Cristóvão Colombo e a Madeira: antecedentes e consequências da primeira viagem às Antilhas em...
Transcript of Cristóvão Colombo e a Madeira: antecedentes e consequências da primeira viagem às Antilhas em...
1
NOVO MUNDO E MUNDO NOVO. CRISTÓVÃO COLON EM
PORTUGAL - MARÇO DE 1493 – MARÇO DE 2013
520º aniversário da viagem de regresso do descobrimento oficial da
América.
Cristóvão Colombo e a Madeira: antecedentes e consequências da primeira
viagem às Antilhas em 1492 Rui Carita
Professor catedrático da Universidade da Madeira
Portugal definiu as suas fronteiras terrestres quase nos inícios século XII e, nos finais do
século seguinte, configurava os limites que ainda hoje sensivelmente apresenta. Com a crise de
1383-85, veio a configurar-se numa monarquia moderna europeia, assentando parte da sua
estrutura administrativa na cidade de Lisboa, já então um importante
porto europeu comercial, estabelecendo relações com os principais
centros políticos de decisão europeus. Através de casamentos dos
membros da família real e de tratados comerciais, a corte portuguesa
patrocina e dirige um processo fulgurante de expansão ultramarina,
iniciado com a ocupação de praças no Norte de África, pontos-chave
para apoio ao povoamento das ilhas atlânticas e, depois, para a
exploração da costa de África para Sul.
Se já nos anos anteriores Portugal importara tecnologia naval da
área do Mediterrâneo, que adaptara à navegação atlântica, com o
sucesso dessas navegações e das transações comerciais com o Mar do
Norte, especialmente o porto de Lisboa, tornou-se assim num dos
centros económicos de referência da Época Moderna. Em breve,
consolidou-se uma importante colónia mercantil italiana, especialmente
da Ligúria, à qual, progressivamente se associam igualmente elementos
flamengos e de outras cidades italianas.
Foi nesse quadro que apareceu em Lisboa, em meados de Agosto
de 1476, um jovem, em princípio, italiano: Cristóvão Colombo
(Génova (?), cerca de 1451; Valladolid, 20 maio 1506). Tratava-se
então, tudo leva a crer, de um aventureiro que se teria associado às
várias viagens de navegação que saiam de Lisboa, quer para o Sul do
Atlântico quer para o Norte. Colombo falaria então lígure, aprendendo
em Lisboa português e familiarizando-se com as técnicas de navegação
atlântica e cartografia, no que seria depois acompanhado pelo irmão
mais novo Bartolomeu Colombo (c. 1461-1515).
Cristóvão Colombo estava na Madeira em 1478, como funcionário dos mercadores
italianos da colónia lisboeta, Paulo di Negro e Spinola, e por conta da casa genovesa dos
Centorione. Em julho de 1478 partiu de Lisboa para o Funchal ao serviço da casa comercial de
Ludovico Centurione e Paolo di Negro, mercadores genoveses cujos herdeiros são citados nos
testamentos de Colombo (1506) e do seu filho Diogo (1523). Colombo estava encarregado de
comprar 2400 arrobas de açúcar, que deveriam ser carregadas no navio do capitão português
Fernando de Palência. Para o efeito, Di Negro havia-lhe fornecido parte do dinheiro, sendo que o
restante deveria chegar ao Funchal a tempo da transação ser concretizada e da chegada do navio
que deveria carregar o açúcar, o que não aconteceu, tendo os vendedores se recusado a
concretizar a transação.
2
O caso da compra de açúcar na Madeira acabou nos
tribunais de Génova, a fazer fé no documento Assereto, onde
Colombo, então com 27 anos, se encontrava a 25 de agosto
de 1479, tendo prestado declarações na qualidade de
testemunha e cidadão genovês. No dia seguinte, 26 de agosto
de 1479, Colombo embarcaria novamente com destino a
Lisboa. O facto do tribunal de tribunal de Génova o
considerar ainda como cidadão daquela cidade, em agosto de
1479, permite supor que nesta data não estava ainda
permanentemente estabelecido em Lisboa e seria ainda
solteiro, de acordo com a informação de Las Casas, que diz
que o seu casamento e estabelecimento em Portugal levou a
que fosse considerado cidadão português.
