Dois estudos sobre a lei complementar no direito brasileiro

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Dois estudos sobre a lei complementar no direito brasileiro Felipe Lima Gomes FLG

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Dois estudos sobre a lei complementar no direito

brasileiro

Felipe Lima Gomes

FLG

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará

Biblioteca Setorial da Faculdade de Direito G633d Gomes, Felipe Lima.

Dois estudos sobre a lei complementar no direito brasileiro / Felipe Lima Gomes. – Fortaleza: Felipe Lima Gomes, 2012.

Livro eletrônico. 108 p. 1,11 MB. PDF.

Inclui Bibliografia. ISBN: 978-85-913652-1-0

1. Direito Constitucional - Brasil. 2. Legislação - Brasil. I. Título.

CDD 342.030981

Felipe Lima Gomes Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Ceará

Dois estudos sobre a lei complementar no direito

brasileiro

Fortaleza Edição do autor

2012

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

Felipe Lima Gomes

Junho de 2012

Felipe Lima Gomes (editor) Endereço eletrônico: [email protected]

TODOS OS DIREITOS LIBERADOS. Desde que citada a fonte, são expressamente permitidos (e encorajados pelo autor/editor) o download, a retransmissão, o arquivamento e a reprodução, total ou parcial, seja por que mídia for, deste livro. ISBN: 978-85-913652-1-0

Estes estudos são dedicados a

RAIMUNDO DE FARIAS BRITO

Maior filósofo brasileiro, nascido na cidade de São Benedito,

no alto do planalto ibiapabano, em especial homenagem pelo

centésimo quinqüagésimo aniversário de seu nascimento.

SUMÁRIO

Prefácio....................................................................................................................... 7

PRIMEIRO ESTUDO

Repasse histórico das leis complementares no direito constitucional

brasileiro

1. Colocação do tema................................................................................................ 13

2 Evolução da lei complementar no direito brasileiro................................... 15

2.1 Primeira fase........................................................................................................... 15

2.2 Segunda fase........................................................................................................... 27

2.3 Terceira fase............................................................................................................ 34

2.3.1 As teses restritivas: a matéria regulada como componente

necessário da lei complementar.................................................................................... 36

2.3.1.1 A contribuição de Geraldo Ataliba..................................................................... 36

2.3.1.2 A contribuição de José Souto Maior Borges..................................................... 40

2.3.1.3 A contribuição de Celso Ribeiro Bastos............................................................ 44

2.3.1.4 A contribuição de Sergio Reginaldo Bacha....................................................... 47

2.3.2 As teses ampliativas: a matéria regulada como componente

acidental da lei complementar...................................................................................... 52

Referências................................................................................................................. 57

SEGUNDO ESTUDO

Hugo de Brito Machado e José Souto Maior Borges sobre a lei

complementar: notas à margem de uma polêmica

1. Introdução à polêmica........................................................................................ 61

2. Exposição e crítica da polêmica....................................................................... 63

2.1 A doutrina de José Souto Maior Borges................................................................. 63

2.2 A doutrina de Hugo de Brito Machado.................................................................. 68

2.3 Outras considerações. Críticas preliminares às doutrinas expostas................... 73

2.3.1 O problema da hierarquia normativa................................................................... 75

2.3.2 Reserva material de lei reforçada pelo procedimento

e alguns problemas decorrentes dessa questão............................................................ 79

3. Esboço de uma tese para o problema das tensões

inter-normativas no direito brasileiro............................................................... 90

Referências.............................................................................................................. 106

PREFÁCIO

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Prefácio

Eu ainda era um primeiranista do curso jurídico e estava na primeira

cadeira de direito constitucional, quando foi dada uma aula sobre o processo

legislativo brasileiro. A professora desenhou um triângulo na lousa e começou a

escrever os atos jurídicos do ordenamento. Iniciou pela Constituição, no topo, e pôs

as leis logo abaixo. Nesse momento, surgiam algumas das dúvidas que consumiriam

boas horas da minha atenção nos anos subseqüentes. Estranhei profundamente a

afirmação de que havia uma lei “complementar” e uma lei “ordinária” – para mim,

como praticamente todas as pessoas “não-iniciadas”, lei era lei, sem muito mais. Os

adjetivos dados às leis também me causaram certo desconcerto, pois nem sempre era

uma lei complementar a que complementava a normação constitucional; por outro

lado, a lei ordinária é um instrumento legislativo extremamente importante para o

sistema jurídico nacional, a despeito de uma das acepções do termo “ordinária”,

como algo de pouco valor. Embora fosse simples compreender que a atuação do

legislador é de fundamental importância para o plano normativo inaugurado pelas

normas constitucionais, foi difícil conceber o motivo pelo qual se punham duas

espécies legislativas para isso.

Para minha surpresa, as descobertas “esquisitas” daquela aula não haviam

acabado. A maior e mais intrigante ainda viria. Não havia acordo sobre a relação que

se estabeleceria entre aquelas duas espécies de lei. Para muitos, a lei complementar

era hierarquicamente superior à lei ordinária, já que contava com um procedimento

mais reforçado de aprovação; entretanto, outros doutrinadores defendiam a tese

segundo a qual as leis complementar e ordinária dividiam o mesmo patamar

hierárquico, pois haveria apenas um campo material destinado, constitucionalmente,

à lei complementar, dentro do qual a lei ordinária não teria valor – em todas as

outras matérias, as duas espécies se equivaleriam. Não estou muito certo sobre o

resto da aula, mas imagino que a professora fez menção aos julgados do Supremo

Tribunal Federal, nos quais a corte reitera seu entendimento de que não há

hierarquia entre as leis complementares e ordinárias e que a lei ordinária pode dispor

sobre qualquer assunto fora da reserva material da lei complementar, mesmo

regulado anteriormente por ato desta espécie.

Terminada a aula, eu comecei a consultar algumas obras sobre o tema,

pois não acreditava muito na existência de uma incerteza desse nível em assunto que

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

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poderia trazer conseqüências práticas tão dramáticas para os cidadãos. E a minha

surpresa apenas aumentou, quando eu pude perceber que as polêmicas já contavam

décadas de idade e que boa parte dos maiores juristas brasileiros – alguns dos quais

eu apenas via citados nos compêndios que lia àquela época – já haviam tomado parte

no debate. E ainda não era tudo: um professor da faculdade em que eu estudava

defendia, com vigor, uma tese diferente, a qual teorizava a superioridade hierárquica

da lei complementar e a impossibilidade de suas normas serem derrogadas pelas

normas de uma lei ordinária superveniente, mesmo que a lei complementar não

estivesse nos quadrantes materiais indicados expressa ou implicitamente pela

Constituição. Esta tese poderia levar a resultados práticos inteiramente distintos, se

comparados aos resultados a que leva a tese que admite essa revogação.

Todas essas circunstâncias me levaram a acumular, progressivamente,

alguns trabalhos relativos à lei complementar. Com o tempo, dei-me conta de que

havia vários assuntos adjacentes às discussões, sem trato mais detido pelos

doutrinadores brasileiros (alguns pontos sobre processo legislativo e controle de

constitucionalidade, desdobramentos da distinção entre texto e norma etc.), cujo

estudo mais aprofundado – necessariamente passado por alguns autores

estrangeiros, pois alguns temas conheceram maiores desenvolvimentos em virtude

das particularidades de outros sistemas jurídicos – poderia abalar alguns

fundamentos das doutrinas correntes, ou mesmo corroborá-las de forma mais

consistente. O interesse me fez, ao final do curso, defender um trabalho monográfico

sobre a temática. Dois anos depois, retomei alguns pontos em escrito apresentado no

final de uma disciplina do curso de mestrado1. Com a dedicação dispensada à lei

complementar, resolvi divulgar alguns resultados das pesquisas empreendidas, sem

grandes pretensões, nos últimos anos. Se não por qualquer outro motivo, este

trabalho terá algum valor pelas referências consultadas, coletadas e selecionadas,

pacientemente, as quais podem servir como um bom roteiro inicial a quem quiser

realizar incursões mais ousadas.

Os dois estudos componentes deste opúsculo têm objetos bem distintos.

Na verdade, é possível afirmar que o primeiro é uma introdução ao segundo. Cuidarei

de apresentar os estudos nos próximos parágrafos; por ora, indico o ponto que

permeia os dois, apesar da diferença de objeto entre ambos: a nota de que a atividade

do legislador (e dos intérpretes que detêm a missão de atualizá-la) é decisiva para o

1 O segundo estudo que compõe este livro é um versão pouco mais desenvolvida desse trabalho.

PREFÁCIO

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sucesso (ou malogro) de uma constituição2. A forma como os constituintes e os

intérpretes de um texto constitucional encaram a normação dos poderes constituídos

pode ter graves impactos na efetivação das normas constitucionais, questão

especialmente relevante no contexto de uma constituição que trace metas

pretensiosas de regulação das relações jurídicas. Por outro lado, é fundamental que o

sistema normativo seja claro o suficiente para cumprir uma das grandes promessas

do constitucionalismo moderno: o conhecimento do direito em vigor pelos cidadãos.

Desta forma, um sistema de atos legislativos que dificulte em medida

desproporcional o desenvolvimento normativo do ordenamento, iniciado pelas

normas constitucionais, e/ou complique (também desproporcionalmente) o

conhecimento do direito pelos cidadãos trará prejuízos perfeitamente evitáveis, seja

pela ação do próprio legislador, seja pela ação dos intérpretes (no que incluo

magistrados e doutrinadores). Os juízos sobre a adaptação do sistema brasileiro de

atos legislativos aos desideratos indicados, sempre com maior ênfase dada à lei

complementar, estarão presentes em diversos momentos.

Minha idéia inicial era fazer um livro de dimensões mais significativas, que

pudesse dar um depoimento abrangente sobre o tema. Mas percebi que tinha

algumas pequenas idéias nunca lançadas, pelo menos no direito brasileiro, as quais

deveriam ficar sujeitas imediatamente a eventuais críticas e, na seqüência, passar

pelos últimos “testes laboratoriais”, medidores, de forma mais segura, do seu valor.

Elegi dois temas extraordinariamente caros a mim e que podem, em seus

desdobramentos, trazer à tona essas idéias. No primeiro estudo, realizo um breve

repasse do histórico da lei complementar no direito brasileiro. Dois adiantamentos

devem ser realizados: (1) o “marco zero” do histórico será a Constituição imperial;

não ignoro a existência de atos legislativos que complementaram o direito anterior,

mas a abordagem desse período seria impertinente e alongaria desnecessariamente o

estudo, uma vez que a atenção (no primeiro estudo, frise-se) está ao redor da relação

constituição-lei; (2) a lei complementar, com os elementos formais específicos, tais

como são conhecidos na atual Constituição, nem sempre existiu; apesar disso, já se

fazia referência a lei “complementar” para indicar o ato legislativo que desenvolvia

preceitos constitucionais, ainda que se tratasse de lei comum, do ponto de vista

2 Nessa linha, passei a dedicar atenção ao controle jurisdicional das omissões legislativas, grande problema do desenvolvimento normativo da constituição, ao qual a Constituição de 1988 trouxe novas dimensões, ainda carentes de exploração mais acentuada da doutrina e, principalmente, da jurisprudência.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

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formal. Este ponto será bem explorado. O que pode ser visto no primeiro estudo é

uma tentativa de resgatar, sumariamente, tudo o que foi pensado sobre a

complementação legislativa das Constituições brasileiras, para indicar as fontes do

ato legislativo especificado no inc. II, do art. 59, do atual diploma constitucional, bem

como as principais interpretações realizadas sobre a sua instituição.

No segundo estudo, a proposta é fazer uma exposição e algumas críticas a

uma das mais marcantes discussões sobre a lei complementar, travada entre José

Souto Maior Borges e Hugo de Brito Machado, com o objetivo de, a partir da

constatação da existência de algumas insuficiências das doutrinas dos dois, oferecer

um refinamento teórico para o trato das relações inter-normativas possíveis no

direito brasileiro. A polêmica entre os dois professores despertou-me vivo interesse,

por vários motivos, dos quais destaco os seguintes: envolvia dois grandes

tributaristas brasileiros; as teses são defendidas com vigor, marca dos grandes

embates intelectuais; cada professor envolvido se filia, de maneira geral, a uma das

duas grandes correntes doutrinárias sobre o tema, pois um (Maior Borges) defende a

identificação da lei complementar por seus aspectos formais e materiais (doutrina a

que nomeio restritiva, por reduzir o âmbito material de atuação da lei

complementar), ao passo que Hugo Machado defende a identificação da lei

complementar por seus aspectos formais (doutrina intitulada ampliativa, pelo fato

de deixar um campo material de atuação bem mais amplo a esse ato legislativo);

muitas das discussões tiveram como eixo um grande mal-entendido, pois os autores,

pelo mesmo nome, tratavam de coisas distintas (hierarquia normativa) – desventura

mais comum que o desejável em discussões jurídicas. O segundo estudo é o mais

propositivo dos dois, de modo que o primeiro, de leitura mais recomendada a quem

não conhece tão bem o tema, pode ser considerado uma grande introdução. A quem

domina satisfatoriamente a matéria, posso mesmo dizer que o segundo estudo deve

ser lido; o primeiro, apenas consultado, se necessário.

Um olhar pelas referências pode dar a impressão de que, com a quantidade

e a qualidade de opiniões emitidas sobre a lei complementar, o assunto já teria

esgotado todas as suas possibilidades, sem haver motivo para inspirar trabalhos

monográficos. Infelizmente, isso não é correto. Para citar uma confusão recente que

envolve a lei complementar na sua relação com a lei ordinária, veja-se a

jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de

Justiça. O primeiro tem deixado claro que nem toda solução de conflito dessa

PREFÁCIO

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natureza é de sua competência; apenas os casos em que esteja em discussão a

existência ou inexistência de reserva de lei complementar estabelecida pela

Constituição e de interpretação conforme às normas constitucionais são comportados

pela sua jurisdição3. A leitura atenta do inteiro teor dos julgados permite ver que a

jurisprudência do STF vai mais longe e expressa a incompetência do tribunal para

julgar os feitos nos quais a lei complementar é apontada como o parâmetro ao qual a

lei ordinária deve se conformar, caso não haja discussão relativa à existência de

reserva de lei complementar4. O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, tem

entendido que os conflitos entre normas de lei ordinária e de lei complementar são

sempre matéria constitucional, de competência do STF, impassíveis, pois, de

apreciação em recurso especial5, mesmo que seja argüida somente a

3 “EMENTA: TRIBUTÁRIO. CONFLITO ENTRE LEGISLAÇÃO LOCAL E LEI COMPLEMENTAR DE NORMAS GERAIS EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA. INTERPOSIÇÃO DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO ANTES DA EC 45/2004 (art. 102, III, D). MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. OFENSA INDIRETA OU REFLEXA. CONTRIBUIÇÃO DE MELHORIA. MUNICÍPIO DE LARANJEIRAS DO SUL. CONTRARIEDADE DA LEGISLAÇÃO LOCAL AO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. APURAÇÃO DO BENEFÍCIO INDIVIDUAL DEFICITÁRIA. LEI 43/1989. PROJETO 09/1993. EDITAL 05/1994. DECRETO 08/1995. 1. Nem toda contraposição entre lei ordinária e lei complementar se resolve no plano constitucional. Dentre outras hipóteses, a discussão será de alçada constitucional se o ponto a ser resolvido, direta ou incidentalmente, referir-se à existência ou inexistência de reserva de lei complementar para instituir o tributo ou estabelecer normas gerais em matéria tributária, pois é a Constituição que estabelece os campos materiais para o rito de processo legislativo adequado. 2. Num segundo ponto, é possível entrever questão constitucional prévia no confronto de lei ordinária com lei complementar, se for necessário interpretar a lei complementar à luz da Constituição para precisar-lhe sentido ou tolher significados incompatíveis com a Carta (técnicas da interpretação conforme a Constituição, declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto e permanência da norma ainda constitucional). 3. Nenhuma das duas hipóteses está configurada neste caso, pois a parte-agravante invoca o Código Tributário Nacional como parâmetro de controle imediato de norma local que teria falhado em apurar o benefício individual aferido por cada contribuinte, mas, ao invés, limitou-se a fixar o valor global da obra para rateio. 4. Na época da interposição do recurso ainda não vigia o art. 102, III, d da Constituição, incluído pela EC 45/2004. Agravo regimental ao qual se nega provimento (RE 228339 AgR, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 20/04/2010, DJe-096 DIVULG 27-05-2010 PUBLIC 28-05-2010 EMENT VOL-02403-04 PP-01235 RDDT n. 179, 2010, p. 171-173 RT v. 99, n. 899, 2010, p. 105-108)”. 4 Cf. o voto do relator do julgado referido na nota anterior. Vale fazer uma observação: o caso referido abordava uma pretensão consistente no controle normativo de uma decisão judicial que teria declarado válida lei local que descumpria um parâmetro de lei complementar. A emenda constitucional nº 45 trouxe essa hipótese de conflito para o âmbito do recurso extraordinário (art. 102, inc. III, “d”). Contudo, em linha semelhante de atuação, o STF já consolida a sua jurisprudência no sentido de admitir esse recurso extraordinário apenas quando houver a demonstração “de que a Corte de origem, ao julgar válida lei local contestada em face de lei federal, ofendeu o sistema de repartição de competências legislativas estatuído na Constituição” (cf. AI 774.514-AgR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 31-8-2010, Segunda Turma, DJE de 1º-10-2010. No mesmo sentido: AI 769.919-AgR-segundo, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 13-9-2011, Segunda Turma, DJE de 27-9-2011). 5 “PROCESSUAL CIVIL. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ART. 535, II, DO CPC. EVENTUAL CONFLITO ENTRE O ART. 42 DA LEI N. 9.430/96 E AS NORMAS GERAIS DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL, QUE POSSUI STATUS DE LEI COMPLEMENTAR. QUESTÃO QUE SE RESOLVE NO PLANO CONSTITUCIONAL. INADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL. 1. Não viola o art. 535, II, do CPC, o acórdão que decide de forma suficientemente fundamentada, não

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

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incompatibilidade entre normas de lei ordinária e de lei complementar! Ou seja: os

dois tribunais se recusar a apreciar o conflito entre as normas desses dois atos

legislativos, se não houver a discussão de fundo sobre a existência de reserva material

complementar, situação que pode causar grandes embaraços, por deixar alijados da

jurisdição dos tribunais superiores os casos nos quais não há motivo para discutir o

problema da reserva material. Embora não seja objeto dos estudos aqui reunidos a

prática jurisprudencial sobre esse ato legislativo, o exemplo aduzido demonstra que

os estudos sobre a lei complementar ainda têm um importante papel a cumprir em

nosso direito, inclusive para o foro, razão por que não merecem a pecha, tantas vezes

lançada com um tom pejorativo, de “meramente acadêmicos”.

São as linhas gerais do pequeno trabalho que apresento e distribuo,

gratuitamente, a todas as pessoas, no afã de receber as críticas que o merece.

Felipe Lima Gomes

[email protected]

estando obrigada a Corte de origem a emitir juízo de valor expresso a respeito de todas as teses e dispositivos legais invocados pelas partes. 2. A controvérsia restringe-se à suposta incompatibilidade do art. 42 da Lei n. 9.430/96 com os arts. 43, 110, 142, 148 e 195 do Código Tributário Nacional, diploma legal que, de sua vez - em face do que dispõe o art. 146, III, a, da Constituição da República -, foi recepcionado com status de lei complementar. No entanto, eventual conflito entre lei ordinária e lei complementar resolve-se no plano constitucional, de modo que a análise da matéria em questão, pelo Superior Tribunal de Justiça, configura usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal. A Primeira Turma, ao julgar os EDcl no REsp 588.057/PR (Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 19.6.2006, p. 101), enfrentou situação semelhante à dos presentes autos, ocasião em que decidiu que a índole constitucional da controvérsia impede o conhecimento do recurso especial, quer seja pela alínea "a" ou pela letra "c" do inciso III do art. 105 da Constituição. 3. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido (REsp 1226420/SC, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/02/2012, DJe 14/02/2012)”.

REPASSE HISTÓRICO DAS LEIS COMPLEMENTARES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

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REPASSE HISTÓRICO DAS LEIS COMPLEMENTARES NO

DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

1. Colocação do tema

Este estudo tem o objetivo de promover uma retomada da trajetória

histórica da lei complementar (e dos atos legislativos que lhe possam ser indicados

como antecedentes históricos) em nosso direito positivo. Deste modo, os esforços

aqui empreendidos vão no sentido de investigar as fontes do ato legislativo

consagrado, na atual Constituição brasileira, pelo inc. II, do art. 59. Conforme à

delimitação dada ao tema, o resgate das aparições da lei complementar em outras

constituições será feito apenas nos limites que se julgarem suficientes para a

compreensão da evolução do ato legislativo, sem se tomar qualquer atitude tendente

a um resgate histórico completo. Também será afastada a análise de atos legislativos

reforçados do direito estrangeiro, que possam ter servido de inspiração ao legislador

brasileiro, por razões que serão apontadas mais adiante1. Com esse intuito, a história

da lei complementar será dividida em três fases. A divisão comporta alguns

esclarecimentos fundamentais.

A primeira das fases propostas corresponde a um momento que vai desde

a primeira Constituição brasileira, única carta constitucional promulgada durante o

período imperial, em 1824, até à emenda constitucional nº 4, que modificou a

Constituição de 1946, emenda promulgada em 1961. Ao longo desse período, a

questão fundou-se na doutrina das leis complementares (também chamadas leis

orgânicas, embora haja quem estabeleça diferença entre as duas), que nada mais

eram do que os atos legislativos responsáveis pela complementação normativa dos 1 Sobre a influência do direito estrangeiro acerca da lei complementar, cf. nota 65.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

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dispositivos constitucionais. Não se reconhecia a existência de um ato diferente das

leis ordinariamente previstas nos diplomas constitucionais, de modo que a

caracterização da lei complementar se dava, fundamentalmente, pela função que

cumpria no “espectro contínuo de normação jurídica”, para utilizar expressão de

Gomes Canotilho2.

Na emenda constitucional referida, instituidora da segunda experiência

parlamentarista da história brasileira, veio a previsão de leis para promover a

“complementação” do sistema parlamentar de governo, cuja aprovação se daria por

maioria absoluta de votos nas duas casas do Congresso3. A partir de então, com a

construção doutrinária decisiva de Pontes de Miranda, pouco tempo depois de

promulgada a emenda, passou-se a enxergar uma nova lei que, se não constituía nova

espécie de ato normativo, ao menos já se mostrava como ato de constituição

tipológica diversa daquela projetada para as leis ordinárias que aquela Constituição

previa. Assim, com a matéria relativa à complementação do sistema parlamentar

restrita à lei de procedimento reforçado, se comparado ao da lei ordinária, esta ficaria

impossibilitada de tratar desse tema. Este período corresponderá à segunda fase da

evolução aqui proposta.

Finalmente, com o advento da Constituição federal de 1967 – a emenda nº

1, de 1969, não será considerada nova Constituição, para os fins do presente estudo –,

a qual encerra a segunda fase e inaugura a terceira, a sistemática da lei complementar

foi implantada com as mesmas bases até hoje observadas: trata-se de um ato jurídico

contido no bojo das disposições relativas ao processo legislativo, requerido,

expressamente, em algumas passagens do texto constitucional, como ato legislativo

para a normalização de determinadas matérias4. Além disso, tem o seu procedimento

diferenciado, nos moldes trazidos pela inovação da segunda fase; entretanto, não

ficou restrita a apenas uma matéria, com aparições em diversas passagens do texto

constitucional. A Constituição de 1988 não trouxe inovações significativas sobre o

tema, de modo que será tratada também na terceira fase, a qual trouxe consigo as

mais profundas discussões doutrinárias. Uma grande disceptação ainda marca a

2 Cf. Relatório sobre programa, conteúdos, e métodos de um curso de teoria da legislação (Separata do volume 63 do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1987)) Coimbra: Coimbra, 1990. p. 60. 3 Tratava-se do seu artigo 22: “Poder-se-á complementar a organização do sistema parlamentar de Govêrno ora instituído, mediante leis votadas, nas duas casas do Congresso Nacional, pela maioria absoluta de seus membros”. 4 Há discussão sobre se a Constituição também demanda, implicitamente, a lei complementar para a regulação de algumas matérias. O tema será enfrentado na exposição da terceira fase.

REPASSE HISTÓRICO DAS LEIS COMPLEMENTARES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

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doutrina nesta fase: uma tendência, majoritária, reduz o âmbito exclusivo de ação da

lei complementar (doutrina restritiva); outra, minoritária, amplia o âmbito de ação

da lei complementar para qualquer matéria que possa ser tratada por lei, seja

ordinária, seja complementar (doutrina ampliativa). Como se verá mais detidamente,

a diferença entre as duas teses defendidas pelas correntes traz graves consequências

práticas, especialmente no que diz com a possibilidade de revogação de norma

extraída de lei complementar por norma extraída de lei ordinária superveniente, caso

a Constituição não tenha reservado a matéria para a lei complementar. Para a

doutrina restritiva, norma de lei ordinária pode revogar uma norma de lei

complementar, caso não se esteja na reserva material que a Constituição destina a

esta (alguns doutrinadores são da opinião segundo a qual não se estará diante de

verdadeira lei complementar, caso o seu conteúdo extrapole a reserva material); para

a doutrina ampliativa, esta possibilidade deve ser negada, por força da posição

hierárquica que a lei complementar ocupa no ordenamento jurídico brasileiro. No

presente estudo, será realizado apenas um repasse das duas doutrinas. Como já

adiantado na introdução, o lançamento de uma tese sobre as resoluções de

antinomias normativas no direito brasileiro será realizado apenas no segundo estudo.

2 Evolução da lei complementar no direito brasileiro

2.1 Primeira fase

Uma das características mais marcantes do moderno constitucionalismo é

a presença de constituições escritas, ordinariamente vazadas em apenas um diploma,

solenemente promulgado, embora nem sempre democraticamente postas. Este foi

exatamente o pano de fundo da promulgação da primeira Constituição brasileira,

logo nos primeiros anos do período imperial, em 1824, depois da dissolução da

constituinte instituída em 1823: uma carta constitucional outorgada pelo imperador

Dom Pedro I, no ano subsequente ao malogro da constituinte. A primeira

Constituição brasileira contou com um número significativamente alto de artigos –

cento e setenta e nove. Bem mais, por exemplo, que a sua sucessora no período

republicano, que reunia apenas noventa e um artigos, os quais a fizeram a mais

sintética da história constitucional brasileira.

Nada obstante a quantidade de matérias e de artigos que a Constituição de

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

16

1824 somou em seu bojo, ela cumpriu a função de lançar apenas as bases

fundamentais da ordem jurídica que iniciou, a se revelar como o produto das decisões

fundamentais levadas a cabo quando da realização da constituinte. Por razão de

ordem prática, não seria viável aos constituintes promoverem a regulação,

pormenorizada, de todas as relações jurídicas que se venham a travar entre os

cidadãos. Essas razões fazem com que uma constituição traga em seu bojo apenas os

lineamentos medulares da ordem que funda, a ponto de João Barbalho ter dito que

“não seria ella constituição, mas tomaria o caracter e as largas proporções de um

codigo, si em seu contexto particularisasse a organisação completa das instituições e

serviços necessarios ao regimen que estabeleceo”5. Desta forma, a normatividade que

principia pela Constituição deve ser seguida por atos normativos outros que deem

prosseguimento à atividade nomológica, a fim de se prosseguir com o “espectro

contínuo de normação jurídica”.

O papel de continuação da normação iniciada pela Constituição pode caber

a diversos atos, admitidos que sejam por um ordenamento. No âmbito dos sistemas

constitucionais modernos, a lei assumiu papel preponderante de ato normativo

imediatamente posterior à Constituição na atividade normativa. E, em virtude da

natureza genérica das disposições constitucionais, demonstrada pela lição transcrita

acima, as normas constitucionais podem requerem algum ato superveniente que

possa dar continuidade à tarefa do constituinte; também há normas que admitem

restrições ou reduções em seus comandos, por meio de atos normativos ulteriores6.

As questões surgidas em virtude da aplicabilidade das normas

constitucionais foi, com precedência, alvo de graves preocupações nos Estados

Unidos da América, país que conta com uma Constituição extremamente sintética,

motivo que concorreu fortemente para a doutrina lançar seus cuidados sobre o tema.

A grande quantidade de ações judiciais vindas a lume sobre a matéria propiciou

5 CAVALCANTI, João Barbalho Uchôa. Constituição federal brasileira. Rio de Janeiro: Companhia Lytho-Typografia, 1902. p. 138 (Edição fac-similar. Brasília: Senado Federal, 2002). Na página anterior da obra citada, foi além o antigo ministro do Supremo Tribunal Federal, para notar que “é da natureza das constituições conterem sómente os lineamentos geraes da organisação politica que instituem, seos principios essenciaes e da descrição das funcções dos differentes orgãos do governo, indicando o objecto d’ellas, mas em geral sem descer aos meios particulares e ás providencias proprias da execução”. 6 Cf. BASTOS, Celso Ribeiro; e BRITO, Carlos Ayres de. Interpretação e aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Saraiva, 1982. p. 15. Prosseguem os professores: “Nestes casos, embora cuidando-se de manifestação normativa de um poder simplesmente constituído, o certo é que as prescrições da Lex Maxima são integradas pela vontade do poder ordinário. E por força mesma dessa integração, dá-se uma unidade monolítica de comandos constitucionais e infraconstitucionais, de sorte que a normatividade dos primeiros só se perfaz com a normatividade dos segundos”.

REPASSE HISTÓRICO DAS LEIS COMPLEMENTARES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

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estudos e decisões judiciais que culminaram na construção de uma teoria que passou

a dividir os ditames constitucionais, no que diz com a regulação de situações jurídicas

imediatamente após o início da vigência de uma Constituição, em dois: os auto-

executáveis (self-executing) e os não-auto-executáveis (not self-executing)7.

É bem verdade que a matéria referida experimentou avanços notáveis na

literatura jurídica brasileira na segunda metade do século passado, com grande

influência, além do direito norte-americano, como já aventado, do direito germânico

e, principalmente, do direito italiano8. Todo o modo, importa fazer a consideração de

7 A doutrina norte-americana clássica sobre a aplicabilidade das normas constitucionais foi insuperavelmente exposta no Brasil por Rui Barbosa, com a erudição que lhe marca a produção jurídica. Escreveu ele que são auto-executáveis (expressão por ele proposta como tradução de self-executing) aquelas determinações “para executar as quaes, não se haja mister de constituir ou designar uma autoridade, nem criar ou indicar um processo especial, e aquellas onde o direito instituido se ache armado por si mesmo, pela sua propria natureza, dos seus meios de execução e preservação”. Já as outras seriam aquelas que demandam uma ação legislativa para lhes tornar efetivos os preceitos (cf. BARBOSA, Ruy. Commentarios á Constituição Federal. Colligidos e ordenados por Homero Pires. v. II. São Paulo: Saraiva. 1933. p. 475-496, esp. 488). 8 Vale a feitura da exposição, a breve passo, as contribuições que maior repercussão tiveram na doutrina brasileira. Apoiado, sobretudo, na doutrina italiana, que se desenvolveu com a suscitação do problema após a Segunda Guerra Mundial, veio o pioneiro e brilhante contributo de José Horácio Meirelles Teixeira. Ele parte de uma crítica à doutrina clássica norte-americana, principalmente porque ela seria insuficiente para captar a programaticidade das Constituições surgidas no constitucionalismo de cunho social, característica marcante de diversos ordenamentos jurídicos da segunda metade do século XX. Nesse sentido, as normas constitucionais se deveriam classificar entre as de eficácia plena e de eficácia limitada ou reduzida. As primeiras seriam as que já tivessem, desde o primeiro momento, todos os elementos suficientes para incidir diretamente sobre a matéria que lhes constitui o objeto. As segundas são as que não produzem, de logo, todos os efeitos essenciais, por lhes faltar a “normatividade” suficiente para isso, pelo que requerem a atuação posterior do legislador, atividade para a qual estipulam certos princípios. As limitadas ainda se dividiriam em normas programáticas, que tratam de matéria eminentemente ético-social e formam um programa de ação social assinalado ao legislador, e em normas de legislação, as quais dizem respeito à organização da Constituição e, eventualmente, aos direitos e garantias fundamentais (cf. Curso de Direito Constitucional. Organizado e atualizado por Maria Garcia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. p. 285-361). Esta obra corresponde a apostilas referentes a aulas ministradas pelo autor desde a fundação da Faculdade de Direito da PUC-SP até aos primeiros anos da década de 60, conforme ao que noticia a organizadora do livro. Infelizmente, somente houve publicação desse material, preciosidade da literatura jurídica nacional, quase trinta anos depois da compilação das referidas apostilas. Na mesma esteira, Pontes de Miranda ofertou a seguinte classificação: regras bastantes em si, regras não-bastantes em si e regras jurídicas programáticas. As duas primeiras corresponderiam, em linhas gerais, aos dois tipos propostos pela doutrina americana clássica; as regras jurídicas programáticas, que tanto podem ser “bastantes em si”, como podem ser “não-bastantes em si”, seriam “aquelas em que o legislador, constituinte ou não, em vez de edictar regra jurídica de aplicação concreta, apenas traça linhas diretoras, pelas quais se hão de orientar os podêres públicos” (cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967 com a emenda nº 1 de 1969. t. 1. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987. p. 126-127). Em 1968, veio a lume a primeira edição da obra Aplicabilidade das normas constitucionais, de José Afonso da Silva, responsável pela mais influente classificação das normas constitucionais. Segundo ele, a divisão dar-se-ia em três tipos: normas de eficácia plena, normas de eficácia contida e normas de eficácia limitada. As primeiras podem ser dadas como correspondentes às de mesma designação na classificação de Meirelles Teixeira; as segundas são aquelas que produzem inicialmente todos os seus efeitos essenciais, mas trazem conceitos ou previsões que permitem a limitação da sua eficácia em certas circunstâncias; as últimas não produzem seus efeitos essenciais ab ovo, “porque o legislador constituinte por qualquer motivo, não estabeleceu, sobre a matéria, uma normatividade para isso bastante (...)”. Estas seriam ainda divisíveis em normas de princípio institutivo, que traçam princípios que deverão ser obedecidos pelos órgãos públicos, como

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

18

que, com adesão forte dos doutrinadores9, formou-se na doutrina nacional um

programas das respectivas atividades, com vistas à realização dos “fins sociais do Estado”, e normas programáticas, responsáveis por impor esquemas de gerais de estruturação e atribuições de órgãos para o legislador ordinário ao estruturá-las em definitivo (cf. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo. Malheiros, 2007. p. 81-87, 121-126, 135-138). Poucas obras monográficas foram tão influentes no constitucionalismo brasileiro, a servir de inspiração para tantos estudos por tanto tempo. Maria Helena Diniz partiu da classificação de José Afonso da Silva e propôs uma nova divisão, nos seguintes termos: normas supereficazes ou com eficácia absoluta; normas com eficácia plena; normas com eficácia relativa restringível; normas com eficácia relativa completável ou dependente de complementação. As normas supereficazes não podem ser revogadas, total ou parcialmente, de modo algum, pois são imunes ao poder de reforma. Elas têm uma eficácia positiva, com incidência imediata, e uma eficácia negativa, por vedar qualquer norma em contrário. No caso brasileiro, seria exemplo deste tipo de normas as que se extraem do § 4º, do art. 60, da Constituição. As normas de eficácia plena são idênticas àquelas propostas por José Afonso da Silva; as de eficácia relativa restringível são semelhantes às normas de eficácia contida propostas pelo professor acabado de citar. Já as normas de eficácia relativa completável demandam uma complementação por parte do legislador ordinário; têm eficácia “paralisante” das normas inferiores contrárias a si, embora não estejam infensas à alteração por emendas constitucionais. Podem ser de duas espécies: de princípio institutivo e programáticas, ambas com termos semelhantes aos de José da Silva (cf. Norma constitucional e seus efeitos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 98-105). Nos últimos anos, a doutrina de José da Silva tem ainda sido alvo de críticas, como as de Virgílio Afonso da Silva e Wilson Steinmetz. O último reparou a distinção que seria feita entre eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais, que não seria justificada por José da Silva. Além disso, critica o conceito de aplicabilidade das normas constitucionais como qualidade daquilo que é aplicável, o que representaria uma tautologia (cf. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 40-46). A crítica de Virgílio da Silva é mais abrangente e atinge os fundamentos daquela tese, pelo menos a respeito das normas de direitos fundamentais, que foram objeto de estudo de seu trabalho. Para ele, há três problemas com a tese de José da Silva: um terminológico, um classificatório e um existencial. O primeiro é relativo ao problema do termo designado para as normas de eficácia contida; com base na crítica de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Virgílio da Silva defende a nomenclatura “normas de eficácia restringível”, pois são normas que lançam todos os seus efeitos desde o início de sua vigência. O problema classificatório é também baseado em crítica de Manoel Filho, consistente na afirmação de que as normas de eficácia plena e contida formariam, a rigor, um só gênero, não duas espécies distintas, já que ambas lançam seus efeitos desde o início, sem necessária interpolação legislativa. O terceiro tem como apoio a tese, defendida por Virgílio da Silva, de que toda norma de direito fundamental pode, pelo menos em certas circunstâncias, ser restringida ou regulamentada (é praticamente impossível, para ele, apontar diferença entre restrição e regulamentação) pela legislação ordinária. Desta forma, deixaria de fazer sentido distinguir normas de eficácia plena e as normas de eficácia restringível. Além disso, como todas as disposições de direitos fundamentais precisam de regulamentação para produzir todos os seus efeitos, também não faria sentido diferenciar as normas de eficácia limitada, pois todas já o seriam. É importante notar, por fim, que Virgílio da Silva faz questão de deixar claro que a classificação a que faz essas críticas se ajusta à concepção dos limites imanentes dos direitos fundamentais, concepção da qual não partilha (cf. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 246-251). José Afonso da Silva dirigiu longa resposta às críticas de Virgílio da Silva e Wilson Steinmetz, cuja exposição aqui não tem maior interesse (cf. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo. Malheiros, 2007. p. 286-304). 9 Em passagem de seus comentários à Constituição de 1891, Carlos Maximiliano asseverou: “Regulamentar artigos da Constituição tem sido perigosa idéa fixa de notaveis homens publicos do Brasil. Assim como é rara, difficilima, quasi impossivel, uma lei apenas interpretativa, meramente declaratoria de outra; assim também, e pela mesma razão, quem se propuzer a regulamentar o disposto no codigo fundamental, de facto modificará, ampliará ou restringirá o sentido rigoroso do texto.” (Commentarios – Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiro, 1918. p. 112-113 (Edição fac-similar. Brasília: Senado Federal, 2005)). Geraldo Ataliba aponta, por força da passagem transcrita, Carlos Maximiliano como adversário da tese das leis complementares à Constituição, uma vez que tomara posição “extremamente prudente e radicalmente contrária” à tese líder da complementação da Constituição. Entretanto, talvez Ataliba se haja apressado na análise que empreendeu do pensamento de Maximiliano. A rigor, a admoestação de Maximiliano se voltava contra algumas tentativas, que àquela época se faziam, do Congresso de, em nome de uma “regulamentação

REPASSE HISTÓRICO DAS LEIS COMPLEMENTARES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

19

consenso, desde cedo, sobre a necessidade de a Constituição ser complementada por

outros atos normativos, que dariam prosseguimento à regulamentação das situações

jurídicas apenas delineadas vagamente pelas normas constitucionais. A partir disso,

começou a se formar uma doutrina das leis complementares à Constituição; não se

tratava da conformação de um ato legislativo que levasse um nomen juris específico,

com um procedimento diferenciado, mas, antes, de uma função a ser cumprida pelas

normas da legislação ordinária que complementavam as normas constitucionais.

