Direito de Autor e Creative Commons
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Direito de Autor e Creative Commons Relatório da sessão apresentada pela Doutora Teresa Nobre,
realizada em 04 de Abril de 2014, na FBAUP
Fátima São Simão Agosto 2014
Práticas e Estudos Avançados II Doutoramento Arte e Design -‐ Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto
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Introdução
O presente relatório constitui a segunda parte de um mesmo trabalho realizado no âmbito da disciplina Práticas e Estudos Avançados II. À primeira parte desse trabalho, correspondeu a organização de um seminário sobre Direito de Autor e Creative Commons, no passado dia 04 de Abril de 2014, no auditório do Pavilhão Sul da FBAUP, apresentado pela advogada convidada, Dr.ª Teresa Nobre, especialista naquela temática, principal promotora e coordenadora legal do projecto Creative Commons Portugal (CC Portugal)1.
A sessão teve como primeiro objectivo esclarecer questões fundamentais relacionadas com o direito de autor e direitos conexos, nomeadamente, o que são estes direitos, o que protegem (obras e prestações), quem protegem (autores, artistas e investidores) e por via de que direitos (morais e económicos). Procurou-‐se ainda clarificar quais os direitos dos utilizadores no que respeita às utilizações livres de obras e prestações, em especial em contexto de criação para fins educativos, através de exemplos como a recente polémica sobre a proibição de desenhar em museus. Falou-‐se também de questões controversas como as recentes extensões ao período de validade do direito de autor e respectiva data da entrada das obras em domínio público.
Finalmente, foram apresentadas as licenças Creative Commons (CC) -‐ porque surgiram, o que são e como funcionam -‐ procurando esclarecer quais os cuidados a ter antes de licenciar com CC e antes de utilizar material licenciado com CC, quais as plataformas e os utilizadores de licenças CC, alguns projectos e modelos de negócio que utilizam licenças CC e, finalmente, o que mudou na nova versão 4.0 das licenças CC.
Esta sessão teve como objectivo não só informar o projecto de doutoramento de Fátima São Simão, não só através do conteúdo apresentado mas também pela possibilidade de testar o interesse e pertinência que uma sessão de esclarecimento sobre esta temática poderia ter no contexto de uma escola superior de artes, neste caso, a Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP). Importará, a esse nível, assinalar que, apesar do público reduzido (14 pessoas), a sessão estendeu-‐se bem para além do esperado: inicialmente prevista para ter a duração de uma hora e trinta minutos, a sessão acabou por ultrapassar as três horas de duração, devido ao interesse da audiência. Além disso, a realização da sessão motivou um convite por parte da direcção da FBAUP, através dos serviços de Formação Contínua, para a apresentação de uma proposta de formação modular em direitos de autor, com possibilidade de implementação a partir do próximo ano lectivo.
O presente texto baseia-‐se então na apresentação realizada pela Dr.ª Teresa Nobre, nas intervenções da audiência e discussões geradas durante a sessão. A consulta de algumas referências bibliográficas e websites permitiu melhor ilustrar algumas das ideias e conceitos expostos.
1 Em 2010, Teresa Nobre iniciou o projecto Creative Commons Portugal, como apoio da Intelli e da Universidade Católica Portuguesa. Actualmente, a equipa do CC Portugal é constituída por Teresa Nobre (Legal Lead) e Fátima São Simão (Public Lead), e conta com o apoio do ID+ -‐ Instituto de Investigação em Design, Media e Cultura.
Fig. 1: Símbolos associados ao direito de autor, de acordo com o grau de protecção.
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I. O Direito de Autor
O direito de autor é o conjunto das leis que regulam a atribuição de direitos exclusivos sobre as criações intelectuais por qualquer modo exteriorizadas. Para além do direito de autor, existem ainda os chamados direitos conexos, que dizem respeito a prestações artísticas, fonogramas, videogramas e emissões de radiodifusão.
O direito de autor não protege ideias, processos, métodos, sistemas, etc. Protege, isso sim, qualquer exteriorização da criação intelectual.
