FACULDADE SANTA MARCELINA.Tocar y Luchar: Música, Transformação social e Inserção...

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FACULDADE SANTA MARCELINA CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS TOCAR Y LUCHAR: MÚSICA, TRASNFORMAÇÃO SOCIAL E INSERÇÃO INTERNACIONAL. Andressa Chinzarian Miguel São Paulo Junho/2010

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FACULDADE SANTA MARCELINA

CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

TOCAR Y LUCHAR:

MÚSICA, TRASNFORMAÇÃO SOCIAL E INSERÇÃO INTERNACIONAL.

Andressa Chinzarian Miguel

São Paulo

Junho/2010

FACULDADE SANTA MARCELINA

CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

TOCAR Y LUCHAR:

MÚSICA, TRANSFORMAÇÃO SOCIAL E INSERÇÃO INTERNACIONAL.

Andressa Chinzarian Miguel

Orientador: Moisés da Silva Marques

São Paulo

Junho/2010

Dedico este trabalho a minha família, que sempre esteve

ao meu lado nos meus diversos projetos e trabalhos. Em

especial, aos meus pais, que com muito amor e dedicação,

proporcionaram toda a base intelectual, emocional e

espiritual para minha vida. Sou eternamente grata a eles.

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos professores da Faculdade Santa Marcelina, que com sabedoria, dedicação

e cuidado, ensinaram a mim e aos meus colegas a ver o mundo para além de nossos próprios

olhos e a entender que na vida há sempre “os dois lados da questão”.

Agradeço em especial ao professor Moisés da Silva Marques, pela imensa generosidade

e pela incrível habilidade de enxergar o que eu queria dizer quando não sabia como colocar as

palavras no papel.

A todos os colegas e amigos que fiz durante o curso.

Aos meus amigos distantes de Campo Grande.

Meu avô Muxeque Chinzarian (in memoriam) que me ensinou mais do que qualquer ser

humano o caminho da compaixão, da gratidão, da tolerância e do entendimento entre os

homens. Através dele compreendi que Relações Internacionais devem começar dentro de

nossa casa, inclusive, dentro de nós mesmos.

E finalmente, à minha querida família, meus pais e meus irmãos Davi e Ossana, que são

meus eternos companheiros da jornada da vida.

Una niña que es inválida

dijo: -"¿Cómo danzo yo?"

Le dijimos que pusiera

a danzar su corazón...

Luego dijo la quebrada:

-"¿Cómo cantaría yo?"

Le dijimos que pusiera

a cantar su corazón...

Dijo el pobre cardo muerto:

-"¿Cómo danzaría yo?"

Le dijimos: -"Pon al viento

a volar tu corazón...

Dijo Dios desde la altura:

-"¿Cómo bajo del azul?"

Le dijimos que bajara

a danzarnos en la luz.

Todo el valle está danzando

en un corro bajo el sol.

A quien falte se le vuelve

de ceniza el corazón...

Los que no danzan

Gabriela Mistral

RESUMO

Política, economia, sociologia, filosofia e direito são disciplinas das quais as Relações

Internacionais se apropria como material para sua análise. Neste trabalho, o material será

diferente, mas nem por isso menos legítimo: a música. Ela, como função social, é uma

construção histórica e por isso, reflexo da sociedade e de seu tempo. Como meio, pode

transformar seu ambiente, através da educação musical, além de promover diálogos e pontes

que talvez não fossem conseguidos por ferramentas tradicionais. Com esse objetivo, começam

a surgir em escala mundial projetos musicais e de inclusão social em comunidades e países

extremamente pobres e violentos. Sempre remetendo à importância do papel da música na

sociedade, o intuito deste trabalho é mostrar como tais projetos surgiram no continente latino-

americano, são viáveis e têm obtidos relevantes resultados, já que acabaram por influenciar os

países desenvolvidos a implementarem modelos semelhantes em comunidades periféricas e

pobres em seu território nacional. Um dos exemplos maiores é o FESNOJIV da Venezuela,

que por seu sucesso ao conseguir êxitos no campo social, artístico e educacional, foi analisado

particularmente neste trabalho.

.

PALAVRAS CHAVES: Música, educação musical, nação, nacionalismo, identidade,

América latina, globalização, cultura, FESNOJIV, inclusão social, periferia.

SIGLAS

ALALC - Associação Latino-Americana de Livre Comércio.

CAF - Corporação Andina de Fomento

CBS - Columbia Broadcasting System

CEPAL - Comissão Econômica para América Latina

CIDEM - Centro Interamericano de Educação Musical

EUA - Estados Unidos da América

FEMCIDI - Fundo Especial Multilateral do Conselho Interamericano de

Desenvolvimento Integral

FESNOJIV - Fundación del Estado para el Sistema Nacional de las Orquestas Juveniles

e Infantiles da Venezuela

FLADEM - Fórum Latino-americano de Educação Musical

INTEM - Instituto Interamericano de Educação Musical

MERCOSUL - Mercado Comum do Sul

OEA - Organização dos Estados Americanos

ONGs - Organizações não-governamentais

RCTV - Radio Caracas Televisión

UNASUL - União de Nações Sul-Americanas

UE - União Européia

UNESCO - United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization

UNICEF - United Nations Children‟s Funds

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Arte para crecer………………………………………………………………………....75

Batuta………………………………………………………………………………. .....76

El sistema como modelo..................................................................................................49

Instituto Baccarelli……………………………………………………………………...73

Guri Santa Marcelina.......................................................................................................73

Neojibá.............................................................................................................................73

Orquestas Juvenil.............................................................................................................74

Sistema de Orquestas.......................................................................................................74

Sistema de Orquestas Argentina……………………………………………………......76

Sonidos de La Tierra........................................................................................................75

SUMÁRIO

Introdução........................................................................................................................ 9

Capítulo 1 - Musica, Educação Musical e Sociedade..................................................... 12

1.2 - Musiki: contemplação e tragédia............................................................................. 15

1.3 - Música e fé.............................................................................................................. 18

1.4 - Música e Política: discutindo a relação................................................................. 22

1.5 - Hinos, Música e Nações: Representações e Legitimidade..................................... 26

Capítulo 2 - Globalização, cultura e identidade.............................................................. 35

2.2 - Educação Musical na América Latina: um meio de despertar de vários

povos?............................................................................................................................. 39

Capítulo 3 - “O Milagre Venezuelano”: um novo produto de exportação?.................... 46

3.2 - El Sistema: como criar sons que transpõem barreiras............................................ 53

3.3 - História da orquestra, exemplos de sucesso, metodologia..................................... 59

Considerações finais....................................................................................................... 67

Referencias Bibliográficas.............................................................................................. 69

Obras consultadas........................................................................................................... 72

Anexo............................................................................................................................. 73

9

INTRODUÇÃO

A música é uma das artes mais antigas, pois existe desde o tempo pré-histórico. Seus

elementos e ferramentas são abstratos e por vezes ininteligíveis, já que sua matéria – o som –

existe e adquire vida e forma somente pelas vibrações das ondas sonoras que se propagam

pelo ar. Mas esse material tão rarefeito e delicado, invisível aos olhos, e até místico para

alguns, pode ser tão penetrante e “cruel”, causando assombro e fascinação em quem ouve com

devida atenção. A música, portanto, sempre esteve perto do homem, mais do que ele próprio

imagina, porque faz parte dele, está dentro dele, mesmo que ele não “pare e escute”. A música

está na História, assim como a filosofia, a economia, a política, a matemática, a física e a

religião, e por isso, ela também é o reflexo da sociedade, está moldada por paradigmas

sociais, culturais, religiosos e políticos. E a partir daí, seu material abstrato e rarefeito adquire

concretude.

Hoje a modernidade trouxe diversos aparatos tecnológicos, encurtou distâncias,

aumentou as facilidades de comunicação e informação. As pessoas conversam entre si em

diferentes partes do mundo através do computador. Realmente, é muito difícil não estar

“conectado” a tudo que acontece ao redor. Mas será que estamos mais próximos de nós

mesmos, aliás, estamos mais próximos dos outros também?

Essas duas perguntas estão relacionadas ao objetivo deste trabalho: demonstrar como a

música e o ensino musical podem mudar uma comunidade, um país, ressaltando também a

importância do seu papel na integração dos países ou de grupos étnicos como árabes-

israelenses. Não há caminhos e padrões a serem seguidos, não. Em música, existem diversas

maneiras para chegar a um só objetivo, existem diversas respostas que levam para o mesmo

caminho: o caminho do diálogo e da cooperação. A música dentro da sociedade pode - e deve

- cumprir este papel. Afinal, não é ela a linguagem universal?

É com esse intuito que educadores musicais, a partir da metade do século XX, vão

começar a discutir o papel da educação musical no mundo e a criar um ambiente de discussão

sobre o assunto na sociedade internacional. Sendo assim, devido à extrema marginalização

das crianças em alguns locais dentro da América Latina, educadores, artistas e músicos vão

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defender a idéia da utilização da música como uma saída para a verdadeira mudança: a

mudança que começa de dentro. Isso vai começar a gerar ações também de políticos e

empresários que passarão a fomentar projetos musicais e sociais em áreas de conflitos e

extremamente pobres. Com a ajuda do Estado, de organizações internacionais, governos

locais, políticos, empresas privadas e ONGs, vão se instaurar dentro de comunidades

periféricas e totalmente relegadas ao esquecimento, projetos musicais que afetaram toda a

vida da comunidade. O grande e maior exemplo é o FESNOJIV da Venezuela, que foi

fundado pelo músico, economista e político José Abreu, e hoje, seu sucesso fez espalhar

sementes, primeiramente, pela América Latina e depois pelo mundo. Este trabalho procura

demonstrar como, através da música, é possível mudar o rumo de um indivíduo, de sua

comunidade e de seu país.

No primeiro capítulo, procurei demonstrar a importância da música na sociedade e como

ela constrói diálogos e pontes nos seus diversos elementos, como religião, fé, política, Estado,

nação e nacionalismo. Também retratei a importância da educação musical dentro da

sociedade como uma forma de construir, de projetar e modificar a imagem de um povo ou

uma nação, além de construir diálogos entre povos diferentes e até conflitantes entre si. A

educação musical existe desde os primeiros grandes impérios e alcança seu ápice na Grécia

Antiga. Infelizmente, a valorização que os gregos tinham pela música se perdeu durante o

processo histórico, apesar de a música como arte não deixar de existir. Hoje, o que esses

educadores, artistas e políticos engajados buscam através da educação musical, é incutir

valores nas crianças e nos jovens como cidadania, democracia, respeito, valorização à vida e à

comunidade.

No segundo capítulo retratei a importância da música na comunidade através da

discussão entre os pontos como globalização, cultura e identidade. As fronteiras estão cada

vez mais frágeis e frequentemente diversas identidades culturais são sobrepostas. A música

cumpre o papel de reforçar essas identidades, ao mesmo tempo que as integra dentro de uma

relação entre estados. Essa discussão, portanto, parte para o âmbito latino-americano, já que o

continente apresenta diversas etnias, tem regiões extremamente pobres e miseráveis e está

passando por um processo de integração regional que vem se fortalecendo desde o começo do

século. A importância da educação musical então ressurge como forma de resgatar a

identidade desses povos - que tantas vezes foram massacrados - melhorar sua auto-estima,

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desenvolver a cidadania e a democracia na região, e integrá-los de uma forma que vai além

dos moldes do Estado, da economia ou da política.

No terceiro exemplo será apresentado o FESNOJIV, também conhecido mundialmente

como El Sistema, ou o “milagre venezuelano”. Seu sucesso é tão surpreendente que virou um

produto de “exportação já comprado” por países como Estados Unidos, Escócia, Inglaterra e

Coréia. Será demonstrado como através do seu trabalho, e também de seu lema – tocar y

luchar – ele conseguiu tirar muitas crianças da marginalidade e está transformando o

ambiente das favelas venezuelanas, conhecidas como barrios.

A ligação entre música e relações internacionais está no simples fato de que esta arte

fala universalmente por todos e para todos os povos. A essência do seu material não é como

um demagógico ou inflamado discurso político, nem como os impressionantes números da

economia, nem como maravilhosos aparatos tecnológicos. Seu discurso é somente isso: som e

silêncio, matéria rarefeita e avassaladora, que pode construir pontes e diálogos ao harmonizar

as diversas vozes conflitantes de um sistema. “É só parar para ouvir e escutar”.

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PRIMEIRO CAPÍTULO

1. MÚSICA, EDUCAÇÃO MUSICAL E SOCIEDADE.

Há muita música hoje? Sim, claro, alguém responderia a esta indagação aparentemente

óbvia. Há música ao entrar em um restaurante ou em um estabelecimento comercial, dentro de

um ônibus ou de um avião, ao ligar a televisão, dentro dos hospitais, na espera do telefonema,

no carro de gás, nos teatros, shows e festas. Quando se caminha pelas agitadas avenidas e ruas

de São Paulo, quase todos os passantes carregam consigo ipods, mp3, sem contar os antigos

radinhos de pilhas que surpresamente alguém pode levar consigo. Sim, de fato, há muita

música no mundo, há demasiadamente.

Vivemos em uma sociedade de consumo, e a música nunca esteve tão presente porque

ela nunca antes foi tão consumida. É só apertar um simples botão e já existe música. Comprá-

la nunca foi tão fácil e barato também, já que se pode consumir música sem desembolsar

quase ou nenhum dinheiro pela internet. O mundo moderno e digital trouxe uma verdadeira

“revolução musical” neste sentido. Mas a maior parte da música que é consumida hoje

demonstra qual qualidade? Que natureza ela apresenta? O que ela expressa? Para quem ela se

dirige? Quais são seus objetivos ao atingir as pessoas? Será que as pessoas por ouvirem mais

estão se tornando mais musicais? Essa “revolução” aproximou o homem da música como

nunca antes na História? O que é a música para os homens de hoje?

Para as tribos africanas a música é o veículo que coloca alguém em contato com os

espíritos do passado e também do futuro. Alguns dizem que pode expressar um sentimento de

um povo, de uma nação, ou de alguém que lamenta a perda de seu querido amor; pode ser

expressão de um ato solitário – o pastor que toca para si próprio e para o rebanho; de um

pequeno grupo – a aldeia estabelecendo dança ou uma canção comunal; do brado de uma

multidão – as marchas civis, ou uma revolução que está por estourar, cantando determinação e

solidariedade. Pode ser o canto triste e desesperado dos judeus europeus durante a Segunda

Guerra Mundial, ou a inextinguível esperança dos spirituals cantados pelos negros africanos

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no Novo Mundo e que teve sua expressão máxima com o hino “We shall Overcome” durante

o movimento dos direitos civis dos negros americanos.

Outros consideram a música como uma forma de arte cujo objetivo é não mais que

expressar ela mesma, uma arte sem fins, a não ser ela própria e seus elementos. Como

confidenciou o compositor russo Igor Stravinsky ao seu amigo Robert Craft no livro An

Improbable Life, que a música não passa de uma ilusão:

Eu considero que música não tem, por sua natureza, poder em expressar qualquer

coisa que não seja, um sentimento, uma atitude, um estado psicológico, um fenômeno

da natureza, etc... se, como é sempre o caso, a música aparenta em expressar algo, isto

é somente uma ilusão e não uma realidade. (CRAFT, 1993 apud SHARP, 2000, p.37,

tradução nossa) 1

A música tem essa natureza dual, abstrata, simbólica, espiritual, emotiva e livre. Mas

também apresenta, assim como toda a arte, estruturas moldadas por um paradigma e contextos

sociais, quando ela não é o próprio reflexo da sociedade. Ela sempre acompanhou seu

desenvolvimento, e por isso está constantemente mudando. Quando se produz mudanças em

todo o contexto social a música também sofre mudança: quem a faz, quem a escuta, quem

compra e vende; também variam de maneira fundamental as relações entre compositor,

executante e público. Cada vez que a música ocupar uma posição diferente na sociedade há

uma mudança importante. Por isso, talvez esteja mais do que na hora de pensar no que hoje

ela representa para uma sociedade pautada pelo consumo e mercado, e cujos valores estéticos

e artísticos estão sofrendo constantemente mudanças - mudanças nem sempre para melhor.

A maior parte dessa música é bem diferente daquela que se encontra nas salas de

concertos, nos conservatórios, ou daquela que é a manifestação genuína de um povo e de uma

comunidade. Há muita música, mas ela tem se distanciado cada vez mais de um fazer musical,

de um processo artesanal e artístico, e se tornando mais um elemento enlatado a ser deglutido

pelas pessoas que ouvem simplesmente, mas não escutam de fato. “Quem escuta, aprende a

ouvir com razão e sensibilidade”2, como disse o educador belga Edgar Willems. (WILLEMS,

1985, p.30 apud FERRADA, 2005, p.128).

1 I consider that music is, by its very nature, powerless to express anything at all, whether a felling, an attitude of

mind , a psychological mood, a phenomenon of nature, etc. …if, as is nearly always the case, music appears to

express something, this is only an illusion, not a reality. 2 O pedagogo belga Edgar Willems remete-se a três verbos em francês – ouir, écouter e entendre (ouvir, escutar,

entender) para designar três qualidades diferentes da audição: o primeiro para designar uma função puramente

sensorial, o segundo quando a emoção se junta ao primeiro, e por fim, o terceiro verbo indica o surgimento da

consciência daquilo que se ouve.

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Aprender com razão e sensibilidade é educar o ouvido. Não só isso; é educar a si

mesmo. Uma verdadeira educação musical pode modificar o valor que a música tem para os

homens. Pode modificar os próprios homens, sua sociedade, seu povo, sua nação. Hoje,

vivemos numa época baseada mais na imagem do que na audição. Quando a uma criança é

ensinado atravessar a rua, dizem-lhe para olhar para os dois lados em vez de escutar o som de

um carro aproximando. O sistema da visão é muito mais usado do que o da audição. Embora

o espaço no cérebro ocupado pelo sistema auditivo é menor do aquele ocupado pelo sistema

visual, é o espaço auditivo que está mais próximo das áreas que regulam a vida e onde são

geradas as sensações de dor, prazer, motivação e outras emoções básicas. Logo, se o homem

relega sua audição a segundo plano, ele se distancia de suas próprias sensações e emoções, de

si mesmo.

Portanto, só o ouvir não quer dizer que alguém esteja verdadeiramente escutando, assim

como é possível que alguém olhe muito e não veja. A leitura de um livro não somente implica

em olhar as letras, as palavras, mas interpretar o texto, fazer conexões e construções mentais;

assim é também com a música. Para escutá-la é preciso entender a narrativa musical e

discernir a mensagem que ela passa para o cérebro, é preciso aliar o pensamento com a

emoção. Quando se assiste a um concerto de música clássica, por exemplo, o som que é

transmitido existe dentro de um tempo e espaço definidos; cada nota é emitida dentro dessas

leis físicas de durabilidade, de intensidade e de timbre. Se algum ouvinte não apreender tais

fenômenos, ele não pode parar simplesmente a execução da orquestra ou pedir que ela repita

para ajustar seu ouvido. Isso seria impensável. Ele precisa se concentrar definitivamente para

receber o material musical que é executado. É um esforço que exige presença não só física,

mas consciente - e porque não espiritual? Mesmo o silêncio feito durante as pausas musicais é

carregado de significados. É preciso estar sempre presente, porque a música é uma arte do

tempo presente . Conforme Fanny Luckert Barela:

Neste processo de contato com nossa interioridade se dá o que de alguma forma

poderíamos chamar de um “estado alterado de consciência”, no qual desconectamos

do mundo exterior e onde o tempo e o espaço passam a ter outra dimensão. Estando

neste estado especial, o processo expressivo-creativo, como tal nos convida a

dialogar com essa experiência, vai alterando seu desenvolvimento. Sendo a música

uma arte temporal e sua obra efêmera, expressar-se mediante sua linguagem

significa estar em um permanente “presente”3. (BARELA, 2004, p. 166)

3 En este processo de contacto con nuestra interioridad se da lo que de alguna forma podríamos llamar un

“estado alterado de conciencia”, en el cual nos desconectamos del mundo exterior y donde el tiempo y el

espacio pasan a tener otra dimensión. Estando en ese estado especial, el processo expressivo-creativo como tal

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Compreender esse estado “presente” não é nada fácil. Exige que forças opostas estejam

em equilíbrio como tensão e repouso, agitação e tranqüilidade, concentração, precisão,

objetividade e um deixar levar-se. Elementos opostos que estão presentes na música e que

podem ser incorporados no viver do ser humano. Um equilíbrio tão almejado atualmente pela

sociedade moderna mergulhada em fundamentalismos e em extremos gritantes. Há uma

preocupação em alcançar esse estado em diversas áreas, na política, economia e nas relações

sociais. Nesse sentido, a música tem muito mais a ensinar à vida, do que o contrário. Por isso

a educação musical é importante, não só porque se aprende a ler notas musicais, mas porque

através delas se constroem relações harmoniosas consigo mesmo e com os outros. Como disse

o maestro e pianista Daniel Barenboim:

O poder da música reside em sua capacidade de se comunicar com todos os

aspectos do ser humano – o animal, o emocional, o intelectual e o espiritual. Com

muita freqüência, pensamos que as questões pessoais, sociais e políticas são

independentes, sem influir umas nas outras. Pela música, aprendemos que essa é

uma impossibilidade objetiva: simplesmente não existem elementos independentes.