Como se verá, a doutrina brasileira começou a cuidar do tema ainda no Império, para

chegar a formas mais desenvolvidas no final da década de quarenta do século

próximo passado.

A Constituição brasileira de 1824 já demandava, em diversos dispositivos,

sua complementação por leis ordinárias, não somente nos casos em que suas

previsões já regulavam parcialmente alguma situação, mas também nos casos em que

somente requeria a atuação legislativa, dando, ao poder constituído, ampla liberdade

de conformação. Como exemplo dos dispositivos em que se dava maior amplitude à

liberdade do legislador, cite-se a previsão de edição de um código civil e outro

criminal, que se deveriam fundar pela justiça e pela equidade, sem parâmetros mais

específicos relativos à matéria desses diplomas10. Para citar um caso em que a

Constituição de 1824 estabelecia maiores restrições à atividade do legislador, pode-se

da Constituição”, contorcer o significado desta, em flagrante desrespeito à supremacia constitucional. A propósito, noutra parte da mesma obra, Maximiliano escreveu : “á sombra das disposições dos ns. 33 e 34 [do artigo 34, da Constituição de 1891] propuzeram no Congresso leis interpretativas ou regulamentadoras da Constituição, cuja linguagem crystallina era adrede torcida e alterada no seu significado logico. Não se regulamentam Constituições; nem ellas comportam leis interpretativas, salvo quando votadas com os mesmos requisitos que se exigem para reformar o codigo supremo, de accôrdo com o artigo 90. Foram erros de época revolucionaria, que felizmente não medraram” (p. 429. Grifou-se). Como se vê, a reação de Maximiliano não se voltava contra a indigitada doutrina; voltava-se, sim, contra as tentativas furtivas do Congresso de usurpar a Constituição federal. Aliás, ele também afirmou que o poder da União de editar leis necessárias era um alargamento de sua competência, não uma limitação, o que foi lembrado pelo próprio Ataliba, e que incumbia ao Congresso organizar os “machinismos necessarios para pôr em accção effectiva os poderes conferidos ao Legislativo, Executivo e Judiciario pela Constituição Federal” (cf. a obra por último citada, às páginas 428-429, e ATALIBA, Geraldo. Lei complementar na Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971. p. 12-13). À vista disso, Ataliba parece ter-se equivocado ao afirmar que Maximiliano combatia completamente a tese das leis complementares. 10 Em 1830, era promulgado o código criminal brasileiro. Contudo, o código civil enfrentou uma saga tormentosa até conhecer sua promulgação. Ao longo do Império, foram feitas várias tentativas de promover a codificação do direito civil, um desejo partilhado pelo próprio imperador D. Pedro II, todas malogradas. Na República, essa história conheceu novos capítulos, até que, em 1899, o cearense Clóvis Beviláqua foi convidado para projetar o código civil. Depois de aproximadamente quinze anos de tramitação (e diversas alterações), promulgou-se, no primeiro dia de 1916, a lei nº 3071, que baixou o código civil. Como se pode perceber com este exemplo, o descumprimento das previsões constitucionais é um antigo problema brasileiro. É importante ressaltar que este estudo objetiva a trajetória da lei complementar no direito brasileiro, razão pela qual não se poderá tratar das omissões legislativas, embora seja matéria ligada seriamente à complementação legislativa da Constituição.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

20

trazer o art. 134, o qual, a propósito dos crimes dos ministros, dispunha que “uma Lei

particular especificará a natureza destes delictos, e a maneira de proceder contra

elles”11 (no artigo anterior, fixavam-se as condutas pelas quais os ministros poderiam

ser responsabilizados12). No último exemplo, tem-se claramente um caso em que a

previsão constitucional de responsabilização ministerial somente poderia ocorrer

com a promulgação da lei que cumprisse a demanda constitucional pela especificação

desses crimes e da forma pela qual se procederia contra eles – o que foi cumprido

pelo legislador em 1827, em lei que data do dia 15 de outubro13.

Embora a Constituição imperial tenha demandado certas atuações

legislativas, existe opinião de que isso não foi alvo da cogitação daqueles

constituintes. Afonso Arinos de Melo Franco afirma que, apesar do precedente da

Constituição norte-americana no tema, a primeira carta constitucional brasileira não

trouxe dispositivo claro sobre o assunto, o qual pareceu não ter sido interessante para

os legisladores. Arinos funda sua conclusão na interpretação que Pimenta Bueno deu

ao art. 15, § 9º, daquele diploma, segundo o qual era atribuição da Assembléia Geral

velar na guarda da Constituição e promover o bem geral da nação. Com isso, apenas

se conferiria competência ao legislativo para inspecionar o exato cumprimento das

leis, “um poder geral, conferido ao Parlamento, de fiscalizar todas as leis ordinarias

por ele votadas”14. Entretanto, há motivos para discordar de Arinos, ou, sem

discordar, complementar o pensamento desse juspublicista neste ponto15.

Em primeiro lugar, as referências da Constituição de 1824 a leis

posteriores, que lhe vinham a desenvolver certos parâmetros normativos mais ou

menos indicados, dão a nota de que a atividade do legislador constituído foi, em

diversas passagens, tomada em consideração pelo constituinte. Os dois exemplos

11 Há, na Constituição de 1988, artigo semelhante, relacionado ao presidente da república (art. 85). 12 “Art. 133. Os Ministros de Estado serão responsáveis: I. Por traição. II. Por peita, suborno, ou concussão. III. Por abuso do Poder. IV. Pela falta de observancia da Lei. V. Pelo que obrarem contra a Liberdade, segurança, ou propriedade dos Cidadãos. VI. Por qualquer dissipação dos bens publicos”. 13 Sobre este ato legislativo, Pimenta Bueno comentou: “Esta lei é uma das conquistas gloriosas do poder legislativo brazileiro nos tempos em que elle exercia todas as suas attribuições e era circundado de grande força moral” (Direito publico brazileiro e analyse da constituição do imperio. Primeira parte. Rio de Janeiro: J. Villeneuve, 1857. p. 263). Mais uma vez, nota-se que a resistência dos poderes constituídos ao desempenho de todas as suas atribuições é uma antigüidade de nosso direito. Diga-se, ainda, que a opinião de que o legislador não goza de grande reserva moral é secular e continua bastante acreditada. 14 Cf. As leis complementares da constituição. Tese (concurso à cadeira de direito constitucional). Rio de Janeiro, 1948. p. 13-14. 15 Adiante-se que, para o autor referido, as leis complementar são aquelas que põem “em funcionamento ou execução certos preceitos constitucionais” (As leis complementares da constituição. Tese (concurso à cadeira de direito constitucional). Rio de Janeiro, 1948. p. 7). A noção será retomada mais à frente.

REPASSE HISTÓRICO DAS LEIS COMPLEMENTARES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

21

trazidos pouco acima podem comprová-lo, e outros podem ser apresentados16. Em

segundo lugar, Afonso Arinos limitou sua análise ao n. 9, do art. 15, sem maior

justificativa. Esta opção carece de fundamento, à medida que há outros dispositivos

que conferiam à Assembléia Geral um poder mais abrangente, acerca da legislação de

complemento à Constituição. O n. 8, do mesmo artigo, conferia uma ampla

competência ao mesmo órgão (“Art. 15. É da attribuição da Assembléa Geral VIII.

Fazer Leis, interpretal-as, suspendel-as, e revogal-as”), competência que abrangia

diversas outras que a Constituição, por prolixidade ou por questões de segurança, fez

questão de explicitar em outras passagens, dentre elas a de “velar na guarda da

Constituição”; afinal, do que adiantaria a concessão do poder de fazer as leis, sem que

fosse também assegurado o poder de fazê-las cumprir com alguns instrumentos?17 Se

o legislador tinha ampla competência para legislar, e se havia um grande número de

previsões de atuação legislativa, que serviriam para complementar várias matérias

constitucionais, como negar que o constituinte tivera em mente a questão das leis

complementares? Não se vê um motivo convincente para isso. Em terceiro lugar, há

uma razão que pode ter contribuído para um menor cuidado sobre a matéria na

Constituição imperial: este diploma era um estranhíssimo caso de constituição escrita

que consagrava um conceito material de normas constitucionais18. Com efeito, em seu

art. 178, dizia-se que somente era constitucional o que dissesse respeito aos limites e

atribuições dos poderes políticos e aos direitos políticos e individuais dos cidadãos;

todo o mais, ainda que constante do texto constitucional, poderia ser alterado sem o

procedimento reforçado de reforma constitucional, em sede de legislação ordinária.

16 Apenas para citar mais alguns casos, podem ser ofertados os seguintes: o art. 6º, n. 5, trazia a previsão de uma lei que especificasse as qualidades precisas para a expedição de carta de naturalização, do que resultou a lei de 23 de outubro de 1832, depois alterada parcialmente pelo decreto nº 291, de 1843; o art. 97 previa lei para estabelecer o modo prático das eleições e o número de deputados em relação à população do Império (somente em 1846, pela lei nº 387, procurou-se cumprir o ditame constitucional, e a matéria ficou, durante todo esse tempo, basicamente, sob a regência de decretos, o que abriu margem para uma série de arbitrariedades nas eleições, como se pode consultar em SOUSA, Joaquim Rodrigues. Analyse e commentario da constituição politica do imperio do Brazil ou theoria e pratica do governo constitucional brazileiro. v. 2. São Luiz do Maranhão: B. de Mattos, 1870. p. 59 ss.). 17 Esta é exatamente a opinião do mesmo Pimenta Bueno, em que Afonso Arinos se apóia para afirmar que a Constituição imperial menospreza a atividade legislativa complementar, a dedicar atenção apenas à função de fiscalização das leis promulgadas (cf. Direito publico brazileiro e analyse da constituição do imperio. Primeira parte. Rio de Janeiro: J. Villeneuve, 1857. p. 105). 18 Muitas vezes, casos como esse são praticamente ignorados pela doutrina. Por exemplo, Francisco Campos afirmou que a distinção entre normas constitucionais formais e materiais é incompatível com o sistema de constituição escrita e asseverou: “o sistema de constituição escrita se acha, pois, visceral e inseparavelmente conexo ao conceito puramente formal do que seja uma lei ou cláusula constitucional” (cf. Elaboração legislativa. In: ______. Direito constitucional. v. 1. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1956. p. 393-394).

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

22

Trata-se de um detalhe importante para o tema em estudo, porque, se o legislador

poderia alterar a própria Constituição com leis comuns naquilo que não fosse matéria

constitucional, nos termos do art. 178, não havia razão para a previsão de atuação

legislativa superveniente nestes temas. É bastante plausível sustentar que esse foi um

motivo limitador dos casos de exigência constitucional por leis complementares, sem

que elas fossem desprezadas por completo, como se demonstrou.

Apesar dos antecedentes da Constituição imperial, foi realmente a partir

da elaboração e dos estudos sobre a Constituição de 1891, que a doutrina das leis

complementares se desenvolveu mais acentuadamente no Brasil e angariou a

preocupação dos grandes juristas que cuidaram das normas relativas à questão. Os

dispositivos constitucionais que diziam respeito à matéria eram os seguintes:

Art 34 - Compete privativamente ao Congresso Nacional: 33º) decretar as leis e resoluções necessárias ao exercício dos poderes que pertencem à União; 34º) decretar as leis orgânicas para a execução completa da Constituição.

As origens desses dispositivos dividiram vários especialistas. Para Carlos

Maximiliano, o antecedente do n. 33, do art. 34, era o art. 1º, seção 8, n. 18, da

Constituição norte-americana19. Sobre o número seguinte, João Barbalho vê relação

com o art. 108, do projeto da comissão formada ainda pelo governo provisório, que

conferia ao legislativo o poder de realizar a interpretação por via de autoridade ou

como medida geral20, o que valeu a crítica de Maximiliano, pois este entendia que

Constituição não comporta lei interpretativa, salvo quando votada com os mesmos

requisitos para reformar a Constituição21. Afonso Arinos critica a ambos, para afirmar

que a origem direta dos dispositivos são as diversas emendas apresentadas por Rui

Barbosa, grande artífice da primeira Constituição republicana brasileira, ao projeto

da comissão do governo provisório22. A crítica de Arinos não é de todo desarrazoada;

as emendas de Rui Barbosa tiveram inquestionável influência na configuração da

19 Cf. Commentarios – Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiro, 1918. p. 426 (Edição fac-similar. Brasília: Senado Federal, 2005)). O número da Constituição dos Estados Unidos a que se fez referência dispõe que é da competência do Congresso “to make all Laws which shall be necessary and proper for carrying into Execution the foregoing Powers, and all other Powers vested by this Constitution in the Government of the United States, or in any Department or Officer thereof”. 20 Cf. Constituição federal brazileira: commentarios. Rio de Janeiro: Companhia Lytho-Typografia, 1902. p. 138 (Edição fac-similar. Brasília: Senado Federal, 2002). 21 Cf. a obra citada na penúltima nota, à página 429. 22 As leis complementares da constituição. Tese (concurso à cadeira de direito constitucional). Rio de Janeiro, 1948. p. 15-17. Para conferir as emendas a que Afonso Arinos faz referência em seu trabalho, cf. Obras completas de Rui Barbosa. v. 17. t. 2 (A Constituição de 1891). Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1946. p. 40, 42, 43, 110. Disponível em http://www.casaruibarbosa.gov.br/rbonline/obrasCompletas.htm. Acesso em 06/05/2012.

REPASSE HISTÓRICO DAS LEIS COMPLEMENTARES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

23

redação final do texto constitucional, como se pode ver pela confrontação das fontes.

Seja como for, não se pode desprezar o antecedente da Constituição norte-americana,

lembrado por Maximiliano, ainda que como fonte indireta, sobretudo quando se tem

em mente a influência do direito dos Estados Unidos da América na formação

jurídica de Rui Barbosa, profundo conhecedor (também) do direito constitucional

desse país. Já João Barbalho parece realmente ter-se equivocado, pois o poder de

interpretar a Constituição, preconizado pelo projeto da comissão do governo

provisório, não deveria incluir (ou ser equivalente a)o poder para promulgar leis

orgânicas para a execução completa da Constituição.

À vista da redação dos dois números transcritos, é de se questionar se há

diferença real entre os poderes conferidos à União pelos dois, ou se se trata de um

zelo excepcional do constituinte, para garantir a situação jurídica que pretendeu

instituir. Maximiliano é da opinião de que o n. 34 é quase desnecessário, pois o que

dispõe já estaria encartado no número anterior23. Afonso Arinos, ao contrário, era da

opinião de que havia a conferência de poderes diferentes. Após louvar a nitidez no

trato da matéria, conferida pelas emendas de Rui Barbosa, defende que o n. 33 trata

de normas jurídicas que não visavam a instituições concretas, mas de normas que

tornassem possível a execução da faculdade de praticar atos do governo dos grupos

sociais, enquanto o n. 34 dizia respeito à criação de instrumentos adequados ao

serviço da União24. A divergência entre os dois intérpretes somente pode ser melhor

apreciada, caso se esclareça o que se entendia por lei orgânica, expressão nova em

constituições brasileiras.

Em definição que ganhou a adesão de muitos constitucionalistas, a lei

orgânica “tem por objecto regular o modo e a acção das instituições ou

estabelecimentos, cujo principio foi consagrado por lei precedente”25. É noção bem

funcional, mas a sua utilidade para o caso da Constituição de 1891 deve ser avaliada

mais criteriosamente. É fundamental sublinhar que se tratava de uma lei comum, é

23 Após falar o que consta do texto, Maximiliano faz o seguinte obtemperamento: “Entretanto a lei não diminue de valor por excesso de clareza; pois que a obscuridade é o seu escolho, - das duvidas vivem os escrivães” (cf. Commentarios – Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiro, 1918. p. 429 (Edição fac-similar. Brasília: Senado Federal, 2005). 24 Cf. As leis complementares da constituição. Tese (concurso à cadeira de direito constitucional). Rio de Janeiro, 1948. p. 24 ss. 25 Definição de Domingos Vieira, reproduzida por João Barbalho (cf. Constituição federal brazileira: commentarios. Rio de Janeiro: Companhia Lytho-Typografia, 1902. p. 138 (Edição fac-similar. Brasília: Senado Federal, 2002)).

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

24

dizer, não havia qualquer procedimento diferenciado para a sua produção26. Mas,

admitida a noção de lei orgânica de Domingos Vieira, chega-se a conclusão contrária

à de Carlos Maximiliano: é o n. 33 que se enquadra no que dispõe o n. 34, porque as

leis orgânicas também serviriam para decretar a regulamentação necessária ao

exercício dos poderes conferidos à União. Neste ponto, fica exposta uma das grandes

fragilidades da doutrina das leis complementares: como não havia uma conformação

diversa, no ordenamento jurídico, para as leis complementares, a doutrina vacilava

na análise do tema, pois cada autor poderia manejar as noções de uma forma

diferente. O caso das leis orgânicas dá mostra disso; foi uma expressão cravada na

Constituição, sem haver qualquer tradição no direito brasileiro, e sem qualquer

necessidade de se consagrar essa terminologia, por ser completamente desnecessária.

Poder-se-ia ter falado simplesmente em “lei”, sem mais, e restariam evitadas as

inúmeras páginas escritas na tentativa de se precisar o sentido das tais “leis

orgânicas”27.

A par das variações sobre o que seriam as leis orgânicas, a Constituição de

1891 proporcionou um aprofundamento da doutrina das leis complementares com a

acomodação da doutrina norte-americana das normas constitucionais auto-

executáveis e das que não o eram, especialmente propagada no Brasil por Rui

Barbosa28. O estudo da espécie teria experimentado importantes desafios com o

advento da Constituição de 1934, não tivesse este diploma vida tão efêmera, pois

houve a introdução de diversos preceitos programáticos, preceitos que levariam ao

26 Paulo Sarasate afirma que essas leis orgânicas não foram definidas através de um rito especial de votação, motivo pelo qual “não passaram (...) de leis ordinárias com um nome pomposo” (cf. A constituição do Brasil ao alcance de todos: história, doutrina, direito comparado e prática da Constituição Federal de 1967. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1967. p. 332, nota 9). A propósito, a denominação “orgânica” deve se creditar à antiga tradição do direito francês de nominar dessa forma as leis que criam e/ou estruturam os órgãos estatais (cf. próxima nota). 27 Especificamente sobre o termo “orgânica”, é muito provável que tenha vindo do direito constitucional francês. Léon Duguit intitulava orgânicas as leis que criavam os órgãos estatais e fixavam sua estrutura; as leis orgânicas incluíam as leis constitucionais e as leis de organização política, administrativa e judicial (No original: “Ce sont toutes les lois qui créent les organes de l’État et qui fixent leur structure. Cette catégorie de lois comprend à la fois les lois constitutionnelles rigides et toutes les lois d’organisation politique, administrative et judiciaire”). Duguit considera lei, em sentido material, apenas o ato que direciona um comando. Para enquadrar a lei orgânica como uma verdadeira lei em sentido material, ele explica que, embora não contenha um comando direto, ela implementa a organização do Estado de Direito, isto é, promove a organização estatal necessária à garantia, nas melhores condições, do cumprimento das obrigações que as regras jurídicas impõem (cf. Traité de droit constitutionnel. v. 2. 3. ed. Paris: E. de Boccard, 1928. p. 185-188). Com esta conformação, a lei orgânica não se diferenciava formalmente das leis comuns, pois era caracterizada pela função que cumpria no ordenamento jurídico. Contudo, a lei orgânica, pelo menos a partir da Constituição francesa de 1958, tomou um novo formato, com procedimento para aprovação distinto do previsto para as leis ordinárias (cf. nota 65). 28 Cf. nota 7.

REPASSE HISTÓRICO DAS LEIS COMPLEMENTARES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

25

enfrentamento amplo e diversificado da questão29. A Constituição de 1937 não teve

qualquer importância para o tema, pois o legislativo foi manipulado largamente pelo

governo central; a legislação infraconstitucional ao longo do “Estado Novo” foi

tomada, em grande medida, pela edição de decretos-leis por parte do presidente, que

podia emiti-los sobre matéria de competência da União, enquanto o Parlamento não

se reunisse30. Como as reuniões do Parlamento foram pouquíssimas no período,

muitos foram os decretos-leis nesse sentido (alguns dos quais ainda em vigor, tais

como os que instituíram a consolidação das leis do trabalho e o código de processo

penal).

A matéria teve de esperar pela promulgação da Constituição de 1946, para

conhecer novos desenvolvimentos. O grande número de artigos constitucionais que

desafiavam atividades legislativas supervenientes gerou a atenção não somente da

doutrina, mas também do Congresso Nacional. Na sessão da Câmara dos Deputados

de 12 de maio de 1947, Afonso Arinos apresentou requerimento (nº 44), para a

formação de uma comissão que cuidasse das leis complementares da Constituição,

que gerou uma comissão com representantes das duas casas congressuais, em raro

esforço de complementação normativa da Constituição31; contudo, muitas foram as

leis que deixaram de ser editadas.

A doutrina agitava-se sobre o problema das leis complementares, e ele

voltou à tona em virtude da discussão sobre o que aconteceria com a legislação do

“Estado Novo” que conflitasse com a nova Constituição, se seria revogada ou se seria

passível de controle de constitucionalidade. Foi em trabalho que cuidou desse ponto

que as leis complementares ganharam uma de suas mais repetidas noções da

primeira fase no direito brasileiro, pela mão de Nunes Leal:

Em princípio, todas as leis são complementares, porque se destinam a complementar princípios básicos enunciados na Constituição. Geralmente, porém, se reserva esta denominação para aquelas leis sem as quais determinados dispositivos constitucionais não podem ser aplicados. Conseqüêntemente, no caso em que tais leis não existam, mas estejam

29 A Constituição de 1934 remete à lei ordinária quase cem de seus dispositivos, aproximadamente cinco vezes mais que a de 1891. A Constituição de 1946 chegaria a mais de uma centena – números apontados por RODRIGUES, Rogério Costa. Leis complementares. Revista de informação legislativa, n. 17, jan./mar., 1968. p. 146. 30 Conforme à previsão do artigo 180 da Constituição de 1934: “Enquanto não se reunir o Parlamento Nacional, o Presidente da República terá o poder de expedir decretos-leis sôbre tôdas as matérias de competência da União”. 31 Essa comissão mista, por sugestão de seu relator, João Mangabeira, não cuidou de todas as leis que a Constituição requeria, pois isso implicaria a subtração da competência de todas as outras comissões parlamentares. Mangabeira, em seu parecer, sugeriu uma lista de trinta e seis leis sobre as quais a comissão deveria concentrar seus trabalhos (cf. a transcrição do parecer em RODRIGUES, Rogério Costa. Leis complementares. Revista de informação legislativa, n. 17, jan./mar., 1968. p. 152-155).

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

26

informadas por princípios de um regimen político diferente, como era no caso presente o Estado Novo, a sua reforma torna-se imprescindível.32

No ano seguinte ao do trabalho de Nunes Leal, Afonso Arinos retomou o

tema em tese de concurso. O desenvolvimento que emprestou à matéria ajuda a

caracterizar, ainda mais acentuadamente, os contornos da lei complementar na

primeira fase. Para Arinos, além das leis constitucionais de um país, deve-se

considerar “a necessidade de outras leis, que venham por em funcionamento ou em

execução certos preceitos constitucionais. Estas são as leis complementares da

Constituição”. As leis complementares se distinguiriam pelas necessidades especiais

por que são demandadas, muitas vezes pelo próprio texto constitucional, pois que

suas normas são necessárias à completa atuação constitucional. A lei complementar

pode se diferenciar pelo seu destino ou pela sua origem, o que justificaria sua divisão

em duas categorias: a primeira categoria é a da lei complementar que se refere ao

estado, “seja regulando os poderes que lhe tenham sido outorgados pela Constituição,

seja dispondo sobre os orgãos necessários ao funcionamento daqueles poderes”

(peculiaridade de destino); a segunda categoria inclui as leis que se aplicam aos

indivíduos “geralmente agrupados em classes sociais, mas, neste caso, decorrem de

uma solicitação direta do texto constitucional, que precisa delas para vigorar”

(peculiaridade de origem). Afonso Arinos, reiteradamente, sublinha que não são leis

hierarquicamente superiores às leis ordinárias, embora ressalte que sejam leis de um

“tipo especial, que se colocam entre a legislação e a constitucional”33.

Os trabalhos de Nunes Leal e de Afonso Arinos enfeixam os principais

pontos de conformação da doutrina das leis complementares nesta primeira fase. As

32 LEAL, Vítor Nunes. Leis complementares da constituição. Revista de direito administrativo, Rio de Janeiro, v. 7, jan./mar., 1947. p. 381. Em sentido semelhante, Meirelles Teixeira escreveu: “Em sentido amplo, são leis complementares à Constituição todas as leis que a complementem, seja tornando possível a sua aplicação, seja desenvolvendo suas normas, seja concretizando, na legislação e na administração, a orientação programático-ideológica por ela adotada”. Ele propôs, ainda, uma divisão dessas leis complementares nos seguintes termos: lei complementar fundamental, lei complementar orgânica e lei complementar comum. As fundamentais seriam as que desenvolvessem preceitos relativos à segurança do Estado, direitos políticos e à declaração de direitos; as orgânicas dariam forma e regulamentação aos órgãos do estado e aos entes menores, instituições e serviços estatais, como, por exemplo, a Justiça, o Tribunal de Contas, o Ministério Público etc., e as comuns visariam à aplicação dos demais dispositivos constitucionais, especialmente os relativos aos fins do Estado, à sua política social, à regulamentação de certas atividades particulares etc. (cf. Curso de direito constitucional. Organizado e atualizado por Maria Garcia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. p. 305-307, 362). Também expõe essa classificação SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo. Malheiros, 2007. p. 229. 33 Cf. As leis complementares da constituição. Tese (concurso à cadeira de direito constitucional). Rio de Janeiro, 1948. p. 7-9. A última afirmação não é desenvolvida pelo autor, pois não fica claro o que se deve entender por leis que se colocam entre as constitucionais e as comuns, já que não se punha o problema de leis comuns pautadas, formal ou materialmente, por leis complementares.

REPASSE HISTÓRICO DAS LEIS COMPLEMENTARES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

27

leis complementares são encaradas como leis ordinárias ou comuns, atos legislativos

que passam pelo mesmo procedimento em sua formação, sem haver superioridade

hierárquica entre as duas. A importância que se deu a estes atos legislativos pode ser

creditada à constatação de que eram necessários ao desenvolvimento normativo da

Constituição, a qual conta com diversos dispositivos dependentes de normação

posterior. A omissão do legislador nesse aspecto pode levar a uma frustração do

plano constitucional, quando não mesmo se converte em um processo indireto de

alteração da Constituição34. Esta é a doutrina que se pode chamar clássica das leis

complementares, mais tarde chamada doutrinária (Geraldo Ataliba), que se manteve

até ao início da década de sessenta, quando a instituição do parlamentarismo na

República trouxe uma inovação que mudou o rumo dos estudos da matéria.

2.2 Segunda fase

Como se viu, a primeira fase proposta para a doutrina da lei complementar

não se fundou em um ato legislativo com características formais diferenciadas. A lei

não tinha mais de uma espécie, embora tenha recebido um nome diferente em alguns

momentos (lei orgânica)35. Na segunda fase, a situação sofre uma alteração, pois,

além das emendas à Constituição e das leis ordinárias, passou a existir uma lei que

atravessava um procedimento diferenciado e tinha uma reserva material específica.

Com a promulgação da emenda constitucional de número 4, aos 2 de setembro de

1961, a qual inaugurou a segunda experiência parlamentarista do Brasil, estatuiu-se a

previsão de lei cujo modo de produção era diferenciado daquele previsto para os

outros casos. Trata-se da previsão contida no art. 22, da emenda já referida: “Poder-

se-á complementar a organização do sistema parlamentar de Govêrno ora instituído,

mediante leis votadas, nas duas casas do Congresso Nacional, pela maioria absoluta

34 Meirelles Teixeira já dizia que, juridicamente, a Constituição somente pode ser alterada pelos mecanismos de reforma ou de revisão, mas pode ter seu conteúdo alterado, indiretamente, pela interpretação, pelas leis complementares e pela inércia legislativa, “mediante a qual numerosos e importantes dispositivos constitucionais não passam de letra morta nas Constituições, belas figuras de retórica constitucional, sem nenhuma atuação ou repercussão efetiva na realidade social” (cf. Curso de direito constitucional. Organizado e atualizado por Maria Garcia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. p. 309, 364). 35 Notou-o Celso Ribeiro Bastos, em precisa e sucinta passagem: “A lei complementar tradicional não possui uma natureza definida a partir de caracteres imanentes, isto é, inerentes à sua intimidade. Adversamente, é a relação que mantém com o texto constitucional que lhe define a essência. Existem leis complementares porque as Constituições encerram normas completáveis” (Lei complementar: teoria e comentários. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos editor: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999. p. 24).

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

28

de seus membros”36. Além disso, é a primeira vez que o legislador se refere a uma

legislação como complementar37, embora lance mão do verbo, não do adjetivo38.

Como se pode notar, não houve o intento de estabelecer um ato legislativo

autônomo, ao lado dos outros, para regular outras matérias, que não as especificadas.

Entretanto, a evolução doutrinária sulcou a lei complementar no constitucionalismo

brasileiro a partir de então, de modo que a espécie veio a se consagrar

definitivamente em 1967, no bojo da Constituição nesse ano promulgada. Apesar

disso, como se verá com maior vagar, a caracterização da lei complementar na

segunda fase restou algo obscura, pois a influência da doutrina clássica impediu uma

análise mais original e abrangente do instituto, além de o dispositivo que a positivava

haver durado muito pouco tempo – o retorno ao sistema parlamentar deu-se na

emenda constitucional de número 6 (à Constituição de 1946), promulgada aos 23 de

36 O parágrafo único do mesmo artigo tratava da delegação legislativa sobre a matéria (“A legislação delegada poderá ser admitida por lei votada na forma dêste artigo”). O art. 25 da mesma emenda ainda trazia a hipótese de lei votada nos mesmos moldes, para dispor sobre a realização de plebiscito acerca do retorno ao sistema presidencial (“A lei votada nos têrmos do art. 22 poderá dispôr sobre a realização de plebiscito que decida da manutenção do sistema parlamentar ou volta do sistema presidencial, devendo, em tal hipótese, fazer-se a consulta plebiscitária nove meses antes do têrmo do atual período presidencial”), criticado por Paulino Jacques, em virtude de falar em plebiscito, ao invés de referendo, já que se trataria de uma consulta popular a posteriori. Foram apenas duas leis complementares promulgadas com base nesses dispositivos (nomeadas leis complementares e com numeração própria): a primeira data de 1º de julho de 1962 e realizou uma série de complementos ao regime parlamentarista, tais como a eleição do presidente, moção de confiança, Conselho de Ministros etc.; a segunda delas, de 16 de setembro de 1972, dispôs sobre a vacância do cargo de presidente e promoveu a convocação do plebiscito que veio a decidir pelo retorno ao presidencialismo. Analisa os pontos fundamentais dessas duas leis complementares, inclusive com a crítica referida há pouco, JACQUES, Paulino. O governo parlamentar e a crise brasileira. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982. p. 177-180. 37 Observação feita por Miguel Seabra Fagundes: “Conquanto o texto constitucional de 1946, como o de quaisquer Cartas Constitucionais, deixe muitas medidas à legislação ordinária posterior, e as leis oriundas de remissões da Constituição se digam complementares, na linguagem comum, foi no Ato Adicional [Emenda 4/61] que, pela primeira vez, se falou, no direito positivo constitucional vigente, de legislação complementar. Não se trata, já agora, de leis de execução de pontos basilares da Carta Magna, por isto denominadas, correntemente, de leis complementares, mas de leis que o próprio direito constitucional escrito qualifica de complementares” (FAGUNDES, Miguel Seabra. Parlamentarismo - Extensão do regime aos estados – Ato adicional – Leis complementares (Parecer). Revista Forense, n. 199, ago./set. 1962. p. 72). 38 “Em nossa história constitucional, a noção de “lei complementar” é mais velha que o adjetivo” (cf. SAMPAIO, Nelson de Sousa. O processo legislativo. São Paulo: Saraiva, 1968. p. 36. Faz anotação semelhante MAIA FILHO, Napoleão Nunes. Breve histórico e significado das leis complementares. In: ______. Estudos temáticos de direito constitucional. Fortaleza: UFC, 2000. p. 70. Não será absurdo interpretar a forma verbal utilizada pelo legislador como o indício da completa falta de intenção de criar uma nova espécie legislativa, que ganhasse autonomia, a fim de servir de instrumento para regulação de outras matérias. Corrobora esse entendimento a escolha da maioria absoluta dos componentes de cada casa do Congresso para a aprovação de tais projetos. Com efeito, esta fração deve ter sido designada por força da própria natureza do sistema parlamentar constituído, no qual os ministros dependiam da confiança da câmara e poderiam ser exonerados, caso fosse admitida uma moção de desconfiança. Esta moção de desconfiança deveria ser aprovada por maioria absoluta da Câmara dos Deputados (arts. 11 e 12, da EC 4/61). Portanto, o quórum de maioria absoluta não era exclusividade para a lei que complementava o regime, mas era uma pedra de toque de outros importantes institutos do parlamentarismo republicano brasileiro.