A urgência da saída de Génova para Lisboa deve
relacionar-se com o seu casamento com Filipa Moniz, à
época residente com a mãe no mosteiro feminino de Santos-
o-Velho da Ordem de Santiago desde a morte do pai,
Bartolomeu Perestrelo, que fora cavaleiro da casa do Infante
D. João, mestre da Ordem de Santiago e, depois, do infante
D. Henrique. Bartolomeu Perestrelo era de ascendência
italiana, de uma família de Placência e o primeiro capitão do
donatário da ilha do Porto. Havia falecido em 1457 e a sua
viúva, Isabel Moniz, com autorização do infante D. Henrique, vendera a capitania a Pedro
Correia, capitão da Graciosa, nos Açores e que casaria depois, em 1465, com Iseu Perestrelo de
Mendonça, filha do anterior casamento do capitão do Porto Santo. Com a venda da capitania,
Isabel Moniz e a filha recolheram-se no mosteiro de Santos-o-Velho.
Da união de Colombo e Filipa Moniz, em 1479, nasceu o único filho legítimo do futuro
almirante, Diogo Colon Perestrelo, entre 1479 e 1480, depois nomeado pela Coroa Espanhola
como 2º Almirante e Vice-rei das Índias, segundo o meio-irmão Fernando Colombo, na Madeira
ou no Porto Santo. Estando Cristóvão Colombo envolvido no comércio do açúcar e tendo a
capitania do Porto Santo sido vendida em 1457, não nos parece lógica a presença de Colombo e
da mulher no Porto Santo. A estadia do casal no arquipélago, no
entanto, teria sido fugaz, tudo levando a crer, inclusivamente, que
Filipa Moniz poderia ter falecido no Funchal, embora na
documentação de habilitação do filho, Diogo Colon, o mesmo
tivesse mandado escrever que se encontrava sepultada no
convento do Carmo, em Lisboa, na capela dos Monizes.
A relação de Cristóvão Colombo com a ilha da Madeira, no
entanto, ter-se-ia mantido, pois segundo Bartolomeu de Las Casas
teria sido ali, através de António Leme, que tivera acesso a
informações sobre terras ou ilhas situadas muito para Ocidente. A
partir de 1492 o reino de Castela lançou-se na conquista do
Oceano Atlântico e, embora com tecnologias ainda rudimentares
e, até certo ponto, aprendidas em Portugal, esta ação apresentou-se
como uma nítida concorrência ao expansionismo português.
Cristóvão Colombo ao serviço dos Reis Católicos, Isabel de
Castela e Fernando de Aragão, tinha conseguido atingir a América
nos finais de 1492, pensando tratar-se da Índia, alterando assim as
relações de força na área dos "descobrimentos" do Oceano Atlântico.
3
O futuro almirante do mar oceano
estivera cerca de 10 anos em Portugal,
participando, em princípio, em várias
viagens de exploração à Mina e costa da
Guiné e propusera a D. João II atingir a
Índia por Ocidente, ao serviço de
Portugal, o que lhe foi recusado.
Colombo conhecia bem as navegações
portuguesas e ficara com ligações aos
comerciantes italianos radicados em
Portugal e na Madeira, assim como
manteve ligação à colónia portuguesa e
internacional de Sevilha, onde se radicara
uma outra sua meia-cunhada, casada com
o navegador Usodimare.
A viagem às Antilhas tinha sido francamente difícil e Cristóvão Colombo optara por passar
pela ilha de Santa Maria, nos Açores, onde reabasteceu e lançou as âncoras. Mais tarde, veio a
justificar o ter passado por aquele arquipélago, segundo os seus biógrafos, para evitar passar pela
Madeira, onde três caravelas armadas por D. João II o aguardavam para o prender. A razão
apontada não resiste muito à análise, até porque o
regime de ventos induz à passagem pelos Açores e
dificulta bastante a passagem pela Madeira.
Ciente, em princípio, das alterações que iria
produzir a sua missão no quadro político ibérico e,
também, provavelmente, para se vangloriar do seu
feito perante D. João II, que alguns anos antes
recusara o seu projeto de atingir a Índia pelo
Ocidente, antes mesmo de comunicar a notícia aos
Reis Católicos, o navegador foi comunicá-la ao rei de
Portugal, então no convento de Vale Paraíso, perto de
Almeirim, tendo conferenciado com o rei nos dias 9,
10 e 11 de março de 1493. Logo nas conversações de
Vale Paraíso, D. João II terá alegado, de imediato, que
as terras onde Colombo teria chegado lhe pertenciam
de acordo com o que fora estipulado no Tratado de
Alcáçovas, dado se encontrarem a sul do paralelo das
Canárias. Tal posição, como era de esperar, não seria
aceite pelos Reis Católicos, que consideravam suas as
terras descobertas por Colombo, pois elas não se
encontravam nas “partes da Guiné”, como referia esse
tratado.