O pensamento lógico e as emoções intuitivas devem estar constantemente unidos.

A música nos ensina, em resumo que tudo está ligado. (2009, p.125).

1.2 - Musiki: contemplação e tragédia.

Se a atual situação da música com sua sociedade é complexa, é preciso estudar qual era

a função dela no passado, para entender o caminho que vai construindo junto com a

sociedade, e depois, construir soluções para o presente a fim de melhorar o futuro. Muitos

ainda não “escutam” de fato porque não têm oportunidades para aprender. Desde o século

XIX, a música clássica e outras formas ditas “eruditas”, como o jazz, por exemplo,

divorciaram-se completamente do consumo em larga escala, e isso é uma conseqüência da

própria educação musical ainda ser privilégio de grupos restritos e elitizados; ou então o mito

de que música clássica só pode ser aprendida por quem tem “talento” ou “genialidade” para

tal, quando na verdade não é assim. A música faz parte do ser humano, é um movimento

inerente a ele, como a pulsação de seu andar, ou de seu coração batendo.

nos invita a dialogar con la experiencia misma, de manera que el efecto que produce en nosotros la propria

expressión, va modulando su desarrollo.

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Desde os tempos pré-históricos o homem faz música. A música faz parte do homem

quando tirava sons através de ossos de animais, pedras ou seus próprios gritos, e isso foi

sendo desenvolvido também nos antigos impérios como o egípcio, babilônico, sumério e

chinês. Como disse o famoso violinista Yehudi Menuhin:

A música é a nossa mais antiga forma de expressão, mais antiga do que a

linguagem ou a arte; começa com a voz com a nossa necessidade preponderante de

nos dar aos outros. De fato, a música é o homem, muito mais do que as palavras,

porque estas são símbolos que transmitem significado factual. A música toca

nossos sentimentos mais profundamente do que as maiorias das palavras

(MENUHIN; DAVIS, 1900, p.1).

Entretanto, foi na Grécia Antiga que alcançou um patamar supremo de valorização e

importância. Assim como em outras áreas, a música ocidental deve muito a essa civilização.

Nunca houve em nenhuma sociedade estima tão alta pela música e educação musical. A

própria palavra grega musiki significa todas as artes das nove Musas. Ela não era só

exclusividade dos artistas, mas de todos, pois colaborava na formação do caráter e da

cidadania, dominava a vida religiosa, estética, moral e científica da sociedade grega. Portanto,

faz sentido tratarmos como objeto deste trabalho a relação intrínseca entre a música e imagem

internacional de uma nação.

Nas cidades-estados, ela foi preocupação dos governantes, e sua educação estava sob

responsabilidade dos legisladores. Em Esparta, ela era obrigatória para a educação da infância

e da juventude. Em Atenas, esperava promover a moral e a cidadania. A idéia de boa e má

música não era só estética, mas também moral: uma má música poderia rebaixar e destruir um

povo, suas leis e sua política. A palavra nomos significa música, da mesma maneira que

significa lógica, representando as leis morais, sociais e políticas. Ela não cumpria o papel de

um divertimento privado, e sim de elevação moral política e pública, promovendo o bem-estar

da pólis.

Além da elevação dos preceitos morais e políticos, filósofos importantes como Platão e

Aristóteles declararam em seus ensinamentos que ela estava relacionada a fenômenos

cósmicos como estações do ano, ciclos do dia, do Sol e da Lua, homem/mulher,

morte/renascimento, o que a coloca também relacionada diretamente com a magia.

Matemática e música eram regidas pelas mesmas leis segundo Pitágoras e a educação musical

estava intimamente ligada ao aperfeiçoamento da alma humana, assim como o corpo pela

ginástica e a mente pela retórica.

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Portanto, o valor atribuído à musica era extra-musical. A doutrina do éthos, criada por

eles, era um sistema melódico constituído por “modos gregos” e que continham um efeito

peculiar quando se ouvia determinada melodia. Eles serão utilizados também ao longo de toda

a música da Idade Média e do Renascimento.

A cada modo grego estava associado um caráter, um éthos que influia no caráter do

homem:

•O Modo Dórico (de uma escala de mi a mi) era viril, grave, belo e educativo.

•O Modo Frígio (de uma escala de ré a ré) era agitado, entusiasta e “báquico”.

•O Modo Lídio (de uma escala de dó a dó) era dolente, fúnebre, decente e educativo

(segundo Aristóteles).

•O Modo Mixolídio (de uma escala de si a si) era patético.

Música e matemática, equilíbrio e catarse, lógica e intuição, assim surgem os dois mitos

dos principais instrumentos gregos, o aulos e a lira que representam a música da razão e a

música dos sentimentos, respectivamente; o primeiro apresentava um som mais áspero e rude,

o segundo, mais suave e lírico.

Num deles a música teria surgido quando Hermes encontrou uma carapaça de tartaruga,

e a utilizou como um corpo ressonante, inventando a lira e dando-a de presente a Apolo para

simplesmente tocar e contemplar o universo. O outro narrado por Píndaro, diz que o aulos foi

criado por Palas Athena, após Medusa ser decapitada por Perseu e ver suas irmãs soltarem

gritos pungentes de dor e pesar. A lira é um instrumento de contemplação, o aulos é um

instrumento de exaltação à tragédia, dionisíaco. No decorrer dos tempos, essas duas

abordagens em relação a música passarão a coexistir: a música como reflexo da contemplação

do universo e a música como reflexo dos mais puros e intensos sentimentos. Para o filósofo

Nietzsche, essa junção do apolíneo e do dionisíaco da música faz dela a forma de arte mais

acessível de todas, por causar uma impressão mais forte e envolvente que as outras artes,

apesar de também ser a mais incompreensível, confirmando mais uma vez sua natureza dual.

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Esse paradoxo está mais que presente na atualidade. Há música por todos os lados, mas

ela é pouco estudada e compreendida. Por isso cresce o discurso de educadores, músicos,

artistas, instituições e governos para o estímulo do aprendizado da música, principalmente nos

países pobres, como os latino-americanos ou em países que estão inseridos em zonas de

conflito como é no Oriente Médio. Políticas ou projetos que promovem desde a inclusão

social através da música até o diálogo intercultural entre povos como árabes e judeus estão

cada vez mais sendo criados e aprovados pela sociedade internacional, como é o caso da

West-Eastern Divan Orchestra4 idealizada pelo músico Daniel Barenboim e pelo intelectual

Edward Said. Há um apelo geral surgindo entre artistas e intelectuais de que é preciso parar

para “ouvir e escutar” como forma de resistência às “tragédias” da modernidade? Como

acreditar que a música tem esse poder de transformação?

As próprias transformações acontecem primeiramente internamente, dentro dos

indivíduos, para depois se prolongarem e produzirem resultados “concretos” na sociedade. Os

processos dos resultados artísticos aparecem em um tempo mais longo do que daqueles

relacionados a outras áreas, uma vez que o material da cultura é essencialmente humano,

subjetivo e imprevisível. Acreditar que ela tem esse poder de potencializar o ser humano é um

ato de fé, pois envolve crença em valores subjetivos e qualitativos, diferente dos valores

quantitativos e numéricos que medem, por exemplo, a riqueza de um Estado, ou o lucro de

uma empresa privada.

1.3 - Música e fé.

A vinculação da fé à música é muito forte, pois a religião ou o transcendental são

manifestados em canções, ritmos, danças, rituais, missas e orações nas diversas sociedades:

desde o índio norte-americano, até os monges tibetanos; desde o canto judaico à melodia

sinuosa do sitar de um indiano que o dedilha serenamente em louvação a deus hindu Shiva;

ou então, como os griot (cantores) africanos que cantam e narram histórias para renovar as

lembranças e emoções das gerações passadas a toda a aldeia reunida em torno de si; além da

existência do grande número de compositores eruditos ocidentais que escreveram boa parte de

4 WEST-EASTERN DIVAN ORCHESTRA. Disponível em: <www.west-eastern-divan.org>. Acesso em:

13/04/2010.

19

sua obra para a fé cristã, sendo o maior expoente deles Johann Sebastian Bach. Música e fé

andaram “lado a lado” na História. Como disse Said:

Há todo um discurso na história da religião, que você pode chamar de misticismo,

sufismo e por aí fora, em que a experiência religiosa é aquela do inefável, do tácito,

do inalcançável, do inatingível. Esse discurso certamente está presente em todas as

religiões monoteístas e, em algum grau, em certas religiões pluralistas. É muito

interessante que, no caso de alguns compositores –estou pensando em Messiaen e

sem dúvida Bach -, há uma tentativa não de aproximar o divino, como de

incorporar o divino. (BARENBOIM;SAID, 2003, p.130):

O poderoso Império da Igreja Ocidental Cristã tem um profundo impacto na sociedade

ocidental e em sua música. Esse império duradouro - pois até hoje persiste, mesmo que

sofrendo seus revezes - será vital para o desenvolvimento da música ocidental tal como

conhecemos, pois foi a partir da unificação da fé por toda Europa que o sistema de notação

musical surgiu por volta de 600 a.C., registrando obras dos primeiros grandes compositores

como Guillaume de Machaut e Giovanni Perlugi da Palestrina.

Assim como a música, a fé possui elementos paradoxais. Ela equilibra razão e emoção

de forma que conceda tranqüilidade, contemplação e transcendência. Entretanto, a fé, uma vez

que seu pêndulo oscile freqüentemente para o lado da emoção, jamais esteve isenta da

tendência do homem a levar as coisas para longe demais. Pelo processo histórico o pêndulo da

fé sempre oscilou definitivamente para os impulsos emocionais e irracionais. As Cruzadas e a

Inquisição são provas disso. O conflito árabe-israelense também. Guerrear, matar e condenar

são formas que alguns até hoje se utilizam por causa de um deus que acreditam ser o

verdadeiro e o único a ser seguido. A humanidade em busca de verdades no místico não

consegue olhar para a realidade, enxergar o outro e estabelecer um laço de harmonia entre

todos. Assim como uma sociedade define beleza a partir do que é belo para ela, assim o

“transcendental” se expressa de diversas maneiras. Mas este pêndulo pode ser alterado

também por meio da música, e assim a fé pode surpreender a história. Aliás, pode surpreender

duas vezes.

O projeto West-Eastern Divan Orchestra mencionado acima envolve diálogo inter-

religioso, música e mudança social. Em 1999, Daniel Barenboim, juntamente com o pensador

e crítico palestino Edward Said, decidiu criar um workshop para jovens músicos de Israel,

Palestina e vários países árabes do Oriente Médio, com o objetivo de criar um diálogo

20

intercultural e promover a experiência da colaboração por meio de um interesse comum: fazer

música.

Daniel Barenboim e Edward Said deram esse nome ao projeto, após a coleta de um

poema de Johann Wolfgang von Goethe intitulado "West-Eastern Divan", uma obra central

para a evolução do conceito de cultura mundial. Goethe o escreveu durante o fim das guerras

Napoleônicas e o estabelecimento dos acordos do Congresso de Viena, curiosamente, na

mesma época em que Beethoven escrevia sua Nona Sinfonia. Encantando com o mundo

islâmico, Goethe resolveu aprender árabe aos sessenta anos. O poema foi escrito após

conhecer a obra do poeta persa Hafiz (1320-1389), que foi sobrevivente de um período

extremamente turbulento pelo qual passou a sociedade islâmica no momento que estava

sucumbindo à invasão Mongol. Seus poemas mostram que a visão de mundo e também a

visão de Deus no mundo islâmico apresenta mais semelhanças do que diferenças com a visão

Ocidental. Deus, para o poeta alemão (GOETHE, 2010), se mostra de uma maneira só:

A Deus pretence o Oriente,

A Deus pretence o Ocidente

Norte e Sul repousam

Pacificamente em Suas mãos[…]5

Em 2002, a West-Eastern Divan Orchestra ganhou uma sede permanente em Sevilha, na

região de Andaluzia, Espanha, onde é apoiada pelo governo regional. Se a religião pode

surpreender duas vezes, foi nesta mesma região, durante os séculos VIII e XV, que islâmicos,

israelenses e judeus conviveram pacificamente; algo que aconteceu somente uma vez na

história. Al-andalus era como os árabes chamavam a região, e significa “luminoso”. Ela

representava a vanguarda cultural e científica da Europa, e a harmonia era tão intensa que o

emir Abd al-Rahman III, que governou entre 912 e 961, nomeou um judeu como seu vizir

(algo como um primeiro-ministro). A decoração mudéjar é um dos traços mais visíveis dessa

convivência e influência mútua entre as três religiões. Mudéjar é uma palavra em árabe que

quer dizer “aqueles autorizados a permanecer”. Ele está presente em todas as igrejas e

sinagogas de Andaluzia.

5 GOD is of the east possess'd/ God is ruler of the west/ North and south alike, each land /Rests within His gentle

hand.

21

Quando Daniel Barenboim (2009, p.74) perguntou ao presidente da região, Manuel

Chávez, porque estava apoiando o projeto com tal fervor, sendo que a decisão não significava

a abertura de um negócio lucrativo que lhe traria dividendos políticos, sua resposta foi a

seguinte: “A Espanha em geral (e Andaluzia, em especial) é o que é hoje em dia graças ao

fato de que judeus e mulçumanos conviveram ali por muitos anos, contribuindo para o

desenvolvimento do país e de sua cultura”. Barenboim (2009, p.74) ainda afirma: “Se

houvesse alguma forma de a região devolver atualmente o que havia recebido desses povos ao

longo dos séculos, ele sentia que não era apenas seu dever, mas um privilégio poder fazê-lo”.

Tanto Edward Said como Daniel Barenboim ao criarem o projeto, acreditaram que o

problema no Oriente Médio é de ordem cultural também, não só uma questão territorial e

política. Persiste um problema essencial de que as pessoas não se dialogam, não dão a devida

atenção para a história de cada povo, suas narrativas e suas dores. Criar condições de diálogo

é ter a coragem necessária para ouvir, o que, às vezes não se prefere dizer. Então, tendo

escutado o inaceitável, pode ser possível aceitar a legitimidade de outros pontos de vista.

Acreditar nisso é um ato de fé, não em Deus, ideologias, em tratados ou em políticos, mas no

próprio ser humano. No site da orquestra a missão desenvolvida pelos dois amigos está assim

descrita:

A West-Eastern Divan Orchestra provou repetidas vezes que a música pode quebrar

barreiras antes consideradas insuperáveis. O único aspecto político prevalecente no

trabalho da West-Eastern Divan é a convicção de que nunca haverá uma solução

militar para o conflito no Oriente Médio, e que os destinos dos israelenses e

palestinos estão inextricavelmente ligados. Através do trabalho e de existência da

West-Eastern Divan Orchestra, fica demonstrado que as pontes podem ser construídas

para incentivar as pessoas para ouvir umas as outras. Música por si só, não pode,

evidentemente, resolver o conflito árabe-israelense. Música concede ao indivíduo o

direito e o dever de se expressar plenamente enquanto escuta seu vizinho. Com base

nessa noção de igualdade, cooperação e justiça para todos, a Orquestra representa um

modelo alternativo à atual situação no Oriente Médio. (WEST-EASTERN DIVAN

ORCHESTRA, 2010)

A música que dialoga com a fé, sem deixar de ser música, pode “mover montanhas” nas

relações entre países.

22

1.4 - Música e Política: discutindo a relação.

O período anterior ao Iluminismo – a Idade Média - era caracterizado por uma sociedade

largamente não-literária, e, portanto, era quase que impossível distinguir entre o que pertencia

aos adultos e aquilo que pertencia às crianças. Não havia livros dirigidos ao aprendizado dos

jovens, e os mesmos jogos e brincadeiras eram compartilhados igualmente entre pessoas de

diferentes idades. O conceito de educação infantil e o próprio conceito de infância começaram

a ser construídos a partir do Renascimento e com isso as profundas transformações operadas

por ele, como por exemplo, a valorização da idéia de individualismo e antropocentrismo.

Graças ao surgimento da imprensa, da possibilidade de um aumento de leitores em todos os

segmentos da sociedade e o surgimento da escola, teóricos políticos do liberalismo irão

escrever obras sobre a importância da educação da criança.

Se o músico Daniel Barenboim afirma atualmente que música ajuda a “escutar” o outro

e a entender outros pontos de vista, o mesmo já havia afirmado filósofos políticos como Jean-

Jacques Rousseau, o importante pensador do liberalismo igualitário e também precursor da

pedagogia moderna. Sua obra Émilie é considerada como uma revolução na história da área

da educação. Há um trecho interessante nesta obra em relação ao aprendizado musical

(ROUSSEAU, 1966, p.114-115 apud SHARP, 2000, p.20-21, tradução nossa):

Talvez você deva supor que como eu não estou preocupado em ensinar Émile em

escrever e ler, eu não deveria ensiná-lo música. Devemos poupar seu cérebro de

esforço excessivo, e não nos preocupemos em voltar sua mente para sinais

convencionais. Mas admito a você que parece haver um problema aqui, pois à

primeira vista o conhecimento das notas não parece ser tão necessário quanto o

conhecimento das letras. Há diferenças entre ambos: quando falamos, nós

expressamos nossos próprios pensamentos; quando cantamos nós expressamos os

pensamentos de outros.

Mas, primeiro, nós podemos ouvir esses pensamentos, sem precisar lê-los, e uma

canção é mais bem aprendida pelo ouvido do que pelo olho. Além do que, para

aprender música direito, nós devemos fazer canções assim como cantá-las, e então os

dois processos devem ser estudados juntos, ou nunca teremos conhecimento real da

música... Mas já disse o bastante, e mais que o bastante, sobre música: ensine-a com

prazer, como se fosse uma divertida brincadeira6.

6 You may first perhaps suppose that as I am in no hurry to teach Émile to read and write. I shall not want to

teach him to read music. Let us spare his brain the strain of excessive attention, and let us be in no hurry to turn

his mind toward conventional signs. I grant you there seems to be a difficulty here, for if at first sight the

knowledge of notes seems no more necessary for singing than the knowledge of letters for speaking, there is

really this difference between then: When we speak, we are expressing our own thoughts; when we sing we are

expressing the thoughts of others. But at first we can listen to them instead of read them, and a song is better

learnt by ear than by eye. Moreover, to learn music thoroughly we must make songs as well as sing then, and the

23

Além de Rousseau, John Locke escreveu Thoughts Concerning Education7 (LOCKE,

1981 apud SHARP, 2000, p. 17) onde descreve que a educação deve moldar o homem para a

vida, para o mundo, não somente para a escola ou universidade. A instrução nunca deve se

esgotar e é essencialmente um treino para o desenvolvimento do caráter.

