“EL BRINCO DE LOS CHINELOS”: breves reflexões sobre o carnaval em Tepoztlán, México.

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“EL BRINCO DE LOS CHINELOS” - WALLACE DE DEUS BARBOSA Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 2, nº 1, p. 60 – 74. jan./jun. 2010. 60 “EL BRINCO DE LOS CHINELOS”: breves reflexões sobre o carnaval em Tepoztlán, México 1 Wallace de Deus Barbosa * O título deste trabalho 2 serve, antes de tudo, para advertir ao leitor sobre a natureza do exercício a que estou me propondo aqui. Digo isso porque lidamos com um tema que é caro e relevante para antropólogos no Brasil (o carnaval), e por outro, devido ao fato de que Tepoztlán foi o palco da discórdia protagonizada por Robert Redfield e Oscar Lewis no final dos anos sessenta do século passado, no contexto da antropologia norte-americana. Assim, quando anuncio que serão breves as reflexões aqui apresentadas, tento desviar-me da tentação de discorrer mais demoradamente sobre o que se convencionou chamar de “gênero etnográfico” ou sobre o modo de escrita dos etnógrafos, e opto por apresentar algo que poderia classificar quase como um mero relato de minha experiência, como morador/visitante 3 , neste conhecido município mexicano do Estado de Morelos. 1 - Agradeço a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes pelo financiamento de meu estágio pós-doutoral no IIA - Instituto de Investigaciones Antropológicas da UNAM, no México (DF), entre os anos 2007 e 2008. Fui, neste período, supervisionado pelo Prof. Dr. Carlo Bonfiglioli, a quem devo e agradeço a sugestão de incursionar no carnaval de Tepoztlán e conhecer o baile dos chinelos, considerado um patrimônio cultural do Estado de Morelos. * Professor do Bacharelado em Produção Cultural e do Mestrado em Ciência da Arte da Universidade Federal Fluminense. Doutorado (2001) em Antropologia Social pelo PPGAS-Museu Nacional (UFRJ). 2 - Comunicação originalmente apresentada no II Seminário do LEME (Laboratório de Estudos em Movimentos Étnicos), em maio de 2009, na UFAL, em Maceió. Agradeço aos colegas Rodrigo Grünewald e Clarice Mota pelo amável convite, bem como aos demais integrantes da mesa-redonda “Diálogos interculturais e o dilema da autenticidade”: Maria José Alfaro Freire e Marcos Alexandre Albuquerque, pela construtiva interlocução. 3 - Ser morador visitante (não Tepozteco) em Tepoztlán (lá vivi por um ano) implica em integrar uma classe de pessoas batizada jocosamente pelos locais de tepoztizos, entendido como `tepozteco postizo’, com o mesmo sentido damos em português à palavra “postiço”; como algo falso e/ou sobressalente. No

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Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 2, nº 1, p. 60 – 74. jan./jun. 2010. 60

“EL BRINCO DE LOS CHINELOS”: breves reflexões sobre o carnaval em Tepoztlán, México1

Wallace de Deus Barbosa*

O título deste trabalho2 serve, antes de tudo, para advertir ao leitor sobre a

natureza do exercício a que estou me propondo aqui. Digo isso porque lidamos com um

tema que é caro e relevante para antropólogos no Brasil (o carnaval), e por outro, devido

ao fato de que Tepoztlán foi o palco da discórdia protagonizada por Robert Redfield e

Oscar Lewis no final dos anos sessenta do século passado, no contexto da antropologia

norte-americana.

Assim, quando anuncio que serão breves as reflexões aqui apresentadas, tento

desviar-me da tentação de discorrer mais demoradamente sobre o que se convencionou

chamar de “gênero etnográfico” ou sobre o modo de escrita dos etnógrafos, e opto por

apresentar algo que poderia classificar quase como um mero relato de minha

experiência, como morador/visitante3, neste conhecido município mexicano do Estado

de Morelos.