Ao contrário do que acontece com o copyright (direito de cópia, que vigora, sobretudo, nos países anglo-‐saxónicos da Commonwealth), o direito de autor não recai sobre a obra mas, sim, sobre o autor. Ou seja, o direito de autor (que deriva do sistema de droit d'auteur francês) "dá primazia à defesa do autor, ao passo que o sistema de copyright acentua a protecção da obra" (Akester, 2013; p.28). Além disso, o direito de autor é automático (basta que seja exteriorizada) e não obriga a qualquer valoração de mérito da obra (tanto protege um Nobel da literatura como um romance de cordel).
O direito de autor é, então, um conjunto de várias faculdades:
• os direitos morais, que são irrenunciáveis e perpétuos -‐ genuinidade/ originaidade/ integridade (o autor tem o direito de defender a integridade da obra), paternidade (a qualquer momento, o autor pode reclamar a autoria da sua obra) e retirada da obra (a qualquer momento, o autor pode retirar a sua obra de circulação); e
• os direitos patrimoniais, que são renunciáveis e limitados (durante toda a vida do autor mais setenta anos, em Portugal) -‐ que conferem o poder de fixar (fotografar, escrever, gravar), reproduzir (digitalizar, copiar), transformar (adaptar, traduzir, samplar), distribuir (emprestar, vender, alugar), comunicar (interpretar, expor), colocar à disposição, etc; paralelamente aos direitos patrimoniais, existem ainda os direitos remuneratórios (relacionados com execução pública, cópia privada, sequência; sendo os primeiros dois passíveis de ser geridos por uma sociedade de gestão colectiva como, por exemplo, a Sociedade Portuguesa de Autores).
Esta dualidade do direito de autor permite separar aquilo que é o reconhecimento daquele "laço quase místico entre o autor e a obra" (Akester, 2013, p.28) daquilo que é a possibilidade da exploração comercial dessa obra. Por exemplo, quando compramos um livro não estamos a adquirir a obra original mas apenas o direito a lê-‐la quando quisermos. Se quisermos destruir o livro por alguma razão não estamos, de maneira alguma, a destruir a obra ou a ofender o seu autor. No entanto, se adquirirmos uma obra exclusiva (por exemplo, um quadro original) já não teremos a liberdade de a poder destruir a nosso bel prazer, uma vez que isso iria violar o direito de integridade da obra, ofendendo o direito moral que o autor tem para sempre sobre a obra (o que já não acontecerá no caso da obra por encomenda, para a qual a lei define que o direito de autor é atribuído ao comissário da obra e não a quem a executa, a não ser que outra coisa fique escrita em contrário entre as partes envolvidas).
O direito de autor é, como a propriedade industrial (patentes e desenhos industriais), um direito de propriedade intelectual.
Segundo Patrícia Akester (2013), o direito de autor deriva de princípios traçados por John Locke ("crucial, para se falar em 'propriedade', era a adição de trabalho humano a algo que até aí a todos pertencia"), Josef Kohler (direito de propriedade sobre "coisas incorpóreas") e, finalmente, por Immanuel Kant (direito de personalidade: "é o acto pessoal da criação que gera o direito de autor") (Akester, 2013; p.19-‐20). Akester defende que "mais importante, ainda, o direito de autor consiste num direito do homem" (Akester, 2013; p.21), contemplado na Declaração Universal do Direitos do Homem e versado na Constituição de diversos países (em Portugal, no artigo 42º).
A consagração do direito de autor assenta, portanto, em princípios de justiça natural (protecção de um direito do homem, implicando a reprovação do furto), na ideia de incentivo ao processo criativo (o direito de autor garante um monopólio finito, durante o qual o autor obtém uma remuneração pelo seu trabalho criativo) ou num contrato entre o autor e a sociedade (através do qual a sociedade recompensa o autor pelo seu esforço criativo).
