FACULDADE SANTA MARCELINA
CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
TOCAR Y LUCHAR:
MÚSICA, TRASNFORMAÇÃO SOCIAL E INSERÇÃO INTERNACIONAL.
Andressa Chinzarian Miguel
São Paulo
Junho/2010
FACULDADE SANTA MARCELINA
CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
TOCAR Y LUCHAR:
MÚSICA, TRANSFORMAÇÃO SOCIAL E INSERÇÃO INTERNACIONAL.
Andressa Chinzarian Miguel
Orientador: Moisés da Silva Marques
São Paulo
Junho/2010
Dedico este trabalho a minha família, que sempre esteve
ao meu lado nos meus diversos projetos e trabalhos. Em
especial, aos meus pais, que com muito amor e dedicação,
proporcionaram toda a base intelectual, emocional e
espiritual para minha vida. Sou eternamente grata a eles.
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos professores da Faculdade Santa Marcelina, que com sabedoria, dedicação
e cuidado, ensinaram a mim e aos meus colegas a ver o mundo para além de nossos próprios
olhos e a entender que na vida há sempre “os dois lados da questão”.
Agradeço em especial ao professor Moisés da Silva Marques, pela imensa generosidade
e pela incrível habilidade de enxergar o que eu queria dizer quando não sabia como colocar as
palavras no papel.
A todos os colegas e amigos que fiz durante o curso.
Aos meus amigos distantes de Campo Grande.
Meu avô Muxeque Chinzarian (in memoriam) que me ensinou mais do que qualquer ser
humano o caminho da compaixão, da gratidão, da tolerância e do entendimento entre os
homens. Através dele compreendi que Relações Internacionais devem começar dentro de
nossa casa, inclusive, dentro de nós mesmos.
E finalmente, à minha querida família, meus pais e meus irmãos Davi e Ossana, que são
meus eternos companheiros da jornada da vida.
Una niña que es inválida
dijo: -"¿Cómo danzo yo?"
Le dijimos que pusiera
a danzar su corazón...
Luego dijo la quebrada:
-"¿Cómo cantaría yo?"
Le dijimos que pusiera
a cantar su corazón...
Dijo el pobre cardo muerto:
-"¿Cómo danzaría yo?"
Le dijimos: -"Pon al viento
a volar tu corazón...
Dijo Dios desde la altura:
-"¿Cómo bajo del azul?"
Le dijimos que bajara
a danzarnos en la luz.
Todo el valle está danzando
en un corro bajo el sol.
A quien falte se le vuelve
de ceniza el corazón...
Los que no danzan
Gabriela Mistral
RESUMO
Política, economia, sociologia, filosofia e direito são disciplinas das quais as Relações
Internacionais se apropria como material para sua análise. Neste trabalho, o material será
diferente, mas nem por isso menos legítimo: a música. Ela, como função social, é uma
construção histórica e por isso, reflexo da sociedade e de seu tempo. Como meio, pode
transformar seu ambiente, através da educação musical, além de promover diálogos e pontes
que talvez não fossem conseguidos por ferramentas tradicionais. Com esse objetivo, começam
a surgir em escala mundial projetos musicais e de inclusão social em comunidades e países
extremamente pobres e violentos. Sempre remetendo à importância do papel da música na
sociedade, o intuito deste trabalho é mostrar como tais projetos surgiram no continente latino-
americano, são viáveis e têm obtidos relevantes resultados, já que acabaram por influenciar os
países desenvolvidos a implementarem modelos semelhantes em comunidades periféricas e
pobres em seu território nacional. Um dos exemplos maiores é o FESNOJIV da Venezuela,
que por seu sucesso ao conseguir êxitos no campo social, artístico e educacional, foi analisado
particularmente neste trabalho.
.
PALAVRAS CHAVES: Música, educação musical, nação, nacionalismo, identidade,
América latina, globalização, cultura, FESNOJIV, inclusão social, periferia.
SIGLAS
ALALC - Associação Latino-Americana de Livre Comércio.
CAF - Corporação Andina de Fomento
CBS - Columbia Broadcasting System
CEPAL - Comissão Econômica para América Latina
CIDEM - Centro Interamericano de Educação Musical
EUA - Estados Unidos da América
FEMCIDI - Fundo Especial Multilateral do Conselho Interamericano de
Desenvolvimento Integral
FESNOJIV - Fundación del Estado para el Sistema Nacional de las Orquestas Juveniles
e Infantiles da Venezuela
FLADEM - Fórum Latino-americano de Educação Musical
INTEM - Instituto Interamericano de Educação Musical
MERCOSUL - Mercado Comum do Sul
OEA - Organização dos Estados Americanos
ONGs - Organizações não-governamentais
RCTV - Radio Caracas Televisión
UNASUL - União de Nações Sul-Americanas
UE - União Européia
UNESCO - United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization
UNICEF - United Nations Children‟s Funds
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Arte para crecer………………………………………………………………………....75
Batuta………………………………………………………………………………. .....76
El sistema como modelo..................................................................................................49
Instituto Baccarelli……………………………………………………………………...73
Guri Santa Marcelina.......................................................................................................73
Neojibá.............................................................................................................................73
Orquestas Juvenil.............................................................................................................74
Sistema de Orquestas.......................................................................................................74
Sistema de Orquestas Argentina……………………………………………………......76
Sonidos de La Tierra........................................................................................................75
SUMÁRIO
Introdução........................................................................................................................ 9
Capítulo 1 - Musica, Educação Musical e Sociedade..................................................... 12
1.2 - Musiki: contemplação e tragédia............................................................................. 15
1.3 - Música e fé.............................................................................................................. 18
1.4 - Música e Política: discutindo a relação................................................................. 22
1.5 - Hinos, Música e Nações: Representações e Legitimidade..................................... 26
Capítulo 2 - Globalização, cultura e identidade.............................................................. 35
2.2 - Educação Musical na América Latina: um meio de despertar de vários
povos?............................................................................................................................. 39
Capítulo 3 - “O Milagre Venezuelano”: um novo produto de exportação?.................... 46
3.2 - El Sistema: como criar sons que transpõem barreiras............................................ 53
3.3 - História da orquestra, exemplos de sucesso, metodologia..................................... 59
Considerações finais....................................................................................................... 67
Referencias Bibliográficas.............................................................................................. 69
Obras consultadas........................................................................................................... 72
Anexo............................................................................................................................. 73
9
INTRODUÇÃO
A música é uma das artes mais antigas, pois existe desde o tempo pré-histórico. Seus
elementos e ferramentas são abstratos e por vezes ininteligíveis, já que sua matéria – o som –
existe e adquire vida e forma somente pelas vibrações das ondas sonoras que se propagam
pelo ar. Mas esse material tão rarefeito e delicado, invisível aos olhos, e até místico para
alguns, pode ser tão penetrante e “cruel”, causando assombro e fascinação em quem ouve com
devida atenção. A música, portanto, sempre esteve perto do homem, mais do que ele próprio
imagina, porque faz parte dele, está dentro dele, mesmo que ele não “pare e escute”. A música
está na História, assim como a filosofia, a economia, a política, a matemática, a física e a
religião, e por isso, ela também é o reflexo da sociedade, está moldada por paradigmas
sociais, culturais, religiosos e políticos. E a partir daí, seu material abstrato e rarefeito adquire
concretude.
Hoje a modernidade trouxe diversos aparatos tecnológicos, encurtou distâncias,
aumentou as facilidades de comunicação e informação. As pessoas conversam entre si em
diferentes partes do mundo através do computador. Realmente, é muito difícil não estar
“conectado” a tudo que acontece ao redor. Mas será que estamos mais próximos de nós
mesmos, aliás, estamos mais próximos dos outros também?
Essas duas perguntas estão relacionadas ao objetivo deste trabalho: demonstrar como a
música e o ensino musical podem mudar uma comunidade, um país, ressaltando também a
importância do seu papel na integração dos países ou de grupos étnicos como árabes-
israelenses. Não há caminhos e padrões a serem seguidos, não. Em música, existem diversas
maneiras para chegar a um só objetivo, existem diversas respostas que levam para o mesmo
caminho: o caminho do diálogo e da cooperação. A música dentro da sociedade pode - e deve
- cumprir este papel. Afinal, não é ela a linguagem universal?
É com esse intuito que educadores musicais, a partir da metade do século XX, vão
começar a discutir o papel da educação musical no mundo e a criar um ambiente de discussão
sobre o assunto na sociedade internacional. Sendo assim, devido à extrema marginalização
das crianças em alguns locais dentro da América Latina, educadores, artistas e músicos vão
10
defender a idéia da utilização da música como uma saída para a verdadeira mudança: a
mudança que começa de dentro. Isso vai começar a gerar ações também de políticos e
empresários que passarão a fomentar projetos musicais e sociais em áreas de conflitos e
extremamente pobres. Com a ajuda do Estado, de organizações internacionais, governos
locais, políticos, empresas privadas e ONGs, vão se instaurar dentro de comunidades
periféricas e totalmente relegadas ao esquecimento, projetos musicais que afetaram toda a
vida da comunidade. O grande e maior exemplo é o FESNOJIV da Venezuela, que foi
fundado pelo músico, economista e político José Abreu, e hoje, seu sucesso fez espalhar
sementes, primeiramente, pela América Latina e depois pelo mundo. Este trabalho procura
demonstrar como, através da música, é possível mudar o rumo de um indivíduo, de sua
comunidade e de seu país.
No primeiro capítulo, procurei demonstrar a importância da música na sociedade e como
ela constrói diálogos e pontes nos seus diversos elementos, como religião, fé, política, Estado,
nação e nacionalismo. Também retratei a importância da educação musical dentro da
sociedade como uma forma de construir, de projetar e modificar a imagem de um povo ou
uma nação, além de construir diálogos entre povos diferentes e até conflitantes entre si. A
educação musical existe desde os primeiros grandes impérios e alcança seu ápice na Grécia
Antiga. Infelizmente, a valorização que os gregos tinham pela música se perdeu durante o
processo histórico, apesar de a música como arte não deixar de existir. Hoje, o que esses
educadores, artistas e políticos engajados buscam através da educação musical, é incutir
valores nas crianças e nos jovens como cidadania, democracia, respeito, valorização à vida e à
comunidade.
No segundo capítulo retratei a importância da música na comunidade através da
discussão entre os pontos como globalização, cultura e identidade. As fronteiras estão cada
vez mais frágeis e frequentemente diversas identidades culturais são sobrepostas. A música
cumpre o papel de reforçar essas identidades, ao mesmo tempo que as integra dentro de uma
relação entre estados. Essa discussão, portanto, parte para o âmbito latino-americano, já que o
continente apresenta diversas etnias, tem regiões extremamente pobres e miseráveis e está
passando por um processo de integração regional que vem se fortalecendo desde o começo do
século. A importância da educação musical então ressurge como forma de resgatar a
identidade desses povos - que tantas vezes foram massacrados - melhorar sua auto-estima,
11
desenvolver a cidadania e a democracia na região, e integrá-los de uma forma que vai além
dos moldes do Estado, da economia ou da política.
No terceiro exemplo será apresentado o FESNOJIV, também conhecido mundialmente
como El Sistema, ou o “milagre venezuelano”. Seu sucesso é tão surpreendente que virou um
produto de “exportação já comprado” por países como Estados Unidos, Escócia, Inglaterra e
Coréia. Será demonstrado como através do seu trabalho, e também de seu lema – tocar y
luchar – ele conseguiu tirar muitas crianças da marginalidade e está transformando o
ambiente das favelas venezuelanas, conhecidas como barrios.
A ligação entre música e relações internacionais está no simples fato de que esta arte
fala universalmente por todos e para todos os povos. A essência do seu material não é como
um demagógico ou inflamado discurso político, nem como os impressionantes números da
economia, nem como maravilhosos aparatos tecnológicos. Seu discurso é somente isso: som e
silêncio, matéria rarefeita e avassaladora, que pode construir pontes e diálogos ao harmonizar
as diversas vozes conflitantes de um sistema. “É só parar para ouvir e escutar”.
12
PRIMEIRO CAPÍTULO
1. MÚSICA, EDUCAÇÃO MUSICAL E SOCIEDADE.
Há muita música hoje? Sim, claro, alguém responderia a esta indagação aparentemente
óbvia. Há música ao entrar em um restaurante ou em um estabelecimento comercial, dentro de
um ônibus ou de um avião, ao ligar a televisão, dentro dos hospitais, na espera do telefonema,
no carro de gás, nos teatros, shows e festas. Quando se caminha pelas agitadas avenidas e ruas
de São Paulo, quase todos os passantes carregam consigo ipods, mp3, sem contar os antigos
radinhos de pilhas que surpresamente alguém pode levar consigo. Sim, de fato, há muita
música no mundo, há demasiadamente.
Vivemos em uma sociedade de consumo, e a música nunca esteve tão presente porque
ela nunca antes foi tão consumida. É só apertar um simples botão e já existe música. Comprá-
la nunca foi tão fácil e barato também, já que se pode consumir música sem desembolsar
quase ou nenhum dinheiro pela internet. O mundo moderno e digital trouxe uma verdadeira
“revolução musical” neste sentido. Mas a maior parte da música que é consumida hoje
demonstra qual qualidade? Que natureza ela apresenta? O que ela expressa? Para quem ela se
dirige? Quais são seus objetivos ao atingir as pessoas? Será que as pessoas por ouvirem mais
estão se tornando mais musicais? Essa “revolução” aproximou o homem da música como
nunca antes na História? O que é a música para os homens de hoje?
Para as tribos africanas a música é o veículo que coloca alguém em contato com os
espíritos do passado e também do futuro. Alguns dizem que pode expressar um sentimento de
um povo, de uma nação, ou de alguém que lamenta a perda de seu querido amor; pode ser
expressão de um ato solitário – o pastor que toca para si próprio e para o rebanho; de um
pequeno grupo – a aldeia estabelecendo dança ou uma canção comunal; do brado de uma
multidão – as marchas civis, ou uma revolução que está por estourar, cantando determinação e
solidariedade. Pode ser o canto triste e desesperado dos judeus europeus durante a Segunda
Guerra Mundial, ou a inextinguível esperança dos spirituals cantados pelos negros africanos
13
no Novo Mundo e que teve sua expressão máxima com o hino “We shall Overcome” durante
o movimento dos direitos civis dos negros americanos.
Outros consideram a música como uma forma de arte cujo objetivo é não mais que
expressar ela mesma, uma arte sem fins, a não ser ela própria e seus elementos. Como
confidenciou o compositor russo Igor Stravinsky ao seu amigo Robert Craft no livro An
Improbable Life, que a música não passa de uma ilusão:
Eu considero que música não tem, por sua natureza, poder em expressar qualquer
coisa que não seja, um sentimento, uma atitude, um estado psicológico, um fenômeno
da natureza, etc... se, como é sempre o caso, a música aparenta em expressar algo, isto
é somente uma ilusão e não uma realidade. (CRAFT, 1993 apud SHARP, 2000, p.37,
tradução nossa) 1
A música tem essa natureza dual, abstrata, simbólica, espiritual, emotiva e livre. Mas
também apresenta, assim como toda a arte, estruturas moldadas por um paradigma e contextos
sociais, quando ela não é o próprio reflexo da sociedade. Ela sempre acompanhou seu
desenvolvimento, e por isso está constantemente mudando. Quando se produz mudanças em
todo o contexto social a música também sofre mudança: quem a faz, quem a escuta, quem
compra e vende; também variam de maneira fundamental as relações entre compositor,
executante e público. Cada vez que a música ocupar uma posição diferente na sociedade há
uma mudança importante. Por isso, talvez esteja mais do que na hora de pensar no que hoje
ela representa para uma sociedade pautada pelo consumo e mercado, e cujos valores estéticos
e artísticos estão sofrendo constantemente mudanças - mudanças nem sempre para melhor.
A maior parte dessa música é bem diferente daquela que se encontra nas salas de
concertos, nos conservatórios, ou daquela que é a manifestação genuína de um povo e de uma
comunidade. Há muita música, mas ela tem se distanciado cada vez mais de um fazer musical,
de um processo artesanal e artístico, e se tornando mais um elemento enlatado a ser deglutido
pelas pessoas que ouvem simplesmente, mas não escutam de fato. “Quem escuta, aprende a
ouvir com razão e sensibilidade”2, como disse o educador belga Edgar Willems. (WILLEMS,
1985, p.30 apud FERRADA, 2005, p.128).
1 I consider that music is, by its very nature, powerless to express anything at all, whether a felling, an attitude of
mind , a psychological mood, a phenomenon of nature, etc. …if, as is nearly always the case, music appears to
express something, this is only an illusion, not a reality. 2 O pedagogo belga Edgar Willems remete-se a três verbos em francês – ouir, écouter e entendre (ouvir, escutar,
entender) para designar três qualidades diferentes da audição: o primeiro para designar uma função puramente
sensorial, o segundo quando a emoção se junta ao primeiro, e por fim, o terceiro verbo indica o surgimento da
consciência daquilo que se ouve.
14
Aprender com razão e sensibilidade é educar o ouvido. Não só isso; é educar a si
mesmo. Uma verdadeira educação musical pode modificar o valor que a música tem para os
homens. Pode modificar os próprios homens, sua sociedade, seu povo, sua nação. Hoje,
vivemos numa época baseada mais na imagem do que na audição. Quando a uma criança é
ensinado atravessar a rua, dizem-lhe para olhar para os dois lados em vez de escutar o som de
um carro aproximando. O sistema da visão é muito mais usado do que o da audição. Embora
o espaço no cérebro ocupado pelo sistema auditivo é menor do aquele ocupado pelo sistema
visual, é o espaço auditivo que está mais próximo das áreas que regulam a vida e onde são
geradas as sensações de dor, prazer, motivação e outras emoções básicas. Logo, se o homem
relega sua audição a segundo plano, ele se distancia de suas próprias sensações e emoções, de
si mesmo.
Portanto, só o ouvir não quer dizer que alguém esteja verdadeiramente escutando, assim
como é possível que alguém olhe muito e não veja. A leitura de um livro não somente implica
em olhar as letras, as palavras, mas interpretar o texto, fazer conexões e construções mentais;
assim é também com a música. Para escutá-la é preciso entender a narrativa musical e
discernir a mensagem que ela passa para o cérebro, é preciso aliar o pensamento com a
emoção. Quando se assiste a um concerto de música clássica, por exemplo, o som que é
transmitido existe dentro de um tempo e espaço definidos; cada nota é emitida dentro dessas
leis físicas de durabilidade, de intensidade e de timbre. Se algum ouvinte não apreender tais
fenômenos, ele não pode parar simplesmente a execução da orquestra ou pedir que ela repita
para ajustar seu ouvido. Isso seria impensável. Ele precisa se concentrar definitivamente para
receber o material musical que é executado. É um esforço que exige presença não só física,
mas consciente - e porque não espiritual? Mesmo o silêncio feito durante as pausas musicais é
carregado de significados. É preciso estar sempre presente, porque a música é uma arte do
tempo presente . Conforme Fanny Luckert Barela:
Neste processo de contato com nossa interioridade se dá o que de alguma forma
poderíamos chamar de um “estado alterado de consciência”, no qual desconectamos
do mundo exterior e onde o tempo e o espaço passam a ter outra dimensão. Estando
neste estado especial, o processo expressivo-creativo, como tal nos convida a
dialogar com essa experiência, vai alterando seu desenvolvimento. Sendo a música
uma arte temporal e sua obra efêmera, expressar-se mediante sua linguagem
significa estar em um permanente “presente”3. (BARELA, 2004, p. 166)
3 En este processo de contacto con nuestra interioridad se da lo que de alguna forma podríamos llamar un
“estado alterado de conciencia”, en el cual nos desconectamos del mundo exterior y donde el tiempo y el
espacio pasan a tener otra dimensión. Estando en ese estado especial, el processo expressivo-creativo como tal
15
Compreender esse estado “presente” não é nada fácil. Exige que forças opostas estejam
em equilíbrio como tensão e repouso, agitação e tranqüilidade, concentração, precisão,
objetividade e um deixar levar-se. Elementos opostos que estão presentes na música e que
podem ser incorporados no viver do ser humano. Um equilíbrio tão almejado atualmente pela
sociedade moderna mergulhada em fundamentalismos e em extremos gritantes. Há uma
preocupação em alcançar esse estado em diversas áreas, na política, economia e nas relações
sociais. Nesse sentido, a música tem muito mais a ensinar à vida, do que o contrário. Por isso
a educação musical é importante, não só porque se aprende a ler notas musicais, mas porque
através delas se constroem relações harmoniosas consigo mesmo e com os outros. Como disse
o maestro e pianista Daniel Barenboim:
O poder da música reside em sua capacidade de se comunicar com todos os
aspectos do ser humano – o animal, o emocional, o intelectual e o espiritual. Com
muita freqüência, pensamos que as questões pessoais, sociais e políticas são
independentes, sem influir umas nas outras. Pela música, aprendemos que essa é
uma impossibilidade objetiva: simplesmente não existem elementos independentes.
