Cristóvão Colombo e a Madeira: antecedentes e consequências da primeira viagem às Antilhas em...

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1 NOVO MUNDO E MUNDO NOVO. CRISTÓVÃO COLON EM PORTUGAL - MARÇO DE 1493 MARÇO DE 2013 520º aniversário da viagem de regresso do descobrimento oficial da América. Cristóvão Colombo e a Madeira: antecedentes e consequências da primeira viagem às Antilhas em 1492 Rui Carita Professor catedrático da Universidade da Madeira Portugal definiu as suas fronteiras terrestres quase nos inícios século XII e, nos finais do século seguinte, configurava os limites que ainda hoje sensivelmente apresenta. Com a crise de 1383-85, veio a configurar-se numa monarquia moderna europeia, assentando parte da sua estrutura administrativa na cidade de Lisboa, já então um importante porto europeu comercial, estabelecendo relações com os principais centros políticos de decisão europeus. Através de casamentos dos membros da família real e de tratados comerciais, a corte portuguesa patrocina e dirige um processo fulgurante de expansão ultramarina, iniciado com a ocupação de praças no Norte de África, pontos-chave para apoio ao povoamento das ilhas atlânticas e, depois, para a exploração da costa de África para Sul. Se já nos anos anteriores Portugal importara tecnologia naval da área do Mediterrâneo, que adaptara à navegação atlântica, com o sucesso dessas navegações e das transações comerciais com o Mar do Norte, especialmente o porto de Lisboa, tornou-se assim num dos centros económicos de referência da Época Moderna. Em breve, consolidou-se uma importante colónia mercantil italiana, especialmente da Ligúria, à qual, progressivamente se associam igualmente elementos flamengos e de outras cidades italianas. Foi nesse quadro que apareceu em Lisboa, em meados de Agosto de 1476, um jovem, em princípio, italiano: Cristóvão Colombo (Génova (?), cerca de 1451; Valladolid, 20 maio 1506). Tratava-se então, tudo leva a crer, de um aventureiro que se teria associado às várias viagens de navegação que saiam de Lisboa, quer para o Sul do Atlântico quer para o Norte. Colombo falaria então lígure, aprendendo em Lisboa português e familiarizando-se com as técnicas de navegação atlântica e cartografia, no que seria depois acompanhado pelo irmão mais novo Bartolomeu Colombo (c. 1461-1515). Cristóvão Colombo estava na Madeira em 1478, como funcionário dos mercadores italianos da colónia lisboeta, Paulo di Negro e Spinola, e por conta da casa genovesa dos Centorione. Em julho de 1478 partiu de Lisboa para o Funchal ao serviço da casa comercial de Ludovico Centurione e Paolo di Negro, mercadores genoveses cujos herdeiros são citados nos testamentos de Colombo (1506) e do seu filho Diogo (1523). Colombo estava encarregado de comprar 2400 arrobas de açúcar, que deveriam ser carregadas no navio do capitão português Fernando de Palência. Para o efeito, Di Negro havia-lhe fornecido parte do dinheiro, sendo que o restante deveria chegar ao Funchal a tempo da transação ser concretizada e da chegada do navio que deveria carregar o açúcar, o que não aconteceu, tendo os vendedores se recusado a concretizar a transação.

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NOVO MUNDO E MUNDO NOVO. CRISTÓVÃO COLON EM

PORTUGAL - MARÇO DE 1493 – MARÇO DE 2013

520º aniversário da viagem de regresso do descobrimento oficial da

América.

Cristóvão Colombo e a Madeira: antecedentes e consequências da primeira

viagem às Antilhas em 1492 Rui Carita

Professor catedrático da Universidade da Madeira

Portugal definiu as suas fronteiras terrestres quase nos inícios século XII e, nos finais do

século seguinte, configurava os limites que ainda hoje sensivelmente apresenta. Com a crise de

1383-85, veio a configurar-se numa monarquia moderna europeia, assentando parte da sua

estrutura administrativa na cidade de Lisboa, já então um importante

porto europeu comercial, estabelecendo relações com os principais

centros políticos de decisão europeus. Através de casamentos dos

membros da família real e de tratados comerciais, a corte portuguesa

patrocina e dirige um processo fulgurante de expansão ultramarina,

iniciado com a ocupação de praças no Norte de África, pontos-chave

para apoio ao povoamento das ilhas atlânticas e, depois, para a

exploração da costa de África para Sul.