As negociações do novo tratado de limites
Nesta sequência acabou por se fazer nova partilha do mar oceano entre Portugueses e
Castelhanos, então por um meridiano, celebrada pelo tratado de Tordesilhas. Não vamos aqui
enunciar as complicadas negociações que este tratado envolveu, mas somente as que dizem
respeito ao assunto do nosso trabalho.
4
D. João II seguiu para Torres Vedras depois da reunião de março com Colombo, onde,
após as festas da Páscoa, reuniu o seu conselho. Aí se combinou preparar uma armada para
tomar posse das terras descobertas pelo futuro almirante, tendo o seu comando sido entregue a D.
Francisco de Almeida, “que depois foi o primeiro vice-rei da Índia, homem de muita confiança e
muito bom cavaleiro”, como refere Garcia de Resende 1. No entanto, esta armada preparada, em
princípio, em Lisboa, não chegou a partir, a pedido dos Reis Católicos, através do seu
embaixador D. Lope de Herrera, que para tal se deslocou de imediato a Lisboa.
Em resposta ao pedido de Isabel de Castela e de Fernando de Aragão, a posição inicial de
D. João II foi expressa pelos seus embaixadores, os “doutor Pero Dias do seu desembargo e juiz
dos seus feitos e Rui de Pina, cavaleiro de sua casa e seu secretário”, num memorando entregue
em Barcelona, a 14 de agosto de 1493, data em que devem ter chegado a esta cidade. Aí se
resume a posição de D. João II, a qual se centra no pedido dos Reis Católicos para que se não
enviassem navios às terras descobertas por Colombo, sem antes “assentar e limitar os mares,
ilhas e terras a que os navios e gentes de vossas altezas pudessem ir”. É de salientar se ter
chegado mesmo a ameaçar que se assim não acontecesse,
“se poderiam daí seguir outros inconvenientes e
descontentamentos”.
Demonstrando a melhor boa vontade, D. João II
anunciava que fizera suspender por dois meses a partida dos
“seus navios que tinha prestes pera mandar descobrir”,
considerando o pedido que lhe havia sido transmitido pelo
embaixador, embora se voltasse a insistir que tinha
“ordenados navios que fossem descobrir ao que a sua
alteza bem pertence e mui alongado daquilo que o dito
almirante disse a sua alteza que tinha descoberto” 2. No
entanto, não se explicita quais eram esses seus domínios
onde tencionava “mandar descobrir”. Entretanto, também a
diplomacia dos Reis Católicos se movimentava,
conseguindo obter-se do papa Alexandre VI, nascido
Rodrigo de Borja e que fora arcebispo de Valência, a bula
Inter Coetera, de 3 de maio de 1493, reservando para os
mesmos as terras então descobertas, ou a descobrir, “na
direcção dos índios”, com idênticos direitos e privilégios
que os portugueses tinham pelas bulas anteriores. Uma
segunda bula, sob o mesmo título, de 4 de maio do mesmo
ano, reproduz a primeira parte da anterior e estabelece a
linha de demarcação entre os povos ibéricos: cem léguas a
oeste das ilhas dos Açores e de Cabo Verde 3.
Com esta definição de limites, a delegação portuguesa pareceu hesitar, protelando as
negociações e aguardando novas diretivas de D. João II. O cronista Rui de Pina, um dos
1 Garcia de Resende, Vida e Feytos del Rey Dom Iom Segundo, Lisboa, 1991, p. 241.
2 José Manuel Garcia, in O Testamento de Adão, CNCDP, Torre do Tombo, 1994, p. 94. Este memorial esteve
exposto na Torre do Tombo e vem descrito no mesmo trabalho, pp. 238, nº 107. Tendo colaborado nesta exposição
com José Manuel Garcia, foi com o mesmo que iniciámos este estudo, ao qual, ao longo destes 20 anos, fomos
acrescentado novos elementos.