Essa mudança no pensamento, um pensamento centrado no homem e não mais na igreja

é o reflexo da nova sociedade que havia deixado de viver em feudos e começa a estabelecer as

futuras fronteiras nacionais. Há também, como marca dessa época, e isso descende do

pensamento maquiveliano, de que deveria haver uma separação entre Igreja e Estado. O

Tratado de Vestfália marcou o início do moderno Sistema Internacional – também do estudo

de Relações Internacionais - uma vez que foram estabelecidos pelas nações envolvidas os

princípios de soberania e Estado-Nação. A intenção era haver um equilíbrio de poder entre as

nações e a partir deste momento, as guerras posteriores ao acordo não mais tiveram como

causa principal a religião, mas giravam em torno de questões de Estado. Isto enfraqueceu o

poder central da igreja e trouxe grandes mudanças para a sociedade, algo que já vinha

acontecendo desde o século XIV e XV, quando houve o florescimento das cidades, as

navegações marítimas e também as invenções tecnológicas, como a imprensa. Essa invenção

irá mudar o curso da música, pois permitiu que músicos amadores e profissionais entrassem

em contato com a obra de outros países.

A partir deste período, política e cultura irão se aproximar cada vez mais, e construir um

diálogo complexo durante o processo histórico, uma vez que a política pode se utilizar da

cultura para estabelecer o poder dominante, ou a cultura ainda pode quebrar com as estruturas

reacionárias da política. A música, por sua natureza dual, pode ser usada para fins benéficos,

mas também fins destrutivos e desarmônicos, uma vez que dependendo de como alguém ouve

o material musical, este vai apropriar-se dele e incutir-lhe uma característica subjetiva, ou

seja, irá começar a fazer alusões subjetivas que diferem do caráter objetivo do material

musical, alterará a substância para adaptá-la a sua percepção, ou até aos seus desejos e

vontades. Há uma pequena – mas importante – distância do material substancial da música e

das associações que ela evoca. Hitler utilizou a música de Beethoven “Allen Menschen

two process must be studied together, or we shall never have any real knowledge of music…But I have said

enough, and more than enough, about music; teach it as you please, so long as it is nothing but play. 7 Pensamentos sobre a Educação.

24

werden Brüder” para construir uma “irmandade alemã”. Sem falar na música de Wagner, que

apesar do anti-semitismo do patente compositor, foi utilizada de maneira abusiva durante os

últimos anos do Terceiro Reich. Por isso, ouvir com a razão (escutar) é imprescindível para

distinguir aquilo que a música de fato diz e aquilo que tentamos impor a ela. Uma educação

musical consciente desmascara esses elementos subjetivos, pois vão sendo quebrados durante

o processo de aprendizagem, e então, a música passa a falar por si só, sem interferência do

intérprete, e do ouvinte. Quando ela fala por si só, passa a existir uma verdadeira

transformação em quem faz, executa ou ouve, pois ela quebra com pré-conceitos,

julgamentos, ilusões ou alusões que alguém pode ter.

Não é a por acaso que muitos compositores sofreram com o descaso de sua música por

parte da sociedade. Johann Sebastian Bach foi aceito duzentos anos depois de sua morte. Mas

Bach, apesar do quase nenhum reconhecimento, sempre teve muito trabalho, já que era

empregado direto da igreja. Diferentemente de Wolfgang Amadeus Mozart que lutou muito

para ser aceito dentro de uma corte e uma aristocracia que o não entendia, muito menos sua

música. Mozart morreu cedo, enterrado numa vala de indigentes. Ele viveu numa época de

transição musical, onde a música passou do poder da igreja para o poder dos nobres e reis da

corte; ele foi um dos primeiros artistas cosmopolitas de sua época, uma vez que sua fama

desde pequeno ultrapassou as fronteiras, viajando e produzindo obras instrumentais como

concertos, sinfonias, óperas em italiano e alemão. Mas sua fama durou tão logo o menino

prodígio cresceu. Neste tempo sofreu muito quando tentava imprimir suas próprias idéias e

ferramentas musicais em suas peças, pois estas eram consideradas subversivas. Não podia

fazê-lo porque não existia ainda a figura do músico independente, algo que só acontecerá com

Ludwig Van Beethoven.

Para sobreviver, era preciso estar atrelado a uma corte, um príncipe, um mecena. Na

época de Mozart, o poder dos monarcas absolutos e da aristocracia da corte estava ainda

intacto. Mesmo após a eclosão da Revolução Francesa, algumas regiões ainda permaneceram

sob o poder de monarcas absolutistas. É o caso do Império Habsburgo na Áustria e em

algumas regiões da Alemanha e Itália. Nestes lugares, o absolutismo foi sendo lentamente

extinguido, em um processo que durou até o fim do século XIX e o começo do XX. Quando

se demitiu da corte de Salzburg em 1781, deu um passo pioneiro em relação à autonomia do

artista, traduzindo para si mesmo o ideal libertário da filosofia iluminista que caracterizava o

movimento Clássico nas artes dos séculos XVII e XVIII, e que marca o início da contestação

25

e da resistência do homem europeu ao Antigo Regime. Suas óperas - gênero em que se pode

perceber e sentir mais claramente a sua genialidade - além de refletirem todos esses ideais,

contêm elementos estéticos precursores do próximo movimento dito romântico. Por isso, sua

música era por vezes incompreendida. "São notas demais", disse certa vez o Imperador da

Áustria-Hungria, Francisco José II, ao ouvir uma de suas composições. (ELIAS, 1995, p.121).

Enfim, Mozart não viveu o suficiente para ver seus ideais de liberdade serem buscados

quando eclodiu a Revolução Francesa. Foi Ludwig Van Beethoven a figura na música clássica

que se transformou no ideal do músico romântico, livre e libertário, também retomando a

idéia central do artista, do poeta e filósofo na sociedade que havia na Grécia Antiga. Embora

de início tenha causado estranhamento da corte, teve sucesso em vida, tanto que no seu

funeral estavam presentes nada menos que 20.000 pessoas, entre os ricos e os pobres;

totalmente diferente do velório de Mozart, em que estava somente sua esposa Constanze.

Sua música soa revolucionaria até hoje, tanto pelos recursos musicais que ele utiliza

como pausas, silêncios e diferenças abruptas de dinâmicas, como pelo discurso humanista que

imprime a ela. O exemplo máximo é o quarto movimento de sua Nona Sinfonia, com um coral

cantando a letra do poema do poeta Friedrich Schiller “Ode à Alegria”. Aproximadamente

cem anos depois, em 1985, este coral se tornará o símbolo da União Européia8 pelos Chefes

de Estado e de Governo da UE cujo lema é “Unity in diversity”. Ele não substitui os hinos

nacionais dos Estados Membros, mas sim, celebra os valores por todos partilhados de unidade

e diversidade. Em 1972, o Conselho da Europa (organismo que concebeu também a bandeira

européia) pediu ao célebre maestro Herbert Von Karajan que compusesse três arranjos

instrumentais - para piano, para instrumentos de sopro e para orquestra. Sem palavras, na

linguagem universal da música, o hino exprime os ideais iluministas de liberdade, paz e

solidariedade que constituem o estandarte da Europa. Música pode e deve ser um instrumento

de integração entre Estados.

Outra obra de Beethoven que mostra seu engajamento político é sua 3ª Sinfonia, a

Heróica, composta para Napoleão, pois o compositor acreditava que ele seria o homem a

concretizar os lemas de liberdade, igualdade e fraternidade. Entretanto, ao saber que o general

decidiu ser imperador e colocar com suas próprias mãos a cora simbólica, Beethoven riscou a

dedicatória.

8 UNIÃO EUROPÉIA. Disponível em: www.europa.eu/abc/symbols/index_en.htm.>

Acesso em 21/04/2010.

26

1.5 - Hinos, Música e Nações: Representações e Legitimidade.

O próprio Napoleão sabia do poder da música para fins políticos. É de sua autoria a

seguinte frase: “Uma boa marcha vale cem canhões.” (DAVIS; MENUHIN, 1990, p.181).

Às vezes ele apressava a marcha para que suas tropas pudessem avançar mais rapidamente e

com mais força. O hino da França, a famosa canção La Marseillaise é hino nascido

diretamente da revolução e foi feita para marchar. O hino foi composto por Ruget de Lisle,

um jovem engenheiro e compositor do exército, membro de uma família aristocrática, presa

durante a Revolução de 1789. Seu nome original é “Canto de Guerra para exército do Reno” e

foi dedicada ao Marechal Nicolas Luckner, um oficial francês nascido na Baviera. Tornou-se

a convocação da Revolução Francesa e recebeu esse nome porque foi a primeira canção

cantada nas ruas por voluntários (fédérés) de Marselha quando chegaram a Paris, depois de

ouvirem um jovem voluntário de Montpellier chamado François Mireur ter cantado em uma

reunião patriótica em Marselha. Mais tarde Mireur se tornou um general de Bonaparte. Para

resistir aos ataques dos exércitos prussianos e austríacos em Paris, o exército francês foi

fortemente orientado a entoar o hino, durante a famosa batalha de Valmy na qual a França

saiu vencida.

Ao longo dos anos, este hino será fonte de inspiração para muitos compositores tanto

eruditos e populares de diversas nacionalidades. De fato, Napoleão tinha razão, a música

ultrapassou o tempo e as fronteiras nacionais. Logo abaixo alguns exemplos do emprego da

La Marseillase por alguns compositores:

Hector Berlioz o transcreveu para a orquestra.

Robert Schumann, compositor alemão, também a incorporou em sua abertura

“Hermann und Dorothea”, inspirado em um texto de Johann Wolfgang Von

Goethe.

Franz Liszt, compositor húngaro, também escreveu uma transcrição para

piano do hino.

Em 1882, Pyotr Tchaikovsky, compositor russo, usou citações extensas da

Marselhesa para representar o exército francês em sua “Abertura Sinfônica”,

composta em 1812.

27

O compositor inglês Edward Elgar citou a abertura de “La Marseillaise” em

sua obra coral “The Makers”, baseado em uma Ode do poeta britânico Arthur

O'Shaughnessy, e onde aparece frases com os dizeres como “Nós criamos um

império de glória” e “Siga em frente Inglaterra!”

Serge Gainsbourg, músico francês, gravou uma versão reggae no final dos

anos de 1970.

Henrik Wergeland escreveu uma versão da canção norueguesa em 1831,

chamado “The Norwegian Marseillan”.

Músicos populares como The Beatles colocaram na abertura de sua canção

“Love”; o ex-tenista e músico francês, Yannick Noah, em sua canção "Aux

Rêves", e o músico cigano belga Django Reinhardt, com "Echoes Of France".

A importância de um hino nacional demonstra a ligação forte – e ao mesmo tempo frágil

– entre música, política e nacionalismo, pois apesar de seus elementos universais, a música

também é limitada dentro de uma particularidade, pois reflete o tempo de uma determinada

sociedade assim como seus anseios para o futuro. Enquanto a França seguia “marchando”, a

Itália e a Alemanha ainda não haviam se formado, pois estavam ainda em guerra para

estabelecerem suas fronteiras. Dois desses compositores de ópera se identificaram com esse

processo: Giuseppe Verdi e Richard Wagner.

Grande parte da terra italiana ainda estava sob o controle do poderoso império dos

Habsburgos. Verdi, nascido em 1813, era um ardente partidário da independência e da

unidade nacional. A sua ópera Nabucco era o maior exemplo de sua posição. A obra retrata a

escravidão dos hebreus no período do Império Babilônico, na época do Rei Nabucodonosor, e

é uma analogia à ocupação austríaca na Itália na época de Verdi. O coro “Va pensiero,

sull`Ali Doratti”, cantado pelos hebreus no exílio, mostra seu anseio pela pátria na melodia.

Na estréia da obra, a platéia, extasiada, chegou a invadir o palco. A melodia e a ópera se

tornaram o símbolo do nacionalismo. Verdi, assim como Beethoven, tornou-se herói do seu

tempo, não somente por causa da música, mas pela feliz coincidência que os revolucionários

italianos encontraram de que seu nome V-E-R-D-I, correspondia à sigla Vittorio Emmanuele,

Re d`Itália – Vittorio Emmanuel, Rei da Itália. Depois que a Itália se unificou sob as mãos do

imperador, Verdi tornou-se deputado do primeiro Parlamento Italiano a convite do Conde

Cavour.

28

Richard Wanger seguiu a mesma linha de Verdi, só que na Alemanha. Entretanto, este

foi bem mais longe. Através de suas obras como Die Meistersinger, ele sentia a necessidade

de preservar e defender a cultura alemã contra ameaças tanto de fora quanto de dentro.

Quando chegou ao poder Hitler, apropriou-se dos escritos de Wagner sobre cultura alemã e

anti-semitismo, e associou-os aos seus anseios políticos e ideológicos de uma maneira que

talvez nem o próprio Wagner imaginasse. Sua obra teve tanto impacto em Hitler, que o

Führer ordenava colocar a música do compositor no momento em que judeus estavam sendo

levados para as câmaras de gás. Por outro lado, prisioneiros que eram autorizados a tocar nas

orquestras oficiais nazistas, ficaram proibidos de tocar Wagner, pois sua música era

considerada muito boa para serem executada pelos judeus.

Outra obra de Wagner, a ópera Rienzi, foi usada como estandarte do partido nazista

para libertarem os alemães do jugo de outros povos. O manuscrito estava desaparecido e foi

encontrado, anos mais tarde, na biblioteca particular de Adolf Hitler. Hitler, assíduo

freqüentador das óperas wagnerianas, apreciava esta ópera acima de todas as outras, pois

chegou a assistir mais de quarenta vezes – a ópera tem seis horas de duração! A razão de tal

adoração é o enredo, que conta a história da vida de Cola di Rienzi, uma personagem popular

da Itália medieval que tenta derrotar os nobres, incutir a revolta no povo, conduzindo-o a um

futuro melhor. Há aqui a associação entre música e o papel político de condottieri ao qual

Hitler aspirava.

Infelizmente as associações inseparáveis da música de Wagner com o nazismo irão

obscurecer de certa forma o valor artístico que ela apresenta para a história da música.

Wagner foi o precursor da nova música e quebrou com toda a estrutura tonal ao compor

“Tristão e Isolda”. Com esta ópera, de cerca de três horas e meia de duração e na qual a

tonalidade nunca se define, Wagner demonstrou que era possível compor música expressiva

fora do sistema tonal. Depois disso, vários compositores criararam obras atonais, e alguns

afirmaram que o sistema tonal já havia se esgotado, não tinha mais a razão de existir (como

Arnold Shöenberg); já outros simplesmente buscavam novas formas, tentando não se prender

ao esquematismo ou às fórmulas do sistema tonal (como Claude Debussy). Wagner fez novas

experimentações acústicas e suas idéias abriram novos caminhos e possibilidades para os

compositores que surgirão depois.

Enquanto a Alemanha e Itália buscavam moldar seus nacionalismos em lendas

mitológicas e histórias antigas de outros povos, os países da Europa Oriental e de outras

29

regiões buscavam através de suas canções, ritmos e danças construir uma identidade e um

orgulho nacional. Antonín Leopold Dvořák e Bedřich Smetana fizeram para os tchecos e

eslovacos, o que Edvard Grieg realizou para Noruega, e mais tarde, Jean Sibelius para a

Finlândia. Franz Lizt escreveu algumas obras em referência ao seu país como Rapsódias

Húngaras, embora, ironicamente, tenha nascido em Raiding, atualmente na Áustria, ter sido

educado em uma escola de língua alemã e nunca ter aprendido húngaro!

Foram os compositores húngaros Béla Bártok e Zoltán Kodály que buscaram, através

do folclore popular, criar métodos de ensino musical para as crianças, além de inserirem tais

elementos em suas próprias criações musicais. Eles viajavam o país inteiro coletando

materiais e escrevendo canções, solfejos e peças fáceis para serem executadas como uma

forma didática de aprender dentro da própria cultura. O compositor brasileiro Heitor Villa-

Lobos fará o mesmo no Brasil. De temperamento irrequieto, viajará o país coletando materiais

brasileiros: modas caipiras, tocadores de viola e outros tipos que mais tarde viriam a se

universalizar em suas obras, e depois utilizados na concepção das suas obras didáticas como

as cirandas e o canto orfeônico. No ano de 1930, apresenta um revolucionário plano de

Educação Musical à Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, recebendo aprovação.

Mais tarde, foi convidado pelo Secretário de Educação do Estado do Rio de Janeiro - Anísio

Teixeira - para organizar e dirigir a Superintendência de Educação Musical e Artística

(Sema), que introduzia o ensino da Música e o Canto Coral nas escolas. Apoiado pelo então

Presidente da República, Getúlio Vargas, organizou Concentrações Orfeônicas, chegando a

reunir, sob sua regência, até 40 mil escolares no Estádio do Maracanã. Em 1942, criou o

Conservatório Nacional de Canto Orfeônico. Villa-Lobos até hoje é criticado por seu

envolvimento com a ditadura do Estado Novo, sendo tachado como oportunista.

Os regimes ditatoriais que aparecem em decorrência do nacionalismo dificultaram muito

a vida de alguns compositores, como é o caso de Bártok, que teve que passar por um auto-

exílio nos Estados Unidos, devido ao regime fascista instalado na Hungria. Mas se por uma

lado dificultou-lhe a vida, enriqueceu muito sua obra, pois Bártok viajou o noroeste dos

Estados Unidos estudando a música dos índios americanos. Lá também conheceu o estilo

musical do jazz, que estava surgindo e tomando conta do mundo. No seu Concerto para

Orquestra, composto durante seus últimos anos em Nova Iorque, Bártok inclui, no último

movimento, uma animada melodia de jazz.

30

Outros compositores que sofreram com regimes ditatoriais foram os russos. Depois da

instalação do socialismo, e do partido bolchevista e sua máquina burocrática, muitos dele

sentiram que sua música não teria espaço em sua própria terra natal e ali não conseguiriam

alçar novos vôos, já que não podiam ter contato com outros compositores que não fossem

partidários do sistema. Dois desses músicos foram Serguei Prokofiev e Sergei Rachmaninoff.

Aquele ainda voltou à Rússia e teve sérios problemas com o governo de Stalin, a ponto de sua

esposa Lina ter sido presa por espionagem ao tentar enviar dinheiro para sua mãe na

Catalunha.

Entretanto, talvez o que tenha sofrido mais revezes, foi Dimitri Shostakovich por ter

ficado definitivamente na Rússia. Sua ópera satírica “O Nariz” (1928), baseado na história de

Nikolai Gogol, foi censurada por causa da crítica por parte da Associação Proletária de

Compositores Russos, que a qualificava como “burguesa”. A história conta a trajetória de um

oficial de St. Petesburgo cujo nariz deixa o rosto e toma vida própria. A montagem da ópera

apresenta elementos do atonalismo mesclado com elementos da música folclórica. Suas outras

composições como a Sinfonia n. 7, opus 60, conhecida como Leningrad, sofreu censura do

partido comunista, pois criticava o regime soviético. Logo após seu término, em 1941, o

compositor fala na rádio para todos os artistas e músicos, que a arte russa corre grande perigo,

e faz um apelo para que se defenda a música e a honestidade dos artistas russos. Outra obra

foi sua Sinfonia n. 13 " Babi Yar", opus 113, composta em 1962, sobre poemas de Evgueni

Evtouchenko. Ela foi composta em lembrança às vítimas do massacre de Babi Yar onde

pereceram 30 000 judeus ucranianos, e é uma crítica ao anti-semitismo ainda presente na

Rússia soviética. Embora tenha sofrido tantas censuras, a popularidade internacional de

Shostakovich foi utilizada por Stalin para revelar o mundo, o progresso e o avanço da

sociedade soviética. Mais tarde em vida, o compositor sofreu de doenças crônicas,

principalmente devido ao vício da bebida (vodka) e do cigarro. Como disse o violinista

Menuhin quando o conheceu:

Muitas vezes tenho pensado em Dmitri Shostakovich, um homem tímido e ansioso,

lutando toda a sua vida dentro do sistema estatal, sem conseguir-se livrar-se

completamente. Fiquei surpreso quando encontrei Schostakovich pela primeira vez

no Festival da Primavera de Praga, por volta de 1947. Sua música transpirava a

paixão, o fogo da guerra e o sacrifício, mas ele mesmo parecia pálido e ansioso. É

triste que um homem de tal gênio e com tanto a dizer não conseguisse atingir o

verdadeiro apogeu de sua capacidade por uma questão de desaprovação política.