1 - Agradeço a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes pelo financiamento de meu estágio pós-doutoral no IIA - Instituto de Investigaciones Antropológicas da UNAM, no México (DF), entre os anos 2007 e 2008. Fui, neste período, supervisionado pelo Prof. Dr. Carlo Bonfiglioli, a quem devo e agradeço a sugestão de incursionar no carnaval de Tepoztlán e conhecer o baile dos chinelos, considerado um patrimônio cultural do Estado de Morelos. * Professor do Bacharelado em Produção Cultural e do Mestrado em Ciência da Arte da Universidade Federal Fluminense. Doutorado (2001) em Antropologia Social pelo PPGAS-Museu Nacional (UFRJ). 2 - Comunicação originalmente apresentada no II Seminário do LEME (Laboratório de Estudos em Movimentos Étnicos), em maio de 2009, na UFAL, em Maceió. Agradeço aos colegas Rodrigo Grünewald e Clarice Mota pelo amável convite, bem como aos demais integrantes da mesa-redonda “Diálogos interculturais e o dilema da autenticidade”: Maria José Alfaro Freire e Marcos Alexandre Albuquerque, pela construtiva interlocução. 3 - Ser morador visitante (não Tepozteco) em Tepoztlán (lá vivi por um ano) implica em integrar uma classe de pessoas batizada jocosamente pelos locais de tepoztizos, entendido como `tepozteco postizo’, com o mesmo sentido damos em português à palavra “postiço”; como algo falso e/ou sobressalente. No

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Os trabalhos de Redfield e Lewis sobre Tepoztlán, quando contrapostos,

sugerem tratar-se de duas etnografias sobre lugares distintos, de tão diversos que são os

olhares postos sobre este povoado (pueblo) morelense. Esta querela antropológica é

destacada por Clifford Geertz (1989, p.15) em seu livro O antropólogo como autor, em

que reflete sobre a natureza da escrita etnográfica e o lugar de seus autores. Ao

mencionar a análise do kula nos Argonautas de Malinowski, afirma que, da forma como

foi construído, promove em seus leitores a impressão de uma inesquecível imagem. E

acrescenta uma possibilidade contraposta:

Mesmo naqueles casos em que estudos empíricos se poderiam considerar

diretamente contraditórios (a polêmica de Robert Redfield e Oscar Lewis sobre

Tepoztlán, por exemplo), a tendência majoritária em antropologia, na medida em

que ambos os estudos gozem de merecido respeito, é considerar que o problema

surge de dois tipos diferentes de enfoque (...) e uma terceira opinião não faria

mais que lançar lenha adicional na fogueira.

Nestor García Canclini (2006, p.77) localiza este debate no cerne da chamada

“cena pós-moderna” em antropologia. Em seu entender, “o debate sobre os textos

antropológicos levou a se pensar que nós antropólogos também não sabemos muito bem

do que estamos falando quando fazemos etnografia”. E pontifica:

As polêmicas entre Redfield e Oscar Lewis sobre Tepoztlán sugerem que talvez

não estivessem falando da mesma localidade, ou que suas obras, além de

testemunharem o fato de “terem estado ali”, segundo a suspeita de Clifford

Geertz, seriam uma tentativa de encontrar um lugar entre os que “estão aqui”,

nas universidades e simpósios.

Ao chegar a Maceió, para o seminário do LEME, Clarice Mota comentou

comigo que já estivera em Tepoztlán, ao que retruquei: “não poderei inventar muito,

não é mesmo?” No entanto, mesmo com o concurso da reconhecida generosidade da

período do carnaval, morei no bairro de Santo Domingo, e fui convidado por minha senhoria, Tamara Lipschutz, a integrar a “bola” (a turma) da comparsa Anáhuac, brincando atrás da banda dos “chinelos” de nosso bairro. A ela, que se tornou minha amiga tepoztiza (é texana, mas vive há décadas naquele orgulhoso pueblo mexicano) e a seus filhos Andreas e Sasha, dedico o presente trabalho.