REPASSE HISTÓRICO DAS LEIS COMPLEMENTARES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

29

janeiro de 1963, com a revogação expressa da emenda de número 4.

Antes de prosseguir, vale a pena fazer uma observação. Boa parte de tudo o

que se produziu sobre a lei complementar a partir de 1961 diz respeito à (1) sua

relação com a Constituição, com a unanimidade da doutrina, desde o primeiro

momento, a apontar a supremacia constitucional sobre a lei complementar e (2) à

relação entre a lei complementar a lei ordinária, com especial ênfase sobre o posto

hierárquico assumido pelos dois atos no ordenamento jurídico. Nenhuma dessas

facetas constitui objeto principal do trabalho; todo o modo, convém anotar-se que, a

propósito do primeiro deles, nenhuma doutrina relevante ousou insurgir-se em

sentido contrário, até mesmo pela obviedade da solução. Já sobre o outro aspecto,

empreender um apanhado, ainda que breve, de tudo o que já se disse requereria pelo

menos outro trabalho de iguais ou maiores proporções que as deste, em virtude da

diversidade de opiniões e da turbamalta terminológica que se levou a cabo em cada

obra que tratou do tema; parcialmente, isso será buscado no próximo estudo, pois a

análise da polêmica entre Hugo de Brito Machado e José Souto Maior Borges sobre a

lei complementar demandará trânsito, ainda que indireto, pelas mais representativas

expressões doutrinárias. Todo o modo, o repasse histórico da matéria no direito

nacional não deixará de enfrentar, pelo menos tangencialmente, o assunto.

Trabalho importante no trato da matéria foi o já citado parecer de Miguel

Seabra Fagundes. Em manifestação acerca do art. 22, da EC 4/61, ele fez perceber

que as omissões sobre a formação do regime parlamentarista teriam de ser

preenchidas por atos normativos de grande relevância, motivo por que o constituinte

atribuiu particular importância à legislação assim prevista, marcada por duas

características expressas: a natureza complementar e a necessidade de um quórum

especial em cada casa congressual para a sua aprovação (in casu, maioria absoluta).

Estas duas características não seriam, ainda assim, suficientes para se incluir a

espécie normativa entre as leis constitucionais, pois não ligariam as leis

complementares à tramitação então exigida para as emendas à Constituição39. Pelo

exposto, vê-se que há a percepção de que as leis previstas na EC 4/61 traziam consigo

caracteres distintos, mas não se lhes conferiu autonomia com relação a qualquer ato

legislativo (notadamente, com relação à Constituição). Mais: admite-se que o

procedimento agravado e a marcação como complementar denotam apenas uma

39 Cf. Parlamentarismo - Extensão do regime aos estados – Ato adicional – Leis complementares (Parecer). Revista Forense, n. 199, ago./set. 1962. p. 72.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

30

importância extraordinária a tais leis reconhecida, sem maior impacto em sua

caracterização como legislação infraconstitucional.

O trabalho mais influente do período foi o de Pontes de Miranda, em seus

comentários à Constituição de 1946. Segundo ele, as leis complementares da emenda

4/61 seriam leis ordinárias, para as quais se exigiu quórum reforçado, mercê de

considerações políticas condizentes com o equilíbrio dos poderes. Em outra

passagem, há mais algum indício sobre o que ele pensava acerca da identidade

normativa das leis complementares ao sistema parlamentar:

Não se pode atribuir à lei complementar ou às leis complementares, de que se cogita no Ato Adicional, poderem emendar a Constituição de 1946 ou o Ato Adicional, porque não é lei constitucional. Porém seria frustrar-se o que está no Ato Adicional, como pressuposto de fundo e de forma, reduzi-la a lei ordinária pura. É lei intercalar.40

Ainda aqui, há como que a admissão de que tais leis complementares não

poderiam ser compreendidas como “meras” leis ordinárias. Entretanto, a sua

qualificação como lei “intercalar” não é suficiente para o estabelecimento de uma

caracterização prototípica diferente, pois ela é igualada à lei ordinária. A par disso,

pode-se dizer que Pontes de Miranda propugnava pela natureza ordinária (intercalar)

das leis complementares, destinadas apenas à complementação do sistema

parlamentar, matéria que passava a ser constitucional, pois integrava o corpo de uma

emenda à Constituição41.

Outra concepção muito influente na segunda fase foi a de Miguel Reale (e

que permanece influente até hoje), a qual se aproxima do pensamento de Pontes de

Miranda. Reale nota a crescente insuficiência da divisão clássica das leis entre

constitucionais e ordinárias, o que daria lugar à necessidade de intercalar um

“tertium genus de leis, que não ostentam a rigidez dos preceitos constitucionais, nem

40 Comentários à Constituição de 1946. t. 8. Rio de Janeiro: Borsoi, 1962. p. 178, 180. 41 A má compreensão destes elementos fez com que José Afonso da Silva achasse uma contradição na obra de Pontes de Miranda. Veja-se a crítica: “Pontes de Miranda [...] dizia que as regras jurídicas das leis complementares são de direito constitucional, mas foi contraditório, porque poucas páginas antes dissera, sem rebuços, que eram leis ordinárias, e também que não eram leis constitucionais, e, ainda, que não se poderia reduzi-las a leis ordinárias puras; concluindo, afirma tratar-se de leis intercalares” (Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo. Malheiros, 2007. p. 241-242). A leitura detida dos comentários, compreendida a situação em que a matéria se encontrava à época, mostra, todavia, que pode não haver a contradição apontada. Quando se diz que as “regras” das leis complementares previstas pela emenda citada eram de direito constitucional, é porque serviam apenas à complementação do sistema parlamentar, o qual, por seu turno, tornara-se uma questão constitucional pelo fato de integrar normação vazada por emenda à Constituição. Dizer que uma regra extraída de um ato legislativo é de direito constitucional não quer dizer que o próprio ato seja constitucional, isto é, integrante da Constituição, pois o ato pode servir exatamente para complementá-la, sem que a integre, e ser reputado de direito constitucional por conta disso. Seguramente, esta é a melhor interpretação para a afirmação de Pontes de Miranda sobre a natureza de “direito constitucional” das leis complementares.

REPASSE HISTÓRICO DAS LEIS COMPLEMENTARES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

31

tampouco devem comportar a revogação (perda da vigência) por fôrça de qualquer

lei ordinária superveniente”; essa categoria de lei serviria à complementação do texto

constitucional, ou de estruturação do Estado, também chamada “lei orgânica”, “para

cuja aprovação ou reforma se crê preferível exigir-se um quorum especial”. Reale

continua, sobre as leis cuja consagração ele sugere e defende, que se tratam “de leis

ordinárias para-constitucionais, achegadas ou limítrofes da Constituição, para cuja

aprovação se exige um quorum especial (...)”. Na seqüência, defende que a lei prevista

pelo art. 22, da EC 4/61, é uma espécie dessa categoria42. Percebe-se que a doutrina

de Miguel Reale é bastante semelhante à de Pontes de Miranda; chegam mesmo a

partilhar a noção de um tipo de lei que se situe entre as constitucionais e as

ordinárias.

Durou muito pouco a segunda experiência parlamentarista brasileira. Já

na emenda 6/63, ficou expressamente revogada a emenda de número 4, ambas à

Constituição de 194643. Conseqüentemente, por óbvio, o que havia de disposição

sobre as leis complementares previstas pela EC 4/61 se tornou, juridicamente, nada.

Entretanto, até à Constituição de 1967, o termo “lei complementar” e o quórum de

maioria absoluta ainda apareceriam no direito brasileiro com outros formatos.

Embora sem designação específica, o quórum de maioria absoluta voltou

ao direito positivo brasileiro na previsão de outra lei específica, estampada na EC

14/65, a saber: a lei “especial” que estabeleceria novos casos de inelegibilidades, além

dos que já existiam na Constituição44. Obviamente, tratava-se de influência das leis

complementares como foram trazidas pela emenda parlamentarista. Mesmo

revogado o sistema parlamentar, havia os defensores da manutenção destas leis em

nosso sistema. Mas a consagração das leis complementares como ato legislativo de

espécie distinta ainda teria de esperar um pouco mais.

42 Cf. Parlamentarismo brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1962. p. 110-112. 43 Dispunha o artigo primeiro da emenda 6/63: “Fica revogada a Emenda Constitucional nº 4 e restabelecido o sistema presidencial de govêrno instituído pela Constituição Federal de 1946, salvo o disposto no artigo 61”. Apenas para fins de registro, diga-se que o art. 61, da Constituição de 1946, dispunha que o vice-presidente da República exerceria a função de presidente do Senado Federal, no qual teria apenas o voto de qualidade. Como a EC 4/61 suprimira o cargo de vice-presidente (art.23), houve por bem o constituinte não mais cumular os cargos de vice-presidente da República, restabelecido, e de presidente do Senado Federal. 44 “Art. 2º - Além dos casos previstos nos arts. 138, 139, 140 da Constituição, lei especial poderá estabelecer novas inelegibilidades, desde que fundadas na necessidade de preservação: I – do regime democrático (art. 141, § 13); II – da exação e probidade administrativa; III – da lisura e normalidade das eleições contra o abuso do poder econômico e uso indevido da influência de exercício de cargos ou funções públicas. Parágrafo único. Projeto que disponha sôbre a matéria dêste artigo, para transformar-se em lei, dependerá de aprovação, por maioria absoluta, pelo sistema nominal, em cada uma das Câmaras do Congresso Nacional”.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

32

Foi na emenda constitucional 17, de 23 de novembro de 1965, que a

expressão veio à tona. O seu § 8º, do art. 6º, tratava da tramitação de projetos de leis

e dispunha sobre algumas fases do modo de produção para a reforma de códigos e de

“leis complementares da Constituição”45. Foi somente com esse dispositivo que se

deu “o ingresso solene, no Direito Constitucional Brasileiro, da locução integral

formada pelo substantivo (leis), seguido do adjetivo (complementares) (...)”46. Na

emenda subseqüente, de 1º de dezembro de 1965, que tratou da reforma do sistema

tributário brasileiro, a expressão voltou estampada em mais de uma ocasião. Havia a

previsão de lei complementar para trazer as hipóteses em que a União poderia

instituir empréstimos compulsórios47, assim como a previsão de lei complementar

para dispor sobre alterações e substituições tributárias entre 1967 e 196948, dentre

outras. A propósito, a EC 18/65 teve dois projetos, A e B, mas apenas o segundo foi

apreciado pelo Congresso. O primeiro chegou a prever, em seu art. 5º, a criação de

leis complementares, mais rígidas que as ordinárias, mas não logrou êxito na sua

tramitação49.

É de se indagar se essas disposições legislativas pertinentes à lei

complementar permitiam uma identificação deste ato com aquele que

complementava o sistema parlamentar, é dizer: a lei complementar, conforme ao que

aparece nas EC’s 17/65 e 18/65, tem o mesmo modo de produção da lei que

complementava o sistema parlamentar? Ambas devem atravessar o procedimento

agravado pelo quórum de maioria absoluta nas duas casas do Congresso? Doutrina há

que ofereça uma resposta positiva. Napoleão Maia Filho é da opinião de que, mesmo

à falta de especificação sobre o processo legislativo das leis complementares nas EC’s

17 e 18, de 1965, é de se entender que o quórum de maioria absoluta para aprovação é

aplicável ao caso; assim, as emendas à Constituição foram silentes acerca dessa

45 “Art. 6º [...] § 8º - Os projetos de leis complementares da Constituição e os de Código ou de reforma de Código receberão emendas perante as comissões, e sua tramitação obedecerá aos prazos que forem estabelecidos nos regimentos internos ou em resoluções especiais”. 46 MAIA FILHO, Napoleão Nunes. Breve histórico e significado das leis complementares. In: ______. Estudos temáticos de direito constitucional. Fortaleza: UFC, 2000. p. 71. 47 “Art. 4º - Sòmente a União, em casos excepcionais definidos em lei complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios”. 48 “Art. 26 Os tributos de competência da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, vigentes à data da promulgação desta Emenda, salvo o impôsto de exportação, poderão continuar a ser cobrados até 31 de dezembro de 1966, devendo, nesse prazo, ser revogados, alterados ou substituídos por outros na conformidade do disposto nesta Emenda. (...) § 1º - A lei complementar poderá estabelecer que as alterações e substituições tributárias na conformidade do disposto nesta Emenda, entre gradualmente em vigor nos exercícios de 1967, 1968 e 1969”. 49 Dá notícia dos dois projetos SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo. Malheiros, 2007. p. 234-235.

REPASSE HISTÓRICO DAS LEIS COMPLEMENTARES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

33

exigência “quiçá porque já estava introduzida no Direito Constitucional Brasileiro

desde a EC 4/62 (sic), que instituiu o Parlamentarismo no Brasil, de tão breve

duração, como é sabido”50.

Esta solução, todavia, padece de dificuldades que se afiguram

insuperáveis. Se, como já se disse, a EC 6/63 revogou expressamente a emenda

parlamentarista, tudo o que havia no bojo da última foi revogado. Portanto, como foi

acertadamente notado em trabalho de cunho monográfico sobre a lei complementar:

Ainda no período da Constituição 1946, quando a EC nº 4 (o Ato Adicional parlamentarista) foi revogada pela EC nº 6, de 1963, desapareceu a figura da lei complementar do nosso sistema legislativo. À época, do mesmo modo que nos textos de 1824, 1891, 1937, e do documento original de 1946, então emendado de modo a voltar às origens, somente existiam normas infraconstitucionais de duas categorias: as emendas constitucionais e as leis ordinárias, se bem que, em nosso entender, as emendas constitucionais sejam decorrentes de ação do Poder de Reforma Constitucional e não do Poder Legislativo, como as leis ordinárias.51

Portanto, desde a revogação da EC 4/61, deixou de haver a lei que

complementava o sistema parlamentarista, assim como o quórum extraordinário que

ela instanciava. A conclusão a que se chega é a de que as leis complementares das

emendas 17/65 e 18/65 eram leis ordinárias, com idêntico modo de produção, por

motivos de duas ordens: (1) em boa técnica, não se concebe que uma lei tenha o seu

modo de produção dado por dispositivos já completa e expressamente revogados,

que passam a constituir, por isso mesmo, meros fragmentos de história jurídica; (2)

ainda que o número 1 não já fosse decisivo, tem-se que a boa interpretação da EC

4/61 leva ao entendimento de que as leis que desafiavam, para sua aprovação,

quórum de maioria absoluta estavam, ali, adstritas apenas e tão-somente à

complementação de matéria designada, sem que se deva dizer que havia o intento de

criar um ente normativo autônomo que se prestasse ao vazamento de quaisquer

outras matérias.

Mais duas conclusões podem ser extraídas: (1) o título “leis

complementares” das emendas 17/65 e 18/65 é devido à completa confusão

legislativa feita entre a doutrina clássica da lei complementar e a lei complementar da

EC 4/61. O aparecimento da última, com as suas especificidades, com o mesmo título

que se dava, em sede doutrinária, a qualquer lei que complementasse os dispositivos

constitucionais deu origem a uma das maiores confusões que podem ser encontradas

50 Cf. Breve histórico e significado das leis complementares. In: ______. Estudos temáticos de direito constitucional. Fortaleza: UFC, 2000. p. 72. 51 REIS, Palhares Moreira. A lei complementar na Constituição de 1988. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 77.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

34

na matéria. Por vezes, não se tem o melhor domínio sobre quando é necessária uma

lei de quórum extraordinário, ou quando se pretende apenas uma lei ordinária que

complemente algum dispositivo, sem necessidade de desafiar o quórum especial.

Como o legislador nunca parece estar atento a esse tipo de questão, que tanto agasta

os juristas, geram-se discussões aparentemente infindáveis entre os doutores. O

problema somente se agravou com a sistemática adotada a partir da Constituição de

1967, que inaugurou a terceira fase, como será exposto; (2) o quórum de maioria

absoluta requerido por lei prevista na EC 14/65 não poderia ser estendido a

quaisquer outras previsões de lei, a menos que houvesse um dispositivo

(constitucional) expresso a fazê-lo, pois havia a completa ligação da lei prevista à

matéria trazida no mesmo dispositivo (art. 2º).

Pelo exposto, desde a EC 6/63, até à Constituição de 1967, o ordenamento

jurídico brasileiro voltou a ter apenas as leis complementares conforme à doutrina

clássica, ou seja: leis que apenas levavam adiante a normação iniciada pela

Constituição52, sem terem qualquer diferença formal em relação às leis ordinárias.

Todo o modo, a segunda fase deu rumo totalmente diverso à doutrina das leis

complementares, especialmente com a inauguração do quórum de maioria absoluta.

A novidade, mesmo afastada ao final do regime parlamentarista (e retomada na EC

14/65), fincou raízes na doutrina constitucional brasileira e permeou a produção

legislativa posterior, infelizmente, sem a precisão e a clareza que sempre são de se

esperar do legislador.

2.3 Terceira fase

A situação se alterou completamente com a disposição normativa da

52 Incisivo neste entendimento é Celso Ribeiro Bastos: “A expressão lei complementar surgiu expressamente pela primeira vez na Emenda Constitucional n. 17/65, precisamente em seu art. 6º, §8º (...) A Emenda Constitucional n. 18/65, por sua vez, nada mais fez do que citar as “leis complementares” como um dos meios possíveis para se regular o sistema tributário nacional. (...) Adverte-se, contudo, que apesar de se fazer menção à lei complementar ou orgânica, não se verifica nenhuma exigência das nossas Constituições no que diz respeito à necessidade de quorum especial ou qualificado para aprovação de tais leis. Conclui-se, portanto, que embora conceituadas como leis complementares, resta claro que não se tratavam da espécie de leis complementares que ora consideramos (art. 59 da Constituição Federal de 1988). Daí se depreende que é a partir da Emenda Constitucional n. 4 é que estamos diante de lei complementar como veículo normativo especial, pois a Constituição passa a expressamente exigir quorum especial para sua votação e a discriminar a matéria de sua atuação” (Lei complementar: teoria e comentários. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos editor: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999. p. 36-37). Faça-se uma observação: da forma como a lição ficou exposta, dá a entender que a EC 4/61 foi posterior às EC’s 17/65 e 18/65; na verdade, quando estoutras foram promulgadas, aquela já fora revogada pela EC 6/63.

REPASSE HISTÓRICO DAS LEIS COMPLEMENTARES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

35

Constituição de 1967, no que diz respeito a leis complementares. Este diploma elevou

a lei complementar a ato legislativo autônomo, com um modo de produção em todo

semelhante ao da lei trazida pelo art. 22, da EC 4/61. Mas havia uma diferença

fundamental: a lei complementar passou a ser demandada pela Constituição para

uma grande quantidade de assuntos, e o seu modo de produção já não vinha mais

trazido a cada dispositivo que a requeria; seu procedimento passou a ser previsto no

disposto para o processo legislativo em geral, e há apenas referência (implícita ou

explícita) à lei complementar nas matérias em que se decidiu requisitá-la. Esta

diferença trouxe consigo inovações fundamentais na compreensão da lei

complementar, inclusive sobre a sua constituição formal. Embora a doutrina haja

dedicado mais atenção à questão do relacionamento entre as leis complementares e

ordinárias, também a caracterização da lei complementar ganhou algum relevo.

Esta discussão, que interessa mais de perto, passou a existir exatamente

pelo fato de as Constituições de 1967 e 198853 terem feito surgir na doutrina uma

dúvida: as leis complementares se perfazem somente pelo procedimento que

atravessam nas casas legislativas, ou elas, além do elemento formal, deve,

necessariamente, tratar das matérias que constituem uma reserva material

determinada pela Constituição? Noutro dizer: poder-se-á dizer lei complementar um

ato que obedeça a todo o procedimento Específico, mas que não trate de matéria a ela

reservada expressamente54 pela Constituição? Ainda de outra forma: a regulação de

53 O artigo 49, inc. II, da Constituição de 1967, assim dispunha: “Art. 49. O processo legislativo compreende a elaboração de: (...) II – leis complementares das Constituição”. No artigo 53, do mesmo diploma, lia-se: “Art. 53. As leis complementares da Constituição serão votadas por maioria absoluta dos membros das duas casas do Congresso Nacional, observados os demais têrmos da votação das leis ordinárias”. A EC 1/69 trouxe alguma modificação nas redações dos artigos relativos à lei complementar. O art. 46, inc. II, passou a ter a seguinte redação: “Art. 46. O processo legislativo compreende a elaboração de: (...) II – leis complementares à Constituição”, ao passo que o art. 50 assim foi enunciado: “Art. 50. As leis complementares somente serão aprovadas, se obtiverem maioria absoluta dos votos dos membros das duas casas do Congresso Nacional, observados os demais termos de votação das leis ordinárias”. A nova dicção dos artigos trouxe inegáveis avanços técnicos. O art. 53, acima transcrito, não deixava claro se o projeto de lei complementar precisava do voto favorável da maioria absoluta dos membros do Congresso, o que se deixou mais claro na redação do art. 50, da Constituição emendada (apesar da imprecisão de redação, sempre prevaleceu o entendimento da aprovação por maioria absoluta). Permaneceu uma imprecisão: o texto constitucional fala em maioria dos membros das duas casas, sem explicitar se a votação se daria em reunião conjunta, ou em votações apartadas (uma em cada casa). Também aqui, apesar de a redação não ser a melhor, sempre se entendeu pela votação em cada casa, separadamente.Tributário do entendimento consolidado sobre o modo de produção da lei complementar, o texto da Constituição de 1988 é mais lacônico. O art. 59, inc. II, traz o seguinte: “Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de (...) II – leis complementares”. Já o art. 69 diz: “As leis complementares serão aprovadas por maioria absoluta”. 54 Mesmo para muitos doutrinadores que incluem a matéria regulada como um caractere específico da lei complementar, a Constituição, em alguns casos, reserva certas matérias apenas de maneira implícita, sem fazer menção expressa à lei complementar. O exemplo mais citado é o da necessidade de lei complementar para a regulação dos requisitos que devem ser cumpridos pelas entidades elencadas

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

36

matéria consignada às leis complementares, pela Constituição, constituiria um

elemento do modo de produção das leis complementares, ou seria apenas um

acidente normativo, sem fazer parte de sua formação específica? A conseqüência

prática mais relevante da resposta a essa indagação consiste na ampliação ou na

restrição do âmbito de atuação da lei complementar: caso se entenda que a lei

complementar tem uma reserva material exclusiva, fora da qual ela se

descaracterizaria (doutrina que aqui se intitula restritiva), o seu uso seria

significativamente restrito, se comparado ao espectro de situações em que ela poderia

ser usada, se não fosse limitada aos assuntos aos quais as normas constitucionais a

restringem (doutrina ampliativa).

O segmento majoritário, há muito dominante na doutrina (e também na

jurisprudência), com integrantes do mais alto nível da publicística nacional, responde

afirmativamente à questão formulada. Outra corrente doutrinária surgiu, com

opinião diversa, a entender que a autonomia normativa da lei complementar

prescinde da ligação a uma matéria que lhe esteja afetada pela Constituição. Essa

disceptação doutrinária justificará a exposição da evolução dessa fase com a divisão

entre as duas correntes doutrinárias elencadas. Estrategicamente, a doutrina

restritiva será exposta por meio da doutrina de seus mais difundidos defensores,

maneira que se justifica pelas variações que podem ser observadas na construção de

cada autor. Deste modo, embora sejam expostas as opiniões de autores específicos,

nada impedirá a confrontação com outros autores, incidentalmente. A doutrina

ampliativa será exposta sem divisão, pois a unidade do pensamento de seus

defensores não impõe maiores fragmentações em sua apresentação.

2.3.1 As teses restritivas: a matéria regulada como componente necessário da lei

complementar

2.3.1.1 A contribuição de Geraldo Ataliba

Três anos após a promulgação da Constituição de 1967, veio a lume estudo

seminal sobre o assunto das leis complementares. Tratava-se de um artigo de Geraldo

no art. 150, inc. VI, “c”, da Constituição de 1988, a fim de não terem impostos instituídos sobre seus patrimônios, rendas ou serviços. A doutrina sói justificar essa necessidade pela previsão (expressa) de lei complementar para a regulação das limitações constitucionais ao poder de tributar (art. 146, inc. II), hipótese em que aquela situação se encarta.

REPASSE HISTÓRICO DAS LEIS COMPLEMENTARES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

37

Ataliba, publicado em importante periódico da época55. Nele, Ataliba faz uma

elegante e erudita exposição da doutrina clássica das leis complementares, – o que já

denota a influência que ela ainda teria, – para concluir, ao final, imediatamente após

expor a classificação de José Afonso da Silva sobre a aplicabilidade das normas

constitucionais56:

Com base nesta excelente e criteriosa classificação, o autor conceitua, “lato sensu”, lei complementar como aquela destinada a completar a eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais. Assinala, entretanto, que a Carta constitucional vigente criou uma figura estreita, estrita e especial de lei complementar. A esta coloca como espécie do gênero leis integrativas da Constituição. Assim está colocado, hoje, o problema das leis complementares. Esta é uma visão esquemática e, pois, necessàriamente incompleta. O nosso sistema constitucional vigente, entretanto – embora sem rejeitar a categoria [lei complementar] – não a adotou inteiramente, o que será objeto de outro estudo.57

O texto reproduzido deixa entrever a dificuldade para realizar o

desligamento da doutrina clássica da lei complementar, mesmo com a positivação de

um ato legislativo com atributos propriíssimos, em tudo distintos daqueles da lei

complementar clássica, que apenas diziam respeito à relação que ela mantinha com a

Constituição.

O “outro estudo” mencionado por Ataliba veio a público em 1971. O

primeiro capítulo destoutro trabalho é apenas uma versão melhor acabada do artigo

citado há pouco. Na seqüência, teve lugar o que interessa mais de perto ao trabalho.

De saída, Geraldo Ataliba trata da denominação da espécie normativa de que cuida.

Aduz que a locução empregada pelo constituinte parece pleonástica, por ser caro, à

natureza da lei, complementar a Constituição. Não haveria, pois, “necessidade de

sublinhar e enfatizar aquilo que é claro e óbvio”, razão pela qual somente haveria

cabimento fixar de maneira expressa uma orientação na hipótese de esta contrariar

os princípios ou a técnica consagrada, universal e tradicionalmente. Todo o modo,

sempre de acordo com Ataliba, não haveria qualquer problema na adoção de tal

denominação58.

Sobre o criterium discriminationis da lei complementar é que o autor

revela a sua doutrina, repetidamente propagada ainda hoje. Segundo ele, caberia

indagar qual seria o conceito de lei complementar adotado pelo direito constitucional

55 ATALIBA, Geraldo. Eficácia jurídica das normas constitucionais e leis complementares. Revista de direito público, n. 13, jul./set. 1970. p. 35-44. 56 Cf. nota 8. 57 Obra citada na nota 55, em sua página 44. 58 Cf. Lei complementar na Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971. p. 27.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

38

vigente, e detecta a existência de duas (sub-)espécies da lei complementar: uma, a

clássica, que o seria por ordens conceituais, e a outra, que seria complementar pela

previsão expressa na Constituição, com procedimento próprio e matéria indicada no

texto normativo59. Para resolver o problema oriundo das duas leis homônimas, mas

diferentes, Geraldo Ataliba propôs dois conceitos de lei complementar: o doutrinário

e o jurídico-positivo. O doutrinário seria ligado à distinção entre normas auto-

executáveis e não-auto-executáveis, na forma proposta pela doutrina clássica. Assim,

“é lei complementar aquela que completa este tipo de norma [não-auto-executáveis].

Em oposição à lei complementar, segundo êste conceito, temos a lei ordinária”. Estas

leis seriam complementares “ontologicamente”, em oposição às outras, ligadas ao

conceito jurídico-positivo, que somente o seriam por força de expressa previsão

constitucional60. O conceito jurídico-positivo de lei complementar está ligado à

previsão constitucional expressa61 e para cuja elaboração é previsto um modo de

produção reforçado62. A contraposição das duas noções é resumida na seguinte

passagem:

Podemos, pois, sustentar que, se a Constituição não rejeitou o conceito doutrinário, também não o acolheu. Não há nenhum compromisso entre a formulação técnica da nossa lei maior e qualquer tese doutrinária. Diante do nosso sistema constitucional, pois, pode-se sustentar que, substancialmente, há duas espécies de leis complementares: aquelas que ontològicamente o são e aqueloutras assim qualificadas pelo texto expresso da Lei Magna. Só para estas últimas a Constituição exige processo especial de elaboração. Formalmente, portanto, só há uma espécie de lei complementar.63

Esta passagem explicita a influência da doutrina clássica. Mesmo com a

59 Foi além: “E a distinção é importante, não só porque umas são expressamente requeridas e outras só implicitamente admitidas – o que importa fazer supor mais importantes aquelas do que estas – mas também, porque a Constituição atribuiu regimes jurídicos diversos a cada espécie” (Lei complementar na Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971. p. 28). Mais tarde, Ataliba reviu seu posicionamento respeito da maior importância das leis complementares previstas pela Constituição (ver nota 78). 60 Lei complementar na Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971. p. 30-31. 61 O itálico aqui tem alta razão de ser: para Ataliba, a matéria da lei complementar tinha de, por definição, vir expressa. No mesmo sentido, era a definição Paulo Sarasate, para quem elas eram “aquelas que, aprovadas no mínimo pela maioria absoluta dos membros das duas casas do Congresso Nacional, e observados, na sua elaboração, os demais termos de votação das leis ordinárias, têm por objetivo regular os preceitos constitucionais cuja aplicação delas depende expressamente” (A Constituição do Brasil ao alcance de todos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1967. p. 333). Como já insinuado na nota 54, não são todos os autores que entendem que a matéria da lei complementar deva ser sempre indicada expressamente pela Constituição. 62 “É lei complementar – de acôrdo com o conceito jurídico-positivo – aquela expressamente prevista pelo texto constitucional e para cuja elaboração se previu processo especial e qualificado. Especial porque exclusivo e próprio da espécie; qualificado porque revestido de exigências que o tornam qualitativamente superior ao próprio das leis ordinárias” (Lei complementar na Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971. p. 30). 63 Lei complementar na Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971. p. 31.

REPASSE HISTÓRICO DAS LEIS COMPLEMENTARES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

39

admissão do afastamento da lei complementar “doutrinária” pela Constituição, o

conceito ainda é tido como o paradigmático no trato da matéria, a ponto de as leis

complementares jurídico-positivas não serem consideradas “ontologicamente”

complementares; é dizer: para Geraldo Ataliba, a lei complementar prevista pela

Constituição seria um artificialismo, pois a complementaridade da lei, na verdade, é

dada pela relação que ela estabelece com a Constituição. A dicotomia

doutrinária/jurídico-positiva veio para tentar resolver o problema surgido com a

homonímia das duas sub-espécies legislativas64. À vista do exposto, Ataliba somente

considerava complementar uma lei, no sentido jurídico-positivo, se congregasse dois

elementos: o formal, representado pela sua elaboração, e o conteudístico,

representado pela matéria que lhe é acometida65.

64 Atento ao inconveniente surgido com a questão terminológica, José Afonso da Silva propôs uma nova divisão das leis complementares. Haveria o enfeixamento das espécies sob a designação “leis integrativas da Constituição”, que compreenderiam as espécies leis complementares da Constituição (assim concebidas pela Constituição), leis integrativas orgânicas de entidades federativas (leis orgânicas municipais e do Distrito Federal, sujeitas a quórum especial para aprovação) e as leis integrativas sócio-ideológicas (que complementariam a eficácia normativa das normas constitucionais programáticas) (cf. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo. Malheiros, 2007. p. 244-245). Apenas as primeiras interessam para o trabalho. 65 A conjunção dos específicos elementos formal e material era já proclamada inequivocamente por doutrina anterior à obra de Geraldo Ataliba. Manoel Gonçalves Ferreira Filho defende que poderia até se pretender que a lei complementar não tivesse matéria própria, pelo fato de a complementaridade da lei ser entendida como provinda de um elemento objetivo formal: a aprovação por maioria dos membros do Congresso, nas votações de cada casa. Mas esta seria solução rejeitada pelo direito comparado: a lei orgânica francesa da Constituição de 1958 teria matéria própria. Encerra o professor referido: “A Constituição enuncia claramente em muitos de seus dispositivos a edição de lei que irá complementar suas normas relativamente a esta ou àquela matéria. Fê-lo por considerar a particular importância dessas matérias, só em decorrência dessas indicações expressas é que cabe lei complementar” (cf. Do processo legislativo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 238-239). A pretendida “clareza” com que a Constituição enuncia as matérias que pretende ver reguladas pela lei complementar sofreu acerba crítica em obra de Sérgio Reginaldo Bacha (ver nº 2.3.1.4). Também pela dualidade dos elementos da lei complementar antes de Ataliba foi Paulo Sarasate, como se constata pela sua definição de lei complementar, exposta na nota 61. Ainda a respeito da lei complementar no Direito Comparado, houve mesmo quem afirmasse que “tanto as nossas antigas leis orgânicas como as atuais leis complementares – quid novum no sistema jurídico brasileiro – tiveram sua genealogia intelectual no direito e na doutrina do país gaulês” (CRUZ, Diniz Ferreira da. Lei complementar em matéria tributária. São Paulo: José Bushatsky, 1978. p. 90). Marco Antonio Azkoul é ainda mais incisivo, ao dizer que, entre a lei orgânica francesa e a lei complementar brasileira, não há diferença alguma, “salvo a nomenclatura” (cf. Lei complementar: análise teórica e classificatória das leis complementares. São Paulo: Plêiade, 1995. p. 24). A loi organique francesa, desde a Constituição de 1958, é reservada para algumas matérias e o seu trâmite, especificado no art. 46 da Constituição da França, tem algumas peculiaridades, tais como o controle prévio de constitucionalidade pelo Conselho Constitucional (cf. BURDEAU, Georges; HAMON, Francis; TROPER, Michel. Droit constitutionnel. 23. ed. Paris : 1993. p. 649-651). É difícil falar em influência do direito estrangeiro sobre a lei complementar brasileira, considerado o histórico de sua inserção no direito positivo pátrio. Com efeito, sua primeira aparição foi na emenda parlamentarista, empreendido com vistas ao esvaziamento do poder de João Goulart, político de marcados pendores socialistas, o qual assumiria a presidencia da República em virtude da saída do renunciante Jânio Quadros. Sua segunda aparição, pelo menos com caracteres próprios, foi exatamente na Constituição de 1967, período de exceção, ao qual é difícil creditar alguma pesquisa no direito comparado para buscar o seu delineamento. Entre as duas aparições, a doutrina das leis complementares não desapareceu por completo; ao contrário, esteve

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

40

Passa-se, então, à exposição de importantes implicações dessa

caracterização da lei complementar. Se é verdade que a lei complementar tem o seu

campo próprio de incidência, a lei ordinária não o poderá invadir, pois dentro dele a

lei complementar goza de uma superioridade formal invencível pelos outros atos, que

não as emendas constitucionais. Ao revés, se a lei complementar extrapolasse seu

conteúdo fixado, seria, nesta parte, mera lei ordinária, que poderia ser, por outra lei

ordinária, revogada no que ultrapassasse o campo material reservado à lei

complementar. De qualquer maneira, devido ao seu procedimento reforçado,

poderia, nos termos expendidos, disciplinar outras matérias não reservadas a si.

Escreveu Ataliba: “(...) nada obsta a que a lei complementar discipline matéria

própria de outras normas (...) Mesmo porque, quem pode o mais, pode o menos”66,

como se o procedimento reforçado importasse uma procuração com maior poder

para o legislador, à semelhança do que ocorre no direito contratual.