Havia recebido grandes honrarias e tinha que manter-se à altura, terminando sua

vida num estado de tanto terror, que tremia constantemente. (MENUHIN;DAVIS,

1990, p.291)

31

A utilização de Stalin da popularidade de um músico para alavancar a imagem de um

país, demonstra que muitas vezes a força da linguagem musical transcende os pruridos

ideológicos.

Em épocas de ditaduras ou regimes autoritários, os artistas, na maioria das vezes, são

capazes de permanecerem convictos quanto a si mesmos e aos ideais libertários, mesmo que o

ambiente cultural seja restringido pela política. O Brasil, na época da ditadura (1964-1985)

viveu um grande florescimento artístico, principalmente no meio da música. No momento em

que a música popular começou a alcançar a grande massa do país, vozes como Chico Buarque

de Hollanda, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Taiguara e Geraldo Vandré entoavam canções

contra a ditadura e repressão. Esse movimento artístico não aconteceu somente no Brasil, mas

em toda a América latina, cujos países sofreram sucessivos golpes militares. Através das

próprias raízes populares e folclóricas, artistas como Mercedes Sosa, na Argentina, Violeta

Parra, no Chile, Daniel Viglietti, no Uruguai, Amparo Ochoa no México e muitos cantores e

compositores de outros países, fizeram parte de um movimento surgido no continente que

buscava o engajamento na luta política contra a ditadura, e conceder voz àqueles que não

podiam falar.

Do outro lado do atlântico, o jazz é uma forma de protesto nascida da voz dos negros

americanos. O estilo que vai marcar a história da música ocidental é o reflexo do Novo

Mundo que estava sendo formado pelos Estados Unidos. Nascido em New Orleans e seu

predecessor foi o ritmo ragtime. Os rags eram músicas folclóricas, tocadas tanto por negros e

brancos e diziam respeito a uma mescla da música africana e européia que era ouvida pelos

negros nas igrejas protestantes e nas festas dos brancos. Começaram a ser executadas nas

salas de visitas dos brancos, da classe média dos Estados Unidos, e depois, graças às

gravações, se alastraram pelo mundo. Apesar do forte apelo popular do jazz, ele influenciou

muitos compositores eruditos em suas obras, como relatei anteriormente. George Gershwin,

por exemplo, escreveu a primeira ópera só para cantores negros e com motivos do jazz: a

famosa Porgy and Bess.

Entre as décadas de 40‟ e 50‟, novos “ruídos” estavam sendo criados no novo tipo de

música que surgia também nos Estados Unidos. O rock era inovador e diferente de tudo que já

tinha ocorrido na música, pois unia um ritmo rápido com pitadas de música negra do sul dos

EUA e o country. Ao longo das décadas o rock também vai servir de protesto para uma

juventude que pregava liberdade, amor livre e paz. O festival de Woodstock torna-se o

32

símbolo deste período. Bob Dylan, The Beatles, Rolling Stones, Janis Joplin tornam-se

símbolos dessa nova música. Os tempos estavam mudando e assim também a música.

Enquanto nos Estados Unidos o jazz e o rock foram os propulsores da “música de mercado”, a

Europa estava perdendo seu domínio sobre a civilização ocidental. Não havia mais a

“pompa” dos salões, dos trajes, dos príncipes e princesas.

Em Viena, que tinha sido a capital musical da Europa durante mais de um século, um

compositor começara a procurar um novo “discurso” para a música, que entrasse em

“consonância” com as “dissonâncias” dos extremos na realidade em que vivia. Esse

compositor era Arnold Schöenberg, o criador do Sistema Dodecafônico9, apesar de ser

discípulo direto de Wagner, não tentou seguir ou modernizar a iniciativa de Wagner. O que

Schöenberg fez foi trazer para a música um inconformismo próprio da época e já presente em

outras manifestações artísticas, filosóficas e científicas como a crítica à filosofia idealista

alemã, feita por Engels e Marx, a “Teoria da Evolução das Espécies” de Darwin e o

expressionismo, na criação artística. Essa Nova Música dialogava com os autores da

conhecida Escola de Frankfurt, principalmente com Theodor W. Adorno, que escreveu em

torno de 40 artigos sobre arte e sociedade. Adorno fala que esta nova música é difícil de ser

“digerida” pela massa porque fala da própria miséria da sociedade, que sempre foi

manipulada pelas estruturas do poder e pelo discurso iluminista. Segundo Adorno e seus

colegas, esse discurso político e econômico produz bens culturais - filmes, livros, música

popular, programas de TV etc. – a fim de manipular e “alienar” os indivíduos.

A música de Schöenberg vem para denunciar essas estruturas burguesas que ainda não

foram quebradas. Seu objetivo ao criar o sistema dodecafônico era justamente de quebrar

também com a hierarquia da tonalidade, onde todas as notas tinham sua importância,

contestando assim a hierarquia de uma sociedade que persistia em continuar. O público,

então, começa a se distanciar da música clássica e principalmente, da nova música clássica, a

música contemporânea. Até hoje, a música contemporânea ainda só tem sua devida atenção

em um grupo restrito de apreciadores, bem como estudantes ou acadêmicos.

Além disso, John Cage com atitude e criatividade, também foi um desses compositores

da vanguarda que questionava por meio do som, o tempo em que estava vivendo o homem

contemporâneo. O compositor, assim como sua mulher, Merce Cunningham, eram artistas

9 Sistema musical onde todas as dozes notas são utilizadas em uma série estabelecida pelo compositor,

deslocando assim o eixo tensão-repouso do sistema tonal.

33

ligados ao anarquismo e aos movimentos de vanguarda da pós-segunda guerra. Ele ficou

famoso pela sua obra 4‟33‟‟, composta em 1952. A peça consiste em 4 minutos e 33 segundos

de música sem uma nota sequer. Pesquisador incansável do cotidiano, ele chegou a fazer uma

apresentação em Cambridge, Massachusets, de um evento que chamou de Harvard Square.

Colocou um piano em uma ilha de pedestres no centro da praça, e logo se formou uma

multidão. Cage acionou um cronômetro, fechou o piano e cruzou as mãos. A multidão

esperou. Depois de um certo tempo, determinado pela consulta ao I Ching – um livro chinês

que relaciona sabedoria e filosofia prática a números e a magia – ele abriu a tampa do teclado

e ficou de pé. O público aplaudiu enquanto Cage se curvava agradecendo. O que foi

apresentado foi nada mais do que o som de trânsito de Harvard Square, conversas casuais,

passos e outros ruídos.

Música clássica, jazz, rock, são estilos que depois irão se mesclando e formando novas

linguagens e expressões. Músicas de outros povos, originadas do oriente principalmente,

serão fontes de inspiração para muitos músicos, como Debussy, o próprio John Cage e até os

Beatles. Isso é o reflexo do próprio processo de globalização, que se intensificou após o

término da Guerra Fria, quando uma nova ordem multipolar ascendeu.

As fronteiras dos Estados, embora ainda existam, tornaram-se frágeis, o trânsito de

pessoas e culturas mais denso, e cada vez se torna mais difícil estabelecer e definir quais são

elementos externos e internos que agem dentro do Estado. A própria questão de identidade

cultural acaba se transformando, e muitas vezes, indivíduos ou grupos sociais buscam

soluções para essa crise não mais em ideologias, mas em fundamentalismos, sejam eles

religiosos, políticos ou econômicos.

Hoje parece haver uma crise do local diante do global, e a própria questão de identidade

cultural acaba se transformando. Muitas vezes indivíduos ou grupos sociais buscam soluções

impositivas para reforçar seu espaço dentro do sistema. Outros buscam, por meio das artes,

reforçar suas raízes culturais, e assim, renovar e recriar o espaço onde forças externas e

globais atuam por vezes agressivamente. É o que vem acontecendo na periferia da América

Latina, onde, as populações mais pobres começaram através de sua arte, de sua música, ou

mesmo de políticas públicas institucionalizadas pelos governos, a se reconhecerem, ou se

“universalizar” dentro de um sistema internacional, e projetarem para si a chance de mudar

sua realidade.

34

A música, neste sentido, parece voltar aos ideais estabelecidos pelos gregos, quando ela

existia para educar um povo. Assim, sua linguagem universal pode mudar a realidade de um

determinado povo, e também alcançar e atingir outros povos, estabelecendo laços culturais,

mesmo que sejam diferentes, como é o caso do hino da União Européia. A música então pode

unir, sem anular ou desprezar as diferenças, quando utilizada para um fim maior que

interesses político, ideológicos e fundamentalistas.

No seguinte capítulo, discutirei a importância desses projetos sociais dentro da América

Latina, levando em conta a ligação entre música e identidade. Um processo que tem se

tornado freqüente não só dentro do continente, mas fora também, onde grupos sociais ou

instituições culturais começam a enxergar que a música pode “despertar” uma determinada

comunidade para o caminho da mudança.

35

SEGUNDO CAPÍTULO

2. GLOBALIZAÇÃO, CULTURA E IDENTIDADE.

A globalização não é um fenômeno recente. Desde a criação das fronteiras nacionais, os

Estados nunca foram tão autônomos ou soberanos quanto pretendiam, pois nem sempre

controlaram os fluxos de dinheiro, pessoas ou mercadorias. Entretanto, uma das principais

características da pós-modernidade é que a movimentação de tais fluxos tem sido cada vez

mais intensa, e tem afetado consideravelmente não só as fronteiras nacionais e os Estados,

mas macros e micro regiões como certas localidades, pequenas cidades ou comunidades cujas

identidades culturais estão constantemente em contato com outros elementos vindos “de

fora”.

Como afirmei no primeiro capítulo, quando surge o Estado, cultura e política

estabelecem diálogos. Essa interação permitirá o desenvolvimento de uma cultura nacional

unificada. “A cultura é agora o meio partilhado necessário, o sangue vital, ou talvez, a

atmosfera partilhada mínima, apenas no interior da qual os membros de uma sociedade podem

respirar, sobreviver e produzir”, como disse o antropólogo Gellner em sua obra Nações e

Nacionalismos. (1983, p.37-38 apud HALL, 2006, p.59)

Através do desejo de alguns indivíduos de se unificarem e se identificarem como iguais

dentro de um sistema carregado de sentidos e significados, a nação e o nacionalismo surgem

como um discurso cultural construído pelos Estados. A identidade nacional, portanto, passa a

ser um elemento importante para o indivíduo, algo como parte de sua existência e

personalidade:

No mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos se constituem em uma

das principais fontes de identidade cultural. Ao nos definirmos, algumas vezes

dizemos que somos ingleses ou gauleses ou indianos ou jamaicanos, Obviamente,

ao fazer isso estamos falando de uma forma metafórica. Essas identidades não estão

literalmente impressas em nossos genes. Entretanto, nós efetivamente pensamos

nelas como se fossem parte de nossa natureza essencial. (HALL, 2006, p.49)

Entretanto, a partir do avanço da modernidade e da intensificação da globalização, os

indivíduos irão refletir uma crescente complexidade e a consciência de que eles não serão

36

somente autônomos dentro do Estado, mas um reflexo de estruturas e valores a partir de

novos diálogos contínuos com os mundos culturais “exteriores e as identidades que esses

mundos oferecem”. (HALL, 2006, p.11) À medida que áreas do globo são colocadas em

sobreposição umas às outras e há uma compressão do tempo-espaço cada vez maior, as

identidades acabam sendo “descentralizadas” em torno de eixos tradicionais nos quais elas

orbitavam, e vão se transformando virtualmente, pois elas afetam os indivíduos e seus

alicerces estáveis de estruturas culturais e políticas. O sujeito pós-moderno será

constantemente alterado pelos sistemas culturais com os quais trava contato. Ele não está livre

de sua individualidade estável e unificada, mas está se tornando uma possível identidade

fragmentada, composta não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes

contraditórias ou não-resolvidas. Quais são as consequências na atualidade, quando as

sociedades entram em contato com outras estruturas diferentes da suas?

A modernidade trouxe o aparecimento de uma nova reflexão por parte dos

indivíduos e sociedades ao conviver com tais transformações rápidas e contínuas. À

medida que o espaço se encolhe para se tornar uma aldeia global de

telecomunicações e uma espaçonave planetária de interdependências econômicas e

ecológicas – para usar apenas duas imagens familiares e cotidianas – e à medida em

que os horizontes temporais se encurtam até ao ponto em que o presente é tudo o

que existe, temos que aprender a lidar com um sentimento avassalador de

compreensão de nossos mundos espaciais e temporais”. (HARVEY, 1989, p.240

apud HALL, 2006, p.70)

Outra conseqüência, segundo HALL (2006, p.69), é que além de “haver uma

desintegração ou fragmentação resultados do processo de homogeneização cultural, as

identidades nacionais e „locais‟ estão sendo reforçadas pelas resistências à globalização, ou

então, estão adquirindo novas características – identidades híbridas – que passam a se alterar

ou somar novas culturas com as quais interagem, sem perder os traços culturais pelos quais

foram marcadas.”

Entretanto, no mundo atual, essa última tendência não acontece com mais freqüência,

pois parece haver mais uma resistência do “local” diante do “global”. Dois exemplos disso

são os discursos crescentes dos nacionalismos feitos tanto pela esquerda como pela direita na

Europa, e também, o fundamentalismo religioso nas etnias árabes. Há também uma crescente

fascinação pela diferença através da mercantilização da etnia.

Há juntamente com o impacto do “global”, um novo interesse pelo “local”. A

globalização (na forma de especialização flexível e da estratégia de criação de

“nichos” de mercado), na verdade, explora a diferenciação local. Assim, ao invés de

37

pensar no global como “substituindo” o local seria mais acurado pensar numa nova

articulação entre “global” e o “local”. (HALL, 2006, p.77)

Embora haja esse novo interesse pelo local, não se pode esquecer que a globalização

atua dentro de uma lógica de poder e diferenciações, ou seja, ela exerce contrastes ao redor do

globo entre as regiões e entre os estratos populacionais de dentro dessas regiões. Por isso, o

retorno às raízes culturais de uma determinada região desfavorecida pode fortalecer as

pessoas, ou o povo, ou ainda, a nação, como uma forma de resposta e resistência diante da

invasão de outras culturas dominantes, como aconteceu na época do Imperialismo.

Na América Latina, esta tendência é predominante. A ascensão de políticos de esquerda

cujo eleitorado representa a minoria indígena dentro do país, como o caso de Evo Morales na

Bolívia, mostra a tendência dos países do continente em voltar para suas raízes culturais como

uma forma de protesto diante da imposição dominante e vertical da globalização. Não só os

países sozinhos, mas o continente todo busca, através da formação de blocos como

MERCOSUL e UNASUL, criar uma identidade unificada, pois para haver integração

econômica e política de fato, é preciso criar diálogos e construir laços entre os diversos povos

que compõem a América Latina - algo um tanto complexo haja vista a riqueza e a diversidade

de identidades e culturas dentro do continente.

O processo é longo e está no começo. Ainda existem muitos obstáculos para se transpor

na integração dos países, pelo viés da cultura e educação. Entretanto, há um discurso por parte

de acadêmicos, artistas, educadores, e alguns políticos latino-americanos, que para resolver

determinados problemas no continente é preciso seguir um caminho alternativo, no qual as

soluções começam a vir “de dentro”, do próprio povo e de suas resoluções, e não mais em

modelos copiados provenientes das nações imperialistas. Como disse o educador alemão

Joachim Koellreutter, radicado há muito tempo no Brasil: “é necessário aprender a elevar-se

até o povo”. (AHARONIÁN, 2006, p.23, tradução nossa) Apesar de ainda haver importantes

influências exteriores, está começando a se criar no indivíduo latino-americano uma

consciência do que ele é e de seu potencial, e de como é possível transformar o meio em que

vive através de elementos de sua própria cultura e raiz.

A educação musical é um desses fortes elementos que os países do continente

encontraram como possível solução para transformar a vida de crianças e adultos que vivem

em áreas pobres e violentas.

38

Sempre tem sido necessária por parte do indivíduo, a tomada de consciência do

meio a que pertence, em todos seus aspectos. Hoje, na América Latina, essa

necessidade é mais que urgente e decisiva que nunca. Meio implica cultura, e

cultura implica música. A necessidade no indivíduo, finalmente, implica a

necessidade no educando. (AHARONIÁN, 2004, p.134)

Dentro desta perspectiva, projetos musicais e sociais irão atuar nessas áreas

extremamente precárias como um modelo alternativo para aumentar a auto-estima da

população, criar laços entre a comunidade, diminuir a marginalidade e a criminalidade, e

assim, quem sabe, alavancar o desenvolvimento da população. É imprescindível que a

educação em geral se leve em função do meio e se encontre a serviço deste, e não atue como

fator de separação.

Mas como uma educação musical pode conseguir transformar os indivíduos? E até que

ponto opera essa transformação? Há de fato uma melhoria na vida dos indivíduos, tanto

econômica e socialmente ao serem beneficiados por esses projetos? Ou são apenas mudanças

de caráter psicológico, abstratos e até subjetivos que perdem a relevância diante importância

dos indicadores econômicos que tanto a sociedade e os políticos prezam? Por que, por fim, a

arte como fator de mudança?

“E ocorre que a arte angustia. Curiosamente, um estudo da condição do artista revela

que a angústia é companheira inseparável deste, especialmente no caso do artista criador”

(AHARONIÁN, 2004, p.11) A angústia que o autor, educador e compositor uruguaio retrata,

é uma característica inerente dos verdadeiros artistas que sempre estão em busca de elementos

para construir mundos fantásticos e ilusórios, sem desconsiderar que eles apontam para

possibilidades de transformações e mudanças reais nas sociedades. Foi assim com Mozart,

Beethoven, Shostakovich, e tantos outros citados no primeiro capítulo. A educação por meio

da arte, portanto, instiga essa “tal angústia” nos indivíduos, pois permite ir além de sua

própria visão do que é possível, alarga a imaginação e assim os encoraja a olhar de outra

maneira para o mundo em que vivem, um mundo este não mais estático, mas passível de

transformações. É a partir daí que ocorre uma reforma social efetiva, quando os indivíduos

envolvidos enxergam a si mesmos como potenciais agentes de mudança no seus próprios

meios.

Essas reflexões não só acontecem dentro do continente, mas também fora dele, dentro

da arena internacional, como o já citado West-Eastern Divan Orchestra; e ONGs como a

39

fundação internacional “Playing For Change”10

que instaura pequenos conservatórios locais

em países pobres, como África e Índia, para a população tocar e aprender músicas de sua

comunidade e de outras também. Para confirmar essa tendência, desde 2006, o Instituto Itaú

Cultural de São Paulo em parceria com o Projeto AfroReggae, do Rio de Janeiro, realizam um

seminário internacional denominada “Antídoto – Mostra Internacional de Ações Culturais em

Zonas de Conflito”11

, no qual diversos projetos culturais são conhecidos demonstrando como

eles atuam para combater a violência causada por conflitos sociais, étnicos e religiosos em

áreas consideradas de risco.

2.2 - Educação Musical na América Latina: um meio de despertar de vários povos?

Em junho de 2000, no Palácio Nacional da Guatemala, durante um ato público e

político, apresentou-se um coro nada comum: quarenta crianças maias (pertencentes aos

quatros principais grupos da etnia: Kiché, kak’chiquel, mam y kékchí) acrescidos de um grupo

de quinze adolescentes mestiços e monolíngües do castelhano entoaram o Hino Nacional da

Guatemala em cinco idiomas. O Coro Intercultural realizou seu debut diante do assombro do

corpo diplomático, dos ministros do Estado, da audiência geral e do próprio Presidente da

República. Seguidamente, interpretaram canções tradicionais do país - usualmente cantadas só

em castelhano - nos idiomas próprios de cada um dos grupos representados. O educador Ethel

Batres comenta sobre esta experiência:

Há vinte anos, dentro do conflito armado na Guatemala, isso não seria possível.