Se já nos anos anteriores Portugal importara tecnologia naval da

área do Mediterrâneo, que adaptara à navegação atlântica, com o

sucesso dessas navegações e das transações comerciais com o Mar do

Norte, especialmente o porto de Lisboa, tornou-se assim num dos

centros económicos de referência da Época Moderna. Em breve,

consolidou-se uma importante colónia mercantil italiana, especialmente

da Ligúria, à qual, progressivamente se associam igualmente elementos

flamengos e de outras cidades italianas.

Foi nesse quadro que apareceu em Lisboa, em meados de Agosto

de 1476, um jovem, em princípio, italiano: Cristóvão Colombo

(Génova (?), cerca de 1451; Valladolid, 20 maio 1506). Tratava-se

então, tudo leva a crer, de um aventureiro que se teria associado às

várias viagens de navegação que saiam de Lisboa, quer para o Sul do

Atlântico quer para o Norte. Colombo falaria então lígure, aprendendo

em Lisboa português e familiarizando-se com as técnicas de navegação

atlântica e cartografia, no que seria depois acompanhado pelo irmão

mais novo Bartolomeu Colombo (c. 1461-1515).

Cristóvão Colombo estava na Madeira em 1478, como funcionário dos mercadores

italianos da colónia lisboeta, Paulo di Negro e Spinola, e por conta da casa genovesa dos

Centorione. Em julho de 1478 partiu de Lisboa para o Funchal ao serviço da casa comercial de

Ludovico Centurione e Paolo di Negro, mercadores genoveses cujos herdeiros são citados nos

testamentos de Colombo (1506) e do seu filho Diogo (1523). Colombo estava encarregado de

comprar 2400 arrobas de açúcar, que deveriam ser carregadas no navio do capitão português

Fernando de Palência. Para o efeito, Di Negro havia-lhe fornecido parte do dinheiro, sendo que o

restante deveria chegar ao Funchal a tempo da transação ser concretizada e da chegada do navio

que deveria carregar o açúcar, o que não aconteceu, tendo os vendedores se recusado a

concretizar a transação.

2

O caso da compra de açúcar na Madeira acabou nos

tribunais de Génova, a fazer fé no documento Assereto, onde

Colombo, então com 27 anos, se encontrava a 25 de agosto

de 1479, tendo prestado declarações na qualidade de

testemunha e cidadão genovês. No dia seguinte, 26 de agosto

de 1479, Colombo embarcaria novamente com destino a

Lisboa. O facto do tribunal de tribunal de Génova o

considerar ainda como cidadão daquela cidade, em agosto de

1479, permite supor que nesta data não estava ainda

permanentemente estabelecido em Lisboa e seria ainda

solteiro, de acordo com a informação de Las Casas, que diz

que o seu casamento e estabelecimento em Portugal levou a

que fosse considerado cidadão português.

A urgência da saída de Génova para Lisboa deve

relacionar-se com o seu casamento com Filipa Moniz, à

época residente com a mãe no mosteiro feminino de Santos-

o-Velho da Ordem de Santiago desde a morte do pai,

Bartolomeu Perestrelo, que fora cavaleiro da casa do Infante

D. João, mestre da Ordem de Santiago e, depois, do infante

D. Henrique. Bartolomeu Perestrelo era de ascendência

italiana, de uma família de Placência e o primeiro capitão do

donatário da ilha do Porto. Havia falecido em 1457 e a sua

viúva, Isabel Moniz, com autorização do infante D. Henrique, vendera a capitania a Pedro

Correia, capitão da Graciosa, nos Açores e que casaria depois, em 1465, com Iseu Perestrelo de

Mendonça, filha do anterior casamento do capitão do Porto Santo. Com a venda da capitania,

Isabel Moniz e a filha recolheram-se no mosteiro de Santos-o-Velho.

