FAMÍLIAS E BRASIS: uma cartografia sociosubjetiva

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Maria Luiza Marques Cardoso

FAMÍLIAS E BRASIS:

uma cartografia sociosubjetiva

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Psicologia. Orientadora: Dra. Roberta Carvalho Romagnoli Área de concentração: Processos de Subjetivação

Belo Horizonte 2020

FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Cardoso, Maria Luiza Marques

C268f Famílias e brasis: uma cartografia sociosubjetiva / Maria Luiza Marques

Cardoso. Belo Horizonte, 2020.

265 f. : il.

Orientadora: Roberta Carvalho Romagnoli

Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

1. Pesquisa sociológica - Brasil. 2. Famílias - Pesquisa - Brasil. 3. Famílias -

Desenvolvimento - Brasil. 4. Família - Levantamentos - Brasil. 5. Subjetividade.

6. Cartografia - Aspectos sociais. 7. Indígenas. 8. Quilombolas. 9. Violência. I.

Romagnoli, Roberta Carvalho. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. III. Título.

CDU: 392.3(81)

Ficha catalográfica elaborada por Pollyanna Iara Miranda Lima - CRB 6/3320

Maria Luiza Marques Cardoso

FAMÍLIAS E BRASIS: uma cartografia sociosubjetiva

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Psicologia. Área de concentração: Processos de Subjetivação

______________________________________________________________________ Profa. Dra. Roberta Carvalho Romagnoli – PUC Minas (Orientadora)

______________________________________________________________________

Prof. Dr. Jorge Ramos do Ó – Universidade de Lisboa

______________________________________________________________________ Profa. Dra. Estela Scheinvar – Universidade Estadual do Rio de Janeiro

______________________________________________________________________

Prof. Dr. Danichi Hausen Mizoguchi – Universidade Federal Fluminense

______________________________________________________________________ Profa. Dra. Valéria Freire de Andrade – PUC Minas

______________________________________________________________________ Profa. Dra. Tereza Cristina Peixoto – Universidade Federal de Minas Gerais (suplente)

______________________________________________________________________

Prof. Dr. Bruno Vasconcelos de Almeida – PUC Minas (suplente)

Belo Horizonte, 19 de novembro de 2020

A todas as pessoas e famílias que, ao participarem deste trabalho, ensinaram-me algo sobre a Vida;

A Roberta, por apostarmos e con-fiarmos na produção de conhecimento nômades;

A Gabriel e Clara Luz, meus pequenos preciosos, que dividiram a nossa vida entre durante e depois do doutorado e que seguem

comigo, sempre;

Ao meu pai, o primeiro feminista que conheci;

À minha família, aquela que compreendo em sentido amplo e amoroso, e a cada um e a cada uma que faz parte dela e que me

apoiou nesta empreitada;

A Heloísa, Federico, Sophia, Margarida, Jorge, Estela e Valéria, por me indicarem a potência de uma escrita.

Nossa vida intelectual é decididamente mal construída. A epistemologia, as ciências sociais, as ciências do texto, todas têm uma reputação, contanto que permaneçam distintas. Caso os seres que você esteja seguindo atravessem as três, ninguém mais compreende o que você diz. Ofereça às disciplinas estabelecidas uma bela rede sociotécnica, algumas belas traduções, e as primeiras extrairão os conceitos, arrancando deles todas as raízes que poderiam ligá-los ao social ou à retórica; as segundas irão amputar a dimensão social e política, purificando-a de qualquer objeto; as terceiras, enfim, conservarão o discurso, mas irão purgá-lo de qualquer aderência indevida à realidade - horresco referens - e aos jogos de poder. O buraco de ozônio sobre nossas cabeças, a lei moral em nosso coração e o texto autônomo podem, em separado, interessar a nossos críticos. Mas se uma naveta fina houver interligado o céu, a indústria, os textos, as almas e a lei moral, isto permanecerá inaudito, indevido, inusitado.

(Latour, 1994, p. 11)

RESUMO

Este trabalho aposta em um mapeamento cartográfico de diversas linhas que têm,

historicamente, participado da produção dos arranjos familiares brasileiros e dos processos de

subjetivação que os acompanham. A proposta de trabalhar com “linhas” é inspirada nas

contribuições teóricas e metodológicas de Gilles Deleuze e Felix Guattari, bem como de seus

intercessores. Propõe-se, por isso, uma análise de famílias que não parte de uma percepção da

família como “interior”, mas procura inseri-la no diagrama das forças sociais e das relações de

poder que tem se configurado no Brasil e em suas relações com a realidade mundial. Considera-

se que, nesse contexto, certas condições de possibilidade para a emergência de modos de existir

individuais, familiares e coletivos são traçadas. O exercício cartográfico inclui uma

investigação de campo com diferentes famílias pertencentes ao que se denominou Coletivos de

Pertença: povos indígenas originários; comunidades quilombolas; famílias de classe média

urbana; famílias moradoras de ocupações em periferias urbanas; famílias ricas econômica e

politicamente. Objetiva-se, com o trabalho cartográfico, articular a realidade das famílias

investigadas às dinâmicas macro e micropolíticas que as atravessam e que atravessam, ainda, a

própria autora deste trabalho.

Palavras-chaves: família; cartografia; processos de subjetivação; agenciamentos sociais.

ABSTRACT

This work focuses on a cartographic mapping of several lines that have historically participated

in the production of Brazilian family arrangements and the processes of subjectivation that

accompany them. The proposal to work with "lines" is inspired by the theoretical and

methodological contributions of Gilles Deleuze and Felix Guattari, as well as their intercessors.

It is proposed, therefore, an analysis of families that does not start from a perception of the

family as "interior", but seeks to insert them in the diagram of social forces and power relations

that has been configured in Brazil and in its relations with the world reality. It is considered

that, in this context, certain conditions of possibility for the emergence of individual, family

and collective ways of existing are traced. The cartographic exercise includes a field

investigation with different families belonging to what was called Collectives of Belonging:

indigenous peoples; quilombola communities; urban middle-class families; families living in

occupations in urban peripheries; economically and politically wealthy families. The objective

of the cartographic work is to articulate the reality of the families investigated to the macro and

micropolitical dynamics that cross them and that also cross the author of this work.

Keywords: family; cartography; subjectivation processes; social agencies.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

Abcam Associação Brasileira dos Caminhoneiros

BC Banco Central do Brasil

Fiei Formação Intercultural para Educadores Indígenas

Funai Fundação Nacional do Índio

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

MPF Ministério Público Federal

OIT Organização Internacional do Trabalho

OMS Organização Mundial da Saúde

ONU Organização das Nações Unidas

OPAS Organização Pan-americana de Saúde

PAC Programa de Aceleração do Crescimento

PBH Prefeitura de Belo Horizonte

UFMG Universidade Federal de Minas Gerais

UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

SUMÁRIO

1 EM UM MOMENTO DE SUSPENSÃO ........................................................................... 10

À beira do colapso............................................................................................................... 10

Diagramas contemporâneos............................................................................................... 19

Processos de subjetivação e famílias ................................................................................. 21

Uma concepção rizomática de família .............................................................................. 24

Segmentações, fugas, agenciamentos ................................................................................ 26

2 UMA PESQUISA CARTOGRÁFICA .............................................................................. 38

Dispositivo de pesquisa ....................................................................................................... 41

Os encontros com as famílias ............................................................................................. 45

Encontros e estranhamentos .............................................................................................. 53

A escrita na / da pesquisa ................................................................................................... 56

3 ESTRANHO ESPELHO..................................................................................................... 63

Em busca de uma “família normal”? ............................................................................... 63

A família moderna .............................................................................................................. 66

Estado moderno, famílias modernas ................................................................................. 88

Ainda somos famílias modernas? (homenagem a Bruno Latour) .................................. 93

4 DESCOBRIR O BRASIL ................................................................................................. 104

Uma viagem pela(s) América(s)....................................................................................... 104

desCobrir terras e corpos................................................................................................. 111

A formação histórica de [modelos de] famílias no Brasil .............................................. 121

Precisamos de pobres? ..................................................................................................... 134

Os outros ............................................................................................................................ 143

Coexistências ..................................................................................................................... 154

5 FAMÍLIAS NO SÉCULO XXI ........................................................................................ 156

Velhas e novas configurações familiares ........................................................................ 156

Famílias sob o Controle .................................................................................................... 167

Linhas da desigualdade .................................................................................................... 181

6 SUBVIVENTES E UMA MÁQUINA DE GUERRA..................................................... 193

Em uma borda deste mundo ............................................................................................ 193

Arranjos para existir ........................................................................................................ 196

Agenciar uma máquina de guerra .................................................................................. 205

7 UM DIA, DEPOIS DE AMANHÃ (CONSIDERAÇÕES FINAIS) .............................. 222

Diante de um inimigo invisível ........................................................................................ 222

“Um outro fim de mundo é possível?” ............................................................................ 240

POSFÁCIO: HAVERÁ FLORES EM BADLANDS? ....................................................... 249

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 250

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Capítulo 1

EM UM MOMENTO DE SUSPENSÃO

À beira do colapso

24 de maio de 2018, 13:08h. Após uma peregrinação incansável encontro gasolina em

um bairro a seis quilômetros da minha casa. Os postos de combustível próximos não têm mais

o que vender desde as primeiras horas da manhã e estão fechados. No posto, o preço da gasolina

cerca de 30% mais alto e a enorme fila de automóveis que se estende pelas ruas nos arredores

do estabelecimento esnobam as poucas alternativas do momento: abastecer ali ou correr o risco

de deixar o carro parado a algumas quadras com o tanque completamente vazio. Entro na fila.

Inserida no fluxo de espera, a fome pelo almoço ainda não comido somada à ansiedade por

precisar chegar a um evento na universidade torcem minhas vísceras. Apenas a movimentação

dos vendedores ambulantes, saídos sabe-se lá de onde e chegados ali sabe-se lá como, a ofertar

aos motoristas na fila uma infinidade de quinquilharias, serviços e alimentos distrai-me um

pouco. Face de um Brasil que se move, em grande parte, à margem das organizações e tutelas

do Estado, os ambulantes parecem encontrar outros modos de funcionar e articular-se diante da

situação, enquanto eu experimento a paralisação desta forma de existir estudada, empregada e

motorizada que é a minha e que usualmente reina a entupir com seus carros as ruas e avenidas

das metrópoles, mas que agora assiste estupefata à suspensão dos fluxos que percorrem os

milhões de quilômetros de rodovias, estradas, avenidas e ruas que se entrecruzam e cobrem de

asfalto as veias logísticas do Brasil1.

A paralisação começara no dia 21 de maio por decisão das associações de caminhoneiros

autônomos, insatisfeitos com a oscilação diária do preço do diesel ao gosto das determinações

do mercado e com a incidência de taxas e impostos que reduziam o valor líquido recebido pelos

fretes contratados. Agora, em seu quarto dia, a greve contava com a adesão de caminhoneiros

de empresas transportadoras, o que somava mais de um milhão de caminhões parados (Goy,

2018). Bloqueios em rodovias e estradas espalhavam-se por vinte e quatro estados e pelo

1 Além das ruas e avenidas que compõem os municípios e povoados, o Brasil conta com uma rede de 1.720.700 quilômetros de estradas e rodovias, sendo este o principal meio de transporte de cargas e passageiros do país (Confederação Nacional de Transporte, 2018).

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Distrito Federal, inviabilizando a circulação por essas vias. Nesse contexto, não apenas a

gasolina para carros particulares ia se escasseando, também o combustível para o transporte

público de passageiros, para ambulâncias, para a aviação, para a distribuição de medicamentos,

alimentos, mantimentos e produtos em geral.

Passo quase duas horas na fila a ler as reportagens sobre a greve na internet do celular e

a escutar as notícias no rádio do carro: declarações de membros do governo, de entidades de

representação empresarial e das associações de caminhoneiros; análises de especialistas de

diferentes áreas; entrevistas com cidadãos a favor e contra a paralisação; apresentação de

pesquisas e estatísticas; informações “em tempo real” sobre o desenrolar da situação e suas

consequências. O que me chega enquanto a fila de carros se move lentamente expõe a

complexidade da rede de instituições e dos jogos de forças que compõem não apenas a situação

deflagrada com a greve, mas a própria organização política-econômica-jurídica-logística do

país. A frase contumaz do presidente da Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam),

José da Fonseca Lopes, é repetida à exaustão pelas emissoras no rádio: “se o governo não

atender ao que estamos pleiteando vai parar o país”. Lopes parece saber que paralisar os fluxos

é atacar politicamente todo o sistema tal como ele se configura em sua dinâmica contemporânea

e em suas condições de controle.

No final do dia, após cumprir os compromissos na universidade, percorro a cidade a

acompanhar o marcador do nível de combustível no tanque do carro e a contar os quilômetros

rodados até chegar, exausta, a uma festa de aniversário onde iria buscar meus filhos. O avô da

anfitriã, juiz aposentado especialista em direito econômico, desabafa comigo: “Esses

caminhoneiros vão quebrar o país... Não pode deixar! O governo tem que zelar pela ordem, tem

que enviar as Forças Armadas para cercar os que estão bloqueando as rodovias. Ninguém entra,

nada entra, ninguém sai. Eles não aguentam muito tempo.” Também entre os caminhoneiros

ressoa o clamor por intervenção militar disseminado por alguns de seus membros (Senra, 2018).

Para estes, no entanto, a intervenção deveria ser contra o governo e a corrupção incrustrada no

Estado. As posições divergentes sobre quem é o inimigo da nação – trabalhadores insurgentes

ou os gestores do Estado – parecem-me menos reveladoras das questões que sustentam o

colapso atual do que o consenso sobre a solução para a situação: o poder bélico das Forças

Armadas. De minha parte, inquieto-me com outra questão: o que precisa mesmo ser salvo?

A noite chega com a notícia de um acordo entre o governo e os caminhoneiros. Na

balança a aprovação pela Câmara dos Deputados da isenção dos impostos PIS e Confins sobre

o diesel e uma lista de concessões do executivo federal: redução de 10% no preço do diesel nas

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refinarias por 30 dias e criação de um programa de subsídio após esse período; desoneração da

alíquota da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) sobre o diesel até o fim

do ano; promessa de estabilidade de 30 dias entre os reajustes do preço do diesel nas refinarias;

compromisso de atualização trimestral pela Agência Nacional de Transportes Terrestres

(ANTT) da tabela de referência do frete dos serviços de transporte de cargas realizados pelos

caminhoneiros autônomos; compromisso de diálogo do governo federal com os estados para

implementar o fim da cobrança de pedágio sobre o eixo suspenso em caminhões vazios; anúncio

do presidente de que vai negociar com os secretários estaduais de fazenda uma redução nas

alíquotas de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).

Mas o dia seguinte amanhece com a manutenção da greve. Impassível, o presidente da

Abcam esclarece que, mesmo com a assinatura do acordo por algumas das lideranças

envolvidas, a paralisação só terminaria quando os termos pactuados fossem publicados pelo

presidente Michel Temer no Diário Oficial. Este, por sua vez, convoca as Forças Armadas,

alegando grave perturbação da ordem causada pelos bloqueios e pela intransigência dos

caminhoneiros. Todavia, nem o acionamento do exército, nem a queda do principal índice da

bolsa de valores brasileira, arrastado pelas perdas sucessivas e substanciais no valor das ações

da Petrobrás, nem as acusações de locaute2 alardeadas pela mídia e geradoras da abertura de

dezenas de inquéritos pela Polícia Federal, nem os decretos de estado de emergência e de estado

de calamidade pública feitos por várias cidades em todo o país comovem os caminhoneiros,

cuja paralisação iria durar mais seis dias.

Apesar da escassez ou falta de alimentos e consequente aumento nos preços dos

produtos alimentícios remanescentes, do risco de desabastecimento de água potável em

algumas localidades por falta de insumos para o tratamento, da falta de combustível nos postos

das grandes metrópoles, do cancelamento de voos nos aeroportos, da redução do transporte

público nos centros urbanos, da suspensão das aulas em escolas, instituições do ensino técnico

e superior e de provas públicas, da suspensão de procedimentos em hospitais e clínicas por falta

de medicamentos, da paralisação parcial dos serviços de entrega e correios, a população, em

2 O locaute, do inglês lock out, é uma prática proibida por lei no Brasil e implica na “paralisação das atividades, por iniciativa do empregador, com o objetivo de frustrar negociação ou dificultar o atendimento de reivindicações dos respectivos empregados”, conforme o artigo 17 da Lei 7.783/1989, que dispõe sobre o exercício do direito de greve, previsto na Constituição Federal de 1988. No caso da paralisação dos caminhoneiros, encabeçada pelas associações de autônomos, que não possuem vínculo empregatício com transportadoras, a suspeita de locaute foi aventada, considerando a existência de interesse de empresas de forçar a redução do preço do diesel para seu benefício direto, o que, todavia, não chegou a ser comprovado.

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sua imensa maioria, apoia a greve3 e seguirá apoiando até o fim. Além disso, outras categorias

de trabalhadores vão, ao longo dos dias, aderindo à paralisação, ocupando ruas e avenidas nas

cidades e inviabilizando os trânsitos locais: motoristas de vans escolares, motoristas de Uber,

motoristas de trator e de caçambas da construção civil, carreteiros, motoboys. Produtores

agrícolas de algumas regiões e parcela dos próprios petroleiros também entram em greve.

Minha vida cotidiana é atravessada pelas reverberações da situação. No dia 25 as

atividades que deveria cumprir na universidade são suspensas, assim como as aulas na escola

dos meus filhos. Preocupada com a escassez de alimentos, resolvo arriscar-me no

supermercado. No percurso pelas ruas do bairro Buritis onde moro, conhecido por sua

movimentação cotidiana de veículos que lhe dão a fama de um dos piores trânsitos da capital

mineira, uma calmaria me faz duvidar se a multidão de quase 30 mil moradores4 ainda

permanece ali. Ao chegar no supermercado, entretanto, a paisagem quase desértica das ruas dá

lugar ao seu oposto: uma multidão de pessoas afoitas enche seus carrinhos e os guardam nas

filas que crescem nos caixas. A cena me compele a uma urgência de levar dali o que conseguir

diante da possibilidade de dias tenebrosos por vir, quando o desabastecimento poderia levar à

efetiva falta do mínimo para suprir as necessidades básicas de uma família ou, ao menos, à falta

do que estamos acostumados como mínimo, como necessidades, como básico e como família

dentro da cultura capitalista contemporânea.

Resisto, com uma longa respiração, ao impulso de correr para as gôndolas do

supermercado e arremessar no carrinho os produtos que parecerem importantes para garantir

minha estabilidade existencial neste modo de vida. Paro e observo a correria à minha frente,

imagem que me dá a sensação de estar em um filme abestalhado sobre o fim do mundo. É certo

que, se os caminhoneiros resolvessem parar todo o transporte que diariamente percorre a imensa

malha rodoviária brasileira por sessenta ou noventa dias, sem a reposição dessa mão de obra

pelas autoridades competentes, as compras feitas naquele supermercado só poderiam sustentar

a imensa maioria de seus proprietários e suas famílias por um tempo menor do que o necessário

para uma nova estabilização do sistema com outras estratégias logísticas de distribuição dos

fluxos de combustíveis, alimentos, medicamentos e tudo o mais que muitos milhões de

brasileiros consomem cotidianamente. Rio-me ao constatar que as poucas hortaliças e o jovem

3 Pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha, no nono dia de greve dos caminhoneiros e divulgada no dia 30 de maio, aferiu que 87% da população brasileira apoiava a paralisação e 92% considerava as reivindicações dos caminhoneiros justas (Gielow, 2018). 4 O Buritis, bairro de classe média alta do município de Belo Horizonte, tem população estimada, a partir do Censo 2010, de 29 mil habitantes (Portal População, 2018).

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pé de manga que ainda não deu frutos plantados na minha casa não podem ser uma solução para

o problema e que, na verdade, não estou preparada para um colapso como esse.

Nos dias seguintes estou temporariamente dispensada de viver o paradoxo de uma rotina

que, por um lado, exige alta velocidade na execução de tarefas e na busca de solução para as

múltiplas demandas que pipocam no cotidiano e, por outro lado, obriga-me a permanecer com

o corpo docilmente estagnado por horas nos engarrafamentos que já há alguns anos atingem

diariamente cerca de 100 quilômetros na Região Metropolitana de Belo Horizonte (Macedo,

2015). Escolho deixar o tempo escorrer calmamente enquanto permaneço em casa com o corpo

e os afetos disponíveis para minhas crianças. Mas a chegada frenética de mensagens e notícias

pelo computador e pelo smartphone me mantém conectada com as altas velocidades e os

espaços hiperpovoados desta época. A certa altura, pergunto-me como seria paralisar também

os fluxos que chegam pelo ciberespaço: excluir a infinidade de aplicativos digitais que me

informam sobre o clima, o trânsito, os trajetos, a disponibilidade de transporte público, o saldo

bancário, o fechamento da fatura do cartão de crédito; remover a inscrição nas páginas de e-

commerce, nos aplicativos de contratação de transporte privado ou de vagas de estacionamento,

nos endereços de e-mail e nas redes sociais; desinstalar o sistema virtual de gestão acadêmica

da universidade; cancelar o pacote de assinatura de TV, telefone fixo e internet; doar meu

smartphone, meu Ipad e meu computador... Um alívio libertário insinua-se por um segundo ou

dois dentro de mim antes da ponderação de que dificilmente conseguiria manter o emprego

como professora com as práticas pedagógicas e a gestão das avaliações e do aprendizado dos

alunos cada vez mais virtualizadas. Pondero ainda que sem o computador, o smartphone e o

tablet, com suas memórias digitais somadas à memória da “nuvem” no Google Drive, eu só me

lembraria de alguns poucos números de telefone e do trajeto até os locais que já conheço bem,

além de perder os milhares de arquivos de documentos, fotografias e vídeos que são o registro

mais extenso e detalhado que possuo de minha própria história. Como viver sem essa bagagem

de dados e sem os códigos de acesso, de gestão, de consumo e de identidade que me colocam

como cidadã de um mundo que é também virtual? Com uma ponta de assombro, essa questão

me remete às previsões que Eric Schmidt e Jaren Cohen, figuras importantes da Google, fizeram

sobre o mundo digital e a conectividade cibernética planetária: no futuro (que parece já ter

começado), aqueles que não quiserem ter perfis virtuais, sistema de dados online ou

smartphones serão considerados pelos governos como “pessoas ocultas”, suspeitas de que seu

isolamento do ciberespaço está ligado a algo que têm a esconder e maior propensão a violar

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leis, sujeitando-se, por isso, a restrições de deslocamento, a vistorias rigorosas em aeroportos,

entre outras normas antiterrorismo (Schmidt & Cohen , 2013).

Consternada diante da parte virtual deste mundo, aceito os fluxos de mensagens,

notificações e dados que me chegam e que envio em minhas janelas digitais. Na parte concreta,

a paralisação dos caminhoneiros exige, por sua continuidade, que meu carro seja deixado na

garagem e que a circulação pela cidade seja feita de outras formas, alternativas também ao

transporte público, cuja frota a rodar havia sido reduzida. Entro então em rodízios de carona

com amigos em viagens sempre divertidas e resgato a bicicleta como opção de transporte,

aproveitando os dias ensolarados para viver uma outra relação com o espaço-tempo da cidade.

Uma relação mais próxima do que está a acontecer aqui e ali nas casas, praças e ruas e mais

interativa, uma vez que ela permite a aproximação e o diálogo com os outros que também estão

no espaço. Meu corpo, acostumado a submeter-se à inércia de seguir as velocidades da caixa

de ferro, vidro, borracha, plástico e outros derivados de petróleo que é um automóvel,

experimenta conexões em espaço aberto, imprevisível, cheio de aromas e sons diversos,

distantes do perfume regular do ar condicionado e do barulho constante do motor.

Com efeito, o colapso instaurado pela greve propicia novos arranjos, diferentes dos

modos usuais de circular, cuidar, relacionar-se ou mesmo respirar para muitos milhões de

brasileiros. Além de esquemas de carona promovidos em todo Brasil, chegam-me notícias de

refeições coletivas, de grupos solidários e espontâneos para a doação de produtos e

medicamentos e do compartilhamento entre vizinhos dos frutos de suas árvores, de verduras e

legumes de suas hortas, de ovos de suas galinhas. Vejo ainda relatos nas redes sociais da alegria

que muitos estão experimentando ao caminhar, correr, andar de bicicleta, patins e skate pelas

ruas sem medo de atropelamento ou de agressão por parte de motoristas estressados e certos de

sua prioridade nas vias urbanas. Em São Paulo, maior metrópole das Américas5, o Sistema de

Informações de Qualidade do Ar da Companhia Ambiental (Cetesb) anuncia a redução pela

metade da poluição atmosférica com o prolongamento da greve, que em seu oitavo dia permitia

que essa capital tivesse a qualidade do ar considerada boa em todas as estações de medição

(Agência Brasil, 2018).

No dia 30 de maio a greve termina, dois dias após a publicação no Diário Oficial das

medidas provisórias prometidas pelo presidente Temer aos caminhoneiros. O desbloqueio das

5 Segundo projeção do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para o ano de 2018 o município de São Paulo tinha população estimada de 12.176.866 habitantes (IBGE, 2018a).

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estradas e rodovias, bem como o reabastecimento paulatino dos postos de combustíveis,

supermercados e farmácias faz a rotina do Brasil começar a volta à normalidade. É o fim do

caos gerado pela greve e a retomada do caos habitual gerado por estratégias e mecanismos de

produção, distribuição e consumo que, por um lado, são extremamente dependentes de asfalto,

borracha, petróleo e seus derivados para estar em pleno funcionamento e que, por outro, são

marcados pela distância entre o que se produz e a vida dos consumidores que pouco sabem

sobre como e onde são cultivados os alimentos e feita a grande parte dos produtos que

consomem. Essa retomada da normalidade traz um peso adicional para a população: a conta do

acordo firmado com os caminhoneiros envolve o aumento da carga tributária para vários setores

da economia, o que aumenta o custo de vista, mas preserva os ganhos dos acionistas da

Petrobrás mesmo com a redução do preço do diesel (Portal Contábeis, 2018).

Não comemoro o retorno à minha “rotina normal”. Do ponto de vista do funcionamento

instituído historicamente no Estado brasileiro, é com um misto de impotência e indignação que

me coloco algumas questões: Depois do ocorrido, o governo não vai rever a quase exclusividade

do modelo rodoviário para o transporte no país? Uma vez demonstrado o colapso que uma

paralisação dos fluxos pelas estradas e rodovias pode causar, não seria prudente estudar outras

possibilidades de transporte, quiçá mais baratas e viáveis, como o ferroviário e o fluvial? Quem

sabe revalorizar a produção local, facilitando a logística de distribuição e estreitando os laços e

a confiança entre quem produz e quem consome, pode ser uma prioridade econômica? Por que,

desde a mais tenra idade, as crianças, especialmente os meninos, são instigados a desejar

carrinhos? Quando mesmo adquirir um carro (e outro e outro e outro, cada vez mais caros e

mais bem equipados) se tornou símbolo de realização pessoal, ascensão social e virilidade

masculina? Por que a conta do acordo com os caminhoneiros deve incidir sobre os produtos

consumidos pelo povo, pesando mais sobre os que são mais pobres, ao invés de incidir sobre,

por exemplo, os lucros dos empresários? Não estou deslocada em minhas inquietações? Eu não

tenho coisas mais relevantes para enfocar para escrever uma tese sobre famílias?

Do ponto de vista pessoal, a fissura causada pela greve permitiu-me experimentar um

cotidiano mais leve e demorado. Não considerei esses dias como uma antecipação de férias,

momento de descanso tutelado pela legislação (ainda) em vigor no Brasil. Foi, ao contrário, o

colapso difuso de instituições, normas e mecanismos de controle que fizeram emergir arranjos

não tutelados, que exigiram improvisos e que permitiram encontros com outros possíveis, outro

tempo, outra suavidade. Agora, com a volta à rotina, não acho consolo para uma ponta de

desespero que transborda diante da iminência da exaustão que logo acometerá meu corpo, meus

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pensamentos e minha disponibilidade. Lembro-me das palavras de Friedrich Nietzsche

(1882/1998) sobre a perda da dignidade do pensamento, escritas na segunda metade do século

XIX e tão atuais: “parece que trazemos na cabeça uma máquina que trabalha sem cessar e que,

mesmo nas condições mais desfavoráveis, continua a trabalhar” (p.19). De fato, sinto-me

inserida em um canhão que me lança, em alta velocidade, nesta maneira de funcionar para a

qual, há tempos, não encontro mais sentido. Enquanto atualizo na agenda os compromissos

cotidianos e encaixo a multidão de imprevistos que devo resolver, mais questões se me

apresentam: Por que essa sensação de non sense me acomete, eu que sou um exemplar

suficientemente bem-sucedido e privilegiado das aspirações atuais dos humanos deste mundo?

Por que não consigo me conciliar com essa maneira de existir hegemônica, apenas aceitando

de bom grado as condições de minha época e colocando nas mãos de Deus o destino que nos

foi reservado? Quando mesmo o colapso começou?!

Se voltarmos um pouco no tempo, para o ano 2001, escutamos a música lançada pela

dupla de cantores sertanejos Gean e Giovanni: “Com os braços de ferro eu conduzo a nação,

por entre o asfalto e os buracos do chão, porque o Brasil para sem caminhão”. Quase vinte

anos de 2018 a dupla cantava a dependência brasileira do transporte rodoviário e insinuava

ainda as condições precárias (com o perigo adjacente) das estradas do país. Essa realidade foi

se configurando décadas antes, principalmente a partir de 1950, quando a construção de

rodovias e estradas tornou-se prioritária nos investimentos e políticas do governo do presidente

Juscelino Kubitscheck e nos anos da Ditadura Militar (1964-1985), com o paulatino abandono

da grande malha ferroviária que o Brasil já possuía e o descaso com o enorme potencial

hidroviário de então6. A aposta no modelo rodoviário para o desenvolvimento industrial do país

com uma produção automobilística nacional culminou com o sucateamento das ferrovias e sua

privatização nos anos do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Como mostra

Fernanda Regaldo (2013), as linhas de ferro brasileiras servem hoje basicamente a grandes

empresas que extraem minérios, produzem grãos ou biocombustíveis. Os trens brasileiros, que

chegaram a transportar em viagens intermunicipais e interestaduais mais de 100 milhões de

passageiros por ano, transportam atualmente cerca de 1,5 milhão/ano. Os 11 mil quilômetros

de linhas férreas que estão sendo utilizados (dos quais apenas 3 mil de forma plena) contrastam

com os mais de 1,7 milhão de quilômetros de rodovias hoje em operação no Brasil. Rodovias

que custam caro, não apenas pelo alto custo de construção e manutenção de uma malha tão

6 Conferir a síntese histórica do transporte no Brasil: Planos Nacionais de Viação, as leis, decretos, portarias e outros promulgados desde o período colonial até 2014 (Brasil, 2014).

18

extensa, mas também em virtude dos elevados impactos socioambientais, pouco contabilizados

nos cálculos oficiais. “Para transportar cada tonelada de carga por mil quilômetros, consomem-

se, por ferrovia, 10 litros de combustíveis, enquanto por rodovia são 96 litros. E estima-se que,

a cada ano, morram no Brasil cerca de 12.000 pessoas em acidentes rodoviários envolvendo

caminhões” (Regaldo, 2013, p. 47).

Além do transporte de carga e passageiros entre municípios e estados brasileiros,

também as cidades se tornaram extremamente dependentes das vias de asfalto. A partir de um

interessante estudo da Associação Nacional de Transporte Público (ANTP), Roberto Andrés

(2018) mostra que a cidade de São Paulo em 1950 possuía a mesma população de Belo

Horizonte em 2010 – cerca de 2,4 milhões de habitantes – e mesma área territorial. Contudo,

em 1950 São Paulo tinha 70 mil automóveis particulares, enquanto Belo Horizonte possuía

cerca de 1,4 milhão em 2010. Andrés (2018) mostra que, com o mesmo número de pessoas e a

mesma extensão territorial, a cidade de São Paulo de 60 anos atrás não ficaria paralisada com a

greve dos caminhoneiros como Belo Horizonte ficou em 2018, pois, ao invés da enxurrada de

carros nas ruas, tinha mais de 600 quilômetros de trilhos, sobre os quais circulavam bondes com

tarifas populares, baixa poluição e pouquíssimos acidentes.

A mudança nas prioridades políticas e nos cálculos oficiais para uma retomada de

investimento na malha ferroviária indicaria um movimento de revisão da dependência do

transporte rodoviário para as veias logísticas do país. Isso possivelmente significaria um avanço

socioambiental, com redução de custos, de perdas (das vidas às mercadorias) e de danos ao

meio ambiente. Entretanto, preciso admitir que, mesmo com tal avanço, o colapso ainda

assombraria nossas vidas, uma vez que o problema não se circunscreve apenas às questões de

estrutura viária e gerenciamento logístico dos fluxos de pessoas e mercadorias por um país. Se

a greve dos caminhoneiros no Brasil tencionou especialmente este ponto, tal tensão reverberou

em uma rede muito mais complexa que compõe o nosso modo de vida atual e cujo colapso

iminente parece provocar as multifacetadas manifestações, greves, insurreições e movimentos

que têm pipocado aqui e ali pelo mundo ao longo deste século – dos anarquistas do comum aos

populistas da extrema-direita e da esquerda burocrática; dos socialistas democratas aos

ultraliberais; dos pós-capitalistas aos capitalistas verdes e destes aos negacionistas das

mudanças climáticas; das lutas feministas e LGBT+ aos grupos de resgate da tradicional família

cristã; dos zapatistas no México, das guerreiras curdas do YPG na Síria e dos Coletes Amarelos

franceses às milícias fisiológicas do Estado brasileiro; dos ecologistas aos terraplanistas.

19

Não apenas uma gama tão diversa de movimentos sociais parece indicar as inquietações,

desafios e as faltas de respostas diante do nosso modo de vida, também do ponto de vista

subjetivo os sinais de falência existencial insinuam-se nas estatísticas oficiais. No relatório

Depression and other common mental disorders, a Organização Mundial da Saúde (OMS)

detalhou o crescimento nos casos de depressão, com mais de 320 milhões de pessoas

acometidas pela doença em 2017, em suas variadas formas de manifestação (OMS, 2017). Isso

fez com ela se tornasse a principal causa de incapacidade em todo o mundo (Organização Pan-

americana de Saúde [OPAS], 2018). Comumente referida como “a doença do século XXI”, a

depressão resulta de um desinvestimento psíquico na vida que se mantém ao longo do tempo e

pode acontecer em diferentes graus (de leve a grave). Entre seus sintomas estão sentimento de

tristeza recorrente; rebaixamento do humor; redução da energia vital e fadiga mesmo após um

esforço mínimo; alteração na capacidade de concentrar, decidir e dedicar-se às atividades; perda

de interesse; redução da libido; redução da capacidade de experimentar o prazer; alterações no

apetite, perda ou ganho de peso sem dieta ou atividades específicas; insônia ou hipersonia;

agitação ou lentidão psicomotora; sentimentos de inutilidade, indignidade, culpa em relação a

si mesmo; pensamentos sobre morte; ideação suicida. Em linhas gerais, a depressão parece

escancarar a falta de sentido vivenciada por um indivíduo para perseverar em sua existência.

De fato, se me assalta a sensação de non sense diante da maneira de existir hegemônica destes

tempos, parece que não estou sozinha...

Diagramas contemporâneos

A greve dos caminhoneiros foi um dos diversos acontecimentos que produziram

instabilidade (social, política, ambiental) no Brasil durante o desenvolvimento deste trabalho

de doutorado, entre 2016 e 2020. De minha parte, vivenciei a greve como um momento de

suspensão do modo dominante como nossas vidas têm sido organizadas, conectadas,

experimentadas. Modo que remete ao projeto civilizatório capitalista moderno que se

globalizou e cujos diagramas de forças sociais-subjetivas conectam-se a todos os viventes desta

época, ainda que de diferentes maneiras e intensidades. Considerando a proposta deste trabalho

– cartografar as conexões entre esses diagramas e as realidades e arranjos de diferentes

famílias brasileiras –, começar com o relato dessa greve intenta dar destaque à oportunidade

que ela abriu para mim. Com efeito, a suspensão viabilizada pela greve tornou-se uma

20

oportunidade para pousar o olhar e acompanhar, em uma espécie de distanciamento e

desaceleração forçados, o modo de existência que reina veloz, frenético, intenso com o turbilhão

de eventos, demandas e agenciamentos que nos compõem. A greve mostrou-se, para mim, um

interessante analisador7 desta época.

A greve catalisou questões que vinham me acompanhando desde a entrada no doutorado

dois anos antes: Como acabamos por chegar à situação em que nos encontramos? O que faremos

de agora em diante? Quais serão as possibilidades de vida de nossas próximas gerações? As

transformações ambientais produzidas pelo modo de vida moderno e que têm deteriorado as

condições naturais do planeta são reversíveis? Quais condições sociais e subjetivas são

necessárias para empreender projetos de produção, consumo e relações humanas mais

sustentáveis, potentes e alegres, em contraposição à crescente falta de recursos naturais e de

sentido que se difunde na atual civilização global? Como as famílias, tão importantes para

educar seus membros diante das normas, hábitos e padrões instituídos socialmente,

consideradas como “a base da sociedade”, têm lidado com os desafios de nosso tempo? Em que

medida elas sustentam e reproduzem as lógicas, valores e práticas hegemônicas e, por outro

lado, que invenções e resistências elas têm construído diante do sofrimento e das misérias que

também compõem o modo de vida atual?

Essas questões são colocadas neste momento em que uma profunda crise abala o projeto

civilizatório que a modernidade capitalista construiu e que, por cerca de quinhentos anos, tem

sustentado através de contínuas mutações que hoje configuram o que Gilles Lipovetsky (2004)

chamou de hipermodernidade8. Essa crise tem implicações ambientais, culturais, geopolíticas e

subjetivas de dimensões jamais enfrentadas antes. Trata-se, como afirmou Bruno Latour (2014),

de uma crise indissoluvelmente “natural” e “cultural”, ambiental e civilizacional.

7 O conceito de analisador, tal como concebido a partir das contribuições de Felix Guattari (1972/2004) para a Análise Institucional, envolve deflagrar em um campo de análise-intervenção algo (um acontecimento, um dispositivo, um agente) que provoca análise, que explicita elementos de uma dada realidade. André Rossi e Eduardo Passos (2014) frisam que há uma dupla faceta do analisador: expressar uma problemática; causar um desvio, permitir deslocamentos diante da realidade que estamos a vivenciar. 8 Há diferentes posicionamentos em relação à terminologia que melhor define a atualidade. Há autores que defendem que entramos em uma nova era, a pós-moderna. Outros, aos quais me alinho, consideram que as transformações que de fato se processaram, especialmente a partir da segunda metade do século XX, não modificaram de forma substancial as lógicas e determinantes do projeto civilizatório moderno. Para Lipovetsky (2004), o que se observa é que essas lógicas se acentuaram. De minha parte, escolho chamar de modernidade capitalista o processo histórico que começa a nascer nos séculos XI e XII na Europa e hoje assume dimensões planetárias, conforme discuto ao longo deste trabalho.

21

Vivemos mudanças das condições ambientais e climáticas com sérios impactos nos

recursos disponíveis para a sobrevivência dos seres humanos (e não só deles) no planeta. Como

admitia o relatório mundial das Nações Unidas sobre desenvolvimento dos recursos hídricos de

2016:

A escassez de água provavelmente limitará as oportunidades de crescimento econômico e criação de empregos decentes nos próximos anos e décadas. [...] A redução da disponibilidade de água irá intensificar ainda mais a disputa pela água por seus usuários, incluindo a agricultura, a manutenção de ecossistemas, assentamentos humanos, a indústria e a produção de energia. Isso afetará os recursos hídricos regionais, a segurança energética e alimentar, e potencialmente a segurança geopolítica, provocando migrações em várias escalas. Os potenciais impactos nas atividades econômicas e no mercado de trabalho são reais e possivelmente graves. (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura [UNESCO], 2016, p. 04)

Do ponto de vista cultural, vivemos um momento em que a modernidade, com seu

projeto embasado na racionalidade de um sujeito individualizado e autocentrado, enfrenta uma

crise generalizada. Não obstante a efetivação planetária desse projeto civilizatório, assiste-se à

falência de sua capacidade de se justificar (Drawin, 1998). As consequências ético-políticas

dessa falência são ainda imprevisíveis e o atual crescimento de discursos e figuras públicas que

defendem atitudes xenofóbicas, racistas, machistas, fundamentalistas, autoritárias e, em última

instância, fascistas traça um horizonte de possibilidades sombrias.

Nesse contexto, a greve dos caminhoneiros mostrou-se, em alguma medida, como um

acontecimento exemplar da crise que enfrentamos. No plano subjetivo, ela escancarou a

dependência de indivíduos e famílias (não apenas em termos econômicos e políticos, mas

também afetivos) da organização e do controle dos Estados, bem como das logísticas de

produção, distribuição e consumo do Capital, vivenciados com um grau de angústia, de medo

e de despreparo que merecem ser olhados mais de perto.

Processos de subjetivação e famílias

Ao apontar para a crise atual, cumpre considerar o duplo papel dos processos de

subjetivação: por um lado, foi necessário produzir uma subjetividade capaz de sustentar o

projeto civilizatório moderno e suas atuais condições de organização; por outro lado, qualquer

transformação efetiva desse projeto exige que novos modos de subjetivação sejam

configurados. Nesse cenário, pareceu-me necessário analisar o papel das famílias. Afinal, como

consideram psicólogos, psicanalistas e psicossociólogos, a família é um grupo primário

22

privilegiado para a mediação indivíduos-sociedades que se torna, por isso, um importante vetor

nos processos de subjetivação. Muito se aprende na família, desde a mais tenra idade, sobre as

maneiras historicamente construídas de desejar, sentir, perceber, relacionar-se, pensar,

trabalhar, tornar-se, enfim, humano.

A antropologia, por sua vez, mostra a importância da família nas mais diversas

sociedades. Em seu viés estruturalista, os estudos antropológicos frisam o papel fundamental

do parentesco para o funcionamento social nas sociedades ditas primitivas, sociedades sem

Estado. Sem Estado, os laços de parentesco são o elo fundamental que organiza as relações

sociais (Sarti, 1992). Todavia, quando consideramos as sociedades modernas, em que os

Estados-nação, apesar de suas variações “internas”, se articulam em um único mercado

capitalista global, qual é o lugar da família? Ela não perdeu importância, mas ganhou outros

contornos e conexões no jogo de forças de nossa época.

Antes de refletir sobre esses enlaces da família, ou melhor, das famílias com seu tempo-

espaço histórico, é importante marcar uma questão que aparecia com frequência quando eu

explicava a alguém a proposta deste estudo: “Mas o que você entende por família?” Essa

pergunta mostrava um frequente pressuposto implícito nas expectativas de quem me

questionava: o pressuposto de que, para investigar famílias, eu deveria saber a priori do que se

tratava. Tive que lidar com a frustração (e a preocupação) que constantemente tomava conta

dos que esperavam a clareza de uma concepção de família na qual tudo o que fosse visto na

realidade deveria ser rebatido. Minha resposta, tão evasiva quanto sincera, era: “eu não sei...”.

Como psicóloga e professora da disciplina Psicologia Institucional, lembro-me da

importância que Regina Benevides de Barros (2002) e Heliana Rodrigues (2005) – duas

referências institucionalistas na história da psicologia brasileira – dão à prática de

problematizarmos o que parece natural aos olhos da maioria, desnaturalizando modelos

instituídos socialmente e assumindo seu caráter histórico. Nesse sentido é que eu respondia não

ter, a priori, uma resposta sobre o que compreendia como família, ainda que reconhecesse a

existência de um modelo de família que foi se configurando e se tornando dominante na

modernidade, qual seja a família nuclear nos moldes burgueses composta por um homem e uma

mulher casados e seus filhos, organizados em relações de poder, de desejo, de afetos específicas,

como veremos adiante.

Ao invés de tomar esse modelo como um “operador comparativo” para o que

concretamente pode ser observado nas configurações e funcionamentos de diferentes grupos e

23

arranjos familiares, assumo aqui um outro movimento: projetá-lo no rizoma social, garantindo

assim as modulações, as variações e os ajustes pelos quais ele passa ao ser efetuado na

micropolítica cotidiana. Modulações, variações e ajustes que, muitas vezes, acabam por fazer

com que o que se configura é já outra coisa, uma diferença em relação ao que o modelo projeta.

Assumo ainda que é preciso considerar que a dominância de qualquer modelo não quer dizer

exclusividade. No caso do Brasil, para estudar famílias é importante considerar, por exemplo,

o papel histórico que a família patriarcal extensa desempenhou (e ainda desempenha em alguma

medida) para a produção das relações, práticas, discursos, mecanismos de controle e de sujeição

que atravessam as famílias concretas. Por fim, assumo a existência de arranjos familiares que

fogem (traçam linhas de fuga) dos modelos e que dificilmente podem ser (salvo por meio de

uma violenta operação simbólica e ou institucional) associados a eles.

Um outro aspecto a destacar nesta empreitada é que empreender um olhar transversal –

entre as famílias e os diagramas sociais – não é uma tarefa fácil, especialmente em virtude do

modo como as ciências e sua produção de conhecimentos se estruturaram majoritariamente ao

longo da modernidade, ou mesmo antes dela. De fato, recebi uma formação como psicóloga

sustentada, em grande medida, por segmentações, separações, dicotomias: sujeito versus social;

interioridade versus exterioridade; sujeito individual versus família versus sociedade... Nesse

cenário de produção de conhecimentos, muitos dos estudos sobre famílias que tradicionalmente

compõem o campo da psicologia priorizam análises das famílias “em si mesmas”, enfocando

as interações e os vínculos (conscientes e inconscientes) entre seus membros e o contexto

familiar em sua interioridade.

De outro modo, a proposta aqui colocada envolveu pensar as configurações e os arranjos

familiares em sua relação rizomática com os processos sociais e os processos de subjetivação

vivenciados neste tempo histórico. Acompanho, nesse sentido, as ponderações de Roberta

Romagnoli (2003) de que a família:

possui um plano de composição plural e multifacetado, que sustenta tanto movimentos e estagnações, quanto forças ativas e reativas, que se exercem não só dentro da família, mas também nas redes sociais. Forças que o grupo acolhe, envia, produz e que o produzem, e nas quais não devemos considerar somente suas dimensões interiores (p. 25).

Do ponto de vista metodológico, construí um dispositivo composto por visitas a

diferentes famílias que toparam participar do estudo, procurando priorizar o encontro com seu

cotidiano e os agenciamentos que aí se processam. No próximo capítulo apresento esse

24

dispositivo. Antes no entanto, é importante esclarecer os diferentes conceitos a que refiro:

rizoma, diagrama, linhas de fuga e outros.

Uma concepção rizomática de família

Diante do desafio de não circunscrever o meu olhar e a minha escuta de pesquisadora

ao que se passa “dentro das famílias” – não tomar as famílias como interioridade, bem como

evitar delimitá-las em relação a tudo o mais que se passa “fora” delas –, proponho uma

concepção rizomática de família, inspirada em dois dos pensadores integrantes do Movimento

Institucionalista que há um bom tempo me acompanham em meus estudos e práticas como

psicóloga e professora – a dupla formada por Gilles Deleuze e Felix Guattari.

Meu primeiro encontro com Deleuze e Guattari aconteceu há vários anos, quando eu

ainda era estudante de psicologia. Em meados do curso, um colega assentou-se ao meu lado em

um intervalo entre as aulas e mostrou-me um livro de capa preta da editora portuguesa Assírio

Alvim cujo título era O Anti-Édipo. “O que você acha?”, perguntou-me com um meio sorriso

no rosto. Ele sabia que estávamos em uma graduação em psicologia orientada em grande

medida pelos estudos psicanalíticos e que eu gostava (ainda gosto) da psicanálise. Não dei a

meu colega o contentamento de me ver, como eu até hoje suponho que ele desejava, vociferando

contra o que, à primeira vista, parecia uma blasfêmia teórica. Respondi-lhe com uma pergunta

seca: “É bom?”. E ele abriu o sorriso, já se levantando e pegando o livro das minhas mãos: “É

ótimo”.

No dia seguinte, com o livro emprestado da biblioteca da universidade, comecei a

leitura. Lembro-me de ter a estranha sensação de que as palavras no papel corriam mais rápido

que meu pensamento. A minha desconfiança inicial deu lugar à surpresa e, ao cabo de algumas

páginas, soltei uma gargalhada. Não que não estivesse a levar à sério o livro e os autores; é que

a seriedade – esta sobriedade que se espera para o tratamento dos assuntos e questões

importantes – não estava ali. Tempos depois entendi que se tratava de uma escolha ético-política

(que também é sempre uma escolha estética): tratava-se de produzir uma máquina, um livro-

máquina, capaz de montar e desmontar imagens, entendimentos, afetos e, com isso, produzir

deslocamentos de verdades e práticas que se arraigaram historicamente em nosso modo de

existência e que resultaram em vidas despotencializadas, vidas miseráveis em muitos sentidos,

25

vidas tristes. Esse primeiro encontro com o livro foi como me colocar em movimento, foi como

uma dança. E eu adoro dançar.

Desde o primeiro contato até hoje, esses autores têm me acompanhado de diferentes

formas. Aqui, quando me proponho a discutir sobre as conexões das famílias contemporâneas

com os diagramas sociais atuais e com os processos de subjetivação capazes de manter ou

transformar o modo de vida hegemônico, alguém poderia me contrapor: “Mas buscar as

contribuições de Deleuze e Guattari para falar da família, justo dela?!” Essa hipotética pergunta,

que eu mesma me faço, leva em consideração o fato de que esses pensadores travaram n’O Anti-

Édipo uma verdadeira batalha contra a “sagrada família”, tida como o território privilegiado

para a repressão subjetiva nos moldes capitalistas-burgueses “sob o jugo do papá-mamá”

(Deleuze & Guattari, 1972/2004, p. 52). A essa pergunta, a resposta que encontro é: “Ninguém

melhor!” Isso porque a batalha de Deleuze e Guattari tem como alvo a universalização

dogmática de uma configuração familiar, que tem data de nascimento histórica e precisa ser

compreendida como tal. A sua batalha é contra a institucionalização da família nuclear burguesa

como modelo hegemônico que marcou e certamente ainda marca os modos de subjetivação

privilegiados da modernidade capitalista. Família cujos impactos subjetivos não podem ser

desconsiderados, especialmente para aqueles que têm nela a sua experiência familiar. Contudo,

sua consideração não pode significar sua naturalização, o que encobre sua origem histórica. Seu

entendimento como algo natural, como fato a-histórico acaba por tomar essa configuração

familiar como imutável e alheia às transformações sociais. De outro modo, é necessário ir além,

ou melhor, para “fora” desta família, um movimento que aqui empreendo em um duplo sentido.

Primeiro, cumpre considerar que a família nuclear tal como configurada na modernidade

por pai-mãe-filhos, bem como os complexos, traumas e repressões produzidos “dentro” desse

círculo familiar e envoltos pela triangulação edípica precisam ser conectados aos outros

elementos – econômicos, políticos, estéticos, científicos, tecnológicos, ambientais – que

também compõem o contexto de produção das subjetividades modernas. A compreensão da

família nuclear “em si mesma” tem produzido análises que cavam um abismo entre os dramas,

os problemas (também as forças e as invenções) familiares e tudo o mais que se passa além dos

muros do lar. Todavia, não é o caso de buscar as influências do “mundo exterior” no grupo

familiar, como se este possuísse limites precisos em relação à complexa rede que conecta fluxos

e forças, palavras e corpos, sentidos e práticas das vidas humanas. Uma das importantes

contribuições de Deleuze e Guattari é exatamente a produção de um modo de pensar a realidade

que procura se descolar dos dualismos, tais como dentro versus fora ou família versus social.

26

Um modo que é capaz de considerar, por exemplo, que o fortalecimento social da família

nuclear moderna só foi possível em um diagrama de forças (uma máquina abstrata na sua

terminologia) em que outros fluxos sociais como o capitalismo, as lógicas dos aparelhos de

Estado modernos e os valores burgueses também estavam em jogo e funcionavam de forma

entrelaçada.

O segundo sentido do movimento para fora da família moderna envolve considerar a

coexistência de outras configurações, arranjos, vínculos, alianças que, para quem os vive,

funcionam como uma família, mesmo quando esta fracassa em rebater os ditames do modelo

nuclear moderno. Fracasso que não significa necessariamente o adoecimento do grupo e das

pessoas, mas implica outros modos de funcionar, de se relacionar, de se aliar, de amar, de

transar, de desejar, de agir, de compartilhar (n)o mundo. Nesse contexto e seguindo as

contribuições de Deleuze e Guattari, a proposta aqui não é buscar as regularidades ou as

estruturas invariantes, passíveis de serem identificadas em qualquer família. De outro modo,

trata-se de considerar que qualquer regularidade ou estrutura, de uma família a outra, já é em

alguma medida outra coisa, quando pensamos que nunca são os mesmos elementos nas mesmas

conexões e velocidades que compõem um arranjo familiar. Isso não significa assumir o

pressuposto de que, como toda família é diferente, cada uma irá se organizar de maneira

particular e única, o que acaba por nos jogar em um relativismo que só permite olhar para

qualquer diferença como totalidade. Ao invés das totalidades, aqui aposto nas multiplicidades

para delinear uma concepção rizomática de família. Para tanto, acompanho a teoria das

multiplicidades que Deleuze e Guattari apresentam especialmente em Mil Platôs: capitalismo

e esquizofrenia 2, articulada ao rizoma como imagem de pensamento (Deleuze & Guattari,

1980/1995).

Segmentações, fugas, agenciamentos

Para delinear uma concepção rizomática de família é preciso reconhecer, desde já, que

as divisões, separações, agrupamentos, oposições, dicotomias estão presentes na realidade

humana; fazem parte do modo como organizamos nossos pensamentos e vivenciamos nossos

corpos. Como disseram Deleuze e Guattari (1980/1996b), “o homem é um animal segmentário”

(p. 83). Segmentamos nossas casas em cômodos e funções; segmentamos as cidades através de

27

ruas e em regiões valorizadas ou abandonadas, centrais ou periféricas; segmentamos as

empresas, conforme os processos, os protocolos, os setores, os cargos, os produtos. Esses

autores traçam três tipos de segmentação da realidade: as segmentaridades binárias, orientadas

pelas grandes oposições dualistas, tais como as classes, os gêneros, as idades; as

segmentaridades circulares que definem circunferências cada vez mais extensas – o indivíduo,

a casa, o bairro, a cidade, o país, o continente, o planeta; as segmentaridades lineares que nos

movem de uma etapa a outra, de um estágio ao outro, do berço doméstico para a creche, da

creche para a escola, desta para uma formação educacional suplementar e específica, da

formação para um estágio e daí para um trabalho e assim por diante, continuamente. As linhas

de segmentaridade ora circunscrevem indivíduos e grupos, ora fazem um mesmo indivíduo ou

grupo passar de um segmento a outro. Os diferentes tipos de segmentação funcionam

imbricados, um passando pelo outro, reforçando-se.

As linhas de segmentaridade estabelecem, em um nível que Deleuze e Guattari

(1980/1996b) denominam molar ou macropolítico, as visibilidades e os enunciados, as

estruturas e as determinações que procuram ditar as maneiras como os diferentes componentes

da realidade devem ser organizados, separados ou ajuntados, hierarquizados, nomeados,

utilizados, valorizados, ignorados ou destruídos. Essas linhas, ao segmentar, visam definir

pertenças e exclusões, visam homogeneizar e capturar em relações fixas e totalizantes a vida e

tudo o que nela se desloca. É nesse nível molar que se estruturam os modelos que ambicionam

recobrir as famílias, determinando os modos como elas devem se formar e funcionar, definindo

os que podem integrá-las legitimamente, estabelecendo os papeis e as funções adequadas para

cada integrante, bem como suas relações com os outros elementos e estruturas sociais.

Há, no entanto, toda uma micropolítica que também se faz sempre presente: “tudo é

política, mas toda política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica” (Deleuze &

Guattari, 1980/1996b, p. 90). No nível micropolítico uma outra espécie de linhas de

segmentaridade se processa, atravessando sociedades e indivíduos tanto quanto as

segmentaridades molares. Trata-se de linhas moleculares com suas velocidades, direções e

intensidades próprias. Como assinalou Deleuze em seus Diálogos com Claire Parnet, essa

segunda espécie de linhas “não têm o mesmo ritmo que nossa ‘história’” (Deleuze & Parnet,

1998, p. 145). É assim que as hierarquias de gênero e de idade, os papeis destinados ao marido

e à mulher, as orientações para a boa educação e carreira dos filhos, a maneira como o espaço

doméstico deve ser dividido e ocupado, entre tantas outras formatações que atravessam os

arranjos familiares precisam lidar com ajustes, variações, adaptações que as diversas famílias

28

realizam em suas realidades específicas. Ainda que embebidas das determinações molares

acerca das distribuições de papeis, tarefas e poder, as famílias produzem variações em seu

funcionamento micropolítico. Toda uma micropolítica de afetos, identificações, disputas e

práticas cotidianas se compõe e funciona ao mesmo tempo (e não necessariamente no mesmo

sentido) que as normais sociais historicamente estabelecidas sobre como ser uma família.

A segmentaridade molecular opera por linhas flexíveis com sua grande capacidade de

inserção e difusão nos diversos contextos, o que sempre exige ajustes, torções,

redimensionamentos que essas linhas estão aptas a fazer. Não que elas sejam pequenas, mais

pessoais ou íntimas, pois elas têm força coletiva e podem se propagar em grandes extensões.

Tampouco trata-se de considerá-las melhores por serem mais maleáveis, uma vez que sua

flexibilidade pode servir à molecularização dos segmentos duros, lá onde eles, por si só, não

conseguem alcançar. E, por vezes, elas acabam por atuar com ainda mais endurecimento. Como,

por exemplo, nas situações em que, ao efetuar as lógicas patriarcais existentes no diagrama das

forças sociais e subjetivas que se formaram na modernidade, o “pai de família” as tensiona a

tal ponto que acaba por perpetrá-las de forma violenta contra sua esposa e filhos.

Todavia, há casos em que os movimentos moleculares não completam, difundem,

ajustam, tensionam as segmentações molares. Há casos em que eles são capazes de promover

rupturas e furos, de arrastar os fluxos “como se alguma coisa nos levasse, através dos

segmentos, mas também através de nossos limiares, em direção a uma destinação desconhecida,

não previsível, não preexistente” (Deleuze & Parnet, 1998, p. 146). Nesses casos, nasce uma

linha de fuga que, mesmo se ela começa pequenina, consegue passar pelos segmentos, escapar

das forças centrífugas dos aparelhos de Estado, desajustar-se das totalizações. Essa linha é

capaz de promover, mesmo quando ainda imperceptível, a produção do Novo, tais como novas

maneiras de amar, de promover alianças, de compreender e distribuir os papeis familiares. A

linha de fuga opera novas conexões, acena para uma nova história. Ainda aqui, especialmente

aqui, é preciso evitar os dualismos: “as fugas e os movimentos moleculares não seriam nada se

não repassassem pelas organizações molares e não remanejassem seus segmentos, suas

distribuições binárias de sexos, classes, partidos” (Deleuze e Guattari, 1980/1996b, p. 90).

Assim, para uma análise rizomática de famílias, é preciso assumir as conexões, os

acoplamentos, as batalhas entre as diferentes linhas que compõem os diagramas das forças

sociais. Está tudo aí: um rizoma. Suas guerras, multipolares e complexas, são talvez mais

potentes e vitais que nossos sonhos lineares de paz... Quanto ao rizoma, é nele que as diferentes

espécies de linhas podem existir de forma imanente. À medida que as linhas se conectam, se

29

cruzam, se interpõem, lutam, elas vão dando o tom, os contornos, os ritmos, as sensibilidades

que se efetuam em uma configuração histórica, sempre em movimento.

Deleuze e Guattari (1980/1995) propõem, na introdução a seus Mil Platôs, o rizoma

como imagem do pensamento e da realidade. Na botânica, o rizoma é uma extensão de caule

que une sucessivos brotos, numerosas ramificações com crescimento multidirecional,

subterrâneo ou aéreo, tal como a grama que recobre uma planície ou a trepadeira acoplada a um

muro. Difícil determinar seu começo e prever seu fim.

Ao propor o rizoma como imagem do pensamento e da realidade, Deleuze e Guattari

(1980/1995) assumem um posicionamento filosófico-político: não devemos mais acreditar em

árvores porque já sofremos muito. A realidade e o pensamento ocidentais, das ciências naturais

às ciências humanas, passando pela filosofia, pela política, pela economia, pela sexualidade,

foram estruturados, em grande medida, de modo arborescente. As segmentações e

estratificações produzidas pelas lógicas arborescentes são, com efeito, operações muito

profundas que, como pondera François Zourabichvili (2004) em seu Vocabulário de Deleuze,

estriam a sensibilidade, a percepção, a capacidade de afetar-se, o pensamento, encerrando a

multiplicidade das experiências em formas prontas e hierarquizações, inclusive de recusa e luta.

A árvore, como imagem do pensamento, funciona a partir de um centro unificador do

qual brotam as ramificações. O pensamento arborescente estabelece sistemas hierárquicos,

centros de significação e modos privilegiados de subjetivação; determina pertenças e exclusões,

traça polaridades e estruturas. Fundadas nesse tipo de pensamento, muitas das teorias, análises

e intervenções com famílias na modernidade acabaram por definir modelos e parâmetros de

normalidade familiar; acabaram por justificar hierarquias e submissões nos seios das famílias;

acabaram por avaliar como adoecidas, disfuncionais ou inadequadas as famílias incapazes de

funcionar a partir do eixo unificador que conceberam. Sustentaram ainda a imagem do Uno (na

figura do patriarca, no primeiro trauma da infância, na primeira experiência de satisfação do

bebê, na relação primária com papá-mamá e noutros) como o fio condutor para tudo o que se

passa nas relações nas famílias e nos processos de subjetivação de seus membros.

Deleuze e Guattari (1980/1995) destacam, no entanto, que o próprio cérebro é mais uma

erva que uma árvore. A erva é rizoma, assim como a grama e a trepadeira. Como imagem do

pensamento e de maneira diferente das árvores,

o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um dos seus traços não remete necessariamente a traços da mesma natureza; ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos. O rizoma não se deixa reconduzir nem ao Uno, nem

30

ao múltiplo. Ele não é o Uno que se torna dois, nem mesmo que se tornaria diretamente três, quatro ou cinco etc. Ele não é um múltiplo que deriva do Uno, nem ao qual o Uno se acrescentaria (n+1). Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades lineares a n dimensões, sem sujeito nem objeto, exibíveis num plano de consistência e do qual o Uno é sempre subtraído (n-1). (Deleuze & Guattari, 1980/1995, p. 32)

Zourabichvili (2004) considera que, como método de compreensão da realidade, o

rizoma é antes um antimétodo. Seus “princípios ou características aproximativas” parecem ser

mais bem compreendidos como regras de prudência, como estratégias de desvio, como

ferramentas de luta contra os dualismos, contra o endurecimento das segmentações e do poder,

contra a captura e a reintrodução da árvore e do Uno no pensamento. “O mínimo que se pode

dizer que não é fácil manter-se nesse ponto” (p. 99). Trata-se, como pondera Eduardo Viveiros

de Castro (2015), “de um ‘prodigioso esforço’ para pensar o pensamento como uma atividade

outra que a de reconhecer, classificar e julgar” (p. 115).

Atividade que não pode ser equiparada às análises dialéticas da realidade. Não se trata,

por exemplo, de considerar que a segmentaridade dura e a segmentaridade flexível, duas

espécies de linhas, estabelecem entre si uma relação dialética a partir da qual uma terceira

espécie de linha se formaria como síntese das anteriores. Não se trata de oposição, mas de

mistura: as linhas ora se coadunam e se fortalecem em certo funcionamento, ora se distanciam

e travam suas batalhas. Nessa dinâmica, o que se transforma são os próprios termos em

conexão: não é A versus B que produz C como síntese, mas A com B que, em conexão, se

tornam A’ e B’ e assim por diante. E é ainda por isso que é sempre possível a terceira espécie

de linha, com suas rupturas e fugas que nascem entre as outras duas linhas, como derivação

inusitada, como novo campo de possíveis que transforma tudo em outros termos.

Nesse cenário, há uma escolha ético-política ao se empreender uma análise da realidade

(das famílias inclusive): percorrer as linhas mais do que identificar as formas e suas oposições,

acompanhar as conexões heterogêneas mais do que afirmar as essências e as identidades, o que

não abranda o rigor e a atenção, mas os colocam em um outro plano, imanente. O que importa

são as composições, os agenciamentos.

Ao considerar uma família como agenciamento, em suas múltiplas conexões, mais

importante do que se perguntar qual seria a essência da família ou quais seriam os critérios para

se detectar sua normalidade ou sua estabilidade, mais importante é se perguntar como uma

família funciona: “Em conexão com o que [ela] faz ou não passar intensidades, em que

31

multiplicidades [ela] introduz e metamorfoseia a sua”? (Deleuze & Guattari, 1980/1995, p. 12).

E ainda: Qual a velocidade e a intensidade dos diferentes tipos de linhas que nela se agenciam?

Como ela assume, produz, faz proliferar sejam os segmentos, sejam as fugas? Ademais, em

uma perspectiva rizomática, uma família concebida como agenciamento só pode ser pensada

em suas conexões com outros agenciamentos e com as forças que os compõem.

Ao explicar o que seria um agenciamento em Kafka para uma literatura menor, Deleuze

e Guattari (1975/2003) consideram que este possui dois lados: ele é, ao mesmo tempo, um

agenciamento maquínico de desejo e um agenciamento coletivo de enunciação. Um

agenciamento é maquínico porque a vida é produção, que se faz por acoplamentos, junções,

encaixes, circuitos e curtos-circuitos. Produção cuja força conectiva dos heterogêneos

elementos da realidade está no desejo. Não há agenciamento sem desejo que o produza, ao

mesmo tempo que o desejo sempre funciona inseparável dos agenciamentos. “O desejo nunca

é uma energia pulsional indiferenciada, mas resulta ele próprio de uma montagem elaborada,

de um engineering de altas interações” (Deleuze & Guattari, 1980/1996b, p. 93). Tudo em um

agenciamento se move por causa do desejo, força vital. Tudo do desejo corre, endurece, repete,

encena, luta, transa, inventa nos agenciamentos em que se acopla. Sigmund Freud (1980) foi o

grande precursor das análises sobre esse funcionamento agenciado do desejo, cujas conexões

não dependem das intenções de uma consciência como central de controle e disciplina. Todavia,

a psicanálise que ele fundou acabou por encerrar o desejo nos ditames de um inconsciente

individual obcecado com as projeções, as triangulações, as identificações com as figuras (ou

funções) parentais e acabou por direcionar a força produtiva do desejo rumo ao alinhamento na

cadeia significante e ao buraco negro da Falta. Boa parte da luta de O Anti-Édipo (Deleuze &

Guattari, 1972/2004) foi para restituir ao desejo sua competência produtiva e maquínica não

restrita a um sujeito individual e suas representações. Sujeito que, vale marcar, mais do que o

“dono” do desejo é um dos produtos históricos do agenciamento (de desejo) de nossa época,

tanto quanto a família – nuclear, edípica, privatizada – que contribui fortemente para sua

produção9.

Além da maquinação desejante de corpos heterogêneos, um agenciamento é composto

por um arranjo de enunciados. Ao indicar os enunciados, isso não significa focalizar sujeitos

9 Vale retomar que não é que os autores de O Anti-Édipo não acreditem na existência de uma triangulação edípica e todas as suas consequências sociais, subjetivas, desejantes; o que eles não acreditam é na ambição psicanalítica e política (afinal, o que melhor para o capitalismo do que um sujeito submetido a uma falta existencial?) de universalizar um certo funcionamento do desejo e um certo modo de subjetivação.

32

de fala, frases ou proposições, nem a cisão do ato de enunciar em dois lados do uso da

linguagem (consciente e inconsciente), em dois sujeitos (sujeito do enunciado e sujeito da

enunciação) como propôs Jacques Lacan (1998) a partir da linguística. Trata-se de compreender

a natureza e a função dos enunciados nos agenciamentos (não nos sujeitos e seu inconsciente

individual, nem tomando o agenciamento como Sujeito). Essa compreensão abrange os

conteúdos linguísticos, bem como elementos rítmicos, musicais, sonoridades e expressões de

diferentes ordens. A força dos enunciados é antes coletiva: eles existem como engrenagens de

um tal agenciamento e interessam especialmente por sua capacidade de proliferação e de

conexão com corpos, coisas, desejo.

Nesse sentido, é interessante a transformação por que passa o uso da palavra gossip no

Reino Unido no decorrer da modernidade capitalista. Silvia Federici (2017) destaca que essa

palavra, utilizada até então para significar “amiga”, passou a ser dita com conotações

depreciativas e referindo-se à fofoca entre mulheres. Isso ocorre à medida que o agenciamento

social muda na Europa, bem como a posição feminina nele. Dissemina-se a ideia de que uma

“boa mulher” deveria corresponder à esposa e mãe submissa ao marido, discreta, recatada e

dedicada aos seus afazeres no lar. Mulheres mais independentes, que andavam sozinhas pelas

ruas, que se reuniam e conversavam muito com outras mulheres, que questionavam ou se

impunham diante dos homens (pais, maridos e outras autoridades masculinas) tornaram-se

objeto de condenação moral ou mesmo de punição estatal. Federici (2017) lembra que “na

Europa da Era da Razão, eram colocadas focinheiras nas mulheres acusadas de serem

desbocadas, como se fossem cães, e elas eram exibidas pelas ruas” (p. 203).

Com efeito, há em todo agenciamento jogos de forças, relações de poder. No livro

elaborado como uma homenagem póstuma a Michel Foucault e a seu método (“é como se,

enfim, algo de novo surgisse depois de Marx”), Deleuze (1986/2005) afirma que um

agenciamento é um dispositivo concreto biforme (conteúdo e expressão) que efetua um

diagrama, máquina abstrata. Essa afirmação tem aqui um interesse prático: para compreender

como um agenciamento funciona é preciso olhar para as forças que lhe configuram a existência,

o diagrama. A partir de Foucault e sua análise do poder, Deleuze explica: “O que é o diagrama?

É a exposição das relações de força que constituem o poder” (p. 46).

Em Vigiar e Punir, Foucault (1975/1999) traça uma análise original do poder que se

difere das teses tradicionais. Deleuze (1986/2005) organiza essas teses em seis postulados e, a

partir de cada postulado, esclarece como a perspectiva foucaultiana se distancia deles. O

primeiro postulado é que o poder é tradicionalmente compreendido como propriedade de um

33

indivíduo, um grupo ou uma classe que o teria conquistado. Contudo, o poder é mais uma

estratégia do que uma propriedade; o poder não é algo a ser apropriado, ele deve ser exercido.

O segundo postulado, de que o poder é localizado no aparelho de Estado, é contraposto a uma

percepção do poder como uma prática difusa, que não é feita apenas pelo Estado e nem a partir

dele. Ao contrário, é o próprio Estado que se configura a partir de um conjunto de engrenagens

e focos de poder que se situam em diferentes níveis do campo social. Há toda uma rede de

micropoderes difusos, diagonais mais do que verticais, que deve ser compreendida em sua

microfísica cotidiana. No terceiro postulado há a ideia de que o poder estaria subordinado a

uma infraestrutura produtiva, como propôs o marxismo tradicional. No entanto, as relações de

poder não devem ser compreendidas em posição de subordinação a outras relações “mais

determinantes” como as econômicas, ou mesmo em relação de exterioridade com o que se passa

em outros aspectos da vida social. O poder se exerce de forma imanente, sem causa ou

unificação transcendente, ele é difuso, está por todos os lados. O quarto postulado envolve a

consideração de que o poder seria uma essência e um atributo dos que o possuem (os

dominantes), o que os distingue dos dominados. Todavia, o poder é operatório; ao invés de

atribuível a uma pessoa que o exerce sobre outras, o poder está nas relações, ele é a relação,

um conjunto de relações de força. Quinto, o postulado da modalidade defende que o poder age

por violência, através da repressão, ou por ideologia, através do encobrimento da realidade por

narrativas mistificadas. Ainda que a violência exista de fato, ela deve ser vista como um

resultado concreto de uma relação de poder, ela é efeito dessa relação. Na perspectiva

foucaultiana, o poder produz realidade e verdade antes de reprimir ou ideologizar – é preciso

que a repressão e a ideologia sejam sempre compreendidas em um agenciamento concreto no

qual elas operam e não o contrário. Por fim, o postulado da legalidade afirma que o poder seria

fundamentado na lei, seja a determinada pelos vencedores da guerra, seja a que precisa ser

imposta em nome da paz. A Lei, o fundamento jurídico, traçaria um modelo homogêneo para

justificar a legitimidade dos que exercem o poder. Mas, mesmo com a lei e sob seu domínio,

todo um conjunto de estratégias continua aqui e ali a configurar e reconfigurar as forças que

compõem os agenciamentos sociais.

Nesse sentido, a família em sua configuração nuclear moderna não foi o resultado

exclusivo da reforma protestante ou dos nascentes valores burgueses entre o século XVI e XIX.

Como veremos de maneira mais detalhada adiante, ela surgiu do encontro de diferentes forças

sociais e foi finalmente institucionalizada, ganhando proteção legal e difundindo-se pela rede

composta por diversas instituições – na igreja, na escola, na empresa, na telenovela, nas

34

políticas públicas – como modelo hegemônico de família. Se no século XIX na Europa a família

composta pelo pai patriarca e provedor, pela mãe amorosa e cuidadora do lar, pelos filhos

educados dentro de casa e pela escola, se essa família era vista como a “família normal”, alguns

séculos antes as extensas linhagens medievais, a criação costumeiras das crianças em diferentes

casas e misturadas ao mundo dos adultos, a socialidade solidária das terras comunais produziam

um outro diagrama de forças, outras relações de poder, em que a família nuclear e privatizada

no lar não tinha a mesma expressão e a mesma força social – outras composições familiares,

outros modos de apoio e proteção se impunham.

A difusão da família nuclear moderna como agenciamento privilegiado no diagrama das

forças sociais do século XIX não pode ser compreendida apenas pelos vínculos e processos

(edípicos e outros) que se processavam dentro de casa. É preciso compreender que esse

agenciamento familiar (como qualquer agenciamento) existe conectado às demais relações,

processos, fluxos que compõem certo momento histórico. Assim, os cercamentos capitalistas

que privatizaram as terras pela Europa e destruíram a socialidade comunitária; a difusão das

lógicas disciplinares pelo campo social e a consolidação da escola como instituição privilegiada

para disciplinar as crianças; a multiplicação de leis e práticas nos Estados europeus que

restringiram os direitos e a liberdade das mulheres à medida que o capitalismo e a burguesia

ascendiam socialmente; estes e outros processos foram fundamentais para a configuração da

família moderna. Vale dizer: não se tratou da emergência de uma força unificadora

transcendente, de um centro de poder que organizou esses processos sociais. O diagrama deve

ser entendido como “causa imanente não-unificadora” que estende as relações de forças

presentes em um certo período da história por todo o campo social, não por cima, mas pelo

próprio tecido dos agenciamentos que produz (Deleuze, 1986/2005).

O diagrama é, na leitura deleuziana, um mapa intensivo compostos por linhas de força,

relações de poder que ligam os diversos pontos do campo social e além dele (as forças nunca

são apenas humanas), em direções que não se resumem ao vertical e ao horizontal, são antes

transversais, diagonais móveis que atravessam níveis, ultrapassam limiares. Suas relações são,

em verdade, probabilidades de interação, são virtuais, potenciais, instáveis, embora sejam reais,

pois podem se efetuar e ganhar consistência nos agenciamentos concretos. O diagrama é, assim,

uma máquina abstrata10. Se os agenciamentos se comunicam através do diagrama de forças,

dando materialidade e expressão a este, essa comunicação se faz sempre produzindo

10 Sobre o conceito de máquina abstrata, conferir as conclusões de Mil Platôs: “Regras concretas e máquinas abstratas” (Deleuze; Guattari, 1980/1997b).

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transformações no próprio diagrama, o que reverbera também nos agenciamentos e os desloca.

Além disso e ao mesmo tempo, o diagrama nunca se repete da mesma forma nos diferentes

agenciamentos. Linhas moventes, encontros e devir são mais condizentes do que a estabilidade

da Verdade ou do Sujeito com o que, de fato, se passa na história.

Os movimentos entre os agenciamentos e suas relações com o diagrama remetem a um

aspecto fundamental das propostas de Deleuze e Guattari: sua teoria das multiplicidades. A

multiplicidade não é um ente, uma essência, uma unidade. A noção de unidade só pode aparecer

“quando se produz numa multiplicidade uma tomada de poder pelo significante” (Deleuze e

Guattari, 1980/1995, p. 16). As multiplicidades não têm qualquer relação com o Uno, não são

uma derivação deste: não são múltiplos do um ou mesmo acréscimos a ele (n+1). As

multiplicidades precisam ser tratadas como substantivo. A compreensão de seu funcionamento

exige que as unidades, as formas e os segmentos, que as identidades e as equivalências, que a

taxinomia e seus critérios de inclusão-exclusão classificatória, que todos eles sejam projetados

no rizoma como imagem do pensamento: aqui o Uno funciona apenas como aquilo que deve

ser subtraído para que se vislumbre as multiplicidades em sua potência (n-1).

É que as multiplicidades são a diferença “em si”. Como coloca Deleuze (1968/1988) em

Diferença e Repetição, a diferença não é o diverso; ela é aquilo pelo qual um dado é dado como

diverso. A diferença é “esta irredutível desigualdade que forma a condição do mundo” (p. 286).

O que se liga através das relações de força no diagrama são multiplicidades, que se acoplam

para formar os agenciamentos concretos. Mas, ao acoplarem-se e à medida que aumentam,

diminuem ou modificam suas conexões, as multiplicidades mudam necessariamente de

natureza. Suas conexões são, por isso, sínteses disjuntivas (ou disjunções inclusivas) que fazem

com que cada “coisa” vá se diferenciando de si mesma à medida que se associa e se posiciona

nos agenciamentos. Como frisa Viveiros de Castro (2015), a síntese disjuntiva é o movimento

da diferença enquanto tal: um movimento centrífugo que permite à diferença escapar do atrator

circular da contradição e da superação dialéticas e escapar de diferir-se apenas sobre um fundo

(essência ou estrutura) invariante. Aqui, a diferença é antes positiva que opositiva, é antes

aliança de heterogêneos que conciliação de contrários. O enfoque é o devir, pois “não são as

relações que variam, são as variações que relacionam: são as diferenças que diferem” (p. 123).

Considerar as multiplicidades como o elemento primeiro dos agenciamentos tem uma

implicação prática: “é a natureza em seu conjunto, a multiplicidade ramificada das espécies

vivas que atestam um escalonamento ou uma livre comunicação de problemas e divisões

resolventes que remetem em última instância ao ser unívoco como a Diferença” (Zourabichvili,

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2004, p. 105). O mundo é antes complicação entre seres e espécies; alianças intensivas entre

multiplicidades; implicação de fragmentos, afetos, ritmos e fluxos do que sua unificação e

repartição bem delimitada em segmentos e identidades.