Hoje com dificuldade, porém com uma consciência diferente, a nação parece

interessada em se descobrir, em se auto-conhecer, em se revelar, e assimilar os

rostos dos outros e projetar-se em imagens múltiplas que os permitem identificar-se

como esse povo multilíngüe, pluricultural e multiétnico que tem tentado se definir

há muito tempo, embora na cotidianidade, haja ainda uma separação entre

hegemonia e marginalização. (BATRES, 2004, p.67, tradução nossa)

Na América Latina – onde não existe um só discurso dominante ou dominado - a

educação passa a ter uma responsabilidade fundamental para a manutenção das diversas

etnias, línguas e culturas, uma vez que a globalização geralmente cria um mecanismo de

equalização, que, além disso, tenta “camuflar” as desigualdades sociais que ela mesmo

10

PLAYING FOR CHANGE. Disponível em: <www.playingforchange.org> . Acesso em: 23/04/2010 11

ANTÍDOTO. Disponível em: <www.itaucultural.org.br/antidoto2010/idem> . Acesso em: 30/04/2010.

40

produz. Nos países em desenvolvimento, onde os conflitos sociais e as contradições são

maiores, a globalização criou uma visão competitiva na educação, de quem legitima o

conhecimento, de quem fala o que é “certo ou errado”. As forças sociais não são abstrações,

mas são partes do dia-a-dia. Sonhos, esperanças e oportunidades podem ser destruídos se as

crianças e jovens forem desencorajados diariamente por uma visão mundana unilateral,

opressora e dominante que está presente mesmo no discurso educativo atual. Para haver

mudanças, educadores de todos os países da América Latina concordam que é preciso haver

uma política educacional que seja resultado do encorajamento dos grupos dominados em fazer

seu próprio conhecimento legítimo, e assim, defender e aumentar as possibilidades de

mudança social.

A arte, portanto, já não pode ser mais um objeto exclusivo de uma elite privilegiada,

mas um instrumento que enlaça todos os setores da sociedade, contribuindo para dar forma a

eles. Uma vez que o processo de globalização - através dos sistemas de comunicação e

tecnologia - propõe uma integração sócio-cultural que se estende por todo mundo, a arte passa

a ter um caráter transformador e também funcional, e não meramente decorativo, como

afirmou Koellreutter (2004, p.28, tradução nossa): “Na nossa sociedade, o conceito de „arte

representativa‟, como objeto de ornamentação de uma classe privilegiada, como um símbolo

de status da vida privada de uma elite social intocada, já não é mais relevante”. A arte como

função social alcança setores da sociedade que antes não haviam sido tocados para um senso

de participação e engajamento políticos, pois os indivíduos ao criarem em conjunto estão

conectados consigo mesmos e envolvidos com o ambiente em que produzem. Podem então

começar a mudar interiormente suas vidas, desenvolvendo e melhorando sua auto-estima, e

depois promovendo mudanças em seu ambiente social.

A educação musical é uma ferramenta artística eficaz para a mudança social, pois

envolve o ser humano e deixa marcas em sua vida cotidiana. Através da superação de

obstáculos musicais, os estudantes passam a desenvolver mais auto-estima, confiança e

ampliam seu próprio conceito daquilo que são capazes de fazer. Como se um novo mundo

cheio de possibilidades fosse aberto diante de seus olhos, sem que se esqueçam da realidade

onde vivem. Através do ensino da música, crianças e os jovens aprendem novas maneiras de

escutar e apreciar outras manifestações artísticas que não sejam aquelas que a cultura de

massa impõe, e que inibe o pensamento e a consciência de sua responsabilidade perante a

sociedade em que vive.

41

Os governos, sabedores do poder de transformação embutido no universo cultural

(particularmente o musical), procuram utilizar esse potencial e seus resultados para legitimar

outras políticas públicas ou mesmo magnificar a imagem internacional do país.

Desde a infância e a adolescência é preciso criar um senso estético do que é arte para o

bem sociedade ou do que é arte para manipular, como os gregos faziam na Grécia Antiga.

Sem uma educação voltada para o desenvolvimento de cidadãos conscientes, não há povo que

sobreviva dentro da lógica globalizante do sistema internacional.

Mais que do ensinar, trata-se de considerar o que nunca aprendemos, por não

figurar nos programas oficiais educacionais. É permitir que os sons próprios de

cada comunidade, povo e região continuem sendo escutados. É dar a oportunidade

para cada aldeia silenciosa que mude de condição. É abrir nossos ouvidos ao

interior de uma nação, em um momento em que pareceria que nos

descontextualizamos do mundo globalizado. É a oportunidade para que floreça a

música que nunca foi gravada, ou a que não obtivera um premio Grammy ( e por

sorte, jamais o terá), a que produz de modo artesanal e não é necessariamente

espetacular, porém está presente no ritual, no costume, no cotidiano e na resistência

de mais de 500 anos, no silêncio que não conseguiu se impor. Esta é a construção

que esperamos. Mas também, a que permita articular o enunciado com o resto do

país, do mundo e vice-versa. Que nos encontremos no tempo e espaço atuais e nos

remita à aproximação entre culturas e propostas diferentes.” (BATRES, 2004, p.

70, tradução nossa)

Essa consciência da importância da educação musical dentro do continente foi sendo

construída ao longo do tempo, não é um fruto deliberado do presente. Ela começou a surgir

com o movimento renovador derivado da “escola nova” iniciado na Europa no começo do

século XX, e que chegou ao continente nos anos de 1940 e 1950, principalmente através de

um número considerável de músicos europeus exilados da Segunda Guerra Mundial, os quais

se converteram em representantes e propulsores na região de alguns métodos de educação

musical mais relevante do mundo ocidental (Dalcroze, Off, Kodály, Willems e Suzuki).

Foram eles que instauraram os primeiros conservatórios nos países do continente, e embora

estivessem ligados às influências européias, eles foram os pioneiros ao propagar a idéia de

que o ensino da música deveria ser tirado do “pedestal” e ser colocado no centro da

comunidade; deveria ser acessível a todos, contribuindo com a formação integral do ser

humano. Também os movimentos de vanguarda e nacionalista nas artes daquela época,

auxiliaram neste processo, e personalidades como Villa-Lobos e Mário de Andrade, ilustres

exemplos brasileiros, e Carlos Guastavino, compositor argentino, entre tantos outros que

mostravam por meio da música ou de suas idéias, a valorização e a importância do

42

conhecimento da cultura popular pelo próprio povo, uma vez que este estava sempre de

“olhos” voltados para a Europa.

No começo do século XXI, essa perspectiva parece crescer cada vez mais. Em todo o

continente latino-americano se vive um renascimento da cultura popular, que como disse

acima, é um movimento que está ligado às crescentes e complexas seqüelas da globalização,

como uma reação “intuitiva” de defesa frente à realidade atual. Os educadores e artistas

latino-americanos procuram enfatizar a criatividade sem restringir a participação da

consciência, enfocar os aspectos inerentes às situações multi ou pluriculturais típicas da

sociedade atual, sem deixar de lado o desenvolvimento da identidade.

O Fórum Latino-americano de Educação Musical, o FLADEM, é um exemplo dessa

vontade. Criado em 19 de janeiro de 1995, é uma rede formada por todos os países da

América Latina e do Caribe, tendo como um de seus princípios o resgate da cultura e

identidade latino-americana por meio da educação musical:

A educação musical é uma portadora de elementos fundamentais da cultura dos

diferentes povos latino-americanos, de modo que sua atenção é uma prioridade em

termos de confirmação das identidades locais e, por extensão, da consolidação do

caráter identitário da América Latina12

. (FLADEM, 2010, tradução nossa)

Assim como surgiu a educação musical nos anos de 1950, a “integração musical” entre

os países do continente deu seus primeiros passos em 1960, quando começaram a organizar

dentro da região, estudos, congressos e organismos dirigidos por instituições internacionais

como INTEM (Instituto Interamericano de Educação Musical) e o CIDEM (Centro

Interamericano de Educação Musical), ambos os projetos da OEA (Organização dos Estados

Americanos), e que tinham parcerias com algumas instituições acadêmicas do Chile e

Argentina; e também o Projeto de Desenvolvimento para América Latina ligado à UNESCO.

Até a década de 1970, havia um grande engajamento dos educadores musicais latino-

americanos e de tais organismos internacionais em estabelecer políticas educacionais e

culturais dentro do continente nos cursos promovidos por esses organismos e que eram

patrocinados pela OEA. Educadores e estudantes se reuniam para discutir e implementar

programas e planos de educação musical a serem seguidos pelos países latino-americanos e

12

FORO LATINOAMERICANO DE EDUCACIÓN MUSICAL. Disponível em: < www.fladem.org.ar/faq.

php?cat_id=4>. Acesso em: 02/05/2010.

43

também caribenhos. Entretanto, após a instauração dos governos ditatoriais no continente,

esses projetos encontraram certos obstáculos que não permitiram a suas completas

realizações, uma vez que iam por vezes de encontro à política dos militares. As vicissitudes

sociais não detiveram, entretanto, os processos de transformações e, atualmente, longe do

paternalismo pedagógico europeu, a América Latina tenta retomar e acelerar esse processo

através de projetos musicais na periferia do continente ou em áreas de conflitos como favelas,

sempre buscando metodologias próprias, de uma maneira criativa e por vezes, deixando de

lado alguns elementos do “tradicionalismo” dos europeus que aqui chegaram.

Tais metodologias são elaboradas a partir de elementos do próprio povo, como o resgate

da música popular e folclórica, e também dos instrumentos regionais. Um exemplo é a criação

de uma orquestra de harpas paraguaias tocadas pelas crianças do projeto “Sonidos de La

Tierra”13

, no Paraguai. Outra forma de metodologia muito utilizada é o ensino pela tradição

oral, através do relato de histórias do próprio povo que dá a possibilidade de um contato mais

prático e direto com as experiências culturais. Muito da música folclórica latino-americana

vem dessa tradição, pois não tiveram uma escritura musical formal. Elas sobreviveram até os

dias de hoje através de gerações e gerações de artistas que simplesmente escutavam e

passavam adiante.

Infelizmente, pouco dessa música é conhecida pela sua própria população, pois ela

encontra dificuldade no “nicho” globalizante das grandes gravadoras comerciais. Para o

educador urugauio Aharonián, o aprendizado da música popular de cada país e seu

conhecimento pelos outros países vizinhos do continente é uma forma de combater tais

políticas denominadas por ele como neoliberais e imperialistas, uma vez que todo sistema de

significados da música se direciona aos aspectos sócio-culturais de uma determinada

comunidade em particular:

O trabalho educativo pode romper o cerco imperial, esse cerco que impede que algo

vindo do Peru seja conhecido no Brasil, salvo quando é lançado pelos centros

nortenhos de poder ou desde sua circunscrição meridional. E pode lograr que o

jovem latino-americano não comece a sentir parte de seu continente, respeito ao

qual o sistema educativo todo se empenha em aliená-lo. Na realidade, como pode

observar, trata-se de uma questão ética. (AHARONIÁN, 2006, p.51)

De fato a globalização não trouxe muitos avanços no que se refere aos termos de

relações pessoais ou coletivas, pois, num ambiente medido pela velocidade e pela

13

SONIDOS DE LA TIERRA. Disponivel em: <www.sonidosdelatierra.org.py>. Acesso em 15/05/2010.

44

superficialidade, fica muito difícil haver um aprofundamento das questões sociais. As

bibliotecas do mundo inteiro estão nas classes, na casa, na Internet; as produções culturais

internacionais estão à nossa disposição. Entretanto, temos dificuldades em nos organizar para

compreender o ponto de vista do outro e para participar de ações comunitárias de uma

maneira profunda e instigadora. Por isso, nunca foi tão necessário, como hoje, criar projetos

que resgatem atividades práticas artísticas e culturais. A oportunidade para a expressão

individual e coletiva servirá de contraponto às atividades de caráter eminentemente

tecnológico, contribuindo para o equilíbrio das pessoas e dos grupos sociais, favorecendo o

sentido da convivência. Por isso, no começo deste século, é primordial que se tenha uma

profunda reflexão do papel da arte, em geral, e especificamente o papel da música na

formação do seres humanos e nas relações entre eles.

A integração política e econômica da América Latina não acontecerá de fato se os

diferentes povos do continente não se auto-educarem para uma percepção de si mesmo e do

continente como um todo. Antes, é preciso que a educação dentro do continente, quer ela seja

musical quer seja artística ou tradicional, seja dirigida para um futuro onde os indivíduos

tenham uma visão ampla de todas as estruturas envolvidas dentro de sua sociedade e de fora

dela. Quando conceder-lhes a liberdade, algo que é de direito deles, de escolher idéias

possíveis para mudar seu próprio mundo. “Antes de nada devemos tratar de ajudar os alunos a

aprender como serem homens com liberdade. Liberdade significa responsabilidade, por isso a

maior parte dos homens a temem”. (AHARONIÁN, 2006, p.36)

A modernidade elevou a liberdade num nível quantitativo. Quanto mais tiver, melhor,

mais livre, sendo que na verdade, ela não se mede por isso, mas em um nível qualitativo: o

quanto eu sou livre está mais relacionado com o fato de o porquê, para quê e como. Está

muito mais relacionado com interações entre um indivíduo com ele mesmo e com o mundo. O

homem não só se caracteriza pelos lucros ou quantias que ele produz, mas também pelo que

ele representa dentro de um sistema no qual está inserido. Todos os indivíduos têm uma

participação dentro de uma sociedade, e se articulam, não importa de qual maneira, se mais ou

menos, com os demais membros integrantes. Então, todos são livres se aceitarem o fato de

que quaisquer que sejam as circunstâncias, se se considerarem como tal, representam um

papel dentro da sociedade, pois estão inseridos numa cultura da qual fazem parte,

invariavelmente. É dela que muitos cidadãos latino-americanos enxergam a mudança que

tanto o continente espera.

45

É dentro deste contexto e princípios que nascerá um dos projetos musicais e sociais

mais bem-sucedidos, o FESNOJIV (Fundação do Estado para o Sistema Nacional das

Orquestras Juvenis e Infantis da Venezuela), um programa que tem revolucionado a educação

musical, a maneira de fazer política social e também a música, mostrando pelo seu sucesso e

resultados, que é possível, através de dedicação a música e a comunidade, “criar” a beleza

onde só há motivos para não fazê-la.

46

TERCEIRO CAPÍTULO

3. “O MILAGRE VENEZUELANO”: UM NOVO PRODUTO DE

EXPORTAÇÃO?

O que geralmente vem à mente quando se fala em Venezuela? Petróleo, Hugo Chávez,

discurso anti-yanke, pobreza... O que poucos sabem é que dentro deste país existe um dos

programas mais bem-sucedidos em música e inclusão social. É o FESNOJIV (Fundacíon del

Estado para el Sistema Nacional de las Orquestras Juveniles e Infantiles de Venezuela),

também denominado de El Sistema. Fundado pelo economista, músico e político José

Antonio de Abreu em 1975, há mais de 30 anos o surpreendente projeto consiste no

aprendizado coletivo da música por crianças e adolescentes em orquestras sinfônicas e coros

espalhados em todo o país, localizados em áreas de extrema pobreza e violência, como os

conhecidos barrios venezuelanos, os equivalentes às favelas brasileiras. Segundo as

estatísticas oficiais, provavelmente maquiadas, nos barrios há 130 assassinatos para cada 100

000 pessoas (o índice no Rio de Janeiro, por exemplo, é de 34 para cada 100 000)14

.

O método de ensino do programa tem revolucionado a educação musical, e não só isso:

o alcance social que ele atinge tem levado à reflexão da utilização de novas meios de

implementar políticas públicas e culturais para transformar o espaço vital de uma

comunidade. Através de objetivos artísticos, o projeto alcança um objetivo social, muda a

vida dos indivíduos, das famílias e da comunidade carente, uma vez que todos através da

música estabelecem diálogos e troca de experiências.

Atualmente, o FESNOJIV atende mais de 300.000 crianças. Desde a sua fundação, já

atendeu mais de 450.000 crianças, e hoje atua como um “modelo exportador” - através de um

trabalho em conjunto com a UNESCO - para diversos países desde América Latina:

O dinâmico e eficiente método de ensino musical realizado e comprovado pela

Orquestra Jovem Nacional da Venezuela tem despertado interesse e admiração em

alguns países latino-americanos. Organismos Internacionais como OEA e

14

MARTINS, Sérgio. Salvos pela Música: o milagre venezuelano. Revista VEJA. Caracas, 22/07/2007.

Disponível em: <www.planetasustentavel.abril.com.br/noticia/cultura/conteudo_485973.shtml> Acesso em:

18/05/2010.

47

UNESCO têm recomendado uma troca de colaboração e experiências entre

Venezuela e outros países do continente. Para isto, a Orquestra Jovem Nacional da

Venezuela, através do governo venezuelano - Departamento das Relações

Exteriores e Departamento do Planejamento e Desenvolvimento – está coordenando

o projeto Orquestra Juvenil da America Latina e do Caribe criado pela OEA.

(HOLLINGER, 2005, p.148)

O projeto, além de criar um novo modelo de ensino musical e inclusão social para a

América Latina e alhures, está estabelecendo dentro do continente uma integração entre os

países por outros meios diferentes dos tradicionais, como o Estado, a economia ou a política.

Organismos Internacionais reconhecem a importância do programa como “algo único, digno

de ser implementado em todas as nações do mundo, e principalmente, naqueles países que

buscam diminuir seus níveis de pobreza, marginalidade e exclusão de sua população infantil.”

(FESNOJIV, 2010)15

O El Sistema inspirou a OEA a promover a criação da Orquestra Juvenil das Américas

em 200116

, e o Programa de Orquestra para Jovens em Risco no Caribe em 2009, que

recentemente fez um concerto em Porto Príncipe em homenagem às vítimas do terremoto

ocorrido em janeiro de 2010, conforme a matéria do jornal o ESTADO DE SÃO PAULO17

.

O programa foi fundado pelo Secretário Geral da OEA, José Miguel Insulza, durante a Sessão

Especial Conjunta do Conselho Permanente e da Comissão Executiva do Conselho

Interamericano para o Desenvolvimento Integral, manifestando homenagens ao reconhecer os

logros do Maestro Abreu e sua iniciativa. Como disse Insulza, na conferência que lançou o

projeto18

:

A semente que José Abre plantou há mais de 30 anos e que a nossa organização se

orgulha de ter ajudado a cultivar em sua infância, converteu-se no Sistema Nacional

de Orquestras Juvenis e Infantis da Venezuela, que agora tem mais de um quarto de

milhão de jovens músicos e mais de 200 orquestras. E não só se espalhou pela

Venezuela, mas em todo o continente e do mundo. (ESCALANTE, 2009)

Durante seu discurso, o secretário-geral anunciou a iniciativa promovida pelo

Departamento de Assuntos Culturais da OEA, apoiado pelo Governo da China e pelo Fundo

15

FUNDACIÓN del Estado para el Sistema Nacional de las Orquestras Juveniles e Infantiles de Venezuela.

Disponível em: <http://fesnojiv.gob.ve/es/el-sistema-como-modelo.html>. Acesso em: 23/05/2010. 16

YOA Orchestra of the Américas. Disponível em: <http://yoa.org/>. Acesso em: 24/05/2010. 17

SPIGLIATTI, Solange. No Haiti, ONG brasileira faz concerto para vítimas. O Estado de S. Paulo, São

Paulo, 05/02/2010. Disponível em <http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,no-haiti-ong-brasileira-

faz-concerto-para-vitimas,506829,0.htm> Acesso em: 24/05/2010. 18

ESCALANTE, Hector. OEA homenajeó el Sistema Nacional de Orquestas Juveniles e Infantiles de

Venezuela. Radio Mundial, Caracas, 08/04/2009. Disponível em: <http://www.radiomundial.com.ve/yvke/

noticia.php?22591>. Acesso em: 24/05/2010.

48

Especial Multilateral do Conselho Interamericano de Desenvolvimento Integral (FEMCIDI).