Da união de Colombo e Filipa Moniz, em 1479, nasceu o único filho legítimo do futuro

almirante, Diogo Colon Perestrelo, entre 1479 e 1480, depois nomeado pela Coroa Espanhola

como 2º Almirante e Vice-rei das Índias, segundo o meio-irmão Fernando Colombo, na Madeira

ou no Porto Santo. Estando Cristóvão Colombo envolvido no comércio do açúcar e tendo a

capitania do Porto Santo sido vendida em 1457, não nos parece lógica a presença de Colombo e

da mulher no Porto Santo. A estadia do casal no arquipélago, no

entanto, teria sido fugaz, tudo levando a crer, inclusivamente, que

Filipa Moniz poderia ter falecido no Funchal, embora na

documentação de habilitação do filho, Diogo Colon, o mesmo

tivesse mandado escrever que se encontrava sepultada no

convento do Carmo, em Lisboa, na capela dos Monizes.

A relação de Cristóvão Colombo com a ilha da Madeira, no

entanto, ter-se-ia mantido, pois segundo Bartolomeu de Las Casas

teria sido ali, através de António Leme, que tivera acesso a

informações sobre terras ou ilhas situadas muito para Ocidente. A

partir de 1492 o reino de Castela lançou-se na conquista do

Oceano Atlântico e, embora com tecnologias ainda rudimentares

e, até certo ponto, aprendidas em Portugal, esta ação apresentou-se

como uma nítida concorrência ao expansionismo português.

Cristóvão Colombo ao serviço dos Reis Católicos, Isabel de

Castela e Fernando de Aragão, tinha conseguido atingir a América

nos finais de 1492, pensando tratar-se da Índia, alterando assim as

relações de força na área dos "descobrimentos" do Oceano Atlântico.

3

O futuro almirante do mar oceano

estivera cerca de 10 anos em Portugal,

participando, em princípio, em várias

viagens de exploração à Mina e costa da

Guiné e propusera a D. João II atingir a

Índia por Ocidente, ao serviço de

Portugal, o que lhe foi recusado.

Colombo conhecia bem as navegações

portuguesas e ficara com ligações aos

comerciantes italianos radicados em

Portugal e na Madeira, assim como

manteve ligação à colónia portuguesa e

internacional de Sevilha, onde se radicara

uma outra sua meia-cunhada, casada com

o navegador Usodimare.

A viagem às Antilhas tinha sido francamente difícil e Cristóvão Colombo optara por passar

pela ilha de Santa Maria, nos Açores, onde reabasteceu e lançou as âncoras. Mais tarde, veio a

justificar o ter passado por aquele arquipélago, segundo os seus biógrafos, para evitar passar pela

Madeira, onde três caravelas armadas por D. João II o aguardavam para o prender. A razão

apontada não resiste muito à análise, até porque o

regime de ventos induz à passagem pelos Açores e

dificulta bastante a passagem pela Madeira.

Ciente, em princípio, das alterações que iria

produzir a sua missão no quadro político ibérico e,

também, provavelmente, para se vangloriar do seu

feito perante D. João II, que alguns anos antes

recusara o seu projeto de atingir a Índia pelo

Ocidente, antes mesmo de comunicar a notícia aos

Reis Católicos, o navegador foi comunicá-la ao rei de

Portugal, então no convento de Vale Paraíso, perto de

Almeirim, tendo conferenciado com o rei nos dias 9,

10 e 11 de março de 1493. Logo nas conversações de

Vale Paraíso, D. João II terá alegado, de imediato, que

as terras onde Colombo teria chegado lhe pertenciam

de acordo com o que fora estipulado no Tratado de

Alcáçovas, dado se encontrarem a sul do paralelo das

Canárias. Tal posição, como era de esperar, não seria

aceite pelos Reis Católicos, que consideravam suas as

terras descobertas por Colombo, pois elas não se

encontravam nas “partes da Guiné”, como referia esse

tratado.

As negociações do novo tratado de limites

Nesta sequência acabou por se fazer nova partilha do mar oceano entre Portugueses e

Castelhanos, então por um meridiano, celebrada pelo tratado de Tordesilhas. Não vamos aqui

enunciar as complicadas negociações que este tratado envolveu, mas somente as que dizem

respeito ao assunto do nosso trabalho.