Assim se pôs a questão da identidade da lei complementar para o autor em

consideração. O debate acalorou-se a partir da produção de Ataliba. Pela importância

do assunto para o direito tributário, por causa da necessidade de leis complementares

para a emanação de normas gerais na área, muitas das contribuições provieram de

tributaristas. E foi outro professor que se destacou principalmente pela produção no

direito tributário o autor de alguns dos mais influentes trabalhos sobre a lei

complementar na terceira fase.

2.3.1.2 A contribuição de José Souto Maior Borges67

Em 1973, foi à publicação estudo que trouxe novas luzes para a

compreensão da lei complementar. Nele, após abordar a questão da isonomia entre

as pessoas constitucionais, Maior Borges veio a negar superioridade hierárquica entre

as leis da União, dos Estados-Membros e dos Municípios68. Em seguida, o autor

introduz nova dicotomia para classificar as leis complementares: haveria as leis

presente, inclusive, na produção legislativa do período. Não se pretende excluir a importância das soluções de outros ordenamentos para a gênese do instituto; todo o modo, as peculiaridades deste no direito brasileiro requer profunda reflexão antes de se creditá-lo ao direito estrangeiro. 66 Cf. Lei complementar na Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971. p. 33-37. 67 A doutrina de Maior Borges, embora objeto do próximo estudo, não pode ser ignorada neste histórico, pela sua relevância no assunto. 68 Cf. Eficácia e hierarquia da lei complementar. Revista de direito público, n. 25, jul./set, 1973. p. 95-96. Essa idéia foi (parcialmente) revista pelo autor. A partir de seu livro sobre o assunto, ele passou a admitir a existência de leis complementares hierarquicamente superiores, por fornecerem o fundamento de validade a outros atos normativos. Cf. a referência da nota 77.

REPASSE HISTÓRICO DAS LEIS COMPLEMENTARES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

41

materialmente complementares e as formalmente complementares. As primeiras

estariam ligadas à doutrina clássica (jungidas à distinção entre normas auto-

executáveis e não-auto-executáveis). As segundas defluiriam do regime peculiar a que

essa figura legislativa está submetida no contexto da Constituição de 1967, emendada

em 196969-70.

Para Maior Borges, o regime jurídico específico a que está subordinada a

emissão de lei complementar (em sentido formal) somente se pode considerar

caracterizado quando está em jogo matéria constitucionalmente acometida à espécie,

além do procedimento reforçado previsto pela Constituição. Aquele seria o elemento

material, limite de fundo; este, “um critério formal que individualiza a lei

complementar em contraste e confronto com os demais atos legislativos”71. É

exatamente sobre a individualização da lei complementar pelo critério formal que a

atenção deve ser dedicada. Maior Borges criticava a doutrina que extraía, do

procedimento diferenciado, elemento formal, uma “superioridade formal” da lei

complementar. Para rebater esse argumento, ele afirmou tratar-se o procedimento

extraordinário de um requisito de eficácia desse ato legislativo, não um requisito de

validade:

O problema da eficácia, como vimos, só se coloca após o aperfeiçoamento – digamos, existencial – da lei complementar. A eficácia é conceito que supõe a preexistência da lei: o ingresso desta no sistema jurídico. Ora, o quorum do art. 50 da Constituição é tão-somente um requisito de existência: não um requisito de eficácia da lei complementar. A eficácia da lei complementar pressupõe a adequação do ato legislativo com os limites constitucionalmente postos à competência da União para editá-lo. Sem o quorum do art. 50 não existe lei complementar, o que independe e prescinde de qualquer consideração de eficácia.72

Criou-se, com isso, uma diferenciação entre os limites de fundo e o critério

formal da lei complementar: o critério formal diria com a própria existência –

igualada à validade – da lei complementar; uma vez respeitado, existiria,

perfeitamente identificável, uma lei complementar. Noutro passo, os limites de fundo

seriam constituídos pelas limitações postas pela Constituição à expedição dessas leis

complementares, as quais estariam ligadas à “representatividade político-jurídica”,

69 Cf. Eficácia e hierarquia da lei complementar. Revista de direito público, n. 25, jul./set, 1973. p. 99-101. 70 Já foi exposto que Geraldo Ataliba também fez classificação semelhante à de Maior Borges. Vale também a observação de que Pinto Ferreira propôs, sob critérios idênticos, a divisão entre leis complementares em “sentido lato” e em “sentido restrito” (cf. Lei complementar. In: FRANÇA, Rubens Limongi (Coord.). Enciclopédia Saraiva de Direito. v. 48. São Paulo: Saraiva, 1980. p. 495-496). 71 Cf. Eficácia e hierarquia da lei complementar. Revista de direito público, n. 25, jul./set, 1973. p. 100. 72 Eficácia e hierarquia da lei complementar. Revista de direito público, n. 25, jul./set, 1973. p. 101.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

42

como sintomas do cuidado específico que o constituinte resolveu dedicar a

determinadas matérias, em atendimento ao “regime da representatividade”; ou seja:

nada diriam com a validade do ato. Portanto, para Maior Borges, a doutrina que

apregoava a superioridade formal da lei complementar operaria uma “transposição

indevida da análise do plano da existência para o da eficácia da lei”73.

À vista do que se disse, fica caracterizada a doutrina de Borges como

restritiva do âmbito de ação da lei complementar. Realmente, apesar de o

procedimento atravessado pelo projeto de lei complementar ser erigido como (único)

fator de discrímen entre as leis complementares e ordinárias, na prática, a lei

complementar fora das matérias reservadas careceria de seu requisito de eficácia. A

propósito, não será demais notar que ele é o mais voraz dos críticos das teses que

ampliam o espectro de ação da lei complementar74.

O pensamento de Maior Borges sobre esse ponto mudou

significativamente em obra posterior, trabalho representativo um grande incremento

à cientificidade da abordagem jurídica da lei complementar, porque, além da análise

de aspectos tributários, lançou mão de alguns dos mais importantes recursos

justeóricos e jusfilosóficos da época. Em linhas gerais, para o que importa aqui, foi

mantida a distinção lei complementar em sentido material/formal, e se passou a

considerar a matéria regulada como elemento integrante da identidade específica da

lei complementar, como é possível perceber pela passagem a seguir transcrita:

A especificidade da lei complementar pode ser identificada no seu regime jurídico formal, único exclusivo e próprio da espécie, em contraste com a lei ordinária, eis que o quorum de aprovação da lei complementar é superior ao exigido para a lei ordinária, aliado ao seu regime jurídico material, relacionado com as matérias que constituem o objeto de regulação mediante lei complementar.75

A mudança de consideração é clara. Note-se que Maior Borges passa a

73 Apoiado em Pontes de Miranda, Borges afirma que a eficácia se põe após a incidência da regra jurídica, pelo que somente pode ser eficaz um ato que juridicamente existente (cf. Eficácia e hierarquia da lei complementar. Revista de direito público, n. 25, jul./set, 1973. p. 100-102). Na página subseqüente, ele resolve diferençar as leis complementares e ordinárias por força apenas do procedimento: “A única diferença irredutível entre a lei complementar e a lei ordinária reside na diversidade de quorum de aprovação. Nessa parte, diversifica o regime jurídico de ambas. (...) À luz do regime jurídico-formal estabelecido pela Constituição no disciplinamento do exercício da competência legislativa, só o quorum do art. 50 – requisito de existência – fornece a diferença específica da lei complementar em contraste com a lei ordinária”. É difícil afirmar o que ele pretendeu dizer com “diferença irredutível” entre os dois atos legislativos, mas a passagem transcrita parece isolada, pois Maior Borges sempre afirmou que a lei complementar se caracteriza pelos elementos de forma e de fundo. 74 Cf. Hierarquia e sintaxe constitucional da lei complementar tributária. Revista dialética de direito tributário, n. 150, mar., 2008. esp. p. 69-77. 75 Lei complementar tributária. Revista dos Tribunais/EDUC, 1975. p. 72.

REPASSE HISTÓRICO DAS LEIS COMPLEMENTARES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

43

aliar o regime jurídico material àquilo que confere especificidade à lei complementar,

em perspectiva indisfarçadamente diversa daquela adotada no artigo analisado.

Nessa senda, alguns outros aspectos são levados em consideração no livro,

impossíveis de avaliação sob aquele paradigma restringente: o de que apenas o

elemento formal diria com a validade da lei complementar. Como mais importante

exemplo está a consideração de que o ato legislativo que haja passado pelo

procedimento de lei complementar, mas cujo elemento material incida sobre matéria

passível de regulação por lei ordinária, será considerado lei ordinária, o qual poderá

ser revogado por outro que passe pelo procedimento de lei ordinária. E não é vedado

à lei complementar avançar o campo da lei ordinária, porque o quórum de maioria

absoluta chegaria mesmo a exceder aquele exigido para lei ordinária (maioria

simples). Então, quem pode o mais, pode o menos. Com relação à matéria, houve

outra inovação importante na doutrina de Maior Borges; em trabalho anterior, ele

considerava matérias de lei complementar apenas as expressamente consignadas

pela Constituição. Entretanto, considerações de ordem sistemática podem conduzir à

conclusão de que alguma matéria tenha de ser regulada por lei complementar, posto

que não haja prescrição constitucional expressa76.

Embora não se relacione tão proximamente com o objeto principal deste

estudo, será relevante lembrar outra grande intervenção de Maior Borges, que

decorre da inclusão da matéria regulada como componente específico da lei

complementar. Considerado o fato de a lei complementar ter o seu campo material

próprio, não haveria a possibilidade de ela entrar em conflito com a lei ordinária. Isto

porque os âmbitos materiais de cada uma não se interpenetram. Assim, se um ato

passado pelo procedimento de lei complementar for além do âmbito material

reforçado, lei ordinária será. Ao revés, se ato passado pelo procedimento de lei

ordinária passar para o âmbito material da lei complementar, padecerá de

inconstitucionalidade formal ou extrínseca. Essas considerações levaram à revisão de

uma das pedras angulares da doutrina dominante à época: a hierarquia entre as leis

complementares e ordinárias. Para Maior Borges, a existência de hierarquia entre as

leis é apenas contingente; ocorre apenas nos casos em que a lei ordinária extrai seu

fundamento de validade da lei complementar, sem que se fale em hierarquia entre as

duas quando não houver relação desse tipo (ele adota a noção de hierarquia que

Kelsen difundiu). Deste modo, promove uma divisão das leis complementares entre

76 Cf. Lei complementar tributária. Revista dos Tribunais/EDUC, 1975. p. 27, 29, 35.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

44

as que são fundamento de validade de outros atos normativos e as que não

fundamentam a validade de outros atos77-78.

2.3.1.3 A contribuição de Celso Ribeiro Bastos

De destaque na análise do ato legislativo que absorve as atenções do

trabalho é a obra de Celso Ribeiro Bastos, autor que cuidou do tema tanto em obras

gerais79, como em trabalho monográfico. O pensamento de Ribeiro Bastos sobre a lei

complementar remonta a uma classificação das normas constitucionais que propôs

em obra especializada no tema, escrita em co-autoria com Carlos Ayres de Brito.

Neste livro, os autores propõem uma divisão das normas extraídas do texto

constitucional em dois grandes grupos: normas de integração e normas de aplicação.

As últimas seriam as que não deixariam “interstício entre o seu desígnio e o

desencadeamento dos efeitos a que dão azo”; elas ainda se dividiriam em outros dois

grupos: as regulamentáveis e as irregulamentáveis. As primeiras, “malgrado seu

conteúdo pétreo (...), admitem sua regulamentação por via subalterna. Aceitam um

regramento ancilar, que se revele como instrumental à sua melhor aplicação”. As

segundas seriam oriundas de textos constitucionais a partir dos quais a vontade

constitucional surge e se exaure “como manifestação absoluta de respeito à sua

manifestação originária”80. Já as normas de integração seriam as que têm por traço

distintivo “a abertura de espaço entre o seu desiderato e o efetivo desencadear dos

77 Cf. a obra citada na nota anterior, às páginas 72, 79-90. 78 Essa lição de Maior Borges foi muito importante na produção jurídica posterior. Apenas para citar dois casos, José Afonso da Silva e Geraldo Ataliba revisaram suas opiniões iniciais de que as leis complementares seriam de hierarquia superior em seu âmbito material próprio. José da Silva chegou a afirmar, sem maior consideração: “As leis ordinárias são inferiores às leis complementares, pelo que têm que respeitá-las” (Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968. p. 237). Nas edições seguintes da mesma obra, ele admite a alteração de seu pensamento, para concordar com Maior Borges sobre a superioridade hierárquica das leis complementares “naquelas hipóteses em que a lei complementar seja normativa, ou seja, estabeleça regra limitativa e regulatória de outras normas” (cf. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed.São Paulo: Malheiros, 2007. p. 246-247). Geraldo Ataliba foi influenciado pelos trabalhos de Maior Borges, mas não aderiu à opinião de que pode haver hierarquia em certos casos. Para Ataliba, que defendeu inicialmente a superioridade da lei complementar sobre a lei ordinária (cf. Lei complementar na Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971. p. 34; no mesmo sentido, Fontes do direito; fontes do direito tributário. O problema das fontes na ciência do direito e no sistema brasileiro. Hierarquia das fontes como problema exegético. In: SOUSA, Rubens Gomes de et al. Interpretação no Direito Tributário. São Paulo: EDUC, 1975. p. 130-131), é impossível a existência de conflitos entre as duas leis, pois o âmbito material de cada uma é diferente, sem haver a possibilidade de superposição, razão por que não há diferença hierárquica entre as duas (cf. Regime constitucional e leis nacionais e federais. Revista de direito público, n. 53-54, jan./jun., 1980. p. 61). 79 Cf. Dicionário de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 99-100. 80 Cf. BASTOS, Celso Ribeiro; e BRITO, Carlos Ayres de. Interpretação e aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Saraiva, 1982. p. 38-44.

REPASSE HISTÓRICO DAS LEIS COMPLEMENTARES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

45

seus efeitos”. Sofreriam alguma deficiência no que respeita aos meios por que se

devem fazer efetivas, o que denota a existência de um “vazio regratório”, que tem de

ser preenchido por atos normativos supervenientes. Elas admitiriam uma subdivisão:

normas completáveis e restringíveis. As completáveis se caracterizariam pela

demanda de um complemento ao seu campo de atuação, “ou ao modo como plasmam

a matéria sobre que incidem”. As restringíveis, como a própria designação já faz

notar, têm o seu campo de incidência sujeito a alguma redução por normação

posterior81-82.

A partir dessa construção, Celso Bastos aduz que algumas normas

constitucionais necessitam da intervenção de outros atos normativos. Nesse sentido,

seriam leis complementares exatamente aquelas que vêm a preencher essas lacunas

da Constituição, “carecedora de elementos para sua integral eficácia, suporte para sua

incidência fática”83. Entretanto, observa Bastos, a partir da emenda parlamentarista,

foi positivada uma espécie legislativa também nominada “lei complementar”,

integrada completamente pela Constituição de 1967, mas que não tinha qualquer

compromisso com a lei complementar afeta à doutrina clássica. Vai mais longe, para

afirmar que o motivo de nominá-las “complementares” não chega mesmo a ser razão

bastante para considerá-las realmente complementadoras de normas constitucionais,

pois existem leis complementares que apenas executam dispositivos constitucionais,

sem que os complementem, de fato84.

81 BASTOS, Celso Ribeiro; e BRITO, Carlos Ayres de. Interpretação e aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Saraiva, 1982. p. 48-50. 82 Em outra obra, Celso Bastos propôs uma nova divisão, mas somente das leis complementares. Existiriam as leis complementares exaurientes e continuáveis. As exaurientes “incidem de maneira direta sobre os fatos ou comportamentos regulados; por serem normas cheias, maciças, não prescindem de qualquer normação complementar”. As leis complementares continuáveis são “normas que permitem a existência de outras espécies normativas, simultaneamente”; há a extensão de sua normatividade por intermédio de uma lei ordinária. A distinção é interessante, pois é partir dela que Celso Bastos refuta a tese de Maior Borges sobre a existência de hierarquia entre as leis complementares que balizam, de alguma forma, outros atos normativos. Para Bastos, as leis ordinárias que complementam leis complementares continuáveis extraem seu fundamento de validade diretamente da Constituição, sem intermediação. Escreve ele: “Tudo resulta do fato de que a divisão de matérias, levada a efeito nesta hipótese, embora rigorosa do ponto de vista formal (que não se poderia compadecer com a possível existência de uma área cinzenta ou nebulosa), do ângulo material, apresenta estreita afinidade responsável pela imposição de um relacionamento acomodatício da lei ordinária à lei complementar. Não se confunda, pois, uma relação de compatibilização, que pode existir entre normas do mesmo nível, como ocorre no caso em estudo, com uma relação de subordinação, que é muito mais radical e abrangente” (cf. Lei complementar: teoria e comentários. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos editor: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999. p. 93-96). 83 Cf. Lei complementar: teoria e comentários. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos editor: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999. p. 44-45. 84 Seria exemplo desse tipo de lei a cria um novo Estado-Membro. Segundo o autor, “a criação de um Estado-Membro ou de Territórios nada tem de complementar à Constituição. Trata-se, portanto, neste caso de mera execução da Constituição (...)” (cf. Lei complementar: teoria e comentários. 2. ed. São

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

46

Essas razões levam Celso Bastos a entender que a expressão lei

complementar se tornou inadequada para designar aquelas que complementam a

Constituição, mas não são demandadas especialmente pelas normas constitucionais

(é dizer: a lei complementar da doutrina clássica). Entende que, em face da absorção

da espécie legislativa específica pelo direito positivo brasileiro, somente se pode, em

termos técnicos, falar em lei complementar nos casos reclamados pela Constituição, a

fim de que “não se continue a chamar pelo mesmo nome a coisas diferentes, àquelas

normas que, em razão de regime jurídico próprio, têm especial individualização

dentro do sistema”85.

Após essa delimitação do que se deve entender por lei complementar,

passa a expor quais os elementos que a caracterizam. Então, tem-se uma das

melhores construções das teses que consideram o conteúdo regulado pela lei

complementar como elemento integrante de sua identidade específica, sempre

jungido ao procedimento:

Lei complementar é, pois, toda aquela que contempla uma matéria a ela entregue de forma exclusiva e que, em conseqüência, repele normações heterogêneas, aprovada mediante um quorum próprio de maioria absoluta. A lei complementar tem, por conseguinte, matéria própria – o que significa que recebe para tratamento normativo um campo determinado de atuação da ordem jurídica e só dentro deste ela é validamente exercitável – matéria essa perfeitamente cindível ou separável da versada pelas demais normações, principalmente pela legislação ordinária. [...] Congraçando-se esses dois elementos fundamentais [quórum e matéria específicos], alcançamos a caracterização da lei complementar (espécie normativa autônoma) e sua definitiva individualização em face das demais espécies normativas, conduzidos a tanto por via de interpretação sistemática da Constituição, a partir dos seus arts. 59, II, e 69, passando pelos demais

Paulo: Celso Bastos editor: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999. p. 44-46). A crítica de Bastos não parece fazer tanto sentido. O autor não aprofunda a distinção entre execução e complementação da Constituição, um ponto que já fragiliza o seu argumento. Entendido o ordenamento jurídico como um “espectro contínuo de normação jurídica”, qualquer ato normativo do qual se possam extrair normas que venham a “meramente executar” outros dispositivos estarão, também eles, inseridos no espectro de normação, de tal sorte que também completarão todo o arcabouço normativo que tem por objetivo regular as condutas dos indivíduos consorciados a uma ordem jurídica. No exemplo trazido pelo próprio Celso Bastos, a constituição de um Estado-Membro pode jogar um papel importante na complementação de diversas normas jurídicas, isto é, significados de atos que indiquem uma conduta como devida. Para exemplificar, uma norma que estabeleça o cumprimento de uma obrigação por um Estado X ou que confira uma competência ao mesmo ente só faz sentido a partir do momento em que ele é constituído. Deste modo, a norma constitutiva de um Estado pode servir na complementação de um sem-número de normas distintas, o que deixa a distinção entre execução e complementação da Constituição carente de uma justificativa mais aprofundada. 85 Ainda segundo ele, a utilização da mesma expressão para indicar coisas de naturezas distintas “trata-se de um infeliz processo de sobreposição terminológica, responsável por não poucos dissídios doutrinários perfeitamente evitáveis, todavia, se a Emenda Constitucional n. 4/61 tivesse optado por outro rótulo para a recém-criada espécie normativa” (cf. Lei complementar: teoria e comentários. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos editor: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999. p. 43, 47).

REPASSE HISTÓRICO DAS LEIS COMPLEMENTARES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

47

dispositivos que contemplem essa figura normativa.86

Embora exposta com maior precisão terminológica, é notável que a

caracterização da lei complementar na obra de Celso Ribeiro Bastos se funda nos

mesmos moldes da doutrina líder sobre o assunto. De maior relevo é a repulsa

demonstrada ao tratamento das leis complementares como as abordava a doutrina

clássica. A admissão apenas da lei complementar enquanto aquela prevista na

Constituição, olvidada a que o seja por considerações meramente doutrinárias afina-

se de muito perto à proposta da pesquisa, sobretudo no segundo estudo, ao longo do

qual a lei complementar, tomado no sentido da doutrina clássica, não será objeto de

maiores cogitações.

2.3.1.4 A contribuição de Sergio Reginaldo Bacha

Ainda muito pouco difundida é a obra monográfica de Sergio Bacha sobre

a hierarquia entre as leis ordinária e complementar. Defensor das teses restritivas, o

autor indigitado tem posição altamente cética a respeito da possibilidade de

existência segura (=harmoniosa) desses dois atos normativos, da maneira como estão

dispostos no ordenamento jurídico-positivo, e propõe a surpreendente e original

solução consistente na ab-rogação da lei complementar, com o estabelecimento do

quórum de aprovação da maioria absoluta dos membros das duas casas

congressuais para a lei ordinária.

Inicialmente, diga-se que o autor em comento partilha da lição de Celso

Ribeiro Bastos acerca da aplicabilidade da expressão lei complementar apenas para

aquelas designadas pela Constituição. Segundo Bacha, ela goza de status formal e

material diferenciado. Com relação à matéria, chega-se mesmo a falar em “reserva

legal complementar”, delineada apenas pela Constituição, a qual confere um caráter

de importância às leis complementares que “começa a ganhar terreno e segue numa

trajetória irreversível, traduzindo a indisfarçável vontade dos legisladores

86 Lei complementar: teoria e comentários. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos editor: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999. p. 48-50. Segue o sentido da transcrição CARVALHO, Jeferson Moreira de. Leis complementares. São Paulo: Themis, 2000. p. 102: “Lei Complementar, em acepção clássica, são aquelas que completam a Constituição, independente de previsão constitucional. Numa acepção moderna, são somente aquelas que são previstas como tal por disposição da Constituição. É a lei norma coativa imposta pelo Estado, que obedecendo ao processo adequado, dirige a norma imposta para si e para toda a sociedade. Lei complementar é aquela que contempla matéria a ela entregue de forma exclusiva, e é aprovada mediante um quorum próprio de maioria absoluta”.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

48

constituintes”87. Nada obstante a afirmação do status diferenciado, Bacha lança a

iniciar cortante crítica à positivação das duas espécies de leis, como se acham na

Constituição de 1988. Inicia pela tentativa de demonstrar a fragilidade do critério da

competência material. A doutrina dominante seria a que justifica a ausência de

hierarquia entre as duas leis por conta da fonte comum , a Constituição, bem como

pelo critério ratione materiae, segundo o qual a lei ordinária e a lei complementar

teriam campos materiais próprios, pelo que não se deveria falar em superioridade

hierárquica entre si (tese a que Geraldo Ataliba aderiu88). “No entanto, veremos que a

verdade mais genuína não é bem essa, e que a gama de situações que levam o

intérprete e o aplicador do direito a inseguranças é maior do que se imagina”,

obtempera o autor, que considerou uma ingenuidade o achar-se que a separação dos

âmbitos materiais seria suficiente para “afastar ou dirimir eventuais colisões”

ocasionadas pela problemática divisão entre as esferas materiais de cada ato

legislativo.

Com citação de Alexandre de Moraes, Bacha observa que há casos nos

quais fica prejudicada a separação dos campos materiais das leis ordinária e

complementar. Exemplifica com a previsão de lei complementar para o

disciplinamento das funções do vice-presidente da República, art. 79, parágrafo

único, da Constituição, e da previsão de competência do Congresso Nacional – vazada

por lei ordinária – de regulamentar a organização e o funcionamento do Conselho da

República (art. 90, § 2º), o que poderia incluir a função do próprio vice-presidente no

Conselho, a qual seria também matéria reservada à lei complementar do art. 79.

Nestes casos, seria de se admitir a colisão dos campos materiais, e a saída é ir pela

superioridade da lei complementar. Sergio Bacha cita, ainda, o caso de dúvidas que

surgem sobre se determinadas matérias, à falta de previsão constitucional expressa,

devem ou não ser regidas por lei complementar89. Com relação ao quórum de maioria

absoluta, Bacha apontou a incoerência do constituinte ao exigir, por exemplo, a lei

complementar para a disposição e competência dos tribunais, dos juízes e das juntas

eleitorais (art. 121), mas requerer “apenas” a lei ordinária para regular semelhante

87 Cf. Constituição federal: leis complementares e leis ordinárias. Hierarquia? Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 41-44. 88 Cf. nota 78. 89 Constituição federal: leis complementares e leis ordinárias. Hierarquia? Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 127-134.

REPASSE HISTÓRICO DAS LEIS COMPLEMENTARES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

49

matéria relativa ao Tribunal Superior do Trabalho (art. 111, § 3º)90. Com isso, o autor

pretende demonstrar que os pilares da teoria que vai pela inexistência de hierarquia

entre lei complementar e lei ordinária estão montados sobre “terreno movediço”; a

separação dos âmbitos materiais e o quórum de aprovação de cada uma delas não

serviriam para negar a hierarquia, mas, ao revés, forçaria a conclusão de que a lei

complementar ocupa lugar mais alto na hierarquia normativa do sistema de atos

legislativos brasileiro, tomada como parâmetro a lei ordinária. Assevera Bacha:

Sendo assim, afirmamos categoricamente que ele [edifício da doutrina que nega a hierarquia entre as leis ordinária e complementar] está erigido sobre terreno movediço, e conseqüentemente é fonte geradora de dúvidas e de inseguranças que transformam a suposta convivência pacífica entre as leis complementares e as leis ordinárias numa falácia injustificável, numa antítese condenável.91

Páginas depois, Bacha afirma que é o quórum diferenciado o critério mais

significativo de discriminação entre as espécies legislativas, “aliado aos campos

materiais reservados” à lei complementar, o que conferia a esta importância e

90 Cf. Constituição federal: leis complementares e leis ordinárias. Hierarquia? Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 138-139. A falta de critério do constituinte na “distribuição” das demandas por lei complementar é criticada há muito tempo e foi motivo para certas teses sobre os limites da reserva material desse ato legislativo. Josaphat Marinho, quando senador, tratou o tema em objeção ao parecer do relator, na Comissão de Constituição e Justiça, do projeto de lei nº 24, do Senado, de 1967, Senador Aloysio de Carvalho. Para Marinho, o constituinte de 1967 preceituou que as leis complementares seriam votadas por maioria absoluta, mas não “estipulou diretriz norteadora do alcance de seu propósito”; apenas enunciou, “espaçada ou isoladamente”, hipóteses de lei complementar, sem haver qualquer conexão ou semelhança entre as matérias enunciadas. Ele prosseguiu no seu argumento com a defesa de que existem outros matérias constitucionais passíveis de trato por lei complementar, mesmo sem a previsão constitucional, cabendo ao Congresso decidir sobre que matérias deverão ser tratadas por lei complementar. Contudo, com o regime que a Constituição impôs, somente uma reforma constitucional teria o condão de fazer com que alguma matéria devesse ter a sua complementação normativa por lei complementar; ao legislador não seria facultado decidir essa questão, de envergadura constitucional, por intermédio de lei infraconstitucional (cf. transcrição parcial do voto de Josaphat Marinho em BARQUERO, Jessé de Azevedo; e SANTOS, Santyno Mendes (documentação). Leis complementares. Revista de informação legislativa, n. 20, out./dez., 1968. p. 72 ss.). Edgard Lincoln de Proença Rosa é contundente na crítica ao critério do constituinte de 1967. Para ele, a relevância da matéria, erigida como fundamento do critério de reserva da lei complementar, “é imprestável do ponto de vista científico”, e ataca: “Se o constituinte foi assistemático no critério de reserva, o intérprete não deverá incorrer na mesma falta, sob pena de ser infiel a sua ciência”. Edgard Rosa passa a defender um estranho critério para a preferência da lei complementar, sempre que a matéria regulada se integre em uma lei nacional, competência da União. O motivo do critério é o caráter essencialmente complementar das leis nacionais, pois, das vinte e sete leis nacionais previstas constitucionalmente, dezenove são leis complementares apontadas pela Constituição. Logo, quando se trata de lei nacional, a utilização do veículo normativo da lei ordinária é uma exceção, que explicaria a utilização da lei complementar para as leis nacionais como regra (cf. Aspectos da técnica jurídico-legislativa aplicáveis à interpretação do regime jurídico das leis complementares à Constituição Federal. Revista de informação legislativa, n. 70, abr./jun., 1981. p. 104-105, 108 ss.). Marcelo Caetano, também crítico do critério do constituinte, demonstra simpatia à solução consistente em deixar ao legislador a decisão de dar a forma de lei complementar, por decisão de maioria absoluta dos membros das casas legislativas, às leis que o forem “de fato”, ou seja, complementares no sentido da doutrina clássica (cf. Direito constitucional. v. II. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 293-295). 91 Constituição federal: leis complementares e leis ordinárias. Hierarquia? Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 139.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

50

preferência na regulação de assuntos ditos relevantes, e que “por mais que se peleje

em negar a superioridade das leis complementares sobre as ordinárias, a

permanência dos diferentes critérios referentes ao quorum fragiliza o debate”. Todo o

modo, eles (os critérios formal e material) não seriam suficientes para resolver a

“celeuma condenável” estabelecida no relacionamento entre as duas espécies

legislativas92.

A partir disso, Bacha passa a expor a sua tese principal relativa à lei

complementar. Começa com a observação de que o constituinte, ao reservar algumas

matérias à lei complementar, fê-lo a despeito da lei ordinária, a fim de conferir maior

estabilidade e de impedir modificações sazonais no regramento das matérias eleitas

para a “reserva legal complementar”. No entanto, o legislador não teria atingido os

fins pretendidos. Ao priorizar determinadas matérias, acabou por gerar, no que diz

com as leis ordinárias, uma discriminação que resultou numa diferença marcante

entre as duas espécies de lei. O resultado foi a ausência de regulamentação das

matérias necessárias à concretização de certos direitos constitucionais, contemplados

pela via disciplinadora das leis complementares, motivo pelo qual afirma que “toda a

abordagem que se faz em relação à regulamentação de matéria afeta às leis

complementares, bem como ao grau de dificuldade para a sua aprovação,

demonstrou ser desnecessária”, observação que somente reforça a ligação do tema

com as omissões legislativas93.

Na seqüência, ele passa mais uma vez a investir contra os critérios do

legislador constituinte para consignar algumas matérias à lei complementar,

responsáveis pela omissão de diversas normas, com a insinuação de que influências

escusas tenham interferido na decisão final do constituinte94. Como exemplo do

“entrave” representado pela necessidade de edição de leis complementares, ele

apresenta a possibilidade de a União autorizar os Estados a legislar sobre matérias

específicas relacionadas às competências privativas da própria União. O art. 22,

parágrafo único, da Constituição de 1988, requer lei complementar para a concessão

dessa autorização. Forte em lições de Raul Machado Horta e de Celso Ribeiro Bastos,

92 Cf. Constituição federal: leis complementares e leis ordinárias. Hierarquia? Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 160. 93 Cf. Constituição federal: leis complementares e leis ordinárias. Hierarquia? Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 167. 94 Nessa vereda, Bacha chama a atenção para o fato de o imposto sobre as grandes fortunas requerer lei complementar para sua regulação, ao passo que o imposto sobre a propriedade rural é deixado simplesmente para a lei, que pode ser ordinária (cf. Constituição federal: leis complementares e leis ordinárias. Hierarquia? Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 145-146).

REPASSE HISTÓRICO DAS LEIS COMPLEMENTARES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

51

Sergio Bacha passa então a criticar fortemente o centralismo federativo que se

observa no enfeixamento de muitas competências por parte da União, em menoscabo

dos outros entes federativos, que dependem da “boa vontade” do poder central para

se conseguir manter. Arremata a questão com o seguinte:

O legislador da Carta de 1988, no estabelecimento das competências materiais da União e dos Estados-Membros, cedendo ao modelo preconcebido da competência reservada à espécie normativa leis complementares, premido pelas forças sociais mais ortodoxas, não inovou quanto ao aperfeiçoamento da descentralização de poderes de nossa Federação. Priorizou o conservadorismo centralizador da União para, secundária, facultativa e remanescentemente, possibilitar uma ampliação das competências dos Estados-Membros, mercê de lei complementar. Preferiu emendar a ser original!95

Após essa longa exposição, o autor opina que o preceptivo constitucional

analisado (art. 22, parágrafo único, da Constituição), por ser eivado do “estigma” que

acompanha as leis complementares, consubstanciou grave impeditivo à

descentralização de poderes, “tão necessária à consolidação do Estado federal

brasileiro”96. Ao fim de seu livro, Sergio Reginaldo Bacha lança a proposta da ab-

rogação da lei complementar, com a sua subsunção “jurídico-material” e formal à

espécie normativa lei ordinária. Lembra que foi isso o que ocorreu com o código

tributário nacional após o advento da atual Constituição brasileira, pois era lei

ordinária quando promulgado, mas adquiriu eficácia e status de lei complementar.

Segundo a tese, toda a matéria reservada às leis complementares ingressaria no

âmbito da lei ordinária. Destarte, as leis ordinárias seriam as legatárias das leis

complementares e herdariam o seu quórum específico de aprovação97.

95 Constituição federal: leis complementares e leis ordinárias. Hierarquia? Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 171. 96 Cf. Constituição federal: leis complementares e leis ordinárias. Hierarquia? Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 172. Na página seguinte, em apoio à sua opinião de que as leis complementares amesquinharam as leis ordinárias, Bacha assevera: “ (...) a eficiência de uma lei é a medida em graus de sua eficácia, sua concretude, a qual será definida pela capacidade de informação, de absorção e de acatamento no meio social junto a seus maiores destinatários – as pessoas. Com base nisso, afirmamos: a espécie normativa leis ordinárias enfeixa essas condicionantes com maior propriedade do que as leis complementares”. A lei ordinária, ainda segundo o que o autor defende na mesma página desta última transcrição, gozaria de uma autoridade haurida ao longo de seu histórico no legislativo pátrio, além de um “respeito natural” no seio da comunidade jurídica, bem como de um poderoso poder de comunicação que exerce junto à opinião pública. A argumentação de que lança mão, infelizmente, é francamente débil. Todos os “atributos” que ele vê na lei ordinária são devidos, se realmente existentes, à figura da lei, sem importar a sua eventual qualificação (lei orgânica, lei complementar, lei ordinária, lei constitucional etc.), por ser o instrumento normativo por excelência do Estado, pelo menos desde o surgimento e a ascensão do constitucionalismo revolucionário do século XVIII, o qual encontrou ecos no direito brasileiro. 97 Cf. Constituição federal: leis complementares e leis ordinárias. Hierarquia? Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 175-177. A solução final do autor, pela herança do quórum da lei complementar para a lei ordinária, que açambarcaria aquela, é incoerente com o defendido em outros pontos do livro. Com efeito, o quórum de maioria simples fora defendido anteriormente pelo mesmo autor: “não se tem

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

52

2.3.2 As teses ampliativas: a matéria regulada como componente acidental da lei

complementar

Expostas as teses restritivas do âmbito da lei complementar, é chegada a

hora de analisar a doutrina que pretende identificar a lei complementar apenas com o

seu elemento formal. Vale salientar que é doutrina relativamente recente no direito

brasileiro e que conta com um número menor de adeptos que a tese restritiva, motivo

pelo qual a exposição de seus fundamentos não será feita como no nº 2.3.1, dividido

entre os mais influentes ou originais doutrinadores, mas feita de um só fôlego, sem

prejuízo da sua suficiente apresentação. O fio condutor, aqui, será a produção de

Hugo de Brito Machado98, por ser, de muito longe, o grande entusiasta das teses

ampliativas. A partir do que for aduzido sobre suas idéias, citar-se-ão outros autores

que o seguem com entendimentos semelhantes.