Considerar as multiplicidades como o elemento primeiro dos agenciamentos tem ainda

uma implicação ético-política: a produção de conhecimentos sobre o mundo e seus viventes,

sobre os agenciamentos e suas configurações históricas deve operar entre as ciências menores,

nômades que rompem o vínculo sedentário entre saber-poder-Estado (Deleuze & Guattari,

1980/1997b).

Assim, para a produção de conhecimentos nômades assumo a importância de renunciar

à ambição que a ciência moderna estabeleceu de se produzir saberes, desenvolver métodos e

adotar posturas como pesquisador(a) que viabilizem (ao menos, é o que se sonha) o encontro

com a Verdade, estável e unificadora. De outro modo, o que proponho é um trabalho de

pesquisa que intenta acompanhar a vida em sua complexidade e processualidade com o intuito

de empreender análises capazes de mapear linhas, forças, fluxos, devires, multiplicidades em

seu funcionamento movente e em constante transformação.

Vale assinalar que essa postura científica não é menos rigorosa. Seu rigor está

exatamente no preparo ético-político do pesquisador para assumir a realidade como

exterioridade; para utilizar seus métodos e arcabouços conceituais como ferramentas

disponíveis que podem ou não servir diante de certo contexto ou problema de pesquisa,

exigindo, em muitos casos, a invenção como estratégia de conexão com a realidade; para aceitar

que uma ciência nômade não está destinada a tomar um poder, uma vez que se subordina “às

condições sensíveis da intuição e da construção” (Deleuze & Guattari, 2016, p. 41).

Por fim (ou para começar), esclareço que, do ponto de vista metodológico, adoto a

cartografia, método proposto por Deleuze e Guattari (1980/1995), para a produção das

estratégias de pesquisa. De uma maneira ilustrativa, posso dizer que o trabalho cartográfico

envolveu aqui manter “um olho no peixe e outro no gato”, ou seja: estudar tanto o diagrama de

forças do tempo histórico atual quanto acompanhar os processos que viabilizam sua efetuação

(com as variações, ajustes e fugas) em famílias brasileiras e suas conexões com agenciamentos

concretos. A seguir, apresento a proposta de pesquisa cartográfica deste trabalho, bem como as

escolhas e questões que permearam a construção do campo de investigação.

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Capítulo 2

UMA PESQUISA CARTOGRÁFICA

Apanho o celular sobre a mesa. Abraço o aparelho com os dedos e gentilmente

desbloqueio a tela. Abro o WhatsApp. Ensaio escrever uma mensagem para Roberta, mas aperto

o botão para bloquear com a velocidade de quem leva um susto. É que minhas mãos estão

mudas neste momento... Solto o celular enquanto um incômodo que parece nascer no estômago

escala o meu corpo. O incômodo transborda pelos olhos, enquanto estes buscam uma imagem,

uma figura, um detalhe que seja para consolá-los. Finalmente fecho os olhos e ponho-me

imóvel. Há sempre esta esperança de que tudo se acalme se não fazemos nada. Em vão. O

desconforto apenas cresce, atravessa as paredes do estômago, distribui-se pelas vísceras

vizinhas. Ele comprime os pulmões ao mesmo tempo que acelera o coração. Levanto-me da

cadeira em busca de alguma coisa para me socorrer. Decido fazer um chá. Deixo o celular e o

computador sobre a mesa. Enquanto me afasto, talvez eles me observem com compaixão.

Volto para a mesa algum tempo depois, munida do chá e do que consegui encontrar de

força de vontade e de coragem para persistir no trabalho mesmo depois das exaustivas horas

que já havia passado pensando e ensaiando uma escrita em frente ao computador. Enquanto eu

balanço o infusor de chá com camomila dentro da caneca com água quente, penso no

descompasso entre o que estou a fazer e o que um dia já imaginei sobre a vida de pesquisadora.

Cresci com a imagem dos cientistas e pesquisadores como pessoas centradas, muito

inteligentes, profundas conhecedoras de seu campo de estudos, aptas a lidar com grandes

questões e desafios com obstinação e sangue frio. Assisti, no cinema, a genialidade e a

competência que se sobressaiam como as características privilegiadas dos cientistas retratados

pela indústria cinematográfica nas últimas décadas do século XX. Essa imagem prevalecia

mesmo quando pesquisadores e cientistas possuíam um toque de desajeito bem humorado, uma

certa ingenuidade, excentricidade ou mesmo loucura que davam à sua figura um pouco desta

humanidade imperfeita, estranha, ambivalente que, afinal, compõe todos nós. Foram

inesquecíveis para mim as aventuras do destemido e incansável arqueólogo Dr. Henri Jones Jr.

criado por Steven Spielberg e George Lucas no filme Indiana Jones. E ainda o estilo exótico

do genial Dr. Emmett Brown, um dos personagens principais do filme Back to the Future, bem

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como a coragem da equipe científica composta pelos paleontólogos Alan Grant, Ellie Sattler e

pelo matemático Ian Malcolm que visitam a ilha habitada por dinossauros criados a partir de

DNA pré-histórico em Jurassic Park.

Ao mesmo tempo, na “vida real” assisti ao dia-a-dia dos meus pais, ambos

pesquisadores – um cientista nuclear e uma professora universitária de química –, que pouco

compartilhavam com as filhas pequenas os desafios, os problemas, a dureza, a frustração, a

solidão que também fazem parte das vivências subjetivas de um pesquisador, como vim a saber

tempos depois. Ao longo da minha infância, o que vi de suas práticas profissionais foram os

laboratórios recheados com instrumentos, ferramentas e materiais, as enormes máquinas e seus

sons imponentes, os líquidos se transformando em gases, os corredores frios, os jalecos brancos

decorados com o nome e a titulação do proprietário, os rostos sérios e compenetrados dos outros

pesquisadores que, ao ver os olhos curiosos de uma criança que acompanha o pai ou a mãe no

ambiente de trabalho, informa-a com a expressão facial que tem mais o que fazer.

Se a minha infância já se foi há algumas décadas, vale assinalar que nos dias atuais

persiste, no imaginário do senso comum, uma percepção similar da figura do pesquisador. Em

um estudo publicado em 2017 sobre a percepção pública da ciência e tecnologia no Brasil, a

maior parte dos entrevistados (50%) indicou que os cientistas são “pessoas inteligentes que

fazem coisas úteis à humanidade”, enquanto uma parcela bem menor (14%) os definiu

como “pessoas comuns com treinamento específico” (Centro de Gestão e Estudos Estratégicos,

2017, p. 68).

No meu caso, quando eu me tornei uma professora universitária, vi dissipar o glamour

diante da prática cotidiana de lecionar, estudar, pesquisar. É certo que são necessários rigor e

competência para desenvolver qualquer pesquisa, o que demanda da enorme maioria dos

pesquisadores variados estudos, o aprendizado prático com outras experiências, além de muita

dedicação para atender às exigências do trabalho que nunca se resumem às “aventuras no

campo”, abrangendo relatórios, prestações de conta, atividades burocráticas e outras que

consomem bastante tempo e paciência. Ademais, nas ciências humanas, sociais e da saúde,

nossos estudos envolvem um contato direto com “objetos” que são tão humanos quanto o

próprio pesquisador, o que torna as relações de pesquisa ainda mais complexas.

Enquanto observo a caneca de chá charmosa ao lado do computador, eu compreendo

racionalmente todas essas questões. Mas isso pouco me adianta para apaziguar a angústia que

dá cambalhotas em minhas vísceras, deixando uma terrível sensação de mal-estar. À medida

40

que bebo o chá de camomila, percebo que suas propriedades calmantes estão, de fato, muito

aquém do volume de ansiedade que parece percorrer cada pequena parte do que se passa sob

minha pele. É que agora, cumpridos pouco mais de dois anos do doutorado e concluída a

primeira fase das investigações de campo, instalou-se em mim uma sensação de paralisia, um

sentimento de despreparo, uma enorme confusão mental diante da grande riqueza e diversidade

de informações, relatos, registros, anotações que estão abrigadas no computador que continua

a me olhar da mesa, impassível. Além das informações produzidas e registradas, por se tratar

da proposta de realizar um trabalho cartográfico para a produção de conhecimentos nômades,

este estudo ainda envolve abrir espaço para a multiplicidade de afetos vivenciados nos

diferentes encontros que tive durante a pesquisa: encontros com livros, artigos, ensaios,

reportagens; participação em eventos acadêmicos, artísticos, populares; encontros com

pesquisadores, professores e estudantes de doutorado de diferentes áreas; conversas com

lideranças comunitárias e de movimentos sociais, artistas, mestres de saberes tradicionais;

visitas e encontros com membros de diferentes famílias. Tal abertura é importante em uma

cartografia para que aos afetos sejam dadas passagens nas vivências ao longo dos encontros,

conversas, visitas realizadas e também, de modo fundamental, no trabalho analítico e na escrita.

Finalmente consigo ligar para Roberta. Como minha orientadora, ao longo de todo o

processo de doutorado, ela nunca se esquivou do (árduo) trabalho de me acompanhar, refletir

conjuntamente, amparar ou mesmo consolar. Mais uma vez, sua experiência e doçura me

acalmam. Pesquisar não é uma tarefa fácil. Em uma proposta cartográfica em que é necessário

renunciar à ambição de buscar a estabilidade e a unificação da Verdade, em que o percurso de

pesquisa envolve acompanhar a vida em sua complexidade e processualidade com o intuito de

empreender análises capazes de mapear linhas, forças, fluxos, devires, multiplicidades em seu

funcionamento movente e em constante transformação, a tarefa, por vezes, pareceu-me grande

demais. Ou melhor, distante demais do modo como fui ensinada a pesquisar dentro dos moldes

hegemônicos da ciência moderna. Como a própria Roberta escreveu em outro momento:

Com certeza, os paradigmas emergentes e a cartografia ainda constituem desafios para nós, pesquisadores formados dentro de uma tradição moderna, acostumados a fragmentar, a racionalizar e a perseguir a verdade. Esse é um campo em construção, que combate uma lógica da racionalidade hegemônica na pesquisa. (Romagnoli, 2002, p. 171)

Trata-se, como ela ressalta, de um exercício que envolve, ao mesmo tempo, desapego

às formas acadêmicas instituídas dominantes e a ousadia de se aventurar na criação de um

dispositivo capaz de ligar a pesquisa com a vida (Romagnoli, 2002). Enfim, lembro que gosto

de aventuras. Recobro as forças. Meus dedos se aguçam em busca das teclas do computador.

41

Dispositivo de pesquisa

A escolha da cartografia baseou-se primeiramente em sua importância para o

pensamento rizomático proposto por Deleuze e Guattari (1980/1995). A cartografia é um dos

princípios do rizoma e envolve a construção de mapas que permitem a conexão de elementos e

planos da realidade. Mapas que devem permanecer abertos e conectáveis a partir de qualquer

uma de suas dimensões; mapas desmontáveis, reversíveis, aptos a transformar-se

constantemente e a adaptar-se conforme trilhados por diferentes indivíduos, grupos ou

formações sociais. O mapa é diferente do decalque, uma vez que este último visa à construção

de um modelo representativo, eixo genético ou estrutura profunda, sob o qual a realidade deve

ser rebatida para ser compreendida. O decalque remete, em última instância, ao Uno: “um mapa

tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre ‘ao mesmo’” (Deleuze &

Guattari, 1980/1995, p. 21). A cartografia visa, assim, promover investigações capazes de

sustentar a realidade em sua complexidade, evitando reduções e simplificações do que é em si

heterogêneo e processual.

A escolha da cartografia considerou ainda que esse método tem sido desenvolvido por

uma gama de pesquisadores brasileiros contemporâneos oriundos do campo da psicologia, mas

não apenas dele, como aponta Cintra et al. (2017) ao fazer uma revisão integrativa do método

cartográfico. Como afirma Virgínia Kastrup (2007), esse método vem sendo utilizado nos

estudos sobre subjetividade, possibilitando investigar os processos de produção subjetiva.

A autora considera que “a cartografia é sempre um método ad hoc” (Kastrup, 2007, p.

15). Por ser ad hoc, a construção do como fazer uma pesquisa cartográfica depende dos

objetivos da investigação, das condições e dos recursos para seu desenvolvimento, das apostas

e experiências dos pesquisadores, do contexto da pesquisa e, ainda, das relações que vão sendo

construídas entre os pesquisadores e os demais participantes em cada estudo. Assim, uma

pesquisa cartográfica não trabalha com categorias dadas a priori, externas ao campo de

investigação. Ela envolve a construção de um mapa para cada percurso investigativo. É

necessário criar um dispositivo de pesquisa a cada vez.

A noção de “dispositivo de pesquisa” é aqui inspirada nas considerações que Deleuze

(1996) faz em O que é um dispositivo? a respeito do uso desse conceito por Foucault em sua

42

analítica do poder. Foucault refere-se a dispositivo principalmente em suas obras Vigiar e Punir

(1975/1999) e História da Sexualidade 1: a vontade de saber (1976/1988). Mas é em uma

entrevista concedida em 1977 e intitulada Sobre a história da sexualidade que o filósofo

explicita o que compreende pelo termo: “[o dispositivo] engloba discursos, instituições,

organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas,

enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. (...) O dispositivo é a rede

que se pode estabelecer entre estes elementos” (Foucault, 1989, p. 244). Nele, as relações entre

os variados elementos formam “um tipo de jogo” em que posições e funções vão se modificando

conforme as relações de poder e de saber se estabelecem, se reproduzem e se transformam.

Nessa perspectiva, Foucault (1989) afasta-se do estruturalismo, assumindo que um dispositivo

não tem um fundo estático e definitivo. Na verdade, é justamente sua capacidade de mutação

que o torna eficaz: a articulação entre seus diversos elementos produz efeitos que incidem no

próprio dispositivo, produzindo ajustes e transformações no modo como os elementos se

organizam.

A partir das propostas foucaultianas, Deleuze (1996) considera que um dispositivo é

composto por diferentes tipos de linhas. Essas linhas são vetores que conectam e articulam

forças, corpos, palavras e coisas, estabelecendo certos funcionamentos e práticas, certas

maneiras de existir, certas posições diferenciais entre sujeitos e entre instituições. Há as linhas

de visibilidade e as linhas de enunciação que constituem regimes a distribuir o visível e o

invisível, bem como o enunciável e o indizível, a cada momento, nos arranjos do dispositivo.

Trata-se de modos de iluminar e de dizer que não se referem a objetos e sujeitos dados de

antemão; são esses modos que, ao dar visibilidade e ao nomear, fazem nascer os sujeitos, as

coisas e sua história. Há ainda, por todo o dispositivo, as linhas de força que estabelecem as

conexões entre o ver e o dizer, que produzem jogos de poder-saber e que mantém sujeitos,

palavras e coisas em uma incessante batalha por sua afirmação. Por fim, há as linhas de

subjetivação, sempre a se fazer, a se territorializar e a fugir do dispositivo. Trata-se de vetores

que conseguem escapar ao jogo de forças do dispositivo e se tornam capazes de promover uma

nova construção de “si próprio” (soi). Essas linhas deflagram, com isso, um processo de

individuação, a emergência de um novo modo de existência que provoca brechas, fissuras,

mutações ou mesmo a produção de um novo dispositivo.

Nessa perspectiva, a noção de dispositivo estabelece uma mudança de orientação do ato

de pesquisar: desloca-se do valor dado ao universal e ao eterno para a importância de se

apreender a processualidade da vida, as mutações e a produção do novo que sempre se anuncia

43

como linha de subjetivação. De fato, Deleuze (1996) salienta que, em um dispositivo, há sempre

um duplo movimento: do que somos e logo não seremos mais; e do que vamos nos tornando.

Há sempre, em um dispositivo, história e devir.

Vale assinalar que, na obra deleuziana, dispositivo e agenciamento são certamente

conceitos próximos, senão sinônimos em alguns momentos. Como citei no capítulo anterior,

Deleuze (1986/2005) afirma que todo agenciamento é um dispositivo concreto biforme

(conteúdo e expressão)11. Dentro de uma proposta rizomática de família, propus considerá-la

como um agenciamento. E agora intento utilizar dispositivo para referir-me à composição das

estratégias de pesquisa. Trata-se de uma diferenciação cujo objetivo aqui é considerar a

possibilidade de construção intencional dos dispositivos de pesquisa, cujas estratégias

escolhidas pelo pesquisador visam promover a articulação entre vetores de visibilidade,

enunciação e força – uma pequena máquina de fazer ver, fazer falar, fazer pensar capaz de

explicitar os jogos de força presentes no contexto da pesquisa. Capaz de acompanhar ainda,

além do que já está dado, as linhas de subjetivação e sua potência de produção do novo na

realidade estudada.

Diferentes estratégias podem promover um dispositivo de pesquisa: entrevistas

individuais ou em grupo; visitas guiadas a organizações e comunidades; a observação do

cotidiano do campo investigado; o mapeamento de documentos e imagens; a apresentação

coletiva de filme, documentário ou texto como analisador de certo tema ou problema social; a

participação em um jogo virtual e nas conversas a seu respeito; a realização de oficinas que

privilegiem modos expressivos diferentes do verbal (expressões plásticas, corporais e outras);

a vivência de uma dramatização; os registros (memórias e afetos) do pesquisador em seu diário

de bordo da pesquisa; ou mesmo a combinação dessas e de outras estratégias convocadas pelo

campo. Contudo, não é possível garantir, de antemão, que qualquer estratégia funcione como

um dispositivo na pesquisa, que certo procedimento concreto (entrevistar, observar, dramatizar)

acople-se aos agenciamentos do campo dando efetiva visibilidade e voz aos elementos e aos

jogos de força presentes, bem como acompanhando os caminhos e conexões que aí se anunciam

como linhas de subjetivação. Como afirmam Laura Barros e Virgínia Kastrup (2009), o trabalho

com dispositivos implica o pesquisador no processo de acompanhar seus efeitos e não apenas

colocá-los para funcionar.

11 Sobre o uso dos termos dispositivo e agenciamento nas obras de Deleuze e Foucault, bem como as inspirações mútuas para o desenvolvimento desses conceitos por cada filósofo, ver Pellejero (2016).

44

Para produzir o dispositivo desta pesquisa, escolhi um arranjo de estratégias e

experiências que envolveu:

1) encontros com livros, artigos, ensaios, reportagens que, de diferentes maneiras, me

contavam sobre o que estava a se passar em nossas dinâmicas sociais, culturais,

econômicas, políticas, tecnológicas, ambientais etc.;

2) encontros com minha orientadora, com outros professores e estudantes de doutorado

em disciplinas, grupos de pesquisa e seminários, o que viabilizou debates e reflexões

coletivas, bem como o compartilhamento de experiências, de problemas e questões dos

estudos, de percepções sobre o mundo e seus desafios contemporâneos;

3) encontros proporcionados pela participação em eventos acadêmicos, artísticos,

populares ao longo de todo o doutorado, cujo critério de escolha para minha presença

era sua possível potência de experimentação de outras maneiras de pensar e sentir;

4) encontros com pesquisadores de diferentes áreas (antropologia, história, ciência

política, geologia, gestão ambiental, comunicação social, filosofia, além da própria

psicologia), com lideranças comunitárias e de movimentos sociais, com artistas, com

mestres de saberes tradicionais, os quais denominei “informantes-chaves da pesquisa”

e que tiveram, nas conversas que tive com cada um, o papel de me ajudar a pensar sobre

esta investigação a partir de seus campos de conhecimento e atuação, bem como de suas

cosmovisões;

5) encontros com membros (todos ou alguns) de diferentes famílias, com visitas às suas

casas sempre que possível, com o intuito de conhecer seus funcionamentos familiares,

de permitir a minha aproximação de seus cotidianos, de interagir com os membros, de

resgatar suas histórias, de entender os agenciamentos aos quais estão conectados.

Esse dispositivo procurou dar visibilidade: ao diagrama de forças e aos múltiplos

agenciamentos deste tempo histórico; às visões e estudos que têm sido desenvolvidos sobre

família; aos modos como famílias brasileiras têm se conectado às forças sociais e às condições

concretas com que se arranjam em suas relações, variações e invenções. Como dito no capítulo

anterior, a proposta envolveu manter “um olho no peixe e outro no gato”, procurando identificar

tanto o diagrama de forças do tempo histórico atual quanto acompanhar sua efetuação (e suas

variações, ajustes e fugas) em famílias concretas e suas conexões sociocomunitárias e

subjetivas; seguir tanto as segmentações sociais em suas composições molares quanto sua

45

molecularização a nível micropolítico, e ainda as linhas de fuga empreendidas, aqui e ali, por

famílias e pelos agenciamentos de que fazem parte.

Os encontros com as famílias

Para os encontros com as famílias, o primeiro ponto foi a definição dos critérios para

selecionar as famílias que seriam convidadas a participar do estudo e a encontrar-se comigo

(um, vários ou todos os membros). Encontros que deveriam ocorrer em suas casas sempre que

possível. Diante da proposta da pesquisa foi importante tentar garantir a diversidade de famílias

participantes, o que envolveu considerar diversas origens étnicas, costumes, condições

econômicas e socioculturais. A escolha das famílias atentou-se ainda para a diversidade de

vínculos e alianças entre os membros, incluindo famílias compostas por um homem e uma

mulher casados e seu(s) filho(s), mas não se restringindo a esse tipo de configuração. Afinal,

como ressalta Scheinvar (2006), famílias constituídas por mães solteiras, por parentes que

assumem a responsabilidade pelas crianças, por casais separados, entre outros arranjos, podem

ser formas coesas de organização familiar, embora não se enquadrem no modelo hegemônico

de família de nossa sociedade.

Desse modo, escolhi buscar por grupos familiares pertencentes a diferentes tipos do que

denominei Coletivos de Pertença: 1) povos indígenas originários; 2) comunidades quilombolas;

3) famílias de classe média urbana; 4) famílias moradoras em ocupações nas periferias dos

centros urbanos; e 5) famílias ricas econômica e politicamente. O campo de investigação contou

com membros de famílias brasileiras residentes em Minas Gerais, estado onde o doutorado se

desenvolveu12.

A escolha das famílias orientou-se, do ponto de vista metodológico, pela técnica Snow

Ball Sampling (em português, Amostragem em Bola de Neve) como estratégia para acesso aos

diferentes Grupos de Pertença e famílias integrantes deles. João Osvaldo Dewes e Luciana

Nunes (2013) explicam que a Bola de Neve utiliza a ligação entre membros de uma mesma

população para, a partir de um(s) dos membros, obter a indicação de algum(s) de seus

12 A pesquisa contou com a participação de Ana que, pouco depois de completar a maioridade conforme as leis brasileiras, integrou-se a uma família indígena que vive no Parque Nacional do Xingu (Mato Grosso). As outras famílias participantes desta pesquisa têm a maior parte de seus membros morando em Minas Gerais.

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integrantes. Através da indicação por parte de um indivíduo de outro(s), e assim

sucessivamente, é possível conseguir o contato com um conjunto de pessoas integrantes do

coletivo selecionado, em um formato que se assemelha a uma bola de neve que acumula flocos

ao rolar e que, por isso, cresce. Trata-se de uma estratégia de “recrutamento em cadeia”13 que

se inicia pela identificação das “sementes” que devem ter conhecimento da população alvo da

pesquisa (Albuquerque, 2009). A partir da semente, começa o processo da bola de neve que

acontece em ondas:

Esses primeiros indivíduos são considerados a onda zero. Inicia-se o processo pedindo a cada semente que indique o contato de n outros indivíduos que eles consideram ser membros da população-alvo. A onda um é formada pelos contatos indicados pelos indivíduos da onda zero que fazem parte da população-alvo e que não fazem parte da onda zero. A onda dois é formada pelos contatos indicados pelos indivíduos da onda um que fazem parte da população-alvo e que não fazem parte da onda zero nem da onda um. O processo segue até que o tamanho de amostra desejado seja alcançado ou então quando uma nova onda não produza um determinado número de contatos novos. (Dewes & Nunes, 2013, p.12)

Escolhi como ponto de partida (onda zero) pedir a ajuda de alguns dos informantes-

chaves com quem conversei. Pedi a eles que me indicassem contatos de integrantes dos

Coletivos de Pertença acima definidos, que conheciam em virtude de seus estudos, práticas,

inserções sociais. Consegui diferentes indicações e, a partir delas, conheci as famílias que

integraram este estudo.

Quanto ao número de famílias cujos membros participaram da pesquisa, o que posso

dizer é que foram em torno de 15 famílias. Isso porque algumas das famílias participantes e

seus modos de funcionamento dificilmente podem ser enquadrados no que se entende

hegemonicamente por família. Com efeito, seus arranjos, se pensados apenas nos moldes da

família nuclear moderna, deveriam ser repartidos e reorganizados resultando em outro cálculo

do número de participantes. Seja como for e considerando o caráter qualitativo aqui assumido,

a quantidade de famílias mostra-se menos importante do que o modo como estas contribuíram

para a construção do estudo.

É importante lembrar, em consonância com a perspectiva rizomática de família

apresentada, que esse modo não priorizou um mergulho investigativo nas dinâmicas das

famílias “em si”, nem partiu de uma análise de cada família como interioridade como

13 Em pesquisas que pretendem realizar um tratamento estatístico/probabilístico com inferências e generalizações a partir de uma amostra significativa de uma população, Albuquerque (2009), bem como Dewes e Nunes (2013) sugerem a técnica Respondent-Driven Sampling, que utiliza de ponderação matemática na Amostragem em Bola de Neve. Aqui, no entanto, pelo caráter qualitativo cartográfico da pesquisa, a Bola de Neve tal como foi empregada atendeu à proposta de investigação.

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frequentemente ocorre em estudos sobre famílias no campo da psicologia. De outro modo, a

proposta de incluir o “fora” envolveu a consideração não apenas das identidades, conjuntos,

entidades, estruturas – tudo isso que delimita unidades (sujeitos, famílias) como um “em si”,

mas também e sobretudo, a consideração das multiplicidades que compõem as conexões entre

indivíduos, famílias, comunidades, grandes segmentações e modelizações sociais, aparelhos

estatais, lógicas políticas e econômicas e outros. Consideração que implica um trabalho de

análise transversal.

O conceito de transversalidade foi pensado por Guattari (1986) a partir das questões que

permeavam sua atuação clínica-institucional, em especial no hospital psiquiátrico de La Borde.

Ao pensar a dimensão da transversalidade, ele propõe a superação dos dois eixos que se

estabeleceram como modos hegemônicos de organização da realidade: a pura verticalidade com

as hierarquias e determinações daí advindas e a simples horizontalidade com seus conjuntos

homogêneos de pertença e equivalência. Para Guattari (1986) o uso vertical da informação

acaba por produzir assujeitamentos que impedem práticas que convoquem a autonomia. Já a

comunicação horizontal não pressupõe em si mesma partilha e pode se afastar da dimensão

coletiva ao se restringir a aproximações e trocas apenas homogêneas. A transversalidade

pretende superar os dois eixos, estabelecendo conexões e trocas entre heterogêneos,

composições entre multiplicidades capazes de fazer aflorar processos inéditos e engendrar

novas realidades (Simonini & Romagnoli, 2018).

Nesse sentido é necessário assumir o caráter de intervenção da pesquisa cartográfica,

uma vez que, para os cartógrafos, pesquisar não envolve interpretar o mundo ou representá-lo,

“mas acima de tudo trata-se de produzir o mundo, construir realidade” (Ferracini, Lima,

Carvalho, Liberman & Carvalho, 2014, p. 228). Trata-se de produzir uma operação de

transversalização que intervém na organização vertical-horizontal da realidade (Passos &

Barros, 2009). Isso possibilita a flexibilização das linhas que se endurecem nesses dois eixos e

permite que multiplicidades ganhem visibilidade e possam ser enunciadas. Como dissemos em

outro trabalho, na pesquisa cartográfica:

sustentar a transversalidade é produzir uma diferença em todos os envolvidos, produzindo deslocamento, processos de subjetivação que se fazem transversalmente, unindo estados, situações, ligando elementos distintos, associando subjetividades. A transversalidade produz alianças e passagens entre territórios estratificados que se sustentam pela reprodução; ela desestabiliza e constrói passagens inventivas, mundos outros. (Cardoso & Romagnoli, 2019)

Para iniciar os processos de transversalização no contato com as famílias organizei

alguns pontos que considerei pertinentes para me orientar durantes os encontros, em uma

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espécie de “roteiro aberto”. A partir dos pontos do roteiro, procurei seguir as considerações

sobre o que cada grupo familiar considerava como família – quais vínculos, afetos, alianças,

acordos, territórios, corpos, discursos compunham a sua referência ao seu próprio arranjo e sua

rede de apoio sociocomunitária. O roteiro ainda procurava acompanhar conexões que as família

estavam a produzir com os valores e as práticas socialmente difundidas pelo modelo dominante

de família de nossa época; com os modos de produção, distribuição, comunicação e consumo

do capitalismo atual; com os aparelhos de Estado tal como instituídos no Brasil; com o modo

de subjetivação que se sagrou hegemônico no projeto civilizatório da modernidade capitalista

e que têm difundido maneiras privilegiadas de pensar, trabalhar, desejar, sentir, relacionar-se.

Tratou-se de um roteiro aberto, já que, como uma bússola para meu trabalho cartográfico, esses

pontos marcavam um direcionamento inicial. Com efeito, em uma pesquisa cartográfica é

fundamental permanecer permeável aos acontecimentos e experiências vividas no campo.

Tive que lidar durante os encontros com as famílias com constantes fugas do roteiro.

Por exemplo, com a interrupção da conversa com uma dona da casa pelo conflito entre seus

filhos que entraram gritando na sala onde estávamos. Em outra oportunidade, vivi uma

experiência singular de compartilhamento de afetos que só ocorreu depois que o roteiro tinha

sido concluído e a disponibilidade para outros encontros abriu-se na conversa: a senhora que

me recebia em sua casa, de origem indígena, resolveu “visitar” comigo a sua aldeia, localizada

em outra parte do país, através das fotografias, recortes de revista e cartas que juntas

vasculhamos. Outra vez acabei sendo convidada, de forma inesperada, a participar de uma

reunião comunitária e a ajudar nas atividades, o que não envolvia diretamente as famílias que

eu pretendia visitar. Em todos os casos, meu roteiro era o começo de conversas e experiências

que ganhavam sempre outros contornos.

* * *

Como dito anteriormente, o trabalho cartográfico envolve assumir uma postura diferente

do que tradicionalmente se difunde nas práticas investigativas da ciência moderna marcadas

pela divisão entre sujeito e objeto e pelo papel de observador neutro e imparcial do cientista:

Diferente do método da ciência moderna, a cartografia não visa isolar o objeto de suas articulações históricas nem de suas conexões com o mundo. Ao contrário, o objetivo da cartografia é justamente desenhar a rede de forças à qual o objeto ou fenômeno em questão se encontra conectado, dando conta de suas modulações e de seu movimento permanente. Para isso é preciso, num certo nível, se deixar levar por esse campo coletivo de forças. Não se trata de

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mera falta de controle de variáveis. A ausência do controle purificador da ciência experimental não significa uma atitude de relaxamento, de “deixar rolar”. (...) O desafio é evitar que predomine a busca de informação para que então o cartógrafo possa abrir-se ao encontro. (Barros & Kastrup, 2009, p. 57)

Trata-se de uma postura ético-política importante. No caso desta pesquisa, ela envolveu

admitir o encontro das minhas experiências, estudos e condições de vida com realidades

socioeconômicas, culturais, comunitárias muito diferentes. Nesse percurso, admito a

necessidade de certa organização, que procurou, entretanto, sustentar os processos e as relações.

Foi preciso, por isso, construir um plano comum que viabilizasse tal encontro.

Virgínia Kastrup e Eduardo Passos (2013) indicam que o plano comum é fundamental

para a construção compartilhada de uma pesquisa cartográfica. Inspirados nas contribuições do

filósofo François Jullien, os autores afirmam que o comum é um conceito político que porta um

duplo sentido: pertencimento e partilha. O pertencimento implica conectar-se pela diferença.

Implica promover, através do dispositivo da pesquisa, linhas que conectem elementos e grupos

em sua heterogeneidade, ao invés de procurar seu agrupamento pela identidade, pela

semelhança e pelo homogêneo. Já a partilha não se refere à divisão da realidade em domínios

específicos, à operação de demarcação de territórios privatizados, pois, quando isso ocorre “[...]

assiste-se à inversão de sentido, a derrapagem do comum pela via de um ‘comunitarismo’

proprietário, privatista, excludente” (p. 269). Os autores dão como exemplo dessa lógica

excludente e privatista a ideia de que é preciso ser uma mulher negra para poder falar sobre

mulheres negras, ou ser cego para falar sobre cegueira:

Embora seja importante para a pesquisa contar com a participação daqueles que podem falar de dentro da experiência, limitá-la àqueles que possuem essa precondição não é de modo algum garantir seu sucesso. [...] Apostar nos pontos de vista próprios ou particulares é confundir o comum com o homogêneo. Nesse caso, o espaço de partilha da comunidade mais reparte do que faz participar, já que sua atividade inclusiva tem como contraparte a exclusão do não semelhante. (Kastrup & Passos, 2013, p. 269)

O trabalho de partilha deve ser então uma operação inclusiva: participar na diferença,

através da diferença. Afinal, se problemas raciais e de gênero acometem, antes de tudo,

mulheres negras, por outro lado, trata-se de problemas cuja força analisadora pode (co)mover

todos os participantes de uma pesquisa, inclusive não negros e não mulheres. Por isso, a prática

das pesquisas cartográficas deve envolver o preparo do pesquisador para promover a

transversalidade e suas conexões rizomáticas na produção de conhecimentos. O que, como

adverte Guattari (1986), envolve assumir o risco “[...] de ter de se confrontar com o nonsense,

com a morte e com a alteridade, risco esse relativo à emergência de todo fenômeno de sentido

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verdadeiro” (p. 102). Janice Caiafa (2007) aponta para a potência desse estranhamento, que

introduz irregularidades, desvios na continuidade do pensamento e da vida: “é esse atrito que

impulsiona o pensamento, que traz novidade” (p. 148).

Nesta pesquisa, o (com)partilhar incluiu as visitas às casas das famílias e encontros com

seus membros, mas não se restringiu a esses contatos, uma vez que todos os outros encontros

(dos livros aos informantes-chaves) foram importantes para a composição de um trabalho,

digamos, geográfico-afetivo: apresentar diferentes conexões que me (co)moveram – sempre um

misto de afetos-e-movimentos (do pensamento inclusive) – ao longo do trabalho. Nesse cenário,

vale destacar a importância do corpo e sua uma abertura para (co)mover-se através dos

encontros.

Em sua leitura de Espinosa, Deleuze (2002) retoma uma célebre frase daquele filósofo:

não sabemos o que pode um corpo. Trata-se de assumir que a potência do corpo ultrapassa o

conhecimento que nossa consciência e nossa vontade têm sobre ele, bem como os “[...] mil

meios de mover o corpo, de dominar o corpo” (p. 23). Em sua Ética, Espinosa (1677/2009)

propõe o paralelismo entre corpo e alma/mente, divergindo das propostas que tradicionalmente

concebiam a alma em posição de transcendência e controle sobre o corpo. Em uma perspectiva

monista e imanente, afirma que “alma e corpo são uma só e mesma coisa concebida ora sob o

atributo do pensamento, ora sob o da extensão” (Parte III, Proposição II, escólio, p. 200).

Paula Jesus (2015) assinala que, para Espinosa, o poder de um corpo está em sua

disposição para ser afetado. Ao ser afetado pelo encontro com outro corpo, ocorre uma mudança

no estado de nosso corpo e nossa mente. As afecções (affectio) oriundas do encontro com outros

corpos produzem afetos (affectus) que podem aumentar ou diminuir nossa potência. Os

encontros produzem, assim, uma flutuação de nossa capacidade de agir, de pensar, de desejar:

tornamo-nos mais potentes e mais atuantes, ou menos potentes e mais passivos de acordo com

os encontros e experiências que vamos vivenciando. Dessa flutuação depende nossa força vital

para perseverar, a qualidade ética de nossa existência (Sawaia, 2009). Mas perseverar na

existência não significa lutar pela sobrevivência a qualquer custo, pois nesse caso “nós

depreciamos a vida: nós não vivemos, mantemos apenas uma aparência de vida, pensamos

apenas em evitar a morte” (Deleuze, 2002, p. 33). Perseverar na existência envolve a disposição

de nosso corpo e nossa mente para encontros com outros corpos que nos afetem de modo a

aumentar nossa capacidade de agir e pensar no mundo.

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Em uma pesquisa cartográfica, a importância do corpo no processo da investigação de

campo envolve manter sua disponibilidade para afetar-se e comover-se, movendo com isso e

ao mesmo tempo o pensamento. O que amplia o horizonte de reflexões do pesquisador e

intensifica sua capacidade de produção de mundos, como assinalam Ferracini et al. (2014).

Assim, “cartografar é mergulharmos nos afetos que permeiam os contextos e as relações que

pretendemos conhecer, permitindo ao pesquisador também se inserir na pesquisa e

comprometer-se com o objeto pesquisado, para fazer um traçado singular do que se propõe a

estudar” (Romagnoli, 2009, p.171).

Como sustentar a disponibilidade do corpo-pensamento para os encontros no campo é

uma pergunta a ser feita. Tal como não há um modelo de dispositivo de pesquisa pronto a priori,

também o preparo de cada pesquisador envolve, a meu ver, as experiências e recursos

construídos ao longo de sua história, bem como as estratégias singulares escolhidas para a

conexão com o campo. De minha parte e nesta pesquisa, aproveitei, além dos estudos teóricos

e metodológicos e das experiências em outras pesquisas cartográficas, os aprendizados

desenvolvidos ao longo de vários anos em que pratiquei dança contemporânea e atuei em um

grupo de Contato-Improvisação. Nesse grupo havia todo um treinamento para “a espera”. Em

improvisações em dança realizadas em espaços públicos como praças, parques, estações de

metrô, deveríamos manter o corpo atento aos fluxos e acontecimentos que se sucediam pelo

espaço; e deveríamos mantê-lo disponível para acompanhar/intervir sempre que nosso corpo se

(co)movesse para tanto. Nesse contexto, era interessante observar como as intervenções que

ocorriam a partir dos afetos eram muito mais potentes e significativas (capazes de produzir

sentido para os que as presenciavam) do que aquelas em que algum bailarino decidia apenas

pela consciência14 realizar alguma intervenção no espaço.

A essa experiência, somou-se a imersão que realizei, durante o doutorado-sanduíche em

Lisboa, Portugal, no c-e-m (Centro em Movimento). Desde a década de 1990, o c-e-m tem se

ocupado em promover diálogos e produções que conectam Arte (em diversos suportes), Ciência

(em diferentes campos do conhecimento) e Sociedade15. Desde 2005, o c-e-m procura produzir

linhas de formação, ação e criação que conectam corpo-e-cidade. A partir de 2010, no quinto

ano de trabalhos contínuos nos diversos bairros de Lisboa, denominados Pedras D’Água,

14 Como afirma Deleuze (2002), a consciência não é o mesmo que o pensamento, que a ultrapassa. Como “central de controle” a consciência recolhe os efeitos dos encontros, mas quando ela os reduz à compreensão que consegue ter deles, condena-nos “a ter apenas ideias inadequadas, confusas e mutiladas, efeitos distintos de suas próprias causas” (p. 26). 15 Conferir o histórico e as atividades desenvolvidas pelo Centro em Movimento em www.c-e-m.org.

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iniciou-se uma publicação anual que apresenta as abordagens e experiências junto às diversas

realidades encontradas no espaço público da cidade de Lisboa a cada edição do projeto, além

de apresentações artísticas, mostras de vídeos, laboratórios, conferências, conversas, bailes,

ajuntamentos festivos itinerantes, visitas guiadas relacionadas às propostas de cada ano. Desde

2017, o trabalho com a cidade de Lisboa ampliou-se com a documentação entre-cidades, com

colaboração de vários lugares do Brasil, Argentina e Europa.

Nesse centro de formações e atuações artísticas, pude realizar um mergulho em algumas

das práticas do c-e-m de forma concomitante e complementar aos estudos realizados na

Universidade de Lisboa. Em especial, a prática da Escrita na Rua permitiu-me o exercício

semanal de estar na cidade de Lisboa em diferentes espaços e condições, bem como o de

escrever nessa situação e a partir dela – a Volta da Escrita, realizada a partir de um trabalho

corporal para tanto – o que enriqueceu meu preparo para a inserção no campo de pesquisa e,

como pontuo adiante, para a escrita dos diários de campo e da própria tese.

Em boa medida, esses aprendizados reverberam as ponderações de Sílvia Tedesco,

Christian Sade e Luciana Caliman (2013) sobre a realização de entrevistas (e aqui de visitas)

na perspectiva cartográfica, que requerem que “a escuta e o olhar se ampliem, sigam para além

do puro conteúdo da experiência vivida, do vivido da experiência relatado na entrevista, e

incluam seu aspecto genético, a dimensão processual da experiência” (p .301). Somam-se ainda

às reflexões de Kastrup (2007) sobre a atenção do cartógrafo, especialmente quando assumimos

que essa atenção é um exercício corpo-e-mente em que a “inteligência do corpo” – sua

capacidade de afetar-se de múltiplas maneiras – é tão importante quanto nossa atividade

cognitiva-mental.

Sobre a atenção no ato de pesquisar, Kastrup (2007) indica a proposta de Deleuze em

seu Abecedário (1994) de se ativar uma “atenção à espreita” – flutuante, concentrada e aberta.

A autora lembra que, como a atenção flutuante proposta por Freud para o psicanalista durante

o processo de análise, a atenção à espreita deve se despir da seleção prévia, pois “[...] ao efetuar

a seleção e seguir suas expectativas, [o analista ou, aqui, o pesquisador] estará arriscado a nunca

descobrir nada além do que já sabe; e, se seguir as inclinações, certamente falsificará o que

possa perceber” (Freud apud Kastrup, 2007, p. 16). É certo que Freud referia-se à escuta durante

o trabalho analítico e que, no caso de uma pesquisa, em especial a que aqui apresento, há a

demanda por uma atenção mais ampla do que a auditiva, envolvendo o trabalho ativo e

concomitante do conjunto dos sentidos do corpo do pesquisador que percebe e intervém. Então,

nessa perspectiva ampliada, empreender a atenção à espreita exigiu um trabalho de

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desprendimento da atenção seletiva em prol de uma prontidão corporificada, em que estar atento

significa deixar-se afetar e seguir as linhas expressivas (verbais, corporais, plásticas) que

ganham consistência dentro da dinâmica dos encontros.

Encontros e estranhamentos

A apresentação feita sobre a pesquisa cartográfica, com os diferentes aspectos que

fizeram parte efetiva deste trabalho, procurou sustentar não somente as intensidades e o

encontro com a diferença, mas também o plano de organização e suas segmentações que

também fazem parte.

A vivência desta pesquisa esteve permeada também por angústia, por confusão mental,

por paralisia, por atropelos totalizantes e, quando bem acolhidos, esses efeitos “negativos” do

estranhamento produzido em nosso corpo-pensamento pelo encontro com a diferença e com as

multiplicidades não são contraproducentes. Ao contrário e para lembrar uma assertiva de

Zaratustra, “é preciso ter ainda o caos dentro de si para poder dar à luz uma estrela dançante”

(Nietzsche, 1885/2018, p. 11).

Foi assim que encarei, sentindo um misto de vertigem e graça, um comentário do

primeiro integrante da família do quilombo que visitei. A visita foi em sua casa em Belo

Horizonte, antes da minha ida ao quilombo situado na região sul da Serra do Espinhaço em

Minas Gerais. Estávamos a conversar sobre sua família, quando pergunto a Diego16 se poderia

ir visitá-la no quilombo. Olhando-me com seriedade, ele me responde que achava que sim, que

eu poderia ir, mas previne-me que a minha visita seria uma tarefa trabalhosa, porque sua família

era bem grande.

Segura da minha própria compreensão sobre o que é uma família, rio-me por dentro com

a preocupação de Diego. Sua família poderia ser mesmo maior e tudo bem, pois visitá-la fazia

parte do investimento na pesquisa. A título de organização pergunto quantos eram afinal os

membros de sua família. “Ah, é umas 300 pessoas”, ele responde como quem procura atualizar

mentalmente seus cálculos. Diante da resposta, não consigo segurar a expressão de perplexidade

que toma conta do meu rosto. Penso que isso era realmente demais e uma ponta de desespero

16 Nome fictício. Os nomes de todos os integrantes das famílias que cito ao longo deste trabalho foram alterados em respeito ao sigilo proposto pela pesquisa, conforme orientação do Ministério da Saúde para investigações com seres humanos.

54

assalta meu coração enquanto pondero comigo mesma que teria muito trabalho. Mesmo uma

cartógrafa disposta a encontrar e a acolher a diferença tem os seus limites... Limites que, nesse

caso, não se referem ao trabalho de visitar 300 pessoas e, sim, à dificuldade de conceber uma

família tão numerosa e tentacular. Ampliar a minha compreensão de família era o verdadeiro

trabalho a ser feito.

Em outra oportunidade marco um encontro com uma família indígena. Apesar de sua

aldeia ser na região nordeste de Minas Gerais, um casal estava em Belo Horizonte para

participar da Formação Intercultural para Educadores Indígenas (Fiei) ofertada pela Faculdade

de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)17. Marcamos na própria

universidade o que, para mim, já era algo inusitado, uma vez que, nas minhas lembranças do

ambiente acadêmico, este pouco havia acolhido a participação de indígenas como indígenas.

Confesso que a alegria pela experiência me impediu de imaginar como seria de fato o encontro.

Fui assim munida de poucos preparos.

Ao chegar, vejo o casal que me aguarda na lanchonete da Faculdade de Educação. Peço

à mulher, Sandra, para escolher um local que considera adequado para nossa conversa. Ela se

vira para marido Iraí que está ao lado e para a neta que os acompanha e conversa com os dois.

A conversa é em outra língua, a sua língua, cuja sonoridade, ritmo, encadeamento eram muito

diferentes do que estou acostumada a ouvir. Não que eu não estivesse acostumada a escutar

línguas estrangeiras, pois eu estava. E ficava usualmente confortável em escutá-las e, por vezes,

conversar nelas. Mas, naquele momento, o que era realmente estranho é que a língua posta para

funcionar ao meu lado não era de outro lugar, país ou nacionalidade, ainda que fosse uma língua

de um outro mundo, de uma outra maneira de existir e que habitava o mesmo território que eu,

este que foi chamado Brasil.

Estranho isso de ver uma família brasileira que me deslocava de minha própria terra e

das instituições (inclusive da linguagem) que nela aprendi a me (re)conhecer. Essa sensação

acompanhou-me enquanto Sandra me indicava o local para nos alojarmos: o chão próximo a

uma árvore no jardim da faculdade, onde ela e seu marido se assentavam de forma muito

17 A Formação Intercultural para Educadores Indígenas é um curso de licenciatura que ocorre na UFMG no contexto do Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas e é voltada para a formação de professores indígenas que atuarão nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio nas aldeias. O curso procura integrar à educação formal as várias formas de uso da língua pelas comunidades indígenas, respeitar as especificidades de cada povo e articular conhecimentos tradicionais e conhecimentos acadêmicos.

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confortável. O conforto dos dois deixou-me mais à vontade. Assentei-me também, próxima,

ajeitando as minhas coisas no chão, enquanto Sandra abria sua sacola e tirava um tecido

colorido que foi se transformando em um vestido enquanto conversávamos (em português para

que eu pudesse entender). Sua neta – uma garotinha dos seus cinco anos – acompanhava curiosa

toda a conversa, atenta aos meus gestos e falas. Fico sabendo que ela não entende o português

e só o aprenderá na adolescência. Pouca vezes meu corpo compreendeu tão bem o conceito

deleuze-guattariano de desterritorialização: esse processo que acentua a ambivalência de nossa

relação com a terra. Desloca-nos das conexões profundas com o que compreendemos como

nossa “terra natal” – território mais existencial que geográfico, que dá visibilidade ao que nos

é familiar e vinculante, que marca os limites em relação ao outro como diferença, que nos

protege do desconhecido e do caos – para o encontro com o Fora, com “o espaço liso do

nomadismo” (Zourabichvilli, 2004, p. 46). Desta vez, tratou-se de fazer emergir na minha terra

natal uma parcela destas tantas multiplicidades que, por razões geopolíticas, econômicas,

religiosas, culturais, foram invisibilizadas na nossa história.

Esses encontros somaram-se a muitas outras experiências vividas durante a

investigação. Por certo, nem todos os encontros da pesquisa produziram afetos e deslocamentos

movidos pela possibilidade de experenciar o Novo. Por vezes o que acabou por me afetar foi a

reprodução, evidente ou discreta, do que já somos ou do que se espera que sejamos – as

segmentações e os modos de subjetivação hegemônicos que também nos compõem. Foi assim

quando convidei uma família de artistas para participar da pesquisa. Antes do convite, conheci

Dani e uma moça que, eu supus, era sua namorada pelos beijos e carícias que as vi trocar. As

duas estavam juntas em diversos eventos artísticos que eu frequentava. Contudo, algum tempo

depois de conhecê-las, encontro Dani acompanhada de um homem que ela me apresenta como

seu marido. E, em uma terceira oportunidade, encontro com os três, juntos em um evento.

Diante desse arranjo peculiar para a normalidade contemporânea, considerei que valia convidar

essa família para uma conversa. Pedi a um amigo comum, que estava a me ajudar na pesquisa,

para perguntar a Dani sobre a possiblidade de sua família conversar comigo no contexto da

pesquisa. Com a abertura da moça, perguntei a ela se eu poderia visitar a sua casa. Claro que

podia, ela me autorizou. No dia marcado e, desta vez munida de muitas expectativas para

conversar com um trio amoroso – um trisal, ao invés de casal, como acabei por nomear –, fui à

casa de Dani. Na mesa posta no jardim, uma garrafa de café, água fresca e pães de queijo

estavam gentilmente à minha espera. Em torno da mesa, três cadeiras... Cadeiras que abrigaram

a mim, a Dani e seu marido, enquanto eu escutava histórias e reflexões sobre a sua vida de

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casal. Nenhuma palavra sobre a outra moça, apenas uma breve ponderação dos dois sobre os

desafios da monogamia. Às vezes é assim, ainda que sempre o silêncio nos diga muitas coisas...

A escrita na / da pesquisa

Durante todo o processo de pesquisa, o registro das atividades, encontros, experiências,

bem como das sensações, afetos, reflexões e ideias foi muito importante. Esse registro abrangeu

tanto aspectos objetivos do que se passou (como a data de uma ida ao campo, as pessoas

presentes em uma visita, os documentos levantados) quanto aspectos menos precisos, mais

ligados às impressões, intuições, apostas. Ele foi feito através de anotações, desenhos e colagens

em alguns cadernos de capa dura que me permitiam escrever em pé, assentada ou mesmo em

movimento. Após o trabalho no c-e-m, escolhi trabalhar com cadernos contendo apenas folhas

brancas, uma vez que estes eram marcados pela ausência das costumeiras linhas horizontais

que, de alguma forma, determinavam um sentido para a escrita. Na folha branca, meus registros

passaram a funcionar efetivamente à maneira de mapas, com notas em diferentes direções e

linhas conectivas por todos os lados, como eu gostaria de experimentar. Além dos cadernos, as

conversas foram gravadas, alguns documentos copiados e registros fotográficos realizados18.

Todo esse material compôs meus diários de campo.

A escrita desses diários levou em consideração que o compromisso ético-político da

cartografia não se esgota nas propostas e conduções das práticas de investigação no campo da

pesquisa. A escrita é elemento fundamental que deve manter a potência das experiências, dos

encontros, da rede de afetos e das produções do plano comum, bem como as invenções e

transversalidades que ocorreram no campo. Também no momento da escrita é importante não

tomar os participantes da pesquisa como meros objetos e explicitar no texto a construção do

conhecimento a partir de um plano comum. Ela deve considerar ainda contradições, conflitos,

enigmas, problemas que também compõem o processo de pesquisar e, que muitas vezes, vão

permanecer em aberto mesmo com a conclusão do estudo (Barros & Kastrup, 2009).

Nesse sentido, cumpre resgatar as contribuições de João Paulo Macedo e Magda

Dimenstein (2009) para o trabalho de registro e de elaboração dos relatórios de pesquisa,

artigos, dissertações e teses que se orientam pelo método cartográfico. Esses autores propõem

18 A documentação da pesquisa seguiu o projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da PUC Minas e pelo CONEP (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa) sob CAEE n. 76647617.1.0000.5137.

57

uma escrita inspirada nos hipomnemata tal como trabalhados por Foucault (1983/1992) ao

refletir sobre as práticas de si na antiga Grécia.

Os hipomnemata eram uma prática de registro escrito entre os gregos que, em cadernos

pessoais, anotavam fragmentos de obras, citações, conversas, ações, experiências vividas,

reflexões, ideias, debates, entre outros. Esses registros “constituíam uma memória material das

coisas lidas, ouvidas ou pensadas; ofereciam-nas assim, qual tesouro acumulado, à releitura e à

meditação ulterior” (Foucault, 1983/1992, p.135). Como destaca esse filósofo, eles formavam

uma espécie de matéria-prima para a produção de textos mais elaborados, tais como os tratados

em que se apresentavam argumentos para lutar contra defeitos humanos ou enfrentar situações

difíceis.

A escrita nos hipomnemata tinha uma importante função ético-política ligada ao cuidado

de si. Ao invés de estabelecerem verdades gerais e abstratas nas quais se deveria crer,

configuravam uma prática capaz de promover a reflexão sobre o dito, o lido ou o feito em sua

força de verdade local e de autoridade tradicionalmente constituída naquele contexto,

reconhecendo, ainda, seu valor de uso a cada circunstância. Como assinala Foucault

(1983/1992) “a escrita como exercício pessoal praticado por si e para si é uma arte da verdade

constrativa; ou mais precisamente, uma maneira refletida de combinar a autoridade tradicional

da coisa já dita com a singularidade da verdade que nela se afirma e a particularidade das

circunstâncias que determinam seu uso” (p. 141).

Macedo e Dimenstein (2009) ressaltam que, nesse exercício de escrita, há a

transformação da verdade em ethos, uma vez que a experiência da escrita se estabelece como

um elemento de treinamento ou de governo de si com “função etopoiéitica” importante na

cultura grega antiga. Para esses autores, a escrita funcionava como prática processadora daquilo

já estabelecido e praticado cotidianamente de modo a afirmar, reinscrever ou criar elementos

de constituição de si, marcando, assim, a potência de experimentação da escrita e de sua

combinação singular. Nesse sentido, os hipomnemata seriam uma ferramenta através da qual

se pode refletir e transformar o que foi visto, escutado, lido e experimentado. Ferramenta que

permite a apropriação de elementos do vivido para alimentar a constituição de novos modos de

si.

A partir dos hipomnemata, Macedo e Dimenstein (2009) ponderam, contudo, que os

textos acadêmicos, nos quais se incluem os diários de campo, mas também relatórios de

pesquisa, artigos, monografias, dissertações e teses, frequentemente se distanciam do exercício

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praticado nos hipomnemata. Em busca da neutralidade e da representação objetiva da realidade

que tradicionalmente sustentam as ciências maiores ou ciências de Estado em sua razão

sedentária (Deleuze & Guattari, 1980/1997b), esses textos acabam por se distanciar da vida, em

especial quando se limitam a confirmar postulados e construtos teóricos já referendados sobre

a vida, incapazes de se abrir para uma produção ética-estética que acione a potência de

experimentação da escrita diante da vida.

Todavia, vale assumir que, mesmo para aqueles que se propõem a trabalhar com a

cartografia, esse desafio de abertura e experimentação sempre se coloca, já que (lembro mais

uma vez) os pesquisadores, inclusive nas Ciências Humanas, Sociais e nas Artes, têm sido

formados nos moldes tradicionais de ciência e suas metodologias. Se aqui ouso “misturar”

minhas experiências em dança e meu mergulho artístico nas práticas da Escrita na Rua do c-e-

m, trata-se de uma aposta na riqueza de se transversalizar minha formação, estudos e

experiências dentro dos moldes acadêmicos com práticas e aprendizados que, a meu ver,

potencializariam meu corpo-pensamento para os encontros ao longo da pesquisa e para uma

escrita sobre eles.

Cabe admitir, ademais, que na produção dos diários de campo, que são de uso pessoal

do pesquisador, é sempre mais fácil uma escrita nômade e criativa do que na produção de uma

tese. Nesta, o exercício da escrita torna-se algo mais delicado e comprometido, pois envolve

outros encontros: o encontro com outros trabalhos e estudos sobre o tema da pesquisa e sobre

o que mais se passa no momento histórico de sua produção; e o encontro com os leitores –

outros pesquisadores, a comunidade acadêmica e a sociedade em geral.

Para o exercício da escrita da tese, contei ainda com a importante contribuição dos

aprendizados adquiridos nos Seminários de Escrita e Leitura coordenados pelo Prof. Dr. Jorge

Ramos do Ó na Universidade de Lisboa durante o doutorado-sanduíche em Portugal. A

participação semanal no Seminário suscitou-me uma série de reflexões, das quais gostaria de

destacar a seguinte: Como uma escrita pode ser produzida em sua potência para (re)inventar

mundos, para apresentar o novo, para deslocar um pesquisador dos saberes epistemológicos,

teóricos, metodológicos que foram assimilados durante sua formação e se sedimentaram nas

formas como compreende a vida e realiza suas práticas investigativas? Ou ainda, como

empreender uma pesquisa e sua escrita como atos de criação? Não se trata de uma tarefa fácil,

especialmente diante da infinidade de exigências burocráticas, dos critérios de produtividade e

das determinações instituídas. De todo modo, a partir dessas perguntas, gostaria de destacar

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duas questões que me mobilizaram ao longo do estágio doutoral e que contribuíram para minha

pesquisa e para a escrita desta tese.

A primeira envolve as relações que o pesquisador e sua escrita podem estabelecer com

o que mais se produz e se pensa em seu tempo histórico. A segunda envolve a tarefa de tornar

os dados produzidos e o processo vivenciado na pesquisa acessível a seus possíveis leitores.

Para a primeira questão, parece-me importante considerar a capacidade performativa da

linguagem. Há diferentes maneiras de se empreender uma escrita e, em alguma medida, ela é

sempre construída em uma língua com suas condições históricas de sociabilidade. Como já

postulava Roland Barthes (1953/2006) em O Grau Zero da Escrita, é através da língua que a

História se mantém unida e familiar. Deslocar-se pela linguagem em busca da composição que

encontra o papel como suporte e a escrita como criação exige que o pesquisador assuma sua

própria língua e suas próprias condições históricas como horizonte inicial a partir do qual pode

apresentar suas investigações e análises. Mas é preciso ir além. Não se trata de buscar uma

ruptura radical, cujo destino último é encontrar o incomunicável ou a loucura. Também não se

trata, como adverte Barthes (1953/2006, p. 27), de fixar-se em uma “escrita intelectual” que

tem a pretensão de uma “proclamação coletiva” e que, por isso, já não compromete o autor, seu

passado e suas escolhas; uma escrita como um sinal econômico “[...] graças ao qual o escritor

impõe a sua conversão sem traçar nunca a história dela” e encontra a imagem tranquilizadora

da salvação coletiva como motivador para suas produções intelectuais. De outro modo, é

preciso implicar-se com aquilo que nos constitui enquanto sujeitos humanos – a história de

nossa época, nossa língua, nossas experiências – para nos depararmos com as forças e relações

que ora empurram o pensamento para a repetição, para a linearidade, para as pertenças e as

polarizações que as segmentam, ora nos permitem vislumbrar outras conexões possíveis,

performar uma escrita que, ao transformar a nós mesmos, já compõe um outro mundo possível.

Nesse sentido o estudo de outros pensadores é muito importante para nos ajudar a

produzir uma escrita embebida de “solidariedade histórica”, conforme expressão de Barthes

(1953/2006), capaz de arrastar o pesquisador e sua escrita para um encontro singular com sua

época e as questões a acometem. Uma escrita capaz de produzir uma espécie de espelhamento

do que somos, ao mesmo tempo que deve produzir um estranhamento diante dessa

familiaridade. Estranhamento que, tomando em consideração as contribuições de Julia Kristeva

(2017), pode ser aguçado por uma pergunta: minha escrita tem aptidão para a revolta? Revoltar-

se para essa autora envolve instaurar um dispositivo de rememoração do que somos: produzir

uma re-volta de nossa história capaz de se deparar com o que dela se endurece e nos cristaliza.

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Diferente de uma lógica linear de história, a aptidão para a re-volta envolve mergulhar sobre si

mesmo e sobre a História que nos constitui em um retorno que assume as possibilidades de

experimentação, invenção, transformação. Isso implica que o pesquisador, longe de ambicionar

uma escrita absolutamente original, reescreva-se no encontro com sua pesquisa, procurando a

singularidade no encontro de si e da investigação com a vida.

Quanto à segunda questão, sobre a tarefa de tornar os dados produzidos e o processo

vivenciado na pesquisa acessível para seus possíveis leitores, acompanho as reflexões de

Kastrup e Passos (2013) ao considerar que a cartografia deve realizar uma prática de tradução.

A tradução coloca o pesquisador entre línguas e experiências: as da pesquisa (o que envolve o

próprio pesquisador, os demais participantes e as produções realizadas no plano comum da

pesquisa) e as do leitor (em verdade, os múltiplos leitores possíveis). O pesquisador situa-se

como entre duas margens de um rio e a tradução torna-se uma prática de travessia.

Kastrup e Passos (2013), inspirando-se em François Jullien, William James, Daniel

Stern, Claire Petitmengin e Vinciane Despret, consideram a tradução como uma zona de

aventura em que o problema da fidelidade não é o cerne da questão. Para eles,

traduzir é realizar a passagem de uma língua a outra, sem que haja uma língua por trás, que pudesse funcionar como ponto de vista externo, garantido ou afastado. [...] Se não há correspondência de princípio, como conceber a passagem? Não podemos contar com invariantes que abririam para uma universalidade supostamente dada. Temos, ao contrário, que encontrar ou produzir equivalentes. Nos termos da pesquisa cartográfica, a equivalência produzida não é sinônimo de correspondência, mas se dá como sintonia no plano das forças. (Kastrup & Passos, 2013, p. 274)

Um aspecto importante envolve considerar como produzir equivalências que permitam

a conexão entre os diferentes mundos – os da pesquisa e os de seus leitores. Como essa proposta

de tradução cartográfica não envolve uma explicação a partir de analogias ou semelhanças

apontadas a partir de um campo de equivalentes já dado, externo e universal, traduzir torna-se

um trabalho de conexão de diferenças, de se traçar um caminho comum entre multiplicidades,

línguas, conhecimentos. Kastrup e Passos (2013, p. 276) afirmam que, à maneira de Despret, a

tradução envolve “coloca à prova”, o que “[...] significa que traduzir é experimentar e fazer

experimentar” um plano de conexões capaz de (co)mover territórios existenciais a criar novas

possibilidades de perceber a vida e seus desafios. Nessa perspectiva, é preciso que a escrita,

inclusive a acadêmica, mantenha a potência de inacabamento, intuição, suspeita e invenção dos

hipomnemata.

61

A partir dessas considerações, esta tese não se esmera em ser conclusiva, sob o risco de

se fechar sobre si mesma. De outro modo, aposto na potência de assumir também as aberturas,

as inconclusões, os afetos, as experimentações, os vazios de sentido que fazem parte das

experiências de pesquisar a vida em sua processualidade. Uma tal escrita deve tornar-se

acessível ao ser compartilhada em sua dimensão sensível, o que permite ao leitor tornar-se

sensível, afetado pela experiência. “Enfim, traduzir é acrescentar sentido, aqui entendido como

ampliação da sensibilidade de cada um” (Kastrup & Passos, 2013, p. 276).

Por derradeiro, vale esclarecer que as análises e a escrita desta tese foram sendo

elaboradas como mapas, traçados com as linhas percorridas nas experiências e aprendizados no

campo, nos registros, documentos e escritos nos diários de campo, nos estudos teóricos e nas

outras vivências que permearam de alguma forma o contexto da pesquisa. Sem ambições

totalizantes, homogeneizantes ou estruturantes das realidades cartografadas, os mapas intentam,

antes de tudo, indicar direções, campos de possíveis. Procuram tecer costuras das minhas

experiências, afetos, reflexões e conexões enquanto pesquisadora com o plano comum

produzido pelo compartilhamento viabilizado através dos diversos encontros ao longo do

trabalho. Mapas que, eu espero, consigam permanecer abertos, sensíveis e conectáveis em suas

múltiplas dimensões com outros estudos, propostas, experiências.

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Capítulo 3

ESTRANHO ESPELHO

Em busca de uma “família normal”?

Parei em frente ao prédio no coração de Belo Horizonte para a primeira conversa com

Patrícia. Estava na esquina da avenida Afonso Pena com a rua Rio Grande do Norte, em uma

das regiões mais valorizadas dessa capital. Segundo ela me contou posteriormente, o prédio

havia abrigado uma secretaria do estado até 2006 quando, com a inauguração da Cidade

Administrativa de Minas Gerais, sua sede foi transferida para este local. Desde então o prédio

permanecia praticamente vazio até que, em setembro de 2017, cerca de 200 famílias sem teto

ocuparam e se distribuíram pelos andares do edifício. No entorno, agências bancárias para

clientes exclusivos, elegantes prédios comerciais e a vista da Serra do Curral – o cartão postal

da cidade – na subida da avenida Afonso Pena faziam com o que os atuais ocupantes do prédio

a que me dirigia destoassem das condições de vida da alta classe média que historicamente

habita a região.

O portão de entrada do prédio estava trancado com uma corrente e um cadeado, ainda

que fosse possível ver o seu interior através das grades. Do lado de fora, acenei para um homem

assentado atrás de uma mesa a alguns metros da entrada. Ele levantou-se e veio até a porta.

Enquanto caminhava, reparei que seu biotipo franzino contrastava com os olhos firmes e a

postura ereta. Recebeu-me com um rosto opaco, sem sorrisos, e perguntou-me o que eu queria

ali. Expliquei-lhe que havia marcado de conversar com Patrícia. Apesar de não morar ali, ela

se encontrava no local para uma reunião de lideranças dos movimentos de luta por moradia da

cidade. O homem pediu-me um minuto e sumiu pelo pátio do andar térreo do edifício. Voltou

pouco depois com a chave na mão. Abriu a porta e me mostrou a ficha de registro de entradas

e saídas que eu deveria preencher. Após finalizar o documento, indicou-me a “sala da

administração”, onde deveria aguardar por Patrícia.

Subi as escadas localizadas no centro do pátio e segui para a sala. Nela um conjunto de

mesas alinhadas de uma parede a outra separavam um espaço interno, destinado aos

responsáveis pela administração, das cadeiras da recepção. Duas moças assentadas na parte

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interna conversavam e orientavam uma terceira que relatava a situação de violência doméstica

que estava vivenciado. Cumprimentei as três e assentei-me ao lado, escutando a conversa. A

moça que se queixava apresentou-se como Isabela. Era uma mulher negra muito magra cuja

expressão e marcas na face lhe conferiam a aparência de ter mais idade do que possivelmente

tinha. Isabela afirmava apanhar e sofrer ameaças com frequência. Antes do doutorado, havia

coordenado uma pesquisa sobre violência intrafamiliar e o discurso da moça espelhava

elementos de outras histórias que havia escutado ao longo daquela investigação. Entretanto, a

violência ali narrada estava a ser perpetrada por uma outra mulher.

Isabela conta-me que vivia com a companheira há oito anos e que ela era o amor de sua

vida, ainda que muito ciumenta e possessiva. Explica que, por isso, as duas brigavam muito e

a outra mulher acabava agredindo-a sempre que a situação “saía do controle”. As moças da

administração refletiam sobre a aplicação da Lei Maria da Penha19 para o caso, enquanto Isabela

oscilava entre escutar os conselhos e argumentar que não daria conta de fazer nada contra sua

companheira, pois não sabia viver sem ela, de quem parecia depender econômica e

emocionalmente.

Escutar essa situação de violência doméstica, que é mais visível entre casais

heterossexuais, deixou-me em alguma medida surpresa. Apesar dos meus estudos sobre

violência doméstica, nunca havia me deparado presencialmente com uma situação daquelas.

Com efeito, na pesquisa mencionada20, havíamos mapeado apenas situações de violência

cometidas por homens contra mulheres, crianças e adolescentes. Além disso, senti uma ponta

de decepção ao me deparar com uma forma violenta de amar em uma relação em que eu suponha

ser mais possível viver o amor de maneiras inventivas. Mas viver outros modos de amar exige

mais do que a assunção de preferências sexuais diferentes da heterossexualidade tal como é

exercida de forma dominante em nossa sociedade.

Em sua História da Sexualidade, Foucault (1976/1988) argumenta que as práticas

sexuais, a experimentação do prazer e de forma mais ampla as relações amorosas e alianças

conjugais são orientadas, em grande medida, pelas relações de forças que compõem os

dispositivos sociais (ou os agenciamentos, na concepção de Deleuze e Guattari, 1975/2003). As

19 A Lei n. 11.340, sancionada em 7 de agosto de 2006, ficou conhecida como “Lei Maria da Penha” em homenagem a uma mulher cujo marido tentou matá-la duas vezes, deixando-a paraplégica, e que desde então se dedica à causa do combate à violência contra as mulheres. O texto legal foi resultado de um longo processo de discussão entre entidades da sociedade civil e poder público e criou mecanismos que visam prevenir, punir e coibir a violência doméstica e intrafamiliar contra as mulheres. 20 Conferir o percurso e as reflexões produzidas pela pesquisa em Cardoso (2019).

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práticas sexuais e amorosas devem ser, assim, compreendidas atreladas às condições históricas

de cada época e de cada povo. No caso de Foucault (1976/1988), seu enfoque se dá nas práticas

corporais e discursivas que permeiam a sexualidade e que são permitidas, instigadas,

invisibilizadas ou proibidas pelos jogos de poder e pela produção de saberes que marcam as

sociedades capitalistas modernas a partir do século XVII.

Essas sociedades foram (e ainda são em boa medida) caracterizadas, entre outros, por

valores, condutas, apostas e práticas que formaram a burguesia como classe social e, nesta, o

modelo da família nuclear composta pela figura masculina do marido-pai provedor e patriarca,

pela figura feminina da esposa-mãe amistosa e cuidadora, e pelos filhos do casal. A partir desse

modelo nascido na burguesia europeia e difundido nas diferentes classes e lugares por onde o

capitalismo moderno se estabeleceu ainda que com ajustes e adaptações, consolidou-se um

modo hegemônico de se firmar alianças conjugais, de se amar, de se constituir famílias. Modelo

que se firmou também em solo brasileiro e que mesmo no terço final do século XX ainda

espelhava o arranjo familiar “casal com seus filhos” na maior parte das residências brasileiras21.

Se as linhas que compõem esse agenciamento familiar privilegiado são mais evidentes

em famílias cuja composição se assemelha ao modelo instituído, cumpre considerar que seu

formato, bem como suas segmentações, hierarquias, lógicas e práticas atravessam, em maior

ou menor grau, todos os arranjos familiares destes tempos, inclusive aqueles compostos por

duas mulheres. Maria Rita Kehl (2003) pondera que, mesmo em grupos que historicamente

contestaram a hegemonia da família nuclear e militaram por maior liberdade sexual e novas

formas de relação afetiva e familiar, tais como os movimentos feministas, homossexuais e

jovens, há casais vindos desses grupos que, ao se formar, acabam por reproduzir os padrões,

comportamentos, relações de poder em busca de uma “família normal” em conformidade com

esse modelo. Isso dá visibilidade à sua força na composição dos agenciamentos familiares

concretos, atravessando a sensibilidade, os desejos, os afetos e as práticas inclusive de muitos

dos que, de forma consciente e racional, militam por outros arranjos e relações.

É prudente afirmar que a grande maioria dos arranjos familiares organizados nos moldes

nucleares burgueses não funcionam através de agressões, ameaças e abusos entre seus

21 Conferir nesse sentido os dados do IBGE analisados por Berquó (1998). Já durante a primeira quinzena do século XXI a presença majoritária da composição pais com filhos foi superada pela somatória de outros arranjos domiciliares – especialmente casais sem filhos, famílias monoparentais e indivíduos morando sozinhos. Ainda assim, o conjunto “casal com filhos” permanece o tipo mais comum de arranjo domiciliar. Como mostra estudo do IBGE (2014), de 2004 a 2013 houve redução de 7% na proporção dos casais com filhos (de 50,9% para 43,9%) do total de arranjos familiares.

66

membros. Por outro lado, é importante considerar que houve, em sua construção histórica, a

estruturação de hierarquias que definiram lugares e papéis diferenciados para homens e

mulheres na relação conjugal e familiar, com a concentração de poder nas mãos masculinas.

Poder que, por vezes, descamba em relações violentas e abusivas por parte do marido ou

companheiro. Se isso não é uma norma absoluta e há relações em que são as mulheres que

violentam os homens, sua incidência é muito menor do que o contrário (Krug et al., 2002).

Seja como for, o que acionou minha atenção ao escutar a história de Isabela, eu que

estava na Ocupação para outra finalidade diferente de acompanhar sua conversa com as

administradoras do local e que me vi repentinamente envolvida no diálogo, foi o fato de que as

palavras, a postura, os medos contidos na descrição do relacionamento de Isabela com sua

companheira acoplava-se às lógicas, padrões e hierarquias desse modelo familiar, apesar de

suas óbvias diferenças em relação à sua composição (homoafetiva no caso). Aquelas mulheres,

enquanto casal, reproduziam o modelo nuclear hegemônico, de uma forma que acabou por

distendê-lo até seu exercício abusivo, até à violência de uma parceira sobre a outra. Parecia

haver uma “paixão”, não apenas entre Isabela e sua companheira, mas pelo modelo que elas,

mesmo com suas especificidades, perseguiam. Perseguiam violentamente.

Quanto ao modelo a que me refiro, é preciso analisá-lo de uma forma, digamos,

genealógica22 para entender algumas questões: Quais relações e jogos de poder produziram-no

e o sustentam em nosso tempo histórico, impondo-o com tanta força inclusive para famílias que

nunca vão “caber” nele e que, ainda assim, o desejam? Quais suas linhas de segmentaridade?

Quais pertenças, papeis, práticas, discursos, hierarquias que, ao serem traçados, o configuram?

Como se constituiu, afinal, a “família moderna”?

A família moderna

Gostaria de partir de algumas das reflexões apresentadas pelo historiador Phillipe Ariès

(1960/1986) em seu livro História Social da Criança e da Família. Essa obra é considerada por

muitos como seminal nos trabalhos sobre a construção do conceito de infância na passagem do

período medieval para a modernidade e é tida como importante referência em diferentes campos

22 Inspiro-me para essa análise genealógica, no método proposto por Michel Foucault. Sobre este, conferir a trajetória sobre a genealogia em Foucault proposta por Flávia Cristina Lemos e Hélio Rebello Cardoso Júnior (2009).

67

de saber como na história e na sociologia da infância e da família, bem como nos estudos sobre

as relações sociais da criança desenvolvidos em áreas como a educação e a psicologia.

Ariès (1960/1986) postula que, para compreender a família moderna, é necessário

diferenciar dois grupos distintos, ainda que concêntricos, que organizaram as famílias no

período anterior – a Europa medieval. Nesta, havia “a família ou mesnie, que pode ser

comparada à nossa família conjugal moderna, e a linhagem, que estendia sua solidariedade a

todos os descendentes de um mesmo ancestral” (p. 211). Acompanhando George Duby, ele

considera que as configurações familiares de então envolveram processos de dilatação ou

contração que ora englobavam toda a linhagem, ora restringiam-se a um casal e sua prole. Essas

dilatações ou contrações familiares estavam ligadas às garantias e à proteção dadas pelo Estado:

em momentos de menor força do Estado, a linhagem, com sua extensa rede de indivíduos

ligados em maior ou menor grau por laços de sangue, tornava-se uma forma de proteção de seus

integrantes contra ameaças de outros grupos. A prevalência da linhagem “[...] correspondia a

uma necessidade de proteção, do mesmo modo como outras formas de relações humanas e de

dependências: a homenagem de vassalo, a suserania e a comunidade aldeã” (p. 212).

A linhagem agregava seus membros sob a referência de uma autoridade ancestral. Um

de seus importantes aspectos era a indivisão do patrimônio, o que desprovia os descendentes de

independência econômica enquanto os ascendentes estivessem vivos e, mesmo após sua morte,

a linhagem ainda detinha direitos sobre o conjunto do patrimônio – a laudatio parentum

(Ariès,1960/1986). A partir dos séculos XIII e XIV, no entanto, a intensificação do comércio e

as mudanças que vão se processando na produção e circulação de mercadorias, nas trocas

monetárias e na acumulação de riquezas, bem como o fortalecimento do poder dos monarcas e

de sua capacidade de promover a segurança pública acabaram por produzir a contração da

família e sua delimitação no laço conjugal e sua descendência direta, em especial na burguesia

nascente e interessada em ter mais autonomia social.

Ariès (1960/1986) esclarece que essa nova configuração familiar não abandonou,

todavia, a autoridade que havia sido dada, século antes, à figura masculina. Ao contrário, essa

figura aumentou sua autoridade e poder, fazendo com que a mulher e os filhos se submetessem

a ela de forma mais rigorosa:

A partir do século XIV, assistimos a uma degradação progressiva e lenta da situação da mulher no lar. Ela perde o direito de substituir o marido ausente ou louco... Finalmente, no século XVI, a mulher casada torna-se uma incapaz, e todos os atos que faz sem ser autorizada pelo marido ou pela justiça tornam-se radicalmente nulos. Essa evolução reforça os poderes do marido, que

68

acaba por estabelecer uma espécie de monarquia doméstica" (Perot apud Ariès, 1960/1986, p. 214).

Contudo, Ariès (1960/1986) adverte que a contração do grupo familiar sob a autoridade

paterna por si só não foi suficiente para configurar a família nuclear moderna. Foi necessário o

seu entrelaçamento com outras mudanças sociais que se processaram até o século XIX, quando

a família nuclear tal como hoje a conhecemos se consolida como referência social. Entre essas

mudanças estão: 1) a institucionalização da escola como lugar privilegiado para a educação de

crianças e adolescentes, o que acabou por modificar as relações e os laços entre pais e filhos;

2) o fechamento das casas para a convivência social mais ampla e, dentro destas, a segmentação

dos espaços domésticos.