Também discursou que a orquestra não é um feito social bem-sucedido, mas um exemplo de

organismo democrático:

A música orquestral é essencialmente um processo participativo. Sem discursos ou

tratados acadêmicos, mas apenas através de sua execução, a orquestra exige que

seus membros possam trabalhar em conjunto e assumir a responsabilidade

individual de um projeto comum. (ESCALANTE, 2009)

Influenciadas pelo projeto, nasceram outras formações como a Sinfônica Juvenil

Iberoamericana, a qual fez seu debut em 1997 com o apoio do convênio Andrés Bello-

UNESCO, e dentro do VII Conferência Iberoamericana de Chefe de Estados. Também

inspirado no El Sistema, a CAF (Corporação Andina de Fomento), departamento financeiro

da Comunidade Andina (Bolívia, Colômbia, Equador y Peru), impulsionou nesta região um

sistema de coros juvenis. Um dos objetivos para a formação musical da CAF19

está descrito

nas seguintes linhas, comprovando a importância da música na sociedade latino-americana:

A música é, por sua capacidade de potencializar as aptidões intelectuais, físicas,

emocionais, espirituais e expressivas do indivíduo, universamente reconhecida com

uma arte ideal para educar. Com o Movimento Musical Andino, orientado ao

resgate social e ao fortalecimento da cultura cidadã, o CAF contribui a formação

integral de crianças e jovens, em uma forma que exalta os valores mais nobres dos

indivíduos e incide o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários,

articulando o tecido social de uma região caracterizada por fraturas e desigualdades.

Neste âmbito, o programa se centra na formação de crianças, jovens e docentes nas

áreas orquestrais e canto-coral, assim como na capacitação de maestro luthier.

Mas sua influência vai além do continente. Membros do projeto, destacando seu

fundador, o maestro Abreu, atuam como uma espécie de “consultoria” para criação de

projetos musicais e de inclusão social em diferentes países desde a África aos Estados Unidos,

Canadá, Espanha e Reino Unido, que buscam implementá-lo em seus territórios.

Dr. Abreu afirmou que depois do sucesso na Venezuela, programas inspirados no

El Sistema começaram a surgir na Espanha, Portugal, Egito, Kênia e África do Sul.

O sistema na África do Sul, embora a caminho, tem planos de que Dr. Abreu

“inaugure” o programa no país. De acordo com pesquisas recentes, existem 23

países pelo mundo que estão iniciando programas de educação musical similar. (HOLLINGER, 2005.p. 148.)

Também no site do programa, fica comprovada a sua influência e como o El Sistema

tem se tornado um “modelo de exportação”20

:

19

CORPORACIÓN ANDINA DE FOMENTO. Disponível em: <http://www.caf.com/ view/index.asp?pageMS

=34371&ms=17>. Acesso em: 23/05/2010. 20

EL SISTEMA COMO MODELO. Disponível em:< http://fesnojiv.gob.ve/es/el-sistema-como-modelo.html>.

Acesso em: 22/05/2010.

49

Em mais de 25 países têm sido criados programas de educação musical que seguem

o modelo venezuelano. Entre estes países se encontram: Argentina, Austrália,

Bolívia, Brasil, Canadá (Calgary, Moncton, Ottawa), Colômbia, Coréia, Costa Rica,

Cuba, Chile, Equador, El Salvador, Escócia, Estados Unidos (Avon, Baltimore,

Birmingham, Charleston, Chicago, Durham, Fort Wayne, Hampton, Hilton Head

Island, Jackson, Los Ángeles, Nueva York, North Oakland, Pasadena, San Antonio,

San Diego), Guatemala, Honduras, Inglaterra (Lambeth, Liverpool, Norwich,

Islington), Jamaica, Índia, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Portugal,

Porto Rico, República Dominicana, Trindade e Tobago, e Uruguai. (FESNOJIV,

2010)

Como mostra o mapa abaixo:

El Sistema como Modelo

FESNOJIV21

Outra prova de sua importância e reconhecimento na sociedade internacional é a partir

dos convênios entre instituições de países como Estados Unidos, ironicamente o país atacado

politicamente pelo governo chavista. Recentemente, o renomado conservatório New England

Conservatory de Boston realizou um convênio com a FESNOJIV no qual cria uma rede de

apoio denominada El Sistema USA, com a finalidade de propagar vasta informação sobre a

filosofia e metodologia empregada pelo El Sistema. O programa consiste numa pós-

21

EL SISTEMA COMO MODELO. Disponível em:< http://fesnojiv.gob.ve/es/el-sistema-como-modelo.html>.

Acesso em: 22/05/2010.

50

graduação para jovens e talentosos músicos que queiram se converter em embaixadores do El

Sistema nos Estados Unidos e estão comprometidos com o desenvolvimento em suas

comunidades.

Esse convênio já tinha dados seus primeiros passos em 2005, quando o reitor da

universidade, Mark Churchill, assinou um acordo com o programa e também como o Centro

Interamericano de Ação Social através da Música - fundação criada pela FESNOJIV com o

auxílio do Instituto Nacional de Moradia na Venezuela e do Banco Interamericano de

Desenvolvimento - para trazer os melhores estudantes do New England à faculdade de

Caracas para realização de oficinas, e levar os venezuelanos para Boston. Durante a visita, os

membros do conservatório americano ficaram atônitos não somente com a habilidade técnica

dos músicos tão jovens, como crianças de oito anos, mas também pela maneira que o

programa constrói melhores cidadãos.

Sarah Koenig-Plonskier, 17 anos, violista, disse que estava mais que convencida22

: “Isto

é algo que os EUA precisam – um programa público que funciona de seis a sete dias por

semana. Em vez de situações onde eles são tentados às coisas ruins, esta é uma grande saída

para as crianças, mesmo que no fim eles não tornem músicos profissionais”. (LAKSHMAN,

2005, tradução nossa). Benjamin Zander, regente da Boston Philharmonic and the New

England Conservatory Youth Philharmonic, reiterou as palavras da estudante Sara Koening-

Plonskier: “Todos os políticos americanos deveriam visitar o país e conhecer o projeto já que

estão obrigando ensino musical em escolas publicas. (LAKSHMAN, 2005) Está aí uma forma

de soft power talvez ainda pouco explorada pelo governo chavista, na atual Venezuela, mas

que poderia ser bastante eficaz para minorar a imagem às vezes arrivista demonstrada pelo

país, em reuniões e fóruns internacionais.

Não só instituições e governos reconhecem o papel da FESNOJIV. Mas também artistas

com grande prestígio internacional o enxergam como “o grande futuro da música clássica nos

próximos anos”, como disse o regente Sir Simon Rattle, que já trabalhou com a orquestra

principal do projeto, a Sinfónica de la Juventud Venezolana Simón Bolívar, SJVSB: “Se

22

LAKSHMANAN, Indira A. R. For Venezuela's poor, music opens doors Classical program transforms

lives. The Boston Globe, Boston, 22/06/2005. Disponível em: <http://www.boston.com/news/world/

latinamerica/articles/2005/06/22/for_venezuelas_poor_music_opens_ />. Acesso em 22/05/2010.

51

alguém perguntar a mim onde algo de importante está acontecendo para o futuro da música

clássica, eu simplesmente diria Venezuela”. (HOLLINGER, 2005, p.138)

Outros grandes artistas também trabalharam com a orquestra como, Sung Kwak,

Benjamin Zander, John Williams, Lorin Maazel, Krzysztof Penderecki, Martha Argerich,

Sergio Daniel Tiempo, Kirill Gernstein, Emmanuel Ax, Gabriela Montero, Jian Wang e Juan

Diego Flórez e por fim Claudio Abbado, que escreveu uma carta quando visitou a orquestra

em 2006:

O sistema de Abreu organiza todas as etapas do aprendizado musical, desde a base

até os cursos de altos níveis. Isto é feito através das unidades de todo o país em

todas as escolas e mesmo para crianças com deficiências físicas. As duas coisas que

mais me impressionaram foram o entusiasmo e a energia que eles têm. Estes jovens

músicos sabem que eles são privilegiados porque têm um objetivo claro que nasce

do amor coletivo pela música e da alegria de fazê-la em conjunto. (HOLLINGER,

2005, p.140)

A orquestra já ganhou prêmios e reconhecimentos de diversos países e organizações

internacionais desde 199323

. Desde 1998, a orquestra já tocou em lugares como Inglaterra,

França, Itália, e na Alemanha. Em 2002, a história da orquestra foi contada no documentário

Tocar y Luchar – o lema do projeto - realizado pelo cineasta venezuelano Alberto Arvelo, que

foi fruto também do El Sistema no estado de Mérida. Em 2002 foi matéria no famoso e

premiado programa 60 minutes24

da CBS americana. José Abreu também recebeu distintas

honrarias e títulos: em 1998 a UNESCO concedeu-lhe o título de Embaixador da Paz, e em

2001, o Right Livelihood Award25

.

O grande expoente do programa é Gustavo Dudamel, de apenas 31 anos e considerado

como um dos mais talentosos regentes de sua época. Já ganhou prêmios na Alemanha e regeu

importantes orquestras como a Filarmônica de Berlim, Filarmônica de Israel e Filarmônica de

Viena. Em outubro de 2009, recebeu o posto de diretor artístico da Filarmônica de Los

Angeles. Também foi tema na reportagem 60 minutes em 2008. Em maio de 2009, a revista

Time o considerou como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo; ganhou o “Premio

23

RECONECIMENTOS. Disponível em: <http://www.fesnojiv.gob.ve/es/reconocimientos.html>. Acesso em:

25/05/2010/. Este link contém todas as premiações recebidas pelo maestro e seu projeto até a realização deste

trabalho. 24

JOSE ANTONIO ABREU. Disponível em: <http://fesnojiv.gob.ve/es/jose-antonio-abreu.html>. Acesso em:

26/05/2010. 25

Esta premiação é considerada como uma alternativa semelhante ao Nobel, e junto a ela, vem considerável

reconhecimento e prêmio em dinheiro.

52

de Latinidad” concedido pelos estados membros da organização internacional Unión Latina,26

por sua propagação da cultura e música latino-americana. Além de premiações concedidas por

outros países como Inglaterra e Canadá27

. Outro exemplo de sucesso é o contrabaixista

Edicson Ruiz, que aos 17 anos tornou-se o mais jovem instrumentista a adquirir um posto na

tradicional e conceituada Sinfônica de Berlim, assim como se tornou o primeiro músico

latino-americano a entrar na difícil instituição. A sua prova deixou surpresa a exigente banca,

deixando todos assombrados com sua técnica e musicalidade.

Como se percebe, há um fenômeno venezuelano acontecendo e muitos o desconhecem,

inclusive artistas e músicos da América Latina. A grande mídia não veicula nos principais

meios de comunicação, pois as reportagens sobre política e economia acabam de fato

ocultando o El Sistema e não propagando seus sucessos.

Apesar da divulgação ainda ser pouca, o El Sistema sobrevive e continua seguindo em

frente. Constantemente investe recursos na implementação de novos projetos para continuar o

sucesso que alcançou; além do que, eles propagam seus esforços através de jornais, rádios e

televisões locais, sem contar os inúmeros concertos que são dados nas comunidades. Isto faz

as pessoas criarem interesse pelo projeto.

Crescimento e entusiasmo têm sido parte do modo que se desenvolve o El Sistema

desde o começo, pois tem demonstrado para o mundo que dentro de uma realidade miserável

e violenta é possível encontrar beleza: a beleza da música, e em altos padrões artísticos, o que

faria um europeu desconfiar se não visse os resultados pessoalmente. Ele comprova também a

possibilidade, através da música, do resgate de identidade, da estima e da cultura das

comunidades periféricas que são os “lixos sujos do mundo moderno globalizante”. Como está

indicado na filosofia da orquestra28

:

As crianças se tornam músicos que oferecem a seu país novas possibilidades de

superação e vitalidade. Eles simbolizam um esforço que se perdura durante o tempo, e

se estenda a outras áreas da atividade cultural, que é reconhecido como o „Milagre

Venezuelano‟. (...) No passado, a missão da arte foi um assunto das minorias para as

minorias, depois das minorias para as maiorias; agora é das maiorias para as maiorias,

e constitui um elemento relevante na formação do indivíduo que o permite inserí-lo

na sociedade de maneira produtiva. (FESNOJIV, 2010)

26

UNIÓN LATINA. Disponível em: < http://www.unilat.org/SG/index.es.asp>. Acesso em: 23/05/2010. 27

GUSTAVO DUDAMEL. Disponível em: <www.gustavodudamel.com/>. Acesso em: 23/05/2010. 28

MISÍON Y VISION. Disponível em: <http://fesnojiv.gob.ve/es/mision-y-vision/288-filosofia.html>. Acesso

em: 25/05/2010.

53

3.2 - El Sistema: como criar sons que transpõem barreiras.

O crescimento econômico dentro da América Latina e a instalação da democracia

promoveram uma maior participação dos governos na economia global, redução da pobreza e

o fortalecimento das instituições democráticas. Entretanto, os índices e indicadores sociais

ainda são preocupantes, uma vez que a distribuição de renda da região é uma das mais

desiguais do mundo, afetando 40% do total da população. (PILOTTI, 1999, p.4). Embora nem

sempre reconhecido pelas classes políticas, crianças e jovens estão no centro desde drama

sócio-político contemporâneo, uma vez que a exclusão afeta os setores mais pobres da

sociedade.

A América Latina tem sido caracterizada como o lugar onde a maioria da região é pobre

e “a maioria dos pobres são crianças”. (PILOTTI, 1999, p.5) Os índices comprovam isso:

18% das crianças constituem 42% da população total e 43% das pessoas vivem abaixo da

linha da pobreza. É estimado que 60% das crianças abaixo de 15 anos vivem na pobreza, e

que um terço dessas crianças vivem nas 20% habitações consideradas mais pobres. (UNICEF,

2002 apud PILOTTI, 1999, p.4) Outro dado é do Instituo Interamericano del Niño da OEA:

22% das crianças latino-americanas se encontram em pobreza crítica29

.

Graças à rápida urbanização, essas crianças marginalizadas são mais visíveis nas ruas

das grandes cidades do continente. Hoje, tanto pobreza como infância estão concentrados em

áreas urbanas. Segundo o pesquisador e educador Francisco Pilotti, 60% da pobreza do

continente estão nas grandes cidades, assim como 75% das crianças pobres também. Esses

números comprovam a existência e a preocupação por parte da sociedade em relação a temas

como trabalho infantil, exploração social, drogas e violência infantil. Nota-se que, nas grandes

áreas urbanas de países como Brasil e Colômbia, a violência é agora a principal causa de

morte no grupo etário de 14-17 anos, que também é a faixa etária onde existe mais desistência

escolar ou desemprego. (Pilotti, 1999. p.4)

Como disse Pilotti, é preciso haver políticas públicas e sociais adequadas para a

erradicação da pobreza dentro do continente:

29

INSTITUTO INTERAMERICANO DEL NIÑO. Disponível em: <http://www.iin.oea.org/IIN/ index.shtml>.

Acesso em 28/05/2010.

54

O grande desafio da América Latina para o futuro será como administrará para

converter a potencial colisão entre dois processos contraditórios: a exclusão

social e econômica promovida pelo modelo econômico neoliberal, e a ampliação

de inclusão política incentivada pelos sistemas democráticos o qual exige uma

ampla participação dos cidadãos a partir de uma sociedade civil organizada.

(PILOTII, 1999, p.2),

Essa situação vai desencadear o surgimento de ONGs nos anos de 1970 e 1980 dentro

do continente. Elas vão dedicar seus esforços à melhoria do bem-estar da criança e da família,

dentro das comunidades afetadas por extrema miséria e violência. A maior parte dessas ONGs

vai buscar soluções a partir das próprias comunidades que pretendem transformar. Antes

desse período, organizações ou filantropias instauravam modelos europeus, religiosos e

morais que não condiziam com a comunidade, com sua cultura e identidade, o que

consequentemente, não levava às mudanças e transformações nos indivíduos e nas

comunidades. Foi pensando em resgatar a identidade, a estima, e a cultura de um povo que

José de Abreu idealizou FESNOJIV e desenvolveu seu papel social através da música.

A situação das crianças na Venezuela não poderia deixar de ser diferente da maioria dos

países da América Latina. Segundo os dados da CEPAL30

e do Banco Mundial31

, sua

população geral é de 27.656 mil, o sexto no ranking entre os países da América Latina, dos

quais 85% vivem na pobreza, destes, 15% vivem com menos de dois dólares por dia. A

população menor de 24 anos no país corresponde a 56%, o que faz o país ter uma alta taxa de

natalidade, em torno de 20%, e consequentemente aumentando a incidência e o

aprofundamento da pobreza no país, provocando também o inchaço urbano nas regiões

periféricas e violentas das comunidades pobres dos barrios.

A criação da FESNOJIV na Venezuela, para as comunidades pobres, tem como objetivo

primordial acabar com o ciclo da pobreza e promover a justiça social. Aqueles que trabalham

com a orquestra enxergam o sistema tanto como um programa social como um programa

educacional e musical, como um acesso ao mundo que antes pertencia somente à elite. Esta

visão está presente em seus documentos:

Irreversivelmente, a arte não é mais monopolizada pelas elites. Pelo contrário, tem

sido consolidada como um direito social do nosso povo. Como conseqüência, a

30

COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA. Disponível em: <http://websie.eclac.cl/ sisgen /

ConsultaIntegrada.asp?IdAplicacion=1> Acesso em: 20/05/2010. 31

BANCO MUNDIAL. Disponível em: <http://data.worldbank.org/indicator/SI.POV.GAP2> Acesso em:

20/05/2010

55

educação artística das crianças tem sido considerada como vanguarda e um sinal de

uma revolução sem paralelos, que nenhum projeto social concedeu a um país . (HOLLINGER, 2005, p.2)

A música clássica na Venezuela – e também no continente – é ainda um símbolo da

“elite”. A “democratização” da arte musical é vista como uma maneira psicológica de quebrar

barreiras. Como relatou o Dr. Abreu:

Talvez o elemento mais notável sobre o sistema de orquestra é que ele é

explicitamente orientado para os estratos sociais mais baixos. Ele é descrito como

"um movimento social” de dimensões enormes, que funciona utilizando a música

como um instrumento de integração social possível dos diferentes grupos da

população venezuelana, além de auxiliar financeiramente as camadas de baixa

renda. As orquestras trouxeram um impacto substancial social nas comunidades

onde estão atuando, legitimando e promovendo música para toda a comunidade,

levando a uma espécie de renascimento musical e cultural. Estudos também têm

mostrado que os jovens envolvidos nas orquestras também apresentam um melhor

desempenho em outras áreas da vida acadêmica e social. (UNESCO, 2001) 32

Dentro do projeto, a oportunidade de aprender música está aberta a todas classes sociais,

desde a criança mais pobre até aquela proveniente da classe média alta. O El Sistema cria um

espaço democrático, onde todas as crianças se reúnem para fazer música em conjunto. Bolsas

de estudos são concedidas para ajudar a família de crianças carentes, assim os estudantes

continuarão a frequentar a escola e as aulas de música, em vez de começar a trabalhar, como

fazem muitos deles quando alcançam a adolescência. Segundo o estudo de Hollinger (2005,

p.45), “muitas famílias do projeto ganham de um a três salários mínimos...equivalente a uma

média de 288 bolívares ( $135 dólares por mês ), e metade dos pais têm educação inferior ao

nível secundário.” É portanto, mais do que um projeto meramente musical, um verdadeiro

vetor de transformação social.

A orquestra tem a maior parte dos fundos financeiros concedidos pelo Estado

venezuelano, em torno de 29 milhões anuais, e por organizações internacionais,

principalmente do Banco Interamericano de Desenvolvimento que concedeu um empréstimo

de US$ 1 milhão em 2005, para novas orquestras e sedes. (HOLLINGER, 2005, p.147)

Porém, diante de um governo politicamente instável e conturbado, e de uma economia

que se baseia somente no petróleo e de índices de pobreza e miséria consideráveis, como o El

Sistema consegue sobreviver a dez administrações desde o momento em que surgiu? Como

32

RIGHT LIVELIHOOD AWARD. Disponível em: <http://www.rightlivelihood.org/abreu.html>. Acesso em:

20/05/2010.

56

consegue, hoje, sobreviver a um governo que tenta anular qualquer tipo de força contrária a

sua ideologia?33

Talvez a resposta resida no fato de que ele é maior e mais enraizado do que o

ambiente de curto prazo próprio à política partidária.