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colega e, principalmente, a contar com a igualmente reconhecida indulgência

antropológica nesta seara, creio que posso me sentir a vontade; “a gusto”, como diria

em “Tepoz”, para construir este breve relato.

TEPOZTLÁN, o pueblo.

Tepoztlán é um município do Estado mexicano de Morelos, cuja formação

demográfica original é predominantemente indígena. Muitos dos habitantes locais são

bilíngües: falam o espanhol e o náhuatl. Quando lá cheguei, o “pueblo” ainda respirava

o ar da resistência política e cultural que aflorou em torno da mobilização dos habitantes

locais contra um projeto privado para a construção de um campo de golfe, em 1995.

Este empreendimento visava instalar, nas dependências do “Parque Nacional del

Tepozteco”, um clube de golfe e um condomínio privado de moradias luxuosas, contra

o que se rebelou a população local, construindo barricadas que impedia o acesso de não

moradores, ao ponto de conquistarem o privilégio democrático inédito da “autonomia

municipal”, vigente naquele período (ROSAS, María -1997).

Sua formação político-administrativa é constituída por oito bairros (eram ainda

sete, na época de Redfield), cada qual com a capela de seu santo padroeiro e sua

organização interna: realizam sempre uma festa anual em honra do santo do bairro,

através dos esforços coordenados e financiados por um mayordomo (festeiro) e seus

respectivos moradores. São bairros tepoztecos: Santo Domingo, São Miguel, La

Santíssima, Santa Cruz, Los Reyes, São Sebastião, São Pedro e Santa Cruz (pequena).

Os bairros, em geral, se fazem também representar através do símbolo de um

animal que adotam segundo sua vocação: em Santo Domingo era o sapo, indicador da

abundância de água no bairro; o símbolo de La Santíssima é a formiga; do bairro de São

Pedro é o cacomixtle (o furão), ambos por sua reconhecida incidência. As figuras destes

animais aparecem em destaque nos estandartes que anunciam as “comparsas” de cada

bairro. “Comparsas” são grupos organizados pelos bairros para o carnaval, compostos

pela banda, grupo de dançarinos, trajados de chinelos, e pelos simpatizantes (brincantes

em geral) locais. Durante o “brinco” (desfile das comparsas em torno da praça central

do povoado), se pode alternar entre as comparsas livremente, ainda que se possa manter

uma espécie de vinculação proxêmica com uma comparsa preferencial.

O nome Tepoztlán significa, em náhuatl, “lugar da machada de cobre”. Morada

do Tepozteco, divindade que se hospeda na pirâmide de mesmo nome. Esta divindade é

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conhecida como um “diós niño”, travesso e gozador, senhor dos ventos e da chuva, que,

em certa feita, levou uma carreira do grande Quetzalcóatl, seu irmão mais velho, de

quem fugiu literalmente “ventando” em função de uma de suas traquinagens,

produzindo com seu deslocamento os acidentes geográficos que são típicos daquelas

paragens: as montanhas cortadas, em grandes e vertiginosas retas, registram, segundo a

convicção dos zelosos tepoztecos, a rota da fuga del Tepozteco em direção à sua

morada. (BROTHERSTON, G. – 1995, p.186).

Ao Tepozteco, gentílico do povoado de Tepoztlán situado no noroeste do Estado

de Morelos, são atribuídas várias façanhas, entre elas, ter derrotado o monstruoso

Xochicálcatl, habitante do conhecido complexo de pirâmides de Xochicalco, que se

alimentava diariamente de um idoso do lugar, a quem lhe era sistematicamente ofertado.