Durante a Idade Média até por volta do século XV, as famílias tinham o costume de

enviar suas crianças, meninos e meninas com idades entre sete e nove anos, para outras famílias,

onde em geral permaneciam até atingir de 14 a 18 anos. Nestas famílias, as crianças e os

adolescentes realizavam diversos serviços através dos quais esperava-se que adquirissem as

“boas maneiras”. Esperava-se que, no novo ambiente, “[...] aprendessem as maneiras de um

cavaleiro ou um ofício, ou mesmo para que frequentassem uma escola e aprendessem as letras

latinas. Essa aprendizagem era um hábito difundido em todas as condições sociais” (Ariès,

1960/1986, p. 229). O aprendizado infanto-juvenil ocorria, assim, pela participação das crianças

e adolescentes na vida cotidiana dos adultos nos mais diversos ambientes, mesmo naqueles que

foram taxados, posteriormente, como inapropriados para crianças. Havia meninos trabalhando

em ateliês ou servindo à mesa nas casas, atuando nos exércitos, ou brincando misturados aos

adultos em tavernas. Dentro dessa lógica de transmissão de conhecimentos, não havia lugar

para a escola, que se destinava basicamente à formação religiosa. Quanto à família, o valor para

seus membros era antes moral e social – a honra do nome e o patrimônio para os mais ricos, o

apoio material das aldeais ou das casas dos senhores para os mais pobres – do que sentimental.

A progressiva substituição do aprendizado realizado através da convivência cotidiana

das crianças com os adultos pelo aprendizado institucionalizado na escola mudou esse

panorama. Tal mudança envolveu o trabalho de eclesiásticos e juristas que, ainda raros no

século XV, foram tornando-se cada vez mais numerosos e influentes nos séculos XVI e XVII

e “[...] lutaram com determinação contra a anarquia (ou o que lhes parecia então ser a anarquia)

da sociedade medieval, enquanto a Igreja, apesar de sua repugnância, há muito se havia

resignado a ela, e incitava os fiéis a procurar sua salvação longe deste mundo pagão, no retiro

dos claustros” (Ariès, 1960/1986, p. 276). Eles propunham uma “verdadeira moralização da

69

sociedade” e a escola passou a ser vista como peça fundamental para efetuá-la. Passou-se a

admitir que a infância era um momento especial para o desenvolvimento espiritual, moral e

social das pessoas; era preciso cuidar dessa etapa como diferente das demais e o

desenvolvimento infantil necessitava de um “regime especial”, de um lugar especial – a escola.

A escola, por sua vez, acabou por aproximar os pais de seus filhos e responsabilizá-los

de forma mais direta pela educação destes. Mesmo quando as crianças e adolescentes eram

enviados para escolas distantes de seus lares, seu afastamento não tinha o mesmo caráter e não

durava tanto quanto o do aprendiz, e seus pais estavam mais próximos, levando-lhes dinheiro e

provisões periodicamente. Além disso, e este é um aspecto importante, à medida que a escola

vai se fortalecendo institucionalmente ao longo dos séculos XVII e XVIII, os teóricos sobre a

educação escolar passam a abordar “[...] os deveres dos pais relativos à escolha do colégio e do

preceptor, e à supervisão dos estudos, à repetição das lições, quando a criança vinha dormir em

casa” (Ariés, 1960/1986, p. 232). Nesse processo, a família vai se concentrando em torno das

atividades e aprendizados dos filhos, promovendo relações mais próximas entre seus membros.

Difunde-se a ideia de que os pais devem ser “guardiães espirituais dos filhos”, assumindo a

responsabilidade por estes diante de Deus.

Vale pontuar que a institucionalização da escola não se deu da mesma forma para toda

a população infantil. Ela foi destinada primeiramente aos meninos das famílias burguesas. A

alta nobreza permaneceu fiel à antiga forma de aprendizagem para sua prole, bem como os

artesãos e sua forte tradição da transmissão do ofício aos aprendizes. As meninas destas classes

permaneceram, de maneira geral, por mais tempo sendo educadas pelos costumes nas próprias

casas e, muitas vezes, em casas alheias. E as crianças pobres só muito tempo depois tiveram

acesso à escola e a seu processo institucionalizado de aprendizado. Ainda assim e mesmo que

aos poucos, a escola foi se consolidando como aparelho de Estado privilegiado para a educação

das crianças e adolescentes em todas as classes sociais.

Paralelamente à institucionalização da escola, é preciso considerar as mudanças que

foram se processando na casa das famílias, em especial nas grandes casas, urbanas e rurais, dos

comerciantes e produtores burgueses que se firmavam socialmente. No século XVII, essas casas

eram espaços de convivência, compartilhamento, trocas, negociações, celebrações com

vizinhos, amigos, apadrinhados, parceiros de trabalho, empregados. Essas casas, de fato,

possuíam uma função pública e estavam sempre muito povoadas. Nelas, dificilmente alguém

conseguia ficar sozinho por algum tempo e as experiências de intimidade e privacidade que

hoje sustentam o funcionamento das famílias nucleares ainda não existia.

70

Foi preciso que os educadores moralistas dos séculos XVII e XVIII se empenhassem na

tarefa de valorizar a separação entre a vida familiar e o restante da vida social bem como, dentro

dos lares, valorizar a separação entre a intimidade do pequeno grupo familiar (pais e filhos) e

sua interação com os empregados domésticos, que passaram a ser considerados nocivos para a

correta educação das crianças. Ademais, ainda que Ariès (1960/1986) não o diga, essas

segmentações entre vida pública versus vida privada, espaço da família versus espaço dos

negócios e do trabalho possivelmente se relacionam também com as lógicas e práticas

industriais que estavam se instaurando pelo mundo capitalista, colocando a fábrica e seus

negócios em outro local que não a casa. Com efeito, a separação entre público e privado parece

estar inserida em processos sociais mais amplos. Seja como for, “a reorganização da casa e a

reforma dos costumes deixaram um espaço maior para a intimidade, que foi preenchida por

uma família reduzida aos pais e às crianças, da qual se excluíam os criados, os clientes e os

amigos” (Ariés, 1960/1986, p. 267). Nessa família, a esposa deixou de ser tratada como

madame e passou a ser referida como “mamãe”, tanto pelos filhos como pelo marido. Questões

como a saúde, a educação e a conduta das crianças passaram a ser acompanhadas e reportadas

entre os pais.

* * *

É de forma muito breve, quase enigmática, que Ariès (1960/1986) faz referência à

situação da mulher – esposa e mãe – no processo de configuração da família nuclear moderna

que apresenta. Nas duas páginas do livro em que ele aborda o assunto, indica que “a partir do

fim da Idade Média, a capacidade da mulher entrou em declínio” (p. 213). E mesmo na extensa

análise que ele faz da iconografia de família entre os séculos XVI e XIX, nas quais de forma

recorrente aparece a diferenciação entre as representações do homem como o chefe da família

em sua virilidade e sucesso, figura central nas imagens, e as representações da mulher como a

cuidadora dos filhos, usualmente colocada ao lado, atrás ou abaixo do homem23, tal

23 Ariès (1960/1986) descreve, entre outras, a estampa produzida por Humbelot-Huard: “no gabinete do pai, um rico negociante em cuja casa se amontoam fardos de mercadorias e se alinham pastas de processos. O pai faz suas contas, com a pena na mão, ajudado pelo filho que se mantém atrás; a seu lado, a mulher cuida da filha pequena”. E a gravura de Guerard na qual “o pai – mais moço do que na gravura de Humbelot-Huart – mostra pela janela o porto, o cais e os navios, fonte de sua fortuna. Dentro do aposento, perto da mesa onde ele faz suas contas e onde estão pousadas sua bolsa, algumas fichas e um ábaco, sua mulher nina um bebê de cueiros e cuida de outra criança vestida com uma túnica” (p. 209).

71

diferenciação é pouco abordada. Prevalece a análise sobre a família nuclear em seu conjunto e

a ênfase na infância como etapa específica do desenvolvimento humano, diferente do mundo

adulto.

No entanto, vale resgatar um questionamento colocado por outro historiador, Eric

Hobsbawm (2009), que analisa o funcionamento da família burguesa no século XIX em seu

livro A Era do Capital: por que a sociedade capitalista que se consolidava nesse período,

empenhada em garantir a igualdade formal de direitos e oportunidades, bem como uma

economia sustentada pela livre iniciativa competitiva e uma política mais democrática e liberta

do conservadorismo e dos privilégios da nobreza, por que essa mesma sociedade apoiou-se em

um modelo de família que negava todos esses ideais? “A estrutura da família burguesa estava

em direta contradição com a sociedade burguesa. Dentro dela a liberdade, a oportunidade, o

nexo do dinheiro e a busca do lucro individual não eram a regra” (p. 244). Como regra, a família,

constituída por uma aliança monogâmica, “[...] era uma autocracia patriarcal e um microcosmo

da espécie de sociedade que a burguesia como classe (ou seus porta-vozes teóricos) denunciava

e destruía: uma hierarquia de dependência pessoal” (p. 245).

Com efeito, os vínculos do núcleo familiar burguês valiam-se de uma atualização do

patriarcalismo que nasceu antes dos processos que culminaram na institucionalização do

capitalismo. Se o patriarcado na Europa é mais antigo, cabe ressaltar ele que ganha contornos

próprios no capitalismo e nas famílias burguesas, cujo modelo acaba por reverberar por todo o

tecido social. Nesse contexto, a dependência – econômica, moral, jurídica, política – que esposa

e filhos possuíam em relação ao homem, responsável por prover o lar, bem zelar e responder

por este, não apenas se mantém, mas se aprofunda. À mulher cabia, como o “bom anjo da casa”,

dedicar-se aos trabalhos domésticos, cujas competências e conhecimentos deveriam ser

inferiores aos do marido, “pois as mulheres precisam ser dominadas, e a verdadeira dominação

é da mente” (Tupper apud Hobsbawm, 2009, p. 244).

É certo que nas famílias mais ricas, diferentemente dos burgueses de classe média, a

esposa, para ser uma verdadeira lady, deveria contar com empregadas (mulheres pobres em sua

esmagadora maioria) que faziam o trabalho doméstico sob seu comando. A doméstica,

moradora da casa dos patrões, vivia em um regime de internato, tendo seu tempo e seu corpo

inteiramente disponíveis para os mandos (e desmandos) de sua senhora, por vezes, por toda

uma vida. Essa relação, embora de trabalho e com o recebimento de um salário, envolvia um

vínculo em que a hierarquia por dependência pessoal acabava por se instalar: “Desde o uniforme

que usava até a carta-testemunho de boa conduta e ‘caráter’ sem a qual era impossível conseguir

72

novo emprego, tudo simbolizava uma relação de poder e dominação” (Hobsbawm, 2009, p.

245). Em todo caso, o homem, marido, pai e patrão permanecia sempre no topo desta hierarquia.

Apesar de se sustentar em valores e práticas que eram contraditórios com a liberdade e

a igualdade defendidas pelos burgueses, a família nuclear conseguiu justificar-se socialmente

através de discursos que argumentavam a necessária conciliação entre a vida livre, competitiva

e em busca do sucesso e do lucro para os homens na esfera social, e a vida recatada, subserviente

e dependente para a mulher ou mulheres (senhora e empregadas) na esfera íntima e privada do

lar. A pureza e a harmonia dentro do núcleo familiar deveriam ser garantidas pela mulher como

um bálsamo diante das lutas a serem empreendidas pelo homem para a conquista de riquezas e

prestígio social através de seu esforço, retidão moral e dedicação pessoal ao trabalho e ao

sucesso. Difundiu-se socialmente a ideia de que era necessário um lar calmo e acolhedor,

proporcionado pela mulher como uma figura mais frágil e incapaz para as tarefas de luta e

conquista, para fortalecer e cuidar dos “guerreiros” a quem era exigido viver em um mundo de

livre mercado e competição. A crença nesta complementaridade de papeis e na importância da

harmonia no lar parece ter justificado suficientemente a desigualdade entre os valores que eram

defendidos para a vida pública e para a vida privada familiar.

Entretanto, a pureza e a harmonia sonhadas para os lares burgueses esbarraram, também

elas, em contradições. A sexualidade (sempre mais complexa que o sonho amoroso romântico

e que o enfoque reprodutivo da moral puritana) foi certamente um problema. De fato, em uma

sociedade em que, ao mesmo tempo, havia o grito por igualdade formal e livre competição e

um modelo familiar que advogava pela fidelidade e pureza do ato sexual, circunscrito à relação

duradoura (“para sempre”) entre um homem e uma mulher casados, a sexualidade tornou-se

objeto de muitas controvérsias, repressões e vigilância (autovigilância inclusive), ainda que

tenha sido indiretamente muito instigada24. A hipocrisia tornou-se, por isso, uma das

características marcantes do mundo burguês, onde as vidas duplas e as traições, que ameaçavam

o sonho de harmonia do lar (e suas posses adjacentes), acabavam por ser veladamente

autorizadas e toleradas, prioritariamente para o homem (Hobsbawm, 2009).

Além disso, cumpre avaliar se o argumento socialmente difundido de que cabia à mulher

o cuidado para a harmonia e a pureza do lar burguês, se esse argumento justifica a maneira

24 Hobsbawm (2009, p. 241) ressalta que o elemento sexual no mundo burguês era “uma extraordinária combinação de tentação e interdição”. O corpo era quase todo coberto por tecidos, deixando pouca coisa à vista. “Ao mesmo tempo, e nunca tanto quanto nas décadas de 1860 e 1870, todas as características sexuais secundárias eram enfatizadas grotescamente: cabelos e barbas nos homens, cabelos, seios e ancas nas mulheres”.

73

como essa harmonia devia ser alcançada: através da submissão e dependência da mulher em

relação ao marido. Hobsbawm (2009, p. 246) indica que “[...] não havia evidentemente nada de

novo na estrutura da família patriarcal baseada na subordinação da mulher e filhos”. O fato é

que essa estrutura não apenas se reproduziu nas nascentes sociedades capitalistas, mas

aumentou a submissão e a dependência das mulheres em relação a outras épocas, justo nessa

sociedade que defendia valores como liberdade e autonomia. O autor aventa a possibilidade de

que a submissão e a dependência das mulheres em relação aos homens nas famílias burguesas

estariam ligadas a um exercício doméstico de reprodução das desigualdades de classe. Um

exercício de dominação sobre as classes e os sujeitos “inferiores” que deveria ser aprendido

desde o núcleo primário privilegiado que é a família.

Os estudos marxistas, aos quais Hobsbawm se alinha, privilegiaram historicamente os

conflitos e as contradições de classe, enfocando a exploração e a dominação da classe dos

capitalistas sobre a classe operária. O próprio Karl Marx pouco menciona em seus estudos as

transformações impostas pelo Capital (com o apoio dos Estados) às condições de vida e à

posição social das mulheres e destas nas famílias. Marx (1867/2013) defende que a existência

do Capital foi possível graças a uma acumulação primitiva que não foi gerada pela poupança

dos ricos, como era dito em grande medida pela economia política da época, mas por um

complexo processo histórico que destituiu os trabalhadores de suas terras e de seus meios de

produção e sobrevivência, transferindo-os para as mãos dos capitalistas. Ele focaliza seus

estudos nos trabalhadores assalariados europeus, embora reconheça que a colonização, com a

pilhagem e o controle monopolista das “novas” terras, suas populações e recursos, foram

importantes para a acumulação e o sucesso do capitalismo. Quanto às mulheres, sua análise as

abrange dentro da população operária em geral, ainda que não se furte em destacar, por

exemplo, as lutas para a redução da jornada de trabalho das mulheres (assim como das crianças).

Marx (1867/2013) cita a lei fabril adicional de junho de 1844, que passou a vigorar em setembro

desse ano na Inglaterra: “Ela acolhia uma nova categoria de trabalhadores entre os protegidos:

as mulheres maiores de 18 anos. Estas foram equiparadas aos adolescentes em todos os

aspectos, seu tempo de trabalho foi limitado a 12 horas, o trabalho noturno lhes foi vetado etc.

Pela primeira vez, a legislação se viu compelida a controlar direta e oficialmente também o

trabalho dos adultos” (p. 247).

Ainda que a equiparação das mulheres aos adolescentes pela lei pareça algo mais

próximo de uma infantilização da condição feminina do que o reconhecimento de suas

especificidades, é possível inferir que esse controle direto do Estado em meados do século XIX

74

sobre o trabalho das mulheres operárias tenha se fundamentado no reconhecimento de que, além

da jornada do trabalho para o mercado, essas mulheres tinham um outro importante conjunto

de tarefas a cumprir, inclusive em favor do próprio Capital: as tarefas ligadas a cuidar, nutrir,

revigorar e viabilizar a reprodução da força de trabalho em seus lares, para as quais em geral

não foram (e não são) remuneradas.

Com efeito, muitas mulheres mais pobres assumiram as tarefas domésticas e de cuidado

com os filhos, aceitando a dominação masculina no lar, e ainda participaram ativamente de

muitos ramos de atividades industriais e capitalistas que cresciam nesse período. Nas fábricas

têxteis inglesas, por exemplo, Hobsbawm (2000) constata que em 1838, do total de operários

empregados, 23% eram homens e 77% eram mulheres. Por um lado, a necessidade do trabalho

feminino fora do lar advinha da necessidade de que esse tipo de trabalho remunerado

contribuísse para que a família atingisse o montante necessário para sua subsistência. Por outro

lado, a mão de obra feminina, tanto quanto a infanto-juvenil, era mais barata, aumentando o

interesse dos capitalistas nos ramos em que era utilizada para garantir “[...] uma elevada

transferência dos rendimentos do trabalho para o capital” (Hobsbawm, 2000, p. 65).

Nesse cenário, é preciso destacar que as lutas, os estudos e as propostas contra a

exploração das mulheres trabalhadoras detiveram-se sobremaneira em uma visão (que incluiu

Marx e seus sucessores) de que sua exploração pelo Capital ocorria especialmente como classe

operária. De modo geral, as tarefas domésticas eram (e ainda são em boa medida)

compreendidas como uma vocação natural das mulheres a ser usufruída pela família. E quando

uma mulher recebia remuneração por essas tarefas, como no caso da empregada responsável

pelos serviços domésticos e ou de cuidado com as crianças, esse trabalho era considerado uma

“profissão inferior” mal remunerada25.

Discussões sobre a importância de se realizar análises das segmentações de classe

articuladas às segmentações de gênero nas sociedades capitalistas modernas (e dos impactos

dessas articulações sobre as famílias) só ganharam maior visibilidade a partir da década de

1970, com o fortalecimento dos movimentos feministas. Entre os diferentes trabalhos desses

movimentos, aqui destaco as reflexões de Sílvia Federici (2017) em Calibã e a bruxa, que

revisita o processo de transição do feudalismo para o capitalismo enfatizando a grande

25 Para se ter uma ideia, no Brasil, apenas em 2015, cerca de dois séculos depois do período a que estou me referindo, as empregadas domésticas (mulheres, em sua enorme maioria) viram ser promulgada a Lei Complementar 150 de 01/06/2015 que assegurou uma melhor equiparação entre os direitos dessas trabalhadoras e os de outras categorias.

75

importância que o trabalho reprodutivo exercido de forma quase sempre gratuita pelas mulheres

teve para a acumulação primitiva do Capital.

A autora frisa que a importância desse trabalho reprodutivo “invisível” para a

consolidação da sociedade capitalista precisa ser conectada à relevância social que a mulher

adquire como “anjo do lar”, cuidadora, recatada, dócil e submissa ao homem, dono e patrão na

família. Tratou-se de um longo e contundente processo que, entre os séculos XV e XIX,

envolveu significativas mudanças na realidade de grande parte das mulheres europeias, com a

destituição de direitos destas, com a restrição de suas possibilidades de trabalho e redução dos

ganhos destes advindos, com a implantação de um controle biopolítico e disciplinar sobre seus

corpos, com a desvalorização social de sua liberdade e autonomia. Esse processo foi

multiplicando uma série de práticas discursivas, de aparatos jurídico-policiais, de condições

materiais que aprofundaram a sujeição e dependência das mulheres em relação aos homens, ao

modelo nuclear de família e às tarefas reprodutivas que deviam desempenhar.

Um dos relevantes aspectos desse processo envolveu o deslocamento de boa parte das

propriedades na Europa das mãos dos clérigos, dos nobres e da grande massa de pequenos

produtores rurais para concentrá-las nas mãos de comerciantes e produtores capitalistas que

passaram a cercar e a limitar o acesso às propriedades adquiridas.

Como analisa Maurice Dobb (1946/1983), os novos proprietários dificilmente

mantinham os mesmos vínculos estabelecidos pelos antigos senhores com os camponeses e

outros trabalhadores que tradicionalmente estavam vinculados às terras. Essa concentração de

propriedades acabou por incluir terras que, no período feudal, eram consideradas campos

abertos (open-field system) de uso comum e terras comunais que protegiam as famílias

camponesas a elas ligadas das más colheitas em virtude das diferentes faixas de terra a que se

tinha acesso. Terras que viabilizavam ainda uma gestão comunitária, mais democrática e

solidária de seu uso, e possuíam um importante papel na socialidade das famílias, sendo o

espaço onde eram realizadas festas, jogos e eventos comunitários. As mulheres, “tendo menos

direitos sobre a terra e menos poder social, eram mais dependentes das terras comunais para a

subsistência, a autonomia e a sociabilidade” (Federici, 2017, p. 138). Com os cercamentos das

terras, boa parte das redes de cooperação e socialidade foram desfeitas, o que tornou muitas

famílias camponesas e, em especial, as mulheres ainda mais vulneráveis. A falta de acesso à

terra, a outros bens comuns e ao apoio comunitário foi uma importante brecha histórica para o

aumento da subordinação das mulheres aos homens e para sua captura pelo controle dos

Estados.

76

Além disso, o exercício de trabalhos remunerados por mulheres foi se tornando

paulatinamente menos valorizado, ao mesmo tempo que a participação de mulheres em muitas

atividades passou a ser mal vista. Federici (2017) assinala que “no século XIV, as mulheres

recebiam metade da remuneração de um homem para realizar a mesma tarefa; mas, em meados

do século XVI, estavam recebendo apenas um terço do salário masculino (que já se encontrava

reduzido) e não podiam mais se manter com o trabalho assalariado, nem na agricultura, nem no

setor manufatureiro” (p. 151). E completa, esclarecendo que no mesmo período “as mulheres

haviam perdido espaço inclusive em empregos que haviam tradicionalmente ocupado, como a

fabricação de cerveja e a realização de partos” (p. 182). As mulheres que necessitavam ou que

queriam trabalhar tinham dificuldades para encontrar atividades diferentes das que

historicamente eram consideradas “trabalhos femininos” com baixa remuneração: fiandeiras,

tecelãs, bordadeiras, amas de leite, alguns trabalhos rurais e o emprego doméstico, que se tornou

a principal ocupação feminina. Tornou-se ainda uma prática costumeira que as mulheres que

recebiam remuneração por seu trabalho a entregassem ao “homem da casa”. Esse cenário

acabou por inviabilizar a autonomia financeira das mulheres trabalhadoras e aprofundou sua

sujeição e dependência em relação aos homens.

Também as mulheres mais ricas perderam na Europa do século XVI e seguintes muito

de sua autonomia, uma vez que se disseminou a normativa de que o marido deveria ser o

representante legal e o administrador dos bens da família. A esposa passou a necessitar da

autorização do marido ou da justiça para que seus atos fossem reconhecidos e tidos como

válidos pelo Estado. De fato, o processo de sujeição e dependência femininas atravessou as

diferentes classes sociais: “Enquanto na classe alta era a propriedade que dava ao marido poder

sobre sua esposa e seus filhos, a exclusão das mulheres do recebimento de salário dava aos

trabalhadores um poder semelhante sobre suas mulheres” (Federici, 2017, p. 194). Em todos os

casos, o casamento e a procriação tornaram-se a verdadeira carreira feminina e sua incapacidade

de sobreviver sozinha era algo quase certo.

A família nuclear vai, assim, ganhando espaço como o locus adequado para uma mulher.

A Reforma Protestante foi importante nesse processo, uma vez que enfatizou a família como

algo sagrado. Diferente da Igreja Católica medieval que via na castidade e na dedicação

espiritual as verdadeiras formas de salvação, a Reforma valorizou a reprodução quando

realizada em um ato sexual sacramentado pelo casamento. Some-se a isso o interesse que as

monarquias absolutistas vão tendo, cada vez mais, no governo de sua população, com a

preocupação em impedir o decréscimo populacional. Com isso, diversos países europeus

77

adotaram medidas pró-natalidade, mas que não envolveram um incentivo, como ocorre hoje em

alguns países, à procriação. De outro modo, tratou-se de um duro combate estatal aos métodos

contraceptivos que as mulheres usavam durante a Idade Média, à interrupção da gravidez, ao

abandono e à morte de crianças e à realização de sexo fora do casamento. As estratégias de

vigilância e punição nesse combate geralmente focalizaram a conduta feminina e o controle

sobre o corpo das mulheres (Federici, 2017). Por exemplo, no século XVI, países europeus

passaram a criminalizar a prostituição, o que incidia basicamente sobre as prostitutas com

poucos efeitos sobre os clientes homens.

Através desses processos, a mulher foi sendo circunscrita à esfera doméstica.

Disseminou-se, nesse contexto, a ideia de que uma “boa mulher” deveria corresponder à esposa

e mãe passiva, recatada e zelosa com sua casa e família, sempre pronta a ajudar, apoiar e

concordar com o marido. Aquelas mulheres que não se enquadravam neste modelo de

feminilidade foram objeto de duras de críticas, condenação moral ou mesmo forte repressão e

punição estatal: mulheres que questionavam ou se impunham diante dos maridos, mulheres que

não se entusiasmavam com os serviços domésticos, mulheres vaidosas, desbocadas, luxuriosas,

mulheres que gostavam de andar sozinhas pelos espaços públicos, mulheres que se reuniam

muito com outras mulheres, mulheres que exerciam sua sexualidade fora das determinações de

procriação e de submissão ao homem. Todo um quadro social-estatal de perseguição e de

severas punições instaurou-se contra essas mulheres, produzindo, conforme Federici (2017),

uma verdadeira caça às bruxas.

Quando as penas degradantes e os suplícios foram sendo eliminados da paisagem social

no fim do século XVIII e começo do XIX e a prisão, tal como descreve Foucault (1975/1999),

ganha seu lugar como modo exemplar de punição, as mulheres haviam passado por quase três

séculos de depreciação social, incapacitação jurídica, controle biopolítico e punições

disciplinares e estavam, por assim dizer, docilizadas (para utilizar o termo desse filósofo). No

século XIX grande parte das mulheres, em todas as classes sociais, reproduziam em maior ou

menor grau os moldes da família nuclear, como afirma Ariès (1960/1986). Para todas elas, havia

um bem-sucedido (e naturalizado) controle sobre seus corpos e suas funções reprodutivas,

incrementado pela vigilância e análise sobre suas condutas exercida cotidianamente pelas

próprias famílias e ainda pelas escolas, igrejas, hospitais, fábricas e outros26.

26 Indico aqui os conceitos foucaultianos que apresento adiante, ainda que (sobretudo porque) esse filósofo não se deteve em análises específicas sobre o biopoder e sobre a incidência dos dispositivos disciplinares em relação às mulheres e sua capacidade reprodutiva. Aqui, escolho não me aprofundar

78

Se isso se passa nesse período de consolidação do capitalismo, é preciso ponderar, como

insinua Federici (2017), que não se trata de coincidência. Para ela, o próprio corpo tornou-se

para as mulheres o que a fábrica significou para os operários: a materialidade da exploração de

sua força vital para a acumulação do Capital. Para as mulheres mais pobres, isso envolveu dar

a vida e revigorar cotidianamente a mão-de-obra trabalhadora. Para as mulheres burguesas, isso

envolveu seu uso para a manutenção da unidade do sistema de propriedades e empresas entre

famílias aliadas, através de casamentos adequados e da produção dos descendentes que

pudessem seguir os negócios da família. Como Hobsbawm (2009) mostrou, também a formação

de novas, por vezes necessárias, alianças entre famílias mais ricas envolviam o casamento da

mulher: como nos casos em que o recebimento do dote tirava a família da noiva do sufoco ou

quando a necessidade de homens de negócios dinâmicos e competentes não era suprida entre

os membros da família, demandando a chegada de um noivo com essas características no

complexo de negócios da família.

Enfim, quando olhamos para a família moderna, é necessário não invisibilizar o fato de

que a sua institucionalização como modelo familiar envolveu, além da proximidade entre pais

e filhos, além de uma amorosidade mais expressa e praticada entre eles, além da presença e dos

cuidados com as crianças dentro de casa, ela envolveu uma divisão sexual do trabalho. Divisão

que se sustentou pela limitação das oportunidades de trabalho para as mulheres fora do lar, pela

restrição de seus direitos e a submissão deles à tutela de outrem e por um grande controle sobre

suas condutas. Não eram exatamente “os adultos” que se dedicavam integralmente aos trabalhos

domésticos e aos cuidados com as crianças, mas as mulheres. A elas, a modernidade capitalista

destinou prioritariamente as atividades reprodutivas, a serem exercidas em casa, sem

remuneração e, claro, sem reclamação.

* * *

Um outro ponto que gostaria de abordar a partir do trabalho de Ariès (1960/1986) é que

a família enfocada por esse autor é a família burguesa e a moralidade a que ele se refere foi

nas críticas colocadas por teóricas feministas de que Foucault, mesmo ao se embrenhar em uma História da Sexualidade, esquivou-se de considerar de forma aprofundada as diferenças de gênero. Ainda assim é importante considerar que as segmentações de gênero não podem ser invisibilizadas quando consideramos os diagramas de forças que configuraram os agenciamentos das sociedades capitalistas e a configuração hegemônica das famílias modernas.

79

aquela construída em torno dessa família. Como ele próprio afirma, a família nuclear foi

“originariamente um fenômeno burguês” (p. 278). O fato dessa configuração familiar ter se

sagrado hegemônica na modernidade capitalista, acompanhando a ascensão econômica e

política da burguesia e a difusão dos valores que esta vai consolidando socialmente, não deve

excluir outros processos, outros elementos, outros arranjos que também compuseram a

realidade europeia daquele período.

Nesse sentido, é preciso fazer uma ressalva quando observamos a ênfase dada pelo autor

à construção da infância como etapa diferenciada da vida adulta. Para ele, tal diferenciação foi

promovida por um processo de moralização encabeçado por teóricos que passaram a indicar a

escola como o lugar privilegiado de educação das crianças e adolescentes para as famílias

burguesas. Esses teóricos teriam contribuído ainda para a disseminação da ideia, nessas

famílias, de que os pais deveriam zelar diretamente pelo cuidado com seus filhos, o que

envolvia não apenas acompanhar os afazeres escolares e vigiar o comportamento das crianças

e adolescentes, mas também separá-los da “má influência” do mundo exterior e, especialmente,

das pessoas de classe inferior, inclusive as que lhes serviam como empregados. Para Ariès

(1960/1986), é nesse clima de zelo do par parental com os filhos que foi sendo construído um

funcionamento mais sentimental, com maior afetividade entre os membros da família.

Entretanto é preciso se perguntar: onde estavam as crianças mais pobres enquanto as crianças

burguesas iam para a escola e eram cercadas de cuidados em casa?

Não é suficiente indicar que elas permaneceram sendo educadas à moda medieval, pelos

costumes, se consideramos que a sociedade estava a mudar para todo mundo com a

institucionalização do capitalismo na Europa. As crianças das classes mais baixas vivenciaram,

tanto quanto os adultos dessas classes em particular e todos os indivíduos e grupos de modo

mais amplo, o mesmo processo de transição das feudalidades para o capitalismo e de

implantação de um outro projeto civilizatório. Se para as crianças burguesas esse processo

envolveu a nucleação e privatização de suas famílias, bem como o aprendizado e a

disciplinarização através da escola de forma pioneira, para as crianças vindas das famílias de

servos, artesãos, pequenos proprietários rurais e outros trabalhadores esse processo significou

um duro movimento de expropriação de suas terras, de suas condições ancestrais de trabalho e

de sua vida comunitária. Significou assistir à implementação de novos processos produtivos

que reduziram drasticamente as terras destinadas ao modo de produção para a subsistência, que

extinguiram os antigos contratos de servidão, que sucatearam a produção artesanal e que

80

instauraram a agricultura, a fábrica e o comércio capitalistas, multiplicando as lógicas do

trabalho assalariado.

Nesse contexto, as crianças mais pobres acompanharam uma mudança radical nas

condições de sobrevivência de suas famílias. Agora, camponeses, pequenos proprietários,

artesãos, entre outros, estavam lançados na condição de trabalhadores “nus”,

desterritorializados, desprendidos dos códigos e lógicas feudais, e “prontos” para vender sua

força de trabalho por um baixo salário (Deleuze & Guattari, 1980/1997b). É preciso considerar

que as crianças e adolescentes também perderam seus vínculos e a pertença aos antigos códigos

e restaram, também eles, “nus” diante das demandas do Capital. Muitos foram cooptados como

força de trabalho para as fábricas, para as minas e para a agricultura capitalista. Força de

trabalho que, ressalte-se, era mais barata do que a de um homem adulto e, por isso, mais

vantajosa para os donos do Capital, quando a atividade podia ser executada por um corpo de

qualquer idade ou mesmo quando era melhor executada por crianças.

Marx (1867/2013) não se cansou de detalhar as muitas lutas de homens e mulheres

trabalhadores para que limites à jornada de trabalho fossem fixados pelos Estados: “Assim que

a classe trabalhadora, inicialmente aturdida pelo ruído da produção, recobrou em alguma

medida seus sentidos, teve início sua resistência, começando pela terra natal da grande indústria,

a Inglaterra” (p. 245). Aí, data de 1833 a primeira lei que procurou coibir a exploração

desmedida do trabalho infantil. Antes dela, “[...] crianças e adolescentes eram postos a trabalhar

(were worked) a noite toda, o dia todo, ou ambos, ad libitum [à vontade]” (p. 245). As

determinações dessa lei, certamente insuficientes e que exigiram (e ainda exigem) muitas lutas

posteriores, envolviam a proibição do emprego de crianças menores de nove anos e a limitação

da jornada de trabalho a oito horas para crianças entre 9 e 13 anos e a doze horas para

adolescente entre 13 e 18 anos, em algum período entre cinco e meia da manhã e oito e meia

da noite, com uma hora e meia de intervalo para almoço. Quanto à escolarização das crianças

pobres, Marx (1867/2013) destaca que não faltaram capitalistas a ponderar se havia real

necessidade da frequência escolar dessas crianças, uma vez que seu destino era trabalhar como

operários em tarefas repetitivas.

Nesse contexto de exploração do trabalho infanto-juvenil, como salienta Klein (2012),

também nasceram preocupações das classes trabalhadoras com a proteção das crianças e

adolescentes e foi dada importância ao seu desenvolvimento com características e fragilidades

diferentes dos adultos. Sem marcar uma dualidade que exigiria uma indicação de qual criança

– aquela capturada pela escola e pela família nuclear burguesa, ou aquela capturada pela fábrica

81

– influenciou de forma mais contundente a preocupação com a infância e o modelo de família

na modernidade, opto por considerar o agenciamento desses diferentes componentes e suas

posições diferenciais no diagrama das forças sociais. Se sua visibilidade não é certamente a

mesma, é importante admitir que funcionam conectados.

* * *

Há, por fim, um terceiro ponto nas reflexões de Ariès (1960/1986) que gostaria de

resgatar para tecer algumas considerações a respeito. Esse historiador se pergunta, nas

conclusões de seu livro, como é possível falar de um triunfo do individualismo na modernidade,

quando “[...] toda a energia do casal é orientada para servir aos interesses de uma posteridade

deliberadamente reduzida? [...] Toda a evolução de nossos costumes contemporâneos torna-se

incompreensível se desprezamos esse prodigioso crescimento do sentimento da família. Não

foi o individualismo que triunfou, foi a família” (p. 273).

Ariés (1960/1986) marca claramente uma oposição: individualismo versus sentimento

de família. No entanto, vale perguntar se a família moderna não é um eficiente agenciamento

de produção de subjetividades individualizadas exatamente porque está permeada por uma forte

carga afetiva entre seus membros e por uma grande dedicação dos adultos (principalmente das

mulheres) para a criação dos filhos. Cumpre perguntar também por que a individualidade, o

individualismo, o sujeito individualmente considerado são assuntos tão importantes dentro dos

valores modernos.

No curso A tecnologia política dos indivíduos, Foucault (1988/2004) apresenta uma

questão que, a seu ver, caracterizou um novo polo de reflexão para a atividade filosófica a partir

do século XVIII e que poderia ser assim colocada: “o que somos nesse tempo que é o nosso?”

(p. 301). Como esse filósofo ressalta, nosso tempo é marcado por uma antinomia entre, de um

lado, o indivíduo como sujeito de direitos e liberdade e, de outro, a ordem e o controle da

totalidade social ambicionados pelos Estados modernos. Esta é possivelmente uma das grandes

batalhas de nossos tempos.

O sujeito individual, animado pela possibilidade de ter igualdade e liberdade

formalmente garantidas pelo Estado, sagrou-se a grande figura histórica que foi se configurando

com a institucionalização do capitalismo e com o crescimento da nova classe burguesa e suas

ambições de primazia política e cultural. Não apenas o trabalhador, mas o sujeito político

82

também está nu. Ele legitima-se juridicamente com as propostas e a racionalidade iluministas

do século XVIII e sua aposta no Estado de Direito contra o poder dos monarcas absolutistas e

a hegemonia da Igreja sobre os costumes. As revoluções sociais que daí se seguem neste século

e no seguinte deixam como legado a ruptura final com os laços e as lógicas feudais27.

A valorização (e a produção) do sujeito individualizado, autocentrado, autônomo, capaz

de autodeterminar-se está presente em propostas e produções de diferentes campos de saber e

de práticas modernos. Em suas variações, da filosofia às ciências jurídicas, das artes às

pedagogias, da economia aos esportes, da política às ciências da saúde física e mental, há a

valorização da individualidade, da privacidade, da intimidade, da racionalidade, da vocação,

competências e méritos pessoais, bem como a difusão de práticas discursivas que propõem o

respeito à liberdade do Homem e sua capacidade de escolha. Contudo, é preciso considerar que

o indivíduo não emerge como a restauração da condição ontológica do Homem depois de

séculos de repressão pela “idade das trevas” medievais, como muito já se defendeu28. O

indivíduo, tal como a modernidade, suas ciências, sua política e sua economia o reconhecem e

o valorizam, tem data de nascimento histórica. Se não podemos ignorar sua importância para

os processos de subjetivação atuais e para os saberes que se produzem sobre eles, é importante

considerar também como seu sucesso social e seu sonho de se tornar uma categoria universal

27 Conferir a análise que Hobsbawm (2009) faz sobre as revoluções de 1848 que, apesar de sua brevidade histórica, logo vencidas pela Restauração, trouxeram importantes consequências sociais: “Mesmo os pesados e ignorantes camponeses da Itália do sul, na grande primavera de 1848, cessaram de patrocinar o absolutismo” (p. 40). 28 Sobre a consideração da Idade Média como idade das trevas e do atraso histórico, vale lembrar o contraponto defendido por José Carlos Rodrigues (1999, pp. 19 e segs.) de que o “empobrecimento semiológico da Idade Média – procedimento que consiste em desqualificá-la para, sobre esta desqualificação, fundar a ilusão de superioridade do conhecimento que pensa poder abarcá-la” é uma atitude que procurou garantir a supremacia das lógicas, sensibilidades e funcionamentos das sociedades capitalistas modernas. Na visão de mundo moderna, “aqueles séculos constituiriam uma espécie de território de barbárie, noite de mil anos, floresta de pedra, idade das trevas, período da história em que nada ou quase nada culturalmente relevante teria acontecido. Tempo em que tudo o que fosse virtude pelo prisma das ideias capitalistas simplesmente inexistiria”. No entanto, esse antropólogo destaca que, se repararmos de outro ângulo, veremos que a Idade Média teve, “ao contrário, um grande crescimento de populações, um fervilhar de movimentos e de trocas entre tribos e povos que se cruzavam e interinfluenciavam. Descobriremos imensa dilatação dos espaços ocupados, homens se estabelecendo nos mais diversos pontos da Europa, vindos de fora e aí lançando raízes. Verificaremos enorme florescimento de cidades, dos pequenos burgos às grandes aglomerações. Saberemos das grandes viagens para a Ásia e África, das aventuras de pessoas que foram longe e que retornaram com ideias e imaginários enriquecidos e multiplicados. Visitaremos catedrais, castelos, fortificações, grandes prédios que são obras de arte, sínteses de uma visão de mundo, obras nas quais não há um milímetro em que não se possa ver a concretização artística dos usos, das concepções, do imaginário sagrado ou cotidiano”.

83

para todos seres humanos estão relacionados com as condições históricas que lhe dão a

possibilidade de existência neste período.

Um primeiro ponto é que, acoplados aos sonhos de liberdade e igualdade (a fraternidade,

o terceiro pilar retórico das lutas modernas, nunca veio muito ao caso...), os processos de

individualização têm raízes nas exigências produtivas concretas do modo de produção

capitalista que se institucionaliza na modernidade. É como indivíduo que o homem pode se

tornar um assalariado, cuja retribuição em dinheiro pelo trabalho é medida pela produtividade

de seu corpo em uma certa quantidade de tempo. É como indivíduo que ele poderá ser mais

bem vigiado, treinado e controlado; que ele será premiado segundo suas potencialidades, ou

corrigido e punido por desviar-se da normalidade. É, enfim, como indivíduo que os Estados e

o Capital vão considerar os seres humanos – qualitativamente em si mesmos e

quantitativamente como membros da população. Assim, no mesmo período em que a família

nuclear burguesa se configura e se institucionaliza como modelo adequado de arranjo familiar,

emerge a demanda por um certo tipo de sujeito histórico, uma subjetividade individualizada,

produtiva e dócil. Essa subjetividade vai sendo produzida por um conjunto de técnicas e táticas

que se disseminaram na modernidade empregadas pelos aparelhos de Estado e nas mais diversas

instituições sociais.

Essas técnicas e táticas foram denominadas por Foucault (1973/2002) de disciplinas.

Em uma série de conferências realizadas no Brasil em 197329 e a seguir de forma mais detalhada

em seu livro Vigiar e punir, lançado em 1975, Foucault apresenta seus estudos sobre a

implantação dessas técnicas e táticas, partindo do estabelecimento da prisão como forma

privilegiada de punição penal. Aqui, o que cumpre destacar das análises foucaultianas acerca

das sociedades disciplinares é que a prisão se mostra como instituição exemplar para todo um

conjunto de estratégias de vigilância e controle que acabam por se difundir em diversas outras

instituições, com o intuito de acompanhar de perto as pessoas individualmente consideradas,

procurando adequá-las às lógicas sociais, subjetivas e econômicas da modernidade capitalista.

Foucault (1975/1999) cita a prisão de Walnut Street, inaugurada em 1790 nos Estados

Unidos. Trata-se de um lugar ao mesmo tempo de confinamento e trabalho obrigatório em

oficinas. O produto do trabalho dos presos deveria contribuir para o custeio de suas despesas e

ainda garantir um salário que lhes assegurasse a reinserção moral e material quando saíssem do

29 A série de cinco conferências, proferidas por Foucault entre 21 e 25 de maio de 1973 no Rio de Janeiro, foi organizada no livro A verdade e as formas jurídicas (2002).

84

cativeiro. Os detentos deveriam permanecer constantemente ocupados, cada instante dos dias

era destinado a alguma atividade. No entanto, a reclusão por si só era considerada incapaz de

aprimorar os comportamentos. Era preciso que os detentos também se empenhassem em alterar

seus comportamentos e salvar suas almas corrompidas, seguindo as determinações da

administração do presídio. Uma série de práticas de controle do tempo, dos corpos e das

disposições dos prisioneiros, individualmente considerados, visavam transformar a

subjetividade destes. Essas práticas exigiam a vigilância contínua pelos agentes penitenciários,

cuja observação dos detentos deveria ser detalhadamente registrada. “Esse controle e essa

transformação do comportamento são acompanhados – ao mesmo tempo condição e

consequência – da formação de um saber sobre os indivíduos” (p. 145). Construído dia após

dia, esse saber permitia classificar os presos menos em razão de seus crimes que de suas

disposições, instaurando um microtribunal cotidiano que não parava de julgar aqueles já

condenados.

Ainda no campo jurídico-penal, Foucault (1973/2002) salienta que no século XIX as

grandes reformas empreendidas nos sistemas penais valorizaram o papel das circunstâncias

atenuantes, mais ligadas às características individuais dos acusados do que ao dano social

objetivamente causado pelo crime. Valorizaram também a periculosidade da pessoa do

criminoso como aspecto a ser considerado em seu julgamento, na condenação, na determinação

da pena e ainda na execução desta na prisão. Instaura-se, nesse contexto, uma lógica que desloca

a investigação criminal do tipo inquérito que procura entender o que ocorreu e os impactos

sociais causados (o que foi feito? quais as consequências?) para um novo tipo de investigação

– o exame, cujo objetivo é evitar que algo ocorra. O exame se processa por vigilância contínua,

a partir da qual é possível construir, como em Walnut¸ um saber sobre quem se vigia, definir

sua periculosidade, atuar não pelo que se fez, mas pelo que se pode fazer. Essa lógica é

encarnada em um tipo especial de arquitetura: o panoptismo proposto por Bentham e lembrado

por Foucault (1973/2002 e 1975/1999). As prisões panópticas amplificam o olhar do agente

penitenciário encarregado da vigilância. Do alto de sua torre colocada no centro do presídio, o

agente é capaz de examinar cada detento individualmente, de forma a acompanhar todos os seus

movimentos o tempo todo.

O que nos interessa, neste trabalho, é que esse olhar e essa vigilância sobre cada

indivíduo, sobre suas disposições, sua periculosidade, suas potencialidades não vão se

restringir às prisões, mas espalhar-se por todo o tecido social. São impressionantes as

semelhanças na descrição que Foucault faz da prisão de Walnut Street e de um tipo de fábrica

85

que foi implementada em larga escala no século XIX na França, na Suíça, na Inglaterra, nos

EUA. Foucault (1973/2002, pp. 108 e segs.) destaca que essas fábricas, só no sudoeste da

França, empregaram mais de 40.000 operárias no ramo têxtil em regime de confinamento. As

internas residiam nas fábricas e deveriam ter o mínimo contato possível com o “mundo

exterior”, devendo se dedicar somente ao trabalho e ao cuidado religioso. Seus dias eram

rigorosamente organizados e vigiados, da hora de se levantar até a hora de dormir. Inclusive os

domingos, destinados ao descanso e ao cumprimento do dever religioso, estavam sempre sob

vigilância.

Além das prisões e fábricas panópticas, todo um sistema de vigilância, controle e

correção instaurou-se também em escolas, orfanatos, centros de formação, quartéis, conventos,

casas de acolhimento. O confinamento, com a permanência contínua das pessoas no

estabelecimento, torna-se comum em boa parte dessas organizações. Nas organizações que não

podiam sustentar o confinamento, diversas técnicas de vigilância, controle, correção, punição e

premiação foram sendo desenvolvidas. Em todas, um objetivo comum: os mecanismos de

vigilância e seus microtribunais de punição dos desviantes e de premiação das condutas

exemplares balizam, para a massa dos indivíduos, as condições da normalidade: do que é

normal e do que anormal, do que é correto ou não, do que se deve ou não fazer. E há ainda

nesse período a disseminação de instituições destinadas a confinar os casos a serem mais

rigorosamente penalizados, corrigidos ou tratados: os hospitais, os hospitais psiquiátricos e as

próprias prisões.

As técnicas e estratégias disciplinares estabelecem um controle e um poder sobre os

indivíduos que não se resume nem se destina aos aparelhos de Estado. As disciplinas operam

de forma muito eficiente no singelo orfanato, no grande presídio, no reconhecido colégio

interno, na oficina do subúrbio. Elas atravessam as redes institucionais intraestatais, ainda que,

obviamente, o Estado muito se beneficie delas.

É nessa rede de micropoderes disciplinares que um novo modo de subjetivação, que

produz o sujeito individualizado, espalha-se à medida de que o capitalismo se consolida. Sua

produção através da vigilância e do confinamento não têm, como objetivo primordial, excluir

os desviantes, doentes, criminosos, ainda que isso também seja feito; o objetivo desse modo de

subjetivação é incluir os indivíduos, ensinando-lhes os comportamentos adequados. As

estratégias e técnicas utilizadas visam, com efeito, disciplinar os corpos, higienizando-os para

que permaneçam saudáveis e moralmente adequados e docilizando-os para que constituam uma

força de trabalho capaz de suportar a rotina das fábricas, a execução das tarefas repetitivas, a

86

duração das jornadas de trabalho, a vigilância, as exigências, a pressão e as metas produtivas

de supervisores, diretores e homens de negócio. “O corpo só se torna força útil se é ao mesmo

tempo corpo produtivo e corpo submisso”, diz Foucault (1975/1999, p. 29). Além do controle

dos corpos, as disciplinas devem também garantir que os homens aceitem colocar à disposição

o seu tempo, fazendo com que o tempo da vida, o máximo possível desse tempo, se torne tempo

dedicado ao trabalho e aos aprendizados para este.

É assim que nasce historicamente, tendo como eixo de suas forças a Europa que se

capitaliza, o indivíduo moderno – um modo de subjetivação individualizado, disciplinado,

dócil. Alheio às pertenças coletivas medievais que fixavam as pessoas e as famílias a uma certa

terra e aos direitos dos senhores sobre essa terra e seus habitantes, esse modo de existência

convoca os sujeitos a oferecerem seu tempo, seu corpo, suas habilidades aos aparelhos de

produção, orientando ainda seu desejo para consumir – das mercadorias às imagens e sonhos –

o que estes mesmos aparelhos têm a oferecer.

A família nuclear moderna se dissemina nesse contexto social em que a rede de

micropoderes está a atuar em diferentes aparelhos, estabelecimentos e instituições,

implementando estratégias e técnicas disciplinares que instauram uma vigilância contínua sobre

os indivíduos com o intuito de adequá-los – de normalizá-los, nos termos de Foucault

(1973/2002) – conforme os ditames das sociedades capitalistas nascentes. Como vimos, as

disciplinas atuaram de forma muito eficiente espalhadas por essa rede, incidindo em

estabelecimentos como as escolas, a polícia e os presídios. Ariès (1960/1986) já havia escrito,

quinze anos antes de Foucault publicar Vigiar e Punir, que “[...] a escola confinou uma infância

outrora livre num regime disciplinar cada vez mais rigoroso, que nos séculos XVIII e XIX

resultou no enclausuramento total do internato” e admitiu que “[...] a família e a escola retiraram

juntas a criança da sociedade dos adultos” (p. 277).

Nesse contexto, o processo de privatização e nucleação da família na modernidade

articulou-se, em boa medida, com as lógicas disciplinares de confinamento, vigilância e

controle. A família, agora mais isolada da rede de socialidade ampla, passou a atuar também de

forma disciplinar, exercendo uma contínua vigilância sobre seus membros. Isso é bastante claro

em relação às crianças e adolescentes: cobradas pelas escolas, as famílias deviam não apenas

acompanhar as tarefas escolares, mas também observar de perto os comportamentos dos filhos,

reforçando atitudes tidas como adequadas e punindo prontamente os desvios de conduta.

Também em relação aos adultos, as lógicas disciplinares e o maior confinamento em casa

promoveram uma autovigilância que acabou por produzir forte repressão da livre expressão e

87

desejo subjetivos (repressão que permeia certamente a sexualidade, mas não se restringe a ela),

ao mesmo tempo que todo um conjunto de hábitos, práticas e relações – normalizadas,

controladas, higienizadas – era instigado e difundido pelas próprias famílias, por outras

instituições e aparatos estatais30 (Foucault, 1976/1988). Esse processo acabou por colocar a

família moderna no epicentro de muitos traumas e sofrimentos subjetivos, como Sigmund Freud

(1980) tão bem analisou em sua obra. Kehl (2003) lembra que foi do seio das famílias nucleares

mais bem estruturadas nas lógicas burguesas na Viena do século XIX que chegaram os

primeiros pacientes para Freud e que foi a partir da análise da relação familiar desses pacientes

que a psicanálise foi fundada, investigando a produção de um mal-estar que Freud associou às

restrições sexuais impostas especialmente às mulheres; à claustrofobia da convivência

doméstica; à fixação dos filhos em uma posição de objeto de um amor materno excessivo, visto

que esse amor era a única fonte de satisfação afetiva e erótica para muitas mulheres; à disputa

permanente entre os filhos, tanto pelo amor da mãe quanto pela herança simbólica do pai.

Assim, cabe assinalar o lugar da família moderna na institucionalização da rede de

micropoderes disciplinares e na produção do modo de subjetivação que passou a vigorar

socialmente. Ela se tornou um importante agenciamento capaz de ensinar os comportamentos

adequados para que cada um pudesse ser aprovado na escola, ser um bom aprendiz na oficina,

ingressar com boa produtividade no mercado de trabalho, ser uma esposa amorosa e dedicada

e, quiçá, alcançar reconhecimento, prestígio social e riquezas. Objetivos que a família moderna

sempre louvou, dedicando-se de forma obstinada e dócil para sua produção.

Parece-me, pois, que a nucleação e a privatização, inclusive dos afetos, na família

moderna acompanham ao invés de se contrapõem aos dispositivos disciplinares. A

individualidade e, no seu extremo, o individualismo não podem ser tomados como opostos a

esse tipo de família, mesmo se consideramos que, em muitas delas, sua configuração construiu

laços afetivos que mantiveram seus membros próximos, com apoio mútuo, por toda a vida.

Com efeito, os laços familiares do tipo nuclear moderno, agora confinados ao espaço doméstico,

mostram-se mais propícios para a produção de sujeitos individualizados do que os laços

vivenciados em outros arranjos familiares, épocas e povos em que o parentesco, as alianças e

as redes de apoio e proteção são mais amplas e transversais.

30 No caso brasileiro, é interessante notar o papel que a medicina social exerceu no processo de higienização e normalização das famílias, especialmente as residentes nos centros urbanos que se industrializavam no século XIX, como abordo a seguir.

88

Estado moderno, famílias modernas

Abordei acima a importância que a família ganha, à medida que ocorre sua nucleação e

privatização modernas, como agenciamento preferido para a implementação das estratégias

disciplinares de docilização e normalização de seus membros em prol de sua inserção nas

lógicas capitalistas que se institucionalizam socialmente. Assim, as famílias que se estruturam

nos moldes burgueses, isolando-se das redes de socialidade mais ampla e exercendo uma

vigilância contínua e detalhada sobre seus membros, passam a priorizar em seus núcleos a

produção de modos de subjetivação adequados para sua inserção bem-sucedida nas lógicas de

produção, trabalho, acumulação e consumo do projeto civilizatório capitalista. Todavia, não é

apenas neste nível micropolítico, circunscrito ao trabalho de subjetivação cotidiana nos moldes

capitalistas, que podemos enxergar a importância da família.

É possível considerar que, de diferentes maneiras, as sociedades com Estado sempre se

importaram com as famílias. Como aparelho de captura31 e vinculação dos sujeitos sob sua

administração e soberania, os diferentes tipos de Estados atentaram-se para a eficiência das

famílias (entendidas aqui em sentido amplo de modo a agregar suas diferentes configurações

históricas) em firmar laços e vínculos morais e ou afetivos, em tecer redes de alianças e de

parentesco que agregam, cuidam, protegem, mas também submetem, exigem, conformam ou

mesmo punem seus membros. Ter as famílias a seu favor mostrou-se sempre importante para

os aparelhos de Estado que constantemente procuraram, conforme suas necessidades, firmar

esta “parceria público-privado”, para dizer em termos contemporâneos.

Donzelot (1977/1980) analisa como as pretensões absolutistas dos reis durante o

capitalismo imperialista (o autor enfoca particularmente as pretensões da monarquia francesa

durante o Antigo Regime) alinharam-se com o modelo de família hegemônico daquele período.

Um modelo de família calcado na autoridade do chefe de família, seu patriarca, que responde

por seus membros diante do Estado e da sociedade. Na França, o chefe da família deveria

garantir a fidelidade de seus familiares e agregados à ordem pública, além de prestar

contribuições ao Estado através do pagamento de impostos, de trabalho (corveias) e de homens

(milícias). Como contrapartida, o Estado deixava o chefe de família livre para agir e decidir

sobre seus membros – os casamentos e carreiras dos filhos, os trabalhos e serviços a serem

prestados por parentes e agregados, as alianças a serem firmadas – e para punir quando

31 A análise dos Estados como aparelhos de captura é feita por Deleuze e Guattari (1980/1997b).

89

considerasse necessário em nome das obrigações e da honra familiar. Tal poder discricionário

do chefe da família era ainda reforçado pelo apoio dado pelo Estado, tal como através da cartas

ao prego familiares (lettres de cachet de famille) que os patriarcas enviavam ao monarca

pedindo ajuda em questões relacionadas à sua parentela. “O Estado diz às famílias: mantende

vossa gente nas regras da obediência às nossas exigências, com o que podereis fazer deles o uso

que vos convier e, se eles transgredirem vossas injunções, nós vos forneceremos o apoio

necessário para chamá-los à ordem” (Donzelot, 1977/1980, p. 46).

Todavia, à medida que as lógicas capitalistas se desenvolvem na França, essa parceria

precisa ser ajustada para as novas questões, demandas e problemas que surgem, especialmente

a partir do século XVIII. Por um lado, na classe burguesa, a maior mobilidade social e maior

independência econômica propiciadas pela institucionalização do capitalismo acabou por fazer

com que os membros das famílias se submetessem menos ao poder do patriarca e questionassem

a arbitrariedade de decisões e punições por ele implementadas ou requeridas ao poder público

através das cartas ao prego. Por outro lado, as dificuldades econômicas e a perda do apoio

comunitário para muitas famílias mais pobres aumentaram a solicitação por auxílio estatal e

transformou mendigos suplicantes em sujeitos perigosos, organizados em gangues que exigiam

pagamento para não destruírem propriedades (Donzelot, 1977/1980).

Após a Revolução Francesa e diante das questões sobre a organização do Estado,

pendulam dois eixos de aspirações sobre o papel do aparelho estatal: em um eixo, há as

aspirações liberais do ponto de vista econômico e que apostam na organização da sociedade em

torno da propriedade privada, da liberdade individual e da família como célula apoiadora-

reguladora para o sucesso individual; no outro eixo, há os entusiastas por um Estado capaz de

assumir o papel de dar assistência, trabalho, educação e saúde aos cidadãos, independentemente

das pertinências familiares. “A família se encontra, assim, projetada no cerne do debate político

mais central, já que estava em jogo a definição do Estado” (Donzelot, 1977/1980, p. 46). A

relação das famílias com o Estado está, pois, atravessada por questões mais amplas e que

envolvem ainda a importância que a arte de governar a população vai ganhando para a

configuração dos Estados modernos.

Foi Foucault (1978/2008) quem detalhou os movimentos próprios aos Estados-nação

modernos em prol da implantação de uma arte de governar a população – um Estado

“governamentalizado”. Inicialmente, ele destaca que o século XVII viu aumentarem

publicações e teorias sobre a arte de governar um Estado que reivindicam uma mudança do

enfoque dado até então na legitimidade dos laços do soberano com seu território e com a

90

população que nele habita32. Nesse momento o enfoque passa ser a própria população que habita

os territórios em que a soberania se exerce. As transformações sociais por que passa a Europa

e sua configuração cada vez mais capitalista contribuem para que se imponha uma problemática

econômica para a arte de governar. O mercantilismo, fruto da conjugação de dois fluxos de

interesse – por um lado, os interesses dos comerciantes burgueses em promover tanto a proteção

quanto a expansão de suas atividades comerciais e produtivas e, por outro, os interesses dos reis

em ter recursos para crescer seus exércitos, aumentar seu tesouro e fortalecer sua supremacia

política – assume papel fundamental nesse processo. Na Europa, o mercantilismo passou a

colocar a questão da população como princípio da dinâmica do poder do Estado e do soberano.

A população passou a ser vista como um elemento fundamental que fornecia a mão de obra

para a agricultura e para as fábricas, evitando as importações e garantindo a balança comercial

favorável. Para tanto, a população deveria ser gerida através de todo um aparato regulamentar

estatal que visava impedir a emigração, atrair os imigrantes, beneficiar a natalidade, proibir o

ócio e a vagabundagem, definir o que devia ser produzido, por quais meios e com qual

retribuição em salário (Foucault, 1978/2008). Nesse contexto, o mercantilismo pode ser

considerado a primeira racionalização do poder estatal como prática de governo.

Contudo, para Foucault (1978/2008), a gestão mercantilista da população ainda a toma

como o conjunto dos súditos que devem ser submetidos ao soberano, através da imposição de

cima de leis e normas. Foi preciso que a questão da população fosse colocada sob outros termos

para que uma arte de governar sustentada por estratégias biopolíticas, tal como hoje a

conhecemos, fosse institucionalizada. Foi preciso que os súditos se tornassem um fluxo de

pessoas a serem arregimentadas por um novo regime econômico e semiológico.

Com a expansão demográfica do século XVIII na Europa, que se liga aos fluxos

monetários, agrícolas e industriais cuja produção e circulação vão se intensificando neste

momento, há a emergência de problemas específicos da massa populacional que exigem que

ciências como a estatística procurem compreender as especificidades e regularidades próprias

32 Na Europa, esse processo se inicia, com o enfraquecimento dos laços feudais, seguido pelo fortalecimento do poder real e das monarquias nacionais. Nos séculos XV e XVI inicia um processo em que a questão territorial desloca-se dos limites dos feudos para as fronteiras das nações onde o poder do rei pode ser exercido. A soberania nacional passa a figurar como aspecto central para a legitimidade do poder do monarca. Foucault (1978/2008) mostra como a questão-chave para o soberano era proteger a relação que possui com o território sob seu comando e com os súditos que ali habitam. Para o príncipe interessava prioritariamente proteger não o território ou seus súditos, mas o laço que os unia. O enlace do monarca com o território e seus habitantes se dava de forma transcendente, uma imposição “de cima” e ainda distante da população, o que muda quando o Estado se governamentaliza.

91

da população, ou de parcelas desta, em suas relações com o ambiente natural e social, com os

meios de produção, com o próprio corpo. Não somente através de leis, mas também, e talvez

com ainda mais importância, através de táticas e estratégias de gestão. É nesse cenário que o

Estado se “governamentaliza”. Formam-se os “Estados de governo”: Estados-nação que

certamente se preocupam com sua soberania e sua legitimidade, mas que a sustentam em nome

da gestão de seu povo através de um tipo de governo que visa melhorar o destino das

populações, garantir sua saúde, ampliar a duração de sua vida, organizar as relações destas com

o território nacional e a riqueza do Estado. Há aqui a emergência da economia política como

uma ciência privilegiada de governo; e da polícia como instituição de intervenção e controle

cotidianos (Foucault (1978/2008).

Nesse cenário configura-se uma estratégia de poder que Foucault (1978/2008) denomina

biopoder e que se consolida socialmente em dois movimentos: de um lado, os indivíduos são

considerados dentro dos processos biológicos do conjunto para análises e intervenções em

níveis mais gerais que envolvem a massa populacional e que são realizadas através de

estratégias biopolíticas; de outro lado, é preciso atuar em profundidade, nos detalhes de cada

existência, através das estratégias disciplinares de controle e docilização dos indivíduos

abordadas acima. Como Foucault (1976/2005) explicou em seu curso Em Defesa da Sociedade:

“Num caso, trata-se de uma tecnologia em que o corpo é individualizado como organismo

dotado de capacidades e, no outro, de uma tecnologia em que os corpos são recolocados nos

processos biológicos de conjunto” (p. 297). Essas tecnologias se articulam, ainda que operem

em diferentes níveis, para a implementação do biopoder e suas estratégias de produção do modo

de subjetivação individualizado.

A família é colocada, nesse contexto, como o relé fundamental para a arte de governar,

para a gestão da população: ela se torna instrumento privilegiado a partir do qual as questões

populacionais – saúde, consumo, educação, trabalho – podem ser trabalhadas e o controle

biopolítico pode ser exercido. Para tanto, fez-se necessário reconfigurar a relação das famílias

com os Estados de forma a estabilizar a nova ordem política fora das lógicas absolutistas e em

sintonia com os interesses econômicos liberais da burguesia que se firma como classe política

determinante. A partir das contribuições de Donzelot (1977/1980), é possível considerar que os

grandes desafios nesse processo foram:

1. De que modo se pode resolver a questão do pauperismo e da indigência, conjurando o perigo que representam os discursos que fazem, do aumento das prerrogativas do Estado, o único meio de consegui-lo, em detrimento do livre jogo econômico (Malthus, Gérando,

92

Villermé)? 2. Como reorganizar disciplinarmente as classes trabalhadoras, cujos antigos vínculos de comensalidade e de vassalagem não as atrelam mais à ordem social, mas que subsistem aqui e ali sob formas que servem muito mais como pontos de resistência à nova ordem (as corporações, os tecelões da cidade de Lyon, etc.), e, em outros casos, desaparecem dando lugar a uma irresponsabilidade total da população, a qual se torna incontrolável e frágil por causa da morbidez reinante e do nascimento das cidades industriais (De la Farelle, Frégier, Cherbulier)? O problema é tanto mais delicado porquanto não pode ser resolvido como o foi sob o Antigo Regime, através de uma repressão pura e simples, já que a economia liberal necessita da instauração de procedimentos de conservação e de formação da população. (Donzelot, 1977/1980, p. 50)

A implicação da família especialmente no molde burguês, nuclear e privatizado, que se

difunde no século XIX, será uma importante solução para os desafios colocados. Essa

implicação foi possível dentro da produção de um agenciamento social que envolveu o

crescimento das entidades filantrópicas e da medicina higienista. Conforme Donzelot

(1977/1980), para analisar a atividade filantrópica que cresce no século XIX, é preciso tomá-la

não como uma atividade apolítica desenvolvida por entidades privadas bem-intencionadas que

ambicionam contribuir para a solução de problemas sociais; é preciso tomá-la como uma

atividade que acaba por despolitizar as questões sociais, mantendo as intervenções realizadas

por essas entidades no campo social a uma distância ótima dos interesses liberais que estruturam

o Estado nesse período e que reclamam para que este não se exceda nos gastos com a solução

de problemas sociais. Em especial, o autor destaca a função moral dessas entidades, que passam

a inculcar nas famílias a importância da realização, por estas, de uma poupança para lhes

garantir “autonomia” em relação ao Estado – o que seria moralmente desejável – nas situações

de necessidade. Ademais, o Estado passou a contar com os estudos e as medidas propostas pela

medicina higienista para garantir a salubridade, a saúde, a educação da população dentro das

exigências de uma sociedade capitalista industrial e da preservação do espírito liberal. As

intervenções estatais passam a enfocar não a punição dos indivíduos, mas a implementação de

estratégias biopolíticas para a “adaptação positiva” deles ao regime capitalista industrial-liberal,

ensinando-lhes as medidas de higiene, o cuidado com o corpo e sua docilização, os

comportamentos e a moralidade adequados: “é somente nesse sentido que os higienistas

incitarão o Estado a intervir através da norma, na esfera do direito privado” (Donzelot,

1977/1980, p. 46).

A família nuclear é, nesse contexto, convocada a atuar em prol da disciplinarização dos

seus membros de forma conectada às estratégias biopolíticas dos Estados e aos interesses

liberais do Capital. Ela é tomada como a célula responsável pela educação, higiene, saúde e boa

conduta de seus membros, bem como pelo seu engajamento no trabalho e sua prosperidade

93

econômica; é indicada ainda como responsável pela poupança dos recursos que devem ajudar

o grupo familiar nos momentos necessários. Com isso, Donzelot (1977/1980) pondera que a

família se torna não apenas um ponto de apoio importante, mas também um alvo para a

recondução das normas e interesses estatais na esfera privada.

Ainda somos famílias modernas? (homenagem a Bruno Latour33)

Neste momento, devo parar as costuras que estou a fazer para colocar-me algumas

questões que podem estar rondando na cabeça dos leitores: Por que, afinal, fazer este percurso

histórico sobre a família moderna? Já não estamos vivenciando outras configurações que

tornariam seu modelo obsoleto? E mais, aborda-se um processo histórico ocorrido na Europa,

um outro continente. Não é o caso de considerar as características próprias do contexto

brasileiro? Vejamos...

* * *

Quando cheguei, o evento já tinha começado. Os convidados estavam reunidos no

jardim interno da mansão cuidadosamente preparado para recebê-los. Passei atenta entre as

mesas do fundo para não fazer nenhum barulho e atrapalhar o pronunciamento do candidato.

Assentei-me e silenciei o celular. No pequeno palco montado no jardim, o candidato esmerava-

se no discurso para lançamento de sua campanha ao senado federal. Ao fundo de sua imagem,

a chegada do pôr-do-sol entre as montanhas compunha um cenário espetacular. Penso que a

cinegrafista que filmava o evento e o chefe da campanha deveriam estar saltitantes por dentro

com um fim de tarde tão lindo como plano de fundo da fala emocionada que exibiam em uma

live no Youtube e no Instagram. Observo ainda, em uma das laterais do jardim, uma comprida

mesa que abrigava quitutes, louças e flores organizados em formatos geométricos. A toalha

sobre a mesa estava posta de um jeito que as minhas avós, se estivessem ali, certamente iriam

elogiar. A atmosfera era solene e requintada.

33 Refiro-me, em especial, às reflexões desse pensador híbrido – sociólogo, filósofo, antropólogo e educador transdisciplinar – no seu livro Jamais fomos modernos e sua proposta de realizar uma “antropologia de dentro” da cultura ocidental e seus próprios exotismos, incoerências, cisões, inconstâncias (Latour, 1994).

94

A anfitriã acompanha o discurso atenta, mas, a certa altura, vira-se discreta para mim e

me indica, com um dedo e um sorriso, a mulher loira assentada em uma cadeira próxima à

minha. Deve ser Paula, suponho, que estava a escutar o discurso balançando suavemente uma

das pernas, cruzada sobre a outra. Ali era a oportunidade combinada para conhecê-la e convidá-

la para participar com sua família desta pesquisa. Vestida com um terninho de corte elegante e

bem ajustado em seu corpo magro, com saltos altos da mesma cor da roupa e com brincos que

se destacavam no look e compunham com uma maquiagem cuidadosamente desenhada em seu

rosto de traços delicados, Paula realmente parecia cumprir o que a anfitriã havia me dito sobre

ela: “Ela é... tipo perfeita! É linda, educada, tranquila. Está sempre serena e bem humorada.

Acho que nunca a vi brava... E está sempre bem vestida, maquiada e com o cabelo impecável,

mesmo se você encontra com ela às sete da manhã! Nos conhecemos na escola dos nossos

filhos”. O rótulo da perfeição, por si só, acionou a minha atenção e aceitei a indicação.

Depois daquele evento, onde pouco consegui estar com Paula, marquei uma conversa

com ela em sua casa. Foram necessárias algumas remarcações até conseguir um horário que,

no entanto, não contaria com a presença do marido. Como ela justificou, seria difícil a

participação dele, que passava a semana toda em Brasília em suas atividades como parlamentar

no congresso nacional e que, nos fins de semana, queria apenas ficar em casa descansando.

Explica-me que a família só saia do descanso em casa nos fins de semana para ir à igreja nos

domingos à noite ou para participar de algum evento social ou familiar importante.

No dia agendado, sou recebida pela própria Paula na porta de sua casa grande e

silenciosa em um condomínio de luxo. Apenas o latido dos cachorros corta o vazio de sons.

Tenho a sensação de que as coisas ali pouco se mexem e só o fazem depois dos devidos cálculos.

Passo pela ampla garagem que, como Paula me explica, foi preparada para “virar” salão

de eventos e receber encontros da igreja, festas das crianças e outros, pois a família “gosta muito

de receber”. Paula me acompanha até a sala onde iríamos conversar, situada ao lado da garagem

e apartada da casa. Enquanto ela fala ao telefone, observo a composição muito organizada e

limpa do ambiente. Sua decoração e a luz sob medida lembram-me as imagens das revistas do

ramo.

Paula está com seus cabelos cuidadosamente penteados, saltos altos e as unhas

vermelhas. Uma maquiagem discreta destaca sua pele clara. Assentamos na mesa uma de frente

para a outra. Aceito a oferta de um copo, ou melhor, uma taça de água. Começamos a nossa

conversa e Paula me explica como conheceu e se casou com o marido Lourenço. Ele foi o seu

95

primeiro namorado, quando ela tinha 16 anos. Foi uma união “meio arrumada” entre famílias

do interior mineiro, mas que despertou o seu interesse. Casou-se com ele aos 20 anos, virgem.

Explica que às vezes as pessoas lhe dizem que ela se casou muito nova e que, por isso, não

“aproveitou a vida”, mas que, para ela, isso – casar jovem e tornar-se mãe e dona de casa – é a

aproveitar a vida: “eu amo ser mãe, ser esposa, ser dona de casa”. Ainda assim, continuou os

estudos após o casamento para conquistar a formação em um curso superior. Paula lembra que

viveu a pressão social, que ela acha ainda maior para as mulheres atualmente, de ter uma

graduação. A escolha do curso atendeu ao desejo do pai, que queria que ela estudasse e se

formasse para seguir os negócios da família. O sonho do pai tornou-se o dela, como me conta,

até que, logo após a formatura, engravidou de seu primeiro filho e acabou por não seguir a

profissão, nem trabalhar com o pai. Com orgulho afirma que o casamento já tem quase duas

décadas de uma união que “está melhor a cada dia”.

Ao longo da conversa, escuto em detalhes uma rotina familiar que começava às cinco

da manhã, com a meditação de Paula para o encontro com Deus. Às seis, começavam suas

atividades. Primeiro, acordava os três filhos, cujas idades estavam em 10, 13 e 15 anos, para se

arrumarem e irem para a escola. Sua dinâmica diária, com o marido em outra cidade, envolvia

acompanhar as tarefas escolares e estudos das crianças; realizar atividades físicas, bem como

acompanhar as dos três filhos; cuidar da saúde (com consultas médicas, odontológicas,

checkups rotineiros) de todos; gerenciar as atividades dos quatro trabalhadores da casa na

limpeza e organização do espaço doméstico, na manutenção do jardim, no cuidado com as

roupas, na preparação das refeições. Estas deveriam “ser saudáveis”, já que os próprios filhos

pediam por “comidas fitness”, como carne grelhada e salada. Cuidava ainda dos cachorros.

Além das atividades domésticas, a rotina de Paula envolvia reuniões escolares, encontros para

almoçar com amigas e a participação em vários eventos e grupos da igreja.

Sou apresentada à rotina com seus dias e horários específicos. Devaneio por um instante

sobre a chegada do momento em que Paula vai me surpreender contando, com humor, a

ocorrência de algum desvio na programação rotineira ou um acontecimento ao acaso. Nada

disso. Ritmos, tarefas, sensibilidades, tudo está devidamente organizado e bem executado. Até

os sonhos e projetos futuros estão assim. Sonhos e projetos que, para ela e o marido, centram-

se nos filhos: que eles cresçam diante de Deus, que eles se tornem adultos bem-sucedidos

profissionalmente, que tenham caráter e que realizem casamentos bem-estruturados. Insisto em

procurar uma brecha e pergunto sobre o que ela pensa das experiências que os filhos poderiam

ter até o casamento. Paula cresce a coluna e firma os olhos em mim, explicando-me que ali era

96

um lar cristão e que, por isso, conversava muito com os filhos, levava-os a eventos de jovens

da igreja para que valorizassem, como ela, a pureza sexual. Por ela, os filhos deveriam esperar

o encontro com o(a) escolhido(a), a consumação do casamento e, aí sim, a vivência de

experiências sexuais.

Ainda que não fosse exatamente essa a minha pergunta, com a qual intencionava mais

conhecer aberturas para variados acontecimentos e encontros que não fossem previamente

muito programados, escuto Paula com todo o interesse e, devo admitir, alguma surpresa. Tinha

conhecimento de campanhas religiosas em favor da iniciação sexual apenas com o cônjuge. E

entendia os argumentos, especialmente porque eu mesma fui criada em um “lar cristão” e

acompanhei, em boa parte da minha infância e adolescência, a rotina diária de missas de uma

avó, de cultos da outra e de vários eventos religiosos das duas, além dos muitos planos delas

para que a minha vida sustentasse, como as suas, o casamento indissolúvel, a importância da

pureza e do recato das “boas moças para casar”, o empenho na escolha de um marido bem-

sucedido, íntegro e temente a Deus, bem como a realização subjetiva de ter filhos saudáveis e

bem educados. Diante de Paula, a surpresa brotava entre meus pensamentos: tinha a sensação

de ter voltado no tempo para escutar uma das lições das minhas avós que, quando as escutava

décadas atrás, já me soavam de tempos ainda mais antigos e distantes. Destes tempos que relato

neste capítulo e que apareciam ali, diante de mim, como um estranho espelho. Com efeito, o

agenciamento familiar de Paula conseguia efetuar, de forma bem eficiente, o modelo nuclear

moderno com componentes que, pensava eu, já não eram valorizados por aqui. Sua condição

socioeconômica e a maneira como conseguia reproduzir as linhas de segmentaridade desse

modelo faziam como ela fosse mesmo “perfeita”. Ao menos, nesse sentido.

Contudo, se a família de Paula é exemplar, é possível afirmar que as famílias atuais são

atravessadas, ainda que de diferentes maneiras e em graus variados, pelas linhas que compõem

a configuração familiar nucleada, patriarcal e orientada pelos valores burgueses, que permanece

como modelo hegemônico, mesmo quando consideramos suas transformações e ajustes do

início da modernidade capitalista até hoje.

Em artigo que analisa as transformações das famílias brasileiras no início do século

XXI, Kehl (2003) abre suas reflexões indicando uma das queixas que os psicanalistas mais

escutavam em seus consultórios e que se referia ao desejo de “ter uma família normal”:

Adolescentes filhos de pais separados ressentem-se da ausência do pai (ou da mãe) no lar. Mulheres sozinhas queixam-se de que não conseguiram constituir famílias, e mulheres separadas acusam-se de não ter sido capazes de conservar as suas. Homens divorciados perseguem uma segunda chance de formar uma família. Mães solteiras morrem de culpa porque

97

não deram aos filhos uma “verdadeira família". E os jovens solteiros depositam grandes esperanças na possibilidade de constituir famílias diferentes – isto é, melhores – daquelas de onde vieram. (Kehl, 2003, p. 163)

Nos primeiros anos do século XXI quando o artigo de Kehl (2003) foi publicado e

mesmo hoje, já na entrada dos anos 2020, o modelo nuclear burguês de família ainda orienta os

sonhos de união e procriação, bem como amarga as desilusões de muita gente. Como postula

Romagnoli (1996), é importante considerar a força dessa família como construção simbólica,

que emerge como parâmetro, como critério de medida de valor para as relações afetivas e

sexuais, para a definição de papeis e para o estabelecimento de hierarquias, alianças, escolhas,

o que se estende até os dias atuais. Assim, as reflexões tecidas neste capítulo intentaram dar

visibilidade a algumas das linhas que se costuraram no processo de institucionalização desse

modelo familiar. Busquei, com isso, produzir um traçado que certamente foi feito à minha

maneira, com destaques específicos, o que não significou a desconsideração de que muitos

elementos, processos e conexões (por exemplo, outras configurações familiares que existiram

e existem de forma concomitante ao formato nuclear que se sagrou dominante) acabaram por

ficar de fora do traçado feito.