O pensamento lógico e as emoções intuitivas devem estar constantemente unidos.
A música nos ensina, em resumo que tudo está ligado. (2009, p.125).
1.2 - Musiki: contemplação e tragédia.
Se a atual situação da música com sua sociedade é complexa, é preciso estudar qual era
a função dela no passado, para entender o caminho que vai construindo junto com a
sociedade, e depois, construir soluções para o presente a fim de melhorar o futuro. Muitos
ainda não “escutam” de fato porque não têm oportunidades para aprender. Desde o século
XIX, a música clássica e outras formas ditas “eruditas”, como o jazz, por exemplo,
divorciaram-se completamente do consumo em larga escala, e isso é uma conseqüência da
própria educação musical ainda ser privilégio de grupos restritos e elitizados; ou então o mito
de que música clássica só pode ser aprendida por quem tem “talento” ou “genialidade” para
tal, quando na verdade não é assim. A música faz parte do ser humano, é um movimento
inerente a ele, como a pulsação de seu andar, ou de seu coração batendo.
nos invita a dialogar con la experiencia misma, de manera que el efecto que produce en nosotros la propria
expressión, va modulando su desarrollo.
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Desde os tempos pré-históricos o homem faz música. A música faz parte do homem
quando tirava sons através de ossos de animais, pedras ou seus próprios gritos, e isso foi
sendo desenvolvido também nos antigos impérios como o egípcio, babilônico, sumério e
chinês. Como disse o famoso violinista Yehudi Menuhin:
A música é a nossa mais antiga forma de expressão, mais antiga do que a
linguagem ou a arte; começa com a voz com a nossa necessidade preponderante de
nos dar aos outros. De fato, a música é o homem, muito mais do que as palavras,
porque estas são símbolos que transmitem significado factual. A música toca
nossos sentimentos mais profundamente do que as maiorias das palavras
(MENUHIN; DAVIS, 1900, p.1).
Entretanto, foi na Grécia Antiga que alcançou um patamar supremo de valorização e
importância. Assim como em outras áreas, a música ocidental deve muito a essa civilização.
Nunca houve em nenhuma sociedade estima tão alta pela música e educação musical. A
própria palavra grega musiki significa todas as artes das nove Musas. Ela não era só
exclusividade dos artistas, mas de todos, pois colaborava na formação do caráter e da
cidadania, dominava a vida religiosa, estética, moral e científica da sociedade grega. Portanto,
faz sentido tratarmos como objeto deste trabalho a relação intrínseca entre a música e imagem
internacional de uma nação.
Nas cidades-estados, ela foi preocupação dos governantes, e sua educação estava sob
responsabilidade dos legisladores. Em Esparta, ela era obrigatória para a educação da infância
e da juventude. Em Atenas, esperava promover a moral e a cidadania. A idéia de boa e má
música não era só estética, mas também moral: uma má música poderia rebaixar e destruir um
povo, suas leis e sua política. A palavra nomos significa música, da mesma maneira que
significa lógica, representando as leis morais, sociais e políticas. Ela não cumpria o papel de
um divertimento privado, e sim de elevação moral política e pública, promovendo o bem-estar
da pólis.
Além da elevação dos preceitos morais e políticos, filósofos importantes como Platão e
Aristóteles declararam em seus ensinamentos que ela estava relacionada a fenômenos
cósmicos como estações do ano, ciclos do dia, do Sol e da Lua, homem/mulher,
morte/renascimento, o que a coloca também relacionada diretamente com a magia.
Matemática e música eram regidas pelas mesmas leis segundo Pitágoras e a educação musical
estava intimamente ligada ao aperfeiçoamento da alma humana, assim como o corpo pela
ginástica e a mente pela retórica.
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Portanto, o valor atribuído à musica era extra-musical. A doutrina do éthos, criada por
eles, era um sistema melódico constituído por “modos gregos” e que continham um efeito
peculiar quando se ouvia determinada melodia. Eles serão utilizados também ao longo de toda
a música da Idade Média e do Renascimento.
A cada modo grego estava associado um caráter, um éthos que influia no caráter do
homem:
•O Modo Dórico (de uma escala de mi a mi) era viril, grave, belo e educativo.
•O Modo Frígio (de uma escala de ré a ré) era agitado, entusiasta e “báquico”.
•O Modo Lídio (de uma escala de dó a dó) era dolente, fúnebre, decente e educativo
(segundo Aristóteles).
•O Modo Mixolídio (de uma escala de si a si) era patético.
Música e matemática, equilíbrio e catarse, lógica e intuição, assim surgem os dois mitos
dos principais instrumentos gregos, o aulos e a lira que representam a música da razão e a
música dos sentimentos, respectivamente; o primeiro apresentava um som mais áspero e rude,
o segundo, mais suave e lírico.
Num deles a música teria surgido quando Hermes encontrou uma carapaça de tartaruga,
e a utilizou como um corpo ressonante, inventando a lira e dando-a de presente a Apolo para
simplesmente tocar e contemplar o universo. O outro narrado por Píndaro, diz que o aulos foi
criado por Palas Athena, após Medusa ser decapitada por Perseu e ver suas irmãs soltarem
gritos pungentes de dor e pesar. A lira é um instrumento de contemplação, o aulos é um
instrumento de exaltação à tragédia, dionisíaco. No decorrer dos tempos, essas duas
abordagens em relação a música passarão a coexistir: a música como reflexo da contemplação
do universo e a música como reflexo dos mais puros e intensos sentimentos. Para o filósofo
Nietzsche, essa junção do apolíneo e do dionisíaco da música faz dela a forma de arte mais
acessível de todas, por causar uma impressão mais forte e envolvente que as outras artes,
apesar de também ser a mais incompreensível, confirmando mais uma vez sua natureza dual.
18
Esse paradoxo está mais que presente na atualidade. Há música por todos os lados, mas
ela é pouco estudada e compreendida. Por isso cresce o discurso de educadores, músicos,
artistas, instituições e governos para o estímulo do aprendizado da música, principalmente nos
países pobres, como os latino-americanos ou em países que estão inseridos em zonas de
conflito como é no Oriente Médio. Políticas ou projetos que promovem desde a inclusão
social através da música até o diálogo intercultural entre povos como árabes e judeus estão
cada vez mais sendo criados e aprovados pela sociedade internacional, como é o caso da
West-Eastern Divan Orchestra4 idealizada pelo músico Daniel Barenboim e pelo intelectual
Edward Said. Há um apelo geral surgindo entre artistas e intelectuais de que é preciso parar
para “ouvir e escutar” como forma de resistência às “tragédias” da modernidade? Como
acreditar que a música tem esse poder de transformação?
As próprias transformações acontecem primeiramente internamente, dentro dos
indivíduos, para depois se prolongarem e produzirem resultados “concretos” na sociedade. Os
processos dos resultados artísticos aparecem em um tempo mais longo do que daqueles
relacionados a outras áreas, uma vez que o material da cultura é essencialmente humano,
subjetivo e imprevisível. Acreditar que ela tem esse poder de potencializar o ser humano é um
ato de fé, pois envolve crença em valores subjetivos e qualitativos, diferente dos valores
quantitativos e numéricos que medem, por exemplo, a riqueza de um Estado, ou o lucro de
uma empresa privada.
1.3 - Música e fé.
A vinculação da fé à música é muito forte, pois a religião ou o transcendental são
manifestados em canções, ritmos, danças, rituais, missas e orações nas diversas sociedades:
desde o índio norte-americano, até os monges tibetanos; desde o canto judaico à melodia
sinuosa do sitar de um indiano que o dedilha serenamente em louvação a deus hindu Shiva;
ou então, como os griot (cantores) africanos que cantam e narram histórias para renovar as
lembranças e emoções das gerações passadas a toda a aldeia reunida em torno de si; além da
existência do grande número de compositores eruditos ocidentais que escreveram boa parte de
4 WEST-EASTERN DIVAN ORCHESTRA. Disponível em: <www.west-eastern-divan.org>. Acesso em:
13/04/2010.
19
sua obra para a fé cristã, sendo o maior expoente deles Johann Sebastian Bach. Música e fé
andaram “lado a lado” na História. Como disse Said:
Há todo um discurso na história da religião, que você pode chamar de misticismo,
sufismo e por aí fora, em que a experiência religiosa é aquela do inefável, do tácito,
do inalcançável, do inatingível. Esse discurso certamente está presente em todas as
religiões monoteístas e, em algum grau, em certas religiões pluralistas. É muito
interessante que, no caso de alguns compositores –estou pensando em Messiaen e
sem dúvida Bach -, há uma tentativa não de aproximar o divino, como de
incorporar o divino. (BARENBOIM;SAID, 2003, p.130):
O poderoso Império da Igreja Ocidental Cristã tem um profundo impacto na sociedade
ocidental e em sua música. Esse império duradouro - pois até hoje persiste, mesmo que
sofrendo seus revezes - será vital para o desenvolvimento da música ocidental tal como
conhecemos, pois foi a partir da unificação da fé por toda Europa que o sistema de notação
musical surgiu por volta de 600 a.C., registrando obras dos primeiros grandes compositores
como Guillaume de Machaut e Giovanni Perlugi da Palestrina.
Assim como a música, a fé possui elementos paradoxais. Ela equilibra razão e emoção
de forma que conceda tranqüilidade, contemplação e transcendência. Entretanto, a fé, uma vez
que seu pêndulo oscile freqüentemente para o lado da emoção, jamais esteve isenta da
tendência do homem a levar as coisas para longe demais. Pelo processo histórico o pêndulo da
fé sempre oscilou definitivamente para os impulsos emocionais e irracionais. As Cruzadas e a
Inquisição são provas disso. O conflito árabe-israelense também. Guerrear, matar e condenar
são formas que alguns até hoje se utilizam por causa de um deus que acreditam ser o
verdadeiro e o único a ser seguido. A humanidade em busca de verdades no místico não
consegue olhar para a realidade, enxergar o outro e estabelecer um laço de harmonia entre
todos. Assim como uma sociedade define beleza a partir do que é belo para ela, assim o
“transcendental” se expressa de diversas maneiras. Mas este pêndulo pode ser alterado
também por meio da música, e assim a fé pode surpreender a história. Aliás, pode surpreender
duas vezes.
O projeto West-Eastern Divan Orchestra mencionado acima envolve diálogo inter-
religioso, música e mudança social. Em 1999, Daniel Barenboim, juntamente com o pensador
e crítico palestino Edward Said, decidiu criar um workshop para jovens músicos de Israel,
Palestina e vários países árabes do Oriente Médio, com o objetivo de criar um diálogo
20
intercultural e promover a experiência da colaboração por meio de um interesse comum: fazer
música.
Daniel Barenboim e Edward Said deram esse nome ao projeto, após a coleta de um
poema de Johann Wolfgang von Goethe intitulado "West-Eastern Divan", uma obra central
para a evolução do conceito de cultura mundial. Goethe o escreveu durante o fim das guerras
Napoleônicas e o estabelecimento dos acordos do Congresso de Viena, curiosamente, na
mesma época em que Beethoven escrevia sua Nona Sinfonia. Encantando com o mundo
islâmico, Goethe resolveu aprender árabe aos sessenta anos. O poema foi escrito após
conhecer a obra do poeta persa Hafiz (1320-1389), que foi sobrevivente de um período
extremamente turbulento pelo qual passou a sociedade islâmica no momento que estava
sucumbindo à invasão Mongol. Seus poemas mostram que a visão de mundo e também a
visão de Deus no mundo islâmico apresenta mais semelhanças do que diferenças com a visão
Ocidental. Deus, para o poeta alemão (GOETHE, 2010), se mostra de uma maneira só:
A Deus pretence o Oriente,
A Deus pretence o Ocidente
Norte e Sul repousam
Pacificamente em Suas mãos[…]5
Em 2002, a West-Eastern Divan Orchestra ganhou uma sede permanente em Sevilha, na
região de Andaluzia, Espanha, onde é apoiada pelo governo regional. Se a religião pode
surpreender duas vezes, foi nesta mesma região, durante os séculos VIII e XV, que islâmicos,
israelenses e judeus conviveram pacificamente; algo que aconteceu somente uma vez na
história. Al-andalus era como os árabes chamavam a região, e significa “luminoso”. Ela
representava a vanguarda cultural e científica da Europa, e a harmonia era tão intensa que o
emir Abd al-Rahman III, que governou entre 912 e 961, nomeou um judeu como seu vizir
(algo como um primeiro-ministro). A decoração mudéjar é um dos traços mais visíveis dessa
convivência e influência mútua entre as três religiões. Mudéjar é uma palavra em árabe que
quer dizer “aqueles autorizados a permanecer”. Ele está presente em todas as igrejas e
sinagogas de Andaluzia.
5 GOD is of the east possess'd/ God is ruler of the west/ North and south alike, each land /Rests within His gentle
hand.
21
Quando Daniel Barenboim (2009, p.74) perguntou ao presidente da região, Manuel
Chávez, porque estava apoiando o projeto com tal fervor, sendo que a decisão não significava
a abertura de um negócio lucrativo que lhe traria dividendos políticos, sua resposta foi a
seguinte: “A Espanha em geral (e Andaluzia, em especial) é o que é hoje em dia graças ao
fato de que judeus e mulçumanos conviveram ali por muitos anos, contribuindo para o
desenvolvimento do país e de sua cultura”. Barenboim (2009, p.74) ainda afirma: “Se
houvesse alguma forma de a região devolver atualmente o que havia recebido desses povos ao
longo dos séculos, ele sentia que não era apenas seu dever, mas um privilégio poder fazê-lo”.
Tanto Edward Said como Daniel Barenboim ao criarem o projeto, acreditaram que o
problema no Oriente Médio é de ordem cultural também, não só uma questão territorial e
política. Persiste um problema essencial de que as pessoas não se dialogam, não dão a devida
atenção para a história de cada povo, suas narrativas e suas dores. Criar condições de diálogo
é ter a coragem necessária para ouvir, o que, às vezes não se prefere dizer. Então, tendo
escutado o inaceitável, pode ser possível aceitar a legitimidade de outros pontos de vista.
Acreditar nisso é um ato de fé, não em Deus, ideologias, em tratados ou em políticos, mas no
próprio ser humano. No site da orquestra a missão desenvolvida pelos dois amigos está assim
descrita:
A West-Eastern Divan Orchestra provou repetidas vezes que a música pode quebrar
barreiras antes consideradas insuperáveis. O único aspecto político prevalecente no
trabalho da West-Eastern Divan é a convicção de que nunca haverá uma solução
militar para o conflito no Oriente Médio, e que os destinos dos israelenses e
palestinos estão inextricavelmente ligados. Através do trabalho e de existência da
West-Eastern Divan Orchestra, fica demonstrado que as pontes podem ser construídas
para incentivar as pessoas para ouvir umas as outras. Música por si só, não pode,
evidentemente, resolver o conflito árabe-israelense. Música concede ao indivíduo o
direito e o dever de se expressar plenamente enquanto escuta seu vizinho. Com base
nessa noção de igualdade, cooperação e justiça para todos, a Orquestra representa um
modelo alternativo à atual situação no Oriente Médio. (WEST-EASTERN DIVAN
ORCHESTRA, 2010)
A música que dialoga com a fé, sem deixar de ser música, pode “mover montanhas” nas
relações entre países.
22
1.4 - Música e Política: discutindo a relação.
O período anterior ao Iluminismo – a Idade Média - era caracterizado por uma sociedade
largamente não-literária, e, portanto, era quase que impossível distinguir entre o que pertencia
aos adultos e aquilo que pertencia às crianças. Não havia livros dirigidos ao aprendizado dos
jovens, e os mesmos jogos e brincadeiras eram compartilhados igualmente entre pessoas de
diferentes idades. O conceito de educação infantil e o próprio conceito de infância começaram
a ser construídos a partir do Renascimento e com isso as profundas transformações operadas
por ele, como por exemplo, a valorização da idéia de individualismo e antropocentrismo.
Graças ao surgimento da imprensa, da possibilidade de um aumento de leitores em todos os
segmentos da sociedade e o surgimento da escola, teóricos políticos do liberalismo irão
escrever obras sobre a importância da educação da criança.
Se o músico Daniel Barenboim afirma atualmente que música ajuda a “escutar” o outro
e a entender outros pontos de vista, o mesmo já havia afirmado filósofos políticos como Jean-
Jacques Rousseau, o importante pensador do liberalismo igualitário e também precursor da
pedagogia moderna. Sua obra Émilie é considerada como uma revolução na história da área
da educação. Há um trecho interessante nesta obra em relação ao aprendizado musical
(ROUSSEAU, 1966, p.114-115 apud SHARP, 2000, p.20-21, tradução nossa):
Talvez você deva supor que como eu não estou preocupado em ensinar Émile em
escrever e ler, eu não deveria ensiná-lo música. Devemos poupar seu cérebro de
esforço excessivo, e não nos preocupemos em voltar sua mente para sinais
convencionais. Mas admito a você que parece haver um problema aqui, pois à
primeira vista o conhecimento das notas não parece ser tão necessário quanto o
conhecimento das letras. Há diferenças entre ambos: quando falamos, nós
expressamos nossos próprios pensamentos; quando cantamos nós expressamos os
pensamentos de outros.
Mas, primeiro, nós podemos ouvir esses pensamentos, sem precisar lê-los, e uma
canção é mais bem aprendida pelo ouvido do que pelo olho. Além do que, para
aprender música direito, nós devemos fazer canções assim como cantá-las, e então os
dois processos devem ser estudados juntos, ou nunca teremos conhecimento real da
música... Mas já disse o bastante, e mais que o bastante, sobre música: ensine-a com
prazer, como se fosse uma divertida brincadeira6.
6 You may first perhaps suppose that as I am in no hurry to teach Émile to read and write. I shall not want to
teach him to read music. Let us spare his brain the strain of excessive attention, and let us be in no hurry to turn
his mind toward conventional signs. I grant you there seems to be a difficulty here, for if at first sight the
knowledge of notes seems no more necessary for singing than the knowledge of letters for speaking, there is
really this difference between then: When we speak, we are expressing our own thoughts; when we sing we are
expressing the thoughts of others. But at first we can listen to them instead of read them, and a song is better
learnt by ear than by eye. Moreover, to learn music thoroughly we must make songs as well as sing then, and the
23
Além de Rousseau, John Locke escreveu Thoughts Concerning Education7 (LOCKE,
1981 apud SHARP, 2000, p. 17) onde descreve que a educação deve moldar o homem para a
vida, para o mundo, não somente para a escola ou universidade. A instrução nunca deve se
esgotar e é essencialmente um treino para o desenvolvimento do caráter.