A FESNOJIV foi a primeira instituição a empregar uma atividade cultural como recurso

para o desenvolvimento social. A rede de orquestras infantis e juvenis, coordenadas pela

fundação, sobrevive em parte porque nunca esteve vinculada ao Conselho Nacional da

Cultura, mas sim ao Ministério da Família. Portanto, livre de políticas culturais que estão a

serviço de uma ideologia e um governo ditatorial, o projeto atualmente depende de

Previdência e Desenvolvimento Social. Muito se deve também à própria figura de José

Antonio Abreu, que foi Ministro do Estado Presidente do Conselho Nacional da Cultura,

durante a segunda administração de Carlos Andrés Pérez, e conseguiu que seu projeto fosse

concebido como emblema da aspiração venezuelana, independentemente de qual partido

político esteja no poder. Isso garantiu “uma considerável rede de apoios em todos os níveis e

setores e a aprovação de um governo, a quem as constantes giras e prêmios da Orquestra

Simón Bolívar, emblemática do sistema, beneficiaram-no em seu desenho propagandístico

internacional, como disse Carlos Delgado-Flores na reportagem abaixo.

De fato, o sucesso desse projeto se deve muito a seu criador e principal mentor José

Antonio de Abreu, economista, músico e político que é muito estimado dentro e fora

do projeto dele também. Ele o criou durante o governo do presidente Carlos Andrés

Pérez, e até hoje, incrivelmente, tem sobrevivido e tomado o rumo da ascensão no

turbulento governo de Hugo Chávez. A paixão do líder pelo seu projeto e seu vínculo

é uma das forças, se não a principal, que move seu sucesso. (DELAGADO-FLORES,

2010)

Obviamente Hugo Chávez usa o sucesso da orquestra a seu favor. Em 2007, o governo

fechou a RCTV, emissora de oposição, e a substituiu temporariamente por um canal oficial no

qual era veiculada prioritariamente propaganda chavista, sucedida por uma gravação da

Orquestra Jovem Simon Bolívar, que congrega os melhores músicos do Sistema, executando

o Hino Nacional, com regência de Dudamel. Segundo o advogado e diretor executivo do

projeto, e também violinista Eduardo Mendéz: “fui xingado de chavista e velhos amigos me

insultaram na rua. Mas somos financiados pelo Estado. Se o Estado nos pede algo, temos de

33

Para mais informações sobre políticas culturais no governo de Hugo Chávez. Acessar: DELGADOS-FLORES,

Carlos. Espetáculos das misérias. Mirada Global, Caracas. Disponível em: <http://www.miradaglobal.com/

index.php?option=com_content&task=view&id=968&Itemid=9&lang=pt> . Acesso em: 23/05/2010.

57

aceitar". Ele garante, porém, que o Sistema não tem cor política ou ideológica: "temos

unidades em locais como Chacao, que faz oposição a Chávez". (MARTINS, 2007)

Curioso saber que a vontade de elaborar projetos musicais de Abreu provém de uma

tradição em sua família. Seus avós maternos vieram da Itália para Venezuela e trouxeram

instrumentos para uma banda que criaram em Monte Carmelo, Trujillo, nos Andes

venezuelanos. Lá fixaram residência, e a banda participava de todas as festas e cerimônias

populares da região. Seu avô era o maestro e fazia transcrição das obras universais mais

famosas para a banda. Hoje, o grupo instrumental se chama Banda Filarmônica de Monte

Carmelo.

A escola em que Abreu estudou, ajudou a despertar nele o interesse não só pela música,

mas pela poesia, declamação, e o teatro. Era também um excelente aluno em matemática.

Começou a estudar piano, órgão, cravo e violino, e aos 12 anos, foi integrante da Orquestra

Acadêmica de Música del Estado de Lara, onde teve consciência da importância da prática

orquestral na formação de um músico. Em 1967, ele recebeu o prêmio Nacional de Música

Sinfônica por seu talento e habilidades musicais.

Por outro lado, José Abreu se formou como economista. Possui um doutorado em

Economia pela Universidad Católica Andrés Bello e pós-graduação em economia do petróleo

na Universidade do Michigan. Depois de sua carreira política, ele também trabalhou como

professor de economia e direito na Universidade Simón Bolívar e sua Alma Mater. Trabalhou

20 anos para o Estado como planificador, e teve contatos com assessores econômicos da

America Latina, quando conheceu a criação do Pacto Andino e quando contribui com a

criação do mecanismo de integração de Venezuela à ALALC Em 1983, tornou-se ministro da

Cultura. Sua ação condutora e persuasiva se projeta com a mesma força sobre os políticos e

burocratas, assim como sobre as crianças e jovens que o seguem quando visita os locais e os

conservatórios dos projetos. Talvez essa mistura criativa de idealismo e profundo

conhecimento das burocracias palacianas também contribua para explicar a vitalidade e

perenidade do projeto.

Com esses antecedentes, aos 30 anos, Abreu decidiu concentrar-se em um projeto que

aglutinaria aspectos organizacionais, musicais e pedagógicos. “Abreu, como grande líder,

parecia resolver seu papel em um tecido de circunstâncias do presente com experiências do

58

passado e múltiplos caminhos que a vida foi abrindo sem parente sentido em seu momento”.

(SANCHÉZ, 2007, p.64) Muitos que trabalham ou estudam no El Sistema afirmam que Abreu

fez de sua vida um verdadeiro apostolado dedicado inteiramente a ela. Ao mesmo tempo em

que é tenaz, convincente e assertivo, consegue encarnar uma figura paternal e protetora dentro

do sistema. Ivan Hernéndez, percussionista da Sinfônica Simon Bolívar, confessa: “A relação

de Abreu com nós era como de um pai com seus filhos. Muitos o veem como pai. Em meu

caso, sou filho de pais divorciados e José Antonio me preencheu um vazio. Sempre nos

alertava sobre o estudo, para que enxergássemos a música como carreira... Não há barreiras

entre ele e a juventude”. (SANCHÉZ, 2007, p.64)

Não há duvidas de que o caráter humano e espiritual do projeto muito se deve ao

maestro José Abreu. “Ele é o pai e mãe do El Sistema e de nós”, disse um dos meninos

entrevistados pela americana Hollinger (2005, p.127). Por ser um homem religioso, frequenta

a missa todos os dias antes de trabalhar, e com a mesma convicção religiosa ele realiza seu

trabalho com a orquestra.

Conhecido pela orquestra como „El Maestro‟, Abreu é enfático ao dizer que:

A música transforma a causa da pobreza porque transforma toda a criança. Esta

transformação faz a criança especial, rica. Assim como a mente da criança

desenvolve, suas aspirações, suas idéias também mudam. Ela não é mais uma

criança pobre. A causa da pobreza está aniquilada. (HOLLINGER, 2005. p.127).

E não só dentro da criança, mas fora também, uma vez que ela aprende como viver em

sociedade, ao tocar num conjunto orquestral ou cantar em um coral. “Mais que genialidade e

virtuosismo de seus criadores, a música é um reflexo da alma e dos povos e, neste caso, é um

resultado de um programa educativo que em 34 anos tem transposto fronteiras e superado

expectativas.” (FESNOJIV, 2005)

3.3 - História da orquestra, exemplos de sucesso e metodologia.

Lennar Acosta, um dos membros da orquestra, tinha 15 anos quando um professor de

música da FESNOJIV veio ao bairro de Los Chorros, um dos mais pobres de Caracas, para

oferecer instrumentos e aulas. Acosta disse:

59

Antes, ninguém acreditava em mim, todos tinham medo de mim. Eu era uma

criança maltratada. O professor foi a primeira pessoa que me entendeu e confiou em

mim. Este programa abriu uma grande e inimaginável porta para mim. Ele me deu

tudo, desde instrumentos a afeição, o que para mim era mais importante. Todos

merecem a oportunidade que eles dão. (HOLLINGER, 2005, p.123)

Acosta apareceu também no documentário 60 minutes da CBS americana34

. Ele aparece

segurando seu clarinete, seu rosto tem duas cicatrizes devido a atos violentos que sofreu. Em

um determinado momento, ele diz: “É completamente diferente de segurar uma arma. Não há

medo. A música me ensinou como tratar as pessoas sem violência”. Recentemente, ele

começou a tocar na Orquestra Sinfônica Nacional e estuda no Conservatório de Caracas. Esse

é apenas um dos exemplos do tipo de transformação social que pode ser perpetrado pela

música.

Los Chorros é considerado pelos professores como um dos locais mais difíceis de

trabalhar (HOLLINGER, 2005, p.124). As crianças choram tanto que parece impossível

ensiná-las; outras são extremamente violentas. São crianças em estado deplorável, muitas vêm

diretamente das ruas, outras são violentadas sexualmente; outras presas por drogas ou

envolvimento de tráfico de drogas. Também é comum essas crianças sofrerem de má nutrição

desde muito cedo o que não permite um desenvolvimento saudável e completo, e acabam

ficando pequenos e frágeis, aparentando serem mais novas do que são. Como demonstrou a

gestora Nancy Narreño, do núcleo Los Chorros: “Nós temos um menino muito pequeno que

veio para cá das ruas sofrendo um quadro grave de má nutrição. Nós demos a ele violino, e no

final do dia ele conseguia tocá-lo. Foi um milagre. Hoje, ele é o um dos principais violinos da

Orquestra Infantil de Caracas”. (HOLLINGER, 2005, p.121)

Oitenta e cinco por cento dos estudantes venezuelanos do projeto vêm de baixa renda e

famílias da classe trabalhadora. Entretanto, o programa está aberto para todas as crianças

provenientes das mais variadas classes sociais. E através dessa mescla, quebram-se as

barreiras e o objetivo de “democratizar a arte” está sendo alcançado. Assim disse Dr. Abreu,

na reportagem do jornal americano Boston Globe em 22 de junho de 2005: “Pobreza gera

solidão e anonimato. Música faz criar alegria e esperança em uma comunidade, e o triunfo de

uma criança como musicista ajuda-lhe a esperar objetivos cada vez mais altos”.

(LAKSHMANAN,2005). Praticando três ou quatro horas por dia, cinco dias por semana nos

34

60 minutes. Disponível em: < http://www.cbsnews.com/video/watch/?id=4011959n&tag=related;photovideo>.

Acesso em: 25/05/2010.

60

centros de bairro, além do dia inteiro nos finais de semana nos níveis mais altos, os alunos

incrivelmente conseguem um rápido progresso técnico. Aprendem a tocar com uma precisão e

sutileza que raramente é ouvida em qualquer lugar.

O projeto deu seus primeiros passos em 1971, quando José Antonio Abreu em um

festival de música que organizava, o „Festival Bach‟, relatou aos músicos a sua vontade de

criar uma orquestra com jovens músicos venezuelanos. Enquanto ele procurava fundos

financeiros, conduziu o grupo do „Festival Bach‟. Em 1975, quando aconteceu o primeiro

ensaio da “Orquestra Nacional e Juvenil da Venezuela”, a maior parte do pequeno grupo era

composta pelos músicos do „Festival Bach‟. Eles começaram a chamar outros músicos, e o

tímido grupo começou a se entusiasmar com a idéia da nova orquestra. Assim relatam os

documentos da FESNOJIV:

Começando em 1975, oito pessoas se reuniram em torno do maestro José Antonio

Abreu no antigo Conservatório Nacional „Juan José Landaeta‟. Além do desejo de

fazer música, eles se reuniram pela necessidade de combater o problema da reforma

da educação musical na Venezuela com características pedagógicas próprias e

originais, com a capacidade de adaptar técnicas de ensino de outros países à nossa

realidade. (HOLLINGER, 2005, p. 78)

A reforma foi instaurada por um decreto de 1964, e obrigava os alunos das escolas de

música do Estado a praticarem música em conjunto. Abreu e oito jovens estudantes da antiga

Escola de Música José Angel Lamas, se reúnem pela necessidade de obter recursos para criar

um programa educacional próprio e original, capaz de se adaptar métodos de ensino existentes

em outros países para a nossa realidade.

Em 20 de fevereiro de 1979 foi criada a Fundação Estadual para a Orquestra Sinfônica

Nacional Juvenil da Venezuela, a fim de formar recursos humanos altamente qualificados na

área de música e obter o financiamento necessário para a execução dos planos, atividades e

programas. Em 30 de abril do mesmo ano, a orquestra sobe ao palco pela primeira vez em

Caracas. Só em 1996, será criado a Fundação Estadual para o Sistema Nacional de

Orquestras Juvenis e Infantis da Venezuela, o FESNOJIV, com a intenção de promover e

desenvolver todas as orquestras de crianças e jovens que a mesma fundação já havia criado ou

poderia criar em todo o território nacional, além de implementar as atividades e programas de

formação e educação dos professores.

61

Um desses professores que vieram do projeto é a excelente violinista Susan Siman,

também responsável pelo Centro da Criança da Academia de Montalbán. Desde seu começo,

Abreu percebendo seu talento para música e também para o ensino concedeu-lhe a

possibilidade de pesquisar vários métodos de ensino: Susuki, Kodály, Dalcoreze e Orff fora

do país. Ela viajou para os Estados Unidos e Europa para conhecer e treinar tais métodos.

Quando voltou, combinou todos eles de uma forma que desenvolvesse a melhor maneira para

ensinar um grupo piloto de crianças em Caracas. Depois disso, foi refinando o método, até

chegar ao modelo atual, e hoje, trabalha como a professora dos professores, pois muitos dos

que entram no sistema para ensinar, passam pela sua metodologia. Conforme disse a jornalista

americana Susan Apthrop (2005) do Financial Times, quando visitou o projeto:

Uma visita pela classe das crianças em Montalbán mostra o uso de uma mistura

eclética de técnicas européias e asiáticas de ensino musical. Canto, dança e

movimentos são utilizados, e as crianças são colocadas em apresentações para o

público, desde o momento em que conseguem bater palmas no mesmo tempo.

Assim que eles conseguem executar uma melodia, eles começam a ensinar crianças

mais jovens. As classes são pequenas, e as crianças recebem grandes estímulos e

afeições ao longo das lições. Eles respondem com confiança e segurança. A

sensação de tocar é constante dentro de um clima de alegria. (HOLLINGER, 2005,

p.138)

Isso comprova o entusiasmo e alegria dos professores pelo projeto. Eles não

deixam de declarar que o El Sistema, antes de tudo, é um programa social de grande

relevância. Assim como o Maestro Abreu, eles têm o carinho pelo programa, trabalhando

sempre em conjunto e procurando desenvolver novos conhecimentos e habilidades. “Ao todo,

o número de professores chega a 15.000”. (HOLLINGER, 2005, p.131) Além do que, quando

uma criança atinge um determinado nível, ela passa a ensinar outras dentro da orquestra, que

estão começando. Isso é uma inovação, pois ensinar também é um meio de aprender. A

maioria dos professores foram alunos do El Sistema. Eles entendem a missão social e musical

do programa. Se um aluno falta pela segunda vez, sem prévia notificação, eles vão até a casa

da criança para conhecer as causa de sua ausência.

Este trabalho existe desde muito cedo. Os professores visitam as casa das crianças

de 2 a 3 anos de idade para assegurar ao pais que entendam o nível de compromisso que se

requer deles. À medida que os alunos começam a estudar instrumentos, os professores

instruem aos pais a apoiar o estudo e a disciplina, aconselhando-os e encorajando-lhes sobre o

ensino musical. Isto honra as conquistas do estudante e o “fazer música” adquire valor real

62

para a família, que não vê mais a necessidade de retirar a criança do projeto para que trabalhe

fora.

A estrutura funcional, educacional, artística e administrativa do projeto está

concentrada em torno do que eles chamam de El Núcleo, o Núcleo. Neles se concretizam

todos programas orquestrais e dos coros da FESNOJIV, o que os converte em centros de

promoção de atividades educativas, artísticas e culturais das comunidades. Os núcleos variam

em tamanho e complexidade e estão localizados em todos 25 estados do país. Atualmente,

existem 180 núcleos que atendem 350 mil crianças, adolescentes e jovens, e formam uma rede

complexa e sistemática de orquestras e coros de jovens e crianças35

.

Além dos núcleos, existem os centros de formação que são as „Academias Latino-

americanas‟, „Centro Acadêmico de Lutheria‟ (CAL), „Conservatório Musical Simón

Bolívar‟, „Centro Acadêmico Infantil de Moltanbán‟ e o Centro de Ação Musical‟.

As „Academias Latino-Americanas‟ que reúnem os melhores instrumentistas

(flauta, contrabaixo, violino, clarinete e violoncelo) para alta formação e especialização; o

„Centro Acadêmico de Lutheria‟ (CAL) tem o objetivo de capacitar e preparar profissionais

para a fabricação, manutenção e reparação dos instrumentos sinfônicos e populares dos

conjuntos musicais. Graças a ele, as crianças do projeto podem ter o próprio instrumento e

estudá-lo diariamente.

O „Centro de Ação Musical‟, talvez o mais importante, tem o propósito de

desenvolver programas acadêmicos e cursos para regentes, intérpretes e especialistas de

música. Assim está escrito o objetivo de sua criação no site da FESNOJIV36

:

(...) promover a proteção internacional da música, nossas orquestras e músicos

virtuoses; servir a sede para o intercambio educativo, musical e artístico da América

Latina; executar programas de educação, resgate e reabilitação de crianças,

adolescentes jovens e realizar atividades de integração artísticas para que eles

aprendam a atuar em todas as artes, através da dança, do teatro, da ópera, do canto, da

fotografia e do vídeo.

35

NUCLEOS. Disponível em: <http://fesnojiv.gob.ve/index.php?option=com_content&view= article&id=

183&Itemid =185> Acesso em: 28/05/2010. 36

CENTRO DE ACCIÓN SOCIAL. Disponível em: <http://fesnojiv.gob.ve/es/centro-de-accion-social-por-la-

musica.html> . Acesso em: 28/05/2010.

63

Como se pode perceber, o projeto é inovador ao ensinar a música em contato com outras

artes, o que provavelmente não estaria num currículo tradicional de ensino musical. Os alunos

não só se tornam músicos, mas verdadeiros artistas preparados através de uma bagagem

artística completa que somente uma criança proveniente das classes mais altas conseguiria

obter. Isso é transformação social de qualidade, obtida por meio da música.

O „Conservatório Musical Simón Bolívar‟ é o local onde são ministradas aulas para

jovens que no final recebem o diploma expedido pelo Ministério da Educação; e o „Centro

Acadêmico Infantil de Moltanbán‟, onde as crianças têm aulas de iniciação musical desde os

dois anos de idade até os 16, quando estão preparados para ingressar no Conservatório Simon

Bolívar, ou outras instituições superiores.

As principais agrupações musicais são a Orquestra Sinfônica Simon Bolívar, a orquestra

principal do projeto e que realiza tournées pelo país e exterior; o Conjunto de Metais da

Venezuela, que reúne os melhores instrumentistas do naipe; o Coro de Mãos Brancas, que é o

coro formado por crianças com deficiências auditivas ou com outros problemas. O conjunto

tem reconhecimento de figuras importantes da área musical como Simon Rattle, Claudio

Abbado, a soprano italiana Mirella Freni, e Geral Wirth, diretor do famoso coro dos Meninos

Cantores de Viena.

Outro conjunto importante é a Banda Sinfônica Juvenil Simón Bolívar, que realizou em

dezembro de 2006, com patrocínio da Shell da Venezuela, a gravação de um disco intitulado

Música del Templo y de la Plaza com a finalidade de promover a aproximação das

comunidades às músicas tradicionais venezuelanas. Foram criadas ainda a Orquestra de Jazz e

Big-Band, Orquestra Sinfônica da Juventude Francisco Miranda, e a Orquestra Sinfônica

Juvenil de Caracas, que é a segunda orquestra mais importante do projeto.

Talvez os agrupamentos mais interessantes – e nada comuns - são as Orquestras

Sinfônicas Penitenciárias que merecem no trabalho palavras a mais.