Ademais, é importante ponderar o modo como as diferentes famílias concretas são

atravessadas pelo modelo nuclear moderno em suas variações. Em linhas muito gerais, gostaria

de pontuar duas possibilidades de atravessamento desse modelo: em famílias que conseguem

efetuá-lo de maneira suficientemente (o que nunca quer dizer totalmente) bem-sucedida; e

famílias que, apesar de orientarem-se e perseguirem esse modelo não conseguem, por diferentes

razões, efetuá-lo tal como gostariam. Ao marcar essas duas possibilidades, é importante frisar

que isso não exclui outros arranjos e possibilidades, nem intenta achatar as diferenças.

Quanto à família de Paula, pode-se dizer que esta consegue conformar-se ao modelo

instituído de forma suficientemente eficaz. Por outro lado, sua família não é a única e não faltam

aquelas que, ao efetuar esse modelo, endurecem ainda mais suas segmentações, procurando

coibir práticas e arranjos sociais que, ao longo do século XX e XXI, o ajustaram, por exemplo,

à valorização social dos estudos das mulheres e à independência financeira destas. Tal como o

bispo fundador de uma das mais importantes igrejas pentecostais do Brasil declarou em 2019:

a mulher não deve avançar nos estudos e conquistar uma profissão que a qualifique e ou a

remunere melhor que o esposo, pois cabe a este ser o “cabeça” da família. Ele ainda lamentou

que atualmente se ensina as mulheres para serem independentes e estudadas (Soares, 2019).

Nesse esteira, é possível citar também o movimento das #tradwifes. Iniciado no Reino Unido

98

há algumas décadas e contando atualmente com centenas de milhares de adeptas de diferentes

países nas redes sociais, as #tradwifes, que compõem grupos como o britânico The Darling

Academy34, militam pela valorização e resgate, pelas mulheres, de uma vida recatada e bem

comportada, dependente do que o homem provedor lhe concede para a gestão da casa, dedicada

ao lar, ao cuidado com os filhos e aos agrados cotidianos do marido.

O que cumpre destacar aqui é que se conformar ao modelo nuclear moderno de família

(ou a qualquer modelo), efetuando com rigor e eficiência o modo de subjetivação que ele

propõe, nunca é uma tarefa fácil. Todo modelo é, de fato, uma estratégia biopolítica de controle

social e sujeição subjetiva.

Ao final da conversa com Paula, quando eu já guardava as coisas e me preparava para

ir embora, seus dois filhos mais velhos ligam. A caçula havia chegado há pouco com sua roupa

de balé. Pelo telefone, a conversa de Paula com os filhos parece tensa; ela aumenta o tom de

voz enquanto repete, insistente, a palavra “não”. Ao desligar, e com uma respiração profunda,

ela explica-me que ficava preocupada com o excesso, pois os filhos já tinham feito atividades

físicas a tarde toda e agora, no cair da noite, queriam ir para a academia para fazer musculação.

“Eu tenho medo, porque eles ficam muito nisso... isso de manter a forma a todo custo, bulimia,

essas coisas”. Essa cena remeteu-me ao que vivenciei em uma visita a outra família, também

com recursos – financeiros e simbólicos – para sustentar sua conformação bem-sucedida ao

modelo familiar moderno-burguês. Eu participava do almoço com o casal, enquanto os filhos

comiam em seus quartos. Durante a sobremesa, quando o marido se ausenta da sala para atender

o celular, Renata confidencia-me que, por ela, comia todo o doce, mas que não podia, pois já

estava acima do peso. Pondero que ela não me parecia gorda de modo algum. Mas Renata não

se convence e comenta que preferia “se segurar” nos dias da semana. Depois, reduzindo

suavemente o volume da voz, admite que gosta de “se entupir de comer” e, por isso, começou

a usar um remédio ótimo para reduzir o apetite e ajudá-la a se conter: “muita gente tá tomando,

depois de comer muito como gostamos”. Finalmente, olhando-me como quem encontra alguma

identificação, afirma que eu também podia conseguir o remédio se quisesse, que ela me passaria

o contato de uma médica amiga sua que faz as receitas. Assim, eu poderia comprar as doses do

medicamento por cerca de R$700,00 para uns três meses, guardá-las no refrigerador e injetá-

las conforme necessário. Como não encontro o que dizer, apenas agradeço e anoto o nome do

remédio.

34 Conferir: https://www.thedarlingacademy.com/

99

Nesses duas circunstâncias, penso que boa parte dos estudos e perspectivas da psicologia

me orientaria a considerar as dificuldades individuais daquelas pessoas e ou daquelas famílias

para lidar com os limites impostos pela Lei, pela Cultura, pela Existência. Todavia, além desse

enfoque nos embates, sofrimentos, limites e questões de sujeitos e famílias individualmente

considerados, é interessante assumir que qualquer modelo é coercitivo e quanto mais suas linhas

se endurecem em segmentações rígidas, estanques e intransponíveis, mais ele acaba por

produzir mecanismos de escape, de insubordinação, de negação, mesmo que pela via do

excesso... de comida, de atividade física, de violência... Como afirmou Erving Goffman

(1961/1974) referindo-se ao funcionamento das Instituições Totais, mas que podemos ampliar

para pensar o nível molar da realidade tal como proposto por Deleuze e Guattari (1980/1996b):

“Sempre que se impõem mundos, se criam submundos” (Goffman, 1961/1974, p. 246). Em

outras palavras, não se trata de um problema somente individual e que, por isso, não deveria

ser tratado apenas como tal conforme a psicologia ainda não se cansou de fazer.

Nesse sentido, cumpre considerar também que, se esses mecanismos individuais e

coletivos de escape, insubordinação, negação amenizam as sujeições e atrapalham as ambições

normalizadoras das linhas de segmentaridade, isso frequentemente provoca reações dos

mecanismos de controle instituídos (nos sujeitos, nas famílias, nas instituições, nos aparatos

estatais) que, na modernidade, passaram a convocar as forças sanitárias (o remédio, o médico,

o psicólogo) e ou as forças judiciárias e policiais (formais e informais) para retomar a

normalidade, consertar os desviantes, punir os transgressores. Ou ainda, como a burguesia

moderna tanto sustentou: assume-se uma aparência hipócrita de normalidade, como se mesmo

diante de um corpo entupido de medicações, diante do filho bastardo e renegado pelo patriarca,

diante do abuso de álcool, outras drogas ou de exercícios físicos, entre outros, nada demais

estivesse a acontecer que merecesse ser explicitado como um drama familiar (Hobsbawm,

2009).

Além disso, conformar-se a um modelo com suas segmentações é também um exercício

moral, cujas respostas às questões colocadas pela Vida em sua complexidade devem ser

encontradas dentro dele ou a partir dele. E, por ser coercitivo, muitas vezes o modelo tem

dificuldades em promover, ao invés do julgamento moral, um preparo ético-político35 para que

os sujeitos se relacionem com a diferença como diferença, com a multiplicidade como

multiplicidade. Amparados pelas determinações, padrões, segmentações instituídas pelo

35 Para essa distinção entre moral e ética, inspiro-me nas ponderações de Deleuze (2002) a partir da filosofia monista de Espinosa (1677/2009).

100

modelo, os sujeitos têm dificuldades em encontrar (ou inventar, se necessário) respostas que

não estejam a priori em seu repertório e que poderiam ser melhores dos que as que já conhecem

para potencializar a Vida.

Em um momento da conversa com Paula, pergunto sobre o contato que sua família tem

com outras famílias, especialmente aquelas que são bem diferentes deles. Ela pensa por um

instante e recorda-se da família de uma amiga que conheceu em um grupo de oração e que

morava em um dos municípios periféricos na Região Metropolitana Belo Horizonte, em uma

situação de maior vulnerabilidade econômica. Paula e o marido a tinham ajudado a construir a

casa própria. A mulher, mãe de sete filhos, era casada com um homem que, na opinião de Paula,

era terrível: muito agressivo, espancava as filhas. “Eu não consigo entender. [...] Ela é uma

mulher nobre, sabe? Firme com Deus, temente, íntegra, honesta e vive como esse homem”.

Pergunto, então, o que ela acha que a amiga poderia fazer para sair dessa situação. Paula reflete

um pouco e me explica que a Bíblia fala que a mulher tem o direito de ficar livre se for

repudiada, mas que a Bíblia também fala muito a favor do casamento e que Jesus ensina o

perdão. “Eu não sei... caso difícil de analisar. Eu fico querendo que ele morra!”. Seguro meus

olhos que querem arregalar e contenho minhas mãos que, no susto, já começavam a fazer o

Sinal da Cruz. Sei que sua resposta é uma saída, uma saída inclusive sustentada pelas lógicas

cristãs que se enlaçaram ao capitalismo moderno: dizendo de um jeito brasileiro popular, “só

Deus na causa” para definir os destinos dessa família e dar uma solução correta para o caso.

Todavia, não consigo deixar de me perguntar se essa solução transcendental, por assim dizer,

efetivamente resolve o problema, ou se apenas o invisibiliza, contribuindo para a dissimulação

das lacunas, das falhas, das contradições do modelo instituído, que demandariam o encontro

com novas respostas para uma solução eticamente orientada para a Vida.

É preciso dizer, ademais, que existem muitas famílias que não têm condições materiais

e simbólicas para se conformar suficientemente bem ao modelo hegemônico de família. Em

outras pontas do diagrama das forças sociais, separadas pelos fossos construídos por

segmentações de classe, de gênero, de raça etc., suas vidas são marcadas por outras urgências

e necessidades, ainda que persigam a concretização desse modelo. Como no caso de Isabela,

referida no início deste capítulo, que acabou por implementar, de uma forma um tanto distorcida

e violenta, traços, padrões, discursos, relações hierárquicas da família nuclear moderna.

Muitas famílias veem-se, com efeito, distantes das possibilidades concretas de efetuar,

por exemplo, a figura feminina da “legítima #tradwife” como descrita acima, mesmo se assim

o desejam. O sonho da “Rainha do Lar” não é exclusivo de mulheres que podem concretizá-lo;

101

ele está difundido inclusive, e mesmo que de modo muito sutil, entre muitas mulheres que

trabalham fora de casa. Mulheres que frequentemente acabam por realizar uma dupla jornada

de trabalho (dentro e fora do lar) recheadas de culpa, frustração, agressividade e exaustão diante

de sua impossibilidade concreta de se dedicar “devidamente” à criação dos filhos, aos afazeres

do lar ou aos cuidados consigo mesma para se manter desejável para o marido. Essas mulheres

são atravessadas por valores sociais que persistem até hoje e que, conforme assinala Rago

(2004), estavam presentes na moralidade social brasileira no início do século XX:

O que mais chama a atenção quando tentamos visualizar o passado da mulher trabalhadora não é o discurso de vitimização, tão enfático e recorrente na imprensa operária –que procurava, em geral, “formar” o trabalhador, conscientizando-o e chamando-o para a luta revolucionária. O que salta aos olhos é a associação frequente entre a mulher no trabalho e a questão da moralidade social. No discurso de diversos setores sociais, destaca-se a ameaça à honra feminina representada pelo mundo do trabalho. Nas denúncias dos operários militantes, dos médicos higienistas, dos juristas, dos jornalistas, das feministas, a fábrica é descrita como “antro da perdição”, “bordel” ou “lupanar”, enquanto a trabalhadora é vista como uma figura totalmente passiva e indefesa. Essa visão está associada, direta ou indiretamente, à vontade de direcionar a mulher à esfera da vida privada. [...] Muitos acreditavam, ao lado dos teóricos e economistas ingleses e franceses, que o trabalho da mulher fora de casa destruiria a família, tornaria os laços familiares mais frouxos e debilitaria a raça, pois as crianças cresceriam mais soltas, sem a constante vigilância das mães. As mulheres deixariam de ser mães dedicadas e esposas carinhosas, se trabalhassem fora do lar; além do que um bom número delas deixaria de se interessar pelo casamento e pela maternidade. (Rago, 2004, p. 489)

Nesse cenário e até hoje, há (muitas) mulheres que, diante das exigências ou mesmo do

desejo de realizar trabalhos remunerados fora de casa, vivem essa realidade com a sombra da

culpa a rondar seus corpos, sua sensibilidade, suas relações, respaldando-se, para tanto, na

referência subjetiva da Mulher tal como construída pelo modelo capitalista burguês. É ainda

um exercício minoritário de mulheres e homens que compreendem e praticam os laços

familiares, bem como as tarefas de dentro e fora de casa de outras maneiras, procurando

construir novas possibilidades afetivas para si, para os filhos, para seus arranjos familiares.

Exercício que precisa lidar (especialmente ele) com as resistências, os boicotes, as forças sociais

e subjetivas que emergem contra si.

Por fim, é certo que o contexto brasileiro possui suas especificidades e sua história que,

de diferentes maneiras, se desloca da história da família nuclear dos “países desenvolvidos”.

Suas características perpassaram o processo de seu ingresso no “mundo civilizado” ocidental

moderno e envolvem os contornos próprios desta nação mesmo agora em que vivenciamos um

“capitalismo mundial integrado” conforme termo cunhado por Guattari (1986).

102

De uma maneira geral, o marco inicial da história do Brasil (e das famílias brasileiras)

é a chegada da expedição portuguesa de Pedro Álvares Cabral no ano de 1500 no continente e

a instauração da Colônia nestas terras. Se não havia uma história brasileira – sequer o nome

Brasil – à maneira da historiografia moderna antes da colonização portuguesa, havia certamente

gente, famílias e muitas histórias por aqui... E esse é também um aspecto a considerar quando,

a seguir, abordo o descobrimento do Brasil e algumas das especificidades históricas, culturais,

subjetivas de suas famílias.

103

104

Capítulo 4

DESCOBRIR O BRASIL

Uma viagem pela(s) América(s)

Meu queixo cai à medida que me aproximo daquele tanto de azul. Acho que nunca vi

um lago desta cor, rodeado por uma paisagem que parecia estar ali olhando as lhamas e outros

animais há muito, muito tempo. Em minha boca semiaberta entra o vento frio do altiplano; ele

faz um rodopio sobre a língua e alcança os dentes que se incomodam com o choque térmico.

Lembro-me que estamos em janeiro, na região tropical da América do Sul, ainda assim

mantenho as mãos dentro das luvas. Olho em volta e pondero que as pessoas dali pouco

conhecem de verão, ao menos, do verão de poucas roupas, das testas brilhantes pelas gotículas

de suor, do vento que parece o sopro morno de um grande deus.

Nesta beira de lago homens e mulheres têm os rostos redondos e a pele de um marrom

avermelhado como jambo. Seus olhos acompanham um contorno que lembra amêndoas. Seus

cabelos negros e lisos dançam com o vento, quando não estão arrumados em longas tranças e

sob um chapéu, à moda de muitas mulheres locais. Demoro-me a observar duas senhoras

assentadas sobre uma mureta com suas saias vermelhas; chapéus redondos equilibram-se

pendidos para um lado em suas cabeças, enquanto seus dorsos estão protegidos por mantas

bordadas com muitas cores.

Penso, com uma ponta de nostalgia doída, que ali ainda existiam indígenas, povos

originários que transitavam pelas ruas da cidade de Copacabana, em uma das margens do rio

Titicaca na Bolívia. Nessa outra Copacabana, diferente da praia de mesmo nome que eu estava

acostumada a frequentar no coração do Rio de Janeiro no Brasil – uma metrópole apressada e

orgulhosa de sua modernidade, que pouco conta sobre seus habitantes mais antigos –, fiz este

sonho de olhos abertos e com coração tão magoado quanto ingênuo, um sonho de que em algum

lugar das Américas a vida ainda restava livre da colonização.

É certo que o sonho durou pouco. O tempo suficiente para a chegada de outros turistas

(além de mim) que fizeram com que as duas senhoras pulassem da mureta e fossem oferecer

aos recém-chegados para posarem em fotos com eles, em troca de algum dinheiro. Quanto a

105

mim, foi somente tempos depois que consegui algum consolo nas palavras de Claude Lévi-

Strauss. Em seus Tristes Trópicos, esse antropólogo pondera sobre a impossibilidade de sua

ambição de encontrar terras virgens em que um outro mundo ainda existisse, além do mundo

moderno ocidental que, afinal, tornou-se globalizado. “Não há mais nada a fazer: a civilização

já não é essa flor frágil que se preservava, que se desenvolvia a duras penas em certos recantos

abrigados de um torrão rico em espécies rústicas [...] A humanidade instala-se na monocultura;

prepara-se para produzir civilização em massa” (Lévi-Strauss, 1955/2000, p. 35). Conta-nos,

nesse sentido, sua experiência em Lahore, no Paquistão, um local que, em meados do século

XX, ainda permanecia “envolto em prestígios pela lenda”:

Um quilômetro de avenida conduz a uma praça de vilório de onde partem outras avenidas margeadas por raras lojas: farmacêutico, fotógrafo, livraria, relojoeiro. Prisioneiro dessa vastidão insignificante, meu objetivo já me parece inatingível. Onde está esse velho, esse verdadeiro Lahore? [...] Irei por fim agarrá-lo nessas ruelas sombrias onde devo encostar-me nas paredes para dar passagem aos rebanhos de carneiros com a lã tingida de azul e rosa, e aos búfalos - cada um do tamanho de três vacas - que nos empurram amáveis, mas, com frequência maior ainda, aos caminhões? [...] Também de vez em quando, é verdade, por alguns segundos, por alguns metros, uma imagem, um eco vêm à tona do fundo das eras: na ruela dos bate-folhas de ouro e de prata, o carrilhão plácido e límpido que produziria um xilofone tocado distraidamente por um gênio de mil braços. Saio dali para logo cair em vastos traçados de avenidas que cortam de maneira brutal os escombros (devidos aos tumultos recentes) de casas de quinhentos anos, mas tantas vezes destruídas e reformadas que sua inefável vetustez não tem mais idade. (Lévi-Strauss, 1955/2000, p. 35).

É preciso admitir que, no Paquistão ou na Bolívia, e mesmo para os povos indígenas

amazônicos mais preservados do contato com o “homem civilizado”, o mundo acabou por

tornar-se um só, descoberto pelo capitalismo moderno. Mas tal globalização ao mesmo tempo

econômica e cultural não foi uma tarefa fácil, como diriam os jesuítas que primeiro aportaram

nas Américas. Houve (e ainda há) uma parcela de mundo, um conjunto de linhas, um bocado

de afetos e sonhos que não cessam de procurar outros contornos, conexões, produções que

acabam por resistir, por distender, por abrir brechas, por inventar em meio a esse mundo

globalizado. Há sempre toda uma micropolítica que flexibiliza as segmentações e há ainda as

linhas de fuga, como diriam Deleuze e Guattari (1980/1995), mesmo quando se exige a

conformação, a obediência e o silêncio. Na mesma Copacabana boliviana que conheci no início

dos anos 2000 narra Eduardo Galeano (1982/2011) em suas Memórias do Fogo um

acontecimento passado em 1583:

(...) A chuva metralha a multidão que se reuniu para recebê-los. Francisco Tito Yupanqui entra com ela no santuário e a descobre. A sobem ao altar. Do alto, a Virgem de Copacabana abraça todos. Ela evitará as pestes e as penas e o mau tempo de fevereiro. O escultor índio talhou-a em Potosí e de lá ele a trouxe. Quase dois anos esteve trabalhando para que ela nascesse com a devida formosura. Os índios só podem pintar ou talhar imagens que imitem os modelos europeus

106

e Francisco Tito Yupanqui não pretendeu violar a proibição. Ele se dispôs a fazer uma virgem idêntica à Nossa Senhora da Candelária, mas suas mãos modelaram este corpo do altiplano, amplos pulmões ansiosos de ar, torso grande e pernas curtas, e esta larga cara de índia, de lábios carnudos e olhos amendoados que olham, tristes, a terra ferida. (p. 229)

* * *

Não é possível isolar o processo de institucionalização do capitalismo na Europa do que

se passou nas Américas com a chegada dos europeus e a colonização que estes aqui

implementaram. Como assinala Federici (2017), nos dois continentes “[...] populações inteiras

foram expulsas de suas terras pela força, houve um empobrecimento em grande escala e

campanhas de ‘cristianização’ que destruíram a autonomia das pessoas e suas relações

comunais” (p. 380). Em alguma medida, é possível aventar a hipótese de que, antes de colonizar

as Américas, uma espécie de colonização e de assujeitamento já se processava no coração da

Europa com o crescimento das lógicas do Capital.

No caso das Américas, contudo, há um contundente choque de mundos com a chegada

dos europeus nessas terras. Lévi-Strauss (1955/1988) narra uma anedota sobre a dúvida que

acometeu tanto os nativos americanos quanto os recém-chegados europeus sobre a humanidade

do outro – europeu ou índio – com quem se deparavam pela primeira vez. Os colonizadores

espanhóis enviaram, durante as primeiras décadas de 1500, comissão atrás de comissão com o

objetivo de determinar a natureza dos índios. Enquanto isso, os índios de Porto Rico se

empenhavam em capturar brancos e submergi-los em água até a morte e, nas semanas seguintes,

vigiar os corpos dos afogados para saber se iriam ou não entrar em estado de putrefação. Dessas

duas estratégias de investigação sobre a natureza do outro, Lévi-Strauss (1955/1988) considera

que “os brancos invocavam as ciências sociais, enquanto os índios confiavam mais nas ciências

naturais; e enquanto os brancos proclamavam que os índios eram animais, estes se contentavam

em suspeitar que os primeiros eram deuses”. E o antropólogo conclui com uma dose de ironia:

“a ignorância igual, o último procedimento era certamente mais digno de homens” (p. 78,

tradução minha).36

Viveiros de Castro (2015) retoma essa anedota para destacar que Lévi-Strauss viu nesse

“conflito de antropologias” o fato “[...] de que uma das manifestações típicas da natureza

36 “Los blancos invocaban las ciencias sociales, mientras que los indios confiaban más en las ciencias naturales; y en tanto que los blan cos proclamaban que los índios eran bestias, éstos se conformaban con sospechar que los primeros eran dioses. A ignorancia igual, el último procedimiento era ciertamente más digno de hombres”.

107

humana é a negação de sua própria generalidade. Uma avareza congênita, que impede a

extensão dos predicados da humanidade à espécie como um todo, parece ser justamente um

desses predicados” (p. 35). Ele prossegue, a partir da conclusão irônica de Lévi-Strauss,

arrematando que “[...] a despeito de uma igual ignorância a respeito do outro, o outro do Outro

[do índio] não era o mesmo que o outro do Mesmo [o europeu]” (p. 36).

Quanto aos europeus que, no fim das contas, sagraram-se, entre os ignorantes a respeito

do outro, aqueles que venceram na imposição de sua cosmovisão, vale destacar que essa

cosmovisão tem, em grande medida, seu berço no que Federici (2017, p. 383), acompanhando

as reflexões de Seymour Philips, chama de “sociedade persecutória” da Europa medieval, “[...]

alimentada pelo militarismo e pela intolerância cristã, que olhava o ‘Outro’ principalmente

como objeto de agressão”. A consideração de que o outro indígena era um animal, uma besta

selvagem, um canibal, um ser oriundo de uma raça monstruosa ou um adorador do diabo

perpassava “modelos etnográficos” a partir dos quais os europeus ingressaram no Novo Mundo,

modelos que proporcionaram “[...] o filtro com que missionários e conquistadores interpretaram

as culturas, as religiões e os costumes sexuais da população que encontraram”. Além disso,

ao definir as populações indígenas como canibais, adoradores do diabo e sodomitas, os espanhóis respaldaram a ficção de que a Conquista não foi uma busca desenfreada por ouro e prata, mas uma missão de conversão — uma alegação que, em 1508, ajudou a Coroa espanhola a obter a benção papal e a autoridade absoluta da Igreja na América. Tal alegação também eliminou aos olhos do mundo, e possivelmente dos próprios colonizadores, qualquer sanção contra as atrocidades que pudessem cometer contra os índios. (Federici, 2017, p. 383)

Lévi-Strauss (1955/1988) relata que, em uma célebre comissão espanhola para analisar

a natureza dos índios – a dos monges da Ordem de São Jerônimo – os colonos responderam um

questionário sobre sua opinião a respeito da capacidade dos índios de viverem por si mesmos.

Todas as respostas foram negativas. O testemunho de Ortiz, diante do Conselho das Índias em

1525, é esclarecedor sobre essa opinião geral de “[...] que os índios comem carne humana; que

não têm justiça; que andam nus, comem pulgas, aranhas e vermes crus... Não têm barba e, se

por uma casualidade elas crescem, apressam-se em cortá-las” (Ortiz apud Lévi-Strauss,

1955/1988, p. 77, tradução minha) 37. A conclusão a que chegaram as comissões dos

colonizadores foi a de que, para os índios, melhor seria tornarem-se homens escravizados a

permanecerem animais livres e irracionais. Nesse sentido, diante dos esforços de Frei

37 “Señalando que los indios comen carne humana, no tienen justicia; van completamente desnudos, comen pulgas, arañas y gusanos crudos... No tienen barba, y, si por casualidad les crece, se apresuran a cortársela”.

108

Bartolomeu de Las Casas e sua histórica luta pela dignidade dos indígenas, o que envolvia

suprimir os trabalhos forçados a que eles estavam sendo submetidos, muitos colonos

mostravam-se mais surpresos do que revoltados, sem entender por que os índios não podiam

servir-lhes como bestas de carga (Lévi-Strauss, 1955/1988).

Mesmo quando se considera que durante a colonização, especialmente em seus

primórdios, difundiu-se de forma paralela à “visão negativa” sobre os índios, uma visão mais

otimista que os descrevia como seres inocentes, generosos e acostumados a viver sem muitas

exigências laborais, ainda assim é preciso considerar a incapacidade dos europeus em

reconhecer os índios como seres humanos, os quais deveriam passar por um processo de

conversão civilizatória aos moldes cristãos e dentro das lógicas da nascente sociedade

capitalista moderna. Deveriam mudar seus nomes, vestir seus corpos, abdicar de seus deuses,

práticas religiosas e rituais, abandonar seus costumes sexuais, submeter-se ao batismo,

compreender o pecado, aprender a culpa, assumir o valor do trabalho árduo, mesmo se o

trabalho a ser feito era alheio às suas necessidades e era exercido em favor do enriquecimento

de outrem.

E ainda nos casos em que havia a pretensão dos europeus de firmar uma parceria com

os índios, a imposição dos valores dos primeiros deveria sustentar a relação (e hierarquização)

de poder. Eleanor Leacock (1981/2019) resgata uma experiência ocorrida com os Montagnais-

Naspaki, um povo nativo do vale do rio São Lourenço no Canadá, a partir do diário do padre

Paul Le Jeune, um missionário jesuíta investido em cristianizar os nativos da “Nova França”.

Desde o século XVI, o povo Montagnais vinha sendo assediado pelos europeus que chegaram

com a colonização e queriam colocá-los como parceiros para a caça e comércio de pele,

especialmente a pele de castor muito usada na fabricação de chapéus na Europa. Em 1632, os

franceses firmam-se como os colonizadores da região, expulsando os ingleses e estabelecendo

seu trabalho missionário sob a liderança de Le Jeune.

Leacock (1981/2019) relata que Le Jeune ficou chocado com o modo de vida dos

Montagnais, que eram nômades e priorizavam os vínculos coletivos; que não possuíam uma

organização política hierarquizada, nem uma autoridade centralizada de comando, distribuindo

as tarefas e responsabilidades entre homens e mulheres que as exerciam com boa autonomia;

que não educavam suas crianças através do castigo e da punição das desobediências e erros,

tratando-as de forma muito amorosa; que possuíam relações conjugais mais livres, podendo

divorciar-se caso algum dos parceiros assim desejassem e podendo, homens e mulheres, ter

relações sexuais com outros antes e depois do casamento. Em um dos relatos de seu diário, o

109

missionário conta um diálogo que teve com um Montagnais, no qual é possível observar o

choque entre modos de subjetivação tão diversos:

Eu disse a ele que não era honrável para uma mulher amar outro homem salvo seu marido e que estando esse pecado entre eles, ele mesmo não saberia com segurança que o filho que estava ali presente era, de fato, seu. Ele, então, respondeu: “Vocês não têm juízo. Vocês, franceses, amam apenas seus próprios filhos, mas nós amamos todas as crianças de nossa tribo.” Eu comecei a rir, percebendo que ele filosofava à moda dos cavalos ou das mulas. (Le Jeune apud Leacock, 1981/2019, p. 87).

Le Jeune investe em um programa para “civilizar os Montagnais”, estabelecendo quatro

pontos fundamentais para que esse povo se tornasse “educado no conhecimento de Deus”:

realizar um assentamento permanente dos índios e abolir sua vida nômade; formar um chefe

masculino principal para a tribo que fosse reconhecido como tal; conseguir educar as crianças

à moda francesa, retirando-as dos “costumes selvagens”; instituir a estrutura familiar europeia,

com a autoridade masculina, a monogamia, a fidelidade feminina e a eliminação do divórcio.

Leacock (1981/2019) destaca que o processo de conversão dos Montagnais aos valores

cristãos e às lógicas europeias conseguiu ser, em boa medida, bem-sucedido, promovendo uma

crescente distância entre os índios que se tornavam catequizados e os “não convertidos” que se

mantinham fieis aos seus saberes e a seu modo de vida tradicional e eram cada vez mais

perseguidos por isso. Para a antropóloga, o assédio dos comerciantes de pele, que ofereciam

aos índios mercadorias, utensílios, armas e bebidas alcóolicas até então inexistentes nas

Américas em troca de sua dedicação e parceria para a produção e o estoque de peles a serem

levadas para a Europa foi muito importante nesse processo. Isso permitiu a infiltração das

lógicas da economia de mercado em um sistema produtivo que funcionava para fins da

subsistência de todo o grupo, provocou a incitação e o consequente aumento de guerras,

introduziu o uso (e o abuso) de álcool. Esse novo cenário acabou por fragilizar práticas

ancestrais de cooperação e liberdade, por corromper os valores dos montagnais-naskapi e a ética

interpessoal bem como a partilha de tudo o que os grupos produziam entre seus membros. Além

disso, a introdução dos comerciantes e missionários no cotidiano dos nativos trouxe o terrível

flagelo causado por doenças até então desconhecidas por estes.

É possível dizer que, junto com sua visão de mundo, seus interesses econômicos e sua

ambição de ocupar as terras ameríndias exercendo nestas sua soberania política, os

colonizadores disseminaram por todo o continente o adoecimento e a morte através de uma

gama de enfermidades infectocontagiosas, como a varíola, a tuberculose, a catapora, o sarampo,

a caxumba, para as quais as populações indígenas não tinham defesa imunológica e se tornaram,

110

por isso, extremamente vulneráveis. No contexto colonial, a alta mortalidade dos nativos era

explicada “racionalmente” pelos colonizadores que a concebiam como um castigo de Deus

pelos comportamentos selvagens, promíscuos, demoníacos e pelas crenças bestiais dos índios,

o que só reforçava seu empenho de subjugação, escravização e conversão dos indígenas

(Federici, 2017).

As estatísticas e as conclusões dos historiadores variam até hoje sobre o número de

habitantes nas Américas antes da chegada dos europeus e do percentual de nativos que

morreram a partir da colonização – adoecidos, assassinados ou mesmo suicidando-se diante da

“nova vida” que lhes era imposta. David Stannard (1992) considera que houve um verdadeiro

holocausto nas Américas.

Dentro de não mais que um punhado de gerações desde seu primeiro encontro com os Europeus, a vasta maioria das pessoas nativas do Hemisfério Oeste havia sido exterminada. O ritmo e a magnitude de sua eliminação variou entre os lugares e ao longo do tempo, mas há anos demógrafos da história têm descoberto, em sucessivas regiões, taxas de decrescimento populacional pós-Colombiano entre 90 e 98% com tal regularidade que, no geral, um declínio de 95% tornou-se uma regra prática. (...) A destruição dos Índios das Américas foi, de longe, o maior ato de genocídio da história mundial. (Stannard, 1992, Prologue, p. X, tradução minha)

38

E após os primeiros tempos da colonização nas Américas, as políticas de parceria e de

maior tolerância com índios “socializados” foi sendo abandonada e cada vez mais substituída

por políticas de imposição violenta e de forte discriminação étnica. Federici (2017) assinala

que, à medida que a Conquista avançou, houve um endurecimento das relações, deixando de

haver espaço para acordos e negociações que abrandassem o peso das imposições dos

colonizadores e da destruição sobre os modos de existir dos nativos e sobre a própria vida dos

que, entre estes, procuravam resistir. Cumpre destacar que, ainda assim, as populações nativas

resistiram (e ainda resistem) de muitas maneiras à colonização e às lógicas capitalistas que lhes

foram impostas.

No Brasil, com a chegada dos portugueses, o destino das populações nativas não foi

diferente do extermínio, da escravização e da obstinada luta dos europeus, especialmente os

38 Within no more than a handful of generations following their first encounters with Europeans, the vast majority of the Western Hemisphere's native peoples had been exterminated. The pace and magnitude of their obliteration varied from place to place and from time to time, but for years now historical demographers have been uncovering, in region upon region, post-Columbian depopulation rates of between 90 and 98 percent with such regularity that an overall decline of 95 percent has become a working rule of thumb. (...) The destruction of the Indians of the Americas was, far and away, the most massive act of genocide in the history of the world.

111

religiosos, por sua conversão cristã e, com isso, sua “humanização” como ocorreu no restante

do continente americano. É certo, por outro lado, que nas diferentes regiões das Américas os

povos indígenas possuíam características próprias (os modos de vida eram muito diferentes nas

populações que viviam nos Estados imperiais Inca e Maia dos modos das populações indígenas

nômades que habitavam os territórios que hoje são Brasil e Paraguai, por exemplo) e mesmo

em uma mesma região não é possível ignorar a heterogeneidade de seus habitantes e modos de

vida. Além disso, o próprio processo de colonização teve suas diferenças e especificidades nas

diversas partes do continente.

Se o processo de colonização capitalista moderno, em suas segmentações econômicas,

políticas, culturais, subjetivas, cobriu como uma nuvem de gafanhotos os territórios e as vidas

do que se chamou (do que os europeus chamaram) de América, conforme esse breve sobrevoo

procurou indicar, é importante frisar que se tratou de colonizar Américas (e Áfricas e Ásias e

Oceanias, além dos próprios povos europeus...). Ou seja, e para lembrar as propostas

decoloniais de Aníbal Quijano (1993), em cada condição específica o processo de colonização

se colocou de maneira distinta, ainda que seja contra todas as formas de exploração e de

dominação que se deva lutar.

desCobrir terras e corpos

Conta-nos Darcy Ribeiro (1995/2014) que o litoral do que, em seguida, foi chamado

Brasil, presenciou o encontro de dois mundos. Para os nativos, que receberam a chegada dos

navios europeus como um acontecimento espantoso, o mundo era uma dádiva de deuses bons,

rico em recursos para a pesca, para a caça, para o plantio de todos aqueles que aqui chegassem;

era um lugar em que se podia fruir e viver com honra e generosidade, em que se podia admirar

a beleza de existir. Já para os recém-chegados da longa jornada ultramar a vida era permeada

de tarefas e obrigações que exigiam muito trabalho: fosse em nome da rendição de seus pecados

e do peso que carregavam pela culpa de uma vida marcada irremediavelmente pela perdição,

fosse em nome do lucro e do que consideravam prosperidade – uma acumulação de metais

preciosos, bens, propriedades e poder em relação a outras pessoas. Aos olhos desses recém-

chegados, os índios e as índias, com sua beleza e vigor, “[...] tinham um defeito capital: eram

vadios, vivendo uma vida inútil e sem prestança. Que é que produziam? Nada. Que é que

amealhavam? Nada. Viviam suas fúteis vidas fartas, como se neste mundo só lhes coubesse

112

viver” (Ribeiro, 1995/2014, p. 41). Ainda assim, diversas alianças começaram a ser firmadas

entre os nativos e os recém-chegados. Ribeiro (1995/2014) indica a importância do que chama

cunhadismo nas primeiras décadas da colonização. O cunhadismo era uma prática indígena de

construção de vínculos familiares. Ela consistia na criação de laços de parentesco com um

homem externo através de seu casamento com uma das mulheres do grupo. Ao se casar, o

homem se aparentava como todo o grupo, ganhando pais, sogros, irmãos, cunhados, filhos e

genros – homens e mulheres que se tornavam, assim, seus parentes. Muitos europeus que

chegaram na costa brasileira firmaram casamentos e tornaram-se cunhados dos índios. Como

era possível, dentro das tradições indígenas, que um homem realizasse vários casamentos, estes

funcionaram para os europeus “[...] como uma forma vasta e eficaz de recrutamento de mão de

obra para os trabalhos pesados” (p. 73), trabalhos que serviam à exploração dos recursos

naturais, sua estocagem e proteção antes de serem exportados para a Europa. Para os índios,

seus cunhados europeus eram uma fonte de ferramentas de metal, adornos, espelhos e outras

mercadorias que eram consideradas bens preciosos pelos nativos.

O cunhadismo foi fundamental, segundo Ribeiro (1995/2014), para o primeiro momento

da criação do Brasil, porque permitiu que os primeiros (e poucos, em comparação com o

número de nativos) europeus que chegaram estabelecessem uma rede de apoio dos índios,

produzissem “criatórios de gente mestiça” e firmassem os primeiros assentamentos coloniais.

Contudo, as alianças entre europeus e indígenas através desse relação de parentesco diminuíram

com o tempo. Com efeito, essas alianças começaram a ameaçar a hegemonia portuguesa nas

terras recém-conquistadas, visto que os índios se aparentavam também com outros europeus,

como franceses e espanhóis, que começaram a configurar importantes redes de aliança e

criatórios de gente franco-indígena ou hispânico-indígena no Brasil. Além disso, o interesse

dos indígenas em aparentar-se com os europeus foi diminuindo à medida que seu desejo pelas

mercadorias ofertadas por estes tornava-se menor, ao mesmo tempo que aumentavam as

exigências para o trabalho requerido pelos cunhados estrangeiros e seus choques culturais. E

ainda, essas alianças causavam horror nos missionários que começaram a chegar na segunda

metade do século XVI, uma vez que envolviam a assunção e prática, pelos europeus, de muitos

dos hábitos e costumes indígenas. Sobre João Ramalho, um famoso cunhado português dos

índios, o chefe da primeira missão jesuíta no Brasil, Manuel da Nóbrega, escreve: “Tem muitas

mulheres. Ele e seus filhos andam com irmãs e têm filhos delas, tanto o pai como os filhos. Vão

à guerra como índios e suas festas são de índios e assim vivem andando nus como os mesmos

índios” (Nóbrega apud Ribeiro, 1995/2014).

113

Nesse cenário, a Coroa portuguesa decidiu, para preservar seu domínio, dividir as terras

brasileiras em capitanias a partir de 1532, doadas a grandes senhores portugueses, agregados

ao trono e com fortuna para implementar o povoamento e incrementar a produção da colônia.

Pouco depois, no entanto, insatisfeita com os variados destinos das províncias formadas,

algumas tendo fracassado, a Coroa decide implantar um Governo Geral. O primeiro

governador-geral do Brasil, Tomé de Souza, chegou em 1549, trazendo mais de mil pessoas, a

maioria degradados condenados a sair de Portugal. Com ele vieram ainda os jesuítas.

Com a implementação das capitanias e com a chegada do governador-geral, há um

aumento da escravização dos índios, inclusive das mulheres indígenas. Todavia, mesmo

escravizadas, o ventre dessas mulheres manteve-se uma importante fonte de gestação da gente

brasileira mestiça, visto que quase não vieram mulheres solteiras da metrópole para se casar e

formar família com os homens “bons e ricos” que aqui se firmavam. “Essas pouquíssimas

portuguesas pouco papel exerceram na constituição da família brasileira” (Ribeiro, 1995/2014,

p. 79). Assim, seja pelo estabelecimento do cunhadismo, seja pela escravização e uso sexual

das índias, ou mesmo em outros arranjos, elas foram responsáveis por gestar “[...] uma vasta

prole mestiça, que viria a ser, depois, o grosso da gente da terra” (Ribeiro, 1995/2014, p. 49).

Do ponto de vista dos índios, logo após a chegada das primeiras naus de europeus, eles

apostaram em um contato pacífico e generoso com aquelas outras gentes de além-mar.

Entretanto, pouco depois perceberam que os recém-chegados ambicionavam ocupar suas terras,

destruir seus costumes e usá-los como animais de carga, escravizando-os para os trabalhos sob

o mando dos colonos ou subjugando-os para sua cristianização nas mãos dos missionários

religiosos. Do outro lado, os jesuítas que aqui aportaram louvavam o heroísmo lusitano contra

os povos indígenas. Ribeiro (1995/2014) cita um trecho do poema De Gestis Mendi de Saa,

escrito em 1560 pelo Padre Anchieta, que assim descreve a bravura de Mem de Sá,

administrador colonial enviado pela Coroa portuguesa:

Quem poderá contar os gestos heroicos do Chefe À frente dos soldados, na imensa mata: Cento e sessenta as aldeias incendiadas, Mil casas arruinadas pela chama devoradora, Assolados os campos, com suas riquezas, Passado tudo ao fio da espada. (Anchieta apud Ribeiro, 1995/2014, p. 45)

Ribeiro (1995/2014) pondera, no entanto, que “apesar do projeto jesuítico de

colonização do Brasil nascente ter sido formulado sem qualquer escrúpulo humanitário, tal foi

114

a ferocidade da colonização leiga que instalou, algumas décadas depois, um sério conflito entre

os padres da Companhia [de Jesus] e os povoadores dos núcleos agrário-mercantis” (p. 48).

Também as doenças vindas com os europeus contribuíram para produzir um enorme

decrescimento populacional entre os nativos. Os missionários passaram, com isso, a ver a

população indígena em declínio, escravizada e em sofrimento como “[...] criaturas de Deus e

donos originais da terra, com direito a sobreviver se abandonassem suas heresias para se

incorporarem ao rebanho da Igreja” (p. 49). Tal incorporação envolvia ingressar nos

aldeamentos39 ligados às missões jesuítas. Mas, ao retirar os índios de suas aldeias e concentrá-

los nas missões, negando-lhes a prática de seus costumes, exigindo que trabalhassem para os

padres ou servissem nas guerras contra os índios hostis, os jesuítas acabaram por se tornarem

ainda mais letais para os indígenas, ao vitimá-los com as pragas que eles próprios, ainda que

sem intenção, transmitiam aos nativos concentrados (Ribeiro, 1995/2014).

Se a Coroa portuguesa, autoproclamada dona das terras brasileiras, apoiou formalmente

os missionários e seu engajamento religioso, por outro lado, ela nunca impediu que os colonos

investissem em “guerras justas” contra índios hostis, arredios ou apenas resistentes à

evangelização para escravizá-los, já que estes persistiam em manter-se como “bestas

selvagens”. Como acrescenta Ribeiro (1995/2014), após dois séculos de colonização, quando

os conflitos entre colonos e jesuítas se intensificaram e os aldeamentos destes permaneciam

apartados dos interesses comerciais da Coroa para a colônia, Portugal decidiu acabar com as

missões e retirar os padres jesuítas do Brasil. Os padres repassaram, então, a coordenação das

missões aos colonos ricos ligados ao então Secretário de Estado do Reino português, Marquês

de Pombal, deixando os índios nas mãos dos grandes donos de terra e de suas lógicas mercantis-

exploratórias.

Pombal instituiu uma nova política para os índios, fundamentando-a em sua avaliação

de que os índios permaneciam “selvagens” e apartados da cultura colonial, em razão do

isolamento dos aldeamentos e aldeias promovidos pelas missões jesuítas. Sancionou, assim,

uma série de medidas com intuito de absorver os índios nas lógicas, práticas e valores que

sustentavam a colonização, dentre elas, os incentivos aos enlaces matrimoniais mistos entre

índios e portugueses: “Pelo alvará de 4 de abril de 1755 firmou-se o compromisso de que os

contraentes e descendentes das uniões com os índios, além de estarem livres de ‘infâmia’,

39 Como explica Anziolin (2013), a partir de uma tradição historiográfica que remonta ao século XIX, o termo “aldeamento” refere-se a ocupações que mantiveram e ou mantém relações com missionários religiosos e com as tradições coloniais; o termo “aldeia” refere-se às povoações propriamente indígenas.

115

ficavam habilitados a receber terras, empregos e outras honrarias” (Moreira, 2015, p. 18). A

política pombalina impôs ainda o uso geral da Língua Portuguesa e procurou intensificar o

comércio e ampliar as prestações de serviços dos índios para a produção colonial portuguesa.

Definiu também a abertura e disponibilização de terras indígenas para contratos de

aforamento40, firmando vilas e freguesias nos antigos aldeamentos. O objetivo dessas medidas

era promover o contato interétnico, descolando os índios de sua condição étnica específica e

aumentando, com isso, o processo de “civilização” dos nativos (Moreira, 2015). Esperava-se,

com isso, fortalecer a massa populacional da colônia em prol dos interesses mercantis-

exploratórios da metrópole.

Ribeiro (1995/2014) considera que, com o fechamento das missões jesuítas e entrega

dos aldeamentos para fazendeiros privados e para missões mais submissas aos interesses de

exploração colonial dos índios, bem como com a adoção das medidas de integração dos índios

(e suas terras) na civilidade dos colonizadores, a condição de muitos índios piorou, uma vez

que fazendeiros e missionários passaram a arrendá-los. Eles eram então alugados e utilizados

até à exaustão: “Esse desgaste humano do trabalhador cativo constitui uma outra forma terrível

de genocídio imposta a mais de um milhão de índios” (Ribeiro, 1995/2014, p. 94).

Por sua vez, Caio Prado Júnior (1942/1971), em seu clássico Formação do Brasil

Contemporâneo, destaca o processo de miscigenação produzido pelas políticas pombalinas. Se

os povos indígenas viveram historicamente em grande tensão entre os interesses dos colonos

em escravizá-los, os interesses dos missionários em catequizá-los como homens livres e os

interesses da Coroa em inclui-los no processo colonizador (além, obviamente, de seus próprios

interesses), a partir da expulsão dos jesuítas e a implementação das novas políticas por Pombal,

viabilizou-se a ampliação da mestiçagem biológica e a “aculturação” dos índios. Vânia Moreira

(2015) pondera, todavia, que “a suposição de tal linha historiográfica é a de que o índio

sobrevivente – isto é, os ‘restos da raça indígena’ que não pereceram em meio às guerras, às

chacinas, às epidemias e à superexploração do trabalho – transitava dessa condição à de ‘massa

geral da população’, por meio da miscigenação biológica e da aculturação” (p. 19). Para a

autora, contudo, a implementação das políticas pombalinas não ocorreu de forma uniforme pelo

40 Através de um contrato enfitêutico, o aforamento foi utilizado como instrumento de povoamento, na medida em que as autoridades podiam conceder terras consideradas patrimônio público para promover sua ocupação territorial, estimular a produção local e aumentar as rendas governamentais com a cobrança do foro.

116

vasto território brasileiro. Ademais, deve-se considerar como os próprios índios lidaram com

os casamentos mistos e com o contato mais intenso com a sociedade colonial:

Apesar de os casamentos mistos facilitarem os processos de homogeneização cultural, deve-se avaliar com cautela o impacto da miscigenação no processo de desorganização da vida social dos grupos indígenas e como fator de sua absorção pelo mundo colonial. Como sobejamente têm demonstrado a historiografia e a antropologia, os grupos étnicos e suas fronteiras não desaparecem, necessariamente, pela maior mistura biológica e cultural. (Moreira, 2015, p. 19)

As alianças matrimoniais sempre foram um elemento importante nas sociedades

indígenas. No Brasil, mesmo com a diversidade de regras e cerimônias ligadas ao casamento,

raramente este era uma questão que envolvia apenas os cônjuges, sendo frequentemente

considerado um enlace que abrangia suas famílias e mesmo seus grupos (Melatti, 2007). Nesse

contexto, Moreira (2015) destaca que os casamentos entre índios e não índios geraram

diferentes formas de inclusão e adaptação social (tal como o cunhadismo descrito por Ribeiro

(1995/2014) e abordado anteriormente), tendo sido o principal meio de incorporação dos

europeus nas sociedades indígenas.

Se a valorização pública dos casamentos mistos foi vista por Pombal como a

possibilidade de “[...] incentivar a miscigenação entre índios e portugueses para aumentar a

população de homens e mulheres livres e aportuguesados no mundo colonial”, por outro lado,

é preciso considerar que, “a despeito das expectativas reinantes na Corte”, muitos grupos

indígenas acabaram por promover o movimento inverso, ou seja, atenuaram a imposição dos

valores e normas difundidas pelos colonizadores, implementando casamentos em que seus

valores, costumes e interesses próprios eram respeitados, por exemplo, viabilizando o controle

do “[...] acesso dos não índios às terras da vila, demarcadas em nome dos índios e de seus

descendentes” (Moreira, 2015, p. 19).

Seja como for, vale destacar o papel da mulher indígena para a constituição do Brasil,

que se deu de diferentes maneiras, como através de sua escravização e a procriação de

mamelucos também escravizados e submetidos à exploração colonial; e através dos casamentos

mistos que ora penderam para a integração dos mestiços na cultura dos colonizadores,

“civilizando-os”, ora tenderam a propiciar uma maior preservação dos costumes e práticas

indígenas. Nesse sentido, resgato um estudo coordenado pelo geneticista Sérgio Pena (2002).

O estudo procurou, a partir de linhagens de cromossomos Y e de linhagens de DNA

mitocondrial, analisar as patrilinhagens (paternidade ancestral) e as matrilinhagens

(maternidade ancestral) de brasileiros brancos do final do século XX, cuja amostra contou com

a maior parte do material genético obtido de pessoas integrantes das classes média e média alta.

117

Como resultado, o estudo mostrou que “a imensa maioria (provavelmente mais de 90%) das

patrilinhagens dos brancos brasileiros é de origem europeia” (p. 25). Por outro lado, as

matrilinhagens dos brasileiros brancos mostraram-se de origem europeia em apenas 39% dos

casos. 33% eram de origem ameríndia, enquanto 28% de origem africana. Como reconhece o

autor, “a presença de 60% de matrilinhagens ameríndias e africanas em brasileiros brancos é

inesperadamente alta e, por isso, tem grande relevância social” (p. 27). Afora o restante da

população brasileira, esse estudo mostra que, do ponto de vista genético, nem os brasileiros

brancos escapam, em sua maioria, de uma ancestralidade mestiça...

Não obstante, vale considerar que, se essa realidade é constatada do ponto de vista

genético, isso nunca significou uma mistura étnica e racial do ponto de vista sociocultural que

viabilizasse o sonho de uma “democracia racial” no Brasil41. De outro modo, houve e ainda há

segmentações e hierarquizações nas relações sociais que colocaram os modos de subjetivação,

de configuração de famílias e de socialização dos europeus (especialmente aqueles bem-

sucedidos nas lógicas do capitalismo e do cristianismo) como privilegiados para “aculturar” –

um misto de homogeneização e de produção de desigualdade – o “povo brasileiro”.

Além disso, o estudo de Pena (2002) mostra que é preciso considerar um outro elemento

para a configuração do Brasil: os negros que, com o decréscimo das populações nativas das

Américas e com a resistência e a fuga destas da “domesticação” colonial, foram trazidos da

África durante três séculos para assumir postos de trabalhos como escravos, especialmente nas

grandes fazendas de monocultura para exportação e na exploração das minas de ouro e outros

metais. Diferente dos ameríndios que há muito habitavam as Américas e aqui haviam construído

suas cosmovisões, desenvolvido suas habilidades e estabelecido suas condições naturais e

sociais de existência, os africanos foram trazidos “nus” de sua terra natal – retirados de seus

códigos culturais, de suas pertenças sociais e familiares, de suas segmentações culturais;

41 Aqui, opto por não discutir o conceito de raça a partir do elemento genético, assumindo a importância dos processos sociais e subjetivos tanto para a produção de (e autoidentificação em) uma raça e ou etnia, especialmente em um país em que as classificações raciais sustentam-se mais por critérios de cor e certas características fenotípicas do que por conhecimento da origem ancestral. Nesse contexto, considero pertinente apontar a mistura genética do povo brasileiro em consonância com aqueles que consideram que o enfretamento do preconceito e da discriminação envolvem um debate acerca da desigualdade social que articula uma complexa rede de elementos e segmentações, que incluem as classificações raciais e étnicas, mas vão muito além delas. Ainda assim, não desconsidero o papel dos movimentos sociais e produções teóricas que enfocam a importância de se garantir a visibilidade e a proteção dos que sofrem com as segmentações que produzem divisões (e desigualdades) em torno de aspectos raciais e étnicos.

118

restaram como um corpo sozinho e desprotegido, com sua força de trabalho disponível para

realizar as mais diversas (e não raro, degradantes) atividades em troca de sua sobrevivência.

Ribeiro (1995/2014) afirma que os negros trazidos da África vieram de variados povos,

especialmente da costa ocidental desse continente. Os costumes e línguas eram diferentes entre

esses povos, o que inviabilizava sua fácil comunicação e ainda mantinha, em território africano,

uma série de disputas e hostilidades entre grupos, o que acabou por facilitar a captura e

escravização de integrantes de um grupo por rivais e sua oferta aos mercadores que os

repassavam aos europeus nos portos no litoral.

Apresado aos quinze anos em sua terra, como se fosse uma caça apanhada numa armadilha, ele era arrastado pelo pombeiro – mercador africano de escravos – para a praia, onde seria resgatado em troca de tabaco, aguardente e bugigangas. Dali partiam em comboios, pescoço atado a pescoço com outros negros, numa corda puxada até o porto e tumbeiro. Metido no navio, era deitado no meio de cem outros para ocupar, por meios e meio, o exíguo espaço do seu tamanho, mal comendo, mal cagando ali mesmo, no meio da fedentina mais hedionda. Escapando vivo à travessia, caía no outro mercado, no lado de cá, onde era examinado como um cavalo magro. Avaliado pelos dentes, pela grossura dos tornozelos e dos punhos, era arrematado. Outro comboio, agora de correntes, o levava à terra adentro, ao senhor das minas ou dos açúcares para viver o destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar dezoito horas por dia, todos os dias do ano. [...] Sem amor de ninguém, sem família, sem sexo que não fosse a masturbação, sem nenhuma identificação possível com ninguém – seu capataz podia ser um negro, seus companheiros de infortúnio, inimigos -, maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou orgulho do corpo, vivia a sua rotina. Esta era sofrer todo o dia o castigo diário das chicotadas soltas, para trabalhar atento e tenso. (Ribeiro, 1995/2014, p. 107)

A diversidade de línguas e culturas dos negros trazidos para o Brasil, bem como a

política de evitar a concentração de escravos oriundos de um mesmo povo nas mesmas

propriedades, contribuiu para que a eles restasse se incorporar à cultura local, aprendendo o

português para conseguirem se comunicar com seus capatazes e entre si. Acabaram, com isso,

contribuindo para aportuguesar o Brasil. Ademais, viram-se compelidos a aprender a viver nas

condições da terra, bem como da sociedade e da cultura que já estavam sendo em gestadas pelas

conexões entre europeus e índios e que, para eles, envolvia a condição de escravos extraídos de

seus modos de vida tradicionais e destinados a atender os interesses de seus senhores e

capatazes, e não os seus próprios, sua família ou comunidade. Ainda assim, componentes

genéticos e culturais – como sua cor de pele, os traços de seus rostos, o tipo de cabelo, sua

musicalidade e suas danças, seu gosto e estilo culinários, além de elementos de suas línguas, de

suas religiosidades e de seus costumes –, foram sendo introduzidos de forma silenciosa, mas

perseverante e continuada, ao longo dos séculos e acabaram por contribuir para o “[...]

amálgama racial e cultural brasileiro” (Ribeiro, 1995/2014, p. 102). Como vimos, a

matrilinhagem africana constituía quase 30% da ancestralidade materna dos brancos brasileiros

119

do final do século XX (Penna, 2002). O que mostra a importância também do ventre africano,

mesmo escravizado, para a produção do povo brasileiro. No entanto, a entrada dos negros, suas

caraterísticas e costumes, sua força de trabalho e seu ventre não ocorreram da mesma maneira

em todo o Brasil, nem ao longo do tempo.

Os negros africanos vieram em grande medida para suprir a necessidade de mão de obra

na economia brasileira agrária, colonial e depois imperial. Seus fluxos migratórios

modificaram-se à medida que a demanda por escravos foi mudando econômica e

geograficamente. Reginaldo Prandi (2000) assinala que, entre meados do século XVI e meados

do século XVIII, os negros foram importados da África tendo como principal destino os

engenhos de açúcar do nordeste brasileiro. Com o início da exploração do ouro em Minas

Gerais, acentua-se o fluxo de negros para o sudeste.

Ao longo da história agrícola colonial, o crescimento das atividades agrícolas correspondeu sempre a um maior afluxo de escravos. Foram a mão-de-obra dos campos de fumo e cacau da Bahia e Sergipe, além da cana-de-açúcar; no Rio de Janeiro foram destinados aos plantios de cana e mais tarde de café; em Pernambuco, Alagoas e Paraíba eram indispensáveis aos cultivos de cana e algodão; no Maranhão e Pará trabalharam no algodão; em São Paulo, na cana e café. Em Minas, além da mineração, trabalharam, mais tarde, nas plantações de café, também cultivado no Espírito Santo. Também estavam presentes na agricultura do Rio Grande do Sul e na mineração de Goiás e Mato Grosso. Em todos os lugares foram os responsáveis também pelos serviços domésticos, organizados no complexo casa-grande e senzala. (Prandi, 2000, p. 55)

Mas, no século XIX, os processos de urbanização e industrialização no Brasil

contribuíram para o crescimento da inserção dos negros no ambiente das cidades, em uma nova

forma de exploração de seu trabalho: “os escravos ofereciam suas habilidades profissionais a

quem delas precisava, recebendo pagamento em dinheiro, destinado ao senhor do escravo, no

todo ou em grande parte” (Prandi, 2000, p. 55). Ficaram conhecidos como “escravos de ganho”,

realizando atividades que outros negros – escravos libertos por seus proprietários ou

emancipados pelo governo em virtude de seu tráfico ilegal – também faziam, tais como

carregadores, pequenos mercadores, barqueiros de cabotagem, produtores de víveres, artesãos,

amas de leite, empregados domésticos, cuidadores, encarregados de serviços públicos.

As lógicas e relações dos engenhos rurais, sustentadas pelo binômio casa-grande e

senzala42 e que mantinham o negro como peça apartada, presa, vigiada e silenciada no

funcionamento sócio-político e cultural (embora isso nunca ocorra de forma absoluta), são

42 Esse binômio foi difundido nos estudos sobre a história do Brasil e sua organização familiar, política e econômica no período colonial a partir da obra de Gilberto Freyre (1933/1999) Casa-Grande & Senzala, que abordo a seguir.

120

diluídas nos meios urbanos. Nestes, os escravos ganham maior liberdade, conseguem ampliar

suas relações sociais e construir maiores vínculos entre si. Os escravos de ganho, com maior

possibilidade de circulação e autorizados a viver em habitações coletivas, junto com negros

libertos e emancipados, acabaram por se organizar em coletivos mais próximos de suas origens

linguísticas e culturais africanas, formando associações de compatriotas, agrupamentos étnicos

e entidades que celebravam tradições orientadas ou inspiradas por suas culturas originárias,

mesmo quando realizadas de formas dissimuladas em virtude das determinações culturais

dominantes. A chegada de africanos diretamente para o contexto urbano no último período da

escravidão brasileira possibilitou o contato com línguas e costumes mais preservados, o que

ampliou a identificação de etnias e nações que, no início da colonização, haviam sido diluídas

pela inserção difusa dos escravos nas senzalas rurais.

Prandi (2000) destaca que a maior integração entre os negros – escravos e livres,

africanos e descendentes (diretos ou mestiços) – permitiu a consolidação de elementos culturais

que se tornaram importantes nos agenciamentos sociosubjetivos mais amplos do país, entre

eles, as religiões afro-brasileiras. “Nas diferentes grandes cidades do século XIX surgiram

grupos que recriavam no Brasil cultos religiosos que reproduziam não somente a religião

africana, mas também outros aspectos da sua cultura na África” (Prandi, 2000, p. 60).

Quanto aos negros trazidos para compor a mão de obra dos meios rurais, que

representaram a maior parte da ocupação do vasto território brasileiro no período colonial e

imperial e que, afinal, receberam mais negros do que os centros urbanos, é comum indicar seu

confinamento nas estruturas dos engenhos e sua participação no funcionamento da socialidade

destes a partir de sua conformação nas senzalas, de sua subjugação e esfacelamento

sociocultural e da exploração de sua força de trabalho escravizada. Ainda que, em boa medida,

esses escravos tenham sido compelidos a se incorporar como escravos individualizados à

cultura colonial, isso não pode ser lido como uma aculturação de sujeitos que, uma vez

escravizados e retirados de sua terra e cultura, tenham se transformado em uma “tábula rasa”

passiva. Como lembram Petrónio Rodrigues e Flávio Gomes (2013), muitas foram as maneiras

dos escravos resistirem aos desígnios que lhes foram impostos pelos senhores de engenho. Essas

maneiras envolveram contestação, acomodação, conflitos e a produção de novos

agenciamentos. Para alguns envolveu ralentar o tempo e o ritmo das tarefas diárias, para outros

envolveu constituir famílias e manter-se em contato mesmo quando separados em diferentes

fazendas. Existiram os que cultivavam roças nas parcelas de terras e no tempo a eles destinados

por seus senhores e que vendiam seus produtos nas feiras locais para ter mais autonomia. De

121

forma mais combativa, ocorreram insurreições, emboscadas e assassinatos de feitores e

senhores. Houve também as fugas que, em vários casos, resultaram no nascimento e

crescimento dos quilombos compostos por ex-escravos e seus descendentes.

Os quilombos foram compreendidos em muitos estudos brasileiros a partir de duas

visões – uma que enfoca a resistência cultural promovida por eles, e outra que salienta o caráter

de resistência econômica contra as lógicas da monocultura escravocrata. Nos dois casos, o

quilombo é assumido como um lugar marginal, que vivia em isolamento (e por isso se

preservava) da vida dos engenhos e das vilas que a estes se ligavam. Contudo, Rodrigues e

Gomes (2013, p. 9) destacam que “um dos aspectos fundamentais que marcaram os quilombos

foi a formação de micro comunidades camponesas”, que se fixavam a distâncias não muito

longas de onde pudessem acontecer trocas mercantis. Por isso, os quilombos integraram-se, em

alguma medida, às economias e às práticas sociais de seu entorno, tendo contato com os negros

cativos que vendiam seus produtos nas feiras locais, roceiros libertos, pequenos arrendatários,

artesãos, indígenas, comerciantes diversos.

Assim, há uma significativa inserção de negros africanos no Brasil submetidos às

lógicas, valores e práticas escravocratas estabelecidas nos grandes engenhos de monocultura

para exportação, como há também toda uma socialidade difusa e micropolítica, menos visível

aos olhos do plano de organização colonial e mais ligada a modos de subjetivação que foram

se tecendo entre as misturas dos diferentes povos que aqui se encontraram. Modos que ora

reforçaram, ora flexibilizaram, ora fugiram e transformaram as lógicas, estruturas,

segmentações dominantes da colonização.

A formação histórica de [modelos de] famílias no Brasil

Não obstante a diversidade sociocultural que permeou o Brasil em seus primeiros

tempos e não obstante a multiplicidade de linhas de socialização e subjetivação que se formaram

e se conectaram entre elementos vindos de variados povos e seus modos de vida, é necessário

dizer que um modelo de família se sagrou hegemônico: a família patriarcal extensa43,

43 Escolho usar o termo “família patriarcal extensa” como forma de diferenciá-la da “família nuclear moderna” que, como vimos no capítulo anterior, é também uma família que se organiza dentro de lógicas patriarcais, ainda que o patriarca, neste caso, circunscreva seu poder de mando e controle ao um núcleo muito mais reduzido de pessoas (esposa, filhos e, em alguns casos, empregados). Vale lembrar que o patriarcalismo é anterior ao capitalismo e à colonização empreendidos a partir da Europa, presente nos clãs medievais que, com os devidos ajustes, aproximam-se da família patriarcal extensa instituída aqui,

122

organizada a partir das lógicas e relações centradas no funcionamento das grandes fazendas e

sua produção para exportação.

Essa família envolvia não apenas o casal e seus filhos “legítimos”, mas um conjunto

muito mais extenso de pessoas que estavam inseridas na dinâmica dos engenhos e das vilas que

a eles se ligavam, tais como outros parentes, afilhados, filhos bastardos, agregados, noras e

genros, escravos e até mesmo concubinas. O comando era centralizado na autoridade do

patriarca – o proprietário das terras, das riquezas, da produção, dos escravos, das decisões

econômicas e políticas. As grandes mansões em formato de sobrado representavam sua Casa-

Grande – “[...] símbolo desse tipo de organização, núcleo para onde convergia toda a vida

econômica, social e política da região, de forma mais ou menos ordenada. Sua área de influência

englobava a atuação da Igreja, do Estado e todas as outras instituições sociais e econômicas”

(Teruya, 2018, p. 4).

A grande referência para os estudos sobre a família patriarcal do período colonial no

Brasil é o clássico Casa-Grande & Senzala de Gilberto Freyre (1933/1999), que destaca a

configuração político-econômica do país em torno dessa organização familiar-social. Para esse

autor e toda uma gama de teóricos que o seguiram, a institucionalização da família patriarcal se

explicava pela própria estrutura colonial. Com propriedades que cobriam grandes extensões de

terra e sem um Estado que conseguisse se impor ao seu poder local, os patriarcas acabaram

assumindo o papel/lugar de comando nas dinâmicas regionais e nas relações mais amplas com

a Igreja, com a Coroa e com a rede de comércio inter-regional e internacional.

Nesse contexto, as relações da parentela com o “seu” patriarca marcavam o lugar, o

papel e as condições de mobilidade e de poder (ou submissão) de cada um: esposa, filho

“legítimo”, parente, compadre, capanga, escravo e outros. Ana Sílvia Scott (2009) pondera que

os laços familiares eram elásticos, construídos não apenas através do parentesco biológico,

como também “[...] através dos laços baseados nas alianças matrimoniais, nas relações de

compadrio e na ‘economia do dom’, que funciona através da lógica dos atos de dar e retribuir,

constituindo relações de ‘amizade desigual’ que as diferentes esferas de poder legitimavam” (p.

25). Os interesses do grupo extenso composto por parentes, amigos, protegidos e dependentes

organizava, em boa medida, as dinâmicas sociais na colônia.

Contudo, como ressalta Eni Samara (2002), diferentes estudos que se fortaleceram do

final do século XX em diante mostram que as famílias extensas do tipo patriarcal, que

à moda brasileira.

123

organizaram a vida comunitária e regional em torno das grandes fazendas, especialmente no

nordeste brasileiro, não foram a configuração familiar mais comum em muitas partes do país,

mesmo no período colonial.

Mariza Corrêa (1981) mostra que, dentro da própria dinâmica dos engenhos açucareiros

– o lugar privilegiado da família patriarcal extensa – havia diversos trabalhadores que não se

conformavam na dinâmica casa-grande e senzala e que tinham relações mais livres em relação

aos patriarcas. Era o caso dos técnicos “mesteres” de açúcar que trabalhavam como assalariados

livres nos engenhos. Nas redondezas, havia ainda: os lavradores e suas famílias que arrendavam

pedaços de terra improdutiva de algumas fazendas para cultivo, sem vínculo direto com os

produtos para exportação; os artesãos; os pequenos agricultores de tabaco, de algodão e de

gêneros alimentícios que os cultivavam em suas propriedades, muitas vezes sem mão-de-obra

escrava e contando apenas com seu pequeno grupo doméstico44. E na outra “ponta” do processo

para a exportação do açúcar, ou mesmo do tabaco e outros, havia os trabalhadores que atuavam

no escoamento dos produtos, nas vias de transporte e nos portos, bem como aqueles que

atuavam no controle fiscal para a Coroa. A presença de portos, estaleiros, armazéns, casas de

comércio, hospedagens e outros demandou a formação de aglomerados urbanos, cujo

funcionamento e relações possuíam muitas especificidades em relação ao que se passava nas

fazendas. Para Corrêa (1981), se Gilberto Freyre tivesse se atentado a esses outros personagens

presentes na dinâmica da produção exportadora colonial, “[...] a composição da sociedade

colonial da costa Bahia-Pernambuco teria uma tonalidade bem diferente” (p. 8).

Além disso, não é possível homogeneizar o que se passava nos grandes engenhos do

nordeste com suas estruturas fincadas de modo sedentário à terra com o que se passava na vida

mais dinâmica e nômade dos que se embrenhavam nas terras do centro-sul do Brasil. Samara

(2002) cita, como exemplo, a descoberta do ouro em Minas no final do século XVII que

transformou esta região em um novo polo de colonização no coração do sudeste brasileiro. Esse

polo atraiu pessoas de origens diferentes em busca de oportunidades e enriquecimento ao longo

do século XVIII. Ali, a vida urbana era mais intensa, havia maior oferta de atividades e os

controles eram mais difusos. Muitas mulheres exerciam atividades econômicas e chefiavam

famílias, uma vez que havia a demanda para a produção em domicílio, como a manufatura de

tecidos, que podia ser realizada em casa e podia ser feita sob a coordenação da mulher com a

44 Isso, sem contar as aldeias, aldeamentos, quilombos e pequenos aglomerados urbanos para trocas comerciais que, como vimos anteriormente, também existiam difusos pelo país e funcionavam de forma paralela (o que não significa totalmente isolada) à estrutura dos engenhos.

124

ajuda dos filhos, parentes e agregados para engrossar a renda familiar. Eram ainda frequentes

uniões familiares informais. Nesse cenário mineiro, a cidade de Vila Rica tinha, em 1804, 45%

dos domicílios chefiados por mulheres (Samara, 2002).

Em São Paulo, mesmo com o fortalecimento das grandes fazendas produtoras de café

após o auge do ciclo do ouro e do diamante em Minas e Goiás, a região possuía o histórico

nômade dos bandeirantes, possuía núcleos urbanos crescentes e tinha fazendas mais modestas

que não raro contavam com trabalhadores livres no lugar de escravos. No contexto paulista e,

em especial na cidade de São Paulo, o censo feito no início do período imperial (1836) mostra

que a maior parte dos domicílios eram compostos por famílias nucleares de até quatro membros

e que as famílias com muitos membros, agregados e escravos configuravam apenas 26% dos

domicílios. Essa realidade, para Samara (2002), não podia ser muito diferente do que se passava

no fim do período colonial. Se é preciso considerar a dinâmica social da cidade e as influências

exercidas nessa dinâmica pelos núcleos extensos da elite paulista, ainda assim, tal dinâmica não

pode ser simplesmente equiparada à realidade rural dos engenhos.

Quanto à própria região nordeste, Teruya (2018) assinala que o sertão pecuário pouco

foi abordado nos estudos sobre as famílias do período colonial, que se centraram na família

patriarcal extensa das grandes fazendas como a referência familiar e social desse período. O

sertão acabou sendo considerado um “mundo meio selvagem” distante (e supostamente menos

influente para “a família brasileira” que os) engenhos mais próximos do litoral.

Não cumpre aqui realizar um aprofundamento nas diferenças regionais brasileiras, nem

é o objetivo deste trabalho detalhar um rigoroso estudo historiográfico. O que ressalto, a partir

do que foi colocado, é que, se a família patriarcal extensa vingou como o modelo da família

brasileira, é preciso compreender as implicações sociosubjetivas dessa afirmação.

Há que se reconhecer que a família patriarcal extensa se transformou, de fato, no modo

de socialização e subjetivação que se sagrou hegemônico no período colonial. Seu modelo,

tomado como parâmetro e referência, traçou importantes segmentações culturais; definiu um

olhar sobre a normalidade ou anormalidade das diferentes relações; mobilizou o desejo, a culpa,

o poder e as punições45. Orientou papéis e forças políticas, tanto macro como micropolíticas. O

poder desse modelo familiar no diagrama das forças sociais e seu papel nas análises históricas

produziram um dualismo estratégico em favor das elites econômicas, dos homens patriarcas (ou

45 Corrêa (1981) mostra, por exemplo, que esposas adúlteras e filhas que não conseguiam oferta de dote para casamento eram punidas pelos patriarcas, comumente encaminhadas para casas de recolhimento onde passavam o resto de suas vidas.

125

aspirantes a isso) e dos valores culturais cristãos-coloniais. Esse dualismo colocou, de um lado,

a “família definida como normal” e, do outro lado e por contraste, a grande “massa amorfa e

anônima” que precisava ser disciplinada, aculturada, vigiada dentro dos padrões dominantes

(Corrêa, 1981). Ademais, essa família alçou um lugar simbólico para as análises e para as

reconstruções teóricas sobre a história da família, do povo e da nação brasileira, que acabaram

por ater-se ao funcionamento, aos laços e à dinâmica familiar extensa da elite rural escravocrata,

considerando-a como eixo analítico para o restante dos laços, configurações e relações que

permeavam a dinâmica de um país tão extenso e multifacetado.

Apesar do papel hegemônico da família patriarcal extensa por um longo período e da

existência de vários de seus componentes até hoje46, é preciso abordar um deslocamento

histórico que se processou no Brasil a partir do século XIX em direção à família nuclear

burguesa. Como vimos no capítulo anterior, esta família foi se configurando e se tornando a

referência dentro de um longo processo de transformações socioculturais, econômicas,

tecnológicas, estatais, subjetivas ocorrido, de forma pioneira, na Europa a partir do século XIV

e que viabilizou a produção histórica da modernidade capitalista e, nesta, do privilégio da

família nuclear e privatizada. Processo que, é bom lembrar, ocorreu graças, entre outros, ao

“casamento” entre os mercadores e produtores que cresceram e se fortaleceram na Europa e as

terras “livres” descobertas nas Américas. Ainda que imposto por um dos lados, esse casamento

viabilizou ingredientes fundamentais para a institucionalização do capitalismo: a apropriação e

a exploração de uma “natureza grátis”47 e sua gigantesca fonte de matérias-primas e terras; a

imposição da escravidão a um enorme contingente de seres humanos; a abertura de um mercado

consumidor colonizado. A colonização das Américas permitiu o crescimento de uma oligarquia

burguesa poderosa na Europa, próxima aos monarcas e monopolista do comércio exterior.

Desde o início, esses mercadores-navegadores obtiveram grandes lucros com a exploração das

novas terras e seus recursos48. Com o crescimento da produção industrial, inicialmente na

46 Nesse sentido, é interessante observar o modo como muitos familiares ainda se referem aos idosos de seu grupo em grande parte do Brasil, ou mesmo a forma como os mais velhos são referidos e tratados em eventos sociais. Com frequência, é possível observar, por exemplo, cumprimentos cercados de reverência ao “senhor” e à “senhora”, não raro acompanhados do pedido de sua benção. Isso mesmo quando os idosos são vivenciados cotidianamente como um peso ou um estorvo para as famílias, que não sabem onde enfiá-lo, nem como lidar com as fragilidades e questões próprias do envelhecer. 47 O termo “natureza grátis” para se referir à apropriação dos recursos naturais das Américas e em outros locais em prol do capitalismo é utilizado pelo historiador estadunidense Jason W. Moore (2017). 48 Dobb (1946/1983) afirma que os lucros giravam entre 100 e 300%. Em alguns casos, como a expedição de Vasco da Gama, a carga que aportou em Lisboa correspondia a 60 vezes o custo da expedição.

126

Europa e depois em outros países, a colonização viabilizou ainda um fluxo de matérias e

materiais para a produção industrial a preços baixos e facilitou o escoamento dos produtos

manufaturados. Marx (1867/2013) defende que a existência do capitalismo foi possível graças

a uma acumulação primitiva gerada por um complexo processo histórico que destituiu as

pessoas de suas terras e de seus meios de produção e sobrevivência, transferindo-os para as

mãos dos capitalistas. Se isso ocorreu na Europa como esse autor detalha, isso ocorreu também

(e Marx o indica) nas Américas, por vezes de forma mais cruel.

Nesse cenário, o Brasil foi acoplado às lógicas capitalistas modernas desde o século XVI

com seu descobrimento e colonização pelos europeus. Aqui, o funcionamento nos moldes

coloniais e a organização geopolítica e social que se impôs acabaram por viabilizar a

configuração das famílias detentoras das terras e das riquezas de modo mais próximo ao das

famílias medievais europeias, com clãs compostos de extensa parentela. Além disso,

estabeleceu-se uma rede de escravos e trabalhadores ligados a esses clãs sob a autoridade do

patriarca. Entretanto, a partir do século XIX e ao longo do século XX, com os fluxos migratórios

e o crescimento urbano, com a industrialização que vai ganhando corpo e com as lógicas

disciplinares e higienistas que acompanham esses processos, um novo modelo de família, “mais

moderno” digamos assim, passa a ser valorizado: a família nuclear.

* * *

A urbanização e a industrialização são consideradas importantes fatores no Brasil para

a nucleação e privatização familiares dentro das lógicas afetivas, econômicas e disciplinares da

modernidade capitalista. É a partir desses processos que os valores burgueses e a consolidação

dos controles biopolíticos do Estado se institucionalizam no país.

Como vimos, é preciso considerar os aglomerados urbanos que se formaram no Brasil

ao longo do período colonial e sua importância, ainda que relativa, na tessitura geopolítica do

país naquele momento, cuja população vivia, em grande medida, no meio rural. Em Minas

Gerais, um exemplo citado, a descoberta do ouro transformou essa região em um polo no século

XVIII, que atraiu muitas pessoas e desenvolveu cidades, tanto no entorno das minas quanto nas

vias de transporte até o litoral. Mesmo após o declínio da atividade extrativa, algumas cidades

se firmaram, conforme indica Ralfo Matos (2012), como territórios populosos, capazes de

promover a diversificação de suas atividades econômicas e consolidar mercados dinâmicos de

127

gêneros agrícolas, de tecidos e roupas, de artigos em couro e metais, entre outros. Nesses

centros urbanos cresceu a insatisfação com as políticas de exploração predatória da metrópole

portuguesa, os abusos políticos e as altas taxas e impostos. As políticas da Coroa ambicionavam

deixar o Brasil em uma forte situação de dependência, proibindo, por exemplo, o

estabelecimento de fábricas e manufaturas nos centros urbanos brasileiros49, ao mesmo tempo

que as ideias de progresso e desenvolvimento capitalistas, bem como as inspirações iluministas

chegavam no país, fortalecendo o desejo de independência.

No contexto dessas cidades do período colonial, as configurações familiares não

conseguiam reproduzir o modelo hegemônico da família patriarcal extensa, existindo muitas

famílias de poucos membros, famílias efetivamente nucleares (pais com seus filhos), famílias

lideradas por mulheres, entre outras. Mas essas famílias, ainda que diversas em relação ao

modelo de referência, eram atravessadas por ele, comparavam-se e orientavam-se pelas

dinâmicas, valores e práticas que eram difundidas a partir das famílias patriarcais dos engenhos.