Essa mudança no pensamento, um pensamento centrado no homem e não mais na igreja
é o reflexo da nova sociedade que havia deixado de viver em feudos e começa a estabelecer as
futuras fronteiras nacionais. Há também, como marca dessa época, e isso descende do
pensamento maquiveliano, de que deveria haver uma separação entre Igreja e Estado. O
Tratado de Vestfália marcou o início do moderno Sistema Internacional – também do estudo
de Relações Internacionais - uma vez que foram estabelecidos pelas nações envolvidas os
princípios de soberania e Estado-Nação. A intenção era haver um equilíbrio de poder entre as
nações e a partir deste momento, as guerras posteriores ao acordo não mais tiveram como
causa principal a religião, mas giravam em torno de questões de Estado. Isto enfraqueceu o
poder central da igreja e trouxe grandes mudanças para a sociedade, algo que já vinha
acontecendo desde o século XIV e XV, quando houve o florescimento das cidades, as
navegações marítimas e também as invenções tecnológicas, como a imprensa. Essa invenção
irá mudar o curso da música, pois permitiu que músicos amadores e profissionais entrassem
em contato com a obra de outros países.
A partir deste período, política e cultura irão se aproximar cada vez mais, e construir um
diálogo complexo durante o processo histórico, uma vez que a política pode se utilizar da
cultura para estabelecer o poder dominante, ou a cultura ainda pode quebrar com as estruturas
reacionárias da política. A música, por sua natureza dual, pode ser usada para fins benéficos,
mas também fins destrutivos e desarmônicos, uma vez que dependendo de como alguém ouve
o material musical, este vai apropriar-se dele e incutir-lhe uma característica subjetiva, ou
seja, irá começar a fazer alusões subjetivas que diferem do caráter objetivo do material
musical, alterará a substância para adaptá-la a sua percepção, ou até aos seus desejos e
vontades. Há uma pequena – mas importante – distância do material substancial da música e
das associações que ela evoca. Hitler utilizou a música de Beethoven “Allen Menschen
two process must be studied together, or we shall never have any real knowledge of music…But I have said
enough, and more than enough, about music; teach it as you please, so long as it is nothing but play. 7 Pensamentos sobre a Educação.
24
werden Brüder” para construir uma “irmandade alemã”. Sem falar na música de Wagner, que
apesar do anti-semitismo do patente compositor, foi utilizada de maneira abusiva durante os
últimos anos do Terceiro Reich. Por isso, ouvir com a razão (escutar) é imprescindível para
distinguir aquilo que a música de fato diz e aquilo que tentamos impor a ela. Uma educação
musical consciente desmascara esses elementos subjetivos, pois vão sendo quebrados durante
o processo de aprendizagem, e então, a música passa a falar por si só, sem interferência do
intérprete, e do ouvinte. Quando ela fala por si só, passa a existir uma verdadeira
transformação em quem faz, executa ou ouve, pois ela quebra com pré-conceitos,
julgamentos, ilusões ou alusões que alguém pode ter.
Não é a por acaso que muitos compositores sofreram com o descaso de sua música por
parte da sociedade. Johann Sebastian Bach foi aceito duzentos anos depois de sua morte. Mas
Bach, apesar do quase nenhum reconhecimento, sempre teve muito trabalho, já que era
empregado direto da igreja. Diferentemente de Wolfgang Amadeus Mozart que lutou muito
para ser aceito dentro de uma corte e uma aristocracia que o não entendia, muito menos sua
música. Mozart morreu cedo, enterrado numa vala de indigentes. Ele viveu numa época de
transição musical, onde a música passou do poder da igreja para o poder dos nobres e reis da
corte; ele foi um dos primeiros artistas cosmopolitas de sua época, uma vez que sua fama
desde pequeno ultrapassou as fronteiras, viajando e produzindo obras instrumentais como
concertos, sinfonias, óperas em italiano e alemão. Mas sua fama durou tão logo o menino
prodígio cresceu. Neste tempo sofreu muito quando tentava imprimir suas próprias idéias e
ferramentas musicais em suas peças, pois estas eram consideradas subversivas. Não podia
fazê-lo porque não existia ainda a figura do músico independente, algo que só acontecerá com
Ludwig Van Beethoven.
Para sobreviver, era preciso estar atrelado a uma corte, um príncipe, um mecena. Na
época de Mozart, o poder dos monarcas absolutos e da aristocracia da corte estava ainda
intacto. Mesmo após a eclosão da Revolução Francesa, algumas regiões ainda permaneceram
sob o poder de monarcas absolutistas. É o caso do Império Habsburgo na Áustria e em
algumas regiões da Alemanha e Itália. Nestes lugares, o absolutismo foi sendo lentamente
extinguido, em um processo que durou até o fim do século XIX e o começo do XX. Quando
se demitiu da corte de Salzburg em 1781, deu um passo pioneiro em relação à autonomia do
artista, traduzindo para si mesmo o ideal libertário da filosofia iluminista que caracterizava o
movimento Clássico nas artes dos séculos XVII e XVIII, e que marca o início da contestação
25
e da resistência do homem europeu ao Antigo Regime. Suas óperas - gênero em que se pode
perceber e sentir mais claramente a sua genialidade - além de refletirem todos esses ideais,
contêm elementos estéticos precursores do próximo movimento dito romântico. Por isso, sua
música era por vezes incompreendida. "São notas demais", disse certa vez o Imperador da
Áustria-Hungria, Francisco José II, ao ouvir uma de suas composições. (ELIAS, 1995, p.121).
Enfim, Mozart não viveu o suficiente para ver seus ideais de liberdade serem buscados
quando eclodiu a Revolução Francesa. Foi Ludwig Van Beethoven a figura na música clássica
que se transformou no ideal do músico romântico, livre e libertário, também retomando a
idéia central do artista, do poeta e filósofo na sociedade que havia na Grécia Antiga. Embora
de início tenha causado estranhamento da corte, teve sucesso em vida, tanto que no seu
funeral estavam presentes nada menos que 20.000 pessoas, entre os ricos e os pobres;
totalmente diferente do velório de Mozart, em que estava somente sua esposa Constanze.
Sua música soa revolucionaria até hoje, tanto pelos recursos musicais que ele utiliza
como pausas, silêncios e diferenças abruptas de dinâmicas, como pelo discurso humanista que
imprime a ela. O exemplo máximo é o quarto movimento de sua Nona Sinfonia, com um coral
cantando a letra do poema do poeta Friedrich Schiller “Ode à Alegria”. Aproximadamente
cem anos depois, em 1985, este coral se tornará o símbolo da União Européia8 pelos Chefes
de Estado e de Governo da UE cujo lema é “Unity in diversity”. Ele não substitui os hinos
nacionais dos Estados Membros, mas sim, celebra os valores por todos partilhados de unidade
e diversidade. Em 1972, o Conselho da Europa (organismo que concebeu também a bandeira
européia) pediu ao célebre maestro Herbert Von Karajan que compusesse três arranjos
instrumentais - para piano, para instrumentos de sopro e para orquestra. Sem palavras, na
linguagem universal da música, o hino exprime os ideais iluministas de liberdade, paz e
solidariedade que constituem o estandarte da Europa. Música pode e deve ser um instrumento
de integração entre Estados.
Outra obra de Beethoven que mostra seu engajamento político é sua 3ª Sinfonia, a
Heróica, composta para Napoleão, pois o compositor acreditava que ele seria o homem a
concretizar os lemas de liberdade, igualdade e fraternidade. Entretanto, ao saber que o general
decidiu ser imperador e colocar com suas próprias mãos a cora simbólica, Beethoven riscou a
dedicatória.
8 UNIÃO EUROPÉIA. Disponível em: www.europa.eu/abc/symbols/index_en.htm.>
Acesso em 21/04/2010.
26
1.5 - Hinos, Música e Nações: Representações e Legitimidade.
O próprio Napoleão sabia do poder da música para fins políticos. É de sua autoria a
seguinte frase: “Uma boa marcha vale cem canhões.” (DAVIS; MENUHIN, 1990, p.181).
Às vezes ele apressava a marcha para que suas tropas pudessem avançar mais rapidamente e
com mais força. O hino da França, a famosa canção La Marseillaise é hino nascido
diretamente da revolução e foi feita para marchar. O hino foi composto por Ruget de Lisle,
um jovem engenheiro e compositor do exército, membro de uma família aristocrática, presa
durante a Revolução de 1789. Seu nome original é “Canto de Guerra para exército do Reno” e
foi dedicada ao Marechal Nicolas Luckner, um oficial francês nascido na Baviera. Tornou-se
a convocação da Revolução Francesa e recebeu esse nome porque foi a primeira canção
cantada nas ruas por voluntários (fédérés) de Marselha quando chegaram a Paris, depois de
ouvirem um jovem voluntário de Montpellier chamado François Mireur ter cantado em uma
reunião patriótica em Marselha. Mais tarde Mireur se tornou um general de Bonaparte. Para
resistir aos ataques dos exércitos prussianos e austríacos em Paris, o exército francês foi
fortemente orientado a entoar o hino, durante a famosa batalha de Valmy na qual a França
saiu vencida.
Ao longo dos anos, este hino será fonte de inspiração para muitos compositores tanto
eruditos e populares de diversas nacionalidades. De fato, Napoleão tinha razão, a música
ultrapassou o tempo e as fronteiras nacionais. Logo abaixo alguns exemplos do emprego da
La Marseillase por alguns compositores:
Hector Berlioz o transcreveu para a orquestra.
Robert Schumann, compositor alemão, também a incorporou em sua abertura
“Hermann und Dorothea”, inspirado em um texto de Johann Wolfgang Von
Goethe.
Franz Liszt, compositor húngaro, também escreveu uma transcrição para
piano do hino.
Em 1882, Pyotr Tchaikovsky, compositor russo, usou citações extensas da
Marselhesa para representar o exército francês em sua “Abertura Sinfônica”,
composta em 1812.
27
O compositor inglês Edward Elgar citou a abertura de “La Marseillaise” em
sua obra coral “The Makers”, baseado em uma Ode do poeta britânico Arthur
O'Shaughnessy, e onde aparece frases com os dizeres como “Nós criamos um
império de glória” e “Siga em frente Inglaterra!”
Serge Gainsbourg, músico francês, gravou uma versão reggae no final dos
anos de 1970.
Henrik Wergeland escreveu uma versão da canção norueguesa em 1831,
chamado “The Norwegian Marseillan”.
Músicos populares como The Beatles colocaram na abertura de sua canção
“Love”; o ex-tenista e músico francês, Yannick Noah, em sua canção "Aux
Rêves", e o músico cigano belga Django Reinhardt, com "Echoes Of France".
A importância de um hino nacional demonstra a ligação forte – e ao mesmo tempo frágil
– entre música, política e nacionalismo, pois apesar de seus elementos universais, a música
também é limitada dentro de uma particularidade, pois reflete o tempo de uma determinada
sociedade assim como seus anseios para o futuro. Enquanto a França seguia “marchando”, a
Itália e a Alemanha ainda não haviam se formado, pois estavam ainda em guerra para
estabelecerem suas fronteiras. Dois desses compositores de ópera se identificaram com esse
processo: Giuseppe Verdi e Richard Wagner.
Grande parte da terra italiana ainda estava sob o controle do poderoso império dos
Habsburgos. Verdi, nascido em 1813, era um ardente partidário da independência e da
unidade nacional. A sua ópera Nabucco era o maior exemplo de sua posição. A obra retrata a
escravidão dos hebreus no período do Império Babilônico, na época do Rei Nabucodonosor, e
é uma analogia à ocupação austríaca na Itália na época de Verdi. O coro “Va pensiero,
sull`Ali Doratti”, cantado pelos hebreus no exílio, mostra seu anseio pela pátria na melodia.
Na estréia da obra, a platéia, extasiada, chegou a invadir o palco. A melodia e a ópera se
tornaram o símbolo do nacionalismo. Verdi, assim como Beethoven, tornou-se herói do seu
tempo, não somente por causa da música, mas pela feliz coincidência que os revolucionários
italianos encontraram de que seu nome V-E-R-D-I, correspondia à sigla Vittorio Emmanuele,
Re d`Itália – Vittorio Emmanuel, Rei da Itália. Depois que a Itália se unificou sob as mãos do
imperador, Verdi tornou-se deputado do primeiro Parlamento Italiano a convite do Conde
Cavour.
28
Richard Wanger seguiu a mesma linha de Verdi, só que na Alemanha. Entretanto, este
foi bem mais longe. Através de suas obras como Die Meistersinger, ele sentia a necessidade
de preservar e defender a cultura alemã contra ameaças tanto de fora quanto de dentro.
Quando chegou ao poder Hitler, apropriou-se dos escritos de Wagner sobre cultura alemã e
anti-semitismo, e associou-os aos seus anseios políticos e ideológicos de uma maneira que
talvez nem o próprio Wagner imaginasse. Sua obra teve tanto impacto em Hitler, que o
Führer ordenava colocar a música do compositor no momento em que judeus estavam sendo
levados para as câmaras de gás. Por outro lado, prisioneiros que eram autorizados a tocar nas
orquestras oficiais nazistas, ficaram proibidos de tocar Wagner, pois sua música era
considerada muito boa para serem executada pelos judeus.
Outra obra de Wagner, a ópera Rienzi, foi usada como estandarte do partido nazista
para libertarem os alemães do jugo de outros povos. O manuscrito estava desaparecido e foi
encontrado, anos mais tarde, na biblioteca particular de Adolf Hitler. Hitler, assíduo
freqüentador das óperas wagnerianas, apreciava esta ópera acima de todas as outras, pois
chegou a assistir mais de quarenta vezes – a ópera tem seis horas de duração! A razão de tal
adoração é o enredo, que conta a história da vida de Cola di Rienzi, uma personagem popular
da Itália medieval que tenta derrotar os nobres, incutir a revolta no povo, conduzindo-o a um
futuro melhor. Há aqui a associação entre música e o papel político de condottieri ao qual
Hitler aspirava.
Infelizmente as associações inseparáveis da música de Wagner com o nazismo irão
obscurecer de certa forma o valor artístico que ela apresenta para a história da música.
Wagner foi o precursor da nova música e quebrou com toda a estrutura tonal ao compor
“Tristão e Isolda”. Com esta ópera, de cerca de três horas e meia de duração e na qual a
tonalidade nunca se define, Wagner demonstrou que era possível compor música expressiva
fora do sistema tonal. Depois disso, vários compositores criararam obras atonais, e alguns
afirmaram que o sistema tonal já havia se esgotado, não tinha mais a razão de existir (como
Arnold Shöenberg); já outros simplesmente buscavam novas formas, tentando não se prender
ao esquematismo ou às fórmulas do sistema tonal (como Claude Debussy). Wagner fez novas
experimentações acústicas e suas idéias abriram novos caminhos e possibilidades para os
compositores que surgirão depois.
Enquanto a Alemanha e Itália buscavam moldar seus nacionalismos em lendas
mitológicas e histórias antigas de outros povos, os países da Europa Oriental e de outras
29
regiões buscavam através de suas canções, ritmos e danças construir uma identidade e um
orgulho nacional. Antonín Leopold Dvořák e Bedřich Smetana fizeram para os tchecos e
eslovacos, o que Edvard Grieg realizou para Noruega, e mais tarde, Jean Sibelius para a
Finlândia. Franz Lizt escreveu algumas obras em referência ao seu país como Rapsódias
Húngaras, embora, ironicamente, tenha nascido em Raiding, atualmente na Áustria, ter sido
educado em uma escola de língua alemã e nunca ter aprendido húngaro!
Foram os compositores húngaros Béla Bártok e Zoltán Kodály que buscaram, através
do folclore popular, criar métodos de ensino musical para as crianças, além de inserirem tais
elementos em suas próprias criações musicais. Eles viajavam o país inteiro coletando
materiais e escrevendo canções, solfejos e peças fáceis para serem executadas como uma
forma didática de aprender dentro da própria cultura. O compositor brasileiro Heitor Villa-
Lobos fará o mesmo no Brasil. De temperamento irrequieto, viajará o país coletando materiais
brasileiros: modas caipiras, tocadores de viola e outros tipos que mais tarde viriam a se
universalizar em suas obras, e depois utilizados na concepção das suas obras didáticas como
as cirandas e o canto orfeônico. No ano de 1930, apresenta um revolucionário plano de
Educação Musical à Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, recebendo aprovação.
Mais tarde, foi convidado pelo Secretário de Educação do Estado do Rio de Janeiro - Anísio
Teixeira - para organizar e dirigir a Superintendência de Educação Musical e Artística
(Sema), que introduzia o ensino da Música e o Canto Coral nas escolas. Apoiado pelo então
Presidente da República, Getúlio Vargas, organizou Concentrações Orfeônicas, chegando a
reunir, sob sua regência, até 40 mil escolares no Estádio do Maracanã. Em 1942, criou o
Conservatório Nacional de Canto Orfeônico. Villa-Lobos até hoje é criticado por seu
envolvimento com a ditadura do Estado Novo, sendo tachado como oportunista.
Os regimes ditatoriais que aparecem em decorrência do nacionalismo dificultaram muito
a vida de alguns compositores, como é o caso de Bártok, que teve que passar por um auto-
exílio nos Estados Unidos, devido ao regime fascista instalado na Hungria. Mas se por uma
lado dificultou-lhe a vida, enriqueceu muito sua obra, pois Bártok viajou o noroeste dos
Estados Unidos estudando a música dos índios americanos. Lá também conheceu o estilo
musical do jazz, que estava surgindo e tomando conta do mundo. No seu Concerto para
Orquestra, composto durante seus últimos anos em Nova Iorque, Bártok inclui, no último
movimento, uma animada melodia de jazz.
30
Outros compositores que sofreram com regimes ditatoriais foram os russos. Depois da
instalação do socialismo, e do partido bolchevista e sua máquina burocrática, muitos dele
sentiram que sua música não teria espaço em sua própria terra natal e ali não conseguiriam
alçar novos vôos, já que não podiam ter contato com outros compositores que não fossem
partidários do sistema. Dois desses músicos foram Serguei Prokofiev e Sergei Rachmaninoff.
Aquele ainda voltou à Rússia e teve sérios problemas com o governo de Stalin, a ponto de sua
esposa Lina ter sido presa por espionagem ao tentar enviar dinheiro para sua mãe na
Catalunha.
Entretanto, talvez o que tenha sofrido mais revezes, foi Dimitri Shostakovich por ter
ficado definitivamente na Rússia. Sua ópera satírica “O Nariz” (1928), baseado na história de
Nikolai Gogol, foi censurada por causa da crítica por parte da Associação Proletária de
Compositores Russos, que a qualificava como “burguesa”. A história conta a trajetória de um
oficial de St. Petesburgo cujo nariz deixa o rosto e toma vida própria. A montagem da ópera
apresenta elementos do atonalismo mesclado com elementos da música folclórica. Suas outras
composições como a Sinfonia n. 7, opus 60, conhecida como Leningrad, sofreu censura do
partido comunista, pois criticava o regime soviético. Logo após seu término, em 1941, o
compositor fala na rádio para todos os artistas e músicos, que a arte russa corre grande perigo,
e faz um apelo para que se defenda a música e a honestidade dos artistas russos. Outra obra
foi sua Sinfonia n. 13 " Babi Yar", opus 113, composta em 1962, sobre poemas de Evgueni
Evtouchenko. Ela foi composta em lembrança às vítimas do massacre de Babi Yar onde
pereceram 30 000 judeus ucranianos, e é uma crítica ao anti-semitismo ainda presente na
Rússia soviética. Embora tenha sofrido tantas censuras, a popularidade internacional de
Shostakovich foi utilizada por Stalin para revelar o mundo, o progresso e o avanço da
sociedade soviética. Mais tarde em vida, o compositor sofreu de doenças crônicas,
principalmente devido ao vício da bebida (vodka) e do cigarro. Como disse o violinista
Menuhin quando o conheceu:
Muitas vezes tenho pensado em Dmitri Shostakovich, um homem tímido e ansioso,
lutando toda a sua vida dentro do sistema estatal, sem conseguir-se livrar-se
completamente. Fiquei surpreso quando encontrei Schostakovich pela primeira vez
no Festival da Primavera de Praga, por volta de 1947. Sua música transpirava a
paixão, o fogo da guerra e o sacrifício, mas ele mesmo parecia pálido e ansioso. É
triste que um homem de tal gênio e com tanto a dizer não conseguisse atingir o
verdadeiro apogeu de sua capacidade por uma questão de desaprovação política.