Diga-se, de saída, que o Hugo de Brito Machado, durante muito tempo,

seguia a doutrina sedimentada por Geraldo Ataliba, referente à ampliação da

identidade da lei complementar, através da inclusão da matéria por ela vazada,

detalhe que teria impacto na sua relação com a lei ordinária. Em incontida revisão de

suas idéias, Hugo Machado revela:

Meditando sobre o tema, relendo as referidas lições da doutrina, e especialmente relendo os dispositivos da Constituição, modificamos nosso ponto de vista. Na verdade a lei complementar é espécie normativa superior à lei ordinária, independentemente da matéria que regula. Mesmo que disponha sobre matéria a ela não reservada pela Constituição, não poderá ser alterada ou revogada por lei ordinária. [...] Ressalte-se, em primeiro lugar, que a identidade específica, e conseqüente posição hierárquica das normas jurídicas em geral é conferida pelo elemento formal. Não pelo elemento material, vale dizer, não pelo conteúdo da norma. É certo que, segundo alguns eminentes constitucionalistas, a Constituição tem conteúdo próprio. Ninguém, todavia, nega a uma norma incluída no texto de uma Constituição, a postura hierárquica desta, qualquer que seja o seu conteúdo. E as leis complementares, cuja existência fora afirmada mesmo antes de a Constituição de 1967 as haver adotado formalmente, só ganharam superioridade hierárquica quando ganharam identidade específica

notícia de que o quorum de maioria simples, para a aprovação das leis ordinárias regulamentadoras das matérias constitucionais de eficácia limitada, tenha instalado um verdadeiro tumulto legislativo de aprovações e respectivas revogações, transformando o direito positivo pátrio num ordenamento jurídico instável e conturbado” (cf. a obra citada nesta nota, à página 143). Outrossim, como já demonstrado no texto, Bacha entende que o quórum para a aprovação da lei complementar foi um dos grandes responsáveis pelo “estigma” em que ela se viu envolvida. Se assim o é, por que motivo transferi-lo para a lei ordinária? Vê-se grave incoerência nesse aspecto. 98 A doutrina de Hugo Machado sobre a lei complementar será discutida, com maior detalhe, no próximo estudo.

REPASSE HISTÓRICO DAS LEIS COMPLEMENTARES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

53

em razão de requisitos formais para sua aprovação. 99

Percebe-se, pois, a redução dos critérios identificadores da lei

complementar: a matéria, o “critério de fundo”, não se computa mais entre os seus

requisitos de validade. Portanto, apenas o elemento formal já acumularia todo o

necessário à caracterização tipológica de qualquer ato normativo, seja ele qual for100.

Apesar disso, mesmo que admitida a caracterização de um ato normativo pelo seu

elemento formal, a Constituição prevê expressamente a lei complementar para alguns

casos específicos. Como se lida com essa realidade? Como não passar a incluir o

elemento material na própria conformação da lei complementar?

Hugo Machado leciona que a existência de um campo material reservado à

lei complementar não significa a adstringência completa desse ato legislativo às

matérias que o requeiram, quer expressa, quer implicitamente. Há quem afirme que

quando a Constituição se refere à lei, sem explicitar de qual espécie, faz referência à

lei ordinária, pois quando pretende requerer a lei complementar, ela o faz

explicitamente. Entretanto, argumenta Machado, algumas vezes a Constituição fala

apenas em lei, mas ninguém pode negar que se trata tanto de lei ordinária, quanto de

lei complementar. Assim seria o caso do art. 5º, caput, no qual se consagra a

igualmente perante a lei. “Com certeza, ninguém dirá que a igualdade é somente

perante a lei ordinária”, argumenta. Assim também seriam os casos dos incisos II,

XXXV e XXXVI do mesmo artigo, que asseguram o princípio da legalidade, a

inafastabilidade do poder judiciário e a irretroatividade da lei, respectivamente, com

abrangência também para a lei complementar101. Desta forma é que o legislador

poderá lançar mão da lei complementar sempre que desejar imprimir maior

estabilidade a determinadas matérias, a afastá-las das maiorias ocasionais, ou mesmo

99 Posição hierárquica da lei complementar. Themis, n. 1, v. 1, 1997. p. 103-104. Note-se que é feita uma relação entre identidade e posição hierárquica da lei complementar, como se a definição da identidade de um ato implicasse a determinação da operatividade normativa do mesmo ato (no caso, o que diz com a as relações que vem a travar com outros atos componentes do ordenamento jurídico). 100 É o que fica patente em outro trabalho do mesmo autor: “O exame cuidadoso de todo o sistema de Direito Positivo mostra-nos claramente a identidade específica de cada norma, vale dizer, aquela identidade da norma que nos permite classificá-la em uma determinada espécie normativa, decorre sempre de elementos formais, especialmente da competência do órgão e do procedimento adotado para sua edição. A Constituição Federal atribui competências aos diversos órgãos do Estado. E em se tratando da edição das normas mais importantes do sistema jurídico impõe desde logo certos procedimentos para a produção dessas normas. São esses dois elementos, de natureza formal, a competência e o procedimento, que em última análise definem a identidade específica das normas jurídicas produzidas pelos diversos órgãos do Estado” (A identidade específica da lei complementar. Revista dialética de direito tributário, n. 117, jun., 2005. p. 57). 101 Cf. A identidade específica da lei complementar. Revista dialética de direito tributário, n. 117, jun., 2005. p. 64.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

54

dos acordos de liderança. Isto será facultado ao legislador por não haver, a rigor, na

Constituição de 1988, “qualquer norma, ou princípio, que expressa ou implicitamente

autorize a conclusão de que a lei complementar somente pode cuidar de matérias a

estas reservadas pela Constituição”102.

Para Napoleão Maia Filho, também seguidor das teses ampliativas, a

referência explícita às leis complementares em alguns lances da Constituição seria

devida a uma espécie de cautela do constituinte originário, com o intuito de afastar da

legislação ordinária algumas matérias que deveriam ser resguardadas da maioria

simples das casas congressuais. Se é assim, a lei complementar poderia ser usada pelo

legislador, em concurso com a lei ordinária, sempre que não houvesse a referência

expressa àquela, desde não se configurasse o que ele intitula “distorção ou abuso do

poder de legislar”. Entretanto, a lei complementar, uma vez editada, mesmo para

regular matéria que poderia, inicialmente, ser tratada por lei ordinária, somente

poderá ser revogada por outra lei complementar103.

Merece destaque outro argumento utilizado para se justificar a

possibilidade de utilização da lei complementar fora das hipóteses

constitucionalmente previstas. O argumento resume-se no seguinte: não se nega, à lei

complementar, um campo exclusivo, que afasta quaisquer outros atos normativos,

exceção feita às emendas constitucionais. Este campo, diga-se, é exatamente aquele

trazido pela Constituição. Mas a mesma Constituição requer, por vezes, lei, sem

especificar de qual espécime, para a regulação de determinadas matérias, hipóteses

constituintes do que se chama “reserva legal”. Alguém ousaria dizer que as leis

somente podem regular aquelas matérias constitucionalmente indicadas?

Seguramente, não. Rechaça esse entendimento o princípio da universalidade da

legislação104. Então, se a lei (ordinária) se pode estender por matérias para as quais

ela não foi requisitada pela Constituição, por igual razão, a lei complementar pode

regular matérias para as quais ela não tenha sido requerida pelo mesmo diploma

102 Posição hierárquica da lei complementar. Themis, n. 1, v. 1, 1997. p. 104. 103 Cf. Breve histórico e significado das leis complementares. In: ______. Estudos temáticos de direito constitucional. Fortaleza: UFC, 2000. p. 79-85. Embora tenha se referido a abuso do poder de legislar, Napoleão Maia Filho não empreendeu qualquer esforço para esclarecer que tipo de conduta do legislador representaria isso. 104 Princípio segundo o qual a lei pode disciplinar quaisquer matérias, desde que respeite as limitações que lhe imponha a normação que lhe seja superior (notadamente as normas constitucionais). Para uma proposta desse princípio, consulte-se ATALIBA, Geraldo. Fontes do direito; fontes do direito tributário. O problema das fontes na ciência do direito e no sistema brasileiro. Hierarquia das fontes como problema exegético. In SOUSA, Rubens Gomes de et al. Interpretação no direito tributario. São Paulo: EDUC, 1975. p. 124.

REPASSE HISTÓRICO DAS LEIS COMPLEMENTARES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

55

normativo105.

Dentre os pontos dessa doutrina que ainda trazem algum interesse para o

trabalho, deve-se mencionar o relativo a outro argumento utilizado pelas teses

ampliativas para, de certo modo, justificar o afastamento do elemento material da

caracterização prototípica da lei complementar. Trata-se da dificuldade de se

delimitar com precisão a matéria constitucionalmente reservada. Como visto, esse é

um problema também denunciado por autores filiados às teses restritivas106. Segundo

os defensores da doutrina ampliativa, a caracterização da lei complementar dada

apenas pelo seu elemento formal traria uma certeza sobre qual ato legislativo regeria

determinada matéria. Este aspecto teria uma grande importância, sobretudo acerca

dos infindáveis conflitos entre matérias dispostas em leis ordinárias e

complementares, com destaque para os casos em que a lei complementar desbordaria

de seu campo material. Em tais situações, para a doutrina majoritária, a lei seria

complementar apenas na parte afeta a seu âmbito material e lei ordinária no restante.

Assim, outra lei ordinária poderia revogar a parte “excedente” daquele ato.

Exatamente essa incerteza que pode surgir quanto ao ato devido para a regulação de

determinada matéria faz com que alguns autores justifiquem a identificação dos atos

normativos apenas por seus aspectos procedimentais a um ideal de segurança

jurídica, no sentido de que propiciaria (1) o conhecimento do ato que regulará

determinada matéria (no caso, se uma lei complementar regesse determinados casos

de isenção de um tributo, estas isenções não poderiam ser revogadas por lei ordinária

superveniente107) e (2) uma maior garantia do cidadão contra as “maiorias

ocasionais” do parlamento, porque, veiculado que fosse determinado conteúdo por

projeto de lei complementar, não mais poderia ser revogado por lei que houvesse

requerido maioria simples em sua aprovação. Como já aventado, para as teses

ampliativas, em caso de confusão de matérias vazadas pelos dois tipos de lei, o

“critério hierárquico” deporia sempre a favor da lei complementar. São partidários

105 Nesse sentido, MACHADO, Hugo de Brito. A identidade específica da lei complementar. Revista dialética de direito tributário, n. 117, jun., 2005. p. 58, e MAIA FILHO, Napoleão Nunes. Breve histórico e significado das leis complementares. In: ______. Estudos temáticos de direito constitucional. Fortaleza: UFC, 2000. p. 77-78. 106 Cf. nota 90. 107 Vale observar que o Supremo Tribunal Federal tem rejeitado sistematicamente a hierarquia diferenciada e a “simetria das formas” entre as leis complementar e ordinária, nos casos de revogação de isenção de tributo (cf. AC 2209 AgR - MG, relatado pelo ministro Joaquim Barbosa).

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

56

desse argumento: Hugo de Brito Machado108, Hugo de Brito Machado Segundo109,

Napoleão Nunes Maia Filho110 e Maria Alessandra Brasileiro de Oliveira111.

As teses ampliativas ainda não angariaram um grande número de adeptos.

Nem por isso, deixam de ser expostas e defendidas com veemência por seus

doutrinadores112. Devem ser analisadas com mais cuidado e atenção pela doutrina e

pela jurisprudência, ainda que seja para sustentar refutação mais forte e precisa. Em

alguns momentos, o contraste entre as duas doutrinas gerou confusões danosas à

compreensão da matéria, especialmente no tocante às relações entre as normas

oriundas de lei complementar e as normas extraídas de lei ordinária. A exploração

desse ponto específico, com base no cotejo do pensamento de José Souto Maior

Borges e de Hugo de Brito Machado, será buscada no próximo estudo.

108 Cf. Segurança jurídica e lei complementar. Revista dialética de direito tributário, n. 152, mai., 2008. p. 103-113; Idem. Segurança jurídica e a questão da hierarquia da lei complementar. Boletim de direito administrativo, n. 11, nov., 2006. p. 1219-1230. 109 Cf. A segurança jurídica e a identidade específica da lei complementar na Constituição federal de 1988. Revista dialética de direito tributário, n. 133, out., 2006. p. 102-120, em co-autoria com Hugo de Brito Machado. 110 Cf. Breve histórico e significado das leis complementares. In: ______. Estudos temáticos de direito constitucional. Fortaleza: UFC, 2000. p. 80. 111 Cf. Leis complementares: hierarquia e importância na ordem jurídico-tributária. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004. p. 98-107. 112 Depois de ter publicado diversos artigos sobre o tema, Hugo Machado reuniu suas idéias em um livro (Lei complementar tributária. São Paulo: Malheiros, 2010).

REPASSE HISTÓRICO DAS LEIS COMPLEMENTARES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

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HUGO DE BRITO MACHADO E JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES SOBRE A LEI COMPLEMENTAR

61

HUGO DE BRITO MACHADO E JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

SOBRE A LEI COMPLEMENTAR: NOTAS À MARGEM DE UMA

POLÊMICA*

1. Introdução à polêmica

O título deste trabalho já é um forte indicador do que será tratado.

Entretanto, algumas considerações precisam de ser feitas a seu respeito. Em primeiro

lugar, sobre o termo “polêmica” utilizado em seu título; com ele, faz-se apenas

referência a uma seqüência de artigos publicados – que serão devidamente referidos

logo mais – pelos autores sobre o tema da lei complementar em um importante

periódico jurídico brasileiro, dedicado precipuamente aos estudiosos do Direito

Tributário1. Que se tenha registro, a discussão travada pelos dois professores que

nomeiam este trabalho sempre se deu apenas nos escritos que levaram a publicação,

sem que se tenha dado qualquer desentendimento pessoal entre ambos, razão pela

qual o termo deve ser entendido em sentido estritamente acadêmico.

Em segundo lugar, seja de logo esclarecido que se trata da feitura de notas

marginais às doutrinas envolvidas na polêmica comentada. Assim, não haverá a

adesão a uma delas (ou a outra qualquer) a todo instante, nem comentários

exaustivos sobre todos os seus pormenores. O intento principal deste escrito é o de

demonstrar fragilidades e omissões das duas doutrinas no enfrentamento das

* Este estudo é uma versão expandida do trabalho apresentado na disciplina Teoria Geral do Direito, do programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, no primeiro semestre de 2011. Agradeço, pelas observações críticas e pelos esclarecimentos de alguns pontos doutrinários, aos professores Hugo de Brito Machado e Hugo de Brito Machado Segundo (responsável pela disciplina no período referido). Agradeço, também, aos queridos amigos Eric Dantas, pelas conversas sobre alguns temas relacionados ao trabalho (após a leitura da “versão Beta 0”), e Álisson Melo, pela rica correspondência trocada sobre a matéria (após a leitura da “versão Beta 1”). 1 É bem verdade que os autores trataram desse assunto em outros escritos, mas os artigos a que se fez menção tocam mais diretamente os pontos que serão aqui tratados.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

62

questões que se propõem a abordar e/ou resolver. Não são perseguidas, a todo

instante, a exposição completa das idéias dos autores ou alguma proposta de solução

para os problemas apontados. Isto somente acontecerá casualmente, sempre com a

justificativa bastante, considerados os limites da pesquisa.

Em terceiro lugar, são confrontados Hugo Machado e Maior Borges

exatamente pelos artigos que escreveram e por serem representativos de duas

correntes doutrinárias sobre a lei complementar, mais ou menos bem definidas2: uma

que defende a sua individuação por critérios formais e materiais, com uma repartição

de matérias promovida pela Constituição entre esse ato legislativo e os demais, dentre

estes a lei ordinária; outra que defende a identificação da lei complementar apenas

por critérios formais, sem haver uma reserva material complementar, com o

reconhecimento da superioridade hierárquica da lei complementar sobre a lei

ordinária. Muitos outros autores aderem a algum desses entendimentos, com

algumas variações, que não vêm ao caso nesta ocasião. Entretanto, as idéias dos dois

autores escolhidos são bastante representativas dessas duas correntes e servem para

os propósitos deste trabalho, o que justifica a decisão de tomá-los individualmente.

Nesse sentido, o próximo número tratará de expor e de fazer algumas

críticas à polêmica. No último número, será apresentada uma proposta de solução

das tensões inter-normativas no direito brasileiro, o que, originalmente (e de maneira

mais apropriada), constituiria um trabalho à parte. Ainda assim, tanto quanto

interessou, foi adicionada a este estudo, pois a polêmica sobre o lugar ocupado pela

lei complementar no sistema de atos legislativos do direito brasileiro deita suas raízes

no problema da relação entre normas oriundas de diversos atos jurídicos de um

ordenamento. A propósito, adiante-se que algumas das críticas lançadas aos

entendimentos dos dois autores serão devidas exatamente à insuficiência das suas

teses para explicar alguns casos de conflitos normativos que envolvem a lei

complementar; mas também serão demonstradas algumas inconsistências das teorias

em que se apóiam para explicar, de modo geral, as relações entre as normas que se

extraem dos mais diversos atos.

2 No estudo anterior, foram analisas as doutrinas restritivas e ampliativas da lei complementar. As

primeiras defendem a existência de uma reserva material reservada à lei complementar, fora da qual os atos que hajam passado pelo procedimento reforçado têm o valor jurídico-normativo de lei ordinária. As doutrinas restritivas defendem a individuação da lei complementar apenas pelo aspecto formal, de modo que as normas extraídas de lei complementar não podem ser revogadas por normas de lei ordinária, mesmo que fora das matérias cuja regulação é reservada à lei complementar pela Constituição.

HUGO DE BRITO MACHADO E JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES SOBRE A LEI COMPLEMENTAR

63

2. Exposição e crítica da polêmica

2.1 A doutrina de José Souto Maior Borges

Em trabalho publicado em 19733, que resultou, dois anos depois, em um

indispensável livro sobre o tema4, Maior Borges começa a sua abordagem sobre a

hierarquia e eficácia da lei complementar pela afirmação e justificação da existência

de isonomia entre os entes federados no ordenamento jurídico brasileiro. Embora

não fosse um princípio explícito na Constituição de 1967, defendia Maior Borges a

sua existência de maneira implícita naquele sistema constitucional, existência que

conferiria o mesmo valor de todos e quaisquer princípios explícitos, sem haver

diminuição de sua força normativa. Assim era por causa do regime de repartição de

competências que a Constituição operava, no qual cada ente federado (União,

Estados-membros5) “tinha a sua área de competência exclusiva constitucionalmente

fixada”6. Ou seja: ainda que as atribuições de um ente determinado fossem apontadas

como mais importantes por questões financeiras, econômicas etc., não se poderia

falar em submissão de um ente a outro, pois suas competências são distribuídas pela

Constituição de tal sorte que elas podem ser exercidas sem interferência de qualquer

das outras pessoas constitucionais. A afirmação da superioridade seria um aspecto do

preconceito que atua por transposições indevidas de considerações extra-jurídicas

para o âmbito do direito7.

Estabelecida esta base, a preocupação passou a se pautar em determinar

qual seria o conteúdo material do princípio da isonomia dos entes federados, que foi

assim resumido: “dado o rígido esquema constitucional de repartição de

competências, todas as leis do País, nos seus respectivos âmbitos de validez, são

3 Eficácia e hierarquia da lei complementar. Revista de direito público, n. 25, jul./set., 1973. p. 93-103. 4 Lei complementar tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais/EDUC, 1975. 5 Vale aqui a lembrança de que o art. 1º, da Constituição de 1967, não expressava os Municípios na condição de integrantes da “união indissolúvel” que o Brasil era (e continua a ser). Assim dispunha o artigo referido: “Art 1º - O Brasil é uma República Federativa, constituída sob o regime representativo, pela união indissolúvel dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios”. 6 Cf. Eficácia e hierarquia da lei complementar. Revista de direito público, n. 25, jul./set., 1973. p. 93. Observa ainda esse autor que “tanto a União, quanto os Estados-membros e os Municípios são criaturas da Constituição”, e que os Municípios não têm sua existência decorrente de simples delegação administrativa, porque têm a sua autonomia alçada à eminência de princípio constitucional expresso, do que resultaria a competência destes entes para o autogoverno. A Constituição de 1988 passou a incluir os municípios no rol dos entes federados. 7 Cf. Lei complementar tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais/ EDUC, 1975. p. 7-8.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

64

igualmente subordinadas à Constituição”. A isonomia não significa igualdade de

atribuições, mas apenas que essas atribuições correspondem a enunciados

constitucionais sobre competência. Assim, as leis federais, estaduais e municipais não

guardam relação de hierarquia entre si; têm somente âmbitos de atuação distintos.

Excepcionalmente, há a previsão de competência concorrente, nos termos do art. 8º,

da Constituição8.

Defendida a tese de que não há hierarquia entre as leis federais, estaduais

e municipais, passa então a esclarecer o que entende por hierarquia entre normas.

Sempre fortemente apoiado na clássica lição kelseniana9, segundo a qual o direito

regula a sua própria criação, Maior Borges afirma que essa relação supõe a existência

de uma norma que retira a sua validez de outra norma; esta constitui a razão de

validez da primeira, porque determina a sua criação. Diz-se, portanto, que a norma

que tem a sua produção regulada por outra é subordinada (=hierarquicamente

inferior) à que lhe regula (=hierarquicamente superior)10-11.

A partir dos elementos expostos, Maior Borges elenca os três argumentos

que a doutrina já majoritária lançava para fundamentar a “superioridade formal” ou

“superioridade eficacial” da lei complementar no direito brasileiro: (a) a inserção da

lei complementar – com a redação dada ao art. 46, da Constituição Federal, pela

emenda nº 1/69 – entre as emendas à Constituição e as leis ordinárias12, o que

8 Cf. Eficácia e hierarquia da lei complementar. Revista de direito público, n. 25, jul./set., 1973. p. 93-95. Advirta-se que o artigo a que se refere é da Constituição próxima passada, que assim dispunha, à época em que o trabalho citado foi escrito: “Art 8º - Compete à União: (...) § 2º - A competência da União não exclui a dos Estados para legislar supletivamente sobre as matérias das letras c, d , e , n , q e v do item XVII, respeitada a lei federal”. 9 A lição em que o Maior Borges se baseia é compendiada na seguinte passagem da obra de Hans Kelsen: “The analysis of law, what reveals the dynamic character of this normative system and the function of the basic norm, also exposes a further peculiarity of law: Law regulates its own creation inasmuch as one legal norm determines the way in which another norm is created, and also, to some extent, the content of that norm. Since a legal norm is valid because it is created in a way determined by another legal norm, the latter is the reason of validity of the former. The relation between the norm regulating the creation of another norm and this other norm may be presented as a relationship of super- and sub-ordination, which is a special figure of speech. The norm determining the creation of another norm is the superior, the norm created according to this regulation, the inferior norm.” (General theory of Law and State. Tradução de Anders Wedberg. Cambridge/Massachusetts: Harvard University Press, 1949. p. 123-124). 10 Cf. Eficácia e hierarquia da lei complementar. Revista de direito público, n. 25, jul./set., 1973. p. 95. 11 Adianta-se que a exata compreensão da noção de hierarquia normativa será muito relevante para este trabalho, pois um dos mais graves dissídios entre Maior Borges e Hugo Machado se dá exatamente acerca da questão da hierarquia entre as leis complementar e ordinária. O pior: cada um lança mão de uma noção distinta de hierarquia, sem se dar conta exata disso, como se verá. 12 Assim dispõe o art. 46, referido no texto: “Art. 46. O processo legislativo compreende a elaboração de: I - emendas à Constituição; II - leis complementares à Constituição; III - leis ordinárias; IV - leis delegadas; V - decretos-leis; VI - decretos legislativos; e VII - resoluções”. Como se pode ver, o dispositivo é antecessor do art. 59, da atual Constituição Federal, dele diferente apenas no inc. II, que

HUGO DE BRITO MACHADO E JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES SOBRE A LEI COMPLEMENTAR

65

revelaria sua posição hierárquica abaixo da emenda constitucional e acima da lei

ordinária e dos demais atos a ela equiparados; (b) a superioridade formal da lei

complementar, porque não pode ser alterada ou revogada pela lei ordinária, sendo

nula a parte da lei ordinária que contravenha dispositivo de lei complementar, mas,

inversamente, a lei complementar revoga e altera a legislação ordinária; (c) a

“superioridade formal” ou “eficacial” conferida à lei complementar, em relação à lei

ordinária, conferida pelo quórum mais elevado para a sua aprovação. Embora

considere importantes todos esses critérios, pelo menos porque despertaram a

doutrina para os assuntos que envolviam a nova espécie legislativa, todos eles

repousariam “em fundamentos cuja insuficiência teórica se revela à luz de uma

análise crítica mais detida”13.

A partir disso, rechaça o argumento “a”, pois seria fundado em

interpretação que toma em conta o lugar no qual a matéria é tratada (pro subjecta

materia). Sua colocação apartada permite apenas a “singela ilação de que a lei

complementar integra, como uma espécie legislativa, o processo legislativo”. Tomar

este argumento levaria, igualmente, à conclusão de que a lei ordinária, por estar

acima da lei delegada e do decreto-lei, seria hierarquicamente superior a estes dois

atos legislativos. Com relação a “b” e a “c”, diz que, se é verdade que a lei ordinária

não pode revogar a lei complementar, a recíproca também é verdadeira, por duas

razões: a primeira é que os campos materiais constitucionalmente reservados a cada

uma das espécies de lei não são interpenetráveis; a segunda, que, somente em casos

excepcionais, uma lei ordinária teria sua eficácia suspensa ou paralisada por lei

complementar. Escreve o professor Souto Borges:

Se não é constitucionalmente viável a interpenetração dos campos privativos

da legislação, não é possível a legislação cumulativa, assim entendido o

concurso simultâneo de atos legislativos, emanados de “fontes” diversas e

disciplinando idênticas matérias no mesmo âmbito espacial de validez.

Portanto, o princípio da competência, nos termos em que está

constitucionalmente estruturado, implica a conclusão de que o problema da

possibilidade de ser a lei complementar revogada por lei ordinária – e vice-

versa – não passa de um falso problema.14-15

agora refere apenas a “leis complementares”, além de trazer a medida provisória como substituta do antigo decreto-lei. 13 Cf. Eficácia e hierarquia da lei complementar. Revista de direito público, n. 25, jul./set., 1973. p. 96-97. 14 Cf. Eficácia e hierarquia da lei complementar. Revista de direito público, n. 25, jul./set., 1973. p. 97-98.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

66

Destarte, se um ato legislativo que tenha atravessado o procedimento

previsto para uma lei complementar adentrar a matéria passível de regulação por lei

ordinária, nem complementar será, pois lhe faltará o requisito de fundo (matéria

reservada), embora esteja presente o requisito de forma (quórum diferenciado), e os

dois critérios têm de concorrer para que se possa falar em lei complementar. Alerta,

ainda, para o fato de que o quórum especial foi erigido em alguns casos, a fim de se

ter uma maior rigidez relativa, por conta de questões ligadas à “representatividade

jurídico-política”; se lei complementar adentrar matéria que pode ser regulada por lei

ordinária, haverá apenas “uma manifestação atípica do poder de legislar”, sem reflexo

no campo substancial. Esse reforço procedimental diz respeito apenas à existência da

lei complementar, é um requisito de validade, não de eficácia, de aptidão para gerar

efeitos jurídicos, motivo por que serve apenas para estabelecer uma diferença entre a

lei complementar e a lei ordinária, pois ambas se encontram em um regime de

repartição de competências. Por isso, lança ainda a crítica de que a doutrina não

explica como uma norma procedimental, relativa ao quórum de maioria absoluta,

previsto pelo art. 50, da Constituição de 1967, pode ter um impacto substancial –

entendido este impacto como a “supra-eficácia” da lei complementar16.

Coerente com a noção de hierarquia normativa a que adere, Maior Borges

defende que a lei complementar é categoria legislativa que decorre de sua previsão

como espécie normativa diferenciada e de um procedimento específico para sua

emissão. A esse respeito, faz as seguintes considerações:

A lei complementar é tida como ocupando uma “posição hierárquica supraordenada” da qual decorreria uma “superioridade eficacial” desse ato legislativo com relação à lei ordinária. Essa posição doutrinária estuda a lei complementar como uma categoria legislativa unitária, como se todas as leis

15 O sistema de distribuição de competências entre os entes federados na Constituição de 1988, embora tenha experimentado alterações com relação à Constituição anterior, para os fins da crítica feita pelo professor referido, permanece fundamentalmente o mesmo. 16 Cf. Eficácia e hierarquia da lei complementar. Revista de direito público, n. 25, jul./set., 1973. p. 97-98, 100, 102-103; Idem. Lei complementar tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais/EDUC, 1975. p. 55-56. O autor citado afirma, ainda em relação ao quórum maior para aprovação da lei complementar, que deve ser interpretado como “o conseqüente jurídico de uma opção política do poder constituinte, baseada em considerações valorativas pré-jurídicas”, o qual tem um significado normativo implícito: a decisão do constituinte de conferir maior “adensamento em legitimidade do ato legislativo”. Esta decisão não seria ditada pelo mero arbítrio do constituinte; foi tomada com parcimônia, a fim de evitar o “engessamento” da legislação. A propósito da possibilidade de uma lei aprovada com quórum de maioria absoluta regular matéria que poderia ser tratada por ato aprovado por quórum de maioria simples, escreve que “para o quórum de votação, o que sobra não faz mal” (cf. Lei complementar tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais/EDUC, 1975. p. 50; Idem. Hierarquia e sintaxe constitucional da lei complementar tributária. Revista dialética de direito tributário, n. 150, mar., 2008. p. 70, 74).

HUGO DE BRITO MACHADO E JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES SOBRE A LEI COMPLEMENTAR

67

complementares previstas na Constituição estivessem submetidas a idêntico regime jurídico-material.17

Importa esclarecer que, por regime jurídico-material, deve-se entender

aquele estudado com relação às matérias postas sob reserva, pela Constituição, à lei

complementar; por regime jurídico-formal, aquele relacionado à exigência

constitucional de quórum qualificado. O último é somente um, ex vi do disposto nos

arts. 46, inc. II, e 50, da Constituição18. Já o regime jurídico-material, na perspectiva

que Souto Borges propõe, é bivalente ou duplo. Tal perspectiva se funda na crítica à

colocação doutrinária da função de intermediação ou intercalar da lei complementar;

análise mais detida demonstraria que há casos nos quais a lei complementar cumpre

essa função, mas há casos em que isso não ocorre. Com essa situação, Maior Borges

propõe, de maneira pioneira, a divisão das leis complementares, a propósito do

regime jurídico-material, em dois grupos: (1) leis complementares que fundamentam

a validade de outros atos normativos e (2) leis complementares que não

fundamentam a validade de outros atos normativos. Considerada a noção de

hierarquia já exposta, somente se poderá falar de primazia hierárquica da lei

complementar nos casos do primeiro grupo, não nos casos do segundo, pois seriam

diversas as ocasiões em que uma lei ordinária, ou qualquer outro ato normativo,

haurisse validade de uma lei complementar, daquelas em que isso não se dá19-20.

Estas são, pelo menos para o que interessa neste trabalho, as linhas

fundamentais do pensamento de Maior Borges sobre a lei complementar. Passa-se,

agora, à análise da doutrina de Hugo Machado, para, conforme ao que já foi

17 Lei complementar tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais/EDUC, 1975. p. 80. 18 Ambos os artigos são da Constituição de 67. Já se falou acerca do art. 46, na nota 12. Sobre o art. 50, a redação da época era: “Art. 50. As leis complementares sòmente serão aprovadas, se obtiverem maioria absoluta dos votos dos membros das duas Casas do Congresso Nacional, observados os demais têrmos da votação das leis ordinárias”. Esse dispositivo pode ser apontado como equivalente ao art. 69, da Constituição de 1988, que tem uma redação mais concisa, pois não fala sobre os outros termos da votação das leis complementares, com referência apenas à necessidade de sua aprovação por maioria absoluta (“Art. 69. As leis complementares serão aprovadas por maioria absoluta”). Apesar da diferença na redação, a interpretação dos dois artigos sempre levou a resultados idênticos. 19 Cf. Lei complementar tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais/EDUC, 1975. p. 82-84. São citados vários exemplos de cada grupo. Como exemplo de lei complementar do grupo que fundamenta a validade de outros atos, cita-se a lei complementar que estabelece normas gerais de direito tributário, pois leis ordinárias federais, estaduais e municipais teriam de haurir seu fundamento de validade na primeira. Como exemplo do segundo grupo, é citada a lei complementar prevista para a regulação da composição e do funcionamento do colégio eleitoral. O rol completo da divisão promovida por Souto Borges está na obra por último citada, às páginas 84-90. 20 Vale lembrar que este ponto separou o pensamento de José Maior Borges da primeira doutrina de Geraldo Ataliba, pois este era da opinião de que a lei complementar ocupava posto hierárquico superior ao da ordinária, no âmbito material à primeira circunscrito constitucionalmente. Sobre a questão nas obras de Ataliba, cf. nota seguinte.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

68

anunciado, proceder-se ao cotejo mais próximo das divergências entre os autores,

principalmente nos seus trabalhos publicados mais recentemente sobre o tema.

2.2 A doutrina de Hugo de Brito Machado

Durante bastante tempo, Hugo de Brito Machado filiou-se à doutrina de

Geraldo Ataliba e Maior Borges sobre a lei complementar. No primeiro trabalho de

revisão de seu posicionamento sobre a matéria, Hugo Machado afirma que a doutrina

tem reconhecido a superioridade hierárquica da lei complementar e que, por isto

mesmo, ela não pode ser alterada ou revogada por lei ordinária. Mas ele chama a

atenção para o fato de que se defende a superioridade apenas no campo

constitucionalmente acometido à lei complementar pela Constituição; fora dele, ela

não valeria mais que lei ordinária. A lei complementar, segundo a doutrina

majoritária, somente se configuraria, se reunisse os critérios formal e material

(quórum específico e matéria reservada). Credita a divulgação desse entendimento a

Geraldo Ataliba, que, em seu famoso livro sobre a lei complementar, exerceu uma

grande influência na doutrina. Hugo Machado assim registra sua mudança de

entendimento:

Meditando sobre o tema, relendo as referidas lições de doutrina, e especialmente relendo os dispositivos da Constituição, modificamos o nosso ponto de vista. Na verdade a lei complementar é espécie normativa superior à lei ordinária, independentemente da matéria que regula. Mesmo que disponha sobre matéria não reservada pela Constituição, não poderá ser alterada ou revogada por lei ordinária.21

21 Posição hierárquica da lei complementar. Themis, n. 1, v. 1, 1997. p. 103. O trecho transcrito na íntegra foi totalmente reproduzido em Idem. A identidade específica da lei complementar. Revista dialética de direito tributário, n. 117, jun., 2005. p. 66. Realmente, Geraldo Ataliba, durante muitos anos, fez a defesa da superioridade hierárquica da lei complementar sobre a lei ordinária, o que pode ser lido na seguinte passagem de sua monografia, fundamental sobre o tema: “Já as leis complementares, em virtude de disposição expressa do art. 50 [da Constituição de 1967], carecem de quorum especial – específico, peculiar à espécie – e qualificado, porque mais rigoroso que o da regra geral. (...) Coerente é, portanto, que estas normas sejam, como são, superiores às demais e, por isso, não possam por elas ser derrogadas, enquanto têm fôrça jurídica suficiente para alterá-las e revogá-las. Abaixo das leis constitucionais, são as leis mais importantes, as normas superiores da nossa ordenação jurídica” (Lei complementar na Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971. p. 34; no mesmo sentido, Idem. Fontes do direito; fontes do direito tributário. O problema das fontes na ciência do direito e no sistema brasileiro. Hierarquia das fontes como problema exegético. In: SOUSA, Rubens Gomes de et al. Interpretação no direito tributário. São Paulo: EDUC, 1975. p. 130-131). Entretanto, não se deve olvidar do câmbio operado em sua opinião sobre o tema. A mudança tem fundamento na crítica dirigida por Maior Borges à idéia de hierarquia de um ato que tem o seu âmbito material de atuação restrito e inviolável por outro, ao qual é comparado. Disse ele que “é um irrenunciável ilogismo reconhecer que a lei complementar somente pode explorar um campo de competência cujo limite esbarra na área privativamente reservada à legislação ordinária e pretender, ao mesmo tempo, identificar na lei complementar superioridade hierárquica ou eficacial... dentro desse campo privativo” (Lei complementar tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais/EDUC, 1975. p. 57-58). Alguns anos

HUGO DE BRITO MACHADO E JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES SOBRE A LEI COMPLEMENTAR

69

Basicamente, o problema com a doutrina que entende ser lei

complementar somente aquela que congrega os requisitos de forma e de fundo é que

desprestigia essa espécie legislativa, pois lhe reduz o âmbito de supremacia sobre a lei

ordinária, bem como abala a segurança jurídica. Não é se de admitir que norma

oriunda de lei ordinária possa revogar norma de lei complementar fora da reserva

material constitucionalmente acometida. A Constituição traz nenhuma norma,

expressa ou implícita, capaz de justificar a afirmação de que a lei complementar

somente poderá atuar nos casos em que é demandada. O fato de haver matérias que

somente podem ser tratadas por lei complementar, afastada a possibilidade de trato

por lei ordinária, sob pena de inconstitucionalidade, não implica a impossibilidade de

se lançar mão da lei complementar em outros casos, imprevistos pela Constituição.