3 Estas bulas encontram-se publicadas por João Martins da Silva Marques, Descobrimentos Portugueses, 2º vol.,
Lisboa, 1944. A segunda esteve exposta na Torre do Tombo e vem descrita in O Testamento de Adão, ob. cit., pp.
235 a 237, nº 105.
5
participantes nesta segunda embaixada, confirma-nos as alegações conhecidas da documentação
castelhana, ao dizer que a armada portuguesa, “sendo já prestes, chegou a el-rei um chamado
Ferreira, mensageiro dos reis de Castela (o embaixador D. Lope de Herrera, por certo), que por
serem certificados do fundamento da dita armada que era contra outra sua, que logo havia de
tornar, lhe requereu que nela sobestivesse até se ver por direito em cujos mares e conquistas o
dito descobrimento cabia (... ), pelo qual, el-rel desistiu de enviar a dita armada” 4.
As caravelas da Madeira
Analisando a documentação dos Reis Católicos e de Colombo, verificamos inúmeros
indícios que levam à suspeita de que, embora a armada de D. Francisco de Almeida não tenha
saído de Portugal, logo a seguir à viagem do almirante, os portugueses, por certo às ordens de D.
João II, tentaram obter informações, ou novas informações, sobre as terras a ocidente e teriam
sido enviados navios naquela rota. Assim, logo com data de 2 de Maio, já os Reis Católicos
agradecem ao duque de Medina Sidónia a informação que o mesmo enviara, sobre a armada que
o rei de Portugal se preparava para enviar às terras descobertas por Colombo. Ao mesmo tempo,
Isabel de Castela e Fernando de Aragão dão-lhe ordem para se terem prontas e aparelhadas para
qualquer eventualidade “todas as caravelas” 5 disponíveis, pensamos.
A 1 de Julho idêntico agradecimento é feito ao almirante Cristóvão Colombo, “sobre
certos navios enviados pelo rei de Portugal”, informação de que, citam, já tinham conhecimento.
Esta carta é fracamente interessante, pois
refere que os Reis Católicos se
encontravam na posse de um livro de
Colombo, que iam mandar fazer uma
cópia e que a remeteriam depois ao
almirante por D. Juan Rodriguez de
Fonseca 6. Tratava-se do famoso diário
da primeira viagem, única prova gráfica
da viagem de Colombo e cuja cópia seria
feita por dois copistas, às escondidas da
embaixada portuguesa, então em
Barcelona. A cópia seria enviada para
Puerto de Santa Maria, conforme carta de
5 de Setembro seguinte e o original
ficaria em Barcelona.
A primeira informação do duque de
Medina Sidónia refere-se, por certo, à
armada de D. Francisco de Almeida, mas
a de Colombo parece referir-se a outros navios, por certo os partidos da Madeira, como
referiremos a seguir. A 12 de junho, Isabel de Castela e Fernando de Aragão voltam a escrever a
Colombo, dando-lhe notícias da missão do seu “mensageiro Herrera” e, embora confirmem a
versão relatada acima por Rui de Pina, de que D. João II negara que enviara os tais navios e
4 José Manuel Garcia, in O Testamento de Adão, ob. cit., p. 94; cit. de Rui de Pina, Crónica de El Rey D. João II,
Lisboa, 1977, p. 1017.
5 Arquivo Geral das Índias, Sevilha, Patronato, p. 79, II, p. 28. Pub. Silva Marques, ob. e vol cit. doc. 252, p. 373.
6 Ibidem, nº 293; ibidem, doc. 262. Esta carta, proveniente dos arquivos dos duques de Veragua, esteve exposta na
Torre do Tombo e vem descrita in O Testamento de Adão, ob. cit., pp. 237, nº 106.
6
“disse que no ha enbiado ni enbiará navios algunos”, ordenavam-lhe que apressasse a sua
segunda viagem à América 7.