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II. Utilizações Livres
Para apresentar as diferentes possibilidades de utilizações livres (ou seja, utilizações que não requeiram consentimento do autor) de uma determinada obra, foi apresentado um exemplo real de proibição de desenhar em museus, pretendendo-‐se, assim, demonstrar como certas utilizações, aparentemente inquestionáveis, de repente, são postas em causa, tornando-‐se motivo de polémica, contestação e muita confusão.
O exemplo escolhido para introduzir a temática das utilizações livre foi então a história do professor de educação visual, António Procópio, que, em 19 de Março de 2014, preparava mais uma aula de diário gráfico em contexto educativo. Tendo escolhido o museu Anjos Teixeira, em Sintra, para realizar as suas reproduções, enquanto desenhava, foi confrontado pela funcionária do museu que lhe disse que não poderia continuar a desenhar sem ter uma autorização prévia, por escrito, para o fazer. O regulamento interno do museu Anjos Teixeira assim o ditava. Do tal regulamento constava então o seguinte: Regulamento da Organização, Gestão e Funcionamento da Rede de Museus Municipais de Sintra" ARTIGO 38" Reprodução de peças museológicas e/ou espaços dos Museus Municipais" 1. Os visitantes estão expressamente proibidos de proceder à reprodução de peças museológicas e/ou espaços dos museus municipais, através de qualquer tipo de técnica fotográfica ou processo com resultados semelhantes, em qualquer tipo de suporte, designadamente digital, papel ou suporte similar."
Uma interpretação possível será a de que a regra foi definida, não por uma questão de direito de autor mas por uma mera questão de gestão de espaço ("Simplesmente, poderíam não querer ter lá dentro pessoas sentadas a desenhar." Teresa Nobre, 2014). No entanto, nada disso está explícito.
O caso apresentado acabou por desencadear uma discussão com o público desta sessão, com referência a vários outros testemunhos e exemplos de situações de interdição de fotografar, normalmente, associadas a razões de segurança mas, nem por isso, menos bizarras (surgiram vários exemplos curiosos como a referência à experiência do Professor Álvaro Domingos, proibido de fotografar no cais de Gaia porque aquele espaço é um centro comercial; foram também referidos casos de proibição para fotografar em estações de metro, comboio, aeroportos...).
Mas o que é que a lei diz a propósito de utilizações livres?
Diz que é possível fazer citações de obras (literárias, musicais, visuais...): A inserção de citações ou resumos de obras alheias, quaisquer que sejam o seu género e natureza, em apoio das próprias doutrinas ou com fins de crítica, discussão ou ensino, e na medida justificada pelo objetivo a atingir Desde que || Sejam indicados nome do autor e editor, o título e demais circunstâncias || Não atinja exploração normal da obra || Não cause prejuízo injustificado de interesses legítimos do autor || Obra citada não se confunda com a obra do utilizador || Citação não seja tão extensa que prejudique o interesse pela obra [cf. art. 75o, no4 e art. 76o no1 a) e no2]
A lei diz ainda que é possível usar a obra para fins educativos: A reprodução, distribuição e disponibilização pública para fins de ensino e educação, de partes de uma obra publicada, contando que se destinem exclusivamente aos objetivos do ensino nesses estabelecimentos e não tenham por objetivo a obtenção de uma vantagem económica ou comercial, direta ou indireta Desde que || Sejam indicados nome do autor e editor, o título e demais circunstâncias || Não atinja exploração normal da obra || Não cause prejuízo injustificado de interesses legítimos do autor || Obra reproduzida não se confunda com a do utilizador || Reprodução não seja tão extensa que prejudique o interesse pela obra" [cf. art. 75o, no4 e art. 76o, no1 f) e no2]