Ao legislador caberia a decisão estratégica de eleger a lei de procedimento mais

reforçado para a regulação de assuntos que reputasse mais relevantes. A Constituição

mesma prevê, em diversas passagens, a edição de leis, sem indicar de que espécie, o

que abriria margem para a liberdade do legislador de escolher o ato legislativo mais

adequado. Nem se diga que haveria o risco de “engessamento” da legislação, pois o

risco que se corre na utilização da lei complementar de maneira exclusiva pelo

legislador “é o mesmo de passar este a editar somente emendas à Constituição”.

A lei complementar, fora do campo previamente reservado pela

Constituição, não poderia ser considerada mera lei ordinária, pois o que caracteriza

mais tarde, Geraldo Ataliba reviu seu posicionamento para acatar esta crítica, em trabalho pouco citado mesmo entre os monografistas da lei complementar, nos seguintes termos: “Assim como a lei ordinária não prevalece no campo de lei complementar, esta não invade a área daquela. Lei complementar que verse matéria de lei ordinária é lei ordinária para todos os efeitos. A diferença entre ambas está no âmbito da validade de cada qual, o que é constitucionalmente discernido (e, por isso, imodificável). Assim, a lei complementar não é superior à ordinária. Por isso, esta não é inferior àquela. Como suas áreas são distintas, não há riscos de superposição. Cada qual tem validade na sua esfera própria – constitucionalmente delimitada – sem nenhuma hierarquia. Os preconceitos entre nós disseminados sobre hierarquia das leis decorrem de transplantações acríticas de doutrina elaborada à vista de sistemas de Estados unitários; da tradução apressada de escritos alienígenas” (Regime constitucional e leis nacionais e federais. Revista de direito público, n. 53-54, jan./jun., 1980. p. 61). Anos depois, em parecer escrito com Hugo Machado Segundo, a mudança da opinião de Ataliba foi novamente omitida po Hugo Machado (cf. A segurança jurídica e a identidade específica da lei complementar na Constituição Federal de 1988. Revista dialética de direito tributário, n. 133, out., 2006. p. 107-108, 110-111). Seja como for, mesmo que não fosse ignorada por Hugo Machado a alteração do entendimento de Geraldo Ataliba, é certo que ele ainda diria que este último defende a hierarquia entre as espécies de lei, dentro do campo reservado constitucionalmente à lei complementar; não porque Ataliba tenha continuado a sustentar que existe essa hierarquia, mas porque aquilo a que Hugo Machado pretende referir quando utiliza o termo hierarquia não é o mesmo a que Geraldo Ataliba, fundamentado na lição de Maior Borges (que se inspirou em Kelsen), pretende fazer alusão. As noções de hierarquia entre os autores diferem, o que não foi percebido adequadamente por muito tempo. Isso gerou um grandíssimo mal-entendido. A noção de hierarquia normativa de Hugo Machado ainda será exposta.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

70

um ato legislativo são os elementos formais que determinam a sua produção. A

matéria regulada não caracteriza nenhum ato normativo existente em nosso

ordenamento, mercê de uma concepção formal da identidade específica de cada ato.

Assim, ninguém recusaria o caráter de constitucional a um dispositivo que constasse

atualmente do texto da Constituição, fosse qual fosse sua matéria; do mesmo modo,

não se pode recusar o caráter complementar a uma lei que tenha sido aprovada com o

respeito a todo o processo legislativo previsto para o ato do inc. II, do art. 59, da

Constituição Federal brasileira. E da mesma forma que emendas à Constituição

podem tratar de qualquer matéria, exceto quando tendam a abolir as “cláusulas

pétreas” (art. 60, § 4º, da Constituição), as leis também podem tratar de matéria que

seja atualmente regulada por decreto, sem que os decretos possam revogá-las

posteriormente. Por igual razão, nada justifica que uma lei complementar aborde

determinada matéria para, depois, lei ordinária vir a modificar-lhe, por faltar ao

primeiro ato o requisito de fundo22.

A outra grande frente de críticas que Hugo Machado dirige à doutrina que

inclui o elemento material na caracterização da lei complementar é aquela segundo a

qual esta linha de pensamento instila a insegurança jurídica, por tornar, muitas

vezes, incertos os lindes da matéria que deve ser tratada por lei complementar. Se se

defende que a lei complementar somente pode tratar das matérias

constitucionalmente reservadas para si, teria de existir, a bem da previsibilidade das

condutas que a cada um serão lícitas ou não, uma clareza acerca de quais seriam tais

matérias. Principalmente porque a doutrina majoritária admite que, mesmo quando

esteja cravada em lei complementar, matéria não reservada poderia ser revogada por

lei ordinária posterior. Mas, e se o ordenamento jurídico não for claro a esse respeito?

E se não houver certeza sobre que matérias, atualmente reguladas em lei

complementar, poderão ser tratadas depois em lei ordinária, de rito mais simples que

o da complementar? Exatamente esses são os pontos explorados por Hugo Machado

em suas críticas à doutrina mais difundida.

22 Os argumentos expostos podem ser encontrados em vários escritos de Hugo Machado, pois muitas vezes há trechos inteiros iguais em trabalhos distintos. Especificamente acerca da caracterização somente por elementos formais dos atos normativos, com decidida defesa dessa tese, foi feita uma argumentação ad nauseam no seu livro específico (cf. Posição hierárquica da lei complementar. Themis, n. 1, v. 1, 1997. p. 103-105; Idem. A identidade específica da lei complementar. Revista dialética de direito tributário, n. 117, jun., 2005. p. 51-54, 61, 68-69; Idem. Lei complementar tributária. São Paulo: Malheiros, 2010. esp. p. 25, 34, 40, 68, 99, 105-111).

HUGO DE BRITO MACHADO E JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES SOBRE A LEI COMPLEMENTAR

71

Forte na doutrina de Radbruch, Kaufmann e Manuel Domingos de

Andrade, entre outros, Hugo Machado insiste na demonstração de que o valor

segurança, também enquanto garantia de previsibilidade, deve ser preservado pelo

direito, por ser de sua essência, sobretudo em um estado democrático de direito,

como é o caso do brasileiro. Sob essa perspectiva, deve ser examinada a doutrina da

lei complementar e consideradas as reservas materiais impostas pela Constituição.

Uma leitura do texto constitucional deixaria à mostra a fragilidade da tentativa de

limitação da matéria passível de trato por lei complementar. Por exemplo, delimitar

quais são as exatas limitações do que cabe à lei complementar por força dos arts. 146

e 146-A, ambos da Constituição Federal23, seria uma tarefa impossível, pois “nesse

caso não existe fronteira, mesmo de difícil determinação”. Esta situação é piorada

pela admissão quase unânime de reservas implícitas à lei complementar. A saída

proposta é a de que se considerem apenas os critérios formais na caracterização da lei

complementar, para deixar ao critério do legislador a decisão sobre que matérias,

além das já reservadas pela própria Constituição, restarão abarcadas pela lei

complementar. Passagem de um trabalho sobre o tema resume esta posição:

Quando se afirma que a lei complementar é apenas aquela que trata das matérias reservadas pela Constituição a essa espécie normativa, retira-se do legislador a atribuição de interpretar com exclusividade as normas da Constituição que definem aquelas matérias, deixando-se essa atribuição com todos os intérpretes da Constituição. Em outras palavras, retira-se do legislador a atribuição de estabelecer a identidade específica das leis complementares, transferindo-se essa atribuição para a doutrina e para a jurisprudência, o que, por razões de todos conhecidas, instaura enorme insegurança, na medida em que deixa a critério de cada doutrinador e de cada Juiz a atribuição de dizer se determinada lei aprovada como lei complementar é realmente dessa espécie normativa ou se é lei ordinária.

23 Dispõem os referidos artigos: “Art. 146. Cabe à lei complementar: I - dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; II - regular as limitações constitucionais ao poder de tributar; III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários; c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas. d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239. Parágrafo único. A lei complementar de que trata o inciso III, d, também poderá instituir um regime único de arrecadação dos impostos e contribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, observado que: I - será opcional para o contribuinte; II - poderão ser estabelecidas condições de enquadramento diferenciadas por Estado; III - o recolhimento será unificado e centralizado e a distribuição da parcela de recursos pertencentes aos respectivos entes federados será imediata, vedada qualquer retenção ou condicionamento; IV - a arrecadação, a fiscalização e a cobrança poderão ser compartilhadas pelos entes federados, adotado cadastro nacional único de contribuintes. Art. 146-A. Lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo”.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

72

Bem melhor, portanto, para realizar o valor segurança, é admitirmos que o legislador decida o que deve ser tratado por lei complementar, em atenção aos dispositivos da Constituição que estabelecem a reserva de certas matérias a essa espécie normativa.24

Mesmo que o legislador, por qualquer razão, utilize a lei complementar

para regular matérias que não se encontram no campo a essa espécie normativa

reservado pela Constituição, isto só contribuirá para prestigiar o valor segurança,

evitando-se que as normas sobre essas matérias venham a ser alteradas por eventuais

maiorias parlamentares que podem aprovar uma lei ordinária, embora não alcancem

o quórum necessário para aprovação de lei complementar. Além disso, não permitir a

alteração de matéria constante em lei complementar por normas de lei ordinária

traria uma importante limitação a possíveis abusos na emissão de medidas

provisórias. Com a edição da emenda constitucional nº 32, teve fim qualquer dúvida

acerca da permissão para o trato de matéria reservada à lei complementar por

medida provisória, pois isto foi expressamente proibido. A questão pendente é se a

vedação é somente à matéria previamente reservada à lei complementar pela

Constituição, como faz supor a literalidade do texto constitucional, ou se para toda a

matéria que se encontre disciplinada por lei complementar, sem se levar em

consideração se desborda da reserva prévia. Hugo Machado vai pelo segundo

entendimento, por conta da sua melhor realização da segurança jurídica, uma vez que

ficaria a cargo do legislador a opção pela regulação por lei complementar, de sorte

que a problemática alteração da matéria não reservada, que já é de difícil delimitação,

não fique à mercê do chefe do poder executivo25.

Para o que se pretende, já parece o suficiente esta exposição das idéias de

Hugo de Brito Machado, repetidamente expostas em vários trabalhos publicados em

periódicos e em alguns de seus livros, especialmente em seu livro dedicado à lei

complementar tributária, assim como em suas aulas no curso de Pós-Graduação em

Direito da Universidade Federal do Ceará, a algumas das quais o autor deste trabalho

já teve a grata satisfação de assistir, na condição de aluno.

24 Segurança jurídica e a questão da hierarquia da lei complementar. Boletim de direito administrativo, n. 11, nov., 2006. p. 1223. O trecho transcrito foi integralmente reproduzido em Idem; e MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. A segurança jurídica e a identidade específica da lei complementar na Constituição Federal de 1988. Revista dialética de direito tributário, n. 133, out., 2006. p. 114, e, mais recentemente, em MACHADO, Hugo de Brito. Lei complementar tributária. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 130. 25 Cf. Segurança jurídica e a questão da hierarquia da lei complementar. Boletim de direito administrativo, n. 11, nov., 2006. p. 1223-1224. No mesmo sentido: Idem; e MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. A segurança jurídica e a identidade específica da lei complementar na Constituição Federal de 1988. Revista dialética de direito tributário, n. 133, out., 2006. p. 114-115.

HUGO DE BRITO MACHADO E JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES SOBRE A LEI COMPLEMENTAR

73

2.3 Outras considerações. Críticas preliminares às doutrinas expostas

Conforme ao já explanado, alguns pontos específicos das idéias dos dois

autores serão abordados neste apartado, para ficarem mais detida e claramente

expostas algumas divergências entre ambos. Neste sentido, serão retomados com

maior vagar alguns detalhes que, até aqui, foram somente superficialmente expostos

ou discutidos, assim como tratado pela primeira vez algo estrategicamente omitido,

por dizer respeito mais de perto às notas marginais que serão traçadas no passo

seguinte.

Um ponto em que os dois professores são unânimes, sobre o qual se fará

uma anotação, é aquele relativo à possibilidade de um ato que tenha seguido todo o

trâmite previsto para o cometimento de uma lei complementar regular matéria que a

esta não esteja constitucionalmente reservada. Para Hugo Machado, esse ato seria lei

complementar perfeita, pois teria todos os elementos necessários à sua formação,

uma vez que ele considera somente os requisitos formais como componentes

específicos desse ato legislativo26; mais: toda a matéria que estivesse no bojo de uma

lei complementar não poderia mais ser tratada por lei ordinária, pois a decisão do

legislador de tratar uma matéria por lei complementar afasta o futuro trato desta

matéria pela outra espécie de lei do ordenamento brasileiro27. Com relação a essa

26 Talvez as mais acentuadas críticas trocadas entre os dois professores foram relativas a uma interpretação de Maior Borges sobre a tese de identificação dos atos legislativos por elementos formais, pedra de toque das idéias de Hugo Machado. Para o primeiro, a tese que amplia o alcance material da lei complementar falha ao considerar que qualquer ato legislativo aprovado por maioria absoluta seja convertido em lei complementar, à semelhança da transformação em ouro de tudo o que era tocado pelo rei Midas. E diz mais: “O equívoco da tese ora criticada decorre de sua visão unilateral. É como se toda lei complementar estivesse revestida de legitimidade material, ou seja, por si só garantisse segurança e justiça nas relações tributárias” (Cf. Hierarquia e sintaxe constitucional da lei complementar tributária. Revista dialética de direito tributário, n. 150, mar., 2008. p. 75-76). Ou seja: ele entendeu que, segundo Hugo Machado, a mera aprovação por maioria absoluta transformaria qualquer ato legislativo, sem importar como tenha sido proposto, em lei complementar (materialmente legítima). A objeção veio a galope, nos seguintes termos: “Não é certo (...) que a lei complementar se qualifique como tal apenas pelo fato de haver sido aprovada por maioria absoluta. Uma lei ordinária que tenha sido aprovada por maioria absoluta, ou até por unanimidade, evidentemente não deixará de ser lei ordinária. O quórum efetivamente obtido na votação não converte uma lei ordinária em lei complementar. É importante todo o procedimento. Uma lei complementar há de ser tratada como tal desde a apresentação do respectivo projeto. (...) Toda lei complementar deve ser aprovada por maioria absoluta, mas nem toda lei que tenha sido aprovada por maioria absoluta será, só por isto, uma lei complementar. Só por má-fé, ou extremada desatenção, alguém pode confundir essas afirmações” (Segurança jurídica e lei complementar. Revista dialética de direito tributário, n. 152, mai., 2008. p. 105). 27 Seja feita uma ressalva: embora nenhum dos dois autores se tenha expressado sobre isso, parece ficar aberta, para ambos, uma possibilidade de que isso aconteça. Trata-se do caso em que uma matéria que não componha reserva constitucional de lei complementar venha a ser regulada em ato

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

74

questão, já se disse que Maior Borges tem uma solução engenhosa: se a lei

complementar é somente aquela que cumpre os requisitos de forma e de fundo,

então, à falta de qualquer um deles, não haverá uma lei complementar; tratar-se-á de

uma “uma manifestação atípica do poder de legislar”, com especial prestígio ao

pressuposto da representatividade. Este ato poderia, portanto, ser revogado por lei

ordinária, já que regula matéria sob o alcance desta. Ambos fundamentam a

possibilidade aduzida de maneira semelhante: o procedimento previsto para a lei

complementar é reforçado, relativamente ao da lei ordinária; deste modo, negar-se ao

ato aprovado com o procedimento de lei complementar o trato de matérias que

poderiam ter sido objeto de lei ordinária é afirmar que a maioria absoluta do

“Congresso pode o mais – tratar das matérias reservadas à lei complementar –, mas

não pode o menos – tratar de matérias próprias das leis ordinárias”28. A concordância

dos autores neste ponto deve ser explorada e abordada criticamente, sob a

consideração do que há em doutrina sobre processo de produção legislativa e controle

de constitucionalidade.

Outro ponto merecedor de maior comentário é aquele relativo à defesa da

existência de uma hierarquia entre a lei complementar e a lei ordinária, feita por

Hugo Machado. Ele afirma que a lei complementar é hierarquicamente superior à lei

ordinária, o que leva a primeira a prevalecer sobre a segunda sempre que estiverem

em conflito, sem entrar em linha de conta a matéria de que tratem. Já se explanou a

noção de hierarquia com que Maior Borges lida em seus trabalhos, sem haver mais a

necessidade de se repetir o exposto. Vale apenas fixar um ponto: para ele, uma lei

complementar pode não ser hierarquicamente superior a uma lei ordinária, desde

que a primeira não sirva fundamento de validade à segunda; a relação hierárquica

desta espécie, com a posterior revogação expressa deste por lei complementar superveniente – também seria possível a incompatibilidade da lei complementar com emenda à Constituição superveniente. Desse modo, ficaria aberto o flanco para a regulação da matéria por lei ordinária. 28 Cf. MACHADO, Hugo de Brito; e MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. A segurança jurídica e a identidade específica da lei complementar na Constituição Federal de 1988. Revista dialética de direito tributário, n. 133, out., 2006. p. 108. Em sentido semelhante: MACHADO, Hugo de Brito. Lei complementar tributária. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 152, local em que se lê a marcante afirmação: “Seria (...) um atentado à lógica dizer que o Congresso Nacional, atuando pela maioria de seus membros, não pode fazer o que está autorizado a fazer por deliberação tomada com maioria simples. A pretensão de limitar o alcance por deliberação por quórum de maioria absoluta a área inferior à alcançada por deliberação tomada com maioria simples dos membros do Congresso Nacional é de tal forma absurda que dispensa maiores comentários”. Neste trabalho, ainda será demonstrado que os autores que mais profundamente trataram das relações entre leis do mesmo ordenamento muitas vezes defendem que há uma repartição de competências entre alguns atos legislativos, motivo que impossibilita a intrusão de um na esfera material acometida a outro, ainda que o procedimento do primeiro seja reforçado em relação ao do segundo. Maior Borges também lança mão do argumento “quem pode o mais, pode o menos” (cf. nota 16).

HUGO DE BRITO MACHADO E JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES SOBRE A LEI COMPLEMENTAR

75

entre ambas, portanto, é algo da ordem do contingente. Assim, não se nega a

possibilidade de uma lei complementar ser hierarquicamente superior a uma lei

ordinária, mas não se afirma que esta superioridade se dê em todas as ocorrências de

lei complementar. Entretanto, o mais curioso é que esta divergência entre os dois

tem, subjacente a si, exatamente uma diferença sobre o que se entende por hierarquia

normativa, diferença que causou uma inacreditável confusão nos escritos de ambos e

que leva os seus leitores à conclusão de que os autores não entenderam que tratavam,

pelo mesmo nome, coisas completamente distintas.

2.3.1 O problema da hierarquia normativa

Desde o primeiro trabalho no qual reviu seu posicionamento sobre a lei

complementar, Hugo Machado faz questão de repetir que o problema desse ato não

está no reconhecimento de sua superioridade, que seria conhecida “sem objeção

razoável, mas na questão de saber se a própria caracterização da lei complementar

como espécie normativa autônoma, depende da matéria regulada”29. Em outro

escrito, publicado anos depois do citado há pouco, afirmou que o problema em torno

da lei complementar é a sua identidade específica, e não propriamente a sua posição

hierárquica no nosso ordenamento30. É interessante observar a forma pela qual ele dá

como superada a questão relativa à posição hierárquica da lei complementar, para

concentrar suas atenções sobre os elementos que a caracterizam prototipicamente. O

interesse reside no fato de há quase quarenta anos ter-se formado uma corrente

doutrinária que nega a superioridade hierárquica da lei complementar sempre que

esteja em conflito com lei ordinária, corrente que segue com seus adeptos, dentre eles

o próprio Maior Borges, e Hugo Machado insistir na superação da questão sobre a

superioridade hierárquica da lei complementar. Se é verdade que há quem negue a

superioridade hierárquica da lei complementar em algumas colisões com lei

ordinária, como é o caso do próprio Maior Borges31, por que o Hugo Machado insiste

29 Cf. Posição hierárquica da lei complementar. Themis, n. 1, v. 1, 1997. p. 104. 30 Cf. A identidade específica da lei complementar. Revista dialética de direito tributário, n. 117, jun., 2005. p. 51. 31 A noção de hierarquia de que se vale Maior Borges parece ter-se mantido a mesma, como dá a entender a seguinte passagem de artigo publicado mais de trinta anos depois de seu livro sobre a lei complementar tributária: “Como no entanto caracterizar a relação de hierarquia ao lume da TGD – sua morada originária? O método é aí conhecido e assentado desde a primeira metade do século passado, em decorrência da teoria pura do direito (Kelsen). (...) Uma norma coloca-se em supraordenação com relação a outra. (p. ex., a CF versus lei complementar) quando (a) lhe determina parcialmente o

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

76

na afirmação de que não há “objeção razoável” à tese da superioridade desse ato

legislativo?

A resposta à pergunta feita logo acima é de difícil obtenção, intrigante até

para o próprio Maior Borges, que expressou a sua surpresa com a recorrente

afirmação de Hugo Machado de que é pacífico entre os doutrinadores que a lei

complementar ocupa um posto hierárquico superior ao da lei ordinária. Para Maior

Borges, resta sem qualquer explicação em que consistiria essa superioridade, assim

como o fato de esse entendimento ser dado como pacífico32. Tentar-se-á demonstrar

que a colocação de Hugo Machado se funda em uma concepção confusa (e

dificilmente sustentável em alguns casos, ao menos para o nosso ordenamento

jurídico) de hierarquia entre normas, que o levou, ao que parece, a uma grande

confusão conceitual, de modo a tornar algumas passagens de seu trabalho

teoricamente abstrusas.

Somente em seus últimos trabalhos, Hugo Machado deixa algo mais clara

sua noção de hierarquia. No artigo em que respondeu a algumas críticas de Maior

Borges, ele reitera que não há mais dúvida quanto à superioridade hierárquica da lei

complementar sobre a lei ordinária e afirma, outra vez, que não conhece

“manifestação atual da doutrina” que negue a supremacia. Ainda segundo ele, até os

que defendem a possibilidade de lei ordinária revogar dispositivo de lei

complementar não recusam tal superioridade, pois esta possibilidade é devida à

caracterização da lei complementar por elementos formais e materiais, não pela

negação da superioridade33. Neste ponto, já é possível chegar à conclusão segundo a

qual aquilo que Hugo Machado entende por hierarquia normativa é uma coisa

completamente diferente do que Maior Borges admite para tanto. Observe-se:

quando Hugo Machado afirma que os defensores da tese segundo a qual lei ordinária

pode revogar lei complementar o fazem não por conta da negação da hierarquia entre

ambas, mas por não reconhecerem como lei complementar um ato legislativo que não

tenha cumprido os requisitos formais e materiais específicos, é pressuposta a

seguinte concepção de hierarquia normativa: dadas duas espécies normativas E1 e E2,

conteúdo. (...) Adiciona-se (b) um requisito formal ou procedimental: a norma superior (e.g., a CF) determina o procedimento de formação da norma inferior (p. ex., a lei complementar)” Cf. Hierarquia e sintaxe constitucional da lei complementar tributária. Revista dialética de direito tributário, n. 150, mar., 2008. p. 75. 32 Cf. Hierarquia e sintaxe constitucional da lei complementar tributária. Revista dialética de direito tributário, n. 150, mar., 2008. p. 69. 33 Cf. Segurança jurídica e lei complementar. Revista dialética de direito tributário, n. 152, mai., 2008. p. 105.

HUGO DE BRITO MACHADO E JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES SOBRE A LEI COMPLEMENTAR

77

E1 será considerada hierarquicamente superior a E2 se, em caso de conflito entre as

duas, decida-se sempre pela prevalência de E1. Ou seja: o critério para a hierarquia,

aqui, é única e exclusivamente aquele ditado pelas relações de prevalência em caso de

tensão entre espécies de atos normativos, sem qualquer consideração sobre a matéria

que cada uma venha a tratar especificamente.

À vista do explanado, o que causa estranheza nessa discussão é que fica

patente a diferença de noções de hierarquia entre os dois autores, sem que isso tenha,

aparentemente, sido percebido por nenhum deles. Já se disse que Maior Borges

admite a existência de hierarquia em algumas ocorrências de lei complementar, não

que haja subordinação sempre que se estiver diante de uma lei complementar e outro

ato, mesmo que este não retire seu fundamento de validade do primeiro. Desse modo,

há um grupo de leis complementares que podem ser hierarquicamente superiores a

outros atos, que extraiam o seu fundamento de validade delas, e há outro grupo, que

não goza dessa superioridade. Portanto, o que há é a afirmação de um (Hugo

Machado), segundo a qual o outro admite a existência de hierarquia sempre que

houver uma lei complementar (com os requisitos de forma e de fundo), e a afirmação

de outro (Maior Borges), segundo a qual nem sempre que houver uma lei

complementar haverá hierarquia, pois é necessária, além do cumprimento dos

requisitos de forma e de fundo, a extração de validade de outro ato normativo a partir

de uma lei complementar específica. Claramente, pelo mesmo nome, os dois autores

se referem a coisas inteiramente distintas.

Somente em sua obra monográfica sobre o tema, Hugo Machado dedicou

maior atenção à confusão que se estabeleceu. A passagem a seguir transcrita é longa,

mas bastante representativa do que esse autor entende sobre o tema:

Ocorre que a tese segundo a qual uma norma é hierarquicamente superior quando nela a norma inferior tem o seu fundamento de validade deve ser entendida nos seus devidos termos. No contexto dessa tese, a referência à norma deve ser entendida como referência ao conjunto de normas da mesma espécie normativa, e não a uma determinada norma ou regra jurídica individualmente considerada, dessa ou daquela espécie. Assim é que, quando se afirma que a lei ordinária tem seu fundamento de validade na Constituição, entende-se que é na Constituição como um conjunto de normas que se encontram aquelas normas que disciplinam a competência e o procedimento para a produção de tais leis. Na verdade, a Constituição é um conjunto de normas as mais diversas. Muitas delas, individualmente consideradas, não se prestam como fundamento de validade para determinada lei ordinária. Entretanto, todas as normas que estão na Constituição, independentemente de serem, ou não, fundamento de validade das leis ordinárias, são a estas hierarquicamente superiores.34

34 Lei complementar tributária. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 147.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

78

Somente na passagem acima é que Hugo Machado deixou em termos mais

claros o que entende por hierarquia normativa. Como é possível notar, ele se deu

conta da diferença que havia em relação a Maior Borges. Enquanto este advogava por

uma concepção instrumental de hierarquia, em que é possível falar em relação de

supra ou infra-ordenação quando há relação entre duas ocorrências de atos, não

entre suas espécies, aquele (finalmente) deixou transparecer que admite uma

concepção de hierarquização da validação escalonada35. Com esses elementos,

compreende-se a justificativa de Hugo Machado fazer a afirmação de que Maior

Borges admitia a posição hierárquica superior da lei complementar sempre que ela

fosse regularmente expedida, enquanto este demonstrava a sua surpresa com essa

afirmação, pois continuava a defender a sua concepção instrumental de hierarquia

entre as leis ordinária e complementar, tese desenvolvida há quase anos. Sem as

considerações feitas até aqui, ou, pelo menos, sem a leitura da última passagem de

Hugo Machado, a discussão se mostra completamente desarranjada.

Aclarada a questão relativa à hierarquia nos trabalhos dos dois

professores, pode-se passar à análise da questão sobre a possível reserva de matéria

para alguma lei em nosso ordenamento, assim como as questões decorrentes disso. A

35 Esta confusão representa, de maneira bastante significativa, que o critério hierárquico não é uno. Na verdade, sempre houve diversas concepções de hierarquia, embora a nossa doutrina ignore essas construções diferenciadas; muitas delas, inclusive, são incompatíveis umas com as outras, embora haja alguma(s) que não implicam a negação da(s) outra(s). Uma concepção de hierarquia envolvida na polêmica é a concepção instrumental, aquela que, segundo Blanco de Moraes, “avança o ensinamento de que, quaisquer <<leis sobre normação>> que incidam sobre os modos de criação e revelação de outras leis deverão assumir uma hierarquia superior a estas últimas”. Como se disse, é a que Maior Borges admite. Esta concepção parece constituir uma realidade paralela à hierarquia formal das fontes, o que valeu a crítica de especialistas na área, por causar uma perturbação no entendimento das relações entre normas de escalões diferenciados. Nesse sentido, MIGUEL, Alfonso Ruiz. El principio de jerarquía normativa. Revista española de derecho constitucional, n. 24, set./dez., 1988. p. 144-147. Já Hugo Machado parece perfilhar a concepção da validação escalonada, que supõe a hierarquização das espécies legislativas, de sorte a permitir que um ato de maior valor atinja atos de menor valor normativo, sem que o contrário aconteça, sem haver exceções por conta da matéria de cada um dos atos cujas normas estejam em tensão. Esta suposição ganha força quando se lembra de que Hugo Machado releva na identificação de uma espécie legislativa a competência do órgão e o procedimento para a formação do ato jurídico (cf. as referências da nota 22). Sobre as diversas concepções de hierarquia entre normas jurídicas e as relações que se podem estabelecer entre si, cuja exposição não pode ser trazida neste estudo, é fundamental a consulta a MORAES, Carlos Blanco de. As leis reforçadas: as leis reforçadas pelo procedimento no âmbito dos critérios estruturantes das relações entre actos legislativos. Coimbra: Coimbra, 1998. p. 253-263. Um ponto que não foi tomado em consideração pelos dois professores foi exatamente a multiplicidade de concepções de hierarquia, uma vez que parecem tomar a que adotam como a correta, ou mesmo a única imaginável, constitutiva de um mítico conceito lógico-jurídico (esta expressão é utilizada por Hugo Machado), que tornaria sem importância a questão de esclarecer, como foi o caso de Hugo Machado, o significado preciso disso. Como ficará mais claro, faltou a ambos a idéia de que noções como estruturação escalonada de atos normativos e hierarquia entre eles são apenas estruturas a serviço da reconstrução de um ordenamento jurídico empreendida pelos seus intérpretes, não algo essencial (com um conteúdo pré-estipulado), a qualquer ordenamento jurídico, seja ele qual for.

HUGO DE BRITO MACHADO E JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES SOBRE A LEI COMPLEMENTAR

79

crítica das noções de hierarquia defendidas pelos dois autores será feita na última

parte deste trabalho.

2.3.2 Reserva material de lei reforçada pelo procedimento e alguns problemas

decorrentes dessa questão

A unanimidade, pelo que se tenha conhecimento, de nossa doutrina sobre

a possibilidade de um ato legislativo que tenha atravessado o procedimento previsto

para uma lei complementar regular matéria que poderia ser regulada por lei

ordinária sempre impediu, de certa forma, a feitura de uma reflexão mais detida

sobre os problemas que estão envolvidos quando existem mais de um tipo de lei em

um ordenamento, notadamente quando se está diante de espécie que demanda um

processo produtivo diferenciado, reforçado pelo procedimento em relação ao de

outra. A doutrina brasileira nunca atentou, seriamente, para as dificuldades surgidas

com a introdução de tipos legais diferenciados, o que acaba por comportar em boa

medida, como efeito relacional, o deslocamento do fulcro das tensões entre normas

“do eixo <<lei-regulamento>>, para o terreno novatório e algo nebuloso do

enfrentamento <<lei-lei>>”36. As complicações surgidas, dentre outros motivos, pela

articulação entre as distintas formas de criação do direito – na Espanha, há as leis

ordinárias e as leis orgânicas, estas últimas com certas “relações de parentesco” com

as leis complementares brasileiras – fizeram respeitável setor da doutrina desse país

afirmar que empreender uma teoria da lei que desse conta da sua diversidade era,

pelo menos à época, “quizá el mayor reto dirigido a los juristas españoles”37. Tais

considerações da doutrina estrangeira, que tratou com rigor e seriedade as tensões

entre leis distintas, até pelo fato de a questão ter-se mostrado muito mais grave nos

estados unitários complexos, dão mostra de que as soluções propostas pela doutrina

brasileira ainda não passaram por alguns “testes” que podem fazer ruir seus

fundamentos, provas que foram bastante trabalhadas por alguns setores da doutrina

estrangeira, com ênfase em Portugal, Espanha e Itália.

Em primeiro lugar, pode-se avaliar a tese de Hugo Machado de que toda e

qualquer matéria que vier a ser regulada pela lei complementar passará a gozar do 36 Cf. MORAES, Carlos Blanco de. As Leis Reforçadas: as leis reforçadas pelo procedimento no âmbito dos critérios estruturantes das relações entre actos legislativos. Coimbra: Coimbra, 1998. p. 81. 37 Cf. LLORENTE, Francisco Rubio. Rango de ley, fuerza de ley, valor de ley (Sobre el problema del concepto de ley en la Constitución). Revista de administración pública, n. 100-102, jan./dez., 1983, p. 432.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

80

valor normativo que a Constituição teria destinado a esta espécie legislativa. E ele vai

além: defende que a força normativa da lei complementar é maior que a da lei

ordinária, uma vez que o quórum para a sua aprovação é mais reforçado, detalhe que

denota uma manifestação mais expressiva da vontade do órgão produtor do ato38.

Isto levaria à impossibilidade de uma matéria, uma vez tratada por lei complementar,

ser revogada por norma de lei ordinária, já que esta última tem um “poder

normativo” inferior ao da primeira. Essa argumentação traz consigo algumas

premissas que não são suficientemente enfrentadas pelo autor, a saber: (1) que, no

direito brasileiro, os atos normativos se identificam apenas por elementos formais;

(2) que o poder normativo de um ato acompanha, pari passu, o reforço

procedimental a que ele é submetido em seu cometimento; (3) que o reforço

procedimental imposto à formação de uma lei complementar confere um maior poder

normativo, em relação ao da lei ordinária; (4) que não há qualquer

inconstitucionalidade em se rigidificar a regulação de uma matéria com a imposição

de um regime jurídico que a Constituição não requereu. Esses quatro pontos

merecem análise detida.