Havia recebido grandes honrarias e tinha que manter-se à altura, terminando sua
vida num estado de tanto terror, que tremia constantemente. (MENUHIN;DAVIS,
1990, p.291)
31
A utilização de Stalin da popularidade de um músico para alavancar a imagem de um
país, demonstra que muitas vezes a força da linguagem musical transcende os pruridos
ideológicos.
Em épocas de ditaduras ou regimes autoritários, os artistas, na maioria das vezes, são
capazes de permanecerem convictos quanto a si mesmos e aos ideais libertários, mesmo que o
ambiente cultural seja restringido pela política. O Brasil, na época da ditadura (1964-1985)
viveu um grande florescimento artístico, principalmente no meio da música. No momento em
que a música popular começou a alcançar a grande massa do país, vozes como Chico Buarque
de Hollanda, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Taiguara e Geraldo Vandré entoavam canções
contra a ditadura e repressão. Esse movimento artístico não aconteceu somente no Brasil, mas
em toda a América latina, cujos países sofreram sucessivos golpes militares. Através das
próprias raízes populares e folclóricas, artistas como Mercedes Sosa, na Argentina, Violeta
Parra, no Chile, Daniel Viglietti, no Uruguai, Amparo Ochoa no México e muitos cantores e
compositores de outros países, fizeram parte de um movimento surgido no continente que
buscava o engajamento na luta política contra a ditadura, e conceder voz àqueles que não
podiam falar.
Do outro lado do atlântico, o jazz é uma forma de protesto nascida da voz dos negros
americanos. O estilo que vai marcar a história da música ocidental é o reflexo do Novo
Mundo que estava sendo formado pelos Estados Unidos. Nascido em New Orleans e seu
predecessor foi o ritmo ragtime. Os rags eram músicas folclóricas, tocadas tanto por negros e
brancos e diziam respeito a uma mescla da música africana e européia que era ouvida pelos
negros nas igrejas protestantes e nas festas dos brancos. Começaram a ser executadas nas
salas de visitas dos brancos, da classe média dos Estados Unidos, e depois, graças às
gravações, se alastraram pelo mundo. Apesar do forte apelo popular do jazz, ele influenciou
muitos compositores eruditos em suas obras, como relatei anteriormente. George Gershwin,
por exemplo, escreveu a primeira ópera só para cantores negros e com motivos do jazz: a
famosa Porgy and Bess.
Entre as décadas de 40‟ e 50‟, novos “ruídos” estavam sendo criados no novo tipo de
música que surgia também nos Estados Unidos. O rock era inovador e diferente de tudo que já
tinha ocorrido na música, pois unia um ritmo rápido com pitadas de música negra do sul dos
EUA e o country. Ao longo das décadas o rock também vai servir de protesto para uma
juventude que pregava liberdade, amor livre e paz. O festival de Woodstock torna-se o
32
símbolo deste período. Bob Dylan, The Beatles, Rolling Stones, Janis Joplin tornam-se
símbolos dessa nova música. Os tempos estavam mudando e assim também a música.
Enquanto nos Estados Unidos o jazz e o rock foram os propulsores da “música de mercado”, a
Europa estava perdendo seu domínio sobre a civilização ocidental. Não havia mais a
“pompa” dos salões, dos trajes, dos príncipes e princesas.
Em Viena, que tinha sido a capital musical da Europa durante mais de um século, um
compositor começara a procurar um novo “discurso” para a música, que entrasse em
“consonância” com as “dissonâncias” dos extremos na realidade em que vivia. Esse
compositor era Arnold Schöenberg, o criador do Sistema Dodecafônico9, apesar de ser
discípulo direto de Wagner, não tentou seguir ou modernizar a iniciativa de Wagner. O que
Schöenberg fez foi trazer para a música um inconformismo próprio da época e já presente em
outras manifestações artísticas, filosóficas e científicas como a crítica à filosofia idealista
alemã, feita por Engels e Marx, a “Teoria da Evolução das Espécies” de Darwin e o
expressionismo, na criação artística. Essa Nova Música dialogava com os autores da
conhecida Escola de Frankfurt, principalmente com Theodor W. Adorno, que escreveu em
torno de 40 artigos sobre arte e sociedade. Adorno fala que esta nova música é difícil de ser
“digerida” pela massa porque fala da própria miséria da sociedade, que sempre foi
manipulada pelas estruturas do poder e pelo discurso iluminista. Segundo Adorno e seus
colegas, esse discurso político e econômico produz bens culturais - filmes, livros, música
popular, programas de TV etc. – a fim de manipular e “alienar” os indivíduos.
A música de Schöenberg vem para denunciar essas estruturas burguesas que ainda não
foram quebradas. Seu objetivo ao criar o sistema dodecafônico era justamente de quebrar
também com a hierarquia da tonalidade, onde todas as notas tinham sua importância,
contestando assim a hierarquia de uma sociedade que persistia em continuar. O público,
então, começa a se distanciar da música clássica e principalmente, da nova música clássica, a
música contemporânea. Até hoje, a música contemporânea ainda só tem sua devida atenção
em um grupo restrito de apreciadores, bem como estudantes ou acadêmicos.
Além disso, John Cage com atitude e criatividade, também foi um desses compositores
da vanguarda que questionava por meio do som, o tempo em que estava vivendo o homem
contemporâneo. O compositor, assim como sua mulher, Merce Cunningham, eram artistas
9 Sistema musical onde todas as dozes notas são utilizadas em uma série estabelecida pelo compositor,
deslocando assim o eixo tensão-repouso do sistema tonal.
33
ligados ao anarquismo e aos movimentos de vanguarda da pós-segunda guerra. Ele ficou
famoso pela sua obra 4‟33‟‟, composta em 1952. A peça consiste em 4 minutos e 33 segundos
de música sem uma nota sequer. Pesquisador incansável do cotidiano, ele chegou a fazer uma
apresentação em Cambridge, Massachusets, de um evento que chamou de Harvard Square.
Colocou um piano em uma ilha de pedestres no centro da praça, e logo se formou uma
multidão. Cage acionou um cronômetro, fechou o piano e cruzou as mãos. A multidão
esperou. Depois de um certo tempo, determinado pela consulta ao I Ching – um livro chinês
que relaciona sabedoria e filosofia prática a números e a magia – ele abriu a tampa do teclado
e ficou de pé. O público aplaudiu enquanto Cage se curvava agradecendo. O que foi
apresentado foi nada mais do que o som de trânsito de Harvard Square, conversas casuais,
passos e outros ruídos.
Música clássica, jazz, rock, são estilos que depois irão se mesclando e formando novas
linguagens e expressões. Músicas de outros povos, originadas do oriente principalmente,
serão fontes de inspiração para muitos músicos, como Debussy, o próprio John Cage e até os
Beatles. Isso é o reflexo do próprio processo de globalização, que se intensificou após o
término da Guerra Fria, quando uma nova ordem multipolar ascendeu.
As fronteiras dos Estados, embora ainda existam, tornaram-se frágeis, o trânsito de
pessoas e culturas mais denso, e cada vez se torna mais difícil estabelecer e definir quais são
elementos externos e internos que agem dentro do Estado. A própria questão de identidade
cultural acaba se transformando, e muitas vezes, indivíduos ou grupos sociais buscam
soluções para essa crise não mais em ideologias, mas em fundamentalismos, sejam eles
religiosos, políticos ou econômicos.
Hoje parece haver uma crise do local diante do global, e a própria questão de identidade
cultural acaba se transformando. Muitas vezes indivíduos ou grupos sociais buscam soluções
impositivas para reforçar seu espaço dentro do sistema. Outros buscam, por meio das artes,
reforçar suas raízes culturais, e assim, renovar e recriar o espaço onde forças externas e
globais atuam por vezes agressivamente. É o que vem acontecendo na periferia da América
Latina, onde, as populações mais pobres começaram através de sua arte, de sua música, ou
mesmo de políticas públicas institucionalizadas pelos governos, a se reconhecerem, ou se
“universalizar” dentro de um sistema internacional, e projetarem para si a chance de mudar
sua realidade.
34
A música, neste sentido, parece voltar aos ideais estabelecidos pelos gregos, quando ela
existia para educar um povo. Assim, sua linguagem universal pode mudar a realidade de um
determinado povo, e também alcançar e atingir outros povos, estabelecendo laços culturais,
mesmo que sejam diferentes, como é o caso do hino da União Européia. A música então pode
unir, sem anular ou desprezar as diferenças, quando utilizada para um fim maior que
interesses político, ideológicos e fundamentalistas.
No seguinte capítulo, discutirei a importância desses projetos sociais dentro da América
Latina, levando em conta a ligação entre música e identidade. Um processo que tem se
tornado freqüente não só dentro do continente, mas fora também, onde grupos sociais ou
instituições culturais começam a enxergar que a música pode “despertar” uma determinada
comunidade para o caminho da mudança.
35
SEGUNDO CAPÍTULO
2. GLOBALIZAÇÃO, CULTURA E IDENTIDADE.
A globalização não é um fenômeno recente. Desde a criação das fronteiras nacionais, os
Estados nunca foram tão autônomos ou soberanos quanto pretendiam, pois nem sempre
controlaram os fluxos de dinheiro, pessoas ou mercadorias. Entretanto, uma das principais
características da pós-modernidade é que a movimentação de tais fluxos tem sido cada vez
mais intensa, e tem afetado consideravelmente não só as fronteiras nacionais e os Estados,
mas macros e micro regiões como certas localidades, pequenas cidades ou comunidades cujas
identidades culturais estão constantemente em contato com outros elementos vindos “de
fora”.
Como afirmei no primeiro capítulo, quando surge o Estado, cultura e política
estabelecem diálogos. Essa interação permitirá o desenvolvimento de uma cultura nacional
unificada. “A cultura é agora o meio partilhado necessário, o sangue vital, ou talvez, a
atmosfera partilhada mínima, apenas no interior da qual os membros de uma sociedade podem
respirar, sobreviver e produzir”, como disse o antropólogo Gellner em sua obra Nações e
Nacionalismos. (1983, p.37-38 apud HALL, 2006, p.59)
Através do desejo de alguns indivíduos de se unificarem e se identificarem como iguais
dentro de um sistema carregado de sentidos e significados, a nação e o nacionalismo surgem
como um discurso cultural construído pelos Estados. A identidade nacional, portanto, passa a
ser um elemento importante para o indivíduo, algo como parte de sua existência e
personalidade:
No mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos se constituem em uma
das principais fontes de identidade cultural. Ao nos definirmos, algumas vezes
dizemos que somos ingleses ou gauleses ou indianos ou jamaicanos, Obviamente,
ao fazer isso estamos falando de uma forma metafórica. Essas identidades não estão
literalmente impressas em nossos genes. Entretanto, nós efetivamente pensamos
nelas como se fossem parte de nossa natureza essencial. (HALL, 2006, p.49)
Entretanto, a partir do avanço da modernidade e da intensificação da globalização, os
indivíduos irão refletir uma crescente complexidade e a consciência de que eles não serão
36
somente autônomos dentro do Estado, mas um reflexo de estruturas e valores a partir de
novos diálogos contínuos com os mundos culturais “exteriores e as identidades que esses
mundos oferecem”. (HALL, 2006, p.11) À medida que áreas do globo são colocadas em
sobreposição umas às outras e há uma compressão do tempo-espaço cada vez maior, as
identidades acabam sendo “descentralizadas” em torno de eixos tradicionais nos quais elas
orbitavam, e vão se transformando virtualmente, pois elas afetam os indivíduos e seus
alicerces estáveis de estruturas culturais e políticas. O sujeito pós-moderno será
constantemente alterado pelos sistemas culturais com os quais trava contato. Ele não está livre
de sua individualidade estável e unificada, mas está se tornando uma possível identidade
fragmentada, composta não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes
contraditórias ou não-resolvidas. Quais são as consequências na atualidade, quando as
sociedades entram em contato com outras estruturas diferentes da suas?
A modernidade trouxe o aparecimento de uma nova reflexão por parte dos
indivíduos e sociedades ao conviver com tais transformações rápidas e contínuas. À
medida que o espaço se encolhe para se tornar uma aldeia global de
telecomunicações e uma espaçonave planetária de interdependências econômicas e
ecológicas – para usar apenas duas imagens familiares e cotidianas – e à medida em
que os horizontes temporais se encurtam até ao ponto em que o presente é tudo o
que existe, temos que aprender a lidar com um sentimento avassalador de
compreensão de nossos mundos espaciais e temporais”. (HARVEY, 1989, p.240
apud HALL, 2006, p.70)
Outra conseqüência, segundo HALL (2006, p.69), é que além de “haver uma
desintegração ou fragmentação resultados do processo de homogeneização cultural, as
identidades nacionais e „locais‟ estão sendo reforçadas pelas resistências à globalização, ou
então, estão adquirindo novas características – identidades híbridas – que passam a se alterar
ou somar novas culturas com as quais interagem, sem perder os traços culturais pelos quais
foram marcadas.”
Entretanto, no mundo atual, essa última tendência não acontece com mais freqüência,
pois parece haver mais uma resistência do “local” diante do “global”. Dois exemplos disso
são os discursos crescentes dos nacionalismos feitos tanto pela esquerda como pela direita na
Europa, e também, o fundamentalismo religioso nas etnias árabes. Há também uma crescente
fascinação pela diferença através da mercantilização da etnia.
Há juntamente com o impacto do “global”, um novo interesse pelo “local”. A
globalização (na forma de especialização flexível e da estratégia de criação de
“nichos” de mercado), na verdade, explora a diferenciação local. Assim, ao invés de
37
pensar no global como “substituindo” o local seria mais acurado pensar numa nova
articulação entre “global” e o “local”. (HALL, 2006, p.77)
Embora haja esse novo interesse pelo local, não se pode esquecer que a globalização
atua dentro de uma lógica de poder e diferenciações, ou seja, ela exerce contrastes ao redor do
globo entre as regiões e entre os estratos populacionais de dentro dessas regiões. Por isso, o
retorno às raízes culturais de uma determinada região desfavorecida pode fortalecer as
pessoas, ou o povo, ou ainda, a nação, como uma forma de resposta e resistência diante da
invasão de outras culturas dominantes, como aconteceu na época do Imperialismo.
Na América Latina, esta tendência é predominante. A ascensão de políticos de esquerda
cujo eleitorado representa a minoria indígena dentro do país, como o caso de Evo Morales na
Bolívia, mostra a tendência dos países do continente em voltar para suas raízes culturais como
uma forma de protesto diante da imposição dominante e vertical da globalização. Não só os
países sozinhos, mas o continente todo busca, através da formação de blocos como
MERCOSUL e UNASUL, criar uma identidade unificada, pois para haver integração
econômica e política de fato, é preciso criar diálogos e construir laços entre os diversos povos
que compõem a América Latina - algo um tanto complexo haja vista a riqueza e a diversidade
de identidades e culturas dentro do continente.
O processo é longo e está no começo. Ainda existem muitos obstáculos para se transpor
na integração dos países, pelo viés da cultura e educação. Entretanto, há um discurso por parte
de acadêmicos, artistas, educadores, e alguns políticos latino-americanos, que para resolver
determinados problemas no continente é preciso seguir um caminho alternativo, no qual as
soluções começam a vir “de dentro”, do próprio povo e de suas resoluções, e não mais em
modelos copiados provenientes das nações imperialistas. Como disse o educador alemão
Joachim Koellreutter, radicado há muito tempo no Brasil: “é necessário aprender a elevar-se
até o povo”. (AHARONIÁN, 2006, p.23, tradução nossa) Apesar de ainda haver importantes
influências exteriores, está começando a se criar no indivíduo latino-americano uma
consciência do que ele é e de seu potencial, e de como é possível transformar o meio em que
vive através de elementos de sua própria cultura e raiz.
A educação musical é um desses fortes elementos que os países do continente
encontraram como possível solução para transformar a vida de crianças e adultos que vivem
em áreas pobres e violentas.
38
Sempre tem sido necessária por parte do indivíduo, a tomada de consciência do
meio a que pertence, em todos seus aspectos. Hoje, na América Latina, essa
necessidade é mais que urgente e decisiva que nunca. Meio implica cultura, e
cultura implica música. A necessidade no indivíduo, finalmente, implica a
necessidade no educando. (AHARONIÁN, 2004, p.134)
Dentro desta perspectiva, projetos musicais e sociais irão atuar nessas áreas
extremamente precárias como um modelo alternativo para aumentar a auto-estima da
população, criar laços entre a comunidade, diminuir a marginalidade e a criminalidade, e
assim, quem sabe, alavancar o desenvolvimento da população. É imprescindível que a
educação em geral se leve em função do meio e se encontre a serviço deste, e não atue como
fator de separação.
Mas como uma educação musical pode conseguir transformar os indivíduos? E até que
ponto opera essa transformação? Há de fato uma melhoria na vida dos indivíduos, tanto
econômica e socialmente ao serem beneficiados por esses projetos? Ou são apenas mudanças
de caráter psicológico, abstratos e até subjetivos que perdem a relevância diante importância
dos indicadores econômicos que tanto a sociedade e os políticos prezam? Por que, por fim, a
arte como fator de mudança?
“E ocorre que a arte angustia. Curiosamente, um estudo da condição do artista revela
que a angústia é companheira inseparável deste, especialmente no caso do artista criador”
(AHARONIÁN, 2004, p.11) A angústia que o autor, educador e compositor uruguaio retrata,
é uma característica inerente dos verdadeiros artistas que sempre estão em busca de elementos
para construir mundos fantásticos e ilusórios, sem desconsiderar que eles apontam para
possibilidades de transformações e mudanças reais nas sociedades. Foi assim com Mozart,
Beethoven, Shostakovich, e tantos outros citados no primeiro capítulo. A educação por meio
da arte, portanto, instiga essa “tal angústia” nos indivíduos, pois permite ir além de sua
própria visão do que é possível, alarga a imaginação e assim os encoraja a olhar de outra
maneira para o mundo em que vivem, um mundo este não mais estático, mas passível de
transformações. É a partir daí que ocorre uma reforma social efetiva, quando os indivíduos
envolvidos enxergam a si mesmos como potenciais agentes de mudança no seus próprios
meios.
Essas reflexões não só acontecem dentro do continente, mas também fora dele, dentro
da arena internacional, como o já citado West-Eastern Divan Orchestra; e ONGs como a
39
fundação internacional “Playing For Change”10
que instaura pequenos conservatórios locais
em países pobres, como África e Índia, para a população tocar e aprender músicas de sua
comunidade e de outras também. Para confirmar essa tendência, desde 2006, o Instituto Itaú
Cultural de São Paulo em parceria com o Projeto AfroReggae, do Rio de Janeiro, realizam um
seminário internacional denominada “Antídoto – Mostra Internacional de Ações Culturais em
Zonas de Conflito”11
, no qual diversos projetos culturais são conhecidos demonstrando como
eles atuam para combater a violência causada por conflitos sociais, étnicos e religiosos em
áreas consideradas de risco.
2.2 - Educação Musical na América Latina: um meio de despertar de vários povos?
Em junho de 2000, no Palácio Nacional da Guatemala, durante um ato público e
político, apresentou-se um coro nada comum: quarenta crianças maias (pertencentes aos
quatros principais grupos da etnia: Kiché, kak’chiquel, mam y kékchí) acrescidos de um grupo
de quinze adolescentes mestiços e monolíngües do castelhano entoaram o Hino Nacional da
Guatemala em cinco idiomas. O Coro Intercultural realizou seu debut diante do assombro do
corpo diplomático, dos ministros do Estado, da audiência geral e do próprio Presidente da
República. Seguidamente, interpretaram canções tradicionais do país - usualmente cantadas só
em castelhano - nos idiomas próprios de cada um dos grupos representados. O educador Ethel
Batres comenta sobre esta experiência:
Há vinte anos, dentro do conflito armado na Guatemala, isso não seria possível.