Quando o menino tinha por volta de dez anos, chegou à vez de seu avô adotivo ser

oferecido ao monstro, para evitar maiores danos advindos de sua fúria. Nesta ocasião, o

menino teria dito: “eu irei em seu lugar”. O avô retrucou dizendo que, sendo tão

franzino, não iria aplacar o apetite do monstro. O garoto não se contentou com este

argumento e partiu, advertindo aos seus parentes que, caso aparecesse no céu uma

nuvem branca, ele havia conseguido derrotar o monstro. Ao contrário, se surgisse uma

nuvem negra, era sinal que havia sido vencido pelo temido Xochicálcatl. O menino/deus

partiu em direção ao complexo de Xochicalco recolhendo cacos de obsidiana e

colocando em seu bornal. Ao chegar frente ao monstro foi desprezado pelo mesmo ao

ver tão insignificante alimento que aquele dia havia lhe proporcionado: engoliu inteiro o

niño Tepozteco, sem sequer mastigar. Já no ventre do monstro, o jovem foi cortando

com os cacos de obsidiana o intestino do animal até encontrar o couro da barriga, donde

saiu são e salvo. O monstro havia morrido, salvando-se o menino e todo o seu povo.

(BESSO, H. & GONZALEZ, O.)

Situada a 74 km ao sul da cidade do México, Tepoztlán é um ponto atrativo para

o turista local e para os estrangeiros. Em sua famosa praça de tianguis (barraquinhas

onde se come comida típica e se pode provar as dezenas de cervejas mexicanas, servidas

quase à temperatura ambiente) se pode encontrar as requisitadas quesadillas (espécie de

pastel de tortilla de milho, recheado com queijo do tipo oaxaca e algum outro aditivo

como cogumelos; flores de abóbora salteadas; carne picada ou frango desfiado), os

tamales (semelhantes às pamonhas de milho verde, recheadas e cozidas em folha de

bananeira: com carne, queijo, etc.), hongos diversos (cogumelos comestíveis),

chapolines (gafanhotos crocantes, tostados e temperados com sal e limão), além de

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sucos de frutas locais, variados de outros insetos comestíveis (além dos gafanhotos),

além dos indefectíveis nopales, cactácea semelhante à nossa palma, vendidos pelas

índias que circulam na feira.

O artesanato também tem bastante prestígio junto aos visitantes, sobretudo os

têxteis e as tapeçarias indígenas. Neste caso, são vendidos por comerciantes locais que

se encontram estabelecidos, em sua maioria, em pequenas lojas espalhadas pelas

estreitas ruas do povoado. As terapias holísticas, temazcales 4, e um sem número de

itens esotéricos que também são motivo de expressiva demanda pelos turistas tornaram-

se a especialidade dos moradores tepoztizos (imigrantes americanos, italianos, espanhóis

e argentinos) que para lá acorreram, na década de setenta do século passado, em busca

dos “hongos mágicos”, segundo me informou Charlie, um dos mais conhecidos

tepoztizos de todo o povoado: professor de música de origem estadunidense que se

encontra radicado no México desde a década de 70 e integra uma das comparsas,

tocando trombone na banda de metais. Por sua aura mística e vasto repertório intangível

relacionado às lendas e mitos locais, Tepoztlán é considerado um “Pueblo Mágico”,

integrando um circuito nacional de turismo cultural, criado na forma de um Programa

pelo governo mexicano com a chancela da UNESCO. Em um dos mais visitados

restaurantes de comida tradicional mexicana instalado no povoado, Los Colorines, lê-se

ao final de cada cupom fiscal eletrônico emitido ao fechar a conta: “Cuando los

extraterrestres visitan Tepoztlán, comen en Los Colorines”.