Com relação aos números 2 e 3, deve-se atentar para o fato de a

Constituição brasileira não haver delineado, ao menos expressamente, a adoção de

uma gradação da força normativa dos atos de acordo com eventuais reforços

procedimentais a que tenham de se submeter. Embora isto se possa observar com

relação a alguns atos, com relação a outros esta solução tem de enfrentar dificuldades

talvez insuperáveis. Por exemplo, a Constituição confere “força de lei” às medidas

provisórias, as quais têm o mesmo condão de promover alterações de posições

jurídicas conferido à lei. Como se sabe, o procedimento da medida provisória é

completamente distinto do de uma lei ordinária; entretanto, a Constituição confere

força de lei a um ato que não passa pelo Congresso Nacional antes de produzir efeitos

(e que, pela força de lei que detém, pode efetuar a revogação de normas de uma lei),

via de regra39. Aliás, são inúmeras as variações relativas ao procedimento de leis (ou

38 MACHADO, Hugo de Brito. Lei complementar tributária. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 38. 39 Obviamente, estas afirmações devem ser entendidas com as limitações que a própria Constituição impõe, tais como os limites materiais impostos às medidas provisórias (vedação ao trato das matérias reservadas à lei complementar etc.). Também não se pode ignorar que a conversão de uma medida provisória segue procedimento que se assemelha, em alguns pontos, o trâmite de uma lei. Contudo, os efeitos da medida provisória são (em regra) imediatos, sem aguardar pelo crivo das casas legislativas; mais que isso, no caso de rejeição de medida provisória, o Congresso terá de regular as posições jurídicas decorrentes das normas extraídas da medida rejeitada durante a sua vigência. É dizer: uma

HUGO DE BRITO MACHADO E JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES SOBRE A LEI COMPLEMENTAR

81

atos que tenham a mesma força normativa), sem que se fale, por isso, em inúmeras

forças normativas diferenciadas. Por exemplo, há previsão de iniciativa popular do

procedimento legislativo. Indiscutivelmente, um projeto de lei apresentado por, pelo

menos, um por cento do eleitorado nacional, distribuído por, no mínimo, cinco

Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles,

confere maior proximidade, ao menos em tese, com os “anseios do povo”. Isso

caracteriza um reforço procedimental, relativo ao modo de exercício do poder de

iniciativa. Entretanto, seria desarrazoado, em face de nossa Constituição, dizer que

uma lei oriunda de um projeto de iniciativa popular seja hierarquicamente superior a

outra, iniciada pelo Presidente da República, ou por algum parlamentar.

Estes exemplos, e outros mais que se podem colher, fazem com que seja

muito pertinente, também para o direito brasileiro, a lição de Tomáz-Rámon

Fernández, no sentido de rejeitar a imputação, por simples reflexo mental, ao

princípio da hierarquia normativa de todos os problemas técnico-jurídicos que o

texto constitucional põe acerca das fontes do direito, problemas estes cujas soluções

devem desbordar, por suas peculiaridades, dos critérios dogmáticos tradicionais. Os

riscos que esta atitude de recondução ao critério hierárquico comporta são evidentes,

porque, como disso já se deu mostra, vários são os mecanismos procedimentais

previstos pela Constituição, mesmo dentro do mesmo gênero normativo (no caso,

lei); e se para cada uma dessas variações for deduzido um novo e distinto tipo de lei,

com patamar hierárquico e força normativa diferenciados, o próprio conceito de lei

“quedaría definitivamente diluido en maraña formalista de imposible manejo”. Em

razão disso, a Constituição iguala em valor todas as leis, ainda que haja alguma

variação em seus modos de produção, ou que, em certos casos, sejam reservadas e/ou

vedadas determinadas matérias, em atenção a critérios jurídicos, ou, mais das vezes,

políticos, de variegada ordem40. Portanto, a força normativa de um ato não será dada

(pelo menos não sempre) somente em função de eventual reforço procedimental, seja

ele de que ordem for; para se determinar a precisão dessa força, tem-se de observar o

que a Constituição confere em termos de atributos operativos de um ato. A propósito,

outra grande afirmação da tese de Hugo Machado é a de que o patamar hierárquico

superior que seria ocupado pela lei complementar se dá exatamente por conta da sua

medida provisória, ainda que rejeitada, tem o condão jurígeno de desconstituir relações jurídicas que já tinham um regramento definido por lei. 40 Cf. FERNÁNDEZ, Tomáz-Ramon; e ENTERRÍA, Eduardo García de. Curso de derecho administrativo. 9. ed. Madrid: Civitas, 1999. p. 123.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

82

rigidez maior, consubstanciadora de uma vontade mais qualificada do Congresso. No

entanto, como já demonstrado com exemplos acima, não é sempre que a rigidez de

um ato, seja por reforço no exercício do poder de iniciativa, seja por maior quórum de

aprovação requisitado, alça-o a maior patamar hierárquico no ordenamento

brasileiro. Rigidez e hierarquia não se graduam em relação de direta proporção,

necessariamente; é o regime operativo de cada ato, o mais das vezes imputado

diretamente pela Constituição, que ditará a força de cada um em situações de colisão.

Mais: como se verá, a Constituição permite que alguns atos possam conformar

outros, de hierarquia dada como igual ou superior, de acordo com a noção de

hierarquia escalonada, o que desestrutura qualquer tentativa de hierarquização das

fontes nos moldes em que se baseia a tese de Hugo Machado.

Não bastassem esses motivos para alquebrar os fundamentos das

premissas 2 e 3, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem complicado

(ainda mais) a tentativa de se estabelecer uma teoria das relações inter-normativas no

ordenamento brasileiro, jurisprudência que também promoveu a fragilização da

premissa 1, ao agir como no caso em que se consagrou o caráter supralegal dos

tratados internacionais de direitos humanos que tenham atravessado o procedimento

ordinário em sua aprovação, antes das alterações promovidas pela emenda

constitucional de nº 4541. Pelo menos a partir deste julgamento, se já não era antes,

tornou-se absolutamente impossível determinar a força normativa de um ato

apenas por aspectos relacionados à sua forma, pois a superioridade formal, com a

conseqüente força normativa superior à legal, conferida a tais tratados, é dada em

atenção à matéria de que tratam. Qualquer tentativa, portanto, que siga a premissa

1, será inexoravelmente, ao menos de maneira parcial, fracassada para o

ordenamento jurídico brasileiro. Além disso, a emenda constitucional de número 45

ainda acresceu o § 3º, ao art. 5º, da Constituição Federal, e segundo esse dispositivo:

Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Percebe-se, pois, que, aos atos com a matéria especificada, que

atravessarem um procedimento específico, serão conferidos os atributos operativos

típicos das emendas à Constituição. Observe-se que o quórum de aprovação é igual ao

das emendas à Constituição, mas que o procedimento é diferente em outros pontos,

41 Veja-se a nota 57.

HUGO DE BRITO MACHADO E JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES SOBRE A LEI COMPLEMENTAR

83

mais simplificado, pois não estão incluídas limitações ao poder de emenda, como a

impossibilidade de se o praticar durante a vigência do estado de sítio, do estado de

defesa e de intervenção federal; também não se deve incluir a vedação da

apresentação, na mesma sessão legislativa, de projeto de emenda

rejeitado/prejudicado, pois é mais razoável que se admita a reapresentação nos

termos dos projetos de lei rejeitados42. A interpretação feita se justifica por conta do

direcionamento material que se pode notar pelo dispositivo constitucional, o qual se

afina, diga-se de passagem, ao crescente movimento de proteção aos direitos

humanos. É (mais) um desafio que a tese de Hugo Machado, que conheceu sua

apresentação mais extensa e bem acabada em seu livro sobre a lei complementar

tributária, não tem condições de superar, e que levanta uma série de óbices

intransponíveis, ao que muitos fatores indicam, às tentativas de caracterização dos

atos normativos de nosso ordenamento exclusivamente por elementos formais.

Estas considerações levam à necessidade de adoção de uma das lições do

professor lusitano que produziu a mais abrangente monografia sobre os atos

legislativos reforçados pelo procedimento. De acordo com ele, o valor normativo

inerente às leis reforçadas pelo procedimento é a qualidade normativa de relevância

constitucional que alicerça o princípio da especialização procedimental, “o seu

objecto medular”. E é a partir disso que se extraem os “eixos comportamentais do

modo de ser” das leis reforçadas, os efeitos jurídicos que estão envolvidos na rigidez

que lhe é conferida pelo reforço procedimental e pela separação relativa de âmbitos

(materiais) de regulação legal. O referido valor normativo termina como produto de

uma conjunção de dois fatores condicionantes dos elementos constitutivos das leis

procedimentalmente reforçadas, os quais “moldam o sentido de direcção operativa”

fixado por esse valor. Estes fatores são o “esgotamento material positivo” das reservas

reforçadas e a “limitação da vontade do legislador” por via do procedimento. A noção

de “esgotamento material positivo” poderia deixar-se vazar como a consunção de

uma reserva intra-orgânica de natureza parlamentar, por uma categoria legal

qualificada, com a absoluta exclusão das demais. Esta condição seria a explicação por

força da qual as “reservas parlamentares clausuradas” justificariam não apenas uma

separação relativa de esferas de ação regulatória entre leis reforçadas e as demais leis,

mas também a recondução do “poder operativo das primeiras, a um campo material

42 A disciplina é a do seguinte artigo da Constituição Federal: “Art. 67. A matéria constante de projeto de lei rejeitado somente poderá constituir objeto de novo projeto, na mesma sessão legislativa, mediante proposta da maioria absoluta dos membros de qualquer das Casas do Congresso Nacional”.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

84

determinado”. Blanco de Moraes se adianta para enumerar os motivos que

conduziriam o constituinte não somente a estabelecer reservas intra-orgânicas, mas,

sobretudo, reservas internas de natureza reforçada. Eles seriam de três ordens: uma

de natureza atributiva; outra, de natureza defensiva; a última, de natureza limitativa

do alcance normativo da própria lei reforçada. A primeira delas consistiria na outorga

de estatuto reforçado aos atos legislativos constitucionalmente habilitados a

promover a consunção da reserva reforçada. A segunda seria a expressão da

impossibilidade de penetração da reserva reforçada pelos atos que não tenham a

habilitação a que se fez referência na razão de natureza atributiva, é dizer: trata-se de

um fenômeno que se define pela proibição, aos atos que não tenham atravessado o

procedimento reforçado, de esgotamento da reserva reforçada. A terceira, muito

importante, traduz-se no estabelecimento de uma relação causal entre a reserva

reforçada e a lei portadora de valor normativo correspondente; consistiria “numa

exigência destinada a evitar leis reforçadas puramente formais, susceptíveis de operar

no ordenamento como verdadeiros <<mísseis sem controlo>>”. A limitação da

vontade do legislador é posta exatamente pelo requerimento de um consenso mais

denso, que se opera pela manifestação mais elaborada e/ou concentrada da vontade

legislativa43.

A adequação da lição acima ao nosso direito é cabal. A inserção de outra

espécie legislativa, de estatuto reforçado, com a qual o legislador pudesse atuar de

maneira indiscriminada, somente traria um elemento complicador para a regulação

legislativa das matérias açambarcadas pela sua competência, com a emissão, para

dizer com Blanco de Moraes, de mísseis sem controlo, ou cavaleiros de lei reforçada.

Nem se diga que, com a limitação da ação legislativa na eleição da lei complementar,

seria retirada do legislador “a atribuição de interpretar com exclusividade as normas

da Constituição” que definem determinadas matérias, como pretende Hugo

Machado44, por um motivo relativamente simples: o legislador não tem atribuição

para interpretar, com exclusividade, dispositivo algum da Constituição, a qual tem no

Supremo Tribunal Federal seu guardião de ofício, não no Congresso. Se é verdade que

há matérias que somente a um alto custo poderão ser excluídas da legislação por lei

reforçada, por serem importantes para a composição da regulação dos núcleos

43 Cf. MORAES, Carlos Blanco de. As leis reforçadas: as leis reforçadas pelo procedimento no âmbito dos critérios estruturantes das relações entre actos legislativos. Coimbra: Coimbra, 1998. p. 848 ss. 44 Cf. A identidade específica da lei complementar. Revista dialética de direito tributário, n. 117, jun., 2005. p. 63.

HUGO DE BRITO MACHADO E JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES SOBRE A LEI COMPLEMENTAR

85

materiais já acometidos constitucionalmente à lei complementar, isso não pode levar

à dação de uma competência indiscriminada para o legislador sobre a decisão do que

será regulado por essa mesma legislação reforçada. Oportuno lembrar que, embora

Hugo Machado se refira a hipóteses de dificuldades na delimitação da matéria que

deve ser tratada por lei complementar, ele não restringe o alongamento da matéria

regulável por esse ato somente às hipóteses em que seja de difícil delimitação, ou em

que se requeira também a regulamentação de áreas materiais afins, nem indica com

maior precisão que critérios poderiam ser utilizados em tais casos45, mas acolhe a

solução simplista de deixar a cargo do legislador a eleição de toda a matéria que

caberá em lei complementar, seja relacionada ou não àquelas já constitucionalmente

acometidas a esse ato.

Resta, agora, abordar a premissa 4. Toda a doutrina de Hugo Machado

sobre a relação lei ordinária/lei complementar é baseada na ausência de problemas

com a rigidez que se confere a matéria que poderia ser tratada por lei ordinária e o é

por lei complementar, de sorte que esse conteúdo reste inatingível por lei ordinária

superveniente (com a possível exceção aduzida na nota 27). Esse raciocínio se funda,

não apenas para Hugo Machado, como também para Maior Borges, na antiga idéia de

que “quem pode o mais, pode o menos”; se o Congresso poderia regular por maioria

simples, a fortiori, podê-lo-ia também por maioria absoluta. Entretanto, tal

pensamento não se pode estender sem encontrar problemas que são completamente

ignorados pela doutrina especializada brasileira.

Uma primeira questão que se pode levantar, à doutrina dos dois

professores, é que esse raciocínio leva em conta o projeto de lei já aprovado, sem se

considerar que, até lá, ele tem de passar pelo procedimento constitucionalmente

previsto para a perfectibilização do ato. Quer-se, com isto, chamar a atenção para o

fato de que nem todo projeto de lei proposto como de lei complementar será

aprovado, como poderia ser, caso o fosse como de lei ordinária – não é difícil

concebê-lo, uma vez que a maioria absoluta é mais difícil de ser obtida que a maioria

simples. Nesse sentido, a propositura de uma matéria, que poderia constar de projeto

de lei ordinária, no bojo de um projeto de lei complementar impõe um gravame para

a sua aprovação que não tem, muitas vezes, qualquer justificativa para se impor. Esse 45 Sobre a problemática dos limites da reserva reforçada, cf., por todos, MORAES, Carlos Blanco de. As leis reforçadas: as leis reforçadas pelo procedimento no âmbito dos critérios estruturantes das relações entre actos legislativos. Coimbra: Coimbra, 1998. p. 882 ss., especialmente as páginas 888-908, em que se trata da expansibilidade dos limites externos da reserva reforçada, discussão de proporções por demais alongadas para caber neste trabalho.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

86

fato traz a seriíssima conseqüência que pode surgir do tratamento de matéria de lei

ordinária por projeto de lei complementar: dificultar a regulação das relações inter-

subjetivas constituintes de matéria passível de regulação por lei ordinária, mas

tratada em projeto de lei complementar. A conclusão a que se pode chegar sobre o

argumento “quem pode o mais, pode o menos” é a de que ele deve ser afastado da

relação lei complementar/lei ordinária. Aliás, as próprias Comissões Parlamentares

competentes para analisar a constitucionalidade dos projetos de lei deveriam cuidar

de afastar dos projetos de lei complementar as matérias que podem ser tratadas por

lei ordinária, para não impor um óbice que pode se mostrar insuperável à sua

regulação46. Este é um terreno em que o assim chamado controle de

constitucionalidade preventivo deve atuar, para recusar a imposição de uma

dificuldade procedimental que a Constituição não determina.

Especificamente à doutrina de Hugo Machado, pode-se levantar uma

objeção que é, de certa forma, prolongamento da anterior. Como o professor aludido

admite, uma vez tratada por lei complementar, qualquer matéria, seja qual for, estará

protegida por um “poder normativo” superior que a legislação reforçada lhe

conferiria. Esta proposta levaria à possibilidade do que muitos doutrinadores

intitularam “engessamento” da legislação, através do que já se chamou míssil sem

controlo em leis reforçadas. Esta crítica é pertinente, principalmente porque

incrustar em leis de valor reforçado matérias que não as requerem, sem a

possibilidade de alterá-las por meio da legislação ordinária, levaria a uma ação

legislativa inconstitucional, pois dificultaria desnecessariamente a complementação

normativa da Constituição. Hugo Machado contra-argumenta na seguinte linha: a

vontade expressa pela maioria absoluta representa melhor a vontade do órgão que a

emite, o que salvaguardaria a legislação de “maiorias eventuais” obtidas no

46 Outro problema dirá respeito à limitação para a apresentação de projeto de lei rejeitado ao longo de uma sessão legislativa. Dispõe a Constituição que a matéria constante de projeto de lei rejeitado somente poderá ser proposta novamente, em outro projeto de lei, na mesma sessão legislativa, mediante proposta de maioria absoluta dos membros de qualquer casa do Congresso (art. 67). Este artigo da Constituição somente acrescenta razão à censura feita ao argumento “quem pode o mais, pode o menos”. Por conta dele, matéria de lei ordinária constante de projeto de lei complementar rejeitado somente poderia ser objeto de novo projeto, mesmo que de lei ordinária, com proposta de maioria absoluta dos membros de uma das casas congressuais. A submissão de matéria afeta à lei ordinária não poderia sofrer esse “engessamento”, o que põe por terra o argumento “quem pode o mais, pode o menos”. Observe-se que também há uma limitação semelhante para a emenda à Constituição, que, uma vez recusada, não poderá ter a sua matéria inserta em nova proposta de emenda (PEC) na mesma sessão legislativa (art. 60; § 5º).

HUGO DE BRITO MACHADO E JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES SOBRE A LEI COMPLEMENTAR

87

Congresso47. Bem, não se pode negar a superioridade de uma maioria absoluta,

quando comparada a uma maioria simples; o que não se pode deixar de discutir é se a

superioridade debatida pode levar o ato por ela prestigiado a um patamar hierárquico

superior a outro. Esta é uma questão completamente diferente, para a qual a

Constituição não deu uma resposta afirmativa, considerados tantos outros elementos

já expostos (e outros que ainda virão). Além disso, a proteção contra “maiorias

eventuais” é algo que tem apenas uma de suas facetas resolvidas na tese de Hugo

Machado. Com efeito, “maiorias eventuais” também poderiam tirar proveito de lei

complementar: imagine-se um governo que tenha, atualmente, maioria absoluta de

apoiadores no Congresso; seria, admitida a tese de Hugo Machado, possível que ele

(governo) lançasse mão de projetos de lei complementar, que obteriam fácil

aprovação dos asseclas governistas nas casas congressuais, para promover reformas

que lhe interessassem e, imediatamente após, romper com alguns partidos políticos

e/ou parlamentares que lhe deram sustentação política nas reformas empreendidas,

perdas estas que não seriam suficientes para permitir uma contra-reforma, levada a

cabo pela oposição reforçada pelos dissidentes, na legislação anteriormente aprovada,

já que estaria totalmente protegida pelo valor normativo superior das leis

complementares – sempre segundo o pensamento de Hugo Machado. Aqui também

haveria o aproveitamento de uma “maioria eventual”, só que dessa vez para um

intento manifestamente repudiável, que se poria em marcha pelo “engessamento” da

legislação com o lançamento de autênticos mísseis sem controlo, possibilitados por

um “toque de Midas”48 do legislador, que propõe determinadas matérias em projetos

de lei complementar49 sem necessidade, já que não há a demanda constitucional para

47 Cf. MACHADO, Hugo de Brito; e MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. A segurança jurídica e a identidade específica da lei complementar na Constituição Federal de 1988. Revista dialética de direito tributário, n. 133, out., 2006. p. 116. 48 A metáfora com o rei Midas foi empreendida por José Souto Maior Borges (cf. Hierarquia e sintaxe constitucional da lei complementar tributária. Revista dialética de direito tributário, n. 150, mar., 2008. p. 76). 49 É possível imaginar outro tipo de abuso de lei complementar em que não haja uma “manipulação política”: certo assunto, em um dado momento (T1) pouco polêmico, é submetido a discussão em projeto de lei complementar; com a aprovação bastante do Congresso e com o demais desenvolvimento do processo legislativo, vira uma lei desta espécie. Em outro momento (T2), vislumbra-se a necessidade de uma revisão da legislação sobre o mesmo tema, por conta de alterações conjunturais imprevisíveis em T1, que o tornaram extremamente polêmico em T2, mas nenhum dos projetos sobre o tema consegue angariar a maioria necessária para suplantar a antiga legislação, que foi reforçada em T1. Detalhe: este reforço não era demandado pela Constituição. Também aqui uma “maioria eventual” deixará dificultada uma reforma que pode ter-se feito necessária, em qualquer das vertentes ideológicas existentes em T2, as quais são, individualmente, incapazes de formar, ao seu redor, uma maioria capaz de bater a legislação reforçada anterior. O que se pode perceber nesta idéia de Hugo Machado é que a ela subjaz uma concepção do “jogo democrático” em que as suas regras

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

88

isso. Uma prática quejanda pode mesmo configurar o que a doutrina mais abalizada

chama de inconstitucionalidade por “excesso de forma”50, razão suficiente para o

acionamento do controle de constitucionalidade por via de ação direta. Vale aqui a

feitura de uma última observação: a inconstitucionalidade por excesso de forma, que

não conta com grandes desenvolvimentos na doutrina brasileira, também serve para

afastar o argumento segundo o qual uma emenda à Constituição pode avançar sobre

qualquer matéria, independentemente de o constituinte originário tê-la acometido à

legislação comum. Também deste modo, a reforma posterior da legislação seria

inconstitucionalmente dificultada. Parece faltar a compreensão de que o reformador

da constituição tem apenas um poder constituído, que não pode tudo aquilo que

deseja, da maneira que bem entenda, exceto ferir cláusulas pétreas (quando

existentes). A emenda à Constituição não pode ser entendida como onipotente; o

constituinte lhe impôs limites materiais, ao acometer a outros atos legislativos

determinadas matérias, para que estas possam ser construídas e reformadas em

procedimentos não necessariamente tão reforçados quanto o das emendas à

Constituição. Infelizmente, nossa doutrina ainda está muito aferrada a antigas noções

de onipotência do poder de reforma constitucional, o qual, antes da evolução das

Constituições escritas, era baseado no império ou onipotência da lei51, manifestação

paradigmática de uma vontade geral incontrastável, soberana.

Com relação à doutrina de José Souto Maior Borges, a crítica é algo

diferente. Já foi dito que ele admite que um ato que tenha passado pelo procedimento

previsto para a lei complementar venha a tratar de matéria regulável por lei

ordinária; mas ele não se converteria em lei complementar, por não cumprir os seus

requisitos de existência. Seria apenas produto de “uma manifestação atípica do poder

de legislar”, que poderia, portanto, ser removido ou alterado pela legislação

devem ser tomadas sempre por consensos, de preferência incontroversos, seja lá em que momento e circunstâncias eles se derem. O pensamento político atual tende a tomar o dissenso e o câmbio de idéias em linha de conta no exercício da democracia. Esta tendência parece privilegiar as “quebras” representadas pelas mudanças de opinião no seio da sociedade, de sorte a evitar, o mais possível, a petrificação de ideais constituídos em um dado momento, com especial consideração para a “historicidade” das instituições. Infelizmente, não é possível maior alongamento do tema neste espaço, mas é valioso lembrar que ele tem impacto não somente em sede de conflitos entre leis de regimes jurídicos distintos, mas também no que diz com as chamadas cláusulas pétreas e o poder de reforma à Constituição. É exatamente nessa linha que se pode argüir um ataque ao princípio majoritário pelo uso indiscriminado de legislação reforçada. 50 Cf. MORAES, Carlos Blanco de. As leis reforçadas: as leis reforçadas pelo procedimento no âmbito dos critérios estruturantes das relações entre actos legislativos. Coimbra: Coimbra, 1998. p. 885, 912. 51 Sobre a onipotência da lei como caractere constitutivo de sua concepção tradicional, cf. DIEZ-PICAZO, Luis María. Concepto de ley y tipos de leyes: ¿Existe una noción unitaria de ley en la Constitución española? Revista española de derecho constitucional, n. 24, set./dez., 1988. p. 48-49.

HUGO DE BRITO MACHADO E JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES SOBRE A LEI COMPLEMENTAR

89

ordinária. Essa doutrina não está imune à crítica de que se impõe uma dificuldade

indevida na aprovação do projeto. Além disso, outro problema a acomete: se é

verdade que o dispositivo de ato aprovado como se fosse lei complementar, sem ter

cumprido o requisito de fundo, pode ser alterado por lei ordinária subseqüente, a

partir de que momento a alteração pode ter lugar? A partir da edição da lei ordinária

posterior, ou somente com a declaração do órgão responsável pelo controle de

constitucionalidade que ateste a colocação indevida de matéria que poderia ser

tratada em lei ordinária em ato processado como lei complementar? A indagação é de

alto relevo quando se lembra de que às leis é conferida uma presunção de

constitucionalidade, é dizer, de conformidade aos procedimentos previstos para a sua

emissão. Assim, é difícil sustentar que o legislador possa, a seu alvedrio, aferir a

colocação inadequada de uma matéria em ato aprovado como se lei complementar

fosse, pois não é ele o guardião precípuo da Constituição e, pois, não tem o condão de

fiscalizar a inconstitucionalidade de leis por via legislativa. Esta problemática se

colocou na doutrina portuguesa com muita ênfase, com a opinião dominante no

sentido de que há a necessidade de intervenção prévia do tribunal constitucional para

que o legislador possa atuar novamente sobre a matéria por meio de legislação não-

reforçada, de modo de que a lei incursiva ficaria irrevogável pela legislação ordinária

até isso ocorrer52. Esta é (mais) uma questão que nunca foi posta na discussão

brasileira, principalmente porque a doutrina de Hugo Machado não aceita a

colocação desse problema, uma vez que propõe a prevalência da interpretação que da

Constituição fizer o legislador nesses casos, e a de Maior Borges, que aderiu a

entendimento corrente na doutrina de sua época, propugna pela livre revogabilidade

da legislação aprovada como se fosse complementar – mas que não o é pelo

desrespeito ao requisito material – pela legislação ordinária. Não é necessário

explorar muito o problema que pode causar a tese da livre revogabilidade: a

declaração de inconstitucionalidade de normas de lei ordinária que pretendesse

revogar normas extraídas de lei complementar, porque se tratava de matéria

reservada. Pode parecer fácil a solução de que basta “ficar atento” às disposições das

leis complementares que podem constar de leis ordinárias posteriores; todavia, o

maior problema, inclusive para os juristas mais abalizados (e para a própria

jurisprudência), é exatamente saber qual a extensão que se deve dar na interpretação

52 Cf., por todos, MORAES, Carlos Blanco de. As Leis Reforçadas: as leis reforçadas pelo procedimento no âmbito dos critérios estruturantes das relações entre actos legislativos. Coimbra: Coimbra, 1998. p. 885-886.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

90

de certas disposições constitucionais, a fim de saber com exatidão o âmbito das

matérias reservadas às leis complementares. Essa crítica deve muito a Hugo

Machado, quem, para não ficar sujeito a ela, lançou a tese de que o legislador deve ser

o intérprete das disposições constitucionais sobre a reserva material da lei

complementar, como já foi dito (e criticado).

3. Esboço de uma tese para o problema das tensões inter-normativas no

direito brasileiro

A partir de agora, tem-se a parte que pode ser reputada a mais

“propositiva” deste estudo. Nela, será ofertado um recurso teórico que permita

suplantar as insuficiências até agora demonstradas pelas teses dos dois professores

que emprestam seus nomes ao trabalho, especialmente sobre a força de suas

doutrinas na solução dos conflitos entre normas no direito brasileiro. O pressuposto

básico da tese que será desenvolvida, a breve passo, é o seguinte: não há,

propriamente, conflitos entre atos legislativos (por exemplo, entre lei ordinária e lei

complementar); a rigor, as tensões – ou os fenômenos mais vulgarmente conhecidos

como conflitos normativos – dão-se entre normas. A distinção entre norma e texto é

o “guindaste cognitivo” que ainda não foi tomado na devida conta na discussão acerca

da tensão lei complementar/lei ordinária; aliás, nunca foi suficientemente

considerada em toda a matéria relativa a confrontos inter-normativos. Em um nível

algo mais elementar, o domínio dessa noção leva à idéia de que (um)a coisa a que se

chama ato normativo – uma lei, por exemplo – pode encerrar em si, em sua

representação documental, uma quantidade enorme de textos, a cada um dos quais se

pode imputar uma quantidade (talvez) imponderável de significados distintos, que as

normas são – considere-se norma o significado do ato que aponta um conduta como

devida. Nesta perspectiva, um mesmo ato pode servir como “hospedeiro” de diversos

textos, a que são atribuídos muitos significados, que são, alguns destes, normas

autônomas. Uma parte significativa de nossa doutrina já logrou êxito considerável em

romper uma pretensa relação biunívoca entre textos e normas53, ainda que, em

53 Vale conferir, por todos, GUERRA, Marcelo Lima. Competência da Justiça do Trabalho. Fortaleza: Tear da Memória, 2009. p. 17-29; GRAU, Eros. Ensaio e discurso sobre a interpretação e aplicação do direito. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 27, 84-89; STRECK, Lenio Luiz. A diferença ontológica (entre texto e norma) como blindagem contra o relativismo no processo interpretativo. Revista de estudos políticos, n. 89, jan./jun., 2004. p. 121 ss.

HUGO DE BRITO MACHADO E JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES SOBRE A LEI COMPLEMENTAR

91

muitos casos, a compreensão da diferença entre estas duas coisas não tenha

conhecido os seus devidos desenvolvimentos.

Entretanto, há outro desdobramento, de maior importância, pelo menos

para o presente trabalho, da distinção texto/norma. Superada a identificação entre

texto e norma, além da conclusão de que a um mesmo texto podem ser imputados

dois (ou mais) significados autônomos que constituam duas (ou mais) normas

distintas, deve-se ter claro que uma norma também pode ser o significado de um

sem-número (>1) de fragmentos de outro sem-número (>1) de atos normativos. Ou

seja: o sentido de um ato que qualifica uma conduta como devida (=norma) pode ser

imputado ao produto de uma “ação colaborativa” de diversos atos normativos, que

compõem, de maneiras diversas, um texto ao qual se imputa uma norma específica,

sem que o texto que faz as vezes de significante da norma esteja, necessariamente, em

apenas um diploma legislativo. Isso ainda não é tudo: se é verdade que o texto

relativo a uma norma pode ser composto por fragmentos de diversos atos diferentes,

também é verdade que esses atos podem ter distintos valores normativos, por ocupar

diferentes escalões normativos no âmbito de um ordenamento jurídico. Como se verá

mais adiante, estoutra faceta da relação texto/norma ainda é muito pouco percebida

e, quando muito, não é adequadamente levada às últimas conseqüências pela

doutrina, além de ter passado ao largo, especificamente, das considerações da

polêmica comentada.

A importância dessa “face oculta” da distinção entre texto e norma diz

diretamente com qualquer tratamento da matéria acerca das tensões inter-

normativas. Que a força, ativa ou passiva, de uma norma54-55 está ligada ao ato de que

54 Sobre a noção de força normativa, tem valor a transcrição do seguinte trecho de outro trabalho: “Cada ato normativo, enquadrado dentro de uma ordem contínua de normação, estabelece relações as mais diversas com outros atos normativos componentes da mesma ordem. É noção intuitiva que cada um destes atos, ao ser proferido, irradiará, para as normas que a partir de si forem extraídas, uma “energia” típica da sua natureza. Noutra expressão: as normas oriundas de cada ato reagem de maneira diferente às multifárias conexões que estabelecem com as normas oriundas de outros atos, seja quando as outras normas lhes sejam contrárias, incompatíveis em algum grau etc. Essa reação, mais ou menos intensa, será modulada de acordo com um coeficiente dado pelo atributo que determina o potencial normativo de um determinado ato. Esse atributo é a força normativa. A força normativa tem duas dimensões: a ativa e a passiva. A primeira caracteriza-se como a capacidade manifestada por um ato normativo de, através de suas normas, revogar atos pré-existentes, por força de sua potência normativa. A segunda seria a resistência oferecida pelo ato normativo à sua revogação por parte de atos supervenientes. Essas duas dimensões, tomadas apenas as de um mesmo ato, são enantiomórficas, é dizer: têm o mesmo módulo e se dispõem como que colocadas diante de um espelho. Observe-se que nem sempre as duas forças serão iguais entre atos normativos do mesmo gênero, mas de diferentes espécies. Este aspecto é da mais alta importância para a relação entre a lei ordinária e a lei complementar. A assimetria de forças entre atos legislativos diversos é a chave para a solução de questões que versem entre normas colidentes oriundas de diferentes atos, os quais não

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

92

promana é questão acima de qualquer dúvida. Mais: nunca se combateu a idéia de

que a força de uma norma está relacionada de alguma forma ao quão reforçado é o

procedimento para a produção do ato de que ela é sentido. Entretanto, o que a

doutrina sempre negligenciou foi o fato de que uma norma pode ser o sentido de

fragmentos de diversos atos, sendo estes de diversas espécies dentre as previstas por

um ordenamento, e não de somente um deles. Isto leva, inevitavelmente, à conclusão

de que haverá casos em que o “cálculo” da força de uma norma específica será

mensurado em uma atividade complexa do intérprete de um ordenamento jurídico,

pois deverá levar em consideração a força normativa in abstrato dos diversos atos

dos quais ela pode ter procedido. Se se considerar, outrossim, o número

relativamente alto de atos normativos de diversas forças com que conta o Brasil em

seu ordenamento, vislumbrar-se-á um quadro um tanto assustador, já que se fala em

emendas à Constituição; tratados internacionais com valor de emendas à

Constituição56; atos com valor supralegal57; leis ordinárias e leis complementares etc.

estabeleçam entre si qualquer relação hierárquica através da qual se possa encontrar a que deva prevalecer. Assim, a lei de maior força normativa passiva resistirá às investidas da de menor força ativa para ser revogada; noutro tanto, a de maior força ativa investirá exitosamente sobre a de menor força passiva” (GOMES, Felipe Lima. Da lei complementar como ato legislativo reforçado pelo modo de produção. Monografia (graduação em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2009. p. 88-89). Para uma exposição mais detida da força normativa como atributo operacional de um ato, é imprescindível a consulta a MORAES, Carlos Blanco de. As leis reforçadas: as leis reforçadas pelo procedimento no âmbito dos critérios estruturantes das relações entre actos legislativos. Coimbra: Coimbra, 1998. p. 145-156. 55 A este atributo o Hugo Machado deu o nome “poder normativo”, ao seguir lição de Norberto Bobbio (cf. Lei complementar tributária. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 38). 56 A possibilidade de tratados internacionais contarem com força de emendas à Constituição foi trazida, ao menos de maneira expressa, pela emenda constitucional de nº 45, que incluiu, dentre outros, o parágrafo terceiro ao artigo quinto da Constituição federal, segundo o qual os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, aprovados, em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. Registre-se que, com pioneirismo na literatura nacional, Valerio Mazzuoli passou a defender o controle jurisdicional da convencionalidade das leis para o direito brasileiro, concentrado e difuso, além de um controle de supralegalidade (sobre isto, cf. a nota seguinte), a par dos de legalidade e constitucionalidade. Para o contato com essas idéias do autor, de extensão (e confusão) proibitivas para o presente trabalho, vale conferir Teoria geral do controle de convencionalidade no direito brasileiro. Revista de Informação Legislativa. Ano 46, n. 181, jan./mar., 2009. p. 113-139, e Idem. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. passim. 57 Trata-se de força normativa conferida aos tratados internacionais de direitos humanos que não passem pelo reforço procedimental previsto pelo já citado parágrafo terceiro do artigo quinto da Constituição federal, conforme à decisão do Supremo Tribunal Federal no recurso extraordinário 466-343-SP (RE 466343, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, DJe-104 DIVULG 04-06-2009 PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-06 PP-01106 RTJ VOL-00210-02 PP-00745 RDECTRAB v. 17, n. 186, 2010, p. 29-165). Neste feito, saiu vencedora, por apertada maioria, a tese indigitada, derrotada a que propugnava pela força constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos, ainda que não tivessem passado pelo reforço em seu procedimento. Vale fazer uma anotação, a fim de chamar a atenção para o fato de que o STF teve de inventar a supralegalidade, pois, a rigor, não há qualquer ato normativo previsto no ordenamento jurídico nacional que pudesse ter esta natureza – foi um empréstimo do direito estrangeiro, como é possível perceber pelo voto condutor da tese vencedora, lavrado pelo ministro Gilmar Ferreira

HUGO DE BRITO MACHADO E JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES SOBRE A LEI COMPLEMENTAR

93

Não deve mais ser difícil imaginar que duas normas com origens em textos de atos

dessas variadas espécies podem entrar em tensão, e que é também possível a

resolução de uma questão como essa requerer um raciocínio complexo, o qual

envolva um juízo de ponderação para se precisar a força normativa das duas (ou

mais) normas em tensão.