Hoje com dificuldade, porém com uma consciência diferente, a nação parece
interessada em se descobrir, em se auto-conhecer, em se revelar, e assimilar os
rostos dos outros e projetar-se em imagens múltiplas que os permitem identificar-se
como esse povo multilíngüe, pluricultural e multiétnico que tem tentado se definir
há muito tempo, embora na cotidianidade, haja ainda uma separação entre
hegemonia e marginalização. (BATRES, 2004, p.67, tradução nossa)
Na América Latina – onde não existe um só discurso dominante ou dominado - a
educação passa a ter uma responsabilidade fundamental para a manutenção das diversas
etnias, línguas e culturas, uma vez que a globalização geralmente cria um mecanismo de
equalização, que, além disso, tenta “camuflar” as desigualdades sociais que ela mesmo
10
PLAYING FOR CHANGE. Disponível em: <www.playingforchange.org> . Acesso em: 23/04/2010 11
ANTÍDOTO. Disponível em: <www.itaucultural.org.br/antidoto2010/idem> . Acesso em: 30/04/2010.
40
produz. Nos países em desenvolvimento, onde os conflitos sociais e as contradições são
maiores, a globalização criou uma visão competitiva na educação, de quem legitima o
conhecimento, de quem fala o que é “certo ou errado”. As forças sociais não são abstrações,
mas são partes do dia-a-dia. Sonhos, esperanças e oportunidades podem ser destruídos se as
crianças e jovens forem desencorajados diariamente por uma visão mundana unilateral,
opressora e dominante que está presente mesmo no discurso educativo atual. Para haver
mudanças, educadores de todos os países da América Latina concordam que é preciso haver
uma política educacional que seja resultado do encorajamento dos grupos dominados em fazer
seu próprio conhecimento legítimo, e assim, defender e aumentar as possibilidades de
mudança social.
A arte, portanto, já não pode ser mais um objeto exclusivo de uma elite privilegiada,
mas um instrumento que enlaça todos os setores da sociedade, contribuindo para dar forma a
eles. Uma vez que o processo de globalização - através dos sistemas de comunicação e
tecnologia - propõe uma integração sócio-cultural que se estende por todo mundo, a arte passa
a ter um caráter transformador e também funcional, e não meramente decorativo, como
afirmou Koellreutter (2004, p.28, tradução nossa): “Na nossa sociedade, o conceito de „arte
representativa‟, como objeto de ornamentação de uma classe privilegiada, como um símbolo
de status da vida privada de uma elite social intocada, já não é mais relevante”. A arte como
função social alcança setores da sociedade que antes não haviam sido tocados para um senso
de participação e engajamento políticos, pois os indivíduos ao criarem em conjunto estão
conectados consigo mesmos e envolvidos com o ambiente em que produzem. Podem então
começar a mudar interiormente suas vidas, desenvolvendo e melhorando sua auto-estima, e
depois promovendo mudanças em seu ambiente social.
A educação musical é uma ferramenta artística eficaz para a mudança social, pois
envolve o ser humano e deixa marcas em sua vida cotidiana. Através da superação de
obstáculos musicais, os estudantes passam a desenvolver mais auto-estima, confiança e
ampliam seu próprio conceito daquilo que são capazes de fazer. Como se um novo mundo
cheio de possibilidades fosse aberto diante de seus olhos, sem que se esqueçam da realidade
onde vivem. Através do ensino da música, crianças e os jovens aprendem novas maneiras de
escutar e apreciar outras manifestações artísticas que não sejam aquelas que a cultura de
massa impõe, e que inibe o pensamento e a consciência de sua responsabilidade perante a
sociedade em que vive.
41
Os governos, sabedores do poder de transformação embutido no universo cultural
(particularmente o musical), procuram utilizar esse potencial e seus resultados para legitimar
outras políticas públicas ou mesmo magnificar a imagem internacional do país.
Desde a infância e a adolescência é preciso criar um senso estético do que é arte para o
bem sociedade ou do que é arte para manipular, como os gregos faziam na Grécia Antiga.
Sem uma educação voltada para o desenvolvimento de cidadãos conscientes, não há povo que
sobreviva dentro da lógica globalizante do sistema internacional.
Mais que do ensinar, trata-se de considerar o que nunca aprendemos, por não
figurar nos programas oficiais educacionais. É permitir que os sons próprios de
cada comunidade, povo e região continuem sendo escutados. É dar a oportunidade
para cada aldeia silenciosa que mude de condição. É abrir nossos ouvidos ao
interior de uma nação, em um momento em que pareceria que nos
descontextualizamos do mundo globalizado. É a oportunidade para que floreça a
música que nunca foi gravada, ou a que não obtivera um premio Grammy ( e por
sorte, jamais o terá), a que produz de modo artesanal e não é necessariamente
espetacular, porém está presente no ritual, no costume, no cotidiano e na resistência
de mais de 500 anos, no silêncio que não conseguiu se impor. Esta é a construção
que esperamos. Mas também, a que permita articular o enunciado com o resto do
país, do mundo e vice-versa. Que nos encontremos no tempo e espaço atuais e nos
remita à aproximação entre culturas e propostas diferentes.” (BATRES, 2004, p.
70, tradução nossa)
Essa consciência da importância da educação musical dentro do continente foi sendo
construída ao longo do tempo, não é um fruto deliberado do presente. Ela começou a surgir
com o movimento renovador derivado da “escola nova” iniciado na Europa no começo do
século XX, e que chegou ao continente nos anos de 1940 e 1950, principalmente através de
um número considerável de músicos europeus exilados da Segunda Guerra Mundial, os quais
se converteram em representantes e propulsores na região de alguns métodos de educação
musical mais relevante do mundo ocidental (Dalcroze, Off, Kodály, Willems e Suzuki).
Foram eles que instauraram os primeiros conservatórios nos países do continente, e embora
estivessem ligados às influências européias, eles foram os pioneiros ao propagar a idéia de
que o ensino da música deveria ser tirado do “pedestal” e ser colocado no centro da
comunidade; deveria ser acessível a todos, contribuindo com a formação integral do ser
humano. Também os movimentos de vanguarda e nacionalista nas artes daquela época,
auxiliaram neste processo, e personalidades como Villa-Lobos e Mário de Andrade, ilustres
exemplos brasileiros, e Carlos Guastavino, compositor argentino, entre tantos outros que
mostravam por meio da música ou de suas idéias, a valorização e a importância do
42
conhecimento da cultura popular pelo próprio povo, uma vez que este estava sempre de
“olhos” voltados para a Europa.
No começo do século XXI, essa perspectiva parece crescer cada vez mais. Em todo o
continente latino-americano se vive um renascimento da cultura popular, que como disse
acima, é um movimento que está ligado às crescentes e complexas seqüelas da globalização,
como uma reação “intuitiva” de defesa frente à realidade atual. Os educadores e artistas
latino-americanos procuram enfatizar a criatividade sem restringir a participação da
consciência, enfocar os aspectos inerentes às situações multi ou pluriculturais típicas da
sociedade atual, sem deixar de lado o desenvolvimento da identidade.
O Fórum Latino-americano de Educação Musical, o FLADEM, é um exemplo dessa
vontade. Criado em 19 de janeiro de 1995, é uma rede formada por todos os países da
América Latina e do Caribe, tendo como um de seus princípios o resgate da cultura e
identidade latino-americana por meio da educação musical:
A educação musical é uma portadora de elementos fundamentais da cultura dos
diferentes povos latino-americanos, de modo que sua atenção é uma prioridade em
termos de confirmação das identidades locais e, por extensão, da consolidação do
caráter identitário da América Latina12
. (FLADEM, 2010, tradução nossa)
Assim como surgiu a educação musical nos anos de 1950, a “integração musical” entre
os países do continente deu seus primeiros passos em 1960, quando começaram a organizar
dentro da região, estudos, congressos e organismos dirigidos por instituições internacionais
como INTEM (Instituto Interamericano de Educação Musical) e o CIDEM (Centro
Interamericano de Educação Musical), ambos os projetos da OEA (Organização dos Estados
Americanos), e que tinham parcerias com algumas instituições acadêmicas do Chile e
Argentina; e também o Projeto de Desenvolvimento para América Latina ligado à UNESCO.
Até a década de 1970, havia um grande engajamento dos educadores musicais latino-
americanos e de tais organismos internacionais em estabelecer políticas educacionais e
culturais dentro do continente nos cursos promovidos por esses organismos e que eram
patrocinados pela OEA. Educadores e estudantes se reuniam para discutir e implementar
programas e planos de educação musical a serem seguidos pelos países latino-americanos e
12
FORO LATINOAMERICANO DE EDUCACIÓN MUSICAL. Disponível em: < www.fladem.org.ar/faq.
php?cat_id=4>. Acesso em: 02/05/2010.
43
também caribenhos. Entretanto, após a instauração dos governos ditatoriais no continente,
esses projetos encontraram certos obstáculos que não permitiram a suas completas
realizações, uma vez que iam por vezes de encontro à política dos militares. As vicissitudes
sociais não detiveram, entretanto, os processos de transformações e, atualmente, longe do
paternalismo pedagógico europeu, a América Latina tenta retomar e acelerar esse processo
através de projetos musicais na periferia do continente ou em áreas de conflitos como favelas,
sempre buscando metodologias próprias, de uma maneira criativa e por vezes, deixando de
lado alguns elementos do “tradicionalismo” dos europeus que aqui chegaram.
Tais metodologias são elaboradas a partir de elementos do próprio povo, como o resgate
da música popular e folclórica, e também dos instrumentos regionais. Um exemplo é a criação
de uma orquestra de harpas paraguaias tocadas pelas crianças do projeto “Sonidos de La
Tierra”13
, no Paraguai. Outra forma de metodologia muito utilizada é o ensino pela tradição
oral, através do relato de histórias do próprio povo que dá a possibilidade de um contato mais
prático e direto com as experiências culturais. Muito da música folclórica latino-americana
vem dessa tradição, pois não tiveram uma escritura musical formal. Elas sobreviveram até os
dias de hoje através de gerações e gerações de artistas que simplesmente escutavam e
passavam adiante.
Infelizmente, pouco dessa música é conhecida pela sua própria população, pois ela
encontra dificuldade no “nicho” globalizante das grandes gravadoras comerciais. Para o
educador urugauio Aharonián, o aprendizado da música popular de cada país e seu
conhecimento pelos outros países vizinhos do continente é uma forma de combater tais
políticas denominadas por ele como neoliberais e imperialistas, uma vez que todo sistema de
significados da música se direciona aos aspectos sócio-culturais de uma determinada
comunidade em particular:
O trabalho educativo pode romper o cerco imperial, esse cerco que impede que algo
vindo do Peru seja conhecido no Brasil, salvo quando é lançado pelos centros
nortenhos de poder ou desde sua circunscrição meridional. E pode lograr que o
jovem latino-americano não comece a sentir parte de seu continente, respeito ao
qual o sistema educativo todo se empenha em aliená-lo. Na realidade, como pode
observar, trata-se de uma questão ética. (AHARONIÁN, 2006, p.51)
De fato a globalização não trouxe muitos avanços no que se refere aos termos de
relações pessoais ou coletivas, pois, num ambiente medido pela velocidade e pela
13
SONIDOS DE LA TIERRA. Disponivel em: <www.sonidosdelatierra.org.py>. Acesso em 15/05/2010.
44
superficialidade, fica muito difícil haver um aprofundamento das questões sociais. As
bibliotecas do mundo inteiro estão nas classes, na casa, na Internet; as produções culturais
internacionais estão à nossa disposição. Entretanto, temos dificuldades em nos organizar para
compreender o ponto de vista do outro e para participar de ações comunitárias de uma
maneira profunda e instigadora. Por isso, nunca foi tão necessário, como hoje, criar projetos
que resgatem atividades práticas artísticas e culturais. A oportunidade para a expressão
individual e coletiva servirá de contraponto às atividades de caráter eminentemente
tecnológico, contribuindo para o equilíbrio das pessoas e dos grupos sociais, favorecendo o
sentido da convivência. Por isso, no começo deste século, é primordial que se tenha uma
profunda reflexão do papel da arte, em geral, e especificamente o papel da música na
formação do seres humanos e nas relações entre eles.
A integração política e econômica da América Latina não acontecerá de fato se os
diferentes povos do continente não se auto-educarem para uma percepção de si mesmo e do
continente como um todo. Antes, é preciso que a educação dentro do continente, quer ela seja
musical quer seja artística ou tradicional, seja dirigida para um futuro onde os indivíduos
tenham uma visão ampla de todas as estruturas envolvidas dentro de sua sociedade e de fora
dela. Quando conceder-lhes a liberdade, algo que é de direito deles, de escolher idéias
possíveis para mudar seu próprio mundo. “Antes de nada devemos tratar de ajudar os alunos a
aprender como serem homens com liberdade. Liberdade significa responsabilidade, por isso a
maior parte dos homens a temem”. (AHARONIÁN, 2006, p.36)
A modernidade elevou a liberdade num nível quantitativo. Quanto mais tiver, melhor,
mais livre, sendo que na verdade, ela não se mede por isso, mas em um nível qualitativo: o
quanto eu sou livre está mais relacionado com o fato de o porquê, para quê e como. Está
muito mais relacionado com interações entre um indivíduo com ele mesmo e com o mundo. O
homem não só se caracteriza pelos lucros ou quantias que ele produz, mas também pelo que
ele representa dentro de um sistema no qual está inserido. Todos os indivíduos têm uma
participação dentro de uma sociedade, e se articulam, não importa de qual maneira, se mais ou
menos, com os demais membros integrantes. Então, todos são livres se aceitarem o fato de
que quaisquer que sejam as circunstâncias, se se considerarem como tal, representam um
papel dentro da sociedade, pois estão inseridos numa cultura da qual fazem parte,
invariavelmente. É dela que muitos cidadãos latino-americanos enxergam a mudança que
tanto o continente espera.
45
É dentro deste contexto e princípios que nascerá um dos projetos musicais e sociais
mais bem-sucedidos, o FESNOJIV (Fundação do Estado para o Sistema Nacional das
Orquestras Juvenis e Infantis da Venezuela), um programa que tem revolucionado a educação
musical, a maneira de fazer política social e também a música, mostrando pelo seu sucesso e
resultados, que é possível, através de dedicação a música e a comunidade, “criar” a beleza
onde só há motivos para não fazê-la.
46
TERCEIRO CAPÍTULO
3. “O MILAGRE VENEZUELANO”: UM NOVO PRODUTO DE
EXPORTAÇÃO?
O que geralmente vem à mente quando se fala em Venezuela? Petróleo, Hugo Chávez,
discurso anti-yanke, pobreza... O que poucos sabem é que dentro deste país existe um dos
programas mais bem-sucedidos em música e inclusão social. É o FESNOJIV (Fundacíon del
Estado para el Sistema Nacional de las Orquestras Juveniles e Infantiles de Venezuela),
também denominado de El Sistema. Fundado pelo economista, músico e político José
Antonio de Abreu em 1975, há mais de 30 anos o surpreendente projeto consiste no
aprendizado coletivo da música por crianças e adolescentes em orquestras sinfônicas e coros
espalhados em todo o país, localizados em áreas de extrema pobreza e violência, como os
conhecidos barrios venezuelanos, os equivalentes às favelas brasileiras. Segundo as
estatísticas oficiais, provavelmente maquiadas, nos barrios há 130 assassinatos para cada 100
000 pessoas (o índice no Rio de Janeiro, por exemplo, é de 34 para cada 100 000)14
.
O método de ensino do programa tem revolucionado a educação musical, e não só isso:
o alcance social que ele atinge tem levado à reflexão da utilização de novas meios de
implementar políticas públicas e culturais para transformar o espaço vital de uma
comunidade. Através de objetivos artísticos, o projeto alcança um objetivo social, muda a
vida dos indivíduos, das famílias e da comunidade carente, uma vez que todos através da
música estabelecem diálogos e troca de experiências.
Atualmente, o FESNOJIV atende mais de 300.000 crianças. Desde a sua fundação, já
atendeu mais de 450.000 crianças, e hoje atua como um “modelo exportador” - através de um
trabalho em conjunto com a UNESCO - para diversos países desde América Latina:
O dinâmico e eficiente método de ensino musical realizado e comprovado pela
Orquestra Jovem Nacional da Venezuela tem despertado interesse e admiração em
alguns países latino-americanos. Organismos Internacionais como OEA e
14
MARTINS, Sérgio. Salvos pela Música: o milagre venezuelano. Revista VEJA. Caracas, 22/07/2007.
Disponível em: <www.planetasustentavel.abril.com.br/noticia/cultura/conteudo_485973.shtml> Acesso em:
18/05/2010.
47
UNESCO têm recomendado uma troca de colaboração e experiências entre
Venezuela e outros países do continente. Para isto, a Orquestra Jovem Nacional da
Venezuela, através do governo venezuelano - Departamento das Relações
Exteriores e Departamento do Planejamento e Desenvolvimento – está coordenando
o projeto Orquestra Juvenil da America Latina e do Caribe criado pela OEA.
(HOLLINGER, 2005, p.148)
O projeto, além de criar um novo modelo de ensino musical e inclusão social para a
América Latina e alhures, está estabelecendo dentro do continente uma integração entre os
países por outros meios diferentes dos tradicionais, como o Estado, a economia ou a política.
Organismos Internacionais reconhecem a importância do programa como “algo único, digno
de ser implementado em todas as nações do mundo, e principalmente, naqueles países que
buscam diminuir seus níveis de pobreza, marginalidade e exclusão de sua população infantil.”
(FESNOJIV, 2010)15
O El Sistema inspirou a OEA a promover a criação da Orquestra Juvenil das Américas
em 200116
, e o Programa de Orquestra para Jovens em Risco no Caribe em 2009, que
recentemente fez um concerto em Porto Príncipe em homenagem às vítimas do terremoto
ocorrido em janeiro de 2010, conforme a matéria do jornal o ESTADO DE SÃO PAULO17
.
O programa foi fundado pelo Secretário Geral da OEA, José Miguel Insulza, durante a Sessão
Especial Conjunta do Conselho Permanente e da Comissão Executiva do Conselho
Interamericano para o Desenvolvimento Integral, manifestando homenagens ao reconhecer os
logros do Maestro Abreu e sua iniciativa. Como disse Insulza, na conferência que lançou o
projeto18
:
A semente que José Abre plantou há mais de 30 anos e que a nossa organização se
orgulha de ter ajudado a cultivar em sua infância, converteu-se no Sistema Nacional
de Orquestras Juvenis e Infantis da Venezuela, que agora tem mais de um quarto de
milhão de jovens músicos e mais de 200 orquestras. E não só se espalhou pela
Venezuela, mas em todo o continente e do mundo. (ESCALANTE, 2009)
Durante seu discurso, o secretário-geral anunciou a iniciativa promovida pelo
Departamento de Assuntos Culturais da OEA, apoiado pelo Governo da China e pelo Fundo
15
FUNDACIÓN del Estado para el Sistema Nacional de las Orquestras Juveniles e Infantiles de Venezuela.
Disponível em: <http://fesnojiv.gob.ve/es/el-sistema-como-modelo.html>. Acesso em: 23/05/2010. 16
YOA Orchestra of the Américas. Disponível em: <http://yoa.org/>. Acesso em: 24/05/2010. 17
SPIGLIATTI, Solange. No Haiti, ONG brasileira faz concerto para vítimas. O Estado de S. Paulo, São
Paulo, 05/02/2010. Disponível em <http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,no-haiti-ong-brasileira-
faz-concerto-para-vitimas,506829,0.htm> Acesso em: 24/05/2010. 18
ESCALANTE, Hector. OEA homenajeó el Sistema Nacional de Orquestas Juveniles e Infantiles de
Venezuela. Radio Mundial, Caracas, 08/04/2009. Disponível em: <http://www.radiomundial.com.ve/yvke/
noticia.php?22591>. Acesso em: 24/05/2010.
48
Especial Multilateral do Conselho Interamericano de Desenvolvimento Integral (FEMCIDI).