Já no século XIX, o Brasil passa por grandes transformações: sua independência (1822);

a instauração da República (1889); as alterações em grande parte dos vínculos de trabalho com

a abolição da escravatura (1888); os movimentos migratórios para a região Centro-Sul do país.

Esses processos se costuram e vão mudando o panorama social, político e econômico do país.

Eles aceleram a formação de uma sociedade de caráter mais urbano-industrial. Com isso, o

modelo de família valorizado socialmente também muda.

Enquanto o Brasil permaneceu uma colônia, a política estatal estava vinculada a uma

metrópole distante e seus interesses eram marcados pela exploração predatória dos recursos do

país. E a dinâmica da agricultura para exportação, sustentada pela escravidão, abria poucas

brechas para investimentos mais volumosos em outros processos produtivos. O fim da

escravidão colocou milhares de ex-escravos disponíveis para o trabalho assalariado e acabou

por liberar investimentos para outras atividades (Matos, 2012). Some-se a isso, os processos

migratórios que se intensificaram na segunda metade do século XIX e primeira metade do

século XX. Processos que envolveram tanto emigração nordestina para o Centro-Sul desde a

severa estiagem dos anos 1877-1879, quanto a chegada de famílias camponesas de diferentes

49 A rainha D. Maria I baixou em 5 de janeiro de 1785 um Alvará que proibia o funcionamento de fábricas e manufaturas no Brasil, argumentando que, com o desenvolvimento das fábricas e manufaturas, os colonos deixariam de cultivar e explorar as riquezas da terra e de fazer prosperar a agricultura nas sesmarias, descumprindo o acordo firmado quando as terras foram doadas pela Coroa portuguesa. Só poderiam existir manufaturas têxteis que produzissem tecidos rústicos para vestimenta dos escravos e empacotamento de produtos.

128

países europeus, estimulados especialmente pela cafeicultura paulista. Samara (2002) ressalta

que a imigração para o sudeste ocorreu em proporções superiores às possibilidades de trabalho

no campo, o que favoreceu o crescimento da população urbana e a diversificação de atividades,

com “[...] múltiplas formas de trabalho domiciliar e temporário” (p. 5).

Além disso, a independência e, em seguida, a proclamação da República fizeram

emergir um Estado brasileiro que, atuando “por si só”, vai paulatinamente fortalecendo

estratégias biopolíticas para o controle da população. Como vimos, dois tipos de mecanismos

sustentam essas estratégias de governo: as táticas regulamentadoras da população e as

tecnologias disciplinares de controle e docilização dos indivíduos (Foucault, 1979/2008).

No Brasil, estratégias de governo efetivamente envolvidas com análises e intervenções

econômicas-científicas para gerir a população só começam a ganhar volume com a chegada da

Corte portuguesa e, de forma mais contundente, com os processos de urbanização e

industrialização que se processaram a partir da segunda metade do século XIX com a

proclamação da República e a ambição dos governantes nacionais em “modernizar” o país.

Nesse contexto cresce uma elite econômica ligada aos novos ramos industriais-comerciais e

orientada mais por valores burgueses urbanos do que pelo familismo patriarcal.

As estratégias biopolíticas se disseminam aqui junto com a difusão de práticas

disciplinares que vão produzindo novos contornos, valores e posturas nas diversas instituições

sociais tais como as escolas e igrejas, e também nas famílias. Como vimos no capítulo anterior,

as famílias, dentro das lógicas de nucleação e privatização nos moldes burgueses, tornaram-se

um elemento social fundamental para a disciplina e a docilização dos indivíduos. Vejamos

como, em linhas gerais, isso se processou no Brasil.

Maria Ângela D’Incao (2004) conta que, antes do século XIX, o “requinte” estava longe

de marcar o cotidiano da população urbana brasileira, considerada vagabunda e perturbadora

para as elites locais e para os administradores da Coroa portuguesa no país. Ela conta, a partir

das crônicas de Luiz Edmundo, que o Rio de Janeiro do século XVIII era desorganizado, com

as ruas sendo utilizadas pela população e pelos moradores das casas sem limites definidos. Das

casas, que tinham as ruas como sua extensão, jorrava a água residual usada pelos moradores,

espalhando mau cheiro, sujeira e contribuindo para as doenças que pipocavam nos aglomerados

urbanos. Até o século XIX o Brasil não possuía leis públicas que regulamentassem a limpeza e

o uso das cidades, o que começa então a mudar. D’Incao (2004) relata que, nesse período, Rio

129

de Janeiro e Olinda começam a criar uma legislação e a estabelecer um controle maior sobre o

uso das cidades.

Os espaços para o abate de animais domésticos e para a lavagem de roupas, as fontes centrais, bem como os terrenos para criação de animais e locais para cortar lenha foram reduzidos ou transferidos do centro das cidades para a periferia. (...) Autoridades públicas limitaram o “mau uso” da casa e tenderam a estabelecer uma nova atitude em relação às ruas, agora consideradas “lugares públicos” e que por isso deveriam manter-se limpas. Com isso, o lugar público ganha, então, um significado oposto ao do uso particular. Claro que para a rua atingir seu novo status muitas restrições são impostas à população. O espaço urbano, antigamente usado por todos em encontros coletivos, festas, mercados, convívio social etc., começa a ser governado por um novo interesse, qual seja, “o interesse público”, controlado pelas elites governantes (D’Incao, 2004, p. 188).

Também no início do século XIX são abertas as primeiras Escolas de Medicina do país,

na Bahia e no Rio de Janeiro. Nesse cenário, chega aqui a medicina social, trazendo novas

concepções sobre higiene e saúde que pouco a pouco se espalham entre as famílias mais

abastadas e vão sendo assumidas com novas medidas pelo poder público. As medidas estatais

ampliam a inserção dessas novas concepções de higiene e saúde para famílias das diferentes

classes sociais e contextos.

É certo que, antes da atuação da medicina social, a administração pública já havia

tentado exercer um controle sobre as cidades e suas populações, especialmente com o contínuo

crescimento destas. Mas a estrutura colonial e sua engrenagem jurídico-policial, que enfocava

basicamente a punição de comportamentos inadequados, pouco conseguiram ordenar o meio

urbano e implantar medidas eficazes. Como mostra Jurandir Freire Costa (1979/1989) em

Ordem médica e norma familiar, foi o saber médico, aliado ao surgimento do Estado brasileiro

“independente” e aos interesses da elite local, que mudou as estratégias de abordagem da

população. As estratégias da medicina social passaram a mobilizar o interesse das pessoas e das

famílias em cuidar de sua própria saúde física e mental; elas procuraram promover a higiene, o

asseio e a organização dos espaços privados, enquanto os agentes do Estado se propunham a

garantir a ordem e a salubridade nos espaços públicos. Nesse cenário, a saúde da população

tornou-se, ao mesmo tempo, uma política de Estado e uma prática de autocuidado e vigilância

disciplinar nas famílias.

Costa (1979/1989) destaca que, “[...] valendo-se dos altos índices de mortalidade infantil

e das precárias condições de saúde dos adultos, a higiene conseguiu impor à família uma

educação física, moral, intelectual e sexual, inspirada nos preceitos sanitários da época” (p. 12).

Essa educação conseguiu alterar os costumes e hábitos familiares em favor da valorização do

130

cuidado higiênico do corpo e de uma educação moral que representasse comportamentos

“civilizados” – disciplinados, polidos, comedidos à maneira da burguesia europeia.

Como vimos, durante o período colonial existiram famílias nucleares, ou seja, formadas

por pais e seus filhos. Contudo, essas famílias dificilmente podem ser pensadas dentro das

lógicas higiênicas, disciplinares, normalizadoras calcadas nos valores burgueses. A valorização

da familiar nuclear moderna envolveu transformar o núcleo familiar pais-filhos em uma

configuração privilegiada que deveria, ainda, seguir os moldes capitalistas disciplinares mais

ligados às lógicas industriais e higiênicas. As famílias que primeiro mobilizaram as estratégias

higiênicas foram as famílias da elite brasileira, cada vez mais urbana e industrial.

Como na Europa, são as famílias que assumem o estilo de vida da burguesia que vão

“dar o tom” do novo modelo familiar. São elas que conseguem se encaixar e reproduzir os

novos valores preconizados. São elas que conseguem promover o fechamento do espaço

privado da casa e manter-se à distância do restante “do povo”. São elas que passam a se

preocupar com o controle higiênico da sexualidade que deveria ser restrita a práticas “normais”

nos moldes monogâmicos heterossexuais, e com o papel reprodutivo e educativo dos pais para

que suas proles fossem saudáveis. São elas que colocam o amor romântico como fundamento

para a união entre casais e para a sustentação do casamento e da família. Embasadas no discurso

médico-higiênico, essas famílias promovem novo sentido à privacidade e à intimidade, bem

como à educação e ao cuidado individualizado.

Cumpre salientar que tal reconfiguração familiar foi possível, além da difusão dos

preceitos da medicina social e dos valores burgueses inspirados nos europeus “civilizados”,

graças à maior mobilidade e autonomia de membros das famílias da elite, viabilizadas pelas

novas ofertas de estudos, trabalhos e investimentos nos meios urbanos, que garantiram maior

independência econômica e residência autônoma para a formação de núcleos familiares

menores. Assim, os membros das famílias abastadas puderam não apenas adaptar-se ao

contexto mais urbano, como também afastar-se das lógicas e controles que os mantinham

vinculados aos laços extensos sob o mando do patriarca rural. Puderam constituir núcleos

familiares mais focados no que se passava no âmbito doméstico e nos vínculos entre o casal e

seus filhos.

Nesse cenário, é importante lembrar que a família que vai se estruturando de forma

nuclear e privatizada não rompe com as lógicas patriarcais, mas reconfigura a hierarquia sob o

comando do homem para o pequeno grupo da família. Emerge o patriarca burguês que deve

131

garantir o sustento, a ordem e a prosperidade de seu núcleo familiar para o desenvolvimento

saudável e a educação moral, intelectual e sexual dos filhos. À mulher, cabe o papel da esposa

zelosa e submissa, cuidadora dos filhos e do marido. Como afirma Teruya (2018), a nova

configuração de família, nuclear burguesa, tomada como privilegiada no contexto social

brasileiro a partir do século XIX, manteve “[...] a moral patriarcal como medida” (p. 10).

Em termos jurídico-legais, a legislação da República consolidou a figura masculina

como o chefe da família. Desde o Código Civil de 1916, passando pelas Constituições Federais

a seguir (1934, 1946, 1967 e 1969), a legislação manteve a chefia e a responsabilidade legal

nas mãos do pater familias: era o homem que detinha “[...] o direito de fixar o domicílio da

família; o direito de administrar os bens do casal e, finalmente, o direito de decidir em casos de

divergência” (Romagnoli, 1996, p. 65). A posição jurídica da mulher era de “colaboradora do

marido”50. Além disso, as leis e a justiça brasileiras enfocavam a “família legítima”, aquela

formalmente constituída nos termos da lei e que assumia a indissolubilidade do casamento51,

pouco considerando os agrupamentos familiares “de fato”, informais e alternativos ao padrão

legal.

Dentro dos lares, como ocorreu na Europa52, aqui também a criança, seu cuidado e

educação vão ganhando centralidade na sensibilidade, nos afetos e nas práticas da família

nuclear. O casamento, apoiado no amor romântico, deveria promover uma base estável e

duradoura onde o casal poderia procriar em segurança e, uma vez produzidos os filhos,

tornarem-se pai e mãe “higiênicos", dedicados ao desenvolvimento e educação dos filhos. O

sexo fora do casamento passa a ser mal-visto, por seus perigos de prole ilegítima e de doenças

infecciosas. Uniões endogâmicas, por interesse ou realizadas entre cônjuges com grande

diferença etária, tão em voga na colônia, passam a ser mal-vistas pelo risco de não gerarem

indivíduos sadios e adequados aos padrões sociais (Romagnoli, 1996).

É importante frisar, nesse contexto, a mudança que vai se processando nas relações entre

família e Estado. Durante o período colonial, viveu-se um tensionamento constante entre os

50 Romagnoli (1996) pondera que o direito ao voto, ampliado para as mulheres na Constituição de 1934, criou uma situação paradoxal: a mulher passou a ser cidadã plena em relação ao direito de escolha dos representantes no Estado, mas era considerada incapaz quando casada, uma vez que era o marido que respondia legalmente por ela. 51 É a partir do final da década de 1970, com a institucionalização do divórcio no país, que a indissolubilidade do casamento é extinta. Quanto à igualdade dos gêneros e à ampliação da proteção legal da diversidade de famílias, esse processo ganha força a partir da Constituição de 1988. Essas questões são abordadas no próximo capítulo. 52 Conferir a análise feita no capítulo anterior.

132

interesses das extensas famílias rurais com seu poder local exercido sob o comando dos

patriarcas e os interesses da administração estatal ligada à Coroa portuguesa. Nesse contexto,

as famílias eram, como mostra Costa (1979/1989), objeto de ações basicamente repressivas-

punitivas dos aparelhos de Estado por comportamentos inadequados, insubordinação ou

contestação das determinações reais. No final do período, com o crescimento dos centros

urbanos e fortalecimento dos movimentos pela independência do país, a tensão cresce ainda

mais. A seguir, a formação do Estado nacional, acoplada à medicina social, mudaram esse

panorama.

Enfatizando o papel do Estado como cuidador da pátria e da saúde de seus cidadãos, a

medicina social contribuiu de forma decisiva para a tranformação da percepção e das relações

das famílias com o Estado. Há uma “nacionalização”, nas palavras de Romagnoli (1996), do

universo familiar, que passa a assumir a importância da higiene e da disciplina no cotidiano das

famílias para a produção de indivíduos saudáveis que garantissem um bom futuro para a nação:

“amar à pátria torna-se sinônimo de saúde, de instrução e de organização, e consequentemente,

famílias saudáveis formavam um Estado saudável!” (p. 55). Nesse cenário, a criança é içada ao

lugar de trunfo da nação e deve fazer parte dos investimentos do Estado e das famílias. A estas,

cumpre cuidar do desenvolvimento de suas crianças e adolescentes, buscar-lhes boa educação

e acompanhar seu desenvolvimento individual. Sustentados pelo discurso higiênico disciplinar,

o Estado e as famílias passam a apostar que os filhos deveriam “[...] ser bem criados e esbanjar

saúde, para desta maneira participar do progresso de sua pátria” (Romagnoli, 1996, p. 56).

É difundido o argumento de que “os avanços da medicina” representaram melhoras

substanciais para as condições de vida da população e que isso não pode ser desconsiderado.

De fato, é possível dizer que a medicina, entre outros saberes e tecnologias que se

desenvolveram com as ciências modernas, proporcionaram um aumento na expectativa de vida;

reduziram adoecimentos, epidemias e pragas; aumentaram o controle e a eficácia dos

tratamentos de várias doenças; melhoraram em muitos aspectos os meios urbanos. Contudo,

essas afirmativas precisam ser projetadas nos agenciamentos concretos que compuseram e

compõem as diversas realidades do nosso país. É necessário destacar que os saberes

tecnocientíficos são sempre implementados de forma atrelada aos jogos de poder que com eles

se institucionalizam. Nesse caso, eles produziram uma grande dependência de pessoas e de

famílias em relação às suas normativas, a seus padrões de normalidade e à ingerência estatal –

médicos, mas também outros profissionais da saúde, da educação e do âmbito assistencial mais

amplo que se vinculam às políticas (e polícias) de Estado tornaram-se responsáveis por

133

disseminar esses saberes e fiscalizar a adequação familiar e subjetiva a eles. Acompanhando

Costa (1979/1989), é possível ponderar que a própria eficiência científica da higiene funcionou

como auxiliar na política de transformação dos indivíduos em função dos interesses do recém-

inaugurado Estado nacional brasileiro em exercer um controle biopolítico sobre sua população.

Além disso, naquele período e até hoje, se os padrões higiênicos e disciplinares tornaram-se

uma importante referência da normalidade de famílias e indivíduos, para boa parte da população

brasileira é apenas como referência e numa perspectiva de autocontrole de seus corpos, desejos

e condutas que esses saberes e suas possibilidades de intervenção clínica-social chegam. Dito

em outras palavras, se esse modelo efetua-se socialmente, é apenas em sua distância especular

que ele se concretiza para grande parcela dos brasileiros, que não têm o acesso concreto e

adequado aos serviços especializados da medicina, psicologia, pedagogia e outros.

Nesse contexto, cumpre marcar a importância do processo de industrialização do país

que se fortalece ao longo do século XX. À medida que as ofertas de trabalho oriundas da

industrialização no país se ampliam, observa-se um forte êxodo rural e a imigração para os

centros urbanos industriais, especialmente do sudeste. Isso aumenta o número de pessoas e

famílias que se inserem concretamente nas lógicas higiênicas e disciplinares. Sobretudo, a

dinâmica industrial aumenta a dependência desses indivíduos em relação ao sistema capitalista-

estatal, suas prioridades, investimentos e escolhas.

Por fim, gostaria de marcar dois pontos.

O primeiro é que o modelo nuclear, privatizado e burguês de família acabou por se

tornar uma importante referência no Brasil. Como pondera Kehl (2003), em trabalho a que me

referi no capítulo anterior, na entrada do século XXI muitos brasileiros sonhavam em ter “uma

família normal” nesses moldes. Projetavam sua própria família, bem como os “desajustes” e

“desvios” desta nesse modelo que se sagrou hegemônico no país e acabou sendo naturalizado

por razões morais, políticas e econômicas. Modelo que nos anos 2020, como vimos, ainda

orienta os sonhos, bem como amarga as desilusões de muita gente.

O segundo ponto é que, como procurei apresentar, mesmo que em linhas muito gerais

(o que sempre corre o risco de deixar muita coisa de fora e de indicar apenas de forma

superficial aspectos importantes), o Brasil, como as Américas, foi se constituindo por uma

mistura de gentes, de cosmovisões, de agenciamentos familiares. Mistura que não foi e nem

pode ser “achatada”, mesmo quando reconhecemos a presença de segmentações que, com seus

padrões e hierarquias, traçaram modelos, discursos, práticas que se tornaram dominantes. A

134

diversidade escapole, resiste, adapta-se, inventa e transforma por todos os lados e isso sempre

deve compor um trabalho cartográfico.

Precisamos de pobres?

Eu não sei o que é passar fome. Não me refiro, obviamente, a algum jejum feito por

motivos médicos, nem à fome que assalta as vísceras quando estou eventualmente atrasada para

o almoço em virtude, por exemplo, do engarrafamento no trânsito ou de uma reunião de

trabalho. Refiro-me à dúvida lancinante se haverá alimento para nutrir meu corpo e sustentar

minha força vital de forma suficiente pelo dia de hoje, ou de amanhã, ou até o fim da semana

ou do mês. Refiro-me a não ter nada, ou quase nada, além dessa dúvida e de pouca margem de

movimentação no diagrama das forças sociais, de escassos recursos materiais, financeiros e

simbólicos, de precárias condições afetivas, familiares e coletivas que garantam algum amparo

ou confiança. Que garantam, ao menos, o que comer com dignidade.

Essas questões passam pela minha cabeça enquanto volto para casa após a visita à Celma

em seu imóvel em uma região periférica de Belo Horizonte. Celma mora hoje cercada pelos

filhos e netos com suas casas dentro de uma das ocupações em processo final de regularização

perante o Estado e a Justiça. Até chegar ali, sua história foi marcada pelo limiar da subvivência

– limiar da fome, do medo, do estreitamento de saídas diante da vulnerabilidade e do

sofrimento. Por muito tempo, sua família precisou conviver com a morte constantemente à

espreita.

A palavra “subvivência” me veio à cabeça para nomear condições de vida, ou melhor,

de subvida, a que muitas pessoas e famílias têm sido submetidas na modernidade capitalista.

Lembrei-me de uma passagem das Estórias Abensonhadas do escritor moçambicano Mia Couto

(1994): “[...] a mulher, subvivente, somava tanta espera que já esquecera o que esperava” (p.

20). Como entendo, cabe aos subviventes essa existência pálida de sonhos, apostas e

possibilidades de conexão com o modo de existência dominante. Ou mesmo, em casos

extremos, resta-lhes o esmagamento de suas existências, quando consideradas pelos homens de

Estado um estorvo de somenos importância. São subviventes aqueles cuja posição no diagrama

das relações de poder empurra-os para habitarem um sub-lugar, marcado pela ausência de

pertença, em diferentes dimensões. No momento contemporâneo, como veremos, há uma

pertença marginal destinadas aos subviventes, que são colocados em uma posição de acesso ao

modo de vida hegemônico basicamente como força produtiva em trabalhos mal remunerados,

135

inconstantes e sem perspectivas de ascensão econômica ou social. Pode-se dizer, para lembrar

as análises de Marx (1867/2013), que eles e elas (mais elas do que eles, vale destacar) acessam

o modo de vida dominante basicamente como “exército de reserva”. Sua posição no diagrama

das relações de poder exige que funcionem à margem, com acesso a direitos que o Estado se

propõe a garantir de formas muito limitadas e desde que permaneçam nos territórios a eles

destinados (as periferias), como indicou Edson Passetti (2006).

No caso de Celma, trata-se de uma mulher de origem indígena. Seus nove filhos

cresceram em meio às investidas de fazendeiros sobre as terras de seu povo que se situam no

sul da Bahia e ao descaso das autoridades para coibir os ataques e as invasões. Com frequência

precisavam se esconder no mato para sumir das vistas dos fazendeiros que, se os percebessem,

tentavam matá-los. Se esse tipo de prática – o assassinato de povos originários para a conquista

de suas terras – nasceu com a própria formação do Brasil, o relato de Celma refere-se a essa

realidade no adiantar dos anos 1980 e início da década de 1990, quase quinhentos anos depois

do início de seu descobrimento53.

Em 1995 Celma decidiu deixar seu aldeamento e “tentar a vida” em Belo Horizonte,

exausta das constantes ameaças de morte que não conseguia acostumar-se a sofrer. Ameaças

que não vinham somente dos fazendeiros, mas também da falta do que comer. Por vezes, os

fazendeiros incendiavam as terras com o intuito de forçar seu povo a se retirar delas. Por vezes,

o que era plantado nas roças não resultava em alimentos suficientes para todos, especialmente

com o escasseamento das chuvas e diminuição do fluxo dos rios nos fins do século XX. Por

vezes, seu marido, que ia às feiras nas redondezas para vender parte do que fora produzido de

forma a conseguir dinheiro para comprar outros itens necessários para a subsistência da família,

acabava por usar o que havia arrecadado exclusivamente para consumir bebidas alcóolicas.

Celma conta-me que passou tanta fome e tanto medo de que seus filhos e ela mesma morressem

de fome que ainda hoje seu sonho mais frequente, quando dorme à noite, é a (re)vivência da

angústia pela ausência de alimentos: “Eu sonho mais é com o sofrimento que passei lá na roça,

da fome. Da terra tá seca e a gente tá plantando e esperando ainda nascer. Aí no sonho eu penso

assim: vou [ter que] esperar três meses pras coisas começar a dar...”.

53 A realidade da violência e do assassinato contra povos originários devido à cobiça por suas terras persiste até hoje, oscilando entre momentos de aumento da violência e momentos de redução. Isso está ligado, em grande medida, à postura adotada pelo Estado em cada época, mais a favor de maior proteção desses povos e suas terras ou mais a favor dos interesses econômicos de setores empenhados em usar as terras para a implementação de práticas exploratórias e ou produtivas nos moldes capitalistas.

136

Em sua saída do aldeamento, Celma levou consigo o dinheiro suficiente para uma

viagem só de ida para Minas Gerais e, como única companhia, sua fé no Deus católico que os

jesuítas há muito haviam apresentado a seu povo. Seus filhos, todos eles, inclusive a caçula

com quatro anos, precisaram ficar com o pai, de quem se separou, e com outros parentes, apesar

de seu medo de que morressem de fome. Celma não tinha qualquer outro recurso que não fosse

para seu trajeto individual até Belo Horizonte. Ela conta-me da angústia, da culpa e da dor de

“deixar” os filhos, mas pondera: “não podia levar para não sofrerem junto comigo”.

Ao lembrar de sua chegada na capital mineira sem qualquer apoio familiar-comunitário,

Celma avalia: “dei muita sorte, Deus foi muito bom pra mim”. Isso porque ela conseguiu um

emprego no dia em que chegou. Começou a trabalhar como empregada doméstica e a ganhar

R$100,00 mensais54. Trabalhando como doméstica, levou três anos para juntar dinheiro

suficiente para que suas filhas mais novas pudessem vir morar com ela em um porão que

adquiriu em um bairro industrial e periférico de Belo Horizonte. A vinda de todos os seus filhos

e filhas foi um processo que durou 17 anos. Escuto sua história e repito, fitando-a com os olhos

tristes: “Dezessete anos...”.

Esse processo vivenciado por Celma e sua família é tão antigo quanto o Brasil. Vale

lembrar que os integrantes dos povos originários, nomeados “índios” pelos europeus, foram

convocados à missão de se “humanizar” à maneira dos colonizadores, desde a chegada destes,

para conseguirem melhorar suas condições de vida – diga-se, para melhorar conforme o modo

de viver dos colonizadores. Tal “humanização” como homem, branco, ocidental, cristão,

capitalista, burguês, moderno sustentou-se e sustenta-se, até hoje, a partir do pressuposto que

esta é a melhor ou mesmo a única maneira desejável de ser humano. Por outro lado, é certo que

os benefícios dessa humanização nunca foram os mesmos para todos. Pelo contrário: esse modo

de subjetivação sempre exigiu a inserção de grande parcela de pessoas e famílias em posições

de vulnerabilidade no diagrama das forças sociais, marcadas pela precariedade material,

simbólica, financeira, política, identitária, social. Com efeito, para a quase totalidade dos

“outros” (os não brancos que deveriam se humanizar), seu destino nesse modo de vida foi e

permanece sendo a condição de pobres, quando não de miseráveis.

Como argumentaram Eduardo Viveiros de Castro e Débora Danowski em entrevista à

jornalista Eliane Brum (2014), os índios foram impelidos historicamente a se assumirem como

pobres – pobres de educação, de cultura, de religião, de recursos técnicos e tecnológicos, de

54 Valor do salário mínimo em 1995.

137

oportunidades, de individualidade, de capacidade cognitiva – para poderem se inserir no modo

de vida capitalista e hegemônico. A história do Brasil foi um processo de conversão dos índios

(e dos negros e de outros considerados não-brancos) em pobres. Suas terras e pertenças foram

retiradas, sua língua e religião foram coibidas, seus costumes e cosmovisão foram

demonizados; restaram-lhes sua força de trabalho e seu empenho individual para aprender a ser

como o homem branco, estimulados por narrativas que asseguravam que os que se

comportassem adequadamente, como cidadãos honrados e honestos, mesmo que em condições

de pobreza, se tornariam brancos um dia. Com isso, muitos “[...] deixam de ser índios, mas não

conseguem chegar a ser brancos” (Viveiros de Castro apud Brum, 2014, s/p).

Esses pensadores ressaltam que, mesmo hoje, predomina no Brasil a visão evolucionista

e assimilacionista de que os índios necessitam evoluir para ser “como nós”. Tal visão tem

marcado historicamente grande parte das políticas sociais do Estado brasileiro para os povos

originários e para todos que são considerados como Outro – os “diferentes de nós” – que, por

isso, foram (e são) considerados pobres por esse modo de vida.

Ao ver o Outro essencialmente como pobre, aqueles que se consideram detentores da

cosmovisão e do modo de vida desejável assumem a tarefa histórica de emancipar o Outro da

pobreza, tirá-lo dessa condição. Contudo, como frisa Viveiros de Castro (apud Brum, 2014,

s/p), “[...] invariavelmente, esse movimento tem você mesmo como padrão. Você não se

modifica, você modifica o pobre. Você traz o pobre para a sua altura, o que já sugere que você

está por cima do pobre”. Além disso, esse movimento homogeneíza os Outros; toma-os todos,

não obstante suas diferenças, como pobres. Pobres que precisam adequar-se às lógicas

familiares, educativas e produtivas modernas e adotar sua relação predominante de

propriedade-uso-consumo-descarte das coisas, dos rios, das terras, dos instrumentos, dos

alimentos, dos medicamentos, entre outros.

Em janeiro de 2020 o então presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, expressou, em

pronunciamento em que anunciou o vice-presidente Hamilton Mourão como chefe do Conselho

da Amazônia, seu contentamento porque percebia que o índio brasileiro estava evoluindo e

tornando-se cada vez mais “um ser humano igual a nós”. Declarou ainda seu desejo que o índio

se integrasse cada vez mais na nossa sociedade e se assumisse como dono de sua terra indígena

(ainda que, é bom lembrar, as alianças familiares, os laços sociais e as relações com a terra

sejam, para esses povos, diferentes das nossas concepções de sociedade e de propriedade

privada, o que o presidente parece desconhecer ou desconsiderar).

138

Cumpre destacar que essa postura não está restrita a políticas de governos com perfil

ultraconservador como as do presidente Jair Bolsonaro. Parcela considerável dos políticos,

intelectuais e lideranças intitulados progressistas e ligados a “ideologias de esquerda” assumem

percepção e postura semelhantes diante dos Outros. Durante os governos de Luís Inácio Lula

da Silva e Dilma Rousseff, ambos do Partido dos Trabalhadores (PT), entre os anos 2003 e

2016, as políticas do Estado para os povos tradicionais foram orientadas pela importância do

progresso e da evolução da sociedade brasileira rumo ao Bem-Estar Social para todos, o que

envolvia emancipar os pobres dessa condição. Isso fica evidente nos slogans dos dois mandatos

de Lula como presidente (2003-2006 e 2007-2010): “Brasil, um país de todos” e “Brasil, país

rico é país sem pobreza”, respectivamente. Como Lula defendeu várias vezes, as políticas de

desenvolvimento social e de crescimento econômico do Estado brasileiro deveriam realizar uma

“reparação histórica aos pobres” através da conciliação entre, de um lado, o aumento da renda

e do consumo das famílias pobres e, de outro, o apoio substancial a investimentos de

empresários, empreiteiros, instituições financeiras e outras. Essas políticas foram também

seguidas por Dilma, cuja visão sobre os povos indígenas foi bem resumida pela liderança Sônia

Guajajara em entrevista a João Fellet:

A Dilma acha que temos que comprar, consumir e fazer cooperativas para ter dinheiro. Ela pensa que, para ficarmos bem, ter qualidade de vida, precisamos ter bens, chuveiro quente, casa de alvenaria. Nas grandes obras [do PAC], às vezes oferecem às comunidades algum dinheiro, achando que vão resolver os problemas. Mas para o indígena o dinheiro acaba sendo um ponto de conflito, porque não temos o costume de lidar com ele. Não temos essa coisa de acumular riquezas. Nossa lógica e nosso modo de vida são outros. O que a maioria dos indígenas nas aldeias quer é tranquilidade. Qualidade de vida para nós é liberdade, e liberdade é ter nossos territórios livres de ameaças e invasões para produzir sem destruir, como fazemos milenarmente. (Guajajara apud Fellet, 2014, s/p).

Nesse contexto, é preciso se questionar se os outros, enquanto Outros, são mesmo

pobres, para melhor compreender os mecanismos que os produzem nessa condição. O governo

de Lula lançou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) que foi continuado por Dilma

com o intuito de fazer “[...] o Brasil ingressar no rol dos países desenvolvidos” (Lula da Silva,

2010). O paradigma que orientou as bilionárias obras de infraestrutura do PAC seguiu a

concepção colonial de que os povos indígenas são obstáculos ao desenvolvimento que devem

ser removidos como indígenas e reinseridos no Brasil dentro das lógicas civilizadas. É

exemplar, nesse sentido, o processo de construção da usina hidrelétrica de Belo Monte no Pará,

que atingiu as cabeceiras do rio Xingu e o Parque Indígena do Xingu e exigiu que dezenas de

milhares de índios fossem deslocados para dar lugar ao lago da usina. Para o deslocamento

realizou-se um processo de cooptação dos indígenas da região para que vissem o

139

empreendimento como um evento positivo para sua realidade. Em uma comunicação publicada

pela Universidade de São Paulo (Unifesp), Ana Cristina Cocolo e Celina Brunieri (2014) deram

voz a integrantes do Projeto Xingu que explicaram que diversas comunidades firmaram-se

contra as obras, mas outras aceitaram receber um “benefício” da empreiteira responsável pela

obra, no valor de 30 mil reais por mês. Com esse dinheiro, adquiriram diversos produtos como

eletrodomésticos, motores, barcos, alimentos industrializados, o que acabou por desorganizar

os modos produtivos e as relações comunitárias: muitas famílias reduziram atividades como

plantar, caçar, pescar e isso desestruturou as trocas comunitárias, diminuiu sua relação com a

terra e os tornou mais dependentes da “ajuda civilizada”.

O evento citado deflagra como o contato forçado com as lógicas civilizatórias do

capitalismo moderno e sua efetuação pelo Estado brasileiro continuam a ter complicadas

consequências sobre os modos de subjetivação, os arranjos familiares e as formações

comunitárias dos povos indígenas. Nesse caso, povos amazônicos até então mais preservados

da ingerência dos “brancos” foram empurrados para a vulnerabilidade que o empobrecimento

dentro das lógicas capitalistas produz para os Outros. E aqueles que resistem acabam, muitas

vezes, colocados na marginalidade, criminalizados ou exterminados por se recusarem a se

inserirem nesse modo de vida55.

No âmbito desta pesquisa, se Celma e sua família acabaram por se inserir no modo de

vida moderno, alocando-se como pobres em um grande centro urbano, cumpre assinalar que eu

contatei outras famílias indígenas no processo desta pesquisa. Famílias que, vivendo em suas

aldeias e aldeamentos, procuram resistir como podem às múltiplas pressões para se civilizar à

maneira capitalista moderna, como seus pobres. Famílias que, tal como Sônia Guajajara

pondera acima, não desejam aderir a muitos dos aspectos e lógicas do modo de vida

hegemônico, mesmo se resistir não seja também uma tarefa fácil. Nesse sentido, retomo um

pouco da história do povo de Sandra e Iraí referidos anteriormente56 – os Maxakali ou, em sua

autodenominação, os Tikmũ’ũn.

55 Conforme compilado de Gallardo (2013) de dados do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso a média de assassinatos de indígenas no Brasil foi 20,8 mortes por ano. Nos governos seguintes, de Lula e Dilma, e com a ênfase em suas políticas desenvolvimentistas assumidas por grandes empresas privadas, houve um aumento considerável do número de assassinatos de indígenas, perfazendo uma média de 54 mortes por ano. 56 Conferir no capítulo 2 deste trabalho.

140

Ailton Krenak conta, em entrevista a Amanda Massuela e Bruno Weiss (2019), sobre o

os Maxakali que vivem na região do vale do Mucuri, em Minas Gerais. Como o seu próprio

povo Krenak (e tantos outros), os Maxakali sofreram um processo histórico de destituição de

suas terras com a derrubada das matas por mineiros e fazendeiros, para “[...] fazer garimpo e

botar boi”: “Os nossos parentes Maxakali continuam até hoje cercados por todas aquelas

fazendas, sendo moídos por aquela violência colonial em volta deles. Mas 90% deles não falam

português e se negam a aprender português” (Krenak apud Massuela & Weiss, s/p.). A

manutenção de sua língua original e as restrições ao aprendizado e uso do português pelos

Maxakali estão inseridas em um conjunto de estratégias desse povo para manter-se vivo à sua

maneira, sustentando a criação de um mundo para habitarem, de forma “paralela” ao mundo

habitado pelos modernos e modernizados. Estratégias que, no entanto, não blindam esse povo

do contato e das interferências com o modo de vida hegemônico no Brasil.

Durante um momento de conflitos entre famílias Maxakali em 2005, alguns grupos

foram pressionados a sair de suas aldeias e, com isso, partirem do território a eles destinado

pelo Estado brasileiro. Esses conflitos entre os grupos e suas estratégias por vezes violentas, de

acordo com Rodrigo Barbosa Ribeiro (2008), compõem a cosmovisão e os rituais desse povo,

bem como a função da guerra e do nomadismo em seus modos de vida. Entretanto, é necessário

sublinhar que tais conflitos “internos” não podem ser desconectados da supressão de territórios

e de condições adequadas para seus modos de vida, gerados pelo desmatamento e pela

exploração socioambiental capitalista. Nesse cenário, entre os que partiram, a família de Sandra

e Iraí assentaram-se com mais famílias em outro local, sob a mira e ataques de fazendeiros.

Precisaram do apoio do Estado para se reestruturar. Isso porque fora dos territórios demarcados,

os povos indígenas veem-se surrupiados de sua relação originária com a Terra e deparam-se

com as lógicas privatistas e segmentárias que se apropriaram e cercaram, desde os tempos

coloniais, as “nossas” terras pelo país.

Sandra e Iraí contam-me que o novo território definido pelo poder público para que

pudessem estruturar sua aldeia possuía pouco mais de 100 hectares para abrigar, em 2018, cerca

de 500 pessoas. Boa parte desse território é composto por montanhas e matas de preservação.

Explicam que sua comunidade sofre com isso e que nem os governantes, nem a população que

vive nas cidades entendem: cercados por matas preservadas e montanhas, eles não podem usar

uma quantidade de terreno suficiente para produzir alimentos em uma roça que baste para todos

na aldeia e seus rituais. Pergunto se recebem alguma assistência do Estado. Sandra esclarece

que sim e que não podem recusar as cestas básicas que recebem. Mas informa que, ainda assim,

141

“nós passa fome, porque a gente tem que plantar numa roça pequenininha. A Funai [Fundação

Nacional do Índio] leva cesta [básica], mas a cesta não é suficiente pra nós, porque ela não é

saudável pra nós e não é dos nossos rituais também”.

De fato, os produtos disponibilizados para esses indígenas (não só para eles) foram

definidos conforme critérios estabelecidos pelo Ministério da Cidadania do governo federal,

cujo padrão de cesta básica conta com oito tipos de alimentos produzidos dentro de lógicas

agroindustriais com o uso de agrotóxicos e, em boa parte, processados57. Não são

disponibilizados mandioca, milho, batata doce, banana e outros vegetais in natura fundamentais

para os rituais da etnia, ao mesmo tempo que eles não podem plantá-los em quantidade

suficiente. Eles não têm, ainda, livre acesso em seu território a águas naturais de rio, o que

aumenta os desafios para a sobrevivência de seus modos de vida – não apenas pela

indisponibilidade de recursos suficientes para a roça e para pesca, mas também para a realização

de seus rituais que têm o rio como componente fundamental. Pergunto como tentam solucionar

essa questão e escuto uma verdadeira saga para acessar o rio da propriedade do fazendeiro

vizinho que chegou a colocar cerca elétrica para que eles não passassem em suas terras.

Vale pontuar que não se trata, do ponto de vista ético-político, de deixar qualquer um –

dos “nossos” ou dos Outros – à mercê da própria sorte quando é possível proteger e

potencializar sua existência. Por isso, o apoio dos aparelhos de Estado e de sua força política,

econômica, social podem ser importantes e necessários em diversas circunstâncias. Há que se

ver sempre quais as conexões, flexibilizações, ajustes são necessários e feitos nas relações com

esses aparelhos em cada caso. Desta vez, o apoio dado permitiu que o grupo de famílias

dissidentes, família de Iraí e Sandra inclusa, se reorganizasse em um novo território. Contudo,

esse apoio do Estado parte do pressuposto de que eles são pobres e que, por isso, resta-lhes

depender da assistência alimentar e financeira do Estado. Por outro lado, como também me

contam, recebem uma assistência à saúde que é respeitosa com seus costumes, com um médico

que visita a aldeia uma vez por semana. Além disso, alguns dos membros da aldeia estão tendo

a oportunidade, como Iraí e Sandra, de participar da Formação Intercultural para Educadores

Indígenas (Fiei) ofertado pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais

(UFMG) para a formação de professores indígenas, de forma a conseguirem integrar seus

saberes e práticas tradicionais à educação formal.

57 Conferir a composição do padrão federal de cesta alimentar básica em: http://mds.gov.br/assuntos/seguranca-alimentar/direito-a-alimentacao/cestas-de-alimentos/composicao-das-cestas-de-alimentos

142

Seja como for, as conexões e a ingerência das forças econômicas, políticas, ambientais,

culturais, subjetivas do capitalismo são muito grandes. Entre os efeitos dessas forças, em

novembro de 2015, territórios e comunidades Maxakali foram impactados, mesmo que de

forma indireta, pelo desastre socioambiental provocado pelo rompimento da barragem do

Fundão no município de Mariana, onde estavam alocados resíduos do processo de extração de

minério de ferro de montanhas de Minas Gerais pela empresa Samarco Mineração S/A. Entre

as consequência desse desastre, ocorreu a contaminação do Rio Doce, o que inviabilizou o uso

de sua água por diversas comunidades indígenas que direta ou indiretamente estavam ligadas a

ele. Definido como o maior desastre ambiental do Brasil, envolvendo o extermínio de toneladas

de peixes, a contaminação da água por onde o fluxo de rejeito passou, além da morte de 19

pessoas, o Ministério Público Federal (MPF) assim o descreveu:

O colapso da estrutura da barragem do Fundão ocasionou o extravasamento imediato de aproximadamente 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro e sílica, entre outros particulados, outros 16 milhões de metros cúbicos continuaram escoando lentamente. O material liberado logo após o rompimento formou uma grande onda de rejeitos. (...) Em sua rota de destruição, à semelhança de uma avalanche de grandes proporções, com alta velocidade e energia, a onda de rejeitos atingiu o Córrego de Fundão e o Córrego Santarém, destruindo suas calhas e seus cursos naturais. Em seguida, soterrou grande parte do Subdistrito de Bento Rodrigues. (...) Após percorrer 22 km no rio do Carmo, a onda de rejeitos alcançou o rio Doce, deslocando-se pelo seu leito até desaguar no Oceano Atlântico, no dia 21 de novembro de 2015, no distrito de Regência, no município de Linhares (ES). (MPF, 2015, s/p)

“O rio adoeceu”, disseram na época diferentes lideranças indígenas. Três anos depois,

em janeiro de 2019, outro rompimento de barragem, outro desastre, mais destruição. A

barragem de rejeitos de Córrego do Feijão da mineradora Vale S/A se rompeu em outro

município de Minas Gerais, Brumadinho, liberando cerca de 14 milhões de toneladas de rejeitos

de minério de ferro e contaminando o rio Paraopeba e seu entorno, além de matar quase 270

pessoas. Nessa época, eu estava em Lisboa, no último mês de meu doutorado-sanduíche. De

longe e pelas redes sociais, acompanhei a tristeza e a indignação de Sandra diante de mais esse

desastre e seu impacto sobre povos indígenas, como os pataxós.

No mês seguinte, quando retornei ao Brasil, tentei contatar Sandra algumas vezes, sem

resposta, o que inviabilizou a visita que havia planejado fazer a sua aldeia e família tão logo

retornasse ao Brasil. Escutei o seu silêncio e não encontrei outro caminho senão respeitá-lo.

Silêncio que só foi quebrado uma vez, quando Sandra me enviou uma carinhosa mensagem,

desejando-me um bom Ano Novo para 2020. Como disse em outro momento deste trabalho,

sempre o silêncio nos diz muitas coisas...

143

Os outros

Após quase duas horas de viagem, orientada pelo Waze, localizei a estrada de terra para

ter acesso à comunidade quilombola. Fui sozinha, acompanhada apenas da orientação de Diego:

“vá quando quiser, é só chegar”. Assim o fiz. Após cruzar um pequeno trecho de mata, passei

pela porteira da entrada. Segui por mais alguns metros até conseguir estacionar o carro ao lado

de uma das casas e saí do automóvel procurando esboçar ares de quem sabia o que estava

fazendo. Contudo, os olhares curiosos que brotaram por todos os lados, diante da minha figura

um tanto exótica para o cotidiano do local, fizeram a vergonha aparecer sorrateira, subindo

quente pelo meu pescoço. Por um lado, eu sabia que as pessoas ali estavam acostumadas a

receber “os de fora” como turistas e visitantes na comunidade. Por outro lado, não era nessa

posição que eu desejava chegar ali.

Aproximei-me de um menino e perguntei por Binho, quem iria me receber. O menino

apontou sem palavras para um banco de tora de madeira instalado embaixo de uma grande

mangueira, onde algumas pessoas conversavam. Pus-me a caminhar em direção ao banco,

prestando pouca atenção em meu corpo. Acho que não queria reparar no coração acelerado,

nem na frouxidão das pernas que seguiam mais por obediência do que por determinação. Mas

caprichei no sorriso e enchi os pulmões de ar para chegar pronta para desejar um “boa tarde”

consistente para o grupo. Ao me escutarem, pararam a conversa. “Tarde”, um deles me

respondeu e pôs-se, juntos com os demais, em silêncio, à espera. E foi com o resto do ar que

me restava nos pulmões que consegui perguntar: “O Binho...?”

“Sou eu”, um deles respondeu, abrindo um sorriso e fazendo com que minhas costelas

finalmente relaxassem e os pulmões se enchessem de novo com ar. Explico-lhe que estava ali

orientada por Diego, seu irmão, e pergunto, certa da resposta positiva, se ele sabia que chegaria

naquela tarde. Pensativo, Binho me responde que o irmão não havia falado nada com ele, não.

Eu insisto se ele não tinha sido informado sobre mim, minha pesquisa ou sobre a minha ida

naquele dia. “Num tô sabendo de nada...”, responde, já completando: “Mas aqui, não tem

problema, você pode ficar lá em casa se quiser. É simples, mas nós sempre dá um jeito!”. A

senhora que acompanhava a conversa ao lado solta uma gargalhada e comenta: “Pode ficar lá,

moça! Esse daí acolhe todo mundo, até bandido ele deixa entrar na casa dele. Tem este casal

que tá lá agora. Eles são amigos de quem mesmo, Binho? Vieram para ficar uma semana e estão

lá já tem quase um mês!”, a senhora continua, atualizando a gargalhada. E eu, um tanto sem

graça: “Eu só vou ficar dois dias...”, como se isso tivesse alguma importância ali. Enquanto

144

agarro-me às reticências do meu comentário, outra senhora aproxima-se do grupo e pergunta-

me se quero almoçar, que ainda tem comida que dê para mim. Agradeço, pois já tinha almoçado.

Deixo a vergonha e a falta de jeito escorrerem pelos pés; assento-me no banco e entro na

conversa que está, percebo, sinceramente disponível, tanto quanto o almoço, para minha

participação.

Daquele momento em diante, devo admitir, foram dias intensos. Ao mesmo tempo que

tudo ali parecia mover-se em um ritmo mais tranquilo e cadenciado do que a aceleração que a

rotina da vida em uma metrópole me impunha, eu fui lançada em uma espécie de zigue-zague

existencial, sendo levada de um lugar a outro, de uma pessoa a outra, de uma opinião a outra,

entre tantos pedidos e perguntas, entre muitas gargalhadas e casos, dos conflitos à importância

do coletivo, do bar ao fogão à lenha, da conversa no terreiro ao alto da montanha, de caminhadas

a passos rápidos à travessia do rio, das brincadeiras das crianças à escuta respeitosa dos velhos

e sua voz da tradição. Demorei alguns meses para digerir as experiências, afetos, informações.

Um dos aspectos que me marcou foi o estranhamento que brotou em mim com os

pedidos que muitos fizeram, ao me apresentar como psicóloga, de que eu “desse um jeito” em

fulano ou ciclano; que eu ajudasse a manter a união do grupo; que eu fizesse uma reunião com

todos para “consertar” as rixas. Eu já estava acostumada com pedidos de ajuda à psicóloga que

eu também sou e sempre soube lidar bem com esse imaginário de que um psicólogo consegue,

por si só, consertar alguém. Mas ali uma sensação de desconforto rendeu-me várias semanas de

afetação-reflexão até compreender que, na verdade, não havia nenhum problema com o pedido

daquelas pessoas e sim com o meu preparo teórico-metodológico e humano para ajudá-las (se

fosse mesmo o caso de fazê-lo em algum momento) considerando as lógicas, arranjos,

sensibilidades delas, bem diferentes das minhas. Retomando a ponderação de Viveiros de

Castro (2015), posso dizer que os humanos (o que me inclui) têm sempre algo de mesquinharia

quando devem compartilhar sua humanidade (seus saberes inclusos) com um Outro cuja

maneira de existir é muito distinta, a ponto de não encontrarem pontos seguros de identificação

e sim a Diferença... No final das contas e a partir da análise da minha implicação com o processo

da pesquisa58, acabei por comemorar o estranhamento vivido como uma oportunidade de

encontro – sempre difícil e potente – com o outro enquanto multiplicidade capaz de ampliar o

que até então me parecia todo o real possível.

58 Sobre o conceito de implicação e sua importância para atuações orientadas pelo Movimento Institucionalista e, em especial, sua prática na pesquisa-intervenção cartográfica, conferir Romagnoli (2014).

145

Dentre os pontos que produziram estranhamento está a própria concepção de casa ou de

lar em suas importantes sutilezas. Nesta comunidade as pessoas compreendiam, quando eu

perguntava sobre “a sua casa”, que a minha referência era o imóvel onde mantinham seus

pertences pessoais e realizavam atividades como dormir, cozinhar, banhar-se, lavar as roupas,

estudar, assistir à TV. Entretanto, o modo como funcionavam cotidianamente distanciava-se

das maneiras como eu estava acostumada a compreender e a viver uma casa.

É que estou acostumada, ao pensar em “casa”, a formar uma imagem do espaço

doméstico bem delimitado e fechado, onde a intimidade e a privacidade são vividas como algo

fundamental, precioso, cujo acesso não deve ser dado a qualquer um ou de qualquer jeito.

Aprendi que a entrada de “gente de fora” nesse espaço deveria ser feita tanto considerando

quem pretendia entrar, quanto considerando se a casa estava devidamente organizada, limpa,

decente para ser exposta a outros. Nesse sentido, lembro-me das exigências de uma das minhas

avós que, morando no interior de Minas Gerais, recebia-me com frequência para passar as férias

escolares. Em sua casa, todas as vezes que eu queria convidar uma amiga ou amigo para ir lá,

antes de sua autorização, precisava contar-lhe em detalhes as credenciais pessoais e familiares

que compunham a identidade da pessoa. Ainda nesse sentido e já no contexto desta pesquisa,

escutei uma piada feita por uma das informantes-chaves que estava a me ajudar na busca por

famílias da classe média urbana. Enquanto conversávamos sobre essas famílias, ela brincou

que, quando perguntamos às mulheres da classe média como vai sua casa, “elas geralmente

respondem que está tudo bem. Você só não pode ir lá!”. Ou seja, não se deve fazer uma visita

a essas casas sem aviso para não se deparar com uma dinâmica cotidiana frequentemente mais

confusa, conflituosa, bagunçada, suja, improvisada do que os padrões higiênicos modernos

preconizam e que devem ser assunto da intimidade e da privacidade familiar, tornando-se

muitas vezes motivo de vergonha e constrangimento quando publicizado.

Na comunidade quilombola, por sua vez, percebi que o visitar acontecia junto com o

cuidar, o fazer, o trabalhar, o construir, o discutir, o brigar, o plantar, o rezar, o descansar, enfim,

este emaranhado de processos e fluxos cotidianos que não encontravam limites precisos entre

espaço doméstico e espaço público, diluindo experiências sociosubjetivas como a privacidade

e o privado. O terreiro central da comunidade era vivido como uma importante extensão das

casas, um espaço familiar e comum, fundamental para todos. Além disso, como ressalta Peri,

que trabalhava em Belo Horizonte e ia para sua casa na comunidade nos feriados e férias, não

havia delimitações – como muros ou cercas – entre as casas, que apenas raramente eram

mantidas fechadas e trancadas. De fato, um membro da comunidade podia, sem muitas

146

cerimônias, entrar em outras casas para contar alguma notícia, pedir um utensílio ou ferramenta,

aproveitar uma refeição.

Ao escutar o funcionamento comunitário, lembro-me da escolha estética de Lars von

Trier para seu filme Dogville (2003). A fazenda onde se passa a trama tem o cenário composto

principalmente por marcas no chão, como uma planta arquitetônica que desenha os limites das

casas e demais estabelecimentos. No cenário do filme não há paredes ou muros, o que dá plena

visibilidade para o espectador do que se passa “na intimidade” dos moradores do local. Ao

mesmo tempo, o cenário escancara a força social e subjetiva das divisões, separações,

segmentaridades, mesmo se (ou exatamente porque) elas são tornadas propositalmente

invisíveis. No quilombo que estou a visitar, sinto-me no movimento oposto: as paredes das

casas não inviabilizam as continuidades e o trânsito comum. Diego estava certo ao dizer que

sua família tinha umas 300 pessoas, afinal, os espaços comuns como o terreiro eram tão

importantes na composição familiar e para os processos de subjetivação quanto as casas, que

pouco continham os fluxos do coletivo.

Nesse sentido, foi interessante meu encontro com Rosana durante a visita. Ela havia

estudado psicologia comigo e, logo após a conclusão do curso, havia se casado com um dos

membros daquela comunidade e passado a viver ali. Animo-me ao ver seu rosto conhecido

aproximando-se junto com o fim da tarde, no dia de minha chegada. Vou ao seu encontro, um

reencontro, com uma saudade que acabava de brotar. Após abraços e sorrisos, pergunto-lhe,

curiosa, como estava a sua vida ali. “Mudei-me daqui”, ela respondeu-me prontamente,

enquanto eu tentava disfarçar a frustração com a notícia. “O que aconteceu? Você se separou?

Veio para trazer as crianças?”, pergunto. Ela sorri e confirma que sim, que tinha se separado de

certa forma. Depois explica que foram muitos anos morando na comunidade, que continuava a

se sentir parte daquele lugar, mas esclarece, em tom de confidência: “É difícil, aqui não tem

isso de você ter a sua casa pra você. É um entra e sai o tempo todo. Uma briga começa lá

embaixo e de repente está dentro da sua casa. E as pessoas se metem muito nas vidas umas das

outras... Eu não fui criada assim, tenho dificuldades com esse jeito. Daí preferi arrumar uma

casinha aqui perto [com o marido e os filhos]”. Não teço comentários. Afasto-me acompanhada

da ponderação de que, seja aonde for, é sempre preciso produzir, continuamente, arranjos e

ajustes para uma existência.

Quanto aos “de fora”, aprendo que o respeito e o acolhimento de “qualquer um” eram

atitudes ligadas à honra e à educação tradicionalmente praticadas pela comunidade. Como

Diego já havia me explicado: “fazemos o bem sem olhar a quem”. O costume da comunidade

147

era manter-se aberta, mesmo para aqueles que visitam “achando que a gente é museu” ou os

que querem apenas pedir rezas e bençãos. Nesse contexto, o critério de Binho para receber em

sua casa quem ali chegava poderia ser simploriamente (se isso for pouco) resumido: ir com a

cara da pessoa. Era algo mais intuitivo-afetivo do que calcado em uma análise das credenciais

identitárias da pessoa: sua origem familiar, étnica ou racial, suas condições socioeconômicas,

seu nível educacional, sua religião, seus antecedentes morais, sua rede de influências. Se há

riscos nessa abertura e acolhimento de outros, desconhecidos, com critérios possivelmente

arbitrários para os padrões capitalistas identitários com que eu estou acostumada, ali parecia

contar mais receber bem, considerando a oportunidade concreta ou potencial de um bom

encontro à maneira de Espinosa (1677/2009). Do mesmo modo, a ocorrência ou iminência de

maus encontros produziam, como em algumas histórias que me foram narradas, um tipo de

agenciamento guerreiro – uma máquina de guerra, diriam de Deleuze e Guattari (1980/1997b)

– capaz de unir rapidamente as forças individuais e coletivas do grupo para fazer “correr com

o sujeito” que se portava de forma a ferir a integridade, as crenças, os costumes, os modos de

vida de um(a) ou todos da comunidade. Se não havia discriminação a princípio, não havia

ingenuidade afinal.

Não se trata de afirmar que ali não existiam linhas de segmentaridade a recortar, dividir,

agrupar, hierarquizar, excluir... Como disseram Deleuze e Guattari (1980/1996b), “o homem é

um animal segmentário” (p. 83). As segmentações, bem como os conjuntos de pertença, as

formas, as estruturas e as identidades que elas instituem, fazem parte dos diversos

funcionamentos sociais e de parcela importante da compreensão humana acerca da realidade.

Por isso, havia também nesse quilombo segmentações articuladas em jogos de poder-saber que

davam mais voz a uns que a outros, que distinguiam diferentes linhagens e os descendentes de

cada uma, que deflagravam hierarquias, rixas, conflitos, contradições. Nina, uma das senhoras

mais queridas por toda a comunidade, me explica que não sabe como as rixas começaram, mas

há constantemente disputas “de quem é o melhor”. O que lhe causava preocupação: temia que

o vínculo comunitário se diluísse com a morte dos mais velhos, cuja liderança sustentava a

prioridade do coletivo e o respeito entre os membros como eixos fundamentais da socialidade

comum. Sem a emergência até então de lideranças mais novas capazes de apaziguar as disputas

e de indicar caminhos diversos das lógicas individualizantes que não paravam de chegar “cada

vez mais” através dos equipamentos tecnológicos, dos aprendizados nas escolas, das ida dos

jovens para cidades e áreas mais urbanizadas, do contato com os turistas que os visitavam, Nina

tinha o temor de que o agenciamento solidário que funcionava na comunidade e que articulava

148

o cuidado coletivo, a proteção comunitária e as práticas e costumes tradicionais fosse

desarticulado.

De minha parte, concordo que, neste momento histórico, estamos todos conectados,

ainda que de maneiras diferentes, às linhas de força do capitalismo que se sagrou bem-sucedido

em abraçar o mundo inteiro e embrenhar-se até nos menores recônditos da Terra. Nesse cenário,

corremos de fato o risco do endurecimento (ainda maior) do modo de subjetivação dominante

que, sustentado pelos donos do poder econômico e pelos tentáculos dos aparelhos de Estado,

tem produzido na(s) humanidade(s) uma grande monocultura existencial e civilizatória

capitalista moderna. Uma monocultura competente em neutralizar os efeitos dos encontros

entre multiplicidades que compõem as forças do mundo, em capturar as forças vitais a seu

serviço e em reduzir as experiências subjetivas para sua conformação em sujeitos

individualizados e suas identidades privatizadas (Preciado, 2018). Não obstante, é sempre

possível acompanhar processos moleculares de produção de desvios, ajustes, fugas, ousadias e

invenções. Os quilombos historicamente são uma efetuação concreta desses processos. Em

grande medida e não obstante as preocupações de Nina, eu os percebo ativos nessa comunidade.

Em outro momento, ao pé do fogão de lenha na casa de Binho, um casal do sul do país

que visitava o quilombo escuta a minha conversa com alguns membros da comunidade sobre

suas composições familiares. Durante a conversa ponho-me a desenhar no caderno uma espécie

de árvore genealógica ao melhor estilo arborescente, iniciada com o nome do casal que, com os

filhos, havia iniciado a comunidade. Os visitantes, estudantes de Comunicação Social,

empolgam-se com a ideia de plotar um grande banner para a comunidade com a apresentação

das linhagens familiares e divisões que veem nascer no papel. Enquanto isso, esforço-me para

rastrear as redes de afetos, de apoio e de aliança que existem na comunidade “fora” do traçado

verticalizado das descendências familiares que se insinuam no desenho. Como argumentei

anteriormente, a cartografia procura dar visibilidade à multiplicidade de linhas, arranjos e

componentes presentes em uma realidade pesquisada.

Nesse contexto, o meu desenho inicial parecia indicar uma formação familiar que

lembrava as tradicionais famílias patriarcais extensas. No entanto, as conexões com outros

componentes daquela e de outras conversas e com o zigue-zague existencial que vivenciei no

quilombo deram visibilidade a outras lógicas, sensibilidades, práticas, relações de poder. Um

outro desenho acabou se formando... Entre seus componentes, destaco a liderança assumida

pelas mulheres mais velhas e pelo papel feminino fundamental no cotidiano da comunidade.

De fato, eram as mulheres que conduziam os rituais religiosos, que eram convocadas para

149

dirimir os conflitos, que selavam importantes decisões e acordos. Eram as mulheres que

estavam autorizadas a cuidar da cozinha comunitária e que realizavam boa parte das atividades

– da arrumação da casa ao corte e carregamento da lenha para o fogão e ao roçado do terreiro.

Eu, que me tornei humana através de processos de subjetivação implicados na produção

de um corpo feminino delicado, frágil e contido, devendo manter a voz sempre a meio tom e

expressar-me com serenidade, preenchi-me de emoção e deslumbramento ao presenciar a

altivez e a força das vozes e dos corpos das mulheres daquele quilombo. Diego já havia alertado,

antes da minha visita, que eram as mulheres que encabeçavam as discussões e brigas, com

enfretamentos públicos, enquanto “a gente [os homens] não pode falar nada”. Durante a visita,

em uma das conversas, Tânia reclama dos homens dali que “são muito mimados”. Argumenta

que eles são criados para esperar que as mulheres resolvam as coisas, tomem os

encaminhamentos, realizem os serviços, ajudando apenas quando são convocados. Explica que

as mulheres, por sua vez, são criadas para “limpar a bunda deles até eles ficarem velhos”. “E a

nossa? Se nós sapecou59, nós se virou sozinha”. Pergunto-lhe porque então ela e as outras

mulheres não criavam as moças mais jovens e as meninas para serem diferentes, para terem

outras relações com os homens dali. Tânia, como quem escuta uma heresia, retruca: “Mas como

nós passa por cima dos velhos?! Nós temos uma líder ali. (...) Toda a vida ela mandou. Ai docê

falar [mal] dos homi, ela não deixa”. E explica que mesmo as mulheres que saíam para trabalhar

nas fazendas e outros serviços nas redondezas, ao chegar, eram convocadas pela matriarca para

fazer várias atividades que os homens que tinham ficado na comunidade poderiam ter feito,

mas não tinham sido demandados para tanto. Binho, que me acompanha na conversa com Tânia,

pondera: “Mas elas num deixa... Elas são bruta pra trabalhar!”.

Ao vivenciar o desenrolar dessa conversa admiro-me com um tal funcionamento que

não consigo definir nas linhas que (re)conheço de machismo e feminismo. Ali, são as mulheres

que, assumindo uma posição de comando e referência, demandam que elas mesmas trabalhem,

atuem, controlem para, nas palavras de Tânia, “mimar” os homens. Certamente seria necessário

aprofundar-me, o que valeria uma nova pesquisa, para conseguir acompanhar as nuances e a

complexidade desse arranjo. Seja como for, a força da condução feminina mostrou-se

inegavelmente respeitada pelos homens, mesmo nas circunstâncias em que eles estavam em

maior número ou demonstravam mais força física. Entre as consequências, havia uma grande

dependência masculina em diferentes circunstâncias. Como Diego me conta, quando a

59 Sapecou aqui significa ter tido assaduras.

150

matriarca se acidentou e perdeu a autonomia de conduzir tarefas domésticas como cozinhar,

seu marido ficou por dois dias sem comer à espera da esposa para servir-lhe à mesa, até

consolar-se de que precisava encontrar outra saída.

Diego, que já havia morado e visitado diferentes cidades, comenta que, mesmo com sua

experiência, ainda achava estranho ver um homem liderando. Sobre as mulheres da sua

comunidade, além da força e da voz, destaca que muitas delas são “caranguejeiras” que, como

esse tipo de aranha, permanecem sozinhas por opção: interessam-se por um homem quando

querem ter um filho dele e com ele ficam até conseguirem engravidar. Depois vão-se embora,

cuidar de sua vida e da criança. De modo diverso das lógicas patriarcais que historicamente

definiram o homem como o senhor responsável pela voz e pelas decisões familiares e que, com

o advento da urbanização e industrialização capitalistas, sagraram-no como o dono e patrão

também na esfera doméstica nuclear, aqui outros contornos e laços tecem boa parte das relações

entre homens-mulheres-filhos-famílias. Há mais autonomia das mulheres em relação à proteção

e ao sustento familiar promovido por homens, uma vez que elas são responsáveis por assumir

grande parte das tarefas produtivas e decisórias. Além disso, há a importante rede de apoio das

outras mulheres da comunidade para o cuidado cotidiano com as crianças. Se ali há mulheres

que desejam e praticam um funcionamento de “caranguejeiras”, isso não pode ser desconectado

de um agenciamento sociofamiliar que abre espaço para a sua efetuação.

* * *

Sigo em meu zigue-zague existencial, disponível para a cartografia e, neste momento,

preciso deslocar-me da experiência relatada acima para acompanhar uma linha de

segmentaridade que me remete a um movimento muito diferente, de atualização de estratégias

lógicas e práticas coloniais que, nos dias atuais, atravessa a realidade de um outro quilombo.

Deste, tomo conhecimento na casa de Paula, que me foi indicada para esta pesquisa por sua

“perfeição” como mulher e como família. E, de fato, Paula mostra-se bem-sucedida na tarefa

de efetuar os padrões, práticas, lógicas instituídas pelo modelo nuclear moderno60. Por isso

mesmo, insisto em conversar com ela sobre “outras famílias” que ela avalia como muito

diferentes da sua. Em certo momento, ela se lembra das doações que o marido e ela fazem para

60 Conferir as reflexões que teço a respeito no capítulo anterior.

151

um quilombo na Bahia. Explica que envia as doações no Natal e que chegou a visitar o quilombo

uma vez. Seu contato começou por causa da igreja que, sediada em uma cidade próxima,

estabeleceu uma filial no quilombo, levando “muita coisa boa praquelas pessoas”: cursos

profissionalizantes, o ensino de costura para as mulheres, a inscrição de famílias em um projeto

de doação de casas da Febraban (Federação Brasileira de Bancos). “Deu muita dignidade. O

povo lá, eles são muito gratos aos que fazem essa evangelização lá”. Pergunto-lhe sua opinião

sobre as famílias desse lugar e Paula lembra de um caso de “um homem casado, assim,

amasiado com uma mulher e amasiado com a irmã da outra”. E pondera que “tem umas coisas

bem diferentes... Mas aí quando eles têm o encontro com Jesus, Jesus entra e vai mudando.

Muda o coração da pessoa. Então essas perversidades... essas coisas vão assentando. Isso é

ensinado a eles lá pelos missionários”.

Refiro-me a uma linha de segmentaridade que atualiza lógicas e práticas coloniais,

porque a relação de um homem com duas mulheres é avaliada a partir de valores morais que

traçam a normalidade de uma certa maneira “certa” de se firmar relações conjugais e a

“perversidade” de outras, conforme os valores cristãos trazidos pela colonização. E lembro-me,

por outro lado, das pesquisas de Reginaldo Prandi (2000) sobre o funcionamento tradicional da

família iorubá na África. O autor descreve que essa família africana tem uma organização

familiar poligínica com um chefe masculino para o grupo, suas esposas e seus filhos. O grupo

familiar extenso habita residências coletivas com áreas comuns de cozinha, lazer, trabalho

artesanal e armazenamento. As residências são formadas por espécies de apartamentos

contíguos, um abrigando o chefe do grupo, sua esposa principal e seus filhos, os outros

abrigando as demais esposas e filhos. Toda a família cultua o orixá do chefe masculino, a

divindade ancestral herdada de sua linhagem paterna e que deve ser assumida por todos os

filhos. Cada mulher cultua o orixá de seu pai, que é também cultuado pelos filhos conforme sua

descendência materna. Nessas famílias extensas, há ainda o culto a diferentes entidades e de

diferentes formas, uma multiplicidade de cerimônias, ritos e deuses, que envolvem orixás

familiares e outros, ligados à comunicação entre mundos, à proteção da comunidade mais

ampla, à adivinhação, aos ancestrais comuns de homens e de mulheres. Nas lógicas dessas

famílias, a vida religiosa e demais práticas cotidianas funcionam entrelaçadas, compondo uma

cosmovisão que orienta hábitos, relações, discursos, percepções, hierarquizações que permitem

(e valorizam) o relacionamento de um homem com mais de uma mulher.

Não se trata de advogar a favor ou contra esse funcionamento iorubá, que certamente

tem seus conflitos, contradições, sofrimentos, como todos os funcionamentos humanos os têm.

152

Nem é possível dizer que a família do quilombo citada por Paula funciona como os iorubás

africanos, ou mesmo que esse relacionamento específico produz bons ou maus encontros para

quem está a vivê-lo. A referência que faço aos iorubás visa considerar que, dentro das lógicas

desse agenciamento familiar africano, a relação de um homem amasiado com duas mulheres

dificilmente seria tomada como “perversidade” tal como Paula a percebe. A afirmação desta,

tão segura quanto sua postura enquanto conversa comigo, não pode ser compreendida

desconsiderando-se sua posição privilegiada no diagrama das forças sociais em operação, seu

“lugar de fala” historicamente construído e a sua assunção de um modelo transcendente para

avaliar, medir, julgar os Outros.

Suponho que Paula ficaria abismada, tanto o padre Le Jeune ficou, ao ouvir de mulheres

Montagnais a explicação sobre porque elas não se importavam que um homem tivesse mais de

uma esposa: como em sua comunidade o número de mulheres era superior ao número de

homens e não seria correto que somente uma parte das mulheres pudesse se satisfazer

sexualmente, casar, ter filhos, participar de uma família, melhor que um homem admitisse mais

de uma esposa e assim todas poderiam ser satisfeitas (Leacock, 1981/2019).

E Paula possivelmente receberia com pesar o que me conta Ana. Quando era jovem, em

2001, ela mudou-se para uma aldeia no alto Xingu onde viveu por cinco anos, sendo adotada,

por assim dizer, por uma família indígena que a acolheu em sua morada e costumes. Ana analisa

que, hoje em dia, os mais jovens estão assumindo o casamento apenas entre um homem e uma

mulher pelas dificuldades de subsistência nas condições atuais da aldeia e pela crescente

influência do cristianismo. Ainda assim, há vários casamentos de um homem com mais de uma

mulher. Segundo ela, muitas mulheres gostam que seu marido tenha outras esposas para assim

dividirem as atividades domésticas e a prática sexual com o marido, o que as deixa mais livres

para que possam ter relações com outros homens. É comum o casamento de irmãs com o mesmo

homem, o que permite a estas permanecerem juntas de bom grado na mesma família.

* * *

Por fim e retomando o que eu disse em outros momentos deste trabalho, as linhas de

segmentaridade não são efetuadas apenas pelos “legítimos” representantes das lógicas e padrões

familiares implementados pela colonização capitalista moderna. Essas linhas atravessam

pessoas e famílias por todo o rizoma social. Nesse sentido, resgato uma outra experiência vivida

153

ao longo desta pesquisa: minha participação em um dos cursos de formação transversal em

Saberes Tradicionais oferecido pela Faculdade de Educação da UFMG. Na oportunidade,

algumas mulheres, mestras em culinária e construção indígena, compartilhavam com os alunos

do curso algumas das técnicas e recursos para a arquitetura, a pintura e a produção de alimentos

conforme suas práticas tradicionais. Em um dos momentos do evento, assento ao redor do fogão

montado com tijolos e lenha junto com uma das mestras e uma professora da UFMG. As duas

conversam enquanto a mestra prepara o café à maneira de seu povo. A professora comenta que

não sabe fazer café. A mestra olha-a com ternura e diz que vai ensiná-la, porque é muito

importante que uma mulher saiba fazer o café. A professora retruca: “Na minha casa quem faz

o café é meu marido, não preciso aprender. A senhora é que tem que aprender: marido é que

deve fazer café de manhã. Ele faz, eu acordo e já está tudo pronto!”, responde a professora.

Contudo, à medida que o espanto ocupa o rosto da mestra, levantando suas sobrancelhas e

soltando-lhe o queixo que deixa sua boca semiaberta, a professora arrefece o tom: “Bom, no

resto do dia, sou eu quem faz as coisas em casa....”. Mas a mestra está absorta, como quem

precisa resolver um problema grave: “Quanto tempo tem isso? Trinta anos?! Ah, mas tá na hora

de mudar!”

Não é possível inferir uma relação direta entre a situação que narro acima e as

segmentações impostas pelo patriarcado moderno e sua difusão através da colonização. Ainda

assim, se esse diálogo está autorizado a acontecer nos dias atuais, vale avaliar se isso não se dá

exatamente pela força social difusa de seu modelo de família, cujas linhas reverberam em

diferentes agenciamentos.

A partir das considerações de Quijano (2000), posso dizer que a colonização não se

sustentaria como um processo de exploração econômica e domínio político, não fosse todo o

trabalho difuso e insistente, munido de diferentes estratégias em cada contexto, para a

incorporação de seus modos de subjetivação e de organização familiar que, como pano de

fundo, dividiram os humanos a partir da segmentação fundamental da raça como critério para

estabelecer o Nós (e o Eu) versus os Outros. Modos que, com as atualizações feitas ao longo

dos últimos séculos, conseguem persistir e que, por isso, deveriam ser de absoluto interesse

para as produções teóricas e para as intervenções socio-clínicas da psicologia, muitas vezes

ainda focadas no sujeito em sua individualidade...

154

Coexistências

No prefácio de Mil Platôs, Deleuze e Guattari (1980/1995) defendem a tarefa de se

realizar uma “história universal da contingência”61 e, em cada caso, perguntar-se onde e como

se faz tal encontro, assumindo que “[...] encontramo-nos diante de todas as espécies de

formações coexistentes” (p. 8). O exercício aqui proposto envolveu, acompanhando esses

pensadores, indicar a coexistência de modos de vida heterogêneos que não podem ser reduzidos

ou conformados uns nos outros, sob o risco de se achatar toda multiplicidade. Modos que ora

se aproximam, ora se distanciam, ora se chocam, ainda que existam nesse mesmo tempo

histórico e conectem-se a linhas de segmentaridade que atravessam a todos. Nesse contexto, ao

invés de rebater a realidade em um modelo transcendente, arrisquei-me nesta delicada e

complexa tarefa de assumir a imanência dos diferentes processos e encontros, arranjos e

conflitos, sofrimentos e transformações. Nesse cenário e em busca de sustentar a produção de

conhecimentos nômades, não tive (e não terei nos capítulos que se seguem) a pretensão de

delinear um modo de vida próprio aos quilombos, aos indígenas, aos indivíduos que habitam

os centros urbanos, seja nos seus nichos privilegiados ou em suas periferias precarizadas. O que

aqui espero ter proporcionado aos leitores é a visibilidade das aproximações e distanciamentos,

das composições e estranhamentos que me afetaram.

A seguir e procurando manter a mesma perspectiva analítica, enfoco os componentes,

linhas, configurações que perfazem algumas importantes especificidades e agenciamentos do

momento contemporâneo que tem perpassado as famílias e, em especial, as famílias do Brasil

e suas conexões com a dinâmica planetária. O que envolve considerar as atualizações do

capitalismo, dos aparelhos de Estado, dos processos de subjetivação e suas conexões com os

arranjos familiares.

61 Em seu livro O Anti-Édipo, primeiro tomo da díade Capitalismo e Esquizofrenia lançado em 1972, Deleuze e Guattari analisam as conexões históricas entre as configurações sócio-políticas e os processos de subjetivação a partir da sequência tradicional Selvagens-Bárbaros-Civilizados. Em Mil Platôs, o segundo livro da díade, de 1980, eles abandonam essa sequência e assumem a importância de se dar visibilidade à coexistência, em nosso tempo histórico, de diversas formações sociais e processos de subjetivação.

155

156

Capítulo 5

FAMÍLIAS NO SÉCULO XXI

Velhas e novas configurações familiares

Folheio os cadernos em que fiz as anotações das visitas às famílias e das conversas com

os informantes-chaves, com os diversos registros de afetos-pensamentos que daí brotavam.

Procuro o que se destaca sobre as famílias nestes tempos contemporâneos. Espero. Aprendi

com a dança contemporânea e mais profundamente no c-e-m (Centro em Movimento de Lisboa)

que a espera é uma arte que agrega paciência e persistência, que exige resistir aos anseios da

precipitação, que envolve a disponibilidade atenta para o encontro. Espero.

Uma lembrança, enfim, brota. Mas não é a emergência de um momento intenso ou

inusitado dos encontros da pesquisa. O que me chega é uma música lançada em 1976, composta

por Belchior e que conheci interpretada pela voz deslumbrante de Elis Regina. Cantarolo a parte

que arrebata meus pensamentos, apoiando-me no desânimo de que é isso que me vem neste

momento: “Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo, tudo, tudo, tudo o que

fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos, ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos

pais”.

A repetição também faz parte, penso ao final. Por isso, olhar os agenciamentos

familiares atuais implica assumir as linhas de segmentaridade que persistem, nascidas em outros

tempos e com os endurecimentos que se mantém, bem como as atualizações e as transformações

que se processam. Como dito, é preciso assumir a coexistência de agenciamentos, cuja

multiplicidade de composições exige que qualquer compreensão seja, ao mesmo tempo,

histórica e geográfica, considerando as contingências, as probabilidades, as possibilidades, as

condicionalidades, os acasos, os imprevistos, a relatividade (Deleuze & Guattari, 1980/1995).

Nesse sentido, chega-me à memória a experiência que tive como professora de História

da Psicologia por alguns anos na universidade. Lembro-me que quase todos os alunos, cursando

o primeiro período de um curso de graduação universitária, traziam uma visão da história como

um varal de roupas, ou melhor, como um varal-linha do tempo em que datas e fatos históricos

“brotavam” e eram organizados de forma linear e sucessiva. Essa visão acabava por predominar

na sala de aula, carregada das ambições modernas de conceber a história como um processo

157

evolutivo contínuo, rumo ao progresso da humanidade a partir de seu projeto civilizatório,

tomado como o mais bem acabado, emancipatório, libertador. De minha parte, procurava trazer

para a sala uma outra imagem do pensamento, do mundo, da história: a perspectiva rizomática.

Nela, as linhas que compõem a história são múltiplas e suas direções, contornos, intensidades,

ritmos, velocidades, encontros são muito variáveis, ou ainda, são pura variação – tanto umas

em relação com as outras, como em relação a si mesmas, a cada momento, a cada configuração.

Agora e assumindo a mesma perspectiva, posso dizer que não se trata de acompanhar a

“evolução da família” – um antes e um agora da Família. Ainda somos como nossos pais, avôs

e ancestrais mais antigos – colonizadores e Outros – embaralhados em agenciamentos

heterogêneos e coexistentes que se compõem no Brasil. Se me apliquei anteriormente em

abordar a família nuclear moderna que foi germinada na Europa e difundiu-se como modelo

junto com a expansão do capitalismo, e se indiquei a consolidação desse modelo familiar no

Brasil a partir dos processos de urbanização e industrialização, conectando-o às famílias

patriarcais extensas que as precederam62, se assim o fiz, foi por vislumbrar sua força e poder

ainda hoje nos diagramas sociais. Do mesmo modo, se procurei cartografar arranjos e

funcionamentos familiares e socioculturais de Outros que também compõem histórias nestas

terras é porque eles fazem parte, com suas linhas, velocidades, sensibilidades, importâncias.

Ademais, olhando para a hegemonia do modelo nuclear moderno ao longo dos últimos

séculos e enfocando as questões, desafios, processos, configurações próprias do momento atual,

é possível afirmar que muita coisa mudou, inclusive para esse modelo.