4

D. João II seguiu para Torres Vedras depois da reunião de março com Colombo, onde,

após as festas da Páscoa, reuniu o seu conselho. Aí se combinou preparar uma armada para

tomar posse das terras descobertas pelo futuro almirante, tendo o seu comando sido entregue a D.

Francisco de Almeida, “que depois foi o primeiro vice-rei da Índia, homem de muita confiança e

muito bom cavaleiro”, como refere Garcia de Resende 1. No entanto, esta armada preparada, em

princípio, em Lisboa, não chegou a partir, a pedido dos Reis Católicos, através do seu

embaixador D. Lope de Herrera, que para tal se deslocou de imediato a Lisboa.

Em resposta ao pedido de Isabel de Castela e de Fernando de Aragão, a posição inicial de

D. João II foi expressa pelos seus embaixadores, os “doutor Pero Dias do seu desembargo e juiz

dos seus feitos e Rui de Pina, cavaleiro de sua casa e seu secretário”, num memorando entregue

em Barcelona, a 14 de agosto de 1493, data em que devem ter chegado a esta cidade. Aí se

resume a posição de D. João II, a qual se centra no pedido dos Reis Católicos para que se não

enviassem navios às terras descobertas por Colombo, sem antes “assentar e limitar os mares,

ilhas e terras a que os navios e gentes de vossas altezas pudessem ir”. É de salientar se ter

chegado mesmo a ameaçar que se assim não acontecesse,

“se poderiam daí seguir outros inconvenientes e

descontentamentos”.

Demonstrando a melhor boa vontade, D. João II

anunciava que fizera suspender por dois meses a partida dos

“seus navios que tinha prestes pera mandar descobrir”,

considerando o pedido que lhe havia sido transmitido pelo

embaixador, embora se voltasse a insistir que tinha

“ordenados navios que fossem descobrir ao que a sua

alteza bem pertence e mui alongado daquilo que o dito

almirante disse a sua alteza que tinha descoberto” 2. No

entanto, não se explicita quais eram esses seus domínios

onde tencionava “mandar descobrir”. Entretanto, também a

diplomacia dos Reis Católicos se movimentava,

conseguindo obter-se do papa Alexandre VI, nascido

Rodrigo de Borja e que fora arcebispo de Valência, a bula

Inter Coetera, de 3 de maio de 1493, reservando para os

mesmos as terras então descobertas, ou a descobrir, “na

direcção dos índios”, com idênticos direitos e privilégios

que os portugueses tinham pelas bulas anteriores. Uma

segunda bula, sob o mesmo título, de 4 de maio do mesmo

ano, reproduz a primeira parte da anterior e estabelece a

linha de demarcação entre os povos ibéricos: cem léguas a

oeste das ilhas dos Açores e de Cabo Verde 3.

Com esta definição de limites, a delegação portuguesa pareceu hesitar, protelando as

negociações e aguardando novas diretivas de D. João II. O cronista Rui de Pina, um dos

1 Garcia de Resende, Vida e Feytos del Rey Dom Iom Segundo, Lisboa, 1991, p. 241.

2 José Manuel Garcia, in O Testamento de Adão, CNCDP, Torre do Tombo, 1994, p. 94. Este memorial esteve

exposto na Torre do Tombo e vem descrito no mesmo trabalho, pp. 238, nº 107. Tendo colaborado nesta exposição

com José Manuel Garcia, foi com o mesmo que iniciámos este estudo, ao qual, ao longo destes 20 anos, fomos

acrescentado novos elementos.

3 Estas bulas encontram-se publicadas por João Martins da Silva Marques, Descobrimentos Portugueses, 2º vol.,

Lisboa, 1944. A segunda esteve exposta na Torre do Tombo e vem descrita in O Testamento de Adão, ob. cit., pp.

235 a 237, nº 105.

5

participantes nesta segunda embaixada, confirma-nos as alegações conhecidas da documentação

castelhana, ao dizer que a armada portuguesa, “sendo já prestes, chegou a el-rei um chamado

Ferreira, mensageiro dos reis de Castela (o embaixador D. Lope de Herrera, por certo), que por

serem certificados do fundamento da dita armada que era contra outra sua, que logo havia de

tornar, lhe requereu que nela sobestivesse até se ver por direito em cujos mares e conquistas o

dito descobrimento cabia (... ), pelo qual, el-rel desistiu de enviar a dita armada” 4.