É também possível a utilização livre em estabelecimentos de ensino: A inclusão de peças curtas ou fragmentos de obras alheias em obras próprias destinadas ao ensino Desde que
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|| Sejam indicados nome do autor e editor, o título e demais circunstâncias || Não atinja exploração normal da obra || Não cause prejuízo injustificado de interesses legítimos do autor" || Obra incluída não se confunda com a obra do utilizador || Inclusão não seja tão extensa que prejudique o interesse pela obra" || Remunerar equitativamente autor e editor [cf. art. 75o, no4 e art. 76o, no1 a) e no2]
E existem ainda outras utilizações livres possíveis: A utilização de obras, como, por exemplo, obras de arquitetura ou escultura, feitas para serem mantidas permanentemente em locais públicos Desde que || Sejam indicados nome do autor e editor, o título e demais circunstâncias || Não atinja exploração normal da obra || Não cause prejuízo injustificado de interesses legítimos do autor [cf. art. 75o, no4 e art. 76o, no1 a)]
ou
A inclusão episódica de uma obra ou outro material protegido noutro material Desde que || Sejam indicados nome do autor e editor, o título e demais circunstâncias || Não atinja exploração normal da obra || Não cause prejuízo injustificado de interesses legítimos do autor [cf. art. 75o, no4 e art. 76o, no1 a)]
A lei Portuguesa contempla ainda outras possibilidades curiosas: ARTIGO 75o, n.o 3 É também lícita a distribuição dos exemplares licitamente reproduzidos, na medida justificada pelo objetivo do ato de reprodução. ARTIGO 71o A faculdade legal de utilização de uma obra sem prévio consentimento do autor implica a faculdade de a traduzir ou transformar por qualquer modo, na medida necessária para essa utilização. ARTIGO 75o, n.o 5 É nula toda e qualquer cláusula contratual que vise eliminar ou impedir o exercício normal pelos beneficiários das utilizações enunciadas nos nos 1, 2 e 3 deste artigo, sem prejuízo da possibilidade de as partes acordarem livremente nas respetivas formas de exercício, designadamente no respeitante aos montantes das remunerações equitativas.
Ou seja, o referido regulamento do museu Anjos Teixeira, em Sintra é, muito provavelmente, nulo.
Relativamente à questão da citação de imagens em artigos científicos, a Dr.ª Teresa é de opinião que, desde que esta citação tenha um propósito de crítica, estaremos perante uma utilização livre. O direito de autor protege a criação: é uma tutela da criação, não é uma tutela da repressão da imitação.
Estas leis têm, no entanto, um efeito territorial, sendo necessário ter em atenção que aquilo que do ponto de vista das utilizações livres é válido num país pode já não o ser noutro território.
O mesmo se aplica à utilização de obras arquitectónicas em espaço público, seja qual for a data da sua origem (ou seja, qualquer utilização de obras arquitectónicas para serem mantidas em locais público, sejam as obras públicas ou privadas, é livre e independente do direito de autor, desde que não atinja a exploração normal ou prejudique o interesse pela obra). No entanto, há regulamentos a proteger certos monumentos que atribuem uma exclusividade de exploração a determinadas entidades, responsáveis por zelar pela manutenção e conservação desses mesmos monumentos. Estes regulamentos referem-‐se, sobretudo, ao interior dos monumentos mas não só.
O uso para fins estritamente privados também está contemplado na lei, sendo livre (dentro de limites muito restritos).
Para situações semelhantes, em vez de excepções à lei, os Estados Unidos têm uma cláusula aberta que permite analisar a utilização caso a caso: é a cláusula do fair use (utilização justa). Esta
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cláusula diz-‐nos que, se a utilização em causa da obra for justa então ela é livre e tem-‐se revelado particularmente importante nos casos não previstos na lei (os quais, dada a diversidade e complexidade destes direitos, podem ser inúmeros).