Também discursou que a orquestra não é um feito social bem-sucedido, mas um exemplo de
organismo democrático:
A música orquestral é essencialmente um processo participativo. Sem discursos ou
tratados acadêmicos, mas apenas através de sua execução, a orquestra exige que
seus membros possam trabalhar em conjunto e assumir a responsabilidade
individual de um projeto comum. (ESCALANTE, 2009)
Influenciadas pelo projeto, nasceram outras formações como a Sinfônica Juvenil
Iberoamericana, a qual fez seu debut em 1997 com o apoio do convênio Andrés Bello-
UNESCO, e dentro do VII Conferência Iberoamericana de Chefe de Estados. Também
inspirado no El Sistema, a CAF (Corporação Andina de Fomento), departamento financeiro
da Comunidade Andina (Bolívia, Colômbia, Equador y Peru), impulsionou nesta região um
sistema de coros juvenis. Um dos objetivos para a formação musical da CAF19
está descrito
nas seguintes linhas, comprovando a importância da música na sociedade latino-americana:
A música é, por sua capacidade de potencializar as aptidões intelectuais, físicas,
emocionais, espirituais e expressivas do indivíduo, universamente reconhecida com
uma arte ideal para educar. Com o Movimento Musical Andino, orientado ao
resgate social e ao fortalecimento da cultura cidadã, o CAF contribui a formação
integral de crianças e jovens, em uma forma que exalta os valores mais nobres dos
indivíduos e incide o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários,
articulando o tecido social de uma região caracterizada por fraturas e desigualdades.
Neste âmbito, o programa se centra na formação de crianças, jovens e docentes nas
áreas orquestrais e canto-coral, assim como na capacitação de maestro luthier.
Mas sua influência vai além do continente. Membros do projeto, destacando seu
fundador, o maestro Abreu, atuam como uma espécie de “consultoria” para criação de
projetos musicais e de inclusão social em diferentes países desde a África aos Estados Unidos,
Canadá, Espanha e Reino Unido, que buscam implementá-lo em seus territórios.
Dr. Abreu afirmou que depois do sucesso na Venezuela, programas inspirados no
El Sistema começaram a surgir na Espanha, Portugal, Egito, Kênia e África do Sul.
O sistema na África do Sul, embora a caminho, tem planos de que Dr. Abreu
“inaugure” o programa no país. De acordo com pesquisas recentes, existem 23
países pelo mundo que estão iniciando programas de educação musical similar. (HOLLINGER, 2005.p. 148.)
Também no site do programa, fica comprovada a sua influência e como o El Sistema
tem se tornado um “modelo de exportação”20
:
19
CORPORACIÓN ANDINA DE FOMENTO. Disponível em: <http://www.caf.com/ view/index.asp?pageMS
=34371&ms=17>. Acesso em: 23/05/2010. 20
EL SISTEMA COMO MODELO. Disponível em:< http://fesnojiv.gob.ve/es/el-sistema-como-modelo.html>.
Acesso em: 22/05/2010.
49
Em mais de 25 países têm sido criados programas de educação musical que seguem
o modelo venezuelano. Entre estes países se encontram: Argentina, Austrália,
Bolívia, Brasil, Canadá (Calgary, Moncton, Ottawa), Colômbia, Coréia, Costa Rica,
Cuba, Chile, Equador, El Salvador, Escócia, Estados Unidos (Avon, Baltimore,
Birmingham, Charleston, Chicago, Durham, Fort Wayne, Hampton, Hilton Head
Island, Jackson, Los Ángeles, Nueva York, North Oakland, Pasadena, San Antonio,
San Diego), Guatemala, Honduras, Inglaterra (Lambeth, Liverpool, Norwich,
Islington), Jamaica, Índia, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Portugal,
Porto Rico, República Dominicana, Trindade e Tobago, e Uruguai. (FESNOJIV,
2010)
Como mostra o mapa abaixo:
El Sistema como Modelo
FESNOJIV21
Outra prova de sua importância e reconhecimento na sociedade internacional é a partir
dos convênios entre instituições de países como Estados Unidos, ironicamente o país atacado
politicamente pelo governo chavista. Recentemente, o renomado conservatório New England
Conservatory de Boston realizou um convênio com a FESNOJIV no qual cria uma rede de
apoio denominada El Sistema USA, com a finalidade de propagar vasta informação sobre a
filosofia e metodologia empregada pelo El Sistema. O programa consiste numa pós-
21
EL SISTEMA COMO MODELO. Disponível em:< http://fesnojiv.gob.ve/es/el-sistema-como-modelo.html>.
Acesso em: 22/05/2010.
50
graduação para jovens e talentosos músicos que queiram se converter em embaixadores do El
Sistema nos Estados Unidos e estão comprometidos com o desenvolvimento em suas
comunidades.
Esse convênio já tinha dados seus primeiros passos em 2005, quando o reitor da
universidade, Mark Churchill, assinou um acordo com o programa e também como o Centro
Interamericano de Ação Social através da Música - fundação criada pela FESNOJIV com o
auxílio do Instituto Nacional de Moradia na Venezuela e do Banco Interamericano de
Desenvolvimento - para trazer os melhores estudantes do New England à faculdade de
Caracas para realização de oficinas, e levar os venezuelanos para Boston. Durante a visita, os
membros do conservatório americano ficaram atônitos não somente com a habilidade técnica
dos músicos tão jovens, como crianças de oito anos, mas também pela maneira que o
programa constrói melhores cidadãos.
Sarah Koenig-Plonskier, 17 anos, violista, disse que estava mais que convencida22
: “Isto
é algo que os EUA precisam – um programa público que funciona de seis a sete dias por
semana. Em vez de situações onde eles são tentados às coisas ruins, esta é uma grande saída
para as crianças, mesmo que no fim eles não tornem músicos profissionais”. (LAKSHMAN,
2005, tradução nossa). Benjamin Zander, regente da Boston Philharmonic and the New
England Conservatory Youth Philharmonic, reiterou as palavras da estudante Sara Koening-
Plonskier: “Todos os políticos americanos deveriam visitar o país e conhecer o projeto já que
estão obrigando ensino musical em escolas publicas. (LAKSHMAN, 2005) Está aí uma forma
de soft power talvez ainda pouco explorada pelo governo chavista, na atual Venezuela, mas
que poderia ser bastante eficaz para minorar a imagem às vezes arrivista demonstrada pelo
país, em reuniões e fóruns internacionais.
Não só instituições e governos reconhecem o papel da FESNOJIV. Mas também artistas
com grande prestígio internacional o enxergam como “o grande futuro da música clássica nos
próximos anos”, como disse o regente Sir Simon Rattle, que já trabalhou com a orquestra
principal do projeto, a Sinfónica de la Juventud Venezolana Simón Bolívar, SJVSB: “Se
22
LAKSHMANAN, Indira A. R. For Venezuela's poor, music opens doors Classical program transforms
lives. The Boston Globe, Boston, 22/06/2005. Disponível em: <http://www.boston.com/news/world/
latinamerica/articles/2005/06/22/for_venezuelas_poor_music_opens_ />. Acesso em 22/05/2010.
51
alguém perguntar a mim onde algo de importante está acontecendo para o futuro da música
clássica, eu simplesmente diria Venezuela”. (HOLLINGER, 2005, p.138)
Outros grandes artistas também trabalharam com a orquestra como, Sung Kwak,
Benjamin Zander, John Williams, Lorin Maazel, Krzysztof Penderecki, Martha Argerich,
Sergio Daniel Tiempo, Kirill Gernstein, Emmanuel Ax, Gabriela Montero, Jian Wang e Juan
Diego Flórez e por fim Claudio Abbado, que escreveu uma carta quando visitou a orquestra
em 2006:
O sistema de Abreu organiza todas as etapas do aprendizado musical, desde a base
até os cursos de altos níveis. Isto é feito através das unidades de todo o país em
todas as escolas e mesmo para crianças com deficiências físicas. As duas coisas que
mais me impressionaram foram o entusiasmo e a energia que eles têm. Estes jovens
músicos sabem que eles são privilegiados porque têm um objetivo claro que nasce
do amor coletivo pela música e da alegria de fazê-la em conjunto. (HOLLINGER,
2005, p.140)
A orquestra já ganhou prêmios e reconhecimentos de diversos países e organizações
internacionais desde 199323
. Desde 1998, a orquestra já tocou em lugares como Inglaterra,
França, Itália, e na Alemanha. Em 2002, a história da orquestra foi contada no documentário
Tocar y Luchar – o lema do projeto - realizado pelo cineasta venezuelano Alberto Arvelo, que
foi fruto também do El Sistema no estado de Mérida. Em 2002 foi matéria no famoso e
premiado programa 60 minutes24
da CBS americana. José Abreu também recebeu distintas
honrarias e títulos: em 1998 a UNESCO concedeu-lhe o título de Embaixador da Paz, e em
2001, o Right Livelihood Award25
.
O grande expoente do programa é Gustavo Dudamel, de apenas 31 anos e considerado
como um dos mais talentosos regentes de sua época. Já ganhou prêmios na Alemanha e regeu
importantes orquestras como a Filarmônica de Berlim, Filarmônica de Israel e Filarmônica de
Viena. Em outubro de 2009, recebeu o posto de diretor artístico da Filarmônica de Los
Angeles. Também foi tema na reportagem 60 minutes em 2008. Em maio de 2009, a revista
Time o considerou como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo; ganhou o “Premio
23
RECONECIMENTOS. Disponível em: <http://www.fesnojiv.gob.ve/es/reconocimientos.html>. Acesso em:
25/05/2010/. Este link contém todas as premiações recebidas pelo maestro e seu projeto até a realização deste
trabalho. 24
JOSE ANTONIO ABREU. Disponível em: <http://fesnojiv.gob.ve/es/jose-antonio-abreu.html>. Acesso em:
26/05/2010. 25
Esta premiação é considerada como uma alternativa semelhante ao Nobel, e junto a ela, vem considerável
reconhecimento e prêmio em dinheiro.
52
de Latinidad” concedido pelos estados membros da organização internacional Unión Latina,26
por sua propagação da cultura e música latino-americana. Além de premiações concedidas por
outros países como Inglaterra e Canadá27
. Outro exemplo de sucesso é o contrabaixista
Edicson Ruiz, que aos 17 anos tornou-se o mais jovem instrumentista a adquirir um posto na
tradicional e conceituada Sinfônica de Berlim, assim como se tornou o primeiro músico
latino-americano a entrar na difícil instituição. A sua prova deixou surpresa a exigente banca,
deixando todos assombrados com sua técnica e musicalidade.
Como se percebe, há um fenômeno venezuelano acontecendo e muitos o desconhecem,
inclusive artistas e músicos da América Latina. A grande mídia não veicula nos principais
meios de comunicação, pois as reportagens sobre política e economia acabam de fato
ocultando o El Sistema e não propagando seus sucessos.
Apesar da divulgação ainda ser pouca, o El Sistema sobrevive e continua seguindo em
frente. Constantemente investe recursos na implementação de novos projetos para continuar o
sucesso que alcançou; além do que, eles propagam seus esforços através de jornais, rádios e
televisões locais, sem contar os inúmeros concertos que são dados nas comunidades. Isto faz
as pessoas criarem interesse pelo projeto.
Crescimento e entusiasmo têm sido parte do modo que se desenvolve o El Sistema
desde o começo, pois tem demonstrado para o mundo que dentro de uma realidade miserável
e violenta é possível encontrar beleza: a beleza da música, e em altos padrões artísticos, o que
faria um europeu desconfiar se não visse os resultados pessoalmente. Ele comprova também a
possibilidade, através da música, do resgate de identidade, da estima e da cultura das
comunidades periféricas que são os “lixos sujos do mundo moderno globalizante”. Como está
indicado na filosofia da orquestra28
:
As crianças se tornam músicos que oferecem a seu país novas possibilidades de
superação e vitalidade. Eles simbolizam um esforço que se perdura durante o tempo, e
se estenda a outras áreas da atividade cultural, que é reconhecido como o „Milagre
Venezuelano‟. (...) No passado, a missão da arte foi um assunto das minorias para as
minorias, depois das minorias para as maiorias; agora é das maiorias para as maiorias,
e constitui um elemento relevante na formação do indivíduo que o permite inserí-lo
na sociedade de maneira produtiva. (FESNOJIV, 2010)
26
UNIÓN LATINA. Disponível em: < http://www.unilat.org/SG/index.es.asp>. Acesso em: 23/05/2010. 27
GUSTAVO DUDAMEL. Disponível em: <www.gustavodudamel.com/>. Acesso em: 23/05/2010. 28
MISÍON Y VISION. Disponível em: <http://fesnojiv.gob.ve/es/mision-y-vision/288-filosofia.html>. Acesso
em: 25/05/2010.
53
3.2 - El Sistema: como criar sons que transpõem barreiras.
O crescimento econômico dentro da América Latina e a instalação da democracia
promoveram uma maior participação dos governos na economia global, redução da pobreza e
o fortalecimento das instituições democráticas. Entretanto, os índices e indicadores sociais
ainda são preocupantes, uma vez que a distribuição de renda da região é uma das mais
desiguais do mundo, afetando 40% do total da população. (PILOTTI, 1999, p.4). Embora nem
sempre reconhecido pelas classes políticas, crianças e jovens estão no centro desde drama
sócio-político contemporâneo, uma vez que a exclusão afeta os setores mais pobres da
sociedade.
A América Latina tem sido caracterizada como o lugar onde a maioria da região é pobre
e “a maioria dos pobres são crianças”. (PILOTTI, 1999, p.5) Os índices comprovam isso:
18% das crianças constituem 42% da população total e 43% das pessoas vivem abaixo da
linha da pobreza. É estimado que 60% das crianças abaixo de 15 anos vivem na pobreza, e
que um terço dessas crianças vivem nas 20% habitações consideradas mais pobres. (UNICEF,
2002 apud PILOTTI, 1999, p.4) Outro dado é do Instituo Interamericano del Niño da OEA:
22% das crianças latino-americanas se encontram em pobreza crítica29
.
Graças à rápida urbanização, essas crianças marginalizadas são mais visíveis nas ruas
das grandes cidades do continente. Hoje, tanto pobreza como infância estão concentrados em
áreas urbanas. Segundo o pesquisador e educador Francisco Pilotti, 60% da pobreza do
continente estão nas grandes cidades, assim como 75% das crianças pobres também. Esses
números comprovam a existência e a preocupação por parte da sociedade em relação a temas
como trabalho infantil, exploração social, drogas e violência infantil. Nota-se que, nas grandes
áreas urbanas de países como Brasil e Colômbia, a violência é agora a principal causa de
morte no grupo etário de 14-17 anos, que também é a faixa etária onde existe mais desistência
escolar ou desemprego. (Pilotti, 1999. p.4)
Como disse Pilotti, é preciso haver políticas públicas e sociais adequadas para a
erradicação da pobreza dentro do continente:
29
INSTITUTO INTERAMERICANO DEL NIÑO. Disponível em: <http://www.iin.oea.org/IIN/ index.shtml>.
Acesso em 28/05/2010.
54
O grande desafio da América Latina para o futuro será como administrará para
converter a potencial colisão entre dois processos contraditórios: a exclusão
social e econômica promovida pelo modelo econômico neoliberal, e a ampliação
de inclusão política incentivada pelos sistemas democráticos o qual exige uma
ampla participação dos cidadãos a partir de uma sociedade civil organizada.
(PILOTII, 1999, p.2),
Essa situação vai desencadear o surgimento de ONGs nos anos de 1970 e 1980 dentro
do continente. Elas vão dedicar seus esforços à melhoria do bem-estar da criança e da família,
dentro das comunidades afetadas por extrema miséria e violência. A maior parte dessas ONGs
vai buscar soluções a partir das próprias comunidades que pretendem transformar. Antes
desse período, organizações ou filantropias instauravam modelos europeus, religiosos e
morais que não condiziam com a comunidade, com sua cultura e identidade, o que
consequentemente, não levava às mudanças e transformações nos indivíduos e nas
comunidades. Foi pensando em resgatar a identidade, a estima, e a cultura de um povo que
José de Abreu idealizou FESNOJIV e desenvolveu seu papel social através da música.
A situação das crianças na Venezuela não poderia deixar de ser diferente da maioria dos
países da América Latina. Segundo os dados da CEPAL30
e do Banco Mundial31
, sua
população geral é de 27.656 mil, o sexto no ranking entre os países da América Latina, dos
quais 85% vivem na pobreza, destes, 15% vivem com menos de dois dólares por dia. A
população menor de 24 anos no país corresponde a 56%, o que faz o país ter uma alta taxa de
natalidade, em torno de 20%, e consequentemente aumentando a incidência e o
aprofundamento da pobreza no país, provocando também o inchaço urbano nas regiões
periféricas e violentas das comunidades pobres dos barrios.
A criação da FESNOJIV na Venezuela, para as comunidades pobres, tem como objetivo
primordial acabar com o ciclo da pobreza e promover a justiça social. Aqueles que trabalham
com a orquestra enxergam o sistema tanto como um programa social como um programa
educacional e musical, como um acesso ao mundo que antes pertencia somente à elite. Esta
visão está presente em seus documentos:
Irreversivelmente, a arte não é mais monopolizada pelas elites. Pelo contrário, tem
sido consolidada como um direito social do nosso povo. Como conseqüência, a
30
COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA. Disponível em: <http://websie.eclac.cl/ sisgen /
ConsultaIntegrada.asp?IdAplicacion=1> Acesso em: 20/05/2010. 31
BANCO MUNDIAL. Disponível em: <http://data.worldbank.org/indicator/SI.POV.GAP2> Acesso em:
20/05/2010
55
educação artística das crianças tem sido considerada como vanguarda e um sinal de
uma revolução sem paralelos, que nenhum projeto social concedeu a um país . (HOLLINGER, 2005, p.2)
A música clássica na Venezuela – e também no continente – é ainda um símbolo da
“elite”. A “democratização” da arte musical é vista como uma maneira psicológica de quebrar
barreiras. Como relatou o Dr. Abreu:
Talvez o elemento mais notável sobre o sistema de orquestra é que ele é
explicitamente orientado para os estratos sociais mais baixos. Ele é descrito como
"um movimento social” de dimensões enormes, que funciona utilizando a música
como um instrumento de integração social possível dos diferentes grupos da
população venezuelana, além de auxiliar financeiramente as camadas de baixa
renda. As orquestras trouxeram um impacto substancial social nas comunidades
onde estão atuando, legitimando e promovendo música para toda a comunidade,
levando a uma espécie de renascimento musical e cultural. Estudos também têm
mostrado que os jovens envolvidos nas orquestras também apresentam um melhor
desempenho em outras áreas da vida acadêmica e social. (UNESCO, 2001) 32
Dentro do projeto, a oportunidade de aprender música está aberta a todas classes sociais,
desde a criança mais pobre até aquela proveniente da classe média alta. O El Sistema cria um
espaço democrático, onde todas as crianças se reúnem para fazer música em conjunto. Bolsas
de estudos são concedidas para ajudar a família de crianças carentes, assim os estudantes
continuarão a frequentar a escola e as aulas de música, em vez de começar a trabalhar, como
fazem muitos deles quando alcançam a adolescência. Segundo o estudo de Hollinger (2005,
p.45), “muitas famílias do projeto ganham de um a três salários mínimos...equivalente a uma
média de 288 bolívares ( $135 dólares por mês ), e metade dos pais têm educação inferior ao
nível secundário.” É portanto, mais do que um projeto meramente musical, um verdadeiro
vetor de transformação social.
A orquestra tem a maior parte dos fundos financeiros concedidos pelo Estado
venezuelano, em torno de 29 milhões anuais, e por organizações internacionais,
principalmente do Banco Interamericano de Desenvolvimento que concedeu um empréstimo
de US$ 1 milhão em 2005, para novas orquestras e sedes. (HOLLINGER, 2005, p.147)
Porém, diante de um governo politicamente instável e conturbado, e de uma economia
que se baseia somente no petróleo e de índices de pobreza e miséria consideráveis, como o El
Sistema consegue sobreviver a dez administrações desde o momento em que surgiu? Como
32
RIGHT LIVELIHOOD AWARD. Disponível em: <http://www.rightlivelihood.org/abreu.html>. Acesso em:
20/05/2010.
56
consegue, hoje, sobreviver a um governo que tenta anular qualquer tipo de força contrária a
sua ideologia?33
Talvez a resposta resida no fato de que ele é maior e mais enraizado do que o
ambiente de curto prazo próprio à política partidária.