As caravelas da Madeira

Analisando a documentação dos Reis Católicos e de Colombo, verificamos inúmeros

indícios que levam à suspeita de que, embora a armada de D. Francisco de Almeida não tenha

saído de Portugal, logo a seguir à viagem do almirante, os portugueses, por certo às ordens de D.

João II, tentaram obter informações, ou novas informações, sobre as terras a ocidente e teriam

sido enviados navios naquela rota. Assim, logo com data de 2 de Maio, já os Reis Católicos

agradecem ao duque de Medina Sidónia a informação que o mesmo enviara, sobre a armada que

o rei de Portugal se preparava para enviar às terras descobertas por Colombo. Ao mesmo tempo,

Isabel de Castela e Fernando de Aragão dão-lhe ordem para se terem prontas e aparelhadas para

qualquer eventualidade “todas as caravelas” 5 disponíveis, pensamos.

A 1 de Julho idêntico agradecimento é feito ao almirante Cristóvão Colombo, “sobre

certos navios enviados pelo rei de Portugal”, informação de que, citam, já tinham conhecimento.

Esta carta é fracamente interessante, pois

refere que os Reis Católicos se

encontravam na posse de um livro de

Colombo, que iam mandar fazer uma

cópia e que a remeteriam depois ao

almirante por D. Juan Rodriguez de

Fonseca 6. Tratava-se do famoso diário

da primeira viagem, única prova gráfica

da viagem de Colombo e cuja cópia seria

feita por dois copistas, às escondidas da

embaixada portuguesa, então em

Barcelona. A cópia seria enviada para

Puerto de Santa Maria, conforme carta de

5 de Setembro seguinte e o original

ficaria em Barcelona.

A primeira informação do duque de

Medina Sidónia refere-se, por certo, à

armada de D. Francisco de Almeida, mas

a de Colombo parece referir-se a outros navios, por certo os partidos da Madeira, como

referiremos a seguir. A 12 de junho, Isabel de Castela e Fernando de Aragão voltam a escrever a

Colombo, dando-lhe notícias da missão do seu “mensageiro Herrera” e, embora confirmem a

versão relatada acima por Rui de Pina, de que D. João II negara que enviara os tais navios e

4 José Manuel Garcia, in O Testamento de Adão, ob. cit., p. 94; cit. de Rui de Pina, Crónica de El Rey D. João II,

Lisboa, 1977, p. 1017.

5 Arquivo Geral das Índias, Sevilha, Patronato, p. 79, II, p. 28. Pub. Silva Marques, ob. e vol cit. doc. 252, p. 373.

6 Ibidem, nº 293; ibidem, doc. 262. Esta carta, proveniente dos arquivos dos duques de Veragua, esteve exposta na

Torre do Tombo e vem descrita in O Testamento de Adão, ob. cit., pp. 237, nº 106.

6

“disse que no ha enbiado ni enbiará navios algunos”, ordenavam-lhe que apressasse a sua

segunda viagem à América 7.

Neste quadro, não poderemos deixar de citar a ordem de fortificação do Funchal. O

regimento de fortificação, com data de 21 de junho de 1493, foi enviado pelo duque D. Manuel

sob a forma de regimento, acompanhado de detalhado orçamento, mas com a indicação expressa

de ter sido a mesma determinada por D. João II. O regimento era acompanhado de um outro,

muito anterior e para Setúbal, colocando a hipótese desse planeamento ser já pequeno para a

então florescente vila do Funchal. A coincidência de datas não pode deixar de apontar a

necessidade de D. João II colocar outras cartas no seu jogo internacional e, por outro lado, o

papel desempenhado pelo porto do Funchal na estratégia delineada pelo monarca. Pelos pesados

encargos que viriam a recair sobre a Ilha, a população do Funchal intimidou-se, sendo enviados à

corte Álvaro de Ornelas e Nuno Caiado a pedir que não se fizessem essas obras. Alterados os

pressupostos que haviam levado à ordem de D. João II, pois não cremos que este rei fosse

passível de ceder a pressões locais, a construção das muralhas do Funchal foi adiada por carta de

9 de janeiro de 1494 8.