Neste quadro, não poderemos deixar de citar a ordem de fortificação do Funchal. O
regimento de fortificação, com data de 21 de junho de 1493, foi enviado pelo duque D. Manuel
sob a forma de regimento, acompanhado de detalhado orçamento, mas com a indicação expressa
de ter sido a mesma determinada por D. João II. O regimento era acompanhado de um outro,
muito anterior e para Setúbal, colocando a hipótese desse planeamento ser já pequeno para a
então florescente vila do Funchal. A coincidência de datas não pode deixar de apontar a
necessidade de D. João II colocar outras cartas no seu jogo internacional e, por outro lado, o
papel desempenhado pelo porto do Funchal na estratégia delineada pelo monarca. Pelos pesados
encargos que viriam a recair sobre a Ilha, a população do Funchal intimidou-se, sendo enviados à
corte Álvaro de Ornelas e Nuno Caiado a pedir que não se fizessem essas obras. Alterados os
pressupostos que haviam levado à ordem de D. João II, pois não cremos que este rei fosse
passível de ceder a pressões locais, a construção das muralhas do Funchal foi adiada por carta de
9 de janeiro de 1494 8.
A 27 de julho anterior ainda os Reis Católicos insistiam na ordem para que Cristóvão
Colombo apressasse a sua saída para a segunda viagem às Índias, mostrando-se apreensivos com
a falta de notícias oficiais de Portugal, pois continuavam, em Barcelona, à espera dos
mensageiros de D. João II, “que não haviam chegado” 9. Como já referido, a embaixada
portuguesa só chegou a 14 de agosto desse ano de 1493. Numa carta que os Reis Católicos
enviaram a Colombo, em 18 de agosto de 1493, volta-se a insistir na partida urgente da segunda
armada, até porque se aproximava o Inverno e autoriza-se a que o almirante tentasse “buscar” a
caravela que D. João II enviara “desde la ysla de la Madera”. Salienta-se, no entanto, que “no
toquem en la Guinea hj en la Mjna”, que eram já posses do rei de Portugal. Nessa altura ainda
não se tinham iniciado as conversações com os recém-chegados embaixadores, tendo-se gasto
três dias em “visitaçiones”. A grande preocupação de Fernando e Isabel era a de que o Almirante
partisse o mais cedo possível, devendo precaver-se de forma a não ser detetado pelos navios
portugueses. A carta remate com o pedido do almirante não se ir embora sem lhes deixar a rota
que fizera: “e acordad vos de dexarnos la carta del marear” 10.
As conversações com a embaixada portuguesa só começaram depois de 18 de agosto e
sabemos que em 5 de setembro, nada se tinha assentado, pois a delegação portuguesa aguardava
novas instruções de D. João II. O cronista Rui de Pina escreveu posteriormente que a falta de
progressos foi devida à conjuntura internacional que então se vivia e sobretudo “porque, antes de
finalmente sobre a dita conquista e ilhas e terras se concordarem, quiseram secundariamente
ser certificados da inteira verdade das ditas ilhas e terras, que já eram descobertas e das cousas
que nelas havia, para que tinham já enviados seus navios, que ainda não eram tornados: porque
segundo fosse a estima delas assim se concordariam, insistindo ou desistindo” 11.
Quando os Reis Católicos falaram com os embaixadores portugueses, obtiveram mais
informações relativamente ao assunto da misteriosa caravela da Madeira. Numa carta por eles
enviada a Colombo, em 5 de setembro, repetem a informação de que D. João II tinha “sabydo
que de la ysla de la Madera hera partida una caravela a descubrir yslas o tierras a otras partes
7 Idem, idem, doc. 264.
8 Abordámos este projeto no nosso trabalho Arquitectura Militar da Madeira..., Lisboa / Funchal, 1998, pp. 60 a 65.
Igualmente se encontra pub. por Silva Marques, ob. e vol. cit. docs. 266 e 290.
9Arquivo Geral das Índias, Sevilha, Patronato. Pub. Silva Marques, ob. e vol cit. doc. 271, p. 403.
10 Ibidem, ibidem, doc. 275, pp. 407 e 408.
11 José Manuel Garcia, in O Testamento de Adão, ob. cit., p. .
7
que non han ydo los Portugueses hasta aqui”, acrescentando que os embaixadores lhes tinham
respondido que “aquel que fue en la caravela lo fizo sin mandamyendo del rei de Portugal y que
el Rei avia enbyado en pos del otras três caravelas para lo tomar”. Os Reis Católicos, contudo,
desconfiavam, comentando que “podria ser que esto se fiziese con otros respectos o que los
mjsmos que fueoron en las caravelas, una y otras, querram descobrir algo en lo que pertenece a
nos” 12.