Durante a sessão, surgiu ainda a questão do direito à imagem e a sua articulação com o direito de autor. O direito da imagem tem duas vertentes: o direito à privacidade e o direito à exploração (o que os ingleses chamam publicity rights). As figuras públicas são uma excepção a esse direito. Estas levantam outras questões como, por exemplo, qual o limite entre a vida privada e pública destas personalidades. Coloca-‐se também a questão da aparência da pessoa (e não só a imagem), cuja utilização sem autorização é igualmente proibida. O direito à imagem não é um direito de autor, é um direito de personalidade. Fotografar pessoas sem a sua autorização é proibido, a menos que estejamos a falar de intérpretes como modelos, actores, bailarinos ou músicos (e, mesmo nestes casos, nem sempre isso é possível).
Foi também discutida a questão da protecção do direito autoral no ensino. Por exemplo, uma compilação (como as antigas sebentas) já não é considerada citação, logo, já não é livre. Mas não deveria o professor poder compilar e o aluno partilhar essa compilação, desde que para fins educativos?
Não estando escrito nada, a titularidade do direito de autor (por exemplo, das aulas preparadas pelo professor em determinada instituição) é da instituição que o contratou e não do próprio autor. Nesse caso, o autor poderá reclamar o direito sobre os conteúdos se colocar o seu nome nos mesmos. Hoje em dia, normalmente, as universidades têm regulamentadas todas as questões de gestão da propriedade intelectual gerada em contexto académico (o que é da universidade e o que é do investigador).
Fig. 2: Símbolo de copyright (direito de autor), significa "todos os direitos reservados"
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III. Domínio Público
Há um momento em que o direito de autor termina, passando a obra a constar do domínio público. Ou seja, termina o monopólio temporário sobre a obra que o direito de autor confere ao seu criador e a obra passa a poder ser acedida e utilizada igualmente por todos (Benhamou e Farchy, 2009). Importa notar que isto acontece porque originalmente, as primeiras leis de direito autoral (mais concretamente, o Estatuto de Anne, publicado em 1710, no Reino Unido) surgiram com dois objectivos essenciais: o controlo da coroa sobre as obras publicadas, ou seja, a censura (Lessig, 2004; p.86) e, por outro lado, a promoção do acesso à educação (Katz, 2012; p.218).
Uma curiosidade: Portugal foi o único país no mundo que implementou o regime da perpetuidade do direito de autor. Durante 39 anos (entre 1927 e 1966, ou seja, durante o Estado Novo), as obras Portuguesas estavam protegidas por direito de autor perpetuamente, ou seja, as obras protegidas em Portugal nunca entrariam em domínio público.
Perante esta questão, surgiu da audiência mais um exemplo:
O portal JStore, fundamental para quem faz investigação, disponibiliza gratuitamente textos até 1923 mas apenas nos EUA. Para a Europa, por exemplo, estão apenas disponíveis naquele portal obras até 1870:
With Register & Read, JSTOR is providing an unprecedented level of access to its archival collection to the general public. While this is among JSTOR’s first initiatives to provide access directly to individuals unaffiliated with educational and cultural institutions, it continues JSTOR’s long history of innovative approaches to expanding access to academic content. JSTOR has offered free access to not-for-profit institutions throughout Africa since 2006, and fees are waived or reduced for institutions in many other countries around the world. In addition, all journal content published prior to 1923 in the United States and 1870 elsewhere has been free to the public since 2011. In the 1990s, JSTOR also pioneered tiered fee structures for libraries, setting a standard that has provided more widespread and affordable access to academic content to libraries and educational institutions of all sizes. The result is a global network of more than 8,000 libraries in 167 countries – all of which are authorized to provide free walk-in access to the journal archives on JSTOR if they wish.
in http://about.jstor.org/news/free-read
A editora pode fazer isto? Isto não ultrapassa as regras do domínio público?
A JStor criou uma base de dados e faz-‐se pagar por isso. É sobre a base de dados que ela pode reclamar o direito, não sobre as obras (a menos que tenham sido publicadas nesses termos). A JStor não pode impedir o acesso a obras em domínio público mas pode impedir o acesso à busca gratuita na sua base de dados. Se, no entanto, alguém adquire ou acede a essas obras, a JStor nada pode fazer para o impedir, uma vez que, aquilo que pode apenas proteger é a sua base de dados.