A 27 de julho anterior ainda os Reis Católicos insistiam na ordem para que Cristóvão

Colombo apressasse a sua saída para a segunda viagem às Índias, mostrando-se apreensivos com

a falta de notícias oficiais de Portugal, pois continuavam, em Barcelona, à espera dos

mensageiros de D. João II, “que não haviam chegado” 9. Como já referido, a embaixada

portuguesa só chegou a 14 de agosto desse ano de 1493. Numa carta que os Reis Católicos

enviaram a Colombo, em 18 de agosto de 1493, volta-se a insistir na partida urgente da segunda

armada, até porque se aproximava o Inverno e autoriza-se a que o almirante tentasse “buscar” a

caravela que D. João II enviara “desde la ysla de la Madera”. Salienta-se, no entanto, que “no

toquem en la Guinea hj en la Mjna”, que eram já posses do rei de Portugal. Nessa altura ainda

não se tinham iniciado as conversações com os recém-chegados embaixadores, tendo-se gasto

três dias em “visitaçiones”. A grande preocupação de Fernando e Isabel era a de que o Almirante

partisse o mais cedo possível, devendo precaver-se de forma a não ser detetado pelos navios

portugueses. A carta remate com o pedido do almirante não se ir embora sem lhes deixar a rota

que fizera: “e acordad vos de dexarnos la carta del marear” 10.

As conversações com a embaixada portuguesa só começaram depois de 18 de agosto e

sabemos que em 5 de setembro, nada se tinha assentado, pois a delegação portuguesa aguardava

novas instruções de D. João II. O cronista Rui de Pina escreveu posteriormente que a falta de

progressos foi devida à conjuntura internacional que então se vivia e sobretudo “porque, antes de

finalmente sobre a dita conquista e ilhas e terras se concordarem, quiseram secundariamente

ser certificados da inteira verdade das ditas ilhas e terras, que já eram descobertas e das cousas

que nelas havia, para que tinham já enviados seus navios, que ainda não eram tornados: porque

segundo fosse a estima delas assim se concordariam, insistindo ou desistindo” 11.

Quando os Reis Católicos falaram com os embaixadores portugueses, obtiveram mais

informações relativamente ao assunto da misteriosa caravela da Madeira. Numa carta por eles

enviada a Colombo, em 5 de setembro, repetem a informação de que D. João II tinha “sabydo

que de la ysla de la Madera hera partida una caravela a descubrir yslas o tierras a otras partes

7 Idem, idem, doc. 264.

8 Abordámos este projeto no nosso trabalho Arquitectura Militar da Madeira..., Lisboa / Funchal, 1998, pp. 60 a 65.

Igualmente se encontra pub. por Silva Marques, ob. e vol. cit. docs. 266 e 290.

9Arquivo Geral das Índias, Sevilha, Patronato. Pub. Silva Marques, ob. e vol cit. doc. 271, p. 403.

10 Ibidem, ibidem, doc. 275, pp. 407 e 408.

11 José Manuel Garcia, in O Testamento de Adão, ob. cit., p. .

7

que non han ydo los Portugueses hasta aqui”, acrescentando que os embaixadores lhes tinham

respondido que “aquel que fue en la caravela lo fizo sin mandamyendo del rei de Portugal y que

el Rei avia enbyado en pos del otras três caravelas para lo tomar”. Os Reis Católicos, contudo,

desconfiavam, comentando que “podria ser que esto se fiziese con otros respectos o que los

mjsmos que fueoron en las caravelas, una y otras, querram descobrir algo en lo que pertenece a

nos” 12.

Como é lógico, não existem quaisquer referências na documentação portuguesa sobre estas

caravelas a saírem da Madeira, em princípio, na rota de Colombo. Temos de reconhecer que as

boas intenções de D. João II ao mandar perseguir um foragido da Madeira, não nos parecem um

argumento aceitável, sobretudo tendo em conta que, nesta altura e pelos tratados anteriores, tudo

levava a crer que as terras encontradas por Colombo pertenciam a Portugal. Por outro lado, o

protelar das negociações ao longo destes meses, parece indicar aguardarem-se novos dados para

o tratado em curso.