Um aspecto que merece destaque envolve as transformações na posição das mulheres

nas relações de poder, no diagrama das forças sociais contemporâneas. É certo que, ao longo

de toda a modernidade, houve lutas das mulheres. Não à toa, como analisa Federici (2017), uma

extensa lista de mulheres foram caçadas e punidas como desbocadas, rebeldes, libertinas,

desonradas, bruxas... Em específico, o século XIX assistiu à intensificação das lutas das

mulheres trabalhadoras inseridas nas dinâmicas de produção do Capital para melhorar suas

condições de trabalho, especialmente diante de “suas” (naturalizadas como suas)

responsabilidades com o trabalho reprodutivo doméstico. Nesse século deu-se também o início

do movimento sufragista que visava garantir o direito ao voto nas eleições para as mulheres e

62 Peço licença pela linearidade da afirmação... Ela não tem o intuito de indicar uma suposta evolução, nem a extinção dos arranjos extensos. Apenas indico a configuração hegemônica primeiro de um e depois do outro arranjo no contexto brasileiro.

158

o reconhecimento da importância de sua participação em cargos políticos63. Com as lutas das

trabalhadoras e as lutas pelo direito ao voto feminino, as mulheres começam a ganhar as ruas,

a se manifestar e a discutir entre si sobre seus direitos, ampliando o número daquelas que

passam a sair – do ponto de vista físico e psicológico – do confinamento ao espaço restrito do

lar. Mas foi no século XX que se tornaram mais evidentes os impactos desses movimentos na

posição social das mulheres e nas configurações familiares. É certo que eles variaram no tempo

e em sua amplitude nos diferentes países e regiões, não constituindo, por isso, um fenômeno

único ou homogêneo. Em alguns casos as transformações na posição social feminina

provocaram um maior afastamento dos arranjos familiares do modelo moderno tradicional e

em outros, menos. Aqui destaco alguns pontos desse processo.

Um primeiro ponto foi a gradativa ampliação do ingresso de mulheres no mercado de

trabalho, tanto em número quanto nos cargos ocupados por elas. Durante a Primeira Guerra

Mundial (1914-1918), com muitos homens na linha de frente das batalhas, aumentou a demanda

para que, nos países envolvidos, mulheres assumissem funções e papéis que antes pertenciam

ao mundo masculino. Após a guerra, entretanto, houve um forte movimento social para repor

cada sexo em “seu lugar” e muitas mulheres voltaram para os serviços domésticos. Também

durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) as mulheres ocuparam cargos e realizaram

atividades que eram tidas como masculinas, experimentando a valorização do seu trabalho a

serviço da pátria e sendo recrutadas em profissões que antes lhes eram vedadas. Contudo, mais

uma vez, ao final dessa guerra64, elas foram “[...] convidadas a regressar ao lar e às tarefas

femininas, em nome do direito dos antigos combatentes e da reconstrução nacional” (Thébaud

apud Jesus & Almeida, 2016, p. 12). Ainda assim, as experiências de autonomia e

independência vivenciadas por muitas mulheres nesses períodos reverberaram, em maior ou

menor grau, nos agenciamentos sociais: essas mulheres não apenas experimentaram a

participação em trabalhos antes reservados aos homens, mas tiveram que organizar uma rede

de apoio para seus filhos e aprender a administrar as finanças, calculando investimentos e gastos

para manter suas casas. Experenciaram assim toda uma nova mobilização de seu corpo, de seus

63 Apesar da importância desse movimento, cabe observar que foram necessárias décadas de luta para o reconhecimento da ampla participação política feminina. O Brasil permitiu o voto feminino em 1932 e dois anos mais tarde teve a primeira deputada federal eleita. Na França, o voto feminino foi autorizado em 1944; em Portugal, apenas em 1974 (Covas, 2019). 64 É particularmente interessante a história das creches para o controle biopolítico da condição feminina. Nos EUA, por exemplo, as creches alcançaram durante a II Guerra Mundial 1,6 milhões de vagas financiadas pelo governo federal, mas, após o fim do conflito e com a retirada de recursos públicos, restavam 300 mil vagas nas creches estadunidenses em 1965 (Rosemberg, 1984).

159

afetos, de suas maneiras de existir. Isso provocou, em níveis micropolíticos, deslocamentos de

lugares naturalizados, de discursos instituídos, de percepções endurecidas sobre a vida e sua

própria potência.

Nesse contexto, após a Segunda Guerra, os movimentos feministas se fortalecem em

vários países. Em 1949, Simone de Beauvoir lança O Segundo Sexo na França, uma obra

seminal que difunde questionamentos contundentes acerca da percepção generalizada (os

mitos) sobre a mulher e de seus efeitos sobre a produção de uma certa condição feminina na

modernidade capitalista. Pouco depois a feminista Margaret Sanger, fundadora da Planned

Parenthood Federation of America (PPFA), financia uma pesquisa sobre o uso de hormônios

para a inibição da ovulação em mulheres, coordenada pelo biólogo Gregory Pincus. Dessa

pesquisa nasce a pílula Enovid com poder contraceptivo. Ela é, no entanto, aprovada em 1957

pelo FDA (Food and Drug Administration) apenas para o tratamento de distúrbios menstruais.

Foram necessários quatro anos para que, em 1961, ela fosse aprovada como uma pílula

anticoncepcional, ainda que, como ressalta Marc Dhont (2010), só no início da década de 1970

mulheres solteiras foram autorizadas a utilizá-la nos EUA. Seja como for e, não obstante as

discussões sobre seus efeitos colaterais no corpo feminino, o desenvolvimento da pílula

anticoncepcional e a gradativa aprovação de seu uso em diferentes países permitiu que as

mulheres alcançassem uma importante autonomia sobre seu corpo e sua condição reprodutiva.

Agora era possível que uma mulher escolhesse, com grande eficácia do método contraceptivo

que ela mesma administrava, sobre ter relações sexuais com intuito procriativo ou para sentir

prazer. Tratou-se de uma grande revolução para a moralidade moderna, que se somou aos

debates feministas sobre a repressão social das mulheres e ao aumento do nível educacional

destas. Esses movimentos impulsionaram a saída de um número cada vez maior de mulheres

da condição exclusiva de donas de casa e seu ingresso em diferentes profissões e cargos no

mercado de trabalho, ainda que sua inserção e suas condições de trabalho e remuneração

permaneçam, até hoje, desiguais em relação aos homens65.

O núcleo familiar, tal como concebido nos moldes burgueses modernos, certamente foi

abalado pelas mudanças descritas. A ampliação do ingresso das mulheres no mercado de

65 No estudo Perspectivas sociales y del empleo en el mundo, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) afirma que, a nível mundial, a taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho era 26% menor que a dos homens em 2018, uma diferença que se manteve quase a mesma em relação a 1990 (somente 2% menor) (OIT, 2018). Quanto aos rendimentos, o IBGE (2018b) mostrou em seu relatório Diferença do rendimento do trabalho de mulheres e homens nos grupos ocupacionais – Pnad Contínua 2018 que, neste ano, as mulheres brasileiras ainda ganhavam em média 20,5% menos que os homens e eram pior remuneradas em todas as ocupações selecionadas para a pesquisa.

160

trabalho marcou a exigência de novos arranjos para o cuidado com os filhos, especialmente nas

famílias em que não era possível repor o trabalho da mãe-esposa em casa pelo de uma babá e

ou empregada. Como lembra Fúlvia Rosemberg (1984), no final da década de 1960 e início dos

anos 1970 vários países foram marcados por um importante ciclo de expansão das creches. Mas

não apenas isso: houve uma revisão de seu significado, em grande medida graças ao

fortalecimento dos movimentos feministas. “Este período não corresponde apenas, nos diversos

países, a uma expansão das redes públicas e dos recursos alocados, mas a uma nova procura em

compreender essa instituição na sua complexidade psicológica, social, econômica e política”

(Rosemberg, 1984, p. 75). Além disso, para boa parte das famílias e mesmo que os Estados

tenham ampliado suas políticas de apoio, à medida que as mulheres saiam de casa para outros

trabalhos que não o doméstico, foi necessário fortalecer redes de cuidado mais extensas,

envolvendo parentes, vizinhos e outras famílias para garantir o cuidado às crianças e

adolescentes. Estes, com isso, passaram a experimentar, desde pequeninos, uma rede de

socialização e a construção de vínculos afetivos mais amplos que seu pequeno núcleo familiar.

A ampliação das mulheres no mercado de trabalho tornou-se ainda um fator de

fortalecimento da autonomia feminina, uma vez que mais e mais mulheres passaram a possuir

sua própria fonte de recursos. É certo que em muitos casos o salário foi tomado como “ajuda”

ao que recebia o homem – o provedor e patriarca – e por vezes transferido para o controle do

marido dentro da mesma lógica que vimos para muitas trabalhadoras do século XVI. Ademais,

é necessário marcar que o próprio capitalismo se apropriou da inserção das mulheres no

mercado de trabalho. Como afirma Kehl (2003, p. 166), “razões de mercado abriram

oportunidades profissionais para as mulheres e achataram os salários dos pais de família”. Essa

autora marca que isso resultou na perda de poder aquisitivo do salário masculino em muitos

setores, exigindo que a ele se somasse o salário das mulheres para garantir o sustento de um

número cada vez maior de famílias. Nesse cenário, a concentração dos recursos econômicos de

grande parte das famílias nas mãos dos homens está se transformando.

Mas mesmo com mais autonomia, mais poder familiar e mais recursos – salário próprio,

ampliação da rede de apoio comunitário e estatal, movimentos sociais que difundiam novos

discursos sobre as competências e condições das mulheres –, é necessário marcar que a inserção

no mercado de trabalho acabou por resultar em dupla jornada para a grande parte das mulheres,

o que ainda persiste, com o acúmulo de atividades fora e dentro de casa. Na Espanha, por

exemplo, as mulheres dedicavam em 2010 quase o dobro de tempo diário dos homens para as

tarefas do lar (Verne, 2019). No Brasil, em 2018, a taxa de homens que moravam sozinhos e

realizavam as tarefas domésticas era muito próxima à de mulheres nessas condições. Contudo,

161

ao mapear a dedicação dos homens em situação de coabitação na condição de responsável ou

cônjuge, o percentual daqueles que realizavam tarefas domésticas apresentou-se bem menor

(IBGE, 2018c).

Quanto ao vínculo do casal, as mudanças ligadas à relação sexual e à maior autonomia

feminina foram acompanhadas por mudanças jurídicas importantes para as relações conjugais.

Dentre essas mudanças, destaca-se a legislação sobre o divórcio. Em países que seguiam (e

seguem) as determinações católicas tanto na Eurásia e quanto nas colônias europeias, a

instituição do matrimônio tornou-se um sacramento a ser celebrado na presença de um

sacerdote e testemunhas a partir da Contrarreforma e com a promulgação do Concílio de Trento

em 1563. O vínculo sacramentado nesse rito é indissolúvel. Embora a legislação civil sobre o

matrimônio tenha oscilado desde então em diversos países entre momentos de maior abertura

para a separação dos cônjuges ou mesmo para a dissolução do casamento e consumação de

novo matrimônio, e momentos de maior alinhamento ao direito canônico, foi após a Segunda

Guerra Mundial que se difundiu no direito de civil de muitos países do Ocidente a dissolução

definitiva do casamento perante o Estado.

No Brasil a Lei n. 6.515 de 1977 admitiu, pela primeira vez na história do Estado

brasileiro, a dissolução do casamento através do divórcio. Até então, era possível que os

cônjuges se desquitassem, o que encerrava a sociedade conjugal com a separação de corpos e

bens, mas não encerrava o vínculo matrimonial (Beltrão, 2017). Uma das principais

consequências da indissolubilidade do casamento envolvia a situação dos homens e mulheres

que, por diferentes razões, não podiam ou queriam mais a convivência marital. Eles podiam

separar-se através do desquite, mas, com a permanência do vínculo matrimonial, qualquer

relação assumida depois da separação não era legalmente nem moralmente aceita. Conforme

Marlene de Fáveri (2007), havia a expectativa que os desquitados se abstivessem de ter relações

sexuais. Isso impactou sobretudo as mulheres desquitadas, vítimas de grande preconceito e

constante vigilância. Quando se envolviam em novo relacionamento, eram vistas como

concubinas ou amantes de seus companheiros e não gozavam de qualquer proteção legal em

relação às novas uniões. Também os filhos dos casais separados ganhavam o estigma social de

crianças e adolescentes que cresceriam em uma família desestruturada, o que os tornaria pessoas

disfuncionais e traumatizadas (argumento que, apesar de sua grande difusão, sempre

desconsiderou os traumas e sofrimentos dentro das “famílias estruturadas” e diante do

sufocamento dos conflitos e problemas conjugais em prol da manutenção do casamento). Além

disso, os filhos advindos de novas uniões de pais separados eram tidos como “filhos ilegítimos”

(Fáveri, 2007).

162

Com a institucionalização do divórcio e sua crescente aceitação social, o número de

dissoluções de casamentos vem crescendo desde as últimas décadas do século XX, bem como

a formação de novos arranjos conjugais e familiares. Esses novos arranjos têm reverberado a

maior liberdade sexual alcançada nas sociedades capitalistas modernas em suas configurações

contemporâneas. Com efeito, as separações e novas uniões ao longo da vida dos adultos vêm

configurando formações familiares que Kehl (2003) denomina como “famílias tentaculares” –

famílias cujo núcleo privatizado e circunscrito ao casal e seus filhos está dando lugar ao

convívio e ao vínculo afetivo entre homens, mulheres, adolescentes e crianças vindos de

diferentes famílias. “Na confusa árvore genealógica da família tentacular, irmãos não

consanguíneos convivem com ‘padrastos’ ou ‘madrastas’ (na falta de termos melhores), às

vezes já de uma segunda ou terceira união de um de seus pais, acumulando vínculos profundos

com pessoas que não fazem parte do núcleo original de suas vidas” (p. 167).

Além disso, tem crescido ainda casais que optam por não ter filhos, assumindo o vínculo

erótico-afetivo da relação e não o destino procriativo para se constituir uma família. Também

aumenta o número de relacionamentos digamos “alternativos”, que articulam desejos e

produzem vínculos de modos diversos do modelo nuclear moderno, como nos relacionamentos

denominados poliamor. Esses relacionamentos, como esclarecem Santos & Viegas (2018),

envolvem a simultaneidade de relações de seus membros, que são conhecidas e consentidas por

todos os envolvidos. As uniões poliafetivas (entre um homem e duas mulheres ou entre dois

homens e uma mulher, por exemplo) podem abranger a criação conjunta de filhos, a construção

de um patrimônio comum e um vínculo duradouro e estável entre seus membros. Esses

relacionamentos abalam não apenas a lógica nuclear patriarcal, mas outro importante pilar do

modelo nuclear moderno de família: a monogamia.

Nesse contexto, cumpre assinalar o movimento, no final do século XX, pela legalização

e aceitação social do casamento entre pessoas do mesmo sexo e pela possibilidade legal de

adoção por homossexuais. Pessoas do mesmo sexo que conviviam em parcerias duradouras,

marcadas por afeto e projeto de vida em comum, passaram a lutar pelo reconhecimento de sua

união pelo Estado e por sua proteção legal. No Brasil, a Resolução n. 175 de 14 de maio de

2013, aprovada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), determinou que os cartórios de todo

o Brasil não poderiam se recusar a celebrar o casamento civil de casais do mesmo sexo, nem a

converter uniões estáveis homoafetivas em casamento. Tal resolução consolidou e unificou esse

entendimento para todos os tribunais de justiça do país, já que até então alguns estados

reconheciam a possibilidade desse tipo de casamento e outros não.

163

* * *

As diferentes famílias que visitei ora efetuam mudanças e ajustes, acompanhando os

movimentos referidos acima, ora mantêm-se distantes desses movimentos por razões diversas.

Sua distância pode estar ligada ao empenho (consciente ou não) em sustentar uma configuração

mais tradicional. Ou, por funcionarem de maneiras historicamente muito diferentes do padrão

nuclear moderno, as transformações acima pontuadas pouco reverberam em seus modos de

existir.

Dentre as famílias visitadas, destaco aqui a experiência de conhecer Ju e Lu. Durante o

trajeto rumo à sua casa, penso que ir ao encontro de um casal composto por duas mulheres

explicitamente formado e reconhecido como tal seria algo improvável se eu estivesse a fazer

essa pesquisa há 40, 50 anos atrás. Nas sociedades modernas, embebidas pelos valores cristãos,

esse tipo de abertura somente se configurou a partir dos movimentos e lutas por reconhecimento

dos direitos das mulheres e homossexuais desde fins dos anos 1960 e nas décadas seguintes e,

até hoje, é permeada de conflitos.

Quando voltamos ainda mais no tempo e consideramos os povos originários do território

brasileiro, seria difícil generalizar a difusão de práticas e alianças homossexuais nas diferentes

etnias indígenas. É certo que a preferência sexual por alguém do mesmo sexo ou mesmo outras

preferências sexuais sempre permearam a história das humanidades, cristãs ou não, com maior

ou menor grau de aceitação e visibilidade nos diferentes agenciamentos sociais. Estevão

Fernandes (2016) compila diferentes registros históricos-etnográficos sobre práticas

homossexuais masculinas e femininas, e mesmo alianças homoafetivas entre indígenas em

diversas etnias desde a colonização do Brasil, ainda que o entendimento dessas relações, nos

registros, tenha ocorrido através do filtro moral dos colonizadores. Por outro lado, lembro-me

do relato de Ana, com quem conversei nesta pesquisa. Em um evento organizado pela escola

de Belas Artes de uma universidade há alguns anos, Ana participava junto com David

Kopenawa66 de uma mesa, em que este foi perguntado por um dos estudantes sobre como eram

as relações homossexuais entre os indígenas Yanomamis. E, para a frustração da vanguarda

artística que estava presente, Kopenawa limitou-se a afirmar, entre surpreso e constrangido, de

que não conhecia esse tipo de relação entre os do seu povo.

66 Davi Kopenawa é um xamã e uma liderança Yanomami. Com Bruce Albert, escreveu o premiado livro A Queda do Céu (2015).

164

Seja como for, neste momento, não é o fato de Ju e Lu serem um casal homoafetivo que

me chama a atenção, ainda que isso não possa ser desconsiderado. O que se destaca para mim

é o modo como elas costuram este e outros aspectos da vida para construir seu agenciamento

familiar, suas conexões comunitárias, suas relações mais amplas com os diversos componentes

sociais, ambientais, subjetivos que atravessam estes tempos. Moradoras de uma ocupação

urbana situada na região oeste de Belo Horizonte, as duas moças me recebem com seus sorrisos

e seus quatro cachorros. “Já foram sete”, comenta Ju enquanto sou conduzida para a sala

aconchegante da casa. Contam-me que foram encontrando os cães pelas ruas, muitas vezes em

condições de muito sofrimento, e acabaram por adotá-los para cuidar deles. A dimensão do

cuidado é, de fato, o que mais me chama a atenção na casa, nas palavras, no relacionamento, na

postura das duas diante de uma vida marcada por muitas lutas cotidianas. Além dos cães, há

várias plantas que compõem o ambiente, cuja exuberância não seria atingida sem o empenho e

a dedicação de quem cuida.

Do ponto de vista das grandes segmentações sociosubjetivas, Lu e Ju seriam

“enquadradas” nas categorias menos valorizadas por nossa formação social atual: são mulheres,

são lésbicas, são negras-mestiças, são moradoras em um terreno ocupado e em disputa judicial

com seus proprietários privados. No entanto, com algum tempo de conversa percebo um

agenciamento familiar que conduz meu corpo-pensamento para atentar-se a outras nuances e

conexões que funcionam de forma transversal às linhas de segmentaridade/identidade que

também fazem parte da vida das duas.

Em algum momento, Ju e Lu contam sobre suas experiências por estarem “estudando

na faculdade”. Elas se mostram conhecedoras de autores e assuntos com que lido

cotidianamente. Acho graça nisso: depois de visitar famílias das classes alta e média dos centros

urbanos, era naquela pequena residência em uma ocupação urbana que sentia maneiras de

perceber, pensar e agir mais próximas das minhas próprias. No entanto, se há aproximações,

percebo também distanciamentos, estranhamentos.

Lembro-me de quando comecei a trabalhar como professora universitária em uma

instituição privada. Na época, incentivados pelas políticas educacionais iniciadas no governo

Lula67, muitos jovens que não podiam sonhar com a possibilidade de ingressar em um curso

67 Em especial, destaco o ProUni (Programa Universidade para Todos). Criado em 2004 pelo governo federal, esse programa oferecia (e ainda oferece, em menor escala) bolsas de estudos em cursos de graduação em instituições de ensino superior privadas. Para concorrer a uma bolsa, o estudante deve participar do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e obter a nota mínima nesse exame. Deve ter renda familiar de até três salários mínimos e satisfazer outros pré-requisitos.

165

superior passaram a ter condições reais de ingresso. Cheguei a encontrar professores que, mais

antigos que eu, reclamavam do déficit cultural e educacional dos “alunos mais pobres” que “não

sabiam nem escrever direito”. De fato, as salas de graduação passaram a funcionar com pessoas

vindas de diferentes lugares e com diferentes recursos – familiares, econômicos, educacionais,

culturais. Certamente um desafio para os professores acostumados a receber basicamente

alunos e alunas oriundos de colégios particulares bem equipados para a formação de seus

estudantes. De minha parte, senti a riqueza de ver nas salas de aula do curso de psicologia, onde

leciono, algo que pouco pude vivenciar em minhas experiências como estudante universitária:

estudar com (ou ensinar a) pessoas que estampavam na sala de aula as múltiplas faces e

desigualdades do Brasil. Pessoas que traziam precariedades, desafios, sofrimentos, lutas,

invenções de seus contextos de vida muito diferentes do meu e de boa parte dos alunos. Não se

tratou da riqueza de encontrar “pobres” na universidade (o que, conforme o projeto civilizatório

moderno, seria um paradoxo); tratou-se da riqueza de encontrar parcelas de Outros apesar da

pobreza econômica e cultural que lhes foi destinada pelo modo de vida hegemônico. Outros

capazes de enriquecer, com novas perspectivas e questões, o que estava a ser produzido na

universidade.

Como muitos dos alunos que tive, Ju e Lu são estudantes que dependem de recursos

públicos para estarem em um curso superior e levam para suas relações no ambiente

universitário as questões, os desafios, as vulnerabilidades que vivenciam em seu cotidiano e

que, em outros tempos, não chegariam com seu corpo e sua voz às faculdades e universidades.

No seu caso, sua dedicação diária para estudar no período noturno lhes exige um deslocamento

pela cidade por cerca de três horas diárias com o recurso que têm (o transporte público oferecido

pelo Estado). Além disso, as duas atuam na creche da ocupação durante o dia, cuidando das

crianças de até seis anos que frequentam o estabelecimento construído em mutirão pelos

moradores. Recebem uma ajuda de custo pelo trabalho – um montante em dinheiro e uma cesta

básica cada – graças a doações de pessoas que apadrinharam a creche. Por serem atuantes, são

respeitadas na comunidade. Mas não é uma posição fácil, elas sabem, e mantêm-se mais

reservadas, conscientes do preconceito que pode brotar a qualquer momento, mesmo dentro

daquela ocupação que historicamente se formou a partir de um agenciamento disposto a acolher

e a proteger mulheres, homossexuais e toda a ordem de desvalidos, vulneráveis e

marginalizados pelas lógicas e pelos poderes dominantes68.

68 Abordo esse agenciamento no próximo capítulo.

166

Durante a conversa com elas, percebo seu exercício cotidiano para conectar os

aprendizados proporcionados pelos estudos universitários com seu contexto de vida. Entretanto,

a certa altura Ju confessa que morar na periferia põe em cheque seu feminismo todos os dias,

pois não sabe o que fazer diante de muitas coisas que presencia, especialmente com as crianças

de quem cuida – como a violência ou o descaso dos pais, ou a falta de preocupação destes em

criar os filhos com empatia para lidar com os outros.

Ademais, chama-me a atenção a maneira como as duas sustentam sua aliança. Em seus

comentários às minhas perguntas, Ju e Lu se posicionam distintamente o tempo todo. Seus

sonhos, seus medos, seus gostos são diferentes e elas falam sem qualquer preocupação em

buscarem um consenso, ainda que, de uma forma muito peculiar, apoiem as reflexões uma da

outra. O que percebo em suas posturas é um raro respeito pelas diferenças em um

relacionamento conjugal. O que não pode ser compreendido como resultado de sua opção

homoafetiva. Como vimos em outro momento deste trabalho, o encontro homoafetivo não é,

por si só, uma afirmação da diferença e de funcionamentos menos projetados nos moldes

hegemônicos de se relacionar e de funcionar como família. Mas, neste caso, percebo uma

prática de escuta e cuidado que, como Ju e Lu vão me contando, acabou por arrastar seus pais

para que novas relações também se tecessem com estes. Explicam que suas famílias tinham

uma visão distorcida sobre pessoas LGBT+, que tinham a convicção de que eram pessoas

arruaceiras, drogadas, que seriam “nada na vida”. Juntas, foram encontrando caminhos para

instaurar diálogo onde este não existia, carinho onde este faltava. Toda uma reconfiguração

micropolítica produzida pelas conexões entre seus próprios sofrimentos e dificuldades, seus

estudos, suas experiências na creche, sua convivência como casal e naquela comunidade. O que

lhes ensinou a “cuidar para não repetir o que nos entristece” e a “não só ouvir, mas escutar” os

outros em suas dificuldades e fragilidades. Relembrando a música que me acompanhou no

início da escrita deste capítulo e ajustando-a ao que me afeta nos contatos com Ju e Lu, eu diria

que sua construção envolveu: produzir outras relações com os pais (e com o mundo) e não ser

como eles.

Não muito distante dali, visitei outra família. Era uma família de classe média, residente

em um apartamento na parte central e mais bem estruturada da mesma regional onde Lu e Ju

moram. Receberam-me em casa Elton, o pai, com a esposa e um dos filhos do casal. A indicação

dessa família foi feita porque era “uma família legal” e porque eles haviam vivenciado algo

inusitado: tinham acertado um jogo de loteria e recebido um prêmio, um montante em dinheiro

que permitiu que comprassem a casa própria e que os dois filhos do casal pudessem estudar na

167

zona sul69 da cidade e fora do Brasil. O mais velho havia, inclusive, firmado residência no

exterior. O mais novo, Gustavo, que estava quase a completar 30 anos, morava com os pais.

Quis conhecer pessoalmente essa família que o acaso tinha sorteado para receber um prêmio

lotérico. Meu informante havia me pedido para deixar que o assunto aparecesse “naturalmente”,

o que, na verdade, não aconteceu. Não falaram nada a respeito. O que se destacou na conversa

com essa família foi a enorme luta cotidiana de Gustavo para proporcionar a seus filhos (ainda

por vir) “tudo o que meus pais me deram”. Se me comovi com as lutas de Ju e Lu, acabei por

me comover ainda mais com a luta de Gustavo. Ele conta-me que seu maior medo na vida é

não dar aos filhos o mesmo padrão que seus pais [e a loteria] lhe deram. Não podendo contar

com a sorte, nem com os recursos que os pais já gastaram com o padrão de vida dado aos filhos,

Gustavo descreve-me uma rotina exaustiva de trabalho em três turnos – com uma empresa de

eventos durante o dia e como professor de línguas às noites e aos sábados. Conta-me que já

dormiu muito bem, mas que as preocupações roubaram sua tranquilidade. Quando lhe pergunto

sobre seu principal sonho, é enfático: conquistar uma boa poupança, imóveis e outros bens

através de seu trabalho e dedicação. Escuto a descrição de uma cruzada individual de encher de

júbilo os melhores educadores moralistas da Europa do século XVII descritos por Ariès

(1978/1986). Esforços e sonhos tão bem conformados aos moldes capitalistas modernos e que,

“apesar de tudo, tudo, tudo, tudo o que fizemos” (para lembrar mais uma vez a canção) empurra

Gustavo para desejar ainda ser como seus pais.

Parece que a mesquinharia humana analisada por Viveiros de Castro (2015)70 não

envolve somente as dificuldades dos humanos em reconhecer os Outros como semelhantes a si

mesmos, mas também a dificuldade em reconhecer a si mesmo como Diferença, uma

multiplicidade...

Famílias sob o Controle

Mudemos um pouco o enfoque para acompanhar as mudanças que se processaram não

apenas nas famílias, mas no próprio plano de organização da modernidade capitalista. Esta,

com efeito, não se desenrolou sem conflitos e contradições.

69 A “zona sul” de Belo Horizonte é a região mais rica da cidade, com um IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) bastante elevado (0,914). Conferir: http://www.atlasbrasil.org.br 70 Conferir no capítulo anterior a indicação dessa análise a partir dos estudos de Lévi-Strauss.

168

Ao mesmo tempo que o homem moderno balançava a bandeira em defesa de sua

liberdade e de seus direitos individuais e maravilhava-se com o desenvolvimento de novas

teorias, métodos, técnicas e tecnologias que em diferentes áreas do conhecimento ampliavam

seu domínio sobre a Terra e viabilizavam um controle cada vez maior sobre suas condições de

vida, ele acabou por se deparar com os embates, o sofrimento e a destruição que também eram

produzidos por seu modo de vida. Já no século XIX e ao longo do século XX, esse homem

assistiu ao crescimento das reinvindicações operárias e sua organização sindical contra a grande

exploração da força de trabalho; assistiu às lutas pela independência nos países sugados pelo

colonialismo e pelo imperialismo; assistiu à insistência da desigualdade social em manter-se ou

mesmo aumentar entre classes e nações. Na primeira metade do século XX, ele viu as

revoluções socialistas na Rússia, na China e em outros países e escutou o temor difundido nos

Estados autodenominados capitalistas de que a liberdade e a igualdade formal asseguradas por

estes Estados estavam ameaçadas pelo nivelamento operado pelos Estados Socialistas

Burocráticos. Assistiu também a duas Guerras Mundiais entremeadas por uma grande crise

econômica. Nessas guerras vivenciou a concretização do fascismo de Estado, cujo projeto

contou com a adesão apaixonada de milhões de pessoas, e contabilizou um enorme saldo de

atrocidades e mortes. E mesmo com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) após

a Segunda Guerra Mundial, como o organismo supranacional responsável por zelar pela

proteção dos Direitos Humanos Fundamentais71, ele foi obrigado a conviver com as tensões

geopolíticas causadas pela Guerra Fria e pelas investidas das “grandes potências” em guerras

locais, além da possibilidade real e constante de uma hecatombe nuclear. Essas tensões foram

ainda endurecidas em diferentes países por severos regimes ditatoriais.

Contudo, em meados do século XX, o homem moderno viu nascer diversas

mobilizações populares, movimentos sociais, produções artísticas e teorias nas ciências

humanas e sociais contra o anacronismo das instituições – família, educação, trabalho, religião

e o próprio Estado – que insistiam em produzir suas configurações concretas a partir de modelos

construídos nos séculos anteriores, alheios aos embates sociais desse século. Os movimentos

de contestação culminaram com a chegada do intenso ano de 1968, em que estudantes,

trabalhadores, feministas, negros, ambientalistas, entre milhares de pessoas pelo mundo deram

o tom de multifacetadas reinvindicações que questionaram, de diversas formas, os modos de

vida instituídos e colocaram em pauta lutas pela igualdade de direitos e pela proteção das

71 Conferir neste sentido a histórica Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pelas Nações Unidas em 1948: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf

169

minorias. Dentre os lemas que se tornaram icônicos das manifestações deste ano nas ruas de

Paris, em seu Maio de 68, estava: “Sejamos realistas, exijamos o impossível!”, que expressava

o desejo de construção de um outro mundo por vir. Como pontuou Mark Kurlansky (2005),

tratou-se de um ano cujos eventos pelo mundo pareciam encadeados por um dramaturgo,

embora não existissem naquele momento as redes de comunicação de hoje. As conexões entre

as inquietações e as reivindicações por uma nova sensibilidade e por novas formas de existir

correram o mundo, arrebanhando a força produtiva do desejo em diversos países. Suas

reverberações, como propôs Zuenir Ventura (1988), ainda não terminaram. Ou talvez, como

previram Deleuze e Guattari (2016), não tenham ainda sequer efetivamente começado...

Por outro lado, Viveiros de Castro (2015) lembra que houve os que afirmaram que o

acontecimento histórico 1968 “[...] se consumiu sem se consumar, ou seja, que na verdade nada

aconteceu”. Esse antropólogo pondera que as muitas mãos que trabalham pela Maioria (a

grande massa dos crentes no Homem Moderno) sustentam que, se algo aconteceu, tratou-se de

mudanças das quais foi preciso se proteger e que, por isso, a verdadeira revolução se fez contra

o evento-68, consolidando o Império como máquina planetária, “[...] em cujas entranhas

realizam-se as núpcias místicas do Capital com a Terra” e de onde “emana gloriosamente a

Noosfera – a ‘economia da informação’ que nos controla a todos” (p. 99).

O que cumpre salientar, para os fins deste trabalho, é que os movimentos deflagrados

em 1968 se processaram e continuam a reverberar especialmente de modo micropolítico, em

agenciamentos que procuram efetuar novas formas de existir, sentir, relacionar, produzir em

nosso tempo. Agenciamentos minoritários – familiares, comunitários, econômicos, artísticos,

entre outros – que acabam por produzir também ingerências, lutas e ajustes nos agenciamentos

hegemônicos efetuados pela Maioria. Nesse sentido, é possível destacar, entre outros, os

movimentos de lutas das mulheres. Esses movimentos permitiram que novas linhas de

subjetivação se conectassem a muitos arranjos familiares e, como vimos acima, produzissem

novas relações de poder nas famílias, novas formas de amar e se relacionar como família,

firmadas cada vez mais com reconhecimento social ou mesmo com proteção dos aparelhos de

Estado.

Por outro lado, é necessário assumir que a existência desses movimentos não bloqueou

as forças sociais e subjetivas que sustentam o capitalismo mundial e que viabilizaram a

produção de um funcionamento imperial do Capital, a que Viveiros de Castro (2015) faz

referência, seguindo a terminologia cunhada por Antonio Negri e Michael Hardt (2000/2006).

O Império envolve um novo funcionamento social e um novo modo de subjetivação que se

170

processou através de transformações socioeconômicas, político-jurídicas, culturais,

tecnológicas, ambientais, desejantes a partir da segunda metade do século XX.

Esse funcionamento mudou o papel e o funcionamento dos Estados modernos. Negri e

Hardt (2000/2006) referem-se a uma nova forma de economia mundial, em que organismos

nacionais e supranacionais passaram a funcionar em uma lógica unificada que acabou por abalar

a soberania dos Estados-nação. É que, embora unificada, essa lógica exerce seu poder de forma

descentralizada e desterritorializada, atravessando fronteiras e incorporando o mundo inteiro.

Por isso, os autores dividem o capitalismo em dois momentos históricos: um moderno, em que

as lógicas imperialistas produziram a colonização e viabilizaram a expansão do capitalismo

através da segmentação dos territórios colonizados e da exigência de adesão incondicional das

colônias ao modo de vida e aos interesses da metrópole e seus parceiros; e um pós-moderno,

em que as lógicas imperiais passaram a operar de forma transnacional e “[...] as cores nacionais

do mapa imperialista do mundo se uniram e mesclaram, num arco-íris imperial global” (p. 13).

Embora eu considere que as configurações atuais não mudaram de modo substancial em relação

aos primórdios da modernidade – é ainda do Capital que se fala e de suas relações: com os

Estados, mesmo que estes estejam agora mais atravessados pelas ingerências de uma

administração e um comando capitalista global; com a Terra e sua exploração; com um modo

hegemônico de subjetivação calcado na liberdade e no progresso individuais; com as

organizações familiares como núcleo privilegiado para difundir os valores, para formatar a

disciplinarização e para controlar seus membros dentro das lógicas dominantes –, vale

concordar com Negri e Hardt (2000/2006) quando afirmam que os Estados-nação têm agora

que lidar com o fato de que o diagrama de forças que compõe as relações de poder

contemporâneas não está limitado às históricas relações (e conflitos) entre os interesses do

capitalismo e a soberania nacional. O capitalismo, no formato agora imperial, articula-se tanto

em níveis transnacionais quanto locais, articula-se tanto com as instâncias estatais quanto com

entidades da sociedade civil.

Até a primeira metade do século XX, o capitalismo se beneficiou do imperialismo para

sua expansão, pois este permitiu a conquista e a imposição do modus operandi econômico,

político, cultural, subjetivo do Capital nas nações colonizadas, bem como o seu fortalecimento

nos Estados-nação “evoluídos” e dominantes. Contudo, “embora o imperialismo fornecesse as

avenidas e os mecanismos para que o capital penetrasse novos territórios e difundisse o modo

capitalista de produção, também criou e forçou rígidas fronteiras entre os diversos espaços

globais” (Negri e Hardt, 2000/2006, p. 354). Com isso, ele produziu estriamentos que

171

dificultavam e por vezes bloqueavam o livre fluxo de dinheiro, trabalho e mercadorias através

de um único mercado mundial. Para a efetivação desse livre mercado global, foi preciso a

consolidação de um espaço liso (não estriado) em que fluxos descodificados e

desterritorializados pudessem se mover de forma ondulatória, contínua e rápida – como em um

surfe, como propôs Deleuze (1992) ao indicar que a segunda metade do século XX assistiu à

chegada das sociedades de controle.

Deleuze (1992) explica que, a partir de meados do século XX, processa-se a passagem

histórica das sociedades disciplinares descritas por Foucault para as sociedades de controle. Se

naquelas sociedades as lógicas produtivas, bem como as estratégias de vigilância e docilização

para fixar os indivíduos nos aparelhos de produção exigiram o confinamento dentro dos espaços

institucionais (a casa, a escola, a fábrica, a prisão e outros) sob o comando – a polícia, a justiça,

o controle das fronteiras, a alfândega – dos Estados-Nação, agora observa-se o investimento do

Capital em diminuir o enrijecimento das duras fronteiras institucionais e nacionais. Não se trata,

por certo, de liberar a vigilância e diminuir o controle, nem mesmo de diluir os limites

institucionais e nacionais, o que possivelmente permitiria a emergência de um espaço liso como

potência de criação, tal como o afirmaram Deleuze e Guattari (1980/1997b). De outro modo,

tratou-se de construir um “alisamento”, por assim dizer, das fronteiras de forma a garantir a

manutenção e a reprodução do Capital através de novas estratégias produtivas e financeiras e,

sobretudo, novas formas (não mais moldes, mas modulações) de controle de indivíduos,

famílias, comunidades, nações.

Como vimos, as sociedades disciplinares foram fundamentais para a produção de uma

subjetividade individualizada, normalizada e dócil, apta a aderir às exigências produtivas do

capitalismo industrial. Tal produção foi possível através de lógicas de confinamento que

viabilizavam a vigilância e o controle dentro dos espaços institucionais onde o indivíduo podia

ser disciplinado. Nesse cenário, a família nuclear nos moldes burgueses firmou-se como um

importante agenciamento disciplinar, capaz de instaurar uma vigilância (inclusive

autovigilância) sobre seus membros para adequá-los, normalizá-los conforme os ditames das

sociedades capitalistas que se fortalecem.

Todavia, o fechamento institucional – o que inclui o confinamento da família na

intimidade do lar – entrou em crise em meados do século XX, não apenas pela emergência de

novas forças advindas dos movimentos sociais acima citados, mas também porque novas forças

do próprio sistema capitalista começaram a se impor. Dentre estas forças, especialmente com a

crise econômica generalizada após a Segunda Guerra, cabe destacar a inviabilidade do

172

confinamento para as novas apostas de crescimento do Capital. Dizendo de forma simplificada,

foi preciso desconfinar os indivíduos para que, “livres”, pudessem migrar mais facilmente

conforme as demandas produtivas e pudessem circular para ir às compras e consumir de

maneira mais efetiva do que nas situações de maior fechamento institucional. Não se tratou,

como disse, de liberar a vigilância e diminuir o controle, mas de exercê-los de outra maneira,

dentro e fora das instituições, desde a intimidade do lar à circulação pelas cidades. Um controle

a céu aberto, contínuo e difuso, por toda a parte.

Assim, a configuração das sociedades de controle permitiu ao capitalismo: viabilizar

uma distribuição mais flexível da força de trabalho pelos mercados no mundo; selecionar os

investimentos e alocar os recursos onde e quando soe mais rentável; organizar hierarquicamente

os diversos setores mundiais de produção; estimular o consumo através de suas máquinas

comunicacionais; dirigir as manobras financeiras e monetárias de modo a determinar a

geopolítica mundial adequada a seus interesses; exercer o controle biopolítico sobre as

multidões, não mais através das modalidades disciplinares de normalização homogênea, mas

através de uma governança capaz de mapear os indivíduos em suas diferenças e onde quer que

estejam, através de ferramentas tecnológicas de informação-comunicação munidas dos

algoritmos necessários para “acompanhar” e “orientar” o mundo inteiro.

As últimas décadas assistiram à difusão, pelas ruas das cidades, pelas estradas e pelos

estabelecimentos, de câmeras e dispositivos de segurança com sua capacidade de leitura facial,

ótica e de digitais. Multiplicaram-se os drones de vigilância e de caça a criminosos e terroristas,

as tornozeleiras eletrônicas, entre outros equipamentos que compõem o conjunto das máquinas

técnicas-tecnológicas do Controle. Em todos os casos, conectadas pela rede mundial de

computadores, essas máquinas “detectam a posição de cada um” e “operam uma modulação

universal” (Deleuze, 1992, p. 225).

Em particular, vale destacar as máquinas pessoais de comunicação que processam a

circulação ultrarrápida de informações, movimentos, transações, palavras, imagens. Máquinas

que têm se tornando cada vez mais individualizadas, íntimas e móveis. Os smartphones são

hoje exemplares desse tipo de máquina pessoal. Eles nos acompanham por todos os lugares em

nossos bolsos e bolsas. No Brasil, no início de 2019, havia mais smartphones do que seres

humanos: eram 230 milhões de aparelhos que somados a tablets e computadores totalizavam

324 milhões de dispositivos portáteis, enquanto a população do país estava em pouco menos de

210 milhões de habitantes (Meirelles, 2019). Por outro lado, e ao mesmo tempo que são

pessoais, os smartphones, tablets e computadores são máquinas planetárias: permitimos que

173

seus aplicativos tenham acesso, conforme o caso, à câmera do aparelho e à galeria de fotos e

vídeos, às palavras que são mais digitadas por nós, à nossa localização, trajetos, preferências de

compras, aos dados bancários ou do cartão de crédito. Essas informações são aproveitadas no

novo contexto biopolítico do Controle, em que os algoritmos que elas produzem e as redes de

comunicação nas quais elas circulam (explícita ou implicitamente) assumem um papel

fundamental nas estratégias não apenas de vigilância, mas também de vinculação dos

indivíduos a mercadorias, serviços, estilos, narrativas através das propagandas adequadas

(sempre também “adequantes”) para cada perfil72.

Como indicaram Negri e Hardt (2000/2006), essa estruturação biopolítica em redes

comunicacionais não coloca os indivíduos submetidos apenas a um poder transcendente e

localizável, como o eram o gerente na fábrica, o diretor na escola, o inspetor na prisão, o pai na

família. Há agora a sutil integração das subjetividades em controles imanentes e

interconectados. Ao mesmo tempo que as lutas por autonomia e liberdade parecem enfim

ampliar-se em um mundo em que as redes comunicativas deram maior visibilidade às minorias

sexuais, étnico-raciais, etárias e outras, com suas lutas em prol do respeito à diversidade e aos

seus direitos, as estratégias comunicacionais do Controle vão envolvendo cada vez mais os

indivíduos em seus mínimos detalhes e informações. Nesse cenário é sempre preciso ponderar

em que medida os avanços no campo das lutas identitárias e na conquista de direitos por

segmentos minoritários acabaram por fornecer informações importantes para controlá-los de

formas específicas e sutis, ou mesmo para transformá-los em nichos mercadológicos (serviços

específicos para o “público homossexual”, produtos próprios para cabelos de pessoas negras

etc.) e em mão-de-obra mais barata73.

Quanto às famílias, cumpre refletir sobre os modos como elas têm vivenciado tal

realidade. Por um lado, a intimidade e a privacidade familiares têm se mantido como um

importante valor cultural. Mas, ao mesmo tempo, imagens das famílias circulam amplamente

72 Lembro-me, nesse sentido, de um aluno que me contou maravilhado que, pouco depois de conversar com a namorada sobre sua intenção de comprar uma bicicleta, viu pipocar nas páginas que acessava na internet (sites de notícias, nos anúncios do Youtube, no Facebook e até no seu e-mail) propagandas de bicicletas. De forma mais óbvia, basta realizar uma pesquisa no navegador do Google por algum produto para receber por dias ou semanas avisos dos sites de e-commerce sobre esse produto. 73 Veja-se como toda a luta dos movimentos feministas pelo direito de as mulheres inserirem-se no mercado de trabalho não garantiu, até hoje, a paridade de salários e de projeção nas carreiras em relação aos homens em boa parte das empresas. E não produziu a democratização do trabalho doméstico. No Brasil, como mostra pesquisa do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada): “em 2008, enquanto o trabalhador brasileiro do sexo masculino recebia em média R$ 1.070,00, as trabalhadoras ganhavam R$ 700,00, ou seja, 65% do rendimento dos homens” (Fontoura & Gonzalez, 2009, p. 23).

174

nas mídias sociais, postadas por seus membros ou outras pessoas. Não se trata de uma

contradição, especialmente se consideramos que o que é compartilhado sobre a família com os

“amigos” e “seguidores” nas redes ou mesmo exposto em um perfil público dificilmente

escancara, sem poses e produção, os atropelos, conflitos, problemas que também perfazem os

cotidianos familiares. O que se exibe, em grande medida, são imagens que procuram atestar a

correspondência (na medida do possível) da família aos valores e práticas em voga. Se a família

moderna ambicionou produzir um núcleo amoroso, unido, feliz, bem-sucedido e bem

equilibrado, agora, atestar o sucesso familiar nas redes sociais tornou-se uma prática difundida.

Nesse sentido, as imagens postadas frequentemente envolvem a amorosidade entre membros;

a união do grupo; a felicidade de se estar junto em um encontro comemorativo; imagens do

desenvolvimento das crianças, suas “aventuras” e aprendizados; a conquista escolar do

adolescente; o sucesso do filho “formado”; entre outros. Já os dramas, os conflitos, os

desencontros, as dificuldades (físicas, psicológicas, financeiras e outras), as violências – esses

aspectos têm, regra geral, na intimidade e na privacidade seu devido lugar...

Nesta realidade hiperconectada pelas redes comunicacionais não apenas se exibe

momentos e elementos familiares, mas também se acessa muita coisa. Os algoritmos

informáticos, como hoje se sabe, são programados para privilegiarem o acesso a certos

conteúdos identificados a partir dos padrões de consumo, crenças, hábitos e gostos indicados

pelos usuários, rastreados por curtidas nas redes sociais, por preferências de programação

televisivas ou no streaming e ou pelas palavras digitadas em aplicativos, sites e navegadores

ligados à internet e acessados através dos aparelhos pessoais (smartphones, computadores).

Nesse cenário, a expansão do acesso aos meios de comunicação – dos canais abertos da TV ao

YouTube, Facebook e aplicativos de jogos eletrônicos – acabou por “[...] explodir o isolamento

até mesmo das famílias mais conservadoras, minando a condição que garantia a transmissão

estável de valores e padrões de comportamento entre as gerações” (Kehl, 2003, p. 166). Com

isso, mesmo uma família nuclear que ambiciona seguir os “valores tradicionais” de isolamento

do lar, confinamento da esposa e disciplina dos filhos dificilmente escapa das conexões de seus

membros com o “mundo lá fora” acessado pela internet. Se posso brincar com o termo cunhado

por Kehl (2003), em tempos de globalização informática, todas as famílias são, em alguma

medida, tentaculadas.

Além disso, vale indicar o controle a céu aberto que as tecnologias da informação

passaram a viabilizar para que os membros da família realizem entre si: rastreamento dos

percursos do marido, da esposa ou dos filhos; controle de acesso a aplicativos e bloqueio de

175

conteúdos avaliados como inadequados para os filhos; softwares espiões que, uma vez

instalados no smartphone do cônjuge e ou dos filhos, permitem monitorar as operações feitas

(chamadas, mensagens, sites acessados, aplicativos utilizados) etc. Se a família moderna se

tornou um poderoso dispositivo disciplinar, capaz de vigiar os comportamentos, controlar o

tempo e docilizar o corpo e o desejo de seus membros, agora, com as novas tecnologias

informáticas, muitas famílias parecem também surfar nas modulações do Controle.

Por fim, cabe lembrar o importante impacto das máquinas informáticas de comunicação

na flexibilização do horário e da jornada de trabalho de muitos trabalhadores, o que acaba por

se conectar com a realidade de um número crescente de famílias. Isso porque, para muitos

trabalhadores, o que importa agora é cumprirem com excelência suas tarefas e compromissos

laborais dentro de certos prazos, não importando onde nem quando o trabalhador escolherá

fazê-lo. Se muitos comemoram a possibilidade de “fazer seu horário” ou de trabalhar “mais à

vontade” em casa, isso tem tornado contínua a dedicação laboral. Através do grupo de

WhatsApp da equipe ou do sistema da empresa instalado no computador pessoal do trabalhador,

as demandas, os problemas, as mudanças organizacionais são divulgadas e chegam até ele a

qualquer hora: durante seu jantar em família, seu passeio romântico no cinema, sua aula na

faculdade, seu sono da madrugada, suas férias...

Nesse contexto, o mundo parece ter entrado em uma espécie de achatamento espaço-

temporal em que “tudo” o que acontece (nas famílias, nas empresas, na vida das celebridades,

nos eventos nacionais ou mundiais etc.) pode ser acompanhado em “tempo real” através dessas

tecnologias informáticas-comunicacionais que permitiram, ao longo das últimas décadas,

conexões cada vez mais rápidas e eficientes. Segundo Negri e Hardt (2000/2006), estamos a

experenciar uma suspensão do tempo como se vivêssemos um estado de presente eterno, como

se tivéssemos chegado ao fim da História. Esse estado de presente, no entanto, mostra-se

efêmero, ainda que contínuo. Um estranho paradoxo, já que tudo acontece agora, mas o agora

já nasce obsoleto, exigindo sua constante atualização, como em uma corrida para ficar no

mesmo lugar: mais uma versão do aplicativo precisa ser adquirida sob pena dele parar de

funcionar; mais um modelo de tal ou qual produto precisa ser comprado com suas atualizações

“necessárias”; mais um post precisa ser feito nas redes sociais já que o tempo médio de

visibilidade das postagens dura de alguns minutos a poucos dias antes delas caírem no limbo

do esquecimento informático74.

74 Sobre o tempo de vida útil das mercadorias, é importante assinalar a estratégia da obsolescência programada criada nas décadas de 1920-30 e que se ampliou nestes tempos imperiais. Conferir o

176

* * *

Minha filhinha, com seus seis anos, retruca o irmão mais velho, de oito anos, que a irrita:

“cala a boca, seu merda, cretino, desgraça, cuzão!”. Arregalo os olhos, estarrecida com a frase

que escuto sair da boca da florzinha da minha vida. Levanto-me da mesa da sala onde estudava

para ir ao encontro das duas crianças que brincam em um colchão ao lado. “Onde você aprendeu

a falar assim, filha?”, pergunto simulando um semblante impassível. “Com a Peppa”, escuto

sem entender. “Com a Peppa?! A Peppa Pig? O desenho?! Mas a Peppa não fala assim!”,

pondero. “Fala”, responde a menina. “Fala sim”, reforça o menino. Permaneço incrédula. Eu já

havia assistido inúmeras vezes ao desenho da Peppa e sua família de porquinhos. Era I-M-

P-O-S-S-Í-V-E-L que a Peppa falasse daquele jeito. Insisto: “Mas eu nunca vi a Peppa falando

essas coisas...”. “É a Peppa engraçada que fala”, explica meu filho.

Com essa pista e algum tempo, consigo desvendar o mistério. Deixava as crianças

assistirem à Peppa Pig no Netflix, que disponibiliza 5 temporadas do desenho (2004 a 2011).

Mas, de tanto assisti-los, elas resolveram procurar outros desenhos da Peppa. E encontraram.

No Youtube (que não consigo dizer como aprenderam a entrar e a navegar). Ali assistiam a um

desenho que era mesmo da Peppa, acrescido de outra dublagem recheada de palavrões,

xingamentos, piadas obscenas, discórdias e ironias entre os personagens, além de efeitos

sonoros e edições das imagens. Produzidos por diferentes perfis no Youtube, verifico que os

desenhos contavam com centenas de milhares de visualizações.

Como disse acima, na atual realidade digital, hiperconectada pelas redes informáticas

de comunicação, é possível acessar muita coisa. E o funcionamento “intuitivo” das plataformas

e aplicativos contribui para a facilidade de acesso, inclusive de crianças em processo de

alfabetização. Tomada pela raiva dessa invasão cibernética na minha casa, proíbo o desenho e

retiro da tela de entrada da Apple TV o link para acesso ao Youtube. Foram poucos dias até o

meu menino, que morria de rir da “nova” Peppa, conseguir aprender a reinstaurar a

configuração original do aparelho da Apple, liberando o aparecimento do link para o Youtube

na tela inicial da TV. E, com ele, o acesso aos desenhos editados da Peppa. Respirei fundo e

histórico apresentado por Bulow (1986). Quanto às postagens, o curto período de sua divulgação no Facebook, Instagram, Twiter tem sido objeto constante das estratégias de marketing e suas empresas, como propõe Cavalcante (2017).

177

resolvi mudar a estratégia: foram necessárias várias conversas e propostas para que as crianças

perdessem o interesse em assistir a esses desenhos.

Meus filhos certamente não são uma exceção de acesso à infinidade de vídeos, jogos,

seriados, desenhos, imagens que circulam pelas redes informáticas e que hoje alcançam quase

todos os humanos. No seu caso, a totalidade dos adultos com quem convivem possuem, pelo

menos, um smartphone e um computador pessoal; por vezes mais de um smartphone ou

computador, ou um tablet. Há um ou mais aparelhos de televisão nas casas que frequentam,

além de câmeras de vigilância, sensores de presença e permissão de acesso por reconhecimento

digital em várias dessas casas. Muitas das crianças com as quais se relacionam possuem seus

próprios aparelhos informáticos, contas de telefonia, WhatsApp, e-mail, Youtube, Facebook ou

Instagram.

Nesta pesquisa, todos os contatos que eu fiz, com os informantes-chaves, lideranças e

membros das famílias dos diferentes Grupos de Pertença que elegi (povos indígenas originários;

comunidades quilombolas; famílias de classe média urbana; famílias moradoras em ocupações

nas periferias dos centros urbanos; famílias ricas econômica e politicamente), ocorreram por

WhatsApp. Todos os adultos e várias das crianças com quem conversei em minhas visitas

possuíam seu próprio smartphone. Todas as casas que visitei ostentavam um ou mais aparelhos

de televisão.

Na mansão onde Renata e sua família moram, uma fina televisão de 85 polegadas ocupa

grande parte da parede da sala ao lado da entrada da casa. Quando os visitei e perguntei a

Vaninho, marido de Renata, qual era a coisa mais importante em sua casa, ele não hesitou em

apontar para a TV. Também os filhos indicaram seus respectivos Ipads, além da TV, como as

coisas pelas quais tinham mais apreço em casa. Em outra residência que visitei – o apartamento

alugado pelo casal Wander e Denise, reparei, logo que entrei na casa, uma SmartTV de 55

polegadas que reinava sobre um aparador instalado na parede, também ao lado da entrada.

Durante toda essa visita, a televisão esteve ligada. Segundo o casal, para entreter a filha Elisa,

de 2 anos, enquanto conversávamos. De fato, a menininha manteve-se atenta aos desenhos por

quase duas horas, praticamente imóvel no sofá da sala. Em algum momento da conversa

Wander comenta, achando graça, que, depois que Elisa nasceu, ela “tomou conta da TV”,

querendo assisti-la sempre que está em casa.

Outra visita, desta vez no quilombo. Em verdade, é uma visita-passeio que faço com o

menino Júlio, de dez anos, e Binho. Levam-me para conhecer a sua casa que, para eles, é

178

composta não apenas pelo imóvel onde residem; nem pelo imóvel com a extensão do terreiro

comum do quilombo. Mais do que isso: a casa envolve a mata, o rio, a montanha... Durante o

passeio, paramos para um banho de rio. Ali aproveito para perguntar a Júlio sobre o que mais

gosta e ele me responde que é do rio, dos cavalos e do lugar onde mora. Pergunto então sobre

as brincadeiras que gosta. Recebo uma lista: esconde-esconde, pega-pega seco e na água,

brincar de subir na tábua, pique-cola, soltar pipa, jogar peteca e bola. Ao final, ele cita o celular,

porque gosta de jogar sozinho ou online. Pergunto se ele tem um e recebo um sinal afirmativo

com a cabeça. Júlio comenta que a maioria das crianças têm celular na comunidade. Arrisco-

me a perguntar se ele tivesse que escolher uma coisa ou outra, o que ele preferiria: brincar com

os amigos que moram ali ou jogar no celular. Sem hesitar, ele me responde que prefere o celular.

“Tem certeza?”, insisto. “Certeza absoluta”, o garoto responde. Fico em silêncio por algum

tempo, assentada ao seu lado, observando à nossa frente a água do rio que se movimenta

enquanto suas pequenas ondas refletem, com brilhos coloridos, a luz do sol. Resolvo insistir e

pergunto se ele trocaria participar dos eventos da comunidade para ficar jogando no celular. Ele

me responde que, nesse caso, não trocaria, pois gosta muito de participar e tocar nas celebrações

religiosas e festas. Pondero comigo mesma que devo ter pegado pesado demais, que ficar

jogando durante esses eventos não seria uma escolha para qualquer membro da comunidade.

Contudo, enquanto ainda concluo o meu raciocínio, Júlio completa: “Quase todas as crianças

aprende pra tocar nas festas. Só o Breno, o Tiago e o Marcelo que não... eles só ficam o dia

inteiro no celular”.

Por fim, lembro-me do comentário de Ana sobre a relação dos membros de sua família

indígena e de outros indígenas que conhece, integrantes de diferentes etnias, com as redes

sociais. Ela conta que o Facebook faz parte da vida de boa parte deles: “eu devo ter mais de mil

amigos indígenas no Facebook”, calcula. Dentre esses amigos, muitos postam “de tudo”, até de

questões familiares e pessoais que os expõem muito, inclusive para os olhares dos não-

indígenas. Para Ana, eles não fazem ideia da amplitude da exposição do que é ali colocado.

Nesse cenário, se os aparelhos tecnológicos de informação-comunicação estão por todos

os lados, deve-se considerar que as sutis estratégias de captura e uso dos dados de indivíduos e

famílias pelo Controle também está, mesmo se consideramos que o uso dos dados não é

particularizado e que as fontes primárias não são (ao menos, a princípio) identificadas. Todavia,

a compreensão desse funcionamento não está difundida por todos os lados...

Há alguns anos venho fazendo uma pergunta para meus alunos de Psicologia

Institucional e recebo até hoje respostas semelhantes. A certa altura da disciplina, indago os

179

alunos sobre o quanto nos custa usar o WhatsApp. Quase em uníssono, escuto a resposta de que

esse aplicativo não nos custa nada, que ele é de graça! Questiono como isso é possível para uma

plataforma que atingiu a marca de mais de dois bilhões de usuários (em 2019), transmitindo

mensagens em mais de 60 línguas pelo mundo, fazer essa transmissão de forma segura, eficiente

e, ainda assim, de graça? É certo que sempre existem aqueles alunos que sabem que o Facebook,

proprietário do WhatsApp tem acesso aos perfis dos usuários, mesmo se mantém o anonimato

destes, aproveitando-os para, por exemplo, ser mais assertivo em seus filtros de propaganda

para empresas que compram espaço de anúncio ou conteúdo patrocinado nos outros aplicativos

integrados da mesma empresa. Como disse-me certa vez um aluno, lembrando uma máxima do

marketing: “ah, professora, se o produto é de graça, o produto é você!”.

Com efeito, todos os que utilizam os aplicativos da empresa Facebook (não só dela),

concordam com seus Termos de Uso e Privacidade e, com frequência, acabam por aderir a atual

integração multiplataforma. Mas pouquíssimos são os usuários que leram com rigor esses

Termos. Antes do WhatsApp ser comprado pelo Facebook por U$ 22 bilhões em 2014, a

proposta do serviço móvel de mensagens instantâneas era cobrar dos usuários, após algum

tempo de uso gratuito (um ano), o valor de U$ 0,99/ano como taxa de manutenção da conta. A

justificativa para a cobrança pela empresa envolvia garantir um acesso seguro sem apelos ou

estratégias comerciais. No entanto, o Facebook removeu a cobrança, explicando que não queria

inviabilizar o serviço para os clientes que não tivessem cartão para o pagamento do valor anual.

Seu fundador e CEO, Mark Zuckerberg, informou que estava estudando outras maneiras de

monetizar adequadamente a plataforma (Fabro, 2020).

Acompanho Deleuze (1992) em sua ponderação de que cada sociedade possui seus tipos

de máquinas que “[...] exprimem as formas sociais capazes de lhes darem nascimento e utilizá-

las” (p. 223). Certamente a impressionante difusão mundial dos equipamentos pessoais de

comunicação e informação, bem como das redes sociais só ocorre em sociedades nas quais

essas tecnologias se ajustam bem, em sociedades em que faz sentido promover esse tipo de

comunicação, de exposição e de uso das informações. Por outro lado, cumpre frisar que as

tecnologias em si podem se prestar a diferentes usos e as mudanças nos hábitos daqueles que

as utilizam acabam por mudar também os sentidos, a valorização, a difusão do uso, bem como

os próprios dispositivos. Isso é importante porque, em uma perspectiva rizomática, não faz

sentido analisar aplicativos, plataformas, estratégias como determinantes de certa realidade; é

necessário conectar essas ferramentas a outros componentes sociais e subjetivos para

compreender seu funcionamento, sempre técnico, ético-político, cultural, econômico, subjetivo.

180

Nesse sentido, destaco o interessante uso que a aldeia de Sandra e Iraí fazem das tecnologias

da comunicação a que tem acesso.

Durante nossa conversa, Iraí me pergunta se eu já assisti a algum dos filmes sobre seu

povo que ele produziu. Respondo, um tanto constrangida por minha ignorância, que ainda não.

E pergunto-lhe como é, para ele, utilizar equipamentos de filmagem, bem como realizar a

edição das imagens e sons. Iraí mostra-se muito conhecedor dessas tecnologias, mas explica

que a proposta de fazer os vídeos, sem qualquer financiamento ou apoio para tanto, é para

“clarear o seu povo”, que está no escuro, que não existe para os não-indígenas. O uso dos

equipamentos de filmagem em sua aldeia e a exibição dos vídeos no Youtube só podem ser

feitos respeitando-se os rituais, os costumes, a língua da etnia. Por isso, não podem ser feitos

por qualquer um. Iraí relata o quanto já lutaram e continuam lutando para ter terras suficientes

e acesso livre à água dos rios para poder viver como gostariam, seguindo seus rituais e podendo

produzir a maior parte do que necessitam. Os filmes viraram mais uma estratégia de visibilidade

e luta.

Pergunto-lhe então sobre o acesso à internet e a equipamentos como computadores e

celulares dentro da aldeia, por seus membros. Ele conta-me que foi “mais uma luta” conseguir

colocar uma torre com sinal de internet disponível para a aldeia. Pediu ao prefeito do município

ao qual a aldeia está vinculada para que fornecesse a internet à sua comunidade, mas este

argumentou que não poderia fazê-lo, pois se colocasse a torre de celular, acabaria com a cultura

indígena. Iraí garantiu-lhe: “Não, não acaba assim não, porque tem que saber usar o celular e a

internet. Não vai tirar nada da nossa cultura”. Ainda assim, foi preciso a mediação da Funai,

requerida pelo prefeito. O administrador da Funai posicionou-se, considerando que a aldeia era

soberana para decidir de forma coletiva, em assembleia, o que era melhor para si. Com o apoio

comunitário, a internet foi instalada.

Hoje todos na aldeia têm celular, inclusive as crianças. Estas, no entanto, não jogam,

nem fazem ligações telefônicas. De uma maneira geral, a comunidade usa o WhatsApp para

mandar mensagem em sua língua, porque não falam português. “E [a gente] coloca o canto75,

coloca vídeo e foto do ritual no grupo [de Whatsapp]”, explica Sandra. Com isso, os que estão

fora podem também acompanhar. Iraí explica que se trata de mais uma ferramenta de luta por

visibilidade: “Pode compartilhá mais, sem ferir rituais. Com não-índios também”. E Sandra

completa: “Aí não estamos perdendo cultura, língua, pintura”.

75 Os cantos são um elemento fundamental nas práticas, alianças, rituais deste povo.

181

Pergunto-lhes então por que crianças não jogam se poderiam fazê-lo, já que têm o

celular e a internet. “Porque não gostam de jogar. Gostam é da sinuca que tem na aldeia”.

Gostam da sinuca porque as crianças que vivem na aldeia, por volta de 75, podem ali brincar

juntas em uma dinâmica social em que o exercício de imersão em um game parece não fazer

muito sentido. Mesmos tempos e ferramentas, outras práticas.

Linhas da desigualdade

Quando as famílias que compuseram este estudo entram todas ao mesmo tempo em meu

pensamento, não é apenas a sua diversidade que me chama a atenção, mas também, e de forma

muito contundente, a desigualdade entre elas. A desigualdade implica a produção de linhas de

segmentaridade no diagrama de forças de certa configuração social que conformam hierarquias

e exclusões que transformam a diversidade de modos de vida, de famílias, de cosmovisões em

categorias mais ou menos privilegiadas, controladas ou coibidas. Estudar o Brasil e a

complexidade dos abismos de desigualdade erguidos pela modernidade capitalista entre as

famílias que o habitam não é para principiantes, como já disse o compositor76. Se as

desigualdades sociais foram sendo firmadas ao mesmo tempo que as árvores eram arrancadas

e os minerais extraídos destas terras ao longo da colonização, esta realidade se mantém na

atualidade, agora dentro das lógicas biopolíticas do Controle.

Conforme as matrizes iluministas que orientam o ordenamento jurídico brasileiro, é

possível considerar que a Carta Constitucional de 1988 que rege o Estado brasileiro como uma

República Federativa e o estrutura como um Estado Democrático de Direito prevê a garantia

formal de que todos os brasileiros são iguais perante a lei e cidadãos cuja dignidade como

pessoa humana deve ser respeitada (Constituição da República Federativa do Brasil,

1988/2020). Todavia, quando retomamos o processo de descobrimento do Brasil, constata-se

que o Estado brasileiro se formou graças às desigualdades construídas entre colonizadores

versus colonizados e escravizados. Mesmo com a luta histórica pela redução dessas

desigualdades, especialmente a partir da Constituição de 1988, na prática, o Estado segue

76 Refiro-me à frase de Antônio Carlos Jobim: “O Brasil não é para principiantes”. Jobim a disse em contrapartida ao livro Brasil para Principiantes, escrito pelo húngaro radicado no Brasil, Peter Kellemen. O livro foi lançado em 1961.

182

estruturado em grande medida para garantir os privilégios e os interesses daqueles que

concentram poder econômico, político, administrativo, epistemológico77.

Segundo relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud,

2019), em 2018 o Brasil era a sétima nação mais desigual do mundo, “ganhando” apenas de

África do Sul, Namíbia, Zâmbia, República Centro-Africana, Lesoto e Moçambique, dentre

189 países analisados78. O Brasil ficava em penúltimo lugar, na frente somente do Catar, quanto

à concentração da renda do país nas mãos do 1% mais rico de sua população naquele ano.

Todavia, esse cenário de desigualdades tem se tornado uma realidade que cada vez

menos é “privilégio” do Brasil e de outros países “em desenvolvimento”. Com efeito, o

capitalismo, dentro das lógicas imperiais, tem difundido desigualdades inclusive em países

autodenominados desenvolvidos. Nestes, a desigualdade vem se ampliando internamente desde

que o capitalismo passou a trabalhar para enfraquecer as fronteiras nacionais em favor do

mercado global e de seus principais proprietários e grandes investidores. É assim, mesmo

quando consideramos que houve redução da extrema pobreza e que as condições de vida

melhoraram de uma maneira geral. A concentração da riqueza nas mãos de poucas pessoas e

famílias mostra-se, cada vez mais, como um dos maiores desafios de nossos tempos79.

Para Negri e Hardt (2000/2006), as divisões entre Estados-nação e entre grupos

regionais estão sendo diluídas, fazendo com que “[...] o Norte e o Sul [que] realmente já

estiveram separados por fronteiras nacionais, hoje eles claramente entornam uns nos outros,

distribuindo desigualdade e barreiras ao longo de linhas múltiplas e fraturadas” (p. 357). A

grande parte dos países têm atualmente centros da mais alta tecnologia e produção, têm seus

bolsões de riqueza – condomínios de luxo, shopping centers, prédios empresariais e da

administração pública construídos como fortalezas – que coabitam na mesma região com

condições desprezíveis da produção capitalista. “A geografia de desenvolvimento desigual e as

linhas de divisão e hierarquia não são mais encontradas ao longo de estáveis fronteiras nacionais

77 Os paradigmas e dispositivos que legitimam e efetuam a tributação no Brasil são exemplares nesse sentido. Conferir a análise de Henrique Napoleão Alves sobre o sistema tributário brasileiro (2012). 78 O ranking é construído a partir do Coeficiente de Gini que mede desigualdade e concentração de renda (Pnud, 2019). 79 Conferir os dados sobre as desigualdades globais e as desigualdades internas nos países no relatório produzido pelo Credit Suisse Research Institute (2018). No mesmo ano, a Oxfam fez um alerta às vésperas do encontro do Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, sobre a absurda concentração da riqueza mundial ocorrida em 2017: 82% da riqueza produzida em 2017 foi parar nas mãos do 1% mais rico do planeta (Oxfam, 2018).

183

ou internacionais, mas em fronteiras fluidas infra e supranacionais” (Negri & Hardt, 2000/2006,

p. 357).

No Brasil, essa realidade é visível em bizarras paisagens que ostentam o fosso das

desigualdades nessas terras. É assim, por exemplo, na cidade de São Paulo, onde uma sequência

de muros de tijolos, reboco e placas de cimento compõem uma fina linha de separação concreta

entre as enormes separações econômicas e simbólicas que marcam duas realidades vizinhas: a

dos moradores abastados do bairro Morumbi e a dos moradores economicamente vulneráveis

da favela de Paraisópolis.

As fissuras da desigualdade nas lógicas e no funcionamento capitalistas são possíveis

graças a um conjunto de estratégias biopolíticas. Nesse contexto, destaco a importância das

práticas estatais da Exceção, articulada a um funcionamento socioeconômico em que as crises

parecem eternizar-se. Com efeito, a gestão das populações tem se deslocado da importância

dada, durante a consolidação da soberania dos Estados-nação modernos, à estabilidade e à

universalidade das ações administrativas estatais. A ordem, a normalidade e a previsibilidade

defendidas pelos ordenamentos jurídico-legais modernos como critérios de legitimidade do

Direito e do Estado têm cedido lugar a uma gestão cada vez mais singular, cirúrgica e

excepcional: o Estado de Exceção, como indicou Giorgio Agamben (2004), tem se apresentado

“(...) como o paradigma de governo dominante na política contemporânea” (p. 13).

Agamben (2004) sustenta sua reflexão a partir de Carl Schmitt, quem ele considera o

teórico mais rigoroso sobre o Estado de Exceção do século XX. Schmitt (1922/1996) afirma

que a norma e sua repetição dependem da existência, ainda que potencial, da exceção. São as

situações de exceção, quando ocorre alguma emergência, calamidade ou crise, que demonstram

a importância e a necessidade de um ordenamento jurídico sólido para a existência, como regra,

de um Estado democrático e para que as garantias e os direitos dos cidadãos sejam respeitados.

É porque em certas situações excepcionais a lei é suspensa que se compreende todo o seu valor.

Assim, nos modernos Estados de Direito que coibiram o poder absoluto do monarca, a

lei necessita em alguns momentos que a figura do soberano seja capaz de realizar o papel de

“protetor da lei”. Isso ocorre quando a lei não consegue se sustentar sozinha e exige que medidas

excepcionais sejam tomadas para garantir a Constituição e o poder do Estado, ainda que essas

medidas não estejam limitadas e previstas nas leis e impliquem uma violência “pura”. Para

Schmitt (1922/1996), a suspensão da lei só pode ser feita por aquele que detém o poder soberano

no Estado (seu presidente, por exemplo). “Seguindo a linha de raciocínio proposta por Schmitt,

184

espera-se que o soberano, ao recuperar um suposto poder originário (que é anterior e se

sobrepõe ao poder constitucionalmente reconhecido), possua uma ‘lealdade’ ao interesse

coletivo, reestabelecendo toda a ordem jurídica” (Souza, 2018, p. 41).

Contudo, Agamben (2004), acompanhando os contrapontos feitos por Walter Benjamin

a Schmitt, considera que a tentativa de dar uma “roupagem jurídica” à violência cometida pela

autoridade estatal em um estado de exceção não passa de uma ficção que pretende manter o

Direito em sua própria suspensão como força-de-lei em uma situação que está fora do Direito:

o que de fato “[...] está em jogo é uma força-de-lei sem lei (que deveria, portanto, ser escrita:

força-de-lei)” (p. 61). Essa ausência da lei para a prática da força (mesmo se justificada em

nome da manutenção do próprio ordenamento e da estabilidade do Estado) deve nos interessar

atentamente, segundo Agamben (2004), uma vez que “[...] a criação voluntária de um estado

de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico)

tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados

democráticos” (p. 13).

Agamben (2004) define o aparecimento do Estado de Exceção como regra no século

XX. Certamente pode-se falar dele durante as duas Grandes Guerras, mas também depois

observa-se a crescente frequência e a ampliação da duração desses estados ao longo daquele

século e também no atual. Decretado em nome da Paz, ele se utiliza da violência, fazendo com

que a vida esteja continuamente exposta e vulnerável às mais duras intervenções estatais, cujos

critérios de atuação não estão previamente descritos, autojustificando-se pelas “necessidades

emergenciais” do momento. Esse filósofo mostra como os ataques terroristas em 11 de setembro

de 2001 acabaram por permitir aos Estados Unidos estabelecer uma série de medidas como a

Military Order, promulgada em 13 de novembro daquele ano, autorizando a detenção

indefinida e a realização de processos contra os suspeitos de atividades terroristas em comissões

militares. “Nem prisioneiros nem acusados, mas apenas detainers, são objeto de uma pura

dominação de fato, de uma detenção indeterminada não só no sentido temporal mas também

quanto a sua própria natureza, porque totalmente fora da lei e do controle judiciário” (Agamben,

2004, p. 14). Não apenas os EUA, mas vários outros países têm decretado leis antiterroristas

contra supostas ameaças geopolíticas e assumido posturas de exceção, justificando-as por

diferentes tipos de crise: econômicas, sociais, políticas, ambientais.

Vale salientar que as práticas estatais de Exceção se adequam muito bem ao

funcionamento imperial do capitalismo, administrando as crises que este não se cansa de

produzir. Crises que hoje não podem ser mais lidas como cíclicas, próprias das contradições e

185

imperfeições do sistema que assim iria “evoluir”. O capitalismo se tornou, em grande medida,

“capitalismo de crise”, na terminologia utilizada pelos autores anônimos de Crise e Insurreição

(Comitê Invisível, 2017). As crises acompanham (resultado e oportunidade para) o surfe dos

fluxos de capital, pessoas, mercadorias pelo mundo, justificando aqui e ali o recurso biopolítico

da exceção como técnica de governo e de controle social para vigiar e controlar as pessoas,

coibir insurreições, desmobilizar as reinvindicações, sufocar ou exigir as migrações, desidratar

ou fortalecer líderes e movimentos e, acima de tudo, promover a adesão das multidões

amedrontadas e acuadas às medidas excepcionais adotadas pelos Estados. Desse modo, as crises

já não pretendem chegar a lugar algum, mas visam manter-se como um desequilíbrio que

justifica o Estado de Exceção e tende “[...] a libertar quem governa de toda e qualquer

contrariedade quanto aos meios aplicados” (Comitê Invisível, 2017, p. 28).

Ademais, do ponto de vista imperial, é importante que as estratégias de atuação em

caráter de exceção sejam implementadas não apenas pelos grandes aparatos estatais e seu

poderio jurídico-judicial, policial e militar, mas também pela rede de micropoderes que se

articulam localmente entre instituições, comunidades e grupos sociais. Trata-se, como

mostraram Negri e Hardt (2000/2006), de uma administração fractal que visa controlar os

indivíduos e dirimir os conflitos não pela imposição de um aparelho social único e coerente,

mas pelo gerenciamento das diferenças de forma singular, com as ações necessárias a cada caso:

“[...] apresentar procedimentos específicos que permitam ao regime engrenar diretamente com

as diversas singularidades sociais, e a diferentes elementos da realidade social” (p. 362). Por

exemplo, promover a inserção de um grupo étnico (e sua sabedoria ancestral) no mercado

através do investimento em uma organização não-governamental que a ele se liga; ou

desarticular, através do financiamento do poder bélico de milícias locais, a emergência de uma

rede de produtores integrantes de certa comunidade que se tornaram concorrentes aos produtos

ou serviços fornecidos por grandes empresas. Nesse sentido, o papel e o controle exercido

localmente por milícias, grupos mafiosos, redes empresariais, ou mesmo grupos religiosos e

coletivos identitários, entre outras organizações paraestatais, legais ou criminosas, têm tido

importante papel na administração das diferenças, na inibição ou punição de conflitos, mesmo

quando (sobretudo quando) o Estado, sua burocracia e corrupção, mostram-se menos efetivos

e eficientes.

Se desde os primórdios dos Estados, conforme assinalam Deleuze e Guattari

(1980/1997b), estes funcionam como aparelhos de captura que visam vincular as pessoas, seus

modos de vida e sua força vital sob os domínios da megamáquina administrativa estatal, para

186

os subviventes do capitalismo contemporâneo, sua captura significa serem mantidos à margem

de forma conformada ou, pelo menos, silenciosa e serem convocados somente quando

necessário e dentro de limites estritos, sob pena de receberem a força policial treinada (militar

e psicologicamente) para empurrá-los para seus sub-lugares. Lugares que são definidos por

Edson Passetti como periferias:

Na sociedade de controle a periferia está dentro. Todos são passíveis de captura. Vivemos, então, momentos de periferias que pelo planeta se realizam de maneira pluralista. Temos a periferia formada pela pequena cidade ou conjunto de cidades-dormitório, que acomoda a população que trabalha na metrópole, e que em seu interior vê aumentar as ilegalidades. Outra maneira de periferia-dormitório acontece quando os moradores da pequena cidade ou deste conjunto deslocam-se para trabalhar em novos centros empresariais, abertos em suas proximidades, e que procuram dar conta da contenção do afluxo para a metrópole. (...) Mas há uma terceira, mais intensa, violenta, surpreendente. Pelo menos no Brasil ela se chama favela, no asfalto, no morro, nos alagados. Construídas com papelão, madeira, paus e plásticos, restos de outdoors, tijolos, e erguidas sobre a laje, palafitas ou a rés do chão. Ali estão trabalhadores dos comércios e indústrias legais e ilegais, autônomos miseráveis, serviçais do narcotráfico, pequenas prostitutas, pequenos prostitutos, altos e baixos gigolôs, gente que vai servir na polícia ou no exército, gente que serve pessoas de fino trato, de escolas de samba, de digitação, de escola mesmo, de capoeira, de cultura popular, escola do crime, de negros e não negros, de brancos e não brancos, tudo girando, e no sobe e desce constante. (Passetti, 2006, p. 95-6).