Os Estados Unidos eram um dos países com direito de autor de menor duração. Com o Mickey Mouse Act (Copyright Term Extension Act), passaram a ser dos países com maior longevidade ao nível do direito autoral (mais correctamente, do copyright) passando de 70 para 95 anos após primeira publicação da obra. Chama-‐se Mickey Mouse Act porque a alteração legislativa aconteceu na sequência da forte pressão da Disney para não perder os direitos sobre o Rato Mickey, quando estes estavam em vias de entrar em domínio público. Na prática, esta lei praticamente "congelou" a entrada de obras em domínio público nos Estados Unidos (ver http://en.wikipedia.org/wiki/Copyright_Term_Extension_Act).
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No caso da música, em Portugal, a questão da morte do autor é cumulativa com a da publicação da obra. Ou seja, uma obra musical está protegida por direito de autor até 70 anos após a morte do autor e 50 anos da primeira edição/ fixação da mesma obra. Esta diferença vai deixar de existir, passando o direito conexo da edição da obra a estar protegido durante 70 anos também. Ou seja, é possível utilizar a obra de Mozart mas não a edição do ano passado de determinada editora; apenas posso utilizar edições com mais de 70 anos.
Da audiência voltou a surgir um exemplo real: desta vez, foi referido o caso de um realizador de cinema que, em determinado vídeo, usou uma música clássica que estava já em domínio público. No entanto, quando a colocou no YouTube, o vídeo foi retirado com o argumento de que aquela interpretação pertencia à Deutsche Grammophon. O realizador conseguiu contra-‐argumentar, enviando a edição que usara (e que se encontrava, de facto, em domínio público!) e o vídeo voltou a ser colocado no YouTube, acessível em todo o mundo, excepto na Alemanha (provavelmente, por ser um dos países onde é mais difícil negociar com as sociedades de gestão colectiva).
A interpretação do maestro e dos intérpretes também é passível de ser protegida ao abrigo do direito de autor. Ou seja, existe direito de autor sobre a obra musical (a composição), o direito conexo do intérprete ou executante (músicos, maestro...) e o direito conexo da editora que fixou o fonograma. Daí que, por exemplo, quando alguém quer passar música num estabelecimento comercial ou numa festa, deve tirar várias licenças e não apenas uma. No caso de um vídeo de uma ópera, por exemplo, a situação é ainda mais complexo! As traduções são outro tipo de obra protegido independentemente. Mas o tradutor, para fazer a tradução, precisa da autorização do autor da obra original. Isto acontece para qualquer obra derivada, a menos que caiba no âmbito das utilizações livres que vimos antes. Apesar da possibilidade de hoje se promover e facilitar o acesso global e simultâneo a obras e criações dos mais diversos formatos através da internet, tal é praticamente impossível porque cada país tem as suas regras e enquadramentos próprios. Compilar obras existentes em suportes multimédia, por exemplo, implica uma complexidade demasiado morosa e onerosa de resolver, o que acaba por tornar este tipo de processo pouco interessante.
Apenas as obras que se encontrem em domínio público escapam a esta dificuldade, embora, muitas vezes, possam ter outras complicações associadas como, por exemplo, dificuldades de consulta. Para tentar ultrapassar essas dificuldades, existem já vários sites onde é possível consultar obras que se encontrem em domínio público: http://www.pdinfo.com (para música), http://www.feedbooks.com (para livros), http://www.publicdomainflicks.com (para filmes) ou http://publicdomainarchive.com (para imagens), entre outros.
Fig. 3: Duração do direito (patrimonial) de autor por país, 2012 fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_countries'_copyright_lengths)
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IV. Creative Commons
Como vimos, pode ser muito complicado utilizar ou sequer ter acesso a obras protegidas por direito de autor. Em alguns casos, muito restritos, a lei prevê algumas utilizações livres mas, mesmo assim, é sempre difícil identificar e interpretar os casos em que isso realmente acontece.