Esta rede foi criada em 2007 em parceria com o Ministério da Rede Popular para

Relações Interiores e Justiça, sob financiamento do Banco Interamericano de

Desenvolvimento. O coordenador do programa, Lênin Mora, advogado diplomado em Direito

Internacional pela Universidade Santa Maria e também musico da Orquestra Sinfônica Juvenil

64

Simón Bolívar, começou a visitar os cárceres da Venezuela para entender a necessidade dos

presos. Com o propósito de diminuir a violência dentro dos presídios e facilitar o processo de

reinserção social, Mora e sua equipe implementaram um projeto de aprendizagem, prática e

desfrute musical. A chave para mudança estava na educação. Todos os presos poderiam entrar

no projeto, com a única condição de não ter antecedentes de agressão a funcionários dentro da

prisão. A maioria dos presos nunca tinha visto um instrumento, hoje, a rede de orquestras

conta com uma planilha de 461 alunos e desde sua criação 1086 internos receberam educação

musical através do programa. Um exemplo de sucesso é o ex-presidiário Henry Davil. Ex-

membro da orquestra, hoje trabalha como um dos funcionários da FESNOJIV, uma vez que

ele conseguiu sua liberdade. A este respeito, disse que se sentia “muito orgulhoso”37

de ser

um exemplo para os presos da Penitenciária da Região Andina, onde agora trabalha como

instrutor. (FESNOJIV, 2010)

O El Sistema tem um plano de estudo nacional, incluindo uma sequência musical

estabelecida. Entretanto, o programa pode ser adaptado a cada comunidade. Todo o plano de

estudos começa com arranjos simples de grandes obras musicais executadas com grande

entusiasmo. Estas obras são frequentemente reintroduzidas na medida em que a criança está a

fazer progressos. Como diz Gustavo Dudamel: "Nós vivemos nossas vidas através das obras.

Quando tocamos Sinfonia No. 5 de Beethoven, para nós é a coisa mais importante

acontecendo no mundo." 38

( FESNOJIV, 2010)

Como se pode perceber, o projeto altera profundamente a comunidade de uma maneira

que não impõe soluções pré-estabelecidas, mas se adapta às condições e necessidades de cada

uma delas. Não seria ideal se todas ajudas humanitárias fossem assim? A FESNOJIV é um

exemplo de que para melhorar as condições de uma população é preciso buscar soluções

dentro da própria comunidade, e não impor perspectivas provenientes de “fora”. O

etnocentrismo, como já foi comprovado pela Antropologia, é uma das piores perspectivas

pelas quais se encara uma comunidade.

Essa abordagem se reflete nos repertórios executados pela orquestras, que são tanto

eruditos como populares, pois, antes de tudo, a linguagem musical é obtida de maneira

37

ORQUESTRAS SINFONICAS PENITENCIARIAS. Disponível em: <http://fesnojiv.gob.ve/es/ orquestas-

sinfonicas-penitenciarias-.html>. Acesso em: 28/10/2010 38

METODOLOGIA DEL SISTEMA. Disponível em: < http://www.fesnojiv.gob.ve/es/metodologia-de-el-

sistema.html>. Acesso em: 28/10/2010

65

espontânea, natural e sem dificuldades se integra na cultura da comunidade durante os

concertos. Como está descrito no site:

Os valores intrínsecos das diversas estéticas musicais se conjugam em um

repertório orquestral planejado para atender o desenvolvimento acadêmico dos

beneficiários diretos e do desfrute dos beneficiários indiretos. Os recursos

orquestrais se utilizam em função de produzir um discurso musical que não se

limita aos esquemas da música acadêmica ocidental. O clássico, o popular, o

folclórico, o acadêmico, o elitista, o vanguardista, o tradicional, o experimental e o

erudito em matéria de música é percebido e projetado pelo El Sistema de uma

forma aberta e sem limitações impostas por paradigmas convencionais. (FESNOJIV, 2010)

39

Além de erradicar a pobreza, elevar a auto-estima das crianças e sua família, e por fim

da comunidade, observando por uma perspectiva das Relações Internacionais, a missão da

FESNOJIV é um resgate da cultura e identidade de um povo desfavorecido no mundo

globalizado. Ela pode unir também os países do continente latino-americano e seus vizinhos.

Contribui, portanto, para a própria inserção internacional de um país.

Além de convênios entre o El Sistema venezuelano e o El Sistema USA, instaurou-se o

„El Festival América e Los Americanos‟, iniciado em seis de abril de 2010, na sala de

Concertos Walt Disney, em Los Angeles. Este festival, que tem como objetivo unir o norte e

o sul das Américas, explora as distintas tradições musicais que surgem da mescla de culturas e

paisagens da região inteira. A Filarmônica de Los Angeles, regida agora por Gustavo

Dudamel, executará entre outras obras, a famosa Cantata Criolla do compositor venezuelano

Antonio Estévez, exemplo musical dessa interação entre elementos musicais provenientes dos

diversos povos da região.

Débora Borda, presidente da Filarmônica de Los Angeles comentou (FESNOJIV, 2010)

“que o festival significa muito para as pessoas de Los Angeles e para o continente em geral;

através dele, Gustavo apresenta a América na perspectiva do sul. Cremos no potencial para

unir os americanos, e é talvez o que mais nos agrada, a sensação de uma grande família a

partir da música”.

Algo parecido disse também Gustavo Dudamel: “creio que há só uma América. Lógico

que temos o sul, o centro e o norte, mas é um só continente. Orgulho-me de ser venezuelano,

39

FILOSOFIA. Disponível em: <http://www.fesnojiv.gob.ve/es/filosofia.html>. Acesso em: 28/10/2010.

66

latino-americano e americano”. (FESNOJIV, 2010) É o velho papel da música a unir os

povos, por mais diferentes que sejam.

Apesar de ainda não ter a divulgação merecida pela mídia, a FESNOJIV tem mostrado

ao mundo que é um modelo bem-sucedido e alternativo de política social, educacional,

artística, e também integracionista, uma vez que seu alcance influencia o relacionamento entre

os Estados.

O mais interessante – e também impressionante - é que seu objetivo começa por

integrar e restaurar o próprio indivíduo, passando pelas comunidades, as regiões, o país, o

continente e o mundo, como ficou demonstrado nos projetos criados em outros continentes e

inspirados nele. De fato, o lema do projeto - Tocar y Luchar - é digno de uma verdadeira

revolução que talvez nem mesmo Simón Bolívar pudesse imaginar.

67

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho procurou mostrar a importância da música na sociedade e como ela pode

ser utilizada para a integração dos estados, o diálogo cultural e religioso, e principalmente o

desenvolvimento e o progresso dos cidadãos de um país ou uma região. Apesar de ela ser hoje

um produto de mercado altamente lucrativo, para as grandes empresas, sua função não pode

ser vista como um mero entretenimento de massas, o que de fato, causa essa anestesia social

que se observa hoje. Sua função vai para além disso: é transformar o homem, revolucionar

seus paradigmas, sua realidade, colocando dentro deles o fator positivo da angústia: aquele

incômodo que sentimos quando queremos mudar para melhor.

No primeiro capítulo, procurei mostrar como a música sempre esteve ligada à sociedade,

e que, portanto, música e relações internacionais apresentam mais pontos em comum do que

divergentes. Para isso, fiz um pouco da retrospectiva histórica da própria história da música

em relação ao desenvolvimento da sociedade. Também retratei como ela se articula com

elementos como a política, fé, Estado-nação e educação dos cidadãos. Tentei mostrar que ela

pode obter resultados tanto benéficos como maléficos para a sociedade, uma vez que

dependendo de como ela é utilizada, pode levantar ou destruir uma nação, como foi o caso da

apropriação subjetiva da música de Wagner por Hitler, como discurso nacionalista e nazista

contra os judeus.

No segundo capítulo, comecei a explicar a influência do fenômeno da globalização na

atualidade ao “descentralizar” as identidades locais e regionais, transformando por vezes seus

valores como cultura, religião e política. Esses processo pode causar conflitos entre os grupos,

sua transformação ou ainda um reforço das próprias identidades dos grupos sociais. No caso

da América Latina, como foi retratado, há mais um reforço dessas diversas identidades como

forma de resistência diante dos poderes dominantes exercidos sob os grupos étnicos da região.

A ascensão de políticos de viés popular é reflexo deste fenômeno. Assim também, o

continente latino-americano busca conseguir a integração regional através do resgate do valor

cultural dos seus diversos povos. Foi pensando nisso, que muitos educadores musicais

começaram a criar dentro do continente uma consciência coletiva de que a educação musical,

através da música, pode resgatar a identidade do povo diante do mundo globalizado e também

68

mudar a realidade de pobreza e miséria nas quais muitas comunidades vivem. Sendo assim,

vão começar a surgir dentro do continente, com a ajuda de governos, instituições

internacionais, ONGs e empresas privadas, projetos de cunho social e pedagógico através da

música.

No terceiro capítulo tratei do pioneiro e o exemplo maior dentre eles, que é o

FESNOJIV, criado por José Abreu. Sua estrutura organizacional e metodologia pedagógica

conseguiram promover sua missão de ensinar e educar crianças carentes, recuperar sua auto-

estima, dar-lhes a oportunidade de se tornar alguém que jamais eles poderiam ser, uma vez

que a música dentro do continente é ainda “elitizada”, além de resgatar o folclore de um povo,

que muitas vezes é massacrado pela mídia globalizada e os “enlatados” que surgem.

O FESNOJIV espalhou sementes pelos “quatros cantos” do mundo, como o som que se

propaga pelo ar. Tocar y luchar talvez seja mais do que um slogan criativo. É a metáfora da

relação entre a música e a política através dos tempos. Sem muito alarde, a música parece ser

um dos elementos de relações internacionais mais antigos e menos estudados como tal. Seu

papel como vetor de transformação social e mesmo de inserção internacional ainda é um

campo pouco explorado.

A intenção deste trabalho foi, de forma apenas perfunctória, demonstrar que essa ligação

é possível e de uma envergadura ainda por desvelar. Como disse Barenboim, música por si só

não resolve os problemas, mas ela pode ser uma forte aliada para que haja uma transformação

dentro de comunidades carentes, seus princípios e valores culturais, e ajudá-los a projetar

novas possibilidades e novos caminhos de integração e inserção internacional.

69

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America: An Overview. Washington: OEA, 1999. Disponível em: <http://www.dreamscanbe

.org/Research%20Page%20Docs/Pilotti%20Historical%Devt.%20of%20Child%20Welfare%

20system%20in%20%LA.pdf.>. Acesso em: 15/05/2010.

READ BOOK ON LINE. Disponível em: <www.readbookonline.net>.Acesso em:

15/04/2010.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Émile. London: Dent, 1966.

71

SANCHÉZ, Freddy. El Sistema Nacional para las Orquestas Juveniles e Infantiles. La

nueva educación musical de Venezuela. In: XVI Encontro Nacional da ABEM e Congresso

da ISME na América Latina, 2007, Campo Grande-MS. Educação musical na América

Latina: concepções, funções e ações. Porto Alegre: Associação Brasileira de Educação

Musical, 2000. p.63-69. Disponível em: <http:// www.abemeducacaomusical.

org.br/Masters/revista18/revista18_completa.pdf>. Acesso em: 20/04/2010.

SHARP, Ian. Classical music’s evocation of the myth of childhood. New York: The Edwin

Mellen Press, 2000.

SPIGLIATTI, Solange. No Haiti, ONG brasileira faz concerto para vítimas. O Estado de

S. Paulo, São Paulo, 05/02/2010. Disponível em <http://www.estadao.com.br

/noticias/internacional,no-haiti-ong-brasileira-faz-concerto-para-vitimas,506829,0.htm>.

Acesso em: 24/05/2010.

WEST-EASTERN DIVAN ORCHESTRA. Disponível em: <www.west-eastern-divan.org.>.

Acesso em: 13/04/2010.

WILLEMS, E. L’oreille musicale: La préparation auditive de l‟enfant. 5 ed. Fribourg: Pro

Musica, 1984. v.2.

72

OBRAS CONSULTADAS

COOPER, Barry. (Org.). Beethoven. Um compêndio. Tradução de: GAMA, Mauro; GAMA,

Claudia Martinelli. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

MIGUEL, Andressa Chinzarian. O universo infantil retratado em música. Monografia

(Graduação em Música) - Departamento de Música, Universidade de São Paulo, São Paulo,

2005.

HARRISON, Lawrence E.; HUNTINGTON, Samuel P. (Org.). A cultura importa: os

valores que definem o progresso humano. Tradução de: VARGAS, Berilo. Rio de Janeiro:

Record, 2002.

HOBSBAWM, Eric J. História social do Jazz. Tradução de: NORONHA, Angela. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1990.

RUEB, Franz. 48 variações sobre Bach. Tradução: AZENHA, Jaó Jr. São Paulo: Companhia

das Letras, 2001.

73

Anexo

EXEMPLOS DE PROJETOS DE MÚSICA NA AMÉRICA LATINA E NO MUNDO

INSPIRADOS NO EL SISTEMA.

Brasil

Projeto Instituto Baccarelli

Fundado pelo maestro Baccareli em São Paulo em

1996.

www.institutobaccarelli.org.br

Instituto Baccarelli40

Projeto Guri

Fundado pelo município de São Paulo e ONGs locais em 1995.

www.projetoguri.org.br

Projeto Guri Santa Marcelina

Fundada pela organização Santa Marcelina de Cultura em 2008.

www.gurisantamarcelina.org.br Guri Santa Marcelina41

NEOJIBÁ – Núcleo Estaduais de Orquestras Juvenis e

Infantis da Bahia

Fundada por iniciativa do pianista e maestro Ricardo Castro em

intercâmbio com a FESNOJIV.

www.neojiba.org

Neojibá42

40

Disponível em: <http://www.institutobaccarelli.org.br> Acesso em: 20/05/2010. 41

Disponível em: < www.gurisantamarcelina.org.br > Acesso em: 20/05/2010. 42

Disponível em: < www.nwojiba.org> Acesso em: 20/05/2010.

74

Uruguai

Fundación Sistema de Orquestas Infantiles y

Juveniles del Uruguay

O Mastro e Ariel Britos e Claudia Rieiro

adotaram a idéia da FESNOJIV e resolveram

para implementar no país em 1996.

Argentina

Fundación Sistema de Orquestras Infantiles y

Juveniles de Argentina

Fundada no ano de 1998 em parceria com o

governo argentino e o maestro José Abreu. Hoje

existem mais de 30 delas espalhadas pelo

território argentino.

www.sistemadeorquestas.org.ar

Sistema de Orquestas43

Chile

Fundación de Orquestras Juveniles e Infantiles de Chile

Durante os anos 60‟, o maestro Jorge Peña Hen, criou as

primeiras orquestras infantis no Chile. Logo após sua morte,

o programa perdeu a força e só foi retomado em 1991,

quando o maestro Fernando Rosas viajou a Venezuela com o

Ministro da Educação Ricardo Lagos e puderam apreciam o

êxito e a importância de um Programa de Orquestras Juvenis

neste país. Orquesta Juvenil44

www.orquestajuvenil.cl

43 Disponível em: < www.sistemadeorquestas.org.ar> Acesso em: 25/05/2010.

44 Disponível em: <www.orquestajuvenil.cl> Acesso em: 25/05/2010.

75

Peru

Arte para crecer

Fundada em 1990 na capital Lima do país, atua na educação de crianças e jovens carentes não

só através da música, como também de oficinas artísticas, circenses e de dança.

www.arteparacrecer.org

Arte para crecer45

Paraguai

Sonidos de la Tierra

Foi fundado pelo maestro e excelente músico Luis

Szarán. O programa, inspirado no conceito de “educação

pela arte” se iniciou no ano de 2002 com o apoio da

Fundação AVINA, ampliando sua cobertura por meio de

alianças com outras organizações como Plano

Internacional, Missions Prokur Nürnberg S.J. (Alemanha)

e o apoio público e privado de instituições como:

Parlamento Nacional, FONDEC, ITAIPU Binacional,

Sociedad Filarmónica de Asunción, Embaixada da

Alemanha, EUA, França e Itália, Partners of the

Americas (Capítulo Paraguay-Kansas), Sonidos de La Tierra46

Dirección de Cultura de la Municipalidad de Asunción e outras.

www.sonidosdelatierra.org.py

45 Disponível em: <www.arteparacrecer.org>. Acesso em: 25/05/2010.

46 Disponível em: <www.sonidosdelatierra.org.py>. Acesso em 25/05/2010.

76

Colômbia

Fundación Batuta

Este projeto tem o apoio do governo colombiano e tem convênio com a universidade

americana da Carolina do Norte. Existem 40.000 crianças

atendidas pelo projeto atualmente. Conta com a ajuda do

Governo da Colômbia, Governo do Japão, e empresas como

Nestlé, Bavária S.A., Gemalto Colômbia S.A., Colombiana

Automotriz S.A.

Batuta47

www.fundacionbatuta.org

Argentina

Fundación Sistema de Orquestras Infantiles y Juveniles de Argentina

Devido ao surgimento de orquestras locais nos municípios do país, a fundação surgiu para

auxiliar e ceder apoio técnico

institucional para novos projetos,

capacitação de seus integrantes,

professores e diretores, e

organizações de seminários e

encontros entre as orquestras.

www.sistemadeorquestas.org.ar

Sistema de orquestas Argentina48

47

Disponível em: <www.fundacionbatuta.org>. Acesso em: 25/05/2010.

77

Bolívia

Orquestra Missionária de San José de Chiquitos

Fundada por Deysi Rivero, junto com o Professor Rubén Darío Suárez Arana, divulga a

cultura dos povos originários do lugar e das missões jesuíticas do seu povoado, San José. Na

sua última visita à Argentina, a orquestra realizou 24 concertos através do país, em 20 dias, e

registrou o seu primeiro material sonoro, que será editado junto com um DVD documental

sobre o trabalho da agrupação.

www.myspace.com/orquestasanjosedechiquitos

México

Coros y Orquestas Infantiles del Mexico

Fundada pelo pianista, regente e também ator Maestro J. Guillermo Sánchez G. em 1989. Ele

também faz consultoria para escolas, instituições e até empresas privadas que buscam através

da música estabelecer ambientes mais saudáveis e agradáveis para negociações.

www.coim.com.mx

Costa Rica

O Sistema Nacional de Educación Musical (Sinem) ligado ao Minstério da Cultura do

governo administra as orquestras e escolas de música dentro do país, assim como cria e

implementa novos projetos musicais e educacionais.

http://www.mcjdcr.go.cr/sinem/noticias/

48

Disponível em: < www.sistemadeorquestas.org.ar >. Acesso em: 25/05/2010.

78

África

South African National Youth Orchestra Foundation

Orquestra fundada em 1978.

www.sanyo.org.za

Estados Unidos

El Sistema USA

Foi fundado em parceria com a FESNOJIV e a prestigiada instituição de ensino musical New

England Conservatory of Music. Assim como o modelo venezuelano, a instituição vai auxiliar

organizações que queriam implementar o sistema dentro dos EUA ou no exterior.

http://elsistemausa.org/

Itália

Pequenas Huellas

A fundação Pequenas Huellas, pequenos traços em português, foi um fundado pela

musicista itlaina e professora Sabina Colmna-Petri (docente do Conservatorio di Musica

di Torino) . O foco deste projeto é organizar em diferentes países e cidades ao redor do

mundo, workshops e cursos para crianças e jovens músicos, com o objetivo de estimular o

interesse pela música local e sua interpretação, quer de origem culta ou popular, para uma

melhor compreensão e divulgação do patrimônio cultural do lugar que eleito para os

workshop. Desta forma, pretende-se promover o respeito e a valorização da história, arte e

culturas diferentes. A atividade musical é complementada por palestras sobre a condição das

crianças em diferentes partes do mundo e da promoção dos seus direitos, sendo o principal

ponto de referência a documentação da Convenção sobre os Direitos das Nações Unidas.

www.pequenashuellas.com/it/home.html

79

Canadá

Coalition for Music Education in Canada

É um projeto fundado em 1992 quando representantes de mais de 20 associações de escolas

de música se reuniram para compartilhar idéias que melhorassem o estado do ensino da

música no Canadá. A Coligação rapidamente começou a trabalhar com os pais e outros

cidadãos interessados em aumentar a participação, além de construir parcerias com os

governos de diversos níveis. Hoje, ela é uma organização nacional dedicada à sensibilização e

compreensão do papel que a música desempenha na cultura canadense, defendendo a

contribuição que a educação musical faz na vida de todos seus cidadãos.

www.coalitionformusiced.ca/

www.musiquepourtous.ca/