Pueblo Mágico

O “La Jornada” é um dos mais prestigiados jornais mexicanos. Sua sucursal do

estado de Morelos publicou em uma manhã de sábado, 24 de novembro de 2007,

matéria intitulada: “Estrictas medidas en Tepoztlán para seguir en lista de Pueblos

Mágicos”. A matéria, assinada pelos jornalistas Kathia Jasso Blancas e Raúl Morales

Velázquez, tinha como subtítulo: “regulamentos para comerciantes, proibição do

consumo de bebidas alcoólicas em via pública e vigilância extrema aos visitantes do

monte (Tepozteco)”. 4 - Espécie de rito terapêutico de origem pré-hispânica em se que se produz um ambiente semelhante a uma sauna, com pedras quentes e ervas aromáticas, onde o cliente permanece em um pequeno recinto com o objetivo de eliminar as toxinas corporais a partir de intensa sudorese induzida, em geral durante algumas horas, sob a supervisão de um curandeiro e/ou terapeuta que conduz a sessão até seu término, após o qual o cliente receberá toalhas para a secagem do banho de ducha a que tem direito e receberá, por fim, um chá ou outro recurso hidratante.

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Segundo a reportagem, o então prefeito de Tepoztlán, Sr. Genaro Villamil

Demesa, havia anunciado a proibição estrita, a partir daquele momento, do consumo de

bebidas alcoólicas em via pública, bem como fechamento de bares e restaurantes a partir

das onze da noite, diariamente. Tais medidas, segundo a matéria, decorriam da

advertência sofrida pelo município de Tepoztlán, por parte da Secretaria de Turismo

Federal, de que o município poderia sair do “Programa Pueblos Mágicos”, caso não

tomasse providências no sentido de reprimir o abuso de álcool.

O prefeito teria ainda assegurado, nesta ocasião, que seu governo levou a sério

as repreensões que foram enviadas através da Secretaria de Turismo Federal que

indicavam que não estavam sendo observados alguns requisitos para que Tepoztlán se

mantivesse na lista como um dos 30 municípios com a distinção de “Pueblo Mágico”.

Entre as observações foi destacada a proliferação desmedida de comerciantes

ambulantes e a venda indiscriminada de bebidas embriagantes em via pública, situação

que teve de ser remediada, em concordância com a população. Villamil Demesa disse

que elaborou um regulamento para o comércio fixo, semi-fixo e ambulante, que não

existia. E entrou em entendimento com os cinco agrupamentos que integram o conjunto

de cerca de 300 comerciantes tepoztecos.

Como resultado dos acordos se derivou a colocação de um letreiro no acesso a

Tepoztlán mediante o qual se adverte aos visitantes que este município é considerado

um “Pueblo Mágico” e que “existem regras e uma delas é a proibição do consumo de

bebidas alcoólicas em via pública”, advertência que também foi fixada na entrada da

trilha montanhosa que leva à pirâmide do Tepozteco. Mediante assembléia, líderes dos

comerciantes e os comitês pelos mayordomos dos oito bairros que integram a

localidade, acordaram que só serão tolerados ambulantes no caso de artesãos e

camponeses, com suas respectivas mercadorias, a saber: artesanato e

hortifrutigranjeiros. Também se proibiu, nesta ocasião, a venda de produtos de

procedência duvidosa (cujo alvo principal era, sobretudo, os importados chineses). O

prefeito comentou que as medidas contra a venda de bebidas embriagantes também

diminuiriam o incremento de acidentes no monte do Tepozteco.

Uma vez que a Secretaria de Turismo notificou que a distinção de Pueblo

Mágico poderia ser revogada, caso a municipalidade não organize os mais de 25

estabelecimentos “callejeros” (barraquinhas e quiosques) que, sem nenhum controle,

vendem bebidas alcoólicas, a prefeitura afirmou que uma das primeiras medidas será

adotar medidas coordenadas com as autoridades do INAH (Instituto Nacional de

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Antropologia e História) para restringir o acesso ao sítio arqueológico e colocar guardas

para confiscar bebidas alcoólicas e não admitir a entrada para aqueles que se encontrem

visivelmente embriagados. Tais medidas incluiriam a supervisão das mochilas e bolsas

de mulheres que acessam o Tepozteco e será enfocada principalmente aos jovens

oriundos da Cidade do México que compram bebidas no caminho para o monte para

posteriormente serem consumidas nas covas (cavernas) ou na parte alta do sítio pré-

hispânico.