As periferias viabilizam, nas sociedades de controle, práticas de confinamento a céu

aberto, ampliando (e dissimulando) os muros da prisão (Passetti, 2006). Suas estratégias

combinam a vigilância sistemática através dos meios informáticos-comunicacionais com, por

um lado, a repressão policial sempre que necessário e, de outro, com práticas de assistência de

agentes públicos ou da sociedade civil (cidadãos, entidades do Terceiro Setor e empresas)

engajados em garantir condições “dignas” para que os pobres se conformem a viver nas regiões

periféricas. Como analisa Acácio Augusto (2010), uma série de programas sociais e de

segurança pública objetivam imobilizar as pessoas tidas como carentes ou vulneráveis, tendo,

como pano de fundo, “uma política do campo de concentração a céu aberto”, que investe em

manter uma determinada parte da população docilizada através de programas e aparatos que

continuamente “[...] registram, monitoram, permitem, recusam, direcionam, redimensionam a

circulação num espaço delimitado e móvel. E nesse exercício produzem novas subjetivações

afeitas aos controles” (p. 272).

Neste momento que Achille Mbembe (2016) denomina modernidade tardia, a prática da

Exceção pelos Estados se sustenta não apenas pelo biopoder que visa gerir a vida das

populações, ajustando-as e circunscrevendo-as, conforme o momento e nos diferentes casos, às

demandas do Capital. Como esse filósofo argumenta, a prática da Exceção se sustenta também

187

pelo necropoder e suas estratégias de terror, extermínio ou abandono. Mbembe (2016) destaca

a realidade exemplar dessa situação vivida na Faixa de Gaza, uma das experiências mais

dilacerantes da necropolítica contemporânea em sua opinião:

Viver sob a ocupação tardo-moderna é experimentar uma condição permanente de “estar na dor”: estruturas fortificadas, postos militares e bloqueios de estradas em todo lugar; construções que trazem à tona memórias dolorosas de humilhação, interrogatórios e espancamentos; toques de recolher que aprisionam centenas de milhares de pessoas em suas casas apertadas todas as noites desde o anoitecer ao amanhecer; soldados patrulhando as ruas escuras, assustados pelas próprias sombras; crianças cegadas por balas de borracha; pais humilhados e espancados na frente de suas famílias; soldados urinando nas cercas, atirando nos tanques de água dos telhados só por diversão, repetindo slogans ofensivos, batendo nas portas frágeis de lata para assustar as crianças, confiscando papéis ou despejando lixo no meio de um bairro residencial; guardas de fronteira chutando uma banca de legumes ou fechando fronteiras sem motivo algum; ossos quebrados; tiroteios e fatalidades – um certo tipo de loucura. (Mbembe, 2016, p. 146)

É verdade que, como vimos no capítulo anterior, essas estratégias necropolíticas

estiveram presentes nas lógicas e práticas durante a colonização imperialista, ou mesmo durante

os cercamentos na Europa no processo de institucionalização do capitalismo moderno. Com

efeito, elas não são exatamente novidade. Contudo, agora, elas ocorrem por toda a parte e a

qualquer momento, sempre que uma calamidade, um desastre ambiental, uma insurreição

social, um colapso do mercado financeiro, uma pandemia se insinuam no horizonte. Se a Faixa

de Gaza se mostra como um extremo, quase uma distopia, da ação necropolítica, por toda a

parte e em maior ou menor grau é possível observar sua atuação em dinâmicas de fragmentação

e isolamento dentro e através de territórios, fazendo, como disseram Negri e Hardt (2000/2006),

com que o Norte e o Sul, com que os superdesenvolvidos e os subviventes estejam separados

ainda que vivam lado a lado.

A família, nesse contexto, é propagandeada como a salvaguarda sociosubjetiva. Quando

consideramos o momento contemporâneo, em que os Estados se acoplam ao formato imperial

do capitalismo e atuam através da Exceção justificada por crises que não param de se renovar,

a família é frequentemente colocada como o último refúgio e o único ponto de apoio confiável

diante de tantas oscilações e inconstâncias; um refúgio tomado como núcleo privatizado e

independente das condições externas contra as quais ele deve tentar nos proteger.

Vimos, no capítulo anterior, como o movimento higienista no Brasil caminhou junto

com a configuração nucleada e privatizada de família nos moldes burgueses, em consonância

com o processo de urbanização e, em seguida, de industrialização do país. Nesse cenário, Costa

(1979/1989) destaca a transição ocorrida na postura estatal em relação às famílias: de ações

188

basicamente repressivas-punitivas durante a colonização, o Estado passa a assumir, através da

medicina social que chega no país, um papel de cuidador da pátria e de seus cidadãos, cujos

interesses não estavam descolados das lógicas capitalistas industriais-liberais que eram aqui

implementadas. A família é conclamada a “servir à pátria”, assumindo a importância da higiene

e da disciplina de seus membros para a produção de indivíduos saudáveis para um futuro

também saudável para a nação. Há nessa estratégia a ambição de se produzir um enlace entre

família e Estado que acaba por gerar uma grande dependência, concreta e ou simbólica, das

famílias e seus membros em relação aos aparelhos estatais e aos saberes especializados que

sustentam a nova ordem social estabelecida. Ordem que passou a se preocupar em diagnosticar,

enquadrar, educar, adestrar, tratar ou, nos casos extremos, punir, isolar ou abandonar (o que

pode incluir deixar morrer) aqueles que se mostram incapazes da “normalidade”, seja ela física,

moral, sexual, psicológica, social. Ordem que passou a valorizar um modelo “certo” de família,

colocando sobre as famílias concretas o peso de se adequar a esse modelo.

Atualmente e mesmo que com todas as mudanças por que passaram as famílias nas

últimas décadas, é possível considerar que essa “ordem social”, nas palavras de Costa

(1979/1989), se mantém. De fato, persiste o agenciamento capitalístico-moderno e, com ele,

uma percepção privatizada de família que funciona agora vigiada e instigada pelas estratégias

do Controle. O que cumpre frisar nesse processo é o tratamento estatal dado às famílias que,

por diferentes razões, não conseguem ou não querem concretizar as aspirações hegemônicas;

tratamento que acompanha o fortalecimento das lógicas biopolíticas ao longo do século XX no

país e que, atualmente, utiliza-se das estratégias do Controle que, mais do que acolher, respeitar

e potencializar as famílias em suas diversidades, têm alargado os abismos da desigualdade com

práticas de intolerância, indiferença e polarizações que os acompanham.

Como analisa Scheinvar (2006), as famílias que não seguem adequadamente as

aspirações hegemônicas são consideradas responsáveis por sua “desestruturação”, pelos

“desvios”, disfunções ou problemas de seus membros, sendo instigadas a culpabilizar-se por

questões que, muitas vezes, estão atreladas a fatores e processos muito mais amplos do que as

famílias em si mesmas. Orientado por “políticas preventivas”, o Estado se mune de diferentes

equipamentos (os equipamentos educacionais, médicos e psicológicos, o judiciário, os abrigos,

o cárcere, os conselhos tutelares, entre outros) e de parcerias com entidades e atores da

sociedades civil para, esquivando-se da análise acerca das condições necessárias para que cada

família seja bem-sucedida dentro dos moldes hegemônicos ou para que viva em suas diferenças

de forma suficientemente pacífica com este, “[...] diagnosticam a incapacidade de a família ser

189

família” (Scheinvar, 2006, p. 50). Fora dos moldes, as famílias têm seus saberes e práticas

desqualificados, têm sua competência de cuidado e proteção questionados e sofrem

intervenções que mais as discriminam e estigmatizam do que atuam nas condições sociais que

as levaram a serem alvo da intervenção, fazendo com que, muitas vezes, elas se resignem aos

lugares periféricos que lhes são destinados.

Além disso, as intervenções estatais, bem como as dos parceiros da sociedade civil que

recebem financiamentos públicos ou privados – as organizações do chamado Terceiro Setor

que se mantém, até hoje, a uma distância ótima das ambições da economia liberal e como

salvaguarda do Estado para as demandas sociais80 – são pautadas, em geral, por atuações

individualizadas, particularizadas. Scheinvar (2006) avalia que se trata “[...] cada caso como

único e como se ele se esgotasse em si mesmo, sem propiciar qualquer movimento no sentido

de reverter as condições que os produziram e que continuam a produzir muitos outros casos”

(p. 54). A autora ainda pondera que, em boa medida, os próprios profissionais são tratados de

forma individualizada, considerando suas capacidades e conhecimentos pessoais para lidar e

resolver os casos. As famílias, os profissionais e as questões que os perpassam são absorvidas

em um movimento que privatiza frequentemente os problemas. O que, em última instância,

acaba por justificar, como problemas individuais e familiares, diferentes aspectos imbricados

nas desigualdades produzidas e que deveriam incluir suas facetas sociais, econômicas, culturais,

políticas mais amplas.

Nesse sentido, lembro-me da conversa com Dona Maria, uma senhora de seus 65 anos

que morava sozinha em uma das ocupações urbanas que visitei. Dona Maria foi, possivelmente,

a pessoa mais pobre que conheci ao longo deste trabalho. Pobre conforme o sentido construído

pela modernidade capitalista, muito embora sua sensibilidade e perspicácia tenham me afetado

mais do que suas condições precárias para uma existência. Na conversa, Dona Maria me contou

que, por ser analfabeta, uma equipe do CRAS (Centro de Referência de Assistência Social)81

80 Conferir a análise feita a partir de Donzelot (1977/1980) no Capítulo 3, a respeito do lugar sócio-político que as entidades civis do Terceiro Setor têm desempenhado para concretizar o liberalismo econômico. 81 O CRAS é uma das unidades de atendimento das políticas de Assistência Social do Estado brasileiro. É considerado a porta de entrada dos serviços de assistência para pessoas em vulnerabilidade social, subjetiva, econômica. O CRAS deve promover a organização e articulação das unidades da rede socioassistencial e de outras políticas dentro do território de sua abrangência, viabilizando às pessoas que necessitam o acesso a serviços, benefícios e projetos de assistência social. No CRAS há o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (Paif), o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), orientações e acompanhamento para o recebimento de benefícios assistenciais e inscrição no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal.

190

havia ido a sua casa e a convencido de frequentar a escola para aprender a ler e a escrever,

podendo, com isso, participar melhor da vida social. Dona Maria passou a frequentar a escola

no período da noite, em uma rotina que começava às três horas da manhã, quando se preparava

para ir trabalhar, e terminava depois das dez horas da noite. Após algum tempo, ela acabou

abandonando a escola porque “eles só queriam que eu copiasse”. Quando a equipe do CRAS

tentou fazê-la retornar às aulas, com um discurso que enfocava basicamente a falta de esforço

de Dona Maria, ela resolveu aceitar a proposta desde que a equipe garantisse uma condição:

que eles quisessem realmente ensiná-la. O que a equipe não conseguiu prometer e acabou por

“abandonar o caso”. Diante da situação, Dona Maria concluiu: “Quanto tempo eu fui na escola

lá e eu num sei escrever meu nome?! Pra que ficar lá então? Trabalhava, chegava morta de

cansada e ia dormir sem tomá banho. Se você copiar o meu nome, eu sei copiar ele, mas as

letras, eu não sei juntar elas... O que adianta ir na escola desse jeito?”.

* * *

Em uma perspectiva nômade e procurando promover uma análise imanente, cabe

considerar que, de diferentes maneiras, há misérias por todos os lados, como há invenções e

potências também. Em um exercício meramente especulativo, imagino o que cada família que

visitei consideraria uma “boa vida” para si. As respostas que me vêm à cabeça são muito

diferentes. Qual delas é a melhor? Qualquer resposta a essa pergunta corre o risco de simplificar

a vida em sua processualidade e em suas contingências. Há problemas, desafios, conflitos e

contradições em qualquer agenciamento. Contudo, isso não deveria nos eximir, enquanto seres

humanos e nas nossas relações com a Diferença, de assumir a importante tarefa ético-política

de avaliar como nossos arranjos sociais e subjetivos produzem desigualdade e sofrimento para

parte dos que os vivem (por vezes, a grande maioria) e também para os Outros, aqueles que

efetuam outras maneiras de existir. Seja como for, o fato é que pude experenciar, nessa

pesquisa, a riqueza das coexistências – há certamente muitos mundos neste.

Finalmente, dentre os diferentes agenciamentos que conheci, gostaria de destacar um

agenciamento composto por pobres subviventes que, colocados sistematicamente à margem e

acompanhados constantemente pela vigilância (e as investidas) das forças policiais do Estado,

acabaram por produzir um arranjo singular de luta e resistência.

191

É sobre ele – uma máquina de guerra, nos termos de Deleuze e Guattari (1980/1997b) –

e suas famílias de que trata o próximo capítulo.

192

193

Capítulo 6

SUBVIVENTES E UMA MÁQUINA DE GUERRA

Em uma borda deste mundo

O Uber parou e o motorista, conferindo o GPS, me disse um tanto reticente que

havíamos chegado. Parecia preocupado por me deixar sozinha ali. Agradeci timidamente e saí

do automóvel mais envergonhada pela roupa que havia escolhido usar do que preocupada com

o lugar onde estava a chegar. No celular uma mensagem dos amigos com quem tinha marcado

de encontrar avisava: “Estamos quase chegando”. Enquanto esperava, alojei-me sob o toldo de

uma pequena lanchonete ao lado do local onde havia descido do Uber, fugindo do forte sol do

início das tardes de fevereiro, em pleno verão brasileiro. Da sombra observei a entrada da rua

de terra à minha frente. Ela fazia uma curva acentuada e não era possível ver o que se passava

após as primeiras casas construídas de forma simples em cada um de seus lados. Mas a música

que chegava até a entrada da rua, bem como o fluxo de pessoas fantasiadas e por vezes portando

algum instrumento musical que seguiam rua adentro contavam-me que estava no lugar certo:

era dali mesmo que um dos blocos que mais gosto no carnaval de Belo Horizonte iria começar

o cortejo. Este era um bloco que havia surgido com o renascimento do carnaval de rua na cidade

há alguns anos82. Era conhecido por desfilar em lugares desconhecidos de grande parte dos

moradores acostumados a frequentar a região central ou os bairros mais abastados do município.

De fato, o bloco se propunha a explorar regiões pouco óbvias, produzir a festa do carnaval em

vilas, aglomerados e regiões periféricas e mais vulneráveis da cidade, levando até esses locais

pessoas que, de outro modo, nunca estariam ali. As experiências de pular o carnaval neste bloco

sempre foram marcadas por encontros inusitados – um choque de mundos, poderíamos dizer,

coloridos com purpurina e ritmados por marchinhas, samba, samba-rock, funk, axé, entre outros

ritmos e estilos que compõem a vasta produção musical-cultural brasileira. Para mim era sempre

82 O ano de 2009 é considerado um marco no ressurgimento do carnaval belo-horizontino, iniciado por ativistas sociais que, no contexto político e econômico do período, começam a se reunir e a desenvolver estratégias de luta pelo direito à cidade. A luta pela festa e através dela emerge aí com grande importância, multiplicando-se no surgimento de blocos de carnaval e na sua circulação por diferentes regiões do município como forma de dar visibilidade a questões que permeavam a geopolítica e o uso do espaço público. Para um resgate histórico desse movimento, conferir Dias (2015) e Canuto (2017). Sobre a relação entre esse movimento e a história das ocupações urbanas no município, conferir Resende e Bernadet (2019).

194

uma alegria surpreender-me com as paisagens naturais e as comunidades que os organizadores

desse bloco se propunham a dar visibilidade: outras camadas, contornos, funcionamentos que

também faziam parte da capital de Minas Gerais que, neste carnaval de 2018, possuía cerca de

2,5 milhões de habitantes.

Nesse ano, o local escolhido para a partida do percurso do bloco era uma ocupação

urbana situada em uma das bordas da cidade, em um braço de mata que, como eu saberia depois,

era um terreno muito valorizado pela especulação imobiliária. A área originariamente

pertencente ao estado de Minas Gerais havia sido, há alguns anos, “invadida por pobres sem

teto” para o incômodo da polícia e das autoridades do município, ainda que as sucessivas

aquisições privadas do terreno por pessoas com maior poder econômico, feitas antes da

ocupação, tivessem ocorrido de forma irregular. Naquele momento, no entanto, apenas a rua de

terra batida detinha minha atenção. Afinal, estava para entrar em uma vila nunca visitada,

vestida com uma minissaia e um top de biquíni carinhosamente ornamentados com flores

plásticas de girassol e cristais autocolantes, além de glitter e batom vermelho. Estar ali, vestida

assim, era também uma ocupação – auto-ocupação do meu corpo feminino.

A chegada de meus amigos foi acompanhada da alegria pelo encontro e de elogios a

minha fantasia. Contudo, mesmo em um dia de carnaval brasileiro, rodeada de pessoas queridas

que afirmavam seu apoio à minha “atitude”, nunca é fácil desvencilhar-se das próprias amarras

de vergonha e pudor. Amarras construídas a partir de um modo de subjetivação que certamente

não está circunscrito à minha história pessoal, mas funciona difuso no diagrama de forças desta

época e define uma maneira “adequada” de ser mulher. Algumas horas mais cedo, enquanto me

arrumava em casa, essas questões atravessavam meu corpo e inquietavam meu pensamento, eu

que vim de uma família muito tradicional à maneira nuclear burguesa e que, em momentos de

ousadia subjetiva, sempre lembrava das rígidas lições de minha avó materna sobre o que ela

considerava, a partir dos valores instituídos, a boa conduta da mulher cristã. Mas sim, era

carnaval... resisti e saí vestida como estava, sem imaginar que iria encontrar no bloco outras

tantas mulheres com menos medo e menos roupa que eu, corpos femininos de variadas formas

e tonalidades de pele que experimentavam, cada uma a sua maneira, outros modos de

(ex)posição de si. Algumas, acompanhadas de seus maridos, companheiros ou namorados,

assumiram uma certa paridade que distendia as relações de gênero: eles vestidos com bermuda,

sem camisa, com adereços e pinturas carnavalescas; elas de saias ou shorts, também sem camisa

(e sutiã), com adereços e pinturas carnavalescas. E como cada um(a) vive os valores, os padrões,

os hábitos e normas instituídos à sua maneira, conforme o arranjo peculiar que as forças e

195

formas sociais ganham em suas histórias individuais, ainda presenciei o desafio de uma amiga

que precisou urinar em uma parte do percurso do bloco em que não havia casas. Ao escutar o

pedido dela, indiquei uma vala em que poderíamos entrar: de fácil acesso, cercada de mato e

sem visibilidade dos demais, a mim parecia um ótimo local para se urinar sem

constrangimentos. Todavia, a ausência de paredes e de vaso sanitário tornaram-se um drama

existencial para a moça. Com os olhos cheio de lágrimas ela me explicou que precisava mesmo

urinar naquele momento, mas não conseguia... não, naquelas condições. Foi preciso que

algumas de nós entrássemos na vala para apoiá-la – apoiar seu corpo e seus afetos. E foi preciso

esperar vários minutos para presenciar a expressão de agradecimento que tomou o rosto de

nossa amiga, como se uma corrente tivesse se rompido, enquanto seu mijo escorria terra abaixo.

A história do carnaval brasileiro tem uma parcela importante de luta, resistência e

experimentações. Em Belo Horizonte, mesmo com o crescimento do carnaval de rua e sua

transformação de movimento social em evento de massa que atrai milhões de pessoas entre

moradores e turistas, mesmo com a entrada institucionalizada de empresas patrocinadoras e

detentoras dos direitos de venda de bebidas, mesmo com o aumento da ingerência

governamental, há ainda espaço para que blocos menores e marginais existam. Blocos fora do

circuito mercadológico do carnaval e mais livres da atenção estatal, seja a atenção do Estado-

nação e seus tentáculos governamentais, seja a atenção dos microestados que verticalizam e

normalizam as relações entre os que compõem os próprios blocos. Esses pequenos blocos

marginais funcionam como espaços lisos, heterogêneos e autogestionados, abertos para a

participação de qualquer um em sua bateria, porta-estandarte e intervenções artísticas.

Permitem a experimentação prática de outros modos de existir, como mulher inclusive.

Naquela tarde os tambores e demais instrumentos trazidos pelas mãos de quem quisesse

tocar foram se somando e a música ganhou corpo, convocando os demais. Seguimos com o

bloco pelo conjunto das ocupações daquela região. Conversei com moradores, escutei suas

histórias, visitei algumas casas que tinham as portas abertas para quem precisasse usar o

banheiro ou beber um copo d’água. Ao longo do percurso fui sendo afetada pelo acolhimento

daqueles moradores. Havia seu sincero respeito pela diversidade de corpos, estilos, condições

socioeconômicas e experimentações dos que estavam ali a pular carnaval.

Já caia a noite quando chegamos ao destino final do bloco, onde um show de funk

protagonizado pelos artistas da região nos esperava e a dança seguiu noite adentro na quadra de

terra de uma das ocupações. Mas algumas horas depois a polícia chegou, fechando a entrada da

ocupação, lançando bombas de efeito moral, spray de pimenta, balas de borracha e usando

196

cassetetes. Não havia ocorrido qualquer briga ou confusão; não havia denúncia de assédio,

constrangimento ou desrespeito ao longo das várias horas em que o bloco passeou pelas ruas

da região; nenhum incidente durante o evento explicava a brutalidade da polícia, que veio sem

conversa. Eu já havia saído do bloco quando a ação policial ocorreu e deixou vários feridos. O

que se passou? O que havia de tão perigoso naquela pluralidade de famílias que se dispôs a

acolher e festejar com gentes tão diferentes delas, em paz, cada um à sua maneira?

Por um lado, é preciso ter em mente que a emergência histórica das forças militares e

policiais do Estado para combater a violência exige que o Estado, ele mesmo, exerça um tipo

especial de violência que “[...] cria ou contribui para criar aquilo sobre o que ela se exerce, e

por isso se pressupõe a si mesma” (Deleuze & Guattari, 1980/1997b, p. 113). Trata-se de uma

violência “de direito”: se o Estado assume para si o monopólio da violência, exercido por sua

força policial em seu território para o combate aos comportamentos considerados inadequados,

às práticas consideradas ofensivas ou imorais, aos crimes, isso não pode excluir a violência

estrutural que permite a criação desse monopólio estatal. Nesse sentido e no contexto moderno,

a polícia foi historicamente treinada, entre outros, para inibir e subjugar os que são segmentados

como pobres. Estes devem estar sempre sob vigilância e serem mantidos em seu “devido lugar”

– em uma espécie em confinamento a céu aberto como analisou Passetti (2002). Suponho que,

para os homens de Estado, deve ter sido muita ousadia daquelas gentes das ocupações

arriscarem-se a se misturar com vários de “nós” em seu território comunitário, proporcionando

um encontro alegre. Eu já sabia que a alegria e a liberdade, especialmente quando elas

funcionam bem, são sempre temidas pelos homens de Estado, uma vez que este se torna, nessas

condições, obsoleto e desnecessário.

Arranjos para existir

A potência de acolhimento das famílias das ocupações que conheci com o bloco de

carnaval pareceu-me relevante para os objetivos desta pesquisa. Resolvi, por isso, conhecer

melhor a história daquelas comunidades e suas famílias. Como ponto de partida, decidi

conversar com os organizadores do bloco de carnaval. Através de amigos, contatei um dos

organizadores que me passou o telefone de uma liderança das ocupações daquele vale. Por cerca

de um mês fiz insistentes contatos por telefone e WhatsApp até conseguir agendar uma conversa

presencial com Patrícia em uma ocupação na região central da cidade. Ao longo desse processo

197

compreendi que diferentes ocupações do município estavam ligadas por uma rede comum, cujas

lideranças compunham o MLB (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas) – coletivo

bem articulado de luta por moradia em Belo Horizonte e em outras cidades do estado e do

país83. A dificuldade de marcar um encontro com Patrícia foi em função de sua grande

dedicação às ações e estratégias que esse coletivo desenvolvia continuamente pela cidade para

encontrar locais que pudessem receber pessoas sem teto e para ajudar as famílias que estavam

em áreas com risco de desocupação ou de enfrentamento com as forças do Estado. O cotidiano

dessa liderança era lutar em favor desses subviventes no modo de vida capitalista moderno.

No encontro, eu explico a Patrícia que, para mim, nosso projeto civilizatório está à beira

de um colapso e que as respostas que os governos e os grandes gestores do mercado global têm

oferecido para sairmos dos problemas e desafios atuais não têm sido suficientemente eficazes.

E que gostaria de investigar como movimentos micropolíticos, ligados especialmente as

estratégias e invenções empreendidas cotidianamente por famílias brasileiras, têm produzido

novas alternativas e saídas para nossa enrascada civilizatória-ambiental. Justifico que a escolha

de buscar famílias integrantes das ocupações foi uma questão de “afeto carnavalesco”: um bom

encontro com as vilas por onde um bloco de carnaval passou, com sua potência de acolhimento

e respeito à diversidade de pessoas que juntas participaram da folia. Com efeito, as relações

com a Diferença têm sido, em muitos aspectos, um dos maiores desafios de nossos tempos e eu

tinha a sensação de que as ocupações tinham alguma coisa a me ensinar sobre isso. Patrícia

sorri e me conta que as ocupações tinham mesmo essa característica de acolher “pessoas muito

diferentes”. Na percepção dela, essas ocupações funcionavam como “um refúgio” para muitas

famílias cujos arranjos destoam em alguma medida dos padrões e expectativas dominantes.

Patrícia e eu escolhemos cinco famílias moradoras de ocupações em Belo Horizonte

ligadas ao MLB e cujas histórias de vida, brevemente contadas por ela, mostraram-se

interessantes para os objetivos da pesquisa. Após meu convite, integrantes de todas as famílias

toparam participar. Abordei anteriormente algumas dessas famílias: contei sobre Celma, suas

lutas no aldeamento indígena onde cresceu e constituiu sua família, seu percurso e desafios para

tentar uma vida melhor na metrópole Belo Horizonte e para trazer seus filhos para morar

consigo; destaquei a experiência de conhecer Ju e Lu e sua aliança permeada pelo cuidado ético-

político consigo mesmas, com o que a vida tem lhes ensinado e com os outros com quem

convivem; mencionei Dona Maria, especialmente seu mau encontro com a escola e uma

83 Há uma diversidade de movimentos que lutam por moradia em Belo Horizonte e no país. Boa parte deles, o MLB incluso, fazem parte no Fórum Nacional de Luta por Moradia.

198

pedagogia de alfabetização para adultos que, em sua opinião, queria apenas que ela soubesse

copiar letras, palavras e frases. Agora gostaria de enfocar a família de Tonho, Suzana e Bianca,

cuja composição tentacular chamou-me particular atenção.

Ao pensar nesta família preciso me lembrar todo o tempo de que, na verdade (ao menos

na verdade conforme os moldes modernos de família), são duas famílias. Famílias que, em

virtude de suas necessidades e condições de vida por um lado, e em virtude da falta de uma rede

de apoio sociocomunitária ou mesmo da assistência estatal por outro lado, acabaram por se unir.

Suzana e Tonho são casados há quase três décadas. Antes de firmarem sua aliança, os

dois já haviam vivido a experiência de um primeiro casamento. Deste, Tonho tinha quatro filhos

e Suzana dois. Sua união gerou um filho comum. Em virtude de um acidente, Tonho tornou-se

paraplégico. Antes de ingressarem no MLB, o casal morava em uma casa alugada na periferia

do extremo norte de Belo Horizonte e, como a aposentadoria por invalidez de Tonho não era

suficiente para o sustento do casal, Suzana precisava trabalhar. Ela conta-me que saia de casa

às 4:30 da manhã para pegar a condução para o trabalho em uma escola. Ao sair, deixava o

portão da casa apenas encostado e o marido assentado em sua cadeira de rodas no alpendre da

entrada, para que ele chamasse alguém caso precisasse de ajuda enquanto a esposa estava fora.

Não podiam contar com a ajuda dos vizinhos que eram pouco cooperativos e, por vezes, hostis.

Um deles chegou a fazer uma denúncia contra Suzana por maus tratos a incapaz, já que ela

deixava o marido cadeirante sozinho uma parte do dia. Mesmo com a notificação do Conselho

Tutelar, Suzana não conseguiu encontrar uma solução diferente de arriscar-se a sair para

trabalhar deixando o marido sozinho – risco que envolvia tanto ser novamente denunciada,

quanto deixar o marido sem o devido amparo. Contudo, além de não possuir laços comunitários

solidários que viabilizassem algum apoio, os próprios filhos também não se dispunham a ajudar

os pais, pois estavam envolvidos em “correr atrás” de encontrar condições para sua própria

subsistência. Suzana frisa como que se sentia vulnerável nesse situação.

Cynthia Sarti (2015) afirma que famílias brasileiras pobres comumente configuram-se

em rede e não em núcleo. Nesse configuração “enredada”, conforme termo da autora, é

impreciso compreender a família como conjunto de pessoas que vivem em uma mesma unidade

doméstica, o que “[...] leva a desconsiderar a rede de relações na qual se movem os sujeitos em

família e que provê os recursos materiais e afetivos com que contam” (p. 28). Todavia, se há

famílias que conseguem criar uma rede de apoio mútuo em virtude de seus contextos de maior

vulnerabilidade socioeconômica, isso não é uma realidade que pode ser generalizada para todos

os arranjos familiares e comunidades pobres. Há solidão e desamparo em muitos casos; não

199

faltam os que não tem ninguém com quem contar, especialmente em uma formação social como

a capitalista moderna, em que o modo de subjetivação dominante privilegia o auto-investimento

(econômico-narcísico) individual, o qual também atravessa e por vezes domina as relações

comunitárias dos pobres.

No caso de Suzana e Tonho, seria possível dedicar-me a uma análise psicofamiliar para

entender como, em uma família com sete filhos adultos, não havia apoio aos pais, o que

envolveria toda uma investigação dos laços de cuidado e proteção no “interior” dessa família.

Contudo, de outro modo, escolho não me aprofundar nesse tipo de análise que frequentemente

as teorias psicológicas fazem com desenvoltura. Provavelmente existem “questões” nos

vínculos familiares que merecem ser trabalhadas, mas, neste momento, opto por olhar o

desamparo desse casal sem circunscrevê-lo à ausência de apoio dos filhos. Para eles, havia

também a ausência de apoio da comunidade, estruturada em moldes privatistas a partir dos

quais indivíduos e famílias enfocam basicamente os “seus” problemas; havia a ausência de

apoio da rede familiar mais ampla do casal que os via como pobres deficientes; havia a ausência

de uma assistência suficiente por parte do Estado.

* * *

Enquanto Suzana está fora a trabalhar, Tonho passa horas sozinho no alpendre,

observando a rua e seu movimento. É uma maneira de se movimentar também. Dali e em um

momento que não consegue precisar, começou a reparar que todas as manhãs, perto das sete

horas, uma moça passava em frente à sua casa com duas crianças pequenas. Reparou que a

criança mais nova, ainda pequenina, não tinha braços nem pernas; era um “pacotinho”

embalado no colo de quem, ele suponha, era a mãe das crianças.

Em um dia de muito calor, Tonho sentia sede quando avistou a moça com as duas

crianças. Ao observá-la passando em frente à sua casa, pediu-lhe ajuda: que ela não reparasse,

mas ele estava com muita sede e queria saber se ela podia entrar, o portão estava só encostado,

ele estava sozinho e não conseguia se mover até à cozinha para pegar um copo com água. A

moça prontamente entrou e buscou um copo com água. E ajudou Tonho a limpar os olhos que

o incomodavam com o calor. Ele ficou muito grato àquela que, como veio a saber, chamava-se

Bianca. As duas crianças, seus filhos, eram Laura e Murilo. Este havia nascido com uma

deficiência genética, sem os braços e as pernas. Todas as manhãs, para trabalhar, Bianca

200

deixava as crianças na creche próxima. Ela morava com os filhos e o marido em um apartamento

alugado no prédio ao lado da casa de Tonho.

Depois daquele dia, todas as manhãs, após deixar as crianças na creche e antes de seguir

para o trabalho, Bianca passava na casa de Tonho para saber se ele precisava de alguma coisa

e o ajudava sempre que necessário. Tornaram-se amigos e Tonho resolveu apresentá-la para a

esposa. A amizade fortaleceu-se, como me conta Suzana: “A gente foi criando aquele laço,

aquela confiança”.

Meses depois, um incêndio no apartamento de Bianca fez com que a relação desta com

o marido, já desgastada, ficasse ainda pior. Este acabou indo embora, deixando-a sozinha para,

por conta própria, sustentar os dois filhos do casal e consertar o apartamento queimado de forma

a torná-lo novamente habitável. Bianca pôde contar com a ajuda de Tonho e Suzana que se

comoviam vendo a amiga sozinha e sufocada com os gastos e as demandas cotidianas, além

dos cuidados específicos com o pequeno Murilo e sua grande dependência da mãe para as

rotinas mais simples. Suzana resolveu fazer uma proposta para Bianca: que ela se mudasse para

a casa do casal com as crianças, já que a vida estava difícil para as duas. Assim, dividiriam o

aluguel e poderiam, juntas, apoiar-se nos cuidados exigidos pelas deficiências de Tonho e de

Murilo, além dos cuidados com Laura. “Aí nós juntou as duas famílias”, lembra Suzana,

estampando um sorriso no rosto. As duas mulheres organizaram uma rotina compartilhada e

intercalada, dividindo as tarefas domésticas e realizando trabalhos remunerados fora em dias

alternados, de modo que havia sempre uma delas em casa para cuidar de Tonho e das crianças.

Bianca tirou carteira de motorista para dirigir o carro de Tonho e Suzana, uma vez que esta

apenas o usava para emergências de deslocamento com o marido. Com isso, o automóvel passou

a ser usado por todos da família ampliada que se configurou.

Com a ajuda de Tonho e Suzana, Bianca ainda conseguiu realizar o sonho de comprar

um lote para construir a casa própria. Ao saber da aquisição do lote por Bianca, seu ex-marido

a procurou. Afinal, ter a própria casa era um desejo que os dois tinham cultivado juntos e, como

ele a convenceu, seria bom retomarem seu vínculo para construírem um barracão para seu

núcleo familiar no lote adquirido por Bianca. Contudo, pouco tempo depois da finalização da

obra do barracão, o marido tornou-se violento com a esposa, controlador, possessivo, paranoico.

Ao saber da situação, Suzana perguntou a Bianca o que valia mais: sua casa ou sua vida. Bianca

elaborou um plano de fuga que foi executado em uma madrugada: “[Ela] pegou as crianças e

fugiu. Chegou na minha casa ao amanhecer, de camisola e descalça com as crianças, sem

conseguir trazer nada, nada consigo. Ela deixou tudo pra trás”, conta-me Suzana. Desde então

201

o arranjo familiar construído por Suzana, Tonho, Bianca e seus filhos fortaleceu-se. As duas

mulheres combinaram que “o que uma conseguir pra uma, consegue pras duas”, como esclarece

Suzana. É assim até hoje, anos depois.

Em 2018, quando visitei a família, Bianca estava trabalhando fora de Belo Horizonte,

enquanto Suzana e Tonho cuidavam de Laura e Murilo. Minha visita ocorreu em uma das duas

casas conjugadas que a família estava construindo com o dinheiro que Bianca enviava

mensalmente. Trata-se de casas próprias, cujos lotes foram conquistados em 2015, com muita

luta. Luta que envolveu ingressarem no MLB para conseguirem sair do aluguel que consumia

uma parcela enorme dos ganhos mensais da família. Participar da ocupação coletiva de um

terreno para tentar um pedaço de terra onde pudessem levantar suas casas com um adulto e uma

criança deficientes envolveu muita dedicação, jogo de cintura e sofrimento, conforme Suzana.

Foi preciso assumir os riscos, apaziguar o medo, preparar-se para viver por várias semanas em

uma situação muito precária em um barraco de lona e sem qualquer garantia de sucesso na

empreitada. Mas a família não encontrou outra saída.

* * *

Celma, cuja história abordei anteriormente, também não encontrou outra saída para

conseguir ter os filhos próximos de si. Também tentou a sorte participando de uma ocupação

três anos antes de Bianca e sua nova família. No caso de Celma, vinda sozinha de seu

aldeamento na Bahia e após mais de 15 anos juntando dinheiro para que todos os filhos e netos

pudessem morar também em Belo Horizonte, viu-se diante da necessidade de ajudar uma das

filhas sem recursos materiais suficientes para fazê-lo.

Em 2011, sua filha Marta separou-se do marido com quem morava em Eunápolis/BA

com as cinco crianças do casal. Sozinha e passando fome, Marta veio com os filhos para Belo

Horizonte. Todavia, o porão onde Celma morava com as filhas mais jovens não tinha condições

de abrigar mais uma mulher adulta e cinco crianças. Por isso, Marta passou a procurar um outro

local para se estabelecer. Sem recursos, acabou por localizar um terreno baldio às margens do

rio onde era despejado o esgoto do bairro da mãe. Ali ela montou um barraco para si e seus

filhos. Porém, foi alertada por uma moradora da região que, no período de chuvas, o aumento

do fluxo de água e esgoto do rio derrubaria seu barraco e poderia matar toda a família. Marta e

a moradora conseguiram convencer o vigia de um terreno que havia sido reintegrado ao

202

município pela Urbel (Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte) que deixasse a moça

construir um barraco ali para abrigar-se com os filhos. O vigia cobrou R$1.000,00 para fazer

“vistas grossas” à invasão do terreno por Marta e à construção de seu barraco. Na primeira

chuva após a construção do barraco, porém, este desmoronou.

Nesse cenário, Celma propôs à Marta que elas se juntassem a um grupo de pessoas sem

casa e sem recursos que estavam a se organizar para realizar a ocupação de um terreno em uma

região próxima, sob a coordenação do MLB. Ao participar e ajudar na ocupação, teriam a

chance de conseguir lotes e construir casas que abrigassem toda a família. Sabiam que seria

uma luta repleta de riscos, mas não vislumbravam outra estratégia para conquistar moradia

digna para a família.

* * *

Era uma noite de abril de 2012. Celma com a filha Marta e os netos juntaram-se às outras

350 famílias organizadas para ocupar o terreno: um braço de mata em uma das bordas da cidade

de Belo Horizonte. Após a entrada no terreno, elas e as demais famílias armaram barracas de

lona para ali ficar até conseguirem construir, cada uma, seu barraco de alvenaria. Esse barraco

só poderia ser feito após autorização do MLB, o que dependia da divisão do terreno entre todos

os grupos familiares que tinham se proposto à empreitada. Cerca de mil pessoas estavam ali.

Contudo, após 21 dias da ocupação, a polícia empreendeu um dos despejos mais

violentos já ocorridos no estado de Minas Gerais. Celma estava dentro da ocupação com os

cinco netos quando a polícia cercou. Marta estava trabalhando e, ao retornar, foi impedida de

entrar; passou várias horas de angústia sem qualquer notícia sobre a mãe e os filhos que estavam

cercados.

Como me contou Patrícia, a primeira liderança do MLB com quem conversei e que

também participou da ocupação, foi uma operação surpresa e sigilosa da polícia, sem mandado

prévio de notificação para desocupação do terreno84. A polícia cercou a ocupação quando boa

parte das pessoas estava fora, em seu trabalho ou na escola. Chegaram retirando tudo o que as

famílias tinham e deixando apenas as pessoas que estavam na ocupação, ao relento. Patrícia

84 O pedido de reintegração de posse na justiça foi feito pelo município de Belo Horizonte, embora o terreno ocupado seja do estado de Minas Gerais. Sem considerar essa “pequena” questão, o pedido foi concedido pela juíza do caso e executado pela prefeitura com o apoio policial.

203

lembra que os policiais constrangeram os que tentavam resistir dentro do terreno com atitudes

como urinar na frente das mulheres e xingar as mães pela situação em que estavam colocando

os próprios filhos. Depois de 24 horas do cercamento e sem qualquer estrutura, o grupo que

resistia decidiu abandonar a ocupação. Dali, foram acolhidos por uma entidade ligada à Igreja

Católica e parte do grupo acampou na porta da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) para tentar

demonstrar às autoridades a situação de extrema vulnerabilidade das famílias e pedir alguma

tratativa digna para o caso. Mas o então prefeito da cidade, Márcio Lacerda, nunca os recebeu.

Organizaram então uma segunda ocupação meses depois.

Celma relata que sua filha queria desistir de continuar participando dessa luta devido ao

medo da violência policial. Mesmo com a resistência de Marta, Celma continuou participando

das reuniões do MLB e acabou por incluir outros filhos na luta por melhores condições para

subviver. Eles participaram da nova ocupação. Mais uma vez a polícia cercou o local, mas,

desta vez, as famílias fizeram um cordão de isolamento e impediram a polícia de entrar e retirar

seus pertences, apesar das ameaças e agressões sofridas. Como o segundo terreno era privado

e ninguém entrou com pedido de reintegração de posse imediatamente, a polícia teve que

desmontar o cerco. Patrícia conta-me que as autoridades os “[...] acusaram de esbulho, mas não

existe esse crime em ocupação urbana. Não tinha flagrante de crime algum. Nossos advogados

agiram muito rápido também e nós conseguimos ficar até hoje”.

Patrícia explica ainda que a área escolhida para a ocupação preencheu dois terrenos que

eram inicialmente do estado de Minas Gerais e foram doadas para empresários. Como

contrapartida, esses empresários deveriam utilizar as áreas para a implantação de atividades

produtivas com geração de emprego e renda para a região. No entanto, nada foi construído nos

terrenos que, ainda assim, não foram reintegrados pelo estado. De outro modo, eles passaram a

ser objeto de grande especulação imobiliária, sendo transferidos de um dono a outro até a

aquisição pelos atuais proprietários em valores que giravam em torno de cinco milhões de reais.

Apesar das irregularidades na transmissão dos imóveis, algum tempo após a ocupação, os dois

proprietários (cada um de um terreno) entraram com pedidos de reintegração de posse. Com o

avançar dos processos por vários meses, membros de diferentes movimentos de luta por

moradia uniram-se e ocuparam a sede da PBH até que o prefeito Márcio Lacerda finalmente os

escutassem. Na única oportunidade que o prefeito se reuniu com os membros dos movimentos,

foi acordado o congelamento dos processos judiciais até a regularização da situação de moradia,

em condições dignas, para as famílias daquela ocupação. Em um movimento solidário, as

204

ocupações vizinhas foram incluídas na reinvindicação e conseguiram ter os processos

específicos contra elas também congelados.

* * *

Dentre as ocupações vizinhas que conseguiram ser incluídas no congelamento de seus

processos judiciais de reintegração de posse, estava a ocupação de que participaram Tonho,

Suzana, Bianca e seus filhos. “Dá pra contar um livro! Mas valeu a pena”, lembra Suzana. A

família havia viajado para descansarem após todo o sofrimento vivido por Bianca e os filhos

em virtude da situação de violência doméstica impetrada pelo marido-pai. Foram para o interior

de Minas Gerais, para a casa de uma irmã de Tonho. De lá, foram informados que a ocupação

que estavam aguardando já tinha acontecido. Voltaram rapidamente e procuraram os

coordenadores da ocupação que lhes pediram para irem diariamente lá e ajudarem na

resistência. Em virtude de sua dedicação, foram incluídas e autorizadas a montarem um barraco

de lona no terreno.

“Você precisa ver que penúria, que sofrimento que foi”, lembra Suzana. Passaram várias

semanas na barraca de lona, em que Tonho não conseguia entrar com a cadeira de rodas e

precisava ser carregado. Também Murilo ficava ainda mais vulnerável na barraca. Por isso, as

famílias da ocupação e as lideranças do MLB se reuniram e permitiram que Tonho e as crianças,

sob os cuidados de Suzana, ficassem em outro local, enquanto Bianca se mantinha na barraca

na ocupação, ajudando no funcionamento comunitário e nas estratégias de resistência. Suzana

ia todos os dias à tarde também, para apoiar no que fosse necessário.

Três meses depois, com muita luta, o MLB conseguiu a liberação do terreno para

demarcação dos lotes e autorização para a construção de barracos de madeirite pelas famílias

nos respectivos lotes recebidos. A família de Suzana e Bianca rapidamente teve a liberação para

a montagem de barraco de madeira que permitisse a Tonho entrar com a cadeira de rodas e ali

permanecer com dignidade. As duas mulheres praticamente sozinhas cavaram o buraco, fizeram

a estrutura e armaram dois barracos de madeirite, lado a lado, nos dois lotes que conseguiram

– um para Suzana e Tonho, outro para Bianca e seus filhos. Depois de um ano nos barracos,

juntaram mais forças e recursos e conseguiram transformar um deles em uma casa de alvenaria,

onde eu fui visitá-los. Em 2018, três anos após a ocupação, a casa tinha paredes no tijolo, sem

205

reboco e com poucos acabamentos. “Mesmo assim melhorou muito, porque na madeira nós

passava muito frio”, conclui Suzana.

Agenciar uma máquina de guerra

Nas ocupações, tanto as lideranças quanto os membros das famílias com quem conversei

sabem-se subviventes. Sabem da relação inconstante e dos vínculos frágeis que possuem com

o Estado. Sabem, por outro lado, que sua posição no diagrama das forças sociais não significa

serem ignorados pelos que concentram poder nesse diagrama. Como escutei de Patrícia, “o que

eles [os homens de Estado] gostam é de mandar a polícia atrás de nós”. Por isso, todos com

quem conversei nas ocupações reconhecem a importância do agenciamento montado pelo MLB

para conseguirem se deslocar, ao menos um pouco, da posição de subviventes que lhes foi

reservada pelas lógicas capitalistas coloniais que se sustentam até hoje, com os devidos ajustes,

no Brasil. Como pondera Patrícia, esse agenciamento acaba por fazer circular nas ocupações

uma segunda concepção de família, que abrange o próprio conjunto comunitário em sua

dinâmica, apoio, celebrações e lutas coletivas: “viramos uma espécie de grande família”.

Trata-se de uma “grande família” que acolhe, cuida e se protege inclusive contra as

investidas policialescas do Estado. Mas que também define normas e cobra o respeito a elas em

favor da preservação coletiva, repreendendo e punindo quando o coletivo assim decide. Mesmo

os agenciamentos libertários que se propõem a agenciar pessoas e grupos em modos de vida

mais dignos produzem suas linhas de segmentaridade, seus endurecimentos e relações de poder,

suas estratégias de controle. Neste caso, os segmentos conectam-se com uma interessante

máquina de guerra, cuja potência merece ser olhada mais de perto, como faço a seguir.

* * *

Boa parte das pessoas com quem conversei nas ocupações disseram perceber que, para

muitos dos que moram nos bairros vizinhos às ocupações, especialmente nos bairros mais

estruturados, eles são invasores, vagabundos, famílias desestruturadas e incapazes de, por seu

esforço e progresso pessoal, alcançar uma vida digna e uma moradia própria. Eu mesma escutei

um relato nesse sentido, quando visitei a família de Elton, proprietário de um apartamento na

206

parte mais rica da mesma região. Na conversa perguntei aos membros da família o que achavam

dos vizinhos que moravam nas ocupações. Elton e seu filho Gustavo prontamente se

posicionaram contra as ocupações: “é errado invadir terreno dos outros!”. Elton explica-me que

o problema das pessoas mais pobres é que não têm família, “só a mãe e os filhos”; que são

pessoas que recebem educação ruim, porque só podem estudar em escola pública; que não têm

os pais estimulando para conseguirem emprego; que estão em contato constante com o mundo

do crime. Quando eu pergunto Gustavo se ele participaria de uma ocupação caso não tivesse

outra opção, ele admite que sim, mas lembra que as famílias mais pobres têm a alternativa de

conseguir financiamento através da Programa Minha Casa, Minha Vida e podem pagar,

conforme a faixa de financiamento, em até 30 anos85. Pondera, no entanto, que muitas famílias

não “correm atrás” ou não têm educação financeira para pagar mensalmente o financiamento

conquistado e acabam perdendo o imóvel. Anoto essas reflexões alguns meses antes de

vivenciar uma outra perspectiva. Com efeito, a percepção obtida de uma certa posição

diferencial no diagrama das forças sociais não é necessariamente a mesma se nos encontramos

em uma posição e em um referencial diferentes...

* * *

“Eles querem é que a gente entre no programa ‘Minha casa, minha dívida’ [risos]”,

ironiza uma mulher à espera da reunião. “Olha a gente: mulher, pobre, preta, sem emprego

fixo... não tem como comprovar renda. Eles não tão nem aí pra gente!”, exclama a outra. As

duas mulheres estão assentadas ao meu lado no chão da creche, aguardando o início da reunião.

Continuam a conversa e afirmam que o programa Minha Casa, Minha Vida é a maior burocracia

e a maior enganação. Reclamam que ele oferece apartamentos em “predinhos que não cabe

ninguém” construídos em locais sem infraestrutura comercial (açougue, padaria, mercado,

farmácia) e muito distantes dos centros mais bem estruturados. Locais que, ademais, não

possuem transporte público adequado para garantir a mobilidade dos moradores em diferentes

horários do dia.

85 Gustavo se refere ao programa federal de apoio à aquisição de moradia por famílias de baixa renda. Pelo programa Minha Casa, Minha Vida, famílias com renda familiar até R$ 1.800,00 podem ter o benefício da primeira faixa de financiamento (Faixa 1), com prestações mensais que variam de R$ 80,00 a R$ 270,00 conforme a renda bruta familiar e prazo de até 120 meses para quitação. A garantia para o financiamento é o próprio imóvel adquirido.

207

A conversa é interrompida pela coordenadora que inicia a reunião. “Vocês precisam

saber que o direito é pra todo mundo!”, começa Bárbara, uma mulher forte, bem articulada,

cujos quadris cobertos por um short jeans bem justo parecem dançar enquanto ela movimenta

os braços e encadeia as palavras que saem da boca. Sua pele morena e seus olhos verdes indicam

sua origem mestiça e lhe conferem uma beleza pouco comum. Com firmeza, ela assegura que

“lutar pela moradia da gente não é errado! Se alguém chegar pra vocês e falar que isso tá errado,

não tá errado, estamos lutando por um direito da gente”.

Naquela tarde de primavera, após retornar ao Brasil do doutorado-sanduíche em

Portugal, fui a uma das ocupações para conversar com Cláudia, uma das lideranças do MLB

que acabou por se tornar uma importante conexão entre mim e os desafios, enfrentamentos,

conquistas desse movimento. Através dos meus contatos com ela, por telefone, WhatsApp e

visitas à sua casa, recebi, ao longo da pesquisa, notícias sobre os acontecimentos e eventos nas

ocupações, o que me possibilitou acompanhar as conexões de suas famílias com o agenciamento

guerreiro montado pelas lideranças do MLB e pelas comunidades a ele ligadas.

Ao chegar na ocupação, fui convidada a participar de uma “reunião do movimento”.

Marcada para acontecer na creche comunitária daí a uma hora, não pude recusar o convite: claro

que eu iria, seria um prazer. E assim o fiz, entrando na creche no horário marcado junto com

outras pessoas que também chegavam para a reunião. Eram pessoas de diferentes idades,

algumas sozinhas, outras com suas famílias, crianças e bebês. Assentei-me no chão, pois era

este o caso – ou teria que ficar em pé, ou apoiar-me no beiral das janelas. As mulheres que

estavam no chão ao meu lado receberam-me de forma sorridente. Uma delas me perguntou se

eu estava ali por causa da luta [por moradia]. Expliquei-lhe que de certa forma sim, mas não

lutava por uma moradia para mim – estava ali como pesquisadora, para conhecer o movimento.

Na verdade, já conhecia diferentes aspectos desse movimento e, naquele momento, estava a

experenciar mais um de seus dispositivos. A cada experiência, eu entendia um pouco melhor

sua formação como máquina de guerra e o funcionamento de suas diferentes estratégias: ora

para forçar o Estado a reconhecer seus direitos, ora para inibir a opressão estatal (por vezes

muito violenta), ora para fortalecer e fazer proliferar as multiplicidades que compõem as suas

existências.

Como disseram Deleuze & Guattari (1980/1997b), ao efetuar-se como máquina de

captura e ressonância, o Estado delimita seu interior, abrangendo o que se passa sob suas

estruturas e deliberações. O interior do Estado envolve inclusive suas políticas externas, sua

relação com outros Estados. No entanto, os autores frisam que a formação de qualquer Estado

208

precisa lidar com o Fora, aquilo que se passa além ou aquém dos controles e ingerências estatais.

É possível pensar nas máquinas transnacionais empresariais, civis, artísticas ou religiosas que

podem gozar de grande autonomia de funcionamento e podem atravessar diferentes Estados.

Mas há ainda o Fora que se passa dentro ou nas franjas dos limites estatais. Fora que por vezes

se manifesta nos movimentos minoritários, nos grupos, maltas e organizações marginais que

não se cansam de escapar aos poderes e ingerências estatais; que não se cansam de lutar contra

o Estado; que se propõem a arranjar outras maneiras de existir diante de posições de subvivência

que lhes são destinadas pelos modos de vida hegemônicos.

Uma máquina de guerra é um dispositivo de Fora, ainda que ela possa ser sempre

capturada pelos aparelhos de Estado e colocada a seu serviço. E ela não tem, a rigor, a guerra

como fim. Em geral a guerra se torna o fim último quando a máquina é capturada e

institucionalizada pelo Estado, delegando a esta o papel militar de lutar, coibir, destruir e ou

matar em nome da manutenção dos interesses e estruturas estatais.

No caso das ocupações que visito, sua máquina de guerra agencia-se entre subviventes

de Belo Horizonte para lutar por moradia. Sua finalidade é produzir novas possibilidades de

subviver. Enfim eles não estão mais sozinhos. E este é um importante aspecto de um

agenciamento do tipo guerreiro: a exigência de que seus componentes produzam um complexo

articulado de números. Isso “[...] não implica de modo algum grandes quantidades

homogeneizadas, como os números de Estado ou o número numerado86, mas produz seu efeito

de imensidão graças à sua articulação fina, isto é, à sua distribuição de heterogeneidade num

espaço livre” (Deleuze & Guattari, 1980/1997b, p. 67).

Os números, em um agenciamento guerreiro, são os elementos que compõem a força da

máquina, sua velocidade turbilhonar, seus movimentos estratégicos e seu preparo logístico, sua

capacidade de enxamear e confluir, as condições para sua afirmação e sua vitória. Mais do que

de sujeitos, com suas identidades e dramas, suas vaidades e medos, uma máquina de guerra

demanda o engajamento subjetivo para a produção de um corpo numérico, “espírito de corpo”,

capaz de assumir posições, capaz de compor com outros corpos (humanos e não humanos),

capaz de articular a diplomacia, a espionagem, a retórica, a força. O corpo numérico não é

importante apenas para as situações de combate e enfrentamento; é preciso “um número de

86 O número guerreiro, nômade ou numerante difere-se do número numerado. Este se efetua nos cálculos e abstrações capazes de medir, dividir, estriar o espaço e segmentar pessoas, coisas, fluxos. O número guerreiro “já não é um meio para contar nem para medir, mas para deslocar” (Deleuze & Guattari, 1980/1997b, p. 65). Aqui, deslocar e ocupar.

209

números” capazes de organizar as reservas e os estoques, capazes de promover a manutenção e

o cuidado com as pessoas e as coisas. Gustavo, o vizinho mais abastado das ocupações a que

me referi acima, parece estar enganado em seu argumento: aqueles que se dispuseram a fazer

as ocupações próximas ao apartamento de sua família não o fizeram porque não “correm atrás”

das saídas propostas pelos aparelhos de Estado ou porque não têm educação. Ao contrário, eles

desejaram e se dispuseram a compor um agenciamento guerreiro com todos os seus riscos.

Eles estão dispostos a correr atrás, organizar-se, lutar e, para tanto, precisam efetuar – o que

exige um tipo de educação mais nômade do que a educação sedentária ensinada pelos aparelhos

de Estado – toda uma “[...] ciência da articulação dos números de guerra” (Deleuze & Guattari,

1980/1997b, p. 68).

Bárbara explica, na reunião de que participo na creche comunitária, a importância

numérica para a construção de uma máquina de guerra capaz de ocupar um terreno, transformar

suas destinações já estabelecidas dentro dos braços do Estado e criar um espaço liso87, mesmo

que novos estriamentos venham depois. A princípio, o que conta é somar como número, com

disposição para integrar o coletivo e participar das estratégias que a máquina de guerra coloca

para funcionar. Ela convoca: “a gente tem que tá unido aqui pra gente ter espaço!”.

É sempre preciso persistência para compor um agenciamento guerreiro. Neste caso, os

presentes na reunião são convocados a assumir duas frentes na engenharia que organiza a

máquina guerreira de ocupar. De um lado, implicar-se na montagem da logística da máquina de

guerra; de outro, envolver-se na construção de um corpo com os números necessários e

suficientes para a guerra.

Bárbara conta como funcionaram outras máquinas como a que pretendem formar.

Explica que, para participar em uma ocupação, cada família deve contribuir com R$ 150,00 em

seu ingresso no movimento e com R$ 10,00 por mês até que o processo seja concluído, com

direito a uma carteirinha. O pagamento das contribuições é feito de acordo com as condições e

os prazos possíveis para cada família, com negociações e ajustes sempre que necessário.

“Quando a gente faz a ocupação, o que acontece?”, pergunta. E esclarece que, ao entrar em um

terreno, é preciso que as famílias se distribuam no espaço ocupado para preenchê-lo, armando

barracas de pau e lona onde irão dormir; é preciso fazer a cozinha e o banheiro comunitários; é

87 Um espaço liso é um espaço não estriado, dividido, segmentado ou apropriado. É ainda um espaço que, por uma operação de guerra (como neste caso), é destacado de suas segmentações, retirado dos estriamentos definidos pelos aparelhos de Estado, uma Terra que volta a ser uma terra, por assim dizer. Sobre o conceito de espaço liso para Deleuze e Guattari, conferir as contribuições de Zourabichvilli (2004).

210

preciso levar água, gás de cozinha, mantimentos, materiais elétricos e outros; é preciso montar

a portaria e a segurança do local. Grande parte dos valores arrecadados são para isso, pois “a

primeira coisa que acontece quando a gente entra na ocupação é polícia em cima, né? Como

que a gente vai resistir se a gente não tiver levado nada? Quem é que vai ficar três, quatro, cinco

dias sem comer?”. Destaca ainda a importância dos recursos para a construção da creche

comunitária, especialmente se não há creches próximas para onde as crianças possam ir:

“quando a gente faz a ocupação, tem que fazer a creche logo. Se não, a primeira coisa que eles

[os homens do Estado] fazem é usar as crianças, tirar as crianças da gente”. Além disso, há os

custos até a realização da ocupação, com panfletos, passagens de ônibus e outras estratégias

para difundir o movimento e trazer mais pessoas para compor a máquina guerreira: “A gente

precisa... não tem como... Vocês acham que só este tiquinho de gente que tá aqui hoje dá uma

ocupação?! [...] A gente faz panfletagem, entrega os ‘mosquitinhos’, chama as pessoas. [...]

Porque a gente junto... a gente precisa crescer este grupo para ter força”, conclui Bárbara. Com

efeito, é preciso militar por um povo por vir para que a máquina funcione, é preciso buscar,

como disseram Deleuze e Guattari (1980/1997b, p. 47), “essa sustentação popular”. É preciso

desejar um povo, invocá-lo, contagiá-lo, esperá-lo e acolhê-lo no momento oportuno. A

máquina existe para este povo, mesmo se ele ainda falta.

Como agenciamento nômade, a máquina de guerra é marcada por sua instabilidade, pela

possibilidade constante de que alguns a abandonem ou mesmo de que ela ganhe a adesão de

muitos e uma força impressionante. Cabe frisar que a participação na máquina guerreira aqui

tratada é aberta a qualquer um, ou melhor, a um qualquer. Valho-me da expressão cunhada por

Agamben (1993) em suas proposições para A comunidade que vem. Acompanhando as

reflexões desse filósofo, é possível pontuar que não se trata de considerar que a participação na

máquina guerreira de ocupar é aberta a qualquer um indiferentemente, em especial quando

consideramos o termo latino que se refere ao ser qualquer – quodlibet:

A tradução corrente, no sentido de “qualquer um, indiferentemente”, é certamente correta, mas, quanto à forma, diz exatamente o contrário do latim: quodlibet ens não é “o ser, qualquer ser”, mas “o ser que, seja como for, não é indiferente”; ele contém, desde logo, algo que remete para a vontade (libet), o ser qual-quer estabelece uma relação original com o desejo. (Agamben, 1993, p. 11)

A abertura para a participação a uma pessoa qual-quer na máquina de ocupar não supõe,

assim, um sujeito em sua indiferença ou uma indiferença em relação a quem cada participante

é. De outro modo, trata-se de assumir cada um e cada família participante em sua singularidade

tal como é. Cada pessoa pode se engajar com sua singularidade, e não por causa de certas

211

características que lhe garantiriam a condição de pertença ao conjunto. Qual-quer um pode

participar, tal como é, desde que assuma, desde o início, a importância do engajamento do

desejo. Nesse sentido, Patrícia me explica que podiam participar do movimento famílias as mais

diversas:

As composições familiares são do jeito que elas [as famílias] querem! [...] Não impomos nada. Se querem morar 20 pessoas numa casa, moram. Se quer morar uma, mora. [...] Então tem de tudo numa ocupação. Tem avó que cuida de neto; têm amigos morando juntos; têm muitos casais LGBT. (Patrícia)

De fato, as ocupações organizadas pelo MLB historicamente acolhem muitas pessoas

que não “cabem” no modelo nuclear moderno de família. Há, no entanto, uma limitação ético-

política: todos são bem vindos para somar à luta, mas para consolidar a conquista de um lote

no terreno ocupado qual-quer um deve mesmo necessitar deste como sua única possibilidade

moradia própria. Além disso, pessoas e famílias devem se implicar com o coletivo, dispor-se

como corpo numérico para as ações que irão percorrer o terreno ocupado e lutar por ele. Aqueles

que já têm um imóvel e querem construir mais uma morada no terreno ocupado são expulsos;

aqueles que abandonam a luta sem justificativa também.

Uma das coisas mais difíceis em um agenciamento guerreiro nômade, especialmente

quando consideramos os processos de subjetivação a que os homens e as mulheres submetidos

ao Estado estão acostumados, é conseguir sustentação e duração não sedentárias pelo tempo

suficiente da luta. A pergunta seria: como conseguir manter um funcionamento guerreiro sem

instituir as segmentações, estruturas, burocracias, hierarquias, pertenças, apropriações,

sobrecodificações, conjugações e capturas que fazem brotar um Estado e o consequente

endurecimento das linhas do agenciamento e das relações de poder? Ou ainda: como sustentar

uma máquina de guerra “em si mesma” quando lhe faltam os mecanismos de captura tal como

em um Estado com seus regimes de obediência e servidão? Com efeito, na máquina de ocupar

que aqui abordo, as pessoas só permanecem ligadas a ela porque querem. Podem ir embora a

qualquer momento e se muitas o fizerem, o agenciamento se dilui, a máquina se desmonta. É,

por isso, necessário produzir um outro tipo de agenciamento de desejo, corpos, palavras e

coisas, outras maneiras de pensar e agir, outra sensibilidade que mantenha as pessoas unidas, o

desejo de lutar vivo, a força estratégica presente, o que nunca quer dizer que não existam regras

e segmentações que também fazem parte.

É preciso ainda admitir que a previsibilidade do processo não está assegurada e que

qualquer movimento da máquina, qualquer ação é sempre recheada de riscos e possibilidades

212

de perda. Aqui lembro-me das reflexões do Comitê Invisível (2016) sobre a importância de se

manter viva, a todo momento, a força de um mundo comum. Força capaz de instaurar um

regime de verdade, de abertura e sensibilidade que engaja um povo qual-quer ao que está sendo

construído, mesmo que lentamente. Na reunião, Bárbara explica aos presentes que o processo

de montar uma ocupação pode demorar um, dois, três anos. Semanalmente é feita uma reunião

com os interessados; são feitas também ações para mobilizar novas pessoas e fazer crescer os

envolvidos. A participação é fundamental, uma vez que “cada um conquista o seu pedaço” – na

máquina, no movimento, no terreno. Paulatinamente é importante firmar o grupo com as

famílias que perfaçam as condições qualitativas da máquina guerreira de ocupar: deve-se ter o

número de famílias suficiente e capaz para efetuar as estratégias da luta conforme as

características do terreno; ou então, deve-se encontrar o terreno adequado para o número e as

características das famílias que à máquina se vincularam. Nesse processo, a importância das

lideranças do MLB que voluntariamente permanecem dedicados às lutas por moradia, mesmo

se já conquistaram a sua casa, está nos conhecimentos que detém, nas experiências que já

vivenciaram, nos contatos que possuem, na sua capacidade de articulação estratégica e logística,

no seu papel de sustentar as orientações ético-políticas que não deixam uma ocupação “virar

bagunça”. Elas e eles aprenderam que, antes de ocupar, é preciso organizar a máquina, distribuir

os números, criar o corpo coletivo, preparar a luta, antecipar os riscos. E, mesmo com tudo isso,

há sempre o risco de serem despejados, inclusive com violência: “pode ser que sim, pode ser

que não”, pondera Bárbara, que explica que o movimento não pega a contribuição financeira

das famílias, identifica um lote vazio qualquer e organiza ali a ocupação, correndo o risco da

polícia chegar no dia seguinte cedo retirando todo mundo. Há sempre um criterioso estudo do

terreno:

A gente vai pegar um terreno que a pessoa não paga imposto, que não é de ninguém, o dono não aparece... e a gente vai ter certeza disso. Aí a gente vai, coloca as famílias lá. Pode ser que tenha despejo, mas a gente faz de tudo para não ter. Porque se tem, tudo que a gente construiu hoje, a gente vai perder e vai ter que construir tudo de novo. (Bárbara)

Nesse contexto, há um pacto de confiança fundamental: as famílias organizam-se para

uma ocupação cujo terreno em estudo é mantido em sigilo até o momento de ocupá-lo. Em toda

guerra é prudente manter certos segredos... E quando o momento chega, é preciso colocar a

máquina de guerra para funcionar com sua velocidade turbilhonar, sua capacidade de ocupação

do espaço tornado liso, sua força de resistência. Uma ocupação é montada com barracas de lona

em poucas horas, mas é necessário que as famílias nelas permaneçam por dias ou por meses à

espera de todas as negociações com as autoridades e envolvidos até que o processo de

213

autorização da construção das casas e de regulamentação urbana (como realizar a divisão do

loteamento, abertura das vias de circulação conforme as normas vigentes no Estado, etc.) se

defina. Nesse cenário, junto com o desejo e a força para a luta, há o sol e o calor, há a chuva e

o frio, há o medo e a possibilidade da violência, há a precariedade da moradia, há a instabilidade

do processo – tudo isso atravessando as barracas e suas famílias.

E mesmo quando a ocupação consegue se firmar e os lotes são distribuídos entre as

famílias, mesmo quando as barracas de lona são substituídas por barracos de madeirite ou casas

de alvenaria, mesmo quando alguma estabilidade já foi alcançada, ainda assim, há muito a se

fazer. Patrícia sorri enquanto me conta da conquista da energia elétrica na ocupação onde mora.

Conta-me que foi preciso lidar com muitos enfrentamentos. Inicialmente foi instalado um

“gato” para levar luz às casas, feito por um eletricista que fazia parte da máquina de guerra. O

eletricista fez a lista do material necessário para que a luz fosse retirada de um poste de

iluminação pública próximo com segurança e distribuído entre os moradores no terreno.

Fizeram uma “vaquinha” para arrecadar o dinheiro e executaram o procedimento. A seguir,

começaram a tentar regularizar a iluminação nas ruas e nas casas da ocupação junto à

Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), responsável pela fornecimento de energia

elétrica nos municípios do estado. Contudo, Patrícia destaca que a Cemig apenas foi lá para

retirar o “gato” e que, por isso, foi necessária uma mobilização coletiva para produzir um

bloqueio humano de proteção do poste de luz. Grupos de moradores se alternavam em torno do

poste para que os funcionários da Cemig não tivessem acesso a ele e cortassem a energia do

“gato”:

Tivemos que fazer acampamento em torno do poste. A Cemig e a gente. Vocês terão que passar por cima da gente se quiserem desligar. Argumentamos que tinha muita gente que dependia dessa luz e ela [Cemig] não podia cortar! A gente não paga não é porque a gente não quer, é porque vocês não colocam [os padrões regularizados de luz]. (Patrícia)

A luta pela luz durou várias semanas. A Cemig acabou por concordar em colocar a

estação de distribuição elétrica, mas, para tanto, informou que a prefeitura do município

precisava colocar os postes para a iluminação pública, uma vez que isso era de sua competência.

A prefeitura, por sua vez, argumentou que não podia instalar os postes, pois, para tanto,

precisava de um projeto de lei aprovado pela Câmara dos Vereadores. Já os vereadores

receberam com descaso o pedido e os argumentos dos moradores, informando que não havia

interesse público no caso. A saída encontrada pelo movimento foi juntar moradores dispostos

e invadir a Câmara, ali permanecendo até o projeto de lei ser colocado em discussão. “Saiu

214

gente nossa machucada de lá, mas não tinha outro jeito. Já tínhamos tentado todas as saídas”.

Depois disso, a energia elétrica foi instalada rapidamente.

“Alguns dizem que somos muito radicais, mas a gente teve que ser”, analisa Patrícia em

nossa conversa. Sua expressão sóbria e sincera me mostra que ela não tem expectativas de que

a luta, um dia, possa ser dada por concluída. No caso dos subviventes, é preciso estratégia,

perspicácia e organização constantes contra as necropolíticas que produzem sua miséria ou seu

extermínio. Melhor que suas máquinas de guerra consigam permanecer a postos. Patrícia

conclui: “A luta continua. Agora conseguimos água [...] Para conseguir a água, tivemos que

sequestrar um caminhão pipa que ficou dois dias dentro da ocupação. A Copasa88 viu que a

gente não ia liberar o caminhão e começou o processo de regularização [da distribuição] da

água para a comunidade”.

* * *

Por que falo de uma máquina de guerra? Porque não é possível abordar as famílias das

ocupações que visitei sem ressaltar suas conexões com o agenciamento guerreiro no qual

escolheram ingressar. Agenciamento que atravessa as dinâmicas familiares, inclusive

intervindo nelas quando necessário; que viabiliza uma rede de amparo e proteção, incluindo

cada uma das famílias em um funcionamento que é sempre maior do que elas; que tem força

coletiva suficiente para mobilizar o apoio de moradores de diferentes comunidades, para

conseguir a contribuição de profissionais de diversas organizações e para negociar ou

confrontar os aparelhos de Estado, mesmo quando não conseguem vencê-los ou são reprimidos

por eles. Por isso, qualquer análise das famílias dessas ocupações deve considerar as conexões

destas com a máquina de guerra a qual se vincularam e mantêm relações, mesmo após a

conquista da posse de um lote para a construção da casa própria.

Além disso, conhecer as conexões de famílias com uma máquina de guerra pode

significar o encontro com outras possibilidades de resistir e de existir diferentes das lógicas

sociais, políticas e familiares a que estamos acostumados nestes tempos em que o capitalismo

planetário se beneficia das estratégias do Controle e das práticas de Exceção. Lógicas que,

muitas vezes, acabamos por naturalizar como a única ou a melhor maneira de ser uma família,

88 A Copasa é a companhia de saneamento de Minas Gerais, responsável pela distribuição de água potável e tratamento do esgoto no estado.

215

de construir vínculos com aqueles que vivem em nosso entorno ou de admitir a intervenção

estatal. Com efeito, o sujeito moderno pode aprender muitas coisas com os Outros, tais como

os povos indígenas originários, os quilombolas e os que, segmentados como pobres dentro das

lógicas capitalistas, encontram maneiras guerreiras de deslocar-se da subvivência.

Nesse sentido, como assinalam Deleuze e Guattari (1980/1997b, p. 32), “a máquina de

guerra entretém com as famílias uma relação muito diferente daquela do Estado. Nela, em vez

de ser uma célula de base, a família é um vetor de bando”. Em um agenciamento guerreiro, o

que importa, antes de tudo, é “a potência ou virtude secreta de solidariedade” que faz com que

as famílias interessem-se menos por suas particularidades genealógicas, por seu lugar nas

segmentações sociais, por suas relações com os aparelhos de Estado do que por agir de modo

que as genealogias das famílias (co)movam-se, atravessem-se, componham-se como “corpo de

guerra”.

Ainda assim, é importante reconhecer que as famílias das ocupações que visitei não

funcionam somente como agenciamento guerreiro; elas são compostas, em boa medida, pelas

linhas que sustentam o modo de vida dominante em seus enlaces com o Estado e com o Capital.

Seus sonhos, desejos, lógicas e percepções, suas maneiras de amar e relacionar-se em diferentes

níveis são perpassadas pelo diagrama das forças sociais em vigor. Elas estão, por isso, entre a

máquina de guerra e os ditames, valores, práticas, sonhos que o capitalismo não se cansa de

propagandear através das ferramentas informáticas. Elas estão entre a máquina de guerra e a

vigilância e os confinamentos determinados em nome da Paz pelo Estado. Se sua pertença a

uma máquina guerreira não exclui as conexões com o Estado e o Capital, nem com os valores

familiares e socioculturais dominantes nesta época, por outro lado, permite a emergência de

novas “margens de manobra”, novos acordos, novas alianças e novas forças colocadas em jogo.

Por certo, novas segmentações nascem à medida que um agenciamento guerreiro precisa

institucionalizar uma maneira sedentária de ocupar uma terra para garantir melhores condições

de vida para os que dele fazem parte. No caso da máquina guerreira de ocupar, isso é necessário

especialmente porque ela foi montada em um contexto sócio-histórico em que as lógicas

capitalistas privadas são hegemônicas. Se, por um lado, a organização sedentária da terra

ocupada é necessária para seu reconhecimento pelo Estado e por outras estruturas sociais, por

outro lado, é preciso que os que fazem parte da máquina de guerra estejam atentos aos

constantes riscos de endurecimento das linhas de segmentaridade que instituem e de produção

de hierarquias e privilégios. É preciso que os que fazem parte da máquina de guerra sustentem

216

a potência do Fora que o nomadismo trouxe, mesmo se agora os fluxos nômades precisem

encontrar novos caminhos e velocidades.

Cláudia mostra-me o Termo de Compromisso que todos os maiores de 16 anos que

participam de uma ocupação coordenada pelo MLB precisam assinar, explicitando sua

concordância com o Regimento Interno de sua ocupação. Estudo com atenção as orientações e

normas que estão contidas ali e devem ser respeitadas por todos. Elas versam sobre a

importância da participação de cada integrante; sobre o necessário zelo para a construção de

um ambiente de respeito mútuo e cooperação coletiva; e sobre o modo como moradores e

famílias devem se organizar na ocupação. Para essa organização são formados núcleos de ruas

ou regiões com seus coordenadores – trata-se de uma instância que deve acompanhar de perto

as famílias e deve ser acionada sempre que há conflitos em alguma família ou entre vizinhos.

Há também as comissões de assuntos especiais que devem promover ações ligadas a educação,

limpeza, saúde, cultura, creche, lazer, alimentação, entre outras, para a comunidade. O “órgão

máximo” da ocupação é a Assembleia Geral. Suas decisões devem ser respeitadas e cumpridas

por cada um, sob pena de expulsão da ocupação. O artigo 6º do Regimento determina que todos

devem dedicar parte de seu tempo a atividades coletivas, que são distribuídas levando-se em

consideração as condições de cada um. O Regimento versa ainda sobre as faltas graves que,

uma vez investigadas pelo Conselho Geral da Ocupação, podem ser levadas para análise na

Assembleia Geral que decidirá pela expulsão ou advertência dos que as cometeram. Entre as

faltas graves estão a prática de furtos ou roubos, o abuso de bebidas alcóolicas e outras drogas,

a violência doméstica.

Ao longo da conversa sobre o Regimento, Cláudia me explica a importância da

participação de cada um, dentro de suas condições e recursos específicos. As pessoas que

participam das assembleias e atividades no MLB e que trabalham por um bom ambiente

coletivo ganham prioridade quando é preciso fazer escolhas como, por exemplo, no momento

da escolha de qual lote fica com quem, na definição das primeiras vagas na creche ou no

recebimento de doações quando estas são poucas. Ela me explica: “A gente sempre tenta que

todo mundo receba e do mesmo jeito. Mas às vezes não dá”.

Quanto à regularização das casas junto ao Estado89, Cláudia esclarece que isso envolve

muita negociação. Logo que a ocupação é feita, um cadastro com os dados de todas famílias

89 Essa regularização envolve a definição da área ocupada como Zona Especial de Interesse Social (Zeis) conforme regulamentação do Plano Diretor municipal e as diretrizes do governo do estado. Uma vez a área definida como Zeis, o MLB, junto com os órgãos competentes, define o número, metragem e

217

envolvidas é passado para os órgãos competentes, na tentativa de começar o longo processo

para legalizar a ocupação ou negociar a saída do local ocupado com as devidas garantias de que

todos serão realocados em outro local com dignidade e segurança para firmar sua moradia.

A efetiva permanência no imóvel construído na ocupação é condição fundamental para

a manutenção do direito ao lote e à casa. Nos primeiros momentos da ocupação, quando todos

precisam se implicar para fortalecer a máquina de guerra, quem se ausenta sem justificativa por

mais de três dias é considerado desistente e seu barraco é repassado para outra família.

Nenhuma família pode vender seu lugar na ocupação – seja sua barraca de lona ou o lote cuja

posse é transferida para seu nome, sob pena de ser expulso pelo movimento e ainda ser acionado

judicialmente pela prefeitura. Todos precisam assumir o lote e o barraco construído como seu

lugar de moradia; não é permitido conquistar um lote para ganhar dinheiro vendendo-o depois.

Quando o morador já construiu sua casa de alvenaria e é expulso, falece ou desiste da moradia,

pode reivindicar, mediante a apresentação de notas fiscais e recibos, o valor gasto com material

da família ingressante que é definida conforme sua participação no movimento. E, em todos os

casos, há um critério que o MLB coloca para seus integrantes e para as negociações com os

aparelhos de Estado: que a posse do lote e o direito à casa construída sejam registrados sempre

no nome da mulher de referência da família. O registro em nome do homem só pode ser feito

na ausência de uma mulher (um homem viúvo ou um pai sozinho com seus filhos, por exemplo).