O Tratado de Tordesilhas

Como referimos, o papa Alexandre IV, favorável aos interesses de Isabel de Castela e

Fernando de Aragão, tentou, através da bula Inter Coetera, de 3 de Maio de 1493, estabelecer

uma linha de demarcação 100 léguas a ocidente das ilhas de Cabo Verde ou dos Açores. Nesse

quadro, ou os embaixadores portugueses não estavam preparados para a situação em causa, da

passagem dos limites de um paralelo a um meridiano, ou D. João II continuava a reavaliar a

situação e o doutor Pedro Dias e Rui de Pina voltaram a Portugal.

Não deixa de ser interessante que, nos inícios de 1494, D. João II já teria avaliado a

situação de uma outra forma em relação ao Funchal, ou recebido as informações que pretendia,

pelo que a urgência de fortificar a então vila já não era tão premente. Assim, em 9 de janeiro

daquele ano, na altura em que deveria ser começada a cerca, o rei mandou "que nom se façam a

çerqua E muros que mandou fazer", dada a opressão que isso iria representar para os moradores,

mas sim "alguum balluartes ,

aquelles que neçessarios forem E

asy se tapem alguuns portaoes,

homde cumprir de se taparem,

pera defemsam E guarda da dita

ylha" 13.

Assim, reavaliada a situação,

em março de 1494 encontrava-se

em Tordesilhas nova embaixada,

desta vez constituída por Rui de

Sousa e João de Sousa, seu filho,

“embaixadores e procuradores ao

ditos reis”, o licenciado Aires de

Almada, corregedor da corte e

Estêvão Vaz, “por secretário”,

citados por Garcia de Resende

como “pessoas no Reino de muito

bom saber, grande confiança e

12 Arquivo Geral das Índias, Sevilha, Patronato, 295. Pub. Silva Marques, ob. e vol cit. doc. 281, pp. 417 a 419.

13 Cif. Arquitectura Militar da Madeira..., ob. cit., pp. 60 a 65. Igualmente se encontra pub. por Silva Marques, ob. e

vol. cit., doc. 290.

8

muita autoridade, e com eles mui honrada companhia” 14, ou sejam, Duarte Pacheco Pereira,

futuro autor do Esmeraldo de Situ Orbis, Rui Leme, filho de Martim Leme, mercador de Bruges

e radicado em Portugal e João Soares de Sequeira, navegador ou comerciante, mas do qual tudo

se ignora.

Foi com este conjunto de embaixadores e cartógrafos que D. João II acabou por fazer valer,

em meados de 1494, não o meridiano a 100 léguas para ocidente das ilhas de Cabo Verde,

proposto pelos Reis Católicos e pelo Papa, mas um a 370 léguas das mesmas Ilhas. A

concretização de 370 léguas, ou seja nem 350 nem 400, o que seria mais lógico, indiciam toda

uma outra atividade profundamente científica levada a efeito em segredo por D. João II para ter

chegado a um tal número.

Conclusões

A alteração e, principalmente o pormenor tão

específico das 370 léguas, tem levado à formulação da

hipótese de que D. João II já então conhecia a existência de

terras brasileiras, pois só através desta alteração era

possível englobar tais terras na zona de influência

portuguesa. Esta hipótese tem tido bastante recetividade,

embora não tenha uma confirmação segura e documental.

Por outro lado, também há quem conteste tal hipótese

alegando, além da falta de provas documentais, que tal

demarcação visava apenas garantir uma mais ampla área de

manobra no Atlântico Sul para os navios portugueses,

obrigados pelo regime de ventos a navegar em arco para

passarem o cabo da Boa Esperança. Mas resta acrescentar

um pormenor importante contra esta tese, que para a

navegação da futura rota do Cabo não era necessário um

tão largo espaço de manobra e as referidas 100 léguas a

ocidente de Cabo Verde eram suficientes para fazer a volta

para o cabo da Boa Esperança.