À vista dessas complicações, torna-se necessária a feitura de uma

complementação sobre a força normativa. Propõe-se, neste passo, a existência da

força do ato normativo e da força da norma (que podem ser chamadas força

normativa in abstrato e força normativa in concreto, respectivamente). A primeira

dessas noções dirá sempre respeito à força do ato normativo e terá a sua

“amperagem” dada, o mais das vezes, pelo reforço procedimental a que se deve

submeter um ato, a fim de ser considerado de uma determinada espécie dentro de

uma ordem normativa; nos ordenamentos de constituição rígida, esta força

aproxima-se ou se afasta da força do ato mais forte, que é aquele capaz de alterar a

própria constituição, de acordo com a proximidade que seu procedimento tem com o

procedimento das emendas constitucionais. A segunda noção é mais complicada, até

mesmo pelo fato de nunca ter sido separada da primeira. Todavia, podem existir

casos nos quais não é somente um ato de determinada espécie que pode “emprestar”

sua força normativa a uma norma específica; antes, vários desses podem fazê-lo.

Desta forma, ou se admite uma força diferenciada para normas em alguns casos, ou

não haverá justificação racional para a solução de algumas situações de conflitos

normativos que envolvam normas que sejam imputadas a atos diversos – das quais

serão abordados alguns exemplos de nosso ordenamento jurídico. Por isso, a noção

de força normativa in concreto se faz necessária, para os casos em que normas que

entrem em conflito sejam imputáveis (de determinadas maneiras, como se verá) a,

pelo menos, dois atos normativos, de espécies variadas. Esta força decorrerá de um

Mendes. É uma tese com nítido caráter acomodador, pois nem se concedeu o condão constitucional a tais atos, nem se os considerou “mera” legislação infraconstitucional. O problema é que não há qualquer previsão no direito brasileiro sobre atos de valor supralegal. Em uma terminologia que pode ser colhida na literatura italiana, o STF aplicou um critério axiológico de hierarquia, que Giorgio Pino definiu da seguinte forma: “Uma gerarchia assiologica è uma relazione tra due norme N1 e N2, tale que la norma N1 è considerata più importante, prevalente, preferibile, rispetto alla norma N2. Il rapporto di preferenza dipende da uma valutazione comparativa sostanziale dell’importanza delle norme stesse: in base ad una gerarchia assiologica, una norma prevale su un’altra se è considerata maggiormente adeguata ai valori, ao principi, alle dottrine etico-politiche che inspirano il sistema giuridico, o un suo sotto-sistema” (Norme e gerarchie normative. Analisi e diritto, 2008, p. 288). Ao lançar mão do que se pode encartar num critério axiológico de hierarquia, o STF, embora tenha emprestado um maior prestígio aos direitos humanos, deixou grandes questões em aberto. Por exemplo: como se controla, jurisdicionalmente, uma suprailegalidade? Quais os meios jurídicos adequados?

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

94

sopesamento, por vezes, complexo e de difícil determinação, entre a força dos atos

aos quais são imputadas tais normas, a fim de se estabelecer com que força específica

elas entrarão na tensão inter-normativa, ou, ao menos, qual das normas em tensão

deverá prevalecer no caso específico.

Com o conhecimento dos elementos lançados, já é possível antever o erro

fundamental em que incorreu a doutrina nacional, inclusive os dois notáveis autores

enredados na polêmica sobre a lei complementar: o de confundir os conflitos entre os

atos normativos com os conflitos entre as normas que a eles se podem imputar.

O ponto principal deste número é demonstrar que a confusão para a qual

se apontou acima levou a doutrina especializada a tomar um tipo, que talvez se possa

dizer paradigmático, de conflito entre normas, como o único modo pelo qual se pode

dar o (des)arranjo que elas experimentam em casos semelhantes. O caso, que se disse

paradigmático, é aquele em que cada uma das normas em tensão esteja perfeitamente

cingida a um, e a apenas um, ato normativo, de maneira exclusiva (ou, ainda, a mais

de um ato, desde que do mesmo tipo). Destarte, foi a falta de percepção de que (1) são

as normas, e não o(s) ato(s) do(s) qual(is) elas se deixam extrair, que entram em

conflito, e de que (2) uma norma pode provir de fragmentos de distintos atos, que,

por seu turno, podem ser de várias espécies dos previstos por uma ordem normativa,

o que levou quem tratou dessa matéria, muito provavelmente sem saber disso, à

noção de tomar o caso paradigmático como o único possível de conflito normativo.

A falta de atenção aos dois pontos levantados há pouco impede a clara

compreensão de que uma norma pode ser extraída de fragmentos de atos que contam

com diversas forças normativas, que se podem combinar de várias formas. Uma

dessas formas é especial, e para ela serão dedicadas as próximas linhas: duas normas

que entram em conflito, (aparentemente) imputáveis, cada uma delas, a atos da

mesma espécie, mas uma delas condiciona a validade da outra de alguma forma. Por

exemplo, imagine-se uma norma oriunda (de um texto) de uma lei complementar que

determina a necessidade de uma certa conformação procedimental para a elaboração

de novas leis complementares; ou uma norma extraída de uma lei ordinária que

parametrize materialmente novas normas de leis ordinárias que versem sobre

determinados assuntos. Não será muito trabalhoso demonstrar que os critérios

tradicionais – hierarquia, especialidade e temporalidade – para a resolução de

antinomias normativas leva a resultados esdrúxulos no trato com situações desse

tipo: uma norma imputável a uma lei complementar jamais poderá indicar o

HUGO DE BRITO MACHADO E JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES SOBRE A LEI COMPLEMENTAR

95

procedimento para o cometimento de outra lei complementar pois (1) não haveria

hierarquia entre os atos; (2) não haveria uma relação do tipo geral/especial entre as

duas, que recuse validade à posterior; (3) o processo legislativo da lei complementar

posterior, se diferisse do que dispõe a esse respeito outra lei complementar, traria

normas implícitas que teriam o condão de revogar tacitamente as da mais antiga (lex

posterior derogat priori). De maneira algo semelhante, uma norma de uma lei

ordinária jamais poderia, repita-se, nos quadrantes dos critérios que se podem dizer

clássicos de solução de tensões inter-normativas, traçar parâmetros materiais de

observância devida para os fazedores de novas leis ordinárias.

As considerações feitas acima de maneira muito singela levam à conclusão

de que, onde quer que haja conflitos tais como os simulados, os critérios tradicionais

de resolução de antinomias mostrar-se-ão insuficientes. E se isso for realmente

correto, e se houver casos desse jaez no ordenamento brasileiro, será mesmo

necessário introduzir pelo menos um novo elemento, como a força normativa in

concreto proposta, ao conjunto de elementos já existentes para a resolução das

tensões.

Uma leitura atenta da Constituição federal brasileira de 1988 aponta para

a possibilidade de conflitos inter-normativos do tipo especial acima delineado. Dois

exemplos servirão de ilustração para a demonstração que se pretende fazer. O

primeiro deles está ligado às possibilidades normativas de conflito que se abrem com

a previsão da lei complementar cravada no parágrafo único, do art. 59, da

Constituição federal. Diz o artigo citado:

Art. 59 O processo legislativo compreende a elaboração de: I - emendas à Constituição; II - leis complementares; III - leis ordinárias; IV - leis delegadas; V - medidas provisórias; VI - decretos legislativos; VII - resoluções. Parágrafo único. Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis.

O dispositivo do parágrafo único transcrito logo acima deixa claro o

requerimento constitucional por uma lei complementar que venha a dispor sobre a

elaboração, redação, alteração e consolidação das leis; esta disposição elimina a

chance de uma lei ordinária cuidar do tema. Este é um ponto em que os dois

professores enredados na polêmica em torno da qual orbita este trabalho concordam.

O que não nunca foi analisado suficientemente é a repercussão da expedição desse

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

96

ato legislativo – que é a lei complementar 95/98 – para as relações inter-normativas

no ordenamento pátrio, mais precisamente os casos pouco usuais de antinomias que

de seus desdobramentos podem exsurgir. Um breve estudo de alguns de seus artigos

poderá auxiliar na compreensão dos problemas oriundos dos resultados das

interpretações que podem ser feitas deles.

Diga-se, de logo, que Hugo de Brito Machado, a seguir parcialmente uma

opinião de Regina Helena Costa58, asseverou que o parágrafo aludido consagrava a

superioridade hierárquica das leis complementares, uma vez que as leis ordinárias

hauririam o seu fundamento de validade desta lei complementar. Escreve ele, a

colher a previsão constitucional como adminículo à sua tese de superioridade

hierárquica da lei complementar:

Realmente, o art. 59, parágrafo único, da vigente Constituição Federal estabelece que a lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis. E, com isto, deixou claro que as leis ordinárias têm seu fundamento de validade na lei complementar, que regula o processo pelo qual são produzidas.59

É pelo menos curioso notar que Hugo Machado faz menção à previsão

constitucional de uma lei complementar sem, ao menos, mencionar que o comando

constitucional já fora cumprido pelo legislador; obviamente, também não trata do

próprio conteúdo desta lei, das normas que lhe podem ser imputadas. Adiante-se que

este exercício levanta problemas muito sérios à doutrina da supremacia hierárquica

da lei complementar sobre a lei ordinária, como será visto pouco mais à frente. Mas,

antes mesmo disso, impende operar-se uma abordagem crítica da afirmação de que o

parágrafo já tão citado traga a previsão (ou o comando dirigido ao legislador) de

cometimento de uma lei complementar que viesse a servir apenas e tão-somente à

regulação das leis ordinárias. O texto do parágrafo único do art. 59 da Constituição

federal pode ser interpretado de, pelo menos, quatro formas diferentes, a saber:

58 Hugo Machado discorda da distinção promovida por Regina Costa entre hierarquia formal e material. Segundo Regina Costa, a lei prevista pelo parágrafo único do art. 59 consagra a hierarquia formal entre as duas espécies de leis; com relação à hierarquia material, teria de haver um exame de cada tensão específica, pois pode haver ou não uma relação materialmente hierárquica entre duas leis em confronto. A discordância de Hugo Machado é no sentido de que formal e/ou material somente pode ser o conflito entre atos, os quais podem ocupar um posto hierarquicamente superior ou inferior. Sempre segundo ele, “a hierarquia entre normas (...) é sempre decorrente de elementos formais”, sem que exista a possibilidade de hierarquia com base em elementos materiais (cf. Lei complementar tributária. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 148-149). 59 MACHADO, Hugo de Brito. Lei complementar tributária. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 148.

HUGO DE BRITO MACHADO E JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES SOBRE A LEI COMPLEMENTAR

97

(a) A lei complementar a que ali se faz referência tratará de todos os atos

normativos a que puder ser aplicada, em um uso bastante abrangente do

termo “leis”;

(b) A lei complementar a que ali se faz referência tratará de todos os atos

normativos elencados no art. 59 e, eventualmente, de outros a que fizer

referência, em um uso menos abrangente do termo “leis” que o da

interpretação “a”;

(c) A lei complementar a que ali se faz referência tratará de todos os atos

normativos elencados no art. 59 e, eventualmente, de outros a que fizer

referência, à exceção das emendas à Constituição, pois elas estão

hierarquicamente acima das leis e nelas não se incluem, em um uso menos

abrangente do termo “leis” que o da interpretação “b”;

(d) A lei complementar a que ali se faz referência tratará de todos os atos

normativos elencados no art. 59 e, eventualmente, de outros a que fizer

referência, à exceção das emendas à Constituição e das leis complementares,

pois elas não se incluem nas leis, em um uso menos abrangente do termo “leis”

que o da interpretação “c”;

As opções de entendimento elencadas variam de acordo com o sentido que

se atribui ao termo “leis”. Isto é altamente problemático, porque a opção por um

significado do termo “leis” em suas aparições na Constituição federal é muitas vezes

precedida por uma pequena aventura hermenêutica, uma vez que a sua utilização ao

longo de todo o texto beira (se não se enquadrar mesmo completamente dentro d)o

caótico60. Desta forma, a decisão por uma das interpretações acima, ou mesmo por

qualquer outra possível, desafia uma fundamentação que não se encontra no plano do

“óbvio por si mesmo”; não se trata, como alguém poderia dizer, de um “artigo auto-

explicativo”.

Pelo exposto, Hugo Machado vai pela interpretação sub “d”. Entretanto,

não apresenta razão alguma por que entenda que somente as leis ordinárias estejam

abrangidas no significado dessa ocorrência do termo “leis”. Sem maior esforço, pode-

se imaginar que este entendimento oferta um subsídio valioso para a sustentação de

sua tese ampliativa, o que faria com que a adesão à interpretação “d” pudesse ser

quase “instintiva”. Com algum esforço, poder-se-ia aduzir a seguinte justificativa: é

60 José Afonso da Silva já escreveu que “a Constituição Federal utiliza da palavra “lei” abundantemente. Nem sempre o faz com primor técnico e uniformidade terminológica” (cf. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo. Malheiros, 2007. p. 233).

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

98

cediço que sempre que alguma matéria é reservada exclusivamente à lei

complementar, para ser vedada ao trato por lei ordinária, o texto constitucional

refere-se expressa ou implicitamente61 ao termo “complementar”; mas, quando a

matéria pode ser objeto de lei ordinária, o texto constitucional refere-se somente, o

mais das vezes, a “lei”, sem trazer o termo “ordinária”. Assim, como o texto sob

discussão refere-se à elaboração, redação, alteração e consolidação das leis, logo estas

seriam entendidas apenas como as ordinárias. Além disso, parece difícil vislumbrar

outra razão que possa ser usada em abono da interpretação “d”.

Estas duas razões, contudo, são extremamente débeis. A primeira dispensa

maior comentário, pois é apenas uma especulação sobre algum motivo que tenha

levado ao entendimento doutrinário sob crítica. A segunda tem seu ponto fraco em

confundir duas situações distintas: (i) aquelas em que se aborda uma matéria que

virá a ser tratada por um ato legislativo com (ii) aquelas em que um ato legislativo é o

próprio objeto tratado por uma norma constitucional, seja com determinações acerca

de seu procedimento, seja com normas acerca de sua matéria. Com relação a “i”, já foi

dito que a menção ao termo “complementar”, ainda que de maneira explícita, é

necessária para uma matéria ser tratada por lei complementar, afastada a

possibilidade de trato por lei ordinária. Mas, sobre “ii”, não há motivo para se dizer

que as leis complementares podem ser objeto de algum ato legislativo somente se

houver menção, ainda que implícita, ao termo “complementar”. São situações muito

bem distintas. Nessa senda, quando se diz que “lei complementar disporá...”, a lei

ordinária não pode dispor sobre a matéria enredada; mas, quando se diz que esta

mesma lei complementar disporá sobre algo relativo a “leis”, as próprias leis

complementares estão enquadradas aqui. Nunca foi apresentada uma razão para um

entendimento contrário. Prevalece, pois, a máxima segundo a qual não é dado ao

intérprete fazer distinções quando não as faz o legislador. Pode-se argüir que

conceder a regulação de uma lei complementar por outra causa estranheza. Mas, se se

trata de arranjo que a própria Constituição põe, não se poderá eliminá-lo pela sua

aparente estranheza. Mais: a estranheza perde força quando se leva em consideração

que é uma matéria sem necessidade de ocupar (o já muito extenso) texto da

Constituição. Deste modo, a regulação de um ato por outro de sua espécie perde

61 É bem verdade que há setores da doutrina que admitem essa situação apenas quando a referência é explícita. Contudo, essa discussão não fará maior diferença para o que se pretende demonstrar neste passo.

HUGO DE BRITO MACHADO E JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES SOBRE A LEI COMPLEMENTAR

99

muito da sua extravagância, sobretudo, quando essa condição se dá por força de uma

disposição constitucional.

Feitas as considerações precedentes, tem-se que a interpretação “c” para o

texto constitucional discutido já se afigura possível e com boas chances de a sua

escolha experimentar uma fundamentação mais convincente. Ela não apresentaria a

deficiência de excluir a possibilidade de regulação das próprias leis complementares,

já criticada. Além disso, não poderia ter contra si lançada a crítica de “burocratizar”

desnecessariamente a regulação sobre elaboração, redação, alteração de consolidação

das leis complementares, pois não empunha a exigência de uma emenda à

Constituição para tratar disso. Realmente, seria de inteligência questionável um

parecer no sentido que aquela lei complementar poderia tratar de apenas alguns atos

do art. 59, mas, para outros, somente uma emenda constitucional. Note-se que, com

essa abertura, também a interpretação “b” ganha força, pois a mesma “economia

legislativa” que inclui a própria lei complementar no objeto da lei prevista, poderia

incluir a emenda à Constituição. A ruindade do constituinte no manejo do termo “lei”

permite o alargamento do sentido desta expressão no texto analisado, se houver

outras razões que o sustentem, por óbvio. E não se esqueça de que também as

emendas à Constituição requerem uma organização semelhante à que está declinada

no texto constitucional.

Deve ser adiantado um elemento importante: seja a eleição da

interpretação “b” ou “c”, a proposta da força normativa in concreto – ou de um

elemento outro com função similar – se mostra irrecusável, pois serão possíveis

conflitos entre as normas da lei complementar prevista com as das leis

complementares e emendas à Constituição supervenientes à sua edição. Como já se

disse, os critérios clássicos de solução de antinomias não dão suporte a esse tipo de

regulação. No caso da opção pela interpretação “b”, a necessidade seria ainda mais

evidente: para se admitir a regulação de uma emenda constitucional por uma lei

complementar seria necessária não somente a admissão da possibilidade de que a

força normativa in concreto, como também a de que a força normativa in concreto

possa reverter a diferença existente entre as forças normativas in abstrato

diferenciadas de dois atos cujas normas venham a colidir. Isso ocorre porque a norma

da lei complementar que venha a regular (a produção de) uma emenda constitucional

terá uma força normativa in concreto composta não apenas pelo ato a que ela é

diretamente imputada; na verdade, será o produto de uma ação colaborativa entre

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

100

atos, em que toma parte a própria Constituição, a qual instancia o cometimento desse

ato legislativo. É por isso que a força in concreto de uma norma reguladora como a

referida pode suplantar a de uma norma de cariz constitucional.

Sobre a interpretação “a”, deve ser dito que ela é apenas uma extensão do

caso “b”, para incluir outros atos que não estão no art. 59, tais como decretos,

regulamentos, portarias etc. A princípio, não haveria óbice a essa extensão, pois ela

seria promovida por uma lei complementar, com condão jurígeno de regular a

produção de atos dessa natureza. Assim, a interpretação “a” não traz qualquer

dificuldade adicional, se comparada à “b”. Dito isso, um olhar para a lei

complementar 95/98 indicará que interpretação foi eleita pelo legislador brasileiro.

O primeiro artigo da lei diz a matéria de que trata, e o seu parágrafo único

determina o âmbito dos atos normativos que obedecerão ao disposto em toda a lei.

Veja-se:

Art. 1º A elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis obedecerão ao disposto nesta Lei Complementar. Parágrafo único. As disposições desta Lei Complementar aplicam-se, ainda, às medidas provisórias e demais atos normativos referidos no art. 59 da Constituição Federal, bem como, no que couber, aos decretos e aos demais atos de regulamentação expedidos por órgãos do Poder Executivo.

É possível perceber a opção do legislador pela interpretação “b”, com uma

imputação bastante extensiva de significado ao termo “leis”, constante do parágrafo

único, do art. 59, da Constituição federal. Assim é que a lei referida se aplica a todos

os atos elencados pela Constituição no art. 59 e a outros mais, que indica. Destarte, é

irrecusável a conclusão de que os parâmetros trazidos pela lei complementar

cometida em atendimento a essa previsão constitucional serão aplicáveis, dentre

outros atos, às próprias leis complementares e às emendas à Constituição. Se não se

entender que é inconstitucional a lei complementar 95/98, por ter feito uma

interpretação mais extensiva, será forçoso o reconhecimento de que há (pelo menos)

um caso em que a Constituição cria uma demanda para a regulação de determinados

pontos de emendas constitucionais por leis complementares. Esta possibilidade gera

uma grande perplexidade para a doutrina que defende o critério da variação

escalonada dos atos normativos, pois se trata de uma espécie legislativa menos rígida

que impõe regras para outra, de maior rigidez. À guisa de ilustração, pode-se ver o

art. 7º da referida lei:

Art. 7o O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios: I - excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto;

HUGO DE BRITO MACHADO E JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES SOBRE A LEI COMPLEMENTAR

101

II - a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão; III - o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva; IV - o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subseqüente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa.

Inequivocamente, os princípios a que o artigo 7º se refere em seu caput

devem nortear a produção dos atos elencados no art. 1º, com a possibilidade de se

acionar o controle jurisdicional no caso de descumprimento de algum(ns) dele(s)62.

Contudo, segundo a doutrina de Hugo Machado, é a maior rigidez no procedimento

que confere maior patamar hierárquico a um ato normativo, e os atos

hierarquicamente superiores sempre prevalecem nas relações de tensão que

estabelecem. Se for realmente assim, como explicar o caso da lei complementar

95/98, que parametriza as emendas à Constituição? Essa doutrina não enfrenta

(mais) esse problema e não tem forças para superá-lo63. Por sinal, é oportuno analisar

o curioso trato da doutrina brasileira no trato da aplicação dessa lei a todos os atos do

art. 59, da Constituição, e a outros mais. Confira-se, à guisa de exemplo, a seguinte

passagem de Sergio Bacha, ao defender a superioridade hierárquica da lei

complementar em relação à ordinária:

62 É inadmissível a pretensão de quem, com base no artigo 18 dessa mesma lei, busca a defesa de que há um exemplo de “direito sem sanção” (dispõe o artigo referido: “Eventual inexatidão formal de norma elaborada mediante processo legislativo regular não constitui escusa válida para o seu descumprimento”). O primeiro erro dessa interpretação é expandir uma “inexatidão formal” a todo o conteúdo da lei. Como se pode perceber pela leitura do art. 7º, alguns assuntos tratados pela lei complementar 95/98 não se restringem à indicação de detalhes formais para melhor redação dos textos legislativos. Por exemplo, a limitação para o trato de matérias que não estejam relacionadas entre si é uma proteção importantíssima contra a inclusão oportunista de assuntos em atos que tratam, fundamentalmente, de outro tema. A inexatidão formal deveria ser interpretada da maneira mais restrita possível, para incluir apenas detalhes de pequeníssima importância relativos à formulação dos diplomas legislativos. Disse-se “deveria”, pois é de se questionar a própria constitucionalidade desse artigo. A edição da lei complementar é postulada pela própria Constituição, que, em seu art. 59, limitou-se a elencar atos legislativos, para conferir competência ao legislador ordinário a respeito dos complementos que indica no parágrafo único. Desta forma, jamais se poderia resolver uma questão constitucional por meio de lei, seja ela qual for, pois o legislador comum não tem competência para menoscabar a força normativa da Constituição; se uma norma constitucional requer a regulação de algum tema, não pode um poder constituído fazê-la nenhuma. Interpretar toda a matéria da lei como questões formais insuficientes para viciar um ato legislativo é considerá-la um conselho técnico, pelo qual o legislador pode não se vincular, caso queira; isto é um absurdo! Como disse Alf Ross, as leis não são promulgadas para comunicar verdades teóricas, mas para guiar as condutas das pessoas; um parlamento não é um escritório de informações, mas um órgão central de direção da sociedade (cf. Sobre el derecho y la justicia. 4. ed. Tradução de Genaro Carrió. Buenos Aires: EUDEBA, 1977. p. 8). 63 Talvez não tenha enfrentado por não ter a intenção de fazê-lo, já que o seu objeto principal sempre foi a relação entre lei complementar e lei ordinária. Contudo, ao pretender enquadrar as relações entre as duas espécies de leis em um esquema hierárquico, válido para todas as ocorrências específicas de todos os atos jurídicos, no qual a Constituição ocupa “o topo” e é seguida pelos demais, com a lei complementar em segundo lugar, a doutrina de Hugo Machado não deixa de ser falha nesse ponto.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

102

Não obstante termos demonstrado com aportes de juristas de nomeada a existência da superioridade hierárquica material e formal das leis complementares sobre as leis ordinárias, se dúvida pairasse sobre o tema, seria de vez afastadas por força da consagração da hierarquia formal, primária, insculpida no parágrafo único do artigo 59. Teria passado despercebido o peso normativo do ditame desta regra constitucional? Podemos considerar sutil a gama de implicações sérias que ela traduz? Foi proposital o silêncio de parte da comunidade jurídica por ter a novidade estremecido os alicerces do edifício doutrinário erigido em sede de hierarquia no cotejo das leis complementares com as leis ordinárias? É surpreendente constatarmos que algumas dessas respostas serão encontradas onde jamais poderíamos imaginar, confirmando assim nossas suspeitas...64

É um ponto curioso: a doutrina que lança mão da lei complementar

prevista pelo parágrafo único, do art. 59, da Constituição, para fundamentar a sua

tese de “hierarquia formal” entre as espécies de leis, simplesmente ignora o artigo

primeiro desse diploma, que inclui as próprias leis complementares e as emendas à

Constituição. Poderia ser argüido que o artigo primeiro é inconstitucional, por ter ido

além do que a Constituição admite, já que fala em regular a redação, elaboração e

consolidação das leis – argumento que já foi criticado mais acima. Mas nem isso é

feito; simplesmente fazem tábula rasa do disposto na importante lei complementar

95/98, sem enfrentar as implicações normativas do alcance dessa lei. Da mesma

forma que Bacha pergunta se foi proposital o silêncio da doutrina sobre o artigo

constitucional, pode-se também perguntar se foi proposital o seu silêncio sobre o

artigo primeiro da lei complementar repetidamente citada, “por ter a novidade

estremecido os alicerces do edifício doutrinário”.

A falta de consideração com os problemas constitucionais específicos do

Brasil, com a proposta de soluções essencialistas (isto é, soluções pretensamente

válidas para todo ordenamento jurídico, independente de suas peculiaridades, pelo só

fato de ser jurídico) para as tensões inter-normativas, parece ser a tônica das duas

correntes doutrinárias representadas pelos professores que emprestam seus nomes

64 Constituição federal: leis complementares e leis ordinárias. Hierarquia? Belo Horizonte: Fórum, 2004. p.118. No mesmo sentido, Paulo de Barros Carvalho: “Se, como dissemos, as relações de subordinação entre normas, bem como as de coordenação, são tecidas pelos sistema do direito positivo, o nosso, inaugurado em 1988, houve por bem estabelecer que as leis, todas elas, com nome ou com status de lei, ficam sujeitas aos critérios que o diploma complementar previsto no art. 59, parágrafo único (CF) veio a prescrever com a edição da Lei n. 95/98. Note-se que seu papel é meramente formal, porque nada diz sobre a matéria que servirá de conteúdo significativo às demais leis. Entretanto, nenhuma lei ordinária, delegada, medida provisória, decreto legislativo ou resolução poderá inobservar as formalidades impostas por essa lei complementar. É a consagração da superioridade hierárquica formal dessa espécie do processo legislativo com relação às previstas nos outros itens” (Curso de direito tributário. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 222-223). Também em sentido semelhante, cf. CANAZARO, Fábio. Lei complementar tributária na Constituição de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 52-53.

HUGO DE BRITO MACHADO E JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES SOBRE A LEI COMPLEMENTAR

103

ao título do presente trabalho. É necessário um olhar para a Constituição; saber que

tipo de problemas ela traz em termos de definição e tensão entre normas, para propor

soluções melhores e mais abrangentes para o caso brasileiro. A tentativa de

introdução da força normativa in concreto é um humilde esforço neste sentido65.

Outro caso contido na Constituição é o de parametrização material de leis

da mesma espécie. É o tipo de caso em que uma lei fixa parâmetros materiais para

outra, que não poderá desobedecer à primeira, sob pena de vício material. Para se

compreender o caso, será necessária a transcrição de alguns dispositivos

constitucionais, dentre eles o § 9º, e seu inc. I, do art. 165:

§ 9º - Cabe à lei complementar:

65 Fez-se notar, principalmente ao longo da parte mais expositiva deste trabalho, que as duas doutrinas rivais sobre a lei complementar lançam mão da estrutura escalonada do ordenamento jurídico, tese desenvolvida por Adolf Merkl e adotada, pouco depois, por Hans Kelsen. O uso da teoria escalonada por Kelsen levou alguns autores a utilizar a metáfora da pirâmide, para descrever a disposição das normas de um ordenamento jurídico, desde o topo até à base. Entretanto, os problemas jurídicos que se põem nos ordenamentos podem mostrar a insuficiência desse modelo teórico na solução de alguns casos; não é de hoje que a doutrina se dá conta disso em diversas frentes. Antonio Ruggeri, em seu clássico trabalho sobre as fontes no sistema italiano, já advertia para a insuficiência do critério formal-hierárquico como parâmetro exclusivo para determinar a gradação da força de uma lei (cf. Gerarchia, competenza e qualità nel sistema costituzionale delle fonti normative. Milão: Giuffrè, 1977. p. 309-311). Embora em tema distinto, na literatura nacional, Virgílio da Silva fala que o esquema referido pela pirâmide normativa é “trivial e genérico demais” para ajudar na explicação das relações entre a Constituição e os demais ramos do ordenamento jurídico (cf. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre os particulares. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 122-123). Aos poucos, os teóricos do direito começam a se dar conta de que a estrutura escalonada pode deixar a descoberto o fundamento suficiente à explicação de certos fenômenos jurídicos e de que são necessários maiores refinamentos aos modelos postos “no mercado”. É bem verdade que muitos dos casos que requerem, para sua melhor abordagem, recursos teóricos adicionais são devidos à inabilidade do constituinte e/ou do legislador constituído na conformação de certos institutos; aliás, esse é exatamente o caso da lei complementar no direito brasileiro. O profundo desleixo do constituinte ao precisar o âmbito de atuação da lei complementar no ordenamento nacional deu causa a todos os problemas discutidos há décadas em sede doutrinária (que também já chegaram ao foro). Se isso não é motivo que leve a concordar com a proposta de abolição da lei complementar, como sugeriu Sergio Reginaldo Bacha (sobre isso, veja-se o primeiro estudo, nº 2.3.1.4), é de se defender um rearranjo da lei complementar no direito brasileiro, a fim de tornar o sistema de atos legislativos mais racional, o que abrangeria uma especificação sobre os casos em que a lei complementar teria cabimento (não há espaço para indicar os termos nos quais isso seria desejável, pois seria impossível fazê-lo dentro deste estudo). Seja como for, não há o intento de menosprezar a estrutura escalonada ou, em geral, a doutrina kelseniana. A propósito, o próprio Kelsen, em passagem emocionante, deixa claro que uma teoria jurídica sempre corre o risco de não dar conta de todos os problemas dos ordenamentos jurídicos, risco a que não estava infensa sua Teoria Pura: “Em face da multiplicidade de conteúdo dos ordenamentos jurídicos positivos, em constante aumento com o decorrer da evolução, uma teoria geral do Direito corre sempre o risco de não abranger todos os fenómenos jurídicos nos conceitos jurídicos fundamentais por ela definidos. Muitos destes conceitos podem revelar-se demasiado estreitos, outros demasiado latos. Estou plenamente consciente deste perigo ao fazer a presente tentativa e, por isso, agradecerei sinceramente toda a crítica que sob este aspecto me seja feita. Também esta segunda edição da Teoria Pura do Direito não pretende ser considerada uma apresentação de resultados definitivos mas como uma tentativa carecida de um desenvolvimento a realizar através de complementações e outros aperfeiçoamentos. O seu fim terá sido alcançado se for considerada merecedora de tal desenvolvimento – por outros que não o presente autor, já a atingir o limite de seus dias” (cf. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 3. ed. Coimbra: Arménio Amado, 1974. p. 13-14).

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

104

I - dispor sobre o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a elaboração e a organização do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual.

A lei complementar a que se refere o texto transcrito deve dispor somente

sobre elaboração e organização do plano plurianual. Este será proposto pela lei que

está prevista no artigo seguinte:

Art. 166. Os projetos de lei relativos ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias, ao orçamento anual e aos créditos adicionais serão apreciados pelas duas Casas do Congresso Nacional, na forma do regimento comum.

A referência à “lei” permite inferir que se deve tratar de lei com os mesmos

atributos operativos da lei ordinária, uma vez que não há qualquer demanda

constitucional pela legislação reforçada. O mesmo pode ser dito da lei relativa ao

orçamento66. Agora, veja-se o que diz outro dispositivo constitucional, do mesmo

artigo:

Art. 166. (...) § 3º - As emendas ao projeto de lei do orçamento anual ou aos projetos que o modifiquem somente podem ser aprovadas caso: I - sejam compatíveis com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias.

Aqui, há a demanda constitucional de observância das emendas ao

orçamento ao plano plurianual. Ocorre que tais emendas são também apreciadas pelo

plenário das duas casas do Congresso, na forma regimental, tal como o próprio

projeto de orçamento (e do plano plurianual). Desta forma, tem-se um ato com os

atributos de lei ordinária (plano plurianual) que lança parâmetros materiais para

outro, formado da mesma forma que ele (emendas ao orçamento), com parecer de

comissão mista e com a apreciação pelo plenário das duas casas. Outra vez, a

doutrina propagada por Hugo Machado não terá forças para explicar arranjo

constitucional desse tipo, pois, neste caso, o ato posterior, se da mesma espécie,

revogaria o anterior, naquilo com ele incompatível. O atributo normativo proposto no

presente trabalho, a força normativa in concreto, também poderia contornar este

problema: a norma que se extrai do “combo normativo” composto pela Constituição e

pela lei que elabora o plano plurianual tem uma força normativa in concreto maior

que a força normativa in concreto de uma norma que se impute a uma emenda ao

orçamento, nada obstante emendas ao orçamento e plano plurianual estarem

encartados em atos cuja força normativa in abstrato é de igual módulo.

66 Pelo menos este é o entendimento majoritário e mais próximo da realidade constitucional, pois a própria Constituição fala em lei, que passe pelos trâmites regimentais comuns do Congresso.

HUGO DE BRITO MACHADO E JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES SOBRE A LEI COMPLEMENTAR

105

Para finalizar, não é demais dizer que a proposta da força normativa in

concreto não é de todo nova; ainda se mostrará que ela talvez possa ser reconduzida,

ou mesmo conviver paralelamente, a versões especiais dos critérios da competência e

da qualidade, tão desenvolvidos pela doutrina italiana67, assim como guarda

semelhanças e diferenças notáveis com relação à função constitucional, pensada pela

doutrina espanhola como complemento aos princípios da competência e da

hierarquia68. Contudo, este esforço requererá um escrito autônomo.

67 Sobre o tema, é valorosa a consulta a RUGGERI, Antonio. Gerarchia, competenza e qualità nel sistema costituzionale delle fonti normative. Milão: Giuffrè, 1977, com vasta referência bibliográfica; na literatura mais recente, cf., por todos, CRISAFULLI, Vezio. Jerarquía y competencia en el sistema constitucional de las fuentes. Tradução de Juan Francisco Sánchez Barrillao. Revista de derecho constitucional europeo, n. 1, 2004. p. 323-353. 68 Nesse sentido, MORANT, Rafael Gómez-Ferrer. Relaciones entre leyes: competencia, jerarquía y función constitucional. Revista de administración pública, n. 113, mai./ago., 1987. esp. p. 23 ss.

DOIS ESTUDOS SOBRE A LEI COMPLEMENTAR NO DIREITO BRASILEIRO

106

Referências

ATALIBA, Geraldo. Lei complementar na Constituição. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1971.

______. Fontes do direito; fontes do direito tributário. O problema das fontes na

ciência do direito e no sistema brasileiro. Hierarquia das fontes como problema

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