´El Brinco´ : controvérsias sobre a origem.

O baile carnavalesco dos chinelos constitui uma espécie de símbolo da

identidade morelense: um dos mais expressivos itens do patrimônio cultural, de

natureza imaterial, do Estado de Morelos - MX. Ocorre nos municípios de Yautepec,

Oacalco, Cualtlixco, Atlahuahuacán, Oaxtepec, Jojutla e Totolapan, sendo os de

Tepoztlán e Tlayacapan os mais destacados. A imagem do chinelo, desenhada na forma

do perfil de um brincante, onde se destaca a característica cobertura de cabeça,

transformou-se em logomarca regional, presente nos ônibus, muros de estabelecimentos

públicos ou mesmo como decoração de ambientes privados, restaurantes e lojas de

artesanato.

A cada ano, na época do carnaval, cada chinelo (dançarino trajado da comparsa)

desenvolve um estilo próprio de “bailar el brinco”: ainda que se conte com uma

coreografia genérica; um modo de dançar que é característico das comparsas de

chinelos. Desta forma, cada integrante vai desenvolvendo uma variante dentro do

padrão geral que implica em deslocar-se com base nos calcanhares, movendo os quadris

e deixando os braços soltos, caídos como se fossem de marionetes.

Segundo uma perspectiva nativista, diz-se que a dança dos chinelos e a

caminhada ritual que normalmente fazem as “comparsas” no início do carnaval

representam as ancestrais peregrinações astecas para fundar a cidade de Tenochtitlán (a

antiga capital do México), quando os nativos tinham que carregar nas costas pesadas

cargas de milho e outras mercadorias até o local da fundação: neste deslocamento quase

não moviam a parte superior do corpo, e sim os pés e as cadeiras. Esta visão mais

tradicional, colhida entre moradores de Tepoztlán e Tlayacapan e folhetos de divulgação

turística, procura encontrar nas raízes étnicas indígenas a gênese da “brincadeira”

carnavalesca. Nesta perspectiva, El brinco poderia também ter surgido do rito asteca

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conhecido como axcatzitzintin que consistia em ir de povoado em povoado coletando

grãos, flores e borboletas para que, posteriormente, os brincantes pudessem utilizá-los

na decoração de seus trajes. Assim, se difundiu esta prática cultural até chegar à forma

como hoje é conhecida. Ninguém sabe ao certo como reconstruir esta trajetória, nem

mesmo como foi se desenvolvendo a produção das fantasias que são hoje sua marca.

Alguns associam certos aspectos do baile às dramatizações das antigas batalhas de

mouros e cristãos, derivada de uma variante dos antigos ritos pré-hispânicos. Uma das

possibilidades para a origem da palavra chinelo viria do vocábulo náhuatl “tzineloa”,

que quer dizer “meneio de cadeiras” (CARMONA, A. A. - 2005).

Outra versão, mais heterodoxa (e historicamente mais plausível) para a origem

do folguedo diz que, por volta de fins do século XIX, um grupo de jovens nativos,

cansados de verem-se excluídos dos festejos carnavalescos (ainda mais porque

cumpriam o tradicional jejum da quaresma cristã), promoveu uma espécie de quadrilha,

produzindo grande balbúrdia, disfarçados com velhas roupas (huehuetzin 5), encobrindo

a face com pañuelos (tradicionais lenços mexicanos), assobiando e falando em falsete,

em uma espécie de burla dos espanhóis 6. Este grupo, dado o sucesso da primeira

edição, passou a se apresentar a cada carnaval, introduzindo elementos ano a ano, como

a máscara de face branca com longa barba e o modo desengonçado de bailar, típico dos

colonizadores, na versão nativa. A suntuosa roupa de veludo com aplicações de

lantejoula e miçangas, luvas e o tradicional sombrero del chinelo7 (item primordial do

traje, nos dias de hoje) faz com que o brincante sofra com o calor, sendo a inadequação

da veste completa ao clima quente, mais um elemento da crítica burlesca ao modo de ser

do elemento colonizador. Gradativamente foram agregados outros elementos, tais como

a banda de metais e o próprio nome de chinelo que, segundo esta visão, poderia derivar

alternativamente de palavra árabe “chinelas”, pois o uso deste tipo de calçado, como

parte integrante do traje, se encontra em conformidade com o estilo mais geral do

conjunto, claramente assemelhado às túnicas árabes.