No entanto, face ao que acabámos de escrever, embora

não haja na parte portuguesa documentação comprovativa, parece não haver dúvidas de que três

ou quatro caravelas saíram da Madeira antes da fixação no Tratado de Tordesilhas das 370

léguas a partir de Cabo Verde. Por outro lado, a colocação na embaixada de Rui Leme, a par do

já experiente navegador e cartógrafo Duarte Pacheco Pereira 15 e de João Lopes de Sequeira, não

foi por certo por acaso, tendo em conta o cuidado que D. João II colocou em todo o processo.

Ora o desaparecimento do nome de António Leme, das vereações da câmara municipal do

Funchal por estas datas, tendo em conta que se tratava de um experiente cavaleiro da casa de D.

João II, ao qual e a seu pedido, D. Afonso V dera armas plenas, ou seja, sem qualquer diferença,

indicia poder encontrar-se numa missão importante. Acresce que, segundo Bartolomeu de Las

Casas, anos antes e numa sua caravela, António Leme já avistara ilhas muito para Oriente da

Madeira, informação que transmitiu no Funchal a Cristóvão Colombo, assim como, nas

vereações do Funchal, o seu nome aparecer quase sempre ao lado de Álvaro de Ornelas,

14 Garcia de Resende, ob. cit., p. 244.

15 Aliás, mais tarde, em 1498, no Esmeraldo de Situ Orbis, Duarte Pacheco Pereira, e é difícil pô-lo em causa,

afirma ter voltado a visitar terras para Ocidente das ilhas de Cabo Verde, que não podem deixar de ser o Brasil.

9

indubitavelmente, um experiente navegador, tudo levando assim a crer ter igualmente sido

navegador.

António Leme tinha, em princípio, boas relações com os principais navegadores portugueses

desta época, tendo a irmã Catarina casado com Fernão Gomes da Mina e poder ter ainda muito

bons contactos no arquipélago dos Açores, vindo a casar com Catarina de Barros, cujo irmão,

Rui de Barros, casou com Catarina de Macedo, filha do capitão do Faial e do Pico, Josse de

Hurtere. Por outro lado, a fazer fé nesta hipótese, dadas as queixas que se fizeram por parte dos

Reis Católicos de terem saído caravelas da Madeira na direção utilizada por Colombo, tal

inviabilizava o aparecimento de um vereador da câmara do Funchal em Tordesilhas a defender

um alargamento dos limites do tratado para ocidente. Assim, D. João II optara por enviar o irmão

mais novo, Rui Leme, radicado em Lisboa.

A entrevista de Cristóvão Colombo com D. João II rei nos dias 9, 10 e 11 de março de

1493 levou à necessidade da negociação de um novo tratado com o Reis Católicos, que haveria

de ser assinado em Arévalo, a 2 de julho de 1494 e ratificado por D. João II, em Setúbal, a 5 de

setembro. O atraso de cerca de um ano nas negociações do Tratado de Tordesilhas tem sido

atribuído ao confronto surgido nas posições portuguesas, que se baseavam no anterior paralelo

definido pelas Canárias e assinalado no Tratado das Alcáçovas, face à nova proposta de um

meridiano a 100 léguas de Cabo Verde,

então apresentada pelos Reis Católicos. No

entanto, outros elementos entretanto

surgidos colocam outros dados em jogo.

Um dos episódios expostos envolveu

a necessidade de novas informações

fornecidas pelas caravelas que saíram da

Madeira e nas quais, muito provavelmente,

poderia ter seguido António Leme. A

avaliar pelas léguas registadas no novo

tratado, estas caravelas teriam visitado e

referenciado muito concretamente as

futuras terras de Santa Cruz, hoje Brasil,

cujo reconhecimento ocorreu assim em

finais de 1493 e cuja notícia chegou ao

conhecimento de D. João II, muito

provavelmente, antes de 9 de janeiro de

1494, data em que autoriza a não

construção, de momento, das defesas do

Funchal, já então não essenciais para o seu

projeto. Não podemos, no entanto, também

escamotear, que entretanto igualmente

chegaria ao conhecimento dos Reis

Católicos a localização mais precisa das

terras descobertas por Colombo, tendo

nesse contexto sido possível então a

assinatura do Tratado de Tordesilhas com

as novas distâncias propostas por D. João

II.