A FESNOJIV foi a primeira instituição a empregar uma atividade cultural como recurso
para o desenvolvimento social. A rede de orquestras infantis e juvenis, coordenadas pela
fundação, sobrevive em parte porque nunca esteve vinculada ao Conselho Nacional da
Cultura, mas sim ao Ministério da Família. Portanto, livre de políticas culturais que estão a
serviço de uma ideologia e um governo ditatorial, o projeto atualmente depende de
Previdência e Desenvolvimento Social. Muito se deve também à própria figura de José
Antonio Abreu, que foi Ministro do Estado Presidente do Conselho Nacional da Cultura,
durante a segunda administração de Carlos Andrés Pérez, e conseguiu que seu projeto fosse
concebido como emblema da aspiração venezuelana, independentemente de qual partido
político esteja no poder. Isso garantiu “uma considerável rede de apoios em todos os níveis e
setores e a aprovação de um governo, a quem as constantes giras e prêmios da Orquestra
Simón Bolívar, emblemática do sistema, beneficiaram-no em seu desenho propagandístico
internacional, como disse Carlos Delgado-Flores na reportagem abaixo.
De fato, o sucesso desse projeto se deve muito a seu criador e principal mentor José
Antonio de Abreu, economista, músico e político que é muito estimado dentro e fora
do projeto dele também. Ele o criou durante o governo do presidente Carlos Andrés
Pérez, e até hoje, incrivelmente, tem sobrevivido e tomado o rumo da ascensão no
turbulento governo de Hugo Chávez. A paixão do líder pelo seu projeto e seu vínculo
é uma das forças, se não a principal, que move seu sucesso. (DELAGADO-FLORES,
2010)
Obviamente Hugo Chávez usa o sucesso da orquestra a seu favor. Em 2007, o governo
fechou a RCTV, emissora de oposição, e a substituiu temporariamente por um canal oficial no
qual era veiculada prioritariamente propaganda chavista, sucedida por uma gravação da
Orquestra Jovem Simon Bolívar, que congrega os melhores músicos do Sistema, executando
o Hino Nacional, com regência de Dudamel. Segundo o advogado e diretor executivo do
projeto, e também violinista Eduardo Mendéz: “fui xingado de chavista e velhos amigos me
insultaram na rua. Mas somos financiados pelo Estado. Se o Estado nos pede algo, temos de
33
Para mais informações sobre políticas culturais no governo de Hugo Chávez. Acessar: DELGADOS-FLORES,
Carlos. Espetáculos das misérias. Mirada Global, Caracas. Disponível em: <http://www.miradaglobal.com/
index.php?option=com_content&task=view&id=968&Itemid=9&lang=pt> . Acesso em: 23/05/2010.
57
aceitar". Ele garante, porém, que o Sistema não tem cor política ou ideológica: "temos
unidades em locais como Chacao, que faz oposição a Chávez". (MARTINS, 2007)
Curioso saber que a vontade de elaborar projetos musicais de Abreu provém de uma
tradição em sua família. Seus avós maternos vieram da Itália para Venezuela e trouxeram
instrumentos para uma banda que criaram em Monte Carmelo, Trujillo, nos Andes
venezuelanos. Lá fixaram residência, e a banda participava de todas as festas e cerimônias
populares da região. Seu avô era o maestro e fazia transcrição das obras universais mais
famosas para a banda. Hoje, o grupo instrumental se chama Banda Filarmônica de Monte
Carmelo.
A escola em que Abreu estudou, ajudou a despertar nele o interesse não só pela música,
mas pela poesia, declamação, e o teatro. Era também um excelente aluno em matemática.
Começou a estudar piano, órgão, cravo e violino, e aos 12 anos, foi integrante da Orquestra
Acadêmica de Música del Estado de Lara, onde teve consciência da importância da prática
orquestral na formação de um músico. Em 1967, ele recebeu o prêmio Nacional de Música
Sinfônica por seu talento e habilidades musicais.
Por outro lado, José Abreu se formou como economista. Possui um doutorado em
Economia pela Universidad Católica Andrés Bello e pós-graduação em economia do petróleo
na Universidade do Michigan. Depois de sua carreira política, ele também trabalhou como
professor de economia e direito na Universidade Simón Bolívar e sua Alma Mater. Trabalhou
20 anos para o Estado como planificador, e teve contatos com assessores econômicos da
America Latina, quando conheceu a criação do Pacto Andino e quando contribui com a
criação do mecanismo de integração de Venezuela à ALALC Em 1983, tornou-se ministro da
Cultura. Sua ação condutora e persuasiva se projeta com a mesma força sobre os políticos e
burocratas, assim como sobre as crianças e jovens que o seguem quando visita os locais e os
conservatórios dos projetos. Talvez essa mistura criativa de idealismo e profundo
conhecimento das burocracias palacianas também contribua para explicar a vitalidade e
perenidade do projeto.
Com esses antecedentes, aos 30 anos, Abreu decidiu concentrar-se em um projeto que
aglutinaria aspectos organizacionais, musicais e pedagógicos. “Abreu, como grande líder,
parecia resolver seu papel em um tecido de circunstâncias do presente com experiências do
58
passado e múltiplos caminhos que a vida foi abrindo sem parente sentido em seu momento”.
(SANCHÉZ, 2007, p.64) Muitos que trabalham ou estudam no El Sistema afirmam que Abreu
fez de sua vida um verdadeiro apostolado dedicado inteiramente a ela. Ao mesmo tempo em
que é tenaz, convincente e assertivo, consegue encarnar uma figura paternal e protetora dentro
do sistema. Ivan Hernéndez, percussionista da Sinfônica Simon Bolívar, confessa: “A relação
de Abreu com nós era como de um pai com seus filhos. Muitos o veem como pai. Em meu
caso, sou filho de pais divorciados e José Antonio me preencheu um vazio. Sempre nos
alertava sobre o estudo, para que enxergássemos a música como carreira... Não há barreiras
entre ele e a juventude”. (SANCHÉZ, 2007, p.64)
Não há duvidas de que o caráter humano e espiritual do projeto muito se deve ao
maestro José Abreu. “Ele é o pai e mãe do El Sistema e de nós”, disse um dos meninos
entrevistados pela americana Hollinger (2005, p.127). Por ser um homem religioso, frequenta
a missa todos os dias antes de trabalhar, e com a mesma convicção religiosa ele realiza seu
trabalho com a orquestra.
Conhecido pela orquestra como „El Maestro‟, Abreu é enfático ao dizer que:
A música transforma a causa da pobreza porque transforma toda a criança. Esta
transformação faz a criança especial, rica. Assim como a mente da criança
desenvolve, suas aspirações, suas idéias também mudam. Ela não é mais uma
criança pobre. A causa da pobreza está aniquilada. (HOLLINGER, 2005. p.127).
E não só dentro da criança, mas fora também, uma vez que ela aprende como viver em
sociedade, ao tocar num conjunto orquestral ou cantar em um coral. “Mais que genialidade e
virtuosismo de seus criadores, a música é um reflexo da alma e dos povos e, neste caso, é um
resultado de um programa educativo que em 34 anos tem transposto fronteiras e superado
expectativas.” (FESNOJIV, 2005)
3.3 - História da orquestra, exemplos de sucesso e metodologia.
Lennar Acosta, um dos membros da orquestra, tinha 15 anos quando um professor de
música da FESNOJIV veio ao bairro de Los Chorros, um dos mais pobres de Caracas, para
oferecer instrumentos e aulas. Acosta disse:
59
Antes, ninguém acreditava em mim, todos tinham medo de mim. Eu era uma
criança maltratada. O professor foi a primeira pessoa que me entendeu e confiou em
mim. Este programa abriu uma grande e inimaginável porta para mim. Ele me deu
tudo, desde instrumentos a afeição, o que para mim era mais importante. Todos
merecem a oportunidade que eles dão. (HOLLINGER, 2005, p.123)
Acosta apareceu também no documentário 60 minutes da CBS americana34
. Ele aparece
segurando seu clarinete, seu rosto tem duas cicatrizes devido a atos violentos que sofreu. Em
um determinado momento, ele diz: “É completamente diferente de segurar uma arma. Não há
medo. A música me ensinou como tratar as pessoas sem violência”. Recentemente, ele
começou a tocar na Orquestra Sinfônica Nacional e estuda no Conservatório de Caracas. Esse
é apenas um dos exemplos do tipo de transformação social que pode ser perpetrado pela
música.
Los Chorros é considerado pelos professores como um dos locais mais difíceis de
trabalhar (HOLLINGER, 2005, p.124). As crianças choram tanto que parece impossível
ensiná-las; outras são extremamente violentas. São crianças em estado deplorável, muitas vêm
diretamente das ruas, outras são violentadas sexualmente; outras presas por drogas ou
envolvimento de tráfico de drogas. Também é comum essas crianças sofrerem de má nutrição
desde muito cedo o que não permite um desenvolvimento saudável e completo, e acabam
ficando pequenos e frágeis, aparentando serem mais novas do que são. Como demonstrou a
gestora Nancy Narreño, do núcleo Los Chorros: “Nós temos um menino muito pequeno que
veio para cá das ruas sofrendo um quadro grave de má nutrição. Nós demos a ele violino, e no
final do dia ele conseguia tocá-lo. Foi um milagre. Hoje, ele é o um dos principais violinos da
Orquestra Infantil de Caracas”. (HOLLINGER, 2005, p.121)
Oitenta e cinco por cento dos estudantes venezuelanos do projeto vêm de baixa renda e
famílias da classe trabalhadora. Entretanto, o programa está aberto para todas as crianças
provenientes das mais variadas classes sociais. E através dessa mescla, quebram-se as
barreiras e o objetivo de “democratizar a arte” está sendo alcançado. Assim disse Dr. Abreu,
na reportagem do jornal americano Boston Globe em 22 de junho de 2005: “Pobreza gera
solidão e anonimato. Música faz criar alegria e esperança em uma comunidade, e o triunfo de
uma criança como musicista ajuda-lhe a esperar objetivos cada vez mais altos”.
(LAKSHMANAN,2005). Praticando três ou quatro horas por dia, cinco dias por semana nos
34
60 minutes. Disponível em: < http://www.cbsnews.com/video/watch/?id=4011959n&tag=related;photovideo>.
Acesso em: 25/05/2010.
60
centros de bairro, além do dia inteiro nos finais de semana nos níveis mais altos, os alunos
incrivelmente conseguem um rápido progresso técnico. Aprendem a tocar com uma precisão e
sutileza que raramente é ouvida em qualquer lugar.
O projeto deu seus primeiros passos em 1971, quando José Antonio Abreu em um
festival de música que organizava, o „Festival Bach‟, relatou aos músicos a sua vontade de
criar uma orquestra com jovens músicos venezuelanos. Enquanto ele procurava fundos
financeiros, conduziu o grupo do „Festival Bach‟. Em 1975, quando aconteceu o primeiro
ensaio da “Orquestra Nacional e Juvenil da Venezuela”, a maior parte do pequeno grupo era
composta pelos músicos do „Festival Bach‟. Eles começaram a chamar outros músicos, e o
tímido grupo começou a se entusiasmar com a idéia da nova orquestra. Assim relatam os
documentos da FESNOJIV:
Começando em 1975, oito pessoas se reuniram em torno do maestro José Antonio
Abreu no antigo Conservatório Nacional „Juan José Landaeta‟. Além do desejo de
fazer música, eles se reuniram pela necessidade de combater o problema da reforma
da educação musical na Venezuela com características pedagógicas próprias e
originais, com a capacidade de adaptar técnicas de ensino de outros países à nossa
realidade. (HOLLINGER, 2005, p. 78)
A reforma foi instaurada por um decreto de 1964, e obrigava os alunos das escolas de
música do Estado a praticarem música em conjunto. Abreu e oito jovens estudantes da antiga
Escola de Música José Angel Lamas, se reúnem pela necessidade de obter recursos para criar
um programa educacional próprio e original, capaz de se adaptar métodos de ensino existentes
em outros países para a nossa realidade.
Em 20 de fevereiro de 1979 foi criada a Fundação Estadual para a Orquestra Sinfônica
Nacional Juvenil da Venezuela, a fim de formar recursos humanos altamente qualificados na
área de música e obter o financiamento necessário para a execução dos planos, atividades e
programas. Em 30 de abril do mesmo ano, a orquestra sobe ao palco pela primeira vez em
Caracas. Só em 1996, será criado a Fundação Estadual para o Sistema Nacional de
Orquestras Juvenis e Infantis da Venezuela, o FESNOJIV, com a intenção de promover e
desenvolver todas as orquestras de crianças e jovens que a mesma fundação já havia criado ou
poderia criar em todo o território nacional, além de implementar as atividades e programas de
formação e educação dos professores.
61
Um desses professores que vieram do projeto é a excelente violinista Susan Siman,
também responsável pelo Centro da Criança da Academia de Montalbán. Desde seu começo,
Abreu percebendo seu talento para música e também para o ensino concedeu-lhe a
possibilidade de pesquisar vários métodos de ensino: Susuki, Kodály, Dalcoreze e Orff fora
do país. Ela viajou para os Estados Unidos e Europa para conhecer e treinar tais métodos.
Quando voltou, combinou todos eles de uma forma que desenvolvesse a melhor maneira para
ensinar um grupo piloto de crianças em Caracas. Depois disso, foi refinando o método, até
chegar ao modelo atual, e hoje, trabalha como a professora dos professores, pois muitos dos
que entram no sistema para ensinar, passam pela sua metodologia. Conforme disse a jornalista
americana Susan Apthrop (2005) do Financial Times, quando visitou o projeto:
Uma visita pela classe das crianças em Montalbán mostra o uso de uma mistura
eclética de técnicas européias e asiáticas de ensino musical. Canto, dança e
movimentos são utilizados, e as crianças são colocadas em apresentações para o
público, desde o momento em que conseguem bater palmas no mesmo tempo.
Assim que eles conseguem executar uma melodia, eles começam a ensinar crianças
mais jovens. As classes são pequenas, e as crianças recebem grandes estímulos e
afeições ao longo das lições. Eles respondem com confiança e segurança. A
sensação de tocar é constante dentro de um clima de alegria. (HOLLINGER, 2005,
p.138)
Isso comprova o entusiasmo e alegria dos professores pelo projeto. Eles não
deixam de declarar que o El Sistema, antes de tudo, é um programa social de grande
relevância. Assim como o Maestro Abreu, eles têm o carinho pelo programa, trabalhando
sempre em conjunto e procurando desenvolver novos conhecimentos e habilidades. “Ao todo,
o número de professores chega a 15.000”. (HOLLINGER, 2005, p.131) Além do que, quando
uma criança atinge um determinado nível, ela passa a ensinar outras dentro da orquestra, que
estão começando. Isso é uma inovação, pois ensinar também é um meio de aprender. A
maioria dos professores foram alunos do El Sistema. Eles entendem a missão social e musical
do programa. Se um aluno falta pela segunda vez, sem prévia notificação, eles vão até a casa
da criança para conhecer as causa de sua ausência.
Este trabalho existe desde muito cedo. Os professores visitam as casa das crianças
de 2 a 3 anos de idade para assegurar ao pais que entendam o nível de compromisso que se
requer deles. À medida que os alunos começam a estudar instrumentos, os professores
instruem aos pais a apoiar o estudo e a disciplina, aconselhando-os e encorajando-lhes sobre o
ensino musical. Isto honra as conquistas do estudante e o “fazer música” adquire valor real
62
para a família, que não vê mais a necessidade de retirar a criança do projeto para que trabalhe
fora.
A estrutura funcional, educacional, artística e administrativa do projeto está
concentrada em torno do que eles chamam de El Núcleo, o Núcleo. Neles se concretizam
todos programas orquestrais e dos coros da FESNOJIV, o que os converte em centros de
promoção de atividades educativas, artísticas e culturais das comunidades. Os núcleos variam
em tamanho e complexidade e estão localizados em todos 25 estados do país. Atualmente,
existem 180 núcleos que atendem 350 mil crianças, adolescentes e jovens, e formam uma rede
complexa e sistemática de orquestras e coros de jovens e crianças35
.
Além dos núcleos, existem os centros de formação que são as „Academias Latino-
americanas‟, „Centro Acadêmico de Lutheria‟ (CAL), „Conservatório Musical Simón
Bolívar‟, „Centro Acadêmico Infantil de Moltanbán‟ e o Centro de Ação Musical‟.
As „Academias Latino-Americanas‟ que reúnem os melhores instrumentistas
(flauta, contrabaixo, violino, clarinete e violoncelo) para alta formação e especialização; o
„Centro Acadêmico de Lutheria‟ (CAL) tem o objetivo de capacitar e preparar profissionais
para a fabricação, manutenção e reparação dos instrumentos sinfônicos e populares dos
conjuntos musicais. Graças a ele, as crianças do projeto podem ter o próprio instrumento e
estudá-lo diariamente.
O „Centro de Ação Musical‟, talvez o mais importante, tem o propósito de
desenvolver programas acadêmicos e cursos para regentes, intérpretes e especialistas de
música. Assim está escrito o objetivo de sua criação no site da FESNOJIV36
:
(...) promover a proteção internacional da música, nossas orquestras e músicos
virtuoses; servir a sede para o intercambio educativo, musical e artístico da América
Latina; executar programas de educação, resgate e reabilitação de crianças,
adolescentes jovens e realizar atividades de integração artísticas para que eles
aprendam a atuar em todas as artes, através da dança, do teatro, da ópera, do canto, da
fotografia e do vídeo.
35
NUCLEOS. Disponível em: <http://fesnojiv.gob.ve/index.php?option=com_content&view= article&id=
183&Itemid =185> Acesso em: 28/05/2010. 36
CENTRO DE ACCIÓN SOCIAL. Disponível em: <http://fesnojiv.gob.ve/es/centro-de-accion-social-por-la-
musica.html> . Acesso em: 28/05/2010.
63
Como se pode perceber, o projeto é inovador ao ensinar a música em contato com outras
artes, o que provavelmente não estaria num currículo tradicional de ensino musical. Os alunos
não só se tornam músicos, mas verdadeiros artistas preparados através de uma bagagem
artística completa que somente uma criança proveniente das classes mais altas conseguiria
obter. Isso é transformação social de qualidade, obtida por meio da música.
O „Conservatório Musical Simón Bolívar‟ é o local onde são ministradas aulas para
jovens que no final recebem o diploma expedido pelo Ministério da Educação; e o „Centro
Acadêmico Infantil de Moltanbán‟, onde as crianças têm aulas de iniciação musical desde os
dois anos de idade até os 16, quando estão preparados para ingressar no Conservatório Simon
Bolívar, ou outras instituições superiores.
As principais agrupações musicais são a Orquestra Sinfônica Simon Bolívar, a orquestra
principal do projeto e que realiza tournées pelo país e exterior; o Conjunto de Metais da
Venezuela, que reúne os melhores instrumentistas do naipe; o Coro de Mãos Brancas, que é o
coro formado por crianças com deficiências auditivas ou com outros problemas. O conjunto
tem reconhecimento de figuras importantes da área musical como Simon Rattle, Claudio
Abbado, a soprano italiana Mirella Freni, e Geral Wirth, diretor do famoso coro dos Meninos
Cantores de Viena.
Outro conjunto importante é a Banda Sinfônica Juvenil Simón Bolívar, que realizou em
dezembro de 2006, com patrocínio da Shell da Venezuela, a gravação de um disco intitulado
Música del Templo y de la Plaza com a finalidade de promover a aproximação das
comunidades às músicas tradicionais venezuelanas. Foram criadas ainda a Orquestra de Jazz e
Big-Band, Orquestra Sinfônica da Juventude Francisco Miranda, e a Orquestra Sinfônica
Juvenil de Caracas, que é a segunda orquestra mais importante do projeto.
Talvez os agrupamentos mais interessantes – e nada comuns - são as Orquestras
Sinfônicas Penitenciárias que merecem no trabalho palavras a mais.