Perante esta dificuldade, particularmente sentida após o aparecimento da internet e a crescente partilha de conteúdos online, em 2001, um grupo de professores da Universidade de Stanford, com o apoio do Public Domain Center, criou as licenças Creative Commons.
A missão da Creative Commons é desenvolver, apoiar e promover infra-‐estruturas técnicas e legais que maximizem a criatividade, a partilha e a inovação na internet (in http://creativecommons.org/about), colocando nas mão de cada criador a possibilidade de decidir sobre que destino de utilização dar à sua própria obra.
"Em Dezembro de 2002, a Creative Commons lançou o seu primeiro conjunto de licenças sobre copyright, gratuitamente. A Creative Commons desenvolveu as suas licenças - em parte inspirada pela Licença Geral da GNU (GNU GPL), criada pela Free Software Foundation - ao mesmo tempo que criou uma aplicação Web para ajudar a licenciarconteúdos gratuitamente para determinados usos, sob determinadas condições ou mesmo colocar esses conteúdos directamente em domínio público.
Nos anos que se seguiram, a Creative Commons e as suas licenças cresceram exponencialmente por todo o mundo. Desde então, as licenças têm vindo a melhoradas e transferidas para mais de 50 jurisdições.." in http://creativecommons.org/about/history
Associada a estas licenças, foi criada uma sinalética simples que permite a qualquer pessoa (e não só advogados!) seja capaz de determinar e identificar o tipo de utilizações que permite para as suas obras. Estas licenças podem ser utilizadas em obras protegidas por direito de autor, direitos conexos e direito sui generis (bases de dados).
As licenças Creative Commons resultam da combinação de quatro condições essenciais:
• Atribuição (BY) • Não Comercial (NC) • Sem Derivações (ND) • Partilha Igual (SA)
Dentro destas quatro condições, o licenciador pode optar por um dos seis tipos de licenças disponíveis, consoante o grau de restrição/ liberdade que pretende conceder aos utilizadores da sua obra:
Fig. 5: Diferentes opções de licenças Creative Commons, de acordo com a liberdade de utilização pretendida.
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Ou seja, todas estas licenças permitem reproduzir e partilhar conteúdos, podendo restringir apenas quanto à utilização desses mesmos conteúdos para produção de trabalhos derivados e/ ou para fins comerciais.
No caso das bases de dados, estas licenças permitem extrair, reutilizar, reproduzir e partilhar toda ou parte substancial dos seus conteúdos bem como fazer quaisquer modificações técnicas necessárias para exercer os direitos em todos os meios e formatos, inclusivamente para neutralizar medidas de carácter tecnológico eficazes.
As licenças de Creative Commons recaem apenas sobre direitos de autor e conexos (não se aplicam, por exemplo, a patentes, desenho industrial, direitos de personalidade, direitos sujeitos a gestão colectiva), são gratuitas, têm validade internacional e duração ilimitada (embora também se aplique o direito de retirada, o que, na prática, será praticamente impossível já que, uma vez partilhado na internet, é muito difícil seguir o rasto da obra -‐ mais ainda, se a licença permitir trabalhos derivados).
Ao colocar uma licença CC numa obra digital, o criador deve indicar:
• título; • autor; • fonte (link para o trabalho); • licença CC (símbolo e link para aquele tipo de licença, indicada no site da Creative
Commons); e • indicação das modificações efectuadas sobre a obra, se for o caso.
Em caso de violação, a licença cessa automaticamente, podendo ser restabelecida se a violação for remediada no prazo de 30 dias.
Tecnicamente, estas licenças são compostas por três camadas:
1. uma componente legal (contrato); 2. uma componente "legível por humanos" (interface de aplicação
da licença, no site CC); e 3. uma componente legível por máquinas (para que a licença
possa sempre ser reconhecida enquanto o trabalho circular online).