Patrícia já havia me explicado que a experiência tinha ensinado às lideranças do

movimento que as ocupações em geral começam como uma luta das mulheres: “Os homens

vêm depois. É uma luta muito da mulher”. No entanto, sem a garantia do registro em seu nome,

muitas mulheres que retomavam ou começavam um relacionamento durante o processo da

ocupação perdiam o lote e a casa que tinham conquistado caso se separassem do marido,

companheiro ou namorado, uma vez que este acabava invocando seu poder de patriarca sobre

o terreno. Por isso, o movimento adotou, como uma de suas escolhas ético-políticas, agenciar

um especial apoio comunitário para que as mulheres – mulheres pobres e mais vulneráveis a

muitos tipos de violência em diversos níveis – pudessem articular novos arranjos de existir,

inclusive em suas alianças amorosas-conjugais. Patrícia considera que as lideranças do MLB,

mulheres e homens, lutam para que todos sejam respeitados em sua singularidade e

distribuição dos lotes para as famílias participantes, as vias de acesso e circulação interna, as áreas de preservação quando é o caso. Com essas definições, o terreno pode então ser dividido entre as famílias da ocupação que recebem o título de posse. O título é intransferível.

218

necessidades, que as diferentes configurações familiares sejam acolhidas, mas “a gente vai dar

mais apoio a quem precisa mais”.

Ocupação é um negócio que separa as pessoas e separa mesmo, porque é onde a mulher consegue entender que ela não precisa de tá com o outro pela questão da dependência financeira. Aí o número de mulheres que se separa porque sente o apoio do movimento é gigante, é gigante. Posso relatar agora umas dez aqui. Eu sou uma. (Patrícia)

Nesse cenário, os problemas familiares não são tratados como algo íntimo e reservado

aos seus membros. Como pontuei acima, a violência doméstica é uma falta grave que pode

acarretar a expulsão do abusador ou mesmo de toda a família, quando esta é condizente ou

omissa diante da situação violenta. Esta é uma outra escolha ético-política do movimento: tentar

enfraquecer as lógicas machistas difusas em nossa sociedade, principalmente quando elas

descambam na violência intrafamiliar física, psicológica, sexual ou outra.

Esse negócio que, em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher, o MLB mete a colher! Relação com os filhos, a gente mete a colher também. Relação de abuso, a gente mete a colher de novo, né? A gente sempre mete a colher. Esse negócio de que, ah, cada um cuida da sua vida não existe, cada um cuida da vida de todo mundo mesmo. (Patrícia)

Esse cuidado da coordenação do MLB sempre envolve, a princípio, conversar com os

envolvidos quando algum abuso, agressão, negligência, abandono é identificado ou se tem a

suspeita de que está ocorrendo. “É preciso entender o que acontece até para ajudar”, como

esclarece Cláudia, que narra a situação de um casal que, ao ser apoiado pelo movimento,

conseguiu sair da dinâmica violenta em que vivia. Nesse casal, “o marido batia muito, mas

muito mesmo, na esposa”. Eles haviam participado da luta em uma ocupação e só tempos

depois, quando já estavam em sua casa de alvenaria, a violência doméstica cotidiana foi

conhecida pela comunidade. Várias mulheres foram conversar com a vítima que, para o espanto

de todas, contou-lhes que achava isso [da mulher apanhar] normal, pois ela vivia assim com o

marido desde o início, quando se casou ainda muito jovem. Cláudia comenta que ficaram sem

saber o que dizer para a esposa, até que uma das presentes perguntou se ela tinha nascido

apanhando. Se não, como isso seria então normal? Deste momento em diante, em conversas

com a esposa e o marido, o grupo de mulheres que se organizou para ajudá-los foi mostrando

ao casal que mulher não nasceu para apanhar. “Fomos ganhando [o casal]. Nunca mais ela

apanhou!”, conclui Cláudia.

Em outros casos, no entanto, as forças que procuram manter as linhas de segmentaridade

já instituídas resistem à sua flexibilização ou transformação. Nesse sentido, Cláudia me conta

219

uma intervenção feita por Patrícia para evitar que uma mulher fosse enforcada por seu marido

dentro de uma das ocupações. Chamada às pressas pelos vizinhos, Patrícia conseguiu libertar a

mulher que, no dia seguinte, acabou indo até sua casa e quebrando a porta da entrada para entrar

e agredi-la, sob a justificativa que Patrícia havia tentado atrapalhar o casamento dela. Algum

tempo depois, com a persistência das agressões sofridas, a mulher procurou a coordenação do

movimento na comunidade que, a partir da abertura dada, conseguiu ajudá-la para que ela se

separasse do marido. “Tem que ter a abertura [da família], se não, a gente não consegue ajudar”,

afirma Cláudia. Quando as situações de abuso, negligência, violência mostram-se rotineiras e

sem abertura para mudança, as lideranças convocam a Assembleia que decide, em geral, pela

expulsão do agressor da comunidade. Cláudia lembra que, em alguns casos, as mulheres

escolhem acompanhar o marido ou companheiro, alegando que não vivem sem ele. Nesses

casos, toda família é retirada.

Nesse cenário, é possível considerar que o compromisso ético-político e as estratégias

comunitárias efetuadas pelos integrantes das ocupações e suas lideranças não eliminam o

machismo, nem a violência que acometem algumas famílias. Ainda assim, eles abrem brechas

e permitem a produção de linhas de fuga em vários casos. E não apenas nas dinâmicas familiares

“em si”. Por vezes, as linhas de fuga atravessam outras segmentações e transformam, por

exemplo, as divisões de gênero no trabalho. É o que aprendo com a ideia de algumas mulheres

do MLB: diante de suas separações ou mesmo da ausência de maridos, companheiros ou

namorados, precisaram aprender a construir elas mesmas as suas casas e se tornaram “mulheres

construtoras”, responsáveis por muitas casas levantadas nas ocupações e em outras vilas e

favelas. Juntas e apoiadas por um grupo de arquitetas formadas, elas compõem hoje o projeto

Arquitetura na Periferia90 que visa capacitar mulheres que querem e ou precisam construir por

si mesmas ou com alguma ajuda de terceiros suas próprias casas.

* * *

Para finalizar, é possível argumentar que um agenciamento guerreiro como o que aqui

abordo só funciona como tal (o que já não seria pouco) até que a ocupação se estabeleça, que

as famílias dividam o espaço, definam posses e pertenças, promovam partilhas e cercamentos,

transformem o espaço liso onde sua força nômade pode agir em espaço estriado e em

90 Sobre o projeto, conferir https://arquiteturanaperiferia.org.br/

220

funcionamento sedentário. Mas, nessa perspectiva, olha-se com olhos de quem encontra apenas

o Estado por toda a parte... Talvez seja necessário empreender o exercício sensível de perceber

o que da máquina de guerra se mantém, de forma transversal ao que se passa enquanto a

comunidade dessas ocupações se forma. Ademais, nenhuma luta termina com as paredes das

casas erguidas, como me ensinaram as lideranças do MLB e que procurei mostrar aqui. É aí que

a luta está começando. Apenas os confiantes em excesso no sonho moderno de que o progresso

irá nos levar ao fim da História; apenas os convictos de que não há ordem possível que não a

promovida, ainda que pela violência, pelos aparelhos de Estado; apenas os seguros de que não

há vida melhor que a prometida pelo Capital, com os enlaces religiosos, culturais, filosóficos

que este foi muito eficiente em promover; apenas estes, mesmo que eles sejam hoje a Maioria,

acreditam que algum dia nossas lutas, conflitos, aprendizados, erros, invenções, ajustes e fugas

irão terminar.

221

222

Capítulo 7

UM DIA, DEPOIS DE AMANHÃ (CONSIDERAÇÕES FINAIS)

Diante de um inimigo invisível

01 de abril de 2020, 7:36h. Olho pela varanda do meu quarto o dia ensolarado que se

insinua lá fora. Observo surpresa que a neblina acinzentada que escurece a camada de céu mais

próxima do chão não está ali. Acho que nunca havia observado a vista de Belo Horizonte que

tenho o privilégio de ter da minha casa tão limpa da poluição que usualmente recobre a cidade.

Mas, mais do que a imagem, a sonoridade desse dia me chama a atenção: escuto apenas as

cigarras, os grilos e os pássaros que sobrevoam o pedaço de mata tombado pela prefeitura como

área de preservação ambiental ao lado da minha casa. Quase nenhum som vem do lado oposto,

onde máquinas da construção civil usualmente trabalham durante a semana a erguer prédios

residenciais e estabelecimentos comerciais que irão povoar a região próxima de onde moro,

máquinas que começariam a emitir seus zumbidos, roncos e estalos antes das 7:30h da manhã.

Tampouco escuto o motor dos carros que normalmente, nesse horário, passam frenéticos na

avenida a 500 metros daqui. Uma incômoda sensação de que restei sozinha neste mundo me

assalta a alma, faz-me sair rapidamente do quarto e encontrar a expressão assustada de meu

filho ao me ver tão esbaforida logo de manhã. “O que aconteceu, mamãe?!”, ele me pergunta.

Apenas sorrio e o abraço com a gratidão de quem constata que está a salvo da mais concreta

das solidões.

Em uma “situação de normalidade” (para usar um termo muito empregado atualmente

pelos homens de Estado), meu filho com seus dez anos e sua irmã de oito estariam na escola

nesse horário, enquanto eu estaria a me dedicar à escrita desta tese. Contudo, há duas semanas

estamos confinados em casa. Apenas eu saio e isso eventualmente, para ir ao supermercado ou

à farmácia adquirir o que não consigo comprar pelos sites dos estabelecimentos com serviço de

entrega em domicílio. Tal atividade corriqueira agora parece uma verdadeira operação de

guerra, organizada em conformidade com a avalanche de informações recebidas nessas

semanas de parentes, amigos e colegas da área da saúde, conferidas em sites de universidades,

de centros de pesquisa, de entidades públicas e de jornais em que confio. Só saio de casa munida

de máscara e um frasco de álcool em gel para higienizar as mãos no bolso (a bolsa foi deixada

em casa após a primeira semana de confinamento, uma vez que pode encostar nas prateleiras

do supermercado ou no balcão da farmácia). Levo, também no bolso, a lista dos itens que devo

223

comprar anotada em um papel que será descartado ao final da tarefa e o cartão bancário. Não

entro mais nos elevadores dos estabelecimentos, uso as escadas ou as rampas; limpo os

carrinhos de compra com o álcool gel antes de tocá-los; procuro manter a distância das outras

pessoas que também fazem as suas compras, algumas usando máscaras como eu91; tento tocar

apenas no estritamente necessário. Após guardar as compras feitas no porta-malas do carro,

limpo as mãos com o álcool gel, limpo a chave que já toquei. Ao chegar em casa, deixo os

sapatos no carro para que não espalhem pela garagem e pela casa o que tiverem “pegado” na

rua. Ainda limpo os pés no pano com água sanitária deixado na porta. Deixo as compras na

bancada do lado de fora da casa para que tudo seja limpo antes de entrar. Desinfeto as mãos e

as partes que toquei do carro. Tomo banho e ponho a roupa usada para lavar. Finalmente

descanso, exausta de tanta tensão. Pergunto-me se tudo isso é realmente necessário. Consolo-

me, afirmando que estou a fazer o que parece ser o melhor diante de um inimigo invisível, este

minúsculo vírus que pode estar em qualquer lugar e para o qual meu corpo, como o de bilhões

de humanos viventes desta época, não têm ainda defesa imunológica.

Identificado na China no final de 2019 e notificado à OMS (Organização Mundial de

Saúde) em 31 de dezembro desse ano, o vírus – o coronavírus SARS-CoV-2 causador da doença

denominada Covid-19 – alastrou-se em menos de três meses por todo o planeta, tornando-se

uma pandemia de grande impacto global. Provocando desde dores de cabeça, tosse seca, febre,

diarreia e dores pelo corpo até quadros de insuficiência respiratória grave, entre outros

problemas renais e cardiovasculares que exigem a internação hospitalar para apoio de

respiração mecânica ou tratamento em UTIs, o novo vírus tinha infectado, até este início de

abril, mais de 900 mil pessoas em 187 países e causado a morte de quase 46 mil pessoas. E a

curva de contágio mantinha-se em crescimento no mundo.

Em minha casa, confinada, lembro-me da greve dos caminhoneiros ocorrida há quase

dois anos, em maio de 2018, e que havia funcionado para a introdução a este trabalho como um

importante analisador de nossas condições de vida atuais92. Naquele momento eu havia sido

tomada por uma sensação de deslocamento, de distanciamento em relação ao modo de vida

hegemônico que se impunha cotidianamente em minha rotina de vida. A greve me proporcionou

91 No dia 22 de abril entrou em vigou o Decreto n° 17.332/2020 da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) que passou a exigir, em minha cidade, o uso de máscaras com cobertura do nariz e boca de toda e qualquer pessoa circulando em espaços públicos, em transporte coletivo ou em estabelecimentos comerciais, industriais, de serviços de saúde e outros. O novo decreto determinou ainda o controle do número de pessoas permitidas dentro dos estabelecimentos conforme a área (uma pessoa a cada 13 m²). 92 Sobre a greve, retomar as reflexões apresentadas no primeiro capítulo.

224

uma outra relação com o tempo e com o espaço, além de novas experimentações: pude deixar-

me ficar em casa com o corpo e os afetos disponíveis para meus filhos, já que as minhas

atividades como professora universitária e as atividades do doutorado haviam sido suspensas,

bem como as atividades escolares das crianças. Além disso, com o carro paralisado na garagem

por causa da falta de combustível nos postos de abastecimento, pude experimentar uma relação

mais próxima das casas, das ruas e das pessoas que circulavam pela cidade, fora da caixa de

ferro, vidro, borracha, plástico e outros derivados de petróleo que é um automóvel. Durante a

greve, acabei circulando mais de bicicleta, intensifiquei os passeios a pé com as crianças,

articulei caronas com amigos para deslocar-me pela cidade, situações que eram fonte de bons

encontros e prazer. Pude experimentar, por isso, outras conexões com a cidade, com as pessoas

e comigo mesma.

Desta vez, no entanto, medidas restritivas de circulação e de aglomeração de pessoas

tanto em espaços públicos como privados, embasadas nas experiências de outros países, nas

determinações dos órgãos de saúde e nas recomendações de vários centros de pesquisa e

especialistas, haviam sido decretadas por governadores e prefeitos em quase todo o território

brasileiro. O objetivo era “achatar a curva epidêmica”, ou seja, conter a rápida expansão da

pandemia da Covid-19 e evitar uma sobrecarga dos sistemas de saúde pelo elevado número de

infectados. Se, por um lado, a permanência em casa tornou-se uma exigência de saúde e boa

parte das atividades rotineiras de quase todas as pessoas foram paralisadas em sua execução

costumeira, por outro lado, essa realidade mais me empurrou para dentro e para o fundo das

demandas e exigências do sistema político-econômico-cultural em vigor do que me permitiu

distanciar dele com a ponta de entusiasmo que havia feito com que eu vislumbrasse, durante a

greve dos caminhoneiros, outras maneiras de existir.

Diferente da greve, agora as aulas não foram suspensas, mas transferidas para o regime

letivo remoto, com suas novas exigências e especificidades. Deparei-me com o fato de que o

cronograma de atividades e toda a preparação para as aulas a serem realizadas dentro da

universidade ao longo do semestre tinham caducado. Ao mesmo tempo, recebia e-mails e e-

mails das chefias lembrando aos professores da universidade que não estávamos de férias e que

deveríamos programar atividades online, postar videoaulas, fazer videoconferências, dar

devolução das atividades feitas, estudar os tutoriais das novas ferramentas de trabalho, elaborar

trabalhos e provas adequados para o meio virtual. Recebia ainda, a qualquer hora, mensagens

de alunos com dúvidas, sugestões, pedidos, ou mensagens que eram somente um desabafo

diante da ansiedade pelo momento, das dificuldades com as novas ferramentas virtuais de

225

ensino-aprendizagem, das incertezas sobre o que irá nos acontecer. De fato, vi minha demanda

de estudos e da escrita para o doutorado misturar-se às novas demandas de trabalho e ainda à

presença ininterrupta das minhas duas crianças confinadas em casa. Não apenas as crianças

estavam em casa o tempo todo, com seu desejo de atenção e carinho, com suas constantes brigas

entre irmãos, com sua vontade de brincar e gargalhar enquanto a mamãe dava aulas síncronas

(em tempo real) e gravava videoaulas; estavam em casa também as suas tarefas escolares. A

escola deles havia adotado um regime remoto com as atividades dos alunos enviadas por e-mail

para seus pais. Como desabafou uma mãe em um grupo de WhatsApp, “as crianças não

conseguem fazer as tarefas que as professoras estão mandando sem a ajuda dos pais!”. Por isso,

eu ainda precisava encontrar tempo e serenidade existencial para ajudar meus filhos em suas

tarefas e em sua insatisfação de “ter que ficar só fazendo ‘para casa’, sem poder brincar com os

amigos da escola”, como retrucavam todas as manhãs. A tudo isso, acrescentaram-se os afazeres

domésticos que tinham ganhado um volume muito maior com toda a higienização dos produtos

e com a permanência dos moradores dentro de casa. Afazeres que, com a ida de Tereza que

morava comigo e as crianças e nos ajudava, para a casa dos seus familiares, restava sob minha

responsabilidade com o apoio dos pequenos. A parte do cuidado e dedicação às crianças

assumida pelo pai tornou-se inviável, uma vez que, com seu trabalho como jornalista no front

de batalha para a cobertura da pandemia, concordamos que o melhor para as crianças era

permanecer mais distante dele e não frequentar a sua casa, apesar da tristeza e da saudade que

isso causava. Também os avós, importante ponto de apoio no meu cotidiano com as crianças,

isolaram-se por causa dos riscos de agravamento da Covid-19 em idosos93.

Além da minha própria rotina, acompanho de perto ou de longe as abruptas mudanças

nas vidas de todo o mundo. Todo o mundo, literalmente. Lembro-me, nesse cenário, das

palavras do líder indígena Ailton Krenak (2020) ao refletir sobre uma solução para salvar o Rio

Doce que foi contaminado por dejetos após o rompimento da barragem do Fundão da

mineradora Samarco em Mariana/MG em 2015, articulando-a à situação provocada pelo

coronavírus:

Quando engenheiros me disseram que iriam usar a tecnologia para recuperar o rio Doce, perguntaram a minha opinião. Eu respondi: “A minha sugestão é muito difícil de colocar em prática. Pois teríamos de parar todas as atividades humanas que incidem sobre o corpo do rio, a cem quilômetros nas margens direita e esquerda, até que ele voltasse a ter vida”. Então um deles

93 O coronavírus mostrou-se particularmente perigoso para pessoas acima de 60 anos ou com outras doenças preexistentes (OPAS, 2020).

226

me disse: “Mas isso é impossível”. O mundo não pode parar. E o mundo parou. (Krenak, 2020, p. 12)

* * *

O mundo parou. O mundo parou de formas e em momentos diversos, conforme a

disseminação da pandemia ultrapassou fronteiras regionais, nacionais, continentais e encontrou

características climáticas, demográficas e ambientais específicas. Mas, por todos os lados, a

Covid-19 estremeceu as condições socioeconômicas em virtude da desaceleração ou mesmo

paralisação das logísticas usuais de produção, distribuição e consumo, inibidas pelos medidas

sanitárias de restrição à circulação e à aglomeração de pessoas adotadas pela maior parte das

cidades, estados, países pelo mundo. Os transtornos socioeconômicos causados pela greve dos

caminhoneiros no Brasil em 2018 mostraram-se pequeninos diante da paralisia de muitas das

engrenagens do sistema capitalista em nível planetário94.

À medida que avançava, a pandemia escancarou desigualdades dentro e entre países,

mostrando como as vulnerabilidades econômicas, sociais, sanitárias, subjetivas impactavam

diretamente na maior suscetibilidade de certos indivíduos, comunidades e populações de

desenvolverem quadros graves da Covid-19 ou mesmo morrerem em virtude da doença. Sem o

intuito de esgotar todos atravessamentos e sem desconsiderar fatores como a idade do paciente,

a presença de comorbidades ou de características pessoais que também impactam no

agravamento da doença, é possível citar entre as vulnerabilidades que se tornaram visíveis: a

falta de leitos hospitalares, medicamentos, insumos e profissionais treinados para tratar os

doentes em certas regiões e países; o alto custo de tratamentos médicos em nações, mesmo

“desenvolvidas” como os EUA, que não contam com assistência pública à saúde para toda a

população, o que fez com que muitas pessoas sem recursos e sem convênios privados de saúde

adiassem a procura por cuidados médicos até sentirem acometimentos já avançados com a

doença; o elevado preço de testes confiáveis para detectar a infecção ou mesmo a falta destes,

que acabaram concentrados nos países, estados e cidades com mais recursos para adquiri-los

94 É emblemática, nesse sentido, a desvalorização histórica do petróleo nos EUA. Com a drástica redução da demanda por petróleo em virtude da diminuição da atividade econômica por causa da pandemia da Covid-19, no dia 20 de abril de 2020, o preço do petróleo negociado nos EUA desabou, sendo cotado em valor negativo pela primeira vez na história, com uma desvalorização de 306% (-US$37,63 / barril): os operadores estavam pagando para quem quisesse adquirir seus contratos futuros do petróleo estadunidense diante da falta de espaço para armazenamento do produto no país, o que traria ainda mais prejuízo para produtores e investidores.

227

ou melhor organizados para providenciá-los antes dos demais; as precárias condições de renda

e habitação de um grande contingente de indivíduos e famílias, especialmente em regiões e

países mais pobres, o que inviabilizou, para muitos, a manutenção de um confinamento

doméstico seguro diante da necessidade de sair para conseguir os recursos necessários para o

sustento pessoal e familiar.

Acesso com frequência o boletim atualizado em tempo real pelo Coronavirus Resource

Center da Universidade Johns Hopkins, que mais parece o placar de uma disputa sem

vencedores. Em meados de outubro de 2020, quando faço os ajustes e reflexões finais desta tese

e permaneço com o trabalho na universidade ocorrendo em regime remoto, realizado de casa,

o mapa global de casos de Covid-19 indicava que oficialmente (fora os casos não computados)

o número de vítimas girava em torno de 41,5 milhões de pessoas. Mais de 1,1 milhão haviam

morrido em virtude da doença no mundo até então. O Brasil era o segundo país com maior

número de mortes pela doença (155 mil pessoas), atrás apenas de EUA, que contabilizava mais

de 220 mil mortos (Johns Hopkins University, 2020).

Apesar da frenética busca de centros de pesquisa e laboratórios espalhados pelo mundo

para o desenvolvimento de medicamentos e vacinas eficientes e seguros contra o coronavírus,

nada tinha se apresentado como uma solução epidemiológica significante até o momento. Ainda

assim, com o avançar dos meses em que a pandemia persiste, há oscilações entre o aumento e

a redução de casos nos diversos países. A Europa, por exemplo, que havia sofrido muito no

início de 2020 com a pandemia e havia visto os casos reduzirem de forma consistente durante

os meses do verão, o que resultou no afrouxamento das medidas de afastamento social e uma

retomada da “vida normal” naquele continente, assistia em setembro e outubro, com a

aproximação do inverno, o regresso da aceleração de contágios por Covid-19 em diversos

países. No Brasil, em outubro, com o avançar da primavera, a curva epidemiológica diminui

lentamente, ainda que seja difícil prever se o número de casos e de mortes irá aumentar adiante.

Ao longo desse período, desde o aparecimento da Covid-19, o mundo acompanha, pelas

redes virtuais de comunicação e informação, as apostas, opiniões, condutas e escolhas macro e

micropolíticas que governantes, lideranças (religiosas, empresariais, partidárias, comunitárias

e outras), especialistas, influencers, bem como famílias e pessoas “comuns” fazem diariamente

diante dos desafios sanitários, econômicos e sociais que se impõem, com suas consequências

individuais e coletivas. Nesse contexto, vejo estourar confrontos entre narrativas – a chegada

da pandemia acabou por escancarar diversos pontos de tensionamento entre cosmovisões,

posicionamentos políticos, ideologias e lugares de fala e de poder nos diagramas de forças

228

contemporâneos. As inquietações, desafios e faltas de respostas que, neste milênio, têm

provocado multifacetadas manifestações e movimentos sociais pelo mundo definitivamente não

entraram na quarentena demandada pela Covid-19. Pelo contrário.

Entre os muitos eventos que competiram pelo lugar de manchete nos jornais ao lado da

pandemia, esteve, em maio de 2020, o assassinato de um homem negro nos EUA, George Floyd,

por asfixia ao ser imobilizado por um policial branco, cujos joelhos esmagavam seu pescoço

enquanto ele suplicava: “I can’t breathe”95. A morte de Floyd provocou violentos protestos em

várias cidades daquele país contra o racismo e a violência policial contra os negros. Protestos

que ganharam força em outros países96 e fizeram ecoar pelas redes sociais a hashtag do

movimento #black lives matter (vidas negras importam). A rebote, atos de supremacistas

brancos também eclodiram, especialmente nos EUA. Outras manifestações populares contra

políticas e medidas estatais também ocorreram mesmo com a pandemia, como as de Hong Kong

e do Chile, iniciadas em 2019 e sustentadas em 2020.

Pipocaram ainda protestos em diferentes lugares contra a “ditadura” sanitária provocada

pela pandemia – contra as orientações e protocolos de especialistas e órgão internacionais de

pesquisa e regulamentação em saúde (universidades e entidades como a OMS); contra a

exigência do uso de máscaras com cobertura do nariz e da boca para a circulação em espaços e

transportes públicos; contra as medidas restritivas da circulação e aglomeração de pessoas;

contra a produção de vacinas imunizantes. Em nome da “defesa dos direitos e liberdades

individuais” ou alegando simplesmente a invenção do coronavírus ou da gravidade da Covid-

19 por “interessados em desestabilizar o mundo”, muitas pessoas não só participaram de

protestos em diferentes países como recusaram-se a admitir a restrição de seus direitos

individuais em prol do benefício social que as medidas sanitárias poderiam significar contra a

doença97. Como pano de fundo, difundiam-se nas redes sociais teorias conspiratórias (como a

criação e disseminação proposital do coronavírus pelo governo da China ou dos EUA para

desestabilizar a economia mundial); difundiam-se “estudos” que mostravam a ineficácia das

95 “Eu não consigo respirar” (tradução minha). 96 No Brasil, esses protestos foram reforçados em junho pela morte de Miguel, uma criança negra de 5 anos, após cair do 9º andar de um prédio de luxo em Recife, onde sua mãe trabalhava como empregada doméstica. Sem aulas por causa da pandemia, a criança foi levada pela mãe para o trabalho e, quando esta foi passear com o cachorro da residência, ficou sozinho com a patroa da mãe que, incomodada com a reclamação da crianças à procura da mãe, colocou-a no elevador. Ao sair sozinha no 9º andar, a criança subiu em um local sem rede de proteção e despencou. 97 Na Alemanha, dezenas de milhares de pessoas participaram de passeatas em julho e agosto pelo denominado movimento antimáscaras. Na França, diversas pessoas foram agredidas, uma até a morte, após pedirem o uso de máscaras por clientes nos seus locais de trabalho.

229

máscaras de proteção facial ou mesmo o seu perigo para a saúde; valorizavam-se medicamentos

“salvadores” contra a Covid-19, mesmo se a comunidade científica não os reconhecia como tal.

Não bastou o fato de ter que permanecer confinada em casa e, ao mesmo tempo,

hiperconectada com as demandas de trabalho e outras pelos meios virtuais. Eu ainda assistia à

profusão de narrativas e manifestações que aumentavam as polarizações, as contradições, as

intolerâncias, os abismos, as desigualdades e os desafios que o projeto civilizatório capitalista

moderno vem historicamente produzindo e que, neste momento, parecem esquentar junto com

o aquecimento climático no planeta...

* * *

A aparição do minúsculo SARS-CoV-2 tornou evidente que as famílias e seus processos

de subjetivação, mesmo quando precisam isolar-se como agora, estão sempre conectados com

o que se passa “lá fora”. Neste momento, as famílias em sua diversidade vivenciam, em maior

ou menor grau, os ajustes que a máquina capitalista planetária têm feito diante pandemia. Por

um lado, a pandemia acarretou a desaceleração de diversos setores, com consequências como a

perda de empregos, a redução da ofertas de trabalhos para autônomos e a diminuição da renda

de inúmeras famílias. Por outro lado, a pandemia viabilizou o crescimento de outros setores,

especialmente aqueles ligados aos meios virtuais de produção, de prestação de serviços e de

compra e entrega doméstica de produtos, além do mercado financeiro (nada como uma, mais

uma crise, para aguçar a astúcia das previsões e apostas dos investidores). Isto também afetou

as famílias, com consequências nem sempre positivas: como a migração de capitais para os

centros financeiros “mais estáveis” e o consequente o aumento de instabilidade em países

economicamente mais frágeis; a desvalorização cambial e ou aumento de juros em certas

economias diante do aumento do risco de inadimplência de suas dívidas públicas causadas pela

crise econômica resultante da desaceleração sistêmica das molas produtivas; o aumento do valor

cobrado pelas logísticas de entrega de mercadorias. Essas e outras consequências resultaram

em aumento do custo de vida para as famílias, cujos impactos são sempre mais sentidos pelas

famílias mais pobres.

Ao nível micropolítico as famílias precisaram se adaptar ao que começou a ser chamado

“novo normal”. O sonho de muitos moralistas do século XVII, de que a família nuclear nos

moldes burgueses conquistasse seu devido isolamento e proteção do mundo exterior na

230

intimidade e no aconchego do seu lar, em poucos momentos históricos teve condições tão

adequadas para sua realização quanto agora. Com efeito, a pandemia e as medidas de

isolamento social tomadas contra ela resultaram em uma intensificação forçada de

funcionamentos familiares confinados no ambiente doméstico e em um aprofundamento de sua

separação em relação ao espaço público (ainda que as conexões virtuais com o “mundo

exterior” não só tenham permanecido, como aumentado para muitas famílias). Talvez por isso

um outro lado da moeda evidencia-se: evidenciam-se as contradições, as fragilidades, os

conflitos, os sofrimentos e os limites do modelo de família nuclear moderno, deflagrados aqui

e ali de diferentes formas98.

Não faltaram mulheres a expressar nas redes sociais sua exaustão ao perceberem-se

exigidas a cumprir as atividades produtivas de seus trabalhos em home office e cumprir as

atividades reprodutivas dentro de seus lares, tendo que lidar com todos os membros – marido

ou companheiro incluso – o tempo todo (ou quase) em casa, perguntando pelas refeições,

sujando o espaço e as roupas, reclamando da confusão, brigando, demandando atenção e

cuidado. Nesse contexto, muitos conflitos conjugais que pareciam abafados por rotinas de vida

que exigiam que os casais estivessem afastados boa parte de seu tempo, eclodiram com a

reclusão familiar e seu isolamento social. Na China, por exemplo, após a fase mais intensa de

contágio da pandemia e com a estabilização do número de novos casos da doença, o retorno da

população à rotina deflagrou, em diferentes cidades, um aumento dos pedidos de divórcio

(Oswald, 2020).

A chegada do confinamento doméstico trouxe ainda um aumento da violência doméstica

contra mulheres, adolescentes e crianças, perpetrada principalmente por homens em seus lares.

Violência que se intensificou pela oportunidade de ter as vítimas “presas” em casa, atrelada à

cultura patriarcal que, como vimos, é um dos importantes pilares das sociedades capitalistas

modernas, mesmo em suas configurações contemporâneas. Cultura que, em seu endurecimento

machista, sustenta pensamentos, discursos e práticas de que um homem acuado, intimidado,

ansioso, confinado, com raiva ou excitado “precisa” dar vazão a isso e pode acabar fazendo-o

com os mais vulneráveis dentro de sua própria casa. Cultura que está arraigada mesmo em

autoridades que deveriam transformá-la, como demonstrou o então Ministro da Justiça

98 Os aspectos considerados a seguir não excluem as flexibilizações, transformações e invenções que também ocorreram e que potencializaram as relações, aumentaram a autonomia e os bons encontros entre os membros de muitas famílias confinadas em suas residências.

231

brasileiro, Sérgio Moro, em 2019. Durante cerimônia pelos 13 anos da Lei Maria da Penha99 –

lei que visa proteger vítimas de violência intrafamiliar e de gênero – esse ministro afirmou que

os homens talvez agredissem as mulheres porque se sentiam intimidados pelo crescente papel

destas na sociedade. Como se o papel feminino não tivesse sido fundamental até então e como

se um homem, dentro das segmentações sociais estabelecidas pelos papéis de gênero e pelas

relações de poder que os sustentam, tivesse autorizado a transformar sua insegurança com o

papel das mulheres, ou sua ansiedade, raiva ou oportunidade em virtude do confinamento em

violência...

O aumento da violência doméstica fez com que o Fundo fiduciário da ONU de

enfrentamento à violência contra as mulheres (UNTF, na sigla em inglês) postulasse a

manutenção, mesmo durante a pandemia, das medidas protetivas e das equipes de apoio em

países como a Índia e a República Democrática do Congo (ONU Mulheres, 2020). Na

Argentina, pelo menos seis mulheres e meninas haviam sido assassinadas já nos primeiros nove

dias do confinamento doméstico e o número de ligações para as linhas que prestam atendimento

para casos de violência de gênero dispararam (Centenara, 2020). No Brasil, houve aumento

generalizado nos registros de violência doméstica. Em abril, segundo a Ouvidoria Nacional de

Direitos Humanos, as denúncias tinham aumentado 28% (Mugnatto, 2020). Em Minas Gerais,

o Conselho Regional de Psicologia publicou uma Nota Técnica alertando seus profissionais

sobre a situação da violência contra as mulheres durante a quarentena, após duas semanas do

decreto de isolamento social no estado (CRP-MG, 2020).

Ademais, é preciso considerar as situações em que o isolamento do grupo familiar

simplesmente não é possível diante da realidade socioeconômica de muitos. Para diversas

famílias no Brasil, permanecer isolado em casa evitando um convívio social mais amplo é

inviável. Por vezes o próprio contexto familiar é ampliado, envolvendo uma rede de apoio que

não se circunscreve a uma mesma moradia e exige o trânsito de seus membros para o necessário

compartilhamento de cuidados, suprimentos, dinheiro. Por vezes, mesmo estabelecidas em uma

mesma residência, as famílias não podem ter todos os seus membros em isolamento sob pena

de não conseguirem sobreviver. Esta é a realidade das famílias cujo sustento depende do

trabalho de algum(s) de seu(s) membro(s) em serviços considerados essenciais e que, por isso,

não pararam mesmo com os decretos de isolamento social horizontal: empregados de mercados,

farmácias, hospitais, postos de gasolina, por exemplo. Esta é a realidade ainda dos que contam

99 O evento, ocorrido em agosto de 2019, promoveu a assinatura do Pacto para Implementação de Políticas Públicas de Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres (Chaves, 2019).

232

com os recursos financeiros instáveis, tal como diaristas, vendedores ambulantes, motoristas de

aplicativos, entregadores, entre muitos outros prestadores de serviços autônomos que só são

remunerados pelos dias que efetivamente trabalham. No caso destes, que perfazem milhões de

brasileiros, a situação de fechamento compulsório das atividades não essenciais decretadas a

partir de março por estados e municípios impactou diretamente suas possibilidades de

conseguirem renda. Com isso, suas famílias passaram a encarar a geladeira, a despensa e o

bolso esvaziando-se rapidamente.

Diante dessa realidade, o Estado brasileiro acabou por conceder um auxílio emergencial

para famílias em situação de vulnerabilidade agravada. A primeira proposta, apresentada pelo

governo do presidente Jair Bolsonaro, foi o pagamento de um valor mensal de R$ 200,00. No

entanto, o legislativo federal acabou por aprovar a Lei n° 13.982 de 02 de abril de 2020,

definindo o auxílio emergencial em R$ 600,00 àquele que, cumulativamente, fosse maior de

dezoito anos, não tivesse emprego formal ativo, não fosse titular de benefício previdenciário ou

assistencial, nem beneficiário do seguro-desemprego ou de programa de transferência de renda,

salvo o Programa Bolsa Família. Para solicitar o auxílio, era necessário ter renda familiar

mensal per capta de até meio salário mínimo ou renda familiar mensal total de até três salários

mínimos, além de não ter recebido rendimentos tributáveis acima de R$ 28.559,70. A mulher

provedora de família monoparental obteve o direito de receber duas cotas do auxílio

(R$1.200,00).

Após a promulgação da lei, resolvo ligar para Cláudia, com quem mantinha mais contato

nas ocupações ligadas ao MLB. Quero saber como eles estão lidando com a determinação do

poder público municipal para que todas as pessoas permaneçam em casa, salvo aquelas que

estão trabalhando em serviços essenciais ou as que necessitam adquirir suprimentos ou resolver

alguma emergência de saúde ou segurança desde o dia 18 de março de 2020. Cláudia conta que

as lideranças haviam passado em todas as casas e orientado os moradores a permanecerem nas

residências, evitando a circulação pelas ruas das ocupações e a formação de aglomerações. Diz-

me que, quando podem, as pessoas estão permanecendo em casa. Mas que algumas, que já

tinham poucas condições, “agora é que não têm nada, nada mesmo para comer!”. Pergunto

sobre a cesta básica que a prefeitura estava distribuindo e ela me explica que, para uma família

pequena, a cesta servia, mas que não era suficiente para as famílias maiores. Quanto auxílio

emergencial do governo federal, muitas famílias estavam com dificuldade com o cadastro que

tinha que ser online e elas não sabiam como fazê-lo. E, mesmo para as que rapidamente

conseguiram fazer o cadastro, não havia previsão do pagamento. De fato, o socorro emergencial

233

aos trabalhadores autônomos, informais, microempreendedores individuais e intermitentes sem

emprego fixo e sem benefício previdenciário, seguro-desemprego ou outra fonte de renda

começou a ser feito, e de forma fracionada, mais de 20 dias após boa parte dos decretos de

isolamento social serem promulgados pelo país. Nesse cenário, as comunidades ligadas ao

MLB estavam se mobilizando para arrecadar alimentos e produtos de higiene para os mais

necessitados. Cláudia é seca ao comentar que não podiam contar somente com a assistência das

esferas estatais (municipal, estadual, federal), em geral insuficiente para as necessidades de

grande parte das famílias.

O auxílio começou a ser pago em abril, em cinco parcelas de R$ 600,00 (ou R$1.200,00

para as mulheres provedoras de famílias monoparentais). Paulatinamente, as famílias mais

vulneráveis que acompanhei nesta pesquisa começaram a recebê-lo, o que me causou certo

alívio, ainda que eu considerasse o montante insuficiente diante do custo de vida em Belo

Horizonte. Contudo, meses depois, surpreendo-me com a notícia dos efeitos do auxílio

emergencial na vida das famílias, especialmente nas regiões mais pobres do Brasil.

Aquilo que eu considerava pouco – como uma família de quatro ou mais membros

poderia viver com R$600,00 por mês, algo equivalente a U$110,00?! – tinha provocado um

efeito significativo para a melhoria nas condições de vida a curto prazo de uma boa parcela das

famílias mais vulneráveis do Norte e do Nordeste do Brasil. Nessas duas regiões, as mais pobres

do país, o recebimento de R$600,00 tornou-se, para muitos, uma fase de bonança ou mesmo de

investimentos (reformas na moradia, aquisição de eletroeletrônicos e outros). Diego Garcia

(2020) destaca que 15 dos 16 estados do Nordeste viu sua economia inflar à medida que as

medidas de isolamento social eram afrouxadas pelas autoridades, fazendo com que os índices

de consumo das famílias ultrapassassem de forma significativa os índices anteriores à

pandemia. Como mostra a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE (2018d), 41% da população

da região Norte e 44% do Nordeste viviam com menos de R$ 420 por mês.

Após cinco meses de pagamento do valor de R$600,00 por pessoa (ou R$1.200,00 para

mulheres de famílias monoparentais) para todas as famílias brasileiras aprovadas no cadastro

federal, o governo, em nome da austeridade fiscal do Estado, determinou a redução do valor

para R$300,00 por mais três meses. Findo esse prazo, possivelmente as famílias deverão voltar

“se virar” como puderem.

Quanto às famílias participantes deste estudo, suas condições socioeconômicas e seus

recursos para se proteger da pandemia variaram muito. Com efeito, essas famílias vivenciaram

234

de formas muito diferentes a disseminação, os riscos de contágio e os impactos econômicos da

Covid-19. A competência comunitária em garantir um maior isolamento das famílias na aldeia

de Sandra e Iraí e no quilombo de Binho e sua família mostrou-se uma estratégia importante

para evitar uma chegada maciça do vírus, bem como para identificar rapidamente os casos. Na

aldeia da família de Ana, por outro lado, a dificuldade comunitária de organizar-se para o

isolamento social e a falta de informações adequadas sobre a prevenção acabaram por difundir

o vírus, que acometeu muitas pessoas. Ana conta-me que já chorara muito pelos que morriam.

Nas ocupações e mesmo para as famílias de classe média, a necessidade de sair para o trabalho

e conseguir seu sustento mostrou-se a principal forma de contágio, ao mesmo tempo que a

dependência dos serviços públicos de saúde se tornou um fator de apreensão para muitos diante

da possibilidade de lotação dos leitos e da falta de alternativas de cuidado. Os mais ricos, por

sua vez, conseguiram rapidamente ajeitar-se para um funcionamento familiar e laboral a partir

de suas residências, melhorando a velocidade do serviço de internet e adquirindo novos

equipamentos para uma boa comunicação virtual quando isso foi necessário. Sua preocupação

mostrou-se antes com a hiperconexão com as redes de informática, com as crianças e

adolescentes presos em casa sem ter o que fazer e com o excesso de trabalho realizado a

qualquer momento dentro de casa do que com a falta de recursos e condições para tratar a

Covid-19, caso fossem infectados.

* * *

Quando olhamos para este tempo que é o nosso – o dos viventes do início do século

XXI – deparamo-nos com uma série de inquietações às quais, com a entrada da década de 2020,

soma-se a chegada inesperada da Covid-19 diante da qual a humanidade ainda permanece

pasmada. Mas, antes mesmo dessa pandemia, talvez apenas uma longa e silenciosa vertigem

nos restasse como resposta às inquietações de nossa época. As mudanças no equilíbrio

biodinâmico do planeta que levaram milhares de pessoas, especialmente jovens, às ruas de mais

de 150 países em setembro de 2019 para a “Greve Global pelo Clima” anunciam a perspectiva

de um futuro tenebroso causado, entre outros, pelo aquecimento da temperatura média do

planeta, pela poluição dos oceanos, pela redução da biodiversidade e pelos resíduos tóxicos que

vêm se acumulando em grande parte do que consumimos. Perspectiva que, ainda assim, parece

pouco sensibilizar os chefes de Estado para atuarem fortemente no sentido de, ao menos,

235

minimizá-la. Por sua vez, os fluxos migratórios, oriundos de conflitos e guerras, bem como da

escassez de água consumível e de outros recursos naturais em algumas partes do globo, têm

mais acionado a xenofobia nacionalista dos habitantes dos países que recebem os imigrantes

(esta nação é para o seu povo!) do que uma preocupação humanitária em acolher os

desabrigados e rever as condições sistêmicas da axiomática capitalista que sempre relegou aos

povos do Sul (mesmo quando o Sul nasce nos contornos de Paris) as misérias, a poluição e os

lixos provenientes de nosso modo de vida. Também a flexibilização de leis ligadas à proteção

dos trabalhadores, as críticas ao peso orçamentário das previdências públicas, o

desinvestimento em políticas e programas sociais, entre outros, têm aparecido, aqui e ali,

justificados pela persistência das crises econômicas “internas” nos países, diante das quais é

preciso garantir a austeridade dos Estados, o equilíbrio do orçamento e, claro, o pagamento dos

juros das dívidas públicas. Observa-se ainda o enrijecimento polarizado de discursos e

propostas para os desafios e conflitos atuais que parecem mobilizar as pessoas mais para guerras

ideológicas alimentadas pelo ódio do(s) outro(s) lado(s) do que para saídas propositivas e

efetivas para os reais problemas que estamos enfrentando.

Nesse contexto, assinalo três movimentos que parecem colidir sobre nossas cabeças.

Primeiro movimento: as consequências do modo de vida humano orientado para uma

produção, seu consumo e descarte sempre crescentes. Nossa economia, de fato, é medida pelo

crescimento – aumento do PIB, aumento do parque industrial, aumento da safra de grãos,

aumento dos fluxos de capital nos mercados financeiros, aumento dos investimentos em novas

atividades e startups, aumento no consumo das famílias, aumento de vendas nas datas

comemorativas como o Natal, aumento das reservas cambiais, aumento..., aumento... –, como

se nosso equilíbrio civilizatório dependesse de uma linha crescente de exploração do planeta e

de produção de capital, de coisas e de lixo. Esse equilíbrio carrega o paradoxo de acelerar o

desequilíbrio das condições para a vida humana (e não-humana) no planeta.

Douglas Nuccitelli é uma das vozes da climatologia mundial que tem procurado difundir

às pessoas, no senso comum, informações que as ajudem a compreender a escalada do

aquecimento global desde a revolução industrial moderna, com a constante (e crescente)

descarga de poluentes na atmosfera, nos solos e oceanos desde então. Ele divulgou no

reconhecido blog Skeptical Science uma analogia a partir dos estudos publicados por Lijing

Cheng, John Abraham, Jiang Zhu et al. (2020). Nuccitelli (2020) destaca que o calor absorvido

pelos oceanos atingiu um novo recorde em 2019 e o montante de energia acumulada nos

236

oceanos tornou-se o equivalente à explosão de cinco bombas atômicas, como as de Hiroshima,

a cada segundo pelos últimos 25 anos100.

Mesmo que existam os negacionistas (sinceros ou de ocasião) sobre as alterações

ambientais no Sistema Terra, grande parcela dos cientistas especializados tem insistentemente,

e já há um bom tempo, apresentado dados e lançados alertas sobre o desastre ambiental que se

aproxima. Tal como a carta World Scientists’ Warning to Humanity: a second notice publicada

por mais de 15.000 cientistas de 184 países, um manifesto que delineia as perspectivas sinistras

para as condições de vida na Terra em um futuro próximo (Ripple et al., 2017).

Segundo movimento: o funcionamento transnacional do capitalismo, cujos fluxos

financeiros surfam pelos mercados e bolsas de valores e deslocam os investimentos concretos

em busca dos empreendimentos mais rentáveis onde quer que eles estejam. Megamáquina

planetária, o capitalismo atual parece observar apenas de longe e fazendo seus cálculos

estratégicos as crises que não param de exaurir, exterminar e empobrecer pelo mundo, como se

isso não fosse problema seu ou mesmo apresentando-se como parte fundamental da solução101.

Seus grandes (e poucos) donos conseguem movimentar-se mais onipresentes que

qualquer outro deus, acumulando mais riquezas que bilhões de pessoas. Estudo apresentado

pela Oxfam indicava que, em 2018, as 26 pessoas mais ricas do mundo detinham a mesma

riqueza de 3,8 bilhões de pobres, o que equivale à metade da população mundial (Max Lawson

et al., 2019). Essa impressionante desigualdade, após os primeiros meses da pandemia do

coronavírus em 2020, tinha se acentuado ainda mais, conforme diversos relatórios analisados

pela Radio France Internacional e replicados pelo Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da

Fiocruz (2020). Os bilionários ligados aos setores de novas tecnologias e digital, bem como à

saúde atingiram lucros excepcionais em virtude da valorização de suas ações no mercado

financeiro. Alegra (2020) destaca que o presidente da Amazon, Jeff Bezos, e o presidente da

Tesla, Elon Musk, adicionaram 60 bilhões de dólares aos seus respectivos patrimônios líquidos

em 2020 e as 500 pessoas mais ricas do mundo atingiram, juntas, a riqueza de U$10,2 trilhões

após seis meses da pandemia pelo mundo, um recorde histórico.

Vários desses ultrarricos se preparam para viver de forma “pós-humana” diante da

100 Nuccitelli (2020) esclarece que o uso dessa comparação visa permitir que a maioria das pessoas, que dificilmente conseguem dimensionar o que significa o aumento de 10 zettajoules por ano na absorção de calor pela Terra, tenham uma melhor dimensão da situação a que estamos submetendo o planeta, nossa espécie e todas as demais. 101 As propostas dos chamados “capitalistas verdes” para os problemas climáticos são representativas desta postura. Conferir: Danowsky &Viveiros de Castro (2017).

237

possibilidade (cada vez mais provável) de que este mundo se tornará um lugar inóspito para a

vida humana (e não só humana) em virtude de uma catástrofe climática, da disseminação de

pandemias que tendem a aumentar com o desequilíbrio ambiental102, do crescimento de

insurreições produzidas por legiões de famintos e miseráveis, da intensificação de guerras entre

nações e regiões do planeta que sempre guardam a faceta monstruosa da possibilidade de uso

dos armamentos nucleares.

O mundo “pós-humano” dos ultrarricos, dispostos a gastar milhões ou bilhões de dólares

para construir sua fortaleza bem oxigenada ou seu cérebro computacional, envolve apostar em

um futuro sustentado pelas tecnologias e pela informática que seja capaz de fazê-los superar as

exigências e fragilidades impostas por nossa condição de animal humano. Como conta o

professor de mídia e tecnologias estadunidense Douglas Rushkoff (2018), em uma reunião com

grandes banqueiros de investimento, estes o perguntaram sobre o futuro das tecnologias. Como

pano de fundo, a preocupação desses investidores pouco tinha a ver com as possibilidades das

tecnologias ajudarem a salvar o mundo; o que eles queriam saber eram as possibilidades das

tecnologias viabilizarem o seu isolamento dos perigos reais colocados pelas mudanças

climáticas, pelo aumento do nível do mar, pelas migrações em massa, pelas pandemias globais,

pelo pânico e pelo esgotamento dos recursos naturais. Para esses investidores, o futuro da

tecnologia deveria viabilizar “blindarem-se” da catástrofe, como se a necessidade de blindagem

já não fosse, por si mesma, uma catástrofe humana e subjetiva.

Com a chegada do coronavírus, os ultrarricos dispararam sua demanda por bunkers -

estruturas ou redutos fortificados, parcialmente ou totalmente construídos embaixo da terra,

feitos para resistir a diferentes condições de guerra ou desastres naturais. Carlos Megía (2020)

ressalta que uma das empresas líderes do setor de bunkers – The Vivos Group – viu suas vendas

aumentarem 400% neste ano de 2020. O diretor-executivo dessa empresa qualifica seu ramo de

negócios, usufruído principalmente pelos CEOs das empresas de tecnologias e investidores

financeiros, como “projeto humanitário épico de sobrevivência” e esclarece que sua equipe está

estudando a construção de um resort de luxo, com apartamentos subterrâneos de cerca de 200

metros quadrados com sistema de filtragem de ar, piscina, academia e até um cinema para a

distração dos moradores enquanto o mundo pode esfacelar-se lá fora (Megía, 2020).

102 Em estudo apresentado em 2015, pesquisadores da Ecohealth Alliance, organização sem fins lucrativos de Nova York que faz mapeamento mundial de doenças infecciosas em parceria com outros pesquisadores, indicou que cerca de um em cada três surtos de doenças infecciosas em humanos está ligado à mudança no uso da terra, como o desmatamento (Daszak apud Fiocruz, 2019).

238

Do outro lado, os bilhões que não têm recursos para produzir sua própria blindagem ou,

pelo menos, seu isolamento nos condomínios cercados por seguranças estão à mercê das crises

de toda ordem – geopolíticas, econômicas, sanitárias, subjetivas, ambientais – que não param

de se suceder e que têm justificado as atuações estatais de Exceção. Atuações que ainda impõem

para uma parcela da população seus resultados necropolíticos – matá-los ou deixá-los morrer.

Com a chegada do coronavírus, a situação de pobreza e extrema pobreza acentuou-se

para milhões de famílias, empurrando um enorme contingente de pessoas para situações de

subvida. No Brasil e diante da chegada da Covid-19 no país, já em meados de março as

lideranças das favelas brasileiras procuravam tornar pública sua preocupação com a situação

das famílias dessas comunidades com alta concentração populacional e com poucas condições

de isolamento. Em Paraisópolis, uma das maiores favelas da cidade de São Paulo que fica

separada apenas por um muro dos luxuosos prédios do bairro vizinho Morumbi, o líder

comunitário Gilson Reis expressou o que tantos ali conhecem sobre a capacidade necropolítica

do Estado brasileiro e diante da propagação do coronavírus: “O que pode acontecer é que vão

crescer tanto os casos [de Covid-19] nas favelas que eles vão trancar as favelas, bota o Exército,

ninguém sai e ninguém entra. E a gente está gritando socorro, para que alguém nos ajude, mas

até o momento estamos sendo ignorados" (Reis apud Guimarães, 2020).

Com efeito, os Estados têm se encarregado de dar um rosto, um nome e, muitas vezes,

uma mão de ferro para efetuar as axiomáticas do Capital. Estados que não se cansam de aceitar

as frequentes acusações sobre a pouca eficiência de suas políticas, programas e estratégias para

bem gerir as nações e melhorar as condições de vida de seus pobres, enquanto escondem,

sorrateiros, a sua grande eficácia em fazer o que realmente têm se proposto por toda a

modernidade e que, mesmo com os ajustes exigidos pelo capitalismo imperial, se mantém:

produzir um agenciamento sedentário que controla (e consome) sua Terra e seu Povo em prol

das elites políticas e econômicas, o que nem os Estados socialistas ousaram de fato extinguir.

Como pondera Scheinvar (2006), ao contrário da ausência de intervenções estatais que o

pensamento neoliberal tem professado de maneira universal contemporaneamente, a presença

forte e decisiva do Estado mostra-se fundamental nas áreas de interesse da ordem burguesa.

“Ou seja, na defesa do mercado, é clara a intervenção do Estado, embora não se assuma

publicamente que esta é a sua única e verdadeira prioridade, aparecendo travestida de

preocupações por justiça e segurança” (p. 51).

Por fim, o terceiro movimento: a enorme dependência material e subjetiva de bilhões de

seres humanos e suas famílias do modo de vida capitalista moderno. Sem a logística de

239

produção e consumo do capitalismo e sem a organização e o controle dos Estados, o caos e a

destruição parecem ameaçar efetivamente as condições de sobrevivência de grande parte da

humanidade. Por outro lado, em seus diferentes aspectos esse modo de vida se sustenta por

causa da dependência material e psicológica que torna indivíduos e famílias, nos níveis mais

primários de sua sobrevivência, vinculados ao bom funcionamento do sistema (Comitê

Invisível, 2016). Os efeitos subjetivos dessa dependência, especialmente dentro das lógicas do

Controle com as mudanças e oscilações que não param de acontecer pelo mundo, não podem

ser ignorados. “[...] a retórica da mudança serve para desmantelar qualquer hábito, quebrar

quaisquer laços, desfazer qualquer evidência, dissuadir qualquer solidariedade, manter uma

insegurança existencial crônica” (Comitê Invisível, 2016, p. 26). Não apenas as identidades

individuais, também as políticas públicas, a economia, as cidades, as relações, tudo deve

permanecer em um estado de modulação e flexibilidade constantes, ajustáveis às exigências das

crises que, antes de serem um fato econômico, são cada vez mais utilizadas como técnica de

governo e como justificativa para intervenções do Estado de Exceção.

E nada é mais poderoso que o medo para desmobilizar as multidões e para fazer a massa

populacional aderir (e até desejar) às mais cruéis políticas de austeridade como a última saída

para sua sobrevivência. O medo da violência, da miséria, do abandono são a força primária que

isola os indivíduos e que cria segmentações (Negri e Hardt, 2000/2006). Ele é, de fato, uma

ferramenta biopolítica de mobilização subjetiva muito eficiente.

Nesse sentido, diante das medidas sanitárias de distanciamento social e de restrição das

atividades econômicas determinados pela pandemia, há os que expressam nas mídias e redes

sociais seu desejo de voltar “a como era antes”, o mais rápido possível e com ainda mais

engajamento e cooperação de todos. Apostam que o retorno da máquina capitalista funcionando

a todo vapor, apoiada pelos Estados e sustentada pela dedicação das famílias, é imprescindível

para se evitar o caos e a barbárie. Muitos temem que a vida seria ainda mais miserável em

qualquer maneira de existir diferente do atual modo de vida dominante, que foi gestado como

fruto do progresso e do domínio do Homem sobre a Terra e divulgado como o ápice de todas

as civilizações. Difunde-se, entre essas pessoas, o argumento de que, de uma maneira geral, as

condições de existência dos humanos melhoraram muito com a chegada da modernidade

capitalista e de seus recursos tecno-científicos, que proporcionaram, por exemplo, o aumento

da expectativa de vida, a ampliação das condições sanitárias e dos cuidados com a saúde, um

amplo acesso a produtos e serviços. Todavia, tal argumento enfoca exclusivamente os seres

humanos inseridos neste modo de vida e nunca com todos gozando dos mesmos benefícios; e

240

justifica que os Excluídos (os povos não modernos ou modernizados) precisam, para

“melhorarem”, inserir-se nesse modo de vida. Quem aposta nesse argumento parece não avaliar

(ou não se importar com) o fato de que, se todas as pessoas vivessem da maneira como o faz

um belo exemplar do modo de vida capitalista moderno – um estadunidense de classe média –

seriam necessários de três a seis planetas Terra fornecendo os recursos para a vida humana, o

que torna o argumento contraditório diante da complexidade dos desafios e problemas oriundos

do estilo de vida do Homem Moderno103. Ademais, é preciso considerar que as segmentações

inerentes ao projeto civilizatório capitalista moderno exigem que uma grande parcela dos

humanos, além de todos os demais viventes do planeta, insiram-se no seu modo de vida como

pobres ou como objeto de uso e consumo dos bem-sucedidos, ainda que (é preciso também

reconhecer) todos estamos em uma enorme enrascada ético-política e ambiental.

“Um outro fim de mundo é possível?”104

Estamos diante da chegada de um fim. A rigor, todos os viventes deste planeta (o planeta

inclusive) nascem fadados a chegar ao fim algum dia, a não mais existir tal como nasceram Ou

se formaram. Seus restos e rastros irão dissipar-se, transformar-se e ganhar outras conexões

que, também elas, tendem, em algum momento mais ou menos distante, a se desfazerem e

refazerem-se. É possível considerar que há muitos fins depois de um fim... probabilidades e

acontecimentos. Talvez, algum dia, tudo realmente acabe. Algo como um apagar das luzes e

um desintegrar dos corpos; algo como o estabelecimento do vazio e do silêncio absolutos em

que apenas o Nada resiste. Mas, como vivente deste planeta e com os recursos do meu corpo-

pensamento, considero que a suposição deste fim me importa menos do que o fim que se

anuncia, cada vez com mais força, para o modo como aprendi a ser humana e que é cada vez

mais engolido por suas contradições, tensionamentos, excessos, imprevistos, com todas as

consequências para humanos, para não-humanos e para o próprio planeta.

103 Sobre o consumo do planeta pelo estilo de vida de um humano moderno “médio”, conferir as análises do economista francês Serge Latouche (1989 e 2009). 104 Frase pichada em um dos muros da Universidade de Nanterre em Paris, em 2016, durante as manifestações contra a reforma trabalhista proposta pelo governo do presidente François Hollande. A justificativa do governo para a reforma era tornar o mercado de trabalho mais flexível para diminuir o desemprego na França.

241

Danowski (2019) indica algumas das “saídas” sociosubjetivas efetuadas diante desse

fim. “É verdade que, diante desse cenário, não são poucos os que buscam e encontram conforto

no pensamento de que algum tipo de ‘salvação’ é possível” (p. 87).

Há, como vimos, os ultrarricos que têm procurado adquirir seus bunkers privados e

seguros para sua salvação, pouco se importando com o que pode acontecer com os outros 99%

dos seres humanos. Eles estão crentes de que seu dinheiro, poder e recursos adquiridos neste

mundo serão o suficiente para perseverarem em qualquer outro modo de vida. Há ainda os

crentes nos avanços tecno-científicos, aqueles que acreditam na capacidade da ciência moderna

de nos tirar, a qualquer momento, da enrascada ambiental-civilizatória em que nos

encontramos. Como se a mesma ciência que, articulada às lógicas racionalistas modernas e às

lógicas capitalistas de produção e consumo, nos trouxe até aqui fosse capaz, por si só, de

reorientar as relações de poder em jogo, os modos de subjetivação hegemônicos, a maneira

como a modernidade capitalista se relaciona com a Terra. Lembro-me, nesse sentido, do

comentário de uma aluna em resposta à minha preocupação a respeito dos riscos da extinção

das abelhas em virtude do uso de agrotóxicos tal como a agroindústria tem feito. As abelhas

são responsáveis por cerca de 90% do processo de polinização para a reprodução vegetal. Com

sua drástica redução, possivelmente não teremos alimentos suficientes para grande parte dos

viventes do planeta, o que inclui os seres humanos. A aluna me tranquiliza, explicando que,

naquela semana, justamente, tinha lido uma reportagem sobre isso e que cientistas já estavam

desenvolvendo uma “abelha robô” a partir da tecnologia dos mini-drones e que estas poderiam

substituir as “outras” abelhas. Pergunto-lhe se a reportagem havia colocado o “custo planeta”

da extração e transformação dos minerais para a produção de milhões de abelhas robôs. Diante

de seu silêncio pensativo, ainda questiono: “Até onde conseguiremos seguir retirando do

planeta, de seu solo, de sua água, de seus animais (inclusive humanos) os recursos para construir

equipamentos e tecnologias que nos permitam nos salvar exatamente das consequências

degradantes dessa própria extração de recursos, tal como temos feito?” Minha aluna responde

com um profundo suspiro e os olhos soltos no horizonte. Ninguém na sala encontra outra

resposta.

Danowski (2019) destaca, por outro lado, os descrentes, negacionistas de toda ordem:

os que preferem “nem pensar nisso” ou não conseguem acreditar que estamos mesmo diante de

um colapso; os que se seguram em teorias conspiratórias, nutrindo-se emocionalmente dos

“fatos” que seu(s) grupo(s) divulga(m) nas redes sociais, para indicar “o inimigo”, em geral

nomeável mas inalcançável, causador do que está acontecendo (um plano do governo chinês,

242

russo ou estadunidense para enfraquecer todos os demais e dominar o mundo, por exemplo); e

os que deliberadamente produzem desinformação para manter negócios, interesses e ganhos a

despeito da nossa condição comum105.

Cumpre lembrar, por fim, dos que, a partir de seus vínculos religiosos, consolam-se com

a crença de que a salvação ocorrerá depois, após a morte desta vida difícil, miserável na Terra.

Há uma vida melhor, muito melhor por vir, em outro lugar.

Em todos esses casos e em muitos outros, junto à crença na salvação, podemos perceber uma descrença, pelos sujeitos e comunidades em questão, em sua capacidade de lidar, aqui e agora, com a situação que os preocupa e os afeta negativamente, ou, se quisermos, uma desconexão entre sua qualidade de agentes e suas ações (Spinoza talvez dissesse: uma separação entre o corpo e aquilo que esse corpo pode). Aliás, essa desconexão não se limita a uma condição subjetiva, de causas psicológicas e individuais (conscientes ou inconscientes), mas nos tem sido antes imposta como peça fundamental de sustentação da economia capitalista industrial baseada no consumo. (Danowski, 2019, p. 89)

Nosso modo de vida, baseado na enorme dependência que temos do sistema capitalista

em suas atuais dimensões planetárias, como dito acima, parece não encontrar mais maneiras

satisfatórias de lidar com este mundo, nem de produzir, aqui e agora, novos modos de existir.

Esta é uma das reflexões de Zé, personagem do filme Fábrica de Nada, de Pedro Pinho (2017).

Filmado em Portugal, o filme conta a luta dos funcionários de uma empresa multinacional de

elevadores, após serem surpreendidos, certa noite, com dois estranhos carregando caminhões

com as máquinas, matérias-primas e computadores da fábrica.

Os trabalhadores resolvem fazer uma vigília para proteger o que conseguiram salvar do

patrimônio da fábrica, mas, no dia seguinte, recebem nova surpresa: ficam sabendo que é a

própria administração da empresa que está a retirar as máquinas para “reajustar postos de

trabalhos” em virtude da crise econômica. Os funcionários percebem que o verdadeiro intuito

da retirada das máquinas é impossibilitar que trabalhem para, com isso, aceitarem negociar as

rescisões dos contratos de trabalho por valores muito inferiores ao que teriam direito. Para isso

não ocorrer, resolvem ocupar a fábrica e vigiar seu maquinário. Precisam ainda ficar em seus

postos de trabalho no horário contratado, mesmo sem fazer nada, para não abrirem brechas

legais para demissões por justa causa. O filme retrata uma luta repleta de tensões e dilemas do

grupo de trabalhadores que consegue resistir por cinco meses, sem receber os salários,

105 Danowski (2019) lembra do chocante exemplo da mega companhia ExxonMobil, que, ao receber os resultados de uma pesquisa científica que encomendara nos anos 1970 e cujos resultados demonstraram a necessidade de imediata redução nas emissões da queima de combustíveis fósseis, não só omitiu a pesquisa como financiou falsas pesquisas que dissessem o contrário.

243

ocupando a fábrica. Luta que atravessa sua vida pessoal, a necessidade de cuidar e alimentar a

família, seus sonhos e medos, ao mesmo tempo que está conectada com aspectos mais amplos

de uma crise econômica que vai demolindo e empobrecendo o entorno da fábrica e além.

A certa altura, os trabalhadores constatam que a administração da multinacional

abandonou a fábrica, bem como esvaziou o escritório central, saindo do país. Nesse cenário, o

grupo percebe-se dono da fábrica sem saber exatamente o que fazer com isso, ao mesmo tempo

que recebe a ajuda de um cineasta francês interessado em fazer um documentário da situação.

Após o contato de uma empresa argentina interessada em realizar uma boa encomenda de

elevadores que poderia, finalmente, garantir a volta da fábrica à operação e o recebimento dos

salários, o grupo é tomado por uma grande euforia que se expressa de forma apoteótica com

um musical. Parece que o filme e sua estória, após mais de duas horas e meia já passadas, vai

enfim se resolver e acalmar tanto os personagens quanto os expectadores. No entanto, uma nova

camada de dilemas e desafios se coloca: Como fazer a autogestão da fábrica pelos próprios

funcionários? Como dividir os salários? É possível suportar que todos irão ganhar o mesmo

tanto, desde o mais especializado ao menos, considerando que cada um é importante para o

funcionamento da fábrica? Quem sabe dimensionar os custos e o valor a cobrar? Como vamos

conseguir crédito para comprar matéria-prima?

Diante da dificuldade coletiva em construir respostas para essas questões e muitas

outras, depois de meses de luta e dificuldades financeiras, Zé trava com o cineasta francês um

dos diálogos mais potentes do filme. Neste, desabafa:

Ninguém ali quer gerir uma fábrica. As pessoas querem qualquer coisa estável. Precisamos de dinheiro para comer! Táis a ver? Para pagar as contas, a escola dos putos106. Ninguém vai ser sujeito histórico que vai derrubar o capitalismo. Por mais nojo que te metas, nós somos isso: nós somos o capitalismo. Esse teu discurso da referência [da experiência da fábrica] para a esquerda europeia, esse discurso de esquerda é a maior merda que existe! Se queres fazer uma divisão no mundo, duns contra outros, não é entre esquerda e direita. É, de um lado, os que tão de acordo com este mundo, os que aceitam isso tudo, e, do outro, os que estão prontos a abdicar do conforto, dos telemóveis107, das viagens à Lua, dos tupperwares. E a notícia triste que tenho pra ti é que ninguém está disposto a abdicar disso. Ninguém tá desse lado. E quanto menos recursos as pessoas têm, mais querem vir pro outro lado, o mais depressa possível. (Zé)

Na cena do filme, catártica ao estilo português, Zé deflagra uma das mais profundas

segmentações sociais: esta que traça a cisão entre a nossa civilização e a(s) outra(s) (não há

somente dois lados, Zé, há vários...). Seu tensionamento talvez esteja principalmente na crueza

106 Meninos em idade escolar. 107 Aparelhos celulares.

244

da constatação de que, diante da enrascada civilizatória-ambiental em que nos encontramos,

está cada vez mais difícil fazer ajustes e negociações, realizar a flexibilização das linhas de

segmentaridade dura, ficar “do lado de cá”. Por outro lado, quem consegue abandonar esse

projeto civilizatório a partir do qual a enorme parte dos humanos viventes neste momento

aprenderam a ser humanos e do qual foram ensinados a ser dependentes? É preciso produzir

novos modos de vida, mas quem está disposto a fazê-lo ultrapassando o limite radical do “outro

lado”, ou, nas palavras de Deleuze e Guattari (1980/1997b), rumo ao Fora?

Se eu posso ensaiar uma resposta, eu diria: Zé, há muitos que já estão Fora, mesmo se

seguem continuamente sendo empurrados para se inserirem e forçados a se empobrecerem de

seus modos de vida para alcançarem o conforto dos celulares, tupperwares e tudo o mais.

Relatório produzido pelo Economic and Social Council da ONU (2015) estimou a existência

de cerca de 370 milhões de indígenas espalhados pelo mundo em 2015. Indígenas que “[...] não

se reconhecem nem são reconhecidos como cidadãos-padrão dos Estados que os engloba e,

frequentemente, os dividem” (Danowski & Viveiros de Castro, 2017, p. 132). Juntos, eles são

mais numerosos que soma das populações de EUA e Canadá e seguem procurando brechas,

refúgios, estratégias e alianças para se manterem como Fora deste modo de vida. Há ainda

aqueles que, delegados às bordas e aos restos de nossa civilização (ainda que sua energia vital

seja imprescindível para que o sistema se sustente enquanto tal), procuram agenciar resistências,

invenções, escapes, suas máquinas de guerra. Porém, Zé, não é mesmo uma tarefa fácil...

Na conversa que tive com Ju e Lu em sua casa em uma das ocupações do MLB em 2018,

eu lhes pergunto sobre a Terra, o que acham dela. É uma pergunta propositalmente ampla, para

a qual escuto a seguinte resposta de Lu: “Ah, a terra aqui da ocupação é muito ruim. Ô poeira!”.

Ela se referia à poeira que o chão de terra batida provocava e que “sujava tudo”. Sempre achei

graça nisso da terra ser suja, ser percebida como mais suja do que toda a estranha química que

usamos para limpá-la de nossas casas e roupas. Química que, em grande medida, acaba por

poluir águas e solos. Enfim, estreito a pergunta e explico a Lu que me refiro principalmente ao

planeta Terra. Olhando-me com desconfiança, Lu confessa que isso [o planeta] não é algo que

lhe passa pela cabeça, porque tem muitas outras coisas perto dela para pensar e resolver. Acho

graça de novo, nisso do planeta, este no qual pisamos e do qual nos alimentamos continuamente,

com seu ar, sua água e os alimentos do seu solo, ser algo mais distante do que as outras questões

cotidianas.

Já no apartamento de classe média alugado pelo casal Wander e Denise, quando lhes

pergunto sobre a Terra, Wander prontamente me responde que ela é muito importante e, por

245

isso, eles estão ensinando à filha Elisa, com seus dois anos, para que se importe com “cuidar do

planeta”. Pergunto-lhes como estão ensinando. Neste momento, o pai pede à criança para que

largue por um minuto a televisão, à qual ela permanecia conectada enquanto nós, os adultos,

conversávamos. A menina escorrega do sofá onde estava quieta há mais de uma hora e corre

para a cozinha, onde o pai a espera. Os dois desaparecem cozinha adentro por alguns segundos.

Quando reaparecerem, o pai traz o sorriso de quem faz uma boa ação e a filha, com um rabo de

olho na TV, segura um pequeno vaso com uma planta ainda menor, fincada solitária em seu

meio. Ao olhar a planta, tenho a impressão de que ela está a se perguntar o que está fazendo ali.

Na visita à casa de Renata, Vaninho e três filhos, em um condomínio de luxo, converso

sobre a experiência deles se mudarem de um apartamento para uma casa cercada por matas de

preservação. Renata explica que se mudou porque Vaninho queria muito e que, com poucos

meses ali, já havia encontrado duas cobras no jardim e um rato na cozinha! Ela me explica que

não gosta desses “invasores” e que queria uma equipe de dedetização toda semana em sua casa

para jogar veneno neles. Penso em perguntar a Renata quem era, de fato, o invasor daquele

ambiente, se é que podíamos colocar as coisas nesses termos. Penso ainda em ponderar se

distribuir veneno por sua casa era a única ou a melhor solução para lidar com outros animais

(além dos próprios humanos). No entanto, permaneço calada e dedicada apenas a registrar o

que escuto. Sei que essa visão da natureza e dos outros viventes deste planeta como nossos

inimigos, salvo quando aprisionados, controlados, consumidos ou domesticados por nós, não

se resume a uns poucos excêntricos; ela faz parte estrutural do projeto civilizatório em que

Renata e eu mesma aprendemos a existir. No meu caso, cresci vendo, nos almoços em família

no domingo na casa de meus avós, o horror aos mosquitos que parecia contaminar todos os

adultos, que se portavam como exemplos sóbrios contra os insetos, a serem seguidos pelas

crianças. À mesa do almoço, meu avô por vezes se assentava com um vidro de Detefon108 ao

lado, para baforar seu líquido em qualquer mosquito enxerido que se metesse com a nossa

comida, considerando como dano secundário o espalhar do veneno sobre os pratos e alimentos.

Mesmo para aqueles sujeitos e famílias que procuram resistir e reinventar-se diante da

vulnerabilidade e da precarização produzidos por este mundo, há sempre o chamado sedutor

para comporem com os bem-sucedidos “do lado de cá”. Há sempre a instigação para que

desejem “[...] vir pro outro lado, o mais depressa possível”, como disse Zé no filme que relato

acima. Nesse sentido, observo as mudanças nas ocupações que acompanhei ao longo da

108 Marca de um inseticida, vendido em um recipiente com válvula spray para difusão do conteúdo.

246

pesquisa. Observo o crescimento dos muros, que se tornam mais altos à medida que as famílias

se estabelecem e, com moradia própria, alcançam uma folga orçamentária. Esses muros isolam-

nas dos vizinhos, bem como das práticas e compartilhamentos comunitários. Em alguma

medida, funcionar conforme as lógicas privatizadas, de forma mais individualizada e

“independente” é sinal de evolução familiar e progresso social para muitos. Ao retomar as

anotações feitas ao longo das visitas às famílias das ocupações, percebo que todas elas, à

exceção de Dona Maria, indicam o sonho (realizado ou por vir) de conseguir comprar de um

carro particular. Nenhuma família indica a melhora do transporte coletivo com políticas de

mobilidade urbana efetivamente acessíveis e bem executadas como um sonho seu, como sinal

de progresso... Como conclui sabiamente Dona Maria: “aqui antes era só canela [das pessoas

que passavam a pé]; agora é só carrão”.

É certo que isso não desmantela a máquina de guerra do MLB, ainda que exija que suas

lideranças se mantenham sempre ativas e atentas, mobilizando corpos e desejos, palavras e

sonhos – novos sonhos – dos que a compõem. Cláudia me explica que “o individualismo que

toma certas famílias” não elimina o senso e o trabalho coletivo da maioria. E “até os

individualistas se aproximam”, quando percebem as conquistas que a comunidade está a fazer

em virtude de suas mobilizações, lutas e conexões.

Assumir e privilegiar as linhas de segmentaridade que compõem nosso modo de vida

ocorrem por todos os lados. Famílias indígenas, quilombolas, famílias das ricas às pobres, há

sempre os que cedem aos enlaces discursivos e práticos que essas linhas produziram e tiveram

muita eficiência em difundir globalmente. Deslocar-se delas, com efeito, envolve sempre mais

do que uma escolha consciente. É preciso, como lembra Suely Rolnik (2018), todo um trabalho

de desmanche das engrenagens coloniais-capitalísticas que operam ao nível do nosso corpo-

pensamento-inconsciente. Esse trabalho implica libertar nossa força vital de um funcionamento

subjugado a “[...] esse seco logocentrismo e seus falsos problemas [...], ao poder da equipe de

fantasmas nascidos da submissão ao inconsciente colonial-capitalístico, que ainda hoje

comanda as subjetividades e orienta as jogadas do desejo” (p. 92).

Nesse cenário e com as forças que estão em jogo, não se trata de simplesmente aceitar

que “estamos fritos” (talvez em um sentido literal). Acompanho Rolnik (2018) em sua

ponderação de que não se trata de sonhar com o suposto gozo de um gran finale apocalíptico,

nem se trata de resignar-se à espera da chegada da passagem gloriosa para o verdadeiro reino

dos homens de bem, seja este qual for. Expectativas que, segundo a autora, são próprias de uma

247

subjetividade reduzida a um sujeito centrado em suas demandas egóicas que, antes e acima de

tudo, espera por sua (própria) salvação e ou satisfação.

Para encontrarmos um outro fim de mundo possível parece fundamental sairmos do

casulo narcísico que a modernidade construiu para seu Sujeito, de forma a encontrar mundos...

a Terra, a Vida, o Outro, multiplicidades, devir. Diante dos desafios que se colocam, é preciso

assumir que estamos – indivíduos, famílias, comunidades, nações e todos os demais viventes

do planeta – no meio. Estamos entre as relações de forças e as linhas que produziram e

sustentam continuamente este mundo. Aqui, procurei acompanhar algumas dessas relações de

força, linhas e conexões que estão sendo produzidas, reproduzidas, desfeitas e inventadas nos

fluxos e nas formas, tanto ao nível macro quanto micropolítico. Em especial, enfoquei as

famílias por considerar sua posição estratégica para os processos de subjetivação, para a

efetuação dos aparelhos de Estado, para a difusão das lógicas, práticas e discursos da

modernidade capitalista, como também para a produção de invenções, de outros mundos, de

máquinas de guerra. No fim das contas, espero ter contribuído com pistas e inspirações.

248

249

POSFÁCIO: HAVERÁ FLORES EM BADLANDS?

Eis que meu corpo permanece no centro da guerra. Não consigo dizer quais são as

chances de escapar desta massa tão espessa: está no ar e a fumaça me atesta, está no chão e o

asfalto me assegura. Seus ruídos são tão altos que penetram ouvidos, boca, nariz e ânus, fazendo

o corpo vibrar tão rapidamente que só me resta ficar parada. Pelos lábios entreabertos uma gota

de saliva insinua-se, mas para, assustada diante da multidão – de turistas, de automóveis, de

tocos de cigarro, de letreiros luminosos. A risada da moça que balança seu drink no ar em uma

mesa do Café poderia ser um grito de socorro, de quem talvez tema mais a dor do parto do que

um remédio para dormir. Estudo as chances de fuga. Meus pés pedem o contato com a pele nua

da Terra. Meus olhos tentam ajudá-los e põem-se a procurar, afoitos, algo que não seja tão

demasiadamente humano. Mas é do céu que chega a salvação, como um milagre a acontecer no

instante de maior angústia e solidão. Um mira tão precisa quanto improvável faz o pombo em

movimento acertar com um presente da natureza a minha cabeça. E o cocô escorre pelos cabelos

enquanto meus olhos se enchem de lágrimas.

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