Estas duas perspectivas (uma mais nativista e outra mais histórica), utilizadas

para explicar as origens dos chinelos, parecem até hoje competir no imaginário dos

moradores de Tepoztlán e Tlayacapan, que se envaidecem pelo renome de seus

carnavais: os primeiros por serem os mais conhecidos e visitados (em grande medida 5- Em náhuatl,”pessoa que se veste com roupas velhas”. Os dançarinos utilizam esta palavra para referirem-se uns aos outros. 6 - Informação da Casa de La Cultura de Tlayacapan, segundo prospecto local. 7 - Ver figura 1.

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como conseqüência do prestígio turístico do município de Tepoztlán) e os segundos, por

reivindicarem para si o status de locus original onde ocorreu o primeiro “brinco”.

A Festa

Quando participei do carnaval de Tepoztlán (fevereiro de 2008) vivia no Bairro

de Santo Domingo, na Rua Anicetto Villamar, em um pequeno imóvel alugado próximo

à casa de Don Pato; artesão, dançarino e hombre de gusto8 do bairro, detentor do saber

de confeccionar os elaborados e caros sombreros típicos do traje dos chinelos, que

falava com orgulho de sua comparsa (Anáhuac) do bairro de Santo Domingo. Estive

com Pato algumas vezes, antes, durante e depois do carnaval, quando me explicou sobre

o modo de funcionamento das comparsas e falou sobre as origens do folguedo.

Lamentou o pouco apoio da municipalidade para a realização do baile, que se limitava

em deslocar a praça de tianguis e fornecer os dispositivos de segurança necessários para

a plena realização da festa. O grande e principal apoio para as comparsas de cada bairro

vinha mesmo do mayordomo e da vizinhança que se mobiliza para a realização do

desfile da banda e do grupo de trajados. Este apoio consistia na comida e bebida servida

nos dias de carnaval, para dançantes e o pagamento dos músicos.

Minha companheira de “brinco”, Tamara Lipschutz, com quem compartilhei as

impressões do carnaval daquele ano, logo no início de nossa jornada me perguntou: “_

¿Sacáste El rollo?”, indagando se eu já tinha assimilado o passo básico daqueles que

acompanhavam banda de chinelos. Apoiados sobre os calcanhares, minha companheira

de “brinco” demonstrava como tínhamos que deslocar os quadris da esquerda para a

direita, em compasso ternário. Não é fácil, em um primeiro momento. A música da

orquestra de metais soava repetitiva aos ouvidos não iniciados e, a cada novo começo da

banda, o entusiasmo dos brincantes era notável, sempre que se iniciava uma peça, de um

total de não mais que cinco melodias claramente identificáveis em seu conjunto.

O combustível para tanto entusiasmo, fui logo entender, eram as renomadas

micheladas tepoztecas, cerveja acrescida de suco de limão, sal, pimenta do reino e, em

alguns casos mais excepcionais de criatividade gastronômica, molho inglês.

Consumidas em vasilhames (copos descartáveis) de 500 ml, em cuja borda se polvilha

chili (pimenta vermelha em pó) e sal, fazem parte do patrimônio cultural do carnaval

8 - A expressão hombre de gusto é utilizada para referirem-se aos guardiões de tradições específicas, vinculadas aos saberes indígenas e locais envolvidos em celebrações, danças, festas e rituais religiosos.