Desde o lançamento das licenças CC, em 2002, todas as versões eram adaptadas à legislação local. A última versão, a licença 4.0, já não requer esta adaptação, numa tentativa de uniformizar e, assim, facilitar cada vez mais a utilização das licenças CC. Estas licenças têm uma única versão em cada língua. Ou seja, levantam-‐se dificuldades mesmo ao nível da uniformização linguística (esta questão também se coloca em várias plataformas e ferramentas que "vivem" na internet, não sendo uma dificuldade exclusiva da Creative Commons).
Fig. 6: Aspecto do interface de atribuição de licenças, na página web da Creative Commons.
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O licenciamento de um conteúdo através de Creative Commons não requer nem corresponde a qualquer tipo de registo da obra. Por outro lado, o licenciamento também não obriga a gerar um código html, ou seja, basta colocar os símbolos relativos à licença escolhida.
Além de virem crescendo exponencialmente (um estudo recente detectou que existem, actualmente, pelo menos, 1,2 milhões de artigos académicos licenciados com CC, in http://blogs.plos.org/opens/2014/08/15/rise-‐rise-‐creative-‐commons-‐1-‐2m-‐cc-‐licensed-‐scholarly-‐articles/), as licenças Creative Commons têm permitido o acesso e reutilização de inúmeros conteúdos online, estando algumas plataformas online de referência já preparadas para as atribuir e/ ou consultar, quer ao nível do licenciador quer ao nível do utilizador. Naturalmente, o licenciamento e busca destes conteúdos também é possível a partir do próprio site da Creative Commons.
Para além destas plataformas, existem várias instituições (como museus e galerias, instituições financeiras, bancos de imagens, bases de dados académicas, etc) a licenciar as suas colecções com Creative Commons. É o caso do Rijksmuseum (Amsterdão) ou da National Portrait Gallery (Londres) o Banco Mundial, a Bloomsbury Academic, Europeana, Design21, Open Architecture Network, Thingiverse, WikiSeat, Open Design Now, The Noun Project, etc.
A Creative Commons é uma organização sem fins lucrativos, financiada por bolsas e donativos de fundações e individuos, que garantem a continuidade da suas actividades de desenvolvimento e investigação em torno das licenças que criou.
Fig. 7: Exemplos de aspecto de uma licença CC BY.
Fig. 8: Exemplos de plataformas online, onde é possível encontrar conteúdos licenciados com Creative Commons.
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As licenças Creative Commons vieram, assim, não só permitir aos criadores que queiram partilhar os seus trabalhos a possibilidade de decidirem o destino de utilização desses mesmos trabalhos como também possibilitar a utilização livre de inúmeros conteúdos online.
Fig. 9: Símbolo de Creative Commons, significa "alguns os direitos reservados"
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Conclusão
A sessão de apresentação da Dr.ª Teresa Nobre permitiu não só esclarecer alguns equívocos relativos ao direito de autor como evidenciar a complexidade e dimensão de um tema que se tem tornado cada vez mais controverso e polémico.
Se por um lado, soluções como as oferecidas pela Creative Commons representam um importante passo na garantia de uma maior equidade no que respeita ao acesso e utilização de conteúdos partilhados na internet, por outro lado, é cada vez mais evidente a urgência de uma reforma profunda ao nível do direito de autor bem como de outros direitos de propriedade intelectual, capaz de adaptar estas ferramentas à realidade actual, em certa medida devolvendo o espírito original com que foram criadas: o incentivo à criação e o acesso à educação e à cultura, promovendo o bem comum e garantindo o desenvolvimento sustentável da sociedade.
Até porque "Olhando para as modificações históricas ocorridas, não parece indispensável, longe disso, que a função autor permaneça constante na sua forma, na sua complexidade e mesmo na sua existência." (Foucault, 1983; p. 70).
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Referências bibliográficas e outras:
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Benhamou, F. & Farchy, J. (2009), Droit d'Auteur et Copyright, 2 ed., Paris, La Découverte
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Nobre, T. (2014), Direito de Autor e Creative Commons, apresentação realizada em 04 de Abril de 2014, na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto
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