Esta rede foi criada em 2007 em parceria com o Ministério da Rede Popular para
Relações Interiores e Justiça, sob financiamento do Banco Interamericano de
Desenvolvimento. O coordenador do programa, Lênin Mora, advogado diplomado em Direito
Internacional pela Universidade Santa Maria e também musico da Orquestra Sinfônica Juvenil
64
Simón Bolívar, começou a visitar os cárceres da Venezuela para entender a necessidade dos
presos. Com o propósito de diminuir a violência dentro dos presídios e facilitar o processo de
reinserção social, Mora e sua equipe implementaram um projeto de aprendizagem, prática e
desfrute musical. A chave para mudança estava na educação. Todos os presos poderiam entrar
no projeto, com a única condição de não ter antecedentes de agressão a funcionários dentro da
prisão. A maioria dos presos nunca tinha visto um instrumento, hoje, a rede de orquestras
conta com uma planilha de 461 alunos e desde sua criação 1086 internos receberam educação
musical através do programa. Um exemplo de sucesso é o ex-presidiário Henry Davil. Ex-
membro da orquestra, hoje trabalha como um dos funcionários da FESNOJIV, uma vez que
ele conseguiu sua liberdade. A este respeito, disse que se sentia “muito orgulhoso”37
de ser
um exemplo para os presos da Penitenciária da Região Andina, onde agora trabalha como
instrutor. (FESNOJIV, 2010)
O El Sistema tem um plano de estudo nacional, incluindo uma sequência musical
estabelecida. Entretanto, o programa pode ser adaptado a cada comunidade. Todo o plano de
estudos começa com arranjos simples de grandes obras musicais executadas com grande
entusiasmo. Estas obras são frequentemente reintroduzidas na medida em que a criança está a
fazer progressos. Como diz Gustavo Dudamel: "Nós vivemos nossas vidas através das obras.
Quando tocamos Sinfonia No. 5 de Beethoven, para nós é a coisa mais importante
acontecendo no mundo." 38
( FESNOJIV, 2010)
Como se pode perceber, o projeto altera profundamente a comunidade de uma maneira
que não impõe soluções pré-estabelecidas, mas se adapta às condições e necessidades de cada
uma delas. Não seria ideal se todas ajudas humanitárias fossem assim? A FESNOJIV é um
exemplo de que para melhorar as condições de uma população é preciso buscar soluções
dentro da própria comunidade, e não impor perspectivas provenientes de “fora”. O
etnocentrismo, como já foi comprovado pela Antropologia, é uma das piores perspectivas
pelas quais se encara uma comunidade.
Essa abordagem se reflete nos repertórios executados pela orquestras, que são tanto
eruditos como populares, pois, antes de tudo, a linguagem musical é obtida de maneira
37
ORQUESTRAS SINFONICAS PENITENCIARIAS. Disponível em: <http://fesnojiv.gob.ve/es/ orquestas-
sinfonicas-penitenciarias-.html>. Acesso em: 28/10/2010 38
METODOLOGIA DEL SISTEMA. Disponível em: < http://www.fesnojiv.gob.ve/es/metodologia-de-el-
sistema.html>. Acesso em: 28/10/2010
65
espontânea, natural e sem dificuldades se integra na cultura da comunidade durante os
concertos. Como está descrito no site:
Os valores intrínsecos das diversas estéticas musicais se conjugam em um
repertório orquestral planejado para atender o desenvolvimento acadêmico dos
beneficiários diretos e do desfrute dos beneficiários indiretos. Os recursos
orquestrais se utilizam em função de produzir um discurso musical que não se
limita aos esquemas da música acadêmica ocidental. O clássico, o popular, o
folclórico, o acadêmico, o elitista, o vanguardista, o tradicional, o experimental e o
erudito em matéria de música é percebido e projetado pelo El Sistema de uma
forma aberta e sem limitações impostas por paradigmas convencionais. (FESNOJIV, 2010)
39
Além de erradicar a pobreza, elevar a auto-estima das crianças e sua família, e por fim
da comunidade, observando por uma perspectiva das Relações Internacionais, a missão da
FESNOJIV é um resgate da cultura e identidade de um povo desfavorecido no mundo
globalizado. Ela pode unir também os países do continente latino-americano e seus vizinhos.
Contribui, portanto, para a própria inserção internacional de um país.
Além de convênios entre o El Sistema venezuelano e o El Sistema USA, instaurou-se o
„El Festival América e Los Americanos‟, iniciado em seis de abril de 2010, na sala de
Concertos Walt Disney, em Los Angeles. Este festival, que tem como objetivo unir o norte e
o sul das Américas, explora as distintas tradições musicais que surgem da mescla de culturas e
paisagens da região inteira. A Filarmônica de Los Angeles, regida agora por Gustavo
Dudamel, executará entre outras obras, a famosa Cantata Criolla do compositor venezuelano
Antonio Estévez, exemplo musical dessa interação entre elementos musicais provenientes dos
diversos povos da região.
Débora Borda, presidente da Filarmônica de Los Angeles comentou (FESNOJIV, 2010)
“que o festival significa muito para as pessoas de Los Angeles e para o continente em geral;
através dele, Gustavo apresenta a América na perspectiva do sul. Cremos no potencial para
unir os americanos, e é talvez o que mais nos agrada, a sensação de uma grande família a
partir da música”.
Algo parecido disse também Gustavo Dudamel: “creio que há só uma América. Lógico
que temos o sul, o centro e o norte, mas é um só continente. Orgulho-me de ser venezuelano,
39
FILOSOFIA. Disponível em: <http://www.fesnojiv.gob.ve/es/filosofia.html>. Acesso em: 28/10/2010.
66
latino-americano e americano”. (FESNOJIV, 2010) É o velho papel da música a unir os
povos, por mais diferentes que sejam.
Apesar de ainda não ter a divulgação merecida pela mídia, a FESNOJIV tem mostrado
ao mundo que é um modelo bem-sucedido e alternativo de política social, educacional,
artística, e também integracionista, uma vez que seu alcance influencia o relacionamento entre
os Estados.
O mais interessante – e também impressionante - é que seu objetivo começa por
integrar e restaurar o próprio indivíduo, passando pelas comunidades, as regiões, o país, o
continente e o mundo, como ficou demonstrado nos projetos criados em outros continentes e
inspirados nele. De fato, o lema do projeto - Tocar y Luchar - é digno de uma verdadeira
revolução que talvez nem mesmo Simón Bolívar pudesse imaginar.
67
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho procurou mostrar a importância da música na sociedade e como ela pode
ser utilizada para a integração dos estados, o diálogo cultural e religioso, e principalmente o
desenvolvimento e o progresso dos cidadãos de um país ou uma região. Apesar de ela ser hoje
um produto de mercado altamente lucrativo, para as grandes empresas, sua função não pode
ser vista como um mero entretenimento de massas, o que de fato, causa essa anestesia social
que se observa hoje. Sua função vai para além disso: é transformar o homem, revolucionar
seus paradigmas, sua realidade, colocando dentro deles o fator positivo da angústia: aquele
incômodo que sentimos quando queremos mudar para melhor.
No primeiro capítulo, procurei mostrar como a música sempre esteve ligada à sociedade,
e que, portanto, música e relações internacionais apresentam mais pontos em comum do que
divergentes. Para isso, fiz um pouco da retrospectiva histórica da própria história da música
em relação ao desenvolvimento da sociedade. Também retratei como ela se articula com
elementos como a política, fé, Estado-nação e educação dos cidadãos. Tentei mostrar que ela
pode obter resultados tanto benéficos como maléficos para a sociedade, uma vez que
dependendo de como ela é utilizada, pode levantar ou destruir uma nação, como foi o caso da
apropriação subjetiva da música de Wagner por Hitler, como discurso nacionalista e nazista
contra os judeus.
No segundo capítulo, comecei a explicar a influência do fenômeno da globalização na
atualidade ao “descentralizar” as identidades locais e regionais, transformando por vezes seus
valores como cultura, religião e política. Esses processo pode causar conflitos entre os grupos,
sua transformação ou ainda um reforço das próprias identidades dos grupos sociais. No caso
da América Latina, como foi retratado, há mais um reforço dessas diversas identidades como
forma de resistência diante dos poderes dominantes exercidos sob os grupos étnicos da região.
A ascensão de políticos de viés popular é reflexo deste fenômeno. Assim também, o
continente latino-americano busca conseguir a integração regional através do resgate do valor
cultural dos seus diversos povos. Foi pensando nisso, que muitos educadores musicais
começaram a criar dentro do continente uma consciência coletiva de que a educação musical,
através da música, pode resgatar a identidade do povo diante do mundo globalizado e também
68
mudar a realidade de pobreza e miséria nas quais muitas comunidades vivem. Sendo assim,
vão começar a surgir dentro do continente, com a ajuda de governos, instituições
internacionais, ONGs e empresas privadas, projetos de cunho social e pedagógico através da
música.
No terceiro capítulo tratei do pioneiro e o exemplo maior dentre eles, que é o
FESNOJIV, criado por José Abreu. Sua estrutura organizacional e metodologia pedagógica
conseguiram promover sua missão de ensinar e educar crianças carentes, recuperar sua auto-
estima, dar-lhes a oportunidade de se tornar alguém que jamais eles poderiam ser, uma vez
que a música dentro do continente é ainda “elitizada”, além de resgatar o folclore de um povo,
que muitas vezes é massacrado pela mídia globalizada e os “enlatados” que surgem.
O FESNOJIV espalhou sementes pelos “quatros cantos” do mundo, como o som que se
propaga pelo ar. Tocar y luchar talvez seja mais do que um slogan criativo. É a metáfora da
relação entre a música e a política através dos tempos. Sem muito alarde, a música parece ser
um dos elementos de relações internacionais mais antigos e menos estudados como tal. Seu
papel como vetor de transformação social e mesmo de inserção internacional ainda é um
campo pouco explorado.
A intenção deste trabalho foi, de forma apenas perfunctória, demonstrar que essa ligação
é possível e de uma envergadura ainda por desvelar. Como disse Barenboim, música por si só
não resolve os problemas, mas ela pode ser uma forte aliada para que haja uma transformação
dentro de comunidades carentes, seus princípios e valores culturais, e ajudá-los a projetar
novas possibilidades e novos caminhos de integração e inserção internacional.
69
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ROUSSEAU, Jean Jacques. Émile. London: Dent, 1966.
71
SANCHÉZ, Freddy. El Sistema Nacional para las Orquestas Juveniles e Infantiles. La
nueva educación musical de Venezuela. In: XVI Encontro Nacional da ABEM e Congresso
da ISME na América Latina, 2007, Campo Grande-MS. Educação musical na América
Latina: concepções, funções e ações. Porto Alegre: Associação Brasileira de Educação
Musical, 2000. p.63-69. Disponível em: <http:// www.abemeducacaomusical.
org.br/Masters/revista18/revista18_completa.pdf>. Acesso em: 20/04/2010.
SHARP, Ian. Classical music’s evocation of the myth of childhood. New York: The Edwin
Mellen Press, 2000.
SPIGLIATTI, Solange. No Haiti, ONG brasileira faz concerto para vítimas. O Estado de
S. Paulo, São Paulo, 05/02/2010. Disponível em <http://www.estadao.com.br
/noticias/internacional,no-haiti-ong-brasileira-faz-concerto-para-vitimas,506829,0.htm>.
Acesso em: 24/05/2010.
WEST-EASTERN DIVAN ORCHESTRA. Disponível em: <www.west-eastern-divan.org.>.
Acesso em: 13/04/2010.
WILLEMS, E. L’oreille musicale: La préparation auditive de l‟enfant. 5 ed. Fribourg: Pro
Musica, 1984. v.2.
72
OBRAS CONSULTADAS
COOPER, Barry. (Org.). Beethoven. Um compêndio. Tradução de: GAMA, Mauro; GAMA,
Claudia Martinelli. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
MIGUEL, Andressa Chinzarian. O universo infantil retratado em música. Monografia
(Graduação em Música) - Departamento de Música, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2005.
HARRISON, Lawrence E.; HUNTINGTON, Samuel P. (Org.). A cultura importa: os
valores que definem o progresso humano. Tradução de: VARGAS, Berilo. Rio de Janeiro:
Record, 2002.
HOBSBAWM, Eric J. História social do Jazz. Tradução de: NORONHA, Angela. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1990.
RUEB, Franz. 48 variações sobre Bach. Tradução: AZENHA, Jaó Jr. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.
73
Anexo
EXEMPLOS DE PROJETOS DE MÚSICA NA AMÉRICA LATINA E NO MUNDO
INSPIRADOS NO EL SISTEMA.
Brasil
Projeto Instituto Baccarelli
Fundado pelo maestro Baccareli em São Paulo em
1996.
www.institutobaccarelli.org.br
Instituto Baccarelli40
Projeto Guri
Fundado pelo município de São Paulo e ONGs locais em 1995.
www.projetoguri.org.br
Projeto Guri Santa Marcelina
Fundada pela organização Santa Marcelina de Cultura em 2008.
www.gurisantamarcelina.org.br Guri Santa Marcelina41
NEOJIBÁ – Núcleo Estaduais de Orquestras Juvenis e
Infantis da Bahia
Fundada por iniciativa do pianista e maestro Ricardo Castro em
intercâmbio com a FESNOJIV.
www.neojiba.org
Neojibá42
40
Disponível em: <http://www.institutobaccarelli.org.br> Acesso em: 20/05/2010. 41
Disponível em: < www.gurisantamarcelina.org.br > Acesso em: 20/05/2010. 42
Disponível em: < www.nwojiba.org> Acesso em: 20/05/2010.
74
Uruguai
Fundación Sistema de Orquestas Infantiles y
Juveniles del Uruguay
O Mastro e Ariel Britos e Claudia Rieiro
adotaram a idéia da FESNOJIV e resolveram
para implementar no país em 1996.
Argentina
Fundación Sistema de Orquestras Infantiles y
Juveniles de Argentina
Fundada no ano de 1998 em parceria com o
governo argentino e o maestro José Abreu. Hoje
existem mais de 30 delas espalhadas pelo
território argentino.
www.sistemadeorquestas.org.ar
Sistema de Orquestas43
Chile
Fundación de Orquestras Juveniles e Infantiles de Chile
Durante os anos 60‟, o maestro Jorge Peña Hen, criou as
primeiras orquestras infantis no Chile. Logo após sua morte,
o programa perdeu a força e só foi retomado em 1991,
quando o maestro Fernando Rosas viajou a Venezuela com o
Ministro da Educação Ricardo Lagos e puderam apreciam o
êxito e a importância de um Programa de Orquestras Juvenis
neste país. Orquesta Juvenil44
www.orquestajuvenil.cl
43 Disponível em: < www.sistemadeorquestas.org.ar> Acesso em: 25/05/2010.
44 Disponível em: <www.orquestajuvenil.cl> Acesso em: 25/05/2010.
75
Peru
Arte para crecer
Fundada em 1990 na capital Lima do país, atua na educação de crianças e jovens carentes não
só através da música, como também de oficinas artísticas, circenses e de dança.
www.arteparacrecer.org
Arte para crecer45
Paraguai
Sonidos de la Tierra
Foi fundado pelo maestro e excelente músico Luis
Szarán. O programa, inspirado no conceito de “educação
pela arte” se iniciou no ano de 2002 com o apoio da
Fundação AVINA, ampliando sua cobertura por meio de
alianças com outras organizações como Plano
Internacional, Missions Prokur Nürnberg S.J. (Alemanha)
e o apoio público e privado de instituições como:
Parlamento Nacional, FONDEC, ITAIPU Binacional,
Sociedad Filarmónica de Asunción, Embaixada da
Alemanha, EUA, França e Itália, Partners of the
Americas (Capítulo Paraguay-Kansas), Sonidos de La Tierra46
Dirección de Cultura de la Municipalidad de Asunción e outras.
www.sonidosdelatierra.org.py
45 Disponível em: <www.arteparacrecer.org>. Acesso em: 25/05/2010.
46 Disponível em: <www.sonidosdelatierra.org.py>. Acesso em 25/05/2010.
76
Colômbia
Fundación Batuta
Este projeto tem o apoio do governo colombiano e tem convênio com a universidade
americana da Carolina do Norte. Existem 40.000 crianças
atendidas pelo projeto atualmente. Conta com a ajuda do
Governo da Colômbia, Governo do Japão, e empresas como
Nestlé, Bavária S.A., Gemalto Colômbia S.A., Colombiana
Automotriz S.A.
Batuta47
www.fundacionbatuta.org
Argentina
Fundación Sistema de Orquestras Infantiles y Juveniles de Argentina
Devido ao surgimento de orquestras locais nos municípios do país, a fundação surgiu para
auxiliar e ceder apoio técnico
institucional para novos projetos,
capacitação de seus integrantes,
professores e diretores, e
organizações de seminários e
encontros entre as orquestras.
www.sistemadeorquestas.org.ar
Sistema de orquestas Argentina48
47
Disponível em: <www.fundacionbatuta.org>. Acesso em: 25/05/2010.
77
Bolívia
Orquestra Missionária de San José de Chiquitos
Fundada por Deysi Rivero, junto com o Professor Rubén Darío Suárez Arana, divulga a
cultura dos povos originários do lugar e das missões jesuíticas do seu povoado, San José. Na
sua última visita à Argentina, a orquestra realizou 24 concertos através do país, em 20 dias, e
registrou o seu primeiro material sonoro, que será editado junto com um DVD documental
sobre o trabalho da agrupação.
www.myspace.com/orquestasanjosedechiquitos
México
Coros y Orquestas Infantiles del Mexico
Fundada pelo pianista, regente e também ator Maestro J. Guillermo Sánchez G. em 1989. Ele
também faz consultoria para escolas, instituições e até empresas privadas que buscam através
da música estabelecer ambientes mais saudáveis e agradáveis para negociações.
www.coim.com.mx
Costa Rica
O Sistema Nacional de Educación Musical (Sinem) ligado ao Minstério da Cultura do
governo administra as orquestras e escolas de música dentro do país, assim como cria e
implementa novos projetos musicais e educacionais.
http://www.mcjdcr.go.cr/sinem/noticias/
48
Disponível em: < www.sistemadeorquestas.org.ar >. Acesso em: 25/05/2010.
78
África
South African National Youth Orchestra Foundation
Orquestra fundada em 1978.
www.sanyo.org.za
Estados Unidos
El Sistema USA
Foi fundado em parceria com a FESNOJIV e a prestigiada instituição de ensino musical New
England Conservatory of Music. Assim como o modelo venezuelano, a instituição vai auxiliar
organizações que queriam implementar o sistema dentro dos EUA ou no exterior.
http://elsistemausa.org/
Itália
Pequenas Huellas
A fundação Pequenas Huellas, pequenos traços em português, foi um fundado pela
musicista itlaina e professora Sabina Colmna-Petri (docente do Conservatorio di Musica
di Torino) . O foco deste projeto é organizar em diferentes países e cidades ao redor do
mundo, workshops e cursos para crianças e jovens músicos, com o objetivo de estimular o
interesse pela música local e sua interpretação, quer de origem culta ou popular, para uma
melhor compreensão e divulgação do patrimônio cultural do lugar que eleito para os
workshop. Desta forma, pretende-se promover o respeito e a valorização da história, arte e
culturas diferentes. A atividade musical é complementada por palestras sobre a condição das
crianças em diferentes partes do mundo e da promoção dos seus direitos, sendo o principal
ponto de referência a documentação da Convenção sobre os Direitos das Nações Unidas.
www.pequenashuellas.com/it/home.html
79
Canadá
Coalition for Music Education in Canada
É um projeto fundado em 1992 quando representantes de mais de 20 associações de escolas
de música se reuniram para compartilhar idéias que melhorassem o estado do ensino da
música no Canadá. A Coligação rapidamente começou a trabalhar com os pais e outros
cidadãos interessados em aumentar a participação, além de construir parcerias com os
governos de diversos níveis. Hoje, ela é uma organização nacional dedicada à sensibilização e
compreensão do papel que a música desempenha na cultura canadense, defendendo a
contribuição que a educação musical faz na vida de todos seus cidadãos.
www.coalitionformusiced.ca/
www.musiquepourtous.ca/
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