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tepozteco e a intensidade de seu consumo suscitou, no período em que lá estive, certa

polêmica: alguns moradores se perguntavam como um “Pueblo Mágico” poderia

garantir a manutenção de tal chancela sendo cenário da propagação de tão espúria

demanda. O consumo de bebidas alcoólicas nas ruas de Tepoztlán (fora dos restaurantes

e tianguis) não é oficialmente permitido, ainda que tolerado, em determinadas situações

(Cf. FIG 5). No período de carnaval, o controle é feito com o auxílio de forças policiais

vizinhas (como da localidade de Yautepec), convocadas exclusivamente para este

período em particular, o que não deixava de produzir conflitos com os moradores locais

de Tepoz, quando reprimidos por policiais estrangeiros.

Considerações Finais

O caso aqui brevemente apresentado, sobre o carnaval de Tepoztlán, serve para

refletir sobre os modos de construção e reprodução das políticas de patrimônio em

circuitos locais, nacionais e/ou globais. A dinâmica das negociações em torno da

produção da festa, as representações suscitadas, bem como as polêmicas acerca das

origens do folguedo, seus significados e modos de continuidade, permitem apreender a

dimensão negociada dos bens culturais, que podem se tornar objeto de políticas

públicas, bem como apontar para o caráter histórico das expressões e valores culturais,

em igual medida que as políticas e ações culturais que se relacionam com essas mesmas

expressões.

Por outro lado, políticas elaboradas para os campos do patrimônio cultural e do

turismo cultural na América Latina que estariam aparentemente alinhadas em uma

primeira vista, segundo alguns especialistas e pesquisadores da área de patrimônio com

quem estive em contato durante meu estágio pós-doutoral9 no México, muitas vezes não

se revelam convergentes ou mesmo compatíveis. Ao contrário, havia, a partir da

Convenção de Salvaguarda de 2003, uma cautela em relação às listas representativas da

UNESCO no sentido de que poderiam servir tão somente para fomentar a crescente

“indústria do turismo”, em particular no segmento do turismo cultural.

As diferentes versões sobre a origem do folguedo dos Chinelos, acionadas por

moradores de Tlayacapan e Tepoztlán e genericamente por todo o Estado de Morelos,

9 - Agradeço a atenção que tive, durante o estágio pós-doutoral, por parte dos colegas mexicanos, pesquisadores do INAH (Instituto Nacional de Antropologia e História), em particular aos Professores Dr. Antonio Machuca e Dr. Samuel Villela.

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refletem modos diversos de internalizar e reelaborar parte da história colonial. As

interpretações formuladas no exercício investigativo e de construção narrativa sobre o

surgimento do baile e de cada item do repertório que constitui o suporte material do

brinco refletem diferentes modos de internalização de um bem cultural pelo cidadão

comum. Perspectivas nativistas ou heterodoxas convergem, no entanto, no sentido de

circunscrever um campo que está relacionado aos processos identitários mais correntes,

bem como a todo um leque de possibilidades reflexivas que podem ser colocadas como

pauta para os debates entre especialistas do campo da educação patrimonial e das

políticas de patrimônio no contexto latino-americano.

BIBLIOGRAFIA

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SEP/INAH.

BROTHERSTON, Gordon. 1995. Las Cuatro Vidas del Tepoztecatl. In Estudios de

Cultura Náhuatl. Vol 25. México: UNAM / IIH.

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UFRJ.

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ANEXO FOTOGRÁFICO

FIG 1 - Grupo de chinelos, comparsa Anáhuac. 2008, foto do autor.

FIG 2 - Banda de metais. Comparsa de Santo Domingo. 2008, foto do autor.

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FIG 3 - El Pato, preparando o traje de Chinelo. 2008, foto do autor.

FIG 4 - Tianguis de comida. 2008, foto do autor.

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FIG 5 - Advertência contra o consumo de bebidas alcoólicas em via pública. Tepoztlán,

carnaval de 2009. Foto de Tamara Lipschutz.

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FIG. 6 - Cartão Postal de Tepoztlán, vendidos nas lojas de artesanato.