.
109 – Pintura romana: mural de Herculaneum, Séc. I a.C., e de Pompeia, Séc. I d.C.
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110 – A tolos de Atenas em Delfos, in Martin, ob. cit. (1976), f. 404, p. 302.
111 – O Arsenal do Pireu, reconstituição em alçado-corte perspectivado e corte,
in Martin, ob. cit. (1976), f. 427 e 428, p. 308.
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112 – Mausoléu de Halicarnasso, segundo uma reconstrução em miniatura na Turquia.
113 – Mausoléu de Halicarnasso, in Rode, A (Hrsg.), Marci Vitruviis Pollionis de Architectura
libri decem, Berlin, 1800, fig. portada. – Acessível in www.digi.ub.uni-heidelberg.de/diglit/.
38
114 – Templo de Zeus Olímpico (Olimpieu), em Atenas, Séc. VI a.C.,
reconstruído pelos romanos, Séc. II a.C.
115, 116 – Templo de Artimisia (Diana) em Éfeso, Séc. VI a.C., reconstruído no Séc. IV a.C.,
planta e reconstrução em miniatura na Turquia
39
117 – Templo de Apolo em Mileto, Séc. V a.C.
118, 119 – Fingimentos de Palladio: Palazzo del Capitanio, colunas de tijolo, estucadas,
e pinturas de fingimento no interior da Villa Rotonda
41
122 – Ponte-Aqueduto de Pont du Gard, Sul de França, Sécs. I a.C.-I d.C.
123 – Ponte-Aqueduto em Tarragona, Espanha, Séc. I a.C. (conhecida por Ponte do Diabo).