Como é lógico, não existem quaisquer referências na documentação portuguesa sobre estas
caravelas a saírem da Madeira, em princípio, na rota de Colombo. Temos de reconhecer que as
boas intenções de D. João II ao mandar perseguir um foragido da Madeira, não nos parecem um
argumento aceitável, sobretudo tendo em conta que, nesta altura e pelos tratados anteriores, tudo
levava a crer que as terras encontradas por Colombo pertenciam a Portugal. Por outro lado, o
protelar das negociações ao longo destes meses, parece indicar aguardarem-se novos dados para
o tratado em curso.
O Tratado de Tordesilhas
Como referimos, o papa Alexandre IV, favorável aos interesses de Isabel de Castela e
Fernando de Aragão, tentou, através da bula Inter Coetera, de 3 de Maio de 1493, estabelecer
uma linha de demarcação 100 léguas a ocidente das ilhas de Cabo Verde ou dos Açores. Nesse
quadro, ou os embaixadores portugueses não estavam preparados para a situação em causa, da
passagem dos limites de um paralelo a um meridiano, ou D. João II continuava a reavaliar a
situação e o doutor Pedro Dias e Rui de Pina voltaram a Portugal.
Não deixa de ser interessante que, nos inícios de 1494, D. João II já teria avaliado a
situação de uma outra forma em relação ao Funchal, ou recebido as informações que pretendia,
pelo que a urgência de fortificar a então vila já não era tão premente. Assim, em 9 de janeiro
daquele ano, na altura em que deveria ser começada a cerca, o rei mandou "que nom se façam a
çerqua E muros que mandou fazer", dada a opressão que isso iria representar para os moradores,
mas sim "alguum balluartes ,
aquelles que neçessarios forem E
asy se tapem alguuns portaoes,
homde cumprir de se taparem,
pera defemsam E guarda da dita
ylha" 13.
Assim, reavaliada a situação,
em março de 1494 encontrava-se
em Tordesilhas nova embaixada,
desta vez constituída por Rui de
Sousa e João de Sousa, seu filho,
“embaixadores e procuradores ao
ditos reis”, o licenciado Aires de
Almada, corregedor da corte e
Estêvão Vaz, “por secretário”,
citados por Garcia de Resende
como “pessoas no Reino de muito
bom saber, grande confiança e
12 Arquivo Geral das Índias, Sevilha, Patronato, 295. Pub. Silva Marques, ob. e vol cit. doc. 281, pp. 417 a 419.
13 Cif. Arquitectura Militar da Madeira..., ob. cit., pp. 60 a 65. Igualmente se encontra pub. por Silva Marques, ob. e
vol. cit., doc. 290.
8
muita autoridade, e com eles mui honrada companhia” 14, ou sejam, Duarte Pacheco Pereira,
futuro autor do Esmeraldo de Situ Orbis, Rui Leme, filho de Martim Leme, mercador de Bruges
e radicado em Portugal e João Soares de Sequeira, navegador ou comerciante, mas do qual tudo
se ignora.
Foi com este conjunto de embaixadores e cartógrafos que D. João II acabou por fazer valer,
em meados de 1494, não o meridiano a 100 léguas para ocidente das ilhas de Cabo Verde,
proposto pelos Reis Católicos e pelo Papa, mas um a 370 léguas das mesmas Ilhas. A
concretização de 370 léguas, ou seja nem 350 nem 400, o que seria mais lógico, indiciam toda
uma outra atividade profundamente científica levada a efeito em segredo por D. João II para ter
chegado a um tal número.
Conclusões
A alteração e, principalmente o pormenor tão
específico das 370 léguas, tem levado à formulação da
hipótese de que D. João II já então conhecia a existência de
terras brasileiras, pois só através desta alteração era
possível englobar tais terras na zona de influência
portuguesa. Esta hipótese tem tido bastante recetividade,
embora não tenha uma confirmação segura e documental.
Por outro lado, também há quem conteste tal hipótese
alegando, além da falta de provas documentais, que tal
demarcação visava apenas garantir uma mais ampla área de
manobra no Atlântico Sul para os navios portugueses,
obrigados pelo regime de ventos a navegar em arco para
passarem o cabo da Boa Esperança. Mas resta acrescentar
um pormenor importante contra esta tese, que para a
navegação da futura rota do Cabo não era necessário um
tão largo espaço de manobra e as referidas 100 léguas a
ocidente de Cabo Verde eram suficientes para fazer a volta
para o cabo da Boa Esperança.
No entanto, face ao que acabámos de escrever, embora
não haja na parte portuguesa documentação comprovativa, parece não haver dúvidas de que três
ou quatro caravelas saíram da Madeira antes da fixação no Tratado de Tordesilhas das 370
léguas a partir de Cabo Verde. Por outro lado, a colocação na embaixada de Rui Leme, a par do
já experiente navegador e cartógrafo Duarte Pacheco Pereira 15 e de João Lopes de Sequeira, não
foi por certo por acaso, tendo em conta o cuidado que D. João II colocou em todo o processo.
Ora o desaparecimento do nome de António Leme, das vereações da câmara municipal do
Funchal por estas datas, tendo em conta que se tratava de um experiente cavaleiro da casa de D.
João II, ao qual e a seu pedido, D. Afonso V dera armas plenas, ou seja, sem qualquer diferença,
indicia poder encontrar-se numa missão importante. Acresce que, segundo Bartolomeu de Las
Casas, anos antes e numa sua caravela, António Leme já avistara ilhas muito para Oriente da
Madeira, informação que transmitiu no Funchal a Cristóvão Colombo, assim como, nas
vereações do Funchal, o seu nome aparecer quase sempre ao lado de Álvaro de Ornelas,
14 Garcia de Resende, ob. cit., p. 244.
15 Aliás, mais tarde, em 1498, no Esmeraldo de Situ Orbis, Duarte Pacheco Pereira, e é difícil pô-lo em causa,
afirma ter voltado a visitar terras para Ocidente das ilhas de Cabo Verde, que não podem deixar de ser o Brasil.
9
indubitavelmente, um experiente navegador, tudo levando assim a crer ter igualmente sido
navegador.
António Leme tinha, em princípio, boas relações com os principais navegadores portugueses
desta época, tendo a irmã Catarina casado com Fernão Gomes da Mina e poder ter ainda muito
bons contactos no arquipélago dos Açores, vindo a casar com Catarina de Barros, cujo irmão,
Rui de Barros, casou com Catarina de Macedo, filha do capitão do Faial e do Pico, Josse de
Hurtere. Por outro lado, a fazer fé nesta hipótese, dadas as queixas que se fizeram por parte dos
Reis Católicos de terem saído caravelas da Madeira na direção utilizada por Colombo, tal
inviabilizava o aparecimento de um vereador da câmara do Funchal em Tordesilhas a defender
um alargamento dos limites do tratado para ocidente. Assim, D. João II optara por enviar o irmão
mais novo, Rui Leme, radicado em Lisboa.
A entrevista de Cristóvão Colombo com D. João II rei nos dias 9, 10 e 11 de março de
1493 levou à necessidade da negociação de um novo tratado com o Reis Católicos, que haveria
de ser assinado em Arévalo, a 2 de julho de 1494 e ratificado por D. João II, em Setúbal, a 5 de
setembro. O atraso de cerca de um ano nas negociações do Tratado de Tordesilhas tem sido
atribuído ao confronto surgido nas posições portuguesas, que se baseavam no anterior paralelo
definido pelas Canárias e assinalado no Tratado das Alcáçovas, face à nova proposta de um
meridiano a 100 léguas de Cabo Verde,
então apresentada pelos Reis Católicos. No
entanto, outros elementos entretanto
surgidos colocam outros dados em jogo.
Um dos episódios expostos envolveu
a necessidade de novas informações
fornecidas pelas caravelas que saíram da
Madeira e nas quais, muito provavelmente,
poderia ter seguido António Leme. A
avaliar pelas léguas registadas no novo
tratado, estas caravelas teriam visitado e
referenciado muito concretamente as
futuras terras de Santa Cruz, hoje Brasil,
cujo reconhecimento ocorreu assim em
finais de 1493 e cuja notícia chegou ao
conhecimento de D. João II, muito
provavelmente, antes de 9 de janeiro de
1494, data em que autoriza a não
construção, de momento, das defesas do
Funchal, já então não essenciais para o seu
projeto. Não podemos, no entanto, também
escamotear, que entretanto igualmente
chegaria ao conhecimento dos Reis
Católicos a localização mais precisa das
terras descobertas por Colombo, tendo
nesse contexto sido possível então a
assinatura do Tratado de Tordesilhas com
as novas distâncias propostas por D. João
II.